Prólogo
Antes, por Romero.
Os dias em Oklahoma, mesmo frios, continuam maravilhosos.
A tarde gelada, – porém ensolarada – as pessoas andando de um lado para o outro, focados em seus celulares, o som dos motores nas ruas... Eu amava a civilização. Principalmente na melhor companhia possível: minha irmã.
Assumo que buscá-la para almoçar fora não foi de total criatividade, mas eu estava querendo comer algo doce e gorduroso, beber muita cafeína e tentar esquecer a noite desastrosa que eu tive em meu trabalho. pelo menos encheria minha cabeça com histórias de suas crianças, como são alunos bagunceiros, mas quando ela levanta a voz, eles a obedecem como soldadinhos.
E se eu tivesse sorte, ela repetiria a história do menininho que queria usar a saia de bailarina e os pais o negavam, fazendo com que uma menininha da turma que tinha o tutu em mãos entregasse para ele no dia de uma apresentação. A partir daí se tornaram melhores amigos, mesmo tendo uma idade mínima para fazer juras de amizade eterna. Mas a intenção foi muito fofa, reconheço.
Caminhávamos pelas ruas de Oklahoma, conversando e rindo sobre assuntos aleatórios, enquanto atraíamos vários olhares para nós. Não, as pessoas não foram atraídas pela nossa beleza exuberante e juventude, mas sim por uma doida estar usando um casaco amarelo no meio da rua.
A doida era eu.
- , você está parecendo um pintinho com esse casaco, – minha irmã debochava de mim enquanto eu me sentia a própria rainha da Inglaterra. – Não consigo manter a seriedade com uma banana com pernas andando do meu lado. E preciso de um óculos escuros ou minha catarata virá mais cedo com essa cor berrante. O sol ligou, quer a luz dele de volta.
- Obrigada, eu sei que eu brilho. E também sei que meu brilho incomoda muita gente. – Debochei e minha irmã gargalhou. Só espero que não tenha gargalhado de mim, mas sim comigo.
Fechei meu trench coat ao sentir o vento gelado atingir meu rosto e arrepiar meu corpo, bufei baixo e continuamos nossa caminhada ao destino não revelado.
- Não sei quem é você para criticar meu casaco, senhora Lolita. – Debochei minha irmã que usava seus típicos óculos solares vermelhos em forma de coração.
- Você tem inveja dos meus óculos, pode assumir.
Ri.
agarrou meu braço e andamos juntas até a área um pouco mais movimentada. O que eu não expliquei ainda era que não iríamos só almoçar, íriamos também arrumar o dinheiro para pagar o almoço.
Não somos ladras, somos vingativas.
Bradley Benson, um cara muito charmoso, interessante, bom de cama e muito gostoso. Mas um canalha. Sabe aqueles caras que terminam com você sem dar nenhuma explicação? Então. E ainda foi por SMS. Claro que eu não deixaria isso barato.
Só aplicaríamos um golpinho no homem, que talvez causasse sua demissão. Mas o problema seria dele, não meu.
Chegamos perto da banca de jornal próximo ao restaurante que iríamos almoçar, eu fiquei parada perto da pequena barraquinha de frozen yogurt enquanto minha irmã se aproximava da banca. Eu só precisava de um sinal.
Ela acenou.
E eu comecei a ter uma crise de asma/infarto/ADP e tudo junto.
Muitas pessoas correram até mim assustados quando viram meu ataque. Eu estava com a mão no peito, implorando por ar, enquanto meu peito “doía” descontroladamente.
- ? – Bradley correu até mim desesperado deixando sua banca sozinha. Agora era sua chance, ...
Todos estavam em minha volta, tentando me ajudar enquanto eu usava minha melhor atuação de quase morte em público. Alguns gritavam por ajuda, outros por uma ambulância, enquanto Bradley estava desesperado com medo que eu morresse em sua frente.
Imagine. Eu, morrer, logo após ele me chutar por SMS? Ah, Bradley, seria péssimo para você.
Observei de canto de olho sair da loja e piscar para mim, então ela deu a volta na rua. Continuei procurando ar por alguns segundos. E num passe de mágica eu estava curada.
Simples assim.
- Estou bem, estou bem. Obrigada. – Disse ofegante, ficando firme no chão e limpando meu casaco amarelo e lindo.
Todos respiraram aliviados, outros desconfiados e Bradley estava emocionado com minha melhora. Ele me abraçou forte e eu pude sentir seu cheiro de menta com café. Meu coração doeu por ter aplicado o golpe nele. Mas então me lembrei de quando ele terminou comigo sem nem ao menos pensar em meu bem estar. Ele mereceu.
Quando ele descobrisse tudo, eu o recompensaria com uma noite de deuses.
- Paga pra mim? – Selei meus lábios nos dele e peguei dois frozen yogurt, dei uma piscadela para ele e fui embora, buscando minha irmãzinha tão malandra quanto eu.
Lá estávamos nós duas, tomando aquele doce, e não deixei de perceber a quantidade de chocolate que colocou no dela como cobertura, essa sabia aproveitar coisas de graça. E enquanto saboreávamos, contávamos os dólares que conseguimos aquela tarde.
Poderíamos ser consideradas ladras, pessoas de má índole e que iriamos direto para o Inferno no Juízo Final, mas eu me diverti horrores.
E minha irmã também.
- Eu vou ter um ADP! – tentou me imitar eufórica e caímos na gargalhada.
Às vezes me sentia uma ótima atriz, afinal, era um sonho de consumo, lá no fundo de minha alma. Broadway, Hollywood e fama. Minha mãe sempre acreditou que me veria na Broadway ou recebendo um Oscar, ela gostava de sonhar alto.
Um dia, quem sabe.
Broadway, Romero está chegando.
- Eu fiquei com dó dele, assumo.
me encarou com os olhos de reprovação e eu revirei os olhos.
- Eu vou trabalhar de manhã, depois de uma noite toda tentando me atualizar nas minhas séries, e tenho que aguentar antes das dez horas um pai chato reclamando que o filho sujou a blusa de lama antes de chegar em casa. Isso é sofrimento, .
Ri da cara fechada de minha irmã só de lembrar do quanto sofre nas mãos daquelas criancinhas.
- Pelo menos você não passou a noite toda enchendo a cara tentando esquecer um cara que terminou com você por SMS.
- Mas o que te magoou não foi o término em si, foi seu orgulho ferido por ele ter te chutado, e não você ter chutado ele.
- E ainda mais por SMS! – Gritei eufórica e indignada, fazendo minha irmã cair na gargalhada, me amparando ao me abraçar de lado.
Seguimos o caminho até nossa casa, sumindo com os potinhos do sorvete que tomamos, já que nossa mãe, mesmo com nós duas sendo bem maiores de idades, odiava quando comíamos porcarias na rua antes de almoçar ou jantar.
Entramos em casa e senti o ar quente junto com o cheiro das flores de minha mãe, a comida dela e o perfume de meu pai aquecerem até meu olfato.
- e Romero, por onde as duas mocinhas andaram? – Minha mãe saiu da cozinha com uma expressão hilariante furiosa.
- Por aí, mãe. Falta uns três minutos pra dar a hora do jantar. – respondeu dando de ombros com a cara de inocente e a nossa mãe revirou os olhos, voltando para cozinha.
- Eu podia deixá-las sem comer, só para aprender. – As ameaças de nossa mãe poderia ser mais engraçadas se ela não estivesse realmente falando sério.
- Me desculpe, mãezinha do meu coração. A culpa é toda da , ela que me leva para o mau caminho. – Debochei recebendo um pano de louça na cara vindo da minha irmã mais nova.
- Ah, faça-me o favor, , você acha que me engana? Vou te mostrar a palhaça, espera só. – Caímos na gargalhada com nossa mãe, junto com a risada alta e gostosa do nosso pai.
- Querida, o jantar vai demorar? – Brincou nosso pai.
- Vem fazer você. – Alfinetou.
- Prefiro a sobremesa. – Provocou.
Minha mãe ficou em silêncio, posso apostar que nesse momento ela estava corada. Meus pais eram o casal perfeito. Ela era o fogo e ele a água, mas quando se juntam, só coisas boas acontecem. Inclusive eu e a , coisas boas mesmo.
Meu pai estava sentado no sofá vendo alguma besteira na TV, enquanto mexia no cabelo dele sem motivo aparente. Ele virou para me encarar e fez uma cara chocada.
- Minha filha, jogue esse casaco fora. Ele é horrível. – Mais um para criticar meu casaco. Caretas.
- Eu falei para ela, pai, mas quem disse que ela dá ouvidos para a irmã sensata? – se sentou ao lado de meu pai e eles se cumprimentaram com um high five.
Então era um complô contra meu casaco? Isso mesmo?
- Vocês não entendem nada de moda, vocês não são fashion como eu. – Empinei o nariz e meu pai riu.
- Não, filha, seu pai está certo. Esse casaco é horrendo, quem te deixou comprar isso? – Mamãe apareceu tocando meu ombro e sentando do outro lado de meu pai.
Mais uma.
- Na verdade, foi você quem me deu, mamãe. – Disse, e minha mãe me encarou chocada.
- Sim, de Natal. – Papai complementou.
- Eu falei para você comprar o vermelho, mas você disse que queria ver sua estrelinha brilhar. – deu os ombros. – Se bem que de banana à maçã, os dois são horríveis. O problema tá no conteúdo de dentro também – ela riu. Haha.
Estava me sentindo atacada e humilhada dentro do meu próprio lar.
- Não foi o mês que perdi meu óculos? Se não, só poderia estar muito drogada aquele dia. – Nós quatro rimos da fala de minha mãe e eu tirei o casaco jogando-o na poltrona de meu pai.
- Ei, aí não! – Meu pai repreendeu.
Ignorei e me sentei entre meu pai e minha mãe, sendo abraçada pelos dois.
- Prometo te comprar um de outra cor depois.
- Ok, pai. - Eu também quero! – protestou e revirei os olhos. A caçula não podia dividir a atenção por um segundo.
Ficamos nesse grude por algum tempo, aproveitando a melhor coisa que tínhamos naquele momento: nós, nossa família. Nunca seria capaz de dizer o quanto eu amava eles. Meus pais, minha irmã, eles eram tudo para mim e eu nunca os trocaria nessa vida. Poderia parecer clichê, mas era a realidade.
- Amor, você não deixou a comida no fogo, né? – Meu pai alertou e minha mãe enrijeceu preocupada.
- Puta que pariu. – Ela se levantou correndo para a cozinha e xingou os quatro ventos por ter deixado algo queimar.
Essa era minha família, que não tinham nada demais, nada de especial e nada de diferente. Mas era a melhor família que eu poderia pedir e eu sou quem sou graças a eles.
Para os outros pode ser apenas um sobrenome, mas eu tenho orgulho e honra em ser uma Romero.
Depois, por: Romero.
Abri a porta daquele motel barato com o maior silêncio e delicadeza possível. Havia outros daqueles bichos espalhados pelo local e principalmente trancados em alguns quartos. Poderíamos ouvir um alfinete caindo no chão, mas no momento em que nos aproximávamos dessas portas para encontrar o nosso próprio quarto, – temporário – eles sentiam o cheiro da nossa carne e conseguíamos ouvir aquele rosnado saindo do fundo da garganta em puro desejo de algo para se alimentar.
Meus sentimentos naquela época se resumiam em viver com medo, já que era impossível se acostumar com tudo que estava acontecendo.
e eu estávamos com nosso pai há algum tempo sozinhos, tentando sobreviver, passando de grupo em grupo e nos iludindo por muitas vezes com pessoas que nos prometeram fazer o bem, e acabavam cumprindo o contrário.
Meu pai estava nos esperando no quarto do motel, o qual nós conseguimos através de um gigantesco plano de trancar todos os bichos, e nos mantivemos por um tempo. Agora que todo o mantimento acabou, eu e minha irmã fomos em busca de algum mapa pelas lojas mais vazias da cidade, enquanto meu velho cuidava da nossa pequena estadia.
Após uma longa temporada de vacas magras, aquele era o ponto alto em meses, mesmo sem estar no topo com as vacas gordas. Afinal, passamos por cima das ocasiões onde nos ludibriavam, estávamos sem teto e a depressão que nosso pai entrou logo após a morte de sua esposa.
Nossa mãe.
O quão gigantesco era a ameaça que sofríamos a cada esquina, e infelizmente perdemos nossa mãe pela fraqueza psicológica da própria. E não havia como culpá-la. No fim de contas, se tratava de todos os nossos vizinhos, parentes, vovô e vovó, todos, todos sendo infectados pelo maldito vírus que os levavam para longe de nós.
A família era o nosso bem mais importante e enquanto nos mantínhamos unidos, havia algo para o que lutar.
E era cedo demais para pensar sobre isso...
Ao virar aquela porta, tudo iria mudar.
Meus pensamentos, meu caráter, minha forma de ver o mundo.
Dizem que uma experiência traumática pode te modificar para sempre e todas as suas atitudes.
Eles estavam certos.
e eu não estávamos completamente felizes, mas a comodidade estava intacta, então, ao abrir a porta do nosso quarto do motel, nunca pensaríamos que fossemos encontrar aquela cena.
Meu pai estava morto. Nosso pai estava morto.
Éramos órfãs dali pra frente. Foram segundos que ficamos ali paradas, sem saber o que fazer ou para onde seguir.
O cheiro de carne podre já infestava o quarto e o mesmo estava completamente revirado.
fechou a porta e eu estava paralisada demais para deixar cair qualquer lágrima.
Arrastei minhas costas na porta até me sentar. Meus olhos estavam arregalados, assim como minha boca aberta demais, procurando palavras que não existiam para expressar o que eu sentia e não sentia ao mesmo tempo.
Eu queria me levantar e acabar com a agonia dele, com a agonia da minha irmã que ofegava sem saída.
O pescoço de nosso pai estava amarrado com uma gravata no ferro que segurava a cortina. Sua pele estava roxa e preta, com moscas em seus olhos.
Na questão dos minutos que não conseguíamos nos mover, ele mesmo voltou a se mexer.
Poderia ser considerado um milagre, se toda a vivacidade dele não fosse transformada em mais um deles.
Aqueles que trancamos nos quartos daquele corredor, e evitávamos encontrar porque desejavam somente comer a nossa carne.
E agora, meu pai era um deles.
Tornou-se apenas mais um.
Senti que lágrimas, que agora se acomodavam em minhas bochechas, e assim como eu pensava, percebeu que estávamos ali a tempo demais.
- Precisamos sair daqui. – falou ela, com a voz baixa. E eu a amava por tentar ser tão forte por mim em um momento como esse, já que eu estava sendo praticamente inútil.
Vi ela se levantando e olhando através da janela lá fora, tentando não encostar-se aos braços de meu pai que tentava alcançá-la.
Na verdade, aquele já não era meu pai.
Meu pai era feliz, engraçado, protetor. O melhor pai que alguém poderia pedir, e aquilo era somente a carcaça do homem que ele foi. Pedindo socorro pelos seus gestos, para que alguém o salvasse de si mesmo.
- Não podemos deixar ele aqui, . – sussurrei para minha irmã.
Levantei tentando tomar coragem, respirando fundo e pegando a faca dentro da minha bota de cowboy. Porém eu continuava a tremer.
- Deixa comigo. Vai lá pra fora. – pegou a faca em minhas mãos, e minha garganta estava apertada de tanta dor que eu sentia, o tanto que eu queria chorar. Sumir dali seria o suficiente.
Relutantemente entreguei a faca.
- Ele disse que a gente precisava fazer silêncio... É nosso maior poder aqui dentro. – murmurei e sai do quarto com uma tonelada nas costas. Mal conseguia andar em uma linha reta.
Fiquei alguns segundos encostada à porta, escutando minha irmã chorar. Depois de uma breve pausa, algo caindo no chão. E então, a colisão da lâmina em seu cérebro. Fechei os olhos com força e balancei a cabeça. Sem tendo certeza do que fazer, desci as escadas em busca de sair logo dali.
Cheguei à recepção e revirei o balcão procurando por um maço de cigarros. Dei a volta nele abrindo a caixa registradora e nada dentro, os potes de vidro que antes havia balas também jaziam vazios, e no chão me encontrei uma perdedora com os olhos vermelhos de chorar, sem esperança ou futuro promissor.
Arqueei a sobrancelha para o fundo do balcão e retirei uma fita branca dali, revelando um cigarro.
Me levantei rapidamente voltando para as quinquilharias que vendiam na entrada e encontrei um isqueiro no meio da bagunça. Olhei para trás de mim procurando minha irmã ou um individuo morto/vivo e nada encontrei. Passei pela porta da entrada caminhando até o estacionamento sentindo uma sensação gostosa do ar frio ventando em meus cabelos.
Sentei no meio fio da rua vendo a placa neon azul e vermelha ainda funcionando. Acendi o cigarro e traguei lentamente, o alívio da nicotina logo se espalhando por minha mente.
Após alguns minutos, senti uma presença se sentando ao meu lado e coloquei minha cabeça em seu ombro, apagando o cigarro no chão. Seu problema de respiração me impedia de fumar perto dela.
- Acho que já estamos cientes de que estamos na merda, certo? – ela começou, sem força na sua voz.
- Certo. – concordei sem expressão.
- Mas ainda temos uma à outra.
Sorri fraco.
- E é o bastante. – continuou a tentar ver o lado bom da situação. O que me incomodou um pouco.
- Eles foram fracos, . – falei quase em um sussurro.
- Não diga isso, . – ela ralhou.
Me sentei reta.
- Eles foram e você sabe disso. Nem levados pela merda da doença eles foram – ri sem achar graça alguma – Acabaram com suas próprias vidas por fraqueza, nos deixando sozinhas no mundo. Mas tudo bem, como você disse temos uma a outra.
Sua expressão continuava calma e percebi que ela tentava passar esse sentimento para mim.
- Sim, e continuo os amando mesmo depois de desistirem. Na verdade, eles não desistiram, . Eles tentaram ao máximo, e para papai, seria impossível continuar sem ela. Ele tentou, ele não desistiu. Só não viu outra saída.
Assenti, com algo queimando dentro de mim. Não queria mais chorar.
- Superamos a morte dela, não foi?
Ela bufou, limpando uma lágrima solitária em sua bochecha, e então me levantei, falando e ao mesmo tempo me sentindo um pouco fora de mim. Era como se estivéssemos em um universo paralelo sem eu poder prestar um luto digno para meu próprio pai.
- Preciso me despedir antes de partirmos.
Ela concordou com a cabeça e voltei para o quarto tentando não chamar a atenção daqueles que continuavam rosnando através das portas.
E lá estava ele. Desengonçado. Mas dessa vez, parado.
Morto de verdade.
Me ajoelhei ao seu lado tentando mantê-lo em uma posição confortável, com as costas retas, e ao virar seu rosto pra mim não contive as lágrimas. Sua face estava completamente deformada, e aquilo foi um choque de realidade para o que realmente aconteceu.
Eu nunca mais o veria de novo.
Segurei com força sua mão sem saber o que dizer, acariciando seu cabelo. Desejava ter dito que o amava por uma ultima vez, e fazê-lo perceber o quanto ele era importante, e que sempre o guardaria no meu coração. Mesmo me deixando sozinha no mundo, como mamãe um dia fizera.
Retirei sua dog tag do pescoço e coloquei em meu próprio, um símbolo de lembrança.
Ele estaria melhor agora, longe dessa realidade podre em que vivíamos, perto da pessoa que ele mais amou na vida e abdicou tudo sempre para estar ao lado dela.
Saí dali com dor no coração, mas com a força renovada.
Era mais uma pessoa que eu e perdíamos, e ainda sim tínhamos uma a outra, e ao passar por aquela porta, percebi que mesmo sendo essa a nova realidade, éramos sobreviventes por chegar até ali.
E em nome dos meus pais, eu manteria aquele título por um bom tempo.
Os dias em Oklahoma, mesmo frios, continuam maravilhosos.
A tarde gelada, – porém ensolarada – as pessoas andando de um lado para o outro, focados em seus celulares, o som dos motores nas ruas... Eu amava a civilização. Principalmente na melhor companhia possível: minha irmã.
Assumo que buscá-la para almoçar fora não foi de total criatividade, mas eu estava querendo comer algo doce e gorduroso, beber muita cafeína e tentar esquecer a noite desastrosa que eu tive em meu trabalho. pelo menos encheria minha cabeça com histórias de suas crianças, como são alunos bagunceiros, mas quando ela levanta a voz, eles a obedecem como soldadinhos.
E se eu tivesse sorte, ela repetiria a história do menininho que queria usar a saia de bailarina e os pais o negavam, fazendo com que uma menininha da turma que tinha o tutu em mãos entregasse para ele no dia de uma apresentação. A partir daí se tornaram melhores amigos, mesmo tendo uma idade mínima para fazer juras de amizade eterna. Mas a intenção foi muito fofa, reconheço.
Caminhávamos pelas ruas de Oklahoma, conversando e rindo sobre assuntos aleatórios, enquanto atraíamos vários olhares para nós. Não, as pessoas não foram atraídas pela nossa beleza exuberante e juventude, mas sim por uma doida estar usando um casaco amarelo no meio da rua.
A doida era eu.
- , você está parecendo um pintinho com esse casaco, – minha irmã debochava de mim enquanto eu me sentia a própria rainha da Inglaterra. – Não consigo manter a seriedade com uma banana com pernas andando do meu lado. E preciso de um óculos escuros ou minha catarata virá mais cedo com essa cor berrante. O sol ligou, quer a luz dele de volta.
- Obrigada, eu sei que eu brilho. E também sei que meu brilho incomoda muita gente. – Debochei e minha irmã gargalhou. Só espero que não tenha gargalhado de mim, mas sim comigo.
Fechei meu trench coat ao sentir o vento gelado atingir meu rosto e arrepiar meu corpo, bufei baixo e continuamos nossa caminhada ao destino não revelado.
- Não sei quem é você para criticar meu casaco, senhora Lolita. – Debochei minha irmã que usava seus típicos óculos solares vermelhos em forma de coração.
- Você tem inveja dos meus óculos, pode assumir.
Ri.
agarrou meu braço e andamos juntas até a área um pouco mais movimentada. O que eu não expliquei ainda era que não iríamos só almoçar, íriamos também arrumar o dinheiro para pagar o almoço.
Não somos ladras, somos vingativas.
Bradley Benson, um cara muito charmoso, interessante, bom de cama e muito gostoso. Mas um canalha. Sabe aqueles caras que terminam com você sem dar nenhuma explicação? Então. E ainda foi por SMS. Claro que eu não deixaria isso barato.
Só aplicaríamos um golpinho no homem, que talvez causasse sua demissão. Mas o problema seria dele, não meu.
Chegamos perto da banca de jornal próximo ao restaurante que iríamos almoçar, eu fiquei parada perto da pequena barraquinha de frozen yogurt enquanto minha irmã se aproximava da banca. Eu só precisava de um sinal.
Ela acenou.
E eu comecei a ter uma crise de asma/infarto/ADP e tudo junto.
Muitas pessoas correram até mim assustados quando viram meu ataque. Eu estava com a mão no peito, implorando por ar, enquanto meu peito “doía” descontroladamente.
- ? – Bradley correu até mim desesperado deixando sua banca sozinha. Agora era sua chance, ...
Todos estavam em minha volta, tentando me ajudar enquanto eu usava minha melhor atuação de quase morte em público. Alguns gritavam por ajuda, outros por uma ambulância, enquanto Bradley estava desesperado com medo que eu morresse em sua frente.
Imagine. Eu, morrer, logo após ele me chutar por SMS? Ah, Bradley, seria péssimo para você.
Observei de canto de olho sair da loja e piscar para mim, então ela deu a volta na rua. Continuei procurando ar por alguns segundos. E num passe de mágica eu estava curada.
Simples assim.
- Estou bem, estou bem. Obrigada. – Disse ofegante, ficando firme no chão e limpando meu casaco amarelo e lindo.
Todos respiraram aliviados, outros desconfiados e Bradley estava emocionado com minha melhora. Ele me abraçou forte e eu pude sentir seu cheiro de menta com café. Meu coração doeu por ter aplicado o golpe nele. Mas então me lembrei de quando ele terminou comigo sem nem ao menos pensar em meu bem estar. Ele mereceu.
Quando ele descobrisse tudo, eu o recompensaria com uma noite de deuses.
- Paga pra mim? – Selei meus lábios nos dele e peguei dois frozen yogurt, dei uma piscadela para ele e fui embora, buscando minha irmãzinha tão malandra quanto eu.
Lá estávamos nós duas, tomando aquele doce, e não deixei de perceber a quantidade de chocolate que colocou no dela como cobertura, essa sabia aproveitar coisas de graça. E enquanto saboreávamos, contávamos os dólares que conseguimos aquela tarde.
Poderíamos ser consideradas ladras, pessoas de má índole e que iriamos direto para o Inferno no Juízo Final, mas eu me diverti horrores.
E minha irmã também.
- Eu vou ter um ADP! – tentou me imitar eufórica e caímos na gargalhada.
Às vezes me sentia uma ótima atriz, afinal, era um sonho de consumo, lá no fundo de minha alma. Broadway, Hollywood e fama. Minha mãe sempre acreditou que me veria na Broadway ou recebendo um Oscar, ela gostava de sonhar alto.
Um dia, quem sabe.
Broadway, Romero está chegando.
- Eu fiquei com dó dele, assumo.
me encarou com os olhos de reprovação e eu revirei os olhos.
- Eu vou trabalhar de manhã, depois de uma noite toda tentando me atualizar nas minhas séries, e tenho que aguentar antes das dez horas um pai chato reclamando que o filho sujou a blusa de lama antes de chegar em casa. Isso é sofrimento, .
Ri da cara fechada de minha irmã só de lembrar do quanto sofre nas mãos daquelas criancinhas.
- Pelo menos você não passou a noite toda enchendo a cara tentando esquecer um cara que terminou com você por SMS.
- Mas o que te magoou não foi o término em si, foi seu orgulho ferido por ele ter te chutado, e não você ter chutado ele.
- E ainda mais por SMS! – Gritei eufórica e indignada, fazendo minha irmã cair na gargalhada, me amparando ao me abraçar de lado.
Seguimos o caminho até nossa casa, sumindo com os potinhos do sorvete que tomamos, já que nossa mãe, mesmo com nós duas sendo bem maiores de idades, odiava quando comíamos porcarias na rua antes de almoçar ou jantar.
Entramos em casa e senti o ar quente junto com o cheiro das flores de minha mãe, a comida dela e o perfume de meu pai aquecerem até meu olfato.
- e Romero, por onde as duas mocinhas andaram? – Minha mãe saiu da cozinha com uma expressão hilariante furiosa.
- Por aí, mãe. Falta uns três minutos pra dar a hora do jantar. – respondeu dando de ombros com a cara de inocente e a nossa mãe revirou os olhos, voltando para cozinha.
- Eu podia deixá-las sem comer, só para aprender. – As ameaças de nossa mãe poderia ser mais engraçadas se ela não estivesse realmente falando sério.
- Me desculpe, mãezinha do meu coração. A culpa é toda da , ela que me leva para o mau caminho. – Debochei recebendo um pano de louça na cara vindo da minha irmã mais nova.
- Ah, faça-me o favor, , você acha que me engana? Vou te mostrar a palhaça, espera só. – Caímos na gargalhada com nossa mãe, junto com a risada alta e gostosa do nosso pai.
- Querida, o jantar vai demorar? – Brincou nosso pai.
- Vem fazer você. – Alfinetou.
- Prefiro a sobremesa. – Provocou.
Minha mãe ficou em silêncio, posso apostar que nesse momento ela estava corada. Meus pais eram o casal perfeito. Ela era o fogo e ele a água, mas quando se juntam, só coisas boas acontecem. Inclusive eu e a , coisas boas mesmo.
Meu pai estava sentado no sofá vendo alguma besteira na TV, enquanto mexia no cabelo dele sem motivo aparente. Ele virou para me encarar e fez uma cara chocada.
- Minha filha, jogue esse casaco fora. Ele é horrível. – Mais um para criticar meu casaco. Caretas.
- Eu falei para ela, pai, mas quem disse que ela dá ouvidos para a irmã sensata? – se sentou ao lado de meu pai e eles se cumprimentaram com um high five.
Então era um complô contra meu casaco? Isso mesmo?
- Vocês não entendem nada de moda, vocês não são fashion como eu. – Empinei o nariz e meu pai riu.
- Não, filha, seu pai está certo. Esse casaco é horrendo, quem te deixou comprar isso? – Mamãe apareceu tocando meu ombro e sentando do outro lado de meu pai.
Mais uma.
- Na verdade, foi você quem me deu, mamãe. – Disse, e minha mãe me encarou chocada.
- Sim, de Natal. – Papai complementou.
- Eu falei para você comprar o vermelho, mas você disse que queria ver sua estrelinha brilhar. – deu os ombros. – Se bem que de banana à maçã, os dois são horríveis. O problema tá no conteúdo de dentro também – ela riu. Haha.
Estava me sentindo atacada e humilhada dentro do meu próprio lar.
- Não foi o mês que perdi meu óculos? Se não, só poderia estar muito drogada aquele dia. – Nós quatro rimos da fala de minha mãe e eu tirei o casaco jogando-o na poltrona de meu pai.
- Ei, aí não! – Meu pai repreendeu.
Ignorei e me sentei entre meu pai e minha mãe, sendo abraçada pelos dois.
- Prometo te comprar um de outra cor depois.
- Ok, pai. - Eu também quero! – protestou e revirei os olhos. A caçula não podia dividir a atenção por um segundo.
Ficamos nesse grude por algum tempo, aproveitando a melhor coisa que tínhamos naquele momento: nós, nossa família. Nunca seria capaz de dizer o quanto eu amava eles. Meus pais, minha irmã, eles eram tudo para mim e eu nunca os trocaria nessa vida. Poderia parecer clichê, mas era a realidade.
- Amor, você não deixou a comida no fogo, né? – Meu pai alertou e minha mãe enrijeceu preocupada.
- Puta que pariu. – Ela se levantou correndo para a cozinha e xingou os quatro ventos por ter deixado algo queimar.
Essa era minha família, que não tinham nada demais, nada de especial e nada de diferente. Mas era a melhor família que eu poderia pedir e eu sou quem sou graças a eles.
Para os outros pode ser apenas um sobrenome, mas eu tenho orgulho e honra em ser uma Romero.
Depois, por: Romero.
Abri a porta daquele motel barato com o maior silêncio e delicadeza possível. Havia outros daqueles bichos espalhados pelo local e principalmente trancados em alguns quartos. Poderíamos ouvir um alfinete caindo no chão, mas no momento em que nos aproximávamos dessas portas para encontrar o nosso próprio quarto, – temporário – eles sentiam o cheiro da nossa carne e conseguíamos ouvir aquele rosnado saindo do fundo da garganta em puro desejo de algo para se alimentar.
Meus sentimentos naquela época se resumiam em viver com medo, já que era impossível se acostumar com tudo que estava acontecendo.
e eu estávamos com nosso pai há algum tempo sozinhos, tentando sobreviver, passando de grupo em grupo e nos iludindo por muitas vezes com pessoas que nos prometeram fazer o bem, e acabavam cumprindo o contrário.
Meu pai estava nos esperando no quarto do motel, o qual nós conseguimos através de um gigantesco plano de trancar todos os bichos, e nos mantivemos por um tempo. Agora que todo o mantimento acabou, eu e minha irmã fomos em busca de algum mapa pelas lojas mais vazias da cidade, enquanto meu velho cuidava da nossa pequena estadia.
Após uma longa temporada de vacas magras, aquele era o ponto alto em meses, mesmo sem estar no topo com as vacas gordas. Afinal, passamos por cima das ocasiões onde nos ludibriavam, estávamos sem teto e a depressão que nosso pai entrou logo após a morte de sua esposa.
Nossa mãe.
O quão gigantesco era a ameaça que sofríamos a cada esquina, e infelizmente perdemos nossa mãe pela fraqueza psicológica da própria. E não havia como culpá-la. No fim de contas, se tratava de todos os nossos vizinhos, parentes, vovô e vovó, todos, todos sendo infectados pelo maldito vírus que os levavam para longe de nós.
A família era o nosso bem mais importante e enquanto nos mantínhamos unidos, havia algo para o que lutar.
E era cedo demais para pensar sobre isso...
Ao virar aquela porta, tudo iria mudar.
Meus pensamentos, meu caráter, minha forma de ver o mundo.
Dizem que uma experiência traumática pode te modificar para sempre e todas as suas atitudes.
Eles estavam certos.
e eu não estávamos completamente felizes, mas a comodidade estava intacta, então, ao abrir a porta do nosso quarto do motel, nunca pensaríamos que fossemos encontrar aquela cena.
Meu pai estava morto. Nosso pai estava morto.
Éramos órfãs dali pra frente. Foram segundos que ficamos ali paradas, sem saber o que fazer ou para onde seguir.
O cheiro de carne podre já infestava o quarto e o mesmo estava completamente revirado.
fechou a porta e eu estava paralisada demais para deixar cair qualquer lágrima.
Arrastei minhas costas na porta até me sentar. Meus olhos estavam arregalados, assim como minha boca aberta demais, procurando palavras que não existiam para expressar o que eu sentia e não sentia ao mesmo tempo.
Eu queria me levantar e acabar com a agonia dele, com a agonia da minha irmã que ofegava sem saída.
O pescoço de nosso pai estava amarrado com uma gravata no ferro que segurava a cortina. Sua pele estava roxa e preta, com moscas em seus olhos.
Na questão dos minutos que não conseguíamos nos mover, ele mesmo voltou a se mexer.
Poderia ser considerado um milagre, se toda a vivacidade dele não fosse transformada em mais um deles.
Aqueles que trancamos nos quartos daquele corredor, e evitávamos encontrar porque desejavam somente comer a nossa carne.
E agora, meu pai era um deles.
Tornou-se apenas mais um.
Senti que lágrimas, que agora se acomodavam em minhas bochechas, e assim como eu pensava, percebeu que estávamos ali a tempo demais.
- Precisamos sair daqui. – falou ela, com a voz baixa. E eu a amava por tentar ser tão forte por mim em um momento como esse, já que eu estava sendo praticamente inútil.
Vi ela se levantando e olhando através da janela lá fora, tentando não encostar-se aos braços de meu pai que tentava alcançá-la.
Na verdade, aquele já não era meu pai.
Meu pai era feliz, engraçado, protetor. O melhor pai que alguém poderia pedir, e aquilo era somente a carcaça do homem que ele foi. Pedindo socorro pelos seus gestos, para que alguém o salvasse de si mesmo.
- Não podemos deixar ele aqui, . – sussurrei para minha irmã.
Levantei tentando tomar coragem, respirando fundo e pegando a faca dentro da minha bota de cowboy. Porém eu continuava a tremer.
- Deixa comigo. Vai lá pra fora. – pegou a faca em minhas mãos, e minha garganta estava apertada de tanta dor que eu sentia, o tanto que eu queria chorar. Sumir dali seria o suficiente.
Relutantemente entreguei a faca.
- Ele disse que a gente precisava fazer silêncio... É nosso maior poder aqui dentro. – murmurei e sai do quarto com uma tonelada nas costas. Mal conseguia andar em uma linha reta.
Fiquei alguns segundos encostada à porta, escutando minha irmã chorar. Depois de uma breve pausa, algo caindo no chão. E então, a colisão da lâmina em seu cérebro. Fechei os olhos com força e balancei a cabeça. Sem tendo certeza do que fazer, desci as escadas em busca de sair logo dali.
Cheguei à recepção e revirei o balcão procurando por um maço de cigarros. Dei a volta nele abrindo a caixa registradora e nada dentro, os potes de vidro que antes havia balas também jaziam vazios, e no chão me encontrei uma perdedora com os olhos vermelhos de chorar, sem esperança ou futuro promissor.
Arqueei a sobrancelha para o fundo do balcão e retirei uma fita branca dali, revelando um cigarro.
Me levantei rapidamente voltando para as quinquilharias que vendiam na entrada e encontrei um isqueiro no meio da bagunça. Olhei para trás de mim procurando minha irmã ou um individuo morto/vivo e nada encontrei. Passei pela porta da entrada caminhando até o estacionamento sentindo uma sensação gostosa do ar frio ventando em meus cabelos.
Sentei no meio fio da rua vendo a placa neon azul e vermelha ainda funcionando. Acendi o cigarro e traguei lentamente, o alívio da nicotina logo se espalhando por minha mente.
Após alguns minutos, senti uma presença se sentando ao meu lado e coloquei minha cabeça em seu ombro, apagando o cigarro no chão. Seu problema de respiração me impedia de fumar perto dela.
- Acho que já estamos cientes de que estamos na merda, certo? – ela começou, sem força na sua voz.
- Certo. – concordei sem expressão.
- Mas ainda temos uma à outra.
Sorri fraco.
- E é o bastante. – continuou a tentar ver o lado bom da situação. O que me incomodou um pouco.
- Eles foram fracos, . – falei quase em um sussurro.
- Não diga isso, . – ela ralhou.
Me sentei reta.
- Eles foram e você sabe disso. Nem levados pela merda da doença eles foram – ri sem achar graça alguma – Acabaram com suas próprias vidas por fraqueza, nos deixando sozinhas no mundo. Mas tudo bem, como você disse temos uma a outra.
Sua expressão continuava calma e percebi que ela tentava passar esse sentimento para mim.
- Sim, e continuo os amando mesmo depois de desistirem. Na verdade, eles não desistiram, . Eles tentaram ao máximo, e para papai, seria impossível continuar sem ela. Ele tentou, ele não desistiu. Só não viu outra saída.
Assenti, com algo queimando dentro de mim. Não queria mais chorar.
- Superamos a morte dela, não foi?
Ela bufou, limpando uma lágrima solitária em sua bochecha, e então me levantei, falando e ao mesmo tempo me sentindo um pouco fora de mim. Era como se estivéssemos em um universo paralelo sem eu poder prestar um luto digno para meu próprio pai.
- Preciso me despedir antes de partirmos.
Ela concordou com a cabeça e voltei para o quarto tentando não chamar a atenção daqueles que continuavam rosnando através das portas.
E lá estava ele. Desengonçado. Mas dessa vez, parado.
Morto de verdade.
Me ajoelhei ao seu lado tentando mantê-lo em uma posição confortável, com as costas retas, e ao virar seu rosto pra mim não contive as lágrimas. Sua face estava completamente deformada, e aquilo foi um choque de realidade para o que realmente aconteceu.
Eu nunca mais o veria de novo.
Segurei com força sua mão sem saber o que dizer, acariciando seu cabelo. Desejava ter dito que o amava por uma ultima vez, e fazê-lo perceber o quanto ele era importante, e que sempre o guardaria no meu coração. Mesmo me deixando sozinha no mundo, como mamãe um dia fizera.
Retirei sua dog tag do pescoço e coloquei em meu próprio, um símbolo de lembrança.
Ele estaria melhor agora, longe dessa realidade podre em que vivíamos, perto da pessoa que ele mais amou na vida e abdicou tudo sempre para estar ao lado dela.
Saí dali com dor no coração, mas com a força renovada.
Era mais uma pessoa que eu e perdíamos, e ainda sim tínhamos uma a outra, e ao passar por aquela porta, percebi que mesmo sendo essa a nova realidade, éramos sobreviventes por chegar até ali.
E em nome dos meus pais, eu manteria aquele título por um bom tempo.
Capítulo 1 – Thriller.
Romero
Acordei cedo demais como o esperado. Antigamente, uma prova difícil, problemas no trabalho ou com a minha família, fariam com que a insônia voltasse a dar olá para todas as minhas noites. Hoje a situação é outra.
Estávamos eu e minha irmã, , no topo de uma torre estruturada, que pareceu antes servir como antena para uma TV local.
A Terra foi atacada de forma súbita, sem nos dar tempo para pensar e agir da forma correta seguindo nossos valores. Ficamos sem saber para onde ir, não sabíamos o que tinha nos remetido a tal situação, tampouco tínhamos ideia de como se defender. A população entrou em choque, e como a própria peste bubônica, o vírus se espalhou pelo ar. Em dias, se foram bairros, em um ano, o ser humano estava em extinção. Provavelmente não seria ruim, considerando a hipótese em uma época que o mundo acabou sendo corrompido pela própria espécie, que se importava com futilidades acima do que era importante de fato.
Mas não vou entrar em detalhes, sou apenas um daqueles seres que conseguiram sobreviver, e mesmo nas condições que a Terra se encontra, continuo tomando os mesmos erros que o passado me fazia tomar. Claro que havia alguma diferença na rotina.
Um passo em falso no passado – literalmente – me faria cair e perder o dente. Um passo em falso no presente me faria cair, deslizar de um precipício, bater a cabeça em uma pedra, desmaiar, ficar ali por alguns dias, acordar com muita fome, avistar algumas frutas em uma árvore miraculosa que teria resistido ao deserto que se tornou Oklahoma, tentaria por vezes alcançar aquela fruta e a comeria como se fosse a última colher de açúcar depois de anos saboreando apenas areia e unha do pé. Estaria suculenta, mas aquele passo em falso faria com que eu me distanciasse da estrada, e isto era sinal de perigo. Como uma placa vermelha de neon brilhando na frente dos nossos olhos.
E todo o prazer que sentiria me degustando daquela fruta acabaria, porque perdi tanto tempo prestando atenção no meu paladar, que me esqueci de olhar para trás e tentar me proteger dos dentes podres do morto vivo que se locomovia em minha direção, e se salientou com a pele do meu pescoço, acertando uma veia em cheio, jorrando sangue em minha própria fruta e na cara do monstro que se deleitava com o meu gosto, como eu tinha sentido com aquela maçã.
Como havia dito, era tudo questão de rotina. Mas não se assuste, foi apenas uma hipótese.
Passei a observar o chão lá em baixo. Perdi o medo de altura há algum tempo, quando fui obrigada a dormir naquelas escadas de metal com mais de cinquenta metros de altura, já que teria muito mais proteção do que passar a noite no carro e receber uma visita indesejada. Ali eles não conseguiriam subir. Bom, ao menos não subiram até agora.
O sol já estava nascendo, virei para o lado e estudei minha irmã dormindo. Seu rosto oval com o queixo leve lhe dava um aspecto de uma pessoa doce. O que não era totalmente mentira, contando com sua personalidade forte. E isso contrastava sua íris castanha puxado para verde, quase angelical, mas marcante, assim como sua sobrancelha simples e bem desenhada.
Ela era uma garota loira de olhos amêndoas e eu morena de olhos claros, era possível que fossemos trocadas na maternidade, mas algumas características como nosso jeito de agir e estrutura óssea revelava o parentesco.
Bati levemente na sua perna e ela abriu os olhos, relutante.
Romero era minha irmã mais velha desde que nasci. E acho que aquilo era tudo que poderia falar sobre ela. Fora que era minha parceira em todas as horas, por falta de ser humano vivo ainda na terra.
Brincadeiras à parte, éramos grudadas desde que comecei a estudar na mesma escola que ela, sendo que acabei entrando um pouco mais tarde por conta da idade, e desde aí, confiamos uma na outra para tudo. Haviam brigas como qualquer outro irmão, mas a necessidade de ver uma a outra a cada dia que abrimos os olhos, buscando a seguridade de que as duas ainda estavam respirando, fazia com que cada desavença fosse enterrada a sete palmos do chão.
Nos levantamos com cuidado para que um passo em falso não acontecesse na torre, e guardamos o cobertor dentro da bolsa amarela de plástico que levávamos para o alto somente com o necessário. Sem trocar palavras – na falta de assunto.
Descemos a escada em um pé de cada vez, posicionando antes para saber se cada degrau estava diretamente fixado. Senti o vento nos meus cabelos. Não sei se já era sabido, mas no apocalipse, água era um elemento de luxo. Para uma melhor utilização, costumava deixar meu cabelo com algumas tranças e amarrado no alto, o comprimento até a cintura dificultava, mas cá entre nós, aquele penteado disfarçava a falta de banho.
Ao chegarmos ao chão, coloquei a mochila atrás da camionete velha de cor vermelho gasto. abriu a porta do motorista e pegou uma garrafa de água embaixo do banco que guardávamos o máximo possível. Ela bebeu pouco e depois me entregou em mãos. Bebi o resto com gosto e falei pela primeira vez.
- Não temos mais nada. Sério, nadinha. Precisamos encontrar alguma casa com comida e se a sorte estiver ao nosso favor, água. – falei, abrindo o porta-luvas, procurando por algo que pudéssemos nos alimentar. Talvez o volante tivesse um gosto bom.
- Você não comeu ontem o dia todo, e ainda te ofereci minha barra de cereal. Precisa aproveitar cada grão de comida que temos e que nos oferecem, mana. – falou sentando no carro ao meu lado. – Podemos ir mais tarde, ainda tem gasolina no tanque.
- Tudo bem. – falei colocando os pés no para-brisa – Esta noite estava mais fria que o comum, e é irritante, de noite sofremos de frio da porra e de dia é calor do inferno.
riu. - Vamos aproveitar o sol. – ela respirou profundamente – O ar está limpo, o clima tá gostoso e não vejo sinal de individuo algum querendo nos incomodar.
Eu concordei e ela começou a tirar o próprio sapato, depois o short e a blusa. Estávamos as duas de biquíni por baixo, então não foi estranho. Amarrou o cabelo em um coque alto, pegou os óculos espelhados no canto da porta e saiu do carro. Senti seu peso na parte de trás da camionete, e logo ela tinha ajeitado o cobertor fino no ferro, deitando-se para tomar sol.
Repeti seus movimentos, pegando os óculos em formato de coração com a armação fina e de cor vermelha e laranja, como o pôr do sol.
Então liguei o som. Não, não era rádio. Era um CD que nossos pais tinham feito antes de se casarem. A lista de músicas era gigante, então se havia alguma que ainda nunca escutamos, não me surpreenderia.
Seria ironia do destino tocar Thriller? Gargalhei alto e sai do carro, acompanhando minha irmã ao tomar sol. Nossas peles já foram mais claras antes, agora vivíamos na beira de um deserto, e o tom caramelo era o mais próximo que possuímos. Caramelo para , já que obtive uma herança latina de mamãe maior que ela. Antes sua pele ficava apenas vermelha no sol, enquanto a minha bronzeava em um tom que eu adorava possuir.
Soltei um som de desgosto ao ver minha irmã fazendo topless.
- Já vi muitos monstros nessa vida, guarda o peito pra você mesma, garota. – falei rindo.
- Estes aqui são espécimes naturais e belos, que ainda olham pra frente. Agradeça que sou apenas pouquíssimos anos mais velha do que você, senão meus bebês estariam olhando para o chão. Então esta seria uma cena mais desagradável.
- Se você diz... – concordei, revirando os olhos.
Ficamos deitadas ali, curtindo nossa própria presença, e eu torcendo para que conseguisse mais marca ainda do meu biquíni. Era um tipo de fetiche talvez, com meu próprio corpo.
O lado ruim da famigerada extinção era o silêncio. Todos poderiam concordar que a rotina era ótima para fazer nos ocupar com qualquer coisa, e que aqueles minutinhos antes de fechar os olhos e dormir conseguiam ser os piores, por estarmos criando teorias e mais teorias que nunca acontecerão, mas que faziam você se preocupar e roer as unhas de tanta dor de cabeça aquilo lhe dava.
E ali o que mais tínhamos era silêncio. Um espaço mútuo de nada. Era vago. Era vento, sol, chuva e luar. Poderia estar apenas me preocupando com meu bronzeado, mas estava me perguntando se amanhã nós teríamos o que comer ou se até mesmo estaríamos vivas. Algo forte para se imaginar, porém, com tudo que enfrentamos para nos tornarmos as sobreviventes que éramos hoje, todo cuidado era pouco. E por tudo e todos que perdemos... Apreciar a companhia da pessoa que mais amamos na vida e desejar seu bem estar não era luxo, era natural. Era o mínimo.
Segurei em mãos o cordão que levava no meu pescoço. A plaqueta de identificação que meu pai sempre carregou estava agora na minha pele. Encarei aquele pedaço de metal por muito tempo e notou. Não disse nada, porém, somente segurou minha mão com força.
Perder os pais não era apenas difícil. Era um trabalho árduo que levávamos todos os dias para nos acostumar, mas nunca superar. Simplesmente quem passou por aquilo sabia. E agora éramos nós duas contra o mundo. Garotas novas demais que tiveram que lidar com a peste bubônica do século 21, a morte dos pais, dos amigos e qualquer outra pessoa que juntava afeto ou não. A vida era uma droga mesmo. Mas era a única que tínhamos. Sorri e olhei para minha irmã.
- Você está quase pelada e segurando minha mão. Que nojo.
Ela sorriu e bateu com força na minha coxa. Gemi de dor e passei a mão em cima da vermelhidão, a xingando baixinho.
Ela me ignorou e fez os antebraços de travesseiro, cantando a letra da música de acordo. Deitei de barriga pra baixo e fizemos um dueto.
Gritamos entre os ventos daquele deserto de Oklahoma. Rindo e tomando sol.
Até que um som tomou conta da nossa atenção. Saí da camionete rapidamente e desliguei a música. Passei a roupa de pela janela central entre os bancos e me vesti na frente. Nos abaixamos e olhamos para a estrada principal que não estava longe. Um carro parou perto da entrada da floresta – sim, tinha uma floresta, era Oklahoma, não o Marrocos – e estudamos cada movimento das pessoas que saíram do trailer branco. Um rapaz de cabelo comprido e preto amarrado com uma arma na altura do peito desceu, entrando na floresta, mas antes, trocou palavras com um cara de cabelo loiro ou branco, de longe não dava para notar. Um homem de pele extremamente clara saiu de um carro preto e grande que acompanhava o trailer na trilha.
Olhei para e tivemos a mesma ideia. Os três entraram na mata e logo minha irmã saiu da traseira da camionete vestida, sentando-se ao meu lado no banco passageiro. Liguei a chave na ignição e posicionei a marcha. Em questão de segundos varremos muita poeira do chão e nos aproximamos do trailer. Desliguei o carro não tão perto, para que não ouvissem e percebessem a nossa presença.
pegou uma faca onde antes também estavam os óculos e disse para eu verificar o trailer enquanto ela tentaria abrir o carro. Saiu primeiro e afivelei rapidamente o coldre que sempre carregava quando estávamos socializando com o mundo. Verifiquei a câmara da pistola e como o esperado, estava sem balas. Fechei o porta-luvas com força e sai do veículo bufando. Teria que servir ao menos de aparência.
A porta do motorista do trailer estava aberta. Verifiquei os compartimentos da parte frontal e não havia nada de interessante. Abri a porta minúscula e passei para a cozinha. Armário, nada. Mesa, nada. Geladeira? Tudo. Olhei para o céu e agradeci mentalmente às estrelas. Abri a cortina atrás de mim e verifiquei se estava tudo bem lá fora, e minha irmã já havia entrado no carro também. Fechei a cortina novamente e pensei no que fazer. Voltei para o lado do motorista e peguei uma bolsa grande com um peixe desenhado nela, o que teria de servir.
Expandi a sacola na mesa e coloquei todos os vidros possíveis dentro dela. Refrigerantes, congelados – por incrível que pareça – e uma garrafa de água. Visando ela, abri a torneira da pia apenas por alguns segundos. Demorou, mas a água veio. Coloquei a boca ali e tomei algumas goladas. Amarrei a bolsa com toda a comida e ao pensar na água, algo mais arriscado veio à mente, e felizmente eu tinha a coragem para riscos agora. Iria sair e convencer minha irmã de levar o trailer todo.
Os caras que foram até a floresta provavelmente saíram para caçar. Eles estavam em três e nós em duas, somos pobres almas indefesas que precisam de comida e água, eles iriam entender. E também, não levaríamos o carro. Antes de abrir a porta traseira do trailer, peguei uma ameixa no fundo da geladeira e cortei a metade com uma faca. Era como as semanas comendo areia e aquela delícia doce estava no meu paladar novamente. Azeda e suave ao mesmo tempo. Poderia suspirar, mas meu cérebro fez aquilo de novo, não prestou atenção.
Malditas frutas vermelhas.
Me assustei com o barulho da porta fechando atrás de mim. Era o rapaz de cabelo loiro novamente, seu sorriso podre e gigante olhava para mim com sétimas intenções.
- Você não vai querer se aproximar. – retirei a arma do coldre e apontei na sua testa.
Ele levantou os braços e pensou por alguns segundos. O tempo era vital.
- Atire. – ele falou com um tom de voz extremamente calmo e baixo, que arrepiou os lugares mais sensíveis de meu corpo em medo. Seu rosto era horripilante para alguém que já estava tentando me causar medo, não havia sobrancelha e um de seus olhos estava fechado, com uma cicatriz de queimadura em cima da pele fina.
Demorei demais, e ele teve duas impressões. Uma, que eu não atiraria. Duas, eu estava sem munição. Na segunda ele acertou.
Iniciamos uma luta onde o homem tentava retirar a arma da minha mão. Tentei acertá-lo na cabeça com o cabo, mas ele conseguiu a arma e senti uma torção no meu pulso esquerdo. Chorei e gritei de dor. Rapidamente ele fechou a palma suja na minha boca, impedindo qualquer som de sair. Com as pernas fez as minhas se desequilibrarem e eu estava no chão, com medo, o pulso talvez quebrado, a minha cabeça encostou-se ao móvel atrás de mim com força e ele segurou meus braços para cima.
Tentei chutá-lo, mas via coisas demais.
Dor, dor, dor, dor.
apareça, por favor.
Acertei sua região sul e ele me socou no rosto. A cada tentativa de sair do sufoco mais eu me debatia nos móveis do lugar tão pequeno. Uma lágrima escorreu do meu olho quando escutei o barulho de seu zíper sendo aberto.
Tentei acertá-lo mais algumas vezes e de nada adiantava. Paralisei e fechei os olhos rezando para que minha irmã chegasse.
A porta abriu novamente e esperança brotou em mim.
Senti o peso do lixo em cima de mim e percebi que ele havia desmaiado. Gemi de dor e tirei seu corpo do meu com um misto de nojo e terror. Avistei uma senhora à minha frente. Ela tinha minha altura, talvez cinquenta anos. Sua pele era escura, o cabelo cobre e curto, cacheado, o rosto na expressão mais severa possível. Ela largou a frigideira que havia acertado o cara e me alcançou uma mão.
- Não farei mal a você. Meu nome é Barbie, temos que te tirar logo daqui. Sua irmã está lá fora.
Segurei sua mão com o meu braço que não doía e me levantei seguindo a senhora, que não sabia, mas seu gesto significou o mundo pra mim.
Capítulo 2 – Salvatore.
Romero
Correr nunca foi um problema. Desde que o fim do mundo começou, descobri que eu tinha mais capacidade física que achava. Não era sobre apenas correr, era sobre correr para salvar sua vida e dos outros com você.
E era isso que eu estava fazendo.
Eu não sei dizer o que aconteceu com minha irmã naquele trailer, eu estava ocupada com o outro veículo, ouvi os gritos de , mas também não perguntei. Não por falta de curiosidade, mas por respeito. Quando ela estivesse pronta, ela me contaria.
Mas parece que a senhora desconhecida havia feito algo que aborreceu bastante os outros homens, pois logo estavam gritando, mostrando-se bastante irritados e prontos para matar qualquer um que passasse em sua frente. Inclusive duas garotas “inocentes” e uma senhora “indefesa”. Realmente, correr era uma boa opção.
Corríamos floresta adentro, procurando meios de nos esconder dos agressores, mas os mortos vivos vinham de vários lugares, nos cercando.
Pelo menos isso os atrasariam.
Depois de um tempo escondidas, percebemos que os homens sumiram, foram embora ou morreram, mas não estavam mais lá. O trailer continuava no mesmo lugar, mas o carro preto havia sumido.
Talvez todos entraram nele e se mandaram? Algum sobrevivente conseguiu fugir? Muitas perguntas, poucas respostas.
Na tentativa de sair da floresta, mais alguns mortos vivos nos cercaram. Nos separamos um pouco para poder matá-los. Minha preocupação era ter que dar cobertura para a senhora estranha, mas ela matava-os rapidamente. Sua faca entrava e saía da têmpora dos mortos – que não estavam tão mortos assim. não ficava para trás, também os matava com sua precisão e fúria, mesmo com um braço machucado e aparentando muita dor, ofegando e com algumas gotas de suor na testa.
Algo estava errado.
Matamos todos os mortos vivos que nos cercaram, deixando um rastro de corpos podres pela floresta, então fomos até a nossa camionete. Estávamos cansadas, exaustas, machucadas. estava quieta, com a cara fechada. O olhar da senhora que caía sobre a minha irmã era confuso, como se ela tentasse consolá-la mesmo sem saber o que dizer.
E nem eu sabia o que dizer.
- Muito obrigada por me ajudar a acabar com os... bichos. – a senhora disse baixo. – Então... Vocês têm um acampamento?
A pergunta da senhora deixou em alerta. O clima estava estranho, éramos as três sozinhas sem saber que passo dar, e a respiração da mulher demonstrou que estava claramente desconfortável com a situação.
Sim, devíamos dar um desconto a ela, afinal, ela também nos ajudou. Poderíamos estar mortas sem ela. Mas não disse em voz alta, pois para , nós nos viramos bem sozinhas.
E não tirava esse ponto dela.
Desde que isso começou, sempre foi nós duas contra o mundo, literalmente. Sempre fomos unidas, mas o fim do mundo acabou nos unindo mais pela falta de opção de companhia. Tínhamos gostos similares, fazíamos as mesmas coisas. Poderíamos ser gêmeas se eu não fosse a mais velha.
Talvez eu não quisesse colocar mais alguém entre nós. Ou nos colocar com mais alguém.
Nos dias atuais, tudo se resumia à sobrevivência. Acordávamos, matávamos, procuramos por comidas e suplementos, dormíamos com os olhos abertos e sempre atentas. Repetimos até o fim. Dia após dia, durante um ano todo.
Antes também era assim, sempre foi tudo resumido à sobrevivência, mas agora tínhamos ameaças mais perigosas, mais ferozes que apenas nos veem como comida.
Eles perderam sua humanidade e nós também.
- Eu tenho um acampamento, posso levá-las lá se quiserem. – A mulher quebrou o silêncio, fazendo nós a encararmos. Era uma proposta bastante tentadora, mas ao mesmo tempo não podíamos nos colocar em risco.
Eu não podia botá-la em risco.
Poderia parecer aquele clichê de irmã mais velha, mas eu faria tudo para mantê-la segura e a salvo. Desde que ela nasceu, sempre estive lá cuidando dela, ajudando, ensinando. Eu nunca fui um exemplo a seguir, nunca fui uma pessoa cheia de metas na vida e desejos, mas eu queria vê-la sonhar, vê-la crescer e realizar todas suas vontades de vida. Eu tiraria de mim para dar a ela.
Eu faria qualquer coisa, arriscaria o que fosse para mantê-la segura e talvez esse fosse meu único erro. Eu não me importava nem comigo mesma, só com ela.
não merecia esse mundo, não era isso que eu queria que ela visse e vivesse, queria mais para ela, infelizmente esse maldito vírus destruiu tudo e só nos deixou uma à outra.
Contudo, ainda assim eu faria o que fosse para mantê-la segura, para dá-la tudo que merecesse, e a vida que ela deveria ter, mesmo que eu botasse em jogo a minha.
- É grande... o acampamento. Temos bastante comida. Casas, água, segurança. Vocês podem ficar lá. Se quiserem, é claro. Mas vocês duas me ajudaram, e minha empatia faz pensar que talvez lá seja a melhor opção. Somos desconhecidos para vocês duas, mas aqui, o perigo é mais do que somente desconhecido.
A fala da senhora me fez tremer. Era tudo tão ilusivo, tão mentiroso. Parecia que ela entrou em nossas cabeças e nos ofereceu tudo que nós precisávamos só para nos enganar e tirar a dignidade que temos.
Mas e se fosse verdade? E se esse lugar existisse e fosse tão seguro como ela falava? Seria uma chance de um recomeço, e talvez fosse isso que precisávamos. Recomeço. Ou apenas uma pequena estadia, de qualquer forma, uma luz no fim do túnel.
Perdemos demais, vimos demais aqui do lado de fora. Deixamos de ser pessoas normais e nos tornamos selvagens, mas nunca diríamos não à uma possibilidade de recomeçar. De ser alguém de novo.
Encarei e ela me encarou. Estávamos completamente relutantes. Eu conseguia ver em seu olhar as mesmas duvidas que eu possuía. Parecia ser tudo muito fácil. Mas ao enxergar seu estado, eram dias sem água potável, suas roupas sujas, bolsas em baixo de seus olhos expressivos e sem coragem o suficiente para ter que confiar em alguém, pois tudo o que parecia bom já não era mais uma opção para nós duas. Não era a primeira vez que aquilo acontecia, mas essa decisão era minha. Estávamos em um poço muito profundo para ter como piorar.
Respirei fundo e me virei para a senhora.
- Eu dirijo. Você diz o caminho.
A mulher assentiu e tentou abrir um sorrio, então entramos as três na camionete.
O caminho não foi longo, nem tão demorado. Não conversamos com a senhora em momento algum. Às vezes, durante o percurso, consegui reparar com a cabeça encostada no vidro, com o olhar distante e sem brilho, a aparência cansada e doente. Ela tentava segurar seu próprio punho fazendo uma careta de dor, e fiquei irritada comigo mesma por ter deixado aquilo acontecer. Se ela não estivesse sozinha, talvez não tivesse... Acontecido, o que quer que tenha se passado lá dentro.
Em momentos, encarando a estrada, eu mesma me vi distante, imaginando uma realidade totalmente diferente. Um lugar diferente.
Eu não queria acreditar nessa história de lugar seguro e de recomeço, eu estava pronta para qualquer momento enxotar a senhora para fora e seguir meu rumo com minha irmã, mas eu quis dar o benefício da dúvida e da esperança. Só espero que não tenha cometido um erro.
De repente, estávamos nós três encarando os muros acinzentados e um pouco descascados, com um grande portão escuro fechado para nós. A senhora estava certa afinal.
Nunca pensei que ficaria tão feliz em ver muros.
Mas hesitei, hesitei rapidamente com medo de ser um daqueles momentos que a minha vulnerabilidade poderia arriscar minha vida e de minha irmã. Estava sendo bom demais para ser verdade.
estava apoiada em mim e eu a ajudava a se locomover. Estava bastante cansada, pálida e eu estava preocupada. O caminho aqui seria um tiro no escuro, estava acompanhada de uma pessoa que significava tudo para mim e que estava extremamente doente, e também ao lado de alguém que acabei de conhecer e conseguiu me trazer para seu próprio porto seguro, cheio da sua própria gente. Não havia confiança.
Ao chegar à frente do portão grande e cinza, ele se abriu.
O lugar por dentro era maior que por fora. Não exageradamente grande, mas haviam algumas casas bem espalhadas, a maioria de cores claras e simples. A maioria seguia o padrão branco, mas uma era mais esverdeada e outra mais azulada. Era como se fosse uma vila comum, só por uma casa que ficava ao meio, maior e de cor vinho com detalhes brancos. Provavelmente lá era o abatedouro.
O pátio era todo limpo e arrumado. Estava tudo organizado e parecia ser verdadeiramente seguro.
A caçula sentia-se cada vez mais pesada em meus braços e percebi que logo ela cederia ao chão, e aos poucos eu ficava ainda mais nervosa com seus sinais de desidratação.
Um homem saiu de uma das casas, vindo em nossa direção. Com ele havia um garoto de pouca idade com uma bebê em seu colo.
O homem não parecia ser muito velho, estava limpo e arrumado – como a maioria das pessoas do lado de dentro do portão –, com os cabelos castanhos levemente compridos e penteados para trás. Barba rala de coloração um pouco mais clara que seus cabelos cobrindo o seu rosto. Suas roupas eram limpas, uma camisa de botão em um tom verde escuro, calças pretas e botas comuns. Deus que me perdoe.
Seria estranho dizer, mas o que mais me chamou atenção nele foram seus olhos azuis que eram completamente chamativos. Era impossível não os olhar. Eram azuis pálidos, lhe dava um ar de frieza, mistério. Mas sua expressão não era tão bonita quanto o seu rosto. Ele parecia confuso, irritado e incomodado com nossa presença ali, e isso fez com que eu sentisse minha irmã pesar mais e meus pulmões ardessem.
- O que é isso aqui? – A voz do homem não era tão grossa, um pouco rouca e carregava um sotaque meio caipira. Parecia que ele era do interior.
A postura da senhora ao meu lado se enrijeceu.
- Fomos atacadas na estrada e elas me ajudaram. Elas estavam sozinhas. Achei melhor trazê-las aqui. Estão muito cansadas.
Ela estava dando o seu melhor para convencê-lo, mas o homem parecia se opor a vontade da mais velha.
Qual era aquele ditado? Tudo que está ruim pode piorar? Realmente pode.
Em um súbito momento, desmaiou em meus braços e aquilo me apavorou. Ela estava lá, apagada, toda mole em meus braços. Chamei seu nome várias vezes dando alguns tapas em seu rosto. Não conseguia pensar direito. O pulso esquerdo de minha irmã estava completamente roxo. Ela precisava de um médico.
- Ela desmaiou! Ela precisa de ajuda, rápido! – Gritei desesperadamente. estava completamente branca e gelada. E agora eu poderia estar passando mais mal do que ela. De preocupação.
- Ela foi mordida? – O homem perguntou e o sotaque se sobressaiu mais dessa vez, mas junto com sua irritação. Minha irmã estava praticamente morta na minha frente e ele tentava argumentar ao ajudar?
- Não. Ela está desidratada e com dor. Um bando de babacas que estava perseguindo a sua amiga acabou nos encontrando e a vítima acabou sendo minha irmã. Não tente negar assistência porque esse lugar é enorme, e é o mínimo que pode fazer por nós. – Praticamente explodi, encostando a cabeça de no colo de Barbie que veio ampará-la. Levantei e me posicionei a frente do caipira.
- Não... Não. – Ele parecia estar relutando consigo mesmo, hesitando. Ele ajudaria ou não porra?
- Agora. – Pedi mais uma vez, e soou mais como uma ordem. Era minha irmã, ela precisava de ajuda. Se ele não saísse da minha frente, eu mesma a levaria para dentro e realizaria uma cirurgia na minha irmã com todos os meus anos praticando com “operando”.
Ele começou a andar até nós, mas não estava tentando ajudar, e sim nos desarmar. Revirei os olhos perdendo a paciência. Que foi perdida há muito tempo.
- Não precisa perder seu tempo. – Disse jogando minha faca no chão e a de , junto com sua arma. O homem parou e as encarou. Outro apareceu e as recolheu.
- Devolveremos para você quando forem embora amanhã.
Que simpático.
- Barbie, leve-as até Friedrich e depois venha até minha sala.
- Ok, . – disse a senhora de mais cedo.
? Esse então era o nome do homem que naquele momento eu queria matar?
Barbie me ajudou a levar até a casa esverdeada que parecia ser a enfermaria, e lá estavam duas pessoas. Um senhor – que julguei ser Friedrich –, mais ou menos nos sessenta ou setenta anos, de cabelos completamente brancos, com uma barba comprida tampando sua face. Entretanto, sua expressão parecia amigável, e em alerta para os invasores.
Havia também uma mulher, na faixa dos vinte, cabelos loiros escuros presos em um rabo de cavalo e usando óculos. Ela também parecia simpática, mas não havia tempo para a simpatia.
- Ela foi mordida? – O senhor perguntou.
- Desidratada. Faz um tempo que estamos sem comer, ela mais, a cereja do bolo foi sobre o ataque que sofremos de alguns caçadores na estrada. Antes de desmaiar, reclamou de muita dor no braço. – Respondi.
Nós a deitamos na maca e a mulher apareceu com um pacote de soro, logo colocando a agulha na veia de minha irmã para que ela recebesse o líquido.
Alívio instantâneo. Não conhecia estas pessoas, mas se ajudaram alguém com quem me importava, o temer estava em um tanque quase vazio.
O senhor rapidamente a examinou, segurando seu braço esquerdo enquanto verificava as manchas em todo o seu corpo. Aquilo me cortou o coração.
- Pulso torcido. Algumas escoriações, mas nada grave. O soro deve resolver a desidratação e ela acordará em breve. Darei uns analgésicos para a dor e farei um curativo. As manchas também vão embora. – Ele parecia bastante experiente, talvez fosse um médico bastante renomado antes do Apocalipse. – Me preocuparia um pouco mais com o que ficou dentro, na mente da moça.
Entendi o que ele quis dizer. Era um processo de aceitação grande até você constatar que a nova vida era matar pessoas que já estavam mortas, sem que a culpa te corroesse. Lutar com seres humanos era outra coisa. Um ser que ficava mau por natureza era algo mais difícil, e ser manchada por fora, causava dor de agonia, ser manchada por dentro, te trazia mais experiências e por vezes, traumas.
- Você era médico? – A pergunta saiu de minha boca antes de eu pensar.
- Veterinário.
Eu sorri acenando com a cabeça. Estava de bom tamanho, ele a ajudou.
- Ela vai ficar bem, só precisa descansar. – O senhor colocou a mão em meu ombro e me olhou nos olhos, me trazendo uma tranquilidade. – E você também precisa descansar um pouco. – O senhor forçou um sorriso. – Ajude ela, Bailey. – Ele encarou a mulher do soro e ela assentiu.
- Você tem uma pequena ferida na cabeça, sente aqui que posso dar um jeito. – Bailey me levou para um lado, me sentou e então cuidou de alguns e outros machucados que eu nem percebi que estavam lá.
Barbie se despediu e saiu. Aposto que iria receber uns xingos do mal-humorado. Friedrich a seguiu e eu fiquei em silêncio, tentando digerir tudo que aconteceu nesse dia maluco.
Grimes
Minha enxaqueca começava a dar sinais, não queria passar por isso e muito menos fazer uma discussão importante sobre isso. Não era importante.
Duas desconhecidas adentraram em meu terreno, duas selvagens. Não queria ser uma pessoa ruim e muito menos egoísta ou insensível, mas eu tinha que pensar em meu grupo, oras. Grandes coisas poderiam acontecer com essas duas andando soltas pela Colônia. Elas não pareciam ser confiáveis.
Eu só estava tentando proteger minha família e meu grupo. O que havia de errado nisso?
Mesmo não querendo, eu teria que discutir isso com as pessoas mais maduras e confiáveis que eu conhecia: Friedrich e Barbie.
Friedrich sempre esteve ao meu lado, me apoiando e creio que era sensato o suficiente para me ajudar a decidir o que fazer com as forasteiras. E Barbie, bom, as desconhecidas ajudaram ela, então sua opinião poderia ser de bom uso.
Os dois estavam sentados nas cadeiras na frente da minha mesa, ambos em silêncio esperando eu dar o primeiro passo. O que eles queriam que eu dissesse? Ambos sabiam minha posição sobre aquilo.
Cocei minhas têmporas tomando uns segundos para organizar meus pensamentos e respirei fundo.
- Não podemos confiar nelas. Elas são totalmente desconhecidas. – argumentei contra.
Barbie pareceu não gostar da minha resposta, seu olhar de reprovação me queimava e eu já sentia um mal-estar.
Pode vir.
- Também éramos desconhecidos até nos apresentarem, Xerife. A brutalidade das meninas ajudou a salvar minha vida, uma pessoa totalmente desconhecida, no qual elas preferiram confiar porque não havia mais opções. Trouxeram-me até aqui, sã e salva. Estavam sem armas, roupa ou comida. Claramente vivem sozinhas há bastante tempo, somente as duas. Nós podemos cuidar delas, elas podem se tornar úteis para nós, assim como o contrário. Não podemos despachá-las como se não fossem nada. Uma está desidratada, fraca. Isso indica que elas mal têm o que comer. São apenas crianças perdidas nesse mundo tolo que decidiu não reviver. Sem esperança ou rota.
Ora, só por que te ajudam a se livrar de uns babacas no meio da estrada, elas se tornam heroínas?
Mas assumo que Barbie acabou me deixando um pouco encabulado com isso, talvez eu estivesse sendo rude demais.
Ou não.
- Não é assim. Elas podem ter um acampamento e estão esperando para dar o bote. Ninguém fica tanto tempo lá fora sem se transformar.
- , eu devo concordar com Barbie nessa. – começou o Friedrich. – Elas parecem ser boa gente. Você não pode jogá-las lá fora de novo. A situação delas é precária e nós temos recursos suficientes para cuidar das duas e não faltará nada para ninguém.
Qual é, será que nenhum dos dois conseguiam ser racionais?
- Como vocês podem ter tanta certeza de que elas são confiáveis? Eu prometi não aceitar mais ninguém depois dela... – Engoli as palavras antes de conseguir continuar. De novo não. Seu rosto em minha memória, se manchando aos poucos. Abaixei minha cabeça e cocei minhas têmporas, tentando me segurar e esquecer dela por mais que cinco minutos.
Quando levantei a cabeça, Barbie estava me encarando ainda, bem fundo dessa vez. Senti o ar pesar.
- Ninguém daqui é confiável. Todos daqui são como brinquedos. Todos chegaram faltando alguma peça, com algo quebrado e precisando de conserto. Todos têm uma chance de recomeçar. – A voz da senhora era calma, ela estava dando seu melhor para me convencer. Como se fosse preciso. – Eu era uma desconhecida e elas podiam ter me deixado para morrer. Eu vi uma delas ser atacada brutalmente por um homem qualquer e mesmo assim, elas confiaram em mim e me deixaram trazê-las para cá. Elas precisam daqui mais que qualquer outro. Não as deixe se transformarem nesses monstros que nós temos que matar todos os dias. Todos nós estamos aqui e vivos graças às pessoas que nos estenderam a mão e nos ajudaram. Agora é hora de retribuir, . É hora de recomeçar e confiar. Você tem que deixar o passado ir e se preocupar com o presente.
- Não... não... – A bagunça que minha cabeça estava me impedia de conseguir ser racional e fazer o certo. Mas qual era o certo? As vozes em minha cabeça diziam o contrário de tudo. – Não... não dá.
- ... pense bem. – A calmaria na voz de Friedrich, ele queria dar uma chance para essas duas sem ao menos conhecê-las.
Respirei fundo, aguentando a enxaqueca e rezando mentalmente para não estar a ponto de cometer uma merda colossal.
- E se elas nos decepcionarem?
- Então nós lidaremos com elas do nosso jeito.
Bufei alto e esfreguei minhas têmporas já rendido.
É isso aí, eles venceram.
- Elas são selvagens. – tentei rebater pela última vez.
- E nós também não somos? – Friedrich respondeu e eu tomei a noção que eu havia perdido essa.
Eu não queria aceitá-las, não por elas, mas por mim. A verdade era que eu já havia passado por merdas demais e sujeitado minha família a tudo isso. Quando as pessoas que você mais confia conseguem te trair de forma tão baixa e ardilosa, você perde a habilidade de confiar em outras pessoas, por mais boas ou inocentes que elas possam ser.
Eu daria essa chance, daria o benefício da confiança, mesmo que eu tenha de ficar de olho nas duas. Principalmente na loira que parecia ser mais imprevisível que a outra.
É, talvez eu não fosse tão frio assim.
Romero
Antes.
Aquele porão havia se tornado como se fosse nossa casa desde que tudo começou. Era incrível como aos poucos íamos nos acostumados com as coisas mais bizarras e aceitando como se fossem algo normal.
Quer dizer, o mundo estava acabando, pessoal morrendo e se transformando em criaturas bizarras, mas mesmo assim meus pais tentavam fazer tudo parecer normal, como se fosse mais um dia em nossa vida simples e entediante.
Minha mãe nos forçou a irmos morar no porão logo após aparecer traumatizada por um acontecimento bizarro em uma de suas aulas, e eu ter aparecido em casa ensanguentada por ter matado meu próprio chefe. Foram coisas totalmente assustadoras, coisas que poderiam nos foder profundamente e nossa mãe preferiu agir como se fosse uma doença contagiosa, trancando-nos no porão e impedindo que tivéssemos qualquer contato físico com o exterior
. Faziam dias que eu não sabia de meus amigos, de pessoas que eu conhecia e considerava importante. A realidade era que eu já os considerava mortos ou mais um desses monstros que apareciam a noite e nos atacavam. Mas mesmo assim, a angustia de não ter me despedido de nenhum, isso me perseguia um dia após o outro.
Eu queria saber o que aconteceu, queria saber quantos morreram e abrigar os que permaneceram vivos. Formar um grupo, uma união, sobreviver. Mas estava presa no porão e feliz por ser covarde o suficiente para sair para fora.
Mas mesmo assim, mesmo trancados em um porão esperando para que a morte nos sugasse, tudo parecia normal. Meu pai continuava com seu bom humor de sempre, apenas evitando qualquer piada que envolva a palavra “morte” e o verbo “morrer”.
Mamãe continuava como sempre tentando manter a paz e a ordem na família, andando de um lado para o outro e tentando procurar maneiras de proteger suas filhas queridas. Vivia no telefone tentando saber mais sobre o que acontecia do lado de fora e como estavam o resto da família e conhecidos.
Já ... permanecia corajosa como sempre e com sua teimosia, sempre tentando nos encorajar a fugir e seguir nossa vida longe de casa, longe do nosso passado que havia morrido junto com o nascimento dessas monstruosidades.
- Cientistas não conseguem explicar o acontecimento...
- Milhões de pessoas já foram dizimadas pelo vírus...
- O governo está ordenando a evacuação das maiores cidades do país, para evitar a proliferação do vírus...
- O CDC está sendo reforçado para receber todos os sobreviventes...
A âncora do jornal repetia essas palavras por semanas já, sempre falando que as cidades estavam sendo evacuadas e que todos nós iriamos para o CDC.
Mas era tudo mentira.
O governo, a polícia, o exército, todos haviam desistido. CDC não existia e provavelmente todos os sobreviventes haviam morrido. Ninguém se importava mais, era cada um por si e todos sozinhos.
O vírus nunca foi explicado pelos cientistas, ninguém sabia como começou e com quem começou, ninguém sabia nem como acabaria, se existia uma cura ou não. Muito menos nós, uma família que vivia trancada em um porão a espera de uma salvação, que jamais viria.
Esperamos quase três meses para o exército vir e evacuar a cidade, mas nunca aconteceu. A cidade estava morta como a maioria dos moradores. Mas a mulher do jornal continuava dizendo todo dia, vestindo cada uma roupa diferente e um corte de cabelo novo, que eles viriam. Eu já acreditava que era uma mensagem pré-gravada, para ficar no repeat eterno até que todos nós morrêssemos.
Mas meus pais ainda acreditavam na salvação.
- Se o exército não vir logo para evacuar a cidade, acho melhor pegarmos e irmos até o CDC nós mesmo. Bobby disse que era em Washington, podemos chegar lá.
Papai falava de Washington há semanas, desde que conversou com seu amigo Bobby por um daqueles rádios que militares guardam. Ele acreditava que lá era a salvação, mas Bobby não havia ligado nunca mais e nem dito se havia mesmo o CDC. Mas todas as noites ele esperava o amigo ligar. Meu coração se partia toda manhã quando papai chegava falando “Bobby não ligou ainda, mas quem sabe essa noite”.
Mamãe desligou o telefone com uma expressão um pouco abatida. Ela estava conversando há horas com Suzette, nossa vizinha. Ela tentava manter contato com todos que conhecíamos, dividindo conhecimento e dicas para sobreviver. Eu sabia que logo os telefones parariam de funcionar, logo não existiria mais nenhum tipo de contato e ficaríamos no silêncio eterno.
- Como está Suzy? – papai perguntou, fazendo com que mamãe revirasse os olhos ao ouvir o tom de voz em que ele disse o apelido da mulher.
- Está tudo bem. Elas ainda têm comida e água o suficiente. Ela disse que fez uma macarronada muito deliciosa, – riu sem força e empinou o nariz. – Que com certeza não é melhor que a minha. – Papai e eu rimos da forma convencida que mamãe se gabava de sua comida, mas por dentro sabíamos que ela falava a verdade. Não havia melhor comida que a dela.
- Mas por que está tão abatida, querida? – papai perguntou novamente e ela se sentou perto dele, segurando sua mão e encarando nós três. Era a primeira vez em tempos que eu via seu olhar triste, então já sabia que coisa boa não viria.
- Elliot, filho da vizinha de Suzette, faleceu. – A calmaria em sua voz e o olhar triste demonstrava que mamãe não lidava bem com as perdas, mesmo de quem não conhecia tão bem. Eu já havia me acostumado e consequentemente também. Era uma realidade completamente estranha e distorcida e por ser realidade, não havia escolha a não ser abraçarmos ela.
- Como ele morreu? – perguntei.
- Tomou vários comprimidos e... Bom... – ela não conseguiu terminar a frase, mas já sabíamos o que aconteceu depois. Imagino como deveria ser difícil encontrar algum parente morto, ainda mais alguém que morreu de uma hora para outra e pelas próprias mãos. – Ele se transformou.
- Ele foi mordido? – perguntou .
- Não. – mamãe forçou-se a responder.
O ar pesou
. O choque estava estampado na minha face e na de papai. Até mesmo que passava o dia com a cara emburrada por estar tanto tempo sem se mexer acabou se chocando com tal noticia mórbida. Essa era nova. As transformações só aconteciam se a pessoa fosse mordida ou arranhada por um dos mortos vivos, mas como ele se transformou sem ser mordido?
- Como? – Minha voz saiu trêmula, o choque era inevitável. Não conseguia entender, ou na verdade sabia, mas não queria acreditar que isso iria acontecer. Iria acontecer com todos nós.
- Pelo o que parece, esse vírus é altamente contagioso, então todos nós temos. E se morrermos, nos transformaremos, mesmo sem ter tido qualquer contato com o sangue de algum desses bichos.
Então era assim agora? Se morrermos, viramos um desses monstros devoradores? Vamos matar uns aos outros? Então minha mãe iria virar? Meu pai, minha irmã? Eu. Todos estávamos condenados.
- Então o que estamos fazendo parados aqui? Esperando a morte? – se levantou. – Mãe, pai, vamos embora daqui. Vamos para sei lá, Washington, Nebraska, Atlanta, não sei, para qualquer caralho! – Minha mãe sussurrou um “olha a boca” repreendendo o palavreado de minha irmã. Seu tom de voz poderia ser confundido com pânico, minha irmã estava em pânico.
- Filha, não é bem assim... – papai tentou acalmá-la.
- Como não? Temos duas opções: ficamos aqui esperando a morte, um olhando pra cara do outro ou vamos embora, vamos atrás de um lugar seguro, qualquer lugar longe dessa merda!
- Os militares ainda virão evacuar a cidade filha, tenha calma...
- Não! Eles não virão, pai. Você precisa entender isso, estamos por conta própria, não podemos ficar parados por mais tempo. Por favor, eu não quero morrer e me transformar em um deles. Minha vida é a única coisa que posso comandar a partir do que eu quero, e não quero ter que esperar por nada se eu mesma posso sair daqui e lutar pela vida. E nem quero ter que ver um de vocês se transformando também. Eu quero viver, quero lutar pela minha sobrevivência, não podemos ficar aqui e desistir.
Todos ficamos em silêncio, de cabeça baixa tentando absorver tudo. ofegada, mas parecia mais leve após de despejar toda a verdade que precisava ser dita há muito tempo.
- está certa... Não podemos mais ficar aqui parados esperando a salvação. – disse e os três assentiram. Minha irmã se sentou ao lado de minha mãe que a abraçou. E nos sentamos os quatro lado a lado.
- Eu não quero forçar nenhum de vocês, mas sinto que é necessário abrir os olhos de cada um dentro desse quartinho. Estávamos em um mar de omitir e sepultar onde ninguém conseguia botar pra fora seus sentimentos sobre tudo aqui dentro, e mamãe, sei que você tem esperanças de que esta doença tenha cura. Papai, eu sei que você espera essa maldita ligação de Bobby com mensagens positivas. Mas isso está nos matando aos poucos. Esperança não é o bastante. Ficar no meio de um trilho de trem esperando que a locomotiva se curve não é a melhor opção. Temos que estar de mente aberta para que se levantar no meio da batida seja uma boa proposta, mesmo sem saber se outro trem estará na nossa frente. – ela bufou com lentidão, massageando as têmporas. Mesmo com sendo sempre convicta com suas palavras e forma de agir, fazia anos que eu não via minha irmã alterar sua voz para ter que quebrar algum estigma que nós mesmos estávamos criando. – Coisas boas chegam mais rápido para aqueles que tomam atitudes.
Demorou alguns dias para ela reproduzir tudo o que arquitetava em sua mente que poucos conseguiam ler. E no fim, de certa forma, valeu a pena.
Estávamos lá, nós quatro, sentados naquele sofá, unidos, e dessa vez o clima estava pesado. Não haviam piadas, não haviam risadas e muito menos a alegria que sempre tivemos, porque concordávamos com a mesma coisa que fomos cegos por tempo demais para acreditar.
Não havia salvação
. A não ser que lutássemos por isso.
Agora.
Já estava de noite e nada da acordar. Eu estava surtando. Friedrich disse que ela acordaria logo, mas quando significava o logo? Uma hora? Duas? Três? Um dia? E se ela não acordasse e o surtado do expulsasse nós duas, como eu a levaria dali? E se ela morresse por causa daquilo?
Eu precisava arrumar uma forma para que eles nos deixassem ficar. Mas como?
Suspirei alto e então me assustei com a presença do homem – o mesmo que quase nos deixou para morrer, o próprio – escorado na batente da porta. Ele trazia consigo uma bandeja com um sanduíche e um copo de suco que fizeram minha boca salivar.
Caminhou devagar até mim e me entregou a bandeja, que deixei na cômoda do lado da cama que minha irmã estava. Peguei o suco e bebi alguns goles, deixando a educação na antena onde dormi aquela noite. Queria pegar o pão logo, mas teria de esperar. Não tanto assim. E se fosse apenas provocação e ele roubasse a comida direto da minha boca?
- Está frio.
A observação dele me fez querer rir. Além de grosso, ele era tão óbvio assim? Se controle, . Ele te ajudou, afinal de contas.
Mas realmente estava frio, mais para mim do que para ele ou minha irmã, que estava cheia de cobertas. Eu estava usando apenas um short e uma blusa simples, estava suja e cansada. Mas mesmo com frio, não falaria nada. Eu era orgulhosa mesmo.
Continuei em silêncio, encarando meus tênis velhos e sujos, talvez um pouco desconfortável com a presença de mais alguém.
- Coma alguma coisa, você deve estar com fome. – Acertou. – Quando sua irmã acordar, trarei algo para ela comer também, não se preocupe.
A gentileza dele parecia verdadeira, mas ao mesmo tempo me incomodava o fato de ele estar sendo tão gentil mesmo sabendo o que viria após disso. Mais uma desilusão, como em todos os outros grupos que eu e minha irmã passamos.
Permaneci em silêncio e o vi ir até a batente da porta de novo. Eu senti os olhos dele em mim, aquilo queimava. Respirei fundo.
- Quantos andarilhos você já matou? – A pergunta dele me deixou meio confusa. Então era assim que chamava os mortos vivos por aqui?
- Muitos. Talvez umas duas dúzias ou mais.
- Quantos humanos já matou? – Ok, essa pergunta era completamente esquisita.
- Nenhum.
- Por quê?
Respirei fundo e o encarei.
- Porque todos já estavam mortos.
Então quando meus olhos se encontraram com os deles, eu percebi o porquê de todas aquelas perguntas e meus pulmões se esvaziaram e se encheram de novo. Eu queria rir, não, eu queria gargalhar. Mas acima de tudo, queria que estivesse acordada para comemorar comigo.
Ainda o encarando, minha expressão demonstrava quão cansada, exausta e destruída eu estava após um ano lutando pela minha sobrevivência e de minha irmã.
Encarando seu rosto, pude vê-lo agora com mais clareza, seus lindos olhos frios, seus traços faciais. Eles deixavam claros o quão cansado ele também estava de tudo, o quanto viu e quanto perdeu. Ele também era um sobrevivente e mesmo com meu orgulho engasgado em minha garganta, ele tinha o total direito de não nos querer por perto. Até eu mesma não iria querê-lo.
O fim do mundo nos transformou em malditos egoístas. Ou precavidos demais e medrosos.
Mas ele estava nos dando uma chance. Uma chance de recomeçar.
- Obrigada.
- Okay. – Ele respondeu cortando nosso contato visual e saindo da enfermaria. O ar pesou. Encarei o sanduíche que parecia tão bom e o mordisquei. Estava tão bom que quando percebi havia com uma mordida comido metade.
Mais tarde, naquela noite, eu já estava com meus olhos pesando, mas não queria dormir, então Barbie apareceu trazendo mudas de roupa e as deixou na cômoda um pouco mais afastada da cama.
Ela me encarou e seu sorriso triste que me tocou. Eu não a culpava pelo o que aconteceu, eu os culpava. E quando eu encontrasse quem feriu , eu o mataria.
- Me desculpe.
Permaneci em silêncio, mas a senhora não foi embora. Ela me entregou uma coberta e um travesseiro. Hesitei, mas acabei por aceitar, me cobrindo e sentindo meus pelos se ouriçarem com meu corpo se aquecendo. Eu estava cansada e um descanso seria de bom grado.
Apenas retribuí com um sorriso não tão convicto também e voltei a me concentrar em .
Acariciei a mão da minha irmã com leveza, tentando demonstrar que eu estava lá e estava cuidando dela, dando carinho como sempre fiz. Hora ou outra cantarolava baixo Crazy de Aerosmith que era uma de suas músicas favoritas, ou seria Always do Bon Jovi? Pensar naquilo me fez rir um pouco e então o nó na minha garganta se apertou, fazendo soluçar baixo.
- Eu estou aqui, . Você vai ficar bem. Esse aqui vai ser nosso novo lar, não precisaremos mais passar por nada de ruim. Tudo ficará bem, eu nunca te abandonarei. Eu prometo.
Não havia mais papai, nem mamãe, nem amigos, nem ninguém. Por tanto tempo eu temi e ela foi minha força, sempre me ajudando a encarar o caminho que viria. Eu sempre soube que não havia mais salvação, sempre soube que meus pais morreriam e eu não seria capaz de fazer nada.
Mas eu os prometi, os prometi logo quando nasceu, prometi que a protegeria para sempre e seria a melhor irmã mais velha de todas. Eu os prometi mesmo sem precisar responder. Prometi quando mamãe morreu e papai também, prometi que jamais a abandonaria ou botaria sua vida em jogo. Prometi que jamais deixaria nada de ruim acontecer com ela e permaneceríamos juntas.
A família Romero já havia sido dizimada, não havia mais nada, só nós duas e se dependesse de mim, continuaríamos levando o legado família a diante.
Então apertei sua mão e voltei a cantarolar, esperando-a acordar para fazermos nosso dueto.
Capítulo 3 – Skyfall.
Romero.
Odiava ser aquele tipo de garota. Não era dessas. Quando havia uma perseguição, eu não tropeçava e caía. Quando escutava um barulho, não ia direto verificar o que era, eu andava na direção contraria, tentando salvar minha vida. Eu não chorava e não me machucava. Certamente não desmaiava na frente de um portão gigante, deixando a responsabilidade toda pra minha irmã louca, que ficava um pouco alterada desde que consegui meu primeiro machucado no joelho ao cair na quadra da escola porque fui de sandália na educação física, quando o professor alertou para que eu usasse tênis.
Acordar em uma maca fazia me sentir submissa demais, e eu precisava levantar logo. A luz do sol entrava pela porta e o aroma de grama cortada era forte e delicioso. A cabeça de estava no meu ombro, porque ela deveria ter passado a noite ali acompanhando cada passo do meu coração batendo.
Com o meu movimento, ela acabou acordando, sorrindo de orelha a orelha, sem falar nada ficamos nos olhando e acariciando o cabelo uma da outra. Melosas sim.
conversou comigo sobre ter conseguido uma vaguinha nessa comunidade em que estávamos e fiquei com um pé atrás para isso, pois confiança era algo raríssimo e luxo demais para podermos desperdiça-la com qualquer um. Mas amenizei tudo isso deixando dessa vez a decisão por sua conta. Se ela estava contente em estar aqui, eu iria me acostumar aos poucos.
Horas depois, já havia tomado café, trocado a roupa para algo limpo, conhecido meu próprio quarto e aquilo realmente me tocou não somente no sentimental, mas alertou meu cérebro. Era uma estadia rápida demais, o pessoal dali deveria ter mais problemas para confiar em alguém. Porém, era difícil reclamar quando se tinha a sua frente um sanduiche com pasta de amendoim extra. Mais tarde, bateu na porta do cômodo e me chamou para andarmos pela grama cheirosa.
Caminhamos tomando o sol forte em nossos rostos. Amarrei o cabelo no alto sentindo as pontas escuras chegarem à minha cintura. Logo teria que cortar aquilo tudo em busca de praticidade maior.
Paramos em uma cerca de madeira ao lado de um homem que eu ainda não conhecia. Do outro lado da cerca tinha alguns animais e fiquei espantada com a descoberta.
- Este é ... – começou minha irmã.
- Grimes. – o cara completou esticando sua mão. Eu alcancei a palma com certa dificuldade.
Algo dentro de mim tremeu. Um choque de realidade me bateu e me lembrei do que houve no dia anterior. Flashes daquela face queimada, o sufoco, a agonia, o local pequeno.
Movimentei o braço sem força alguma, dizendo que era um prazer em conhecer, com a voz rouca, sem olhar para . Senti-me esquisita ao receber o olhar estranho dele. Provavelmente estava procurando saber o que tinha de errado comigo. Me recompus rapidamente tentando não deixar a reação passar aos olhos de minha irmã.
- Meu nome é . Irmã de – falei.
- Já soube. Sei que parece estranho ainda, mas troquei algumas palavras com sua irmã e com o meu pessoal.
- Sobre o quê? – perguntei, tendo ideia da resposta.
- Sobre ficarem conosco.
se pronunciou.
- Seria uma nova chance para nós, . Não os conhecemos, mas das poucas pessoas que vi, consigo julgá-las como um povo bom. – ela disse grudando seu braço no meu enfaixado.
- Seu senso de julgamento não é o bastante, – retruquei sem intenção de atingi-la.
- A personalidade forte é de família então. – comentou . – Deixem-me argumentar melhor. Barbie me disse o que vocês passaram na floresta e como se sacrificaram para ajudá-la.
- Onde está Barbie? – perguntei interessada.
- Está com as crianças da Colônia, creio eu. Ontem quando chegaram, assustaram alguns de nossos moradores. Abandonamos este estilo de vida há algum tempo e raramente feridos entram a olho nu de todos. Sua irmã também ficou bastante preocupada com sua desidratação.
- Como eu imaginei. – sorri para o chão, sentindo o aperto no meu braço.
- Recolhemos suas armas por este motivo. Apenas os patrulheiros que saem da Colônia possuem o porte de armamento. Qualquer coisa afiada ou que dispara é negado ao público. Porém, Barbie disse que vocês são boas em combate e lhes proponho algo.
- Você me disse ontem que já tinha aceitado nossa estadia aqui, por favor, não dê bola fora. – reclamou .
- Aceitar pessoas em seu grupo é difícil, meninas, e sinto que vocês sabem disso. Preciso confiar em vocês. Vou juntá-las a um grupo para um tipo de... Teste. Perante a isso será designado se estarão aptas a ficarem aqui ou não, mas não se preocupem, terão alguns dias para repousarem. Você, , acabou desmaiando pela falta de comida e pela dor, então imagino que não tem tanta regalia de onde vieram.
Afirmei.
- Torceram meu pulso porque roubei uma ameixa. – riu de leve com meu comentário.
sorriu fraco e fez uma expressão de pesar com esta afirmação.
- Temos o que precisarem aqui. Comida, água, médicos, roupas, socialização e lavatório.
Assim que ele soltou aquela frase, pude jurar que eu minha irmã quase quebramos a mão uma da outra do tanto que nos apertamos. E nossos olhos quase saltaram para fora. sorriu e continuou.
- A água não é tão quente, mas é o melhor que temos. Procure por Friedrich, ele mostrará o caminho.
e eu entramos no banheiro e meu cabelo agradecia ao santo dos xampus. Estávamos com uma toalha em mãos e a cerimônia de esperança ao encarar a torneira foi esplêndida. E a comemoração quando a água caiu foi ainda melhor.
Nos despimos e colocamos as toalhas na janela junto com as roupas que usaríamos após o banho.
Havia cinco pequenos chuveiros um ao lado do outro com muretas separando as pessoas. E agora estavam ali, a loira e a morena, peladas, pulando e comemorando a existência daquele elemento líquido. Pra ficar melhor, Freedom do George Michael poderia ser a trilha sonora desse momento.
- A preocupação que você sente com meu bem estar é fofa. – comentei sentindo as gotículas sobre meu corpo.
- Não posso deixar nada acontecer com meu bebê, oras. – ela riu.
- Mas sabe que ficar buzinando no meu ouvido uma música do Aerosmith não é maneira de me ninar. A única que quase suporto é Crazy. Tenho tanto pra te ensinar sobre gosto musical, senhora Romero.
Ela gargalhou.
- Mana, cala a boca.
Enxaguei toda a espuma e desliguei o disjuntor, que por pouco, não o beijei. Contudo, venerei mentalmente.
- O que você achou deste lugar, honestamente? – perguntou minha irmã, me pegando desprevenida.
- Bem... Aqui tem água, né. – comentei, sem dar uma reposta concreta.
- ...
Terminei de me secar e coloquei a roupa íntima com minha irmã repetindo meus movimentos.
- É legal, . Não estou reclamando, aquele senhor que me ajudou, gostei bastante dele. Frid, certo? E você, você aparentemente gostou bastante de . – sorri mentalmente e maliciosamente. – Tem tudo o que precisamos aqui, mas a proposta de ir lá fora mostrar nossas habilidades como se fosse uma espécie de currículo me apavora. – desabafei neutralizando o sentimento em minha voz.
- Ok. É normal se sentir assim, estávamos à solta por muito tempo. Também não estou completamente aberta a isso, mas precisamos tentar. Não quero correr mais riscos lá for,a , você precisa entender isso também. Espera. – ela ficou em silêncio por alguns segundos e largou a toalha na cama. Que feio. – O que quis dizer com “gostei bastante de ”? Não gostei do seu tom.
Sorri e terminei de me vestir. Uma blusa verde musgo solta e calça skinny escura. Quando me virei para respondê-la, escutamos gritos vindos do lado de fora e meu coração acelerou, não estava pronta para aquilo tudo de novo. mostrava novamente preocupação e terminou de se vestir, largando nosso assunto para outra hora. Se houvesse.
Fomos juntas até a casa que designaram para nós. Era o local mais afastado do portão de entrada, então não notamos nada de diferente ali, mas com uma espiada na fronte, percebemos a movimentação de um grupo desconhecido. Naquela cozinha, apanhamos facas afiadas para os alimentos. Acabei notando que minha irmã não tirava os olhos do meu pulso esquerdo.
Armadas e preparadas, abrimos a porta dos fundos novamente e fomos surpreendidas por um rapaz com o rosto pintado em um grande x vermelho vivo. O cara me atacou e foi difícil ter uma reação naquele momento. O levei para trás até chegarmos à cozinha da casa onde esbarrei na pia com ele em meu engate, e arrancou a cortina colocando-a na boca do rapaz, impedindo-o de gritar, até que perdeu o ar e desmaiou no chão. Imobilizamos silenciosamente.
Marchamos até fora novamente e avistamos uma criança sendo puxada para uma porta de madeira no chão que dava acesso ao porão casa do lado da nossa. Seguimos a menina tentando ajudar, mas fomos surpreendidas por Frid no topo da escada, nos chamando para entrar logo em seguida, sem fazer alarde.
desceu e a segui, notando a escuridão que estava lá em baixo. Havia uma vela no meio de uma mesa velha, alguns brinquedos estragados, ferramentas de jardinagem, duas mulheres mais velhas e uma boa quantidade de crianças assustadas.
Notei uma menina branca que parecia no máximo ter dois anos e lamentei o nascimento de uma criatura tão inocente em um mundo tão destruído. O perigo de estar grávida naquela época englobava coisas como aquela. Crianças presas em um porão e um bebê com pouco tempo de vida já com a bochecha sensível rasgada com o que parecia ter vindo de uma lâmina.
- O que está acontecendo aqui? – perguntou , desesperada para Friedrich. Enquanto eu analisava o rosto da pequena menina que estava no colo de um adolescente com o cabelo comprido e olhos azuis. Deveria ter catorze anos. Já tinha dado aula para os daquela idade. E também para os mais jovens, como a bebê.
- Foi um ataque surpresa. A Colônia é bastante perseguida por comunidades locais por ter o próprio espaço rural. Não era pra isso estar acontecendo. Slade disse que manteria a ordem no local. – falou o senhor extremamente irritado também.
- Como podemos ajudar? – interrompi o interrogatório desnecessário.
- Eu vou lá fora, você ainda está com o braço machucado, precisa ficar aqui, . – Falou minha irmã e hesitei em discordância.
- Espere, . Preciso das duas aqui. Temos que tirar todas as crianças da Colônia, este abrigo não é o bastante. O muro nesta parte pode ser escalado. Vamos posicionar as crianças e levaremos até a placa da cidade, é só seguir uma linha reta na floresta.
Frid nos alertou e nós duas concordamos com a ideia, mesmo que no fundo, o sentimento de vazio se ponderou por perder o local que no futuro, poderia ser considerado um lar.
Me posicionei à frente com a faca em mãos. Exigi que cada mãe presente segurasse na mão de uma criança, e que cada criança segurasse a mão de um amiguinho. Com a faca para me proteger, subi as escadas, vendo o local antes de sair. Abri a portinha e chamei Friedrich e . O mais velho estava com o bebê no colo, então precisaria contar com a ajuda das mães e do menino para aquilo.
Coloquei a faca no cinto e pulei o muro com certa dificuldade, era grande, nenhum morto entrava e tampouco um vivo poderia sair com facilidade. Ajudei uma mulher a escalar e logo fui puxando as crianças pelo braço com a ajuda de outra, que parecia ser a mãe de uma menina pequena ali. A tal mãe foi a última a passar. O menino mais novo também ajudou, mas afirmou que ficaria ali para ajudar seu pai.
Assim que segurei a mão de minha irmã para puxá-la, um grupo de homens com x vermelhos em seus rostos apareceram. me largou e segurou a faca, enterrando no peito dos que conseguia. Friedrich e o garoto adolescente foram acobertados pela garota loira da enfermaria de ontem, que também estava armada, e ela os levou até dentro da casa em que eu havia ficado. O pouco que me recordo, era de minha irmã me mandando levar as crianças até a placa que ela daria um jeito de ir atrás de mim. Mais homens de x vermelhos chegaram, ela tentou se defender, veio ao seu encontro, Friedrich abriu novamente a porta de madeira. Pulei. Logo estava do outro lado do muro com o grupo de crianças e mães.
Os pequenos continuavam a chorar assustados e percebi uma mulher com o braço sangrando. Com a faca rasguei um pedaço da camisa da mesma, amarrando em seu osso, pedindo para que ninguém se separasse. No meio desta ação, reparei que os tiros na Colônia cessaram por alguns segundos, e em seguida uma música explosiva saía de algum aparelho de som alto demais. Estranho.
- Friedrich disse que há uma placa da cidade que é o ponto de encontro de vocês, sabem onde é?
Uma mulher mais velha de cabelo curto respondeu minha pergunta.
- Sabemos. Quando tudo se acalmar, tenho certeza que nossa Colônia se encontrará lá para nos apoiar.
- Tudo bem. – comentei, meu senso de direção era quase inexistente, então confiaria naquelas pessoas de primeira. Contei o número do grupo e ao chegar a um garoto pequeno, senti os passos atrás de nós.
Uma horda de mortos vivos subia o morro. Preto, branco e vermelho. As peles descascando, mandíbulas caindo pela podridão de sua carne, roupas rasgadas e os ossos proeminentes em busca do que se alimentar. Mesmo com a lenta velocidade, o grupo em que eu lidava agora era maior do que o de costume, e mesmo que corrêssemos, o alvo era grande. As chances de alguém se perder eram poderosas.
- Escute. – coloquei minhas mãos no ombro da mulher de cabelos curtos – Quero que você lide todos aqui, há treze ao total, todos de mãos dadas até o caminho da placa. E fique com isto. – entreguei a faca que tinha em mãos. Ela estava visivelmente assustada. – Não é hora para isso, tudo bem? Eles são muitos, mas vou arranjar um jeito de distraí-los. Provavelmente se atraíram pelo som dos tiros da Colônia, ou obviamente pela música. O importante é que se caminharem em silêncio, ninguém notará vocês. Preciso que todos se acalmem e vão em direção ao letreiro. Estarei logo atrás de todos aqui, garantindo que não lhe atacarão.
tinha me dito há algum tempo atrás o quanto correr era necessário ali e realmente salvava nossas vidas. Acho que tais palavras se aplicavam naquele cenário.
Comecei a correr por alguns metros a direita do muro onde estava, deixando o grupo dar a volta pela esquerda.
Iniciei uma série de gritos em reposta àquele ataque. Gritei com toda a força dos meus pulmões. Berrei, me esgoelei, esganicei e vociferei. Qualquer sinônimo possível para colocar os bofes para fora. Chamei todos aqueles monstros horrorosos com mandíbulas quebradas e cheios de pus. A atenção deles se voltou para mim e quase vi um filme de toda minha vida passar pelos meus olhos. No entanto, não era hora para pensar na morte iminente.
Alguns deles começaram a correr. Eram aqueles que antes de serem transformados foram atletas, e o vírus os atacou na sua melhor forma. Meu pró naquela missão era ainda estar viva, então juntei toda a minha carne ainda intacta, ossos e músculos, saindo em disparada entre as árvores.
Depois de muitos minutos correndo, vi que poucos conseguiram ainda me alcançar. Um deles bateu a própria cara em uma árvore. Me escondi entre um dos troncos e tomei outro caminho, fazendo-os andar em círculo.
Lamentavelmente, quando me deparei, estava completamente perdida. Senso de direção do próprio Stevie Wonder, essa era eu.
Me movi vagarosamente entre a natureza, pisando nas folhas secas, ouvindo os passarinhos cantarem para o sol. Senti um cheiro límpido e o segui. Quando a paisagem se abriu, contemplei a água cristalina entre as pedras gigantes. Era um rio. A correnteza estava forte. Me ajoelhei proximamente e bebi a água. Cuspi logo em seguida, porque pelo incrível que pareça, era salgada.
Pensei por alguns segundos como encontraria a placa na estrada, ou pelo menos a Colônia novamente. A junta esquerda da minha mão pulsava repetidamente, era como se meus órgãos de batimento estivessem naquela palma, sentindo tudo muito mais sensível. Abri a bandagem que Frid tinha posto mais cedo e larguei no chão ao lado do meu joelho que se encostava à pedra rasa.
No meio do raciocínio, senti algo atrás de mim.
De. Novo.
Estavam todos ali. Os vagantes, saindo da floresta, em uma quantidade maior do que os que subiam o morro de antes, provavelmente foram atraídos pelo meu show ao vivo e à capela.
Eu disse que não era a garota que sofria, chorava, se machucava, desmaiava e coisas assim, mas quando se tratava de sorte, afirmo, com toda a certeza possível que ela nunca estava ao meu favor.
Um dos mortos vivos e atleta estavam ali e saltou em minha direção. Não havia alternativa. Pulei na direção contraria dentro da correnteza forte e quase fui sugada por ela.
Sobressaltei quando algo agarrou meu pé de baixo da água e aquele grito atraiu a atenção daqueles que pararam na floresta, e agora eles também vinham em minha direção, entrando na água salgada.
Bati meus braços, pernas, e minha respiração estava no limite. Com muito sufoco consegui me desprender daquilo que me segurava por baixo e quase perdi meus sapatos na luta. Um por um, os monstrengos iam sendo levados correnteza a baixo. Outros encontrando força para andar contra o fluxo. E pensar que muitos haviam entrado ali antes, e eu experimentei aquela água contaminada. Nojo.
Alcancei as pedras do outro lado do rio e consegui me estabilizar com o braço direito. Não havia mais monstrengos, todavia, eu não iria me posicionar novamente para voltar a atravessar a água. A mesma que eu tinha chegado ao ponto de endeusar naquele dia. Ao menos tomei dois banhos.
Caí de costas no rochedo liso, com o pulso voltando a doer por causa da natação improvisada. Meu pulmão estava queimando, subindo e descendo.
Meu braço doía pra caralho e eu não parava de pensar se minha irmã e as crianças conseguiram sair dessa. Se eu atravessasse de novo, enfrentaria outras criaturas, e eu estava cansada demais para aquilo.
Perdida no meio do nada, com um rio me separando do lado certo, sem arma para me proteger ou comida.
Tudo bem, eu havia comido pouco tempo e dava pra aguentar. Eu acho. Perseverança estaria em primeiro lugar ali.
Quando eu era criança, li uma frase em um jornal que fixou para sempre na minha caixinha de lembranças. Era sobre ser independente, que até mesmo a sua sombra te abandonava quando tudo ficava escuro.
Ainda tinha sol, a sombra estava ali e não me ajudaria muito, mas eu sabia me virar sozinha. Onde havia rio, havia peixe. Onde tinha peixe, tinha alguém que vivia ali perto pra ficar os caçando. A Colônia não ficava longe dali, e aquela área não era extinta como o resto de Oklahoma. Sozinha e em silêncio, eu poderia repetir as ações de minhas palavras mais cedo, o importante era caminhar, ninguém poderia me ouvir, e com este pró, seria capaz de encontrar algo significativo que me ajudasse a passar por aquele caminho sem a ajuda de ninguém.
Capítulo 4 – Civil War.
2. Música do Capítulo
Romero.
Queria que estivesse tudo quieto, mas não estava.
Eu não estava preparada para aquele ataque. Mas acho que ninguém nunca estaria preparado para um momento daquele, né? Será que era uma ironia do destino? Eu conseguia um momento de calmaria e então, tudo caia por terra com um ataque que ninguém estava preparado.
Mas eu também não estava fazendo nada para ajudá-lo.
Estávamos lá, Friedrich e eu, sentados naquele sótão em silêncio. O único som que atingia nossos ouvidos era o de nossas respirações ofegantes, mais a minha do que a dele. Eu estava aterrorizada. Os tiros também, não cessavam em momento nenhum.
Eu queria correr até lá, mas mal conseguia sentir minhas pernas.
- Por que estamos aqui? O que está acontecendo? – Minha voz saiu mais falha que o planejado. O senhor grisalho apenas me encarou sem mostrar muita surpresa.
- É o grupo do Norte – começou de forma calma. –, mas não sei o que querem. A Colônia tem carne, grãos, vegetais em abundância, muitos grupos recorrem a nós para que os alimentemos e é assim com o Norte. Não sei o porquê do ataque agora, achei que estávamos em paz.
Obviamente não estavam tão em paz assim, os tiros que o digam.
Corri meus olhos pelo sótão, procurando qualquer pista que pudesse nos ajudar a sair ou dar um fim nesse grupo que estava por nos aterrorizar, mas não havia nada. Só brinquedos e coisas de crianças.
Coisas de crianças... isso me fez lembrar de e senti minha garganta fechar rapidamente. Não podia evitar de me preocupar com minha própria irmã, estava no meu DNA esse instinto protetor, mas eu acreditava que se alguém teria coragem e capacidade o suficiente para salvar todas as crianças, esse alguém seria .
Mas não conseguia evitar o medo de perdê-la.
Eu só queria fazer algo para ajudar.
Busquei dentro de mim qualquer resquício de coragem que já me faltara. Busquei dentro de mim a coragem que me faria levar daqui e lutar com garra para ajudar a proteger a Colônia. Busquei dentro de mim a força que me faria ficar em pé.
E fiquei.
- Podemos ir até o depósito de armas e nos armarmos com o que temos. – Friedrich estava me encarando. Ele sacou.
- Será que conseguiremos sair daqui sem sermos baleados?
- Provavelmente não.
Me posicionei ereta e o senhor me acompanhou, contamos até dez mentalmente e subimos as escadas para chegar do lado de fora da casa. Corremos até a porta dos fundos – sempre abaixados – evitando de sermos baleados.
Não consegui ter uma visão geral da Colônia, mas haviam bastantes homens que não eram conhecidos – e nem amigáveis – atirando, tentando acertar qualquer pessoa que cruzasse seus caminhos. Os gritos eram frenéticos, pessoas estavam assustadas e os feridos corriam desesperados até a enfermaria.
Consegui ver e Judas – um de seus homens de confiança – atirando nos inimigos. Alguns moradores os acompanhavam, mas a maioria parecia estar escondida e com medo.
Estávamos ferrados.
Friedrich e eu corremos por trás das casas até o depósito, evitando as balas que vinham em nossa direção. Dentro do depósito, as coisas não eram tão agradáveis. Eles não estavam tão cheios de armas assim. Tinha munição suficiente e até armas, mas com um ataque desses logo ficariam escassos. Mas quem não tem cão, caça com gato, não é mesmo?
Pegamos as armas de maior poder de fogo que tinha na salinha. Rifles, metralhadoras e pistolas em geral. Soube que as poucas armas de maior alcance de tiro como uma Snipes foram designadas aos maiores atiradores que se posicionarem nos locais mais altos, como o costume. Pegamos também algumas caixas com munições e nos preparamos.
Eu não era fã número um de armas e muito menos de sair atirando em pessoas, mas a adrenalina em meu corpo me fazia ignorar aquele fato.
Meu pai havia me ensinado a atirar aos quinze anos, porque ele acreditava que era bom as suas garotinhas saberem como segurar uma arma, caso fosse necessário. Afinal, os pais não ficam vivos para sempre, mas as pessoas más sim. costumava dizer que ele se encaixa no grupo de ex-militares caipiras que guardavam sempre uma espingarda atrás da porta apenas na espera de alguém entrar no seu milharal.
Armados, eu e o senhor fomos ao lugar mais próximo que era a casa principal, – que apelidei carinhosamente de Grande Casa – que era a maior casa da Colônia. A maioria dos moradores se abrigavam nessa casa. Era como se fosse o ponto de encontro dos moradores. E também era a casa de e de sua família.
Entramos na casa e lá estavam alguns dos moradores – os que não haviam fugido para floresta e possivelmente morrido. Estavam todos espalhados pela sala de estar e nos encaravam, principalmente as armas que trazíamos.
- Alguém aqui sabe atirar? – Perguntei um pouco tímida de início. Eu não conhecia a maioria, não era a líder deles e muito menos tinha qualquer tipo de afinidade com eles. Claramente não poderia chegar os mandando lutar.
Alguns deles levantaram a mão e fui contanto um a um, para que todos tivessem pelo menos uma arma.
Friedrich começou a entregar algumas armas para os que aceitaram lutar, incluindo Max – filho de – e Paige – uma das moradoras. Jovem, mais ou menos da idade de e também namorada de Bailey.
Alguns membros estavam armados, outros escondidos. Não os culpava, também ficaria escondida se não tivesse vivido lá fora por tanto tempo. Mas hoje em dia ou você luta, ou você morre. E eu não queria morrer.
Mas também, eu queria manter o lugar seguro para conseguir trazer minha irmã de volta. Eu havia prometido um lugar seguro a ela, não seria agora que eu descumpriria essa promessa.
Corremos para fora e nos espalhamos. Eu fiquei com um posto de vigia que estava protegido, só teria que abaixar. Max ficou com outro. Paige e Friedrich ficaram do lado de baixo. Mais alguns membros estavam espalhados pelo terreno.
Eles teriam o que mereciam.
Os tiros começaram a ser trocados, assustando os que nos atacaram e até mesmo , que vai por mim, precisava de uma mãozinha.
Atirar o máximo que conseguir, abaixar, esperar, atirar. Eram apenas esses meus movimentos, não queria ser ousada, precisava ser esperta. Atirava enquanto eles recarregavam, então quando os tiros vinham eu me escondia para recarregar. Consegui acertar uns dois deles.
Minha intenção não era matá-los, eu ainda tinha algo dentro de mim que repudiava matar humanos, mas quando eles tentavam me matar... Digamos que eu precisava sobreviver mais tempo que eles.
Descansem em paz, de verdade.
Os tiros se tornavam cada vez mais intensos e era até prazeroso saber que todos os moradores estavam lutando pelo seu lar. E com o tempo, mais e mais daqueles caras caíam, paravam de atirar e nós continuávamos ganhando.
- Partir em retirada! – Um dos homens gritou, e os que não foram atingidos desceram de seus postos e saíram correndo como os covardes que são.
Demos mais alguns tiros para garantir e então o silêncio prevaleceu.
Vencemos!
Desci do posto de vigia e fui verificar os estragos do lado de dentro. Não eram tantos, não haviam muitos mortos – do lado de dentro. apareceu com Judas e os dois estavam puro suor e cansaço.
- Parece que vencemos. – Judas comemorou ironicamente e eu ri baixo, mesmo sem ser engraçado.
- Você está bem? – me perguntou, me encarando com os grandes olhos azuis que ele tem e tocando em um dos meus ombros. Assenti, um pouco ofegante e exausta.
Qual era aquele outro ditado? Bom demais para ser verdade? Então, era bom demais mesmo.
Aleatoriamente, do nada, o silêncio foi interrompido com o som de uma guitarra bem alta, ecoando por toda a Colônia.
- Filhos da p... – xingou ao começar o refrão de TNT, AC/DC. O som ecoava por toda a Colônia, atraindo todos confusos.
- Mas que porra. – disse confusa tentando descobrir de onde saía o som.
- Pai! – Max gritou, chamando atenção aos mortos vivos que entravam pelo portão quebrado. Ótimo, fizeram questão de destruir para valer.
Cada momento, mais deles entravam pelo portão, deixando alguns moradores bastante desesperados.
- Descubram de onde está saindo essa merda, rápido! – Gritou enquanto se focava em matar os mortos vivos que entravam cada vez mais.
Era difícil se concentrar em matar enquanto a música tocava, mas assumo que dava um clima a mais. Eu me sentia naqueles filmes de ação que tem trilha sonora e tudo!
Ótimo , enquanto sua trilha sonora estava ligada, mais pessoas irta morrer.
E eu saquei de onde vinha o som.
Eu não considerava o grupo do Norte esperto, afinal, eles usaram o lugar mais óbvio para ser usar como chamariz de mortos vivos. Mas se eles queriam nossa atenção, com certeza conseguiram.
Covardes eram assim, quando não conseguiam lutar por si, usavam outros meios para a destruição. E eles usaram os mortos vivos – que também os queriam – para nos destruir. E o que aconteceria? Os mortos vivos nos matariam, o grupo do Norte os matariam e se aproveitariam da farta horta da Colônia.
Mas não no meu turno.
Matei os mortos vivos que vinham em minha direção, acertando-os no crânio de forma mais rápida e direta. Não poderia perder tempo, pois quanto mais a música tocar, mais dos bichos apareceriam e ficaria mais difícil de acabar com eles.
(T.N.T.) and I'll win the fight.
Aproveitando a morte dos bichos, corri, desviando de alguns até a torre mais alta da Colônia. Com certeza era de lá que vinha o som. Com certeza alguém do grupo do Norte se escondeu na torre e planejou a última parte de seu plano maligno.
Como ninguém o notou?. Pensei.
Oras, estávamos ocupados demais tentando nos livrar dos que atiravam em nós, . Não esperávamos que um sobrevivente nos mostraria seu bom gosto musical após sua derrota.
Sem demora, fui subindo a escada que dava o auxílio para subir na torre. Minha perna foi pega por um dos bichos, mas logo foi morto por Judas.
- Eu te dou cobertura, vai!
E eu subi.
Dentro da torre era apenas uma salinha, sem móveis, não tão grande. Era um bom lugar para atirar e ter ampla visão da Colônia.
O som na mesma era mais alto, eu sentia meus ouvidos doerem com o volume da guitarra.
Então fui atacada por um morto vivo, que era exatamente um do Norte.
(T.N.T.) watch me explode.
Ele pulou em cima de mim e o susto me fez cair no chão. Ele queria me devorar e seus dentes batiam na tentativa de me morder. Tentei lutar com ele o máximo que pude, evitando ser arranhada ou mordida.
Com dificuldade, consegui pegar uma faquinha e cravá-la na têmpora do bicho, sentindo-o cair por cima de mim. Bufei alto e o joguei para o lado.
Eu me sentia suja.
Procurei o rádio de onde saía o som e a cada momento o solo de guitarra ficava mais alto.
Bingo.
Ironicamente, no fim da música, achei o aparelho não tão grande que a gritava no último volume. O segurei e o joguei no chão, vendo-o quebrar em vários pedaços e o som parar de vez.
- Se ele estava morto, como conseguiu ligar o som? – me perguntei, encarando os pedaços do aparelho e o bicho morto jogado no chão. Essa era uma questão que ficaria sem respostas.
Corri até a janela da torre para observar a situação. Haviam muitos bichos espalhados pelo pátio e o grupo tentava matá-los, mas não parecia estar sendo fácil.
Eu daria uma mãozinha.
Peguei minha arma e ajudei atirando na cabeça de alguns mortos vivos que estavam espalhados ou muito amontoados pelo local. Observei os corpos caírem no chão, um por um e o local ficar mais limpo.
O portão quebrado, já estava fechado – da forma que conseguiram – e os últimos mortos já estavam mortos.
Missão cumprida!
Antes de descer da torre, dei uma olhada por toda a sala que já tinha o aroma do morto, na procura de qualquer pista sobre como o som foi ativado se o atirador estava morto. Me agachei ao lado do corpo e tateei algumas partes, para saber de que forma ele morreu.
Não haviam tiros, mas seu pescoço estava cortado.
Maldito kamikaze.
Ele ativou o som e se suicidou. Deus, que tipo de pessoa era doente àquele ponto?
Parece que o fim do mundo fode mesmo com a cabeça das pessoas.
Desci da torre dando de cara com Judas sentado e ofegante.
- Não foi mordido, né? – Perguntei desconfiada.
- Nah, só estou exausto.
O ajudei a se levantar e fomos para o pátio da Colônia que estava recheada de bichos mortos. Me assustei com um que tentou agarrar minha perna e eu pisei em sua cabeça rapidamente, vendo o crânio se amassar.
- Todos estão bem? – perguntou. Ele estava completamente sujo de sangue, suado e descabelado.
Todos precisávamos de um bom banho, talvez uns dias de descanso e quem sabe, talvez, mais segurança.
- Foi divertido, mas não devemos fazer isso mais vezes. – Barbie debochou.
Eu riria, mas eu estava exausta demais para pensar.
Todos estavam reunidos no pátio, sentados na escadaria da Grande Casa de tentando se recuperar. e Judas levaram os corpos dos mortos até um canto para queimar depois. Friedrich e Bailey levaram os feridos até a enfermaria.
Após um tempo, Judas apareceu e chamou Lola para sair com ele. Lola era uma garota latina que conheci no dia em que cheguei ali, ela trouxe o café da manhã para . Judas deu a ideia de usar um dos carros e a saída dos fundos para atrair os mortos para longe os portões.
Rapidamente me veio à cabeça. O pior sufoco já passou, a Colônia estava – até então – segura, ela poderia voltar com as crianças e tudo continuar da forma que deveria ser.
Esperava que estivesse tudo bem com ela.
- Onde está a Jolie? – Perguntou completamente transtornado e preocupado com a filhinha.
- Ela está com a . Ela a levou junto com as outras crianças para o letreiro – Respondi calmamente.
- Vamos lá então buscá-las. – Ele sugeriu e eu aceitei.
Pegamos um dos trailers que tínhamos e saímos pelos fundos também para garantir que os mortos vivos não nos incomodassem.
O caminho foi silencioso, parecia mais apreensivo que eu. Com razão, afinal, era sua filha, certo? Eu estaria nervosa, mas sempre acreditei na competência de e tenho certeza que ela deixou bem segura as crianças.
Chegando lá, estacionou o trailer perto do letreiro e saímos em disparada A forma com que pegou sua bebê no colo e a abraçou foi lindo de se ver. Era notável a segurança e amor que ele nutria pela sua filha.
Ele passava o dedão na bochecha da pequena que parecia ferida, se repreendendo em um tom baixo por ter deixado algo de ruim acontecer com sua filha.
Olhei em volta e só havia algumas mães e algumas crianças, não parecia que foram tão atacados assim, mas faltava alguém.
Faltava .
- Cadê a ? – Perguntei com a voz falha e até me surpreendi com o desespero em minha voz, junto com o medo e o nó na garganta que doía.
A resposta nem havia vindo e eu sentia meus pulmões se fechando, eu não queria ouvir.
Ela estava bem, ela tinha que estar. Ela havia ido atrás de um carro talvez para buscar ajuda. Tinha que ser isso.
Ela estava bem.
- Não sabemos. – Uma mãe respondeu e uma risada fria saiu da minha boca.
- Como assim não sabem? – Perguntei em um tom calmo, mas logo eu senti o sangue se esquentando dentro de mim. – Respondam! – Gritei fazendo alguns se tremerem de medo.
- Calma, . – encostou em meu ombro e eu logo me esquivei.
- Calma? Calma? – Ri. Eu sentia o nó na minha garganta se apertando cada vez mais e meus olhos começando a se encher d’água. Eu não queria saber.
Não podia ser real.
E minha sanidade já não estava na porcentagem saudável.
- Estávamos todas juntas quando saímos da Colônia, – uma das mães começou – mas então uns andarilhos apareceram e ela nos mandou ir sem ela. Ela ficou para trás lutando contra eles. Ela nos salvou.
Meu corpo tremeu e eu sentia minhas pernas ficarem moles. Meu estômago se revirou e eu queria vomitar. Eu iria vomitar.
Não podia ser.
Era tudo mentira, tinha que ser tudo mentira.
Inútil, Romero você é uma inútil.
Minha única missão de vida era cuidar de minha irmã mais nova e eu falhei. Eu falhei e a perdi.
Ela não.
não.
Maldita com seu lado heroico suicida!
Maldito grupo do Norte, eu os mataria. Eu os encontraria e os mataria, acabaria com todos, um por um. Eles pagariam pelo o que fizeram.
Minhas pernas cederam e eu caí no chão de joelhos, o impacto fez com que meus joelhos doessem, mas essa dor não era nada. Eu estava chorando desesperadamente, soluçando de forma que nunca havia chorado antes.
Não chorei dessa forma quando meus namorados terminavam comigo. Não chorei dessa forma depois de ver um filme emocionante. Não chorei dessa forma quando minha mãe morreu e nem quando meu pai morreu.
Mas era a .
Minha .
Eu estava fora de ar. Eu estava lá, mas ao mesmo tempo não estava. Tudo parecia tão irreal. Era como se eu estivesse em um universo paralelo, mas não. Não era um pesadelo, era a vida real. Ouvia vozes, mas não era as de nenhum dos que estavam perto. Era a risada de , uma voz de criança doce e suave.
Sentia essa criança perto, tocando meus ombros, mas não havia ninguém. Ela não era real. Ela estava morta, não estava?
Eu estava agachada naquele chão chorando, sentindo meus pulmões implorando por ar e o nó na minha garganta se apertando mais, me fazendo chorar mais forte.
Eu estava agachada, rezando que Deus trouxesse de volta, como jamais rezei em toda minha vida.
Eu estava agachada, sem entender o que estava acontecendo em minha volta.
Eu estava agachada, desolada, pois acabei de perder a única pessoa com quem eu me importava. Com quem eu deveria ter ficado junto a todo o momento.
Eu estava agachada, me odiando, pois prometi que nunca abandonaria ela e eu abandonei. Eu a deixei sair sozinha. Eu fui burra, eu fui estúpida e eu estou pagando por isso.
Eu estava agachada, cantarolando Always, sua música favorita, mesmo com minha voz embargada no choro, esperando ela aparecer e nos continuarmos nosso dueto.
Eu estava agachada, morta por dentro.
Capítulo 5 – Paradise City.
Romero.
Antes.
Eu estava usando uma camisa social branca e uma saia drapeada. Era uma quarta feira de 2006. Lembro-me da data porque nessa grade eu tinha cálculo avançado, e geralmente nesses dias eu arranjava as desculpas mais ridículas possíveis para fugir da sala de aula. A melhor delas com certeza eram sobre meu período; era só insinuar para o Senhor Brown, mestre da turma de cálculo, que eu estava com alguns sintomas de cólica e ele arregalava os olhos, ordenando que eu fosse direto para a diretoria pedir algum remédio ou chocolate.
Era estranho pensar que um ano depois eu larguei a escola – não exatamente. Mas passei a cursar algo diferente, uma forma de dar adeus à álgebra. E deu certo, até. Tudo que ensinavam naquelas aulas era como cuidar de uma criança intelectualmente e os números se resultavam em soma, divisão, multiplicação e subtração. Moleza.
Sempre me orgulhei da minha independência. E mesmo estando no segundo ano, e minha irmã mais velha no quarto, eu conseguia persuadi-la para que pudéssemos fazer algo mais divertido do que sentar por horas e horas observando a matéria nada lúdica entrar por um ouvido e sair pelo outro.
Claro que não era difícil de convencê-la. Ela gostava daquele território ainda menos do que eu. sempre fora a mais divertida casualmente. A que mais falou, saiu e namorou. Meu jogo era mais sério, observava tudo ao meu redor antes de pensar no que dizer. Minha irmã preferia apenas dizer na cara o que achava da pessoa que conheceu há cinco segundos, às vezes dava certo, às vezes tudo se prolongava em uma longa discussão entediante e desnecessária. Éramos completamente diferentes, mas juntas, eramos como Ying e Yang. Ou alguma merda do tipo.
Voltando àquele dia. Eu estava com meu uniforme perfeitamente passado e os sapatos de boneca preto e brilhante, andando pelo corredor com as mãos no estômago, tentando a minha melhor atuação de estudante com dor. Uma supervisora passou por mim e não deu bola, possivelmente o teatro deu certo. Para o Senhor Brown, eu tinha certeza que sim.
Aproveitando o corredor deserto, empurrei a janela com força, porque a mesma era uma das únicas que poderiam abrir, já que estavam ali há mais tempo do que eu.
Tentei passar pelo pequeno buraco que se abriu, e com certa dificuldade na hora da bunda, deu certo. Quando encostei os pés no chão do canteiro de flores, senti um ventinho nas partes baixas, percebendo que minha saia tinha ficado presa no gancho da janela. Ri a colocando novamente para baixo e corri até o estacionamento.
Avistei a camionete vermelha e tirei a chave do meu sutiã, entrando no veículo. Peguei meu óculos em formato de coração no porta-luvas e olhei para o espelho. Formato de rosto oval, mandíbula até que bem desenhada, traços delicados e fortes, como o nariz pequeno e modelado. Eu gostava dos meus olhos. Eles são a janela da alma, e o meu tinha a cor do céu de uma manhã ensolarada através desse vidro, que se contratava com minha sobrancelha escura e levemente arqueada. Meu cabelo era um castanho escuro e quase liso, na falta de paciência para hidratar, chegando à minha cintura fina. Minha pele tinha cor oliva, devido aos dias que passava na praia ou mesmo em casa tentando um bronzeado legal, mas era gritante a diferença entre a minha irmã. Sua pele celta, olhos verdes e cabelo loiro enquanto eu, morena, de pele parda e olhos azuis. Basicamente as características de nosso pai e mãe, nesta ordem.
Coloquei os óculos e abri um pirulito vermelho pondo na boca, enquanto esperava minha irmã. Recebi uma mensagem dela mais cedo quando ainda estava na turma. Dessa vez, ela precisava fugir daquele lugar e senhoras e senhores, eu era a melhor pessoa indicada para acompanha-la.
Liguei o CD de meus pais e Lithium estava tocando. Ecléticos. Soube que a ideia da playlist surgiu de meu pai, que não tinha um carro e aturava as músicas atuais demais e desconhecidas de minha mãe. Fizeram uma gigantesca lista de músicas favoritas e pediram para o meu tio, caçula da minha mãe, que baixasse e criasse o cd para os dois, mas isso fazia muito tempo, eles ainda estavam no colegial. Se separaram depois que ele entrou no exercito e voltaram na faculdade. Entre indas e vindas, minha irmã foi gerada por acidente. Eu, muito fina e amada, fui planejada, é claro.
Boatos de que o cd era uma fita antigamente.
Observei as janelas do colégio perdida em pensamentos e notei quando a porta do passageiro bateu do meu lado. Sorri para e girei a chave.
Ela cantava no ritmo enquanto tirava as roupas do colégio, revelando uma vestimenta mais curta...
Parei o carro tirando o pirulito da boca, esperando o sinal ficar verde.
- O que aconteceu lá dentro?
- Eu cheguei atrasada. Entrei quando eram dez horas e todos começaram a bater palmas para mim, me senti humilhada. Humilhante.
- E isso é motivo pra fugir? – perguntei.
- A Senhora Sujismunda acabou me levando pela orelha até a diretoria, eu estava sentada no banco esperando minha vez quando te mandei a mensagem.
- Detesto quando você fala mal de professor. Apelido de péssimo gosto, . – reclamei.
Ela riu.
- Deixe de ser tão certinha, mana.
- Nossa mãe é professora, imagina o que ela precisa aturar com tanta gente maleducada falando pelas costas dela. Não gosto de imaginar um bando de adolescentes que nem sabem se limpar falando mal da minha mãe.
Ela levantou os braços em sinal de rendição. E eu continuei.
- Então quer dizer que você chegou atrasada, só Deus sabe o porquê, não voltou pra sala e ainda fugiu? O que vou fazer com você. Perdida. – estalei a língua em sinal de decepção.
- Bebê, falta só mais uns dias. Pra você, dois anos. – declarou, claramente tirando sarro da minha cara.
Mastiguei o resto do pirulito e coloquei no lixo, dando a partida outra vez.
- Mamãe e papai vão fazer aniversário de casamento mês que vem. Desconfio que ele esteja planejando uma viagem.
- Papai é muito romântico, os dois são uma junção perfeita. Ela toda esquentadinha e ele tentando apagar o fogo daquela mulher! – disse com um sorriso apaixonado no rosto – Mas você não deveria pensar nisso, mana. Não faz bem a você.
- Como assim? – arqueei uma sobrancelha estranhando seu comentário.
O sinal fechou novamente e eu avistei um garotinho de talvez nove anos, cabelo preto e olhos castanhos orientais, na faixa de pedestre. Mas tinha algo de errado com ele. Estava desengonçado, a postura torta, sem mãe ou pai do lado.
- Eles não vão voltar, . Nenhum deles. Precisamos deixar isso para trás. A Colônia é algo bom, sinônimo de recomeçar.
Eu tentava prestar atenção nas palavras desconexas de minha irmã e no garotinho perdido entre a multidão na faixa de pedestre.
Lágrimas saltaram do rosto de e sua expressão se tornou dura.
- Eu vou sentir tanto sua falta, . Juro que vou. Mas você precisa deixar. Isso. Pra. Lá. – ela berrou.
Me assustei. O menino começou a atravessar a rua, mas o sinal verde estava aberto. Carros buzinavam para eu seguir em frente. Passaram a contornar a camionete. Minha irmã chorava e gritava dizendo para eu esquecer meus pais e a ela.
Eu não sabia o que pensar. Berrei para o menino sair da pista. Ele não parava. Seu pescoço dobrado.
Havia sangue escorrendo por sua boca.
Em um segundo.
Nós duas estávamos sem cinto, um caminhão desgovernado seguiu o sinal verde e não percebeu a camionete parada. Ele bateu atrás de nós. Fomos empurradas para frente, batendo a cabeça no parabrisa. O impacto foi forte. Vidro estraçalhado para toda a parte, pessoa gritando, minha irmã com lágrimas no olhar, sorriso no rosto, triste, e a mão segurando forte a minha.
Em um segundo eu acordei.
Sonho esquisito da porra.
Como uma união do antes e depois. Um passado onde eu ainda tinha minha camionete velha a minha disposição, pronta para ser pilotada após eu fugir do colégio com a minha irmã.
Confesso que me assustei com o garotinho ensanguentado no meio do povo, como se fosse algo comum.
E me lembrou do primeiro dia que eu avistei um deles, e com todas as palavras, posso afirmar que não foi uma aparição calma. Pelo contrario, foi um tormento de grito e pavor.
Me encontrava agora no topo de uma árvore generosamente grossa. Como nas antenas, o alto era a melhor posição para se proteger dos indesejados.
Minha pele estava amassada pela casca rígida e tratei logo de sair dali. Já era tarde e provavelmente as criaturas se dispersaram de todo o barulho causado mais cedo.
Tinha em mente no momento encontrar um lugar para ficar, ou pelo menos algo que sirva para eu me proteger, e tentar de novo atravessar a passagem. Do contrário, teria que continuar com o plano inicial e dar a volta no riacho.
O negócio era ir à luta ou morrer, mas no meu estado eu provavelmente lutaria e morreria. Porque a coisa estava feia.
Voltei a caminhar do lado da água, seguindo seu fluxo. Foram alguns minutos, transformados em horas. Meus pés pediam socorro, mas sentia que não poderia parar até encontrar algo bom o bastante que me permitisse tal ato.
Confesso que o medo bateu quando percebi que o sol já estava se apagando do topo do céu. Foram horas de caminhada e parecia que já estava longe demais da Colônia para pensar em voltar, logo a melhor alternativa seria dar a volta no riacho de uma vez por todas.
Com muito sufoco, acabei avistando uma pequena casa de madeira em cima das pedras. Parecia pré-moldada. Lugar curioso para se morar. Contudo, onde tinha peixe, tinha pescador.
Daquela ponta, outra coisa curiosa tomou minha atenção. O rio parecia ser uma espécie de braço do mar, que por desventura, acabaria como uma cascata para a imensidão azul. Eu estava no topo de uma cachoeira, e num lugar extremamente remoto, pude observar uma espécie de precipício. Com um local em cima estruturado, coberto de muros gigantes e brancos. Parecia uma cadeia. Mas estava muito longe, as horas andando debaixo do sol quente poderiam ter afetado minha visão.
Voltei a atenção para a casa, e tentei observar pela pequena janela coberta de poeira, felizmente tinha somente um deles no meio da minúscula casa. A porta estava aberta, então não houve problemas em girar a maçaneta. O falecido estava enforcado e continuava se mexendo.
Talvez fora a nostalgia que me bateu... O estudei por alguns segundos. Era triste pensar no que ele deve ter passado. Poderia ter uma família que acabou morrendo na extinção do mundo, ou que o abandonou, deixando o pobre miserável não tendo outra escolha a não ser suicídio.
Mal sabiam que nós todos estavamos infectados, e não havia outra saída. Mesmo não sendo mordido, você acabava se transformando depois de morto, penso eu que contraímos a doença somente respirando e tendo contato com um deles.
A primeira vez que presenciei alguém se matando para fugir daquele mundo e se tornar um deles, foi quando também perdi um pedaço de meu coração. Uma parte de mim morreu aquele dia. De uma garotinha assustada a uma pessoa que tentava se abrir diariamente para não se tornar uma completa pedra sem sentimentos.
E claro, algumas pessoas não tinham força psicológica o suficiente para aguentar a perda de todos que amavam ou odiavam pela mesma praga.
Ele batia sua mandíbula com força tentando se esticar em minha direção. Usava um boné preto ainda intacto e me interessei pelo objeto.
Havia uma pia ali dentro, e como a tradição manda, na primeira gaveta encontrei os talheres. Agarrei uma faca e fui por trás do bicho que não conseguia se virar. Arranquei a corda de seu pescoço, que se conectava na madeira do telhado, não havendo forro na casa.
O impacto do seu corpo no chão soou alto para o silêncio da floresta. O arrastei para fora até chegar à beira do rio, suas pernas estavam inúteis pelo tempo em que ficou preso.
Tirei o boné de sua cabeça e coloquei nas pedras, em uma pequena poça de água, para que se lavasse sozinho.
O som continuava a sair de sua garganta. Era um ruído de pura necessidade. Tudo o que ele mais queria no mundo todo estava na sua frente. Carne fresca. Parecia ser doloroso, ter o que quer há alguns centímetros, e não poder tocar. Tortura. Coloquei meu pulso machucado na frente de sua narina, que já estava sem a cartilagem. Parte da face podre, a língua roxa saltada para fora, os olhos esbugalhados, o cabelo faltando. Ele tentava subir para alcançar meu braço. O desejo querendo ser saciado. E não tinha força o suficiente para levantar um músculo saturado.
Suspirei pegando a faca que tinha usado para cortar a corda. Com precisão fiz força para enterrar em sua têmpora, a parte mais sensível capaz de tocar a lâmina no cérebro da criatura.
E ele morreu. Definitivamente desta vez.
Para não deixá-lo ali, acabei o empurrando mais alguns centímetros, fazendo seu corpo ser banhado e levado junto com a força da natureza.
Levantei e entrei novamente na casa, desta vez com um objetivo.
Nada no teto, abri todos os armários possíveis e encontrei somente uma garrafa com uma bebida amarela. Cheirei, e graças a Deus, era somente álcool.
Procurei na gaveta da pia, o armário sobre ela, do lado esquerdo, em baixo do fogão e bingo, uma lata pequena de feijão.
- Parece que você vai ter uma refeição e tanto hoje, . – resmunguei para mim mesma.
Decidi que passaria a noite ali. A escuridão não era atrativa para mim.
Já havia comido um sanduíche e tomado suco naquela manhã da Colônia, teria que fazer aqueles grãos valerem a pena.
Juntei poucos gravetos que consegui no inicio da floresta, me esforçando para não ter que entrar nela. Voltei para o fogão e apanhei um ferro de uma das bocas. Na frente da cabana, passei pelo menos uma hora com minha barriga roncando e implorando pela pressa, e finalmente consegui.
- E fez o fogo no primeiro dia! – exclamei largando as pedras. Era uma engenharia avançada, constituída de mato seco, ferro em cima, e muito tempo batendo uma pedra na outra até sair faísca.
Preferia comer ameixa, mas aquilo iria servir.
Esquentei o feijão diretamente da lata, enquanto pendurava o boné preto de couro em cima da maçaneta da porta. Ficava atenta a qualquer passo diferente na floresta ou no rio. Ocorreu tudo tranquilamente. Consegui uma colher na gaveta e comi o feijão, que pela fome que eu tinha, estava com gosto de ameixa. A primeira colherada foi saborosa.
Depois de me alimentar, abri o restante da lata e lavei no rio, a enchi com a água salgada e deixei em cima do fogo. Resgatei um pote que estava no armário da cozinha e uma tampa grande de panela. Inseri o pote ao lado da lata e coloquei a tampa em cima da água. Uma parte ficou para fora.
Entrei na casa, trancado a porta e todas as janelas. Estava tudo escuro lá dentro, apenas ouvindo a chama deliciosa estalar do lado de fora. A casa minúscula já não tinha mais cama, e pelo estilo de vida que tinha levado até aqui, não demorou muito até eu pegar no sono naquele chão de madeira, mas com a faca ainda em mãos.
Dormi como um anjo.
Mas pouquíssimas horas.
Quando acordei, o fogo já estava apagado. A água salgada tinha evaporado e fazendo seu caminho da tampa caindo até pote ao lado da lata. Experimentei o gosto e até que estava bebível, se isso for uma palavra. Se eu não morresse com uma mordida, poderia ser de infecção estomacal. Mas estava okay.
Senti que deveria ousar. Não de uma boa forma.
A Colônia estava no ponto A, o rio no ponto B, eu era o ponto C e a floresta estava a minha direita no ponto D.
Se eu me esforçasse para forçar meu próprio cérebro a prestar atenção e andar somente em linha reta, seria possível eu reencontrar a cidade desta maneira. O sol nascia daquele lado.
Fechei a porta da minha casa temporária, empurrando o fogo e o ferro para baixo da pequena escada de madeira na frente da porta. Coloquei o boné preto na cabeça e entrei na floresta.
Calma e silenciosa, com alguns raios solares passando entre as folhas das árvores verdes de cima, enquanto eu pisava nas folhas amareladas que jaziam no chão.
Ocorreu um barulho minúsculo, e meus ouvidos captaram. Uma série de pássaros cinza com o bico vermelho voaram de onde eu estava indo, até a volta para a casa de madeira. Senti que estava num território perigoso. E mesmo sendo idiotice, precisava analisar de perto.
Depois de muita subida, lá estava o motivo do pavor das aves.
Era uma espécie de empório. Gigantesco, como uma escola do governo. Porém as paredes eram lisas e pintadas de branco. Grades gigantes tornavam o lugar extremamente seguro, haviam observatórios e notei que neles tinham soldados armados. Me agachei no morro atrás de uma árvore, tentando não ser notada. Mesmo tão seguro que parecia, não era algo exatamente amigável.
Dei a volta na árvore e consegui visibilidade para o outro lado. Estranhei completamente. Fora os muros, grades e alguns carros com pessoas armadas observando ao redor, de um lado havia uma espécie de gaiola com a mesma grade xadrez de ferro, e dentro dela, dezenas de mortos vivos, sem espaço para se locomoverem.
Como se não fosse mórbido o bastante, um senhor de cabelo branco e bolsas em baixo dos olhos saiu de uma porta que direcionava até essa gaiola, segurando uma espécie de pegador, e com ajuda de caras armados, resgatou uma das criaturas, prendendo o pescoço dela e trazendo para dentro do lugar.
Pensei com clareza e decidi sair dali antes que me levassem como prisioneira também. No mundo real, não há surpresas boas como a Colônia diariamente.
Assim que dei alguns passos para trás...
Me fodi.
Minha mão esquerda continuava inútil, e com um passo sem atenção, acabei pisando em uma armadilha para ursos, fazendo de meu pé esquerdo também dispensável. Sentei-me no chão encostando-se à árvore e mordi com força a barra da minha camisa para impedir o grito de dor.
Tentei me acalmar. 1, 2, 3. Uma respiração de cada vez. As lágrimas já caíam de meus olhos. Segurei uma parte do ferro com o próprio pé, que começava jorrar sangue, e com meu braço bom, fiz toda a força possível para que aquilo abrisse.
E abriu.
Empurrei o ferro para longe e me levantei cambaleante. Sol e dor não era algo que combinava.
O sangue saía do meu pé mesmo que em pouca quantidade, e aquele cheiro atraía quem eu menos desejava. Desci o morro mancando, me equilibrando ao máximo para que não voltasse a cair.
E lá estava a casinha de madeira novamente. Como senti saudades.
Retirei em um segundo as coisas de baixo da escada. Montei de novo a minha fogueira e com a adrenalina da dor, o fogo se acendeu em menos tempo que a noite passada. Levantei mancando e alcancei a garrafa de álcool em cima da pia.
Sentei na beira do rio e tirei a rolha com o dente. Bebi alguns goles rápidos, para fazer efeito. Tirei minha camiseta verde ficando com uma espécie de regata preta pequena, que parecia um top.
Mais alguns goles do álcool, e não poderia esperar pelo inevitável. A dor me corrompia e minha visão estava se distorcendo com a sensação ruim.
Botei o pé dentro do rio, rezando para que o valor da água salgada retirasse toda a possível infecção que eu teria. A pulsação da ferida aberta não se dissipava, e eu berrava contra a camisa tentando abafar todo o som.
Escutei os estalados do fogo e me aproximei andando de quatro. Sentei ao lado e retirei a faquinha do bolso de minha calça jeans. Pela sorte que eu tenho, provavelmente ela estava rasgada agora e eu andava por aí com a bunda de fora. Não que tivesse um público. Ao menos, não vivo.
Coloquei a faca no fogo e a camisa parou novamente na minha boca. Pensei por alguns segundos e voltei a beber o álcool. E me preparei.
O ferro era especifico para ursos, não me mataria, mas causaria dor. O dono daquele local branco poderia ter colocado lá para pegar os intrusos ou fugitivos, o que deu certo. E também duvidava que houvesse recompensa pela cabeça viva.
Haviam cinco furos na parte externa e cinco na interna do meu calcanhar. Não tão profundos graças à bota e meia, mas ainda lá.
Contei até dez, e coloquei a faca agora preta por causa do fogo em cima das aberturas. Uma a uma. O grito sufocado pelo tecido da blusa. O álcool me ajudando a perder a noção do que fazia, amenizando aquela dor. Aguentei o máximo que pude. Suava frio em todas as partes do corpo, sofria. Não sei quanto tempo levou, mas parecia uma eternidade. E cada passo daquele padecimento que se prolongava, tentava me manter acordada, pois acima de tudo ainda tinha que tomar conta de mim para os outros, afinal, parecia não ser o bastante eu mesma continuar me machucando sem a ajuda de um inimigo por perto. Eles ainda estavam lá.
Olhava para as estrelas no céu, deitada nas pedras e abraçando a garrafa que agora estava vazia.
Me sentia leve, mas teria uma grande dor de cabeça amanhã, já estava mal acostumada para beber.
Por incrível que pareça, ainda estava viva e com meu pé funcionado. Sem infecção nenhuma, até agora.
- Você é burra, , – falei para mim mesma, tinha que dizer umas verdades – burra na verdade não, bem inteligente, bonita, bem sucedida, até que se vira sozinha e tal, mas é azarada demais, minha filha.
Joguei uma pedrinha na fogueira sem vontade.
- O filha da puta de ontem te atacou no trailer. O filho da puta de hoje é uma porcaria de armadilha, ou seja, você se ferrou sem a ajuda de ninguém. Como alguém tem coragem de dizer que você é uma sobrevivente se não consegue nem andar direito?
Puxei a corrente do meu pescoço pra trás sem força.
- Nem pra se matar serve. Seu lixo. Só tinha um trabalho, atravessar a porcaria do rio e voltar pra Colônia e viver feliz pra sempre vendo sua irmã constituindo família com o caipira esquisito, que deve estar vendo mais fantasmas do que você ultimamente. Mas não. Claro que não. Entrou na floresta, burra, burra.
Bati algumas vezes na minha própria cabeça, mas de leve, não poderia arruinar meu rosto.
- Eu poderia ficar aqui. Constituir família com Peter, o pescador que teve a família fodida também. Mas não pensei muito e tive que matá-lo e jogar seu corpo no rio que na verdade é mar.
Sacudi a cabeça.
- Preciso pensar antes de fazer. – bocejei me virando para o fogo.
Estava aqui há meia hora conversando comigo mesma sobre tudo e nada. Era vergonhoso, mas a solidão fazia isso com as pessoas. Antes, poderia até falar besteira com a minha irmã, agora eu estava acompanhada somente de um boné que roubei do defunto.
A ardência de antes no meu pé já não estava mais ali, e o quanto sofri com aquela água oxigenada natural e os pontos enjambrados, me fez estar perto de um orgasmo quando a dor simplesmente sumiu.
Meu nome agora era perdição, minha mãe era a solidão e meu pai se chamava álcool. Claro que a dor não havia sumido, mas meu pai álcool estava me ajudando a lidar com esta utopia de que se você furar seu pé dez vezes em uma armadilha para urso, ainda dava pra aguentar com um sorriso no rosto.
Não sei se foram os pensamentos sexuais que me fizeram enxergá-lo ou a total falta de tato por causa da bebida que não me movi um centímetro. Mas foi interessante ver alguém na minha frente quando pensei estar conversando sozinha por algumas horas.
Se eu estivesse sóbria, me preocuparia.
Ele estava lá, parado, encostado do lado da casinha de madeira se apoiando a uma arma grande que não faço ideia o nome. Se faço, não lembro.
Seu rosto era másculo, a testa larga combinando com o queixo expressivo. O nariz pontudo com uma barba de pelo menos uma semana. Seu corpo era o paraíso cheio de tatuagens e músculos, como a mamãe aqui gosta. Parecia ser um soldado ou algo do tipo, pelas roupas. Não conseguia ver a cor de seus olhos, mas pela luz do fogo eu notei que ele estava sorrindo.
Sorri também não tendo certeza a razão.
Aí ele soltou aquela frase. Foi delicioso de ouvir. O sotaque britânico, a aparência de ex-militar, a voz aveludada e rouca... A bebida no meu cérebro distorcendo tudo.
- Ora, ora... O que temos aqui?
Depois disso, acho que dormi.
Capítulo 6 - Crazy.
Romero.
Fitei por um bom tempo os túmulos improvisados que fizeram para todos os moradores que vieram a falecer com o ataque. Aquilo me deixava irritada de uma forma avassaladora.
Não o ato de criar túmulos para enterrar os mortos, os que os corpos foram encontrados e não transformados em mortos vivos, mas sim as mortes. Todos que morreram eram pessoas normais, inocentes, que foram tiradas desse mundo de forma brutal.
E o pior que não foram mortos pelos monstros que devíamos temer, mas sim, por pessoas vivas. Humanos que deveriam nos ajudar a sobreviver. Humanos com quem deveríamos nos juntar, que deveríamos cuidar. E tudo foi tão rápido, eles entraram e mataram todos. Não se importaram se eram crianças, se haviam mães, pais, parentes.
Mataram todos.
E causaram a morte dela.
Eu não tinha certeza absoluta da morte de , mas algo em mim havia sido arrancado com muita força. Ela poderia estar viva, perdida ou machucada. Poderia ter sido devorada. Poderia ter sido mordida e já estava a mercê de sua agoniante morte. E se ela tiver se transformado em um deles? Não em um dos humanos monstros, mas sim nos mortos monstros.
Eu não queria pensar nisso.
Na verdade, não queria pensar em nada.
não queria um túmulo para , pois ele acreditava que ela voltaria ou nós a encontraríamos. Então eu o fiz. Eu mesma fiz o túmulo de minha irmã, sem corpo. Porque se ela estiver morta, ela tem seu merecido túmulo e seu merecido descanso. Agora, se estiver viva, eu a encontrarei, e ela virá diretamente brigar comigo por ter cavado sem razão.
Eu adoraria que ela brigasse comigo de novo.
Antes
Era verão e eu amava o verão. No verão, e eu estávamos geralmente de férias e podíamos fazer o que mais gostávamos: fugir.
Nossas vidas podiam ser tediosas de vez em quando, então logo que o verão começava, nós duas pegávamos nossas merecidas férias e saíamos sem rumo em nossa caminhonete. Claro que deixávamos uma carta ou alguma coisa para nossos pais não surtassem com nosso desaparecimento repentino.
Era bom, sabe? Só nós duas, viajando sem preocupações, vento nos nossos rostos. Não precisávamos ir em mil festas, ficar super bêbadas e essas coisas que adolescentes normais fazem. Nós só precisávamos de uma a outra, alguns caras tontos e alguns discos antigos do nosso pai.
Ele era muito fã de músicas dos anos 90. E de tanto ouvir seus rocks no repeat, acabamos por pegar um pouco desse gosto dele. Toda viagem de família ele ficava ouvindo seus discos antigos, cantando mais alto que todo mundo. Ele se sentia um próprio rock star. Nosso rock star.
Naquele dia especificamente, o sol estava brilhando. O dia estava lindo e estávamos dirigindo por horas pelas estradas de Oklahoma. Do jeito que eu amava, janelas abertas, vento no rosto e gritando até nossas gargantas doerem a letra de Crazy.
Eu lembrei, não era a música favorita de , era a minha.
Eu a obrigava a ouvir essa música toda vez que saíamos, com certeza essa música sempre estava em nossas playlists.
Nunca deixávamos ela de fora.
A noite havia caído e já estávamos há bastante tempo na estrada.
- Precisamos abastecer. – indicou apontando para o ponteiro da gasolina que indicava que a qualquer momento nossa caminhonete pararia no meio da estrada.
E honestamente, ficar sem carro no meio da estrada escura e apenas com minha irmã não era uma boa ideia.
Peguei o mapa que usávamos para quando viajávamos, corri o olho por ele até o ponto que marquei.
- Há um posto de gasolina no próximo cruzamento.
assentiu e continuou dirigindo.
Não importava se estava calor ou frio. Se era dia ou noite, amávamos ficar na estrada.
O que mais gostávamos era a liberdade que tudo isso nos proporcionava. Não precisávamos de ninguém e de nada. Sempre nos virávamos bem sozinhas e nos divertíamos mais juntas do que com um grande grupo.
continuou dirigindo até chegarmos no posto de gasolina que estava aberto ainda, por ter acabado de cair a noite. Não haviam carros no local, só um senhor sentado em um banco perto da loja de conveniência que estava com um cigarro entre os dedos e uma garrafa de cerveja na outra mão. Dava um longo trago no cigarro e então bebia um gole de sua cerveja, nessa sequência.
Minha irmã foi para lojinha e eu fiquei do lado de fora. Fiquei abastecendo a caminhonete, esperando o tanque encher. A melodia de Crazy estava cravada na minha cabeça, mal percebi que estava cantarolando enquanto dava algumas reboladas no ritmo em minha cabeça.
Ouvi uns murmúrios e gemidos vindos por trás de mim, virei a cabeça para olhar e o senhor careca que estava se deliciando com seu cigarro e bebida também se deliciava com a visão da minha bunda apertada pela calça jeans skinny.
Eu gargalhei alto.
Terminei de encher o tanque e então fui atrás da minha caçula dentro da loja. Ela estava parada na área dos óculos escuros, focada nos mesmos enquanto o rapaz que estava na caixa registradora – que julguei ser hippie – a observava encantado.
Ela nem ao menos deu uma piscadinha. Ela era a difícil.
- Ele deixou a gente pegar o que precisar. – me alertou quando eu me aproximei dela.
- Qualquer coisa? Tipo de graça? – Eu pareci surpresa, mas na verdade eu não duvidava que o jeito persuasivo de não nos daria nada.
- Qualquer coisa. – Ela assentiu sorrindo e então me entregou um dos óculos que estavam em suas mãos. – Esse eu escolhi para você. – Encarei bem os óculos espelhado, com as lentes mais azuladas. – E esse é meu. – Ela colocou os óculos em forma de coração em um vermelho chamativo. Eu ri.
Minha irmã, a própria Lolita.
Aproveitando a gentileza do vendedor que nos deixou pegar tudo que quisermos, corremos até a prateleira que haviam alimentos e enchemos nossas bolsas. Batatas chips, barras de chocolates, marshmallows e qualquer coisa que fosse atrativa e saborosa entrava em nossas bolsas.
O rapaz nem ao menos se intrometeu. Ele estava completamente a favor disso.
Homens...
Avistei uma cabine fotográfica no canto da loja e não precisei pensar duas vezes, só encarei e nós corremos para a mesma. Deixamos as fotos serem tiradas enquanto trocávamos de roupa rapidamente.
Eu apenas troquei minha blusa para uma que deixava minha barriga a mostra e trocou sua calça por uns shorts jeans, com o salto de suas botas de cowboy batendo no chão.
Pegamos tudo o que era nosso e que foi dado pelo hippie bonzinho e saímos da loja, mas antes, deixou as fotos que saíram da máquina para o rapaz, como retribuição.
E ele vibrou alegremente, como se tivesse feito o gol da vitória em um jogo de futebol.
Do lado de fora, tirei o pirulito que estava em minha boca e dei um beijo rápido na cabeça do senhor que por mais assustador que fosse por me encarar, era inofensivo.
Ele também vibrou.
Entrei rapidamente na caminhonete, ficando no banco do lado do motorista e entrou em seguida. Colocou as chaves e deu partida. O novo chaveiro que pegamos na loja balançava de um lado para o outro no painel.
Ligamos novamente nosso som no último volume e seguimos viagem berrando nossas músicas favoritas como se não houvesse coisa melhor.
E realmente não havia.
Depois.
Acordei do meu devaneio com a mão de no meu ombro, aquilo me assustou e meus olhos ainda estavam meio embaçados. Eu fiquei bastante tempo fora do ar, suponho.
Encarei o rosto de e mal percebi o estado do homem. Estava completamente sujo de sangue e terra, o suor deixou sua camiseta molhada e uns fios de cabelo estavam caídos em seu rosto, alguns cachos. Mas o que realmente me chamou atenção foram seus olhos azulados que passavam uma tristeza. Ele sentia minha dor.
Mas eu não precisava disso.
- Eu tenho certeza que vamos a encontrar, . – O tom de era carregado de cuidados.
- Acho que passamos. – disse aleatoriamente.
- O quê?
- Acho que passamos... no teste. – Eu encarava o rosto de e ele se demonstrava bem confuso com minha reação.
Ele ficou em silêncio, não sabia o que responder.
- Mais tarde eu irei para a floresta ver se encontro algo dela.
- Nem pensar. – se mostrou mais relutante do que eu esperava.
- Como é?
- Não vou te deixar sair sozinha de noite. É perigoso.
Ignorei a grande vontade de xingá-lo, afinal, eu mal o conhecia e ele já estava mandando em mim. E isso era algo que eu não admitiria de jeito algum.
- Aham, está bem.
- ...
- Você vai me impedir?
- Se for preciso...
- Então espero que tenha algo maior e mais eficiente que uma faca para me parar.
Dei uns tapinhas no ombro de e o deixei para trás. Não queria me estressar, minha cabeça já estava bastante fodida com o sumiço de .
Segui meu caminho para a enfermaria para checar como estavam os pacientes. Muitos acabaram ficando feridos por conta do ataque, e outros extremamente sentidos psicologicamente por terem perdido alguém que conhecia.
A enfermaria estava cheia. A maioria estava nas camas improvisadas. Adultos, crianças, adolescentes. Paige, Bailey, e o próprio Friedrich estavam cuidando dos machucados, e eu os ajudei.
Troquei curativos. Limpei feridas. Dei medicamentos. Fiz tudo com bastante cuidado, tentando ajudar aqueles que precisavam. Mas uma pessoa acabou chamando mais a minha atenção.
Willa, a adolescente que na hora do ataque estava cuidando de Jolie, a filhinha de . Ela conseguiu sair da Colônia na hora do caos, mas sua mãe não teve a mesma sorte e acabou por falecer. Não sabíamos se ocorreu na hora do fogo cruzado ou quando a horda de mortos vivos passou.
A menina descobriu a morte da mãe logo que voltou, eu pude sentir o quanto seu mundo desabou. Friedrich achou melhor deixá-la de observação para ela não fugir ou até mesmo não agravar sua situação. Pessoas em situações similares podem ficar bastante doentes e até recorrer ao suicídio. Queriam preservar a vida da jovem.
Ela estava deitada em uma das camas, completamente sem reação. Puxei um banco para próximo dela e me sentei no mesmo. Ela levou os olhos azulados tristonhos para mim, mas logo os abaixou.
- Precisa de algo? – Perguntei em um tom baixo e ela apenas mexeu a cabeça em negação.
Ficamos em silêncio por um tempo. Eu não sabia como falar com ela. Não sabia o que dizer e nem como tentar ajudá-la.
Mas, todas as tardes tediosas em que eu passava assistindo programas de autoajuda talvez me fossem úteis para esse momento.
- Eu também perdi minha mãe, – disse baixo e ela levantou a cabeça. Pelo menos chamei sua atenção – logo que tudo começou, sabe? Ela não aguentou a pressão de viver em um mundo assim e simplesmente se foi, e de uma forma que afetou profundamente minha família... No começo foi muito triste e incompreensível, porque é difícil viver em um mundo sem a mãe. Meu pai não aguentou ficar sem ela e também se foi. – Ela parecia estar prestando bastante atenção e isso já me aliviava. Eu não era boa para conversar com jovens. – Sabe, eu só tenho minha irmã nesse mundo e também a perdi, então acho que sei como está se sentindo. Mas saiba que você não está sozinha Willa, vamos cuidar bem de você. Agora eu cuidarei bem de você. – Segurei na mão da garota tentando passar toda minha força que tive que ter desde que minha mãe morreu, a força que eu dava para . – Tudo ficará bem. Um dia, quem sabe.
Willa me encarou com os olhos azulados brilhando e eu pude sentir uma tranquilidade, uma esperança.
- Obrigada.
Depositei um beijo rápido na testa da menina e me levantei. Caminhei até a porta da enfermaria, onde Friedrich estava.
- Cuide bem dela.
Ele me olhou e sorriu.
O barulho do portão se abrindo e o carro de Lola e Judas entrando me deu um desespero momentâneo. Minha esperança era de que minha irmã saísse desse carro e me desse um daqueles abraços mais lindos de filmes de drama.
Mas não foi o que aconteceu.
Apenas Judas e Lola saíram do carro, me deixando completamente pálida.
Eu sentia o nó na minha garganta se fechar de novo e o ar começar a falhar. Eu não queria mais chorar. Não queria passar por tudo aquilo de novo. Eu estava sofrendo demais.
- Nada da ? – Perguntei com a voz falha. Judas me encarou e tocou em meu ombro.
- Me desculpe.
Engoli o choro que queria vir e caminhei em passos rápidos até a casa que me foi designada. Entrei no quarto e bati a porta. Mas não era o meu quarto.
Era o de .
Passei perto de sua penteadeira e parei em frente da mesma, ignorando o estado deplorável que eu me encontrava, só uma coisa lá me interessava: algumas fotos. As fotos que tiramos em uma daquelas cabines fotográficas. Encarava as duas adolescentes, a loira com a franja na testa fazendo caretas e a morena com longos cabelos lisos sorrindo. As duas estavam abraçadas e felizes. As fotos transbordavam uma sensação deliciosa, uma alegria momentânea e uma nostalgia de um momento mágico que foi a nossa adolescência. Era tudo tão bom e tão fácil.
O que eu não faria para viver eternamente presa nesse momento de minha vida com a minha irmã...
Deitei em sua cama e fiquei encarando o teto, agarrada nas fotos e me segurando para não chorar. Algo em mim acreditava que ela estava bem, mas algo em mim relutava e queria me fazer acreditar na perda. Eu só queria ter forças para continuar.
Era muito complicado.
Era doloroso demais.
Já era noite e eu aproveitei o melhor momento – em que todos estavam em reunião – para praticar meu plano de fuga. Seria rápido.
Não havia trocado de roupa, passei a tarde toda no quarto de . Só vesti um casaco qualquer por causa do frio que fazia. Em seguida fui para o depósito e peguei uma arma qualquer e meu facão.
Qualquer coisa eu diria que estava indo patrulhar, eles não tentariam me impedir.
Dito e feito, passei pelo portão rapidamente e ninguém me impediu. Foi até mais fácil do que eu estava esperando.
A floresta de noite era mais perigosa que durante o dia. Mortos vivos apareciam mais sob a luz do luar em busca de comida. A procura de jovens idiotas que não sabem que andar desarmado no escuro era morte na certa.
Felizmente, eu estava armada.
Floresta a dentro, eu evitei o máximo que eu fosse atacada. Mas mesmo assim eu procurava nos cantos resquícios ou qualquer coisa que me provasse que minha irmã estava viva.
Nada.
Apenas dentes vindo em minha direção.
Antes.
Uma das melhores partes de sair sem rumo com , eram os hotéis que sempre nos hospedávamos. Nem sempre eram hotéis chiques e diferentes, às vezes eram pocilgas, mas sempre fazíamos se tornar o melhor lugar do mundo.
Naquele momento, estávamos pulando na enorme cama e tentando nossa coreografia torta para Helpless de The Flirts, faltava uma terceira irmã nessa situação. Pulávamos na cama e cantávamos, soltando as nossas divas interiores. era quase uma Beyoncé em uma realidade alternativa talvez.
Podia ser a bebida no nosso organismo, ou a animação. Mas as risadas descontroladas que saiam de nossas bocas eram mais altas que o volume da música.
Em um momento estávamos pulando e em outro estávamos sentadas na cama contando os dólares conseguidos na noite.
- Eu consegui quinhentos dólares. – se abanou com as notas esverdeadas e riu.
- Eu consegui trezentos. – reclamei com uma careta e riu mais alto ainda.
- Não fique assim, irmãzinha, você sabe que eu sou melhor nas cartas que você. Só estava em um mal dia, quem sabe amanhã você me vença? – se gabou.
Eu e sempre fazíamos coisas inusitadas para arrancar um dinheiro a mais. Esse era o bom de enganar alguns bobos de vez em quando. Óbvio que não fazíamos coisas ilegais, quer dizer, depende do que se considera ilegal. Nessa noite, não estávamos planejando nada demais, mas no bar em que fomos, se interessou no jogo de cartas, indignada na forma péssima que os homens jogavam. Foi quase um sacrifício fazê-los deixar-nos jogar. Eles caíram na carinha de anjo de e ela arrancou até as calças deles – não nesse sentido, no sentido “tirou toda a grana deles”.
Sortuda.
Sou péssima nas cartas, ao contrário de minha irmã, para conseguir minhas trezentas pratas, tive que mostrar o que meu pai me ensinou de melhor: sinuca. O que posso dizer? Eu sou boa de taco ou no taco. Vocês entenderam.
Isso sim que era vida.
Meu celular apitava e piscava, mais uma ligação que eu teria que ignorar. Talvez fosse mais fácil desligar o celular.
- Talvez seja mais fácil desligar o celular. Ele não vai morrer se não conversar com você. – reclamou de mais uma interrupção de nossas férias.
- Nunca mais faço o trabalho de caridade de levar um esquisito para o baile. – Bufei.
- Por favor, você fez muito mais que só levar ele para o baile, irmãzinha.
Revirei os olhos.
- Desse jeito você me ofende. – Fingi e riu.
- Não foi ele que deixou os jogadores de futebol, populares e outros caras no chinelo? – Minha irmã continuou me provocando e debochando, sem parar de rir de minha pobre face.
- Cala a boca! – Taquei um travesseiro nela, que riu e tacou de volta para mim.
- Oh, , não podemos julgar o livro pela capa. Porque o seu marcador era com certeza maior que os outros. – me imitava, forçando uma voz e uns gemidinhos no meio da frase. Me joguei em cima de minha irmã, batendo nela com o travesseiro enquanto mandava-a se calar. E ela ria, gargalhava e eu não pude deixar de rir da minha desgraça junto a ela.
Era nossa vida. Nos divertíamos o máximo que podíamos, éramos livres. Muitos irmãos passam o final de semana jogando videogame, ou brigando em casa.
Muitos irmãos nem tem a sorte de ser tão próximos assim.
Mas com nós duas era diferente. Éramos loucas, vivíamos livres e aproveitávamos nossa juventude para viver cada dia. Nunca fizemos nada ilegal – eu acho –, mas também não nos arrependemos de nada.
Tínhamos muitas memórias e lembranças. E nenhum fim do mundo iria as apagar.
Nem mesmo a morte eminente.
Depois.
Matei todos os monstrengos que me atacaram. Matei todos sem nem der tempo de reação. Em pouco tempo todos estavam mortos – de novo – no chão e eu viva, intacta.
Continuei caminhando pela floresta, sussurrando o nome baixo de . Segui o caminho que provavelmente ela teria seguido, o oposto do letreiro. Senti um aroma diferente, com certeza havia água por perto. Caminhei atentamente usando minha lanterna para ver se achava algo.
E achei.
Lá estava, entre as pedras, a bandagem que estava no pulso de até o último momento que a vi.
Claramente foi ela quem a tirou. Impossível um morto vivo se preocupar em tirar a bandagem e usar de guardanapo.
Peguei o pano em minhas mãos, encarando-o para ver se havia qualquer resquício de sangue e então encarei o riacho. Ela poderia ter sido levada pela correnteza talvez? Ou aproveitou-o para fugir.
Encarei aquele riacho imaginando tudo que poderia ter se passado nele, mas pelo menos naquele momento eu tinha uma certeza: estava viva.
Minha irmã estava viva e eu a encontraria, nem que fosse a última coisa que eu fizesse.
Eu nunca a abandonaria.
Capítulo 7 - Paper Planes.
Romero.
Estava começando a ficar repetitivo às vezes em que eu acordava assustada ou em um lugar completamente desconhecido.
Neste caso, não sabia onde estava e me assustei ao encontrar um cara mexendo no meu pé esquerdo. O mesmo que eu tinha feito um grande sacrifício para curá-lo ontem. Ou hoje mais cedo? Horas ou dias atrás? Não fazia ideia. Levantei em um pulo e torci a boca para o fato de que ainda só vestia o top com tiras preto.
Entretanto, o que realmente me espantou foi notar minhas mãos presas, juntas, em uma corda fina. Meu pé direito também estava preso no ferro da cama e o garoto a minha frente levantou as mãos em sinal de rendição. Ele tinha a pele bronzeada, rosto longo, olhos claros, nariz grande e cabelo castanho claro bagunçado. Não parecia ser mal, mas já me disseram que eu era educada demais em relação às pessoas.
Contudo, eu estava num momento nojo de todos os homens que se aproximassem de mim em menos de dez metros.
- Meu nome é Jerry, está tudo bem, você está salva. Só estava vendo o seu curativo no pé. Você tem algumas manchas no corpo também, mas já estão verdes, daqui a pouco elas somem. E aproveitei para enfaixar novamente seu pulso.
Eu não queria saber, realmente. Eu queria minha irmã. Tentei soltar minhas mãos fazendo força e foi impossível, na tentativa de sair da cama, quase cai por causa da minha perna acorrentada – forma de dizer, já que era apenas uma corda. Mas uma corda te prendendo no território inimigo era demais pra mim.
Ele continuava a fazer um som com a boca para que eu diminuísse o barulho e me acalmasse como se estivesse adestrando um cachorro. A porta se abriu e outro cara de cabelo cacheado e preto, olhou em meus olhos e saiu correndo em um segundo. Fiz uma careta para a ação e lembrei que ainda lutava pela liberdade.
- Eu não vou fazer nada contra você, menina. Espera um momento que te desamarro. – e agora ele tentava se esquivar do travesseiro que eu batia múltiplas vezes em sua cabeça.
Patético.
Afirmei meu pensamento com a presença que se mostrou no batente da porta, rindo plenamente da cena. Era o homem que vi depois de tomar uma garrafa inteira de álcool desconhecido e amarelo sozinha. Provavelmente ele também estava lá quando banquei a sofredora e passei um tempo conversando comigo mesma, contando meu azar de um modo que estampava a própria Meredith Grey.
- Ela acabou de acordar, senhor. Apenas me bateu com o travesseiro e tentou fugir, como o esperado. – informou o garoto moreno de antes. Ele criou uma postura, quando o que parecia ser seu chefe entrou.
Efetivamente ele tinha um ar de autoridade. Dispensou os dois garotos do quarto e se sentou em uma cadeira pequena na frente da porta, impedindo que eu saísse ou que alguém entrasse.
Pela primeira vez notei onde estava.
Era um quarto com apenas uma maca antiga, feita de ferro e pintada de amarelo claro. A parede não tinha uma cor especifica, parecia verde escuro, ou havia ficado sujo com o passar do tempo.
Ao lado esquerdo da maca havia uma pequena janela com grade fechada, na frente alguns armários com frascos contendo um nome estranho na ficha de nomenclatura. Ao meu lado direito, nada. E na frente, a porta.
Com a luz, conseguia perceber melhor seus traços, e mesmo estando bêbada na noite passada, eu pude ver uma bela espécime masculina. Que obviamente eu não queria perto de mim.
Ele era mais alto do que eu, consideravelmente, usava uma camiseta marrom escura e calça tática bege. Nos pés uma botina preta. Me perguntei onde andaria minhas próprias botas. Ficaram no rio ou alguém pegou?
- Acabou a checagem? – ele perguntou, segurando uma maçã vermelha e uma faca de cabo branco que possuía alguns desenhos, parecido com um totem.
Decidi não responder, estava pisando em ovos ali.
- Ok... – ele falou com um sotaque britânico, levantou-se e começou a andar pela pequena sala – Sabe, estamos em uma comunidade aqui. Um Quartel General ou Base Militar, como preferir. Tenho muita coisa pra fazer o dia todo. Liderar grupos de caça lá fora, cuidar do meu jardim para se certificar que nenhuma doninha entrará sem ser convidada, cuidar do meu pessoal que busca nossos comes e bebes e manter a harmonia lá fora. E se você não abrir essa boquinha linda logo e soltar algumas palavras, vou pensar que você é muda ou somente mal-educada em não querer conversar com a pessoa que salvou a sua vida.
Ele havia me acusado indiretamente de ser inútil. Detesto isso.
- Você deve saber que se alguém é encontrado sozinho no mundo em que vivemos, ela tem capacidade o suficiente de continuar sozinha.
- Ah, o gato não comeu sua língua. Ainda bem. – ele sorriu.
Ignorei novamente.
- Sabe onde estamos garota? – perguntou.
- Em uma Base Militar?
- Correto. Mas quis dizer o quarto.
Eu neguei com a cabeça, sem ligar realmente para o ponto em que ele estava tentando tomar.
Sua presença na sala era forte demais e eu já não sabia se meu lado feminino guardado há muito tempo estava sentindo alguma tensão presa a sete chaves ou era só um tremor de medo da figura alta com voz densa e inglesa que não parava de falar. Havia uma pequena linha entre essas duas hipóteses que explicava o que eu estava sentindo agora.
Então ele voltou a falar sobre o local em que estávamos ou algo assim.
- É onde guardamos todo o material de socorros. O QG é gigantesco, logo, o armamento está de grande tamanho, conseguimos nos proteger de qualquer ataque em grande porte. Mas esta sala resume tudo o que possuímos de remédios e ataduras. O que é pouco, para um grupo com quase cem pessoas. Então tente ser menos ingrata ao me dizer que não precisava de ajuda quando te encontrei desmaiada e fora de si, conversando consigo mesma, porque havia tomado uma garrafa inteira de bebida barata em busca de alivio para a dor que sentiu ao se cicatrizar com o fogo. Não me leve a mal, precisa ter culhões para fazer isso, mas ignorar a ajuda que teve sem ao menos pedir não é uma boa atitude, princesa.
Respirei fundo. O conhecia há poucas horas e já tinha levado um sermão. Ele parecia ter pelo menos dez anos a mais que eu. Podia ser coisa de gente daquela idade. O atrevimento também.
- Tudo bem .– assenti sem vontade, forçando um sorriso com todos os meus vinte e alguns dentes. – Muito obrigada. E por favor, não me chame novamente de princesa. Você é muito velho pra mim. E inglês.
Estaria a bebida ainda funcionando nas minhas veias pra que essa falta de raciocínio em xingar a pessoa que me salvou e total desconhecido de basicamente: velho?
Ele riu genuinamente mostrando seus dentes brancos e tranquei a respiração. Logo essa sensação vai passar, ...
- Se está apta a me responder agora, pode me dizer o seu nome.
- Romero. – declarei – E o seu?
- ?
- Uau, que mundo pequeno. – ri da minha própria piada, mas engoli a simpatia ao ver sua feição entediada. – É a filha de Zeus ou algo assim. – esclareci o significado de meu nome.
- Em italiano é radiante. E você é certamente radiante, meu bem. - Fiquei sem respostas e ele sentou-se na pequena cadeira a minha frente.
Ele cortou finalmente um pedaço daquela maçã vermelha e mastigou por um tempo. Tais atitudes se tornavam grandes em uma sala pequena sem nada de interessante acontecendo. Quando engoliu, ele voltou a falar.
- Como havia dito, eu costumo vasculhar no meu jardim para ver se tem alguém que não deveria estar ali. E você era a doninha trapaceira que se perdeu entre as árvores. Diga-me, o que fazia lá? E por favor, lembre-se, você não tem outras opções a não ser me falar a verdade. Estou sem tempo para qualquer mentira hoje e paciência não é uma das minhas virtudes. – finalizou maliciosamente.
E quais são suas virtudes? Uau. Muito bem, , pense antes de falar.
Na noite passada não consegui enxergar, mas seus olhos eram azuis escuros. Mesmo com todo o porte de respeito que possuía, e a grande quantidade de músculos, seu olhar não era intimidante. Era chamativo. Quando algumas pessoas olham para você, o primeiro instinto é desviar. Naquela íris eu me senti perdida pela primeira vez em muito tempo. E me sentia minúscula a sua frente. De corpo e alma. Ele era grande, seu porte de soldado mostrava um passado rígido, tatuagens tribais se espalhavam pelo seu braço e na sobrancelha esquerda havia uma falha, talvez alguma cicatriz de guerra que deixou o rosto mais temeroso. Mas era como a cereja do bolo. Uma cicatriz que completava todo o charme. Ou qualquer coisa que meu cérebro tentava me alertar em uma grande luz vermelha piscando sobre o que ele causava em mim.
Pensei no que diria a seguir. O inglês perdido em Oklahoma precisava de uma história minha sem muita profundidade, apenas o que lhe faria seguir em frente sem mais perguntas sobre minha pessoa. Friedrich havia me contado que a Colônia era conhecida pela sua grande parte rural, e se eu abrisse a boca para um desconhecido espalhando a sua localização, poderia ser mais um pessoal que atacaria e colocaria em risco a vida de minha irmã. Se ela ainda estiver lá...
- Estávamos minha irmã e eu nas estradas. Passávamos um dia na cidade pegando tudo o que desse para sobreviver e os outros seis dias da semana na estrada. Saímos para caçar e fomos atacadas por uma horda de mortos vivos. Eu a perdi e continuei caminhando, indo atrás dela, o que acabou resultado em uma armadilha no meu calcanhar. Segui por um tempo mancando e encontrei a casinha de pescador e lá você me encontrou. Juro solenemente que foi somente isso. Desculpe a arrogância pela parte dos remédios, mas eu preciso voltar para a floresta para buscar minha irmã logo, ou será tarde demais.
- Sinto em lhe informar, , mas será impossível você sair desta base tão cedo.
Essa frase não soou tão amigável. Ele se levantou novamente e sua altura ocupou a sala. Caminhou até os meus pés e encolhi os ombros. Era estranho. Desde o dia do trailer eu não me reconhecia.
O homem mexeu em meu calcanhar, levantando com cuidado, e contou as bolinhas vermelhas em volta da pele. Eu poderia contar minha respiração e franzi de leve a testa ao sentir sua impressão tocando levemente minha pele ferida.
- Tem pelo menos dez furinhos aqui. Para sobreviver sozinho lá fora, costumamos a andar mais do que um destes mortos vivos, como você chama, e com este pé seria um pouco difícil retomar a trilha.
- Eu tenho certeza que consigo. Já agradeci pelos cuidados, mas daqui pra frente eu me viro. Estou fodida assim há muito tempo e tenho força o suficiente para continuar.
Ele gargalhou, guardando a faca no cinto da calça.
- A carinha de anjo sabe falar sujo. Gostei.
- Não perguntei do que você gosta, inglês fajuto. – reclamei, forçando minha perna para sair da corda.
Ele me deu espaço novamente.
- Estou começando a sentir um pouco de preconceito aqui. O que você tem contra ingleses? Não é a primeira vez que menciona. – ele sorriu sem seriedade alguma. - E você tem razão, maldade da minha parte. Mas te proponho um acordo, sou um cara bonzinho, apesar de inglês. Não costumo deixar pessoas intactas que passam por mim, jogadas na rua. O processo de recuperação é lento, contudo o QG está de portas abertas para um tipo de segunda chance, e quando menos percebemos os humilhados se tornam exaltados, fazendo parte daqui e ajudando nas tarefas como qualquer outra pessoa.
Deu alguns passos e ficou perto demais, olhando em meus olhos sem mostrar dúvida de que também não tinha vontade em desviar.
- A personalidade forte tá na minha frente. Se ficar algum tempo lá fora sozinha, talvez não sobreviva, e posso ver aqui, – ele disse fazendo carinho no meu pulso esquerdo, me deixando paralisada – que você já se meteu em briga, antes mesmo de cair na própria cilada.
Olhei para baixo, iniciando uma argumentação fraca. Vi que ele deixou a maçã em cima da cama.
- Eu teria que ficar aqui alguns dias, e em troca você me libertaria?
- Não estou te sequestrando, meu bem. – ele riu. – Não planejo a sua prisão em troca da liberdade do seu pai que roubou uma rosa do meu jardim ou algo do tipo. Vai notar que pode ir embora à hora que quiser, a necessidade de você estar aqui é real e para o seu próprio bem, e como a julgo inteligente, fará o que é certo. Mas a troca é outra história.
Ele estava próximo da minha face, minhas mãos estavam presas e uma perna também. Não sabia se tinha confiança da proximidade, mas a sua voz aveludada impactando nos meus ouvidos faziam com que o arrepio fosse de duas maneiras. Outra vez.
- Você viu algo naquela floresta, . Algo que inconsequentemente fez isso, – ele apontou para baixo – com a sua perna. E não vou lhe cobrar agora. Mas uma hora teremos que conversar sobre isso, e você me contará detalhe por detalhe. Entendeu?
Assenti, prestando atenção em cada palavra que saía da sua boca. Era como hipnose. E cada som era sussurrado particularmente para mim.
Se eu gostava de estar perdida em seus olhos... A sua boca era ainda demais.
Ele voltou a perguntar.
- Temos um acordo?
- Temos um acordo. – concordei. Não tendo certeza no que estava me enfiando.
- Ótimo. – exclamou me acordando do transe.
Ele alcançou a faca de cabo branco no cinto e me assustei por um segundo, fez uma expressão para que eu me acalmasse e cortou a corda das minhas mãos. Automaticamente fiz carinho no meu próprio pulso dormente. Em seguida, ele pegou a maçã no colchão e fez questão de abrir a minha palma e colocá-la ali.
Eu mordi aquela fruta vermelha sem arrependimentos. Sou uma garota simples, vejo comida, como. Ele sorriu e estendeu o braço direito para mim.
- Meu nome é . Slade. – e honestamente, até o nome do cara tinha personalidade.
Segurei a mão dele sem força alguma e balancei.
Ele soltou e se dirigiu para a corda no meu pé esquerdo.
Enquanto cortava, o garoto de antes com o cabelo cacheado, voltou a entrar no quarto. Slade fez uma careta pela invasão.
- Lionel está aqui, senhor, e ele está ferido. – disse o rapaz ofegante, provável que teria corrido para informar o chefinho do que estava acontecendo antes que soubesse por outra pessoa.
E o chefinho libertou meu pé finalmente. Voltei a comer a maçã prestando atenção nas pequenas informações da conversa entre os dois.
- Ferido quanto, Nico? – perguntou Slade.
- É grave. Ele foi saqueado pela Colônia. E o mesmo diz que foram dias até encontrar o caminho de volta, afinal, não o vimos desde a missão de fogo, senhor.
Interessante.
- Tudo bem, vamos dar um jeito nele, e você sabe pra onde o levaremos. O inimigo fez o inimigo leva. E Nico, esta é a . – Nico, o garoto, olhou para mim sem ao menos fazer questão de gravar o meu rosto e voltou à atenção para Slade. – Ela agora está incluída no QG. Quero que você chame Lacey pra mim, dê a ela estas mesmas informações sobre a e peça para que ela confirme seu espaço aqui dentro, dando algumas instruções.
Ao dizer isso, ele caminhou até onde estava Lionel, eu apostaria, dizendo que nos veríamos mais tarde. Me segurei para não responder um “não, obrigada”.
Nico ficou ali como um pinguim, paralisado e de postura por alguns segundos. Desta vez ele olhou para mim de verdade, notando as manchas no meu corpo, mão e perna.
- Vida de sobrevivente. – ele sorriu de lado como se entendesse as feridas. Eu não disse nada. Ele foi para a saída e agradeci ao segundo que estava sozinha outra vez.
Tudo bem, isto foi uma bomba e precisava colocar meus pensamentos outra vez no lugar.
Eu estava em um tipo de Base Militar, com aparentemente cem pessoas abrigadas. Ele era liderado por um chefe que tinha muita saúde e alguns cachorrinhos que faziam o que ele mandava. Sua personalidade ainda era duvidosa e eu não tinha certeza do que dizer sobre a floresta.
A hipótese de que eu estaria dentro daquela resistência branca passou em minha mente, mas não faria sentido, afinal, Slade poderia estar se referindo ao próprio quando quis saber o que eu vi lá fora. Em via das dúvidas, eu precisava sair logo daquele quarto para ver onde fui parar.
Portanto, decidi esperar Lacey. Se estava na casa dos outros, deveria seguir suas regras. Pelo menos até eu decidir em que campo minado eu estava e que tipo de pessoa cruzara o meu caminho.
Não demorou muito para que ela chegasse. Apostava que tinha minha idade, rosto oval, pele escura, sobrancelha e olhos chamativos. Me lembrava de uma garota que tive certa intimidade no passado, mas a diferença dela era que a menina encantava todos ao seu redor com a inocência que exalava. Lacey poderia ser comparada à própria Medusa, capaz de congelar uma pessoa com seu olhar.
E eu estava certa de julgar pela aparência assim que ela abriu a boca para falar.
- Tudo bem, novata, você já está sendo desagradável o bastante e ainda nem sei o seu nome. me tirou de uma missão para que eu viesse aqui e bancasse a sua babá. Vou resumir pra você.
- Vá em frente. – falei.
- Isto aqui é uma Base Militar em cima de um precipício, siga as regras, ou podemos simplesmente chutar sua bunda até cair de cabeça nas pedras lá em baixo, entendido?
- Tudo bem, Slade me contou que se eu estivesse no caminho certo, poderia até me considerar uma daqui. Quem sabe em alguns meses não estarei ameaçando novatos e os chutando do morro? – sorri.
Um pouco de provocação não faria mal a ninguém. Se eu já tinha a aprovação do chefe, não havia o que temer. Ela, porém, não gostou.
- Abaixe a bola, porque ainda não passa de um rato de laboratório aqui dentro.
Ela segurava uma arma pesada nas mãos e munição no coldre da calça. Acho que já estava irritada demais por não ter saído junto com outros, e ter que me aguentar realmente deve ser um saco.
Aquele armamento no corpo só deixava a pose de má fortalecida. Bom pra ela.
Não tinha certeza do que ela quis dizer com rato de laboratório. Mas se significava um animal indefeso, preso contra a vontade sem saber o que viria a seguir, ela estava correta com a afirmação.
- Temos comida, quartos, munição e pessoas. Tente não ser mordida e nem fazer escândalo pra sair. Estamos te fazendo um favor. E acima de tudo, não banque a heroína.
- Por que você fala como se tivesse um grupo de mortos vivos assim que eu passar da porta?
- Quando sua recuperação estiver completa, não pense que vai viver à custa dos outros.
Nem pensava em viver ali, entretanto, apenas respondi um ‘ok’.
- Vivemos em harmonia, não faça merda e tudo ficará bem. Vou tentar encontrar a equipe lá fora, então te deixarei sob o olhar de outra pessoa. E essas palavras tem muito significado, garota, não faça alguma merda que vá me prejudicar. Não sou eu quem vai preparar seu castigo.
Então ela era mais uma que esperava ganhar o dedão positivo do papi. E com papi, eu quis dizer Slade.
Me perguntava o que ele fazia para ganhar toda essa demonstração de afeto e reverência...
O sol me atingiu assim que passamos da porta branca.
A luz dele era uma das coisas que mais me alegrava. Tudo que vinha em sinônimo do calor me deixava positivamente presente. E fiquei surpresa pelo local não ter masmorras e escravos girando uma manivela gigante de madeira, abrindo uma fenda para alimentar um monstro. Pelo contrário, tudo parecia realmente como uma comunidade.
Nunca tinha visto uma BM, mesmo com o meu pai tendo servido o país por muitos anos. Claro que as coisas não se conectavam, até porque não tinha um dia do trabalho pra soldados em guerra, mas, era como eu imaginava e como os filmes me permitiam imaginar.
Como uma casa sem decoração. Paredes verde musgo claro, algumas pintadas com o tom de camuflagem. Havia uma grande área aberta no meio de tudo, com algumas mesas de piquenique. Neste espaço quadrado, parecido com uma claraboia enorme sem vidro, algumas pessoas percorriam como um comercial de margarina.
Sem violência. Apenas pessoas como eu tentando sobreviver em um local seguro.
Falando em segurança, os muros eram altos, e no fundo do meu cérebro eu tinha uma leve impressão de onde estávamos.
O clima era tão agradável... Fresco e iluminado.
O cercado era de um concreto marrom claro. As paredes de dentro me faziam ter apenas uma parte da vista do QG, mas parecia ser grande. E além da proteção, havia arame farpado no topo.
Percebi um grande portão, que se estendia com a metade em frestas e a outra parte o ferro impedia a passagem até mesmo de um passarinho, (ou doninhas) o lado que ficava preso ao chão.
Havia um carro grande e escuro, onde Lacey seguiu em sua direção antes de ter falado com um cara que eu não pude reconhecer. O portão foi aberto e o veículo saiu, com outros vindos do caminho à esquerda, e o chão nessa parte era de terra, diferente da área em eu estava presente, feita de piso branco e antiderrapante. Huh.
Naquele instante deduzi que Slade e seus companheiros estavam de saída. Mas não compreendi o propósito, já que ele deveria estar levando o cara ferido até a sala que eu estava antes.
Todavia...
O homem que trocou palavras com Lacey antes, veio em minha direção.
Então ele seria minha babá.
O cara parecia um urso, com o rosto redondo, toca cinza, barba e talvez dois metros de altura. Todo aquele tamanho me intimidaria, se ele não se aproximasse com um sorriso genuíno.
Ele me cumprimentou com educação e me dirigiu até a cozinha do estabelecimento.
Se ao menos as pessoas viessem com a verdade estampada na cara, eu saberia em quem confiar, e finalmente perguntaria onde é a porta de saída daquele lugar porque tinha um encontro marcado e demasiadamente atrasado com .
A cozinha era expansiva e branca, como manda o regulamento das cozinhas. Duas geladeiras grandes, muito mármore ao redor e um fogão de oito bocas. Lembrei-me da minha antiga escola, para completar faltavam as cozinheiras legais que me deixavam repetir o prato três vezes.
Eu estava sentada em uma mesa que estava ligada ao banco. Do meu lado tinha uma garota ruiva chamada Anna e no fogão estava Teddy, o cara grandão que me trouxe pra cá e se mostrou um verdadeiro aliado para o futuro. Quem sabe.
- Me chamo . – respondi à Anna que parecia verdadeiramente interessada na minha vida.
- Parece nome de heroína em revista de quadrinhos. Adorei. Muito prazer. – ela falou apertando minha mão.
Meu pulso já não doía mais, em todo caso, continuaria a usar aquela nova munhequeira, já que a anterior deveria estar em algum lugar no mar do polo sul essa hora.
Acabei descobrindo que Teddy era o designado pau pra toda obra do QG. Em vezes dava pinta de professor contra as criaturas através do muro, outras era o zelador, e desta vez eu via ao vivo seus dotes na culinária.
Cozinheiro e ainda contador de histórias. Era um cara que parecia um ursinho fofo, acima dos trinta anos e personalidade de nove.
- Eu costumava vender sorvete em um caminhãozinho. As crianças adoravam meus sabores. Caramelo, jujuba, morango, tamarindo, limão, groselha, chocolate e qualquer outra coisa que você possa imaginar. Mas eu era um cara um pouco solitário.
- Difícil de imaginar. Você é tão espontâneo – e esta frase nada espontânea veio de Anna. Ela não parecia forçada, mas era como se tentasse dizer a si mesma que tudo ao seu redor estava maravilhosamente bem. Meu rosto doía por ela do tanto que a menina sorria.
- Bem, – ele sorriu – continuando. Minha família acabou me abandonando. Minha namorada da época morava comigo e quando o vírus apareceu, aposto que ela não teve outra saída senão sair de casa logo. Eu estava vendendo quando percebi que algumas crianças se interessaram mais pela minha carne do que pelo sorvete. Traumatizante.
- Cheguei a tempo para a história do caminhão.
Uma menina de cabelos loiros quase brancos o interrompeu. Sua pele parecia um botão de rosa branco e o olho azul da cor do céu. Ela trazia consigo um daqueles carrinhos de ferro que colocava a comida em cima e a louça suja em baixo, usados em restaurantes ou hotéis. A parte da louça em baixo estava coberta com uma toalha.
- Como nunca ouvi esta história antes? – perguntou Anna ao meu lado.
- Você não está aqui há tanto tempo. – a loira sorriu.
- Eu ainda não cheguei à parte dramática, Baby. Não me interrompa.
Eu me juntei na conversa.
- Sim, por favor, continue com a história. Preciso de algo que prenda minha atenção, porque meu estômago não para de berrar comigo por causa do cheiro delicioso. O que você está cozinhando aí?
Ele sorriu com o elogio.
- Isto minha querida, se chama risoto. A refeição perfeita para boas-vindas. Já preparei toda a mistura, agora é só esperar o arroz cozinhar.
Teddy se sentou comigo e Anna, enquanto Baby preferiu ficar de pé ao lado do carrinho. Ela parecia estar envergonhada com a minha presença ali, afinal, eu era uma desconhecida no seu grupo de amizade.
- A comida é pra mim? – me surpreendi.
- Ora, é claro. Você acaba de chegar e precisa se sentir bem recepcionada, e para isso, aqui estou. E também, será um privilegio alguém comer deste manjar dos deuses que eu consigo preparar. E cá entre nós morena, você parece muito magrinha. O mundo lá fora é selvagem para uma pessoa ficar só.
- Tudo bem. Isso quase me fez ficar emocionada. Quase. Sou dura na queda. Mas realmente eu aprecio muito isso.
- Realmente é difícil se acostumar em um novo lugar – Baby sorriu para mim – fique tranquila, você vai se sentir em casa. Anna está aqui há pouco tempo também, mas ela já está mais solta do que em seu primeiro dia.
- É verdade, . Sei que tudo isso parece uma propaganda para você comprar um novo apartamento, mas esses três fazem isso aqui valer a pena. Mesmo na pior da circunstância...
Sua expressão ficou seria de novo. Assustada. Tentei relevar aquilo e pensei nas palavras dos três. Mesmo que a minha visita fosse curta, era bom encontrar pessoas agradáveis. E não, eu não estava totalmente aberta com aquilo. Uma mosca buzinava no meu ouvido que me deixaria a par de tudo e todos. Então se fosse para seguir as ordens de alguém ali que não iria de acordo com meus ideais, eu não faria.
Em outras palavras, não foi a confiança ao primeiro olhar que me fez chegar viva até o presente momento.
Anna deveria ter falado algo que eu deixei passar, mas Teddy fez uma careta estranha para ela, e Baby ralhou com a ruiva.
- Nós dois, Anna. Só tem duas pessoas aqui.
Não entendi. E tentei não deixar estampado a estranheza.
Havia mais alguém ali?
- Bem, sabem que agradeço por isso. – comentei.
Havia mais alguém ali.
Neste momento, o arroz começou a estalar no fogão. E foi por um breve flagrante, mas notei a cortina do carrinho se movimentar. Assim que fui perguntar, Teddy pareceu ter reparado minha reação e me impediu de eu falar algo, se levantando e exclamando ao informar que o arroz já estava pronto.
Passamos o resto da tarde comendo e contando histórias sobre o mundo afora. E Teddy se mostrou competente com o prometido manjar dos deuses. Era arroz com uma mistura de frango-frito, bacon, batata e milho. Gemi inconsequentemente assim que experimentei uma colherada. E como as tias legais da cozinha da escola, Teddy me deixou repetir três vezes.
Não sei se aquilo faria bem ao meu estomago que estava acostumado com água ou um grão de feijão dividido em três como fazia o Mickey Mouse, mas daquela refeição eu não me arrependeria, mesmo que a dor de barriga viesse em consequência.
Nisso a conversa foi concluída e eu não tinha descoberto a história do caminhão.
Para melhor acomodação, Baby me acompanhou até o seu quarto. Ela tinha conseguido um colchão extra e eu já tinha meu próprio canto.
Teddy e Anna continuaram na cozinha. E o grandão disse que deixaria um prato de comida guardado para ele mesmo mais tarde.
O quarto era pequeno e verde como todo o resto do QG. A cama de ferro antiga com uma cômoda e abajur ao lado. Na frente do abajur havia uma foto de Baby e um senhor descontraído, de cabelo branco e bigode. Deixei a foto ali e resolvi ajudá-la a trazer o colchão.
Tais gestos eram pequenos, mas meu coração se aquecia de felicidade.
Me deitei na cama olhando para o teto ensolarado e Baby me deixou sozinha.
Fiquei lá, relembrando tudo que tive que sacrificar com minha irmã. Eu entendia o apreço que ela teve tão rápido pela Colônia. Foram dias passando fome, fervendo água de privada em busca de hidratação, dormindo no ferro duro de antenas de rádio no risco de cair lá de cima, e ainda com medo do que viria de baixo.
Os pesadelos do início, a transição de perder a culpa em matar pessoas que andavam sem consciência por aí tentando nos matar, mas sem ter um pingo de racionalidade, fazendo-nos pensar na família que a pessoa já teve e no que ela mesma teve que sacrificar para fazer alguém importante viver. Até mesmo a si próprio.
Ter que matar a pessoa mais importante da sua vida...
Senti lágrimas escorrerem dos meus olhos e apertei o travesseiro com força. Era tão macio. Talvez nem estivesse mais acostumada com o luxo de ter uma cama para dormir.
E sem dúvidas o medo nunca sairia de mim, os pesadelos sempre estariam lá, com a imagem dos meus pais que me deixaram cedo demais. E com certeza não os culpo...
Apertei com força a plaqueta no meu cordão e respirei fundo.
Como já havia dito, o silêncio nos faz pensar em coisas como esta. E quando a tristeza fica em sua mente, é difícil de retirá-la. Nos faz entrar em uma crise existencial, nos perguntando o que ainda estamos fazendo ali, e se valeria a pena lutar sem saber se no final tudo ficaria bem.
O risco da incerteza teria que ser levado adiante. me dava aquela força.
Diferente dos meus pais, a última vez que a vi seus olhos estavam brilhantes e cheios de vida, lutando pela sobrevivência. Se era assim que eu precisava me lembrar dela para ter coragem, que a coragem esteja imposta na minha pessoa.
Me levantei e busquei analisar mais do QG.
Como tal pessoa observadora, eu tentei adquirir o máximo de informações daquele lugar. Pessoas de todas as idades, harmonia, famílias.
Banheiros, quartos separados. Mulheres estendendo roupa.
Aí percebi que mesmo no apocalipse 90% dos homens são incapazes de pendurar um objeto para secar. Mas relevando minha análise...
Depois de muitos passos acabei encontrando uma porta de madeira. Só isso, uma porta em um corredor vazio.
Eu não fazia ideia do que me atraiu tanto nela, mas no futuro eu iria realizar o quanto ela apareceu nos meus dias. Nas experiências mais traumáticas, para ser clara.
A abri e diretamente havia pelo menos cinquenta degraus que faziam uma quebra de direção para o chão.
Desci a fechando atrás de mim, vendo se haveria alguma testemunha para que depois eu negasse tudo, mas soubesse quem foi o X9 que aprontou para o meu lado.
No fim da escada, reparei uma adaga de bebidas do lado direito. Era um cômodo médio, sem pintura, completamente cinza. No lado esquerdo havia uma cela, com uma cama parecida com a de Baby, mas com o lençol desarrumado. Pensei na hipótese de ser um prisioneiro, contudo a cela estava aberta.
Do lado uma mesa com ferramentas estranhas. Não me importei em verificá-las, mas outra saída na parede à frente das escadas me chamou a atenção.
Quando passei por aquele acesso, me surpreendi com a vista. E ao mesmo tempo confirmei todas as minhas teorias.
Era o morro, aquele precipício que eu havia avistado quando estava na casinha de madeira. E com muito esforço eu conseguia vê-la também.
Cheguei o mais próximo que consegui da beira do precipício. Não para me jogar. Mas o pôr do sol estava ali. Tão próximo. Tão belo. Fechei os olhos sentindo aquele cheiro de água salgada com os raios se impregnando na minha pele.
No meio daquele mar de sentimentos, me assustei ao ouvir uma voz fina atrás de mim.
- Você não vai querer fazer isso.
Ao me virar, me surpreendi com um garotinho extremamente fofo.
Ele tinha as bochechas proeminentes e rosadas. O cabelo preto e olhos castanhos orientais quase fechados em causa do sol. Nas mãos, um prato de risoto. O mesmo que eu tinha comido mais cedo.
Na sua cabeça havia um boné de duas cores. Prazer em conhecê-lo Short Round.
Então tinha mesmo uma terceira pessoa que ajudava Anna naquela cozinha. E na minha aposta ele estava dentro do compartimento de louça suja do carrinho que Baby trouxe, esperando a estranha – eu – sair dali para que ele pudesse devorar o almoço de Teddy.
- Quantos anos você tem? – perguntei o vendo engolir a comida.
- Nove. – respondeu com a vozinha aguda.
- Era você na cozinha não era? Embaixo do lençol. – assumi.
Ele apenas encolheu os ombros como se fosse culpado. Eu sorri.
- Bem, você é novo, mas antes disso tudo havia um filme. E neste filme um pensador contemporâneo que na vida real se mostrou um babaca anos depois, disse uma frase muito inteligente. – falei apenas para continuar a conversa. O garoto parecia inofensivo e meu ligamento com crianças vinha desde o primeiro dia que dei aula, não havia o porquê de afastá-lo.
- Que frase? Eu só queria que você saísse de perto daí. Se dou cinco passos a mais da onde estou já fico tonto.
Eu ri com seu comentário e fui à sua direção. Se isso o acalmaria, tudo bem.
- Sabe aquele sentimento que você tem quando está em um lugar alto e deseja saltar? Eu não tenho isso. E parece que você também não tem. – me agachei a sua frente, ficando na altura de seus olhos. – Esta era a frase. – completei.
Ele fez uma cara pensativa.
- É realmente uma boa frase.
Eu concordei assentindo.
- Acho que nós deveríamos entrar agora, aposto que Slade não gostaria de saber que estávamos os dois aqui fora. – ele concordou, colocando mais uma colher cheia na boca. – E no caminho você pode me dizer por que estava escondido naquele carrinho.
Entramos e fechei a porta novamente.
Talvez não estivesse de fato presa. Mas precisaria de culhões para resistir à aterrissagem.
Quem sabe amanhã....
Capítulo 8 - Psycho Killer.
Romero.
Aquela era uma daquelas manhãs em que se fosse antes do fim do mundo, eu estaria recebendo um sermão do diretor sobre ter fugido da aula ou ter chegado atrasada várias vezes. Dessa vez, não havia um diretor, mas quase isso. estava me dando um sermão sobre ter saído para patrulhar na noite passada sem sua permissão.
E igualmente como antigamente, eu não estava prestando atenção e estava perdendo seu tempo, porque eu voltaria a fugir e voltaria a procurar de manhã, de tarde ou de noite, quando eu quisesse.
Mas o homem tentava seu melhor para me repreender. E eu ignorava todas as tentativas.
Eu prestava mais atenção no detalhe do rosto dele, a forma como ele abotoa sua camisa. O jeito que penteia o cabelo para trás e como ele coçava a barba ou coçava as têmporas a cada momento. Até prestei mais atenção no sotaque forte que se sobressaía mais quando estava irritado.
estava limpo, de barba ajeitada e cabelo penteado. Parecia até mais jovem quando se arrumava todo. Uma boa visão para meus olhos cansados e desinteressados.
Minha atenção se esvairia para os móveis de seu escritório, todos de madeira maciça e escura. Para os quadros e estantes de livros que duvido que ele tenha lido a metade. As fotografias que provavelmente eram de um dono antigo, mas poucos retratos eram da família de comercial de margarina de .
Tudo que falava entrava por um ouvido saia pelo outro, eu só conseguia prender minha atenção as vozes em minha cabeça.
Encontre , salve-a e a proteja, elas diziam.
A noite passada havia sido um primeiro passo e a primeira vitória. A certeza era que estava viva e havia atravessado o riacho. Agora meu próximo passo era também atravessar o riacho e encontrá-la, antes que fosse tarde demais.
Eu confiava no senso de de sobrevivência, sabia que ela sobreviveria sozinha enquanto tivesse o que comer e com o que lutar, mas meu medo era maior que esse. Pensava no caso de minha irmã esbarrar em um grupo perigoso e eles a capturar e usá-la de refém ou algo do tipo. Nos poucos dias que eu estava aqui já havia percebido que a Colônia não era tão adorada pelos próximos. Era arriscado demais pensar em minha irmã sozinha na floresta e arrepios preenchiam meu corpo cada vez que a imaginava agoniando enquanto implora pela sua vida.
Não podia deixar isso acontecer.
Um dos pontos do sermão de era se assegurar que eu estava saudável, porque aparentemente eu não estava.
O homem se queixou sobre minha aparência cansada, minha falta de fome e minhas atitudes meio apáticas a todos, agindo como se eu fosse diferente de todos ou se não me sentisse “em casa”.
Concordava com ele em certo ponto. Dormir ainda não havia se tornado algo essencial em meus dias. Ficava revirando na cama ou bolando planos infinitos para resgatar minha irmã de onde ela estivesse presa. Mas eu estava tentando meu melhor para parecer viva. Um passo de cada vez.
Não sentia vontade de comer, a comida nem era ruim, Barbie era uma das melhores cozinheiras que eu havia conhecido – depois de minha mãe, claro. Mas meu estômago não aceitava nada e com o tempo a fome havia se diminuindo.
Eu estava trocando e abandonando meus apetites para ir atrás de , para encontrá-la. Até lá, fome, sono, diversão e socializações eram o menos importante para mim.
- Você entendeu, ?
- Sim, senhor.
- Ótimo, espero que isso não se repita mais. – Ele caiu? Caiu, feito um patinho. E então saiu da sala batendo os pés.
Revirei os olhos, esperei a porta da casa bater e então eu me levantei. tinha toda essa marra, mas ele não me enganava. Era mais molenga que tudo. Óbvio que pelo que já ouvi falar dele, ele já foi muito pior. Se matar mortos vivos fosse um esporte, ele com certeza seria recordista. E saber do passado de me agradava, afinal, pessoas loucas eram tão mais interessantes.
Fui até sua escrivaninha e abri as gavetas. Eu não sabia ao certo o que eu estava procurando, talvez um mapa ou uma bússola, feijões mágicos ou uma fada madrinha. Qualquer coisa que pudesse me guiar na floresta para eu encontrar mais uma pista de minha irmã.
Se eu tivesse certa, – e eu esperava que sim – havia deixado pistas para mim nos caminhos da floresta. Meio que fossem coisas meio indiretas, só eu sacaria quando as encontrassem. Para outros seriam apenas coisas jogadas no meio da floresta.
As gavetas estavam vazias, algumas haviam uns papeis amassados ou documentos que provavelmente estavam ali bem antes do mundo acabar. As outras gavetas estavam trancadas, provavelmente as que eram realmente de e que estavam guardando seus segredos.
Eu precisava de um jeito para abrir essas gavetas o mais rápido possível.
Uma outra gaveta estava destrancada, abri devagar com receio de algo saltar em minha cara, mas não havia nada. Quer dizer, nada que eu não conhecia.
A pistola de estava guardada lá e isso me trouxe um estranhamento. Eu lembrava de Judas ter pego as nossas armas quando entramos na Colônia, mas havia dito que elas estavam guardadas no depósito. Mas não estavam.
A arma de estava guardada com ele, mas por quê?
Para garantir que ninguém roubasse? Ou para garantir que ninguém usasse? Talvez fosse uma forma para que eu não a encontrasse e não fugisse? Se eu não encontrasse tal arma, eu me manteria desarmada e pela arma ser de minha irmã eu poderia pegá-la e ir embora.
Não haviam bens materiais que me prendessem na Colônia que não fossem mais importantes que essa arma.
Peguei a pistola em minha mão, verifiquei sua câmara e estava cheio. Franzi a sobrancelha. Também peguei o coldre e a coloquei lá, escondi dentro de meu casaco.
Eu estava desobedecendo uma ordem de sendo uma das únicas realmente armadas e imparável.
Talvez eu estivesse livre agora.
Eu gostaria de estar.
***
Dei algumas voltas pela Colônia, pisando com cuidando e sendo bastante cautelosa em meus passos. Ainda era um lugar arriscado para mim, um lugar não confiável e nem confortável.
Talvez fosse minha cabeça que me impedia de confiar e acreditar que era seguro, mas até ouvir as crianças gritando e correndo pelo pátio fazia com que minha cabeça doesse. Eu não me sentia feliz, eu me sentia pesada em uma nuvem negra.
O fim do mundo trouxe o pior de mim, me deu algo que nunca existiu. Matar mortos vivos, lutar pela minha vida dia e noite, proteger os que eu amo, perder os que eu amo. Era um fardo que eu carregava em minhas costas e o peso estragou minha postura.
Para sobreviver, foi necessário me desapegar a todos os sentimentos básicos que a vida nos ensinava. Me obrigou a criar uma casca dura e a cada dia mais ela se enrijece.
Eu ainda gostava das pessoas, me importava com elas e no momento que as visse como parte de mim, as protegeria com a minha vida. Mas enquanto isso não acontecia, eu as usava. As usava para descobrir e conseguir as coisas que eu precisava para sobreviver, para proteger quem eu amava de verdade.
Mas era difícil, era difícil quando todos que eu amava morriam em minha volta e eu não conseguia fazer nada para salvá-los.
Minha mãe, meu pai e agora a . Eu não cometeria esse erro mais uma vez.
Entrei na casa de Barbie após receber seu convite, ignorando a decoração retirada de um desenho dos anos 50 e fui recebida com um grande cumprimento da mais velha.
- Você veio! – Ela deu uns pulinhos e deixou a pequena Jolie perto de seus brinquedinhos e correu para seu forno. – Eu estou fazendo umas fornadas de brownies, cookies e outros docinhos!
Meu estômago se embrulhou e engoli seco a falta de apetite com essas coisas que antigamente me fariam borbulhar de alegria. Nem o chocolate me aquece mais.
- Eu preciso de uma ajuda. – Fui direta.
- O que? – Ela franziu as sobrancelhas.
- Você tem um mapa da floresta ou algo do tipo?
Sua expressão se suavizou.
- Claro que tenho!
Respirei aliviada por a mais velha não ter perguntado o motivo da minha súbita curiosidade.
Barbie voltou com o papel amarelado e um pouco desgastado, me entregando. O abri na mesa de centro, dando uma boa checada na floresta e o riacho, lendo os caminhos que possivelmente tenha seguido após ter passado do riacho.
Nesse mapa haviam alguns pontos marcados, que me confundiam de primeira vista.
- O que são esses pontos? – Apontei nos lugares marcados e Barbie parou para olhá-los, tentando lembrar ou descobrir onde estavam.
- Ah, bom. Esse ponto aqui é onde fica o grupo do Norte, aquele que nos atacou recentemente. – Apontou para o ponto ao lado Norte do mapa. Faz sentido. , dur. – Esse ponto aqui é o QG, não vamos muito para esse lado... É... perigoso. – Apontou para o lado que ficava depois do riacho.
Um arrepio em minha nuca e meu estômago se embrulhou de novo. Será que teria trombado com o QG? E se eles fossem tão perigosos como Barbie disse?
Droga , por que teve que ser tão heroína?
- Posso ficar com ele? – Perguntei e a mulher assentiu. Peguei o mapa e o dobrei até ficar no tamanho desejado, então o coloquei em meu casaco, junto com a pistola de .
Eu já tinha uma possível trilha para seguir, eu só precisava esperar mais um tempo e pedir autorização para o maioral. Não que mudasse alguma coisa, eu iria de qualquer forma, só estava evitado mais sermões.
Me virei para me despedir de Barbie e a vi novamente com a bebê em seu colo, balançando e os bracinhos gordinhos da menina apontados para mim, como se ela quisesse a mim.
- Quer segurar ela? – Barbie perguntou.
Assenti um pouco hesitante. Eu não era como que era acostumada com crianças, tinha medo de derrubá-la ou machucá-la.
Não havia um grupo específico com que eu me dava bem, provavelmente com os animais. diria que eu me dava bem com os homens, mas na verdade ela não sabia o quão mentira era. Eu não me dava bem nem comigo mesma, imagina com outra pessoa. Principalmente uma pessoinha tão pequena e frágil que precisava de alguém responsável protegendo-a.
Mas Jolie era especial.
Ela tinha os olhos claros do pai e do irmão. Aqueles olhos azuis devem ser uma herança da família, ou uma maldição. Não conseguia ficar muito perto do sem me focar nos olhos dele e ter leve comichões em minha barriga e mais embaixo.
Seus fios de cabelo eram loiros e ela usava um pequeno lacinho na cabeça, ficando extremamente fofa. Sua pele também era branca, mas não tão pálida como o irmão. Suas bochechas tinham um tom rosado.
A bebê não pesava tanto. Seus olhos fitavam os meus e ela tinha um sorriso tão inocente nos lábios.
Eu a encarei em meus braços e passei meu dedo pelo pequeno machucado em seu rosto que já estava cicatrizando, ela não reagiu mal. Ficou quieta como se não fosse nada.
- Você é bem durona, hein? – sussurrei e ela riu.
A última vez que segurei um bebê foi há quase vinte e poucos anos atrás, com . E eu me senti da mesma forma que me senti quando segurei Jolie. Um instinto de proteção e cuidado.
Era uma nova esperança que corria em minhas veias e brilhava nos olhos azulados da pequena Jolie.
estava do lado de trás da Colônia cortando lenha freneticamente e a forma com que ele gemia furiosamente. Ele parecia bastante ocupado e despejando todas suas frustações nos pedaços de madeira.
Corri meus olhos por todo o terreno cheio de mortos vivos jogados em um monte prontos para serem queimados quando terminasse o trabalho pesado de cortar as lenhas.
Fui me aproximando aos poucos, sem que ele me notasse. Seus movimentos eram rápidos, cortava a lenha em duas e jogava no chão. O machado que ele segurava podia até ser pesado, mas nada que um pouco de força a mais não resolvesse.
Isso explicaria o suor por todo o rosto, a camisa novamente molhada e uns míseros fios de cabelo caindo no rosto.
Percebi me encarar de canto do olho e um sorriso brotou no canto de seus lábios, me senti levemente arrepiada e ele claramente percebeu, porque riu em seguida.
- Eu segurei a Jolie por alguns minutos hoje... – tentei começar um diálogo da forma menos constrangida do mundo – ela riu para mim.
- Então ela deve gostar de você.
- Espero que sim.
parou de cortar a lenha e se virou para mim. Agora com um contato visual presente, mais arrepios. A forma real com que ele me examinava dos pés à cabeça me deixavam curiosa. Como será que ele me via? Não que eu me importasse, claro.
Veja, eu conheci muitos homens na minha vida e digamos que poucos deles conseguiram me interessar o bastante. Antigamente, eu tinha um desejo incontrolável em saber o que as pessoas pensavam de mim – principalmente os homens – e como me viam. Mas nos dias de hoje não era algo que me importava realmente.
Eu não me sentia excitada ou aquecida com seu olhar penetrante, eu me sentia da mesma forma que sempre. Eu havia aberto mão da minha libido quando me foquei em salvar minha vida. Mais velha que eu havia ficando, menos vontade de me aproximar de alguém era essencial. Com o tempo eu havia descoberto mais em mim sozinha.
Hoje em dia, tudo se resumia a confiança, certo? Então como eu seria capaz de confiar em uma pessoa só por causa da forma que ela me fazia sentir. Eu nunca trabalhei bem com confiança e com entrega, ninguém nunca me teve por inteiro e não seria agora que isso começaria. Não seria no fim do mundo que me faria abrir meu coração.
Eu tinha minha forma de viver e todas pessoas haviam se tornado descartáveis para mim se não fossem importantes. Não duvidem, passei por um monte de pessoas até chegar aqui e fiz coisas que até uma eu antiga duvidaria.
Nada mais era como antes.
Mas tinha algo. Talvez fosse a forma com que ele tentava me conquistar e fazer com que eu me sinta bem perto de sua presença. E dava certo, de verdade. era diferente, tinha algo que me deixava confortável. Era tão fodido quanto eu, mas mesmo assim, eu precisava ir com um passo de cada vez.
Primeiro eu precisava sair do fundo do poço em que os duros anos apocalípticos haviam me jogado. Eu tinha que me reconhecer antes de conhecer outra pessoa.
- Ela gosta sim. Todos gostam, aliás. Você tem esse tipo.
Tipo?
- Tipo?
- Mesmo com essa sua personalidade, você encanta as pessoas facilmente, por isso todos daqui gostam de você.
Uau.
Uma informação nova, eu era querida. Não era meu objetivo e muito menos uma conquista. Eu não conseguia me ver cuidando da Colônia, usando vestidos florais ala anos 1950 e sendo uma nova mulher. Eu assumo que talvez tenha adquirido um prazer maior pela adrenalina e ficar lutando pela minha sobrevivência do lado de fora.
Basicamente uma selvagem.
Mas mesmo assim, não queria ser um estorvo na vida dos outros e muito menos ser ingrata aos cuidados que estavam me proporcionando. Eu sabia qual era meu lugar e ainda mantinha meu objetivo.
A Colônia não era meu lar, era meu teto. Se tornaria meu lar se eu estivesse com minha família aqui. Eles não são minha família, eles são sobreviventes que passam pela merda mesma que eu passei. Mas eles não são iguais a mim e não sabem metade do que eu passei. Minha família estava lá fora, perdida na floresta. Eles eram só... pessoas normais.
Ele estava sorrindo para mim e eu mantive minha cara séria, com minha casca dura sem ter o mínimo arranhão. Mas mesmo assim ele não parecia se importar.
acima de tudo sabia que eu era uma selvagem e que não poderia me domar nem se quisesse. Sabia que cedo ou tarde eu iria embora se encontrasse ou encontrasse algo melhor.
A verdade era que eu não queria ficar parada na Colônia, eu queria continuar seguindo minha vida na estrada com . Toda essa monotonia me irritava.
Meu maior medo era perder meu instinto de sobrevivente e me tornar inútil como a maioria das pessoas da Colônia que no primeiro ataque morreriam.
Eu não fazia e nem farei parte disso.
- Eu vou atrás de essa noite. – Trouxe de volta à tona meu objetivo. Me chamem de insensível, mas a parte boa de se aproximar do líder era conseguir a liberdade para ir e voltar. Isso me interessava mais que partes intimas.
- ... – Respirou fundo.
- Não estou pedindo sua permissão ou algo do tipo. – ri – Eu vou. Só custa a você ficar ou sair do meu caminho. – dei os ombros e ele assentiu.
Eu entendi o porquê do ter guardado a arma em sua sala. Ele guardou porque como eu disse, ele sabia que cedo ou tarde eu iria embora e ele já estava se preparando para me deixar livre.
Ele sabia que não me pararia a não ser que me matasse para isso.
Ficar no meu caminho não era seguro, porque eu era capaz de qualquer coisa para proteger quem eu amo.
Eu havia me tornado uma sociopata e psicopata, perigosa e instável.
Romero, nem você mesma mais se reconhecia.
se virou para voltar a cortar a lenha para queimar os mortos vivos, mas o som do portão sendo aberto chamou nossas atenções e corremos para a frente ver o que estava acontecendo.
Um homem, grande, estilo militar, bastante assustador entrou pelo portão com uma arma enorme e vários outros seguindo, mas nenhum era tão grande como ele no quesito músculos,
Se a estivesse aqui com certeza ela ficaria excitada com essa entrada triunfal. Ou morrendo de medo, provavelmente.
O homem estava rindo enquanto corria os olhos claramente pela Colônia, muitos moradores saíram de suas casas e outros estavam desesperadamente assustados.
estava pálido demais para o meu gosto.
- Ora, ora... Parece que vocês estão na merda, hein. - Esse sotaque... caralho.
Ele ria, mas eu não entendia o que era tão engraçado. Será que ele ria de nós? Ria do qual fodidos estávamos após esse ataque? E quem diabos era ele?
continuava imobilizado evitando olhar para aquele homem, mas eu enxergava a raiva em seus olhos.
- Nico, leve Lionel para a enfermaria. – Seu sotaque ficou mais claro e a forma com que ele ordenou um deles e foi prontamente obedecido me fez querer socar o .
Que bosta, a comunidade era dele e ele deixava esse estranho comandar? Eu não sabia o que exatamente estava acontecendo.
- A enfermaria está cheia. – disse quase inaudível, o estranho apenas encarou-o com um sorriso entre os dentes.
- Pode repetir? – Ele deu uns segundos. – Não? Okay.
Como um líder perderia tanto as bolas na presença de outro macho alfa? Ele encarava de forma estranha, cheia de deboche e sarro. Aposto que eles tinham uma história...
parecia estar completamente nervoso com isso, mas mesmo assim o tal de Nico levou o tal de Lionel para a enfermaria e eu nem reparei no machucado dele. Só podia ser algo idiota o suficiente.
O desconhecido abriu mais o portão, dando uma ampla visão dos carros, e dentro, mais soldados dele, todos com armas pesadas, mas abaixadas. Aposto que ele queria assustar todos, ou deixar claro que, se abrirmos a boca, morreremos.
Entretanto, eu tinha uma boca grande também, e ele não poderia me calar. Antes de fazer qualquer coisa, ele começou a falar:
- Na vida real trabalhamos, trabalhamos e trabalhamos para ter algo em troca. Na vida real somos feitos de escravos por pessoas mais poderosas que nós, aquelas que atingem um nível no qual não conseguimos, porque provavelmente estamos ocupados demais trabalhando para estas mesmas pessoas. Por que não somente o matamos e ficamos com tudo que conseguiram? É o método mais simples. Não fazemos isso porque há regras de convivência, . Isso que nos mantém civilizados. Não estamos mais na vida real, mas ainda tento uma anarquia aqui. Nosso passado foi uma merda e por consideração a ele, nos afastamos, tentando manter a boa convivência, que não é uma das melhores, mas eu tento. Com outras palavras, temos um acordo, .
Ele caminhava entre nós, em passos pequenos e estava confortável demais no nosso círculo pessoal. Parou diretamente à frente do Xerife e o perguntou:
- O que acontece quando quebramos um acordo na vida real, ? Somos despejados, demitidos, humilhados, ficamos no nosso canto pensando nos erros que cometemos e se sentimos culpados, porque se o acordo foi quebrado por sua culpa, a consciência te bate. Graças a Deus não temos essa famosa consciência no Apocalipse. Será que temos? Você parece não ter, já que violou a porra do nosso acordo, . É um lindo dia, encontro um brotinho na floresta, estou proseando nos meus aposentos e recebo a notícia de que um dos meus soldados está ferido.
A forma como o homem disse brotinho me arrepiou, me fazendo sentir meu estômago gritar e uma onda de ânsia se instalar em mim. E se ele tivesse encontrado ? E se ela fosse o brotinho? Que merda esse desgraçado teria feito com minha irmã?
- O bastardo perdeu o braço, – ele riu – poderia ser uma perna, ao menos o coitado poderia bater uma punheta em paz. Mas o braço ? Ele poderia ter sido um grande violinista, ou pianista, mas você não deixou. Você roubou a porcaria do braço dele, e eu aqui pensando que estávamos claro nessas nossas condições. Eu lhe dava proteção e você me dava suplemento, a comida que aparentemente foi plantada pelo próprio Jesus, já que todos do condado estão atrás dela. E claro, quem roubou o braço do meu amigo, ? – perguntou olhando para todos ao redor, sem esperar uma resposta de verdade. - Nesta Colônia não faço ideia, mas segundo ele, está dentro dessa Colônia. Eu não sei se seus subordinados não seguem suas regras de maneira correta, e pelo jeito não, já que não sou o primeiro a cobrar algo aqui hoje – ele riu novamente – mas os meus seguem . O caso é que você trabalhou, trabalhou, e acabou atirando em sua própria consciência, porque quebrou o nosso acordo. E eu tenho um nome a zelar. Lembrando que ainda considero a nossa amizade, não se preocupe.
Havia algo sobre a voz dele que me fazia pensar que se desse um passo em falso poderia ser assassinada por qualquer um daqueles caras com armas pesadas em seus cangotes. Ele era o diretor do circo e todos estavam parados para prestar atenção em suas palavras. O problema é que aquele caso era tão serio, era uma questão de vida ou morte, que realmente, o que ele dissesse poderia dar um novo sentido para o que teríamos a seguir.
E aos poucos eu poderia entender o porquê de não estar o atacando. Eles tinham um trato. Comida por proteção. E se simplesmente dissesse um não para as piadinhas sádicas de hoje, a proteção estaria perdida para sempre. E isso não é a atitude de um líder que deve pensar de uma forma quantitativa, num bem de todos.
O caso é, se ele nos devia proteção, por que diabos nós fomos atacados de uma maneira tão selvagem há poucos dias? Onde estava esse cara e sua turma pra nos ajudar? Que inferno. Provavelmente era por isso que estava puto, porém, o cara tinha mais autoridade por ter posse de armas de fogo. Aqui poderíamos lutar indo direto para a enfermaria, enquanto eles atiravam para matar. Não tinha muito que fazer. Sem mais decisões ou planos de fuga.
Ele cochichou algo com os soldados que prepararam as armas. Os moradores estavam aterrorizados com esse homem que irei de chamar de doido, completamente maluco. Outros dois dos soldados foram para a enfermaria, provavelmente para serem babás de Lionel.
E o maluco voltou a falar...
- Na vida real, sabe aquela em que todos aqui costumávamos viver, onde era patético e reclamávamos todo dia e não tínhamos ideia da merda que ia virar o mundo... Também havia os selvagens. Países que menosprezávamos, com leis mais rígidas. Mas vemos que lá o pessoal era inteligente. Se você fez uma vez, seria punido e nunca faria de novo. Foi pego fornicando? Levava pedrada. – ele foi se aproximando de – Traficou? Perdeu a cabeça. – Ficou na frente de e pegou o machado de sua mão. – Roubou? Perde o braço.
- ... – rosnou o que acreditei ser o nome dele.
O fato é que esse homem, ele era completamente psicopata. Ou psicótico, já que possuía emoções o suficiente para continuar sorrindo mesmo quando não havia motivos para tal feito.
Então, subitamente, ele pegou o garoto do lado do – que era um dos adolescentes imaturos, talvez vinte anos, mas completamente inofensivo – e o empurrou para a casa mais próxima, rápido, com atrás gritando e tentando impedir. Impedir do que? O que estava acontecendo? Odiava esse quarto escuro sem informações e prévias.
entrou na casa como um furacão, eu e fomos atrás. Ele levou o garoto até a cozinha e tirou a toalha mesa com o machado na mão e a outra segurando a nuca do garoto suando de medo. Encostou a cabeça dele na mesa e fincou o machado na madeira um centímetro ao lado. Então colocou o braço na mesa com força porque o menino queria fugir.
- ... – iniciou uma argumentação, indo pra cima de literalmente, que pelo tamanho conseguiu ignorar o Xerife. Ele estava tentando tirar o garoto de lá.
Eu apenas fiquei assistindo. Eu não queria me intrometer e perder uma parte do meu corpo, mas como um total maluco eu acreditava que ele pararia logo quando percebesse que ninguém estava aplaudindo o show.
Mas eu estava errada.
Ele bateu várias vezes a lâmina do martelo no cotovelo do menino. Sangue espirrou pela cozinha branca em todas as paredes. O garoto gritou. Chorou. Sua voz vinha do fundo da garganta e doeu até em minha alma. tentava impedir e já era praticamente tarde demais.
Meu coração estava acelerado e perdi completamente o ar.
Aquele líquido vermelho se espalhava por toda a cozinha e minhas roupas, senti Judas me trazendo para trás e me soltei dele com raiva.
ELE ARRANCOU O BRAÇO DE UM MENINO.
ELE. ARRANCOU. O. BRAÇO. DE. UM. MENINO!
Eu estava mais chocada que achei que ficaria e o moleque esperneava demais, chorava, implorava pela sua vida com medo que esse psicopata arrancasse outra parte do corpo dele.
- Shh, fica quietinho. – ordenou, enquanto acendia a boca do fogão. Esperou o fogo aparecer e então enfiou o braço do garoto ali, para cicatrizar. O menino berrou de novo. – Calma, vai ficar tudo bem. É só um braço. – O tom de voz do cara era completamente calmo. Isso não foi nada para ele. Nada!
Felizmente chegou mais cedo dessa vez e simplesmente empurrou para o lado que riu – talvez da sua repentina coragem – e envolveu o braço cortado do menino com a toalha de mesa. Meu coração estava apertado ao imaginar a dor que o garoto estava sentindo naquele momento.
Eu conseguia ouvir o choro descontrolado de pessoas fora da casa, inclusive do menino. caminhou para fora passando por mim tentando ajudar o garoto a ficar de pé, e o mandou direto com Judas para a enfermaria.
Eu estava um pouco chocada para pode distinguir tudo que passou sobre os meus olhos nos últimos dez minutos. Mas ele não iria me impressionar, era apenas um louco que queria atenção e eu conheci muitos homens assim em minha vida. Ele não me impressionava. Ele me passava a impressão de nojo, mas medo não.
Aquilo tudo não me amedrontava, eu tinha bolas guardadas de meu pai, o homem me ensinou a ser dura e forte em situações assim. De tudo que eu já havia visto desde que toda essa merda começou, e cenas brutais... para mim era um garotinho desesperado por atenção, achando que se ele assustar todos, todos o respeitarão.
Mas o meu respeito ele nunca terá.
me encarou e tremi por dentro quando ele voltou a dizer com a fala mansa.
- Truque legal, né? Já havia me esquecida que o fogo suturava feridas. – ele desligou a boca do fogão. .– Ele caminhou até a mesa novamente e pegou o braço branco e ensanguentado do garoto e entregou em minhas mãos. Meus olhos estavam arregalados para ele e talvez vomitasse se não estivesse perplexa. – Pode costurar esse nele se quiser.
O tom de voz dele me deu arrepios de novo, agora de completo desgosto e nojo.
adentrou novamente a cozinha e passamos por uma eternidade de silencio. me encarou novamente, dos pés à cabeça, aparentemente curioso e depois encarou , então riu debochado.
- Quem diria que o velho ainda dá no couro, não é mesmo?
Revirei os olhos, sentindo um daqueles momentos em que minha boca não conseguia ficar fechada e a coragem dentro de mim não me deixava parar.
- Vá se foder, cara. – Disse em um tom bem audível, para que ele ouvisse mesmo.
Ele não sabia com quem estava se metendo.
O homem riu e se virou para mim.
- Como é? – Disse com o sotaque misturado em uma falsa graça que ele fingia que tinha.
- Não ouviu? Eu disse: vá se foder, cara. – Repeti com a mesma força que a primeira vez e o sorriso foi mudando aos poucos.
Ele ficou frente a frente a mim, com o rosto perto ao meu e toda sua masculinidade misturada com sua tentativa de me amedrontar, mas nem tremi.
- Repete. – Um sussurro forte, enquanto seus olhos me encaravam esperando que eu fraquejasse. Típico de um General, querendo assustar os mais fracos.
Mas eu não era a mais fraca.
- Vá. Se. Foder. – Repeti mais uma vez, com meu tom rígido e minha postura dura.
apenas riu e se virou, caminhando para fora da casa marchando.
Todos saímos da casa e voltamos para o pátio, aparentemente abalado como os outros moradores da comunidade. Tirando o nojo, eu estava bem até. Isso foi novo para mim, mas como eu disse, pessoas assim merecem meu nojo e não meu medo.
caminhou novamente até o portão e se virou para os moradores, principalmente para .
- Eu estou deixando duas pessoas para acompanhar o processo de Lionel e eu espero que eles sejam tratados e alimentados bem. Não quero ter que acabar com o estômago de um de vocês. Vou voltar daqui a alguns dias para pegá-lo.
Seu tom de voz era sempre carregado de ironias, sarcasmos e piadas sujas. Aquilo sim era horrível.
Minha sorte era de não estar aqui e conhecer ser tão desprezível assim.
- Isso não foi legal, não é mesmo ? Mas pelas bocas abertas aqui, pelo menos fiz um ponto e tive a atenção desejada. Obrigado.
Sortuda.
O homem caminhou até o portão, saindo pelo mesmo e indo até sua camionete preta, então ele virou para dar uma checada nos rostos assustados e aparentemente viu algo que não gostou, pois sua expressão sádica se transformou em ira de verdade.
- Que porra é essa? – Ele voltou andando em passos longos e empurrou o tronco de que cambaleou para trás e parece que acordou. – Que porra é essa no rosto da Jolie, hein ? Como você pôde deixar isso acontecer com sua filha, seu filho da puta inútil.
pareceu bastante irritado com a forma com que falou com ele e então se defendeu. Por um tempo os dois ficaram se xingando, o sotaque britânico do se sobressaia e o mais caipira de ainda mais. Um apontava o dedo na cara do outro e eu realmente estava torcendo para um soco.
- Você sabe que nossa comida é disputada, cara – começou já mais calmo, mas ainda falando alto e rouco – Você não foi o único a receber quebra de acordo por aqui. O grupo do Norte apareceu e destruiu quase tudo, matou muitos dos nossos e nós não estávamos esperando por perdas tão grandes. Mas não se preocupe, não precisa se preocupar com a forma que eu cuido da minha filha e da minha comunidade. – A forma com que frisou as palavras “minha” fizeram ficar mais irado ainda.
Queria que estivesse aqui para assistirmos essa briga, porque era muita testosterona e bem melhor que o UFC que nosso pai assistia.
Muito melhor mesmo.
Um psicopata britânico, militar e fazível. E um caipira um pouco louco, paizão e charmoso. Mulherada, cuidado com as calcinhas! Pena que o desgosto em meu ser atacava com piadas ruins.
Foram xingamentos e palavras desconexas de uma história passada na qual eu não conseguia compreender metade por não estar lá tempo o suficiente. E em um certeiro golpe, atingiu o maxilar de , que precisou tirar alguns segundos para pode se recompor do nocaute. O maluco cuspiu um pouco de sangue como se não fosse nada e voltou a falar.
- Nesse condado, o seu pessoal, o meu pessoal e todo qualquer tipo de ser humano que respira e anda nessa porra tem que me respeitar, entendeu? Não só a mim, mas quem eu considero respeitável o bastante. E caso haja mais quebras, cabeças irão rolar. – ele riu, sem graça alguma – Do que adianta eu arrancar o braço de um garoto se você não é inteligente o bastante para temer que eu arranque o pescoço de outro?
Desta vez ele fitou toda a multidão, e gritou para que todos eles escutassem.
- Esse é o tipo de líder que sua comunidade tem meu povo.
- E você é o tipo de líder que temos. Promete algo, e acaba não cumprindo. Se hoje temos mais mortes Slade, é porque você não cumpriu com sua parte do acordo.
Vi um resquício de humanidade no olhar de Slade pela primeira vez. Aquela frase parecia ter atingindo-o em cheio. Sensação de impotência. Era apenas olhar ao redor e perceber que a segurança do local estava em falha por causa dele. E eu esperava que ele fizesse algo sobre isso logo.
- Você não perde por esperar.
Declarou por fim e foi embora, fechando o portão após seus carros saírem um por um, até que ficássemos sozinhos de novo.
Infelizmente com Lionel e outros dois caras dele.
Pude ter uma visão geral dos moradores e todos estavam bastante chocados. Alguns tremiam, alguns choravam, alguns estavam completamente perplexos com tamanha brutalidade.
O garoto que perdeu o braço foi levado para a enfermaria e eu esperava fielmente de que ele sobrevivesse a tamanho trauma.
Virei meu rosto para trás e vi Max, incrédulo encarando toda aquela cena com Jolie em seu colo. Barbie saiu e os levou para dentro de sua casa, fechando a porta e as cortinas.
teria uma bagunça para arrumar.
E eu teria um lugar para enfrentar.
***
Procurei em meu quarto uma bússola qualquer para me guiar na floresta. A noite já estava caindo e eu precisava agilizar para ir atrás de . Confiando em mim mesma para que ela não estivesse no maldito QG.
Não havia bússola, apenas uma lanterna – que seria de bom uso. Minha mochila já estava cheia com alimentos caso eu me perdesse na floresta, um pouco de munição e a pistola de presa no coldre junto a mim.
Eu estava agasalhada e com o mapa escondido dentro do meu casaco.
Ouvi alguém se encostar em minha porta, virei sem muita surpresa. estava escorado em minha porta usando o chapéu de Xerife que vivia na cabeça do filho, aparentando estar calmo.
- Eu queria te pedir desculpas... Você sabe... – ele procurava palavras para se explicar, mesmo sem precisar. – Eu não queria que você conhecesse o assim, na verdade, por mim você jamais o conheceria. – Ri.
- Tudo bem, de onde eu venho, ele seria apenas mais um bêbado escandaloso em um bar depois das onze horas. – Dei os ombros.
- Onde você está indo? – Ele perguntou como se já não soubesse a resposta.
Tolo , você sabe para onde irei.
- Irei dar uma volta na floresta, passar perto do riacho e por aí, mas voltarei cedo.
- Eu vou com você. – Ele se posicionou mostrando prontidão, mas eu o interrompi.
- Eu cuido disso, pode deixar – disse baixo, sem retrucar. Eu estava sendo a mais simpática possível para essa situação. – Vá descansar. – Pedi e ele assentiu.
Não era que eu não queria que ele fosse junto, mas depois do show que deu, talvez precisasse descansar para botar a cabeça no lugar. No dia seguinte ele ainda continuaria sendo o líder e teria que arrumar mais bagunças que faria.
Me virei para ele em um súbito momento de clareza.
- Por que você deixou a arma da em sua sala?
- Você a encontrou, uh. – Ele deu os ombros. – Talvez, eu tenha a deixado para você encontrar, quem sabe.
- Você não é tão esperto assim, Xerife.
Ele riu.
- Boa noite, . E por favor, se cuide.
Assenti e passei por ele, que me deu abertura para sair. Não sabia como ser uma pessoa carinhosa, mas o leve carinho que fiz em sua bochecha e o beijo estralado que dei em seguida foi repentino. Diferente até para mim.
Não, Romero não estava se entregando. Talvez não agora.
Mas eu sabia que para reencontrar eu precisaria de uma ajuda e nada melhor que a ajuda de , que acima de tudo era um cara que eu gostaria em ter em minha vida.
Talvez, bem no fundo, eu estivesse amolecendo, quem sabe.
Sai da minha casa e caminhei até a enfermaria. A situação continuava a mesma, os mais doentes estavam lá e os melhores já estavam em suas casas.
Willa estava dormindo e eu agradeci por isso, não queria que ela tivesse visto tudo isso, seria pior para a situação dela.
O garoto que perdeu o braço estava lá, desacordado. Friedrich estava sujo de sangue, o que deixou mais claro que ele estava cuidando do Lionel e também do outro menino ao mesmo tempo.
- Friedrich, você por acaso tem uma bússola? – Perguntei no tom mais normal do mundo.
Infelizmente eu não tinha bom senso de direção, talvez uma bússola não me deixasse me perder na floresta escura.
- Oh, sim, tenho sim. – Ele tirou do bolso a bússola de ouro bastante bonita e que parecia ser uma herança de família. Agradeci e guardei-a em meu bolso.
Agora eu estava pronta para sair atrás de .
Observei o braço que havia sido o motivo de terror durante a tarde e o peguei em minha mão. Era um gesto bizarro, mas esse braço me seria útil.
Friedrich encarou o braço em minhas mãos e eu apenas encarei Lionel, que retribuiu o olhar.
Lionel me encarava confuso e um pouco assustado com a forma que eu o olhava. Ele gemia de dor e eu sentiria pena dele se ele não fosse um babaca.
Eu segurava aquele braço como se fosse algo qualquer, então levantei mais o braço, fitando-o como se fosse algo completamente menos nojento.
- Parece que arrumei um novo souvenir.
Capítulo 9 - Leave Me Lonely.
Romero.
O que fazíamos agora seria considerado fora da lei antigamente. Entretanto não sabíamos o que o futuro nos aguardava.
Estávamos Teddy, Baby, algumas crianças e eu no topo do QG. Uma espécie de laje com uma mureta de sessenta centímetros numa tentativa quase falha de proteção.
O grandão tinha um calibre 38 em mãos, ajoelhado na frente dos três pequenos, tentando ensiná-los como usar em sinal de perigo. E eu não poderia reclamar, qualquer maneira de proteção era bem vinda.
A realidade em que estas crianças viviam era outra. O mal realmente nos cercava e a qualquer hora poderia bater na nossa porta buscando aniquilação, e para isso, qualquer pessoa, não importa a idade, precisava de um ensinamento básico sobre como se defender por si só.
Também havia uma grande diferença sobre uma criança ter uma arma em mãos no antes e agora. No passado era pura irresponsabilidade dos pais que não seguiam a risco a lei de desarmamento. Tratavam como se fosse um objeto para brincar e o jogavam em qualquer gaveta, podendo causar uma tragédia estando na posse de quem não deveria.
Hoje é diferente. Elas precisavam daquilo. Claro que um recém-nascido não ficaria livre para colocar um exemplar na sua fralda, mas aqueles que já possuíam idade para entender um compromisso facilitavam às aulas de Teddy em autodefesa.
A semelhança entre os dois tempos era a proibição de alguém. Já tinha sido informada de que Slade não fazia ideia dos encontros que aconteciam aqui em cima duas vezes a semana. Felizmente os pais sabiam e eram totalmente a favor de tais ações. Mas como o chefe era pintado como um monstro eles preferiam fazer aquilo por baixo dos lençóis.
O receio que tinham em pedir algo para Slade era patético. Nestes poucos dias em que estava hospedada no QG eu havia o encontrado poucas vezes e em todas elas ele se comportava até educadamente.
Ok não podia exagerar. Por exemplo, há alguns dias Lacey tentava treinar um menino que mais tarde descobri ser o irmão de Jerry, o cara que estava enfaixando meu pé quando acordei na sala de primeiros socorros. O problema era que este garoto possuía um sério caso de timidez e retração com a sociedade, algo que desconheço. E Lacey o pressionava demais, forçando o menino a atirar nos alvos porque logo mais ele poderia passar pelo processo de ir para fora e atirar em um dos mortos vivos.
A gritaria se espalhou, as crianças se assustavam, eu fiquei puta e Slade apenas observava. Não demorou até que minha paciência acabasse e retirasse a arma da mão de Lacey atirando eu mesma na porcaria do alvo.
Resumindo tudo. Ela não gostou, continuei a defender o menino, Slade riu e disse que algum dia ele teria que provar que suas bolas ainda estavam em suas calças e passar a virar um dos caçadores do grupo. E no final de tudo, deixou passar. Isso aí. Todos enchiam o menino por ele não querer ser um assassino, bastou uma interrupção de minha pessoa e Slade achou graça e deixou tudo passar.
Claro que Lacey ficou ainda mais irritada pela novata estar passando acima das suas ordens, e das ordens que recebeu de seu chefe.
Apesar de tudo e da liberação para o irmão mais novo de Jerry, fora naquele dia que comecei a notar a personalidade de Slade. E o mesmo também aconteceu. Não havia como negar aquela faísca que se acendeu no dia em que nos conhecemos, porém, ao reconhecer suas atitudes, uma guerra se instalava em minha cabeça sobre que passo dar a seguir.
No dia a dia notava que ele era rude de sua maneira com quem não fazia o que ele mandava. Complexo de Deus? Com certeza. Seus discursos constantes davam calafrios por ter um humor ácido atrás de palavras duras escondidas por um sorriso em seu rosto.
Contudo não via o motivo da boca de Baby literalmente tremer quando o via por perto. Ele me fazia tremer também, só não a boca. O corpo talvez, a região sul mais precisamente.
A atração era mútua, o cara era gostoso, eu era uma mulher resolvida e poderia simplesmente pular para a cama dele.
Lamentavelmente até no fim do mundo o sexo era visto como tabu. Então se eu transasse com ele, Baby poderia me expulsar do clube “só entra quem odeia o chefe”.
No entanto eu conseguia entender o sentimento das pessoas perante a ele. Elas tinham comida, proteção e até espécies de emprego aqui dentro, mas para se relacionar com alguém como Slade, precisava ter uma mente extremamente aberta e uma paciência gigante para não se deixar levar por suas piadas medíocres.
Basicamente os tipos de cara que eu costumava namorar. A diferença é que no colegial existia um círculo onde eu corria deles e eles corriam atrás de mim. E Slade não era um cara pra isso. Talvez quando fosse jovem colecionasse corações quebrados de garotinhas inocentes, mas ele era um homem, mesmo com as intenções duvidosas ele fazia bem o seu trabalho dentro do QG. Mantinha a ordem, o respeito, e o indivíduo pensava mil vezes antes de iniciar um motim. Às vezes por medo dele ou por medo de não se igualar na liderança.
Provavelmente seja o pró de ser uma pessoa sádica que lhe dá toda a postura de um dos gigantes.
- Eles conseguem puxar nossos cabelos? – perguntou uma menina de olhos puxados.
- Sim, mas pra isso você precisa tomar cuidado. – respondeu Baby no lugar do professor de autodefesa, ou seja, Teddy.
- Use um boné ou algo assim, não é como se fossemos soltar vocês na floresta de um dia para o outro. – resmungou o grandão. Acho que ele estava mais acostumado em trazer alegria para os baixinhos com o sorvete do que levantar questionamentos sobre vida ou morte.
- Mas e se um deles puxar o boné? – ela retrucou.
- E se eles subirem os muros? – desta vez um menino de cabelo cacheado falou e isso me fez perceber algo.
- Uau, as crianças daqui realmente não possuem contato com o mundo exterior.
O que fazia sentido, já que eram crianças. Eu não checava o calendário diariamente, até porque fazia muito tempo que não via um, mas há uma grande chance de estarmos mais de dois anos nestas condições de vida. E se isso for verdade, as crianças de sete tinham cinco ou menos no início de tudo, e como crianças, elas são criadas para fingirem que nada do que assusta era real.
Já ouvi um caso sobre um menino que pensava que os vagantes nas ruas eram o próprio bicho papão. Aparentemente os pais preferiam contornar a verdade a fazer o filho lidar com a realidade. Não que eu os culpe por isso, se tivesse um filho, provavelmente faria o mesmo.
- Tente não suar o buço Teddy, são crianças. Vão entender ao seu tempo. É por isso que antes do vírus, o politicamente correto nos ensinava que crianças não deveriam mexer em armas. Algumas conseguem aprender antes que as outras, cada uma delas leva sua forma de crescimento e desenvolvimento em conta. Por exemplo, a japinha – fui interrompida pela própria.
- Coreana.
- Coreana – corrigi - Mesmo não prestando atenção nas armas, ela fez um bom ponto ao falar do cabelo. Já fiz parte de um grupo que a pessoa foi pega pela cabeça graças ao cabelo de dois metros e meio, e isso me fez ter coragem de cortar o meu cabelo de dois metros e meio. E também consegui um boné com um cara por aí. Só não tenho ideia de onde está agora, e por quê? Porque baixei minha guarda e acabei ficando tão bêbada que dormi na noite escura e no meio do nada.
- Onde você está querendo chegar? – perguntou Baby visivelmente assustada.
- A questão é. Um dia vocês vão aprender a matar. Mas em hipótese nenhuma vocês podem beber. Combinado?
Eles gritaram em afirmação. Então estava tudo bem.
Era compreensível Teddy ficar aborrecido ao ensinar as crianças, e para completar sua personalidade amável, não era com elas, mas consigo mesmo. Ele queria fazer um bom trabalho ali e eu tinha uma teoria sobre aquilo.
Minha conexão com Baby havia sido instantânea, porque ela era uma garota de minha idade e logo tínhamos ideias parecidas. E também porque ela me lembrava a minha irmã. Então a matemática não é difícil aqui. Desejamos proteger a quem gostamos, e pessoas que nos lembram de quem ficou no passado com alguma afeição, aquele sentimento acaba sendo transmitido para essa pessoa sem permissão.
Então sim, eu gostava de Baby, meio que confiava nela com pouco tempo de convivência e desejava o seu bem, por ela ser parecida comigo em alguns aspectos e lembrar pessoas que eu amo.
Teddy passou a vida toda praticando o bem, e uma das maiores benevolências era o ato de entregar sorvete para crianças sorridentes para poder ver o brilho em seus olhos.
Coloco a mão no fogo para apostar que todos os sobreviventes ao meu redor nunca se esqueceram do primeiro vagante que mataram. É algo traumatizante.
Isso fez o trauma de Teddy duplo, por ser algo que ele apreciava no seu dia a dia se tornando o seu maior pesadelo.
Dias atrás no meu primeiro almoço na cozinha ele havia admitido que seu primeiro contato com um morto-vivo fora ao observar uma das crianças pela janela de seu caminhão de sorvete. E eu compreendia aquilo por nossas profissões serem parecidas.
Mas ao contrário dele, tive que passar anos estudando cada fase de seu crescimento e cada precursor com seu entendimento sobre as crianças.
Portanto, ele deveria ter paciência não somente ao ensinar, mas com ele próprio. Seu primeiro passo ao tentar fazer aquele projeto acontecer, e dar certo, era gratificante por si só. Após isso, tudo ao seu tempo. Mesmo com ele não estando ao nosso favor.
O deixei com as crianças e me sentei ao lado de Baby, apoiando minhas costas no muro cinza. A única parte daquele lugar que não era verde claro ou escuro.
- Posso te perguntar algo? – começou Baby. Estávamos as duas já não prestando mais atenção na aula de Teddy.
- Isso já foi uma pergunta. Pode perguntar outra se quiser – sorri pra ela.
Ela riu de leve da minha piada horrível.
- Se você pudesse estar em qualquer lugar do mundo agora, com quem quisesse, onde e quem você escolheria?
Essa era uma daquelas metáforas estranhas que passavam em palestras?
- Pessoas mortas também valem? Não sei se poderia responder.
- Seria minha escolha também.
- Não responder?
- Alguém que já se foi há um tempo...
- Tudo bem. – assenti compreendendo seu raciocínio.
- Não há resposta certa aqui. Eu só estava tentando... Não sei.
Segurei sua mão.
- Não parece, mas cada pessoa daqui sente a mesma dor. É impossível vir até aqui com a mesma psico saudável de antes.
- Realmente.
Encaramos o céu azul, olhando para as nuvens brancas. Teddy dispensou as crianças que saíram com a expressão em maior dúvida do que quando entraram, e ele se sentou ao nosso lado. Ficamos os três então encarando o céu azul.
- O que você fazia ?
- Professora. – respondi simplesmente, compreendendo a pergunta.
Baby continuava silenciosa.
Era estranho. Os três olhando para cima e parecia que meu cérebro havia desacelerado.
Tentei colocar ele pra trabalhar novamente.
Eu tinha certeza de quatro coisas. Estava em um lugar ok, tinha novos amigos, precisava da ajuda deles, tinha que encontrar minha irmã e esclarecer umas coisas com Slade. E também pedir para sair daqui com a permissão de Slade. Cinco coisas. Na verdade, eu poderia somente sair, mas também queria uma carona. Seis. E pra isso acontecer eu precisaria entrar na mente dele antes pra ver o que se passava ali, e se ele estaria apto para me dar uma carona. Sete? Pelo menos meu corpo e minha mente já estavam mais saudáveis desde o dia no rio. Eu já não mancava mais, as manchas no meu corpo eram quase inexistentes, a munhequeira ainda estava no meu braço por puro estilo e minha vontade de continuar estava me matando.
Com tal vontade de continuar me matando, iniciei uma nova conversa.
- Qual de vocês dois possuem contato direto com Slade?
A manifestação de nojo foi instantânea.
- Qual é gente. Preciso de opiniões reais aqui.
- Por que, o que você quer com ele? – perguntou Teddy.
Tudo bem eu precisava contar logo pra eles. Já tinham me contado o segredo do treinamento de crianças, certo? Se me dedurassem eu já teria algo contra eles. Não querendo ser cínica, mas antes se prevenir do que remediar.
- Se essa conversa sair daqui que não seja pela minha boca, gente irá morrer. E vão morrer de uma maneira tão brutal que não vão ter coragem de reviver pra não terem que olhar pra mim outra vez. Entendido?
Foi quase um ultimato.
- Entendido – recebi resposta dos dois.
- Bom... Slade me encontrou dias atrás em uma floresta. Eu estava destruída e não precisava de ajuda, e mesmo assim ele fez questão de me trazer pra cá. Embora eu não quisesse estar aqui. Na verdade até que gosto do QG, porém tenho questões mais importantes pra tratar lá fora.
- O que você tem lá fora de interessante pra fazer? Matar vagantes? Não se preocupa que daqui a pouco ele vai te encaixar em algum grupo de caçadores. Provavelmente no dele próprio, vai te comer mais com os olhos do que ele já faz no refeitório. – assim que Teddy disse isso revirou os olhos.
- Não é porque a mamãe aqui pode arranjar um papai que eu vou me esquecer de vocês. Vocês são muito importantes, não se preocupem, ciúmes é só uma demonstração de afeto. – dramatizei sorrindo.
Mesmo tentando quebrar o clima de confessionário, estranhei a feição aflita em Baby.
- , isso não é brincadeira. Nico me disse que passou em um local esses dias e só pra ter certeza que tinha a atenção do povo ele amputou o braço de um menino adolescente. – ela praticamente berrou a última parte.
Seria mais difícil do que eu pensava.
- Não me levem a mal, mas não tô interessada em nada disso. O cara pode ser o monstro que for, e minha conta não deixa de estar no vermelho pela quantidade de merdas que já fiz pra se fazer de santa e começar a fofocar e fazer birra pra falar mal dele também. Falem o quanto quiser, meu negócio é outro agora.
Isso foi por fora. Já estava colocando minha cabeça entre os joelhos pensando no que ela havia dito. Releve, releve, releve.
- Eu tenho uma irmã – soltei sem predição – o nome dela é , temos dois anos de diferença.
- Por que nunca falou dela? – Baby falou com a sobrancelha franzida.
- Estou falando agora. Estávamos sozinhas por alguns anos, entramos em uma enrascada, um grupo encontrou e abrigou a gente. Na minha mente, eu que trouxe o azar naquele dia e fomos atacados por alguma comunidade que queria a fartura de lá. Acabei levando as crianças pra um local na estrada com algumas mulheres e tentei desviar os mortos vivos do caminho deles. No meio de tanto tiroteio e pessoas desconhecidas eu acabei me perdendo de minha irmã. Atravessei o rio e fodi com o meu calcanhar, não facilitando a minha volta. Sei que vocês estão preocupados sobre minhas intenções com Slade, mas eu juro que não é nada demais. Só preciso saber como sair daqui pra encontrar minha irmã. Preciso descobrir se ela ainda está viva.
Olhei para os dois que estavam adquirindo toda aquela informação. Talvez eu estivesse naquela tensão pré-menstrual, ou o sol estava em Câncer. Mas por um momento eu pensei que depois de tanto tempo, eu iria chorar.
Não. Não e não.
- Então minhas opções são: sair correndo como uma louca, pular o muro e voltar lá pra fora sozinha, ou, conversar com ele sobre sair daqui. O que parece ser inocência esperar um ato de heroísmo após ouvir sobre o braço amputado.
E a esperança voltava ao zero.
- Vou tentar ser democrática. – começou Baby. – Teddy estava certo quando disse que você logo estaria na patrulha com ele. tem mostrado um interesse a mais em você essa semana. Seja quando tenta puxar conversa em público ou mesmo sentando conosco na mesa, sabendo que não é bem-vindo. Então você deveria aproveitar esse interesse para se tornar amiga dele e tentar ver o que ele quer de você, de verdade. Talvez ele fique uma pessoa melhor do seu lado e isso ajudará você com seus objetivos, e com um fundo do meu coração eu desejo que você encontre sua irmã.
Era um jeito engraçado de ver as coisas. Se quem disse isso tivesse um pouco de malícia em mente, diria com outras palavras.
Algo como: vá lá, o seduza, se aproveite quando ele não estiver às espreitas, saiba suas rotas de fuga e quando ele estiver fraco, dê o bote.
Meu pró aqui era que somente minhas pessoas de confiança sabiam sobre minha história lá fora de verdade. Ao menos sobre a Colônia. O pró dele era ter um exército ao seu favor e uma conversa comigo sobre o monumento branco no meio da floresta. Que eu ainda não havia treinado as respostas de maneira correta, e sem ser comprometedora.
E por incrível que pareça aquele momento ficava se reinventando de várias formas e maneiras na minha mente, e eu queria que ele somente acabasse com a tortura de esperar e viesse logo me interrogar.
Inclusive, poderia perguntar a opinião de Anna sobre isso. Mas fazia um tempo que eu não via a ruiva e ela parecia ter desaparecido completamente depois de nossa conversa na cozinha.
Como Teddy e Baby não pareciam se importar em mencionar sua falta, eu presumi que fosse comum ela passar algum tempo presa dentro do quarto, ou tinha mais e outros amigos aqui dentro que a faziam se sentir melhor com toda aquela expressão de aflição que trazia em cada gesto.
Imaginava hipóteses do que teria acontecido com ela. Anna estava aqui como Baby e Teddy que praticamente inauguraram o QG? Não... Algumas de suas frases deixavam claro que teria passado por uma situação parecida com a minha, e teve de fazer alguns sacrifícios no processo de continuar aqui dentro.
A respeito de sua personalidade... Ela deve ter sofrido um grande trauma – o que não era desculpa por ser algo que todos já tivemos que enfrentar – ou na realidade sua mente era fraca para poder solitariamente enfrentar os próprios pesadelos.
Porém era ruim ela tentar se isolar, já que deste jeito as coisas sempre ficavam mais difíceis.
Meus pensamentos foram cessados pelo som dos carros saindo mais uma vez pelos portões do QG.
Slade e seus homens eram pessoas ocupadas... E a falta de respostas para tal ocupação me deixava como um cego em tiroteio.
Como o verdadeiro gato que eu era, tentando não ser morta pela tal curiosidade, deixei a laje do QG me despedindo dos dois alegando estar com sono. Mesmo tendo dormido por doze horas seguidas. Mas a desculpa serviu, afinal, quanto mais dormimos, mais sono nós temos.
Desci as escadas rapidamente e corri para o local onde o gigante ficava estabelecido. Ou pelo menos suas coisas. Tentava ser discreta, como já havia dito, era mais fácil passar por tais ações não tendo a atenção do público em volta de mim que em segundos poderiam se virar contra mim, utilizando as informações de onde eu havia andado. Sem permissão.
Esta parte da comunidade ficava ao lado do portão de entrada. Mesmo que por fora parecesse a mesma instalação que o resto do QG, era completamente diferente por dentro. Depois de mais um corredor e subir as escadas, tudo era como uma casa antiga e bem cuidada, sem muito senso de estilo para decoração. O chão era coberto por um tapete fino e marrom claro. As paredes tinham vistas e o teto de gesso também, de uma forma requintada.
Não foi difícil descobrir onde era o escritório de Slade. Eu me sentia no castelo da fera, e uma das regras que me obrigaram a seguir nestes dias era de não chegar à ala oeste.
A porta era comum, de madeira grossa e brilhante. Girei a maçaneta dourada e estava aberta. Sinal de que seria difícil encontrar algo significante ali dentro.
E a cada passo mais próximo de descobrir Slade, o cara parecia se fechar ainda mais. Tinha segredos sobre ele que nem as pessoas mais próximas e antigas daqui conseguiam decifrar. Suas atitudes eram uma delas.
Verifiquei a sala. Não era dele. Uma prateleira de vidro que ia até o teto em seu tamanho me respondeu isso, aquela sala um dia pertencera ao pai de Baby. General Cade Jeffrey. Com uma imagem dele e da menina loira ao seu lado.
Havia uma prataria que eu poderia estragar só de olhar por tão fina ela parecia ser. Algumas medalhas douradas e o principal, fotos de sua infantaria, soldados em posição e do próprio General com seu nome gravado na parte externa da borda, banhada em dourado.
Nas paredes quadros abstratos com cores primárias no geral. Na frente da mesa um sofá preto de couro. No chão um tapete branco exorbitante, e soltei uma risada irônica ao vê-lo. Era como se ele houvesse tomado mais banho do que eu desde que a provável extinção atingiu Oklahoma.
Em cima da mesa poucas coisas. Um pote de vidro cheio de balas coloridas, lápis, papéis em branco perfeitamente simétrico e um abajur pequeno amarelo claro com uma lâmpada florescente. Afinal, todas as lâmpadas ali eram florescentes e tinham um momento exato para serem ligadas, já que a energia a gerador deveria ser economizado.
Toda a estrutura do QG era forte por ser um batalhão, e por ter esse envolvimento direto com o governo, as coisas mais resistíveis possíveis eram mandadas pra cá. Com um pouco de raciocínio lógico imaginei que no começo do ataque ele tinha servido como um acesso rápido para a entrada de todos os sobreviventes de fora sem certa orientação.
Sentei-me na cadeira do general, que agora parecia ser comandada por Slade e abri a única e primeira gaveta. Pilhas e envelopes vazios sem remetente. Coloquei apenas dois objetos em cima da mesa que me interessaram.
Um deles eu estava segurando no ar, um dog tag igual o que eu tinha em meu pescoço, que pertencia ao meu falecido pai. Neste em questão estava o nome do outro dono.
JEFFREY
CADE
687-11-0122
A+
CATÓLICO
Guardei aquele cordão em meu próprio pescoço sem arrependimentos. Pertencia a outra pessoa e eu entregaria para ela mais tarde.
O outro objeto era um caderno preto sem identificação, o que me fascinava era a escrita de dentro.
Centenas de páginas com marcações numéricas em pequenos riscos cortados. Eu continuava a virar aquelas páginas e era como se aquilo nunca tivesse fim. Não foi difícil deduzir que se tratava dos dias desde que a manifestação do vírus se iniciou. Ainda sim era como um soco no rosto. Um choque de realidade que nos colocava entre o antes e depois, sempre mencionado, mas sem um valor notório.
O costume nos colocava ali. Não havia saída. Aprendemos a sobreviver daquele jeito, e tantos dias já se passaram que lembrávamos muito pouco do passado. Contudo quando a nostalgia batia, a única vontade era de disparar uma arma contra a própria cabeça.
Seres humanos podem se contentar com tão pouco... E eu só desejava que um dia pudéssemos encontrar um motivo maior para continuar. O nirvana de existir a tanto tempo perdido. Aquele primeiro suspiro de uma manhã de inverno, que nos fazia se debater mentalmente no quer fazer primeiro, buscando aconchego.
Eu queria mais... Sempre quis.
Parecia que meu estado de espirito desde que nasci era de tédio e aborrecimento. Nada me fascinava, se estava aqui até hoje, era pelo automático.
E encontrar um caderno com inúmeras páginas marcando o tanto de tempo que eu havia perdido para tentar tomar alguma atitude para mudar minha própria vida era... Esclarecedor.
Guardei o caderno novamente na gaveta com cuidado e tentei perceber mais alguma coisa que prestasse.
Tinha uma porta ali, e eu estava em um impasse de entrar ou não entrar.
Parecia ser arriscado estar ali. Só que nos últimos dias eu estava agitada, procurando por respostas sem entender nada ao meu redor, tentando entender Slade, as pessoas dali, a função do QG e como tinha sido comandado e descoberto até então. Foi inocência a minha não ter perguntado para a pessoa mais óbvia que estava na minha frente o tempo todo.
Deveria manter um olho no relógio da consciência para que retornasse sem mais nenhuma outra visita, desta vez que fosse indesejada.
Jacob abriu a porta lentamente e meu coração tremeu pensando que fosse outra pessoa, por sorte, era ele.
- O que está fazendo aqui dentro? Eu já tinha entrado neste escritório várias vezes. Não tem nada de legal. – ele disse num sussurro.
Ele era um menino peculiar. Havíamos conversado pouco depois que ele me chamou no quintal ao lado do mar.
- E o que fazia aqui dentro Jacob?
- Perguntei primeiro. – respondeu dando de ombros – Mas eu só estava procurando algo pra me divertir, acho. Tenho que passar esse tempo todo escondido de e não há nada de legal pra fazer em carrinhos de louça suja, se você quer saber.
Bom ponto. Acho.
- Eu estava procurando algo que me distraísse também. – respondi sua pergunta.
- Encontrou alguma coisa? A melhor coisa dessa sala é este pote de balas que está cheio desde que coloquei os pés no QG, e nem posso tocar, vai que ele note a diferença. – ele fez uma cara triste com esta afirmação.
E realmente era. Uma criança ver um pote de doces na sua frente e não poder pegar era crueldade.
Mas continuei de qualquer forma, interessada na sua estadia. Ele preferiu falar sobre comida e super-heróis naquele dia, e acabou não me respondendo sobre se esconder a cada buraco que via.
- Jacob, me responda uma coisa. Por que você se esconde de Slade? Tenho certeza que ele não faria nada contra um menino da sua idade. Tem outras crianças aqui e elas possuem uma boa convivência com o pessoal e o próprio líder.
- É que eu não vim do mesmo lugar que as outras crianças – ele se sentou no sofá preto com as pernas pequenas balançando, não encostando o chão – Teddy me encontrou lá fora quando eu estava faminto. Eles me acolheram. Mas Baby disse que não confiava em , e depois que eu contei de onde vim, ela teve certeza de que eu não deveria arriscar a sorte e contar que estava aqui. Ela disse algo sobre ele não aturar sustentar uma pessoa como eu.
Não entendi esta parte. Jacob era uma criança perfeitamente normal e Slade poderia ser ruim, mas não negava comida e teto aos desabrigados. Provavelmente havia um tipo de seleção e processo a quem ele escolhia quem entrava, mas não deixar alguém entrar simplesmente porque não curtiu a cara da pessoa era ridículo.
- Pode me dizer da onde você veio?
Ele pareceu pensar por alguns segundos.
- Baby disse que eu só podia contar isso pros meus amigos, ou seja, ela e Teddy. Não sei se ela me deixaria confiar isso à você.
- Eu sou confiável – assenti – e posso fazer uma troca. Um segredo por outro.
- Tudo bem... Posso escolher o que vou querer saber sobre você depois? – assim que concordei, ele continuou. – Eu vim de um hospital que fica no meio da floresta, perto da cascata.
Huh.
- E isso é motivo para que Slade não confie em você? Desculpe, mas eu não tenho consciência deste hospital.
Menti, claro. Este era o jeito de tentar descobrir mais informações. Contando que na sala não havia nada de útil.
- Bem, segundo minha mãe, esta área da cidade é menos movimentada. Para o lado de lá – ele apontou com a mãozinha – é tudo vazio. As estradas, e a cidade não existem. Mas para o outro lado – ele apontou na direção contraria – tem cidade. Lojas, shopping, escolas, hospitais, farmácias e tudo mais. Geralmente é lá que o grupo de busca comida pra gente. E nos encontramos no meio disso tudo, e onde estamos raramente ocorre algum ataque daqueles monstrengos estranhos. Então é aqui onde se localiza a maior parte de comunidades, mesmo que intencionalmente.
Então não foi por milagre que e eu encontramos mais pessoas no último mês do que nos últimos dois anos. Estávamos no ponto de encontro de sobrevivência. Um lugar onde tinha comida e estabilidade. E até vizinhos, mas com o ataque do grupo norte na Colônia me fez pensar que a convivência não era em harmonia.
- Então Slade não gosta de ter pessoas no QG que fez parte de outras comunidades? É isso?
- Quase isso. Em especial o hospital, por causa do líder. Ele e são como Batman e Coringa. No caso, dois Coringas.
- Você está me dizendo que ele sabe onde fica o hospital e tem alguma relação com o dono dele?
- Oh não, eles não se conhecem. E isso é bom. O hospital é um tipo de lugar que está mais interessado em criar soldados e robôs, não literalmente, mas o pessoal de lá são máquinas de matar. E o QG por ter uma grande proteção costuma ir atrás de comunidades para fazerem acordos. Proteção em troca de alimento. Mas sempre ultrapassa os limites e tenta liderar o grupo, já ouvi dizer que ele fazia isso para não ser traído. Porque o hospital não sabe a nossa localização, mas os outros grupos sabem. Então o pessoal faz questão de pensar muitas vezes antes de falar contra . Tipo a Colônia.
Um sinal de alerta acendeu em minha mente.
- Colônia? – indaguei rápido demais.
- Sim, Colônia. Eu já fiquei lá por um tempo com a minha mãe, mas eu era muito pequeno, me lembro de pouca coisa. E depois daquilo acabamos parando no hospital. A minha mãe se perdeu lá dentro. Ela ficava em uma salinha com outras mulheres e eu aparecia de vez em quando para falar com ela entre as barras. Era difícil encontrar um tempo em que os soldados não estavam lá dentro com elas – ele olhou para baixo triste e meu coração se apertou – e minha mãe sempre me obrigada a ficar escondido, mesmo que dentro do hospital. Ela dizia que a forma que Zeus cuidava de todos ali era repugnante demais pra um menino de minha idade. E eu continuava a seguir suas instruções pra continuar vivo. – ele suspirou.
O menino era forte. Sobreviveu lá fora sozinho, fez parte de alguns grupos, perdeu a mãe em tão pouca idade e ainda assim continua lutando todo dia para se esconder, mesmo estando em casa, por ouvir e confiar nas palavras de Baby.
- Não precisa me dizer o que houve com sua mãe, Jacob. Está tudo bem. – sorri pra ele em solidariedade.
Não havia muito segredo para lidar com uma criança, especialmente com a sua idade.
Atenção e carinho é a palavra-chave. Não em excesso, e não pouco também.
E na hora da conversa, é só pensar na nossa própria infância, quando queríamos saber de algo e alguém lhe apontava o dedo afirmando você ser “muito pequeno para saber”. Tentar se igualar no nível para trocar ideias era o melhor, mostrando-se interessada em cada palavra que saía da boca dele. E neste momento eu estava mais do que interessada. Até mesmo sentia sua dor.
- Não tem mais o que contar na verdade. Só que ela parou de aparecer e eu não vi outra saída senão fugir de lá. Por dias eu fiquei na floresta fugindo daqueles homens, afinal Zeus sempre dizia que se alguém entrava no hospital, não havia caminho de volta. Você teria que ficar lá pra sempre. – ele sorriu – felizmente Zeus estava enganado. Mas eu acho que tive sorte também por ser um ótimo corredor.
Parei por alguns segundos encarando os lápis um ao lado do outro na mesa, conectando toda a história.
Slade fazia parte de um dos grupos dentre a floresta. Ele dava segurança para a Colônia em troca de mantimentos, o que fazia sentido, e a aversão que ele possuía pelo hospital também, afinal de contas, poderíamos ser bombardeados no segundo em que eles fizessem questão de descobrir onde estávamos. O que me fez pensar se o tal Z sabia da existência do QG no mapa. Provavelmente não. Mas como o prevenir é melhor do que remediar, Slade fazia questão de manter a seguridade ao jogar com garra contra os outros locais, fazendo-os temer sua presença, para que não abrissem o bico falando demais sobre a própria comunidade dele.
Até aí tudo fazia sentido.
Entretanto, como ele poderia afirmar com toda certeza de que eu não era uma fugitiva também do hospital em busca de vingança? Talvez porque eu já estava aqui tempo demais e não movi um dedo para atacar. Nem para fugir e dar informações para o mundo lá fora.
Deus, nem para procurar minha irmã eu havia saído. Parecia que eu estava naquele filme com o Dicaprio, onde aos poucos mexiam com a mente dele e não havia escapatória. Talvez colocassem remédio até nas minhas roupas, como uma erva de gato que me impedia de ter ideias de sair daqui logo.
Ou o segredo estava no colchão macio do meu quarto que me fazia dormir como um anjo e a comida de todo dia, artigo de luxo que eu não via ha alguns anos. Não em abundância.
Com em mente, voltei a questionar Jacob.
- Então... Você já fez parte da Colônia, aquela perto da estrada principal? – falei esperançosa.
- Huh, sim. – ele não estava entendendo o rumo.
- Saberia me dizer quem é o líder de lá?
- Não tenho certeza do nome dele, . Mas ele usava um chapéu de policial.
Ele sorriu tentando ajudar com a informação e eu me acalmei. Pelo menos não estava longe. Agora saber o caminho era outra coisa. Teria que arranjar um jeito de chegar até lá, talvez em um dos caminhões de Slade que vão fazer a visitação. Baby deve saber tais dias, e com a ajuda do menino a minha frente, poderia entrar lá sem ser vista, afinal ele era expert neste assunto. Tudo bem que notei sua presença já no primeiro dia, mas sou mestra em observar.
- Posso saber um segredo seu agora? – perguntou com expectativa.
O que um menino de nove anos iria querer saber de minha vida? Não tem nada que eu mesma julgue interessante.
- Tenho algo melhor pra você.
Levantei-me e fui até a frente da mesa. Abri o pote de vidro e enchi minha mão com aquelas balas suculentas e coloridas. Agachei-me a sua frente e beijei sua bochecha.
- Muito obrigada por tudo que você me disse hoje. E eu vou tentar mudar sua situação aqui dentro, você é um menino muito especial e prestativo pra ter que se locomover por aí em um carrinho apertado.
Coloquei todas as balas em sua mão e ele me deu um sorriso genuíno.
- O carrinho até que é legal. – ele deu de ombros e se levantou para ir, me pedindo antes para acompanhá-lo, me esperando abrir a porta.
Naquele momento os portões do QG se abriram e as luzes dos faróis dos carros atingiram meus olhos. Tive que me apressar.
Peguei um dos papéis brancos em cima da mesa e um lápis. Escrevi um bilhete e me prometi naquele momento que a noite seria crucial para que eu visse minha irmã novamente. Eu precisava daquilo. Era um encorajamento para mim mesmo, uma nova forma de esperança.
Guardei o papel no meu sutiã, na falta de bolso e assim que me coloquei ao lado de Jacob para que pudéssemos sair, a porta se abriu sozinha pelo outro lado.
Era Jerry. O primeiro menino que eu tinha visto aqui, quando acordei em uma maca sem saber onde estava e ele tentava consertar o estrago no meu calcanhar. Que novamente, estava muito melhor, obrigada.
Eu pensava em muitas maneiras de consertar aquela situação, quando ele simplesmente fez uma cara de “te peguei” e abriu o espaço para que pudéssemos passar. Andei robotizada e ainda sem respiração, aquilo foi o mais próximo de enterro que tive. E vejam a situação em que vivíamos.
Ele nos chamou e olhamos para trás. Por um segundo eu havia esquecido que a presença de Jacob não deveria ser atraída para qualquer pessoa que estivesse interligada à Slade, e se algo acontecesse à ele por causa de mim, eu não iria conseguir me perdoar.
Jerry olhou para as balas na mão de Jacob e ele lentamente as escondeu atrás das costas. O rapaz fez apenas uma careta estranha e quase divertida para o gesto.
- Sei que não podemos controlar a nossa curiosidade. Mas aconselho a não entrarem aqui outra vez, pode não ser eu a encontrar vocês dois.
- Pode apostar que não entraremos outra vez aqui. – eu ainda estava com os olhos arregalados, e sentia que era a segunda situação onde Jerry pensava no meu exagero em se expressar. Em outras palavras, fazia muito caso para pouca coisa, e da última vez eu acabei o batendo várias vezes com o travesseiro enquanto ele tentava me acalmar.
Ele até parecia ser um cara legal, mas se continuasse assim não poderia durar tanto. A bondade não conquista dias. Mas do que estou reclamando, deveria agradecer por ele não nos dedurar.
- E não se preocupe com as balas, garoto. – ele sorriu para Jacob.
Ok, então ele pensava que Jacob era apenas mais uma das crianças do QG. O que fazia sentido, levando em conta que ele passava mais tarefas na equipe de luxo de Slade do que vivendo aqui dentro com as pessoas.
O garoto levantou o polegar pra ele sorrindo amarelo e nos viramos para sair dali, um pouco tensos ainda.
Andamos rapidamente, as chances de Jerry trocar o pote de balas por nossas cabeças eram grandes, e não poderíamos arriscar.
- Ah – ele disse alto – Nico está te procurando pra te levar até uma fogueira. Ordens de Slade.
Eu sentia o vento da noite nas minhas pernas descobertas. Usava a minha bota de cowboy – que fora resgatada do rio – e apenas uma regata preta e comprida, como vestido. Na verdade era mesmo um vestido.
Estava sendo escoltada por Nico até uma parte da floresta que eu desconhecia. Mas se eram ordens do Slade aparentemente eu era apenas obrigada a cumprir. Muito legal.
Pensei muito sobre a conversa que tive com Jacob mais cedo e na existência da Colônia na visão do pessoal do quartel. Então resolvi fazer algumas perguntas à Nico, que parecia tão inofensivo quanto Jerry. Perguntava-me como seriam estes caras em combate.
- Posso te fazer uma pergunta, Nico?
Copiei a frase que Baby havia usado comigo no começo da tarde, já que parecia ser uma maneira educada de começar uma conversa no qual eu pediria algo para uma pessoa que nunca precisei ou ajudei antes. Normalmente estas conversas começam com um ‘oi, tudo bom?’.
- Vá em frente. – ele disse me acompanhando na mata, carregando uma arma pesada em mãos. Aqueles homens viviam armados e eu considerei se ele me levaria para a morte certeira. Nah.
- É verdade que o Quartel General faz um tipo de troca com a Colônia? Tipo, comida no lugar de segurança?
- Sim, é verdade.
- E vocês vão lá com frequência?
- Depende do local. A Colônia é a mais visitada sim. – isso pequeno gafanhoto, me dê informações – Pelo menos uma vez ao mês, às vezes duas, quando o tá puto com alguma coisa e quer trocar umas palavras com – ele riu.
Quase lá
- E quando foi a última vez que vocês estiveram lá?
- Por que você tá me perguntando isso? – perguntou desconfiado. Só agora?
- Apenas curiosidade. Já fiz parte da Colônia e queria saber como as coisas estão por lá.
- sabe disso?
- Claro que sim. Ele já fez um interrogatório comigo, se não, eu não estaria aqui, certo?
- Certo – ele disse tirando uma folha grande que atrapalhava seu caminho antes de continuar - Estivemos essa semana lá. Um dos nossos foi atacado e como lá a assistência medica é melhor, o deixou para que cuidassem dele.
- O que houve com o cara? – tentei me fazer de preocupada.
- Arrancaram o braço - deu de ombros como se não fosse grande coisa ou inevitável.
E de um modo, era. Eu mesma quase perdi meu pé esquerdo quando estive lá fora sozinha por apenas um dia.
- Por acaso... Você viu uma garota lá? – perguntei já com expectativa.
- Muitas garotas, sim – disse, rindo.
Palhaço como o chefe. Circo tá contratando, amor. De qualquer forma, tentei ser mais concreta, para esquentar alguma lembrança naquela cabecinha oca.
- Uma menina da minha altura, cabelo loiro, olhos castanhos, minha idade também e provavelmente estava ao lado de quando vocês o viram. Precisamente.
- Hm, sim – estranhou a rapidez na minha descrição - mencionou ser a nova garota dele, creio eu.
Era ela. Tinha que ser. Ou eu estava sendo uma daquelas garotas loucas e otimistas demais, mas já sabemos que minha irmãzinha teve um interesse a mais no quando estávamos lá e a menina era protagonista de tudo que se opunha a fazer, logo ela estaria ao lado do líder quando alguns estranhos os visitassem. Estou correta?
Parecia como uma gota de água no meio de um deserto escaldante. Um leve sinal de incerteza, porém positivamente esperança. Eu tinha que pagar pra ver.
Era isso, minha última noite aqui. Quando acabar o que começar em qualquer que seja este lugar que Nico estivesse me levando, eu iria embora dali.
- Estamos quase chegando, não é muito longe. Só o caminho é complicado...
Ele continuava a tentar puxar assunto. Tá bom Nico.
- Como está escuro aqui né? – ele comentou depois de algumas tropeçadas em pedras.
- Não sei, não estou enxergando nada.
Mas logo notei um clarão próximo a onde estava.
Ouvi o tão famoso e temido sotaque, como se estivesse fazendo mais um longo monólogo para seu pessoal.
Nico e eu nos aproximamos e ele continuou ao meu lado, recebendo um olhar estranho de Slade.
Era uma espécie de noite da fogueira, me sentia no colegial outra vez.
Havia um carro preto com a porta aberta e a música ligada, mas baixa, infelizmente. Arrependi-me de usar somente um vestido curto por causa dos olhares de todos os machos no recinto em minha direção. Tentei ignorar e esperei impaciente pelo o que viria a seguir.
Todos estavam em volta do fogo, alguns soldados conhecidos e desconhecidos. A maioria com uma garrafa de cerveja em mãos.
Slade tinha aquele sorriso faceiro em seus lábios; com a cabeça levemente inclinada para baixo, que trazia a mim um olhar cru. Ele olhou para o meu decote por uns instantes e já pensei nas palavras mais sujas para gritar contra sua cara, mas notei que ele observava o objeto no meu pescoço. A dog tag. Nostalgia o batia provavelmente, e presumi que ele possuía um cordão igual em seu pescoço.
Ele assentiu para Nico ao meu lado que mandou todos calarem a boca, alto e em bom som. Que garganta. Até me assustei.
Toda a mata ficou silenciosa. Percebi que estávamos em um círculo e a cada três pessoas, um tinha arma em mãos, e fazia sentido para que não fossemos atacados de surpresa por algum vagante.
Então Slade começou a falar:
- Eu sei que todos aqui estão cansados, e eu agradeço por isso, porque todo esse descaço significa o quanto vocês trabalharam dia e noite para manter nossa comunidade segura, e por isso, serei breve - ele andava ao redor da fogueira, fazendo sua oratória ser ouvida e considerada por todos. - São dias e noites procurando e resgatando do bom e do melhor para que possamos conviver em harmonia. Alguns dos nossos não estão aqui hoje entretanto, e com isso posso afirmar que a noite deve ser aproveitada ao máximo, porque amanhã teremos muito trabalho a fazer. Já sabemos onde Z está localizado e devemos manter a segurança em alta, mas nossos patrulheiros estão na mata, então dou o cartão verde para qualquer tipo de diversão hoje – ele terminou de beber a lata de cerveja e jogou o fardo contra o fogo, que respingou em resposta.
Com esta finalização, os homens iniciaram a gritaria. Parabéns. Uma noite de sossego e podem atrapalhá-la chamando a atenção de criaturas sanguinárias que desejam comer o seu cérebro. Huh. Homens.
Ignorei a voz alta e piadinhas de conotação sexual que vieram a seguir, por Slade ter mencionado qualquer tipo de diversão.
Não era completamente burra para querer fugir dali, não com a informação de que havia uma patrulha na floresta, então caminhei passivamente até o carro preto com o som ligado, ignorando cada comentário no caminho de dez passos, e me tranquei lá dentro.
A paz silenciosa se concretizava com apenas uma voz rouca e deliciosa que saía da caixa de som.
Era uma música desconhecida que me embalava em sua batida. Com os olhos fechados e respirando profundamente com as costas coladas no banco do passageiro, ouvi o som da porta se abrir e logo o cheiro másculo, e não tão forte do perfume de Slade invadia o carro. Era ridículo o quanto somente a presença dele poderia me afetar.
Ele se sentou silenciosamente e olhou pra mim com seus olhos azuis escuros. A expressão era terna e percebi que ele estava me oferecendo uma garrafa de bebida, que aceitei.
- Por quanto tempo você vai esperar até me perguntar sobre o que vi lá na floresta?
- Você já está aqui há algum tempo e não tentou aniquilar ninguém ou fugir pra espalhar informações sobre a base. Então não será necessária qualquer experiência em que eu precise arrancar respostas de você. Você não iria gostar. – estalou os lábios. - Estaria propenso a muitos gritos de sua parte e partiria meu coração ver você nessa situação. Ou quem sabe você poderia gostar. Até demais.
Aquilo soou tão erótico. Mesmo com ele falando como se fosse me torturar para obter respostas. Ou será que estava mesmo falando de tortura? Realmente qualquer palavra dele naquele carro iria soar erótica. A música que tocava ao fundo tinha um toque sensual na sua batida e a própria voz de Slade me fazia estremecer. Era rouca e grossa, com aquele sotaque brincando entre seus lábios que viviam com aquele sorriso sacana.
Tomei um gole da minha bebida com a sobrancelha arqueada para seu comentário.
- E claro, tenho uma pessoa de confiança que me fez acreditar que seria impossível alguém sair de lá dentro.
- Dentro da onde?
- Não se faça, Romero. Boatos correm e sei que você já deu sua investigada sobre mim essa semana e qualquer coisa que tenha haver com o QG. Então, sei que já sabe da existência do hospital. E não a culpo, é a melhor das investidas saber se prevenir em um local diferente com pessoas diferentes.
- Exato. Este é o x da questão. Pessoas diferentes. Sou uma estranha neste ninho e a cada pessoa que peço uma opinião sincera sobre falar com você, na questão de conseguir sair daqui para encontrar minha irmã, eles fazem uma tempestade em um copo de água. Então estou aqui de corpo e alma lhe dizendo que vou embora amanhã. Preciso ir embora amanhã.
- Bom, isso me desaponta. Pensei que já estivesse se adaptando com tudo e com seu próprio esquadrão. – entendi que ele se referia a Teddy e Baby.
- Não nego que me apeguei a eles. Mas família vem sempre em primeiro lugar.
Ele me olhou com uma expressão diferente, com um brilho no olhar, e eu não conseguia desvendar nada do que se passava em sua mente. E a mistura daquela bebida com sua voz em meus ouvidos me fazia sentir cada vez mais um formigamento desconhecido no estômago.
A música acabou e outra começou em seguida. Suspirei com os acordes familiares. Mais uma da lista da família. Queria saber se algum dia voltaria a escutar aquele CD.
Slade parecia fascinado com minha reação à canção e estudava cada movimento meu.
Eu não sabia descrever o que estava sentindo. Tudo e nada. Vontade de pular e dormir ao mesmo tempo. Saudade me dominava e eu gostaria de berrar para todo o mundo me ouvir.
- Pequenas coisas como esta dão prazeres à nossa vida. – ele comentou baixo, voltando a atenção para a festa a nossa frente.
Me arrepiei com a profundidade de sua frase.
Sim. Dava. Simples notas que nos descreviam de formas tão intensas. Gerava reações peculiares. Algo que fez parte do passado e agora no presente me acompanhava impetuosamente.
- Meu pai era um soldado. Não durou muito tempo na guerra, porém. – comentei sem fundamento.
- O que houve com ele? - perguntou se virando pra mim interessado - escolheu sair ou algo trágico enfrentou seu caminho? –. Era fascinante que ele sempre se demonstrava dessa maneira para cada palavra que saía da minha boca. Era atencioso. E eu compartilhava essa atenção com sua própria boca carnuda.
Talvez a bebida tivesse me deixado assim. Não preste atenção na boca dele, . Não vai dar certo.
- Minha mãe – continuei – ele decidiu deixar tudo aquilo por ela.
Ele assentiu como se entendesse.
- Então ela deveria valer a pena.
Eu concordei.
- A melhor pessoa que já conheci – respirei fundo apertando o cordão em meu pescoço, com seus olhos seguindo minha pele – era irritada, esquentada. Ele acalmava o fogo dela. Eles meio que se completavam.
Ri de leve ao notar que já estava soando estúpida contando sobre minha vida abertamente. Nunca fui boa para bebida. Ou talvez boa demais já que com alguns goles o efeito batia, e honestamente, perder todas as inibições não era algo que eu abominava.
- Os melhores casais são assim. A diferença completa. – ele sorriu para si mesmo, o olhar distante. Respirei profundamente um pouco perdida.
Às vezes eu mesma imaginava se teria um relacionamento como o deles. Intenso. Ardiloso. Apaixonante.
Desde pequena eu cogitava acabar sozinha. Era um sentimento de solidão. Mesmo ficando com garotos e mais garotos, nenhum deles conseguia preencher aquele vazio.
Eu queria mais do que um simples amor. Queria experimentar o fogo me queimando entre as veias.
- Confesso estar surpreso por você não vir com paus e pedras pra cima de mim. Poderia estar passando por uma lavagem cerebral de sua trupe. Insistem em me odiar – ele riu – mesmo não tendo feito algo diretamente a eles.
Ele estava tentando me provocar? Julgamentos por cima era uma maneira de fazer isso.
- Felizmente sou capaz de ditar o que uma pessoa é ou não é, por si mesma. – sorri como se esperando que ele retrucasse de alguma forma.
- E como me julga? – perguntou se virando para mim.
Encarei sua face por alguns segundos, seus olhos estavam escuros.
- Uma pessoa que usa a casca dura para tampar muitas feridas, como a maioria de nós. Mas você lida com uma comunidade. Lidera esta comunidade. Então teve que passar muito mais do que a maioria. E sobre todos os boatos que rolam a solta por aí, deve ter um motivo para que cada um deles seja verdade. Por isso não vejo o porquê de me juntar à audiência e lhe crucificar.
- Tem certeza, Romero?
Toda certeza.
- Sim, Slade – respondi tomando o resto da bebida em minha mão. E seus olhos demoraram a sair de minha boca vermelha.
Ele suspirou e encostou-se ao vidro da própria janela, e estava me analisando. Como eu havia feito.
- Eu acho que você não sabe do que está falando, Romero. Seu senso de direção está errado. Fiz coisas que fariam você se arrepiar de medo – ele sussurrou – se soubesse delas, estaria batendo palma para todo julgamento que recebi por meus atos.
- Não se ofenda Slade, não quis dizer que você é flor que se cheire – o provoquei – mas também não tem toda essa pinta de mal. Minha conta e a conta de todo mundo aqui está no vermelho, não se martirize tanto. Não é o bicho papão. Mesmo gostando de pensar que é.
Finalizei dando um tapinha em sua bochecha, fazendo o entender com quem ele estava querendo lidar.
O contato foi eletrizante e acabei deixando minha mão ali, pele com pele, por mais segundos do que precisava. Ou precisava. Era necessário.
Ele fechou os olhos e apreciou o toque. Quando retirei a mão, ele os abriu novamente, e sua visão queimava.
- Quer saber o que acho de você ? – ele perguntou recordando seus sentidos.
Mas tudo parecia estar quente dentro daquele carro.
Não havia som na festa lá fora. Somente nossas respirações, o álcool em minhas veias, minhas pernas arrepiadas pelo clima e pela conversa.
A música sedutora no fundo com o coral entrando em meus batimentos cardíacos, que se aceleravam a cada olhar quente que ele dava em minha direção, com seu sorriso de lado. Como se esperasse alguma insinuação minha para poder investir.
E eu estava confiante quando o respondi.
- Achar ou ser? Pode tentar, mas dificilmente vai acertar em alguma de suas hipóteses.
- Você tem esse olhar de quem viu bastante, experimentou e aprendeu muito com a vida. Mas nada disso lhe fez sentido ou razão, sabe por quê?
- Por que? – revidei, encostando-se ao vidro atrás de mim.
Estávamos os dois um de frente para o outro. O carro era grande, então não havia desconforto.
- Porque não era daquilo que você precisava. Vejo uma menina quieta, educada, e extremamente bonita, e sabe disso. Mas cada flash de vida que possui estava sem prazer algum de fazer, porque não era o bastante pra você. É silenciosa, julga os outros com o olhar, mas espera para conhecer, até que vê que não era o que esperava e acaba se despontando. A aventura não te dava fogo. Você precisa de algo para acender toda a fúria que tem guardada dentro de si, já que o pouco não é o suficiente.
E algo começou a se acender dentro de mim.
- Eu passo algum tempo te observando, você sabe. Todos a sua volta se movem e você fica lá, analisando tudo, querendo mudar algo, com o espirito de mudança dentro de si. Alheia aos que te notam também, devo dizer – ele riu e quase sorri, mas mantive minha postura de predadora. – Quando te encontrei bêbada, tive uma ideia completamente diferente sobre você. Excesso de confiança era a melhor parte. Mas assim que descobri a verdadeira , algo me dizia que ela ainda tinha muito que mostrar para o mundo. Como se 90% do que se passa em sua cabeça, nunca saía em palavras, somente pelo olhar.
Eu estava hiperventilado com suas palavras. O olhava séria, com meu peito subindo e descendo com força.
E eu não gostava daquilo. Ele era um observador. E tocava em pontos sensíveis demais sobre mim que eu preferia não ouvir. Mas não o interrompia.
Ele se aproximou.
- Você tem garra. Fez um sacrifício para continuar caminhando mesmo quando se encontrava sozinha. Seu objetivo era sua irmã, mesmo sem saber se ela estava viva ou não, sua vontade era ter a vontade de continuar. E não parou.
Ele correu seus dedos pelo meu braço nu e me arrepiei com o toque. Olhei para o contato de nossas peles e voltei para o seu rosto. Ele olhava para lá também. Respirava profundamente, o rosto a centímetros do meu. Eu não sabia o que pensar do meu próprio corpo que não parava de ter esse tipo de reação sempre que ele se aproximava.
- É isso que acho de você, . – sussurrou a frase, levando seus dedos para minha pele sensível no pescoço, até chegar a minha bochecha, e fez um carinho ali.
Nossa troca de olhares era intensa.
E eu estava com raiva.
De toda a resposta positiva do meu corpo, de toda aquela tensão sexual que se instalou. Eu tentei ser legal com ele e ele me apunhalava pelas costas. E com o que? Sendo alguém interessante. Alguém que fazia meus pensamentos cessarem apenas para ver o movimento de sua boca, me pintando como ninguém jamais havia feito. O interesse que ele possuía me deixava fraca por si só. Ele tinha interesse em mim. Não somente em toda a aparência. Mas no saber. No me conhecer.
E a forma com que ele conseguiu falar tão bem, me fez pensar o quanto tínhamos em comum. Tudo que ele pôde ressaltar sobre minhas ações através de olhares foi o tanto que eu pude reconhecer ele como uma pessoa diferente do que diziam ser. Aquele homem estava destruído por dentro. Mas também destruía os que estavam ao seu redor.
Baby, you’re no good for me, darling
Cause if you’re gonna love me
And leave me hanging here
Then I rather you leave
Leave me lonely here
A carne humana é tão fraca.
Palavras nos encantam, toques nos encantam.
Aparência nos encanta e personalidade nos encanta.
Ele tinha todos aqueles requisitos e eu apenas pensava no que fazer, no momento em que ele já estava impregnado em mim.
Momentos como esse são pequenos, e trazem o prazer de viver.
Ele estava inclinado em minha direção, acariciando meu rosto. Eu necessitava daquilo. Somente para conhecer, tentar. Um dos momentos em que não somente meus olhares funcionavam. Se 90% das palavras em minha mente pudessem se concretizar em algum som, virariam o gesto que fiz a seguir.
Aproximando-me muito lentamente, encostei meus lábios nos seus. Ele puxou um fio de meu cabelo para trás.
Era tão leve, como uma brisa tocando minha pele.
Mais uma vez, sua boca tocava com suavidade minha clavícula, meu pescoço, bochecha.
Se instalou em frente aos meus lábios e eu estava tremendo. De uma forma gostosa.
Suas mãos grandes estavam em minha nuca e com cuidado ele chupou meu lábio inferior. Meus olhos estavam fechados tentando sentir cada sensação que aquele momento estava me oferecendo.
Mas como havia dito, eu estava fraca.
A bebida em meu sangue, o medo do inesperado, a sensação boa demais sendo corroída pela falta de dominância.
E bastaram alguns pensamentos para que eu perdesse o controle. Minha mente estava dançando e eu não sabia no que pensar. Minha mãe, meu pai, . O que achariam daquilo. O que eu estava fazendo. Não me reconhecia. Sentimentos demais. Saudade. Dor literal e sentimental. O trailer.
Ele mordeu meus lábios de forma deliciosa, mas tive que me afastar quando percebi que lágrimas caíam de meus olhos.
Olhei para meus pés tentando saber ao que reagir e entender o que estava acontecendo ali.
Slade me chamava pelo nome e eu o ignorava completamente.
Ele bufou como se o caso estivesse perdido e continuou calado.
Eu saí do carro não sem antes ouvir Slade batendo contra o volante, tentando aliviar a frustação. Eu sentia a mesma coisa, mas não sabia como pará-la.
Corri para dentro da floresta e percebi que ninguém estava atrás de mim e agradeci estarem chapados demais por isso. Entrei afundo e me sentei em uma pedra.
Estava frio lá fora, e tudo piorava com a minha dificuldade de entender o que tinha acontecido dentro daquele carro.
Aquela era só a cereja do bolo. Eu estava cansada de estar sozinha. Eram opiniões demais guardadas só pra mim, monólogos e monólogos que precisariam explodir pra longe.
Lágrimas continuavam a cair e comecei a soluçar. Eu sentia tanta falta da minha mãe, mesmo não usando palavras em momentos como esse, apenas o seu carinho na minha cabeça faria tudo ser melhor.
Mas ela não estava aqui, ninguém estava, nem mesmo , a única pessoa que tive todos aqueles anos. A minha verdadeira companheira.
Tampei os olhos com as mãos e pensei no quanto parecia ridícula. Era bom na verdade que eu era vista como uma pessoa que falava pouco e pensava demais. Porque se tais reclamações da minha mente saíssem da minha boca, eu não me aguentaria.
No meio do gesto, acabei escutando um gemido prolongado.
Castigo vem cedo.
No meio de tanto drama, ali estava a resposta que eu recebia do universo. Apenas alguns minutos do lado de fora e meu velho azar voltava a atacar. Dessa maneira eu nunca mais colocaria os pés pra fora da porta. Nunca mais.
Quando me virei pra trás, encarando a face daquele que estava atrás de mim, juro que poderia ter um ataque do coração.
Encarar um morto vivo já estava de bom tamanho para se ter alguns pesadelos.
Mas um palhaço morto vivo...
A cara branca, sorriso grande com os dentes serrados, cabelo verde, olhos injetados, nariz vermelho e todo o rosto e principalmente a boca coberta de sangue e resto de carne morta.
Andei para trás e tropecei. Ele estava torto, com a cabeça quebrada, mas ainda vinha em minha direção, desejando minha carne. O sangue jorrava da sua boca, que estava cheia, e sua língua roxa cortada ao meio e colocada para fora.
Eu iria vomitar.
Ele veio para o chão e eu poderia jurar que estava mais difícil conter o nojo do que ser uma pessoa lenta de verdade que não conseguia se defender.
Ele encostou-se ao meu braço e entrei em modo de alerta, pegando uma pedra média ao meu lado. Esperei ele se desequilibrar e logo ele caiu no chão ao meu lado.
Uma maldita patrulha do QG na floresta e um palhaço morto vivo aterrorizante escolhia ser atraído pelo meu choro.
Com toda força existente em meu braço atirei a pedra contra o seu crânio. Escutei o barulho dele se quebrando e forcei mais algumas vezes. O sangue respingava por toda minha roupa e face, e contrastava o vermelho na minha pele bronzeada. Bom, agora estava certificado de que Slade não tentaria me beijar.
Quando percebi que a cabeça já estava completamente amassada, joguei a pedra para longe, acomodando-me no chão novamente ao lado do palhaço.
Noite agitada.
Após olhar as estrelas uns momentos com meu amigo morto do lado, resolvi que era hora de voltar, se ainda pudesse, e ter que arcar com as consequências do que aconteceu naquele carro.
Claro, que se conseguisse, iria tentar evitar Slade o máximo possível.
Levantei-me e segui meu caminho de volta. Ao menos a luz do luar me servia de rota dessa vez, afinal da última cena em que me lembro de ter trombado com vagantes acabei parando nesse QG...
Após um tempo voltando a pisar em folhas secas no chão e olhando o céu azul escuro, senti que estava sendo observada. Parei por uns instantes e tentei prestar atenção ao meu redor. Duas surpresas em um dia seria um saco de aturar. Mas para minha sorte, algo muito melhor apareceu em minha frente.
Grimes, o seu ajudante bonitinho, o filho que havia me ajudado na fuga com as crianças até a placa da estrada principal e uma menina de cabelo e olhos escuros com a feição amigável. Todos estavam ali na minha frente. Todos pareciam amigáveis. Eu amava esse povo. Porque eles serviriam de algo pra mim.
Corri na direção do Xerife e o abracei com força, senti-o tenso e o soltei, me ligando do que estava fazendo, mas a euforia por encontrá-los era maior.
- Posso ganhar um abraço também? – disse o moreno ao seu lado, e eu sorri sem entender direito.
Pulava por dentro em comemoração, e percebi que tinha um olhar suave em seus olhos.
- O que vocês estão fazendo aqui?
- Estávamos patrulhando. Um barulho nos atraiu pra cá e acabamos por te achar. O que aconteceu com você? – sussurrou.
Olhei para baixo e notei minha roupa cheia de sangue.
- Apenas um encontro indesejado, vocês sabem. – dei de ombros.
- Você foi mordida? – a menina tentou apenas fazer o que era certo e acabou recebendo um olhar feio do amigo de que eu ainda não tinha conhecido.
- Não, eu estou bem. – sorri.
- Temos que ir então, depressa. vai ficar eufórica ao descobrir que você está bem, . – o adolescente disse.
Viajei por alguns segundos ao ouvir o nome de minha irmã. Ela estava viva e estava bem. Mas eu não poderia ir agora. Sim, é uma merda, tipo de decisão ridícula a tomar quando aquilo era tudo que você mais queria. Mas eu estava confiante no meu objetivo.
- Não posso ir agora, .
- Mas...
- Eu sinto muito. Porém você precisa me escutar. O QG me abrigou, Slade mais precisamente. Eu fiquei perdida por algum tempo na cachoeira e ele me encontrou. Eu achava que estava tudo bem para sair, e está, até que recebi algumas informações que seriam valiosas de eu adquirir.
- Que tipo de informações, Romero? – eu olhei com estranheza para o amigo de , que sabia até meu sobrenome e eu não sabia o seu, e ele deve ter percebido, pois falou com a voz fraca – Judas.
- Paige – disse a morena levantando a mão.
- Max – falou o menino se empolgação. Na verdade, mesmo no ataque a expressão dele não parecia mudar, puro tedio, como meu interior, mas por fora.
- Tudo bem. Há um hospital na área, comandando por um cara louco que tem um histórico de destruir comunidades. Ainda não sei muito, mas eu passei na frente dele quando estava atraindo aqueles vagantes pra longe das crianças. Eu preciso contar com força de vocês para que se mantenham fortes para qualquer outro ataque. Mas por favor, estou me precipitando, o que aconteceu depois que fui embora?
- Visitas indesejadas de , sobrevivência em primeiro lugar, nada de interessante – disse Judas indiferente.
- Perdemos bastante pessoas, mas conseguiremos nos reerguer aos poucos. – complementou.
- Vocês são fortes, tenho certeza que sim – encorajei.
- , – ele começou, pensando bem nas palavras que diria a seguir – eu espero que você saiba que não é uma pessoa exatamente...
Oh meu Deus. Ok. Mais tiros sobre a personalidade furada dele enquanto eu estava minutos atrás me pegando no carro com o próprio.
- Eu sei sobre isso , estou mantendo minha guarda no alto – não o tanto quanto deveria.
suspirou e colocou uma mão em meu ombro, em sinal de que eu teria seu apoio.
- sente sua falta... Ela me ajudou bastante, a todos nós na verdade, e espero que você venha logo, vai fazer ela se sentir melhor. E não tenho certeza se poderei falar que te vi...
- Ela é cabeça dura mesmo. Extremamente protetora, provavelmente sairia no meio da noite à minha procura...
Virei-me por um instante e peguei o bilhete que estava em meu sutiã, entregando na mão de Paige, pra ficar menos estranho.
- Entreguem isso à ela por favor. – eu sorri, um pouco desconcertada.
Nos despedimos e eles se foram, contudo no meio do caminho eu chamei por .
- Diga a ela que sinto sua falta, também.
Falei com os olhos marejando e ele assentiu, e os quatro voltaram de onde vieram.
Capítulo 10 – Sinner’s Prayer.
Romero.
Não importava quantos banhos eu tomasse, eu continuava suja.
Talvez apenas me sentisse suja, sem necessariamente estar, mas algo em mim não se limpava, não importava quanta água quente me banhasse ou quanto me ensaboasse, continuava imunda.
Por mais e mais que eu tentasse, algo em mim não se limpava. Poderia ser o sangue em minhas mãos de mortos vivos que deveriam me trazer a sensação de segurança, mas não me traziam nada mais a não ser mais sujeira.
Sangue de pessoas que morreram de formas que nem eu e nem ninguém saberia, mas que estavam lá, jogados nas florestas, nas ruas e em todos os cantos, atrás de sobrevivência. O que nos diferenciava dos mortos vivos?
Me perguntava isso todos os dias, mas continuava sem resposta.
Havia sido uma semana difícil para mim, mas felizmente consegui dormir algumas horas por dia e comer pouco – muito pouco. Minha cabeça ainda estava focada na busca implacável atrás de minha irmãzinha. E os sinais de minha rotina começaram a aparecer enquanto me focava no espelho, tentando descobrir quem era a garota no reflexo.
Eu estava tão mudada desde a última vez que realmente me vi. Meu rosto continuava o mesmo, só que mais magro, as olheiras embaixo de meus olhos castanhos focados. Mas havia conseguido um pouco de bronzeado durante a semana, já que passava mais tempo do lado de fora, embaixo do sol quente de Oklahoma.
Meus cabelos loiros estavam pedindo por um corte, por uma hidratação e cuidados refinados, mas cuidar dos meus cabelos não era mais minha maior preocupação. Eu penteava-os com meus dedos, eles continuavam bagunçados como provavelmente todo meu exterior e interior.
Meu corpo continuava a mesma coisa de sempre, só estava mais magra que antigamente, porque antes, sempre tive a comida ao meu favor. Nessa nova realidade era eu mesma e o que tivesse para comer, e se não tivesse, ficaria sem.
Encarando a mim mesma, não me sentia como eu. Depois de tudo que passei, nem sabia mais se eu existia ou era um ser flutuante a procura de um lugar para pousar.
Resolvi vestir algo mais simples, apenas uma calça jeans skinny e uma camisa branca de gola V. Estava calor para usar algum casaco. Em meus pés calçava uma bota de cowboy que me lembrava de .
Droga, queria encontrá-la logo, era doloroso demais ficar atrás dela sem qualquer tipo de notícia ou sinal. Tinha medo de a perder de vez de minha vista, não conseguia me sentir bem com tudo isso acontecendo.
Parecia que mais que eu a procurava, mais ela sumia e ficava cada vez mais longe. E eu era covarde, covarde demais para atravessar o riacho e me jogar de vez na mata, porque tinha medo. Tinha medo de acabar me perdendo e então jamais a encontrar.
Não dormia mais porque todo pesadelo que tinha era com minha própria morte na floresta, então no fim, me encontraria e teria que fazer algo que seria difícil demais para ela.
Me sentia cega, sentia que estava andando em círculos ou esquecendo de algo importante que me levaria até minha irmã. Ou talvez eu estava adiando o inadiável, talvez era hora de aceitar.
Mas isso eu negaria até o fim.
Tirei do vidro do espelho da penteadeira uma pequena lâmina gilete que se escondia em uma pequena embalagem plástica para não estragar ou sujar. Essa lâmina tinha um significado muito importante para mim.
Quando a encontrei, foi na mesma época que sumiu e toda vez que eu pegava a lâmina, pensava em que passo daria a seguir. Cortar meus pulsos ou continuar procurando. A guardava então para quando perdesse a fé, quando cansasse de procurar, então eu me juntaria a minha irmã seja lá onde nós iremos quando morrermos.
Mas como já disse, sou covarde demais para tal ato. Covarde demais para ver meu sangue escorrer e minha vida se esvair de vez. Atingir minha paz e dar adeus a essa vida exaustiva e tortuosa. Mas se eu o fizesse, o que mudaria?
Será que algum dia encontraria minha paz?
Será que havia algum tipo de paz para uma pecadora como eu?
Prendi meu cabelo em um rabo-de-cavalo e guardei a lâmina em meu bolso. Não sabia ao certo o que fazer com ela agora, mas em certo momento descobriria.
Um dia ela me seria útil.
Grimes.
O sol quente em minha cabeça não me incomodava, tinha que limpar e manter a Colônia segura para todos.
Os andarilhos apareciam de todos os lados e isso era estranho, principalmente durante o dia. Minha preocupação era que a Colônia estava se tornando um lugar menos seguro do que deveria.
Passei tanto tempo tentando erguer e manter a Colônia, mas nos últimos tempos parecia que tudo estava a ponto de ruir e desabar em nossas cabeças. E eu como o líder não poderia deixar isso acontecer.
Mas ultimamente também parecia que tudo que eu fazia não era o bastante, nem para mim, nem para a Colônia e nem para os que amo.
Era estressante demais, muita pressão e por mais que eu desse meu melhor, sempre tinha um Slade apontando o dedo em minha cara e dizendo o quão bosta eu sou, o quão péssimo líder sou, na esperança de me ver fraquejar e jogar tudo que construí nas mãos de outro.
Outro só assumiria meu lugar por cima do meu cadáver.
Eu matava vários andarilhos por dia, o que era uma forma de além de me desestressar, fazia com que minha cabeça ficasse no lugar. Os corpos destruídos mortos por todo lado de fora da Colônia me faziam relembrar o começo, onde matar andarilhos era só o que tínhamos, enquanto fugíamos e procurávamos um lugar para passar a noite.
Época em que se podia confiar em quem estava ao seu lado, sendo seu braço direito. Agora tudo era difícil, era complicado e confuso, onde não se pode mais confiar em mais ninguém, pois quando você tem o Judas – o real, não o caipira – entre o grupo, ele semeia desconfiança e falsidade.
Meu grupo começou com quase ninguém, agora tinha pessoas, tinham famílias e a metade não sabe nem como segurar uma faca. Se eu não cuidasse da Colônia com tudo que podia, essas pessoas mais frágeis seriam as primeiras a morrer. E seus sangues estariam em minhas mãos.
E eu tinha tanto sangue em minhas mãos que não sabia mais de quem era qual sangue.
- Ei, exterminador! – A suave voz, mas em um tom alto chamou minha atenção. Me virei bruscamente para o muro, onde estava , com um binóculo em uma mão e uma arma na outra.
Que mulher.
- Quer um pouco de limonada? – Perguntou, mas não respondi de primeira. Ela conseguia tirar minha atenção e ficava difícil pensar.
Me chamem de carente ou necessitado, mas havia um bom tempo que nenhuma mulher mexia com minha cabeça de tal forma. tinha algo diferente, talvez fosse tão fodida quanto eu e por isso nos dávamos bem. Era algo muito... Inexplicável.
Quanto mais ela ficava aqui, quanto mais se acostumava e se enturmava, menos ela fazia parte. não combinava com a Colônia, mas mesmo assim não havia ido embora ou fugido. Por isso eu acreditava que ela gostava daqui e de nós.
Mesmo assim, ela jamais seria uma de nós, como eu jamais seria um deles. Estávamos condenados para o lado de fora dos portões, a violência e a sobrevivência. Ambos não sabíamos como sobreviver sozinhos, sempre precisávamos de alguém. Tínhamos tanto em comum, mas eu ainda não sabia como chegar perto dela.
Um passo de cada vez.
Fiquei parado que nem um idiota encarando , sem ter certeza de sua expressão já que estava muito sol, mas com certeza estava linda como sempre.
Mas era um erro ficar focado tanto nela dessa forma, era no mínimo perigoso. E eu pude sentir isso na pele.
- , abaixa! – Pude a ouvir gritar do outro lado e mal deu tempo para que eu reagisse, só me joguei no chão tentando fugir dos dentes que vinham em minha direção.
O andarilho caiu em cima de mim e eu tentei lutar contra, evitar que ele conseguisse tirar um pedaço de mim. O monstrengo batia os dentes e murmurava algo indecifrável enquanto tentava me devorar.
E eu tentava o máximo para que ele não conseguisse ter sucesso. Procurei o machado que usei para matar os seus companheiros, mas ele parecia longe demais.
Então pude ver a bala atravessando seu crânio silenciosamente e o bicho caindo ao meu lado, morto de vez. Virei minha cabeça e estava parada com o rifle em sua mão.
Me deitei na grama, tentando recuperar o fôlego. Foi por pouco.
- É, eu aceito a limonada. – Disse em um tom audível e ouvi a risada de . Ah, como era boa.
Bom, ela salvou minha vida, será que isso me ajuda?
Romero.
Eu era uma super-heroína.
Assumo que fiquei bastante assustada, imaginei a possibilidade de ver sendo devorado pelo morto vivo diante meus olhos, mas em momentos desses nós temos atitudes desesperadas, então eu atirei no bicho e ele morreu.
Salvei .
E assumirei mais uma coisa: eu fiquei observando enquanto ele lutava contra os mortos vivos, que nem era uma forma de luta já que só ele atacava e os bichos mal revidavam. Às vezes fico pensando em mim mesma e nas minhas neuras, no sangue em minhas mãos, mas quanto sangue tem em suas mãos?
Ele era um mistério para mim, eu sabia muito pouco sobre sua vida e seu passado antes do fim do mundo, ou até mesmo de antes de nos conhecermos. Só dizem que tem seus problemas, que passou por muita coisa e perdeu também, mas não havia perguntado.
Eu não confiava tanto no homem para querer saber sobre sua vida, já que ele teria que saber sobre a minha também e isso seria algo que jamais fiz. Não me abria para as pessoas, não compartilhava inseguranças e não pedia conselhos, a não ser se a pessoa fosse de extrema confiança ou , que era basicamente a mesma coisa.
Às vezes pensava sobre arrumar novas amizades, criar novos vínculos já que estava na Colônia e sem previsão de ida. Porque de qualquer forma, quando encontrasse eu a traria de volta para a Colônia, faria desse lugar sua casa e tudo ficaria em perfeita paz. Então talvez fosse uma boa ideia arrumar novas amizades, tentar conhecer pessoas.
Era doloroso passar por tudo isso sozinha e até perigoso, já que eu não tinha ninguém cuidando de mim e me dando cobertura durante as noites que passava na mata. Claro que pedia para ir comigo vez ou outra, mas eu não aceitava. Não por causa de sua presença, mas era mais que isso.
Nós estávamos nos aproximando mais agora que eu estava começando a dar uma chance para a Colônia e ele estava respeitando minha decisão de ir atrás de minha irmã sempre que possível. E quanto mais me aproximava dele, mais difícil era de ficar perto dele. Era difícil me concentrar e não me envolver demais.
O homem era confiável, era meio fechado e misterioso, mas tinha um coração bom e não me faria mal, mas eu faria a ele. Todos que já chegaram perto de mim ou morreram, ou desapareceram. Com o tempo estava aceitando o fardo de ficar sozinha para o bem de todos.
Às vezes até pensava se valeria mesmo a pena encontrar . E se ela estivesse em um lugar muito bom? Com pessoas que ela gostava e eu a arrancasse de lá para continuar com nossas vidas nômades e selvagens? Que tipo de protetora eu seria?
Tivemos milhares de chances de nos acalmarmos em um lugar, mas meu senso de desconfiança jamais deixaria com que criássemos raízes.
Eu estava presa na Colônia até que encontrasse minha irmã, então aí juntas escolheríamos o próximo passo a seguir. Mas ao mesmo tempo, não me via indo embora da Colônia e dando as costas para todos que me acolheram.
Estava dividida entre duas famílias: a minha e a que poderia ser minha.
Mas eu não era parte disso, eu não era que nem eles. Não era pacífica, inexperiente, calma, não me sentia segura e muito menos acreditava em uma vida normal do lado de dentro do muro. Eu era todo o oposto. Eu era desconfiada, selvagem, agitada, preocupada e me punia, evitando qualquer tipo de conexão e contato com alguém, porque não queria uma vida normal. Estava tão acostumada com essa vida que criei gosto por ela. Aprendi a viver com meus pecados e os fiz virarem parte de mim.
Não me reconhecia mais, porque havia me transformado e me despido de tudo que já havia tido para ter forças para fazer o que teria que fazer a todo custo que tiver.
Era sobrevivência.
Desci do meu posto e fui para a enfermaria checar os que ainda estavam doentes.
A enfermaria estava já mais vazia. Agora só restavam o garoto que perdeu o braço, Willa e Lionel, junto com seus dois seguranças que não saiam do seu lado, nem ao menos iam ao banheiro direito, mas comiam que nem dois porcos.
Provavelmente no QG eles passavam fome ou algo do tipo. Provavelmente era do tipo que maltratava e torturava seus soldados para se tornarem forte. Comida? Não era seu forte. Matar? Nisso eram ótimos.
Willa passava a maioria do tempo deitada, quando não estava dormindo, estava lendo. Ela já estava bem melhor, só que Friedrich insistia em deixá-la de observação.
Durante essa semana um dos tópicos mais discutidos entre a reação do grupo de confiança de – grupo que eu estava – era sobre a situação de Willa e quando ela saísse da enfermaria. Para onde se mudaria, já que sua mãe havia morrido e botá-la na mesma casa seria horrível demais. Decidiram que ela fosse morar com a Barbie a partir do momento que saísse da enfermaria.
Willa era para ficar comigo, mas todos acreditaram que ela se daria melhor com a Barbie e eles tinham medo de que ela morresse de fome comigo, já que eu mal sei ferver água sem incendiar a cozinha toda.
O que era mentira, já que minha mãe havia me ensinado a cozinhar e depois de vários pequenos incêndios, milhões de pedidos de meu pai para que eu desistisse da loucura que era me aventurar na cozinha, eu havia aprendido a fazer algo. Pelo menos meus pais e gostavam de minha comida, ou pelo menos fingiam bem.
Mas mal podia esperar para que Willa saísse da enfermaria e retomasse sua vida, ela precisaria de um tempo mais para ela e ocupar sua cabeça, ficar parada em uma enfermaria era ruim para ela. E eu também mal esperava para sair para patrulhar e ir até a floresta, era sempre a melhor parte do meu dia. Pena que tínhamos um pequeno imprevisto sem um braço e com uma cara queimada que me impedia de sair.
Não confiava nele, não seria louca de deixar Willa e os outros moradores sozinhos com Lionel junto com seus dois guardas. Eles estavam sendo um fardo, um insuportável fardo.
E ainda mais o Lionel, que reclamava de dor toda hora, chorava que nem uma criança e incomodava a todos.
Minha vontade era de jogá-lo para os bichos comerem, mas, para isso eu teria que matar dois caras do . E possivelmente quando ele chegasse teria que inventar uma desculpa plausível.
Provavelmente eu perderia um braço também e eu gostava do meu.
Bom, por sorte, as horas do nosso querido hóspede na Colônia estavam contadas.
***
Logo o famoso Slade estava ali novamente. Com seu exército aos pés, todos bem armados e aquele típico sorriso presunçoso jazia presente em seus lábios.
Ele entrou cantarolando alguma coisa, bastante animado. Como se ele tivesse visto passarinhos azuis, e eu rezava para que esses passarinhos não tivessem o nome de e Romero.
No pátio, só restavam eu, , Lola, Judas e os dois caras com Lionel resmungando. Eu tinha um presente para Slade, algo que ninguém havia visto e eu carregava bem cuidadosamente, só esperando o momento certo de entregá-lo.
- ! Meu amigão! – anunciou cumprimentando o homem, que não esboçou nenhuma reação. – Está tudo bem? – Perguntou segurando o rosto de em suas mãos. – Que mal humor.
- Acaba logo com isso, . – ralhou.
deu dois tapas leves no rosto de e então correu os olhos pelo pátio. Não havia uma plateia como a última vez, então eu esperava que ele pegasse o que tinha que pegar e fosse embora logo.
Antes que mais alguém perdesse uma parte do corpo e não fosse ele.
- Vamos direto ao trabalho? – Novamente anunciou e mandou alguns de seus caras pegarem os mantimentos, como planejado. – Acho que estou com calos vocais. Preciso falar menos. Suspeito que ninguém entende meus discursos. É muita poesia gasta com gente de mente pequena. Pelo menos deixo todos se cagando de medo. – ele riu.
Era sempre assim, pelo o que me falaram. Ele vinha uma vez por mês e pegava os mantimentos separados para ele. Geralmente eram somente alimentos porque era isso que tínhamos em abundância. E depois ia embora, voltava no outro mês e tudo se repetia. Houve vezes que ele demorou até mais para voltar e isso deveria ser um milagre.
Me pergunto se ele tem um calendário em casa desse ano? Quando o Apocalipse começou as pessoas pararam de fabricar essas coisas. E ter a paciência pra marcar um x de caneta a cada dia para ter certeza da hora que vai cobrar a comida deve ser um saco.
Ter que olhar para aquele cara todo mês deveria ser um tormento, imagina todos os dias? Pobre de quem convive com ele.
Não digo que não era atraente, porque seria mentira. Ele tem uma boa saúde, bons artifícios e um charme, mas, a demonstração de poder dele na última vez fez com que eu só o visse como um babaca qualquer. Talvez estivesse muito enganada – e geralmente nunca estava -, mas caras assim não mudam e sempre são isso.
Tudo se resume ao poder.
Ele quer ter poder sobre nós, sobre os dele e sobre quem mais vier. Então amedronta a todos, passando uma face de vilão insensível e todos se assustam, fazendo com que ele tenha mais poder. E como eu já havia dito, não tenho medo dele.
Quando você trabalhava como garçonete ou em qualquer outro lugar barra pesada, principalmente em cidades pequenas, você acabava sendo vítima de vários tipos de assédios e acabava por conhecer vários tipos de homem. Todos tentavam passar a impressão de poderosos, esperando conquistar. Então ameaçam, assustavam e provocavam todos ao seu redor, esperando que você caísse aos seus pés.
Muitos já declaram ser capazes de matar suas mulheres como uma forma de flerte, uma forma de impressionar ou assustar. E meu maior medo na época era que eles fossem capazes disso de verdade. Matar uma inocente para se satisfazerem.
Por isso aprendi a atirar com quinze anos e sempre andava com um spray de pimenta nas ruas, porque queria garantir de que nenhum desses nojentos se aproximariam de mim.
E sempre que eles se aproximavam eu queimava seus olhos.
Por isso aprendi a não ter medo e sim apatia. Se eu não me importar, eles irão embora cedo ou tarde.
Felizmente, iria embora mais rápido ainda. Os seus capangas pegaram o que ele queria e Lionel já estava do seu lado, resmungando para ele e não para mim.
Mas, era como dizem: fácil demais.
- Ei, ei, ei. – Ele começou fazendo todos pararem e o encararem. – Cadê o braço novo de Lionel? – Sério? – , nós tínhamos um acordo, cara.
tremeu de raiva ao meu lado. Eu sabia que ele não faria nada, mas se eu estivesse dentro da cabeça dele, apostaria que estava matando com o olhar, de formas e maneiras diferentes.
- Como é? – respondeu naquele tom ameaçador dele.
Esse sim conseguiria entrar facilmente dentro da minha calcinha. Um pensamento indecente e desnecessário para o momento.
- , o braço. O braço daquele moleque, lembra? O braço que eu arranquei com o machado que estava em suas mãos – ele riu – eu quero o braço.
- Você só pode estar de brincadeira.
Essa foi minha deixa.
- Ei, . Pega aí!
Tirei o braço que já não estava mais ensanguentado de trás de mim e joguei em sua direção. Não em um movimento que ele pegaria de primeira, já que foi de surpresa. O membro bateu no rosto do homem e caiu no chão em seguida.
Ele piscou algumas vezes um pouco confuso com o que acabara de acontecer e todos, exatamente todos, levaram os olhares para mim.
Será que eu fiz errado?
Foda-se.
- Costure você mesmo – comecei em um tom autoritário – e se precisar de mais algum órgão, temos porcos. Talvez um cérebro lhe cairia bem.
Slade gemeu.
Todos me encaram.
Os soldados de Slade levantaram as armas.
Será que eu piorei a situação?
me fitava completamente incrédulo e irritado. me fitava sem expressão, então ele se abaixou e pegou o braço.
Pelo menos não foi a arma.
E então riu.
Como eu disse: maluco.
- Obrigado – ele disse entre risadas e seus homens abaixaram as armas – você acaba de se tornar 5% mais aturável, menina.
Eu já conheci loucos, mas esse com certeza era o pior de todos. Eu taquei um braço na cara dele, eu esperava ser bombardeada de tiros. Perder um braço, uma perna.
Não sei o porquê fiz isso e nem o que eu queria com isso, só fiz mesmo por fazer e talvez minha intenção sincera tenha evitado minha morte?
- Bom, isso foi divertido. Vamos repetir semana que vem! – Slade disse em um tom animado e envolveu em um abraço. – E preste mais atenção na sua namoradinha , o gesto foi um pouco suicida. E se ela está à beira deste comportamento, deve haver algo de errado. E estou preocupado com este olhar dela pra cima de mim, – ele sorriu me encarando, e obviamente eu tinha fogo nos olhos – sinto-me assediado. E claro, essa expressão mostra interesse – ele riu – e eu não quero passar por aquilo de novo. Não que eu esteja cogitando, é claro. Mas, quem avisa amigo é.
Com estas palavras ele saiu. Logo depois de dar uns tapinhas no ombro de como se fosse seu velho amigo. Era estranho ele ser dessa maneira, tratava como um amigo, de seu jeito sádico e ainda assim passava aqui e roubava todo o esforço que passávamos todos os dias para juntar nossa comida.
Todos ainda me encaravam levemente assustados, mas um a um foi se retirando aos poucos, indo para seus respectivos trabalhos.
ficou lá e eu também.
Naquele momento ele me encarava completamente chocado e eu não estava dando muito a mínima.
O quê? Eu só taquei um braço em um possível serial killer psicopata, quem nunca?
- Que merda você fez ? – perguntou em um tom calmo, mas sua respiração indicava que ele não estava nem um pouco calmo.
- Taquei um braço no rosto do Slade.
Ele riu debochado.
- E por que você fez isso, ?
- Porque era algo que todos queríamos fazer para calar a boca presunçosa dele.
- E você parou para pensar nas merdas que podiam acontecer à nós todos se ele tivesse se irritado?
- Não muito.
Então ele gargalhou de novo. Mas dessa vez foi uma gargalhada sarcástica e irritante.
Ele estava rindo de mim sem ao menos eu ter feito uma piada.
E isso me irritou.
- Okay, eu posso ter errado bastante tacando aquela merda de braço na cara dele, mas ele começou tudo isso! Ele vem aqui, chega dando ordens e você não faz nada! Você fica quieto e o deixa fazer a merda que ele quiser. Por isso ele arrancou aquele braço, por isso que ele deixou aquele inútil do Lionel aqui por uma semana, porque você não tem bolas para enfrentá-lo. – Explodi para ele, falando em um tom alto, mas não gritando. Porque eu estava cansada e também odiava ser debochada, não importa a quão estúpida eu tenha sido.
- Nunca mais repita essas palavras, você não me conhece. – se demonstrou um pouco mais irritado naquele momento, pela primeira vez.
- Mas eu estou errada? Você é o líder desse lugar e deixa aquele cara comandar tudo.
- Nós temos um acordo – ele se acalmou um pouco.
- Foda-se o acordo! O acordo diz que ele pode entrar aqui e arrancar um braço? O acordo diz que ele tem que amedrontar todos seus moradores? O acordo diz que ele pode entrar e sair a hora que quiser como se fosse o dono da porra toda, e ainda te diminuir deixando claro que você não é um bom líder? E que todas as merdas que aconteceram foram sua culpa? O acordo cobre você ser a vadia dele?
Eu disse as palavras sem nem mesmo pensar no que elas significavam, mas assumo que saiu um peso das minhas costas. Meus pais sempre me ensinaram a falar o que pensava doa a quem doer, porque se ficar alimentando uma mentira ou uma indecisão, as consequências podem ser grandes. E nesse caso, eu preferia ver um puto comigo do que um cada vez mais submisso a um sociopata.
Não seria eu a causadora das mortes, seria ele.
A forma com que ele me encarava mais incrédulo ainda me fez ter certeza que ele havia ficado ofendido. E se não ofendido, as palavras surgiram um efeito. Ele coçou as têmporas enquanto resmungava algo baixo. Fitou o chão por uns segundos respirando fundo e então me encarou.
- Não fomos nós.
- Como é?
- Não fomos nós que atacamos o Lionel.
- Como assim?
- Não fomos nós. Alguém o atacou e ele jogou para cima de nós, não faço a mínima ideia de quem tenha sido. E agora estamos pagando por uma merda que nem fizemos.
Permaneci em silêncio por algum tempo, tentando entender tudo aquilo. Então o Lionel armou para ferrar com a Colônia? E então a imagem do homem me veio à cabeça. Eu já havia visto Lionel antes. Não lembro quando, mas o rosto dele me era familiar.
E eu ao saber do que ele podia ser capaz, me amaldiçoei mentalmente por não ter matado os dois do Slade e o Lionel ao mesmo tempo.
Burra, , burra!
- Você está certa – começou chamando minha atenção para ele – o contrato não cobre a maioria disso, mas cobre a segurança da Colônia. E nós temos regras que devemos seguir. Talvez eu tenha sido muito mão aberta, talvez eu devesse ser mais duro com o , mas eu não quero uma guerra entre os dois grupos. – Ele estava de cabeça baixa, agora falando mais baixo, como se estivesse falando mais para si mesmo do que para mim. – Eu só queria manter todos a salvo, manter meus filhos a salvo. Meus filhos.
Eu não respondi. Eu não sabia o que responder. Eu não me sentia mal pelo o que havia dito, nem por tê-lo chamado do que chamei. Não queria ter sido tão dura com uma pessoa que aparentemente não anda com os parafusos no lugar, mas não podia deixar a situação do jeito que estava.
Se eu amolecer me torno fraca, se eu me tonar fraca pessoas podem morrer.
E eu preciso de pessoas para encontrar .
- Você está certa, – ele levantou a cabeça e me encarou fixamente, meu corpo se arrepia de forma absurda – eu o deixei me fazer de submisso, mas isso irá mudar. Tudo irá mudar.
A forma com que ele disse, me fez refletir. Era isso que precisávamos, de mudança. Não dava para continuar do jeito que estava e ele sabia disso muito bem.
Mesmo assim, não respondi. se aproximou mais de mim aos poucos e tocou meu rosto com sua palma. Um toque leve, sensível. Ele encarava meus olhos, só meus olhos e não parava de fitá-los. Aquele era meu ponto fraco.
Acabamos por encostar nossas testas por um tempo. Ele levou a mão que não estava em meu rosto até meu rabo de cavalo ou pouco frouxo e então o soltou, deixando meus cabelos caírem em meu rosto. Ele fechou seus olhos e eu acabei por fazendo o mesmo, e ficamos lá com nossas respirações se misturando. Mais a dele do que a minha, porque eu havia parado de respirar há algum tempo.
Então ele fitou meus olhos por mais alguns segundos e simplesmente se foi. Me soltou e saiu andando, me deixando para trás. Completamente sem fôlego algum.
Eu estava começando a repensar minha política de não dormir com ninguém.
***
Aquela noite não estava tão gélida como as últimas e eu não conseguia dormir. Passei quase uma hora rolando de um lado para o outro sem conseguir pegar no sono, então me vesti e saí um pouco, sem fazer barulho.
Fui até meu ponto de observação e fiquei lá, com minha arma e meus binóculos assistindo a tudo que acontecia.
E não era lá grande coisa.
Só alguns mortos vivos andando de um lado para o outro, fazendo sons enquanto imploravam por comida. Já estava até começando a ficar tedioso.
Mas então o tédio passou.
Assisti sair da Colônia como um furacão, pouco se importando se estivesse fazendo barulho.
Do lado de fora, começou a matar todos os bichos que via em sua frente, pouco se importando quem fosse. Ele matava todos rapidamente, despejando toda sua força em cada crânio que ele entrava com a lâmina do machado. O mesmo machado que arrancou uns braços por aí.
E vendo-o tão furioso, tão focado em matar os bichos por aí, me senti um pouco culpada. Ele fazia seu melhor, todos nós fazíamos. Estávamos há anos assim, matando para sobreviver, pisando em outros para subir e por aí vai. Perdemos pessoas, conhecemos outras e as perdemos.
Temos inimigos diários, inimigos que podem ser tanto os que estão mortos tão quanto os que estão vivos. Vivemos essa vida cheia de preocupação, cheia de cuidados e nem sempre era fácil. Para , comandar uma Colônia toda e manter todos a salvo, enquanto tenta cuidar de seus filhos para que eles não se percam e esqueçam quem já foram, era uma tarefa diária. Era um peso que ele carregava nas costas sozinho.
E ? Provavelmente era a mesma coisa. Tinha que cuidar de um grupo, talvez a violência e a brutalidade sejam suas armas para ter o respeito dos seus soldados. Eu não podia desumanizá-lo, porque deve ser tão foda para ele quanto era para , para mim, para e para todos que tem que viver.
O preço da vida era muito alto, muito difícil de se pagar e viver anda se tornando um preço que não valia mais a pena pagar.
Mas mesmo assim, no final do dia, todos somos iguais. Todos nós queremos deitar em nossas camas e dormir, esperando um dia melhor, esperando que quando acordarmos tudo estará diferente. Que tudo que passamos seja apenas um pesadelo que tenha uma lição de vida.
A lição que tiraria desse pesadelo era: somos pecadores, não somos nem melhores e nem piores do que os bichos que matamos todos os dias. Por isso não nos diferenciamos dos mortos vivos, somos iguais, só que estamos vivos e eles não.
Agora, e o que nos diferencia entre nós mesmos? Quem era mais pecador, o que mata ou o que morre?
Capítulo 11 – An Honest Man.
Romero.
Toda a noite anterior se repassava em minha mente. A procura de algo no escritório do General, a descoberta da quantidade de dias que vivíamos tudo isso, o acontecimento no carro que me deixava sem ar, as lágrimas, a saudade, a confirmação de estar viva e que logo eu a encontraria de uma forma construída em um plano que ainda estava em prática com a ajuda de Jacob.
Pela primeira vez no QG eu estava no observatório ao lado de Baby. E por causa do calor, eu usava um vestido branco, uma espécie de camiseta grande, com o ombro caído. E claro, o boné que havia conseguido do falecido na cabana.
A loira estava usando o binóculo para avistar algo fora do comum, e felizmente tudo estava deserto, o que eu desconfio ser por isso que nos colocaram neste posto. Aproveitei o momento para retirar o cordão em meu pescoço e entregar para ela.
Ela pegou o objeto prata não entendendo no início, mas assim que leu o nome gravado, espantou-se, me abraçando em seguida e me agradecendo.
- Onde você conseguiu isso? – perguntou, sem acreditar, em seguida colocando no próprio pescoço – Eu achava que tinha sido enterrado com ele.
- Tenho meus métodos – sorri dando de ombros. Lembrei-me do que Jacob havia me falado na noite anterior e resolvi fazer perguntar a ela o que estava entalado na minha garganta – Baby... Por que você tem tanta aversão ao ?
Nós duas voltamos a nos encostar no parapeito e observar a floresta verde.
- Ora, é como eu disse... Ele fez muita coisa, . Coisas que não julgo ter um bom fundamento. Ele é mal. Naturalmente mal.
Mesmo que Hobbe tenha sua tese, eu não concordava com ele. Talvez sim, depois de ver o filme “Senhor das Moscas”, poderia concordar que o ser humano viria a se tornar selvagem de acordo com a sociedade ao seu redor. Mas aí que estava à questão, nos construímos psicologicamente seguindo tudo o que vemos ao nosso redor.
Slade viu muita merda e logo se tornou alguém que faz muita merda.
O dia em que estive naquele trailer foi um jeito de inserir algo a mais na minha personalidade. Sempre fui extremamente confiante e esperançosa, e depois daquilo me toquei que o mundo ainda tinha muito mais para me fazer temer.
- Pelo que eu ouvi dele posso concordar com você Baby, mas seu caso é diferente. Você fica mais pálida do que já é quando ele se aproxima... Prefere se esconder e atravessar a rua quando o vê... Sinto que tem uma história por trás disso, e a julgar pela dog tag que acabei de te entregar, tenho até uma teoria. Quer falar sobre isso?
Perguntei e quis dizer aquilo. Eu confiei a ela a história da minha irmã e minhas ideias de sair do QG. Portanto eu gostaria que ela também confiasse em mim. Mesmo sabendo o quanto é duro se abrir com assuntos sensíveis. Mas eu estava extremamente grata pelo apoio que surgiu dos meus três amigos na minha tentativa de contatar , e aquilo era o suficiente para que uma gigantesca confiança surgisse entre tais novas amizades. E isso era novo pra mim. Confiar.
- Quando o vírus se espalhou, eu fiquei trancada no porão de minha casa por algum tempo. Não tenho irmãos e nunca conheci minha mãe – ela começou sua história – então fiquei lá sozinha mesmo. Depois de um tempo meu pai voltou e me resgatou, me trazendo para o Quartel. Aqui era tudo diferente, somente uma base militar, não havia pessoas comuns como em uma cidade, somente soldados em roupas de camuflagem. Meu pai não deixava ninguém de fora entrar e eu compreendia afinal ele tinha esse compromisso com os cidadãos, mas tinha de fazer algo para acabar com o vírus, então ele usava este espaço para treinamento. Porém descobri que ele foi atrás de mim porque a situação já estava feia demais e eu ficaria melhor aqui do que em casa. Ao menos ele estaria aqui pra me proteger.
Eu assenti.
- Nos piores momentos a melhor saída é manter a família por perto.
- Sim... Todavia a paz não durou por muito tempo. A quantidade lá fora apenas aumentava e cada vez perdiam mais homens. Até que um pequeno grupo, liderado por e encontraram este lugar e pelo extenso currículo dos dois, meu pai aceitou que ficassem aqui. Fizeram um tipo de reunião para ele descobrir se o caráter era valioso – ela riu sem felicidade – se essa reunião tivesse outro fim, é provável que meu pai estivesse aqui até hoje. Depois de um tempo eu observei que este tal grupo enfrentava problemas, a mulher de estava grávida e a cada dia que passava se tornava mais agressivo. E um dia, sem antecipação de acontecer, ele o crucificou ali – ela apontou para o centro do local – naquela área.
Olhei para o centro da base, perto das mesas. Minha garganta se apertou ao desenhar a imagem em minha mente.
- Ele fez tudo como se ele tivesse sido um monstro, alegou que meu pai não tinha cabeça para liderar aquelas pessoas, que pensava apenas em si mesmo e continuava a fechar o portão para outros moradores. Meu pai gritava com ele em desespero e não demorou muito até que seus olhos caíssem sobre mim, me lembro como se fosse ontem. Foi um adeus.
Ela apertou com força a corrente e uma lágrima caiu por sua face.
- Depois disso e tiveram um tipo de desavença, e o grupo de fugiu sem deixar pistas de onde estava indo. Sofremos uma crise, sem comida, soldados morriam todos os dias e não havia ninguém para liderar. Após muitos dias, voltou depois de uma longa busca pelo seu antigo grupo, e acabou se tornando o líder do QG. Provavelmente fazia parte de seu plano infalível.
... No que você se meteu, garota. Fiz movimentos circulares em minhas têmporas em busca de alívio.
Tentei sorrir pra ela a encorajando por ser forte e ter me contado aquilo.
- Fico feliz em saber que confia em mim o suficiente para se abrir – apertei sua mão e continuei – esse estado de vida deixa todos os nossos momentos mais intensos, e parece que cada segundo deles permanece em nossa mente. Este aqui – levantei a corrente em meu pescoço – era do meu pai. Também foi militar. Então quando digo que entendo o que você passou, estou sendo sincera. Não na mesma circunstância, mas garanto que sofri a mesma dor.
Ela deu de ombros.
- Não era realmente um segredo...
Não era. Mas se ela pedisse que eu lhe contasse detalhadamente a morte de minha mãe, eu não teria força o suficiente dentro de mim para ao menos lembrar de todo o borrão que foi minha mente naquela semana.
Refleti durante um período. Queria fazer isso também. Converter os pensamentos em palavras. As pessoas viviam fazendo isso e pareciam se sentirem melhores ao desabafar.
- Eu te contei que minha irmã e eu passamos algum tempo sozinhas lá fora, apenas tentando sobreviver, certo?
Ela concordou com a cabeça.
- Teve um dia, mês passado talvez – eu tentava encontrar palavras para lhe dizer aquilo – nós encontramos alguns caras na estrada e eles não tinham visto a gente. Costumávamos dormir em antenas de rádio e raramente tinha algo pra comer, então vimos como uma oportunidade única de obter algo para nós duas. – olhei para o céu, me lembrando daquela condição. – Eu entrei no trailer e minha irmã foi direto até o carro preto. Procurei por algo e fiquei tão feliz em achar comida que acabei abaixando minha guarda. Um cara loiro de rosto queimado acabou aparecendo e me atacou. Mas não foi apenas um ataque de proteção pelas suas coisas, ele tentou... – minha voz ficou fraca e vi o choque em seu rosto. O quão incrível era, de uma forma péssima, o estupro assustar mais uma garota, do que a morte?
- , meu Deus, – ela dizia preocupada – por isso você estava tão machucada quando chegou aqui.
Deduzi que ela se referia as manchas em meu corpo. E sim estava certa, mas aquela não era a pior parte.
- Essa não é a pior parte – sorri com desgosto.
Desci as escadas de meu quarto conjunto com Baby ainda sonolenta pensando no que faria ao encontrá-lo.
Assim que cheguei ao térreo, a minha surpresa fora outra e extremamente desagradável.
O cara dos meus pesadelos, ao vivo e em cores. A poucos metros de mim. Ele não tinha mais seu braço esquerdo, e agradeci por isso. Tudo que eu sentia era raiva. Via tudo em vermelho
Aparentemente era quem havia ido buscar na Colônia. O que significa que ele estava vivendo sob o mesmo teto que minha irmã e ela não fazia ideia de quem ele era, ou o que tinha feito.
- Lionel? – ela perguntou receosa.
- Então esse é o nome do lixo.
- Não podemos deixar ele aqui dentro . Temos que construir algum plano para expulsá-lo daqui. Não há como você continuar segura com ele vivendo em sua própria casa, vai ser difícil, mas não podemos ignorar isso, ele te – a interrompi antes que terminasse aquela palavra.
- Baby, ele não fez isso. Eu odeio. Ele me atacou, ele tentou. Porém fui salva na hora, por uma senhora chamada Barbie que não sabe, mas devo-lhe a vida praticamente. E talvez a dor física fora menor que a emocional.
- Não estou entendendo...
Ela me olhou genuinamente. Precisava compreender o que se passava em minha cabeça perante Lionel.
- O trauma foi maior. O susto. Minha confiança e esperança se destruíram aquele dia, e agora sempre tenho um pé atrás para coisas que antes eu faria sem pensar duas vezes. – disse pensando no momento do carro com , talvez se Lionel não tivesse entrado na frente, eu teria ficado com ele sem arrependimentos, mesmo sendo quem era, mas no meio do desabafo eu compreendi que a história era outra – No entanto, o que mais me chocou, foi como no meio de tanta morte e desgraça, o ser humano ainda consegue me surpreender com sua maldade sádica. O que sinto agora é raiva e repulsa. Ele ainda vai ter o que merece Baby, não agora. Ele ainda não me viu e se for covarde como manda as atitudes, vai pedir desculpas ou se fazer de desentendido.
- Tome cuidado com qualquer coisa que você planeje fazer, . Não quero que nada de ruim aconteça com você. Não merece isso.
Encostei em seu ombro e ela deitou sua cabeça na minha.
- Eu vou ficar. Ele não me conhece... Vaso ruim não quebra. – sorrimos e em seguida Lacey apareceu me chamando. Fui até o outro lado da mureta de madeira do observatório e a ouvi.
- Vá se preparar, logo estamos partindo. Passe no alojamento de armas antes para se abastecer.
Nesta manhã ela já havia me chamado, a ordens de seu chefe, alegando eu já estar boa o suficiente para eles poderem medir meu nível de habilidade no campo. Ter sido escolhida para a equipe do me fez pensar que ter sobrevivido lá fora por algum tempo sozinha me fez entrar nela, e eu esperava que fosse somente por isso e nada mais.
Despedi-me de Baby e fui até o dito cujo local onde guardavam as armas, que se localizava em um daqueles corredores e parecia ser antes um armário de vassouras ou mantimentos, espaçoso.
A porta estava aberta e tentei manter a postura ao ver carregando seu coldre com munição.
- Dormiu bem, amor? – ele perguntou sorrindo para mim.
Tudo bem, podemos ignorar o ocorrido ontem à noite. Não podemos ignorar seu sotaque do sul londrino me chamando de amor.
- Como uma pedra. Lacey me chamou, disse que posso me carregar com o que quiser e você estaria ok com isso.
- Ela não disse isso – ele riu e tudo bem, não disse, porém não custava tentar me encher de armas para que pudesse guardar alguma para mais tarde. – Mas estava certa em te chamar. Logo sairemos em um tipo de missão.
- Estamos em busca de alguma coisa?
- Na verdade não. É mais sobre ontem à noite.
Por favor, não me faça ficar desconcertada sobre isso.
- Do que você está falando?
Ele pegou uma pistola comum e inseriu na capa ao lado da coxa. Virou-se pra mim e olhou profundamente em meus olhos, com sua testa franzida e pose de durão, organizando todas aquelas armas.
- Sua mania de dizer que não se importa com o que os outros dizem e mesmo assim teve a audácia de me deixar te beijar ontem à noite – ele colocou as mãos na mesa de ferro e olhou para a parede, procurando palavras para continuar. – Será uma forma de te fazer abrir os olhos e enxergar no que está se metendo .
- Pensei que o que aconteceu naquele momento estaria morto no segundo em que coloquei os pés pra fora daquele carro – rebati.
Por um milésimo eu consegui ver sua expressão abatida, mas logo se recompôs ao dar aquele ultimato, que eu não queria concordar, mas era real.
- Se aquilo estivesse acabado, você não estaria olhando para mim do jeito que está olhando.
Prendi a respiração e desviei o olhar para a parede, sentindo seu sorriso em mim. Ele carregou uma pistola e estendeu minha mão, me fazendo segurá-la.
- Mas você está apta para fazer esses joguinhos. Gato e rato. Pronta para se queimar, sem ao menos saber onde está pisando. E esta noite vai ser crucial para que você saiba quem sou eu de verdade – sua respiração batia em minha face e tinha cheiro de cigarro e menta – Aí então você poderá correr. O que eu não espero que aconteça.
- Francamente , de tudo que já ouvi sobre você, tem como piorar? – perguntei seriamente, tentando não me deixar ser atingida pela aproximação.
Ele retirou uma mecha do meu cabelo para trás como fez na noite passada e colocou a mão na minha nuca, me forçando a olhar em seus olhos, que eu já não conseguia mais desviar. Minhas pernas estavam bambas com aquele misto de toque sensível e bruto.
- Essa é a primeira vez que você me chama de , sabia disso? – não respondi. Ele se aproximou e sussurrou em meu ouvido, e meu corpo se arrepiou completamente com aquelas palavras – Eu gosto disso. Como soa em seus lábios.
E assim, sussurrou uma última vez perto do meu pescoço, me arrepiando por inteira.
- Tem sim como piorar Romero. Muito. Você pode correr, ou poderá entrar de cabeça nesse mar de pecados. Particularmente, prefiro esta última opção.
Ao dizer isto ele beijou levemente o canto da minha boca e me deixou sozinha ali, aproveitando os sintomas de seu toque com uma pistola em mãos.
Estava dentro de um dos caminhões de Slade. Ele não estava naquele, Nico, porém sim, e eu tentava manter minha mente aberta para qualquer que fosse a surpresa que teria a seguir. Mesmo um pouco assustada com o tamanho da tropa que saiu do QG. Precisava de mais informações ou iria explodir de nervosismo, então perguntei a Nico onde estávamos indo. Aos poucos ele estava se tornando meu confidente. Ao menos ele poderia pensar assim.
- Grupo do norte. Quando visitamos a Colônia ela estava devastada, e descobrimos que o norte havia atacado o local. Agora tá puto e vai tirar satisfação com eles, afinal ele tinha que ter protegido tudo lá. E mesmo tendo algo para conseguir a confiança do norte, eles não mantiveram a palavra de não ir atrás de guerra com uma das comunidades locais.
Eu assenti compreendendo.
Contudo não diminuiu meu nervosismo.
Se Slade estava puto com o grupo do norte, e com razão, – já que eu estava lá e sofri com este mesmo ataque – o negócio iria ficar extremamente feio. Ele havia me dito que eu veria o seu verdadeiro eu esta noite, e ao que tudo indica, ele estava indo para ver o circo pegar fogo e reafirmar suas ideias de comando naquela área. Da última vez foi preciso arrancar o braço de um garoto. O que me fazia sentir incomodada pelo meu gosto... Mas neste caso, eu estava impaciente para observar sua atitude para o contratempo de agora.
- Deveria se preparar princesa. Se ele já estava arisco com toda a história do hospital. Imagina agora que atacaram por suas costas o seu antigo grupo. Eu mesmo estaria bem puto em seu lugar.
***
Seguimos a estrada de terra e levou alguns minutos de descidas e subidas até chegar na rua principal e virar o carro até uma entrada.
Entramos, todos os cinco carros e caminhão de batalhão onde eu estava. Não tinha toda essa quantidade de soldados que aparentava, a maioria apenas dirigia os carros, porém se o pessoal do norte visse a quantidade de munição que contínhamos, recuariam.
O portão havia sido aberto por um dos caras de Slade. Saí de dentro do caminhão com outros e fui para frente do carro.
A partir daí só virei uma espectadora.
O pessoal saía de dentro de suas casas. A comunidade não era verde e harmônica como a Colônia ou até mesmo o QG. Pelo contrário, tudo parecia escuro, pessoas infelizes e um cara branco, de talvez cinquenta anos, cabelos e barba sem cor liderava tudo aquilo.
- Olá, Martin. – disse Slade sorridente.
Ele estava na frente de seus carros, todos com os faróis acesos apontando para os moradores dali. O tal de Martin tinha a expressão em um misto de receio e raiva. Os punhos apertados.
- Faz um bom tempo que te vejo, não é mesmo? – ele fazia questão de falar para que todos pudessem o ouvir – Dizem que isso é bom. Se não venho atrás de você, não tem nenhuma dívida comigo.
- Vá se foder – Martin cuspiu no chão em aversão. – Eu não quero ouvir uma só palavra vinda de você, e exijo que saia logo de minha propriedade.
riu alto se desencostando do carro e começou a rodear Martin.
- Engraçado, meses atrás você estava falando exatamente o contrário disso. Até se ajoelhou para que eu lhe ouvisse e ganhasse clemência. O que mudou dessa vez? – ele fez uma expressão artificial, com o dedo no queixo, olhando para cima pensando em uma resposta – Ah, sim! Tragam a garota. – ele estalou os dedos, figurativamente, e Jerry correu para a traseira do carro preto que estava dirigindo.
Martin olhava para aquilo tudo assustado e em questão de segundos, Jerry apareceu novamente com uma garota ruiva. Sua cabeça estava tampada por um saco e suas mãos estavam amarradas com uma corda. Ele a colocou ao lado de Slade que estava a passos de Martin. O mais velho tentou se aproximar e o homem levantou seu dedo ordenando que ele não se aproximasse da garota.
Mesmo com aquela sacola em sua cabeça, eu pude reconhecer Anna por suas roupas. Estava com o mesmo pijama azul que usava no dia em que a conheci na cozinha. Talvez todo seu semblante de pavor tivesse haver com o que estava acontecendo neste momento.
- Agora eu tenho sua atenção, Martin? – o velho assentiu com a cabeça, ainda impactado ao ver a menina presa – Bom. Onde eu estava? – pensou – Ah, claro. Sua traição. Odeio ter que lidar com esse tipo de coisa, mas é necessário. Eu sou um cidadão honesto e tento trabalhar todo dia para comandar bem toda a nossa área, e imagina minha reação ao ver que nosso maior ponto de alimentação, a Colônia, havia sofrido um tipo de ataque desleixado de seu grupo? Foi a coisa mais ridícula que vi. A pior desse ano, na verdade. Você é um lixo como líder Martin – ele já chorava olhando para a menina e um pouco abaixado, como se fosse apenas um subordinado de Slade. – Baixo, pretencioso, um pervertido do caralho que gosta de se divertir com garotas anos mais nova que você e acha que tem um pingo de senso para invadir um ponto que é vital para a existência de cada pessoa nesse estado. Ridículo.
Suas palavras saíam para rebaixar verdadeiramente Martin, que já se sentia um lixo, visivelmente. Slade estava irritado, mas continuava com suas palavras sádicas para tentar explicar ao líder do norte onde ele exatamente havia errado.
Era como eu costumava a lidar com meus alunos na escola. Se um deles jogasse o penal em um colega, eu ficava na sua altura, lhe dizia onde havia errado e o punia de alguma forma irrelevante, mas punia, fazendo o pensar naquilo e tentar se redimir.
A diferença era que estávamos na escola. O caso aqui era de vida, morte e sobrevivência. Sobrevivência é o terceiro estado, onde você passa pelos dois lados, continua vivo e também com sequelas mentais para o resto da sua existência. E como já havia dito aqui, cada segundo hoje é levado intensamente.
Anna tentava sem muita força sair daquela corda que amarrava suas mãos juntas.
- Eu estava sem saída . A comida aqui acabou. Eles têm de monte e nunca repartem mesmo. Não me arrependo do que fiz. – Martin tentava se defender, mesmo que sua face mostrasse o contrário. Ele sabia que o que fez não era digno de um líder.
- CALE A BOCA! – Slade gritou e meu coração se acelerou. Algumas pessoas recuaram para trás e Martin caiu de joelhos com o rosto virado para o chão. – Não se arrepende? E valeu a pena, Martin? Não! Metade do seu grupo morreu em combate e tiveram que recuar. Metade do grupo do foi morto graças a você e isso apenas incitou que a violência entre todas as nossas comunidades se acirrasse. Graças a você e sua ideia de girino. E de que adianta eu vir aqui, falar, dar meu discurso, fazer vocês se cagarem de medo se não gera resultados? Posso sair daqui com sua prisioneira que você insistia em chamar de namorada, e quando der as costas, você me dá uma facada nas costas, mas é direcionado a outras pessoas. Como posso confiar em você dessa forma, Martin?
Slade olhou para Jerry e o garoto segurou Anna pelas costas, a puxando para trás. Com isso o homem foi para frente e deu um forte soco na mandíbula de Martin, fazendo o homem vir ao chão.
Slade se desiquilibrou por um momento e foi para frente olhando para a própria mão marcada, enquanto Martin sofria a dor com sua boca sangrando.
- É a última vez que tento lhe dar um aviso Martin. – Slade dizia agora mirando o velho no chão, sua atenção era toda pra ele – E agora você só tem duas opções, o que acho demais para um traste como você.
Deu um chute em Martin e o fez se virar para cima com dor. Curvou-se para ele e voltou a falar, como uma ameaça.
- Vai me obedecer e cuidar dessa comunidade como se fosse a minha própria casa. Ser um líder decente e alimentar todos conforme os conformes. – ele sorriu – Ou, vai me obedecer e ir embora daqui, já que sua bunda branca não faz nada de excepcional mesmo. Seria apenas mais uma boca para alimentar e tenho certeza que cada pessoa aqui fora não aguentar mais ver você fingindo que sabe tomar uma decisão certa.
Ele caminhava até a frente do carro e todos nós do QG nos afastamos. Jerry trouxe Anna novamente e estávamos todos ao lado do portão da entrada. Martin tinha lágrimas em seus olhos e sentindo sua própria dor no chão de toda a população que ele deveria servir como um exemplo. Pobre homem. E burro também.
Quando ele percebeu que estávamos indo embora – para a minha surpresa – ele tentou caminhar ainda ajoelhado e berrou para que Slade parasse. Ele parou. O velho gritou:
- Por favor, deixe Anna aqui. Eu imploro, seguirei todas as regras, nunca mais pensarei em ir a outro lugar roubar comida. Faço o que quiser – ele estava de joelhos, implorando – o que quiser, mas deixe-a aqui.
Suspirei com essa declaração. Seu queixo sangrava pelo soco que recebeu, toda a confiança dele estava na lata de lixo e ele se envergonhava ainda mais, clamando que seu pedido fosse atendido.
Slade ainda estava parado quando fez uma troca de olhares com Jerry, e o garoto novamente a deixou em suas mãos. Eu estava aflita com o tratamento que ela estava recebendo e temi o que viria a seguir.
Mas foi fácil demais.
Era isso?
Toda sua história de ser uma pessoa desprezível?
Ele simplesmente empurrou Anna para frente e ela se desequilibrou pelo saco na cabeça que a impedia de enxergar, mas caminhou devagar até Martin que soluçava seu nome.
“Anna, Anna, Anna”.
Slade veio até aqui com todas as suas armas, homens, carros, e eu mesma, para isso?
Anna continuou andando.
Tudo estava parado.
Slade mesmo continuou avistando sua chegada.
A cada passo da mulher perto daquele homem, seu rosto se transformava em um grande sorriso de alivio, como se fosse aquela gota de água no meio do deserto escaldante. Tudo o que ele mais queria.
Tudo o que ela mais queria.
Continuava a andar em passos ritmados, às vezes perdendo o equilíbrio por uma pedra que não conseguia ver.
Quando chegou na frente dele, ele a abraçou.
Foi forte.
A expressão de contentamento em Martin conseguiu até me atingir.
Seus braços em volta dela, as mãos dela ainda amarradas, sua cabeça em seu ombro, o alivio do encontro, tudo o que ele queria.
Olhei para Slade e ele estava sorrindo. E não era felicidade. Era como se ele tivesse jogado uma bomba em uma escola e estivesse esperando explodir. Ver o caos se instalando.
Lead me on my way
Oh lord live inside me
Lead me on my way
Eu não poderia ter contado a vitória tão antes do tempo. Minha garganta estava apertada e eu queria vomitar.
Lead me home
Aquilo ficaria gravado na minha mente para sempre.
A transição do momento.
A expressão de Martin.
Seus últimos segundos.
Felicidade.
Então ele retirou a sacola da cabeça de Anna, e eu consegui sentir seu próprio mundo desabar.
Toda a felicidade foi transformada em horror.
Lead me on my way
Oh lord in the darkness
Lead me on my way
Segundos e ele já estava sem vida.
Fora atacado pelos dentes da própria Anna, que conseguiu se libertar do saco de pano que nos impedia de ver que sua verdadeira natureza agora... Era morta.
Sangue jorrava de seu pescoço e ela sentia necessidade em mastigar sua pele do pescoço.
“Parecia ser doloroso, ter o que quer há alguns centímetros, e não poder tocar. Torturante.”
E agora os dois se tocavam. Ele estava dentro dela e ela fora o último rosto que viu em vida.
Era o fim deles.
E meu coração batia cada vez mais forte, freneticamente, com aquela cena.
Oh lord heaven's waiting
Open up your door
Oh lord heaven's waiting
Open up your door
Lead me home
O único foco dos meus pensamentos agora era raiva.
Raiva e ele. Essas duas coisas estavam no topo de tópicos de pensamento ultimamente e eu estava cansada disso.
Havia uma taverna no Quartel. Todo feito de madeira vernizada, um bar com um garçom diferente por dia e várias pessoas estressadas demais com a vida bebendo pra caralho, enquanto alguns jogavam sinuca, baralho ou ouviam rádio de pilhas, no ambiente cheio de velas.
Eu nunca tinha o visitado, mas eu estava tão sobrecarregada e apreensiva que acabei me encontrando naquele local. Observava tudo e a todos lá baixo, tentando não deixar mostrar demais daquele vestido/camiseta, branca, que estava usando, afinal estava parada no segundo andar daquele bar.
Uma espécie de corredor, também de madeira, como uma área VIP, onde você subia as escadas e poderia ter privacidade lá em cima. E felizmente eu estava completamente sozinha ali, e se andasse alguns passos para trás, ninguém me veria também.
Repassei tudo na minha mente e averiguei todos os fatos um milhão de vezes. E tudo resumia no ódio que eu sentia por Slade. Não . Slade. Ele não gostava de ser chamado de Slade.
Era um misto de raiva por ele ser ele, por ter feito aquilo com Anna, por me fazer repensar qualquer tipo de relação que eu poderia ter com ele, e por ter afirmado por si próprio que eu era uma garota inocente demais e sairia correndo no menor sinal de terror que ele causasse.
Ridículo.
Aquela fora somente uma forma que ele encontrou para me dar um ultimato sobre suas opções ridículas de eu ficar ou não com ele. Como se eu não pudesse escolher no momento em que eu quisesse e ele viria correndo. Hah.
Olá confiança, não te via há algum tempo. E nem estava bêbada dessa vez.
E não, não estava tentando justificar seus atos sádicos como heroísmo, onde ele tentava me manter longe para não me prejudicar. Por favor, todos sabem que ele não é uma pessoa de bom coração. Pode até abrigar muitos e manter a organização, mas havia muitas maneiras de terminar aquela conversa no norte, e fazer Anna virar uma morta viva para acabar com o líder que a amava não era uma delas.
Baby estava certa quando disse que ele fazia o maior show apenas para ganhar atenção. O melhor ou pior de tudo era que o pessoal realmente comprava e colocava o rabinho entre as pernas, se privando de ir contra cada ideia que ele tivesse.
Não houve uma guerra lá, porém. Ele somente avisou a todos que teriam de se virar sozinhos por um tempo e seria até melhor, afinal, aquele babaca só atrasava a vida deles.
E honestamente eu concordava.
Ninguém que tentava começar uma revolução sem razões deveria sair impune por isso, ainda mais quando se tratava de tirar vidas inocentes que não queria fazer parte daquilo.
Todavia, deveria acalmar minha pressão.
Havia um casal ali em baixo. Nico e uma menina de cabelo encaracolado e castanho meio loiro que eu já tinha visto algumas vezes ajudando na pequena escola que tinha no QG. Rachel era seu nome.
Era todo aquele jogo de flerte e toques que eu tinha saudade de participar, também imprevisível para Nico, que tinha visto há poucos momentos a mesma cena que eu.
Essa era a nova realidade, não era?
Nos grupos que já passei era notória a carnificina. Algo comum em todos eles, sempre alguém morria. Sempre. E seu parentesco e amigos queridos tinham que passar pela fase do luto em apenas alguns dias, para não atrapalhar.
Então se Nico recuperou-se rápido da morte de Anna, quem sou eu para falar alguma coisa. Era um instinto que tínhamos, pois ficar com mágoas e danos psicológicos era inevitável, forçá-los para o externo de si mesmo era questão de escolha.
Eu deveria ser assim também. Importar-me menos com os outros.
Mesmo tentando guardar tudo pra si, aquele pessoal que perdia alguém, ainda tinha outro motivo para continuar, senão entravam em depressão profunda e decidiam acabar com a própria vida. Assim como o meu pai. E minha mãe...
Triste saber que e eu não valíamos a pena para fazê-los continuar.
As pessoas lá em baixo faziam-me questionar minha própria vida. Será que vivi o bastante? Experimentei tudo que deveria?
Poderia ter estudado menos para as provas que eu já tinha certeza de que nunca entrariam em minha mente. Ter namorado mais ou tentando se apaixonar pelo menos uma vez. Meus relacionamentos seguiam sempre de maneira tão forçada que nem eu sabia a real razão para continuar insistindo. Provavelmente a pena de acabar algo que nem mesmo havia se acendido de verdade.
E isso me levou até a frase de Slade sobre aquelas duas palavrinhas. Sim ou não, ?
E respondo a mim mesma: não faço ideia.
Era como você perguntar a sua amiga que vestido vai a festa e ela escolhe o da direita, mas você já tinha em mente o da esquerda, e acaba o escolhendo por fim. Então sim, eu já tinha uma resposta. Que tive de repensar muitas vezes depois daquela tarde.
Droga, Slade.
Falando no diabo, ele aparece. Fechei a expressão e deixei meus olhos grudados no pessoal se divertindo lá em baixo.
- Devo levar essa ação como uma resposta? – ele perguntou cruzando seus braços fortes ao lado do meu, na mesma posição em que eu estava na grade de madeira.
Continuei quieta.
- Isso é um fora silencioso, ? – falou com um falso choque e eu revirei os olhos.
- Acho você já deveria ter parado de fazer hipóteses sobre minha pessoa – comentei seria.
- Pensei que tinha acertado tudo ontem à noite. Ao menos sua reação foi positiva – sorriu.
- Sim Slade, tudo bem, quase nos beijamos, foi bom, o fogo estava lá e o caralho a quatro, mas não é disso que estou falando. Estou mais interessada naquela ideia estúpida de me levar para um tipo de teste de personalidade, a sua personalidade, e você estava certeiro de que eu sairia correndo como uma garotinha inocente porque não aguentaria... Essa é uma hipótese que eu não aceito – empinei o nariz e olhei para ele pela primeira vez – Pessoas inocentes demais não sobrevivem aqui, e você sabe disso. Apenas se ficaram presas em uma espécie de bolha de plástico para o mundo lá fora. O que faz de mim o completo contrário. Eu vivi, reagi e sei me cuidar sozinha. Então um morto vivo comendo o pescoço de uma pessoa não me faz correr de medo.
Ele arregalou um pouco os olhos e levantou os braços em rendição. Bufei e fitei a televisão no teto.
- Se é tão decidida, por que continua com os joguinhos?
- Do que você tá falando?
- Não temos o tempo rodando ao nosso favor, amor, então pare com brincadeirinhas, é só querer ou não. Estou à sua disposição e você sabe disso, o que é ridículo para um cara da minha idade – desta vez ele bufou e colocou as mãos no seu cabelo curto com corte de soldado, em frustração. - Aquele grupo cortou a bochecha de uma menina com menos de dois anos, . Foi o motivo de você se perder de sua irmã e acabar parando aqui. – estranhei aquela informação, agora eu sabia que ele sabia que eu estava na Colônia, e ele nem percebeu que disse aquilo. – O pessoal de lá vai ficar muito melhor sem o babaca do Martin. E agora, outra acusação que eu já não tenha admitido ser pura maldade?
- Não chute cachorro morto, Slade – balancei a cabeça me referindo a Martin. – E sobre Anna? Vai negar que foi covardia jogar a menina com o vírus? – constatei.
Ele bufou.
- Como se você a conhecesse por muitos anos...
Foi uma resposta qualquer infantil. Aqui a vida era tratada como algo tão supérfluo...
Respirei fundo e tirei minhas mãos dali, fiquei em pé na sua frente e ele se virou pra mim.
- Você é prepotente, Slade. Um bastardo solitário e britânico que acha que pode mandar e desmandar nas minhas decisões e mexer com o meu psicológico pra ficar atraída com esse feitiço pélvico que você tem – ele riu. – Não é nada engraçado, caralho. Você é sádico, sarcástico, mau, muito mau. Só faz merda e tem um complexo de deus que faz todos te seguirem e se curvarem ao seu redor.
Depois do desabafo, respirei com todo o ar que saiu naquele discurso que parecia somente uma frase e notei que ele estava sorrindo para mim. Nada bom.
Cruzei os braços tentando manter a postura, mas acho que fiz até uma cara fofa de brava.
- Pare de sorrir – falei emburrada.
Ele parou e apertou os lábios me levando devagar até eu me encostar na parede atrás de mim.
- Você precisa de um motivo pra estar tão brava assim, e eu acho que já sei o que é – ele falou colocando a palma de sua mão na parede ao lado do meu rosto, me deixando sem saída. – Se não se importasse, não teria uma opinião tão forte e formada. Então arrisco dizer que até já fez sua escolha. E minha atitude dessa tarde lhe fez repensá-la, porque como iria ficar com um cara que atira uma menina inocente para morder o próprio companheiro? Então se está brava, é porque já sabe o que quer. E está brava, porque me quer.
Não respondi. Poucas pessoas já tinham me deixado sem palavras e aquele foi um destes momentos. Difícil? Não, impossível admitir.
- É risível eu estar aqui, sabe. Ficar correndo atrás de uma menina que não tem certeza do que quer, ou tem, mas sem coragem de admitir. E no fundo eu sei que só tá aqui porque busca um pouco de diversão. E na realidade, eu que mereço algo melhor.
Eu gargalhei mentalmente. Agora minha voz estava numa forma sedutora.
- Não tente virar a culpa para mim Slade. Nunca subestimei a força de um homem para fazer a mulher se tornar a louca e culpada da história – fiquei na ponta dos pés, que estavam descalços e quase encostei seus lábios nos meus. – Eu sou com certeza muito melhor do que você merece, e provavelmente a melhor que você já pensou em ter. Baixe sua bola que ela não está tão alta assim, amor – disse ironicamente o apelido no final.
Ele sorriu e eu estava perdida. Aquele era o ponto de partida.
No this time it's not with my hand
Wandering, murdering
Every time that I get the chance
I'm a human but remember first I'm a man
You painted pictures for me
That I refuse to understand
- Você está sim me usando, amor – frisou aquela palavra, a sussurrando em meu ouvido, enquanto fazia um carinho de leve em meus braços descobertos – Tudo o que pensava de você ontem continua na minha mente como uma confirmação. E se você está a fim de experimentar o fogo... Não se preocupe. Posso apresentá-lo a você.
A batida forte da música se igualava as batidas de meu coração que começava a se acelerar. Segurou com força meu quadril e eu arfei, tentando não demonstrar para as pessoas lá em baixo.
Sua mão áspera desceu minha cintura levemente, levantando meu vestido branco. Por instantes ficou ali, brincando com o cós da minha calcinha de algodão. A minha pele estava tão sensível que eu tentava me controlar para não deixar parecer o que estávamos fazendo.
Era tão proibido.
Cheio de pessoas lá em baixo, socializando, bebendo, dançando sensualmente.
Murdering
Wandering
I'll rip your heart out with my pretty smile
Help Me!
Eu estava ficando excitada e sua pegada fazia com que seu membro roçasse na minha bunda.
- Mas há uma coisa que também desejo experimentar... – sua voz rouca disse e ele colocou finalmente sua mão dentro de minha calcinha e eu pensei que fosse explodir.
Yesterday it felt so good
But today it feels so bad
A adrenalina corria no meu sangue e meu coração batia rápido demais. Aquele era o fogo das minhas fantasias mais sórdidas.
Ele fez movimentos circulares em meu ponto mais sensível e em poucos segundos eu sentia ondas de prazer se instalar por todo o meu corpo. Eu necessitava daquele contato, daquela mão áspera me fazendo suspirar. Fazia tanto tempo que nem eu mesma procurava me dar prazer o suficiente. A única coisa que poderia me parar naquele momento, era eu. E eu não faria aquilo.
A mão que estava segurando com força meu quadril deslizou pela minha pele macia, apertou a cintura e chegou ao meu seio. Ele apalpou levemente e eu gemi em frustração, queria mais que aquilo. Muito mais.
Virei-me de frente pra ele e senti algo duro e grande pressionando meu estomago. Ele continuava com as mãos na grade como se não quisesse que eu escapasse... Queria eu ter autocontrole o suficiente para cogitar fazer isso.
Empurrei seu peito até as costas baterem na parede. Desta vez eu o tinha encurralado. E no momento seguinte, meus lábios estavam sobre os dele.
Era puro fogo. Desejo carnal. Um misto de negação e necessidade. Sua língua massageava a minha e suas mãos deslizavam em cada ponto que queria sua atenção em meu corpo.
Fui empurrada para a parede demonstrando seu desejo fundamental de poder e ele deu um tapa forte na minha bunda fazendo-me arfar em surpresa e prazer entre o beijo. Com um aperto forte me levantou do chão e prendi minhas pernas com força em seu quadril. iniciou movimentos de vai e vem, roçando nossos corpos que pareciam se encaixar perfeitamente.
Não, não era sobre amor. Era algo diferente.
Apertei o músculo de seus braços e parti nosso beijo para respirar. Ele havia tirado todo o meu folego. Era sua pegada, sua força, seu toque, seu desejo. Sempre parecia querer mais. Arranhei suas costas na tentativa de uma proximidade maior e parecia que éramos um só.
A pressão da sua calça no meu ponto viril me fez revirar os olhos e ele continuava investindo ainda mais. Havia pessoas ali em baixo que não sabiam do que estava acontecendo no segundo andar e aquela ideia me deixava ainda mais molhada.
A manga da minha blusa já estava abaixada demais e ele retirou meu sutiã do lugar, dando acesso a um de meus seios. Ele chupou por alguns segundos, mordiscou levemente e eu gemi recebendo toda a atenção desejada naquele local que precisava daquilo fazia muito tempo.
Losing
Mama I'm losing
Oh you know i'm losing my mind
Seus olhos estavam ternos e ardentes quando ele levantou seu rosto e me deu um selinho molhado.
Voltamos ao beijo e todos os pensamentos que já tive contra ele foram evaporados como se nunca tivessem existido. A excitação nos deixava assim, estúpidos e carentes, como se a pele daquele que desejávamos nunca fosse o suficiente para nos saciar. Minhas mãos fizeram carinho no seu cabelo curto e ele voltou a apertar minha bunda, me segurando pela polpa e deixando uns dedos por dentro da calcinha.
O abracei e soltei sua boca respirando com dificuldade. Meu Deus.
- Slade – arfei dando uns tapinhas em seu ombro.
Ele gemeu em resposta, enquanto distribua beijos em meu colo e no meu seio ainda exposto. Tentei me segurar com mais firmeza com as pernas em seu quadril e levantei meu sutiã, tomando sua atenção para meu rosto.
I should have paid the Chinese girl
Now I'm losing everything I have
Yesterday it felt so good
But now today it feels so bad.
Eu não queria parar, mas temia que passássemos dos limites em um local público demais.
A resposta dele estava estampada na minha cara corada de luxuria, e nas minhas atitudes libertinas. Ele compreendeu meu olhar de que não passaríamos daquilo, naquela noite e colocou meus pés descalços no chão novamente.
Suspirou com a testa na madeira atrás de mim e apertou a parte frontal de sua calça, tentando arrumar o estrago.
Eu sorri praquilo.
Ele colocou as mãos aos lados de minha cabeça e encostei-me à parede o encarando devassa.
- Vai me deixar duro, Romero? - disse baixo – Isso é cruel.
Fechou os olhos e beijou minha bochecha levemente. Sua excitação parecia ser dolorosa a julgar pela testa franzida e mordi meus lábios desejando tê-lo outra vez.
- Se vai querer me domesticar, tudo bem. Eu posso esperar pelo momento certo. Mas tente facilitar pra mim e pare de me olhar dessa maneira.
Ele me beijou na testa e saiu dali. Sorri para sua forma de andar com a cabeça um pouco baixa e as mãos no bolso para disfarçar.
Recordei meus sentidos e pensei no que havia acabado de fazer. Meu Deus. Se tudo desse certo, logo teria um encontro com a minha irmã e não fazia ideia de como colocar tudo em atualização.
Capítulo 12 – Total Eclipse of the Heart.
Romero.
Mais um corpo carregado para fora da enfermaria sem vida, mais uma pessoa que não resistiu aos ferimentos e agora um a menos na Colônia.
E era tão irritante pensar o efeito dominó que isso causava. Uma criança acabou de perder um parente, uma esposa acabou de perder seu marido, os portões acabaram de perder um guarda. E o clima mórbido nunca passava.
Nunca.
A enfermaria ficava mais vazia a cada dia, os que estavam nas piores situações não sobreviveram, mas mesmo os com os ferimentos mais leves também estariam condenados. Condenados a viver a partir de então com o trauma e as cicatrizes de um ataque que jamais deveria ter acontecido.
Durante essa batalha para sobreviver e proteger os que amam, evitar vê-los se transformarem nos bichos mais horrendos, o único alívio que teríamos era a morte. E essa era a nossa única certeza também.
Todos morreríamos, cedo ou tarde, quando mais desses monstros surgirem e menos humanos restarem. Certo dia não haverá mais humano restando, o mundo será preenchido por essas... coisas.
E eu tentava manter minhas esperanças e expectativas no máximo, mas quem eu estava tentando enganar? Eu via. Via quando levavam os corpos para longe e os matavam de vez antes que se transformassem. Era instintivo.
Matávamos qualquer coisa que pudesse nos ameaçar.
Meu medo era em que certo momento, tivéssemos que matar a todos próximos com medo de que eles pudessem tornar ameaças.
Só que eu precisava manter minha cabeça limpa para não passar esse clima mórbido para todos em minha volta, afinal, nem todos deveriam viver o inferno que eu estava vivendo.
Entretanto, no meio de tudo isso, eu tentei fazer com que pelo menos Willa se sentisse bem, apesar de todo o contrário. Não queria assustá-la ou botar mais pressão em seus ombros. Ela precisava descansar, se curar e ficar forte – fisicamente e psicologicamente – para que eu pudesse convencer Friedrich a liberá-la.
O mesmo senhor que estava ainda cuidando do garoto que perdeu o braço e reclamando em um tom baixo sobre as perdas. Estávamos ficando sem remédios com o tempo e logo mais gente teria que sair para procurar. Senão, em um próximo ataque todos poderiam morrer.
E eu não queria morrer. Não até encontrar .
Eu estava sentada na cama de Willa junto a ela. Por mais saudável que ela estivesse, eu não largava de seu pé. Ficava o dia todo se pudesse naquela enfermaria tratando de tomar conta da garota. No momento estava trançando os longos cabelos castanhos dela. Isso me lembrava de .
Ela que tinha cabelos enormes e eu vivia trançando-os. Ajudava-a se arrumar para as festas ou para qualquer lugar que íamos. Willa me lembrava muito minha irmã, deve ser por ser mais nova e mais frágil. Mesmo que não fosse, eu gostava de acreditar que eu devia cuidar dela mais do que ela mesma.
E eu fracassei.
Mesmo que todos em minha volta tentassem dizer o contrário, tentando me incentivar a acreditar que tudo estava certo do lado de fora, não acreditava. Minhas buscas se tornavam cada dia mais inúteis e depois de todo esse tempo eu estava perdendo a fé.
A voz suave de Willa me tirou do transe, encarei o cabelo dela que estava quase todo trançado.
- Como era ser adolescente na sua época, ? – A pergunta me pegou de surpresa e me ofendeu levemente. Eu não era tão velha assim. Ok, talvez para ela, eu já estava com um pé na cova.
Procurei as palavras certas para respondê-la, porque na verdade, definir minha adolescência sem descer o nível era um pouco difícil.
- Bom, era a mesma coisa que nos dias de hoje – comecei cautelosa e me toquei do erro – quer dizer, nos dias de hoje antes do fim. – Willa riu. – Enfim, eu fazia o que qualquer outra adolescente fazia. Estudava, saía com meus amigos e minha irmã, tudo normal.
- Aposto que você era super popular. E tinha milhões de caras aos seus pés.
Errou...
- Bom, eu não era popular entre as garotas. Eu não tinha um grupinho que todos queriam entrar, mas eu era bastante popular entre os meninos.
Willa gargalhou.
Não podia negar meu passado conturbado cheio de festas e meninos era o que eu gostava, era minha praia. Ocupava meu cérebro com os deveres e as matérias para tirar notas boas e depois me recompensava com a diversão de qualquer forma que fosse.
E eu não me importava com o resto.
Digamos que, se eu queria comer, eu comia. Se eu queria dormir, eu dormia. Se eu queria ficar com algum cara, eu ficava. Eu fazia tudo que me agradava, sem me importar com os outros.
Só quatro pessoas durante meu colegial valiam a pena meu tempo e minha preocupação.
Eu tinha um grupinho de amigos só. Éramos mais o The Breakfast Club só que mais moderno e sem uma trilha sonora legal para caralho.
Minha melhor amiga de verdade sempre foi minha irmã, e era legal passar tempo com eles no porão de nossa casa. Eu sempre digo que aproveitei bastante meu colegial.
Literalmente.
Claro que a maioria das meninas não gostavam de mim e faziam questão de espalhar os boatos mais sórdidos de Romero, mas não me importavam. Nem mesmo quando tais boatos chegavam aos ouvidos de meus pais, porque eles sabiam quem eu era.
E nem minha mãe ou meu pai conseguiram me fazer usar o cinto de castidade da família. Isso era coisa da .
Um nó na minha garganta se apertou, porque até então eu nunca havia pensado neles – meus amigos – desde que o fim do mundo começou. Será que eles estavam vivos? Será que eles estavam por aí a procura de um grupo? Será que eles estavam mortos? Será que eles estavam vagando por aí como os bichos? Será que eu acabei os matando sem saber? Conclusão: essa nova vida era um saco.
E eu odiava não ter mais quinze anos.
- Espero que quando eu ficar mais velha eu fique tão bonita quanto você, .
- Por favor Willa, você tem quase quinze anos e já é quase uma mulher. Logo quando chegar a minha idade me superará com certeza.
Willa deu uma daquelas gargalhadas fofas e me lembrei da . Eu sempre falava coisas sem nexo ou engraçadas demais e a risada dela era o melhor som que eu podia ouvir.
Se saudades matassem...
Ficamos em silêncio por um tempo e percebi que Willa queria perguntar algo, mas não conseguia terminar. Era como se ela estivesse com medo.
- ... – começou em tom baixo.
- Sim?
- Quando você viu um andarilho pela primeira vez? E como matou? – perguntou de uma vez e eu engoli seco.
Não estava acostumada a pensar nisso, repensar e ter que enfrentar essa cena que às vezes se repetia em meus piores sonhos.
- Foi uma madrugada quando eu voltava do meu trabalho, eu usava um casaco amarelo que eu adorava demais. – ri para mim mesma ao lembrar. – Ouvi então uns barulhos perto de um beco e eu me assustei, achei que fossem sem-teto, mas eram esses bichos... Não tive coragem, saí correndo desesperada.
A garota parecia muito focada na minha história, não sabia se esperava uma virada surpreendente para que pudesse me ver como uma heroína corajosa. Infelizmente eu não era tão corajosa assim.
- O primeiro morto-vivo que matei... – Respirei fundo. – Foi meu chefe. Naquela noite eu havia ido trabalhar mesmo com meus pais indo contra essa decisão e eu achei que não seria nada demais, por dentro eu estava morrendo de medo. E quando cheguei lá estava vazio, fechado. Eu estava tão irritada com Tyler, meu chefe, porque ele não havia avisado que não abriria a lanchonete. – Me amaldiçoei mentalmente e o nó em minha garganta. – Então eu o procurei para xingá-lo e ele apareceu, o belo rosto jovial dele havia se transformado em algo podre e nojento. Até certo momento eu não entendia aquilo, mas ele veio e me atacou, eu gritei e cai no chão, graças ao meu casaco ele não conseguiu arrancar minha pele. Não lembro ao certo como consegui matá-lo, foi muito rápido. Eu apenas gritei e ele me mordeu, mas consegui arrancar meu braço para fora do casaco antes. Então eu estava em cima dele batendo em seu crânio com a caixa registradora. Fui embora de lá o mais rápido possível e bom, não foi nada glamoroso. Meu casaco de salvou. E todos diziam que eu devia ter o devolvido para loja quando o comprei. – ri.
Willa estava um pouco impactada, mas parecia ter observado tudo que eu a contei. Era uma história e um momento em minha vida que eu não conseguiria esquecer de forma alguma.
Às vezes tenho pesadelos com essa noite, vendo Tyler voltando a força normal diante a mim e eu o matando da mesma forma. Ouvia ele me culpando e pedindo misericórdia, mas mesmo assim o matei.
Várias vezes teve que cuidar de mim cada vez que eu relembrava desse momento, para evitar alguma crise que tinha em meu sono. Havia sido traumatizante demais para mim.
E a pior parte, eu não sabia ao certo o que era real e o que meu cérebro criou para me acalmar.
Até hoje nunca soube realmente o que aconteceu aquela noite. E só um de nós estava vivo para poder contar, e não era Tyler.
Terminei de trançar o cabelo da garota, aproveitei uma das flores que cultivavam e a usei como um acessório em seu cabelo. A dei um espelho para que ela pudesse ver. Ela sorriu e fez algumas caretas para o espelho como se estivesse tirando fotos.
- Eu adorei. Obrigada.
Sorri.
- Conversei com a Barbie e ela vai vir te levar para tomar um sol, então se prepare que logo ela estará chegando.
Willa assentiu e se levantou. Correu para o segundo andar que suponho que tenha sido para se arrumar. Ela adorava sair com Barbie. Eu nunca sabia o que faziam, mas ela sempre voltava animada, corada e até um pouco mais bronzeada.
Eu ficava levemente enciumada com essa amizade das duas.
Aproveitei o momento e fui até a pequena sala de Friedrich, que estava sentado lendo algumas coisas enquanto bebia um chá que Bailey havia feito. Eu não sei por que, mas chá de mel não era meu favorito.
- Pode entrar – disse sem tirar os olhos do livro.
- Frid, posso te perguntar uma coisa? – Perguntei receosa. Eu queria tocar em um assunto que talvez fosse delicado demais, mas se eu quisesse conhecer mais de um certo homem, teria que perguntar para seu homem de confiança.
- Já perguntou.
Revirei os olhos.
- Há quanto tempo você conhece o ?
O senhor fechou o livro que lia e tirou os óculos, então se virou para mim um pouco confuso com a pergunta.
- Desde mais ou menos o começo.
Ótimo.
- O que há entre ele e o ?
A pergunta saiu de meus lábios um pouco hesitantes. Não queria ser invasiva, mas até certo ponto queria sim. Eles se olhavam diferente e era muito óbvio uma mágoa entre os dois. Eu queria entender o porquê tudo disso. E só Friedrich me contaria.
O senhor demorou um pouco para responder. Abria a boca para falar, mas não saía nada. Aparentava estar procurando as palavras certas para me contar o que eu queria ouvir.
- Bom, eles eram amigos, muito amigos – começou – quando eu os conheci, o grupo era quase mínimo. Só , sua esposa e Max, junto com e Judas.
Então realmente teve uma esposa? Não eram só boatos.
- Só posso te dizer que essa mulher fez muito mal para os dois. Mexeu com a cabeça deles até que se separassem de vez. Não digo que os dois foram santos. foi traidor e foi ingênuo. E tiveram o que plantaram.
- O que aconteceu com ela?
Ele me encarou bem fundo, senti até que ele pudesse ver minha alma naquele momento e temia que ele pudesse entender o motivo de eu querer as respostas.
Mas qual era o motivo? Não havia um motivo, certo? Eu só queria entender mais sobre a vida do homem que me abrigou. Só isso.
- Morreu logo após de ter Jolie. Uns meses depois. Foi mordida e não resistiu.
Fiquei em silêncio por alguns segundos e me amaldiçoei mentalmente por tocar nesse assunto. Talvez eu não precisasse saber disso. Ou talvez eu devesse?
Será que me contaria isso um dia? Será que ele dividiria mais sobre a vida dele? Ele nunca havia perguntado nada sobre a minha, até porque não havia nada para saber. Mas algo em mim queria conhecê-lo mais.
- Irônico, mas ela morreu bem no dia de Ano Novo – ele riu.
Aquilo explicava bastante coisas. Porque e tinham essa rivalidade maior que só dois grupos e porque parecia ter demasiados problemas.
Coitado.
- Não comente nada com ele, por favor? – Senti um pouco de pesar em minha voz. Não queria que esse assunto caísse nos ouvidos de e ele achasse que eu estou querendo saber mais da vida dele. Eu só queria saber em quem eu estava confiando, oras.
Não queria que achasse que eu era do tipo que perguntava para os outros sobre a vida dele invés de perguntá-lo. Era exatamente o que eu fazia, mas ele não precisava saber, certo?
Friedrich assentiu e eu me virei para ir embora.
- Ele se importa com você. – Disse rapidamente me fazendo encará-lo de novo.
- Desculpe?
- . Ele se importa com você e por isso se preocupa tanto.
- Como você sabe disso? – Eu parecia mais impressionada com isso do que qualquer outra coisa e isso estava nítido em meu tom de voz.
Eu sabia que ele se importava comigo, era meio óbvio, mas eu achei que só era óbvio para mim e não para todos os moradores da Colônia.
- A forma que ele te olha até mesmo quando você não está olhando. Ele tenta deixar tudo seguro para você e também para os filhos dele. Digamos que eu não vi o tão fascinado por alguém desde que sua mulher faleceu.
Estava, agora, entrando em um terreno perigoso, cheio de bombas prontas para explodir em minha cabeça. Não, não era um bom assunto para se tocar.
Não queria imaginar a forma com que se preocupava comigo e o porquê estar fascinado por mim. Não, eu não queria.
- Ele não vai fazer nada que você não quiser, . Fique tranquila.
- Eu sei.
- Mas você, talvez devesse deixá-lo se aproximar, sabe? Acho que ambos precisam disso. Esse novo mundo é muito solitário e doloroso, então quando encontrar alguém que se importe, não deixe ir. Tudo que precisamos é alguém que se importe.
Assenti e sai da sala com meus pensamentos bagunçados e confusos. Às vezes nem eu mesma me entendia.
Eu não tinha medo do , mas também parecia estúpido demais pensar em deixar alguém se aproximar em um momento desses, em um momento em que tudo está em uma corda bamba.
Nunca lidei bem com sentimentos alheios em relação a mim, sempre confiei pouco e desconfiei demais. Tinha um péssimo histórico de relacionamentos e um passado nem um pouco glorioso nesse quesito.
Mas mesmo assim, o era o . Ele não me fazia mal, não me forçava a nada e me dava a liberdade que eu queria para fazer o que queria, jamais tentou me mudar.
Sentia dentro de mim que eu podia confiar nele, porque ele jamais faria algo que me magoasse, não era algo dele. Acima de tudo, ele me via como parte do seu grupo e de sua família, mesmo sabendo que eu não os via assim.
Eu confiava nele, mas não queria me aproximar dele. Como disse, era um terreno um pouco diferente para mim, sabendo que nesse momento haviam outras prioridades para ambos.
Ou talvez eu não quisesse assumir para mim mesma que eu estava com medo para caralho. Medo de me entregar e então, quando eu atingir o clímax de felicidade, eu tenha que vê-lo morrer e depois ter que matá-lo.
Nos últimos dias, perder uma pessoa era mais fácil que ganhar outra.
Talvez eu tentasse aparentar ser tão forte para os outros que acabei criando um muro gélido em meu coraçãozinho. Eu me negava chorar, me negava demostrar fraqueza e toda vez que o fazia, me odiava profundamente.
O fim do mundo mexeu mais comigo do que esperava, só não queria arruinar tudo em minha volta porque esqueci como me sentir bem.
Há tantas coisas escondidas dentro de mim, coisas sombrias demais para deixar alguém se aproximar.
A tarde eu estava sentada na escadaria da grande casa, em silêncio, aproveitando a brisa leve que passava.
Então Judas se sentou ao meu lado.
O homem que estava na faixa dos trinta ou quarenta anos, com cabelos escuros e olhos claros, pele branca e corpo definido como o padrão dos soldados que iam lá pra fora. Suas roupas pretas de couro davam ainda mais contraste à sua personalidade, meio fechado e misterioso.
- Está tudo bem? – Ele me encarava e eu retribui o olhar rapidamente.
Por favor, não fale nada que possa se considerar sentimental, não sou capaz de lidar com mais de uma demonstração de afeto por dia.
- Seu nome é realmente Judas? – Fiz a pergunta mais tosca que se passou pela minha cabeça na intenção de abafar qualquer tipo de assunto que envolvesse sentimentos.
Ele riu.
- Não é não.
Claro que não era. Quem se chamaria Judas? Quer dizer, faz até sentido, mas ele devia sofrer muito, coitado.
- Qual é seu verdadeiro nome?
- Nunca falarei.
- Mas por quê? – O encarei curiosa e ele se matava de rir da minha expressão. Eu acabei por rir junto. – Entretanto, é um bom apelido.
- Mostra o quanto eu sou mau.
- Mau pra caralho.
Caímos mais na risada ainda. Ríamos alto e ele chegou até a ficar vermelho, já que ele era bastante branco.
Não ríamos por ser hilário, ríamos porque talvez o clima da Colônia estivesse tão pesado que um pouco de risada faria bastante bem. E fez. Eu sentia todos meus problemas descendo pelas minhas costas e se afundando no chão.
Judas também era o braço direito de e todos sabiam. Frid era o cérebro, era a emoção e Judas a força. Os três formavam um e esse era o que comandava os problemas da Colônia.
E pelo homem ao meu lado ser da confiança de com certeza ele saberia algo do homem que seria útil para mim.
- Eu soube que você também fazia parte do grupo com o e . – comecei, tentando não dar tanto na cara. – O que aconteceu entre os dois?
O homem me encarou, mas não pareceu ofendido com a pergunta. Ele compreendia minha curiosidade.
- não era muito fácil de se lidar, os dois nunca dariam certo juntos por muito tempo. Principalmente depois que ficou um pouco mais agressivo e instável.
Faz sentido.
O que conheci era completamente instável a ponto de arrancar um braço para chamar a atenção e amedrontar pessoas.
- E por que você ficou com o e não com o ?
- é um bom líder, pode parecer fraco, mas não é. Ele pensa sempre no melhor para todos, poucos se importam tanto com tantas pessoas ao mesmo tempo como . E ele acreditou em mim, me viu como pessoa e não soldado, isso significou muito para mim.
Nunca ouvi ninguém falar de desde que pisei na Colônia e mesmo com algumas falhas, ele não era um mal líder, ele era o melhor que esse bando de pessoas perdidas e assustadas poderiam ter.
- Pois é, consegue ver humanidade em selvagens.
Judas sorriu.
Então apareceu e calamos, nos declarando culpados.
Ele vestia uma camisa de botões cinza e uma calça comum. Estava lindo, quer dizer, limpo.
LIMPO.
Levava no colo Jolie que usava uma roupinha cor de rosa com detalhes brancos, ela estava quase a dormir no colo do pai. Fixei meu olhar na pequena criança. Eu gostava dela.
E ela gostava de mim.
me encarava demais, eu estava ficando levemente assustada e vermelha. E ele estava sorrindo. Não um sorriso completo, demonstrando felicidade. Era um sorriso mais de canto. Eu acho que ele estava tentando me seduzir talvez.
Mas estava apenas me constrangendo.
- Então, vamos? – Judas se levantou e bateu no ombro do amigo, saindo até o portão.
- Onde vão?
- Vamos atrás de medicamentos e suplementos. Eu, Judas, Paige e Max.
Me levantei um pouco indignada por não ter sido chamada para sair, afinal, desde que cheguei na Colônia raramente eu saia com eles.
- E eu?
- Você vai ficar com a Jolie, claro.
Fechei a cara.
Não fechei a cara, fechar a cara foi pouco. Eu estava tão puta naquele momento que se começasse a chover pedras seria minha culpa. Se um raio atingisse agora seria minha culpa.
Espera, não.
Ele estava com a Jolie no colo, se um raio o atingisse agora a menininha morreria também, então retiro o que eu disse.
apenas me entregou a Jolie, me fazendo pegá-la no colo e esses movimentos já estavam me deixando sem fôlego. Porra, eu estava tão frustrada sexualmente assim que qualquer toque já me deixa acesa?
Após conseguir segurar a menina, – que nem abriu os olhos – encostou em meu ombro e depositou um beijo em minha bochecha como sinal de despedida. Deu as costas e foi para o carro em que seus companheiros de patrulha estavam.
E eu? Bom, eu teria que ser babá, mesmo sabendo que de todas as coisas que eu tinha para fazer eram mais importantes.
Mas isso não ficaria assim.
Agora sim o raio poderia acertá-lo.
Eu sei que isso seria egoísmo da minha parte, já que ele apenas me pediu para cuidar da Jolie e eu podia fazer isso sem problema algum, mas eu não queria. Eu queria ir atrás de , coisa que deixei de fazer para ajudar com a Colônia.
Seria errado? Sim. Talvez eu me foderia mais ainda? Também. Mas eu iria.
Assumo que talvez eu estivesse fazendo isso simplesmente pela culpa que me consumia cada vez que olhava para Willa e lembrava de . Eu acabei deixando minha própria irmã de lado e perdendo minha fé para cuidar de pessoas que nem eram minhas. E eu conseguia ouvir no fundo de minha cabeça minha mãe desaprovando essa atitude tão mesquinha.
Eu iria atrás de sim e foda-se o resto.
Com Jolie no colo, já adormecida, corri para a casa de Barbie e bati na porta algumas vezes. Ela demorou um pouco para abrir, mas então a abriu com um sorriso no rosto.
- Ei, precisa de alguma coisa? – Ela perguntou em um tom animado e eu tentei fingir uma falsa animação também.
- Barbie, você pode ficar de olho na Jolie por um tempo? Preciso fazer uma coisa, mas ela está dormindo, nem dará trabalho.
- Mas é claro que posso! – Ela então tirou a menina do meu colo e levou para o dela, cantarolando algo para a bebê embarcar de vez no sono.
- Obrigada. – Sussurrei e me despedi da senhora.
Seguindo o meu caminho, fui até a enfermaria, afinal, não podia fugir sem ao menos dar alguma explicação para Friedrich. Ao menos se ele não fizesse perguntas, eu ficaria bem.
O senhor estava lá, arrumando alguns medicamentos na esperança que trouxesse mais durante a patrulha.
- Frid, posso sair em uma patrulha rápida?
Chamei sua atenção e ele apenas virou o rosto para mim, assentindo.
- Claro.
- Obrigada.
Simples assim.
Não estava fazendo algo tão errado já que havia me dado a liberdade para sair e entrar quando eu quisesse, mas mesmo assim eu sentia uma leve culpa.
Culpa que não me consumiria, já que eu me sentia culpada por tantas outras coisas, o que seria mais uma?
Peguei minha mochila com minha lanterna e arma – que era de . Peguei algumas balas e guardei eu meu bolso, também peguei um daqueles facões extremamente afiados para dar conta dos mortos-vivos.
Seria como mais uma busca comum, só que dessa vez traria minha irmã de volta. Eu sentia disso.
Trilhei meu caminho para o lado de fora da Colônia em direção à floresta em que havia sumido.
Tudo parecia calmo demais, o riacho parecia mais calmo, e isso me assustava. Quieto demais é suspeito demais. Aproveitei a pista e segui um caminho, passando por trás do riacho, mas indo do lado contrário do letreiro, porque eu sabia que não voltaria mais lá.
O ruim de uma floresta eram as árvores que confundiam minha visão e como não era muito boa em Geografia, não sabia muito bem para onde ir e para onde voltar. Eu poderia estar andando em círculos ou em linha reta. Mas não fazia ideia para onde estava indo.
Alguns mortos-vivos começaram a aparecer e aquilo complicou tudo, porque eu já provavelmente estava perdida. Comecei a matá-los rapidamente e silenciosamente, garantindo que mais nenhum viria.
Fiz algo que até eu duvidaria, aproveitei os corpos mortos para dar pistas de onde eu estou e para onde deverei ir para voltar, caso acabasse me perdendo. Cada bicho morto era uma dica do caminho de volta. E assim pude ir mais longe.
João e Maria deixavam pedaços de pão durante o caminho. Romero deixa corpos podres durante o caminho.
***
Eu sabia como voltar, mas eu não sabia em que lugar da floresta eu estava e para onde eu deveria ir para encontrar .
Me amaldiçoava novamente por ser tão burra. Não era capaz de ir para a floresta sem me perder. Poderia voltar e fingir que nada aconteceu, mas meu orgulho me impedia de voltar para a Colônia sem ter pelo menos mais uma prova concreta da minha irmã.
Mas as coisas só pioram.
Desatenta, caminhei pela floresta completamente focada em qualquer coisa que servisse de pista da minha irmã, mas era óbvio que ela não havia passado por esse canto da floresta. Havia visto uma casinha, mas era um pouco mais afastada de onde eu estava e como já estava escurecendo decidi não ir até lá
Meu erro.
Mais desatenta ainda, consegui tropeçar em alguma pedra ou ignorei alguma falha que havia entre as folhas e caí, batendo a cabeça na queda. E então tudo começou a girar e a girar.
Se não bastasse minha cabeça dolorida e sangrando, eu também estava tonta e havia perdido totalmente meu senso de direção – que era quase inexistente. E como tudo podia piorar, uma horda de mortos-vivos veio em minha direção.
Comecei a correr, mas sabia que do jeito que estava não iria para longe e nem conseguiria matar todos sem desmaiar, então morreria de qualquer forma.
Pense, , pense.
Pensei toda!
Peguei um dos bichos mortos e me joguei no chão, ficando com o corpo podre por cima de mim. A horda começou a se aproximar e então seguiu seu rumo, sem ao menos se importar comigo.
Consegui ver por cima alguns se perdendo, caindo, morrendo pela própria natureza. Alguma música tocava no canto do meu cérebro, como se fosse uma canção de ninar e aos poucos fui me entregando. Então apaguei.
***
Antes.
Mais uma noite gélida em Oklahoma, mas com a adrenalina em nossos corpos o frio não incomodava. Nos sentimentos, quentes e eufóricas.
Descemos de nossa camionete vermelha que nos acompanhou por viagens, para cima e para baixo por todo o percurso que tivemos até encontrar um lugar seguro para se passar a noite.
As duas em um estilo cowgirls, shorts jeans, blusinha e botas, com nossos cabelos longos e óculos de sol em plena noite.
Não sabíamos ao certo onde iriamos, qualquer lugar para passar a noite era aceitável, contanto que tenham portas e janelas trancadas. Qualquer lugar seguro, precisávamos de segurança.
deu uma olhada pela área, a analisando e pensando qual passo dar a seguir, enquanto eu observava o outro lado, assegurando que não haviam mortos-vivos nos seguindo.
- Bom, parece que estamos no meio do nada. – disse o óbvio. – Mas acho que aquele posto de gasolina tá vazio, podemos tentar a sorte?
Encarei minha irmã um pouco receosa, ela segurava forte o calibre em suas mãos e eu a faca que levava comigo.
Abri a boca para responder, mas minha irmã já sabia a resposta antes de dizer em voz alta.
- Você na frente! – sorriu e eu revirei os olhos.
- Ótimo, não sabíamos que estávamos jogando. – bufei.
Nós duas caminhamos até o posto de gasolina escuro e abandonado, caminhando cautelosamente. Ambas corajosas demais e precavidas, olhando para todos os lados, garantindo que nenhum bicho nos atacaria.
- Tá abandonado. – reclamei.
- Não diga, gênia. – me cutucou, me empurrando para frente. – Esse é o objetivo.
O escuro não facilitava minha visão, me fazendo trombar com algumas coisas no caminho, mas nada que dificultasse minha caminhada.
Dentro do posto de gasolina, paramos em uma das bombas, tomando um tempo para nos prepararmos. Primeiro objetivo alcançado.
- Ei, que tal a lojinha de conveniência? – perguntei, encarando o lugar fechado e aparentemente seguro. Para uma noite seria ótima.
- Quer arriscar?
- Vivendo loucamente, maninha.
riu e deu os ombros, para mim aquilo era um sinal de que estava concordando comigo. Então fomos.
A caçula foi na frente, mirando a arma para qualquer coisa que saltasse em nossa frente, enquanto tateava a maçaneta que abriria nosso abrigo por aquela noite.
Abriu a porta lentamente, sem fazer muito alarde sobre isso. E quando a abriu por completo, respirou fundo. Estava vazio.
Mas estávamos enganadas.
Quando abaixamos nossa guarda para entrar, senti o cano gelado em meu pescoço e meu sangue gelou, vi minha vida se passar diante dos meus olhos e meus pelos se arrepiarem.
Era assim que nos sentimentos quando morremos?
- Não atira, não atira, não atira! – Pediu , levando as mãos para cima e um pouco ofegante diante tal situação. – Somos humanas.
- O que estão fazendo aqui? – A voz rouca e apavorada do homem atrás de mim entregava que ele estava tão assustado quanto nós duas.
Homens... sempre tão corajosos.
- Procurando um lugar para passar a noite. – continuou. – Estamos sozinhas por muito tempo, precisávamos de um lugar para dormir e nos alimentar...
- Só vocês duas?
- Aham. – concordei.
O rapaz tirou a arma de perto de mim e eu pude me virar para ele. Mais ou menos na faixa de vinte e sete anos, cabelos ruivos e um sorriso genuíno. Inofensivo.
- Que arma legal, posso ver? – perguntei como quem não quer nada. O revólver qualquer não me interessava, mas andar armada era necessário.
O rapaz me entregou sem hesitar, focado em mim e provavelmente no meu decote, enquanto minha irmã vasculhava nas prateleiras algo que fosse útil.
- Estão sozinhas mesmo? – O estranho perguntou. Assenti. – Os dias de hoje andam muito perigosos, né? É legal encontrar pessoas como eu. – Deu os ombros.
Pobre coitado...
- Mas não somos como você. – Sorri. – Quem disse que não somos perigosas?
Dei uma coronhada na cabeça do rapaz, que desmontou em minha frente. Não era também tão forte assim.
saltou em minha direção, encarando o rapaz desmaiado aos meus pés.
- Precisava disso? – Me perguntou.
- Ele apontou a arma para mim.
Por mais complicado que fosse, conseguimos pegar o rapaz e amarrá-lo perto do caixa do posto. Aproveitamos para amordaçá-lo para que não fizesse um escândalo durante nossa estadia.
Trancamos e reforçamos portas e janelas, garantindo que nenhum dos mortos-vivos nos cercaria durante a noite. Estava tudo na mais perfeita ordem e poderíamos tentar dormir com os dois olhos fechados essa noite.
Enquanto eu verificava a arma do rapaz – que estava sem balas. Decepcionante -, trouxe salgadinhos e bebidas alcóolicas para nossa pequena e informal festa do pijama.
- Ao fim do mundo! – Propôs o brinde. Batemos nossos copos plásticos e viramos de uma vez só o gole da bebida forte.
Senti minha garganta queimar e meu corpo se aquecer, mas não me incomodava. Eu precisava um pouco disso depois de tanta coisa acontecendo.
Ambas não estávamos preparadas para o fim do mundo, provavelmente ninguém estava, mas estávamos nos virando bem. Acima de tudo estávamos sobrevivendo, mesmo que talvez por dentro estivéssemos mortas.
Pesado, eu sei.
Alguns goles a mais, a bebida já estava fazendo efeito e eu estava vendo dobrado, me sentindo leve e feliz. Ousei rir algumas vezes mesmo sem alguma graça, a piada que havia se tornado nossas vidas já era engraçada o suficiente.
- Vamos brincar de alguma coisa? – pediu .
- Do quê?
- Vamos falar segredos!
Encarei minha irmã.
- Nós somos irmãs e melhores amigas, sabemos todos os nossos segredos.
Ela bufou.
- Claro que não! Claro que existem coisas sobre mim que você não sabe.
- Tipo o quê?
A morena tirou alguns segundos para pensar, não atrapalhei. Então se virou com uma resposta.
- Eu criei um meme sobre você.
Franzi as sobrancelhas.
- Como?
- Sim. Eu tirei uma foto sua com aquele casaco amarelo horrível e criei um meme. Era alguma coisa sobre você ser uma banana ambulante. – Deu os ombros e eu continuei um pouco chocada.
- Isso não é engraçado. – Rolei os olhos.
- Porque você não viu meu meme, dur. – Tomou mais um gole da bebida. – Agora você!
- Sabe o Elton ? – comecei.
- O cantor?
- Não! O peixinho dourado.
- Ah sim.
- Então, quando você era criança a mamãe disse que ele havia sumido, mas era mentira, ele morreu. Eu esqueci de alimentar ele. – Dei os ombros. – E como você gostava do Procurando Nemo ela fez você achar que ele estava no mar perdido, mas não estava.
Minha irmã ficou incrédula por alguns segundos, sem reação, me encarando chocada.
- ? – A chamei preocupada. Ela começou a gargalhar alto.
Ótimo, surtou.
- Eu já sabia. – Deu os ombros. – O papai me contou quando ele e a mamãe estavam se desafiando para saber qual dos dois eram os nossos favoritos.
- Um desafio tão idiota.
- Ideia da mamãe, claro.
- Esses dois se mereciam. – Bufei enquanto tomava mais um gole da bebida qualquer que afetava meus sentidos.
- E quando você queimou o peru do Natal. – não conseguia terminar a frase sem rir. – E então culpou o papai que mal sabia o que estava acontecendo.
- Não foi engraçado. – Fechei a cara. – Ele escondeu meu presente e disse que o Papai Noel estava me castigando.
Minha irmã gargalhava, só não sabia se era de mim ou da lembrança do passado.
- Eu sinto falta deles. – parou de rir, em um desabafo de uma vez só. Respirei fundo, porque eu compartilhava dessa dor.
- Eu também.
Minha irmã respirou fundo e tomou o último gole da bebida.
- Se eles estivessem vivos ainda provavelmente ainda estaríamos naquele porão.
- Eu já estava começando a ficar claustrofóbica.
- E eu a ficar maluca com a mamãe toda vez que ela começava uma daquelas histórias de como a tia Louise tinha inveja do ensopado dela.
- Ou quando o papai tentava aproveitar o fim do mundo para que nós todos formássemos uma banda e tocar por nossas vidas.
- Como se os mortos-vivos se importassem com música.
- Mas o papai os ensinariam o que era música boa antes de ser devorado por um deles.
E voltamos a rir novamente, mesmo que fosse de algo tão simples e vago, para nós era engraçado. Eram as simples coisas que aconteciam em nosso cotidiano e em nossa família. Coisas que faziam falta diariamente.
- E aí, ruivo, quer dar uma volta? – perguntei para o rapaz que estava amarrado e bastante interessado em nossa conversa.
Ele assentiu.
E a noite só estava começando.
Abri meus olhos e o cheiro podre me fez querer vomitar de primeira.
Joguei o corpo morto ao meu lado e me levantei um pouco tonta, quase caí por causa da velocidade, mas logo me estabilizei. Toquei minha testa e pude sentir o machucado, junto com o sangue em meus dedos. Minhas costas doíam e eu me sentia puro lixo.
E estava escuro.
Droga.
Eu não podia acreditar que passaria por aquilo de novo. Me perder na floresta e sozinha, podendo morrer a qualquer momento. Eu era muito burra, bem burra mesmo. Devia ter ficado na Colônia ou ter ido embora, mas eu e meu amor pela minha irmã.
Eu só queria ir para casa.
Voltei a caminhar pela floresta sentindo uma tremenda dor de cabeça e uma tremenda raiva de mim mesma por ter quase morrido. Seguia o caminho que tinha feito com os corpos mortos, xingando cada um que eu matei.
No começo, eu me importava demais em matar os mortos-vivos. Eu me sentia mal matando-os pois eu sabia que eles tinham uma vida antes de morrer. Eu não queria ser uma pessoa ruim que matava outras pessoas, mesmo que elas já estivessem mortas.
E quando descobri que na verdade quando eu morresse, sendo mordida ou não, eu me transformaria em um deles comecei a fazer o que queria que fizessem comigo. Me matassem.
Por isso preservava tanto a minha vida quanto a da minha irmã, porque quando éramos só nós duas, eu queria evitar dela ter que me matar ou eu ter que matá-la, porque aquilo seria tortuoso demais para nós. E desde então eu os mato e evito todos os dias de morrer.
Aprendi como sobreviver e o que fazer para sobreviver sozinha, ninguém me ensinou. Então ensinei para e ela superou a professora. Por isso tinha uma convicção de que ela estava viva em algum canto. Meu medo era dela estar no QG, mas também se estivesse, contanto que estivesse sendo bem alimentada e cuidada, eu ficaria bem.
Mas como eu disse, sentia uma raiva de mim mesma de não ser capaz de ir atrás dela sem arriscar minha vida. Eu queria encontrá-la, mais que tudo. Queria a ter por perto, cuidar dela e reconstruir minha família. Nós não tínhamos mais ninguém, só nós duas e agora que estávamos separadas, eu sentia como que nossa família estivesse sendo destruída aos poucos.
E logo eu já estava nos portões da Colônia e eles se abriram para mim.
Entrei lentamente, com medo de ser atacada por alguém, principalmente por Grimes. Afinal, havia escurecido e com a sorte que tenho eles já haviam voltado. Minha sorte era não ter trombado com nenhum morto-vivo no caminho, porque senão eu atrasaria mais. Ou talvez o conjunto de sujeira, sangue e resto de um morto em cima de mim tenham os afastado de vezes.
Os que cruzaram meu caminho eu matei com tanta raiva, com tanto ódio que os outros devem ter ficado assustados. Eu com raiva era uma bomba relógio de aniquilação.
Barbie correu para mim furiosa logo que eu me aproximei da casa grande. Ela me fitava furiosamente, com raios lazer saindo de seus olhos. Literalmente. Eu pude senti-los me queimando.
- Onde a senhorita estava e o que aconteceu? – Ela parecia preocupada e irritada comigo ao mesmo tempo. Eu acharia fofo se eu não estivesse com medo de morrer.
- Patrulhando e procurando . Mortos-vivos. – Disse em um tom debochado e ela me fuzilou.
- Bom, enquanto você estava fora, chegou e ficou bastante preocupado com você – Já senti uma dor de cabeça fora só de pressentir o sermão que levaria naquele momento. – ele quer falar com você na sala dele, agora.
Fodeu.
Não a respondi, apenas entrei na casa grande sentindo que naquele momento minha morte seria certa.
Entrei na sala de e lá estava. Sentado, me encarando perplexo por causa de minha situação. Mas ele estava mais puto do que preocupado comigo. Adentrei de vez na sala, ficando de frente na mesa dele. Ele se levantou e respirou fundo.
- Você saiu sem minha permissão.
- Friedrich deixou.
- Ele não é o líder aqui.
- Mas você não estava aqui. Queria que eu te perguntasse por telepatia?
Ele riu debochado.
- Você podia ter morrido e pelo o que posso ver, quase morreu.
- Mas não morri.
- O que você espera conseguir com isso, ? – Coçou suas têmporas e eu rolei os olhos.
- Ora, eu achei que você soubesse, quero encontrar minha irmã. E você mesmo me deu a liberdade para sair e voltar, não sei para que tanta tempestade.
- Eu gosto de saber para onde as pessoas do meu grupo saem. E gosto que respeita a liberdade que eu te dei, ou terei que resolver isso.
- Se você quiser, pode enfiar a liberdade no seu... – me interromperam.
- , precisamos de você na enfermaria urgentemente. – Bailey bateu na porta, chamando o líder que se levantou rapidamente, mas antes de sair se virou para mim.
- Não saia daí.
Dei os ombros.
Enquanto os dois estavam fora, fui até o outro lado da mesa de , o seu lado. Me sentei em sua cadeira e fiquei por alguns segundos me sentindo a líder daquele lugar.
Com grandes poderes vem grandes responsabilidades, diria meu avô. E se eu tivesse grandes poderes, eu cortaria a cabeça de todos que me irritassem.
Brincadeirinha.
Observei a mesa e suas gavetas, minha mão coçando e meu olhar fixo na gaveta que estava trancada da última vez que vi. Só que dessa vez não estava trancada.
A abri sem pensar duas vezes e mandei minha consciência se foder, minha curiosidade era maior.
Havia apenas um papel, uma cartinha dobrada e que fez meu coração saltar. Minhas mãos tremiam e meu peito batia forte, quase estourando meu peito.
O pequeno “” escrito com a letra que eu conhecia melhor que ninguém fez com que meus olhos se enchessem d’água. Até aquele papel tinha o perfume dela.
Era uma cartinha de .
Uma cartinha de que estava guardada nessa gaveta por sabe-se lá quanto tempo, uma cartinha que estava trancada e que me privaram de ler.
A vontade de chorar logo se passou para uma sensação de ódio, uma sensação ruim demais que eu jamais havia sentido em minha vida. Eu via vermelho, eu sentia vermelho. Não era saudável.
Eu não estava bem.
- Voltei. Ainda temos muito mais o que conversar. – adentrou o escritório. Grande erro. – ?
Me virei para ele e pude ver sua reação mudar, o clima da sala mudar no momento que viu o papel em minha mão.
- , fica calma, eu posso te explicar.
Ri.
- Então comece.
- Eu encontrei e ela me entregou ela carta, eu acabei esquecendo de te contar, foi um erro meu. Me perdoe.
Ri novamente.
- Você é um péssimo mentiroso, .
- , me perdoa. Eu só... Eu não queria...
- Que eu encontrasse minha irmã? – Minha voz estava embargada, meu tom baixo e controlado não representava meu estado emocional.
- Que você fosse embora!
Ri novamente. Isso tudo era patético demais para mim.
- Você é patético , você é tão...
Me interrompeu.
- Eu só queria seu bem.
- Meu bem?! Você escondeu que encontrou minha irmã e que ela havia escrito para mim, em que mundo isso seria bom para mim? Você é pior do que eu pensava, você é frio, egoísta, você é manipulador. Eu tô com nojo de você nesse momento.
- A tá no QG! Ela tá com o e eu achei que seria perigoso demais se vocês se encontrassem, eu quis te proteger.
Gelei.
- Como é que é? Minha irmãzinha, a única família que eu tenho está com o psicopata do Slade e você resolveu esconder isso de mim? Meu Deus.
Meu pulmão ardia e eu tentava respirar, mas estava ofegante demais para isso. Minha cabeça doía e tudo girava, eu estava ficando fora de mim.
- , eu sinto muito mesmo.
Cala a boca, por favor.
Tentei caminhar para sair daquela sala tóxica, mas me segurou e isso foi o começo do fim.
- Não encosta em mim! – Ordenei, mas ele veio para cima de novo, tentar me segurar. Tentar me fazer ficar.
- .
E me pegou mais uma vez, e essa foi a gota d’água. Pude apenas me virar para frente dele, apontando o revólver que eu havia levado para a patrulha em sua direção. Ele parou bruscamente.
- Nem mais um passo ou eu juro, por Deus, que estouro seus miolos mais rápido que você possa imaginar. – Disse em um tom ameaçador e ele levantou as mãos em sinal de rendição.
- , abaixa a arma. Vamos conversar. – Seu tom era cauteloso, mas naquele momento eu não era mais eu mesma. Tudo que eu via era vermelho e eu sentia meu sangue fervendo dentro de mim.
Eu tinha problemas com raiva. Quando ela me atingia, eu esquecia de tudo ao meu redor, tudo que poderia ser sensato ou salvo. Eu esquecia tudo que eu aprendi e me transformava. Esse era meu problema. Esse era meu maior medo, ficar com tanta raiva que eu pudesse me perder de vez.
- Conversar? – Ri alto. – Você sugere conversar? Pois eu estou bem cansada de conversar, é hora de ver miolos.
começou a se aproximar de mim, até que a ponta do cano de minha arma encostasse em sua testa. Ele mantinha as mãos para cima e não esboçava nenhuma reação.
- Atire. Faça isso se fará se sentir melhor.
Sorri, um sorriso sombrio, algo frio e completamente assustador para se ver. Destravei a arma.
- Você deve se sentir o melhor de todos, não é mesmo? Dorme a noite pensando que conseguiu domar a selvagem, conseguiu a botar em seu grupo e fazê-la parte de sua grande família, mas você está enganado. Eu nunca serei parte disso.
- Você pode ser. , você não precisa viver lá fora mais. – Seu tom cauteloso, ele tentava me embalar. – Podemos ser sua família agora. Você será uma de nós.
- Mas não sou como você. – Sorri. – Quem disse que não sou perigosa?
E então atirei.
fechou os olhos e abriu rapidamente, percebendo que não estava morto. A arma não tinha balas. Ele respirava ofegantemente, incrédulo com minha postura.
- Isso é para você jamais esquecer quem eu sou e o que eu nunca serei.
Dei as costas para o homem, saindo do escritório e levando minhas coisas restantes para fora daquele lugar. O lugar que eu nunca chamaria de casa.
Eu iria atrás da no QG, atrás da minha família e a levaria pro nosso lar.
Fazia tempo que eu não entrava na nossa camionete, nossa Pussy Wagon moderna e discreta.
Ela cheirava a lembranças e apenas em sentar naquele palco, fechar a porta e segurar no volante fazia com que minha cabeça se limpasse. Meu ar se recuperava e eu me sentia em paz.
Liguei o carro e aproveitei para ligar o som, a música me relembrava anos dourados de minha vida. Total Eclipse of the Heart, a música do casamento de meus pais.
Minha mãe contava como quase desistiu de casar com meu pai de última hora porque suas irmãs diziam o quão errado ele era, então ele tocou essa música para ela em uma cena típica de filme de romance, então ela sonhou em entrar na Igreja com essa música.
E aconteceu.
Fechei meus olhos, respirando fundo e comecei a dirigir para qualquer lugar.
And I need you more than ever
And if you only hold me tight
We'll be holding on forever
A estrada escura não me assustava, eu dirigia sem medo, pronta para atropelar qualquer bicho que viesse em minha direção.
Com o vidro da janela abaixado, eu sentia o ar gelado em meu rosto e meus olhos focados no escuro. Nada mais me importava. Eu iria encontrar minha irmã.
'Cause we'll never be wrong
Together we can take it to the end of the line
Your love is like a shadow on me all of the time
Parecia que eu estava dirigindo há minutos, a estrada infinita que não tinham curvas e nem pausas. Mas a sensação de dirigir era anestesiante demais, me alivia de qualquer dor que havia sentido.
Jamais seria capaz de perdoar pelo o que fez, não havia adquirido essa habilidade. Meu sangue era quente demais.
No meio da estrada, vi parada, mas não consegui parar o carro. Passei por cima dela e a vi se evaporar em minha frente.
We're living in a powder keg and giving off sparks
I really need you tonight
Forever's gonna start tonight
Minha cabeça estava uma bagunça, só que eu me sentia mais perto de a cada momento, eu sentia que estava chegando no QG.
I was falling in love
But now I'm only falling apart
There's nothing I can do
A total eclipse of the heart
Então o fantasma de meu pai cruzou meu caminho e consegui fazer parar o carro, antes que eu o atropelasse e também o apagasse. Assim como fiz com e com minha mãe.
Eu as apaguei.
Senti meu pai próximo a mim, sua voz em minha cabeça se sobressaia, mais alto que a música e que meus altos pensamentos.
Não tem problema em querer chorar, querida. Nem em se sentir fraca e sozinha. Saiba que sempre que se sentir assim, você terá alguém que irá te consolar. Que irá cuidar de você, não importa se seja eu, sua mãe, sua irmã ou qualquer pessoa que conheça no caminho. Você não está sozinha. Você não precisa lutar mais, , você está livre. Ouvi a voz de meu pai tocando em minha cabeça, apertei com força o volante, fechando meus olhos com força apenas para ouvi-lo mais uma vez. Só mais uma vez.
Eu precisava dele.
Eu estava tão cansada.
Então abri os olhos.
Once upon a time there was light in my life
And now there's only love in the dark
Nothing I can say
A total eclipse of the heart
A camionete continuava estacionada no mesmo lugar que esteve todo esse tempo e o tempo não havia passado, nada havia acontecido. Eu estava lá, sentada, fora de ar.
Mas aquilo havia sido ótimo para mim, havia me dado a força que eu precisava.
Não fugiria mais, não agiria impulsivamente, eu não atropelaria mais ninguém. Dessa vez faria tudo certo.
Desdobrei o papel, segurando as lágrimas e sentindo o nó em minha garganta doendo como jamais doeu. Lendo aquele papel, vendo a letra de e imaginando-a naquele momento escrevendo essa cartinha para mim.
Abri um sorriso, porque pela primeira vez no terremoto que eu estava vivendo, eu não havia desisto.
Eu tinha fé.
Capítulo 13 – Behind Blue Eyes.
Romero.
Não demorou até que eu encontrasse aquela lista telefônica com páginas já envelhecidas, amareladas e infestadas de poeira. Se estivesse aqui, provavelmente sua alergia estaria à tona novamente.
O estabelecimento em que eu estava era cinza como todo o resto do QG parecia ser, e pelo contrário, não era abandonado como os livros que estavam ali dentro. Na verdade, era uma área bastante usada por Slade para fazer quem sabe o que. Talvez um segundo escritório ou algo assim.
Com uma melhor investigação, pude encontrar algumas armas, não necessariamente de fogo, mas aquelas que faziam sentido o local manter-se com visitas semanais de quem quer que fosse... Por isso não foi difícil entrar ali. Claro que precisei de uma ajuda extra para conseguir a chave que o dono esta hora já deu por falta, entretanto eu esperava que no final ele não se irritasse por isso.
Isso era algo sobre o Slade que já consegui entender, ao menos, nesse pouco tempo que estava no território dele, ele poderia ser um monstro para a humanidade, mas comigo ainda havia algum respeito. Do jeito esquisito dele. Não, não estava tentando achar maneiras de justificar todas as atitudes insanas dele, já passei por essa fase e só estaria constatando fatos extras.
A esperança de encontrar crescia cada vez mais, eu sentia que já estava perto. Se todo o plano com Jacob e Baby funcionasse, o telefone velho que encontramos em um dos antigos quartos de soldados estaria concertado com maestria pelo gênio da tecnologia que descobri que a loirinha era, e com a ajuda do caderno de endereços e números em minhas mãos, ainda havia alguma chance de entrar em contato com aquelas pessoas. Os fios não foram cortados nessa ala, e esperava que o mesmo acontecesse com a Colônia.
Continuei sentada em uma mesa concentrada em uma leitura, ou fingindo estar, enquanto esperava a chamada de Baby. Ela precisava de espaço para trabalhar e eu estava me sentindo um pouco inútil para o meu país naquele instante. E claro, estava de alguma forma escondida ali dentro já que evitava algum encontro inesperado com Lionel que infelizmente estava de volta.
A porta se abriu e meu coração deu um pulo com a divergência dentre o profundo silencio em que eu estava. Quando Slade passou por ela, ele voltou a bater com calma. Franzi as sobrancelhas ao encarar sua face com alguns hematomas novos e sangue em sua blusa. Sempre que eu o encontrava era como se houvesse uma nova cicatriz em sua pele. Uma vida dura de levar.
- Querida, cheguei. – Havia o fantasma de um sorriso em seus lábios, mas não no meu.
Não tinha como ficar feliz aqui. Ele ignorou minha carranca, retirou seu casaco marrom e logo em seguida um pano que um dia fora branco e agora amargurava em um eterno escarlate do seu sangue, segurando a perfuração do seu braço com força.
- Aparentemente mortos vivos sabem usar facas agora. – comentei, voltando a atenção para a leitura.
- É. Tão evoluídos quanto seres humanos agora. Só faltam aprender a olhar para os dois lados antes de atravessar a rua.
- Cachorros já sabem fazer isso.
- Realmente alguns sabem. Mas isso não tira a curiosidade em minha mente de você estar no meu quarto, no meio do dia, sem algum convite direto. Teve muitas indiretas, sim. De qualquer forma... Posso ajudá-la em alguma coisa?
Perguntou como o atendente de uma loja e acabei fechando o livro enquanto suspirava. Não tinha muita questão por trás disso. Eu sabia que poderia encontrar a lista telefônica aqui e vim procura lá. Não queria mentir pra ele, tampouco falar o que estava fazendo sob o seu nariz. Omissão era o melhor remédio.
- Por que sempre que olho pra você há algum machucado novo na sua cara?
Ele deu de ombros. Sentou-se em uma poltrona alaranjada e abriu um criado mudo que estava ao seu lado, velho também. Retirou alguns objetos de dentro e logo compreendi o que ele estava prestes a fazer.
- Tenho uma agenda apertada. – rasgou a manga de sua camiseta completamente ao organizar seus materiais.
Permaneci em silêncio enquanto caminhava até seu lado. Observava tudo com atenção, cada movimento dele. Engoli seco quando ele retirou o líquido de um frasco com uma seringa nova e sem delicadeza abriu o corte de seu braço enfiando aquela ponta afiada em cada centímetro buscando o alívio imediato. Sem ao menos torcer a boca.
Qual a necessidade de usar anestesia se você ao menos tenta sentir a dor da agulha lhe perfurando inúmeras vezes. Ou talvez não doesse de verdade e ele estava tentando bancar o durão.
De qualquer forma, foi algo completamente estranho. E então o fio da sutura surgiu. E ele apontou em minha direção. Tentei manter a incredulidade apenas para o pensamento. Mas foram momentos e mais momentos de silêncio vazio e tensão.
Resgatei a agulha e iniciei os seus pontos, tentando dessa vez tomar cuidado. Sentei-me no braço da poltrona desconfortavelmente e ele acabou me colocando em seu colo. Sentia seu olhar queimar em meu rosto e mesmo assim não daria o braço a torcer. Ele poderia descrever o que eu estava sentindo no meu interior. Ou talvez o desgosto já estivesse estampado em minha cara como o esperado.
- Eu não sou um monstro. Nem louco. – bingo.
- Um pouco impulsivo talvez? – arqueei uma sobrancelha, sem olhar para ele. O fio preto rasgava sua pele e saia, o sangue não parava de jorrar, mesmo agora com a leve quantidade após o pano tentar pressionar a ferida.
- Quando eu fui impulsivo?
Defensiva não faz o seu tipo, meu bem.
- Slade – suspirei, não perdendo a concentração. – A alternativa mais fácil para alguém que já viu muita merda não quer dizer que seja a certa. Você não pode olhar para mim e dizer que o pessoal que tem medo de você não tem razão para que isso aconteça.
- Bom, você chama de impulsividade e eu chamo de algo necessário.
Dessa vez eu ri com sarcasmo e o encarei profundamente.
- Arrancar o braço de um garoto é necessário pra conseguir atenção e respeito?
- Ninguém consegue liderar sem colocar um pouco de medo no coração e mente dos subordinados, . – revirou os olhos.
- Subordinação pode ser interpretada como submissão. Sinceramente, seu ego não pode ser tão descontrolado. Eu posso ver isso, e não é só o que existe dentro de você. Você não está aqui somente para amedrontá-los e conseguir que todos o obedeçam. Mas isso sou eu, e estudei psicologia na escola.
- Ah, estudou? – ele sorriu largado e apertei um dos pontos em seu braço fazendo aquele sorriso sumir.
- Alguns não podem ver o que eu vejo. Ou o que eu tento ver porque expando minha mente o suficiente pra buscar todas as alternativas e razões pra cada passo que cada um que está ao meu redor toma. Aterrorizar talvez seja necessário em casos extremos, mas você já os tem por algum tempo e sabe disso. Sem falar que isso é tudo que mostra pra eles. Medo é bom na sua visão, e na sua visão, é só isso que possui?
- Aparentemente nem o medo é o suficiente se os campos que venho cuidando pela proteção ainda tentam me tirar do meu lugar, você esteve lá semana passada, Romero. Eles não escutam, só encontram verdade em si mesmo e qualquer coisa que vá contra a doutrina de domingo de manhã já pensam o pior. Pode ser que eu seja somente um sociopata sem futuro, não que haja um resquício para até mesmo as crianças daqui, também não tenho medo de sujar minhas mãos de sangue, igual os outros covardes que vieram atrás de mim. Mas esse não é um ritmo que pretendo abandonar se parece que está funcionando.
- Como sabe que está funcionando?
- Continuo respirando.
Mordi o lábio levemente e alcancei o álcool que somente vira agora. Deveria ter usado aquilo antes de costurar sua pele. Limpei minhas mãos e iniciei a limpeza com uma haste de algodão e soro.
Continuava em seu colo e era um misto de sensações eu estar posicionada dessa forma, nunca fui de ter algum tipo de discussão, mas estar aqui e tentando entender as merdas que ele faz, enquanto ele fazia carinho em minhas costas, era difícil raciocinar direito. A mão nunca ficava pesada, era como um beijo leve.
- É, eu estive lá semana passada e presenciei pessoas que não tinham se juntado ao motim pagarem pelo preço de suas atitudes impulsivas. Liderar não é somente conquistar um seguimento que nem ao menos é por livre arbítrio. Você deve ver o lado dos seus inimigos também, entender todo o tabuleiro para que possa movimentar as peças fazendo com que a minoria culpada saia abatida. As pessoas precisam confiar e acreditar em você, e não estarem dentro de um ninho onde sentem que são controladas por você.
- Eu sei o que fiz e o que eu sou Romero. Foi por isso que te levei até lá, para ter noção do que eu sou capaz de fazer e faria tudo de novo, sem a velha história de não conseguir dormir na cama depois por ser leve demais. Não estou pedindo a ajuda de ninguém para que testem minha insanidade. Querem me chamar de monstro entre as frestas? Posso assumir o título sem questionamentos.
Balancei a cabeça tentando ignorar tudo aquilo. Larguei os objetos em cima do criado mudo e me deitei na horizontal do sofá, onde ainda ele estava sentado. Ambos tínhamos a aparência desgastante e ainda não eram nove horas da manhã.
Acho que aquele seria o ponto final da partida. Slade realmente não tinha salvação, aquilo já estava impregnado em si e não havia nada que eu pudesse fazer. Ele não estava louco ou fora de si porque tinha consciência do que fazia, só não lhe comprava a culpa. Uma garota na casa dos 20 não pode simplesmente reprogramar a subconsciência de um cara porque não aprova o que ele faz.
E seria hipocrisia o bastante para eu dizer em voz alta que aceita suas diferenças e não parar de julga-lo mentalmente, afinal, eu tenho uma escolha aqui, e se não parti ainda, há este motivo por trás. Conflitos internos são uma merda.
- Eu tive um pouco de sanidade há muito tempo atrás. Bem depois da infância, que foi uma droga do mesmo jeito. A vadia chamada vida acabou com o que restava na minha mente depois de anos de serviço. Eu tento fazer com que as coisas continuem do jeito que estão, e cada um que acaba pagando por isso no caminho, como você mesmo diz, acabou merecendo de alguma forma. Às vezes não diretamente, mas você não me vê chorando por ser tratado como o bandido da história. Não acho que sou Deus para pode decidir o que fazer, porém continuo pregando tudo o que aprendi com a vida aqui na terra. Cada moeda tem seus dois lados, e no meu caso prefiro viver como um monstro a viver como um herói.
Ele fechou os olhos com força como se um milhão de imagens passassem por sua cabeça naquele segundo, e naquele mesmo segundo, um aperto surgiu no meu coração. Para uma criatura chegar a um ponto tão vazio a questões de honra ou escolher o lado do bem no mundo de hoje, era porque ele passou por muito mais do que eu deveria sequer imaginar.
Levantei a palma de minha mão para os seus cabelos e passei por entre seus fios, notando seu semblante se relaxar por aquele toque. O carinho foi se arrastando por seu pescoço, em cima do resquício da tatuagem tribal, a mandíbula que me encantava e por fim a cicatriz em sua sobrancelha.
Ele me segurou com mais força e me puxou para um abraço que me deu proteção, aquele braço por trás de minha cintura me fazia respirar com leveza. Como se nada tivesse acontecido. Nada em minha mente. Dei-lhe um pequeno beijo na têmpora antes de sussurrar em seu ouvido.
- Não me chame de Romero.
Ele riu de leve.
- Não me chame de Slade.
Meu relógio mental informava que eu já estava ali há tempo demais esperando por .
Em algum momento da manhã, Baby apareceu no pequeno quarto onde me encontrou com Slade na poltrona. A acompanhei para a saída com a lista telefônica sem tentar esconder que estava com ela em mãos tampouco tentando explicar o que pretendia com aquilo.
De qualquer forma, fora desconcertante a expressão dela mudar do vinho para a água quando o encontrou lá dentro. A alma saiu de sua vida tão rápida quanto saímos do quarto.
Para , já havia tentado lhe enviar um bilhete pelo pombo correio chamado . Então se tudo desse certo, esperava que ela acalmasse todas as suas emoções para que quando conseguíssemos entrar em contato, ela entendesse cada palavra que eu dizia por entre o chiado do aparelho antigo que se conectava a parede.
Demorou muito mais do que eu esperava para que conseguíssemos prosseguir com aquilo. Interligamos o mapa com os nomes até encontrar uma lista gigantesca de número que poderíamos tentar, nas chances de não ser conectado com a Colônia, somente nas redondezas dela, e na maior parte o telefone estar mudo.
Quando a esperança chegou ao fim, as vozes de alegria excessiva de algumas crianças se tornaram audíveis. Jacob de inicio quase brigou com todos, pois não conseguiam decidir quem falava ao telefone e quase desligaram por medo de ser alguém malvado demais. Não os culpava por isso. Baby por fim roubou o telefone de sua mão e conseguiu os fazer escutá-la.
Quando encerramos, já tinha feito um bando de crianças desconhecidas reconhecerem minha irmã como a menina loira do casarão vermelho e toma-los como garotos de recados. Obrigada esperança por ser aquela que morre por último.
Havia acordado de manhã cedo, e na verdade nem dormido por causa do nervosismo, aquela dor no estômago esperando por algo importante que iria acontecer.
Antes de sair, peguei uma mochila e coloquei o que consegui roubar da sala com frascos, algo como bandagem e medicamento para dor, somente o essencial, e se não viesse a usá-los, devolveria.
Consegui sair pela porta na cela onde vivia Jacob coma a ajuda do mesmo e dei a volta no Quartel. Usava as roupas que mantinha no corpo quando cheguei ao local que no momento eu vivia, a mochila com primeiros socorros, maçãs, e por fim uma faca de cortar pão que consegui na cozinha com Teddy. Se voltasse viva iria dar um beijo em cada um dos três que fizeram tudo isso funcionar.
Chegando ao rio do lado da casa de pescador, me lembrei da dor que passei aquela noite e que nesta mesma havia conhecido e sido levada por Slade.
Slade.
Eu nem sabia explicar o que tinha acontecido, e pensava se mencionaria aquilo para minha irmã.
Teria que esperar algum tempo parar ter certeza do que estava acontecendo entre nós, se era seguro prosseguir ou se eu teria coragem o suficiente de deixar minha irmã para voltar à minha missão no QG. É completamente possível que eu possa simplesmente largar qualquer indício de relacionamento em qualquer estado para voltar a morar na Colônia com , afinal de contas seria impossível trazê-la para morar comigo. Mas eu tentaria. Trazer ela comigo e ter força o suficiente para seguir sabendo do problema com o Hospital.
Recordei sobre a Colônia ficar do outro lado do rio, e por alguns minutos passei por uma luta interna pensando em como atravessar aquilo. Minhas mãos já estavam em ótimo estado assim como o meu pé, que até mesmo os pontos que Jerry fez já havia caído, então, sem demais escolhas, atravessei a água gelada e felizmente a correnteza deu uma pausa de leveza naquela manhã. Quando saí do QG, o sol saiu junto comigo.
Retirei a mochila de minhas costas e a coloquei na pedra, respirando e sentindo um pouco de frio por culpa de meu corpo inteiramente molhado. Todavia pelos minutos estendida ao sol, meu cabelos estavam quase secos pela demora de e voltamos à parte em que eu jazia nervosa esperando pela minha irmã mais velha.
Sentei olhando para o sol refletindo na água e senti um baque em minhas costas, me virei com o instinto de ser um ataque, mas era um abraço.
Um abraço extremamente forte. E ela não me largou por cinco minutos.
Dei risada.
- Tudo bem , eu tô bem. – acariciei suas costas.
- ‘Tudo bem ’ – ela me imitou, com uma voz forçada – Bem? Mana eu vou te matar. Eu saí daquela porcaria de Colônia atrás de você, cai e me machuquei, quase morri, perdi esperanças, tive crise de asma, chorei igual uma condenada caindo em um asfalto numa cena digna de drama sobre a Segunda Guerra Mundial, fiz várias merdas, apontei uma arma na cabeça de , chorei mais um pouco, briguei com o até ele me dizer que tinha encontrado você por aí andando de boa e até mesmo lhe entregou um bilhetinho. – ela respirou fundo com a cara vermelha de raiva e retirou do bolso o papel que eu havia entregado a ela. – ‘Saudades’ – frisou a última palavra escrita – Saudade não é o bastante.
Pra completar amassou aquele bilhete e jogou em mim. Acertou no meu braço e fiz uma cara de dor completamente forçada e gemi. Ela continuava com raiva.
- Você é tão exagerada, . – ria da expressão rígida de minha irmã.
- Exagerada? Eu estou até calma perante a tudo que está acontecendo aqui. – respirou fundo. – QG? Slade? Você ficou maluca? O cara é um psicopata, como você dorme sob o mesmo teto que ele? Isso é maluquice e para mim chega. Nós precisamos ir embora daqui, precisamos seguir nossa vida. Chega de Colônia, chega de QG, mana. Eles estão nos arruinando.
- Não posso. – disse com força, mas esperando receber outro papel na cabeça. Ou talvez uma pedra, havia bastante delas ali.
Ela respirou profundamente e fechou os olhos, meditando por alguns segundos.
- Posso saber o porquê não?
- Tudo bem, senta. – ela me encarou estranha – É sério senta, precisamos conversar com calma.
A resgatei pelo braço e nos sentamos na sombra de uma árvore, voltadas para a floresta.
- Tente falar baixo dessa vez, não queremos nenhuma surpresa que não é bem vinda – ela revirou os olhos. – Vou contar tudo que sei e o que aconteceu desde que saí da rota.
- É o mínimo que mereço. Uma explicação – e dessa vez eu revirei os olhos para a reclamação. Sempre fomos assim, sempre foi a que sabia se expressar melhor, o coração mais quente e palavras mais vorazes.
- Sabe o grupo que nos atacou no dia em que saí da Colônia?
- Sim. Friedrich falou sobre o norte, por que? O que têm eles? Foram sequestrados por também?
- Shh. Quietinha mana. Deixe-me continuar. Descobri que o norte e mais outras comunidade que fazem parte dessa central entre a floresta de caça e a cidade são redigidas por Slade. Não de uma forma completamente certa. Mas é ele que coloca a paz, digamos, nesses grupos.
- Paz? – praticamente gritou – Tá doida. Pirada. Você precisa saber como esse maníaco é , tem que ficar longe dele. Mês passado ele apareceu na Colônia e... - interrompi.
- Cortou fora o braço de um adolescente com ele ainda acordado? Sim eu soube disso – percebi que ela adotou uma postura nova, e tive que voltar a lhe explicar, pois não queria minha irmã me olhando como se não me reconhecesse – ele bota terror mesmo, . O cara talvez tenha algum distúrbio mental? Sim, porém vamos deixar a personalidade duvidosa de Slade para depois.
Ela assentiu.
- Ele lidera essas comunidades de uma forma que troca comida por proteção. Está no local com mais armas de todo esse centro, então faz com que semanalmente possam ir até a cidade buscar mantimentos, o necessário ele pega. Do outro lado da moeda, ele mantém o Hospital longe, que seria a maior ameaça possível. Ou até mesmo outras comunidades, elas mesmas que se brigam entre si. Depois do ataque do norte eu fui com o grupo do QG até o mesmo para que ele voltasse a colocar suas ordens intactas, esquentar a cabeça daquelas pessoas. Quando digo que conheço a personalidade dele, é porque sei. Ele fez coisas que não as considero dignas, mas fez. Não sei se o critico por isso, ou fico feliz pelo grupo do norte que se livrou de um líder completamente inútil.
Revelei aquela informação, pois sabia que saturaria na cabeça de , afinal aquele mesmo líder nos fez se separar e também estragou um grande processo de evolução na Colônia em que ela ainda vivia e presenciava o pós-ataque.
- Quando atraí os mortos para o outro lado, deixando as crianças indo para a placa com algumas mulheres, acabei me perdendo, você sabe o meu senso de direção podre... Enfim, caí em uma armadilha de urso, encontrei aquela casinha – apontei para o outro lado – e acabei fazendo uma cirurgia em mim mesma com base de fogo.
Neste momento ficou preocupada demais e mostrei minha canela para ela.
- Que droga, ... Ainda dói? – perguntou passando o dedo de leve na pele nova e vermelha.
- Na verdade não. Eu coloquei fogo, e bebi bastante álcool, o que tinha achado na casa. Mas momentos depois, Slade me encontrou e então me lembro de acordar em uma sala com alguns pontos já no meu pé.
- Não sei se acredito nessa bondade e altruísta fachada depois do que vi com o braço do menino.
- Ainda estou viva, acostumei-me com o lugar e é tão bom quanto a Colônia, mas não tem minha família lá. – dei de ombros. – Fiz algumas amizades e acima de tudo, descobri algo interessante.
- O que é mais interessante do que eu? Pare de arranjar desculpas e vamos embora. Temos que permanecer juntas, família antes de tudo. Vamos. – Falou se levantando.
- O próprio Hospital, a ameaça mor – disse a puxando pelo braço para que se sentasse de novo. – Há um menino lá que conseguiu fugir dele. É um grupo que saqueia outras comunidades, estupra mulheres, transforma homens em soldados e tem leis rígidas demais, segundo ele. Mesmo com a visão do garoto deturpada pela inocência, pude concretizar suas palavras para a realidade nojenta. E pelo trabalho que o grupo de Slade aparentou ter descobrindo sobre o próprio, deve ser verdade.
- E onde fica esse local, ? Por que você acha que eles vão nos atacar se não fizeram até hoje?
- Não faço ideia. É questão de tempo até acharem nossa localização. Tampouco sei sobre este Hospital. Mas o tempo que passo no QG sempre o gasto tentando descobrir sobre o que nos rodeia. Acho que meu objetivo agora é procurar pela paz ao viver, cansei de correr .
Quase sempre. E sim, eu menti sobre saber a localização, eu sabia. E era mais perto do que ela pensava, e isso era o que me preocupava. Não tinha cabeça e coragem para liberar uma informação dessa que levaria a sua curiosidade e talvez falasse para o próprio , os fazendo entrar em uma busca fraca e se arrependendo mais tarde.
- Isso é ótimo, para outra pessoa. Não é uma luta para você comprar . Eu não posso suportar isso – bufou caminhando até as pedras.
Caminhei até seu lado e a observei abrindo sua mochila, retirando em seguida dois óculos de sol.
Chantagem emocional nostálgica?
Sorri pegando o objeto com lentes vermelhas em formato de coração e coloquei no rosto.
- As coisas lá na Colônia não estão um mar de rosas, posso te assegurar isso também.
Notei que a água límpida estava livre de qualquer individuo desconhecido ou morto e comecei a retirar minhas botas, com minha irmã fazendo o mesmo ao meu lado.
- As crianças conseguiram se safar? – perguntei realmente interessada e preocupada. De nada valia cada buraco na minha canela se as crianças estivessem em uma situação pior que a minha.
- Claro que sim, – ela sorriu fraco – e extremamente gratas também. Já eu não. Puta da cara, sim. Coisa de louco fazer uma coisa dessas.
Eu ri e finalmente estávamos sem as botas e as meias. Colocamos os pés dentro da água sentindo aquela sensação gostosa da companhia de quem amamos, do vento em nossos cabelos e o cheiro da natureza.
- Louca, eu? Ouvi a alguns minutos que você apontou uma arma na cabeça de , estou correta? – indaguei com uma sobrancelha arqueada.
Ela mudou a postura, encarando o nada extremamente séria.
- Eu não sei se posso mais confiar nele, . Quem dirá confiar em cada uma daquelas pessoas. Eu fiquei tão preocupada com você que acabei procurando consolo em uma pessoa que acreditei ser de minha confiança, mas na verdade... – A ouvi suspirar, aparentando estar tão decepcionada com . Nunca a vi assim. – Não era nada do que pensei. Ele só quis... me moldar.
Suspirei e peguei sua mão apertando com força. Deitamos-nos na pedra lisa olhando para o céu.
Me sentia culpada por ter feito minha irmã passar por tudo aquilo sem nenhum apoio. Sei muito bem como funciona com confiança e a perda dela pode ser dolorosa. E na realidade não sabia exatamente o que sentir.
Eram tantas emoções passando-se por minha mente que cada um desses pensamentos se embaraçava, um pegando a frente do outro e cortando meu raciocínio, fazendo com que nenhum deles tivesse um ponto final. Ou seja, sem nenhuma conclusão do que fazer.
Felizmente de algo já estava certa e resolvi argumentar sobre isso com minha irmã, a única opinião que importava.
- Sei que você iria tentar me levar a força para longe daqui de qualquer maneira, mas tem que entender meu lado. Preciso de estabilidade, . Vivíamos em rádios feitos de metal, sem dormir direito e com medo de cair, ou passando dias sem comer alguma coisa que prestasse. Insetos não é minha refeição favorita. E agora que encontramos um ponto de comunidade que possa acabar com nossa vida de nômades, penso que é uma obrigação lutarmos por tais lugares. Como você se sentiu tão acolhida no momento em que conseguimos um colchão na Colônia. Apegamos-nos àquilo que nos faz bem – aquela frase iria ecoar na minha mente por um bom tempo. - Agora sei que posso tentar fazer algo para manter esse bem pra mim e para as pessoas ao meu redor, e voltar para de baixo da sua asa sem ao menos uma iniciativa minha seria desistir. E eu não posso desistir.
Minha irmã apertou com força minha mão e vi uma lagrima escorrendo na sua bochecha.
- Desistir não fez de nós sobreviventes, . – sussurrei, completando.
- Bancar a heroína também não. Isso é estúpido na verdade, atos como esse que fazem as pessoas irem embora.
Em uma realidade alternativa talvez, na nossa, as únicas pessoas que importavam na nossa vida foram embora por escolha própria.
- Não quero ser uma heroína. Eu só quero ter certeza por uma vez em tanto tempo que eu posso algum dia ter esperança de me sentir segura. Dormir com os olhos fechados sem uma faca em baixo do meu travesseiro. Se isso implica que eu preciso me arriscar, eu não tenho outra escolha.
Com aquela lágrima, acho que tive a certeza de que ela estaria ali por mim, por qual seja minha decisão. Sussurrei sem muita força, eu já sabia sua resposta no final.
- Eu não quero voltar para lá, , eu não sei se consigo mais fingir.
- Você poderia vir comigo para o QG.
Foi um pedido estúpido, eu não sabia se eu poderia convidar pessoas para morarem nas casas que não me pertenciam, ela odiava o anfitrião dessa casa e estaria colocando em risco o protótipo de lar que ela já havia criado, afinal laços são criados em pouco tempo, eu sou a prova viva disso.
Mas , a única opinião que importava. O combustível que eu precisava para descobrir tudo o que poderia. Acionar todo o meu armamento positivo e buscar meus aliados para que ficassem ao meu lado nessa nova batalha, e saber se ela estaria do meu lado nesta busca poderia significar outra coisa.
Porém, ela longe de tudo e mesmo assim sabendo de qualquer ataque antecedente, era o que acalmaria meu coração em primeiro lugar. Lá no fundo, eu já esperava aquela resposta, a hesitação em seu rosto, palavras desconexas sem saber ao certo o que responder. E estava bem com aquilo. Apenas assenti e segurei sua mão.
Passamos o resto da tarde ali.
Comendo as maçãs que eu havia trazido e que provavelmente vieram da própria Colônia. Ela me contando tudo sobre o que tinha passado com e a arma.
Compreendia e concordava com suas razoes, afinal não estou fora de mim ainda.
Foi uma tarde boa, leve. Duas irmãs conversando sobre tudo e nada, aproveitando momentos inexplicavelmente importantes, porque tudo que aproveitávamos nestas condições era o tempo.
Parecia ser ridículo o tempo e convivência ser tão importante pra mim, se eu estava praticamente a largando para ir até o outro lado do que ela considerava ser o seu lar. Meu subconsciente alertava que sacrifícios são necessários, ou era só um jeito de conseguir uma desculpa para eu mesma.
Eu queria o que ela queria. Um lar, pessoas de confiança ao meu redor, um travesseiro com penas na minha cabeça quando o luar surgia e eu podia dormir oito horas por noite.
Contudo, nada disso poderia acontecer se a ameaça estava mais perto do que pensávamos.
Capítulo 14 – Live and Let Die.
Grimes.
Entrei no velho bar com o piso antigo de madeira barulhenta, a cada passo que eu dava, mais alto era o ranger da madeira. A aparência velha e empoeirada indicava que estava abandonado há anos, talvez bem antes do fim do mundo.
Fui em direção ao balcão, mais precisamente até a silhueta escura do homem bebendo. O mesmo que virou a cabeça ao ouvir os meus passos. Não precisava de luz para saber que o maldito sorriso irônico estampava seu semblante, até porque esse momento foi proporcionado por ele. Era apenas eu e ele naquele bar. Eu e Slade.
Ergui as mãos no sinal de rendição, enquanto enchia o outro copo para mim. Me sentei ao seu lado, tomando de primeira um gole daquela bebida forte que preencheu todo meu corpo com o calor do álcool.
Eu estava precisando disso.
- Então, é só isso? – perguntou e eu arqueei minhas sobrancelhas confuso, esperando mais uma daquelas suas filosofias copiadas como explicação. – Sinto muito. – Parou. – Eu estava esperando a bandeira branca, um pedido de desculpas mais formal, talvez você devesse voltar e entrar novamente, dessa vez se ajoelhando pedindo meu perdão.
Revirei os olhos.
- Tem certeza que não deveria ser o contrário?
riu, negando com a cabeça.
- Eu não sou o vilão aqui.
Dessa vez eu ri.
- Não vamos começar com isso. Então, qual é o assunto de extrema importância? – Perguntei, indo direto ao ponto. Não queria ter que ficar mais que o necessário.
- Vamos com calma, colega, pra que a pressa? Temos o dia todo, não é como se algo fosse acontecer na sua pacata Colônia.
- Eu não acho. Vai que um maluco ordene um ataque contra a Colônia ou um maluco entre e arranque o braço de uma das crianças.
tomou um gole longo de sua bebida.
- Você não vai esquecer disso tão cedo, certo? – Assenti. – Bom, então vamos continuar.
- Então qual é o problema?
- O grupo do Hospital.
- Ainda estamos sem nada? – assentiu.
- Eles não são apenas uma ameaça, , é nível elevado de insanidade. Um formigueiro comandado pela porra do Coringa, na sua versão mais jovem e mimada. São maníacos em ascensão que precisamos assegurar que não passarão das nossas linhas. Mas eles são basicamente invisíveis, pouco se sabe deles e por onde andam.
- Porque todos que passam perto não voltam mais, certo? – continuei.
- Nosso particular triângulo das bermudas. E a todos que eles fazem uma “visitinha” não sobra para contar história, apenas os vestígios de objetos surrados que indicavam que antes havia algum tipo de grupo ali. – e ele me complementou.
- Então vamos fazer o quê? Unirmos e lutar contra eles? Não é muito sensato.
negou com o cabeça.
- Estou ligeiramente ofendido, . Eu sei ser sensato também. – concordei sarcasticamente. – Mas sim, não devemos ultrapassar o limite. Por mais que não pareça, eles também me preocupam. Não posso arriscar a vida dos meus e dos seus para ir atrás de um grupo que nem sabemos quantos são e quão forte são. Precisamos arrumar uma resistência.
- Eles não seriam idiotas para atacar nem a Colônia e o Quartel, certo? Se eles vivem ao redor devem saber quem somos e que não seria inteligente nos atacar porque não nos renderíamos fácil.
- É, mas o que eles teriam a perder? O pior tipo de homem é aquele que não tem nada a perder. E querendo ou não, nós temos muito a perder confrontando eles. É só ir aos seus arredores, nós temos uma casinha de papel comparado aos muros daquele castelo que eles chamam de hospital. Droga, os seguranças deles são mortos vivos – se alterou – apenas passando por aquela horda já perderíamos toda nossa munição.
estava certo. O Hospital era basicamente um ponto cego para nós, por fora, eram forte, por dentro, quase que invisíveis. E se eram tão brutos como reza a lenda, não teriam nada a perder. Eram soldados, eram moldados, matariam se fosse necessário e morreriam se fosse preciso.
E isso era o que mais me assustava sobre eles.
Eu e tínhamos nossos grupos, muitas pessoas que caso tivessem que lutar contra o Hospital seria uma causa perdida. Temos poucos soldados, poucas armas e pouca sabedoria.
- E se houver infiltrados deles em nossos grupos? – Pensei. Se isso fosse verdade, então estaríamos mais fodidos do que o esperado.
- Eu já pensei isso, assumo, mas ainda não sei. Eu tento manter meus olhos abertos para isso, porque é algo a se pensar. É muito inteligente na verdade. Eles poderiam ter acesso e saberiam nossas fraquezas, saberiam exatamente onde nos atacar. Mas infelizmente não posso colocar uma arma na cabeça de cada um e esperar que me respondam amigavelmente a verdade.
Eu ri, não por achar engraçado, mas por ser pior do que eu pensava.
- É, não podemos confiar nos de fora e agora mal poderemos confiar nos de dentro.
concordou. Nós brindamos nossos copos e viramos a tequila ao mesmo tempo.
Me preocupava demais com essa ameaça. De todas que já passei, essa seria a pior de qualquer forma. Todos os que sobreviveram ao fim do mundo ainda tinham o mínimo de humanidade, mas não os do Hospital.
Fico doente só de pensar o que eles fariam com nossos homens, nossas mulheres, nossas crianças e conosco mesmo. Eles destruiriam os grupos e para eles isso seria a vitória. Por isso seu silêncio, para aos poucos se tornarem imbatíveis e conseguirem a vitória sobre os grupos mais fortes.
Minha cabeça e de Slade em um prato seria de muito grado para o líder do Hospital.
- O plano então é tentar nos infiltrar lá dentro? Ou trazer um deles para fora, armar uma armadilha e descobrir mais sobre o Hospital, os líderes e os pontos.
- Isso mesmo. – tomou mais um gole e bateu a mão na mesa, comemorando. – Viu só? Nós somos imbatíveis juntos! Deveríamos fazer isso mais vezes, .
Neguei.
Só aceitei me juntar ao Slade nessa para repartir e dividir, para ver se ele para com essa idiotice de divisão, de pagamento e essas coisas que ele faz. Fiz isso para que ele deixasse meu grupo em paz, para que me deixasse erguer eles para os proteger.
Nossa união seria necessária em certo momento, por mais que me doa admitir. Juntos somos muito mais fortes, ficaria mais fácil de dar os próximos passos contra o Hospital, mas seria apenas isso.
Quando acabasse e nós atingíssemos a glória – se atingíssemos –, cada um voltaria para o seu lado e para sua vida, como fazemos desde que tudo começou.
Eu e Slade funcionamos juntos até certo momento, depois disso começam as brigas, os desentendimentos, as confusões e a personalidade controladora e destrutiva de Slade toma conta dele. Por mais que sejamos forte juntos, não fazemos bem um ao outro. Honestamente eu acho difícil ele fazer bem a qualquer pessoa que esteja ao seu redor.
Há muitas coisas que atrapalham nossa boa convivência, mas em momentos como esses, precisamos nos unir até com nossos piores inimigos.
- Não estamos em um elevador, de qualquer forma, como andam as coisas na Colônia, a Jolie... – E ele tocou no assunto, um dos assuntos delicados. Ele não queria saber da Colônia, ele já sabia sobre ela, todo mês estava lá. Porem o contato com Jolie era outra história.
Não me incomodava Slade querer saber sobre minha filha, talvez só um pouco, porque sei quais são suas intenções.
- Está bem, está saudável e não entende ainda nada do que está acontecendo. É um bebê e eu queria que continuasse assim por mais uns anos, não quero ter que explicar para ela que estamos no Juízo Final.
riu.
- Ela será curiosa, aposto. Não ficará quieta de forma alguma e muito determinada, vai ser igualzinha a... – Então parou. Não, , não desça por esse caminho sem volta. Não toque nesse assunto se ainda quiser uma boa convivência entre nós. – Você sente falta dela?
Respirei fundo e cocei minhas têmporas.
Não queria falar sobre isso, não com ele. Pois toda vez que eu ouço o nome dela sair de sua boca, meu sangue ferve e eu me lembro de tudo que aconteceu, tudo que aconteceu para chegar nesse ponto. E isso me irrita, me deixa cego.
Ainda era uma ferida aberta.
- Porque eu sinto. – assim que ele colocou o pequeno copo de vidro no balcão novamente, e me olhou daquela forma, não pude me controlar. Em um segundo meu punho encontrou sua face e em um momento ele estava gargalhando no chão do local.
Talvez tenha ido mais baixo que Slade, mas ele precisava aprender a calar a boca mais vezes, parar de ousar a colocar o pensamento de minha esposa em sua mente como se fosse algo querido para ele. Meu orgulho não permitia aceitar em silêncio quando tocava naquele assunto como se fossem velhos amigos.
Nós dois sentíamos a sua falta. Nunca diria em voz alta, mesmo sendo verdade. Era até patético como uma mulher conseguiu destruir uma amizade tão forte e mexer com nossas cabeças, deixando efeitos colaterais visíveis e invisíveis. O nem sempre foi o Slade e eu nem sempre fui esse , mas nós acabamos pedindo por isso.
A memória dela ainda é pior que sua presença. Se ela estivesse aqui não haveria tanto ressentimento e culpa, talvez fosse possível fingir que ambos não sabíamos de nada e deixar seguir. Mas a memória dela é torturante, a culpa de ter deixado acontecer e não ter impedido.
se levantou sem dificuldade e notei que ele poderia estar aqui há mais tempo que imaginei, o teor de álcool parecia ser até mesmo o necessário para passar por tudo isso sem enlouquecer. Cada segundo mais desconfortável. Por que eu ainda estava aqui?
- É, mas você está indo bem... Já até está superando com a... – Tirou uns segundos para pensar. – Aquela loirinha. – havia sentido o peso do silêncio, por isso disse a primeira coisa que passou por sua cabeça desparafusada.
E até o mais desconfortável me fez rir, já que eu era tão desparafusado quanto ele.
- A última vez em que vi ela apontou uma arma pra minha cabeça, cara.
- O quê? – pareceu surpreso. – Isso é novidade pra você? Não deve ser a primeira garota que aponta uma arma pra sua cabeça. O mundo está te tratando mais bem do que você merece.
Poderia responder minha pergunta com o medo, insegurança ou o terror momentâneo de estar em meio do inicio de uma possível guerra, contudo naquele momento era totalmente descontração. Éramos jovens e amigos novamente, sem o drama, sem as mágoas e a culpa.
- E ? – perguntei sem mais rodeios. A garota fora um dos principais motivos para ter uma arma na minha testa noites atrás.
Neste momento sua feição mudou e a descontração de antes ficou mais dura que meu desconforto de segundos atrás. Eu já não poderia me sentir confortável, já que ele estava em sua pior áurea.
- Não somos tão amigos assim, . – largou o copo e se retirou como um fantasma, levando consigo a garrafa de tequila.
Tomei metade do liquido em meu copo e joguei o resto sobre o corte em meu punho que estava sangrando, combinando com o rosto de Slade. Poderia ter colocado fogo em cima do corte e não faria diferença na dor daquela sensação.
A verdadeira resposta, é que em um ambiente de loucos eu poderia me sentir são.
Dia 2
Jerry.
O som de um motor roncando me despertou em um susto atrás do volante e notei que Nico estava ao meu lado completamente aceso e seus olhos seguiam o veículo como um gavião. Ele chiou para que eu me mantivesse calado e com um sinal, liguei o carro para que pudéssemos segui-los.
Nico já estava com o walk talk em mãos enviando as coordenadas para o grupo do leste, que assim como nós, estávamos se posicionando a alguns dias esperando para dar o bote na presa perfeita. E era essa.
- Há apenas dois no carro senhor. As janelas estão abertas e está indo em direção à cidade, parece que os mantimentos deles também acabam. Sua teoria de que eles são robôs é falha, Jerry. Câmbio.
- Ainda não sabemos, não entramos lá. – rebati.
O Chefe então respondeu com sua voz chiada pelo comunicador.
- Já não era sem tempo. Avisaram todos?
- Sim. Câmbio.
- Estou a caminho.
- Câmbio e desligo.
- Se você disser essa palavra mais uma vez...
O Chefe ia dizendo, mas Nico acabou desligando de vez o objeto.
De longe observei o carro preto curvar da floresta para o asfalto liso indo direto para cidade e voltei a segui-los em velocidade moderada enquanto o motorista do outro carro avançava em velocidade absurda.
Quando chegamos a uma aproximação em que a vista do nosso painel poderia não ser facilmente uma surpresa, não deu o tempo o suficiente para que eles pudessem simplesmente frear o carro com sucesso.
Até porque, em instantes, o mesmo que antes corria como um felino, agora capotava em dois giros com uma fúria incessante.
Segui até o local do acidente e aos poucos nosso grupo dava as caras saindo por entre as arvores que abraçavam as laterais da pista. Seus carros deviam estar por ali também, mas somente andaram para acompanhar o estrago.
Após estacionar me aproximei do veículo que estava de ponta cabeça e ambos os homens de dentro desacordados. O Chefe estava lá fumando e nos dando ordens, observando todo o estrago.
Retiramos os cintos com rapidez e com um pouco de dificuldade retiramos seus corpos para longe da destruição que apontava sinais de gasolina encontrando o fogo. Slade abriu a porta do carro e alcançou o extintor de incêndio, apagando qualquer indicio de chama com maestria.
- Não queremos que nossos amigos médicos saibam disso mais rápido do que precisamos.
Ele tragou com calma e foi até a pista onde estava o corpo desacordado dos dois homens que antes ocupavam os bancos. Soldados do Hospital. Esse era o mais longe que chegávamos há meses e possivelmente nossa única chance de ter alguma ideia do que se passa por lá.
Agachou-se assoprando a fumaça na cara de um deles. Era normal, parecia ser daqui, cabelo loiro, cavanhaque. Cara de Alabama. Verificou a pulsação e deu a ordem para que os levássemos dali.
Nico e eu entramos novamente em um dos carros enquanto os outros levavam os dois como prisioneiros, amarrando seus pulsos e pernas.
- Você tem o endereço? – perguntei me referindo aonde deixaríamos os dois. Obviamente não seria em casa.
- Sim. Já conheço o lugar, vamos guiar os outros.
Assenti ligando o carro. Depois de alguns quilômetros notei pelo espelho retrovisor que o Chefe continuava fumando no meio da pista encarando o nada. Dei de ombros e voltei a prestar atenção na estrada. Não estamos falando de uma pessoa normal, de qualquer forma.
Slade.
O vento estava conversando comigo. A cada tragada era como se a paz estivesse em forma de fumaça e eu a trazia com gosto para dentro de meu corpo.
Entretanto nem tudo estava em sintonia ali. No meio de todo aquele silêncio resquícios de uma respiração assustada desordenada a calmaria.
E eu esperava para que aquele momento acontecesse.
Naquela batida de carro, ali. O veículo agora em vertical trazia sons dentro de sua lataria, não era uma explosão iminente, mas havia alguém ali. E que sem notar a presença de alguém, minha presença para ser mais exato, chutou levemente a parte traseira do porta-malas movimentando o veículo e a gasolina novamente, até que caiu instantaneamente batendo sua cabeça com força no asfalto liso.
Era uma criança que poderia ter talvez dez anos ou menos. O cabelo e pele sujos demais, aquele era um que o mundo estava maltratando havia um tempo. Aproximei-me tragando mais uma vez. Agachei-me ao seu lado como já havia feito mais cedo e notei que seus semblantes eram semelhantes a um dos corpos desacordados de mais cedo.
O mundo estava fodidamente fodido. Éramos todos loucos ali dentro.
Seus ossos pulsavam para fora pela fome, a sua forma infantil estava abatida e havia uma marca de gado em seu pulso na letra Z. Z de Zeus.
A calmaria desvaneceu. Não, não por raiva do que poderiam fazer com uma criança, mas pelo segundo que me dispersei fazendo com que a mesma segurasse uma pedra e atirasse com força na minha têmpora jorrando sangue com o movimento da minha cabeça.
O pequeno se levantou rapidamente e saiu correndo com os pés descalços. Grunhi retirando o cigarro de minha boca o jogando em qualquer lugar retirando rapidamente a pistola de minha cintura mirando em direção ao garoto.
Ele seguia em uma linha reta, seria fácil demais. Levantei a arma com raiva tentando concentrar o pequeno relevo diretamente em sua cabeça.
Seguindo por segundos, instantes, até que ele virou em direção contraria.
Contraria ao hospital.
Para longe de tudo que pudesse lhe atingir ou amedrontar, mas principalmente do hospital. O que poderia ser pouco pela hora, ou para a visão do público, mas era uma resposta que eu procurava há muito tempo.
Coloquei novamente a pistola no coldre e caminhei em direção à minha camionete, para que somente uma explosão atingisse a paisagem de paz que antes eu venerava.
Todo aquele fogo... Estava dada a largada. Não demoraria até que os médicos viessem a nossa procura, e até lá, estaríamos preparados.
Dia 3
Grimes.
Desci do carro e encarei o portão cinza enferrujado da garagem. Os caras do Slade estavam parados juntos como um grupo pronto para encher de porrada qualquer pessoa que passasse e parecesse ameaçadora.
- Parceiro! Achei que não viria. – Slade se levantou e abriu os braços em um falso gesto de parceira, me dando um abraço que suava falsidade. Quer dizer, eu considerava um pouco falsidade de sua parte.
Mas já parei de tentar entender o que se passava na cabeça de Slade.
Entramos na garagem velha, com prateleiras dos lados com uma exposição de cartões e relíquias de baseball. Com certeza quem morava aqui era um fã fanático. Mas meus olhos fixaram no taco de baseball exposto como um prêmio naquela garagem, um taco que em certas mãos seria uma arma mortífera. E eu sei de uma loira que adoraria ter esse taco em mãos.
Um dos prisioneiros, o moreno, estava sentado em uma das cadeiras, completamente amarrado e amordaçado, não que fosse ameaçador. O máximo era que se ele tentasse fugir cortariam suas pernas e se gritasse, chamaria os andarilhos sedentos por sua carne, então ele não seria estúpido.
deu dois tapinhas em meu ombro.
- Bom, enquanto você bate um papo com esse aí, eu farei o que os homens fazem com o outro. Boa sorte. Eu te dou um prêmio se você o fizer chorar.
- Espero que o outro ainda tenha língua para falar...
- Se ele cooperar sim, mas se deixar de ser útil pra mim... – Usou a ameaça para amedrontar o cara que tentava manter-se com postura mesmo imaginando a possibilidade de ficar sem sua língua.
Slade se direcionou à outra sala e eu peguei uma cadeira, deixando-a de frente para o rapaz preso, me sentei na mesma e tirei a faixa de sua boca.
Sim, eu seria o policial bonzinho. E adivinhem qual será.
Não demorou muito para que pudéssemos ouvir os barulhos e gritos de tortura saindo da outra sala.
- Ok rapaz, você me parece sensato. Você não quer que meu amigo faça o mesmo com você, certo? – Ele negou com a cabeça. – Ótimo, então me fale o que eu quero saber e eu garanto que você ficará seguro.
- Eu não posso... – disse baixo.
- Qual é, como eles saberão que você me disse algo? Pode confiar em mim, vai ser nosso segredo.
- Não, não posso...
- Você não quer voltar para o Hospital? Voltar para sua família e amigos? Você quer morrer? – Ele negou com a cabeça. – Então colabora comigo e me fale o que eu quero saber! – Aumentei um pouco o tom de voz e o rapaz tremeu. Viu? Sei ser ameaçador.
- Do que adianta?
- Desculpe?
- Do que adianta? Se nós contarmos algo morreremos, se não contarmos algo morreremos. De qualquer forma isso termina com nossos corpos apodrecendo ou sendo devorados pelos bichos.
- Ninguém aqui vai te matar, Louis, pode confiar em mim. Se vocês nos contarem exatamente o que queremos saber nada irá acontecer, mas se continuar enrolando e me fazendo de idiota...
- Eu não disse que você me matará. – revirou os olhos. Franzi as sobrancelhas. – Zeus nos matará. Se ele descobrir que contamos algo para vocês ele arrancará nossas cabeças ou nos queimará vivos. Só que se permanecermos em silêncio poderemos impedir que vocês idiotas morram também.
- Então você está nos protegendo?
Qual é...
- Vocês contra Zeus.... – ele deu uma risada forçada. – É impossível. Vocês não sabem com quem vão se meter, então sim, estou protegendo vocês. Melhor ficar quieto do que levar um bando de idiotas que se acham fortes para uma guerra perdida sem ao menos começar.
- Você poderá repetir isso para enquanto ele estiver arrancando suas unhas ou seus dentes, não sei com qual ele irá começar. – Me levantei e Jerry entrou na garagem.
O rapaz estava suado e ofegante, também com uma expressão que não indicava que trazia boas notícias. Slade saiu da salinha sujo de sangue – que obviamente não era dele.
- O que aconteceu? – perguntou sem paciência. – Rápido, eu estou no meio de uma conversa.
- O garoto sumiu, não temos nem pista dele, mas existe certeza de que ele não voltou para o Hospital. – Jerry soltou de uma vez e nenhum de nós comemorou sobre isso.
Puxei Slade para um canto, para que nenhum de nossos convidados pudessem nos ouvir.
- Conseguiu alguma coisa? – Perguntei e ele negou com a cabeça.
- Você? – Neguei também.
- Louis diz que está nós protegendo se mantendo em silêncio. – riu. – É, eu quis rir também.
- Bom, então é hora do plano B. – Slade deu as costas e pediu para que seus comparsas trouxesse o outro prisioneiro para a garagem.
Eles colocaram o outro rapaz, Will, ao lado de Louis, ambos sentados e amarrados. Will estava bastante machucado, me surpreendia ele não ter aberto a boca ainda. Talvez Zeus fosse tão ameaçador assim para que eles o temessem tanto.
- Este é – apontou para mim -, este aqui é Louis e este é Will. Esse rostinho bonito dele me deixava tão irritado que tive que acabar com ele, sabe como é certo . E bom, meu nome é . Slade. Eu quero que saibam e gravem este nome com atenção. Quando estiverem zumbificados por aí essa aqui será a última face e nome que recordarão se não abrirem a porra da boca como estou mandando.
caminhou até os dois e sem demora apontou a arma carregada para a cabeça de Louis, que começou a respirar forte e tremer de medo.
- Uma pergunta e uma resposta, ou eu explodo os miolos deste aqui. – Sussurrou, como um maníaco, fazendo com que Louis chorasse implorando por piedade.
Era engraçado como todos deixavam de ser corajosos com uma arma apontada para a cabeça, né?
- O tempo está acabando e eu estou ficando sem paciência, vocês não querem me ver sem paciência... – Ameaçou mais uma vez e destravou a arma, indicando que estava só mais um passo de acabar com a vida do garoto.
- Para por favor, eu falo, eu falo! – Will gritou, fazendo com que Slade virasse para o rapaz. É assim que se chama atenção. – Eu falo, mas por favor não atira no meu amigo por favor.
não tirou a arma da testa de Louis, mas se mostrou total ouvidos para o rapaz.
- Vamos, fale logo. – Mandei. Will ainda tremia de nervosismo e suspirou antes de dar um tiro na perna de Louis, nos deixando surdos por alguns segundos. Meu coração disparou com o susto.
- São mais de cem homens, todos portados como soldados e todos com conhecimentos de armas, porte militar e extremamente perigosos.
- As armas?
- Militares e pesadas, desde fuzis até granadeiros. Eles têm um estoque cheios de armas e a toda semana eles saem em um grupo para pegar mais armas e suprimentos.
- A segurança?
- Cara, que parte do porte militar você não entendeu? – Louis se queixou.
- Não me testa, porra! – Slade rosnou.
- Desculpa, desculpa. – choramingou.
- A segurança é reforçada, ninguém entra e ninguém sai sem a permissão de Zeus, o líder. Os soldados ficam espalhados pela floresta e há armadilhas para capturar intrusos dia e noite. Não é somente sobre cem soldados, isso é a segurança, mas há pessoas lá dentro que cuidam de tudo e todos, exatamente todos, crianças, grávidas, crianças, cada um deles sabem o que fazer quando uma pessoa que não possui um Z em seu pulso se aproxima.
- Zeus é o líder? – perguntei.
- Sim, Zeus e o Dr. Aldo é seu braço direito, ele é meio que... Um cientista maluco?
- Só?
- Também tem o Guts.
- O que porra é Guts? – Perguntei confuso.
- É o Guts... Que merda, eu não sei explicar. – Will parecia nervoso com toda a pressão. – É só o Guts, você tem que ver pra acreditar.
- Ótimo, muito obrigado pela cooperação. – tirou a arma da testa de Louis, que respirou fundo.
- Você fodeu com a gente Will, você fodeu direitinho com a gente. E isso não é o suficiente. Estamos fodidos cara, eu sabia que não devia... - Louis se estressou com o amigo. É, nem todos sabem apreciar um gesto desses. Ele só entenderia se a arma estivesse apontada para a outra cabeça.
- É, quem diria que só precisava apontar a arma pra cabeça de um só pra fazer falar. – Jerry riu.
deu os ombros.
- Mas isso me irritou um pouco, significa que precisamos dos dois pra fazer isso funcionar? Tá apaixonado pelo Louis, Will? Que porra. Se eu matar um o outro não vai ter razões para abrir a boca, se eu matar ou não matar o outro, não importa, ele não vai abrir a boca porque tá preocupado demais em como vai chupar o saco do seu chefe mais tarde. Me irritou bastante isso.
- Tá falando sério? Não vamos matá-los. Ninguém mais tem que morrer , podemos dar uma trégua. – vociferei para ele.
- E literalmente duplicar as chances de um ajudar o outro a sumir daqui? Sinto muito, mas não confio muito na minha equipe para segurar o Tico e Teco aqui. Sem ofensa.
- Não ofendeu. – Jerry comentou.
- Eles irão dizer aos poucos o que precisamos, é só manter os olhos neles, oh vamos lá Slade, eles nem são assim tão inteligentes. Arriscar tudo por causa de uma amizade? Sério?
- Pela família na verdade. – uma voz diferente falou e em um piscar de olhos Slade já não segurava mais sua arma. A mesma estava apontada para sua cabeça.
Will estava atrás dele, com a própria arma de Slade apontando para a cabeça do mesmo. Todo o medo estava fora de seus olhos, e a voz tremida já não mais existia. O que parecia estar preso por uma vida estava a nossa frente e pronto para se proteger com o que poderia. Will o choroso nos enganou como patinhos.
Ele se afastava cada vez mais de nós prendendo os braços de Slade com uma força que não estava ali antes, enquanto o rosto do mesmo ficava cada vez mais vermelho e um ódio profundo. Jerry apontou a arma para Will, mas já era uma mira sem certeza de sucesso. Estávamos em um porão grande e Will se certificou de estar o mais longe possível de nós. E Slade negara o tiro em um pequeno gesto.
- Isso mesmo garoto. Eu sabia que você era uma boa aposta. Agora vamos e me tire daqui, rápido! – Louis disse com um sorriso maníaco.
Will sorriu para ele e não se moveu, vendo a expressão de Louis mudar.
- SEU DESGRAÇADO! – Gritou com ódio mortal.
Comecei a falar com calma.
- Família, você disse? – me referindo ao que Will disse antes de apontar uma arma para a cabeça do cara que antes estava torturando ele.
- Uh, sim. Obrigado... Jerry? Pela informação. Eu não tinha certeza se meu irmão tinha saído vivo do acidente, mas parece que deu tudo certo. E sim Louis eu entrei naquela droga de Hospital só por causa da criança blá blá blá, supere isso.
- Você não é um soldado do Hospital de verdade? – Jerry perguntou.
- Ah, não... Por favor não me comparem com aqueles ratos, eu sou melhor que isso. E achei o plano de vocês até legal, mas precisa de uma melhor execução. E claro, não comecem uma discussão no meio do juízo final de dois caras. Ele pode acabar pegando uma faca do seu bolso e você nem percebe.
Revirei os olhos pela burrice de todos nós.
- Agora, Jerry, preciso que você largue sua arma e se aproxime. – Ele fez o pedido. – Todas as armas Jerry. – E refez. – Bom garoto. Agora, pegue as chaves no bolso do Chefinho aqui e jogue na mesa atrás de mim. Em seguida, vá até lá fora e pegue uma bolsa amarela que havia no carro do Senhor aqui.
Jerry se aproximou rapidamente e fez como Will mandou, em seguida correndo para o lado de fora do porão.
- Corra Forrest, corra! – Will riu. – Voltando. Isso não é nada pessoal, eu só estava no lugar errado no dia errado. Mas tenho que dizer que estou feliz pra caralho que meu irmão conseguiu sair vivo dessa. Vocês só tornaram o trabalho mais fácil pra mim, assim não preciso me despedir de você né Louis.
O mesmo apenas cuspiu em sua direção.
- Vejam pelo lado bom da situação Slade, viu, Slade? Nunca vou me esquecer de seu nome e rosto – engrossou a voz e sussurrou, imitando o grandão, rindo em seguida. – Ok, voltando, o lado bom é que você não precisa se decidir em quem atirar ou não, vai ficar com menos um prisioneiro. E menos seu carro também, mas isso é problema para outro dia.
Jerry chegou com a bolsa amarela e Will lhe deu instruções para que colocasse toda a água do local que trouxemos dentro da mala junto com todas as armas, inclusive as que estavam comigo.
Em questão de um minuto ele tinha a munição, a comida, a água, um carro e a vantagem.
- Bom, rapazes, foi um prazer fazer negócio com os senhores! – chutou as costas de Slade diretamente para o chão e saiu pela porta atrás de si, agora mais próxima, cortando todo o caminhão de entrar pela casa e subir os andares.
Slade correu atrás do moleque, mas voltei a ver seu rosto enfurecido assim que ouvi o motor de sua camionete nos deixando.
- Slade, por favor, se acalme, no fim tudo funcionou e conseguimos...
Tudo aconteceu muito rápido. arrancou o taco de baseball da exposição e afundou o taco no crânio de Louis.
Ele voltou apenas para acabar com o trabalho de todo o inicio de nossa discussão.
O sangue espirrou em toda minha roupa e minha garganta se fechou completamente com o impacto de ver um ser humano vivo ter tudo tirado de si em um segundo. Logo ele se transformaria em um deles.
O quão triste é ter sua mente tão fodida a ponto de se tornar o vilão em um mundo como esse? Andarilhos é o mínimo do que o povo pode se preocupar quando pessoas com Slade e Zeus ainda caminham vivos pelas ruas.
Nesta paisagem, não somos nós contra os mortos. Somos nós contra nós mesmos.
A Colônia ainda parecia silenciosa, mas não tão silenciosa. Havia algo diferente no clima ou talvez fosse apenas coisas na minha cabeça.
Caminhei até o meu escritório, precisando de um momento para botar a cabeça no lugar, pensar em planos de ataque e me preparar para uma possível guerra. Abri a porta e a imagem de sentada em minha cadeira, com os pés apoiados em minha mesa, ocupada comendo cookies de chocolate de Barbie.
Ela abriu um sorriso ao me ver e ofereceu um dos cookies. Era extremamente tentador e completamente desconfiável.
- Olá Xerife. – disse baixo, parecia até mesmo envergonhada, o que ela ridículo para alguém como ela.
- Achei que nunca mais a veria por aqui. – Caminhei para dentro do escritório e fechei a porta.
- E abrir mão de um grupo, teto, comida e colchão? Ainda não. – Ela sorriu e se levantou, vindo até a minha direção.
- , eu sinto muito mesmo sobre... – mas ela me calou.
- Não tem problema, . O que importa é que minha irmã está viva e segura, mesmo com o psicopata do . E eu sinto muito por...
- Vamos deixar isso pra lá. Eu só quero... Recomeçar. Então vai ficar mesmo? – Ela assentiu.
- E abrir mão de companhias ótimas? – Sorriu novamente e passou por mim, reconquistando sua confiança – Aproveite os cookies, se quiser mais, só me procurar. – E deu uma piscadinha, saindo do meu escritório.
Eu estava hipnotizado com sua forma e surpreso por ter sentido tanto sua falta aqui comigo. Ela conseguia mexer com meu cérebro de formas estranhas até pra mim mesmo.
Mas mesmo assim, era muito suspeito sua volta repentina e seu perdão. não era assim, não era mesmo.
E eu iria descobrir quais eram suas reais intenções. Claro, depois de comer seus cookies e quem sabe repetir o prato.
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Nota da autora: Meeeeus amores, trago aqui mais uma atualização bombástica de IDM para vocês que amam e acompanham. <3
Queria agradecer a todas que comentam e mandam amores, divulgam e enaltecem essa história. Vocês me dão inspiração e vontade para continuar escrevendo, fico muito feliz em saber que vocês estão gostando. Então, muito, muito obrigada. <3
Boa sorte para vocês, porque a partir de agora é só tiro, porrada e bomba. Espero vocês na próxima att, beijos estrelados. <3
Outras Fanfics:
13TALES: Outros, Restritas, Em Andamento.(/fobs/number/13tales.html)
Caça ao Tesouro: Outros, Short, Finalizada.(/fobs/c/cacaaotesouro.html)
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
Outras Fanfics:
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Caça ao Tesouro: Outros, Short, Finalizada.(/fobs/c/cacaaotesouro.html)