Última atualização: Junho/2024

Capítulo 1

The rumors are terrible and cruel
But honey, most of them are true


Todo animal tem impulsos, seja este um animal racional ou irracional. Embora o passatempo predileto dos humanos seja negar sua própria natureza, nós somos animais racionais que, na maioria das vezes, conseguimos controlar grande parte dos nossos instintos primitivos. Contudo, é cientificamente comprovado que todas as pessoas possuem níveis impulsionais diferentes em todas as idades, principalmente durante a juventude. Para os neurocientistas, isto se deve ao fato de que o cérebro dos adolescentes ainda não está completamente formado — especialmente a parte autorreguladora deste. Cada cérebro de cada adolescente se desenvolve em um ritmo não específico e a última área a amadurecer é o Córtex pré-frontal. Isso mesmo, aquela regiãozinha que comporta características usuais dos adultos: capacidade de planejamento, concentração, empatia e inibição de impulsos.
Então, mesmo com meus colegas de classe falando que não havia nenhuma desculpa ou justificativa para o que (também conhecida como a narradora não confiável deste conto adolescente) tinha feito na última sexta-feira de outubro, às 23 horas, havia, sim, pelo ponto de vista de neurocientistas respeitados.
Mas o cenário dessa avalanche não é um hospital ou um centro de pesquisas. É a universidade. Entrar aqui pode até ser mais fácil, sair, no entanto… bem, imagine uma jaula de leões, na qual a porta de emergência está aberta, porém tem um banquete de carne ali. Você vai ser mordido se tentar ir embora, ou será comido quando os animais terminarem com a carniça que estava entre você e a liberdade.
Ou eu só estou sendo um pouquinho dramática.
— O Anarquismo acredita que o Estado deve ser completamente banido, o povo se auto-governaria. A educação seria libertária — o professor de sociologia continuou seu monólogo animadamente, como se dar aula fosse a coisa mais empolgante a fazer. — Muitos deles, não todos, são ateus. Ou seja, a igreja, como era uma instituição, também deveria ser banida. Os casamentos, por exemplo, não existiriam mais, pois envolvem o govern…
— Os casamentos já não existem. A maioria se divorcia por traição. A traição antigamente era punida com morte, não era? Hoje em dia, só matam o amor! — , minha ex melhor amiga e colega de quarto, interrompeu a explicação, enquanto se levantava abruptamente da carteira. O azul das suas íris destacadas pelas lágrimas em seus olhos. Ela olhou de relance para mim, o ódio, desprezo e a mágoa quase me deram um soco na cara. Por mais que a frase proferida por ele tivesse sido, no mínimo, ridícula.
Mas ela estava machucada, e pessoas machucadas fazem coisas idiotas.
Pelo menos eu não era a única dando uma de diva dramática ali. Que reconfortante de todas as maneiras erradas, pensei com escárnio.
A loira saiu da sala como um cometa em roupas caras antes que qualquer um dos presentes pudesse proferir alguma palavra. E, logo, Vanessa estava correndo atrás dela.
Como sempre. Os humanos são mesmo criaturas de hábitos.
— O que está acontecendo? — o professor perguntou em voz alta à turma, completamente absorto às fofocas que percorriam o corredor do prédio universidade desde a primeira aula.
Bufei, fechando os olhos e afundando na cadeira. Nem me preocupei em checar os arredores, sabia que todos estavam descaradamente vidrados na minha pessoa, prontos para me detonar a qualquer momento como mísseis, como já tinham feito por murmurinhos e memes maldosos no Instagram.
Chumbo trocado não deveria doer, mas deixava hematomas sufocantes.
— Piranha. — O sussurro era quase inaudível, mas foi o suficiente para me fazer abrir os olhos e dar um sorriso irônico para garota sentada do meu lado. Como se eu fosse abaixar a cabeça.
— Com o maior prazer.
Mesmo sendo a errada da história, mas isso não vem ao ponto.

As aulas tinham sido mais cansativas e pesadas do que o normal. Assim que o sinal tocou, apressei os poucos passos necessários para chegar à residência na qual vivia, onde, com certeza, mais uma boa dose de gritaria com acompanhamento de gelo estavam me esperando. Pelo menos teria uma boa desculpa para beber em uma segunda.
Finalmente estava na porta de casa, completamente exausta depois de uma manhã inteira sendo tachada como vadia, piranha, vaca traidora e outras palavrinhas nada bonitas. Além do sentimento de culpa que eu tinha que carregar, como o fardo que ele era. Tudo o que eu desejava era deitar na minha caminha, colocar uma música da Taylor Swift e me permitir entrar em um tipo de estado catatônico até o dia seguinte.
Tal como na noite de sexta, as coisas não aconteceram como eu planejava. Tirei a chave do bolso, mas, quando estava prestes a abrir a porta, ela foi escancarada por .
— Oi, . — Ela fungou, e meu estômago embrulhou como se eu fosse vomitar. Nós duas tínhamos sido inseparáveis desde sempre, como eu poderia ter feito aquilo com ela? Eu dava um novo patamar ao conceito de amiga ruim. Mesmo com nosso afastamento recente, nada justificava meus atos. — Suas coisas estão no gramado. Você não vai mais morar aqui.
Opa.
Minha primeira reação foi olhar para trás, onde a grama da casa se encontrava. Três caixas enormes estavam quase transbordando. A palavra preferida de todos para substituir meu nome escrita nelas com marca texto. Lê-se: vadia.
— Tá doida? — Consegui destravar, minha mente tão distraída nem ao menos tinha notado as caixas nem um pouco discretas no quintal. — Para de coisa, . Eu sei que fiz muita merda, mas você sabe que não posso morar sozinha. Se eu não ficar aqui, vou ter que voltar para casa. Literalmente do outro lado do país! — Tentei colocar algum senso em sua cabeça, minhas mãos movendo-se tão exasperadas quanto minhas palavras. Ela não podia estar falando sério. Meu coração esmurrava minha caixa torácica. Como a garota que costumava ser minha melhor amiga, ela sabia exatamente o que estava se passando pela minha mente.
— Você devia ter pensado nisso antes de dormir com o meu namorado na minha cama! — ela disse, seu tom de voz residia no meio termo entre irritação e decepção. Antes que pudesse ter qualquer movimento em resposta, ela fechou a porta na minha cara.
, para com isso! Vamos conversar! — Bati na porta, repetindo aquelas duas palavras: vamos conversar. Tinha como? Aquele era o tipo de problema resolvido com diálogo? Eu não sabia. Mas meu desespero por estar à beira de virar uma sem-teto gritava mais alto que meu senso. Muitas coisas pareciam se sobressair a ele ultimamente. À medida que eu me agonizava, aumentava a força para bater na porta, tentando chutá-la e a esmurrar, mas nada estava funcionando. — ! , por favor! — Tentei abrir a porta com a chave, sem resultado de novo. Ela tinha trocado a fechadura? — PUTA MERDA, ! VAI TOMAR NO CU, SUA FILHA DA PUTA! EU DEVIA TER TRANSADO COM ELE MESES ATRÁS. APOSTO QUE A EJACULAÇÃO PRECOCE DELE OLHANDO PRA MINHA BUCETA FOI MELHOR DO QUE QUALQUER GOZADA DENTRO DE VOCÊ!
É, eu não quis dizer isso. Mas foi exatamente o que saiu da minha boca.
E ela não abriu a porta.
Que surpresa.
Aceitando uma derrota temporária, me sentei na escadinha em frente à porta, decidida a esperar pela Alice, a prima de que dividia a casa com a gente, até olhar para o lado e notar que o carro de Ali estava divinamente estacionado. O que significava duas coisas:
1. Eu realmente estava distraída pra caralho.
2. Alice estava ciente da situação.
Antes que meus sentimentos calamitosos pudessem tomar o controle, Cortese apareceu do nada na minha frente. Sim, o mesmo cara que era namorado da minha melhor amiga e tinha tirado a minha virgindade na sexta-feira. Ah, aquele dia não podia ficar melhor.
— O que você quer aqui? — Estava prestes a descontar toda a minha raiva em alguém que só tinha 50% da culpa. Alguém que tinha sido extremamente gentil e compreensivo, antes e depois do... Certo, . Se tem um momento para não pensar no cara que te ajudou a, literalmente, foder a sua vida, é agora.
— Eu soube que você está sem lugar pra morar. — Ele coçou a nuca, como fazia quando estava nervoso. Era no mínimo peculiar assistir um homem de quase dois metros de altura tão hesitante. Arqueei as sobrancelhas, confusa sobre como ele soube de algo que aconteceu há três minutos. — Ela postou no Instagram quando estava montando as caixas. — Suspirou, visivelmente arrependido com a proporção que uma transa de traição sem significado tinha tomado.
Ah, . Você não é o único arrependido aqui, confie em mim.
— Me diz que foi no privado de besteira, pelo menos — grunhi, esfregando meu rosto até que minhas mãos parassem abaixo do meu queixo. Ele assentiu. Pelo menos só 100 seguidores e não 900 tinham visto, então. — Ótimo.
Ele deslizou as mãos nos bolsos, abrindo a boca algumas vezes antes de cuspir as palavras para fora rapidamente.
— Eu tenho um amigo que precisa de um colega de casa, acho que seria bom pra vocês dois.
— Veio aqui me oferecer uma casa como um pedido de desculpas por ter transado comigo? — Me levantei, mantendo o olhar firme em seu rosto enquanto cruzava os braços.
— Não! — seus olhos cor de avelã esbugalharam-se e suas bochechas coraram, e, pela primeira vez no meio de toda aquela confusão, eu consegui rir. De repente, eu me lembrei por que tinha me atraído pelo errôneo doce. passou as mãos pelos cabelos castanhos que estavam longos o bastante para tocarem seus ombros timidamente. — E você transou comigo também!
Viu? Ele é um boboca fofinho. Quer dizer, bem como um traidor repugnante, mas eu não tinha mais moral para julgar isso.
— Normalmente é necessário dois indivíduos, ou mais, para a prática de uma relação sexual, mas obrigada por me lembrar, . — Revirei os olhos, embora a sombra de um sorriso fosse clara em meus lábios. — Você não está fazendo isso por pena, não é?
Pena.
Eu odiava essa palavra. Ter um grupo de jumentos vindos do inferno para me xingar era mil vezes melhor do que uma só pessoa sentindo pena de mim. Eu já tinha provado muito desse sentimento alheio na minha cidade natal, com certeza não precisava de mais uma rodada dessa bebida melancólica.
suspirou, abrindo os braços em rendição.
— Eu estou com raiva de mim mesmo, . Meu relacionamento acabou e você está sem um lugar para morar. Três pessoas saíram machucadas. Por minha culpa. — Seu olhar sincero e sua voz banhada por fragilidade tornaram tão mais fácil eu apenas concordar com aquelas palavras e tirar o peso da culpa das minhas costas. Eu podia facilmente pestanejar, gritar, chorar e ele aceitaria tudo cabisbaixo.
Mas eu só respirei fundo.
Só dá pra apontar dedos até um certo ponto antes deles pararem em você.
— A culpa foi de nós dois, .
Ele não disse mais nada, provavelmente incerto de suas próximas ações. Afinal, eu o conhecia. Sabia que, em qualquer outra situação, ele iria me abraçar e dizer palavras de afirmação para assegurar que tudo daria certo. Mas o limite entre nós dois havia sido estabelecido no momento em que eu saí do quarto naquela noite cheia de prazeres e pesares. estendeu o braço, uma folha de caderno com algumas coisas escritas me esperando em sua mão. Apenas agarrei o papel, sem triscar em qualquer parte da sua pele.
— O endereço — ele clarificou. Assenti sem realmente olhá-lo, focando minha leitura no garrancho que me mostraria o local. Não era muito longe, poderia facilmente ir a pé. — E, ?
— Sim? — Levantei minha cabeça. O silêncio se fez presente naquele limbo, dois olhares cheios de tanta coisa, apenas tentando transmitir um terço de tudo, até que finalmente falou, com uma convicção que nem eu mesma tinha ultimamente:
— Você não é o que eles dizem sobre você.
E mesmo que não devessem, aquelas palavras pequenas, que não deveriam soar nem um pouco românticas, aqueceram meu corpo da cabeça aos pés.
— Obrigada — respondi, uma vez que ele já havia ido embora, mesmo que não pudesse escutar. Recuperei a atitude quando uma brisa gélida acariciou minha bochecha, me lembrando das mãos frias do garoto que tinha acabado de sair. Jesus do céu, eu precisava de mais limites. Andando até a minha trindade de caixas nada pequenas e com o endereço cravado na minha mente, me preparei para empurrar e carregar até a minha, esperançosamente, futura casa. — E lá vamos nós.


XXX


Eu juro que teria batido mais simpaticamente na porta se não tivesse andado três quarteirões inteirinhos com 3 caixas pesadas pra uma porra sendo empurradas, juro mesmo. Mas agora a pessoa que ia decidir se eu ia ou não permanecer nessa droga maravilhosa de cidade muito possivelmente já me odiava por quase quebrar a merda da sua porta de madeira.
Olha, eu sei. Falando assim, até parece que eu odeio a minha cidade natal, mas é mais complicado que isso. Quem dera fosse tão simples quanto odiar uma cidade tediosa.
— Você só pode estar de brincadeira comigo. — A voz dele parou minha tentativa interior de explicação ou sei lá o quê. Seus lábios arqueados formando aquele clássico sorriso lateral que ele tanto usava e parecia ter sido moldado por Deus apenas para me tirar do sério.
Só por ele estar ali, vivo e respirando, me custou um percentual alto de autocontrole para não pular no pescoço dele. Tinha que ser legal, pelo menos até aquele ser me deixar morar lá... com ele.
Credo. A que ponto eu cheguei?
Aí está algo que nunca pensei que iria precisar: a ajuda de . Embora nós dois tenhamos uma amizade incomum, ou inimizade. Ah, tanto faz. Minha relação com caras não é um tópico que eu queira discutir, nem comigo mesma.
— Eu concordo. — Revirei os olhos, me forçando a ser cordial com aquele galinha de meia tigela. — Olha, você provavelmente já sabe da minha situação.
— A foda com o ou você ser expulsa de casa? — me interrompeu e eu respirei fundo, me controlando para não mandar ele à merda. — Você devia aprender comigo, . Nunca pegue e fale se for alguém comprometido.
— Cala a boca. Eu preciso de um lugar pra morar por enquanto e o me deu esse endereço.
— Tá querendo se pegar com ele aqui em casa? — Sua voz permaneceu com o tom de provocação.
— Meu Deus. Fica quieto e me escuta! Eu, obviamente, não sabia que era você, mas já estou aqui e tive que carregar essas caixas enormes por três quarteirões inteiros sem ajuda nenhuma, além de ser taxada como vadia que transa com todos quando eu só fiquei com um cara. Aliás, e se tivesse sido mais do que um cara? Só porque eu sou uma garota isso seria errado? Aposto que se fosse um cara fazendo essa merda, não teria tido essa repercussão toda. Certo, eu não estou sendo chamada de puta porque transei com vários, o que não teria nada de errado, mas porque fiquei com um cara que tinha namorada e essa namorada era a minha melhor amiga, que agora me odeia e me expulsou de casa. Então, não seja um merda pelo menos uma vez na sua vida e me deixe morar aqui — despejei rapidamente, e o plano de ser legal voou pelos ares. Mas como eu seria gentil com o ? Simplesmente impossível. Eu nem mesmo sabia o que fez a válvula estourar e minha boca grande abrir para ser… um pouco grossa com ele, mas aquilo já era parcialmente comum. Tossi, ajeitando minha postura antes de encará-lo. — Só até as vagas para irmandades abrirem de novo. Por favor.
Pelo menos eu consegui não mandar ele à merda.
Porém, tomando como dica a careta de confusão que acompanhava os braços cruzados dele, duvidei bastante que ele, na minha frente, conseguiu entender alguma coisa do que eu havia dito.
Homens, sempre lerdos.
— Só até as inscrições para irmandades abrirem de novo? — Assenti com a cabeça e colocou a mão no queixo, como se estivesse pensando. Idiota. — E aí você se manda?
— E aí eu me mando — confirmei.
— Eu vou te cobrar aluguel — ele disse, arqueando as sobrancelhas.
— Justo. — Levantei as mãos. O aluguel barato era o maior motivo disso.
— E eu vou deixar minhas cuecas pela sala.
— Nojento. — Fiz uma careta. — A sua cuequinha do Homem-Aranha?
— Dá para esquecer disso? — Pela primeira vez naquele diálogo, parecia envergonhado. Nada como eus mais jovens para ensinar humildade. — A gente era criança.
Eu ri, cruzando os braços.
— Eu era uma criança, você era um bebê que sujou a cuequinha com…
— Ok, boa sorte morando no telhado da — disse, com um sorriso irônico, fechando a porta.
— Espera! — Coloquei a mão nela, impedindo que ele sumisse de vista. Guardaria as provocações para mais tarde, mas agora precisava de uma cama. — Eu não vou falar mais da sua cuequinha do Homem-Aranha.
Pelo olhar semicerrado, parecia saber das minhas intenções, mas apenas resmungou em concordância.
— E você vai embora assim que as inscrições para irmandades começarem.
— E você nunca mais vai me ver. — Sorri ironicamente. Eu sabia, tanto quanto ele, que não queríamos ter que suportar um ao outro mais do que o necessário. — Só em festas, mas vai estar ocupado demais com a conquista da semana para notar.
parou, ainda segurando a porta. Ele me encarou por alguns segundos de relógio e eternidades na minha cabeça. Eu tinha uma casa ou não?
— Sabe, você não precisava dar esse discurso todo. Eu sempre ajudo as donzelas em perigo — o idiota disse maliciosamente e eu tive que usar todo o meu autocontrole para não chamar o rabo dele de donzela. Quando eu estava prestes a mandar ele ir para puta que pariu, deu uma risada anasalada ao ver minha expressão e empurrou a porta para abri-la por completo. — Fechou. — A palavra mais milagrosa do mundo para mim deixou sua boca, seguida pelo irritante sorriso de sempre. Ele esfregou as mãos. — Vamos. Vou te ajudar com as tralhas.
Eu bem que teria dito alguma coisa para provocar ele, ou até bater o pé e dizer que conseguia carregar minhas caixas sozinha, mas o cansaço era tão grande que eu só me permiti sorrir.
Não por causa do , é claro. Apenas para o fato de eu ter onde dormir a noite.


Capítulo 2

Aquele barulho estava tirando qualquer chance remota de descanso a troco de nada. A irritação era mais alta do que aquele chiado e, ainda assim, eu não conseguia me concentrar o suficiente para fechar os olhos.
Clap.
O que era aquele zunido? Um mosquito reclamão? Ratos? Fantasmas? Alguém tentando entrar na casa? Glen planejando a minha morte durante o sono?
Clap.
Não, Glen era tão sútil andando quanto um cavalo manco. Talvez uma das suas companhias noturnas saindo de casa? Ou o teto cedendo à garoa por falta de manutenção daquele jumento… Tá, meio impossível. nem estava chovendo.
Clap.
Minhas teorias foram interrompidas por um choque de realidade, e da minha cama caindo no chão com um baque estrondoso, misturado a um grito de surpresa.
Clap!
Então, esse era o barulho. A minha cama.
Eu ainda estava no colchão, meu coração acelerado pelo susto, quando um descabelado entrou no quarto, estudando cada canto com seus olhos verdes arregalados em alerta, enquanto agarrava uma espátula como se sua vida dependesse daquilo.
— O que aconteceu? — perguntou, pousando seu olhar em mim. Arqueei a sobrancelha. Como aquele animal não tinha notado a cama encostada no chão?
— É sério?
— Você gritou, achei que era algo sério! — ele bufou, colocando as mãos na cintura como uma mãe sem paciência.
— E qual era o plano? Me defender com uma espátula, Bob Esponja? — Revirei os olhos, erguendo o braço para que ele me ajudasse a levantar. No frio da cidade, a palma quente de deixou uma sensação quentinha em minha mão, mas a soltei assim que me pus de pé.
— Primeiro, não ofenda o Bob Esponja nessa casa. Eu conseguiria derrotar qualquer um com uma espátula, eu sou um ninja. — Não consegui evitar a risada que logo se desenrolou em uma gargalhada ao ouvir aquilo. Em meio a toda aquela confusão, a coisa mais inacreditável certamente era achar que tinha qualquer tipo de habilidade. — Pelo menos eu não estou gritando igual um chihuahua.
Além de ser irritante.
— É mais capaz eu bater em um bandido do que você. — Ele abriu a boca para responder, mas, antes que pudesse, eu continuei: — A sua cama se desmantelou no chão.
A expressão de criança-mimada-sem-doce de logo se contorceu em um sorriso malicioso, como um dos sete cavaleiros do apocalipse antes de iniciar o fim do mundo.
— Sua cama.
— O quê?
— A minha cama está ótima. E cheirosa. A sua cama que está no chão. — O loiro deu de ombros, parece estar se divertindo a cada palavra. — Mas, sabe, eu nunca negaria o pedido de uma mulher para deitar na minha ca…
— Nojento, não me faça vomitar. — Franzi o nariz para aquele sem vergonha. Prossegui com algo que gosto de chamar de “abaixando a bola de porque ele já tem duas”, mas o odor de algo queimando me interrompeu. — Eu prefiro dormir no chão e… que cheiro é esse?
Mais uma vez, os olhos do loiro se arregalaram e ele sumiu tão rápido quanto havia aparecido. Do outro cômodo, só consegui ouvir uma frase desajeitada e rápida antes dos bater das panelas:
— É o nosso jantar… Droga!
Balancei a cabeça — aquele menino era inacreditável —, me virando para encarar o estrago do meu “quarto’’. Aspas são um eufemismo para aquele cubículo. Certo, através do meu humor pouco maleável, tenho que admitir dizer: o lugar era bem arrumado. Tomada estratégica, cama forrada, dois travesseiros confortáveis, ar-condicionado, relógio feio na parede, janela e um guarda-roupas que se encontrava todo quebrado, de modo que só uma porta estava utilizável. Não consegui arrumar nem uma mala — lê-se: caixote que empurrei até aqui — inteira dentro daquele troço, o qual provavelmente era o lanche diário de uma corja de cupins.
E agora essa cama fazia um ruído anunciando a sua quebra. Tentei empurrar o resto da dela com o pé, apenas para ouvir o clap de novo, uma onomatopeia digna de quadrinhos estragando minha chance de ter uma boa noite de sono mais tarde.
Além disso, como mencionado anteriormente, o quarto era pequeno. Claro que dava para circular sem bater na parede, mas minha pessoinha simplesmente adorava dançar pelo quarto e treinar minhas vertentes de atriz, encenando sozinha perante o espelho. Admito que esse último era mais uma luxúria, um problema de champagne, todavia, meus outros pontos eram válidos.
Eu até teria gritado se o dia não tivesse sido exaustivo o bastante, só para extravasar. Porém, tenho certeza de que acabaria desmaiando se gastasse o ar restante nos meus pulmões para me esganiçar. Assim, me levantei e fui até a cozinha, onde provavelmente estaria tentando salvar o nosso jantar.
Tão-Dã, meu querido colega de casa estava lá. Tirando a frigideira do fogão, segurando o rabo dela com um pano azul-marinho, parecendo tão concentrada quanto quando olhava o treino das líderes de torcida com os amiguinhos dele.
Só uma coisinha estava errada: durante todo esse processo, estava sem camisa.
Sério, me responda com toda a honestidade do mundo: QUE TIPO DE ANIMAL FRITA HAMBÚRGUERES SEM CAMISA? E ele estava basicamente encharcando o nosso jantar em óleo, dava para criar mini jacarés na piscina amarelada em que os hambúrgueres estavam.
— Você vai ficar parada aí me secando? — Aquela voz englobada com sarcasmo me assustou um pouco e eu dei um pulinho. Mas o que ele não viu, não aconteceu. — Já vou acabar aqui, mas a gente pode adiar o jantar e ir lá pro meu quarto. Posso comer uma coisa mais gostosa.
Um idiota completo.
— Primeiramente, eca. Não sei como tem garota que cai nessas suas cantadas idiotas. Em segundo lugar, te secando? Por favor, . — Revirei os olhos, me dirigindo até o balcão e me sentando sobre ele. — Estava pensando no quão panaca você é por mexer com óleo sem camisa. Sabe que esses litros de óleo que colocou aí podem respingar em você, né?
— Tá preocupada comigo, ? — Aquele apelido bobo fez todos os sistemas existentes dentro do meu corpo paralisarem no tempo por um segundo. Não porque era ele falando ou coisa do tipo, mas pelo que aquilo remetia: dias mais simples.
Quando mais nova, me apresentava como para os meus amigos, porque havia lido em uma revista da Seventeen que todos os artistas legais usavam seus apelidos, não seus nomes. Já na faculdade, nenhum dos meus colegas me chamavam assim. Apenas e . Desde o nono ano do ensino fundamental, a série em que e eu compramos nosso primeiro colar da amizade: um pássaro e uma espingarda. Anos mais tarde, nós duas acharíamos aquilo uma apologia à crueldade, mas, na época, nos sentimos duronas.
Levei a mão à sagrada gargantilha dourada imediatamente, a qual nunca cogitava tirar, nem mesmo para um banho. Eu realmente tinha bagunçado tudo por um homem, a porra do , de quem eu nem gostava romanticamente! Bom, não desde a infância. Esqueçam o que dizem sobre atos românticos impensados: a maioria deles é só sobre tesão misturado com alguns outros sentimentos confusos e nem valem tanto a pena assim.
A corrente gelada parecia um albatross* em meu pescoço. O metal entre os meus dedos me fazia questionar: quantos passos para trás meu feminismo companheiro tinha dado? Eu nunca teria feito algo assim meses — dias atrás. Quantos lapsos, olhares roubados e pistas ignoradas tinham me levado àquela cama?
? — chamou, provavelmente tentando ver se eu ainda estava viva. Afinal, não era comum ele não receber uma resposta arisca imediata na ponta da língua.
— Por mim, você morria e eu dançava ragatanga no seu túmulo, . — Atenuei afiada, soltando o meu cordão, que agora se assemelhava a uma corrente de ferro, me puxando para baixo a fim de manter meus pecados vívidos na minha mente como aquele A vermelho em “A letra escarlate”. Pelo menos brigar com aquele jumento iria me fazer esquecer a mágoa crescente que eu estava sentindo.
revirou os olhos, se virando para pegar dois pratos e, logo em seguida, voltando à mesa. Pela primeira vez, parei para observá-lo.
Naquela luz preguiçosa, aconchegante de cozinha, ele quase parecia aceitável. Olhos de jardim irritantemente magnéticos, cabelo curto em um loiro queimado, a boca proeminente, o nariz com a ponta e apenas um pouco, sutilmente, torcido na linha que o compunha; não era um nariz delicado, servia para torná-lo mais másculo, robusto. E as sardas, tão pequenas e meras, diferentes de qualquer outro aspecto dele, só poderiam ser achadas se eu ficasse perigosamente perto dele — o que já tinha acontecido durante nossas intermináveis discussões fúteis, que seriam esquecidas em minutos e brincadeiras infantis durante os anos.
Muita coisa tinha mudado, mas não . Ele sempre foi como era agora: irritante.
Todavia, não tinha noção de que ele tinha evoluído tanto assim no outro departamento, até ver deliberadamente em uma situação casual, com agindo e se vestindo tão despojado: músculos não muito aparentes, a não ser que você encarasse seus braços, e uma barriga bem mordível.
Certo, mordível. Eu estava com fome. E alucinando, aparentemente.
— Não precisa passar vontade, pode tocar. — O garoto sorriu pra mim, suas mãos sendo colocadas uma de cada lado do balcão, comigo sentada no meio das duas. Ele provavelmente tinha largado nossa comida em algum lugar, enquanto eu estava ocupada demais, dessa vez realmente secando ele.
Fui obrigada a constatar que a proximidade não era novidade: como eu disse anteriormente, nos conhecemos e discutimos há bastante tempo. E tudo tem seus estágios táteis. Claro, nunca houve violência física — por parte dele, porque eu já dei uns tapas bem dados naquele safado. Até cheguei a tacar um sapato nele quando tínhamos 9 anos.
— Engraçadinho. Vou pegar uma IST só por você ter encostado em mim. — Coloquei minhas mãos na sua barriga desnuda para empurrá-lo para longe, mas as danadinhas mal fizeram pressão, funcionando igual a ameaça de uma arma sem balas.
Antes que pudesse retrucar, seus olhos finalmente encontraram os meus. E olhando aquelas esmeraldas, algum pane no meu sistema me remeteu a .
Embora ele não tivesse nada a ver com o traste. Seus cabelos castanhos iam até os ombros, seus lábios eram finos e seu nariz era tão perfeito quanto uma escultura grega. Sem contar o abdômen definido, assim como qualquer outra parte do seu colo. Ele era até o cara mais alto daquela universidade!
Mas então tinha os olhos. Os orbes de nem chegavam perto do verde gritante de , mas eles sempre estavam no meio, mudando de um tom musgo para acastanhado a depender da luz.
. As reminiscências salgadas de como ele havia me tocado na sexta, como minha vida havia dado um giro de 360 graus, como eu tinha perdido tudo: minha reputação, minha melhor amiga, minha casa, minha virgindade, meus amigos, que nem mesmo trocaram uma palavra comigo o dia inteiro na faculdade.
Ainda estava lá, perdida naqueles orbes enquanto pensava em outros, quando a boca de se partiu, prestes a prosseguir a conversa naquela posição nada convencional.
Isso, e a lembrança de , me fez afastá-lo de verdade, o empurrando para longe, e se foi sem dizer nada.
— Devíamos ter regras — falei de repente, descendo do balcão. Certo, era o . Bonito ou não, eu nunca ficaria com ele. Ainda assim, não queria que atos como aquele virassem comuns de novo, não queria nem ser vista com ele. Chame isso de autopreservação feminina em tempos modernos com visões antiquadas, porque eu aposto um rim que, se eu fosse um cara, seria chamada de cretino por uma semana e logo tudo seria esquecido. A prova disso era , que era visto conversando pelos corredores horas atrás. De qualquer maneira, eu tinha que permanecer naquela universidade até as inscrições para irmandades abrirem, mesmo que fosse necessário engolir alguns sapos, coisa com a qual eu não estava acostumada.
Ele arqueou a sobrancelha, cruzando os braços com um sorriso divertido. Imitei o gesto braçal.
— Que tipo de regras? Sua palavra de emergência? — Cafajeste, como sempre.
Eu sabia que não tinha intenção de me pegar. Ele só sabia que eu achava seu jeito de galinha (muito) asqueroso e que julgava qualquer uma que caísse nos papinhos dele. E eu, é claro, amava diminuir o ego estratosférico dele.
— É sério, . Já sou a piranha da escola, não quero que minha reputação piore por sua culpa. — Por mais que aquela fosse uma visão extremamente machista, a qual eu sempre fui contra, eu não podia me dar o luxo de me ferrar ainda mais naquela história. Ele abriu a boca para retrucar, mas apenas continuei. — E é normal que as pessoas tenham regras quando moram juntas. Você não tinha regras quando morava com o Trevor?
O amigo com quem morava antes. Ele havia se mudado de última hora, os boatos diziam que os pais dele conseguiram revogar na justiça o pedido de emancipação dele.
— Se estiver pegando alguma menina, tranque a porta. Se vomitar, vai ter que limpar, bêbado ou sóbrio. Furar a camisinha do outro é sacanagem. Esse tipo de coisa. — Deu de ombros e eu bufei. Um perdido na vida, meu Deus do céu.
— Pronto, agora fazemos as nossas próprias regras.
— Tudo isso por que você não consegue resistir a esse corpinho? — Ele deu um passo para perto de mim e eu cruzei os braços, lançando o melhor olhar de ódio que eu consegui, o que não pareceu surtir o efeito desejado, levando em conta a risada que ele deu.
— Eu vou furar as suas camisinhas. — Eu não tinha coragem de fazer isso, mas ele não precisava saber.
engoliu em seco, assentindo rapidamente com a cabeça ao aceitar criar nossas regras de convivência e cessando o riso imediatamente.
Naquele momento, eu não consegui segurar a risada frouxa.
Enquanto ele arrumava os hambúrgueres, eu fui até meu quarto arranjar papel e caneta. Ao voltar, já estava de camisa, o tecido era da mesma cor que o pano que ela havia usado para segurar o braço da frigideira. Então era por isso que ele tinha tirado a roupa. Ao colocar os objetos na mesa, me virei para pegar maionese na geladeira, mas não encontrei.
— Não tem maionese? — perguntei, fechando a porta da mesma.
— Tinha, mas não tem mais. Coloquei o resto no seu hambúrguer.
— Obrigada. — Encarei-o confusa, como ele se lembrava disso? Uma sensação estranha me deu cócegas por dentro. Ser vista e alguém lembrar de detalhes sobre você era um tipo de timidez singular. Ao me sentar na cadeira, peguei a caneta e bati no caderno. — Vamos começar?


Não demorou muito para começarmos a colocar as regras, juntando as ideias dos dois. A maior parte das regras vinha de mim, enquanto as de tinham mais a ver com festas e não entrar em quartos com meias. Ele podia ser um babaca, mas era razoável.
Talvez ele tivesse ao menos uma qualidade.
— Ainda não entendo por que você tem uma caneta cheia de frescura. Como você consegue ler alguma coisa com esse glitter rosa?
— Eu disse que podia escrever e você não quis.
— E quem entende a sua letra de médica? — ele bufou, me causando a revirar os olhos.
— Certo, eu acho que acabamos. — Nós dois estávamos sentados, comendo os lanches ensopados em óleo, que surpreendentemente estavam muito bons, quando anunciei no segundo em que largou a caneta na mesa e dei mais uma mordida no meu jantar caseiro antes de colocar ele no prato. O protocolo anti desastre para vivermos sob o mesmo teto estava concluído! — Mais uma coisa. Meu guarda-roupas tá todo quebrado.
— Foi o Trevor — explicou, enquanto se debruçava sobre a mesa e sequestrava o meu hambúrguer. — Rolou uma briga quando ele tava bêbado em uma das festas que demos. Acho que tem uns cupins também. — Deu de ombros, como se não fosse nada. Arranquei meu sanduíche das suas mãos com um olhar repreendedor, o qual ele respondeu com um muxoxo. — Tem espaço de sobra no meu, pode usar.
— Regra oito: não andar de roupas íntimas pela casa — relembrei.
— Eu voto por revogar essa regra.
— Eu voto por você calar a boca.
— Você sabe como me fazer calar a boca, estressadinha. — Ele piscou.
— Com um tapa. — Revirei os olhos. Teria que juntar dinheiro para comprar um guarda-roupas, porém, por hora, o dele seria a minha saída. Abocanhei a comida mais uma vez e coloquei no prato dele. sorriu como uma criança que havia conseguido roubar um brinquedo de uma loja. — Outra coisa. Minha cama quebrou.
— Você pulou nela? — questionou.
Puft, não. — Evitei seus olhos, mas seu silêncio denunciava que o loiro não acreditava em mim. Ao voltar o olhar para ele, um semblante cínico me esperava. — Talvez. Um pequeno pulo para deitar!
— O sofá é bem confortável — comentou, sabendo que eu queria que ele cedesse a cama. Poxa, não era pedir demais. Tá bom, era. Mas mesmo assim.
— Por que você não dorme lá, então? — Cruzei os braços, fazendo biquinho como uma criança birrenta.
Qual é, eu tinha direito de querer uma boa noite de sono depois do dia de hoje. Numa caminha confortável e nada quebrada.
— Porque eu não cabo lá. Você é pequena. — Mostrei a língua pra ele, que riu do meu ato infantil. — Ou você pode dormir comigo.
Só aquela ideia me dava calafrios. Do tipo de filmes aterrorizantes, óbvio.
— O sofá nunca me pareceu tão confortável.


Continua...



Nota da autora: Eu AMEI os comentários do último cap, das leitoras novas e das que estão acompanhando essa repostagem! Ah, e advinhem? SOMOS VIPS DO MÊS! Obrigada pelo carinho, pessoal! Agora tenho uma novidade: as leitoras que acompanhavam a fic antes vão ter direito a um spoiler. Então, se você já lia antes da reescrita, é só me dizer e pedir seu spoiler!
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