Cena 1
Tinham sido quatro anos. Voltar à minha cidade foi como um sopro de ar fresco e um soco no estômago ao mesmo tempo: os novos amigos certos e os velhos amigos errados, a velha vida apontando o dedo e a nova vida apontando o caminho. Eu ainda não sabia ao certo como lidar com tudo aquilo, mas, depois de quatro anos reclusa em um vilarejo em algum lugar do Nepal, eu me sentia feliz com minha nova versão de mim mesma e pronta para apagar a imagem do ser humano desprezível que eu deixara ao partir. O lado ruim de morar em uma cidade pequena é que todo mundo te conhece e eu era conhecida pela fortuna dos meus pais e o terrível senso de futilidade que desenvolvi junto a ela. O primeiro soco que eu transformaria em ar fresco.
A única coisa que havia mudado era o novo canteiro de flores na praça principal. Na verdade, aquilo nem era uma praça, estava mais para um monte de concreto em forma de um grande quadrado com escadas laterais opostas, cada uma com exatos quatro degraus. O canteiro rodeava os quatro lados e as flores em tons de vermelho, branco, amarelo e cor de rosa davam um ar quase romântico ao lugar.
Eu tinha acabado de sair de uma loja de presentes e passava em frente a um dos canteiros quando um barulho de pneu queimando no asfalto me fez virar e parar. Por pouco um carro não passou por cima de uma moto, mas, quando me virei novamente, alguma coisa muito grande e peluda passou por cima de mim. Caí mais pelo susto do que pelo peso do enorme golden agora em cima de mim, uma pata gigante esmagando meu estômago enquanto o fucinho gelado deslizava em minha nuca. Eu não sabia se ria ou tentava me salvar, porque o cachorro era impressionantemente grande. Um assovio ao longe fez com que ele saisse correndo, mas permaneci alguns segundos deitada na calçada tentando absorver o acontecimento e contemplando a dor na bunda.
- Caramba, você tá bem? - ouvi um timbre masculino, mas bastante suave, perguntar. Eu ainda não me movia direito.
- Sim, acho que sim... Eu só consegui ver a mão dele cortar a imagem do céu, flutuando no ar, e segurei-a firmemente. Ele então me puxou e, por um momento, parei de respirar, porque o baque da visão que tive foi o soco que eu ainda não estava preparada para tomar. E ele também não. Ficamos em silêncio por um longo minuto, a mão dele ainda na minha, meu olhar incerto ainda no dele. Ele estava diferente, mais homem, mais bonito. Bem mais bonito. Um nó na garganta e um suspiro rápido. - Oi, ... - eu disse quase num sussurro, então ele se moveu.
- Olá... - mais alguns segundos e ele largou minha mão, devagar. - Desculpe pelo Aslan.
- Está tudo bem - ele assentiu levemente e desviou os olhos por um momento, dando um passo à frente para pegar alguma coisa no chão. Minha sacola.
- Isso é seu?
- É sim, obrigada.
- Ele te machucou?
- Não, foi só o susto, tá tudo bem mesmo.
- Certo.
Eu quis perguntar como ele estava, mas não consegui. Em vez disso permaneci parada, sem graça, sem reação diante à expressão sem expressão dele, os olhos incertos, inseguros, surpresos, confusos. Ele assentiu novamente, dando um passo para trás, e então se virou e foi embora. Meu coração batia forte e atravessei a rua antes que minhas pernas falhassem e não conseguisse voltar para casa.
A única coisa que havia mudado era o novo canteiro de flores na praça principal. Na verdade, aquilo nem era uma praça, estava mais para um monte de concreto em forma de um grande quadrado com escadas laterais opostas, cada uma com exatos quatro degraus. O canteiro rodeava os quatro lados e as flores em tons de vermelho, branco, amarelo e cor de rosa davam um ar quase romântico ao lugar.
Eu tinha acabado de sair de uma loja de presentes e passava em frente a um dos canteiros quando um barulho de pneu queimando no asfalto me fez virar e parar. Por pouco um carro não passou por cima de uma moto, mas, quando me virei novamente, alguma coisa muito grande e peluda passou por cima de mim. Caí mais pelo susto do que pelo peso do enorme golden agora em cima de mim, uma pata gigante esmagando meu estômago enquanto o fucinho gelado deslizava em minha nuca. Eu não sabia se ria ou tentava me salvar, porque o cachorro era impressionantemente grande. Um assovio ao longe fez com que ele saisse correndo, mas permaneci alguns segundos deitada na calçada tentando absorver o acontecimento e contemplando a dor na bunda.
- Caramba, você tá bem? - ouvi um timbre masculino, mas bastante suave, perguntar. Eu ainda não me movia direito.
- Sim, acho que sim... Eu só consegui ver a mão dele cortar a imagem do céu, flutuando no ar, e segurei-a firmemente. Ele então me puxou e, por um momento, parei de respirar, porque o baque da visão que tive foi o soco que eu ainda não estava preparada para tomar. E ele também não. Ficamos em silêncio por um longo minuto, a mão dele ainda na minha, meu olhar incerto ainda no dele. Ele estava diferente, mais homem, mais bonito. Bem mais bonito. Um nó na garganta e um suspiro rápido. - Oi, ... - eu disse quase num sussurro, então ele se moveu.
- Olá... - mais alguns segundos e ele largou minha mão, devagar. - Desculpe pelo Aslan.
- Está tudo bem - ele assentiu levemente e desviou os olhos por um momento, dando um passo à frente para pegar alguma coisa no chão. Minha sacola.
- Isso é seu?
- É sim, obrigada.
- Ele te machucou?
- Não, foi só o susto, tá tudo bem mesmo.
- Certo.
Eu quis perguntar como ele estava, mas não consegui. Em vez disso permaneci parada, sem graça, sem reação diante à expressão sem expressão dele, os olhos incertos, inseguros, surpresos, confusos. Ele assentiu novamente, dando um passo para trás, e então se virou e foi embora. Meu coração batia forte e atravessei a rua antes que minhas pernas falhassem e não conseguisse voltar para casa.
Cena 2
Uma semana depois do aniversário do meu irmão, eu estava no shopping com minha cunhada. Depois de eu ter comprado jeans novos e ela, quatrocentos e noventa e cinco vestidos e setecentos e oitenta e nove pares de sapatos, nós sentamos na praça de alimentação para tomar sorvete. Meus pés só doeram assim aos 9 anos, quando comecei a usar salto e esnobar quem não usava.
- E aí, , como está sendo estar de volta?
- Um pouco estranho - confessei. - É bastante solitário aqui agora, mas também é bom.
- Eu estou extremamente surpresa com seu nível de mudança. Não sabe como estou feliz por você, querida - Lana pousou uma das mãos no meu antebraço e sorriu carinhosamente, como sempre fazia. Ela namorava meu irmão há sete anos e acompanhara todo o projeto Despertar da de perto. Autodescoberta e evolução de consciência são processos dolorosos, mas valiosos.
- Obrigada, Lana.
- Não se preocupe, logo você encontrará pessoas legais e recomeçará sua vida. Qual sabor você quer?
- Chocolate com menta, por favor.
O shopping não estava cheio, mas eu conhecia algumas pessoas que passavam e outras que estavam sentadas ao nosso redor. Nenhuma delas tinha uma lembrança positiva sobre mim, o que era fácil de perceber devido aos olhares tortos que eu recebia durante o abandono de Lana. Eu não culpava nenhuma delas, pelo contrário, só estava colhendo o que tinha plantado. Eu era cem por cento responsável.
Tão responsável por elas quanto pelo par de olhos me olhando duas mesas à frente.
- Já sabe o que vai fazer agora? - Lana perguntou enquanto sentava, bloqueando minha visão. Eu sentia o sangue gelando nas veias.
- Fazer?
- É, da vida. Foram quatro anos o quê, meditando? Qual o próximo passo? - ela colocou uma quantidade generosa de sorvete na boca e eu ri com a pergunta.
- Bom, eu fiz mais do que só meditar, mas ainda não sei qual o próximo passo. Ainda nem sei direito por que voltei pra cá.
- Preferiria ter continuado lá?
- Hm, não... só não sei se aqui foi a melhor ideia - respondi, mentindo para mim mesma.
- Aqui foi a escolha perfeita, querida - ela piscou descontraidamente e sorriu. - Ainda existem alguns demônios a encarar.
Deixei o sorvete derreter por completo dentro da boca antes de engolir e brinquei com a pazinha por um momento. Dobrei intencional e levemente a cabeça, como se estivesse me alongando, e bati os olhos em rindo de alguma coisa. Ao lado dele meu demônio ria junto, a camiseta branca surrada, o piercing ainda no lábio. No total eu precisaria encarar seis deles, mas apenas um realmente me importava.
- A gente pode passar em uma perfumaria antes de ir? O me pediu pra comprar um perfume pra ele.
- Claro - respondi sem saber exatamente o que ela tinha perguntado. - Quando quiser.
- Vamos, então? Já fiquei tempo demais aqui dentro - Lana se levantou e pegou parte das cinco mil sacolas que coloriam o chão, e eu peguei a outra parte, ficando confusa sobre como carregar as sacolas e o sorvete ao mesmo tempo. Precisei terminá-lo em duas colheradas que fizeram meus dentes pedir socorro. - Cuidado com a vidraria! - ouvi-a gritar enquanto passava ao lado da mesa em que se encontrava.
Respirei fundo e a segui, tendo que andar de lado por causa do volume. foi o primeiro com quem cruzei o olhar, e ao contrário do que pensei ele apenas acenou com a cabeça e sorriu educadamente. Fiz o mesmo, e aí foi a vez de . Olhar incerto, sorriso de canto, movimentos rápidos e virei o corpo, batendo as sacolas na cara dele. riu, murmurou e eu bati as sacolas opostas na nuca dele quando me virei de novo. riu, murmurou e eu não sabia se enfiava minha cara numa Chanel ou numa Prada.
- Desculpa! - disse num fio rouco, meus olhos tão abertos que poderiam sair das órbitas a qualquer momento. Minhas bochechas esquentaram tão rápidas que me vi paralizada.
- Tudo bem, estamos quites - ele soou tranquilo enquanto segurava o riso. Eu fiquei tão sem ação que não consegui fazer nada, e aí o que sobrou foi encará-lo sem uma expressão definida pelo próximo quarto de minuto. sustentou o olhar de volta o tempo todo e eu poderia estar muito louca, mas jurava conseguir vê-lo passar de diversão para raiva, para tristeza, para dor, para incerteza. Quando percebi que havia passado tempo demais ali, ergui os olhos para , que me olhava com curiosidade, e voltei-os para . Engoli em seco e, antes de sairmos do campo de visão um do outro, falei a única coisa que queria.
- Me desculpe.
- E aí, , como está sendo estar de volta?
- Um pouco estranho - confessei. - É bastante solitário aqui agora, mas também é bom.
- Eu estou extremamente surpresa com seu nível de mudança. Não sabe como estou feliz por você, querida - Lana pousou uma das mãos no meu antebraço e sorriu carinhosamente, como sempre fazia. Ela namorava meu irmão há sete anos e acompanhara todo o projeto Despertar da de perto. Autodescoberta e evolução de consciência são processos dolorosos, mas valiosos.
- Obrigada, Lana.
- Não se preocupe, logo você encontrará pessoas legais e recomeçará sua vida. Qual sabor você quer?
- Chocolate com menta, por favor.
O shopping não estava cheio, mas eu conhecia algumas pessoas que passavam e outras que estavam sentadas ao nosso redor. Nenhuma delas tinha uma lembrança positiva sobre mim, o que era fácil de perceber devido aos olhares tortos que eu recebia durante o abandono de Lana. Eu não culpava nenhuma delas, pelo contrário, só estava colhendo o que tinha plantado. Eu era cem por cento responsável.
Tão responsável por elas quanto pelo par de olhos me olhando duas mesas à frente.
- Já sabe o que vai fazer agora? - Lana perguntou enquanto sentava, bloqueando minha visão. Eu sentia o sangue gelando nas veias.
- Fazer?
- É, da vida. Foram quatro anos o quê, meditando? Qual o próximo passo? - ela colocou uma quantidade generosa de sorvete na boca e eu ri com a pergunta.
- Bom, eu fiz mais do que só meditar, mas ainda não sei qual o próximo passo. Ainda nem sei direito por que voltei pra cá.
- Preferiria ter continuado lá?
- Hm, não... só não sei se aqui foi a melhor ideia - respondi, mentindo para mim mesma.
- Aqui foi a escolha perfeita, querida - ela piscou descontraidamente e sorriu. - Ainda existem alguns demônios a encarar.
Deixei o sorvete derreter por completo dentro da boca antes de engolir e brinquei com a pazinha por um momento. Dobrei intencional e levemente a cabeça, como se estivesse me alongando, e bati os olhos em rindo de alguma coisa. Ao lado dele meu demônio ria junto, a camiseta branca surrada, o piercing ainda no lábio. No total eu precisaria encarar seis deles, mas apenas um realmente me importava.
- A gente pode passar em uma perfumaria antes de ir? O me pediu pra comprar um perfume pra ele.
- Claro - respondi sem saber exatamente o que ela tinha perguntado. - Quando quiser.
- Vamos, então? Já fiquei tempo demais aqui dentro - Lana se levantou e pegou parte das cinco mil sacolas que coloriam o chão, e eu peguei a outra parte, ficando confusa sobre como carregar as sacolas e o sorvete ao mesmo tempo. Precisei terminá-lo em duas colheradas que fizeram meus dentes pedir socorro. - Cuidado com a vidraria! - ouvi-a gritar enquanto passava ao lado da mesa em que se encontrava.
Respirei fundo e a segui, tendo que andar de lado por causa do volume. foi o primeiro com quem cruzei o olhar, e ao contrário do que pensei ele apenas acenou com a cabeça e sorriu educadamente. Fiz o mesmo, e aí foi a vez de . Olhar incerto, sorriso de canto, movimentos rápidos e virei o corpo, batendo as sacolas na cara dele. riu, murmurou e eu bati as sacolas opostas na nuca dele quando me virei de novo. riu, murmurou e eu não sabia se enfiava minha cara numa Chanel ou numa Prada.
- Desculpa! - disse num fio rouco, meus olhos tão abertos que poderiam sair das órbitas a qualquer momento. Minhas bochechas esquentaram tão rápidas que me vi paralizada.
- Tudo bem, estamos quites - ele soou tranquilo enquanto segurava o riso. Eu fiquei tão sem ação que não consegui fazer nada, e aí o que sobrou foi encará-lo sem uma expressão definida pelo próximo quarto de minuto. sustentou o olhar de volta o tempo todo e eu poderia estar muito louca, mas jurava conseguir vê-lo passar de diversão para raiva, para tristeza, para dor, para incerteza. Quando percebi que havia passado tempo demais ali, ergui os olhos para , que me olhava com curiosidade, e voltei-os para . Engoli em seco e, antes de sairmos do campo de visão um do outro, falei a única coisa que queria.
- Me desculpe.
Cena 3
era um projeto de ser humaninho com não mais do que noventa centímetros e um cérebro de QI superior à qualquer criança da mesma idade. Aos 4 anos ele vestia jeans escuros, camisa social preta, All Star branco e óculos quadrados que faziam dele a criança mais cobiçada do playground. Seus cabelos dourados eram cuidadosamente cortados e eu jurava que minha tia passava spray no mini topete arquitetado para parar na altura ideal. Ele era uma mistura perfeita de estilo, inteligência e generosidade que eu só estava conhecendo agora.
- Você viveu com monges? - ele perguntou enquanto caminhávamos pela cidade escura.
- Você conhece essa palavra? - rebati, espantada com a pergunta.
- Ouvi papai falar, aí procurei no Google. Parece um estilo de vida interessante.
Eu olhei para baixo, abismada com o fato dele ter dito 'procurei no Google' e 'estilo de vida interessante' numa mesma frase. O que esse pirralho sabia sobre estilo de vida?
- Você é mesmo esperto... - disse mais para mim. - Bom, eu vivi com alguns, sim.
- Legal! Eles usam roupas engraçadas? Eu vi na internet que eles não têm cabelo - eu ri.
- Verdade, nenhum deles tem um topete lindo como o seu.
- Sobre o que vocês conversavam?
- Ah, bem, na maioria das vezes sobre coisas da vida.
- Entendo - ele disse num tom sério quase adulto e franzi o cenho, rindo baixinho.
- Você ainda é muito pequenino para entender, coisa linda.
- Hm... - ele ficou pensativo por um segundo, a mãozinha delicada na minha enquanto atravessávamos a rua até a pseudo praça. - Às vezes a mamãe fica brava com o papai porque ele não fica muito perto dela nas festas, mas quando voltamos pra casa ele sempre segura a mão dela no carro todo o caminho. A mamãe não percebe que o papai é carinhoso do jeito dele só porque ele não é do jeito dela. Isso é uma coisa da vida, não é?
Eu parei de andar no momento em que terminou de falar, fascinada com a qualidade da observação daquela criança. Por um momento imaginei o quão trabalhoso talvez fosse ser pai de alguém com o nível de consciência dele, porque estava, obviamente, muitas vidas à frente. De repente me senti pequenina perto dele.
- É, é sim - nós voltamos a andar, subindo a escada para atravessar a praça, e sussurrei para mim. - Você vai enlouquecer minha tia.
soltou minha mão e saiu correndo para pular na fonte seca central. Eram pouco mais de oito horas da noite e poucas pessoas ainda circulavam pelas ruas bem iluminadas. Senti-me bem com a brisa que soprou meu rosto e olhei para o céu sem estrelas, caminhando sem pressa. corria com os braços abertos em volta da fonte e segurou minha mão novamente quando passei por ela, voltando a andar do meu lado. Foi só quando nos aproximamos do outro lado da praça que meu sangue ferveu para, em seguida, congelar nas veias.
Eles estavam lá, todos os seis, sentados em uma roda ao meu lado esquerdo. Qualquer tipo de riso e conversa cessou assim que nos percebemos e consegui sentir raios de energia cortando meu corpo com a precisão de uma faca. Se encontrar já tinha sido desconfortável, encontrar o grupo estava sendo o próprio abismo. Achei que seria rápido, que passaria por eles e seria aquilo, mas soltou a mão e correu na direção da última pessoa com quem eu gostaria de lidar tão cedo.
- ! - vi-o pular no banco e se jogar em cima de , que o abraçou com gosto. Quis me jogar dos quatro degraus.
- E ai, ferinha?
- Minha guitarra já chegou?
- Hmm, será? Vai ter que passar na loja amanhã pra descobrir - abriu a boca e deu um sorriso largo, fazendo um movimento de vitória com o braçinho. Me perguntei se ele queria uma guitarra para aprender ou para ensinar.
- Maneiro!
Então olhou para mim, os olhos duros, o sorriso desfeito, e não consegui olhá-lo por mais de meio segundo. Pela visão periférica podia ver que Chad e Dylan, no banco ao meu lado, me ignoravam, enquanto Frank parecia indeciso. voltou a falar e dei um passo para trás, olhando para o chão. e estavam no banco de frente para mim, mas eu me sentia tão oprimida que não consegui olhá-los. Toda brisa que batia parecia cortar mais um pouco e eu era um mix de vergonha, culpa, tristeza e arrependimento.
- , você conhece o ? - perguntou. Precisei respirar fundo antes de levantar a cabeça e olhar para os dois, sem graça até a última gota. Sorri com os lábios apertados e assenti. - Ele trabalha na melhor loja do mundo!
Ouvi rir.
- Vamos? Está ficando tarde - falei num fio de voz.
- Me leva lá amanhã?
- Hã, sua mãe pode te levar. Vamos?
- A mamãe trabalha e só volta quando o já fechou, não quero esperar até o final de semana! Por favoooor? - me olhava com aquela súplica infantil no olhar e eu sabia que ele não desistiria enquanto eu não concordasse, mas a ideia de me encontrar era intolerável para por motivos diferentes do que eram para mim.
- Eu levo na sua casa pra você, o que acha?
- Sério? Maneiro! Valeu, , você é o melhor!
o abraçou e desceu, mas fez questão de um high five com todos eles. Quando chegou em , começou a rir.
- Esse garoto é uma graça.
- Alguém na família tinha que ser - rebateu. Senti o corpo todo queimar.
- - repreendeu suavemente.
Foi a primeira vez que eu realmente olhei para . Seus olhos eram tão frios e tão cheios de ódio que me senti instantaneamente vulnerável e retraída e envergonhada e apreensiva, tudo numa intensidade muito maior. Meu coração batia rápido e eu estava ficando sem lábio para morder, mas eu poderia culpá-lo?
- , vamos? - pedi pela terceira vez, mas ele permaneceu parado ao meu lado, o rostinho confuso, então olhou para e o questionou.
- O que você quis dizer com isso?
Eu consegui sentir o ar pesar nas costas de todo mundo porque ninguém esperava por aquilo. De repente ninguém mais respirava.
- Nada, garoto, ele é besta assim mesmo - respondeu, só que o pequeno gênio era um pequeno gênio.
- Você não gosta dela?
Silêncio. não soube o que responder e eu via olhar para mim, ele e . então também me olhou e, mesmo tremendo da cabeça aos pés, eu neguei com a cabeça.
- Por que ele não gosta de você? - ele continuou, uma criança sendo criança, e me ocorreu que talvez aquele serzinho estivesse criando o espaço perfeito para que eu iniciasse minha tentativa de reparar meus erros. Respirei fundo, tentei relaxar os ombros e fui sincera em minha resposta o tanto quanto pude e minha voz deixava.
- Porque eu já fiz muitas coisas que prejudicaram todos eles.
Silêncio. O vento batia nas folhas. Meus dentes batiam um nos outros. batia em todos nós sem saber.
- Então nenhum deles gosta de você?
Eu soltei uma risada rápida sem saber muito bem o motivo e senti o baque da pergunta logo em seguida, quando minha garganta começou a arder.
- Não.
- Por que você fez essas coisas ruins? Aquela pergunta foi o golpe final que ele nem sabia que tinha dado. Todas as minhas perguntas pessoais até agora tinham girado em torno dessa e a verdade é que eu não tinha uma boa resposta, por isso abri e fechei a boca algumas vezes antes de alguma coisa sair. Às vezes a vida nos coloca onde temos de estar.
- Porque eu me perdi no caminho.
se aproximou, pegou minha mão e olhou para mim lá de baixo.
- É uma das coisas da vida? - perguntou com certo carinho na vozinha infantil e dessa vez eu ri de verdade, baixinho.
- É sim.
- Ainda te vejo amanhã, ? - se voltou a ele, mas continuei olhando os cabelos dourados até que se voltassem a mim de novo. - Vamos?
Sorri sinceramente pela primeira vez na noite e a última coisa que vi antes de chegar ao último degrau foi o rosto iluminado de .
- Você viveu com monges? - ele perguntou enquanto caminhávamos pela cidade escura.
- Você conhece essa palavra? - rebati, espantada com a pergunta.
- Ouvi papai falar, aí procurei no Google. Parece um estilo de vida interessante.
Eu olhei para baixo, abismada com o fato dele ter dito 'procurei no Google' e 'estilo de vida interessante' numa mesma frase. O que esse pirralho sabia sobre estilo de vida?
- Você é mesmo esperto... - disse mais para mim. - Bom, eu vivi com alguns, sim.
- Legal! Eles usam roupas engraçadas? Eu vi na internet que eles não têm cabelo - eu ri.
- Verdade, nenhum deles tem um topete lindo como o seu.
- Sobre o que vocês conversavam?
- Ah, bem, na maioria das vezes sobre coisas da vida.
- Entendo - ele disse num tom sério quase adulto e franzi o cenho, rindo baixinho.
- Você ainda é muito pequenino para entender, coisa linda.
- Hm... - ele ficou pensativo por um segundo, a mãozinha delicada na minha enquanto atravessávamos a rua até a pseudo praça. - Às vezes a mamãe fica brava com o papai porque ele não fica muito perto dela nas festas, mas quando voltamos pra casa ele sempre segura a mão dela no carro todo o caminho. A mamãe não percebe que o papai é carinhoso do jeito dele só porque ele não é do jeito dela. Isso é uma coisa da vida, não é?
Eu parei de andar no momento em que terminou de falar, fascinada com a qualidade da observação daquela criança. Por um momento imaginei o quão trabalhoso talvez fosse ser pai de alguém com o nível de consciência dele, porque estava, obviamente, muitas vidas à frente. De repente me senti pequenina perto dele.
- É, é sim - nós voltamos a andar, subindo a escada para atravessar a praça, e sussurrei para mim. - Você vai enlouquecer minha tia.
soltou minha mão e saiu correndo para pular na fonte seca central. Eram pouco mais de oito horas da noite e poucas pessoas ainda circulavam pelas ruas bem iluminadas. Senti-me bem com a brisa que soprou meu rosto e olhei para o céu sem estrelas, caminhando sem pressa. corria com os braços abertos em volta da fonte e segurou minha mão novamente quando passei por ela, voltando a andar do meu lado. Foi só quando nos aproximamos do outro lado da praça que meu sangue ferveu para, em seguida, congelar nas veias.
Eles estavam lá, todos os seis, sentados em uma roda ao meu lado esquerdo. Qualquer tipo de riso e conversa cessou assim que nos percebemos e consegui sentir raios de energia cortando meu corpo com a precisão de uma faca. Se encontrar já tinha sido desconfortável, encontrar o grupo estava sendo o próprio abismo. Achei que seria rápido, que passaria por eles e seria aquilo, mas soltou a mão e correu na direção da última pessoa com quem eu gostaria de lidar tão cedo.
- ! - vi-o pular no banco e se jogar em cima de , que o abraçou com gosto. Quis me jogar dos quatro degraus.
- E ai, ferinha?
- Minha guitarra já chegou?
- Hmm, será? Vai ter que passar na loja amanhã pra descobrir - abriu a boca e deu um sorriso largo, fazendo um movimento de vitória com o braçinho. Me perguntei se ele queria uma guitarra para aprender ou para ensinar.
- Maneiro!
Então olhou para mim, os olhos duros, o sorriso desfeito, e não consegui olhá-lo por mais de meio segundo. Pela visão periférica podia ver que Chad e Dylan, no banco ao meu lado, me ignoravam, enquanto Frank parecia indeciso. voltou a falar e dei um passo para trás, olhando para o chão. e estavam no banco de frente para mim, mas eu me sentia tão oprimida que não consegui olhá-los. Toda brisa que batia parecia cortar mais um pouco e eu era um mix de vergonha, culpa, tristeza e arrependimento.
- , você conhece o ? - perguntou. Precisei respirar fundo antes de levantar a cabeça e olhar para os dois, sem graça até a última gota. Sorri com os lábios apertados e assenti. - Ele trabalha na melhor loja do mundo!
Ouvi rir.
- Vamos? Está ficando tarde - falei num fio de voz.
- Me leva lá amanhã?
- Hã, sua mãe pode te levar. Vamos?
- A mamãe trabalha e só volta quando o já fechou, não quero esperar até o final de semana! Por favoooor? - me olhava com aquela súplica infantil no olhar e eu sabia que ele não desistiria enquanto eu não concordasse, mas a ideia de me encontrar era intolerável para por motivos diferentes do que eram para mim.
- Eu levo na sua casa pra você, o que acha?
- Sério? Maneiro! Valeu, , você é o melhor!
o abraçou e desceu, mas fez questão de um high five com todos eles. Quando chegou em , começou a rir.
- Esse garoto é uma graça.
- Alguém na família tinha que ser - rebateu. Senti o corpo todo queimar.
- - repreendeu suavemente.
Foi a primeira vez que eu realmente olhei para . Seus olhos eram tão frios e tão cheios de ódio que me senti instantaneamente vulnerável e retraída e envergonhada e apreensiva, tudo numa intensidade muito maior. Meu coração batia rápido e eu estava ficando sem lábio para morder, mas eu poderia culpá-lo?
- , vamos? - pedi pela terceira vez, mas ele permaneceu parado ao meu lado, o rostinho confuso, então olhou para e o questionou.
- O que você quis dizer com isso?
Eu consegui sentir o ar pesar nas costas de todo mundo porque ninguém esperava por aquilo. De repente ninguém mais respirava.
- Nada, garoto, ele é besta assim mesmo - respondeu, só que o pequeno gênio era um pequeno gênio.
- Você não gosta dela?
Silêncio. não soube o que responder e eu via olhar para mim, ele e . então também me olhou e, mesmo tremendo da cabeça aos pés, eu neguei com a cabeça.
- Por que ele não gosta de você? - ele continuou, uma criança sendo criança, e me ocorreu que talvez aquele serzinho estivesse criando o espaço perfeito para que eu iniciasse minha tentativa de reparar meus erros. Respirei fundo, tentei relaxar os ombros e fui sincera em minha resposta o tanto quanto pude e minha voz deixava.
- Porque eu já fiz muitas coisas que prejudicaram todos eles.
Silêncio. O vento batia nas folhas. Meus dentes batiam um nos outros. batia em todos nós sem saber.
- Então nenhum deles gosta de você?
Eu soltei uma risada rápida sem saber muito bem o motivo e senti o baque da pergunta logo em seguida, quando minha garganta começou a arder.
- Não.
- Por que você fez essas coisas ruins? Aquela pergunta foi o golpe final que ele nem sabia que tinha dado. Todas as minhas perguntas pessoais até agora tinham girado em torno dessa e a verdade é que eu não tinha uma boa resposta, por isso abri e fechei a boca algumas vezes antes de alguma coisa sair. Às vezes a vida nos coloca onde temos de estar.
- Porque eu me perdi no caminho.
se aproximou, pegou minha mão e olhou para mim lá de baixo.
- É uma das coisas da vida? - perguntou com certo carinho na vozinha infantil e dessa vez eu ri de verdade, baixinho.
- É sim.
- Ainda te vejo amanhã, ? - se voltou a ele, mas continuei olhando os cabelos dourados até que se voltassem a mim de novo. - Vamos?
Sorri sinceramente pela primeira vez na noite e a última coisa que vi antes de chegar ao último degrau foi o rosto iluminado de .
Cena 4
O negócio de morar em cidade pequena é que qualquer evento nada a ver é um convite para qualquer cidadão montar sua barraca de qualquer coisa nas redondezas. O evento em questão era grande dessa vez: o Circo Triunfo, montado na área camposa da cidade, tinha trazido todas as suas três barracas coloridas para alegrar o final de semana da população, que desde às cinco horas se entretia entre barracas de pesca, argolas e todas as outras cinquenta montadas pelos moradores que possuíam algum tipo de comércio, sendo este qualquer tipo de comércio mesmo. Eram sete horas da noite e eu tinha acabado de sair do banho quando ouvi gritar lá de baixo que estava saindo de casa.
Estava morando com ele desde que voltara porque não pareceu uma boa ideia para nenhum de nós que eu ficasse sozinha num primeiro momento. Era bom ter meu irmão por perto de novo e, de certa forma, pela primeira vez, já que eu passara muito tempo ocupada escolhendo batom para construir uma relação saudável com ele. Ser uma irmã estava sendo prazeroso e bastante gratificante.
Acho que foi em um desses momentos reflexivos entre secar os cabelos e colocar uma roupa que me peguei pensando em . Ele era esquisito naquela época, sempre com a mesma camiseta azul surrada e os cabelos pintados de vermelho, a postura desleixada, a calça larga que deixava a cueca à mostra, mas dono do sorriso mais bonito que eu já tinha visto. Talvez por isso ele me irritasse tanto - havia uma queda negada ali, um interesse não permitido, não demonstrado. Em que mundo uma patricinha mimada como eu sairia com um tipo como ele? Onde estaria o cabimento naquilo? O que meus amigos fúteis e idiotas diriam e que imagem passaria para todos que me idolatravam naquela escola?
Quanta vida jogada fora.
Balancei a cabeça para espantar as memórias, que não mudariam, e saí de casa com a intenção de me divertir um pouco, fosse como fosse. Levaria cerca de meia hora a pé para chegar ao circo, caminho que fiz sem nenhuma pressa, e a primeira coisa que vi ao chegar foi a grande tenda vermelha e azul iluminada por luzes brancas vindas do chão. Ao redor, as barracas eram regulares e muito bem distribuídas, mesas enfeitadas preenchiam o gramado. O lugar estava lotado. Peguei o celular para mandar uma mensagem a , mas estava sem sinal. Seria bastante difícil encontrar ele e Lana em meio à tanta gente e o pensamento fez meus músculos enrigerecem um pouco. Era a primeira vez que ficava sozinha em um evento naquela cidade e, poderia ser coisa da minha cabeça, mas já sentia alguns olhares pesados em cima de mim.
Andei pelo espaço tentando ignorar a sensação ruim no meu peito e parei em uma barraca de churros depois de ter comprado algumas fichas. As opções de sabores eram tantas que me vi perdida por um instante e acabei escolhendo um recheado com chocolate. Mal tinha dado um passo fora da barraca quando vi uma garota branquinha a alguns metros dali. Ela usava um vestido florido até os joelhos, sapatilhas vermelhas e os cabelos presos em um rabo alto. Estava um pouco mais magra do que a última vez que a vira e parecia sozinha. Fiquei ali por alguns segundos, apenas observando-a. O nome dela era Larissa e me lembro de nunca ter sido legal com ela, e acho que ninguém nunca realmente fora. Alguns meninos costumavam tirar sarro do rosto cheio de espinhas que ela tinha na época e, claro, falar sobre seu corpo e o lugar em que morava - um dos mais simples da cidade. Ela nunca revidava, apenas apertava seus livros contra o peito e baixava a cabeça, talvez rezando por um único dia em que ninguém a notasse. Senti um nó queimar minha garganta e permiti que a sensação fizesse o papel dela e me mostrasse a lição, que era bem clara.
Ela não estava sozinha, uma garota que eu nunca tinha visto perguntava alguma coisa a ela na fila de uma barraca mais à frente. Caminhei em sua direção e foi engraçado de um jeito triste ver seus olhos se arregalarem ao me ver.
- Oi, Larissa - cumprimentei. Ela ficou sem reação por um momento, mas sorriu em seguida, receosa.
- Olá...
- Desculpe, mas você viu meu irmão por aí? Não consigo sinal.
- Hã, é, s-sim... - ela balbuciou, confusa. - Sim, ele estava pra lá agora mesmo.
- Ah, que bom. Obrigada - sorri, vendo-a fazer o mesmo timidamente. O vestido dela era preto com estampas de flores coloridas bem pequenas. - Me desculpe por aquela época. Se eu puder, você fica bem nesse vestido.
Não sabia dizer se aquilo significaria alguma coisa para ela, mas significou para mim.
***
estava sentado ao meu lado com Lana ao lado dele e o espetáculo estava sendo legal até ficar bastante cansativo para mim. Eu não era fã de circo, por mais moderno que aquele estivesse sendo, e cutuquei meu irmão para dizer que estaria lá fora. Para meu alívio, estávamos sentados próximos ao corredor de saída e sentir o vento fresco no rosto foi bastante relaxante. O lado de fora já não estava tão cheio e me sentei no encosto de um banco de madeira, colocando os pés no assento. Na barraca de pesca, um pai consolava o filho, que não tinha tirado o prêmio que queria. Mais à frente, um casal se pegava entre a barraca de tapioca e a de maçã do amor. Do meu lado esquerdo, crianças gargalhavam nos carrinhos de bate-bate e, mais à frente, o motivo do ar faltar em meus pulmões ria junto a e Frank na barraca de argolas.
Procurar por foi automático, mas ele parecia não estar lá e não me lembrava de tê-lo visto do lado de dentro, o que me causou grande alívio. Eu me permiti, então, observá-los se divertirem de longe. batia a mão fechada em punho na grade toda vez que a argola não passava nem perto de cair em volta de uma das caixas de fósforo no chão e mais ria do nervosismo dele do que brincava. Frank tinha uma garrafa de cerveja na mão e a usava para pendurar as argolas, que batiam no nariz quando ele bebia. Conseguia ouvir o grito abafado das vozes toda vez que algum deles quase acertava e me peguei rindo junto. Os três eram as únicas pessoas lá e o dono da barraca parecia se divertir.
Até que pareceu resolver ir atrás do prêmio principal, um globo terrestre cintilante muito bonito que rodava e brilhava em três ou quatro cores diferentes. A distância entre as grades e as caixas era considerável, e a caixa do prêmio principal era maior. Uma, duas, quatro, sete tentativas erradas e eles não tinham mais argolas e, depois de uma breve reunião, nem dinheiro para comprá-las. batia nas costas de , consolando-o, enquanto Frank bebia e ria. Num impulso talvez estupido, pulei do banco e andei até a barraca.
Os três pares de olhos pousaram imediatamente sobre mim quando encostrei na grade perpendicular. Os risos deram lugar ao silêncio e eu os olhei segundos depois, um calafrio começando na base da coluna. me cumprimentou com um aceno de mão, Frank desviou o olhar e sorriu meio indeciso. O dono da barraca, um senhor barrigudinho, me estendeu dez argolas, mas pedi apenas uma com um gesto de mão. Ele franziu a testa, hesitou e sorriu, me entregando uma azul. Paguei com uma ficha. Apoiei o pé direito na grade, encostei os cotovelos na parte de cima dela e gastei um minuto apenas respirando devagar e encarando meu alvo, a caixa maior. Foi um minuto longo, e então a argola voou da minha mão e caiu em volta da caixa maior com perfeição.
Ninguém emitiu um som, nem mesmo o dono da barraca, que demorou um tempo para assimilar o ocorrido. Senti o sorriso satisfeito, porém pequeno, nos meus lábios e aí o senhor barrigudinho saiu do transe e pegou a caixa grande e lacrada que estava ao lado do globo exposto. Ele veio em minha direção, mas apontei para os três garotos na grade ao lado. O homem hesitou novamente, assentiu e andou até , que me olhava com um misto de espanto e admiração. me observava com a mesma expressão de curiosidade de dias antes e incentivou a pegar a caixa quando ele pareceu não saber o que fazer. Eu ainda não tinha coragem para um confronto verbal, por isso ganhar um jogo bobo para ele pareceu um bom jeito de redimissão à distância.
Meu rosto estava quente mas sustentei o olhar pesaroso no olhar carinhoso dele, o que me fez sentir uma ponta de esperança. Afastei-me da grade aos poucos com um sorriso tímido pendurado no canto da boca, cruzei os braços sobre o estômago e fui embora.
Estava morando com ele desde que voltara porque não pareceu uma boa ideia para nenhum de nós que eu ficasse sozinha num primeiro momento. Era bom ter meu irmão por perto de novo e, de certa forma, pela primeira vez, já que eu passara muito tempo ocupada escolhendo batom para construir uma relação saudável com ele. Ser uma irmã estava sendo prazeroso e bastante gratificante.
Acho que foi em um desses momentos reflexivos entre secar os cabelos e colocar uma roupa que me peguei pensando em . Ele era esquisito naquela época, sempre com a mesma camiseta azul surrada e os cabelos pintados de vermelho, a postura desleixada, a calça larga que deixava a cueca à mostra, mas dono do sorriso mais bonito que eu já tinha visto. Talvez por isso ele me irritasse tanto - havia uma queda negada ali, um interesse não permitido, não demonstrado. Em que mundo uma patricinha mimada como eu sairia com um tipo como ele? Onde estaria o cabimento naquilo? O que meus amigos fúteis e idiotas diriam e que imagem passaria para todos que me idolatravam naquela escola?
Quanta vida jogada fora.
Balancei a cabeça para espantar as memórias, que não mudariam, e saí de casa com a intenção de me divertir um pouco, fosse como fosse. Levaria cerca de meia hora a pé para chegar ao circo, caminho que fiz sem nenhuma pressa, e a primeira coisa que vi ao chegar foi a grande tenda vermelha e azul iluminada por luzes brancas vindas do chão. Ao redor, as barracas eram regulares e muito bem distribuídas, mesas enfeitadas preenchiam o gramado. O lugar estava lotado. Peguei o celular para mandar uma mensagem a , mas estava sem sinal. Seria bastante difícil encontrar ele e Lana em meio à tanta gente e o pensamento fez meus músculos enrigerecem um pouco. Era a primeira vez que ficava sozinha em um evento naquela cidade e, poderia ser coisa da minha cabeça, mas já sentia alguns olhares pesados em cima de mim.
Andei pelo espaço tentando ignorar a sensação ruim no meu peito e parei em uma barraca de churros depois de ter comprado algumas fichas. As opções de sabores eram tantas que me vi perdida por um instante e acabei escolhendo um recheado com chocolate. Mal tinha dado um passo fora da barraca quando vi uma garota branquinha a alguns metros dali. Ela usava um vestido florido até os joelhos, sapatilhas vermelhas e os cabelos presos em um rabo alto. Estava um pouco mais magra do que a última vez que a vira e parecia sozinha. Fiquei ali por alguns segundos, apenas observando-a. O nome dela era Larissa e me lembro de nunca ter sido legal com ela, e acho que ninguém nunca realmente fora. Alguns meninos costumavam tirar sarro do rosto cheio de espinhas que ela tinha na época e, claro, falar sobre seu corpo e o lugar em que morava - um dos mais simples da cidade. Ela nunca revidava, apenas apertava seus livros contra o peito e baixava a cabeça, talvez rezando por um único dia em que ninguém a notasse. Senti um nó queimar minha garganta e permiti que a sensação fizesse o papel dela e me mostrasse a lição, que era bem clara.
Ela não estava sozinha, uma garota que eu nunca tinha visto perguntava alguma coisa a ela na fila de uma barraca mais à frente. Caminhei em sua direção e foi engraçado de um jeito triste ver seus olhos se arregalarem ao me ver.
- Oi, Larissa - cumprimentei. Ela ficou sem reação por um momento, mas sorriu em seguida, receosa.
- Olá...
- Desculpe, mas você viu meu irmão por aí? Não consigo sinal.
- Hã, é, s-sim... - ela balbuciou, confusa. - Sim, ele estava pra lá agora mesmo.
- Ah, que bom. Obrigada - sorri, vendo-a fazer o mesmo timidamente. O vestido dela era preto com estampas de flores coloridas bem pequenas. - Me desculpe por aquela época. Se eu puder, você fica bem nesse vestido.
Não sabia dizer se aquilo significaria alguma coisa para ela, mas significou para mim.
estava sentado ao meu lado com Lana ao lado dele e o espetáculo estava sendo legal até ficar bastante cansativo para mim. Eu não era fã de circo, por mais moderno que aquele estivesse sendo, e cutuquei meu irmão para dizer que estaria lá fora. Para meu alívio, estávamos sentados próximos ao corredor de saída e sentir o vento fresco no rosto foi bastante relaxante. O lado de fora já não estava tão cheio e me sentei no encosto de um banco de madeira, colocando os pés no assento. Na barraca de pesca, um pai consolava o filho, que não tinha tirado o prêmio que queria. Mais à frente, um casal se pegava entre a barraca de tapioca e a de maçã do amor. Do meu lado esquerdo, crianças gargalhavam nos carrinhos de bate-bate e, mais à frente, o motivo do ar faltar em meus pulmões ria junto a e Frank na barraca de argolas.
Procurar por foi automático, mas ele parecia não estar lá e não me lembrava de tê-lo visto do lado de dentro, o que me causou grande alívio. Eu me permiti, então, observá-los se divertirem de longe. batia a mão fechada em punho na grade toda vez que a argola não passava nem perto de cair em volta de uma das caixas de fósforo no chão e mais ria do nervosismo dele do que brincava. Frank tinha uma garrafa de cerveja na mão e a usava para pendurar as argolas, que batiam no nariz quando ele bebia. Conseguia ouvir o grito abafado das vozes toda vez que algum deles quase acertava e me peguei rindo junto. Os três eram as únicas pessoas lá e o dono da barraca parecia se divertir.
Até que pareceu resolver ir atrás do prêmio principal, um globo terrestre cintilante muito bonito que rodava e brilhava em três ou quatro cores diferentes. A distância entre as grades e as caixas era considerável, e a caixa do prêmio principal era maior. Uma, duas, quatro, sete tentativas erradas e eles não tinham mais argolas e, depois de uma breve reunião, nem dinheiro para comprá-las. batia nas costas de , consolando-o, enquanto Frank bebia e ria. Num impulso talvez estupido, pulei do banco e andei até a barraca.
Os três pares de olhos pousaram imediatamente sobre mim quando encostrei na grade perpendicular. Os risos deram lugar ao silêncio e eu os olhei segundos depois, um calafrio começando na base da coluna. me cumprimentou com um aceno de mão, Frank desviou o olhar e sorriu meio indeciso. O dono da barraca, um senhor barrigudinho, me estendeu dez argolas, mas pedi apenas uma com um gesto de mão. Ele franziu a testa, hesitou e sorriu, me entregando uma azul. Paguei com uma ficha. Apoiei o pé direito na grade, encostei os cotovelos na parte de cima dela e gastei um minuto apenas respirando devagar e encarando meu alvo, a caixa maior. Foi um minuto longo, e então a argola voou da minha mão e caiu em volta da caixa maior com perfeição.
Ninguém emitiu um som, nem mesmo o dono da barraca, que demorou um tempo para assimilar o ocorrido. Senti o sorriso satisfeito, porém pequeno, nos meus lábios e aí o senhor barrigudinho saiu do transe e pegou a caixa grande e lacrada que estava ao lado do globo exposto. Ele veio em minha direção, mas apontei para os três garotos na grade ao lado. O homem hesitou novamente, assentiu e andou até , que me olhava com um misto de espanto e admiração. me observava com a mesma expressão de curiosidade de dias antes e incentivou a pegar a caixa quando ele pareceu não saber o que fazer. Eu ainda não tinha coragem para um confronto verbal, por isso ganhar um jogo bobo para ele pareceu um bom jeito de redimissão à distância.
Meu rosto estava quente mas sustentei o olhar pesaroso no olhar carinhoso dele, o que me fez sentir uma ponta de esperança. Afastei-me da grade aos poucos com um sorriso tímido pendurado no canto da boca, cruzei os braços sobre o estômago e fui embora.
Cena 5
Não sabia dizer há quanto tempo eu rolava na cama, mas tinha certeza de que estava acordada há mais de uma hora. Não havia sequer um milimétrico feixe de luz cortando a escuridão no meu quarto e achei melhor levantar sem acendê-la, tateando o chão frio com os pés até encontrar minhas pantufas e caminhando com cuidado em direção à porta. Os lustres do corredor estavam apagados, mas uma pequena claridade vinda das janelas o iluminava o suficiente para que eu enxergasse a escada. Segurei no corrimão enquanto a descia, um pouco irritada pelo abandono total do sono, e entrei na cozinha para pegar um copo de água antes de me jogar no sofá. Gastei um bom tempo trocando canais até parar em um filme qualquer, mas cenas da noite anterior era tudo o que eu via. Uma grade, três amigos, um prêmio, de novo e de novo e de novo e de novo. Minha nuca pesava mais a cada vez que uma cena recomeçava e eu sabia que precisaria colocar em prática as meditações que havia aprendido se quisesse acalmar minha mente e dormir em paz. Repreendi-me ferozmente por ter ignorado essa parte até agora e soltei um suspiro longo e pesado antes de desligar a TV. Estava voltando para o quarto quando vi o visor do celular em cima da mesa de jantar se acender. O ícone do Whatsapp chamou minha atenção e resolvi dar uma olhada. O número era desconhecido, mas a pessoa na foto, não.
Não sabia dizer quanto tempo eu fiquei ali parada, mas tinha certeza de que não sonhava porque sentia as pernas bambas e o coração na garganta. Passei vários minutos sem saber o que fazer, os pensamentos divididos entre a foto e o tremor no meu corpo. Ele tinha me enviado uma mensagem. tinha me mandado uma mensagem. Como? Por quê? Ele tinha meu número? Quis abri-la, mas meu polegar dançava acima dela, indeciso sobre o que responder. Eu conseguia ler.
Obrigado.
Só.
Minha mente ficou vazia e cheia ao mesmo tempo, e num gesto repentino devolvi o celular à mesa. Voltei à cozinha, abri a torneira da pia e joguei a água fria no rosto, deixando a pele reclamar com o choque. Apoiei as mãos no mármore, fechei os olhos e comecei a respirar lenta e profundamente pela barriga, expirando devagar. Fiz isso dez vezes, o suficiente para que meus pensamentos clarificassem e meu corpo relaxasse do choque que tinha sido ver uma mesagem ridiculamente simples de flutuando no meu celular. Várias perguntas passavam pela cabeça, mas eu sabia que tentar achar a resposta seria perda de tempo e eu não criaria histórias sobre aquilo para mim mesma, então enxuguei o rosto com um papel toalha, abri a mensagem e digitei.
Só.
Eram três e vinte e sete da manhã, mas enviei mesmo assim. O leitor acusou apenas um check e vi o horário da mensagem dele, dez e vinte e dois. Sem me conter, abri a foto. O mesmo sorriso doce, os mesmos olhos carinhosos de quatro anos atrás, só que mais maduros, mais confiantes. Peguei-me sorrindo em meio à sensação ruim que surgiu no peito. Fechei o aplicativo, larguei o celular e andei até a escada, e meu pé direito tinha acabado de pisar o quarto degrau quando o aparelho vibrou na mesa.
Foi um arremesso e tanto.
Minhas sobrancelhas arquearam-se em surpresa e o ar encheu minha barriga enquanto eu sorria. As perguntas tentaram se formar novamente, mas chacoalhei a cabeça para espantá-las. Não queria criar deduções sobre porquês, por isso apenas aproveitei a sensação boa que me invadia mais e mais ao ler e reler aquelas cinco palavras tão comuns. A única questão que me permiti pensar foi o que ele fazia acordado às três e meia da manhã? Talvez o mesmo que eu.
Um, dois, três, quatro, cinco... dez... vinte...
Ah, então é isso o que faz acordada?
Aninhei-me numa poltrona. Deveria esperar mais vinte segundos para responder?
A resposta veio mais rápida dessa vez.
vc vai ter que me ensinar isso haha
Ri baixinho sentindo o sangue correr mais rápido nas veias. Aquilo estava mesmo acontecendo? A resposta veio no mesmo instante, quando uma nova mensagem apareceu antes de eu abrir a anterior.
podemos conversar?
Foi mais um momento onde o sangue gelou e o estômago pareceu dar um nó. O que eu mais queria era conversar com , mas onde estavam as palavras? O que eu diria? E aquele era o melhor momento, a melhor situação? Meus dedos tremiam enquanto eu digitava uma afirmação incerta.
Uma, duas, três, dez, dezessete respirações. Fechei os olhos para prestar atenção na minha barriga subindo e descendo, mas quanto mais ele demorava para responder, mais apreensiva eu ficava. Vinte, vinte e quatro, vinte e sete e o celular vibrou.
como vc está?
Nervosa, contente, receosa, incerta, esperançosa, aflita.
bem tbm. a banda tem saído da garagem.
Minhas narinas inflaram ao inspirar o ar pesado e meu maxilar travou.
como está sendo estar de volta?
Aquele me pareceu um bom jeito de dizer que eu ainda não estava pronta para entrar em águas profundas caso essa fosse a intenção dele em algum momento, o que, na verdade, não parecia. Embora não pudesse dizer com certeza, uma grande parte minha acreditava que ele sabia que com coisas eu queria dizer você, e eu rezava para que ao menos minhas desculpas aliviassem qualquer parte que eu deixara pesada nele.
Não foi surpresa a demora na resposta, mas o conteúdo nela, sim.
alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
Ele poderia ter escrito qualquer coisa, mas nada tão claro e direto quanto a mensagem nas entrelinhas. Senti ondas quentes irradiarem do meu coração para o resto do corpo enquanto digitava.
Estavam sendo quase dez minutos em silêncio. Ele tinha aberto a mensagem, mas ou não sabia o que falar ou não tinha o que falar, o que achei mais provável. Eu buscava um meio de continuar conversando com ele, mas não sabia o que dizer depois daquilo. Minha mente era um branco total e não o vi mais online, o que diminuia minhas esperanças. Ao mesmo tempo, me sentia feliz com a permissão dele e muito mais preparada para uma abordagem cara a cara, acontecesse como acontecesse. Em meio a um devaneio sobre como seria o momento, a mensagem chegou.
só pra vc saber, eu não estou entre
as pessoas que não gostam de vc.
durma bem, .
Gotas de água salgada borraram minha última mensagem.
Obrigado.
Só.
Minha mente ficou vazia e cheia ao mesmo tempo, e num gesto repentino devolvi o celular à mesa. Voltei à cozinha, abri a torneira da pia e joguei a água fria no rosto, deixando a pele reclamar com o choque. Apoiei as mãos no mármore, fechei os olhos e comecei a respirar lenta e profundamente pela barriga, expirando devagar. Fiz isso dez vezes, o suficiente para que meus pensamentos clarificassem e meu corpo relaxasse do choque que tinha sido ver uma mesagem ridiculamente simples de flutuando no meu celular. Várias perguntas passavam pela cabeça, mas eu sabia que tentar achar a resposta seria perda de tempo e eu não criaria histórias sobre aquilo para mim mesma, então enxuguei o rosto com um papel toalha, abri a mensagem e digitei.
Sempre.
Só.
Eram três e vinte e sete da manhã, mas enviei mesmo assim. O leitor acusou apenas um check e vi o horário da mensagem dele, dez e vinte e dois. Sem me conter, abri a foto. O mesmo sorriso doce, os mesmos olhos carinhosos de quatro anos atrás, só que mais maduros, mais confiantes. Peguei-me sorrindo em meio à sensação ruim que surgiu no peito. Fechei o aplicativo, larguei o celular e andei até a escada, e meu pé direito tinha acabado de pisar o quarto degrau quando o aparelho vibrou na mesa.
Foi um arremesso e tanto.
Minhas sobrancelhas arquearam-se em surpresa e o ar encheu minha barriga enquanto eu sorria. As perguntas tentaram se formar novamente, mas chacoalhei a cabeça para espantá-las. Não queria criar deduções sobre porquês, por isso apenas aproveitei a sensação boa que me invadia mais e mais ao ler e reler aquelas cinco palavras tão comuns. A única questão que me permiti pensar foi o que ele fazia acordado às três e meia da manhã? Talvez o mesmo que eu.
Madrugadas de prática.
Um, dois, três, quatro, cinco... dez... vinte...
Ah, então é isso o que faz acordada?
Aninhei-me numa poltrona. Deveria esperar mais vinte segundos para responder?
127 arremessos perfeitos até o momento haha
A resposta veio mais rápida dessa vez.
vc vai ter que me ensinar isso haha
Ri baixinho sentindo o sangue correr mais rápido nas veias. Aquilo estava mesmo acontecendo? A resposta veio no mesmo instante, quando uma nova mensagem apareceu antes de eu abrir a anterior.
podemos conversar?
Foi mais um momento onde o sangue gelou e o estômago pareceu dar um nó. O que eu mais queria era conversar com , mas onde estavam as palavras? O que eu diria? E aquele era o melhor momento, a melhor situação? Meus dedos tremiam enquanto eu digitava uma afirmação incerta.
claro que sim.
Uma, duas, três, dez, dezessete respirações. Fechei os olhos para prestar atenção na minha barriga subindo e descendo, mas quanto mais ele demorava para responder, mais apreensiva eu ficava. Vinte, vinte e quatro, vinte e sete e o celular vibrou.
como vc está?
Nervosa, contente, receosa, incerta, esperançosa, aflita.
estou bem. os últimos anos foram difíceis, mas bons.
e vc, como está?
bem tbm. a banda tem saído da garagem.
Minhas narinas inflaram ao inspirar o ar pesado e meu maxilar travou.
fico feliz em saber disso, de verdade.
como está sendo estar de volta?
estranho.
solitário, mas aprendi a gostar de ficar
sozinha. no geral tem sido bom, só existem algumas
coisas que ainda não sei como resolver.
talvez eu nem consiga.
Aquele me pareceu um bom jeito de dizer que eu ainda não estava pronta para entrar em águas profundas caso essa fosse a intenção dele em algum momento, o que, na verdade, não parecia. Embora não pudesse dizer com certeza, uma grande parte minha acreditava que ele sabia que com coisas eu queria dizer você, e eu rezava para que ao menos minhas desculpas aliviassem qualquer parte que eu deixara pesada nele.
Não foi surpresa a demora na resposta, mas o conteúdo nela, sim.
alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
Ele poderia ter escrito qualquer coisa, mas nada tão claro e direto quanto a mensagem nas entrelinhas. Senti ondas quentes irradiarem do meu coração para o resto do corpo enquanto digitava.
você já está fazendo.
Estavam sendo quase dez minutos em silêncio. Ele tinha aberto a mensagem, mas ou não sabia o que falar ou não tinha o que falar, o que achei mais provável. Eu buscava um meio de continuar conversando com ele, mas não sabia o que dizer depois daquilo. Minha mente era um branco total e não o vi mais online, o que diminuia minhas esperanças. Ao mesmo tempo, me sentia feliz com a permissão dele e muito mais preparada para uma abordagem cara a cara, acontecesse como acontecesse. Em meio a um devaneio sobre como seria o momento, a mensagem chegou.
só pra vc saber, eu não estou entre
as pessoas que não gostam de vc.
durma bem, .
Gotas de água salgada borraram minha última mensagem.
durma bem, .
Cena 6
- Você é péssima nisso - disse.
- Cara, isso é difícil - eu disse tentando passar pela sétima vez de sol para dó. - E meus dedos tão doendo.
- É só até calejar.
Eu o olhei.
- Se isso foi um incentivo, não cumpriu a função.
riu e me pediu a guitarra azul com um gesto.
- Aqui, preste atenção, é assim que faz a troca.
Ele posicionou os dedinhos nas cordas e tocou os acordes com a facilidade de um profissional, o som impecável ecoando do amplificador.
- Meu Deus, como você consegue fazer isso com dedos tão pequenininhos?
- Prática - ele deu de ombros. - Com o tempo, fica fácil.
- Você tá praticando há uma semana.
- Nem me fale - bufou. - Eu disse ao meu professor que isso era muito básico, mas ele não me ouviu.
Ergui as sobrancelhas. Coitado desse cara.
- Muito bem, pequeno prodígio, deixe-me tentar mais uma vez.
A criança sorriu e me devolveu a guitarra, que era mais pesada do que achava ser, e posicionei os dedos nas cordas com ele me corrigindo.
- Aqui, o indicador fica melhor posicionado assim... e traga a mão um pouco mais para frente... isso!
- Ok, vamos lá.
Bati a palheta e tive a sensação de que alguém estava matando um gato. torceu a boca e balançou a cabeça, reprovando meu autêntico som.
- Nããão, aperte mais os dedos! As cordas estão frouxas.
Comecei a rir, mas fiz uma careta com a dor que senti ao apertar mais as cordas. Toquei de novo e aí apenas o som natural das cordas saiu, ainda falho. Olhei para .
- O que aconteceu?
- Droga, é o cabo, está com mau contato.
Ele se levantou e mexeu no fio grosso como se fizesse aquilo há muitos anos e me peguei o admirando. Apesar de tê-lo visto poucas vezes, gostava mais de passar tempo com ele do que com outros adultos.
- Tente de novo - ele pediu com as mãos na cintura. Nada. - Que droga.
- Faz tempo que está assim?
- Desde o primeiro dia.
- E você não foi trocar?
- Ninguém tem muito tempo pra me levar nos lugares - ele disse com certo pesar. - E não posso sair sozinho, então tenho que esperar o final de semana que o papai ou a mamãe podem.
- E nesse eles podem?
- Ouvi papai dizer algo sobre coquetel, então acho que não.
baixou o olhar tristonho para o cabo e suspirou. Baixei o olhar também porque sabia o que era aquilo, e talvez aquele fosse o motivo pelo qual eu me sentia tão ligada a ele. O pequeno gênio já sabia o que era solidão.
- Bom, o que você acha de eu levá-lo então? - perguntei com cada célula do meu corpo gritando em reprovação. inclinou a cabeça de leve, me olhando com carinho.
- Nesse caso, preferiria que fossemos hoje. Tudo bem por você?
- Claro que sim - menti com meu melhor timbre. - Mas por que hoje?
Ele ajeitou os pequenos óculos com o indicadorzinho e apertou sutilmente os lábios, fazendo a covinha na bochecha direita aparecer.
- É o dia de folga do .
Sorri. Eu amava aquele garoto.
Estacionei a alguns metros da entrada e caminhei com até o interior da enorme loja de instrumentos. Violões e guitarras de todos os tipos e tamanhos preenchiam a parede direita, enquanto prateleiras repletas de CDs, discos, quadros, camisetas, miniaturas e quaisquer outras coisas relacionadas à música enfeitavam o lado esquerdo. Duas baterias estavam montadas quase no centro e, quando dei por mim, já estava nos fundos pendurado no balcão cinco vezes maior do que ele.
- Caramba, esse lugar é grande - parei ao lado dele.
- É a melhor loja do mundo! - ele refez o comentário daquela noite. Um arrepio subiu pela espinha.
- Alguém já te atendeu?
- Não, mas toquei a campainha.
Eu ia perguntar que campainha, mas então apareceu do outro lado do balcão usando uma camiseta preta com o símbolo da loja bordado em vermelho. Ele parou ao me ver, as sobrancelhas subindo em surpresa, e minhas bochechas esquentaram. Gastamos alguns segundos nos olhando antes dele se aproximar, devagar. Eu não respirava.
- Olá - ele cumprimentou educadamente. Não consegui falar. - E aí, carinha?
- Oi, ! Meu cabo tá com defeito, você pode trocar pra mim? - cuspiu.
- Opa, qual o problema?
- Mau contato, o som para toda hora.
- Hm, deixa eu ver...
analisou as pontas com cuidado enquanto eu tentava sem o mínimo de sucesso tirar os olhos da linha perfeita do maxilar dele. Vi-o sair de dentro do balcão e plugar o cabo num amplificador, depois em uma guitarra, e tocá-la. O som saiu por um curto tempo, depois parou. O teste durou mais um pouco e logo o pequeno tinha um cabo novo em mãos.
- Posso testar?
- Deve.
- Maneiro! - disse já em cima da guitarra e riu, a covinha na bochecha me fazendo suspirar discretamente. Surpresa por ainda me sentir daquele jeito?
- Aceita um café? - ele perguntou de modo suave, me tirando do transe.
- Hã, claro... - aceitei por impulso. Eu nem tomava café.
sorriu e passou por mim, deixando o rastro do perfume leve me convidando a segui-lo. Ele voltou para dentro do balcão e sentei no banco alto, pensando em como agir depois da noite anterior enquanto ele tirava um expresso. Casual? Chique? Esporte fino? Afinal de contas, qual era a ocasião?
Ele colocou a xícara na minha frente e sentou. Nos olhamos. Sorri. Sorriu. Engoli em seco e baixei o olhar. Voltei a olhá-lo, ele observava a porcelana. Subiu o olhar, mordi o interior do lábio e meu rosto esquentou. Ele apoiou os antebraços sobre o balcão e voltou a atenção para . Inspirei profundamente pela barriga, tomei um gole do café, reclamei do gosto mentalmente e meus olhos bateram nas mãos dele. Os dedos rodavam rapidamente um rolo pequeno de durex, às vezes arranhando a fita com certa força. Umedeci os lábios antes de falar, rezando para minha voz sair firme.
- Não sabia que trabalhava aqui.
Ele parou de rodar a fita, me olhando com um sorriso acanhado.
- É meu terceiro dia, na verdade.
- Bom, devo dar os pêsames ou os parabéns? - perguntei numa tentativa de quebrar o gelo que pareceu funcionar, porque ele riu, deixando à mostra os dentes quase perfeitos.
- Os pêsames, nada supera meu antigo emprego.
- E qual era?
- Entregador de pizza.
A superioridade no tom irônico me fez rir.
- Uau, deve estar sendo bem difícil mesmo. Como está lidando com isso?
- Bom, tento desligar a mente do assunto no horário de almoço, quando durmo nos fundos, mas ontem usei o vale alimentação pra pedir uma pizza e, sabe, sentir que ainda estou lá - ele fez uma pausa teatralmente dramática, a expressão falsamente triste. - É um processo.
Eu ri mais, um tipo de risada leve e gostosa que não dava há anos e que acabou se estendedo por alguns segundos. apenas me olhava.
- Fico contente que tenha conseguido mais - falei com sinceridade.
- Obrigado, .
. Uma onda quente correu meu tronco com meu apelido na boca dele e não consegui dizer mais nada pelos próximos minutos. Mais à frente, estava em outro mundo.
- Ele não vai sair dali tão cedo - quebrou o silêncio.
- Imagino, acho melhor buscá-lo - ele balançou a cabeça em concordância. - Obrigada pelo café.
Não houve resposta, ele apenas sorriu e então me levantei. Comecei a andar em direção a , mas algo me fez parar no meio do caminho e gastei um tempo lá, parada, tentando assimilar os pensamentos que cruzavam minha cabeça. Em um movimento repentino e automático, me virei. me olhava, mas não soube ler seu rosto, e voltei até ele sem saber muito bem o porquê de estar fazendo aquilo. Eu sentia meu estômago revirar enquanto afundava as mãos nos bolsos e mordi o lábio inferior antes de cuspir as palavras.
- Você está livre amanhã à noite?
O espanto ficou tão nítido no rosto dele que me deixou ainda mais tensa. Meu coração socava o peito com tamanha força que poderia abri-lo a qualquer momento. abriu e fechou a boca, arrumou a postura e respirou fundo, os olhos nos meus durante todo o momento.
- Sim.
Apertei levemente os lábios.
- Podemos conversar?
Ele subiu o canto esquerdo da boca devagar, assentindo muito sutilmente.
- Foi o que eu pedi, certo?
Eu repeti o último gesto dele e me afastei, indo até . Ele largou a guitarra, pegou seu cabo novo e se despediu de longe de , a quem lancei um último olhar ao cruzar a saída.
- Cara, isso é difícil - eu disse tentando passar pela sétima vez de sol para dó. - E meus dedos tão doendo.
- É só até calejar.
Eu o olhei.
- Se isso foi um incentivo, não cumpriu a função.
riu e me pediu a guitarra azul com um gesto.
- Aqui, preste atenção, é assim que faz a troca.
Ele posicionou os dedinhos nas cordas e tocou os acordes com a facilidade de um profissional, o som impecável ecoando do amplificador.
- Meu Deus, como você consegue fazer isso com dedos tão pequenininhos?
- Prática - ele deu de ombros. - Com o tempo, fica fácil.
- Você tá praticando há uma semana.
- Nem me fale - bufou. - Eu disse ao meu professor que isso era muito básico, mas ele não me ouviu.
Ergui as sobrancelhas. Coitado desse cara.
- Muito bem, pequeno prodígio, deixe-me tentar mais uma vez.
A criança sorriu e me devolveu a guitarra, que era mais pesada do que achava ser, e posicionei os dedos nas cordas com ele me corrigindo.
- Aqui, o indicador fica melhor posicionado assim... e traga a mão um pouco mais para frente... isso!
- Ok, vamos lá.
Bati a palheta e tive a sensação de que alguém estava matando um gato. torceu a boca e balançou a cabeça, reprovando meu autêntico som.
- Nããão, aperte mais os dedos! As cordas estão frouxas.
Comecei a rir, mas fiz uma careta com a dor que senti ao apertar mais as cordas. Toquei de novo e aí apenas o som natural das cordas saiu, ainda falho. Olhei para .
- O que aconteceu?
- Droga, é o cabo, está com mau contato.
Ele se levantou e mexeu no fio grosso como se fizesse aquilo há muitos anos e me peguei o admirando. Apesar de tê-lo visto poucas vezes, gostava mais de passar tempo com ele do que com outros adultos.
- Tente de novo - ele pediu com as mãos na cintura. Nada. - Que droga.
- Faz tempo que está assim?
- Desde o primeiro dia.
- E você não foi trocar?
- Ninguém tem muito tempo pra me levar nos lugares - ele disse com certo pesar. - E não posso sair sozinho, então tenho que esperar o final de semana que o papai ou a mamãe podem.
- E nesse eles podem?
- Ouvi papai dizer algo sobre coquetel, então acho que não.
baixou o olhar tristonho para o cabo e suspirou. Baixei o olhar também porque sabia o que era aquilo, e talvez aquele fosse o motivo pelo qual eu me sentia tão ligada a ele. O pequeno gênio já sabia o que era solidão.
- Bom, o que você acha de eu levá-lo então? - perguntei com cada célula do meu corpo gritando em reprovação. inclinou a cabeça de leve, me olhando com carinho.
- Nesse caso, preferiria que fossemos hoje. Tudo bem por você?
- Claro que sim - menti com meu melhor timbre. - Mas por que hoje?
Ele ajeitou os pequenos óculos com o indicadorzinho e apertou sutilmente os lábios, fazendo a covinha na bochecha direita aparecer.
- É o dia de folga do .
Sorri. Eu amava aquele garoto.
Estacionei a alguns metros da entrada e caminhei com até o interior da enorme loja de instrumentos. Violões e guitarras de todos os tipos e tamanhos preenchiam a parede direita, enquanto prateleiras repletas de CDs, discos, quadros, camisetas, miniaturas e quaisquer outras coisas relacionadas à música enfeitavam o lado esquerdo. Duas baterias estavam montadas quase no centro e, quando dei por mim, já estava nos fundos pendurado no balcão cinco vezes maior do que ele.
- Caramba, esse lugar é grande - parei ao lado dele.
- É a melhor loja do mundo! - ele refez o comentário daquela noite. Um arrepio subiu pela espinha.
- Alguém já te atendeu?
- Não, mas toquei a campainha.
Eu ia perguntar que campainha, mas então apareceu do outro lado do balcão usando uma camiseta preta com o símbolo da loja bordado em vermelho. Ele parou ao me ver, as sobrancelhas subindo em surpresa, e minhas bochechas esquentaram. Gastamos alguns segundos nos olhando antes dele se aproximar, devagar. Eu não respirava.
- Olá - ele cumprimentou educadamente. Não consegui falar. - E aí, carinha?
- Oi, ! Meu cabo tá com defeito, você pode trocar pra mim? - cuspiu.
- Opa, qual o problema?
- Mau contato, o som para toda hora.
- Hm, deixa eu ver...
analisou as pontas com cuidado enquanto eu tentava sem o mínimo de sucesso tirar os olhos da linha perfeita do maxilar dele. Vi-o sair de dentro do balcão e plugar o cabo num amplificador, depois em uma guitarra, e tocá-la. O som saiu por um curto tempo, depois parou. O teste durou mais um pouco e logo o pequeno tinha um cabo novo em mãos.
- Posso testar?
- Deve.
- Maneiro! - disse já em cima da guitarra e riu, a covinha na bochecha me fazendo suspirar discretamente. Surpresa por ainda me sentir daquele jeito?
- Aceita um café? - ele perguntou de modo suave, me tirando do transe.
- Hã, claro... - aceitei por impulso. Eu nem tomava café.
sorriu e passou por mim, deixando o rastro do perfume leve me convidando a segui-lo. Ele voltou para dentro do balcão e sentei no banco alto, pensando em como agir depois da noite anterior enquanto ele tirava um expresso. Casual? Chique? Esporte fino? Afinal de contas, qual era a ocasião?
Ele colocou a xícara na minha frente e sentou. Nos olhamos. Sorri. Sorriu. Engoli em seco e baixei o olhar. Voltei a olhá-lo, ele observava a porcelana. Subiu o olhar, mordi o interior do lábio e meu rosto esquentou. Ele apoiou os antebraços sobre o balcão e voltou a atenção para . Inspirei profundamente pela barriga, tomei um gole do café, reclamei do gosto mentalmente e meus olhos bateram nas mãos dele. Os dedos rodavam rapidamente um rolo pequeno de durex, às vezes arranhando a fita com certa força. Umedeci os lábios antes de falar, rezando para minha voz sair firme.
- Não sabia que trabalhava aqui.
Ele parou de rodar a fita, me olhando com um sorriso acanhado.
- É meu terceiro dia, na verdade.
- Bom, devo dar os pêsames ou os parabéns? - perguntei numa tentativa de quebrar o gelo que pareceu funcionar, porque ele riu, deixando à mostra os dentes quase perfeitos.
- Os pêsames, nada supera meu antigo emprego.
- E qual era?
- Entregador de pizza.
A superioridade no tom irônico me fez rir.
- Uau, deve estar sendo bem difícil mesmo. Como está lidando com isso?
- Bom, tento desligar a mente do assunto no horário de almoço, quando durmo nos fundos, mas ontem usei o vale alimentação pra pedir uma pizza e, sabe, sentir que ainda estou lá - ele fez uma pausa teatralmente dramática, a expressão falsamente triste. - É um processo.
Eu ri mais, um tipo de risada leve e gostosa que não dava há anos e que acabou se estendedo por alguns segundos. apenas me olhava.
- Fico contente que tenha conseguido mais - falei com sinceridade.
- Obrigado, .
. Uma onda quente correu meu tronco com meu apelido na boca dele e não consegui dizer mais nada pelos próximos minutos. Mais à frente, estava em outro mundo.
- Ele não vai sair dali tão cedo - quebrou o silêncio.
- Imagino, acho melhor buscá-lo - ele balançou a cabeça em concordância. - Obrigada pelo café.
Não houve resposta, ele apenas sorriu e então me levantei. Comecei a andar em direção a , mas algo me fez parar no meio do caminho e gastei um tempo lá, parada, tentando assimilar os pensamentos que cruzavam minha cabeça. Em um movimento repentino e automático, me virei. me olhava, mas não soube ler seu rosto, e voltei até ele sem saber muito bem o porquê de estar fazendo aquilo. Eu sentia meu estômago revirar enquanto afundava as mãos nos bolsos e mordi o lábio inferior antes de cuspir as palavras.
- Você está livre amanhã à noite?
O espanto ficou tão nítido no rosto dele que me deixou ainda mais tensa. Meu coração socava o peito com tamanha força que poderia abri-lo a qualquer momento. abriu e fechou a boca, arrumou a postura e respirou fundo, os olhos nos meus durante todo o momento.
- Sim.
Apertei levemente os lábios.
- Podemos conversar?
Ele subiu o canto esquerdo da boca devagar, assentindo muito sutilmente.
- Foi o que eu pedi, certo?
Eu repeti o último gesto dele e me afastei, indo até . Ele largou a guitarra, pegou seu cabo novo e se despediu de longe de , a quem lancei um último olhar ao cruzar a saída.
Cena 7
Eram quase sete horas da noite e ainda não tinha conseguido mandar a maldita mensagem para . Eu olhava para o celular à minha frente na cama há quarenta e cinco minutos, tentando encontrar as melhores palavras para escrever mesmo sabendo que não existia tal coisa como melhores palavras. O frio apertava meu estômago toda vez que eu quase conseguia digitar, mas o medo me fazia soltar o celular em seguida. Então, quarenta e cinco minutos depois, eu me odiava. Fechei os olhos.
Pare de tornar as coisas maiores do que elas são, . O que você empodera tem poder sobre você.
Abri os olhos. Obrigada, Nepal.
Ele respondeu em menos de cinco minutos.
ei! estou sim.
estarei lá.
Troquei de blusa, calcei um All Star branco e saí de casa em direção à praça. Acho que a ansiedade misturada com o nervosismo eram tamanhos que me fizeram calcular mal o tempo e chegar quinze minutos antes do combinado. O lugar estava cheio, assim como a sorteveria logo em frente, e senti o bolso do jeans vibrar ao subir o último degrau.
sabe onde fica o pico?
O nome não era estranho, mas nada vinha à memória.
O ponto vermelho no mapa indicava um lugar entre nosso antigo colégio e a prefeitura da cidade, quase dez minutos a pé da praça. Desci os degraus num pulo e comecei a andar com passos rápidos, ignorando os arrepios que subiam pelas minhas pernas. Em certo momento, virei à esquerda em uma rua e desacelerei. Os postes fracos ou quebrados davam um ar sinistro ao corredor escuro, onde as casas não passavam de sombras. Hesitei em alguns passos e chequei o mapa, mas o caminho estava certo, então segui adiante até virar a próxima esquina e sentir o alívio destensionar os ombros imediatamente.
- Oi, .
Ele vestia jeans escuros, camiseta vermelha e um sorriso delicado nos lábios finos cortados pela argola prateada. Aproximei-me devagar, analisando a rua, e parei a poucos centímetros dele.
- Lugar interessante.
Ele riu de leve e fez um gesto com a cabeça antes de se virar e andar. Segui-o até o fim daquele quarteirão, atravessamos a rua e descemos alguns degraus de madeira envoltos por grama natural. Mais alguns passos e a cidade surgiu lá embaixo em forma de pontos brilhantes de luz sob o céu estrelado.
- Uau... - foi o que consegui dizer enquanto meus olhos percorriam fascinados a visão do horizonte.
- Incrível, não?
- Caramba, isso é... uau...
- Não sabia desse lugar?
- Não fazia ideia - respondi boqueaberta. - Como descobriu? - começou a rir do meu lado e o olhei. - O quê?
- Hã, bem, descobri há alguns anos, quando estávamos na escola e todo mundo sempre vinha aqui.
Eu ainda estava com a boca aberta e ergui as sobrancelhas ao final da explicação.
- Todo mundo?
- Bom, quase todo mundo. Acho que seus saltos não sobreviveriam aqui - uma risada mais alta saiu de mim porque, bem, era verdade. - Mas, ei, podemos ir pra outro lugar também.
- Tá brincando? Eu amei aqui.
sorriu e sustentou o olhar por um momento, depois deu mais alguns passos e se sentou em um tronco. Sentei-me ao lado dele e o único som que ouvimos nos próximos minutos foi o do vento batendo nas árvores. As estrelas brilhavam tão fortes que pareciam diamantes. Eu sentia o calor do corpo dele tocar meu braço e o mesmo perfume do dia anterior refrescar meus pulmões, e num movimento suave e decidido virei o corpo na direção dele. Imediatamente, passou a perna por cima do tronco, deixando-o entre elas, apoiou os cotovelos nos joelhos e me olhou como se só estivesse esperando por aquilo.
- Eu sei que nada do que diga é capaz de mudar o que fiz, assim como nada do que eu faça é capaz de mudar o que você sentiu ou sinta, mas eu preciso dizer que eu sinto muito - Fiz uma pausa para organizar as palavras e tentar perceber alguma reação nele, que apenas baixou o olhar por um momento. - Não posso voltar o tempo, mas gostaria que soubesse que eu teria feito diferente se pudesse. Eu nunca quis prejudicar nenhum de vocês, especialmente você, e aquela noite foi a pior da minha vida... - foi a minha vez de baixar o olhar e tentar respirar conforme as imagens corriam em minha cabeça. - Não passa um dia sem que eu pense nisso, e senti culpa e vergonha suficiente pra uma vida. Eu só queria que você soubesse, mesmo que isso não mude nada, que eu... - subi o olhar, encontrando o dele fixo em mim, tão doce, tão cheio de carinho que me quebrou e perdi o raciocínio.
- Você? - ele sussurrou, a voz ridiculamente suave. Eu quase não me ouvi.
- Me arrependo de verdade, .
Ele sorriu, talvez o sorriso mais agradecido e iluminado que eu já vira na vida. Meu corpo estava entorpecido, não sentia mais minhas mãos e o sangue corria tão rápido que formigava toda a pele, mas quando começou a falar o chão reapareceu sob meus pés.
- Essa é a única coisa que eu sempre quis ouvir de você, , e muda tudo. Obrigado.
O peso do mundo caiu das minhas costas naquele exato momento.
- Muda tudo? - fiquei confusa. respirou fundo, segurou o punho direito e mexeu de leve o pescoço de um lado para o outro, talvez tentando relaxar antes de começar.
- Aquela foi a pior noite da minha vida. Foi a pior noite de nós seis, na verdade, e demorou pra gente aceitar o que aconteceu - ele fez uma pausa sem tirar os olhos dos meus, que estavam tão petrificados quanto o resto do meu corpo. - Era a chance que poderia ter mudado o rumo das nossas vidas pra sempre... mas, sabe, eu sempre achei que nada é por acaso e que, se aquilo aconteceu, então era o melhor, mesmo que não parecesse. Essa foi uma briga interna comigo mesmo por anos. Eu senti muitas coisas ruins em relação a você por um tempo mas, no fim, não valia a pena, e a única coisa que sempre me perguntei foi se você se culpava, porque aí pelo menos eu saberia que estava certo sobre você.
A última frase fez meu cenho franzir automaticamente. Apenas meus lábios se moveram.
- Certo sobre o quê?
Ele respondeu entre um meio sorriso.
- Você não sabia.
Minha visão não estava turva, mas uma gota de água escorreu pela minha bochecha esquerda. Ele me olhava como se fossemos velhos amigos trocando confidências no meio da noite, despreocupados e livres. As imagens que rodavam em minha cabeça faziam o aperto no meu peito irradiar ainda mais dor em direção à minha garganta, que pulsava como minhas veias. A festa, os copos de bebida, as fotos, o platéia ficando vazia. A oportunidade roubada. Um soluço me fez voltar ao momento presente o senti o indicador dele deslizar sobre a pele da minha bochecha.
- Não, eu não sabia...
- Ei, tá tudo bem - o tom dele era confortante. - A gente não precisa mais voltar lá, tá tudo bem.
Eu umideci os lábios enquanto um suspiro profundo despertava meus músculos. O ar saiu pesado, mas calmo por minha boca e, sem a menor explicação, comecei a rir. arqueou as sobrancelhas parecendo receoso pela primeira vez na noite.
- O quê?
- Desculpe, eu não sei... - disse num misto de súbita diversão e estranhamento. - Eu acho que... nossa...
- O quê? - ele repetiu quando demorei.
- Eu nem sei quantas vezes imaginei esse momento, mas em nenhuma delas você foi tão... - não consegui achar a melhor palavra, por isso deixei a frase morrer antes de um sorriso bobo que ele contemplou por um momento. - Obrigada, .
- Como eu era na sua imaginação?
- Você me xingava bastante.
Uma risada gostosa escapou da garganta dele.
- Se tivesse sido antes, bem provável que isso acontecesse. Eu era nervosinho.
Ri com a careta em reprovação que ele fez.
- Achei que você fosse ser o mais difícil.
- Eu, sério? - ele pareceu confuso. - Por quê?
- Uai, porque... - interrompi-me no mesmo segundo, percebendo o quão descuidada havia sido no comentário. Abri e fechei a boca algumas vezes, desviei o olhar e cocei a parte de trás da orelha, tentando caçar uma explicação aceitável. - Porque você era nervosinho... - disse com meu tom morrendo. Ele franziu o cenho e tentou disfarçar um meio sorriso.
- Hm... mais nervoso que o ?
O nome me atingiu como um raio.
- Caramba, o - houve um momento de silêncio. - Não sei se consigo falar com ele.
- Você gostaria?
- Sim.
- Eu te ajudo.
Eu o olhei sem entender.
- , eu agradeço, mas isso é...
- O te odeia - ele me cortou tanto na fala quanto nas emoções. - De todos nós, ele ainda é o único que não superou. Não que os outros, tirando o , queiram ouvir falar de você, mas o tem essa raiva em relação a você e tudo sobre aquele dia que ninguém consegue reverter. Ainda bem que você começou comigo, porque... - ele se interrompeu, o olhar caindo para os dedos ainda segurando o pulso.
- Porque... - incentivei, o coração a mil.
- Não tenha pressa com ele, tudo bem? Faça o que você tem que fazer com os outros, mas não se apresse com ele.
- Imagino que o deva ser o próximo, então.
- Como sabe?
- Ele é o único que me cumprimenta - demonstrou entender o sentido com um movimento de sobrancelhas. - E tem esse ar de curiosidade nos olhos dele.
- Em todos nós.
Ele ficava bem de vermelho. Eu ouvia grilos ao fundo, sentia a textura da madeira por baixo do jeans, um leve adormecimento do meu corpo todo repentinamente como se eu tivesse ingerido álcool. Já tinha sentido aquilo antes, assim como a sensação da energia rodando pela minha garganta e fazendo cócegas. Meus olhos miravam o braço dele ainda sobre o joelho e piscaram preguiçosamente, ardendo de leve, um suspiro longo e lento descansando minha alma. Minha língua molhou meus lábios bem devagar antes do meu olhar encontrar com o dele.
- Eu tinha certeza de que seria só uma apresentação idiota de colégio - comecei, e o ar ao nosso redor mudou instantaneamente. - E tinha esse ar de superior, de rainha da situação, mas a verdade é que eu sempre fui extremamente manipulável. Sem atitude, sem autenticidade, sem própria personalidade. Eu não sei o motivo exato de ter ficado daquele jeito, nem sei se tem um ou um só, mas acho que quem eu sou de verdade queria tão desesperadamente despertar, criar consciência, que eu criei aquela noite. Eu tinha certeza de que era só uma apresentação idiota de colégio... - as palavras saiam suaves e bem articuladas, um pouco preguiçosas como o resto do meu corpo. apenas respirava em meio aos meus sussurros. - Então eu fiz o que o terceiro ano me pediu pra fazer, porque eu queria ser parte da turma deles agora. Eu seria ainda mais incrível, certo? Mesmo que pra isso eu tivesse que usar você.
Eu vi o exato momento em que ele mordeu os dentes, mudando a expressão por um minuto. Olá, dor.
- Duas gotas em cada copo. Não sei o que era, nunca perguntei, e levei dois anos inteiros pra perdoar a ideia de que aquilo poderia ter matado todos vocês. Dois anos pra me perdoar por ter estragado a chance de vocês. Três pra conseguir colocar a cabeça no travesseiro sem sua imagem me assombrar. Eu fiquei sabendo que tinha um produtor de olho em vocês, mas não sabia que ele estava lá naquela noite, e foi depois das fotos e de vocês completamente fora de si naquele palco que eu soube. Foi meu irmão quem me contou que o estava no hospital. Eu acordei ali, .
Foi a primeira vez que eu o vi chorar, calma, contida e dolorosamente. Minha garganta ardia, mas eu ainda tinha coisas presas há muito tempo para parar agora. Eu sabia que ele também queria aquilo.
- Eu acordei diferente na manhã seguinte e todo mundo percebeu. Acho que a parte boa de ter muito dinheiro é poder desaparecer na mesma hora - não consegui não evitar o pequeno riso ácido. - Eu não fui embora pra fugir, mas pra me encontrar, e eu arrisco dizer que, se tivesse sido qualquer outra pessoa, provavelmente eu não o teria feito. Só que não era qualquer pessoa, era você. Como eu olharia pra você? Então eu fui... sem muita escolha também, meus pais ficaram decepcionados quando eu contei e, uma ligação pros meus tios depois, eu estava no avião... foi tudo tão rápido...
me olhou atentamente, os lábios entreabertos molhados. Eu sorri um sorriso largo, mas ainda fechado, e peguei o celular do bolso, tirando a capa. O pedaço de papel cortado caiu no tronco. Nós olhamos o papel, nos olhamos e incentivei-o a pegá-lo com um aceno de cabeça. A luz que emanou dele poderia iluminar a cidade inteira naquele instante.
- Eu gostava do seu cabelo vermelho e da gola surrada da sua camiseta azul. Gostava de como você segurava o microfone nos shows na escola, de como você ria e da sua mania estúpida de me chamar de vossa magestade nos corredores só pra me irritar. Originalmente, esse papel era uma foto do poliesportivo num dia de gincana, mas eu cortei o resto e deixei só você encostado num pilar.
Não soube dizer se o vento tinha ficado frio ou se eu estava voltando ao corpo e tomando consciência do que estava fazendo, mas minha pele arrepiava em ondas pouco espaçadas. Nenhum de nós disse nada pelo próximo minuto, eu por achar que ele precisava de um tempo para absorver tudo, ele por estar absorvendo. Os olhos oscilavam entre mim e a foto, espantados, iluminados, feridos, confusos. Deixei que ele quebrasse o silêncio.
- Há quanto tempo você guarda isso?
E era a pergunta que eu esperava.
- Oito anos.
arrumou a postura instantaneamente, o rosto tomado por um baque inesperado, e então se levantou num movimento rápido para caminhar até a ponta do pico, parando de costas para mim. Eu apenas o observei, deixando que ele reagisse àquilo por completo pelo tempo que fosse necessário. Vi-o colocar as mãos na cintura e levantar a cabeça, ficando assim por um tempo, e depois abaixá-la, gastando talvez o mesmo tempo. Minha mente estava vazia e sentia a vibração do meu coração pulsar na ponta dos dedos. Eu estava presente no momento, nem mais relembrando o passado, nem pensando no que aconteceria no próximo segundo. Eu apenas era o momento enquanto ele chorava baixinho, arfando de vez em quando.
A cidade parecia ainda menor lá embaixo. Ele se agachou, contendo menos as lágrimas e as emoções agora, e foram aproximadamente quinze minutos até que ele se levantasse, batendo os pés na terra antes de se virar e me olhar.
- Eu era apaixonado por você - ele disse com a voz falha e o chão sumiu sob meus pés.
- Apaixonado?
- Completamente. O que não fazia nenhum sentido, mas você conseguia ser legal quando queria, quando estava longe do seu grupo. Quando, por acaso, ficávamos apenas nós dois num lugar. O que foi aquela noite, ? - eu baixei o olhar até que ele voltasse a falar, sem resposta. - Eu nunca me senti tão idiota como depois daquela noite, depois de ver que você só se aproximou porque queria ter acesso fácil ao camarim - deu um meio sorriso, rindo ao enxugar o rosto com a mão. - Camarim... aquela sala minúscula no festival, mas, enfim... eu poderia dizer que o ato em si foi o que me matou, mas eu estaria mentindo.
- Eu te matei quando te fiz acreditar que gostava de você.
Ele balançou a foto no ar.
- E agora você me diz que gostava.
- Não - sussurrei. - Eu era apaixonada por você.
Silêncio. Ele se aproximou, os olhos fixos nos meus.
- Por quê, ? Eu sorri de modo triste, franzindo a testa para demonstrar a resposta óbvia.
- Porque meu orgulho e a minha vaidade eram maiores do que a minha autenticidade, . Por isso eu nunca consegui fazer nada além de olhar pra você, ainda me reprovando por dentro. No fim das contas, eu não me aceitava, não me enxergava, não me aprovava. Nunca foi sobre você e seu jeans rasgado.
Com passos lentos, ele caminhou de volta até a árvore e se sentou do mesmo modo de antes. Eu me ajeitei para ficar totalmente de frente a ele agora, que apertava os olhos com os dedos.
- Tem tanta coisa que eu quero perguntar, mas não sei como juntar as palavras agora.
- Tudo bem, eu vou estar aqui quando você conseguir.
- Eu gostaria que tivesse falado comigo antes de ir embora.
- Eu tive medo... eu nunca senti tanto medo de tudo.
- Por que você voltou?
Eu senti meu olhar se encher de carinho pela primeira vez em muito tempo e, num movimento mecânico, me aproximei dele, deslizando a ponta dos dedos muito suavemente pela sua sobrancelha. Perdi a visão das íris por um momento.
- Eu jurei pra mim mesma que voltaria pra pedir perdão a vocês. Eu não saberia como continuar com a minha vida sem antes sentar na sua frente, olhar dentro dos seus olhos e dizer que eu sei que errei contigo e te pedir perdão por todo o dano que causei. Independentemente da sua reação, eu queria que você soubesse que eu, do fundo do meu coração, me arrependo de cada ato meu e eu não sabia. Eu achei que seria só um show ridículo... só um show ridículo...
Um, dois, três, dez, vinte segundos. A mão dele tocou timidamente a minha sobre minha perna, convidando meus dedos a pousarem nos dele. Um toque leve, fácil e tranquilo.
- Você era apaixonada por mim? - a pergunta veio embargada em confusão e espanto.
- Completamente.
- Alguma... - ele hesitou, balançando a cabeça enquanto franzia a testa com certa força. - Alguma coisa que você me disse aquela noite foi real?
Sorri.
- Eu gosto de você.
Os lábios dele tocaram os meus exatamente como naquela noite: macios, delicados e quentes. Senti o sal na ponta da minha língua e o calor da língua dele sem ela ao menos me tocar. Sob o céu estrelado, o beijo do meu demônio me curou.
- Eu te perdoo, .
Uma onda quente no meu coração e aquilo era tudo o que nós dois precisávamos.
A mão dele ficou na minha pelo resto da noite.
Pare de tornar as coisas maiores do que elas são, . O que você empodera tem poder sobre você.
Abri os olhos. Obrigada, Nepal.
ei! está livre?
Ele respondeu em menos de cinco minutos.
ei! estou sim.
pode me encontrar na praça em meia hora?
estarei lá.
Troquei de blusa, calcei um All Star branco e saí de casa em direção à praça. Acho que a ansiedade misturada com o nervosismo eram tamanhos que me fizeram calcular mal o tempo e chegar quinze minutos antes do combinado. O lugar estava cheio, assim como a sorteveria logo em frente, e senti o bolso do jeans vibrar ao subir o último degrau.
sabe onde fica o pico?
O nome não era estranho, mas nada vinha à memória.
acho que não. quer mandar a localização?
O ponto vermelho no mapa indicava um lugar entre nosso antigo colégio e a prefeitura da cidade, quase dez minutos a pé da praça. Desci os degraus num pulo e comecei a andar com passos rápidos, ignorando os arrepios que subiam pelas minhas pernas. Em certo momento, virei à esquerda em uma rua e desacelerei. Os postes fracos ou quebrados davam um ar sinistro ao corredor escuro, onde as casas não passavam de sombras. Hesitei em alguns passos e chequei o mapa, mas o caminho estava certo, então segui adiante até virar a próxima esquina e sentir o alívio destensionar os ombros imediatamente.
- Oi, .
Ele vestia jeans escuros, camiseta vermelha e um sorriso delicado nos lábios finos cortados pela argola prateada. Aproximei-me devagar, analisando a rua, e parei a poucos centímetros dele.
- Lugar interessante.
Ele riu de leve e fez um gesto com a cabeça antes de se virar e andar. Segui-o até o fim daquele quarteirão, atravessamos a rua e descemos alguns degraus de madeira envoltos por grama natural. Mais alguns passos e a cidade surgiu lá embaixo em forma de pontos brilhantes de luz sob o céu estrelado.
- Uau... - foi o que consegui dizer enquanto meus olhos percorriam fascinados a visão do horizonte.
- Incrível, não?
- Caramba, isso é... uau...
- Não sabia desse lugar?
- Não fazia ideia - respondi boqueaberta. - Como descobriu? - começou a rir do meu lado e o olhei. - O quê?
- Hã, bem, descobri há alguns anos, quando estávamos na escola e todo mundo sempre vinha aqui.
Eu ainda estava com a boca aberta e ergui as sobrancelhas ao final da explicação.
- Todo mundo?
- Bom, quase todo mundo. Acho que seus saltos não sobreviveriam aqui - uma risada mais alta saiu de mim porque, bem, era verdade. - Mas, ei, podemos ir pra outro lugar também.
- Tá brincando? Eu amei aqui.
sorriu e sustentou o olhar por um momento, depois deu mais alguns passos e se sentou em um tronco. Sentei-me ao lado dele e o único som que ouvimos nos próximos minutos foi o do vento batendo nas árvores. As estrelas brilhavam tão fortes que pareciam diamantes. Eu sentia o calor do corpo dele tocar meu braço e o mesmo perfume do dia anterior refrescar meus pulmões, e num movimento suave e decidido virei o corpo na direção dele. Imediatamente, passou a perna por cima do tronco, deixando-o entre elas, apoiou os cotovelos nos joelhos e me olhou como se só estivesse esperando por aquilo.
- Eu sei que nada do que diga é capaz de mudar o que fiz, assim como nada do que eu faça é capaz de mudar o que você sentiu ou sinta, mas eu preciso dizer que eu sinto muito - Fiz uma pausa para organizar as palavras e tentar perceber alguma reação nele, que apenas baixou o olhar por um momento. - Não posso voltar o tempo, mas gostaria que soubesse que eu teria feito diferente se pudesse. Eu nunca quis prejudicar nenhum de vocês, especialmente você, e aquela noite foi a pior da minha vida... - foi a minha vez de baixar o olhar e tentar respirar conforme as imagens corriam em minha cabeça. - Não passa um dia sem que eu pense nisso, e senti culpa e vergonha suficiente pra uma vida. Eu só queria que você soubesse, mesmo que isso não mude nada, que eu... - subi o olhar, encontrando o dele fixo em mim, tão doce, tão cheio de carinho que me quebrou e perdi o raciocínio.
- Você? - ele sussurrou, a voz ridiculamente suave. Eu quase não me ouvi.
- Me arrependo de verdade, .
Ele sorriu, talvez o sorriso mais agradecido e iluminado que eu já vira na vida. Meu corpo estava entorpecido, não sentia mais minhas mãos e o sangue corria tão rápido que formigava toda a pele, mas quando começou a falar o chão reapareceu sob meus pés.
- Essa é a única coisa que eu sempre quis ouvir de você, , e muda tudo. Obrigado.
O peso do mundo caiu das minhas costas naquele exato momento.
- Muda tudo? - fiquei confusa. respirou fundo, segurou o punho direito e mexeu de leve o pescoço de um lado para o outro, talvez tentando relaxar antes de começar.
- Aquela foi a pior noite da minha vida. Foi a pior noite de nós seis, na verdade, e demorou pra gente aceitar o que aconteceu - ele fez uma pausa sem tirar os olhos dos meus, que estavam tão petrificados quanto o resto do meu corpo. - Era a chance que poderia ter mudado o rumo das nossas vidas pra sempre... mas, sabe, eu sempre achei que nada é por acaso e que, se aquilo aconteceu, então era o melhor, mesmo que não parecesse. Essa foi uma briga interna comigo mesmo por anos. Eu senti muitas coisas ruins em relação a você por um tempo mas, no fim, não valia a pena, e a única coisa que sempre me perguntei foi se você se culpava, porque aí pelo menos eu saberia que estava certo sobre você.
A última frase fez meu cenho franzir automaticamente. Apenas meus lábios se moveram.
- Certo sobre o quê?
Ele respondeu entre um meio sorriso.
- Você não sabia.
Minha visão não estava turva, mas uma gota de água escorreu pela minha bochecha esquerda. Ele me olhava como se fossemos velhos amigos trocando confidências no meio da noite, despreocupados e livres. As imagens que rodavam em minha cabeça faziam o aperto no meu peito irradiar ainda mais dor em direção à minha garganta, que pulsava como minhas veias. A festa, os copos de bebida, as fotos, o platéia ficando vazia. A oportunidade roubada. Um soluço me fez voltar ao momento presente o senti o indicador dele deslizar sobre a pele da minha bochecha.
- Não, eu não sabia...
- Ei, tá tudo bem - o tom dele era confortante. - A gente não precisa mais voltar lá, tá tudo bem.
Eu umideci os lábios enquanto um suspiro profundo despertava meus músculos. O ar saiu pesado, mas calmo por minha boca e, sem a menor explicação, comecei a rir. arqueou as sobrancelhas parecendo receoso pela primeira vez na noite.
- O quê?
- Desculpe, eu não sei... - disse num misto de súbita diversão e estranhamento. - Eu acho que... nossa...
- O quê? - ele repetiu quando demorei.
- Eu nem sei quantas vezes imaginei esse momento, mas em nenhuma delas você foi tão... - não consegui achar a melhor palavra, por isso deixei a frase morrer antes de um sorriso bobo que ele contemplou por um momento. - Obrigada, .
- Como eu era na sua imaginação?
- Você me xingava bastante.
Uma risada gostosa escapou da garganta dele.
- Se tivesse sido antes, bem provável que isso acontecesse. Eu era nervosinho.
Ri com a careta em reprovação que ele fez.
- Achei que você fosse ser o mais difícil.
- Eu, sério? - ele pareceu confuso. - Por quê?
- Uai, porque... - interrompi-me no mesmo segundo, percebendo o quão descuidada havia sido no comentário. Abri e fechei a boca algumas vezes, desviei o olhar e cocei a parte de trás da orelha, tentando caçar uma explicação aceitável. - Porque você era nervosinho... - disse com meu tom morrendo. Ele franziu o cenho e tentou disfarçar um meio sorriso.
- Hm... mais nervoso que o ?
O nome me atingiu como um raio.
- Caramba, o - houve um momento de silêncio. - Não sei se consigo falar com ele.
- Você gostaria?
- Sim.
- Eu te ajudo.
Eu o olhei sem entender.
- , eu agradeço, mas isso é...
- O te odeia - ele me cortou tanto na fala quanto nas emoções. - De todos nós, ele ainda é o único que não superou. Não que os outros, tirando o , queiram ouvir falar de você, mas o tem essa raiva em relação a você e tudo sobre aquele dia que ninguém consegue reverter. Ainda bem que você começou comigo, porque... - ele se interrompeu, o olhar caindo para os dedos ainda segurando o pulso.
- Porque... - incentivei, o coração a mil.
- Não tenha pressa com ele, tudo bem? Faça o que você tem que fazer com os outros, mas não se apresse com ele.
- Imagino que o deva ser o próximo, então.
- Como sabe?
- Ele é o único que me cumprimenta - demonstrou entender o sentido com um movimento de sobrancelhas. - E tem esse ar de curiosidade nos olhos dele.
- Em todos nós.
Ele ficava bem de vermelho. Eu ouvia grilos ao fundo, sentia a textura da madeira por baixo do jeans, um leve adormecimento do meu corpo todo repentinamente como se eu tivesse ingerido álcool. Já tinha sentido aquilo antes, assim como a sensação da energia rodando pela minha garganta e fazendo cócegas. Meus olhos miravam o braço dele ainda sobre o joelho e piscaram preguiçosamente, ardendo de leve, um suspiro longo e lento descansando minha alma. Minha língua molhou meus lábios bem devagar antes do meu olhar encontrar com o dele.
- Eu tinha certeza de que seria só uma apresentação idiota de colégio - comecei, e o ar ao nosso redor mudou instantaneamente. - E tinha esse ar de superior, de rainha da situação, mas a verdade é que eu sempre fui extremamente manipulável. Sem atitude, sem autenticidade, sem própria personalidade. Eu não sei o motivo exato de ter ficado daquele jeito, nem sei se tem um ou um só, mas acho que quem eu sou de verdade queria tão desesperadamente despertar, criar consciência, que eu criei aquela noite. Eu tinha certeza de que era só uma apresentação idiota de colégio... - as palavras saiam suaves e bem articuladas, um pouco preguiçosas como o resto do meu corpo. apenas respirava em meio aos meus sussurros. - Então eu fiz o que o terceiro ano me pediu pra fazer, porque eu queria ser parte da turma deles agora. Eu seria ainda mais incrível, certo? Mesmo que pra isso eu tivesse que usar você.
Eu vi o exato momento em que ele mordeu os dentes, mudando a expressão por um minuto. Olá, dor.
- Duas gotas em cada copo. Não sei o que era, nunca perguntei, e levei dois anos inteiros pra perdoar a ideia de que aquilo poderia ter matado todos vocês. Dois anos pra me perdoar por ter estragado a chance de vocês. Três pra conseguir colocar a cabeça no travesseiro sem sua imagem me assombrar. Eu fiquei sabendo que tinha um produtor de olho em vocês, mas não sabia que ele estava lá naquela noite, e foi depois das fotos e de vocês completamente fora de si naquele palco que eu soube. Foi meu irmão quem me contou que o estava no hospital. Eu acordei ali, .
Foi a primeira vez que eu o vi chorar, calma, contida e dolorosamente. Minha garganta ardia, mas eu ainda tinha coisas presas há muito tempo para parar agora. Eu sabia que ele também queria aquilo.
- Eu acordei diferente na manhã seguinte e todo mundo percebeu. Acho que a parte boa de ter muito dinheiro é poder desaparecer na mesma hora - não consegui não evitar o pequeno riso ácido. - Eu não fui embora pra fugir, mas pra me encontrar, e eu arrisco dizer que, se tivesse sido qualquer outra pessoa, provavelmente eu não o teria feito. Só que não era qualquer pessoa, era você. Como eu olharia pra você? Então eu fui... sem muita escolha também, meus pais ficaram decepcionados quando eu contei e, uma ligação pros meus tios depois, eu estava no avião... foi tudo tão rápido...
me olhou atentamente, os lábios entreabertos molhados. Eu sorri um sorriso largo, mas ainda fechado, e peguei o celular do bolso, tirando a capa. O pedaço de papel cortado caiu no tronco. Nós olhamos o papel, nos olhamos e incentivei-o a pegá-lo com um aceno de cabeça. A luz que emanou dele poderia iluminar a cidade inteira naquele instante.
- Eu gostava do seu cabelo vermelho e da gola surrada da sua camiseta azul. Gostava de como você segurava o microfone nos shows na escola, de como você ria e da sua mania estúpida de me chamar de vossa magestade nos corredores só pra me irritar. Originalmente, esse papel era uma foto do poliesportivo num dia de gincana, mas eu cortei o resto e deixei só você encostado num pilar.
Não soube dizer se o vento tinha ficado frio ou se eu estava voltando ao corpo e tomando consciência do que estava fazendo, mas minha pele arrepiava em ondas pouco espaçadas. Nenhum de nós disse nada pelo próximo minuto, eu por achar que ele precisava de um tempo para absorver tudo, ele por estar absorvendo. Os olhos oscilavam entre mim e a foto, espantados, iluminados, feridos, confusos. Deixei que ele quebrasse o silêncio.
- Há quanto tempo você guarda isso?
E era a pergunta que eu esperava.
- Oito anos.
arrumou a postura instantaneamente, o rosto tomado por um baque inesperado, e então se levantou num movimento rápido para caminhar até a ponta do pico, parando de costas para mim. Eu apenas o observei, deixando que ele reagisse àquilo por completo pelo tempo que fosse necessário. Vi-o colocar as mãos na cintura e levantar a cabeça, ficando assim por um tempo, e depois abaixá-la, gastando talvez o mesmo tempo. Minha mente estava vazia e sentia a vibração do meu coração pulsar na ponta dos dedos. Eu estava presente no momento, nem mais relembrando o passado, nem pensando no que aconteceria no próximo segundo. Eu apenas era o momento enquanto ele chorava baixinho, arfando de vez em quando.
A cidade parecia ainda menor lá embaixo. Ele se agachou, contendo menos as lágrimas e as emoções agora, e foram aproximadamente quinze minutos até que ele se levantasse, batendo os pés na terra antes de se virar e me olhar.
- Eu era apaixonado por você - ele disse com a voz falha e o chão sumiu sob meus pés.
- Apaixonado?
- Completamente. O que não fazia nenhum sentido, mas você conseguia ser legal quando queria, quando estava longe do seu grupo. Quando, por acaso, ficávamos apenas nós dois num lugar. O que foi aquela noite, ? - eu baixei o olhar até que ele voltasse a falar, sem resposta. - Eu nunca me senti tão idiota como depois daquela noite, depois de ver que você só se aproximou porque queria ter acesso fácil ao camarim - deu um meio sorriso, rindo ao enxugar o rosto com a mão. - Camarim... aquela sala minúscula no festival, mas, enfim... eu poderia dizer que o ato em si foi o que me matou, mas eu estaria mentindo.
- Eu te matei quando te fiz acreditar que gostava de você.
Ele balançou a foto no ar.
- E agora você me diz que gostava.
- Não - sussurrei. - Eu era apaixonada por você.
Silêncio. Ele se aproximou, os olhos fixos nos meus.
- Por quê, ? Eu sorri de modo triste, franzindo a testa para demonstrar a resposta óbvia.
- Porque meu orgulho e a minha vaidade eram maiores do que a minha autenticidade, . Por isso eu nunca consegui fazer nada além de olhar pra você, ainda me reprovando por dentro. No fim das contas, eu não me aceitava, não me enxergava, não me aprovava. Nunca foi sobre você e seu jeans rasgado.
Com passos lentos, ele caminhou de volta até a árvore e se sentou do mesmo modo de antes. Eu me ajeitei para ficar totalmente de frente a ele agora, que apertava os olhos com os dedos.
- Tem tanta coisa que eu quero perguntar, mas não sei como juntar as palavras agora.
- Tudo bem, eu vou estar aqui quando você conseguir.
- Eu gostaria que tivesse falado comigo antes de ir embora.
- Eu tive medo... eu nunca senti tanto medo de tudo.
- Por que você voltou?
Eu senti meu olhar se encher de carinho pela primeira vez em muito tempo e, num movimento mecânico, me aproximei dele, deslizando a ponta dos dedos muito suavemente pela sua sobrancelha. Perdi a visão das íris por um momento.
- Eu jurei pra mim mesma que voltaria pra pedir perdão a vocês. Eu não saberia como continuar com a minha vida sem antes sentar na sua frente, olhar dentro dos seus olhos e dizer que eu sei que errei contigo e te pedir perdão por todo o dano que causei. Independentemente da sua reação, eu queria que você soubesse que eu, do fundo do meu coração, me arrependo de cada ato meu e eu não sabia. Eu achei que seria só um show ridículo... só um show ridículo...
Um, dois, três, dez, vinte segundos. A mão dele tocou timidamente a minha sobre minha perna, convidando meus dedos a pousarem nos dele. Um toque leve, fácil e tranquilo.
- Você era apaixonada por mim? - a pergunta veio embargada em confusão e espanto.
- Completamente.
- Alguma... - ele hesitou, balançando a cabeça enquanto franzia a testa com certa força. - Alguma coisa que você me disse aquela noite foi real?
Sorri.
- Eu gosto de você.
Os lábios dele tocaram os meus exatamente como naquela noite: macios, delicados e quentes. Senti o sal na ponta da minha língua e o calor da língua dele sem ela ao menos me tocar. Sob o céu estrelado, o beijo do meu demônio me curou.
- Eu te perdoo, .
Uma onda quente no meu coração e aquilo era tudo o que nós dois precisávamos.
A mão dele ficou na minha pelo resto da noite.
Fim
Nota da autora: Eu resolvi transformar essa fic, começada há alguns anos, no primeiro conto de uma série que pretendo escrever. Então, aqui está Despertar. É uma mistura de ficção com um pouco da minha própria experiência, e o foco não são os detalhes, mas a essência da coisa haha.
Espero que gostem <3
Insta: @rodriigues.nanda
Outras Fanfics:
Geek
Nota da beta: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
Espero que gostem <3
Insta: @rodriigues.nanda
Outras Fanfics:
Geek
Nota da beta: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.