As cores mais bonitas do universo

Última atualização: 14/01/2024

“Cor é vida. Porque um mundo sem cor é sem vida e solitário. Fogo cria luz. A luz faz nascer a cor. Tons vocais dão cor às palavras e cores, espiritualmente falando, dão forma aos sons. Todas as cores são amigas das cores vizinhas e amantes de suas opostas. As cores não devem ser fabricadas demais. Elas devem vir da natureza. Eu não gosto de nomes em cartões coloridos. Eu prefiro chamá-los de coisas como: lilás romântico ou magenta travesso. Graças ao Sol, nós vivemos em um mundo cheio de cores vibrantes e luxuosas. Vemos a mudança das cores ao longo das estações. Humanos podem ver de 5 a 10 milhões de cores. Mas apenas 1200 delas têm nomes. Algumas dessas cores são desoladas e algumas são deslumbrantes. Algumas são tristes e outras são calorosas. Embora nem todas as cores sejam lindas... este mundo que está repleto delas é delicado e esplêndido.” (Sweet Dreams (一千零一夜))

Capítulo 1

“Uma rosa roxa é uma rosa real, transmite uma mensagem de grandeza e dignidade, representa o amor profundo, normalmente, à primeira vista.”

Eu sabia que todas as cabeças virariam para me olhar quando eu entrasse. Não, não era questão de ser arrogante ou nada do tipo, mas até mesmo eu, antes do acidente, quando via alguém em uma cadeira de rodas entrando no mesmo lugar em que eu estava, tinha os olhos atraídos automaticamente.
Então não era por eu ser extremamente gata, ser famosa ou ter um corpo escultural que as pessoas viravam os pescoços para me observar enquanto eu passava. Era por causa da cadeira de rodas. Ou, talvez, principalmente, porque eu parecia uma criança com minha mãe empurrando a cadeira como se nem os braços eu pudesse mover.
Paramos em frente ao balcão e eu fui me sentindo cada vez mais vermelha enquanto minha mãe ia falando:
— Com licença, bom dia. Pode avisar ao Sr. que já chegamos? Ele vai saber quem é.
Pela cara que a recepcionista fez, ela devia estar imaginando se eu era um completa inválida e nem conseguia falar. Ela me olhava com pena. Que mãe leva a filha no primeiro dia de trabalho? A filha adulta. Queria abrir um buraco no chão e me enfiar dentro dele.
Por mais que aquele tivesse sido o assunto de todas as nossas discussões naquela semana e ainda mais naquela manhã, minha mãe não deu o braço a torcer sobre me acompanhar no primeiro dia de trabalho. Mesmo já conhecendo todo o prédio e a maioria das pessoas que iriam trabalhar comigo por ter estado em todas as etapas da seleção.
— Podem subir. — a mulher atrás do balcão falou, após checar alguma coisa no computador. — A senhora sabe em que andar ele fica?
Minha mãe concordou me levou até o elevador e apertou o botão de chamada.
— Mãe? — chamei, entre dentes.
— Sim, querida? — respondeu, docemente.
O pior era que ela nem notava o que acontecia comigo quando fazia aquele tipo de coisa. Já era natural e fazia parte da sua personalidade. Mesmo antes do acidente, ela costumava ser cuidadosa e depois que passei a viver confinada em uma cadeira de rodas, o cuidado redobrou. Ela gostava de estar no controle de todas as coisas que envolviam a minha vida.
— Você sabe que não precisa ficar me arrastando, não sabe? Eu tenho mãos. E uma boca muito funcional. Posso arrastar a minha cadeira e pedir por informações.
— Eu sei, mas é o seu primeiro dia. Você sabe que eu quero ter o prazer de te ajudar nesse primeiro passo da sua jornada. — já tinha ouvido aquela frase tantas vezes, que já estava memorizada.
— Você sempre faz isso. Parece que eu tenho treze anos. — murmurei baixo, enquanto o elevador apitava, indicando que as portas iriam se abrir.
Antes que minha mãe fizesse qualquer coisa, eu manobrei a cadeira de rodas para sair do caminho das pessoas que iriam sair do elevador. Assim que as portas se abriram, os quatro pares de olhos que estavam dentro do cubículo olharam diretamente para mim e eu podia ouvir os pensamentos girando nas mentes de cada um. “O que deve ter acontecido com ela?”, “Será que ela nasceu assim?”, “Coitada.”.
Eu só sorria e cumprimentava todos que iam saindo, com educação.
Minha mãe se posicionou protetoramente atrás de mim e me empurrou para dentro, com uma careta na expressão. Eu a conhecia tão bem que já imaginava o que ela estava pensando.
— Que povo mal-educado, hein? Você viu a cara deles? Nunca viram uma pessoa deficiente? Vou ter que conversar com o sobre isso.
— Mãe... — falei, em aviso.
Odiava aquela palavra: deficiente. Me fazia parecer inválida e inútil. Deficiente significa algo ou alguém que não é suficiente sob o ponto de vista quantitativo, que é incompleto. Mas eu não era incompleta ou insuficiente por não ter o movimento das pernas.
— Tudo bem, tudo bem. Nada de julgar, mas às vezes as pessoas passam dos limites. Não gosto da maneira como eles te olham.
Assim que paramos no quinto andar, algumas pessoas nos cumprimentaram e a julgar pelo chapéu extravagante do homem que parou na minha frente, eu podia apostar que era o .
— Que bom vê-la de novo, Jen. — ele cumprimentou minha mãe primeiro, como sempre. — Como está o Edward? Depois da nossa última partida de críquete, nunca mais nos encontramos.
— Está ótimo, . Você fez meu marido exercitar músculos que ele não usava há anos. E a sua mãe?
— Reclamando do clima, como sempre. A idade está atingindo em cheio.
— Não pode fazer comentários assim sobre a idade de uma mulher, .
Os dois riram, como velhos amigos. Às vezes eu achava que era mais filho da minha mãe do que eu. Os dois tinham uma compatibilidade incrível e se eu pudesse ver rostos, poderia confirmar os comentários de que fisicamente eles também eram muito parecidos.
— Pode deixar que daqui para frente eu tomo conta da . — falou como se tivesse pedindo permissão.
— Vai cuidar da minha garotinha mesmo? — a voz da minha mãe se tornou chorosa e eu suspirei. Lá vamos nós de novo.
— Mãe, — resmunguei, pela milésima vez. — eu sei cuidar de mim. E, além disso, o é meu chefe. Não é obrigação dele tomar conta de mim.
— Não se preocupe, Jen. Vai ficar tudo bem. A está segura aqui e comigo. — garantiu. — Esse trabalho é perfeito para ela. A mente brilhante dela vai ser muito bem valorizada. Aposto que ela vai se adaptar muito bem.
Depois de ditar todas as precauções ainda com a voz trêmula de choro e fazer o prometer que tomaria conta de mim um milhão de vezes, minha mãe me deu um beijo e foi embora. Eu me controlei para não revirar os olhos com aquela cena de despedida. Era como uma mãe mandando o filho para a guerra.
— Minha mãe acha que eu tenho dez anos. Quem leva a filha ao trabalho no primeiro dia? Isso é meio humilhante. É bom você não contar isso para ninguém. — meu primo riu. — E eu já estive aqui várias vezes. Não é como se eu estivesse partindo para a Síria ou para o Afeganistão para lutar na guerra. É só um estágio.
— Ela se preocupa com você. Sempre te enxergará como o bebezinho dela. Todas as mães são assim. Não conseguem lidar com a independência dos filhos. Acontece com mais frequência do que você imagina.
tomou o controle da minha cadeira e me levou até o escritório dele.
— Vocês chegaram cedo. — ele observou. — Conseguiu tomar café da manhã?
— Até parece que o papai me deixaria sair com a barriga vazia. — meu pai não era tão ruim quanto minha mãe, mas também se preocupava muito comigo, principalmente na parte da minha alimentação. Ele não me deixava colocar o pé para fora de casa sem comer alguma coisa. Quando insistia que tinha alguma gordura localizada e precisava emagrecer com alguma dieta, ele me forçava a comer em troca de me deixar sair.
— Nervosa para o primeiro dia? — acenei com a cabeça.
— É o meu primeiro emprego oficial, claro que estou nervosa.
— Mesmo sabendo que trabalharia aqui desde os doze anos?
— Mas eu não planejava conseguir esse emprego por causa da minha deficiência. — foi óbvio que não gostou da minha resposta, pela maneira que cruzou os braços e soltou um muxoxo.
— O que é isso, ? Você conseguiu esse trabalho porque é talentosa. Você participou de todo o processo como qualquer outro candidato.
— E porque você é meu primo. — antes que ele pudesse responder, eu continuei. — Eu nem pude ir para a faculdade ainda. Vamos combinar que o pessoal aqui tem muito mais técnica e experiência. Eles sim entraram aqui por mérito próprio.
— Acredite em mim, ninguém entra nesse lugar se não for bom de verdade. Nem por nepotismo.
Dei de ombros e disse:
— Eu não estou desmerecendo essa oportunidade. Não, longe de mim dar uma de mal-agradecida agora. Estar aqui é uma chance de um milhão. Eu sei o quão importante ela é, mas eu também conheço o meu lugar. Não vou fingir ser algo que eu não sou porque estou nessa posição agora.
Alguém entrou com tudo na sala, derrubando e tentando segurar várias pastas ao mesmo tempo, interrompendo o meu discurso.
, eu finalmente consegui o vestuário perfeito para... — a mulher que entrou parou assim que me viu. — Você deve ser a garota nova. Oi de novo.
Eu apenas a cumprimentei com a cabeça para não parecer mal-educada.
— Essa é a , eu a apresentei da última vez em que você esteve aqui. — não conseguia me lembrar do nome.
Ah. — eu falei, fingindo que me lembrava de ter visto a mulher antes. — Olá, .
— Ela é uma das nossas melhores designs. Você vai ter a chance de trabalhar no mesmo departamento que ela e aprender muito. — colocou os papéis na mesa de .
— Eu estou ansiosa para trabalhar com você. O pessoal está curioso para conhecer a prima tão famosa do . Ele não parava de falar sobre o quão boa você é e quão animado estava por você trabalhar aqui.
— Todos já chegaram? — quis saber, mudando de assunto.
— Só falta o estagiário. Ele foi fazer um favor e vai chegar um pouco mais tarde. — a mulher, , informou. — Mas podemos começar sem ele.
— Preparada para conhecer oficialmente os seus colegas? — me perguntou, abrindo um sorriso e eu não consegui conter o meu próprio.
Mesmo nervosa, eu estava imensamente feliz. Finalmente estava acontecendo. Meu primeiro emprego de verdade. Não mais serviços freelancer, ou simplesmente rascunhar até tarde da noite no meu quarto. Eu estava fazendo alguma coisa com toda a criatividade que estava dentro de mim.
Acenei, tentando parecer animada e segui os dois para fora, com o frio na barriga crescendo.
À medida que íamos avançando para fora do escritório e nos aproximando mais das pessoas, meu sorriso foi morrendo e o nervosismo aumentando. Eu odiava aquele tipo de situação. Me sentia exposta e com uma insegurança que não era minha. Tantas pessoas me olhando, curiosos para saberem sobre mim ou se eu lembrava de algum deles. Eu sentia quase uma claustrofobia, como se todos estivessem se aproximando ao mesmo tempo. Fiquei levemente enjoada.
colocou uma mão no meu ombro e sussurrou em meu ouvido que ficaria tudo bem, provavelmente sentindo o quão eu estava nervosa.
O nosso andar não era muito grande e não tinha muita gente trabalhando. Aproximadamente quinze pessoas apareceram para me receber. A maioria dos funcionários trabalhavam na sede.
— Pessoal, gostaria de apresentar oficialmente a nossa nova estagiária, . Mas esse nome é muito grande, então vocês podem chamá-la apenas de . Ela vai trabalhar no departamento de design de vestuário, juntamente com o novo estagiário que entrou no mês passado, ficando três meses como aprendiz, finalmente completando a equipe. , esse é o nosso pessoal. Muitos aqui vieram da sede e estão na empresa desde a fundação, então terão muito o que te ensinar.
— Muito prazer. — eu os cumprimentei nervosamente e as palmas das minhas mãos começaram a suar quando cada um deles veio falar comigo.
— Não lembra de mim? — alguém perguntou. — Nos conhecemos quando você veio para a primeira entrevista.
— Fomos apresentados antes.
— Oi, sou o Robert. Não lembra de mim?
Eram muitos rostos e eu não conseguia ver ninguém de verdade.
— Pessoal, vamos com calma. A não é muito boa com rostos e nomes.
Quase ri com o eufemismo de . Não era boa? Que tal péssima? Ou terrivelmente defeituosa com isso? Tantos rostos diferentes conseguiam deixar até a minha visão empacada. Tive que sacudir um pouco a cabeça para a vertigem passar.
, vou confiar a minha garota de ouro nas suas mãos.
Uma mulher segurou a minha mão e pela pinta perto do lábio superior, eu reconheci como sendo a líder da minha equipe. .
— Eu vou cuidar bem dela. — garantiu.
— Pessoal, podem voltar para os seus lugares. — dispersou todos. — , a será a sua supervisora, mas qualquer problema que tiver, pode vir para mim. Você sabe que eu sempre te ajudarei em tudo que precisar. — talvez toda a minha família tivesse um senso de proteção apurado quando se tratava de mim. Ele abaixou a voz para completar: — Eu sei que você vai ser incrível.
Eu sorri para o cara de chapéu e segui para o meu mais novo departamento. Fui me acalmando aos poucos.
— Então, qual é a sua? Não é daqui ou o quê? — perguntou, antes de chegarmos à sala onde eu trabalharia.
— O que me denunciou?
— Você é meio travada e fica tensa quando alguém te toca. Além disso, o sotaque bem no final. Sou muito observadora.
— Droga. Achei que tinha ficado melhor. — nós duas rimos. — Na verdade, eu tenho parentes distantes na Coreia do Sul e morei lá até quatro anos atrás. Ainda estou me adaptando.
— Você não tem olhos puxados.
— Parentes distantes. — repeti devagar para que a informação fosse processada.
— E é espertinha também, como avisou.
Observando-a de perto, percebi que seria fácil identificar . Ela vestia botas de cano longo com saltos bem altos, bastante maquiagem, sorria muito e tinha cheiro de rosas, provavelmente perfume feito em laboratório com fórmula única, especialmente para ela. Parecia ser o tipo de pessoa singular. Era o meu tipo preferido de pessoa, porque era mais fácil identificar.
— Não quero ser tratada diferente aqui por causa do . Na verdade, eu não entrei aqui... — me cortou rapidamente.
— Nós não temos esse tipo de coisa aqui. Cada pessoa é reconhecida por seu próprio talento, não pelas suas conexões. Não se preocupe porque não irei beneficiá-la em nada por causa do seu primo.
— Bom, isso é muito bom. — sorri, aliviada. Sempre tive a necessidade de assumir que não precisava de ninguém, porque nunca entenderão isso naturalmente. Mesmo sendo cansativo reafirmar que não precisava de ajuda.
— Chegamos.
Ela abriu a porta de vidro à minha frente para que eu passasse com a minha cadeira. Eu entrei tentando absorver cada detalhe. O cheiro dos papéis e das tintas das canetas, o barulho das teclas, do lápis riscando no papel, as páginas sendo amassadas. Tentei decorar todo o ambiente como de costume em todo lugar novo que chegava. Os melhores lugares para passar com a cadeira, o tamanho dos corredores e das mesas. Eu não conseguia enxergar rostos, mas meu olhar era apurado para muitas outras coisas.
— Esse é o nosso humilde departamento. Além de mim, nós temos Sarah que só chega atrasada, o Brian ali concentrado no novo personagem e o garoto novo que está se saindo muito bem até agora.
— Espero ser tão boa quanto ele. — falei com sinceridade. Todos os elogios que já tinha ouvido até ali, não adiantaria nada naquele ponto.
— Pelo que me falou, você é o brilho que faltava no nosso departamento. — dei uma risadinha.
— Não é para tanto...
— Não era você que tinha uma webtoon muito famosa na internet? Qual era o nome mesmo? Alguma coisa sobre...
Se eu tivesse com as pernas em pleno funcionamento, eu teria corrido e calado a boca dela, mas como eu não podia alcançá-la, apenas coloquei o dedo nos lábios, pedindo para ela fazer silêncio freneticamente.
— Ninguém pode saber disso. — pedi.
Qual é, ? Eu dei uma olhada no seu portfólio antes de aceitarmos a sua candidatura, você é muito boa. Seus desenhos estão espalhados em todos os lugares na internet. Conheço poucas pessoas que são capazes de fazer o que você faz e com tão pouca idade.
— Mas é meio que um segredo, então não conta para ninguém. Além disso, parei com a webtoon há muito tempo. Realmente não quero que as pessoas descubram.
— Por que quis trabalhar aqui? Em um ramo tão diferente das webtoons.
— Sempre quis trabalhar com games e essa empresa é o sonho de qualquer pessoa que deseja trabalhar nessa área. A webtoon era só um hobby. Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Os outros desenhos eram só freelances, nada sério.
— Estou ansiosa para trabalhar com você. Pode ficar com esse lugar. Quando o garoto novo chegar, eu peço para ele mover as coisas dele para a mesa ao lado. Preciso terminar de mostrar o vestuário do novo personagem ao , mas não vou demorar muito. Você começa a se familiarizar com a nova mesa de desenho e os nossos equipamentos. Qualquer dúvida pode perguntar ao Brian ou guardar a dúvida para quando eu voltar. Quero que se sinta o mais confortável possível, como se fosse a sua própria casa.
— Obrigada, . Tenho certeza de que me acomodarei rapidamente.
saiu, me deixando com uma mesa toda desorganizada e um cara com o rosto enfiado na tela do computador que nem tinha notado a minha presença, o tal Brian, ouvindo música no último volume, e se eu estivesse gritando por socorro, ele não ouviria a minha voz.
Comecei a analisar os rascunhos em cima da mesa. Eram vários rabiscos incompletos de personagens diferentes, com trajes diferentes. A técnica era muito boa e o trabalho era bem feito. Fiquei impressionada com tudo que via, enquanto passava as páginas. Eu não tinha esse tipo de técnica, mesmo fazendo vários cursos. Desenhar daquele jeito, pedia por muita prática e muita experiência. Me senti automaticamente curiosa sobre a pessoa que havia desenhado aqueles personagens. Desejei aprender com ela.
— O que você está fazendo no meu lugar?

Capítulo 2

“A dália vermelha está associada a uma ideia de olhos vivos e abrasadores.”

Eu vi a garota quase pular do assento quando me viu. Seu rosto assumiu uma expressão fechada e eu cruzei os braços para mostrar o meu desgosto. Ela segurava meus desenhos e mexia nas minhas coisas como se a mesa fosse sua. Fiquei automaticamente irritado.
— Desculpa, quem é você?
Eu levantei uma sobrancelha e soltei uma risada sem humor com sua pergunta atrevida. Sua expressão de inocência fingida me irritava ainda mais.
Quem sou eu? É você quem está mexendo no que não é seu.
— Fomos apresentados antes? Eu deveria conhecer você?
— Não que eu me lembre, mas você pode sair da minha mesa e largar as minhas coisas? Eu tenho trabalho para fazer e cada segundo é importante.
Ela continuou no mesmo lugar, sem nenhuma intenção de se mover.
— Você deve ser o garoto novo. Eu sou... Hm... A garota nova? — ela estendeu a mão como se realmente esperasse que eu fosse apertá-la. Apenas olhei para seus dedos e ela recolheu a mão estendida, sem constrangimento, apenas dando de ombros.
— Isso não justifica o fato de você estar mexendo nas minhas coisas. — insisti.
pediu que eu ficasse com esse cubículo, provavelmente porque é o único com espaço suficiente para encaixar a minha cadeira.
Eu finalmente notei a cadeira de rodas.
— Bom, e daí? Isso não te dá o direito de mexer no que não é seu.
Andei até a mesa e peguei todo meu material, passando para a única baia vazia que ficava ao lado. Em tempo recorde, saí da minha conta do computador, peguei meus objetos pessoais e meus trabalhos incompletos, enquanto a garota continuava no meu lugar, com a expressão inalterada, apenas observando os meus movimentos.
— Eu... Hm... Desculpe? — ela não parecia nem um pouco arrependida. Sua expressão estava mais para deboche.
— Você não sabe falar direito? Tem algum problema com a linguagem? Hm... Ah... — fiz uma imitação da sua voz, mas minha grosseira não a tocou. Ela não pareceu ficar ofendida e nem chateada com as minhas palavras.
Decidi ignorá-la porque ainda estava irritado. Odiava quando mexiam nas minhas coisas ou invadiam o meu espaço e a garota na cadeira de rodas mexia alguns botões errados dentro de mim. Me fazia lembrar de um passado distante, esquecido no fundo do meu subconsciente. Só a visão dela me deixava irritado.
— O quê? — perguntei quando vi que ela continuava me encarando com os olhos enormes.
— Eu preciso da sua ajuda para entrar na minha conta.
Soltei um muxoxo em uma língua que ela não conhecia e arrastei minha cadeira de rodinhas até parar do lado dela. A garota quase pulou quando agarrei seu crachá e digitei o número de matrícula dela e a senha padrão. Não consegui ignorar a foto dela sorridente no crachá. Quem sorria tão grande em uma foto de crachá daquele jeito? , estava escrito. Nome estranho para uma garota estranha.
— Muito obrigada, você pode me chamar de .
Voltei para o meu lugar, mas a garota continuou me encarando. Fiquei verdadeiramente incomodado.
— O que você quer agora? — perguntei novamente, esperando que aquilo acabasse de uma vez por todas. Ela fazia o tipo que não entendia os sinais para se afastar.
— Você já sabe o meu nome, não seria educado dizer o seu também?
Eu não suportava aquele tipo de pessoa que tentava me fazer ser sociável e comunicativo. Nem que se intromete em tudo. Decidi que não seria legal com ela e nem me esforçaria para suportá-la.
— Song. — respondi, simplesmente.
— Song? Só Song?
— Song de Song Yunhyeong. Então é simplesmente Song mesmo.
Desde que havia me mudado, ninguém conseguia dizer o meu nome certo e no Starbucks sempre demorava tempo demais na fila porque precisava soletrar letra por letra para o atendente, então passei a usar meu sobrenome como primeiro nome, mesmo ainda parecendo estranho.
— Tudo bem. — ela deu de ombros e se virou para o computador.
A garota nova — — ficou em silêncio pelos minutos seguintes enquanto tentava descobrir como mexia na conta e eu fingi estar muito ocupado com meus rascunhos para ajudá-la.
já havia avisado que alguém novo entraria no departamento como estagiário, do mesmo jeito que eu, e eu fiquei tão feliz com a notícia como se tivesse entrado uma farpa de madeira no meu dedo. Eu odiava trabalhar com pessoas, entendê-las ou fazê-las me entender. Minha antiga terapeuta costumava dizer que eu tinha problemas de raiva reprimida e por isso não tinha paciência ou conseguia me dar bem com os outros. Ela não poderia estar mais certa.
— Que bom que você já está aqui, Song. — entrou com os braços cheios de pastas algum tempo depois. Como sempre. — Já conheceu a nossa nova estagiária? É a .
— Por que não me avisou que ela roubaria a minha mesa? — era a única coisa que eu queria saber.
— Eu te enviei uma mensagem mais cedo explicando, mas o seu celular deve estar descarregado. De novo. — odiava não ter razão. — Já está se familiarizando com tudo, ?
— Sim, o Song me ajudou a entrar na minha conta.
— Que bom que ele se dispôs a te ajudar. — uma ideia pareceu cruzar sua mente. — Já que é assim, ele será o responsável por te ensinar tudo o que precisará saber no seu período de adaptação. Será bom para você e para ele. — soltou a bomba e entrou em sua sala.
Eu fiquei tão chocado que só consegui reagir alguns segundos depois, me levantando e correndo atrás dela.
— O que você quer dizer com “responsável”? — falei, fechando a porta atrás de mim.
— O significado literal da palavra.
, qual é? — reclamei. — Eu tenho cara de babá?
— Eu só quero que você a ajude, não estou pedindo para sacrificar sua vida nem nada do tipo. Como eu disse, será bom para vocês dois trabalharem juntos. Acho que o nosso departamento é muito individual e precisa mais de trabalho em equipe. Além disso, talvez isso dê um jeito nessa sua atitude.
— Isso vai transformar o meu trabalho em um inferno. — reclamei, passando a mão pelo cabelo, irritado. — Eu estou cheio de coisas para terminar e...
— E é justamente por isso que ela está aqui. — ela me cortou. — Para dividir o seu fardo. Ela é a ajuda que você estava precisando.
— Você conhece a minha condição, você sabe de tudo o que aconteceu. Essa garota... Eu realmente não preciso de uma garota assim ao meu lado agora. Eu preciso trabalhar sozinho.
— Você não pode se esconder para sempre, Song. Em algum momento você vai ter que confrontar os seus antigos demônios. E além de sua amiga, eu sou sua chefe e estou te mandando ser responsável por ela. Você não tem escolha. Não sabe que nós aprendemos mais ensinando?
— Que droga, !
Eu bati em sua mesa com força, fazendo-a pular com o susto e várias coisas caírem no chão.
— O que você pensa que está fazendo? Saia da minha sala agora. — ela mandou, mudando o tom de voz, indicando que eu havia passado dos limites.
— Desculpe, eu... — tentei me desculpar, mas já havia perdido a paciência comigo. Era uma luta perdida.
— Saia, Song. Agora. Lembre-se de quem manda aqui.
Eu saí da sala dela, batendo a porta com força, e voltei à minha própria mesa, olhando feio para a novata, mas ela fingia que nem estava me vendo, mesmo eu sabendo que a minha conversa com podia ser ouvida no departamento todo. Ela mexia na mesa de desenho despreocupadamente, como se o mundo fosse lindo e belo. Eu decidi ignorá-la totalmente. Claro, até ela precisar da ajuda da babá dela.
Sarah chegou delegando as tarefas e recolhendo o que estava pronto. Confirmando o que havia dito, eu recebi menos trabalho porque parte dele foi passado para a garota nova. . Pelo canto do olho eu a observava ouvir atentamente tudo o que Sarah dizia e tirar suas dúvidas. Pouco tempo depois, eu já estava com a mão na massa e eu agradeci internamente por ela não precisar da minha ajuda.

Eu estava terminando de colorir a versão quatorze da armadura da personagem que eu era responsável quando uma música estranha encheu o ar, quebrando minha concentração. Claro, só poderia ser a garota nova. Ela se atrapalhou toda procurando o celular na mochila e eu apenas a fuzilei.
— Você não leu as regras do departamento? — ela se assustou com a minha voz.
— O quê?
Eu apontei para a placa perto da porta com as regras do departamento que bem claramente dizia: Proibido som alto no celular.
— Desculpe, foi um acidente.
Ela atendeu o celular rapidamente e começou a cochichar com a pessoa do outro lado da linha. Revirei os olhos. Eu deveria estar ignorando-a e não prestando atenção em cada coisa que ela fazia. Que explicação eu teria para o meu cérebro que gostava de fazer sempre o oposto do que ele deveria fazer?
— Pessoal, pausa para o almoço.
saiu de sua sala se espreguiçando e Brian e Sarah se colocaram de pé automaticamente. A hora do almoço era importante para todos, então ninguém perdia nenhum minuto. Era quase um banho de Sol para os presos.
— Tchau, mãe. Tenho que ir. — desligou o celular.
— Vai com a gente, ? — chamou e ela negou com a cabeça, sem tirar o sorriso do rosto. Parecia que ela nunca parava de sorrir.
— Não, vou comer o que trouxe e terminar de me familiarizar com as coisas aqui.
— Só não deixe o trabalho consumir sua vida. — Sarah falou. — Pausas são saudáveis e ajudam também. Precisamos esticar as pernas e receber um pouco de Sol fora dessa sala fechada.
— Trabalho? Isso está mais para um acampamento de férias.
Todo mundo riu e eu percebi que era a Miss Simpatia. Ela fazia todo mundo rir, era adorável e carismática. Não podia ser pior.
— Song? — chamou.
— Eu preciso terminar esse projeto. — respondi, sem nem olhar na direção dela.
— Você sempre usa a mesma desculpa, poderia ser mais criativo das próximas vezes.
— Ou você simplesmente deveria parar de perguntar. — murmurei para mim mesmo, sabendo que ela e todos podiam me ouvir claramente.
Voltei para o trabalho enquanto o resto da equipe se despedia e saía.
A verdade era que só me convidava por uma questão de educação porque se fosse por Brian e Sarah, nem precisava se dar ao trabalho. Eles já tinham desistido de mim na minha terceira semana de trabalho quando perceberam que eu nunca sairia com eles, nunca responderia nenhuma pergunta pessoal e nunca aceitava carona.
era outra história. Ela e — nosso chefe — eram as únicas pessoas que conheciam o meu passado. Eram os únicos daquele prédio em quem eu poderia confiar. era a única que me conhecia antes que tudo acontecesse, mas os dois sabiam pelo que eu havia passado e o que eu havia me tornado, por isso, toleram meus humores sem forçarem a barra.
Ao finalizar a pintura da armadura, eu saí para esticar as pernas enquanto o resto do pessoal ainda não tinha voltado. Antes de voltar para a sala, encontrei parada na frente da máquina de bebidas. Ela apertava o botão de cinco em cinco segundos, mas a máquina continuava travada.
— Não acredito que essa máquina inútil comeu o meu dinheiro.
Eu a ouvi reclamar quando me aproximei para ajudar, como meu papel de babá me mandava fazer. Eu a coloquei para fora do caminho e chutei a máquina com força. Ela fez um barulho estranho e a Coca-Cola caiu no lugar indicado. Eu peguei, passei para ela e comprei uma soda para mim.
— Obrigada, mas o que foi isso? — ela quis saber.
— O que você quer dizer?
— Por que você me ajudou se me odeia tanto? — parecia que ela não era tão desligada e havia conseguido perceber minha antipatia.
— Eu não te odeio. Mas, se você não sabe, eu sou a sua babá. É minha obrigação te ajudar com qualquer coisa, isso inclui a máquina que “comeu o seu dinheiro”.
me deu um olhar de desgosto completo.
— Eu sinto muito se as pessoas acham que eu preciso de babá por causa da minha condição, então eu te libero do seu fardo. Sei muito bem me virar sozinha sem a sua ajuda.
— Eu não sou sua babá porque você está em uma cadeira de rodas e sim porque é novata no departamento. E você claramente estava precisando de ajuda agora.
Ah, tudo bem. Mas está livre da função mesmo assim. Não preciso da sua ajuda, sei me virar muito bem sozinha.
Ela se recuperou rapidamente da vergonha da minha resposta e saiu com sua cadeira de rodas de volta para a sala. A prova que ela podia se virar muito bem sozinha era que nem uma latinha havia conseguido comprar sozinha.
Eu bufei e abri minha soda, bebendo enquanto observava-a entrar no corredor que levava até a nossa sala.
já tinha percebido o quão pouco eu gostava dela e, por algum motivo, eu queria contar para ela que não era nada pessoal e que geralmente eu não gostava muito das pessoas. Eu não conseguia me sentir confortável com desconhecidos e a paralisia das pernas de me fazia lembrar a dor que eu havia causado a outra pessoa há muito tempo. Tocava todos os botões errados dentro de mim e as feridas que eu achei que estavam curadas pareciam inflamadas de novo.

Capítulo 3

“Cravos cor de rosa são afirmações como: ‘Eu sempre lembro de você’, gratidão, lembranças e pensamentos de felicidade.”

— Como foi o seu primeiro dia de trabalho? — foi a primeira coisa que minha mãe perguntou quando nos acomodamos no carro.
Eu conseguia lê-la muito bem por causa daquela pergunta: Você teve algum incidente por causa da prosopagnosia? Alguém te tratou mal por causa da deficiência? Ainda vai voltar amanhã ou preciso ligar para , avisando que você desistiu do trabalho?
— Como todo primeiro dia deve ser, eu acho. — respondi, tentando ser o mais evasiva possível, mas ela nunca entendia as entrelinhas.
— O pessoal te tratou bem?
— Eles são adoráveis.
— Você não parece muito animada.
Eu quase falei: “Você queria que eu saísse pulando de alegria?”, mas ela me daria aquele olhar abominável que ela sempre dava quando eu fazia piadas sobre a minha condição, então calei a boca. Minha mãe tinha mais animação do que eu e meu pai juntos.
— Mãe, eu fiquei horas na frente de um computador tentando entender metade das coisas que eu lia. Estou cansada, mas estou satisfeita.
— Qualquer coisa eu posso conversar com o e... — realmente como eu previa.
— Mãe. — eu parei seu discurso.
Odiava aquilo. Odiava como ela sempre queria facilitar tudo para mim como se eu não fosse capaz de lutar contra minhas próprias guerras. Odiava quando ela me tratava como se eu fosse quebrada. Eu conseguia entender sua preocupação constante e a culpa por não ter me salvado antes, mas ser tratada como uma inválida era pior do que tudo. Eu apenas não tinha coragem para contar isso para ela.
— Só foi o primeiro dia, eu vou me adaptar logo. Esse é o trabalho dos meus sonhos, sempre quis trabalhar naquele lugar. Vai ficar tudo bem.
— Desculpa, querida. Eu sei que exagero um pouco na proteção, — um pouco? — mas apenas quero apenas cuidar de você. É um passo muito importante que você está dando.
Em casa, meu pai me encheu de perguntas também. Sobre as pessoas, o ambiente, quais seriam as minhas funções e eu tentei responder cada uma com entusiasmo. Ele preparou minha comida favorita para comemorar e eu senti que tudo ficaria bem com a minha família sentada à mesa, rindo e brincando.
Há quatro anos aquilo parecia impossível para mim. Ser feliz sem poder mover minhas pernas? Perder tudo que eu havia conquistado? Como ser feliz cheia de dor e obrigada a viver à base de remédios e visitas constantes ao hospital? Há quatro anos eu havia mergulhado em um mundo de trevas e tristeza e eu era muito grata por ter conseguido superar e me tornar o que havia me tornado. Poderia parecer estranho, mas eu me sentia completa mesmo não sendo fisicamente assim. E me irritava quando alguém me tratava como se não fosse, mesmo se esse alguém fosse minha mãe.
***

— Você é incrível. — a mulher de botas até o joelho chegou ao meu lado, tirando a minha concentração do que fazia. .
— O que foi?
— Você é muito boa. Foram poucos dias e você já pegou completamente o ritmo. Seus traços são... Garota, eu não me arrependo nem um pouco de ter escolhido você.
Sarah, que trabalhava na baia ao meu lado, levantou para também olhar o meu trabalho. Quase corei com os elogios, mas não era minha primeira vez, então sorri e agradeci. Aqueles elogios eram diferentes dos comentários que eu recebia dos fãs. Aquelas pessoas eram experientes naquele ramo e sabiam realmente avaliar o meu trabalho.
— Por que eu tenho a impressão de que já vi esse estilo em algum lugar? Talvez na internet? Você posta coisas na internet?
— Na verdade, ela é... — eu cortei com um olhar de aviso, antes que ela revelasse o que não deveria.
— Eu me inspiro em muitos artistas da internet, por isso que meu traços parecem familiares. Uso muitas técnicas famosas também.
Sarah soltou um “Ah” como se tivesse entendido e me deu um olhar atravessado. “Não, . Eu não vou contar o que você quer que eu conte.”
— Você e o garoto novo foram ótimas adições para o nosso departamento.
Eu dei uma olhada no “garoto novo” ao meu lado. Ele parecia alheio a toda conversa, concentrado em seu trabalho com uma carranca profunda, enquanto desenhava alguma coisa.
Eu não sabia muito bem o que achar dele. Parecia o típico caso do cara rebelde com muita raiva acumulada, que precisava de terapia e que não fazia cerimônia para ignorar alguém ou usar cortadas clássicas. Ele não parecia ir muito com a minha cara, o que não fazia muito sentido porque ele nem sabia quem eu era, mas preferia manter distância. Uma ou outra vez eu pedia ajuda com alguma coisa, mas conforme os dias iam passando, eu consegui me adaptar bem, sem precisar dele.
Aprendi que Sarah sempre chegava atrasada trazendo novas ideias que precisavam ser colocadas em prática, como se tivesse passado a noite toda sonhando com elas. Nunca ficávamos parados, sempre havia um projeto para finalizar e ter a mente sempre ocupada era ótimo para mim.
Brian falava o total de cinco palavras por dia, sendo elas: Bom dia, boa noite e tchau. Nunca ficava tempo suficiente para que eu perguntasse alguma coisa e ouvia música alta enquanto trabalhava nos gráficos do vestuário. Sua personalidade condizia com a sua aparência.
era do tipo vibrante, às vezes séria, que gostava de contar histórias engraçadas dos outros departamentos e passava mais tempo fora da sala do que dentro.
Aprendi também que o ambiente de trabalho era sempre confortável e éramos muito livres para deixar nossa criatividade correr, enquanto estávamos com nossas mesas de desenho ou lápis e papel.
Desenhar sempre havia sido a minha paixão. Desde muito nova eu sabia o que responder quando perguntavam o que eu queria ser quando crescesse. E foi bom ter pais e um primo maravilhoso como que apoiaram meu sonho, mesmo quando tive que começar tudo do início.
— O nos chamou para uma reunião rápida daqui a dez minutos para falar sobre a competição. — avisou.
— Alguma dúvida de que vamos ganhar a competição esse ano?
— Finalmente vamos virar o jogo. — Sarah e comemoraram juntas.
— Competição? — quis saber. — Que competição?
— Todos os anos os departamentos competem pelo melhor índice de produção e a gente sempre fica atrás do departamento de design de cenários. Eles são os nossos maiores inimigos.
— Maiores inimigos? — Sarah falava como se estivéssemos em uma batalha como a dos jogos.
— Sim, nossos maiores inimigos. — ela confirmou, fazendo uma voz grave, como um general.
— E o que ganhamos como prêmio, se vencermos?
— Três dias nas Maldivas. — meu coração quase perdeu uma batida.
— Nas Maldivas? Aquelas Maldivas? — perguntei, incrédula. — Com as praias? Tipo, a equipe toda?
— Sim, garota nova. Por isso temos que dar o nosso sangue nesses trajes.
— Achei que dávamos o nosso sangue porque amávamos o nosso trabalho. — Brian entrou na conversa.
— Até parece que seu sangue não aquece quando você escuta “Maldivas”. — Sarah falou bem perto do ouvido dele e todos riram.
Arrumamos nossas coisas e subimos todos juntos, inclusive o mal-humorado Song. Aquela seria minha primeira reunião e eu me sentia um pouco nervosa, mas me tranquilizou dizendo que reuniões como aquela eram feitas quando recebíamos um grande projeto e que deveria ficar animada.
Assim que chegamos na sala, um homem de boina acenou para mim. .
— Olhando para você agora, parece que nasceu para esse emprego. — ele comentou, analisando meu crachá. — Está se adaptando bem? — acenei.
Junto com na sala, haviam mais duas pessoas que eu provavelmente deveria saber quem era.
— Eu trouxe o Jim e o Erick aqui — ele apontou para os dois homens enquanto falava seus nomes para mim e eu relaxei na cadeira. — porque eles são os responsáveis pela equipe de desenvolvimento desse projeto. Eles ficam alocados na nossa sede, mas vieram aqui apresentar o projeto.
— E onde estão os outros departamentos? — quis saber.
— Que bom que você perguntou, . Na verdade, pediram para que as reuniões fossem feitas individualmente com cada departamento. Como a maioria de vocês sabe, há cinco anos, design gráfico era um departamento único, mas achamos melhor separarmos as tarefas para cada equipe. Infelizmente, depois de tanto tempo usando esse sistema, percebemos o quanto a qualidade do conjunto é perdida quando cada equipe trabalha individualmente. Os elementos ficam muito divergentes.
— Isso quer dizer o que eu acho que é? — Sarah não conseguiu conter a animação na voz.
— Sim, esse projeto será distribuído entre as quatro equipes de design gráfico e aquela que apresentar o melhor resultado será escolhida para trabalhar com a equipe de desenvolvimento de Jim e Erick. — explicou.
Sarah, e Brian saltaram de suas cadeias, comemorando. Até Song mostrou o indício de um sorriso, afundando uma das bochechas. Ele tinha covinhas? Aquilo era muito curioso. Desviei a atenção dele rapidamente quando ele me pegou olhando.
— Fico feliz em vê-los tão animados.
— Finalmente vamos sair do porão escuro e sombrio que é desenhar bilhões de armaduras e vamos entrar no mundo colorido do design de personagens e cenários.
, essa foi a melhor ideia que você já teve.
— Finalmente vou poder realizar o meu sonho de desenhar um Brian cavaleiro, com grandes espadas e... — ele parou de divagar quando percebeu todo mundo olhando estranho para ele. — O quê?
— Então, — pigarreou. — voltando ao objetivo da reunião. Erick e Jim irão apresentar o projeto e vocês terão dois meses para desenvolver os principais gráficos e design. Agora que a equipe está completa, creio que não haverá nenhum problema.
— E o que acontecerá quando esse projeto for finalizado?
— É o nosso projeto piloto e se vocês conseguirem desenvolver bem, iremos pensar a partir daí. Tudo dependerá dos resultados. Erick e Jim, por favor.
Os dois rapazes se levantaram e começaram a apresentação do novo jogo a ser desenvolvido pela empresa. O roteiro, o ambiente e algumas outras coisas ainda estavam em andamento, mas com o que eles apresentaram, podíamos dar início ao trabalho.
Confesso que quando as luzes da sala foram acesas de novo e o projetor foi desligado, eu tinha tantas ideias que ansiava por um pedaço de papel e um lápis. O projeto era simplesmente incrível, com todas as ideias e a essência. Já podia imaginar as personagens, as armas incríveis e os cenários que poderíamos criar. Talvez eu devesse pensar menos como uma ilustradora e mais como uma desenvolvedora de design para games, mas só de me imaginar desenhando algo original que seria usado para um propósito muito maior, já me enchia de animação.
— Alguma pergunta? — perguntou, no final.
— Quando podemos começar? — todos riram da pergunta de .
— Que bom que gostaram, espero que possam dar o melhor de vocês nesse projeto.
Todos aplaudiram e na saída recebemos cada um uma pasta com todos os detalhes. Antes que eu passasse pela porta, segurou minha cadeira, me impedindo de continuar.
? — chamou. — Eu preciso segurar o elevador para você?
— Ela desce em um instante, preciso conversar com ela em particular. — falou e todo mundo saiu da sala e nos deixando sozinhos.
— O que foi? — perguntei, sendo direta.
— O que achou dessa primeira semana de trabalho? Tanta coisa aconteceu nesses últimos dias que eu nem tive tempo de conversar com você direito.
— Bem tranquila, na verdade. Eu gostei muito do nosso departamento e do trabalho que desenvolvemos. É um pouco diferente do que eu esperava, mas estou aprendendo muito.
— Algum... Você sabe?
— Contratempo por causa da prosopagnosia ou da cadeira de rodas? Não, nenhum. A empresa é bem adaptada.
— Depois de tantos anos ainda não consigo me acostumar com essa sua maneira direta de falar tudo, mas isso é bom, muito bom. E o que achou dos membros da equipe? — pensei um pouco.
— Cada um é muito focado em seu próprio trabalho e a é uma ótima supervisora. Não dá tempo de olharmos muito um para o trabalho do outro ou para conversas pessoais.
— E sobre Song Yunhyeong? — levantei uma sobrancelha para ele.
— O que tem ele?
— Vocês estão se dando bem?
— Que pergunta capciosa. Você não quis saber de ninguém em particular, apenas dele. O que você quer de verdade com essa pergunta? Consigo ver suas segundas intenções.
coçou o pescoço, parecendo envergonhado.
— É que... Bom... Eu pedi para te colocar para trabalhar em par com ele nesse projeto. — levantei uma sobrancelha para ele. — Quero vocês dois trabalhando e desenvolvendo juntos.
— O quê?

Capítulo 4

“O significado da flor Alstroemeria está geralmente ligado a amizade e lealdade simbolizando o forte vínculo que pode existir entre duas pessoas. Também pode simbolizar a felicidade advinda de uma amizade leal e é chamada de lírio dos incas. É uma espécie bastante durável, que simboliza devoção e relações duradouras.”

Todos nós descemos juntos, deixando conversando com . Pelo que eu ouvi pelas conversas do corredor, eles eram primos bem próximos. Não era de se admirar que uma pessoa com tão pouca preparação técnica tivesse conseguido aquele trabalho. A seleção pela qual eu passei havia sido muito rígida, com muitas etapas e muitos candidatos tão bem qualificados quanto eu.
— Então, — passou o braço pelos meus ombros e eu fiquei tenso. Ainda não conseguia me acostumar com aquelas demonstrações de afeto ou com muita proximidade. — você gostou da notícia?
— Participar de um projeto desse tamanho? — tirei o braço dela e me afastei um pouco fora do seu alcance. — Claro que estou animado.
— Sua cara de animação é igual a minha quando levo uma topada. — dei um sorriso amarelo para ela.
Podia não parecer, com suas roupas ousadas e botas longas, mas era quase quinze anos mais velha do que eu. Seus pais e os meus eram amigos de longa data e ela me conhecia desde muito novo. Tínhamos um relacionamento mais caloroso e com treze anos eu até achava que estava apaixonado por ela, chegando a me declarar de uma maneira patética, mas depois que tudo aconteceu comigo, ela se tornou uma amiga valorosa que me apoiou muito, principalmente quando meu pai me deserdou. Ela tentava cuidar de mim, mesmo eu a rechaçando a maioria das vezes e garantindo que ela ficasse longe dos meus assuntos.
— Eu estou feliz. — admiti. — Por dentro.
— Por dentro, tipo, quase nos átomos.
Revirei os olhos e não respondi mais nada.
Fomos liberados das nossas tarefas para nos concentrarmos no projeto. Ler os documentos, pesquisar e escrever todas as nossas ideias.
Pouco tempo depois que chegou, fomos chamados, eu e ela, para uma conversa em particular com . Provavelmente por sermos novatos, mas a cara de de quem havia chupado limão provava que talvez as notícias não fossem tão boas quanto eu imaginava.
, provavelmente o conversou com você sobre isso, não foi? — acenou, ainda parecendo infeliz. — Ele me mandou uma mensagem explicando a situação. — comecei a ficar tenso com o rumo daquela conversa — Bom, vocês dois são os nossos novatos e nós prezamos muito as ideias novas no nosso departamento. Ambos são jovens e cheios de talento, por isso que me deu a instrução de colocar vocês dois juntos como os responsáveis dos personagens do jogo.
Eu tentei entender o que aquilo significava e não sabia se ficava feliz ou incomodado.
— Isso quer dizer que...
— Sim, vamos trabalhar juntos. — completou a minha fala e eu fiz cara feia.
— Como vocês sabem, nosso jogo tem muitas influências dos jogos on-line orientais, justamente porque nós queremos começar a desenvolver algo com a mesma qualidade e design semelhante, porque é o que mais atrai e gera receita. Os personagens são baseados na hierarquia da realeza oriental e como ambos têm vivência com esse tipo de coisa, achamos muito bom que vocês dois pudessem trabalhar juntos nisso para fazermos um projeto bem feito. — terminou de falar com um sorriso, como se aquilo fosse a melhor ideia do mundo e eu comecei a duvidar se aquela “sugestão” havia vindo mesmo de ou dela mesma.
... — comecei falando, mas ela me interrompeu.
— Antes de você começar a reclamar, queria lembrá-lo de que estamos concorrendo à oportunidade de sermos responsáveis pelo design inteiro do que poderá ser o ganhador do melhor jogo do ano que vem. Todas as ideias que temos é para ajudar o nosso processo e não uma ofensa pessoal a ninguém.
— E você não acha que é muita responsabilidade nas mãos de pessoas que acabaram de entrar?
Tentei mudar minha estratégia, mesmo sabendo o quão resignada era. Ela não desistia tão fácil daquela ideia, não me daria o que eu queria que era poder desenvolver os personagens sozinho. Mesmo fazendo o papel de humilde, eu sabia que poderia ser responsável por aquilo sozinho e que seria apenas uma adição desnecessária.
— Sem superestimar nenhum dos dois, sei que podem fazer isso e, além do mais, eu estarei na supervisão o tempo todo.
— Então me deixe fazer isso sozinha. — falou pela primeira vez desde que entramos e assim que as palavras foram ditas em voz alta, eu levantei uma sobrancelha para ela. Ousada. Ela havia falado o que eu estava pensando o tempo todo, mas quem ela achava que era? Ela era tão boa assim?
, eu não duvido que nenhum de vocês dois poderiam assumir uma função sozinhos, mas temos apenas dois meses e duas cabeças pensam melhor do que uma. — respondeu. — Precisamos pensar em cada detalhe desse projeto e os personagens são um ponto importante, e só vamos alcançar o que queremos com o trabalho de vocês dois juntos.
Ela frisou a palavra “juntos” e eu fechei a cara ainda mais. Não teria jeito. Aquilo aconteceria, não importava como eu me sentia sobre o fato.
— Eu não posso ficar com outra parte? — tentei. — As armaduras ou os cenários...
— Você não vai perder a oportunidade de fazer parte de algo tão grande só por causa das suas péssimas habilidades de trabalho em grupo, vai? — era uma pergunta retórica. — Mais alguma pergunta?
— Se não tem mais o que fazer, só me resta perguntar: quais são as nossas tarefas?
O quê? iria desistir tão fácil? Minha carranca não foi suficiente para deixar claro que eu não queria trabalhar com ela?
, podemos conversar em particular? — pedi, ainda resignado.
— Não, tudo que você quiser dizer, pode falar aqui na frente da . Nos próximos meses, vocês trabalharão juntos todos os dias, comecem a compartilhar as coisas. — eu olhei para ela com toda minha raiva, mas sua expressão cínica não se alterou. — Mais alguma coisa?
— Não. — falei, entredentes.
— Ótimo. Pode sentar porque vamos demorar um pouco para discutir os detalhes. Quero que os dois estejam no mesmo nível, trabalhando em sincronia, como uma pessoa de quatro braços e duas cabeças.
Aquilo nunca iria acontecer. Eu poderia até ser babá da garota nova, mas nunca iria esperar que ela atingisse o meu nível. Nunca ficaria para trás, deixando minhas habilidades de lado para acompanhá-la.
Sentei na cadeira ao lado de onde estava. passou cada detalhe do que precisávamos fazer, mas, no geral, deixou a criação livre. Seria incrível se eu estivesse pensando e fazendo sozinho, mas ficar para trás para conseguir acompanhar outra pessoa? Seria um desperdício de tempo. Como se a função de babá não fosse suficiente.
— Espero muito que vocês vivam esse projeto e encarem como uma maneira de crescer aqui. É uma grande oportunidade logo no primeiro mês de vocês e poderão ganhar com muita experiência com esse projeto.
— Tenho certeza de que vamos dar o nosso melhor.
A Miss Simpatia já estava toda sorrisos para . Sandra Bullock ficaria no chinelo perto dela1.
— Que bom te ver assim empolgada, . Tenho certeza de que pode passar um pouco dessa animação para o Song.
— Vai sonhando. — murmurei baixo, mas sabia que as duas podiam me ouvir.
— Se vocês não têm mais nenhuma pergunta, estão liberados. Eu, Sarah e Brian estaremos de prontidão para tirar qualquer dúvida e ajudar com qualquer coisa. E aqui está a lista do que precisamos comprar essa semana. — ainda estava tão irritado que nem consegui reclamar por estar sendo feito de quebra-galho, como sempre. — Song, você pode levar a com você.
— Não há necessidade nenhuma que ela me acompanhe.
ainda está se familiarizando com as coisas por aqui e, se me lembro bem, você é o responsável por ajudá-la com isso. Além do mais, ela precisa conhecer os materiais que usamos no nosso departamento. Ela pode te ajudar com algumas dicas também.
Eu achei que não poderia ficar mais irritado com , mas estava enganado. O que eu faria com aquela garota pela cidade?
— Você tem alguma coisa contra? — perguntou, me encarando fixamente.
O problema não era ela ser cadeirante, mas o fato de que eu não queria ninguém atrasando o meu trabalho, querendo explicações e fazendo perguntas sobre tudo.
— Tudo bem, vamos.
Peguei a lista e o cartão da empresa nas mãos de e saí, esperando que a garota me seguisse. Nós andamos em silêncio para fora da empresa e só quando chegamos perto da estação de trem, ela falou alguma coisa.
— Song, porque você estacionou tão longe? — ela perguntou, me fazendo parar e encará-la com a testa franzida.
— Estacionei? — perguntei, confuso. — Do que você está falando?
— Do seu carro. Onde está o seu carro? — também parecia confusa.
— Nós não vamos de carro. — expliquei. — Quem disse que iríamos de carro?
Ela me olhou surpresa e sua expressão era quase cômica.
— O que você quer dizer com isso?
— Eu não dirijo. — declarei, sem vergonha.
— O quê? — ela parecia surpresa e não de uma maneira boa. — Nunca?
— Nunca. Algum problema em usar o transporte público?
— Não, mas é que... — ela apontou logicamente para a cadeira de rodas que estava sentada. Quase fiz uma cara de: “Eu te avisei”.
— Foi você quem insistiu em vir. — eu dei de ombros. — Agora já estamos aqui.
— Tudo bem. — ela suspirou.
Eu não estava sendo cruel e me recusando a dirigir por pirraça, mas eu realmente não dirigia. E se fizesse, com , nas condições que ela se encontrava e com o que aconteceu comigo no passo, provavelmente eu não conseguiria nem sair do lugar. Só de pensar, sentia o pânico tomando a minha garganta.
— Eu posso aceitar isso.
— Essa é a única opção. Ou você prefere atravessar a cidade arrastando a sua cadeira? — não respondeu, antes continuou seguindo o caminho até a estação.
Demorou um pouco, mas se mostrou extremamente ágil e experiente ao entrar e sair de transportes públicos.
— Fui treinada para todos os tipos de situação, principalmente para essa. — ela explicou quando percebeu a minha óbvia surpresa.
Nunca tinha estado em convívio com uma pessoa de cadeira de rodas. Ela não precisou da minha ajuda e nem ficou envergonhada com a situação, mesmo com todos encarando-a quando ela entrava. Sorria e cumprimentava todos como a Miss Simpatia que era. Pensei por um segundo que, se estivesse na posição dela, teria xingado todo mundo que olhasse diferente para mim.
Quando saímos do trem, ela pediu um minuto para atender um telefonema. Tentei não ficar irritado, já que era sua mãe. Fingi estar observando as pessoas na rua para deixá-la mais à vontade.
— Sim, mãe. — pausa para ouvir o outro lado da linha. — Sabe o que é? Eu estou fazendo algumas compras para o meu departamento hoje. — ela afastou o celular do ouvido quando a mãe começou a gritar do outro lado. Eu quase ri. Quase. — Eu não estou sozinha. Não, não é perigoso. Mãe, eu apenas– O quê? Mãe! O não tem nada a ver com isso. Mãe, eu estou bem e você está me fazendo perder tempo. Depois conversando, eu estou desligando. — ela desligou o celular rapidamente e pediu para continuarmos.
— Vamos começar comprando as...
— Eu conheço as melhores lojas e com os melhores preços para comprar o que pediu. — ela me interrompeu, mostrando confiança sobre o assunto.
— Eu faço isso desde que comecei nesse emprego.
— Mas a julgar pela direção que você queria tomar, você não conhece as mesmas lojas que eu. — antes que eu pudesse responder, ela continuou. — Eu não comecei a desenhar ontem, Song. Não sei há quanto tempo você faz isso, mas eu uso artigos de pintura e desenho desde que eu comecei a escrever e comecei a comprar minhas próprias coisas com doze anos.
— Você nem viu a lista.
— Mas a julgar com o que trabalhamos, dá para ter uma ideia. — não contestei. Na melhor das opções, ela estaria certa e, na pior, eu poderia dizer que eu tinha razão.
— Tudo bem, então. — eu saí andando, leia-se batendo o pé como uma criança, na direção que ela indicou.
Ei! Você pode ir mais devagar? — eu virei para trás e ela levantou as sobrancelhas. — O quê? Você quer que eu corra para te acompanhar?
— Lidere o caminho.
Eu a segui driblando sua cadeira entre os pedestres e a maneira que ela mostrava confiança em saber tudo era algo que eu nunca tinha tido. A familiaridade com os funcionários de todas as lojas que passávamos, a maneira como falava sobre os itens de artes e sabia distinguir algo bom entre tantos que eram mostrados e como ela conseguia convencer os vendedores me fez ficar, acidentalmente, curioso para saber quem ela era.
E isso não era bom para mim.


1N/A: Referência ao filme Miss Simpatia protagonizado pela atriz Sandra Bullock.

Capítulo 5

“No Japão feudal, uma rara e exótica orquídea, conhecida como a orquídea do samurai, representava bravura e coragem. Como essa orquídea crescia apenas em regiões montanhosas e inacessíveis, os samurais viajavam grandes distâncias e arriscavam a vida para conseguir coletar um exemplar, que, então, passava a ser carregado em uma gaiola especial como símbolo de intrepidez.”

O começo do projeto não foi como eu esperava. Ao invés de muita cor e desenhos incríveis, o que eu tive foram muitos papéis amassados, dedos manchados e estresse. Era realmente difícil trabalhar tendo que usar outra cabeça junto com a sua, principalmente uma dura que estava determinada a não aceitar nada que você opina e que tem um gosto completamente diferente do seu.
Eu e Song começamos o esboço dos personagens que seriam utilizados no jogo, mas tudo que fazíamos não era bom o suficiente ou não se igualava à qualidade que esperávamos.
— Você nunca jogou um jogo on-line, não foi? — neguei com a cabeça.
Song escreveu alguma coisa em um pedaço de papel e passou para mim.
— Tente jogar alguns desses jogos em casa. Esses são aqueles com os melhores gráficos e vai te ajudar.
Eu guardei o pedaço de papel dentro da mochila.
— Existe uma grande diferença entre personagens desenhados para quadrinhos e personagens desenhados para games, principalmente jogos on-line que possuem gráficos diferentes dos outros. — ele explicou. — Personagens para games possuem um design mais rústico. A palavra não é essa, mas os personagens de jogos on-line, precisam de traços mais finos.
— E isso não perde a qualidade que queremos?
— Não, porque essa é a qualidade esperada para um jogo. Você está desenhando lutadores e não personagens de uma história de amor. Precisa lembrar que isso não vai ser impresso, vai ser programado.
Aquele comentário que me fez pensar que talvez ele pudesse saber que eu escrevia uma webtoon quando era mais nova. Será que havia dito alguma coisa?
— Por que você diz isso?
— Seus traços. Vê isso aqui? — ele apontou para o próprio desenho e comparou com o meu. — Você desenha delicadamente, com traços angulares. Os personagens saem muito femininos. Tente mais retas. Lembre-se que isso vai ser projetado para uma tela. Nossos personagens são lutadores.
Eu fiz como ele ensinou e pela primeira vez ele aprovou um desenho que eu fiz. Era difícil admitir no começo, mas depois de quase uma semana trabalhando juntos, percebi o quanto Song era talentoso e ótimo professor. Mesmo com seu jeito temperamental e mal-humorado, ele era incrivelmente paciente para me explicar e me mostrar o erro, mesmo que precisasse repetir mais de uma vez, o que quebrava um pouco o conceito que eu tinha dele.
Sua técnica era incrível e sempre que eu via seus desenhos, tinha mais certeza de que ele havia nascido para fazer aquilo. Eu não queria, mas sempre que ele elogiava meu trabalho, me sentia feliz e mais confiante, como uma aluna sendo aprovada por seu mentor. O que era estranho, já que, fora do ambiente de trabalho, ele sempre me tratava com a frieza habitual e fazia questão de me ignorar sempre que eu tentava falar com ele fora da sala. Nada diferente do que eu esperava dele.
Mas seria estranho começar a simpatizar com ele? Uma pessoa claramente cheia de problemas e que não ia muito com a minha cara sem motivo aparente?
— Aqui, use isso para o traje.
Song me passou uma de suas preciosas Mars Matic 7001 e eu agradeci, ao invés de apenas ficar boquiaberta olhando para ele como uma idiota encantada.
Sempre que passava, ela levantava os polegares em “joinhas” e Song revirava os olhos, mas estávamos fazendo como ela havia mandado, trabalhando juntos.
Não sei quando isso aconteceu, mas minha mesa começou a se encher dos copos de isopor de café de Song e no final do expediente ele sempre tinha que limpar sua mesa das minhas embalagens de chocolate. Seu monitor estava coberto dos meus post it’s e metade de suas canetas Nankin Staedtler2 estavam na minha mesa.
Começou a se tornar um ambiente familiar, mesmo com os puxões de orelhas e olhares fuzilantes que eu sempre recebia dele por não fazer as coisas do jeito certo ou por ser lenta demais para o seu ritmo. Era óbvio que eu não era tão boa quanto ele e ainda precisava muito da sua ajuda para melhorar, mas ele nunca me diminuía ou me chamava de nomes ruins.

Vários dias depois de começarmos a trabalhar juntos, meu computador apitou o recebimento de um e-mail e eu cliquei para abrir. Era o tipo de e-mail que eu recebia ocasionalmente de fãs perguntando sobre o retorno da webtoon. Eu havia tirado todos os meus contatos da página, mas uma ou outra pessoa conseguia nos fóruns com os membros mais antigos.
Senti alguém me observando e virei para encontrar Song lendo o e-mail por cima dos meus ombros. Virei o monitor para longe dele, com o susto.
— O que você está fazendo?
— Eu estou lendo seu e-mail. — ele respondeu, cinicamente. — Nós não recebemos muitos e-mails individuais, então fiquei curioso para saber que tipo de coisa você estava recebendo e eu não.
— Isso é falta de educação. — reclamei, olhando feio para ele.
— Era você? — congelei.
— Do que você está falando? — me fiz de desentendida.
— Você era a escritora de Overdose?
Eu me joguei para trás, tapando a boca dele rapidamente com minhas mãos. Ele levantou uma sobrancelha para mim e quando eu senti sua respiração batendo na minha pele, tirei as mãos, ficando vermelha. Que liberdade era aquela? Eu estava ficando louca?
— Não fale alto. — pedi, nervosa com a possibilidade de outros estarem ouvindo a nossa conversa. Não queria responder às perguntas que viriam a seguir por parte dos curiosos que possivelmente haviam lido a minha história no passado.
— Por que não quer que ninguém saiba?
— Só... Por favor, não conte a ninguém. Eu prefiro que ninguém saiba que era eu.
Ele voltou ao próprio computador e abriu a plataforma onde a história ainda estava disponível na página on-line. Coloquei minha cadeira perto, enquanto ele ia rolando pelos meus antigos desenhos, abrindo capítulos aleatórios de várias temporadas diferentes.
— Seu estilo de desenho mudou um pouco, mas é definitivamente você. Agora tudo faz sentido.
— O que faz sentido?
— Como você é tratada aqui. Quer dizer, você é uma celebridade. Agora entendo como conseguiu o trabalho, mesmo sem uma faculdade ou sem cursos de grande prestígio. Até hoje está entre as webtoons mais lidas, mesmo sem um final adequado.
— Não é para tanto...
— Eu lembro como isso foi uma febre há o que, cinco anos?
— Começou há seis anos. — corrigi e ele pareceu fazer contas na cabeça.
— Você era muito nova e já desenhava muito bem. Realmente tudo faz sentido. Seus desenhos sempre pareceram muito familiares. Eles estão espalhados por toda internet, nos fóruns e sites específicos para desenho.
— Podemos não falar mais sobre isso?
— Você está desconfortável? — ele quis saber.
— Só não quero que ninguém descubra quem sou eu e venha com todas as perguntas de porque eu parei e pedir por mais um capítulo que nunca vai chegar.
— Pensando bem, os desenhos são seus, mas se me lembro, a história não parece muito a sua personalidade. Quer dizer, drogas, traições, assassinatos e apostas? A história era bem pesada. Não parece muito o seu estilo “boa moça”. Ou isso é tudo uma fachada?
Será que ele nunca mais esqueceria aquilo? Ele não conseguia entender o “Podemos não falar mais sobre isso?
— Você leu? — quis saber.
— Que jovem de 15 a 30 anos não leu isso há cinco anos? Fez sucesso no mundo todo. Os fóruns eram rápidos em lançar as traduções em vários idiomas.
Ele parecia ainda querer a resposta da pergunta.
— A arte e a história são minhas. Eu era jovem nessa época e pensava diferente de agora. Gostava de temas polêmicos e incomuns. Podemos seguir em frente e esquecer isso? — Song deu de ombros. — E, por favor, não conte a ninguém. Apenas e sabem porque, obviamente, eles são e .
— Não vou contar nada para ninguém. Todos nós temos um passado que não queremos mostrar.
Voltamos para os nossos trabalhos e, felizmente, a conversa sobre minha webtoon morreu ali.
Eu passei toda tarde daquele dia trabalhando no meu personagem. Foram muitas tentativas até acertar o eunuco perfeito para o jogo. Já tinha estudado a nobreza coreana por muito tempo na escola, mas precisei pesquisar bastante sobre trajes, chapéus e sapatos.
Provavelmente Song não sabia que eu havia sido criada no mesmo país que ele, porque continuava me repreendendo em outra língua, achando que eu não conseguia entender, apenas deixei-o se envergonhar ainda mais. Quando descobrisse, provavelmente ficaria sem graça e eu não perderia a reação dele por nada.
***

— Por que você não tenta o azul royal nas vestes dele? — Song perguntou, depois de analisar o meu desenho.
— A cor tradicional dos eunucos é o verde, a não ser pelos chefes que usam vermelho. — expliquei.
— Os ministros usam vermelho, então tente esse outro verde, se não podemos perder o nosso personagem no cenário de ar livre da casa real.
Song estendeu o braço por cima de mim e selecionou a cor para pintar a roupa do personagem. No processo de volta, ele acabou esbarrando em seu copo de café abandonado em cima da minha mesa e o derrubou. Eu empurrei a cadeira de rodas para trás rapidamente e, antes que eu pudesse gritar, o café, ainda quente, caiu no braço dele. Song soltou um palavrão alto em outra língua.
— Você está bem?
— Estou. — ele inspecionou o braço, que estava começando a ficar vermelho onde o café havia caído. — Você se queimou? Pegou em você?
— Não, eu consegui sair a tempo. Sinto muito por não ter conseguido avisar rápido o suficiente. — pedi, me sentindo mal pela queimadura dele. O café estava muito quente e, provavelmente, criaria bolhas.
— Tudo bem. A culpa foi minha, de qualquer jeito.
— Você precisa ir ao banheiro lavar o local com água gelada.
Enquanto ele saía para ir ao banheiro, pedi a Brian para comprar uma pomada para queimaduras, enquanto ajeitava a bagunça que o café havia feito. Ele retornou quase no mesmo momento que Song. Eu agradeci e pedi que meu companheiro de trabalho sentasse e estendesse o braço.
— O que é isso? — ele perguntou, sem fazer menção de esticar o braço.
— Pomada para queimadura.
— Eu passo. — continuei esperando que ele estendesse o braço até ele fazer. Passei a pomada levemente pelo local, agora, totalmente vermelho. — me avisou que o café iria me fazer mal. Prejudiquei algum desenho?
— Não, está tudo...
, só você para derreter o coração de gelo do Song.
Um homem de cartola e uma mulher entraram na sala, e alguém que eu não conseguia reconhecer de longe. Song recolheu o braço na velocidade da luz.
— Sabia que seria ótimo vocês dois trabalharem juntos.
Franzi o cenho para a mulher. falou “” com os lábios e minha careta aumentou. . Pelo que eu me lembrava, estava vestindo uma calça jeans e botas, não um terninho cinza. Eu odiava quando as pessoas trocavam de roupa durante o dia, porque me deixava confusa e perdida.
— Menos, . — Song falou, confirmando que era . Apenas quando ela se aproximou, eu senti seu perfume familiar e vi a pinta. .
— Acabamos de vir de uma reunião com os chefes. — falou, justificando apenas para mim o motivo de ter mudado de roupa.
Eu tendia a desconfiar que só usava seus chapéus extravagantes por causa de mim e isso me fazia gostar ainda mais do meu primo e pensar na família incrível que eu tinha.
— Alguma notícia boa? — entrei na conversa, menos tensa.
— Não, — se jogou em uma cadeira, suspirando. — apenas protocolos e muitas documentações que eu não entendo. Sinto falta de poder desenhar livremente. Vocês deveriam aproveitar cada segundo desse período da vida.
— Você não...
O barulho do telefone de Song vibrando em cima da mesa interrompeu a fala de . Todos nós esperamos ele pegar o celular, mas Song ignorou como se não tivesse ouvido nada. A chamada acabou, mas logo o celular voltou a vibrar. O nome “Mãe” apareceu na tela. Ele virou o celular com a tela para baixo e deu um olhar expressivo para ele, o que ele ignorou também.
O clima entre nós ficou automaticamente tenso de uma maneira que eu não conseguia explicar, porque não fazia ideia do que estava acontecendo. e Song pareciam se comunicar pela mente, enquanto olhavam um para o outro.
— Bom, eu só vim ver como a estava. Preciso voltar para a minha sala onde o meu trabalho espera por mim. — falou, colocando um fim no clima estranho que se instalou e se despediu de mim com um beijo na cabeça.
também se aprontou para sair, ainda olhando para Song de maneira questionadora.
— Atenda o celular. — ela falou, baixo.
— Isso não é da sua conta. — ele respondeu em alto e bom som.
Aquela definitivamente não era uma situação que eu gostaria de me intrometer.


1Marsmatic 700: Marca de caneta técnica usada para desenho.
2Nankin Staedtler: Marca de caneta técnica usada para desenho.

Capítulo 6

“Os Cravos de cor roxa ou púrpura significam a ausência de capricho, solidão e inconstância.”

Mesmo quando eu cheguei em casa, meu celular continuava tocando pelo que parecia ser a milésima vez. Minha mãe não conseguia entender que eu não queria falar com ela e provavelmente não iria desistir até eu atender. Mesmo isso significando que ela iria ligar a noite toda.
— Oi, mãe. — atendi, a contra gosto.
Você não viu que eu estava ligando? — em qual das um bilhão de vezes? Difícil não ter visto, já que eu estava deliberadamente te ignorando e você não entendeu os sinais.
— O que aconteceu?
O que aconteceu é que meu filho vem me evitando há mais de uma semana. — ela respondeu, em coreano, mostrando o quão irritada estava.
— Mãe, eu estou trabalhando. Estou ocupado, tentando avançar com a minha vida. — expliquei, tentando me manter calmo, mas com a paciência por um fio.
Como consegue sempre estar em contato com a família dela?
— Talvez porque ela queira estar em contato com a família dela? — respondi, soando mais grosseiro do que pretendia.
Filho, por favor.
— Por que está me ligando, mãe? — cortei a conversa fiada.
Eu quero saber como você está. Você é meu único filho e eu fico dias sem nem ouvir sua voz. Isso não é justo, Yunhyeong-a.
— Mãe, eu não estou com cabeça para isso hoje. Acho melhor finalizarmos a ligação. — era por aqueles e vários outros motivos que eu não gostava de atender suas ligações. sempre tentava me manter em contato com a minha família, sendo a intermediadora, e eu não conseguia odiá-la por tentar. Mas odiava minha mãe por forçá-la a fazer aquilo. Era ruim para todos nós.
Depois de dois anos, tudo que eu queria era que a minha mãe esquecesse da minha existência e continuasse com sua vida, contando para todos que eu estava simplesmente estudando no exterior e que não voltaria mais para casa. Queria que ela parasse de tentar me fazer viver como era antes, me fazer voltar a ser quem era antes.
Eu só quero saber como você está. Está passando alguma dificuldade? Está comendo bem? Precisa de alguma coisa?
— Alguma coisa do pai? Não, não preciso.
Yunhyeong-a... — sua voz mudava quando ela falava sobre aquilo comigo, como se quisessem ponderar a situação de alguma maneira.
— Mãe, não vamos fingir que você não espera ele sair para me ligar porque tem medo dele. Porque sabe que ele me odeia e que me quer o mais longe possível da Coreia.
Ela fungou do outro lado da linha e o som atingiu meu coração já partido. Eu odiava fazê-la chorar, mas eu só conseguia fazer aquilo.
Eu sinto sua falta, filho.
— Eu estou aqui, mãe.
Sinto falta de quem você era. Nunca achei que iria fazer isso, mas dói muito. Quero você aqui, onde é o seu lugar. Se você pedir perdão pelo que aconteceu, talvez ele... Talvez vocês...
— Isso nunca vai acontecer, mãe. — interrompi sua linha de pensamento. Não podia deixá-la pensar que aquilo realmente iria acontecer um dia. — Eu não sou mais essa pessoa. Nunca mais serei. Eu vou desligar agora antes que essa conversa fique pior.
Ele também sente sua falta, sabe? — ela falou baixinho antes que eu desligasse. — Seu pai pode parecer uma péssima pessoa, mas ele ama você também.
— Eu e o pai temos que viver com a culpa do que fizemos e com as consequências. Se precisar de alguma coisa, deixo você saber.
Desliguei antes de ela falar alguma coisa e me deixasse ainda mais irritado.
Eu odiava falar com minha mãe no telefone porque me fazia lembrar do passado que eu odiava e tentava esquecer. Me fazia lembrar que eu não merecia aquilo. Não merecia estar bem, ter tudo ou ser feliz depois do que havia feito para tantas pessoas. Para minha família e para outras famílias. Do que eu tinha sido capaz de fazer por conta da minha irresponsabilidade.

Depois do banho, ainda com a toalha amarrada na cintura e com o cabelo úmido, eu me encarei no espelho. Odiava o que estava refletido ali. Eu não havia mudado nada em quatro anos. Os furos na orelha estavam quase tapados e o corte de cabelo era um pouco mais curto, mas o mesmo rosto que odiava tanto estava ali. Muitas pessoas diziam que eu era muito parecido com meu pai e isso me fazia detestar meu rosto ainda mais. Os olhos brilhantes, pequenos e puxados e os lábios levemente cheios. Muito tempo havia se passado desde que eu havia tirado vantagem do meu rosto ou da minha aparência como um todo.
Dei as costas para o espelho e voltei para o quarto, vestindo minhas roupas e deitando na cama. Eu sabia que não dormiria tão cedo porque o maior inimigo do homem são seus pensamentos.
Eu estava esperando o Angry Birds carregar quando uma mensagem de um número desconhecido apareceu no meu celular. Ninguém tinha meu número, a não ser , e minha mãe – meus únicos contatos. Quem estaria falando comigo? Ainda mais naquele horário.
Número desconhecido: Oi, boa noite. Você pode me lembrar o código daquele verde que você me pediu para usar?
Claro, quem mais poderia ser a não ser ? Fiquei tentado a não responder, mas depois de alguns minutos percebi que seria crueldade da minha parte, já que era sobre o trabalho.
Song: Como você conseguiu esse número?
Número desconhecido: Foi com a , mas isso é importante?
Número desconhecido: Eu preciso realmente do código, não consigo achar.
Salvei seu número como “Enxerida” no meu celular.
Song: Você trabalha em casa? Já é tarde.
Enxerida: Por favor?
Song: #03BB85
Esperei pela resposta, mas ela não veio. apenas leu a mensagem e não se deu nem ao trabalho de responder. Quase deixei para lá, até porque nem de conversar por mensagem eu gostava, mas era muita falta de educação da parte dela nem agradecer o que eu havia feito.
Song: Não vai agradecer?
Ela demorou um pouco para responder.
Enxerida: Desculpa, muito obrigada. Agradeço também pelos jogos que recomendou. Ajudaram muito.
Decidi deixar o celular de lado e assistir a um filme qualquer na televisão até ser vencido pelo cansaço e conseguir pegar no sono, como eu fazia todas as noites desde que o meu vício tinha parado.
Quando a insônia começou, minha mãe conseguiu rapidamente a solução: remédios. Eu tomava tantos que acabei me viciando neles. Só conseguia dormir dopado e algum tempo depois aquilo cobrou seu preço. Foram os piores anos porque os remédios apenas adormecem o copo, mas não a mente. A insônia ia embora, mas os pesadelos apareciam com força, como se sugasse a minha alma. Eu tinha medo de dormir, de acordar, de me olhar no espelho e até de mim mesmo. Eu entrava em desespero quando olhava para as minhas mãos. Minha pele ficava vermelha e machucada pela quantidade de vezes que esfregava para tirar o sangue que só eu via.
Consegui superar a maioria dessas coisas quando fiquei preso, mas ainda tinha medo das minhas mãos e dos meus pés. Ainda tinha pânico de qualquer coisa que pudesse me fazer perder o controle de mim mesmo. Nunca seria capaz de pegar em um volante novamente.
Perto das duas da manhã, o sono chegou e quatro horas depois eu fui acordado pelo despertador. Eu me sentia horrível pela noite mal dormida, mas ainda assim coloquei minhas roupas de corrida e corri o mais longe que consegui, ficando sem ar e coberto de suor. Eu gostava quando meu corpo ficava exausto e minha mente se tornava mais alerta.
Pulei o café da manhã e cheguei mais cedo ao trabalho, começando meus desenhos com o departamento. Antes disso, limpei minha mesa de todas as embalagens de Ferrero Rocher, M&M’s e Snickers que não eram minhas. comia muita besteira e seu lixo sempre acabava do meu lado, no meio das minhas coisas, assim como meus copos acabavam sempre do lado dela.
Enquanto desenhava sozinho a roupa real de um dos príncipes do nosso jogo, me peguei um par de vezes levantando a vista para pedir opinião ao fantasma dela, o que me fez perceber o quanto eu estava habituado à presença dela. Tirando os momentos que ela errava coisas simples, trabalhar com ela não foi um incômodo ou um fardo, como eu havia achado no início. Não muito.
— Você chegou cedo. — ela tomou seu lugar e ligou o computador.
— Você também chegou cedo.
— Precisava terminar esses eunucos antes da nossa reunião de hoje. Por falar nisso, obrigada mesmo por ontem. Foi uma urgência. Eu procurei em todos os lugares pelas minhas anotações, mas não encontrei a cor.
Pelas olheiras, ela também havia dormido mal, mas provavelmente seu motivo era completamente diferente do meu. Dava para ver que ela tinha se afundado no trabalho na noite anterior e por isso dormiu pouco, mas aquilo não a deixava mau humorada, como eu. Parecia que ela estava satisfeita por ter ficado até tarde trabalhando.
— Você gosta mesmo desse trabalho, não é? — perguntei, ultrapassando alguns limites.
— Não é um trabalho para mim. É mais como uma diversão.
Seu sorriso era tão brilhante que eu comecei a acreditar que ser carismática e alegre o tempo todo era algo da sua personalidade e não forçado. Ela era a genuína Miss Simpatia.
Qual foi a última vez que eu consegui sorrir daquele jeito? Eu já tinha sido tão feliz antes como ela parecia?
— O que foi? Tem algo no meu rosto? — desviei os olhos, rapidamente.
— Não, apenas divaguei.
— Desculpa, o sempre diz que eu sou um pouco chata e que falo demais. — não comentei mais nada, mas ela continuou conversando e eu lembrei porque preferia ficar sozinho. — O braço está melhor? — acenei. — Você usou a pomada?
— Ele já está bom. — olhei para o meu braço, com o curativo que havia feito às pressas antes de sair de casa. Não quis dizer, mas a pomada havia ajudado muito com a ardência e a pele levemente encolhida estava muito melhor naquela manhã. — Eu me curo rápido.
— Bom dia, pessoas lindas do meu departamento. — entrou.
— Comeu palhacitos no café da manhã? — reclamei.
— Pessoas lindas e Song. — ela fez cara feia e eu dei um sorriso amarelo.
— Bom dia, . — sorriu gentilmente para .
— Oro para trabalhar com mais funcionários como você, querida. No lugar desse chato mal-humorado, que não tem educação.
Aish1. — fiz cara feia para .
— Ei, garoto novo! — minha chefe chamou minha atenção. — Cuidado com a boca perto da . Ela consegue entender essas bobagens que você fala em coreano.
Olhei, confuso, para e ela apenas deu de ombros, como se não fosse nada, e ainda se atreveu a me dar um sorriso convencido.
— O que ela quer dizer com isso?
— Eu falo coreano. — ela disse simplesmente como se fosse a coisa mais normal do mundo. Aquilo significava que ela tinha entendido todas as vezes que eu havia falado algo ruim com ela em outra língua?
— Como isso aconteceu? — quando eu não sabia o que falar, eu fazia perguntas idiotas. Como naquele momento.
— Eu praticamente fui criada na Coreia. Por que achou que fomos colocados juntos para desenvolver os personagens?
— Então quando disse que tinha vivência era...
— É, vivência mesmo. Ambos estudamos lá, então temos mais familiaridades com a história. — tudo fazia sentido sabendo daquilo.
— Mas você não tem nenhuma característica oriental e nem sotaque.
— Bom, a discorda com relação ao sotaque. E eu não sou coreana. Apenas morei lá. — eu ainda estava surpreso.
— Onde você morava?
— Passei grande parte da minha infância morando na ilha Jeju. — soltei o ar.
Longe, então não tinha perigo dela conhecer a minha história que foi televisionada por toda cidade de Busan. Provavelmente ela me odiaria se descobrisse quem eu era e o que havia feito no passado. O meu ódio por mim mesmo e o do meu pai já eram suficientes.
Fiquei em silêncio pelos momentos seguintes, me concentrando em terminar meus personagens e envolvido em meus próprios pensamentos.
— Você está com raiva de mim? — perguntou baixinho, alguns momentos depois.
— O quê? Por quê?
— Quer dizer, você parece estar com raiva o tempo todo, mas agora você parece profundamente irritado e eu acho que a culpa é minha. — tentei desfazer a carranca, mas era como uma máscara que me caía muito bem. — É por que não disse nada antes?
— Não estou irritado.
— Quer dizer que essa sua cara feia é o seu habitual? — eu levantei uma sobrancelha com a ousadia dela. Abri a boca para falar alguma coisa, mas no mesmo momento lembrei que ela entendia tudo. — Pode falar de mim agora em qualquer língua que quiser. Eu vou entender de qualquer jeito.


1Aish: Expressão coreana informal para demonstrar descontentamento com alguém.

Capítulo 7

“O gerânio vermelho significa consolo e é muito usado para presentear pessoas que precisam de ajuda.”

— Onde está Brian?
Já estávamos reunidos nos preparando para a reunião quando perguntou de repente o que, na verdade, ninguém sabia responder. Todos demos de ombros.
— Ele apareceu por aqui hoje?
— Eu não me lembro. Ele geralmente é tão silencioso que nem notamos sua presença. — comentei.
— Ou sua falta. — Sarah completou.
— Vou tentar ligar para ele.
Dez minutos depois, continuávamos tentando entrar em contato com Brian e não tínhamos nenhuma resposta. Brian não estava em lugar nenhum. Nem no banheiro com dor de barriga, nem no prédio, nem em casa, nem com o telefone da namorada e em nenhum outro lugar.
— Brian está de brincadeira comigo? — o rosto de começou a ficar vermelho de raiva. — Se não fizermos essa reunião hoje, ficaremos com o cronograma completamente atrasado. Eu marquei essa reunião desde a semana passada, ainda fiz questão de enviar um aviso para todos. precisa desse relatório para hoje.
— Deve ter acontecido alguma coisa, . — tentei mediar.
— Para ele não ter avisado nada? É muita falta de responsabilidade.
— Podemos deixar a parte dele para amanhã.
— Sarah, você sabe como cada parte desse projeto é única e crucial. Ele precisa estar aqui para compartilhar o que tem.
— Podemos procurar na nuvem o que ele já fez.
— Brian usa o computador pessoal porque é o único com uma placa de vídeo e processador bons o suficiente para a programação dele. — Sarah me explicou.
— Então vamos procurar por ele. — Song deu a solução mais óbvia e todo mundo olhou como se ele fosse louco. — Sem ele aqui, não podemos fazer nada. precisa levar o relatório ainda hoje. Já estamos em cima do horário. Vamos atrás dele ao invés de ficarmos parados discutindo.
— Isso é insano. — Sarah falou, se jogando em uma cadeira próxima e passando a mão pelo cabelo, frustrada.
— Não sabemos onde ele pode estar. Pode ser uma cafeteria, na biblioteca ou em qualquer outro lugar da cidade.
— O que a mãe dele disse? — eu perguntei, tentando pensar em uma maneira mais ágil de encontrarmos Brian.
— Que ele havia ido encontrar Marie antes de voltar do almoço.
— Quem é Marie?
— A namorada dele. — Song esclareceu, com um tom de raiva na voz.
— Mas eu já liguei para ela e nada. — Sarah falou com o celular na orelha. — Nenhum dos dois atende.
— Vamos ter que ir até a casa dela? — grunhiu de frustração.
— Eu vou matar o Brian.
, cuidado com o coração. — eu vi a hora de explodir a cabeça de Song pelo comentário. — Eu, e Sarah podemos ir até a casa dela. Você fica aqui para controlar o com relação ao horário ou caso o Brian apareça.
— Não acredito que vamos fazer isso.
Dei um sorriso interno quando Song me colocou nos planos e não deduziu que eu ficaria. Fomos nós três no carro de Sarah e eu aguardei enquanto os dois subiam para procurar, mas pelas expressões desapontadas na volta, nenhum resultado.
— A vizinha de Marie disse que Brian esteve aqui mais cedo, mas nenhum dos dois apareceu pelo resto do dia.
Os dois entraram no carro e Sarah deu a partida.
— Para onde vamos? — quis saber.
— Para a boate onde Marie trabalha.
— Eu mesmo quero bater no Brian quando eu o encontrar. Que perca de tempo.
— Você mesmo que concordou em procurá-lo. — falei e Song me fuzilou no banco de trás pelo espelho retrovisor.
— Porque eu achei que iríamos encontrá-lo dormindo pelado na casa da namorada e não que iríamos persegui-lo pela cidade. Aliás, como um cara de quase trinta anos ainda mora com os pais nesse país?
— Você tem alguma coisa contra isso?
Se Song fosse o Ciclope, eu já teria virado cinzas com o olhar que ele me deu após a minha pergunta.
— Calma, pombinhos. Vamos concentrar nossa raiva no Brian.
O Sol tinha acabado de se pôr, mas a fila da casa noturna onde Marie trabalhava já dava voltas na rua. Minhas palmas começaram a suar com a perspectiva de entrar em um lugar tão lotado. Meu maior medo era encontrar alguém que eu deveria conhecer ou ser apresentada a muitas pessoas diferentes. Teria que gravar muitas peças de roupas, cheiros e vozes ao mesmo tempo. Só de pensar nisso, minha cabeça rodava.
— Eu vou ficar no carro? — perguntei, com esperança.
— Vamos precisar de você para conseguir entrar mais rápido.
Suspirei pesadamente enquanto Sarah tirava minha cadeira de rodas do porta-malas e me ajudava a descer. De acordo com o segurança na fila de prioridade, foi informado que apenas um acompanhante poderia entrar comigo e, como Song tinha melhores habilidades para encontrar Brian, ficou decidido que ele entraria comigo.
Antes que eu conseguisse piscar, Song já tinha sacado a carteira e pagado nossas entradas. Recebi um carimbo em formato de lua na mão e nós entramos. Não tínhamos tempo para reclamar. O lugar estava cheio, a música alta demais era horrível e a massa de gente andando para lá e para cá tirava todas as minhas esperanças de encontrar Brian. Metade das pessoas usava óculos e um terço delas tinham a mesma aparência de Brian. Era um pesadelo para mim.
— Podemos nos separar e... — Song começou a sugerir, mas eu o parei.
— Não. — eu segurei a mão dele, rapidamente, com o coração disparando. — Não me deixe sozinha.
— O que aconteceu?
— Eu tenho um certo tipo de fobia social.
Geralmente a prosopagnosia não me impedia de fazer nada e eu já estava acostumada com ela, mas quando era lançada em situações fora do meu habitual, era uma tortura. Eu era boa distinguindo alguns traços particulares das pessoas, mas precisando enfrentar tantas pessoas, minhas habilidades escorriam todas pelo ralo.
— Tudo bem. — ele soltou a mão da minha. — Vamos juntos.
Era óbvio que não conseguiríamos encontrar Brian na multidão, mas Song pediu para que eu ficasse de olho – mal sabia ele que havia pedido para a pessoa errada – enquanto ele guiava minha cadeira de rodas por entre a multidão, pedindo licença para passagem a cada três segundos.
Chegamos ao bar e um dos bartenders veio nos atender.
— Boa noite, o que vão beber?
— Na verdade, estamos à procura de Marie.
— Ela não está trabalhando aqui essa noite. — ele virou para atender outra pessoa, vendo que não conseguiríamos nada.
— Ela trabalha aqui toda noite. — Song retrucou.
— Cara, eu não sou a pessoa certa para você perguntar isso. Eu comecei o meu turno agora, não posso perder tempo com coisas que...
Song bateu uma nota de cinquenta em cima do balcão com força e quase todo mundo à nossa volta pulou com o susto, interrompendo qualquer outra desculpa que ele pudesse dar.
— Será que isso compra o seu tempo? — o bartender olhou para ele com desdém, mas pegou a nota e guardou atrás do avental.
— Eu não estava aqui quando a confusão aconteceu. — ele começou explicando.
— Que confusão? — eu perguntei, incentivando-o a continuar contando.
— Da Marie e do namorado lunático dela.
— Eles estavam aqui?
— Meu turno começou há trinta minutos, mas eu posso encontrar alguém que estava aqui. Só vai demorar um pouco porque ele fez uma pausa para fumar há dois minutos.
— Vamos esperar.
O bartender colocou outro em seu lugar e saiu. Song parecia um pouco nervoso, mas notou que algo estava me incomodando.
— O que há com você? — ele perguntou, diretamente.
— Comigo? O quê?
— Sua cara está... Estranha. — queria abrir um buraco no chão e sumir daquele lugar. Aquela era uma das situações mais constrangedoras que eu já havia passado.
— Será que... Podemos ir ao banheiro rapidinho?
Senti meu rosto começar a esquentar. Estava apertada desde que havíamos chegado à casa de Marie, mas eu não estava mais conseguindo aguentar. Achei que não demoraríamos muito, mas ali estávamos. Podia jurar que Song também parecia aliviado por sair do bar.
A fila na frente do banheiro era enorme e para as garotas que me olhavam feio quando ousei ficar na frente, não existia preferencial. Achei, realmente, que molharia as calças se demorasse demais.
? — Song perguntou, quando me curvei um pouco para frente, tentando segurar mais. Se pudesse, cruzaria as pernas, para aliviar.
— Eu meio que estou me mijando agora. — falei, entredentes.
Aish.
Song colocou o celular que estava usando no bolso e se curvou, passando o braço pela parte de trás dos meus joelhos.
— O-O que você está fazendo? — ele me tirou da cadeira de rodas e começou a andar comigo no colo para a saída. — Você está maluco? Vão roubar a minha cadeira!
— Você prefere mijar nas calças na frente de todo mundo? — eu segurei em seus ombros para não cair.
— E o bartender?
— Já avisei a Sarah, ela está entrando e vai falar com ele.
Song praticamente correu comigo para fora e me levou para a primeira loja de conveniência que encontrou aberta. Ele foi direto para o banheiro e me colocou em cima de uma privada com a tampa abaixada. Ele estava ofegante e eu acho que minha cabeça explodiria de tanta vergonha que sentia naquele momento.
— Eu... — ele tomou fôlego mais uma vez. — Posso ajudar com mais alguma coisa? Você precisa que eu...
— Por favor, saia. — eu fechei a porta da cabine com força na cara dele.
— Se precisar de alguma...
— Por favor, saia do banheiro. Fique mais longe possível. — eu quase gritei e apenas quando eu ouvi a porta do banheiro batendo, eu consegui me recuperar e fazer xixi. Cogitei a possibilidade de ligar para a minha mãe ir me buscar para não precisar mais encarar Song, mas aquilo seria ainda mais humilhante. Ela faria um escândalo e nunca mais me deixaria sair de casa.
Provavelmente Song ouviu o barulho da descarga, porque logo depois que eu acabei, ele deu pequenas batidas na porta.
— Eu posso... — ele pigarreou, parecendo tão envergonhado quanto eu. — Você já acabou?
— Sim. — falei o mais baixo que pude, como se aquilo fosse amenizar o meu problema.
Song entrou, sem conseguir me encarar. Antes de sairmos, ele ainda me colocou na frente da pia para que eu pudesse lavar as mãos e secar. O mais impressionante era que as bochechas de Song estavam avermelhadas, mostrando que ele estava tão envergonhado quanto eu com aquela situação.
Na nossa volta, eu apenas enterrei o rosto em sua camisa, com vergonha demais para olhar para qualquer lugar. Encontramos Sarah perto do seu carro.
— O que aconteceu com vocês?
— Um imprevisto. — Song disse, simplesmente.
— Já descobri onde Brian se meteu. Vamos. — levantei a cabeça, rapidamente.
— Onde ele está? — eu perguntei.
— No hospital.
— Ótimo, porque senão eu mesmo teria mandado ele para lá. — Song ameaçou.
— E a minha cadeira de rodas? — perguntei, quando Song me colocou no banco da frente do carro.
— Não se preocupe, ela já está guardada. — Sarah explicou e eu agradeci com um aceno.
Jogando charme para o bartender, Sarah conseguiu arrancar a história dele. Aparentemente, Brian havia seguido a namorada até o trabalho na hora do almoço porque tinha um cliente dando em cima dela e não queria deixá-la em paz. De acordo com os funcionários, ele ficou esperando o cliente aparecer e entrou em uma briga com ele, mesmo nunca tendo batido em alguém na vida. Obviamente, Brian havia levado a pior e estava no hospital, todo ferido. Ouvir isso fez com que Song ficasse ainda mais irritado.
Ligamos para e a atualizamos no caminho para o hospital. Claro que isso a fez ficar ainda mais possessa e gritar com todos pelo telefone de Song.
Assim que chegamos, Sarah conseguiu as informações de onde Brian estava e Song disparou na frente. Tentei acompanhar o ritmo, mas quando entrei na sala, Song já segurava Brian pelo colarinho. A garota ao lado da maca, chorava.
— Song! — eu segurei a barra de sua camisa e o puxei para trás. — Larga ele. Estamos perdendo tempo.
— Brian, você ficou maluco?
Sarah acertou um tapa na cabeça de Brian. Ele não parecia em boas condições, mas estava inteiro. Puxei novamente a camisa de Song e ele soltou Brian, que resmungou ao cair de volta na maca.
— Vamos. — Sarah empurrou Brian até ele levantar.
— Ele está ferido. Ainda vai receber tratamento. Estamos esperando a enfermeira... — a mulher – provavelmente Marie – falou, fungando.
— Ele parece muito bem para mim. — comentei.
— Vamos logo, idiota.
— Eu te ligo, amor. — Brian levantou com dificuldade e nos seguiu, mancando. Seu rosto estava ensanguentado e ambos os olhos estavam roxos.
— Com que celular, idiota?
— Droga. — pela primeira vez, ele notou que estava sem celular. — Saí tão apressado que acabei esquecendo o celular na casa de Marie.
Apenas olhamos para ele com desprezo por conta da sua irresponsabilidade.
No carro, Brian sentou na frente eu fui atrás, com Song, para que ele não acertasse Brian enquanto não estávamos olhando. Fiz uma chamada para , avisando que estávamos chegando.
— Diga a esse... — vários palavrões. — que eu vou... — mais palavrões. Me despedi e desliguei rápido. Todo mundo tinha ouvido, não precisei repetir o recado.
— Se você não quebrou nada, vai ter o prazer de quebrar.
— Se ela não te demitir.
— Desculpa, pessoal. A situação acabou saindo completamente do controle e eu esqueci da reunião de hoje. — ninguém respondeu e eu guardei o celular no bolso.
Só depois de toda situação resolvida e estarmos indo para a empresa, eu pude sentir minhas mãos ardendo e virei as palmas para cima para descobrir que ambas estavam arranhadas. Song segurou uma delas, inspecionando os arranhões, antes que eu visse.
— Foram as rodas. — expliquei. — Acontece algumas vezes quando me esforço muito, mas estou bem.
Tirei minha mão da dele apressadamente e procurei outro lugar para olhar. Era a segunda vez que ele me tocava tão próximo e aquilo era desconcertante. Nosso relacionamento não era daquele jeito.
— Obrigada. — disse, baixinho, me virando para ele, mas encarando seu braço para não olhar para o seu rosto. Me concentrei nas veias ressaltadas e na força que me passava.
— O quê? — ele respondeu, também sussurrando.
— Obrigada por hoje, você sabe.
Por ter me ajudado a não me mijar nas calças e envergonhar a mim mesma.
Ele não respondeu e daquela vez eu não sabia se era porque ele estava deliberadamente me ignorando ou ele não sabia o que responder.
Encontrei os olhos de Sarah nos encarando pelo retrovisor e desviei em um piscar de olhos, encarando a janela, envergonhada sem saber o porquê.

Capítulo 8

“Cravos com predominância da cor vermelha que dizer ‘eu admiro você’ ou ‘meu coração clama por você’. Indica amor, paixão e respeito.”

Mesmo tendo que sair mais tarde do trabalho, finalmente conseguimos ter a reunião e levou o relatório para . Não antes de quase arrancar a cabeça de Brian, mas conseguimos apaziguar a situação entre Brian, Sarah e , dando continuidade ao projeto.
A cabine ao meu lado estava cheia de bocejos da parte de que parecia seriamente cansada. Pelo que havia percebido nas quase dez vezes que a mãe havia ligado para ela, o horário era muito avançado para estar fora de casa.
— Se você quiser, podemos terminar isso e entregar amanhã. Eu converso com . — eu aconselhei, vendo como ela estava quase dormindo em cima dos papéis.
engoliu o bocejo quando me pegou olhando.
— Claro que não. Todos estão se esforçando para terminar tudo hoje. Até o Brian com o ferimento pingando sangue na testa.
— Mas a culpa foi dele, então é merecido.
— Eu estou bem. — ela finalizou a conversa, voltando ao trabalho.
Aos poucos as luzes de outros departamentos foram se apagando e as pessoas foram saindo do prédio. Senti meus olhos ficando cansados e os ombros pesados. Suprimi três bocejos.
Brian foi o primeiro a sair, se desculpando várias vezes e mancando para fora. Sabia que nunca demitiria ele por conhecer suas habilidades e pela sua importância no departamento. Além disso, os dois trabalhavam juntos há quase dez anos.
Sarah foi embora logo depois, deixando apenas eu, e para trás, terminando as nossas partes. Eu tinha apenas alguns detalhes para finalizar na roupa do príncipe herdeiro, mas parecia um pouco emperrada no cabelo da personagem dela. Personagens femininos geralmente eram mais complicados de desenvolver por conta da riqueza dos detalhes e eu fiquei esperando ela pedir ajuda com alguma coisa, mas desde que havíamos voltado, ela parecia tensa perto de mim. Decidi deixar por isso mesmo. Aquela tarde havia sido muito estranha e eu preferia esquecer. Não me arrependia de ajudá-la, mas aquele tipo de comportamento era tão atípico para mim e me parecia estranho.
Um ronco suave me tirou dos meus pensamentos e eu me virei para encontrar deitada com a boca levemente aberta, em um sono profundo. Meu primeiro pensamento foi ignorá-la e continuar o meu trabalho, mas algo em seu rosto relaxado me chamava atenção. Fiquei confuso por ela parecer tão familiar. Os olhos fechados e os lábios apertados me lembravam alguém do meu passado que eu não conseguia identificar. Aquilo me deixou extremamente inquieto.
Uma mecha de seu cabelo caiu em cima dos olhos e ela se assustou um pouco. Como se estivesse sofrendo da síndrome do membro fantasma, minha mão se levantou e rapidamente afastou a mecha, tocando levemente em sua pele. Eu me afastei como se tivesse levado um choque.
O que eu estava fazendo? Por que não conseguia desviar os olhos do seu rosto?
não era a pessoa mais linda que eu já tinha visto, mas seu rosto tinha uma beleza suave. Os olhos eram escuros e a boca cheia, com o rosto pequeno e redondo. Suas bochechas estavam sempre coradas e seus dentes eram alinhados e grandes, enfeitando seu sorriso brilhante. Seu cabelo era sempre muito cheio e cacheado, caindo para todos os lados e fazendo cócegas no meu rosto, quando eu me aproximava para ver alguma coisa por cima do seu ombro.
Na primeira vez que a vi, tive certeza que ela era o tipo de garota que usava sua beleza óbvia ou sua condição física para convencer e manipular, ou até mesmo para ter a simpatia e a pena das pessoas, mas em quase um mês ao lado dela, havia ficado óbvio que eram apenas um detalhe da verdadeira beleza dela. Havia percebido também que conseguia tratá-la com frieza nos meus piores dias, mas quase nunca ser grosso ou ignorá-la. Parecia que sua aura alegre e brilhante contaminava tudo. Aquele fato representava um grande perigo para mim. Eu sempre baixava minha guarda com ela por perto.
— Ela deve estar muito cansada.
Eu virei quase na velocidade da luz para o meu computador e fingi estar fazendo alguma coisa, mas se olhasse para o meu rosto, veria a culpa, como uma criança apanhada pela mãe com a mão no pote de biscoito.
— O quê? — fingi desentendimento, enquanto se aproximava.
— A . Ela não costuma dormir em nenhum lugar a não ser em sua própria cama. — explicou, colocando seu casaco nos ombros de . — Deve ter sido um dia cheio.
Coloquei minha melhor cara de “O que eu tenho a ver com isso?” e começou a sacudir para que ela acordasse. Ela levantou como se tivesse sido eletrocutada, com o rosto amassado e um post-it colado na bochecha. Engoli uma risada.
— O que foi? Estou atrasada? — riu.
— Não, mas se sua mãe me ligar de novo para mandá-la para casa, eu vou arremessar meu celular pela janela.
— O quê? Minha mãe? Mas eu ainda tenho trabalho a fazer... — ela coçou os olhos e voltou para o computador.
— Na verdade, a senhorita está saindo porque o expediente já acabou.
— Mas... — ela tentou argumentar, mas foi cortada.
— Nada de “mas”. Estamos indo. — desligou o computador e puxou a cadeira de rodas para longe da mesa.
Ei! Isso não é justo.
— Ele tem razão, . Amanhã podemos terminar tudo.
— Você também, garoto novo. — falou, saindo de sua sala. — Já está tarde e o dia só tem 24 horas.
Eu salvei meus projetos e desliguei minha máquina. Descemos todos juntos e ainda parecia sonolenta enquanto ia conduzindo sua cadeira de rodas, tentando fazê-la ficar mais alerta fazendo perguntas.
— Eles conseguiram fazê-la entrar na boate? — murmurou um “sim” que mais parecia um grunhido indecifrável. — tem pavor à multidão. — explicou. — Quando ela tinha dezoito...
— Pare de revelar meus segredos, .
No estacionamento, eu comecei a me despedir de todos, mas me ofereceu uma carona.
— Eu posso pegar o ônibus. — me expliquei, começando a me afastar. Não gostava de qualquer tipo de intimidade e nem dever favores a ninguém.
— Já está tarde, Song.
— Meu ônibus passa em todos os horários.
— Pare de recusar, garoto. — me cortou. — Ele quer te dar a carona, só aceite. Não vai te deixar vulnerável aceitar a gentileza dos outros.
— Podemos te deixar no caminho. — dei de ombros, fazendo pouco caso.
— Eu já vou, porque o trânsito do meu lado da cidade é intenso nesse horário. Não quero pegar muito engarrafamento.
soprou um beijo e atravessou a garagem, deixando apenas o som dos seus saltos batendo no concreto, enquanto procurava por seu carro.
— Song, você pode ajudar a colocá-la no banco?
Concordei e ele ficou esperando, segurando a cadeira. Eu deduzi que teria que carregar . Ela ainda parecia sonolenta, então eu apoiei seus braços em meus ombros e a ergui, pela segunda vez no mesmo dia. Pelo menos, daquela vez, ela estava com os olhos fechados e eu não teria que passar novamente pelo momento constrangedor.
pegou a cadeira e habilidosamente começou a desmontá-la. era apenas um pouco pesada, o que me confirmava que ela deveria ser mais alta do que eu imaginava – provavelmente 1,66 ou 1,67.
Coloquei-a sentada no banco da frente e quando tentei tirar seus braços do meu pescoço para colocar o cinto, ela me puxou para mais perto. Eu congelei no lugar.
Yunhyeon-a.
Senti o sangue correr mais rápido em meu corpo, ouvindo-a chamando meu nome de batismo de maneira perfeita. Seu rosto tinha se aproximado tanto que eu senti em sua respiração o cheiro do pedaço de torta de limão que ela havia comido pouco tempo antes. Não conseguia me mover e fiquei ainda mais em pânico quando ela abriu os olhos, olhando diretamente para mim.
Yunhyeon-a.
— O que foi, ? — sussurrei, olhando no mais profundo de seus olhos.
Não sabia se ela estava consciente ou não. Quando eu havia chegado tão perto de alguém daquele jeito? Depois de tudo, quando alguém havia olhado daquele jeito? Como se enxergasse o mais profundo da minha alma?
— Eu acho que você deve ser muito bonito... Eu queria poder te desenhar.
— O quê? — eu estava surpreso demais para responder outra coisa.
— Você parece todo em preto e branco. Queria te colorir com os meus lápis...
Quando ela tirou uma mão do meu pescoço para tocar em meu rosto, eu a afastei bruscamente. Ouvi o porta-malas batendo.
— Ela ainda está dormindo? — apenas acenei e tomei meu lugar no fundo, ainda abalado. O que havia sido aquilo? — Ela falou alguma coisa estranha?
Quase engoli minha própria língua. Ele havia ouvido?
— A não bebe, mas ela tem hábitos de bêbado quando está dormindo. Ela fala várias coisas e você pode descobrir o que quiser sobre ela, perguntando enquanto ela dorme. É assim desde criança.
Assim que ele terminou de falar, o som irritante do celular de encheu o ar. Ela acordou em um pulo.
— Oi, mãe. Sim, já estamos chegando. O está me levando. Sim, tudo bem. Também te amo.
— Depois de hoje, vou colocar o número da sua mãe na lista negra. Ela me ligou tantas vezes hoje que eu comecei a odiar o toque do meu próprio celular.
— Eu te disse que me contratar seria uma dor de cabeça. Nós somos como aquela promoção, compre um e leve dois. — ela pareceu bem desperta quando bagunçou seu cabelo, como se ela fosse uma criança e ela bateu em sua mão, afastando-o. — Eu falei alguma coisa estranha durante o sono?
— Não comigo. Song? — balancei a cabeça, negando. Provavelmente ela não se lembrava, então eu esqueceria também. Não fazia sentido guardar aquilo. Ela suspirou, aliviada.
— Você falou alguma coisa ruim de mim para ele enquanto eu dormia?
— Não, Bela Adormecida. — imaginei que ela estava revirando os olhos com o apelido do primo.
— Fala sério, . Como você quer que eu me dê bem com meus colegas se você só fala mal de mim para eles? Eu nunca ficarei bem aos olhos de ninguém.
Peguei o celular e comecei a mexer em coisas aleatórias. Aquele clima familiar me deixava extremamente desconfortável.

O resto do caminho até a minha casa estava cheio de conversas e risos no banco da frente. Eu fiquei o mais quieto possível, tentando colocar a ideia de invisibilidade de Drax em prática1.
parou em frente ao complexo de apartamentos e pela exclamação que eu ouvi soltar, adivinhei que ela não imaginava que eu morasse em um lugar como aquele.
— Obrigada pela carona, cara. — desci do carro e, assim que eu virei para entrar, ouvi meu nome ser chamado.
— Song! — me virei e tinha abaixado o vidro, com um sorriso tímido. — Sobre o desenho? Aquilo que eu falei era verdade, mas não me entenda mal.
Ela acenou um adeus e acelerou, me deixando enraizado onde eu estava, sem entender nada. Será que ela poderia estar falando sobre o...? Não queria admitir, mas aquilo me perturbou a noite inteira.


1N/A: Referência a uma cena do filme Vingadores: Guerra Infinita.

Capítulo 9

“Rosas multiflora vermelha significa: Eu só quero estar com você.”

— Por favor, mãe. Só mais cinco minutos.
Sacudi a mão no ar, pedindo para ela ir embora, mas sua voz continuava me chamando. Coloquei o travesseiro sobre a cabeça, tentando abafar o som de sua voz me chamando. Parecia que, de uma hora para outra, minha cama havia ficado mais quente e mais convidativa.
— ...já está atrasada.
Arranquei o travesseiro furiosamente e sentei na cama, tentando me situar. O que estava acontecendo?
— Hoje não é sábado? — perguntei, tentando enxergar por entre as frestas dos olhos que eu não conseguia abrir direito.
Minha mãe estava parada aos pés da minha cama.
— Hoje é sexta e você tem trinta minutos para ficar pronta.
Olhei para o relógio na minha cabeceira e esfreguei os olhos para enxergar claramente. Eu estava realmente atrasada.
— Meu alarme! — gritei. Afastei os cobertores e subi na cadeira de rodas.
— Você não escutou.
Tive que tomar banho e me vestir em um tempo recorde, sem conseguir nem pentear os cabelos. Prendi os cachos em um cabo de cavalo meio torto e pulei o café da manhã para chegar a tempo. Não podia perder nenhum segundo.
Já no elevador do prédio da empresa, eu descobri que tinha vestido uma camisa com um buraco na gola. Tentei esconder, soltando os cabelos e jogando-o por cima do ombro.
Estava tão cansada da noite anterior que havia dormido assim que me deixou em casa. Eu já tinha dificuldade para acordar cedo, somando isso ao fato de que no dia anterior havíamos passado várias horas correndo pela cidade, meus braços pareciam geleias e eu só queria ficar deitada o dia todo.
— Bom dia. — cumprimentei, envergonhada por saber que estava atrasada.
Todo mundo já havia chegado, principalmente o homem com um olho arroxeado que eu julguei ser Brian.
— Parece que o vento levou a ordem do seu cabelo embora. — a mulher de calça desbotada e óculos redondo – Sarah – comentou e eu corei, tocando meu cabelo cheio de frizz que cobria o buraco em meu ombro.
O asiático mal-humorado ao meu lado nem olhou para mim quando me sentei, cumprimentando-o. Típico. Quando lembrei do que havia falado com ele, antes de ir embora, corei furiosamente, virando para que ele não me visse. Não era um bom comentário para se fazer numa situação como aquela, ainda mais para uma pessoa como Song, que passava mais tempo odiando todo mundo do que fazendo qualquer outra coisa. Mas eu não estava arrependida. Seus traços sempre pareciam iguais, a qualquer outro coreano que eu já tinha visto, mas suas pintas perto da sobrancelha, seus lábios apertados em uma careta e seu olhar de desdém sempre me permitiam o identificar e por isso eu queria desenhá-lo. Um desafio que eu queria experimentar.
Sacudi a cabeça para esquecer aquele pensamento sobre a pessoa ao meu lado e mergulhei no trabalho que eu precisava finalizar. Obviamente Song havia ficado desconfortável com o que eu havia feito e tudo que eu menos queria era transformar nosso ambiente de trabalho em algo ruim. Queria explicar o teor do meu comentário, mas apenas orei para ele já ter esquecido.
O primeiro ronco veio meia hora depois de eu ter chegado. Foi baixo, então eu apenas ignorei, mas depois veio o segundo e o terceiro ainda mais alto. Song me olhou de cara feia.
— Desculpa. — pedi, fazendo a minha melhor cara de inocente. — Eu saí atrasada, então não tive tempo de tomar café da manhã.
Eu coloquei a mão em cima do estômago, como se isso fosse acalmá-lo. Ele voltou a gritar pedindo comida e eu preferi fingir que não era eu. Era muito vergonhoso.
Song ficou de pé e eu continuei fingindo atenção. Achei que ele iria reclamar, mas ele apenas parou, olhando para mim e saiu. Finalmente consegui esquecer a fome e terminar minha coleção de eunucos e ministros quando um saco foi jogado em cima do meu teclado.
— O que...?
Peguei o saco jogado por Song e abri, encontrando barras de cereal, sanduíches e suco. Tinha até um Ferrero Rocher. Ele havia saído para comprar comigo para mim. Como poderia interpretar aquele gesto?
— Se você continuar assim, nenhum de nós dois vai conseguir trabalhar hoje. — Song disse, simplesmente, sem olhar.
— Obrigada. — agradeci.
Comi o sanduíche como se fosse meu primeiro alimento depois de anos.
Quando finalmente meu estômago parecia mais calmo, eu comi o chocolate com um sorriso no canto da boca. Pelo espelho no canto da mesa, eu tentei controlá-lo, mas ele sempre voltava. Me achei um pouco idiota. Aquela relação não era daquele jeito. Não éramos nem amigos e ele estava com tanta vontade de ser meu amigo quanto de quebrar as duas pernas.
— Pessoal, um assunto urgente surgiu e eu preciso da ajuda de todos vocês. — entrou na sala, anunciando. — Eu tenho três documentos para coletar assinaturas diferentes amanhã e não posso fazer isso sozinha.
— O que aconteceu?
— Eu preciso dessas assinaturas para segunda, mas nossos diretores estão de folga e só voltam na terça. Então se Maomé não vai até a montanha, a montanha vai até Maomé.
— Vamos viajar? — Sarah perguntou, animada.
— Não é uma viagem de férias, são negócios. — deixou claro. — Temos um orçamento apertado, mas podemos fazer isso.
— Vamos receber mais por fazer hora extra? — Brian perguntou e lançou um olhar congelante para ele.
O clima entre os dois ainda estava tenso, mas, de acordo com Sarah, não era do tipo que guardava mágoa, então logo os dois estariam bem de novo.
— Vamos interromper a folga dos nossos chefes? — aquela ideia não parecia muito boa.
— E se formos demitidos?
— Eu já mandei um e-mail avisando a eles que estamos indo. Todos concordaram.
— Não podemos simplesmente coletar assinaturas eletrônicas? — Song perguntou.
— Infelizmente o procedimento não aceita esse tipo de assinatura para documentos envolvendo finanças. — Song revirou os olhos.
— Tão ultrapassados. — ele resmungou.
— Enfim, eu preciso da liberação do financeiro para gastar esses valores. O pagamento da licença do software que todos nós usamos e nosso fundo semanal de materiais de desenho. Posso contar com a ajuda de vocês? — todos nós concordamos. — , você ficará bem em ir? Sei que você é capaz, mas viagens longas podem ser cansativas para você.
— Eu ficarei bem.
distribuiu nossos destinos e eu fiquei desanimada por estarmos indo para uma cidade tão sem graça. O único ponto positivo era que eu poderia ver o mar. Como esperado, ela me colocou em dupla com Song e, pela maneira que ele resmungou, parecia ter ficado ainda menos contente do que eu. Tentei não me ofender.

Em casa, contei aos meus pais que teria que trabalhar fora no dia seguinte. Meu pai ficou feliz por estar conhecendo novos lugares e me desenvolvendo. Minha mãe foi aquela que não ficou nem um pouco feliz.
— Isso pode ser perigoso. Não quero que você vá.
— Mãe... — comecei, abaixando o garfo. — Eu não vou ficar a vida toda.
— Você está indo com uma pessoa sem preparação para cuidar de você caso aconteça alguma coisa.
— Não vai acontecer nada. Além do mais, eu não estou doente. Posso cuidar de mim mesma.
— Eu sou contra. — como se fosse alguma novidade. Eu me sentia como uma adolescente de doze anos, pedindo permissão para participar de um passeio de escola.
— Querida... — meu pai tentou discutir. Ele não gostava de contrariar a minha mãe, mas em alguns casos eu apelava para ele com os olhos.
— Mãe, é uma viagem de trabalho, em um lugar com praia. Será bom. Confie em mim. — ela parecia resignada e eu fiquei tentada a fazer os olhos do gato de botas como havia feito para convencê-la a me deixar trabalhar, mas depois do seu longo suspiro, vi que havia conseguido vencer.
— Eu confio em você, meu problema são as outras pessoas.
— Eu estarei com o celular. — falei, servindo um pouco de carne para ela. — Qualquer emergência, eu posso ligar para vocês.
Ela olhou para meu pai de maneira hesitante, mas ele apenas acenou com a cabeça, concordando com a ideia.
— Você tem certeza, querida? — acenei positivamente. — Então vá totalmente preparada e não hesite em me chamar para nada. Chegaremos o mais rápido possível para te ajudar e...
— É só um dia, mãe. — insistir. — E vamos de ônibus.
— Tudo bem, você pode ir. Fico nervosa com você andando de carro com um estranho.

Eu encontrei Song na rodoviária, como havíamos combinado no dia anterior. já havia providenciado nossas passagens de ida e volta. A viagem duraria cerca de três horas, mas eu havia enchido minha bolsa com caça palavras e barrinhas de chocolate.
Assim que fui acomodada em meu lugar, com a ajuda do motorista, Song sentou ao meu lado, na janela, e se virou de costas para mim, observando a paisagem. Ele parecia ainda menos falante do que nos últimos dias e eu me perguntei se ele havia ficado desconfortável pelos meus comentários. Parecia que um muro invisível estava construído entre nós de novo.
Provavelmente já estávamos na metade do caminho quando eu deixei o caça palavras de lado puxei conversa com ele. Odiava o silêncio desconfortável entre nós.
— Eu quase não me lembro do mar. — ele virou para mim com o comentário.
— O quê?
— Quando nasci, meu pai trabalhava na ilha Jeju, então passei grande parte da minha infância lá. Quando nos mudamos da ilha Jeju, anos depois, sempre voltávamos nas férias. Eu digo que cresci com o mar como quintal. Eu amava a praia e todos os dias poder tomar banho lá. Mas depois que fiquei assim, — apontei para as minhas pernas. — nunca mais senti o cheiro do oceano. Acho que os meus pais têm medo que eu fique muito triste por lembrar das coisas que eu fazia antes de perder o movimento das pernas. Às vezes fico em pânico quando me pego esquecendo de como é nadar ou correr. Ou mesmo andar, na verdade. De sentir a grama entre os meus dedos do pé ou de cócegas. Não sei se vou voltar a fazer essas coisas, mas me esquecer da sensação? Não sei se posso lidar com isso.
Song parecia sem palavras, mas eu não fiquei ressentida em compartilhar aquilo com ele. Até porque compartilhar lembranças dolorosas fazia com que as pessoas se aproximassem mais e eu queria quebrar aquela tensão desnecessária que existia entre nós.
— O quê? — perguntei, diante do seu ainda olhar de surpresa. — Você achou que eu já nasci cadeirante?
— Não, só... Não esperava por isso. Essa honestidade abrupta da sua parte.
Dei de ombros, como se não fosse nada.
— Fiquei muito feliz por essa viagem. Gosto de me sentir útil e capaz para as outras pessoas. Não gosto de ser apenas... uma deficiente. Na verdade, eu odeio essa palavra porque significa que eu sou incompleta ou tenho falta de alguma coisa.
— Eu não gosto de viajar. — ele falou, me surpreendendo.
Song nunca falava sobre sua vida pessoal ou sobre seus gostos. Na verdade, Song nunca falava nada sobre si mesmo. Tudo sobre ele era uma caixa de mistérios para mim.
— Não gosto de coisas que quebram a minha rotina ou me colocam em uma situação que não estou acostumado.
— Você gosta de estar no controle. — não era uma pergunta.
— Eu gosto de estar no controle. — ele afirmou. — De mim mesmo e de todas as situações ao meu redor. O tempo todo.
— Mas você não pode estar sempre no controle. Estamos sempre imersos em situações fora da nossa zona de conforto.
— Por isso eu evito determinadas situações.
— Por isso é antissocial, antipático e mal-humorado?
Ele levantou uma sobrancelha, como se não estivesse acreditando que eu tinha tido coragem de dizer aquilo em voz alta.
— Como é?
— Para evitar situações que te façam perder o controle?
— Eu já perdi o controle uma vez e não foi bom. Nunca mais quero que isso aconteça de novo. — seu tom foi um pouco duro e eu preferi deixar o assunto para lá. Não queria que ele se sentisse pressionado e se afastasse de novo.
parece querer te colocar em todas essas situações. — ele soltou um suspiro.
— Eu sei. A missão da vida dela é fazer a minha vida o mais desconfortável possível. Como se não tivesse nada melhor para fazer.
— Ela parece... Uau! — exclamei, grudando na janela, quase me jogando por cima de Song quando o mar apareceu. — É o mar! É realmente o mar!

Capítulo 10

“A callas, quando branca, é popularmente conhecida como copo de leite. O nome vem do grego e significa beleza. A callas branca está associada à fé, pureza e santidade. É uma flor com presença constante em casamentos, já que denota devoção e felicidade conjugal.”

Assim que ela pulou em cima de mim, eu me afastei para não tocar nela. Parecia que eu havia levado um choque com a maneira abrupta que ela se aproximou.
— Você pode... sair?
Ah, desculpe.
Ela puxou o tronco de volta para a própria cadeira e eu a achei ágil demais para uma pessoa que não tinha o movimento das pernas. Só percebi que estava segurando a respiração quando ela se afastou.
voltou para o lugar, mas não conseguia parar de sorrir. Se pudéssemos trocar de lugar, daria o meu a ele facilmente, mas já estávamos próximos do nosso destino. Meia hora depois, o ônibus parou e, de acordo com o GPS, aquele era o nosso ponto.
A cidade era realmente linda à primeira vista. O mar era azul cristalino e areia, branquinha. Paramos longe do centro e as pessoas que saltaram conosco pegaram outro ônibus, então ficamos um pouco confusos para que lado seguir. O GPS avisou que precisaríamos esperar duas horas pelo próximo ônibus, algo que ele não havia avisado antes. Comecei a ficar nervoso com o contratempo. Tentei pensar em um plano B, enquanto tirava um bilhão de fotos do mar.
— O que você está fazendo? — perguntei, mal-humorado pela falta de profissionalismo dela. Precisávamos pensar em uma maneira de sair e ela estava pensando em se divertir. — Estamos aqui a trabalho, não a passeio.
Ela revirou os olhos e guardou o celular depois de uma última selfie.
— Estraga prazeres. — resmungou.
— O GPS diz que precisamos esperar duas horas pelo próximo ônibus. — informei. — É o ônibus que nos levará para o centro.
— Por que não pedimos ajuda naquele restaurante?
apontou para um estabelecimento a distância que eu não havia enxergado e que também não aparecia no celular.
— Eu não tinha visto...
— Se você tirasse os olhos do celular por um instante e olhasse ao redor, teria enxergado.
Quase me ofereci para empurrar a cadeira de rodas de para que suas mãos não ficassem arranhadas, mas achei que ela poderia considerar rude, então apenas a segui até chegarmos ao pequeno estabelecimento. Era um híbrido de restaurante e loja de conveniência.
Quando entramos, o sino na porta tocou, anunciando a nossa chegada e uma senhora saiu de trás do balcão.
— Olá, visitantes. — ela cumprimentou. — O que os traz para esse trecho tão isolado da cidade?
— Viemos comer.
— Estamos perdidos.
Eu e respondemos ao mesmo tempo e a senhora riu.
— Posso ajudar com os dois.
Tirei o endereço do bolso e estendi para ela, mas se colocou na minha frente, abaixando minha mão, com um olhar firme.
— Nós queremos o seu melhor prato. — ela levantou dois dedos. — Dois, por favor.
— Precisamos encontrar o...
levantou um dedo, me calando.
— Se não fosse por mim, você estaria até agora lá fora procurando a saída no seu celular e eu estou com fome, então nós vamos comer antes de fazer qualquer outra coisa. A barriga cheia ajuda o cérebro a pensar.
Quase explodi de raiva com a audácia dela em me dizer aquelas coisas, mas engoli minhas palavras rudes quando a dona do estabelecimento soltou uma risada alta.
— Você é uma senhorita bem autoritária, não é? Vou preparar a minha especialidade para vocês dois. Esperem alguns minutos, não vou demorar.
tinha o verdadeiro dom de fazer as pessoas gostarem dela naturalmente. Nunca tinha visto ninguém não gostar dela ou conseguir ignorá-la. Sua alegria era contagiante, nunca ficava triste ou desanimada. O brilho em seus olhos? Era genuíno e não podia ser encontrado em mais nenhum lugar. De onde ela havia saído?
— Eu sei que você está preocupado que possamos não conseguir chegar a tempo, mas vai dar tudo certo. Essa senhora simpática vai nos ajudar a encontrar o Sr. Han e conseguir a assinatura que precisamos.
Nós dois sentamos em uma das únicas duas mesas dispostas perto da porta, onde esperamos pela nossa comida.
— Eu não estou preocupado.
— Está escrito em todo seu rosto. — eu nem me dei ao trabalho de contestar. — Nós vamos ficar bem.
O ar começou a se encher com um cheiro bom e eu me aquietei na mesa onde estávamos. Também estava com fome, mesmo não querendo admitir.
— Parece delicioso. — falou lambendo os lábios, quando a simpática senhora saiu da cozinha, trazendo nossos pratos.
— Não costumo receber muitos visitantes na minha loja. — ela puxou uma cadeira e se sentou perto, enquanto comíamos. O sabor era realmente maravilhoso.
— Por que tem uma loja tão distante de tudo? Esse lugar é um pouco deserto e só passa ônibus por aqui. — eu falei e me deu um olhar de repreensão.
— Eu moro aqui há vinte anos. Meu marido trabalha na cidade há trinta quilômetros daqui, mas eu preferi ficar por causa de turistas como vocês que ficam perdidos.
— Nós não estamos...
— A senhora tem filhos? — me cortou antes que eu pudesse completar a fala. Se fosse qualquer outra pessoa, eu diria que ela era mal-educada pela frequência com que fazia aquilo, mas parecia ter um sensor para parar minhas palavras duras.
— Meus filhos já se casaram e têm suas próprias famílias para cuidar. Eu moro no andar de cima. Vocês estão querendo ir para a cidade?
— Na verdade, estamos procurando esses chalés que ficam perto da praia.
Mostrei o endereço que tinha em mãos.
— Garoto, você está em uma cidade litorânea. Tudo aqui fica perto da praia. — ela colocou os óculos pendurados nos pescoço para ler o endereço. — Vocês não conseguirão nenhum ônibus que os leve até aqui porque fica do outro lado da cidade, em uma área privada. Deveriam pegar um táxi.
Peguei o celular do bolso para chamar um táxi e não perder mais tempo.
— A senhora não conhece ninguém familiarizado com a área para nos levar até lá? — perguntou.
Não havia nenhum carro disponível nas proximidades, de acordo com o aplicativo. Eu abaixei o aparelho, desanimado.
— Na verdade, eu tenho um amigo taxista que pode levar vocês. — ela ofereceu. — Vou ligar para ele.
— Isso seria incrível. Obrigada.
Nós terminamos de comer, enquanto ela tentava conseguir o transporte.
— Você sempre confia na primeira pessoa que te oferece ajuda?
— Você sempre é tão desconfiado? — ela rebateu com um sorriso e eu fechei a cara.
— Responda à minha pergunta.
— Ela foi a única que pôde nos ajudar. Você preferia perder horas tentando descobrir as coisas por si mesmo ao invés de pedir ajuda a alguém?
— Eu sei me virar muito bem sozinho. — respondi orgulhoso e soltou uma risada sem humor.
— Você é um babaca. Parece que tem quinze anos. — ignorei seu comentário ofensivo e voltei a comer.
— Eu consegui falar com o meu amigo, mas ele só pode vim buscar vocês na parte da noite por causa de uma viagem. — a dona do estabelecimento voltou, sem boas notícias.
Coloquei uma nota na mesa que seria suficiente para pagar pelas refeições e levantei, pegando minha mochila.
— Obrigada pela comida deliciosa, mas não podemos esperar. — continuou no mesmo lugar. — Você não vem?
— Garoto, você já viu onde está? — a senhora perguntou, apontando para o redor. — Aqui não passa nada. Nenhum ônibus vai deixar vocês perto do complexo de chalés e nenhum táxi estará disposto a buscá-los aqui, em um lugar tão longe da cidade.
— Daremos um jeito. — eu insisti.
— O que você vai fazer, Song? Ir para casa e voltar mais tarde? Ou você quer que eu empurre minha cadeira de rodas por trinta quilômetros até a cidade para pedir informações? — o jeito que falava, fazia eu me sentir cruel, malvado e estúpido.
— Eu vou ligar para .
Peguei o celular e saí, mas não antes de ouvir dizer: “Ele é teimoso como uma mula.”
atendeu no segundo toque e já foi logo falando:
Achei que essa ligação demorou para chegar. O que aconteceu? A pegou seu boneco do Homem-Aranha e não quis devolver?
— É para rir? — falei, sem paciência.
Os mal-humorados morrem rápido, Song.
— Você não quer ouvir o que eu tenho a dizer?
Se forem reclamações contra , não quero ouvir.
— O que você acha que eu tenho para você falar assim comigo? Dez anos?
Age como se tivesse. — suas respostas rápidas me irritavam.
— Eu vou desligar o telefone.
Então me ligou para nada? Você não sabia que o meu tempo é precioso? — respirei fundo para não jogar o telefone do outro lado da pista.
— Você testa a minha paciência.
Também te amo.
— Não conseguimos pegar a assinatura. Estamos do outro lado da cidade e só conseguimos transporte para a noite. — expliquei, mas na verdade queria que ela me desse outra solução que não fosse ficar ali esperando até a noite chegar.
Vou enviar um e-mail para o Sr. Han. Precisa de dinheiro extra para comer ou trocar as passagens? Tem o suficiente para ficar aí até a noite com a ?
— É só isso que você tem a dizer?
Não, tenho outra coisa para perguntar: a está bem? Você está cuidando dela? — era como se eu fosse uma pessoa má e irresponsável que faria mal a se chegasse perto dela.
Me repreendi internamente antes de falar uma palavra feia para ela.
— Você faz isso de propósito?
O que você queria que eu falasse? nunca agia conforme eu esperava.
— Eu quero as minhas horas extras. — respondi, com raiva.
Você será pago. Cuide bem da . A mãe dela te mata se você deixar alguma coisa acontecer com a filha preciosa dela. — revirei os olhos.
sabe se cuidar sozinha.
Eu sei, mas a preocupação nunca é demais. Ela precisa de você ao lado dela. Lembre-se: você é responsável por ajudá-la em tudo.
Ela desligou o telefone antes que eu falasse outra coisa. Encarei o aparelho ainda irritado e voltei para dentro. e a dona da loja riam e conversavam no telefone.
— Eu vou tomar conta dela sim. — a mulher falou ao telefone. — Vou fazê-la comer direito. Sim. Claro. — pegou o celular de volta quando notou a minha presença.
— Certo, mãe. Ficaremos bem. Beijo. — ela se despediu e desligou o telefone, vendo que eu havia voltado. — Song, você conseguiu falar com ? — acenei.
— Ela vai contatar o Sr. Han e informar o nosso atraso.
— Que bom que tudo se resolveu.
— A senhora... — procurei lembrar o nome dela, mas me dei conta de que ela nunca havia contado.
— Catarina. — a dona da loja completou.
— Sra. Catarina, poderia nos deixar ficar em sua casa?
— Não seja tão travado, garoto. A já me pediu. O problema é que vocês terão que ficar lá em cima sozinhos ou comigo aqui na loja.
— Isso não será problema nenhum. — foi apressada em dizer. — Vamos adorar fazer companhia aqui embaixo. — Catarina bateu palmas, feliz.
— Vou pegar alguns jogos para passarmos o tempo. Vocês podem ir ver o mar enquanto eu subo.
— Sério? Por favor, Song, podemos ver o mar? — me deu um olhar de cachorrinho abandonado como se fosse funcionar. — Só mais uma vez, Song. Por favor.
— Já disse que não estamos de férias.
— Se eu pudesse ir sozinha, não pediria a sua ajuda. Também não me sinto confortável tendo que depender de você para isso. — novamente ela conseguindo me fazer parecer o vilão.
— Tudo bem, vamos lá. — me rendi.
Ela manejou sua cadeira de rodas para fora com um sorriso brilhante.
— Esse cheiro de mar... É tão bom. — ela abriu os braços, como se fosse receber um abraço do mar cristalino. — Não lembrava do quanto sentia falta disso. É quase como voltar para a infância.
O olhar de era de nostalgia e saudade. Foi a primeira vez que vi algo triste em seus olhos.
Em um impulso totalmente imprudente, eu virei sua cadeira de rodas de frente para mim, tomando coragem para o que estava prestes a fazer.
— O que você está fazendo? — ela perguntou, assustada.
— Onde está o seu celular?
Peguei o celular da mão dela e coloquei junto com o meu nos pés da cadeira de rodas. Tirei o relógio e nossos sapatos. Carreguei no colo.
— Song, o que você vai fazer?
Eu desci as escadas do calçadão, sentindo a areia quente entre os meus dedos. Andei até a beira do mar e fui avançando aos poucos para o fundo, até a água encostar na minha cintura. agarrou o meu pescoço com força, soltando gritinhos. Eu ri da sua cara de assustada.
— Você está preparada? — ela negou com a cabeça e eu ri novamente. — Tampe o nariz.
Contei até três e mergulhei com ela grudada em mim como uma água viva. submergiu gritando e me estapeando, mas rindo tanto que eu não conseguia não acompanhá-la. Eu mergulhei novamente e a levei para fora da água. A coloquei sentada na areia e fui buscar nossas coisas.
— Essa foi a melhor coisa que aconteceu hoje. Estar no mar é incrível. Quase sinto como se pudesse voltar aos meus tempos de infância.
— A verdade é que eu nunca gostei muito de praia, mas isso foi divertido.
— Você fica muito melhor sorrindo do que com sua cara habitual de dragão. — meu sorriso murchou automaticamente. — Ah, Song, vamos lá. Sua boca deve doer de tão rígida que fica.
— A sua não dói de tanto sorrir à toa?
— Sorrir nunca é à toa, é a melhor coisa do mundo. Deixa nossa expressão mais leve e bonita.
Franzi a testa para ela. sorriu para mim e eu automaticamente sorri para ela.
Qual foi a última vez que eu me diverti daquele jeito? Qual foi o meu último sorriso sincero?
O Sol refletiu nos olhos de e eu me vi pegando o celular e tirando fotos dela com o Sol como plano de fundo, enquanto ela observava o mar. Não sabia o que estava fazendo comigo, mas aquele sentimento? Eu nunca tinha sentido aquilo antes.
Coloquei uma mão sobre o coração porque ele parecia aquecido. Estava disparado e eu me senti um idiota. Eu não era merecedor daquele sentimento. Aquela garota não pertencia ao meu mundo. Tudo sobre ela era brilhante e otimista e na minha vida só havia escuridão. Aquela amizade? Não ia acabar bem. Aquilo não daria certo.
Escondi o celular, me sentindo culpado, mas não tive coragem de apagar as fotos. O arrependimento daquele impulso começou a esfriar a animação e a realidade me pegou como um tapa no rosto.

Capítulo 11

“A rosa vermelha tigrada, quando se dá uma só, significa devoção total e completa. Já seis delas significam um amor que é cuidado e estímulo. Onze delas podem significar o amor profundo e verdadeiro. Treze delas são dadas de admiradores secretos.”

Foi perceptível quando Song se deu conta do que havia feito. Sua expressão fechou e todo seu corpo tencionou. O Song espontâneo e feliz que havia me carregado e entrado comigo no mar havia desaparecido. Me perguntei se alguma vez veria seu sorriso lindo de novo. Aquilo me atingiu no fundo do coração.
— Song? — ele respondeu com um som no fundo da garganta. — Você tem muitos arrependimentos?
— Por que você quer saber isso? — ele sempre estava na defensiva quando eu fazia uma pergunta invasiva.
— Você não pode simplesmente responder à minha pergunta? — pedi.
— Sim, tenho. — ele voltou a admirar o horizonte. — Todos nós temos, não?
— Você voltaria ao passado, se pudesse? — ele acenou, sem me olhar. — Então você não gosta de quem é agora?
— Como assim? — Song quis saber.
— O que você fez no passado construiu quem você é agora. — expliquei.
— Eu não... — ele fez uma pausa, como se doesse falar aquilo. — Eu não sou uma boa pessoa.
— O que você quer dizer?
— Eu... Não fiz coisas boas no meu passado.
— Song, todos nós–
— Eu já fui preso. — ele me interrompeu. Eu acenei, sem alterar nenhuma expressão. — Você não vai falar nada?
— Você quer que eu desaprove ou aprove? Não tenho muita bagagem para julgar o que aconteceu com você. — foi a vez dele não responder. — É algo que faz parte do seu passado. O nosso passado só pertence a ele mesmo. Você matou alguém? — ele negou. — Está em condicional agora? — negou novamente — Todos nós precisamos aprender a viver com o nosso passado. — Song riu sem humor.
— É legal falar, mas de verdade? É um saco.
— Decidiu abrir a boca para mim agora? — provoquei, me sentando, com os braços apoiados na areia. Meu cabelo estava todo grudado no meu rosto e pescoço.
— Isso iria acontecer mais cedo ou mais tarde. Você é muito intrometida. — tentei parecer ofendida, mas acabei rindo.
— Sabe, Song? Eu costumava ser como você. Toda essa raiva reprimida, esse ódio do mundo, a necessidade de estar sempre fechado e frio? Eu sei o que é isso. Eu era assim, por mais difícil que seja acreditar. Achava que os momentos bons e as coisas boas dessa vida não eram para mim. Por isso consigo te entender muito bem. Mas você não precisa fazer isso comigo.
— Você acha que me conhece?
— Eu te entendo. — eu corrigi.
— Você não estaria aqui agora se me conhecesse.
— Isso quer dizer que você não voltaria e mudaria o seu passado?
— Eu mudaria muitas coisas, mas o que aconteceu comigo? — neguei com a cabeça. — Você não entenderia.
— É, acho que não entenderia mesmo. Vamos voltar? — concordei e ele me ajudou a voltar.
Naquele dia, eu sabia que algo havia mudado entre nós dois. Ter me contato aquelas coisas e, principalmente, a minha reação diante do que ele havia falado, criou algo entre nós que não existia antes.
Song era um grande clichê. Eu conseguia ver sua dor sempre que olhava em seus olhos e tudo que eu queria era ser capaz de arrancar aquela dor. Aquilo era diferente. Eu gostava de ouvir os problemas e ajudar quem me importava, mas com Song? Algo sempre me deixava curiosa e interessada.
— Olha como vocês estão ensopados. — Catarina nos olhou com horror. — Olha esses cabelos cheios de areia. E as roupas...
— A culpa foi toda minha. — tomei a frente, antes que Song falasse alguma coisa. — Desculpa, mas vamos precisar da sua ajuda com um banho e uma secadora. — Catarina riu.
— Vocês são adoráveis. Faz tempo que tive uma companhia tão boa assim. Vamos indo, vamos indo.
Song me ajudou a chegar na casa de Catarina pelas escadas. Tomamos banho e vestimos nossas roupas secas antes de voltarmos para a loja.
Eu fiz o meu melhor para ignorar Song com o cabelo úmido perto de mim. Pensei novamente em desenhar o que via nele. A variedade de características que dava a ele todos os rostos do mundo e, ao mesmo tempo, nenhum, para mim. Meu corpo parecia inconscientemente querer se aproximar dele e tomar seu rosto.
Catarina separou um baralho para jogarmos 21 e Song era o único que não sabia jogar. Explicamos as regras do jogo e, aos poucos, ele foi aprendendo. Na quinta rodada, ele já estava ganhando pela segunda vez.
— Eu não acredito. Você está roubando!
Song deu de ombros, convencido.
— Sorte de principiante.
— Você está contando as cartas. — eu falei, apontando o dedo para ele acusadoramente.
— O nome disso é ser má perdedora.
— Ei! Cat, me defenda. — ela só conseguia rir.
Trocamos 21 por rouba-monte e depois dama. Song, mesmo com sua cara habitual de poucos amigos, jogou sem reclamar em nenhum momento. Ele não conhecia quase nenhum jogo de cartas, mas aprendeu rápido e jogou muito competitivamente.
Cat nos alimentou com várias besteiras da sua loja que eu adorava comer, inclusive chocolates, como agradecimento por ajudarmos a descascar as castanhas e os nabos em conserva. Como sempre, Song se saiu incrivelmente bem e habilidoso ajudando Cat em tudo que ela precisava, arrumando itens no alto, carregando coisas pesadas e até mesmo com castanhas e nabos.
Não se engane achando que ele passou a tarde conversando sobre sua vida e trocando experiências porque não foi assim. Cat e eu contamos tudo uma à outra e ele simplesmente agia como se não estivesse ouvindo nada. Cat tinha várias histórias sobre seu marido e seus filhos. Sem nem darmos conta, o dia passou e logo chegou a hora de partirmos.
— Adorei conhecê-los. Mantenham contato.
Ela me abraçou e apertou a mão de Song.
— Provavelmente minha mãe vai mandar mensagem todos os dias.
— Eu vou adorar. Tenham tempo para visitar essa velha senhora. E se entendam logo, não desperdicem o pouco tempo que temos nessa terra com brigas desnecessárias.
Olhamos para ela, confusos. Não tínhamos brigado mais quando voltamos da praia.
— Até a próxima.
Dali para frente foi fácil chegarmos ao conjunto de chalés onde o Sr. Han estava com sua família e voltamos para o ponto de ônibus para voltarmos. O táxi que pegamos na rodoviária parou primeiro na minha casa.
— Não quer entrar? — perguntei quando Song me ajeitou na cadeira de rodas.
Ele me deu um olhar estranho e eu entendi na hora. Limites.
— Te vejo amanhã.
Eu acenei enquanto ele entrava no táxi e ia embora. Minha mãe saiu para me encontrar assim que o táxi foi embora.
— Quem era aquele?
— O colega que me acompanhou hoje.
— Qual o nome dele? — eu a olhei com os olhos semicerrados.
— Isso é uma investigação policial? Ele é só um colega de trabalho.
— Vamos para dentro. Você parece cansada e seu cabelo está... Péssimo.
— Obrigada, mãe. Você sempre tem as palavras certas. — ironizei.
Ela me empurrou pela rampa na entrada da casa. Meu pai estava colocando o jantar e eu fui direto tomar banho.
Normalmente, em casa, minha mãe era aquela que conduzia as conversas. Ela gostava de falar de tudo e o tempo todo. Era óbvio que o lado coreano da família era do meu pai. Sua avó casou fora do país, mas as personalidades da família dele sempre foram parecidas. Minha mãe era a pessoa mais vibrante da família. Falavam que eu era uma mistura perfeita dos dois.
Deitada na minha cama, eu notei como eu estava cansada da viagem. Havia sido um dia único e eu iria guardar para sempre aquela experiência.
Distraidamente, eu peguei o celular e passando por vários aplicativos, acabei mandando uma mensagem para Song.
: Você chegou bem?
Ele respondeu no mesmo instante como se estivesse com a conversa aberta, esperando a minha mensagem.
Song: Você não deveria estar dormindo?
: Por quê?
Song: Você parecia prestes a desmaiar no táxi.
: Poderia apenas responder à minha pergunta?
Song: Sim, cheguei.
: Eu também. Obrigada por perguntar.
Song: Eu sei, eu te deixei na frente de casa.
: Você sempre age como você :(
Song: Acho que todo aquele chocolate te fez esquecer com quem está falando.
: Você vai falar sobre o que eu como de novo?
Song: Você sabe que precisa diminuir o nível de açúcar.
: E você precisa aumentar. Está sempre de mau humor.
Song: Vá dormir, .
: Boa noite.
Song: Boa noite.
Eu continuei encarando a tela do celular, lendo a última mensagem. Aquele era o mesmo Song de sempre. Nada havia mudado, certo? Eu me perguntei se estava me aproximando dele porque queria conhecer sua história ou porque estava interessada nele. Ele parecia um clichê completo de garoto problemático com um passado sombrio. O garoto havia feito uma burrada na adolescência e carregava esse remorso por toda vida. Eu deveria me afastar ao invés de me aproximar.
Falei para mim mesma que aquele tipo de problema não cabia a mim.
Song: Por que ainda não foi dormir?
O celular pulou da minha mão com o susto, caindo no meu rosto.
: Quem disse?
Song: Você está me respondendo.
Eu revirei os olhos.
: Eu não preciso responder isso. Boa noite.
Bloqueei o celular e o joguei de lado, ainda com o coração disparado com o susto.
— Acalme-se, . É o Song. É demais para você lidar. Lembre quem é ele. — eu disse para o teto do quarto, tentando me acalmar.
A vontade de ajudá-lo havia abaixado a guarda do meu coração e ele estava me aproximando pouco a pouco.
Coloquei o travesseiro em cima do rosto, como se aquilo fosse espantar os pensamentos que me deixavam vermelha de vergonha.
Alguém bateu na porta do quarto.
— Filha? — era o meu pai. — Está acordada?
Tirei o travesseiro de cima do rosto.
— Já estou indo dormir. — ele entrou e sentou na beirada da cama. — O que a mamãe pediu para me perguntar? — ele fez cara de culpado.
— Quem foi a pessoa que foi com você hoje. Ela disse que o viu de longe ajudando você com a cadeira de rodas para fora do táxi e não o reconheceu entre as pessoas que conheceu na empresa.
— Eu disse que ele era apenas um colega de trabalho. Não se preocupe porque eu não penso em namorar tão cedo.
— Quem está falando sobre namoro? — bancou o inocente.
— Pai, vamos lá. Essa não é a maior preocupação dos pais hoje em dia?
— Só não queremos que você se machuque. Somos seus pais, vamos sempre nos preocupar com você, não importa quão pequenas sejam as coisas.
— Eu sei. É por isso que amo vocês.
Ele sorriu e beijou a minha testa.
— Vou te deixar dormir. Boa noite, .
— Boa noite.
Ele saiu e eu fechei os olhos, mas me perguntei porque naquela escuridão eu só conseguia ver aquele rosto que eu não identificava de quem era, mas sabia a quem pertencia.

Capítulo 12

“A rosa-chá, branca com pontas vermelhas ou cor-de-rosa, seu significado é que você será sempre se lembrado pela pessoa que te presenteou.”

— Onde está a ? — foi a primeira coisa que perguntou quando chegou.
Quase virei para ela e falei: “Sabe que eu também quero saber a mesma coisa?”, mas simplesmente dei de ombros.
— Ela avisou alguma coisa para você? — eu neguei.
— Tenta com o . Talvez ele saiba alguma coisa. — Sarah sugeriu e ligou para o chefe.
Pela cara que ela fez ao ouvir , não parecia ser uma boa notícia. Eu fiz o meu melhor para não parecer preocupado, mas não consegui. Toda hora eu olhava por cima do ombro para ver se já havia terminado a ligação.
— Pessoal, a não vem hoje.
— Aconteceu alguma coisa?
— Parece que ela acordou com muitas dores nas pernas e os pais a levaram ao médico para fazer alguns exames. Nada foi confirmado ainda.
— Achei que ela não sentisse as pernas. — Brian soltou e eu o fuzilei com o olhar.
Não havia nada de errado com a afirmação dele, mas eu não gostava de como aquilo soava.
— Pelo que me disse, a sensibilidade é muito fraca, mas às vezes ela sente algumas dores por causa das inúmeras cirurgias que foram feitas.
Eu engoli em seco e olhou de soslaio para mim, pensando a mesma coisa.
— Uma garota tão vibrante como a suportando tanto...
— Você sabe o que aconteceu com ela, ?
— Na verdade, não. Eles quase nunca falam sobre isso, então não sei se foi uma doença ou um acidente. Tudo o que sei é que ela não nasceu assim porque me mostrou algumas fotos dela mais nova e a parecia saudável.
Eu continuei fingindo concentração no computador para não mostrar interesse na conversa deles.
— Enfim, espero que ela se recupere logo.
— Song, você consegue cuidar de tudo sozinho hoje? — acenei distraidamente.
Durante o dia, me peguei checando o celular várias vezes e quase me bati. O que eu estava fazendo? Por que ela me mandaria mensagem? Não éramos amigos, éramos? Fazia muito tempo que eu não sabia o que era ter amigos, então esse deveria ser o motivo de querer contar a minha história para ela. Para encontrar o apoio que eu só encontrei com .
Simplesmente desliguei o celular e me afundei no trabalho. Não tê-la ao meu lado era estranho, mas fiz o melhor para mantê-la longe da minha mente. Em alguns momentos, eu me dava ao luxo de esquecer quem era, mas logo a realidade me puxava de volta e eu voltava a sentir raiva de mim mesmo.

Algumas horas mais tarde, nos avisou que havia entrado em contato e atualizado seu estado. Felizmente, parecia que tudo estava bem e com medicação, ela havia tratado o problema.
— É impressão minha ou você parece muito mais aliviado? — se encostou na minha mesa.
— É claro que eu estou aliviado. Eu não odeio a garota ao ponto de querer vê-la sofrendo.
— Você não a odeia, Song.
Eu olhei para com uma sobrancelha erguida. Odiava quando ela fazia aquilo. Depois de anos, ela ainda não tinha entendido que não funcionava comigo.
, você não tem trabalho para fazer?
— Você parece melhor quando ela está aqui. Mais feliz e mais... você. Esse agora é apenas uma máscara escondendo quem você é de verdade.
— Você quer ouvir que nós estamos nos dando bem e que eu gosto de trabalhar com ela? — ela parecia satisfeita.
— A personalidade dela é totalmente contrária à sua, é por isso que se dão tão bem. Os opostos se atraem.
— Ela é... Diferente. — admiti. — Ela sabe falar a coisa certa, na hora certa. Eu não me sinto incomodado perto dela.
— Ela sabe alguma coisa sobre o que aconteceu?
Meu mau humor inflamou com aquela pergunta.
— Aqui não é lugar para falar sobre isso.
— Ela sabe sobre o seu pai?
— Não há nada que ela precise saber sobre ele. Ela é minha colega de trabalho, não minha psicóloga.
— Eu quero que você desabafe com alguém tudo que você guarda aí dentro. Não precisa ficar na defensiva.
— Fala sério, . Eu não vou voltar para a terapia. Você parece a minha mãe com essa conversa.
— Eu não estou falando sobre terapia, Song. Estou falando sobre a , sobre ter um amigo para te ajudar. Além disso, você deveria mesmo voltar para a terapia.
— Você quer que eu dê um passo maior do que as minhas pernas podem alcançar. Você nem conhece a garota direito.
— Conheço mais do que você pensa.
, você pode me ajudar com essas telas? — Sarah falou, interrompendo a nossa conversa e eu virei imediatamente para o computador, como se tivesse concentrado ali o tempo todo.
— Vamos lá que eu te mostro. Song, ainda não terminamos essa conversa.
Eu a ignorei deliberadamente. Sabia que suas intenções eram boas, mas às vezes passava dos limites. Eu estava bem. Depois de todo aquele tempo e toneladas de aconselhamento eu estava melhor. Estava sobrevivendo. Aquela parte tinha que ficar para trás. Mas era óbvio que ela havia eleito como a salvadora da pátria e ela faria de tudo para forçar isso acontecer.
***

No dia seguinte, estava de volta. Quando ela chegou, foi rapidamente cercada por , Brian e Sarah. Ela parecia um pouco perdida, mas sorria grandemente e respondia a todas as perguntas.
Em nenhum momento olhou na minha direção e eu fiz questão de me manter distante para não parecer interessado, mas queria muito perguntá-la se estava realmente bem.
— Você está corada. — ouvi Brian comentando e eu procurei em seu rosto sorridente sinais de dor ou de incômodo, mas ela parecia bem, como se nada tivesse acontecido no dia anterior.
— Aposto que você sentiu minha falta. — falou, colocando a cadeira de rodas ao meu lado.
Eu pude olhá-la mais de perto. Como Brian havia dito, suas bochechas estavam mais coradas. Só ela tinha aquela capacidade.
— Se eu senti falta da minha mesa suja? Com certeza. — ironizei.
— Sei que ficou preocupado, mas já estou de volta.
— Eu fiquei mesmo. — sua cara de surpresa com a minha sinceridade foi impagável.
— O que você tem para mim?
Poucos minutos depois, voltamos para a nossa rotina normal com nossos desenhos. Era confortável falar com ela sobre trabalho e poder ensinar o que eu sabia.
— Se você usar esse tipo de gráfico, o resultado vai ser completamente diferente.
Mostrei a diferença para ela em seu próprio computador.
— Como eu não percebi isso antes?
— Não conseguiu analisar isso nos jogos que te passei?
— Eu não posso ficar até o amanhecer jogando para aprender e analisar tudo profundamente e só joguei poucas vezes quando era mais nova.
— E como acabou trabalhando aqui?
— Quem não quer trabalhar aqui?
— Eu sei, mas você escrevia uma webtoon. Você se dá bem tanto com script, como com a ilustração. Poderia trabalhar em uma editora ou algo mais focado nessa área.
— Eu sonho em trabalhar com jogos desde que eu comecei a desenhar. Fiz vários cursos e por isso consegui esse estágio, mas quero estudar e me tornar melhor nisso. Quando tinha oito anos, me mostrou meu primeiro jogo e eu só pensava em quão incrível aquilo era. Nunca fui muito boa com programação e, para mim, a graça não era jogar e sim saber como fazer aquilo acontecer.
— E como acabou indo pelo lado das webtoons?
— Aquilo foi uma aventura adolescente. Antigos amigos postaram alguns desenhos meus com personagens que seriam, originalmente, para um jogo, mas logo eu criei uma história para eles e acabou sendo desse jeito. Acabei aprimorando meus desenhos para traços mais românticos e me distanciando dos jogos.
— Até essa oportunidade. — ela confirmou com a cabeça.
— E você? Como começou? — pensei um pouco antes de responder. Como eu tinha começado a desenhar? Não conseguia me lembrar. Desenhar para mim era natural.
— Eu também sempre soube o que fazer. Sempre amei jogos e desenhar, então foi natural para mim escolher essa carreira. Quase desisti da minha formação há algum tempo e acabei me atrasando, mas me encontrei de novo. Não consigo me ver fazendo qualquer outra coisa.
— Eu entendo essa paixão. Eu me sinto do mesmo jeito.
Seus olhos brilhavam quando ela falava e seu sorriso ficava maior. Minha boca quase a seguiu. Foi estranho.
Aquela emoção era diferente. Minha terapeuta costumava dizer que quando nos privamos muito tempo de algo, o nosso corpo começava a ansiar por isso mais do que o normal. Eu acho que era isso que estava acontecendo comigo naquele momento. Meu coração queria aquela felicidade, mas minha cabeça dizia que eu não merecia.
Fechei os olhos e cerrei os punhos. Odiava aquilo.
— Até quando você vai fazer isso consigo mesmo?
Eu abri os olhos para encontrar me encarando fixamente. Sua proximidade me assustou.
— O quê? — perguntei, assustado.
— Você me ouviu e entendeu o que eu disse.
— Song, onde está o seu celular? — entrou na sala como um foguete.
Eu procurei em cima da mesa, mas haviam tantos papéis que eu não conseguia encontrá-lo.
— Estou te ligando há horas. — não parecia muito feliz.
— O que foi que aconteceu?
Ela indicou com a cabeça para entrarmos em sua sala. Não me parecia ser uma coisa boa. Ela fechou a porta assim que entramos.
— Sua mãe me ligou, disse que não consegue falar com você há vários dias.
— Eu sei, eu a estou ignorando.
— O problema é que ela está aqui.
Meu coração começou a bater alto em meus ouvidos.
— Como é? O que você quer dizer com aqui?
— Aqui no país, na cidade. Ela aterrissou há uma hora, mas já conseguiu chegar aqui no prédio.
— O que ela está fazendo aqui?
— Seu pai está na Tailândia por uma semana e ela–
— Claro, ele saiu e ela pensou em fazer uma visitinha.
— Song... Não pense dessa maneira. — pediu, mas era inevitável. Aquela relação tóxica era conversa antiga.
— Por favor, . Eu não vejo minha mãe há um ano e não tenho a mínima vontade de vê-la agora. A última vez foi ruim o suficiente.
Saí da sala batendo a porta com força atrás de mim.

Capítulo 13

“Os Cravos amarelos são uma exclamação de rejeição ou desdém: ‘Você me desiludiu’.”

Song saiu da sala de , batendo a porta com força.
— Tudo bem? — eu perguntei inutilmente.
Song segurava a cabeça com as mãos, passando-as pelo cabelo. Ele parecia prestes a explodir de raiva. Claro que não estava bem. Seu telefone tocou em cima da mesa e ele empurrou todos os papéis para o lado até encontrá-lo.
— Eu sei que você está aqui. — ele falou em coreano. A voz feminina respondeu alto do outro lado. — Eu não quero saber, mãe. Vá embora.
Eu juro que tentei não prestar atenção à conversa, mas era impossível.
Quando Song levantou e saiu, eu contei até dez. Quer dizer, tentei porque quando cheguei no três, eu já estava destravando a cadeira e indo atrás dele.
Eu sabia que não tinha nada a ver com aquilo e não gostava de ser intrometida, mas ninguém fazia coisa boa com a cabeça quente.
Song subiu pelas escadas, pulando de dois em dois degraus e eu sabia exatamente para onde ele estava indo. Terraço. Era o único lugar na empresa em que ele poderia conversar em particular com ela, sem que ninguém os visse. Tomei o elevador, o que demorou um pouco, pois quando eu cheguei, Song e sua mãe já estavam lá.
Não ousei me aproximar. Song encarava a mulher na sua frente com uma fúria descomunal. De longe, eu não conseguia vê-la direito, mesmo assim, não adiantaria muita coisa. Ela vestia um vestido preto básico, com saltos e joias que brilhavam sob o Sol.
— Como se atreve a vir aqui?
— Filho, você não entende.
— O quê? Ele está na Tailândia agora. Por que não está com ele? Por que só apareceu depois que ele saiu? — Song gritava e ela tentava falar baixo, provavelmente para não o deixar ainda mais nervoso.
— Yunhyeong-a, não–
— Você não entendeu que eu não quero nenhum contato? — ele a cortou com rispidez. — Você não consegue entender o que fizeram para mim?
— Nós só queríamos te proteger. Seu pai...
— Não fale sobre ele. Eu o odeio. E odeio você por apoiar tudo de errado que ele faz. — Song gritou com sua mãe e eu me encolhi.
Os ombros pequenos da mulher sacudiram quando ela começou a chorar. Pela voz de Song, ele parecia prestes a chorar também. Eu não entendia nada sobre aquela situação, mas não consegui sair.
— Song, não fale assim.
— O problema é que vocês não entendem onde estão errados. Você deveria me odiar também. Não me procure mais, por favor.
— Você não sabe o quanto eu sofri durante esse ano.
— Todos nós sofremos, mãe. Simplesmente me esqueça como fez há quatro anos.
— Você sabe que esse é o meu maior arrependimento.
Ela tentou tocá-lo, mas Song se afastou para longe do contato dela.
— Não, eu não quero ouvir sobre isso de novo. Volte para perto dele, onde é o seu lugar.
Ela ignorou e tentou tocá-lo novamente.
— Olhe como você está magro. Não parece que está comendo direito. E ainda trabalhando nesse lugarzinho...
— Vocês dois se merecem.
— Eu não vou sair daqui sem o que eu quero.
— Então é melhor eu ligar para ele?
Song fez menção de pegar o celular e a mulher saltou para frente, tentando agarrá-lo, desesperada.
— Por favor, não!
— Você é lastimável. — ele balançou a cabeça para ela. — Vá embora.
— Você é o meu único filho. Você deveria ser o meu herdeiro. Tudo que eu construí foi para você. Todos esses anos de trabalho para te dar uma vida melhor. E você apenas... Está jogando tudo no ar.
— Apenas vá embora. — ele gritou e ela se encolheu, junto comigo. — Não me procure mais!
Eu manobrei minha cadeira de rodas para fora do terraço e fiquei no corredor, tentando ser imperceptível. Alguns segundos depois a mãe de Song entrou no elevador, muito diferente da mulher que eu havia visto. Recomposta, como se nada tivesse acontecido. Eu nem tentei reconhecê-la, porque seria inútil.
Assim que as portas do elevador se fecharam, eu voltei para o terraço. Song estava sentado com a cabeça entre as mãos, apertando os cabelos. Estava com medo de chegar perto e receber sua dura recusa, mas logo engoli minha a covardia e me aproximei.
— Song? — ele não respondeu. — Yunhyeong?
— Por favor, não me chame assim. — sua voz estava embargada. Ele não levantou a cabeça. — O que você está fazendo aqui? — mordi o lábio, apreensiva.
— Vim ver se estava bem.
— E o que viu foi suficiente? — ele respondeu rudemente, levantando a cabeça.
Seus olhos estavam vermelhos e havia lágrimas manchando em seu rosto. Eu não conhecia sua expressão, mas lágrimas nunca eram bem-vindas.
— Eu sinto muito, Song. Sinto muito mesmo, seja lá o que tenha acontecido entre vocês. — Song limpou as lágrimas.
— Eu a odeio. Eu não queria, mas eu a odeio. Ela... — eu coloquei minha mão em cima da dele. Song congelou, mas eu apertei sua mão na minha e ele não me afastou. — Eu não entendo porque ela faz isso. Eu só queria que ela me deixasse em paz. Me esquecesse.
— Ela é sua mãe. Acho que isso não vai ser possível.
— Eu odeio o fato de ser tão covarde como ela, .
— Você não é covarde. Você está vivendo. Está tentando. Ao contrário dela, você foi embora.
— Eu não tenho coragem de enfrentar o meu passado, eu apenas finjo que nada aconteceu. Mas eu... Eu não consigo esquecer. Me sufoca todos os dias.
Eu puxei Song e o abracei. Ele chorou em meu ombro até não lhe restar mais lágrimas. Foi um choro feio, parecia cheio de dor e eu não consegui segurar as minhas próprias lágrimas.
— Essa raiva não faz bem. — eu falei, tocando suas costas com carinho. — Ela não pode estar dentro de você.
— Eu não sei como vencer isso. Eu não sei como sentir nada além disso.
Eu o abracei ainda mais apertado, sentindo aquele cheiro que já era tão familiar, tentando não só acalmá-lo, mas também me acalmar com sua presença.
Ficamos ali, naquele momento, como se não houvesse mais nada, compartilhando aquela conexão, aquela dor. Seu calor se espalhou por todo meu rosto, aquecendo por fora e por dentro.
Song se recompôs o suficiente para voltarmos, limpando as lágrimas, e o chamou para conversar assim que chegamos. Ele a ignorou, com a desculpa de que estávamos cheios de trabalho.
Durante todo o resto do dia, Song parecia estar no piloto automático. Ele estava aéreo, refazia os desenhos várias vezes e amassava os papéis, sem paciência para os seus próprios erros bobos.
— Song, acho melhor você ir para casa. — o aconselhou depois do segundo lápis quebrado.
— Eu estou bem.
Era impossível definir o que estava passando na cabeça de Song. E ele não falava, então eu ficava apreensiva a todo momento.
— Song, eu estou mandando. Saia antes que você destrua o trabalho de todas essas semanas.
— Que droga, .
Song largou o caderno com força em cima do computador e saiu.
— Eu não sei como aguentei esse garoto até agora.
— Por favor, . Releve. — pedi. — Hoje não foi bom para ele. O que aconteceu... Não foi bonito. — parecia surpresa. Na verdade, chocada.
— Ele te contou?
— Não, ele nunca falaria sobre isso. Eu... Eu vi. Foi horrível.
suspirou e sentou ao meu lado, na cadeira de Song.
— Essa situação, tudo que aconteceu, é tudo horrível. E o fato de a mãe dele estar aqui, piora tudo. Ele não quer contato com os pais, mas ela é a mãe dele. Não vai desistir de fazê-lo voltar para casa.
— E ele não nos deixa entrar, é... frustrante. — a última palavra saiu como um suspiro.
, não se ofenda, mas você contou ao Song sobre a sua doença? — naquele momento, eu fiquei muda. Não fazia ideia do que responder. — Vocês parecem muito próximos, então eu apenas imaginei que–
— Como você sabe sobre a minha doença? Foi o ?
— Não! — ela falou muito rápido. — Não foi o . Assim que te conheci, percebi que você nunca olha muito para o rosto de ninguém e sempre parece perdida quando chega. Uma vez esperamos o elevador para subir juntas e você só me deu bom dia como se eu fosse uma estranha qualquer.
— Então você foi perguntar ao .
— Por favor, não o culpe. Eu o forcei a me contar.
— Não, . Eu não contei para ele, até porque eu e Song ainda temos muita coisa entre nós. Não temos esse tipo de relacionamento.
— Mas você é perfeita para ele. Tudo que Song precisa é de alguém como você para amar.
— Não, tudo que Song precisa é se encontrar. Ele precisa entender seus próprios sentimentos, sejam eles bons ou ruins. O amor por ninguém vai curar isso. Só ele tem esse poder.

Antes que o dia acabasse, eu enviei uma mensagem para confirmar que Song não tinha feito nada impulsivo.
: Oi, estranho.
Song: Oi, estranha.
: Você está bem?
Song: Melhor do que antes.
: estava preocupada com você.
Song: Eu já falei com ela.
: Vou te ver amanhã no trabalho?
Song: Nem que eu não quisesse, eu teria que estar lá. Última semana, lembra?
: Estou ansiosa pelos resultados.
Song: Vamos ganhar.
: Eu espero. Maldivas ♥
Song: E a recompensa de um trabalho bem feito.
: Maldivas... Apenas Maldivas...
***

— Estou muito feliz pelo trabalho que todos realizaram durante essas semanas. Sei que foi um grande desafio, mas a nossa equipe conseguiu se sair muito bem. Sarah, os cenários ficaram incríveis. Você aplicou o conhecimento que a nossa equipe já tinha e superou. Brian, você pagou sua dívida. e Song, vocês dois superaram todas as expectativas com os personagens e todos concordamos que ambos fizemos um ótimo trabalho.
Todos nós aplaudimos o discurso, felizes. Era ótimo ter o nosso esforço reconhecido daquele jeito.
— Mesmo que não sejamos os vencedores, pude ver o potencial de cada um de vocês.
— Já definiram a data de apresentação? — Brian perguntou.
pediu que cada equipe escolhesse dois representantes para apresentarmos amanhã.
Todos nós ficamos muito surpresos com a data tão repentina.
— Foi a única data que ele conseguiu para reunir todos os programadores aqui na filial.
— Já sabe quem vai nos representar?
— Fizemos um sorteio e os escolhidos foram Sarah e Song. Ajudaremos em tudo, mas tenho certeza que vocês se sairão muito bem.
Song e Sarah se reuniram com para saber mais sobre os critérios de apresentação e eu voltei ao meu posto.
Depois de terminada a competição, voltaríamos ao desenho das armaduras de antes e aquilo me desanimou um pouco. O mundo de desenhar personagens era brilhante e convidativo. Me lembrava dos anos mais jovens, antes do acidente, onde minha criatividade corria solta e eu tinha prazer em desenhar e escrever.
A webtoon foi algo totalmente aleatório e o sucesso dela também. Ninguém esperava que tantos leitores fossem gostar. Eu estava preparada para lançar a quarta temporada quando o acidente aconteceu. Depois que acordei do coma, fiquei tão transtornada com minha condição que a webtoon acabou ficando esquecida. Nos meus tempos negros, onde afundei em um buraco de autopiedade, não conseguia nem desenhar.
tinha tentado postar os desenhos que eu tinha preparado para a temporada seguinte, mas acabou tendo que soltar uma nota na plataforma explicando que a história acabaria ali. Quando me recuperei, senti muito pelas pessoas que haviam ficado sem respostas, mas já não fazia sentido continuar. Eu não era a mesma pessoa que havia criado aquela história.
Voltar a desenhar personagens e criar enredos era algo que eu sentia falta. A única coisa que eu sentia falta da minha vida antiga.

Capítulo 14

“A rosa amarela é considerada a flor da amizade, alegria, do afeto e contentamento. Podendo significar novos começos.”

Não podia negar que estava nervoso. O projeto era incrível, mas grande parte do peso estava na apresentação. Todos nos ajudaram muito com o material no dia anterior, então estávamos bem preparados.
— Parece que você vai vomitar a qualquer momento. — a voz de me despertou do devaneio.
— Acho que isso pode acontecer.
— É normal ficar nervoso, eu também estou. Relaxe, vai dar tudo certo.
Ela apertou o meu ombro e me ofereceu um sorriso reconfortante.
— Somos o primeiro grupo. mandou arrumar tudo. — eu e seguimos até os bastidores do auditório. — Confio em vocês. Vou estar lá embaixo na segunda fileira.
— Você trouxe tudo? — confirmou e foi até o computador preparar a apresentação.
— Começaremos em trinta minutos, mas seria bom conferir se está tudo certo.
— A está...
soltou uma exclamação de surpresa e eu corri até onde ela estava.
— O que aconteceu?
Ela abriu várias pastas no computador e seu desespero aumentava.
— A apresentação... Desapareceu. — ela falou baixo, a voz desesperada.
— Aconteceu alguma coisa? — Sarah falou, se aproximando, mas eu tomei a frente para que ela não percebesse nada. estava quase surtando e se Sarah começasse a surtar também, tudo iria por água abaixo.
— Nada, estamos arrumando as coisas. Pode esperar com lá fora. — ela concordou e saiu.
— Song, o que eu vou fazer?
— O que aconteceu, ?
— Eu não sei. O arquivo da apresentação desapareceu.
— Fica calma, nós podemos pegar de volta no seu computador.
Nós dois fomos até a nossa sala e ela rapidamente ligou o computador. Eu poderia ver o suor brotando na testa dela.
— Eu não acredito que fiz isso. — ela resmungou.
— Você achou o arquivo? — comecei a ficar preocupado.
— Eu não copiei o arquivo para o pen drive, eu recortei e colei. O que eu vou fazer, Song? Nosso trabalho inteiro vai ser jogado fora por causa de mim. Eu estava tão focada que não fiz um backup e não enviei para ninguém. Nós... Eu...
, — eu a segurei pelos ombros, fazendo-a parar de balbuciar. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. — Calma. Você fez um ótimo trabalho na apresentação e nós temos tempo para você preparar outra.
— Song, nós podemos perder por causa de mim. Vocês confiaram em mim para esse trabalho, confiou em mim, mas eu acabei estragando tudo. Vamos perder todo trabalho que fizemos.
, isso acontece. Mas preciso que você se recomponha para refazer a apresentação. Temos vinte minutos e eu confio que você vai fazer o melhor. Você pode? — ela acenou.
Durante os próximos minutos eu vi trabalhar incansavelmente na frente do computador, construindo uma nova apresentação que, por incrível que possa parecer, estava melhor do que a primeira. Ela tinha muito talento com aquilo e sabia exatamente o que o público precisava ouvir, cada ponto chave do nosso trabalho.
Enviei uma mensagem para , avisando que estávamos terminando os preparativos.
Faltava apenas cinco minutos para a apresentação quando avisou que havia terminado. Chegamos pelos fundos do auditório e Sarah estava perto de uma síncope.
— Onde vocês estavam? Pontualidade é um critério importante.
Antes que falasse alguma coisa, eu me prontifiquei em responder:
— Estávamos fazendo alguns ajustes na apresentação. Vamos?
Sarah pareceu satisfeita e saiu.
— Obrigada, Song. Acho que se não fosse por você, eu não saberia o que fazer. Muito obrigada mesmo. — ela me ofereceu o seu tipo de sorriso de gratidão e meu coração criou mais um rachadura.
Quando ela fazia aquilo, era difícil continuar olhando para ela impassível. Durante o tempo em que trabalhamos juntos, já havia descoberto várias partes feias sobre mim, mas ela ainda continuava ali, como se aquilo não a enojasse ou a fizesse querer se afastar. Sempre me perguntava se ela descobrisse tudo que eu havia feito no passado, ela ficaria também.
— Vamos, Song. Estão esperando por nós.

Eu e Sarah demos o nosso melhor diante dos desenvolvedores do jogo. Explicamos nosso enredo, nossos personagens e as ideias para os cenários do jogo. Tentamos passar o máximo do trabalho da equipe e pela cara de orgulho de na plateia, havíamos feito um bom trabalho.
Eu não era a pessoa mais indicada para fazer aquilo porque não sabia ser simpático ou carismático. , por outro lado, era naturalmente competente e sabia conquistar todos, mas fiz o meu melhor, colocando minha sinceridade em minhas palavras.
— Eu estou orgulhoso do trabalho que todos fizeram. — começou falando, quando as equipes terminaram de apresentar.
Eu não pude evitar o nervosismo novamente. Odiava aquele tipo de situação. Eu não podia ficar ansioso. Se perdêssemos, eu me culparia pelo trabalho e pela apresentação.
Senti uma mão tocar a minha e congelei sem olhar para o lado. A mão, antes tímida, segurou a minha, entrelaçando nossos dedos firmemente, me passando confiança. Eu olhei para nossas mãos, mas não consegui olhar para ela. Meus pensamentos ficaram confusos e eu prendi a respiração. Estávamos muito perto. Em todos os sentidos. Aquele contato deixou minha mente totalmente em branco.
— Me surpreendi com todos e foi muito difícil chegarmos a uma decisão. Tenho certeza de que a equipe de programação ficou muito animada com o que viram aqui hoje, mas, infelizmente, só uma equipe poderá representar o nosso próximo jogo. — pegou um cartão com o nome da equipe vencedora. — A equipe vencedora que, além de representar o nosso próximo jogo, ganhará o tão famoso prêmio de passar um final de semana nas Maldivas é... A equipe 3, liderada por . Parabéns, pessoal.
— O quê? Nós ganhamos?
— A equipe 3? Somos nós?
— Eu ouvi bem? Nós ganhamos?
Eu não conseguia acreditar no que havia acabado de ouvir. Olhei para que chorava ao meu lado, com um grande sorriso no rosto. Eu não consegui me conter. Soltei sua mão para, sorrindo, abraçá-la.
— Nós conseguimos. Nós realmente conseguimos, Song.
— Parabéns, . Você fez um ótimo trabalho.
— Você foi incrível lá em cima.
veio nos abraçar, não conseguindo conter a felicidade. Eu a deixei me abraçar.
— Se eu soubesse que bastava isso para você me deixar te abraçar, teria pedido por essa competição antes.
Eu revirei os olhos para ela.
e os desenvolvedores do jogo vieram nos parabenizar.
— Parabéns para todos, mas o trabalho duro começa agora. — eles apertaram as mãos de cada um de nós, com sorrisos satisfeitos. — Ficamos muito impressionados com o que vocês apresentaram.
— Estamos ansiosos para trabalhar com vocês.
Agradecemos e recebemos os cumprimentos das outras equipes. foi diretamente para , parabenizá-la.
— Vamos jantar juntos no novo restaurante japonês que abriu.
Eu olhei para , apreensivo. Ela sabia que eu não frequentava aquele tipo de ambiente.
— Eu sinto muito, , mas prefiro comemorar em casa.
— Por favor, Song. — insistiu. — Só hoje.
— Eu vou sair mais cedo.
— Eu também me sinto desconfortável nesses lugares, mas vou pela equipe. — falou.
, não comece.
— Vamos lá, Song. Todos acham que você não gosta de sair com a equipe porque você não gosta deles. E, além do mais, ninguém comemora sozinho.
— Eu não gosto de situações que–
— Que te deixem fora do controle. — ela completou. — Eu sei, mas você não vai beber. Só vamos jantar e falar sobre o trabalho. Você não vai ser obrigado a falar sobre nada que não queira. Você se sente confortável comigo? — acenei, hesitante. — E com ? — concordei novamente.
— Você está vindo com a gente hoje, Song? — Sarah perguntou, de maneira casual.
Provavelmente, esperava meu não para a pergunta. Ela nunca falava daquele jeito comigo, na verdade, ninguém falava daquele jeito comigo porque todos sabiam o jeito que eu respondia ou olhava. Mas não fazia sentido aquele comportamento ali, no momento.
— Como se fosse me deixar faltar... — falei, fingindo uma careta.
— Não acredito que estou vendo isso acontecer. Song acabou de ceder.
Eu olhei para que sorria ainda mais, satisfeita com a minha resposta. Me senti feliz por tê-la feito feliz. Eu era um idiota fingido por pensar daquele jeito?
No carro, sentamos um ao lado do outro, atrás, junto com Brian, e e Sarah na frente.
— Song, — ela falou baixinho, conferindo que Brian, ao nosso lado, não ouvisse. — obrigada por não ter contado a ninguém sobre o que aconteceu na apresentação.
— Amigos não são para isso?
Ela olhou para mim da mesma maneira que eu estava olhando internamente para mim mesmo.
Eu era amigo de ? Seria idiotice se dissesse que não. A enxerida sabia sobre minha mãe e já havia me visto chorar. Eu já havia carregado a garota por quase cem metros para ela não mijar nas calças e havia entrado no mar com ela. Por ela. Nós éramos amigos sim e afirmar aquilo parecia tirar um peso dos meus ombros. Eu não precisava mais provar para mim mesmo que aquilo não era verdade. era boa demais para mim e eu nunca merecia uma amiga como ela, eu sempre saberia disso, mas se ela queria tanto, por que não?
— Somos amigos agora?
— Não somos? — ela riu alto.
— Você está cheio de surpresas hoje, Song.

O restaurante que iríamos era o novo japonês que havia sido aberto no centro. O lugar parecia confortável por fora com várias luzes e decoração oriental. Ajudei a descer do carro.
— Você sabe que não precisa fazer isso o tempo todo, não sabe? Eu fui treinada durante anos a ser independente, mesmo com a minha cadeira de rodas.
— Não é cansativo querer provar o tempo todo que não precisa de ajuda?
me deu um olhar de divertimento e disse:
— Por que você mesmo não responde a essa pergunta? Somos tão parecidos, Song...
— Só pode ser uma brincadeira. — exclamou frustrada quando paramos na frente do restaurante. O lugar não tinha rampa.
— Tudo bem, gente. Só vou precisar de duas pessoas fortes para me ajudarem.
Eu e Brian seguramos um em cada lado da cadeira e passou os braços pelos nossos pescoços enquanto a erguemos pelos quatro degraus da entrada.
— Obrigada, cavalheiros.
— Boa noite, mesa para cinco? — eu olhei para o host na entrada com uma carranca.
— Primeiro uma rampa, não acha?
— Song, tudo bem. — falou, segurando a minha mão e me puxando para trás.
O homem abaixou a cabeça, envergonhado, mas minha raiva não diminuiu. Imaginei quantas vezes teve que enfrentar aquele tipo de situação antes.
— Me desculpem. Eu sinto muito mesmo.
— Nós pedimos desculpa. Sabemos que não é sua culpa. — falou, me olhando furiosamente. — Respondendo à sua pergunta: sim, mesa para cinco.
Ótimo, a primeira confusão, e eu ainda nem tinha entrado no lugar. Se a noite continuasse daquele jeito, alguma coisa ruim iria acontecer e todos iriam se arrepender de ter me convidado.




Continua...



Nota da autora: Muito obrigada por todos que estão acompanhando junto comigo!



Outras Fanfics:
Come Back Home
For Every Season


Nota da beta: Eu mal posso esperar por essa viagem, sério...
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Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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