01

"I'll be over at ten", you told me time and again, but you're late
I wait around and then I went to the door, I can't take any more
It's not you, you let me down again

(Build me up Buttercup – The Foundations/Versão McFLY)


Strada – Cucina Italiana, Londres, Segunda-feira, 22:11h

sorriu para a recepcionista e passou por ela, dirigindo-se até uma mesa num canto mais afastado do saguão. Pouco depois de se sentar, um garçom apareceu e lhe estendeu um cardápio.
- Quer fazer algum pedido, senhorita? – perguntou educadamente.
- Ainda não. Obrigada. – sorriu, fechando o cardápio e depositando-o sobre a mesa.
O rapaz se afastou e se pôs a observar o restaurante. Estava relativamente cheio, e a tendência era, devido ao horário, aumentar. Haviam combinado de se encontrar às dez horas, mas ela mesma chegara dez minutos atrasada, então era sorte que tivesse conseguido uma mesa. Os acordes de uma música clássica ecoavam pelo ambiente, e reconheceu Turkish March, de Mozart, das aulas de piano que fez quando pequena, nas quais sua irmã sempre se destacava. Como se fizesse alguma diferença saber o nome da música, enquanto Alyssa sabia tocá-la inteirinha, sem hesitar, deixando os dedos longos e finos deslizarem habilmente pelas teclas.
Foi tirada de seus pensamentos quando o garçom voltou e se postou próximo a ela, olhando-a interrogativamente.
- Estou esperando alguém. – esclareceu, e o homem se retirou novamente.
Passado algum tempo, conferiu o relógio no seu pulso. Dez e vinte e sete. Considerando que ela também tinha se atrasado devido ao trânsito, só estava dezessete minutos atrasado. Quando o garçom correu os olhos pela mesa de mais uma vez, ela sinalizou para que o rapaz viesse até ela.
- Você poderia me trazer um Martini, por favor?
Alguns minutos depois, quando ele voltou, pôde ver em seu rosto aquele olhar de pena; então, teimosa, sustentou seu olhar. não faria isso com ela. definitivamente não faria isso com ela. Ele estava a caminho. Cogitou ligar, mas ele provavelmente apareceria logo, pedindo desculpas pela demora, e não queria parecer desesperada. Então continuou esperando.
Terminou de tomar sua bebida, enquanto o garçom continuava a olhá-la. Quando seus olhares se cruzaram, mais por não saber o que fazer do que por qualquer outro motivo, pediu mais uma dose. Consultou o relógio de novo. Quarenta e cinco minutos. Oh, ! Ele faria isso com ela! Quis de novo ligar para ele, mas desistiu. Ter de implorar para que viesse? Não. se recusava a se submeter a isso.
O garçom voltou, trazendo mais uma taça, e evitou seu olhar, começando a sentir vergonha. Não sabia o que fazer. Não queria simplesmente se levantar e sair, sozinha. Como se ficar esperando por quase uma hora não fosse humilhação suficiente. Tudo bem, tranquilizou-se, vai aparecer. Mas a verdade é que ela própria sabia que aquilo não era verdade. Ele não ia aparecer. Viu uma mulher a algumas mesas de distância lhe lançar o mesmo olhar de pena do garçom. Deus, como era humilhante!
Sentia que suas bochechas estavam corando, e não era só vergonha. Um sentimento incontrolável de raiva crescia em seu corpo e parecia sair pelos seus poros. Ódio, ódio, ódio! Ódio de , por não aparecer, ódio de si mesma, por ter sido burra o suficiente para esperar por cinquenta minutos, ódio do garçom estúpido e todas as pessoas estúpidas do restaurante, que pareciam olhar somente para ela, como se até eles soubessem que ele não ia aparecer.
Respirou fundo, sentindo vontade de enfiar a cabeça embaixo do pano de mesa e permanecer ali até que o mundo inteiro à sua volta sumisse. Mas, por mais que agisse como uma criança às vezes, há muito passara da fase em que achamos que nossos problemas vão desaparecer se fecharmos os olhos com força e implorarmos o suficiente. Ainda que os ditos "problemas" possam variar – desde uma salada de espinafre que você quer que suma do seu prato da Minnie até um homem infeliz que você quer, mais que tudo, que simplesmente apareça – todos já passamos pela infeliz descoberta de que fechar os olhos não resolve tudo. Para falar a verdade, não resolve absolutamente nada.
Juntando forças e toda a dignidade que ainda tinha – se é que tinha alguma – abriu a bolsa, alcançou sua carteira e puxou de lá uma nota de 50 libras. Depositou o dinheiro em cima da mesa e se levantou, sem se preocupar com o troco. Afinal, já tinha passado por humilhação suficiente para se importar com isso. "Ignorada", "esquecida" e "humilhada" já estava de bom tamanho, a última coisa de que precisava era ser taxada de mesquinha. Em movimentos rápidos – mas não demais para não parecer desesperada – caminhou pelo salão, desviando-se das mesas, e se dirigiu à porta como um maratonista se dirige à linha de chegada: seu único objetivo de vida! Passou pela recepcionista olhando fixamente para a frente, para não precisar encará-la, e quando pisou do lado de fora do restaurante, inspirou o ar gelado. Estivera prendendo a respiração o caminho inteiro, tamanha era sua concentração em sair dali o menos ridicularizada possível. Como se isso não estivesse completamente fora de cogitação. Riu de si mesma.
Ainda sentia a raiva circular por seu corpo e esquentar seu rosto. Queria matar . Nada menos que isso. Talvez torturá-lo primeiro. Chutar-lhe a virilha com a ponta daquele sapato de salto vermelho que ele tanto gostava, ou asfixiá-lo com aquela maldita gravata azul (que combinava com seus olhos e o fazia parecer tão sexy) para que engasgasse nas próprias mentiras. Não suportava a forma como a fazia sentir às vezes. Tão tola, tão submissa, tão insignificante. Ah, mas ele ia se arrepender.
respirou fundo mais uma vez e afastou os cabelos do rosto, tentando se acalmar. Tirou suas chaves da bolsa e olhou para os dois lados da rua, tentando se lembrar de onde tinha estacionado o carro. Quando o localizou ao longe e estava prestes a caminhar até lá, sentiu uma mão tocar seu ombro de leve.
- Senhorita?
se virou, assustada, e, para seu desgosto, deparou-se com ninguém mais, ninguém menos que o garçom do restaurante. O rapaz estendia sua mão enluvada para ela.
- Você esqueceu seu troco.
Oh, Deus. Como se ainda não fosse suficiente!
Mortificada, estendeu a mão e pegou o dinheiro e, incapaz de murmurar um mísero "obrigado", virou as costas e saiu, ansiando por chegar logo em casa e nunca mais precisar mostrar seu rosto ao mundo.

BBDO, Londres, Terça-feira, 07:57h

Assim que pôs sua bolsa em cima da mesa, o telefone tocou. Ela sabia quem era. Aquela velha intrometida não perdia tempo mesmo. mal havia pisado no 7º andar e ela já o tinha avisado. Tudo bem, "intrometida" não. Estava só obedecendo a ordens. Sra Dermott era a secretária de . Devia ter uns 60 anos e era até muito simpática. Era meio gordinha e usava tantos babados, rendinhas e acessórios que às vezes fazia pensar num cupcake decorado com glacê. Sempre chamava as pessoas de "querida" e "meu bem", mas quando ela fazia esse tipo de coisa, se sentia vigiada, e quando vinha dizer "meu bem, está te chamando", ela tinha vontade de mandá-la ir à merda. Que fosse chamar os outros de "meu bem" no raio que o parta.
A mulher não atendeu. Ignorou os toques insistentes do telefone enquanto ligava o computador, esvaziava a bolsa e se instalava. Finalmente, o som agudo do aparelho cessou e nem cinco segundos haviam se passado quando ouviu uma batida à porta e a Sra. Dermott colocou sua cabeça para dentro da sala, esticando seu pescoço rechonchudo e exibindo uma gola de tecido verde-menta felpudo.
- Bom dia, querida! – disse sorrindo. – está te chamando.
respirou fundo, sentindo uma vontade enorme de gritar. E então gritou. VÁ À MERDA, gritou mentalmente a plenos pulmões. Então a vontade passou e ela exibiu seu melhor sorriso:
- Obrigada, Sra. Dermott.
E ela saiu de novo.
Ele simplesmente não desistia. consultou o relógio. Eram oito horas da manhã. Não tinha sequer posto os olhos em ainda e, no entanto, ele já tinha conseguido estragar seu dia.
Respirou fundo mais uma vez, juntando paciência, e saiu, dirigindo-se à última sala do corredor.

levantou os olhos assim que a viu entrar. Levantou-se do sofá, caminhou até a porta e pousou as mãos na cintura de . Tinha considerado suas opções, e decidiu testar a boa vontade dela – por mais arriscado que fosse – e fingir que não havia acontecido nada, porque era mais fácil do que pedir desculpas e ter de se justificar, já que não tinha uma justificativa plausível. Com alguma sorte, conseguiria amaciar o gênio forte da mulher. Então olhou em seus olhos e sorriu encantadoramente.
- Você não atendeu quando eu liguei. – declarou brandamente, quebrando o silêncio.
- Teria atendido se quisesse falar com você. – ela respondeu prontamente, fazendo sorrir. Adorava sua língua afiada. acrescentou: - Pára de rir.
- Não estou rindo! – se defendeu, alargando o sorriso. - O que vamos fazer hoje? – arriscou.
Arrependeu-se imediatamente. Viu os olhos de se arregalarem, indignados, e suas pupilas se estreitaram, preparando-se para um dos ataques de fúria que ele já conhecia.
- O que vamos fazer hoje?! - repetiu. – "Vamos" tomar vergonha na cara! – disse alto, fazendo se encolher e levar o indicador à boca, pedindo por silêncio discretamente, com medo de agravar a reação dela. Apressou-se em fechar a porta, receoso de que alguém escutasse.
- Calma, ... – pediu, tentando acalmá-la.
se aproximou dela, encarando-a fixamente, e a intensidade de seus olhos e suas mãos quentes nos quadris de a fizeram hesitar por um instante. Seu perfume, que sempre a entorpecia, a fez fechar os olhos e respirar fundo. Então os abriu novamente, reparando que quase – quase – se deixou persuadir. Aquilo era simplesmente ultrajante. estava descaradamente fingindo que não havia acontecido nada. Afastando o momento de fraqueza, disse num tom duro:
- Faça o que você quiser, . Mas não espere que eu venha te receber com mil amores e carinhos depois de me fazer de idiota.
suspirou e coçou a nuca. Sabia que, às vezes, não tinha proveito discutir com ela. Quando agia daquele jeito, a melhor saída era dar tempo a ela. Mais tarde ligaria – ou, melhor: aparecia de surpresa – e pediria desculpas de novo. Proporia alguma coisa para recompensá-la. não suportava que ninguém ficasse irritado com ele.
Antes que a mulher alcançasse a porta, disse:
- , o novo diretor de arte chegou. Vá se apresentar, por favor. – pediu mansamente.
- É claro, chefe. – disse ironicamente e se virou, sorrindo cínica. – Posso fazer mais alguma coisa pelo senhor?
rolou os olhos pelo tom dela, sorriu, malicioso, e provocou:
- Pode desfazer essa carinha feia e passar lá em casa de noite.
E ouviu a porta bater com força e passos fortes se afastando.

colocou a caixa em cima da mesa de vidro e olhou em volta do seu novo escritório. Nada mal, se comparado ao gabinete medíocre separado por biombos que tinha antes.
Depois de quase um ano no setor de atendimento, finalmente tinha sido promovido para o setor de criação, que era sua meta desde o início. Não tinha gastado 4 anos na faculdade para viver de telefonemas para os clientes e sorrisos simpáticos.
O cômodo inteiro estava impecável. Um cheiro de limpeza impregnava o ar. se sentiu importante. A janela ocupava quase a parede inteira, e dava vista para o centro da cidade. O prédio ficava em uma das principais ruas do centro comercial de Londres, e tudo que se via da sua janela eram prédios, carros e movimento.
trabalhava na BBDO, uma das maiores empresas multinacionais de publicidade. Por sorte, as circunstâncias – que incluíam meses de muita eficiência e boa reputação no andar de baixo e uma ex-diretora de arte recém-casada com um milionário – levaram a conseguir uma fase de teste como novo diretor de arte da empresa.
começou a tirar as poucas coisas de dentro da caixa e arrumá-las em cima da mesa. Um laptop, uma agenda e um porta-retrato com uma foto da sua cadela. Sentou-se na cadeira atrás da mesa e ajustou sua altura. Era confortável. suspirou e, orgulhoso, olhou à sua volta mais uma vez.
Inesperadamente, a porta se abriu. Uma mulher entrou pisando forte, parecendo irritada. O som agudo dos seus sapatos de salto no chão ecoou pelo cômodo. Seus cabelos estavam presos em um rabo de cavalo alto e apertado, e sua expressão não era muito agradável. Ela caminhou até a mesa de , largou uma pasta em cima dela e falou:
- , novo diretor de arte, certo? – ela não esperou resposta e continuou: – , sua redatora. Pasta dos clientes e cronograma da semana. – deu um tapinha na pasta à sua frente.
- Prazer... – começou.
- Tá, prazer. – ela o interrompeu, semicerrando os olhos, impaciente. – me mandou aqui. – ela apontou com a cabeça para o telefone em cima da mesa. – Se precisar, disque 01 pro escritório dele e 03 pro meu. Evite precisar. – e lhe lançou um olhar duro.
- Ok. – murmurou, segurando a vontade de rir. Sentia que ela não ia ficar exatamente feliz se ele o fizesse, mas não podia deixar de achar graça no mau humor exagerado da mulher, quase caricato.
Ela virou as costas e caminhou até a porta de novo, tocou a maçaneta e se virou novamente:
- Bem vindo ao Departamento de Criação. – e sorriu bem cínica. – O 7º andar é um inferno. – disse antes de bater a porta atrás de si.
A sala voltou ao completo silêncio em que estava antes da entrada dela. se permitiu rir. Então quer dizer que aquela era sua redatora. não tinha criado muitas expectativas, mas definitivamente não tinha imaginado alguém tão amargo e mal humorado. Olhou mais uma vez para sua nova, confortável e bem equipada sala. "Se isso aqui é o inferno" pensou, "que bom que eu sou ateu".

Capland Street 12, Londres, Terça-feira, 19:31h

abriu a porta e jogou as chaves em cima da bancada que separava sua cozinha da sala. Largou a pasta em cima de um dos bancos e afrouxou a gravata. Caminhou até o sofá e foi alcançado por sua cachorra, Charlotte, correndo em seu encalço.
- Ei, garota. – disse, coçando-a atrás da orelha e chacoalhando sua cabeça de leve.
tirou os sapatos e largou os pés em cima do sofá. Ele se esticou tentando alcançar o controle da televisão. Ligou-a. Não porque queria assistir alguma coisa, mas para quebrar o silêncio do apartamento.
Sentiu o estômago roncar e olhou para a cozinha, mas não quis se levantar.
- Por que você não sabe cozinhar? – murmurou e olhou feio para Charlotte.
Seus olhos se desviaram para o telefone. O número "3" piscava em vermelho. Suspirou, empurrou o corpo para fora do sofá e pegou o aparelho. "Você têm três novas mensagens", a secretária eletrônica anunciou. Primeiro bipe.
- Oi, ! É a Tegan... Eu te dei meu número aquele dia, mas você acabou não ligando. – risadinha extremamente irritante. – Então eu quis...
A voz da mulher foi interrompida por um bipe quando ele deletou a mensagem, nem um pouco interessado em ouvir o resto. Mais um bipe, seguido pela próxima mensagem.
- ? Como foi o seu primeiro dia? – a voz animada da sua mãe ecoou e ele revirou os olhos. – São 19:13 e você ainda não chegou, muito trabalho como novo diretor de criação? Estou tão orgulhosa de você! Seu pai também está. A Kayleigh tá mandando um beijo. Me liga quando voce tiver um tempinho. Ah, deixei uma lasanha pra você antes de voltar pra casa, tá dentro do forno. Beijos!
se levantou de um pulo e correu até o forno, enquanto a última mensagem começava.
- Oi, ? Sou eu, Cerys... Eu me diverti muito sábado! Tô livre essa semana... Então pensei que talvez você quisesse repetir a dose. – risada pervetida. - Bom, você tem meu número.
ligou o forno e voltou para o sofá, onde Charlotte estava sentada imóvel olhando para ele com seus grandes olhos de Cocker. Charlotte era uma Cocker spaniel inglês cor de caramelo.
- Que foi? – olhou para ela antes de voltar a encarar a televisão. – Eu não vou ligar. Nem trazer ela aqui, prometo. – e deu um tapinha na cabeça dela antes de se levantar e jogar a camisa no chão a caminho do banheiro.


02

Oh dear, you look so lost. Your eyes are red, the tears are shed
This world you must have crossed, you said, "you don't know me and you don't even care"
And you said "you don't know me and you don't wear my chains"
(...)
I think I'll start a new life, I think I'll start it over where no one knows my name

(Boston - Augustana)


BBDO, Londres, Quarta-feira, 07:53h

O elevador parou no sexto andar e três pessoas saíram. sorriu para todos e o elevador subir de novo, rumo ao sétimo. Saiu e se dirigiu até seu novo escritório, largando a pasta em cima da mesa e abrindo as persianas. Sentia-se como uma criança que acaba de ganhar um presente novo.
Saiu de novo da sala, dirigindo-se até o break room. Um homem mais velho, careca, usando um terno um pouco apertado demais para o abdome saliente sob a camisa branca, estava parado em frente à cafeteira. O homem virou o rosto para a porta e acenou com a cabeça para enquanto andava em direção à saída com seu café na mão.
se dirigiu até a cafeteira também, quando alguém entrou na sala, e ele ouviu duas vozes femininas terminando uma conversa.
Virou-se para olhá-las e sorriu divertido ao ver que uma delas era . Não tinha sequer reconhecido sua voz sem aquele tom irritado. A outra mulher era um pouco mais alta que ela, tinha cabelos curtos e bem cacheados e pele escura. Sua voz era forte e enérgica. Quando pousou os olhos em , a mulher se apressou a dizer:
- Ei, você não é o novo diretor de arte? – e exibiu um sorriso largo de dentes brancos, estendendo a mão de unhas compridas pintadas de um laranja forte. – Prazer, Ruby Lloyd.
- .
- Esta é ... – a mulher continuou, sinalizando a colega.
- A gente já se conhece. – ele interrompeu, ainda sorrindo.
- Já? – admirou-se. E brincou sugestivamente: - As coisas acontecem rápido por aqui... – rindo em seguida.
rolou os olhos, sorrindo amarelo.
- Bom, eu tenho que ir agora. – Ruby consultou seu relógio de pulso, fazendo as muitas pulseiras em seu braço tilintarem. – Se chegar antes de mim de novo eu vou ter problemas.
E saiu da sala, fechando a porta atrás de si.
Assim que Ruby saiu, ficaram em completo silêncio. O homem estava encostado à bancada, uma mão no bolso, a outra segurando a xícara de café. caminhou até a cafeteira sem olhar para ele. , no entanto, continuou a observando.
Ela não pisava forte como no dia anterior, mas o som dos seus sapatos ainda era alto. Seus cabelos compridos estavam soltos e se mexiam levemente a cada movimento da mulher. Ela encheu uma xícara e também encostou as costas contra a bancada, como , encarando a frente.
- Ei. – murmurou, pigarreando. - Desculpe por ontem. – e encolheu os ombros e olhou para ele, sorrindo, antes de tomar um gole. – Desculpe por ter agido daquele jeito, eu estava estressada.
- Tudo bem, eu entendo. Ouvi dizer que no 7º andar o trabalho é mais pesado mesmo. – brincou.
riu.
- Quem dera o motivo do meu estresse fosse trabalho. – murmurou, sorrindo de lado. E antes que tivesse tempo de falar, consultou o relógio em seu pulso e disse logo: – Er, até mais tarde.
se desencostou da bancada e saiu da sala, seguindo pelo corredor comprido. concordou com a cabeça e acompanhou a mulher com o olhar enquanto terminava de tomar seu café. Sorriu, balançando a cabeça para os lados. O que um sorriso não faz com uma pessoa? Ela era outra pessoa quando estava de bom humor.
Jogou a xícara fora e fez o caminho de volta à sua sala. Pouco depois de ter entrado, bateram à porta. A secretária, uma mulher mais velha cujo nome ainda não tinha aprendido, colocou a cabeça para dentro da sala.
- O Sr. quer ver o senhor na sala dele.
agradeceu, deixou a sala mais uma vez e seguiu pelo corredor, parando depois de alguns segundos. Não fazia idéia de qual era a sala do seu chefe. Olhou em volta. À sua direita, do outro lado de uma parede de vidro, diversas pessoas sentadas em suas próprias mesas pareciam concentradas em telefonemas ou telas de computador. Ao fim do corredor, via a porta aberta do break room. À sua esquerda, cerca de dez portas de madeira clara espalhadas pelo corredor.
Leu uma por uma, até chegar à última, onde uma placa metálica informava: " – Diretor de Criação". Bateu na porta antes de entrar.
estava sentado em sua cadeira, de frente para a porta, prestando atenção a alguma coisa que a mulher à sua frente falava, e levou o olhar à porta assim que entrou. percebeu que era sentada à sua frente, de costas para a porta, com a cabeça apoiada na mão direita numa atitude clara de insatisfação. Ela não reagiu à sua entrada, apenas interrompeu sua frase, fazendo silêncio.
- Bom dia! – Sr. cumprimentou sorrindo e se levantou.
- Bom dia. – respondeu, caminhando até a mesa e apertando a mão estendida do chefe.
- Senta. – apontou casualmente com a cabeça para a cadeira ao lado de , que permanecia em silêncio. Ouviu-se uma batida rápida na porta e ela se abriu. Um rapaz alto, magro, de olhos bem escuros, entrou. Não tinha mais de 20 anos e seus óculos de armação fina e sua camiseta, que estampava Darth Vader e as palavras "I Want You For The Dark Side", denunciavam imediatamente sua personalidade. Seus cabelos desarrumados e a barba por fazer eram pretos e finos. Sr. sorriu e se virou para novamente.
, seu diretor de criação, caso você não saiba. Connor Marbeck, assistente de criação, o famoso faz-tudo. E , redatora. – ele apresentou.
Connor estendeu a mão e sorriu. Tinha um aperto de mão firme. olhou para pela primeira vez, exibindo um sorriso discreto, forçado e descaradamente cínico.
- Espero que vocês trabalhem tão bem juntos quanto e Joan trabalhavam. – continuou, parecendo não ter visto (ou ignorando completamente) a atitude de . – Porque está na hora de falarmos sobre a Tuborg. Cliente grande. Prazo curto. E eu gostaria de ouvir a quantas andam as idéias de vocês até... Vamos dizer até o fim da semana?
assentiu prontamente com a cabeça e continuou em silêncio.
- Eu ainda tô finalizando a campanha da Lotus. – Connor coçou a cabeça.
- Sem problemas. Eles se viram. – piscou para os dois à sua frente e sorriu. – Vamos descobrir logo se isso aqui – levou o queixo à frente, indicando e – vai dar certo. Só tente estar disponível caso eles precisem, Connor. Fora isso, tudo certo?
- Claro, Sr. . – replicou .
- . – o chefe corrigiu simpático. – Então ótimo. Mãos à obra. – finalizou sorrindo.
se surpreendeu – positivamente – pela concisão do chefe. Mal começara, mas estava cada vez mais satisfeito com a nova posição.
Quando terminou de falar, se levantou imediatamente.
- Acabou?
- Acabei, . – ele respondeu paciente. – Pode ir.
Sem hesitar, ela se virou e saiu sem dizer mais nada, fechando a porta atrás de si. suspirou e revirou os olhos, inclinando-se para trás na cadeira.
- É com ela que você vai trabalhar 80% do seu tempo. – apontou com a cabeça para a porta e piscou para , rindo. – Boa sorte.
e Connor riram também.
- Obrigado. Parece que eu vou precisar.
- Ela é muito boa no que faz. – continuou, falando sério agora, enquanto tirava alguns papéis de uma gaveta.
- Com certeza. – Connor concordou vigorosamente com a cabeça.
- Só tem um temperamento... difícil de lidar, eu diria. – completou.
- Com certeza. – repetiu o rapaz, sorrindo divertido antes de bater continência e se dirigir à porta. – Com licença.
- Até mais, Connor. – começou a folhear os papéis e, sem levantar os olhos, repetiu, assentindo distraidamente com a cabeça: - Ela é boa no que faz. Você só tem que se acostumar.
- Certo. – sorriu. Não sabia exatamente como se portar. parecia ser o tipo de chefe que age e fala de forma completamente natural e deixa seus subordinados muito à vontade. No entanto, continuava sendo o chefe, e não tinha muita experiência com isso – mas a última coisa que queria era estragar tudo. Então pigarreou, embaraçado, e se levantou, saindo da sala de seu chefe.
Assim fechou a porta atrás de si, seus olhos pousaram, mais uma vez, em , que vinha caminhando firmemente da outra direção do corredor. Quando ela o alcançou, antes que pudesse reagir, a mulher levou a mão ao punho dele, abriu a porta da sala à sua esquerda e o puxou para dentro. Ele riu fraco, sentindo-se um pouco constrangido e surpreso pela abordagem inesperada.
- Que violência. – mais uma vez sem saber como reagir, arriscou uma piada, reparando imediatamente que não tinha sido uma decisão inteligente. Então se calou de novo.
se sentou em cima de uma mesa e cruzou as pernas, e não pôde deixar de olhar por um momento suas pernas bem torneadas.
- Acabei de pegar as informações com a Madison, do atendimento. – ela começou, ignorando o comentário dele e folheando a pasta que tinha em mãos. – Todas as informações de trabalhos anteriores com a Tuborg. Eles precisam de um novo comercial de divulgação da edição de natal. quer o esboço até o fim da semana, então é melhor a gente começar logo porque eu odeio trabalhar horas extras. – ela pigarreou. – A Tuborg é clássica. A gente precisa de uma propaganda que entre no tema, mas que não fique clichê e exagerada.
- Certo. Concordo. – disse prontamente, fazendo questão de olhar para o rosto dela e se mostrar focado no que ela dizia. fechou a pasta de novo e o encarou.
- Ótimo. Então vai buscar suas coisas e me encontra de novo aqui em 5 minutos. – e apontou com a pasta para a porta.
- Sim, senhora. – brincou, sem conseguir resistir, e saiu em seguida.
observou o colega passar pela porta. Não falou nada, mas se irritou pela brincadeira. Por que ele se sentia no direito de ser sarcástico? Eles nem ao menos se conheciam. Observou que esse era o motivo pelo qual gostava de pessoas tímidas: elas não falam, não te contrariam e não dão trabalho.

voltou, alguns minutos depois, com o laptop embaixo do braço. Quando entrou, lia concentrada alguma coisa no computador enquanto mordia a ponta de uma caneta. Ao vê-lo entrar, a mulher apontou para a porta, indicando que a fechasse, e ele obedeceu. Antes que ele tivesse alcançado a mesa, ela já começara a falar:
- Não sei se você viu os comerciais do ano passado. – comentou incerta, enquanto se ajeitava na cadeira. – Mas eu pensei em permanecer naquela linha. Eles funcionaram bem e os representantes da Tuborg costumam ser meio conservadores nesse ponto.
- Uhum. – movimentou a cabeça, assentindo. – Concordo.
Ele bem que tentara não deixar sua atenção se dispersar, mas concentração não era seu ponto forte. Constantemente, tinha sempre que se esforçar para permanecer focado, só funcionava bem depois que a coisa realmente chamava sua atenção. agora olhava para a parede de , analisando o diploma pendurado numa moldura preta atrás da mesa.
, reparando imediatamente a distração do novo colega, bufou e largou a caneta sobre a mesa com força.
- Você é sempre assim?
- Assim como? – indagou, voltando repentinamente a atenção para .
- Não presta atenção em nada que falam pra você? Porque se for, essa parceria vai ser um inferno...
sorriu. Apesar de não ser nem um pouco tímido e fazer sempre comentários um pouco atrevidos, não costumava agir assim com as pessoas logo de cara, mas não podia deixar de se divertir com o temperamento de . Não conhecia ninguém como ela.
- Você é sempre assim? – repetiu a pergunta, apontando para ela com um movimento de cabeça. – Mudanças repentinas de humor?
A mulher franziu a testa, surpresa.
- Não tenho "mudanças repentinas de humor". – disparou um pouco ofendida, fazendo bico como uma criança pequena. E para surpresa dele, ela abaixou a cabeça e voltou a examinar a tela, levando a caneta aos lábios novamente.
- Você estudou em Manchester. – continuou, apontando com a cabeça para a parede. - É de lá?
- Aham. – ela murmurou, ainda concentrada no que lia.
- Estudou o quê? – insistiu, tentando arrancar qualquer informação dela. era o tipo de pessoa que fazia questão de se dar bem com todos.
- Tá escrito logo embaixo do meu nome, . – foi a resposta seca e impaciente que recebeu.
- Pode me chamar de . – disse. simplesmente ignorou a correção, então ele continuou: - E você já prestou atenção no tamanho dessa letra? – perguntou indignado. - Não consigo ler essa merda daqui.
- Luinguística e cultura.
- Legal. Você...
- Olha. – o interrompeu repentinamente, deixando a caneta cair de novo. – Eu não preciso saber nada da sua vida e você não precisa saber nada sobre a minha. Não faço questão nenhuma de te conhecer. Eu trabalho melhor com as pessoas sem conhecê-las. Sabe a Joan, última diretora de arte? – assentiu com a cabeça. – "Joan". Isso é tudo que eu sei sobre ela. Seu nome. E se você quer saber, nossas campanhas quebraram recordes de vendas.
ficou em silêncio por um momento, sem saber como reagir. Não esperava que a colega fosse explodir daquele jeito. Mostrar seu espanto, no entanto, estava fora de cogitação. Seu rosto continuou sem expressão e ele piscou algumas vezes. pigarreou e, segundos depois, replicou com um sorriso educado e a voz calma:
- Muito bem. – assentiu lentamente com a cabeça antes de continuar: - Eu conheço a linha do ano passado e também acho uma boa idéia. Pra falar a verdade, já tenho um ponto de partida. – disse pronta e calmamente, abrindo o laptop.
Seguiu-se um segundo de silêncio.
- Ótimo. – respondeu , quase sem saber se era sério, porém agradavelmente surpresa pela mudança de comportamento do homem.
voltou a atenção para o trabalho e se focou nisso. Se queria uma relação estritamente profissional, era isso que teriam.
Trabalharam em completa harmonia o resto do dia, e não entraram uma vez sequer em qualquer assunto que não envolvesse o projeto. Foram interrompidos somente uma vez, por Connor, que apareceu para perguntar se precisavam de alguma coisa. Não precisavam. se dedicou tanto ao que estava fazendo que nem viu o tempo passar. Quando, depois de muitas horas, se levantou e fechou o laptop, ele consultou o relógio pela primeira vez. Quase sete da noite. Isso porque dissera que odiava fazer hora extra. Levou a mão até a nuca e a massageou, reparando pela primeira vez que estava cansado. Levantou-se também e começou a juntar suas coisas.
- Mesmo rendimento amanhã? – perguntou, já de pé, enquanto observava fechar a pasta.
- Minha sala dessa vez? – ele propôs.
- Às oito em ponto.
E ela saiu, deixando-o sozinho.


03

This is the story of a girl
Who cried a river and drowned the whole world (...)
Now how many lovers would stay just to put up with this shit day after day?
Now, how did we end up this way?

(Story Of A Girl – Nine Days)


Brown Street 108, Londres, Quarta-feira, 20:05h

entrou em casa e pendurou as chaves ao lado da porta. Caminhou até o sofá ouvindo sua sandália ecoar pelo chão de madeira. Sentou-se, jogou a bolsa para o lado e tirou as sandálias. Pisou descalça no chão limpo e brilhante de madeira e caminhou até a cozinha. Tirou uma garrafa de água da geladeira e uma maçã verde da fruteira ao seu lado.
Dirigiu-se ao seu quarto já puxando a blusa por cima da cabeça e caminhou até o banheiro. Estava exausta, mas chegaria logo e não queria estar cansada e com a roupa do trabalho quando ele chegasse.
Ligou o chuveiro quente e se enfiou embaixo dele, deixando que a água lavasse seu corpo de todo o cansaço e estresse. Distraída, ficou no box até que toda sua pele começasse a ficar enrugada, então se apressou a terminar para não demorar demais e manter esperando. Secou-se e foi até a pia, onde ficava seu estoque exagerado de cremes, perfumes e cosméticos. Pensou por um instante sobre qual das várias essências usar, e optou pelo hidratante de amora, porque sabia que gostava do cheiro. Passou o creme pelo corpo e penteou os cabelos. Saiu do banheiro enrolada em seu roupão e se largou na cama, pegando o celular da mesinha de cabeceira. Sentia-se exausta. Havia uma ligação e uma mensagem nova. Ambos de . Imaginou que ele já deveria estar esperando.
"Hey, . Vou precisar desmarcar hoje, desculpa! Posso te compensar amanhã?"
sentiu o estômago afundar em desapontamento. Ela riu, irônica. Tão típico... Respirou fundo, rolando os olhos. É claro que pode, pensou, bufando insatisfeita. Era a segunda vez que ele desmarcava aquela semana. Não seguida, mas a segunda vez. fazia aquilo com frequência.
suspirou, convencendo-se mais uma vez de aquilo não era motivo para uma briga. Na verdade, ela não tinha nem o direito de começar uma briga. Quem ela era para ele? A pergunta a atormentou de novo, como sempre fazia ao fim do dia, quando ela se via contemplando sua situação. Como foi parar ali?
Lembrou-se de quando foi contratada. De como achou seu chefe atraente, simpático e competente. No começo não sabia dizer se ele estava mostrando segundas intenções ou se aquilo era pura simpatia. Acabou descobrindo que ele tinha, de fato, segundas intenções, mas elas eram muito discretas e aquilo tudo que ela via era simplesmente o carisma mais natural e cativamente que podia imaginar.
Foi advertida por Ruby de que se ela estava procurando por algo sério, não devia ser sua primeira opção. Fato do qual já havia suspeitado. No entanto, decidiu correr o risco, como se suas intenções fossem exatamente das mesmas que as dele, e prometeu a si mesma que não iria criar expectativas.
E a verdade é que ela ficou encantada quando acordou no domingo de manhã e ele ainda estava ao seu lado. Da primeira vez que acordou de madrugada com ele se vestindo silenciosamente para ir embora, se consolou dizendo: “dá uma chance, é a primeira vez”. Quando aconteceu pela terceira, talvez quarta vez, barganhou consigo mesma: “ele só faz isso às vezes, não é sempre”. Quando o viu dando em cima de outra na festa da empresa e o confrontou, se viu obrigada a admitir que tinha razão ao dizer que eles não tinham “nada sério”, e que não era isso que ele estava procurando no momento.
Também não era como se ela deixasse de se divertir por causa dele. Mas antes que percebesse, gostava mais de do que deveria. Sabia que ele não sentia a mesma coisa, e ele nunca disse que sentia, nunca mentiu para ela e nunca a iludiu. Quem a iludiu foi ela mesma. A verdade é que sabia que não a amava, mas ele a tratava bem, lhe dava prazer e a fazia rir. O que mais ela poderia esperar de um homem?
E ela não se importava com o fato de ele querer manter segredo, porque ela também não fazia questão que todo mundo soubesse. Também não gostava da ideia de ser vista como o casal da empresa, nunca foi muito do tipo que gosta de demonstrações de afeto em público. Mas se importava em vê-lo com outras. Afinal, uma garota apaixonada – mesmo que uma mulher como – é sempre uma garota apaixonada.

BBDO, Londres, Quinta-feira, 07:53h

Depois de ter sido persuadida a visitar em sua sala, assim que encarou o chefe, mudou de ideia e escapou. Ainda não estava com paciência para discutir. Cedo demais para isso. Decidida a não deixar estragar seu humor pelo menos um dia na vida, ela respirou fundo antes de abrir a porta.
- Bom dia, . – disse ao entrar sorrindo na sala de .
Ele levantou o olhar para a porta.
- Bom dia.
- Pronto pra começar? – perguntou educada, consultando seu relógio e acrescentando em seguida: - São sete para as oito, você tem exatamente 7 minutos pra buscar um café e voltar pra cá. – mais um sorriso.
sorriu de volta, estranhando o bom humor matinal.
- Quer um também?
A mulher assentiu energicamente com a cabeça:
- Sem açúcar, por favor.
E ele saiu, cruzando na porta com a secretária mais velha cujo nome ele ainda não sabia. Pôde ouvi-la chamar o nome de antes de seguir pelo corredor.
Quando voltou, estava sentada de frente para o seu laptop, concentrada em alguma coisa na tela.
- Aqui. – colocou o copo de café na mesa à sua frente. – Sem açúcar, certo? A colega levantou o rosto, sorrindo, estendeu a mão para pegar o copo e disse calorosamente: - Obrigada. tomou um gole de seu café fumegante. Mal chegou à sua cadeira, a secretária voltou e colocou a cabeça para dentro depois de dar uma pancadinha leve na porta.
- Srta. ? O Sr. quer falar com você de novo. – e saiu.
bufou baixinho, empurrou a cadeira para trás e saiu, seus passos ecoando pelo chão.
“De novo”? olhou para o relógio. 08:01. Ela devia ter falado com o chefe enquanto ele buscava café. Mais um gole. Então, enquanto sentia o líquido quente descer por sua garganta, as peças se encaixaram: odiava o Sr. . Era isso! Ficava mal humorada sempre que falava com ele. Não importava o quão bem humorada estivesse, as reuniões com o chefe sempre a deixavam irritada e impaciente. não entendeu como aquilo podia acontecer. lhe parecera um diretor excelente. Ou talvez fosse só a primeira impressão... Mas sua linha de pensamento foi quebrada quando bateu os olhos na última mensagem de email recebida. De: Cerys Markmann. Assunto: Abra para ver. lembrou que não tinha retornado sua ligação, realmente não achara o encontro tão legal assim. E nem pretendia – a não ser que a situação ficasse crítica, se é que entendem. Com a testa enrugada numa expressão de dúvida, abriu o email, desconfiado.
As fotos foram aparecendo, uma a uma, enquanto o computador as carregava lentamente. deixou o queixo cair levemente, incrédulo. Não... Ela tinha realmente mandado fotos nua para ele?! Foi abaixando a tela, ainda perplexo.
Em seguida, tudo aconteceu muito rápido. A porta atrás dele se escancarou violentamente. Arrancado repentinamente do que estava fazendo, deu um pequeno pulo na cadeira, e, antes mesmo de olhar para quem tinha entrado, levou a mão desajeitadamente ao mouse e tentou inutilmente minimizar a página a tempo.
- Espero que você não esteja realmente pensando em usar mulheres com pouca roupa para um comercial de cerveja. Tão clichê! – disse a voz de com desprezo.
Sentindo o rosto enrubescer, ainda sob efeito do susto, retrucou:
- Por que você não deixa eu fazer a minha parte e cuida da porra do seu slogan?
revirou os olhos e caminhou até sua mesa, fazendo o típico barulho dos saltos contra o chão ecoar no cômodo. Ela se sentou, abriu o laptop novamente e fixou os olhos nele, sem dizer mais nada. E o tempo a partir dali pareceu se arrastar, deixando a mulher mais impaciente, o que não ajudou no clima já pesado.
Depois de pouco mais de uma hora, ela foi a primeira a quebrar o silêncio, um resquício de arrogância em sua voz e o nariz levemente empinado:
- Você não quer realmente usar aquelas fotos no comercial, quer?
rolou os olhos e riu internamente, feliz por ter "vencido" a batalha ao fazê-la engolir o orgulho se pronunciar primeiro.
- Não.
Mais alguns segundos de silêncio. , sem conseguir se conter, levantou os olhos para ele:
- O que era aquilo então? – pigarreou. – Quem era?
A mulher manteve a expressão de falso desinteresse no rosto, mas desviou o olhar assim que ele levantou o rosto para encará-la.
- Ninguém.
- Uma garota não te enviaria fotos nua se não fosse “ninguém”. – retrucou com um sorriso malicioso. – A não ser que ela não tenha enviado porcaria nenhuma e você seja um desses tarados que acessa sites pornôs durante o horário de trabalho. Tsc, tsc... – provocou, encarando-o séria, sem conseguir conter a curiosidade.
- Não sou. – disse logo.
- Então quem é? – insistiu.
Arrependeu-se imediatamente. Odiava ser tão curiosa.
abriu a boca, prestes a responder, e então algo passou pela sua cabeça, fazendo um sorriso vitorioso atravessar seus lábios.
- Não era você que trabalhava melhor sem conhecer seus colegas? “Você não precisa saber nada sobre mim e nem eu sobre você”?
Para sua surpresa, ela riu.
- Você acha que eu não sei nada sobre você? – a encarou sem entender. – Você é previsível, . Não é tão difícil.
Ele fez uma careta ao ouvir seu sobrenome.
- É mesmo? – indagou cético. – E o que você sabe sobre mim?
A mulher rolou os olhos.
- Vamos lá. Pra começar, você é solteiro.
- Como você sabe? – perguntou ainda duvidoso, disposto a fingir que ela estava errada.
- Não acho que ela enviaria fotos no maior estilo Playboy para o seu email no horário de trabalho se fosse sua namorada. Fora que você não se importa em fazer hora extra à noite, se for preciso, e a única foto que você tem é de um cachorro.
- Não é verdade. – ele protestou, referindo-se à última parte. Olhou para a própria mesa, onde a foto com sua irmã e sua sobrinha, a última que tinha posto ali, descansava ao lado da de Charlotte. levantou o rosto da tela e seguiu o olhar de até a foto.
- Como você sabe que não é minha namorada? – perguntou, referindo-se à irmã. Conteve uma careta de nojo pelo pensamento. Sua vontade de ter razão sobre era maior.
- Vocês são parecidos demais para que isso seja permitido legalmente, . Não é tão difícil de ver. – disse , já encarando o computador de novo e digitando alguma coisa parecendo concentrada.
riu, dando-se por vencido.
- Verdade. – admitiu. – É minha irmã, Kayleigh, e minha sobrinha, Libby.
Ela olhou para ele de novo, que encarava as fotos estampando um sorriso orgulhoso.
- São lindas. – disse, e sorriu discretamente quando a encarou, antes de voltar ao trabalho.

BBDO, Londres, Quinta-feira, 08:01h

entrou e entregou o café à . Mal ela levou a xícara à boca, a Sra. Dermott voltou e colocou a cabeça para dentro depois de dar uma pancadinha leve na porta.
- Srta. ? O Sr. quer falar com você de novo. – e saiu.
bufou baixinho, empurrou a cadeira para trás e saiu, seus passos ecoando pelo chão.
Abriu a porta da sala de , tentando ao máximo se controlar. Fechou-a atrás de si e disse calmamente:
- , eu já disse que não tô com cabeça pra isso agora.
Em um segundo, já tinha caminhado até a mulher e pousado as mãos em sua cintura.
- Desculpa por ontem. – murmurou, levando o rosto até o dela. A mulher assentiu levemente com a cabeça enquanto ele passava o nariz pela sua bochecha. – Ah, vamos lá. Não fica brava comigo! – insistiu sorrindo.
- Fico sim, ! – choramingou. – Cheguei em casa cansada e fiquei te esperando, como sempre, só pra você furar comigo mais uma vez!
- Ah, ... Também não é assim. – protestou baixo. - Relaxa.
- "Relaxa"?! – repetiu num grito estridente. Céus, como ele a tirava do sério! tinha completa noção do quanto parecia uma criança emburrada quando discutia com . – Vá se foder, . – disse impacientemente.
O homem fez menção de passar as mãos pelo corpo dela novamente, mas as afastou com força, levantando-se rapidamente.
- Já são mais de oito horas e eu tenho muito o que fazer. – disse seca, começando a se dirigir até a porta.
Fechou a porta atrás de si e se dirigiu ao banheiro. Olhou-se no espelho, e percebeu como suas feições pareciam mais rígidas, duras e até envelhecidas quando brigava com . A raiva lhe deixava feia. Ligou a torneira, encheu a mão de água gelada e jogou-a contra o rosto. Encarou-se novamente, decidida a desfazer o aspecto de fúria. Não queria passar aquela imagem. Não queria ser aquela pessoa. Secou o rosto e passou a refazer a maquiagem, esforçando-se para relaxar os músculos e parecer tranquila e serena. Adjetivos que não combinavam muito com ela. Pensou em como era engraçado o quanto podia fazê-la se sentir a melhor pessoa do mundo às vezes, e, em um piscar de olhos, a pior. Então respirou fundo, sorriu para sua imagem no espelho e caminhou de volta para a sala de .

Brown Street 108, Londres, Quinta-feira, 21:49h

ouviu a campainha tocar e se dirigiu até a porta, preparada para recusar venda de biscoitos, enciclopédias ou contribuições para o coral da igreja.
Assim que abriu, perguntou-se como pôde ser tão ingênua. É claro que apareceria com alguma desculpa.
Conhecendo-a como conhecia, observou seu rosto, analisando se corria o risco de levar um tapa na cara ou uma joelhada na virilha. A julgar pela expressão da mulher, calculou que o perigo ainda não tinha atingido níveis de violência física. Então sorriu encantadoramente e depositou um selinho rápido nos lábios dela, sentindo-os frios e inertes sob os seus. Nenhuma surpresa.
O corpo dela ainda estava imóvel entre ele e a porta, num claro protesto silencioso. Ignorando-o, escorregou a mão até a dela e caminhou para o sofá, onde se sentou, puxando para o seu lado. encostou as costas contra o braço do sofá, virado de frente para ela, que permaneceu ereta, de lado para o chefe.
- Você ainda está brava comigo? - sussurrou, buscando os olhos da mulher.
suspirou.
- Não estou brava.
Então soltou uma gargalhada, encarando-a cético.
- Ah não?
- Não.
- Então por que você tá sentada igual uma estátua fazendo essa cara?
- Que foi? Quer que eu comece a cantar, dê pulinhos e piruetas toda vez que te vir na minha frente? – perguntou azeda, arrancando mais uma risada de .
- Você sabe que fica linda irritada. Não sabe?
- Já disse que eu não estou irritada. – respondeu pausadamente, fuzilando-o com os olhos.
- Eu vou te compensar. – sugeriu. – Que tal hoje?
- ... – ela gemeu, cansada, suspirando. – O problema não é a gente não ter saído ontem!
- Então qual é? – ele perguntou com a voz macia, franzindo o cenho, confuso. Soava como uma criança que sinceramente não sabia o que tinha feito de errado.
- O problema é você ter desmarcado na última hora, como sempre. É ter esperado eu chegar em casa de noite, cansada, pra ter que descobrir que você, mais uma vez, vai furar comigo. Quero dizer, se você não tivesse prometido passar aqui pra começo de conversa, tudo bem! Eu não fico brava quando você não me liga. Eu fico brava quando você diz que vai ligar, e não liga. Diz que vai aparecer, e não aparece.
Ao terminar de falar, olhou para ele, mas era agora que evitava seu olhar. O chefe mantinha o rosto abaixado, os olhos perdidos na parte lateral do corpo dela. O clima ficara tenso, e ambos detestavam aquilo. continuou esperando que ele olhasse para cima, desesperada para que ele viesse com um comentário, uma piada, qualquer coisa para quebrar a tensão. Começou a se perguntar se tinha sido dura demais. parecia tão arrependido... Não. Não tinha sido dura, repetiu para si mesma.
Mas ela não suportava aquele clima. Por mais que soubesse que tinha razão – e também sabia, não sabia? Ele só podia estar arrependido! – precisava colocar um sorriso de volta ao rosto dele. Detestava vê-lo triste, desanimado, ou qualquer coisa do tipo, simplesmente parecia tão... errado. Depois de alguns segundos torturantes de silêncio, murmurou:
- Eu não estou brava.
Ao ouvir a voz dela baixa, repentinamente doce, levantou a cabeça devagar e ela pôde ver seu rosto se iluminar aos poucos, fazendo-a sorrir junto. não era a única que detestava que ficassem brigados. Mas então voltou a se arrepender.Talvez agora tivesse sido dura de menos. Se continuasse o tratando assim, ele não mudaria nunca.
Então ele se pronunciou:
- Você não está brava porque você é maravilhosa. – declarou, e sentiu seu coração se aquecer. – Mas eu sei que eu estou errado. Desculpa. – repetiu.
E aquilo acabou com as dúvidas dela. Ele estava arrependido! A mulher inclinou seu corpo para frente, aconchegando-se contra o peito dele. Mas uma parte dela ainda lhe dizia que não deveria ser tão paciente com . Então, como sempre, apenas por desencargo de consciência, para se fazer sentir melhor e fingir para si mesma que não se sentia burra, dominada e patética, disse baixinho:
- Não faça isso de novo.


04

I Just want someone to say to me: “I’ll always be there when you wake”
You know, I’d like to keep my cheeks dry today

(No Rain – Blind Melon)


Sexta-feira era o dia marcado para mostrar o trabalho ao Sr. , ou , como ele insistia em ser chamado, e tudo correu bem. e tinham conseguido trabalhar bem juntos e tinham progredido bem, deixando satisfeito. O projeto logo seria entregue para os setores de atendimento e planejamento para aprovação do cliente. Para surpresa de , estava bem humorada e foi simpática durante toda a reunião. Dirigiu sorrisos até mesmo ao chefe e continuou assim pelo resto do expediente. Pareceu até animada quando, ao fim do dia, na sala de conferências, foi anunciada para todo o setor a festa de comemoração do aniversário da empresa. A BBDO – Batten, Barton, Durstine & Osborne foi criada em 1928, mas a unidade de Londres completara 32 anos em setembro.

BBDO, Londres, Sexta-feira, 07:59h

No início da manhã, abriu a porta de sua sala e já estava lá. Entrou a tempo de ouvi-la dizer “NÃO” asperamente e desligar o telefone com violência.
- Uau. – murmurou. – Já tá de mau humor? – consultou o relógio, rindo. – Não são nem 8 horas. - Ela se levantou o encarou, de início impaciente, então deixou os olhos rolarem e balançou a cabeça. - Esse estresse todo só pode ser falta de sexo. – continuou , largando a pasta em cima da mesa.
olhou de novo, dessa vez a boca levemente aberta, indignada, parecendo levemente constrangida:
- Cala a boca. – exclamou com a voz dura, mas deixou seus lábios se abrirem num sorriso divertido logo em seguida. - Acabei de receber a campanha da Chevrolet, já aceita pelos representantes. Temos que enviar pro setor de mídia.
Ele assentiu com a cabeça.
- Ok. Vou buscar um café e já volto. Quer?
- Não, obrigada. – começando a digitar. – Ei, . – chamou. – Chama o Connor pra mim?
Ele assentiu com a cabeça e se virou para sair. Abriu a porta e parou, no meio do movimento, voltando-se para de novo. Sorriu, sentindo-se vitorioso.
- Sou “”, agora?
- A não ser que você não queira. Chama o Connor pra mim? – a mulher repetiu seca, ainda sem tirar os olhos da tela.

BBDO, Londres, Sexta-feira, 17:38h

- Boa tarde. – correu os olhos pelas pessoas que enchiam a sala de conferências. - Vocês estão aqui porque antes que eu libere todo mundo para o tão esperado fim de semana, tenho dois recados importantes. O primeiro é que, como eu espero que vocês todos saibam, nossa unidade completou 32 anos mês passado. Como sempre, deixamos a comemoração por conta da Ruby. – apontou para a mulher, que hoje usava um vestido amarelo berrante, e ela jogou os cabelos para o lado, sorrindo confiante. – Será sexta-feira que vem e estão todos convidados.
Seguiram-se alguns comentários e risadinhas. apontou para algum lugar no fundo da sala e acrescentou:
- Não se preocupe, Brendon, você não vai perder sua noite. É open bar. – e piscou, arrancando risadas de todos.
- A Ruby é ótima. – cochichou ao ouvido de . Corrigiu-se: - Quero dizer... Quão boa pode ser uma festa no trabalho, certo? Mas você tem que vir de qualquer forma para fazer uma média, e de brinde pode assistir aos otários que sempre bebem demais. – ela riu. – Você deveria vir.
- Claro. Quem iria querer perder o Brendon bêbado? – ironizou. Não fazia a mínima ideia de quem era Brendon.
Então voltou a falar e todos fizeram silêncio.
– O segundo recado é que a WAN-IFRA está promovendo uma conferência em Birmingham, no dia 6 de outubro, sexta-feira. Daqui a duas semanas. As passagens já estão sendo compradas e é uma conferência que tem muito a acrescentar a todos do setor. E isso foi a minha forma educada de dizer que a presença de todos é obrigatória. Se você não vai poder ir por algum motivo plausível, entre em contato com a Beth ou a Julie o mais rápido possível. Caso contrário, você receberá as informações sobre passagem e hospedagem por email até terça. – olhou em volta e então checou o relógio. – Ainda são quinze para as seis, mas vocês têm um chefe sensacional, então estão liberados. Obrigado.
As pessoas começaram a se dispersar aos poucos. , que estava parada ao lado de , jogou a bolsa por cima do ombro e se virou para ele, sorrindo:
- Até segunda. Bom fim de semana.
- Pra você também. – respondeu, observando-a enquanto caminhava em direção à porta, fazendo o mesmo caminho que todos os outros em seguida. Ao entrar no carro, pegou o celular e discou o número da casa de seus pais. Depois de alguns toques, sua mãe atendeu.
- Alô?
- Oi, mãe. Sou eu.
- Oi, meu amor! Como você está? – a Sra. perguntou, em um tom animado e carinhoso.
- Tudo bem, e por aí?
- Tá tudo ótimo, graças a Deus.
- Que bom. Escuta, eu tenho uma notícia que vai te deixar feliz. Tem uma conferência sobre publicidade em Birmingham dia 6, então...
- George, tire a mão daí agora. Desculpa, filho, você tava dizendo...?
- Que eu tenho uma conferência em Birmingham daqui a duas...
- George, se você não sair da frente deste forno agora, você não experimenta o pernil. – ela ralhou. – Desculpa, , desculpa, você pode repetir? Seu pai não me deixa em paz... Não confia na minha receita, acredita? Desde quando eu queimo a comida? Até parece. Mais de 30 anos de casamento e ele ainda não aprendeu, vê se pode. – tagarelou, ofendida. - Quer saber de uma coisa, meu filho? Quando você se casar, faça um favor à sua esposa e não se meta na comida dela. Promete?
- Aham. – resmungou indiferente, os olhos presos no trânsito.
- Promete?
- Prometo, mãe. Olha, eu tenho que desligar... – riu e rolou os olhos, desistindo. Mandaria uma mensagem ou um email depois, ou pediria Kayleigh para dar o recado, era sempre mais fácil.
- Não, não, não, filho! Desculpa, o que você ia falar?
- Nada, não. Depois a gente conversa, mãe. Um beijo.
E desligou. Jogou o celular no banco ao seu lado e se concentrou no trânsito. O céu estava cinza e começava a chover lá fora. Menos de um minuto depois, seu celular tocou. Suspirou, imaginando que seria sua mãe insistindo em saber o que ele queria falar. Mas não era.
- E então, , você não tá a fim de me fazer um favor?
- Hmm... Não.
- Ok. Deixa eu colocar de outra maneira. – pigarreou. – O que você acha levar uma mulher para jantar, e muito provavelmente pra sua casa depois, como um favor para mim?
- Pensando bem... – riu. – Por quê?
- Quero sair com uma garota, mas a irmã dela tá aqui de visita e ela não quer deixá-la sozinha e tal. – explicou. – Mas ela não ficaria sozinha se tivesse alguém pra sair com ela também, certo?
- Ah, nem fodendo. – respondeu, fazendo uma careta. – Deve ser porque ela é feia pra caralho.
- Não é! – se apressou a dizer. – Juro. Ela é atriz. Acabou de se mudar de LA.
- Atriz?
- É. Do tipo que você tá pensando. – disse malicioso, gargalhando em seguida. pôde imaginar o sorriso malicioso no rosto do amigo.
- Porra, ... – exclamou , rindo também. – Como você encontra tantas delas?
- É um dom. Então, você vem?
- Onde e que horas?
- Estaremos no Savoir Faire em uma hora.
- Que porra é essa?
- Um restaurante francês esplêndido. Na New Oxford.
- Desde quando você acha comida francesa “esplêndida”? – franziu o cenho.
- Desde que a garota que eu quero pegar cresceu na França.
- Tá. - riu. - Encontro vocês lá. – e desligou.
tinha razão. Ela era linda. E, de fato, ela foi para a casa de depois. E lhe rendeu diversão por todo um fim de semana.

Brown Street, Londres, Domingo, 11:21h

fechou o portão de vidro da academia atrás de si. Seu plano lhe permitia aparecer à hora que quisesse e fazer a atividade que quisesse. O que era, provavelmente, o gasto mais inútil que tinha. Uma boa quantia de libras jogadas ao vento. Quase nunca tinha tempo ou cabeça para aparecer durante a semana, mas fazia questão de fazer – ou se convencer de que fazia – exercício físico frequentemente. Então acabava indo à academia aos sábados e domingos.
O sol brilhava forte no céu e ela apertou os fones no ouvido e pegou impulso, aproveitando o caminho até em casa para uma última corrida.
Acenou para o porteiro do prédio ao passar, adentrou o saguão e se encarou nas paredes espelhadas. Estava completamente suada, os cabelos presos num rabo alto que deixava alguns fios escaparem. Optou pelas escadas. Odiava que a vissem quando não estava arrumada.
Tirou as chaves do bolso ao parar em frente ao número 402, entrou e pendurou o chaveiro ao lado da porta. Caminhou até a lavanderia, tirou os tênis de corrida, as meias e sentiu o chão gelado de azulejos brancos sob os pés. foi até a geladeira e tirou de lá um energético, virando a garrafa com urgência.
Então ouviu um barulho vindo da sala e afastou a garrafa da boca num sobressalto, assustada. Seriam chaves girando na porta? Largou a bebida em cima da pia e correu de volta para a sala, em choque, apenas para ver fechar a porta atrás de si.
- Você quer me matar de susto?! – bufou.
- Não, quero te matar de outra coisa. – replicou, levantando as sobrancelhas sugestivamente. fez uma careta e revirou os olhos.
- Deixa de ser brega. Ei, como você entrou? Esse porteiro precisa parar de deixar as pessoas subirem sem tocar.
- O Terence? Ah, ele é gente boa.
gargalhou ao ouvir o suposto nome do porteiro enquanto observava trancar a porta.
- Não acha que tá na hora de devolver as minhas chaves?
O homem riu e caminhou a passos largos até ela, prendendo-a contra a parede. Ele sorriu sacana – aquele sorriso que a deixava sem fôlego – e deu um beijo no pescoço dela.
- Eu acabei de voltar da academia, ! – gemeu, levando as mãos ao seu peito, empurrando-o de leve.
- E? – ele murmurou, encostando os lábios aos seus. Sorriu, com a boca encostada à dela, e então a beijou. passou a língua pela de com movimentos ágeis e apertou o corpo dela contra o seu pela cintura. A mulher sentiu sua pele se arrepiar.
Separaram o beijo e sorriu. Ela o olhou de cima a baixo, analisando suas roupas limpas e seu cabelo recém lavado. Inalou o perfume forte que ele usava. Então pensou nas próprias roupas de ginástica, os cabelos e o corpo suados.
- Você tá tão limpinho que dá até dó. – sorriu, e o chefe rolou os olhos. – Eu tô toda suada!
- Eu não me importo. – e voltou a beijá-la.
respirou fundo ao sentir uma das mãos de escorregar para sua coxa. Sentiu o gosto quente de sua boca grudada à dela, o cheiro de perfume importado misturado ao cheiro que só ele tinha, e ela se rendeu, levando as mãos à nuca dele, aumentando a proximidade entre os dois.
apertou com mais força o corpo da mulher contra a parede e ela soltou um gemido. Ele levou as mãos até sua blusa larga que caía pelos ombros e terminou de empurrá-la para baixo. Passou as mãos por sua barriga, acariciando sua pele. começou a desabotoar a camisa dele sem pressa, botão por botão. separou o beijo e olhou para ela, sorrindo. Se ainda não a tivesse convencido, agora teria, sem dúvidas. Voltou sua atenção para o pescoço dela, distribuindo beijos, mordidas e chupões, fazendo-a sentir que seu corpo todo ia derreter.

terminou de pentear os cabelos e apertou mais o roupão contra seu corpo. Estava faminta. Caminhou até a sala e abriu a primeira gaveta da cômoda ao lado da mesa de jantar. Era onde guardava sua “coleção” de panfletos de comida. Folheou alguns até bater o olho no número de um restaurante chinês.
Mesmo da sala, ainda podia ouvir o barulho do chuveiro ligado. Foi até a porta do quarto, colocou a cabeça para dentro e gritou:
- Você vai ficar para jantar?
Esperou alguns segundos, mas não obteve resposta. Então foi até a porta do banheiro e deu uma batida rápida com os nós dos dedos antes de abri-la e colocar a cabeça para dentro do banheiro embaçado.
- ? Você vai ficar para jantar?
- Depende. – então olhou para ela sorrindo divertido. – Você que vai cozinhar?
rolou os olhos.
- Não.
- Então vou.
abriu a boca em falsa indignação.
- Só por isso você vai ficar sem rolinho primavera. – e fechou a porta. Pôde ouvir gritar seu nome, suplicando perdão.
Voltou à sala procurando pelo telefone. Encontrou-o na base e se surpreendeu ao ver a luz vermelha piscando, indicando uma nova mensagem.
- Você tem uma nova mensagem. - disse a gravação, seguida de um bipe. - Oi... ? - de início, a voz lhe pareceu completamente desconhecida. – Ah... Sou eu. – e então tudo se encaixou. Seus ouvidos reconheceram imediatamente aquela voz fina, nasalada, porém melodiosa, aquele tom hesitante. Sua mandíbula pesou, e a boca de se abriu levemente em surpresa. – Er... Como você tá? – não podia ser... - Não ouço de você desde... – uma pausa. Milênios pareceram se passar antes que a mensagem continuasse: – Fiquei até imaginando se já teria trocado de telefone, mas... Bom... Eu tô ligando porque a mamãe perguntou por você esses dias. E eu não soube o que responder. Ela sente sua falta. E eu... – a voz hesitou. – Eu pensei que talvez já esteja na hora de a gente deixar tudo pra trás. Quero dizer... – outra pausa, seguida de um suspiro cansado. – Já faz dois anos, . – por um tempo, se não fosse a respiração do outro lado da linha, teria pensado que tinham desligado. Então ela voltou a falar: – Me liga. Por favor. Se quiser. – e o som do telefone no gancho.
Permaneceu onde estava, estática. Mantinha o olhar perdido à frente e o maxilar frouxo, perdida em pensamentos.
- Quem era? – a voz de surgiu de trás, tirando-a do transe. Nem tinha reparado que o barulho do chuveiro cessara.
Virou-se e ele vinha em sua direção com uma toalha enrolada em volta da cintura e uma em volta do pescoço, passando a última pelos cabelos com força para secá-los. engoliu em seco. Quanto ele teria escutado? Pigarreou, tentando ganhar tempo para pensar.
- Quem era quem? – gaguejou.
- No telefone. Pensei ter ouvido uma voz.
sorriu aliviada. Ele não tinha ouvido nada demais. Então respondeu tranquilamente, dando de ombros:
- A Ruby. Nada demais.
pareceu indiferente, caminhou até ela e passou o braço por sua cintura, depositando um beijo em seu ombro. Ela sorriu, sentindo o calor de seu corpo, e levou o dedo indicador até o telefone.
- Mensagem apagada com sucesso.
- E essa comida? Vem ou não vem? – perguntou, sorrindo em seguida.

BBDO, Londres, Segunda-feira, 08:02h

- Teve um bom fim de semana? – perguntou ao abrir a porta da sala empurrando-a com o quadril. Tinha um copo de café em uma das mãos, uma pasta grossa na outra, uma bolsa pendurada no ombro e papéis embaixo do braço. Seus cabelos estavam soltos e molhados, e o cheiro do shampoo que usava se espalhou quando ela passou por , os fios longos balançando.
- Nada mal. E o seu?
- Nada mal. – repetiu sorrindo. – E, pra dar continuidade, nada melhor do que começar o dia cedo!
não soube dizer se foi uma ironia.
- Acho que essa questão poderia render uma discussão longa.
- Ah, mas você não quer uma discussão comigo, quer, ? Pra que estragar meu bom humor? – e sorriu de novo.
observou que nunca tinha visto começar um dia tão otimista. Em apenas algumas semanas, já se sentia acostumado ao seu gênio. E já tinha visto o bastante da colega para saber que não devia comentá-lo.
- Temos muito que fazer hoje. – ela continuou, levantando os papéis que trazia embaixo do braço.
não pôde evitar um grito ou outro no telefone ou algumas portas fechadas com força na cara de alguém. Mas, no geral, foi um dia agradável. E aquela disposição se manteve por parte de ambos por toda a semana.


05

Torpe, traste, testaruda: es todo lo que he sido,
Por ti me he convertido en una cosa que no hace otra cosa más que amarte
Pienso en ti día y noche y no sé como olvidarte

(Ciega, Sordomuda - Shakira)


BBDO, Londres, Sexta-feira, 21:13h

's POV
Sexta-feira chegou rápido, apesar de eu não estar exatamente entusiasmado com a festa da empresa. Quanto poderia me divertir numa festa no trabalho? Não tinha grandes expectativas para a noite. No entanto, admito que o fato de que estaria lá – e bem humorada, é uma observação válida - passou pela minha cabeça.
Depois de pouco mais de uma hora na festa, conversando com pessoas aleatórias e sem graça – não levem a mal, todos muito simpáticos, mas não exatamente a ideia de entretenimento que eu apreciava numa sexta à noite – peguei minha terceira cerveja, aproveitando para fugir um pouco de Julie, uma das secretárias que parecia bastante interessada em saber sobre... Bem, qualquer coisa que saísse da minha boca. Já não tinha feito mais que me cumprimentado. Levei a garrafa à boca, consultando o relógio. Ainda daria tempo de voltar para casa, escutar as mensagens eletrônicas à procura de uma garota e ligar para ela. Assustei-me quando surgiu à minha frente. Ela se recostou à bancada ao meu lado e suspirou pesadamente olhando para frente, sua expressão era de profundo tédio. Ou insatisfação. Ou ambos, não soube identificar.
- Que foi?
me ignorou. Dei uma cotovelada de leve no braço dela e tentei de novo:
- Huh? Qual o problema?
Ela balançou a cabeça negativamente, ignorando a pergunta. Ao invés de responder, apontou com a cabeça para a cerveja na minha mão.
- Mais uma, ?
Dei de ombros, como se dissesse "fazer o quê?".
- Ah, não me diga que você não tá se divertindo! – abriu a boca em uma careta irônica de decepção. – Tudo bem. Também não é a coisa mais divertida que eu fiz nos últimos tempos.
- Ah, não. É exatamente isso que eu gosto de fazer às sextas à noite.
- A Julie parecia estar aproveitando sua companhia.
- Você estava me vigiando, ? – brinquei rindo e pisquei para ela, levando a garrafa à boca mais uma vez.
- Meu primeiro porre. – ela disse subitamente.
- Oi? – perguntei confuso.
- Black Isle. Meu primeiro porre. – fez um movimento com a cabeça em direção à garrafa de Black Isle que eu segurava e eu ri. Reparei que estava com o olhar meio perdido.
- Eu tinha 15 anos. Tomei duas.
- Fraquinha, você, huh?
- Minha amiga Aggie precisou segurar meus cabelos enquanto eu vomitava na privada do banheiro mais sujo em que já pus os pés.
- Encantador.
- Essa sou eu. Encantadora. – respondeu vagamente, sorrindo irônica. Esticou a mão até o balcão e pegou uma garrafa de cerveja também.
- Cuidado. - adverti. - Eu não sou do tipo que segura o seu cabelo enquanto você está ajoelhada em frente a uma privada.
A verdade é que eu era, sim, o tipo de cara que seguraria o cabelo, levaria para casa, daria até banho e o caralho a quatro se ela precisasse, mas eu não estava a fim de dizer aquilo para ela.
- Engraçadinho. - riu sem humor.
Algo claramente a estava perturbando. Segui o olhar dela até o outro lado do salão. Tentei identificar exatamente para onde ela estava olhando e o que poderia estar lhe incomodando. Algumas pessoas conversavam parecendo "animadas" demais. Outras cantavam Elton John em um karaokê. Essa cena em especial me pareceu deplorável, mas, por menos perceptivo que eu fosse, até eu sabia que não poderia ser esse o motivo do aborrecimento de . Fiquei frustrado, realmente não sou bom nessas coisas. Por fim, desisti, e, duvidando da minha capacidade de perceber sozinho, tentei mais uma vez:
- ?
- Hm?
- Tem alguma coisa te incomodando?
- Por que teria? - ela riu e moveu a cabeça levemente para os lados, ainda sem tirar os olhos de onde quer que estivessem. Maldita curiosidade.
Virei o rosto para frente de novo, determinado a dessa vez encontrar o que estava chamando a atenção dela.
Ok. Duas mulheres conversavam alto e riam escandalosamente. Percebi que poderia ouvir tudo que estavam dizendo se quisesse. Outra, ao lado delas, bem magra e de cabelos pretos curtos, parecia solitariamente deslocada. Um pouco mais atrás, meu chefe conversava com mulher. Perto do grupinho do karaokê, um homem suado encarava um copo cheio à sua frente. Imaginei que pudesse ser Brendon. Atrás dele... Então interrompi minha inspeção. Era isso! Voltei o olhar para uma pessoa em especial. . Sorri, sentindo-me especialmente sagaz.
- É isso?
- Desculpe? – perguntou , olhando para mim pela primeira vez. Levantei o queixo na direção de .
- É isso que tá te incomodando?
- Do que você tá falando, ? – perguntou confusa.
- .
realmente detestava o chefe. Incrível como ele podia realmente estragar o dia dela... Não que fosse difícil irritá-la.
Os olhos dela varreram a sala até localizarem e ela fez silêncio por um segundo, talvez decidindo se iria mentir para mim. Você sabe, talvez quisesse manter as boas aparências e fingir uma relação diplomática com o chefe - por mais que fosse péssima atriz. Então rolou os olhos.
- Me poupe.
Estreitei os olhos, sem querer desacreditar da minha própria perspicácia.
- Tem cert...
- , eu te aconselho a deixar de ser idiota, calar a boca e parar de falar idiotices em um lugar tão cheio de idiotas que podem facilmente acreditar na idiotice enorme que você tá falando. Além do mais, você não quer me deixar irritada, quer?
Ao ver a reação dela, soltei uma risada internamente. Mas apenas sorri, olhando para enquanto ela voltava a encarar a frente.
- Quer sair daqui? - perguntei.
End of 's POV

's POV
Sexta-feira chegou rápido, apesar de eu não estar nem um pouco entusiasmada para a festa da empresa. Eram sempre um lixo, mas já que tinha de comparecer - a velha história de manter as aparências - por que não tentar fazer da noite o menos chata possível?
Depois de pouco mais de uma hora na festa, reparei que precisava de mais álcool se fosse continuar ali morrendo de tédio e assistindo fazer seu show. Consegui me livrar dos estagiários que insistiam em puxar meu saco – não levem a mal, todos muito simpáticos, mas não exatamente a ideia de entretenimento que eu apreciava numa sexta à noite - e consultei o relógio. Infelizmente, ainda estava cedo demais para que eu fosse embora. Corri os olhos pelo salão, procurando qualquer pessoa que me entretivesse mais que os estagiários, e então bati os olhos em . Caminhei até ele, recostei-me à bancada ao seu lado e suspirei pesadamente olhando para frente.
- Que foi?
Ouvi a voz dele ao meu lado, mas eu já estava longe. Algo à minha frente tinha prendido minha atenção. . Com as mãos na cintura de uma mulher e a boca próxima aos seus ouvidos.
- Huh? Qual o problema?
Balancei a cabeça negativamente, ignorando a pergunta. É óbvio que eu não responderia àquela pergunta. Vamos, desvie o olhar. Fale sobre qualquer outra coisa. E ao invés de responder, apontei com a cabeça para a cerveja na mão dele.
- Mais uma, ?
Ele deu de ombros, como se dissesse "fazer o quê?".
- Ah, não me diga que você não tá se divertindo! – abri a boca em uma careta irônica de decepção. – Tudo bem. Também não é a coisa mais divertida que eu fiz nos últimos tempos.
- Ah, não. É exatamente isso que eu gosto de fazer às sextas à noite.
- A Julie parecia estar aproveitando sua companhia.
- Você estava me vigiando, ? – brincou rindo e piscou para mim, levando a garrafa à boca mais uma vez.
Ainda não tinha conseguido desviar meu olhar. Merda, ele ia perceber... Fale alguma coisa. Qualquer coisa. - Meu primeiro porre. – disse subitamente.
- Oi?
- Black Isle. Meu primeiro porre. – fiz um movimento com a cabeça em direção à garrafa que ele segurava. Ele gargalhou.
- Eu tinha 15 anos. Tomei duas.
- Fraquinha, você, huh?
- Minha amiga Aggie precisou segurar meus cabelos enquanto eu vomitava na privada do banheiro mais sujo em que já pus os pés. - admiti.
- Encantador.
- Essa sou eu. Encantadora. – respondi vagamente, sorrindo irônica. Estiquei a mão até o balcão e peguei uma garrafa de cerveja também.
- Cuidado. Eu não sou do tipo que segura o seu cabelo enquanto você está ajoelhada em frente a uma privada.
- Engraçadinho. - ri sem humor.
Eu ainda encarava . Droga, por que eu não podia simplesmente olhar para outra coisa?! Era inevitável. Um pouco mais ao fundo do salão, ainda mantinha as mãos na cintura da mulher, que sorria, parecendo constrangida, no entanto satisfeita. Respirei fundo, esforçando-me para não xingá-la alto. Ela poderia parecer mais sonsa? Imaginei-me indo até ela e dizendo isso. Se ela soubesse o quanto parecia estúpida com aquele sorrisinho estampado na cara, com certeza nunca mais sorriria. Mas não fui.
A voz de me arrancou dos meus pensamentos mais uma vez:
- ?
- Hm? - resmunguei.
- Tem alguma coisa te incomodando?
- Por que teria? - ri e movi a cabeça levemente para os lados, ainda sem tirar os olhos de .
Meu colega fez silêncio por alguns instantes. E então, mais cedo do que eu gostaria, voltou a se manifestar:
- É isso?
- Desculpe? – perguntei, olhando para ele pela primeira vez. Finalmente juntei forças para afastar os olhos de . Veja bem: os olhos, não o pensamento.
E, para minha surpresa, ele levantou o queixo na direção em que e a mulher estavam. Segui seu olhar e espero não ter parecido desesperada demais. Ele não podia ter percebido!
- É isso que tá te incomodando?
- Do que você tá falando, ? – perguntei, vestindo minha melhor máscara de confusa.
- .
Oh, meu Deus, ele reparou. Voltei a olhar para e fiz silêncio por um segundo, decidindo o que falaria. Merda. Merda, merda, merda. Ele sabia! Precisava pensar rápido. Precisava tentar convencê-lo de que estava errado – por mais que eu seja péssima atriz quando estou nervosa. Então rolei os olhos.
- Me poupe. - disse o mais secamente possível.
Ele estreitou os olhos.
- Tem cert...
Mas eu o interrompi:
- , eu te aconselho a deixar de ser idiota, calar a boca e parar de falar idiotices em um lugar tão cheio de idiotas que podem facilmente acreditar na idiotice enorme que você tá falando. Além do mais, você não quer me deixar irritada, quer?
Olhei para ele, esperando ter causado o efeito que queria. E acho que consegui, porque ele sorriu, olhando para mim, e eu voltei a encarar a frente, tentando parecer indiferente.
- Quer sair daqui? – perguntou, e eu não podia ficar mais satisfeita pela mudança de assunto.
's POV off

segurou a pesada porta de ferro enquanto passava.
- ? – chamou, enquanto ela caminhava sem olhar para trás. – ? , vem aqui!
Então ela virou a cabeça bruscamente, como se ele tivesse gritado no ouvido dela.
- Que foi?! – perguntou, caminhando fortemente até ele.
- Segura a porta aqui. – disse. – Enquanto eu busco alguma coisa pra segurá-la, porque se ela fechar a gente não... Você trouxe uma garrafa inteira de champagne? – perguntou admirado, olhando para a garrafa na mão da mulher.
- Trouxe, qual o problema?
riu, enquanto assumia seu lugar e ele caminhava até uma pilastra onde havia alguns tijolos.
- Nada. Mas isso é 100% responsabilidade sua, certo? – e ao receber um olhar irritado dela, completou: - É que eu já tive problemas com isso. Há uma linha tênue entre acompanhar uma mulher enquanto ela bebe e ser acusado injustamente de embebedá-la.
Colocou o tijolo em frente à porta, permitindo que se afastasse.
- Em primeiro lugar: eu não preciso que ninguém se responsabilize por mim, . Em segundo lugar: eu não estou bêbada. – disse indignada. – Eu nunca fico bêbada.
tirou a rolha do champagne e levou a garrafa à boca.
- Você é boa demais pra isso? – debochou, rindo.
- Exatamente. – concordou confiantemente em tom de brincadeira.
Sentaram-se em um bloco de concreto, provavelmente alguma ponta de pilastra. Encaravam a visão que tinham de todo o centro da cidade. Estavam sentados no telhado do prédio, observando o movimento de uma sexta-feira à noite. Então gargalhou, olhando para frente, e sorriu. Não porque soubesse o motivo da gargalhada, mas porque sua risada era contagiante.
- Não sabia que podíamos subir aqui. – ela comentou, passando a garrafa para .
- Provavelmente não podemos. – respondeu, dando de ombros e tomando um gole.
- Você vem muito aqui?
- Às vezes. Quer dizer. Não mais. – corrigiu. – Vinha quando trabalhava no atendimento e não tinha porra nenhuma pra fazer mesmo.
fez uma pausa, na qual levou o champagne aos lábios mais uma vez, e disse:
- Você é um enorme clichê, não é?
franziu o cenho.
- Como é?
- O menino prodígio, que começou no setor de atendimento e depois de poucos meses foi promovido a diretor de arte! Inteligência de sobra – apesar de provavelmente quase nunca precisar dela – formado com sucesso em Cambridge. Solteiro, provavelmente tem uma lista enorme de telefones de mulheres cujo nome você não sabe associar ao rosto. E quando ta cansado do trabalho, vai “tomar um ar” no telhado do prédio... Sua vida é um filme, ou o quê?
sorriu. Lembrou-se de uma pergunta que fizera há alguns dias.
- Você é sempre assim?
Ela franziu o cenho e parou, com a garrafa a caminho da boca. Encarou-o.
- Assim como?
- Fica tentando interpretar as pessoas.
sorriu e virou o rosto para frente de novo, terminando de dar seu gole antes de repetir:
- E você é sempre assim?
rolou os olhos, e sorriu.
- Assim como? – respondeu, pois sabia que era o que ela queria que dissesse. Ele não se importava em fazer o que ela queria. Achava o gênio forte da colega engraçado.
- Tão previsível.
Foi a vez de gargalhar.
- Eu que sou previsível? – perguntou, levando a mão ao próprio peito.
- O que isso quer dizer? – a mulher se virou para ele, desafiadoramente, sorrindo. – O que você sabe sobre mim? Vamos lá, o que você sabe sobre mim, ? Qualquer coisa. – provocou.
- Uh, talvez... Sua relação "amigável" com seu chefe? – ele perguntou irônico.
O olhar de se fixou no dele e ela ficou séria por um segundo. Mas um segundo mesmo, pois no instante seguinte sorriu divertida.
- Você tava falando sério quando perguntou aquilo?
- É claro que tava.
Ela riu, jogando a cabeça para trás.
- É claro que não, !
O rapaz balançou a cabeça para os lados, descrente.
- Não precisa mentir pra mim.
- Não estou mentindo! – ela ainda sorria divertida, como se realmente achasse que a suposição do colega tivesse sido apenas uma brincadeira.
- Você não viu a sua cara. – ele argumentou, ainda cético.
- Sério, . – insistiu. – Eu e nos damos muito bem, ele é um ótimo chefe. E só. – finalizou, seu tom deixando claro que continuar aquela discussão era uma perda de tempo sem igual.
não protestou mais. Talvez ela estivesse, de fato, falando a verdade. Olhou para ela e a mulher correspondeu seu olhar. E ela sorriu, acabando com as dúvidas de e escondendo com maestria que no fundo era exatamente como todo mundo: tinha suas tristezas, suas decepções e já teve seu coração partido.
Então, inesperadamente, se inclinou para frente e juntou seus lábios nos de . Colocou força demais no movimento, fazendo com que ele tivesse de passar rapidamente suas mãos pelo corpo dela para que ela não se desequilibrasse. Lábios e pele em contato, suas línguas se exploraram, causando leves voltas no estômago dela – por mais que ela se recusasse a admitir. No entanto, o beijo durou pouco, pois uma das mãos indecisas de esbarrou na garrafa de champagne que estava ao seu lado, derrubando-a no chão. O barulho do vidro se estilhaçando fez ambos os corpos se contraírem levemente, perdendo o contato com os lábios um do outro.
Seus olhos se encontraram, as mãos de ainda impedindo que caísse, e, enquanto a única coisa que passava pela cabeça dela era “o que foi que eu fiz?”, sorriu descontraidamente.
- Agora é que eu vou ser acusado de te embebedar mesmo. – riu. Em seguida olhou para o vidro no chão e disse: - Eu vou te soltar agora. Não caia, tudo bem?
assentiu com a cabeça, um pouco sem graça. Ficou envergonhada quando começou a sentir que o álcool já fazia efeito sobre ela. Quando as mãos dele soltaram seus braços, ela se esforçou para se manter ereta. E conseguiu. se levantou e mexeu com a ponta do sapato nos cacos de vidro.
- É. Essa garrafa já era. Mas você já tinha bebido quase tudo mesmo, né?
sorriu.
- É. – concordou mais por não saber o que responder. – Então talvez eu devesse ir pra casa.
- Eu te levo.
- Não precisa! – apressou-se em dizer.
- Acusado de te embebedar, te beijar e te deixar dirigir depois de beber? – fez que não com a cabeça. – Sem chances. Vem, eu te levo.
Movimentou a cabeça, indicando que ela o acompanhasse, e começou a caminhar na direção da porta.

Quando estacionou em frente ao prédio da , ela se virou no banco para encará-lo e se perdeu em pensamentos por alguns segundos.
- ? – ele chamou, confuso por ela ainda não ter saído. – Você... quer ajuda pra subir? – ofereceu em dúvida
Ela balançou a cabeça para os lados, acordando dos pensamentos, e disse logo:
- Não! Obrigada, não precisa. Eu... – e então não soube o que dizer. - Obrigada, . Até segunda-feira.
Abriu a porta do carro, dirigindo-se até o portão o mais rápido que conseguiu enquanto sentia a cabeça começar a girar. E, já do lado de dentro, enquanto observava o carro de partir, balançou lentamente a cabeça para os lados, reprovando-se e soltando um suspiro. Ótimo. Agora vocês se beijaram, ele descobriu seu único verdadeiro segredo e sabe onde você mora. Ótimo. Realmente ótimo, para quem gosta de relações profissionais estritamente impessoais, .


06

Half of my heart’s got a grip on the situation, half of my heart’s got you.
Half of my heart’s got a right mind to tell you that I can’t keep loving you,
I can’t keep loving you.

(Half of my Heart – John Mayer)


BBDO, Londres, Segunda-feira, 08:00h

Quando pisou no 7º andar naquela segunda-feira, às 8h em ponto, ainda não sabia como deveria agir. Caminhou a passos decididos até sua sala, deixou seus materiais sobre a mesa e saiu de novo, em direção ao break room. Não havia motivo para se preocupar. Aquele beijo fora um acidente, e compreenderia – com alguma sorte, até concordaria – e ambos eram maduros o suficiente para agir como se nada tivesse acontecido. Não eram?
Abriu a porta no fim do corredor e, para sua surpresa, a única pessoa lá dentro era ninguém mais, ninguém menos que .
interrompeu o movimento, pega de surpresa, então soltou a porta e tentou sorrir naturalmente. Ele levantou os olhos de sua xícara sorrindo brandamente e, por mais inconveniente que o pensamento lhe parecesse, se viu obrigada a admitir que fora um sorriso muito atraente.
- Bom dia. – ele cumprimentou, afastando-se da bancada contra a qual estivera recostado, e ela sentiu seu perfume forte ao se aproximar. respirou fundo.
- Bom dia! – respondeu, decidida a deixar qualquer lembrança de sexta-feira para trás e agir com total naturalidade. Eles não eram e não precisavam ser amigos. Não havia nada em comum entre eles a não ser o trabalho. E era isso que precisava manter em mente.
Serviu seu café e em seguida tomou o lugar do colega, encostando as costas contra o balcão. Pensou em sair logo, antes que ele tivesse tempo de começar alguma conversa. Mas aquilo a fez se sentir ridícula. Era só conversar com ele assim como teria conversado com qualquer outro funcionário da empresa. Simples.
- Como foi seu fim de semana? – perguntou casualmente e, ao receber um olhar reprovador da colega, emendou, rindo: - Ah, qual é! Ainda não entramos na sala, ainda posso falar sobre qualquer assunto que não seja trabalho, , deixa de ser chata.
Ela sorriu, surpresa pelo atrevimento dele.
- Eu não sou chata. – repreendeu. - E meu fim de semana foi... Neutro. E o seu?
- Ótimo. Não tive que ficar perto de pessoas mal humoradas. Só isso já é uma vantagem, não é? – e piscou.
revirou os olhos, levando seu café à boca.
- Que simpático... – então consultou seu relógio. – Anda, já são mais de oito. Aposto que nossos e-mails estão cheios, .
- Você parece minha mãe quando me chama de ! – queixou-se, fazendo uma careta.
ignorou o comentário. Tinha de admitir que gostava de . Veja bem, não me entenda mal: gostava como colega. Era um ótimo parceiro de trabalho. Talentoso, eficiente e bem humorado. O que quer dizer que talvez até teria concordado em chamá-lo de , ou do que quer que ele gostasse de ser chamado. No entanto, depois do que acontecera sexta, estava desesperada para manter aquela relação o mais impessoal possível.
Começou a se dirigir até a porta.
- Ei, ?
Ela parou e girou nos calcanhares para encará-lo. Para sua surpresa, ele a olhava com um sorriso encantador, e ela teve que se policiar para não parecer admirada demais. Desde quando era tão bonito? Não! Chamou a própria atenção. Desde quando ela tinha esse tipo de pensamento? – essa sim seria a pergunta certa.
- Sim? – indagou apreensiva.
- Eu estava pensando se você não tá a fim de fazer alguma coisa.
franziu o cenho, confusa, seu raciocínio ainda momentaneamente afetado por aqueles pensamentos inusitados. Então ele completou:
- Depois do expediente, quero dizer. Jantar comigo, ou algo do tipo...
Ela reparou que o colega falava com toda a confiança possível. Não soava arrogante. Apenas tranquilo, sem tensão nenhuma, completamente seguro de si. Já ela sentia a tensão passeando em volta dos dois, correndo pelo cômodo, gritando, zombando dela. não estava sentindo aquilo? Por que ele agia com tanta naturalidade?! E o que ela deveria responder? Não sabia o que dizer. A tensão ainda estava lá, parou diante de e estendeu a língua, provocativa. Então, antes de se preocupar com o que responder, decidiu pensar de fato sobre a proposta. Sair com . Olhou para o colega e ele a encarava fixamente com seus olhos . Seus lábios ainda estavam esticados em um sorriso convidativo, e isso a fez se lembrar da sensação deles contra os seus... Seria tão ruim assim sair com ele?

’s POV
Seria tão ruim assim sair com ? Por um lado, era estupidez, eu sabia. Mas, por Deus, era um encontro, ele não estava de joelhos me oferecendo um anel! Que mal faria aceitar? Porém, quando abri a boca para aceitar, algo aconteceu e me fez mudar de ideia.
Meu olhar se perdeu atrás de , na parede oposta, de vidro, através da qual eu pude ver duas pessoas no corredor. Uma delas era a Sra. Dermott, a secretária de . A outra era ele próprio. veio caminhando e sorrindo, abrindo os braços já de longe. Ele usava aquele terno risca de giz preto que lhe caía tão bem! Eu adorava quando ele o vestia. E sabia disso porque eu já havia comentado.
Através do vidro, eu não conseguia ouvir o que diziam, mas só de olhar para seu rosto e ver seu sorriso se abrir, exibindo seus dentes perfeitamente alinhados e diminuindo seus olhos a fendas, eu podia ouvir sua gargalhada dentro da minha cabeça. O som da risada de me encantava e sempre me fazia rir junto. Inconscientemente, abri um sorriso fraco.
Ele passou o braço em volta dos ombros da Sra. Dermott, ainda ostentando um sorriso inacreditavelmente cativante. E então se moveu minimamente à minha frente, trazendo-me de volta ao cômodo em que eu realmente estava, onde a maldita tensão ainda ria de mim. E enquanto ainda sorria adoravelmente frente a mim, tudo que eu via era rindo atrás dele, caminhando em direção à própria sala. E aquilo acabou com minha dúvida. Onde eu estivera com a cabeça?
End of ’s POV

- Ah... – hesitou. – Obrigada pelo convite, mas não é um dia muito bom pra mim. – e sorriu educadamente.
- Tudo bem. – deu de ombros. – Não precisa ser hoje.
engoliu em seco, antes de dizer, da forma mais sucinta que pôde:
- Na verdade, não tem nada a ver com o dia. – admitiu. – Não é um momento bom para mim. Eu não quero ser uma idiota, mas a gente pode simplesmente esquecer o que aconteceu sexta? Eu... Não estou com cabeça para isso. – concluiu insegura. Droga. Agora aquele clima chato não ia acabar nunca. Aquela tensão infeliz ainda estava ali, logo ao seu lado, provocando-a, e se desesperou com a ideia de que ela ficaria ali para sempre, acompanhando-a sempre que estivesse perto de .
Então ele exibiu de novo um sorriso enorme, como se ela fosse uma menina pequena fazendo um comentário engraçado.
- Você não é uma idiota. – e assentiu com a cabeça jovialmente. – Sem problemas. – disse com a maior naturalidade do mundo. E, para alívio de , aquilo fez toda a tensão se dissipar imediatamente. – Anda, você não disse que a gente tinha muito o que fazer? – chamou e apontou para fora com a cabeça, segurando a porta aberta para que ela passasse.
Depois de acomodados em suas cadeiras na sala de , um de cada lado da mesa, suspirou e disse ironicamente:
- E aí? Ansiosa pra passar o fim de semana trabalhando?
- Vamos lá, . Não seja tão pessimista. As palestras da WAN-IFRA costumam ser interessantes.
O homem abriu a boca numa expressão exagerada de surpresa.
- Como é? Você pode repetir isso? Acho que ouvi errado.
- As palestras da WAN-IFRA costumam ser interessantes? – repetiu , erguendo as sobrancelhas.
- Não. Antes.
- "Não seja tão pessimista"? – perguntou divertida.
- Ah! - exclamou, como se tivesse acabado de escutar que haviam descoberto a cura para a AIDS. - Não acredito que essa frase saiu da sua boca. Cadê a e o que você fez com ela? - perguntou teatralmente, arrancando uma risada da mulher.
- Que foi? Eu não sou tão pessimista assim. – disse sorrindo.
- Certo. Vamos dizer isso. – replicou lentamente, assentindo com a cabeça, como se falasse com uma criança.


07

In every life we have some trouble,
But when you worry you make it double.
Don’t worry, be happy.
Don’t worry, be happy now.

(Don’t Worry, Be Happy – Bobby McFerrin)


London Heathrow Airport, Londres, Sexta-feira, 6 de outubro, 07:19h

olhou à sua volta, observando aquela quantidade absurda de pessoas à sua frente. Odiava filas, odiava esperar. Conferiu o relógio mais uma vez. Quinze minutos já tinham se passado e dizer que avançara três passos seria exagero. E, como se não bastasse, ela era a última da fila. Quero dizer, uma coisa é você estar numa fila e ter vinte pessoas à sua frente e vinte pessoas atrás de você. Outra coisa completamente diferente é ter vinte pessoas à sua frente. Porque isso quer dizer que você é o último. A pior posição.
Enquanto resmungava para si mesma sobre o azar e sobre como todas aquelas pessoas podiam simplesmente deixá-la passar na frente por pura bondade e boa vontade, ouviu uma voz atrás de si.
- Uau. Que fila, hein?
Virou-se e se deparou com parado, as mãos para trás como uma criança obediente e um sorriso encantador no rosto, como se tivesse acabado de fazer um comentário agradável sobre o tempo. Que, diga-se de passagem, estava escuro e nublado.
Um sorriso maldoso cresceu no rosto de . Ah, ela não era mais a última!
- Realmente. – concordou irônica. – Coitado do último da fila... – comentou, fazendo uma careta de pena.
Ele apenas sorriu, assentindo com a cabeça, mas permaneceu no mesmo lugar. Continuaram em silêncio por alguns segundos, e ainda não tinha sequer se movido. Perdendo a paciência, a mulher disse:
- Sabe, continuar aí olhando não vai fazer a fila ficar menor, .
- Certamente não vai. – concordou veementemente.
- Então talvez seja uma boa ideia você entrar logo. – incentivou, erguendo as sobrancelhas.
- Oh, não, não. – ele sorriu. – Eu não vou entrar na fila. – e ergueu um papel à sua frente, respondendo à pergunta silenciosa. – Check-in online.
É claro. Check-in online. Como ela pôde ser tão burra? E agora estava ali com aquele sorriso presunçoso no rosto.
- Certo. – disse, vencida. – Um a zero pra você.
Então ele guardou o papel no bolso e veio até seu lado, tirando as mãos de trás das costas. Em uma delas carregava um copo da Starbucks.
- Obrigado. Mas não é uma competição. E eu sou eu um cara tão legal que vou ficar aqui te fazendo companhia.
olhou para o café em suas mãos e, observando o rótulo, disse ironicamente:
- Enquanto aprecia seu delicioso... Frappuccino de caramelo com chantilly extra? - e acrescentou, franzindo o cenho: - Você é uma criança de 12 anos?
sorriu, e seu sorriso se estendeu e se transformou numa gargalhada.
- Não, . Eu não sou uma criança. - e estendeu o copo para ela. - Eu trouxe pra você.
- E quem te disse que eu gosto de frappuccino de caramelo com chantilly extra?
- Ninguém me disse. - replicou displicentemente. - Eu só achei que você talvez precisasse de algo que adoçasse sua vida. – brincou, abrindo um sorriso leve.
- Oh, Deus. - ela rolou os olhos e afirmou, convencida: - Você é uma garota de 12 anos. - arrancando mais um sorriso do colega.
ignorou o comentário e esticou o pescoço para ver melhor à frente.
- Ei, não é tão ruim assim. Tem só umas... Quinze pessoas à sua frente.
- Oh, é verdade! - exclamou em um tom agudo de falsa empolgação. - Só quinze! Então vamos todos nos juntar num abraço grupal, já que a vida é tão maravilhosa! - disse, os olhos arregalados numa expressão dissimulada de encantamento, que se desfez assim que terminou a frase.
Ele sorriu de novo, brandamente, e, depois de uma pausa, disse:
- Quer saber, ? Eu vou te contar uma história.
Foi a vez dela de sorrir. sempre fazia comentários inesperados. Rolou os olhos em falsa impaciência e soltou um resmungo de incentivo.
- Quando eu era pequeno, minha irmã era a garota mais chata de toda a Grã Bretanha. - disse solenemente. - Céus, ela era chata... - murmurou mais para si mesmo. - Então minha mãe inventou essa regra de que sempre que ela fizesse algum comentário desagradável, negativo ou pessimista, deveríamos cantar “Don’t Worry, be Happy”, e ela mudaria sua postura.
virou o rosto para o colega, o cenho franzido:
- Que regra estúpida.
- É ridícula, não é? - perguntou, como se aquela fosse a coisa mais engraçada que tivesse ouvido nos últimos tempos. - O fato é que sempre que cantarolávamos a música, Kayleigh colocava um sorriso na cara e agia como a menina dócil e educada que ela nunca foi, mas que minha mãe gostaria que ela tivesse sido.
- Me soa como uma lavagem cerebral violenta.
- Minha mãe sabe ser persuasiva.
- Talvez a trilha sonora da sua casa não devesse ser “Don’t Worry Be Happy”, e sim "The Wall".
gargalhou e abriu a boca, indignado.
- Ah, pare! Minha mãe não é tão ruim assim. – defendeu, num tom que soava levemente ofendido e ao mesmo tempo carinhoso. tentou imaginar qual tipo de mãe a Sra. seria.
- We don't need no education... - cantarolou, encarando o colega de olhos vidrados.
- Enfim, o que eu quis dizer com essa história...
- We don't need no thought control...
- ... é que você, às vezes, me lembra a Kayleigh com toda essa chatice e pessimismo. Com a diferença de que ela tinha a desculpa de ter 13 anos, e você, não.
- Ei! - exclamou ofendida, interrompendo a música, rindo.
- Portanto, a partir de agora, quando você estiver sendo muito chata, eu vou cantar pra você.
Ela se virou para ele, o rosto mais uma vez contorcido numa careta incrédula.
- Você é minha mãe agora?
sorriu e jogou o braço por cima dos ombros da colega, começando a assoviar os acordes iniciais de “Don’t Worry, Be Happy” no ouvido dela. Ela empurrou de leve o tronco dele para longe, fazendo cara de nojo.
- Menos contato físico, . – ordenou, e em seguida sorriu, enquanto caminhavam para acompanhar a fila, que já tinha andado.

Depois do vôo que saiu de Londres às 8:50 em direção a Jersey, fizeram uma escala de pouco mais de uma hora, antes de entrar num vôo em direção a Birmingham, onde chegaram por volta de uma da tarde. Foram separados em grupos de quatro pessoas para seguir de taxi até o Eaton Hotel, na Hagley Road. Tiveram tempo para se instalar e almoçar antes da palestra de abertura do congresso, que estava marcada para as 16 horas.
As paredes da sala de conferência eram de madeira envernizada num tom forte, quase avermelhado, e pareciam tão limpas e brilhantes que era intimidador. O chão era forrado por um carpete acinzentado, e havia inúmeras fileiras de poltronas pretas em estilo de cinema.
entrou e se sentou em uma poltrona no meio de uma das primeiras fileiras acompanhada de Ruby. A sala foi se enchendo aos poucos, todos se preparando para o início da palestra.
Às 16 em ponto uma mulher subiu ao palco e se posicionou em frente à bancada de mogno no centro. Ela vestia um conjunto de terno com saia preto e justo, muito elegante. Era alta e magra, tinha os cabelos castanhos presos num coque formal, porém uma franja lhe caía sobre o rosto, dando uma impressão de leveza à sua imagem. Seus olhos eram grandes e castanhos, e seus lábios carnudos estavam realçados por um batom vermelho. A mulher ergueu o microfone, sorriu e disse:
- Boa tarde. Meu nome é Chloe O’Hannoly e eu sou diretora de publicidade da WAN-IFRA. – sua voz era calma, musical e agradável aos ouvidos.
se perguntou como Chloe O'Hannoly poderia, ao mesmo, ser tão bem sucedida e ainda ser a mulher mais bonita num raio de 50km.
Chloe apertou algum botão no controle remoto em suas mãos e o telão atrás dela exibiu a capa de uma apresentação com o tema da conferência: “It’s Money Time!”, e ela voltou a falar:
- Quanto mais você aprende sobre seu público, mais fácil é vender para os anunciantes.
E ela deu início ao congresso com uma palestra brilhante.

Eaton Hotel, Birmingham, Sexta-feira, 19:32h

ouviu uma batida à porta. Largou o controle ao seu lado, levantou-se da cama e encostou o rosto ao olho mágico. Viu a imagem distorcida de à sua frente. Abriu a porta, encostando seu corpo à lateral dela.
- Hey. – cumprimentou sorrindo. – Tem planos para hoje à noite? – perguntou. Ao ver a expressão dela, rolou os olhos. – Calma. Não vou te chamar pra sair. – riu. – Pelo menos não sozinha. Estamos todos indo jantar. Ruby, Declan e Ella também vão. Talvez mais alguns, não sei.
sorriu, envergonhada por ter pensado por um momento que ele a estava chamando para um encontro. Olhou para trás, varrendo o quarto com os olhos até localizar sua jaqueta e sua bolsa.
- Deixa eu pegar minhas coisas.
Alguns instantes depois, voltou para , que a esperava à porta. Chamaram o elevador e se encaminharam juntos para o elegante lobby do hotel, onde todos tinham combinado de se encontrar. Havia, de fato, outras cinco ou seis pessoas do departamento esperando. correu rapidamente os olhos por elas, descobrindo logo que a pessoa que esperava ver não estava lá. Virou o rosto para os lados discretamente, até que ouviu Declan indagar:
- Podemos ir?
Sua voz era extremamente fina e agitada, e virou o pescoço bruscamente.
- Não vem mais ninguém? – e, em resposta aos olhares interrogativos, explicou, sorrindo constrangida: - Não queremos deixar ninguém pra trás.
Compreensão se espalhou pelos rostos dos colegas, que sorriram, concordando. Declan, mais uma vez, disse, depois de passar os olhos por todos:
- Acho que não tem mais ninguém vindo. Vocês eram os últimos.
E não tinha mais argumentos. Saíram e caminharam em direção a um restaurante alguns quarteirões à frente, The Duck Beefeater. E quando viu o garçom depositar à sua frente aquele pedaço de 300 gramas de lombo mal passado com bourbon e molho barbecue, não pôde deixar de pensar em como devoraria aquilo com um sorriso enorme no rosto. amava carne. E depois provavelmente pediria mais um, enquanto ela iria gargalhar e se contentar com a visão dele feliz.

Eaton Hotel, Birmingham, Sábado, 08:42h

esticou a mão sobre a mesa para alcançar as frutas. Puxou uma banana, depositou-a sobre sua bandeja e ouviu uma voz rouca atrás de si:
- Já descobri por que você tá sempre mal humorada de manhã. – ela se virou, deparando-se com parado ao seu lado. Ele vestia uma calça jeans e uma blusa de moletom cinza, largo, e tinha os olhos um pouco inchados, como quem acabou de se levantar e ainda não acordou direito. Sua voz ainda estava rouca por falta de uso, e a mulher sorriu ao reparar que ele parecia uma criança recém-arrancada da cama. Ao invés de responder, olhou-o interrogativamente, e ele apontou com a cabeça para o prato da mulher. – Você começa o dia com um café-da-manhã desses. Ninguém que começa o dia com frutas e aveia pode ter um dia bom!
O prato dele, por sua vez, era uma montanha daquilo que chamaria de “seus inimigos”. Ovos mexidos e fritos, bacon, salsichas, feijões assados, torradas. Tudo em quantidades absurdas aos olhos dela. rolou os olhos, apontou para o prato dele e brincou, piscando:
- Oh, meu bem, você sabe que vai tudo direto para os seus quadris, certo?
gargalhou enquanto se afastavam do buffet em direção a uma mesa vazia.
- Minha teoria faz sentido. Não negue. – então esfregou os olhos inchados, mais uma vez parecendo um garoto. – Um dia vou te ensinar a tomar café de forma adequada. – e, ao perceber o olhar pasmo de para seu prato, disse: - Não julgue. – piscou antes de levar uma garfada cheia à boca.


08

Now they're going to bed, and my stomach is sick, and it's all in my head
But she's touching his chest, now he takes off her dress, now let me go.
And I just can't look, it's killing me

(Mr. Brightside – The Killers)


Eaton Hotel, Birmingham, Sábado, 21:17h

passou o cartão magnético pela porta e girou a maçaneta após ouvir o clique. Entrou e soltou a pasta e suas anotações sobre o sofá à sua direita. Caminhou até a cama, perdendo as sandálias pelo caminho e começando a abrir o zíper da saia. Sentou-se na cama com os pés no colchão e as pernas cruzadas e bocejou enquanto começava a abrir os botões da camisa. Quis ligar a televisão, mas teve preguiça de ir até a cômoda buscar o controle. Deitou-se de costas, suspirando, e pensou no que queria fazer.
Havia um tempo que ela e não passavam algum tempo juntos, porque com todos os preparativos para a conferência ele estivera muito ocupado nas últimas semanas. Decidiu procurá-lo. Sem descer da cama, deitou-se de barriga para baixo e esticou as mãos para alcançar sua mala, que estava deitada no chão. Abriu-a, jogando a tampa para trás, e tirou de lá uma camiseta e uma calça jeans. Vestiu-as deitada na cama, levantando o tronco e as pernas, alternadamente, para que não precisasse se levantar. Sentou-se novamente, deixando os pés penderem para fora da cama, e inclinou o corpo, tateando o chão embaixo do móvel até encontrar um par de sandálias. Então, vestida, finalmente se levantou. Pegou uma bolsa, jogou dentro dela o celular, a carteira, a chave do quarto e um espelho e caminhou até a porta. Jogou sobre os ombros a jaqueta que estava pendurada no encosto do sofá e saiu.
Quando entrou no elevador e levantou a mão para selecionar seu destino, se deu conta de que não sabia em qual andar estava. Ainda não tinham se falado direito desde que chegaram, e ela não sabia qual era o quarto dele. Só lhe restava perguntar na recepção. Ao ouvir o som metálico do elevador indicando que havia alcançado o térreo, pôs os pés para fora no mesmo instante em que pousou os olhos em uma cena que preferia não ter visto nunca.
Do lado oposto do saguão, caminhando em sua direção, vinha . Mas esse não era o problema. Essa visão por si só teria sido um presente. Mas não. vinha caminhando de mãos dadas a uma mulher, cujo rosto fino e curvas perfeitas reconheceu serem de Chloe O’Hannoly.
Imediatamente, o tempo pareceu desacelerar e tudo à sua volta ficou silencioso. não conseguia desviar o olhar daquele ponto. Ficou parada em frente ao elevador por um segundo, sentindo todo seu corpo inflar, como se uma bomba de ciúme estivesse ligada na mais alta potência a todos os poros dele. Sim, ciúme. Aquela inquietação crescente que parecia começar no âmago do seu estômago e se espalhar, lenta e inevitavelmente por todo o seu corpo, como uma bolsa de água que estoura. Exceto que aquela sensação não poderia ser comparada a água. Estava mais para ácido sulfúrico. Ou fluorídrico. Ou qualquer outro “ico”, ou qualquer outra porcaria de substância que corroesse, já que aqueles sufixos inúteis pareciam ser a única parte das aulas de química que sua memória guardara. E a sensação ia subindo por seus braços e descendo por suas pernas, alcançando as pontas dos seus dedos e o pescoço. Tomando-lhe as faces, fazendo com que pudesse senti-las corarem de raiva. Observou por alguns segundos – que pareceram minutos – as mãos finas de unhas vermelhas de Chloe agarradas em volta da mão forte de . Observou a forma como seu corpo se movimentava de forma estupidamente sensual a cada passo, e o modo como suas bochechas davam espaço a pequenas e graciosas covas quando ela sorria, exibindo os dentes perfeitos para qualquer comentário que tivesse feito.
Não podia suportar aquilo. O ácido tinha se apossado de cada mínima célula do corpo da mulher, tomando-a de um sentimento quase incontrolável. Abaixou os olhos, porque tinha medo de que o que estava sentindo fosse visível demais para quem a encarasse. Obrigou suas pernas a avançarem rapidamente, saindo do caminho de e Chloe antes que estes a vissem.
Depois de alguns passos vacilantes, olhou para trás a tempo de ver a porta automática do elevador se fechar, afastando os dois dela e de seu ciúme louco, e o tempo pareceu voltar ao normal. Foi como se alguém tivesse tirado tudo do mute e da câmera lenta, e os ruídos das pessoas e coisas à sua volta a abraçaram violentamente.
Tentou voltar a raciocinar. Precisava de... Do que precisava? Olhou em volta. Decidiu-se: precisava sair dali. Deu meia volta, afobada, dirigindo-se à porta principal. Precisava sair dali. Ou melhor: precisava beber! Sim, precisava de uma bebida forte, um momento de amnésia, e alguém que a colocasse num taxi de volta para o hotel depois que não tivesse condições de ficar em pé sozinha. Era isso. Mas lembrou que não conhecia nenhum bar na cidade. Na verdade, não sabia absolutamente nada sobre o lugar, e provavelmente se perderia assim que chegasse a mais de 20 metros de distância do hotel. Então, quando estava perto de alcançar a portaria, mudou de ideia. Talvez não devesse sair de lá. Virou-se, pronta para atravessar o saguão em direção ao bar e restaurante do próprio hotel. Iria debruçar-se sobre o balcão e pedir repetidas doses de Jägermeister ao barman até que não estivesse sóbria o suficiente para pronunciar “Jägermeister”. Depois ligaria para e diria que ele aproveitasse a noite com a palestrantezinha, enquanto ela estava muito bem acompanhada por um barman jovem, alto, loiro, dos olhos claros e sotaque francês, chamado Pierre. Mesmo que ele não se chamasse Pierre. Nem fosse jovem, alto, loiro dos olhos claros e tivesse sotaque francês.
Ou poderia também não fazer nada daquilo. Só beber até que aquele ciúme doentio se diluísse no álcool e se poupar da humilhação de mostrar a o estado em que se encontrava por causa dele – o que não seria a primeira vez. Depois da primeira vez, na verdade, criou o hábito de desligar o celular sempre que saía para beber sem .
De qualquer forma, visando evitar qualquer contato com o chefe, parou mais uma vez quando passou pela sua cabeça que talvez não devesse ficar no bar do restaurante. E se e Chloe decidissem descer para jantar ou tomar alguma coisa e ela esbarrasse neles? Era a última coisa que queria.
Virou-se na direção contrária mais uma vez, pensando no que fazer enquanto se dirigia à porta do hotel de novo. Então, enquanto pensava em suas opções, viu uma pessoa caminhar na mesma direção que ela, alguns passos à frente, e reconheceu os cabelos s bagunçados. E antes que pudesse pensar melhor sobre o que estava prestes a dizer, sua voz já tinha chamado num pedido desesperado:
- ?
Um segundo de hesitação. viu o colega parar e olhar para trás, e se arrependeu de tê-lo chamado. Merda. O que diria a ele agora? De todas as pessoas da empresa ela tinha que se ver obrigada a pedir ajuda justamente para ? Por que não Ruby, que sugeriria um passeio pela cidade com um cartão de crédito sem limites em mãos? Ou até mesmo a Sra. Dermott, que provavelmente lhe chamaria para um passeio noturno pelo quarteirão seguido de um chá no quarto dela. Qualquer coisa que lhe tirasse da cabeça. E quando respondeu, ainda não tinha decidido o que falar.
- Oi?
virou o corpo totalmente, ficando de frente para ela. Encararam-se por um momento, enquanto o cérebro dela trabalhava a toda velocidade. Trabalho esse que resultou numa frase vacilante e mal elaborada.
- Você vai... Er, eu queria... Pra onde?
Ele franziu o cenho e sua boca repuxou num sorriso divertido, enquanto sacudia a cabeça, insatisfeita consigo mesma, e aquilo foi tempo suficiente para que organizasse os pensamentos e formulasse melhor a frase:
- Aonde você tá indo?
Antes que ele tivesse tempo de responder, já começara a se sentir impaciente pela demora. Tudo que queria era sair dali. e Chloe poderiam aparecer a qualquer momento! O corpo de permaneceu imóvel, mas seus olhos se moveram de um lado para o outro, como se observasse as pessoas ao seu redor para verificar se ele era o único a achar a pergunta inusitada. É claro que não havia uma pessoa sequer prestando atenção a eles. Então respondeu sucintamente:
- Sair.
estava pronta para aceitar qualquer programa que a salvasse de ficar ali pensando em . Porém naquele momento ela acordou de seu mundinho arrogante, e lhe ocorreu que o problema não era ela não querer sair com . Talvez o colega é que não quisesse sair com ela. Então voltou a falar, agora em dúvida de novo:
- Ah... Você vai sozinho?
- Com um amigo. – e, imaginando que estaria se perguntando de quem era mais próximo na empresa, explicou: - Você não conhece.
- Ah. – soltou. – Você tem amigos em Birmingham?
- Eu sou daqui. – explicou, dando de ombros. Assim que ouviu essas palavras, pareceu ter sido conectada a uma tomada, com as esperanças renovadas, e imaginou se seus olhos tinham brilhado e seu rosto se iluminado o suficiente para que visse.
- Então você sabe chegar a um bar?
- Sei. – ele disse apenas, assentindo com a cabeça.
- Oh, perfeito! – exclamou num misto de desespero e alívio, agora sem se importar que estivesse prestes a pedir para sair com . Desde que ele a tirasse dali, não poderia ser tão ruim. - Posso ir com você? – perguntou sem cerimônias. Imediatamente, ela se arrependeu de novo do tom desesperado, do quanto aquilo soou como uma súplica, e ficou com vergonha. Sentimento que não melhorou com a demora dele para responder. O homem semicerrou os olhos, como se a analisasse, e seus lábios se torceram novamente num sorriso – dessa vez mais malicioso. Então decretou sério:
- Sob uma condição.
Ela respirou fundo teatralmente, revirou os olhos e resmungou, preparada para recusar qualquer que fosse a condição:
- Qual?
- Você, a partir de agora, me chama de .
sorriu. Só isso?!
- Feito. – concordou prontamente, fazendo sorrir vitorioso. Aquilo não seria um sacrifício tão grande. Afinal, sua tentativa de não ter contato nenhum com o novo diretor de arte já tinha ido para o saco mesmo.

Rainbow Casino, Birmingham, Sábado, 21:49h

Quando o taxi parou em frente ao Rainbow Casino, já tinha puxado a carteira e se apressou a dar o dinheiro para o motorista, por mais que protestasse. Já que tinha praticamente obrigado o colega a levá-la consigo e ainda tinha reclamado da ideia de ir a pé, o mínimo que podia fazer era pagar. Enfim cedendo, propôs:
- Tá. Então eu pago sua bebida.
gargalhou enquanto caminhavam pelo chão de asfalto do estacionamento e, virando-se para ele e caminhando de costas, brincou:
- Você não teria prometido isso se soubesse o quanto eu pretendo beber.
Caminharam em direção ao cassino, que era uma casa branca estilo colonial inglês, de telhado pontiagudo e detalhes em azul marinho. Não combinava em nada com aparência que associaria a um cassino. Parecia mais uma pousada aconchegante. A impressão permaneceu ao adentrarem a casa. O primeiro andar era um restaurante requintado. As paredes do cômodo eram pintadas de um marrom bem escuro e elegante, o chão era revestido por um carpete creme que combinava com as poltronas macias em volta das cadeiras. O segundo andar, no entanto, era exatamente como deveria ser. Havia diversas mesas de jogos espalhadas pela sala e o lugar estava razoavelmente cheio. Do lado oposto do salão havia um bar, e, rente a ele, várias poltronas giratórias vermelho-sangue. As mesmas poltronas circundavam as máquinas do outro lado do cômodo. A área próxima ao bar era mais escura e tinha algumas luzes de tons arroxeados, e a primeira coisa que fez ao avistar aquele espaço foi varrer o balcão à procura de Pierre. Antes que pudesse terminar a busca e achar um candidato à altura de sua fantasia, no entanto, já a havia conduzido até o balcão. Só então reparou num homem que havia girado a cadeira na direção deles, sorrindo. Tinha cabelos loiros, curtos e queixo proeminente. Quando se aproximaram, o homem se levantou e ele e se abraçaram com força, rindo, como se não se vissem há muito tempo. Enquanto os dois se cumprimentavam, ela se sentiu intrusa. Tratou de desviar o olhar em outra direção, fazendo questão de não prestar atenção ao que falavam. Até que sentiu uma mão tocar seu ombro, fazendo-a virar-se novamente.
- Esta é . Do trabalho. – apresentou. – E este é o . Estudamos juntos.
- Prazer. – disse a mulher sorrindo e estendendo a mão.
- O prazer é meu. – sorriu também. Seu sorriso era torto, mas ainda assim charmoso, de alguma forma.
indicou as cadeiras ao seu lado e os três se sentaram. Um barman imediatamente veio trazer um cardápio, mas para decepção de ele não tinha cara de Pierre. Ignorando a surpresa desagradável, a mulher pediu, com prazer, sua tão almejada dose de Jägermeister. Ao ouvir o pedido, franziu o cenho divertido:
- Não quer começar com algo mais... leve?
- Ora, . – interveio , sorrindo novamente. – Só porque você é fraco, não quer dizer que todos sejam. – provocou. – Deixa a sua amiga beber em paz. – e acrescentou baixo, aproximando o rosto do dela e piscando: - A julgar pela expressão dela, tá precisando.
sorriu satisfeita, olhando para , e concordou:
- É, . – e vendo o olhar de reprovação do colega, corrigiu-se: - ! Pode pedir um copo de leite com chocolate, se quiser.
gargalhou e balançou a cabeça para os lados.
- Ah, , não acredito que você já a está virando contra mim...
- Não se preocupe. – brincou . – Você mesmo já fez isso há muito tempo.
- Certo. – disse indiferente, distribuindo as bebidas que o barman tinha trazido.
A mulher esticou a mão para o seu copo, levando-o à boca avidamente como se fosse um copo de água gelada depois de horas de caminhada no sol. Engoliu e apertou os olhos, sentindo o gosto amargo de ervas do licor correr por sua garganta. Ah, agora sim... Abriu os olhos novamente no momento em que continuou a falar:
– Eu tinha esquecido o quanto você me odeia quando você apareceu com o rabinho entre as pernas, implorando para sair comigo.
escancarou a boca numa expressão falsa de indignação.
- Você está deturpando os fatos! – e, virando-se para , repetiu: - Ele está deturpando os fatos!
- Imagino. criou esse hábito na 3ª série e nunca mais parou. – disse displicentemente, enquanto tomava um gole da sua cerveja. – ... – chamou, mudando de assunto. – disse vocês trabalham juntos. Você é chefe dele?
- Não! – se apressou a dizer, como se o tivesse ofendido. A mulher riu.
- Não, infelizmente... Se eu fosse, ele já estaria procurando emprego há muito tempo.
- Mas não é. Somos colegas. Mesma posição. Mesmo nível hierárquico. – ressaltou, semicerrando os olhos com cinismo.
- Londres deve ser muito mesmo boa. – comentou. – Tem quase um ano que não aparece por aqui.
- Ah, não se engane. – riu e balançou a cabeça para os lados. – Mas e você? Faz o quê? – perguntou enquanto chamava o barman de novo, pedindo a segunda dose.
Antes que pudesse responder, o amigo disse:
- Ele é o que pode ser chamado de designer de fraldas.
A mulher, sem saber como reagir, olhou interrogativamente para . Este, por sua vez, tomou mais um gole calmamente e explicou, fazendo questão de ignorar o comentário do amigo e não olhar para ele, encarando fixamente:
- Sou gerente do setor de química da Huggies.
- Em outras palavras, - provocou de novo – passa o dia inventando fraldas...
- ... Que você passa o dia tentando vender. – alfinetou , piscando e levantando o copo como se brindasse.
- Ouch! – exclamou rindo. – Ei, não fale mal de publicitários.
- Ah, é verdade. Me desculpa. – levantou as mãos em sinal de rendição.
Após a quarta dose, reparou que já não sentiu a ardência do líquido descendo. Decidiu pedir uma de Grand Marnier. Talvez depois passasse para o whisky...
- ? – chamou. – Você não acha que já tá bom? – perguntou em tom brando.
Talvez em outra ocasião ela tivesse se irritado por sentir que estava sendo tratada como uma criança. Mas o álcool já estava fazendo efeito demais para que ela se irritasse, então se contentou com uma gargalhada.
- Relaxa, ! Eu não preciso de babá. – defendeu-se, soando de fato como uma criança. - ?
- Sim? – perguntou sorrindo.
- Me defenda. – pediu num sussurro, apontando com a cabeça para o colega.
Ele riu.
- Com prazer! , ela não precisa de babá. – repetiu.
Mas já não escutava mais. Estava longe dali. Repentinamente, o motivo de ela estar bebendo havia voltado à sua mente: . O que estaria fazendo agora? Ou melhor... O que e Chloe estariam fazendo agora? Olhou para o relógio em seu pulso, mas teve dificuldade para ler o que os ponteiros lhe diziam. De qualquer forma, tinha certeza de que havia passado tempo suficiente para que e Chloe já tivessem chegado muito mais longe do que gostaria. Imaginou os dois deitados numa cama king size na suíte master de Chloe – provavelmente mil vezes mais luxuosa que o quartinho de hotel ordinário que recebera – cobertos apenas por um lençol, enquanto Chloe passeava os dedos finos pelo peitoral largo de . Argh, não! Não queria pensar naquilo. Suas mãos subiam até alcançar os cabelos dele, por onde se embrenhavam. Qualquer outra coisa, preferia pensar em qualquer outra coisa... Seu cérebro funcionava de maneira desordenada e confusa. Seus olhos percorreram o salão. Uma mulher magra, com blush demais nas maçãs do rosto, sentada à mesa mais próxima, cruzava os dedos, esperando que o dealer lançasse os dados. Ótima distração! se virava, deitando-se sobre o corpo da mulher, e suas mãos fortes afastavam do rosto dela as mexas de cabelo negro. escolheu um número: cinco. Gostava do número cinco porque era o dia do seu aniversário. O dealer lançou os dados. Merda Quatro. A mulher das bochechas de palhaço também não pareceu satisfeita. aproximava o rosto de Chloe, deixando sua barba por fazer arranhar de leve a bochecha dela, antes de beijá-la. se focou na mulher. Ela agora roía as unhas e dava pulinhos histéricos, esperando os dados novamente. fazia impulso sobre o corpo ofensivamente escultural de Chloe, aprofundando o beijo enquanto começava a se mover lentamente sobre ela. Ah, merda. A quem estava enganando? Nem os dados, nem a música ao fundo, nem a mulher escandalosa, nem as repetidas doses de álcool tinham conseguido tirar aquela imagem dos seus pensamentos. Começou a se sentir enjoada por causa do filme que insistia em continuar passando em sua mente. O próximo passo seria começar a ouvir os sons também. Seria tortura demais! Seu estômago embrulhou, e por um segundo se perguntou se havia a possibilidade de vomitar. Então, tirando-a do transe bruscamente, ouviu a voz de :
- Se eu pedir uma porção de alguma coisa, você come? Batatas? Carne? Qualquer coisa.
Só então lembrou que não estava sozinha. Não sabia quanto tempo tinha passado, mas não tinha sequer reparado que e continuavam conversando ao seu lado. Olhou para os dois e reparou que eles a encaravam como se esperassem alguma coisa. O que diabos eles queriam? Ah, fizera uma pergunta! Certo. Qual tinha sido a pergunta? O cérebro de se esforçou para retroceder alguns segundos... “Se eu pedir uma porção de alguma coisa, você come? Batatas? Carne? Qualquer coisa.” Isso, era essa a pergunta! Só de pensar em comida, sentiu-se mais nauseada. Seu estômago embrulhado não aceitaria nada sólido naquele momento. Enrugou a testa e recusou energicamente, balançando a cabeça para os lados. E, dando-se conta de que eles esperavam mais, completou:
- Eu... – hesitou antes de falar a primeira coisa que lhe veio à mente: - Eu estou de dieta!
- Ah, verdade. - disse , parecendo compreender. sorriu, satisfeita (e surpresa) por ter conseguido enganá-los com tanta facilidade, até ele completar: - E sua dieta é baseada em quê? Criancinhas inocentes e filhotes de spitz alemão?
A mulher rolou os olhos.
- Engraçadinho...
Antes que pudesse evitar, alguma parte teimosa de seu cérebro deu play no filme, e as cenas recomeçaram, enchendo-a novamente de nojo. Fez sinal para que o barman enchesse seu copo novamente, e quando começou a protestar, , mais uma vez desesperada por distração, interrompeu o colega:
- Se você perder de mim no Black Jack você me deixa em paz? – apontou com a cabeça na direção da mesa de jogos onde a mulher das bochechas de palhaço se encontrava.
A expressão de se transformou em um sorriso malicioso.
- E se eu ganhar?
- Você não vai ganhar.
- E se eu ganhar? – repetiu.
- Se você ganhar a gente decide seu prêmio depois. – replicou impaciente. Ninguém ganhava dela no Black Jack mesmo.
- Fechado.
Mal havia terminado de pronunciar a palavra, uma gargalhada alta explodiu. , ao lado deles, parecia se divertir extraordinariamente. lhe lançou um olhar interrogativo. Recuperando-se, o homem explicou:
- Bom, se ainda for tão ruim em Black Jack quanto era quando estávamos na faculdade, você acabou de fazer um ótimo negócio, ...
A mulher abriu um sorriso de canto, tomou mais um gole e se levantou, cambaleando – ainda que pensasse estar caminhando da mais graciosa forma – até a mesa mais próxima.


09

But on the horizon, as the morning breaks,
I can see a brand new day that's full of new mistakes (...)
Every time we get up we'll be destined to fall, and I'm asking myself is it worth this at all
Every corner we turn we just run into walls
Because loving you feels like a kick in the balls

(Only The Strong Survive - McFly)


Eaton Hotel, Birmingham, Domingo, 11:23h

abriu os olhos devagar, agradecendo mentalmente a si mesma por ter se lembrado de fechar as cortinas antes de se deitar. Então reparou que estava numa posição desconfortável. Virou-se de barriga para cima, libertando o braço esquerdo, sobre o qual estivera deitada e que agora estava dormente. Levou a outra mão à mesa de cabeceira para alcançar o celular, mas seu braço parecia pesar uma tonelada. Assim como o resto de seu corpo. Puxou o aparelho e levou-o até o rosto com dificuldade. Meio dia e vinte e três. Tinha três ligações não atendidas, mas não tinha capacidade para raciocinar quanto a isso naquele momento e preferiu deixar para lá. Não era um bom momento para tomar decisões. Respirou fundo, juntando forças para erguer seu corpo insuportavelmente pesado. Quando conseguiu, instintivamente congelou na posição que tinha alcançado. Qualquer mínimo movimento de sua cabeça fazia parecer que todos os 67 quilos de seu corpo estavam concentrados nela.
Respirou fundo, tentando manter-se parada, mas era difícil, porque estava apoiada nos braços, e o esquerdo ainda estava dormente. Recostou-se lentamente contra a cabeceira da cama e fechou os olhos. Merda de ressaca. Sempre fora assim. Podia beber o mínimo que fosse, e na manhã seguinte sua cabeça pareceria querer se soltar do corpo. E o fato de ter bebido mais do que se lembrava de ter bebido em um bom tempo não ajudava muito. Ao pensar nisso, tentou se lembrar da noite anterior. Recordou-se de alguns flashes até determinado momento. Algo sobre uma aposta no Black Jack, um líquido azulado, os bancos de couro de um Corolla, o cheiro abafado de algo bege e felpudo. Assustou-se com a aleatoriedade das lembranças que encheram sua mente, e, preferindo não descobrir o motivo de nenhuma delas, sacudiu a cabeça, espantando aquilo dos pensamentos. Arrependeu-se imediatamente. Levou as mãos à testa, como que para sustentar a cabeça e assegurar que ela não se moveria um centímetro sequer.
Tinha a impressão de que estava esquecendo alguma coisa. Aquela sensação de que você tem um compromisso importante, mas não faz a mínima ideia de qual seja. Consultou o celular mais uma vez. Domingo, onze e vinte e três. Mas, sinceramente, que compromisso importante poderia ter em pleno domingo de manhã? Oh, MERDA, domingo de manhã! Desesperada, lançou o corpo para fora da cama com força. Não era possível que tinha sido idiota a esse ponto. Pegou o celular mais uma vez e conferiu o alarme. Segundo o aparelho, seu despertador tocara às 7:00h. Ela nem ao menos se lembrava de tê-lo desligado! Tinha perdido o vôo. Como podia ter esquecido o vôo?! Já era quase meio dia, todos da empresa, a essa hora, deveriam estar prestes a pousar em Londres. A não ser que... Tivessem esperado por . Eles não iriam embora sem algum funcionário. Iriam?
Vestiu um roupão jogado em uma poltrona no canto do quarto e calçou um par de tênis, sem se importar nem um pouco com a estética da combinação. Apressou-se a sair do quarto e desceu correndo as escadas para não precisar esperar o elevador. Sofreu a cada passo, mas o desespero agora era maior, muito maior, do que o enjoo ou a dor de cabeça.
Ao alcançar o saguão, correu até o balcão, optando por ignorar as pessoas que a encaravam, provavelmente se perguntando qual aposta ela teria perdido para ser obrigada a aparecer em público de roupão, tênis, cabelo desgrenhado e, provavelmente, a expressão mais perdida que alguém pode exibir.
- Bom dia, moça, por favor, você pode me informar uma coisa? A equipe da BBDO de Londres já fez o check-out? – perguntou afobada.
A mulher atrás do balcão tirou os olhos da tela do computador à sua frente e olhou para . Ela não disse nada, mas viu em seus olhos aquele olhar discreto de repugnância que só outra mulher perceberia. Irritada e ainda desesperada por uma resposta, desafiou:
- É, eu pareço uma mendiga e provavelmente estou com cheiro de álcool. – sorriu cinicamente. – Mas você pode me fazer o favor de me dizer se o grupo da BBDO ainda está no hotel?
A funcionária, ignorando o comentário arisco de , agora exibiu aquele sorriso fingido de quem diz que o cliente tem sempre razão e disse calmamente:
- Não. O grupo fez o check-out às 8:30h.
Não. ficou parada, sem expressão, ainda encarando a recepcionista. Eles tinham ido embora! Virou-se para sair dali, dirigindo-se lentamente até o elevador. Adentrou a cabine e apoiou as costas contra o espelho para que não precisasse encará-lo. Estava perfeitamente ciente do seu estado sem que precisasse da humilhação de encarar seu reflexo. Bufou insatisfeita antes de apertar o botão no painel. Sentia agora, além de todo o resto, preguiça. Preguiça de descobrir como voltaria para casa e de resolver seus problemas quando tudo o que sentia vontade de fazer era se jogar na cama e gritar contra o travesseiro que a vida é uma merda. Sozinha em uma cidade que não conhecia, em um hotel do qual seria expulsa em poucas horas, ainda um pouco bêbada, com a pior ressaca de seus breves vinte e sete anos e ainda cheirando a álcool. Se tivesse mais alguém no elevador, teria pedido desculpas pela decadência. Mas não havia. Então, subitamente, se lembrou de que, ao contrário do que pensava, ela não estava sozinha! Não de uma forma poética, como se alguém a estivesse acompanhando em pensamento. Não, não havia espaço esse tipo de romantismo na vida dela, e provavelmente não havia uma pessoa sequer em toda a Grã-Bretanha que estivesse pensando nela. Talvez a recepcionista, que possivelmente estava contando para a balconista ao seu lado sobre a cliente mais digna de pena que já pisou naquele saguão. Mas aquilo não vinha ao caso. O fato era que se ela ainda estava no hotel, também tinha de estar, não? Na verdade, não lembrava se ele também tinha bebido na noite anterior, mas teria sido muita canalhice da parte dele ir embora e deixar que ficasse para trás quando ele era o único que podia imaginar o estado em que a mulher se encontraria depois de uma noite como aquela. Aliás, ir embora e deixá-la sozinha em Birmingham não foi a coisa mais gentil que já lhe fizera. Oh, ... Amá-lo acabava com ela. Fez uma nota mental de acertar-lhe um soco no ombro esquerdo por isso quando voltasse a Londres. tinha um ombro fraco por causa de uma fratura quando jogava rugby na faculdade. Sim, ela tinha um caso com um ex-atleta. Se estivessem no colegial, provavelmente teria sido popular por ter um namorado como . Exceto que não era seu namorado. E eles não estavam no colegial. E ela tinha começado a ter pensamentos imbecis, o que a levou a confirmar que sim, ainda estava um pouco bêbada.
Quando o elevador parou, saiu apressada e se dirigiu à última porta do corredor, esmurrando-a sem se preocupar com nada. Surpreendeu-se quando percebeu que tinha chegado ao quarto de sem nem pensar sobre aonde estava indo. Não se lembrava de ter estado lá antes ou de tê-lo ouvido falar o número de seu quarto, ou sequer o andar. Mas não importava. O fato era que estava e lá e, por algum motivo, tinha certeza absoluta de que aquele era o quarto certo.
Continuou a bater com toda a força, sem se importar com a forma como o barulho martelava contra sua cabeça com dez vezes mais violência do que faria normalmente. Depois de alguns segundos, não satisfeita com o barulho de seu punho contra a madeira, começou a gritar o nome do colega.
- ? ! – pigarreou, preparando-se para o grito final: - , ABRA ESSA PORTA ESTÚPIDA AGORA, ANTES QUE EU...
E a porta se abriu, revelando com uma toalha ao redor da cintura, cabelos molhados e a expressão de alguém descansado e bem disposto para o dia. sentiu seu corpo inflar de raiva. Como ele podia parecer tão tranquilo, bem humorado, de banho tomado, e exibir aquele sorrisinho nojento (e charmoso) naquela cara de pau?
Os olhos dele esquadrinharam dos pés à cabeça antes que ele dissesse:
- Olha, você sempre se veste bem, mas hoje... Hoje você caprichou. – provocou, ainda sorrindo.
- QUAL. É. O SEU. PROBLEMA? – vociferou pausadamente, batendo as palmas das mãos com força contra o peitoral do homem, fazendo-o cambalear levemente para trás.
O gesto de fez o sorriso sumir do rosto do colega, substituído por uma expressão de completa confusão.
- Qual é o seu problema? – repetiu indignado.
- De onde você tirou tempo pra tomar banho? – perguntou incrédula. – Anda, arruma sua mala, junta suas coisas e pode ir pensando em como a gente vai se virar pra sair a gente daqui! – continuou, virando-se para o quarto, pronta para começar a fazer as malas dele. Precisavam se arrumar o mais rápido possível.
E imagine qual foi a surpresa de quando, ao correr os olhos pelo cômodo, viu uma mala de pé ao lado da cama, uma muda de roupa estendida sobre a colcha e um par de sapatos no chão. Não havia nada fora do lugar. Nem uma peça de roupa, um objeto pessoal... Nada. As coisas de já estavam obviamente prontas.
- Você já fez as malas? – perguntou, subitamente confusa.
- Já.
- Você... Então por que você também perdeu o vôo? – perguntou baixo, agora soando como uma criança. Sentia-se tão confusa que poderia chorar. Sua cabeça doía, estava cansada, frustrada, não sabia o que fazer e, pior, não estava entendendo absolutamente mais nada.
- Eu não perdi o vôo. – disse calmamente. – Porque eu não ia pegar o vôo.
permaneceu em silêncio, encarando o colega e tentando absorver suas palavras que, para seu cérebro ainda afogado em whisky e confusão, não faziam sentido algum.
- O quê? – limitou-se a perguntar, num tom cansado.
- Eu vou pra casa. Pra casa dos meus pais, quero dizer. – explicou. – Aproveitei que estamos de folga amanhã e prometi à minha mãe que ia pra casa. Eu conversei com pra que não reservassem passagem de volta para mim. Eu não perdi vôo nenhum.
se sentiu da mesma forma que se sentiu quando a recepcionista lhe disse que seu grupo havia ido embora. Encarou o colega, perplexa demais para reagir. Então estava, de fato, sozinha.
- Ah... – murmurou, repentinamente envergonhada. Envergonhada por ter gritado com , envergonhada por ter entendido tudo errado, envergonhada por ter sido estúpida a ponto de perder a porcaria do avião.
A expressão da mulher deveria ser realmente digna de pena, porque pareceu se comover imediatamente.
- Calma. – gaguejou. – Você quer ajuda? Eu te ajudo. – disse como se falasse a uma criança. – Eu só vou... – e apontou para a roupa em cima da cama e olhou para o próprio corpo.
Só então se deu conta de que ele estava só de toalha, que, diga-se de passagem, estava bem frouxa em volta do quadril dele, deixando à mostra um pouco mais do que era saudável para uma mulher solteira. Não pôde deixar de reparar em seu abdômen e braços levemente definidos e em como aquela “definição” parecia descer até onde a toalha cobria sua visão. Mas levantou o rosto, esforçando-se para encará-lo nos olhos, e disse:
- É claro! Desculpa! Eu vou... Até a recepção e depois volto, enquanto você... É. – tagarelou, já se dirigindo à porta.
Quando a fechou atrás de si, apoiou as costas contra a parede do corredor, respirando fundo mais uma vez para conseguir ignorar a dor que ainda assolava sua cabeça e o peso insuportável que ainda puxava todos os seus membros para baixo. Ficou parada por alguns segundos encarando o chão. Então percebeu uma coisa. O chão era de carpete. Bege e felpudo. Bege e felpudo... Por que diabos aquilo evocava alguma memória nela? Vasculhou o cérebro, até alcançar um pensamento vago sobre o cheiro abafado de algo bege e felpudo. Por que continuava voltando a pensar naquilo? Eca! Mais uma vez, preferiu ignorar qualquer que fosse a lembrança que sua mente estivesse tentando resgatar. E, como todos já fizemos incontáveis vezes, ela passou por aquele momento em que você se promete – e tem absoluta certeza de que dessa vez é verdade! – que nunca mais vai beber.
Então se lembrou de que ainda andava por aí pateticamente de roupão e tênis, e decidiu voltar para o próprio quarto. Quando o alcançou e se olhou num espelho pela primeira vez no dia, desejou que o tivesse feito antes. Soubera o tempo inteiro o quanto estava ridícula, mas se tivesse, de fato, visto a si mesma, não teria se permitido a humilhação de andar daquela forma em público. No entanto, já era tarde. O que está feito está feito.
Respirou lentamente, tentando se concentrar. Estava tudo bem, na verdade. Para tudo há solução. Podia simplesmente ir até a recepção e renovar sua reserva. O máximo que aconteceria seria que tivesse que pagar uma diária a mais e outra passagem para Londres. Mas aquilo não era problema. Dinheiro, naquele momento, era completamente irrelevante, se comparado ao quadro geral. Tudo que queria era resolver o que faria antes do meio dia. E por maior que fosse a necessidade que sentia de tomar um banho longo, quente e revigorante, precisava, antes de mais nada, decidir o que faria. Então lavou o rosto, penteou os cabelos, escovou os dentes, vestiu uma roupa decente e pegou sua bolsa antes de sair novamente em direção à recepção.
Foi até a mesma recepcionista porque queria provar para ela que nem sempre parecia uma moradora de rua. Não que estivesse exatamente preparada para caminhar pelo tapete vermelho, mas sua aparência havia, sem dúvidas, sofrido uma melhora considerável nos últimos minutos, e seu orgulho fazia questão de que a funcionária de narizinho empinado visse isso.
- Bom dia de novo. – sorriu cínica. – A minha diária termina às 12 horas e eu gostaria de renovar minha reserva. – pediu educadamente.
A mulher olhou para por um segundo com um olhar entediado antes de responder brevemente:
- Não será possível.
sentiu o maxilar pender e sua boca se abrir levemente em surpresa. Como é que é? Sentindo-se como Julia Roberts em “Uma Linda Mulher”, levou a mão à bolsa. Estava pronta para puxar sua carteira e provar para aquela biscatezinha ignorante que tinha sim condições de pagar por qualquer serviço que fosse dentro daquela espelunca! Jogaria notas de cem para o alto e chamaria o gerente, para que ele obrigasse a própria recepcionista a fazer as entregas de caviar para o quarto de durante os próximos dias. Ah, mas ela ia ver só...
Porém, ao invés disso tudo, percebeu que seus pensamentos estavam mais uma vez divagando. Então se obrigou a voltar à sua realidade não tão glamorosa e disse humildemente:
- Como não? – achou o tom reverente demais. Se seu pai a tivesse escutado falar daquela forma submissa, teria lhe deserdado. Se é que isso já não tinha sido feito desde o segundo ano, quando apagou acidentalmente as luzes do palco durante a única apresentação do grupo de teatro da qual foi escolhida para participar (como técnica de iluminação – por que diabos tinha recebido essa função, afinal?), no mesmo dia em que a carta de aprovação da Alyssa na Royal Academy of Music chegou. Não que tivesse sido a única situação similar, mas aquela tinha sido a gota d’água. É, bem... Provavelmente não restariam muitos bens depois que Aly herdasse a casa, o apartamento, os carros, a casa de praia, as contas no exterior...
E a voz fina e irritante da recepcionista trouxe para o mundo mais uma vez:
- O hotel está cheio pelos próximos três dias.
Aquilo não era possível. Aquilo não podia ser verdade, por que motivo o hotel estaria lotado durante uma semana completamente normal? Aquilo só podia ser implicância da recepcionista. Sentiu o espírito Julia Roberts voltar a crescer dentro de si, mas abafou-o logo.
- Posso saber por quê? – desafiou.
- Dois grandes eventos estão ocorrendo na cidade essa semana, todos os quartos estão reservados até quinta. – a mulher explicou maquinalmente.
- Que eventos? – semicerrou os olhos incrédula.
- O Baile Beneficente do St. Giles Hospice e o Festival Anual do Livro de Birmingham.
- Não tem quarto pra mim por causa de um baile pra dementes? – escapou de sua boca antes que pudesse pensar. Encarou a mulher, sem expressão, ainda se recusando a acreditar.
- E um Festival Anual do Livro, senhora. – ela completou com falsa empolgação.
- Isso é sério? – insistiu pela última vez, antes de bufar e afundar o rosto nas mãos sobre o balcão. Sua cabeça ainda doía e tudo parecia rodar levemente. Massageou as têmporas, respirando profundamente, e juntou todo o otimismo que tinha antes de dizer: - Tudo bem. Tudo bem. Você sabe me informar qual é o hotel mais próximo daqui?
- É o Cavalier House. Ou o Norfolk. – respondeu. – Mas não crie expectativas. – avisou. – Eles também devem estar cheios. E os outros também.
Merda de cidade. Birmingham só podia ser uma piada. Como os melhores hotéis da cidade podiam estar lotados por causa de eventos tão inúteis? “Baile Beneficente do St. Giles Hospice”, sério?, pensou, perguntando-se se algum dia na história da humanidade haveria um evento mais entediante do que aquele. Balançou a cabeça lentamente para os lados.
- Certo. Obrigada.
Virou-se devagar e caminhou até uma das poltronas próximas à parede, massageando a testa com a ponta dos dedos. Como se não bastasse a ressaca, o estresse agora começava a fazer sua cabeça doer também. Tentou se acalmar. Tudo bem, pensou. Não havia motivo para desespero. Qual era o plano B? Não precisou se esforçar para que a resposta viesse à sua mente: ligar para o aeroporto e pegar o próximo voo para Londres. Simples! Sorriu sozinha, satisfeita por ver que não seria tão difícil assim, só estivera desesperada demais para perceber que, na verdade, a situação não era tão ruim quanto pensava. Levantou levemente o corpo da poltrona para alcançar o celular no bolso de trás da calça e viu surgir do outro lado do cômodo, passando pela porta do elevador e caminhando até onde ela estava. Estava vestido agora, de calça jeans e camiseta, mas seus cabelos ainda estavam molhados, e quando ele se aproximou, ainda pôde sentir o cheiro de sabonete e perfume do colega.
Antes que ela pudesse explicar que estava prestes a comprar uma passagem, disse:
- Acabei de ligar pro aeroporto.
- Jura? – perguntou admirada. – Eu já ia fazer isso. Que horas sai o próximo voo?
pigarreou antes de dizer cautelosamente:
- Às quatro da tarde. – um sorriso começou a crescer no rosto da mulher. Quatro da tarde não era o ideal, mas definitivamente era melhor do que nada. - De amanhã. – e o sorriso murchou de novo.
Mais uma vez naquele dia, duvidou do próprio azar. Estava pronta para olhar para os lados procurando as câmeras.
- Sério? – perguntou derrotada, começando a abaixar a cabeça, largando o corpo sobre o próprio colo.
- Calma. – ouviu a voz de dizer e sua mão tocar o ombro dela de leve. – Vem cá, vamos arrumar suas coisas, pra começar. Já é quase meio dia. Vem. – e puxou seu braço levemente, incentivando-a a se levantar.
Voltaram para o elevador e subiram até o andar de . Quando entraram no quarto, a mulher cambaleou até a cama e soltou o corpo pesadamente sobre o colchão.
- Nada disso. – riu. – Levanta, , arruma suas coisas.
- Não quero... – choramingou, prolongando as vogais como uma criança insistente.
rolou os olhos.
- Anda.
Bufando, se sentou na cama.
- Eu preciso de água.
- Eu pego água pra você se você arrumar sua mala. – negociou.
- Certo. – ela se deu por vencida, levantando-se lentamente enquanto atravessava o quarto para alcançar o frigobar.
caminhou até a cômoda e pegou seu celular, observando que na tela piscava um aviso de que tinha uma mensagem de voz. Levou o aparelho ao ouvido e estranhou ao ouvir uma voz feminina desconhecida e extremamente irritante e manhosa. Algo sobre como se divertiu sábado passado e por que não tinha recebido mais nenhuma ligação, como prometido, num tom choroso. Todos os acontecimentos daquela manhã, somados à extraordinária falta de sorte dela, àquela ressaca horrorosa e, agora, àquela ligação completamente sem sentido, fizeram a mulher sentir vontade de jogar o celular contra a parede. Aquele dia podia ficar mais louco?! Ainda escutando a mensagem daquela voz insuportavelmente melosa, que imaginou ter sido enviada para o número errado, virou-se e se deparou com , que a encarava com uma expressão confusa, como se esperasse por uma explicação. Exasperada, moveu a cabeça levemente para cima, como que perguntando o que ele estava olhando, ao que ele respondeu:
- Er... – e hesitou. – Por que você tá com o meu celular? – perguntou tranquilamente.
E então as peças se encaixaram. A mulher afastou o aparelho da orelha e o encarou. Levou a mão ao bolso de trás da própria calça e passou a mão por cima do tecido, sentindo a elevação que o celular causava ali. Tirou-o do bolso e segurou os dois nas mãos, encarando-os. Eram idênticos. Soltou o de imediatamente, num pulo, como se o objeto estivesse em chamas, largando-o na cama.
- Desculpa! – exclamou, tentando se explicar: - Desculpa, é que eles são iguais...
- Tudo bem. – sorriu, mas ela continuou:
- Ai, desculpa... Eu ouvi uma mensagem da sua namorada.
- Não é minha namorada. – ele disse calmamente, mas não pareceu ouvir.
- Era sim, ela disse que...
- Eu não sei quem era, mas com certeza não era minha namorada. – insistiu, mas ela continuou sem ouvir.
- Quer dizer, eu acho que é, parecia ser... – falou rápido, embolando as palavras. – Ela chama Cerys e disse que tá com saudade e que é pra você ligar assim que... – e então, em meio ao discurso desesperado que fazia, percebeu que não precisava contar para ele o que tinha ouvido. Ele podia muito bem escutar a mensagem depois. – Ai, eu sou tão intrometida! – choramingou mortificada. - Enfim... Não importa. – finalizou, sentindo as bochechas corarem.
E o som da gargalhada de preencheu o cômodo. Se não fosse seu sorriso, que era tão contagiante, ela provavelmente teria ficado ainda mais irritada. Mas não conseguiu evitar que seus lábios se repuxassem num sorriso discreto. Levou as mãos ao rosto, balançando a cabeça negativamente para os lados, rindo também da própria situação.
- Relaxa. – a tranquilizou depois de se recuperar da crise de riso. Jogou uma garrafa de água sobre a cama, dizendo: - Aqui está o plano: você consegue guardar suas coisas em... Dez minutos?
Ela assentiu com a cabeça.
- Acho que sim.
- Certo. Então arruma sua mala, faz o check-out e me encontra na porta do hotel em quinze minutos, que eu tô indo resolver seus problemas.


10

Now you've been searching for something, something we can hold on to.
And I've been dying to tell you, just to tell you
It doesn't get better than this, right now, right here
You only get one chance to live your life
And it doesn't get better than this
Well, this universe is all that you create, there's no time to hesitate

(It Doesn't Get Better Than This - Alex Band)


Eaton Hotel, Birmingham, Domingo, 12:17h

ergueu o rosto quando ouviu o barulho dos pneus freando à sua direita. Ouviu a porta do carro bater e surgiu de trás dela, apertando o casaco jeans contra o corpo. Observou-o enquanto caminhava até onde estava sentada, e reparou no quanto a armação quadrada do Wayfarer deixava seu rosto charmoso. Balançou lentamente a cabeça para os lados, afastando o pensamento inusitado... Era, provavelmente, culpa do sol de meio dia sobre sua cabeça: seus neurônios estavam fritando. Ou da ressaca infernal que ainda fazia sua cabeça pesar alguns bons quilos a mais. Ele a alcançou, agachou-se e se sentou ao lado dela no meio fio, olhando para frente em silêncio.
- Então? – perguntou sorrindo fraco, observando o perfil dele. – Trouxe a solução dos meus problemas?
- Bom... – hesitou. – Você quer a versão longa ou a história resumida?
- Resumo, por favor. – suplicou sorrindo cansada, de olhos fechados.
- Então, não.
- Não? – ela repetiu, semicerrando os olhos. – Não achou nenhum lugar?
- Não. – tirou os óculos escuros e virou o rosto para ela pela primeira vez, fitando-a com seus olhos , e então emendou: - Quero dizer, achar eu achei... Mas não sei muito bem como você reagiria a dormir num colchão sem roupa de cama e não ter água quente para tomar banho num banheiro comunal.
soltou um gemido de frustração e inclinou o pescoço para frente, deixando que sua cabeça se afundasse entre seus braços. Então, subitamente, levantou o rosto num movimento rápido e explodiu:
- Quer saber? – perguntou desafiadoramente. – Cansei. Can-sei! Eu vou é ligar pro agora mesmo e ele que venha me buscar de carro, de tapete voador, mande um jatinho particular... Se vire! - disse em palavras rápidas, esquecendo-se de respirar entre elas. Atrasada, inspirou profundamente, recuperando o fôlego. Só então percebeu que a encarava com o rosto levemente inclinado e uma expressão confusa.
O homem abriu a boca e a fechou novamente, parecendo não saber muito bem o que dizer.
- Ligar pro ? – perguntou devagar, franzindo o cenho. – Quero dizer... Com todo respeito, quem perdeu o avião foi você, né? – disse cautelosamente. – Digo... Ele é um cara legal, um ótimo chefe, mas... Não vai ser meio... Inconveniente você ligar pra ele exigindo que ele te leve pra casa? – disse lentamente, parecendo tentar entender o raciocínio dela.
Só então se deu conta da idiotice que tinha feito. estava coberto de razão. Ligar para o seu chefe quando está com problemas? Quem faz isso? Ninguém faria aquilo! Não devia sequer ter mencionado ! Burra, burra, burra... Se ainda não tivesse descoberto, acabara de lhe entregar toda a verdade de bandeja. Tentou tirar do rosto a expressão de desespero e pensar rápido.
- Tem razão. – foi a primeira coisa que conseguiu dizer. – Você tem razão, não posso fazer isso... Ligar pro ? – fez uma careta, balançando a cabeça para os lados. – É claro que não! Imagina! – e riu nervosa, torcendo para que suas míseras habilidades de atuação estivessem fazendo efeito. – Não sei por que disse isso. Foi um momento de desespero. – justificou. Olhou para o rosto do colega, examinando-o à procura de qualquer indício de que ele tivesse entendido tudo.
sorriu um pouco, mantendo sua expressão indecifrável.
- É. Teria sido meio estranho...
E voltaram a ficar em silêncio. queria evitar olhar para o colega, e quando reparou que seu olhar parecia perdido em algo à frente, virou o próprio rosto para baixo, encarando suas unhas.
Algum tempo se passou – minutos, talvez? não saberia dizer – sem que ninguém falasse nada. Até que , ainda olhando para frente, respirou fundo e se levantou, parecendo tomar uma decisão depois de se dar por vencido. A mulher ergueu a cabeça, observando-o, e o viu esticar a mão até a mala pousada no chão ao lado dos dois. Ele abaixou a alça e ergueu o objeto sem muito esforço aparente, segurando-o à altura do peito até o carro. Atordoada, ela apoiou as mãos na beirada da calçada e se levantou, limpando-as contra as próprias pernas em seguida.
- ? – chamou. – O que você tá fazendo? – caminhou rapidamente até lá.
Ele, a essa hora, já tinha aberto o porta-malas e estava prestes a colocar a bagagem lá dentro.
- Guardando suas coisas. Você vai comigo. – declarou.
- Eu vou com vo... – repetiu incerta. – Como é que é? Pra casa dos seus pais?
- Yep. – respondeu, antes de exibir um sorriso simples e fechar o bagageiro.
- ! – ela repetiu. – Não posso fazer isso... Abra o porta-malas, por favor. – pediu.
Ao invés de obedecer, ele parou, já quase alcançando a porta do motorista, e apoiou o braço sobre o carro, virando-se para ela.
- É claro que pode, ... – rolou os olhos, como se dissesse que ela estava sendo boba. – Além do mais, você não tem exatamente muitas outras opções, tem?
Ela abaixou os olhos, sem graça, e hesitou antes de responder, constrangida:
- Não...
- Relaxa. – ele disse num tom jovial, lançando-lhe uma piscadela persuasiva.
Antes que pudesse raciocinar, já tinha escutado a porta do motorista se fechar e, sem que percebesse, seus pés a conduziram até o lado do passageiro – provavelmente seu subconsciente agindo com bom senso, antes que ela tivesse um ataque de orgulho e recusasse a oferta do colega. A verdade é que ele tinha razão: aquela era, sem dúvidas, a melhor opção que tinha. E já que, àquela altura, já se encontrava sentada ao lado de com as mãos fechando o cinto de segurança em volta do próprio corpo, o mínimo que poderia fazer era encarar a situação com bom humor.
- Então? – perguntou. – Qual é a ocasião da visita? – brincou.
- Ação de Graças. – respondeu, dando de ombros.
Imediatamente, se arrependeu de ter aceitado. Arregalou os olhos e se engasgou:
- Ação de Graças? – repetiu. – Você tá falando sério?
- Tô. Por quê? – perguntou indiferente, virando-se para a colega enquanto girava a chave na ignição.
- ! – ela exclamou mais uma vez no mesmo tom, e o homem refletiu que, ao contrário do que pensava que nunca aconteceria, finalmente tinha encontrado alguém que o repreendesse tanto quanto sua mãe.
- Sim? – respondeu divertido, num tom obediente.
- Eu não posso fazer isso! Ação de Graças é uma celebração em família, e...
- Ah, acredite, pra quanto mais pessoas minha mãe puder cozinhar, mais feliz ela fica. – tranquilizou-a.
pensou se deveria protestar de novo. Sentia que sua resistência estava começando a ficar irritante – afinal, como já haviam concordado, ir com era sua única opção. Por outro lado, não poderia se sentir mais intrusa e inconveniente. Não tinha costume de passar datas festivas nem com a própria família, menos ainda com a dos outros!
suspirou, soltou a chave por um segundo e se virou para ela.
- Não tem problema, . – disse pausadamente, com uma firmeza que encerrou a discussão.
E a mulher apenas assentiu com a cabeça, em silêncio. Decidiu que permaneceria o resto do trajeto calada, mas lembrou de que não fazia ideia de onde era a casa da família dele – a viagem poderia durar horas. Perguntou-se por quantas horas conseguiria ficar em completo silêncio. Então lhe ocorreu o quanto aquilo era ridículo. Estava sendo completamente patética e neurótica, e se pudesse ouvir seus pensamentos naquele momento, provavelmente estaria gargalhando. Subitamente, lembrou qual era o motivo da visita e, ignorando a sensação de estar sendo inconveniente, perguntou curiosa:
- Vocês comemoram Ação de Graças?
- Minha mãe é canadense. – explicou , sem tirar os olhos da estrada. – Segunda segunda-feira de outubro. E como eu estava por perto e vou estar de folga amanhã, decidi visitar meus pais hoje.
- Ah. – soltou, surpresa. Pela primeira vez, pensou sobre o quão pouco sabia sobre a pessoa com quem passava praticamente todos os seus dias no trabalho. Sabia também que a culpa era inteiramente sua e de seu discurso antipático de apresentação. "Não preciso saber nada sobre você, nem você sobre mim". Deus, como conseguia ser tão desagradável? Disposta a consertar porcamente o dano que tinha causado no dia em que se conheceram, tentou uma aproximação: - Aonde exatamente estamos indo
- Northfield. Fica a dez minutos de Birmingham. Já estamos chegando.
- Ah. – exclamou, surpresa novamente, e se apressou a dizer: - Bom, já que eu vou chegar sem aviso e me intrometer num momento de família, o mínimo que eu posso fazer é ser educada. – e sorriu. - Como seus pais se chamam?
Os cantos dos lábios de se repuxaram num sorriso discreto, e a mulher se perguntou se ele tinha percebido sua tentativa velada de conhecê-lo melhor.
- George e Amelia. E já que você perguntou... Vamos lá. Regras básicas para permanência na casa dos : não fale mal de gente que gosta de cachorros, de pessoas que comem carne ou da família real.
- Da família Real? – repetiu, rindo. – A realeza é popular entre vocês?
- Tá brincando? – exclamou . – Minha mãe tirou folga do trabalho e chamou as amigas pra tomar chá assistindo o casamento do príncipe na televisão.
gargalhou. A família dele parecia ser a típica caricatura de uma tradicional família inglesa.
- Certo. Carnes, família real e... Cachorros? – confirmou, contando nos dedos.
- Isso. Gandalf entra em casa à hora que quiser, come à mesa, se quiser, e a única pessoa que tem permissão pra expulsá-lo pro quintal é a minha mãe.
- Gandalf? – a mulher repetiu.
- Meu cachorro. – ele explicou, sorrindo, e sua voz automaticamente adquiriu um tom carinhoso. – Um border collie branco mais companheiro do que muita gente. Bem mais legal do que a minha irmã, pra falar a verdade. – acrescentou, soando como uma criança. E, parecendo lembrar-se de algo importante, exclamou: - Ah! Mais uma coisa: nunca recuse comida. Não importa se você está com fome ou não, coma. Um "não, obrigado" pra minha mãe significa "sua comida é um lixo". É sério. E se te perguntarem o que você quer ou o que você prefere, não existe "tanto faz". Responda à pergunta. – instruiu com um semblante sério, como se recitasse a Constituição.
afirmou com a cabeça e sorriu.
- Sim, senhor. Só isso? Já estou preparada pra enfrentar sua família?
Ele pensou por um instante.
- Acho que sim...
- Mais nenhuma tradição de Ação de Graças que eu deva saber?
- Não. Hoje em dia somos uma família moderna e liberal. – brincou, piscando. – Quando eu era pequeno, antes de jantar tínhamos que dar as mãos e rezar, apesar de nenhum de nós ser religioso. Mas minha mãe aprendeu quando era pequena que é assim que se faz, então era assim que fazíamos. – decretou, com uma expressão de quem se lembra de algo engraçado. E comentou pensativo, mais para si mesmo do que para : - Ela gosta muito de regras, minha mãe...
A mulher não pôde deixar de rir e provocar baixinho:
- "All in all you’re just another brick in the wall..."
virou o rosto para ela, reconhecendo a música, e seu sorriso se transformou em uma falsa expressão de ofensa.
- Oh, vamos lá! – gemeu, arrancando uma gargalhada dela. – Minha mãe não é tão ruim assim!
- Eu tô brincando. – sorriu.
- Você é tão cética assim?
- Não sou cética. Só... – hesitou, procurando pelas palavras certas. – Só não sou fã de momentos em família.
sorriu, parecendo divertido, e balançou a cabeça lentamente para os lados em reprovação.
- Garota, então você tá perdida... – comentou lentamente num tom engraçado e gargalhou, antes de puxar o freio de mão e se esticar na direção de , para olhar através do vidro para a casa ao seu lado. – Bem vinda à residência dos .

Staple Hall Road, 13, Northfield, Domingo, 12:38h

- , você tem certeza disso? A gente não devia ter avisado antes? – murmurou aflita, prestes a sair correndo. O homem apenas revirou os olhos, enquanto esperavam que atendessem a campainha. – Talvez...
Então a porta se abriu e se calou. Não havia ninguém atrás dela. Por um instante, a mulher se perguntou se fora quem abrira a porta, mas quando abaixou os olhos à altura da maçaneta, avistou provavelmente a criança mais adorável em que jamais pousara os olhos. Sua pele era notavelmente clara, mas não isso não a fazia parecer pálida. associou sua imagem à lua. Seus cabelos castanhos vinham até um pouco acima dos ombros, e os fios eram tão finos e delicados que formavam cachos e ondas em partes aleatórias, e isso deixava seu cabelo com um aspecto geral um pouco bagunçado – o que combinava muito bem com uma criança que parecia ter acabado de vir correndo do quintal. Todos os seus traços pareciam circulares, dando ao rosto inteiro um aspecto arredondado: seus olhos grandes, suas bochechas rechonchudas e seu nariz levemente redondo. Suas bochechas estavam coradas e os olhos chamavam mais atenção que qualquer coisa: ela tinha os mesmos de . nunca pensara muito sobre como seus filhos seriam, mas se pudesse encomendá-los diretamente da fábrica, aquela garotinha seria, definitivamente, o modelo pelo qual ela procuraria no catálogo. Ao avistar as duas pessoas à porta, a boca da menina, que já estava aberta e ofegante, se escancarou numa expressão exagerada – porém genuína – tipicamente infantil. Seus olhos pareceram se acender e ela deixou escapar uma risadinha antes de dar saltinhos no lugar.
- Fala, pequena. – cumprimentou alegremente antes de rir e acariciar o topo da cabeça da garota, que já tinha envolvido uma das pernas do homem com seus braços curtos. – Você vai deixar a gente entrar ou vamos ficar por aqui mesmo? – perguntou sorrindo. A menina, rindo, respondeu numa voz aguda:
- Aqui!
Ele suspirou, fingindo impaciência e balançou a cabeça para os lados antes de começar a se arrastar para dentro fingindo urros de esforço, com ela ainda agarrada – agora braços e pernas – ao seu joelho. O movimento fez o som natural e contagiante das gargalhas dela preencher o cômodo – aquele tom sincero que só o riso das crianças tem. Depois de atravessarem a porta, ela finalmente se desprendeu e parou em frente a com um sorriso ainda estampado no rosto. Ele se curvou levemente e alçou o corpo pequeno por baixo dos braços, segurando-a contra seu peito. Virou-se então para a porta de novo e perguntou:
- Não vamos convidar nossa visita para entrar?
A menina, que agora encarava com uma mão passeando pela boca, sorriu e falou embolado por causa dos dedos:
- Quer entrar?
A mulher, que ainda estava parada do lado de fora, sorriu, completamente cativada pela menina, e entrou, dizendo formalmente:
- Seria ótimo. Muito obrigada.
fechou a porta atrás da colega e disse em seguida, encarando a menina em seu colo:
- Libby, esta é minha amiga .
- Oi, . – ela repetiu rindo, parecendo constrangida.
- Oi.
- E esta é Libby. Dizem que ela é minha sobrinha, mas ainda não sei se acredito que uma coisa tão linda saiu da minha irmã. – comentou casualmente, antes de colocar a menina, que agora ria de novo, de volta no chão. Imediatamente, ela saiu correndo para dentro da casa.
Ainda sorrindo involuntariamente, não pôde conter o sussurro:
- , eu tô morrendo de vergonha de conhecer sua família, tô me sentindo tão intro...
Mas os olhos de já estavam presos em algo atrás dela, e se virou no mesmo instante em que o ouviu dizer carinhosamente:
- Oi, mãe.
caminhou até uma mulher de estatura mediana, cabelos e olhos castanhos e sorriso acolhedor. Não era muito magra, mas seu corpo combinava com a imagem saudável de uma mulher na casa dos cinquenta. Usava um cardigã roxo com as golas de uma camisa branca aparecendo, e, com os braços em volta dos ombros do filho, os olhos fechados e um discreto sorriso de satisfação, achou que ela parecia ser uma mãe invejável.
- Como você tá? Fez boa viagem? Você tá com fome? O jantar ainda não está pronto, mas posso fazer um lanchinho rápido em quinze minutinhos enquanto você toma banho, quer? Deixei toalhas limpas no seu banheiro. – a Sra. começou a falar rapidamente e não parecia ter planos de parar. – Ah, mas que saudade de você, ! Não devia ser permitido que os filhos passem tanto tempo longe de casa.
E então finalmente se soltaram do abraço. reparou no sotaque da mulher, gostava dos sotaques norte-americanos.
- Realmente não foi legal da minha parte ir embora e te deixar com a Kayleigh, mãe. Desculpa por isso. – ele disse sério. imaginou que Kayleigh fosse a irmã de pelo tom provocativo do colega.
- Não fala assim. – a mãe ralhou carinhosamente.
Então ele olhou para trás e estendeu o braço para , que deu um passo à frente, e ele passou um braço por trás dos ombros da mulher.
- , minha mãe, Amelia. – apresentou.
Surpreendendo a moça, que esperava um aperto de mão, Amelia a envolveu num abraço – daqueles de verdade, não só por educação – como se a presença dela fosse completamente esperada, e aquilo a fez se sentir repentinamente bem-vinda. Sensação essa que só se ampliou com as palavras:
- É um prazer te ter aqui, .
- Obrigada. – balbuciou, pega de surpresa pelo acolhimento. – O prazer é meu, senhora .
- Começamos por aí. – interrompeu a senhora, num tom repentinamente mais enérgico. – Pra você, eu sou Amelia. Venha.
E já virou as costas e seguiu pela mesma porta pela qual Libby tinha entrado. olhou para , que deu uma piscadinha antes de menear a cabeça em direção à porta e seguir atrás da mãe.
Adentraram então a cozinha, que era ampla e parecia funcionar a todo vapor. Havia uma bancada circular no centro do cômodo e bocas de fogão espalhadas sobre ela. Algumas panelas estavam no fogo e para todos os lados havia alimentos diferentes em preparação. se perguntou quantas pessoas viriam jantar. Um homem estava parado ao lado da geladeira e tinha uma garrafa de cerveja em mãos. Em frente a uma mesa num canto, havia uma mulher parada ao lado de Libby, que estava em pé em cima de uma cadeira. Ao ouvi-los entrando, as duas se viraram, e pôde reconhecer imediatamente a mulher da foto no escritório de . Percebeu a semelhança entre eles e o pai. Tinham os mesmo olhos e os mesmo traços. Kayleigh, porém, tinha os mesmos cabelos castanhos que Amelia e Libby. Os poucos cabelos do Sr. eram grisalhos, mas imaginou que os fios que um dia ocuparam sua cabeça calva tivessem o mesmo tom dos de .
Amelia entrou dando ordens rápidas:
- Kayleigh e Libby, parem de roubar morangos. Se quiserem mais, vão colher. George, você já teve tempo de pegar, no mínimo, três cervejas. O que ainda está fazendo na minha cozinha? – e, sem se virar para trás, perguntou: - , você come carne?
- Ah... – hesitou, pega de surpresa pela pergunta. E, lembrando-se da conversa no carro, respondeu sorrindo: - Eu adoro carne.
A Sra. não respondeu, mas virou o rosto um pouco para trás para que pudesse ver a moça, como se a avaliasse, e sorriu. Então comentou:
- Já começou melhor que a última...
não entendeu. Mas pareceu ser engraçado, porque Kayleigh gargalhou, e enquanto caminhava até eles, comentou, com os olhos fixos no irmão:
- Definitivamente melhor que a última. – e sorriu divertida, lançando-lhe um olhar cúmplice que não soube interpretar. Então se virou para ela e estendeu a mão: - Muito prazer. Kayleigh.
Depois de cumprimentar , estendeu a mão para Libby e ambas saíram da cozinha. Enquanto isso, o Sr. tinha se aproximado também e passou o braço pelas costas do filho, dando-lhe alguns tapas.
- Bom te ver, garoto. – sorriu para , deu-lhe um aperto de mão firme e, olhando para o filho de novo, disse mais baixo: - Tem cerveja na geladeira. Seja rápido, não quero ficar sem peru de novo. – e seguiu o mesmo caminho que a filha e a neta.
Ao ver o olhar interrogativo de , explicou baixo:
- Uma vez, há alguns anos, meu pai aporrinhou tanto a minha mãe enquanto ela fazia comida, que ela surtou e não o deixou provar o pernil. – sorriu e passou uma mão pelas costas dela, conduzindo-a para fora da cozinha. – Mas depois do jantar ela ficou com tanto peso na consciência que foi correndo esquentar a carne de novo e passou uma semana inteira levando café na cama pra ele.
riu. Estava começando a gostar de ouvir os casos que tinha para contar sobre a família. Quando já tinham alcançado o hall de entrada e estava prestes a fechar a porta da cozinha, ouviram Amelia perguntar:
- Vocês não estão com fome, filho?
Ele abriu a porta de novo, e, enquanto continuou andando, pôde ouvi-lo dizer que iam subir com as malas primeiro. Foi até uma cômoda encostada na parede, cuja prateleira superior estava cheia de porta-retratos com fotos de família. Ouviu o colega se aproximar por trás e pegou uma delas:
- Gandalf? – perguntou sorrindo e erguendo o porta-retratos. Era uma foto antiga de , Kayleigh e um cachorro grande, de pelo muito branco e aparência robusta. Reparou no colega. Seus olhinhos de criança, espremidos num sorriso, não haviam mudado nada: brilhavam, , num tom tão chamativo que não passavam despercebidos pela foto – assim como não deixavam de chamar atenção todas as vezes que o encarava. Sorriu sozinha ao imaginar quantas garotas teriam caído naquela armadilha inocente, um truque inato, e pousado diretamente nos braços de durante seus anos de colégio.
- O próprio. – ele respondeu, tirando-a de seus pensamentos, abriu um sorriso e continuou seguindo pelo corredor em direção às escadas. – Venha. – chamou, curvando-se para pegar as malas no chão.
Quando alcançaram o segundo andar e entraram no último quarto do corredor, olhou em volta, viu a cama de casal no centro do cômodo e algo lhe ocorreu pela primeira vez. Sem que pensasse sobre o que iria dizer, perguntou espantada:
- A gente vai dormir na mesma cama?
- Lógico. – ele respondeu como se fosse óbvio. – Essa é a minha única parte do acordo. – estabeleceu. - , se eu trouxer uma mulher pra casa e disser que não quero dormir junto com ela, vou ter que me explicar. – riu. A mulher refletiu, lembrando-se que não estava em posição de reclamar de nada. – Mas, se você quiser, pode ficar à vontade pra dormir no chão ou fazer um muro de travesseiros entre nós, não me importo. - ele debochou.
- Não vou fazer isso. – replicou, rolando os olhos e rindo, tentando se justificar: - É que eu não tinha pensado sobre isso... Seus pais não vão achar que nós estamos... "Sério"? Quero dizer, que nós estamos... Que somos... Você sabe? – enrolou-se, começando a fazer sinais com as mãos, sem saber como se explicar. Se ela algum dia levasse um alguém para dormir na casa dos pais, sua mãe já teria enviado os convites de casamento até o fim do dia.
sorriu e negou com a cabeça despreocupadamente.
- Relaxa, eles não vão pensar nada.
Ela arqueou a sobrancelha.
- Por quê? Você traz qualquer uma pra casa? – perguntou divertida.
- Eu não disse isso. – respondeu de costas, enquanto se agachava no chão e remexia na mala. – Mas digamos que se eu tivesse que me casar com todas que já trouxe, eu teria problemas. – respondeu, virando o rosto para a colega e sorrindo travesso. Então continuou, mais sério: - Minha mãe gosta que eu venha pra casa. Se eu quiser trazer todo um time de rugby, que seja. Eles serão tão bem vindos quanto eu. Desde que eu apareça, tá tudo bem.
- E você vem sempre que ela pede? – perguntou, mais curiosa que qualquer coisa. A ideia de parecer de fato gostar de passar tempo com a própria família a espantava.
- Na maioria das vezes. – deu de ombros. – Eu gosto. – ao ouvir aquilo, uma risadinha escapou da boca da mulher e, interpretando aquilo como descrença, ele insistiu: - É verdade!
- Eu sei que é. – apressou-se a dizer.
- Eu e minha família temos uma relação próxima. Só isso. – disse calmo, porém um pouco defensivo, como se sentisse necessidade de se justificar.
- Eu sei. – repetiu logo. - E eu acho isso muito legal. – disse com firmeza, deixando claro que sua reação não deveria ser entendida como escárnio. Admirava realmente a família que tinham. Mas às vezes esquecia que ela era a única que não tinha aquilo, e que nem todos, assim como ela, prefeririam beber um copo de ácido a passar um fim de semana na casa dos pais, a não ser que fosse estritamente necessário.
- Você não é próxima da sua? – o homem perguntou, levantando-se com algumas coisas nas mãos e caminhando até a beirada da cama, onde estava sentada.
Ela suspirou e hesitou antes de falar, parecendo escolher as palavras com cuidado.
- Não exatamente... Quero dizer, não é como se nos odiássemos e eu tenha tido uma infância catastrófica, mas... Eu não me dou muito bem com a minha irmã, e alguns acontecimentos acabaram fazendo com que eu me afastasse deles.
- Por quê? – perguntou com a voz macia. Estava curioso, mas não queria fazê-la se sentir coagida a contar.
- Ah... – deu de ombros. – Alyssa temos conceitos muito diferentes sobre certo e errado. A gente vê as coisas de formas muito diferentes.
- Eu e você também vemos as coisas de formas diferentes, e mesmo assim você me adora. – brincou, tentando quebrar a tensão que tinha se formado ao tocarem naquele assunto.
- Eu não te adoro. – contestou. – Na verdade, eu nem gosto de você. – provocou, forçando uma expressão esnobe. E antes que ele pudesse falar mais sobre isso, disse rapidamente: – Ei, talvez a sua mãe precise de ajuda na cozinha? Não é justo ela fazer tudo sozinha.
não sabia se ela tentara mudar de assunto discretamente ou se a intenção era mesmo deixar claro que não estava disposta a conversar sobre aquilo. De qualquer forma, ficou claro, e ele não insistiu.
- Eu não tenho permissão pra entrar na cozinha quando minha mãe está fazendo comida. – disse displicentemente.
- Por que não?
- Nem eu, nem meu pai. Se não nós vamos estragar tudo.
riu e franziu o cenho, confusa.
- Estragar tudo o quê?
- Eu não sei, . Eu não faço as regras nessa casa, eu só obedeço. E desde que eu me entendo por gente, não tenho permissão pra entrar lá enquanto minha mãe cozinha. – disse, levantando as mãos como se fugisse da responsabilidade. Então se levantou e apontou com a cabeça para a porta. – Eu preciso ir no supermercado comprar umas coisas pra minha mãe. Quer comer alguma coisa enquanto isso? lembrou que ainda se sentia suja, que fazia quase 24 horas desde seu último banho e, a pior parte: não se lembrava de 80% do que havia acontecido naquele intervalo. Ou seja, precisava desesperadamente tirar aquela roupa e se jogar embaixo da água até que sua pele estivesse enrugada.
- Tudo bem se eu tomar um banho antes?


11

And I built this wall around me, I refuse to let anyone through
Oh no, not even you (...)
I have to get out of here, and you don't even know half of it
I cannot turn it off, I don't have a switch for that

(Stealing Tomorrow - Great Lake Swimmers)


esfregou os braços por causa do frio de fim de tarde de outubro. Tirou do rosto os cabelos que o vento bagunçara enquanto esperava Gandalf voltar. Soltou os pés do chão, permitindo que o balanço tomasse um pouco de impulso e se movesse, então ela pisou na terra novamente, freando-o, e começou o ciclo novamente. Ouviu o som abafado das patas do cachorro trotando pela grama e ele surgiu ao seu lado, cambaleando e farejando o chão para encontrar o caminho até a mulher. Ao se chocar contra os joelhos dela, Gandalf largou o graveto aos seus pés e parou obedientemente, esperando uma resposta. se curvou para alcançá-lo e afagou seu pelo macio e branco por trás das orelhas caídas.
- Isso, garoto! – encorajou-o em tom suave, enquanto pegava o graveto do chão. – Muito bem. Você é lindo, sabia? – murmurou, puxando seu focinho em direção ao próprio rosto.
Então encostou o graveto no rosto do cachorro de leve, para que ele o sentisse e farejasse, antes de atirá-lo novamente. Tinha percebido que era necessário fazer assim e não jogar muito longe para que ele conseguisse encontrá-lo. Enquanto esperava, num lapso aleatório de memória, pela primeira vez se lembrou das três ligações perdidas que tinha visto e ignorado ao acordar. Não tinha nem olhado quem tinha ligado. Perguntou-se se haveria sido . Ficou curiosa, mas seu celular estava no andar de cima, dentro da bolsa. Preferiu nem olhar. Que diferença fazia se tinha sido ? Não queria pensar nele. Ainda estava chateada pelos últimos dias e não queria se irritar. Desafiou-se a não pensar em até que voltassem para Londres. Viu Gandalf retornar e ouviu passos que a tiraram de seus pensamentos, mas não pertenciam ao cachorro. Olhou para o lado e atravessava o jardim em sua direção, vestindo uma blusa azul-marinho de mangas compridas e gola alta que o fazia parecer aconchegante e agradável. Reprimiu um sorriso de estranhamento ao perceber que o fato de estar sendo tão legal com ela durante a viagem estava levando a ter pensamentos como aquele com uma frequência incomum. Balançou a cabeça, pensando em como aquilo mostrava o quanto estava carente: um simples gesto legal da parte do colega e ela já estava começando a vê-lo de forma diferente. Aquilo só podia ser falta de sua dose diária de . Repreendeu-se por já ter perdido o desafio que se lançara e deixado o chefe invadir sua mente de novo. Mas as palavras de ajudaram-na a fazer sumir mais uma vez.
- Faz um tempo que ele não tem ninguém pra brincar, não é, garoto? – disse, afagando a cabeça do cachorro. - Meus pais não têm mais saco pra isso... Quero dizer, eles cuidam dele, fazem tudo direitinho, mas não tem ninguém pra brincar com ele e levá-lo pra passear como eu fazia quando morava aqui. Libby até gosta dele, mas tem um pouco de medo. Ela ainda está naquela fase em que só gosta de bichos se ela puder montar neles ou espremê-los nos braços. E Gandalf é velho demais pra um e grande demais pro outro. Não é? – perguntou, como se pedisse a confirmação do cachorro.
- Quantos anos ele tem?
- Dezesseis.
- Uau. Isso é muito pra raça dele, não? – se surpreendeu.
- É bastante. Mas ele tem segurado a barra. – deu dois tapinhas carinhosos no topo de sua cabeça.
- O que ele tem? – ela perguntou enquanto observava o cão caminhar desengonçado atrás da bolinha que o dono lançara. Gandalf andava como se estivesse prestes a perder o equilíbrio e não parava de farejar o chão.
- Ele é cego de um olho. E não enxerga muito bem com o outro. Atrofia progressiva da retina. – ele explicou, fazendo , surpresa, soltar um ruído de pena.
- Ah... – murmurou compadecida.
sorriu e deu de ombros levemente, mostrando-se conformado.
- Você gosta de cachorros?
- Adoro. – murmurou, encantada.
- Teve algum quando criança?
- Não. – respondeu. – Eu sempre quis um, mas Alyssa preferia gatos... – explicou sucintamente em voz baixa.
Ele assentiu com a cabeça, e ficaram alguns segundos em silêncio.
– Vem. – disse de repente para , movendo a cabeça na direção da casa. - Tá começando o X-Factor.
Então se levantaram e se dirigiram até a sala de estar, onde George, Amelia e Kayleigh estavam sentados no sofá, enquanto Libby dava pulinhos e corridas pela sala, empolgada com a música de abertura do programa. Por um instante, parada à porta do cômodo e observando se dirigir até lá e se sentar ao lado da irmã, pensou, pela primeira vez em muito tempo, sobre como era ter uma família. Por um segundo, seus olhos se umedeceram e ela se lembrou daquela sensação de que pode ser reconfortante ter uma família que se senta junta aos domingos, olha álbuns de fotos antigas e segue tradições. Mas o momento não durou muito: ela balançou a cabeça, afastando a pontinha de inveja – e talvez até saudade – que se recusava a admitir que sentia e apenas sorriu, contagiada pela energia boa e a união que aquelas cinco pessoas esbanjavam.
Sentou-se no outro sofá e sorriu quando Libby se aproximou e se sentou ao seu lado, pedindo que lhe fizesse uma trança nos cabelos. Não chegou a terminar, no entanto, porque o intervalo acabou, e a pequena parecia incapaz de ficar quieta no lugar enquanto o programa estivesse passando.
logo descobriu que a menina tinha um participante preferido: um garoto de 14 anos com a imagem perfeita para tirar todas as pré-adolescentes do sério, que provavelmente levaria todo o público jovem feminino ao delírio ao longo do programa. Libby fazia questão de que a família inteira torcesse pelo ídolo – se não torcessem, que pelo menos concordassem que ele era "bonito como um príncipe" – mas ficou satisfeita em dizer que ele também era seu preferido, só para que pudesse ver os olhos da menina brilharem de excitação e suas mãozinhas baterem palmas descontroladas de alegria.
Aproveitaram o resto da tarde juntos enquanto comiam o lanche que a sra. tinha preparado com chá, biscoitinhos, sanduíches e bolos – do qual felizmente não comeu muito, pois estava prestes a ter a refeição mais completa de sua vida. Na hora do jantar, o queixo da mulher caiu em surpresa ao se deparar com a quantidade de comida na mesa. As travessas pareciam infinitas, e se perguntou quanto tempo aquela comida toda duraria – uma semana, talvez?
Para sua completa admiração, sentiu mais uma vez um indício de umidade no canto dos olhos quando a Sra. fez seu agradecimento antes do jantar. Sentou-se ao lado do marido e olhou para cada uma das pessoas à mesa com um carinho tão sincero que fez se sentir constrangida e intrusa, antes de dizer simplesmente: "sou grata por ter as pessoas que mais amo no mundo na minha casa, em volta da minha mesa, para saborear a minha comida. Obrigada por virem". Então acrescentou: "podem atacar", e não foi preciso mais que isso para que o Sr. , e Kayleigh avançassem vigorosamente sobre a mesa. Peru com laranja, purê de batatas, pães caseiros, pato assado, diferentes molhos, saladas e mais uma infinidade de pratos diferentes, e embora tivesse achado, a princípio, que fosse ser impossível, provou todos. tinha absoluta razão quando dissera que não se recusa comida na casa dos . Amelia empurrou comida para a hóspede até que deixasse as maneiras de lado (de um tanto que faria sua mãe tampar o rosto de vergonha) e comesse tudo que queria e mais um pouco, até pensar que iria explodir. Só não comeu mais porque veio em seu socorro e conseguiu fazer a mãe parar de servir mais comida. Como já havia pontuado antes: a Sra. sabia ser persuasiva. não conseguiu escapar, no entanto, da torta de abóbora na sobremesa, mas achou o doce surpreendentemente gostoso. Outra coisa da qual não conseguiu escapar foi o rubor que lhe esquentou as bochechas quando Libby perguntou sobre ela e . Enquanto tentava explicar que não ia para casa há alguns anos porque o trabalho lhe tomava muito tempo (pois a Sra. parecia incapaz de compreender que alguém que morasse em um país tão pequeno quanto a Inglaterra não passasse Natal, Ano Novo e todos os outros feriados que conseguiu citar com a família reunida), Libby puxou discretamente a manga da blusa de e, olhando fixamente para , perguntou:
- Tio, ela é sua namorada?
engasgou. Concluiu sua explicação sobre a rotina apertada e voltou os olhos para o prato, grata por nem todos terem escutado a pergunta de Libby. No entanto, fez questão de prestar atenção à resposta do colega. , assim que ouviu a pergunta, sorriu divertido e respondeu logo, com uma careta de nojo:
- Eca, Libby, claro que não! Eu tenho bom gosto. – brincou em um tom sério, olhando de esguelha para .
Libby não entendeu a piada e pareceu confusa. Ainda encarando a mulher, puxou a blusa do tio novamente e contestou num murmúrio tímido:
- Eu acho ela bonita.
sorriu de novo e, curvando-se um pouco em direção à sobrinha, sussurrou, como se fosse segredo:
- Eu também acho. – e piscou, olhando para , vendo-a sorrir e balançar a cabeça para os lados do outro lado da mesa.

- ? – a voz de surgiu, baixa, por trás da porta do banheiro, aberta apenas por uma fresta pela qual ela espiava. O homem levantou os olhos do livro em suas mãos. Ela hesitou... – Ah... Apaga a luz? – pediu tímida.
sorriu e rolou os olhos, antes de esticar a mão em direção ao abajur e juntar as páginas do livro. Assim que a escuridão tomou conta do quarto, ele escutou passinhos abafados no chão de madeira e pôde perceber que ela caminhava com pressa e na ponta dos pés. Mas não pôde vê-la, pois seus olhos ainda não estavam habituados ao escuro e demorou algum tempo até que conseguisse distinguir seus contornos.
Em poucos segundos, sentiu a coberta sendo puxada e então estava ao seu lado. Ela parecia manter certa distância proposital, tendo o cuidado de não tocá-lo, mas podia sentir nitidamente o calor da sua presença. Sentiu a mulher tentar se ajeitar sob o edredom e, no movimento, ela esbarrou sem querer o pé na perna dele. Ela não disse nada, mas afastou-o no mesmo segundo, como se queimasse. Ficaram envoltos naquela leve tensão em silêncio por alguns segundos, durante os quais só se ouviu a respiração deles e o vento soprando lá fora. Algum tempo depois, no entanto, aqueles sons pareceram começar a fazer parte do ambiente, difundindo-se ao silêncio, e era como se realmente não houvesse som algum.
- Ei. – murmurou. Pôde ouvir o roçar dos cabelos dela no travesseiro, indicando que virara o rosto para ele. - Boa noite, .
- Boa noite, . – ela respondeu. E depois de um segundo, completou: - Pode me chamar de .
- . – ele repetiu brandamente.
- Quando falam "" parece que estão brigando comigo.
franziu o cenho. Não era como se todos a chamassem de "". Na verdade, nunca tinha escutado ninguém chamá-la pelo apelido.
- Mas todo mundo te chama de . – replicou confuso.
A mulher sorriu, e ambos começavam agora a conseguir enxergar no escuro do quarto.
- É. Bem... Todo mundo briga comigo em algum momento. – e acrescentou: - Quando chegar a sua vez, pode me chamar de também. Combina mais com uma discussão.
gargalhou.
- Por quê? Você pretende discutir comigo em breve?
Ela deu de ombros.
- É o curso natural dos meus relacionamentos.
A mulher viu surgir no rosto dele um sorriso travesso e seus olhos brilharam na penumbra.
- Há cinco minutos você nem gostava de mim e agora nós já estamos em um relacionamento? – provocou. - As coisas caminham rápido com você, né?
- Rápido vai ser o caminho da minha mão até o seu rosto se você não deixar de ser atrevido. – brincou, arrancando uma risada do colega.
- Tudo bem. – ele se apressou a dizer. – Eu gosto de um pouco de violência. – disse lentamente. - Pode puxar meu cabelo também, arranhar minhas costas… - acrescentou numa voz rouca e lasciva que, apesar da pontinha de brincadeira, fez os pelos dos braços dela se ouriçarem e seu estômago dar uma volta.
Sem que precisasse pensar muito, seu cérebro se apressou a sugerir outro assunto:
- Quando a gente chegou, sua mãe olhou pra mim e disse "bem melhor do que a última". – disse incerta. – O que ela quis dizer?
Ele riu.
- Ah, é que a última namorada que eu trouxe aqui... – interrompeu a frase quando seus olhares se encontraram e ambos pensaram a mesma coisa. Ele se apressou a consertar: - Quero dizer, não que nós dois sejamos... Enfim. A última vez que eu trouxe alguém aqui ela era vegana, e quando minha mãe entrou com o assado Sally teve de ânsia de vomito, começou a chorar e deu um discurso sobre a crueldade contra os animais e sobre como Natal é uma burocracia para alienar a sociedade. E na minha casa, se você fala mal de quem come carne ou segue tradições... – fez uma pausa, como se o assunto fosse pesado demais, e finalizou: - Você está em apuros. Se fizer os dois, então, nem se fala.
- Encantador. Você parece realmente saber escolher suas namoradas.
Ele hesitou por um segundo, antes de entender a indireta e começar a rir.
- Ei, a Cerys não é minha namorada! – pensou por um instante e acrescentou: - Mas eu poderia ficar bem ofendido se fosse. E a Sally era, mas eu tive uma fase exótica. Aliás, eu não tenho preconceitos. Sou aberto a qualquer tipo, forma, origem ou ideologia. – explicou solenemente. Então completou: - E ela era maravilhosa na cama. Professora de pole dance... – acrescentou nostálgico, fazendo revirar os olhos. – Mas nós só ficamos juntos por dois meses, até ela ser convidada para dar um curso nos EUA.
- Oh, uma professora de pole dance um tanto bem sucedida... – exclamou, fingindo admiração.
- Você nem imagina.
- Você já teve o quê, mil namoradas?
- Algumas. – sorriu, parecendo constrangido.
- E você alguma vez gostou de alguma delas? – perguntou curiosa, encarando-o nos olhos. Ele correspondeu seu olhar e sorriu. – Quero dizer, gostar de verdade?
- Já. Eu não sou tão sem coração assim... . – pronunciou o novo apelido vagarosamente, como se testasse como a palavra soaria vindo de sua boca. - Eu não tenho nenhum tipo de problema com relacionamentos. Só gosto de aproveitar quando estou solteiro. – explicou, sorrindo malicioso. E então o sorriso voltou a abrandar: - Do mesmo jeito que gosto de aproveitar, de forma completamente diferente, é claro, quando estou com uma pessoa. Eu já gostei de alguém, sim.
- E por que você não tá com ela?
Ele deu de ombros.
- Porque nem sempre as coisas acontecem como a gente quer. Você gostar de alguém não é garantia de que vá dar certo.
assentiu com a cabeça. Nunca tinha pensado em como um cara que sabe levar uma mulher a sério. Mas, naquele instante, ele lhe pareceu extremamente maduro. Continuaram se olhando, mas o contato perdeu a superficialidade aos poucos. Apesar do escuro, tinha a impressão de que podia ver tudo. Enxergá-la toda, nos mínimos detalhes, por fora e até por dentro, como se quisesse ler seus pensamentos. E como se conseguisse. Pela primeira vez, ela pensou sobre o quão perto estavam um do outro. Sustentaram o olhar, que pouco a pouco ganhava profundidade. Então ele voltou a falar, e só aí ela percebeu que estiveram cochichando, mas não saberia dizer quando tinham começado. E nem por quê, já que estavam sozinhos no cômodo, preenchido apenas pela força da presença um do outro.
- E você?
- Hm? – perguntou. O momento de contato visual tinha sido tão intenso que ela se esqueceu do que estiveram falando.
- E você? Já gostou de alguém? De verdade?
deixou uma pausa entre eles por um momento antes de responder.
- Já.
- E por que você não tá com ele? – repetiu a pergunta no mesmo tom.
A mulher sorriu tristemente, e se perguntou se ele pôde ver no escuro. Mas, a julgar pela firmeza do olhar que ele ainda mantinha sobre ela, provavelmente podia. Não se surpreenderia se ele já tivesse até lido nos olhos dela o motivo da tristeza.
- Porque ele também já gostou de alguém. Só que esse alguém não sou eu.
E pela primeira vez, a viu como uma garota como qualquer outra: que tem suas decepções. Sempre vira como uma mulher superior, indiferente, que não se apega, que não se decepciona. E reparou como ela era bonita. Bonita não. Ela era linda. Ainda mais com um sorriso no rosto, ao invés de uma carranca mal humorada. Sentiu uma súbita urgência de se aproximar, mas tentou reprimi-la. Seus sentidos estavam cada vez mais aguçados no escuro, e ele sentia o perfume que vinha dela preencher suas narinas como não houvesse mais nada no ar além daquele aroma adocicado. Podia ouvir sua respiração e uma das suas próprias equivalia a quase duas dela, mas não saberia dizer se estava nervosa ou se era porque o corpo dela era significantemente menor. Tentou se lembrar do físico da colega, mas no segundo em que o corpo dela invadiu sua mente, acompanhado da ideia do quão perto ele estava do seu, a vontade de se aproximar mais voltou, dessa vez com força renovada. Por um milésimo de segundo, imaginou-se levando uma mão até seus cabelos e a outra até sua cintura, puxando-a para si. Mas no instante seguinte, antes que seus impulsos se transformassem em ações, a voz de lhe arrancou dos seus devaneios:
- ? – chamou baixo, assumindo mais uma vez o mesmo tom tímido que usara na porta do banheiro. Ele a encarou. – Sábado, no cassino... Eu não lembro muito bem, mas... Eu disse alguma coisa demais? Quero dizer, eu, sei lá... – hesitou. – Eu te contei alguma coisa importante? Te disse ou fiz alguma coisa?
hesitou.

's POV
Olhei em seus olhos e eles eram pura apreensão. Por mais que ela estivesse tentando esconder, seus olhos me encaravam ansiosos, implorando por sinceridade. Sinceridade que eu pensei em dar. Porém, por mais que estivesse pedindo, eu tinha certeza que ela não queria ouvir o que realmente tinha acontecido.

Flashback
- Shh! – exclamei depois que gritou contra o meu ouvido.
Ela arregalou os olhos e paralisou o rosto numa careta, como se tivesse feito a maior besteira da vida.
- Desculpa! – sussurrou, parecendo desesperada.
- Tudo bem. – respondi indiferente, diminuindo a velocidade e apertando o braço em volta de sua cintura para ajudá-la a descer os degraus.
- Você me perdoa? – ela perguntou, virando o rosto completamente para o meu, fazendo seu hálito de álcool bater diretamente em mim.
- Perdoo. Agora olha pras escadas, . – como se não bastasse estar completamente embriagada, o fato de ela ainda por cima não prestar a mínima atenção em onde pisava não estava exatamente me ajudando a descer os degraus, ainda que fossem poucos.
Quando pisamos no chão de concreto do estacionamento, soltei o pulso dela, que eu segurava ao redor do meu pescoço, e afrouxei meu braço em volta de sua cintura, mas não tive coragem de soltá-la completamente. Ela parecia não ter controle sobre os próprios pés e se não fosse pela minha ajuda, já teria caído no chão há muito tempo.
andava um pouco à frente para abrir o carro para nós. Decidimos que ele nos levaria de volta até o hotel quando percebemos que deixar beber mais uma gota estava fora de cogitação. Então aproveitamos que ela já estava fora de si demais para nos impedir de fazer qualquer coisa e saímos do cassino.
- EI, ! – gritou novamente. Então ela mesma refez a careta de culpa e repetiu, tão baixo que nem eu ouvi direito: - Ei, ! – e olhou para mim como uma criança obediente: - Assim tá bom?
- Tá ótimo. – aprovei. Nessa hora chegamos ao carro, e eu tentei empurrá-la para dentro pela porta que tinha deixado aberta.
- , eu tô muito chateada. – ela disse quando entramos, eu ao lado dela no banco traseiro.
- Por quê? – meu amigo perguntou rindo, olhando-nos pelo retrovisor.
- Porque eu... – ela respondeu pausadamente. Pensei que ela tivesse esquecido o que ia falar, mas então completou, levantando o dedo no ar para ralhar com : - Pensei que fôssemos amigos.
- Mas a gente é! – ele insistiu.
- Então por que você mentiu pra mim? – perguntou chorosa. – Você disse que o era ruim no Jack Black... – então interrompeu a frase, parecendo terrivelmente confusa. Começou a murmurar para si mesma, quase inaudivelmente: - Jack Black? Jack? Back?
- Black Jack. – soprei em seu ouvido, e eu e rimos. Quis disfarçar a risada para não deixá-la mais chateada, mas percebi que não faria a mínima diferença, porque ela estava inapta a perceber detalhes como esse.
- Black Jack. – continuou como se não tivesse havido interrupção. – E agora... Agora você me fez perder! Eu não perco, ! Sabe quando foi a última vez que perdi?
- Quando?
- Na oitava série, numa festa da escola, quando Andie McMillan apostou se eu teria coragem de pular na piscina, onde todos os garotos nadavam, e beijar Nicolas Foster, eu aceitei porque todas as meninas estavam olhando e eu fiquei com vergonha de falar não, mas no fim não tive coragem, então tive que fazer as tarefas de matemática dela por uma semana. – contou sem respirar direito. Embolou completamente as palavras, e nós tínhamos que prestar atenção para entender o que falava. Antes que respondêssemos, no entanto, ela emendou: - Mentira. Essa não foi a última vez. Mas eu não quero contar a verdade. – confessou, e gargalhou.
- Tudo bem, você não precisa.
- Mas agora eu perdi de novo! – insistiu. – , você aceita não contar pra ninguém que ganhou de mim?
- Sem chances.
Ela pareceu levemente abalada e se virou para frente, mas em um segundo se voltou para mim:
- Já sei! Então amanhã, quando eu acordar e não me lembrar de nada disso, você promete não me contar que eu perdi?
Sorri para ela.
- Prometo, . – concordei lentamente, rindo.
- E aí você pode esquecer também, não pode? – perguntou como uma criança que acaba de inventar a solução perfeita, esperando a aprovação do pai.
- Aí eu já não prometo. – ri de novo.
Mas não estava mais ouvindo. Já tinha virado o rosto para a janela e encarava a rua com o olhar perdido. Então disse casualmente, como se perguntasse as horas:
- , você já teve um caso com seu chefe?
Mais uma vez, uma risada escapou pelos seus lábios, mas ele disfarçou e disse:
- Meu chefe? No masculino? – e riu. – Não, nunca.
- Então, meu amigo, vou te dar um ótimo conselho: nunca tenha! – ela disse, jogando-se para frente com um braço apoiado em cada banco, para se aproximar de . – Mesmo que ele seja bonito, charmoso, inteligente e bem dotado.
Por um segundo, todos fizemos silêncio. , olhando para o retrovisor, perguntou em silêncio, formando as palavras com a boca: "é você?". Balancei a cabeça negativamente, os olhos arregalados e uma expressão surpresa. Comecei a rir, sem acreditar que aquilo nunca tivesse passado pela minha cabeça. e ...
Então ela interrompeu meu pensamento quando se virou para mim com o dedo indicador em frente à boca e os olhos arregalados.
- Shhhh! – fez exageradamente, como se compartilhasse um segredo de Estado.
Eu repeti o gesto, assentindo com a cabeça para mostrar que não contaria para ninguém. nos deixou na porta do hotel, e de lá eu e seguimos para o andar dela, e eu fiquei aliviado por ela lembrar qual era. Passamos pela porta do elevador e caminhamos juntos, eu ainda tinha o braço em volta dela e ela falava aleatoriamente. Não tinha ficado quieta um segundo sequer, nem mesmo depois de ter mencionado , não pareceu perceber a besteira que tinha acabado de fazer.
Quando passamos em frente ao 212, interrompeu a frase desconexa que murmurava no meu ouvido e disse:
- É aqui.
Levantei os olhos para a placa do quarto.
- Certo. - afrouxei devagar o aperto, permitindo que ela se recostasse contra a parede. – Cadê as chaves?
Mas ela não respondeu. Apenas exibiu um sorriso frouxo. Então ela relaxou o pescoço e soltou a cabeça sobre meu ombro, afundando o rosto na curva do meu pescoço. Seus lábios roçavam na minha pele e sua respiração quente batia contra meu pescoço, dificultando o que eu tinha de fazer. Respirando fundo para me concentrar, chamei: - ? – pausei. – Cadê a chave do seu quarto? Continuei sem resposta, então tive que deduzir qual seria o próximo passo. Afastei o corpo um pouco e senti a mulher bambear, como se suas pernas não estivessem em condições de sustentá-la sem minha ajuda. Ainda sem soltá-la, afastei-me mais um pouco, segurando-a pela cintura caso caísse. Passei-a para o meu lado e tive que tirar a bolsa do ombro dela. Encostei contra a parede mais uma vez e abri o zíper, voltando toda minha atenção para o objeto em minhas mãos. Se tem uma coisa com a qual eu não sei lidar nessa vida, essa coisa é bolsa de mulher. Aquilo é um mundo paralelo que só elas entendem, com caminhos, bolsos e abas infinitas, e tudo lá dentro parece se esconder quando você procura. Por mais que você se esforce e procure minuciosamente, os objetos vão propositalmente fugir dos seus dedos. No entanto, assim que a dona da bolsa tocá-la, eles aparecem. Bolsa de mulher é um negócio que não foi feito para mim. Mas, infelizmente, situações desesperadoras exigem medidas desesperadas.
Quando, aliviado, finalmente encontrei o cartão e pude interromper minha busca, um barulho voltou minha atenção para o mundo. Olhei para o lado e estava deitada no chão. Parecia ter deslizado pela parede, porque seu corpo estava colado a ela e seu rosto estava esmagado contra o chão de carpete bege.
- Merda! – exclamei, largando a bolsa no chão para ajudá-la a se levantar.
Quando consegui, apressei-me a colocar o cartão na porta antes que dificultasse mais ainda minha vida.
Entramos, andando lado a lado, eu com o braço em volta de sua cintura, ela com o braço envolvendo meu pescoço. Viramo-nos, e já que eu não podia usar livremente minhas mãos para não soltá-la, forcei seu corpo para trás, a fim usá-lo para empurrar a porta até que ela se fechasse. E deu certo. Ouvi o clique da porta e estava encostada nela, à minha frente, entre eu e a madeira clara. Coloquei o cartão no dispositivo na parede e pude então acender a luz no interruptor ao nosso lado. Mas isso não pareceu agradar . Seu rosto se contorceu numa careta enquanto a luz amarelada do quarto castigava nossos olhos, e ela levantou a mão, tateando a parede até conseguir apagar a luz novamente.
Percebi que a única coisa que me restava era colocá-la na cama. Mas, para ser sincero, eu estivera torcendo para que eu não precisasse chegar àquela parte. Pigarreei.
- Hm, ... Você acha que consegue se virar a partir daqui? – perguntei esperançoso.
Mas ao invés de me responder, ela continuou me encarando. Um sorriso lascivo começava a crescer em seu rosto e, por algum motivo, aquilo me deixou extremamente nervoso.
- Que foi? – perguntei porque não sabia o que fazer, torcendo que ela parasse com aquilo. O sorriso agora ocupava todo seu rosto, malicioso, e seus olhos me encaravam insinuantes. Eles desceram dos meus olhos para minha boca, da minha boca para o pescoço, para o ombro, pelos braços. Então pararam e ela voltou a me olhar nos olhos, reprimindo uma risada marota e jogando a cabeça para trás. Aquele movimento expôs seu pescoço inteiramente para mim. Não posso negar que me sentia absurdamente atraído a ela naquele momento. Muito mais do que deveria. Respirei fundo, mas quando estava prestes a falar de novo, ela ergueu a mão, num movimento ágil, e a depositou sobre meu ombro. Aquele contato repentino fez qualquer tentativa de palavra morrer na minha garganta. Ela massageou meu ombro de leve, subindo a carícia lentamente para o meu pescoço. Então, antes que eu tivesse tempo de impedi-la – o que, na verdade, eu não estava com a mínima vontade de fazer – estava me beijando.
Ela me puxou contra si e subiu na ponta dos pés para aproximar mais nossos corpos, permitindo que eu fechasse os braços ao redor dela, dando a volta completa em sua cintura. Ela me beijava com firmeza, com desejo, intenção. puxou meus cabelos e mordeu meu lábio, e meu corpo respondia obedientemente a todos os estímulos dela. Quando via irritada no trabalho, nunca havia imaginado seu ódio canalizado para alguma atividade que não fosse gritar comigo. No entanto, ali estava ela me beijando com toda aquela fúria tão típica de tudo o que ela fazia, e eu não podia dizer que não estava gostando.
Passeei as mãos pelos seus quadris e pela base de suas costas antes de começar a abaixá-las. Desci os toques até alcançar suas coxas, infelizmente cobertas pela calça jeans. se ajeitou à minha frente e ficou com uma perna entre as minhas, fazendo com que minha mão perdesse o contato com aquela parte e voltasse ao seu quadril. Mas ela levantou um pouco a outra perna, agora sustentada pela minha mão esquerda. Deslizei-a desde a parte de trás do seu joelho até a bunda. Espalmei-a na curva entre a nádega e sua coxa e lhe apertei de leve. Deixei que minha outra mão adentrasse sua blusa e alisei a curva da sua cintura com firmeza. Enquanto isso, separei o beijo pela primeira vez e umedeci meus lábios antes de levá-los ao seu pescoço. Beijei sua pele fina, distribuindo chupadas por toda a extensão do pescoço, que ela deixava esticado, exposto para mim. Continuei a beijar sua pele arrepiada e alisar sua barriga por baixo da blusa, subindo as carícias até alcançar seus seios. Massageei-os de leve por cima do sutiã, e vez ou outra eu podia ouvi-la soltar um suspiro agitado. Eu sentia minha calça cada vez mais justa, mas por mais que seu corpo me instigasse, eu não queria correr com aquilo. Queria aproveitar cada segundo. Continuei o que estava fazendo, no mesmo ritmo, até que meus dedos ultrapassaram o tecido que cobria seu seio e minha mão o envolveu devagar. Com a ponta dos dedos, apliquei um pouco de pressão sobre seu mamilo, sentindo-o enrijecer sob os movimentos circulares. Um som partido escapou por sua garganta e de repente ouvi-la não era mais o suficiente. Eu queria vê-la. Então detive as carícias em seu colo e ergui meu rosto, porque queria olhar nos olhos dela. E foi aí que percebi o quanto ela estava, de fato, bêbada. Seus olhos oscilavam, incapazes de se manter fixos em um lugar só, e eu percebi que se ela não tivesse um perna firmemente presa entre as minhas e a outra sendo segurada por mim, já teria desabado no chão. Nessa hora eu me dei conta da merda que eu estava fazendo.
Não sei se percebendo minha hesitação ou simplesmente se sentindo impaciente, inclinou o rosto para frente, alcançando minha boca novamente. Não pensei rápido o suficiente para impedi-la e deixei que ela me beijasse por um tempo, mas não era mais a mesma coisa. Ela começou a me empurrar para trás desajeitadamente, a fim de caminhar para mais perto da cama, e eu sabia muito bem no que aquilo ia dar. E por mais que a ideia fosse tentadora, eu sabia que não podia acontecer. Era melhor parar. Ela estava ridiculamente bêbada e aquilo simplesmente não era certo. Uma parte de mim me dizia para deixar de me preocupar. Afinal, não estava acontecendo nada contra a vontade de ninguém, certo? Mas o gosto de álcool da boca dela, forte como se eu mesmo tivesse bebido, não me deixava esquecer o quanto ela estava fora de si. Ela não estava me proibindo de nada, mas também não estava em condições de permitir nada. Juntando toda a determinação que tinha em mim, separei nossos lábios com dificuldade mais uma vez. Encarei-a por um segundo, mas estava claro que ela não conseguia manter os olhos fixos nos meus, o que só confirmou minha convicção de que estava fazendo a coisa certa. não tinha a menor ideia do que estava fazendo.
Mais uma vez, ela tentou forçar o rosto para frente, mas eu levei o meu para trás na mesma proporção, mantendo a distância entre nossos rostos. Ela pareceu confusa, mas, mais uma vez, não estava sóbria o suficiente para reclamar ou fazer qualquer coisa a respeito.
Soltei sua perna lentamente, ajudando-a a firmar os pés no chão antes de separar nossos corpos. Foi como um balde de gelo em cada milímetro que antes estivera encostado a ela. Todo o meu corpo se opôs à falta de contato com o dela e o aperto da minha calça agora me incomodava mais que em qualquer momento. Mas o que eu podia fazer senão ignorar?
Abracei-a pelo lado novamente e caminhei com ela até a cama, onde a sentei e acendi a luz do abajur. Quando olhei para , ela tinha deixado o corpo cair para trás, deitando-se paralela aos travesseiros, com as pernas para fora da cama.
Cocei a cabeça completamente sem saber o que fazer. Então ela disse com a voz embargada:
- Por que você tá apertando minhas pernas?
Franzi o cenho, incrédulo, e me defendi com desespero:
- Eu não tô nem encostando em você!
Ela levou as mãos até as coxas e eu entendi do que ela estava falando. começou a puxar o jeans da calça para frente. Não para baixo, a fim de tirá-las, mas na direção contrária do corpo, como se elas não estivessem vestidas, mas apenas jogadas sobre as pernas. Ela começou a soltar grunhidos impacientes e manhosos, incomodada pelo tecido apertado, provavelmente. Respirei fundo e inclinei meu corpo sobre o dela, tocando delicadamente o fecho da calça.
- Eu vou tirar sua roupa, só pra ficar mais confortável pra você, tá? – perguntei cautelosamente, e quando eu ouvi minhas próprias palavras, percebi o quanto soavam erradas. Mas o que é que eu podia fazer? Tirei a peça rapidamente e a joguei sobre uma poltrona. Puxei o corpo de para cima e o girei desajeitadamente para que ela deitasse a cabeça em cima do travesseiro. Puxei a colcha debaixo dela e consegui, aos poucos, fazer com que ela se deitasse por baixo do pano. Ela já parecia estar dormindo. Balancei seu ombro levemente e disse:
- Meu quarto é o 303. Se você precisar de alguma coisa, me liga.
Ela resmungou algum barulho, mas não deu grandes sinais de ter absorvido qualquer informação. Apaguei a luz do abajur e antes de sair procurei seu celular na bolsa. Conferi se o despertador estava ligado e o depositei na mesa de cabeceira, bem ao lado de seu rosto. Não havia, realmente, mais nada que eu pudesse fazer.
Caminhei até a porta, saí e a fechei atrás de mim silenciosamente. Então soltei o corpo contra a madeira clara, fechei os olhos e soltei o ar com força. Eu sabia que não tinha feito mais que minha obrigação, mas isso não significa que não era uma merda saber que eu tinha sido obrigado a parar depois de ter chegado tão perto de . Se você não é um homem perfeitamente viril e saudável, no auge dos seus 25 anos, que acabou de colocar para dormir uma mulher - absurdamente atraente se jogando em você - sem se aproveitar da situação, meu amigo, você não sabe o que é força de vontade. "Deus salve a rainha"? Eu é que deveria ser o herói dessa nação!
End of Flashback

Pigarreei e franzi o cenho, fazendo minha melhor cara de confuso e disfarçando o melhor que pude.
- Não. Pelo menos não que eu me lembre. – disse, sentindo-me um pouco mal por mentir. Imediatamente, vi a ansiedade nos olhos dela evaporar e se transformar em alívio se espalhando por suas feições, abrandando sua expressão. E o semblante sereno que envolveu seu rosto me fez ter certeza de que eu tinha feito a coisa certa. Para que contar a verdade? Ninguém sabia além de nós dois. E eu sabia que ela preferiria não saber. Ignorância é uma benção... – Quer dizer, você bem que implorou para dormir comigo, mas fora isso... Nada significativo. – brinquei, e me deu um tapa no braço, sorrindo.
- Engraçadinho.
- Sou mesmo. – concordei.
- Desculpa. – ela murmurou. – Que coisa mais infantil. – rolou os olhos. – Tão bêbada que precisei ser carregada pra casa, meu Deus... Não estou mais no ensino médio!
Balancei a cabeça para os lados, rindo.
- Acontece nas melhores famílias. – dei de ombros.
Ela sorriu e eu pude vê-la piscar, as pálpebras pesadas. Acabou por fechar os olhos, mas mantinha o sorriso leve nos lábios e mais uma vez eu quis tocá-los. Refleti sobre o que fazer a seguir. Mas antes que eu dissesse ou fizesse qualquer coisa, abriu os olhos de novo e murmurou:
- Boa noite, .
Sorri de volta.
- Boa noite, .
End of 's POV

abriu os olhos na manhã seguinte e no primeiro momento tomou um susto ao ver dormindo ao seu lado. Levou um segundo para se lembrar de onde estava e por que estavam na mesma cama, e quando entendeu, riu aliviada. Virou o rosto para o lado oposto para que ele não a visse. Detestava sua aparência pela manhã. Bocejou, coçou os olhos e pôde sentir o colega se mexer ao seu lado e pigarrear, indicando que havia acordado. lamentou que não tivesse tido tempo de ir ao banheiro lavar o rosto, dar um jeito nos cabelos e escovar os dentes antes que ele a visse. Virou-se para trás e viu olhando para ela com os mesmos olhos inchados, cara amassada e expressão fofa do dia em que tomaram café-da-manhã juntos no hotel.
- Bom dia. – ele disse com a voz rouca.
- Bom dia.
- Que horas são? – perguntou, espreguiçando-se.
pegou o celular da cômoda ao seu lado.
- Onze e vinte.
sorriu.
- Sabe o que isso quer dizer?
- Que estamos atrasados? – perguntou apreensiva, provavelmente ainda um pouco traumatizada pela manhã anterior. franziu o cenho como se tivesse escutado a coisa mais absurda do mundo e balançou a cabeça negativamente.
- Não. Quer dizer que tá na hora do café.
Quando desceram, encontraram a mesa posta e tão absurdamente cheia quanto na noite anterior. A superfície transbordava com uma enorme variedade de pães, recheios, cereais, queijos, frutas, biscoitos, panquecas, bacon, feijão e ovos preparados de diferentes maneiras.
Só de ver aquela comida toda, se sentiu ainda cheia da noite anterior. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, se inclinou em sua direção e murmurou:
- Lembre-se do que eu disse sobre recusar comida na minha casa. – foi até uma cadeira e se sentou. – Lembra que eu prometi te ensinar a tomar um café-da-manhã adequado? Não desperdice sua oportunidade. – e piscou, em seguida batendo na cadeira ao seu lado para que se juntasse a ele.


12

And he's oh, so good, and he's oh, so fine,
And he's oh, so healthy, in his body and his mind.
He's a well-respected man about town (...)
And he likes his own backyard, and he likes his fags the best,
Cause he's better than the rest, and his own sweat smells the best.

(A Well Respected Man – The Kinks)


Green Street, 61, Londres – Domingo, 11:02

girou a chave na fechadura e abriu a porta. Atravessou o vão e largou a mala no chão, antes de se virar para trancá-la novamente. Respirou fundo. Nada como estar em casa. Caminhou até a mesa, deixou as chaves sobre ela e tirou o casaco, depois de tirar seu celular do fundo do bolso.
Havia ligado para do aeroporto, já em Londres, quando Julie lhe informou que a mulher não estava presente. Julie era uma moça muito simpática, mas não era das mais brilhantes. Era de se esperar que ela e Ruby, que estavam encarregadas dos detalhes da viagem, conferissem a presença de todos os funcionários, mas, em meio ao estresse de todos os acertos, a divisão de tarefas entre as duas ficara pouco clara e acabaram se confundindo. Justificativa que não serviu muito para amenizar a insatisfação de ao ser informado. A primeira coisa que fez foi ligar imediatamente para , mas ela não atendeu. Então ficou preocupado. Era rotineiro não querer atender suas ligações. Acontecia o tempo inteiro. No entanto, definitivamente não era rotineiro ser deixada para trás, sozinha em outra cidade, por engano, e não atender suas ligações.
Seu próximo passo foi ligar para o hotel em Birmingham e conversar com uma recepcionista, que após conferir o sistema, informou-lhe que o quarto 212 continuava ocupado pelo mesmo hóspede da noite anterior. Um pouco mais aliviado, pediu que ela transferisse a ligação para o quarto, o que não rendeu muitos resultados. não atendeu. agradeceu e tentou de novo ligar para o celular dela, e também não obteve resposta.
Respirou fundo e largou o celular sobre a mesa, ainda um pouco preocupado. Não só por já prever a onda de fúria que teria de encarar quando se encontrassem novamente, mas na verdade um pouco apreensivo pelo fato de ela ainda não ter dado notícias. era uma mulher adulta, inteligente e independente, mas às vezes podia ser muito vulnerável. sabia que ela era muito menos forte do que pensava ser. E não podia ser normal que ela ainda não tivesse tentado contatar ninguém da empresa.
Tirou de cima da mesa as correspondências que tirara da caixa de correio enquanto pensava sobre o que fazer. Duas contas, um panfleto de uma pizzaria e um pacote numa caixa de papelão. Pensou por um instante sobre o que poderia ser, mas soube imediatamente quando viu o selo da Amazon. Era um presente para que havia encomendado algumas semanas antes e a compra, pelo visto, chegara na hora perfeita. Imaginava que a mulher não estaria especialmente satisfeita e carinhosa quando voltasse, então ter um presente em mãos seria uma ótima saída. Abriu a aba superior e espiou dentro da caixa só para se certificar de que o tão esperado DVD estava embrulhado para presente, como havia pedido. E estava.
No seu aniversário de 18 anos, ganhara o livro "1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer" da avó, uma das poucas pessoas da família por quem tinha uma afeição completamente pura e sincera. Decidiu começar a colecionar os filmes da lista, ainda que demorasse muitos anos. E até o momento, um pouco menos de 10 anos depois, já havia alcançado marca de 397 filmes, o que era uma quantia considerável, já que o livro inclui filmes desde 1902, que não são exatamente fáceis de encontrar. E , sempre que tinha a oportunidade, dava uma folheada no livro enquanto estava no banho ou na cozinha para conferir quais filmes ainda não estavam sublinhados, para depois procurá-los para ela. O chefe era, na verdade, muito bom em encontrar os filmes que não achava em lugar nenhum.
fechou o pacote novamente e o depositou sobre a mesa perto da porta, ao lado das chaves do apartamento, para que não se esquecesse de levá-lo quando saísse de casa para encontrá-la. Já podia até imaginar como ela ficaria feliz.
Encarou o relógio mais uma vez. Decidiu que se até uma hora da tarde não desse notícias, ligaria para o hotel de novo e descobriria onde ela estava nem que precisasse fazer com que os funcionários derrubassem a porta do quarto. Determinado, pegou a mala e a levou até o quarto para desfazê-la, tendo o cuidado de levar o celular consigo, caso ligasse. Mesmo que soubesse que não era muito provável que ligasse. Quando queria de verdade, ela costumava conseguir ignorar suas ligações por um bom tempo antes de ceder novamente. Mas uma vez mais: ainda não havia descoberto como ela costumava agir depois de ser esquecida em outra cidade. Estava aí um novo lado da redatora a ser descoberto, considerando que o chefe já conhecia todos os outros tão bem.
Abriu o zíper da mala e começou a tirar de lá as roupas limpas, todas dobradas, e passá-las para o armário. O armário de pouco parecia o armário de um homem que morava sozinho. Todas as camisas ficavam dobradas e empilhadas, os ternos alinhados nos cabides, e as gavetas cheias de divisórias. era uma pessoa organizada e uma das muitas características que tinha em comum com era que gostava das coisas do seu jeito. Sempre que precisava encontrar alguma coisa dentro de sua casa, encontrava, porque tinha total controle sobre tudo. Sabia onde estavam todos os objetos e como as coisas funcionavam, porque ninguém além dele mexia ali. E era assim que queria sua casa, da mesma forma que tinha todo o resto da sua vida: sob seu comando. Ou pelo menos era o que ele gostava de pensar. Era a única coisa que suportava pensar. Aceitar qualquer coisa diferente disso seria aceitar uma fraqueza, e não era mais capaz de fazer isso.
tentou durante um tempo interferir nisso, guiada, como muitas pessoas, pela ideia de que "o que essa casa precisa é um toque feminino". E em alguns aspectos conseguiu o que queria. Não porque a casa precisasse de um toque feminino, mas precisava, indiscutivelmente, de um toque de vida. À época que se conheceram, a casa de mais parecia um lugar abandonado. Tão vazia de cor, de som, de respiração. E fez por mais do que qualquer um havia feito em muito tempo. E teria continuado fazendo, mas logo percebeu que não era assim que as coisas funcionavam com . Em pouco tempo, tomou conhecimento de todos os seus gostos, seus hábitos, suas marcas, assim como ele aprendeu os dela. E talvez por isso é que fossem tão bons juntos.
esbarrou sem querer nos cabides que estavam sobre a cama e um deles caiu, o choque do metal contra o chão de madeira ecoando pelo silêncio. gostava do silêncio. Acostumara-se a ele. Na verdade, por muito tempo o abominara. Na época logo após o acidente, fugia dele como o diabo foge da cruz. Isso desde o primeiro dia em que pisara em casa depois de perceber a reviravolta que sua vida havia tomado. Evitava a todo custo o silêncio, o escuro, qualquer coisa que indicasse vazio. Porque o vazio dentro de si, tão grande que o consumia, já era suficiente. Não suportava a ideia de mais falta, mais ausência, mais morte. No entanto, com o tempo, o que antes era sinônimo de solidão passou a ser sinônimo de paz. E a frieza, a lacuna dentro de si, que havia começado a suspeitar que duraria para sempre, começou a passar.
Não que fosse uma pessoa sombria. Não mesmo. Com o passar do tempo, voltou a apreciar música, risos e cores tanto quanto apreciava o silêncio. Apenas havia se acostumado a ele. Afinal, morava sozinho, então, fora os momentos em que tinha alguma mulher consigo, a casa estava sempre quieta. E devido àquela característica tão forte – a necessidade dos fatos sempre alinhados com suas vontades – não queria que ninguém interferisse nisso. gostava das coisas como eram. Aprendera a gostar da sua vida, da sua rotina, das suas relações. Justamente porque ninguém interferia nelas.
"Suas relações", na verdade, se resumiam a . Era a única pessoa com quem havia mantido qualquer tipo de intimidade que ia além de sexo nos últimos três anos. Astrid, a única outra possibilidade, não tinha dado notícias desde o acidente. E então, pouco tempo depois, a redatora entrara na vida dele. era, acima de tudo, sua amiga. E isso havia sido provado pela lealdade da mulher, que nunca oscilara desde o dia em que se conheceram. Em alguns aspectos, dependia dela, da presença dela em sua vida. E reconfortava-o saber que precisava de tanto quanto ele, dela. Sabia que o sentimento dela era, no mínimo, tão forte quanto o seu – apesar de não ser o mesmo sentimento. Fora ela, não tinha nenhum vínculo significativo. Não podia se dar o luxo de chamar as pessoas do trabalho de amigos, não eram mais do que "conhecidos". O trabalho e o cargo alto na empresa lhe rendiam muitos colegas, e gostava deles e se dava bem com todos, mas há muito deixara de ser do tipo de criava laços profundos. Aquela velha história de que "quem é amigo de todos não é amigo de ninguém". Porém, para , o que tinha era suficiente. Tinha de ser.
Terminou de pendurar o último cabide no armário e consultou as horas. Tirou os sapatos, deitou-se na cama e ajeitou as almofadas sob a cabeça enquanto iniciava outra chamada para o hotel. Primeiro falou com uma recepcionista que não soube lhe ajudar. Foi transferido para outra, que também não teve muito a acrescentar. Decidido a conseguir a informação que queria, exigiu falar com o supervisor das recepcionistas, depois com o chefe do supervisor das recepcionistas. Acabou por lidar com o gerente do hotel, e a esta altura seu nível de paciência já não era dos mais saudáveis. O gerente pareceu perceber. O que o homem precisou fazer para descobrir o paradeiro de não sabia e não fazia questão de saber. Mas o fato é que alguns minutos depois o gerente retornou a ligação, informando que uma das recepcionistas afirmara ter visto sair do hotel por volta do meio dia, acompanhada de outro hóspede que também estivera com o grupo da BBDO.
E depois de ouvir isso, finalmente se permitiu se tranquilizar. Por mais que no fundo soubesse o tempo inteiro que nada havia realmente lhe acontecido, era reconfortante ter a confirmação. Sabia que não era uma garotinha de oito anos sozinha na rua, mas era a única pessoa capaz de despertar nele o mais próximo que ele conseguia sentir de instinto de proteção.
largou o celular na cama e respirou, aliviado. Se ela havia saído do hotel com , que era o único funcionário da empresa que não havia voltado para Londres com eles, pelo menos ela estava bem. Isso significava que ela podia atender às suas ligações, só não queria. Mas com isso conseguia viver sem maiores problemas.


13

Though you've gone away this morning, you'll be back again tonight,
Telling me there'll be no next time if I don't just don't treat you right (...)
You’ve tried before to leave me but you haven’t got the nerve
To walk out and make me lonely, which is all that I deserve
You'll never leave me and you know it's true,
Cause you like me too much and I like you.

(You Like Me Too Much – The Beatles)


Starbucks, Londres, Segunda-feira, 18:03h

empurrou a porta e tirou o casaco enquanto caminhava até o balcão. A menina parada atrás do caixa ajeitou os óculos que escorregavam pela ponta de seu nariz enquanto ela olhava para baixo, encarando algo que parecia carregar nas mãos. se aproximou e se inclinou sobre a bancada para ver o que mantinha a garota ocupada. Assim que ele se apoiou sobre a superfície de madeira escura, ela se deu conta de sua presença e ofegou, surpresa.
- O que você tem aí? – ele perguntou sorrindo.
- Ah, nada... – Kassandra respondeu, erguendo as mãos para mostrar que estavam vazias. tivera esperança de que fosse o celular da menina, mas ela estava apenas mexendo nas próprias unhas.
- O que você tem pra me contar?
- Nada... – suspirou. – Foi um desastre, .
- Não! – exclamou, surpreso, mostrando-se um pouco preocupado. – Por quê?
- Eu me arrumei, passei perfume, mas não muito, não cheguei cedo demais... – enumerou. – Fiz tudo que você disse, mas quando eu cheguei, o Mark nem olhou pra mim direito. – finalizou.
- Oh, Kassie. Tenho certeza que você está exagerando. – respondeu sorrindo carinhosamente.
- Não estou! – a garota insistiu, ainda desanimada. – Ele até disse oi pra mim, mas depois de dez minutos ele foi embora com a Laurel Hartmann.
- Laurel Hartmann? Nós gostamos dela?
- Nós não gostamos dela!
- Não gostamos, certo. – repetiu. Então balançou a cabeça para os lados lentamente, incrédulo. – Ninguém em sã consciência escolheria Laurel Hartmann ao invés da melhor atendente de Starbucks do país.
Kassandra sorriu tímida e empurrou para cima mais uma vez os óculos de lentes grossas que faziam seus olhos castanhos parecerem muito maiores do que eram realmente, dando a leve impressão de que estavam sempre arregalados.
- Mas tudo bem, eu acho que aquele vestido realmente não ficou tão bonito em mim... – desconversou, parecendo conformada. – O que você vai querer hoje?
- Ei, ei, ei. – a repreendeu. – Eu tenho certeza que ficou. Mas sabe o que é, Kassandra? Garotos de 17 anos realmente não sabem muita coisa. – explicou sorrindo.
- É... – e sorriu tímida, antes de se virar de lado e apontar para o menu pendurado na parede. – Mas então, como está seu humor hoje?
- Ah... – o homem suspirou. – Hoje a escolha não será baseada no meu humor, e sim no dela. Me vê um café expresso bem forte que me dê muita energia pra ir enfrentar a fera.
Kassandra riu.
- Tão sério assim?
- Oh, bem sério. – assegurou. – Existe uma boa possibilidade de ela estar mais brava do que nunca. Você não faz nem ideia.
A garota se virou de costas por um instante, então estendeu o copo de papelão em direção a ele.
- Aqui está.
- Muito obrigado, Kassie. Se eu não aparecer amanhã de manhã, pode iniciar as buscas pelo meu corpo, por favor. – advertiu enquanto caminhava em direção à porta.
- Certo. – Kassandra riu. – Pode deixar.
abriu a porta de vidro, passou por ela e, antes de soltá-la, disse:
- Não se preocupe com Mark. Até ele perceber a bobagem que está fazendo, um "" já vai ter aparecido na sua vida. – brincou e sorriu, piscando charmosamente. – Tchau, Kassie.
Fechou a porta a tempo de ver Kassandra rir, parecendo ao mesmo tempo constrangida e satisfeita – como sempre – e acenar:
- Tchau, .
Ajeitou o casaco e levou o copo à boca, atravessando a rua enquanto caminhava de volta ao seu prédio. Chegando à portaria, parou, decidindo se subia as escadas ou se ia direto até o carro, estacionado a alguns metros. A dúvida, na realidade, era: ligar primeiro ou aparecer de surpresa? Ponderou sobre a reação de se aparecesse sem avisar e imaginou que provavelmente não seria das melhores. Foi até os degraus de mármore da entrada do prédio e se sentou na beirada deles, tirando o celular do bolso e discando o número que sabia de cor. Depois de muitos toques, ouviu o som da secretária eletrônica e respirou fundo.
- . Atende. – pediu. – Eu sei que você tá aí. – e fez uma pausa. – Você sabe que eu sei ser insistente, não sabe? – provocou sorrindo. Esperou um tempo maior dessa vez, e depois de mais alguns segundos em silêncio, cantarolou: - Eu ainda estou aqui... – então suspirou. – Vamos lá, . Atende. Se não eu vou até aí agora mesmo e você sabe que o porteiro vai me deixar entrar sem nem...
E, como planejado, ouviu o som do gancho e a voz da mulher:
- Vou ligar pra portaria agora mesmo e avisar que não é pra deixar ninguém subir. – disparou vitoriosa.
- Bom, sinto te informar que ninguém vai atender. O Terence parece ter dado uma saidinha... – explicou. Teve que segurar o riso ao ouvir o ganido do outro lado da linha.
- O quê? perguntou num tom de susto. – Como você sabe?!
- Tô na porta do seu prédio, linda. – mentiu descaradamente enquanto encarava os plásticos transparentes que cobriam os andaimes da obra no prédio em frente ao seu.
- Meu Deus, como você é insuportável! – exclamou, frustrada. – Não sei nem porque eu atendi! – disse mais para si mesma. E, percebendo que ela ia desligar, se apressou:
- Não, não, não, ... – mas já era tarde.
Suspirou e enquanto apertava redial, caminhou em direção ao carro. Se quisesse manter a história que tinha inventado, não podia demorar a chegar.
Estacionou alguns metros à frente do prédio de . Ao contrário do que tinha dito para ela, Terence não havia dado uma saída. Estava sentado na sua cabine, assistindo à pequena televisão em preto e branco sobre seu balcão. Mas era adepto à filosofia de que uma mentira pequena para poupar os sentimentos das pessoas não faz mal. E assim como havia previsto, o porteiro muito simpático, mas nada eficiente sorriu ao vê-lo, soltou uma piadinha que fez rir e abriu o portão, desejando-lhe uma boa noite com um aceno do chapéu.

Brown Street, 108, Londres, Segunda-feira, 18:17h

Quando ouviu o toque da campainha, não pôde acreditar que era quem ela pensava que era. Ficou parada por alguns segundos, de pé no meio da sala, sem saber o que fazer. Não era possível que estivesse ali.
Ainda não tinha desfeito a mala da viagem e ainda estava com a mesma roupa que usara durante duas horas e meia dentro do carro de Kayleigh, no trajeto de Northfield até Londres, e tudo que queria era um banho. Não estava com a menor vontade de lidar com agora, e uma parte do seu cérebro insistia para que ela ignorasse a campainha e se dirigisse ao seu quarto, rumo a um banho relaxante de duas horas na banheira, com direito a espuma e sais de banho. Mas quando a campainha foi substituída por batidas na porta de madeira, a curiosidade falou mais alto. Não ia abrir a porta, mas precisava conferir se era mesmo que batia, agora pela terceira vez, na porta da sua casa.
Caminhou lentamente, na ponta dos pés, para que a pessoa do outro lado não percebesse que estava ali. Ainda sustentando o corpo na ponta dos dedos, encostou o rosto ao olho mágico por um segundo, apenas para confirmar que era mesmo do outro lado da madeira branca.
- Eu tô vendo sua sombra por baixo da porta, . – sua voz grave ecoou soando divertida, e não conteve um xingamento por ter sido descoberta.
- Merda. – murmurou. E então mais alto: - Não quero falar com você agora.
- Abre a porta, ...
- Eu não tô a fim de brigar, . – disse, exausta, suspirando em seguida.
- Mas eu não vim brigar! – insistiu com a voz macia, mas não obteve resposta.
Então respirou fundo e pigarreou, antes de dizer com uma seriedade que pegou a mulher completamente de surpresa:
- , eu não estou aqui como , estou aqui como seu chefe e preciso falar com você. Abra a porta. Por favor.
E suas palavras foram tão neutras, tão impessoais, que a única coisa que pôde fazer foi desgrudar as costas da porta e se virar, completamente atordoada, para abri-la. Mas a expressão com a qual se deparou no rosto de ao abrir a porta deixava claro que ele definitivamente não estava ali como chefe. Ao contrário do que tinha dito, estava ali como , o tormento dos seus pensamentos, o malandro charmoso, sedutor e espertinho, que sempre sabia o que fazer e o que dizer para impeli-la a agir precisamente como ele gostaria. E era exatamente isso que o sorriso ladino no rosto dele dizia.
Mas quando a porta já tinha refeito metade do seu caminho de volta para separar os dois novamente, estendeu a mão e segurou a madeira, impedindo de terminar o movimento.
- Fechar a porta na minha cara, ? Jura? – perguntou, soando parte ofendido e parte brincalhão. E como acontecia com frequência, não soube ler sua verdadeira intenção.
- Sem brincadeiras, . – pediu, bufando, e soltou a porta. Virou as costas para ele e caminhou até o sofá. Ouviu o chefe fechar a porta e segui-la em silêncio, sentando-se ao seu lado.
olhava para a frente, o corpo reto, virado para a televisão desligada. , sentado de lado, de modo a encará-la, observava seu rosto em silêncio. Atendendo ao pedido da mulher, ele agora estava sério, analisando sua expressão, seus traços, como se ainda não soubesse todos eles de cor. E depois de um tempo quieto, murmurou:
- Não fica brava.
- ! Você tem noção do que aconteceu? Eu fiquei sozinha em Birmingham, sem ter pra onde ir e sem ninguém pra pedir ajuda! Você entende isso?! – ralhou. – É claro que acordar na hora certa é minha própria responsabilidade e eu sou uma imbecil por não ter conseguido, mas, ... – choramingou. – Custava ter ido até o meu quarto checar se estava tudo bem? Ou pelo menos ligar pra me apressar! Poxa...
- , eu não fazia a mínima ideia de que você tinha ficado pra trás. – disse sincero, olhando-a nos olhos.
Então mais uma pausa se deu antes de perguntar, sem conseguir disfarçar o desapontamento:
- Como você não deu pela minha falta?
- Não era minha função verificar a presença de todo mundo! Eu estava cheio de outras tarefas pra fazer. E pode ter certeza que Ruby e Julie já ouviram e ainda vão ouvir muito sobre isso. – assegurou.
- Não era sua obrigação como meu patrão, . – corrigiu, desgostosa. Na sua cabeça, pretendera completar a frase com: "era sua obrigação como meu...". Mas na hora de pôr as palavras para fora, elas não saíram. "Como meu" o quê? "Amigo"? Não parecia suficiente... "Namorado"? Não se atreveria... Deixou a frase morrer ali, mas ambos sabiam exatamente o que ela queria dizer.
- Desculpa. – respirou fundo. – Eu... Eu tava com outras coisas na cabeça. Me desculpa.
- Aham. – concordou azeda. Então provocou, cheia de veneno: - Outras coisas como... Chloe O’Hannoly?
E então, esquecendo-se do pedido claro para que deixasse as piadas de lado, não pôde conter um sorriso.
- Então é esse o problema? – questionou, jogando o corpo para trás, apoiando-se no braço do sofá e encarando com um sorriso divertido. – Isso é sobre a Chloe?
- Não, . Não é esse o problema. Isso não tem nada a ver com a Chloe. – retrucou mal-humorada, tentando consertar o erro. – Só estou comentando. É que você pareceu bem distraído quando eu te vi saindo com ela no sábado à noite.
deu de ombros e se defendeu:
- Saí com ela, mas eu vi você saindo com o na sexta. – justificou.
Para alguém de fora, aquilo poderia ter soado como ciúmes. Mas não era. E sabia que não era. não estava reclamando por ela ter saído com , estava simplesmente constatando um fato, declarando um acontecimento. Não tinha em seu tom um pingo de ciúme ou qualquer tipo de ressentimento. Ele estava só se justificando: se ela podia sair com outros, ele também podia. E por um momento, aquilo fez a mulher apertar o maxilar, irritada. Uma parte de queria mais que tudo que sentisse ciúmes dela. Que se queixasse por ela ter saído com , que gritasse e começasse a briga que ela tantas vezes começava – e que, mais vezes ainda, se segurava para não começar. Queria que suas entranhas queimassem de ódio só de imaginá-la com outro homem, assim como as dela queimavam pelo simples pensamento das mãos de outra mulher se embrenhando nos cabelos dele; a boca de outra mulher grudada à dele; outra mulher recebendo os mesmos toques que a faziam delirar. Outra mulher dizendo o nome de . O nome de seu .
Mas sabia perfeitamente bem que não era ciúmes que ele sentia e que não deveria se iludir. Semicerrou os olhos e balançou a cabeça para os lados, antes de refutar a desculpa medíocre do chefe:
- Eu não saí com . – negou. Então tentou se corrigir discretamente: – Eu não saí com na sexta. Eu saí com , Ruby, Declan e Ella. Fomos todos jantar.
- Na sexta. – repetiu devagar, exibindo mais um sorriso que ela não soube interpretar.
- O quê? – perguntou, confusa.
- Você disse: eu não saí com na sexta.
- Sim. – confirmou, encarando-o impaciente. – E é verdade.
- Certo. – concordou. E dessa vez entendeu aquele semblante. a pegara no flagra. – E sábado?
- O que tem sábado? – perguntou hesitante.
- O que você fez sábado, ? – perguntou calmamente.
- Eu saí com . Quero dizer... – corrigiu-se. – Eu saí. E saiu. E aconteceu de irmos para o mesmo lugar. Mas não é como se eu tivesse saído com dessa forma. Nós... Entende?
- Claro. – apertou os olhos, dissimulando uma expressão de compreensão enquanto segurava a vontade de rir.
- Assim... – continuou. – Nós fomos juntos, também voltamos juntos. Mas é só porque eu precisava sair e conhece a cidade. Definitivamente não saí com ele do jeito que... Você saiu com Chloe O’Hannoly. – a repetição daquele nome estava começando a nauseá-la e trazer-lhe à boca um estranho gosto de ervas e álcool.
- Certo.
- Nós... – quando começou, pela terceira vez, mais um de seus argumentos falhos, não pôde segurar a onda de deboche que sentiu de si mesma. Ela se sentir na obrigação de dar qualquer explicação a era, provavelmente, a situação mais absurda que poderia imaginar. E , pela gargalhada muda que ostentava no rosto, parecia concordar. Mas não deixava de ser impressionante a facilidade com a qual ele conseguia virar o jogo entre eles. Dois minutos em ação e já tinha conseguido desviar a atenção de si mesmo e pior: fazer sentir que havia feito algo errado.
Então ela suspirou e deixou uma risada escapar, afundando o rosto nas mãos em frustração. Podia ser mais patética? Balançou a cabeça para os lados. vivia dizendo que ela sofreria demais e sem necessidade se continuasse incapaz de rir de si mesma.
Encararam-se, pensando exatamente a mesma coisa, e a risada que estivera prendendo saiu num som arranhado. Ele abaixou a cabeça, deixando-a pender em direção ao colo de e se pôs a rir em silêncio, seus corpos balançando levemente com o riso.
Ela levou as mãos aos cabelos dele e passou a mão pelos fios macios, acariciando o topo de sua cabeça delicadamente. Ficaram mais algum tempo naquele silêncio sereno, até que disse com a voz baixa, suave:
- Eu realmente não sabia que você não tinha ido. – e virou o rosto, de modo a olhar para ela novamente, mas ainda encarava a frente. – Você sabe que eu não te deixaria sozinha se tivesse percebido. Não sabe?
Ela suspirou.
- Eu sei. – tranquilizou-o, os dedos ainda percorrendo seus cabelos.
- Ei, eu tenho um presente pra você.
ergueu o tronco lentamente, e dessa vez girou o corpo, de modo a encará-lo também.
- Já veio preparado pra me comprar caso eu não aceitasse suas desculpas? – ela perguntou, balançando a cabeça para os lados em reprovação.
- Na verdade, não. – admitiu, rindo, enquanto curvava o corpo para alcançar o pacote no chão, ao lado dos pés. – Mas é uma boa estratégia, não é? Vou me lembrar disso da próxima vez. – brincou, recebendo um tapa estalado na escápula.
Ele estendeu o embrulho para ela e esperou por sua reação, enquanto observava rasgar o plástico. E sua boca acompanhou o movimento dos lábios dela, que se abriram num sorriso quando ela pôs os olhos na capa do filme.
- Tá aí seu 398.
- Você tá brincando. – exclamou, a voz afetada pelo tamanho do sorriso em seu rosto. – Como você achou? – perguntou entusiasmada, ajeitando a posição no sofá enquanto analisava o filme. Colocou as pernas em cima das almofadas e cruzou uma sobre a outra.
- O que te faz pensar que eu vou divulgar o segredo do sucesso? – perguntou, recostando-se contra o sofá e esticando o braço sobre o encosto, de modo a pousá-lo atrás de . Então intimou, brincando de forçar uma voz mais grossa e autoritária: - Agora vai fazer uma pipoca e coloca esse filme aí pra eu ver se ele vale o trabalho que deu.
E sorriu ao pensar em como ele a conhecia. Sorriu com os lábios, com os olhos, com o espírito, sentindo seu interior transbordar de alegria. Alegria por tê-lo ali, alegria por preencher de novo aquele vazio que assolava seu peito quando não estava por perto. Rolou os olhos para a pose autoritária, mas levantou-se rindo contente e soltou um grito agudo quando desferiu um tapa na sua bunda antes de se esticar no sofá.


14

Hey, baby, won't you look my way, I can be your new addiction
Hey, baby, what you got to say, all you're giving me is fiction (...)
It started with a whisper and that was when I kissed her (...)
Hey, honey, you could be my drug, you could be my new prescription
Too much can be an overdose (...)
Hey, sugar, show me all your love, all you're giving me is friction

(Everybody Talks – Neon Trees)


BBDO, Londres, Terça-feira, 11:52

- Eu estive pensando numa coisa. – levantou a cabeça após alguns minutos de silêncio.
o olhou, esperançosa, para finalmente ouvir alguma ideia do colega. Aquele estava sendo o brainstorming mais silencioso da história da publicidade. – Semana passada eu assisti a um filme que me fez lembrar você, porque fiquei me perguntando o que você ia achar dele. Era sobre uma mulher e um homem americanos que se mudam para a China, lá pelo século... Dezenove? Sei lá. Mas então...
franziu o cenho, confusa, e interrompeu o colega:
- , o que você vai falar tem qualquer coisa a ver com isso? – perguntou, apontando para os míseros papeis soltos sobre a mesa, preenchidos pelas ideias precárias.
- Hm... Mais ou menos. – ele ponderou, mascando lentamente o chiclete que tinha na boca.
suspirou alto e largou o rosto sobre os braços.
- O que tá acontecendo com a gente hoje?
- Então, . Era exatamente sobre isso que eu ia falar. Eu tenho uma teoria.
- Sou toda ouvidos.
- Na verdade, eu tenho uma proposta. – consertou.
- Oh, meu Deus. – ela disse, sarcástica. – Você não vai se ajoelhar agora, vai?
- Segura a ansiedade. Não chegamos lá ainda. – disse e piscou, antes de continuar: - Sendo você uma redatora, e eu, um diretor de arte, basta analisarmos superficialmente algumas peças publicitárias para perceber que seria impossível construí-las sem pensar no texto dela, da mesma forma que não conseguiríamos criar um bom texto sem imaginar seu layout.
balançou a cabeça para os lados, confusa.
- Eu tô tão mal que você decidiu me explicar minha própria profissão agora, é isso?
sorriu.
- Não. – e continuou: - É exatamente por isso que o trabalho da dupla de criação não funciona se cada um simplesmente fizer sua parte separadamente. Senão não faria sentido nos chamarmos "dupla", concorda? – e pausou, continuando apenas depois que balançou a cabeça afirmativamente. – Redator e diretor de arte têm que criar juntos. – disse significativamente, e completou empolgado: - Então acompanha minha conclusão: é crucial, , preste atenção na minha escolha de palavras, crucial...
- Para de falar como se fosse um anunciante da Polishop.
- ... Que exista um bom relacionamento entre a dupla de criação. O diretor de arte e o redator precisam estar sintonizados, se entenderem, trocar referências, ideias, informações e conversar sobre tudo, mesmo coisas que pareçam bobagem. Mentes em harmonia com certeza fazem com que boas ideias surjam com mais facilidade, o que resulta, pense comigo, no nosso objetivo.
- Criações melhores. - completou, e o sorriso de cresceu no rosto.
- Exatamente. – concordou, parecendo orgulhoso. – Então, resumindo a conversa... Eu acho que a gente deveria investir em uma melhor relação profissional.
- Certo... – ela disse lentamente, com vontade de rir da forma como levava a conversa. – E como faríamos isso?
- Se conhecendo melhor. – ele deu de ombros. E, antes que ela pudesse dizer mais nada, rolou os olhos e esclareceu: - Fica tranquila, . Eu não estou te chamando para um encontro. – disse lentamente.
O comentário fez a mulher rir, e ela abriu a boca, indignada.
- Por que você tá falando isso? – defendeu-se. – Eu não disse nada!
- Tá. – concordou, dando de ombros. Então, para provar que tinha razão, num golpe de atrevimento, disse: - Como se você fosse aceitar se eu chamasse.
E só depois que as palavras já tinham saído da sua boca é que percebeu que soavam muito mais como um convite do que ele gostaria.
Não que ele não quisesse fazer o convite. Queria e muito. Só não queria ouvir a resposta. Porque sabia qual seria: um não tímido, seguido de alguns minutos de silêncio desconfortável. Por isso evitou fazer o convite, o que, na verdade, não impediu que fossem presentados com alguns minutos daquele silêncio desconfortável. Pois lá estava ele. Preenchendo o cômodo inteiro enquanto encarava , tão ciente quanto ele do convite velado na frase.
Sem muita vontade de dizer qualquer coisa, mas atormentado pela necessidade gritante de sair daquela situação, finalizou:
- Bem... Imaginei. – disse baixo. Forçou os lábios num sorriso que tentava restaurar o clima anterior, sem muito sucesso. Funcionou, no entanto, perguntar com um sorriso animado: - Então? Proposta aceita?
- Proposta aceita. – confirmou, sorrindo-lhe de volta.
- Certo. – então conferiu o relógio em seu pulso e, ansioso por sair dali logo, justificou: - Horário de almoço. Você vem?
Ainda estava um pouco sem graça, a verdade é que chamara mais por educação.
E ela pareceu perceber, porque enquanto mordia com mais força a tampa da caneta que tinha em mãos, disse:
- Obrigada. Vou mais tarde.
E enquanto a porta se fechava atrás de , se fechava em sua mente. Suspirou e jogou a cabeça para trás, deixando-a pender sobre o encosto da cadeira.
Frustrante. Nenhuma palavra melhor para o sentimento que tomava conta dela naquele momento. Frustrante sentir uma leve e inesperada vontade de aceitar um convite de alguém de quem não gostaria nem de ter se aproximado para começar. Frustrante ignorar quem a tratava bem e tratar bem quem a ignorava – e, pior: sentir-se incapaz de agir diferente. Frustrante como podia fazê-la se sentir a mulher mais especial do mundo em um segundo, e a mais insignificante logo no próximo.
E aquela frustração cresceu, de início inibida, e então mais densamente, até que atingisse o próximo nível: indignação. E o próximo ainda: revolta. Aquela vontade tão poderosa de assumir o controle e mudar o que não te satisfaz. Afinal, se queria sair com ela, por que ela deveria recusar? Não precisava deixar de se divertir ou fazer nada por causa de . Ele não deixava – por que ela deixaria? E um pensamento passou pela sua cabeça, e ele era tão egoísta que ela se envergonhou, mas o estrago já estava feito. Naquele momento, pensara: se ela era o brinquedo de alguém, por que não podia ter um também?
Levantou-se de súbito, contornou a mesa e caminhou decidida até a porta pela qual acabara de passar. Olhou para os lados e o viu à sua direita, ao final do corredor, esperando o elevador.
Cravou os olhos em seu objetivo e caminhou a passadas tão firmes que chamaram atenção do colega quando ela ainda estava a uns bons passos de distância. Talvez sua determinação estivesse estampada no rosto, porque ao encará-la, a feição de assumiu um ar intrigado.
e o elevador alcançaram no mesmo instante, e a porta metálica que se abriu para o compartimento vazio foi exatamente o que a mulher precisava. Ela levou a mão ao casaco dele e o puxou para dentro do elevador consigo.
Pararam frente a frente, encarando-se. Ela, resolvida. Ele, tão perdido... Mas o olhar dela era como um ímã, e como se obedecesse a uma lei da física, olhou, olhou e continuou olhando, sustentando aquela mirada irrefreável.
Então a campainha do elevador soou, indicando que as portas haviam se fechado, e foi como ouvir o sinal de largada. levou as mãos à nuca de e alcançou seus cabelos, emaranhando os dedos pelos fios s e sentindo sua textura. Os olhares ainda presos um no outro, a atração do ímã parecia cada vez mais forte à medida que a distância entre eles diminuía. não pôde impedir que suas mãos pousassem nos quadris da colega, mas seu rosto não se moveu um centímetro sequer. o olhava significativamente enquanto se aproximava e então, depois de um segundo que pareceu se desenrolar por minutos, estavam se beijando.
Suas línguas se moviam rápido, os subconscientes muito bem informados de que aquele momento acabaria logo.
A outra mão dela se juntou à primeira ao redor do pescoço de , e enquanto tentava conciliar o beijo com o fato de que precisava, inadiavelmente, respirar, o perfume do colega invadiu seus pulmões e o efeito foi muito maior do que ela esperava. Percebeu que seu hálito tinha um leve gosto de nicotina misturado aos chicletes de menta que muitas vezes o via mascar. geralmente não gostava do cheiro ou sabor de cigarros, mas, estranhamente, naquele momento, a mescla daquele gosto com o perfume que usava e o odor naturalmente fresco que sua pele tinha a deixava inebriada.
Ela não imaginara que beijá-lo fosse ser tão bom. Na verdade, não se lembrava com muita clareza do beijo que haviam trocado alguns meses antes no telhado do prédio. Mas definitivamente não se lembrava de ter sido tão incrível quanto estava sendo naquele momento.
E então, como quem é arrancado violentamente de um sonho agradável pelo barulho do despertador, a campainha soou novamente, anunciando a chegada ao térreo. Num momento muito oportuno de lucidez, se desvencilhou dos braços de e atirou o corpo em direção à parede contrária a tempo de ver a porta de metal sumir.
Duas mulheres mais velhas e um homem, que ela achava já ter visto caminhando pelo setor financeiro, estavam à sua frente, esperando que e saíssem. E assim ela fez. Sem olhar para trás, puxou a barra da camisa para baixo, certificando-se de que estava no lugar, e cruzou a porta do elevador. Apenas para ser observada por , ainda estático no mesmo lugar.
Assistiu à colega ir embora, boquiaberto, e piscou algumas vezes. Sua visão começara a ficar um pouco embaçada, e não sabia se era por se sentir tão confuso ou por causa da maldita luz do teto do elevador que tremulava sobre sua cabeça e já o vinha deixando incomodado há dias.
Respirou fundo, colocando as ideias em ordem e repassando os últimos minutos em sua mente. o havia beijado, o que não fazia sentido.
Mas desde quando mulheres faziam sentido para ele?
E então ele entendeu. Quando ela queria, ele tinha que querer. queria se fazer de difícil, era isso. Mas tudo bem. Porque também sabia jogar esse jogo.
E foi só então que se deu conta de que, perdido em pensamentos, já havia retornado ao 7º andar, ainda paralisado no mesmo lugar dentro do elevador. Sacudiu a cabeça e voltou a apertar o térreo sob o olhar torto do homem do financeiro, que provavelmente se perguntava por que diabos um homem já com barba na cara ainda se divertia passeando de elevador.

BBDO, Londres, Terça-feira, 13:26

O celular de tocou na mesma hora em que a porta do elevador se abriu à sua frente. Conferiu o nome no identificador antes de apertar o botão do 7º andar.
- Fala, .
- E aí? – ele cumprimentou animadamente como sempre fazia, como se todo diálogo nessa vida fosse motivo de alegria. – Como foi o fim de semana na casa da mamãe?
- Melhor do que o seu, afundado no sofá comendo Oreos fora da validade.
gargalhou.
- Justo. Então me ajude a melhorar o resto da semana. Preciso de um favor.
- Sério? – perguntou rindo, irônico. E quando é que não precisava de um favor?
- Deixa eu te perguntar... Você vai usar a Charlotte hoje?
franziu o cenho e saiu do elevador antes de dizer lentamente:
- Ela não é uma camisa, .
- Você vai? – insistiu.
- Não! Eu nunca uso a Charlotte.
E a risada de , tão tipicamente tonta e maliciosa dele, ressoou do outro lado da linha.
- Depende do que você quer dizer com us...
- Porra, . Você é doente. – repreendeu, sem conseguir, no entanto, reprimir a risada que o humor sujo e infantil do amigo sempre lhe arrancavam. – O que você quer?
- Eu combinei com essa garota de levar nossos cachorros pra passear no parque amanhã. Ela tem um Golden chamado Lucky e...
- E você não tem cachorro nenhum. – completou.
- Exato.
Estava prestes a entrar na sala que dividia com quando percebeu que ela não estava sozinha. estava com ela, o corpo apoiado sobre sua mesa enquanto conversavam. conferiu o relógio em seu pulso.
- , eu preciso desligar. Meu horário de almoço termina agora e meu chefe tá na minha sala me esperando. A coleira dela tá no armário do corredor e lembra que ela precisa comer antes de sair. Pode passar aqui pra buscar a chave comigo.
comemorou do outro lado da linha.
- Valeu. E eu ainda tô com aquela chave.
- Ok. Se acontecer qualquer coisa com ela eu quebro a sua cara. E já tá mais do que na hora de você me devolver essa porcaria de chave. - finalizou.
Pôde ouvir agradecer mais uma vez antes de desligar e jogar o celular no bolso da calça, entrando na sala em seguida.
- ! – chamou ao vê-lo entrar e o sorriso em seu rosto cresceu. Levantou-se da mesa onde estivera escorado e caminhou alguns passos até que se encontrassem lado a lado. – Como vão as coisas? – perguntou, passando o braço por volta dos ombros do outro.
- Tudo bem.
- Ótimo. Estávamos te esperando, então vamos direto ao assunto. – disse, esfregando as mãos. – Recebemos convites para o jantar da IPM Awards desse ano. – anunciou.
- Sério? – se impressionou.
sorriu. Institute of Promotional Marketing realizava todos os anos uma cerimônia de premiação de campanhas publicitárias lançadas ao longo do ano, e era um dos maiores eventos de networking da área. A BBDO tinha marcado presença nos últimos anos e nem sempre era especialmente divertido, mas era um dos melhores eventos para conhecer clientes, colegas e concorrentes. No ano anterior, só não fora embora cedo porque estava com , e é o tipo de pessoa que faz qualquer coisa parecer divertida. Além do mais, era ele quem tinha os contatos no ramo e quem sabia fazer as conexões que poderiam ser interessantes. Ele continuou:
- Temos uma mesa, e eu imaginei que nada mais justo do que levar minha dupla de criação. – e alargou ainda mais o sorriso que parecia nunca sair de seu rosto. – O evento é dia 26, último sábado de outubro.
- Soa ótimo. – confirmou, então olhou para .
A mulher olhou dele para o chefe, então para ele novamente, e se não se lembrasse claramente de tudo que ela falara naquela noite no cassino, provavelmente não poderia imaginar o que estava passando pela cabeça da mulher naquele momento. Mas ele lembrava. E, portanto, imaginava perfeitamente o que aquele olhar, oscilante entre os dois homens, tentava esconder.


15

I'm feeling emotionless, my head's so clear
My enemies aren't the one I fear (...)
If only love could find us all, if only hearts didn't have to fall (...)
And if somehow fate were in my hands
Would it be enough to understand why we feel lost in a world so small
If only love could find find us all...

(If Only – The Calling)


Flashback, 3 anos antes
Green Street, 61, Londres – Domingo, 10:40


Observou as dobras do lençol branco. A luz da manhã batia preguiçosamente sobre elas, e o quarto inteiro estivera em silêncio por um bom tempo. Tanto tempo que , fechado em seu mundinho particular, quase esquecera que não estava sozinho. Até que a voz fina atrás dele o lembrou do contrário.
- ? – ela chamou.
virou a cabeça devagar. Olhou para o seu rosto por alguns segundos, até que seu nome lhe viesse à mente. Lorelai. E antes que se perdesse em pensamentos novamente, precisou se concentrar, porque percebeu que os lábios de Lorelai se moviam.
- ... Eu estive pensando se você não gostaria de ir comigo.
Fitou o rosto dela por mais algum tempo, perguntando-se onde diabos ela queria que ele fosse. Sorriu brandamente, apoiou o cotovelo sobre a cama e a cabeça sobre a mão.
- Ir aonde? – perguntou, tentando não parecer tão indiferente quanto realmente se sentia.
- No casamento da minha irmã. – ela disse como se fosse óbvio. – É esse fim de semana e eu... Sinceramente, , você não ouviu nada do que eu falei?
- Eu me distraí um pouco. – justificou sem grandes preocupações.
Ela respirou fundo e tentou mais uma vez.
- Minha irmã vai se casar esse fim de semana. E eu pensei que talvez você pudesse ir comigo, seria uma oportunidade legal pra você conhecer todo mundo, seria divertido.
- Conhecer... todo mundo? – repetiu.
- É. Minha família.
enrijeceu. Aquilo não estava nos planos. O alerta vermelho em seu cérebro de repente estava ligado, e sem que ele precisasse falar nada, a expressão estampada em seu rosto já havia deixado claro o quanto aquele convite lhe atraía.
- Poxa, . – ela disse, parecendo chateada. – Já faz quase dois meses que a gente tá junto. – murmurou, seu queixo ossudo quase encostado no próprio colo enquanto ela olhava para baixo desanimadamente.
ficou em silêncio por um momento, fitando o rosto da mulher, e se deu conta de que não tinha argumentos para discutir: se ela tivesse dito uma semana, ele acreditaria. Três meses, também. Ele, no entanto, não definiria a situação deles como "juntos". Para falar a verdade, não tinha nem reparado há quanto tempo ela estava por ali, e não se surpreenderia se a mulher que estivera deitada exatamente no mesmo lugar três dias antes não fosse ela. Não diria que estava "junto" com nenhuma das mulheres que passavam por ali. Era mais como ter seus lençóis trocados pela camareira de um hotel: são trocados sem que você nem perceba, e antes que se dê conta, há um novinho em folha estendido sobre a cama. Exatamente como aquelas mulheres.
E a verdade era que não se importava. Não fazia nenhum esforço extraordinário para que estivessem ali, e também não se incomodaria muito se não estivessem. Mas elas estavam, e era mais fácil aproveitar durante algumas horas do que fazer qualquer outra coisa a respeito. Elas iam e vinham; ao contrário do vazio em seu peito, que parecia ter se instalado de vez. Assistia quando iam embora – às vezes tranquilamente, às vezes indignadas – com uma indiferença assustadora. Tão incrivelmente insensível que teria assustado até a si mesmo, mas nem isso conseguia mais.
Aquele estado estava durando muito mais do que pensara que duraria. Como quando você leva um fora, todos dizem que "vai passar" e, no fim das contas, realmente passa. Mas dessa vez fora muito mais do que isso. Muito, muito mais. Não tinha sido um "fora", e não passara. Fora algo mais como um tapa na cara, frio, cortante, vindo da mão que segundos antes lhe acariciara e limpara suas feridas. Como ter seu interior revirado, arrancado, cuspido e pisado, bem à sua frente, enquanto assistia o resto da sua vida desmoronar.
Porque era assim que ele via a situação. Como um jogo de dominó que desaba, irrefreável. E as pessoas, assim como as peças, foram caindo, uma a uma. Seus pais, Colin, Freddie. E então ela. Por livre e espontânea vontade, ela, deixando para trás um beijo que queimou e uma justificativa que não era o suficiente. E a assistiu virar as costas e ir embora, ao som dos guinchos de choro da nova namorada de Freddie, cuja presença, tinha certeza, nem o próprio Freddie faria questão de ter. E lá estava ele, com as mãos sujas de terra, ao lado de Becca, Becky, Betty ou o que quer que fosse, sentindo-se sozinho ainda que estivesse rodeado de rostos familiares, enquanto a noite caía sobre o Highgate Cemetery.
"Sabe o quê?" ela dissera com a voz fanha, no momento em que as pessoas começaram a se dispersar. "A única coisa da qual tenho certeza é que ele não gostaria de nos ver sofrendo". se perguntou o que o irmão estivera pensando quando decidiu enfiar a língua na garganta daquela garota. E enquanto olhava para o rosto dela, repugnado com as palavras tão banais e vazias, desejou, como havia feito com cada uma das pessoas que lhe prestara as condolências naquele dia, que houvesse sido ela dentro daquele carro. Ela, e não Freddie. Ela, não sua mãe, não Colin, não seu pai. Ela no lugar de qualquer um, um só que fosse. Então talvez ele não se sentiria tão sozinho.
No entanto, ali estava ela, enquanto seu irmão mais novo descansava no caixão branco que sua visão periférica captava à sua direita. Assim como Colin, o caixão não passava de um metro de altura. E estivera fechado durante todo o velório.
E ainda olhando para Becca, Becky, Betty ou o que quer que fosse, que com os olhos molhados ainda esperava por uma resposta, percebeu como além de extremamente inconveniente, ela era feia quando chorava. Sem que pudesse evitar, seus pensamentos se voltaram para ela. Astrid era linda quando chorava. Aliás, era linda quando ria, quando dormia, quando piscava sonolenta na tentativa de se manter acordada durante os filmes que gostava. Era linda quando penteava os cabelos longos e ruivos, quando reclamava do frio e quando partia seu coração. Era linda.
E a voz de Lorelai voltou, tão distante que parecia vir de outro mundo.
- Tudo bem, eu entendo. Então talvez você queira me apresentar aos seus pais? - propôs insegura.
- Não. – respondeu prontamente. Ao ver o rosto da mulher começar a se deformar num misto de surpresa e indignação, a boca se abrindo no que parecia ser uma possível briga, apressou-se a explicar: - Eu não tenho pais. Eles morreram.
Imediatamente, viu o rosto dela voltar a relaxar, assumindo uma expressão branda, macia, e então veio aquele semblante de pena. Não fora com esse intuito que falara aquilo, mas não pôde deixar de apreciar o efeito. A julgar pela expressão da mulher, ela não tinha mais intenção nenhuma de gritar ou brigar com ele.
- Oh, ... Sinto muito!
- Tudo bem. - disse displicentemente.
- Oh, meu Deus, eu não sabia... - ela continuou como se ele não tivesse falado nada ou como se estivesse prestes a chorar como uma criança pedindo colo.
- Não tinha como saber. – ponderou no mesmo tom indiferente.
- Você não tem... irmãos? Ou família?
- Não.
- Ninguém?
- Ninguém.
O rosto da mulher foi ficando cada vez mais angustiado, enquanto ela parecia se afogar em toda a pena que sentia. não suportava aquilo. Não suportava, pelo simples fato de não ser necessário.
- Está tudo bem. - acalmou-a. – Já faz um tempo.
Continuaram se encarando por um tempo, durante o qual torceu para que ela simplesmente lesse sua mente e ele não precisasse explicar tudo aquilo numa conversa de horas. Porque, na verdade, a versão resumida era simples e direta: ele não se importava. Não se importava com a cara de compaixão que ela fazia, não se importava de não ter ninguém, não se importava dos quatro rostos no porta-retrato ao lado de sua cama não passarem de uma fotografia.
E havia sido desse jeito pelos últimos tempos. A sensação cortante na boca de seu estômago, que o assolara por mais algumas semanas após o dia do enterro, avançou para o que inicialmente parecera depressão, até que alcançasse um nível exorbitante de apatia. Uma crosta irredutível de insensibilidade para o que quer que fosse. Desde mulheres rejeitadas chorando na sua cama até filhotes de cachorro sarnentos na rua. Simplesmente não se afetava.
Já começara a se acostumar com a ideia de que aquilo não era um estado, era uma essência. Sua nova estrutura, seu novo eu. E parecia melancólico, mas uma vez mais: não se importava o suficiente sequer para se importar.
Lorelai ainda fitava seu rosto perplexa, mas o olhar de já tinha se perdido atrás dela mais uma vez, encarando os rostos sorridentes do retrato de sua família, enquadrado por uma moldura preta e triste, que viria trocar por um porta-retrato colorido alguns meses mais tarde.
End of Flashback

BBDO, Londres, Sexta-feira, 18:20


, encostado contra a grande janela de vidro que preenchia quase todo o cômodo, tomou mais um gole de água enquanto observava correr de volta para dentro da sala. Assistiu tranquilamente à colega se curvar sobre a mesa e digitar apressadamente algumas coisas no computador. Ela então virou a cabeça para a porta de novo:
- BETH! Aconteceu de novo! – levou as mãos aos cabelos, frustrada, caminhou a passos fortes até o centro da sala, arrependeu-se e voltou para o computador. - Não é possível que numa merda de empresa desse tamanho não haja um provedor de internet que funcione! Beth, - chamou de novo, gritando para o corredor - liga pro Connor agora. Preciso do meu e-mail aberto em 5 minutos, não quero nem saber. – ordenou com firmeza.
consultou o relógio em seu pulso e disse sereno:
- São mais de 18 horas. Você sabe que seu horário já acabou, certo?
- Sei. – ela respondeu, bufando. – Acontece que, por algum motivo, Beth, essa ameba ignorante, achou que hoje seria um dia propício pra trazer a peste da filha pro escritório. Como ela achou que íamos conseguir trabalhar com essa fedelha gritando o dia inteiro? – indagou incrédula.
- Uh... – hesitou, admirado pela falta de sensibilidade da colega. – A garota tem 4 anos e não tinha com quem ficar. – defendeu.
- Eu sei. – admitiu. – Mas eu realmente preciso colocar essa campanha no ar hoje, e essa pivetinha não ficou quieta o dia inteiro! – choramingou, fazendo rir.
- Relaxa, ... Cadê seu instinto maternal?
Curvada novamente sobre o notebook, ela apenas revirou os olhos e soltou um ruído de descaso:
- Instinto maternal é para as fracas.
- Oh. – ofegou, surpreso, rindo. – Certo.
E foi interrompido por , que gritava para Beth, porém dessa vez pelo telefone:
- Beth, não me faça perder a paciência.
- Uau. – comentou casualmente. – Com esse bom humor todo, quem não estaria ansioso pra sair com você? - ponderou com o rosto inexpressivo.
A mulher levantou os olhos da tela, encarou por um segundo, então riu, soltando o rosto sobre os próprios braços.
- Ah... Me desculpa, . – balançou a cabeça para os lados, com um resto de sorriso no rosto. – Desculpa. Eu só preciso terminar isso aqui, eu realmente preciso colocar isso no ar hoje. E aí a gente vai. E de bom humor. – acrescentou sorrindo. – Prometo.
- Ok. – concordou. Ele sorriu e assentiu com a cabeça, ainda encostado contra o vidro, e esperou.
- Você já pode pelo menos me contar agora qual é o nosso destino misterioso? – ela perguntou interessada.
- Posso. Nós vamos assistir a uma peça, uma performance, na verdade, de um grupo de teatro peruano chamado Yuyachkani. Eles estão em Londres pro Festival Internacional de Teatro.
levantou os olhos da tela do computador.
- Peruano? Mas o espetáculo é em inglês?
- Não.
- ! Eu não falo espanhol. – ela franziu o cenho e ele sorriu.
- Eu sei que não. As performances deles são muito visuais. Além disso, vai ser interessante ver como uma redatora vai se virar sem as palavras.
sorriu e moveu a cabeça, concordando. Quando voltou a atenção para o computador, uma ideia lhe surgiu à mente e seu rosto se iluminou antes de se virar para novamente.
- Ei, já até sei qual vai ser nosso segundo programa. – soltou animada, sem pensar. Então se sentiu envergonhada. Não era como se ela estivesse chamando o colega para sair, mas foi essa a sensação que teve. Afinal, quem garantia que haveria um segundo programa?
sentiu as bochechas esquentarem, e pareceu perceber seu embaraço, porque sorriu satisfeito.
- E qual vai ser? – perguntou com naturalidade. pigarreou, tentando superar o momento de timidez e perguntou:
- Você já foi ao Restaurante Cego? – ao que ele negou com a cabeça. – Vai ser interessante ver como um diretor de arte vai se virar sem imagens. – repetiu a fala dele, piscando em seguida. Então olhou para o computador de novo e exclamou de repente: – Ei, consegui!
- Acabou? – indagou, desencostando-se do vidro ao vê-la abaixar a tela do notebook.
- Sim, finalmente. Estamos livres. – disse, começando a recolher suas coisas.
- Ótimo. Ainda temos uma hora pra chegar lá. Viu como não tinha motivo pra estresse?
- Pode até ser que não estejamos atrasados, mas que aquela criaturinha atrasou nosso trabalho em... – consultou o relógio em seu pulso. – Trinta e sete minutos você não pode negar.
- Certo. – apenas riu, balançando a cabeça para os lados.
- É sério. Quando eu me casar, eu e meu marido vamos ter que entrar num acordo sério antes de sequer pensar em produzir uma dessas. – discursou, enquanto tirava o casaco do encosto da cadeira para vesti-lo.
apenas deixou escapar uma risada abafada, soltou um som nasalado de descrença e disse:
- Certo.
- Que foi? - o encarou. - Qual a graça nisso?
- "No dia em que você se casar"? - repetiu. - Como se você algum dia fosse deixar qualquer coisa que não seja sangue entrar nesse seu coraçãozinho de pedra. – provocou. Mas imediatamente, percebeu que tinha feito a brincadeira errada. tinha paralisado o corpo no mesmo lugar, encarando-o em silêncio. pigarreou, sem graça, e ela continuou observando o rosto do colega com uma expressão que ele não soube decifrar. Até que disse, provocante, depois de alguns segundos de silêncio:
- Eu já fui noiva.
- Já? – soltou, surpreso.
Ela apenas assentiu com a cabeça.
- E o que aconteceu? – perguntou, agora curioso, mas com cautela. Sabia como ela não gostava muito de se abrir.
- Nós não nos casamos.
- Certo. - disse , rolando os olhos. Essa parte ele podia ter deduzido sozinho. Esperou que ela continuasse a história, mas não o fez. Então insistiu: - E por que não?
- Por que você acha que não nos casamos, ? - ela desafiou. Então, antes que ele tivesse tempo de falar qualquer coisa, disse: - Não, não fala. Poupa seu fôlego. Deixa eu tentar adivinhar: você acha que meu noivo desistiu de mim porque eu sou chata, amarga, rabugenta, e ele não aguentou minhas mudanças de humor, meu sarcasmo, meu temperamento inconstante? – perguntou, os olhos apertados com cinismo. - Não acha, ? Bem... Você errou. - disse secamente, levantando-se e caminhando a passos largos até a porta, sem dar-lhe uma chance de responder.
, ainda surpreso pelas palavras dela e, como sempre, pela súbita mudança de humor, ficou parado, a boca aberta e as palavras presas na garganta, enquanto pensava mas eu não disse nada.
Ao que provavelmente teria respondido: não disse, mas pensou.
Ficou parado no lugar por alguns instantes, ainda assustado pelo desentendimento repentino e pela confissão da colega. Soltou o ar pela boca, frustrado. Não devia ter provocado para começar. E se ainda quisesse salvar o resto do dia e o novo acordo com , era melhor se apressar.
Pegou seu casaco, sua pasta e correu porta afora, chamando o nome dela, na esperança de encontrá-la antes que entrasse no elevador.


16

Too many voices, too many noises, invisible wires keeping us apart (...)
So tonight let's be honest: we all want to be wanted
And, darlin', you've got me wantin' you (...)
Climb into our own private bubble, let's get into all kinds of trouble (...)
Girl, stop your talking, words just get in the way
I'll be your man

(I'll Be Your Man - James Blunt)


Brown Street 108, Londres, Sábado, 17:20h

alisou o vestido azul escuro enquanto observava o próprio reflexo, de lado, no grande espelho pregado na porta do armário. Pegou o rímel sobre a cama e tentou mais uma vez alongar os cílios, que nunca ficavam do tamanho que ela queria. Olhou-se no espelho pela milésima vez antes de separar as coisas que colocaria na bolsa.
Não que estivesse especialmente ansiosa para o resto da noite, mas era uma das maiores cerimônias de publicidade, estar lá era um privilégio e causar boa impressão era uma obrigação. É fato que a ideia de passar a noite numa festa com e não era a primeira coisa que lhe vinha à mente quando pensava em um programa agradável. Não eram exatamente os Três Mosqueteiros. Apesar de que o último encontro com não havia sido nem um pouco ruim. Ele a alcançara no elevador e depois de dois pedidos de desculpa e uma piadinha, conseguiu convencê-la a assistir a peça. O que acabou sendo muito divertido. Embora não entendesse nada de espanhol (talvez "amigo" e "hasta la vista", mas o vocabulário da performance com certeza ia além disso), conseguiu se divertir. Era uma performance muito visual, como dissera, bem provocativa e polêmica, adjetivos que ela costumava apreciar. Gostava de coisas que saíssem dos padrões. Talvez por isso é que não se desse tão terrivelmente bem com Alyssa: crescera do lado de uma bendita prova viva da perfeição.
Depois do espetáculo, foram jantar, e como prometido, nenhuma vez sequer demonstrou segundas intenções. Exatamente como haviam combinado: tudo em prol de uma melhor relação profissional.
Terminou de arrumar a bolsa e se sentou na cama, tomando cuidado para não amassar o vestido. Não quis colocar as sandálias porque, na verdade, ainda demoraria muito para o carro buscá-la. dissera 18 horas e ainda eram pouco mais de 17. Mas gostava de estar sempre adiantada. Deitou-se na cama e ligou a televisão, zapeando entre os canais, quando seu celular tocou.
Atendeu ao ver o nome de no visor.
- Oi, . Eu tô com um problema. – ele disse logo, sua voz um pouco distante e cortada.
- Onde você tá? A ligação tá ruim.
- Eu tô na estrada. E meu carro quebrou. – explicou.
- ! – ela reprimiu. – Você tá falando sério? Você devia estar em casa, terminando de se arrumar!
- Eu sei! – concordou, soando um pouco desesperado. – Eu estava em Cheshunt, fechando o acordo da Tesco, e meu carro simplesmente explodiu.
- Seu carro explodiu? – guinchou, preocupada.
- Não, claro que não. Não literalmente. – explicou, e pôde imaginar sua expressão, olhos revirados e sorriso brincando nos lábios. – Mas simplesmente parou, tentei de tudo, mas não para de fazer fumaça e tá quente pra caralho. E você sabe que eu não entendo nada de carros.
- O que você vai fazer? , você tem que estar aqui em menos de uma hora! A recepção começa às 18:15.
- Você acha que eu não sei disso, ? – ele devolveu, soando realmente preocupado. Então suspirou. – Já liguei pro guincho, disseram que pode demorar entre 45 minutos e uma hora até chegarem aqui, e depois eu tenho que ir com eles. Vou fazer o possível pra ir o mais rápido possível, mesmo que não vá causar uma impressão muito boa se eu chegar duas horas atrasado... Mas acho que não vou conseguir. – finalizou, num tom insatisfeito.
- ! Como é que eu vou sozinha? – perguntou levemente desesperada. Ir a esse tipo de evento sem não fazia o menor sentido. Era ele quem tinha os contatos, era ele quem representava a BBDDO oficialmente e, mais importante, era ele quem sabia fazer a parte social, ser simpático e conquistar as pessoas.
- Você não vai sozinha, vai com o .
- Que seja! Você me entendeu! Como é que eu e o vamos sozinhos? – repetiu. – O que é que a gente vai fazer lá sem você?
- O mesmo que fariam comigo! – insistiu. – Olha, , eu sei que não é o ideal e não é assim que eu queria que fosse, mas o que você quer que eu faça? Tô tentando pensar na melhor solução possível, e a única que eu consigo achar é vocês irem sem mim! – continuou, e sabia que ele realmente não podia fazer nada, mas aquilo não a impedia de detestar a situação.
- Mas é você que conhece todo mundo... – reclamou.
- Você também conhece as pessoas.
- Verdade. - concordou, irônica. - Só elas que não me conhecem.
Ouviu o chefe respirar fundo do outro lado da linha.
- Por favor, . Não estou te pedindo como , estou te pedindo como chefe. – usou aquele golpe sujo mais uma vez. – E dessa vez é verdade. – riu sem humor. E voltou a pedir com a voz macia: – Vamos lá, . Você sabe como vai ficar a imagem da empresa se a nossa mesa estiver vazia?
- Droga... – murmurou, antes de soltar o ar com força pela boca e largar o corpo sobre a cama, deixando as costas baterem no colchão sem se importar se desarrumaria seu cabelo.
- Faz um esforço. – ele pediu, e sabia que aquilo era importante para ele. Era de verdade. levava poucas coisas – se é que alguma – tão a sério quanto o trabalho.
- Vou fazer. – prometeu, contrariada.
- Obrigado, . – a voz cortada do chefe disse do outro lado da ligação.

London Hilton, Londres, Sábado, 18:10h

Viu caminhando na calçada em direção ao London Hilton e desceu alguns degraus da escadaria para encontrá-lo na metade do caminho. Ele vinha andando com um sorriso leve e as mãos nos bolsos, vestindo um sobretudo escuro fechado, que fez se lembrar mais uma vez de como sempre achara que roupas de frio deixavam as pessoas mais bonitas.
- Oi.
- Oi. – ele respondeu, olhando a de cima a baixo sem discrição. – Não tá tão mal assim. – brincou.
- Ah, obrigada. – devolveu, já acostumada às brincadeiras do colega. Ele riu, fazendo seus olhos se apertarem daquele jeito que ela achava adorável.
- Tô brincando. – disse com naturalidade. – Você tá linda.
paralisou, sentindo-se estranhamente constrangida. Quase engasgou na própria saliva e ficou em silêncio. Por algum motivo, não conseguia agradecer dessa vez, sabendo que ele falava sério. Mas não pareceu se incomodar com o silêncio dela.
- Então, cadê o ?
- Pois é... – a mulher começou, ainda chateada pelo que estava prestes a dizer. – Ele não vem.
- Não? – surpreendeu-se. – Por que não?
- Ele foi pra Chestnut fechar um acordo com a Tesco e na estrada, na volta, o carro dele estragou. Teve que chamar guincho, seguro e tudo, e isso foi agora há pouco. Ele disse que ia tentar chegar mesmo que atrasado, mas duvido que dê... – explicou, vendo fazer uma cara um pouco desconfiada, então emendou, dando de ombros: – Eu sei que parece uma mentira gigantesca, mas...
- Parece mesmo. – ele concordou, franzindo o cenho. – Vamos lá. Admite, . Inventou essa história toda só pra poder passar a noite inteira do meu lado?
Um sorriso de compreensão cresceu no rosto da mulher.
- É claro. – concordou. – Aliás, o evento inteiro foi forjado por mim. Tudo por uma noite na sua companhia.
- Sabia. – ele disse sorrindo presunçoso. – Mas, ei, não é ele que conhece as pessoas?
- É. – admitiu. – Mas a gente vai ter que se virar.
- Relaxa! – falou. – Eu sei ser charmoso e cativante, você vai ver. – riu, passou o braço em volta dos ombros dela e se virou, guiando-a até a entrada.
E ele sabia, de fato. parecia extremamente confortável no ambiente, considerando que não conhecia ninguém, e pareceu ganhar a simpatia de todos a quem foi apresentado. Pela reação dos presentes no local, estava se mostrando o tipo de pessoa de quem todos gostam de graça. Em retrospectiva, não se lembrava de ter gostado muito do colega logo de cara, mas pensando bem no dia em que se conheceram, não havia mesmo lhe dado muito crédito. Não o recebera exatamente com um abraço de boas-vindas.
A premiação durou mais tempo do que esperavam e, na verdade, em determinado ponto chegou a ser maçante. As coisas melhoraram depois que a dupla começou a apontar defeitos nas campanhas vencedoras e decidiu fazer a narração do evento no ouvido de , obrigando-a a abafar algumas risadas e forjar algumas crises de tosse. Na metade do tempo, o celular da mulher vibrou, indicando uma mensagem nova. "Realmente não vai dar. Sinto muito. Me orgulhem. Xx "
A hora do jantar chegou e, por mais que quisessem, não podiam ir embora tão cedo, então se sentaram à mesa reservada no nome da empresa e exerceram mais um pouco da obrigação social enquanto pensavam em formas de salvar o resto da noite.
- Ei, já sei! – propôs. – Não comer o que quer que eles sirvam, que provavelmente vai ser algum bife metido à besta de 50 gramas, rodeado por mato, e passar no drive-thru do McDonalds na volta.
- Tenho uma melhor. – prometeu, tomando um gole do seu champanhe. – Roubar uma garrafa de whisky, passar no drive-thru e apreciar um sanduíche com cheddar extra e uma dose de Jack Daniels no telhado da BBDO.
- Você é maluca? – ele perguntou simplesmente. – Tô começando a achar que você tem um problema com bebidas.
- Eu tô brincando. – se apressou a dizer, um pouco sem jeito, lembrando-se de episódios anteriores.
- Eu também. – ele sorriu levemente e, depois de um segundo, ela contrapôs:
- Mas você adora aquele telhado.
- É, mas não adoro ser preso por invasão. Nem por dirigir alcoolizado.
riu e brincou com um fundinho de sinceridade:
- Bebida só faz mal se for acompanhada de um celular.
- E da ex-namorada do seu melhor amigo. – acrescentou devagar, como se pensasse alto.
- Você já fez isso? Não! – exclamou, surpresa. sempre lhe parecera bonzinho demais para esse tipo de coisa.
- Já. – admitiu, abaixando o olhar e parecendo um pouco envergonhado. – Mas eu era muito novo, estava muito bêbado e pedi muitas desculpas. – justificou rindo.
agora o olhava prestando atenção, inclinada em sua direção. Seus olhos brilharam.
- Me conta seus podres.
- Eu não tenho podres. – respondeu, divertido, satisfeito em ver o quão interessada parecia nele naquele momento.
- Então me conta qualquer coisa sobre você. – ela pediu, recostando-se de novo na cadeira e suspirando, entediada. – Essa festa tá muito chata. Me entretenha, ! – brincou num tom autoritário.
Ele esfregou as mãos, respirou fundo e pensou por um instante.
- Vamos lá... Três fatos sobre mim que você provavelmente não sabia. – disse, semicerrando os olhos. – Quando mudei da casa dos meus pais, eu não sabia fazer absolutamente nada na cozinha e sobrevivi de noodles e maçãs por mais ou menos três semanas, até minha mãe me visitar e encher meu freezer e geladeira.
- Faz sentido, levando em consideração como você come na casa dos seus pais. – riu.
deu de ombros e ela pediu:
- Segundo fato?
- Segundo fato: eu era extraordinariamente promíscuo até os 20 anos. – contou sério, como se até ele mesmo se surpreendesse um pouco.
- Também dá pra imaginar.
- Mas eu saí dessa vida.
- Certo... – disse vagamente, cética.
- É verdade. Eu nunca fiz uma garota chorar intencionalmente. – então ponderou: - Exceto pela minha irmã. Ha ha. - disse, fingindo rir da própria piada, até que ela de fato se transformasse numa leve risada. Provavelmente não era só piada.
- Terceiro? – ela requeriu.
- Ah... – pensou por um instante. – Quando eu era pequeno, virava as pálpebras e entrava no quarto de Kayleigh à noite e ficava bem na frente do rosto dela até ela acordar e levar um susto. – contou, uma risada crescendo no seu rosto, e por um momento achou que ele se pareceu muito com o garotinho de olhos apertados e sorriso sapeca que ela vira no porta-retrato da casa dos s. – Assim, olha. – continuou, e em um segundo ele tinha levado as mãos aos olhos e virado as pálpebras ao contrário, numa imagem assustadora.
- Credo, ! – exclamou, sobressaltando-se na cadeira. – Para com isso!
Ele gargalhou, chamando atenção de algumas pessoas à volta, e desfez a careta.
- Você precisava ver a cara da minha irmã. Era impagável. Nunca perdia a graça... – comentou, ainda se recuperando da risada.
- E eu achava que você poderia ser um irmão legal.
- Eu sou um irmão legal! – defendeu-se, enquanto dava espaço para o garçom colocar o prato à sua frente. – Mas chega de mim. Vamos lá. Sua vez.
- De... falar sobre mim? – hesitou e viu o colega confirmar com a cabeça. – Ah, não tenho muito o que falar. Quero dizer, eu realmente não sou tão interessante assim... – e deu de ombros, rindo sem humor. Foi muito discreto, mas poderia jurar que até conseguiu vê-la se encolhendo um pouco na cadeira.
- Eu duvido muito. – disse simplesmente, a voz sem se alterar, mas os olhos fixos nela de uma maneira que a fez se sentir quente.
- Uh... – soltou. – Nem sei muito o que falar, tenho que pensar. - coçou a cabeça, revirando a mente atrás de algo que pudesse contar sobre si mesma sem abrir o jogo demais. – Ah, já sei. Até os seis anos, eu achava que tinha sido comprada na IKEA e que seus pais ainda tinham o recibo, caso precisassem trocar. – contou. – E Alyssa me dizia que sempre quisera o modelo mais caro, que sabia cantar, para fazer duetos com ela.
ficou em silêncio por alguns segundos, olhando para ela sem expressão. Piscou algumas vezes e então disse com um sorriso brotando no rosto:
- Isso é possívelmente a coisa mais deprimente que eu já ouvi. E eu achava que eu era um irmão sacana às vezes! – exclamou divertido. – Próxima vez que a Kayleigh reclamar da vida vou contar essa história...
- É triste, mas é verdade. – agora mais à vontade, riu junto. E continuou: - Ela me fazia de idiota. Na verdade, eu era uma criança meio bobinha. O que leva ao segundo fato: quando eu entrei na escola, nos primeiros dias era tão tímida que as outras crianças perguntaram pra professora se eu conseguia falar.
- Uma muda. Não consigo nem imaginar. – brincou. – Próximo fato. – pediu, enquanto cortava mais um pedaço da comida que, como imaginaram, não passava de um pedaço miserável de carne com cara de chique acompanhado de salada.
- Ah... Já sei! E essa é meio esquisita: por algum motivo, toda vez que eu tiro um dente siso ele nasce de volta. Já é a quarta vez.
- Isso é sério? – admirou-se e ela confirmou com a cabeça. – Isso é estranho. – concordou. – Meio como estrelas-do-mar. – falou vagamente. – Se você cortar uma de suas pontas, ela cresce de novo.
- Você tá me comparando a uma estrela-do-mar? – ergueu uma sobrancelha.
Nesse instante, o celular de tocou, fazendo-o se entortar um pouco na cadeira para alcançá-lo no bolso. Ele esticou o dedo indicador no ar e disse, antes de levar o aparelho ao ouvido:
- Volto com a minha defesa em um instante. Alô? Não. Num evento do trabalho. No London Hilton. Ah, não tem exatamente hora pra... O que você quer, ? – perguntou, revirando os olhos. E, alguns poucos segundos depois: - Onde? – consultou o relógio e bufou. – Quinze minutos. – e desligou.
e se encararam por um instante, ainda em silêncio, ela esperando pela explicação dele.
- Você não acha que já fizemos nossa parte por aqui? – perguntou, sorrindo amarelo.
- Por quê?
- Eu meio que... Preciso socorrer um amigo.
- Tava só esperando uma desculpa pra sair daqui. – ela confessou, parecendo aliviada e já se levantando da cadeira. Pegou sua bolsa sobre a mesa e perguntou: – Aonde vamos?

- Já volto. – disse , batendo a porta do carro depois de estacionar na porta do seu prédio. E realmente voltou, poucos minutos depois, com o que pareciam ser roupas dobradas e um par de sapatos. Jogou-as sobre o colo de e deu partida no carro.
- Posso saber nosso destino?
- Maguro, um restaurante perto daqui. Um amigo precisa de ajuda. Na verdade, eu não sei exatamente o que é. Há muito tempo desisti de entender as roubadas em que ele se mete. – explicou sem prestar muita atenção à conversa, olhando pelo retrovisor.
Quando chegaram, entraram no restaurante, segurando as roupas, e seguiram até um corredor no fundo que levava aos banheiros. Ele pediu um minuto e entrou no masculino, deixando sozinha.
Ela se recostou contra a parede, brincando com a ponta do sapato sobre o chão durante alguns minutos, até que voltou de lá, acompanhado de um homem que terminava de arrumar sobre o corpo a camiseta branca que trouxera. Ao pousar os olhos em , o homem encarou , então ela de novo e, percebendo que estavam juntos, exclamou:
- Eu não sabia que você tava com alguém! Desculpa atrapalhar a noite de vocês. – pediu, abrindo um sorriso malandro.
- Ah, não se preocupe. – disse entediada. – Pra falar a verdade, esse foi o auge da noite, até agora.
parou por um instante, olhou para o amigo e riu, dando-lhe um tapa de piedade nas costas.
- Porra, , você já foi melhor.
rolou os olhos.
- Não é nada disso.
Mas continuou, sem se importar com a justificativa do amigo:
- Olha, eu não sou de roubar mulher de amigo meu, mas situações desesperadoras pedem medidas desesperadas. – disse sério, como se estivesse dando um diagnóstico desagradável a um paciente terminal. – Portanto, se você precisar, terá prazer em te passar o meu número. – e piscou, antes de se abaixar para colocar os sapatos. Ele sorriu um sorriso que claramente só dirigia a mulheres, e seu jeito carismático fez a rir, divertida.
- Muito obrigada. – falou formalmente.
- Posso perguntar que porra aconteceu? – interrompeu, olhando o amigo.
- Ah... Mulheres... – justificou, balançando a cabeça para os lados, como se isso explicasse tudo. – Com todo o respeito. – acrescentou, olhando para . – Aliás, prazer, . Me chame de . – apresentou, estendendo a mão. – O amigo responsável pela parte divertida da vida dele. – apontou para com a cabeça.
- . – falou, correspondendo ao aperto. – Trabalho com ele.
- Ah, sim. E ele é mesmo tão bom quanto parece?
Ela olhou para o colega por um instante, e eles trocaram olhares cúmplices antes que ela admitisse:
- Não é de todo mal.
- Ótimo! – disse animado. – Então só precisamos ensinar a ele como divertir uma mulher em um encontro. – anunciou, enquanto começavam a caminhar em direção à porta do restaurante.
- Chega de falar de mim como se eu não estivesse aqui, né? – interrompeu, fingindo impaciência. – E eu sei bem como tratar uma mulher em um encontro. – defendeu-se com confiança, olhando para de um jeito sugestivo que fez a mulher ficar um pouco sem reação. – Acontece que a gente não tava em um encontro, e sim num evento de trabalho. – explicou quando chegavam ao carro e ofereceu: – , quer uma carona?
- Ah, não precisa, cara. Valeu.
- Você mora na minha rua. – insistiu sem expressão, dando de ombros.
respirou fundo.
- Tá certo. Não sei por que eu insisto em ser tão humilde. Deve ser a boa educação que minha mãe me deu. Ela ficaria orgulhosa.
- Imagina se não tivesse dado... – murmurou, rindo e dando partida no carro.
balançou a cabeça para os lados, apoiado entre os bancos do motorista e do passageiro, olhando do amigo para .
- Você sabe que é a única pessoa que eu deixo falar assim comigo, não é?
- É claro que sei. Eu tenho o direito de falar com você como eu quiser. – concordou. – Olha as situações que você me arranja.
gargalhou.
- Não seja ingrato, . Você também não nasceu santo. – argumentou, enquanto abria a porta do carro depois do curto trajeto. – Mas você tem razão. – bagunçou um pouco o cabelo do amigo e acrescentou: – Esse cara é o cara, . Lembre-se disso. Valeu por me tirar dessa! – falou mais alto, já saindo do veículo, e fechou a porta atrás de si.
Os dois restantes no carro ficaram em silêncio por um tempo, olhando para frente. Estavam estacionados em frente ao prédio de novamente, e ele imaginou que aquela era a hora em que ele deixava a colega em casa. Mas sentado ali no carro, observando o perfil da mulher, percebeu que não queria fazer aquilo. Não queria se despedir. Apesar do evento sem grandes acontecimentos e da situação inusitada-mas-nem-tão-inusitada-assim com , tinha se divertido na companhia de .
Olhou para o próprio prédio, para as chaves em mãos e para a mulher de novo. Sem pensar mais, convidou:
- Quer subir?
Para sua surpresa, percebeu que a garganta estava seca e se sentia um pouco nervoso à espera da resposta dela. Pela primeira vez, percebeu o quanto queria que aceitasse um convite seu. E queria muito.
Então, inesperadamente, ela sorriu levemente e deu de ombros com uma naturalidade atípica dela. quis rir. Ele é que costumava agir com mais espontaneidade, enquanto ela sempre se preocupava demais. Mas dessa vez não. E continuou assim, parecendo relaxada, quando entrou no seu apartamento, quando elogiou sua coleção de cds, quando tirou as sandálias antes de se sentar no sofá e quando aceitou a taça de vinho que trouxe da cozinha.
Ele se sentou de frente a ela, ambos assentados de lado no sofá para se encararem melhor.
Ela dobrou as pernas delicadamente sobre o sofá e sorriu de um jeito diferente.
- Que foi? – perguntou curioso.
- Nada. – deu de ombros. – Eu me diverti hoje. Parece que eu te conheço muito melhor hoje do que conhecia ontem.
- É que eu te contei três fatos realmente muito intrigantes sobre mim. – brincou.
- Não é só isso, é que... – suspirou e sorriu de novo, parecendo desistir do que ia falar por ter uma ideia melhor: – Vamos lá, rodada extra. Você começa.
- Certo... – pensou por um instante. – Eu... Não posso comer camarão.
- Alergia?
- Não. – e suspirou. – É uma história longa e meio idiota... Quando eu era pequeno, eu e minha irmã amávamos camarão, só que depois de um tempo a gente descobriu que a Kayleigh era alérgica, porque toda vez que comia ela ficava coçando. Então um dia minha mãe fez uma torta de camarão gigantesca e deliciosa e eu fiz questão de esfregar na cara da minha irmã que ela não podia comer. – contou, parecendo se divertir enquanto lembrava. Então o divertimento sumiu do seu rosto: – E eu comi tanto, mas tanto, praticamente a torta inteira, que passei mal. Quero dizer, muito mal. Vomitei a noite inteira e depois disso nunca mais consegui comer. Passei mal de todas as vezes. Eu amo o gosto, mas só de sentir o cheiro já fico meio enjoado.
começou a rir forte, mas em silêncio, dobrando um pouco o corpo sobre as próprias coxas.
- É sério isso? – perguntou, e ele confirmou com a cabeça, fingindo estar chateado. – Bem feito! Você era mesmo um irmão muito chato. – retrucou e apenas riu. Ela pensara que ele fosse se defender, mas apenas continuou olhando para a colega com um sorriso que manteve vivo o dela. Então ficaram por um tempo assim, se olhando e rindo de uma coisa que nem foi tão engraçada assim e, na verdade, se perguntados o que desencadeou a risada prolongada nem mesmo se lembrariam. Ambos se lembrariam, no entanto, do instante. Daquele momento exato em que se encararam de um jeito tão gostoso e com sorrisos tão sinceros como nunca haviam feito. Naquele segundo, tudo entre eles era perfeitamente equilibrado. E verdadeiro como nunca antes.
E foi então que sentiu o corpo inteiro formigar de vontade de se aproximar da mulher e, aproveitando o momento, os olhares inquebráveis, a calmaria entre eles, ele o fez. Esticou a mão delicadamente até o rosto de , puxou-o para si e juntou seus lábios.
Dessa vez foi diferente. Não foi um beijo apressado, nem cheio de tesão, nem por culpa da bebida, apesar de ambos já estarem bebendo há um tempo – especialmente , que não era lá muito forte para o álcool. Dessa vez foi um beijo lento, como se o tempo parasse; calmo, apesar de sentir seu interior em caos; cuidadoso, como se a qualquer movimento brusco ela fosse escapar por seus dedos e voltar a ser distante como costumava.
Mas ela não fez isso. Apenas levou a mão livre até o braço de , acariciando-o levemente na região do pulso, enquanto a mão dele, embrenhada em seus cabelos, guiava o ritmo manso do beijo.
Então ele se afastou, ainda devagar, e por alguns segundos pôde apreciar o rosto dela sereno como nunca havia visto, enquanto ela ainda mantinha os olhos fechados. A visão fez querer sorrir.
abriu os olhos e os manteve pousados sobre o rosto dele, ainda em silêncio, ainda parecendo não ter saído do clima que havia dominado os últimos segundos.
De surpresa, chamou:
- ?
- Anh? – disse com a voz falha, e não conseguiu impedir que o sorriso tranquilo crescesse para um sorriso malicioso, satisfeito por ver o efeito que causara na colega.
- Sua vez.
- Anh? – foi tudo que saiu da boca de , de novo, que parecia totalmente atordoada.
- Sua vez. O jogo. Conte algo sobre você. – ele relembrou, ainda sorrindo enviesado.
Um pouco sem jeito, ela tentou pensar rápido.
- Ah, eu... – hesitou. – Sei lá. Hm, se... Se eu algum dia tiver filhos, só quero meninos. – falou a primeira coisa que lhe veio à mente, dando de ombros.
- Sério? – perguntou, surpreso, mas ao mesmo tempo não.
- Sério. Eu não saberia lidar com uma menina. – balançou a cabeça para os lados. – Meninas têm paixonites, inseguranças e primeiras menstruações. – enumerou como se fizesse uma lista das maiores tragédias da humanidade.
- Eu quero ter um menino e uma menina. – contou. – Talvez até dois de cada.
Ela fez uma careta leve e brincou:
- Que bom que eu não vou ser a mãe dos seus filhos. – levando a taça à boca novamente.
- Que bom mesmo. – concordou em tom brincalhão, como se desdenhasse dela. – Mas, sabe, daríamos uma ótima dupla. – ponderou. – Ter um garoto deve ser legal, mas uma menina... – disse lentamente. Seus olhos pareceram se iluminar um pouco, parecendo encantado pela ideia. – Eu adoraria ter uma menina. – explicou baixo e suave, começando a restaurar a atmosfera de pouco antes. – Eu a chamaria de princesa, a protegeria de qualquer idiota que ousasse partir seu coração e faria questão que soubesse o quanto ela seria linda – e tenho certeza que seria, se ela se parecesse um milésimo que fosse com você. – falou sem pensar, sem pausa para se arrepender ou filtrar as palavras.
E ficou feliz por ter falado, porque era a mais pura verdade e não gostava de não dizer a verdade. Aliás, ficou feliz por ter falado numa hora oportuna, e ficou grato por já estar bebendo há um tempinho, o que a deixava relaxada e mais tranquila, menos propensa a distribuir patadas. Normalmente, não poderia dizer uma coisa dessas sem que ela fizesse uma careta de nojo. Na verdade, normalmente não teria nem vontade de dizer uma coisa dessas. Mas estranhamente, aquela noite, depois de sentir que tinha descoberto finalmente quem realmente era, parecia a oportunidade perfeita para sentir aquela vontade diferente. A mulher apenas continuou olhando para ele daquela forma que fazia querer se aproximar de novo. E pela primeira vez, ele viu a colega parecer muito, muito tímida. O elogio inesperado e tão visivelmente honesto lhe deixara sem reção. Mas podia cuidar disso. E foi o que fez, quando se esticou até ela, tirou-lhe a taça vazia dos dedos e a depositou na mesa de centro. Então se aproximou mais uma vez, ajeitando-se no sofá para poder se sentar mais perto dela e, sorrindo, dessa vez mais travesso, uniu os lábios aos dela pela segunda de muitas vezes na noite.


17

One, two, princes kneel before you (...)
Princes, princes who adore you (...)
One has diamonds in his pockets (...)
This one, said he wants to buy you rockets (...)
Marry him or marry me, I'm the one that loves you, baby, can't you see?
I ain't got no future or a family tree,
But I know what a prince and lover ought to be

(Two Princes – Spin Doctor)


BBDO, Londres, Segunda-feira, 08:00

O sorriso que deu aquela segunda de manhã deixou claro que os acontecimentos de sábado não seriam comentados ali. No entanto, para alívio de , ela também não foi fria ou defensiva, como ele havia temido. Mas quando a Sra. Dermott colocou a cabeça para dentro para dizer que a estava chamando, soube imediatamente o que aquilo significava. Uma mudança drástica de temperamento.

fechou a porta atrás de si silenciosamente. Sentia-se estranhamente desconfortável na presença de , como jamais havia acontecido. Como se, de alguma forma, ela o estivesse traindo por causa do que estava acontecendo entre ela e – por mais que na frente do colega fizesse questão de deixar claro que a noite anterior não significava nada. Sabia que não estava fazendo nada de errado, nada que nunca tivesse feito, e todos aqueles sentimentos controversos a faziam se sentir estúpida. E aquilo a fazia querer odiar por causar tanta confusão em sua cabeça, ainda que sem querer. O que, por sua vez, a fazia odiar a si própria mais ainda, por não ser capaz de odiar o chefe, mesmo que tentasse. Um grande ciclo cheio de ódio.
- Oi. – murmurou.
- Você tá chateada comigo? – perguntou logo. Conhecia a mulher o suficiente para saber que algo estava errado.
- Não. – assegurou, caminhando até a mesa.
Ele juntou as sobrancelhas, confuso por ela estar tão estranhamente tímida.
- Não vai sentar? – perguntou, curvando o rosto para buscar seu olhar. Ela obedeceu. – ... - começou. - Sobre sábado, eu queria muito ter estado lá. Eu realmente tentei.
- Eu sei. – ela admitiu, levantando o rosto e o encarando direito pela primeira vez. – Eu sei. – e suspirou, tentando se livrar daquela sensação incômoda. – E como foi? Conseguiu resolver tudo com o carro?
- Ah... – soltou o ar pela boca e soltou a cabeça para trás na cadeira, fazendo uma careta. – Uma confusão desgraçada, uma burocracia fodida que me dá preguiça de tudo... – desabafou. Ela sorriu.
- Eu sei.
- Sabe o que cura essa preguiça? – perguntou, erguendo o pescoço de novo.
- O quê?
- Você. – respondeu, mostrando aquele sorriso que misturava perfeitamente malícia e carinho, de uma forma que ninguém mais parecia capaz de fazer. gargalhou, finalmente começando a sentir que as coisas estavam normais. Por um segundo, sentiu-se boba e infantil pelo momento de desconforto. – O que você acha de ir pra minha casa de noite?
E então se desanimou de novo, mas dessa vez não se acanhou:
- Poxa, ... – reclamou. – Isso é a única coisa que a gente faz! Ir pra sua casa ou pra minha depois de um dia cansativo de trabalho pra aproveitar o finzinho pobre da noite. Sabe quanto tempo faz que você não me leva pra fazer alguma coisa legal? Parece que eu só sirvo pra sexo... – desabafou, cruzando os braços e parecendo um pouco uma criança.
- Ei. – respondeu, franzindo o cenho. – Não fala assim. – pediu, levantando-se e indo até a cadeira dela. Agachou-se ao seu lado e encarou seu rosto por alguns segundos. – Eu queria poder dizer que não é verdade. E não é, mas eu imagino o que fica parecendo pra você. – admitiu. Ficaram ambos em silêncio durante um tempo, encarando-se. Até que o rosto de relaxou e se alargou num sorriso, e ele disse: – Pronta pra um jantar romântico? – propôs, parecendo um garoto travesso e sorriu. – Hoje?
- , hoje é segunda-feira, a gente sai tarde, nem vai dar tempo direito de...
- Você tá liberada uma hora mais cedo. – decretou, levantando-se e se dirigindo de volta a sua cadeira.
Ela balançou a cabeça para os lados, sorrindo.
- Você tem noção do quanto isso é antiético? – perguntou, surpresa, mas divertida.
- . – o chefe chamou, virando-se para ela com uma expressão que diz "faça-me o favor" e moveu o indicador entre os corpos dos dois. – Jura que nós dois vamos conversar sobre falta de ética no trabalho? – e riu.
o acompanhou, largando o rosto sobre as mãos, rindo derrotada.
- Você vai embora mais cedo pra não pegar trânsito e se produzir pra nossa noite especial. Eu fico aqui te cobrindo e depois te busco as sete. – finalizou, piscando para a mulher, que, sentindo-se eufórica e ansiosa, saiu do cômodo de novo, incrédula por finalmente conseguir mais que migalhas dele.

Brown Street 108, Londres, Segunda-feira, 19:25h

No fim das contas, não saiu tão mais cedo assim para evitar ter de explicar qualquer coisa a . Até porque o trabalho estava fluindo tão bem, com uma sintonia tão grande entre os dois, que seria uma pena interrompê-lo. Além disso, ainda se demorou no banho, ansiosa pela noite diferente com o chefe. Então, na verdade, não percebeu que estava atrasado até que ele próprio mandasse uma mensagem se desculpando e dizendo que ainda demoraria um pouco.
não se sentiu muito no sentido de reclamar, já que ela mesma não teria estado pronta se ele tivesse chegado na hora certa. Continuou a se arrumar, gastando um tempo especial nos cabelos, que pareciam nunca ficar do jeito que ela queria. Nas noites em que ficava em casa, sozinha, à toa e sem o menor plano de mostrar a cara para o mundo, os longos fios pareciam prontos para participar de um comercial. Porém, em noites como aquela, quando, para variar, tinha um compromisso – e não qualquer compromisso, diga-se de passagem – seu cabelo parecia um campo de guerra.
E lá se foi uma hora de atraso. sabia muito bem o que aquilo significava. era um homem de oito ou oitenta. Quando ele era pontual, chegava no minuto marcado. Quando se atrasava... Se atrasava com vontade. Jamais menos que uma hora e meia. E quando o relógio apontou 20:50, finalmente riu da própria inocência, sem acreditar que chegara realmente a pensar que o jantar aconteceria, e ligou para o chefe. A chamada tocou duas vezes e ele desligou. Em poucos segundos, enviou uma mensagem sucinta:
"Equipe da GE errou data da reunião. Não posso dispensá-los. Tentando apressar as coisas."
respirou fundo. É certo que a General Electric era um cliente de importância imensurável. É certo que não se pode simplesmente ir embora de uma reunião como essa, ainda que ela só estivesse marcada para a semana seguinte. É certo que, tecnicamente, nada daquilo era culpa de , mas isso não amenizava em nada a raiva dela. Justificativa nenhuma no mundo é boa o suficiente para deixar uma mulher esperando por duas horas – a não ser que envolva tragédias ou um bilhete premiado da loteria. E, com certeza, nenhuma das duas opções se aplicava.
E então, completamente impulsionada pela raiva, ocorreu-lhe uma ideia, que apesar de trazer peso na consciência, era forte demais para ser ignorada. Por sorte, sua ligação foi atendida depois de poucos toques – se não, talvez tivesse desistido.
- Oi! – cumprimentou parecendo agradavelmente surpreso.
- Oi, ... Você... Quer fazer alguma coisa hoje?
Tudo ficou em silêncio por um momento, até que ele disse:
- Que ânimo é esse numa segunda-feira à noite?
- Quer ou não quer? – perguntou, rindo debilmente, antes que perdesse toda a confiança e desse para trás.
Então trinta minutos depois estava na porta do prédio, como combinado, esperando por . Sentia-se levemente nervosa. Não pela presença do colega – já não havia mais clima de desconforto nenhum entre os dois – e sim pelo que estava fazendo. Detestava as situações em que a colocava, ainda que não o fizesse de propósito. Mas mesmo que estivesse motivada pela raiva, uma partezinha de si a fazia se sentir tão suja... Só esperava que aparecesse logo e fizesse aquela sensação ir embora para longe com seus assuntos interessantes e suas piadas inesperadas.
Enquanto esperava, apertando o casaco contra o corpo, ocorreu-lhe que não sabia qual era o carro de . Mas definitivamente não era aquele que vinha cortando a esquina e se aproximando com a placa que ela até já reconhecia. Ela se perguntou se era normal saber a placa do carro de outra pessoa.
Depois que o carro parou à sua frente, alguns segundos se passaram, durante os quais talvez estivesse torcendo para que ela entrasse. Mas não o fez. Recusou-se até mesmo a se inclinar para respondê-lo através da janela quando o chefe abaixou o vidro e dobrou o corpo sobre o banco do passageiro para conversar com ela.
- ? – chamou, ainda sem conseguir ver seu rosto, pois ela se mantinha ereta. – , entra? – pediu soando humilde.
- Eu não acredito nem que você tá me pedindo isso. – respondeu entredentes.
- , por favor?
- Não. Eu... Eu tenho outro lugar pra ir.
Aquela frase pareceu deixar um pouco atordoado. Mas ele não desistiu:
- Cinco minutos? – insistiu.
- . Não.
- Por favor? – repetiu. – , cinco minutos pra falar contigo, eu juro. Não vou arrancar o carro e te sequestrar, prometo. Assim que você quiser sair eu não vou te impedir. Não estou te pedindo pra me dar razão em nada, só quero falar com você. Por favor, só me escuta? – argumentou. E sabia argumentar! Sempre soubera ser persuasivo e usar as palavras a seu favor. Mesmo em situações onde o medo, o nervosismo ou qualquer emoção costumam impedir as pessoas de conseguir se expressar direito, a eloquência de era impecável. Talvez fosse um dos seus vários dons. Como enxergar ideias geniais nos lugares mais simples, mentir para salvar a própria pele e levar uma mulher à loucura na cama. Dons inatos e indiscutíveis.
entrou, respirando fundo e se acomodando no banco do passageiro.
- Seu tempo tá passando. – disse, seca, para . Ele suspirou e tomou o cuidado de olhar para os lados para conferir se não havia chegado. Ao menor sinal dele, sairia do carro imediatamente.
- Não importa.
- Eu sei que é uma desculpa de merda, mas...
- Não é uma desculpa de merda. – ela discordou, firme. – É uma desculpa totalmente plausível, . Mas não é a primeira vez. Nem a segunda, nem a terceira! – contou, começando a se exaltar. – É cliente que surge sem avisar, é acordo pra fechar de última hora, é apagar de cansaço porque tá exausto de trabalhar o dia inteiro... Poxa, , eu também canso! Canso disso aqui. – finalizou, apontando para o espaço entre eles e lançando um olhar duro.
Silêncio.
O chefe devolveu seu olhar, mas de uma forma que lhe desestruturou. Pois não era um olhar duro também, nem um olhar mentiroso, nem um olhar malandro. Era um olhar de dor. E depois de alguns segundos, pôde jurar que os olhos dele pareceram molhados, e ele soltou a cabeça, deixando-a pender em direção ao próprio colo. Sua voz saiu embargada quando disse baixinho:
- Meu trabalho é tudo que eu tenho.
Aquilo em nada soou como drama, como desculpas ou justificativa. Era simplesmente a declaração mais sincera que ele era capaz de dar.
já vira em estados deploráveis, no mais fundo do poço que se pode imaginar. Mas há muito tempo não o via parecer tão triste. Há tempos parara de achar que o passado do chefe e suas perdas ainda tinham qualquer influência sobre suas ações, mas percebeu que estava errada. Não era especificamente sobre suas ações, e sim sobre ele. A história de o transformara em quem ele era, com sua mania de se afogar no trabalho para sobreviver e suas tentativas frustradas de mostrar a que, da sua própria maneira distorcida, se importava muito com ela. Ele fungou baixinho e continuou:
- Detesto quando eu faço esse tipo de coisa com você, , porque você é uma das coisas mais maravilhosas que me aconteceram. E não é por querer, mas eu não consigo evitar. – voltou a olhar para ela, parecendo fazer força para se recompor. – Meu trabalho é tudo que eu tenho. – repetiu. – E por mais egoísta que seja, eu pensei que você, melhor do que ninguém, fosse entender.
Ainda encarando os olhos do chefe e sentindo o peito apertado por vê-lo assim, olhou significativamente para ele e murmurou sem pensar:
- Não é, não, . Você tem a mim. Sempre vai ter.
E sem que planejasse ou ordenasse, como se obedecesse ao impulso mais natural, seus braços se lançaram na direção dele, envolvendo-o com força. De repente, lhe pareceu frio, pequeno e perdido como há muito não acontecia.
Ficaram assim durante um tempo, até que ele se moveu e ergueu o tronco, finalmente correspondendo ao abraço. Como se, de início, não estivesse em condições de dar nada, só podia receber. Mas depois de alguns minutos recobrou forças e retribuiu o gesto. a abraçou com sinceridade, forte, mostrando um carinho que ela não se lembrava de ter sentido em muito tempo. Normalmente, quando queria convencê-la ou acabar rápido com uma discussão, ele a beijava. Dessa vez, em silêncio, passou os braços por seu corpo e a apertou contra si, num gesto que mostrava muito mais sentimento do que qualquer beijo.
- Eu não mereço nem um milésimo do que você faz por mim. Mas sou muito grato por isso.
Era nessas horas que tudo valia a pena. Quando via que se importava. Ele não era apaixonado por , ela não era sua prioridade máxima na vida e ele nunca iria pedi-la em casamento, mas ele se importava com ela. E até então, isso era o suficiente. Porque ele tentava. Ele realmente tentava. Aquilo era o seu melhor. Ainda que fosse pobre. E o que mais podemos cobrar de alguém – especialmente quem amamos – senão o melhor que eles têm a oferecer?
- Eu sei que tá tarde, mas você ainda quer comer? A gente pode ir aonde você quiser. – ofereceu.
Então, subitamente, se lembrou de . Olhou para fora do carro e, para seu alívio, constatou que a rua estava vazia.
- Melhor não. Já tá tarde e eu tenho que resolver uma coisa. – respondeu, começando a se sentir mal de novo. Maldita culpa.
O chefe assentiu com a cabeça e, aproximando seus rostos delicadamente, a beijou. era quente. Seu cheiro era quente, seu hálito era quente e seu olhar sobre ela ardia. Sua língua, quando a beijava, era como fogo, e suas mãos, quando acariciavam sua pele, pareciam queimá-la. Quando ele passava os braços a sua volta, o calor que emanava dele afastava qualquer sinal de frio que o corpo de tivesse cogitado sentir. Ele era sempre adrenalina, uma excitação e um estremecimento instantâneos.
A mulher podia estar nos mais variados humores, mas se esquecia de tudo quando a beijava. A verdade é que, por mais que sentisse peso na consciência por fazer aquele tipo de coisa com , quando falava com ela, seu coração batia mais rápido. Quando ele a beijava ela se perdia de todo o resto, e aquela vozinha – que depois viria lhe dizer o quanto era burra – vinha convencê-la de que era a ele que ela queria.
Mas juntou forças e se separou dele. Desejou boa noite e saiu do carro para voltar a esperar . Mas imagine qual não foi sua surpresa ao constatar, depois de quase meia hora e uma mensagem não respondida, que , afinal de contas, também não ia aparecer.

’s POV, Brown Street 108, Londres, Segunda-feira, 21:23h

Assim que virei a esquina, pude ver a alguns metros. A rua estava escura e eu não via mais que sua sombra, parada em frente ao seu prédio. A rua estava vazia exceto por eu, ela... e uma terceira pessoa. Observei enquanto ela entrava naquele carro que eu já tinha visto no estacionamento da empresa vezes demais para não reconhecer, e soube imediatamente o que estava acontecendo. Freei na hora.
Além do que me contara aquela noite em Birmingham, eu não sabia nada sobre seu caso com . Não sabia se ainda estava de pé ou se acontecia com frequência. O único padrão que eu tinha percebido era como ela voltava irritada, na maioria das vezes, depois de conversar com ele. Ao que tudo indicava, o que quer que havia entre eles ainda acontecia. E aquilo me deixou mais puto do que eu esperava. Puto não só pelo fato de ela me achar com cara de otário para me trocar por qualquer oportunidade melhor. Isso também, é claro. Mas, acima de tudo, eu estava – e não me pergunte por quê – muito puto por imaginar o que estava acontecendo naquele carro naquele instante. E o que aconteceria depois, para onde a levaria e o que faria com ela. Imaginar os dois me incomodava tanto. Porque enquanto eu dava o melhor de mim, meu progresso com parecia se arrastar. E eu não me importava que demorasse, que ela se abrisse aos poucos ou que eu tivesse que suar para conquistá-la. Eu seria paciente com ela e com seus limites. Mas me importava que viesse e a puxasse das minhas mãos com a maior facilidade.
Agora era por orgulho. Eu teria aquela mulher, custe o que custasse.
Mas por ora eu estava irritado demais para qualquer coisa, então, discretamente dei ré e voltei pelo mesmo caminho por onde vim.
Algum tempo depois, quando ela mandou uma mensagem perguntando se eu não viria, fiquei mais puto ainda. Qual era o plano? Uma rapidinha com ele e chamar o babaca aqui para colocá-la para dormir? Esperei algumas horas antes de responder: "Não vai dar. Foi mal."
End of ’s POV

BBDO, Londres, Terça-feira, 11:50h

- Você esteve quieto a manhã inteira. – finalmente se arriscou depois de muitas horas sem se falarem mais que o estritamente necessário.
- Pois é. – respondeu casualmente, sem tirar os olhos da tela do computador. Ela respirou fundo. Estava morrendo de medo do colega tê-la visto entrando no carro de na noite anterior. Não fazia o tipo de simplesmente desistir do programa sem avisar nada, e por mais que ela tivesse tentado prestar atenção para ver se ele estava chegando, sabia que era bem possível que tivesse se distraído com dentro do carro. Era a única explicação possível, mas só a ideia fazia seu rosto queimar de vergonha e o peito afundar de culpa, então preferiu torcer para que ele só estivesse tendo um dia ruim. Ainda que essa coisa de descontar o mau humor nas pessoas erradas era um hábito mais dela que de .
- Ontem você... – começou, mas percebeu que talvez poderia soar como uma reclamação, e ela não estava no direito de começar uma briga. – Quero dizer, tá tudo bem, mas talvez a gente possa compensar outro dia... Eu estive pesquisando sobre aquele grupo de teatro em que você me levou, é... Yuyachkani? – confirmou, rindo de leve. – Acho que nunca vou conseguir pronunciar esse nome... Enfim, eles ainda estão na cidade, e amanhã tem mais um espetáculo e a gente poderia ver... – propôs insegura.
Pela primeira vez, parou o que estava fazendo e a olhou direito. Então disse simplesmente, seu olhar cortando a colega:
- Por quê? O não te quis hoje?
Um soco no estômago.
chegou a ofegar de leve, completamente sem ação.
- Outch... – soltou, numa risada fraca e sem humor. Permaneceram calados por alguns segundos, até que ela assentiu lentamente com a cabeça. – É, acho que eu merecia essa. – e aquele silêncio tão incômodo, que há muito não se manifestava entre eles, voltou sem piedade. Vendo que o estrago já estava feito, ela murmurou: – Eu não sabia que você sabia.
Por um momento, realmente cogitou falar sobre a noite em Birmingham onde ela contou mais do que gostaria de ter contado. Em um segundo, uma infinidade de pensamentos passou por sua cabeça, e, deixando de lado a raiva, optou por não dizer nada. Ela não iria querer saber. E ele não estava a fim de explicar.
- As peças meio que se encaixaram quando eu ia te ligar pra avisar que tava chegando e vi você entrando no carro dele.
- Ah... – gemeu, contrariada. – Você viu isso? Olha... – começou.
- Tudo bem, não precisa explicar. – ele a interrompeu com frieza e impaciência, voltando a encarar o trabalho.
- Preciso, sim.
- Não. Não precisa. – a olhou de novo e falou com firmeza, pondo um fim à discussão. Num golpe repentino de coragem, se arriscou mais uma vez:
- Quanto à peça amanhã...
- Acho que vou recusar. – a cortou.
Um segundo de silêncio, e concordou, humilde.
- Tudo bem. – assentiu lentamente com a cabeça e, mortificada, voltou também a se concentrar no próprio trabalho. – Eu também recusaria. – admitiu num murmúrio resignado.


18

She seems to have an invisible touch, yeah
She reaches in, and grabs right hold of your heart
She seems to have an invisible touch, yeah
It takes control and slowly tears you apart (...)
And though she will mess up your life,
You'll want her just the same
And now it seems I'm falling, falling for her

(Invisible Touch – Genesis)


Flashback, 3 anos antes
Whitworth Street, 902, Manchester – Sexta-feira, 19:15


’s POV
Patrick abriu a porta com uma expressão esquisita.
- Oi. – falei, subindo na ponta dos pés para beijar seus lábios. – Tá tudo bem? Você tá pálido. – perguntei, passando a mão carinhosamente pelo seu rosto.
- Aham. – ele disse, parecendo inquieto e levemente ofegante. Fez silêncio por um segundo, me encarando apoiado no vão da porta.
- Não vai me deixar entrar? – perguntei divertida. Ele pareceu estar no modo off por um segundo. – Patrick, pelo amor de Deus, qual é o problema? – ele estava agindo realmente muito esquisito.
- Nada, nada. – ele riu, mais de nervoso que qualquer outra coisa, e me deu espaço para passar. – Eu tava dormindo. – explicou. – Acordei assustado com a campainha.
Sua gravata estava frouxa e a camisa social, amassada, com cara de quem tinha mesmo desmaiado de cansaço logo depois de voltar do trabalho.
- Ah, desculpa, amor... Não sabia que você já tinha ido deitar! – expliquei, enquanto me dirigia para o quarto. – Mas olha o que eu trouxe! – mostrei, sorrindo, a sacola de papel com uma garrafa de vinho e a caixa de bombons nas minhas mãos. – Tô a fim de ficar a noite inteira na cama sem me preocupar com nada!
Comecei a tirar as coisas de dentro da sacola e arrumá-las em cima da cômoda perto da cama, e foi quando escorreguei em algo no chão e quase caí. Vi que era um pedaço de pano, peguei-o nas mãos e reconheci uma blusa vermelha que eu adorava e estivera procurando por dias.
- Ei! – chamei. – Nem sabia que tinha esquecido essa blusa aqui, por que você não me disse? – gritei para ele. – Tô procurando há tanto tempo...
Patrick finalmente me alcançou, parou na porta do quarto, tirando a gravata com um pouco de violência. Ele me olhou, olhou para a blusa nas minhas mãos e disse vagamente:
- Desculpa... Nem tinha percebido.
Então ele puxou um pouco os cabelos e sorriu, indo atrás de mim. Entrou no quarto e ficou se movimentando à minha volta, agitado, como se não soubesse muito bem o que falar ou dizer.
- O que é isso, Pat? – eu ri, mais uma vez, começando a ficar impaciente. Eu vivia dizendo que aquele trabalho exigia demais dele e ele precisava mesmo era de férias. – Já sei o que nós vamos fazer. Tomar um banho relaxante... – disse sugestivamente, beijando seus lábios devagar. Quando comecei a me dirigir ao banheiro, ele quase gritou:
- NÃO!
- Mas que susto! – reclamei. Eu estava realmente me esforçando para criar um clima legal e ele continuava estragando tudo com aquele comportamento esquisito. – Qual é o seu problema?!
Então, antes que ele pudesse se explicar ou eu pudesse me irritar mais ainda, minha visão periférica captou algo que me fez parar por um instante. Mais um pedaço de pano. No chão, bem em frente à porta do banheiro, eu vi o que parecia ser uma saia que me era estranhamente familiar. Peguei a peça do chão. Não era minha, mas eu definitivamente conhecia aquela saia. Se não era minha, como é que podia ser tão familiar?
- ... – ouvi meu nome sair na voz de Patrick atrás de mim, mas não me detive.
Caminhei os poucos passos que faltavam para a porta do banheiro, a mão de Pat tentando me segurar por trás, e de repente, porta aberta, palavras soltas que eu não identificava, meu nome numa voz chorosa e, na minha frente, apenas de lingerie, estava o corpo naturalmente modelado que eu sempre desejara ter.
E enquanto eu apertava minha mão em volta da maçaneta e tentava segurar minha explosão interior, minha irmã tentava cobrir o próprio corpo com as mãos.
- ... Eu posso explicar. – Alyssa, o clichê dos clichês, decidiu usar a frase mais clichê do mundo.
E surpreendendo até a mim mesma, eu respirei fundo e disse friamente:
- Então explica.
Eu vi Alyssa piscar atordoada à minha frente, enquanto o espelho atrás dela mostrava o reflexo de Patrick atrás de mim, com a expressão mais desesperada que eu podia imaginar.
- ... – ele me chamou também, e a explosão que eu estivera tentando segurar saiu num grito duro e exigente:
- ENTÃO EXPLICA. – repeti.
Os dois se entreolharam por um segundo e aquele silêncio carregado de humilhação foi demais para mim. Joguei a saia no chão, empurrei Patrick da minha frente e segui em direção à sala.
Ele veio em meu encalço, puxando os cabelos como fazia quando estava nervoso, e sua voz ansiosa começava a me enojar.
- , espera! Olha... Minha... Nossa intenção nunca foi... – ele continuava soltando aquelas frases inacabadas que não adiantariam de nada, enquanto eu andava em direção à porta, um sentimento arrebatador de decepção se espalhando dentro de mim como sangue jorrando de um corte. – Pensei que fosse acabar quando eu te pedisse em casamento, mas...
Patrick finalmente conseguira uma reação minha. E aquilo pareceu lhe surpreender tanto quanto a mim, pois ele interrompeu a frase. Eu me virei lentamente e pela última vez na minha vida olhei bem fundo nos olhos de Patrick Byrne.
- Desde antes de você me pedir em casamento? – perguntei num tom baixo e controlado.
Ele não disse nada, aparentemente percebendo que quanto mais falava, mais piorava a situação. Voltei-me para a porta.
- ... – ele disse pateticamente.
Uma vez mais, eu me virei para ele e, vendo minha irmã no fundo da sala, vestida com a minha blusa preferida e com sua melhor cara de arrependimento, sibilei:
- Não se atreva a me procurar. E isso vale pros dois.
Bati a porta ao sair e me apressei para fora do prédio.
E pensar que eu tinha recusado o emprego dos sonhos em Londres por uma punhalada nas costas.
Assim que entrei num taxi, puxei o celular do bolso e disquei o número com o qual tinha falado mais cedo. Uma secretária atendeu e eu disse logo:
- Posso falar com ? É . Sobre a oferta do cargo de redatora.
End of ’s POV

BBDO, Londres, Quinta-feira, 11:20h

Mais de três semanas se passaram durante as quais e trabalharam sem muita intimidade. Enquanto isso, e se encontravam esporadicamente, e e se trataram como sempre fizeram, sem que o chefe sequer desconfiasse que o outro sabia mais sobre sua vida do que deveria, de fato, saber.
Mas com o passar dos dias, a frieza de em relação a evoluiu para um estado de neutralidade, que aos poucos caminhava para o clima normal de risadas contagiantes e comentários inesperados. Apesar de não tê-la tratado mal, começava agora a ser tão extrovertido quanto antes.
É possível que a aproximação do Natal, que trouxe a neve, as luzes nas ruas e um espírito de harmonia, estivesse amaciando o orgulho de . É possível que ele fosse apenas o tipo de pessoa que nunca fica chateado por tempo demais. Mas naquela quinta-feira de manhã, depois dele lhe mostrar um vídeo aleatório de um gatinho que simplesmente não conseguia entender o funcionamento da torneira do banheiro, teve coragem de tentar reatar o que ela mesma havia estragado.
Então depois que os dois superaram a crise de risos, respirando fundo, ela secou as lágrimas nos cantos dos olhos causadas pelo vídeo e disse:
- Ei... E aqueles programas que a gente nunca mais fez?
desviou os olhos da tela do computador para encarar a colega por um segundo e ela se apressou a acrescentar:
- Temos que prezar pela nossa relação profissional, não acha? – e arriscou um sorriso.
Talvez fosse a vontade de de ver todos à sua volta felizes, talvez fosse o fato de que ele próprio sentira vontade de chamá-la para sair inúmeras vezes nos últimos dias, talvez fosse porque ela parecia adoravelmente insegura. O fato é que tinha algo nela que simplesmente lhe obrigava a sorrir e assentir lentamente com a cabeça.
- Tem razão... – ponderou. – Já faz um tempo que não investimos no nosso... Profissionalismo. – e sorriu.
respirou fundo e tentou não soar animada demais por ele não tê-la rejeitado.
- O que você acha de eu te levar naquele restaurante cego que eu tinha comentado?

Dans Le Noir, Londres, Quinta-feira, 19:31

segurou a porta para , e passaram pela porta de vidro do discreto estabelecimento. O hall de entrada tinha algumas mesas redondas rodeadas de poltronas, a decoração era simples e a iluminação, bastante escura, já antecipando o que viria a seguir. Ao fundo, havia um vão de porta tampado por uma cortina preta. O balcão, à direita, estava vazio, assim como a sala inteira.
- Uh... A gente tem certeza que está funcionando? – perguntou incerto, sussurrando talvez inconscientemente.
- Se não estava trancado, imagino que sim. – riu também baixo. A falta completa de pessoas e sons dava a impressão de que estavam fazendo algo de errado.
Aproximaram-se do balcão e olhou mais uma vez em volta antes de tocar a campainha sobre a mesa.
Esperaram. Até que já tivesse observado todos os quadros na parede, até que já tivesse tocado a campainha três vezes, até que os dois trocassem um sorrisinho triste e conformado. Mas passos apressados pelo corredor se fizeram ouvir.
Uma mulher alta entrou parecendo apressada e buscou o olhar dos dois. Ela tinha cabelos longos, beirando a cintura, castanhos e bem lisos. Seus olhos eram grandes e castanhos, e quando ela sorriu, exibiu um sorriso torto, mas tão bonito, repuxando um pouco para um lado e marcando o outro com uma covinha. A mulher deu boa noite e, enquanto lia o nome Mischa no crachá, se perguntou quando foi a última vez que se deparou com uma pessoa tão marcante a primeira vista.
- Me desculpem! – Mischa exclamou apressada. – Eu realmente... Nós pedimos desculpas pela falta de atendimento. – falou pausadamente, ofegando um pouco como se tivesse vindo às pressas. No seu crachá, abaixo de Mischa Friis lia-se "GERENTE".
- Sem problemas, Mischa. – respondeu com o sorriso de sempre, e percebeu como ele realmente ganhava as pessoas com facilidade. Pois a gerente pareceu respirar mais aliviada assim que seu olhar encontrou o rapaz, que apoiava um dos braços sobre o balcão.
- Estamos com uma baixa na equipe hoje. – explicou afobada e continuou: – Três pessoas faltaram, eu estou mais perdida que cego em tirote... Ah, meu Deus, que coisa horrível de se dizer! – completou baixo, como se falasse sozinha, tampando a boca por um momento e parecendo horrorizada consigo mesma.
, ainda escorado na madeira clara, sorriu de novo como fazia quando queria ser adorável e repetiu:
- Sem problemas, Mischa.
Por coincidência ou razão específica, por impressão, por fome, cólica ou até mesmo porque o aromatizador de ambientes acabara de borrifar um perfume bem doce, sentiu um incômodo bastante difícil de escrever e um pouco parecido com ciúmes. O que, pensou ela, não fazia o menor sentido. Mas a falta de coerência dos seus sentimentos não lhe impediu de pigarrear, sorrir o melhor que pôde e ir direto ao ponto:
- Vocês têm mesas vagas?
- Temos. – a gerente respondeu, parecendo bem mais tranquila agora e exibindo de novo seu sorriso torto e sua covinha. – Vocês já conhecem a casa?
e se entreolharam.
- Eu sim.
- Muito bem. Sejam bem vindos ao Dans Le Noir. Aqui você tem a oportunidade única de jantar de uma forma diferente, usando profundamente todos os seus sentidos... Exceto a visão. Toda nossa equipe é formada por deficientes visuais, e eu sinto muito que eu esteja corrompendo a experiência de vocês. – encolheu os ombros, tímida. – Em alguns instantes um de nossos garçons virá buscá-los e irá encaminhá-los até a mesa de vocês. Nossos atendentes estão sempre a disposição – mesmo que você não possa vê-los. No mais, espero que tenham uma noite maravilhosa.
Dito isso, ela voltou para o corredor pelo qual viera e pouco tempo depois um homem surgiu pela cortina preta ao fundo. Ele se apresentou como Michael, disse que seria seu garçom aquela noite e pediu que e dessem as mãos, o que fizeram antes de se olhar timidamente. Ele, então, segurou a mão de , que estava à frente, e seguiram em uma fila por trás da cortina. Passaram por um corredor com pouca iluminação que ficava cada vez mais escuro. E antes que se dessem conta estavam serpenteando por entre mesas, guiados por Michael e sem enxergar absolutamente nada.
O garçom pousou a mão de cada um deles em sua respectiva cadeira, disse que voltaria para anotar os pedidos e se retirou (ou pelo menos disse que o faria, nenhum dos dois podia ver para confirmar).
Apesar de ouvirem murmúrios ao redor da sala, e se sentiam num silêncio constrangedor. Ficaram alguns segundos parados, até que, ouvindo a cadeira de se arrastar no chão, fez o mesmo. Sentaram se e enquanto se ajeitavam nas cadeiras, acabaram por se esbarrar, roçando os braços. E naquele roçar suave e involuntário, sentiu seu braço se arrepiar, e percebeu como seus sentidos estavam, de fato, aguçados pelo escuro. Porque aquele contato leve, que poderia acontecer a qualquer momento no trabalho, naquele momento pareceu extremamente íntimo.
- Meus olhos ainda não se acostumaram à falta de luz. – riu fraco, piscando algumas vezes no escuro.
Ficaram algum tempo sem dizer nada e começaram a perceber que podiam sentir um ao outro, e depois disso o silêncio foi ficando cada vez menos desconfortável. ouvia a respiração do colega, ainda que baixa e tranquila, podia distinguir o cheiro dos cabelos dela, e ambos percebiam seus mínimos movimentos, ainda que não os vissem. E, talvez envolvido por aquela sensação de proximidade, admitiu baixinho:
- Eu gosto tanto da sua voz.
E não foi necessário resposta ou contato visual. Mas a mulher se pôs a pensar em como nunca havia prestado atenção suficiente à voz dele. Antes que conseguisse descrevê-la mentalmente, outra voz, bem alegre, surgiu na lateral da mesa:
- Oi, vocês dois. Já posso anotar os pedidos? - os dois perceberam que ainda não haviam aprendido a voz do garçom, mas imaginaram que só poderia ser Michael. Ele continuou: – Temos as opções tradicional, vegetariano e o prato surpresa. Cada um com uma opção de suco ou vinho. O que vai ser?
Imediatamente, respondeu:
- Um surpresa pra mim e um tradicional pra ele. Ambos com vinho. – disse prontamente, como se aquilo já estivesse escolhido há muito tempo.
- Certo. – respondeu Michael e, apesar de mais uma vez não vê-lo saindo, imaginaram que era isso que ele havia feito.
- Uau... – riu-se . – Já sabemos quem segura as rédeas no nosso relacionamento. – brincou.
- Eu já vim aqui antes! Sei o que tem nos pratos.
- É, mas você escolheu por mim. - acusou, sem na verdade estar incomodado.
- Você teria escolhido esse mesmo!
- Como você sabe? – ele achou graça.
- Talvez eu te conheça um pouco melhor do que você imagina.
Pego de surpresa, apenas sorriu sozinho, sem falar nada. E ficaram assim por alguns segundos, naquele silêncio calmo que não incomodava mais.
- É engraçado isso...
- O quê? – ela indagou.
- Isso de conhecer as pessoas. Quero dizer, nos conhecemos há alguns meses agora, só que na verdade tempo não tem nada a ver com conhecer alguém. Mas eu fico me perguntando o que é que tem a ver, então. É saber sua cor preferida, suas alergias? Talvez o nome do seu melhor amigo ou algum hábito de infância? O que é realmente conhecer alguém?
- Hm, acho que não... – ponderou.
- Então o que é? – insistiu, curioso para ouvir a resposta da colega. Naquele momento, sentia uma vontade incontrolável de ver seu rosto. De vê-la franzindo as sobrancelhas enquanto pensava, mordendo os cantos dos lábios como costumava fazer. Ocorreu-lhe que ela vivia perguntando sobre tudo, mas ela mesma não gostava de responder perguntas. Ali, ele percebeu que não precisava se preocupar ou sentir que ela se fechava para ele, porque sabia que eventualmente ela se sentia pronta e compartilhava algo também. Como ocorreu nos instantes seguintes:
- Ah... – e pensou durante alguns segundos. – Acho que é muito menos pontual que todas essas coisas que você falou. E também não é tão simples... Talvez seja conhecer as angústias, as inseguranças da pessoa. Mesmo que ela nem tenha te contado nenhuma delas. É saber como agradá-la, até quando ela nem quer ser agradada. É quando você sabe exatamente como ela vai agir, mas ela faz o contrário e te pega de surpresa, e depois você percebe que no fundo você sabia que ela ia mesmo é te surpreender. É saber o que ela quer e o que ela precisa, mas perguntar mesmo assim só pra que ela veja que você se importa.
E percebeu que ela falava devagar – não hesitante, mas tranquila. Que sua voz soava confortável e reflexiva, e que ela estava naquele estado de calmaria em que ele podia se aproximar sem medo. E não só fisicamente.
Depois de algum tempo, nenhum dos dois saberia dizer quanto, ele disse suavemente:
- Então, talvez eu te conheça muito melhor do que você imagina.
Ele aproximou a mão da perna dela, sob a mesa, e pousou-a um pouco acima do joelho, apertando-lhe carinhosamente. E ficaram os dois ali, sentindo as respirações e sorrindo um para o outro, ainda que não pudessem se ver.


19

- Yo sé que no he sido un santo, pero lo puedo arreglar, amor
- No solo de pan vive el hombre y no de excusas vivo yo (...)
Ay, amor, me duele tanto, me duele tanto
Que no creas mas en mis promesas
Ay, amor,
Es una tortura
Perderte

(La Tortura - Shakira)


BBDO, Londres, Segunda-feira, 10:19h

- A sala está vazia. – a senhora Dermott lhe disse ao telefone, depois que lhe pedira que ligasse para a sala de .
- Ah, certo. Obrigado. – agradeceu um pouco surpreso.
Vinha sentindo a mulher um pouco distante ultimamente. Ambos estiveram com pouco tempo livre, então quase não haviam se encontrado direito fora do trabalho no último mês. Mas a sensação de ia além daquilo. Era sutil, era discreto, mas algo no jeito dela mudara. O esforço que ela fazia para vê-lo não era mais o mesmo; o encantamento na sua voz ao falar com ele se dissolvera; sua companhia perdera um pouco da paixão que sempre tivera. Como se não estivesse mais inteiramente presente quando estavam juntos.
E aquilo lhe agoniava.
pegou seu celular e ligou para o de . Depois de alguns toques, ouviu a voz dela ao final de uma risada:
- Oi.
- ? – exclamou, aliviado por ela ter atendido.
- Oi, . – sua voz era tranquila.
- Tudo bem?
- Tudo ótimo, e você?
- Tudo bem. – ao contrário do que dizia, seu rosto esboçou uma careta. Aquele tipo de conversa casual não combinava com eles. – Onde você tá? Liguei na sua sala e ninguém atendeu...
- Ah! Eu dei uma saída. Coisa de vinte minutos, já tô chegando. Mas pode ficar tranquilo que vou descontar da minha hora de almoço. – garantiu.
- Quê? Ah, não, não é isso, eu... – aquilo não era, de forma alguma, o lhe preocupava. – Não tem problema nenhum.
- Que bom. – ao fundo ele ouvia vozes e carros. – Já estamos quase de volta.
- Estamos? – repetiu.
- É, eu e .
fez silêncio por um segundo. Aquela informação lhe deixou estranhamente inseguro. Decidiu agir rápido.
- Sabe o que é, ? Eu tô com saudade de você. Tentei me lembrar de quantas vezes pudemos ficar juntos nos últimos tempos, e foi tão pouco... O que você acha de fazer alguma coisa? Você tá livre hoje? – convidou, tentando fazer seu sorriso cativante aparecer em sua voz.
- Não. – ela disse apenas. Não de forma grosseira, apenas direta. Parecia ter outras distrações à sua volta, porque alguma voz falava ao seu lado.
- Quê? – perguntou, pego de surpresa.
- Não. Eu não tô livre hoje, não. – ela repetiu. – A gente pode combinar de outra vez. , vou entrar no elevador e a ligação vai cair, então vou desligar, tá? Um beijo! – falou, ainda soando tranquila, e desligou.
Celular ainda colado ao ouvido, olhar perdido e um sentimento gelado no peito. respirou fundo e passou a mão pelo rosto. Alguma coisa estava muito estranha, sentia que estava prestes a perder o controle sobre o que quer que fosse aquela relação. E aquilo era um pouco assustador.
Levantou-se da cadeira e, desesperado por ação, se dirigiu até a porta e se apressou pelo corredor. Ao final dele, interrompendo seu caminho, a porta do elevador se abriu e explodiram à sua volta risadas e vozes animadas. Quando e pousaram os olhos no chefe, interromperam os sorrisos. Ele estava parado, sério, com a postura tensa enquanto os encarava.
- Uh, oi, . – quebrou o silêncio e o clima inexplicavelmente pesado. Tinha sacolas nas mãos e passou todas para uma só, a fim de liberar a outra para estendê-la ao chefe.
pareceu acordar de um transe.
- . – correspondeu ao aperto de mão e pigarreou, recompondo-se. – E . – pousou uma das mãos sobre os ombros dela, apertando-os carinhosamente.
A mulher sorriu falho, dividida entre a tentativa de ser simpática e de entender o que diabos estava errado com ele aquela manhã.
- Então... – questionou, olhando para as sacolas nas mãos dos dois. Ambos pareceram demorar um segundo para reagir, e então se apressaram:
- Sim! Isto são compras. – explicou, divertida. – e eu percebemos que com frequência sentimos fome durante o dia.
- É todo esse trabalho duro. – ele brincou, olhando para . Apenas riu.
- Então, decidimos abastecer nossa sala para não precisar mais interromper nosso trabalho.
- Produtividade máxima! – exclamou , estendendo a mão para a colega num high-five, ao qual ela respondeu, ainda rindo.
Em um segundo, um turbilhão de coisas atravessou sua mente. Via os dois rindo, mas não queria rir junto. Não queria, mas talvez precisasse. Ponderou sobre como reagir, e se esforçou com toda sua energia para agir como chefe, não como pessoa. Ali era o momento em que sentia o coração batendo forte de ciúme, mas o Sr. , diretor da BBDO, agia como o chefe que trabalhara durante anos para ser. Aquele que aplaude o bom trabalho, incentiva seus funcionários e encoraja as ideias loucas. Esse era o chefe que ele era e gostaria de ser. Então, com toda a coragem que tinha reunida, virou as costas para o nervosismo que lhe assolava os pensamentos e sorriu:
- Assim que eu gosto de ver! – assentiu com a cabeça e apontou com esta em direção à sala da dupla. – Agora vão me orgulhar. – e piscou.
Ouviu algumas respostas, mas não prestou muita atenção enquanto observava os dois se afastando dele.
E naquele instante algumas coisas ocorreram a .
A primeira era o quão feliz e bem humorada estivera nos últimos dias. Mais do que ele se lembrava de ver em muito, muito tempo.
A segunda era como ela e pareciam se dar incrivelmente bem. De repente, pareceram plausíveis todas aquelas baboseiras que as pessoas costumam falar sobre “química” e todas essas porcarias nas quais ele não acreditava. Mas e simplesmente pareciam certos um ao lado do outro, por mais que a constatação lhe incomodasse. E como incomodava!
E a terceira, simples e sem rodeios, lhe veio à mente: estava perdendo . E por mais que soubesse que não podia reclamar; por mais que lhe preocupasse não conseguir revertê-lo; por mais que soubesse que aquilo aconteceria eventualmente, a ideia lhe apertou o peito com tanta força que levou a mão ao colarinho da blusa para tentar afrouxar a gravata. Precisou respirar fundo. Porque estava lhe escapando por entre os dedos.

BBDO, Londres, Sexta-feira, 16:49h

apressou o passo para chegar logo à sala de conferências e percebeu que já estavam todos terminando de se acomodar. Felizmente, viu , a apenas duas fileiras de distância, estender-lhe a mão, indicando o lugar que havia guardado para ela.
Sentou-se ao lado dele no momento em que subia ao palco.
- Boa tarde a todos. – cumprimentou. – Mais uma vez muito bem sucedidos, fechamos mais um ano. Tenho muito orgulho do trabalho de todos vocês e agradeço imensamente, em nome de toda a empresa, o esforço e trabalho duro de cada um. Espero que a semana de recesso seja boa para todos. Renovem suas energias, divirtam-se, aproveitem suas famílias e amigos, para voltarmos com garra redobrada. Ruby está aqui – e apontou para um canto do palco – com os presentes de vocês, espero que gostem. Desejo a todos e todas um feliz natal e um próspero ano novo. Obrigado!
Depois de uma salva de palmas, as vozes voltaram a preencher o salão enquanto os funcionários se dirigiam até Ruby para receberem a cesta de natal que a empresa distribuía todo fim de ano.
E enquanto todos se levantavam, falavam, se despediam, e haviam parado onde estavam. Em pé, um de frente ao outro, em silêncio.
Ambos sabiam que deveriam se despedir ali. Ambos, por algum motivo, sentiam pouca vontade de fazê-lo. Ambos, inacreditavelmente, eram incapazes de perceber que o sentimento era recíproco.
Mas depois de alguns segundos, puxou o gancho.
- Bom... Acho que é isso. – e deu de ombros, tímida. – Foi um ótimo ano, .
- Meio ano. – ele corrigiu, sorrindo.
- Isso. Meio ano. Então... Obrigada pelo meio ano. Eu... Me diverti.
- Claro! – ele concordou, também sem saber o que dizer. – Obrigado a você.
ameaçou estender a mão, tensionou o corpo, e naquele momento constrangedor de dúvida quanto a como finalizar o momento, ele tomou as rédeas da situação e fez o que os dois estiveram esperando que acontecesse. Estendeu os braços para a colega e a envolveu num abraço apertado.
- Feliz natal, .
- Feliz natal, . – respondeu baixinho, correspondendo com força o gesto do colega.
Separaram-se em determinado momento, mas devagarinho, para que o contato durasse o máximo possível.
Sorrindo brandamente, virou as costas e se afastou.
coçou a cabeça, incomodado.
De repente, um sentimento pesado tomou conta dele. Como uma onda, que vem sem piedade, te derruba e nem olha para trás para se certificar de que você está bem. Uma vontade esmagadora de estar junto de outra pessoa. Um pouquinho só que fosse.
Sentiu-se engolido pela sensação de soco na boca do estômago que era saber que aquela vontade nunca se concretizaria.
A porta do salão bateu atrás dela, trazendo de volta para a realidade. Percebeu que era o único restante na sala enorme. E contrário à sensação de pequenez que lhe invadiu ali, um impulso de coragem. E se a vontade pudesse se concretizar?
Esgueirou-se por entre as cadeiras, contando os segundos na própria cabeça. Não vá embora. Não vá embora!
Atravessou a porta e disparou pelo corredor. E lá estava ela, de costas, os longos cabelos caídos sobre os ombros. Sozinha, enquanto esperava pelo elevador.
- ! – chamou, e ouvindo a própria voz percebeu que estava ofegante e que soava desesperado.
Bom, aquele não era o maior de seus problemas.
Ela se virou e jurou que pôde ver seus olhos brilhando – esperança, parecia?
- Que foi? – ela perguntou, enquanto se encaravam, frente a frente, porém a certa distância.
- Eu estive pensando... Se... Bom, talvez seja uma pergunta ridícula, mas eu estava me perguntando se você tem alguma tradição de Natal.
pensou em como havia começado o costume de passar o Natal com desde que chegara a Londres e considerou dizer que sim.
Mas então se lembrou de quantas vezes perdera oportunidades legais por causa de . Quantas vezes ele cancelara de última hora. Quantas vezes ele simplesmente não aparecera.
E sugando coragem dos olhos que lhe encaravam, ansiosos, esperando por uma resposta, decidiu que aquele tempo, de priorizar quem não lhe priorizava, ficaria para trás.
- Nada que valha a pena ser mantido. – respondeu, e a frase teve gosto de desintoxicação.
Até mesmo o leve aperto no coração que aparecera sumiu assim que sorriu para ela um sorriso tão verdadeiro que ela o acompanhou.
- Então você gostaria de passar o Natal comigo? – convidou.
- Eu adoraria. – aceitou, satisfeita. – Eu realmente adoraria.
- Ótimo! – comemorou. – Ah, mas espero que você não esteja esperando uma ceia enorme e tradicional com pato e peru. Não sou minha mãe. – confessou.
Ela riu.
- Eu sei que não posso exigir muita coisa, mas a gente não vai cear noodles, vai? – indagou numa careta apreensiva.
- Jamais! – garantiu. – Você alguma vez me viu comer sem classe, ? – ele perguntou sorrindo, antes de estender o braço em direção ao elevador, dando espaço para a colega entrar.

Brown Street 108, Londres, Sábado, 01:25h

Apertou vez o cellular nas mãos, tentando decidir o que fazer. Mais uma vez, desistiu – decisão que possivelmente mudaria dentro dos próximos segundos. Soltou o ar pesadamente e apoiou a testa sobre o volante.
O que estivera pensando? Não podia simplesmente bater à porta dela àquela hora. Nem mesmo sabia o que dizer.
passou as mãos com força pelo rosto, tentando trazer alguma clareza aos seus pensamentos.
Como lidar com a assustadora percepção de que você está perdendo o que tem de mais precioso?
Porque era aquilo que representava para ele. Talvez você não acredite, assim como ela própria não acreditaria, mas apenas sabia, em seu íntimo, a dimensão do que sentia por . Da mesma forma, sabia que não a merecia, e que ela não merecia o tratamento que ele lhe dava. Sabia o quanto era pobre o pouco que ele fazia por ela. Sabia que ela já deveria tê-lo abandonado há muito. Sabia que seu amor por ela era egoísta, era mesquinho, enquanto o dela era bondoso e generoso. Mas nada daquilo abrandava o absoluto desespero que lhe enchia o peito e lhe escorria pelos olhos.
Era frustrante ser pobre, egoísta e mesquinho, mas não se sentia capaz de mais que aquilo. Gostaria de oferecer mais a ela, gostaria tanto! Mas que pode oferecer a outro, alguém que não é suficiente nem para si mesmo?
Encarou-se no pequeno espelho retrovisor e enxergou apenas cacos. Cacos quebrados de uma pessoa que um dia fora amorosa, engraçada, completa. Cacos quebrados de uma pessoa que hoje se passava por tudo aquilo, mas que há anos não se sentia bem. Verdadeiramente bem.
Secou as lágrimas novamente.
Encarou o celular e finalmente chamou o último número dos deus registros. Mais uma vez, direto na caixa postal. Esperou pelo bipe e respirou fundo antes de dizer as palavras que imploravam para sair.
- Oi. Eu sei que você está dormindo, e eu queria estar com você. Porque você é linda quando dorme e eu sinto sua falta. Eu te amo. Eu sei que você é boa demais para mim, . Sei mesmo. E eu te amo mais ainda por ter me dado tanto, enquanto eu te dei tão pouco. Ninguém mais no mundo fez isso por mim. Imagino que você me odeie por isso. Mas acedite, eu me odeio ainda mais. Eu espero poder te retribuir, , eu estou tentando. Você não sabe como eu tento. Desculpe não ser o que você queria. – pediu, inspirando forte, e confessou: – Também não sou o que eu queria. – e desligou, antes que o choro se fizesse audível demais.
Respirou fundo, a cabeça apoiada pesadamente sobre o encosto. Passou mais uma vez as costas da mão pelo rosto e arrancou o carro rumo a uma madrugada amarga e solitária, que provavelmente duraria mais do que ele gostaria. Mas tudo bem. passara anos se preparando para ficar sozinho.


20

Oh I really need to know, or else you gotta let me go
You're just a fantasy girl, it's an impossible world
All I want is to be with you always
I give you everything, pay some attention to me
All I want is just you and me always
Give me affection, I need your perfection
Cause you feel so good you make me stutter

(Stutter – Maroon 5)


Capland Street 12, Londres, Sábado, 20:29h

tocou a campainha e esperou até que ouviu passos se aproximando do lado de dentro. E lá estava , vestindo uma camisa preta por baixo do avental de cozinha e de cabelos ainda molhados.
- Você está muito linda. – foi a primeira coisa que ele disse aquela noite. Fez valer todo o tempo que gastara em frente ao espelho se perguntando se estava arrumada demais ou de menos; se deveria ou não levar o presente que comprara; se esperava algo a mais daquela noite ou se fora um convite puramente amigável.
- Você também. – respondeu subitamente tímida, como parecia ficar sempre que o colega lhe elogiava. Ela ergueu a sacola que segurava e sorriu amarelo. – Não sei se vai combinar com a "ceia" que você preparou, mas espero que você não me julgue por trazer cerveja.
- Eu acho que gosto ainda mais de você agora. – sorriu e se afastou da porta, dando espaço para que sua visita entrasse.
Em seguida tirou o casaco de , a sacola de suas mãos e, inesperadamente, inclinou-se até ela e beijou sua bochecha. Um beijo longo. A mulher pôde sentir seu perfume, a temperatura de seu corpo próximo ao dela e o sorriso que tomou conta dos lábios de ambos.
Charlotte se mexia atrás dele, animada pela visita, e veio até com a língua para fora e o rabo balançando.
- Ei, garota. – a mulher se abaixou um pouco para fazer um carinho nela. – O que vamos comer? – perguntou, sorrindo travessa. – Espero que você tenha herdado os dotes culinários da sua mãe!
- Ah, você não sabe o que te espera! – prometeu animado. Apesar de nunca optar pelo mesmo estilo de comida tradicional da mãe, ele cozinhava, de fato, muito bem, e adorava que adorassem sua comida. Pegou pela mão e a levou até a cozinha, pondo a sacola dela sobre o balcão.
- Ei! Você me trouxe um presente? Posso abrir? – ele perguntou, soando como uma criança, enquanto tirava da sacola uma caixa embrulhada para presente.
- Não era pra isso estar aí... – se esticou para tirar o embrulho das mãos dele, um pouco chateada por ele ver aquilo antes da hora e um pouco envergonhada por não saber se ele teria um presente para ela também.
riu, descontraído como sempre, e separou duas cervejas antes de colocar o resto na geladeira. Tirou da primeira gaveta um avental e o jogou nas mãos de .
- Venha ser minha sous-chef.
Ela o olhou com uma careta enquanto vestia o avental.
- Eu não sei o que quer dizer isso, mas espero que não seja algo sexual.
rolou os olhos.
- Venha ser minha assistente.
se aproximou. - O que estamos fazendo? – ela se inclinou para ver o que havia sobre a bancada.
- Os melhores hambúrgueres que você jamais irá comer!
Depois disso, lhe ensinou como temperar a carne na medida certa, como fazer Charlotte parar de insistir depois de já ter ganhado um pedaço de carne, como rechear os hambúrgueres com cheddar e enrolá-los com mozzarela e como preparar o melhor molho para hambúrguer que ela jamais experimentara. E, apesar de tantas coisas acontecendo, toda hora ela voltava a pensar em como o sorriso de era convidativo e como fazia seus olhos brilharem tanto.
Arrumaram a mesa, serviram a ceia e sentaram-se frente a frente. Sorrindo, sem a menor formalidade ou embaraço, comeram daqueles hambúrgueres gigantes e deliciosos até se fartarem. não lembrava a última vez que se sentira tão à vontade, mesmo com molho escorrendo pelas mãos e espalhado pelo seu rosto.
- Acho que comi o suficiente para o resto do ano. – ela suspirou, rindo, enquanto lambia os dedos sujos.
- Tá louca? – espantou-se o colega. – Daqui a algumas horas tem café da manhã. Você sabe que eu não pulo o café da manhã. – ele disse sério.
- Ah, meu Deus... – a mulher se queixou, com a mão sobre a barriga. Na realidade, estava mesmo era se perguntando se acabara de insinuar que acordariam juntos ou se era tudo coisa da cabeça dela. Felizmente, ele desviou o assunto.
- Vem, quero chegar logo na próxima fase! – chamou, referindo-se aos presentes e indicando a cozinha com a cabeça.
Levantaram-se, limparam a mesa, lavaram a louça. Tudo ao som das músicas do celular de , que tinha os mais diversos estilos. Cantaram alto juntos, deram risadas e, lado a lado, se esbarraram algumas vezes. O contato com a pele um do outro causou leves arrepios, como se fossem dois adolescentes inexperientes.
Foi de propósito?, os dois se perguntavam, em silêncio, o tempo todo. Ah, se alguém tivesse tido coragem de fazer a pergunta em voz alta...
Depois, sentaram-se no sofá, um ao lado do outro, e disse baixinho e cuidadoso:
- Eu tenho um presente pra você.
sorriu curiosa, subitamente cheia de alívio por ele também ter comprado algo para ela. Passara o dia inteiro se perguntando se teria sido a única.
- Eu também tenho um presente pra você.
- Eu sei. O seu primeiro. – ele pediu.
- Não, o seu. – contrariou sorrindo e, ansioso pela reação dela ao receber o presente, aceitou sem pestanejar. Levantou-se de um pulo e foi até o quarto. Em seguida, voltou com uma grande caixa de papelão.
observou enquanto o colega caminhava devagar, carregando a caixa com cuidado. Não estava embrulhada, nem lacrada, apenas tampada. Ele se sentou ao seu lado e com o movimento a mulher pôde ouvir algo arranhar o interior da caixa.
- Eu espero que você não me odeie por isso. – começou, sorrindo apreensivo.
- Eu também espero. – retrucou ameaçadoramente, sorrindo enviesado.
- Mas é que... Eu acho que você poderia aproveitar a companhia. – explicou enquanto levava as mãos até o topo da caixa. Depois acrescentou: – E acho que já passou da hora de deixar as preferências da sua irmã serem mais importantes que as suas.
franziu o cenho, confusa, enquanto o colega respirava fundo olhando para ela.
Então abriu a caixa.
A princípio, nada aconteceu.
Até que ele colocou a mão dentro do papelão e tirou de lá a criaturinha mais minúscula, peluda e adorável que vira na vida.
Ela soltou o ar fazendo um som surpreso e levando uma mão à boca aberta, em choque.
- Você... está me dando? – confirmou, enquanto o cachorrinho se debatia levemente nas mãos de , encarando-a com olhos grandes e curiosos.
O homem assentiu com a cabeça em movimentos rápidos e ansiosos. Num surto de surpresa e excitação, tomou o filhote das mãos dele e o apertou contra o próprio peito, soltando gemidos e suspiros apaixonados.
observou a cena. Ela parecia, de repente, tão criança, tão feliz e espontânea. Um sorriso imenso foi surgindo no rosto dele, bem devagar, à medida que ele sentia crescer no peito um sentimento ao qual não soube dar nome, mas que já aparecia pela segunda vez. Não era amor, não era necessidade, não era nada disso. Era simplesmente uma vontade tão grande, tão grande, que coça por dentro. Uma vontade tão completa e arrebatadora de estar junto de alguém. Só isso. Só estar junto. Você não quer beijá-la, não se importa sobre o que vão conversar. Só quer estar junto dela. Um abraço, talvez. O contato, a presença, e isso é mais que suficiente.
Nesse instante, levantou o rosto e, como um tapa na cara, vieram à cabeça de as lembranças de todos os momentos em que ela o afastou, todos os momentos em que ele pôde ver o quanto ela só pensava em Harry. E ele percebeu que a pior parte da vontade não é nem a força que tem sobre você. O pior é ter certeza de que ela não vai acontecer.
- Que foi? – a voz dela soou, cortando seus pensamentos. Ela percebera que o colega a olhava com uma expressão que ela não sabia decifrar.
- Nada. – ele assegurou, sorrindo timidamente. Respirando fundo, sorriu e desviou-se do assunto: – Agora, cadê o meu?
- O seu eu coloquei na minha bolsa, em cima da mesa, mas não tem a menor chance de eu sair daqui agora. – ela disse enfática, olhando encantada para o filhotinho que rolava desengonçadamente no colo dela. – Vai ser muito sem graça eu pedir pra você mesmo buscar seu presente? – pediu com um sorriso amarelo.
riu.
- Não. – e se levantou em direção à mesa. – Temos que pensar em um nome pra ela.
- É uma ela?! – perguntou surpresa. – Foi tanto amor à primeira vista que eu nem pensei nisso! – riu, e percebeu que nunca vira agir de forma tão doce.
Ele se sentou de volta ao lado dela segurando o embrulho.
- Posso abrir?
finalmente parou de olhar para o filhote e o ajeitou carinhosamente no colo para que pudesse observar o colega abrir o presente.
- Pode. – imediatamente, ele rasgou o papel e encontrou uma caixinha comprida. Dentro dela, dois ingressos. – É pro show do Passenger. Você gosta dele, não gosta? Eu vi na sua playlist em uma das vezes que... – e pausou, um pouco sem graça.
- Que trocamos os celulares. – ele completou.
- Eu só olhei porque achei que era meu! Quando vi que não era não fiquei fuçando! – ela se apressou a justificar.
- Eu sei. – a tranquilizou, rindo.
- Então... – retomou. Você gosta, né? – confirmou. Ele assentiu em silêncio, sorrindo, ainda olhando para o que tinha em mãos. – Tem dois... – ela constatou vagamente, dando de ombros, tentando parecer despojada. – Pra você poder levar quem quiser... Sei lá... Ir em show sozinho é meio sem graça, né? Pensei em comprar dois, assim você decide convidar quem você quiser... – repetiu.
sorriu maior, vendo o quanto ela parecia uma adolescente insegura frente ao dono do seu primeiro beijo.
- Você quer ir comigo? – perguntou sem pestanejar, sabendo que era a pergunta que ela queria ouvir, mas não tinha coragem de fazer.
Ela pareceu surpresa por um instante. Como aquelas situações em que você espera por algo, mas quando acontece de fato te pega de surpresa.
- Bom, se você quiser que eu vá com você...
- Eu quero.
- Então, eu também quero.
pensou na vontade que sentira alguns instantes antes. De repente, nada parecia mais tão impossível assim.
Num golpe de coragem, ele a beijou. Sem aviso, sem cautela, sem máscaras. Simplesmente puxou o rosto dela para próximo do seu e envolveu seus lábios num beijo quente que ele há muito segurava.
Depois de alguns segundos, separaram-se. Trocaram um olhar limpo, sincero. Ela olhou para seus lábios, para o fundo de seus olhos e voltou a se aproximar para depositar um beijo rápido na sua boca. Então, com um sorriso amarelo, pegou a cachorrinha agora adormecida em seu colo e a pôs com cuidado no sofá. riu também antes de receber de volta para um beijo que, ele logo percebeu, ela também estivera evitando não era de hoje.
Levantaram-se, permitindo que o corpos se encostassem inteiros. Sem a menor pressa, sem deixar o capricho de lado nem por um segundo, os conduziu até seu quarto. Partiram o beijo em frente à cama. Não tiraram os olhos um do outro, e ele levantou as mãos aos ombros dela, massageando-os devagar. Acariciou sua nuca, seu pescoço, seu rosto. nunca se sentira tão entregue, porém de forma tão serena. Ela fechou os olhos, saboreando aquela sensação. embrenhou as mãos nos cabelos dela com firmeza enquanto espalhava beijos curtos e delicados pelo seu pescoço. Ele voltou o rosto para o dela.
- Abra os olhos. – pediu, a voz baixa e quente.
obedeceu. Olharam-se, enquanto ele alcançou o zíper nas costas dela, enquanto ele puxou seu vestido para baixo, enquanto ele passou as mãos pelos braços agora arrepiados da mulher.
a empurrou levemente, indicando que queria que ela se deitasse. E assim ela fez, deitando-se de costas à sua frente. Ele se deitou por cima do corpo que tanto lhe atraía, encaixando uma perna entre as delas. Beijou-a novamente, com vontade, paixão, mas sem perder o esmero. Beijou-a da cabeça aos pés, acariciando todo seu corpo. Beijou-a como há tempos ninguém beijava.
Retornou o rosto para próximo do dela, e mais uma vez olhando-a nos olhos, disse:
- Tanto tempo querendo você... – sentiram as respirações quentes se fundindo enquanto ele murmurou: – Eu quero te dar tanto prazer...
tremeu de leve e levou as mãos ao rosto dele, puxando-o para mais um beijo. Naquele instante, passou pela cabeça dela que não lembrava quando foi a última vez que alguém a tratara com tanta admiração.

Capland Street 12, Londres, Domingo, 00:44

estava deitada de barriga para baixo, o rosto apoiado nos braços enquanto , deitado de lado, passava o dedo com leveza pelas costas dela.
Depois de um tempo, ele levantou a cabeça, apoiando-a em uma das mãos, e pediu:
- Vira pra mim.
abriu os olhos e fez o que ele pedira, girando o corpo para se deitar de lado, como ele.
- Oi. – ela disse, começando a se sentir um pouco sonolenta.
- Você é muito linda.
Imediatamente, riu, virando-se de barriga para cima e se espreguiçando.
- Ah, ... – soltou, em tom de quem acha aquilo tudo uma besteira. – Eu já tô deitada na sua cama, não tô?
Houve silêncio por alguns segundos.
- ... Porque esse é o único motivo pelo qual um homem te chamaria de linda? – ele tentou adivinhar devagar, franzindo o cenho e sorrindo com tristeza ao compreender o que ela estava pensando.
Passaram-se mais alguns segundos de silêncio em que os dois se sentiram desconfortáveis pela primeira vez na noite.
Com calma, porém firmeza, ele disse: - Se eu disse que você é linda, é porque te acho linda.
assentiu com a cabeça em silêncio, um pouco envergonhada pelo que dissera.
se inclinou para perto dela, afastou os cabelos do rosto dela e a beijou.
- Então, eu vou tentar mais uma vez! – ele anunciou, rindo. Respirou fundo e repetiu: – Você é muito linda.
- Obrigada. – ela respondeu depois de alguns segundos, um pouquinho constrangida, mas sentindo-se feliz pelo elogio.
Então eles se deitaram por baixo das cobertas, frente a frente, e por um segundo se lembrou da noite em que dormiram lado a lado na casa dos pais dele.
- Eu já te contei que quase fui casada? – ela perguntou baixinho.
- Você... mencionou.
Com um suspiro de coragem – e também de alívio – lhe contou a história mais humilhante e dolorida que ela tinha. A história que só contara a uma pessoa antes. Conversaram, trocaram, se ouviram por horas, até adormecerem, sentindo-se surpreendentemente leves.


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