Finalizada em: 25/02/2021

21

So here we are, all alone
As the wine makes you mine for the night (...)
And when you sleep, I'll be there
To kiss your lips, to breathe your air (...)
I need you now love, love, love
I crave you now love, love, love

(Surrender – The Calling)


Brown Street Street 108, Londres, Sábado, 22:03h

O celular vibrou em cima da cama e correu até ele e o alcançou com uma mão enquanto com a outra tentava, desajeitadamente e de um pé só, calçar a sandália que faltava.
- Oi! – disse, um pouco afobada.
- ? – soou uma voz que não era a que ela esperara.
- Oi. – disse de repente, atônita. Afastou a tela do rosto para confirmar que era mesmo quem ela pensava. – Oi, ! – e levou a mão à testa, envergonhada. – Ah, meu Deus, eu esqueci de responder sua mensagem! – exclamou, lembrando-se que ele tinha mandando, de manhã, uma mensagem perguntando quais eram os planos dela para a virada.
- Esqueceu. – ele riu baixinho.
- Nossa, , me desculpa, desculpa mesmo! Eu ia responder, mas é que na hora que eu li eu tava no supermercado, aí achei melhor responder quando chegasse em casa, mas cheguei tão ocupada que fui me distraindo com outras coisas e esqueci! Ai, , me desculpa de verdade! – pediu mortificada, sentindo-se realmente mal.
- Tá tudo bem, . Relaxa.
- É que de qualquer forma eu já tinha planos pra hoje. – explicou cautelosa.
- Eu imaginei quando você não respondeu. Tá tudo bem, . – a voz dele era bem calma, mas estranhamente neutra. Não parecia muito sincera.
- E você? Tem algo planejado pra hoje? – a mulher perguntou doce, verdadeiramente interessada. Sentia que não conversavam direito há algum tempo. Ela parou o que estava fazendo e se sentou na cama para prestar atenção somente na ligação.
- Hm, me chamaram pra uma festa. – ele disse vagamente. – Na casa de um conhecido, perto de Mayfair.
- Que legal! – exclamou simpática, torcendo para ele também estar empolgado com aquele plano (apesar de não parecer). – Soa ótimo. Você vai?
- Acho que sim. – confirmou devagar. – Como foi sua noite de Natal?
- Foi muito boa. Eu me diverti. E a sua?
A conversa soava um pouco distante. percebeu que ambos estavam se desviando do momento em que perguntaria com quem ela passou o Natal. Não que estivesse fazendo algo errado, mas por algum motivo a mulher sabia que sentiria vergonha de dizer a verdade.
- Tenho um presente pra você. – continuou, ignorando a pergunta dela.
- Eu também! Precisamos nos encontrar. Você quer almoçar comigo algum dia desses, antes de voltarmos a trabalhar?
- Eu adoraria. – a resposta teve som de sorriso, pareceu ter uma pontinha de alívio nela.
- Então está marcado! – exclamou. Depois de alguns segundos em um silêncio tímido, confessou:
- Eu tô com saudades de você.
- Eu também tô com saudades de você, . – prometeu, esforçando-se para soar carinhosa.
raramente tentava ser carinhosa.
era a única pessoa com quem ela tinha o hábito de fazer isso. E algo na voz, na respiração do outro lado da linha, fez com que ela percebesse agora, mais que nunca, ela precisava fazer aquilo. Algo na voz dele ameaçava uma melancolia – que já tinha visto em antes – que a assustava um pouco.
- Vou desligar. Não quero te atrapalhar. Feliz ano novo, .
- Feliz ano novo, amor. – disse com uma doçura triste e desligou, estranhando imediatamente a palavra. Saíra sem querer. Mas o momento parecera apropriado. suspirou, imaginando sozinho em casa. Percebeu que não havia pensado muito nele ultimamente. Não lembrava a última vez que sua mente passara tanto tempo sem se voltar para ele.
Levantou-se para ir até a sala, passando pela cachorrinha cheia de energia que corria em volta de seus pés enquanto mordia uma bolinha.
- Ei, menina! – chamou, agachada para acariciá-la. Um segundo depois, no entanto, a campainha tocou e a pequena saiu como um furacão desajeitado em direção a porta, deixando para trás com a bolinha babada.
A mulher sorriu por antecipação e seguiu o mesmo caminho, alisando um pouco o vestido antes de abrir a porta.
, sorrindo de orelha a orelha, tinha as duas mãos para trás. Puxou a primeira, mostrando uma garrafa.
- Eu trouxe vinho!
- Eu trouxe champagne!
- Eu trouxe biscoitinhos sabor bacon pra Melancia! – e mostrou a outra mão.
riu e balançou a cabeça para os lados.
- E olha que ela já gostava de você antes disso.
Enquanto conversavam, Melancia já pulava, mordia e se jogava aos pés de numa excitação incontrolável.
Entraram os três e guiou o caminho até a cozinha, onde procurou um potinho para dar o presente para Melancia.
- Onde tem um saca-rolha? – perguntou . – Já são mais de dez horas, já estamos atrasados.
apontou uma gaveta. Em seguida, serviu os biscoitinhos e foi pegar duas taças para encher.
Voltaram à sala, sentaram-se no sofá e brindaram.
- Obrigado pelo convite. – disse cordial.
- Queria retribuir a hospitalidade.
- Então agora é minha vez de novo de sediar nosso próximo evento.
- Eu não fiz jantar. – ela confessou, mostrando os dentes num sorriso forçado. – Mas fiz comidinhas e petiscos, que é tudo que eu sei fazer. Vou buscar.
deixou a taça sobre a mesa e foi até a cozinha.
- Acho que sei a resposta disso – falou bem alto da sala – mas ela tem permissão pra morder o pé da mesa?
- Não! – respondeu num grito longo, voltando em passos rápidos com uma bandeja na mão. – Melancia! – ralhou, depositando a bandeja sobre a mesa de centro e se dirigindo à cachorrinha. Pegou-a no colo e apertou-a em seus braços, cerrando os dentes com força numa careta. – Eu não consigo brigar com ela! – choramingou rindo um pouco, voltando para o lado de .
- Tô vendo. – ele riu.
- É que ela é muito fofa! – explicou , sentando-se no sofá de novo e rindo.
Melancia logo se cansou de ficar sentada e pulou desengonçada para o chão, e assistiu acompanhá-la com o olhar até que sumisse pela porta da cozinha. Até ele mesmo estava surpreso com o lado que a cachorrinha tinha despertado na mulher.
Ela pegou sua taça de vinho da mesa e tomou um gole.
- Eu preciso confessar uma coisa. – disse.
- O quê?
- Eu quero te beijar, mas eu honestamente não sei o que você vai achar.
piscou algumas vezes, surpresa pela sinceridade, antes de deixar um sorriso virar uma risada.
- Do que você tá rindo? – indagou.
- Ah... – ela deu de ombros, ainda sorrindo. – Não esperava ouvir isso. Você é o cara que sempre sabe o que fazer e o que dizer em todas as situações! – explicou.
- Eu nunca sei o que fazer. – contestou, balançando a cabeça e tomando mais um gole de vinho. – Eu só ajo com confiança o suficiente pra que as pessoas pensem que eu sei o que estou fazendo. – brincou, arqueando as sobrancelhas. – Como agora.
E em uma fração de segundo, ele a puxou para um beijo, entrelaçando os dedos nos cabelos dela.
Depois de algum tempo, separaram-e, mantendo as bocas próximas. estava um pouco sem fôlego e eles sentiam a respiração um do outro.
- Como você achou que eu pudesse não gostar disso? – ela perguntou baixinho, sorrindo.
deu de ombros.
- Não sei se alguém já mencionou isso perto de você, , mas você é uma pessoa meio imprevisível.
sorriu, sentindo-se um pouco envergonhada.
- Acho que já ouvi dizer.
Afastaram-se e se ajeitaram no sofá.
- É que eu fiquei com medo de te beijar e você achar que eu tô, sei lá, pensando alguma coisa a mais por causa do que aconteceu no Natal. – explicou. – Não quero te assustar. Eu sei que não estamos casados só porque transamos. – ele riu.
- Tá bom. – ela assentiu com a cabeça, sentindo-se realmente feliz por ele ter se preocupado com aquilo.
- A gente está onde está. Nem um passo a frente disso. – resumiu . – O que não quer dizer que eu não tenha mais vontade de fazer isso... – e puxou-a de novo para um beijo.

Brown Street Street 108, Londres, Domingo, 03:17h

A luz do celular despertou de seu sono leve antes do barulho da vibração. Abriu os olhos sobressaltada e esticou a mão até o aparelho que vibrava ruidosamente sobre a mesa de cabeceira. O visor mostrava '".
- Alô. – apressou-se a atender e falou bem baixo para não acordar .
- ! – talvez fosse porque ela ainda estava meio dormindo, mas a voz de soou como um grito.
- Espera. – sussurou, enquanto se levantava. continuava falando alto coisas que ela não conseguia distinguir. – Espera, ! – ralhou, enquanto vestia seu roupão, caminhando até a varanda. Abriu cuidadosamente a porta, saiu e fechou-a atrás de si, olhando para a cama para conferir se tinha acordado . – Pronto.
- Eu te acordei?
- Óbvio, . São – e conferiu o celular – três horas da manhã!
- Sei lá, a gente já ficou acordado até bem mais tarde que isso em noites de ano novo. – justificou-se.
- Verdade. – concordou, apoiando-se sobre o parapeito.
- Mas me desculpa, de qualquer forma.
- Tudo bem. – disse. Esfregando os braços de frio, indagou: - Por que você me ligou?
- Queria conversar um pouco. – e fez uma pausa. – Foi estranho passar a virada sem você.
respirou fundo.
- Pra mim também, um pouco. – murmurou.
- Você se divertiu?
- Sim. – a mulher respondeu apenas, deixando um silêncio um pouco constrangedor tomar conta.
- Você tá sozinha?
- Não. E você? – retornou a pergunta automaticamente.
- Tô. – silêncio de novo. – Você tá com quem?
Ela pensou por um instante se deveria ou não mentir. O lado covarde e apaixonado sentia, por algum motivo, vergonha em dizer para que estava com outro homem. Mas sabia que não tinha motivos para se esconder.
- O tá aqui. – contou. A ligação ficou completamente muda por alguns instantes. – ? Você ainda tá aí?
- Tô. – e calaram-se novamente. Desta vez, ela podia ouvir a respiração dele. Soava um pouco ofegante. – Vocês transaram?
- Aham. – confessou, sentindo-se desconfortável com as perguntas. No entanto, sentia que não seria justo se recusar a respondê-las, afinal, sempre o fizera. É verdade que era a primeira vez que conversavam sobre ela estar com outra pessoa, e que o contrário havia acontecido mais vezes do que ela poderia contar. Mas nunca mentia ou negava quando eram direcionadas a ele as perguntas. Respondia todas. E cada uma partira o coração dela um pouquinho, dolorosamente, ao longo dos anos. Tão dolorosamente, que ainda hoje não sabia se preferia que ele fingisse ser só dela.
- Acho que não tenho direito de dizer nada sobre isso, não é? – admitiu, machucado.
- Não. Não tem. – rebateu, sentindo um nó na garganta. Não entendia como pudera estar tantas vezes daquele lado do diálogo sem se afundar em remorso. Ela estava naquele papel pela primeira vez, e a sensação de contar para ele que estava com outro homem era nada menos que horrível.
- Sua ausência faz barulho, .
- Não fala assim. – pediu, respirando fundo.
- Mas é verdade. Eu queria ser bom pra você.
A mulher esfregou o rosto, sentindo a vontade de chorar encher o peito. Não sabia como agir quando falava essas coisas que tinha começado a falar ultimamente. Apesar de serem sempre tão cheias de dor e sentimento, apesar de aquilo fazê-la explodir por dentro de vontade de correr para ele, em nenhum momento ele falara o que ela queria ouvir. Nunca uma promessa, nunca um compromisso, nunca algo concreto. Era como se ele simplesmente não conseguisse formular as palavras. Alguns meses antes, aquilo teria sido suficiente para que ela voltasse correndo, mesmo sem nenhuma certeza.
Não era mais.
Era suficiente, no entanto, para revirar cada centímetro da sua cabeça e do seu coração.
- Onde você tá?
- Sentado na calçada em Mayfair.
- Quê? Cadê seu carro? Vai pra casa, !
- Não posso. Bebi demais.
- Chama um taxi. – falou.
- É, acho que vou chamar. Mas, , você sabe que eu te amo?
- Quê? – de início, fez silêncio porque a pergunta a pegou de surpresa. Em seguida fez silêncio, porque na verdade, na maioria das vezes ela não sabia, não.
- Você nem sabe que eu te amo?! – concluiu, com a voz frustrada e triste. – Porque eu amo, . Você não sente isso nem um pouquinho? – soluçou, e pôde ouvir com mais clareza que ele tinha mesmo bebido muito.
- Sinto, . Às vezes... Às vezes eu sinto. – murmurou. – Eu também te amo.
- Eu sei que ama. Eu devia fazer você saber também. Eu vou lembrar da conversa inteira quando eu acordar?
- Eu não sei. Pega um taxi agora, , vai pra casa dormir.
- Eu vou.
- Promete?
- Prometo o que você quiser.
- Olha, olha, que eu posso me aproveitar disso. – ela brincou, fungando e sorrindo para espantar a vontade de chorar. – Agora eu vou desligar. Boa noite e dorme bem. Amanhã a gente se fala.
- Tá bom. Obrigado, . – e desligaram.
se virou de volta para o quarto e o susto pelo que viu à sua frente fez gelar seu corpo inteiro.
- Meu Deus! – ofegou, sobressalta, a mão sobre o peito. – Você me assustou! – engasgou, vendo apoiado contra a porta de vidro da varanda.
- Me desculpa.
- Tudo bem. – ela murmurou. – Há quanto tempo você tá aí?
- Há mais tempo do que você gostaria, eu acho. – ponderou.
- Você...
- Ouvi. – ele se adiantou.
- Você não devia ter escutado minha conversa. – ela alertou.
- Eu sei. Não devia, mesmo. Me desculpa. – o homem admitiu. – Mas eu preciso perguntar: o que você pretendia fazer, depois de toda essa conversa com o ? Voltar pra cama e dormir abraçada comigo?
Encararam-se por alguns segundos.
- Dá licença, eu tô com frio. – ela o empurrou para que saísse da frente da porta e entrou.
fechou a porta atrás deles.
- Não, sério, . Você ia mesmo fazer isso? – perguntou, o cenho franzido.
- Por quê, ? Não posso voltar pra minha cama, não? – resmungou, na defensiva.
- Você sabe que não é isso que eu tô falando.
- Por que a gente tá tendo essa conversa? – questionou impaciente. Aquilo definitivamente não estava nos planos dela – nem para aquela noite, nem para qualquer momento com .
- Porque eu acho uma sacanagem enorme você estar comigo na cama, ainda com cheiro de sexo, e ir se declarar pra outro cara rapidinho, pra depois voltar a dormir comigo! – exclamou, irritado.
- Não, não é, ! Sabe por quê? – a mulher começou a se exaltar, gesticulando enquanto falava. – Porque não existe "sacanagem" entre eu e você, não existe nada entre eu e você! Existe só o momento. Nós estamos onde estamos, lembra? "Nem um passo a frente disso". Não tem compromisso, não tem obrigação, não existe discutir relação. – finalizou, ofegando levemente. Sustentaram o olhar um do outro durante um tempo, cenhos franzidos e raiva no peito. – Quem você pensa que é pra cobrar qualquer coisa de mim?!
- Você tem razão, . – concordou devagar. – Eu não tenho que cobrar nada de você porque não foi isso que combinamos. Mas pra mim, isso não é cobrança nenhuma. É o mínimo. - enfatizou com a expressão dura. - Se estou com você, é importante pra mim você estar comigo por inteiro. Assim como eu, nem que seja só por algumas horas, sou todo seu. Pode ser casual, pode nunca mais acontecer. Mas enquanto você tá comigo, eu não quero te quero em partes. Pelo visto temos formas bem diferentes de ver as coisas.
- Temos mesmo, temos visões bem diferentes. Se estou com alguém, pra mim é importante que a pessoa não me controle. – retrucou, com raiva.
- Ah! E o não te controla? – explodiu, encarando a colega com uma expressão de surpresa maliciosa.
Dizem que a verdade te liberta. Mas antes de te libertar, ela te deixa muito puto. E ainda não estava pronta para se libertar daquela verdade.
- Sai da minha casa. – ordenou baixo lentamente, depois de alguns segundo, as mandíbulas apertadas e os olhos duros.
respirou fundo, sustentando o olhar dela. Até que se virou, em silêncio, vestiu a calça, os sapatos, e a camisa.
permanecia parada ao lado da porta, o olhar perdido e frio na direção contrária ao colega. Permaneceu imóvel enquanto ele passou por ela, sem dizer uma palavra, até que ela ouviu a porta do apartamento ser destrancada e fechada com força.


22

I think I'm just beginning to understand
You just like having the upper hand.
The more you treat me cruel, oh, it just adds fuel to the fire.
Tease me like you do, it just fuels my desire.
You say you don't want me, I think you're a liar.
Love or lust, it just adds fuel to the fire.
I make you think you're the only one
But if we're not having fun then we're done
And who won?

(Fuel to the Fire - The Maine)


BBDO, Londres, Quarta-feira, 08:02h

saiu do elevador e caminhou decidida até a sala que dividia com . Eles não se viam ou se falavam desde o dia primeiro de janeiro. Na realidade, foram apenas três dias. Ainda assim, todas as vezes em que pensou sobre o ambiente de trabalho e sua relação com , o estômago da mulher se revirara em ansiedade. Não sabia mais como agir ou tratar o colega, então seu plano era (e ela sabia o quão ridículo era esse plano) simplesmente esperar para ver o que ele faria.
Abriu a porta e parou, bolsa e café na mão, encarando o que via.
estava sentado atrás de sua mesa, afundado em sua cadeira, um cigarro aceso em sua mão.
- Você fuma? – foi a primeira coisa que ela perguntou, franzindo o cenho. olhou para ela, a expressão vazia, e fez um leve aceno de cabeça. A mulher percebeu que alguma parte dela já sabia aquela informação, e sentiu-se mal por um momento. Como se não soubesse tanto sobre ele quanto já deveria saber.
Ela hesitou, sentindo o cheiro da fumaça.
- Uh... Você não pode fumar aqui dentro. – disse devagar, tentando não soar autoritária.
- Você não pode transar com seu chefe e seu colega. – disse simplesmente, assim como quem diz que está chovendo.
- E-eu posso transar com quem eu quiser. – rebateu imediatamente, na defensiva, surpresa com a fala dele.
- Na verdade, não pode. Tá escrito no manual de conduta ética da empresa. – disse ele com calma, levando o cigarro à boca para um trago. E acrescentou: - Eu conferi.
pôs sua bolsa sobre a mesa e respirou fundo, tentando não se mostrar incomodada com o cheiro do cigarro. Ocorreu-lhe que aquela era provavelmente, desde que se conheceram, a primeira vez que estava num humor arisco e ela é que se sentia pisando em ovos ali.
Ela se sentou, tomou um gole do seu café e ligou o notebook em silêncio.
se levantou, apagou o cigarro no parapeito da janela e tirou o maço do bolso para pegar outro. Levou-o até a boca e franziu o cenho enquanto o acendia.
- Fumar faz mal para a sua saúde. – soltou.
- Você também.
A voz de era calma, impassível, mas dura.
- Uau. – ela arregalou os olhos e murmurou bem baixinho, mais para si própria.
Não estava acostumada a ouvir coisas assim vindo de . Palavras duras em voz de veludo.
Ninguém falou mais nada durante algum tempo, até que o celular de vibrou sobre a mesa, quebrando o silêncio. Ele cancelou logo a chamada, sem nem olhar quem era, e respirou fundo, como que juntando forças para começar o dia.
E começaram. A princípio quietos, em seguida se rendendo à necessidade de se comunicar para fazerem seu trabalho. Perto do final da manhã, desligou mais uma chamada de seu celular e anunciou:
- Mídia mandou o material de volta. Vem ver.
se levantou e veio se sentar ao lado dele. virou a tela do computador para ela com as imagens abertas. Estavam trabalhando numa campanha para uma empresa de turismo que trabalhava exclusivamente com destinos de verão.
- Uau, ... – a mulher soltou baixinho. – Ficou ótimo. – comentou, observando com atenção a imagem de uma praia tailandesa. – Eu estou com saudades do mar. – falou devagar e suspirou, como se por um instante estivesse longe.
olhou para o rosto da colega, para o brilho nos olhos dela, e se lembrou de como ela era bonita quando não estava ocupada se fechando para o mundo e distribuindo hostilidades. E enquanto olhava para ela, algo lhe atingiu. A constatação se formou em sua mente e ela parecia tão clara que ele se perguntou como pode algum dia pensar o contrário. era apaixonado por .
A voz dela lhe tirou dos seus pensamentos quando voltou a falar baixinho. Ele percebeu que ela costumava ser assim, bem mais agradável e receptiva, nos momentos criativos.
- Ainda não consegui chegar no texto que eu quero... Mas essa imagem tá me lembrando uma frase que eu gosto tanto... Algo sobre... A beleza do oceano... Como é mesmo? – perguntou para si mesma, fechando os olhos para forçar a memória. – Não há nada mais bonito que a forma como o oceano se recusa a parar de beijar o litoral, não importa quantas vezes ele é mandado embora. Acho... Acho que é isso.
Enquanto ela falava, continuou olhando para , observando bem cada traço de seu rosto. O homem apertou um pouco os olhos, examinando sua fisionomia e se perguntando se ela realmente não tinha percebido como aquilo se encaixava – de mais de uma forma – na vida deles e naquele joguinho de triângulo amoroso que ele tanto detestava.
E se sentiu triste. Triste porque percebeu que sentira falta de nos últimos dias. E continuaria sentindo pelos próximos, se as coisas continuassem do jeito que estavam. Você pode sentir falta de alguém que foi embora, ou de alguém que morreu. Mas é realmente péssimo sentir falta de alguém que você vê todos os dias.
abriu os olhos e se deparou com uma mirada completamente diferente de tudo mais que lhe havia direcionado aquela manhã. Viu ali uma doçura e uma admiração que ele não conseguiu disfarçar, por mais que tivesse tentado, quando desviou o olhar e soltou um pigarro.
O homem bem que se esforçou, mas aquele momento não passou batido. Porque aqueles olhos e calorosos a fizeram pensar em como era gostoso quando eles estavam bem um com o outro. Como era bom quando ele a tratava daquela forma, e não do jeito seco (e bem merecido) como vinha tratando antes. Aquela pontinha de intimidade resgatada pelo olhar que trocaram trouxe à tona em uma tristeza que precisou ser posta em palavras.
- Droga, ! – arfou, os olhos subitamente molhados. – Por que é que você tinha que ficar tão bravo assim comigo aquele dia? - disse baixinho, sem pensar.
Ela sabia muito bem onde estivera o erro dela naquela noite de ano novo. Entretanto, um lado egoísta da mulher queria simplesmente que ele não tivesse ficado bravo com ela, porque ela estava descobrindo que a sensação era ruim demais.
- Porque você é tão confiável quanto um guarda-chuva furado, . – respondeu sem hesitar. A voz dele continuava sem se exaltar, assim como antes. As mesmas palavras duras naquela mesma voz de veludo bonita. Porém, dessa vez, o tom de voz dele devolveu a tristeza que recebera dela. – E eu detesto gente assim.
A umidez nos olhos dela cresceu para lágrimas grossas que rolaram apressadas pelo seu rosto. manteve o olhar fixo do outro lado da parede sentindo duas gotas pingarem pelo seu queixo.
O celular sobre a mesa vibrou novamente e a mulher, desesperada por algo em que se agarrar, apanhou o aparelho para atendê-lo. Já com a mão na metade do caminho até o rosto, deu-se conta do mesmo erro de sempre.
- Desculpa! – pediu, sentindo-se burra e franzindo o rosto numa careta.
Avistou seu próprio celular, idêntico, do outro lado da sala, e estendeu aquele até , que continuava em silêncio. Ele olhou para a tela antes de desligar a chamada e voltar a atenção para ela.
Ficaram em silêncio por mais alguns segundos, até que ele perguntou, a testa enrugada e os olhos apertados:
- Você... Você ao menos gosta de mim, ? – e deu de ombos. – Ou eu sou só um substituto para aquilo que você não pode ter?
O estopim. Como aquela única gota que não cabe no copo e cai, escorre, puxando todas as outras junto, sentiu o peito doer e o choro descer forte. Chorou como há muito tempo não chorava na frente de ninguém. Talvez porque naquele momento fosse incontrolável, talvez porque no fundo sabia que ninguém no mundo lhe respeitava tanto quanto .
E foi exatamente isso que ele fez. Esperou, em silêncio, sem tirar os olhos dela por um segundo, tomando o cuidado fazê-lo daquela forma gentil que a fazia sentir tão confortável. não emitiu um som sequer além do barulho de sua respiração compassada, que, aos poucos e involuntariamente, trouxe um pouco de calma à mulher.
Quando conseguiu controlar um pouco melhor as lágrimas, respirou fundo e olhou para ele. Imediatamente, sentiu as lágrimas voltarem, embaçando sua visão.
- Me desculpa. – foi a única coisa que conseguiu dizer. Sorriu fraco, como que se desculpando até por não ter conseguido dizer nada além daquilo. Então se levantou, antes que a avalanche de sentimentos voltasse, e caminhou até a porta enquanto sentia que ainda estava minimamente no controle das suas reações.
Saiu da sala e se encaminhou para as escadas de incêndio. Sentou-se e ouviu atrás de si o baque forte da porta pesada, que felizmente abafou um soluço alto que estivera entalado.
Sentiu a respiração tremer pelo choro que voltava e deixou que ele viesse. Tirou as sandálias, apoiou os cotovelos nos joelhos, o rosto nas mãos e ficou ali por tanto tempo que se perdeu nele. jamais saberia dizer quantos minutos passou ali.
Também não saberia dizer quando deixou de estar sozinha, mas em algum momento soube que não estava mais. Mantiveram seus joelhos encostados e silêncio por mais alguns minutos, até que uma mão apertou cuidadosamente o braço de e ela virou o rosto para Ruby.
- Ei. – a mulher, sempre tão enérgica, falou manso.
- Oi. - respondeu, sorrindo um pouco envergonhada.
- Você tá bem?
- Sim.
Ruby balançou a cabeça como se compreendesse. Depois de alguns segundos, perguntou:
- Você tá mentindo?
- Sim. – apenas repetiu, assentindo lentamente com a cabeça.
Elas se olharam e trocaram sorrisos tristes.
- Sabe, ninguém precisa acertar tudo o tempo inteiro.
riu fraco.
- Não sei o que te faz pensar que eu acerto qualquer coisa em algum momento.
Ruby alisou os cabelos da colega, afastando-os do rosto todo molhado.
- Algumas pessoas te conhecem, sabia? Mesmo que você tente evitar. Acho que no fundo você sabe que eu sei mais sobre sua vida do que parece, não é mesmo? – ela disse carinhosamente.
levantou o olhar para ela e sorriu tímida, fazendo que sim com a cabeça.
- Eu tenho um conselho para te dar. – anunciou. – E eu sei que você não pediu, mas vou dar mesmo assim. Nós duas sabemos que se eu for esperar você pedir... – argumentou. Aquilo fez sorrir de novo. Ruby fez silêncio, escolhendo as palavras, até que aconselhou lentamente: - Não se sinta mal por fazer aquilo que é o melhor para você, . A gente tem todo direito de cuidar da gente mesmo. Nenhuma decisão que afete sua sanidade pode ser tomada com base em outras pessoas.
fez a única coisa que conseguia naquele momento: silêncio.
Ruby de fato sabia muito mais sobre ela do que demonstrava. Pensou sobre as palavras da colega. O que era o "melhor para ela"?
Naquele instante, percebeu que não tinha como sair daquela situação sem que alguém se machucasse. E ali mesmo, sentada sem sapatos e de maquiagem borrada na escadaria de incêndio, ela descobriu algo que parece óbvio, mas nem sempre é.
Ela era inteiramente dona do próprio futuro.
É muito forte a revelação de que somos sujeitos do nosso próprio destino. Diferente do que sempre pensara, seu amanhã não precisava depender do que ou quisessem para ela. O que aconteceria a seguir naquela história estava inteiramente nas mãos dela.
E o que quer que ela escolhesse iria, inevitavelmente, ferir alguém. Um dos dois. Consequentemente – independente de qual deles – a si mesma também. Imaginou os dois cenários possíveis e não via como qualquer um deles poderia acontecer sem pesar em sua consciência. Percebeu que precisava tomar uma decisão. Mas percebeu também que agora que tinha ciência do poder em suas mãos, não tinha a menor ideia de por onde começar. Por um segundo, preferiu não ter feito aquela descoberta, pois a partir do momento em que sabia, não podia mais adiar aquela escolha.
- Eu acho que você está descobrindo uma coisa importante sobre si mesma, . – a voz de Ruby voltou. – Uma coisa que não está te fazendo feliz. E eu tenho uma notícia ruim para você: a consciência e a felicidade são antagônicas.
Tendo dito isso, ela afagou os cabelos de mais uma vez e se levantou. Alisou a saia, puxou sua bolsa e tirou de dentro dela uma pequena nécessaire. Deixou-a sobre o degrau em que a outra permanecia sentada e saiu em silêncio.
Durante algum tempo, ficou ali, abraçada às próprias pernas. Os pensamentos passeando por todos os lados possíveis dentro de sua cabeça. A última coisa que queria era voltar para a sala e continuar trabalhando com , mas sabia que ficar ali devaneando a deixaria louca. Então calçou suas sandálias, apoiou-se no corrimão da escada e ficou de pé. Abriu a bolsa que Ruby tinha deixado e encontrou um pó compacto, um rímel e um batom. Era certo que os batons que Ruby usava eram muito mais gritantes e coloridos do que jamais ousaria experimentar. Mas ela apreciou muito o gesto.
Secou o rosto como pôde e abriu a porta, olhando para os dois lados do corredor para se certificar de que não cruzaria com ninguém. Seguiu para o banheiro e parou em frente ao espelho. Ela estava uma bagunça.
Abriu a torneira e jogou água fria na cara, sentindo-se aliviada. Secou o rosto e passou um pouco de maquiagem. Olhou-se novamente no espelho e se sentiu um pouco melhor. Estava quase lá. Faltava apenas um pouco de ar puro para que se recompusesse completamente. Não estava a fim de comer, mas decidiu aproveitar sua hora de almoço e sair do prédio por algum tempo. Fechou a nécessaire e saiu do banheiro, seguindo em direção ao elevador.
O corredor estava vazio, mas viu a porta do elevador se fechando enquanto se aproximava.
- Segura, por favor! – pediu, apressando o passo.
As portas foram interrompidas por uma mão masculina e quando se abriram novamente, e se viram frente a frente.
Encararam-se por um segundo e ela sentiu que ele podia ver cada pedacinho de tristeza que ela tentara esconder. Mas não disseram nada.
A mulher entrou no elevador e ficaram lado a lado, encarando a frente. Até que ela percebeu que ele segurava sua maleta.
- Você não tá indo só almoçar? – estranhou.
- Não. Tô indo embora.
- Mas... já? – indagou surpresa.
- Tô com muita hora extra pra tirar. – esclareceu.
- Ah. – murmurou e assentiu com a cabeça, sem saber o que pensar sobre aquilo.
Talvez fosse até melhor. Dessa forma, ela tinha ao menos alguma chance de conseguir se concentrar em tudo que precisava fazer até o fim do dia.
Mais uma vez, um som da vibração do celular de encheu o espaço.
- Nossa! – exclamou. – Seu celular não parou de tocar hoje! - comentou, levemente incomodada – não sabia dizer exatamente se por estar cansada daquela interrupção ou se por ciúmes mesmo.
- É... – soltou vagamente.
- Aconteceu alguma coisa?
O homem fez silêncio por um momento, ainda encarando a frente sem muita expressividade. Ele estalou os lábios e enquanto a porta do elevador se abria, disse:
- É meu aniversário. – e saiu porta afora, sem olhar para trás.
Paralisada no mesmo lugar e posição, sentiu seu estômago afundar. Passou por sua cabeça que ela era, provavelmente, a pessoa mais babaca que jamais pisara a Terra.
Ofegou, segurando uma nova onda de choro, e seguiu até a porta de saída, vendo já longe à sua frente.
Quando chegou do lado de fora, apoiou-se à parede do prédio e inalou o ar gelado da cidade. Sentiu o corpo todo enrijecer de frio, já que não tinha descido com seu casaco. Sentiu-se muito burra – e não só por causa do casaco –, mas pensou que aquilo poderia ser bom. Seu corpo estava mesmo precisando sentir alguma coisa para, quem sabe, acordar daquela apatia. Por que era tão difícil tomar uma decisão?
Encarou a cidade branca e cinza à sua frente e se perguntou o que é que a segurava naquele lugar, naquele limbo onde se encontrava. Não sabia se era medo, solidão ou vazio, mas aqueles pensamentos reabriram nela algumas feridas que ela pensava estarem cicatrizadas, mas via agora que haviam meramente começado a sarar.
O fato é que havia três pessoas naquela equação, e nenhuma delas estava se divertindo mais.


23

You're my heroine, just suicide
If I let you in you crawl inside.
Oh you save my skin
She can't wait to sink in
My heroine

(My Heroine - The Maine)


Thornbury Castle Pub, Quarta-feira, 18:47h

avistou de longe as paredes azuis e seguiu andando naquela direção. Reconheceu , de costas, sentado em uma das mesas de madeira do lado de fora. Quando o alcançou, deu a volta e se sentou do outro lado da mesa, à sua frente.
não esboçou reação nenhuma quando a mulher invadiu seu campo de visão. Continuou encarando a frente – consequentemente, – sem expressão nenhuma e sem dizer nada.
A mulher tirou a bolsa dos ombros e a colocou na cadeira ao lado, esfregando as mãos em seguida para esquentá-las. Um trovão ressoou ao longe e encarou o céu frio.
- Você não pensou em se sentar do lado de dentro? – perguntou tímida.
apenas a encarou por alguns segundos, antes de perguntar:
- O que você quer, ?
Ela sorriu, percebendo logo que sua esperança de que ele fosse ser mais simpático com ela não passava de uma ilusão otimista. Afinal, que motivo ele tinha para tratá-la bem?
- Bom, em primeiro lugar, obrigada por concordar em me encontrar.
- Você me ligou nove vezes, né? – ele rebateu.
Assim como mais cedo, tudo que ele dizia era como um tapa na cara.
- Você realmente sabe como dar um gelo em alguém. – comentou, rindo, apesar de não achar aquilo realmente engraçado.
arqueou as sobrancelhas e sorriu sem humor.
- É meu ponto forte.
- Pensei que quebrar a tensão com piadas fosse seu ponto forte. – ela arriscou, tentando pôr em prática a habilidade dele.
- Também. – ponderou.
- Ou cozinhar... – ela propôs sem pensar. Fez-se silêncio por alguns segundos. – Você tem muitos pontos fortes. – admirou-se baixinho, parecendo realmente surpresa.
- Todos temos. – deu de ombros, como quem realmente não liga muito para nada do que está sendo dito.
encarou o colega refletindo sobre tudo aquilo. Apesar de ele claramente não levar nenhum pedaço daquela conversa a sério, ele de fato parecia ter apenas pontos fortes. Respirou fundo, tentando afastar aqueles pensamentos da cabeça, e perguntou:
- Não vai comemorar seu aniversário?
- Não hoje. – respondeu.
- Nem comigo, né? – ela completou, sabendo que era o que ele estava pensando. apenas mostrou mais um sorriso duro, como quem concorda sem precisar dizer todas as palavras. – Pois eu tô te devendo uma por ter te tratado mal no seu aniversário. – continuou, fazendo um sinal para o garçom.
Passaram alguns segundos se encarando em silêncio. sabia que era ela quem devia começar. Sabia que não lhe faltavam motivos pra pedir desculpas, não faltavam palavras, não faltavam explicações e, ainda assim, não conseguia fazer nada daquilo sair da sua boca. Por algum motivo, as palavras nasciam no peito e morriam no caminho. Chegou a abrir a boca algumas vezes, e sua voz simplesmente não saía.
O garçom voltou, colocando dois copos altos no centro da mesa.
levantou o seu, sorrindo tímida e propondo um brinde. Seu sorriso cresceu quando percebeu que o colega, apesar de rolar os olhos, ameaçou um sorriso e se rendeu ao brinde, erguendo seu copo também.
- Feliz aniversário! A você!
- A mim. – concordou, antes de levar o copo à boca.
deu o primeiro gole, e como se aquela fosse a gota de coragem que lhe faltava, finalmente as palavras jorraram de sua boca numa explicação que ela sentia que estava devendo há muito tempo:
- me salvou, . – sua voz soou um pouco mais desesperada do que esperava. – Quando a gente se conheceu, a gente se deu tão bem! Porque ele também era assim, amargo e inconstante, todo do avesso. E nós fomos nos ajudando. Se você me acha amarga hoje, ... – ela riu fraco. – Você nem imagina. De verdade, me salvou.
Quando finalmente fez uma pequena pausa no discurso interminável que pretendia dar, passou a prestar atenção no semblante do colega e viu que ele a encarava incrédulo, o rosto todo enrugado numa careta indignada.
- Por que caralho você tá falando dele agora?! – indagou devagar.
Imediatamente, compreendeu que escolhera uma forma extremamente burra de formular seu pedido de desculpas. Quisera se explicar e, perdida dentro dos próprios pensamentos, pensou que a melhor forma de fazer aquilo talvez fosse seguir a ordem cronológica dos fatos. E o primeiro fato para justificar toda a sucessão de decisões estúpidas que ela vinha fazendo nos últimos tempos, era aquele: houve uma época em que a salvara. E aquilo criou entre eles uma conexão que ela não conseguia romper com tanta facilidade. Enxergava, agora, que a ordem cronológica talvez não fosse a mais sensata, porque a encarava quase sem piscar e ele estava claramente muito puto. A mulher acabara organizando suas palavras, desculpas e explicações de um jeito que iria atrapalhar muito mais do que ajudar.
- Não, não... – apressou-se a justificar. – Não é o que você tá pensando, a história não acabou aí! Eu só tô tentando... Ah, mas que merda! – embolou-se, afundando o rosto nas mãos, completamente frustrada.
balançou a cabeça para os lados lentamente, o olhar perdido, cansado de enxergar algo que parecia ser a única no mundo a não compreender.
- Se ele te quisesse, – murmurou, olhando duro nos olhos dela – se ele te quisesse mesmo, ele estaria com você agora. Concorda? Porque no minuto que ele vier, você tá lá de portas e braços abertos! Mas ele não tá com você, . Tudo que ele precisa é ser fiel, e ele simplesmente não quer. – entoou lentamente, articulando bem as palavras.
deu um soluço trêmulo, vendo se embaçar à sua frente devido às lágrimas que enchiam seus olhos.
Mais um trovão forte retumbou sobre eles, dessa vez mais perto, e ambos levantaram os rostos para olhar o céu. Imediatamente, os olhares voltaram a se buscar.
pensou em todas as vezes que mentiu, sumiu, esteve com outras. E naquele momento, subitamente teve certeza absoluta, a mais pura segurança de que nunca faria aquilo com ela. No fundo ela sabia que se tivesse coragem de se abrir mais para , ele seria só dela e a corresponderia como nunca fez. Se vencesse o medo, o orgulho e pedisse para tê-lo só para si, ela teria. E não teria nunca que passar pela tortura de se perguntar se ele estava com outra mulher, porque seria a única para ele. Isto é, se já não fosse. Porque fazia parecer, muitas vezes, que era assim, e não tinha vergonha de fazê-lo.
Por alguns segundos, apreciou a ideia de confiar tanto em alguém a ponto de nunca sentir insegurança nenhuma, e a simples ideia de ter só para si a encheu de uma tranquilidade que ela não entendeu. Se aquela sensação de paz era o estado de espírito constante de alguém que tem uma pessoa fiel a seu lado, céus! Não poderia haver, de fato, nada melhor do que fidelidade.
Em silêncio e com calma, se levantou, deu a volta na mesa, sentou-se na cadeira ao lado de , ergueu as mãos até o rosto dele e o puxou para si.
No instante em que se beijaram, mais um trovão forte explodiu, trazendo consigo o início da tempestade que se seguiria.
As gotas caíram sobre eles, cada vez mais grossas, aumentando a vontade do beijo e quebrando a resistência de . E quando finalmente sentiu que ele cedera e envolvera sua cintura com os braços, eles se viram obrigados a parar.
Não tiveram tempo de se olhar. Riram, juntaram seus objetos, e saíram correndo pela chuva.
puxou a mão dele, guiando-o no sentido de sua casa, que julgou ser mais perto.
Em determinado momento, ela se perguntou por que estavam correndo, já que ambos já estavam completamente encharcados. Mas seguiram acelerados pelas ruas, pisando as poças e rindo de mãos dadas. Até aquele dia, haviam sido poucas as vezes em que ambos se sentiram tão livres juntos.
- Esquecemos de pagar a conta! – lembrou, rindo, e levando a mão à boca num gesto de culpa. Mas aquilo não foi motivo para parar.
Em pouco tempo alcançaram o prédio dela, e se apressou a tirar as chaves da bolsa e abrir o portão. Quando cruzaram o hall pararam, finalmente, ofegantes, apoiando-se sobre os joelhos. Dividiam-se entre as respirações apressadas tentando se recuperar e o riso frouxo que voltava toda vez que seus olhares se cruzavam.
O silêncio se instaurava à medida que as respirações iam se normalizando. Finalmente, o único barulho que se fazia era a chuva castigando tudo lá fora. Então, ouviu-se um estrondo e todas as luzes se apagaram de uma vez.
- Ah, não. – soltou, voltando a rir. – Vamos ter que subir de escadas. – lamentou.
Ela esticou as mãos no escuro, buscando as dele novamente, e o conduziu na direção certa.
Abriram a porta, entraram, e assim que a fecharam, o pouco de luz e ruído que ainda vinha da rua foi completamente vedado pela pesada porta das escadas de incêndio.
As respirações voltaram a se fazer ouvidas.
Como se planejado, como se nada mais fizesse sentido naquela hora, buscaram um ao outro, encaixaram seus corpos molhados e retomaram o beijo interrompido.
se apoiou contra a parede, puxando a mulher contra si e encaixando uma de suas pernas entre as dela. O beijo era urgente, as bocas se apreciavam e as mãos se perdiam um no outro. Em questão de segundos, a vontade de pele com pele se fez presente. Ajudaram-se a tirar as roupas molhadas, pesadas. Jogaram no chão os casacos, as camisas, e enquanto desabotoava a calça, abaixava a própria calcinha por baixo da saia. Ela voltou para a mesma posição, mas a fricção que a coxa de , entre as suas, fazia contra sua intimidade, não era mais suficiente. Deliciosa, mas não suficiente.
Trocaram de posição, ela agora encostada contra a parede, uma das pernas levantadas para envolver a cintura dele, a bunda apoiada no corrimão. E quando estavam a segundos de se encaixarem por completo, tão próximos de matar a sede um do outro, ouviram um celular tocando. A vibração ecoou forte pelas escadas de pedra, e de imediato, se retesou inteira.
Paralisaram e se encararam no silêncio ao qual os olhos começavam a se acostumar, e soube imediatamente o que se passava pela cabeça dela. Ou ao menos pensou que soube. Reviu em sua cabeça aquele filme que já conhecia, no qual mais uma vez lhe escapava por entre os dedos e corria de volta para . Mas não agora. Não mais uma vez. Sentiu uma raiva quente de fazer o corpo tremer todo só de pensar naquela possibilidade. E enquanto ouviam a vibração reverberando pelas escadas, ambos refletindo sobre a possibilidade de ser na outra linha, sussurrou furioso, mas lento e comedido:
- Eu entendo... Realmente não tá certo você fazer isso. Afinal, você é única na vida dele, não é? – ironizou. – Então, nada mais justo do que você recompensá-lo por essa fidelidade toda e continuar sendo só dele.
Estava completamente ciente da chantagem emocional que estava fazendo e de como aquilo era golpe baixo, muito baixo. Mas não se importava. Por um segundo, não se importava. Depois tanto tempo se preocupando com as necessidades dela, com os sentimentos dela, com as vontades dela, pela primeira vez, não pôde evitar se ater às próprias necessidades. Porque ali e agora, ele precisava daquilo. A verdade é que no fundo, ainda estava machucado. Porque sabia que não tinha ouvido o pedido de desculpas que queria e que merecia, mas, ainda assim, lá estava ele de volta para , como um cachorrinho carente buscando sua atenção. Mas chegara ao seu limite, e se precisasse mais uma vez se curvar e se humilhar por ela, não sabia se haveria volta. E ele queria que tivesse volta. Queria, mais que tudo, que os dois tivessem solução. Então, por mais que soubesse que aquilo faria sua consciência pesar uma tonelada mais tarde, não teve controle sobre a própria boca enquanto as palavras jorravam dela, maliciosas, como se tivessem vida própria.
- Tá certinho mesmo. – continuou baixinho, perverso.
E o plano teve seu resultado. Pois num impulso forte, puxou para si, interrompendo suas palavras e acabando com a pouca distância entre eles.
No segundo em que puderam sentir inteiramente um ao outro, gemidos pesados escaparam por suas gargantas.
Era tão bom, que era quase ruim. Porque ela precisava de mais. Para seu delírio, ela teve mais. O homem acelerou os movimentos enquanto seus braços a seguravam no mesmo lugar. No êxtase, abriu os olhos para ver o rosto de . Ela ofegou e, sem querer, seu nome escapou pelos lábios dela. A mulher sorriu, antecipando o sorriso dele por vê-la daquele jeito, gemendo seu nome, mostrando o quanto ele a estava deixando louca.
Mas nada do que aconteceu a seguir foi conforme o que ela esperava.
se afastou subitamente, desgrudando seu corpo do dela, e um gemido sôfrego, quase choroso, escapou involuntariamente da boca de no segundo em que seu corpo sentiu falta dele a preenchendo. Completamente atordoada, apenas esperou por uma explicação.
Mas ele não disse nada. Apenas se afastou, balançando negativamente a cabeça e sorrindo – mas não havia um pingo de alegria naquele sorriso. Sua expressão transbordava ironia, descrença. O corpo de ainda sofria a ausência dele, cada pedacinho do seu corpo parecia em chamas, implorando pelo contato dele. Ela estivera prestes a explodir, mas lhe tiraram o combustível repentinamente. Precisava do corpo dele com tanta urgência que quase se sentia tonta. Tinha que fazê-lo voltar para si. Com o cérebro trabalhando desesperadamente, ainda sem entender absolutamente nada, a mulher gaguejou:
- O que foi, ?
Ele riu sarcástico e seu rosto assumiu uma expressão de falsa admiração.
- Oh, agora você sabe meu nome? – sibilou com o cenho franzido, para em seguida reassumir o semblante sério.
Ficaram em silêncio. Talvez fosse seu corpo que ainda pulsava quente, dificultando o raciocínio, mas as palavras de simplesmente não fizeram sentido nehnum aos ouvidos dela. Ela pigarreou, a testa enrugada, e a única coisa que conseguiu fazer sair da sua boca foi um “quê?” desconexo.
O rosto de agora estava ainda mais sério. Ela viu a raiva crescente em sua expressão, e em questão de segundos ele parecia furioso. Ele semicerrou os olhos, aquela expressão descrente ainda tão clara e tão perturbadora. O que tinha acontecido?!
Então ele disse, lentamente, parecendo completamente indignado:
- Você me chamou de , .
Dessa vez, as palavras fizeram sentido, mas o conceito não. Foi como um soco na boca do estômago.
- Quê? – ela repetiu, e agora a descrença era dela. Ele só podia estar louco.
- Você me ouviu. – respondeu, seco. Então ele se virou de costas, passando as mãos pelos cabelos.
A mulher respirou fundo, tentando clarear a mente. Se aquilo era piada, era uma piada de muito mal gosto. De que merda ele estava falando? Ela não tinha o chamado de ! Ela tinha dito ... Não tinha? Um desespero maior ainda lhe atingiu quando ela se deu conta de que não sabia o que tinha dito. Podia muito bem ter falado . Estava tão mergulhada nas sensações que o corpo de lhe causavam, que as palavras saíram de sua boca sem que pensasse. Ela não teria segurança nenhuma para afirmar se tinha, de fato, o chamado pelo nome errado ou não. Genuinamente não me lembrava. E, para ser sincera, estivera de fato pensando em um segundo antes com o toque do celular, então fazia até muito sentido que num momento irracional de adrenalina aquele nome escapasse pelos seus lábios.
Não que preferisse estar ali com . Por mais difícil que seja acreditar, o nome saíra da sua boca por puro hábito, por um erro honesto do seu cérebro. Se por algum motivo estivesse esperando uma ligação do primeiro ministro, talvez fosse o nome dele que teria deixado escapar! Mas como explicar aquilo para , ainda paralisado à sua frente, com o rosto mais magoado que ela jamais vira.
Sentindo-se sufocado, ele se abaixou, pegou sua camisa e se atirou porta afora, pensando no golpe baixo que ele mesmo havia aplicado em um pouco antes. Bem feito, pensou. Quem mandou ser tão sujo? Tivera o castigo que merecia. Porque ouvi-la falando o nome de outro enquanto ele estava ali, de corpo e alma por ela, doeu demais.
Cruzou o salão, que continuava escuro, vestindo a camisa de qualquer jeito e puxando um maço de cigarros do bolso. A chuva agora parara e ele ouviu o baque da porta de metal das escadas.
Logo atrás dele, vinha , parecendo não se importar nem um pouco por estar correndo pelo hall de entrada de seu prédio vestindo apenas uma saia.
- ! – ela chamou aflita. – , me espera, de verdade, me escuta!
Enquanto ele abria o portão, o alcançou, segurando-o pelo braço.
Ele a afastou, puxando o braço para si num movimento brusco. Quando saiu, sentiu uma rajada de vento forte e gelado contra seu corpo. Levou o isqueiro à boca, acendendo o cigarro, e continuou andando sem a menor intenção de parar por . Antes que desse dois passos, ela o alcançou novamente, tentando segurar seu braço.
- , por favor, se acalma, me desculpa, apaga esse cigarro e vem aqui, me escuta! – ela falou rápido, angustiada, a voz soando como choro.
- Vamos fazer o seguinte. - afastou o cigarro da boca e o levou até o portão, virando a ponta para baixo, prestes a apagá-lo. Então parou. – Eu largo o meu vício - disse - e você larga o seu. - e exibiu um sorriso provocativo.
franziu o cenho e perguntou:
- Meu vício?
- Você sabe. – insistiu lentamente. – Aquele. Que tira o seu sono e paga seu salário. - provocou, sorrindo vitorioso.


24

Cierra la puerta, ven y siéntate cerca
Que tus ojos me cuentan que te han visto llorar
Llena dos copas de recuerdos e historias
Que tus manos aún tiemblan
Si me escuchan hablar

(Cuídate - La Oreja de Van Gogh)


Brown Street, 108, Londres, Quinta-feira, 02:56h

continuava encarando a porta de vidro a varanda à sua frente. Não saberia dizer há quanto tempo estava ali, parada, o olhar perdido no céu escuro e os pensamentos correndo soltos na bagunça que era sua mente.
Os minutos passavam e ela não se sentia chegando mais perto de nenhuma decisão. Talvez já estivesse perto o suficiente de uma escolha, mas a mulher parecia estar à espera de uma certeza que ela provavelmente nunca viria. Porque sentimentos são fluidos demais para serem tratados com tanta precisão e decisões tão grandes raramente são feitas sem um friozinho na barriga que seja.
Sabia que qualquer que fosse a decisão que tomasse agora, não poderia voltar atrás. Sabia que não era justo com nenhum deles continuar naquela montanha russa. Aliás, ela mesma nem aguentaria voltar atrás.
Esfregou os braços, que envolviam as pernas. Levantou o queixo, que estivera apoiado sobre os joelhos e observou os próprios pés sobre a cama. Algumas lágrimas que haviam pingado de seu rosto rolavam em direção a eles. Soltou as pernas, sentindo o corpo reclamar pelo tempo que passara naquela posição. Secou o rosto com as costas da mão e respirou fundo.
Uma pergunta cruzou sua mente e deitou as costas no colchão, como se buscasse apoio antes de conseguir respondê-la.
Você tem orgulho da pessoa que se tornou?
Uma pessoa que passava os dias forçando sorrisos como se cada pedaço do seu corpo não estivesse rasgando por dentro de dúvida, ciúme e peso na consciência. Um poço fundo, mas pobre, preenchido escassamente por nada além de sentimentos nocivos.
Pensou sobre quantas vezes pensara em pôr um fim naquela confusão que era seu relacionamento com . Mas sempre acabava chegando à mesma conclusão: não tinha para onde mais ir. Naquele instante, porém, enquanto tentava analisar cada ângulo e cada possível desdobramento, teve certeza absoluta de que também não queria ficar onde estava. E pensando bem, não ter motivo para ficar é um bom motivo para ir embora.
Percebendo que aquele era o máximo de convicção que chegaria a sentir, aproveitou o impulso e se levantou. Se continuasse esperando por aquela sensação arrematadora de plena certeza, acabaria por perder o breve instante de coragem. Pois é preciso coragem – e muita – para abandonar aquilo que não se pode mudar.
Calçou um par de tênis, pegou seu celular, suas chaves e caminhou em direção à porta do apartamento. Puxou seu casaco do cabideiro e secou mais uma vez o rosto antes de destrancar a porta e sair, tomada por uma determinação apressada.
Já tinha dirigido mais da metade do caminho quando lhe ocorreu que iria bater à porta dele de madrugada. Mas não podia deixar que aquilo lhe tirasse o momento. Enquanto estacionava, puxou o celular da bolsa e esperou por uma resposta.
- Alô. – ouviu a voz sonolenta depois de alguns toques.
- Oi. – disse apenas. – O que você tá fazendo?
- O que eu tô fazendo? Estou compondo um soneto! O que você acha que eu tô fazendo, ?
De fato, eram quase três horas da manhã de um dia de semana. A mulher percebeu logo que precisaria ir direto ao ponto se quisesse ter forças para terminar o que viera fazer.
- Eu tô na porta do seu prédio. Deixa eu entrar?
respirou pesadamente. Fez-se silêncio por alguns segundos, até que ele anunciasse em voz rouca:
- Vou avisar o porteiro.
saiu do carro e olhou para cima, procurando o apartamento dele. Não havia luzes acesas. Ela apertou o casaco contra o corpo enquanto caminhava em direção à portaria. Olhou para o porteiro sem saber se ele a reconheceria e disse apenas:
- .
O homem assentiu com a cabeça, como se já esperasse por ela, e apontou a porta aberta do elevador. Entrou, e enquanto via porta se arrastar à sua frente, sentiu a vontade de chorar voltar a encher seu peito. Tentou controlá-la, mas não foi tão fácil. Ela percebeu que suas mãos tremiam levemente e escondeu logo as duas nos bolsos do casaco enquanto pisava no andar certo.
A porta ainda estava fechada e ela se perguntou se deveria bater. Não era como se ainda não estivesse sendo inconveniente. Deu logo três batidas na madeira branca, e em um segundo ela se abriu.
a olhou com aqueles olhos apertados de sono que ela achava tão adoráveis e a testa um pouco franzida, claramente incomodado pela luz forte do corredor. Olhou-a nos olhos por muito tempo, durante o qual ela sentia a coragem se esvair como se vazasse de um balão furado.
Então, respirando fundo, conseguiu falar, baixinho, antes que o balão estivesse vazio:
- Eu sei que não estou merecendo, – começou, assustada com o quão vulnerável sua própria voz soava – mas estou precisando de um café da manhã daqueles que só você sabe fazer. – e sorriu tímida, sentindo-se pequena.
acentuou a careta e apertou os olhos contra a luz forte, umedecendo os lábios antes de dizer:
- Mas ainda não tá na hora do café da manhã.
fez que sim com a cabeça, encolhendo os ombros.
- Eu sei. – murmurou. – Ainda não.
Trocaram um olhar cheio palavras que não precisaram ser ditas, até que se afastou, dando passagem para que ela entrasse.
A cortina estava aberta, deixando a luz da lua entrar e iluminar a sala um pouco. ouviu o colega trancar a porta novamente, enquanto seus olhos tentavam se acostumar ao escuro.
Observou-o recostar-se contra a cômoda ao lado da porta, iluminado pela luz branca que vinha da janela. Ele cruzou os braços e encarou o chão, ainda em silêncio. E reconheceu que era sua vez de começar.
- Me desculpa. – disse apenas. – Me desculpa. Eu sei que é pobre, mas eu não sei o que mais dizer. Eu não... – deu de ombros. - Eu não sei nem por onde começar.
- Por que você tá pedindo desculpa agora?
inspirou o ar com força subindo os ombros, então soltou tudo de uma vez.
- Porque eu percebi que tenho sido uma idiota com você e não quero te perder.
levantou o rosto. Quando viu os olhos desolados da colega, sentiu seu interior se contrair, e não soube se era de raiva, ou tristeza, ou ambos. Ele voltou a abaixar o rosto.
Descobriu ali o quanto lhe doía ver triste. Aquilo não apagava a raiva que sentia dela por ter agido como uma filha da puta egoísta, mas doía. Descobriu, também, o quanto estava de fato magoado por como vinha lhe tratando.
- Eu te devo um pagamento de uma aposta. – ela disse. – Você ganhou de mim no Black Jack.
imediatamente voltou a levantar o rosto para ela.
Encararam-se em silêncio.
- Quando você lembrou?
Ela deu de ombros.
- As memórias foram voltando pra mim aos poucos.
- Todas elas? – ele quis saber, perguntando-se sobre uma parte bem específica daquela noite em Birmingham.
assentiu lentamente com a cabeça.
- Acho que sim. Não com muita clareza. – admitiu, rindo fraco. – Mas... Eu lembro. – falou olhando nos olhos do colega, sabendo que ele se referia ao momento em que se beijaram.
Subitamente, ela sentiu seu corpo esquentar e teve vontade de beijá-lo novamente. Tentou afastar a vontade porque sabia que beijar era uma recompensa que ela não estava merecendo.
- Por que você nunca me contou nada sobre aquela noite?
- Porque você me pediu pra não contar. – ele explicou sucintamente.
- Obrigada. – murmurou. Ocorreu-lhe que nunca havia quebrado nem uma promessa ou combinado com ela.
Algum tempo se passou e começou a se sentir incomodada com seu casaco. Quis tirá-lo, mas ainda não tinha certeza de que não a pediria para sair a qualquer momento. Manteve-o, então, e mordeu os lábios, nervosa, antes de perguntar:
- Você consegue me perdoar pelas coisas egoístas que eu te disse?
Aquele estava sendo um diálogo pausado, como se respirasse com vida própria. O clima era surpreendentemente calmo, considerando tudo que tinham a dizer um para o outro, o peso das palavras, os sentimentos revirados. Mas não era morto. Não, era vivo e pulsante, ainda que silencioso na maior parte do tempo.
estralou os dedos e levantou o rosto para ela mais uma vez, parecendo pensar no que dizer, até que as palavras saíram lentamente:
- Por algum motivo, , suas palavras machucam um pouquinho mais que as de qualquer outra pessoa.
A mulher engoliu em seco. Sentia que a cada vez que pensava sua consciência não poderia estar mais pesada, ela se surpreendia novamente.
- Eu sei o que eu quero agora. – prometeu, a voz trincada pelo choro que quase vencia mais uma batalha.
- O quê? – ele cobrou, desencostando-se do móvel e olhando para ela com olhos exigentes. - Porque não dá mais, . Desse jeito simplesmente não dá mais.
- Você. – a mulher soltou num soluço sofrido, porque aquela palavra estivera entalada na sua garganta.
Olharam-se como se fosse a primeira vez. Como se quisessem, de fato, se enxergar, como poucas vezes fizeram. Como se quissem, num único olhar, mostrar e encontrar um no outro tudo que antes haviam escondido ou falhado em descobrir.
começou baixinho, como se quisesse se misturar ao silêncio, e deixou a voz crescer aos poucos:
- Eu sei que falo que não ligo e que fico por aí agindo como se isso que temos não fosse nada. Mas na verdade você foi o dono da maioria dos meus pensamentos e sorrisos nos últimos tempos. Eu sinto muito que tenha sido tão fria com você e te magoado tanto enquanto estava ocupada demais sentindo pena de mim mesma por amar alguém que é frio comigo e me magoa tanto. – disse, soltando um riso triste. – Eu sei que o que eu fiz não faz o menor sentido. – admitiu. – Talvez em algum lugar no caminho eu tenha esquecido como ser uma pessoa decente. – murmurou, deixando o rosto pender para frente, escondendo do colega os seus olhos envergonhados.
abaixou um pouco o rosto, buscando o olhar dela.
- Sabe qual é o seu problema, ? Você não faz ideia do quanto você vale. Tô falando sério. Você passou tempo demais deixando seus pais, sua irmã, seu ex, o e sei lá mais quem – enumerou com a voz enérgica – fazerem você pensar que precisa passar por algum tipo de provação por eles, como se precisasse do reconhecimento deles pra ter algum valor. Pára de pensar que você precisa das pessoas! Tira isso da sua cabeça! – falou, balançado a cabeça para os lados, parecendo incrédulo.
Pela milésima vez, a pergunta que já era quase um reflexo natural a respeito de voltou a latejar: que mais queria de um homem? E, ali, olhando para na penumbra, ouvindo aquelas palavras, a resposta lhe veio à mente imediatamente, mais clara que nunca, bem embaixo do seu nariz: queria que ele a amasse.
O choro agora voltou mais forte, fazendo o corpo dela tremer num soluço enquanto ela fazia que sim com a cabeça em movimentos rápidos. Deu uma inspirada profunda e tremida, enquanto secava o rosto.
- Eu sei. Eu sei, . – confessou. – Mas eu cansei de sentir pena de mim mesma. Esses pensamentos são o suficiente pra deixar uma pessoa louca! E eu não vou mais deixar que essa pessoa seja eu. – prometeu, determinada. Uma lágrima teimosa escapou de seus olhos e ela a secou rapidamente. – Eu quero voltar a ser alguém de quem eu possa gostar. – falou baixinho, olhando para ele como se pedisse ajuda.
a observou com atenção. Observou seus olhos inchados, sua pele que parecia arrepiada, seu rosto ainda molhado, e balançou a cabeça levemente para os lados.
- Sério, você não sabe o quanto você é linda. E não tô falando que você é bonita, . Não tô falando disso aqui. – explicou, apalpando o próprio rosto e corpo em movimentos rápidos. – Tô falando que você é uma pessoa linda. Você é esforçada, é leal, é inteligente e forte, apesar de não achar que é. E além de tudo... Além de tudo, ainda é linda! Porra, , quando eu olho pra você, – sussurrou – eu arrepio. – ele balançou a cabeça para os lados. - E você nem vê.
Quem se arrepiou agora foi ela. Seu olhar era de puro fascínio, e sua energia sobre ela lhe aqueceu. a tratava com um carinho que ninguém mais fazia. sentiu mais uma inspiração entrar tremida por seu corpo, restante do fim de choro que molhara seu rosto e secara sua boca. Engoliu seco e umedeceu os lábios com a ponta da língua. Esperou o que viria a seguir, pega de surpresa pelas palavras, paralisada pela força que lhe tomou o peito. Até que disse:
- Você já me deu o poder de quebrar seu coração, . – sua voz era segura. Não restavam dúvidas quanto àquilo. – Só falta você confiar que eu não vou fazer isso. E eu não sei o que mais fazer pra te mostrar que você pode confiar em mim, mas eu preciso que você faça isso logo, porque... Porque eu não aguento mais ficar longe de você. – ele admitiu.
Com a voz embargada e o peito apertado, como se o coração inchasse, ela soltou, entre o riso e o choro:
- Ah, , se você continuar falando e me fizer chorar de novo eu juro por Deus que...
Então, os lábios dele a interromperam. Em uma fração de segundo ele se lançara contra ela, segurando seu rosto nas mãos e beijando seus lábios com desejo.
levou as mãos ao tronco de , colado ao dela, puxando inconscientemente a camiseta macia que ele vestia. Ele desceu uma de suas mãos até o quadril da colega, mantendo a outra firme entre seus cabelos. Quebraram o beijo por um segundo, tempo suficiente para ambos inspirarem forte, recuperando o fôlego para que pudessem voltar a sentir os lábios um do outro. Em um impulso preciso e inesperado, arrastou sua mão quente sobre o ventre dela, adentrando sua calça e fazendo-a arfar antes que ele a puxasse para mais um beijo acalorado.
separou seus lábios dos dele quando deixou a cabeça pender para trás. O corpo dele encostado ao seu queimava, numa sensação além do qualquer coisa que ela pudesse descrever, além até do que poderia entender. Calor nenhum poderia ser tão imenso e arrebatador quanto aquilo. E sentir aquilo não apenas a surpreendeu, mas a assustou. Nunca pensara que fosse encontrar alguém que conseguisse fazê-la sentir nem sequer algo próximo do que sentia com . No entanto, lá estava , incendiando seu corpo com a boca em seu pescoço e os dedos dentro dela.

BBDO, Londres, Segunda-feira, 18:03h

veio primeiro, o sorriso enchendo o rosto. Virou-se de costas, se inclinou e apertou o botão do elevador enquanto entrava em cena, puxada pela mão por ele.
Pelo recorte limitado da porta aberta de sua sala, via o corredor e os dois ao final dele, mas não ouvia o que diziam. Viu que riam e viu que envolveu a mulher pela cintura e a puxou para perto de si. Viu que ele fez um carinho discreto em sua cintura e viu que ela virou o pescoço para beijar-lhe o rosto.
Em seguida, a porta do elevador se abriu e deu um passo à frente. podia ver de costas, adentrando o elevador, e , que estivera apoiada no ombro do colega, de lado para os dois. E naquela fração de segundos, com à sua direita e à sua esquerda ao final do corredor, algo fez a mulher virar o rosto. Alguma coisa atraiu seus olhos para a porta aberta através da qual o chefe a observava. Seu sorriso congelou no rosto por alguns segundos e foi se suavizando aos poucos.
, agora de frente dentro das paredes metálicas, olhou para ela. A mulher deu as costas para e bem quando ele pensava que a veria sumir pela porta de metal, ela se inclinou, deu um beijo no rosto de e disse alguma coisa. Enquanto a porta deslizava, ela gritou:
- Já vou!
Então, virou-se novamente para os fundos e, sorrindo, começou seu caminho até a sala do chefe. Ambos se olharam nos olhos enquanto ela caminhava, e o tempo parecia dilatado. veio quieta e parou à porta. Olharam-se por mais alguns segundos, até que apontou com a cabeça para a cadeira do outro lado da sua mesa. Tudo se dava com fluidez, num ritmo calmo e preciso. Sem hesitar nem se apressar, a mulher fechou a porta atrás de si e se sentou.
De repente, não sabiam de quem fora a iniciativa daquele momento. Nenhum deles saberia dizer se ela estava ali por iniciativa própria ou se a pedido de . Mas a necessidade era mútua. Olhos nos olhos, corações cheios de palavras presas, tomou coragem, encheu a boca e, antes mesmo que ela começasse, soube o que ela diria.
Ele soube que aquele era o fim.
Soube porque vinha percebendo há algum tempo. Soube porque viu nos olhos dela algo que nunca tinha visto antes. Algo que fez seu interior se retesar pela iminência do término. Ele pensou sobre suas opções.
Em sua cabeça, repassou o cenário que já conhecia. Ela dizia que chega. Ele usava todas as armas que tinha. A confiança, as súplicas, a cumplicidade, as piadas. A voz segura começava a tremer e ela estava quase cedendo. Ele investia. O golpe final: seu beijo. E voltava. Ela sempre voltava.
Mas não seria assim dessa vez, e ele sabia.
Visualizou o cenário mais provável. Ela dizia que chega. Ele usava de todas as armas que tinha. E hoje, apenas hoje, elas não funcionavam. Pela primeira vez, não. Voz trêmula, olhos brilhando molhados, mãos apertando com força a barra da blusa; mas não. Naquele dia, talvez o único dia, não voltaria. Ela não voltaria mais.
Naquele segundo que pareceu durar vários, naquele instante durante o qual conseguiu visualizar todas suas opções, ele compreendeu que não tinha o direito de tentar persuadi-la. Finalmente, antecipou o cenário que de fato aconteceria. Porque sabia em seu íntimo que o quadro que se seguiria era o único que ele merecia. Por isso, pronto para acatar o fim que os olhos dela já haviam anunciado, ele a interrompeu com um olhar de puro entendimento, assentindo com a cabeça, e adiantou:
- Eu sei.
- Mas eu preciso dizer. – esclareceu numa inspiração profunda e um pouco tremida por uma ameaça de choro.
Olharam-se por um instante, em silêncio, e assentiu lentamente com a cabeça de novo. Concordava. Sabia que ela precisava e tinha todo direito de dizer aquilo. Ele sustentou seu olhar, prometendo em silêncio que olharia em seus olhos e ouviria cada palavra – por mais que não quisesse. Talvez o gesto mais respeitoso que jamais fizera por .
- Eu preciso me libertar de você, . E eu estou fazendo isso agora.
As palavras pesavam em sua boca, mas assim que saíam, pareciam ganhar leveza.
Nada mais foi dito. Quando teve certeza de que ela tinha terminado, o homem se permitiu, finalmente, cessar os esforços e quebrar o contato visual com ela. Fechou os olhos molhados e duas lágrimas escorreram quietas pelo seu rosto.
- Eu sei. – murmurou.
- Desculpa, eu precisava falar isso. – disse. Sua voz era calma, porém firme.
Ele levantou o rosto, e as lágrimas rolavam pelo seu rosto triste como chuva de fim de tarde, aquelas últimas gotas que precisam cair para limpar um céu melancólico.
- E eu precisava ouvir. – completou.
observou seu rosto, seu cabelo, seus olhos emocionados. Ele se atentou para os detalhes dela, a postura, a forma como apoiava o corpo mais de um lado do que do outro, o movimento de sua respiração. Compreendeu ali, assim como acabara de compreender tantas outras coisas, que ela, seu nome, sua voz, a lembrança da partida dela seriam para sempre como uma ferpa dentro dele.
Trocaram mais um olhar cúmplice, como haviam feito tantas vezes antes, e nada mais se fez necessário. Serenos, terminaram a conversa concordando num sorriso manso.
se levantou, secou os cantos úmidos dos olhos e se dirigiu à saída. Quando atravessava a porta, ouviu seu nome dito daquele jeito que ela tanto amava e conhecia, vindo da boca que tanto amara e conhecera:
- ? – ela girou o corpo para trás e se encostou no batente da porta, apenas para se deparar com o rosto molhado de destoando do sorriso divertido que crescia em seu rosto. – Você sabe que tem um post it escrito “OTÁRIA” nas suas costas?
A mulher virou os olhos e riu de leve.
- É. – concordou. – Eu perdi uma aposta, explicou, sorrindo conformada e arqueando as sobrancelhas.
Então se virou novamente e saiu, fechando atrás de si algo muito maior do que apenas a porta do escritório do chefe.


25

I'm walking away
Said all I can say
Today is the day
I put in my time
Now I'm drawing the line
Today is the day
Can you tell me, why it's gotta be
So hard, hard to leave?
(Leave – Alex Band)


Capland Street, 12, Londres, Domingo, 16:28h

A porta do elevador se fechou e a última visão que teve foi encostado contra o batente da porta, sorrindo docemente para ela.
Se aquela leveza gostosa que lhe enchia o peito e tomava os sentidos não era felicidade, sinceramente não sabia o que mais podia ser. Sentia-se como uma menina quando não sabia o que era maior: a tristeza por ter de ir embora da casa dele depois de um fim de semana inteiro juntos, ou a alegria da antecipação de saber que o veria na manhã seguinte. Às vezes, em momentos como esse, ela se pegava supresa novamente ao perceber o quão perdidamente apaixonada ela estava por aquele homem.
Abaixou os olhos para o celular em suas mãos quando ele vibrou com uma nova mensagem de um número desconhecido.
“Oi, lindo. Você sumiu o final de semana todo. Não costumo fazer esse tipo de coisa no primeiro encontro, mas adorei a noite que tivemos! Tô louca pra repetir. Samantha.”
Estava tudo bem, e de repente não estava mais.
Não houve impacto. Não foi bruto, não houve golpe cruel entre um sentimento ou outro. A transição entre a felicidade e o desencanto foi muito natural. ainda se sentia aérea, mas a leveza não mais era doce. Era uma mágoa calma que ia lhe envolvendo aos pouco,s enquanto percebia que ela e haviam, mais uma vez trocado os celulares.
A porta do elevador deslizou para o lado, revelando o porteiro à sua frente, atrás do balcão. Ele deu boa tarde, e não conseguiu fazer nenhuma palavra sair de sua boca, enquanto caminhava lentamente até o balcão, com a sensação de que seu estômago pesava uma tonelada dentro dela.
- Você pode guardar isso para o , por favor? – disse finalmente, numa voz baixa e sem vida, o olhar um pouco perdido. Deixou o celular sobre a superfície e se virou, caminhando lentamente até a porta.
Ela pisou na rua, sendo abraçada pela claridade ao lado de fora. Sol de plástico, ela costumava dizer. Aquele sol de primavera que deixa os dias mais longos, mas não tão mais quentes quanto você espera quando vê os raios de sol pela janela.
À sua esquerda, um canteiro de narcisos amarelos já havia florescido. Ela se perguntou quanto tempo e amor alguém dedicara àquilo. Sentiu uma vontade súbita de destruí-lo. Destruir, rasgar, despedaçar. Ferir. Ferir como lhe tinham ferido. Quando deu por si, como uma criança descontrolada, estava aos pulos e chutes, pisoteando as flores douradas. Nem se lembrava de como havia começado. Como se a ordem para fazê-lo não tivesse partido do seu próprio cérebro.
Parou, ofegante, repentinamente atônita, e voltou para a calçada. Observou sua obra-prima: as flores agora caídas, em frangalhos. Mas aquilo não lhe trouxe alívio nenhum. Não havia ferido ninguém. Talvez alguma senhorinha aposentada que ama jardinagem. Talvez um paisagista entediado que foi pago para fazê-lo. Nada palpável para ela.
A respiração ofegante em alguns segundos se transformou numa ameçada choro rouco e amargurado, que fez a mulher dobrar levemente os joelhos e apoiar-se em um deles com uma mão, enquanto levava a outra ao próprio rosto, agora contorcido numa expressão triste. Mas o choro não veio, e o gosto daquilo foi esquisito. A mulher arfou algumas vezes, recompondo-se da estranha sensação de ter se preparado para um choro que não chegou e tentando recuperar a postura para começar a caminhar.
olhou para trás enquanto andava, encarando os narcisos despedaçados pela última vez, e percebeu que, na realidade, não era aquilo que estivera buscando. Não queria ferir ninguém. Nem mesmo .
Só queria entender. Entender por quê tamanha desonestidade. Entender como é possível que uma mesma pessoa tenha o coração partido tantas vezes por tantas pessoas diferentes. Entender para que as pessoas fazem promessas se não pretendem cumpri-las, estendem mãos que vão puxar de volta, fazem carinho com a mesma mão com a qual te vão surrar depois.
A caminhada até sua casa foi um grande borrão para , não saberia dizer por onde passou o quanto tempo levou. Provavelmente foi um daqueles momentos em que o corpo, por puro instituindo de sobrevivência, sabe que precisa dar um jeito de alcançar seu destino. Enquanto destrancava a porta do apartamento, já descalçando os sapatos, estranhou a apatia com a qual tinha recebido toda aquela notícia. Largou os calçados pelo caminho, perguntando-se como era possível ainda se sentir tão aérea quanto a tudo aquilo. Como se a dor fosse tanta, que nem havia o que fazer além de simplesmente senti-la.
Sentou-se no tapete da sala e ouviu os passos abafados de Melancia vindo em seu encontro. Ela pulou no colo da dona, arfando com a língua inquieta para fora, tentando alcançar o rosto de .
- Não quero brincar. – disse baixinho, afastando a cachorrinha do seu rosto.
Melancia logo percebeu que o clima não era aquele e se aconchegou no colo de , apreciando o carinho suave que recebia, enquanto a mulher apenas encarava o tapete bege da sala com os olhos perdidos.
Tinha um pouco mais de dois meses aquela mancha ali.
chegara por trás dela, silencioso, e a surpreendera com um beijo estalado no pescoço. O susto foi tamanho que fez sacudir sua xícara cheia de café quente, levando o líquido preto a atingir o tapete claro com um som molhado. Depois os dois riram, sorriram, se beijaram, e a mancha ficou para trás.
E agora ela estava ali, para lembrar das muitas lembranças felizes nas quais aparecia. Esse era, na verdade, um dos maiores méritos dele. Até aquele dia, havia trazido para a vida dela nada além de felicidade. Mas sua hora chegara. Sempre chegava. Naquele moment, voltou a ter certeza de algo que sempre suspeitara, mas quase a convencera do contrário: que não se pode confiar em ninguém. Até as pessoas em que você mais confia vão te decepcionar em algum momento. Talvez seja algo pequeno, talvez seja algo perdoável. Talvez seja como aquele episódio estava sendo para : algo que faz seu coração despencar até o fundo do seu estômago, pesando como uma âncora, e a sensação é de que ele vai ficar ali para sempre. Ali, sentada com Melancia adormecida em seu colo, o estômago em nós e o coração doendo – seu peito literalmente doía – teve certeza de que aquele sentimento é o tipo de sentimento que você nunca esquece.
E, olhando para trás e revirando suas memórias, a mulher percebeu que esteve quebrada mais vezes do que esteve inteira. Mas naquele dia, no momento em que leu aquela mensagem, finalmente se quebrou para além de qualquer conserto.
Por mais que odiasse fazer aquilo, ela se pôs a revisitar suas decepções e tristezas, tentando se perguntar como era possível que agora doesse ainda mais. Com , sempre soubera que o que sentia não era recíproco. Mas uma parte dela ficava esperando que ele a amasse de volta, que ele a correspondesse com a mesma urgência, a mesma adoração, a mesma reverência. Lembrava-se até hoje daquela noite de ano novo em que percebera que, aos poucos, aquela partezinha esperançosa dela tinha se cansado. Um sentimento que antes lhe consumia, lhe impelia em direção a qual quer que fosse a circunstância, agora se reservava, mais cauteloso. Seu amor não deixou de estar ali. Mas ele estava exausto, maltratado, e aprendeu a se afastar, quietinho, e se cuidar. Aprendeu que não valia mais a pena se atirar de novo e de novo bem no meio de uma decepção atrás da outra. Não deixou de amar , de forma alguma. Mas começou a se perguntar se ainda era tão apaixonada por ele como fora um dia, e se aquilo tudo valia a pena. E isso, para , depois de anos de amor cego e resistência aparentemente infitina a desilusões, era um passo tão grande que só ela mesma compreenderia.
E à medida que aquela paixão foi se retraindo, outra começou a se alastrar. Por mais que odiasse admitir à época, e por mais que tivesse tentado impedir, sua simpatia por foi criando garras e se espalhando, escalando suas barreiras e encontrando as falhas dos seus muros, até tomar conta do espaço e se tornar mais que pura simpatia. Muito mais, na verdade.
Era que ela queria ver todas as manhãs. Era para que eu queria contar sobre o seu dia quando chegasse em casa à noite, e era por ele que queria gastar horas tentando achar o presente perfeito no Natal. Era com ele que queria passar os dias monótonos em que o tempo está ruim e você não tem o que fazer, e era para ele que queria reclamar do mundo quando as coisas não eram como ela queria. Porque ele ia sorrir, abraçá-la, dizer mansamente que eu deixasse de ser afobada e parasse de tentar abraçar o mundo inteiro de uma vez. Era ele que queria que lhe consolasse quando ela sentisse aqueles desânimos que batem de tempos em tempos e parecem não ter solução. Era por ele que ela queria ser arrastada para reuniões familiares em Northfield, onde sentia por algumas horas reconfortantes que tinha uma família, por mais que ela reclamasse e dissesse que não gostava. Era nos braços dele que conseguia encontrar ao mesmo tempo conforto e fogo. Eram os beijos dele que deixavam seus lábios dormentes e seu coração descompassado, e essa sensação ela queria ter para o resto dos seus dias. Era ele, só ele. fizera se apaixonar por ele. Pior: havia feito com que ela acreditasse que ele a amava. Mas não, não, não. Isso não era amor.
Hoje, num choque de realidade que a pegou completamente desprevenida, ele provou o contrário. Nem mesmo a amava. Até mesmo para ele, ela só servia para sexo. A verdade é que ela era inútil. Não servia nem para ser amada.
Riu, não porque era divertido, mas porque era inacreditável que tivesse pensado o contrário por algum tempo. não servia para ser amada. enxergava, enxergava. Assim como Patrick enxergara há anos e assim como todos os outros enxergariam nos próximos.
Estivera tão feliz nos últimos meses que esquecera como era se sentir tão triste de novo. Tantas coisas nesse mundo a deixavam triste! E a ideia de que , agora, era uma delas, quebrava seu coração em mil pedacinhos.
O telefone tocou, e o toque estridente fez e Melancia se sobressaltarem. A cachorrinha ergueu um pouco a cabeça e abriu os olhos sonolentos.
A mulher viu o próprio número de celular no identificador de chamadas. Era que ligava, provavelmente percebendo que tinham trocado os celulares novamente. Será que ele já tinha lido a mensagem? Ele já sabia que ela sabia?
Mas apenas deixou a ligação chamar sem parar. Não tinha a força necessária para confrontá-lo. Não tinha estômago suficiente para ouvir suas desculpas. Não tinha lágrimas suficientes para ouvir sua voz mais uma vez. Mais uma última vez.
Seus olhos passaram mais uma vez pela mancha de café à sua frente e não restaram dúvidas: precisava se livrar daquele tapete. E quem diria que essa escolha seria tão simples?
Então, respirando fundo e sentindo-se consumida, completamente saturada de sofrimento, tomou uma decisão. Mesmo que lhe custasse alguns corações partidos.

Capland Street, 12, Londres, Segunda-feira, 12:06h

se recostou na parede do elevador, sorrindo. Estava sozinho olhando para uma porta metálica, mas sorria, pois aquela manhã tinha gosto de mel. Porque às vezes a vida é simplesmente tão boa assim.
A porta se abriu, e enquanto atravessava o hall, acenou para o porteiro. O homem levantou a mão, pedindo que esperasse, e interrompeu seu caminho.
- Bom dia, senhor ! – cumprimentou, mexendo em algo debaixo do balcão. – Sua namorada deixou pra você. – disse, esticando um celular para ele.
Aquelas palavras fizeram o interior de se aquecer e um sorriso bobo, apaixonado, brotou em seu rosto. “Sua namorada”.
Ele agradeceu, pegando o aparelho e seguindo seu caminho. Estava explicado por que não tinha atendido às suas ligações. se perguntou por que ela teria deixado o celular na portaria, ao invés de aproveitar a desculpa para subir mais uma vez no momento em que percebeu a troca. Provavelmente tinha sido a melhor decisão, já que ele não teria deixado que ela fosse embora uma segunda vez. Conferiu o celular e as únicas duas ligações eram as que ele mesmo havia feito, antes de tentar o telefone fixo, quando viu que haviam se confundido mais uma vez. Apalpou o outro bolso, para se certificar de que tinha lembrado de trazer o aparelho de , e seguiu seu caminho pelas ruas da cidade.
Enquanto caminhava, respirou fundo, apreciando o cheiro das flores que começavam a reaparecer. estava feliz. Genuinamente feliz. Se a vida fosse um filme, aquele seria o dia em que os pássaros cantariam só para ele e os carros abririam passagem. Era o dia que não se importava com o metrô lotado, nem com a poluição da cidade. Apenas apreciava cada momento do caminho que lhe levava para um emprego que lhe inspirava, ao lado de uma mulher que amava.
Quando abriu a porta de sua sala, estranhou que ainda não estivesse lá. Geralmente, quando trabalhavam em turnos diferentes, ela já tinha voltado de sua pausa para o almoço quando ele chegava. Acomodou-se em sua mesa e ligou seu computador. Mas quando percebeu que já estava 20 minutos atrasada, mandou uma mensagem para ela, apenas para sentir a vibração do próprio bolso e se lembrar que ele ainda estava com os dois celulares.
De repente, algo chamou sua atenção. Como se a parede que estivera encarando há minutos tivesse acabado de engoli-la, ele percebeu que a moldura preta que estivera pendurada desde o primeiro dia em que entrou naquela sala não estava mais ali. O diploma de não estava na parede. O diploma da Universidade de Manchester, o único item pessoal que a mulher tinha no cômodo, não estava mais lá. Não que ela fosse muito apegada a recordações, mas aquela, sem sombra de dúvidas, era importante. Aquele foi o primeiro sinal.
Intrigado, puxou de novo seu celular do bolso. não usava muito seu telefone fixo, então ele já esperava que ela deixasse tocar e não atendesse, como fizera na noite anterior. Mas ele definitivamente não esperava o que ouviu a seguir. Porque quando a ligação foi completada, ouviu uma gravação conhecida que dizia “o número que você ligou não existe”. Mas como não existe? Aquele foi o segundo sinal. Algo muito estranho estava acontecendo, e ele não sabia dizer o que era.
se encaminhou para a saída, agora não só confuso, mas alarmado. Sentia um estranho aceleramento interno. Assim que abriu a porta e inclinou o tronco para o fora, viu passando pelo corredor alguém que talvez pudesse lhe ajudar.
- Ruby! – chamou. A mulher freou e se virou para trás.
- Boa tarde. – ela cumprimentou, sorrindo de leve. – Tudo bem?
- Tudo, – ele confirmou apressado, prosseguindo logo: - você sabe onde a tá?
Pela expressão dela, aquela era a única pergunta no mundo que Ruby não queria ouvir. Ela fez silêncio por um momento, e percebeu que ela parecia mesmo um pouco desconcertada.
- Eu... – começou. – Não sei. – falou, soando muito pouco segura do que dizia.
- Ruby? – ele insistiu, desconfiado. Ela soltou o ar com força, como se desistisse, e respondeu:
- Sinto muito, , mas acho que eu não posso dizer nada sobre isso. É melhor esperar o sr. dizer algo. – justificou, parecendo embaraçada.
Ela segurava um grande envelope de papel pardo entre os dedos de unhas compridas pintadas de rosa choque. O olhar de se demorou nos documentos por um instante. Aquele foi o terceiro sinal. Como um teatro que anuncia seu início, um dia agoniante que ficaria marcado na vida e na lembrança de anunciava sua chegada.
Num impulso rápido, o homem passou na frente de Ruby, deixando-a para trás. Atravessou o corredor apressado, o coração um pouco descompassado e uma forte sensação que só poderia ser descrita como medo. Não costumava se sentir nervoso, mas percebeu que as palmas de suas mãos suavam e as pontas de seus dedos formigavam um pouco.
Em poucos passos alcançou a porta que procurava, abriu-a se nem bater e encontrou seu chefe sentado atrás da mesa. tinha os cotovelos sobre a superfície de vidro e as duas mãos entrelaçadas juntas. Seu rosto estava apoiado nas mãos e o olhar, perdido. Quando entrou, o olhar pensativo de se ergueu, e sem cerimônias e sem pudores, foi direto ao ponto, porque lhe devia aquela sinceridade.
- O que está acontecendo? – indagou, sério.
Por um instante, o chefe fez silêncio, parado exatamente na mesma posição. Então, afastou lentamente o rosto das mãos enquanto suas sobrancelhas se apertavam. E ele, que já parecia atordoado, como se tivesse repentinamente acordado naquela situação sem se lembrar de ter se levantado, vestido aquelas roupas ou ido parar naquele lugar, pareceu perder o chão. Como se sua única esperança de uma explicação tivesse se dissipado, em voz baixa e parecendo subitamente desolado, ele perguntou:
- Nem você sabe o que aconteceu?
A expressão de endureceu.
- O que você quer dizer? – exigiu.
ergueu de leve os ombros e explicou:
- Ela passou no RH de manhã cedinho e entregou sua carta de demissão.
Aquelas palavras ativaram um lugar de que nunca vira. Ele atravessou a sala, espalmou as mãos sobre a mesa e, num tom provavelmente bem mais agressivo do que deveria, rosnou:
- O que você fez dessa vez? – e encarou o outro como se seus olhos furassem. – HEIN?
- Acalme-se. – pediu, e aquela falta de emoção estava irritando . Ele parecia nem se importar... Como podia estar tão indiferente? Não era justo que não se importasse! Não era justo com . – , por favor...
- POR FAVOR O CARALHO. – devolveu, ameaçador, e repetiu: – O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ?
- NADA. – vociferou , levantando-se num movimento só e devolvendo a encarada agora do alto.
paralisou, surpreso pela reação, mas satisfeito. Uma parte dele queria aquela raiva. Queria que gritasse de novo. Que se exaltasse, que sentisse tudo dentro de si explodindo e se misturando, num redemoinho gigantesco de incerteza e frustração. Porque era exatamente isso que ele sentia. Tudo desmoronando lentamente.
E enquanto tudo desmoronava, em algum lugar dentro de , tinha alguém correndo de um lado para o outro, juntando os caquinhos e tentando reconstruir algo, tentando encontrar algum sentido naquilo. E foi o que ele fez no taxi durante todo o caminho até a casa de . Pensar em qualquer coisa que fosse. Qualquer explicação, justificativa, motivo para aquilo. Desde os mais horríveis destinos, aos mais mirabolantes cenários, às mais incríveis surpresas.
Desceu do carro já segurando as chaves extras que a mulher lhe dera, e atravessou o portão respirando fundo e secando o suor da testa.
- Boa tarde, Terrence. – cumprimentou apressado, apontando para cima indicando o que estava prestes a fazer e torcendo para que o porteiro não lhe pedisse para esperar.
- Eu... Acho que ela não tá em casa. – o homem respondeu, franzindo o cenho enquanto já subia.
- Tudo bem, ela me deu a chave. – explicou afobado, levantando-as no ar antes que a porta do elevador terminasse de se fechar.
E apesar de toda a urgência até ali, no momento em que se viu parado, sozinho, em frente à porta do apartamento de , sentiu medo do que encontraria por trás dela.
Sentindo-se levemente aéreo, ele levou a chave até a fechadura, girou a maçaneta e entrou.
E de todas as hipóteses que tinha imaginado, nenhum havia sido tão dolorosa quanto a que ele encontrou. Porque o que encontrou confirmava a versão que ele mais temia ser verdade: ela tinha ido embora. Ela não estava fazendo alguma surpresa. Não tinha se demitido impulsivamente. Nenhum imprevisto tinha lhe acontecido. tinha simplesmente ido embora.
O que encontrou foi um apartamenteo completamente vazio de vida e personalidade. Ainda estavam lá o tapete, os sofás, a mesa de jantar, a geladeira – apesar de vazia e desligada. Encontrou uma cama sem lençol, os armários completamente vazios, uma torneira com o registro desligado. Os móveis grandes ainda estavam lá, como se permanecesse o esqueleto, mas não havia no apartamento nenhum pertence pessoal, nenhuma decoração, nenhum traço de . Nada que indicasse aqui apenas algumas horas antes, ela vivia ali. Nenhuma roupa, nenhuma foto, nenhum resto dela. E, pior: nenhuma explicação.
Antes de desistir e retornar à sua casa, procurou por muito tempo. Tentou escutar os recados da secretária eletrônica. Perguntou Terrence. Revirou a casa a procura de um bilhete que fosse. Nada.
Quando chegou de volta ao seu apartamento, sentindo que percorrera a cidade inteira em poucas horas, largou a pasta no chão, empurrou os sapatos para fora dos pés, sentou-se no sofá e fez algo que nunca tinha feito antes. Desbloqueou o celular de e se pôs a ler absolutamente tudo que havia nele. Olhou as ligações dos últimos dias, leu suas últimas mensagens, revirou seu calendário e sua agenda de contatos em busca de qualquer pista que pudesse lhe indicar onde a mulher estaria. Mas simplesmente não havia nada. E sabia por que não havia: porque não queria que houvesse. Ela claramente não queria ser encontrada.
puxou mais uma vez seu celular do bolso e, desesperado, sentindo que dava voltas no lugar mas sem saber o que mais fazer, ele se levantou e ligou de novo para o telefone fixo dela. Andou de um lado para o outro da sala, o aparelho colado ao rosto, apenas para ouvir a mesma mensagem irritante de novo. “O número que você ligou não existe”.
Num acesso de fúria, o homem atirou o celular no chão, deixando escapar um grito de frustração. Deixou o corpo pesar, aproximando-se do chão até se sentar, sentindo o peito inchado. arfou, esfregou o rosto com força e exalou devagar, controlando o ar e tentando se acalmar.
Nesse momento, Charlotte veio se aproximando quietinha, sonolenta, vindo da cozinha. Ela parou ao lado do dono, encarando-o como se esperasse algo.
- Agora não, Charlotte. – murmurou sentindo um nó na garganta. Deu dois tapinhas na cabeça dela, encostou as costas na lateral do sofá e abaixou o rosto entre as pernas, finalmente perdendo o controle de sua respiração.
E chorou. Chorou como se seu peito estivesse aberto.
De repente, sentiu algo molhado e frio no seu rosto, e não eram suas lágrimas. Era o focinho de Charlotte, que buscava fazer com que ele olhasse para ela. obedeceu, erguendo o rosto molhado para a cachorra, e ela o encarou com aqueles grandes olhos carinhosos como se dissesse que não gostava de vê-lo daquela maneira. Charlotte afagou o dono com seu pelo cor de caramelo tão macio e apoiou o corpo no dele, aconchegando-se contra seu ombro.
sorriu entre as lágrimas, pensando, por um instante, que talvez as coisas não fossem tão ruins assim. Tavelz ela tivesse feito aquilo num rompante, num ímpeto confuso. Talvez ligasse mais tarde, ou voltasse em alguns dias... Mas sabia que aquilo era só uma desculpa para se sentir melhor. não era o tipo de pessoa que volta atrás nas suas decisões. E livrando-se rapidamente do momento de negação, ele soube, sem dúvidas, que ela não voltaria. Entendeu que assim, sem aviso, sem preparo, sem ninguém para sustentá-lo depois da queda, saíra de sua vida.
O pior era não saber por que ela tinha partido. Mas só ela sabia, e não há adeus mais triste do que aquele que nunca foi dito.


26

Woke up and wished that I was dead
With an aching in my head
I lay motionless in bed (...)
I thought of you and where you'd gone
And the world spins madly on

(The World Spins Madly On – The Weepies)


Capland Street, 12, Londres, Quarta-feira, 21:39

estava em pé, apoiado sobre o encosto de uma das cadeiras em volta da mesa de jantar. Já estava ali há alguns minutos, e não havia dito nada desde que ele chegara. Apenas abriu a porta e caminhou de volta até o sofá, onde estava agora sentado de novo, largado em frente à televisão com um copo de whisky na mão.
- O que você tá vendo?
A televisão estava ligada numa transmissão ao vivo do show de alguma banda que parecia estranha até mesmo para .
- Não sei. – deu de ombros. – Começou há uns 20 minutos.
Era uma banda de punk estranhamente folclórica, e os integrantes idosos pulavam pelo palco como se fossem adolescentes vestidos de couro preto e segurando pandeiros e chocalhos. Tudo muito inesperado.
franziu o cenho e se afastou da cadeira, caminhando em direção ao sofá para se sentar ao lado do amigo.
- Há quanto tempo você não vai trabalhar? – ele perguntou, tirando uma caixa de pizza do seu caminho.
- Dois dias.
- Com que desculpa?
- Estou doente.
- O que você tem? – ele perguntou sinceramente, franzindo o cenho. A memória de às vezes parecia durar menos que de um peixe.
apenas ergueu os olhos para o amigo com uma expressão mortal.
Imediatamente, entendeu e encolheu os ombros constrangido, como se pedisse desculpas. Sentou-se ao lado do amigo e suspirou, observando-o. não tirava os olhos da tela, apesar de seu olhar parecer um pouco perdido.
- Como você tá se sentindo? – perguntou, sem saber muito o que dizer ou fazer.
respirou fundo, ainda sem se mexer. Ele passou o dedo algumas vezes sobre a borda do copo e, depois de alguns segundos em silêncio, disse:
- Quando eu tava na 8ª série, eu me meti numa briga. – ele apertou os olhos, como se forçasse a memória. – Aparentemente, um garoto mais velho que parecia um pouco comigo, viviam confundindo a gente... Tinha dado em cima de uma garota de um outro colégio, e essa garota tinha um namorado. Um cara enorme. Maior de idade, já devia ter formado há muito tempo, todo bombado. – contou. – Ele e os amigos foram até o meu colégio na saída procurando o cara. Eu tava com meu amigo, perto da entrada. E eu tava ali, de boa, rindo de alguma coisa, quando eu simplesmente levei um soco na cara. Um soco forte pra caralho, forte mesmo, eu caí no chão. E eu me lembro daquela fração de segundo em que eu só sentia o lado direito do rosto, do olho, latejando, e eu tava completamente perdido. Eu me lembro da confusão de sentir que tava doendo pra porra, sem ter a menor ideia de quem me acertou e por quê. – ele riu sem humor e levou o copo até a boca. Deu um gole devagar e suspirou antes de explicar: – É assim que eu me sinto.
piscou algumas vezes, em silêncio, sentindo o coração pesando só de ver seu amigo daquele jeito.
- Ela... Não disse nada?
apenas balançou a cabeça para os lados. Seus olhos ainda encaravam a frente, vazios de todo o bom humor que sempre estava ali. Aquilo parecia completamente errado, como um parque de diversões abandonado. Algo que deveria ser alegre e colorido, mas agora as cores desbotadas descascavam, e no momento seus olhos eram apenas vazios e melancólicos.
- Eu fiz tudo certo. – murmurou, franzindo o cenho. – Essa é a pior parte. Se eu tivesse, sei lá, se eu tivesse errado com ela, se eu conseguisse apontar pelo menos um defeito, uma coisa podre, uma sacanagem... Eu entenderia. – admitiu. E baixinho, terminou: – Mas eu realmente tentei o meu melhor dessa vez.
Imediatamente, desencostou o corpo do sofá e se inclinou em direção ao amigo, passando o braço pelas costas dele. Apesar das malandragens, era provavelmente a pessoa mais empática que conhecia, mas era também a mais perdida e desajeitada. Naquela hora, ele era desespero purinho na tentativa de fazer algo pelo amigo, e quando o puxou, atrapalhado, para si, conseguiu fazer rir baixinho em meio às lágrimas que começaram a descer.
- Tem algo que eu possa fazer? – perguntou. – A gente pode tentar encontrá-la...
se afastou do peito do amigo, voltando para sua posição e secando as lágrimas que rolavam tortas. Ele balançou a cabeça para os lados.
- Ela se mudou. Cancelou seu número de telefone. Eu mandei um e-mail. - contou, sabendo que aquela era uma tentativa inútil. – Mas ela obviamente não respondeu.
- Mas isso não é possível. – insistiu. – Ninguém desaparece assim, ela tem que estar em algum lugar dessa cidade!
deu de ombros.
- Ela não quer ser encontrada. E eu sinceramente não sei por onde começar a procurar. – ele riu sem humor. - Percebi que ela conseguiu fazer o que sempre quis: controlar o quanto eu sabia sobre ela. Sobre as coisas de oficiais, as coisas palpáveis, as coisas que poderiam me ajudar a procurá-la... Eu só sei aquilo que ela deixou que eu soubesse.
Não disseram nada por alguns instantes, e apesar da música peculiar que vinha baixinho da televisão, a sensação era de silêncio, como se ela já tivesse se mesclado ao ambiente.
Mas o silêncio foi quebrado quando o celular de vibrou sobre a mesa de jantar, e como se sua vida dependesse disso, ele se ergueu num pulo completamente impensado, e se atirou em direção ao aparelho.
se levantou também, observando o amigo e esperando por uma explicação. A tensão no ar era quase física e ela se intensificava à medida que os segundos passavam, o silêncio apertava, e a expressão de endurecia, a testa franzida numa expressão confusa. não aguentou, e a ansiedade explodiu:
- E aí? – perguntou, ansioso.
balançou a cabeça para os lados. Não era quem eles esperavam que fosse.
- Não... – disse apenas. – Acho que é engano. – explicou, e leu: – “Você não vai nem me responder?” De um número desconhecido. Mas... Tem uma outra mensagem antiga aqui, mas eu nunca vi. – murmurou, e sua cabeça parecia estar trabalhando a mil para entender algo. – “Oi, lindo. Você sumiu o final de semana todo. Não costumo fazer esse tipo de coisa no primeiro encontro, mas adorei a noite que tivemos! Tô louca pra repetir. Samantha.”
Tudo a seguir se passou muito rápido. levou a mão à boca, a expressão vaga e repentinamente pálida. No mesmo instante, o celular vibrou mais uma vez, e a expressão de mudou num piscar de olhos de confusão para fúria silenciosa, enquanto virava o celular para o amigo, exibindo a mais recente mensagem: ?”
estendeu a mão para o celular, tomando-o de , a expressão crescendo para absoluto desespero.
- Não, não, não! – exclamou num tom de voz crescente.
- O que você fez? – sibilou.
- Não! Merda! – soltou, passando a mão com força pelo rosto.
- O que você fez? – repetiu pausadamente.
- .... – ele começou. – Me desculpa! Eu sou um idiota! Eu sei que eu sou, e eu sei que você sabe que eu sou – ele se atrapalhou – Mas nunca fui tanto! Nunca fui tão idiota!
- Quem é Samantha? – gritou, balanaçando o rosto para os lados, impaciente por uma explicação apesar da maioria das peças já ter se encaixado em sua mente.
- Eu saí com uma mulher semana passada que era até legal, era boazinha, mas carente, muito carante, cara! – contou, e sua voz ainda estava aguda de desespero. – Ela era muito grudenta, e quando pediu meu número eu não tive coragem de dizer que não queria, , você sabe como eu sou péssimo pra falar não pras pessoas! – disse, suas sobrancelhas se aproximando em aflição, como quem pede validação. – Decidi falar um número qualquer, mas tinha que ser um que eu soubesse repetir se precisasse, e antes que eu percebesse eu tinha dito o seu, sei lá, provavelmente porque é o único que eu sei de cor! Me arrependi na hora, mas eu ia te contar, eu juro que ia... Só que... Eu esqueci. Pensei que o máximo que aconteceria seria ela te ligar, você diria que era o número errado e pronto! Eu juro, não pensei que... Só que... Nesse meio tempo...
- leu a mensagem antes de mim. – completou, e apenas assentiu com a cabeça, a expressão angustiada.
- , eu...
- Vai embora. – ele interrompeu, a voz dura.
- Me desculpa, sério, eu nunca imaginei... Eu não sei o que... – sua respiração era toda inquieta e entrecortada.
- Vai embora, . – repetiu, a voz um pouco mais mansa. Respirou fundo, levantando os olhos para o amigo e, vendo a pessoa mais desalentada que já vira na vida, tentou lembrar a si mesmo que jamais faria aquilo de propósito.
- ME BATE! – ele sugeriu. – Sério, você devia... Você devia sentar a porrada em mim.
bufou e revirou os olhos, puto com o quão ridícula era aquela sugestão.
- ...
- Eu vou consertar isso, eu não fiz por querer...
- Eu sei, . – disse baixo, contendo-se para não gritar. – Eu sei que você não fez por maldade, eu sei. – repetiu a última frase mais forte, tentando se controlar. Levou a mão ao rosto, fechou os olhos e massageou a ponte do nariz. – Eu não quero brigar com você, , mas agora eu realmente preciso que você vá embora. – disse enfático, abrindo os olhos mais uma vez e exibindo no olhar uma raiva impassível.
fez que sim com a cabeça, sabendo que precisava respeitar o que lhe pedia. Seu rosto se contorceu porque o encontro dos olhos tristes do amigo com os seus, pesados de culpa, doeu. Ele levou as mãos à cabeça, aflito, e se afastou lentamente em direção à saída. Abriu a porta do apartamento, saiu, e enquanto se aproximava para fechá-la, prometeu:
- Eu te ligo. – assentiu com a cabeça, e antes que a porta batesse, pôde ouvir: – Me perdoa.
Quando a porta bateu, encostou suas costas contra ela e finalmente estourou, deixando um grito pesado e tremido sair de sua garganta. Bateu a mão contra a parede num barulho abafado, e bateu de novo, de novo, de novo. E mais uma vez ainda.
Deixou a respiração trêmula sair alta, enquanto ele ofegava e voltava a sentir o peito tão apertado que saía pelos olhos.
Abriu os olhos para secá-los, e viu que Charlotte estava ao lado da mesa, atenta. Tinha vindo correndo ver o que se passava, e seus olhos encaravam o dono, vigilantes, esperando a hora de agir.
passou por ela, dirigindo-se ao quarto, e deixou o corpo desabar sobre sua cama.
Agora pelo menos ele entendia. Finalmente, ele entendia. Entendia o que tinha se passado na cabeça de . Mas sabia que aquele não era o único motivo. Aquela foi apenas a gota d’água. Continuava, e provavelmente continuaria para sempre, desejando que não tivesse cometido aquele erro inocentemente estúpido. Mas no fundo, sabia que não era aquilo que ia mudar a cabeça de . Se não fosse a mensagem, seria outra coisa. Se não tivesse feito aquela merda, só teria adiado uma coisa que aconteceria eventualmente. Porque se a própria não tinha confiança neles, se ela mesma não acreditava no “nós” que eles estavam construindo juntos, não havia nada que ninguém pudesse fazer.
Percebeu que ainda estava na posição desconfortável na qual caíra na cama, e seu braço direito começava a ficar dormente. Ajeitou sua posição, deitando-se de barriga para cima e encarando o teto branco.
Naquela noite, descobriu que ter o coração partido não significa ficar deitado na sua cama, chorando até dormir. É não conseguir dormir na sua própria cama porque sua cama ainda tem o cheiro dela, e suas forças para trocar o lençol e seguir em frente foram embora junto com ela.
Lembrou-se de algo que , sempre doce como um limão, vivia dizendo quando achava que alguém estava fazendo drama: “pare de choramingar. Se a vida fosse fácil a gente não nascia chorando.” Pôde ouvir sua voz impaciente dizer aquilo.
Mas a questão é seu corpo todo realmente doía, e ele não enxergava como poderia algum dia conseguir parar de amá-la. Porque se apaixonar é, para nós, um processo muito natural. Mas nosso coração não sabe como se desapaixonar. E a sensação agora era de que seu amor por , que até então tinha sido um sentimento que ele amava, numa grande metalinguagem sentimental, tinha se transformado em algo tóxico. Sua sensação era de que não estava mais apaixonado, mas envenenado de amor.
De todas as coisas que tinha imaginado para si junto com , sua partida não era uma delas. Tudo que queria naquele momento era ouvir a voz dela, ouvir-la dizer qualquer coisa, nem que fosse adeus, porque isso ao menos significaria que ela achava que ele valia um adeus. Mas agora que sabia o que tinha acontecido, o mais triste era saber que não achava que ele merecia uma conversa, uma explicação, um confronto. Nem sequer um “é verdade?”
Nunca pensara que diriam adeus um para o outro. E apesar de não terem dito, eles disseram. Porque aquele ali era o único adeus que teriam, sabia. Sabia que chegaria o dia em que ele acordaria e não encontraria nenhum traço dela ali. Sabia que chegaria um momento em que o cheiro dela não estaria mais na roupa de cama, e ele não poderia mais sentir seu corpo, sua pele e seu calor. Sabia que ela seria substituída no trabalho, e haveria um dia em que seria como se ela nem estivesse estado lá, e a rotina seguiria normal para todos os outros. Sabia que a partir dali não ouviria mais sua voz, nem por telefone, nem no trabalho, nem sussurrando coisas inesperadas no seu ouvido à noite. Sabia que apesar de hoje não ter ideia de que dia da semana ou que horas eram, um dia ele voltaria a contar os dias, os meses e os anos de novo, porque ela desapareceria lentamente. Sabia que havia a possibilidade de os sorrisos, o amor e os sonhos que ele tinha prometido para serem entregues a outra pessoa. Porque naquele momento, cada pedacinho de soube – por mais uma parte dele tivesse resistido, esperançosa, até ali, por mais que um lado dele quisesse esperar – que não iria voltar.


27

And it’s been so long since I’ve seen you
And I’ve been so gone and out of my mind
And things they move on, but I just need you
I still wait for you almost every night
When are you coming home?

(A Pocket Full of Shells – Mat McHugh)


Capland Street, 12, Londres, Terça-feira, 07:13

– Não basta estar aqui de babá, você precisa acordar cedo só para me vigiar? – perguntou assim que entrou na sala e viu sua irmã de pijama sentada no sofá. Ela estava com os pés de meia para cima do assento, abraçada às próprias pernas e segurando uma xícara de chá. – Eu não vou tentar me matar enquanto faço o café, Kayleigh.
– Eu não tô acordada para te vigiar. – ela negou. Quando viu o irmão rolar os olhos, acrescentou: – Nem tô em Londres para ser sua babá.
– Ok. – concordou, apesar de não concordar nem um pouco, enquanto dava o nó na sua gravata.
– Você sabe que eu acordo cedo sempre. – ela insistiu, parecendo um pouco constrangida. O fato é que Kayleigh estava ali, sim, porque estava preocupada com ele. – Eu só quero te ajudar, . – falou, agora um pouco mais alto porque tinha atravessado a porta da cozinha.
Alguns segundos se passaram em silêncio, até que ele voltou segurando uma xícara de café. O homem pegou sua pasta em cima da mesa e começou a colocar suas coisas nela, preparando-se para sair.
– Muito obrigado, Kay, mas eu não pedi ajuda de ninguém.
– Mas você não está bem em Londres.
– Quem sabe se eu tô bem sou eu! – rebateu, começando a ficar irritado.
Sua irmã estava lá há três dias. O problema não era ela ter aparecido sem avisar, porque ele não se importava. O problema não era sua companhia, porque disso ele até gostava, apesar de sempre provocarem um ao outro de brincadeira. O problema era seu constante olhar de preocupação e condescendência, era as repetidas indiretas de que ele devia voltar com ela para casa – como se Londres não fosse a casa dele –, era a sua forma de tratá-lo como uma criança que não sabe do que precisa quando passara a vida inteira vendo a sua irmã mais velha fazer as escolhas erradas e recorrendo a ele, que acabava sempre fazendo o papel de irmão mais velho e salvando sua pele.
– Você devia voltar para Northfield, só por um tempo... – ela começou, mas foi interrompida por , que explodiu:
– Você acha que eu vou voltar a morar na casa dos meus pais com trinta anos nas costas?! – exclamou, irritado com aquela ideia ridícula.
Imediatamente, o homem se arrependeu. As palavras soaram cheias de veneno, apesar de sua intenção não ter sido machucá-la. Viu o rosto de Kayleigh endurecer de susto e sua expressão se desmanchar aos poucos de tristeza.
– Não foi isso que eu quis dizer. – ele se apressou a falar, e ela sorriu um sorriso muito esforçado, mas também muito malsucedido.
– Eu sei. – ela assegurou, concordando com a cabeça em movimentos rápidos, como se estivesse tudo bem.
Mas não estava. Porque sabia que Kayleigh não levava a vida que sempre quisera. Ela não teve a chance que ele tivera de sair de Northfield, de estudar, de seguir seus sonhos e fazer as coisas na ordem “certa”. Não estava tudo bem porque uma das coisas que mais odiava no mundo era ver os olhos de sua irmã como estavam agora: cheios de lágrima, machucados, por mais que ela estivesse tentando fingir uma expressão neutra.
– Desculpa. É diferente. – justificou, aproximando-se dela. – Não tem nada de errado em morar com o papai e a mamãe. Eu só não quero. – falou baixinho, olhando-a nos olhos.
Kayleigh olhou para , encarou seus olhos bondosos, e seu coração, como sempre, se encheu de orgulho – e um pouco de susto por ele já não ser mais seu irmãozinho pequeno – pela pessoa que ele era. Ela assentiu com a cabeça e pôs a mão no rosto dele.
– Eu preciso ir agora. Tô atrasado de verdade. – ele disse e se levantou. – Se precisar de qualquer coisa, me liga.
se dirigiu até a porta, e, enquanto saía, ouviu Kayleigh gritar, indignada por ele ter conseguido virar o jogo:
– Não! Se precisar de qualquer coisa, me liga você!
fechou a porta do apartamento e, sozinho no corredor, finalmente respirou fundo e exalou o ar pesadamente, permitindo-se relaxar um pouco. Nos últimos dias, tinha se empenhado em sempre parecer se sentir melhor na frente de Kayleigh do que realmente se sentia. Sabia que ela estava lá porque estava preocupada, e isso era a última coisa que ele queria.
Lembrava-se até hoje de como se sentiu quando, aos oito anos de idade, descobriu que Kayleigh tivera sua primeira menstruação, e isso significava que ela sangraria todo mês. Foi até o banheiro, buscou o kit de primeiros socorros, levou-o até o quarto dela e começou a chorar quando disse “eu sinto muito, Kay”. Eventualmente ele se acalmou quando sua mãe explicou que aquilo era normal para toda menina, e Kayleigh lhe assegurou que não estava machucada e nem sentindo dor, mas ele se lembrava até hoje da sensação de tristeza e medo de não saber se ela ficaria bem, e faria o que pudesse para evitar que Kayleigh se sentisse assim em relação a ele. Por isso, estava preparado para fazer seu melhor teatro pelos próximos dias.

BBDO, Londres, Terça-feira, 13:08

– O garoto termina de colocar o último prato na máquina e a garota fecha a porta. Seus movimentos são um pouco desengonçados, afinal, não têm mais de seis ou sete anos, mas cuidadosos. Os gêmeos se olham, apertam o botão, a máquina inicia a lavagem, e eles olham para cima, sorrindo para os pais, que se entreolham orgulhosos. – descreveu. Quando ele falava, era realmente como se um filme estivesse sendo exibido. – “Kenwood: há 30 anos ajudando a sua família. É hora de passar para a próxima geração.” – finalizou.
Mark Branch ficou em silêncio durante alguns segundos, analisando os rascunhos projetados na parede. Ele passou a língua pelos lábios, pensativo, e disse:
– Não tenho certeza do que eu acho. – admitiu.
– Qual parte está te deixando inseguro? – indagou calmamente.
– Não sei... – o homem respondeu, fazendo uma careta. – Não podemos partir para outra ideia?
– Fica tranquilo, Mark. – Declan se pronunciou. – Não vamos fechar o comercial até ter certeza de que a Kenwood está 100% satisfeita. Mas, para isso, precisamos entender qual parte da nossa linha de pensamento está te incomodando.
se segurou para não rolar os olhos e sair da sala. Ultimamente andava muito sem paciência para lidar com aquele tipo de cliente que pedia uma coisa, depois queria outra, mas, na realidade, nem sabia o que queria e ainda agia com arrogância. Costumava ser quem inventava desculpas para fazer pausas ou fugir de reuniões como aquela quando os clientes estavam dando trabalho. Quem sentia vontade de fazer aquilo agora era . Que bom que havia pessoas simpáticas como ou Declan, do atendimento ao cliente, para fazer cara boa e mediar o problema.
– Por quê, Mark? – perguntou, sentando-se à sua frente para lhe dar total atenção.
– Não sei se precisamos de tanta gente no comercial.
– Bom, sei que seu irmão não pôde estar aqui hoje, mas o que ele tinha nos dito na primeira reunião é que a ideia era que o modelo novo é tão simples que até as crianças conseguem usar e ajudar com as tarefas domésticas. – Declan explicou.
– Na verdade, eu acho que meu irmão tem ideias um pouco progressistas demais, então não sei o que ele falou na última reunião. – Branch começou, emendando um gesto com a mão, que indicava que aquilo era assunto para outro momento. – Mas por que usar a mãe e o pai? O menino e a menina? Não me parece... real. – e balançou a cabeça negativamente, parecendo dividido entre o constrangimento e a sinceridade. – Convenhamos que... não é assim que as coisas funcionam. Por que não só a mãe e a menina?
Antes que alguém pudesse dar uma resposta diplomática, irrompeu:
– Porque seria uma propaganda sexista, e, se era isso que você estava procurando, devia ter falado desde o início, porque aqui não produzimos esse tipo de conteúdo. – disse displicentemente. Imediatamente, pôde ver e Declan se tencionarem e virarem o rosto para lhe encarar, mas Mark Branch foi rápido em insistir:
– Mas é que todo esse negócio do pai e o filho fazerem as tarefas domésticas... Os papéis invertidos, é tudo muito... O consumidor pode interpretar como uma ofensa, caso a família dele não... se identifique.
– Bom, me desculpa dizer isso, mas o consumidor que interpretar como uma ofensa é estúpido. Sem dizer retrógrado.
Tudo a partir dali aconteceu muito rápido. viu o rosto do homem se afrouxar em espanto. No mesmo segundo, Declan jogou o tronco para frente num movimento rápido, afastando-se do encosto da cadeira para se aproximar do cliente, sentado do outro lado da mesa.
– O que o sr. quer dizer, Sr. Branch... – começou, alarmado.
– O que ele quer dizer – interrompeu , com a classe de sempre – é que colocar apenas mulheres no comercial daria a impressão de que tarefas domésticas são obrigação exclusiva do sexo feminino, e isso é uma ideia que nós, enquanto empresa, evitamos propagar. – ele se levantou da cadeira e Declan fez o mesmo, sendo imitado por Branch. – Mas como dissemos desde o começo, nada está fechado. – caminhou até o outro lado da mesa e passou o braço por trás dos ombros do cliente com uma mão, apontando a saída com a outra. – Por que não marcamos uma nova reunião com você, seu irmão e toda a equipe criativa à sua disposição? Assim, vamos ter a chance de chegar em uma versão que esteja de acordo com o desejo da Kenwood. – finalizou, com um daqueles seus sorrisos carismáticos que convenciam quase qualquer um a fazer quase qualquer coisa.
Mark fez que sim com a cabeça, ainda parecendo um pouco surpreso com o que tinha se passado, e estendeu o braço para responder ao aperto de mão que lhe oferecia, antes de lançar um olhar zangado para .
Declan abriu a porta e ofereceu:
– Eu te acompanho até a saída.
Entre pequenos murmúrios de despedida, Declan e o sr. Branch saíram da sala e, quando ouviu o clique da porta, respirou fundo, imaginando o que viria a seguir. ainda continuou alguns segundos de frente para a porta, as costas voltadas para o outro, antes de se virar e encará-lo com uma expressão neutra.
levantou as mãos, como quem pede desculpas, e começou:
, não tem condições...
– Eu sei. – disse, impaciente.
– Eu acho que você devia dar um tempo.
estava prestes a se argumentar, mas quando ouviu aquilo, ele se deteve. Encarou o chefe e respirou fundo.
– ‘Tá. – soltou finalmente, levantando os ombros e dando-se por vencido. – Eu vou pegar minhas coisas, termino o que faltar em casa e amanhã...
– Não, . – cortou sua fala, encarando-o com um olhar sério. Não era bravo, mas era firme. – Eu tô falando de um tempo maior.
Mais um segundo se passou, durante o qual apenas se encararam. bufou ironicamente, abrindo um sorriso de deboche.
– Eu tô bem.
– Não está. – contrariou , começando a se sentir irritado pela relutância do outro.
– Eu. Estou. Bem. – repetiu lentamente. Levantou-se, porque se sentia inferior ao chefe estando sentado.
– Você claramente não está.
– É só... É recente! – exclamou, soltando o ar frustrado. – Quando uma pessoa passa por uma mudança grande, é normal ela ficar um pouco... Um pouco, sei lá, confusa no começo, mas é só uma fase de adapta...
– Faz dez meses, .
– Dez meses e meio. – ele corrigiu imediatamente, sem pestanejar, como uma criança pequena que quer mostrar que está coberta de razão, mesmo não que ela não cubra nem seus pés.
Mais uma vez, o silêncio, e os dois homens se entreolharam. O peito de subia e descia rápido, e o rosto de dizia: ’tá vendo?
Finalmente, depois de soltar o ar com força, fez que sim com a cabeça em alguns movimentos lentos.
– Quanto? – perguntou de má vontade.
– Eu não sei, . Talvez uns...
– Dois dias? Duas semanas? Um mês?
– Por que você não tira um mês e... E nós vamos nos falando? – propôs o chefe.
deu de ombros, como quem sabia que não tinha poder real de escolha naquela discussão. Fechou seu notebook sobre a mesa e juntou o que mais era seu. Então parou, olhou para frente e perguntou:
– É isso? É só a não estar mais aqui e você vai me colocar pra fora?
– É claro que não, . – assegurou, o cenho franzido. – Você sabe que eu sempre gostei do seu trabalho, isso não é uma forma de te colocar para fora, é uma forma de te aju...
– ‘Tá, ‘tá, ‘tá. – disse, segurando-se para não revirar os olhos. Apertou a ponte do nariz, começando a sentir a cabeça latejar. A última coisa que queria ouvir era que precisava de ajuda.
– Seu cargo ainda vai estar aqui para você quando você voltar. – assegurou, buscando o rosto do outro.
tirou a mão do rosto, devolveu o olhar, e, pela primeira vez em muito tempo, talvez em todo o tempo que se conheciam, e trocaram um olhar de cumplicidade. Trocaram um aperto de mão imaginário. fez que sim com a cabeça, ergueu seus pertences, jogou o paletó por cima do braço e se encaminhou para a porta.
De repente, porta já aberta e pé para fora da sala, parou. Virou o rosto para trás e, olhando nos olhos do chefe, perguntou bem baixinho:
– Você alguma vez sente que queria que as coisas tivessem acontecido diferente?
sorriu sem humor e confessou devagar:
– Todos os dias.

BBDO, Londres, Quarta-feira, 00:50

sentiu o celular vibrar e olhou para a tela, mas a luz estava muito forte, e as coisas, um pouco confusas, então precisou afastar bem o aparelho do rosto e apertar os olhos para enxergar direito. Era Kayleigh que ligava.
– Oi...
– POR QUE VOCÊ NÃO ATENDEU? – ela urrou. piscou algumas vezes, atordoado.
– Mas eu... A gente está conversando. – argumentou com a voz arrastada. – Então eu atendi.
– Tô falando das doze vezes que liguei antes! – Kayleigh ralhou. – ‘Tá tudo bem? Onde você está?
percebeu que não sabia a resposta para aquela pergunta. Abriu os olhos e sua cabeça girou. Viu os próprios sapatos e o chão de asfalto da rua. Levantou a cabeça e se ajeitou melhor no meio fio. Aquelas perguntas eram muito difíceis de responder, então decidiu improvisar.
– Eu saí para tomar uma.
– Uma?! Desde a uma hora da tarde? Sem falar nada com ninguém?
– Não era uma da... Ei, como você sabe que eu saí cedo do trabalho?
– Porque eu liguei para lá, . Eu liguei para o mundo inteiro, tô preocupada com você há horas!
– Ahh, Kayleigh... – queixou-se. – É para isso que você veio me visitar? ‘Tá parecendo a minha mãe... – resmungou.
, por favor... Onde você está? – Kayleigh perguntou e sua voz estava trêmula de nervoso.
O homem levantou a cabeça mais uma vez e olhou à sua volta.
– Em frente ao tribunal.
– Por quê? – ela soltou, depois de um segundo em um silêncio confuso.
– Eu não sei.
– ‘Tá bom. Fica aí. – Kayleigh ordenou antes de finalizar a ligação.
guardou o celular no bolso e percebeu de repente que estivera apoiando todo o peso do corpo sobre a outra mão durante tempo demais. Ela estava dormente. Tirou-a do chão e a limpou na lateral da calça. Viu uma mulher caminhar do outro lado da rua e o barulho dos seus saltos ecoava pela rua vazia. E então a mulher não estava mais lá, porém o barulho das suas sandálias estava. A rua estava deserta, mas ainda ouvia toque-toque do salto fino sobre o asfalto e a luz do poste acima de sua cabeça agora estava piscando, mas talvez aquilo tudo só estivesse acontecendo na sua cabeça. Olhou para cima para prestar atenção no poste, no entanto levou alguns segundos para conseguir focalizá-lo... E então não se lembrava mais do porquê de estar olhando para cima.
Ouviu um barulho e voltou a olhar para a rua. Era um carro que parava e, de dentro dele, saiu alguém incrivelmente parecido com sua irmã. E o motorista do carro era a cara do , mas aquilo não era possível, pois fazia apenas alguns segundos que tinham se falado no telefone. Entretanto, era possível sim, porque agora puxava o celular de volta do bolso para conferir as horas e, de fato, fazia quase vinte minutos que haviam se falado.
viu sua irmã correndo em sua direção e empurrou o chão para se levantar, ainda sem entender onde aqueles vinte minutos tinham ido parar. Enquanto se levantava desengonçado, foi interrompido por Kayleigh, que se jogou contra ele num abraço que mais atrapalhou do que ajudou. Os dois tropeçaram abraçados durante alguns segundos, tentando recuperar o equilíbrio juntos, até que começaram a rir.
– Você também está bêbada? – zombou, vendo a irmã se endireitando.
– Seu bosta. – Kayleigh respondeu e arfou, um resto de sorriso no rosto.
Ela enlaçou o braço de no seu e andaram juntos até o carro. Quando entraram e a porta bateu, os sinais de risadas tinham sumido do rosto, e, poucos segundos depois de apoiar a cabeça sobre o ombro da irmã, tinha adormecido.
e Kayleigh se entreolharam pelo retrovisor antes de ele dar partida no carro, e um silêncio soturno foi tudo que compartilharam no caminho até em casa.
Enquanto seguia devagar o corredor da sala até o banheiro, a primeira vez que caminhava sem o apoio de ou Kayleigh, ele se sentiu muito, muito amado pela primeira vez em meses. E, assim como às vezes um abraço nos faz desabar quando estamos nos esforçando para esconder a tristeza, naquele momento, pensou que talvez não aguentasse chegar até o banheiro sem começar a chorar. Mas aguentou. Quando se virou para fechar a porta, a última coisa que viu foi sua irmã e seu amigo lado a lado do outro lado do corredor, assistindo-o com as expressões carregadas de preocupação.
No segundo em que a chave girou na porta, as lágrimas rolaram pelo rosto dele e, dessa vez, elas eram como ácido. arfou e passou a mão pelo rosto para secá-las, pois chorava porque doía e doía porque chorava, o que enchia seu peito de uma sensação de prisão nada menos que insuportável. Nos últimos meses, ser vinha sendo um peso sem igual.
Despiu-se, ligou o chuveiro e entrou embaixo da água. Como já havia feito incontáveis vezes, esfregou com força os braços, pescoço, rosto, tronco, pernas e todo centímetro de pele que conseguia alcançar. Esfregou e apertou até que começasse a ficar vermelho. No começo, pensara que poderia se livrar de todos aqueles sentimentos se ele apenas esfregasse com força suficiente. Que alívio seria se pudesse lavar da pele o cheiro dela, a sensação da sua pele, a textura dos seus beijos. Se pudesse limpar de si os resquícios do seu calor e sua frieza. Se pudesse apagar as memórias, o som de sua voz, o gosto do seu sexo. Se pudesse ensaboar a pele e ver a dor escorrendo pelo ralo. Se pudesse esterilizar seu corpo de .
Mas não podia. Porque parecia que ela tinha se infiltrado por debaixo de sua pele, que rastejava por suas veias, passeava dentro da sua cabeça e corria com seu sangue, e não havia banho no mundo que limpasse aquilo.
Sua cabeça começou a girar, e fechou os olhos, sabendo que a única maneira de parar de sentir tudo aquilo era deitar e dormir, mas sabia que não conseguiria dormir naquele momento. Assim como não tinha conseguido fazer nos últimos tempos. se perguntou por quanto tempo uma pessoa conseguia viver e continuar funcionando dormindo apenas três ou quatro horas por noite. E, como se respondesse à pergunta, seu corpo deu sinais de fraqueza. Seu estômago se embrulhou e suas mãos começaram a tremer.
Apoiou uma das mãos contra o vidro embaçado do box e levou a mão até a torneira. Acionou a água fria e sentiu seu corpo tensionar quando a temperatura mudou drasticamente. Ele respirou fundo, tentando desacelerar as batidas do seu coração. Talvez pudesse controlar ao menos a parte física. Porque por mais que quisesse se livrar de todos aqueles sentimentos, ele sabia que não conseguiria. Não valia a pena gastar sua pouca energia pensando em como se sentir melhor. Sentia que não havia nada que pudesse fazer. Então, apenas ficou ali, com as costas apoiadas nos azulejos frios, chorando.
E o fez até que os olhos se sentissem inchados e a água fria parecesse um castigo. Desligou o chuveiro, enrolou a toalha na cintura e saiu pingando água pelo banheiro sem se importar com aquilo. O efeito do álcool começava a passar, apesar de lhe parecer estranho. Era como se o vapor, o choro, a água tivessem lhe anestesiado. Ainda assim, sabia que era melhor tomar um copo de água antes de se deitar. Porém, quando estava prestes a entrar na cozinha, ouviu e Kayleigh conversando em voz baixa e se deteve.
– Não foi sua culpa, .
– Eu que arrumei toda a confusão! – ele contestou, um pouco exasperado.
– Mas mesmo assim...
– Eu sei que tudo parece muito estúpido, mas nunca, nunca mesmo, eu juro, passou pela minha cabeça que algo desse tipo podia acontecer. – desabafou.
– Eu sei, e é por isso que tô dizendo também... Isso tudo é muito... Sabe? – a mulher gaguejou. – Eu quero dizer, quem faz esse tipo de coisa?! Quem descobre uma suposta traição e nem vai atrás, não diz nada, simplesmente some do mapa sem dizer nada?!
– E ela sumiu, Kayleigh, eu juro, sumiu do mapa mesmo! – exclamou. – Eu procurei por todos os lados, até lista telefônica eu achei para procurar o sobrenome dessa mulher, algum parente... Não sei. Acho que ela não é daqui... Você sabe…
– Não importa. – cortou, enfática. – Não importa, , porque a gente não vai atrás dela. Primeiro porque ela claramente não quer ser encontrada – enumerou –, e segundo por esse tipo de pessoa... Ela não merece o meu irmão. – murmurou, e, apesar de estar falando baixo, o rancor na sua voz era muito claro.
suspirou.
– Acho que ele não concorda.
Do outro lado da porta, encostado contra a parede, deixou a cabeça pender para baixo, encarando o chão da sala escura. Sentiu que precisaria se esforçar para segurar a respiração e o choro de novo, mas antes que tivesse tempo de entregar sua posição, Kayleigh voltou a falar e dessa vez a raiva em sua voz tremia, denunciando que ela, também, estava prestes a chorar:
– Quando eu tinha dezesseis anos, saí de casa escondida para encontrar o meu namorado. Eu não tinha permissão para ficar com ele porque meus pais não gostavam dele e, para falar a verdade, eles tinham razão – ponderou, rindo sem humor –, já que ele foi o maior desperdício de tempo da minha vida, e anos depois ele me engravidou e sumiu. Mas eu saí, de noite, pulei a janela do meu quarto para eles não me verem saindo, e nisso eu caí no chão e fiquei com um roxo enorme na perna, enorme mesmo. No dia seguinte, eu fiz de tudo para esconder, mas eles acabaram vendo. Eu fiquei desesperada, achei que eles pudessem desconfiar que eu tinha saído, achar que meu namorado tinha feito alguma coisa comigo, sei lá... – ela respirou fundo, e agora sua voz rachou – Quando eles me confrontaram, eu... paralizei. Paralizei, meu olho encheu de água e eu só olhei para o . Ele me olhou nos olhos por um segundo só, e, sem nem pensar duas vezes, falou pros meus pais que tínhamos brigado e ele tinha me batido. – pôde ouvi-la fungar e respirar fundo antes de continuar. – Foi a única vez que meu irmão apanhou. A única vez que qualquer um de nós apanhou. Meu pai foi até o outro lado da sala, deu um tapa nas costas dele, levantou o dedo e disse que ele nunca mais encostaria em mim. O fez que sim com a cabeça e ficou quietinho... – contou, deixando a voz morrer, fungando novamente. – Ele ficou de castigo durante uma semana, perdeu um acampamento do colégio que ele estava doido para ir... E nem por um segundo ficou bravo comigo ou desmentiu a história. A única coisa que ele fez foi pedir praa eu tomar mais cuidado. Quando eu agradeci, ele disse que fez aquilo porque sabia que eu teria feito o mesmo por ele...
Usando toda a pouca força que ainda tinha para prender a respiração e não fazer barulho, levou a mão até o rosto para secar as lágrimas quentes que tinham começado a descer incessantemente.
– ‘Tá tudo bem... – consolou.
– Não, não ‘tá. Sabe por quê, ? – ela perguntou e arfou. – Porque não é verdade. Eu nunca fiz nada por ele. Porque sempre fui fracassada demais para ajudar o , e ele sempre foi incrível demais para precisar da minha ajuda. Mas agora... Agora ele precisa. E nada parte meu coração mais do que ver o nesse estado. Mas, por outro lado, eu tô muito, muito feliz em sentir que eu posso fazer algo para ajudar. E eu não vou perder essa chance. – sentenciou pausadamente. – Não vou.
Por impulso, sentindo que não aguentaria fazer silêncio durante nem mais um segundo, irrompeu na cozinha.
e Kayleigh olharam para trás, sobressaltados.
– Pensei que você já tivesse na cama. – ele disse enquanto ela tentava secar o rosto sem que visse. Por sorte, ele também não queria ser visto, então aquilo funcionou muito bem para os dois lados.
andou até o armário da cozinha, fazendo esforço para desviar o olhar deles para que também não vissem seu rosto.
– Eu estava, vim só beber água. – mentiu. Depois de encher o copo, murmurou, tentando não parecer frio ou ingrato, apesar de não olhá-los nos olhos: – Boa noite, gente.
E fez seu caminho apressado de volta para o quarto. Assim que entrou, agitado, acabou batendo a porta atrás de si, e, quando acendeu a luz, percebeu que tinha acordado Charlotte num susto.
– Desculpa. – pediu, jogando a toalha para o lado. Vestiu uma cueca e se dirigiu até a cachorra, deitada ao pé da cama.
se sentou, tomou sua água de uma vez e se deitou, dando dois tapas na cama para que Charlotte subisse e se deitasse ao seu lado. Ele sentiu o peso da cabeça dela apoiada sobre seu peito e inspirou devagar, percebendo que a luz, que tinha deixado acesa, incomodava profundamente os seus olhos. O homem levou a mão até o rosto e o esfregou.
Então, ouviu duas batias na porta.
– Entra. – gritou, e sua cabeça doeu. Tirou a mão da frente dos olhos e pôde ver sua irmã com a cabeça para dentro do quarto.
– Posso apagar a luz?
– Por favor. – pediu, aliviado.
– Posso ir aí?
– Por favor. – ele repetiu baixinho.
Ouviu Kayleigh caminhar no escuro e se sentar na cama ao seu lado. Ela passou a mão pelos cabelos dele, depois pelo seu rosto. Após algum tempo em silêncio, murmurou:
– Como é se sentir abandonado pela pessoa que você mais ama? Horrível, eu aposto. Eu aposto, não. – corrigiu, rindo sem humor. – Eu sei. Completamente devastador. É de virar o seu mundo para baixo. Eu sei que ela te partiu em mil pedacinhos. E eu sei que cada pedacinho desses sente a falta dela. Mas tem algo que você está esquecendo, . Mesmo depois que a merda toda acontece, todos esses mil pedacinhos quebrados... – Kayleigh desceu as mãos pelo corpo de , apertando-o levemente – Todos esses mil pedacinhos quebrados... – passeou pelos seus braços, peito, pernas e, por fim, mãos. – Ainda são seus. Você ainda é você. Ninguém pode ser o seu lar, . – ela balançou a cabeça para os lados. – Porque as pessoas mudam, sem motivo ou explicação, vão embora e desaparecem, levando tudo que a gente deu para elas. E eu imagino quanta coisa boa você deu pra essa mulher! – suspirou. – Mas ela não é seu lar, . Você é. Ainda que ela tenha te deixado estilhaçado... Você ainda é você. E juntar esses pedacinhos pode ser a coisa mais difícil que você vai fazer na vida, mas você vai conseguir, sabe por quê? – a mulher pausou, e, durante alguns segundos, ouviu apenas sua respiração, enquanto esperava desesperadamente para ouvir que motivo no mundo sua irmã teria para acreditar que ele aquele tormento iria acabar. – Porque as pessoas fazem isso todos os dias. Até eu fiz. – ela soltou mais um som de riso que não era engraçado. – Você vai conseguir porque ela não é o seu lar, e o sumiço dela não é o seu fim. Todos esses pedaços podem não ser do mesmo tamanho ou formato, e talvez você nem se reconheça neles agora, e talvez não seja mais o mesmo depois que estiverem reconstruídos, mas eles ainda são seus. E a vida segue, . Com ou sem .
E, deitado ali encarando o teto, enquanto sua irmã ainda fazia carinho nos seus cabelos e seus olhos começavam a se acostumar ao escuro, enxergou algo que nem sempre enxergamos: o momento que estava vivendo. Há momentos na nossa vida que nos marcam e definem que tipo de pessoa somos. E aquele era um desses momentos. Às vezes são momentos sutis, que passam despercebidos. Talvez ele se perca no oceano da sua vida, no meio de acontecimentos aparentemente mais extraordinários, mas não necessariamente relevantes. Às vezes são momentos grandes, barulhentos, chamativos, que você vai carregar consigo para sempre. Mas raramente são como aquele: tão lúcidos.
soube que estava tomando, ali, uma decisão que mudaria o curso da sua vida. A decisão de que ele não era o tipo de pessoa que desistia da felicidade. As coisas mudam constantemente, quer queiramos ou não. E é o que fazemos com essas mudanças que conta. E, apesar de não ter pedido que fosse embora rasgando seu peito, apesar de não ter querer ser afastado do trabalho, apesar de não ter pedido por nada daquilo, decidiu que tipo de pessoa ele queria ser: o tipo de pessoa que reconstrói. E, assim como tinha feito por outros anteriormente, faria agora por si próprio.
– Posso dormir aqui com você? – Kayleigh sussurrou, depois de algum tempo em silêncio. Ele fez que sim com a cabeça, abrindo espaço para ela na cama e levantando o edredom para que sua irmã entrasse.
E, deitado com Charlotte de um lado e Kayleigh do outro, por um instante, sentiu que talvez fosse, de fato, capaz de se reconstruir.


28

But it was not your fault but mine
And it was your heart on the line
I really fucked it up this time
Didn't I, my dear?

(Little Lion Man – Mumford and Sons)


Flashback
Green Street, 61, Londres, Terça-feira, 19:15


– Desculpa. – pediu.
Os dois ficaram em silêncio durante alguns segundos, parados em pé lado a lado e observando o desastre à sua frente, até que caiu na gargalhada.
– Não é para rir... – ela repreendeu, apesar de acompanhá-lo com um riso frouxo de nervoso.
– Olha esse molho... – o homem conseguiu balbuciar em meio às arfadas, o corpo se dobrando em riso.
– Eu tentei!
– Ai, ai... – ele soltou, finalmente se recuperando. Levou uma mão ao rosto para limpar uma ameaça de lágrima no canto do olho. ainda sorria. – Eu sei. Pelo menos... – ele se curvou sobre o fogão, olhando dentro de uma das panelas. – Parece que você acertou o ponto dos legumes? – arriscou, tentando confortá-la.
– É... – ela se curvou também. – O peru tem que jogar fora ou será que dá para aproveitar o meio?
Os dois encararam a carne completamente preta e dura.
– Quantas vezes mesmo você já preparou uma ceia de Natal? – indagou.
– Bom... – o rosto dela assumiu um semblante pensativo, como se forçasse a memória. – Um jantar completo, assim, oficialmente... Nunca fiz.
deixou escapar mais um pedaço de risada engasgada.
– Desculpa! – ela repetiu, mas foi interrompida:
– Não tem problema, ! – o homem garantiu, voltando-se para ela e segurando seu rosto com duas mãos.
– Eu não sou muito boa com essas coisas de tradições. – explicou. – Eu só queria que você tivesse um jantar de Natal de verdade de novo...
Ela tinha razão. daria tudo para ter mais um Natal como os que costumava ter com a sua família. Se fechasse os olhos, ainda podia sentir o gosto da comida do seu pai, enxergar sua mãe na sala abrindo uma garrafa de vinho, ouvir a seleção de músicas que Freddie gostava tanto de fazer e sentir Colin pulando nas suas costas para brincar. Mas não precisava saber disso quando já estava claramente se sentindo mal o suficiente pela tentativa frustrada de fazer a ceia.
Então ele assentiu com a cabeça e sorriu, ainda segurando o rosto dela com firmeza.
– Eu sei. Não tem problema, eu não me importo muito com Natal, . – mentiu, da maneira brilhante de sempre.
Cada uma daquelas palavras era mentira, mas sabia que ninguém jamais enxergava por trás do brilho falso do seu sorriso. Então, se aproximou e a beijou.
Você está se afogando, ele pensou. Afogando lentamente sem que ninguém visse.
– Eu também não me importo muito. – ela confessou. – Você quer pedir uma pizza? – sugeriu, dando de ombros.
– Acho que não tem nenhuma pizzaria aberta na noite de Natal. – ele sorriu de novo e ofereceu, divertido: – Mas eu sou bom para caralho em preparar comida congelada.
E, enquanto terminava de colocar uma lasanha no forno, estava na sala escolhendo uma música. Apesar de não ser a escolha que ele teria feito, a playlist de Blitzen Trapp o fez sorrir. Quando a mulher voltou para a cozinha, ele perguntou:
– Você quer trocar presentes agora?
Para falar a verdade, só queria acabar com aquela parte logo. Toda a ideia de passar Natal juntos lhe causava uma sensação um pouco inapropriada, como se não estivesse no lugar certo, apesar de estar na própria casa. Mas , recém-chegada na cidade, também não tinha ninguém em Londres, e a ideia de passarem a noite juntos surgira casualmente. Pareceu mais uma forma de distração para duas pessoas solitárias do que de fato uma ceia de Natal. Por isso tinha aceitado.
Foram até o quarto e se sentaram na cama com os embrulhos em mãos. estendeu a mão para ela, como se desse passagem.
– Damas primeiro.
sorriu e passou um embrulho para ele enquanto explicava:
– Talvez você não goste do meu presente agora. Só depois de um tempo. Mas é que eu percebi que não tem nada colorido na sua casa. Tipo, nada. Tudo é preto e branco. Não sei se foi uma escolha consciente. – olhou à sua volta de relance antes de voltar a atenção para o presente. – Mas também não queria comprar algum enfeite ou penduricalho metido à besta que você não usaria... Então... Eu fiz isso.
abriu a caixa e demorou um segundo para perceber que o que tinha em mãos era um porta-retrato. O topo era branco e ia se colorindo de tons de azul, verde e rosa em degradê, na textura aguada que a aquarela fazia.
– Você... fez isso? – indagou surpreso. Era até bem bonito. fez que sim com a cabeça, parecendo um pouco nervosa. – Você pinta?! – acrescentou, ainda admirado.
– Claramente não. – ela riu. – Mas não achei nenhum bonito para comprar, então preferi tentar fazer.
aproximou o presente do rosto, observando os detalhes. Então, num susto, ligou algumas peças dentro de sua cabeça e endureceu. Inicialmente, o presente lhe parecera aleatório. Agora, parecia inconvenientemente precoce. Praticamente uma aliança de compromisso.
– A gente não tem nenhuma foto juntos. – disse um pouco constrangido, arrependendo-se imediatamente com medo da mulher propor que tirassem uma.
Estava desapontado. Logo ela, que, diferente das últimas, não parecia o tipo que tentaria salvar seus sentimentos e reavivar seu coração através de um relacionamento amoroso água com açúcar.
Porém, o encarava com o cenho um pouco franzido, como se não acompanhasse o raciocínio. E, um segundo depois, ela se apressou em balançar o rosto para os lados, os gestos da cabeça e das mãos indicando que ele tinha entendido errado.
– Não, não. É pra aquela foto. – explicou, apontando para o porta-retrato preto que emoldurava a foto da família de sobre o criado-mudo.
Tão rápido quanto tinha se tensionado, o corpo de relaxou. Relaxou até demais, e, por um momento, ele se sentiu vulnerável. Mas, mais que tudo, sentiu-se aliviado por ver que não o estava decepcionando. Ela era, sim, diferente dos outros corpos que costumavam passar por sua cama.
Ninguém entendia a profundidade do que ele tinha passado. Porque era muito feio. O passado de era feio, seus sentimentos eram feios, sua total apatia para com o mundo era, de novo, feia. E nós, enquanto sociedade, não somos muito bons em lidar com a feiúra. Haja cirurgia plástica, filtro de Instagram e maquiagem para provar isso. Mas não tentava mascarar a escuridão dele, nem o convencer a viver seus lutos no ritmo de outra pessoa. Ao contrário de todos que o tratavam com piedade, ela, como alguém que também acabara de ter seu coração partido, o olhava da forma que ele mais queria ser olhado: de igual para igual. E, para , ser olhado de igual para igual era um respiro.
Lembrou-se da reação da mulher no momento em que ele lhe contou o que acontecera com sua família. Seu semblante não mudou. Há muito tempo ninguém lhe olhava sem pena.
Ela disse que sentia muito, e suas palavras eram francas, mas seus olhos não estavam assombrados com a feiura. Estavam inabaláveis e destemidos, e aquela coragem era algo que apreciava.
não queria mudá-lo. Só queria ser entendida e estava disposta a entendê-lo. Exatamente o que queria. Ele estava afogando há algum tempo. Entretanto, talvez agora tivesse encontrado uma boia, apesar de não ter consciência disso naquele momento. Não era nenhum navio ou promessa de terra à vista, nem mesmo um bote salva-vidas. Mas era uma boia. O suficiente para sobreviver. E simplesmente sobreviver era, de longe, a melhor perspectiva de futuro que tinha tido naqueles últimos tempos.
O homem se levantou, pegou o porta-retrato antigo, olhou-o por um instante, tirou a foto de dentro dele e o substituiu pelo novo. Colocou-o no mesmo lugar e deu um passo para trás para ver o todo.
– Eu gostei. – ele disse sinceramente.
Então, ele ouviu um início de risada escapar da boca dela e se virou para trás.
– Que foi? – perguntou, curioso.
– A sua cara quando pensou que o porta-retrato fosse pra gente... – ela se divertiu. – Foi impagável.
O homem riu também, como uma criança pega no pulo.
, olha, eu sei que a gente acabou de se conhecer, temos passado muito tempo juntos e sei que isso que preocupa. Mas não precisa. – afirmou determinada. – Eu gosto de você e gosto de estar com você, mas só. Intimidade não precisa ser uma prisão. Combinado?
– Combinado. – ele sorriu, tranquilo, antes de se desculpar: – É só que toda essa coisa de compromisso...
– É a última coisa que eu quero. – disseram em uníssono. Trocaram um olhar divertido quando perceberam o que havia acontecido.
– Intimidade sem compromisso. – ele propôs, ao que ela assentiu.
– Promete? – a mulher perguntou rindo, erguendo o dedo indicador para ele como se chamasse sua atenção.
gargalhou, recostando-se no travesseiro atrás dele com as mãos cruzadas atrás da cabeça.
– Eu? Eu assino até um contrato se você quiser.
Fim do flashback

Londres, Domingo, 09:29


O barulho da bola quicando no chão ecoava pela quadra vazia. Cada baque era uma onda de alívio. Quanto mais forte o som, melhor. O ruído violento era como uma dose de morfina, que, na verdade, não cura nada, mas mascara a dor.
Cada vez que seus pés tocavam o chão novamente, se esforçava para continuar correndo. Se parasse, sentiria o contraste da temperatura do seu corpo contra o ar frio e não queria aquilo. Queria continuar sentindo o sangue correndo rápido e o ar saindo quente.
Um trovão ressoou sobre sua cabeça, mas ele ignorou, como havia feito com os anteriores. Dessa vez, a chuva começou a cair, fina e irritante, porém nada que o fizesse parar. Tomou impulso, lançou a bola mais uma vez e assistiu seu caminho preciso até a cesta. concentrava toda sua atenção no jogo, completamente alheio à chuva. Mas ela aumentava gradualmente e seu barulho abafado agora competia com o baque da bola no chão. Ele tentou mais uma cesta, só que dessa vez a bola escorregou de suas mãos e nem alcançou a tabela. Ficou parado durante alguns segundos, observando a bola, que caía ao chão, e seus movimentos, que morriam aos poucos.
Passou a mão pelos cabelos encharcados e, dando-se por vencido, foi pegar a bola do chão. Colocou-a debaixo do braço e caminhou devagar para fora da quadra em direção à rua vazia. Àquela altura, a chuva era forte e barulhenta, e suas roupas estavam molhadas até o último milímetro, então não via nenhum motivo para correr.
Tudo a seguir aconteceu muito rápido.
A primeira coisa que seu corpo registrou conscientemente foi o som. O som alto de buzina e pneus cantando, fazendo até o barulho da chuva parecer fraco.
A segunda coisa foi a adrenalina, subitamente alta no seu sangue, acelerando seu coração e colocando o corpo em estado de alerta.
A terceira foi que, sem que nem percebesse ou se lembrasse de tomar aquela decisão, tinha se atirado para trás no momento em que o carro fizera uma curva fechada para desviar dele também.
Agora, como se acordasse abruptamente, via sua bola de basquete quicando para longe e a motorista do carro correndo para fora dele, dizendo coisas que ele não entendia, apesar de ver sua boca se mexendo.
– Você está doido?! – ele ouviu finalmente, depois de alguns segundos, enquanto a mulher lhe ajudava a se levantar. Ela quase gritava para competir com a tempestade. – Você está bem?
Foi como se todos os seus sentidos voltassem de uma vez, e agora ele ouvia claramente o barulho ensurdecedor da chuva e a voz dela, sentindo o desagradável descompasso do seu coração sobressaltado.
– Você está bem? – ela repetiu, e apenas assentiu com a cabeça em movimentos rápidos.
A mulher, agora toda molhada também, tinha no rosto exatamente a expressão de susto que se esperava de uma pessoa que pensou que mataria alguém. Ela pôs uma mão sobre o coração e respirou fundo, claramente tentando se acalmar também.
– Desculpa. – pediu, levantando a mão, que não estava no coração, para ele, num gesto que reforçava o pedido.
– Tudo bem.
– Você... quer uma carona até algum lugar? – ela ofereceu, mas apenas fez que não com a cabeça, virando as costas e se afastando lentamente.
– Obrigado. – murmurou, já afastado, mas ela, ainda atordoada e parada no mesmo lugar, provavelmente não ouviu.
Ele seguiu caminhando pela calçada. Andava como se estivesse no modo automático, ainda zonzo de surpresa. Porque, apesar de ter escapado do carro, algo lhe atingira ali, e não fora algo pequeno.
No momento em que se viu atirado no chão logo após pensar, por um milésimo de segundo, que poderia morrer, foi atingido pela percepção de que ninguém sentiria sua falta se algo lhe acontecesse. Quanto tempo demoraria para perceberem? Reconhecerem seu corpo? Não estava com a sua carteira. Seria enterrado como indigente? Entrariam em contato com alguém? Quem? Alguém do trabalho? Quantos dias eles levariam para achar sua ausência no escritório preocupante o suficiente para procurá-lo? viria para seu enterro? chegaria a saber?!
Entrou em casa com a cabeça rodando. Apesar disso, andou determinado até a escrivaninha do seu quarto, na qual ligou o computador e começou a busca. pingava sobre a cadeira, sobre o chão, sobre a mesa, o teclado e tudo mais ao seu alcance. Finalmente, encontrou o antigo e-mail que procurava. Com os olhos fixos na tela, digitou os números que via e levou o telefone até a orelha molhada.
O número ainda existia. Ouviu o toque chamando algumas vezes, até cair na caixa postal.
. Me escuta. – disparou antes de mais nada, tomado pelo medo dela sequer aguentar ouvir sua voz. – Você sabe que eu tenho esse número desde que você enviou seu currículo para a BBDO. Você sabe que eu podia ter ligado antes, mas não fiz isso. Esses três meses desde que você foi embora têm sido o caos, mas eu não liguei. – inspirou algumas vezes para acalmar a respiração ofegante. – Não liguei por respeito a você. Porque eu te devo no mínimo isso. Depois de tudo... Depois de tanto... Tantos erros. Erros pelos quais eu nem sei se te pedi desculpa, . E, se pedi, com certeza não pedi direito. Então... – ele inspirou fundo e apertou os olhos, porque aquelas palavras eram tão sinceras que faziam seu peito inchar, como se não coubessem mais lá dentro. – Me desculpa. Por tudo. Eu sei que estraguei as coisas entre a gente, mas espero não ter estragado você. Desculpa por não ter te tratado como você merecia. Não foi por achar que você não merecia, foi por não me sentir vivo o suficiente para agir como uma pessoa decente. Por não enxergar o que precisava ser feito. Mas eu enxergo agora, e eu estou em dívida com você, , e essa dívida não é pequena. Se você algum dia precisar de alguma coisa, qualquer coisa, em Londres ou fora, me procure. Se eu puder fazer qualquer coisa por você, por favor, não deixe de pedir. Eu não sei se você ainda usa esse número e não tentei descobrir porque sei que você não quer contato. Se quisesse, você mesma teria ligado. Mas, na verdade, eu não sei se você não quer voltar, ou se você pensa que não tem para onde voltar. Então, eu sinto muito por invadir sua privacidade, mas precisava te dizer isso, : você sempre vai ter para onde voltar. Sempre. – e , que sempre pensara que, depois de Astrid, nenhuma outra mulher seria capaz de quebrar seu coração, sentiu o peito cortado e apertado, pensando no quanto sentia a falta dela. – Você sempre tem onde se apoiar. Para o que precisar. Qualquer coisa. Não precisa voltar para a minha vida se você não quiser. Sem perguntas, sem pressão, sem contato, se preferir assim. Mas você precisa saber que pode me pedir qualquer coisa. Eu nunca, ‘tá me ouvindo, nunca vou virar as costas para você de novo.


29

And since we're being honest, I feel I should tell you
I've been filling up the empty space between you and I
Between you and I, she could never compare to you
Between you and I, I still keep your pictures underneath my bed
Where she gives herself to me
Where I give myself to you

(Between You and I – Every Avenue)


Capland Street, 12, Londres, Quinta-feira, 04:30

Era fim de tarde e o sol estava se pondo, deixando tudo naquela luz meio rosada bonita.
Os convidados estavam sentados em cadeiras brancas montadas sobre o gramado. Eram muitos, e sentia o olhar de todos sobre si. Todas as atenções estavam voltadas para o altar, no qual o juiz de paz ao seu lado falava. Não saberia dizer exatamente sobre o que ele estava falando, pois não estava prestando tanta atenção assim, mas sabia que a noiva, à sua frente, estava sorrindo e seus olhos estavam úmidos de emoção. Ela abriu um sorriso mais largo, e ele, por impulso, sorriu de volta. Porém, a verdade é que se sentia muito nervoso.
Olhou discretamente à sua volta. Atrás de si, no altar, viu , e Marshall, seu novo cunhado. Do lado oposto, as madrinhas. O rosto de Kayleigh pingava orgulho, e era claro o quanto ela apoiava a escolha do irmão.
Voltou os olhos para a mulher que estava a instantes de se tornar sua esposa. Estava linda naquele vestido longo e branco. Seus olhos bem pretos e grandes sempre lhe chamaram atenção, mas, naquele momento, estavam particularmente hipnotizantes. No entanto, por um instante desorientador, percebeu algo bizarro: que não sabia dizer seu nome. Sabia que a amava. Por algum motivo, tinha certeza de que a amava. Só não lembrava seu nome... Mas, independente disso, de toda a beleza, de todo o amor que o inundavam, havia algo ainda mais forte acontecendo ali. Algo que puxava sua atenção como um ímã irritante. Alguém de quem os olhos de não conseguiam mais fugir. E sua atenção se voltou para essa pessoa como um zoom rápido e preciso.
Ao fundo, sentada displicentemente num vestido amarelo que fazia tudo nela parecer dourado, estava . Ela assistia com desinteresse, variando sua atenção entre o que se passava no altar, suas unhas e algum pássaro que atravessava o céu eventualmente. Seu olhar parecia o tempo todo um pouco vago, como se estivesse assistindo algo tão interessante quanto dois pombos sujos e insignificantes ciscando migalhas do chão do parque.
Como numa cena de cinema, o juiz de paz perguntou:
– Alguém aqui presente tem algo a dizer que impeça esse casamento?
E, então, finalmente, se mexeu em sua cadeira.
O coração de pulou no peito, e o homem não soube dizer ao certo se por alívio, medo, excitação ou vergonha. Mas quando viu que começou a levantar o corpo do assento, seu interior se aqueceu, sua atenção se voltou para ela e um sorriso ameaçou nascer em seu rosto. Prendeu a respiração, ansioso pelo que ela falaria.
Então, em vez de se levantar como ele esperava que faria, a mulher parou no meio do movimento, levou as mãos até as coxas e apenas ajeitou um pouco o vestido, como se ele a estivesse incomodando. Depois, sentou-se novamente, cruzando as pernas com a mesma apatia de antes.
Lee – o juiz de paz chamou, e virou o rosto no segundo em que ouviu seu nome. – Você aceita Sadie Thomas Kauhr como sua legítima esposa?
Sadie! Era esse o nome dela! se sentiu atortoado e precisou respirar fundo. Seu corpo todo suava. Voltou o olhar para , e o seu rosto revelando tédio foi a última coisa que o homem viu antes de sentir as próprias pálpebras pesarem de tristeza e seu peito afundar de desapontamento. Quando abriu os olhos mais uma vez, não enxergava nada. Precisou piscar algumas vezes para se acostumar ao escuro.
– Você está bem? – ele ouviu e apertou os olhos novamente, antes de se virar para a dona da voz. Levou alguns segundos para reconhecer aqueles cabelos tão longos e pretos e a mão delicada que fazia carinho sobre seu peito, até que Sadie murmurou sonolenta: – Sua respiração estava estranha, você parecia estar tendo um pesadelo.
– Tô bem. – respondeu rápido, entendendo o que estava acontecendo. Esfregou os olhos e reajeitou sua posição na cama. Então, ela se aproximou, beijou-lhe a bochecha, deitou o rosto sobre o peito dele e fechou os olhos novamente.
, no entanto, agora estava completamente acordado.
Sentiu quando a respiração dela pesou, indicando que tinha pegado no sono de novo. Sentiu quando seus músculos do pescoço começaram a tensionar, reclamando da mesma posição incômoda. Sentiu quando a luz que entrava por uma fresta na cortina começou a bater amarelada nos seus pés, indicando que a madrugada dava lugar à manhã. Mas não sentiu nem por um segundo vontade de voltar a dormir. Seus olhos continuavam bem abertos, encarando a frente como uma luz que alguém esquecia acesa durante horas. Pois não conseguia parar de pensar em . Na verdade, há anos não pensava muito nela.
Fazia por volta de dois anos que havia parado de aparecer em seus sonhos. Bem no começo, ela aparecia sempre em lembranças. Memórias que tinha com ela de quando as coisas estavam bem, ou situações que poderiam ter acontecido se ela nunca tivesse ido embora. Depois de alguns meses, passaram a ser sonhos violentos. Foi a época em que começou a acordar de madrugada, suando e tremendo um pouco, com Charlotte lambendo seu rosto para que abrisse os olhos. Ao final do primeiro ano, esses pesadelos foram substituídos por sonhos cada vez mais esporádicos que eram terrivelmente apáticos. Consistiam em e sentados frente a frente, sem dizer nada. Eventualmente, mostravam indo embora e ficando para trás, sozinho, sem conseguir fazer ou dizer nada. Na maioria das vezes, ele estava chorando. Depois, ela passou a ser figurante nos seus sonhos. Sempre ao fundo, de longe, por poucos segundos, em funções rápidas e variadas dentro de situações que nada tinham a ver com ela. Como quando você sonha com pessoas aleatórias e não sabe dizer de onde seu subconsciente tirou aqueles rostos. Se são invenção do seu próprio cérebro ou se são pessoas que você viu ao longo da vida e só assimilou subconscientemente. A sensação era de que ela estava se esvaindo dos seus pensamentos.
Por fim, ela parou de aparecer. Por volta da mesma época, parou de visitar seus pensamentos. Os momentos que ainda faziam se lembrar dela, como quando comia algo que ela gostava, ouvia uma música que ela costumava ouvir ou visitava algum lugar onde tinham estado juntos, aos poucos passaram a ser dias como quaisquer outros, sem referência específica a ninguém.
Todas aquelas lembranças e sentimentos foram ficando para trás, como caixas que são guardadas no sótão, empilhadas como um muro e empurradas para cada vez mais fundo à medida que novas caixas vão chegando.
se perguntou qual fora a última vez que tinha passado por sua cabeça. Sinceramente nem se lembrava. Mas, como um balão furado, que começava a perder todo seu conteúdo por causa de um mínimo buraquinho, o muro de caixas começava a desmoronar. E a voz de , seu cheiro, suas manias, seu olhar, seu sorriso e todas as lembranças que tinha dela e com ela começaram a se espalhar pela sua mente como um líquido teimoso que você não conseguia conter.
Sentiu que Sadie se moveu ao seu lado e virou o rosto para ela. O quarto agora já estava claro e o sol da manhã batia na cama por uma fresta mal fechada da cortina. Ela abriu os olhos devagar. moveu o olhar para o despertador na cômoda atrás dela, que provavelmente tocaria em breve.
– Por que você já está acordado? – ela perguntou baixo, piscando algumas vezes seus olhos tão grandes e amendoados. Tão diferentes dos de ...
Mas não. Não importavam os de . Não importava . respirou fundo e pigarreou, pois precisava afastar aquelas lembranças de sua mente de novo, apressar-se e jogá-las para trás do muro.
Mas o muro não estava mais lá. Em questão de segundos, tinha se esfarelado todinho, traiçoeiro, transformando-se em pó e deixando na mão. Sentia-se desamparado dentro de si mesmo. Como se os últimos anos sem ela nunca tivessem acontecido, as caixas que cuidadosamente embalaram dentro de seu cérebro estavam abertas, permitindo que a em sua mente pisasse sobre os destroços, andando tranquilamente sobre eles como se caminhasse sobre a areia da praia.
– No que você está pensando?
percebeu que ainda não tinha respondido nada e que sua testa estava levemente franzida por causa da frustração e do esforço interno.
Sadie ajeitou a cabeça no travesseiro, parecendo acordar aos poucos. Levou a mão aos cabelos para colocar uma mecha atrás da orelha, e o anel de noivado em seu dedo anelar reluziu na luz do sol.
– Nada, linda. – respondeu, balançando a cabeça para os lados. Deitou-se de frente para ela e passou também a mão pelo cabelo dela, num carinho suave. – A gente ainda tem uns quarenta minutos. – disse. – Volta a dormir. – então, fechou os olhos e sorriu. Porque o que o tempo não apaga, a gente finge que esquece.

Charlestown Road, 167, Manchester, Quinta-feira, 20:18

A primeira ruga foi um choque para ela.
Ficou alguns segundos olhando sua imagem no espelho antes de aproximar o rosto dele. Ergueu as sobrancelhas, observando bem as linhas que apareciam na sua testa. Repetiu o movimento algumas vezes e parou. Deixou o vinho sobre o móvel abaixo do espelho e levou as mãos à testa, alisando-a. Seu rosto estava relaxado, mas ainda podia ver o resquício das rugas ali, discretamente marcadas em seu rosto sem expressão. Foi estranho porque sua sensação era que aquelas marcas não estavam ali no dia anterior. Nunca antes tinha sentido a passagem do tempo de forma tão palpável. E era estarrecedor.
Infelizmente, paz era algo que ela não tinha muito naquela casa – nem privacidade ou respeito, diga-se de passagem –, porque logo ouviu a voz da sua mãe vindo da sala:
! – chamou naquele volume que ela usava muito, que era um meio termo entre não gritar, porque se achava elegante demais para isso, e nem falar baixo, porque não podia correr o risco de não ter suas vontades atendidas. – Se você chegasse com o vinho antes da comida esfriar, seria fantástico.
respirou fundo, pegou de novo a garrafa que tinha repousado e se dirigiu à sala.
– Alyssa tem um anúncio para fazer. – Alma continuou.
“Ah, sim, Deus me livre perder algo que Alyssa tenha a dizer”, pensou enquanto se sentava em frente à irmã.
– Bom, família, tenho algo grande para contar para vocês. – Alyssa pausou, mostrando um sorriso que se dividia entre excitação e nervosismo. – Muitas coisas aconteceram nos últimos tempos. Eu tenho pensado sobre o meu casamento, meus planos, minha vida... E, bom, eu e Patrick estamos juntos há muitos anos... Não que tempo tenha a ver com isso – acrescentou, parecendo se enrolar um pouco, levemente apreensiva. Mas retomou o tom confiante: – O fato é que algumas coisas fazem falta para uma mulher como eu. Sou forte, confiante, independente, e por isso sei que a decisão que tomei não precisa ser um segredo. – ela sorriu e respirou fundo, enchendo o peito antes de dar a notícia: – Eu vou me divorciar.
Alyssa disse a última frase como uma notícia empolgante, como se não fosse nada de mais. Exceto que, naquela família, aquilo estava longe de ser nada.
O último som que se ouviu foi o estampido da rolha saindo da garrafa de vinho que o homem da casa abria.
E, então, silêncio.
Pelo que pareceram muitos segundos, ninguém se moveu ou falou nada. Até que virou discretamente o rosto para o lado porque lhe ocorreu que sua mãe podia estar enfartando sem que ninguém percebesse.
Sua expressão era exatamente a que esperava ver no rosto da sua progenitora no dia em que alguém lhe contasse que era impossível viver de aparências, o que significava que toda sua vida havia sido uma mentira. Seu rosto era choque puro. Sentindo que alguém precisava dizer ou fazer algo, soltou ironicamente:
– Sinceramente, Alyssa, eu passei a vida inteira sendo a decepção da família. Você não pode simplesmente entrar aqui um belo dia e roubar o meu título, pelo qual eu batalhei tanto.
A frase teria sido seguida de uma risada, mas seus pais claramente ainda estavam pasmos demais para sequer repreendê-la. E Alyssa, que poderia ser a única cúmplice da piadinha feita para quebrar o clima, parecia começar a ficar nervosa e apenas lhe olhou feio. Ingrata.
Até que Reggie disse lentamente:
– Pensamos que você ia dizer que estava grávida.
– O quê?! – Alyssa se espantou. – Não, eu... Não estamos felizes. Eu e Patrick vamos nos divorciar.
– Para de repetir essa palavra... – sua mãe disse imediatamente com uma careta, levando as mãos até o rosto para esfregar as têmporas.
– Também não é um palavrão, mãe... – contestou baixo, recebendo um olhar de censura. Em seguida, Alma apenas disse séria:
– Acho que vamos precisar de mais vinho. , querida, vá ao supermercado, por favor.
– Isso é sério? – a mulher soltou, perplexa, recebendo mais um olhar daqueles.
– É claro que é! – sua mãe disse ríspida, como se fosse a única do mundo a não entender a gravidade do assunto. E, naquele mundo, provavelmente era mesmo.
Sabia que não teria como contestar. Não havia espaço para um diálogo racional no momento em que seus pais recebiam a notícia desgostosa de que a reputação da família estava prestes a ser irremediavelmente destruída por sua filha. E, para piorar, a decepção não vinha de qualquer filha: vinha da preferida.
suspirou e se levantou, dirigindo-se até o seu quarto para pegar a carteira. Abriu o armário e, enquanto enfiava a mão na bolsa, seus olhos se demoraram por um segundo naquela foto no fundo do armário.
E lá vinha ela novamente. Aquela sensação horrível na boca do estômago que vem porque você sente tanta saudade dele.
Viu a foto de como fazia todos os dias ao abrir seu armário e, como também aconteceu todos os dias desde que se mudara, seu coração se apertou. tentou imaginar o quão diferente ele estaria hoje daquela foto e se perguntou se aquelas rugas também já apareciam para ele. Afinal, eram mais de quatro anos. Respirou fundo. Naqueles momentos, sempre vinha o constante conflito entre o amor próprio e a vontade de procurá-lo, nem que fosse para se desculpar pelo sumiço, para ouvir um pedido de desculpas ou simplesmente para entender o que acontecera. Mas não podia. Não se submeteria àquilo. Cumprira sua cota de homens que a humilhavam e enganavam. Ou, pelo menos, era isso o que dizia o seu cérebro. Mas quantas vezes não havia pensado em engolir o orgulho, jogar tudo para o alto e simplesmente voltar? No entanto, da única vez que o impulso passou de um pensamento e ela chegou a puxar a grande mala de viagem do alto do armário, conseguindo ignorar a humilhação que seria voltar se dizendo arrependida, se deteve ao lembrar que não tinha aquele direito. Ela tinha escolhido ir embora. Não podia simplesmente aparecer de novo sem ser chamada. Não sabia mais nada sobre ele, sobre a vida dele, se estava bem ou mal, feliz, doente, solteiro ou louco. Se ainda a queria ou se ainda pensava nela. Não sabia sequer se ele a aceitaria de volta.
Mal sabia ela que sim. Durante muito tempo, a teria aceitado de volta sem pestanejar. Independente da mágoa, teria aceitado de volta, porque a falta que ela fazia era maior que o erro que cometera. Mas ela nunca soube disso. Nunca soube que não lhe devia pedido de desculpas nenhum. Nunca soube de onde viera aquela mensagem. Nunca soube como a vida se desenrolou depois de sua partida. De modo que aquele momento em que ligava o carro, dirigia na velocidade máxima para Londres, subia os quatro andares de escada correndo e tocava a campainha de , já sem fôlego, para anunciar que o amava, nunca passou de uma ilusão, um segundo de distração enquanto observava o retrato antes de fechar a porta do armário.
Jogou um cachecol em volta do pescoço, enfiou a carteira no bolso e saiu.
Quando chegou ao lado de fora da casa, precisou apertar o casaco em volta do corpo por causa do frio. Mal podia acreditar que estava de fato saindo naquela temperatura àquela hora. Era impressionante o poder que sua mãe tinha sobre ela.
O mercado não estava muito cheio e a compra foi rápida. Isso não mudou em nada o humor da mulher, e, enquanto ela saía de volta para o vento frio, ainda resmungando mentalmente, aconteceu algo inesperado naquele passeio que a princípio não seria nada mais que uma ida maçante ao mercado. Algo que fez travar repentinamente onde estava.
Se a expressão no rosto de sua mãe depois do anúncio de Alyssa era choque, não havia palavra para descrever o que sentia agora. A surpresa foi tanta que se sobressaltou quando ouviu a porta automática do mercado abrir atrás de si para o cliente que saía depois dela. Deu alguns passos para frente, atordoada, para sair do caminho, e logo levantou o olhar de novo para se certificar de que seu cérebro não estava lhe pregando nenhuma peça.
Não estava. Pois do outro lado da rua, parado como se também tivesse freado de susto no meio da sua caminhada, estava .
Sua barba estava um pouco maior, os olhos, um pouco mais cansados. Ela não era a única para quem as marcas do tempo haviam dado sinais, mas não havia tempo no mundo que impediria de reconhecer aquele homem em qualquer lugar ou circunstância. Ele continuava parado, olhando para ela também com a expressão surpresa. No entanto, enquanto a mulher se sentia paralisada de espanto, o rosto dele revelava algo como uma inquietação silenciosa. Quase o alívio depois de uma conquista almejada por muito tempo.
Porém, por algum motivo, ele permanecia estático. A excitação que ele tentava conter parecia transbordar, mas não se atreveu a mexer um músculo. E entendeu que era ela quem precisava dar aquele primeiro passo. Então, foi o que fez. A passos trêmulos, dirigiu-se ao velho amigo do outro lado da rua. Pararam frente a frente e, depois de um segundo de hesitação, acabaram por se abraçar.
Era surreal a sensação de estar naquele abraço novamente. Seu cheiro, seu tamanho pareciam exatamente os mesmos, mas era como abraçar um desconhecido.
– Oi. – a mulher disse, finalmente, depois que se separaram.
– Oi. – ele sorriu.
– Eu... – tentou começar algo, mas soltou uma risada nervosa. – Tô sem saber o que dizer.
riu também e olhou para baixo. Mexeu com a ponta dos pés em uma pedra no asfalto, também sem reação.
– O que você está fazendo aqui? – ela indagou.
– Estava jantando na casa de um cliente. – virou o corpo para trás, apontando com o rosto na direção de uma casa alguns metros adiante. – Tenho reuniões em Manchester com frequência.
franziu o cenho parecendo confusa, e ele se apressou a consertar:
– Quero dizer, não com frequência... Só... Algumas vezes por ano, uma, duas...
– E você... – era difícil para ela formular aquela frase, mas a ideia de ter estado várias vezes vezes na cidade sem nunca tê-la procurado era muito estranha para ela. – Você nunca teve vontade de me avisar?
– É claro que tive, . – Há quanto tempo não ouvia aquela voz dizer seu apelido... – Mas eu não sabia se devia. Eu tentei te enviar um e-mail, deixar recado na caixa postal...
– Eu recebi. – ela interrompeu. – Mas ainda era tudo muito... recente.
assentiu rápido com a cabeça, como quem compreende.
– Eu só não queria ser inconveniente. – explicou, erguendo os ombros.
repetiu o gesto de cabeça dele, concordando. Ele tinha razão, na verdade. Só era esquisito saber que tinham estado tão próximos fisicamente ao longo dos últimos anos sem que ela nunca soubesse.
– Você está ocupada? Ou quer... – ele propôs, cuidadoso. Antes que pensasse em como terminar a proposta, ergueu uma garrafa de vinho:
– Desculpa, eu preciso... – então pausou e pensou por um instante. Respirou fundo e disse com um sorriso de quem não acredita na ousadia das próprias palavras: – , você quer tomar um vinho comigo?
E, ignorando vento frio e o fato de que não tinham mais idade para beber vinho direto da garrafa sentados no meio da rua, os dois encontraram um banco um pouco adiante, se sentaram frente a frente e conversaram.
Conversaram sobre tudo que duas pessoas que já foram tão próximas têm para conversar depois de não se falarem por tantos anos. Conversaram sobre o que estavam fazendo hoje e o que tinham feito nos últimos tempos. contou sobre o seu novo trabalho, que não era a função ou o salário que queria, mas tinha um ambiente de trabalho muito mais saudável, e ouviu sobre como as coisas tinham caminhado bem na BBDO com a sua substituta e o desenvolvimento da empresa. Contou sobre morar com os pais novamente, como aquilo lhe sugava as energias, mas pelo menos lhe ensinara muito sobre evitar conflitos, e ouviu sobre o período nada livre de conflitos que sucedeu a sua partida. Narrou as peripécias de Alyssa e como teve de aprender a conviver com sua irmã e seu ex-noivo casados. Viu o brilho nos olhos de enquanto ele falava sobre a volta de Astrid, mais madura, humilde e pronta para assumir seus erros, e sobre o relacionamento feliz que haviam construído juntos nos últimos dois anos. E teve, finalmente, as respostas para as perguntas que ainda martelavam na sua mente.
estava bem. Passara por maus bocados no início, mas estava bem há algum tempo. Coordenava uma equipe bem maior, ainda morava no mesmo apartamento e tinha a mesma cachorra, que às vezes lhe buscava no trabalho com sua... namorada. Fizera amigos na empresa e, para desilusão de – apesar de não ser nada surpreendente –, contou que anunciara recentemente que ele e Sadie, a moça simpática com quem namorava há algum tempo, estavam noivos.
Não existe muita coisa que uma pessoa possa fazer para se preparar para ouvir que o amor da sua vida vai se casar. Mas muito antes de cautelosamente tocar nesse assunto, ambos já tinham derramado lágrimas, compartilhado abraços e acabado com o vinho. Uma garrafa era muito pouco para tanto sentimento. Então, quando os olhos de voltaram a molhar seu rosto em silêncio ao ouvir aquela notícia, apenas perguntou se ela queria continuar aquele assunto, e a mulher, sorrindo consternada, fez que sim com a cabeça.
Nem todo o choro do mundo, nem o fim do vinho, nem a rua já completamente deserta ou as diversas ligações no celular de foram capazes de interromper aquele momento. Nada seria.
Conversar sobre aquilo tudo era como ver alguém encher suas gavetas com vários objetos novos depois de ter passado os últimos anos organizando e reorganizando sozinha os mesmos velhos objetos, na esperança de que algo diferente acontecesse. E agora estava ali, olhando para o rosto mais querido que tinha visto em muito tempo, tendo em mãos todas as respostas que tinha desejado em silêncio, mas sem saber o que fazer com nada daquilo. Não sabia o que fazer com aquela enxurrada de mágoa, alívio, dor, conforto e inquietação, tudo ao mesmo tempo. Há muitos anos que ela não sentia tanto.
– ele chamou, molhando os lábios em seguida, como quem quer ganhar tempo para escolher direito as palavras. – Eu... fiquei esperando para ver se você mesma diria isso, porque não quero ser inconveniente, mas... eu preciso, simplesmente preciso saber: por que você foi embora? Assim, daquela maneira?
Olhando fundo nos seus olhos, ela suspirou. Então, abaixou o rosto para as próprias mãos, tomando coragem para começar a falar. Porque tudo aquilo lhe doía e envergonhava. Doía e lhe envergonhava que tivesse mudado sua vida e de tantas pessoas em cima de um impulso, que não tivesse dado espaço para nenhum diálogo e que tivesse ido embora de uma maneira tão definitiva e infantil. E, acima de tudo, doía e lhe envergonhava que tivesse, mais uma vez, sido traída e diminuída por um homem.
– Eu li sem querer uma mensagem no celular do . – explicou. – E... descobri que ele tava me traindo. Ou tinha me traído, não sei, pela mensagem... Não sei dizer se foi uma coisa de uma vez só, mas claramente tinha acontecido.
fez silêncio por um segundo e franziu o cenho.
– Sério? – estranhou. – Você tem certeza? Chegou a conversar com ele, ou...
– Não conversei. – ela cortou logo, um pouco constrangida. – Mas estava na cara, . Você não viu a mensagem, falava sobre a noite que eles passaram juntos... Enfim, era uma mensagem muito clara.
– ‘Tá, mas é só que eu não consigo imaginar... – insistiu, mas foi interrompido pelo celular dela vibrando mais uma vez.
– Merda. – ela disse baixinho, olhando a tela. – Desculpa, eu preciso atender isso, Só um minuto, senão nunca vão me deixar em paz. – disse, revirando os olhos, e atendeu impaciente: – Alô. Na rua. É, eu sei, mas... Eu tive um imprevisto. Porque não dava, mãe. Afinal, foi um imprevisto. Se foi imprevisto, é porque eu não tinha como prever! – rosnou. – Eu preciso desligar, mãe. Está tudo bem, mas depois a gente conversa.
Quando desligou, voltou-se para de novo com um olhar profundamente rabugento.
– Desculpa.
– Pensei que ninguém na sua casa sentisse sua falta. – ele brincou.
– Não é minha falta que tão sentindo. É do vinho. – ela explicou, e os dois riram. – Mas, na verdade, já são quase duas da manhã, talvez a gente devesse continuar... outro dia? – propôs, insegura.
– Eu adoraria. – ele assegurou, sorrindo. – Eu posso pegar o seu número? – perguntou, estendendo o celular para ela.
Depois disso, trocaram um abraço forte e longo. Engraçado como depois de apenas algumas horas, não parecia mais que estava abraçando um desconhecido.
– Foi bom te ver, . – ela disse baixinho, o rosto apertado na curva do pescoço dele.
Separaram-se, se olharam uma última vez, e virou as costas para ir embora.
Naqueles poucos segundos que se passaram, uma onda de sensações, lembranças e reflexões tomaram a mente dela. Virar as costas para era algo que tinha feito tantas vezes... E, apesar de desta vez ser tudo tão diferente, aquele déjà-vu a fez interromper seus passos.
e nunca foram certos juntos. Ela já sabia disso há anos. Mas, durante muito tempo, tudo que ela queria era que tivessem sido. Nunca foram certos juntos, porém, naquele instante, ela entendeu por que sempre quis tanto que fossem. Porque gostava da pessoa que a tinha ajudado a descobrir dentro de si. Sair de Manchester e se mudar para Londres havia sido a melhor coisa que lhe acontecera. Foi verdadeiramente livre depois de ter se desvencilhado de tudo que deixara para trás na sua cidade natal. Sentia falta da vida que tinha descoberto em Londres e no seu cargo dos sonhos na BBDO. E gostava da pessoa que, por fim, havia se tornado ao lado de .
Tudo tão diferente do que vivera nos últimos anos.
. – disse de repente, virando-se de volta para ele. O homem ainda continuava na mesma posição, pois, apesar da magnitude da epifania dela, apenas alguns segundos haviam se passado.
– Oi.
– Uma vez você disse que eu podia te pedir ajuda se precisasse. Essa oferta ainda está de pé? – indagou, sentindo o peito vibrar e a respiração se acelerar um pouco.
– É claro.
– Eu quero voltar. – disse com firmeza.
– Oi? – ele balbuciou surpreso.
– Para Londres. Eu quero voltar. Você me ajuda?
Com o rosto repentinamente vivo, sorriu, e, depois de muito tempo, voltaram a trocar aquele olhar satisfeito que só o verdadeiro companheirismo pode criar entre duas pessoas.


30

Now you say you're lonely
You cry the long night through
Well, you can cry me a river
Cry me a river
Cause I cried a river over you

(Cry me a River – Ella Fitzgerald - Versão Alexa Melo)


Green Street, 61, Londres – Terça-feira, 19:15

passou um bom tempo parada em pé, em frente ao prédio, depois de ter saído do táxi. Poucas vezes na vida tinha se sentido tão madura. Porque o que estava buscando ali era muito simples: paz. Queria fazer as pazes com as lembranças de , que nunca faziam silêncio. Queria fazer as pazes com a parte rancorosa que ainda morava lá dentro dela, incapaz de aceitar a traição que sofrera. Queria fazer as pazes com a sensação borbulhante de arrependimento por ter ido embora sem ter falado nada a ninguém. Em suma, queria fazer as pazes com o passado, para que pudesse finalmente seguir em frente e reconstruir sua vida emocional e psicológica de maneira saudável – como havia constatado, com um pouco de inveja amarga, que aparentemente fizera. Sabia que seria difícil fechar aquela porta, mas sabia também que o único caminho possível agora era para frente.
Passara os últimos dias se preparando para aquele momento. É claro que o que estava prestes a fazer exigiria coragem, mas só quando se viu parada em frente ao prédio de , com o estômago se revirando de nervosismo, é que percebeu o quão difícil de fato seria.
Por um segundo, quase desistiu de tudo. Ponderou sobre a possibilidade de dar meia volta e nunca contar para ninguém que tinha juntado suas coisas e voltado para Londres. Ligaria para e diria que não queria mais ajuda para encontrar um trabalho. Ainda dava tempo de voltar para Manchester, pedir pelo seu emprego de volta, voltar para a vida miserável que vivera nos últimos anos... Mas era impossível. Por mais que entrar naquele prédio parecesse difícil, ir embora novamente e viver o resto da vida sabendo que tinha estado tão perto de resolver aquela pendência que lhe assombrara por anos era, simplesmente, impossível. Precisava ter aquela conversa final com . Ambos precisavam – e mereciam – ouvir e dizer os devidos pedidos de desculpas.
respirou fundo e se encaminhou até o porteiro.
Mas toda a coragem que juntou para dar esse primeiro passo se mostrou muito desnecessária. Para sua surpresa, depois de balbuciar nervosa que queria visitar , ela recebeu uma reação muito diferente da que esperava. O homem apenas fez que sim com a cabeça e indicou o caminho. Assim, apenas. Com naturalidade, como se a aparição dela já fosse perfeitamente esperada. Atordoada, ela seguiu, perguntando-se se era possível que ele se lembrasse dela, dentre as milhares de pessoas que já haviam saído e entrado naquele lugar. Nem ela própria lembrava se era o mesmo funcionário.
Sentindo-se ainda mais desconcentrada, a mulher parou em frente à porta do apartamento de . Finalmente. Suas mãos suavam um pouco, e ela sentiu que, se não tomasse impulso logo, jamais conseguiria concretizar aquilo, pois seus pensamentos eram tão altos que pareciam estar num alto falante enquanto seu coração estava prestes a sair pela boca. Antes que se desse conta, já havia tocado a campainha.
Um milhão de cenários se formou na sua mente, e aquele que de fato aconteceu foi, no mínimo, inesperado. Pois seus devaneios foram interrompidos pela porta do apartamento se abrindo e não era – como ela queria – nem mesmo uma mulher desconhecida, que provavelmente seria sua noiva – como ela temia.
Quem abriu a porta foi Kayleigh.
Antes que qualquer clima pudesse se instaurar, se engasgou:
– O está?
– Oi... – ela soltou, soando um pouco apressada. – Acho que ele ‘tá ocupado, não estávamos esperando que os convidados chegassem até... – então, no meio do raciocínio, seus olhos se arregalaram e ela levou a mão à boca, ofegando surpresa. – Meu Deus. ?! – sussurrou.
sorriu amarelo, sentindo-se como se estivesse sendo pega no flagra. Para falar a verdade, quando percebeu que não havia sido reconhecida, torceu para que a memória de Kayleigh continuasse falhando.
Neste momento, com Kayleigh ainda petrificada, uma voz masculina surgiu de dentro do apartamento:
– Quem é?
Como se despertasse de repente, Kayleigh gritou de imediato:
– Ninguém! – e simplesmente bateu a porta de novo.
E assim, em questão de segundos, a breve tentativa de fechar aquele ciclo havia falhado para .
Ela encarou a porta por um momento. E tão repentinamente quanto suas esperanças se dissiparam, elas voltaram a nascer, quando a porta se abriu de novo. Kayleigh, agora agindo com urgência, olhou furtivamente por trás do ombro e saiu para o corredor, fechando a porta com cuidado atrás de si.
– O que você está fazendo aqui? – cochichou ríspida.
– Eu queria falar com o seu ir...
– Você é completamente louca? – interrompeu. – Fumou alguma coisa estragada? Bateu a cabeça no concreto ou é só completamente retardada mesmo? Você tem a mínima ideia do que você fez com o meu irmão?
Toda aquela conversa estava acontecendo num ritmo para o qual não estava preparada.
– “Do que eu fiz”? – repetiu lentamente, confusa.
– Você acabou com o meu irmão. E eu não tô te dizendo isso pra você ficar se sentindo orgulhosa, não, ‘tá bom? Tô falando isso pra ver se você tem a decência de ir embora.
franziu o cenho e balançou a cabeça para os lados.
– Orgulho?! Kayleigh, por que eu teria...
– Você não tem o direito de voltar aqui bem hoje, depois de, o quê, uns quatro anos?! Como se nada tivesse acontecido! – enquanto falava, Kayleigh pôs a mão com firmeza nas costas da outra e começou a empurrá-la em direção ao elevador. – Desculpa, . Eu sei que não é problema meu, mas eu não vou deixar você fazer isso.
Ela ainda falava sem parar e apertava com força o botão do elevador, quando mais uma vez a porta do apartamento se abriu, dando continuidade à montanha russa de sentimentos que vinham sendo os últimos minutos. Naquele segundo de suspense, ambas pararam, em silêncio, e se viraram para ver quem era.
Parado à porta, parecendo tão perplexo quanto elas, estava .
– O que está acontecendo? – e, assim como Kayleigh, sua expressão mudou imediatamente quando percebeu quem era. – ?
– Ela já estava de saída. – a primeira disse determinada, socando mais uma vez o botão do elevador.
– Cala a boca, Kayleigh. – disse impacientemente.
Ela soltou e fez o curto caminho até a passos duros, aproximando-se bem dele.
– Ela não tem o direito de fazer isso. – disse de maneira levemente agressiva e discreta, mas nem tão discreta assim, afinal, era um corredor de poucos metros quadrados e estava bem ali.
– E você não tem o direito de esconder isso de .
. – ela disse mansamente. Kayleigh parecia prestes a chorar e subitamente seu tom mudou de raiva para súplica. – Você acha mesmo que ele quer vê-la? Ele preferiria nunca nem saber...
bufou, começando a ficar impaciente com aquele diálogo que seguia sobre ela, como se ela não estivesse presente.
– Acho. Acho que ele gostaria de saber.
– Porque sinceramente... – a mulher continuou, balançando a cabeça lentamente para os lados. – Você só vai partir o coração dele. Mais uma vez.
– Sabe o quê? – interrompeu, constrangida. Queria, sim, uma oportunidade de ter um desfecho pacífico para aquela história, mas não assim. Não daquele jeito. A última coisa que queria era chegar de repente e causar uma cena dramática envolvendo todos os conhecidos de . – Gente, tudo bem, eu... Olha, eu só queria conversar com ele, ok? Achei que a gente merecia uma conversa...
– Você não merece nada aqui. – a outra cortou, fazendo com que finalmente se irritasse.
O elevador apitou, anunciando sua chegada, e, enquanto entrava, ela finalizou:
– Olha, Kayleigh, eu sei que você ama o seu irmão, mas você precisa se acalmar porque ninguém é santo nessa história, ‘tá bom?
Então, a porta do elevador se fechou, e ficou presa naquele cubículo num silêncio vazio que contrastava violentamente com o barulho ensurdecedor dentro da sua mente.
Seu coração batia tão rápido que parecia bater dentro da sua cabeça. Sentia as têmporas pulsando e ouvia o barulho dos próprios batimentos à medida que uma enxurrada de pensamentos e sentimentos transbordavam por ela.
Sentia-se burra, envergonhada e frustrada. Burra por mais uma vez agir por impulso e voltar tão desavisadamente quanto havia ido embora, como se o mundo andasse no ritmo dela. Envergonhada por ter engolido seu orgulho para procurar alguém que partira seu coração e ainda ser tratada como o mais insignificante pedaço de lixo. E, acima de tudo, frustrada, por ter de virar as costas sem ter conseguido as respostas que tanto queria.
Lágrimas quentes começaram a descer pelo seu rosto enquanto atravessava a rua a passos determinados. A esperança de ir embora naquela noite se sentindo um pouquinho mais completa do que se sentira nos últimos anos já tinha evaporado. Tudo que queria era não estar ali. Mesmo sabendo que a alternativa era voltar para o quarto de hotel frio e impessoal onde passaria mais uma noite sozinha. Mas se deteve quando ouviu:
! Espera!
Era , que vinha correndo atrás dela. Quando a alcançou, parou e curvou o tronco, apoiando-se sobre os joelhos. Ficaram alguns segundos sem dizer nada, enquanto ofegava, tentando recuperar o fôlego, e apenas o observava, parada, abraçando a si mesma com força no frio.
Então, ele ficou ereto, olhou nos seus olhos por alguns segundos com uma profundidade que a engoliu e pediu sério:
– Espera exatamente aqui.
Depois virou as costas e refez o caminho de volta até o prédio.
Os minutos que se passaram a seguir foram agonia pura.
Não saberia dizer quantos foram. O nervosismo era tanto, que a mulher se sentia capaz de fazer apenas duas coisas: sair dali correndo ou não mover um músculo.
O olhar que lhe lançou foi de uma força tamanha que não teve coragem de desobedecer. De modo que permaneceu imóvel no mesmo lugar, os braços em volta do próprio corpo e o olhar vidrado na portaria durante muitos minutos, sem se atrever a acreditar que a pessoa que ela queria ver de fato passaria por aquela porta.
Mas às vezes, só às vezes, exatamente aquilo que queremos acontece. E surgiu porta afora, olhando com firmeza para os lados até seus olhos pousarem na mulher do lado oposto da rua.
O homem freou e, por alguns segundos, apenas a olhou sem esboçar reação alguma. Então, bem aos pouquinhos, cresceu no seu rosto o que reconheceu ser um sorriso. Aquele sorriso que ela não via há tanto tempo, naquele rosto com o qual sonhara por tantas noites... Logo, porém, ela percebeu que aquele sorriso não era o que ela gostava. Era um sorriso maldoso. E ele cresceu até virar uma risada de escárnio, que durou mais tempo do que a mulher gostaria. Durante segundos que pareceram minutos, virou o rosto para o lado e riu, riu muito. Então passou a mão pelo rosto e balançou a cabeça para os lados enquanto a risada morria. Olhou para o céu, respirou bem fundo e tirou do bolso um maço de cigarros, acendendo um. Depois de dar um trago, fez o que até agora não tivera coragem de fazer: atravessou a rua.
Ele se aproximou junto com uma rajada de vento frio, a fumaça do cigarro e o cheiro do perfume que ele usava até hoje. Então parou na frente dela, olhou-a de cima a baixo e fez lentamente que sim com a cabeça.
– É verdade.
– É. – confirmou sem graça, quase sem fôlego. – Sem avisar, eu sei... Desculpa, tudo nos últimos dias aconteceu muito rápido. Eu não sabia que você ia receber convidados hoje. – justificou.
– Pois é, você nunca aprendeu mesmo o dia do meu aniversário, né?
Aquelas palavras fizeram a garganta dela fechar como se tivesse levado um soco. Então levou as mãos à boca, em choque, e murmurou:
– Eu... Não é só com você, eu não sou muito boa com nenhuma data... – desculpou-se vagamente sem acreditar que estava fazendo aquilo mais uma vez. Estava mortificada.
olhou para o lado e fez que sim com a cabeça, como se não quisesse render aquele assunto. Ao contrário dela, o homem parecia determinado a olhar para qualquer outra coisa, como se preferisse estar em qualquer outro lugar. , no entanto, tinha dificuldade até de piscar. Não conseguia acreditar que ele estava realmente a meio metro dela e seus olhos não conseguiam se desgrudar dele.
Mas, apesar de se sentir completamente desnorteada, ela respirou fundo e decidiu falar, pois era visível que o nível de atenção que tinha reservado para ela não era muito alto e poderia acabar a qualquer momento.
– Olha... – começou. – Mais uma vez, desculpa por aparecer do nada e desculpa por fazer isso no dia do seu aniversário, mas eu tenho algumas coisas pra dizer e agora que já tô aqui... Eu vou dizer. Eu queria te ver, . Queria saber que você ‘tá bem, queria te contar que eu tô, também. – falou, temendo que ele percebesse que gaguejou um pouco ao falar a última parte. Não queria que aquela conversa fosse desonesta, mas sentia que precisava dizer que estava bem para não passar para ele a impressão de que estava ali para tirar a vida dele dos eixos só porque a dela estava de cabeça para baixo. – Sinceramente, eu só quero conversar. Eu quero voltar pra Londres, é uma cidade que eu amo. Quero encontrar um emprego aqui e reconstruir minha vida aqui... E eu quero fazer isso sem gosto ruim. Eu não quero mais que o nosso relacionamento seja uma lembrança que dói, , e, pra isso, tem uma coisa muito importante que eu acho que eu... Que nós – corrigiu – precisamos fazer. Precisamos nos desculpar. – disse finalmente, fazendo que sim com a cabeça, porque quando ele a olhou, a mulher sentiu a resistência na expressão dele. – Sim, . Eu te devo um pedido de desculpas por ter ido embora sem falar nada, mas, pra falar a verdade, também sinto falta de ouvir um pedido de desculpas de você.
Aquela frase pareceu explodir dentro dele, porque mais uma vez seu rosto assumiu aquela expressão de riso malicioso de mais cedo, e ver aquilo doía demais nela. Fazia-na sentir que estava zombando dela, e sinceramente não sentia que merecia mais aquela humilhação.
– É sério isso? – ele riu, incrédulo.
– Sim, é sério. – ela pigarreou, tentando ser firme.
O homem balançou a cabeça para os lados e jogou a ponta de cigarro no chão.
– Você é mesmo muito cabeça dura... – surpreendeu-se. – Até hoje você não se deu o trabalho...
Mas aquilo não estava certo. sabia que não estava. Por mais que tivesse sua boa parcela de erros, sabia muito bem que fugir de uma traição não podia ser tão grave quanto cometer a traição em si, e a maneira como estava sendo tratada aquela noite não fazia sentido. A não ser... que a história fosse diferente do que ela pensava. Mas antes que essa teoria tomasse força demais em sua mente, a espantou, pois seria horrível demais.
– Se era pra falar desse jeito, então por que você desceu pra falar comigo? – ela argumentou, franzindo o cenho.
– Precisava ver com os meus próprios olhos a sua cara de pau de aparecer aqui.
Agora foi a vez de de soltar uma risada sem humor.
– Escuta, eu sei que eu fui impulsiva, um pouco infantil até, mas agora você também ‘tá exagerando. – aos poucos, sua voz foi retomando a segurança. – Eu fui embora daquele jeito porque eu sentia que não aguentaria conversar naquele momento, mas agora aguento. – enquanto ela falava, percebeu que aquela conversa seria mais que um encontro rápido de poucos minutos. Tirou do bolso mais um cigarro, e o isqueiro que ele acendeu alimentou não só o cigarro em sua boca, mas também o vigor com que ela falava. – Entendo que você esteja chateado por eu nunca mais ter dado notícias, mas, sinceramente, eu não era obrigada a falar com você depois do que você fez comigo...
– O que eu fiz?! Alguma vez já passou pela sua cabeça, , que quem errou aqui nessa história pode ter sido você?
– E o que foi que eu te fiz?! – a mulher explodiu, num grito que ecoou pela rua.
agora olhava mais uma vez para o lado, dando um trago atrás do outro. estava incomodada por ele ainda estar olhando para o lado. Estar ali, dizer tudo aquilo exigia dela uma força sem tamanho, e sentia que merecia ao menos seu olhar. Porém, quando estava prestes a pedir que olhasse para ela, antes que a frase se formasse em sua boca, ele o fez. virou o rosto de volta para ela e permitiu que ela encarasse seus olhos tão cheios de doçura, memórias e, no momento, tão cheio de lágrimas.
– Você me quebrou. – ele disse simplesmente.
– Indo embora? – a mulher indagou, a voz voltando a quebrar de ansiedade. A sensação de que algo estava errado era cada vez mais forte, e ela começou a se desesperar. – Mas você me quebrou primeiro! – acusou, indignada.
– Você não sabe até hoje! – ele disse impaciente. – Eu nunca te traí! Aquela mensagem nunca foi pra mim, . O saiu com uma mulher qualquer, não queria que ela ficasse no pé dele, então passou o meu número sem pensar. – à medida que a raiva crescia, sua fala começou a acelerar. – Aquela mensagem não era pra mim. Eu também não sabia que ele tinha feito isso, descobri depois de uns dias, assim como você teria feito se tivesse tido a sensatez de me perguntar que mensagem era aquela! – vociferou, quase sem pausas. Quando finalmente parou, precisou respirar fundo.
Quem precisou desviar o olhar agora foi . O sangue correndo pelo seu corpo era gelado de choque, e ela passou alguns segundos com a expressão perdida no horizonte. Não fazia sentido tentar focar a visão agora, de qualquer forma, pois as lágrimas grossas que escorriam pelo seu rosto embaçavam totalmente sua vista.
– ‘Tá com medo de olhar nos meus olhos? – desafiou baixinho, depois de alguns segundos. E, vendo que ela continuava estática, confirmou: – É, imaginei.
Então, ele deu um último trago e soprou a fumaça enquanto pisava na guimba que jogara no chão. O homem se virou para ir embora, mas, antes que pudesse terminar o movimento, foi interrompido. Entender que ele iria embora fez sair da inércia e rapidamente dar um passo em direção a ele, puxando-o para si.
Ela segurou o pulso dele, e seu rosto involuntariamente esboçou uma expressão de dor. Não pela força do aperto, mas porque o contato com ela doía. Verdadeiramente doía. ficou olhando o rosto dela, as lágrimas pingando pelo queixo da mulher, os olhos cheios de desespero, e se perguntou como era possível ele sentir aquela dor. A simples proximidade dela parecia queimar sua pele, como uma doença contagiosa contra qual ela passara anos tentando se imunizar. Seus anos de esforço pareciam ter formado nele uma camada grossa de intolerância a ela. A resistência ao seu cheiro, seu olhar, seu toque, sua voz parecia correr por suas veias, tão inerente a seu corpo quanto seu próprio sangue. Os dedos dela, ainda em torno do pulso dele, foram escorregando até suas mãos, que ela apertou com força e urgência, como se fizesse uma súplica silenciosa. A queimação que antes estava no pulso se espalhou pelas mãos, que começaram a suar. De lá, subiram pelo corpo e, quando se deu conta, sentia seu corpo inteiro quente. Sentia calor apesar da noite fria. Seus olhos se embaçaram e, de repente, ficou difícil identificar se aquela sensação de febre era raiva ou tentação, mas, em questão de segundos, o calor virou formigamento, o formigamento virou excitação, e, antes que qualquer um dos dois pudesse raciocinar friamente, seus lábios já estavam colados, num beijo que buscou.
Ela passou os braços em volta do pescoço dele, e ele envolveu sua cintura num enlace apertado. Seus hálitos quentes se mesclaram, e ambos puderam sentir que a respiração do outro estava tão falha quanto a sua. Então, bruscamente se afastou, e o ar frio voltou a soprar entre os dois corpos febris. Durou apenas alguns segundos, mas aquele beijo foi como um veneno doce de efeito rápido. A sensação foi indescritível, e era inegável que o peito dele se partiu um pouco com uma saudade aguda de tudo aquilo. Sentiu-se como se estivesse prendendo a respiração durante todos esses anos e finalmente enchesse os pulmões de ar.
No entanto, logo depois que interrompeu o contato físico com ela e respirou fundo, se sentiu completamente inadequado. Não podia acreditar que tinha feito aquilo. E pior, não podia acreditar que se sentia tão mexido. Então, seu rosto se contorceu, dividido entre a ferida no seu peito e a culpa na sua mente, e disse baixinho:
– Te amar dói tanto... – e balançou a cabeça para os lados.
– Mas não precisa – ela ofegou, segurando o rosto dele com as mãos, num gesto de carinho e pressa –, não precisa mais doer... Deixa eu consertar isso.
– Não é assim. – negou, tirando o rosto das mãos dela com violência, e a raiva que sentia dela se misturou com a raiva que agora sentia de si mesmo. – Você ‘tá pensando o quê?! A vida continua. Eu tô noivo, !
O tom duro dele ainda reverberou por alguns segundos no silêncio enquanto sentia aquelas palavras. Não era triste apenas que ela tivesse perdido o amor de sua vida e partido o coração dele por ser imatura. Não era triste apenas que ele não tinha nada a dar para ela além de gritos e raiva. Era triste, acima de tudo, que, para ela, não. Para ela, a vida não continuava. A verdade é que ainda estava vivendo a base de memórias antigas, num emprego que não gostava, numa cidade em que não era feliz, e completamente sozinha.
A voz de a tirou de sua reflexão:
– Seria uma mentira fodida se eu dissesse que fiquei bem. Não fiquei. Por um tempo, eu pensei que tivesse tudo sob controle, mas demorei a perceber a bagunça que você tinha causado aqui. Você sabe por quanto tempo eu ainda fiquei, no fundo, esperando por você? – confessou. – Segui minha vida, mas com um olho no relógio, o outro no celular, movido pela simples possibilidade de você dar notícia. Ridículo, cego, mas é que não tinha opção porque eu sentia tanto a sua falta! – desabafou. – E essa é a pior parte, na boa, a espera... Ela é fodida. Durante todo aquele tempo, eu me agarrei a essa ilusão e segurei com tanta força que você não imagina. Eu não tinha força pra nada mais, fui abrindo mão de tudo que eu tinha, menos disso... Eu quase perdi tudo, , antes de enxergar que eu precisava soltar essa fantasia. E se eu demorei só pra perceber a bagunça, você consegue imaginar quanto tempo eu levei pra arrumar, ?!
Depois de falar, olhou para trás. Três pessoas estavam entrando no prédio e aquilo pareceu acender uma luz no cérebro dele. Haviam perdido completamente a noção do tempo.
– Mas e agora? – ela perguntou, tímida, atraindo novamente a atenção dele para si.
– Eu parei de te esperar há muito tempo. – disse simplesmente e, mais uma vez, fugiu do contato visual, encarando o muro atrás dela.
– Eu sei. – ela respondeu, buscando o olhar dele. – Mas e agora? Você não sente mais minha falta? – perguntou, o coração batendo forte no peito.
a encarou com o rosto sério.
– Sinto. Não o suficiente pra te querer de volta. Só o suficiente pra doer.
O silêncio pesou mais uma vez depois daquelas palavras. pôde sentir o momento em que perdeu o último fio de atenção que lhe dava. Foi como se qualquer que fosse o sentimento que os ligasse ali – nostalgia, desejo, raiva – se quebrasse, e o cérebro de voltou subitamente para a realidade. Ele olhou para trás mais uma vez, olhou para o relógio no pulso e disse:
– Preciso subir. Acho que a minha casa ‘tá cheia e eu nem vi.
– Espera! – ela pediu, soando mais aflita do que gostaria. – Tudo bem, eu entendo. – disse lentamente, tentando se acalmar. – Vai lá. Mas vamos conversar? A gente precisa de uma conversa... A gente merece uma conversa, . Com mais calma. Sem ninguém te esperando. Só uma conversa, eu não quero brigar... – prometeu. – Vamos tomar um café?
Depois de um segundo de silêncio, ainda com o olhar vazio, murmurou indiferente:
– ‘Tá bom.
– Posso te ligar pra combinar?
– Sempre pôde, . Quem trocou de telefone e endereço aqui não fui eu.
Dito isso, virou as costas e atravessou a rua em direção ao seu prédio.
Enquanto assistia ir embora o homem que – claramente – ainda amava, descobriu a dor que é ver o quanto as coisas podem mudar, e pior: saber que foi tudo culpa sua.

entrou no seu apartamento se sentindo em estado de alarme. A quantidade de pessoas que havia chegado desde que ele saíra era muito maior do que esperava. Começou a se sentir aflito, pensando em como explicaria seu sumiço. Nada disso melhorou quando as pessoas começaram a perceber sua entrada discreta e fazer exclamações alegres de surpresa e piadas sobre sua ausência.
Então, o momento que mais temia chegou. Sadie o viu e abriu a boca numa expressão de surpresa risonha. Pôs a mão no braço da pessoa com quem estava conversando, como se pedisse licença, e andou em direção a ele rindo, com a testa franzida.
– O que aconteceu? – perguntou, balançando a cabeça para os lados, num gesto de reprovação divertida. – Ficou todo mundo aqui sem entender nada!
– Desculpa. – riu também, mas de constrangimento, torcendo para que ela não percebesse. – Tive que resolver uma coisa... de trabalho – completou, se odiando por mentir.
– Logo hoje?! – ela se espantou. – Mas agora você ‘tá livre, né? Pra se divertir.
fez que sim com a cabeça, tentando forçar um sorriso. Então, ela sorriu também e, para seu completo desespero, plantou um selinho longo em seus lábios. se sentiu sujo, imundo como nunca antes. Antes que seu corpo explodisse de culpa, ele apertou a cintura dela, com todo o carinho que conseguiu juntar em meio à pilha de nervos que se encontrava, e afastou o rosto, murmurando:
– Só vou ao banheiro. – e se virou, apressado. Assim que começou a andar, decidido, seus olhos cruzaram com os de sua irmã, alguns passos adiante. O rosto de Kayleigh não escondia nada, e, por sua expressão preocupada, soube imediatamente que ela já sabia.
, você quer... – ela começou, esticando a mão para o peito dele.
– Agora não. – ele disse apenas, desviando-se do seu toque sem nem mesmo desacelerar.
Assim que entrou no banheiro, ele bateu e trancou a porta, expirando com força. se apoiou na pia e olhou o próprio reflexo no espelho. Parecia pálido e levemente enjoado. Engoliu o choro e jogou água gelada no rosto. Sabia que precisava se controlar, mas o peso na consciência por ter beijado não diminuíra um miligrama sequer, e tudo que queria era apagar aquela sensação. Não era justo que os beijos de Sadie tivessem gosto de culpa, agora. Então, como um adolescente tentando disfarçar para os pais que andou fumando, abriu o armário por trás do espelho e escovou os dentes para limpar o gosto de de sua boca.
Depois de cuspir a espuma, alguém tentou abrir a porta trancada. Sobressaltou-se, e, antes que respondesse, ouviu três batidas na madeira.
– Tem gente. – respondeu. Jogou água no rosto mais uma vez, começando a se sentir mais no controle das suas próprias emoções.
– Sou eu. – se identificou.
– Ok. – concordou, impaciente. – E podia ser a rainha, mas eu acabei de dizer que tem gente. – repetiu, azedo.
Secou o rosto, ajeitou sua camisa e se olhou novamente no espelho. Sentia-se um pouco melhor e um pouco mais pronto para sair e fingir se divertir durante várias longas horas. Respirou fundo e abriu a porta.
Não pôde sair, no entanto, pois, assim que a abriu, deu de cara com , parado como uma estátua logo à sua frente, fazendo-o frear.
– Que que é isso, porra... – exclamou, assustado.
– Você ‘tá ok? – ele perguntou apenas, e mais uma vez as peças se encaixaram.
revirou os olhos e levantou os braços num gesto de impaciência.
– Bacana. Alguém anunciou num megafone que a ‘tá aqui?
– O contou só pra mim, seu bostinha ingrato. Vi que você entrou em casa com cara de que ia vomitar e eu vim ver como você ‘tá.
olhou furtivamente para os lados e, percebendo que aquela conversa poderia chamar uma atenção indesejada, puxou para dentro do quarto ao lado, fechou a porta e imediatamente confessou angustiado:
– A gente se beijou. – a sensação era de que seu peito iria arrebentar se aquelas palavras não saíssem logo.
– Vocês se beijaram? – se admirou. – Cara, isso é tão errado...
– Eu sei! Você acha que eu não sei? Eu sei!
– Então por que você fez isso?
– Porque eu não consegui me controlar. – lamentou. – Eu sei que eu tô sendo fraco e que isso não é justo com a Sadie, mas foi sem pensar. Eu pensei que essas coisas que só acontecessem em filme, mas eu juro que não, eu juro, não consegui me controlar! – repetiu, e logo em seguida mudou de tom, como se tivesse acabado de perceber algo: – E também não é justo comigo, pra falar a verdade! Durante anos eu teria dado a vida por essa mulher, e agora que eu tô bem, finalmente, , eu tô bem! Tô com a Sadie... Aí ela me aparece do nada. Isso sim é que é errado! Tão errado… ‘Tá tudo errado. – gemeu, sentando-se na cama e afundando o rosto nas mãos. – Ela tá errada, ! Como é que pode uma pessoa fazer uma confusão tão imensa na cabeça da gente? – murmurou, atormentado.
sentiu o peso do colchão afundando ao seu lado quando amigo se sentou, e a mão dele apertando seu ombro.
– Não sei. – ele murmurou. – Mas sei que qualquer homem do mundo, no seu lugar, estaria confuso assim, se não muito mais.
levantou o rosto e fungou, limpando uma lágrima que escorria com as costas da mão.
– Eu não sei o que fazer com tudo isso.
– Acho que... pensar sobre o que você quer fazer.
Ele olhou para o amigo. Primeiro, fez silêncio. Depois fez uma careta confusa. A verdade é que o redemoinho dentro dele era tão confuso e violento que sequer parara para raciocinar que teria de agir em cima daquela situação. Só processar toda a confusão dos seus sentimentos já era avassalador, imagine então a pressão de ter que tomar qualquer tipo de decisão em relação àquilo tudo.
– O que eu quero fazer? – repetiu, incrédulo. – O que você quer dizer?! Eu não tenho nada pra fazer, vou fazer o quê? – ficando cada vez mais exaltado. – Fingir que os últimos anos não aconteceram, terminar o relacionamento que tenho com uma mulher incrível, que eu amo, pra... voltar com a ?!
– Talvez. – disse manso, dando de ombros.
– E por que diabos eu faria isso? – ralhou.
– Porque ela botou no seu rosto um sorriso que ninguém conseguiu tirar. – explicou. E acrescentou: – Só ela, quando foi embora. Eu sei que o tempo passou, as coisas melhoraram, e aos poucos você foi voltando a ser você. Mas aquele sorriso, cara... Aquele sorriso, nunca mais. Eu nunca mais vi.
encarou o amigo por alguns segundos, até que ponderou:
– Isso não significa que o meu sorriso de hoje seja pior do que... aquele sorriso.
– Tem razão. – concordou pensativo, assentindo com a cabeça. – Tem razão. Talvez não seja pior, só... diferente. E diferente também pode ser bom, né?
Mas, naquele momento, percebeu que nenhuma das suas alternativas parecia muito boa para ninguém.
– Então eu vou fazer o quê? – riu sem humor. – Fingir que a nunca apareceu na minha porta?
– Talvez. – deu de ombros mais uma vez.
– E como diabos eu vou fazer isso?!
– Mantendo em mente que, como você mesmo disse, você ‘tá num relacionamento com uma mulher incrível, que você ama.
fez mais uma pausa, virando o rosto para frente e deixando o olhar se perder ali. Respirou fundo e soltou devagar:
– Que conselheiro de merda você é.
sorriu.
– Eu não tenho como te dizer o que fazer, . Só tô dizendo que você precisa colocar as coisas na balança... – ele passou o braço em volta dos ombros do amigo e os apertou, em sinal de apoio. – Mas, antes de tudo, você precisa sobreviver a essa festa.
– Eu não quero que a Sadie perceba. – afirmou. – Eu vou precisar conversar com ela eventualmente, mas não aqui, não agora.
fez que sim com a cabeça.
– Então, em nome dos velhos tempos, a gente vai sair desse quarto e vai fingir que ‘tá tudo bem com a mesma maestria com que a gente fingia estar de boa durante as aulas, quando, na verdade, a gente tava completamente chapado depois de ter fumado no banheiro. – propôs, arrancando um esboço de risada do amigo. – Você vai se controlar na bebida pra gente evitar qualquer tipo de deslize, e, antes que você veja, essa noite vai ter acabado!
assentiu com a cabeça, obediente.
– ‘Tá. Agora só preciso descobrir de onde vou tirar vergonha na cara pra encarar a Sadie. – falou com ironia.
– A gente sempre pode pedir o pra deixá-la completamente bêbada. – sugeriu, rindo.
– Ele, de fato, é muito bom em embebedar as pessoas. – concordou, esfregando o rosto mais uma vez antes de se encaminhar para a porta.
? – chamou, ainda sentado, e o amigo se virou. – Eu sei… que depois da ter ido embora, você ficou procurando o motivo em você e nas suas ações e tal... E eu sei que você se esforça todos os dias pra ser perfeito pra Sadie, mas ninguém consegue não errar nunca. Então... Sobre esse beijo... Não se martiriza, ‘tá bom? – finalizou.
, que olhou para o chão durante toda a fala do amigo, apenas engoliu em seco e fez que sim com a cabeça. Depois, saiu em direção ao apartamento cheio de amigos, conhecidos e familiares, determinado em cumprir perfeitamente o plano de ação que tinham desenhado.


31

You must leave now, take what you need, you think will last
But whatever you wish to keep, you better grab it fast
(...)
The carpet, too, is moving under you
And it's all over now, baby blue
(...)
Strike another match, go start anew
And it's all over now, baby blue

(It's All Over Now, Baby Blue – Bob Dylan)


Honey & Co, Warren Street, 25, Londres – Domingo, 15:03

Quando passou pela porta do café, soube imediatamente que seu sentimento por ele não havia mudado uma gota sequer. Soube disso porque, assim que o viu, a primeira coisa que fez foi se perguntar como era possível que ele fosse ainda mais bonito do que ela se lembrava. E está aí uma denúncia incontestável contra as pessoas apaixonadas: para a pessoa apaixonada, não existe efeito negativo do tempo, não importam construções sociais, não há competição no mundo que te convença de que aquela não é a pessoa mais bonita que você já viu. Você pode até saber que aquela é só a sua opinião e que só pensa assim porque está apaixonado, mas isso não muda nada.
Ela correu os olhos por ele, tentando absorver com os olhos mais do que a visão era capaz de enxergar. Tudo nele era convidativo… A pele, sempre quente. Os olhos, sempre verdadeiros. Nos seus braços, o melhor abraço do mundo. Sua boca era cheia das melhores memórias. Era como se ele fosse feito sob medida para atender a todos os critérios que faziam seu coração acelerar.
se aproximou, e , que ainda não sabia o que dizer ou como agir, se levantou, pronta para um cumprimento ainda indefinido. Quando ele parou à sua frente, ela já estava a meio caminho de aproximar-se dele, mas freou também, sem saber como prosseguir, e se encaram por um segundo. Ela se constrangeu por aquele desencontro inicial. Ele estava sério, os olhos atormentados.
analisou a postura dela, entendendo que havia dado os primeiros passos para um abraço. Em silêncio, ele apenas balançou a cabeça para os lados em um gesto curto. A mensagem era clara. Ela não merecia um abraço. ofegou e concordou com a cabeça em movimentos rápidos, sabendo que não merecia mesmo. Sentou-se novamente, e ele a imitou.
Uma garçonete veio até a mesa e perguntou o que queriam. Ainda atordoada, mas sedenta por algum acontecimento qualquer, se apressou:
– Eu quero um café. Você… – olhou para ele, que fez que sim. – Dois. Dois cafés, por favor. – gaguejou.
Olharam-se. Ambos estavam duros. As bocas secas, quietas, apesar das cabeças cheias de palavras e os corações transbordando.
A garçonete voltou pouco depois, deixando sobre a mesa as duas xícaras e um cardápio.
– Obrigada. – disse, e apenas sorriu para a moça. Até seu sorriso era tenso. Como se o próprio ar que o rodeava fosse um incômodo.
colocou uma colher de açúcar na sua bebida e passou o pote para ele. , no entanto, já estava com a xícara na metade do caminho até a boca, então apenas negou com a cabeça e deu um gole.
– Nem um pouco? Você toma café sem açúcar agora? – ela se surpreendeu. Era engraçado como algumas pequenas mudanças pareciam significativas. – Mas é amargo… – comentou despojadamente, sabendo, no fundo, que era ridículo estranhar aquilo. Sabia que não podia esperar que cada um dos traços e hábitos dele ainda fosse o mesmo.
Pela primeira vez, falou. E sua resposta veio em outro ritmo, como um canivete afiado:
– Você também era. E isso não me impediu.
piscou algumas vezes, como que para clarear a vista.
– Uau. – murmurou sem fôlego. A sensação era de um soco no estômago. Tossiu um pouco, porque chegara a engasgar um pouco do café.
Ela engoliu em seco. Quis olhar para ele, mas, por algum motivo, não conseguiu de imediato. Precisou tomar mais um gole antes de conseguir levantar os olhos para ele e buscar dentro de si a força necessária para sustentar seu olhar intenso. E bastou encará-lo por alguns segundos para perceber que aquela expressão dura era muito diferente do rosto que ela um dia conhecera. Analisou a postura dele, o maxilar tenso, os olhos carregados. Então, desabafou:
– Você mudou.
suspirou e fez que sim com a cabeça, devagar, dizendo:
– A mágoa faz isso com a gente.
, olha só… – começou, quase suplicante. O tom daquela conversa era como uma surra para ela. – Eu não vim aqui pra bagunçar a sua vida. Eu juro. Não vim com a intenção de destruir seu relacionamento, nem te causar nenhum tipo de problema, eu… – ela respirou fundo. – Eu vim porque eu precisava voltar. E não conseguiria fazer isso sem te ver. Sem colocar as coisas em pratos limpos… Entende? Sexta à noite foi um choque pra mim, também. – acrescentou. – Então será que a gente podia… Sei lá, vamos abaixar a guarda um pouquinho? – pediu, olhando no fundo dos olhos dele. – Só conversar um pouco, direito, sem esse… Não precisa desse ódio. – sussurrou, abaixando o olhar.
observou aqueles olhos tristes, que um dia foram seu precipício, e sentiu o interior amolecer um pouquinho. Então, concordou num gesto tímido de cabeça.
– Pode ser? – ela indagou, esperançosa.
– ‘Tá bem.
conseguiu ensaiar um sorriso tremido de alívio, de nervoso, pela primeira vez sentindo um pouco do peso sobre seu peito se dissipar. Ficaram em silêncio por um segundo, mas logo foram interrompidos pela garçonete mais uma vez:
– Vão querer mais alguma coisa? – ofereceu, simpática.
buscou os olhos dele e arriscou:
– Não é aqui que tinha aquele cheesecake que a gente gostava? – perguntou, tímida. fez que sim com a cabeça, com uma expressão difícil de interpretar. Talvez fosse uma tentativa de neutralidade. – Eu vou querer um pedaço.
– Eu tô bem. Obrigado. – ele negou educadamente.
A garçonete saiu novamente, e o silêncio que se seguiu já pareceu um pouquinho menos tenso que o anterior. respirou fundo antes de dizer:
– Eu pensei em pedir desculpa por interromper a sua festa de aniversário, mas depois… Eu confesso que pareceu um pouco insignificante diante de… tudo. – admitiu, sorrindo amarelo.
– Tem razão. – soltou um sorriso amargo também.
Pela primeira vez em muitos anos, e sorriam juntos. Ainda que fossem sorrisos meio insossos e encabulados.
A garçonete logo voltou com uma fatia generosa da sobremesa. agradeceu e levantou a colher para , oferecendo silenciosamente um pedaço, mas ele moveu mais uma vez a cabeça para os lados com aquela expressão cortês.
– Eu espero que você tenha curtido seu aniversário mesmo assim. Foi boa a festa? – ela perguntou, cuidadosa, enquanto começava a comer a torta. Estava curiosa. Curiosa sobre ele, sobre sua vida, sobre tudo. Porém, sentia que estava descalça, tentando juntar milhares cacos de vidro depois de quebrar um copo.
– Foi. Foi… um bom aniversário. – ele respondeu, mentindo, obviamente. O resto da sua festa tinha sido uma das noites mais desconfortáveis da sua vida.
– Sua irmã não ficou muito feliz em me ver. – ela comentou, e logo em seguida admitiu: – E talvez eu tenha sido um pouco grosseira com ela também.
– Ela ficou muito protetora comigo nos últimos anos. – rolou os olhos para cima, mas o gesto se misturou com um sorriso carinhoso quando acrescentou: – Acho que ela sente falta de cuidar de alguém, agora que a Libby não é mais um bebê.
O rosto de se iluminou. Nunca imaginara que ficaria tão feliz em ouvir alguém falar sobre uma criança, mas estava extasiada em ver que ele realmente estava abrindo uma brechinha para ela. A perspectiva de saber mais sobre , de ter sua companhia por algumas horas, sentir um gostinho que fosse dele fazia seu coração vibrar tão forte que era difícil disfarçar.
– Ela ‘tá com quantos anos?
– Acabou de fazer 8. – sorriu um pouco mais animado, apesar de ainda estar visivelmente se contendo para controlar o clima da conversa.
– Não acredito! – ela exclamou, tentando imaginar a menina. – Então ela já ‘tá na escola.
– Já, já… E ela é tão inteligente! – admirou-se, e seus olhos realmente brilharam. – Eu sei que todo mundo fala isso sobre as crianças que amam – confessou – Mas ela é incrível de verdade. Engraçada demais. ela inventa umas piadas que não dá pra acreditar… – disse, lembrando-se de alguma memória em meio a uma risada que escapou. – Mas fica brava igual gente grande também, faz cada discurso inflamado… Nisso, ela puxou a mãe dela.
sorria junto com ele, observando os detalhes do seu rosto e querendo absorver cada segundo daquilo. Vê-lo assim, de perto, falando com tanto carinho, era como um banquete – ainda que nada aquele carinho fosse para ela.
Ela comeu mais um pedaço da torta e, percebendo que acompanhara o movimento da colher, ofereceu de novo:
– Quer? – ele hesitou e, aproveitando-se daquele um segundo de trégua na postura dele, insistiu: – Pode querer.
Ele riu e estendeu a mão para pegar a colher.
– E vocês se veem muito? – ela continuou.
fez que sim com a cabeça.
– Elas se mudaram pra Londres.
– Ah! – exclamou, surpresa. – Que coisa boa,
– A Kayleigh ‘tá trabalhando com e-commerce numa loja de roupas enquanto faz faculdade à noite.
– Faculdade de quê?
– Contabilidade. É puxado pra ela, ter que conciliar tudo isso… Mas ela ‘tá feliz demais. Conheceu um cara legal, que é ótimo pra Libby… Eles moram juntos.
– Eu fico muito, muito feliz por ela. – disse, sorrindo genuinamente.
Fez-se silêncio por um instante, e percebeu como havia sido fácil falar tudo aquilo sem nem pensar. Ele não tinha planejado falar nada daquilo, mas sentiu, de repente, o quanto conversar com ainda era natural para ele, e o quão gostoso era dividir as coisas com ela – notícias, uma sobremesa, a cama…
Ficou subitamente constrangido pela própria divagação. Definitivamente, não pretendia passar para ela a impressão de que estava tudo bem. Acontece que a conversa já tinha tomado um ritmo diferente. Não era mais hostil. Mas também não era alegre, apesar de a tensão ter diminuído. Era uma paz, de certa forma, triste. Ou seria uma tristeza pacífica? Não saberiam dizer, mas, claramente, algo naquele encontro era melancólico. Como lágrimas que já secaram, mas você ainda sente a trilha fria e seca por onde elas passaram no seu rosto.
– Você se importa de me contar sobre a sua noiva? – pediu com cautela.
A pergunta o pegou desprevenido. Ele piscou algumas vezes e pigarreou. Então, olhou para ela e viu que a pergunta era sincera. Sua sobrancelha havia se franzido, então ele mexeu um pouco o rosto para relaxá-lo e molhou os lábios antes de começar:
– Ela chama Sadie. – mal começara e foi tomado por uma pressão esquisita, não sabendo exatamente qual era a maneira correta de falar sobre Sadie para . Como se tivesse que se esforçar para mostrar a o quão incrível era a sua noiva, o que era absurdo, na verdade. Sadie não precisava que ninguém mentisse por ela para fazê-la parecer incrível. Ela era. – Ela é professora na escola da Libby. – continuou, sentindo que havia feito uma pausa longa demais. – A Kayleigh foi chamada pra uma reunião na escola um dia, mas ela teve um problema no trabalho, e eu acabei tendo que ir no lugar dela – contou com uma risada já começando a escapar da boca por causa daquela memória. – Eu cheguei lá preocupado com o que ela poderia ter feito, até que a diretora, rabugenta e bem puta da vida, me contou que a Libby tinha falsificado a assinatura da Kayleigh em um bilhete. É claro que uma criança que ‘tá sendo alfabetizada não consegue imitar uma assinatura, mas a melhor parte... – ele balançou o rosto para os lados, o riso deixando os olhos dele pequenininhos – é que ela assinou “mamãe”. – se pegou sorrindo junto, porque era seu vício. – Eu quase consegui segurar a gargalhada, mas quando percebi que a Sadie também tava morrendo de vontade de rir, eu não aguentei… – comentou enquanto o riso morria.
De repente, sentiu seu coração se partir mais um pouco. Porque aquele sorriso a desestruturou completamente. Nada nem ninguém no mundo tinha o poder de sorrir e aquecer tanto seu coração e, ao mesmo tempo, deixá-la tão desorientada. Mas aquele sorriso não era mais para ela. Aquele sorriso era de outra agora.
– Foi assim que a gente se conheceu. – ele continuou. – E, na época, eu buscava a Libby na escola de vez em quando, então… Aos poucos, a gente… – abandonou a frase. Em questão de segundos, como se os pensamentos de tivessem vazado no ambiente e manchado a atmosfera, ele também pareceu subitamente triste. Um pensamento repulsivo lhe atingiu de uma vez, e ele desabafou, os olhos molhados e cheios de culpa: – Eu nem acredito que nunca traí você, mas traí a Sadie.
Só ali, enquanto falava sobre uma para a outra, é que pareceu perceber a triste ironia do erro que cometera duas noites antes. E vê-lo assim, por qualquer que fosse o motivo, esmagava mais ainda o coração de , então se apressou em tentar consolá-lo:
– Foi um beijo de dois segundos. – murmurou, tentando amenizar o peso na consciência dele.
não disse nada, mas ambos sabiam que a intensidade e importância daquele beijo não poderiam, jamais, ser medidas em segundos. respirou fundo, pois sabia que não seria fácil ouvir a resposta para a pergunta que pretendia fazer. Murmurou: – Você a ama? – levantou o rosto, sentindo que precisavam se olhar nos olhos para aquela resposta. Ele fez que sim com a cabeça. – E ela ama você? – continuou, e ele repetiu o resto. Então, juntando todo o amor que tinha por em seu coração, ela respirou fundo mais uma vez e o assegurou: – Então vocês conseguem passar por cima de um beijo.
Dizer cada uma daquelas palavras doeu. Doeu ter de tranquilizá-lo sobre aquilo. Doeu porque ela, de fato, acreditava no que estava dizendo. Doeu pensar em todos os capítulos da vida de dos quais ela não era mais parte e saber que muitos outros como aquele estavam por vir. Sentia vontade de chorar, mas não se permitiu.
– Não faz isso. – pediu, interrompendo seus pensamentos. Seu tom de voz era de repente mais amargo, como estivera mais cedo. havia deixado seu olhar se perder sem querer. Voltou a focar o olhar nele e percebeu que a estivera observando com atenção. Ele balançava a cabeça para os lados, parecendo irritado.
– Isso o quê? – indagou, confusa.
– Não faz essa cara. – ele pediu, exasperado.
– Mas que… – ela começou. Então, pigarreou, molhou os lábios com a língua e mexeu um pouco as sobrancelhas, na tentativa de mostrar uma expressão neutra. Talvez seus sentimentos tivessem ficado claros demais sem querer. – Que cara?
– Essa cara de tristeza, como se tudo não tivesse sido culpa sua. – sussurrou devagar, com um indício de veneno reaparecendo na sua expressão.
riu sem humor, sentindo as lágrimas encherem os olhos e se esforçando para equilibrá-las lá. Aquela tristeza era justamente porque sabia que a culpa era sua.
– Eu sei que fui eu que estraguei a gente.
– Foi. – a interrompeu, voltando a assumir um tom hostil como o de mais cedo. – Foi você, . Foi você, sozinha, que fez essa escolha pra nós dois. – a velocidade com que seu peito subia e descia foi acelerando. A fúria era crescente em seu corpo, sua voz, seus gestos. – E esse tempo todo eu fiquei aqui, vivendo com o que você tinha feito e me perguntando: o que você queria? Sinceramente,– exclamou, gesticulando, indignado –, o que mais você queria de mim, ? – ele riu, exasperado. – Eu sabia te fazer rir, te cuidar, te dar prazer. Eu me esforçava todos os dias pra te entender, mesmo quando nada do que você fazia tinha o menor sentido pra mim! – todo aquele ódio pareceu não caber mais em , como se ele fosse rachar. – Eu lutei por você e teria lutado até mais, se fosse preciso. – admitiu num tom reverente, que revelava até um pouco de vergonha do próprio comportamento. Finalmente, trincou, e toda aquela raiva agora transbordou manchada de mágoa: – Eu te amava, . E eu não só te disse isso, como eu te mostrei também. Então – finalizou devagar –, o que mais você queria de mim?
ficou em silêncio por um segundo, só observando a revolta melancólica no olhar dele. Então, se sentiu incapaz de continuar contendo as lágrimas e abaixou a cabeça, chorando.
– Nada, . – murmurou. – Eu não queria nada mais de você. Eu queria mais de mim.
– Ela sabe que eu vim aqui hoje. – ele disparou, ignorando a confissão dela. As palavras de pareciam não ter qualquer efeito sobre as de . E não tinham, mesmo. Ele tinha coisas demais para dizer, e nada que ela pudesse responder mudaria isso. – Fui sincero com ela, e ela me disse pra vir e resolver o que eu tinha pra resolver pra que eu e ela possamos ser feliz juntos. Você entende isso, ? – ele questionou, os olhos semicerrados. – Ela me disse isso com toda a tranquilidade do mundo, enquanto você leu duas frases suspeitas e decidiu a nossa vida por causa de uma mensagem! Uma mensagem qualquer, e você jogou tudo fora. Eu fiz tudo por você, e você… Você não fez nada por mim. – disse mais baixo. – Tudo que você tinha que ter feito era conversar comigo… – ele se queixou, afundando o rosto nas mãos.
tinha uma sensação estranha de secura. Queria chorar, mas seu corpo parecia desidratado. A boca estava seca, e a garganta doía um pouco, como se todas aquelas palavras não ditas durante anos a tivessem rasgado.
tinha consciência de que não era hora de tentar argumentar e dizer que ele estava sendo injusto. Não adiantava lembrá-lo de que, apesar daquilo tudo, ela também o havia feito feliz. Sabia que não adiantaria, porque era claro o que estava acontecendo ali: estava machucado. E, quando estamos machucados, dizemos maldades impensadas. Naquele instante, ela enxergou nitidamente a si mesma no comportamento dele.
– Eu sei... – ela suspirou, exasperada. Até quando precisaria confessar aquele erro? – Eu simplesmente não consegui raciocinar, . Quando eu vi aquela mensagem e pensei que você também tinha… Você entende o que eu senti?! Eu pensei que você tivesse me traído! E eu não podia mais me machucar daquela forma…
– Então, decidiu me machucar? – ele interrompeu, indignado.
– EU NÃO SABIA! – devolveu, o volume ultrapassando o dele, sem nem se importar com o fato de que as pessoas ao redor agora começavam a olhar para a mesa deles. – ‘Tá vendo, ? – continuou, o volume um pouco mais baixo, mas a voz ainda alterada. – Agora, nesse exato instante, você ‘tá vendo o quanto você ‘tá machucado e como isso faz você me tratar? Você é o cara mais carinhoso que eu conheço, e agora você ‘tá me tratando como se eu fosse um chiclete preso no seu sapato! Você ‘tá vendo? – perguntou, apontando para ele. – ‘Tá vendo isso? Isso é porque quando a gente ‘tá machucado, a gente fica agressivo e faz coisas que normalmente não faria. É isso, . E eu sei que você não tinha feito nada de errado. Eu sei que você sempre foi sincero comigo, que me amou e me respeitou da maneira como eu quero ser amada e respeitada pelo resto da minha vida, mas, naquele momento, , eu tava tão profundamente machucada… – ela arfou, um pouco sem ar pela velocidade. – Que, pela primeira vez, eu esqueci como amar todas aquelas coisas em você. E eu sei que se tivesse conversado com você, a gente podia ter esclarecido tudo, mas quando eu li aquilo... Na hora, doeu demais pra eu conseguir enxergar isso com clareza. Então, eu fiz a única coisa que eu pensei que poderia ajudar: arrancar você da minha vida. Bom, eu tava errada. – admitiu, dando de ombros. – Eu tava errada, , e eu sei disso hoje. Soube durante anos. Porque nunca parei de pensar em você.
Fez-se silêncio por alguns segundos enquanto os dois se encaravam e observavam os peitos ofegantes e os olhos molhados. As bocas estavam mudas, mas a energia ainda era como a de um furacão. Até que acrescentou, baixo:
– Pode passar o tempo que for, mas ainda acontece às vezes de eu pensar em você, e, de repente, fica difícil até respirar, . – uma lágrima escapou de seus olhos, e ela se apressou a secá-la, pois queria vê-lo com olhos limpos enquanto dizia as palavras a seguir: – Eu te amo, e não sei se algum dia vou conseguir parar.
Ele, que não tinha movido um músculo sequer desde que começara a falar, ainda imóvel sentenciou num tom grave, com o rosto duro:
– Bom, eu tive que descobrir. Então, tenho certeza de que você também consegue.
Uma expiração rápida e pesada escapou da boca dela, aquela sensação de soco no estômago aparecendo mais uma vez. Ela o tinha perdido. Aquele bem humorado que ela havia conseguido trazer para a superfície por alguns minutos havia sumido de novo.
– O quê, então? – ela riu, incrédula e ferida. – Você me odeia, agora? É isso?
balançou a cabeça para os lados, sem dizer nada.
– Não, . Eu bem que tentei. – admitiu. Franziu o cenho, desolado. Nem era sua intenção ser maldoso. As palavras apenas estavam saindo sem filtro. – Mas não consegui. – ele esfregou o rosto, exausto, como se precisasse clarear as ideias. Então, respirou fundo e disse: – Eu não te odeio, , eu só… – deixou a frase morrer. Levantou os olhos para ela, absolutamente esgotado, e perguntou genuinamente: – Por que a gente ‘tá aqui?
Ela foi pega de surpresa. Piscou algumas vezes para ganhar tempo, e ele prosseguiu:
– Quer pôr o papo em dia? Jogar conversa fora, como se fôssemos amigos, ? – ele continuou.
– Não…
– A gente não é! – exclamou.
– Nã– ela tentou iniciar uma frase, que, para falar a verdade, nem sabia como terminar.
– Então, o que você quer de mim agora? – ele interrompeu num tom tão cansado que beirava a súplica.
Mas antes que a mulher dissesse o que queria, de fato, ele, mais uma vez, balançou a cabeça para os lados, em negativa. Ela ainda nem tinha dito nada, mas não precisava. Ainda não tinha feito a pergunta, mas a resposta era não. sabia que era não. Soubera o tempo inteiro, desde o momento em que ela apareceu de surpresa na sua porta. Desde mais cedo, quando contou a Sadie que estava indo encontrar . Desde o minuto em que entrara no café, sabia que a resposta, no fim das contas, era não. Não havia nada que ela pudesse dizer para fazer com que ele decidisse mudar a história.
percebeu, ali, que aquela era sua chance final. Então, aprumou o corpo e reuniu coragem para colocar aquilo em palavras:
– O que eu quero, – respondeu com a voz trêmula –, é acordar do seu lado de manhã e saber que não tem nenhum outro lugar no mundo onde você preferia estar. Eu quero fazer parte do seu dia a dia, ouvir sobre o seu trabalho, ir em todas as reuniões de família que sua mãe conseguir inventar. Eu quero que você volte a me olhar do jeito que você já olhou um dia, mas não olha mais. Imagino que hoje você olhe assim pra ela. – finalmente, disse as palavras que, apesar de não ter ensaiado um roteiro para aquele encontro, sempre soube que precisavam ser ditas: – O que eu quero é que a gente volte um pro outro.
O silêncio se instaurou novamente, mas agora o furacão havia passado. Era mais como o silêncio que se segue às tempestades. Aquela quietude devastadora enquanto todos contemplam a destruição.
permanecia imóvel. A resposta era não, mas tudo em seu interior torcia para que não o obrigasse a dizer aquela palavra em voz alta, porque ele sinceramente não sabia se conseguiria.
Felizmente, sua mudez foi clara o suficiente. Com a voz completamente despedaçada, a mulher chegou sozinha à óbvia conclusão:
– Você vai falar não, não é? – indagou, mesmo que já soubesse a resposta. Soltou um riso ácido. – Por um segundo aqui, pensei em dizer que não vou aguentar isso, mas… é claro que vou. – então, inspirou fundo, balançando a cabeça para cima e para baixo em aceitação. – E não vou ficar aqui chorando e dizer que não mereço isso, porque provavelmente mereço sim. – admitiu, dando de ombros. – Só não quero. Não quero ouvir você dizer isso, . Então, eu vou embora. – ela contemplou mais uma vez aqueles olhos , que nunca deixariam de visitar seus pensamentos, pegou sua bolsa ao seu lado e murmurou: – Pode deixar que eu pago a conta. – então, levantou-se e saiu.
Enquanto caminhava em direção ao caixa, sentiu as pernas um pouco fracas, dormentes. Teve vontade de se sentar, mas seguiu. Ainda tinha dificuldade de discernir o que exatamente estava sentindo. Era uma mistura esquisita de alívio e desorientação.
Alívio por ter, finalmente, conseguido aquilo que viera de fato buscar: um desfecho. Não da maneira como sonhara, no seu íntimo. Mas um final, ainda que um final indesejado, é melhor que uma vida inteira de dúvidas e expectativas.
Desorientação porque sabia que algo ainda estava por vir. O vazio que fica depois de uma raiz arrancada, aquela infelicidade profunda que acompanha o fim de uma relação tão significativa ainda não tinha chegado. Esse tipo de percepção, de que as coisas acabaram, às vezes demora a se formar, tanto no cérebro quanto no coração. A mulher continuou em silêncio, resignada, como que esperando o efeito da droga bater. Enquanto pagava a conta, ouviu a porta do estabelecimento se abrir e se fechar e soube que ele tinha ido embora.
Quando saiu, ainda meio atônita, deparou-se com parado do lado de fora, apoiado contra a parede e terminando de fumar um cigarro.
Olharam-se, como que se dando uma última oportunidade de dizer quaisquer palavras que tivessem ficado perdidas. Então, deu o último trago, jogou a ponta do cigarro no chão e pisou em cima dela. E, com toda a calma que uma despedida daquela magnitude merecia, ele sustentou o olhar dela por mais um instante, virou as costas e foi embora.
Depois que ele tinha dado alguns passos, num engasgo atrasado, se arriscou:
– Ajudaria se eu te dissesse que ninguém nunca vai te amar como eu? – assim que ouviu a voz dela, parou. – Porque é clichê – ela riu, com lágrimas nos olhos –, mas é verdade. – mais um segundo se passou e retomou a caminhada. Dando-se por vencida, ela se rendeu baixinho: – Espero que vocês sejam muito felizes juntos.
Para sua surpresa, interrompeu seus passos mais uma vez. Ainda num ritmo espaçado, ele se virou para trás com um semblante pensativo e olhou para ela por algum tempo. Conhecendo-a como conhecia, dessa vez sem maldade, sem julgamentos, mas com total certeza do que dizia, ele constatou:
– Mentira. – disse apenas, tão direta e simplesmente, que foi compelida a reconhecer que ele tinha razão. Fez que sim com a cabeça.
– É. – murmurou, e viraram-se cada um para um lado.
Ele tinha razão. Ela abaixou o rosto, envergonhada por simplesmente não ser melhor que aquilo. Aquelas palavras, por mais que ela gostaria que fossem, não eram verdadeiras. Jamais seria capaz de desejar mal a e, para falar a verdade, a Sadie. Não é que ela torceria para que fossem infelizes. É só que há amores grandes demais para existir sem esperança. Então, um pedacinho escondido de sempre viveria na esperança de ver voltar.

O sol começava a se pôr, e não estava nem um pouco ansiosa para mais uma noite. Há algum tempo já não dormia bem. Os últimos dias em Londres só fizeram a situação piorar. A pior parte da insônia era que as horas pareciam passar infinitamente mais devagar do que durante o dia, e era justamente em meio àquele silêncio que ela se sentia mais sozinha. Então, todas as noites, enquanto escurecia, ela sabia que aquelas horas intermináveis de solidão estavam se aproximando.
Desde que saíra do café, estava sentada ali, sobre um bloco de concreto no alto do telhado da BBDO, olhando o horizonte como fazia antigamente. Tudo parecia mudado, mas não saberia dizer o quanto daquilo de fato era novo e o quanto era simplesmente falha da sua memória. O fato é que tudo parecia diferente. Estivera naquele telhado diversas vezes com , mas o sentimento que tinha agora era o oposto do que costumava sentir. Naquela época, ver toda a cidade do alto fazia com que ela se sentisse parte de algo grande. Agora, ver aquela imensidão desconhecida lhe dava uma sensação sufocante de insignificância. Talvez a diferença fosse que, naquela época, seu coração era cheio. O coração vazio, agora, evidenciava que já não era mais parte de coisa alguma. Era minúscula diante de tudo aquilo, diante daquela vastidão de construções cheias de pessoas. Ela se perguntou se alguma daquelas pessoas se sentia tão sozinha quanto ela. Era óbvio que sim, sabia, algumas até mais, porque tinha consciência de que a vida não era um filme e os dramas dela não eram piores que os de outras pessoas. Mas a tristeza faz isso com você às vezes. Ela te faz perder a perspectiva.
E, então, bateu. O efeito tardio daquela droga implacável que era o fim, afinal, chegou. Ela sentia que seu caos interior começava a se manifestar, como um quarto completamente bagunçado, entupido de objetos pesados e empoeirados que começavam lentamente a cair uns sobre os outros, fazendo um barulho estrondoso que nada no mundo parecia capaz de interromper.
Aquele cenário solitário não era o que tinha imaginado para sua volta a Londres, e ali ficou mais claro que nunca o quão porcamente havia construído sua vida pessoal e suas relações. Retornava para Londres sem nada, ninguém. Apenas . Não sabia nem que tipo de ajuda exatamente pedir a ele. Sua respiração começava a adensar, no que parecia o início de um ataque de pânico. Então, talvez fosse apenas o momento de ligar e dizer: , estou em cima do telhado da BBDO e não tenho o que fazer ou para onde ir. Talvez você devesse vir me buscar.
esfregou o rosto com força, soluçando um choro estéril que não saía direito, sem força suficiente para tomar forma. Agachou-se lentamente, sentando-se no chão com as costas encostadas contra o muro. Seu rosto se contorcia por causa de uma dor embaralhada, tanto física quanto interna, e ela não sabia dizer se começava por dentro e continuava por fora, ou vice-versa.
O fato é que algo dentro dela precisava estourar. Queria gritar, mas parecia não saber por onde começar. Só sabia que precisava drenar aquilo. Gostaria de poder resolver todos os seus sentimentos e problemas com uma agulha, para fazer um furo e deixar sair tudo. Porém, de repente, lhe veio à cabeça a lembrança de um jogo que lhe havia ensinado.
Riu meio grogue, lembrando-se da vez que lhe contara que, quando era novo e se sentia ansioso, seu pai o levava para o seu escritório, no último andar de um prédio alto. Lá de cima, cada um ocupava uma janela e, por fim, gritavam. Gritavam, cada hora um, qualquer associação que viesse à mente. Não precisava fazer sentido, não precisava ser bonito. Gritavam livremente a plenos pulmões, sem se importar com quem ouviria, por quanto tempo fosse necessário. Depois, sentindo-se mais leves, pai e filho iam embora juntos, sem nunca questionar as palavras um do outro. O jogo e tudo que surgia nele eram sagrados.
ofegou, e, num golpe de coragem desesperada, disposta a tentar qualquer coisa que lhe aliviasse, levantou-se com força, abriu os braços para a cidade à sua volta e berrou o mais alto que conseguiu:
– PUTA QUE PARIU!
Sua voz ecoou um pouco, e ela observou o horizonte, quase como se pudesse ver o eco da sua voz se afastando. Estranhamente, algo havia se suavizado dentro dela. Seu peito ainda subia e descia rápido, mas o ar voltava a entrar com mais facilidade. Tentou mais uma vez. Dessa vez, o que saiu foi apenas um grito rouco de uma vogal prolongada. Por um segundo, pensou que seria difícil jogar sozinha, sem outra pessoa cujas palavras pudessem lhe inspirar. Nunca fora lá muito boa em brincar de nada com ninguém, quanto mais sozinha. Mas a hesitação durou pouco, pois aquele grito já foi logo seguido de outra palavra:
– ÓDIO! – e outra – DROGA! – e outra – HEROÍNA! AGULHA! SANGUE! VERMELHO! UNHA! MÃO! MÃE! – não tinha mais tempo para ouvir o eco que se seguia às palavras, elas agora vinham uma após a outra, sem pausa, sem que ela precisasse pensar sobre nada.
Toda sorte de palavras apareceu espontaneamente. Passou por xingamentos, objetos aleatórios, nomes, associações das mais óbvias às mais absurdas. Não saberia dizer quanto tempo se passou, mas, em algum momento próximo à palavra “vista”, foi interrompida.
– PRÉDIOS. – uma voz soou severa. Não foi um grito libertador como os dela, mas foi alto e firme, como quando uma pessoa faz algo não porque quer ou porque é divertido, mas porque sabe que tem de ser feito. O instante que se seguiu foi denso como se o mundo tivesse parado. não precisou se virar para saber quem havia se juntado a ela. Era única voz no mundo que ainda fazia seu coração perder o ritmo. Era ele. Sabia que era ele. Sentia o olhar dele em suas costas.
– Altura! – respondeu. Pela direção do som, que agora soou mais longe, soube que ele havia se virado para o outro da cidade, de costas para ela.
– Enjoo! – que se seguiu de whisky, de amargo, de café, de sono e de muito mais.
A mulher não teve tempo de se perguntar o motivo dele estar ali. Não era necessário: estavam muito além daquilo. Portas demais já haviam se fechado para que ela ainda tivesse qualquer ilusão de que conseguiria fazer mudar de ideia aquela noite. Abraçar sua presença, ainda que por poucos minutos, era a única coisa que podia fazer, sem questionar nada. Além do mais, não havia tempo: a cada grito, seu peito e sua cabeça se esvaziavam, e a sensação era boa demais para que parasse.
O ritmo dos gritos foi crescendo. Cada vez mais palavras se sobrepunham e, quando o “cigarro” levou à “fumaça”, que levou ao “céu”, que trouxe “chuva”, ouviu-se:
– SEMPRE!
E, sem nenhum tipo de aviso ou preparo para a revolução que aquilo causaria dentro dos dois, ambos gritaram em uníssono:
– VOCÊ!
Subitamente, o silêncio foi tanto que poderia jurar que até as respirações se ouviam. Viraram-se lentamente um para o outro. Os olhares se encontraram, carregados de tudo que havia sido dito e mais: carregado daquilo que não precisava ser dito. Sabiam.
Ainda sem dizer nada, assentiu devagar com a cabeça, como quem sucumbe a algo muito maior que si.
Seus olhares ainda estavam conectados como ímãs, agora sim finalmente se encaixando perfeitamente depois de tantos anos. deixou as pálpebras pesarem, quebrando o contato visual entre eles, mas não tinha problema. Já estava. Seus olhos haviam, finalmente, entendido que era dali que nunca deveriam ter saído. Então, ele respirou fundo e se virou para ir embora, voltar para casa e fazer uma das coisas mais difíceis que já havia feito na vida.


32

Hold on, don't be scared
You'll never change what's been and gone
'Cause all of the stars are fading away
Just try not to worry, you'll see them some day
Take what you need and be on your way
And stop crying your heart out

(Stop Crying Your Heart Out – Oasis)


Capland Street, 12, Londres – Domingo, 21:45

De que tipo de merda ele era feito?
Era a única coisa que conseguia pensar enquanto observava Sadie. Havia passado quase uma hora sentado do lado de fora do prédio, tentando obrigar seu corpo a se levantar e entrar em casa. E agora que estava ali, de pé, no quarto deles, era incapaz de dizer uma palavra sequer enquanto via Sadie tirar algumas roupas de dentro do armário e colocá-las em uma mala aberta sobre a cama. Nada havia sido dito desde que ele entrara no cômodo.
– O quê… – ele começou finalmente, depois de tempo demais em silêncio. – O que você ‘tá fazendo?
– Eu tô indo pra casa da minha mãe, . – ela não soava brava. Soava triste, sim, mas também segura. Era difícil dizer, pois ele ainda não tinha conseguido ver direito a sua expressão, já que ela não parava de se movimentar pelo quarto, juntando seus pertences.
Então, ele engoliu em seco e deu um passo à frente, segurando-a com cuidado pelo braço quando ela estava prestes a pôr mais um monte de roupas na mala. Sua mente era um redemoinho de sentimentos confusos, e ele não conseguia entender como é que a notícia que ele trazia havia chegado em casa antes dele.
– Por quê? – indagou.
Finalmente, Sadie parou o que estava fazendo e olhou para ele. Dava para ver que ela havia chorado. Seus olhos eram puro pesar. Como eram grandes, parecia caber ainda mais tristeza neles, se é que isso era possível.
– São dez horas da noite, . Você ‘tá na rua desde as duas. – ela disse apenas. Então, vendo que ele continuava parado, olhando para ela completamente atordoado, ela olhou para a mala, levantou as roupas na sua mão e explicou: – Eu só tô adiantando algo que você já ia fazer. Não é verdade?
Num movimento que começou muito lenta e discretamente, como se exigisse um esforço enorme, balançou a cabeça positivamente. À medida que ele assumia – até para si mesmo – que ela tinha razão, o gesto ganhou velocidade. O sim silencioso ficou claro suficiente, então Sadie apenas voltou a arrumar suas coisas.
Ele a estava observando quando ela tirou da gaveta uma camiseta larga de , que ela costumava usar para dormir. Quando estava prestes a colocá-la junto com as outras, ela freou, pareceu pensar por um instante, então deu meia volta e a pôs de volta no armário. Aquilo fez uma luz de emergência se acender no cérebro de , e ele foi subitamente tomado por um medo terrível de estar fazendo a escolha errada. O medo é o pior dos sentimentos porque ele te deixa perdido. Estaria ele desistindo do amor da sua vida por causa de uma paixão antiga que lhe confundira momentaneamente? Deveria interrompê-la e pedir que ficasse? Ou estaria, então, desistindo do amor da sua vida por causa de uma relação segura só porque ela era a escolha mais fácil? Sentindo-se preso naquele ciclo vicioso de dúvidas e incapaz de raciocinar sobre qualquer decisão, na pressa, ele agiu. Sem pedir permissão ao cérebro, o corpo escolheu uma das opções – a mais fácil, mas não necessariamente a mais certa.
– Desculpa, desculpa. Volta aqui. – pediu, puxando o braço dela. Já sem fôlego antes mesmo de começar, envolveu a cintura de Sadie com as mãos e a beijou com tudo que havia em si.
Aquele beijo, no entanto, já não tinha o mesmo gosto de sempre, talvez por causa das lágrimas que haviam começado a rolar livremente pelo seu rosto. E o beijo foi logo interrompido. fungou enquanto abria os olhos para olhar para ela. O rosto da sua noiva estava todo tenso, como se aquilo fosse a coisa mais dolorosa que ela já tivera de fazer. Mas Sadie era uma mulher de coragem e, apesar da dificuldade, pôs as mãos sobre o peito dele e respirou fundo.
– Não, ... – ela se afastou, passando a língua sobre os lábios, como se tentasse reconhecer o gosto do beijo que ele havia deixado ali. secou o rosto com força e esfregou os olhos molhados, então pôde enxergar com mais clareza enquanto ela balançava lentamente a cabeça para os lados. – Por mais que eu tente me enganar, a verdade é que você nunca superou a . O que você sente por ela você nunca sentiu por mim, e provavelmente nunca vai sentir por ninguém mais. – ela constatou, e não soube o que responder. Ela soltou o ar com força e, com o corpo parecendo pesado, retomou a arrumação. – Quando você saiu, pensei que seria um café rápido. Ver como a outra pessoa está. Contar as novidades. Colocar um ponto final nas coisas... Eu entendo, . De verdade. É justo. Mas as horas foram passando. E foram muitas – acrescentou, sorrindo triste –, e sabe o que eu comecei a pensar? Que eu... Eu não te conheço de verdade. Eu nunca te tive por completo, por inteiro. Não é?
Ele reagiu rápido, eletrizado pelo medo de Sadie colocar em xeque tudo que haviam vivido.
– Não, não é verdade… – ele começou, os olhos arregalados de tristeza e indignação.
– É sim, – ela interrompeu, e explicou: –, e eu não tô dizendo que você mentiu pra mim. Tô dizendo que eu não conheço a versão verdadeira do , eu só conheço a versão conformada em viver sem a . Entende?
Ele balançou a cabeça para os lados, sentindo lágrimas encherem seus olhos mais uma vez. Não sabia se aquilo era verdade ou não, mas sabia que machucar Sadie e fazê-la duvidar da sinceridade do seu relacionamento doía. Doía muito.
– Eu sou muito mais do que o meu relacionamento com ela. – argumentou baixinho. Apesar de ter certeza do que dizia, sua voz soou fraca e insegura. – Eu sou uma pessoa inteira...
– Eu sei! Eu sei! – ela se apressou a dizer, urgente. Pela primeira vez, a mulher largou tudo que fazia e se aproximou dele, segurando seu rosto entre as mãos com carinho. – Você é um amigo presente, um tio incrível, um cara apaixonado pelo seu trabalho, um namorado divertido, leal e carinhoso. Mas você… – ela deixou a frase morrer e esfregou o próprio rosto em frustração, claramente com dificuldade de encontrar as palavras. – Olha só: – recomeçou – não faz nem dois dias que ela voltou pra sua vida e você já é outra pessoa, ! Outra pessoa sim, não nega! – ela se adiantou. – Assim que você entrou por aquela porta na sexta à noite, eu percebi. Não lembra? Mais tarde eu te perguntei o que havia acontecido, mas imaginei que fosse, sei lá, ansiedade, bebida... Mas não era. Era ela voltando pro… Pro seu sistema. Igual droga. Não existe ex-alcóolatra. Existe alcóolatra que parou de beber. Só quando você me contou, ontem, que ela tinha aparecido, é que eu entendi... Fiquei pensando que existe um tipo de amor que não desaparece… No máximo, fica guardado. Você parou de beber, . Mas nunca vai deixar de sentir a mão tremendo de abstinência toda vez que os sentimentos estiverem à flor da pele e ela estiver perto demais de você.
Ela pausou, e, por um momento, seu olhar se perdeu na mala e sua mente parecia longe. Abriu a boca algumas vezes, para dizer algo que parecia não sair. Então, por fim, desabafou:
– Sabe que, desde que eu te conheci, seus olhos me chamaram atenção. – sorriu, os próprios olhos brilhando molhados, ainda perdidos à frente. – Eles pareciam estar sempre... – ela estalou a língua, escolhendo as palavras certas. – Antigamente, seus olhos estavam sempre à procura de algo. E eu achava isso tão bonito, era como uma curiosidade, uma sede infinita pela vida. Até agora. – ela engoliu em seco. – Eu já sei por que você tá me parecendo tão mudado desde sexta-feira: eles encontraram. O que quer que você estivesse procurando desde que te conheci, , seus olhos encontraram. – ela finalizou. Piscou para se reconectar ao presente e olhou para ele com um sorriso triste antes de se curvar para fechar a mala. Pôs o objeto pesado no chão, e aquele gesto pareceu tão definitivo que finalmente a tristeza nos olhos de Sadie transbordou, e ela chorou também. Seu rosto se contraiu com as lágrimas, e aquilo fez o interior de se contrair junto. Imediatamente, ele se viu inundado em remorso. Sentiu-se o maior escroto da história. Não podia fazer isso com Sadie, não era justo. As lágrimas grossas descendo pelo rosto dela fizeram todo seu corpo pesar de culpa e arrependimento. Não tinha o direito de fazer aquilo, de derramar aquelas lágrimas. Ainda mais em nome de , que nunca hesitou em derramar as dele.
Porém, já não tinha mais controle sobre suas decisões, pensamentos ou sentimentos. A verdade era que o homem já não sabia mais o que sentir. Havia perdido a perspectiva de entender por que estava fazendo qualquer coisa. Era como se sua vida tivesse sido colocada num liquidificador nas últimas horas. Tudo girava e doía tanto que ele se sentia tonto e só queria que tudo acabasse. Num impulso desesperado, segurou o braço dela mais uma vez:
– Esquece tudo que eu falei. – implorou. – Eu quero você.
Sadie balançou lentamente a cabeça e sorriu.
– Mas, assim, eu não quero.
– Mas eu escolho você! – ele gemeu, desesperado. não sabia mais o que estava acontecendo, apenas queria fazer qualquer coisa que doesse menos em todo mundo. Então, desmoronou numa confissão inesperada: – A gente se beijou sexta-feira. – ele precisou dizer. As palavras escaparam com vontade própria. – Foi rápido, eu interrompi na hora.
Ela deu de ombros, conformada, e balançou a cabeça, rindo sem humor.
Não havia o menor motivo para dizer aquilo agora, além do fato egoísta de que não conseguiria viver em cima daquele segredo. Aquela verdade não alterava o desfecho, ele só não queria manchar o final daquele relacionamento com a primeira mentira entre eles.
... – ela suspirou. Algumas lágrimas ainda escapavam pelos seus olhos, mas ela parecia gradativamente mais segura das suas palavras. – Só o fato de você ter que escolher mostra que tem alguma coisa errada. Concorda? Você não devia nem ter dúvida. – ela secou o rosto uma última vez e sorriu. Apesar da tristeza, o sorriso dela era, de certa forma, sereno. – Não deveria ter outra opção que não fosse eu! Não deveria nem precisar pensar! Eu não quero me casar com alguém que não tem certeza de mim. – sua voz tremeu um pouco, antes de se firmar novamente: – Eu te amei nesses anos e ainda te amo, mas não quero passar o resto da minha vida com um “meio amor”. Eu nunca vou poder te completar da forma que ela faz, . Não é verdade? – ela insistiu, abaixando o rosto para buscar os olhos dele, que volta e meia fugiam. – Ei. – chamou. – Eu mereço essa verdade. Olha nos meus olhos e me diz se eu não tenho razão. Você não acha que eu mereço mais do que dividir minha vida com alguém que sempre vai esperar por outra pessoa?
fez silêncio. Ela merecia, de fato, mais que isso. Muito mais que isso. Muito mais que um homem cheio de feridas abertas, sofrendo de uma saudade delirante de outra pessoa. Ele não podia negar, pois sabia que seria incapaz de dar para Sadie algo seu que já havia sido dado a outra pessoa.
– Muito mais. – ele admitiu, sorrindo com tristeza, com vergonha, com alívio. Com carinho.
– Eu espero que vocês dois sejam muito felizes. – ela desejou.
teve de repente um déjà-vu estranho, mas, na verdade, o que seu cérebro estava reconhecendo eram aquelas palavras, porém ditas por . Vindas da boca de Sadie, aquelas mesmas palavras pingavam dor, mas, ainda assim, sinceridade pura. não duvidou nem por um segundo, porque não poderiam soar mais verdadeiras – e nem mais decepcionadas.
O rosto molhado de sua noiva – agora ex-noiva – lembrava-no de como ele era um imbecil por partir o coração de alguém de quem gostava tanto. Mas, mais ainda, lembrava-no do quanto ele estivera se enganando nos últimos anos. Porque teve certeza absoluta de que sentimento nenhum que tinha por Sadie poderia chegar aos pés do amor quase narcótico que sentia por . Ela tinha razão. Esse era o tipo de amor que era como uma doença da qual você nunca se recupera totalmente.
– Me desculpa. – murmurou.
– A culpa não é sua. – ela encolheu os ombros novamente, e seu olhar era quase de pena. – Certas coisas a gente não pode mudar. Quando foi embora, essa mulher acabou com você, . De um jeito que eu nunca vou conseguir consertar. – disse, balançando lentamente a cabeça para os lados, como se ainda o analisasse. – E eu espero que ela ainda consiga. Porque se nem ela mesma souber te fazer feliz de novo... Você ainda vai passar por maus bocados, . E eu não te desejo isso. Eu te desejo tudo de mais incrível no mundo. – finalizou, enchendo o peito de ar e os olhos, de lágrimas, para dar a última declaração de amor que haveria entre eles: – Você é o homem que eu sempre quis pra mim, . Só faltava uma coisa: me querer do mesmo jeito. E essa – afirmou categoricamente – é a única exigência da qual eu não posso abrir mão.
Ele fez que sim com a cabeça enquanto ela se virava. Entendia. Seria impossível não entender. Apesar do nó na garganta, ele conseguiu fazer uma voz rouca sair para dizer:
– Isso aqui não significa que eu não ame tudo em você. – ele assegurou. – Mas, às vezes, isso simplesmente não é o suficiente.
Sadie já estava a meio caminho da porta, mas parou e sorriu como quem aceita uma promessa.
– Eu sei. – murmurou. Então, voltou dois passos, apoiou a mão no peito dele, se esticou para alcançar seu rosto e plantou um beijo na sua bochecha. Depois, ela se virou e saiu.
Quando ouviu a porta do apartamento se fechando, caminhou até a sala. Viu Charlotte deitada dormindo tranquilamente sobre o tapete. O ronco leve que ela soltava ainda tinha o mesmo som aconchegante de sempre. Observou as paredes à sua volta, que ainda tinham as mesmas cores. Respirou fundo, e o ar à sua volta ainda era o mesmo.
Pensou sobre o dia em que percebeu que havia ido embora e como naquele dia o mundo pareceu repentinamente sair dos eixos. Naquele dia, nada mais parecia ser o mesmo, tudo parecia simplesmente errado. Só a lembrança fez os pelos do seu braço se eriçarem momentaneamente. Por um momento, se perguntou se observá-lo indo embora do café também havia feito o mundo entrar em colapso dentro de da maneira como foi para ele. Acreditava que sim.
Um dos casacos de Sadie ainda estava pendurado atrás da porta. se dirigiu até lá, envolveu o tecido em suas mãos e o cheirou. O cheiro dela estava lá, forte como se a própria também estivesse. Por quantas vezes seu corpo havia sido refúgio, calor, segurança? se lembrou do quanto lhe encantavam os seus cabelos pretos e seus olhos amendoados. Lembrou que ele tinha sido o primeiro a dizer “eu te amo”, apesar de um dia ter achado que jamais poderia sentir isso de novo. Havia aprendido todos os mil sabores de chá que ela gostava, e em qual momento gostava de cada um. Havia encontrado amigos entre a família e os amigos dela. Havia se apaixonado pela sua receita de frango tikka masala, e pelas músicas que cantava. Havia descoberto seu corpo e seus detalhes. Era triste pensar que todas coisas que haviam vivido seriam jogadas fora. Pensou sobre tudo que ele e Sadie haviam construído juntos e se perguntou para onde vai tudo isso depois que a paixão chega ao fim.
Mas talvez não precise ir para lugar nenhum. Talvez possa tudo continuar existindo, porque o valor das coisas não está associado necessariamente à finitude delas. Quem disse que algo precisa ser duradouro para ser transformador?
Caminhou até Charlotte e se sentou ao seu lado no chão, as costas apoiadas contra o sofá. Sentia-se exausto. Cansado de ter que tomar decisões. Cansado de surpresas e de lágrimas – suas ou não. A cachorra levantou a cabeça e a deitou sobre o colo dele, pedindo carinho.
refletiu sobre o que fazer a seguir e se sentiu um pouco sufocado. A simples ideia de ter que lidar com o dia seguinte era desesperadora, e o homem foi atingido por uma certeza reconfortante: precisava desacelerar. Qual era, de fato, a pressa? Aquele incêndio dentro dele precisava ser apagado logo, antes que o consumisse por inteiro. Seu corpo parecia ter levado uma surra, estava pesado, e, enquanto escorregava para o chão, ao lado de Charlotte, decidiu que ele tinha condições de desperdiçar um dia ou outro. Ficaria tudo bem.
Abraçou sua companheira de anos e afundou o rosto no seu pelo macio cor de caramelo. Esticou o pescoço e deixou que ela lambesse seu queixo, rindo. Sentindo a respiração tranquila de Charlotte, ele relaxou sobre o tapete, onde, eventualmente, pegou no sono.
Ficaria tudo bem.


33

You're in all my thoughts of passion
And the dreams of my delight
Whatever stirs my mortal frame
Well, you keep it warm at night
(...)
She is love
And the ways are high and steep
She is love
And I believe her when she speaks

(She is Love – Oasis)


BBDO, Londres – Sábado, 19:28

Assim como todos os outros acontecimentos das últimas semanas, estar ali era surreal. nunca imaginara que estaria novamente em uma festa de aniversário da BBDO. Para falar a verdade, nem havia chegado a pensar tão longe. Quando pensava sobre Londres, sobre tudo que havia deixado para trás e a possibilidade de algum dia voltar, as festas da empresa obviamente nunca foram uma prioridade. Porém, nada disso significava que não fosse divertido ver o quanto as coisas mudam em alguns anos e, ao mesmo tempo, como algumas coisas parecem ser sempre as mesmas.
Via muitos rostos novos e se sentia inadequada e fora do lugar. No entanto, o clima da festa era exatamente como ela se lembrava e os estereótipos eram os mesmos – o que exagera na bebida, o que só quer saber de puxar saco do chefe, o que está ali puramente por obrigação. Aos poucos, percebeu que, na verdade, havia até muitas pessoas da época dela. Talvez ela fosse quem nunca tivesse sido muito boa em enxergar as pessoas do trabalho como pessoas de verdade, e não apenas vultos insignificantes pelos corredores. Sentiu um nó na garganta. Quanto mais pensava na pessoa que fora no passado, mais percebia que não gostava muito daquela pessoa. Volta e meia alguém vinha cumprimentá-la, o que era muito bom, porque lhe rendia alguns minutos de assunto para que não ficasse completamente sozinha. Por outro lado, também lhe deixava muito nervosa, porque não sabia exatamente o que dizer e porque a verdade era que estava com vergonha de estar ali de novo. Para se acalmar, tinha de se lembrar o tempo inteiro que nenhuma daquelas pessoas sabia nenhum detalhe sobre sua vida, e repetia para si mesma que ninguém estava lhe julgando. Mas, depois de um tempo desses diálogos curtos e cheios de emoções mistas, ela sentiu que precisava de uma pausa. Pegou uma taça de champagne e se dirigiu até a varanda para tomar um ar. Quando alcançou o parapeito, uma mão pousou sobre a sua cintura e uma voz conhecida disse:
– Como você ‘tá?
Imediatamente, ela se virou para ele e confirmou, preocupada:
– Ninguém aqui sabe de nenhum detalhe, sabe? – fez que não com a cabeça. – Por que fui embora? Por que voltei? Sobre nós dois? Sobre e eu? – disparou, e continuou balançando a cabeça para os lados.
– Nada. Falamos pra todos que você se mudou por questões familiares e que isso já tava em discussão há um tempo, mas você preferiu manter a discrição. Quer dizer, a Ruby sabe que… – escolheu a palavra: – Algo... aconteceu. Nunca conversamos muito sobre, mas quando ela trouxe sua carta de demissão, obviamente percebeu que eu não entendi nada. Mas a história oficial foi essa.
– ‘Tá. – concordou, respirando mais aliviada.
Viraram-se com as costas contra o parapeito da varanda, lado a lado, observando as pessoas espalhadas pelo interior da sala de conferências.
– Às vezes, parece que eu nunca fui embora. Mas, às vezes, parece que eu acabei de aterrissar num planeta novo. – ela desabafou, pensativa, o olhar meio perdido. sorriu.
– Você só precisa se dar um tempo. Parar de analisar tudo o tempo inteiro, ser mais… despreocupada.
– É, acho que nunca fui muito boa nisso. – ela riu, arqueando as sobrancelhas.
Com um sorriso no rosto, passou o braço pelos ombros dela, puxando-a para o lado e dando um beijo carinhoso na testa dela.
– Ei, tem alguém que eu quero que você conheça. – ele disse de repente, quando seus olhos perceberam quem havia chegado e estava se aproximando.
Apesar de nunca terem se conhecido, soube imediatamente quem era. A primeira coisa que chamou sua atenção foram os cabelos alaranjados, que pareciam dar a ela o sex appeal da Jessica Rabbit, e, ao mesmo tempo, a energia travessa da Pipi Meia-Longa. Ela era mesmo enfeitiçadora de certa forma. Astrid veio caminhando até eles, de encontro à mão que mantinha estendida para ela.
Cumprimentaram-se com um beijo rápido e sorriram.
– Astrid, essa é a . – ele apresentou. – Aquela que limpou todas as suas cagadas. – provocou.
Astrid rolou os olhos e sorriu enviesado, e riu, apertando o braço em volta dela. A ruiva ignorou o comentário dele e estendeu a mão com uma expressão de sincero interesse. Seus dentes eram tortos de uma forma estranhamente charmosa, proeminentes, puxados para a frente de maneira que qualquer atenção se voltasse para os seus lábios quando ela abria aquele sorriso largo, que parecia não caber na boca. Ela segurou a mão de com as duas, num gesto carinhoso.
– É um prazer. Eu ouvi muito sobre você.
– Eu também ouvi muito sobre você. – ela devolveu.
estaria mentindo se dissesse que seu sangue não ferveu ao olhar para aquela mulher. Mas não ferveu como fazia antigamente, quando borbulhava de ciúmes quando outra mulher ganhava a atenção de . De fato, talvez ainda houvesse ali algum resquício de orgulho ferido da época em que teria matado e morrido para fazer amá-la como amara Astrid. No entanto, a questão ali era outra. O sangue quente era, na verdade, raiva. Raiva daquela pessoa que tivera a audácia de não o amar de volta e a insensibilidade de tratá-lo como havia tratado.
Esse sentimento, entretanto, durou pouco. Pois foi como um tapa na cara quando percebeu que não tinha o menor direito de pensar aquilo. Como podia ter tanta raiva guardada para aquela mulher, apesar de nunca terem se conhecido? Como podia alimentar uma raiva gratuita por causa de uma história que ela não presenciara de fato, apenas ouvira unilateralmente e tirara suas próprias conclusões? Como podia julgar aquela pessoa sem nunca ter estado na sua pele? Pensou sobre quantas pessoas não poderiam fazer o mesmo com ela, odiá-la se apenas vissem toda sua história de fora. Hoje, mais que nunca, sabia que nem sempre conseguimos amar as pessoas de volta no momento ou da maneira que elas merecem. E ninguém no mundo além de você pode entender inteiramente seus motivos. É sabido: cada um carrega sozinho as dores e as alegrias de ser como se é.
Talvez Astrid também tivesse tido algum tipo de reflexão olhando para a mulher que amara seu homem quando ela não havia sido capaz, pois, depois de trocarem um olhar cúmplice, a ruiva pôs a mão sobre o ombro de , deu um leve aperto e disse:
– É ótimo finalmente conhecer você, . – foi inesperado ouvir seu apelido naquela boca, mas também, de certa maneira, aquecedor. Sentiu-se inexplicavelmente próxima de Astrid, ainda que indiretamente. – Eu tô precisando de um drink. E sei que faz tempo que você ‘tá longe. Vou deixar vocês conversarem. – disse, sorrindo, e saiu, caminhando em direção ao bar.
– Ela parece mesmo ser tudo que você dizia ser. – comentou enquanto a observavam se afastar.
– Cruel? Calculista? Inabalável? – ele perguntou, ainda observando a namorada. Então, amaciou o tom: – Forte? Linda? Irresistível? – e olhou para ela novamente, sorrindo com uma leveza, uma paz de espírito, que era completamente diferente do que costumava ver no rosto dele antigamente.
– Tudo isso. – ela concordou, sorrindo também. – Você ‘tá feliz, ?
O homem suspirou e piscou algumas vezes, olhando para a frente, meditativo. Então, depois de um tempo, assentiu com a cabeça e olhou para ela de novo:
– Tô. Eu finalmente tô. Quer dizer, eu acordo de manhã e as coisas não são tão ruins quanto costumavam ser. E, então, ela entra vestindo minha camisa e trazendo uma xícara de café e, bom… O que mais eu posso querer? – perguntou, sorrindo. – As coisas vão bem na empresa. – continuou. – Fora que agora tenho você de volta. Realmente não tenho do que reclamar. E você, ‘tá? – ele devolveu. olhou para cima, para os olhos dele. – Feliz?
Fez-se silêncio por um tempo em que se sentiu vazia. Não sabia responder. E as palavras se formaram sozinhas na boca dela:
– Talvez eu seja, daqui pra frente. – respondeu vagamente.
Sentia o olhar dele sobre si. Até que perguntou:
– Ainda não teve notícia dele?
fez que não com a cabeça.
– Talvez… – ela deu de ombros – Talvez existam erros que não possam ser consertados. – ela murmurou, abaixando o olhar para o chão.
– Consertados talvez não. – concordou, pensativo, e ponderou: – Mas quando a gente ‘tá disposto a admiti-los, eu acho que às vezes existe a possibilidade de passar por cima deles. E eu sei que você admitiu os seus, , então… realmente não tem muito mais que você possa fazer.
olhou para ele e, por um momento, refletiu sobre suas palavras reconfortantes. Eram como um abraço sem que precisassem se tocar. Então, percebeu que havia algo que tinha dito a , mas talvez ainda não tivesse dito a :
– Desculpa por ter ido embora sem ao menos falar nada.
Ele pareceu ter sido pego de surpresa por um segundo, mas continuou olhando para ela com atenção, como se estudasse seu rosto. Então, fez que sim com a cabeça, a sobrancelha levemente franzida.
– Tudo bem. – afirmou, num sussurro muito sereno e sincero.
inspirou bem fundo, deixando o peito inchar, soltou o ar com força e disse:
– Sinto que tudo que eu fiz nos últimos tempos foi pedir desculpa.
– Ah! – soltou logo, dando risada, como se aquilo fosse um problema muito fácil de resolver. – Não se preocupa. – disse descontraidamente, balançando a cabeça para os lados e passando o braço pelo ombro dela. – Acho que a vida, a minha, pelo menos – acrescentou –, é apenas uma grande sucessão de erros, interrompidos por pequenos momentos de perdão.
riu junto com ele, meio desgostosa, meio divertida. Afundou o rosto nas próprias mãos num gesto desiludido e ele continuou, a risada morrendo aos poucos enquanto ele retomava um tom sóbrio e carinhoso:
– Ninguém é perfeito, . – murmurou. – E eu sei que todo mundo sabe disso, é óbvio, mas o que eu tô dizendo não é pra você se cobrar menos. – e pensou melhor: – Apesar de que talvez você devesse tentar isso também. Mas o que eu tô dizendo é: ninguém nunca vai ser perfeito pra você.
levantou o rosto, e eles se encararam por um tempo. Ambos sabiam perfeitamente o que ele queria dizer com aquilo. Na sua vida, por tempo demais havia aceitado receber migalhas. Respeito de menos, amor frio, atenção pela metade. Enquanto cobrava excelência de si, construiu seus relacionamentos a duras penas, aceitando as falhas dos outros com uma generosidade suicida. Até que um dia encontrou alguém de quem, pela primeira vez, decidiu exigir um padrão tão alto quanto exigia de si. não havia sido perfeito e nem nunca seria, mas Deus sabe que havia sido o mais leal de todos com quem ela havia tentado dividir sua vida.
– Ninguém nunca vai ser perfeito pra você. – repetiu. – Só nos resta tentar encontrar alguém que esteja disposto a se esforçar pra ver a gente feliz, e que queira ser uma pessoa melhor do nosso lado. E... algo me diz que você já encontrou. – olhou para o rosto dele, que a encarava com um sorriso cheio de esperança e entusiasmo contido. Então, desviando o olhar para algo além, ele fez um pequeno movimento com a cabeça, indicando algo atrás dela.
Ele se desencostou da parede olhando por cima do ombro de , e ela virou o rosto no momento em que e cruzavam o caminho um do outro. Pararam por uma fração de segundo, na qual o chefe pôs a mão sobre o ombro do outro e deu um aperto amigável. Trocaram um olhar rápido, cúmplice, e ele se afastou.
se desencostou da varanda também, o corpo repentinamente meio rígido. Subitamente, tudo parecia ser um incômodo. A taça que estivera na sua mão há tanto tempo se mostrou um fardo, e ela desejou que houvesse uma mesa por perto para que pudesse largá-la antes que escorregasse por sua mão suada. O vento frio de uma hora para a outra parecia muito mais forte, e ela teve certeza de que era visível que seus braços estavam arrepiados. Arrependeu-se de ter colocado sandálias de salto, ainda que nem fossem tão altas assim, porque seus joelhos tremiam um pouco, como se avisassem que não prometiam sustentá-la por muito tempo, e, agora que prestava atenção, suas sobrancelhas franzidas pareciam doer como se estivessem duras e grudadas ao seu rosto – é normal sentir suas sobrancelhas?!
– Oi. – disse, e ela precisou passar a mão pelo rosto e esticar os pelos das sobrancelhas, pois era como se eles carregassem todo o peso das preocupações da cabeça dela.
Com muita dificuldade, ela teria tentado arranhar um “oi” para fora da garganta seca, mas, felizmente, não foi necessário. a poupou do esforço. Em vez disso, ele se aproximou, envolveu seu rosto com as mãos e a puxou para o beijo pelo qual ela ansiava há tempos. Num gesto generoso, como sempre foi, ele agiu sem rodeios, libertando-a da dúvida torturante sobre qual rumo aquela conversa tomaria. Pega tão de surpresa quanto você, pensou por um momento que pudesse desmaiar de nervoso. Mas, para isso, também não havia tempo. Suas mãos se ergueram e se entrelaçaram em volta do pescoço dele, num abraço apertado. Se alguém estivesse observando de fora, provavelmente teria sido como ver uma planta desidratada esquecida ao sol sendo regada pela primeira vez em semanas. Como se fosse possível de fato enxergar a secura sendo substituída por uma onda de vida.
O corpo dela estremeceu. De alívio, por saber que não precisaria sobreviver a mais nem um segundo de suspense. De desejo, porque o beijo dele sempre causava faíscas nela. E de gratidão, porque, conhecendo seu , sabia, sem sombra de dúvidas, que aquele gesto tão direto havia sido cuidadosamente premeditado para acabar rapidamente com o sofrimento dela.
Separaram-se, ainda sentindo suas respirações se misturarem, e mantiveram os olhos fechados por alguns segundos, as testas encostadas. Quando os olhos se abriram, quis falar tudo aquilo. Mas as palavras ficaram por dizer, pois seu olhar claramente transbordava amor.
Sem saber o que deveria falar, ela achou melhor confirmar primeiro, num tom brincante mas também um pouco sério:
– Você ainda ‘tá puto?
– Você ainda ‘tá imatura? – ele devolveu, provocativo. Ela riu. Havia sentido tanta saudade do humor dele!
– Não. – balançou a cabeça para os lados.
– Então, eu também não. – ele prometeu.
Finalmente separaram as testas e se observaram melhor, sorrindo. Afrouxaram o abraço, afastando-se um pouco. Foi quando ele olhou para seus braços descobertos:
– Você não ‘tá com frio? – admirou-se, já com a mão na gola do casaco, preparando-se para tirá-lo.
– Não, eu não tô. – ela assegurou, passando os braços em volta da cintura dele, por dentro do casaco. – Eu sei que ‘tá frio, mas eu tô me sentindo tão quente e cheia, cheia de amor por você! – sussurrou, abraçando-o com força e aconchegando o rosto nele, bem na dobra entre seu pescoço e seu maxilar. Fez um carinho ali com o nariz, sentindo o macio da sua pele e o seu cheiro, que permanecia o mesmo.
– Eu tenho uma coisa pra te pedir. – ela disse baixinho, a boca ainda abafada contra a pele quente dele. Então, afastou o rosto para dizer mais claramente: – Eu deixei alguém pra trás em Manchester.
Imediatamente, sentiu o corpo dele se tensionar. Ele afrouxou um pouco os braços e olhou para baixo. Nos olhos, a coragem dolorosa de alguém que se prepara para a execução. Antes que os pensamentos dele pudessem ir longe demais, ela se apressou em explicar:
– Eu queria que você voltasse comigo pra buscar a Melancia.
A tensão no rosto dele logo se derreteu num sorriso de carinho pela cachorrinha que ele adorava, e de um nervosismo gostoso por saber que conheceria os pais de . Não que estivesse particularmente interessado em conhecê-los ou manter contato com eles, sabendo das ressalvas que ela própria tinha em relação à família. Mas saber que ela estava pronta para incluí-lo em sua vida por inteiro, até mesmo nas partes que não eram bonitas, fez com que se emocionasse.
– Ninguém merece ficar tanto tempo sozinha na casa dos meus pais – ela continuou. – Ela deve ‘tá bem emputecida comigo, vou precisar de reforços pra amolecer o coraçãozinho dela.
– Soa como uma missão seríssima. – ele concordou solenemente. – Pode contar comigo. – prometeu, incapaz de imaginar aquela bolinha de pelos zangada com alguém.
Então, já que ela tinha dado abertura, decidiu tocar no assunto que ainda não tinham tido tempo de abordar.
– Como foi esse tempo na casa dos seus pais? – perguntou mansamente, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha dela enquanto observava seu rosto com carinho.
abaixou o olhar. Suspirou.
– Difícil. – admitiu.
A sensação de foi de que seu coração soluçou. Queria nunca mais deixá-la sair do seu abraço. Queria prometer que ela nunca mais sentiria dor. Mas não podia. Nas últimas semanas, ele havia refletido muito sobre todos os lados de que não eram tão atraentes. Sobre tudo que ela havia vivido que fazia com que ela fosse ela – tanto para bem quanto para mal. Pensou mais uma vez sobre todas as mágoas que ela já tinha sentido, muitas das quais ele jamais compreenderia inteiramente. Em parte porque vivera o outro lado da história, mas, em sua maioria, porque, hoje, tinha consciência de que jamais saberia o que significa construir toda sua concepção sobre relacionamentos amorosos e aprender tudo que você sabe sobre isso através de relações que te sugam e manipulam, ainda que de forma velada. E absolutamente todas as formas de amor que havia conhecido ao longo da vida, em especial as românticas, eram ou haviam, em algum momento, sido tóxicas.
, tem algumas coisas que eu queria te dizer. Em primeiro lugar, eu queria te dizer que você nunca mais vai precisar me pedir desculpas de novo pelo que já passou. Assim como eu tenho algumas coisas pra falar agora, e depois disso a gente vai se perdoar, tá bom? Um ao outro e a si mesmos – propôs. – Combinado?
assentiu com a cabeça, devagar.
– Combinado. Se você não estiver disposto a seguir em frente… Não é perdão. Já aprendi essa lição.
Foi como se lesse seus pensamentos – ou melhor, sentimentos, pois a mente de ainda nem havia construído o raciocínio tão claramente quanto – quando ele disse:
– Eu tenho pensado muito sobre… Como nós levamos as coisas da última vez. E sobre coisas que eu não quero repetir.
– Eu também. – ela concordou abruptamente, fazendo que sim com a cabeça. soltou um sorriso de susto pela reação instantânea dela, mas continuou:
– Eu te tratei com tanta frieza quando tava magoado, mas depois fiquei pensando em quantas vezes eu também já não fui irresponsável com outras pessoas com quem eu me relacionei… E eu sei que você teve muitas relações nocivas na sua vida, então… eu te entendo. – resumiu, levantando levemente os ombros. – Tudo. Tudo que você fez, eu entendo. Não gosto, não sei se faria igual, mas entendo. Talvez eu estivesse magoado demais pra dizer isso antes, ou talvez – acrescentou – magoado demais até pra te entender. Mas você fez o que você conseguia fazer. E eu enxergo isso agora. Eu prometo sempre me esforçar pra não repetir os comportamentos tóxicos das nossas relações passadas. Eu sinto muito que você tenha passado por tudo que passou, porque enxergo hoje o quão significativas todas essas relações devem ter sido na sua vida, e quero pedir desculpa por todas as vezes que eu contribuí pra isso. Não quero nunca mais duvidar de você, te diminuir, ou resolver nossos problemas de cabeça quente. Eu sei que tô falando demais, desculpa, é que… – ele riu de leve, inspirou fundo e continuou: – Bom, alguns meses pra trás eu comecei a fazer terapia... – e interrompeu logo: – Ei, não faz essa cara! – o rosto da mulher havia de fato se contraído involuntariamente de sofrimento. – Eu sei o que você ‘tá pensando. No começo, também achei que eu não precisasse, como se eu fosse bom demais pra isso – continuou, rolando levemente os olhos enquanto ela jogou a cabeça para trás. O rosto de ria e sofria ao mesmo tempo, pois sabia que ele tinha razão. – Mas a Sadie falava tanto disso, eu via o quanto fazia bem pra ela e… foi a melhor coisa que eu poderia ter feito. – ele balançou a cabeça para os lados, como quem não consegue encontrar as palavras certas. – Sério. Comecei a me entender melhor, e acho que você devia fazer isso também.
agora olhava para baixo. Inspirou profundamente, o peito crescendo, e então mexeu timidamente a cabeça, concordando baixinho:
– Eu... também acho.
– Eu sei que a ideia não é nenhum parque de diversões – ele riu –, mas é importante. Com o tempo, fica até legal. Eu adoro o meu psicólogo. – admitiu, surpreso. – O chamei pra tomar uma cerveja um dia e ele disse que não, assim, bem educado, mas tenho certeza de que anotou no caderninho dele: “paciente sem senso de limites sociais” ou algo do tipo. – brincou. – Inclusive, eu devo te avisar que essa conversa ‘tá sendo gravada pra ele assistir depois. – e quando , por uma fração de segundo, arregalou os olhos, numa mistura de susto e risada, ele acrescentou logo, rindo: – Tô brincando. Mas ele vai ficar orgulhoso quando eu contar.
suspirou, um pouco nervoso, pois havia tentado escolher as palavras com muito cuidado, e ainda não tinha dito muita coisa.
– Sei lá. Tô tentando ser uma pessoa melhor. – ele finalizou.
Ela levantou o olhar num movimento rápido, como se atraída por aquelas palavras como um ímã.
– Que foi? – indagou, franzindo o cenho com curiosidade ao perceber o movimento brusco dela.
fitou o rosto dele com cuidado, o interior borbulhando. Pois aquelas palavras fizeram um clique dentro do cérebro dela. Lembrou das palavras de minutos antes. Ela abriu um sorriso fácil, grande, satisfeito. Daqueles que nascem por conta própria quando nosso cérebro encaixa a última peça de um quebra-cabeça.
– Que foi?
– Nada. – balançou a cabeça para os lados. – É só que é exatamente isso que eu quero pra minha vida também. Ser melhor. Viver esse processo de mão dada com você. E te fazer feliz
Observando um ao outro, como se seus olhos repentinamente tivessem descoberto um infinito de universos no rosto um do outro, assentiram com a cabeça. levantou as mãos até o rosto dela, emoldurando-o num carinho calmo e caloroso.
– Eu te amo. – ela disse primeiro.
E a resposta veio fácil:
– Eu também te amo.
Beijaram-se novamente, por poucos segundos dessa vez, sentindo um gosto inteiramente familiar, como se nunca houvessem deixado de fazê-lo. Quando se separaram, observaram a festa que ainda acontecia lá dentro. Voltaram a se olhar e ergueu as sobrancelhas. Sabia que aquela iniciativa precisava, depois de tudo que viveram, vir dela. Apontou com a cabeça em direção ao salão num convite silencioso.
estendeu a mão para ela. desceu o olhar para o gesto dele, depois de volta para seu rosto e, então, entregou-lhe a mão. Moveram-se juntos e, finalmente, entraram na festa, sentindo o olhar de algumas pessoas à sua volta. Sem se importar com quem sabia, entendia ou deixava de entender qualquer coisa, mais uma vez, beijaram-se. Pela primeira vez em suas vidas, beijaram-se na frente de outras pessoas. Não sabiam quem olhava, se eram dez ou cinquenta pessoas. Independentemente do número, a sensação que tinham era de que ocupavam o salão inteiro, como se aquele beijo os tivesse feito inflar e se agigantar sobre qualquer coisa insignificante. O amor foi feito para fazer a gente se sentir gigante. E era exatamente assim que se sentiam. Gigantes. E juntos.


Fim



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Nota da autora: Terminar uma história é sempre um momento muito louco... Quando é longfic, então, é mais ainda. Essa é apenas a segunda long que posto no site, mas tenho esse péssimo hábito de levar ANOS pra terminar as histórias pois, bom, a vida não para pra gente escrever, né? Haha
Acabei de conferir, e comecei a postar essa história em abril de 2012. Gente!!! Isso significa que eu vivi tanta coisa no meio disso... Cresci muito nesse tempo e várias vezes me senti longe da história, com vontade de rever e reescrever tantas coisas, afinal (apesar de não ter relido ainda, tenho CERTEZA que) tem coisas que a Bih de 2012 falaria, mas a de 2020 já não... Por outro lado, também encontrei conforto e felicidade na escrita dessa história incontáveis vezes. Enfim, o louco é pensar que tem gente acompanhando até hoje. E é por isso que faço questão de terminar, ainda que atrasada, ainda que aos tropeços, porque é um compromisso que fiz com cada leitor e enche meu coração saber que ainda tem gente acompanhando esses personagens e querendo saber o que vai acontecer com eles.
Muito obrigada, de coração! Sendo hoje artista, tenho consciência de que existem diversas formas e motivos de se fazer arte, mas eu cada vez mais tenho certeza de que, para mim especificamente, o sentido de tudo isso tá na troca. Então obrigada por essa troca de anos, queridas leitoras <3
Espero que tenham gostado do final. Alguns de vocês já sabem que eu prometi não escrever mais finais tristes aqui, rs. Me contem o que acharam nos comentários! Me deixem viver pela última vez a alegria de me derreter lendo os comentários de vcs aqui embaixo :)
Se quiserem ler minhas outras fics, tão aí os nomes:





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05. Happy - Ficstape Forever Halloween
06. Birthday In Los Angeles - Ficstape Forever Halloween
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Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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