Capítulo Único
O despertador tocava alto na suíte do apartamento na cobertura do prédio, todas as cortinas estavam fechadas e nenhuma luz entrava ali. Podiam se observar roupas jogadas pelo lugar, uma garrafa de uísque na cabeceira e um corpo desacordado na cama. Era a cena corriqueira das últimas semanas (ou meses?) da vida de .
Ela levantou o braço sem olhar e tentou desligar o despertador, mas acabou esbarrando na garrafa e a derrubando em um barulho alto o suficiente para fazê-la pular.
— PORRA! — gritou se sentando e olhou o líquido escorrendo pelo chão. Sua cabeça doía da noite anterior, não tinha nem ideia do motivo de ter colocado um alarme, não existia porque acordar cedo havia muito tempo.
Pegou o celular que ainda emitia o som irritado, o desligou e olhou a data. Havia um lembrete: “Voo para Las Vegas, grande noite: tudo ou nada”. Suspirou e levantou da cama, tomando cuidado para não pisar nos cacos de vidro no chão, foi em direção ao banheiro e se observou no espelho. Estava acabada como se tivesse trabalhado o dia todo, com olheiras e se sentindo como se um trem tivesse passado por ela, tudo doía. Não entendia como sua vida podia mudar tanto e ainda acordar como se devesse a todo um país, mas havia resolvido um tempo atrás que chegou o momento de parar. Ontem foi a última noite desse comportamento, hoje seria sua despedida e, independente dos resultados, pararia e construiria uma vida de verdade, não a versão hollywoodiana que criara para si.
Talvez tivesse demorado muito, mas nunca era tarde demais.
Quatro anos antes
descia as escadas do seu prédio com pressa, estava atrasada para o trabalho. Acabara dormindo demais depois do seu turno noturno no correio, era para ser sua noite de folga, mas ofereceram a mais e não estava em posição de recusar. Passava pela entrada quando seu vizinho chamou seu nome.
— ! Deixaram isso na minha caixa do correio, mas tem o seu nome, devem ter errado de novo. — dizia com um sorriso simpático.
— Ah sim, obrigada! — pegou os papeis e deu um sorriso amarelo quando viu o que eram. Mais contas, a esse ritmo nem todos os turnos extras no mundo conseguiriam deixá-la respirar tranquila. Suspirou e foi em direção à sua bicicleta, talvez fosse melhor que tivessem permanecido na caixa errada, seriam uma preocupação a menos.
Já passava das sete horas da noite, limpava o balcão enquanto seu turno finalmente chegava ao fim, quando Cornell em suas roupas sempre escuras entrou pela porta principal da lanchonete, a cumprimentou e sentou na cadeira a sua frente.
— Como está minha garçonete preferida? — levantou a sobrancelha, sua amizade com o garoto moreno de olhos escuros e sorriso fácil era engraçada, os dois não poderiam ser mais diferentes e, se seus amigos não tivessem namorado, nunca teriam tido motivos para sequer se cumprimentarem. Ironicamente, os amigos terminaram e eles se viam quase toda a semana, mesmo que ele a irritasse a metade do tempo. Enquanto não falava direito com a amiga desde o hospital, não tinha tempo sempre dizia, mas ainda assim via regularmente.
— Eu não acho que você suba do seu pedestal o suficiente para falar com qualquer outra, — Cornell fez uma cara ofendida que ela ignorou — mas eu estou bem, só cansada, como sempre. E você? Como foi o encontro de ontem? Melanie, certo?
— Foi divertido até ela receber uma ligação do ex e descobrir que precisava lutar pelo o que amava, espero um dia encontrar com ela e descobrir se ela notou a chance que perdeu ou se era o “amor da vida” dela mesmo. – disse a última parte fazendo aspas e um sorriso debochado. Para alguém que sempre ia para encontros em busca de um relacionamento estável, ele zombava muito de casais. Não que normalmente a coisa evoluísse além do casual com ele.
começou a rir sem tentar disfarçar. Aquilo era apenas precioso, o senhor bom partido, como ele mesmo se intitulava, deixado num encontro pelo amor verdadeiro.
— Pode rir, mas não foi para isso que eu vim aqui. — agora ele parecia sério, o que era raro — Eu vim fazer uma pergunta, você sabe jogar pôquer?
— Hum... Essa talvez seja a coisa mais estranha que você já fez comigo, vir até aqui e me fazer uma pergunta, sabia que existe algo chamado celular, certo? – não poderia deixar de ironizar. – Mas sim, eu tenho uma ideia, por quê?
— Porque eu preciso de alguém para treinar e eu confio em você para não me deixar pobre enquanto isso. Queria saber se poderíamos jogar hoje, eu preciso parecer o mínimo confiante até sábado
— Espera, treino para pôquer? Você é jogador agora? — a surpresa em sua voz era evidente, nunca tinha visto um traço disso na personalidade dele e reconhecia um jogador de longe, afinal conviveu com um por muito tempo — Não que não tenha dinheiro para perder á toa, mas não acho que era isso que sua mãe imaginava quando te deu acesso a seu fundo.
— Eu costumava jogar há muito tempo, estou enferrujado e não pretendo sair da mesa limpo. Uns antigos amigos meus estão pela cidade e me chamaram para jogar. Então, aceita? Eu realmente preciso de alguém que não tiraria todo o meu dinheiro da carteira e o meu relógio. – disse sorrindo encantadoramente como se fosse um menino doce.
— Eu estou bem cansada e tem três dias até sábado, não precisa ser hoje — olhou para ela como se estivesse desconsolado, suspirou cansada e cedeu, não podia afastar mais pessoas ainda da sua vida — Tudo bem, mas não mais que uma hora, eu preciso dormir e estudar. Ah, não se preocupe com perder dinheiro, eu não tenho nada que possa apostar nesse momento, só se fizéssemos com doces.
— Então, a melhor mão é Full House (1) não é? – olhou indignado para ela, enquanto segurava suas cartas após algumas rodadas, estava ganhando e seu lado com doces demonstrava bem isso.
— Eu pensei que você soubesse jogar.
— Sei como funciona, só não sei as mãos direito. — olhava divertida para o jogador balançando a cabeça como que decepcionado e ferrado com a situação em que se encontrava.
— Como você consegue jogar ou blefar ou planejar sem saber as mãos direito? — quase jogou as cartas para o alto enquanto gesticulava.
— Não sei, eu só jogava. Não vai abrir as três cartas? Nós dois já apostamos. — falou apontando para os doces na mesa.
— Quis dizer Flop (2)? Você disse no caminho que jogava com o seu avô, como ele nunca te ensinou os termos? — ela somente olhou para ele o fazendo continuar, virou as três cartas comunitárias que mostravam um 7 e um 9 de paus, um reis de espadas. olhou feliz para a mesa, já achava que iria ganhar só com o par de K que tinha na mão, agora era uma trinca (3).
— Eu vou all in. – ela disse, colocando todos os seus doces favoritos na mesa, claro que essa expressão ela conhecia, apostar tudo quando não tinha nem ideia do que estava acontecendo era sua marca registrada.
— Cubro. — talvez aquele jogo não fosse ajudar muito sábado com os meninos, mas iria ser bom para sua autoestima depois de ser destroçado por eles.
Jogou a quarta carta na mesa (turn) e era um K de copas, já tinha uma quadra, fazia tempo que não pegava uma mão tão boa e com tanta sorte nas cartas comunitárias. Prosseguiu jogando a última carta (river) mostrando um 6 de paus. Virou-se sorrindo para virando suas cartas.
— Eu tenho uma quadra! – já estava pegando sua aposta quando a mão de lhe parou.
— Não tão rápido, eu ainda nem mostrei a minha mão ainda. — disse mostrando um 10 e um 8 de paus enquanto ele olhava boquiaberto — Até onde eu sei, Straigh Flush ganha de quadra.
— Eu pensei que você não soubesse sobre as mãos. — lhe dava um sorriso irônico, percebeu então que ela tinha brincado com ele e, como um patinho, caiu.
— Meu avô não apenas me ensinou a jogar, ele competia esperando ficar rico um dia, ele precisava praticar e eu achava legal, era quase a única coisa que tínhamos em comum. Ao contrário da crença popular, eu só aposto tudo quando sei bem onde estou pisando.
Cornell não levou muito a sério e achou que era sorte de principiante. Nos dias seguintes, conseguiu ganhar dele com um Full House e alguns vários blefes.
Ela sempre soube quando jogar de verdade, blefar ou parar, muito mais do que quem a ensinou.
(1) uma trinca e um par na mesma mão. É a quarta melhor mão que se pode ter no pôquer.
(2) Depois que cada jogador recebe duas cartas e cada um faz sua aposta, desisti ou permanece com o que está na mesa, o dealer joga as três cartas comunitárias. A jogada da 4 carta se chama turn e da quinta ou última é river.
(3) quando se tem quaisquer três cartas de mesmo número ou valor, é a 7º melhor mão. Quadra são 4 cartas, é a 3º melhor.
Straigh Flush são 5 cartas do mesmo naipe em sequência, é a 2º melhor.
— Vão essa mala e essa aqui. — disse para o porteiro do seu prédio apontando para uma mala média e uma maleta no chão. Ele olhava estranhamente para as caixas espalhadas pela sala de estar, os móveis continuavam ali, mas qualquer indício pessoal parecia ter ido parar nas caixas.
— A senhorita vai se mudar? — Max perguntou surpreso enquanto levava as malas até o elevador, aquele apartamento de três quartos e um escritório tinha sido comprado por no último ano e ela parecia ter gostado muito, parecia cedo demais para se desfazer de algo que poderia ter a vida inteira.
— Não por muito tempo, vou alugar por um tempo, mas não se preocupe, eu volto. Só preciso colocar umas coisas de volta ao trilho. — disse simpática, das coisas que talvez sentisse falta seria aquele lugar, mas ele tinha sido criado em um ambiente que tentava fugir agora, sabia que continuar próxima de tudo, tornaria as coisas mais difíceis de parar. — Vão vir buscar tudo e limpar durante a semana, o inquilino deve chegar no início do mês que vêm, você vai gostar dele, é um amigo há pouco tempo, mas bem tranquilo.
— Acredito que seja. — disse meio inseguro, de tudo o que tinha visto sobre a Srta. Walker era que amigos tranquilos não estavam na sua lista diária, se aquelas pessoas estranhavam que entravam no fim da noite e saiam bem depois do amanhecer podiam ser chamadas de amigos. — De qualquer jeito, vou sentir falta da senhorita, sempre foi agradável comigo e com todos, espero que resolva seja lá o que esteja sem rumo.
riu um pouco enquanto o elevador fechava e via pela última vez, em um bom tempo, a porta do apartamento do prédio azul das flores roxas que parecia um sonho por anos.
— Eu também vou, esse lugar foi um marco para mim. E você foi o melhor porteiro que já tive na vida, não que eu tenha tido muitos para comparar. Mas não se preocupe, estarei de volta rápido o suficiente para esquecer que algum dia fui embora. — Talvez essa última parte não fosse exatamente verdade, não tinha ideia de quanto tempo passaria fora, só que pegaria esse voo, teria o último jogo milionário da sua vida e construiria algo sólido, não um castelo de areia que cairia sobre qualquer pressão.
— Como foram os jogos? Eu sinto que só te vejo para jogar mais, não sei se você sabe fazer algo mais da sua vida além disso. — e estavam sentados no chão do apartamento dele, ambos segurando uma cerveja na mão enquanto conversavam quando ela perguntou.
— Tenho vergonha de dizer que você não foi a única pessoa que eu perdi, mas não perco em nenhuma quantidade próxima deles como de você, se eu tivesse metade da sua sorte com cartas ou sua habilidade de fazer alguém acreditar não ter nada quando tem a melhor mão da mesa ou ter tudo quando não possui nem a carta mais alta, estaria em Las Vegas competindo o World Series of Poker Main Event (1).
— Primeiramente, pôquer não é sorte, não é nem sobre a mão que você ganha, é sobre percepção, que tipo de jogador se mostra e como lê os outros e as suas mãos. É sobre habilidade, 70% dos jogos nem chegam ao Showdown (2). É o equilíbrio entre não blefar demais e ninguém realmente acreditar ou blefar tão pouco que, qualquer aposta alta, sabem que você definitivamente tem uma mão para não se apostar contra e desistir. Ter equilíbrio e não ser agressivo demais e ir all in com qualquer mão minimamente boa ou só tentar quando tiver a melhor mão para começar.
— Para alguém que disse ter uma ideia de como jogar, entende muito do assunto. — Ela olhou para ele indignada com o uso do seu segundo nome e lhe deu um tapa.
— Eu não sei o que estava pensando quando te deixei ver meu nome completo, não é como se alguém usasse meu segundo nome além de você. — disse exasperada.
— Eu gosto de me sentir especial, por isso uso. Além disso, não me deixou ver seu nome. Eu só levei as contas da sua caixa de correio para o apartamento e li para quem estava endereçado. Não tive bem a sua autorização para isso. — deu um sorriso inocente a isso. — E ainda não me respondeu como sabe tanto, vê o campeonato todo ano ou os programas sempre?
— Como se tivesse tempo para isso. Eu já disse, aprendi com o meu avô. Meu pai nunca ligou muito para mim e depois que minha mãe morreu, ele me jogava para cima dos meus avós sempre que podia. Meu avô amava o jogo, queria se tornar profissional e ficar milionário, mas como os 95% dos jogadores que não conseguem pagar nenhuma conta com isso, quanto mais viver do jogo, o máximo que ele conseguiu foi me ensinar. Eu gostava, mas sempre tinha coisas mais importantes do que focar nisso.
— Ele pode não ter conseguido, mas você definitivamente deveria tentar. Talvez não ser profissional, mas um jogo caseiro com uma aposta razoável pode te ajudar nas suas contas. — deu a ideia como se tivesse pensado nisso naquele momento e não várias vezes pelas últimas semanas, parecia o momento certo para soltar aquela ideia naturalmente. riu perante a ideia, como se ela conhecesse gente com dinheiro suficiente para cobrir 40.000 em dívidas.
— Boa ideia, porque eu não chamo o meu vizinho e ganho 20 fácil com ele, talvez eu consiga pagar meu telefone com isso. Ou melhor, vou para o beco escuro mais bizarro que o resto já estranho do meu bairro, então se eu ganhar apanho porque vão pensar que trapaceie, ou perco e, além de ter mais uma dívida, ainda ganho um agiota simpático para cobrar educadamente. — não podia evitar o sarcasmo na voz enquanto se levantava em direção à cozinha, era cada coisa que Cornell dizia quando tomava uma cerveja a mais, ainda era cedo, mas talvez a resistência dele tivesse diminuído desde a última vez.
— Eu estou falando sério! Olha, o pessoal que eu jogo faz uma mesa maior nas quartas-feiras, eu cubro seu buy-in (3), se perder, não me deve nada já que eles estão me devendo da semana passada e eu com minha habilidade limitada posso ganhar de volta em outra mão, se ganhar só precisa tirar o que eu dei para iniciar. Eu sei que as coisas não estão fáceis com a dívida do hospital, vejo como trabalha dia e noite, seja no correio ou na lanchonete, e pela sua cara ou como seus ombros estão sempre para baixo, está bem longe de ter algo resolvido. É orgulhosa demais para me deixar ajudar, então pelo menos me deixe patrocinar seu talento e poder esfregar na cara deles que perderam para uma menina que a última vez jogada antes de mim foi anos antes.
Era tentador, mas sabia que não poderia aceitar, não queria mudar a dinâmica do relacionamento deles envolvendo dinheiro e jogo, era a própria receita do fracasso. Mesmo com as coisas difíceis desde que saiu de casa e teve a sorte de ficar doente sem um plano de saúde, dever uma fortuna devido a exames e uma cirurgia para retirada de pedras na vesícula. Hoje em dia, tinha dois empregos, tempo livre quase apenas para dormir, tirando dinheiro do céu para pagar um plano para não ter mais nenhuma surpresa e acrescentar algo ao montante da dívida. E ainda assim, as contas nunca batiam e parecia sempre estar quase para se afogar, era uma das únicas boas dos seus dias, não queria prejudicar aquilo por algo que nem sabia se valeria a pena.
— Bem, muito obrigada por querer fazer isso por mim, mas eu não posso aceitar. Precisará esfregar a sua vitória na cara deles, porque eu não posso ajudar nisso. — disse com finalidade.
(1) é o maior e mais conhecido campeonato de pôquer ao vivo do mundo, acontece anualmente em Las Vegas. Depois de 2007, houve expansões e já existe a versão europeia e a Ásia-Pacífico
(2) Se no final do jogo sobrarem 2 ou mais pessoas, todos devem mostrar sua mão, o chamado show down. Se antes disso, enquanto as apostas acontecerem e o outro jogador der fold (desistir da mão), o ganhador da rodada
(3) quantia que os apostadores devem pagar para entrar em um torneio/mesa
Três semanas depois, estava em frente à porta de uma casa em uma das áreas mais caras da cidade, ainda não acreditava ter cedido tão facilmente, mas a verdade era que estava tentada desde o primeiro momento. Quando tentou leva-la para a mesa menor, com um buy-in bem menor da de quarta-feira, dizendo ser um jogo amigável com pessoas confiáveis que só queriam se divertir, ela disse sim pensando que teria como controlar a situação, observar os padrões de jogo deles e não criar mais dívidas, quem sabe realmente diminuí-las. jogava consideravelmente bem e se conseguia ganhar deles, também poderia.
Ele apertou seu ombro como se dissesse “tudo vai dar certo” enquanto a porta era aberta por um cara aparentando estar no final dos seus 20 anos, talvez alguns anos mais velho que ela. Ele era bonito, alto, mais ou menos do tamanho de , com olhos azuis e uma expressão gentil.
— Olha quem temos aqui! Nosso jogador sumido, faz umas duas partidas que não te vejo. — o cara ainda sem nome disse com um sorriso e o abraçou.
— Dylan, eu andei meio ocupado e, na verdade, não estou aqui para jogar, sim para patrocinar e assistir, trouxe uma amiga para agitar um pouco as coisas. — Disse apontado para ela. Dylan levantou as sobrancelhas surpreso, não era incomum trazer alguém novo, mas era a primeira garota que traziam para aquela mesa. — Esta é .
— Ah, eu acho que já ouvi você comentando sobre ela, a sua amiga que aparentemente é realmente sua amiga, não um eufemismo da palavra e ela realmente existe — disse dramático. — Prazer , eu sou Dylan Cooper, amigo desse cara, nós estudamos no mesmo colégio por volta de 1500.
deu um risinho e o cumprimentou de volta. Os três entraram pela casa em direção ao que parecia ser uma sala de estar, com uma grande mesa no centro e já haviam vários caras sentados, cinco pela sua conta. Sorriu e acenou para todos, a apresentou de novo e todos eles disseram seus nomes, não que tivesse conseguido gravar nada enquanto sentia que sua orelha estava debaixo d’agua, o nervosismo estava chegando com tudo.
Todos se sentaram, já tinha entregue os mil dólares do buy-in no caminho até a sala, mil dólares esses que teria certeza de não perder. Já que não iria jogar, seria o dealer da vez, pegava o baralho e o embaralhava, quando terminou o cara a sua esquerda colocava o small-blind (1) e o a esquerda desse colocava o big-blind (1). Ela mesma era a pessoa a direita de , como a mesa girava em sentido horário significava que seria a última a jogar e poderia observar todos antes de ter que tomar uma decisão, sua posição era chamada de cut-off.
Depois que cada um recebeu as duas cartas da mão, observou as suas, recebeu um Às de ouro e um 3 de espadas. Não era uma mão exatamente ruim, pois tinha a carta mais forte do baralho, mas também estava longe de ser a melhor que havia. Decidiu desistir da rodada e devolver as cartas, queria uma mão boa antes de começar a apostar um dinheiro que não era seu, também precisava saber com quem estava lidando, como eles jogavam, então só absorveu enquanto cada um deles faziam suas jogadas, não foi a única a dar fold, o único cara ruivo da roda e um moreno de óculos também.
Não apostou nada pelas próximas quatro rodadas, até recebeu um par de três em uma, mas ainda não estava exatamente confiante e precisava se acalmar antes de tomar decisões com uma cara em branco. Na primeira rodada, Dylan ganhou já no flop e não mostrou sua mão. Na segunda, o ruivo se deu bem com um par de 8. A terceira e a quarta foram ganhas por um cara francês que descobriu se chamar Pierre.
Recebeu um par de 10, ainda não tinha ideia do padrão de comportamento de nenhum deles, mas já tinha algo e resolveu se mexer, não podia vir e esperar pela mão perfeita para sempre, não que ela realmente existisse. Começou apostando 500, como era a primeira vez que não dava a mão, eles pensavam que deveria ter algo bom e três já desistiram, Dylan aumentou para 600 e mais dois desistiram. Jogaram o flop, os dois deram check (continuar na rodada sem aumentar a aposta), aconteceu o turn e o river da mesma forma e a mesa tinha um 2 de paus, 4 de ouros, 5 de ouros, às de paus e 8 de copas. Como Dylan não aumentou a aposta quando saiu o às, não imaginava que tivesse um na mão e como aquela era a única carta da mesa maior que a sua, apostou mais 300, esperando ganhar antes do Showdown.
— Call (2). — Dylan disse com um sorriso e mostrou sua mão com 8 de paus e valete de ouros na mão. Também tinha um par na mão, só que o de era de cartas maiores, sorriu enquanto mostrava as suas e pegou o montante da mesa, tinha acabado de ganhar mais de 1000 dólares em uma única rodada, estava bem satisfeita consigo mesma.
Algumas horas depois, algumas partidas perdidas e outras ganhas, já haviam saído 3 pessoas da mesa que apostaram tudo e perderam. Ela ainda estava ali, jogava cautelosamente, só quando tinha uma boa mão e sempre com valores altos. Já entendia um pouco melhor dos companheiros de mesa e se sentia calma, como quando jogava com o avô. Tinha acabado de receber uma mão alta com um rei de ouros e um valete de copas. Começou apostando baixo e Hendrik, o ruivo, a acompanhou.
O flop mostrou uma rainha de copas, 9 de ouros e 4 de paus. Hendrick aumentou a aposta. Ainda não tinha realmente nada, mas se surgisse qualquer uma de suas cartas teria um par ou se as próximas duas fossem às e 10, uma sequência (Straigh). Estava se sentindo confiante e com um bom pressentimento, então cobriu aposta dele. A próxima carta jogada foi um 3 de ouros, olhava concentrada para a mesa e fez check, junto com ele. A última carta mostrou um 4 de ouros. Não tinha nada, mas mesmo assim falou.
— All in. — sua expressão estava em branco e olhava diretamente para Hendrick enquanto ele pensava o que ela poderia ter ganhado na última carta para ir assim. Ele tinha um par de 8, mas com a sequência da mesa, se ela tivesse um 4 na mão, teria uma trinca e ganharia dele, e se tivesse duas cartas de ouros teria um Flush (3). Ela era uma jogadora segura e quase não a viu blefar a noite inteira, então desistiu pensando nas possibilidades da melhor mão ser dela. Enquanto ela pegava o montante, ele perguntou qual mão ela tinha para ter ido assim.
— Um rei de ouros e um valete de copas. — ele olhou incrédulo para ela, tinha perdido com a melhor mão para alguém que não havia blefado a noite inteira, e tinha resolvido fazer isso apostando alto. Todos olhavam levemente impressionados, parecia que a sorte de principiante estava a favor de alguém.
— Foi um semi-blefe, no máximo, eu tinha cartas altas e você não parecia entusiasmado pelas últimas cartas. — Disse como se fosse simples, estava feliz, não existia nada melhor do que vencer uma mão melhor que a sua, quando não se tinha nada. Tinha esperado até o último momento antes de apostar tudo para ser crível, como se tivesse ganhado exatamente o que precisava.
Ao final de todo o jogo, ela sentia uma adrenalina passando por si, tinha ganhado e, com isso, mesmo tirando o valor do buy-in, tinha o equivalente a 3500 dólares, mais do que ganhava um mês, as vezes até dois. Aquela talvez fosse a resposta para todos os seus problemas. Não pensava mais tanto nos riscos, conseguiria até pagar a própria entrada na próxima, aquele definitivamente não seria a última vez dela naquela mesa.
(1) Blind se refere as pessoas que tem que pagar uma aposta antes da mão começar. O big-blind se refere a uma aposta cheia e o small-blind a uma meia aposta.
(2) Call significa cobrir a aposta do outro. A opção do jogador é cobrir, aumentar (raise) ou desisitir (fold)
(3) cinco cartas do mesmo nipe em qualquer ordem, é a quinta melhor mão do baralho, ganhando de sequência, trinca, dois pares, um par e carta mais alta.
Nos próximos meses, participou de todos os jogos semanais, não ganhou todas as vezes, mas mesmo com as perdas, conseguiu pagar o que parecia impossível antes. Depois disso, avançou para mesas maiores com buy-in grandes, a acompanhou em algumas, ela começou a respirar livremente depois de passar tanto tempo como se fosse se afogar e em pouco tempo tudo mudou.
observava a vista do quarto do seu hotel em Las Vegas, já havia passado muitas noites ali nos últimos anos, mas nunca realmente parara para ver o que aquele lugar tinha a proporcionar além das mesas do cassino ou de mais quartos de hotel com mais jogos dentro deles quando queriam privacidade. A sua vida tinha se resumido a pôquer, noites transformadas em dias inteiros, adrenalina e a corda bamba entre continuar perseguindo tudo que antes era impossível e perder tudo que demorou meses para ganhar. Ela sempre apostou alto, mesmo se apenas em mãos boas e quase certas, e, no final de cada jogo, ela tinha ou uma grande soma ou um desfalque enorme no dinheiro conseguido antes.
Seu celular tocou em cima da cama, a despertando para a realidade, foi até ele, viu o nome de Kelly, sua gerente do banco, e atendeu.
— Boa tarde, senhorita Hall, estou ligando para confirmar a transferência que agendou para hoje, assim como informar que caiu o valor que a senhora retirou do seu investimento na bolsa. — resolvera mexer no dinheiro que tinha deixado parado para caso perdesse demais no jogo, sempre tinha que dividir os valores entre o que poderia gastar, guardar para o futuro e usar para perdas. Agora colocaria o dinheiro em novos investimentos, tiraria de alguns que a permitiam movimentar rapidamente a conta, mas não rendiam tanto, colocaria em outros que demoraria talvez até anos para sair e lhe devolveria quase o dobro. Talvez em algum tempo, investiria em imóveis, enfim, diversificaria seus ganhos.
— Boa tarde, Kelly, com a entrada do dinheiro, pode confirmar a transferência. Também queria confirmar o pagamento automático da matrícula da universidade, o valor ainda não tinha saído da minha conta até ontem. — Entre seus novos planos, resolvera começar a faculdade, não podia ter feito isso quando saiu da casa do pai após a morte do avô com as despesas que já tinha, agora queria descobrir outras coisas que gostava e arrumar algo mais confiável para o futuro. Os planos eram de algo relacionado a economia ou administração, mas ainda não tinha absoluta certeza. Talvez abrisse uma empresa depois, ou um restaurante. Com o dinheiro guardado e os rendimentos, conseguiria ficar parada por um tempo para descobrir coisas que gostasse. Desacelerar e ver outros interesses. Antes não tinha formas ou oportunidades de bancar isso, depois não teve tempo ou até mesmo vontade.
Kelly lhe confirmou a saída do dinheiro, agradeceu e se despediram. Desligou o celular, se sentou e olhou para o teto. Estava sozinha como estivera nos últimos tempos, era para estar ali com ela, mas o tempo certo passara havia muito. Ele estaria orgulhoso se soubesse dos seus planos, em como havia finalmente planejado um basta, mas mesmo sem ele, o importante era que estava orgulhosa e feliz de si.
Algumas horas depois, ela estava no saguão quando esbarrou em alguém antes querido que não via há tempos.
— Dylan! Quanto tempo! Meu deus, o que faz aqui? — perguntou enquanto o abraçava. Ele não aparecia em uma mesa de pôquer em quase um ano, então era basicamente o tempo sem o ver, com a sua vida social restrita a isso. Apesar de ter sido o anfitrião do primeiro jogo, não era exatamente assíduo, tratava esse esporte da mente como algo realmente recreativo. No início, ficou próxima dele já que era um amigo íntimo de , mas como tudo não relacionado ao pôquer, não mantivera laços fortes. A última vez que ouvira falar nele, estava casado e trabalhava em uma firma de advocacia.
— Provavelmente a mesma coisa que você, o jogo de hoje é organizado por um amigo que fazia umas mesas inigualáveis quando eu era mais novo. Bom, deve conhecer ele melhor do que eu hoje em dia, não ando muito frequente e não acho que soube de alguma mesa em qualquer canto da cidade sem seu nome envolvido. Não sei como sobreviveu, eram o que? Seis jogos semanais? — quando se falava em voz alta, percebia como o número era absurdo, se pelo menos fossem jogos curtos, tudo bem, mas sempre atravessavam a barreira de um dia para o outro.
— Às vezes cinco, mas não acho que vá ouvir meu nome muito mais nos próximos meses, decidi que iria parar em grande estilo com um ótimo histórico do que como alguém com dias de ouro que não soube quando parar. — o buy-in dessa noite teria quase seis dígitos com entrada proibida de jogadores profissionais, iria sair com um estrondo no jogo ou na sua conta bancária.
— Essas são as palavras que nunca imaginei saírem da sua boca, deve estar em êxtase, vão finalmente fazer a viagem que ele vivia falando? — talvez fosse a primeira vez que ouvia esse nome em voz alta desde que ele fora embora. Era estranho e não sabia realmente como lidar ainda, por muito tempo o falava diariamente e agora não sabia nem onde ele estava.
— Na verdade não, ele está fazendo acho, eu só vou parar mesmo. Ver como se sente quando se dorme de noite, não de dia. — tentou fazer uma piada para tentar quebrar a expressão surpresa de Dylan, esperava que ele já soubesse, mas como aparentemente não, devia ser um choque. Costumava dizer que nunca vira duas pessoas mais grudadas no quadril, nem mais perfeitas uma para outra.
Três anos antes
— Vamos! Mal corremos três quilômetros, não pode já querer parar. — disse alto para uma encurvada com as mãos nos joelhos e respirando fundo como se fosse desmaiar a qualquer momento. Ele estava alguns metros a frentes e foi até ela vendo que não se mexia. — , já passamos de 500 metros da última vez, só mais 500 metros correndo e 10 minutos caminhando e pronto. Vamos lá!
— Eu queria parar um quilômetro atrás, — sua voz estava ofegante e com uma pausa a cada palavra que saia — agora eu sou só um corpo morto-vivo, eu não sei nem como vim parar aqui. Estava em casa deitada e viva.
— Exatamente, é só isso que você faz. Correr é bom para conhecer o bairro, não acredito que se mudou para perto de mim e o único jeito que eu te encontro é te tirando daquele buraco negro. — Depois que começara a precisar pagar somente as despesas mensais, sem se preocupar com contas de hospital, ela conseguira o suficiente para pagar o aluguel de um lugar mais confortável e seguro. Agora já largara os dois empregos e vivia apenas com o que ganhava das apostas, participava de uma mesa pequena e outra grande durante a semana, o que a deixava com tempo livre suficiente para ficar largada em casa lendo sobre assuntos aleatórios que nunca soube muito sobre, como astronomia. Porém, há alguns dias, Cornell disse que estava ficando sombrio demais e resolveu arrastá-la para correr todo entardecer ou, nas piores ocasiões, antes de ele ir trabalhar em sua empresa.
— Eu já conheci o suficiente, preciso me sentar agora e comer. E olha que coincidência, eu morri perto da única cafeteria com um café decente, parece um sinal para mim. — Para alguém que tinha morrido 500 metros antes, andava bem rápido quando o assunto era comida e café. suspirou, desistiu de tentar convencê-la a terminar a corrida e a seguiu para um dos únicos lugares que a faziam sair de casa.
Quando chegou a mesa, ela já havia pedido pelos dois, não sabia exatamente quando passaram a fazer isso, mas conheciam todos os gostos um do outro melhor do que ninguém e apenas assumiam o da vez. Conversaram um pouco antes de cair num silêncio pacífico cortado por .
— Vai ter um feriado final do mês, acho que devíamos fazer algo diferente, não a usual cerveja com conversa furada.
— E o que você sugere, senhor mudar minha rotina diária?
— Quando eu era mais novo, eu visitava uma cachoeira a alguns quilômetros da cidade. É muito pacífico, sempre voltava de lá como uma nova pessoa, ia com Dylan e mais alguns meninos e ficávamos em uma casa dos meus pais próxima. No nosso caso, seriam só nós dois, todo mundo já tem outros planos e, para ser sincero, faz tempo que não temos muito tempo só para a gente e sinto falta disso, é a minha pessoa favorita para conversar. Sinto saudades da minha melhor amiga. — Ela o olhou com uma falsa expressão de emoção.
— Então, quer dizer que eu sou sua pessoa favorita? Não é como se eu não soubesse disso, mas é sempre bom ouvir. — fez sua melhor expressão convencida. — Você é a minha também, não como se tivesse muita concorrência, e ganharia se existisse. — arregalou os olhos como se fosse uma grande revelação. — Sei que não temos o mesmo ritmo de antes entre nós, mas ainda somos a gente. Sinto um pouco de falta do meu melhor amigo também, com certeza menos que você de mim. E, só para constar, essa foi exatamente a forma certa de me convencer a fazer algo, não me arrastando por aí.
— Eu discordo, mas tento ser educado as vezes e é bom não ter que lidar com você esperneando o caminho inteiro.
o olhou ofendida e riu depois. Conversaram e implicaram um com o outro por mais tempo, era sempre bom quando eles estavam juntos.
A casa do feriado era isolada, localizada em frente a um lago e cercada por árvores, do tipo que nunca imaginaria existir tão perto da cidade barulhenta em que vivia, era tão silenciosa, como se só existissem os dois no mundo (e alguns pássaros).
e tinham chegado a algumas horas, descasaram e agora saíam da casa em direção a cachoeira, localizada a uns 500 metros de distância a oeste. A caminhada foi tão silenciosa quanto o ambiente, os dois imersos no lugar. Ele se sentindo um pouco nostálgico e ela absorvendo tudo ao seu redor.
Quando finalmente conseguiu visualizar o local desejado, parou e olhou para os vários metros de queda d’água, era lindo. A água era quase cristalina e já conseguia ver as pedras do chão e um ou outro peixe passando. Cornell já tinha mergulhado e gritava a chamando.
— Vai ficar parado o dia todo aí? A água está maravilhosa e bem melhor que fora.
entrou correndo e soltou um gritinho com o choque de temperatura, a água estava congelante. — É isso que chama de maravilhosa? Parece que entrei em um frigorífico, talvez minha alma fique aqui quando eu for embora de tão gelada.
— Deixa de drama, vem até aqui, só se acostumar que se sentirá a melhor pessoa do mundo. Essa água limpa a alma, não a tira. — disse, a puxando para o fundo e a segurando lá. se agarrou a ele em busca de algum calor, estava tremendo. Passaram alguns minutos assim, apenas respirando quando o moreno falou.
— Está toda tensa, precisa relaxar. — ela o olhou como se dizendo que não tinha como fazer isso com essa temperatura. — É o objetivo da viagem, passarmos um tempo juntos e relaxar. Encosta a sua cabeça na água, deixa teu corpo flutuar. — disse enquanto ela se soltava dele e tentava flutuar com os dois braços dele por baixo do seu corpo, sentia seu coração bater a mil, mas pelo menos o tremor já tinha parado. — Desse jeito vai afundar, respira fundo pelo nariz e solta pela boca — fez isso algumas vezes, mas ainda sentia os músculos tensos, parte pelo frio e parte por eles viverem assim, não se lembrava de alguma vez diferente além de quando acordava.
— Limpa a mente, respira, sente tudo que toca teu corpo, o biquíni, a água nos pés, nas mãos, ao redor. — continuou respirando fundo e sentiu a mente um pouco em branco, a água tocava tudo, suas mãos se mexiam um pouco para senti-la. A água a circundava como um todo, menos em duas linhas, sentia os braços de ali, não o líquido, mas algo sólido.
— Respira, inspira, imagina algo que te deixe feliz. — ela pensou em uma mão com um par de às, era algo bom e que poucas vezes ganhava, ainda assim seu corpo se tencionou associando a imagem a adrenalina de um momento como esse. Já não sentia a água em todo canto, sentia os braços dele ainda. — Algo feliz, algo que te faz voar. — pensou no alívio de ter pago a última parcela da conta do hospital, mas não bem flutuava com isso. Lembrou-se de noites antigas conversando com a pessoa que a segurava, sua mente viajou a centenas de horas diferentes, quase não estava mais presente ali, porém ainda sentia cada grama dos braços dele.
— Segue isso, deixa te levar um pouco, respira e inspira, chegou a um lugar claro, cheio de luz. Tem algo incrível ali. — ela não conseguia visualizar nada exato, só um campo em branco e sentir o gosto que parecia de vitórias. Sua mente estava tão longe que já não sentia bem a água nas mãos que se mexiam, mas ainda sentia os braços dele. — Vai um pouco mais alto, chegou em um lugar cheio de azul, a sua cor preferida, ali tem uma cachoeira como essa aqui. Mergulha de uma vez e senti a água te envolver de novo, ela é gelada como essa, mas você não está com frio, se sente refrescante como depois de um dia quente, fica com todo o corpo debaixo d’água e prende a respiração, sua mente está limpa. — já não sentia os braços deles, ele a tinha largado e ela realmente se deixou afundar e prendou a respiração, já não pensava em nada. Ficou assim até quando precisou de ar.
Estava ofegante e com cada músculo do corpo relaxado, o que fora aquilo?
— Eu pensei que você só ia me segurar enquanto eu boiava, o que foi todo o resto? Não que eu esteja reclamando.
— Eu fiz umas aulas de meditação por esses tempos e queria ver se funcionaria contigo. Eu sempre saio de lá com a alma limpa, como só a cachoeira não fez isso. E então, funcionou? — a olhava com expectativa e disse antes que pudesse responder. — Espero ter conseguido fazer a viagem, as vezes a minha mente ficava presa em algumas coisas e eu via pelo menos o que me prendia aqui.
— Eu acho que sim, teve alguns momentos que minha mente não estava nem presente. Mas algumas coisas me lembravam pôquer, então já sabemos o que me prende. — o irônico eram que as duas únicas coisas constantes na sua percepção foram o jogo e os braços de . Não era bem uma surpresa, ele era uma das únicas coisas que a puxava do pôquer.
Os dois ficaram ali por um tempo, boiando e sentindo a água, não conversaram muito. Quando esfriou um pouco, se aconchegaram e focaram somente na respiração um do outro, como se a ancorassem ali. Olharam nos olhos um do outro e só observavam detalhes do rosto de cada um que nunca tiveram a oportunidade e observar antes.
Talvez a alma de realmente ficasse naquela cachoeira, mas não seria pelo frio.
No último dia do feriado, chovia e os amigos estavam presos na casa. se enrolava em um cobertor enquanto ele procurava por algum filme na Netflix, ela o olhava atentamente e lembrou de quando o conheceu, a primeira coisa que passou pela sua cabeça foi o quanto era lindo e possivelmente um babaca considerando o amigo dele (o namorado da sua antiga amiga). Ele continuava lindo, mas o mais longe de babaca que podia imaginar.
— Lembra de quando nos conhecemos? — o moreno a olhou estranhamente, se perguntando de onde surgira o assunto, mas ainda assim acenou. — O que pensava de mim naquela época?
— Meu primeiro pensamento foi que era linda, — ela fez uma cara de lisonjeio, ao mesmo tempo que o seu coração acelerava com o comentário. — o segundo era “essa garota precisa relaxar”. — recebeu um tapa leve em resposta a isso. — Sério! Era um final de semana e seu corpo inteiro estava tenso, eu não sabia muito de você na época para saber que era seu estado normal nem do trabalho de sábado de manhã que deixaria qualquer um estressado.
— E agora? — ele a olhou confuso. — Quais são os pensamentos?
— Bom, eu continuo te achando linda se é isso que quer saber. Definitivamente precisa relaxar, se não, não estaríamos aqui. Mas também penso em como é engraçada, determinada, teimosa, forte e só... Alguém que eu não sabia que precisava na minha vida, até ter. E você? — quebrou a distância entre eles e olhou diretamente nos olhos dela.
— Que era lindo e possivelmente um babaca. — ele a olhou indignado. — foi só uma impressão e bem justificada considerando a companhia. Agora, bom, eu penso em como você consegue me apoiar em tudo, compreensivo, irritante, leal. — algo que estava sempre escondido no fundo de sua mente enquanto falava e deixou escapar, haviam passado do ponto em que podiam ser honestos sem medo de realmente perder o outro. — Na verdade, às vezes, eu penso em como seria te beijar, se me faria sentir tão bem como quando eu simplesmente saio ou converso contigo.
a olhou surpreso, nunca imaginou que ela o visse assim, antes que processasse totalmente as palavras ditas, o puxou para um beijo, pensou que a afastaria, mas a manteve ali. Aquilo se sentia bom, seu coração acelerou. O beijo era lento, como se ela estivesse insegura se deveria aprofundar ou se seria requisitado, então tomou a iniciativa e inseriu a língua aos poucos, sentindo cada grama da boca de . Seus braços saíram da altura da altura dos ombros e começaram a se mover para baixo, arrepiando cada canto do braço dela até chegar a sua cintura. Naquele momento, já estavam totalmente virados um para o outro, perdidos no momento e ganhando ritmo.
quebrou o beijo e desceu os lábios pela mandíbula em direção ao pescoço que já havia visto tantas vezes, mas não pelas sensações da sua boca. soltou um suspiro quando o sentiu ali e passou a mão dos cabelos até o abdômen dele, arranhando ali e depois movendo para as costas. Cornell foi para o outro lado do pescoço, para depois a beijar novamente ainda mais frenético. sentia como se estivesse pegando fogo e segurou a nuca dele aumentando a pressão. Ele passou a língua pelos lábios dela e quebrou o beijo e disse ofegante.
— Se sente tão bem? — tinha uma expressão atrevida, estava todo descabelado por onde ela passou as mãos.
— Na verdade, me sinto melhor. — eles voltaram a se beijar, com o controle da televisão esquecido e a chuva intensa ao redor da casa. Talvez a alma de ficasse na casa no final, não na cachoeira.
Depois daquele feriado, eles passaram várias noites como aquela, o relacionamento em si não se alterara tanto, ainda a arrastava para correr, continuava a jogar com ele a acompanhando as vezes. Saiam para beber e jogar conversa furada, assim como iam para jantares românticos e falavam tudo que não diziam para mais ninguém. De todas as mudanças, talvez a maior seja que iam para aquela casa sempre que tinham um tempo livre maior, usando a cachoeira de outra forma e se descobrindo de outros jeitos.
Um ano e meio antes
estava jogando mal ultimamente, perdendo para mãos piores que a sua. Não convencendo alguém com uma mão melhor que a sua era superior. De alguma forma, passou de acumular dinheiro para perder em algumas noites o que demorou meses para conseguir. Então, apostava mais alto em mãos antes seguras para compensar, as vezes perdia e para tentar balancear aumentou seu número de jogos por semana. Já não via direito, ele trabalhava de dia e ela dormia ou treinava estratégias ou possibilidades de jogos, enquanto ele dormia, ela jogava. Ainda bebia a noite inteira para tentar encarar o ritmo, tinha conseguido alguns remédios controlados para conseguir ficar tantos dias viradas, estava exausta todo momento. Acordava com uma pontada na cabeça eterna.
Depois de tudo isso e cinco jogos semanais, em vez de lucrar, estava na corda bamba a todo momento, conseguindo muito e em seguida perdendo. Basicamente ganhando o suficiente para se bancar, mas se continuasse dessa forma talvez nem isso. Não podia exatamente reclamar, tinha propriedades agora para vender se algo desse errado, mas não tinha um emprego se as coisas dessem realmente erradas.
já não conseguia acompanhar seu ritmo e só a encontrava dormindo a tarde depois de voltar de uma madrugada acordada, tentava ser compreensivo, mas realmente não entendia sua necessidade de viver assim. Se voltasse para as apostas menores, não teria uma possibilidade tão grande de dívidas em noites ruins, mas também demoraria muito mais para crescer, e não podia voltar para o momento que não existiam possibilidades de progredir. Mesmo as piores derrotas, não eram dívidas impagáveis, apenas uma inconveniência do jogo.
Então continuou nesse ritmo por meses até encontrar sua sorte de novo, ou pelo menos usar a habilidade para contornar mãos ruins. Mesmo quando voltou a ganhar muito por jogo, não diminuiu o ritmo, pelas suas contas, se continuasse assim por um ano ou dois, talvez não precisasse trabalhar de verdade nunca mais e se mantivesse por mais tempo ainda, conseguiria ter um estilo de vida de filmes.
Um ano antes
chegou cansado de mais um dia para encontrar dormindo na cama com um recipiente de pílulas para dormir ao seu lado. Apesar de viver cansada, ela passava tanto tempo com a mente a mil que não conseguia parar quando precisava ou finalmente tinha tempo, então agora existiam remédios para deixá-la focada e desperta durante as noites e remédios para conseguir desliga-la o suficiente para cair no sono.
Ele suspirou quando viu as horas, queria conversar com ela, mas como esse seria um dos únicos dias da semana que não tinha jogo, resolveu dormir e conversar pela manhã. Finalmente a veria quando acordasse.
Quase pela hora do almoço, levantou da cama, indo para a sala e encontrou sentado lendo no celular, provavelmente o jornal. Ele levantou os olhos e a chamou para o seu lado. Quando ela sentou, Cornell levantou seu queixo e tocou em suas olheiras, eram profundas como se tivesse passado a noite em claro, não podia deixar de se preocupar. Quase não a via e não parecia saldável quando acontecia.
— Parece que você passou os três últimos dias virada, não que dormiu mais de 12 horas de ontem para hoje. — ela o olhou meio sem graça, fazia tempos não acordava de outro jeito.
— Eu passei as duas últimas assim, meu corpo ainda não se recuperou direito.
— E quando ele vai? Porque amanhã é outro dia de jogo e outra noite virada e talvez outra tarde com cartas em cima da mesa. Talvez saia de casa para comprar alguma coisa, algo caro e bonito que pareça motivo suficiente para continuar fazendo isso. Quem sabe um carro novo? — ironizou o carro que havia comprado há uma semana, continuava na garagem sem uso já que ela não dirigia para os jogos, com medo de dormir no volante na volta (ou até na ida, pelo jeito como tudo caminhava).
— Eu vou descansar quando der, algumas mesas grandes vão começar semana que vem e eu não tenho como diminuir o ritmo, mas com o dinheiro delas, eu posso me dar o luxo de parar por uma semana inteira.
— Nossa, uma semana inteira, parece as férias dos sonhos, — ironizou. — se elas realmente acontecerem, porque ou a mesa dará muito certo e vai pensar porque não mais? Ou muito errado e vai ficar num ritmo frenético ainda maior até conseguir cobrir o prejuízo. Mesas grandes são ou ganhos enormes ou perdas catastróficas como disse uma vez.
— Olha, eu sei que anda preocupado, ao contrário do pensamento geral, não sou tão cega assim. Mas eu realmente darei uma pausa, sério. — passou a mão pelos cabelos dele, tentando soar reconfortante e segura. Não era a primeira conversa do tipo, nem a primeira mentira do tipo.
— Eu só acredito quando acontecer. — se afastou dela e passou a mão na cabeça, parecia cansado e exasperado como se se esgotasse de sempre debater a mesma coisa. — Não estou dizendo para nunca mais jogar, só para diminuir o ritmo. Eu fui jogar o lixo e achei duas garrafas vazias, sendo que limpei o lixo ontem. Não é só o jogo, são bebidas, remédios e o fato que, na metade do tempo, sua mente não está realmente aqui. E eu só não consigo entender realmente o objetivo de tudo isso, não pode ser dinheiro porque não está aproveitando quando ganha e fica desesperada se perde. — talvez o sentimento mais descritivo para ele não fosse cansaço da situação, mas tristeza.
— É só que eu preciso conseguir o máximo possível do pôquer antes de abrir mão ou até diminuir o ritmo. Se eu começar a jogar na velocidade de antes, nunca vou voltar para o nível de agora. Só posso ir em frente até chegar na linha de chegada.
— Que seria?
— O suficiente para nunca mais me preocupar com nada ou ser boa o suficiente para lembrarem-se de mim como um marco. Ter as coisas que pareciam um sonho antes, talvez compre um iate para simbolizar o fim. Eu prometo que depois das próximas grandes mesas, eu vou me cuidar melhor, vou parar por uma semana. Quando eu chegar num nível de vida confortável, investirei o dinheiro e quem sabe eu trabalhe com sei lá, decoração, ou até com você na empresa. — Ela realmente acreditava em tudo dito e sabia que não adiantava pedir algo imediato, só podia esperar pelo fim da linha de chegada.
acabou não cumprindo a promessa de descanso e eles tiveram mais conversas como aquela do que poderia contar. Até que um dia não aguentou, disse que o procurasse quando percebesse como estava se auto destruindo e como haviam coisas maiores na vida do que uma mesa de pôquer, e foi embora. Não o viu desde então, já que só saia de casa para mais mesas de pôquer ou para conseguir bebidas ou mais remédios. Seu ritmo era alucinante, mas sabia reconhecer seu limite e ainda estava longe dele.
Vários meses depois, foi parar no hospital depois de passar mal ao misturar demais seus remédios com álcool. Tivera que fazer uma lavagem estomacal para tirar tudo e, segundo o médico, estava desidratada, malnutrida, com esgotamento físico e hipertensão arterial provavelmente devido ao estresse, tudo isso antes dos 30 anos. Passou dois dias dormindo direto antes de receber alta e recomendações para amenizar o ritmo de vida e mudar seus hábitos alimentares (leia-se: comer de verdade em vez da porcaria e bebida de antes). Talvez não soubesse mais onde se desenhava seu limite, se um dia soube. estava certo, mas mesmo assim, não foi atrás dele depois de descobrir isso. Precisava, antes de tudo, realmente botar os pés no chão e decidir como queria viver sua vida. Se queria os últimos dias como um caso isolado ou como regra para a vida.
já jogava há algumas horas na grande noite, tinha o segundo melhor montante da mesa e jogava como se estivesse em uma mesa entre amigos apostando chiclete, relaxada como no seu primeiro jogo com . Aquela era sua despedida, e, apesar de como se comportou nos últimos tempos, realmente amava o esporte e gostaria de manter uma boa lembrança e sentimento de tudo.
Agora usava todo o aprendido nos últimos anos. A capacidade de tentar ler seus adversários quando recebiam sua mão, observar o humor deles. Procurar por chances de quebrar padrões de comportamento e aposta (como saber se era um blefe ou uma mão realmente superior sem o outro ir para o showdown e mostrar suas cartas), testar o que tinha apostando aos poucos e vendo se o outro aumentaria ou manteria a aposta (nos melhores casos desistia). Aquele era o ambiente dela e estava desfrutando depois de muito tempo, não estava tão preocupada em ganhar, apesar do prejuízo se não e da acariciada no seu ego se acontecesse. Estava ali pois precisava de um ponto final, não de uma vitória.
Na mesa rolava uma rodada com fold dela em que Dylan e um cara chamado Thomas apostavam tudo. Eles começaram apostando alto, então as cartas eram boas ou era um quebra-braço sobre quem desistia primeiro. Dylan já tinha ido bem longe quando Thomas foi all-in, então calculou que não podia perder tudo isso e chamou o blefe do outro, não acreditava que tivesse nada. Na verdade, nem Dylan tinha algo, somente um valete, uma das cartas mais altas que sozinho perdia para qualquer combinação.
Na mesa tinha-se um 7 de espadas, 9 de paus, 5 de copas, 3 de paus. Faltava o river quando foram com tudo e deixaram suas cartas a mostra. Dylan tinha dama e 10 de ouros. Thomas um Às e 4 de copas. Basicamente, nenhum deles tinha nada efetivo e se, na última viesse um número ou valor igual a algum deles, essa pessoa ganhava. Se não, Thomas ganhava por ter a carta mais alta.
No river, apareceu 4 de espadas. Thomas tinha um par e ganhou, ele tinha sido o primeiro a ir all-in e deu sorte de no fim ter algo para ele e não o outro. Foi um pouco imprudente nesse blefe, mas isso era pôquer e as vezes, para alguns, era preciso ser mais agressivo do que habilidoso.
Dylan saiu e as próximas rodadas foram no mesmo estilo, com caras indo fundo sem ter nada com a esperança do outro pensar que tinha algo grande e desistir antes de ir para o final. Não parecia estar dando muito certo para alguns, já que agora só tinha quatro na mesa contando com ela.
Thomas continuou apostando alto pensando na sorte e nas possibilidades ao seu favor, porém Hendrick (o mesmo ruivo do seu primeiro jogo com apostas de verdade) teve uma maré de sorte, com três pares seguidos nas suas mãos e ainda com a sorte de fazer uma trinca em uma das rodadas. Entre os dois, Thomas acabou saindo sem nada daquela mesa, apenas com o que ganhou antes de chegar lá.
Ela tirou o penúltimo da mesa com um par de às e um all-in. Quando sobrou somente ela e Hendrick na mesa, os dois agiam com calma e paciência até ela receber 10 e 8 de paus e as cartas comunitárias do flop serem 7 e 9 de paus, um reis de espadas. Era a mesma mão e cartas do primeiro jogo com , teve sorte naquela vez e talvez tivesse de novo, então apostou um quarto das moedas em sua posse. Hendrick também parecia feliz e cobriu a aposta.
O turn mostrou 10 de copas, o que a tirava da possibilidade e lhe dava um par (mão pior se fosse outro de paus). O outro foi all-in antes da possibilidade de pensar em qualquer movimento da parte dela, deixando-a pensativa sobre o que ele teria. Observou-o por quase um minuto antes de aceitar, talvez ele realmente tivesse uma mão melhor, apesar de não acreditar tanto. Mas de qualquer forma, era hora de finalizar, perdendo ou ganhando.
Os dois mostraram suas cartas. Hendrick tinha um rei de ouros e 3 de copas. Estava na vantagem contra ela, com um par de cartas maiores, mas ainda faltava o river. As chances ainda não tinham acabado.
Era um 8 de ouros. ganhou, com uma mão idêntica da primeira vez e cartas comunitárias quase. Realmente eram as suas cartas da sorte, talvez um dia as tatuasse. Cumprimentou Hendrick e saiu da mesa, parando para falar com todos os conhecidos no meio do caminho até seu prêmio/valor acumulado da noite. Era uma despedida real e quando perguntaram o momento que a veriam de novo, disse ser a sua última noite e agora iria viver sua vida.
Ela levantou o braço sem olhar e tentou desligar o despertador, mas acabou esbarrando na garrafa e a derrubando em um barulho alto o suficiente para fazê-la pular.
— PORRA! — gritou se sentando e olhou o líquido escorrendo pelo chão. Sua cabeça doía da noite anterior, não tinha nem ideia do motivo de ter colocado um alarme, não existia porque acordar cedo havia muito tempo.
Pegou o celular que ainda emitia o som irritado, o desligou e olhou a data. Havia um lembrete: “Voo para Las Vegas, grande noite: tudo ou nada”. Suspirou e levantou da cama, tomando cuidado para não pisar nos cacos de vidro no chão, foi em direção ao banheiro e se observou no espelho. Estava acabada como se tivesse trabalhado o dia todo, com olheiras e se sentindo como se um trem tivesse passado por ela, tudo doía. Não entendia como sua vida podia mudar tanto e ainda acordar como se devesse a todo um país, mas havia resolvido um tempo atrás que chegou o momento de parar. Ontem foi a última noite desse comportamento, hoje seria sua despedida e, independente dos resultados, pararia e construiria uma vida de verdade, não a versão hollywoodiana que criara para si.
Talvez tivesse demorado muito, mas nunca era tarde demais.
Quatro anos antes
descia as escadas do seu prédio com pressa, estava atrasada para o trabalho. Acabara dormindo demais depois do seu turno noturno no correio, era para ser sua noite de folga, mas ofereceram a mais e não estava em posição de recusar. Passava pela entrada quando seu vizinho chamou seu nome.
— ! Deixaram isso na minha caixa do correio, mas tem o seu nome, devem ter errado de novo. — dizia com um sorriso simpático.
— Ah sim, obrigada! — pegou os papeis e deu um sorriso amarelo quando viu o que eram. Mais contas, a esse ritmo nem todos os turnos extras no mundo conseguiriam deixá-la respirar tranquila. Suspirou e foi em direção à sua bicicleta, talvez fosse melhor que tivessem permanecido na caixa errada, seriam uma preocupação a menos.
Já passava das sete horas da noite, limpava o balcão enquanto seu turno finalmente chegava ao fim, quando Cornell em suas roupas sempre escuras entrou pela porta principal da lanchonete, a cumprimentou e sentou na cadeira a sua frente.
— Como está minha garçonete preferida? — levantou a sobrancelha, sua amizade com o garoto moreno de olhos escuros e sorriso fácil era engraçada, os dois não poderiam ser mais diferentes e, se seus amigos não tivessem namorado, nunca teriam tido motivos para sequer se cumprimentarem. Ironicamente, os amigos terminaram e eles se viam quase toda a semana, mesmo que ele a irritasse a metade do tempo. Enquanto não falava direito com a amiga desde o hospital, não tinha tempo sempre dizia, mas ainda assim via regularmente.
— Eu não acho que você suba do seu pedestal o suficiente para falar com qualquer outra, — Cornell fez uma cara ofendida que ela ignorou — mas eu estou bem, só cansada, como sempre. E você? Como foi o encontro de ontem? Melanie, certo?
— Foi divertido até ela receber uma ligação do ex e descobrir que precisava lutar pelo o que amava, espero um dia encontrar com ela e descobrir se ela notou a chance que perdeu ou se era o “amor da vida” dela mesmo. – disse a última parte fazendo aspas e um sorriso debochado. Para alguém que sempre ia para encontros em busca de um relacionamento estável, ele zombava muito de casais. Não que normalmente a coisa evoluísse além do casual com ele.
começou a rir sem tentar disfarçar. Aquilo era apenas precioso, o senhor bom partido, como ele mesmo se intitulava, deixado num encontro pelo amor verdadeiro.
— Pode rir, mas não foi para isso que eu vim aqui. — agora ele parecia sério, o que era raro — Eu vim fazer uma pergunta, você sabe jogar pôquer?
— Hum... Essa talvez seja a coisa mais estranha que você já fez comigo, vir até aqui e me fazer uma pergunta, sabia que existe algo chamado celular, certo? – não poderia deixar de ironizar. – Mas sim, eu tenho uma ideia, por quê?
— Porque eu preciso de alguém para treinar e eu confio em você para não me deixar pobre enquanto isso. Queria saber se poderíamos jogar hoje, eu preciso parecer o mínimo confiante até sábado
— Espera, treino para pôquer? Você é jogador agora? — a surpresa em sua voz era evidente, nunca tinha visto um traço disso na personalidade dele e reconhecia um jogador de longe, afinal conviveu com um por muito tempo — Não que não tenha dinheiro para perder á toa, mas não acho que era isso que sua mãe imaginava quando te deu acesso a seu fundo.
— Eu costumava jogar há muito tempo, estou enferrujado e não pretendo sair da mesa limpo. Uns antigos amigos meus estão pela cidade e me chamaram para jogar. Então, aceita? Eu realmente preciso de alguém que não tiraria todo o meu dinheiro da carteira e o meu relógio. – disse sorrindo encantadoramente como se fosse um menino doce.
— Eu estou bem cansada e tem três dias até sábado, não precisa ser hoje — olhou para ela como se estivesse desconsolado, suspirou cansada e cedeu, não podia afastar mais pessoas ainda da sua vida — Tudo bem, mas não mais que uma hora, eu preciso dormir e estudar. Ah, não se preocupe com perder dinheiro, eu não tenho nada que possa apostar nesse momento, só se fizéssemos com doces.
— Então, a melhor mão é Full House (1) não é? – olhou indignado para ela, enquanto segurava suas cartas após algumas rodadas, estava ganhando e seu lado com doces demonstrava bem isso.
— Eu pensei que você soubesse jogar.
— Sei como funciona, só não sei as mãos direito. — olhava divertida para o jogador balançando a cabeça como que decepcionado e ferrado com a situação em que se encontrava.
— Como você consegue jogar ou blefar ou planejar sem saber as mãos direito? — quase jogou as cartas para o alto enquanto gesticulava.
— Não sei, eu só jogava. Não vai abrir as três cartas? Nós dois já apostamos. — falou apontando para os doces na mesa.
— Quis dizer Flop (2)? Você disse no caminho que jogava com o seu avô, como ele nunca te ensinou os termos? — ela somente olhou para ele o fazendo continuar, virou as três cartas comunitárias que mostravam um 7 e um 9 de paus, um reis de espadas. olhou feliz para a mesa, já achava que iria ganhar só com o par de K que tinha na mão, agora era uma trinca (3).
— Eu vou all in. – ela disse, colocando todos os seus doces favoritos na mesa, claro que essa expressão ela conhecia, apostar tudo quando não tinha nem ideia do que estava acontecendo era sua marca registrada.
— Cubro. — talvez aquele jogo não fosse ajudar muito sábado com os meninos, mas iria ser bom para sua autoestima depois de ser destroçado por eles.
Jogou a quarta carta na mesa (turn) e era um K de copas, já tinha uma quadra, fazia tempo que não pegava uma mão tão boa e com tanta sorte nas cartas comunitárias. Prosseguiu jogando a última carta (river) mostrando um 6 de paus. Virou-se sorrindo para virando suas cartas.
— Eu tenho uma quadra! – já estava pegando sua aposta quando a mão de lhe parou.
— Não tão rápido, eu ainda nem mostrei a minha mão ainda. — disse mostrando um 10 e um 8 de paus enquanto ele olhava boquiaberto — Até onde eu sei, Straigh Flush ganha de quadra.
— Eu pensei que você não soubesse sobre as mãos. — lhe dava um sorriso irônico, percebeu então que ela tinha brincado com ele e, como um patinho, caiu.
— Meu avô não apenas me ensinou a jogar, ele competia esperando ficar rico um dia, ele precisava praticar e eu achava legal, era quase a única coisa que tínhamos em comum. Ao contrário da crença popular, eu só aposto tudo quando sei bem onde estou pisando.
Cornell não levou muito a sério e achou que era sorte de principiante. Nos dias seguintes, conseguiu ganhar dele com um Full House e alguns vários blefes.
Ela sempre soube quando jogar de verdade, blefar ou parar, muito mais do que quem a ensinou.
(1) uma trinca e um par na mesma mão. É a quarta melhor mão que se pode ter no pôquer.
(2) Depois que cada jogador recebe duas cartas e cada um faz sua aposta, desisti ou permanece com o que está na mesa, o dealer joga as três cartas comunitárias. A jogada da 4 carta se chama turn e da quinta ou última é river.
(3) quando se tem quaisquer três cartas de mesmo número ou valor, é a 7º melhor mão. Quadra são 4 cartas, é a 3º melhor.
Straigh Flush são 5 cartas do mesmo naipe em sequência, é a 2º melhor.
— Vão essa mala e essa aqui. — disse para o porteiro do seu prédio apontando para uma mala média e uma maleta no chão. Ele olhava estranhamente para as caixas espalhadas pela sala de estar, os móveis continuavam ali, mas qualquer indício pessoal parecia ter ido parar nas caixas.
— A senhorita vai se mudar? — Max perguntou surpreso enquanto levava as malas até o elevador, aquele apartamento de três quartos e um escritório tinha sido comprado por no último ano e ela parecia ter gostado muito, parecia cedo demais para se desfazer de algo que poderia ter a vida inteira.
— Não por muito tempo, vou alugar por um tempo, mas não se preocupe, eu volto. Só preciso colocar umas coisas de volta ao trilho. — disse simpática, das coisas que talvez sentisse falta seria aquele lugar, mas ele tinha sido criado em um ambiente que tentava fugir agora, sabia que continuar próxima de tudo, tornaria as coisas mais difíceis de parar. — Vão vir buscar tudo e limpar durante a semana, o inquilino deve chegar no início do mês que vêm, você vai gostar dele, é um amigo há pouco tempo, mas bem tranquilo.
— Acredito que seja. — disse meio inseguro, de tudo o que tinha visto sobre a Srta. Walker era que amigos tranquilos não estavam na sua lista diária, se aquelas pessoas estranhavam que entravam no fim da noite e saiam bem depois do amanhecer podiam ser chamadas de amigos. — De qualquer jeito, vou sentir falta da senhorita, sempre foi agradável comigo e com todos, espero que resolva seja lá o que esteja sem rumo.
riu um pouco enquanto o elevador fechava e via pela última vez, em um bom tempo, a porta do apartamento do prédio azul das flores roxas que parecia um sonho por anos.
— Eu também vou, esse lugar foi um marco para mim. E você foi o melhor porteiro que já tive na vida, não que eu tenha tido muitos para comparar. Mas não se preocupe, estarei de volta rápido o suficiente para esquecer que algum dia fui embora. — Talvez essa última parte não fosse exatamente verdade, não tinha ideia de quanto tempo passaria fora, só que pegaria esse voo, teria o último jogo milionário da sua vida e construiria algo sólido, não um castelo de areia que cairia sobre qualquer pressão.
— Como foram os jogos? Eu sinto que só te vejo para jogar mais, não sei se você sabe fazer algo mais da sua vida além disso. — e estavam sentados no chão do apartamento dele, ambos segurando uma cerveja na mão enquanto conversavam quando ela perguntou.
— Tenho vergonha de dizer que você não foi a única pessoa que eu perdi, mas não perco em nenhuma quantidade próxima deles como de você, se eu tivesse metade da sua sorte com cartas ou sua habilidade de fazer alguém acreditar não ter nada quando tem a melhor mão da mesa ou ter tudo quando não possui nem a carta mais alta, estaria em Las Vegas competindo o World Series of Poker Main Event (1).
— Primeiramente, pôquer não é sorte, não é nem sobre a mão que você ganha, é sobre percepção, que tipo de jogador se mostra e como lê os outros e as suas mãos. É sobre habilidade, 70% dos jogos nem chegam ao Showdown (2). É o equilíbrio entre não blefar demais e ninguém realmente acreditar ou blefar tão pouco que, qualquer aposta alta, sabem que você definitivamente tem uma mão para não se apostar contra e desistir. Ter equilíbrio e não ser agressivo demais e ir all in com qualquer mão minimamente boa ou só tentar quando tiver a melhor mão para começar.
— Para alguém que disse ter uma ideia de como jogar, entende muito do assunto. — Ela olhou para ele indignada com o uso do seu segundo nome e lhe deu um tapa.
— Eu não sei o que estava pensando quando te deixei ver meu nome completo, não é como se alguém usasse meu segundo nome além de você. — disse exasperada.
— Eu gosto de me sentir especial, por isso uso. Além disso, não me deixou ver seu nome. Eu só levei as contas da sua caixa de correio para o apartamento e li para quem estava endereçado. Não tive bem a sua autorização para isso. — deu um sorriso inocente a isso. — E ainda não me respondeu como sabe tanto, vê o campeonato todo ano ou os programas sempre?
— Como se tivesse tempo para isso. Eu já disse, aprendi com o meu avô. Meu pai nunca ligou muito para mim e depois que minha mãe morreu, ele me jogava para cima dos meus avós sempre que podia. Meu avô amava o jogo, queria se tornar profissional e ficar milionário, mas como os 95% dos jogadores que não conseguem pagar nenhuma conta com isso, quanto mais viver do jogo, o máximo que ele conseguiu foi me ensinar. Eu gostava, mas sempre tinha coisas mais importantes do que focar nisso.
— Ele pode não ter conseguido, mas você definitivamente deveria tentar. Talvez não ser profissional, mas um jogo caseiro com uma aposta razoável pode te ajudar nas suas contas. — deu a ideia como se tivesse pensado nisso naquele momento e não várias vezes pelas últimas semanas, parecia o momento certo para soltar aquela ideia naturalmente. riu perante a ideia, como se ela conhecesse gente com dinheiro suficiente para cobrir 40.000 em dívidas.
— Boa ideia, porque eu não chamo o meu vizinho e ganho 20 fácil com ele, talvez eu consiga pagar meu telefone com isso. Ou melhor, vou para o beco escuro mais bizarro que o resto já estranho do meu bairro, então se eu ganhar apanho porque vão pensar que trapaceie, ou perco e, além de ter mais uma dívida, ainda ganho um agiota simpático para cobrar educadamente. — não podia evitar o sarcasmo na voz enquanto se levantava em direção à cozinha, era cada coisa que Cornell dizia quando tomava uma cerveja a mais, ainda era cedo, mas talvez a resistência dele tivesse diminuído desde a última vez.
— Eu estou falando sério! Olha, o pessoal que eu jogo faz uma mesa maior nas quartas-feiras, eu cubro seu buy-in (3), se perder, não me deve nada já que eles estão me devendo da semana passada e eu com minha habilidade limitada posso ganhar de volta em outra mão, se ganhar só precisa tirar o que eu dei para iniciar. Eu sei que as coisas não estão fáceis com a dívida do hospital, vejo como trabalha dia e noite, seja no correio ou na lanchonete, e pela sua cara ou como seus ombros estão sempre para baixo, está bem longe de ter algo resolvido. É orgulhosa demais para me deixar ajudar, então pelo menos me deixe patrocinar seu talento e poder esfregar na cara deles que perderam para uma menina que a última vez jogada antes de mim foi anos antes.
Era tentador, mas sabia que não poderia aceitar, não queria mudar a dinâmica do relacionamento deles envolvendo dinheiro e jogo, era a própria receita do fracasso. Mesmo com as coisas difíceis desde que saiu de casa e teve a sorte de ficar doente sem um plano de saúde, dever uma fortuna devido a exames e uma cirurgia para retirada de pedras na vesícula. Hoje em dia, tinha dois empregos, tempo livre quase apenas para dormir, tirando dinheiro do céu para pagar um plano para não ter mais nenhuma surpresa e acrescentar algo ao montante da dívida. E ainda assim, as contas nunca batiam e parecia sempre estar quase para se afogar, era uma das únicas boas dos seus dias, não queria prejudicar aquilo por algo que nem sabia se valeria a pena.
— Bem, muito obrigada por querer fazer isso por mim, mas eu não posso aceitar. Precisará esfregar a sua vitória na cara deles, porque eu não posso ajudar nisso. — disse com finalidade.
(1) é o maior e mais conhecido campeonato de pôquer ao vivo do mundo, acontece anualmente em Las Vegas. Depois de 2007, houve expansões e já existe a versão europeia e a Ásia-Pacífico
(2) Se no final do jogo sobrarem 2 ou mais pessoas, todos devem mostrar sua mão, o chamado show down. Se antes disso, enquanto as apostas acontecerem e o outro jogador der fold (desistir da mão), o ganhador da rodada
(3) quantia que os apostadores devem pagar para entrar em um torneio/mesa
Três semanas depois, estava em frente à porta de uma casa em uma das áreas mais caras da cidade, ainda não acreditava ter cedido tão facilmente, mas a verdade era que estava tentada desde o primeiro momento. Quando tentou leva-la para a mesa menor, com um buy-in bem menor da de quarta-feira, dizendo ser um jogo amigável com pessoas confiáveis que só queriam se divertir, ela disse sim pensando que teria como controlar a situação, observar os padrões de jogo deles e não criar mais dívidas, quem sabe realmente diminuí-las. jogava consideravelmente bem e se conseguia ganhar deles, também poderia.
Ele apertou seu ombro como se dissesse “tudo vai dar certo” enquanto a porta era aberta por um cara aparentando estar no final dos seus 20 anos, talvez alguns anos mais velho que ela. Ele era bonito, alto, mais ou menos do tamanho de , com olhos azuis e uma expressão gentil.
— Olha quem temos aqui! Nosso jogador sumido, faz umas duas partidas que não te vejo. — o cara ainda sem nome disse com um sorriso e o abraçou.
— Dylan, eu andei meio ocupado e, na verdade, não estou aqui para jogar, sim para patrocinar e assistir, trouxe uma amiga para agitar um pouco as coisas. — Disse apontado para ela. Dylan levantou as sobrancelhas surpreso, não era incomum trazer alguém novo, mas era a primeira garota que traziam para aquela mesa. — Esta é .
— Ah, eu acho que já ouvi você comentando sobre ela, a sua amiga que aparentemente é realmente sua amiga, não um eufemismo da palavra e ela realmente existe — disse dramático. — Prazer , eu sou Dylan Cooper, amigo desse cara, nós estudamos no mesmo colégio por volta de 1500.
deu um risinho e o cumprimentou de volta. Os três entraram pela casa em direção ao que parecia ser uma sala de estar, com uma grande mesa no centro e já haviam vários caras sentados, cinco pela sua conta. Sorriu e acenou para todos, a apresentou de novo e todos eles disseram seus nomes, não que tivesse conseguido gravar nada enquanto sentia que sua orelha estava debaixo d’agua, o nervosismo estava chegando com tudo.
Todos se sentaram, já tinha entregue os mil dólares do buy-in no caminho até a sala, mil dólares esses que teria certeza de não perder. Já que não iria jogar, seria o dealer da vez, pegava o baralho e o embaralhava, quando terminou o cara a sua esquerda colocava o small-blind (1) e o a esquerda desse colocava o big-blind (1). Ela mesma era a pessoa a direita de , como a mesa girava em sentido horário significava que seria a última a jogar e poderia observar todos antes de ter que tomar uma decisão, sua posição era chamada de cut-off.
Depois que cada um recebeu as duas cartas da mão, observou as suas, recebeu um Às de ouro e um 3 de espadas. Não era uma mão exatamente ruim, pois tinha a carta mais forte do baralho, mas também estava longe de ser a melhor que havia. Decidiu desistir da rodada e devolver as cartas, queria uma mão boa antes de começar a apostar um dinheiro que não era seu, também precisava saber com quem estava lidando, como eles jogavam, então só absorveu enquanto cada um deles faziam suas jogadas, não foi a única a dar fold, o único cara ruivo da roda e um moreno de óculos também.
Não apostou nada pelas próximas quatro rodadas, até recebeu um par de três em uma, mas ainda não estava exatamente confiante e precisava se acalmar antes de tomar decisões com uma cara em branco. Na primeira rodada, Dylan ganhou já no flop e não mostrou sua mão. Na segunda, o ruivo se deu bem com um par de 8. A terceira e a quarta foram ganhas por um cara francês que descobriu se chamar Pierre.
Recebeu um par de 10, ainda não tinha ideia do padrão de comportamento de nenhum deles, mas já tinha algo e resolveu se mexer, não podia vir e esperar pela mão perfeita para sempre, não que ela realmente existisse. Começou apostando 500, como era a primeira vez que não dava a mão, eles pensavam que deveria ter algo bom e três já desistiram, Dylan aumentou para 600 e mais dois desistiram. Jogaram o flop, os dois deram check (continuar na rodada sem aumentar a aposta), aconteceu o turn e o river da mesma forma e a mesa tinha um 2 de paus, 4 de ouros, 5 de ouros, às de paus e 8 de copas. Como Dylan não aumentou a aposta quando saiu o às, não imaginava que tivesse um na mão e como aquela era a única carta da mesa maior que a sua, apostou mais 300, esperando ganhar antes do Showdown.
— Call (2). — Dylan disse com um sorriso e mostrou sua mão com 8 de paus e valete de ouros na mão. Também tinha um par na mão, só que o de era de cartas maiores, sorriu enquanto mostrava as suas e pegou o montante da mesa, tinha acabado de ganhar mais de 1000 dólares em uma única rodada, estava bem satisfeita consigo mesma.
Algumas horas depois, algumas partidas perdidas e outras ganhas, já haviam saído 3 pessoas da mesa que apostaram tudo e perderam. Ela ainda estava ali, jogava cautelosamente, só quando tinha uma boa mão e sempre com valores altos. Já entendia um pouco melhor dos companheiros de mesa e se sentia calma, como quando jogava com o avô. Tinha acabado de receber uma mão alta com um rei de ouros e um valete de copas. Começou apostando baixo e Hendrik, o ruivo, a acompanhou.
O flop mostrou uma rainha de copas, 9 de ouros e 4 de paus. Hendrick aumentou a aposta. Ainda não tinha realmente nada, mas se surgisse qualquer uma de suas cartas teria um par ou se as próximas duas fossem às e 10, uma sequência (Straigh). Estava se sentindo confiante e com um bom pressentimento, então cobriu aposta dele. A próxima carta jogada foi um 3 de ouros, olhava concentrada para a mesa e fez check, junto com ele. A última carta mostrou um 4 de ouros. Não tinha nada, mas mesmo assim falou.
— All in. — sua expressão estava em branco e olhava diretamente para Hendrick enquanto ele pensava o que ela poderia ter ganhado na última carta para ir assim. Ele tinha um par de 8, mas com a sequência da mesa, se ela tivesse um 4 na mão, teria uma trinca e ganharia dele, e se tivesse duas cartas de ouros teria um Flush (3). Ela era uma jogadora segura e quase não a viu blefar a noite inteira, então desistiu pensando nas possibilidades da melhor mão ser dela. Enquanto ela pegava o montante, ele perguntou qual mão ela tinha para ter ido assim.
— Um rei de ouros e um valete de copas. — ele olhou incrédulo para ela, tinha perdido com a melhor mão para alguém que não havia blefado a noite inteira, e tinha resolvido fazer isso apostando alto. Todos olhavam levemente impressionados, parecia que a sorte de principiante estava a favor de alguém.
— Foi um semi-blefe, no máximo, eu tinha cartas altas e você não parecia entusiasmado pelas últimas cartas. — Disse como se fosse simples, estava feliz, não existia nada melhor do que vencer uma mão melhor que a sua, quando não se tinha nada. Tinha esperado até o último momento antes de apostar tudo para ser crível, como se tivesse ganhado exatamente o que precisava.
Ao final de todo o jogo, ela sentia uma adrenalina passando por si, tinha ganhado e, com isso, mesmo tirando o valor do buy-in, tinha o equivalente a 3500 dólares, mais do que ganhava um mês, as vezes até dois. Aquela talvez fosse a resposta para todos os seus problemas. Não pensava mais tanto nos riscos, conseguiria até pagar a própria entrada na próxima, aquele definitivamente não seria a última vez dela naquela mesa.
(1) Blind se refere as pessoas que tem que pagar uma aposta antes da mão começar. O big-blind se refere a uma aposta cheia e o small-blind a uma meia aposta.
(2) Call significa cobrir a aposta do outro. A opção do jogador é cobrir, aumentar (raise) ou desisitir (fold)
(3) cinco cartas do mesmo nipe em qualquer ordem, é a quinta melhor mão do baralho, ganhando de sequência, trinca, dois pares, um par e carta mais alta.
Nos próximos meses, participou de todos os jogos semanais, não ganhou todas as vezes, mas mesmo com as perdas, conseguiu pagar o que parecia impossível antes. Depois disso, avançou para mesas maiores com buy-in grandes, a acompanhou em algumas, ela começou a respirar livremente depois de passar tanto tempo como se fosse se afogar e em pouco tempo tudo mudou.
observava a vista do quarto do seu hotel em Las Vegas, já havia passado muitas noites ali nos últimos anos, mas nunca realmente parara para ver o que aquele lugar tinha a proporcionar além das mesas do cassino ou de mais quartos de hotel com mais jogos dentro deles quando queriam privacidade. A sua vida tinha se resumido a pôquer, noites transformadas em dias inteiros, adrenalina e a corda bamba entre continuar perseguindo tudo que antes era impossível e perder tudo que demorou meses para ganhar. Ela sempre apostou alto, mesmo se apenas em mãos boas e quase certas, e, no final de cada jogo, ela tinha ou uma grande soma ou um desfalque enorme no dinheiro conseguido antes.
Seu celular tocou em cima da cama, a despertando para a realidade, foi até ele, viu o nome de Kelly, sua gerente do banco, e atendeu.
— Boa tarde, senhorita Hall, estou ligando para confirmar a transferência que agendou para hoje, assim como informar que caiu o valor que a senhora retirou do seu investimento na bolsa. — resolvera mexer no dinheiro que tinha deixado parado para caso perdesse demais no jogo, sempre tinha que dividir os valores entre o que poderia gastar, guardar para o futuro e usar para perdas. Agora colocaria o dinheiro em novos investimentos, tiraria de alguns que a permitiam movimentar rapidamente a conta, mas não rendiam tanto, colocaria em outros que demoraria talvez até anos para sair e lhe devolveria quase o dobro. Talvez em algum tempo, investiria em imóveis, enfim, diversificaria seus ganhos.
— Boa tarde, Kelly, com a entrada do dinheiro, pode confirmar a transferência. Também queria confirmar o pagamento automático da matrícula da universidade, o valor ainda não tinha saído da minha conta até ontem. — Entre seus novos planos, resolvera começar a faculdade, não podia ter feito isso quando saiu da casa do pai após a morte do avô com as despesas que já tinha, agora queria descobrir outras coisas que gostava e arrumar algo mais confiável para o futuro. Os planos eram de algo relacionado a economia ou administração, mas ainda não tinha absoluta certeza. Talvez abrisse uma empresa depois, ou um restaurante. Com o dinheiro guardado e os rendimentos, conseguiria ficar parada por um tempo para descobrir coisas que gostasse. Desacelerar e ver outros interesses. Antes não tinha formas ou oportunidades de bancar isso, depois não teve tempo ou até mesmo vontade.
Kelly lhe confirmou a saída do dinheiro, agradeceu e se despediram. Desligou o celular, se sentou e olhou para o teto. Estava sozinha como estivera nos últimos tempos, era para estar ali com ela, mas o tempo certo passara havia muito. Ele estaria orgulhoso se soubesse dos seus planos, em como havia finalmente planejado um basta, mas mesmo sem ele, o importante era que estava orgulhosa e feliz de si.
Algumas horas depois, ela estava no saguão quando esbarrou em alguém antes querido que não via há tempos.
— Dylan! Quanto tempo! Meu deus, o que faz aqui? — perguntou enquanto o abraçava. Ele não aparecia em uma mesa de pôquer em quase um ano, então era basicamente o tempo sem o ver, com a sua vida social restrita a isso. Apesar de ter sido o anfitrião do primeiro jogo, não era exatamente assíduo, tratava esse esporte da mente como algo realmente recreativo. No início, ficou próxima dele já que era um amigo íntimo de , mas como tudo não relacionado ao pôquer, não mantivera laços fortes. A última vez que ouvira falar nele, estava casado e trabalhava em uma firma de advocacia.
— Provavelmente a mesma coisa que você, o jogo de hoje é organizado por um amigo que fazia umas mesas inigualáveis quando eu era mais novo. Bom, deve conhecer ele melhor do que eu hoje em dia, não ando muito frequente e não acho que soube de alguma mesa em qualquer canto da cidade sem seu nome envolvido. Não sei como sobreviveu, eram o que? Seis jogos semanais? — quando se falava em voz alta, percebia como o número era absurdo, se pelo menos fossem jogos curtos, tudo bem, mas sempre atravessavam a barreira de um dia para o outro.
— Às vezes cinco, mas não acho que vá ouvir meu nome muito mais nos próximos meses, decidi que iria parar em grande estilo com um ótimo histórico do que como alguém com dias de ouro que não soube quando parar. — o buy-in dessa noite teria quase seis dígitos com entrada proibida de jogadores profissionais, iria sair com um estrondo no jogo ou na sua conta bancária.
— Essas são as palavras que nunca imaginei saírem da sua boca, deve estar em êxtase, vão finalmente fazer a viagem que ele vivia falando? — talvez fosse a primeira vez que ouvia esse nome em voz alta desde que ele fora embora. Era estranho e não sabia realmente como lidar ainda, por muito tempo o falava diariamente e agora não sabia nem onde ele estava.
— Na verdade não, ele está fazendo acho, eu só vou parar mesmo. Ver como se sente quando se dorme de noite, não de dia. — tentou fazer uma piada para tentar quebrar a expressão surpresa de Dylan, esperava que ele já soubesse, mas como aparentemente não, devia ser um choque. Costumava dizer que nunca vira duas pessoas mais grudadas no quadril, nem mais perfeitas uma para outra.
Três anos antes
— Vamos! Mal corremos três quilômetros, não pode já querer parar. — disse alto para uma encurvada com as mãos nos joelhos e respirando fundo como se fosse desmaiar a qualquer momento. Ele estava alguns metros a frentes e foi até ela vendo que não se mexia. — , já passamos de 500 metros da última vez, só mais 500 metros correndo e 10 minutos caminhando e pronto. Vamos lá!
— Eu queria parar um quilômetro atrás, — sua voz estava ofegante e com uma pausa a cada palavra que saia — agora eu sou só um corpo morto-vivo, eu não sei nem como vim parar aqui. Estava em casa deitada e viva.
— Exatamente, é só isso que você faz. Correr é bom para conhecer o bairro, não acredito que se mudou para perto de mim e o único jeito que eu te encontro é te tirando daquele buraco negro. — Depois que começara a precisar pagar somente as despesas mensais, sem se preocupar com contas de hospital, ela conseguira o suficiente para pagar o aluguel de um lugar mais confortável e seguro. Agora já largara os dois empregos e vivia apenas com o que ganhava das apostas, participava de uma mesa pequena e outra grande durante a semana, o que a deixava com tempo livre suficiente para ficar largada em casa lendo sobre assuntos aleatórios que nunca soube muito sobre, como astronomia. Porém, há alguns dias, Cornell disse que estava ficando sombrio demais e resolveu arrastá-la para correr todo entardecer ou, nas piores ocasiões, antes de ele ir trabalhar em sua empresa.
— Eu já conheci o suficiente, preciso me sentar agora e comer. E olha que coincidência, eu morri perto da única cafeteria com um café decente, parece um sinal para mim. — Para alguém que tinha morrido 500 metros antes, andava bem rápido quando o assunto era comida e café. suspirou, desistiu de tentar convencê-la a terminar a corrida e a seguiu para um dos únicos lugares que a faziam sair de casa.
Quando chegou a mesa, ela já havia pedido pelos dois, não sabia exatamente quando passaram a fazer isso, mas conheciam todos os gostos um do outro melhor do que ninguém e apenas assumiam o da vez. Conversaram um pouco antes de cair num silêncio pacífico cortado por .
— Vai ter um feriado final do mês, acho que devíamos fazer algo diferente, não a usual cerveja com conversa furada.
— E o que você sugere, senhor mudar minha rotina diária?
— Quando eu era mais novo, eu visitava uma cachoeira a alguns quilômetros da cidade. É muito pacífico, sempre voltava de lá como uma nova pessoa, ia com Dylan e mais alguns meninos e ficávamos em uma casa dos meus pais próxima. No nosso caso, seriam só nós dois, todo mundo já tem outros planos e, para ser sincero, faz tempo que não temos muito tempo só para a gente e sinto falta disso, é a minha pessoa favorita para conversar. Sinto saudades da minha melhor amiga. — Ela o olhou com uma falsa expressão de emoção.
— Então, quer dizer que eu sou sua pessoa favorita? Não é como se eu não soubesse disso, mas é sempre bom ouvir. — fez sua melhor expressão convencida. — Você é a minha também, não como se tivesse muita concorrência, e ganharia se existisse. — arregalou os olhos como se fosse uma grande revelação. — Sei que não temos o mesmo ritmo de antes entre nós, mas ainda somos a gente. Sinto um pouco de falta do meu melhor amigo também, com certeza menos que você de mim. E, só para constar, essa foi exatamente a forma certa de me convencer a fazer algo, não me arrastando por aí.
— Eu discordo, mas tento ser educado as vezes e é bom não ter que lidar com você esperneando o caminho inteiro.
o olhou ofendida e riu depois. Conversaram e implicaram um com o outro por mais tempo, era sempre bom quando eles estavam juntos.
A casa do feriado era isolada, localizada em frente a um lago e cercada por árvores, do tipo que nunca imaginaria existir tão perto da cidade barulhenta em que vivia, era tão silenciosa, como se só existissem os dois no mundo (e alguns pássaros).
e tinham chegado a algumas horas, descasaram e agora saíam da casa em direção a cachoeira, localizada a uns 500 metros de distância a oeste. A caminhada foi tão silenciosa quanto o ambiente, os dois imersos no lugar. Ele se sentindo um pouco nostálgico e ela absorvendo tudo ao seu redor.
Quando finalmente conseguiu visualizar o local desejado, parou e olhou para os vários metros de queda d’água, era lindo. A água era quase cristalina e já conseguia ver as pedras do chão e um ou outro peixe passando. Cornell já tinha mergulhado e gritava a chamando.
— Vai ficar parado o dia todo aí? A água está maravilhosa e bem melhor que fora.
entrou correndo e soltou um gritinho com o choque de temperatura, a água estava congelante. — É isso que chama de maravilhosa? Parece que entrei em um frigorífico, talvez minha alma fique aqui quando eu for embora de tão gelada.
— Deixa de drama, vem até aqui, só se acostumar que se sentirá a melhor pessoa do mundo. Essa água limpa a alma, não a tira. — disse, a puxando para o fundo e a segurando lá. se agarrou a ele em busca de algum calor, estava tremendo. Passaram alguns minutos assim, apenas respirando quando o moreno falou.
— Está toda tensa, precisa relaxar. — ela o olhou como se dizendo que não tinha como fazer isso com essa temperatura. — É o objetivo da viagem, passarmos um tempo juntos e relaxar. Encosta a sua cabeça na água, deixa teu corpo flutuar. — disse enquanto ela se soltava dele e tentava flutuar com os dois braços dele por baixo do seu corpo, sentia seu coração bater a mil, mas pelo menos o tremor já tinha parado. — Desse jeito vai afundar, respira fundo pelo nariz e solta pela boca — fez isso algumas vezes, mas ainda sentia os músculos tensos, parte pelo frio e parte por eles viverem assim, não se lembrava de alguma vez diferente além de quando acordava.
— Limpa a mente, respira, sente tudo que toca teu corpo, o biquíni, a água nos pés, nas mãos, ao redor. — continuou respirando fundo e sentiu a mente um pouco em branco, a água tocava tudo, suas mãos se mexiam um pouco para senti-la. A água a circundava como um todo, menos em duas linhas, sentia os braços de ali, não o líquido, mas algo sólido.
— Respira, inspira, imagina algo que te deixe feliz. — ela pensou em uma mão com um par de às, era algo bom e que poucas vezes ganhava, ainda assim seu corpo se tencionou associando a imagem a adrenalina de um momento como esse. Já não sentia a água em todo canto, sentia os braços dele ainda. — Algo feliz, algo que te faz voar. — pensou no alívio de ter pago a última parcela da conta do hospital, mas não bem flutuava com isso. Lembrou-se de noites antigas conversando com a pessoa que a segurava, sua mente viajou a centenas de horas diferentes, quase não estava mais presente ali, porém ainda sentia cada grama dos braços dele.
— Segue isso, deixa te levar um pouco, respira e inspira, chegou a um lugar claro, cheio de luz. Tem algo incrível ali. — ela não conseguia visualizar nada exato, só um campo em branco e sentir o gosto que parecia de vitórias. Sua mente estava tão longe que já não sentia bem a água nas mãos que se mexiam, mas ainda sentia os braços dele. — Vai um pouco mais alto, chegou em um lugar cheio de azul, a sua cor preferida, ali tem uma cachoeira como essa aqui. Mergulha de uma vez e senti a água te envolver de novo, ela é gelada como essa, mas você não está com frio, se sente refrescante como depois de um dia quente, fica com todo o corpo debaixo d’água e prende a respiração, sua mente está limpa. — já não sentia os braços deles, ele a tinha largado e ela realmente se deixou afundar e prendou a respiração, já não pensava em nada. Ficou assim até quando precisou de ar.
Estava ofegante e com cada músculo do corpo relaxado, o que fora aquilo?
— Eu pensei que você só ia me segurar enquanto eu boiava, o que foi todo o resto? Não que eu esteja reclamando.
— Eu fiz umas aulas de meditação por esses tempos e queria ver se funcionaria contigo. Eu sempre saio de lá com a alma limpa, como só a cachoeira não fez isso. E então, funcionou? — a olhava com expectativa e disse antes que pudesse responder. — Espero ter conseguido fazer a viagem, as vezes a minha mente ficava presa em algumas coisas e eu via pelo menos o que me prendia aqui.
— Eu acho que sim, teve alguns momentos que minha mente não estava nem presente. Mas algumas coisas me lembravam pôquer, então já sabemos o que me prende. — o irônico eram que as duas únicas coisas constantes na sua percepção foram o jogo e os braços de . Não era bem uma surpresa, ele era uma das únicas coisas que a puxava do pôquer.
Os dois ficaram ali por um tempo, boiando e sentindo a água, não conversaram muito. Quando esfriou um pouco, se aconchegaram e focaram somente na respiração um do outro, como se a ancorassem ali. Olharam nos olhos um do outro e só observavam detalhes do rosto de cada um que nunca tiveram a oportunidade e observar antes.
Talvez a alma de realmente ficasse naquela cachoeira, mas não seria pelo frio.
No último dia do feriado, chovia e os amigos estavam presos na casa. se enrolava em um cobertor enquanto ele procurava por algum filme na Netflix, ela o olhava atentamente e lembrou de quando o conheceu, a primeira coisa que passou pela sua cabeça foi o quanto era lindo e possivelmente um babaca considerando o amigo dele (o namorado da sua antiga amiga). Ele continuava lindo, mas o mais longe de babaca que podia imaginar.
— Lembra de quando nos conhecemos? — o moreno a olhou estranhamente, se perguntando de onde surgira o assunto, mas ainda assim acenou. — O que pensava de mim naquela época?
— Meu primeiro pensamento foi que era linda, — ela fez uma cara de lisonjeio, ao mesmo tempo que o seu coração acelerava com o comentário. — o segundo era “essa garota precisa relaxar”. — recebeu um tapa leve em resposta a isso. — Sério! Era um final de semana e seu corpo inteiro estava tenso, eu não sabia muito de você na época para saber que era seu estado normal nem do trabalho de sábado de manhã que deixaria qualquer um estressado.
— E agora? — ele a olhou confuso. — Quais são os pensamentos?
— Bom, eu continuo te achando linda se é isso que quer saber. Definitivamente precisa relaxar, se não, não estaríamos aqui. Mas também penso em como é engraçada, determinada, teimosa, forte e só... Alguém que eu não sabia que precisava na minha vida, até ter. E você? — quebrou a distância entre eles e olhou diretamente nos olhos dela.
— Que era lindo e possivelmente um babaca. — ele a olhou indignado. — foi só uma impressão e bem justificada considerando a companhia. Agora, bom, eu penso em como você consegue me apoiar em tudo, compreensivo, irritante, leal. — algo que estava sempre escondido no fundo de sua mente enquanto falava e deixou escapar, haviam passado do ponto em que podiam ser honestos sem medo de realmente perder o outro. — Na verdade, às vezes, eu penso em como seria te beijar, se me faria sentir tão bem como quando eu simplesmente saio ou converso contigo.
a olhou surpreso, nunca imaginou que ela o visse assim, antes que processasse totalmente as palavras ditas, o puxou para um beijo, pensou que a afastaria, mas a manteve ali. Aquilo se sentia bom, seu coração acelerou. O beijo era lento, como se ela estivesse insegura se deveria aprofundar ou se seria requisitado, então tomou a iniciativa e inseriu a língua aos poucos, sentindo cada grama da boca de . Seus braços saíram da altura da altura dos ombros e começaram a se mover para baixo, arrepiando cada canto do braço dela até chegar a sua cintura. Naquele momento, já estavam totalmente virados um para o outro, perdidos no momento e ganhando ritmo.
quebrou o beijo e desceu os lábios pela mandíbula em direção ao pescoço que já havia visto tantas vezes, mas não pelas sensações da sua boca. soltou um suspiro quando o sentiu ali e passou a mão dos cabelos até o abdômen dele, arranhando ali e depois movendo para as costas. Cornell foi para o outro lado do pescoço, para depois a beijar novamente ainda mais frenético. sentia como se estivesse pegando fogo e segurou a nuca dele aumentando a pressão. Ele passou a língua pelos lábios dela e quebrou o beijo e disse ofegante.
— Se sente tão bem? — tinha uma expressão atrevida, estava todo descabelado por onde ela passou as mãos.
— Na verdade, me sinto melhor. — eles voltaram a se beijar, com o controle da televisão esquecido e a chuva intensa ao redor da casa. Talvez a alma de ficasse na casa no final, não na cachoeira.
Depois daquele feriado, eles passaram várias noites como aquela, o relacionamento em si não se alterara tanto, ainda a arrastava para correr, continuava a jogar com ele a acompanhando as vezes. Saiam para beber e jogar conversa furada, assim como iam para jantares românticos e falavam tudo que não diziam para mais ninguém. De todas as mudanças, talvez a maior seja que iam para aquela casa sempre que tinham um tempo livre maior, usando a cachoeira de outra forma e se descobrindo de outros jeitos.
Um ano e meio antes
estava jogando mal ultimamente, perdendo para mãos piores que a sua. Não convencendo alguém com uma mão melhor que a sua era superior. De alguma forma, passou de acumular dinheiro para perder em algumas noites o que demorou meses para conseguir. Então, apostava mais alto em mãos antes seguras para compensar, as vezes perdia e para tentar balancear aumentou seu número de jogos por semana. Já não via direito, ele trabalhava de dia e ela dormia ou treinava estratégias ou possibilidades de jogos, enquanto ele dormia, ela jogava. Ainda bebia a noite inteira para tentar encarar o ritmo, tinha conseguido alguns remédios controlados para conseguir ficar tantos dias viradas, estava exausta todo momento. Acordava com uma pontada na cabeça eterna.
Depois de tudo isso e cinco jogos semanais, em vez de lucrar, estava na corda bamba a todo momento, conseguindo muito e em seguida perdendo. Basicamente ganhando o suficiente para se bancar, mas se continuasse dessa forma talvez nem isso. Não podia exatamente reclamar, tinha propriedades agora para vender se algo desse errado, mas não tinha um emprego se as coisas dessem realmente erradas.
já não conseguia acompanhar seu ritmo e só a encontrava dormindo a tarde depois de voltar de uma madrugada acordada, tentava ser compreensivo, mas realmente não entendia sua necessidade de viver assim. Se voltasse para as apostas menores, não teria uma possibilidade tão grande de dívidas em noites ruins, mas também demoraria muito mais para crescer, e não podia voltar para o momento que não existiam possibilidades de progredir. Mesmo as piores derrotas, não eram dívidas impagáveis, apenas uma inconveniência do jogo.
Então continuou nesse ritmo por meses até encontrar sua sorte de novo, ou pelo menos usar a habilidade para contornar mãos ruins. Mesmo quando voltou a ganhar muito por jogo, não diminuiu o ritmo, pelas suas contas, se continuasse assim por um ano ou dois, talvez não precisasse trabalhar de verdade nunca mais e se mantivesse por mais tempo ainda, conseguiria ter um estilo de vida de filmes.
Um ano antes
chegou cansado de mais um dia para encontrar dormindo na cama com um recipiente de pílulas para dormir ao seu lado. Apesar de viver cansada, ela passava tanto tempo com a mente a mil que não conseguia parar quando precisava ou finalmente tinha tempo, então agora existiam remédios para deixá-la focada e desperta durante as noites e remédios para conseguir desliga-la o suficiente para cair no sono.
Ele suspirou quando viu as horas, queria conversar com ela, mas como esse seria um dos únicos dias da semana que não tinha jogo, resolveu dormir e conversar pela manhã. Finalmente a veria quando acordasse.
Quase pela hora do almoço, levantou da cama, indo para a sala e encontrou sentado lendo no celular, provavelmente o jornal. Ele levantou os olhos e a chamou para o seu lado. Quando ela sentou, Cornell levantou seu queixo e tocou em suas olheiras, eram profundas como se tivesse passado a noite em claro, não podia deixar de se preocupar. Quase não a via e não parecia saldável quando acontecia.
— Parece que você passou os três últimos dias virada, não que dormiu mais de 12 horas de ontem para hoje. — ela o olhou meio sem graça, fazia tempos não acordava de outro jeito.
— Eu passei as duas últimas assim, meu corpo ainda não se recuperou direito.
— E quando ele vai? Porque amanhã é outro dia de jogo e outra noite virada e talvez outra tarde com cartas em cima da mesa. Talvez saia de casa para comprar alguma coisa, algo caro e bonito que pareça motivo suficiente para continuar fazendo isso. Quem sabe um carro novo? — ironizou o carro que havia comprado há uma semana, continuava na garagem sem uso já que ela não dirigia para os jogos, com medo de dormir no volante na volta (ou até na ida, pelo jeito como tudo caminhava).
— Eu vou descansar quando der, algumas mesas grandes vão começar semana que vem e eu não tenho como diminuir o ritmo, mas com o dinheiro delas, eu posso me dar o luxo de parar por uma semana inteira.
— Nossa, uma semana inteira, parece as férias dos sonhos, — ironizou. — se elas realmente acontecerem, porque ou a mesa dará muito certo e vai pensar porque não mais? Ou muito errado e vai ficar num ritmo frenético ainda maior até conseguir cobrir o prejuízo. Mesas grandes são ou ganhos enormes ou perdas catastróficas como disse uma vez.
— Olha, eu sei que anda preocupado, ao contrário do pensamento geral, não sou tão cega assim. Mas eu realmente darei uma pausa, sério. — passou a mão pelos cabelos dele, tentando soar reconfortante e segura. Não era a primeira conversa do tipo, nem a primeira mentira do tipo.
— Eu só acredito quando acontecer. — se afastou dela e passou a mão na cabeça, parecia cansado e exasperado como se se esgotasse de sempre debater a mesma coisa. — Não estou dizendo para nunca mais jogar, só para diminuir o ritmo. Eu fui jogar o lixo e achei duas garrafas vazias, sendo que limpei o lixo ontem. Não é só o jogo, são bebidas, remédios e o fato que, na metade do tempo, sua mente não está realmente aqui. E eu só não consigo entender realmente o objetivo de tudo isso, não pode ser dinheiro porque não está aproveitando quando ganha e fica desesperada se perde. — talvez o sentimento mais descritivo para ele não fosse cansaço da situação, mas tristeza.
— É só que eu preciso conseguir o máximo possível do pôquer antes de abrir mão ou até diminuir o ritmo. Se eu começar a jogar na velocidade de antes, nunca vou voltar para o nível de agora. Só posso ir em frente até chegar na linha de chegada.
— Que seria?
— O suficiente para nunca mais me preocupar com nada ou ser boa o suficiente para lembrarem-se de mim como um marco. Ter as coisas que pareciam um sonho antes, talvez compre um iate para simbolizar o fim. Eu prometo que depois das próximas grandes mesas, eu vou me cuidar melhor, vou parar por uma semana. Quando eu chegar num nível de vida confortável, investirei o dinheiro e quem sabe eu trabalhe com sei lá, decoração, ou até com você na empresa. — Ela realmente acreditava em tudo dito e sabia que não adiantava pedir algo imediato, só podia esperar pelo fim da linha de chegada.
acabou não cumprindo a promessa de descanso e eles tiveram mais conversas como aquela do que poderia contar. Até que um dia não aguentou, disse que o procurasse quando percebesse como estava se auto destruindo e como haviam coisas maiores na vida do que uma mesa de pôquer, e foi embora. Não o viu desde então, já que só saia de casa para mais mesas de pôquer ou para conseguir bebidas ou mais remédios. Seu ritmo era alucinante, mas sabia reconhecer seu limite e ainda estava longe dele.
Vários meses depois, foi parar no hospital depois de passar mal ao misturar demais seus remédios com álcool. Tivera que fazer uma lavagem estomacal para tirar tudo e, segundo o médico, estava desidratada, malnutrida, com esgotamento físico e hipertensão arterial provavelmente devido ao estresse, tudo isso antes dos 30 anos. Passou dois dias dormindo direto antes de receber alta e recomendações para amenizar o ritmo de vida e mudar seus hábitos alimentares (leia-se: comer de verdade em vez da porcaria e bebida de antes). Talvez não soubesse mais onde se desenhava seu limite, se um dia soube. estava certo, mas mesmo assim, não foi atrás dele depois de descobrir isso. Precisava, antes de tudo, realmente botar os pés no chão e decidir como queria viver sua vida. Se queria os últimos dias como um caso isolado ou como regra para a vida.
já jogava há algumas horas na grande noite, tinha o segundo melhor montante da mesa e jogava como se estivesse em uma mesa entre amigos apostando chiclete, relaxada como no seu primeiro jogo com . Aquela era sua despedida, e, apesar de como se comportou nos últimos tempos, realmente amava o esporte e gostaria de manter uma boa lembrança e sentimento de tudo.
Agora usava todo o aprendido nos últimos anos. A capacidade de tentar ler seus adversários quando recebiam sua mão, observar o humor deles. Procurar por chances de quebrar padrões de comportamento e aposta (como saber se era um blefe ou uma mão realmente superior sem o outro ir para o showdown e mostrar suas cartas), testar o que tinha apostando aos poucos e vendo se o outro aumentaria ou manteria a aposta (nos melhores casos desistia). Aquele era o ambiente dela e estava desfrutando depois de muito tempo, não estava tão preocupada em ganhar, apesar do prejuízo se não e da acariciada no seu ego se acontecesse. Estava ali pois precisava de um ponto final, não de uma vitória.
Na mesa rolava uma rodada com fold dela em que Dylan e um cara chamado Thomas apostavam tudo. Eles começaram apostando alto, então as cartas eram boas ou era um quebra-braço sobre quem desistia primeiro. Dylan já tinha ido bem longe quando Thomas foi all-in, então calculou que não podia perder tudo isso e chamou o blefe do outro, não acreditava que tivesse nada. Na verdade, nem Dylan tinha algo, somente um valete, uma das cartas mais altas que sozinho perdia para qualquer combinação.
Na mesa tinha-se um 7 de espadas, 9 de paus, 5 de copas, 3 de paus. Faltava o river quando foram com tudo e deixaram suas cartas a mostra. Dylan tinha dama e 10 de ouros. Thomas um Às e 4 de copas. Basicamente, nenhum deles tinha nada efetivo e se, na última viesse um número ou valor igual a algum deles, essa pessoa ganhava. Se não, Thomas ganhava por ter a carta mais alta.
No river, apareceu 4 de espadas. Thomas tinha um par e ganhou, ele tinha sido o primeiro a ir all-in e deu sorte de no fim ter algo para ele e não o outro. Foi um pouco imprudente nesse blefe, mas isso era pôquer e as vezes, para alguns, era preciso ser mais agressivo do que habilidoso.
Dylan saiu e as próximas rodadas foram no mesmo estilo, com caras indo fundo sem ter nada com a esperança do outro pensar que tinha algo grande e desistir antes de ir para o final. Não parecia estar dando muito certo para alguns, já que agora só tinha quatro na mesa contando com ela.
Thomas continuou apostando alto pensando na sorte e nas possibilidades ao seu favor, porém Hendrick (o mesmo ruivo do seu primeiro jogo com apostas de verdade) teve uma maré de sorte, com três pares seguidos nas suas mãos e ainda com a sorte de fazer uma trinca em uma das rodadas. Entre os dois, Thomas acabou saindo sem nada daquela mesa, apenas com o que ganhou antes de chegar lá.
Ela tirou o penúltimo da mesa com um par de às e um all-in. Quando sobrou somente ela e Hendrick na mesa, os dois agiam com calma e paciência até ela receber 10 e 8 de paus e as cartas comunitárias do flop serem 7 e 9 de paus, um reis de espadas. Era a mesma mão e cartas do primeiro jogo com , teve sorte naquela vez e talvez tivesse de novo, então apostou um quarto das moedas em sua posse. Hendrick também parecia feliz e cobriu a aposta.
O turn mostrou 10 de copas, o que a tirava da possibilidade e lhe dava um par (mão pior se fosse outro de paus). O outro foi all-in antes da possibilidade de pensar em qualquer movimento da parte dela, deixando-a pensativa sobre o que ele teria. Observou-o por quase um minuto antes de aceitar, talvez ele realmente tivesse uma mão melhor, apesar de não acreditar tanto. Mas de qualquer forma, era hora de finalizar, perdendo ou ganhando.
Os dois mostraram suas cartas. Hendrick tinha um rei de ouros e 3 de copas. Estava na vantagem contra ela, com um par de cartas maiores, mas ainda faltava o river. As chances ainda não tinham acabado.
Era um 8 de ouros. ganhou, com uma mão idêntica da primeira vez e cartas comunitárias quase. Realmente eram as suas cartas da sorte, talvez um dia as tatuasse. Cumprimentou Hendrick e saiu da mesa, parando para falar com todos os conhecidos no meio do caminho até seu prêmio/valor acumulado da noite. Era uma despedida real e quando perguntaram o momento que a veriam de novo, disse ser a sua última noite e agora iria viver sua vida.
Fim.
Nota da autora: Oi gente, tudo bom? Espero que vocês tenham gostado dessa história de verdade, eu na verdade nunca joguei pôquer na minha vida e tudo que está aqui aprendi vendo vídeos, campeonatos e lendo regra na internet. Espero que pra quem não entende nada, tenha conseguido acompanhar tranquilo, para quem entende, espero não ter cometido nenhum erro. A ideia dessa fic veio do meu grande vício atual chamado A Grande Jogada (Molly’s Game), tanto o filme quanto o livro, nem tanto pela história, mas pelo mundo apresentado e pela principal que me traz sensações muito mistas. Essa foi a minha segunda fic terminada da história do universo e bem diferente do que costumo escrever, então espero que vocês tenham curtido de verdade, que tenha valido a penas chegar ao final. Comentem e qualquer coisa só chamar no Instagram e Twitter.
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08. For Now
Nota da beta: Ah, Naty! Como assim acaba aí? Meu Deus! Eu acho que eles ficaram juntos sim, viu?! Talvez não seja fácil igual em um conto de fadas, mas confio nisso! Adorei! E obrigada por participar do meu ficstape!
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