15. Paris

Enviada em: 19/06/2020

Capítulo Único

Soho - Westminster, Londres


A sensação térmica que permeava o corpo de naquela noite beirava os 30ºC ou algo do tipo, contrariando o clima frio e úmido que pairava do lado de fora do clube. Alguns fios pretos suados de seu cabelo grudavam-se espalhados por sua testa e o garoto sentia o céu de sua boca quase rachar-se clamando por água. Ainda assim, insistia em rodear a língua por dentro dos lábios, esperando que a saliva resolvesse seu pequeno problema de sede. Ele estava parado em pé, escorado em uma das paredes pintadas do Marquee; Segurava em uma das mãos uma garrafa de cerveja e mantinha pressionado entre os lábios um cigarro, quando sentiu a aproximação de alguém.

— Ei, ei — os dedos de Julie surgiram em seu campo de visão e, de repente, seus olhos enfocaram a amiga em sua frente —, não olhe agora, mas ela chegou.

Seria mesmo possível que seu coração martelaria no peito toda vez que a sentisse chegar? Retirou da boca o cigarro, expirando a fumaça com certa insatisfação e fechando os olhos em tédio. O garoto mal pôde controlar seus dentes, que assim que se viram livres, agarram-se firmemente em seu lábio inferior, pressionando-o com força.
Paciência, o pensamento ecoou por todos os lados borrados de sua mente, tenha paciência.

— Está vindo aqui? — murmurou, empurrando seu rosto para mais próximo de sua amiga. O aceno rápido de cabeça que recebeu em resposta foi suficiente para que entendesse que não estava apenas vindo, como havia chego ao seu lado.

A garota cumprimentou Julie com um abraço rápido e direcionou seus olhos castanhos perfurantes para o menino.

— Oi — o sopro monossilábico foi acompanhado de um pequeno sorriso vacilante. Aquele que já conhecia tão bem; aquele que direcionava apenas a ele.

Antes que pudesse entorpecer-se com a sensação aguda que lhe corroía todas as vezes em que a sentia, assim, tão perto, ou que pudesse amaldiçoar quem quer que a tenha trazido até à festa, o garoto avistou o usual grupo de amigos chegando. Os amigos em comum , praguejou, que se fodam todos!

— E aí — manejou a cabeça na direção da garota.
— O que está fazendo, ?
— Estou fumando, não pode ver?
— Digo, por que está aqui?
— Não enche, — o garoto revirou os olhos e mordeu a parte interna das bochechas —, vim assistir ao show, assim como você.
— Assim como eu — o estalar dos lábios rosados fez com que algo se acendesse no corpo de e ele a odiou por isso. — Certo, bom show, então.

A menina afrouxou os lábios e permitiu que um sorriso quase maldoso brotasse em sua face. Roubou dos dedos do menino o cigarro já pela metade, tragou e o entregou de volta. Ao espirar a fumaça, virou-se para o lado oposto e sumiu por entre as pessoas.

— Ela te trata assim, porque você permite — a voz de Khalil surpreendeu , fazendo com que ele reparasse na presença do amigo.

Sem saber o que responder, o moreno apenas deu de ombro, tragando o cigarro que havia sido roubado minutos atrás. Mudo, revirou os olhos, apenas.

— Ela é… Uma overdose.
— Com um casaco bonito, pelo menos — Julie murmurou.

A música era alta, mas não o suficiente para animar aquele grupo de amigos em específico. Poderiam chamar-se de amigos? não sabia a resposta, apenas sentia que tinha os dois pés esquerdos e que aquele era o máximo de fraternidade que iria conseguir na vida.
Estava sentado em um dos bancos altos e estofados, escorando seu rosto com uma das mãos e contando tudo a sua volta para controlar a bad trip que lhe sugava a energia. Ouvia as risadas e as palavras entrecortadas dos amigos; observava as imagens retorcidas dos beijos trocados por Julie e algum menino; sentia em seu corpo as vibrações da música. E mesmo com tantas oportunidades para se distrair, mantinha o foco em e seu discurso prático.
A garota desenhava no verso de uma carteira de cigarros e explicava com calma os passos a Khalil e a quem quer mais a ouvisse.
e seus planos, revirou os olhos - era tudo que sentia vontade de fazer por estar no mesmo ambiente que a garota.
Estava acostumado com a vibe hiperpolitizada e quase que vazia que emanava das pessoas com quem convivia. Estava acostumado a bloquear seus pensamentos e a romantizar situações caóticas - como no dia em que percebeu que sentia-se incapaz de terminar um relacionamento seu trair uma ou duas vezes e que, enfim, a vida seria assim.
Se existia mais? Deveria existir. Se já existira, o garoto proibia-se de recordar. E aquele era o pacto silencioso entre ele e a menina a sua frente, que ainda rabiscava palavras estranhas na embalagem de papel.
deu-se conta de que estava preso em sua mente quando observou a movimentação repentina de seus amigos. levantara-se e o grupo fora atrás, deixando-o sozinho com Khalil.

— Pouco barulho para ela — o amigo deu de ombros.
— Que se foda respondeu, tentando soar indiferente.

Sua cabeça latejava e a sede parecia o consumir novamente. A breve sensação de que tinha gastado todo o seu dinheiro com uma noite inútil se fazia presente e o encontrava toda vez que suas pálpebras se encontravam para um breve piscar de olhos.
Quando estava girando a chave na fechadura de seu apartamento, sentiu o celular vibrar em seu bolso traseiro. Em dois segundos, a tela brilhante do aparelho pairava em sua mão e a única notificação saltava da tela. O garoto não precisava nem mesmo ler os números desconhecidos para saber de quem se tratava.
Seu peito se retorceu e ânsia de vômito percorreu seu corpo, juntamente com um arrepio de arrependimento. Todos os pêlos do corpo de subitamente se retorceram quando, por mais uma vez naquela noite, ele bloqueou todas as memórias possíveis.
Ao entrar em casa, deixou o telefone perdido em algum lugar sobre a bancada da cozinha e, em passos arrastados, caminhou em direção ao banheiro.

Eu queria poder voltar para Paris.

[…]

Bethnal Green - Londres, Inglaterra


Não muitos dias depois, caminhava quase que despretensiosamente pelo bairro. Arrastava os pés sobre a neve, mascava um chiclete de hortelã e tinha um par de fones de ouvidos pendurados em suas orelhas. Os olhos semiabertos curvavam-se por causa do frio e lhe doíam, reclamando da claridade diurna.
Era mesmo possível tornar-se alérgico à luz solar?, o garoto não tinha certeza, mas imaginava que, se fosse, definitivamente era o seu caso. No bolso de seu casaco preto, o aparelho de telefone tocava insistentemente e a palavra “Meggy” vibrava no visor. Em um ato rotineiro, revirou os olhos pela décima vez naquela manhã e encerrou a ligação - algumas imagens suas com outras garotas lhe vinham à mente e ele definitivamente não estava no melhor humor para conversar.
Como se o destino não lhe tivesse sido filha da puta o suficiente até então naquele dia, sentiu um de seus pés vacilar e, em um tombo, tropeçou sobre uma dupla de garotas que iam em sua frente.

?

Porra, o garoto pensou enquanto levantava e limpava o excesso de neve dos joelhos. Era apenas impossível de decidir se aquela voz tornava seu dia melhor - finalmente bom, pelo menos - ou mil vezes pior.

— murmurou em resposta, maneando o queixo em direção à menina.
— O que está fazendo aqui?
— Você pode parar de me perguntar isso toda vez? Não é como se eu estivesse, de fato, lhe procurando.
— Não seria a primeira vez — alfinetou, com o coração levemente retorcido.

A menina que lhe acompanhava deu um ou dois passos para trás e seguiu em outra direção, deixando que a dupla nem tão dinâmica assim pudesse conversar - se é que era possível classificar tantas alfinetadas como conversa.
Para o menino, a saída da amiga de lhe ardeu os olhos mais uma vez. Era fodido demais ficar sozinho com ela, quem dirá sob a luz do dia e sobre a neve.

— Eu achei que você fosse ir ontem — arrependeu-se no segundo seguinte em que as palavras escaparam de seus lábios. Patético. Não haveria maneiras de soar mais patético. Ainda assim, já estava acostumado a sentir-se daquela forma quando na presença de .

Ao contrário do que esperava - uma resposta ácida, uma alfinetada a mais ou uma provocação -, foi surpreendido pela reação da garota: mordeu os lábios e olhou em direção ao chão, às árvores, à alguma loja… Todos os lugares, menos para o garoto.

— Hum, sim. Eu não fui, porque a Jade… Você sabe.
— Ela teve uma recaída?
Uhum.

assentiu, evitando pensar a respeito. Não queria sentir compaixão por , porque aquilo lhe fazia sentir vontade de abraçá-la e abraçá-la o deixava confuso.

— Mas, então, você estava me procurando — a garota murmurou, sorrindo.

revirou os olhos em resposta, dando impulso em seu corpo para dar meia volta e trilhar o caminho contrário.

— Espera! Por que a gente não dá uma volta?
— Eu realmente não acho que temos o que conversar — o garoto respondeu.
— Não sente falta? — questionou, embalando uma caminhada no ritmo do menino ao seu lado — Dos nossos encontros hiperpolitizados?

O ar preencheu os pulmões de quando ele inspirou e tomou fôlego para dizer que não, não sentia falta de porra nenhuma. E que não tinham assunto, não tinham pauta. Mas o ar esvaziou e as palavras foram contidas em sua garganta, formando ali um pequeno e nada palatável “bolo”.
Ao invés de argumentar, suspirou, apenas.

— Vamos lá, não é como se…
— Como se o que, ? — o garoto revirou os olhos, cansado.
— Eu estava para dizer que não é como se fosse impossível conversarmos, mas sabe que estou para mudar de ideia? Acho que é a terceira vez que você rola os olhos e nós estamos conversando há, sei lá, dois minutos.
— Para de ser assim — respondeu. — Para de contar quantas vezes eu reviro os olhos.
— Eu queria que as coisas fossem diferentes, .
— Por favor, não comece. Não vamos voltar lá.
— Mas é verdade, admita. Apenas admita para você mesmo, vamos poder parar com essa merda.
— Admitir o que, porra? Você foi embora!
— Você estava romantizando heroína, . Eu fiquei assustada.
— Estou limpo agora, olhe para a minha cara.
— Eu vejo, eu só…

O garoto suspirou, frustrado. Sua garganta praticamente coçava por um cigarro e suas têmporas pareciam latejar em níveis diferentes, o que lhe causava mais desconforto ainda.

— Eu sei — vacilou, por fim. — Eu também. Eu também gostaria de voltar.

estendeu a mão em sua direção e acariciou com a ponta dos dedos o rosto judiado do menino a sua frente. Olhou mais uma vez em seus olhos e deixou que um mínimo sorriso de despedida repousasse em seus lábios.
Com passos leves, acabou por distanciar-se o suficiente para virar-se de costas e deixar sozinho, que permaneceu com a sensação de que um tiro lhe doeria menos. E de que aquela fora a última despedida deles - de preferência, a última vez que ele a avistaria por aí.
Era isso.
Estava farto de ficar se torturando, procurando-a, frequentando os mesmos lugares que . Aquela seria a última vez que a veria sair caminhando; que seria deixado para trás por ela.
suspirou, cansado, e revirou os olhos.
Com um pouco tédio, sacou o celular do bolso e retornou a ligação de Meggy, torcendo para que ouvi-la fosse o suficiente para distrair-se.
De qualquer forma, em seu peito, a sensação já há tempos conhecida martelava: ah, como eu gostaria de voltar para Paris.


EM ALGUM MOMENTO DE “PARIS”, SEIS MESES ANTES

— Diga de novo — o garoto murmurou, admirado. Encarava, perplexo, o reflexo ofuscante das estrelas presente no olhar escuro da menina a sua frente.
— Eu quero ficar com você — soprou, quase que em um sussurro secreto. Não era, de maneira alguma, um segredo a ser escondido - ainda que fosse parcialmente inacreditável para todo o grupo de amigos do casal -, mas parecia ser a informação mais preciosa do mundo naquele instante perfeito.
— Eu quero você — respondeu, colocando uma de suas mãos na cintura da garota e deixando um leve carinho na pele desnuda. — Sempre quis.
— Então, estamos juntos.
— Estamos juntos.

O par de sorrisos iluminou a noite escura e o beijo quente amaciou o vento gelado que percorria a cidade já tão conhecida por suas histórias românticas. Naquele instante, e eram apenas e nada mais do que um sonho que nascia em Paris - infelizmente, um daqueles do tipo que morriam em Paris da mesma forma.
Os dedos entrelaçados deram início a um carinho único e específico, aquele carinho que ambos já conheciam tão bem. Em uma fração de segundos, que mais durou como a eternidade do efêmero, o selinho deu lugar a um beijo aprofundado e as mãos não mais se seguravam uma à outra, mas, sim, percorriam os corpos, sedentas por contato.
O toque aveludado das mãos de e a pressão certeira e doce das mãos de combinavam perfeitamente, fazendo com que os dois jovens experimentassem uma explosão de sensações - todos os sentidos eram bagunçados quando estavam juntos.
Naquela noite, ambos amaram-se da forma mais intensa possível, como se já soubessem que o infinito que haviam criado era breve, e muito. Em um combinado implícito, tornaram-se um com todo desapego possível para que, no dia seguinte, pudesse apenas pegar suas roupas e embarcar no avião de volta para Inglaterra, deixando um frustrado e quebrado para trás.

— Não venha atrás de mim — ela disse.
— Não volte a me procurar — o garoto rebateu.

E as doces juras trocadas na noite anterior flutuaram como poeira para longe dos jovens, perdendo-se pelo congelante ar de Paris e provavelmente caindo por um dos bueiros da cidade.
Se o amor tinha forças para vencer tudo, pelo menos contra uma coisa ele não poderia. O amor vence tudo, mas o tempo vence o amor - ou, pelo menos, deveria.





Continua...?



Nota da autora: Oie, pessoal! Passando apenas para dizer que esses não não nem um universo e nem uma temática com os quais estou acostumada a lidar - sempre procuro escrever em cenários mais amigáveis e felizes HAHA Mas valeu o desafio, espero que vocês aproveitem a leitura como um laboratório de experimentação (experimentando descrições, sensações, palavras...), porque foi assim que essa história se manifestou para mim. No mais, estou à disposição para críticas, elogios, conversas :)

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