Capítulo Único
Sentado à sala de espera da estação Saint Pancras, eu aguardava a chegada do trem com destino à Paris. Eu nem ao menos sabia o porquê de ter escolhido Paris, visto que o máximo que eu sabia de francês eram frases rápidas de turistas como Bonjour, Merci, Oui e Au Revoir, no entanto, no início do mês pedi demissão, entrei no site da Eurostar e comprei uma passagem de trem sem pensar duas vezes, em uma insana e desesperada tentativa de me salvar.
Eu nunca soube dizer não, desde muito novo sempre fui altruísta demais. O aluno exemplar que sempre fazia suas tarefas e tirava notas boas, o filho dedicado que ajudava a mãe nos afazeres de casa, o irmão protetor que estava sempre cuidando dos irmãos caçulas e o amigo prestativo que sempre emprestava seus brinquedos e passava as respostas das provas. Minha vida era perfeita como em um comercial de Margarina, mas foi aos meus doze anos que tudo começou a desabar.
Minha mãe se descobriu portadora da ELA, uma doença rara que ataca os neurônios motores responsáveis por enviar impulsos nervosos aos músculos, provocando a atrofia dos mesmos. A exata causa da doença ainda é desconhecida e incurável, talvez seja apenas o acaso do destino ou sei lá.
Foram meses de tratamento, iniciado imediatamente após o diagnóstico, minha mãe foi tratada pelos melhores médicos especializados do Reino Unido, e, todavia foi inevitável que a doença gradativamente atrofiasse os músculos que permitiam os movimentos das pernas e das mãos e, pouco tempo depois, a respiração, levando-a a óbito.
Não posso afirmar que o tempo que passei com ela não fora o suficiente para me despedir, pois não deixei de estar ao seu lado nem por um único segundo. Lembro-me perfeitamente do fato de que ela costumava ler história de super-heróis para eu dormir, afirmando que eu precisaria encontrar o meu super-poder para cuidar da família quando ela fosse embora, e foi o que eu fiz. Após a partida de minha mãe, meu pai se tornou alcoólatra, não suportando a dor de perder seu grande amor. Eu assumi os papéis dos meus pais e me tornei responsável pelos meus irmãos Christian, na época com oito anos, e Lauren, com seis.
Eu era encarregado de organizar da casa, cozinhar, levar e trazer meus irmãos do Colégio, e até mesmo pagar as contas. Felizmente minha mãe nos deixou uma boa pensão, que era o suficiente para nos sustentar, mesmo que algumas vezes meu pai pegasse dinheiro escondido para comprar bebida.
Com o tempo a situação foi se tornando cada vez pior, meu pai começou a se tornar violento e muitas das vezes que chegava bêbado em casa avançava contra mim e meus irmãos e eu sempre os protegia e me colocava na frente deles, então o homem descontava suas frustrações em mim.
Antes de tudo desmoronar, ele sempre me dizia que eu parecia demais com a minha mãe, que tínhamos os mesmo traços suaves do rosto, os mesmo olhos grandes e esperançosos e o mesmo sorriso acolhedor e por isso eu tinha certeza de que ele me odiava mais do que qualquer coisa no mundo porque eu era a sombra que ela havia deixado para trás. No entanto, acho que o que mais o irritava era o fato de eu sempre ter me recusado a desistir dele, assim como sei que minha mãe também faria, mesmo com toda a mágoa e marcas ── tanto físicas quanto psicológicas ── que ele me deixou.
Aos vinte anos consegui colocá-lo em uma clinica de reabilitação e então pude me dedicar inteiramente aos estudos e entrei para a faculdade de Medicina, uma vez que havia prometido à minha mãe que faria por aquele ser o sonho dela para mim.
Mamãe sempre me dizia: “Você nasceu para salvar vidas, Teddy” e por isso acreditava fielmente que eu deveria me tornar um doutor, mais especificamente, um Cardiologista, pois de acordo com ela eu tinha um coração maravilhoso e por isso precisava me certificar de que todos teriam um também.
Mesmo tendo que me desdobrar entre os inúmeros textos e livros da faculdade para estudar, um trabalho de meio período para ajudar a pagar as contas e continuar cuidando dos meus irmãos ── que na época eram adolescentes e precisavam de bastante vigilância, consegui me formar na faculdade e entrar para um programa de Residência no hospital St. Mary.
E foi então que eu a conheci, a mulher que teoricamente deveria ser meu maior pesadelo, mas que acabou sendo o meu maior amor. Juliette Campbell era a chefe da Cardiologia e responsável por avaliar meu período como interno, uma mulher de poucas palavras e quase nenhum sorriso, que instantaneamente despertou meu interesse e curiosidade, então encarei como uma missão e um desafio fazê-la gostar de mim.
Comecei a me aproximar com cautela, fingindo me interessar por suas habilidades, e não demorou muito e começarmos a sair escondidos, uma vez que era proibido envolvimento entre chefes e internos. E então o que era para ser apenas uma atração reprimida se transformou em paixão e a paixão em amor.
No ano em que terminei minha residência e enfim pude começar a atuar como um legítimo Cardiologista, em uma noite louca rodeada de vinho, queijo e filmes dos anos oitenta, decidimos nos casar.
Jullie disse que o grande sonho de sua mãe era vê-la entrar em uma igreja de véu e grinalda, e mesmo não sendo sua própria vontade, ela queria lhe dar esse presente, então lá fomos nós planejar uma enorme festa de casamento, mesmo que de fato gostaríamos apenas de passar algumas semanas no Havaí ── o que acabou sendo inviável devido aos nossos empregos.
Julliette se recusou a saber o sexo do bebê até o ultimo segundo, disse que não gostava de se prender à gêneros e iria amá-lo da mesma forma, independente de ser menino ou menina, então decidimos dar o nome de Taylor.
Mesmo não demonstrando interesse algum em descobrir se a criança que carregava em seu ventre era do sexo masculino ou feminino, todos sempre tentavam seus palpites, uns diziam que por estar com a barriga pontuda seria um menino e outros que por comer doce demais seria menina, ao final tivemos uma menina prematura de apenas sete meses.
Entretanto, por uma ironia do destino, Taylor nasceu com uma cardiopatia congênita, uma alteração na estrutura do coração que se desenvolve antes do nascimento, ficou meses na incubadora enquanto Jullie não saía do seu lado, eu sempre tentava fazê-la comer e ir para a casa tomar banho e descansar, porém a mulher relutava até ser vencida pelo cansaço.
Os problemas cardíacos desencadearam insuficiência respiratória e infelizmente Taylor não resistiu. Julliette ficou arrasada, não quis ir ao enterro e apesar de também ter sofrido muito, eu entendi os motivos dela, Jullie carregou Taylor em sua barriga, elas dividam o mesmo corpo e as mesmas vontades, eram como se fossem uma só, então ela sentia como se tivesse perdido uma parte de si.
Julliette largou sua carreira, alegando não ser capaz de salvar vidas quando não pode salvar nem a de sua própria filha. Se trancou no quarto que seria de Taylor, mas que ela nunca teve a oportunidade de conhecer, e chorou por dias seguidos abraçada às roupinhas que nossa filha nunca poderá usar. Eu a apoiei, tentei consolá-la em meus braços enquanto suas lágrimas encharcavam minha camisa, tentei fazê-la se alimentar e sair da cama, porém todas as minhas investidas foram inúteis, então me dei conta de que apenas a minha ajuda não seria o suficiente, chamei um amigo Psiquiatra para consulta-la e ele me contou o que eu mais temia: Jullie estava em depressão.
Ele me receitou um remédio para acalmá-la e fazê-la dormir e disse para nunca deixá-la sozinha.
Ao decorrer dos dois meses que se seguiram, a mãe de Julliette e eu nos revezamos para cuidar dela. Em tão curto espaço de tempo, minha esposa estava quase irreconhecível, as linhas que marcavam a curva de seu sorriso encantador se transformaram enfeites em seu rosto, que tinha aspecto magro e cansado; os olhos, antes brilhantes e hipnotizantes, estavam opacos e carregavam bolsas escuras abaixo deles; o corpo que um dia foi saudável e cheio de curvas tinha no mínimo quinze quilos a menos.
Me doía vê-la daquela forma, tão frágil, quebrada e machucada, eu me sentia impotente em não poder ajudá-la como gostaria, não poder salvá-la de si mesma. Cogitei interná-la a uma clinica psiquiátrica, porém o Psiquiatra disse que poderia agravar o quadro dela se tirássemos de um lugar familiar e que o melhor seria manter o tratamento e as visitas porque alguma hora ela se sentiria segura o suficiente pra se abrir.
Duas semanas depois, Julliette quebrou o silêncio e resolveu conversar com o Psiquiatra, respeitei sua vontade em não me querer na sala e fiquei feliz por ela estar reagindo. Gradativamente consegui fazê-la levantar da cama uma vez ou outra, ir até a sacada tomar um ar fresco ou até a cozinha buscar algo para comer, eu estava confiante de que logo teria minha Jullie de volta.
Mas então eu cometi o pior erro que poderia ter feito em toda a minha vida.
Durante uma madrugada, recebi um chamado de emergência do hospital e como Jullie estava dormindo e estava tarde demais, não pensei que haveria necessidade de ligar para a mãe dela, já que eu ficaria fora por apenas uma ou duas horas.
A minha surpresa foi voltar pra casa uma hora e meia depois e encontrar Jullie submersa na banheira com um vidro de tarja preta vazio jogado ao chão. Eu tentei reanima-la, fazê-la vomitar os comprimidos, mas já era tarde demais, Julliette já tinha ido embora.
Eu nunca me perdoei depois disso, nunca mais voltei àquela casa, a família de Jullie entrou com uma ação contra mim e conseguiu pegá-la, uma vez que ela havia contribuído bem mais para a quitação do imóvel do que eu.
Aluguei um pequeno flat próximo ao hospital e comecei a pegar todos os plantões possíveis, não queria ficar parado, não queria pensar demais, não queria sentir a culpa me consumindo por dentro.
Um amigo que também trabalhava no hospital se divorciou da esposa e para não deixa-lo na mão, acabei cedendo o apartamento para ele ficar, já que não me estava sendo útil.
Apenas percebi o quanto da minha vida me dediquei a tentar salvar outras pessoas quando meu corpo pediu trégua após setenta e oito horas atendendo pacientes, sem dormir e descansar. Durante a minha vida inteira eu tentei salvar todos que eu amava e no final não consegui salvar a ninguém, nem a mim mesmo. Sempre deixei meus problemas de lado para resolver os de outras pessoas. Dei-lhes meu oxigênio quando podiam respirar, meu dinheiro, meu ombro amigo e um lugar para se esquentar, mas hoje, beirando os quarenta anos de idade, me pergunto se qualquer uma dessas pessoas faria o mesmo por mim.
As letras passearam pela tela da sala de espera, trazendo-me de volta à realidade e avisando que o trem já havia chegado. Resgatei minha única mochila e segui para esteira indicada. Muitas pessoas animadas e carregando diversas bagagens passavam por mim, conversando entre si sem nem perceber a minha presença. Após adentrar e me acomodar em minha cadeira, avistei uma jovem com um tanto de dificuldade em por a mala no bagageiro e um impulso de ajudar me atingiu, porém me contive. Eu não iria mais salvar ninguém, agora era a hora de me salvar.
Fim?
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