The -C
Voltar para Lima é estranho e, ao mesmo tempo, empolgante. Não quero falar de como foi péssima a experiência morando em Nova Jersey com o meu pai, dois anos de pura dor de cabeça. Eu o amo, mas temos ideologias muito diferentes. Ele é legal, mas muito negligente. Conclui que nos damos melhor de longe e seria preferível que eu voltasse a morar com a minha mãe. Ela diz que fiquei louco, que Nova Jersey com certeza é bem melhor que a cidade pacata de Lima, mas o que posso fazer se amo o lugar? Cresci aqui e, mesmo que seja simples, eu o adoro. Ela também, caso contrário já teria se mudado como fez o meu pai assim que se divorciaram.
É o meu primeiro dia na escola e estou ansioso para rever os meus antigos amigos com os quais perdi contato. A maioria ainda acompanhava pelas redes sociais, mas nunca mais foi a mesma coisa. Espero que lembrem de mim como um bom amigo, com exceção de uma em especial: . Ela costumava ser a minha melhor amiga e prometi que isso não mudaria, até ela começar a se distanciar cada vez mais. Excluiu todas as redes sociais e até hoje não sei o que aconteceu com ela direito. Agora estou prestes a descobrir.
O colégio está igual: mesmo estacionamento, mesmos armários e estrutura. É como estar em casa quando passo por aquelas portas. Há muitos rostos novos, vários conhecidos. Paro diversas vezes para cumprimentar alguns caras do time de basquete que eu costumava fazer parte e eles parecem felizes em me ver. Próximo ao quadro de avisos, avisto cabelos cacheados que reconheceria em qualquer lugar.
— Seus papéis estão todos tortos. — A garota me olha e abre a boca sem acreditar.
— ? — Pergunta e dou um sorriso.
— E aí Rosa, como você tá? — Rosália retribui o meu sorriso ainda surpresa. Ela era a melhor amiga da , costumávamos sair juntos algumas vezes.
— Nossa, eu to bem, mas você... Voltou, que incrível.
— É, voltei para a velha Lima.
Um burburinho parece chamar a atenção de todo mundo no corredor e, quando olho bem, percebo ser por causa de um grupo de garotas. Na verdade, é O grupo de garotas, com ninguém menos que bem no meio delas, e todos a olhavam como se fosse a estrela principal de algum show da Broadway. Também não consigo parar de olhá-la, mas não pelo mesmo motivo. É a mesma , mas está... Diferente. As roupas são justas, chamativas, como se cada peça fosse pensada meticulosamente para combinar até com a cor do esmalte das unhas. Salto alto... Bolsa de plástico... Um óculos de sol no topo da cabeça? Qual é, estamos num lugar fechado. Não vejo nada de errado nas roupas, mas nunca vi usar qualquer coisa parecida.
O grupo passa por mim e Rosália como se fossemos invisíveis e com o nariz tão empinado como se estivessem querendo tocar o teto.
— É, conheça a nova . — Rosa fala segundos antes de o sinal tocar e percebo que ela revira os olhos ao dizer o nome.
Fico algum tempo no corredor processando essa nova informação antes de ir para a sala. Acho um lugar vazio quando vejo e a sua trupe entrar , com o professor logo atrás. Elas andam como se soubessem exatamente para onde ir. para em frente a um garoto e lança um olhar de desprezo.
— Você tá no meu lugar, caí fora.
Ela fala e o outro nem contesta, só se levanta e a deixa sentar. Observo a cena perplexo e revoltado, porque ela é detestável. Me pergunto como um dia já gostei dessa garota. Parecem duas pessoas completamente diferentes, esse projeto saído de ‘Meninas Malvadas’ da pessoa que costumava ser a minha melhor amiga desde os 12 anos.
— Bom dia, classe. Ia passar um vídeo hoje, mas me informaram que o projetor está quebrado. Por esse motivo, peço que copiem as informações que colocarei no quadro...
O professor do qual não me recordo o nome puxa a tela que projeta as imagens, deixando à mostra o centro do quadro. Uma frase escrita com letras de forma e tinta rosa quartzo chama atenção de todo mundo na sala, inclusive a minha.
-C
Logo tudo que se escuta são conversas paralelas, risadas, tudo a respeito da frase escrita por C. Olho ao redor e a única que se mantém quieta aqui é a Rosália.
Algo me incomoda na frase, juro já ter ouvido antes, mas não consigo lembrar de onde.
— Não faço ideia, mas essa pessoa tá tentando passar uma mensagem.
— Adorei o tom de rosa.
— Como será que fizeram isso sem ninguém ver?
— Quem vocês pensam que foi?
— Se isso vai virar um episódio de Pretty Little Liars e alguém morrer, espero que esse -C comece com os fracassados.
É a única voz que identifico em meio a tantas falas, pois a conheço tão bem. não tem pudor algum ao dizer essas palavras repulsivas que são seguidas por risadinhas enquanto o professor tenta manter ordem na sala.
Demora até que ele consiga silêncio, apague a frase e siga com a aula, mas com certeza ninguém vai pensar em reações químicas pelos próximos minutos.
No final da aula, sou o primeiro a sair e fico esperando do lado de fora o momento que sair, mas saem praticamente todos os alunos e nada dela. Fico olhando da porta e ela ainda arruma seus materiais, guardando aqueles montes de canetinhas coloridas. Só há nós ali, até o professor Albert já tinha ido.
— Você tá aí parado por quê? Não me diga que quer falar comigo — fala, mas em nenhum momento olha para mim. Permanece de costas e arqueio as sobrancelhas. É a primeira vez que nos falamos em tempos, mas devido a sua atual atitude a última coisa que eu devia esperar são beijos e abraços.
— Adivinhou — falo meio seco, mas sou incapaz de usar o mesmo tom dela. — Eu te vi no corredor... você não me viu?
— Claro que eu te vi, não sou cega. — fecha a bolsa e finalmente olha para mim. — Você pensa que eu deixo de reparar em alguma coisa?
— Então, por que não veio…?
— Porque não tem relevância — ela diz e algo parece quebrar dentro de mim. Algo horrível, é péssimo saber disso. Essa nem sequer se importa comigo ou com a amizade que tivemos. Essa não mede esforços para ser má, esse projeto de Regina George tenebroso. É como se os órgãos das pessoas fossem a calçada perfeita para ela passar com o salto dos sapatos.
— Não tenho? — Pergunto ainda desacreditado.
— Já teve. Agora tenho que ir, meu tempo é precioso, .
pega todas as suas coisas e sai da sala. Ela fala com tanta naturalidade. É difícil crer que Rosália tinha razão, mudou muito mesmo.
The Art
No dia seguinte a escola está um caos.
O corredor principal está amontoado de alunos que não calam a boca por conta das frases escritas nos armários. Pela mesma letra de forma e com a mesma tinta em spray rosa.
- Channel
É uma das frases que consigo ouvir das conversas paralelas. Vou em direção à única pessoa que parece sã em meio a tudo isso. Rosa está no seu armário, guardando os seus livros.
— E ai, Rosa.
— E ai — ela responde com o bom humor de sempre.
— Caralho, o que aconteceu nessa escola? — digo observando todos os alunos e a algazarra. Não consigo impedir meus olhos de procurar por , o que não é difícil, ela está praticamente do outro lado do corredor rodeado pelo seu bando de VSCO girls.
— Todo mundo aqui é alienado por fofoca, , você queria o quê? — Rosa responde fechando o armário e, segundos depois, um barulho irritante de celular tocando preenche o ambiente. É como se todos os celulares de todos os alunos recebessem uma mensagem ao mesmo tempo. Inclusive o meu que vibra no meu bolso, o que acho estranho já que ainda nem troquei de número. Rosália também pega o dela para checar.
- Channel
— Espera, enviaram isso pra todo mundo?
— Claro, você nunca viu a série, ? — Ela responde e nego com a cabeça. De fato, todo mundo está olhando para o celular e comentando com os amigos em grupos.
O diretor logo apareceu acompanhado de alguns professores e não parecia nem um pouco feliz com as pichações nos armários.
— Eu quero saber quem fez isso, agora! — Gritou para todos os alunos, que ficaram em silêncio. O Sr. Balman era baixinho e usava óculos quadrados, todo mundo ficou calado para não arranjar uma suspensão, mas ele não é do tipo que coloca medo nas pessoas. Se Channel estiver aqui, jamais vai confessar assim.
— Quem fez, não sabemos. Agora, para quem... — A voz de é a única corajosa a se pronunciar e todo mundo olha para ela e consequentemente para onde ela está olhando. Rosália.
Todo o seu bando solta risadinhas.
É a cena mais asquerosa que já vi, ridicularizar uma pessoa a troco de nada.
— Silêncio! — O diretor ordena todo mundo fica quieto de novo. — Eu vou descobrir quem fez isso. Agora, todos para a sala!
— Rosa... — Tento dizer, ela parece abalada. Também estaria caso a minha ex melhor amiga me tratasse assim.
— Tá tudo bem, .
Na sala, antes do professor iniciar a aula, todos os celulares tocam. É outra mensagem da dita cuja.
- Channel
Confesso, é uma grande decepção, e não paro de me perguntar onde já ouvi essas palavras antes, são tão familiares.
— Tá bom, agora desliguem os celulares, por favor. — Dou um sorriso quando o careca de blusa verde musgo fala na frente da sala. Lembro de Alef ser um dos melhores professores de artes que já tive e fico feliz que ele ainda lecione aqui. Ele pega o giz e escreve "Nossa Arte" no quadro, depois se vira para nós.
— Hoje eu quero falar sobre a nossa arte. Vocês já pararam para perceber que quando você trabalha em alguma coisa e a observa por muito tempo, percebe todas as falhas e começa a parecer estranho para você? E você acaba não gostando do que fez. — Alef explica e penso em como ele está certo. Lembro dos meus desenhos. Sempre acabo odiando aqueles que fico olhando por muito tempo. — Por esse motivo vou passar esse trabalho em dupla, que, aliás, eu vou sortear. — Toda a turma resmunga. — Sem choro, galera. Quero que vocês façam algo, uma arte que os represente, e junte ela com a arte da sua dupla, formem uma só. Não quero análises críticas. O objetivo é que vocês percebam como a arte é linda. Para entregar semana que vem. Vou sortear os nomes.
Ele termina e senta à mesa para fazer o sorteio.
Penso em cada palavra que diz e estou ansioso para começar. Trabalhos com lições morais ou autoavaliativas são os meus preferidos, e com certeza é o que essa escola mais está precisando. Reviro os olhos ao ouvir as risadas do bando de e o seu mundo fútil.
— e .
Dou um leve soco na mesa quando Alef diz o meu nome e o dela.
Puta que pariu.
Justo a pessoa que eu menos queria conviver no momento.
olha para trás, seu olhar não tem muito significado, ela parece não se importar muito. Já eu penso que vão ser os momentos mais insuportáveis passar esse tempo com alguém tão repugnante.
The Mirror
e eu combinamos de fazer a primeira parte do trabalho na minha casa essa tarde. Com pouquíssimas palavras, se me
permite esclarecer. Quero acabar com isso o mais rápido possível.
Enquanto eu estou detestando a minha parceira, minha mãe não podia estar mais empolgada. Ela sempre adorou e não via a hora de ver a garota novamente. Por mais que eu tentasse explicar que ela não era mais a de antes.
— Está atrasada — digo quando abro a porta da frente. tem uma mão na cintura enquanto utiliza a outra para escrever mensagens. Está produzida da cabeça aos pés com aquele bendito óculos branco de lentes pretas que ela usa como se fosse uma coroa no topo da cabeça.
Ela entra e começa a falar sem parar.
— Eu sei, tive que ficar um tempo a mais na escola, o diretor me chamou na sala dele para cobrar explicações...
Quase a mando calar a boca, mas uma nostalgia me atinge, ela costumava fazer isso quando ainda éramos amigos.
— Oh meu Deus, ! — A minha mãe grita vindo da cozinha. vira para olhá-la, abre a boca enquanto tira os óculos da cabeça, como se falar com a minha mãe fosse a última coisa que ela estivesse esperando.
— Oi... Giny.
Ambas se abraçam. Nunca imaginei que ver a minha mãe e se abraçando fosse ser a coisa mais estranha que já vi, e o mais importante: a chamou de ‘Giny’, é o apelido dela que quase ninguém usa.
Elas ficam num papo tedioso e aviso a para me encontrar na garagem quando ela quiser começar o trabalho. A garagem é o que eu costumo chamar de estúdio de arte. Lá é onde estão todas as minhas telas, pincéis, tintas e as minhas pastas de desenho. Costumava ser no sótão, até a minha mãe reivindicar o direito de usá-lo para fazer um espaço de ioga.
Sento à bancada e separo lápis e folhas para começar o rascunho da minha arte. entra uns cinco minutos depois e coloca os óculos de volta na cabeça. Joga a bolsa na mesa e se senta do outro lado, quase que de frente para mim.
— Sério, desculpa mesmo o atraso, tive que ficar dando explicações pro Balman, ele e todo mundo acham mesmo que sou eu a responsável pelas mensagens da Channel. Bando de idiotas, não tem nenhuma prova.
começa a tirar as coisas da bolsa como caderno e estojo, mas prefiro continuar o meu rascunho do que prestar atenção no que ela diz ou faz.
— O que foi? Não vai falar comigo? — Pergunta e o único barulho que faço é um assobio. — Você pensa igual a toda essa gente? Você já foi mais original, .
Ela tira uma folha do caderno e começa a fazer o próprio rascunho.
— Não nego que você seja uma bela suspeita, mas não quero falar com você pelo jeito que está agindo.
— E como eu estou agindo, ? — Pergunta, e o seu cinismo faz meu sangue ferver.
— Tratando mal a Rosália, fazendo todo mundo zoar com ela a troco de nada. Ela era sua amiga. Se eu já fui mais original, você já foi melhor que isso — digo, me esforçando para não alterar a voz.
— Amigos vêm e vão, . Lide com isso — ela diz enquanto prende o cabelo com uma caneta. Balanço a cabeça para os lados. É inacreditável.
Passamos a trabalhar nos nossos próprios desenhos e me pergunto como vamos juntar os dois em algo coerente, que nos represente, apresentando a beleza da nossa arte como Alef quer. Mal consigo olhar na cara dela, mas ali, tão concentrada, parece diferente. De canto de olho, tento dar uma olhada no seu desenho, que reconheço ser um espelho. Ela faz traços delicados, seu olhar está tão preso no papel que exala... melancolia? Mas, logo em seguida, sua face expressa revolta e ela amassa a folha com as duas mãos.
— Onde tem um lixo aqui? — Aponto com a cabeça para a esquerda, onde fica a lata de lixo que costumo jogar materiais artísticos.
Quando volto à bancada, não consigo evitar olhar mais uma vez, e o desenho agora é uma estrela. Não parece ser tão caprichado quanto o outro e não usa a mesma delicadeza.
Passamos a próxima hora focados nisso e trocamos o mínimo de palavras possível. Fico satisfeito com a minha parte, já parece indiferente à dela. Ela solta o cabelo e começa a recolher as suas coisas para ir embora.
— Bom, acho que nós podemos terminar amanhã...
— Concordo — digo antes mesmo que ela termine de falar, mas, diferente do que pensei, não fui eu o motivo dela própria se interromper. olha atentamente para alguma coisa atrás de mim. Percebo ser para a prateleira onde ficam guardadas algumas coisas antigas.
— Meu Deus, , é aquele Super Nintendo? — tira os óculos da cabeça e prende a pontinha entre os dentes enquanto olha maravilhada para o videogame. Nós costumávamos passar horas jogando essa coisa quando tínhamos 12 anos.
— Esse mesmo — respondo e quase sorrio de lado. Seu jeito parece que muda de uma hora para outra, de "A Garota Fútil" à , "A Garota Legal Que Jogava Videogame comigo".
— Meu deus — ela diz, pegando um dos controles do videogame. — Super Mario World, Donkey Kong Country, Super Street Fighter II, Star Fox, Killer Instinct... Você lembra? Nós ficávamos noites jogando isso.
Ela vira a cabeça para mim com um sorriso tão bonito. Na verdade, ela sempre teve um sorriso bonito. Desde que voltei não conseguia enxergá-lo, porque todas às vezes que vi sorrindo era por um motivo ruim, e na minha cabeça isso tornava o sorriso dela feio, mas agora é um bom motivo.
— Claro que eu lembro, eram noites divertidas.
— Não acredito que você ainda tem essa velharia. Ainda funciona?
Fico ao lado dela e pego o videogame, os fios e o outro controle.
— Acho que sim, os cards devem estar em alguma caixa aqui. — Procuro com os olhos e encontro a caixa facilmente. Felizmente minha mãe não tinha jogado minhas velharias fora. pega a caixa olhando admirada para os jogos.
— ... A gente pode jogar uma partida?
Ela pergunta e os seus olhos brilham mais que uma dúzia de ametistas.
— Não quero saber de choro quando você perder. — Sorrio e ela retribui.
Não devia ter feito, mas quando vi já tinha. O que era para ser uma partida vira várias. Eu e passamos o resto da tarde jogando jogos antigos e comendo besteiras que a minha mãe insistia em trazer pra gente. Ela tinha uma mania esquisita de não soltar aquele óculos branco, mas não o levou à cabeça em nenhum momento enquanto nos divertíamos.
Era essa que eu estava esperando encontrar desde que voltei.
Quando passa das seis, ela finalmente se levanta, alegando que precisa voltar para casa. É enfadonho o processo de vê-la calçando os saltos, arrumando a bolsa e o óculos na cabeça, como se remontasse a sua personagem.
— Vamos terminar o trabalho amanhã, colorir e juntar tudo. Na minha casa, pode ser?
Concordo com a cabeça e levanto para levá-la até a porta.
Sinto que, antes que ela saia, quer dizer algo, a sua boca abre e fecha, mas não sai nada. Então decido dizer:
— Até amanhã!
— Até.
Fecho a porta e a primeira coisa que faço é ir correndo até a garagem. Posso ter passado a tarde me distraindo, mas uma coisa não deixou de martelar na minha cabeça. Abro a lata de lixo e procuro pelo papel que amassou e jogou ali. Quando encontro, o desamasso completamente e consigo ver o espelho que ela tinha desenhado, mas com um detalhe que não tinha conseguido ver antes: tinha escrito uma frase nele.
"Essa é a diferença entre mim e você, obviamente, eu sou natural, eu sou totalmente real, eu não posso te ajudar a ser como eu, espero que você não me entenda mal.”
Dobro a folha e guardo no bolso. Uma agonia parece pinicar o meu peito, como se eu soubesse de alguma coisa, mas não consigo ligar os pontos e tem tudo a ver com . Sempre acreditei que nunca pudesse ser cruel e, de certo modo, ainda acredito.
Enquanto eu estou detestando a minha parceira, minha mãe não podia estar mais empolgada. Ela sempre adorou e não via a hora de ver a garota novamente. Por mais que eu tentasse explicar que ela não era mais a de antes.
— Está atrasada — digo quando abro a porta da frente. tem uma mão na cintura enquanto utiliza a outra para escrever mensagens. Está produzida da cabeça aos pés com aquele bendito óculos branco de lentes pretas que ela usa como se fosse uma coroa no topo da cabeça.
Ela entra e começa a falar sem parar.
— Eu sei, tive que ficar um tempo a mais na escola, o diretor me chamou na sala dele para cobrar explicações...
Quase a mando calar a boca, mas uma nostalgia me atinge, ela costumava fazer isso quando ainda éramos amigos.
— Oh meu Deus, ! — A minha mãe grita vindo da cozinha. vira para olhá-la, abre a boca enquanto tira os óculos da cabeça, como se falar com a minha mãe fosse a última coisa que ela estivesse esperando.
— Oi... Giny.
Ambas se abraçam. Nunca imaginei que ver a minha mãe e se abraçando fosse ser a coisa mais estranha que já vi, e o mais importante: a chamou de ‘Giny’, é o apelido dela que quase ninguém usa.
Elas ficam num papo tedioso e aviso a para me encontrar na garagem quando ela quiser começar o trabalho. A garagem é o que eu costumo chamar de estúdio de arte. Lá é onde estão todas as minhas telas, pincéis, tintas e as minhas pastas de desenho. Costumava ser no sótão, até a minha mãe reivindicar o direito de usá-lo para fazer um espaço de ioga.
Sento à bancada e separo lápis e folhas para começar o rascunho da minha arte. entra uns cinco minutos depois e coloca os óculos de volta na cabeça. Joga a bolsa na mesa e se senta do outro lado, quase que de frente para mim.
— Sério, desculpa mesmo o atraso, tive que ficar dando explicações pro Balman, ele e todo mundo acham mesmo que sou eu a responsável pelas mensagens da Channel. Bando de idiotas, não tem nenhuma prova.
começa a tirar as coisas da bolsa como caderno e estojo, mas prefiro continuar o meu rascunho do que prestar atenção no que ela diz ou faz.
— O que foi? Não vai falar comigo? — Pergunta e o único barulho que faço é um assobio. — Você pensa igual a toda essa gente? Você já foi mais original, .
Ela tira uma folha do caderno e começa a fazer o próprio rascunho.
— Não nego que você seja uma bela suspeita, mas não quero falar com você pelo jeito que está agindo.
— E como eu estou agindo, ? — Pergunta, e o seu cinismo faz meu sangue ferver.
— Tratando mal a Rosália, fazendo todo mundo zoar com ela a troco de nada. Ela era sua amiga. Se eu já fui mais original, você já foi melhor que isso — digo, me esforçando para não alterar a voz.
— Amigos vêm e vão, . Lide com isso — ela diz enquanto prende o cabelo com uma caneta. Balanço a cabeça para os lados. É inacreditável.
Passamos a trabalhar nos nossos próprios desenhos e me pergunto como vamos juntar os dois em algo coerente, que nos represente, apresentando a beleza da nossa arte como Alef quer. Mal consigo olhar na cara dela, mas ali, tão concentrada, parece diferente. De canto de olho, tento dar uma olhada no seu desenho, que reconheço ser um espelho. Ela faz traços delicados, seu olhar está tão preso no papel que exala... melancolia? Mas, logo em seguida, sua face expressa revolta e ela amassa a folha com as duas mãos.
— Onde tem um lixo aqui? — Aponto com a cabeça para a esquerda, onde fica a lata de lixo que costumo jogar materiais artísticos.
Quando volto à bancada, não consigo evitar olhar mais uma vez, e o desenho agora é uma estrela. Não parece ser tão caprichado quanto o outro e não usa a mesma delicadeza.
Passamos a próxima hora focados nisso e trocamos o mínimo de palavras possível. Fico satisfeito com a minha parte, já parece indiferente à dela. Ela solta o cabelo e começa a recolher as suas coisas para ir embora.
— Bom, acho que nós podemos terminar amanhã...
— Concordo — digo antes mesmo que ela termine de falar, mas, diferente do que pensei, não fui eu o motivo dela própria se interromper. olha atentamente para alguma coisa atrás de mim. Percebo ser para a prateleira onde ficam guardadas algumas coisas antigas.
— Meu Deus, , é aquele Super Nintendo? — tira os óculos da cabeça e prende a pontinha entre os dentes enquanto olha maravilhada para o videogame. Nós costumávamos passar horas jogando essa coisa quando tínhamos 12 anos.
— Esse mesmo — respondo e quase sorrio de lado. Seu jeito parece que muda de uma hora para outra, de "A Garota Fútil" à , "A Garota Legal Que Jogava Videogame comigo".
— Meu deus — ela diz, pegando um dos controles do videogame. — Super Mario World, Donkey Kong Country, Super Street Fighter II, Star Fox, Killer Instinct... Você lembra? Nós ficávamos noites jogando isso.
Ela vira a cabeça para mim com um sorriso tão bonito. Na verdade, ela sempre teve um sorriso bonito. Desde que voltei não conseguia enxergá-lo, porque todas às vezes que vi sorrindo era por um motivo ruim, e na minha cabeça isso tornava o sorriso dela feio, mas agora é um bom motivo.
— Claro que eu lembro, eram noites divertidas.
— Não acredito que você ainda tem essa velharia. Ainda funciona?
Fico ao lado dela e pego o videogame, os fios e o outro controle.
— Acho que sim, os cards devem estar em alguma caixa aqui. — Procuro com os olhos e encontro a caixa facilmente. Felizmente minha mãe não tinha jogado minhas velharias fora. pega a caixa olhando admirada para os jogos.
— ... A gente pode jogar uma partida?
Ela pergunta e os seus olhos brilham mais que uma dúzia de ametistas.
— Não quero saber de choro quando você perder. — Sorrio e ela retribui.
Não devia ter feito, mas quando vi já tinha. O que era para ser uma partida vira várias. Eu e passamos o resto da tarde jogando jogos antigos e comendo besteiras que a minha mãe insistia em trazer pra gente. Ela tinha uma mania esquisita de não soltar aquele óculos branco, mas não o levou à cabeça em nenhum momento enquanto nos divertíamos.
Era essa que eu estava esperando encontrar desde que voltei.
Quando passa das seis, ela finalmente se levanta, alegando que precisa voltar para casa. É enfadonho o processo de vê-la calçando os saltos, arrumando a bolsa e o óculos na cabeça, como se remontasse a sua personagem.
— Vamos terminar o trabalho amanhã, colorir e juntar tudo. Na minha casa, pode ser?
Concordo com a cabeça e levanto para levá-la até a porta.
Sinto que, antes que ela saia, quer dizer algo, a sua boca abre e fecha, mas não sai nada. Então decido dizer:
— Até amanhã!
— Até.
Fecho a porta e a primeira coisa que faço é ir correndo até a garagem. Posso ter passado a tarde me distraindo, mas uma coisa não deixou de martelar na minha cabeça. Abro a lata de lixo e procuro pelo papel que amassou e jogou ali. Quando encontro, o desamasso completamente e consigo ver o espelho que ela tinha desenhado, mas com um detalhe que não tinha conseguido ver antes: tinha escrito uma frase nele.
"Essa é a diferença entre mim e você, obviamente, eu sou natural, eu sou totalmente real, eu não posso te ajudar a ser como eu, espero que você não me entenda mal.”
Dobro a folha e guardo no bolso. Uma agonia parece pinicar o meu peito, como se eu soubesse de alguma coisa, mas não consigo ligar os pontos e tem tudo a ver com . Sempre acreditei que nunca pudesse ser cruel e, de certo modo, ainda acredito.
The Mom
No dia seguinte, o caos na escola não está menor, dessa vez parece estar pior. Os corredores estão tumultuados, mas os alunos parecem ir apenas em uma direção: o ginásio. Os professores estão montando guias nas bifurcações dos corredores para que ninguém desvie do caminho.
— Rosa, o que que tá acontecendo? — Pergunto a ela em meio ao tumulto.
— Não sei direito, o diretor pediu para todos os professores mandarem os alunos que chegam irem direto para o ginásio, com certeza deve ter a ver com C.
Quando entramos no ginásio, vejo todos os alunos se acomodando nas arquibancadas enquanto o diretor e alguns coordenadores estão em um ponto mais afastado, conversando. Percebo que todo o chão da quadra está riscado com o mesmo spray rosa quartzo e as letras de forma, contudo é impossível ler tudo. Subo a escada da arquibancada com Rosa e, de um ponto mais alto, consigo ler a frase toda.
Veja bem, alguns nascem com beleza, inteligência e talento e eu tenho tudo isso. Enquanto outros tentam ter isso a vida toda, mas ainda assim eles nunca conseguem. Você vai tentar a sua vida toda, mas ainda assim nunca vai conseguir.
- Channel
Estreito os olhos para a frase, e tudo faz sentido, o diretor ter reunido todo mundo aqui. Procuro por no mormaço, ela está um pouco mais atrás com as amigas de sempre, mas não tem mais aquela cara de deboche. Tampouco está entediada com a situação. É um estado... neutro.
Todo mundo se cala quando Balman começa a falar.
— Vocês acham isso bonito? Acham engraçado? Isso é um vandalismo! — Ele começa dizendo e aponta para a frase no chão. — Este colégio repudia e condena atos de depredação. Essa brincadeira de anonimato entre vocês, jovens, está passando dos limites. Exijo que o responsável ou a responsável pare imediatamente antes que as consequências sejam mais sérias, quando descobrirmos quem está por trás de tudo isso. Agora, já pra classe!
Antes que sequer pudéssemos levantar para sair dali, os celulares apitam, e nem é preciso esforço para tentar adivinhar quem é.
A bomba vai explodir e vai ser logo, não esqueçam de mim.
- Channel
✖️🆒✖️
No final da tarde dirijo até a casa de para que terminemos de vez esse trabalho.
Confesso que já estou ficando cansado de toda essa mesma rotina na escola. As pessoas só falam de Channel. Só querem saber para quem são as indiretas de Channel. Felizmente, alguns caras do time e Rosa se interessam por outros assuntos e é possível conversar com alguém sobre outra coisa que não fosse Channel e seu anonimato.
Tentei desvendar a manhã inteira, mas ela parecia querer se manter longe de todos. As amigas pareciam formar algum tipo de muro em volta dela, a única vez que consegui falar com ela foi para confirmar o encontro na casa dela hoje para terminar o trabalho. Apenas isso, nem mais uma palavra.
Toco a campainha e ela atende segundos depois. Quando a vejo, me surpreendo: o cabelo está preso por um lápis e ela usa roupas simples, uma enorme camiseta do Pernalonga, tão grande que mal dá para ver o short.
É a sua blusa preferida, sei disso porque adora o desenho.
Não tem um grama de maquiagem no rosto, e nem aquele óculos feio na cabeça. Não vejo nada de errado no modo como se vestia, se maquiava, o jeito dela agora, só é legal ver ela de novo de um jeito que eu conhecia antes.
— Você vai entrar ou...
Ela diz e percebo que talvez eu tenha ficado quieto demais observando. Balanço a cabeça rápido e entro. Ela fecha a porta logo em seguida.
— Vamos para o escritório.
diz e começo a segui-la. Não que eu precisasse, conheço cada centímetro dessa casa, mas sempre costumávamos fazer as coisas no quarto dela. É, parece que as coisas mudam mesmo.
Quando passamos pela cozinha, a mãe dela está ali, batendo os saltos no chão ao andar de um lado para o outro e falando alto ao celular. Incrivelmente produzida, em anos de amizade com eu nunca tinha visto aquela mulher sem um batom ou uma escova no cabelo. Ela só pára quando nos vê ali, ou melhor, vê , pois ignora a minha presença completamente.
— , por que está desse jeito? Marquei aula no clube de golf às três. Pensei que tinha dito para jogar esses panos velhos no lixo. — Ela lança um olhar de desprezo para as roupas da filha. Tenho vontade de xingá-la, mas o meu bom juízo me fala para me manter quieto.
Um detalhe que esqueci de comentar: Carmélia pode ser facilmente classificada como um ser desprezível. Com toda certeza foi uma ‘Mean Girl’ nos anos 90. Tenho pena de quem tenha dividido a turma com ela.
— Não vou sair hoje, tenho que terminar um trabalho.
— É, querida, entendo que quando não se tem uma vida social agitada e admiradores com quem se distrair, você tenha mesmo que se ocupar com trabalhos e estudos — ela diz se apoiando na ilha. Usa tantos colares e anéis que pode ser facilmente confundida com um manequim de jóias numa joalheria. — Quem sabe se eu tivesse outra filha, ela poderia ser mais assim como eu. — Carmélia anda até e segura seus ombros. — Mas tudo bem, querida, não se culpe por ter esse defeito. — Dá um beijo na sua bochecha e acaricia o seu rosto. — Vou sair, divirtam-se com os estudos.
Ela sai e estou quase chocado. só segue para o escritório sem dizer nada, nem mesmo checa se estou acompanhado.
Quase não acredito na cena que vejo. - a de agora pelo menos - é como se fosse uma mini cópia de Carmélia, a garota mais popular da escola, mas ela ainda insiste em fazer comentários do tipo. Ela sempre foi cruel assim, como me lembro, muito antes de se tornar o que se tornou. Disfarçava ataques com preocupação com a própria filha.
Quando entro no escritório, está arrumando a mesa principal tirando livros de lá. Sei que antes ela costumava ficar bastante tempo nesse lugar, pois era o escritório do pai dela. Talvez esse hábito ainda não tenha morrido.
— Então, onde paramos? — Ela pergunta como se nada tivesse acontecido. Como se não se abalasse mais com aquelas palavras, o que acho bem estranho.
— Hã... — digo sentando na cadeira de frente para ela. — Temos que colorir e juntar.
abre um sorriso.
— Alef definitivamente ama o arco-íris. Chato, ele sempre dá nota baixa para os trabalhos que não foram pintados.
Ela diz colocando vários potinhos de tinta guache e alguns pincéis. Percebo que elas os tira de dentro de uma caixa, tem uma lata de spray ali, mas, antes que consiga ver melhor, a fecha e a guarda de volta no armário.
Tiro o meu desenho do caderno e ela tira o desenho de estrela dela. Lembro do espelho que ela tinha feito e quase pergunto o porquê de o ter jogado fora, mas fico quieto e começamos a pintar em silêncio.
Quando vou molhar o pincel, acabo sem querer encostando na lateral da mão dela e a sujando.
— Eita, desculpa.
— Não acredito que fez isso. — me olha estreitando os olhos e me preparo para ser xingado, mas ao invés disso ela molha o pincel dela na tinta vermelha e passa de qualquer jeito na minha mão. A olho indignado e ela começa a rir.
— Agora estamos quites.
— Não mesmo! Eu te fiz um risco, você pintou a minha mão quase inteira. — Ela dá de ombros e levo o meu pincel à sua mão, pinto ela toda e parte do braço antes que ela puxe de volta.
— Ei! , eu não pintei o seu braço.
Dou um sorriso pequeno ao vê-la me chamar pelo sobrenome. Ela fazia isso quando fingia estar brava comigo. Dou de ombros, fazendo o mesmo gesto que ela fez anteriormente. se inclina na mesa e começa a passar o pincel por todo lugar dos meus braços que alcança; eu revido. Nós rimos e ficamos naquela ‘guerra’ até que estejamos sujos até os cotovelos.
— Pronto, agora estamos os dois sujos! — Ela diz e a única coisa que faço é rir porque foi incrivelmente divertido. — Vou pegar um pano pra gente se limpar.
sai e fico ali observando a mesa cheia de respingos de tinta. Junto o desenho dela com o meu e os coloco lado a lado. Quando entra novamente, me entrega um pano úmido e fica ao meu lado observando os desenhos que foram coloridos em consequência da nossa guerra de tinta.
— Um cavalete? — Pergunta ao ver o meu desenho enquanto limpamos os braços com os panos. — Por que um cavalete?
— Porque ele suporta, entende, dá apoio.
— É, combina com você.
— E por que uma estrela? — Pergunto puxando o seu desenho para frente.
— Porque ela brilha, ora. — Balanço a cabeça, mas não tão convicto da sua resposta. Para mim, ela disse a primeira coisa que veio à mente. — Mas as linhas ficaram tortas, e não consegui dar a impressão de realismo que eu queria.
— Ei, não ouviu o que Alef disse sobre caçar defeitos na sua arte? — Digo me virando para ela. se vira também e ficamos um de frente para o outro.
— Alef sabe que isso é impossível, mas ele acredita no impossível e quer nos fazer acreditar também. — Responde abaixando a cabeça. Eu levanto o seu queixo, pois quero que ela olhe para mim.
— Mesmo que seja um impossível ruim — digo e não me arrependo. Sei que sabe que estou falando dela, mas estamos tão próximos e vejo nos olhos dela uma camada fria se desmanchar, e penso no quanto quero beijá-la. E quase consigo, mas ela se esquiva e se afasta tão rápido, e diz antes de sair pela porta:
— Eu... tenho que fazer outras coisas. Já terminamos o trabalho, você pode ir.
— Rosa, o que que tá acontecendo? — Pergunto a ela em meio ao tumulto.
— Não sei direito, o diretor pediu para todos os professores mandarem os alunos que chegam irem direto para o ginásio, com certeza deve ter a ver com C.
Quando entramos no ginásio, vejo todos os alunos se acomodando nas arquibancadas enquanto o diretor e alguns coordenadores estão em um ponto mais afastado, conversando. Percebo que todo o chão da quadra está riscado com o mesmo spray rosa quartzo e as letras de forma, contudo é impossível ler tudo. Subo a escada da arquibancada com Rosa e, de um ponto mais alto, consigo ler a frase toda.
- Channel
Todo mundo se cala quando Balman começa a falar.
— Vocês acham isso bonito? Acham engraçado? Isso é um vandalismo! — Ele começa dizendo e aponta para a frase no chão. — Este colégio repudia e condena atos de depredação. Essa brincadeira de anonimato entre vocês, jovens, está passando dos limites. Exijo que o responsável ou a responsável pare imediatamente antes que as consequências sejam mais sérias, quando descobrirmos quem está por trás de tudo isso. Agora, já pra classe!
Antes que sequer pudéssemos levantar para sair dali, os celulares apitam, e nem é preciso esforço para tentar adivinhar quem é.
- Channel
✖️🆒✖️
No final da tarde dirijo até a casa de para que terminemos de vez esse trabalho.
Confesso que já estou ficando cansado de toda essa mesma rotina na escola. As pessoas só falam de Channel. Só querem saber para quem são as indiretas de Channel. Felizmente, alguns caras do time e Rosa se interessam por outros assuntos e é possível conversar com alguém sobre outra coisa que não fosse Channel e seu anonimato.
Tentei desvendar a manhã inteira, mas ela parecia querer se manter longe de todos. As amigas pareciam formar algum tipo de muro em volta dela, a única vez que consegui falar com ela foi para confirmar o encontro na casa dela hoje para terminar o trabalho. Apenas isso, nem mais uma palavra.
Toco a campainha e ela atende segundos depois. Quando a vejo, me surpreendo: o cabelo está preso por um lápis e ela usa roupas simples, uma enorme camiseta do Pernalonga, tão grande que mal dá para ver o short.
É a sua blusa preferida, sei disso porque adora o desenho.
Não tem um grama de maquiagem no rosto, e nem aquele óculos feio na cabeça. Não vejo nada de errado no modo como se vestia, se maquiava, o jeito dela agora, só é legal ver ela de novo de um jeito que eu conhecia antes.
— Você vai entrar ou...
Ela diz e percebo que talvez eu tenha ficado quieto demais observando. Balanço a cabeça rápido e entro. Ela fecha a porta logo em seguida.
— Vamos para o escritório.
diz e começo a segui-la. Não que eu precisasse, conheço cada centímetro dessa casa, mas sempre costumávamos fazer as coisas no quarto dela. É, parece que as coisas mudam mesmo.
Quando passamos pela cozinha, a mãe dela está ali, batendo os saltos no chão ao andar de um lado para o outro e falando alto ao celular. Incrivelmente produzida, em anos de amizade com eu nunca tinha visto aquela mulher sem um batom ou uma escova no cabelo. Ela só pára quando nos vê ali, ou melhor, vê , pois ignora a minha presença completamente.
— , por que está desse jeito? Marquei aula no clube de golf às três. Pensei que tinha dito para jogar esses panos velhos no lixo. — Ela lança um olhar de desprezo para as roupas da filha. Tenho vontade de xingá-la, mas o meu bom juízo me fala para me manter quieto.
Um detalhe que esqueci de comentar: Carmélia pode ser facilmente classificada como um ser desprezível. Com toda certeza foi uma ‘Mean Girl’ nos anos 90. Tenho pena de quem tenha dividido a turma com ela.
— Não vou sair hoje, tenho que terminar um trabalho.
— É, querida, entendo que quando não se tem uma vida social agitada e admiradores com quem se distrair, você tenha mesmo que se ocupar com trabalhos e estudos — ela diz se apoiando na ilha. Usa tantos colares e anéis que pode ser facilmente confundida com um manequim de jóias numa joalheria. — Quem sabe se eu tivesse outra filha, ela poderia ser mais assim como eu. — Carmélia anda até e segura seus ombros. — Mas tudo bem, querida, não se culpe por ter esse defeito. — Dá um beijo na sua bochecha e acaricia o seu rosto. — Vou sair, divirtam-se com os estudos.
Ela sai e estou quase chocado. só segue para o escritório sem dizer nada, nem mesmo checa se estou acompanhado.
Quase não acredito na cena que vejo. - a de agora pelo menos - é como se fosse uma mini cópia de Carmélia, a garota mais popular da escola, mas ela ainda insiste em fazer comentários do tipo. Ela sempre foi cruel assim, como me lembro, muito antes de se tornar o que se tornou. Disfarçava ataques com preocupação com a própria filha.
Quando entro no escritório, está arrumando a mesa principal tirando livros de lá. Sei que antes ela costumava ficar bastante tempo nesse lugar, pois era o escritório do pai dela. Talvez esse hábito ainda não tenha morrido.
— Então, onde paramos? — Ela pergunta como se nada tivesse acontecido. Como se não se abalasse mais com aquelas palavras, o que acho bem estranho.
— Hã... — digo sentando na cadeira de frente para ela. — Temos que colorir e juntar.
abre um sorriso.
— Alef definitivamente ama o arco-íris. Chato, ele sempre dá nota baixa para os trabalhos que não foram pintados.
Ela diz colocando vários potinhos de tinta guache e alguns pincéis. Percebo que elas os tira de dentro de uma caixa, tem uma lata de spray ali, mas, antes que consiga ver melhor, a fecha e a guarda de volta no armário.
Tiro o meu desenho do caderno e ela tira o desenho de estrela dela. Lembro do espelho que ela tinha feito e quase pergunto o porquê de o ter jogado fora, mas fico quieto e começamos a pintar em silêncio.
Quando vou molhar o pincel, acabo sem querer encostando na lateral da mão dela e a sujando.
— Eita, desculpa.
— Não acredito que fez isso. — me olha estreitando os olhos e me preparo para ser xingado, mas ao invés disso ela molha o pincel dela na tinta vermelha e passa de qualquer jeito na minha mão. A olho indignado e ela começa a rir.
— Agora estamos quites.
— Não mesmo! Eu te fiz um risco, você pintou a minha mão quase inteira. — Ela dá de ombros e levo o meu pincel à sua mão, pinto ela toda e parte do braço antes que ela puxe de volta.
— Ei! , eu não pintei o seu braço.
Dou um sorriso pequeno ao vê-la me chamar pelo sobrenome. Ela fazia isso quando fingia estar brava comigo. Dou de ombros, fazendo o mesmo gesto que ela fez anteriormente. se inclina na mesa e começa a passar o pincel por todo lugar dos meus braços que alcança; eu revido. Nós rimos e ficamos naquela ‘guerra’ até que estejamos sujos até os cotovelos.
— Pronto, agora estamos os dois sujos! — Ela diz e a única coisa que faço é rir porque foi incrivelmente divertido. — Vou pegar um pano pra gente se limpar.
sai e fico ali observando a mesa cheia de respingos de tinta. Junto o desenho dela com o meu e os coloco lado a lado. Quando entra novamente, me entrega um pano úmido e fica ao meu lado observando os desenhos que foram coloridos em consequência da nossa guerra de tinta.
— Um cavalete? — Pergunta ao ver o meu desenho enquanto limpamos os braços com os panos. — Por que um cavalete?
— Porque ele suporta, entende, dá apoio.
— É, combina com você.
— E por que uma estrela? — Pergunto puxando o seu desenho para frente.
— Porque ela brilha, ora. — Balanço a cabeça, mas não tão convicto da sua resposta. Para mim, ela disse a primeira coisa que veio à mente. — Mas as linhas ficaram tortas, e não consegui dar a impressão de realismo que eu queria.
— Ei, não ouviu o que Alef disse sobre caçar defeitos na sua arte? — Digo me virando para ela. se vira também e ficamos um de frente para o outro.
— Alef sabe que isso é impossível, mas ele acredita no impossível e quer nos fazer acreditar também. — Responde abaixando a cabeça. Eu levanto o seu queixo, pois quero que ela olhe para mim.
— Mesmo que seja um impossível ruim — digo e não me arrependo. Sei que sabe que estou falando dela, mas estamos tão próximos e vejo nos olhos dela uma camada fria se desmanchar, e penso no quanto quero beijá-la. E quase consigo, mas ela se esquiva e se afasta tão rápido, e diz antes de sair pela porta:
— Eu... tenho que fazer outras coisas. Já terminamos o trabalho, você pode ir.
The Truth
“Farsa.”
“Falsa.”
“Fingida.”
“Duas caras.”
“Mentirosa.”
"Tudo o que você diz é tão irrelevante.”
“Você segue e eu lidero, você quer ser como eu, mas você nunca será, apenas uma farsa. Me ame ou me odeie.”
- Channel
São todas as ofensas grifadas com tinta rosa, distribuídas em várias fotos em preto e branco. Todos estão surpresos e comentando, não só por ser mais um ataque de Channel, mas por ser o rosto que estampa todas as fotos. Tem tanto papel e tanta gente querendo pegá-los para ler as diferentes mensagens, mas todo com o mesmo rosto.
.
É que tem a atenção de todos.
É a rainha da escola que Channel está ridicularizando.
Ela anda pelo corredor fingindo que nada daquilo a está afetando, como se nada estivesse acontecendo, mas dessa vez sem o seu muro protetor feito de garotas montadas com roupas caras e um ar de superioridade.
— Bom, parece que finalmente descobrimos para quem eram aquelas mensagens. — Rosa diz ao meu lado e a sua ironia é clara. Ela detesta tudo aquilo tanto quanto eu, e deve estar feliz que finalmente esteja atacando, a não ser que Channel tenha outros alvos. Ridículo e uma tremenda falta do que fazer.
— É... — Respondo sem tirar os olhos de , do outro lado do corredor. — Espero que isso tenha acabado.
— Quase, ainda não sabemos quem foi que fez.
até o momento encarava apenas o chão ou os armários, até que seus olhos se erguem, tão lentos como uma flor crescendo a luz do sol, e param em mim. Ela me olha firme sem reação antes de seguir até a sala do diretor.
— Ah, eu sei quem foi.
✖️🆒✖️
Confesso que foi tentador matar o resto das aulas do dia, mas seria pior caso minha mãe descobrisse e me colocasse de castigo. Queria ir atrás de e só pensei nisso o dia inteiro, ela não apareceu mais depois que entrou na sala do diretor e concluí que tinha ido para casa.
Dirijo até lá com o propósito de ser direto e não cair nas suas enrolações. Na verdade, não faço a mínima ideia de como vai reagir ou de como ela está se sentindo. Se está precisando de um amigo, um abraço, ou se a última coisa que quer é alguém do lado fazendo perguntas. Nem sei se sirvo mais para ser esse amigo, mas não consigo me privar de pelo menos uma tentativa.
Aperto a campainha várias vezes preparando uma resposta não muito educada para Carmélia. Essa mulher me dá nos nervos, mas não é ela que atende a porta. Está vestindo as mesmas roupas de hoje cedo, mas o cabelo está preso com um lápis.
— Por que fez isso? — Pergunto e ela não responde por um tempo. não quer demonstrar, mas eu consigo senti-la mais frágil do que uma película de vidro.
— Não sei do que você está falando. — Ela me dá as costas e começa a andar, quase rio da sua tentativa de indiferença. Eu a sigo determinado a conseguir respostas daqueles lábios venenosos.
— Aquelas mensagens, todo esse circo, nunca foram pra Rosa. — vai até à sala como se fugisse da minha voz. Seguro seus ombros e faço com que olhe para mim. — Eram pra você mesma. Você fez tudo isso para si mesma e queria que pensassem que era pra ela. Por quê?
Por mais que as minhas palavras sejam firmes, não estou mais com raiva de , ainda mais agora percebendo que talvez ela esteja perto de desabar.
— Porque aí ninguém ia notar. — Ela abaixa a cabeça, como se a vergonha de admitir aquilo fosse demais para ser dita olhando nos meus olhos. — Como você descobriu que fui eu?
senta no sofá e abraça as próprias pernas.
— Vi uma lata de spray rosa da última vez que vim aqui, e... — Sou obrigado a me interromper me sentindo um idiota por não ter percebido isso antes e por não usar tanta cautela para mexer em uma ferida que, agora eu sei, nunca cicatrizou. Sento ao seu lado com os braços relaxados e encarando a lareira a nossa frente, e apreciando seu reflexo tão vulnerável. — Eu conhecia todas aquelas frases das mensagens, só não tava lembrando de onde. — Faço outra pausa esperando que me pare, mas ela não faz nada e penso que talvez ela tenha feito tudo aquilo de propósito, porque, de todos, talvez eu fosse a única pessoa que perceberia. — Eram da Charlotte. Ela vivia te dizendo aquelas coisas, com as exatas palavras. O C de Channel. Channel era o perfume favorito dela e ela amava rosa.
Charlotte Crosby era uma garota que fez parte da minha vida e da vida da por algum tempo. Eu lembro dela ser mesquinha e alguém cruel demais para a idade dela. Ela implicava com todo mundo, mas principalmente com . Ninguém fazia nada porque aquela garota parecia ter o mundo aos pés dela. O tipo estúpido que usa o fato de ter dinheiro para justificar suas atitudes horríveis.
Eu era a única pessoa com a qual ela não implicava, dizia que era porque ela gostava de mim, mas nunca a dei qualquer tipo de abertura justamente pelo seu modo de ser que nunca me agradou. Eu sabia que não se sentia bem com todos os xingamentos ou tentativas de humilhação e tentava defendê-la, mas ela sempre dizia para deixar para lá e não dar atenção. Tínhamos um ao outro, e nada mais importava.
— Descobri que era você por causa disso, ninguém lembraria ou faria algo com tanta perspicácia quanto você. No começo tive tanta raiva porque pensei que era tudo pra Rosa e você nunca foi assim, mas então eu vi o seu desenho, — tiro do bolso o papel amassado, sabia que ele me seria útil alguma hora. ergue os olhos para o desenho e para o que ela tinha escrito ali quase sem acreditar, — e logo saquei que nada daquilo era pra ela.
— Claro que o Sherlock Holmes tinha que aparecer e descobrir tudo.
— Para com essa ironia! — Exclamo arrancando o sorriso de seu rosto e fazendo me encarar sério. — Você queria que eu descobrisse. Vai ficar bancando esse personagem por mais quanto tempo?
— É, eu queria. — Ela finalmente admite depois de algum tempo, com a voz tão baixa que quase não ouço. Sei que de alguma forma está tentando conter as lágrimas sem deixar que eu desconfie. Dá um longo suspiro e quando olha para mim seus olhos estão vermelhos. — Você foi embora, , e eu tive que aguentar a Charlotte no meu ouvido sozinha! Não te culpo, eu sei que aquela época foi difícil devido à separação dos seus pais, seu pai te pressionando a morar com ele, mas foi tão péssimo ficar sem você. Às vezes eu pensava que estava sofrendo até mais do que a sua mãe e me perguntava todo dia quando aquilo ia acabar. Até que acabou, ela foi embora, e a partir desse dia eu criei uma versão 'melhor' de mim, , uma farsa de mim mesma. Eu virei uma rainha na escola, todos os dias eu era temida, adorada, mas quando eu chegava em casa e me olhava no espelho, eu via. Eu enxergava o meu próprio reflexo me dizendo que era muito melhor do que a minha eu de verdade, legal demais, bonita demais, inteligente demais. A versão que eu criei era melhor que a pobre , que deixava os outros pisarem em cima dela. Não sei se eram alucinações, se eu tava vendo coisa, mas isso nunca passou. Eu não gostava de fazer essas coisas, nunca gostei, mas se não fizesse, jamais seria aceita e pessoas como a Charlotte jamais me deixariam em paz. Eu não tinha ninguém como você pra me ajudar, me apoiar. Tomei um choque de realidade quando você voltou porque percebi que não ia mais conseguir sustentar esse personagem com você aqui.
— E precisava ser desse jeito?
— Sim, porque eu pensei que merecia a humilhação.
Quero abraçá-la. Nunca vi tão vulnerável na vida, eu nem imaginava que pudesse ser tão importante para ela e sinto um peso no coração mesmo que tenha dito que não foi minha culpa. De certo modo me sinto culpado, não me esforcei tanto para manter contato com ela. Tinha uma vida agitada na cidade do meu pai, Nova Jersey não segue o mesmo tempo que Lima, onde tudo é mais calmo e lento, típico de cidades do interior.
— Você não merece ser humilhada, , nem mesmo passar por essas coisas. Na verdade, ninguém merece. Você pegou um problema pessoal e lidou com ele da pior maneira possível.
— Eu... Sinto muito. — choraminga e tampa o rosto com as mãos para esconder as lágrimas que eu sei que estão caindo. Nesse momento eu a abraço e é como se estivesse pegando um passarinho fraco que acabou de cair do ninho e tem uma das asas quebradas. — Senti sua falta, .
Ela logo se aninha e se sente livre para encharcar a minha blusa com lágrimas. Não dou importância porque, aparentemente, posso dizer que tenho a minha amiga de volta afinal. Meu coração bate mais rápido ao ouvir que ela sentiu minha falta.
— Também senti a sua, . Por que você foi embora mais cedo hoje?
— Fui contar a verdade pro diretor Balman. Ele me suspendeu por uma semana e concordamos que a identidade da Channel ficaria em anonimato se eu parasse com os vandalismos na escola.
— Achei uma punição justa. — Acaricio o seu cabelo enquanto soluça e gradualmente para de chorar.
— É, eu também, mas... Podemos parar de falar disso?
— Claro. — Dou um sorriso acolhedor que ela retribui.
Passamos a tarde grudados um no outro naquele sofá. Me senti num filme de sessão da tarde enquanto segurou a minha mão o tempo todo pelo resto daquele dia.
“Falsa.”
“Fingida.”
“Duas caras.”
“Mentirosa.”
"Tudo o que você diz é tão irrelevante.”
“Você segue e eu lidero, você quer ser como eu, mas você nunca será, apenas uma farsa. Me ame ou me odeie.”
- Channel
São todas as ofensas grifadas com tinta rosa, distribuídas em várias fotos em preto e branco. Todos estão surpresos e comentando, não só por ser mais um ataque de Channel, mas por ser o rosto que estampa todas as fotos. Tem tanto papel e tanta gente querendo pegá-los para ler as diferentes mensagens, mas todo com o mesmo rosto.
.
É que tem a atenção de todos.
É a rainha da escola que Channel está ridicularizando.
Ela anda pelo corredor fingindo que nada daquilo a está afetando, como se nada estivesse acontecendo, mas dessa vez sem o seu muro protetor feito de garotas montadas com roupas caras e um ar de superioridade.
— Bom, parece que finalmente descobrimos para quem eram aquelas mensagens. — Rosa diz ao meu lado e a sua ironia é clara. Ela detesta tudo aquilo tanto quanto eu, e deve estar feliz que finalmente esteja atacando, a não ser que Channel tenha outros alvos. Ridículo e uma tremenda falta do que fazer.
— É... — Respondo sem tirar os olhos de , do outro lado do corredor. — Espero que isso tenha acabado.
— Quase, ainda não sabemos quem foi que fez.
até o momento encarava apenas o chão ou os armários, até que seus olhos se erguem, tão lentos como uma flor crescendo a luz do sol, e param em mim. Ela me olha firme sem reação antes de seguir até a sala do diretor.
— Ah, eu sei quem foi.
Confesso que foi tentador matar o resto das aulas do dia, mas seria pior caso minha mãe descobrisse e me colocasse de castigo. Queria ir atrás de e só pensei nisso o dia inteiro, ela não apareceu mais depois que entrou na sala do diretor e concluí que tinha ido para casa.
Dirijo até lá com o propósito de ser direto e não cair nas suas enrolações. Na verdade, não faço a mínima ideia de como vai reagir ou de como ela está se sentindo. Se está precisando de um amigo, um abraço, ou se a última coisa que quer é alguém do lado fazendo perguntas. Nem sei se sirvo mais para ser esse amigo, mas não consigo me privar de pelo menos uma tentativa.
Aperto a campainha várias vezes preparando uma resposta não muito educada para Carmélia. Essa mulher me dá nos nervos, mas não é ela que atende a porta. Está vestindo as mesmas roupas de hoje cedo, mas o cabelo está preso com um lápis.
— Por que fez isso? — Pergunto e ela não responde por um tempo. não quer demonstrar, mas eu consigo senti-la mais frágil do que uma película de vidro.
— Não sei do que você está falando. — Ela me dá as costas e começa a andar, quase rio da sua tentativa de indiferença. Eu a sigo determinado a conseguir respostas daqueles lábios venenosos.
— Aquelas mensagens, todo esse circo, nunca foram pra Rosa. — vai até à sala como se fugisse da minha voz. Seguro seus ombros e faço com que olhe para mim. — Eram pra você mesma. Você fez tudo isso para si mesma e queria que pensassem que era pra ela. Por quê?
Por mais que as minhas palavras sejam firmes, não estou mais com raiva de , ainda mais agora percebendo que talvez ela esteja perto de desabar.
— Porque aí ninguém ia notar. — Ela abaixa a cabeça, como se a vergonha de admitir aquilo fosse demais para ser dita olhando nos meus olhos. — Como você descobriu que fui eu?
senta no sofá e abraça as próprias pernas.
— Vi uma lata de spray rosa da última vez que vim aqui, e... — Sou obrigado a me interromper me sentindo um idiota por não ter percebido isso antes e por não usar tanta cautela para mexer em uma ferida que, agora eu sei, nunca cicatrizou. Sento ao seu lado com os braços relaxados e encarando a lareira a nossa frente, e apreciando seu reflexo tão vulnerável. — Eu conhecia todas aquelas frases das mensagens, só não tava lembrando de onde. — Faço outra pausa esperando que me pare, mas ela não faz nada e penso que talvez ela tenha feito tudo aquilo de propósito, porque, de todos, talvez eu fosse a única pessoa que perceberia. — Eram da Charlotte. Ela vivia te dizendo aquelas coisas, com as exatas palavras. O C de Channel. Channel era o perfume favorito dela e ela amava rosa.
Charlotte Crosby era uma garota que fez parte da minha vida e da vida da por algum tempo. Eu lembro dela ser mesquinha e alguém cruel demais para a idade dela. Ela implicava com todo mundo, mas principalmente com . Ninguém fazia nada porque aquela garota parecia ter o mundo aos pés dela. O tipo estúpido que usa o fato de ter dinheiro para justificar suas atitudes horríveis.
Eu era a única pessoa com a qual ela não implicava, dizia que era porque ela gostava de mim, mas nunca a dei qualquer tipo de abertura justamente pelo seu modo de ser que nunca me agradou. Eu sabia que não se sentia bem com todos os xingamentos ou tentativas de humilhação e tentava defendê-la, mas ela sempre dizia para deixar para lá e não dar atenção. Tínhamos um ao outro, e nada mais importava.
— Descobri que era você por causa disso, ninguém lembraria ou faria algo com tanta perspicácia quanto você. No começo tive tanta raiva porque pensei que era tudo pra Rosa e você nunca foi assim, mas então eu vi o seu desenho, — tiro do bolso o papel amassado, sabia que ele me seria útil alguma hora. ergue os olhos para o desenho e para o que ela tinha escrito ali quase sem acreditar, — e logo saquei que nada daquilo era pra ela.
— Claro que o Sherlock Holmes tinha que aparecer e descobrir tudo.
— Para com essa ironia! — Exclamo arrancando o sorriso de seu rosto e fazendo me encarar sério. — Você queria que eu descobrisse. Vai ficar bancando esse personagem por mais quanto tempo?
— É, eu queria. — Ela finalmente admite depois de algum tempo, com a voz tão baixa que quase não ouço. Sei que de alguma forma está tentando conter as lágrimas sem deixar que eu desconfie. Dá um longo suspiro e quando olha para mim seus olhos estão vermelhos. — Você foi embora, , e eu tive que aguentar a Charlotte no meu ouvido sozinha! Não te culpo, eu sei que aquela época foi difícil devido à separação dos seus pais, seu pai te pressionando a morar com ele, mas foi tão péssimo ficar sem você. Às vezes eu pensava que estava sofrendo até mais do que a sua mãe e me perguntava todo dia quando aquilo ia acabar. Até que acabou, ela foi embora, e a partir desse dia eu criei uma versão 'melhor' de mim, , uma farsa de mim mesma. Eu virei uma rainha na escola, todos os dias eu era temida, adorada, mas quando eu chegava em casa e me olhava no espelho, eu via. Eu enxergava o meu próprio reflexo me dizendo que era muito melhor do que a minha eu de verdade, legal demais, bonita demais, inteligente demais. A versão que eu criei era melhor que a pobre , que deixava os outros pisarem em cima dela. Não sei se eram alucinações, se eu tava vendo coisa, mas isso nunca passou. Eu não gostava de fazer essas coisas, nunca gostei, mas se não fizesse, jamais seria aceita e pessoas como a Charlotte jamais me deixariam em paz. Eu não tinha ninguém como você pra me ajudar, me apoiar. Tomei um choque de realidade quando você voltou porque percebi que não ia mais conseguir sustentar esse personagem com você aqui.
— E precisava ser desse jeito?
— Sim, porque eu pensei que merecia a humilhação.
Quero abraçá-la. Nunca vi tão vulnerável na vida, eu nem imaginava que pudesse ser tão importante para ela e sinto um peso no coração mesmo que tenha dito que não foi minha culpa. De certo modo me sinto culpado, não me esforcei tanto para manter contato com ela. Tinha uma vida agitada na cidade do meu pai, Nova Jersey não segue o mesmo tempo que Lima, onde tudo é mais calmo e lento, típico de cidades do interior.
— Você não merece ser humilhada, , nem mesmo passar por essas coisas. Na verdade, ninguém merece. Você pegou um problema pessoal e lidou com ele da pior maneira possível.
— Eu... Sinto muito. — choraminga e tampa o rosto com as mãos para esconder as lágrimas que eu sei que estão caindo. Nesse momento eu a abraço e é como se estivesse pegando um passarinho fraco que acabou de cair do ninho e tem uma das asas quebradas. — Senti sua falta, .
Ela logo se aninha e se sente livre para encharcar a minha blusa com lágrimas. Não dou importância porque, aparentemente, posso dizer que tenho a minha amiga de volta afinal. Meu coração bate mais rápido ao ouvir que ela sentiu minha falta.
— Também senti a sua, . Por que você foi embora mais cedo hoje?
— Fui contar a verdade pro diretor Balman. Ele me suspendeu por uma semana e concordamos que a identidade da Channel ficaria em anonimato se eu parasse com os vandalismos na escola.
— Achei uma punição justa. — Acaricio o seu cabelo enquanto soluça e gradualmente para de chorar.
— É, eu também, mas... Podemos parar de falar disso?
— Claro. — Dou um sorriso acolhedor que ela retribui.
Passamos a tarde grudados um no outro naquele sofá. Me senti num filme de sessão da tarde enquanto segurou a minha mão o tempo todo pelo resto daquele dia.
The Kiss
Passei na casa de todos os cinco dias da suspensão, sete se você contar com o final de semana. Nós basicamente nos redescobrimos, fiquei feliz no quanto ela ficou interessada em saber da minha vida nos últimos dois anos e tive que contar cada detalhe. Ela também falou, não só dos momentos ruins dos quais eu já sabia, mas das coisas boas que aconteceram também. Descobri que ela tinha finalmente voltado a falar com o pai, que mesmo longe é uma figura responsável mil vezes melhor do que a frívola da mãe dela, que não mudou e nem nunca vai mudar.
Felizmente a cruel e insensível foi embora para nunca mais voltar. Ela decidiu começar a fazer terapia para ser menos dependente e mais autoconfiante. A mudança não vai acontecer de um dia para o outro, mas achei um bom primeiro passo.
Fico esperando na porta na segunda-feira, quando ela finalmente chega. Está de volta à de antes, suas roupas de antes, seu estilo normal e sem aqueles óculos cafonas na cabeça. Claro que ninguém nessa escola tem coisa melhor para fazer, então todos olham na sua direção e começam a cochichar entre eles, mas, ao invés de olhar para eles, ela olha para mim.
— Obrigada por me esperar.
— Sempre — respondo passando os braços pelos seus ombros e começamos a andar em direção a sala como se ninguém ali existisse. vira o rosto e pára como se algo importante lhe chamasse atenção.
— Espera um pouquinho, . — A vejo caminhar até Rosa, que está parada no armário dela. — Oi Rosa.
Rosa a olha como se estivesse tão surpresa quanto todo mundo, mas de alguma forma está feliz com o que vê.
— Ah! Oi .
— Então... Eu queria te pedir desculpas pelo que eu fiz com você, de verdade. Foi horrível, ainda estou me sentindo muito mal com tudo isso.
— Tudo bem, , o me explicou o que aconteceu e eu acredito que você já teve o seu castigo.
e Rosa dão um sorriso e trocam um abraço cúmplice, e suponho que é questão de tempo até que voltem a ser grandes amigas.
Eu e voltamos a seguir o caminho até a sala de artes.
Ela senta do meu lado e Alef como sempre dá uma aula incrível. A história da arte pode ser assombrosamente chata, mas não quando você tem um bom professor. No final, ele passa devolvendo os trabalhos que entregamos.
— e , bom trabalho.
Ele deixa o papel em cima da mesa de e é visível a nota máxima que nos deu, porém parece mais focada em outra coisa do que na nota. Talvez pelo fato de eu ter trocado a estrela dela pelo desenho anterior, aquele espelho com a frase escrita.
— Você trocou o meu desenho. — Ela levanta e deixa o papel em cima da minha mesa. O sinal já tocou e praticamente todo mundo já saiu da sala.
— É... eu pensei que esse aqui era mais original.
fica quieta por algum tempo e quando finalmente faz alguma coisa, ela se inclina na minha direção até juntar nossos lábios, e posso dizer que é o melhor beijo da minha vida.
— , por favor, nunca mais vá embora!
— Pode deixar.
Digo e saímos da sala de mãos dadas.
No corredor meu celular apita e olho ao redor só para me certificar de que não ia acontecer o mesmo com o celular do resto dos alunos. Repreendo com o olhar.
— ....
— Essa eu mandei só pra você. — Pisca com um dos olhos e sou obrigado a tirar o celular do bolso para ler a mensagem.
, você é legal demais pra mim.
- Channel.
Felizmente a cruel e insensível foi embora para nunca mais voltar. Ela decidiu começar a fazer terapia para ser menos dependente e mais autoconfiante. A mudança não vai acontecer de um dia para o outro, mas achei um bom primeiro passo.
Fico esperando na porta na segunda-feira, quando ela finalmente chega. Está de volta à de antes, suas roupas de antes, seu estilo normal e sem aqueles óculos cafonas na cabeça. Claro que ninguém nessa escola tem coisa melhor para fazer, então todos olham na sua direção e começam a cochichar entre eles, mas, ao invés de olhar para eles, ela olha para mim.
— Obrigada por me esperar.
— Sempre — respondo passando os braços pelos seus ombros e começamos a andar em direção a sala como se ninguém ali existisse. vira o rosto e pára como se algo importante lhe chamasse atenção.
— Espera um pouquinho, . — A vejo caminhar até Rosa, que está parada no armário dela. — Oi Rosa.
Rosa a olha como se estivesse tão surpresa quanto todo mundo, mas de alguma forma está feliz com o que vê.
— Ah! Oi .
— Então... Eu queria te pedir desculpas pelo que eu fiz com você, de verdade. Foi horrível, ainda estou me sentindo muito mal com tudo isso.
— Tudo bem, , o me explicou o que aconteceu e eu acredito que você já teve o seu castigo.
e Rosa dão um sorriso e trocam um abraço cúmplice, e suponho que é questão de tempo até que voltem a ser grandes amigas.
Eu e voltamos a seguir o caminho até a sala de artes.
Ela senta do meu lado e Alef como sempre dá uma aula incrível. A história da arte pode ser assombrosamente chata, mas não quando você tem um bom professor. No final, ele passa devolvendo os trabalhos que entregamos.
— e , bom trabalho.
Ele deixa o papel em cima da mesa de e é visível a nota máxima que nos deu, porém parece mais focada em outra coisa do que na nota. Talvez pelo fato de eu ter trocado a estrela dela pelo desenho anterior, aquele espelho com a frase escrita.
— Você trocou o meu desenho. — Ela levanta e deixa o papel em cima da minha mesa. O sinal já tocou e praticamente todo mundo já saiu da sala.
— É... eu pensei que esse aqui era mais original.
fica quieta por algum tempo e quando finalmente faz alguma coisa, ela se inclina na minha direção até juntar nossos lábios, e posso dizer que é o melhor beijo da minha vida.
— , por favor, nunca mais vá embora!
— Pode deixar.
Digo e saímos da sala de mãos dadas.
No corredor meu celular apita e olho ao redor só para me certificar de que não ia acontecer o mesmo com o celular do resto dos alunos. Repreendo com o olhar.
— ....
— Essa eu mandei só pra você. — Pisca com um dos olhos e sou obrigado a tirar o celular do bolso para ler a mensagem.
- Channel.
Fim
Nota da autora: No momento em que eu vi esse ficstape senti que tive o plot perfeito pra Too Cool, e, apesar de ter escrito super rápido em meio aos outros 300 ficstapes do qual tava fazendo parte, estou extremamente satisfeita com o resultado e espero que vcs tenham gostado tbm!
Nota da beta: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.
Outras Fanfics:
Best Mistake (Outros/ Em Andamento)
24. Insomnia (Shortfic/Finalizada – Ficstape Icaus Falls)
07. Make Up (Shortfic/Finalizada – Ficstape Thank U Next)
12. Break Up With Your Girlfriend, I’m Bored (Shortfic/Finalizada – Ficstape Thank U Next)
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