Prólogo



Lembro-me que o solavanco que o taxi deu ao parar, anunciou a chegada ao destino esperado. Recordo também de ter entregado uma nota de cinquenta e saído do carro, segurando a alça de minha mochila. Não esperei pelo troco ou por um possível agradecimento. Não queria conversar.
Havia coisas demais para absorver naquele dia sem adicionar o desagradável contato humano a isso. Eram cores demais, sons demais, pessoas demais. O ambiente a minha volta não era mais amarelo e arenoso e as pessoas não corriam para se abrigar de uma bomba ou tiros. Mas aquela sinestesia que rugia em meus sentidos se fazia presente a cada novo segundo. De certa maneira, era tudo tão confuso aqui como era lá.
Lembro também de ter erguido os olhos para aquele gigante de aço, concreto e vidro em minha frente. Suponho que seja apropriado - um monumento de concreto na selva de concreto. Uma selva por outra. Uma troca. Tecnologia e civilização no lugar de atraso e caos.
Um sorriso amargo cruzou meu rosto enquanto dava o primeiro passo para entrar no prédio onde ficava meu apartamento.
O dia em que finalmente voltara para casa. Depois de longos anos longe, lutando por meu país.
E na semana seguinte àquela começaria a trabalhar na Enterprises. Depois de quase uma vida inteira fugindo daquele lugar e do homem que o controlava.
Uma vida inteira se esgueirando para no final acabar exatamente onde começara.
Enfim, lembro-me de ter pensado o quão irônica aquela situação toda era. Toda aquela bagunça, aquele sentimento de não saber o que fazer e de não pertencer à lugar nenhum; à nenhuma das duas selvas.
Obviamente, naquela hora, ainda não conhecia minha nova vizinha, seu cachorro e sua irritante mania de estar sempre de bom humor. Não tinha nem ideia do quanto ela poderia ser intrometida, gostosa e absolutamente incrível – nem do tesão que isso me causaria.
Acima de tudo, contudo, não poderia imaginar o quão bagunçado a vida de alguém realmente poderia se tornar quando duas pessoas tão diferentes se chocavam.


Capítulo 1



- Cookie, nós vamos ter uma conversa muito séria sobre seus modos. Que história é essa de ficar gritando a noite? E de bagunçar sua comida? – enumerei, uma mão na cintura e a outra balançando o dedo em riste - E o que foi aquilo que você fez com as almofadas? Mamãe está muito triste. Está me entendendo?

Cookie continuou sentado no chão, me olhando atentamente, a língua para fora dava a impressão de que sorria enquanto balançava o rabo. Provavelmente achava que tudo isso era uma grande brincadeira e não um sermão sobre os modos selvagens dele.

- Deveria ter deixado Spence te adestrado quando você era um filhotinho. Agora está grande e teimoso. – cruzei os braços.

Recebi um latido entusiasmado como resposta.

- Mamãe também te ama. – me ajoelhei, abraçando seu pescoço e fiz um carinho atrás de sua orelha.

Talvez devesse ser um pouco mais rígida, mas como resistir àqueles olhinhos pretos pidões? Ele lambeu minha bochecha e me afastei, rindo.

- Você não vai mais fazer arte, não é mesmo, querido? – deslizei as mãos por seu pelo – Mamãe precisa arrumar algumas anotações aqui.

Levantei e me sentei a mesa da cozinha e em frente ao meu notebook. Tinha analisado duas linhas quando senti sua pata em minha coxa.

- Ah! Para isso você é bem treinado, não é, seu espertinho? – arqueei a sobrancelha e observei sentar-se ao meu lado, segurando a guia para passeio na boca. – Depois, mamãe vai.

Claro que meu filhote não se deu por vencido e logo senti o peso leve da guia em meu colo. Revirei os olhos, peguei aquele objeto e me levantei.
Sou uma frouxa. Precisava ser mais firme. Claro que vinha me dizendo isso desde que ganhara Cookie – há três anos. Verifiquei se meus documentos e celular estavam no bolso antes caminhar até a saída de meu apartamento, meu cachorro rápido em meus calcanhares. Abaixei-me para prender a guia em sua coleira antes de abrir a porta. Caminhamos para o elevador e meu olhar inconscientemente caiu sobre a outra única porta naquela andar. Sempre tive curiosidade para saber mais sobre meus vizinhos, mas aquele apartamento estava vazio desde que me mudara para o prédio. Isso até ontem, quando ouvi barulho indiscutível de alguém abrindo aquela porta - apesar de não ter ouvido seus passos.
Fantasmas, contudo, nunca fizeram parte das coisas em que acredito, então só poderia significar que meus vizinhos estavam de volta.
E eu estava curiosa.
Uma torta de maça seria um bom pretexto para bater naquela porta. Um hábito americano fora de moda, mas ainda sim surpreendente, já que as pessoas ali na Big Apple não eram conhecidas por serem exatamente calorosas umas com as outras. Essa seria a desculpa perfeita para matar minha curiosidade e conhecer melhor a pessoa do outro lado do corredor.
Não era ser enxerida. Gostava da minha privacidade e respeitava a dos outros, mas realmente precisava saber se não estava dividindo meu andar com um psicopata.
“Psicopata” era uma palavra extremamente forte. Principalmente para alguém na minha área profissional, mas a convivência com meu primo me mostrou que todo cuidado era pouco. Nunca se sabe quem mora ao lado.
Poderia ser um Jack Estripador ou, pensando pelo lado positivo, poderia ser um Brad Pitt.
Ok. Talvez estivesse sendo um pouco intrometida. Ou talvez estivesse me pendurando demais em minhas conversas com Spence. Não sei como ele não ficava paranóico. Trabalho difícil aquele. Talvez eu devesse ligar para ele e pedir para que viesse aqui e fizesse um profile dos meus novos vizinhos. Só por segurança mesmo.
E talvez ele te interne em um hospital psiquiatra, .
Nem era preciso do diploma pendurado em meu escritório para saber que estava exagerando em minha preocupação devido ao meu medo de mudanças.
Certo. Nada de psicopatas, então.
De qualquer maneira, ainda iria em frente com a ideia da torta.
Satisfeita com meu plano bobo, caminhei com Cookie para fora do prédio. Era um dia bonito e meu bem comportado cachorro resolveu aproveitá-lo ao máximo, me arrastando até o parque a dois quarteirões de distância.
O lugar era agradável e frequentado maiormente por famílias e por atletas amadores. Depois de tirar a guia de Cookie para deixá-lo se divertir um pouco, sentei-me sobre a grama e observei dois homens passarem correndo por mim. Abracei meus joelhos. Sempre quis me exercitar em uma corrida matinal diária antes de ir para o consultório. Infelizmente, minha vontade não era grande o suficiente para me incentivar a deixar minha confortável cama mais cedo. O problema era exatamente esse. Precisava de um incentivo, mas, infelizmente, meu horizonte não mostrava nada para ocupar esse lugar de destaque.
O papo de que exercício físico faz bem para saúde era bonitinho, agradável e não totalmente persuasivo. Pelo menos não para mim.
Observei Cookie, diferentemente de mim, correr animadamente de um lado para o outro. Ele se divertia e aquilo me divertia. Isso, claro, até o momento em que ele decidiu pisar em uma poça de lama e se virar para me mim, muito orgulhoso do que tinha feito e me olhando como se devesse me orgulhar também. Pensei em gritar, pensei em chamá-lo até aqui e dar-lhe umas palmadas, mas que bem isso faria? Ele não iria entender o que tinha feito de errado e eu ficaria com a consciência pesada.
Dei de ombros e acenei para o meu filhote.
Uma completa frouxa mesmo.
Alguns minutos depois, chamei Cookie para irmos embora. Como usual, ele se recusou a vir e tive que persegui-lo em alguns círculos antes de finalmente alcançá-lo e, sem fôlego, prender a guia novamente.

- Francamente, Cookie. – murmurei ao me levantar - Mamãe não tem preparo físico para ficar te perseguindo toda vez que a gente sai. Você podia cooperar um pouquinho.

Ele respondeu com um latido animado.
Revirei os olhos e puxei-o de volta para casa. Ao entrar no prédio, dei uma olhada rápida em suas patas sujas de lama e no chão escuro em que ele havia acabado de pisar. Não havia pegadas, então continuamos o caminho até o elevador vazio. Depois de apertar o botão do andar, como de costume, abaixei-me para tirar sua guia. Quando paramos de nos mover na vertical e assim que as portas se abriram o suficiente, Cookie saiu ligeiro. Senti meu celular vibrar no bolso e peguei para ver o que era, concentrando-me nele enquanto andava para minha casa, as chaves na outra mão. Foi só quando já tinha destrancado a porta que notei a ausência de meu cachorro em seu lugar usual – sentado ao lado da minha planta e me esperando pacientemente.
Levantei a cabeça de supetão, meu coração gelando de medo. Virei o corpo de uma vez e apertei o celular em minha mão enquanto esquadrinhava o corredor em busca de meu melhor amigo. O alívio que senti ao encontrá-lo do outro lado do corredor foi responsável apenas em parte por meus joelhos amolecerem consideravelmente. O outro responsável foi a visão do homem no qual meu cachorro apoiava as patas dianteiras.
Não que ele fosse uma visão ruim, longe disso. Na verdade era o completo oposto. Não tenho o costume de exagerar em elogios, mas aquele cara poderia ser facilmente descrito como pecaminosamente gostoso. Mais de um metro e oitenta de altura e vestindo uma calça jeans com uma blusa preta de mangas curtas que não escondiam os braços fortes, os quais, aliás, agora estavam cruzados sobre o tórax.
Apostava minha coleção de filmes do 007 que ele deveria ter um tanquinho delicioso.
Minha análise subiu por seu pescoço até chegar em seu rosto, o qual, assim como todo o resto, era espetacular. O cabelo era cortado em um estilo sóbrio. Nada de topete, gel, franjas ou qualquer coisa do tipo. Não consegui distinguir a cor de seus olhos porque ele olhava para baixo, para Cookie.
Cookie!
Céus! Claro. Meu cachorro! Sacudi a cabeça para despertar daquele transe ridículo e comecei a andar em direção aos dois para recuperar meu cachorro – e talvez descobrir se seu novo amigo cheirava tão bem quanto parecia.
O primeiro passo que dei, apesar de silencioso, já foi o suficiente para fazê-lo levantar a cabeça e olhar diretamente para mim. O impacto daqueles gelados olhos azuis foi tão forte que estaquei no lugar.
Letal.
Não havia nenhuma emoção transparecendo, nada em seu rosto, nada em seus olhos e, mesmo assim, tive completa certeza de que aquele homem era letal. Não do tipo metafórico e romântico. Letal de verdade. Do tipo que poderia te matar com as próprias mãos.
Tive ímpetos de sair correndo. Pegar meu cachorro no colo – coisa que era bem difícil já que ele pesa quase o mesmo tanto que eu – e sair correndo. Todavia, depois que aquele meio segundo de pânico passou e meu instinto de sobrevivência se acalmou o suficiente para que a lógica voltasse, usei minha experiência profissional e os conselhos do meu primo favorito para uma instantânea análise de ameaça. E imediatamente cheguei à conclusão de que sim, ele era ameaçador, mas não tinha o perfil ou a atitude de que representaria uma ameaça para mim.
Também não tinha chutado Cookie, o que contava como um ponto a favor. Não estava sendo afetuoso, mas também não o chutara. Isso tinha que contar como um ponto a favor dele.
Engoli em seco e busquei um pouco de coragem interior para não desviar o olhar e dar os passos restantes.

- Oi, eu... hmm... Vejo que conheceu meu cachorro!

Mal terminei a frase e já tive vontade de me estapear. “Vejo que conheceu meu cachorro”. Sério isso?! Não poderia ter dito alguma coisa para deixar o clima ainda mais esquisito?!
Apressei-me em consertar:

- Não. Quero dizer. O cachorro é meu. Eu sou a . Moro ali. – apontei para a porta – Você acabou de se mudar? Para esse prédio? Esse andar?

Ok. Uma enxurrada verbal, mas pelo menos havia um pouco mais de sentido agora.
O moreno continuou me olhando, ainda calado. Um único e curto movimento de cabeça foi minha resposta.

- Ah. Certo então. Somos vizinhos. Esse é o Cookie. – apontei para meu cachorro que se virou a cabeça para mim, feliz por ouvir seu nome.

Meu novo vizinho abaixou a vista para meu cachorro e depois para mim, em uma clara indicação de que tentava dizer algo. Franzi o cenho e segui o caminho que seu olhar tinha feito.
E imediatamente entendi o problema.
Soltei um ofego, horrorizada ao ver que meu muito amigável melhor amigo, tinha as patas em sua calça. As patas sujas de lama.
Agarrei sua coleira e, concentrando minhas forças nesse movimento, puxei-o para longe.

- Cookie, seu mal educado! Ai que vergonha! – puxei e o empurrei para longe, para atrás de mim.

Para piorar um pouco mais o que provavelmente era a pior apresentação entre vizinhos da história daquele condomínio, a calça jeans dele mostrava claros sinais de patas caninas marrons. Em um impulso, abaixei-me um pouco e comecei a bater de leve a mão no pano que cobria sua coxa, tentando limpar a lama. Só depois de uns três tapas foi que percebi que o senhor silencioso estava ainda mais imóvel do que antes e que o ar estava ainda mais carregado.
Droga. Até Cookie estava quieto demais.
Percebi minha pose e o tão perto meus dedos estavam da parte mais privada de sua anatomia.
Vergonha subiu pelo meu rosto e corei.
Apoiando a mão em sua perna e ainda abaixada, levantei a cabeça e encontrei-o me olhando. Só que dessa vez aquele gelo azul era ainda mais impactante e o brilho perigoso se fazia um pouco mais presente.
O clima esquisito e constrangedor rapidamente evoluiu para uma tensão palpável.
Devagar e cautelosamente, me endireitei e dei um passo para trás, colocando um pouco de distância entre o leão a minha frente e eu. E não era uma metáfora à toa.
Só faltava ele rugir.

- Eu... eu... – balbuciei bobamente – Eu sinto muito por... – apontei para sua calça e depois para Cookie, que continuava sentado atrás de mim. – Eu realmente não sei... – passei a mão por meu cabelo. – Quer que eu lave a sua calça? Quer dizer, eu poderia lavar sua calça? Você não precisa tirá-la aqui, é claro.

Estava começando a pensar que o rosto dele era entalhado em pedra. Não mostrava reações. Exceto por um arquear de sobrancelha frente meu discurso patético e seus olhos, os quais, mesmo tendo se suavizando um pouco, ainda atiravam adagas para mim.
Engoli em seco e troquei o peso de um pé para o outro, esperando por uma resposta.
O Adonis sem nome e sobrenome se entediou rápido agora que eu parara de agir e falar como uma boba e me deu as costas, entrando em seu apartamento e batendo a porta.
Ao menos agora não tinha que me preocupar com um vizinho psicopata. Provavelmente era ele quem estava preocupado com a vizinha destrambelhada da porta da frente.
Precisava remediar isso tudo.
Abaixei a cabeça e olhei para meu filhote.

- Vamos, bebê, mamãe tem que colocar a Operação Torta em ação. – falei, caminhando para casa.

E essa torta de maçã seria a melhor que já fiz e a melhor que ele já experimentou. Mudaria a primeira impressão terrível. Queria uma boa relação entre vizinhos.
Vizinhança sempre foi uma coisa muito importante. Principalmente quando ela se resumia no homem mais delicioso no qual já coloquei os olhos


Capítulo 2

O apartamento continuava exatamente igual o deixara há quatro anos. Nem uma partícula de poeira visível. Tudo impecavelmente limpo. Com certeza aquilo era obra do velho. Mandar uma empregada vir aqui e limpar a casa toda, esperando por gratidão. Não sei por que ainda me surpreendia com esse tipo de coisa, como o fato de ele não entender que detestava que invadissem minha privacidade. Preferia ter limpado tudo sozinho a ter um estranho dentro da minha casa.
Pensando melhor, talvez ele soubesse. E exatamente por isso fez o que fez.
É. Aquela era a opção mais provável.
Não se dava por satisfeito em ganhar uma batalha, tinha que atacar cada ponto vulnerável.
Inconscientemente senti minha mão se contraindo em volta da alça da mala.
Ignorei o impulso de sair pela porta e não voltar. Não lhe daria aquele gostinho. Aquela sempre fora minha casa e nem mesmo ele iria estragar isso. Só precisava de trancas novas e quem sabe uma conversa que o lembrasse das condições para que eu assumisse aquela porcaria de emprego do qual ele tanto estufava o peito para falar.
Caminhei para o quarto principal e joguei a mochila sobre a cama. Precisava ocupar a cabeça e a melhor forma para isso seria sair para tomar um porre com Hunter, mas aquela não era uma opção porque o infeliz não estava na cidade. Decidi, então, desfazer minha mala. Esse plano, contudo, também se evaporou assim que abri o guarda-roupa e me deparei com uma parte dele totalmente preenchida com diversos ternos pretos. Cresci vendo um desfile daquele tipo de vestimenta, por isso, só de bater os olhos sabia que eram feitos pelo mesmo alfaiate que a mais de duas décadas fazia os dele.
Eram belas peças de roupas feitas pelo alfaiate mais caro da cidade. E eram também um lembrete silencioso de que ele estava lá, me esperando dali uma semana.
Esfreguei a palma da mão sobre o rosto e apelei ao controle de aço que os anos em ação me ensinaram. Faltava muito pouco para eu jogar aquelas merdas exorbitantemente caras pela janela.
Filho da mãe pretencioso.
Bati a porta do armário com força e fui em direção à porta de saída pela qual passara há poucos minutos.
Foda-se. Vou beber sozinho mesmo.
Um whisky duplo com gelo. Talvez mais de um.
Abri a porta de casa ao mesmo tempo em que as portas do elevador se abriam com um estalido característico. Imediatamente meus reflexos identificaram a possível ameaça em forma de um cachorro vindo em minha direção. Estava pronto para chutá-lo para longe quando notei que sua expressão canina não demonstrava nenhum tipo de perigo iminente, na verdade, parecia que ele estava... sorrindo. Quando chegou ao meu alcance, o sorridente canino apoiou suas patas dianteiras em minhas pernas e me olhou com expectativa.
Fiquei sem reação. Eu gostava de cachorros. Eles são leais e muito úteis, mas o tipo de cachorro que estava acostumado era muito mais calmo do que aquele.
O mais surpreendente, contudo, não foi cão amigável demais, mas sim a mulher que saiu do elevador pouco depois dele. Ela andava devagar, a cabeça abaixada enquanto seus dedos deslizavam pela tela de seu celular. Cabelos loiros na altura dos ombros, cintura fina e pernas deliciosas. Isso para não mencionar aquela bunda que ela rebolava em movimentos lentos, hipnotizantes e completamente inconscientes enquanto caminhava para a porta no outro extremo do corredor. Não podia ver o que ela fazia, mas presumi que a loira estava destrancando a fechadura da casa que costumava pertencer a adorável senhora Merthier.
Pude perceber o momento exato em que ela deu por falta do cachorro. Suas costas ficaram rígidas e ela se virou em uma velocidade mais rápida do que eu esperaria para alguém tão pequeno. Seu rosto, que era outra coisa da qual ela devia ter muito orgulho, mostrou alívio ao avistar o cachorro e depois choque, confusão e alguma coisa que não consegui definir quando sua atenção pousou em mim.
Minha sobrancelha se arqueou enquanto esperava ela terminar a análise que fazia. Obviamente sutileza não era uma das qualidades presentes nela ou em seu amigo canino. Por falar no tal sorridente, ele aproveitou aquele momento para bater a pata em minha mim, buscando atenção. Abaixei a cabeça e o encontrei me encarando.
Um momento depois pude ouvir o silencioso passo que a loira deu. Levantei a cabeça e percebi que agora ela olhava diretamente para o meu rosto. Hesitou por um momento antes de voltar a andar. Quando estava a um metro de distância, parou outra vez.
Gostosa. Muito gostosa.
Gostosa o suficiente para animar meu dia se na outra ponta não estivesse o velho, tentando de todos os modos estragá-lo.
É. Valeu, pai. Seus esforços para me sacanear estão chegando à níveis extremos. Nem mesmo apreciar uma boa visão daquelas em paz eu conseguia.
- Oi, eu... hmm... Vejo que conheceu meu cachorro! – falou, timidamente.
Sua voz tinha até um timbre agradável, mas eu realmente não estava com paciência para conversa. A loira, contudo, não percebeu a minha indisposição e continuou balbuciando:
- Não. Quero dizer. O cachorro é meu. Eu sou a . Moro ali – apontou para a porta – Você acabou de se mudar? Para esse prédio? Esse andar?
.
Repeti mentalmente.
Nome bonito. Deslizava pela língua. Seu nome, todavia, não era o que eu gostaria de deslizar a língua sobre. Seus seios apertados naquela blusa simples de decote avantajado eram uma opção bem mais interessante.
Mas não agora. Não enquanto ainda estava fulminando de raiva graças a minha querida figura paterna.
Agora só queria ficar sozinho. E uma bebida. Uma forte o suficiente para me fazer esquecer o imbecil e o monumento que se mudara para a casa onde antes costumava viver a senhora mais gentil que já conheci.
Assenti para sua pergunta, esperando que aquilo fosse o suficiente para fazê-los ir embora.
- Ah. Certo, então. Somos vizinhos. Esse é o Cookie – apontou para seu cachorro que virou a cabeça, feliz por ouvir seu nome.
Aparentemente a mulher não tinha um botão de desligar ou bom-senso o suficiente para perceber que eu não queria conversar. Abaixei a vista para o cachorro, que ainda se apoiava em mim, considerando as opções de como empurrá-lo para longe sem machucá-lo. Por sorte, finalmente percebeu onde seu amigo estava e agarrou sua coleira.
Tive que conter um sorriso ao vê-la, tão delicada e pequena, rebocando o tal Cookie para longe.
- Cookie, seu mal educado! Ai que vergonha!
E como se já não tivesse tido surpresas o suficiente por um dia, a loira de abaixou e começou a bater a mão em minha coxa. Por um segundo a raiva sumiu e tudo em que minha mente conseguia se concentrar era em conjurar imagens onde estaria naquela posição, mas para outra atividade. Uma que envolvesse suas mãos, mas também sua boca e onde sua preocupação não era minha calça – já que ela nem mesmo estaria no caminho.
Minha mão se fechou em um punho enquanto eu respirava fundo e me concentrava para desanuviar meus pensamentos e para não enfiar a mão em seus cabelos e a puxar para mais perto e um pouco mais para cima de onde sua atenção estava agora.
Alguns segundos se passaram no mais absoluto silêncio – até mesmo o cão estava quieto, observando a dona de uma maneira crítica.
Agora realmente tinha certeza de que estava enlouquecendo. O cachorro com um olhar crítico?
Perda de lucidez por mistura volátil de desejo recém descoberto e raiva antiga. Um novo caso para medicina. Aposto que eles iriam colocar no livro bem ao lado da página sobre perda das bolas graças à frustração sexual.
Ao parar de espanar minha perna, ela, contudo, não se endireitou, mas sim apoiou a mão sobre o lugar que espanava e levantou a cabeça para me olhar. E, quando me encontrou encarando-a de volta, suas bochechas alcançaram um tom vermelho delicioso que me fez imaginar como aquela cor ficaria em outras partes do seu corpo. Principalmente em sua bunda depois de umas palmadas deliciosas.
Será que ela gostava desse tipo de coisa?
sacudiu a cabeça e finalmente se afastou.
- Eu... eu... Eu sinto muito por... Eu realmente não sei... Quer que eu lave a sua calça? Quer dizer, eu poderia lavar sua calça? Você não precisa tirá-la aqui, é claro.
Oh! Eu adoraria tirar a calça agora, vizinha, mas não com o propósito que você está insinuando.
Não.
Minha ideia envolvia muito mais sujar do que limpar.
Precisa sair dali. A situação já estava ridícula demais com aqueles discursos sem noção dela, o cachorro humanizado e meu pau endurecido.
Foi por isso que enquanto ela estava ali parada, me olhando em expectativa de uma resposta, dei-lhe as costas, entrando em casa e batendo a porta no caminho.
Um bom banho gelado agora. Whisky depois. Duplo e puro.

xxx

- O cheiro está bom, não é, Cookie? – olhei para baixo onde ele estava sentado no meio da minha cozinha enquanto eu me movia para terminar de desenformar a torta de maçã.
Ele me respondeu com um latido animado.
- Não adianta fazer essa cara, bebê. Você sabe que não pode comer doce.
Suas orelhas murcharam. Tinha a séria impressão de que ele entendia tudo o que eu dizia. Teria que monitorar minhas palavras perto dele agora. Não queria expressar em alto e bom tom meus pensamentos sobre o novo vizinho.
Não para aquelas orelhas inocentes.
Terminei de dar os últimos retoques naquela que esperava ser uma das minhas obras-primas. O cheiro estava muito bom. Só esperava que aquele gesto, e o gosto daquela sobremesa fossem o suficiente para arrancar algumas palavras do Sr. Silencioso.
Talvez até mesmo o seu nome.
“Senhor Silencioso” era bem broxante, então, automaticamente diferia de todo o resto dele.
Corri para o banheiro e dei uma olhada no espelho, escovando o cabelo com as mãos e o jogando para um lado. O resto estava bom. Considerei a possibilidade de trocar de roupa, mas aí estaria evidente demais que eu estava me esforçando.
E queria parecer interessada, não desesperada.
Voltei à cozinha e levantei a bandeja redonda de vidro nas duas mãos e segui para a saída. Cookie tentava silenciosamente me acompanhar, provavelmente não querendo que percebesse sua presença antes de termos saído de casa.
- Não, não, mocinho – olhei para baixo. – Você se comportou mal e agora mamãe tem que ir lá se desculpar. Você fica aqui.
Apelando para um momento equilibrista, consegui segurar a bandeja e abrir a porta e trancá-la outra vez depois sem derrubar nada.
Venci a pouca distância até o outro lado do corredor e respirei fundo antes de tocar a campainha.
Poucos segundo depois o Espartano – vou chamá-lo assim agora por motivos já apresentados em relação ao apelido “Senhor Silencioso” e porque aquele pedaço de mal caminho se parecia demais com um guerreiro antigo para que eu ignorasse esse fato – abriu a porta. Agora ele vestia outro jeans e uma camisa branca. Seu cabelo estava molhado.
Molhado significava banho. Banho significava nudez.
Nem mesmo tentei conter minha imaginação que correu livre a criar imagens daquela situação.
É claro que, imediatamente depois disso, fui obrigada a me repreender mentalmente. Conhecia o cara a menos de um dia e já me pegara fantasiando sobre ele várias vezes. Isso estava ficando ridículo. Precisava de um pouco mais de autocontrole.
Fácil falar. Difícil fazer quando o sex appeal que ele emanava era o suficiente para deixar minhas pernas meio bambas só de olhá-lo nos olhos.
Também não ajudava o fato de que ele parecia ter saído direto do filme 300.
Meu próprio Leónidas.
Passei a língua pelos lábios, imaginando as possibilidades.
Sacudi a cabeça imperceptivelmente, tentando espantar minhas fantasias sexuais e me concentrar na realidade que estava bem na minha frente e que me encarava de um jeito que deixava claro de que não era esperada ali e nem mesmo bem vinda.
Engoli em seco e reprimi outra vez o instinto de dar um passo para trás e para longe. Não deixaria aqueles olhos azuis gelados me espantarem porque alguma coisa me dizia que se fugisse agora, não teria outra oportunidade de me aproximar.
- Oi de novo – consegui falar. – Queria te pedir desculpas outra vez por Cookie. Ele é amigável demais. Gosta de todo mundo e pensa que todo mundo gosta dele.
Agora sua expressão me dizia que ele não se importava com o que eu estava falando.
- Eu... hmm... Eu fiz isso aqui para você. Como maneira de me desculpar pelo que aconteceu na sua calça.
Aquilo o surpreendeu o suficiente para quebrar sua expressão neutra.
Será que ele não estava acostumado com ofertas de desculpas?
- Isso é para você – ergui um pouco a torta para que ela ficasse na linha de visão do meu rosto, o que dava mais ou menos na altura de seus ombros.
Esperava sinceramente que ele a aceitasse porque estava ficando cada vez mais pesada de segurar.
O Espartano, contudo, manteve seus olhos azuis fixos nos meus, ignorando a guloseima que eu trazia. Pude ler que ele iria recusar meu presente e não seria da maneira educada com um “obrigado”, mas provavelmente com outra portada na minha cara.
Eu, contudo, era teimosa demais para aceitar uma reação como daquelas e tentei mais uma vez.
- Se você não quiser falar, tudo bem. Mas pegue a torta ou vou deixá-la aqui sobre o seu tapete. E eu odeio desperdiçar comida.
Seu olhar desceu para minhas mãos, provavelmente mais por falta de paciência do que pela minha ameaça vazia. Algo parecido com reconhecimento passou por seu rosto quando finalmente avistou a torta.
Franziu o cenho e depois voltou sua atenção para mim.
- Essa é a torta de maçã da senhora Merthier?
E, quando ele finalmente falou alguma coisa, quase desejei que não o tivesse feito. Sua voz era rouca e aveludada na medida certa e sempre fui uma mulher de palavras e de conversas.
Soube, então, que o Espartano conseguiria me fazer gozar só com sua voz.
Então era oficial, eu estava totalmente perdida.



Capítulo 3

A loira maluca deve ter entendido minha pergunta como um convite porque logo depois tive que assistir embasbacado ela passar por mim e entrar na minha casa como se fossemos velhos conhecidos. O xingamento que estava na ponta da língua desapareceu assim que minha atenção caiu sobre o jeito que ela balançava o quadril ao andar.
Hipnotizante, assim como da última vez.
Foi por isso que, ao invés de expulsá-la, vi-me seguindo-a, ou melhor, seguindo o rastro do seu perfume até a cozinha. Como se eu fosse algum tipo de filhotinho seguindo sua dona. Como a merda de um filhote! Imagino o que Hunter diria se me visse naquele momento.
Tentando não pensar em o quanto a minha masculinidade estava sendo afetada, entrei na cozinha. Minha vizinha estava mexendo nas gavetas. Ela estava tão à vontade que por um segundo cheguei a pensar que eu era o intruso na casa. Não gostava disso.
- O que exatamente você pensa que está fazendo? – perguntei, cruzando os braços.
Ela deu um pulo e depois um pequeno gritinho por ter acertado a mão no puxador da gaveta.
- Você me assustou! – franziu o cenho, apontando-me acusadoramente a faca que segurava em uma das mãos.
Arqueei a sobrancelha. Loirinha petulante. Arrogante demais para quem não chegava nem no meu ombro.
- Dizem que só aqueles que estão fazendo coisas erradas se assustam.
- Só estava procurando uma faca – corou, abaixando o objeto. – Para cortar a torta.
- Por quê?
- Porque eu quero comer a torta.
Essa estava sendo possivelmente a conversa mais esquisita que já tive em muito tempo.
- Se você queria comer a torta, por que não ficou na sua casa? – falei, o mais gelado possível e apontei o dedo para a porta.
- Mas a torta é para você – abriu um sorriso enorme, ignorando minha indireta
Revirei os olhos. Uma abordagem mais direta então.
- Ótimo. Pode deixá-la aí. Depois eu corto.
levantou a cabeça e olhou para mim por um segundo antes de começar a rir.
- Você é engraçado – voltou a se concentrar em fazer cortes metódicos na sobremesa.
Reprimi o ímpeto de jogar as mãos para o alto em frustração. Ou ela simplesmente não entendia que eu não queria companhia ou eu estava perdendo minha voz de comando. Tive vontade de soletrar esse desejo de solidão, mas o cavalheiro que minha mãe me criara para ser evitou que as palavras saíssem. Vencido, puxei uma das cadeiras e me sentei. Talvez se a deixasse fazer o que diabos veio fazer, ela fosse embora mais rápido.
- Meu nome é – falou, colocando um prato com um generoso pedaço de torta na minha frente e se sentando na cadeira ao lado.
- Você já disse – nem mesmo tentei disfarçar o tédio.
Peguei a colher que acompanhava o prato e tirei um pedaço da torta. Não era porque a mulher era irritante que iria renegar sua comida - ainda mais quando parecia ser uma cópia perfeita daquele que era um dos meus pratos favoritos antes de eu ir para o Afeganistão. Antes, contudo, que pudesse levar a colher à boca, sua mão pousou em meu antebraço. Meus olhos fixaram-se nos dela e pude ver seu sorriso sumir e uma expressão de dor surgir no lugar dela. Só então percebi que em um reflexo, minha mão livre tinha se fechado ao redor do pulso dela. Horrorizado, soltei-a como se me queimasse.
Não machucava mulheres.
segurou o pulso agora marcado por vergões vermelhos e eu me senti um merda. E um merda ainda maior quando ela voltou seu olhar cheio de compreensão para mim e forçou um sorriso.
- Ok. Nada de toques sem aviso – falou. – Entendido.
- Desculpe por isso – tossi. – Não tive a intenção.
- Sei que não – assentiu. – Está tudo bem.
Abaixei a vista para o pedaço de sobremesa. Meu apetite havia desaparecido.
- Meu nome é – agora o sorriso era verdadeiro.
- Por que você fica repetindo isso?
- Vou repetir até você me contar seu nome.
- Por que você faz tanta questão de saber?
- Por que você faz tanta questão de não me contar? É algum tipo de segredo que envolve a segurança nacional? – perguntou, franzindo o cenho.
Não tinha certeza se ela estava falando sério ou não.
- Não, meu nome não está relacionado à segurança nacional – respondi o óbvio.
- Ah! Que pena! – juntou os lábios em um biquinho. - Seria legal se tivesse.
Pisquei devagar. De onde essa mulher tinha saído? Talvez devesse avisá-la que Alice estava procurando por ela para que voltassem para Wonderland.
- Mas então por que você não me conta?
- Por que você quer saber?
Agora eu só estava prolongando esse jogo para irritá-la. Parecia justo afinal ela que tinha invadido minha casa, além do mais, sua expressão frustrada não era nem pouco desagradável de apreciar.
- Porque nós somos vizinhos, porque é a coisa educada a se fazer, porque respeitamos convenções sociais, porque estou te devendo uma lavagem de calça – girou alguns fios de cabelo nos dedos enquanto enumerava seus argumentos. – Pode escolher uma razão. Eu tenho várias delas.
- E você me trouxe uma torta! – arregalei os olhos em uma falsa apreciação.
- Você está zombando de mim?
- Zombando de você? Não. Claro que não.
- Você está zombando de mim – levantou-se e cruzou os braços, fazendo seus seios se empinarem para frente de um jeito delicioso contra a camiseta branca que ela vestia.
Passei a língua pelo meu lábio inferior subitamente muito seco, mas na verdade queria lamber outra coisa. Felizmente a loira não percebeu por onde minha linha de raciocínio estava indo visto que continuou resmungando alguma coisa sobre pessoas rudes.
Com certo esforço, desviei minha atenção de volta para o seu rosto.
- Não estou entendo essa animosidade toda da sua parte. Eu vim aqui com a melhor das intenções. Até trouxe a torça de maçã da minha avó!
- Sua avó? A senhora Merthier é sua avó?
- Sim! Ela era minha avó. Por parte de mãe. E eu guardo essa receita para ocasiões especiais. E eu a fiz para você e você ficou aí, se achando o rei do mundo e zombando de mim. Com que direito você faz isso?
- Com o mesmo direito com o qual você invadiu minha casa. E não entendo essa sua fixação em convenções sociais, você não parece entender muito de pessoas.
E assim que terminei aquela frase soube que havia dito a coisa errada. Suas bochechas se coloriram de vermelho e o brilho inconfundível de raiva surgiu em seus olhos.
- Você é um arrogante, idiota, imbecil - cuspiu as palavras em cima de mim. – E mil perdões por ter invadido o palácio de Vossa Majestade – fez uma reverência irônica. – Não vai acontecer de novo.
Então ela caminhou a passos duros para fora da cozinha enquanto eu ainda estava perdido frente às mudanças tão rápidas de humor dela.
- Não precisa se preocupar em devolver a droga da minha vasilha – gritou do outro cômodo. – E espero que você seja alérgico à maçã. Passar muito bem, imbecil.
E com essas últimas palavras, ela bateu a porta de entrada com força e me deixou sozinho em casa. Exatamente como eu queria desde o começo. O problema era que não esperava ficar me sentindo como um idiota quando conseguisse meu intento.

xxx

Por que todos os homens aparentemente descentes tinham que ser completos idiotas? Ou então por que todos os deuses gregos que casualmente andam pela Terra tinham que ser tão egocêntricos?
Um belo exemplo de babaca egocêntrico, era isso que meu novo vizinho era. Um belo babaca egocêntrico. Um maravilhoso e muito gostoso babaca. Sacudi a cabeça, tentando esquecer seus muitos atributos físicos e me concentrar em seus defeitos de personalidade.
Quem era ele para falar daquele jeito comigo? Idiota! Ele acabou com o meu bom humor, então agora só havia uma coisa a fazer! Desci as escadas do prédio fulminando de raiva e não me surpreenderia nem um pouco se tivesse fumaça saindo por meus ouvidos quando atravessei a rua e, ignorando a clara placa de “fechado” entrei na bonita e aconchegante confeitaria que ali se localizava. Passei pelas mesinhas redondas enfeitadas com tons de vermelho e me dirigi ao balcão, jogando-me em um dos bancos altos. Aquele cantinho tinha a intenção de acomodar os clientes que passavam para uma xicara de café fumegante ou de chocolate quente com chantili e um pedaço das deliciosas guloseimas ali vendidas. Eu, contundo, usava aquele espaço como meu ponto pessoal de desabafo. E a pessoa que escutava os ditos desabafos passou rapidamente pela porta que levava à cozinha, a cabeça virando de um lado para o outro - certamente a procurar o responsável pelo barulho do banco arrastando.
- ! Que susto! – exclamou assim que sua atenção pousou em mim.
- Você realmente deveria aprender a trancar a porta – revirei os olhos.
Ava franziu o cenho e tentou me fuzilar com seus olhos muito verdes, mas era difícil temer alguém com as feições de uma boneca de porcelana. Avalon Appleby era tão bonita - com seus traços delicados e seus longos cabelos tão pretos que no sol pareciam azuis – que quase chegava a ser piada quando ela tentava parecer furiosa.
- Stella acabou de sair. Pensei que ela tinha trancado.
- Ela nunca se lembra de trancar a porta e isso não é seguro, você sabe.
Por um segundo uma sombra passou por seu rosto, mas foi tão rápido que não tive tempo de questionar antes que outro sorriso estampasse seu rosto.
- É. Ela é meio avoada, mas faz uma torta de mirtilo que é um sucesso – caminhou até a máquina de café e começou a preparar meu latte macchiato favorito. – Mas você não veio aqui para falarmos sobre meus funcionários. O que aconteceu?
- Por que você acha que aconteceu alguma coisa?
- Porque toda vez que você vem aqui e senta nesse lugar específico – apontou - depois do horário de funcionamento é porque aconteceu alguma coisa. Como quando você finalmente terminou com aquele imbecil da academia ou quando aquele seu paciente... – interrompeu-se repentinamente. – Deixa para lá! Então me conta, doutora . O que aconteceu? – colocou a caneca na minha frente.
Coloquei as mãos ao redor daquele copo e deixei o calor irradiar pelas minhas mãos.
- Eu tenho um novo vizinho – finalmente falei.
- Naquele apartamento que estava vazio desde que você se mudou? – pegou uma garrafinha de água para si e sentou no banco na minha frente.
- É.
- E qual o problema? É uma família cheia de crianças barulhentas?
Neguei com a cabeça.
- Tem um cachorro enorme que late muito?
Neguei, levando a caneca aos lábios e apreciando aquela gostosura enquanto deixava-a continuar com aquele jogo de adivinhação que gostava.
- Tem um cachorro pequeninho que late agudo?
Revirei os olhos.
- TEM UM GATO! – ofegou. – Cookie detesta gatos.
- Eles não têm nenhum animal de estimação. Ou, melhor, ele não tem nenhum animal de estimação.
- Ele? – seus olhos se arregalaram e ela se inclinou um pouco para frente, mais interessada agora.
- É. Ele. Um cara de mais de 1,90, cabelos pretos, olhos azuis e muitos, muitos músculos.
Ela passou a língua pelo lábio inferior, um olhar sonhador – provavelmente imaginando a espécie.
- Ok. Então qual o problema? Ele parece ser delicioso. Ou é esse o problema? Ele é horrível?
- Não. Ele parece o Leónidas.
- De Esparta? Do filme 300? – agora ela estava debruçada em cima do balcão, chegando mais perto de mim como se para arrancar as informações necessárias. – Não acredito! E qual o problema então?
- Ele é um completo babaca.
- Babaca como? Babaca do tipo Gerard Butler em A Verdade Nua e Crua? Ou babaca tipo o seu ex-namorado que era viciado em academia?
- Você tem que trazer o Robert a todas as nossas conversas? Não precisa ficar me lembrando toda hora que eu desperdicei três meses da minha vida disputando a atenção de um cara com os pesos de 80 kg dos quais ele se gabava de levantar em cada braço.
- Mas qual seria a graça de eu estar certa e você errada sobre esse assunto se eu não o trouxesse à tona nas oportunidades apropriadas? – voltou a se endireitar no lugar.
Revirei os olhos.
- E, respondendo à pergunta, ele é mais do que o Robert.
- Não exagere, . Não tem como uma pessoa ser mais babaca do que o senhor “vai pegar meus suplementos, mulher”.
Não pude evitar o riso.
- Robert nunca me falou isso! – protestei, bebericando meu latte.
- Mas não estava longe. Só mais uns meses e certeza que ele iria mudar aqueles estoques de bombas para sua casa. Falando nisso, é verdade aqueles boatos de que esse tipo de veneno atrapalham na hora do...
- Sério, Ava? Eu aqui te contando meus problemas e você quer saber sobre minha antiga vida sexual?
- Mas isso também é um problema seu.
- Era problema meu.
- AH! – bateu a mão no balcão, rindo triunfante. – Então quer dizer que atrapalha mesmo!
- Se você quer tanto saber, sim, atrapalha. O sexo era péssimo. Tive que fingir um orgasmo ou outro para que ele parasse de insistir.
- Que péssimo! – fez uma careta. – Mas então por que você ficou três longos meses com ele?
- Porque eu sou teimosa – dei de ombros. - Você sabe disso. Agora se você já matou sua curiosidade sobre meus assuntos íntimos, poderíamos voltar ao problema em questão?
- Você é estraga prazeres. Mas, sim, vamos voltar – colocou uma das mãos ao redor da garrafinha d’água e apoiou o outro cotovelo sobre o balcão, descansando o queixo sobre a mão. – Por que afinal ele é um babaca?
- Nós não tivemos a melhor das apresentações graças à Cookie, que resolveu sujar a calça dele de lama quando estávamos chegando em casa e ele saindo da casa dele. Aí eu ofereci para lavar a calça dele e-
- Você se ofereceu a calça dele? Ah, safadinha! Só queria ver o cara sem calças.
- Francamente! Quantos anos você tem, Appleby?
- Quantos anos eu tenho? Quantos anos você tem! Não se oferece para lavar a calça de alguém que você acabou de conhecer!
- O que eu deveria ter feito então, gênio?
- Sei lá. Mas não sugerir que ele tirasse a calça no meio do corredor. O cara deve ter te achado uma maníaca sexual.
- Estou me sentindo muito melhor agora, realmente – ironizei. – Você deveria fechar a confeitaria e ir trabalhar comigo no consultório. Ou talvez deva trabalhar como conselheira matrimonial.
Ela tinha umas palavras muito espertinhas para quem não tinha namorado – ou que nunca namorava.
- Não mate o mensageiro – ergueu as mãos em sinal de rendição, ainda rindo.
- Posso continuar a história agora? – arqueei a sobrancelha de maneira condescendente.
- Sim, por favor, continue – tentou se manter séria.
- Ele nem me dignou com uma resposta.
Ava abafou um “compreensível” contra sua garrafa antes de tomar mais um gole de sua bebida.
Ignorei-a.
- Então o que eu fiz? Fui para casa e preparei uma torta de maçã Merthier.
- Você fez uma daquelas tortas para ele? Isso é muito injusto! Você conheceu o cara há menos de um dia e já fez uma para ele enquanto eu te conheço há três anos e só ganhei uma no meu aniversário de vinte anos! Mesmo implorando por outra.
- É, é. Tanto faz – ignorei seus resmungos sobre esse tema, como eu sempre fazia. – E eu levei a torta para ele, que reconheceu a torta como sendo a da receita da minha avó. O que, aliás, pensando agora, é uma coisa estranha. Ele deve ter conhecido minha vó – dei de ombros. - Mas, então, aí ele me convidou para entrar.
- Convidou ou você se convidou?
- Qual a diferença de uma coisa para outra?
- Você se convidou então.
- Tem horas em que eu realmente odeio o fato de você me conhecer tão bem.
- Não fala assim. Você adora que eu sei.
- O importante é que eu entrei na casa dele e educadamente me ofereci para cortar a torta. Até aí estava tudo bem. O problema começou quando eu perguntei o nome dele.
- Espera aí! – levantou a mão. – Até esse momento você não sabia o nome dele?
Quando ela falava assim, a situação parecia ainda mais ridícula.
- Eu ainda não sei o nome dele. Foi por isso que brigamos. Quer dizer, foi por isso que começamos uma discussão onde ele acabou dizendo que eu não conhecia as pessoas e as convenções sociais por ter entrado na casa dele sem ter sido convidada, e eu o chamei de babaca.
O olhar dela se suavizou. Minha melhor amiga sabia bem o quanto aquele tópico machucava.
- Definitivamente um babaca – deu uns tapinhas de conforto em meu braço. – E você entende de pessoas. Só fica meio entusiasmada demais de vez enquanto.
- Obrigada, Ava – sorri.
- Mas, afinal, qual é o nome do babaca, do Leónidas?
- Hey! Não o chame assim.
Só eu podia usar esse apelido. Nem que fosse só em pensamento.
- Como devo chamá-lo então se você não me conta o nome dele?
- Eu contaria se soubesse.
- Então você não sabe até agora? – mordeu um sorriso.
Franzi o cenho e estreitei os olhos, um xingamento na ponta da língua.
- Babaca então – Ava falou, diplomaticamente. – Deixa-me ir buscar outro desses para você – pegou minha caneca e se levantou.
Passei mais uma hora conversando com Ava antes de finalmente decidir ir embora. Dessa vez ela teve a certeza de trancar tudo quando eu saí. Peguei o elevador, mais calma agora. Estava abrindo a porta de casa quando escutei um barulho atrás de mim. Minhas costas se retesaram imediatamente. Pretendia ignorar o babaca sem nome – já que, com certeza, era ele a única pessoa que poderia estar ali – mas a droga da chave não virava.
- ? – sua voz deliciosa chamou.
Prendi a respiração e tentei a chave novamente. O Universo, contudo, não estava cooperando.
- ? – sua voz soou mais perto agora.
Bati a mão na madeira e me virei.
- Que foi, idiota? Veio me insultar de novo? – cruzei os braços e lancei o meu olhar mais indignado.
Ele tombou a cabeça um pouco para o lado e abriu um sorriso divertido.
- . Meu nome é .



Capítulo 4

“Yumi” foi o que quis exclamar ao ouvir seu nome. Combinava com ele.
Forte.
Tive que também conter a vontade de passar a língua por meus lábios secos. Não queria que ele tivesse a mínima ideia das imagens que passavam em minha mente. Imagens sobre momentos em que eu estaria gritando o nome dele.

Não poderia deixar que ele soubesse o quanto estava me afetando. Pelo menos não agora que eu ainda estava brava com ele e sua atitude imbecil.
- Muito bem, – falei entredentes. – Já se apresentou e se fingiu de educado. Agora pode dar meia-volta e sair daqui.
- Sair daqui? – arqueou a sobrancelha, medindo-me de alto a baixo como se analisasse a ameaça.
A diversão que brilhou em seus olhos mostrou que claramente fui descartada como potencial perigo. Sabia que ficar indignada por essa constatação era ridículo já que estava certo. Eu não chegava nem em seus ombros e os músculos dele eram visivelmente fortes como aço, enquanto eu não passava de uma sedentária.
Uma sedentária baixinha. Enquanto ele era o rei de Esparta.
Essas comprovações, contudo, não mudavam o fato de que ficara brava.
- E se eu não quiser? – perguntou antes que eu pudesse vocalizar qualquer coisa.
- Se você não quiser o quê?
- Se eu não quiser sair daqui – agora o divertimento chegava aos seus lábios na forma de um sorriso.
Outra vez tive que me conter para não me mover para apagar aquele sorriso. Com um tapa.
Ou, quem sabe, com um beijo.
Não! Não! Sacudi a cabeça, tentando me concentrar. Era a droga daqueles olhos dele – mesmo sendo frios como gelo – que me prendiam a cada vez que cruzavam meu caminho.
Havia alguma coisa ali, alguma coisa além do frio ártico. E eu ficava meio tonta tentando descobrir o que estava lá escondido.
- Se você faz tanta questão de ficar aqui, então eu saio – virei-me de uma vez para a porta.
O problema é que me fugiu da mente que ela estava fechada e acabei por bater nela.
- Ouch! – por puro reflexo levei a mão para segurar meu nariz que agora latejava e trazia lágrimas aos meus olhos. – Ai que dor – cambaleei alguns passos para trás.
No segundo passo uma mão se espalmou contra minhas costas e a voz do falou:
- Hey, hey. Calma.
Seria um gesto adorável, exceto que seu tom claramente continha traços de riso. Com raiva, deixei meus impulsos violentos venceram e dei uma cotovelada em suas costelas, o que se mostrou ser mais um tremendo erro de cálculo.
O cara só podia ter um tórax de titânio. Agora eu estava com dor no nariz e no cotovelo.
- Ai, seu imbecil! – soltei um gritinho agudo. – É tudo culpa sua!
Tentava acudir meus dois recém-machucados ao mesmo tempo e às cegas, já que mantinha os olhos fechando enquanto algumas lágrimas de dor escapavam.
- Calma, – colocou as mãos em meus braços, tentando com que eu abaixasse as mãos para longe de meu rosto. – Deixe-me dar uma olhada nesse machucado.
- Não!
Meu orgulho também estava ferido.
- Eu insisto – suas mãos fizeram uma maior pressão e eu cedi.
Foi nesse momento que finalmente abri os olhos e o encontrei muito perto, analisando meu nariz atentamente. Depois de um momento ele gentilmente passou os dedos sobre a pele machucada. Foi tão suave que quase não senti, mesmo estando mais sensível.
- Não está quebrado – falou, baixinho, se afastando. – Mas vai precisar de um pouco de gelo.
Depois daquelas palavras, caímos em um pequeno silêncio até que sua expressão impassível se quebrou em uma revirada de olhos.
- Vamos – pegou em minha mão e me puxou junto com ele para o seu apartamento.
- O que você está fazendo? – tentei me soltar, mas foi tão efetivo quanto um único homem tentar empurrar uma montanha.
Maldito rei de Esparta. Maldito sedentarismo.
- Isso aí vai precisar de um pouco de gelo – respondeu seco, continuando a me puxar firme, mas não com força.
- Eu tenho gelo na minha casa!
E Ava tinha gelo na confeitaria. Ela sempre cuidava dos meus machucados.
Patético, eu sei. Mas tudo o que eu conseguia tratar em matéria de ferimentos eram aqueles que precisavam de, no máximo, um band-aid. Todos os outros eram de responsabilidade de Ava. Ela tinha uma grande aptidão com esse tipo de coisa, apesar de sempre mudar de assunto quando perguntava onde ela tinha aprendido tanto sobre o assunto.
- É? Que bom – resmungou, entediado, quando passamos pela porta de sua casa, a qual, diferentemente da minha, estava aberta.
Percebendo que aquela era uma batalha perdida, resolvi ficar quieta e canalizar meus esforços em manter aquelas lágrimas de dor em meus olhos. Ele nos conduziu até a cozinha e me fez sentar em um dos bancos altos da ilha.
Por um segundo, quando ele virou as costas para abrir a geladeira, o pensamento de sair correndo – só por pirraça – cruzou minha mente, mas tinha a certeza desconcertante de que não seria capaz de nem mesmo sair daquele cômodo antes de ser alcançada. E minha dignidade já havia sofrido o suficiente por uma noite. Ou por um dia inteiro, melhor dizendo.
Fiquei, então, sentada quieta até que ele voltou a ficar na minha frente com uma sacola cheia de gelo na mão. Ele se inclinou para frente e sua mão livre segurou meu queixo enquanto a outra se ocupava em pressionar - com a mesma gentileza de antes – aquele pacote gelado contra meu machucado. O ar ficava um pouco mais pesado a cada segundo que passávamos em silêncio. Precisava de um pouco de som.
- Isso é culpa sua – falei a primeira coisa que me veio à mente.
- Minha culpa? – perguntou, surpreso. - O que exatamente é minha culpa? O fato de a porta estar fechada ou você ser desastrada?
Estreitei os olhos e lhe lancei o meu olhar mais indignado. Mordi a língua para não retrucar, afinal, ele estava uma posição bem mais estratégica do que a minha.
Mais alguns segundos em silêncio e tive que falar outra vez porque aquela quietude que parecia tanto agradá-lo me causava uma inquietação irritante. Dessa vez, contudo, tentei um assunto diferente:
- Onde aprendeu essas habilidades médicas?
Era para ser apenas um tópico bobo, algo simples só para preencher o vazio do som ali, mas notei que ficou tenso por um momento antes de se forçar a relaxar.
Interessante.
- Que habilidades? Colocar gelo em uma sacola? – mudou um pouco a posição da dita sacola, passando-a sobre outro ponto do machucado.
Agora ele estava tentando desviar minha atenção. Eu o deixaria fazer aquilo... por enquanto.
- Não precisa ser estúpido – rebati. – Estava falando sobre sua habilidade de cuidar de um ferimento.
E aquele não era um elogio vago. Ele realmente tinha noção do que estava fazendo, assim como Ava tinha. Mas, assim como com minha amiga, tinha a impressão de que seria difícil arrancar a resposta para aquela pergunta.
- Só respondo com o mesmo nível de inteligência com que a pergunta me é feita.
- Você está dizendo que a minha pergunta é que foi estúpida?
- Isso quem está dizendo é você, .
Agora ela estava começando a me irritar.
- Ok. Que seja – dei de ombros. – Mas isso não é resposta.
- Resposta para o quê?
Abri a boca, pronta para perguntar quem estava sendo o estúpido – e, aqui, no sentido de lerdo e não de grosseiro – agora quando percebi de novo aquele brilho divertido no canto de seus olhos. Ele estava se fazendo de idiota de propósito! Só para me atazanar.
Resmungando um xingamento qualquer entre os dentes, empurrei o banco em que estava e fiquei em pé, o que não foi muito útil para meu plano de saída dramática visto que agora tinha que jogar a cabeça ainda mais para trás para vê-lo. era muito alto e estava muito perto.
- Me dá isso aqui – peguei a sacola de suas mãos, mas continuei pressionando-a contra meu nariz. – Posso fazer isso sozinha. Eu agradeceria pela ajuda e pela hospitalidade, mas você provavelmente perguntaria “que ajuda?” e “que hospitalidade?” – tentei engrossar a voz para parecer com a dele, todavia, falhei porcamente porque, com sinceridade, isso de imitação nunca foi muito o meu negócio.
Detestava aquelas aulas de teatro para crédito extra no ensino médio.
E também fracassei porque a voz dele tinha um timbre que era único e muito, muito delicioso de se ouvir.
- Você não está falando coisa com coisa, – tombou a cabeça para o lado e pude ver que lutava contra um sorriso.
- Vá se danar! – girei nos calcanhares e engoli a exclamação de dor quando chutei o pé do banco em que estava previamente sentada.
Precisava ir embora antes que acabasse em um hospital.
Tentando não mancar, juntei o mínimo de dignidade que me restava e saí do apartamento dele. Pensei em bater a porta com força – como da última vez – contudo, tendo em vista a minha sorte de hoje, acabaria com a mão quebrada ou alguma coisa assim. Por isso me limitei a andar até minha própria casa.
- Agora você funciona, né, sua traidora? – resmunguei para a chave que girou na primeira tentativa.
Assim que entrei em casa e tranquei a porta, percebi que Cookie estava sentado sobre o tapete que cobria o corredor de entrada. Ele estava com língua para fora como se sorrisse.
- Que foi? – ergui o queixo em sinal de desafio. – Vai rir de mim também?
Ele recolheu a língua de volta na boca e me encarou de tal maneira que poderia jurar que estaria arqueando a sobrancelha se assim pudesse. Imediatamente me senti culpada por falar assim com ele. Tomando cuidado com meu pé dolorido, sentei-me no chão e cruzei as pernas. Cookie veio saltitando até se deitar no meu colo.
Ele então levantou a cabeça e tentou colocar o nariz contra a sacola de gelo que ainda mantinha em meu rosto.
- Não, não. Cookie – empurrei-o de leve. – Esse é para a mamãe.
Ele tentou outra vez.
- Não, Cookie. Já disse.
Deu um latido.
- Ah! Você quer saber o que é isso?
Continuou olhando para mim, mas, dessa vez, em silêncio e parado. Acho que tinha acertado então.
- Sabe o vizinho novo, aquele homem que conheceu hoje?
Cookie deu um latido feliz e abanou o rabo repetidas vezes.
Não sabia se ficava mais surpresa com o fato de que ele parecia estar me entendo ou por, se isso for verdade, ele gostar de .
- Então, ele apareceu aqui e me disse o nome dele. – completei. – Aí ele pegou e bateu a porta de casa no meu nariz! – fui tão enfática em minha exclamação que acabei levantando a mão que segurava a sacola de gelo, afastando-a do meu nariz.
Assim que acabei de falar, Cookie parou de abanar o rabo e me olhou em silêncio como se dissesse “ahan, sei”.
Aguentei dois segundos antes de me soltar um suspiro:
- Ok. Ok. Ele não bateu a porta no meu nariz, mas foi culpa dele. Indiretamente, mas foi.
Pensei um pouco.
- Ao menos foi bem legal da parte dele me arrumar gelo para ter certeza de que eu não ficaria ainda mais machucada. E ele não tem culpa se eu quis acertá-lo e acabei machucando meu braço. Se bem que ele não deveria ter rido também. Foi idiota da parte dele.
Abaixei a vista e encontrei meu cachorro me olhando atentamente, prestando atenção no que eu dizia. Cocei atrás de sua orelha com a mão que estava livre.
- Sabe, Cookie. Analisando um pouco os fatos, acabei de perceber que, depois de tudo que aconteceu, ele não me disse o porquê veio falar comigo.
E essa constatação provavelmente significava que outro encontro com meu vizinho estaria por vir. Logo.
E, sendo honesta comigo mesma, mal podia espera para que isso acontecesse.

xxx

- Espera, espera! Deixa-me ver se entendi. – Hunter colocou a garrafa de cerveja sobre o balcão, rindo. – A senhora Merthier tinha uma neta que você não conhecia, mas que agora está morando no apartamento de frente ao seu.
Assenti, erguendo a mão para pedir outro Whisky para o barman.
- E ela é uma loira muito gostosa e estabanada que tem um cachorro muito estranho? – sua pergunta saiu em meio a gargalhadas.
Estava começando a me arrepender de tê-lo convidado para sair e beber. O cara estava se divertindo demais com meu tormento. Talvez alguns socos resolvessem.
- Não fale assim dela, garoto.
- Assim como? – franziu o cenho. – Ah! “Gostosa”? – abriu um sorriso sacana. – Por que não?
- Porque eu estou dizendo que não, garoto.
- Já disse quantas vezes para não me chamar assim? Sou só alguns meses mais novo do que você.
- Sério? – arqueei a sobrancelha. – Não parece.
- Você está tentando me distrair da vizinha gostosa! – declarou com um sorriso de quem havia acabado de descobrir a resposta para uma equação particularmente difícil.
Revirei os olhos.
- Você deveria parar de beber – tentei puxar a garrafa para longe de sua mão.
- Eu não estou bêbado, .
E a merda era que ele estava falando a verdade. Hunter era daquele jeito sóbrio.
Impulsivo, falador e sempre com aquele sorriso idiota no rosto.
- E você é muito chato, . Certinho demais. Que aconteceu? Isso é tudo consequência da expectativa de ter que trabalhar com o seu velho na próxima semana?
Olhei para o teto, segurando meu copo e pedindo paciência a algum ente superior. Ele não tinha culpa de estar certo.
- É, cara. Deve ser uma merda mesmo – bateu a mão em meu ombro depois de um tempo em silêncio. – Quer falar sobre isso?
Tive que rir.
- “Quer falar sobre isso”? De onde está vindo essa sua psicologia toda?
- Sei lá – passou a mão no cabelo. – Parecia a coisa certa a dizer.
Essa conversa estava ficando cada vez mais esquisita. Melhor era responder logo suas perguntas. Enquanto ponderava sobre isso, contudo, Hunter, como sempre, não conseguiu esperar e logo voltou a falar:
- Que foi que ele já fez? Aposto que ele já fez alguma coisa! Você teve que ir naquele mausoléu visitá-lo?
Apesar do falatório, ele estava muito mais sério do que há segundos. O peso do assunto claramente mudando o clima antes de descontração. Apesar de toda bobagem que Hunter sempre falava, ele é um bom amigo e sabia quando o calo apertava.
Um gole de whisky e nem mesmo senti o líquido queimar por minha garganta. Até nisso o velho conseguia interferir. Nem mesmo saborear minha bebida eu conseguia. E ele nem estava ali. Só a sua menção já era o suficiente.
- Não – respondi finalmente, abaixando o copo para o balcão. – Ainda não tive esse desprazer. Mas ele já fez questão de me encher o saco.
- O quê? Como assim?
- Eu cheguei em casa para um armário cheio de ternos novos.
- Ternos novos? – franziu o cenho por um segundo antes de compreensão passar por seu rosto. – Você quer dizer aqueles de alfaiates que você tanto zombou?
O fato de ele querer ajudar não significava que ele tinha senso o suficiente para falar a coisa certa.
Impulsivo outra vez e sempre.
- Sim. Esses mesmo. E ainda tinha um notebook novo no meu escritório. Ele chegou ao ponto de instalar um notebook novo na minha casa. Aposto que grampeou até o último GB dele. Infeliz – murmurei essa última parte para mim mesmo e contra a borda do meu copo.
- Por que um computador novo? Ele sabe que você tem o seu.
- Não sei. Realmente não sei. Não é como se ele esperasse que eu fosse usar aquela porcaria. E o que mais me irrita é que ele maquinou isso. Tenho certeza que ele colocou aquela porra no meu escritório sem nenhuma droga de um papel com algum tipo de explicação só para me encher a paciência. Sabe que eu não vou ligar para perguntar e que vou ficar uma semana imaginando o motivo daquela merda estar lá.
- Parece ser bem coisa do seu pai uma tramoia dessas. – Hunter concordou, balançando a cabeça com uma careta de desprezo
. Anos de amizade em situações extremas faziam com que você conhecesse bem seus amigos e com que eles conhecessem seus pontos fracos.
- Mas não vamos deixar o seu velho acabar com a nossa noite. Vamos falar outra vez da sua vizinha gostosa. Quando você vai apresentá-la para o seu amigão?
- Apresentá-la para o Chase? – abri um sorrisinho.
- Esse seu humor é uma das coisas pelas quais eu vivo, – respondeu, sarcástico.
- Sempre soube disso, garoto – ri, tomando mais um gole de minha bebida. - Sempre soube.
Três dias depois daquela noite em que tive que acudir a desastrada e que Hunter e eu saímos para tomar algumas, encontrei-me novamente no parque do bairro. Fazia muito tempo desde a última vez que consegui correr naquele lugar. Era uma das muitas coisas que sentira falta durante os anos no Afeganistão. Correr só por diversão e não porque o inimigo poderia estar te espreitando na próxima duna de areia era uma das coisas mais libertadoras que existia. Não pensar em nada e deixar o corpo automaticamente colocar um pé na frente do outro era relaxante.
Estava correndo há uma hora quando fiz uma nova pausa para tomar um pouco de água. Levantei a cabeça para o céu e observei por um momento as nuvens lentamente mudarem de cor enquanto o sol estava se pondo. Joguei a garrafa no lixo ao lado e recomecei a correr. Menos de cinco metros depois meu caminho foi interceptado. O reflexo militar foi tão rápido que pulei para trás e para o lado antes mesmo de reconhecer que não se tratava de uma ameaça. Era um cachorro.
E... ele me parecia ser muito familiar. Franzi o cenho, tentando me lembrar de onde o conhecia. Ele estava sentado no meio do caminho pavimentado para corredores e me olhava atentamente, balançando o rabo. Era quase como se o animal soubesse que deveria esperar que eu me aproximasse e não o contrário. Dei alguns passos em sua direção e quando estava perto o suficiente para tocá-lo, lembrei-me.
- Ah! Você é o tal cachorro da – agachei-me ao seu lado e acariciei seu pelo.
Um belo espécime de cão esse. E parecia ser bem esperto também. Ele soltou um latido assim que mencionei o nome de sua dona.
- Cadê a sua dona maluca? – olhei para os lados, procurando-a, mas não havia nenhum sinal da loira gostosa.
O cachorro abaixou as orelhas e olhou para o lado.
Pisquei devagar. Era quase como se ele entendesse o que eu falava.
- Você fugiu? É. Acho que você fugiu – sacudi a cabeça. – Vem. Vamos embora.
Endireitei-me em pé outra vez e dei alguns passos, mas mantive a atenção para o caso de precisar segurá-lo pela coleira azul e puxá-lo junto. Felizmente o tal cachorro não impôs qualquer resistência e começou a andar ao meu lado, seguindo meus passos como se aquilo fosse uma coisa frequente, como se já tivéssemos feito aquilo várias vezes antes.
Quando chegamos em frente ao nosso prédio, pude ser andando de um lado para o outro nervosamente enquanto uma morena falava com ela - ou ao menos tentava falar, já que minha vizinha não parava quieta o suficiente para ouvir.
- ? – chamei e ela virou-se para me olhar.
Senti um incômodo esquisito na boca do estômago quando vi seus olhos cheios d’água. Limpei a garganta, olhando para qualquer lugar que não para suas lágrimas.
- Encontrei seu cachorro – indiquei-o com a cabeça.
Sua atenção imediatamente caiu para onde eu apontara e ela correu para se abaixar e abraçar o cão.
Observei-a afundar o rosto no pelo dele e pude perceber que ela falava alguma coisa, mas não consegui distinguir o que era. Senti que era observado e levantei a cabeça para encontrar a morena que antes falava com me encarando atentamente. Arqueei a sobrancelha e ela desviou o olhar.
Dei de ombros e decidi ir para casa. Aquilo tudo era drama demais para um dia só. Contudo, assim que me mexi, se levantou na velocidade de um raio e se jogou contra mim, abraçando-me.
E quando seu corpo macio e delicioso se chocou contra o meu, todo o sangue do meu corpo ferveu para imediatamente depois ir se concentrar no único lugar que agora estava pedindo por atenção.
E meu último pensamento coerente foi de que eu estava totalmente fodido por ficar duro tão rápido por uma mulher.



Capítulo 5

Tenho vários pacientes que vem ao meu consultório para tratar problemas emocionais que levaram a crises severas de ansiedade. Eu os escuto, analiso a situação e dou o melhor diagnóstico possível, oferecendo conselhos sobre como lidar com as situações de estresse que possam agir como gatilho para essas crises de ansiedade. Respirar fundo e tentar se concentrar na realidade de modo que as lembranças passadas não afetassem seu raciocínio completo eram algumas das instruções que sempre dava. Tinha a vaga consciência, então, de que estava sendo bem hipócrita naquele momento.
Nem mesmo tentava aqueles exercícios de respiração, não conseguia separar meus sentimentos para raciocinar direito. A única coisa que aparentemente conseguia fazer era deixar o desespero tomar conta de mim enquanto andava de um lado para o outro na calçada. Sabia que Ava estava falando alguma coisa e que provavelmente deveria estar prestando atenção porque minha melhor amiga era muito boa lidando com esse tipo de situação tensa, mas suas palavras eram apenas murmúrios desconexos enquanto eu olhava para diversos pontos, procurando-o.
- ....talvez se...
- Mas seria melhor que....
- ...alguém dever ter...
Era grata por ela ter deixado a confeitaria nas mãos de Stella e ter vindo me ajudar, mas estava ficando irritada com seu falatório. Suas palavras não estavam me ajudando a localizar Cookie. Estava à beira das lágrimas quando finalmente aquele tom aveludado conseguiu penetrar em toda a bruma de pânico que me envolvia.
- ?
Virei em direção à voz e pisquei devagar, não entendo ao certo o que ele queria dizer, mas quando segui a direção em que apontava senti um alívio tão grande que meus joelhos amoleceram. Ali, ao lado dele, estava meu cachorro travesso. De maneira automática, cai ao seu lado, abraçando meu melhor amigo com força.
- Seu filho da mãe – sussurrei rápido, contra seu pelo, pouco me importando que alguns fios faziam cócegas no meu nariz. – Se você fizer isso de novo, eu te mato. Mamãe quase teve um infarto.
Ele movimentou a cabeça, como se estivesse tomando conhecimento do que eu dizia. De modo quase que inconsciente percebi que meu vizinho estava se mexendo para longe e não poderia permitir isso. Não poderia deixar que ele fosse embora sem que eu agradecesse.
Em um salto, levantei-me e me joguei contra ele. Não foi meu momento mais pudico visto que apertei meus braços e pernas ao seu redor. Levando em conta que éramos praticamente estranhos até três dias atrás, não fiquei muito surpresa com o fato de que seu corpo inteiro se retesou imediatamente. Talvez ele não estivesse acostumado com mulheres se atirando literalmente – e não apenas de maneira figurada – nele, mas também não fazia parte da minha rotina ter homens tão gostosos agindo como meu herói particular, então tinha uma boa desculpa para agir por impulso.
Depois de poucos segundos apenas segurando-o, ou ele me segurando – já que em algum momento, ele havia colocado seus braços ao meu redor, o que, pensando bem, fora uma grade ideia senão eu teria caído no chão – ouvi alguém limpando a garganta.
- ?
Arregalei os olhos e finalmente o soltei, dando alguns passos para trás e sentindo minhas bochechas se avermelhando enquanto um clima esquisito pesava sobre nós. Clima esse que só piorou assim que olhei para o lado e percebi o sorrisinho divertido de Ava. Até mesmo Cookie, que estava pacientemente sentado ao lado da minha melhor amiga enquanto ela segurava a corrente que prendia sua coleira, parecia ter seu rosto em uma careta satisfeita.
Respirando fundo, voltei-me para meu vizinho, uma desculpa e um agradecimento na ponta da língua. Agora que meu peito não estava contraído de nervosismo, pude prestar a atenção devida nele. Meu vizinho delicioso estava na minha frente, suado, os cabelos levemente bagunçados e com uma camiseta que não fazia nada para esconder os músculos incríveis de seus braços. Perdi completamente a linha de raciocínio e comecei a murmurar como uma idiota:
- Hmm... – tentava forçar meu olhar a permanecer em seu rosto porque apenas um segundo de distração era suficiente para que ele caísse sobre aquela camiseta branca de novo. – Eu... hmm...
Na segunda vez que tive que obrigar minha atenção à voltar para seu rosto, encontrei-o arqueando a sobrancelha ironicamente em uma pergunta muda. E aquela atitude dele fez com que meu orgulho acordasse e me obrigasse a reagir.
- Obrigada. Muito obrigada – gesticulei para o ponto atrás de mim onde meu cachorro estava. – Eu já estava ficando doente de preocupação, tentando pensar para onde ele iria. Isso nunca aconteceu antes. Nós estamos aqui fora e de repente ele estava correndo para algum lugar. E eu fiquei aqui parada como uma idiota... Nem mesmo consegui reagir – as palavras foram diminuindo até praticamente sumirem.
Ele tombou a cabeça um pouco para o lado, o sorrisinho ainda firme em seus lábios.
- E então? Não vai dizer nada? – perguntei depois de mais alguns segundos sem resposta.
- O que você quer que eu diga, ? Que encontrei seu cachorro enquanto corria pelo parque ou que esse seu imã para situações esquisitas vai acabar lhe causando algum problema sério e eu posso não estar lá para te resgatar quando isso acontecer?
- “Imã para situações esquisitas?” Me resgatar? Como é que é? – arregalei os olhos. – Você, – bati o dedo indicador em seu peito –, tem o ego maior do que o Empire State. Cuidado para não cair daí de cima. Vai ser uma longa queda de 373 metros de altura.
- Cair? – riu, sacudindo a cabeça. – Não. É mais provável que você seja quem caia, afinal, seria uma boa combinação para terminar a semana. Aliás, como está seu nariz?
Estreitei os olhos.
- Muito engraçado, . Que tal se candidatar para um trabalho no circo?
- Se assim o fizesse, quando teria tempo para te salvar?
- Eu não preciso de salvamento! – bati o pé no chão, indignada.
- Sério? Então você está fazendo um ótimo trabalho escondendo isso, .
Não pude fazer nada além de cruzar os braços e grunhir. Não havia muito o que retrucar, afinal ele tinha razão. Meu lado desastrado nunca se fizera tão presente quanto nesses últimos dias.
- Vou embora agora, , tenha a certeza de olhar por onde anda. Talvez da próxima vez eu não esteja por perto para te salvar – sua voz continuava no mesmo tom aveludado, mas seus olhos azuis gelados por um segundo brilharam com divertimento.
E, antes que pudesse pensar em uma resposta apropriada para tantas gracinhas, ele já tinha se virado e desaparecido dentro de nosso prédio. No milissegundo em que suas costas fortes sumiram de nossa vista, Ava estava ao meu lado, saltitando como uma menina de colegial. Respirei fundo antes de me virar para ela.
- Hey! – dei um passo para trás. – Já ouviu falar sobre espaço pessoal?
- Então agora você quer espaço pessoal? Há um minuto isso não parecia tão importante – arqueou a sobrancelha.
- O que você quer dizer com isso?
- Não se faça se desentendida. Quem era o ser maravilhoso que resgatou Cookie?
- Primeiro, ele não é um ser maravilhoso. Segundo, ele não resgatou-resgatou...
- Como assim “não resgatou-resgatou”? – afinou a voz. – Você estava praticamente tendo um colapso nervoso aqui até que ele magicamente apareceu trazendo seu cachorro de volta. Por um segundo cheguei a ouvir o tema do Surperman tocando enquanto você babava em cima dele.
Arregalei os olhos, minha boca se abrindo um pouco tamanha incredulidade.
- Eu não estava babando em cima dele!
- Não? Ah! Talvez você tenha razão – ela bateu o indicador no queixo algumas vezes, fingindo pensar. – Não consegui ver direito com você tão colada nele – terminou com um sorrisinho malvado.
- Oh! Você não disse isso! Não acredito!
E com isso ela caiu na gargalhada, a risada sacudindo-a tão forte que chegou a colocar a mão na barriga e dobrou o corpo para frente. Cruzei os braços e fiquei esperando que ela terminasse.
- Desculpe, desculpe. Mas você deveria ter visto a sua cara! Essa indignação toda é ótima. Combina perfeitamente com toda aquela tensão sexual.
- Tensão sexual? Você está ficando maluca? Eu sempre soube que esse seu vício por vinhos iria lhe causar algum tipo de problema.
- Quantas vezes vou ter que te dizer que apreciar vinhos é uma arte? – colocou a mão que não segurava a coleira de Cookie na cintura. – E minha mente está muito bem, obrigada. Agora me conta quem era o gostoso que salva cachorros como profissão e é agarrado por loiras nos momentos vagos?
- Será que dá para você parar com esses títulos que você fica dando para ele? “Superman”, “salvador de cachorros”. É ridículo – revirei os olhos.
- Você está tentando fugir de minha pergunta? Porque se está, não funcionou.
- Você é detestável, sabia? Não entendo como podemos ser amigas.
- Somos amigas porque você é desastrada demais para conseguir outras amigas.
- Hey! – dessa vez não pude evitar sorrir também.
- Vamos lá, estou esperando.
- Ok, ok. Você é muito insistente! Ele é meu novo vizinho.
Assim que disse aquela palavra, Cookie, que até agora estava contente em ficar quieto e observar nossa conversa, soltou um latido feliz. Olhei para baixo e para meu melhor amigo, intrigada. Meu cachorro me encarou de volta, com a língua para o lado como se sorrisse.
- Seu novo vizinho? O babaca?
Voltei minha atenção para ela e assenti devagar.
- Sem chance! O Leónidas? – perguntou outra vez como que para ter certeza de que não havia ouvido errado.
- É! A não ser que você saiba de algum outro novo vizinho.
- Se não estivesse ocupada demais admirando aquele homem maravilhoso, me preocuparia com a sua ironia. Agora vamos voltar à parte interessante. Ou, melhor ainda, à pessoa interessante. Sabe, sou obrigada a concordar com você na parte em que ele realmente parece um espartano.
- E se comporta como um também. nunca fala nada além do essencial e isso é muito irritan-
- Hey, hey. Calma, calma – me interrompeu. – Como assim “”? Você descobriu o nome dele? E quando foi isso? Por que eu não fiquei sabendo de nada?
Olhei para o lado e, por um segundo, a lembrança de como ele me fez sentir naquele dia me assaltou outra vez e tive que me esforçar para não soltar um suspiro e voltar a atenção para Ava.
- Faz alguns dias. Tive um pequeno acidente no corredor do meu andar, estava entrando na casa dele na hora e acabou me ajudando. Foi quando ele resolveu me contar seu nome – dei de ombros, encurtando a história ao máximo.
Torci para que minha melhor amiga engolisse a baboseira sem graça que havia contado e deixasse o assunto morrer.
Claro que não foi isso que aconteceu.
- E você acha que vou acreditar nisso? – cruzou os braços, batendo seu belo exemplar vermelho Prada sem salto no chão repetidas vezes. – Essa sua versão chata não me engana nem um pouco. Vamos lá, – agarrou minha mão e, mantendo a coleira de Cookie firme na outra, arrastou nós dois para dentro do prédio. – Vamos para casa e você pode me servir um suco enquanto bebe uma xícara daquela porcaria de café que tem em casa.
Appleby me espremeu até que contei cada detalhe da história verdadeira do que tinha acontecido naquele dia. Depois de ouvir tudo em silêncio, ela terminou seu suco, levantou-se com toda graça de boneca que possuía me informou que estava atrasada para assar a fornada de cupcakes da tarde e se dirigiu para saída da minha casa. Eu ainda estava bem chocada com sua falta de opinião sobre tudo que lhe contara – levando-se em consideração que minha melhor amiga era uma pessoa cheia de opiniões e não tinha vergonha de expressá-las – quando, já com a mão sobre a maçaneta, ela se virou para mim novamente e, com um sorrisinho esperto, disse a frase que estava me atormentando até agora:
- Você e o tal formarão um casal bem interessante quando decidirem agir para colocar em prática toda essa tensão sexual que faísca quando vocês dois estão juntos.
Ela havia saído logo depois de jogar aquelas palavras sobre mim, me deixando sem uma explicação descente e com um bom motivo para dor de cabeça. E foi exatamente aquilo que acabei tendo depois de tanto analisar de novo e de novo suas palavras.
Ela não tinha razão. Ela não podia ter razão.
Sim, concordava que o era uma excelente visão com seus cabelos que pareciam ser tão macios que minhas mãos coçavam com a vontade de acariciá-los. E também havia o fato de que suas costas eram largas, seus ombros fortes e não vou nem começar a analisar os músculos incríveis de seus braços. Também não podia deixar que minha imaginação fluísse por caminhos trôpegos tais como me perguntar como ele muito provavelmente tinha um tanquinho do qual eu adoraria lamber cada gominho.
Sacudi a cabeça, tentando me focar em outra coisa, mas logo meus pensamentos voltaram a se concentrar na lembrança de seus olhos gelados e do brilho de divertimento que às vezes lá surgiam, na maioria delas às custas de alguma coisa que eu fiz ou que me aconteceu. Seus olhos me intrigavam. Era como se eles dissessem tudo que sua boca mantinha bem guardado.
O que realmente precisava evitar, contudo, era pensar em como fisicamente reagia a ele, como se pequenas fagulhas explodissem por todo meu corpo a cada vez que ele me tocava. Era ridículo porque até mesmo um simples toque já me afetava e eu não era uma adolescente com sua primeira paixonite. Nunca pensei que o físico de um homem pudesse me excitar tanto – e sabia que era só o físico porque sua personalidade não era o que poderíamos chamar de atraente. Eu gostava de conversa, gostava de ouvir outras pessoas falando. Aquela mudez voluntária dele me irritava profundamente. O pior era que ainda não havia conseguido descobrir se ele fazia aquilo de propósito para me irritar ou se era parte da sua personalidade.
Então, depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que não concordava com Ava sobre a “tensão sexual” entre nós. Talvez uma pequena atração explosiva, mas não tensão sexual. O fato de eu querer saber o que havia sob sua calça jeans não chegava a ser considerada esse tipo de tensão, até porque são preciso duas pessoas para esse tipo de “relação”. E eu duvidava que estivesse nessa comigo. Não que ele fosse totalmente indiferente, mas era difícil analisá-lo. O cara era muito bom em manter a faceta impassível.
Soltei um suspiro e massageei minha têmpora.
Fosse o que fosse, sabia que precisava bater na porta da frente e agradecê-lo por achar Cookie. Não suportaria o dia sem meu velho amigo.
Abaixei a mão e cocei atrás de suas orelhas, sorrindo de leve por ele estar de volta ao meu lado.
Também não sabia o que iria pedir como retribuição daquele favor. Talvez mais uma torta de maçã Merthier. A parte mais pervertida da minha mente, contudo, torcia para que seu pedido envolvesse outras coisas mais interessantes. Algo que envolvesse nós dois e uma cama. Ou qualquer superfície estável, afinal não precisava de nenhuma outra piadinha sobre meu equilíbrio... ou a falta dele.

xxx

A porra daquela gravata estava me sufocando. O terno parecia ser menor do que o correto e aqueles sapatos ridiculamente caros faziam mais barulho contra o piso de mármore branco do saguão do prédio do que minhas botas baratas sobre o chão árido do deserto. E o pior era que tudo parecia a merda de uma metáfora sobre como me sentia agora enquanto forçava uma perna na frente da outra em direção ao elevador.
Eu odeio metáforas - quase tanto quanto odeio aquele lugar em que estava agora.
Preferia minha 45 em terras inimigas àquela maleta de couro imbecil em um dos lugares mais seguros de Manhattan. Pelo menos no Afeganistão os inimigos eram bem demarcados, sabíamos contra quem deveríamos lutar para proteger nosso país. No lugar em que estava agora, as coisas eram bem diferentes. A falsidade imperava e ninguém mostrava seu real interesse até que tivesse a total certeza de que seu oponente não poderia contra-atacar de maneira eficiente. Era uma coisa mórbida e tóxica.
E eu estava andando direto para o covil do rei de todos esses tubarões. O visor lateral do elevador silenciosa e rapidamente aumentava, subindo em direção ao penúltimo andar do prédio. As portas se abriram e respirei fundo antes de caminhar até a mesa de vidro e para a loira sentada atrás dela.
A mulher estava de cabeça baixa, concentrada em algo que lia enquanto sublinhava palavras com uma caneta vermelha. Por alguns poucos segundos, enquanto olhava seus fios dourados, minha mente vagou para a lembrança de minha vizinha. Fazia alguns dias que não tinha notícias de e isso deixava meus dias estranhamente monótonos. Qualquer lembrança da loira do meu prédio sumiu imediatamente quando a mulher na minha frente finalmente voltou sua atenção para mim.
Bonita, sim, mas seus olhos eram completamente vazios e seu nariz apontava para o alto em desdém. Com uma segunda olhada também percebi que ela era magra demais. Não havia qualquer semelhança com , portanto.
Nada parecido com minha vizinha gostosa a não ser a cor do cabelo.
- Pois não? – perguntou, entediada, como se tivesse decidido que eu não valia o tempo dela.
Ao menos algumas coisas nunca mudavam. O velho continuava contratando pessoas tão esnobes e que faziam questão de ser desagradáveis – exatamente como ele era.
- Estou aqui para ver Dante.
Ela arqueou a sobrancelha.
- O presidente – frisou, dizendo silenciosamente que em sua opinião eu não era digno de chamá-lo de algo tão “íntimo” como seu próprio nome – não recebe ninguém sem hora marcada.
Também não escapou à minha atenção que o tirano continuava obrigando seus funcionários a chamá-lo por aquele título idiota. Nem mesmo me surpreendia com tal coisa. Tinha certeza que na mente meio distorcida dele o velho achava que comandava o país inteiro e não apenas a companhia.
- Olha, moça, eu estou ficando sem paciência aqui. Por que não disca para o seu chefe e diz que está aqui para vê-lo, como combinado – resolvi enfatizar as palavras também.
- Olha, , - e aqui estava de novo o tom de desdém, – por que não dá meia volta e some da minha frente antes que eu chame a segurança e eles subam aqui para que vocês tenham uma conversinha interessante sobre como você conseguiu passar por eles em primeiro lugar?
Não tinha tempo para esses joguinhos. Não queria estar aqui e aquela vadia sarcástica estava tornando tudo ainda mais difícil. Sabia que a fúria que estava sentindo deveria estar refletida em meu rosto porque a expressão dela mudou de irônica para assustada e ela se moveu para trás e para longe, grudando as costas no encosto da cadeira enquanto sua mão pousou sobre o telefone.
- Você vai pegar esse telefone e vai avisar ao meu pai que eu estou aqui para vê-lo. E vai fazer isso agora antes que eu perca o resto de paciência que me sobrou e vá procurá-lo eu mesmo. Entendeu? – sibilei devagar.
Assim que terminei de falar, ela ficou em um silêncio pesado, completamente imóvel.
- ... ... – murmurou para si mesma.
Quase como um estalo, então, a mulher arregalou os olhos e ofegou, pondo-se de pé em um salto enquanto murmurava repetidamente várias desculpas.
Levantei a mão e gesticulei para que ela parasse de falar. Seu tom nasalado estava contribuindo, e muito, para me deixar ainda mais de saco cheio.
- Eu sinto muitíssimo, senhor . O presidente avisou que o senhor chegaria hoje, mas não o esperava... – olhou-me de cima a baixo pela primeira vez - tão cedo – completou depois de pensar um pouco.
O que eu consegui ler nas entrelinhas era que ela não esperava que minha aparência fosse aquela. Provavelmente pensou que veria uma versão mais jovem do meu pai. Felizmente não tive o infortúnio de me parecer com o velho.
- É, é. Agora podemos ir? – perguntei, entediado.
- Sim, sim, claro – seus altos enormes fizeram barulho no chão negro quando ela contornou meu corpo e gesticulou para que eu a acompanhasse em direção à uma porta menor na lateral esquerda. – Por aqui, senhor – abriu a porta da sala.
Ao entrar no novo cômodo pude ver uma longa mesa de madeira e várias cadeiras ao redor.
- Presidente está ocupado no momento e pediu para que, quando o senhor chegasse, aguardasse aqui na sala de reuniões.
Assenti, ainda olhando para sala.
- Senhor , eu posso oferecer algo para beber? Água, café...?
Abaixei a vista para encará-la. A secretária do meu pai era o exemplo perfeito do tipo de pessoa que trabalhava ali: indiferente e rude até descobrir que você tem alguma influência, então se transformam e em uma máscara de falsidade.
- Não, obrigado – focei as palavras.
- Senhor, eu realmente sinto muito por antes. O presidente disse que o filho dele, , viria hoje. Eu fiquei... confusa. Sinto muito por isso – sua preocupação agora era genuína, provavelmente com medo de que eu disse alguma coisa e ela fosse demitida.
Reprimi uma revirada de olhos. Não tinha tempo para esse tipo de intriga mesquinha.
- Não se preocupe – falei, pensando que isso seria o suficiente para fazê-la voltar ao seu serviço.
- Ah! – suspirou aliviada. – Muito obrigada, senhor – colocou a mão sobre meu peito e abriu um sorrisinho que na mente dela claramente deveria ser sedutor, mas que para mim só adicionou um pouco mais de artificialidade ao seu rosto. – Meu nome é Missy e eu adoraria saber se há algo que posso fazer para retribuir?
Pode me chamar de antiquado, mas preferia que minhas mulheres se interessassem por outra coisa que não meu sobrenome.
- Não – segurei seu pulso e a afastei. – Saia – apontei para porta.
Minha paciência se esgotara.
A mulher girou em seus saltos e saiu sem dizer uma única palavra – provavelmente acostumada que estava com os rompantes de humor do velho. Caminhei a passos lentos até a enorme janela. Não precisava olhar ao meu redor para saber o que havia naquela sala. Uma sala clinicamente limpa, um quadro ridiculamente caro pendurado em uma das paredes e a mesa de reuniões com as cadeiras impecavelmente arrumadas. Era tudo igual nas Enterprises, tudo do mais caro e, ao mesmo tempo, tudo genericamente igual. Será que o velho percebia a ironia disso?
Tudo naquele lugar era do mais caro encontrado no mercado e, mesmo assim, parecia algo saído de uma revista de decoração barata tamanha a impessoalidade que ele forçava em cada cômodo.
Obrigando os pensamentos sobre o velho para fora da minha mente, observei a vista cheia de arranha-céus e por um segundo todas aquelas metáforas sobre a selva de concreto passaram em minha mente. Soltei um suspiro e decidi me afastar daqueles clichês idiotas e ir me sentar. Assim que coloquei a mão sobre o encosto da cadeira com a intenção de puxá-la, contudo, parei no meio da ação. Se me sentasse, estaria em desvantagem quando ele aparecesse. Decidi, então, que o melhor seria ficar em pé. Adotando uma postura militar, mantive o peso do corpo dividido entre os dois pés e os olhos fixos na outra porta de entrada na lateral direita da sala. Sabia que o velho apareceria por aquela porta, já que, seguindo seu padrão obsessivo quanto à arquitetura dos escritórios, seu gabinete deveria estar do outro lado daquele pedaço de madeira cara.
E agora teria que esperar Dante sair de sua sala, onde provavelmente terminava outra de suas maquinações para transformar a vida de mais alguém em um inferno. Roubar a alma de mais um pobre imbecil. Aquilo não me surpreenderia. Afinal, "papai" não poderia deixar de honrar seu nome e produzir sua própria Divina Comédia. – e , claro, seus vários círculos do inferno. Queria saber se era isso que vovô tinha em mente quando escolheu aquele nome. Talvez fosse. Será que vovó sabia que o velho sempre teve um traço meio sádico?
Mais cedo do que pensei, meu pai estava entrando no cômodo e, quando as portas abriram, quase pude sentir o cheiro de enxofre.
- , meu rapaz! – abriu os braços enquanto caminhava em minha direção.
Tive que conter o impulso infantil de dar um passo para trás.
- Pai – forcei a palavra enquanto ele dava palmadas firmes em meu ombro.
Ele, como sempre, ignorou meu desgosto e agiu como se nada estivesse acontecendo. - Ótimo, ótimo – analisou o terno que eu usava. – Vejo que você encontrou-os em seu armário. Ótimo, ótimo. Então já está pronto para o trabalho. Por aqui, , por aqui – andou na minha frente e gesticulou para que eu o seguisse.
Enquanto eu o seguia em direção ao elevador, continuou falando:
- O que você aprendeu em Harvard junto com o que você aprendeu aqui antes de ter aquela ideia estúpida de se juntar ao exército e desperdiçar vários anos de sua vida naquele lugar esquecido por Deus é o suficiente para que você possa assumir o comando da parte europeia.
Trinquei os dentes para não defender a honra que era servir meu país. Não adiantaria discutir de novo aquele tópico. Dante não mudaria de ideia - sua intransigência não permitiria tal coisa. Resignadamente, então, continuei andando quando descemos para o andar inferior ao que estávamos e ele continuou andando e falando das especificações do que seria esperado de mim agora que assumia a direção europeia da companhia.
- Apesar de você não ter se esforçado tanto para merecer tal cargo, esse é o segundo cargo mais importante aqui na E – falou de maneira condescendente, um sorriso no rosto de quem achava que estava fazendo um favor à humanidade. – Afinal família é importante!
Seu tom irritante era só mais uma maneira que encontrou de me lembrar de que pensava estar fazendo um favor ao me contratar para tal cargo. Naquele momento, se não tivesse feito àquela promessa a minha mãe, teria me virado e sumido daquela merda de lugar. Ao invés disso, forcei um sorriso fechado e assenti.
- Aqui é sua sala. E essa é sua nova secretária, April – apontou para a morena que estava em pé ao lado de uma mesa. – Ela vai te dar todos os detalhes necessários. Agora preciso ir, afinal já perdi muito tempo aqui – dizendo isso, se virou e andou de volta para o elevador.
E foi basicamente isso. Quatro anos sem uma palavra trocada e em menos de cinco minutos ele tinha sumido novamente. Fiquei absolutamente aliviado por isso. Apesar de ele ter usado cada oportunidade naqueles poucos instantes para me lembrar de quem mandava naquele prédio, eu estava satisfeito. Havia sido melhor do que imaginei. O velho provavelmente estava se segurando para não dizer tudo o que queria achando que eu poderia desistir daquela ideia de trabalhar na E.
Felizmente ele não sabia do que mamãe havia me feito prometer, caso contrário se aproveitaria disso para tirar todas as vantagens que pudesse, levando também a minha alma no processo. Assim que assisti as portas do elevador se fecharem, virei-me para April.
- April, é um prazer conhecê-la – estendi minha mão, meu humor consideravelmente melhor agora que a pior parte já havia passado.
- Senhor , o prazer é meu – apertou minha mão.
Ela deveria ter a mesma idade que a secretária do meu pai, mas era aí que as semelhanças terminavam. A mulher na minha frente era gostosa, mas mantinha o tom e a pose formal, o que me agradou.
- Vamos à minha sala, assim você pode me passar os ditos detalhes.
Entrei em minha nova sala e lá estava mais um exemplo do padrão Enterprises para os escritórios de seus executivos. Uma mesa preta e uma cadeira alta da mesma cor atrás dela, uma janela enorme – que, para mim, era a melhor coisa – uma das paredes coberta inteiramente por uma enorme estante cheia de livros que me seriam pertinentes. Havia ainda duas cadeiras individuais na frente de minha mesa e, no canto direito, três sofás brancos com uma pequena mesinha no meio delas.
Era satisfatório.
Coloquei a maleta que carregava sobre a mesa e me sentei. April rapidamente ocupou uma das cadeiras a minha frente.
Nós passamos as próximas duas horas estabelecendo o que precisaria ser feito e a agenda da semana. Fiquei agradecido por isso. Minha secretária me mostrou que as coisas não mudaram tanto na maneira como os negócios eram feitos, o que mudara foi o jeito que eram feitos. Tudo muito tecnológico agora.
Não que eu fosse um ignorante no quesito tecnologia, mas você acaba ficando enferrujado quando o máximo que pode conseguir quando se está trabalhando é uma conexão via satélite – e isso quando não estava patrulhando ou no meio de uma missão especial. O comando do exército fazia o que podia, contudo, você fica limitado quando se está no meio do deserto. Podia-se dizer, assim, que havia atualizações tecnológicas com as quais não estava familiarizado.
Harvard Business merecia a fama que tinha. Realmente me lembrava do que tinha aprendido lá durante os anos em que ainda tentava ganhar a aprovação de Dante. A conclusão, pois, era de que eu ainda sabia jogar o jogo, mas tinha sérios problemas com a logística dele.
E esse problema só aumentava um pouco mais quando April me explicou que todas as transações da empresa são obrigatoriamente digitalizadas. No momento apenas limitei-me a escutar o que ela falava, mas meu cérebro já estava pensando em estratégicas para contornar aquele contratempo.
Depois de me familiarizar com o mais importante, fiquei sozinho para começar o trabalho. Havia pilhas e mais pilhas de trabalho acumulado, visto que o cargo estava vago há duas semanas. Aparentemente o velho tinha chutado o antigo executivo que ocupava o cargo assim que eu tinha concordado em voltar para empresa. Fiz uma nota mental para mais tarde descobrir se o cara tinha arrumado outro emprego, afinal ele não tinha culpa de Dante ser um tirano sem consideração.
No final do dia eu estava completamente exausto. Não me lembrava de como o trabalho burocrático poderia ser cansativo. Quase tão cansativo quanto horas correndo pelo deserto. Quando finalmente o relógio atingiu sete horas da noite, guardei alguns arquivos em minha pasta e segurei outros na mão, meu terno sobre meu antebraço flexionado em um ângulo de 90° graus.
Apaguei a luz e encontrei April sentada em sua mesa, ainda trabalhando. Sua atenção se voltou eficientemente para mim no minuto em que apareci na sua frente.
- April, acho que podemos terminar por hoje.
- Sim, senhor – ela desligou o próprio notebook e se levantou.
- Aqui – coloquei os arquivos que segurava sobre a mesa. – Preciso que você digite isso amanhã para que possamos enviar. Já terminei de revisar tudo e corrigi o que era necessário.
Ela lançou um olhar rápido sobre a capa das pastas e ergueu a vista para mim de novo.
- Senhor ... Eu... – começou, muito hesitante.
- Sim?
- Esses são arquivos classe B – apontou para a pequena letra no canto inferior da capa dos arquivos.
- E qual o problema?
- Eu só possuo autorização de acesso para arquivos até a classe D, senhor.
Estava começando a me sentir um completo idiota.
- April, não entendo aonde você quer chegar.
Ela olhou para o lado e sua expressão me disse que ela preferia estar em qualquer outro lugar agora.
- É que... hmm... Presidente estipula à quais arquivos os funcionários podem ter acesso de acordo com seu cargo e com a importância do documento em questão.
- E isso significa o que exatamente?
Mesmo enquanto fazia a pergunta já sabia que não iria gostar da resposta.
- Significa que sou proibida por contrato de olhar o conteúdo dessas pastas, senhor. Sinto muito – e aqui pude ver sinceridade.
- Como não pode? Esses documentos nem mesmo são confidenciais. Dizem respeito às transações mensais da filial da França!
April parecia ficar um pouco mais pálida a cada minuto, suas mãos retorciam nervosamente a barra de sua blusa.
- E o que eu vou fazer, então? Preciso que isso seja digitado e levarei tempo demais fazendo isso aqui no escritório. Eu precisava que você fizesse isso!
- Sinto muito, senhor , mas o presidente preza muito por essa regra. Ele já demitiu duas secretárias e seus respectivos chefes devido a desrespeitos leves referentes a esse assunto. E eu realmente preciso desse emprego.
Meu cérebro trabalhou para compreender exatamente o que ela dizia e, quando conclui quais seriam as consequências daquele sistema ridículo do velho, todo o mau-humor do começo do dia retornou.
Respirei fundo algumas vezes, olhando para o teto. Ela não tinha culpa se o velho passava horas de seu dia só maquinando maneiras novas de dificultar minha vida.
- Tem alguém na empresa para quem eu possa designar essa tarefa de digitação?
Ela balançou a cabeça devagar e minimamente, quase como se torcesse para que eu não visse sua resposta.
- Perfeito! Muito bom mesmo! – passei a mão pelo rosto, tentando conter uma risada seca. - Deixa eu ver se entendi direito. Eu mesmo terei que digitar essas porcarias?
Outra vez o movimento mínimo de cabeça, mas dessa vez, infelizmente, foi de concordância.
Usando do controle de aço que se desenvolve quando do treinamento para atirador, contive o impulso – muito forte – de chutar a cadeira na minha frente para aliviar um pouco da frustração que sentia.
Por que Dante não podia ser um pouco normal? Torci para que ele tivesse essa qualidade ao menos em sua vida profissional, já que na pessoal sabia que aquilo era fora de cogitação. Ou, quem sabe, que ele tivesse evoluído durante os anos em que não nos vimos.
Mas é claro que isso não tinha acontecido. Apesar de que, se consideramos seus próprios padrões, o velho realmente tinha evoluído em seus próprios padrões malignos. Ele deveria estar muito orgulhoso de si mesmo.
O fato de que eu não estava familiarizado o suficiente com a digitação para fazê-lo em uma velocidade razoável faria com que todo meu trabalho se atrasasse por dias incontáveis. Esse seria um motivo perfeito para que Dante aparecesse em meu escritório para esbravejar sobre o quanto a poeira do deserto havia prejudicado minha cabeça ou como ele estava fazendo a caridade de deixar que eu trabalhasse em sua empresa e que eu retribuía essa benesse com preguiça e atrasos nos cronogramas.
Não podia deixá-lo vencer.
Não.
Precisava encontrar um jeito de contornar essa situação.
Murmurei uma despedida qualquer para April enquanto pegava as pastas outra vez e caminhava para o elevador, absorto em procurar uma solução para o novo problema que tinha. Já estava no meio do caminho quando minha secretária apareceu na minha frente outra vez.
- Senhor ?
Olhei para baixo e arqueei a sobrancelha em uma pergunta muda. Já estava impaciente. Tudo o que não precisava agora era que minha secretária informasse que havia mais alguma regra idiota que ainda me era desconhecida.
- Senhor , eu... eu... – respirou fundo. – E se eu hipoteticamente tivesse uma solução para esse problema da digitalização?
- Senhorita Near, eu realmente não tenho tempo ou paciência para charadas. Por favor, vá direto ao ponto.
Agora já estava no nível de rispidez pura e simples.
- Por favor, não diga ao presidente que lhe contei isso. Ele não pode saber – abaixou a voz. - Há rumores entre as secretárias de que alguns executivos contratam pessoas de sua confiança e sem o conhecimento das outras diretorias para fazer esse tipo de coisa. É tudo de maneira muito sigilosa. Eles chamam a pessoa para ir à casa deles e pagam para fazer essa digitação. Presidente nem imagina que isso acontece. Ele acredita ferozmente que todos cumprem suas ordens de sigilo, mas isso tornaria a empresa inviável e, por isso, algumas pessoas burlam tal regra. É isso ou demissão por não cumprimento das metas estipuladas.
O fato de que Dante pensava que seus funcionários não teriam peito para desobedecê-lo não me surpreendia. O que achei curioso foi a parte em que ela mencionava onde essa atividade acontecia.
- Como assim eles vão à casa dos executivos?
- O senhor não recebeu um notebook da empresa? – franziu o cenho.
Assenti, recordando o novo computador que encontrei sobre minha mesa assim que cheguei de viagem e que não tinha tocado desde então.
- Ao longo dos anos, presidente teve que fazer algumas concessões sobre essa regra de digitação porque os atrasos estavam se tornando insustentáveis e o rendimento dos executivos estava caindo porque eles passavam horas demais no escritório para digitar todo material a que as secretárias não podiam ter acesso. Uma dessas concessões foi a entrega de um notebook da empresa para cada diretor assim ele poderia terminar o trabalho extra em casa – ela abaixou a voz ainda mais. – Foi a partir daí que se tornou possível que algumas pessoas burlassem as regras e confiassem a um terceiro o trabalho de digitação. Já que os arquivos devem ser obrigatoriamente passados para os computadores da empresa e somente esses computadores, mas, nos domicílios de cada um, o chefe não tem controle completo sobre quem digita os arquivos, apenas controla o fato de que eles são colocados naquele notebook em especial.
As engrenagens do meu cérebro rodaram devagar por alguns instantes antes de finalmente voltarem a girar em velocidade normal e necessária para que eu compreendesse tudo que estava sendo dito.
Voltei minha atenção à mulher que nervosamente voltara a retorcer a barra de sua blusa e que me olhava como se temesse ter falado demais e acabado com uma carta de demissão em troca de suas informações “ilegais”.
- Obrigado, April. Isso foi de grande ajude. Até amanhã.
Ela suspirou visivelmente de alívio ao ouvir aquelas últimas palavras e murmurou uma resposta trêmula. Com um último aceno de cabeça, dei a volta e entrei no elevador. Ainda estava ponderando sobre quem poderia contratar para aquele serviço eletrônico, mas nenhum nome me vinha na cabeça. Você não mantém uma vida muito social enquanto está no Afeganistão. Todos aqueles em quem eu poderia confiar essa tarefa estavam tão desnorteados quanto eu no quesito evoluções tecnológicas recentes e como lidar com elas.
Isso era uma verdadeira merda.
Já estava no ponto desesperado de cobrar um favor que Hunter me devia e obrigá-lo a perder várias horas de seu dia naquela tarefa tediosa pra caralho enquanto não me acostumava com um ritmo satisfatório quando meus pensamentos foram interrompidos por alguém cutucando insistente e pedantemente meu braço.
- ?
É claro que meu dia excelente precisaria ser complementado com um encontro inesperado com a gostosa da casa ao lado.
Além de com uma puta dor de cabeça, agora também iria dormir duro de tesão porque era basicamente isso que acontecia a cada vez que ela respirava perto de mim: eu ficava totalmente excitado.
Como a merdinha de um adolescente.
Talvez eu devesse aceitar um dos conselhos de Hunter e sair para procurar uma mulher para aliviar todo aquele tesão reprimido.
Respirando fundo, virei-me para ela e esperei que ela dissesse o que queria para que finalmente pudesse dormir um pouco e me preocupar em como superaria o mais novo empecilho que meu pai fizera questão de colocar na minha vida.
- , faz dias que queria te agradecer por ter encontrado Cookie, mas nós sempre acabamos por nos desencontrar. E foi uma sorte nos encontrarmos hoje... bem, na verdade, não. Eu meio que estava te vigiando para saber quando você chegaria. Oh! – abriu uma careta horrorizada. – Mas não de maneira perseguidora. Te garanto que não sou uma stalker. Eu só fiquei na sala, terminando uns trabalhos e prestando atenção para ver se ouvia você chegar – franziu o cenho. – Ok. Isso talvez tenha soado de maneira meio perseguidora, mas não foi isso que quis dizer. É só que você não facilita a minha vida com esse seu andar macio. Quase te perdi hoje de novo se não tivesse ouvido o barulho da sua porta, mais um dia teria se passado sem que pudesse agradecer e dizer o que queria.
Impressionante o quanto ela conseguia falar sem precisar parar para respirar.
Assenti com a cabeça e voltei a me concentrar em entrar em casa e cair na cama.
Outra vez fui impedido por sua mão em meu braço.
- Que foi agora, ?
- Eu ainda não disse o que vim dizer!
Então tudo aquilo que ela falara antes fora pura perda de tempo?
- E o que, afinal de contas, você queria falar?
E lá se vai a pouca paciência que conseguira juntar ao ficar livre do prédio da E.
Ela deu um passo para trás devido a brusquidão com que falei e me senti envergonhado. Minha mãe não estaria muito contente caso me visse agora, assustando mulheres. , contudo, recuperou-se rápido e seu bonito rosto de assustado passou para indignado em poucos segundos.
- Olha aqui, , eu vim agradecer educadamente por você ter encontrado meu cachorro. Não vim para ser insultada com esse seu tom Neandertal!
E agora a culpa é minha que ela vinha ficar alugando meu ouvido?
Revirei os olhos.
Mulheres!
- Fala logo – abandonei toda e qualquer educação.
Já começava a sentir minha cabeça latejando.
abriu a boca para falar algo – provavelmente algum xingamento – mas se interrompeu e voltar a cerrar os lábios e respirar fundo algumas vezes.
- Como já disse, vim agradecer e também perguntar o que você quer em troca.
Imediatamente imagens dela sem aquele short curto e a blusa apertada surgiram na minha mente. E elas foram tão intensas e tão vívidas que por um segundo perdi o foco.
- Querer em troca? Do que você está falando? – as palavras saíram mais roucas do que o normal.
A pergunta se devia ao fato de que ela certamente não se referia ao que minha imaginação conjurara.
- Você me fez um favor muito grande que provavelmente nunca poderei retribuir de maneira equitativa. Então precisamos encontrar um meio termo satisfatório para ambas as partes.
Porra! O jeito dele de falar difícil também contribuía para que meu pau ficasse ainda duro. Como se eu precisasse de mais algum motivo.
E a palavra “satisfatório” soava tão bem em sua boca. Sabia de outras coisas que também soariam gostosas em sua voz... coisas bem satisfatórias.
Dessa vez precisei efetivamente sacudir a cabeça para desanuviar meus pensamentos e as imagens mentais que eles estavam formando.
- Realmente? E a que conclusão brilhante você chegou?
Meu mau-humor estava piorando gradativamente.
- Bom... não pensei nessa parte especificamente – arrastou o pé pelo chão, olhando para o baixo.
- Então por que especificamente você está me enchendo o saco?
- Você é muito grosso, .
Se não estivesse tão impaciente, teria lhe dado uma resposta bem indecente, ao invés disso, abri a porta de casa e dei um passo para dentro, determinado a esquecer que aquele encontro aconteceu.
- Hey, hey! Espera – senti sua mão em meu braço outra vez e tive a impressão de que ela tentava me segurar, mesmo não sentindo esse esforço.
Em um último esforço para manter alguma cortesia, virei a cabeça para ela e esperei que ela falasse.
- Não, . Sério. Eu quero retribuir o favor. É importante para mim. Eu posso sei lá... arrumar sua casa durante um mês – ofereceu apressadamente assim que dei mais um passo para dentro de casa. - Lavar sua roupa... cozinhar... sei lá.
- Por que você insiste nisso, ? – perguntei, cansado. – Não preciso de nada.
- Porque detesto dever favores, . E não é possível que você não precise de nada. Absolutamente nada? – franziu o cenho outra vez.
- Não, eu não preciso de nad-
A recusa parou em minha boca assim que uma nova ideia me acertou como um bastão de baseball.
- Pensando melhor, talvez você possa me ajudar, .
E de repente todo o cansaço sumiu enquanto um sorriso se esgueirou para meu rosto.
E foi basicamente naquele momento em que comecei a sanar um problema e criei outro ainda maior. Um problema em forma de furação, um furação de belas pernas e seios incríveis.



Capítulo 6

Apesar do que Ava vivia repetindo, eu não me considerava uma pessoa lenta, contudo, naquele momento, estava tendo muita dificuldade em compreender o que dizia.
- Deixa eu ver se entendi direito – falei devagar. – Você quer que eu seja sua secretária?
- Ah, pelo amor de Deus! – bufou. - Você prestou atenção em alguma coisa que eu disse?
- Prestei atenção em tudo – rebati, indignada. – Só não estou entendendo. Você é confuso pra caramba!
Sendo bem honesta, não poderia culpá-lo inteiramente por aquela desordem em que estava. Minha mente só estava parcialmente concentrada no sentido de suas palavras, a outra parte do meu cérebro estava ocupada demais concentrada no fato de que ele estava falando - isto é, estava falando comigo. Havia visto falando mais naqueles poucos minutos do que durante todos os dias desde que nos conhecemos. E como aquela voz era gostosa.
Era rouca, como se ele não a usasse muito, e continha um tom de comando que não era forçado, mas sim quase inconsciente. Ele falava de maneira firme e segura e obviamente esperava ser ouvido e obedecido todas as vezes. Aquela era uma óbvia característica de alguém que passava muito tempo mandando em outras pessoas.
Passei a língua devagar por meus lábios ressecados.
Podia imaginá-lo dando ordens a um bando de pessoas indisciplinadas e todos correndo para obedecê-lo sem hesitar. Acima de tudo, entretanto, podia imaginá-lo me dando algumas ordens.
“Para a cama, ” ou “Abra as pernas, ”.
Não, não. má, má!
Sacudi a cabeça.
Era justificável o mau-humor de por minha falta de atenção. Afinal, enquanto ele se concentrava em me explicar as coisas, eu me concentrava em imaginar aquelas mãos grandes e másculas me apalpando. Passando por meus seios, os quais provavelmente não as preencheriam por completo, mas que com certeza sentiriam incríveis.
A maciez contra aquela aspereza gostosa que os calos podiam trazer. Com um olhar rápido pude perceber que tinha a mão calejada - e não por ficar pegando pesos o dia inteiro na academia, como o idiota do meu ex fazia.
Tinha certeza que ele aqueles polegares deslizaria de maneira delici-
- ! – exclamou, batendo seu copo de whisky sobre o tampo da ilha de sua cozinha. – Se você não vai prestar atenção no que eu digo, então pode ir embora. Francamente. Que grande perda de tempo – resmungou.
Ok. Ok. Talvez eu não estivesse tendo uma disciplina japonesa no quesito concentração, mas quem poderia me culpar? Afinal, aquela não era a reviravolta que pretendia quando resolvi pagar o favor que devia a ou quando aceitei acompanhá-lo para dentro de casa a fim de ouvir sua “proposta”. Para ganhar um pouco mais de tempo e de controle para realmente prestar atenção no que ele dizia, resolvi bebericar um pouco da cerveja que ele havia colocado na minha frente.
- Certo – murmurei finalmente. – Calma. Calma – levantei as mãos. – Você quer que seja sua secretária particular fora da empresa em que você agora trabalha?
Ele olhou para o teto por um momento, provavelmente se refreando para não me amaldiçoar. Essa hesitação me mostrava que estava realmente desesperado para encontrar alguém que fizesse seja lá o que for que ele precisava que eu fizesse.
- Pelo décima vez, eu não preciso de uma secretária particular. Não quero que você me traga cafés, não preciso que organize minha agenda e atenda o telefone. Já tenho uma pessoa que faça isso e ela é bem mais eficiente em entender as coisas do que você. Não fica repetindo idiotamente o que eu já disse.
Foi a minha vez de reprimir os impropérios que queria atirar em sua direção.
- Então o que você quer, afinal? – falei de má vontade, deslizando a cerveja sobre o balcão de uma mão para outra em uma brincadeira boba para me distrair.
- Você realmente não prestou atenção em nada, não é mesmo, ? – esfregou a palma da mão pelo rosto. – Está fazendo isso por ser lerda ou só para me irritar mesmo?
- Você é extremamente rude para alguém que está pedindo um favor.
- Não pedi nada – protestou. - Você é que apareceu na minha porta demandando que eu lhe desse alguma tarefa. Só estou fazendo o que você pediu.
- Nossa! – zombei. - Tão caridoso da sua parte. Estou tocada.
olhou para cima e tive a nítida impressão de que ele estava contando mentalmente para se acalmar. Quase desejei que ele não o fizesse, digo, que não se acalmasse. Aquele jeito irritadiço dele era muito excitante. Só podia imaginar como seria quando aquele homem estivesse furioso, mas, assim que aquele pensamento cruzou minha mente, soube que seria muito difícil presenciar tal espetáculo. A raiva parecia ser um sentimento descontrolável demais para os padrões .
- , vou tentar isso pela última vez – falou finalmente, seus olhos estavam tão gelados quanto a primeira vez que o vi. – O que eu preciso é que você digite alguns documentos para mim. Você poderia fazer isso? Sim ou não?
- Eu pr-
- Responda com uma monossílaba, por favor – falou, condescendente. – Sim ou não? – repetiu.
- Sim – respondi por entre dentes.
- Ótimo – seu tom de voz seria o menos indicado para uma palavra tão otimista. – Siga-me – deu-me as costas e saiu andando.
não tinha dúvida nenhuma que seria obedecido. Revirando os olhos, pulei do banco alto para ficar de pé e infantilmente bati continência antes de pegar o mesmo caminho que ele havia feito. Encontrei-o no cômodo ao lado que se revelava um espaçoso escritório. As paredes eram brancas. A mesa era de madeira escura, lisa e de muito bom gosto – também era obviamente cara, assim como a estante que cobria uma das paredes e era preenchida com livros. Havia uma grande janela coberta por uma cortina azul petróleo. estava com o quadril encostado na enorme cadeira de couro preta, sua cabeça abaixada enquanto lia alguma coisa em uma pasta.
- Certo – colocou a pasta que lia sobre uma pilha de no mínimo outras cinco. – Você pode começar por essas.
E, sem dizer mais nada, o senhor Silencioso já estava saindo do escritório. Fiquei surpresa demais para reagir durante alguns segundos. Talvez eu devesse mudar seu apelido para senhor Homem de Gelo. Kimi Raikkonen seria considerado o rei do carisma comparado a .
- HEY, HEY! – gritei quando ele já havia saído. – ! – caminhei apressadamente para alcançá-lo.
Assim que passei pelo batente da porta, contudo, choquei-me com força contra ele, que retornava para ver o porquê de eu estar gritando seu nome. Todo o fôlego sumiu dos meus pulmões quando minhas costelas se encontraram tão repentinamente com aquele tórax duro como aço. Por puro orgulho mantive por entre meus lábios cerrados a exclamação dolorida que queria ter soltado.
Levantei a cabeça e o encontrei me olhando. E por um segundo havia certa preocupação por detrás de seus olhos gelados, mas aquilo sumiu tão rápido que me perguntei se não tinha imaginado. Suas mãos, que haviam pousado em minha cintura por puro reflexo, me soltaram.
- O que foi agora, ?
- Você... – a palavra soou fraca e tive que tossir para dentro a fim de não deixar que ele percebesse. – Você não me explicou nada. Nem mesmo sei qual computador usar – apontei para a escrivaninha onde havia dois notebooks
. pareceu desconcertado.
- Oh, certo – passou a mão pelo cabelo. – Você tem que usar esse aqui e tem um programa aqui nesse... nesse negócio aqui com as iniciais I, você usa ele – falou depois de ligar o eletrônico. – É isso.
- Como assim “é isso”? – parei na frente dele, impedindo que ele tentasse sair outra vez.
- Sabe, estou começando a perceber que as desvantagens superam as vantagens nesse nosso acordo.
- Sério? – cruzei os braços e arqueei a sobrancelha. - Quer desistir? Ainda posso te pagar com comida ao invés de digitação.
A pequena contorcida do canto de seu lábio foi a única reação que ele teve, mas soube que o tinha pegado. Não era apenas sobre aliviar um pouco de seu trabalho. não era apenas um folgado procurando alguém para fazer seu trabalho de graça.
Não.
Ele precisava que eu fizesse aquilo. Agora só teria que saber o porquê disso.
- Por que você precisa que eu digite isso para você? Não gosta de digitar?
Aquela última pergunta foi o jeito mais educado que encontrei de perguntar se ele tinha preguiça de realizar a tarefa que agora me incubia.
- Não é isso. Eu sei digitar. Não sou um imbecil. O problema é que não consigo fazer isso em uma velocidade satisfatória e não quero que Dante... – e aqui ele demonstrou mais um sinal de humanidade quando quase se engasgou naquele nome – encontre algum motivo para me encher o saco.
- Quem é Dante? - O presidente da companhia – respondeu sem vacilar.
- Então é seu chefe? – pressionei.
Ele não respondeu, apenas estreitou os olhos e continuou dando instruções:
- Acima de tudo, preciso que você não conte para ninguém que está fazendo isso.
A seriedade com que ele disse isso fez com que meus olhos se arregalassem e imediatamente comecei a hiperventilar.
- O quê? Por quê? Não, não, não – minhas mãos começaram a se sacudir. – Isso tem a ver com a máfia? Eu não posso fazer nada ilegal. Eu não consigo fazer nada ilegal. Fico nervosa. Isso não vai dar certo – meus pés me levavam a andar em círculos nervosamente. – Meu primo é do FBI!
- Do que, em nome de Deus, você está falando?
- Ora! Não se faça de idiota, ! Todo esse segredo só pode significar alguma coisa ilegal. Eu não posso fazer nada ilegal. Spencer vai me matar se tiver que me tirar da cadeia de novo!
- Não estou me fazendo de idiota, . Você que é muito obtusa. E o que você quer dizer com “de novo”? Você já foi presa?
Parei de andar imediatamente. Engoli em seco, sentindo minhas bochechas esquentarem.
- Não mude de assunto, – cruzei os braços. – Esse papo é sobre você.
E não sobre o que eu havia deixado escapar descuidadamente.
Ele arqueou a sobrancelha e pensei que fosse insistir na pergunta, mas, outra vez, pude ver que o assunto digitação era sua maior prioridade.
- Não tem nada de máfia ou ilegal no que estamos fazendo aqui, . Exceto, talvez, por minha vontade de estrangulá-la – essa última parte foi quase um sussurro para a mesa. – Você está assistindo a filmes demais. É só uma medida contra espionagem industrial.
- Hmm... – mordi o lábio inferior, pensando por um momento. – Isso faz sentido.
pareceu aliviado por eu tê-lo deixado ganhar essa batalha. Pena que estava prestes a estragar esse humor.
- Contudo – ergui o dedo indicador –, isso não explica o porquê de você precisar que eu faça isso já que disse que tem uma secretária muito eficiente. – engrossei a voz.
Ele piscou devagar, provavelmente surpreso com minha ridícula imitação.
- Você não desiste, não é mesmo? – passou a mão pelo rosto. - Minha secretária não tem permissão para digitar esses documentos. Política da empresa – acrescentou assim que me viu abrir a boca para uma nova pergunta. – E é muita coisa para que eu faça sozinho em um tempo satisfatório. O problema é que não posso contratar uma secretária particular porque isso certamente chagaria aos ouvidos de Dante e-
- E você não quer ser demitido – completei.
Ele me lançou um longo e silencioso olhar antes de assentir e dizer:
- Alguma coisa assim. É essencial, portanto, que você não conte a ninguém sobre esse nosso arranjo. Você pode fazer isso?
Ponderei por um momento, decidindo se respondia o que ele gostaria de ouvir ou se dizia a verdade.
- Vou contar para a Ava – encolhi os ombros ao optar pela segunda opção.
Não gostava de guardar segredos na minha vida pessoal. Já havia uma carga enorme deles que tinha que carregar graças a minha profissão, não queria acrescentar mais peso ainda.
- Ava? – franziu o cenho. – Quem é Ava?
- Minha amiga. Parece uma boneca, morena. Mais ou menos desse tamanho – posicionei minha mão espalmada um pouco abaixo da minha testa. - Você sabe. Aquela moça que estava comigo no dia em que Cookie sumiu.
Reconhecimento passou por seu rosto.
- Ela pode manter o segredo?
- Sim – respondi imediatamente.
Appebly tinha o nítido dom de guardar segredos tão bem que alguns deles eram desconhecidos até mesmo para mim e não importava o quanto eu insistisse, ela nunca contava.
- Tudo bem. Ela pode saber então.
Ele pareceu muito orgulhoso de si mesmo por estar fazendo aquela concessão.
Revirei os olhos.
- Certo. Agora que estabelecemos que esse seu plano ultrassecreto não tem nada de ilegal, ainda quero saber o porquê de você não estar familiarizado com essas tecnologias.
- Alguém já te disse que você pergunta demais, ?
- Alguém já te disse que ser evasivo não vai te livrar de responder a pergunta?
Ele resmungou alguma coisa entrecortada e que não pude entender antes de também cruzar os braços. Quase perdi a resposta que tanto esperava porque estava ocupada demais admirando seus antebraços.
- Estou... desacostumado a certos dispositivos tecnológicos. Graças ao tempo que passei fora.
- Fora da onde? Do planeta?
Assim que terminei de falar, me arrependi e não por causa do olhar gelado que recebi em resposta, mas sim por saber que estava sendo mesquinha e intrometida, afinal, ele não precisava ficar se justificando para mim o tempo todo.
- Olha, , se você não quiser fazer isso, poderia dizer de uma vez? Não tenho tempo para ficar perdendo com esses seus joguinhos mentais idiotas – sua voz estava até mais inflexível do que o normal.
- Certo. Desculpe. Você tem razão. Não é da minha conta – caminhei até ficar a poucos passos dele. – Por onde devo começar?
O alívio ficou visível em seu rosto e por um momento vi gratidão em seus olhos. , então, voltou ao seu modo rígido de ser e virou-se para a escrivaninha. Prestei atenção nas próximas instruções que ele me deu, mas no canto da mente guardei as informações e as perguntas que tinha. Elas ficariam adormecidas até o momento certo. Era preciso escolher quais batalhas lutar.

xxx

- Que tal a ruiva ali no canto? – apontou com o indicador, ainda segurando a cerveja. – Gostei da morena que está com ela. Gostosa e dando mole. Que tal nós dois irmos lá buscar um pouco de diversão! – Hunter exclamou, animado.
Levantei os olhos do balcão de madeira lisa do The Hook’s e vi que Hunter tinha razão, elas realmente estavam lançando olhares de flerte em nossa direção. As duas realmente eram gostosas. A ruiva nem mesmo tentava ser discreta e passava a língua pelos lábios descaradamente.. A mulher era gostosa, muito gostosa se levarmos em consideração apenas a parte que eu podia ver graças ao balcão que obstruía a visão de seu cintura para baixo. Seios grandes em uma blusa pequena e, o melhor de tudo, não parecia querer discutir ou me interrogar o tempo todo. A cor do cabelo, contudo, era errada.
Vermelho não era amarelo.
Além de tudo, não estava a fim de uma rapidinha hoje. Não depois de levar direto na veia uma dose de Dante e outra da Inquisição Espanhola, a qual ultimamente atendia pelo nome de . Aqueles dois tinham o poder de acabar com a libido de qualquer um.
Ok. Talvez isso não seja totalmente verdade e a culpa de tudo aquilo era minha. Deveria ter procurado outra pessoa para fazer aquela digitação imbecil da empresa, e não ter pedido ajuda à minha vizinha maluca. Como eu iria imaginar, entretanto, que o fato de que aquela mulher aparentava ter alguns parafusos a menos não era apenas aparência? realmente não poderia ser usada como um exemplo de pessoa normal.
E todas aquelas perguntas idiotas.
Apertei a garrafa em minha mão, olhando para o vazio enquanto recordava do que havia acontecido há poucas horas.
Além de idiotas, aquelas perguntas enchiam o saco. O que mais incomodava, todavia, era que, enquanto ela reclamava sobre alguma coisa ou me enchia de perguntas, tinha vontade de empurrá-la contra a maldita escrivaninha e colocar algum senso em sua cabeça. Ou, melhor dizendo, me colocar nela. Quem sabe ela parasse de falar e começasse a gemer.
Aquele era um pensamento muito interessante.
Voltando brevemente a prestar atenção no lugar em que estava, ponderei que era absolutamente ridículo e um tanto quanto ofensivo que o flerte daquela ruiva não me afetasse, mas simplesmente imaginar sem aquele short jeans apertado já era o suficiente para que começasse a ficar duro.
Um tapa forte na minha nuca me tirou do meio de minhas fantasias. No mesmo segundo, meus reflexos responderam e, antes que soubesse o que estava fazendo, minha mão se fechou em um pulso e eu estava torcendo o braço de alguém.
- Caralho, . Me solta. Que porra é essa?
Olhei para baixo e encontrei o familiar rosto de meu amigo contorcido em um misto de surpresa e dor. Meus olhos se arregalaram assim que percebi o que havia feito e o soltei de imediato.
- Caleb... foi mal, garoto – murmurei horrorizado enquanto olhava os vergões vermelhos que apareciam no braço dele.
- “Caleb”? Wow – riu. - Calma, . Relaxa – me empurrou de volta para o banco em que estava sentado antes. – Não é pra tanto também. Não deveria ter te batido. Ainda é muito cedo para isso – girou o pulso machucado na outra mão.
Concordava com aquela parte.
- E, além disso, eu sou muito forte – flexionou o braço.
E ali estava de volta o palhaço de sempre. Revirei os olhos.
- Mas, já que ganhei uma chave de braço, acho que seria justo me contar o que está derretendo seu cérebro desde que chegamos aqui. Você nem mesmo notou as duas gostosas ali.
- Não é nada, garoto – vire-me para frente e tomei mais um gole da minha cerveja, a qual parecia ter se juntado ao complô para estragar meu dia e, por isso, resolveu ficar quente.
- “Garoto”? Que aconteceu com Caleb?
- Foi um lapso. Não vai acontecer de novo, garoto – enfatizei. – E você tem tido notícias do Chase?
- Ouvi do Backster que Chase está trabalhando na segurança de algum figurão árabe. Você sabe – deu de ombros. – Deve estar criando aquelas estratégias malucas que só ele entende e que sempre funcionam.
Assenti. Chase era tão bom como planejador quanto era com armas. Uma combinação bem letal e eficiente. Fiz sinal para que o bartender trouxesse outras duas garrafas.
- Agora que respondi sua pergunta, é sua vez de responder a minha. O que aconteceu? Trabalhar para seu velho se mostrou tão ruim quanto prevíamos?
- “Respondi a sua, então você tem que responder a minha” – zombei, afinando a voz. – Que merda é essa? Você está parecendo ela.
- Ela? Ela quem?
Fechei os olhos com pesar ao ouvir seu tom ainda mais animado. Sabia que aquilo havia sido a coisa errada a dizer. Agora ele não pararia até saber os detalhes. Parecia um cachorro que não largava o osso. Um filhote feliz demais, animado demais e que não sabia quando parar de brincar.
Ou então uma velha fofoqueira.
As duas comparações se mostravam muito precisas, contudo.
- Minha vizinha.
- Sua vizinha? Como é que a vizinha gostosa veio parar nessa conversa? – franziu o cenho. – Valeu, cara – agradeceu quando as bebidas foram colocadas na nossa frente.
- Tudo começou com o velho e seus planos cuidadosamente criados para atormentar todo mundo sobre quem ele tem influência – tomei um gole da cerveja. – Assim que cheguei na I, ele já estava jogando na minha cara sobre o tempo que, segundo ele, joguei fora no exército. Quando finalmente consegui me livrar dele e ir trabalhar, até que as coisas não foram tão ruins. Isso até descobrir que ele havia criado um sistema ridículo para dificultar ainda mais a vida dos funcionários de lá.
- Como assim?
Contei a ele sobre como meu pai tinha conseguido estragar até mesmo o alfabeto. Hunter reagiu com uma gargalhada. Suponho que a tragédia de uns seja a comédia de outros ou, melhor dizendo, aquela história era para rir mesmo e era isso que faria caso não estivesse bem no meio daquele show de horrores.
- Quando a gente acha que as coisas não podem piorar – comentou quando conseguiu tomar um pouco de fôlego. – Você acha que ele começou a bolar essa imbecilidade assim que você concordou em voltar?
- Provavelmente – respondi amargamente, tomando mais um gole de cerveja.
- Certo. E o que você vai fazer a respeito disso?
- Para contornar a situação, minha secretária disse qu-
- “Minha secretária” – Hunter disse, divertido. - Olha você, todo chique!
Revirei os olhos.
- ...disse que os diretores – continuei - contratam pessoas de confiança para fazer a digitação à noite, assim não ficam atrasados e não são descobertos burlando as normas da empresa.
Deixei de lado a parte que tinha dificuldade para digitar em uma velocidade satisfatória. Hunter também tinha um problema parecido, então não precisava vocalizá-la. O único de nós que teve o bom-senso de se manter atualizado com a tecnologia enquanto estávamos no deserto foi Chase, e agora ele estava do outro lado o mundo – um pouco longe para me ajudar.
- Entendi – balançou a cabeça devagar.
- Foi mais ou menos nesse ponto que minha vizinha entrou na história.
- Agora as coisas começam a ficar interessante.
- Interessante? Não – sacudi a cabeça. - Tente estressante. Eu achei o cachorro dela perdido no parque e o levei até a porta do prédio, pensando que estava tudo certo. Mas aparentemente isso fez com que ela pensasse que eu sou o Batman ou alguma coisa assim e que deveria pagar o favor, então ela apareceu na minha casa demandando fazer alguma coisa como cozinhar ou arrumar minha casa. Então tive a brilhante ideia de colocá-la nesse serviço de digitação pelo menos até que pudesse encontrar um profissional para isso – parei por um momento, lembrando o que tinha acontecido e aproveitando para tomar mais um gole de cerveja.
- E o que aconteceu depois? – outra vez sua animação de filhote atacou outra vez.
- Ela ficou fazendo perguntas e mais perguntas. Isso sem contar as várias reclamações que ela tinha. Deus! Como aquela mulher fala – esfreguei a mão pelo rosto, sentindo que o sono estava começando a chegar.
Uma consequência razoável do longo dia combinado com as bebidas que tinha ingerido para suportá-lo.
- Chegou a insinuar que eu a estava mandando fazer alguma coisa ilegal, acredita?
E outra vez aquelas gargalhadas dele.
- Ilegal? Essa é muito boa – bateu a mão algumas vezes no balcão de madeira polida. - Preciso conhecê-la.
- Não tem graça, garoto – dei uma cotovelada em sua costela, sorrindo ao ouvir a exclamação de dor.
- Ouch! Você está particularmente violento hoje, . Faça o favor de terminar essa história logo antes que eu precise ir ao hospital.
Revirei os olhos frente aquele exagero.
- No final das contas, depois de uma eternidade, concordou em fazer o trabalho. Ela passou tanto tempo me questionando ou resmungando que só conseguiu fazer metade do que tinha planejado. Depois de reclamar mais um pouco sobre sei lá o que, ela finalmente foi embora. Então eu vim pra cá e o resto você já sabe – dei de ombros, terminando a cerveja e ponderando se deveria pedir outra.
- Você dispensou a gostosa então?
Levei um momento para perceber que ele se referia a e não a ruiva no canto do bar.
- Não.
- Vai mantê-la por perto?
- Que opção eu tenho? – encolhi os ombros, decidindo finalmente por mais um pouco de álcool.
- E o fato de ela ser gostosa torna as coisas mais fáceis, não é mesmo?
Naquele ponto Hunter estava errado. O fato de ser tão gostosa tornava tudo muito mais difícil. Não conseguia me concentrar se meu cérebro estava ocupado calculando a melhor maneira de encostar aquela maluca em qualquer superfície estável e acabar com toda a frustração sexual que estava me fazendo subir pelas paredes.
Aquilo era desastre escrito do começo ao fim. Sabia disso.
Mas qual outra opção eu tinha além de aceitar que tudo ia dar merda?
Estava caminhando direto para o olho do furacão. Era a única opção que conseguia visualizar no momento.
Não.
Na verdade, sendo brutamente honesto comigo mesmo, parte de mim não queria encontrar alternativa, afinal, o perigo sempre me fora muito sedutor.



Capítulo 7

- Olha, quando eu disse que vocês deveriam fazer alguma coisa com essa tensão sexual, eu não estava querendo dizer que você deveria convertê-la em energia para trabalhar para ele. – Ava franziu o cenho, suas palavras tão lentas e espaçadas que tive a certeza de que ela pensava estar falando com uma criança de cinco anos.
Revirei os olhos.
- Isso não tem nada a ver com essa sua ideia maluca de que existe tesão entre e eu.
- Minha ideia maluca? – riu, jogando o cabelo para trás com a mão direita. - , por favor, não insulte sua própria inteligência tentando desqualificar minha genialidade. Vocês dois geram tanta frustração sexual quando estão juntos que fica difícil respirar. E como é que não existe tesão? Querida, ele nem é meu tipo, mas o tesão que ele me causa seria o suficiente para dar vergonha em alguns dos mais vorazes apreciadores do sexo.
Franzi o cenho, não gostando nem um pouco daquele comentário. A fim de ponderar melhor sobre o que iria responder, decidi tomar mais um gole da minha bebida. Não queria impulsivamente reprimi-la por ficar desejando . Sabia que aquele puxão de orelha não seria uma boa ideia, afinal, o último impulso que tive havia me levado a bater na porta da Appleby’s antes de ir para o consultório. Queria tomar um café e conversar com minha amiga sobre os eventos de ontem e isso resultou em mais um papo muito estranho. E, antes disso, meus impulsos haviam me levado à porta de e às ações que haviam se tornado o foco do assunto que capturava a atenção de Ava agora. Ou seja, concluímos – e isso sem muito esforço – que meus impulsos estavam me levando a lugares que definitivamente deveria evitar e à pessoas que aparentemente se divertiam muito às minhas custas.
Abaixei minha caneca, aproveitando que Appebly estava de costas para mim, ainda terminando de ajeitar os cupcakes nas vitrines para os clientes que chegariam assim que a confeitaria fosse aberta dentro de meia-hora. Aquilo gerou tempo suficiente para que eu acalmasse minha língua e a sensação ruim que suas palavras sobre como era gostoso haviam me causado. Nada pessoal, é claro. Eu só não gostava quando alguém se referia a outras pessoas como se ela fosse um pedaço de carne exposto para apreciação. Minha mente cansada, de sono e de preocupações, quase não registrou a hipocrisia presente em meu último pensamento, afinal, eu não tinha vergonha nenhum de apreciar a escultura incrível que o corpo do meu vizinho era. Com todos aqueles músculos e aquele cabelo que parecia se-
- Hey, ! – um estalar de dedos bem na frente dos meus olhos fez com que eu voltasse ao mundo real.
- Isso foi muito rude – empurrei sua mão para longe de mim.
- Rude é deixar os outros falando sozinho – colocou a mão na cintura. – Isso tudo é porque eu disse que seu macho é gostoso?
Arregalei os olhos.
- Primeiro, ele não é meu macho. E, segundo, o que há de errado com você hoje? Está acrescentando sexo a tudo. Acho que é você que está com problemas para transar ultimamente.
Esperava alguma negação indignada e fervorosa, mas Ava se limitou a dar de ombros. Inclinei-me para frente, muito mais interessada no assunto agora.
- Espera um pouco. Isso aí foi uma admissão de que você está sexualmente frustrada?
- Não exatamente – começou a ajeitar os copos de bebida para viagem agora que havia terminado o mostruário. – Afinal, não sou completamente inútil, não é mesmo? Mas, às vezes, eu... – ficou em silêncio por um segundo a mais do que o necessário – às vezes sinto falta de uma companhia masculina.
Analisei minha amiga do topo de seus cabelos muito pretos até seus pés cobertos por práticas sapatilhas beges. Ela parecia uma boneca de porcelana. Não conseguia entender como conseguir companhia poderia ser difícil para ela, e foi isso que vocalizei. Avalon parou o que estava fazendo, virou o rosto para mim e, por um segundo, minha melhor amiga sempre sorridente e com uma piadinha pronta na língua desapareceu por completo. Em seu lugar, havia uma jovem moça com os olhos tristes de quem já havia visto muito da vida e que não apreciara nenhuma daquelas visões.
- Não falo disso, – sorriu, parecendo muito cansada. – Falo daquelas coisas que a maioria das pessoas, eu inclusive, só ouviu falar, sabe? Companheirismo, carinho, confiança – encolheu os ombros. - Essas palavras com “c” que fazem toda diferença. O resto, depois de um tempo, não tem importância nenhuma.
Pisquei devagar, completamente chocada com o giro de 180 graus que a personalidade da minha amiga deu. Era quase como se de repente e bem na frente dos meus olhos ela fosse substituída por alguém que eu não conhecia. Uma garota assustada demais com o mundo, alguém que tinha colecionado desilusões demais para criar fantasias. Continuei observando minha amiga, um sentimento horroroso de impotência parecia ter colado meus lábios e me impedia de falar qualquer coisa para tentar reconfortá-la. A minha falta de reação rápida cobrou um preço alto quando Ava repentinamente acordou do transe em que estava há um segundo e sacudiu a cabeça, abandonando o olhar fixo no vazio e a posição de estátua que tinha adotado.
- Desculpe – sua voz voltou ao tom animado de sempre. - Você aí me contando seus problemas e eu falando esse tipo de bobagem romântica.
Fiquei chocada com a mudança. Se não tivesse presenciado aquela reviravolta tão abrupta, teria acreditado que ela estava feliz e que dispensava o próprio comentário anterior como se não fosse nada. Ou talvez poderia considerar que minha melhor amiga sofria de um caso de bipolaridade. Tinha, entretanto, experiência profissional e tempo de convivência o suficiente com ela para saber que Ava não apresentava essa condição. Sobrava, então, como única explicação razoavelmente aceitável que Appleby estava acostumada a fingir que certas coisas estavam bem quando elas claramente não estavam. Por um instante, o pensamento de que ela poderia ser uma mentirosa inigualável me ocorreu, mas meus instintos me diziam que não era esse o caso – e meus instintos, diferentemente da minha impulsividade, nunca me deixam na mão. Precisava de mais de tempo para chegar à uma conclusão lógica, mas, para isso, precisava também de algumas respostas.
Estava pronta para questioná-la sobre o que merda havia acontecido poucos momentos atrás, sobre o que ela nunca contou e que ferrou tanto com sua crença na humanidade, mas, assim que abri a boca, seus ombros se retesaram e ela engoliu em seco como se estivesse pronta para uma batalha. Voltei a cerrar meus lábios. Não precisava ter meu diploma de psicologia para saber que aquele era um assunto muito delicado. Havia muito mais do que uma aparentemente superficial “bobagem romântica”, sabia também, contudo, que não adiantaria insistir. Ava não iria mais falar sobre isso, aliás, podia jurar que ela estava um tanto descontente por ter deixado aquela pequena confissão escapar.
O momento não era para perguntas. Não obteria nenhuma resposta, então resolvi oferecer-lhe uma saída digna. Olhei para minha caneca esquecida e murmurei:
- Acho que o café esfriou.
Quase pude ouvir o suspiro de alívio que ela deu.
- Vou trocar para você – pegou minha caneca e a ouvi despejando o conteúdo na pia da cozinha.
- Acho que vou querer um para viagem então. Tenho um paciente daqui a meia-hora.
Era mentira. Minha próxima consulta só começava dentro de uma hora, mas sabia que ambas precisávamos de um pouco de espaço. Observei minha amiga pegar um dos copos que havia arrumado a pouco e fazer minha bebida do jeito que gostava – com um pouco de caramelo e leite desnatado – antes de tampá-lo e, com um sorriso travesso, pegar a caneta e rapidamente rabiscar um nome na superfície branca. Franzi o cenho quando ela colocou sua obra de arte na minha frente, mas logo descobri o porquê do ar de divertimento no seu rosto.
- “ ”? – li em voz alta, levantando o copo até a altura dos olhos. – ... ? Sério isso?
Ava deu uma boa gargalhada.
- Francamente – me levantei do banco e coloquei, sobre o balcão, a nota de dez dólares que tinha separado enquanto ela trabalhava no meu pedido. – Quantos anos você tem?
Ela soltou um risinho que fez com que ela parecesse uma garotinha de doze anos. Mordi o sorriso. Apesar da brincadeira boba, estava feliz por Ava estar de volta.
- Até depois, Appleby – sacudi a cabeça, levando o copo comigo.
Decidi cortar caminho pelo parque que sempre levava Cookie para passear enquanto bebericava minha bebida. Apesar do exterior bobinho, minha bebida não sofrera danos e estava tão gostosa como sempre. Estava ocupada demais ligando os pontos para tentar entender o que havia acontecido com Ava quando ouvi meu nome sendo chamado. Virei bem a tempo de ver meu vizinho dando seus últimos passos em minha direção e parando ao meu lado.
- – acenei com a cabeça, tentando manter meu olhar no seu e não no peitoral esculpido que sua falta de camisa estava oferecendo.
- Bom dia – falou, muito sério e provavelmente obrigado pelas regras da boa educação.
- Bom dia – levei o copo aos lábios mais uma vez.
Nem mesmo senti o gosto. Só precisava de uma distração qualquer para me ocupar já que meus olhos traidores estavam se abaixando perigosamente a cada novo segundo, tentando conseguir uma espiada dos músculos de .
- Pode conversar agora?
Assenti, murmurando um consentimento contra o copo e finalmente perdendo a longa batalha travada contra minha curiosidade, deixando, então, que minha atenção passasse rapidamente por seus músculos deliciosos e pelo short preto que ele usava. Aquilo não era justo. Ninguém tinha o direito de estar tão gostoso assim a essa hora da manhã. Ainda mais quando eu sabia não estar na melhor aparência possível graças à minha noite mal dormida. Se bem que... pensando no assunto, a culpa disso, assim como da maioria das coisas esquisitas acontecendo na minha vida ultimamente, era dele. Se ele não tivesse vindo com uma ideia tão maluca como resposta à minha oferta de retribuição, eu poderia ter tido minha cota necessária de sono e não estaria ali, agora, sentindo-me como a gata borralheira que tropeçava no príncipe encantado.
Um príncipe muito, muito delicioso. E com gominhos que me faziam salivar. Espera um pouco! Aquilo era tinta sobre seu braço?
- , você me ouviu? – sua voz grossa me trouxe de volta das minhas fantasias.
Nem uma palavra.
- Claro que ouvi – franzi o cenho, abaixando meu copo e tentando agir como se soubesse do que ele estava falando.
- Ah é? – cruzou os braços. – Então qual sua resposta?
Tentei pensar em alguma coisa mais inteligente para dizer, mas tudo que consegui conjurar foi:
- Minha resposta?
se limitou a arquear a sobrancelha, um sorrisinho malicioso no canto da boca. Estava com poucas opções ali para manter meu orgulho intacto, então resolvi me defender atacando:
- Eu realmente não tenho tempo para esses seus enigmas, . Preciso chegar ao meu consultório.
É claro que, meu vizinho, sendo o homem difícil que era, não me deixaria escapar tão fácil e, por isso, ao invés de simplesmente responder a pergunta oculta em minhas palavras, ele se concentrou justamente na parte que imprudentemente joguei em cima dele:
- “Consultório”?
Droga, droga, droga!
Xinguei mentalmente tanto a mim quanto a ele. Eu, por sair anunciando minha privacidade e ele, por ser como um daqueles malditos detetives de televisão que não deixavam passar uma. Não que estivesse com vergonha da minha profissão. O fato é que não queria deixá-lo saber ainda mais sobre mim quando ele claramente não queria me contar nada sobre si mesmo. Pensei em mais uma vez ser evasiva, mas sabia que seria infantil da minha parte tendo em vista que quem trouxe o assunto à tona fora eu.
- É, é. Consultório – encolhi os ombros como se não fosse nada demais, falando rápido para que aquela parte pudesse ser logo esquecida. - Última chance. Vai me dizer qual a pergunta que precisa de uma resposta?
Ele me lançou um olhar gelado.
- Sua falta de concentração em coisas simples do cotidiano ainda me surpreende, .
- Tenha um bom dia, – sibilei por entre os dentes antes de girar sobre os calcanhares e continuar andando.
Sei que sair no meio de uma discussão não era a coisa mais madura de se fazer, mas era o máximo que minha paciência conseguiu atingir no momento. Talvez Ava tivesse razão e a frustração sexual estivesse mesmo fritando meus neurônios. Era a única explicação para o fato de uma simples pessoa conseguir me irritar tanto e de maneira tão rápida em um curto período de tempo.
- , espero que essa sua saída melodramática não afete o compromisso que você acabou de assumir de ir hoje à noite à minha casa para continuar o trabalho de ontem.
Parei imediatamente, fechando os olhos com força e provavelmente contorcendo meu rosto em uma careta – ao menos ele não podia ver isso, já que eu ainda estava de costas. Então era isso que tinha concordado em fazer quando estava apreciando a boa forma dele. Pelo menos não iria ficar com mais essa dúvida. Com os ombros ainda travados, virei de volta para encontrar o olhar divertido dele. Eu realmente - realmente - queria muito fazer aquele ar irônico dele sumir, mas, no fundo, preferia aquilo a sua faceta gelada.
- Se disse que iria, irei – encolhi os ombros, ainda tentando fingir que sabia o que estava dizendo.
Queria que ele tivesse deixado aquela ideia para trás. Não que me importasse de ajudá-lo, afinal, o favor que ele me fizera trazendo Cookie de volta foi mais do que eu poderia retribuir. O problema é que assim que digitara algumas páginas na noite anterior, pude perceber o quão importante aquilo era para ele. Não prestava atenção no conteúdo do que me entregara porque não queria invadir a “privacidade empresarial” dele, mas, pela seriedade com que ele falara e o jeito que me olhava enquanto eu fazia o que pedira, fez com que me sentisse tensa, sabendo que cada movimento meu era observado. Era quase um daqueles filmes de suspense em que você fica com o fôlego preso até que o principal desarme a bomba. Eu, todavia, não sentia como se pudesse desarmar o explosivo. Parecia que tudo iria pelos ares ao menor erro que cometesse ao digitar aquelas palavras. Um simples “S” fora do lugar e o caos mundial se instalaria.
Um pouco exagerado, eu sei, mas era tenso assim ser friamente analisada por ele. Tinha pena das pobres almas que tinham a infelicidade de chamá-lo de “chefe”.
- Às sete e meia está bom para você?
Tentei não me encolher. Aquilo era apenas meia hora depois que chegava em casa do consultório. Teria que correr como um louca e ainda não teria tempo para descansar antes daquele “encontro”.
E será que não dava para ele colocar a droga de uma camiseta?!
- Sete e meia está ótimo – abri um sorriso amarelo e tomei um gole longo de café.
O Senhor Silencioso estava prestes a falar quando alguma coisa capturou sua atenção.
- Pensei que seu nome fosse – franziu o cenho.
- Meu nome é – respondi, afastando minha bebida.
- Então por que tem um alguma coisa ai? Aliás, é ... o quê? – deu um passo em minha direção. - Deixa-me ver.
Todos os alarmes na minha cabeça dispararam e toda a lista de palavrões que sabia não foi suficiente para classificar Ava em minha mente. Sem pensar direito nas consequências, coloquei as mãos paras trás, bloqueando sua visão do jeito mais simplório possível. Percebi meu erro imediatamente. Os olhos dele brilharam com alguma coisa perigosa. Senti-me como um toureiro balançando um pano bem no nariz do touro.
Ele avançou mais um passo.
- O que você está escondendo ai atrás, não-mais-? – seu tom de voz também tinha mudado para algo mais íntimo.
- Escondendo? Escondendo o quê? – mais um passo para trás.
Ok. Essa não foi a resposta mais inteligente, mas eu tinha uma leve tendência a me atrapalhar quando ficava nervosa. O olhar dele ficou ainda mais calculado e agora não era mais um touro, mas sim uma pantera pronta para dar o bote. Eu estava com medo. Não do que ele faria fisicamente, pois, se quisesse me machucar, ele poderia tê-lo feito várias vezes antes e em lugares sem tantas testemunhas quanto em um parque público. Não. Meu medo era sua reação quando descobrisse seu sobrenome junto com meu nome. Sejamos realistas, o cara já se divertia horrores às minhas custas sem que me esforçasse para tal, imagina o que aconteceria se ele descobrisse que eu supostamente estava me comportando como uma menininha de terceira série. nunca esqueceria isso e também nunca me deixaria esquecer. Só restava uma coisa a fazer para manter um pouco da minha dignidade, então respirei fundo e, sem acreditar que realmente estava fazendo isso, dei-lhe as costas e saí correndo.
É. Eu disse um pouco da minha dignidade. Não ela inteira.
Ou talvez nada dela, afinal, vários metros de distância e ainda podia ouvi-lo gargalhando. Acho que ele não precisava ver o maldito copo para ter a certeza de que eu era uma criança.
Quando cheguei em meu consultório, estava toda amarrotada e me esgueirei para o banheiro oferecido aos clientes – porque ele era mais perto do que o meu particular - antes que alguém pudesse me ver. Meu cabelo parecia um ninho de pássaro, minhas roupas sempre impecavelmente alinhadas estavam cheias de dobras graças à minha corrida ridícula e ao metrô nova-iorquino na hora do rush. Era por isso que saía mais cedo de casa, para não precisar me espremer em uma caixa de metal lotada, mas tinha que me atrapalhar até mesmo nisso. Era quase como se ele planejasse todos os seus passos para me irritar. Peguei o pequeno pente que sempre carregava na bolsa e fiz o melhor que pude. Depois tentei alisar minha blusa e saia brancas com as mãos. Não estava exatamente como queria, mas era o melhor que dava para fazer com a situação em mãos. Joguei tudo de qualquer jeito de volta na bolsa e já estava prestes a sair do lavabo quando dei uma última conferida no cômodo para ver se não esqueci nada e imediatamente congelei no lugar, a mão ainda sobre a maçaneta.
Não percebi que tinha vindo junto, que tinha me acompanhada durante a corrida e por todo caminho do metrô. Não sei como não havia me dado conta de que ele estava ali.
Sobre o tampo da pia, quase zombando de mim.
- ARGH! – rugi, pegando aquele copo imbecil e atirando com força no lixo.
Tive certo prazer ao ouvir o barulho que ele fez ao atingir o fundo, mas isso durou pouco porque logo percebi que ele havia caído de lado e, por isso, ainda podia ler claramente as palavras:
.
Saí do cômodo, batendo a porta com força. Aquele seria um longo dia.

xxx

Pisquei devagar, completamente sem reação. Sabia que minha vizinha não era uma pessoa que se poderia classificar como sendo “normal”, mas não esperava que ela fosse sair correndo de uma discussão – não tão literalmente, pelo menos. Não consegui, pois, fazer nada por alguns segundos enquanto observava se equilibrar sobre saltos enormes ao fugir de mim, exceto, talvez, observar sua bunda firme desaparecer do meu alcance. Quase simultaneamente a ela desaparecendo de meu campo de visão foi que a ficha caiu. Aquela cena completamente irreal realmente havia acontecido.
Senti a gargalhada subir por minha garganta e explodir na minha boca. Joguei a cabeça para trás e tinha certeza de que estava rindo tão alto que algumas pessoas desaceleraram o passo para ver o que estava acontecendo, mas isso não me incomodava nem um pouco. Meus pensamentos estavam preenchidos por lembranças do momento mais engraçado que tinha presenciado em semanas. Devo ter passado ao menos dois minutos gargalhando e antes de finalmente conseguir me controlar o suficiente. Passei a mão ao olho para secar algumas lágrimas.
Hilário. Simplesmente hilário.
Sacudindo a cabeça, comecei meu caminho de volta para casa. Quem diria que uma corrida matinal poderia ser tão interessante? Subi os lances de escada e, como vinha acontecendo desde o dia em que voltara do Afeganistão, assim que coloquei a chave na porta, ouvi o choramingo abafado do cachorro de . Era como se ele esperasse que eu fosse lá ou alguma coisa assim. Não gostava nem um pouco daquele som. Detestava ouvir cães chorando. Era péssimo e fazia com que eu me sentisse péssimo.
Soltando o ar pesadamente, entrei em casa e fechei a porta atrás de mim. Felizmente a madeira conseguia abafar o barulho que vinha do corredor. Apressei-me para dentro do chuveiro e depois para colocar um daqueles ternos ridículos que Dante fazia tanto questão que usasse no escritório. O encontro com havia me custado alguns dos minutos precisamente contados que tinha em minhas manhãs, então precisei pular o café-da-manhã e correr para o carro. Preferia usar o metrô, mas o velho descobriria e torraria minha paciência porque aparentemente metrôs não atingiam o corte para a linha padrão do mínimo descente para os . Como se a porra de um nome te tornasse especial demais para usar o transporte coletivo. Não estava a fim de oferecer, todavia, ainda mais munição à arma-de-destruição-em-massa . Minha paciência não aguentaria uma dose extra daquele falatório hipócrita dele. Havia um limite diário para tal coisa.
Enquanto dirigia meu Jaguar pelas ruas tentava não pensar no tempo desperdiçado em meio aquele trânsito. Ao menos tinha a sorte de não ser tão caótico quanto ter tanques e homens se apressando por todos os lados em busca de abrigo. Esse pensamento, contudo, não era o meu consolo de hoje. Não. Hoje esse lugar pertencia a lembrança da corrida ridícula de . Quase valia a pena ter me atrasado e pegar a hora do rush ao invés das ruas mais calmas que geralmente encontrava ao sair meia-hora mais cedo de casa. Depois dos dez primeiros minutos, entretanto, nem mesmo aquela memória era o bastante para me entreter. Ponderei se deveria usar o iPad para ler algum daqueles relatórios classe C que minha secretária tinha tido a porra da permissão de digitar e me enviar, mas havia movimento, ainda que lento e seria irresponsável ler ao volante. Não tinha opção, portanto, a não ser tamborilar os dedos sobre o capô enquanto deixava minha mente correr livre. Infelizmente, nos últimos dias, a palavra “’imaginação” estava intimamente ligada a fantasias sobre minha vizinha gostosa.
E culpava Hunter por isso. Se ele não tivesse ficado falando na minha cabeça que eu estava fantasiando sobre ela, talvez isso não grudasse no meu cérebro. Maldito garoto. Maldito traseiro de que eu queria apertar e quem sabe dar algumas palmadas por ficar me provocando ou entã-
O som alto de uma buzina atrás de mim fez com que eu pulasse de susto no banco de couro e, por uma fração de segundo, na frente dos meus olhos não estava cimento e cinza, mas sim areia e dourado. Suor frio desceu por minha testa enquanto todos os meus instintos me mandavam correr em busca de um abrigo ou para minha arma. Antes que pudesse fazer alguma besteira, contudo, outra buzina teve o poder de me tirar daquele estado de pânico e a realidade voltou para meu cérebro com a força de um martelo. A rua na minha frente já estava vazia enquanto carros passavam a toda velocidade pelas faixas ao lado e os automóveis atrás do meu demostravam a raiva por eu estar atrapalhando suas vidas ainda mais. Minhas mãos tremiam visivelmente e tive que apertar o volante com força quando finalmente consegui acelerar, vencendo aquele sinal verde e tentando me afastar daquelas memórias horríveis. Obviamente aquilo não funcionou. Não existia gasolina o suficiente no tanque para me afastar daquelas lembranças ou para desimpregnar o cheiro intragável e ao mesmo tempo impossível de explicar que o sol adquire depois de um tempo. Ou gasolina o suficiente no planeta.
Felizmente não estava tão longe da I ou as chances de um acidente acontecer seriam enormes, visto que minha cabeça parecia pesar toneladas depois daquele flash back. Caminhei para o elevador e obriguei a levantar a mão enquanto vários daqueles abutres abriam um sorriso falso e me cumprimentavam em busca de uma amizade com o sobrenome .
“Amizade” ah! Meu cérebro deveria estar mais ferrado do que imaginara. Nada de amizade por ali, nada de lealdade, nada de qualquer sentimento remotamente bom sobreviveria mais do que alguns segundos dentro do prédio. Não. Tudo que eles queriam era a influência do meu sobrenome, do sobrenome do dito “Presidente”. Tive que engolir o nojo que aquela falsidade irrefreável deles me causava. Ao chegar ao escritório, minha secretária estava eficientemente digitando algo no computador.
- April, bom dia. Você poderia, por favor, me arrumar um copo bem grande de café – puxei a gravata em uma tentativa de afrouxá-la sem precisar realmente desfazer o nó. – Puro. E alguma coisa para dor de cabeça.
Imediatamente ela estava em pé e se movendo para conseguir o que eu pedira.
- Claro, senhor .
April era a única pessoa tolerável daquele lugar e uma excelente profissional. Gostaria de elogiá-la para o setor de recursos humanos, mas tinha plena certeza de que o velho tinha espiões me vigiando em todos os andares e que meu elogio acabaria por transferi-la para algum outro lugar, substituindo-a por alguma megera. Faria aquilo só pelo prazer de me irritar.
Sim, ele era filho da puta desse jeito.
Então tinha que ficar quieto. Talvez comprasse algum presente realmente bom para ela em seu aniversário. Quem sabe passagens para o Havaí. Pensaria nisso depois.
Abri a porta da minha sala e coloquei a maleta ao lado. Agora minha cabeça já estava latejando e eu nem mesmo havia começado a olhar a pilha de papel sobre minha mesa. Esfreguei a mão sobre a testa. Aquele seria um longo dia.
Não tinha uma noção de quão proféticas aquele pensamento se mostraria. Foi tudo uma grande merda. Tão grande que por diversas vezes desejei ter ficado na cama e ligado para I mentindo que estava doente, ou que talvez tinha me mudado para a China.
Teve de tudo. Sissy, Lissy ou seja lá qual for o nome da vadia da secretária do meu pai apareceu duas vezes para me encher o saco com sua voz esganiçada sobre algum assunto fútil envolvendo um jantar formal nas próximas semanas. Não sabia se me irritava mais com seu tom ridículo ou com o fato de que ela ficava batendo os cílios a cada segundo em uma tentativa patética de flerte. Tive que mandar um e-mail para que April encontrasse alguma desculpa para enxotar aquela maluca tarada da minha sala. A mulher não saiu sem uma luta e isso só reforçou minha ideia de presentar minha secretária.
Uma viagem para o Havaí. Definitivamente.
Tive um par de horas de paz depois disso. Tempo precioso que usei para revisar alguns dos documentos sobre os quais havia uma nota com a palavra “urgente” sobre. As coisas corriam razoavelmente bem até o momento em que meu digníssimo pai rompeu pela porta com um sorriso falso. Encostei as costas em minha cadeira e esperei que ele falsasse o que queria e saísse o mais rápido possível. Se eu já não gostava quando o velho vinha falar sobre assuntos do trabalho – que realmente chegavam a me interessar em algum nível – imagina como me irritava quando ele vinha me repreender sobre o fato de ter sido ríspido com sua subordinada.
Ah pelo amor de Deus!
Trinquei os dentes e repeti diversas vezes em minha cabeça a promessa que tinha feito a mamãe para me impedir de sair dali para nunca mais voltar. Não tinha saído do exército para ficar aguentando esse tipo de merda. E isso porque nem tinha feito nada a não ser mandar sua puta parar de me encher com coisas desnecessárias.
Aposto que ele estava comendo a tal Vissy. Que nojo.
Sacudi a cabeça discretamente.
Que nojo.
Quando ele finalmente - finalmente - terminou seu monólogo, o qual passei imaginando que estava navegando pelas águas macias do mar do Caribe, olhou-me com expectativa e soube que esperava uma resposta. O problema é que não tinha a mínima ideia do que Dante tinha falado por último. Pior ainda, tinha certeza de que ele faria uma tempestade ainda maior se desconfiasse disso, então murmurei um:
- Sim, sim, claro.
O sorriso satisfeito em seu rosto me informou que havia dito exatamente o que ele queria, o que, para mim, só poderia significar enrascada.
- Viu, não foi tão difícil assim, não é mesmo, meu rapaz? Mas você teve que complicar as coisas, como sempre. Seria tão mais fácil se você simplesmente tivesse concordado quando Missy veio aqui. Agora preciso ir. Você já desperdiçou muito do meu tempo – falou, ríspido. – Ela vai passar os detalhes àquela incompetente que você chama de secretária.
E então saiu como se tivesse me concedido uma grande dádiva ao aparecer no mesmo cômodo que eu. Como sempre, o velho me deixava com uma dor de cabeça e uma sensação ruim na boca do estômago.
Pedi mais um café a April.
Mais duas horas e três doses novas de cafeína e aquela dor insistente só tinha piorado. Às seis e meia consegui sair dali, ainda tentando entender como havia ainda mais papelada para trabalhar depois das dezenas de folhas que tinha lido durante a porra daquele dia.
Estacionei o carro na garagem de casa e esmurrei o botão repetidas vezes até que o elevador chegasse. Maldito trânsito. Maldito Dante. Maldito dia da porra.
Abri a porta de casa e deixei que minha maleta caísse no chão enquanto enfim soltava aquela porra daquela coleira de seda do meu pescoço. Precisava de um banho e quem sabe uma pizza antes de dormir. Tirei o terno e a camisa e as joguei no encosto do sofá, rolando os ombros e estalando o pescoço. Já estava na porta do quarto principal quando o som estridente me fez parar no lugar. Praguejando contra todo o universo e fazendo uma nota mental para desligar a porra daquela campainha, fui ver quem era o infeliz que me perturbava.
Trincando os dentes, abri a porta preparado para gritar com quem quer que fosse, mas nunca tive essa chance porque, assim que coloquei meus olhos em , a surpresa tomou o lugar da frustração. Surpresa por ela estar ali e surpresa por como ela estava ali. Minha vizinha usava um short jeans e uma sandália baixa que deixavam suas pernas deliciosamente expostas e uma camiseta branca com um decote que me permitia contemplar aquele vale dos seus peitos.
Salivei com vontade de abaixar a cabeça ali e sentir sua maciez. Sentir o peso de seus seios em minhas mãos. Tinha impressão de que eles caberiam de maneira perfeita ali ou em minha boca.
Apesar de sua aparência me agradar muito, contudo, ela parecia... apagada. Seus olhos não tinham o mesmo brilho de desafio por detrás daqueles óculos de armação preta e pesada. Era nisso que consistia minha surpresa. A gatinha de garras expostas da casa ao lado parecia um filhote derrubado.
- – suspirou, olhando para o lado.
- , o que faz aqui?
Ela levantou a cabeça subitamente e já estava esperando para ver uma demonstração das ditas garras, mas, ao invés de falar, sua boca parou em um biquinho adorável enquanto seus olhos arregalaram. Quase pude sentir seu olhar passeando por meu tórax e depois por meus braços antes de se fixar na tatuagem em meu ombro. Sua testa se franziu e ela ergueu a mão.
Foi a minha vez de arregalar os olhos enquanto ela aproximava seus dedos da minha tinta.
- ! – chamei outra vez e ela deu um pulo para longe.
- Quê? Que foi? - ela olhou para mim e para os lados, como se estivesse acabado de despertar.
- O que você está fazendo aqui?
- São sete e meia.
Tombei a cabeça para o lado.
- Você saiu da sua casa para vir me informar as horas? É muito gentil da sua parte, mas completamente desnecessário. Eu sou um dos adeptos daquela invenção nova chamada “relógio”.
Sua nova careta de indignação era tão adorável quanto a anterior.
- Você é realmente um ser-humano irritante, – colocou as mãos na cintura, erguendo o queixo em desafio.
E aqui estava a gatinha arisca outra vez. Mordi de volta a vontade de sorrir.
- Estou aqui porque você ficou repetindo “sete e meia, . Sete e meia”. Agora, se você não precisa que eu digite aquela papelada para você, é só dizer. Tenho coisas melhores para fazer com o meu tempo.
- Oh! – foi o que consegui murmurar.
Havia me esquecido completamente disso em meio à montanha de coisas desagradáveis que tinha acontecido naquele dia. Esfreguei a mão pelo rosto. Não podia me dar ao luxo de mandá-la embora. Talvez amanhã ela não pudesse fazer a digitação ou então talvez desistisse do nosso trato. E eu não tinha nenhuma segunda opção. Não enquanto não conseguisse contatar Chase para que ele me arrumasse alguém para o serviço.
- Sim, claro. Entre – cheguei para o lado, deixando espaço para que ela passasse.
A loira se arrastou para dentro e para meu escritório. Fechei a porta devagar e segui seu caminho, ponderando em que momento exatamente havia passado a impressão de que ela deveria se sentir tão à vontade na minha casa. Quando cheguei ao cômodo onde ela estava, encontrei-a já com o notebook com o símbolo da I aberto e com algumas folhas na mão. Ao menos talvez aquilo acabasse rápido.
Não foi o que aconteceu.
Deixei-a sozinha depois de entregar as pastas que precisavam ser digitadas e fui tomar o banho que tanto queria. Fiz um esforço hercúleo para não me masturbar pensando na mulher no meu escritório e em quanto sua roupa favorecia aquele corpo incrível dela. Mesmo cansado ficava duro por aquela mulher. Problema. Um grande problema. Em mais de um sentido, aliás.
Enrolei mais um pouco até meu pau descer e levei, pois, ao todo uma boa meia-hora para voltar a ficar em sua presença. Foi quando percebi que ela ainda estava na quinta página da primeira das treze pastas que tinha lhe entregado.
Obviamente havia alguma coisa errada. O tempo perdido da última vez que ela veio fazer aquele trabalho havia sido graças às suas perguntas imbecis ou suas reclamações sem sentido. Minha vizinha digitava muito, muito rápido, então aquele ritmo lento de hoje deveria significar alguma coisa.
Saí de perto da mesa e me sentei no sofá, pegando o iPad e fingindo ler algo enquanto aproveitava para observá-la sem que ela percebesse. Em menos de dois minutos percebi que era o cansaço que a estava atrasando. rolava os ombros o tempo todo, girava o pescoço para aliviar a tensão e às vezes fechava os olhos por alguns segundos antes de voltar a digitar. Ela deveria estar exausta.
E minha mãe não me criou para ser um babaca completo.
Coloquei o eletrônico de lado e me levantei.
- Vamos, . Levante-se.
Minha vizinha, que estava massageando a ponte de seu nariz, levantou os olhos lentamente para mim.
- O quê? – sussurrou.
- Vem. Vamos sair. Você está cansada, eu estou casando. Vamos sair para beber.
Não tinha nem ideia do porquê estava falando isso. Talvez depois pudesse culpar o velho por isso também – afinal quase tudo realmente era culpa dele - ou talvez essa fosse uma daquelas experiências extracorpóreas quando você se vê fazendo algo do qual não tem plena consciência.
- Esse seu raciocínio não tem lógica nenhuma – afirmou, mas ficou de pé. – Se estamos cansados, deveríamos ir dormir, não beber.
Ok. Ela estava certa. E eu estava sem paciência. Dei de ombros, então, e falei:
- Olha, meu dia foi um saco. Uma merda completa. Eu vou sair pra beber, se você quiser vir junto, ótimo. Se quiser ir para sua casa, ótimo também, mas não vai ficar aqui e dormir sobre os papéis. E aí? Qual vai ser?
Ela olhou para o lado por um segundo e mordeu o lábio inferior antes de dar seu veredito:
- Ok. Eu vou com você – afirmou, baixinho.
É. Ao que parece eu teria uma longa noite para combinar com aquele longo dia.



Capítulo 8

Sabia que aquela tinha sido uma má ideia. Na verdade, desde o momento que sai do meu apartamento para cruzar o corredor e aparecer no horário combinado, eu sabia que aquela era uma péssima, péssima ideia. Deveria ter ouvido meus instintos, afinal eles haviam me afirmado corretamente que o dia seria uma porcaria. Meus pacientes foram especialmente difíceis de lidar, minha secretária adolescente ligou dizendo que tinha tido mais uma emergência - o que poderia ser facilmente traduzida como uma briga com seu namorado.
Talvez devesse considerar a possibilidade de procurar alguma outra pessoa para o cargo, mas, toda vez que essa ideia se afirmava, descartava-a tão rápido quanto surgia. Charlotte precisava do trabalho. Não conseguia nem imaginar o quão difícil deveria ser ter que se preocupar com os débitos estudantis, e eu realmente não queria ser a culpada por ela ser obrigada a abandonar a faculdade. Tive sorte de ter minha avó para me ajudar, contudo entendia que a maioria esmagadora não tinha essa opção. Então, quando ela aprontava uma desfeita dessas, eu engolia o desgosto e fazia o meu trabalho e o dela. Normalmente aquilo não era tão complicado, hoje, todavia, havia sido quase impossível. Parecia que metade da cidade queria marcar uma consulta pelo telefone, e isso sem contar os dois pacientes que apareceram ser ter hora marcada, implorando por um tempo. Não podia simplesmente mandá-los voltar outro dia porque ambos tinham sérios problemas emocionais e não queria nem imaginar como eles reagiriam se a angústia que estavam sentindo fosse ainda mais reprimida. Eles não escolhiam quando se sentir assim e eu não podia escolher quando ajudá-los. Meu horário de almoço, então, havia sido usado para ouvi-los e meu estômago teve que se contentar com uma barrinha de cereal que deixava no fundo da gaveta de minha mesa para o lanche da tarde. E, como era Charlotte quem saia para comprar nosso lanche vespertino, havia ficado sem aquilo também.
Então seria um entendimento dizer que no final do meu turno eu estava com a cabeça rodando tanto de fome quanto da quantidade de informações que havia absorvido. Pegar o metrô para casa foi tão excruciante como sempre era na hora do rush e a caminho do parque pareceu uma longa e penosa caminhada sobre brasas. Nem mesmo minha linda sandália azul de salto estava cooperando. A única parte iluminada daquele dia foi a felicidade de Cookie quando passei pela porta. Infelizmente não pude tomar mais do que dois minutinhos acariciando meu bebê porque logo tive que pular para uma chuveirada de três minutos, trocar de roupa e beber um copo d’água e comer alguns cookies no caminho para saída. Tudo friamente cronometrado para não chegar atrasada na casa do vizinho e dar-lhe um motivo extra para me olhar por sobre aqueles olhos azuis gelados de maneira superior.
Bem, quase tudo foi cronometrado. O tombo que levei colocando o sapato não estava nos planos – ao menos nos meus planos, porque deveria estar na cartilha de alguma força cósmica que estava se esforçando bastante para que meu dia fosse uma merda. Nem tentei colocar minhas lentes de contato. Com a sorte que estava hoje provavelmente acabaria furando meu olho ou algo parecido. Coloquei, então, meus óculos pretos e segui para a porta do outro lado do corredor. Foi quando levantei a mão e bati na madeira que o primeiro pressentimento de que aquilo não era uma ideia surgiu. abriu a porta com uma expressão tão feroz que se já não estivesse tão exausta, teria dado um passo para trás de susto. O fato de ele estar sem camisa o deixa ainda mais selvagem.
Mesmo cansada puder perceber que aquela era uma visão deliciosa.
Podia ouvir do canto da minha mente ele falar comigo, mas estava fascinada demais para por seus músculos para prestar atenção em qualquer outra coisa, inclusive em ter o pudor de ser discreta para isso. Meus olhos, como parecia acontecer a cada vez que ele estava sem camisa, não me obedeceram e descaradamente tentavam memorizar cada pedaço de pele descoberta. Minha atenção queimou mais intensamente, contudo, sobre a tinta preta ali.
Definitivamente uma tatuagem sobre parte do ombro. Não conseguia identificar, entretanto o que o desenho significava. Um pássaro talvez...
Franzi o cenho.
Talvez se eu...
Sua voz me chamando mais insistentemente me fez despertar daqueles pensamentos com um estalo. Horrorizada percebi que tinha erguido a mão para tocá-lo, para traçar as linhas intrincadas com a ponta do meu dedo. Expulsei aquele desejo para o fundo da minha mente a fim de me concentrar no que ele dizia.
Depois de mais um pequeno desentendimento daqueles que pareciam estar se tornando rotina entre nós, arrastei meus pés para seu escritório, ponderando como conseguiria me concentrar em qualquer coisa quando minha mente estava exausta. De maneira ausente vi entrar no escritório e sair de novo para voltar depois. Sabia que ele estava em algum lugar do cômodo, mas estava preocupada demais tentando fazer com que o parágrafo que lia pela décima quinta vez fizesse algum sentido.
O primeiro parágrafo da quinta página do que parecia ser a codificação de toda a história da humanidade. Havia dezenas de pastas ali. E cada linha estava sendo uma luta para processar as palavras em meu cérebro o suficiente para mandar os comandos para minhas mãos a fim de que houvesse alguma digitação. As letras pareciam estar soltas.
Talvez ele tivesse me dado algum documento em outra língua. Nunca fui muito boa com essa história de línguas estrangeiras. Inglês estava mais do que suficiente para mim.
Não pude evitar soltar um suspiro pesado e esticar a coluna, tentando relaxá-la. Aparentemente meu pequeno descanso incomodou o senhor Silencioso. Naquele momento me retesei, esperando por outra rodada de discussões. Ao invés disso, todavia, ele me surpreendeu com algumas coisas sem sentindo que me confundiram ao ponto de eu pensar que ele estava me expulsando antes de finalmente entender que na verdade estava ganhando um convite para jantar.
Isso nos levava exatamente para o ponto em que estávamos agora - aquele em que eu sabia que não era uma boa ideia. Talvez tivesse aceitado o convite pensando que seria uma oportunidade para melhorar nosso... relacionamento de vizinhos, se é que esse tipo de coisa existe. Não foi o que aconteceu. Ele se calou durante o caminho inteiro, limitando nossa interação aos momentos em que segurava meu cotovelo para me guiar para o outro lado quando eu tentava virar uma esquina que aparentemente não estava no nosso roteiro.
Talvez devesse ter ficado com as pastas cheias de papel. Pelo menos as folhas não me ignoravam como se estivessem me fazendo um favor, como se fossem boas demais para mim. Se não estivesse tão cansada, teria me sentido ofendida. Ao invés disso, preocupei-me com coisas mais imediatas:
- , pelo amor de Deus, esse lugar é do outro lado da ponte do Brooklyn? Se estivermos a mais de dez metros de distância, eu vou voltar pra casa.
Ele parou de andar e se virou para mim.
- E então? – cruzei os braços – Não vai me responder? Você faz isso de propósito, não? – perguntei sem esperar por uma resposta – Não vai me responder? O que diabos há de errado com voc-
- Se você parar seu monólogo por um segundo, , eu poderia dizer que acabamos de chegar.
Aquilo me deixou surpresa o suficiente para ficar sem palavras. Minha confusão deveria estar bem visível em meu rosto porque logo ele arqueou a sobrancelha e meneou a cabeça para alguma coisa atrás de mim. Levei um segundo para entender o que ele queria dizer. Girei em meus calcanhares e vi que estávamos parados em frente a uma bonita e intrincada porta de madeira clara. Um pouco acima e para o lado havia um letreiro retangular também sobre madeira onde se lia “The Hook’s”
Pisquei devagar. Nome esquisito e não dava para ver nada do lado de dentro. Pela décima vez, então, perguntei-me por que tinha aceitado aquele convite.
- Ok. – encolhi os ombros.
- Vamos, . – pousou sua mão espalmada sobre a parte de baixo das minhas costas.
Minhas costas se endureceram e engoli em seco, sentindo sua mão queimar minha pele, mesmo havendo o pano da minha blusa entre nós. Deixei que me guiasse até o balcão, caminhando como um robô, tão tensa estava. Nós dois nos sentamos e logo estava conversando animadamente com o barman sobre alguma coisa. Ele era um moreno que aparentava estar em seus quarenta anos, um sorriso amigável no rosto ao se virar para mim:
- E quem seria a bela dama, ?
- Tom, essa é .
Revirei os olhos. Será que ele precisava falar meu nome inteiro todas as vezes?
- está ótimo. – sorri de volta.
- Certo, , e o que posso trazer pra você hoje?
- Uma cerveja está ótima. Qualquer uma. – completei antes que ele perguntasse.
Ele me deu um pequeno sorriso antes de colocar uma garrafa na minha frente e retirar a tampa. Assenti em agradecimento. O barman trocou mais algumas palavras com antes de se afastar para atender outro cliente.
Depois de tomar um gole de cerveja, tive o suficiente daquele silêncio e me virei para meu vizinho.
- Você vem sempre aqui?
Assim que as palavras saíram, percebi meu erro. O brilho malicioso nos olhos dele, contudo, mostrou-me que já era tarde para corrigir.
- Está me cantando, ?
- Bem que você queria. – revirei os olhos, bebendo mais um pouco.
Por um segundo pude jurar que ele escondia um sorriso.
- Vai me responder?
- Já percebeu que você diz isso muito?
- Esquece. - rangi os dentes, desistindo.
- Venho aqui para conversar. – respondeu, surpreendendo-me.
- Ah! Então você conhece essa antiga convenção social, essa onde pessoas trocam palavras?
Ele se virou para mim e arregalou os olhos, fingindo espanto.
- Não! – ironizou – É uma invenção recente?
- Não. – sacudi a cabeça, rindo – Mas a maioria das pessoas ainda não dominou tal atividade, então vou te dar um desconto.
- Então você vem aqui e conversa com Tom?
- Às vezes. – encolheu os ombros – Às vezes encontro Hunter.
- Hunter? Que é esse, amigo seu?
- Ele acha que sim, eu ainda tenho minhas dúvidas. – riu, olhando para frente como se estivesse lembrando-se de algo.
Acompanhei seu riso.
- Sei bem como isso funciona. Já tentei falar para aquela tal de Ava não aparecer na minha casa, mas tem gente que não entende. – brinquei.
- Ela parece ser engraçada. Vocês se conhecem a muito tempo?
- Não muito. Nós nos mudamos para o bairro mais ou menos na mesma época. Éramos as duas estranhas em um lugar totalmente novo. Mudei para cá assim que terminei a faculdade e ela vinha sul para tentar realizar um sonho. Duas jovens assustadas na maior selva de concreto. Poderia ter sido um grande desastre, mas acabei ganhando uma melhor amiga.
- Uma daquelas histórias clichês de filme nova yorkino, então.
- É. – ri – E fica ainda mais Blockburster Inc se você pensar que foi Cookie o responsável por nos apresentar.
- Seu cachorro? – franziu o cenho.
- Exatamente. Nós estávamos passeando pela calçada do que agora é a Appleby’s, mas que na época era um prédio velho, e meu bebê correu direto para ela. – apontei para frente, rindo - Pensando nisso agora, foi uma coisa bem parecida com o que ele fez com você. - levantei minha cerveja, ponderando por um segundo.
- Ele faz isso com todos, então? E eu aqui me achando especial.
Fiquei tão surpresa com seu tom brincalhão que quase me esqueci de responder.
- Não. Pode ficar tranquilo. Só você e Ava. E Spence, mas ele não conta.
- Por quê?
- Porque às vezes acho que Cookie gosta mais dele do que de mim.
não perguntou sobre quem eu falava, e também não me incomodei em dizer.
- Agora que te contei sobre Ava, você poderia me falar sobre Hunter.
Seu rosto ficou sério novamente.
- Não me lembro de ter feito nenhum acordo sobre isso.
- Ah, não, . Isso não é justo.
- A vida não é muito justa, .
Revirei os olhos, mas estava cansada de desistir. Não estava nos meus planos pressioná-lo, mas também nunca pensei que iriamos a um bar juntos, então estava disposta a me adaptar as circunstâncias apresentadas. Terminei minha cerveja em um gole só e, encorajada pelo buzz que o álcool traz, respirei fundo antes de começar a atirar:
- Onde você trabalha? Por que você não gosta de lá? Onde você esteve durante esses anos que se mudou? Por que voltou? Por que foi embora? Quem é Hunter? Desde quando vocês se conhecem? Ele está aqui hoje? Desde quando você conhece Tom? Desde quando vem aqui? Qual sua cor favorita? Por que você é tão quieto? Que di- - Chega!
Quando ele finalmente me interrompeu, já estava um tanto quanto sem fôlego por ter feito todas aquelas perguntas de uma só vez e sem parar para respirar. não gritou, não foi preciso. Seu tom tinha um tom de comando tão forte que precisei conter o impulso de ficar de pé e bater continência.
- Chega, . Você é maluca. – sacudiu a cabeça, inconformado.
- Talvez. – dei de ombros – Mas não vou parar até que você responda ao menos algumas dessas perguntas.
Ele se virou, sentando-se transversalmente ao balcão e de frente para mim. Encolhi-me imperceptivelmente com a intensidade dura de seu olhar.
- Eu não tenho que fazer nada que eu não queira, .
Se já estivesse alerta graças ao seu tom frio, teria percebido que as coisas não estavam certas pela maneira como ele me chamou. Naquele momento percebi que gostava mais do outro jeito.
. Não apenas .
Fiquei tão desconsertada por aquela descoberta que quase deixei passar o toque ausente em sua frase. Alguém com menos sensibilidade não teria percebido, mas sempre me orgulhei de conseguir ler bem as pessoas, por isso notei que havia um espaço vazio ali. Era como se ele quisesse completar suas próprias palavras, mas, ao mesmo tempo, não quisesse. Tombei a cabeça um pouco para o lado, observando-o enquanto me encarava com raiva.
- Sei disso. – respondi finalmente – Mas já estamos aqui, não é mesmo? Não custa nada você matar um pouco da minha curiosidade.
Corria o risco de ele nunca mais falar comigo, mas aquele parecia o único momento onde eu poderia encontrar uma fresta na rachadura dele. Poderia não haver outra chance onde conseguiria algumas respostas, então iria arriscar um pouco mais.
Go high or go home.
- Já disse que não, porra! – seus dedos apertaram a pobre garrafa de vidro em sua mão – Você é surda por acaso?
- Se não responder, não vou parar de perguntar.
- E o que exatamente me impediria de ir embora e te deixar falando sozinha?
Ele não faria isso... faria?
- Eu... eu... – pensei por um segundo – Se você fizer isso, não digito mais porcaria nenhuma pra você.
Estava blefando, é claro. Torcia, contudo, para que ele não percebesse.
- Você está me chantageando? – estreitou os olhos, sua voz ficando mais baixa e ainda mais perigosa, se é que isso era possível – Vai parar de me ajudar se eu não responder suas perguntas, é isso?
O ar ficou preso em minha garganta e tudo que consegui fazer foi sacudir a cabeça e murmurar um fraco:
- Não.
Aquela era a verdade, afinal. Estava apenas blefando e ele pagou para ver. Não me restava nada a fazer senão recuar e sentir um pouco mais de vergonha enquanto me encarava com repreensão. Ele, contudo, me surpreendeu ao se afastar um pouco, parecendo mais surpreso do que qualquer outra coisa.
- Admiro sua honestidade. – dizendo isso, virou-se para onde Tom estava e gesticulou para que ele trouxesse duas outras cervejas.
Um silêncio esquisito caiu sobre nós enquanto a nova bebida era trazida. Matei aqueles minutos olhando para minhas mãos e tentando não pensar em nada. Depois de finalmente ter outra garrafa em mãos, tomou mais um gole e se virou para mim.
- Admiro sua honestidade. – repetiu – Por isso você pode fazer uma pergunta.
As não ditas “uma e apenas uma” palavras perduraram entre nós, não sendo necessário que ele as vocalizasse.
Ok.
Foi minha vez de tomar um gole da garrafa nova.
Ok.
Soltei o ar pesadamente.
Tinha tanta coisa que eu queria saber. me intrigava como ninguém. Surpreendentemente fiquei nervosa, meu coração batia um pouco descompassado quando decidi. Passei a língua por meus lábios secos e o olhei em seus olhos azuis gelados antes de falar:
- Onde você estava nesses últimos anos? Lembro-me de minha vó me contando que o vizinho dela se mudou, mas nunca disse para onde ou por quê.
Ele franziu o cenho e estreitou os olhos. Longos segundos se arrastaram e cheguei a pensar que não obteria a resposta prometida até que ele finalmente disse uma única palavra:
- Exército.
Não houve qualquer emoção naquela resposta. Não titubeou, não desviou o olhar, não tentou se justificar. Apenas respondeu a pergunta que eu havia feito, assim como prometeu fazer. Foi como uma faísca em meu cérebro. Quase pude ver os neurônios fazendo as ligações necessárias. As coisas faziam sentindo agora. Não sei como não havia considerado aquela possibilidade antes.
Exército. É claro.
E não era uma patente baixa. Tudo nele gritava autoridade. Autoridade e disciplina. O jeito como corria, como andava e até mesmo o jeito de se sentar sempre de maneira correta, as costas eretas.
Isso para não mencionar todos aqueles músculos...
Prestando o mínimo de atenção poderia se ver que ele era militar. Até seu jeito meio lacónico
Ok. Isso explicava algumas coisas, mas criava tantas outras perguntas. Questões que eu queria levantar, mas que sabia que não seriam bem-vindas. Não precisava nem mesmo ser uma profissional no ramo do comportamento humano para saber disso. Ao invés de dizer o que queria, abaixei, então, o olhar por um segundo para a garrafa marrom em minhas mãos para logo depois respirar fundo e voltar a encará-lo.
- E então... o que mais você faz para se divertir por aqui?

xxx

Nem uma vez na vida pensei que um dia iria concordar com o velho, já que isso contrariava todos os princípios que tenho – e provavelmente também todos os valores básicos da humanidade. Infelizmente estava agora engolindo meu orgulho e admitindo a mim mesmo que Dante tinha razão ao dizer que eu deveria aprender a ficar de boca fechada.
Deveria ter ficado de boca fechada ao invés de convidá-la para vir comigo e, acima disso, deveria ter ficado de boca fechada quando ela fez aquela última pergunta. Poderia até mesmo ter dito um simples e eficaz “nada”.
“Não há nada mais para se fazer de divertido aqui, ”.
Simples, não? Era só ter dito isso e não estaria tendo problemas. Mas não... eu tinha que ter dito a verdade. Minha única defesa era que ela havia me pegado de surpresa. Aquilo, contudo, não era inesperado. Minha vizinha não fazia nada senão agir da maneira absolutamente oposta ao que se poderia considerar como “esperado”. Um furacão, era isso que ela era, afinal, com uma incógnita daquelas e com uma língua que parecia uma metralhadora, “furacão” era o melhor jeito de descrevê-la.
Minha vizinha era um perigo para a sanidade de qualquer pessoa. Ela havia conseguido a proeza de me deixar, por alguns segundos, completamente desnorteado - algo que nunca havia sentido na América, somente em outros lugares dos quais não preferia recordar agora. Ao finalmente retomar o controle da situação e deixá-la fazer a pergunta que tanto queria, voltou a me surpreender ao não comentar a resposta que recebeu.
Não.
Ao invés de me bombardear com outra rodada de questões intermináveis, ela decidiu mudar de assunto tão radicalmente que me fez falar a verdade no lugar da mentira que teria sido mais segura. Sendo completamente justo, também podia arguir que não tinha a porra da mínima ideia que uma simples palavra me levaria para onde estava exatamente no momento: Encostado numa das pilastras do Hooks, segurando um taco de madeira e observando minha vizinha se debruçar sobre a mesa de sinuca enquanto eu tentava de todas as formas não pensar em como aquele short subia alguns centímetros a mais quando ela fazia aquilo.
Mas que porra! Era impossível. Era humanamente impossível deixar de reparar como aquele jeans era justo e como a bunda dela ficava ainda mais gostosa quando empinada daquele jeito.
Já havia perdido a conta de quantas vezes mexi discretamente no cós da minha calça, buscando deixá-la mais folgada para que não apertasse a mais nova ereção que havia me causado. O pior de tudo era que a mulher não tinha nem noção do que estava fazendo. Acontece que minha vizinha se interessava por sinuca, não era muito boa, mas se interessava, como ela mesma definiu o sentimento. Então agora estava se ocupando em analisar cada jogada minuciosamente, se inclinando para cada canto da mesa antes de fazer sua jogada.
Esfreguei a mão pelo rosto, frustrado, quando ela contornou o espaço pela terceira vez.
- , pelo amor de Deus! Você não está tentando desarmar uma bomba. É só bater o taco em uma das bolas.
Ela deu um pequeno pulo e me olhou por cima dos ombros, o cenho franzido.
- Você me desconcentrou, .
- Você passou os últimos cinco minutos se concentrando. Se isso não foi suficiente, pode desistir.
Ela ofegou e se virou para mim, ofendida.
- O que você disse? – cruzou os braços, ainda segurando o taco, fazendo com que seus peitos cheios se apertassem ainda mais naquela camiseta branca.
Seu decote parecia chamar meu nome, implorando para que eu libertasse seus seios e os tratassem com todo o cuidado que eles mereciam. Forcei minha vista a abandoná-los para voltar a encarar os olhos de . Realmente precisei pensar por um segundo a fim de lembrar exatamente o que ela havia perguntado.
- Disse para desistir. – respondi finalmente, sentindo-me um tanto quanto idiota por demorar tanto para pronunciar três palavras simples.
- Você está dizendo isso porque tem medo de perder.
Ela disse aquilo com tanta convicção e com uma careta de indignação tão adorável que não pude evitar a pequena risada que me escapou.
- Eu nunca perco.
Tinha consciência de que havia soado arrogante, mas aquilo era uma verdade completa. Nem mesmo Chase e suas inúmeras estratégias havia me vencido.
- Ah é? – arqueou a sobrancelha e se aproximou um pouco – Pois saiba que ninguém nunca ganhou de Spencer em nenhum jogo.
De novo esse cara? Contive o segundo impulso de perguntar sobre quem ela falava com tanta estima.
- Pois saiba que não acredito nisso. – fiz questão de repetir suas palavras em tom de zombaria.
- Eu não estou mentindo. – descruzou os braços e segurou o taco com firmeza em uma das mãos, falando completamente indignada – E Spencer ganharia de você na sinuca qualquer dia. Assim. – para demonstrar seu ponto de vista, estalou os dedos.
Revirei os olhos.
- Sério? – ironizei, entediado – E como o maravilho Spencer faria isso?
- Como física e matemática. – virou-se para a mesa outra vez, franzindo o cenho enquanto a observava atentamente - Ele sempre diz que você só tem que acertar o ângulo certo e acertará todas as bolas.
- Ele não te ensinou essa técnica maravilha, não é mesmo, ?
Afinal, as únicas bolas que ela estava acertando eram as minhas quando ela mexia o quadril daquele jeito incrível.
A loira, contudo, não pareceu ter percebido que tentava zombar dela, pois continuou sua apreciação do jogo, prestando pouca atenção em mim ao murmurar uma resposta:
- Ele até que tentou, sabe. Mas, vou te dizer uma coisa, essas contas são difíceis. Não é a toa que ele é um gênio.
Bufei, sacudindo a cabeça.
Spencer Maravilha também era um gênio agora? Talvez devêssemos aproveitar que estávamos ali e construir um altar para o santo que ela tanto admirava.
Eu estava sóbrio demais para esse tipo de papo.
Olhei para o lado do bar e gesticulei para Tom. Precisava de um pouco mais de álcool.
- Se você não jogar nos próximos cinco segundos, vou pegar sua vez. – ameacei, infantilmente.
- Já vai, já vai. Que saco! – foi batendo o pé até o outro lado da mesa.
Ela ficou de frente para mim e se inclinou para frente. Imediatamente a ereção que tinha baixado graças à conversa em homenagem ao tal cara voltou a aparecer assim que seu decote propiciou um ângulo melhor da parte superior de seus seios.
Minha garganta subitamente secou e fiquei grato por Tom ter escolhido aquele momento para aparecer com a nova garrafa de cerveja, que tomei inteira quase que em um gole só. A contra gosto, contudo, fui obrigado a desviar a atenção daquelas duas preciosidades quando ouvi um assovio baixo. Ao localizar de onde vinha o som, senti meu rosto se fechar, minha mandíbula apertando meus dentes com tanta força que não ficaria surpreso se ganhasse uma dor de cabeça. Havia ao menos três caras encarando a bunda de e fazendo comentários que não podia ouvir, mas que certamente eram vulgares.
Antes que percebesse o que estava fazendo, encontrei-me de frente para o palhaço que parecia ser o “líder”. Os olhos dele subiram até encontrarem os meus e imediatamente vi a cor descer por seu rosto. Ao menos ele não era tão imbecil quanto aparentava. Percebeu rápido que era uns bons dez centímetros mais baixo do que eu e obviamente usava seu tempo livre para beber e viver no sedentarismo.
- Fala, camarada. – sibilei, inflexível – Gostaria de compartilhar o que estão achando tão engraçado?
O cara olhou para os lados, procurando ajuda dos amigos, mas eles covardemente olhavam para os lados, buscando desesperadamente ficar fora da confusão.
- E-eu-eu... nada. N-ada.
Permaneci em silêncio, deixando-o saber que suas palavras engasgadas não estavam enganando ninguém.
- Eu... – pude o ver tentar chegar para trás e ser impedido pelo balcão antes de engolir em seco – Cara, foi mal.
Por um segundo contemplei a possibilidade de afundar meu punho em seu rosto, mas ele já estava suando frio e provavelmente desmaiaria ao menos sinal de que apanharia. Aquilo já era drama demais para mim. Reprimindo a careta de nojo ao pensar naquele tipo escroto que só era macho na hora de fazer comentários vulgares a uma mulher fisicamente mais fraca, mas que não mal podia formular uma resposta quando prensado por alguém do seu tamanho.
Forte frente aos fracos. Patético.
Soltei um risinho de escarnio e dei-lhe as costas.
Praticamente pude ouvir seu suspiro de alívio.
Dei dois passos com a intenção de deixar aquilo, mas ainda estava incomodado, virei, então, mais uma vez para o babaca:
- Um conselho: talvez seja melhor se você mantiver sua atenção em outro lugar e sua boca bem fechada antes que alguém acabe levando essas brincadeiras a sério e resolva arrancar seus olhos e cortar sua língua.
Dessa vez fiquei satisfeito por ele ter quase caído do banco em que estava sentado. Quando caminhava de volta para onde estava antes, tive a certeza de que o trio imbecil estava se apressando para ir embora. Encontrei parada ao lado da mesa, olhando-me intrigada.
- O que foi aquilo? – perguntou assim que estive ao alcance de suas palavras.
Não poderia perder a oportunidade de irritá-la.
- Você estava demorando tanto que fui conversar.
Ela estreitou os olhos de uma maneira entre irritada e pouco convencida sobre minha resposta, mas não fez comentário.
- É a sua vez. – resmungou, apontando para trás.
Dei uma olhadela rápida e vi que minha vantagem ainda era larga e que se acertasse a próxima tacada, o jogo terminaria, pois isso me daria o direito a mais uma jogada e assim encaçaparia a última das minhas. Sabia de tudo isso e, mesmo assim, errei propositalmente. Acho que nunca vou saber ao certo o porquê de ter feito aquilo.
Talvez porque não quisesse ir para casa. Talvez porque não estivesse com vontade de ouvir mais algumas das perguntas irritantemente adoráveis de . Ou talvez fosse por outra coisa.
Seja o que for, o gritinho animado que minha vizinha deu ao ver que tinha mais uma chance, me fez sorrir e fez aquilo – o que quer que seja – valer a pena.
- Vamos lá, . Sua vez. Em menos de dez minutos dessa vez, por favor. – acrescentei quando ela passou por mim.
Recebi uma careta como resposta.
Esperei que rodeasse a mesa, escolhendo onde iria jogar para me posicionar alguns passos atrás dela, mantendo seu espaço pessoal, mas também impedindo que algum pervertido ficasse secando sua bunda. Fiz um esforço hercúleo para manter meus próprios olhos longe daquele ponto, encarando o espaço a minha frente e evitando cair também na categoria dos pervertidos ao qual me referia. Depois de uns bons dois minutos sem ouvir o estalado característico das jogadas de sinuca, abaixei a atenção para ver que ela continuava lá, analisando as coisas.
- , sério. Qual o problema? Isso não é nenhum problema nuclear onde uma jogada errada explode o mundo. Só bata na porra da bola.
Endireitou-se e se virou para mim.
- Você não entende. – resmungou – E por que todas as suas metáforas tem que envolver alguma coisa explodindo?
- Não entendo o que, mulher? – ignorei propositalmente a segunda parte da sua fala.
- Eu não gosto de perder.
- Percebi isso depois de você ter demorado uma eternidade para fazer a segunda jogada. – respondi, entediado outra vez.
- Não. Você não entende. Eu realmente, realmente não gosto de perder. Acho que isso é um pouco de trauma infantil porque quando crescia só brincava com Spence e ele sempre ganha então e-
- Se eu te ensinar a jogar, você para de falar nesse cara? – falei, passando a mão sobre o rosto – Isso já está me enchendo o saco.
- Feito. – respondeu instantaneamente.
- Certo. Você faz assim. - fiquei de frente para ela e demonstrei como ela deveria se posicionar – Entendeu?
A loira me olhou atentamente e assentiu devagar, incerta.
- Ok. Então faça.
Hesitou por um segundo e se inclinou, tentando imitar o que eu tinha feito. Até aquela parte as coisas fluíram bem, mas logo percebi que o problema era que minha vizinha não tinha senso de direção para fazer as jogadas. Expliquei três vezes o que ela fazia de errado, mas as instruções aparentemente não faziam sentido e nós dois já estávamos ficando bem frustrados a cada vez que ela errada a tacada. Depois de mais algumas respostas ríspidas trocadas, perdi a paciência e, como parecia ser o padrão de hoje, agi sem pensar, colocando-me atrás dela, meus braços ao seu redor a fim de alcançar suas mãos sobre o taco.
Imediatamente percebi que era uma péssima ideia. se retesou inteira, completamente parada, provavelmente de choque, e meu pau, que tinha se acalmado durante aqueles minutos, voltou a se levantar assim que o perfume de flores dela chegou a mim.
O fato de que sua bunda estava a centímetros dele também foi de grande ajuda para sua animação repentina. Se ela se mexesse o mínimo para trás, roçaria em mim e esse pensamento era tão tentador que por um segundo foi tudo que tomou minha mente. Outra vez fiquei com a boca seca e passei a língua por meus lábios.
Felizmente o sangue não tinha corrido todo para a parte de baixo e consegui perceber que ela estava muito quieta. Não querendo causar ainda mais desconforto, pois, afinal, minha mãe tinha me criado para ser o mais perto possível de um cavalheiro, estava prestes a dar um passo para trás quando ela soltou o ar pesadamente e relaxou, suspirando. E, dessa maneira, todos os meus pensamentos bondosos que estava tendo foram varridas para longe e encostei-me a ela. Meu peito contra suas costas, finalmente sentindo sua bunda contra mim.
Engoli em seco. O silêncio ali só não se prolongou porque titubeou nas palavras:
- V-você não vai me... ensinar?
Ensinar...? Sim! Sinuca. Ensinar sinuca significava inclinações. Estava completamente pronto para aquilo. Pigarrei, limpando minha garganta árida antes de falar.
- Certo. Você precisar afastar uma das pernas para trás para equilíbrio.
Ela fez o que eu disse, causando como efeito colateral uma roçada deliciosa contra meu pau.
Eu estava ficando cada vez mais quente, cada vez mais excitado e precisei me concentrar para voltar a falar. - Agora se incline e mantenha o taco firme nas mãos.
- O-o taco?
“Sim, por favor”, era o que a parte primitiva da minha mente queria gritar, claramente não se referindo mais ao jogo. Ou ao menos não ao jogo de sinuca. Felizmente, entretanto, consegui me conter para murmurar apenas uma afirmativa simples. Minhas mãos ainda sobre as dela, conduzi-a para ficar na posição correta.
- Agora é só bater do jeito certo.
- Bater?
A respiração dela ficava cada vez mais rápida e suas palavras, cada vez mais baixas e cortadas. Sem saber, ela estava terminando de fatiar meu autocontrole.
- Isso. Você vai fazer assim.
Antes que pudesse demonstrar, contudo, uma voz muito conhecida soou ao nosso lado, fazendo com que me lembrasse de que estávamos em um lugar público:
- Ora, ora. O que temos aqui?



Capítulo 9

Talvez eu tivesse algum tipo de problema com laços de relacionamento. Preferia correr cem quilômetros no deserto – descalço – a passar dois minutos com meu papai querido, as mulheres que passavam em minha vida nunca duravam mais do que uma semana e os caras que considerava como “amigos” eram idiotas completos que pareciam fazer questão de aparecer nos momentos mais inoportunos para atrapalhar minha vida.
Se isso não fosse tão irônico, marcaria uma consulta com um psicólogo. Se bem que... pensando melhor, não precisava de alguém para saber que a culpa era do velho. Entretanto, por mais que fosse metade dos problemas da humanidade pudesse ser creditados a Dante , a enrascada em que me encontrava agora não era uma dessas situações. Não era culpa dela que fui idiota o suficiente para trazer ao meu bar favorito e infelizmente também não podia culpá-lo por Hunter ter resolvido aparecer precisamente naquela hora.
- !
O divertimento claro em sua voz outra vez fez com que fosse puxado de meus pensamentos.
Reprimi um grunhido e a vontade de apagar aquele sorrisinho da sua cara com um soco. Tom provavelmente não iria nos perdoar dessa vez se nós quebrássemos algumas mesas... de novo. Ao invés de fazer o que queria, então, dei um passo para trás, afastando-me finalmente da minha vizinha, já que ainda estávamos no que poderia ser chamado de um abraço esquisito.
- , não vai me apresentar seu amigo?
As palavras dela saíram um pouco tremidas e ela apoiou sua mão em meu ombro. Franzi o cenho, olhando para baixo e para o lugar onde ela me tocava. Estranhei seu gesto por um segundo inteiro antes de perceber que ela o fazia quase por questão de equilíbrio, pois a distância que me afastara não fora o suficiente para estabelecer um espaço pessoal confortável. Droga!
Eu estava praticamente a pressionando contra a mesa de sinuca, só havia distância para que ela se virasse para me encarar.
Pude sentir a confusão em meu rosto se acentuar um pouco mais e, como um autômato, dei mais um passo para trás e observei sua mão deixar meu ombro e seu olhar se levantar para encarar o meu.
- !
Olhei para o teto e respirei fundo. Por que eu ainda insistia em considerá-lo meu amigo mesmo?
- Que foi agora, porra? – virei para ele pela primeira vez aquela noite.
- Perguntei se não vai me apresentar sua amiga.
- Não somos amigos – respondi automaticamente.
E também não sou seu amigo, quis acrescentar, mas aquilo só seria pirraça e provavelmente Caleb acharia ainda mais engraçado. O idiota não podia ser um adulto normal. Era uma criança crescida. Era em momentos como esse que sentia falta de Chase.
- É. Não somos amigos – minha vizinha me lançou um olhar raivoso e empinou o nariz antes de enfiar o cotovelo nas minhas costelas em uma maneira bem rude de me tirar do seu caminho até Hunter. – – estendeu a mão em um cumprimento.
- ? – falou ao responder o cumprimento. – ? Onde foi que eu ouv-Oh! – compreensão se espalhou pelo seu rosto, um sorriso maligno vindo logo a seguir quando me lançou um olhar rápido.
Filho da puta. Ele sabia que ela era minha vizinha.
, é claro. É um prazer conhecê-la.
Mesmo a loira estando de costas para mim, eu podia visualizar que ela provavelmente cerrando os olhos como sempre fazia quando estava desconfiada de alguma coisa.
- Por que você está falando assim?
- Assim como?
- Como se já tivesse ouvido falar de mim.
Dizendo isso, ela olhou por cima do ombro e para mim, analisando-me com o cenho franzido e os olhos meio cerrados, exatamente como eu previra. Mantive o rosto o mais impassível possível, tentando parecer entediado enquanto torcia para que meu amigo não revelasse acidentalmente as coisas que havia dito sobre a mulher entre nós. , com aquela mania de FBI dela, por certo transformaria tudo em algum tipo de perseguição.
- Ouvido falar de você? Não, não – sacudiu a cabeça e felizmente soou genuíno. – Só pensei já ter ouvido esse sobrenome antes.
Relutantemente ela abandonou seu interrogatório visual ao qual me submetia para respondê-lo.
- Certo – o jeito que ela arrastou as sílabas da palavra me mostraram que o papo não a havia convencido. – E você quem é?
Quase suspirei de alívio ao perceber que, apesar de ainda desconfiada, ela abandonara aquele tópico. A sensação gostosa da cerveja provavelmente fora responsável por deixá-la desistir tão rápido. Talvez fosse bom comprar algumas garrafas lá pra casa, quem sabe assim não teríamos outras daquelas discussões intermináveis sobre nada, das quais ela parecia gostar tanto.
- Caleb Hunter, senhorita. E de onde você conhece o nosso sempre agradável ?
- “Sempre agradável?” – soltou uma risadinha. – Ótimo jeito descrevê-lo. E, respondendo a sua pergunta, somos vizinhos.
E lá estava de volta o sorrisinho maligno de Hunter. Se ele tinha alguma dúvida sobre quem ela era, agora não havia mais.
- Vizinhos? – fingiu surpresa. – Não me diga. E como é morar tão perto dele?
Dessa vez revirei os olhos. Não sei por que me surpreendia com o imbecil tentando criar uma conversa com ela, mas ao menos ele podia se esforçar para ser mais criativo. Aquela pergunta era bem cretina. Nós dividimos a mesma tenda por semanas no meio do deserto e lugares ainda piores para pernoitar quando estávamos sob ataque inimigo. Hunter provavelmente sabia mais sobre como era conviver comigo do que eu sabia sobre mim mesmo.
- É... diferente. – respondeu, tombando a cabeça para o lado.
- É mesmo? Conte-me mais. Que tal nos sentarmos ali e você me fala um pouco também sobre você.
Ah, não!
- Nós estávamos jogando sinuca até você interromper – falei, gelado. - Por que você não volta por onde veio e nos dá um pouco de paz?
- Outch! Assim você machuca – colocou a mão sobre o coração numa exagerada e dramática interpretação de dor. – E eu vi muito bem o que vocês estavam fazendo. Se você diz que era sinuca, então eu acredito – mexeu as sobrancelhas repetidamente, dando um sorriso sacana e significativo.
E ele ainda reclamava quando o chamava de garoto. Francamente.
- Não sei se isso é uma boa ideia – voltou a olhar rápido para mim por sob seu ombro.
Por sorte existia algum bom-senso em .
- Vamos lá. Apesar das aparências, - sublinhou as palavras - e eu somos amigos.
- Isso é questionável – resmunguei, aproximando-me um pouco deles.
- Juro que não sou um psicopata – continuou como se eu não tivesse dito nada. – Te pago uma cerveja.
Ela sacudiu a cabeça em uma negativa quase imperceptível e agradeci minha sorte ao ver que não aceitava suborno.
- Vamos lá. Posso te contar algumas coisinhas interessantes sobre minha vida também e sobre a do nosso , é claro. - Oh! Bom... acho que uma cerveja a mais não tem problema.
Ao menos não todo tido de suborno. Uma carranca imediatamente apareceu em meu rosto quando me empurrou às cegas o taco de sinuca que ainda segurava e aceitou a mão que Caleb lhe estendeu.
- Você vem, ? – ele teve a cara-de-pau de se virar para trás e perguntar depois de já terem se afastado alguns metros.
Trinquei meus dentes com tanta força que não me surpreenderia se ele tivesse ouvido e, por isso, seu sorriso estúpido tivesse se alargado ainda mais. Outra pergunta cretina para a lista de hoje. Como se pudesse deixar esses dois sozinhos sem supervisão. Juntando a personificação da infância perdida que era Hunter e a estabanada da minha vizinha só poderia dar merda. Sem chance.
Resmungando sobre a possibilidade de me tornar um eremita, arrastei os pés atrás deles. Eles escolheram uma das mesas de canto, ela era circular e com duas cadeiras altas já que havia um daqueles acentos acolchoados na outra parte. Hunter, como a criança que era, logo se acomodou no naquele último, deixando as cadeiras para e eu.
- Respondendo a sua pergunta, morar ao lado de é diferente do tipo esquisito – ela ofereceu sem nem mesmo meu amigo ter que perguntar novamente.
Eremita em algum lugar bem longe da minha atual casa.
- Esquisito como exatamente, adorável ?
- Esquisito assim – ela gesticulou em círculos na frente do meu rosto. – Ele sempre está com essa cara fechada. Permanente mau-humor – virou-se para Hunter quando um pensamento lhe ocorreu. – Você sabe explicar isso?
- Duvido que até mesmo a ciência possa explicar tal questão, linda .
O risinho de pré-adolescente dela não fez nada para melhorar a carranca da qual eles se referiam.
- Ele é assim desde que nos conhecemos.
Curiosidade brilhou com força em seus olhos.
- Desde que vocês se conhecem, sério? – inclinou-se sobre a mesa para chegar mais perto dele e, quem sabe assim, da informação que queria. - E quando foi isso?
Aquela definitivamente era o momento preciso para interferir.
- Não existe nenhuma chance de eu permanecer aqui, aguentando vocês dois, completamente sóbrio. Cadê a cerveja que você prometeu, garoto?
Hunter me lançou um olhar raivoso antes de responder:
- Já disse para não me chamar assim, porra. E até onde me lembro, prometi uma cerveja à essa agradável dama e não à você, Permanente Mau-Humor – o sorriso já voltara quando se aproveitou da oportunidade para usar a alcunha com a qual me caracterizara.
Se aquele apelido imbecil pegasse, eu iria me ocupar de dar umas boas palmadas naquela delícia de bunda dela.
Oh!
Pensando bem, se a consequência fosse a oportunidade de descer minha mão sobre aquele traseiro firminho que estava me atormentado há dias, eu até mesmo ajudaria o nome a se espalhar. Tive que conter o sorriso imbecilmente satisfeito que provavelmente apareceria no meu rosto graças às fantasias na minha cabeça. Infelizmente fui obrigado a deixar aquelas criações mentais ao ouvir a protagonista delas concordar com o idiota:
- É verdade, ! Caleb não te prometeu nada. E você pode ir embora se quiser. Nós dois ficamos – apontou para si mesma e para ele.
Definitivamente palmadas. Palmadas ardidas e talvez obrigá-la também a pedir desculpas depois de cada tapa. Aposto que ela gostaria disso quase tanto quanto eu. E quando foi que eles passaram para o uso de primeiros nomes?
- , eu te trouxe aqui e, se você pensa que vou deixá-la sozinha, ou pior, com esse ai – indiquei Hunter com uma sacudida de cabeça - você está muito enganada.
- Sou uma mulher crescida que pode tomar suas próprias decisões – cruzou os braços, outra vez empurrando seus seios redondinhos e deliciosos para cima como se clamassem por minha atenção. – Não preciso de babá.
Pisquei devagar. As afirmações idiotas daquela noite simplesmente não paravam de chegar.
- Não duvido que você possa tomar suas próprias decisões, . O que me preocupa são os conteúdos delas, ou a falta delas.
Preferi nem mesmo mencionar o quanto podia ver que ela era uma mulher crescida. Eu apreciava esse fato desde o dia em que nos conhecemos.
- Ora, seu... seu... seu idiota! – resmungou entre os dentes para logo depois juntar os lábios em um beicinho que não poderia ser classificado como nada além de adorável.
- Agora – falei firme e incisivo antes que ela tivesse outra oportunidade para retrucar - que já estabelecemos que você não vai ficar aqui sem mim e que eu não vou ficar sem uma cerveja, você poderia ir buscar uma rodada para nós, garoto. Ou talvez você devesse ir, , já que não tenho certeza se Hunter tem idade suficiente para comprar bebida alcoólica.
As expressões indignadas nos rostos dos dois quase fez todo aquele encontro esquisito valer a pena.
- Até quando você vai ficar repetindo essa merda? Eu sou só cinco meses mais novo que você. Cinco. Meses.
- Por que você não vai buscar sua própria bebida? Esse é o século vinte e um, troglodita. Não preciso fazer o que você manda.
Como se eu fosse deixar esses dois desastres ambulantes sozinhos.
Nem mesmo me dignei a responder àquelas baboseiras, limitando-me a arquear uma das sobrancelhas. Eles até que tentaram aguentar o silêncio gelado por alguns segundos, mas não tinham tanta prática naquilo quanto eu e logo desistiram:
- Arrh! Que raiva! Odeio quando você me olha desse jeito – ela apoiou as duas mãos sobre a mesa e se levantou. – ‘Tá vendo? É por isso que é complicado morar do lado dele – apontou para mim antes de sair em direção ao bar.
Assim que ela saiu da nossa linha de visão, estiquei-me para dar um tapa na nuca de Hunter.
- “Adorável ”, “linda ”, que porra é essa cara? – falei, abrindo os braços em um gesto incrédulo.
- Porra! – por reflexo, chegou para o lado e para longe. - Não gostou, ? Por quê? E como deveria chamá-la, então, “minha vizinha gostosa”?
Dessa vez ele foi rápido o suficiente para se conseguir fugir do soco que pretendia acertar em seu baço.
- Não se atreveria – rangia os dentes com tanta força que nem sei como as palavras saíram.
- E por que não? Não é assim que você se refere a ela?
- Isso não significa que você possa falar isso, imbecil.
As palavras soavam sujas quando era ele quem falava.
- Mas você estava certo – sorriu cinicamente com a óbvia intenção de me provocar. – Ela é muito gostosa.
Já estava me levantando para não errar a porrada que iria acertar direto em seu olho quando a pessoa de quem falávamos retornou, trazendo consigo três garradas de cerveja. Voltei a me abaixar sobre a cadeira, bufando de raiva por ele ter se livrado daquela.
- Pronto, pronto - empurrou uma para Hunter, completamente alheia a tensão que anteriormente pesava sobre a mesa. – Aqui, sua majestade – deslizou outra sobre a mesa na minha direção. – Agora, se vossa alteza não tiver nenhuma outra objeção imbecil – resmungou, olhando-me de maneira significativa – você pode finalmente me contar como vocês se conheceram.
Senti minha mão se apertar involuntariamente ao redor do vidro da cerveja. Que merda. Achei que ela tinha esquecido sobre isso.
- Ah! Foi na faculdade.
- Faculdade? Qual faculdade? – perguntou ansiosamente.
- Harvard.
Seus olhos se arregalaram e ela abaixou rapidamente a garrafa que estava contra seus lábios.
- Sério? – perguntou, mal engolindo a cerveja em sua garganta e tossindo um pouco.
Revirei os olhos.
- Claro. Além de eu ser muito gostoso, sou inteligente – passou a mão pelo peito no que ele provavelmente considerava ser um gesto sexy, mas que me fez ter vontade de lavar meus olhos... com vinagre.
Eu não merecia uma coisa dessas. Já estava pagando até os pecados que não cometi tendo que trabalhar pro velho.
- E você se formou em quê?
Foi a minha vez de sorrir. Hunter sempre corava quando tinha que responder aquela pergunta e não tive que esperar muito para que seu rosto ficasse gradualmente mais vermelho.
- Hm... – olhou para mesa e para própria cerveja. – Hm... Eu cursei Literatura Inglesa.
não conseguiu esconder a surpresa, chegando até mesmo a abrir um pouco a boca. Exatamente a reação que todos tinham quando ele compartilhava aquele pedaço de informação, e era por isso que Caleb sempre relutava. Observei-o abaixar a vista para a mesa e imediatamente toda diversão que sentia desapareceu.
- Que foi, ? Não achei que você fosse do tipo que se apegasse a estereótipos.
- Estereótipos, o quê...? – olhou de mim para ele e pude perceber quando a situação afundou devagar em seu cérebro. – O quê? Não! Não! Não era isso. Não é nada disso – sacudiu a cabeça. – É que eu pensei em fazer literatura inglesa durante um tempo antes de escolher psicologia.
Psicologia? Wow! Então era por isso que ela mencionara um consultório. Até que o tempo aqui não fora uma completa perda. Tomei mais um gole de cerveja, pela primeira vez naquela noite ansioso sobre como a conversa se desenrolaria.
- Você é psicóloga?
Assim que ele perguntou, virou a cabeça rápido para me olhar, claramente desejando que eu não tivesse ouvido, e só agora percebendo, também, que havia revelado acidentalmente a informação que me negara mais cedo. Fiz questão de abrir um sorrisinho esperto e ela soltou o ar de maneira derrotada em resposta.
- É... – encolheu os ombros. – Mas estávamos falando sobre você – acrescentou rapidamente ao vê-lo abrir a boca para fazer outra pergunta.
Boa saída, . Não poderia me intrometer porque senão mostraria que estava interessado em saber, e sabe-se lá Deus o que ela poderia deduzir disso.
– Então vocês se conheceram em Harvard? também estudava literatura?
Apesar do questionamento ter sido para meu amigo, era para mim que ela olhava, sua análise estava sobre mim. Mantive seu olhar, por um segundo me perguntando o que se passava naquela mente caótica dela, o que ela imaginava agora.
- Não, não. Conheci nosso aqui durante uma festa de fraternidade. – Hunter sacudiu a cabeça, muito animado em tirar o foco de si mesmo. – Ele e Chase estudavam na Buniness. Nossos dois gênios.
- Chase?
- A alma gêmea de , é claro.
Ele adorava falar coisas como aquela. Chase achava que era por ciúmes, já eu pensava que era seu jeito de responder por sempre o chamarmos de garoto. Não reagi, assim como nunca reagíamos quando ele fazia essas afirmações, o que o sempre o irritava mais do que qualquer resposta que pudesse dar.
- Alma gêmea? – parou com a garrafa a meio caminho da boca e de novo fui alvo de seu olhar de interrogatório, mas agora havia também confusão.
- Parceiro, companheiro, use o termo que quiser. Chase salvou a vida de . Não sei como um poderia sobreviver sozinho. Perfeitos um para o outro. Eles se completam ou algum assim – deu de ombros, tomando um gole da própria cerveja para depois sacudir a garrafa vazia e se levantar. – Vou pegar mais algumas cervejas.
O franzir no cenho dela se acentuou quando o observava sair.
- Esse é o Hunter de quem você falou mais cedo?
Assenti.
- E você o conhece faz muito tempo?
Outro balançar de cabeça.
- Então ele te conhece bem?
- Aonde exatamente você pretende ir com esse interrogatório, ?
- Lugar nenhum – respondeu rapidamente, olhando para baixo.
- Como prometido – meu amigo colou mais três cervejas sobre a mesa. – Agora sobre o que estávamos falando mesmo? Ah, sim. Você iria me contar sobre onde você estudou, linda .
A partir daquele momento a conversa felizmente deu um giro e se tornou mais sobre ela do que sobre o nosso passado. Não foi de muita ajuda, entretanto, para sanar mais algumas curiosidades que tinha, pois minha vizinha fez questão de ser cuidadosamente evasiva. Além disso, assim que terminou sua bebida, ela arrumou uma desculpa qualquer sobre precisar ir embora.
- Tem certeza, querida ? Não há tempo nem mesmo para mais uma cerveja? Vai ser rapidinho.
- Não posso. Sinto muito – desculpou-se. - Quem sabe na próxima vez. Mas você pode ficar aqui se quiser, . Dei uma rápida olhadela para seu rosto corado, seus olhos levemente nublados, e ficou claro para mim que, mesmo que isso tivesse sido uma opção em algum momento, não o era agora quando era possível ver que o álcool se misturava ao seu sangue.
- Não.
- Ok, ok. Então acho que é isso – Puppy se levantou, com uma expressão de contrariado. – Vou pagar a conta então.
Tanto minha vizinha quanto eu entregamos notas de vinte dólares e ele foi acertar o pagamento. Apesar dos meus protestos, fez questão de esperar do lado de fora da saída do pub para se despedir de “Caleb” porque senão seria “muito rude”, segundo suas palavras.
- Foi um grande prazer conhecê-la, . – abraçou-a, em um excesso de afeição para alguém que acabara de conhecer, e sorriu sacana para mim por sobre o ombro dela, em um excesso de falta de vergonha. – E, por favor, cuide do seu vizinho. Chase não vai me perdoar se alguma coisa acontecer com o seu tesouro.
Francamente. As sandices dele ficavam cada vez maiores.
- Hmm... claro. Eu... tchau, Caleb – sorriu, acanhada e se afastou.
Hunter fez menção de me dar um abraço, uma expressão zombeteira no rosto.
- Nem pense nisso – dei-lhe as costas e comecei a andar. – É para hoje, – resmunguei sem olhar para trás.
Pouco depois ela caminhava ao meu lado, as mãos enfiadas nos bolsos dos shorts, os pensamentos tão longe que podia ver que cada passo que ela dava era no automático.
- Você tem que relevar o que Hunter fala – murmurei depois de atravessarmos a esquina. - Ele é como um cachorrinho que Chase e eu adotamos. Ao menos ele é ansioso como um filhote, mas suponho que animais de estimação são bem menos irritantes.
- Onde está esse Chase? Nunca o vi por aí.
Fiquei confuso por suas palavras. Por que ela iria vê-lo por aí?
- Em algum lugar no Oriente Médio.
- E você não se preocupa? - virou-se para mim, surpresa.
- E por que você se importa com isso?
Esperava, como parecia ter se tornado uma rotina entre nós, uma resposta no mesmo tom ríspido que eu havia usado com ela, ao invés, recebi uma desculpa:
- Oh! Certo, certo. Não queria me intrometer. Desculpe. Que porra...?
Talvez ela estivesse mais bêbada do que antecipara. Estava fazendo menos sentido do que o normal.
O resto do caminho foi feito em um silêncio constrangedor e admito ter usado parte desse tempo para tentar entender o comportamento esquisito dela. Ainda assim, chegamos ao nosso andar e não tinha a mínima ideia do motivo por ela estar tão quieta, então nos despedimos com um aceno de cabeça rápido e cada um foi para sua casa. As perguntas, contudo, ainda rondavam minha mente naquele momento e por um longo período depois disso.

xxx

Levei a caneca aos lábios, segurando-a com duas mãos, os cotovelos sobre a ilha da minha cozinha enquanto observava minha melhor amiga se movimentar ao redor do fogão. Meu bebê estava deitado em algum lugar aos pés dela, esperando por algum pedaço de comida cair ou pela mordida de qualquer coisa que Ava tivesse à mão e que espera a primeira oportunidade que eu não estiver olhando para contrabandear para ele.
- Me fala de novo o porquê de você estar tomando vodca apesar de eu ter dito que estou fazendo massa? E, acima disso, usando uma caneca para isso!
Baixei o olhar para a mistura rosada e depois a encarei novamente com uma carranca.
- Nem todos nós somos frescos sobre nossas bebidas, Appleby.
Para provar meu ponto, tomei mais um gole generoso, olhando-a durante todo o tempo – mesmo quando sentia a bebida rasgar minha garganta graças à quantidade excessiva que ingeri por orgulho. Mantive a pose mesmo ao sentir meus olhos lagrimejarem e mesmo vendo que Ava já ria do meu rosto vermelho.
Babaca.
- Não é questão de ser fresca, mas sim de entender da arte – falou por sobre o ombro, mexendo com uma colher o macarrão dentro de uma das minhas panelas coloridas. – Afinal, fala sério, eu trago uma excelente garrafa chilena de vinho tinto, uma verdadeira amostra de Carménère e você bebe vodca com suco de morango de caixinha?
- Babaca metida – resmunguei contra a borda do meu copo.
- Que foi que você disse? – franziu o cenho.
- Falei que vou tomar o vinho quando esse macarrão estiver pronto.
Contive minha língua em nome do sábio ditado que prega sobre não irritar o cozinheiro. E eu estava com bastante fome.
- Talharim – corrigiu.
Revirei os olhos. Por outro lado, algumas pessoas parecem pedir por uma resposta atravessada.
- Tanto faz – murmurei, decidindo, por fim, morder a língua de novo. – Quanto tempo até isso aí ficar pronto?
- Uns quinze minutos – deixou a colher de lado e foi para o outro lado da cozinha, voltando com uma taça de vidro. – Bem, se você não sabe apreciar as belezas da vida, - pegou a garrafa, tirou a rolha e colocou a quantidade que certamente era adequada para aquele tipo de copo - eu faço isso por nós – tomou um gole, sentando-se na cadeira alta na minha frente e do outro lado da bancada.
- E como foi seu dia de ontem depois que foi embora lá da confeitaria, ?
Oh! Em meio a tudo mais que acontecera, havia me esquecido daquela brincadeira e também do fato que iria matá-la por isso.
- Não me chame assim, sua maluca! – tive que controlar a vontade de me inclinar sobre a ilha e agarrar seu cabelo. – Você tem sorte por eu não bater em você. Não tem nem ideia do problema que essa sua brincadeirinha me causou.
Ava teve a coragem de rir.
- Não seja ridícula, . Você nunca conseguiria ganhar de ninguém em uma luta física. Atrapalhada demais para se concentrar em machucar alguém.
- Hey! Spence me ensinou alguns golpes. Você estica o braço assim – à medida que falava, gesticulava de acordo com minhas próprias instruções – e deixa a mão bem fechada e soca alguém desse jeito. Assim o impacto vem para o ombro e você não quebra a mão.
Meu bebê soltou um muxoxo que só poderia ser chamado de zombeteiro. Outra vez minha atenção foi para ele e, de novo, considerei seriamente se ele conseguia entender o que eu dizia.
- Ok, Jack Chan – sua mão se fechou ao redor do meu braço e o guiou de volta para baixo. – Tenho certeza que seu oponente vai ficar parado no lugar esperando você dar esse seu soco mágico.
- Hey!
- Agora me conta o que supostamente aconteceu de tão grave graças ao seu copo de café.
- Supostamente nada! Supostamente nada! – ergui o dedo em riste. – Eu encontrei três metros depois que saí da Appleby’s.
Franzi o cenho e encarei meu cachorro que latira alegremente assim que ouviu o nome do meu vizinho. Ponderando agora por um segundo, podia perceber que ele reagia dessa maneira cada vez que o nome de meu vizinho aparecia.
- Tá falando sério?
Levantei a cabeça ao ouvir a pergunta.
- Por que eu inventaria alguma coisa assim? Foi a coisa mais constrangedora da minha vida! Ele estava correndo no parque, sem camisa – não pude deixar de acrescer aquele fato, afinal ele fora a única coisa boa daquele encontro – e me parou para falar sobre que horas iria ajudá-lo com a história da digitação. Estava com aquele copo na mão e ele ficou bisbilhotando para ver o que estava escrito porque viu a letra .
- Sério? E ele conseguiu ler?
- Não.
- “Não”? Isso não é resposta! Como assim não? O que você fez?
Olhei para o lado e tomei mais tempo do que necessário para beber mais um gole da maldita vodca com morango. Infelizmente sabia que ela não sossegaria até conseguir uma resposta, soltei, então, um suspiro pesado e murmurei:
- Eu saí correndo.
- Saiu correndo? Figurativamente?
- Não.
As coisas eram simples quando só se usava aquela negação, talvez por isso gostasse tanto dela. Diferentemente dele, contudo, não tinha o mesmo poder de intimidação, pois Ava caiu na gargalhada.
- Sa-saiu co-rrendo – mal consegui falar. – Você saiu correndo de saltos e com um café quente nas mãos e na frente do seu vizinho por quem você tem uma queda! Ai que cena mais ridícula. E o pior é que consigo imaginar você fazendo isso.
Não tinha resposta, então fui obrigada a ficar quieta, esperando a crise de riso dela acabar.
Babaca.
- Ai. Essa foi ótima – chegou até mesmo a secar lágrimas de riso.
- Acabou?
- Acabei, acabei – deu mais uma risadinha. – Ok. Certo. Agora acabei mesmo. Pelo menos você só precisa encontrá-lo quando for trabalhar de secretária não-remunerada.
- Não sou secretária dele – tomei mais um gole da minha bebida para tomar a coragem de continuar aquela conversa. – E a outra parte também não é totalmente verdade. Nós acabamos saindo ontem à noite.
Seus olhos se arregraram e ela abaixou a taça de vinho com tanta velocidade que pensei que o vidro se quebraria contra o mármore.
- Não acredito! Vocês tiveram um encontro?
- Encontro? Ah! Encontro – soltei um muxoxo de desprezo. – No começo eu pensei que talvez pudesse ser alguma coisa, mas isso durou cerca de três segundos ou os primeiros dois metros que andamos juntos. me levou em um bar não muito longe e durante todo o caminho ficou mais quieto do que uma pedra. Depois disso ficou calado também enquanto bebíamos umas cervejas. Tudo meio entediante – não falei sobre ele ser do exército porque, pois, apesar de ela ser minha melhor amiga, não queria compartilhar a única informação pessoal que havia conseguido arrancar dele; era algo só meu. – Até que resolvemos jogar sinuca.
- Sinuca, você?
- Olha aqui, Appleby, eu não sou tão descoordenada assim!
- É. Isso é verdade, mas tem que concordar comigo que seu julgamento fica bem prejudicado quando você bebe cerveja.
- Fica nada.
- Fica sim. Você só não percebe porque seu julgamento está afetado.
- Tanto faz – revirei os olhos. – Mas você tem razão ao dizer que não sei jogar sinuca. resolveu me ensinar.
- NÃO. ACREDITO. NÃO. ACREDITO. – Ava estava tão interessada na conversa que se esqueceu do seu vinho esnobe. - Isso soa tão excêntrico. Como foi?
Olhei para baixo e para Cookie sentado inocentemente perto de nós. Abaixei a voz, então, para que ele não ouvisse. O assunto agora não era para menores de idade.
- Ele ficou atrás de mim-
- Excêntrico.
- ...e colocou seus braços ao meu redor e...
- Excêntrico.
- Será que dá para parar de falar isso? – me exasperei. – Que saco.
- Ok, ok – levantou as mãos em sinal de rendimento. - Vou guardar meus comentários para o final.
- Então ele foi tentar me ensinar, mas não aprendi nada porque tudo que ele fazia me deixava tonta. O jeito que ele respirava contra o meu pescoço, - não pude evitar acariciar essa parte do meu corpo, quase sentindo seu hálito ali outra vez – ou como sua mão segurava minha cintura ou meu braço de maneira firme – por um segundo as lembranças me levaram de volta àquele momento. – E quando seu quadril roçou o meu pude jurar que ele estava duro, mas... mas obviamente estava errada.
Fui puxada de volta para realidade também graças a lembranças, mas essas eram do fim da noite de ontem. Soltei um suspiro e tentei beber um pouco mais de álcool, porém não havia nenhuma gota restante.
- Acabou? – sussurrou depois de alguns de silêncio. – Você não pode acabar assim! Tava parecendo uma prévia de pornô. Até me deu um calor – abanou-se. – Uh! Não posso nem colocar em palavras o quanto você melhorou desde o senhor Shake Proteíco. Seu vizinho é muito mais delícia.
- Delícia?
- É a única palavra que serve para descrevê-lo.
Ela tinha razão.
- Não importa – encolhi os ombros, desanimada. – Não faz mais diferença.
- Como assim não faz diferença? Ficou maluca? Em que planeta um homem daquele não faria diferença em qualquer sentido?
- Ele é gay – murmurei, encolhendo os ombros.
Ela piscou devagar e ficou tão chocada que por alguns segundos ficamos mergulhadas no mais absoluto silêncio. - O quê? Ficou louca, maluca? – perguntou, olhando-me como se eu fosse uma lunática. - De onde você tirou essa ideia?
- Um amigo dele, Hunter, apareceu lá quando estávamos jogando sinuca.
- E por causa dessa prova incontestável você entendeu que ele é gay? – sua pergunta foi metade ironia, metade incredulidade. – Disse que você ficava desnorteada quando bebe cerveja. Nunca vi uma coisa dessas, aguenta vodca, mas se perde com duas cervejas.
- Não – sacudi a cabeça. – Não é o Hunter o parceiro dele. Foi ele quem me contou sobre o parceiro de , Chase.
- Estou ficando meio confusa com todos esses nomes de caçadores.
- Oh! – parei por um segundo, ponderando sobre sua afirmação. - Nem tinha percebido isso, mas, de qualquer jeito, Hunter deixou bem claro que é gay.
- Deixou bem claro? Ele disse isso com todas as letras necessárias?
- Explicitamente? Não. Ma-
- Então não foi explicitamente.
- Tá bom – concedi resignadamente. – Ele não disse explicitamente – frisei a palavra –, mas dava para entender isso. Ele falou sobre como Chase é o parceiro, a alma gêmea de , sobre como um não podia viver sem o outro. E, afinal, qual o problema de ele ser gay? – me vi defendendo-o.
- Nem problema com ele ser gay. Não existe absolutamente nada errado em ser gay e nós duas sabemos disso. Meu problema é com o seu raciocínio. Essas palavras não provam nada – revirou os olhos. - Tenho certeza que você entendeu errado.
- Eu não entendi errado e minha imaginação não é tão criativa assim.
- Como não? – suas sobrancelhas se ergueram e um sorriso zombeteiro surgiu. – Mês retrasado nós fomos ao aniversário da Stacy, você bebeu duas Budweiser e na hora de ir embora você abraçou um gordinho barbudo e chorou sobre a injustiça de ele matar todos os Stark. O cara nem parecia o George R. R. Martin, mas só foi preciso que ele tivesse uma barba, uma boina, um óculos e que houvesse um pouco de álcool no seu sangue para que você quisesse iniciar uma discussão sobre como seria o próximo livro dele.
Franzi o cenho e cruzei os braços, indignada.
- Você vive repetindo essa calúnia! Eu sei muito bem como é meu ídolo e sei que não foi isso que aconteceu naquela noite. Certeza que era o George. Eu sei que teríamos tido uma conversa muito produtiva se você não tivesse me arrastado de lá.
- Ele teria é chamado a polícia para salvá-lo da insana que o agarrara no meio da rua.
- Nós nunca vamos chegar a um consenso nessa questão.
- Exato. Então vamos voltar à questão do momento.
- A questão do momento é a mesma de antes: minha imaginação não é expansiva ao ponto de eu conseguir inventar essa história sobre .
- Não concordo.
- Ok, sabe-tudo – cruzei os braços – então se ele não é gay, qual é a outra explicação brilhante?
Ela abriu a boca algumas vezes, franziu o cenho, tombou a cabeça para o lado, bebeu um gole de vinho, mas mesmo todo esse tempo não foi suficiente para que ela bolasse alguma teoria.
- Não tenho nem ideia – sacudiu a cabeça. – Mas tenho certeza de que há uma explicação.
- Isso não importa mais – dei de ombros, passando o dedo sobre a borda do meu copo vazio. – Obviamente eu tenho dedo podre para escolher homem. Meu ex gostava mais da academia e o próximo cara que me interessa é um lacônico gay que está em uma relação concreta.
Cookie deu uma pequena choradinha e virei a tempo de vê-lo abaixar, desanimado, a cabeça sobre as patas, deitando no chão. Ava, por sua vez, de novo ficou sem resposta, levantou-se para tirar o talharim da panela e aquele tópico de conversa foi convenientemente deixado de lado. A comida, como sempre, estava excelente e acabei me rendendo ao vinho caro que ela havia trazido. Suas anedotas engraçadas foram eficazes em me distrair enquanto jantávamos, mas infelizmente nosso jantar semanal logo chegava ao fim e ela foi se despedir do seu melhor amigo.
- Hey, babe - falou, agachada na frente dele enquanto coçava atrás das orelhas dele. – Você se comporte para mamãe, ok? Assim, quem sabe, ela não faça nenhuma outra besteira, ok?
Cookie tombou a cabeça para o lado, acompanhando o carinho dela e a língua para fora como se sorrisse. Com um último carinho, levantou-se, colocou a bolsa no ombro e pegou seu vinho pelo gargalo e assim caminhamos até a porta do meu apartamento.
- Você não me contou como foi aquela aula em Jersey.
Seu rosto se iluminou imediatamente e ela quase parou de andar, quase fazendo com que meu cachorro, que estava seguindo-a de perto, trombasse em suas pernas, o que provavelmente acabaria com os dois no chão.
- Foi ótima! Eles ensinam umas técnicas tão legais lá. Decorações daqueles bolos das antigas, sabe? Uma coisa clássica e bem difícil, mas acho que estou chegando lá. Mal posso esperar para começar a fazer e vender aqui. Acho que vai trazer uma boa receita financeira.
- Isso é ótimo, Ava! – me animei também. – Estou disponível para servir de cobaia de degustação quando você quiser, amiga.
- Esperta – riu, abrindo a porta de casa.
Abri um sorrisinho amarelo.
- Tem certeza de que não quer ficar aqui e acabar com essa garrafa?
- Obrigada, mas você sabe que não gosto de ir embora quando as ruas estão muito vazias. Assenti, engolindo em seco para evitar perguntas sobre o porquê de ela ter tanto receio de até mesmo atravessar a rua sozinha quando estava muito escuro. Sabia que Ava não reagia bem àquele tipo de questionamento ou mesmo à ofertas de que a acompanhasse. Assim, saímos para o corredor e em direção ao elevador, mas, antes mesmo que chegássemos ao botão para chamá-lo, as portas automáticas se abriram e saiu. Outra vez calças sociais me fizeram suspirar, mas dessa vez havia também um terno muito bem cortado e uma gravata de seda acompanhando. A visão me causou arrepios e tive que conter um suspiro de admiração.
- Tchau, .
Mal percebi minha melhor amiga contorná-lo e correr para dentro do elevador. Ao ouvir a saudação, contudo, virei a cabeça em sua direção e a vi sibilar “não é gay” antes de as portas se fecharem e nós dois sermos deixados sozinhos no corredor.
A paz durou muito pouco, contudo.
- Ai meu Deus! – sussurrei horrorizada ao ver que Cookie, quase numa repetição do dia em que conhecera meu vizinho, se apoiar sobre as duas patas traseiras para colocar as duas dianteiras sobre a camisa social branca dele.
Meu cachorro abanava o rabo sem parar e latia feliz para , que o olhava franzindo o cenho. Corri para tirá-lo de cima do meu vizinho, mas Cookie não estava cooperando. Ele obviamente queria ganhar um carinho de e até mesmo latia algumas vezes para deixar claro sua intenção. Tive que colocar força para puxá-lo pela coleira.
- Mamãe já conversou com você sobre não fazer isso – ralhei com ele enquanto o puxava para dentro do meu apartamento. - Você só entende o que você quer, né? Depois vamos falar sobre isso de novo. Agora fique aí – empurrei-o gentilmente e fechei a porta, meu coração com uma dorzinha ao ver seu olhar triste.
Virei para o corredor, desejando que tivesse ido embora daquele jeito silencioso dele. Infelizmente meu vizinho continuava parado exatamente no mesmo lugar, ainda segurando sua maleta cara e me encarando como seus olhos frios.
- Sua amiga pode chegar em casa naquele estado?
Isso era provavelmente uma das últimas coisas que esperava ele dizer.
- Estado? – joguei a cabeça para trás. - Que estado?
- Ela tinha uma garrafa de vinho meio vazia nas mãos e me olhou de um jeito bem engraçado.
- Avalon não estava bêbada.
E ela te encarava de maneira engraçada porque estava ponderando se você é gay ou não. Por razões óbvias, deixei essa parte de fora.
- Foi com ela que você teve o encontro que te impediu de cumprir o seu compromisso comigo?
- Nós jantamos juntas pelo menos uma vez por semana desde que nos conhecemos – cruzei os braços, na defensiva. – Não podia dispensá-la para trabalhar para você. Sei que não fizemos muito progresso desde que você pediu que eu realizasse essa tarefa, mas prometo compensar amanhã.
Ele arqueou a sobrancelha, mas, surpreendendo-me mais uma vez, mudou completamente de assunto:
- Seu cachorro sempre ataca as pessoas desse jeito, ? Trinquei os dentes, e todos os meus instintos de proteção floresceram rapidamente.
- Meu cachorro não ataca ninguém.
- Realmente? Quase me enganou uma vez... ou duas.
- Não vou discutir porque claramente você está buscando um bode para expiar as preocupações que você tem aí dentro – bati em meu peito.
Antes que percebesse, minha boca enorme estava falando mais do que devia. piscou devagar e o silêncio pesou por um segundo.
- Do que exatamente você está falando, ?
Seu tom continha um novo grau de frieza e tive que me segurar para não tremer literalmente. O uso de apenas meu sobrenome também foi desconcertante. Apesar disso, meu lado psicólogo não deixou que me calasse:
- Refiro-me ao fato de que você mantém essa pose de durão e esse jeito de homem do gelo para não encarar o quão assustado você está com a possibilidade de algo acontecer com Chase. É sua forma de se proteger, e isso é normal. Começa a sair de controle, contudo, quando você passa a usar a raiva para descontar em outras pessoas suas frustrações por não poder ajudá-lo.
Sua máscara de fúria glacial se quebrou para ser substituída pela surpresa.
- Do que porra você está falando? Que merda Chase tem a ver com isso?
- É óbvio que você se preocupa com seu parceiro e não há necessidade de você se esconder atrás de uma pose de forte. Podemos conversar sobre isso. Imagino que seja mais difícil assumir que é homossexual nas forças armadas e que você deve ter interiorizado essa proibição, mas não há problema nenhum em assumir agora.
Não conseguia parar de falar, as palavras se atropelando mesmo ao ver o mais absoluto choque aparecer em seu rosto.
- Poderíamos falar abertamente sobre isso, mas entendo que pode ser pessoal demais, então tenho vários colegas excelentes para te indicar. É tóxico ficar guardando tudo e-
se recuperou da surpresa por meu discurso e voltou a adotar sua expressão impassível, exceto por um brilho indecifrável em seus olhos.
- ...isso pode até mesmo lhe causar algum mal físico. Li sobre um caso em que o homem fo-o que você está fa-fazendo?
Andei para trás quando começou a avançar para mim em uma linha reta e com a agilidade de uma pantera letal. Bati com as costas na parede e arregalei os olhos, finalmente interrompendo meu discurso.
- , o que você está fazendo?
Ele estava tão perto que precisei espalmar minhas mãos em seu tórax – e imediatamente senti que elas queimavam – para não perder o equilíbrio. Também foi necessário jogar a cabeça para trás a fim de encarar seus olhos azuis.
- ? – sussurrei de novo depois de mais alguns segundos de silêncio onde ele me encarou de um jeito que fez com que me sentisse nua.
Quando reagiu, entretanto, foi apenas uma única palavra dita tão baixo e tão crua que fiquei desnorteada, sentindo que alguma coisa estava muito fora do lugar:
- Gay?



Capítulo 10

Tive minha cota de surpresas na vida. Algumas maiores do que outras. O dia em que minha mãe faleceu, a noite em que tomei um tiro de fogo amigo no braço, a manhã em que me vi concordando em ir trabalhar na I e quando Chase me convidou para ser padrinho do casamento relâmpago dele. Nada, contudo, chegou nem perto de ouvir minha vizinha fazer um discurso sobre como eu reprimia minha homossexualidade. Como se isso não fosse imaginação o suficiente, ela ainda pensava que eu tinha um relacionamento com Chase.
Chase.
Meu melhor amigo, Chase.
Aquilo era tão, mas tão surreal para mim que nem mesmo conseguia passar a fase do choque. Normalmente quando alguém comenta alguma coisa com você, seu cérebro tende a, involuntariamente, imaginar o cenário em questão. O que ela dizia, entretanto, era descabido ao ponto de que nem mesmo conseguia ultrapassar a parede fictícia em meu cérebro que separava a noção do possível do impossível. Minha imaginação, ao contrário da dela, não conseguia chegar nem perto de formar uma imagem em que Chase e eu fossemos um casal. Aquela noção equivocada que criou conseguiu apagar tudo que ela havia dito antes, sobrando só uma incredulidade curiosa em mim. Antes que pudesse cortar toda aquela baboseira, porém, continuou com seu discurso, no qual conseguia criar uma explicação plausível e, ao mesmo tempo, completamente errada sobre meu comportamento.
Só podia ser algum tipo de dom. Ninguém normal conseguia juntar tantas informações certas e chegar a uma conclusão tão errada.
Uma parte de mim só queria colocar a mão sobre sua boca e pedir alguma explicação a respeito de como ela havia montado aquele raciocínio, contudo, outra parte – a maior e mais primitiva delas – estava instigada demais, havia sido provocada demais para agir racionalmente.
Ela não parava de falar.
O dia no trabalho havia sido estressante para além do usual e, chegando em casa, precisava encarar outro furacão.
Ela simplesmente não parava de falar.
Como um autômato sem controle, vi-me marchando até ela. Não conseguia enxergar uma razão para isso senão o fato de que havia oficialmente chegado ao meu limite.
A mudança tão brusca de ambiente. Do deserto para selva de concreto.
Minha vizinha destrambelhada.
Ter ido, entrado e permanecido dentro do prédio em que prometera jamais pisar outra vez.
Minha vizinha sacudindo de maneira hipnótica aquela delícia de bunda cada vez que cruzava meu caminho ou apertando seus seios ao cruzar os braços por estar chateada com algo que eu disse.
Todas as vezes em que o insuportável do meu velho aparecia do nada para escrutinar e reclamar sobre algum aspecto insignificante de um assunto que nem mesmo lhe dizia respeito.
me atormentando de diversas maneiras a cada vez que nos encontrávamos.
O trabalho burocrático que me irritava além do que considerava ser possível.
E então o ápice de tudo: A responsável por me deixar de pau duro praticamente a cada vez que nos encontrávamos, a culpada por toda frustração sexual acumulada desde que voltei à América, me passava uma análise psicológica completa sobre como eu era gay.
Gay.
Depois de todas as vezes que pensara em segurar aqueles seios redondinhos em minhas mãos e descobrir que cor seus mamilos tinham, das diversas vezes em que tive que segurar o impulso de curvá-la sobre a primeira superfície que conseguíssemos alcançar com a única finalidade de mostrar minha apreciação por sua bunda, de todas as fantasias sobre me enterrar tão fundo dentro dela que ficaria ainda mais aérea pela sensação que traria ao fazê-la gozar. Com força.
Mais aérea do que o normal.
Aguentar toda aquela merda, quase enlouquecendo de frustração, e ela pensava que eu era gay.
Tinha uma excelente desculpa, então, para o lapso de racionalidade que me levou a emboscar contra a parede. De maneira ausente percebi que ela perguntava o que eu estava fazendo, mas aquela questão era justamente o cerne de tudo, uma vez que também não tinha ideia do que fazia ou, pior, o porquê fazia. A única coisa que fazia sentido eram justamente meus sentidos.
Minha mão escorregou por debaixo da parte de sua camisa que cobria o lado esquerdo do seu quadril. Meus dedos afundaram naquele ponto e ela soltou um gritinho surpreso que logo se metamorfoseou em um suspiro. Um pequeno baque surdo soou pelo corredor silencioso quando, ao tentar arquear o pescoço ainda mais para me olhar, ela bateu a cabeça na parede. Consegui me controlar o suficiente necessário para ter certeza de que ela não tinha se machucado antes que deixasse os rugidos do meu sangue se sobreporem ao resto. Os sons que ela deixava escapar e o barulho de algo batendo contra a parede me faziam pensar acidental e imediatamente em sexo. Primitivo e carnal.
Como a mesma exatidão mórbida de quem sabe estar completamente fudido quando a munição acaba em meio a território inimigo, tive a certeza de que, naquele segundo, o fiapo de autocontrole que me restara tinha se dissolvido. Uma das únicas coisas que podia pensar como metáfora digna do que havia acontecido foi o dia em que presenciei a corda do violão de um dos meus homens se arrebentar.
Foi inesperado, tão violento para uma coisa tão delicada, e que fez vários de nós marmanjos pular de susto.
Meu autocontrole se arrebentou exatamente do mesmo jeito. Só restou o lado mais selvagem.
- Gay? – repeti depois de alguns segundos infinitos. – Você acha que eu sou gay? – minha voz saía em grunhidos tão guturais que eram ininteligíveis até para mim.
- -, , o que você está fazendo?
Ao contrário das minhas, suas palavras não passavam de um sussurro que até poderia ser categorizado como assustado não fosse a maneira como seus olhos estavam anuviados e suas mãos se apertavam em meus ombros.
- Responda a pergunta, .
Minha mão subiu por seu braço para agarrar uma mecha mais longa do seu cabelo curto e puxá-lo firme.
- Odeio ter que me repetir.
O gemido abafado que soltou fez com que me pressionasse contra ela até que não houvesse mais espaço entre nós. Minha ereção roçou sua coxa nua e a vi cerrar os olhos por um segundo.
- Responda.
Precisou de mais alguns momentos antes de gaguejar uma resposta:
- Não estou julgando. Nã-não é da minha conta. Eu só quero ajudar.
- Ajudar? – uma risada irônica foi arrancada de minha garganta. – Sabe como você pode ajudar? - abaixei a cabeça até que seu ouvido estivesse ao alcance da minha boca. – Você poderia parar de ser tão intrometida, sempre aparecendo do nada em meu apartamento e agindo como se fosse a dona da casa.
Ela inclinou a cabeça para o lado, dando-me mais acesso.
- Ajudaria se você não tirasse conclusões precipitadas sobre coisas das quais você não tem nem ideia.
Meus dentes se fecharam sobre a pele de seu pescoço de maneira punitiva. O gemido dela foi ainda mais alto, e aqueles pequenos sons que ela deixava escapar estavam me enlouquecendo.
Forcei uma das minhas pernas por entre as suas e suas unhas se fincaram em meus ombros.
- Acima de tudo, entretanto, - passei a língua sobre a marca vermelha que se formara graças à mordiscada, - ajudaria se você parasse de rebolar essa bunda de um lado para o outro enquanto me chama de gay.
Seus olhos se arregalaram dramaticamente.
- Você nã-não é... você não é... – suas palavras saíram aos trancos e senti, mesmo sob o terno idiota, suas unhas se afundarem em meus ombros.
Ah, então finalmente ela entendia.
- O quê? Não sou o quê? – deslizei a ponta do meu nariz por seu pescoço.
Devagar.
Queria ver minha presa cair, cansada de lutar, exausta.
Era para isso que fora treinado e que exercitara durante anos. Então, ao invés de pular em cima dela, como queria, deixei a situação subir, se construir, se arrastar até o topo para se espatifar lá de cima quando eu quisesse, quando desse o golpe final.
Mas ainda não era hora.
- Quantas vezes tenho que dizer que odeio me repetir, ? – dessa vez chupei o lóbulo de sua orelha. - Não sou o quê? Responda.
Um suspiro alto.
Minha mão desceu para sua coxa.
Ainda não.
Um gemido.
- N-não é g-gay...
Agora.
Cheguei ainda mais perto para que minha coxa estivesse pressionada contra o meio de suas pernas. Seu corpo amoleceu e quase pude sentir o calor e a umidade de sua buceta – mesmo sob o material da calça social e do seu jeans. Minha mão deixou a mexa de seu cabelo para agarrar um chumaço todo e puxei sua cabeça para trás.
Seus olhos estavam bem abertos quando abaixei a cabeça para encostar minha boca contra a sua, toda a calma artificial se evaporando instantemente. Separei seus lábios com os meus e a beijei do jeito que eu queria – e só percebi agora o quanto queria - desde a primeira vez que ela invadiu minha casa como o furacão que ela era.
Aquilo era bom.
Não vou dizer que compensava a espera porque isso seria mentira. Preferia estar beijando durante todo o tempo em que nos conhecíamos a ter esperado para construir alguma bobagem de expectativa. Essa porra toda aí era bobagem. Bom era o jeito como sua língua tentava acompanhar a minha, a maciez do seu cabelo sob minhas mãos, o jeito que ela tentava chegar mais perto, praticamente se pendurando em mim.
Votei a realidade no primeiro puxão que senti em meu cabelo. Imediatamente me afastei. Por um segundo me perdera o suficiente para esquecer que minha parceira não conseguia segurar o fôlego tanto quanto eu.
E dentre todas as reações que tivera até agora, dentre toda a intensidade, foi aquilo que me assustou. Podia lidar com a perda de controle, com o jeito que ela fazia a porra do meu sangue queimar e como conseguia me deixar duro como pedra mais rápido do que um adolescente inexperiente. Não podia entender, contudo, como havia perdido o foco ao ponto de não perceber que poderia machucá-la. Com essa constatação, dei um passo para trás, horrorizado. Antes que ela pudesse abrir os olhos, eu havia fugido como se mil cães do inferno estivessem me perseguindo.
Não correra – porque isso era demais para meu orgulho –, mas admito que não esperei pelo elevador e que desci as escadas na velocidade mais rápida que tinha andado desde que voltara a América. Ao sair do prédio, dei de cara com a noturna brisa nova-iorquina. Passei a mão pelo rosto.
Que porra estava acontecendo comigo?
Essa merda era demais para ser tragada a seco. Foda-se. Eu precisava de um copo. Nada do velho Jack hoje. Jameson. Puro. The Hook’s estava muito longe e não queria correr o risco de encontrar Hunter, então entrei no primeiro bar pelo qual passei e fiz meu pedido. Três doses depois e meu plano inicial de evitar meu melhor amigo se tornou pó quando me vi andando em direção ao meu pub preferido. Graças Às habilidades de localização geográfica que se desenvolve no exército – e também aos anos em que passei fazendo aquele caminho ao menos duas vezes por semana - fui capaz de chegar ao estabelecimento de Tom mesmo com todo o álcool nas veias.
Assim que passei por aquela porta familiar, enxerguei Hunter do outro lado do cômodo conversando animadamente com outros caras. Andei o mais rápido que pude, amaldiçoando a porra daqueles bancos que se metiam na minha frente.
- , amigão! – Caleb, expansivo como sempre, gritou assim que me viu. – Você se lembra de McCarty e Shanders? Eles estavam no 28. Caras, esse é meu bom e velho amigo e antigo capitão do 21, .
Acenei com a cabeça em um cumprimento, lembrando rapidamente de ter encontrado aquele destacamento em algum momento ou outro. Voltando ao presente, segurei Hunter pela parte de trás da camisa.
- Preciso falar com você.
Sua personalidade animada ainda permitiu que, enquanto andava de costas graças a minha mão puxando-o pelo pano, ele pudesse gritar animadamente:
- Vejo vocês depois então.
Revirei os olhos e o empurrei para uma cadeira em uma das mesas do canto onde havia menos pessoas.
- ‘Tá atacado hoje, hein ? Que foi? Problema com a patroa?
- Patroa? Que patroa?
- , é claro. Você fala tanto dela que ela está mais para sua mulher do que para sua vizinha. Arrisco até mesmo a dizer que você anda reclamando mais dela do que seu velho.
Não sei se me irritava mais o fato de ele estar certo sobre eu querer falar sobre ou por estar certo também sobre todo o resto.
- Cala boca – resmunguei. – Não preciso desses seus comentários idiotas.
- Precisa de que, então, uma gelada?
- Não – sacudi a cabeça e, por um segundo, o teto saiu do lugar. – Tomei a porra de um negócio que o cara disse que era um Jameson, mas ‘tô sentindo que aquela merda era gasolina pura – massageei minha testa, o cotovelo apoiado na mesa.
- Então é por isso que você está assim.
- Assim como?
- Assim – afinou a voz numa clara tentativa tosca de imitar enquanto gesticulava com a mão em círculos na frente do meu rosto como ela tinha feito.
Finalmente consegui acertar o soco que ele estava merecendo desde ontem. Direto em suas costelas e talvez tivesse tido o prazer de ouvir um urro de dor ao invés de apenas um grunhido se meus reflexos não estivessem embaralhados graças à porra do álcool falsificado vendido perto da minha casa.
- Vou te contar uma coisa – ergui o dedo em riste ao falar quando ele finalmente parou de gemer. – E se você repetir uma palavra do que eu disser agora a qualquer outra pessoa, vou contar para todo o 21 que aquela noite em que você diz que se assustou por um escorpião, na verdade, era porque estava com medo de uma baratinha.
Sua postura se endureceu imediatamente e ele semicerrou os olhos no que provavelmente pensava ser uma atitude intimidante, mas que teve o mesmo efeito que o de um Puppy resmungando.
- Você jurou que não iria contar isso para ninguém.
- E vou cumprir com minha palavra se você der a sua de que vai ficar de boca fechada também.
- Porra, tanto faz, cara. Eu não iria contar ninguém seja lá que merda você vai falar. Não precisa me chantagear.
Sim, sabia que ele não falaria nada, mas têm coisas que a gente precisa deixar bem claro.
- Não estou te chante-chantageando – algumas palavras se enrolavam graças ao buzz do whisky. – Estou apenas comentando que lembro muito bem do dia em que você gritou como uma garotinha.
Acho que passar tanto tempo ouvindo o velho usar seus estratagemas sombrios contra os outros havia, afinal, valido a pena. Aprendi a chantagear com classe.
- Ótimo. Agora que já estabelecemos que você é um babaca chantagista e que eu sou um excelente amigo que não revela segredos alheios, vai me contar que porra foi essa?
Aquilo era bem constrangedor e, se não tivesse me apegado a coragem líquida e ao fato de que era culpa de Hunter, provavelmente não conseguiria resmungar as próximas palavras:
- Graças às suas gracinhas, veio me passar toda a solidariedade por minha preocupação reprimida pelo meu parceiro, Chase.
- Preocupação reprimida? – repetiu, incrédulo. – Por que isso seria um segredo de Estado?
- Meu parceiro-parceiro – repeti.
Ele tombou a cabeça para o lado, exatamente como um Puppy confuso.
- Ela achou que eu fosse gay.
Foi a primeira vez que vi Hunter ficar quieto durante um minuto inteiro sem que alguém mandasse. Depois disso ele só riu e riu. Pelos próximos cinco minutos.

xxx

Quando estava na faculdade, a maioria dos meus amigos experimentou maconha. Eu provavelmente teria feito o mesmo não fosse Spencer me passando uma lição de mais de duas horas – literalmente – sobre como aquilo era maléfico para o meu cérebro. Meu primo podia ser bem convincente e, quando aquilo não bastava, ele simplesmente te vencia pelo cansaço. Pais liberais não eram páreo para um primo super-protetor. Havia desistido há muito, pois, de conhecer a sensação de ficar alta, de ficar alucinada. Isso até que me beijou.
Ok. Minhas experiências passadas não foram a melhor coisa. O aspirante a Mister América do meu último ex-namorado não se preocupava muito com preliminares e os que vieram antes dele ainda estavam aprendendo como sexo funcionava. Mesmo com todas as minhas experiências medíocres, contudo, sabia que o que havia acabado de experimentar não era normal, não era o esperado. levava o jogo para outro nível.
Não sabia como explicar o que havia acontecido naquele corredor. Tudo havia se tornado um borrão depois da primeira vez que ele grunhiu a pergunta. Perdi a noção de espaço quando seu corpo – todo duro – me pressionou contra a parede, perdi a noção de tempo quando sua boca encostou na minha pele, e todo meu senso de equilíbrio sumiu quando sua coxa foi para o meio das minhas pernas. Queria me esfregar nele, queria pedir que ele fizesse alguma coisa... qualquer coisa. Antes que precisasse implorar, contudo, ele havia me beijado. A partir dai, eu já não sabia o que havia perdido, pois foi então que tudo terminou de embaçar.
Mesmo agora, uns bons minutos depois de ele ter sumido sem explicação, ainda estava perdida. Foram necessárias várias lufadas de ar puxadas com força para meus pulmões para me acalmar o suficiente para recobrar a lucidez.
- Nossa, que coisa... – olhei para os lados, passando a mão sobre o rosto e de novo ao meu redor – ... que.. que foi que.. está acontecendo?
Como esperado, o silêncio não me deu nenhuma resposta.
- Mas, gente... isso não... – passei a mão pelo pescoço e por meus lábios inchados.
De todo pandemônio emocional ao qual fui submetida nos últimos minutos, o único ponto que fez algum sentido foi a certeza de que não era gay.
Não. Definitivamente não gay.
Um alívio. Exceto pelo fato de que Ava estava certa. E eu errada. Odeio, odeio quando isso acontece.
Percebendo que ele não voltaria e, acima disso, que não poderia ficar infinitamente parada, no escuro – já que a falta de movimento fez com que a luz por sensor se apagasse - encarando o vazio, decidi me mexer. Ainda de costas, tateei a porta atrás de mim em busca da maçaneta de minha casa. Já estava com a mão sobre ela quando vi um objeto retangular e preto no chão. Só consegui identificar o que era quando me mexi, fazendo com que o sensor ascendesse a luz.
- Oh.
Abaixei-me para pegar a maleta preta que havia deixado cair em algum momento. Era pesada e obviamente bem cara. Suas iniciais estavam cravadas. Não podia deixá-la aqui no corredor, sozinha e abandonada.
Não perdi a ironia daquilo ao decidir levá-la para minha casa.
Cookie estava pacientemente sentado ao lado da porta, mas ainda assim olhava para cima como se esperasse algo, seu rabo balançando sem parar em meio-círculos contra o chão. Mal tive tempo de trancar a porta antes que ele estivesse farejando a maleta em minha mão para logo depois soltar latidos animados.
- É, é. É do – resmunguei, revirando os olhos. – Acho que já estabelecemos que você, por algum motivo além da minha compreensão, adora ele.
Puxei meu braço para tirar o objeto do alcance dele, afinal não queria que ele reclamasse sobre baba canina ou algo assim – e terminei de fechar as diversas outras trancas. Foram instaladas graças ao jeito esquisito que Ava ficava olhando para minha porta sempre que passava a noite aqui. Mesmo nunca tendo dito nenhuma palavra sobre o assunto, ela dormiu bem mais tranquila assim que foram instaladas. Meu cachorro entendeu a deixa e se afastou, mas só o suficiente para que andasse até a mesa e cuidadosamente pousasse a maleta lá.
- Está esperando para saber o que aconteceu, né? Pois não aconteceu nada! – coloquei as mãos na cintura. Mentira. Senti uma fisgada desconfortável no estômago. Ai que coisa horrível mentir para os seus filhos. Infelizmente meu bebê sabia exatamente quando eu estava mentindo e sempre abria uma expressão que só poderia ser descrita como irônica e desconfiada.
- Você é um cachorro ou muito inteligente ou muito esquisito – murmurei para mim mesma. – Mas ok. Você venceu. De novo. Aconteceu alguma coisa, mas não vou te contar porque você é muito novo para ouvir essas coisas.
Isso pareceu deixá-lo satisfeito o suficiente e Cookie soltou mais um latido feliz antes de sair andando para sua tigela de comida.
- Hey, hey, volta aqui. Nós vamos ter um papo muito sério agora. Quantas vezes mamãe vai ter que te dizer para não pular no nosso vizinho? – forcei um tom sério.
Ele virou a cabeça para me olhar, completamente confuso.
- Não finge que não ‘tá entendo. Entende tudo que eu digo menos isso, né? – arqueei a sobrancelha.
Se Cookie pudesse dar nos ombros, tenho certeza que ele o faria. Voltou-se para seu prato, nem sequer me dando o mínimo de atenção necessária.
- Ninguém merece – resmunguei baixinho, desistindo daquela briga e indo para o quarto. - A gente cria os filhos e eles crescem e esquecem quem é que manda. Sou eu quem fornece sua comida, sabia? – falei sobre o ombro. – Ingrato.
Cansada demais para tentar entender meu cachorro e sua superinteligência seletiva, ou para lavar as roupas que tinha planejado, fui direito para cama. Felizmente não tive qualquer tipo de sonho – nem mesmo os eróticos que estava tendo ultimamente – até que meu celular vibrando embaixo do meu travesseiro me acordou em um salto.
- ALÔ, ALÔ! AVA, É VOCÊ? O QUE ACONTECEU? – estava berrando histérica no iPhone que segurava contra a orelha antes mesmo de conferir o visor.
Além de perder o horário, tinha o grande problema de que meu raciocínio se tornava absolutamente caótico antes do meu café matinal.
- Não, , não é Av
- - CHARLLOTE? – empurrei os edredons de lado e milagrosamente consegui me levantar da cama sem cair. – ME ATRASEI? PERDI O HORÁRIO!
Nada mais de vodcas com suco de morango de caixinha e nunca mais sessões de amasso com . Ok. Aquilo era um exagero total. Vamos cortar só o que realmente conseguia cortar, mesmo sendo o menos tóxico.
Certo. Então nada mais de vodca com suco de morango de caixinha.
- O PRIMEIRO PACIENTE JÁ ESTÁ AÍ? – corri para o banheiro. – DIZ QUE JÁ ESTOU CHEGANDO!
- Não, . Me escuta. Temos novos hóspedes aqui e eles estão em mal-estado. Queria saber-
Aquilo me fez parar de tentar escovar o cabelo com uma mão só.
- Charlotte, você está muito esquisita – comecei a sussurrar, atropelando as palavras e olhando para os lados, o coração disparado. – Isso é algum tipo de código? Alguém está aí no consultório? Ele tem uma arma? Ele diz que vai te matar ou se matar? Esquece! Não importa. Eu vou ligar para o 911. Spencer disse que é isso que se deve fazer. Tem mais alguém na sala?
- Do que diabos você está falando, ? Aqui é a Stacy.
- Stacy? Oh... oh!
O alívio foi tão grande que minhas pernas enfraqueceram e me encostei na parede. Isso até que outro pensamento assustador me ocorreu.
- Stacy? Tem alguém aí com uma arma tentando se matar? – murmurei de novo.
- Querida, por que você tem essa mania de perseguição? Precisa ver uma coisa dessas. Não é normal. Quem foi que falou alguma coisa sobre arma ou suicídio?
Ela tinha um bom ponto, mas não poderiam me culpar. Entre a paranoia de Ava e as histórias do meu primo, eu tenho é sorte de conseguir sair na rua sem sentir a necessidade de usar meu direito constitucional de portar uma arma. - Só liguei para saber se você pode vir no LF hoje. Nós resgatamos alguns filhotinhos ontem e estamos precisando de ajuda extra.
- Oh, eu adoraria, Stacy, mas só posso depois das seis. O consultório anda muito lotado ultimamente.
Já podia imaginar o olhar fulminante que lançaria na minha direção assim que lhe dissesse que faltaria novamente à nossa sessão de digitação.
- Mas, querida, hoje é sábado – falou, retornando ao tom doce e suave que lhe era característico.
Sábado? Acho que havia interferido no meu senso temporal em um nível bem mais profundo do que havia previsto anteriormente.
- Oh! – estava repetindo muito aquilo ultimamente. – Estamos indo então. Quinze minutos.
Calça jeans vermelha, blusa preta de manga comprida e tênis branco. Tudo simples e nada de acessórios já que aqueles que vou encontrar não ligam para esse tipo de coisa e a bijuterias se mostraram uma má-ideia da última vez. Depois de terminar de me arrumar, foi a vez de arrumar a comida e a água de Cookie. Lavei as mãos e preparei um sanduíche rápido e o necessário café para meu próprio café-da-manhã. Poucos minutos depois meu melhor amigo estava me arrastando pelas ruas. Foi só dizer onde estávamos indo que sua animação atingiu níveis bem altos, o que resultou em meu coração atingindo batidas bem altas graças à corrida na qual estava atualmente sendo submetida.
Esse meu sedentarismo ainda iria me matar.
O negócio foi tão feio que precisei me apoiar na parede na porta de entrada do Little Friends e respirar fundo algumas vezes. Meu carrasco, contudo, estava muito ansioso para rever seus amigos, então só me permitiu poucos segundos de descanso – nos quais rodeou minhas pernas initerruptamente – antes de me puxar para dentro do prédio.
- !
- Hey, Stacy – cumprimentei minha amiga ao vê-la se aproximando.
Assim, como eu, ela usava tênis. Sua pele chocolate fazia um contraste incrivelmente bonito com o short branco e a camiseta amarela que ela usava. Seus cabelos muito pretos estavam puxados para trás em um rabo-de-cavalo, seus belos olhos castanhos estavam cansados.
- ‘Tá tudo bem? – passei a mão em seu ombro em um gesto de conforto.
- Tudo. Só um pouco cansada – abaixou-se para coçar atrás das orelhas de Cookie.
Meu cachorro fechou os olhos ao receber o carinho, sua língua para fora e para o lado da boca. Parecia estar sorrindo, mas era só isso. Estava lá, calmo, apenas apreciando. Nada da bagunça que ele sempre aprontava ao ver meu vizinho.
Estreitei os olhos ao observá-lo. Aposto que ele fazia isso de propósito! E depois tem gente que diz que são os pais que envergonham os filhos. Talvez fosse algum plano para se vingar por eu ter parado de comprar aqueles biscoitinhos sabor bacon.
- Aquela porcaria estava te engordando – murmurei, muito séria.
Imediatamente os dois estavam me olhando.
- O que estava me engordando? – Stacy perguntou, franzindo o cenho, ainda ajoelhada ao lado dele.
- Não – murmurei rapidamente. – Eu não estava... ‘tava falando com o... ah, esquece! – sacudi a cabeça. - Estava pensando alto.
Cookie e ela se entreolharam, confusos, antes de Stacy tirar a coleira dele e se levantar.
- Ok. Você é quem sabe – encolheu os ombros. – Vem. Vou te mostrar os filhotes e depois guardar isso aqui nos fundos – levantou a mão. – Você pega quando for embora. Cookie – olhou para baixo e logo depois apontou para direita –, Baltazar está naqueles lados. Por que você não vai brincar com ele enquanto sua mãe e eu trabalhamos um pouco? Meu bebê imediatamente seguiu as instruções, animado para encontrar seu amigo. Baltazar era um Golden Retriever amarelo maravilhoso que não merecia o nome que havia ganhado. A boa notícia era que ele estava feliz demais por ter sido adotado por Stacy para se preocupar com o nome idiota que ela escolhera.
- São seis filhotinhos de Labrador – me dava as informações enquanto caminhávamos pelo espaçoso andar. – Foram abandonados dentro de um saco em uma lixeira.
Coisas como aquela me deixavam especialmente tristes. Era doloroso testemunhar o quão baixo alguém poderia chegar. Pessoas que maltratavam animais eram os primeiros na minha lista daqueles que poderiam ser abandonados fora da arca se houvesse outro dilúvio. Nem meu diploma e nem todos os estudos e treinamentos que havia feito na vida fazia com que eu entendesse o que se passava na cabeça daqueles que machucavam seres que só queriam dar e receber amor.
- Felizmente a equipe de resgate os encontrou a tempo e eles estão ótimos. Só precisei te chamar mesmo porque Jackie teve uma emergência e não pode vir. Sei que você prefere vir aos domingos.
- Sem problemas – encolhi os ombros, meu peito já mais leve ao saber que eles estavam bem. – Fico feliz em ajudar.
Ela sorriu em resposta antes de dar as próximas instruções.
- Eles estão ali – apontou um cercadinho. – E as mamadeiras estão do lado. Você pode alimentá-los enquanto vou colocar ração para os maiores? – indicou com a cabeça o lado esquerdo, onde aqueles que não eram mais filhotes eram mantidos.
- Claro.
Os vários dias me voluntariando para trabalhar aqui haviam me ensinado como cuidar de recém-chegados.
- Ótimo – dizendo isso, saiu apressada.
Aproximei-me mais do cercado e pude enxergar os ditos seis filhotes todos embolados juntinhos, formando uma bola preta disforme. Abaixei-me para pegar um deles, os outros soltando alguns chorinhos por serem privados do calor que o irmão deles ajudava a fornecer.
- Oi, carinha – sussurrei, ajeitando-o em meu braço para pegar uma das mamadeiras com a outra mão. – Tudo bem. Vai ficar tudo bem – empurrei o bico de borracha contra sua boca até que ele começou a sugar. – Você e seus irmãos vão gostar daqui. Senhora Lancaster vai cuidar de vocês até que alguém venha adotá-los.
Seus olhinhos quase não se abriam, mas ele bebeu tudo. Coloquei-o de volta depois de uns carinhos e peguei outro dos filhotes e uma nova mamadeira. Minutos depois já estava alimentando o sexto pequenininho e minha mente havia se perdido em divagações enquanto realizava aquela tarefa meio mecânica. Desde ontem à noite, aquele era o primeiro momento livre em que minha mente estava totalmente limpa de álcool e, portanto, não me admirava que estivesse aproveitando-o para analisar por que havia sumido depois de me beijar. Apesar de ser uma hipótese bem mais nobre, duvido muito que ele tivesse um spider-sense e que tenha saído correndo para salvar o mundo. Sobrava então só a alternativa humilhante:
- Será que eu beijo mal?
Ouvi a risada cristalina antes de uma voz feminina bem conhecida murmurar atrás de mim:
- Acho que o baixinho não vai responder, filha.
Fechei os olhos por um segundo, sentindo minhas bochechas corarem antes de me virar.
- Senhora Lancaster – cumprimentei a elegante senhora à minha frente.
Mary-Ann Lancaster estava sempre impecável e em uma saia longa, casacos combinando, os cabelos grisalhos presos em um coque severo e seus inseparáveis óculos quadrados de grau. Era difícil imaginá-la como diretora de um abrigo de animais, mas era só conviver com ela durante poucos minutos para se surpreender com o carinho que tinha com todos os animais do LF. Sabia o nome de cada um deles e se empenhava em gerenciar com perfeição a contabilidade e os voluntários do abrigo a fim de manter tudo sempre funcionando. Uma senhora de quase setenta anos com mais animação do que muita jovem de quinze.
Uma mulher admirável.
- Como a senhora tem passado? Eu estava aqui pensando como nossos novos hóspedes são adoráveis.
- Estou muito bem, querida. E sim, eles são adoráveis, mas não era sobre isso que estava pensando ou mesmo falando. Agora me conte o que está te incomodando.
Uma mulher admirável, intrometida e mandona.
- Estava só pensando alto, senhora Lancaster. Nada importante.
Tentei me manter forte, mas ela arqueou a sobrancelha e me lançou um olhar tão autoritário que me senti outra vez sentada no sofá da minha sala ao lado de Ava enquanto Spencer, em pé na nossa frente, dava-nos o sermão de nossas vidas logo depois de nos tirar da cadeia. E, exatamente como naquele dia, vi-me abrindo a boca e falando o que a pessoa queria ouvir. Desde a hora que abri a porta para minha melhor amiga ir embora até quando fui dormir. Foi quase como ontem à noite quando não conseguia parar de fazer uma análise sobre a sexualidade reprimida de : quando terminei de falar, estava estática, completamente horrorizada com minha falta de filtro.
- Lembro-me o dia em que você entrou por aquela porta, sozinha. Cookie te escolheu assim que pôs os olhos em você. Os animais são seres tão inteligentes, não é mesmo? – aproximou-se, olhando para o filhote em meus braços e dando algumas batidinhas carinhosas na cabeça dele. – Percebem coisas que nós não percebemos. Seria sábio se os escutássemos mais – levantou a cabeça, abriu um sorriso fechado e saiu andando para longe.
Pisquei devagar, mais abismada por aquilo do que pelo descontrole sobre minha própria privacidade. Esperava um sermão, uma reprimenda ou até mesmo uma opinião aleatória. O que definitivamente não esperava era um papo abstrato sobre habilidades animais. Não sabia que era possível sair do LF mais confusa do que havia entrado, mas, horas depois, quando fomos embora, minha cabeça girava não apenas com questões sobre o comportamento de ser, mas também me perguntando se a senhora Lancaster era algum tipo de sábio budista ou se ela sofria de Alzheimer. As várias e várias horas passadas no abrigo, pela primeira vez, haviam me deixado mais cansada do que o normal. Maiormente cansaço mental.
Ao chegar em casa, ainda era cedo e, depois de tomar banho, passei um tempo analisando o que iria fazer para o jantar, já que só havia furtado um sanduíche e algumas batatas do almoço de Stacy. Estava com fome e tinha tempo, então decidi por fazer um pão, salada e alguns steaks. Coloquei os ingredientes de tudo sobre a ilha e depois conectei meu celular no iHome. E quando a voz de Meghan Trainor cantando All about that bass encheu a cozinha, comecei a misturar a massa. Maroon 5 veio depois e permaneceu enquanto colocava o preparo no forno e me ocupava com as outras coisas. Anos de prática me fizeram terminar tudo com rapidez, contudo, enquanto comia, minha atenção sempre se voltava para o relógio azul redondo pendurado na parede. Enquanto empurrava a comida de um lado para o outro, assisti o ponteiro lentamente passar de sete e vinte e cinco para sete e meia.
Agora era o horário que e eu havíamos combinado no outro dia.
Havia feito tanta comida.
Prometi que iria compensar os dias em que não trabalhei.
parecia ser um cara que gostava de pão caseiro.
Mas se ele quisesse que eu fosse lá, ele teria falado alguma coisa.
Para não falar nos steaks.
Oh! E a maleta! Precisa devolver a maleta.
Pulei da cadeira. Estava resolvido. Não podia deixar meu vizinho sem sua maleta. Poderia conter papelada do seu trabalho não-da-máfia. Arrumei uma porção quatro vezes maior do que a que fazia para mim, fechei o pote com cuidado e peguei a maleta que estava sobre a mesa, mas longe de qualquer coisa que pudesse sujá-la. Equilibrei os dois objetos, cada um em uma de minhas mãos para não correr perigo de que elas se esbarrassem. faria picadinho da minha pessoa se eu manchasse sua maleta mafiosa. Não queria subir meu nome um pouco mais na lista negra de . Precisava arrumar as coisas, remendar essa bagunça.
Afinal, não era necessário ser um gênio para perceber que havia ferido seu orgulho masculino. Usara todas as letras para chamar o cara de gay enquanto aparentemente o provocava de maneira acidental.
Em minha defesa, eu realmente esquecia o quão pervertido os pensamentos dos homens podiam ser. Também não era como se ele me desse alguma dica de como estava se sentindo. Aquela máscara impassível era impenetrável. Podia ser desculpada por esse erro, mas sabia que o subconsciente de macho alfa dele não me “perdoaria” tão fácil. Machuquei seu orgulho, e isso era basicamente uma das únicas coisas que homens não conseguiam deixar para trás. Levando-se em consideração que estávamos nessa pequena bagunça graças à mim, era justo que eu desse o primeiro passo. Engoli o orgulho e o embaraço que nosso último encontro havia me causado.
E com “primeiro passo” quero dizer chutar sua porta três vezes já que minhas mãos estavam ocupadas.
Não demorou muito para que meu vizinho aparecesse, mas não havia nada do gelo ao qual me acostumara. Ao invés disso, ele estava furioso e quase me encolhi quando ele abriu a porta com tanta violência que ela bateu na parede e fez um estrondo.
- QUE MERDA É ES-ah.. o quê? – franziu o cenho.
Era a primeira vez que o ouvia levantar a voz, mas conclui rapidamente que sua atitude anormalmente irritadiça era bem menos assustadora do que sua raiva gelada. Conseguia lidar com gritos, já seu jeito glacial de normalmente me encarar era bem mais difícil de aguentar. Obviamente não facilitaria a minha vida, então, sem surpresas, ele voltou logo ao seu tom normal assim que percebeu que era eu quem o incomodava em sua santa moradia:
- Ah, é você. Deveria ter imaginado – cruzou os braços, que, para minha completa infelicidade, estavam cobertos pelas mangas da camiseta branca que ele usava. - O que você quer dessa vez, ? Além, é claro, de chutar minha porta como uma selvagem.
Nem uma palavra sobre o que havia acontecido ontem nesse mesmo corredor. Nem mesmo uma simples menção sobre eu tê-lo acusado de manter uma atitude ruim graças aos sentimentos reprimidos.
- Acalme-se. Eu vim trazendo uma oferta de paz – olhei significativamente para o pote em minhas mãos.
- Oferta da paz para que exatamente? – arqueou a sobrancelha.
Agora estava começando a me irritar. obviamente queria fingir que nada havia acontecido. Não gostava de ser ignorada.
- Política de boa vizinhança – rangi os dentes.
Dois podiam jogar esse joguinho, imbecil.
- Você? Boa vizinha? Desde quando?
Minha paciência tinha limites, então empurrei tanto o pote de comida quando a maleta contra seu peito e aproveitei do susto e desequilíbrio que isso lhe causou para me esgueirar para dentro da sua casa.
- Não seja mal-agradecido, . Eu até mesmo resgatei a sua maleta da máfia para você.
Já estava a meio caminho do escritório quando ele respondeu, incrédulo:
- Minha... maleta da máfia?
- É, é – fiz um gesto de descaso com a mão sem parar de andar. – Olha, apesar da sua conveniente perda de memória, - frisei as palavras com desdém - eu mantenho minhas promessas. Disse que hoje iria compensar os dias que não vim. Então, a não ser que você te-QUE COISA! VOCÊ TEM QUE SEMPRE SE MOVER COMO A DROGA DE UM FANTASMA?
Interrompi meu discurso ao virar-me para encará-lo – a fim de injetar mais seriedade às minhas palavras – só para encontrá-lo parado exatamente atrás de mim. Por pouco, por muito pouco mesmo, não bati meu nariz no seu tórax, o que provavelmente seria tão ruim ou até pior do que bater na porta. Certeza que minha cartilagem nasal não aguentaria dessa vez.
Dei um passo para trás.
- Por que você tem que ficar andando tão silenciosamente assim? Que droga você é, uma pantera?
Ele não ficou nem um pouco impressionado por minhas palavras exasperadas. Sua expressão continuou friamente em branco. Acho que, como sempre, sou eu quem teria que me preocupar com as convenções sociais tais como, por exemplo, a conversa.
- Por que você simplesmente não vai embora, ?
Impressionante como conseguia fazer aquelas palavras derrotadas soarem como a ordem de algum rei. Ou do rei Leónidas, para ser mais específica.
- Não – falei, dando a volta em sua escrivaninha e me sentando na cadeira. – Vossa Majestade, então, tem duas opções – ergui o dedo indicador e médio para mostrar o número ao qual me referia. – Pode ir para cozinha e comer o que eu trouxe ou pode ficar aí, quietinho.
Aquilo o surpreendeu ao ponto de seus olhos se arregalarem minimamente. Foi quase imperceptível, mas, levando em conta o jeito de nunca demonstrar emoções, aquilo foi um sinal e tanto.
- Você está tentando... tentando mandar em mim? – seu tom estava entre completamente abismado e possivelmente divertido.
Ok. Suponho que a cena era meio ridícula. Estava sentada, o que me deixava ainda mais baixa do que os normais vinte centímetros de diferença entre nós e ele obviamente era bem mais forte do que eu. Uma boa comparação seria uma formiguinha tentando dar ordens a um leão. Esta formiguinha aqui, contudo, era muito teimosa. Arqueei a sobrancelha e esperei por alguns segundos. Ao perceber que não ganharia aquela competição visual, decidi ignorá-lo. Enquanto ligava seu supercomputador – que também deveria ter a ver com a máfia porque, sejamos bem sinceros, aquela coisa parecia ser ainda mais cara e tecnológica do que os produtos da Apple – e separava a primeira pasta para digitar, senti que meu vizinho ainda me encarava.
Uma pasta inteira, quinze páginas foi o tempo que ficou em pé, em silêncio me encarando. O peso de seu olhar era tão forte que comecei a sentir minhas costas se retesarem cada vez mais a cada segundo em que sua presença dominante sufocava o cômodo inteiro. Quando finalmente senti que estava sozinha – sim, senti, porque o homem outra vez não fez nenhum barulho ao se mover – pude fazer uma pequena pausa para colocar a mão em meu pescoço e girar a cabeça para tentar aliviar um pouco da tensão acumulada ali. Também aproveitei para respirar fundo e me preparar para a próxima batalha quando ele voltasse.
Não foi necessário. A antecipação, a espera. Nada foi necessário. Durante as duas horas seguintes, não voltou. Não importou as inúmeras vezes que olhei para porta do cômodo ou os momentos que parei de digitar para prestar atenção se algum barulho poderia ser ouvido. Não havia nem sinal dele.
Decidi que havia feito o suficiente quando cheguei perto de digitar a metade das pastas. Desliguei o computador e me levantei. Satisfeita por ter feito minha parte, apaguei as luzes do escritório e fui para sala. Imediatamente percebi que não havia sido minha ideia mais inteligente, pois me encontrei no breu total.
Aquilo não era bom. Nem um pouco bom. Primeiramente porque eu preferia a luz, e, em segundo lugar, porque eu conseguia tropeçar em tudo na minha própria casa e enxergando, imagina só o desastre em território desconhecido e sem nem mesmo enxergar um palmo na frente do rosto.
- Saco! Cadê a droga do interruptor? – murmurei para mim mesma enquanto tateava a parede. – Ai, filho da mãe – por puro reflexo, me inclinei para segurar a canela que havia acabado de bater em algum lugar.
Não foi surpresa nenhuma quando, então, graças ao movimento brusco, perdi o equilíbrio. Ainda segurando a canela com a mão direita, estiquei o braço esquerdo, a mão espalmada para tentar aliviar a queda iminente. Por pura sorte, minha mão alcançou uma parede depois de poucos centímetros de cair para frente.
Soltei um suspiro de alívio e abri os olhos que nem mesmo havia notado que fechara. Ainda apoiada na parede, esfreguei minha perna dolorida de novo. Resmungando qualquer coisa entre os dentes, abaixei a perna devagar e, na mesma velocidade, comecei a me levantar. Mantendo em mente que a melhor tática seria seguir a parede, já que ela era uma coisa fixa e que tinha menos possibilidade de ter algum móvel encostado – isso sem falar que era exatamente onde meus procurados interruptores estavam.
É claro que nada na minha vida podia ser tão fácil.
Assim que comecei a subir a mão pela parede, percebi que a temperatura não estava certa. Quente demais para ser uma parede e tinha certeza que o aquecedor não estava ligado porque ainda estávamos no final do verão. E ninguém em sã consciência queria ainda mais calor em Nova York nessa época.
Também era mais macio do que concreto.
Franzindo o cenho, tentei enxergar algo, mas era impossível para alguém com visão completamente normal, imagina para pobre de mim. Meus óculos não tinham serventia nenhuma no momento. Continuei, então, o pseudo-braile, subindo as mãos na medida em que me endireitava. A cada novo centímetro, mais confusa eu ficava.
Estava apostando que era um sofá até que minha mão alcançou algo que era ondulado e duro, firme. Parecia até ab-OH.
OH! AI MEU DEUS!

Congelei no lugar, meus dedos entorpecidos.
Só poderia estar enganado. Não é possível que est-
- Terminou de me apalpar no escuro, ? – o tom frio cortou como uma faca a escuridão.
Era seguro dizer que pulei tão alto para trás que quase fui parar dentro do escritório outra vez.
- Que isso? Ficou maluco? – falei, sem fôlego, a mão contra o peito em uma tentativa inútil de diminuir os batimentos desenfreados. - Porra! Decidiu digitransformar de pantera para morcego?
- “Digitransformar”? – podia ouvir o tom zombeteiro e também consegui imaginar o jeito irônico e frio com que ele deveria estar me olhando. – Um pouco infantil, não? Suponho que combina perfeitamente com seu gosto musical, contudo.
- Meu... gosto musical? – repeti, tão surpresa que esqueci o infarto que quase tive.
O silêncio foi a reposta que obtive.
- Esquece – dei alguns passos incertos na direção em que supunha que ele estava. – Quero saber o que você estava fazendo parado no escuro desse jeito.
Primeiro veio uma risadinha irônica, depois as palavras duras:
- Por mais que você pareça fazer questão de esquecer, essa é a minha casa. Posso ficar onde bem quiser, e você não tem nada a ver com isso.
Ok. Aquilo era meu limite.
- Já chega. Eu não preciso aguentar esse tipo de coisa – endireitei as costas, preparando-me para um possível confronto. – Quase terminei as porcarias das suas pastas idiotas. Faço o resto na segunda, pois não vou deixar você estragar todo o meu final de semana.
- Você fala como se eu tivesse irrompido na sua casa. Não te pedi para vir aqui, .
Poderia ter respondido muitas coisas frente aquelas palavras atravessadas. Poderia ter dito que ele havia me pedido para ajudá-lo e era isso que estava tentando fazer, poderia ter dito que havia feito o favor de lhe trazer comida além da porcaria da maleta dele. Acima de tudo, entretanto, eu poderia ter dito que não fui eu quem o beijou e que ele não tinha o direito de me tratar como lixo só porque não havia gostado.
Não valia a pena, contudo. Ao invés de ficar com raiva, então, estava apenas cansada.
- Tem razão – sacudi a cabeça. - Não pediu.
Decidi que era melhor encarar a chance de tropeçar em qualquer coisa e quebrar o pescoço a ficar mais um minuto ali. Alguma entidade superior provavelmente concluiu que eu já tinha sofrido humilhação verbal o suficiente por um dia e me permitiu chegar à saída sem nenhum incidente, nem mesmo esbarrando em . Mal tinha aberto a porta quando ela foi fechada com força de novo. Olhei para cima e vi o vulto de um braço um pouco acima e a direita da minha cabeça.
- Não.
Ele estava perto o suficiente para que eu sentisse o calor que ele irradiava alcançar minhas costas, mas não me tocava.
- O quê?
- Você não pode ir – sua voz grossa e rouca soou perto do meu ouvido e por um segundo fui transportada direto para a noite de ontem.
Respirei fundo. Não iria deixá-lo mexer com minha cabeça de novo.
- Por quê? Quer me encher o saco um pouco mais?
- Não. Preciso saber.
Franzi o cenho, encarando a madeira lisa. Qual o problema dele? Já estava pronta para me virar e perguntar exatamente isso quando senti sua mão pousar em minha cintura e fazer pressão para que me voltasse para ele.
- Preciso saber – repetiu baixinho.
Senti seu hálito bater em meus lábios um instante antes de sua boca cobrir a minha. E outra vez estava alucinando graças a droga .



Capítulo 11

Quando o despertador do meu celular tocou na manhã de segunda-feira, levantei-me me sentindo um trapo ainda mais acabado do que o normal. Não bastava ter que trabalhar naquela merda hoje, mas também havia o fato de que assim que abri os olhos os acontecimentos de sábado ficaram se repetindo em minha mente. Infelizmente o cérebro te faz lembrar exatamente o que você quer esquecer. Uma olhada rápida para a porta de minha casa quando passava pelo corredor em direção à cozinha e as lembranças de como havia sido um tremendo canalha aparecessam com força. Liguei a cafeteira e voltei ao quarto para colocar um daqueles ternos que era obrigado a usar e que me faziam sentir tão feliz quanto um prisioneiro em seu uniforme laranja. Infelizmente aquelas tarefas mecânicas não me distraíram, nem aquilo e nem o café queimando minha garganta.
Parado encarando o vazio com a caneca em mãos, quase podia vê-la na minha frente. Seus cabelos bagunçados enquanto sua boca, que eu ajudara a deixar inchada, cuspia perguntas, ficando cada vez mais furiosa a cada resposta que não recebia.
“Por que você me beijou? Por que continua fazendo isso? Por que porra você não me responde?”
Só um canalha fica em silêncio quando a mulher com a qual você passou os últimos minutos praticamente transando de roupas te faz perguntas. E nem mesmo eram questões descabidas. Era perfeitamente lógico e justo, porém não tinha nenhuma resposta. Então fiquei calado.
Um covarde que merecia as palavras duras e as ameaças que se seguiram.
“Não mereço ser tratada como lixo. E, por mais agradecida que esteja por você ter encontrado Cookie, isso aqui não vale minha dignidade.”
Joguei a caneca de qualquer jeito dentro da pia e o barulho seco me lembrou da porta batendo com força quando ela foi embora, deixando um rastro de fogo por seu caminho e um sentimento de culpa sobre meus ombros. Podia lidar com sua raiva, também era homem o suficiente para gerenciar a ereção que me doía. O que me causou ligeiro pânico, entretanto, foi quando a luz do corredor bateu em seu rosto e pude ver que havia lhe machucado. E tinha toda razão para se sentir assim.
Não queria fazer aquelas coisas, não queria continuar deixando nós dois frustrados daquele jeito.
Uma das primeiras coisas que se aprende no exército é conter impulsos. O cometimento era necessário a cada minuto em que você estava treinando e era absolutamente essencial na hora das batalhas. Não era só a sua vida na linha, mas também a de seus companheiros. Ninguém queria um descontrolado portando uma metralhadora ao seu lado. Anos limando, serrando, entalhando meu autocontrole para brilhá-lo à perfeição. Nem mesmo piscar ou respirar enquanto enxergava ao longe, esperando o momento perfeito para apertar o gatilho e abater o alvo.
Tudo isso reduzido a pó em questões de segundos graças a um metro e sessenta e oito centímetros de pura confusão.
A conclusão era simples, pois: não conseguia me controlar e depois inconscientemente a culpava por isso. No momento em que peguei minha maleta, em meio ao meu caminho para saída, percebi quão ridiculamente injusto estava sendo. tinha razão ao jogar todas aquelas coisa na minha cara e também tinha razão ao não voltar no domingo.
Como um covarde, não consegui encarar a outra porta do corredor enquanto saía de casa. Ao chegar à garagem já havia aceitado resignadamente que ela havia decidido que o melhor seria ficar longe. Não podia culpá-la por essa decisão.
Compreensão, entretanto, não ajudava em nada o meu mau-humor e o fato de que me sentia um crápula. A viagem até I foi uma merda maior do que a de costume e o único ponto alto é que todos naquele prédio estavam desesperados demais correndo com seus próprios trabalhos para se preocuparem em parar para me bajularem. April me seguiu para dentro da sala assim que cheguei, repassando os diversos compromissos da agenda de hoje antes mesmo que pudesse alcançar minha mesa. A distração era bem-vinda e esqueci-me dos problemas pessoais por um tempo. Meu ânimo, contudo, só piorava. Foi preciso que minha secretária aparecesse para me dizer, em tom de desculpas, que lamentava interromper, mas que já eram duas horas da tarde e ela gostaria de saber se eu queria que ela mandasse buscar um almoço, para que eu percebesse que estava com muita fome e que a falta de alimento estava contribuindo para piorar as coisas um pouco mais.
Meia-hora depois de literalmente devorar os tacos que April encomendara, já estava me sentindo mais humano. O cheiro de comida, entretanto, fez-me lembrar do jantar que havia me levado há dois dias. O cheiro não tinha nada a ver, o gosto muito menos e meu lado racional não conseguia encontrar um motivo pelo qual eu via qualquer ligação entre as duas coisas senão pelo simples fato de que meu inconsciente queria pensar nela.
Meu inconsciente culpado queria me lembrar de cada palavra e gesto rude que tinha feito.
De repente a sensação de matar a fome já não era tão agradável. Amaldiçoando tanto a mim mesmo quanto a loira que ultimamente torrava todo o meu estoque de paciência, voltei minha atenção aos pedidos de compras que o diretor de vendas da parte europeia da I enviara. Dígitos que mostravam milhões de dólares dançaram na minha frente e tive que me concentrar para fazer as anotações devidas com caneta vermelha onde era pertinente. A última coisa que precisava era ter que refazer aquela merda. Esse trabalho burocrático já era ruim uma vez, imagina duas.
Consegui fazer o resto do meu serviço em relativa paz e finalmente estava na hora de ir embora. Apesar da bem-vinda distração que aqueles montes de documento representavam, ainda preferia ir embora a passar mais tempo naquele lugar sufocante. Até a gasolina vendida perto de casa era melhor do que ficar ali. Abri a minha maleta e coloquei algumas pastas lá dentro, meu cérebro dividido entre tentar resolver o problema sobre como digitaria os arquivos necessários agora que não podia mais contar com e a pequena risada que a lembrança dessa mesma pessoa classificando aquele objeto como “mafiosa” me causava.
As suaves batidas fizeram com que eu parasse a meio caminho de vestir meu terno. April entrou em meu escritório e, pela expressão em seu rosto, soube imediatamente que alguma coisa estava errada. Seu rosto estava meio verde.
- April?
- Senhor , o Presidente gostaria de vê-lo. Agora.
Oh, aquilo explicava o jeito encolhido e furtivo, como o de alguém que havia acabado de assistir um gatinho ser morto. Tudo bem. Era assim que também me sentia quando tinha que falar com o velho: como se tivesse que presenciar alguém torturando um animalzinho de estimação.
Você sempre pode contar com Dante para estragar um dia já péssimo.
- Onde? – perguntei, derrotado.
- Na sala dele – girou a cabeça para os lados como se alguém fosse aparecer para lhe reprimir por algum motivo qualquer.
- Certo – suspirei, segurando firme na alça de minha maleta. – Já terminei aqui. Você pode pegar essas pastas aqui, por favor, e passar para o arquivo digital.
Aquelas merdas estavam dentro da classificação ao qual ela tinha autorização de acesso.
- Sim, senhor.
Não sabia que alguém poderia se mover tão rápido em saltos tão altos, mas ela se mostrou bem ágil em ir até minha mesa, pegar os documentos que mandei e evaporar-se do meu escritório, obviamente muito interessada em sumir antes que tivesse que lidar com meu pai de novo. E ela havia feito tudo aquilo antes mesmo que eu tivesse terminado de abotoar a droga do paletó. Não poderia culpá-la, eu também sairia correndo se pudesse.
Arrastando os pés como um condenado sendo levado à cadeira elétrica, dirigi-me ao elevador. Cérbero estava sentada em sua escrivaninha, guardando a porta do inferno como a boa cadela de guarda que era.
- Lissy, avisa meu pai que estou aqui – falei, gelado.
- Claro, senhor – bateu os cílios de um jeito que supostamente deveria considerar como sendo sexy, mas que fez ter vontade de vomitar, antes de levantar o telefone ao ouvido. – E meu nome é Missy.
Revirei os olhos. Como se eu me importasse.
Depois de murmurar alguma coisa ao telefone, ela se levantou e correu para abrir a porta. A vadia do meu pai definitivamente estava procurando por uma versão mais nova, já que fez questão de deixar seu corpo em um ângulo reto à porta, não sobrando espaço para que eu passasse sem encostar nela.
- Saí dai. Agora – rosnei.
Tissy teve a decência de pular de susto e fazer o que mandei. Sacudindo a cabeça com escárnio, deixei a antessala do inferno para cair nas chamas em si.
- , meu garoto! – apesar das palavras aparentemente expansivas e calorosas, ele não se levantou da mesa ou tirou os olhos do papel que analisava.
Estava acostumado. Era seu um jeito de mostrar que, apesar de a pessoa do outro lado da mesa ser afortunado o suficiente para estar em sua presença, ainda assim não era importante o suficiente para que Dante se levantasse. Uma manobra calculada para demonstrar quem manda.
- Pai – cuspi a palavra que soava esquisita na minha boca.
- Sente-se, sente-se – apontou para cadeira, ainda não me encarando.
Suponho que assim seja melhor. Menos chances de ele tentar sugar minha alma. Em silêncio tive que esperar pela sua boa vontade em falar alguma coisa. Sabia melhor do que ser o primeiro a quebrar o silêncio. Isso só lhe daria um motivo novo para fazer um discurso sobre como eu era um ingrato mal-educado. Experiência própria. Cinco excruciantes minutos depois, o velho finalmente levantou a cabeça.
Imediatamente desejei que ele continuasse me ignorando. Até mesmo ficar naquele lugar idiota era melhor do que conversar com Dante. Impressionante como suas prioridades podem mudar tão rápido. Primeiro queria sair correndo para casa porque odiava a I, agora preferia ficar, por tempo indeterminado, onde estava se isso significasse que não precisaria conversar, mesmo que por poucos minutos, com o velho.
- Mandei que você viesse aqui porque recebi os relatórios sobre o seu trabalho hoje.
Então Dante tinha mandado alguém ficar de olho em mim. Não me surpreendia. Com certeza só esperava que eu cometesse o primeiro erro, um motivo qualquer para apontar todos os defeitos que ele achava que eu acumulara durante toda a vida – exatamente como ele fazia a toda oportunidade possível.
Trincando os dentes, assenti devagar.
- Vi que você já atualizou quase todos os arquivos de cadastro A e B.
- Sim. Algum problema com eles?
Confiava que faria um bom trabalho, mas também tinha consciência de que sempre podia contar com Dante para achar algum incômodo que não existia antes.
- Problema? Não. Eles estão ótimos.
Mantive seu olhar gelado, finalmente entendendo aonde o velho queria chegar.
- Você está chamando minha atenção por que os arquivos estão ótimos? – nem mesmo me esforçando consegui manter a zombaria incrédula longe do meu tom.
- Chamar sua atenção? Não, não – recostou-se em sua cadeira, o sorrisinho calculista nunca deixando seu rosto. – Só estou... curioso – praticamente cantarolou a palavra. – Curioso sobre quão rápido você tem conseguido transferir os arquivos para o formato digital. Ou talvez aquela sua secretária incompetente não tenha explicado como as coisas devem funcionar.
- April me explicou muito bem o quão interessante é o sistema aqui.
Interessante é uma das últimas palavras que queria usar para descrever essa porcaria. Imbecil, inútil, controlador de merda eram adjetivos bem melhores.
- Então me escapa a compreensão como você tem se mantido tão no cronograma – suas palavras eram falsamente macias. - Afinal, naquele lugar esquecido por Deus onde você decidiu desperdiçar sua juventude, vocês não têm computadores, não é mesmo? Tenho certeza que Harvard lhe ensinou o que era necessário, como eu disse que ela faria, mas não se pode aplicar essas coisas no meio da selva onde você se meteu, não é mesmo?
- Deserto.
Aquilo o desequilibrou o suficiente para parar seu monólogo.
- O quê?
- Eu estava no deserto, não em uma floresta.
Estreitou os olhos se uma maneira que me fez lembrar uma cobra prestes a atacar.
- Ah, sim. Deserto – murmurou aquela palavra como se apreciasse o gosto que ela tinha em sua boca. – Que peculiar – inclinou-se para frente, colocando os cotovelos sobre a mesa e juntando as pontas dos dedos, olhando-me com desdém. – Quando você estava no deserto não tinha acesso a computadores a não ser que o deserto tenha mudado desde a última vez que fui comprar um apartamento em Dubai.
Seu tom condescendente não me irritou tanto quanto a maneira que ele fazia questão de sublinhar a palavra que descrevia o lugar em que havia servido ao meu país.
- Jason insistiu que fossemos fazer uma espécie de safari no deserto porque ele queria usar o jipe novo. Não houve um único sinal de recepção no meu celular durante toda a tortura que foi aquilo. Só o calor insuportável.
Levei quase dez segundos inteiros para conseguir responder por que ainda estava absorvendo a informação de que Dante havia se aventurado no meio da areia. Obviamente o velho só fizera isso porque Jason o desafiara, provavelmente esfregando na cara dele o carro que comprara.
Patético.
- Então me diga – continuou, completamente alheio ao fato de que eu estava segurando uma risada ao imaginá-lo sofrendo sob o sol da Arábia – como você está tão treinado para se manter no horário quando muitos dos meus executivos precisam ganhar advertências para cumprir os prazos?
Ah, então era por isso que ele estava circulando o assunto, era aqui onde ele queria chegar.
- Nós praticamos várias atividades no exército.
- Inclusive com computadores? O exército não parece ser tão interessado em manter seus subalternos com o saber tecnológico tão afiado.
Não me escapou a ironia com a qual ele desmerecia um dos maiores compradores de software da I. Hipócrita ao extremo.
- Eu me mantenho a par das tecnologias – fiquei extremamente feliz em pronunciar essas palavras e com o sorriso gelado que pude dar. – É só isso, pai? Porque tenho que terminar alguns documentos.
Ainda mais satisfeito fiquei ao vê-lo ficar alguns segundos em silêncio, pensando em alguma resposta. Dante sabia que eu estava escondendo algo, que estava mentindo e possivelmente o fazendo de bobo, mas não havia como argumentar, então teria que deixar o assunto morrer. Pelo menos por enquanto.
- Já vejo – sorriu, gelado, seus olhos analíticos mostrando uma chama de raiva. – É só isso, filho.
Levantei-me e acenei com a cabeça antes de me virar e sair do inferno, agradecendo por ter conseguido manter minha alma por mais um dia. Senti os olhos de serpente de Ussy em minhas costas durante todo o caminho até o elevador. Só quando as portas automáticas de metal se fecharam foi que consegui relaxar o suficiente para perceber que havia ganhado aquela batalha.
Realmente havia ganhado uma batalha contra o velho. Gargalhei com essa conclusão, quase tendo que me apoiar na parede tamanha a força com que as risadas sacudiam meu corpo. Já nem mesmo me lembrava da última vez que isso acontecera.
E tudo graças a .
que não merecia o jeito que a empurrara contra a porta de sua casa, depois da minha casa e praticamente abusara de seu corpo. Não que ela não tivesse participado ativamente e correspondido com tanta vontade quanto a minha, mas a loira merecia mais respeito. que eu deixara ir embora depois de não responder nenhuma das perguntas que ela atirara sobre mim.
que não tinha feito nada além de tentar ser simpática – mesmo de um jeito completamente destrambelhado e intrometido – desde que chegara em casa e que eu deixara ir para casa no sábado com a boca inchada, os cabelos bagunçados e um olhar entre mágoa e raiva.
Quando as portas se abriram, minha mão se apertava com força na alça da maleta enquanto minha mente relutantemente terminava de aceitar a nova resolução a que chegara. Não perdi a ironia para o fato de que chegara a duas conclusões completamente opostas durante um único dia, e ambas justamente enquanto saía de elevadores. Soltando um suspiro derrotado, entrei na garagem. A cada passo que dava, a cada coluna de cimento bem pintada de branco que passava por mim, tinha um pouco mais de certeza do que deveria fazer. Ao sentar-me no banco de couro de meu carro, senti-me estranhamente mais leve.
Até que aquilo não poderia ser tão ruim. Sendo otimista, não dava para o dia ficar pior, então o único caminho era para cima e para melhor.
O barulho do motor rosnou pelo andar silencioso e, enquanto dirigia para longe daquele prédio dos infernos, tentei não pensar nas implicações sujas que “para cima e para melhor” podiam ter. Precisava me concentrar melhor no que precisava ser feito e não nas fantasias que isso criava como efeito colateral.

xxx

Albert Einsten certa vez disse que insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes. Eu, ao contrário, tinha a esperança de que uma segunda chance seria capaz de trazer o melhor das pessoas. Obviamente não era difícil saber quem de nós dois era o gênio, quem estava certo. Foi pura inocência, então, ter chegado a acreditar que agiria diferente depois da nova sessão de amasso.
Não. Não simplesmente amasso.
Depois de alguns dos melhores minutos da minha não-tão-prazerosa vida sexual.
Ok. Não era como se eu esperasse um pedido de namoro ou algo parecido. Só queria que ele tivesse falado alguma coisa, qualquer coisa. Nem que fosse para me expulsar de sua casa. Ao invés disso, ficou parado como um bloco de gelo enquanto eu me descontrolava e gritava.
Saí de sua casa suada e muito frustrada. Além disso, contudo, saí de lá com raiva.
Não era capacho para ele ficar passando em cima de mim com a força de um caminhão a cada vez que tivesse irritado. O cara tinha conseguido me deixar tão estressada que uma dor havia se instalado em meu pescoço desde domingo, melhorando um pouco na manhã de hoje para voltar a se fortalecer durante o dia no escritório. Era como uma fogueira crepitando suas chamas de leve, queimando a madeira e gerando pouco calor. Isso, é claro, até eu chegar em casa. Senti como se alguém tivesse despejado um galão de gasolina na fogueira metafórica. A dor irradiava da minha nuca até minha testa.
Arrastei meus pés até a geladeira, torcendo para ter me lembrado de comprar alguma coisa congelada para só jogar dentro do micro-ondas. Precisava forrar o estômago antes de engolir algum comprimido para dor e cair na cama. Minha cabeça estava tão fora de sintonia com o resto do mundo que demorei a perceber que as batidas que escutava não eram ecos da dor meu crânio, mas sim alguém batendo na madeira da porta.
Amaldiçoando Ava por ter resolvido vir me visitar justamente no dia em que estava me sentindo um trapo humano, peguei a caneca de leite quente que havia aquecido segundos antes.
- Você não é Ava – foi o que idiotamente consegui murmurar ao me dar conta de quem estava ali.
- Não, não sou.
Foi só a voz de se fazer presente para Cookie sair correndo do meu quarto, latindo animadamente e quase me derrubando em sua tentativa de alcançar meu vizinho. Infelizmente minha paciência estava no nível não-existente, então abaixei a vista para meu cachorro.
- Cookie, para o quarto. Agora – falei, firme.
As orelhas dele se abaixaram imediatamente e ele me olhou com os olhos murchos, desapontado. Segurei a vontade de pedir desculpas e apontei para o lado com a mão livre. Quase pude vê-lo suspirar antes de me obedecer, andando devagar e com a cabeça baixa. Só quando Cookie já estava fora da vista, voltei-me para minha visita.
- O que você quer?
Fiquei de frente para ele, erguendo o queixo, cruzando os braços da melhor maneira possível e me postando no meio da entrada, ocupando o máximo de espaço para demonstrar que não era bem-vindo. O silêncio pesou por um segundo e pude ver surpresa em sua expressão antes que aquilo também sumisse.
- Vim praticar política de boa vizinhança – ele forçou a voz para ficar mais calorosa.
Valeu a tentativa, meu filho, mas não vai ser tão fácil assim.
Arqueei a sobrancelha e permaneci em silêncio. Estava cansada de ser a única a me esforçar para preencher o vazio esquisito que ficava entre nós.
- Trouxe comida – levantou uma sacola branca na altura dos nossos olhos. – Ouvi dizer que esse é o costume.
Olhei para o teto por um segundo, balançada. Voltei, então, minha atenção para ele outra vez e observei que sua camisa e sua calça social estavam amarrotadas. O terno estava sendo apertado contra a alça da maleta em sua outra mão.
- Por que você está aqui, ? – repeti, amaciando um pouco a voz.
- Eu... eu não sei – encolheu os ombros, abaixando o braço.
- Está aqui por que precisa que eu digite mais alguma coisa para você? Porque se for esse o caso, podemos combinar um horário em que você não esteja em casa. O jeito que estamos fazendo não est-
- Não.
Ao perceber que ele não iria elaborar sua resposta, decidi tentar de novo. Eu provavelmente tinha alguma veia masoquista.
- Você veio aqui porque precisa que eu digite algum documento para você?
- Não.
Nenhuma outra explicação. Uma simples negativa que me convenceu de maneira mais eficiente do que dezenas de palavras poderiam ter feito.
- Ok – assenti, minha postura defensiva relaxando um pouco mais. – Então por quê?
- Não sei – sacudiu a cabeça. - Realmente não sei.
Sabia que ter vindo até aqui era um grande passo para ele. Não precisava ser profissional para perceber que era orgulhoso demais. Não estaria batendo na minha porta se não tivesse reconsiderado ao menos em parte seu comportamento. O sentimento de humilhação que sofri ao ser deixada falando sozinha duas vezes não apagava a constatação de ele parecia estar se esforçando. Eu também não era hipócrita de fingir que a atração entre nós dois poderia ser ignorada e reprimida até desparecer. Era melhor resolvermos isso como adultos.
Suspirei. Uma última chance.
- Ok – dei um passo para trás, desbloqueando a passagem. – Entre.
Outra vez a surpresa passou rapidamente por seu rosto antes de ele dar os passos para dentro da minha sala. Tranquei a porta, usando aquele segundos para juntar um pouquinho mais de coragem antes de me virar. parecia bem fora do lugar, todo formal e rígido em sua pose quase militar ao lado das minhas almofadas de estampas psicodélicas e coloridas. Decidi testá-lo de uma vez para não perder meu tempo se ele fosse continuar agindo da maneira imbecil com que estava acostumada.
- Então – aproximei-me – você acabou de chegar do trabalho?
- Sim – assentiu.
- Na I? – peguei as sacolas de suas mãos e a coloquei sobre a mesinha de centro, juntamente com minha caneca.
Assentiu de novo.
- Sente-se, sente-se – apontei para o sofá enquanto começava a separar as embalagens. – Por que você comprou tanta coisa?
Havia comida para umas quatro pessoas ali.
- Não sabia do que você gostava.
Parei com a mão a meio caminho de pegar a caixinha de rolinho primavera. Aquelas palavras, além de serem doces, mostravam que ele havia planejado, gastando tempo e pensamento. Virei a cabeça para encará-lo sentado na poltrona, ainda rígido como um poste enquanto me analisava atentamente. Assenti devagar e voltei à tarefa que estava fazendo antes, preparando-me mentalmente para a próxima pergunta:
- O que é I? – perguntei, terminando de ajeitar as últimas embalagens.
O ar imediatamente ficou mais pesado. Endireitei-me, mas me mantive de costas para ele, esperando. Vários segundos depois e um tanto de nada acabaram com minha esperança. Já estava pronta para guardar tudo que acabara de arrumar sobre a mesa e entregar para ele juntamente com um convite para dar o fora da minha casa, quando ele falou:
- Você não sabe? Achei que tivesse procurado no Google depois da primeira vez que viu a sigla.
- Não parecia ser justo - encolhi os ombros. – Um tanto quanto infantil e bem injusto, para ser mais precisa – peguei a embalagem de camarão empanado e me sentei ao mais longe possível dele, na ponta direita do sofá de três lugares.
Assisti ele balançar a cabeça em reconhecimento, um brilho diferente em seus olhos azuis já não tão gelados.
- Interprise.
- É apenas uma coincidência? – peguei um camarão e o joguei para dentro da boca, mantendo meu olhar na comida para dar-lhe um pouco de privacidade para responder.
- Não, não é uma coincidência – falou depois de um tempo.
- Você não vai comer nada? – resmunguei depois do terceiro camarão, intencionalmente quebrando a conversa para não assustá-lo com tantas questões de uma só vez.
Observei de soslaio meu vizinho, meio incerto, se inclinar para frente e analisar uma e outra embalagem antes de escolher a que continha carne com brócolis. Só depois que ele se recostou na poltrona e deu a primeira garfada é que voltei ao tópico anterior:
- Seu pai, seu tio ou seu avô?
- Como... como você sabe que não sou eu?
- Você não gosta de lá – falei simplesmente, encarando o laranja da minha comida como se estivesse falando com ela. - Dá para ver pelo jeito como você chega à noite e pelo desprezo com que você mostra às pastas que tenho que digitar.
Mais alguns segundos de silêncios após minhas palavras fizeram com que finalmente me virasse para ele. estava me encarando intensamente, sua mão apertando com força a colher de plástico. Ao perceber o que eu olhava, sua mão relaxou e largou o pobre objeto.
- Meu pai – aquelas duas palavras soaram robóticas e me fizeram perceber que o terreno ali era bem delicado.
O jeito como toda e qualquer emoção abandonara sua voz e como seu rosto ficou inescrutável me fez sentir um frio esquisito. Soube, então, que já havia conseguido tudo que poderia por hoje. Não sabia ao certo como reagiria a partir de agora já que eu aparentemente havia acertado o nervo mais dolorido logo na primeira vez em que conversávamos sobre algo mais profundo do que sinuca.
Não queria assustá-lo completamente justo quando estávamos fazendo algum progresso. Um passo de cada vez. Principalmente porque eu queria dar um passo de cada vez, queria sentir de novo todas aquelas sensações que provocava a cada vez que encostava em mim. Acima disso, contudo, queria ver se cada passo chegaria a algum lugar. Estava cansada de amadores que não sabiam o que fazer e, sendo bem sincera, também estava cansada de ficar sozinha.
Isso tudo sem nem mesmo levar em consideração meu vício crescente na droga .
Foi por esse motivo, então, que, mesmo tendo direito de fazer um milhão de perguntas, – já que seu comportamento havia sido, na maioria das vezes, no mínimo, insultante – ao abrir a boca, falei:
- Então, que tipos de seriado você gosta?
Ele piscou devagar, toda sua pose de durão caindo por um segundo frente ao mais completo choque.
- Seriados? Que... que seriados eu assisto? – repetiu como se eu tivesse falado em uma linguagem marciana.
- É – encolhi os ombros antes de jogar outro camarão na boca e mastigar rápido antes de continuar. – Quais seriados você assiste. E você deveria comer alguma coisa antes que esfrie e fique com gosto de borracha – olhei significativamente para a tigela plástica em suas mãos.
Ele seguiu meu conselho, comendo duas colheradas cheias e mastigando devagar. Era obviamente uma maneira de adiar a resposta para minha pergunta. Provavelmente mais ocupado em digerir a mudança súbita de assunto do que a comida em si. Continuei quieta, pacientemente esperando.
- Seriados. Ok – murmurou depois de engolir, olhou para os lados por um segundo quase como se procurasse uma saída. – Seriados. Certo. Não sei.
Naquele momento não foi nada além de adorável ao se mostrar um pouco constrangido, suas bochechas até mesmo adquiriram um pouco de cor ao admitir que não sabia de algo. Mordendo o sorriso, alcancei o controle da TV que estava jogado sobre o sofá ao meu lado.
- Vamos assistir Game of Thrones então. Já estou na quarta temporada, mas não me importo de assistir tudo de novo.
- Por que vamos assistir Game of Thrones? Aliás, o que é Game of Thrones? – franziu o cenho.
Adorável outra vez.
- É uma sério muito, muito boa – comentei, apertando os botões para chegar ao episódio. – É baseada em uma série de livros. Acredita que uma vez encontrei o autor deles na rua?
Ele arqueou uma sobrancelha.
- Sério! – sacudi a cabeça, animada. - Foi depois que saí do aniversário de uma amiga minha.
Dividi meu olhar entre um levemente divertido e a busca na televisão enquanto repetia uma de minhas anedotas favoritas. Em algum momento, enquanto assistíamos GOT e jantávamos, Cookie saiu discreta e silenciosamente do quarto, provavelmente testando o terreno para ver se eu o deixaria ficar. Dei-lhe um sorriso e imediatamente meu bebê correu para nós e, não importou quantas vezes o chamei para perto de mim, o traidor deitou aos pés de e ficou lá o tempo inteiro, sacudindo o rabo feliz.
Entre o fim do primeiro episódio e o começo do segundo, começou a relaxar um pouco em seu assento.
Mais alguns minutos e me vi inconscientemente deslizando pelo sofá em direção a ele, atraída pelo jeito que meu vizinho encarava a televisão, tão entretido que esquecera o restando de seu jantar. A dor em meus músculos foi esquecida completamente.
E em algum outro momento, ele se virou e sorriu para mim. Todas as linhas de preocupação e seu olhar gelado desapareceram frente ao sorriso.
Ficava ainda mais bonito daquele jeito, não uma pessoa completamente diferente do de sempre – até porque não queria que ele fosse outra pessoa – mas um lado um pouco menos tenso e mais interessante seu. Foi quando tive a certeza de que havia valido a pena tê-lo deixado entrar em minha casa.
E Albert Ainsten que se danasse.



Capítulo 12

- Ajuda! Me ajuda! Avalon, pelo amor de Deus, me salve! – engasguei nas palavras depois de me jogar contra a porta de entrada de vidro da Appleby’s e quase não conseguir abri-la.
A confeitaria estava vazia por ainda faltar meia-hora para o horário de abrir, então felizmente fui a única a que viu minha melhor amiga de cerca de um metro e meio, surgir da cozinha empunhando de maneira ameaçadora uma faca enorme, suas feições de boneca contorcidas em concentração e medo.
- Onde, onde aquele desgraçado está? Eu o mato! Dessa vez eu o mato!
Estaquei no lugar, completamente atônita pela intensidade da raiva em sua voz. Todos os pensamentos sobre minha fuga desapareceram completamente frente a Appleby interpretando Jason em toda sua versão assassina.
- Ava... o que...?
Ela levou dez segundos inteiros para parar seus passos decididos, olhar para os lados mais uma vez e piscar com força. Só então, e finalmente então, consegui reconhecer a pessoa que me olhava de volta. Seus olhos voltaram ao brilho gentil de sempre.
- ? Está tudo bem? Eu pensei que... – seu olhar varreu todo o cômodo, as palavras diminuindo de volume - por um segundo pensei que...
- Pensou o quê? – falei, a mão no peito para recuperar meu fôlego.
- Ora, sei lá – colocou a faca sobre o balcão e pude ver que suas mãos estavam trêmulas quando ajeitou o cabelo. – Que você estava sendo morta.
- Sério? – cruzei os braços, minhas palavras ainda saindo fracas graças a falta de fôlego. – E seu primeiro instinto é pegar uma faca? O que você faria com isso aí? Esfaquear meu possível assassino para limpar a honra da família ?
- Você é mal agradecida pra caramba, sabia? – franziu o cenho, indignada. – Aparece aqui correndo e gritando como uma histérica e quer que eu reaja como exatamente?
- Chamar a emergência, é óbvio! – abri os braços em um gesto de descrença.
Ava revirou os olhos, soltou um muxoxo zombeteiro e abaixou sua atenção para começar a empilhar as embalagens dos produtos para viagem.
- Sinto ter que lhe dizer isso, , mas a polícia não é uma entidade onisciente que salva todo mundo. Aliás, eles são bem falhos.
Ok. Levei aquilo como uma ofensa pessoal.
- O que você quer dizer com isso, hein? – dei alguns passos em direção ao balcão. – Spencer é do FBI e ele me disse que n-
- Spencer é um cara, um! – bateu no balcão a caixa retangular que segurava, fazendo com que eu pulasse de susto no lugar. - Ele não é a força de segurança inteira.
- Ava – murmurei, baixinho, dando mais um passo em sua direção. – O que voc-AI, droga! – pelo canto do olho vi a razão pela qual havia buscado abrigo pela primeira vez do outro lado das portas de vidro.
Vasculhei o lugar rápido e não pensei duas vezes antes de passar pela portinhola de entrada e me esconder embaixo do balcão na única parte vazia que havia ali. Estava basicamente encostada nas pernas de minha melhor amiga. Levantei a cabeça e a encontrei olhando para baixo, para mim, completamente chocada. Sua boca estava até meio aberta e seus olhos, arregalados.
- , eu já passei por muita coisa nessa amizade, mas essa é definitivamente a mais esquisita que já vi você fazer. Por que diabos você está encolhida embaixo do meu balcão?
- Shiiu! – falei, urgente, abanando as mãos para baixo e aproveitando o tempo para tentar normalizar minha respiração. – Ele vai te ouvir, ele está vindo.
Por um segundo observei, horrorizada, a mão de Ava, como reflexo, deslizar para o cabo da faca antes que ela percebesse o que estava fazendo e parasse no meio do caminho.
- Ele? Ele quem?
Antes que pudesse responder, contudo, ouvi a porta da Appleby’s se abrindo, então coloquei o dedo na frente dos lábios no sinal universal de silêncio. Minha melhor amiga levantou a cabeça, desviando a atenção para o recém-chegado.
- Ah, é você Leónidas.
Fechei os ombros com pesar e descrença ao ouvi-la chamá-lo assim, encolhendo-me um pouco mais.
- Leónidas? O que... não. Meu nome é .
- Sim, sim. Claro que é – murmurou, pegando um pano e passando sobre o balcão de maneira calculadamente distraída.
- Cadê ? Ela está ali atrás?
- Não – falou, convincente.
Houve uma pequena pausa e quase pude vê-lo analisando a confeitaria em busca do lugar em que eu poderia estar.
- Ela ‘tá embaixo do balcão, né?
- É, ela ‘tá sim.
Desgraçada!
Dei um tapa ardido na minha testa e reprimi a vontade de beliscar sua perna em resposta.
Não acredito que ela tinha me vendido assim. Estou cercado por traidores.
- Vamos logo, . Eu não tenho o dia inteiro.
Soltando um suspiro, levantei-me devagar. Só naquele momento percebi o quão ridícula estava sendo. Minhas bochechas ficavam mais vermelhas a cada segundo que levava para me endireitar. Nunca me considerei uma pessoa burra, mas estava me sentindo bem irracional esses dias. Minhas ideias ficavam embaralhadas e era o completo responsável por eu tomar decisões idiotas como sair correndo no meio do parque ou me esconder como uma criança.
- Hey – sussurrei ao ficar de frente para ele, meu olhar fixado em qualquer outro ponto menos na sua expressão entre divertida e aborrecida.
- Vamos embora – gesticulou com a cabeça em direção a porta.
- Mas eu não quero! – chiei, quase chegando ao ponto de bater o pé no chão como uma criança malcriada.
Ele arqueou a sobrancelha e Ava levou a mão à boca para abafar uma risada. Virei a cabeça e lhe lancei um olhar fulminante. Além de traidora, ainda se divertia às minhas custas. Ava teve a cara de pau de me olhar e dar de ombros. Estreitei os olhos e bufei, indignada, antes de dar-lhes as costas e contornar o mostruário para ficar de frente para . Se fosse ter aquela discussão de novo, não o faria na frente de minha amiga. Nada de entretenimento gratuito graças à .
Ao menos não ainda mais entretenimento.
Claro que minha vida não seria tão fácil e que Appleby não entenderia a deixa para nos dar um pouco de privacidade. Ela permaneceu no mesmo lugar, nem mesmo disfarçando o interesse em nossa conversa.
- Com licença? – falei devagar, virando para ela com a palma da mão para cima, estava incrédula com sua falta de vergonha na cara.
- Ok, ok – ergueu as mãos em sinal de rendimento, dando alguns passos de costas. – Nem é como se eu estivesse na minha confeitaria, não é mesmo? – virou-se e foi para os fundos, mas ainda pude ouvi-la resmungar: – Aparece como uma lunática e depois tira minha diversão.
- , eu estava brincando! Vamos deixar essa ideia imbecil para lá.
- Não – cruzou os braços.
- Por favor, por favor. Era só uma brincadeira. Vamos desistir dessa história idiota. Te pago um café.
- Não.
- , eu não quero – cruzei os braços e me peguei fazendo um biquinho infantil. - Não vou.
- Não achei que você fosse o tipo derrotista.
- Não, não – balancei o dedo indicador em riste. – Nem vem com essa. Não estou desistindo de nada, só estou mudando minha percepção.
- “Mudando sua percepção”? – riu, zombeteiro.
A parte malvada do meu inconsciente sussurrou “isso é o jeito bonitinho de dizer que desistiu”. Confesso que imediatamente percebi que aquele som parecia muito com o tom de mesmo, ao contrário da voz da minha razão, que era idêntica a de Spence. Engraçado que quando eu ficava alcoolizada, era só minha própria voz que escutava.
Pormenores da minha mente à parte, a voz grossa em meu cérebro estava certa.
- Não interessa. O importante é que abdiquei dessa história maluca de corridas matinais.
Era segunda-feira de novo, exatamente uma semana depois do dia em que ele aparecera pela primeira vez trazendo jantar. Digo “primeira vez” porque nossos jantares basicamente se tornaram uma rotina. Tomei uma surpresa quase tão grande quando a de segunda quando apareceu na minha casa na terça, trazendo comida mexicana dessa vez. Nada superou, entretanto, o choque de vê-lo entrar em minha casa e se instalar na poltrona com uma familiaridade que um observador desatento entenderia como sendo a do próprio dono do lugar, e me olhar com expectativa até que liguei a televisão em Game of Thrones. Na quarta-feira foi a mesma coisa: ele apareceu logo depois de chegar do trabalho, trazendo algum delivery que nós dividíamos na companhia de GOT e entre uma conversa – onde eu falava bem mais do que ele - sobre algum assunto mais ou menos profundo. Na quinta-feira ele pediu que jantássemos em sua casa e, de um jeito rígido, mas que continha um embaraço mal escondido, perguntou se poderia digitar algumas pastas para ele. Pensei que fosse sumir enquanto eu me ocupava com seus documentos, mas ele ficou sentado no sofá ao lado, esperando pacientemente até que eu terminasse para que pudéssemos comer. Nos outros dias, exceto naquele em que me encontrei com Ava para nosso jantar semanal, permanecemos na minha casa e tudo corria bem – Cookie até mesmo já conseguira arrancar alguns carinhos do meu vizinho – quando, no domingo, em meio a um dos momentos em que fazia um monólogo e fingia que não me ouvia, fiz a besteira de comentar que tinha vontade de fazer algum exercício físico. Foi um comentário de passagem, sem pensar, uma bobeira entre uma mordida de sanduíche, mas, para minha total infelicidade, foi justamente a parte em que resolveu prestar atenção. Se a história tivesse parado ali, estaria satisfeita, contudo, além de se apegar a esse detalhe, meu vizinho ainda fez questão de agir.
Primeiro pensei que o brilho malvado em seus olhos não passava de uma representação, mas fui obrigada a aceitar como realidade aquele cenário terrível quando ele bateu, às cinco da manhã, na minha porta, demandando que eu trocasse de roupa e se recusando a ir embora. Pouco se importou com as ameaças que fiz por ter sido acordada tão cedo ou com as três vezes que tentei bater com a porta em sua cara. O homem simplesmente não desistia.
Depois que percebi que era uma batalha perdida, resignadamente o segui para fora de casa. Entre um em todo seu porte militar, um Cookie saltitante de animação e eu me arrastando, nós três formávamos um quadro esquisito enquanto nos dirigíamos ao parque. Sabia que praticava corrida no parque graças as vezes que o havia encontrado deliciosamente sem camisa e suado, também não era necessário ser um gênio para ver que ele estava em plena forma física.
Bom, essas eram as coisas que tinha certeza. O que tinha esperado era um pouco de compreensão, um pouco de humanidade, em relação ao meu sedentarismo. Estava completamente errada. Assim que colocamos o pé no caminho de cimento usado justamente para aquele tipo de exercício físico, se transformara do meu vizinho calado e gelado de sempre em um sargento terrível ou, melhor ainda, em um ditador cruel em busca de sangue – o meu sangue.
Gritou ordens.
“Expanda seu peito, controle a respiração.”
Implicou com minha postura.
“Não cruze os braços na frente do corpo.”
Com o jeito que estava correndo.
“Endireite-se, . Passadas menores, queixo para baixo.”
E, é claro, manteve o tom otimista de sempre.
“Assim você nunca vai conseguir. Pelo amor de Deus, , você está tão devagar que ‘tá quase andando para trás.”
Não foi surpresa então, quando na primeira oportunidade, fugi. Nem mesmo tenho vergonha de assumir que corri mais na direção oposta do que corri enquanto ele estava me treinando. Corri pela minha vida e pelo pouco oxigênio que ainda sobrava em meus pulmões.
Também não me sinto embraçada ao afirmar que larguei meu melhor amigo para trás. Que se danasse essa história de “não abandonar ninguém”. Pura balela. E, além do mais, Cookie era um tremendo traidor. Desde o momento que saímos de casa, meu bebê se colocou ao lado de , andando na mesma passada que ele e não fazendo nenhum tipo de gracinha. Isso era francamente insultante. Quando saía comigo, ele queria explorar o mundo, cheirando cada canto e me arrastando para todos os lados, porém, quando era conduzindo o passeio, o traidorzinho parecia um modelo de comercial para cães adestrados. Ele trotava pomposo ao lado de , nem mesmo se preocupando em dar uma verificada naquela que o alimentou com comida e carinho durante todos os seus dois anos de vida e que estava, atualmente, contorcendo-se por um pouco de ar.
Então, não, não me senti mal em abandoná-lo com o carrasco. Um pouco de ciúmes, quem sabe inveja, mas nada de remorso. Senti foi uma dor no meu ombro de quando me joguei contra a porta de vidro da Appleby. Aquele negócio só parecia frágil. Deve estar reforçado com concreto ou alguma coisa parecida. Apesar de não entender a finalidade de Ava equipar sua confeitaria com a porta de um bunker, tinha problemas mais imediatos e importantes para tratar, então esqueci aquilo e voltei minha atenção a um muito pouco impressionado na minha frente. Aliás, ele me olhava como se esperasse uma resposta.
Engoli meu orgulho e fui obrigada a perguntar:
- O que você disse?
- Sua falta de concentração nunca falha em me surpreender, - seu olhar tornou-se ainda mais condescendente. – Disse que não, você não pode abdicar – sublinhou a palavra com desdém.
Joguei a cabeça para trás, meus olhos se abrindo um pouco mais em surpresa.
- Como não? Por quê?
- Porque eu disse que não pode – ele falou aquilo com a mesma convicção que alguém teria ao listar uma série de razões válidas para a negação.
- Nós estamos na América, grandão. Esse é um país livre e eu posso fazer o que eu quiser – bati o indicador no seu peito, pontuado as últimas palavras, muito orgulhosa de mim mesma por ter achado uma resposta a altura.
Todo meu entusiasmo, contudo, evaporou-se quando abaixou seu olhar gelado para meu dedo para logo voltar para meus olhos um segundo depois. Abaixei minha mão, sentindo-me uma pirralha birrenta.
- Ok. O importante é que eu não vou – cruzei os braços e olhei para o lado.
Apesar de não ter feito nada errado, tinha o impulso de me justificar.
- Você não pode desistir das coisas tão fácil assim. Isso não é saudável. Nem isso e nem todo esse seu sedentarismo mórbido.
- Sedentarismo mórbido? – coloquei as mãos na cintura, indignada. – Veja quem está exagerando agora, ! Pois saiba que eu ando até a estação de metrô todos os dias.
Ele não ficou nem um pouco impressionado.
- Isso não dá nem meio quilômetro, .
- Além do mais, você não pode basear sua opinião nessa tortura medieval a qual me submeteu. Não estou acostumada a correr cinco quilômetros.
- Você não correu nem dois.
- E nó-nem dois? O quê? – interrompi-me, outra vez muito surpresa.
Ok. Aquilo era meio preocupante. Podia jurar que havia corrido uma meia-maratona inteira sob suas ordens dementes, mas, pelo jeito, estava me enganando. Ou, melhor dizendo, meu corpo estava enganado e exausto. Talvez meu vizinho tivesse razão e esse negócio de exercícios fosse realmente... necessário. Não podia, entretanto, deixá-lo vencer essa batalha tão fácil assim.
- Se eu concordar em voltar e participar desse plano maquiavélico para me torturar até a exa-
- Plano para que você atinja sua própria meta de ficar saudável.
- Seu plano para que eu atinja minha meta de ficar saudável – concedi, um sorriso irônico - enquanto você cumpre sua meta maquiavélica de me torturar a exaustão – completei – preciso de algum incentivo.
Seus olhos gelados ficaram mais calorosos por um segundo antes de sua expressão se fechar de novo em ironia.
- Você sabe que quem está fazendo um favor aqui sou eu, não o contrário. Certo?
- A questão não é essa – sacudi a cabeça. – Quero saber se podemos trabalhar com algum tipo de incentivo. Vamos lá. Você sabe que esse tipo de coisa funciona melhor quando há objetivos.
Ele ficou em silêncio por um segundo e soube que o havia pegado naquela.
- Ok. Tudo bem – cruzou os braços. – Se você conseguir alcançar a meta que estipular, deixo que escolha o que vamos jantar hoje.
A concessão parecia mais uma dupla vitória para o próprio . Ele presumia que estaria livre para jantar com ele de novo, presumia que queria encontrá-lo e ainda decidia o que eu teria como meta. Não era nem um pouco justo e já estava pronta para brigar quando Ava surgiu da cozinha e parou de trás do balcão, bem ao nosso lado.
- Estou achando essa DR absolutamente adorável, mas será que vocês poderiam ir discutir em outro lugar – falou, entre entediada e exasperada. - Tenho que abrir a confeitaria em três minutos.
Revirei os olhos e desejei que lhe lançasse um olhar cortante, mas ele permaneceu me encarando, um sorrisinho sacana no canto dos lábios.
- Nós vamos embora assim que concordar com o que propus.
- Isso não é justo! Vamos lá para fora e eu decido o que quero.
- Não.
- Sim! Nós vamos lá fora e decidimos.
- Não.
- Gente, vocês realmente têm que sa-
As palavras irritadas de Ava se extinguiram no exato instante em que se virou e olhou para ela. Avalon ficou rígida e arregalou um pouco os olhos. Obviamente sua aura de comando não afetava apenas a mim.
- Você não pode decidir por mim.
- Não estou decidindo por você, . Foi uma sugestão, mas, até agora, só ouvi você reclamar. Nada de uma contraproposta.
- , por favor – minha amiga falou, seu tom em uma súplica para me apressar.
passou seu olhar por ela, muito mais relaxado agora, e de volta para mim. Ele teve a coragem de cruzar os braços e aumentar seu sorrisinho imbecil. O sorriso de quem sabia que tinha ganhado. O filho da mãe me pegara em uma encruzilhada e tinha plena ciência disso. não se mexeria até conseguir o que queria e Ava me trucidaria se nós dois atrapalhássemos seu dia de trabalho.
- Você é impossível, !
Não sabia como havia saído de uma situação em que estava ganhando para ir parar em uma desvantagem tão grande onde, além de concordar com a corrida idiota, ainda fora pressionada a aceitar seus temos para isso.
- Tudo bem, tudo bem – joguei as mãos para o alto, decidindo escolher batalhas mais importantes para lutar. - Você venceu. Vamos embora.
Não percebi que minha mão pousou em seu antebraço e que o arrastei para fora. Acima disso, contudo, não percebi o olhar entre admirado e surpreso de Ava sobre nós ao perceber que se deixava ser puxado, e, mais do que isso, que ele ia de boa vontade.

xxx

Nem bem havíamos pisado na calçada e já estava se desesperando por outra coisa:
- Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! , cadê o Cookie?
Ela sacudiu a cabeça, virando-se para todos os cantos e, mesmo assim, conseguindo a proeza de não checar o lugar óbvio. Revirei os olhos.
- Está bem ali – apontei para o chão e para o ponto bem ao lado da porta de entrada da confeitaria, onde ela tinha passado direto.
Ela seguiu a direção com o olhar e imediatamente sua expressão de pânico se desfez em alívio para logo depois se transformar em confusão. Franzindo o cenho, virei-me para o cachorro. Cookie estava sentado exatamente no mesmo lugar em que o mandara ficar, suas orelhas estavam em pé e sua língua para fora da boca.
- Que foi?
- Nada – resmungou. – Vamos logo começar essa coisa horrível.
Ela falava como se eu a estivesse arrastando para um encontro com Dante.
Sacudi a cabeça e assoviei. Imediatamente o Cookie estava do meu lado direito. Para um cachorro que tentava pular em mim a cada oportunidade possível, ele tinha uma disciplina impressionante do lado de fora de casa. Talvez tivesse recebido algum treinamento, mas não o melhor porque ao invés de se concentrar no caminho a frente e prestar atenção para ouvir ordens, como os K9, ele ficava olhando para cima e para mim com a língua para fora, e, se isso não soasse tão estranho, diria que ele parecia sorrir.
Quando atravessamos a rua, afastando-nos o suficiente da fila de pessoas que se formava na frente da confeitaria, voltei a falar:
- Você se lembra do que já te disse?
- E qual a finalidade de me lembrar de alguma coisa se você disse que eu fiz tudo errado?
- Se você prestasse atenção, teria ouvido que perguntei se lembrava do que eu disse, não o que você fez. Porque, realmente, você fez tudo errado.
Ela estreitou os olhos com raiva para mim.
- Você é absolutamente insuportável às vezes, sabia?
- Insultos não vão te fazer correr a meta que tracei para você hoje.
Iriam conseguir algumas palmadas naquele traseiro gostoso, mas não os dois quilômetros pelos quais pretendia empurrá-la.
- Não são insultos se são verdades – sorriu, irônica.
- Poupe seu fôlego para algo realmente útil, .
Suas bochechas se tingiram de vermelho, mas, ao invés da expressão de raiva que esperava, ela parecia mais envergonhada do que qualquer outra coisa.
- Ah! Correr! – murmurou, mais para si mesma, depois de um segundo. – Você quis dizer correr. Claro. Correr. - Mas... é o quê?
- Correr. Vamos correr.
Dizendo isso, ela saiu no que, imagino eu, ela ache que seja uma corrida. Na verdade, aquela cena era exatamente igual a dos desenhos que minha mãe às vezes conseguiu passar por baixo do nariz do velho. Ela erguia demais os joelhos e mexia os antebraços em movimentos de quem queria dar um soco no queixo de alguém. Era perceptível que correra bem melhor naquele outro dia no parque, sob salto-alto e com um café quente na mão. Pisquei devagar e troquei um olhar com Cookie, que parecia quase tão embasbacado quanto eu, para só depois voltarmos a atenção para a loira, que, em seu jeito ridículo, conseguira correr cerca de duzentos metros.
Sacudindo a cabeça, apressei-me atrás dela e, assim que estava ao meu alcance, segurei seu pulso para pará-la.
- Não, não e não. Abaixe a coxa, não precisa levantá-la tanto. Ok. Vamos tentar de novo. Vamos para oeste. Ok? – virei meu boné com a aba para trás já que agora o sol não estava contra meus olhos. – Mas não é possível! Que foi agora, ? – perguntei ao perceber que outra vez ela me encarava de um jeito esquisito.
- O quê? – deu um gritinho esganiçado. – Nada, nada. Vamos correr logo então.
Surpreendentemente a loira conseguiu correr os dois quilômetros que eu designei sem maiores problemas. Claro que tive que corrigir sua postura mais algumas vezes e também lhe lançar palavras de incentivo quando ela entrava em um estado de negação, recusando-se a dar um passo a mais, mesmo que esse fosse para a desistência.
- Ok. Che-chega... chega! – ela se jogou no chão, a cabeça baixa e as palavras entrecortadas por puxões frenéticos de ar para os pulmões. – Eu desisto. Você venceu. Dane-se a escolha para o jantar e uma vida saudável. Não. Saudável é importante, mas preciso estar viva para aproveitar os benefícios. Corrida mortal não dá mais. Isso não é para mim. Vou virar vegana ou algo parecido. Detox, sei lá. Mas exercício físico nunca mais.
Cruzei os braços e esperei que ela terminasse seu discurso miado, graças a fraqueza de sua voz, e sem sentido.
- Acabou?
- Depende. Você já terminou de acabar comigo?
- Nem fui tão ruim assim, . Até deixei você fazer uma pausa – estendi minha garrafinha d’água em uma pequena oferta de paz.
Ela levantou a cabeça de supetão, olhando-me indignada e puxou a garrafa da minha mão.
- Pausa? – tomou um grande gole de água antes de continuar. - Que pausa? Só vi sofrimento e dor – voltou a se afogar assim que terminou sua fala dramática.
- E naquela hora em que deixei você escapar até confeitaria de sua amiga?
Ela franziu o cenho sob a garrafa.
- Deixou-me escapar? Ficou maluco? Está dizendo isso só para não assumir que eu desapareci bem debaixo de seus olhos azuis de águia. E como diabos você está tão composto assim? Nós acabamos de correr toda a extensão da ilha de Manhattan!
Meus olhos azuis de águia. Às vezes me pergunto de onde ela tirava aquelas falas.
- Sinto ter que estourar sua bolha, , mas percebi no instante em que você virou à esquerda naquele carvalho e saiu correndo mais rápido do que quando realmente deveria estar correndo. Exatos quinze metros e cinco minutos depois de começarmos nosso treino. Bem pouco impressionante, se me permite acrescentar.
Seu rosto mostrou surpresa, depois um pouco de vergonha para logo então seu cenho se franzir e seus olhos se estreitarem do jeito que já havia me acostumado a ver quando ela se irritava com algo que eu dizia.
- Se você viu assim tão rápido, por que não fez nada?
- Foi divertido ver você agir toda furtiva como se realmente estivesse enganando alguém – dei de ombros. – Aproveitei para dar água para o cão. Além do mais, queria ver onde você iria se esconder. E, aliás, essa parte foi bem previsível. Se um dia estiver realmente fugindo de alguém, não se esconda no primeiro lugar em que seu perseguidor vai procurar.
- Ora seu... seu... - abriu a boca e fechou a boca algumas vezes, sem resposta.
Acabou por expressar sua frustração batendo o punho na grama, erguendo um pouco mais seu queixo para me olhar. - Não precisa ficar nervosa, – tombei a cabeça, não podendo evitar o sorriso ao vê-la sentada na grama, meio desgrenhada e resmungando de uma maneira adorável. - Nós já terminamos por aqui.
Abaixei-me um pouco para estender-lhe a mão. Naquele momento, o sol bateu em seus cabelos, deixando-o ainda mais loiros, como mel fresco, e atrapalhando minha visão, então apenas senti quando, depois de alguns segundos, sua mão macia e delicada pousou sobre a minha. Era uma sensação boa.
Não muito depois, mas não sem as reclamações que ela achava pertinente sobre estar se sentindo como se um caminhão tivesse passado por cima de seu corpo, fomos embora e já estávamos indo cada um para o seu lado quando ela parou, a mão já na maçaneta de sua porta.
- Já sei.
Arqueei a sobrancelha. Seu sorrisinho malvado me dizia que, com certeza, eu não queria saber a que ela se referia. Ela esperou mais um tempo.
- Não vai perguntar o que eu já sei? – questionou, claramente confusa por minha falta de reação.
- Não.
- Pois eu vou falar do mesmo jeito porque esse aqui é-
- ...um país livre – interrompi, revirando os olhos. – Já sei, já sei.
Inclusive lutei para manter e defender essa liberdade da qual você tanto gosta, . - Sua personalidade é terrível.
- É de família.
- O quê?
- Nada. Diz logo o que tem que dizer.
- Grosso – murmurou. – Já sei o que vou querer para o jantar já que corri os dez quilômetros que você propôs.
- Dois! Dois quilômetros. E que drama você fez! Agora diga de uma vez o que você quer.
- Quero comida caseira, quero que você cozinhe para mim.
Ok. Aquilo conseguira me surpreender.
- O quê?
- Comida caseira. Sua casa. Hoje – pontuou, o sorriso cínico aumentando um pouco mais ao ver quão desconfortável estava.
Com suas últimas palavras de efeito, ela entrou em casa e bateu a porta. Ainda estava no mesmo lugar, parado pela surpresa, quando ela voltou a aparecer pela porta entreaberta.
- Cookie! Seu traidorzinho! Vamos embora, agora!
O cachorro soltou um chorinho, saiu do meu lado e seguiu sua dona. E eu continuei ali, pensando no tipo de enrascada em que havia me metido. Ainda estava com aquilo na cabeça quando cheguei para trabalhar. Aliás, nunca fiquei tão grato por ter uma secretária como fiquei naquele dia ao poder dividir com alguém a dor de cabeça que minha vizinha tinha me arrumado:
- April, preciso que você faça uma lista de compras e mande alguém a um supermercado e depois até minha casa.
- Sim, senhor . Claro – anotava velozmente em seu bloco. – O que o senhor quer que seja comprado?
- Comida – falei o óbvio.
Pela primeira vez a sempre profissional senhorita Carvelier me olhar como se eu fosse um idiota.
- Sim, senhor – falou devagar. – Mas que tipo de comida?
- Sei lá – dei de ombros e passei a mão pelo rosto, cansado da trabalheira que a loira da casa ao lado me arrumava. – Olha... compre tudo que você achar pertinente.
Meus armários estavam completamente vazios mesmo e talvez conseguisse enganar para que ela cozinhasse outra vez aquele pão ou, quem sabe, uma torta Merthier. Também não conseguiria ser específico mesmo que quisesse, afinal, alguém que vive de delivery não tem tais conhecimentos culinários.
- Ok, senhor. Algo mais?
- Não – sacudi a cabeça e enfiei a mão no bolso, tirando meu chaveiro e separando a do meu apartamento. – Aqui a chave da minha casa – entreguei, relutante. – April, mande alguém de confiança lá, sim?
Ela assentiu solenemente e outra vez fiquei grato por ser o chefe e não ter que explicar em detalhes o quanto odiava estranhos bisbilhotando em minha casa.
- Ok, certo. E o que temos para hoje?
- Deixei os documentos sobre sua mesa, senhor. E o diretor da Ásia agendou uma videoconferência às três horas.
- Certo.
- Vou começar a lista imediatamente, senhor – afastou-se para sua mesa quando comecei a andar para minha sala. – Ah! Só mais uma coisa, senhor. Preciso lembrá-lo de que em algumas semanas haverá o baile de gala da Industries. A presença de todos os diretores é mandatória.
Podia afirmar com toda certeza que preferia me jogar da janela e voar todos os andares para me espatifar no chão antes de ter que comparecer a um evento daqueles, mas, ao invés de correr em direção à liberdade e ao vidro, assenti outra vez e entrei em meu escritório. Melhor dar boas-vindas à distração do trabalho. Quem sabe assim me esquecia um pouco das notícias que as mulheres em minha vida traziam o tempo todo.
Como queria que o dia se arrastasse para não ter que pensar sobre o jantar que teria que fazer, é claro que o tempo voou. Fico impressionado como até o Universo parecia conspirar para fazer minha vida um pouco mais difícil. Cedo demais me vi em casa e frente ao dilema sobre o que cozinhar. Joguei a maleta sobre a poltrona mais perto, tomei um banho rápido e tirei aquelas roupas terríveis antes de ir para cozinha ver as compras que April mandara. Havia basicamente muito de tudo e todas as coisas impecavelmente distribuídas nos armários e na geladeira.
Esfreguei minha mão sobre o rosto, passando o olhar por todos os armários com suas portas escancaradas. E pensar que aquela merda havia sido criada graças à uma ideia idiota minha. Em minha defesa, contudo, pensei que ela fosse falar algo como “comida chinesa” ou qualquer coisa parecida.
Não sabia cozinhar e obviamente ela não queria alguma coisa desgelada no micro-ondas. O pensamento de procurar uma receita qualquer online também logo se evaporou porque não era muito bom seguindo esse tipo de estratégia, isso era coisa de Chase. Abraçando o inevitável, puxei os ingredientes necessários da única coisa que sabia fazer direito e comecei a preparar nosso jantar. Estava no último quando a campainha soou. Mal tinha aberto a porta quando passou por mim e se jogou sentada no sofá como se isso fosse a coisa mais normal do mundo.
- – gemeu meu nome em súplica, os olhos fechados e a cabeça deitada no encosto. – A comida está pronta? Estou exausta. Charlotte brigou com o namorado de novo e não apareceu para trabalhar. O pior é que dessa vez ela ligou matando o cachorro do vizinho. Tive que ficar sem recepcionista outra vez e tinha tanta gente.
- Quem diabos é Charlotte e por que ela matou um cachorro? – perguntei, embasbacado, esquecendo até mesmo de mandar que ela saísse do meu sofá.
- É minha recepcionista. Adolescente com problemas de namoro demais. E ela não matou realmente um cachorro.
Suas palavras saáam baixinhas enquanto seus olhos permaneciam fechados, os fios curtos de seus cabelos se espalhavam pelo sofá negro, criando um contraste interessante. Acima disso, entretanto, o jeito como seu cabelo estava se assemelhava muito às fantasias que tive e que envolviam ela e minha cama. Ou alguma outra superfície qualquer.
Minha boca secou.
- Mas vamos esquecer esse assunto – levantou a mão e fez um gesto de descaso, ao mesmo tempo interrompendo minhas divagações. – Estou exausta demais para te explicar, faminta demais para raciocinar uma explicação descente e com dor demais para me mexer. Traga a comida.
Meus olhos se arregalaram com a surpresa de, outra vez, ela estar tentando mandar em mim. Trinquei os dentes e reprimi a vontade de resmungar “ok, majestade” enquanto me dirigia à cozinha. Peguei os pratos, ainda me perguntando o porquê de estar fazendo o que ela mandara, e voltei à sala, sentando na poltrona ao lado de onde estava. Ela deve ter me ouvido porque abriu os olhos cansados e me encarou por um segundo antes de olhar para o que eu trazia.
- Sanduíche de frango? – sussurrou, olhando-me de um jeito esquisito, mas estranhamente acalentador.
Subitamente senti-me sem graça, afinal, ela me trouxe pão, steaks, e eu estava fornecendo sanduíches.
- Com maionese – murmurei, colocando os pratos sobre a mesinha de centro. – Se você não quiser, posso pedir alguma coisa fora – resmunguei, endireitando-me e logo entrando na defensiva.
- Não – sacudiu a cabeça, parecendo mais acordada do que em qualquer outro momento naquela noite. – Está ótimo – como que para provar seu ponto, esticou-se para pegar um sanduíche, que logo levou a boca e deu uma mordida generosa. – Yumi! – sorriu por sobre o pão.
Ela estava tão... adorável que, por falta de palavra melhor para descrever, me desmontou. Toda parede que havia levantado segundos antes desmoronou e me peguei sorrindo para ela e perguntando se ela queria beber alguma coisa. Minha vizinha pediu por um suco e me lembrei do de melancia que havia visto ao guardar a maionese. Enchi dois copos e levei para sala. Observando o prato vi que havia três sanduiches a menos. deveria estar realmente com muita fome.
Ofereci-lhe o copo e, dessa vez, comemos em um silêncio confortável ao invés de embalados pelo som da televisão.
- Nossa! Isso estava muito bom, – falou, recostando-se no sofá depois de dar-se por satisfeita.
- Minha especialidade – dei de ombros, um sorriso no canto da boca ao pensar na pequena ironia de que, com a minha idade, o máximo que sabia fazer eram alguns sanduíches.
- Ok, Chef Ramsay, quer ver GOT agora?
Assenti, não me preocupando em perguntar quem era esse tal de Ramsay frente a oportunidade de ver o seriado. Outra vez abusando de uma intimidade que nem sabia que tinha lhe concedido, ela pegou o controle e ligou a televisão. O episódio em que havíamos parado no outro dia começou na tela e minha atenção imediatamente seguiu para a história que estava achando tão interessante. Menos de dez minutos depois, contudo, distrai-me com o tanto que ela se remexia no outro sofá. Finalmente desisti de prestar atenção e me virei para observá-la colocar a mão no ponto entre o pescoço os ombros e girar a cabeça.
- , o que exatamente você pensa que está fazendo?
- Não me enche o saco, . Isso é tudo culpa sua.
Fiquei surpreso com o tom abertamente hostil quando há minutos ela parecia estar tão contente graças à comida.
- Estou dolorida o dia inteiro graças aquele programa lunático de treinamento que você me obrigou a fazer.
Gostaria de te deixar dolorida de outro jeito, . Um jeito em que você certamente não estaria reclamando depois. Gritando durante, sim, mas não reclamando depois.
- ‘Tá tudo doendo. E a culpa é sua! Então não reclama – olhou feio para mim antes de voltar a encarar a TV e continuar apertando o braço. – Quem pode reclamar sou eu! – resmungou de novo para mim. – Porque, vou te falar uma coisa, isso doí pra caramba. Como você aguenta uma co-
- Vem aqui.
Falei ao tomar uma decisão. Sabia que não era muito seguro e obviamente não muito inteligente , mas seu falatório incessante e a ponta de culpa que surgia graças à ponderação de que talvez tivesse a apertado além do limite me levava àquilo. Isso e o fato de que normalmente me fazia tomar decisões das quais me arrependia depois.
- O quê?
- Vem aqui – cheguei o máximo para trás, separando um pouco os joelhos.
Ela olhou para o ponto minúsculo de sofá para o qual apontara e depois para mim, os olhos arregalados.
- O quê? – repetiu em um fiapo de voz.
- O que você está fazendo não adianta nada senão para te dar uma distensão no braço graças a posição esquisita em que está. A única coisa que ajuda é uma massagem. Acredite, eu sei.
As bochechas dela ficaram rápida e intensamente vermelhas.
- Você... você vai me fazer uma massagem?
- Se você parar de falar e se mexer, sim.
Ela continuou parada, em silêncio.
- Enquanto ainda somos jovens, .
Nada.
Ok. Minha paciência também tinha seus limites.
- Certo – dei de ombros, tentando parecer indiferente à rejeição que acabara de sofrer. – Tanto faz – voltei à televisão.
Antes que pudesse prestar atenção em uma única fala, contudo, a loira gritou:
- NÃO! – em um salto, ficou em pé.
De má vontade, voltei a olhá-la.
- Eu aceito... aceito a... massagem – a palavra saiu em um pequeno grunhido.
Com passos lentos, ela ficou na minha frente e depois virou de costas, abaixando-se devagar até se acomodar no espaço que eu deixara. O problema que a poltrona mal era grande o suficiente para mim e, por mais miúda que fosse, o móvel não fora projetado para caber alguém do meu tamanho e outra pessoa também. Não foi muito surpreendente, então, quando ela ficou sentada sobre minhas coxas e, ao se mexer um pouco para ficar mais confortável, acabou efetivamente sentando no meu colo.
Nós dois congelamos por um segundo.
- E... e a tal massagem? – sussurrou, a voz saindo em pequenos miados.
Abri e fechei minhas mãos ao lado do corpo algumas vezes antes de pousá-las em seus ombros. Senti-a endurecer e se arrepiar sob minhas mãos. Simultaneamente percebi outras coisas como o fato de que o corte do seu vestido era tomara-que-caia, o tipo de roupa mais fácil de se arrancar, e o cheiro gostoso de chiclete que seu cabelo tinha.
Contendo um suspiro pesado, afundei meus dedos em sua pele. soltou um gemido abafado.
Foi como se o ar congelasse de tão pesado. Por um segundo foi difícil respirar.
Meu pau, que estava mostrando sinais de atividade desde a primeira esfregada que aquela delícia de bunda tinha dado, endureceu por completo. Sabia que ela podia sentir e sabia também que era dela o próximo passo.
Mais alguns segundos de silêncio se seguiram. Já estava pronto para aceitar outra rejeição e tirar minhas mãos dela, mesmo que isso fosse a última coisa que eu queria, quando ela soltou um suspiro pesado e chegou mais para trás, encostando suas costas em meu peito. , então, girou a cabeça, oferecendo mais acesso em um convite mudo. Dessa nova posição, podia ver o topo de seus seios graças ao decote.
Minha boca secou.
Desci a mão de seu ombro, por seu braço e até que minha palma cobrisse suas costelas, a ponta do indicador roçando de leve a base de seu seio direito.
Outro suspiro seu e novos arrepios em sua pele.
Ela tombou a cabeça para o outro lado, explicitamente deixando o pescoço de novo à mostra. Abaixei a boca contra sua pele, aceitando dessa vez seu convite.
Meu corpo rugiu de excitação enquanto minha cabeça rodava graças a antecipação.
, essa seria uma noite interessante.



Capítulo 13

Quando está prestes a puxar o gatinho de uma arma, a teoria manda que você não sinta nada. Faça seu trabalho e pronto. Não sinta, não erre. Ordens fáceis de serem dadas a seus subordinados, mas difíceis de serem cumpridas por qualquer um. Você se treina durante anos, mas, na hora de dar um tiro, ainda sente uma explosão de adrenalina que faz o sangue esquentar em suas veias, seu coração bater mais rápido e, por um milésimo de segundo, estraçalha todo seu controle. Todo seu poder some por um micro instante para imediatamente depois voltar com o dobro da intensidade. É uma sensação única e basicamente indescritível.
Não me sentia assim desde dias antes de voltar do Afeganistão.
Não até ter em meu colo.
Quando finalmente tive aquela pele cheirosa de seu pescoço sob minha boca, não pude acreditar em quão macia era. Primeiro na junção entre o pescoço e o ombro, testando o terreno, esperando para ver como ela reagiria. Só quando soltou um daqueles sons abafados e deliciosos é que deixei os dentes rasparem ali por um segundo apenas antes de subir o carinho até o ponto sensível atrás de sua orelha. Minha mão esquerda, que antes estava sob sua costela, alcançou a mecha mais comprida de seu cabelo que caía graças à sua cabeça tombada. Enrolei alguns fios em dois de meus dedos e o puxei um pouco mais firme ao mesmo tempo em que a mão direita se espalmava embaixo de seu seio, puxando-a mais contra mim. Sua bunda roçou mais forte contra meu pau e suguei com força em seu pescoço.
Ela gemeu baixinho e meu cérebro embriagado conseguiu registrar algo muito importante. Arrastei os lábios até chegar a seu ouvido.
- Você gosta de dor, ? – mordi o lóbulo e minha mão subiu até envolver seu seio.
Não enchia minha mão, mas era uma delícia sentir o peso dele, sua maciez e o jeito que seu mamilo se endureceu imediatamente. Também foi um tesão a maneira como ela arqueou as costas, tentando aumentar o contato.
- Responda.
Puxei de novo seu cabelo e meus dedos se fecharam mais firmes sobre seu mamilo em uma breve beliscada. Dessa vez ela se remexeu ainda mais, os sons que soltava também ficando mais altos.
- Sim – sussurrei, minha voz quebrando. - Você gosta de uma ponta de dor. Posso te dar isso, - soprei em seu ouvido e a vi se arrepiar. – Você só precisa fazer o que eu digo. Agora responda.
Esperei um segundo a mais. Nada.
Abaixei a mão de seu seio, espalmando-a em sua barriga, a ponta de meus dedos roçando a linha onde sabia que começava sua calcinha. Abriu mais as pernas, efetivamente colocando-as sob meu joelho. chiou pela perda de contato, tentando virar o rosto para mim, mas segurei uma porção de seu cabelo pela raiz. - Tsc, tsc – estalei a língua. – Não seja uma garota má. Primeiro não me responde, agora quer se mexer antes que eu diga. Vai se comportar?
Deslizei o dedo médio até o meio de suas pernas sobre o vestido. Apenas um segundo, um pequeno incentivo para conseguir minha resposta. Obtive o efeito que queria quando, tremendo, ofegou:
- SIM! Sim.
Fechei os olhos por um segundo, saboreando o quão gostoso era ouvir a mulher que havia me atormentado por semanas finalmente se render.
- Sim o quê, ?
O clima na sala era sufocante como se camadas de fumaça pesassem sobre tudo. O suor começava a se acumular em minha testa e pude ver que a loira não estava muito diferente. Havia pequenas gotículas descendo por seu decote.
- Eu... eu vou ser boa – suas palavras saíram tão aos solavancos que quase não consegui entender.
O jeito como ela mexia aquela delícia de bunda no meu colo, cada vez mais impaciente, também não me ajudava a manter a linha de raciocínio.
- Assim... assim que eu gosto – como recompensa, segurei ambas as suas coxas e subi o vestido devagar até o embolar em sua cintura.
Reprimi o grunhido que subiu por minha garganta ao ver sua calcinha. Pequenininha. Podia arrancá-la com um puxão e, levando em consideração o recém-descoberto fascínio que tinha por dor, tenho certeza que ela adoraria isso. Mas não era hora. Agora só havia espaço para mexer com sua cabeça do jeito que ela tinha mexido com o minha. Devagar, deixei que meus dedos passassem pelo elástico daquele pedacinho de pano que ela chamava de roupa íntima. Meu dedo passou por seu clitóris e ela jogou a cabeça para trás em meu ombro, gemendo.
Senti um sorriso de puro ego masculino repuxar no canto de minha boca.
Esticou o braço para trás e agarrou minha nuca, rebolando com mais força, seus movimentos se tornando desajeitados. Aumentei a pressão sobre seu botãozinho de nervos e recebi um puxão de cabelo como resposta. Um, dois, três circuladas curtas contra seu ponto mais sensível antes de continuar o caminho para baixo.
Soltei um silvo baixo e entre os dentes ao encontrar a umidade que sua bucëta produziu.
- Molhadinha – sussurrei ao pé de seu ouvido de novo. – Como eu sempre soube que seria.
- , por favor.
Ouvir meu nome entrecortado daquele jeito era um atentado direto ao meu autocontrole. Dessa vez tive que conter o impulso primitivo e altamente tentador de empurrá-la sobre o tapete e enterrar meu pau naquela bucëtinha que agora tinha certeza que era quentinha e apertadinha do jeito que eu gostava. Tive que arrumar forças de onde nem sabia que tinha para continuar apenas provocando-a ao invés de tomar o que ela oferecia, o que ela tanto queria. Não podia ser tão fácil assim, não quando ela me deixou duro incontáveis vezes sem nem mesmo se dar conta.
Era a vez do predador brincar com a presa.
Assim, limitei-me a deixar que meu indicador mergulhasse no lugar onde meu pau desejava tanto estar. Lentamente e sem muita dificuldade, graças ao quão lubrificada ela estava, fui afundando meu dedo, experimentando a maciez, o calor. Minha cabeça rodou e tive que me concentrar para começar a me mexer lá dentro.
Para dentro e para fora, para dentro e para fora. A cada pequeno atrito que minha pele tinha contra a sua, soltava um gemido novo para terminar de fuder meu cérebro. As reboladas em meu colo se resumiram a meros movimentos reflexos para encontrar minha mão e, mesmo assim, estava a segundos de gozar em minhas calças como a merda de um adolescente que vê seu primeiro par de peitos. Decidido a evitar essa humilhação, dediquei-me mais veementemente a fazê-la gozar.
Voltei minha boca em seu pescoço e dei outro chupão ao mesmo tempo que aumentava a velocidade que a fudia com meus dedos. O aperto de sua mão sobre meu cabelo começou a diminuir e sabia que ela estava chegando perto, então fui ao seu ouvido e, já que não conseguia ser mais coerente, grunhi:
- Peça “por favor”, .
Ela sacudiu a cabeça, completamente perdida nas sensações. Não sabia nem mesmo se ela tinha me ouvido, então repeti:
- Peça “por favor” ou não vou deixar que goze – e, a fim de chamar sua atenção, mordi seu lóbulo assim que terminei de falar.
Dessa vez ela me entendeu. Houve um resmungo, um ofegar pesado, mas ela finalmente conseguiu sussurrar, quebrado, o que eu queria ouvir:
- Eu... po-por favor.
- Boa garota.
Como recompensa, fechei os dedos sobre seu clitóris em um beliscão. Sabia que seu orgasmo começava quando ela murmurou alguma coisa incoerente e provavelmente involuntária que pareceu ser meu sobrenome.
Depois disso, o silêncio.
Por um segundo tudo pareceu ficar em suspenso.
Então soltou meu cabelo de uma vez e tive que segurá-la para que não caísse do meu colo enquanto, em meio a um gemido mais alto, ela gozava. Suas pernas se fecharam em minha mão, sua cabeça tombou para trás e o cheiro de chiclete me invadiu quando seu cabelo caiu sobre meu rosto. Observei seu peito subir e descer, a boca aberta enquanto o fôlego saía à lufadas violentas. Suas mãos, que haviam se fechado em punhos até que as unhas afundassem nas palmas, abriram-se de uma vez. soltou o ar pesadamente e suas pernas trêmulas relaxaram, libertando minha mão. Soltou todo seu peso contra meu peito, maleável como massinha.
Meu pau latejou dentro da calça e decidi virá-la em meu colo para que pudéssemos fazer alguma coisa sobre isso. Entretanto, assim que estávamos de frente, deparei-me com um olhar satisfeito, mas muito cansado. Levei alguns segundos silenciosos para raciocinar o que estava acontecendo. Foi só então que me lembrei das várias vezes que ela reclamara antes do jantar sobre estar exausta. Exercícios físicos, o dia estressante no trabalho e um orgasmo dos bons foram demais para ela. Podia ver em seus olhos, embaixo dos fios de cabelo meio molhados de suor, o sono pesar com força. O primata em mim quis arrancar os cabelos e quebrar alguma coisa ao se dar conta de que não haveria mais nada hoje, mas o cavalheiro que minha mãe criou venceu a batalha facilmente e, apesar de mais frustrado do que me sentira em muito tempo, tirei minha mão de dentro de sua calcinha. Não pude evitar, contudo, passar a ponta do dedo mais uma vez sobre aquele botãozinho que tanto queria chupar. tremeu com força no meu colo graças à sensibilidade, mas soltou um gemidinho antes de fechar os olhos e se aconchegar em meu pescoço, suspirando meu nome. Abaixei seu vestido, mantendo meus dedos molhados por seus sucos longe porque não queria sujá-la e também porque queria ter a chance de apreciar seu gosto. Ela estava completamente adormecida antes que terminasse de tomar a decisão sobre o que fazer em seguida. Queria chacoalhá-la e demandar que ela fosse dormir em sua própria casa.
Nada pessoal.
Só não gostava de ninguém dormindo na minha casa, por isso, ninguém nunca dormia na minha casa. Sendo bem sincero, nem eu gostava muito desse lugar, e a situação ficava ainda pior quando tinha alguém ali. Resumidamente não gostava da minha casa e nem de pessoas, juntar os dois era, então, odioso. Tinha toda razão, pois, para pedir que ela fosse dormir em outro lugar, contudo, ao abaixar a vista, mudei de ideia. Ela parecia tão inocente com os olhos fechados e a boca um pouco aberta. Acredito, entretanto, que o que me amoleceu foi o fato de que pela primeira vez não a via tão elétrica como havia me acostumado.
Derrotado, levantei nos braços e caminhei até meu quarto para colocá-la na cama. Dei-lhe as costas e fui para o banheiro para dar um jeito naquela ereção que já estava me incomodando até na hora de andar. Chutei a droga do jeans para o lado e joguei a camiseta sobre o ombro enquanto entrava no box. Liguei a água gelada, mas sabia que aquilo não seria suficiente. Não quando tinha rebolado no meu colo daquele jeito, não quando ainda podia levar a mão à boca e finalmente descobrir como seus suquinhos eram.
Fechei a mão esquerda ao redor da minha ereção e bombeei devagar, usando a água para deslizar melhor. Cerrei os olhos, chupando meus dedos não do jeito que queria chupar a bucëta dela, mas com atenção suficiente para tirar cada vestígio. Não tentei colocar um rótulo no gosto, já que não se parecia com nada que já havia experimentado, mas era bom. Era muito bom.
Meu cérebro embriagado ainda conseguiu funcionar ao ponto de pensar que aquilo era apenas uma amostra ruim e velha do que o verdadeiro gosto tinha. Lambi os lábios só de imaginar como seria provar diretamente da fonte. Separar as pernas delas e a segurar com forçar porque sabia que ela se mexeria demais e também porque ela gostaria disso. Minha vizinha tinha um gosto pela dor.
Quem diria.
Minha mão se apertou e se apressou, quase na mesma velocidade com que meu cérebro conjurava fantasias novas. Fantasias novas onde ela gozava com ainda mais força quando eu lhe dava algumas boas palmadas naquela bunda gostosa e provocadora que há pouco havia se esfregado em mim de um jeito que me deixou um pouco louco.
Passei a mão pela cabecinha ao visualizá-la, sob minhas pálpebras fechadas, de quatro no meio da minha cama enquanto metia por trás e a trazia mais perto do orgasmo a cada estocada forte, empurrando-a para beira do abismo para segurá-la no último segundo, não deixar que saltasse em direção a glória. Não até que ela pedisse “por favor”. Como ela tinha feito hoje.
Espalmei a mão na parede, abaixei a cabeça e deixei que a água jorrasse com força sobre minhas costas, me masturbando mais e mais rápido ao ouvir seus sussurros em minha cabeça. O nó em minha barriga se apertava com força e, ao lembrar-me do jeito que ela tremeu em meus braços quando a levei ao orgasmo, soltei um grunhido abafado e jatos de esperma atingiram os azulejos.
Soltei um suspiro e abaixei a mão. Observei letárgico, por um segundo, a água lavar a parede e meu gozo.
Aquilo não chegava nem perto do que eu queria. Não outra punhëta mais ou menos. Estava cansado disso. Ao menos podia afirmar que tinha sido melhor do que das outras vezes, melhor material para fantasiar. Fantasias essas que haviam se tornado bem mais reais e precisas. Agora, todavia, não era hora disso, então, usando parte do treinamento de atirador, forcei minha mente a ficar em branco enquanto terminava meu banho. Tendo em vista que provavelmente dormiria como os mortos, não me preocupei em amarrar a toalha na cintura ao ir para o quarto em busca de alguma coisa para usar como pijama, já que dormir nu não era uma opção hoje. Achei uma calça de moletom cinza e decidi que aquilo serviria. Do outro lado do armário peguei um lençol qualquer e saí do quarto sem olhar para trás.
Já estava na sala quando outra vez o cavalheiro da mamãe apareceu. Bufando, joguei o pano sobre o sofá e dei meia-volta. Ela estava na mesma posição e lugar que a deixei, cansada demais para se mover. Depois de observá-la por um segundo a mais do que o necessário, puxei sobre ela o cobertor que ficava ao pé da cama e que normalmente não tinha serventia nenhuma. Só depois de ter a certeza de que ela não sentiria frio graças à uma possível brisa noturna foi que pude voltar ao sofá que seria minha cama improvisada. A última coisa que vi antes de fechar os olhos foi a poltrona onde tinha me dado a melhor lapdance que já recebi na vida.
Acordei na hora de costume e precisei de um momento para me lembrar do porquê de estar no sofá. À luz do dia, os acontecimentos de ontem pareciam um tanto quanto surreais e foi necessário ver a loira em minha cama para ter a certeza de que não havia sonhado – de novo. O mais surpreendente, contudo, não foi encontrá-la sob meu cobertor, mas o que isso me fez sentir: alívio. Não arrependimento, confusão ou algum tipo de pânico irracional, apenas alívio e alguma coisa um pouco mais gostosa, mas que não consegui identificar.
Peguei a roupa e o tênis que normalmente usava para a corrida matinal e me troquei no banheiro, aproveitando para usar esse cômodo. Em poucos minutos já me encontrava correndo pelo tão conhecido caminho pavimentado. Não queria diminuir a distância, então aumentei a velocidade para chegar em casa antes que minha “convidada” acordasse. Ao retornar para casa, liguei a cafeteira e comecei a preparar um pouco de bacon, que graças a Deus era simples o suficiente para que eu soubesse fazer sem colocar fogo na casa. Estava virando a segunda leva na frigideira quando ouvi os primeiros passos abafados pelo corredor. Passos incertos demais que me deixaram curioso e esta curiosidade fez com que eu desligasse o fogo. Espiei pela porta da cozinha, Ravaenna surgir pelo corredor, olhando para os lados e segurando meu abajur sob os ombros de uma maneira que suponho ela ache ameaçador.
Franzi o cenho, silenciosamente me aproximando mais da porta.
- O que, em nome de Deus, você está fazendo, ?
Sabia que ela não tinha me visto, mas não pensei que fosse pular de susto e derrubar o objeto no chão, que, por pura sorte, não se quebrou.
- ! – encostou-se na parede, a mão sobre o coração. – Ficou maluco? Quer me matar de susto!
Revirei os olhos.
- Não pensei que você iria acordar, agir como uma lunática paranoica e ainda se assustar quando falo alguma coisa dentro da minha própria casa.
- Não percebi que estava na sua casa – passou a mão no cabelo. – Acordei num lugar estranho e reagi da melhor maneira possível.
Impressionantes como ela não conseguia parar de me surpreender.
- Ah, certo. Genialmente decidiu usar um abajur? – cruzei os braços, rindo zombeteiro. – Aposto que o seu sequestrador imaginário ficaria horrorizado.
- Ora seu... – levantou-se indignada depois de pegar o abajur no chão e colocá-lo de lado. – Eu fiz exatamente o que Spence ensinou: procurei uma arma e depois uma rota de fuga.
- Tenho certeza que Spencer maravilha estaria muito orgulhoso agora – assenti, balançando a cabeça com um sorriso irônico e a mandíbula travada de raiva.
- Não gosto do seu tom.
Arqueei a sobrancelha.
- Fiz café e bacon. Você deve estar com fome, depois de dormir tanto.
Foi um comentário inocente, mas pela vermelhidão que surgiu em seu rosto parecia que eu havia descrito com riqueza de detalhes o que fizemos ontem à noite.
- Oh, oh – olhou para os lados e ajeitou o vestido. – Não era necessário. Eu... oh – as bochechas coraram ainda mais quando seu olhar caiu sobre a poltrona. – Eu... oh... quero dizer, eu preciso ir embora.
- Ir embora? – fingi surpresa. – Sério?
- É. Pois é – assentiu veementemente, andando de costas para chegar à porta sem ter que tirar sua atenção de mim, quase como se tivesse receio de que eu fosse explodir ou algo assim.
- Por quê?
Isso a fez parar.
- Por que o quê? – franziu o cenho e outra vez tentou ajeitar seu cabelo desgrenhado.
- Por que você precisa ir embora?
Não iria facilitar as coisas pra ela. Além do mais, era divertido vê-la se contorcer em busca de uma resposta.
- Eu não... não... – quase podia ver as engrenagens de seu cérebro trabalhando por uma desculpa. – Não coloquei comida para o Cookie. Isso! É isso! Esqueci-me de colocar comida para o Cookie – voltou a andar. - Ele fica tão rabugento quando ‘tá com fome. Uma coisa lamentável. Realmente. E nã-Ai! – olhou para baixo para se deparar com a maçaneta na qual havia esbarrado e esfregou a costela com uma careta. – Depois a gente se fala.
- Hoje à noite?
Parou a meio-caminho de sair, os olhos um pouco arregalados.
- Veja bem, hoje vou jantar com a Ava. Jantar semanal, você sabe.
- Pensei que fosse na quinta.
- Ela pediu pra adiantarmos. Tem um compromisso na quinta.
Podia ver que a história sobre o jantar com a amiga não era uma mentira, mas também ficou claro que ela havia acabado de pensar nessa possibilidade.
- Ok. Então nos vemos na quarta. Tchauzinho.
Antes que pudesse pensar em uma resposta, ela tinha batido a porta e sumido de minha casa. Não fugiu a minha atenção que dessa vez foi ela quem desapareceu depois de pouco mais do que algumas palavras vazias. E eu não gostei do jeito que isso me fez sentir.
Não gostei nem um pouco.

xxx

- Ok, ok. Estou aqui – Ava passou pela porta. – E trouxe reforços – sacudiu uma garrafa de vinho e a caixa de pizza que trazia nas mãos.
Fechei a porta atrás dela e cuidadosamente fechei as várias trancas sob o olhar atento de minha melhor amiga.
- Então, me conte – ela colocou as coisas sobre a ilha da cozinha e se abaixou para cumprimentar Cookie. – Que foi que aconteceu para te levar a esse pedido de emergência para adiantar o jantar?
Ok. Aquilo era um pouco mais difícil do que previra.
Soltei um suspiro e vasculhei a gaveta com força em busca do saca rolha. Abri a garrafa e enchi uma taça.
- Hey, hey. O que está acontecendo? – Ava se levantou e observou minha movimentação frenética. – Isso é um Almaviva.
- Não entendi o que você disse e não me importo – resmunguei antes de tomar um bom gole.
- Almaviva é um vinho chileno, . E você realmente não entende da arte – prestou atenção em se servir uma taça enquanto falava condescendentemente comigo e revirava os olhos.
- Tanto faz essa porra!
- Hey, hey – olhou-me com os olhos meio arregalados. – Que foi que aconteceu? Que mau-humor é esse?
- Não estou de mau-humor – virei mais um pouco de vinho garganta abaixo.
- Ok, você pode não estar mau humorada, mas vai ficar bêbada rapidinho se continuar bebendo assim – sua mão se fechou sobre meu pulso e abaixou meu braço até que eu descansasse sobre o mármore a mão que segurava a taça. – Agora me conta o que aconteceu.
Olhei para o teto, para a geladeira e para o mármore escuro da ilha antes de finalmente soltar um suspiro e murmurar:
- não é gay.
Ava piscou devagar e um sorriso irônico apareceu em sua boca.
- Isso eu já sabia.
Franzi o cenho. Aquilo estava fácil demais.
- Sabia que estava certa e você, errada.
Ah! E aí estava.
- Mas o que te mostrou que sua conclusão anterior era um tanto quanto idiota?
Nunca fácil.
Virei para o lado e alcancei a embalagem da pizza e abri a tampa. Já que iria encarar aquela conversa, ao menos podia fazê-lo de barriga cheia.
- Pepperoni?
- Não deu pra fazer nada mais elaborado em tão pouco tempo – encolheu os ombros. – Agora você já terminou de tentar evitar o assunto?
Peguei um pedaço já devidamente dividido e mordi, sorrindo zombeteira antes de começar a mastigar.
- Ok. Vou lavar as mãos enquanto você cria coragem – levantou-se e foi para o banheiro, mas voltou antes que eu tivesse tempo de terminar uma segunda mordida.
Ela tomou um tempo longo para sentar-se outra vez, pegar um pedaço de pizza para si e dar uma mordida. Sabia que ela estava me dando um pouco de espaço e agradecia por isso. Só quando terminou de mastigar, e ainda mantendo a atenção sobre a pizza, ela falou:
- E então?
Soltei outro suspiro fechado e deixei que as palavras passassem por minha boca:
- Ele me beijou aquele dia depois que você foi embora.
Ava levantou a cabeça tão rápido que quase ouvi algum de seus ossos estalando em protesto ao movimento repentino.
- Ele te beijou? Como assim “beijou”? Que tipo de beijo?
- Bom... – deslizei o dedo sobre minha taça e limpei a garganta antes de continuar. – Ele me empurrou contra a porta e me beijou – murmurei.
- Nossa! Você faz isso soar tão entediante. Foi entediante?
Imediatamente fui assaltada pelas memórias daquela noite. O sangue queimou por minhas veias e sabia que estava corando outra vez.
- Não – sacudi a cabeça. – Nem um pouco entediante.
- É. Se o jeito que seu rosto está queimando for algum indicativo, tenho certeza que foi um pouquinho mais interessante. Quer compartilhar os detalhes?
- Não. Não depois de você ter me dedurado tão rápido ontem.
- Hey! – afastou a pizza que estava prestes a morder para me olhar de maneira indignada. – Você também teria contado se ele tivesse te olhado daquele jeito intimidador. Aliás, não sei como você consegue discutir com ele. O cara é bem intimidante.
- Ele não é tão ruim assim – apesar de concordar com ela, uma parte de mim ainda quis defendê-lo.
- Não estou dizendo que ele seja ruim, apenas que não quero ficar na lista negra dele porque escondi você embaixo do balcão. Aliás, o que diabos foi aquilo mesmo?
- Isso não vem ao caso agora – falei, exasperada. – E pare de tentar dar pizza para o Cookie – repreendi e ela parou a meio caminho de abaixar a mão outra vez para longe da minha vista sob o balcão. – Você disfarça mal, colega.
Ava deu de ombros e segundos depois pude ouvir que meu bebê mastigava alguma coisa.
- Avalon!
- Mas ele fica me olhando de um jeito que me faz sentir culpada.
- Você tem que aprender a superar isso.
- Não seja hipócrita! Sei que você contrabandeia alguns biscoitos para ele quando ninguém está por perto.
- Mas eu sou a mãe dele!
- E eu sou a tia legal. Não tenho obrigação de dar educação, apenas amá-lo e mimá-lo.
- Depois eu que fico de chata, né?
- Talvez você devesse arrumar um pai pro Cookie, assim ele poderia educá-lo. Que tal o seu Leónidas?
Revirei os olhos, tentando não me lembrar de quão bem comportado Cookie se tornava quando estava por perto.
- Depois eu que fico enrolando no assunto – murmurei contra a borda da minha taça.
- Você tem razão – assentiu solenemente. – Você estava falando sobre o amasso quente que você e tiveram outro dia e que você levou semanas para me contar. Então continue – gesticulou com a mão antes de apreciar mais um pouco da delícia de pizza que havia feito.
- Eu não falei nada sobre amassos quentes! – protestei, mas não fui convincente nem para mim mesma.
- Não precisa. O jeito que você reagiu, com todo esse rubor e a respiração acelerada, quando perguntei do beijo foi suficiente para que eu tirasse algumas boas e verdadeiras conclusões.
Fechei os olhos por um segundo. O problema não era admitir que e eu tivemos alguns momentos ótimos, mas sim que ela estava certa. De novo.
- Certo. Certo. Não foi para isso que te chamei.
- Não? – colocou a mão sobre a boca por ainda estar comendo. – Então por que estamos falando sobre isso? Não que não seja importante e que não esteja curiosa sobre se o rei de Esparta beija bem, mas estou um pouco mais interessada sobre o que é tão urgente.
- Disse que não foi para isso que te chamei, não que era irrelevante. Precisei contar isso primeiro para que entendesse o que contaria agora – falei, condescendente, abrindo a mão sobre a mesa.
Tomei o resto do vinho em minha taça antes de contar, por cima e em palavras rápidas e sussurradas, o que havia acontecido ontem à noite desde o momento em que chegara até a casa de até a hora que fui embora fugida. Quando terminei o relato, minha melhor amiga calmamente colocou em sua taça a quantidade considerada pela etiqueta como correta, tomou um pouco e abaixou sua bebida sobre o mármore antes de finalmente, finalmente me olhar e soltar um gritinho:
- CARALHO, ! Não acredito que você rebolou no colo dele.
Olhei para os lados rapidamente, procurando por um sinal de Cookie, mas felizmente ele parecia ter ido dormir em algum canto da casa depois de ter enchido a barriga com os pedaços que sua tia lhe contrabandeara.
- E que ele te deu um orgasmo. Foi dos bons, né? Ele tem cara de que sabe o que está fazendo.
A respiração parou em minha garganta por um segundo e discretamente apertei minhas pernas em uma tentativa fútil de aliviar a tensão que a lembrança de seus dedos em mim causava.
- Sim – abaixei a pizza, de repente não tinha mais fome.
- Qual é o problema, então? Orgasmos são soluções, não problemas! – falou, feliz. – Além do mais, há quanto tempo você não tem um de verdade?
- Não é isso... é que...
Aquele não era um tópico exatamente fácil.
Ava franziu o cenho e estreitou os olhos, analisando-me atentamente por alguns segundos até que um brilho de compreensão surgiu em seu olhos.
- Oh! Mas é claro. Claro! – inclinou-se para trás no banco. – Não acredito que não percebi antes. Esse é o problema! Faz tanto tempo que você não tem um orgasmo que está estranhando agora. O senhor Academia fez um estrago e tanto.
- Não! Não é isso! Bom... não é só isso – mastiguei meu lábio inferior por um segundo. – Não é principalmente isso. É que... você sabe que com Robert não era lá essas coisas no quesito sexo.
- Em nenhum quesito, você quer dizer, né?
Sério, Ava? Já estava difícil sem você me interrompendo.
Lancei um olhar expressivo em sua direção, torcendo a boca em desagrado. Felizmente ela entendeu a deixa e ficou quieta.
- Não perdi a virgindade com Robert, mas antes era uma adolescente com outro adolescente e nós obviamente não sabíamos direito o que fazer. Foi legal. Depois veio meu ex. Com ele foi bom, pelo menos no começo. Só que ontem eu descobri que pode ser ótimo e descobri outras coisas também...
Dessa vez minha amiga esperou pacientemente que eu colocasse um pouco mais de vinho e bebesse. Agradeci mentalmente por ela respeitar minha enrolação.
- Quando reclamei sobre você ter me dedurado, você disse que tinha esse jeito autoritário.
- Intimidante.
- Intimidante graças à aura de autoridade ao redor dele!
- Ok, ok. Você pode ter razão, afinal você o conhece mais intimamente, né? – mexeu as sobrancelhas repetidas vezes e abriu um sorrisinho sacana.
E depois eu que era uma alcoolizada esquisita.
- Certo – revirei os olhos. – Espero que em algum momento eu consiga chegar ao ponto principal.
- Eu estou quietinha aqui, apenas escutando.
- Ahan. Claro que está.
- Você está fazendo um tremendo suspense, já que estamos comentando sobre como a história não está andando.
Soltei o ar pesadamente. Ok. Lá vai.
- é meio áspero.
Ava piscou devagar e outra vez se inclinou para trás.
- Como assim áspero? Ele fez alguma coisa qu-
- Não! Não. Quero dizer, ontem eu percebi que gosto de uma coisa mais dura. Sabe? Gostei de quando ele me apertou mais firme do que o normal – agora que finalmente consegui falar, não podia parar. – Sei toda a teoria sobre como isso é normal, comum. As pessoas apreciam sexo de inúmeras maneiras diferentes e não tem nada errado com isso, mas eu nunca havia passado por esse tipo de coisa. Não naquela intensidade. Também gostei do jeito mandão dele e acabei conhecendo seu lado meio, não sei, meio... fofo, eu diria. Só que mesmo tendo estudado a teoria e sabendo que não deveria me assustar com essas coisas, ainda levei um baque, sabe? Agora não sei exatamente o que deveria fazer.
A expressão de Ava se suavizou e foi como se ela tivesse ficado sóbria de uma vez. Ela largou sua taça e esticou o braço para cobrir minha mão com a sua.
- , quero que você me escute e escute com atenção. Robert é um babaca que estava mais preocupado consigo mesmo do que com você. Ele era egoísta e não se preocupou em aprender do que você gosta e também não deixou que você mesma descobrisse. Robert estava errado, não você. Pelo que você acabou de me contar, te mostrou coisas novas, coisas que você gostou. E isso é o certo. Não interessa se você gosta de chicotes ou algo assim. Ninguém tem nada a ver com isso. Se Leónidas não ultrapassou nenhum limite e fez algo que te deixasse desconfortável consigo mesma ou com ele, não há nada de errado.
Levei alguns minutos para absorver suas palavras e foi como se um pesinho saísse de sobre meus ombros. Não é que já não soubesse do que ela estava falando, mas era uma daquelas situações onde você precisa ouvir de outra pessoa para sentir que tudo ficaria bem.
- Ok. Certo. Você tem razão – suspirei, bem mais feliz agora. – Acho que me assustei um pouquinho com o quão bom aquilo era – passei a mão pelo pescoço, sentindo um calor repentino. – Muito melhor do que Robert e melhor até mesmo do que das outras vezes em que e eu nos encontramos em alguma situação remotamente parecida.
- Muito bem – ela soltou minha mão depois de um pequeno aperto reconfortante. – Acho que estabelecemos que você tem alguns gostos excêntricos, mas perfeitamente normais – pegou um segundo pedaço de pizza. – Agora podemos relaxar e apreciar essa delícia que eu fiz – mordeu e mastigou devagar.
Aproveitei a deixa para também apreciar uma segunda fatia e pensar por um momento em como abordaria o próximo tema da conversa.
- Não está tudo-tudo certo – falei finalmente, abaixando o guardanapo sobre a ilha. – Ainda tem mais uma coisa.
- Que coisa?
- A parte que eu saí correndo! – falei exasperada.
Não era óbvio o suficiente?
Engoliu rápido o que tinha mordido para poder falar, exaltada:
- Oh, oh! É verdade! Nossa! Como fui me esquecer dessa parte? Acho que me distrai com as partes mais... prazerosas – outra vez o movimento idiota de sobrancelhas. – Mas, sim, você tem razão. Esse é um problema.
- Bom, ao menos estou na vantagem, ou na desvantagem, se você pensar bem.
- É o quê? – Ava manteve a taça perto da boca, o cotovelo sobre a mesa enquanto me olhava de um jeito esquisito.
- Das outras duas vezes que demos uns amassos, ele saiu correndo.
Olhou-me fixamente durante um segundo.
- Desculpe – sacudiu a cabeça. – Simplesmente não consigo imaginar essa cena. Como assim o cara saiu correndo? Não é como se você fosse bater na cabeça dele e o arrastar pelo cabelo até uma igreja, não é mesmo? Duvido que você até consiga alcançar a altura suficiente para bater na cabeça dele.
- Não sou baixinha.
- Perto dele, você é sim. Mas não vamos nos dispersar aqui. O que você quis dizer com “saiu correndo”?
- Bom, naquele dia em que você estava aqui, o dia em que tinha certeza que ele era gay – completei para não deixar dúvidas.
Ela assentiu.
- Ele meio que saiu correndo depois. Não adianta perguntar o porquê, também não sei – completei ao vê-la abrir a boca. – E no outro dia, na casa dele, depois ele ficou mudo e saí de lá com raiva.
- Ok. Entendi. Mas se ele fez isso, por que você ainda continua conversando com ele? agora está me parecendo ser um pouco mais babaca do que o Robert.
- Ele pediu desculpas. Do jeito dele, mas pediu – encolhi os ombros e não pude evitar um pequeno sorriso ao lembrar quão adorável ele estava ao aparecer na minha porta.
Ava revirou os olhos.
- Você é quem sabe. Mas, mesmo você aparentemente estando na vantagem nesse placar esquisito, preciso te dizer que não há vantagem aqui – levantou as sobrancelhas, muito séria.
- Eu sei, Ava – foi a minha vez de revirar os olhos, cansada. – Foi só um jeito de falar.
Ela arqueou a sobrancelha e se endireitou na cadeira para me olhar por cima.
- Então vamos parar de “jeitos de falar”. Vamos falar diretamente. Você quer o ?
- Essa não é a ques-
- Sim, essa é a questão. Vocês dois estão se rodeando há meses. Até mesmo eu estou cansada disso. Então é uma questão muito simples: Você quer o ?
Respirei fundo antes de soltar o ar pesadamente. Assenti devagar.
- Então você precisa ir lá e conversar com ele. Você sabe como orgulho masculino é frágil. Ele vai fingir que nada aconteceu, a parte que você foi embora, digo. Aí vocês nunca vão falar sobre isso, o que vai envenenar um futuro relacionamento.
- Não falei nada sobre relacionamento.
- Mas você não quer estragar essa possibilidade, não é mesmo? – tombou a cabeça para o lado, encarando-me como se eu fosse uma criança birrenta.
- E o que você sugere, então?
- Que você vá lá. Converse. Ajeite as coisas. Tenha alguns orgasmos – deu uma piscadinha.
- Acho que você tem razão, Ava. Essas minhas neuras são bem fora de lugar, né?
Ela deu uma risadinha e tomou um pouco de sua bebida.
- Sim. Mas ‘tá tudo bem – encolheu os ombros. – Se aprendi alguma coisa com esses anos de amizade com uma psicóloga, é que nós, humanos, temos uma tendência a ignorar as coisas óbvias em nossos problemas. É preciso alguém para apontar.
Foi a minha vez de sorrir.
- Acho que você tem razão, doutora Appleby – levantei a taça em cumprimento e ela bateu vidro contra vidro em um brinde.
- Então o que você está esperando? – ergueu as mãos. - Vá logo conquistar Esparta!
- Agora?
- É! Agora!
Olhei para o relógio. Era pouco mais de onze da noite.
- É muito tarde. Vou amanhã.
Ava revirou os olhos e fez uma careta.
- Mas eu preciso arrumar as coisas do Cookie – tentei outra vez, mas já estava me levantando do banco.
- Vai logo. Eu durmo aqui e arrumo as coisas.
- Você... você dorme aqui? – quase caí e derrubei o banco, repetindo suas palavras como uma boba. – Mas você nunca dorme aqui.
- Todos estamos fazendo alguns sacrifícios aqui. Cookie está fingindo que está no seu quarto e não ouvindo a conversa ali no corredor porque sabe que você não estaria falando se ele estivesse aqui – apontou por sobre o ombro. – Você está tomando coragem. Eu durmo aqui. É para isso que servem os amigos.
Ok. Agora não podia recuar nem se quisesse. Aquilo era um grande passo para ela. Sabia o quanto ela prezava dormir na própria casa.
- Obrigada, Ava – dei-lhe um abraço rápido e passei a mão por minha roupa antes de praticamente correr até a porta.
No caminho virei a tempo de ver meu cachorro fugindo de volta para o quarto. Sacudi a cabeça. Detesto quando Avalon está certa. Assim que saí para o corredor, ouvi o barulho das diversas trancas sendo fechadas.
Soltei o ar pesadamente e caminhei até sua casa. Ergui a mão e bati na madeira lisa. Segundos depois, apareceu usando só uma calça de moletom cinza. Meu olhar passou por todos os gominhos que sabia que eram tão durinhos antes de conseguir me concentrar em seus olhos azuis gelados.
- Hey, podemos conversar?



Capítulo 14

Havia treinado e aprendido durante anos a esperar o inesperado. Atenção é necessária porque, em um minuto de distração, o inimigo pode usar a oportunidade para explodir seu comboio. Nem todo treinamento do mundo, contudo, podia te preparar para algumas coisas tais como certas ironias da vida que te levam a trabalhar para o homem que você detesta desde criança. Ou sua vizinha destrambelhada batendo em sua porta em um horário esquisito – para falar de um assunto mais esquisito ainda.
- Conversar? – repeti, arqueando a sobrancelha e cruzando os braços. – À essa hora? Não dá para esperar até ser de manhã?
- Não, não dá.
- Você não tinha um jantar hoje? – resmunguei, amargo.
Sim, eu ainda estava de mau-humor por ela ter saído correndo. Ficara com um humor do cão durante o dia inteiro, já que trabalhar havia sido especialmente penoso frente à perspectiva de não encontrar minha vizinha para uma sessão noturna de Game of Thrones. Não percebi o quanto gostava de assistir TV - enquanto minha vizinha atrapalhava tudo com seus monólogos sobre amenidades – até que ela cancelou nossa rotina sem aviso prévio e com uma desculpinha qualquer.
- Já foi – respondeu, revirando os olhos. – São onze da noite.
- E mesmo assim você foi bater na porta alheia. Onde foram parar as boas maneiras, hein? – não conseguia conter o tom zombeteiro.
- Isso até me irritaria se já não tivesse me acostumado com esse seu tom, .
Dizendo isso, ela espalmou a mão sobre minha barriga, imediatamente irradiando um calor que fez descer arrepios por minhas costas, e usou sua tática de sempre de me pegar distraído para se esgueirar para dentro da minha casa. Encarei o teto por um segundo, perguntando-me como ainda caía nessa. Soltei o ar pesadamente e arrastei os pés ao segui-la depois de trancar a porta. estava sentada no sofá, os cotovelos sobre as coxas, inclinada para frente e mexendo os pés, mantendo a ponta deles no chão enquanto subia e descia o calcanhar repetida e nervosamente. Sentei-me na mesinha de centro para ficar diretamente de frente para ela.
- Não gosto de coisas mal resolvidas. Então vamos dar um jeito nisso.
- Nisso?
- Por algum motivo fora do entendível, eu aprecio sua companhia – ela ignorou minha pergunta.
Ou melhor, ela praticamente me ignorava por completo, já que falava olhando para algum ponto sobre meu ombro.
- E, apesar do que você vive dizendo, sei que você também gosta do tempo que passamos juntos. Mas precisamos melhorar algumas coisinhas. A primeira delas são suas maneiras.
- Minhas... maneiras? – repeti, incrédulo.
Essa porra de dia de merda não acabava.
- Exatamente. Não gosto desse tom que você usa comigo – desenlaçou as mãos cruzadas para levantar o dedo indicador em riste.
- Não gost-
- Esse tom mesmo. Não, não – sacudiu o dedo.
- Mas que mer-
- Não!
- Que porr-
- Tente outra vez.
Minhas mãos se fecharam em punhos enquanto respirava fundo e olhava para o teto, decidindo me acalmar, já que a outra opção era esganá-la. Depois de contar até cinco algumas vezes, finalmente consegui controlar meu temperamento o suficiente para tentar amaciar minha voz e falar:
- Ok, Ok. Esse tom está bom para você? – falei, baixo e condescendente.
- Bem mais aceitável – assentiu. – O próximo passo é trabalhar essa sua atitude.
Pisquei devagar.
- Minha... minha atitude?
- Na-na-não! – e de novo aquela sacudida de dedo tão irritante.
Quando ela fazia aquilo, tinha vontade de me inclinar para frente e morder seu dedo. Até que se deixasse a má-vontade de lado, aquela conversa era estranhamente engraçada. Estava até mesmo ficando curioso sobre onde minha vizinha iria chegar. Mantendo a expressão cuidadosamente em branco, cruzei os braços e esperaria para que ela continuasse seu raciocínio não fosse a necessidade de deixar um ponto bem claro:
- Não quero um relacionamento. Não sou com essas coisas, então dispenso de uma vez.
Isso chamou sua atenção o suficiente para que ela parasse de encarar a parede atrás de mim para me olhar, o cenho franzido em indignação.
- E quem disse alguma coisa sobre relacionamento? Por que as pessoas têm fixação com isso?
- Ah! Então você só quer sexo casual?
Não sabia de onde aquilo vinha, mas foi preciso um esforço enorme para não rir ao dizer aquelas palavras e para não gargalhar com o puro choque que apareceu em seu rosto. Ela abriu e fechou a boca algumas repetidas vezes enquanto processava o que eu havia dito. Depois disso veio o rubor. Vermelho intenso cobriu todo seu rosto, seu pescoço e a parte do colo que o decote da blusa deixava à mostra. Outra das raras vezes que conseguia deixá-la sem resposta.
- Mas... Mas o que... – engasgava nas palavra. – Eu não... Jamais... Não...
Depois que ela tropeçou pela terceira vez em uma negativa, já não conseguia segurar mais e soltei uma boa gargalhada. Uma daquelas que você joga a cabeça para trás tamanha sua vontade de rir. Só consegui me controlar quando senti algo fofo inesperadamente acertar meu rosto. Minhas mãos agiram com rapidez para segurar o objeto que me atingira. Olhando para baixo, deparei-me com uma de minhas almofadas negras. Só então meu cérebro foi capaz de funcionar para entender que havia atirado uma almofada em mim.
Uma almofada no meu rosto.
Levantei a vista para encontrá-la com o cenho franzido e os lábios apertados naquele biquinho adorável que ela sempre fazia quando estava com raiva. Depois voltei a encarar a almofada porque estava inconformado. Era minha vez de ficar chocado. Não sei se mais surpreso por ela ter tido a coragem de fazer o que nenhum outro tivera ou por meus instintos terem falhado em perceber a ameaça e neutralizá-la antes que pudesse fazer algum dano. Será que estava ficando enferrujado?
Dei uma última olhada antes de me concentrar de novo em minha vizinha. Agora ela estava me encarando com curiosidade.
- Que foi, ?
- Nada.
Mas não era nada. Aliás, era muita coisa. Tanto que quase não consegui murmurar aquela única palavra porque sentia como se minha língua estivesse colada no céu da boca. Uma pequena pontada de pânico era responsável por isso e pelo jeito que meu estômago se remexeu de um jeito esquisito quando percebi que não eram meus instintos que estavam me deixando na mão.
Não.
Eles ainda funcionavam muito bem. Exceto... Exceto quando estava envolvida na equação. Não sabia por que e muito menos se gostava daquilo. O que certamente sabia era que o jeito decidido com que minha vizinha havia marchado para dentro do meu apartamento garantia que ela não sairia até que eu ouvisse o que havia planejado, então empurrei todos aqueles pensamentos esquisitos para o fundo da minha mente e voltei a prestar atenção nela.
- O que você estava dizendo?
- Tem certeza de que está bem?
- Estou ótimo.
- Não parece.
- Não preciso que você seja minha psicóloga, .
Seus olhos se abriram um pouco em surpresa.
- Enquanto ainda somos jovens, .
- Não me chame assim – falou rápido e logo em seguida arregalou os olhos como se tivesse falado demais.
- Não... te chamar assim? Por acaso esse não é seu nome?
- Meu nome é – corrigiu o óbvio.
Um tanto quanto confuso – e aquele parecia ser o sentimento da noite – encolhi os ombros e resmunguei, zombeteiro:
- Como queira, sua majestade .
Ao invés de sua adorável expressão indignada de sempre, recebi um olhar furtivo e outra vez suas bochechas se coloriram. Mas que porra...?
- Nós vamos continuar sentados aqui, fazendo um monte de nada ou sua visita inesperada e completamente fora do horário educado para aparecer na casa dos outros tem alguma razão para existir?
- Ah, sim! É verdade.
- Sua falta de concentração nunca cessa em me impressionar, .
- A culpa não é minha. Você que fica me cortando com suas piadinhas idiotas.
Revirei os olhos.
- Ok. Como estava dizendo antes, acho que nós dois gostamos do tempo que passamos juntos – o jeito como ela remexia as mãos, ora em gesto amplo como que para abarcar o ar, ora apertando o jeans de sua calça. – E também gosto de... hmm... – limpou a garganta, seus dedos se fechando com mais força no tecido áspero. – Quero dizer... Hmmm... Eu... – olhou para lado de novo antes de respirar fundo e me encarar. – Eu gosto quando você me beija – confessou, baixinho.
Outra coisa que nunca deixava de me surpreender, mas que nunca havia mencionado a , era esses momentos de sinceridade absoluta que ela tinha. Toda vez que presenciava um, ou melhor, era vítima de um, sentia como se alguém jogasse um copo de água gelada em meu rosto. Tempo demais vivendo num mundo de aparências somados a mais alguns anos em um lugar onde não há espaço para questionar seu oficial superior te levam a estranhar demonstrações de franqueza. Foi preciso, então, toda concentração que havia em mim para não jogar a cabeça para trás e arregalar os olhos. Sabia que ela tomaria aquilo como uma rejeição e, mesmo não tendo tempo para analisar a situação racionalmente, não era aquilo que queria que ela pensasse. Mantendo minha expressão cuidadosamente em branco, inclinei-me para frente, apoiando os cotovelos sobre as coxas enquanto meu cérebro trabalhava freneticamente para encontrar o que eu queria fazer e o que seria dito em seguida.
- Ok – assenti e, depois de ponderar por um momento, sabia que também deveria fazer concessões. – Concordo. E agora o quê?
- Você concorda? – arqueou a sobrancelha. – É só isso que tem a dizer?
Não pude evita outra revirada de olhos. Mulheres! Sempre querendo esmiuçar tudo.
- Eu concordo com o que você disse. Isso não é suficiente? Até onde eu sei, a discussão só continua se a outra parte foi discordante – comentei, exasperado.
Isso aqui já era complicado o suficiente, será que ela não poderia colaborar um pouco?
Esse pensamento foi tão egoísta que antes mesmo de terminá-lo já sabia que eu estava errado. Toda a educação que minha mãe me dera se rebelava com a maneira como estava agindo no momento, então foi a minha vez de olhar para o teto e respirar fundo.
- Ok. Você tem razão. Ok. Eu gosto de beijar você também – e só para não deixar que ela ganhasse tão fácil, continuei: – Também gosto de como você rebola essa bunda de um lado para o outro, principalmente quando está no meu colo.
E de novo estava gargalhando quando o rubor tomou seu rosto de novo. Dessa vez, contudo, consegui segurar seu pulso quando vi de soslaio que ela se mexia para agarrar outra almofada. Era tão fino e delicado. Podia circulá-lo com facilidade.
- Não – continuei segurando sua mão. – Você me pede para ser honesto e depois me agride? O que há de errado com você, mulher?
- Não tente virar a mesa, . O errado é você – tentou puxar o braço, mas continuei segurando-a, até mesmo trazendo-a um pouco mais para perto de mim, de modo que ela estivesse inclinada para o espaço entre nós assim como eu estava.
- Bom, agora esse é um problema seu, não é mesmo, ? Agora que nós estamos nesse não-relacionamento juntos, é você quem vai ter que lidar com a meu jeito torto. E sincero – abri um sorrisinho de lado para esconder o surpreende sentimento de leveza que sentia ao ser capaz de pronunciar essas palavras. – Desvantagens – dei de ombros.
- Mas agora vamos às vantagens – com a mão que estava livre, segurei-a pela nuca e venci o espaço entre nós para beijá-la.
Não fazia nem um dia desde a última vez que havia mordido aqueles lábios gostosos, mas não restava nenhuma dúvida de que havia sentido falta.
Ela era doce como das outras vezes, mas havia também o gosto de uva. Antes que percebesse o que estava fazendo, encontrei-me a meio caminho de deitar sobre em meu sofá. A única coisa me impedindo era, bom, .
- Que foi? – olhei para baixo e sobre sua mão em meu peito. – Pensei que nós já tínhamos falado sobre tudo – resmunguei, emburrado por ter sido interrompido bem no meio dos meus planos que envolviam principalmente acariciar de novo seus seios deliciosos e, quem sabe, finalmente descobrir a cor dos mamilos que apontavam sob sua camiseta.
- Não é porque nós entramos num acordo sobre nosso não-relacionamento que vamos transar hoje, – sua voz falhava e podia ver que ela tentava imputar naquelas palavras mais confiança do que sentia.
Aproveitei-me daquela pequena indecisão para efetivamente deitá-la sobre o sofá e me acomodar sobre ela, uma de suas pernas entre as minhas enquanto apoiava meu peso sobre os antebraços ao lado de sua cabeça.
- Por que não? – abaixei-me para distribuir alguns beijos preguiçosos por seu pescoço. – Pensei que esse fosse o objetivo de termos chegado a um entendimento.
- Não – suspirou. – O objetivo é que paremos de sair correndo como duas crianças.
Outro efeito dessas explosões de sinceridade é que eles tinham o poder de, às vezes, deixar o receptor da mensagem sem graça. Aquela era uma dessas vezes. Senti minhas bochechas esquentarem e estava bastante agradecido pela posição que me mantinha escondido. Limpei a garganta e voltei a me apoiar de modo a encará-la quando tive a certeza de que o vermelho já sumira de meu rosto.
- Ainda não entendi o porquê de isso excluir a nossa chance de transar – assim que terminei de falar um pensamento terrível me ocorreu e arregalei os olhos, horrorizado. – Você não pretende que isso seja algum tipo de diversão celibatária, né? Por que s-
Sua gargalhada me interrompeu. Ela chacoalhava tanto que seus seios roçaram em meu peito algumas vezes de uma maneira deliciosa. Prendi a respiração enquanto tentava me concentrar em outra coisa para não ficar duro, já que aparentemente aquele era um momento importante.
- Claro que não, – falou, ainda entre um riso e outro. - Também não sou virgem, antes que você pergunte. E tenho vários motivos pelos quais não vamos transar hoje. O primeiro é que isso aqui não é só sobre sexo. Se é o que você quer, sugiro procurar por alguém num bar interessada em uma transa de uma noite. E se era isso que você estava pensando que nosso entendimento – havia um brilho de diversão em seus olhos quando ela repetiu a palavra que eu usara – pode se levantar e a gente acaba com isso agora. Sem ressentimentos. Ainda vou te ajudar com seus documentos e ainda ter a quase amizade de sempre. Mas nada de beijos, com ou sem saídas ridículas depois. Então, o que vai ser? Você está dentro ou está fora?
Péssima metáfora. Queria estar dentro dela. Agora. E provavelmente depois e mais algumas várias vezes e em várias posições e lugares diferentes, mas sabia que isso não seria possível. Apesar do que falara antes sobre não estar propondo um relacionamento, ainda estava estabelecendo regras. Era pura questão de nomenclatura e isso fez minha cabeça rodar de um jeito ruim por vários segundos.
Não queria um relacionamento. Ou um ultimato. Não gostava que me pressionassem. Sentia-me acuado e isso normalmente levava a uma reação não muito educada de minha parte, um mecanismo de defesa explosivo. Dessa vez, entretanto, podia ver, mesmo sob a fumaça horrível que me acuava, que a intenção da mulher embaixo de mim não era me enlaçar em uma relação. Ela simplesmente queria uma resposta clara. E não era difícil entender o porquê disso, visto que, quando não tinha uma ideia bem contextualizada, criava maquinações esquisitas... a maioria delas envolvendo a máfia.
Com a certeza de que ela não queria colocar uma coleira em meu pescoço e também graças ao peso esquisito em meu estômago ao me lembrar do gosto amargo que o dia teve no meio tempo em que ela saiu de minha casa até a hora que voltou, sabia que não havia outra resposta que poderia dar, então continuei onde estava e deixei que o gesto falasse por si.
Pude ver o momento em que entendeu que estava aceitando seus termos. Seus ombros relaxaram e ela soltou um discreto suspiro que não teria percebido se não estivéssemos tão perto. Suas mãos subiram um pouco mais e agora descansavam quase em meus ombros.
- Ok. Bom. Agora que já estabelecemos isso também, os outros motivos são que meu dia foi horrível e-
Meu dia também foi uma merda. Sexo é ótimo para curar esse tipo de coisa. Por que tinha que ser tão difícil?
- e estou muito cansada, além de um pouco alcoolizada. Então, nada de sexo hoje.
- Ok – resmunguei, levantando-me.
Já que ela não iria ficar aqui, provavelmente já estava na hora de ir embora. Já era tarde e, se ela estava cansada, queria lhe dar a opção de se levantar e ir para casa. Não estava errado, já que, assim que se viu livre do meu peso, levantou-se do sofá.
- Vamos dormir.
Suas palavras tampouco foram surpreendentes. O que me causou um choque tremendo foi quando, ao invés de se dirigir para a porta de saída, ela caminhou para o corredor. Saltei do sofá e corri atrás dela.
- Aonde você vai, ?
- Dormir – falou por sobre o ombro como se eu fosse um idiota.
- Mas a sua casa é pra lá – apontei para a ponta contrária do corredor.
- Eu sei. Mas Ava está dormindo lá em casa e ela não abre a porta à noite, então vou dormir aqui – falou como se fosse a coisa mais simples do mundo enquanto abria a porta do meu quarto.
- Como assim ela não abre a porta à noite? Por quê?
- Não sei. Qual lado você prefere? Eu prefiro o esquerdo, você dorme no direito – determinou sem esperar por minha resposta.
- Quê? Nós não vamos dormir na mesma cama!
Aquilo era intimidade demais em tempo de menos e esse negócio parecia evoluído demais para uma coisa que não era um relacionamento. E, afinal contas, por que ela queria dormir aqui? Nem eu gostava de dormir aqui!
- Ok – ela encolheu os ombros e jogou um travesseiro no que supunha deveria ter sido em minha direção, mas que passou longe.
Não me surpreendia que ela fosse ruim de mira. Provavelmente só me acertara na sala porque estávamos em uma distância impossível de errar. Virei-me para ela, depois de recolher o objeto no chão, e arqueei a sobrancelha em uma pergunta muda.
- Boa noite. Espero que o sofá seja confortável – dizendo isso, ela se enfiou embaixo das cobertas e fechou os olhos com força, claramente colocando um ponto final no assunto.
Chocado demais para fazer qualquer outra coisa, vi-me obedecendo as suas instruções e indo para a sala. Foi só quando encarei o escuro, deitado no sofá em que antes estávamos, que percebi que não precisava ter feito aquilo.
Droga. Aquela era minha casa. Por mais que a detestasse, ainda era minha casa.
E não era como na noite anterior em que ela estava dormindo. Agora não era errado juntar-me a ela na cama. Percebi que era exatamente isso que eu queria. Queria deitar-me ao seu lado, nem que fosse para apenas dormir. Amassando o travesseiro entre os dedos, então, levantei-me e marchei de volta para meu quarto. Ela não se mexeu quando fechei a porta atrás de mim e quando me acomodei ao seu lado. Assim que parei de me mexer, contudo, ela deu a volta e deitou a cabeça em meu ombro, seu corpo curvando em direção ao meu em busca de aconchego.
Não sabia se ela estava dormindo ou se tinha feito aquilo de propósito, mas percebi que não me importava. Não quando podia passar o braço por sua cintura fina e sentir sua coxa sobre a minha, mesmo com o tecido da minha calça atrapalhando.
Tampouco me importava que tivesse me envolvido em alguma coisa que, apesar da negação de nós dois, provavelmente era um relacionamento. Tudo isso parecia insignificante quando podia fechar os olhos e ouvir sua respiração suave me embalar até que caísse em um dos sonos mais pacíficos que já tive.

xxx

- Charlotte, larga essa droga de celular e atende o telefone! Quantas vezes vou ter que te falar para não ficar falando com seu namorado no horário de trabalho?
Minha secretária imediatamente escondeu o celular sob sua mesa e arregalou os olhos, surpresa com o tom brusco que eu nunca antes usara. Sei que soava como uma vadia, mas minha cabeça estava cheia demais e meu corpo frustrado demais para me preocupar com os sentimentos da adolescente no momento. Por isso, ao invés de me desculpar, caminhei até minha sala e bati a porta. Sentada em minha cadeira, tentei controlar meus nervos irritadiços.
Sendo justa, a culpa não era de Charlotte e nem mesmo do homem que zunia na minha cabeça o tempo todo como uma abelha irritante. A culpa era toda de Spencer. Não fosse aquele jeito meio sistemático dele, eu não estaria nessa confusão. Quando éramos menores, ele sempre falava sobre a importância de deixar certas coisas bem claras, não misturar batatas e morangos quando a intenção era fazer uma salada. Era preciso primeiro foco no seu objetivo e depois, talvez, concentrar-se em outra coisa. Era por isso que agora estava irritada e frustrada em minha sala ao invés de sexualmente satisfeita.
Na noite anterior, mantive todo meu esforço em conseguir que aceitasse que nós dois estávamos em algum tipo de relacionamento mais elevado do que simples amizade, mas inferior a um namoro. Concentrei-me em convencê-lo e em resistir a suas investidas. O cara era habilidoso. Muito, muito habilidoso e me deu um trabalho desgraçado, mas consegui que finalmente estivéssemos andando no mesmo pé. Nada mais de círculos infinitos e rodeadas frustrantes. Seria tudo perfeito não fosse aquela necessidade de compartimentar tudo, de deixar as coisas tão claras que não pudemos nem mesmo comemorar depois com uma boa rodada de sexo.
Sexo quente e que tinha certeza que seria ótimo. Sexo que não tive graças à minha necessidade por controle que raramente aparecia, mas que, quando surgia, era um inferno de forte. E aparentemente também tinha o poder de ficar entre mim e o orgasmo que estava precisando. Agora estava com um humor do cão por ter saído cedo para trabalhar e me deixado com o arrependimento pesando em minhas costas e uma excitação na boca do meu estômago. Por isso meu dia estava se arrastando como a droga de um moribundo em seus últimos minutos. Nesse pequeno intervalo entre um paciente e outro, contudo, havia conseguido um momento para pensar e planejar.
Sim, planejar.
Era outro dos ensinamentos que eu pouco colocava em prática, mas momentos desesperados pedem medidas desesperadas.
Podia pegar uma pizza naquele lugar ao lado da Appleby’s e esperá-lo em sua casa, já que ele havia deixado uma chave para que eu pudesse trancar a porta uma vez que precisara ir trabalhar mais cedo. Sabia que ele gostava das minhas pernas e também não escondia sua apreciação por minha bunda. Tinha uma saia perfeita para realçar ambos. Não pude evitar um sorrisinho enquanto o resto das coisas se encaixava em minha mente. Oh, sim. Um bom plano.
Quando o moribundo finalmente deu seu último suspiro, isto é, quando enfim era hora de ir para casa, tomei apenas o tempo necessário para murmurar uma desculpa para Lottie e pedir que ela trancasse tudo antes de sair correndo para o metrô. Precisava fazer muita coisa em pouco tempo se quisesse estar na casa de antes que ele chegasse.
Consegui comprar a pizza, chegar em casa, tomar um banho, dar um pouco de carinho para Cookie e me arrumar em um tempo recorde de uma hora. Acho que havia corrido mais naquela mini-maratona do que no dia em que deveria estar me exercitando no parque. O que uma mulher não faz por um orgasmo daqueles de revirar os olhos...
Estava ofegante enquanto equilibrava a pizza em uma das mãos para destrancar a porta da casa do meu vizinho com a outra. Quando me esgueirei para fechar a porta e ascender a luz, meu coração falhou por um instante quando a caixa dançou em minha mão e tive que fazer um malabarismo para que um desastre não acontecesse. Só soltei um suspiro de alívio quando consegui me estabilizar. Apenas tive tempo de colocar a pizza sobre a ilha na cozinha antes que a porta da frente se abrisse de novo. Quase me encolhi ao perceber que ele estava num humor pior do que o com que acordei e sabia disso pelas suas passadas, ou melhor, porque, pela primeira vez, podia ouvi-lo andando. estava tão bravo que até seus passos estavam pesados.
- Hey – saí da cozinha para encontrá-lo andando até um barzinho no canto da sala para se servir de uma dose de uísque.
- O que você está fazendo aqui, ? – falou, ainda de costas, nem um pouco surpreso por minha presença, provavelmente tinha usado seus spider senses para saber que eu estava na casa antes mesmo de destravar a porta.
- Achei melhor vir aqui, já que acabei ficando com a chave.
Silêncio.
- Trouxe pizza.
Continuou de costas e observei-o levantar o braço para tomar um pouco de sua bebida. Quando ele finalmente se virou para mim, seus olhos estavam sem brilho nenhum.
- Olha, eu realmente não sou uma boa companhia no momento - sua voz era tão vazia quanto seu olhar.
- O que aconteceu? – automaticamente dei um passo em sua direção.
Ele sacudiu a cabeça com um sorriso amargo antes de esvaziar o copo.
- Vamos lá, . Não precisa ficar guardando isso. É veneno.
E isso está te devorando por dentro, completei em pensamento. Podia imaginar quão irritado ele ficaria se soubesse que eu estava usando minha experiência de psicóloga para analisar seu comportamento. Por isso, engoli o papo analista e me aproximei um pouco mais e suavizando meu tom ao tentar de novo:
- ... me conta o que aconteceu.
Ele olhou para o teto por um segundo e pensei que ele fosse me mandar embora, mas, ao invés disso, ao retornar sua atenção para mim, falou:
- O que aconteceu... O que aconteceu é que aquele velho está ainda mais determinado em me irritar. Meu dia foi a porra de um inferno graças às interferências dele. Não entendo o que passa naquela mente maligna. Se não queria que eu fosse trabalhar lá, por que me encheu para isso a vida inteira?
Foi como se tivesse estourado um estopim e todas aquelas palavras saíram rápidas e furiosas. E tão rápido quanto vieram, elas pararam. Pararam assim que ele percebeu que havia falado demais, revelado demais.
- Como pode ver, não uma boa companhia – virou-se para encher o copo de novo. – Vou dormir cedo.
Aquele obviamente era o máximo de polimento que ele conseguia reunir para tentar, de jeito educado, mandar-me embora.
Infelizmente para ele, eu não desistia tão fácil assim. Eu me preocupava e não iria embora sem ter a certeza de que ele estava bem.
- Por quê?
Suas costas largas se retesaram.
- Apenas vá embora.
Quase podia ouvir seus dentes rangendo.
- Por quê? Por que você quer que eu vá embora? – pressionei, dando mais um passo.
Assim que ele se virou de novo para me encarar, percebi que havia ultrapassado seu limite. A única outra vez que tinha me olhado daquele jeito foi quando o chamei de gay. Aquele olhar me lembrava do dia em que, em uma visita a fazenda de um amiga no Colorado, vi um tornado se formando na paisagem ao longe. Era o único jeito que conseguia imaginar para descrever o que via se passando nos olhos azuis dele naquele momento e a maneira como reagi a isto. Primeiro vinha o gelo correndo pelas veias quando você finalmente percebe que estava à mercê da natureza, depois a fascinação que somente o mais puro perigo podia causar. E então a descarga de adrenalina.
Naquele dia no Colorado, minha amiga me arrastou para dentro de um dos abrigos do porão. Dessa vez, contudo, não havia ninguém para me salvar a cada passo que ele dava em minha direção. E eu não queria ser salva.
- Por quê? – dava um passo depois do outro, sibilando as palavras. - Porque eu estou com raiva, muita raiva. E sabe o que é bom para aliviar essa raiva? Uma trepada das boas. Quente e dura.
Estalou a língua, sua voz não falhando nem pouco no aço que carregava. Tive que conter o estremecimento de excitação que aquelas palavras sujas me causavam, mas era impossível conter o jeito que minha calcinha ficou ainda mais molhada.
- É por isso que você tem que ir embora, .
A cada passo que ele dava para frente, eu caminha para trás, até que acabamos no que parecia ser nosso lugar favorito: contra parede.
- Porque se você e essa sainha minúscula não sumirem da minha frente nos próximos trinta segundos, nós vamos aliviar um pouco de tensão – colocou suas mãos sobre a parede ao lado da minha cabeça, efetivamente me prendendo ali, apesar de suas palavras.
Reunindo coragem e surpreendendo tanto a mim quanto ele, ao invés de sair correndo, levantei o queixo e pousei as mãos sobre os ombros fortes por debaixo de seu terno caro.
- Ok – mal consegui murmurar essa palavra graças à excitação e o nervosismo que fechava minha garganta e que fazia meu coração pular com força.
Por um segundo os tornados em seus olhos desapareceram para dar lugar a uma surpresa que desapareceu tão rápida quanto surgiu. Havia, agora, apenas a mais pura fome ali. Fome que sabia que estava refletida também em mim. Suas mãos foram para minha cintura e a apertaram com força.
- Ok? – o grunhido foi tão pesado que quase não entendi.
Assenti.
forçou as pernas para o meio das minhas, fazendo com que a “sainha minúscula” subisse para se enrolar em minha cintura. Apertou-me contra a parede com seu corpo e eu senti cada pedacinho dele. Todo firme. Sua ereção encostou em minha calcinha e mordi o lábio inferior para reprimir o gemido. Aquilo, entretanto, só durou o tempo necessário para que desse um suspiro profundo e se afastasse um pouco.
- Não. Vá... vá embora, – podia ouvir o esforço que ele estava fazendo para se controlar o suficiente necessário para dizer aquelas palavras. – Não quero... não... machucar você.
Suas palavras eram desconexas em meio a respiração forte e sacudidas de cabeça, mas consegui entender a ideia principal, e, apesar de toda excitação, meu peito se contraiu em uma dorzinha gostosa ao perceber que mesmo meio vidrado, ele ainda se preocupava em não me machucar. Impressionante como um pouco de carinho podia elevar seu nível de tesão. Cruzei meus braços atrás de seu pescoço para segurá-lo exatamente onde ele estava então arqueei o pescoço até conseguir colocar minha boca contra seu queixo para mordiscar a pele ali.
- Eu sei o que estou fazendo. - Sussurrei entre uma mordida leve e outra, mas sinceramente estava me arriscando aqui porque nunca tinha ficado tão excitada na vida.
Nunca tinha sentido minha pele queimado desse jeito e meus seios doíam de vontade de seres acariciados. , porém, mostrava-se irredutível, parado como uma estátua, como se estivesse orando para se controlar e para que eu me afastasse.
- Eu quero.
Nossa! Como que queria.
Ainda não foi suficiente para causar uma reação satisfatória, mas seu quadril começou um movimento quase que imperceptível contra o meu. Tive que engolir em seco e lutar por um pouco de concentração ao senti-lo se estocando contra mim com apenas sua calça e minha calcinha entre nós. Sabia que ele não tinha consciência de que estava se mexendo, e isso era ainda mais intoxicante. Se era gostoso assim sem intenção, só podia imaginar como seria quando ele estivesse concentrado no que fazia. Felizmente sabia exatamente o que sussurrar contra seu ouvido para arrancar-lhe uma reação:
- Quente e duro.
Senti o grunhido de retumbar em seu peito sob minhas mãos e o jeito como ele me esmagou contra a parede mostrou que eu estava prestes a conseguir exatamente o que queria. Sua boca desceu para minha com força e outra vez pude experimentar a sensação de ter seus dedos embrenhados em meu cabelo enquanto ele me guiava. Beijava-me do jeito que ele gostava, dominando e conquistado. Havia descoberto que também gostava assim. Sua outra mão deixou a parede para pousar em minha coxa e apertá-la.
Tive que me separar dele para poder suspirar, jogando a cabeça para trás contra a parede, perdendo-me um pouco mais quando ele intensificou o jeito como sua ereção se esfregava em mim. Parecia ainda maior do que me lembrava.
- Quente e duro – as palavras pareciam sido arrancadas de sua garganta. – Quente e duro, você diz – sua mão subiu minha saia para embolá-la completamente em minha cintura e fora de seu caminho. – Vamos ver se você aguenta. Mas antes... antes vamos descobrir de que cor são esses mamilos que vou colocar na boca.
Fechou a mão por cima de meu seio direito e passou o dedão sobre meu o bico com força. Bati a cabeça outra vez contra a parede uma vez que não havia espaço suficiente para arquear as costas na reação reflexa que tive.
- Tire a blusa.
Minhas bochechas queimaram com força e os mamilos que ele falava com tanta intimidade ficaram ainda mais duros, clamando pela promessa que ele havia acabado de fazer. Empurrando para longe o embaraço que aquelas palavras me causaram e só me concentrando no fato de que esse jeito de falar só fazia aumentar a umidade em minha calcinha e arrepiava cada centímetro de minha pele, obedeci. só se afastara o suficiente para eu pudesse me remexer para puxar a camiseta por sobre minha cabeça. O tempo que levei escolhendo qual sutiã colocar foi recompensado quando ele encarou as taças negras e passou a língua pelos lábios.
- Sim – assentiu em apreciação e esticou a alça para depois soltá-la contra minha pele.
A ardência em meu ombro me fez morder o lábio inferior e fechar os olhos por um segundo.
Bom. Aquilo era bom.
- Bom – abri os olhos ao ouvi-lo sussurrar a palavra que ecoava em minha mente. – Você tira – puxou a alça outra vez. – Quero vê-la usando esse mesmo sutiã de novo. Seus peitos estão uma delícia nele. Mas se eu tirar, vou rasgar. Você tira. Agora.
Dessa vez ele afastou-se um pouco mais para que eu pudesse colocar a mão para trás e soltar o fecho. Quando a peça estava solta, hesitei por um segundo, mas aprecei-me a puxar as alças quando ele travou os dentes, lançando-me um olhar impaciente. Deixei meu braço ficar ao lado de meu corpo, o sutiã firme em minha mão. O aperto de meus dedos sobre a peça gradualmente perdia força à medida que seu olhar queimava meus seios.
- Rosa – estalou a língua em apreciação e ergueu meio seio em sua mão, passando o polegar pelo bico do qual falava.
Estremeci, minha excitação chegando a níveis absurdos por sentir seu dedo áspero. E eu estava tão sensível.
- Rosa – repetiu. – Agora vamos ver como são na minha boca.

Antes que minha mente nublada conseguisse entender o que ele queria dizer, abaixou a cabeça e fechou os lábios sobre meu mamilo, sugando forte. Dançou a língua por aquele ponto, empurrando o bico de um lado para o outro dentro de sua boca enquanto sua mão ainda segurava meio seio, apertando-o de modo firme, mas não com força.
Gemi. Alto. O prazer estalando por meu corpo, o sangue correndo por minhas veias. Não havia ar suficiente que eu pudesse puxar para satisfazer meus pulmões, não havia nada que pudesse me agarrar naquela pequena fuga da realidade.
Fazia tanto tempo.
Afundei meus dedos em seus cabelos pretos e puxei forte, buscando aquele algo para segurar, para não desabar quando ele raspou os dedos pelo bico. A dor gostosa me deixava sem ar. Ele beijou o caminho até o outro seio e o sugou com força também. Fechei os olhos quando acariciou o pano encharcado de minha lingerie. Descerrei as pálpebras ao sentir falta de sua boca, apesar de seus dedos ainda estarem me masturbando sobre o pano.
- Estão ainda mais bonitos agora – falou, sua mão livre outra vez acariciando meus seios, observando fascinado como eles estavam vermelhos e cobertos por sua saliva.
Não podia fazer nada além de descer minhas unhas por suas costas ainda cobertas pelo terno e suspirar enquanto ele me deixava na beira do precipício com suas palavras afiadas em contraste com o toque tão leve sobre meu clitóris – só o suficiente para me deixar louca. Sabia que gostava de ver eu me contorcendo em busca de alívio, mas me recusava a implorar como da outra vez. Infelizmente não fui capaz de impedir que meu quadril, por reflexo, tentasse seguir seu toque quando ele afastou a mão. Imediatamente houve um aperto em minha cintura, empurrando-me de volta contra a parede.
- Não de mova – sibilou, muito sério.
Passei a língua por meus lábios inchados que ficaram repentinamente secos.
- ... preciso... preciso de mais – consegui murmurar, tentando me livrar de seu aperto para me aproximar de novo dele.
- Não – repetiu, incisivo. – Comporte-se, – sua voz estava muito mais rouca do que o normal. – Seja uma boa garota – chupou o lóbulo de minha orelha.
Gemi.
me soltou e senti seus dedos se fechando sobre o pano de minha calcinha um instante antes de ouvir o som de pano se rasgando e sentir um puxão nas pernas.
- Ai – resmunguei.
Felizmente o tecido era frágil rompeu fácil, mas ainda assim senti um incômodo e sabia que iria ficar vermelho em minha coxa. Um segundo depois, qualquer pensamento daquele tipo – ou qualquer pensamento em geral - se evaporou de minha mente assim que deslizou dois de seus dedos por minhas dobras.
- Você está encharcando minha mão, – abaixou a cabeça para sussurrar em meu ouvido enquanto eu lutava para manter algum tipo de controle, nem que fosse apenas sobre minhas pálpebras.
Queria vê-lo, mas o prazer era demais, as sensações eram intensas demais.
- Será que consigo deixá-la ainda mais molhada? – retirou seus dedos, deixando uma sensação de vazio. - Talvez se eu fizer isso – beliscou meu clitóris.
Soltei um gritinho. Meus joelhos cederam e só não fui ao chão porque me amparou. Não sabia como ele conseguia estar tão concentrado apesar de toda fome que havia visto em seus olhos quando conseguia encará-lo. Impressionava-me imensamente como ele conseguia dominar a raiva a fim de me dominar.
- Sim – soltou uma risada rouca. – Sim. Ainda mais molhada – acariciou minha entrada de novo, seu dedão pousando sobre o pontinho sensível que ele havia acabado de apertar. – E com suquinhos tão gostosos. Uma pena desperdiçá-los agora, não é mesmo, ? – mordeu o lóbulo de minha orelha e deu uma estocada mais firme com seus dedos. – Vamos ter que compensar isso. Depois vou colocar minha boca nessa bucëta gostosa e vou chupar até a última gota. Mas agora... agora não – afastou sua mão outra vez e tive vontade de chorar de frustração.
A pequena parte do meu cérebro que ainda funcionava conseguiu distinguir o barulho de um zíper sendo aberto e logo em seguida de plástico sendo rasgado. Deixei que suas mãos em minhas coxas as empurrassem para cima e, entendendo a deixa, usei o resto de força que restava em minhas pernas para dar impulso e enlaçá-las ao redor de sua cintura.
- Agora vai ser quente e duro.
Meus olhos estalaram abertos e encontrei seus olhos azuis, sempre tão gelados, no momento queimando tanto quanto eu me sentia queimar. Abaixei os olhos ao sentir a ponta de seu pênis coberto pela camisinha começar a empurrar em minha vagina e não pude evitar o ofegar surpreso que escapou de minha boca. Já havia imaginado... fantasiado que ele era grande, mas a realidade superava a fantasia.
Grande e grosso.
Não tive muito tempo para análises, contudo, pois estava empurrando mais. Joguei a cabeça para trás, fechando os olhos e afundando as unhas em seus ombros cobertos pelo terno enquanto ele vagarosamente fazia o caminho para dentro de mim.
- Droga... você é tão apertada – grunhiu. - Tão bom.
Minha cabeça girava e quase não consegui juntar significado nas palavras para responder:
- Faz tempo...
- Bom – sibilou. – Bom – empurrou mais um pouco.
Ele era tão grosso. Estava me estirando. Queimava como se eu fosse uma virgem, mas, ao contrário daquela primeira vez que fiz sexo, meu parceiro sabia o que estava fazendo. outra vez foi falar ao pé do meu ouvido.
- Porque sabemos que você gosta disso forte, que você gosta desse tipo de dor – suas palavras eram espaçadas, aos trancos em meio a respirações pesadas. – E você está tão molhadinha. Tão pronta para que eu te coma.
Empurrou mais um pouco.
Gemi alto.
- E eu estou faminto.
Dizendo isso ele empurrou o que faltava. Arregalei os olhos enquanto dor e prazer se misturavam em uma combinação que derretia meu cérebro e fazia com que me sentisse como se estivesse virando massinha de modelar em suas mãos. esperou apenas o suficiente para que me acostumasse com a sensação de tê-lo em mim antes de começar a estocar.
E... nossa! Aquilo era bom.
Vez ou outra, quando ele entrava em mim, esfregava meu clitóris, disparando faíscas naquele botãozinho já tão sensível. Fora isso, não fez nenhuma outra tentativa de me masturbar de novo. Suas mãos estavam firmes em minha cintura, apertando-a em forte, mas não na mesma intensidade que eu arranhava suas costas. Ele queria que eu gozasse só com ele. Só pelo jeito que ele me comia. Não sabia se seria possível, mas, se alguém fosse alcançar esse feito, seria . E ele estava perto de alcançar sua meta.
Só o jeito que ele me comia. Iria gozar só pelo jeito que ele me comia.
Meus gemidos agudos, os grunhidos de e o barulho de sexo enchia o cômodo.
não perdia o ritmo e nem a intensidade. E, a cada vez que ele me enchia de um jeito que nunca havia experimentado, aproximava-me mais do orgasmo que sabia que seria ainda melhor do que o outro que ele me dera. O fato de ele estar basicamente ainda todo vestido enquanto eu só tinha minha saia enrolada na cintura deixava as coisas ainda excitantes. As luzes acesas e a posição em que estávamos transando acrescentava cada vez mais calor, trazia novos choques elétricos de prazer.
Nunca havia feito nada daquilo. Nada nem remotamente tão gostoso quanto aquilo.
Ele aumentou a velocidade e sabia que ele estava tão perto quanto eu. Trouxe-o para mais perto, apertando minhas pernas ao seu redor e puxei os fios de seu cabelo, fazendo-o levantar a cabeça e deixar de beijar meu pescoço. Pela primeira vez vi seus olhos ficarem nublados. Ele nunca tinha parecido mais gostoso do que naquele momento.
Suas bochechas estavam tão coradas quanto imaginava que as minhas estivessem. Abaixei-me e meus lábios encontraram os seus. Não foi exatamente um beijo porque nós dois estávamos descontrolados demais para nos concentrarmos em alguma técnica. Suspirávamos com força contra a boca um do um outro e ora ele mordia meu lábio inferior, ora eu sugava o dele. Eu estava tão, tão perto.
Nem mesmo sabia que conseguia alcançar o orgasmo sem alguma estimulação direta, mas podia senti-lo chegar, fagulhas por toda minha pele.
Precisava daquilo. Precisava alcançar aquela promessa.
apertou minhas coxas e deu mais algumas estocadas firmes, então girou o quadril e toda aquela tensão que havia construído explodiu quando o orgasmo bateu em mim com tanta força que o mundo girou ao meu redor.
Quente e duro. Em meio a meu próprio tornado.



Capítulo 15

Mantive minha atenção no mural vermelho ao longe, minha mente a quilômetros dali. Sabia que não deveria ficar dissecando aqueles momentos, mas era forte demais. Cada ação da noite anterior ficava repassando repetidas vezes em frente aos meus olhos como um filme quente, muito quente.
Até mesmo aquela simples palavra me causava arrepios. Talvez nunca mais fosse ser capaz de usá-la sem lembrar de como havia sussurrado em meu ouvido.
“Quente e duro”.
E fora exatamente como prometera.
Quente o suficiente para me deixar meio louca.
Quente o suficiente para queimar minhas mãos até mesmo agora. Quente como se realmente estivesse me queimando. Quente como...
- Aí! - pulei para trás, sacudindo as mãos. - Que porra...?
Olhei para o balcão e para a caneca sobre ele antes de levantar o olhar e encontrar Avalon me olhando como se um fosse uma alienígena.
- O que você está fazendo, ? - falou cada palavra tão devagar que tive a certeza de que ela estava a um passo de me internar em algum lugar para tirarem um raio X da minha cabeça.
- O quê? - obviamente minha resposta genial não estava ajudando meu caso.
Isso sem contar que eu ainda sacudia as mãos e soprava as palmas em busca de algum alívio.
- Acho que você perdeu os poucos parafusos que ainda funcionavam aí - bateu o dedo indicador na própria testa, olhando-me significativamente.
- Mas é o quê? - franzi o cenho, ainda tentando entender o porquê de minhas mãos estarem tão vermelhas.
Agora minha melhor amiga me olhava com uma mistura de incredulidade e preocupação.
- Não tive notícias suas desde antes de ontem. Nada de histórias sobre como Esparta tombou - sacudiu o dedo indicador, gesticulando sem parar. - Então, hoje você chegou aqui como um robô, sentou-se aí com esse olhar meio vidrado e só se mexeu para colocar as mãos ao redor do copo de cappuccino, que, obviamente estava fervendo. E agora, só para deixar as coisas um pouquinho menos esquisitas - arqueou a sobrancelha ironicamente - fica me olhando como se tivesse que te explicar o porquê de suas mãos estarem queimando. Aliás, que droga é essa? Você poderia ter tido uma queimadura de, no mínimo, segundo grau. Tem noção de como essas coisas doem?
- Não, não sei como doem - finalmente parei de sacudir as mãos, decidindo que seria mais efetivo apoiá-las sobre o balcão gelado. - Mas estão doendo agora, mesmo não tendo sido queimaduras de segundo grau - imitei seu tom condescendente. - E por que você não me avisou que estava me entregando essa coisa pelando?
Ava revirou os olhos.
- Eu avisei. Três vezes. Mas você ‘tava ocupada demais encarando o nada com um sorriso idiota para ouvir o aviso ou qualquer das cinco vezes que te chamei.
- Não seja idiota. Você não me chamou cinco vezes.
Chamou?
- Tanto faz, - colocou alguns potes sobre o balcão e abriu a máquina de bebidas quentes. - O mínimo que você poderia fazer depois de quase ter me queimado ao pular desse jeito e quase virar o copo em mim, era me contar o porquê desse seu sorriso bobão.
Em um segundo todas as memórias da noite anterior voltaram com tanta força que tive que me agarrar ao autocontrole para não suspirar alto. Precisava aprender a me conter ou teria que começar a andar com uma calcinha extra na bolsa.
Pigarreei, olhando para os lados, quase como se temesse que Ava pudesse ver em meu rosto como cada detalhe sórdido que passava por meus olhos, como um filme, fazia com que eu me sentisse cada vez mais excitada.
Às sete da manhã.
De uma quinta-feira.
Sentada no balcão da cafeteria da minha melhor amiga.
definitivamente tinha mexido com meu cérebro.
Fodido meu cérebro.
Além de fodido m-
Sacudi a cabeça quando percebi que estava me perdendo de novo.
má, má.
Felizmente Ava aparentemente tinha decidido que eu estava passando por um momento muito esquisito e resolveu me deixar quieta por um tempo. Isso ou ela estava mais preocupada com a cafeteira que se ocupava em deixar pronta.
- Eu fiz o que você disse. Fui à casa dele.
- Essa parte eu sei - nem mesmo se virou para resmungar.
- Alguém já te disse que você é uma péssima ouvinte?
- E alguém já te falou que ficar enrolando não vai fazer a história se tornar mais fácil de contar?
Estreitei os olhos e engoli algumas palavras mal educadas.
- Você não vai estragar meu bom humor, Appleby.
- Ah é? E de onde esse bom-humor vem? - virou-se um pouquinho para me olhar, sorrindo brincalhona por um segundo antes de voltar a se concentrar em derramar o leite no lugar indicado dentro da máquina.
- Digamos que segui seu conselho. Consegui alguns orgasmos.
Com aquelas palavras de efeito, levei meu copo aos lábios e escondi meu próprio sorriso ao vê-la titubear com a jarra branca.
- Não! - esticou a palavra, a boca entreaberta e mantendo os olhos arregalados em mim enquanto precariamente colocava o objeto que segurava sobre a mesa ao lado da máquina. - Não!
- Sim! - respondi, balançando a cabeça como a boba que ela ficava repetindo que eu era.
- Como assim? Me conta tudo - apoiou o cotovelo sobre o balcão e o queixo sobre a mão, toda sua atenção em mim.
Narrei, de maneira sucinta, tudo o que aconteceu desde o momento que ela me mandara para fora de minha própria casa com uma missão.
- Mas... mas por que você foi embora?
- Porque eu gosto das coisas bem certinhas - tracei uma linha imaginária com o indicador no balcão. - E, como você mesma disse, estava cansada de ficarmos nos rodeando.
Ava ficou quieta por alguns segundos, apenas me olhando.
- Ok. Entendo seu ponto de vista, mas você não disse que não queria um relacionamento? - franziu o censo, francamente confusa.
- Mas nós não estamos em um relacionamento - foi minha vez de não entender o ponto a que estávamos chegando.
- Peraí - endireitou o corpo e ergueu a mão. - Espera um pouco. Se isso aí não é um relacionamento, o que é então?
- Hmm... - remexi-me desconfortavelmente no banco. - Um entendimento...? - a palavra saiu tão incerta que parecia mais uma pergunta.
- "Um entendimento"? - repetiu como se estivesse provando o jeito como elas soavam em sua boca. - Um entendimento - deu um passo para trás e voltou a se preocupar com o leite.
O silêncio pesou entre nós, apenas o barulho de líquido caindo preenchia o cômodo. Só depois que terminou aquela tarefa banal e fechou a máquina, voltou ao lugar a minha frente. Sabia que ela havia feito aquilo para esfriar um pouco o próprio temperamento.
Supunha que deveria ficar agradecida por isso, mas, ao invés, estava me sentindo como um inseto no microscópio. Ou, pior ainda, um inseto no microscópio que foi rejeitado pelo cientista.
- Então deixa-me ver se entendi - colocou bastante desdém naquela palavra, tomando tempo para pronunciá-las - como estão as coisas - fez alguns gestos circulares com a mão direita.
Engoli em seco.
- Vocês estão juntos.
Assenti.
- Monogamicamente. Afinal, te conheço e sei que você não aceitaria de outra maneira.
Balancei a cabeça em concordância outra vez.
- E, voltaremos a esse detalhe de novo, mas, só por questão de encadeamento correto de ideias, vocês fazem sexo.
- Sim.
- Ok - assentiu, olhando-me solenemente. - Então vamos fazer um pequeno resumo aqui - ergueu a mão em um punho. - Você e Leónidas estão juntos - esticou o polegar, obviamente começando uma contagem. - Vocês são monogâmicos - foi a vez do indicador. - Vocês fazem sexo - o anelar. - Você gosta dele e-
Antes que ela pudesse levantar mais um dedo, vi-me protestando quanto a sua última alegação:
- Espera um minuto. Eu não disse nada sobre gostar dele.
Ava torceu os lábios em sinal de descaso.
- , por favor, não insulte minha inteligência. Desde que você se livrou de Robert, o rei do suplemento de proteína, nem mesmo olhou direito para outro cara até que o voltou para casa. Sejamos honestas, desde que se conheceram, pelo que você me contou, os dois estão procurando motivos para se esgueirarem para dentro da vida um do outro. Tudo bem. Concordo que no começo podia ser só tesão, afinal, o universo sabe que você estava precisando de uns bons orgasmos, mas agora… - sacudiu a cabeça. - Agora não. O tesão à primeira vista já passou faz semanas - estalou os dedos repetidas vezes. - Faz tempo. Gosta dele – sentenciou.
- Gosto da companhia dele.
Dessa vez ela só olhou para o teto por alguns segundos, provavelmente pedindo paciência a algum ser divino. Ao voltar a falar, entretanto, havia paciência e carinho:
- , amiga, você não precisa enfeitar a realidade para mim e seria muito saudável se também não fizesse isso consigo mesma.
Às vezes eu pensava que tinha a mesma pouca capacidade de interação social que afetava meu primo quando éramos mais novos. Não entendia quando as pessoas insistiam em falar em código. Ao menos Spencer compensava com seu alto QI, já eu, ficava ainda mais confusa com essas charadas.
- O que quer dizer com isso?
- Gostar da companhia de alguém é amizade. Gostar da companhia de alguém e transar com essa pessoa, é atração, é tesão. Gostar da companhia de alguém, transar com essa pessoa e aturar seus defeitos de boa vontade, isso é gostar da pessoa. Então, honestamente dessa vez, em qual das opções você se encaixa?
Quando ela falava daquele jeito, sentia-me uma grande boboca ingênua com essa história de “entendimento”. Meu único consolo era que todo mundo provavelmente se sentia assim quando a verdade era esfregada na sua cara.
- Eu... - empurrei meu copo de uma mão para outra, deslizando-o sobre o balcão - … eu não sei. Simplesmente não sei.
- Sabe sim - falou, firme. - Quando você quer uma coisa de verdade, você sabe sim. Reconhecer que sabe, admitir para si mesma é a primeira coisa a ser feita, só então você passa para segunda fase.
Estava quase receosa de perguntar, então a pergunta saiu mais rouca do que o normal:
- Segunda fase?
- Lutar pelo que você quer.
Outra vez havia tanta convicção, tanta certeza em sua voz, que fiquei sem reação, apenas encarando os olhos azuis dela. Azuis tão diferentes dos de , um azul cor de mar, enquanto o dele era gelo. Reparando bem agora, contudo, havia uma semelhança ali. Tinha uma falta de brilho esquisito, algo que só presenciara em quando ele deixava escapar alguma coisa sobre seu tempo no exército e em alguns dos meus pacientes com transtorno pós-traumático. Era o olhar de quem já havia encarado a m-
- ? - estalou os dedos em frente ao meu rosto para me puxar para fora daqueles pensamentos.
- Quê? - sacudi a cabeça, momentaneamente perdida em meio as conclusões esquisitas que estava chegando.
- Perguntei o que você quer fazer.
- Eu n-...
- ...não sabe - completou.
Lançou-me um olhar longo antes de colocar sua mão delicada sobre a minha.
- Está tudo bem, amiga. Tudo bem - sorriu, toda sua pose se suavizando. - É difícil mesmo. Só queria te ajudar a enxergar as coisas como elas são, mas você não precisa decidir agora. Quando for a hora, você vai saber o que fazer. Vai saber - assentiu, um sorrisinho triste no canto dos lábios.
Suas palavras continham uma sinceridade e experiência fortes demais. Antes que pudesse perguntar como ela havia adquirido esse conhecimento sofrido, entretanto, ela olhou para o grande relógio na parede e se voltou para mim com uma expressão maliciosa.
- Temos quinze minutos antes do horário de abrir e já tivemos conversas pesadas demais por um dia. Vamos para os detalhes sórdidos então.
Nunca entendia como ela fazia essas coisas. Mudava completamente de humor de um segundo para o outro. Sabia que não era um caso de bipolaridade, contudo. Era quase como se ela estivesse reprimindo uma parte de si e, quando esse aspecto seu conseguia escapar por uma fresta e aparecer por um momento, a Ava que eu conhecia logo voltava com força total para chutar sua parte frágil para longe e para a obscuridade outra vez.
- , por que você está me encarando desse jeito? - franziu o cenho.
- Nada - sacudi a cabeça. - ‘Tava longe - murmurei uma desculpa qualquer.
Sabia que Avalon não iria gostar nem pouco se soubesse que estava analisando seu comportamento. Além disso, o que eu fazia poderia ser considerado como uma invasão de privacidade e uma violação a qualquer código de amizade por aí.
- O que você perguntou mesmo?
- Eu disse que deve ser muito bom de cama e que gostaria de saber os detalhes, inclusive os mais sórdidos.
- Você não disse nada disso - franzi o cenho.
- Mas era o que estava pensando - encolheu os ombros. - Agora pare de enrolar. Estou curiosa.
- Não pensei que minha vida sexual te interessasse tanto, Avalon. Nunca interessou antes.
- , você não tinha uma vida sexual antes. Você tinha Robert.
Pisquei devagar, a boca entreaberta de surpresa. Não sabia como ainda não havia me acostumado com a sinceridade Appleby… ou com o desprezo que ela sentia por meu ex-namorado.
- Você deveria desapegar do Robert, sério, Ava. Isso é esquisito - zombei, levantando o copo para tomar mais um pouco de cappuccino.
O gosto que impregnou minha boca foi tão ruim que precisei me conter para a vontade de cuspir tudo no balcão limpinho da Appleby’s.
- Credo. Isso ‘tá horrível - passei a mão sobre os lábios como se isso pudesse magicamente limpar minha língua. - ‘Tá gelado.
- Isso é porque você estava ocupada demais viajando ao se lembrar de como subjugou o sudoeste do Peloponeso para se preocupar com a bebida que fiz com tanto carinho - revirou os olhos.
Passei direto pelo drama bobo que ela fez, para me apegar na parte que chamou minha atenção:
- Sudoeste do Peloponeso? - repeti devagar, ainda surpresa demais para conseguir falar qualquer outra coisa.
- É. Esparta - responde com aquele tom que se usa com crianças que não estão entendendo o básico da explicação. - Quero saber como foi que você subjugou Esparta. Seu Leónidas. Como foi que você su-
- Já entendi. Já entendi.
- Vai saber, né. Você não tinha entendido da primeira vez.
- História nunca foi minha matéria favorita, Avalon. Ainda mais esses pequenos detalhes. E, falando em detalhes, você nunca vai saber sobre esses que tanto pergunta se não parar de me interromper.
- Não me culpe por sua falta de conhecimento - brincou, passando a mão pelo cabelo e o prendendo em um coque no topo da cabeça.
- Não me culpe por você ser condescendente.
- HEY!
- HEY!
- Idiota - riu. - Mas agora não vai dar mais tempo. Já está quase na hora de abrir. Vai ter que me fazer um relato mais tarde.
- Hoje eu não posso.
- Por quê?
Senti minhas bochechas corarem.
- Ah! - sorriu. - Já entendi. Tudo bem. Mas vou querer os relatos dos acontecimentos de hoje também.
- Pervertida - murmurei, colocando uma nota de cinco dólares sobre o balcão para cobrir o valor de minha bebida.
- Apenas saudavelmente curiosa - deu uma piscadela brincalhona.
- Claro, claro - desci do banco alto e peguei minha bolsa. - Qualquer coisa que te faça dormir melhor à noite. Tchau, Ava - dei-lhe as costas e já estava no meio do caminho para saída quando me chamou outra vez.
- Peraí! Antes de você ir embora eu preciso saber.
Olhando por cima do outro vi ela aproximar as mãos espalmadas uma da outra, deixando apenas um pequeno espaço no meio e, com um olhar sugestivo, começar a lentamente afastá-las na direção oposta.
Arregalei os olhos ao perceber que ela queria que lhe contasse qual o tamanho de .
- Desse? Vamos lá, . Que isso… - continuava ao afastar cada vez mais uma mão da outra.
Sacudindo a cabeça e rindo das ideias de minha melhor amiga, voltei ao meu caminho. Ao passar pela porta, ainda podia ouvi-la falar:
- Tá falando sério? Nossa! Como que coube? , !
O dia no consultório felizmente foi bem mais calmo do que o anterior. Tinha até me esquecido como orgasmos sempre melhoravam o humor das pessoas. Além disso, Charlotte estava trabalhando como uma verdadeira empregada-modelo hoje, o que me salvou de uma dor de cabeça, mesmo sabendo que esse comportamento só duraria até seu próximo desentendimento amoroso. Justamente porque as coisas estavam correndo macias hoje, o tempo voou e logo me encontrei espremida no metrô. Cookie estava pronto para me receber quando cheguei em casa. Seu rabo batia de um lado para o outro e ele me olhava preguiçoso enquanto coçava atrás de suas orelhas do jeito que ele adorava.
- Hey, bebê – murmurei. – Você se comportou hoje? Sim, você se comportou. Sim, sim – felizmente ninguém estava ali para presenciar a vozinha irritantemente melosa que usava com meu filhote. – Mamãe vai tomar banho e depois levar você para passear, ok?
Cookie soltou um latido feliz e dei um beijo em sua cabeça antes de me levantar para pegar uma muda de roupa e ir para o banheiro. Minutos depois - agora em uma confortável calça de moletom, uma regata branca e tênis - estávamos no parque. Abaixei-me para prender a correia azul em sua coleira da mesma cor.
- Não adianta me olhar assim – resmunguei, olhando em seus olhos que mostravam irritação. – Você só se comporta quando – e aqui ele soltou um latido animado – está por perto. Não adianta ficar nessa animação, ele não está aqui agora e, por isso mesmo, você não vai ficar sem guia. Vai que some de novo.
Cookie me encarou, entediado, como se o que eu estava dizendo fosse pura bobagem.
- Vamos logo – puxei sua guia de leve e logo ele estava me arrastando de um lado para o outro.
- Ok. Ok. Calminha – afundei os calcanhares na grama para fazê-lo parar depois de um tempo. – Você não pode me fazer suar. Vou encontrar daqui a pouco.
Cookie soltou um latido animado e me olhou com expectativa. Tombei a cabeça para o lado, tentando entender o que ele queria. Não tive tempo de pensar muito porque ele já estava me puxando de novo. Dessa vez, contudo, era de volta para nosso prédio. Durante todo o caminho ele abanou o rabo, animadamente enquanto eu não podia fazer nada além de me deixar levar, cada vez mais intrigada. Só entendi o que estava acontecendo quando, ao chegar ao nosso andar, ao invés de ele se dirigir para nossa casa, meu bebê parou na frente da porta de e virou a cabeça para me olhar, revezando sua atenção entre mim e a madeira.
- Bebê, não – abaixei para ficar da sua altura, apoiando um dos joelhos no chão. – Mamãe não falou que iriamos ver hoje.
Seus olhos caíram para o chão e meu coração doeu um pouquinho. Segurei sua cara, coçando atrás de suas orelhas enquanto falava:
- Que tal assim... nós vamos sair com ele amanhã, ok?
Cookie soltou outro latido animado, esquecendo-se que estava triste. Ok. Agora só precisava convencer de que aquela seria uma boa ideia.

xxx

Estava procurando o controle remoto da televisão por entre as almofadas do sofá quando a campainha tocou.
- Droga de controle – empurrei a almofada de volta e fui abrir a porta para , afinal, felizmente ninguém mais decidia aparecer aqui em casa.
- Oi.
Abriu um sorriso pequeno ao me cumprimentar e fiz o mesmo. Sendo completamente honesto, não tinha nem ideia de como deveria agir agora. Meu último relacionamento havia sido no ensino-médio e meu último “não-relacionamento” havia sido, bom... nunca. Então não sabia exatamente qual o protocolo a seguir ali. Um aperto de mão, um beijo ou o nada que no qual estávamos acostumados até ontem. Felizmente tomou a decisão por nós dois quando distraídamente se aproximou e, colocando a mão em minha cintura para conseguir algum apoio enquanto ficava na ponta dos pés, encostou os lábios nos meus antes de entrar na minha sala.
Ainda com a atenção nela, empurrei a porta para depois trancá-la. Como de praxe, ela se sentou no sofá sem esperar por nenhum convite.
- Como foram as coisas no trabalho?
Estranhando sua pergunta e o tom distante que ela usava, sentei-me ao seu lado.
- O de sempre.
- Sabe, eu nunca sei o que você quer dizer quando você fala essas coisas... – murmurou, sua voz sumindo nas últimas palavras.
Ok. Definitivamente havia algo de muito estranho ali. Olhei para os lados por um instante e para televisão desligada, que era completamente inútil para preencher o silêncio esquisito entre nós. Depois de alguns instantes a mais, percebi que não iria começar um de seus monólogos intermináveis, então, ainda não acreditando que estava fazendo isso, pois contrariava todo o meu amor pela quietude, limpei a garganta antes de falar:
- E como foi o seu dia?
virou-se para me olhar, finalmente tirando sua atenção de minha mesinha de centro, com tanta surpresa que me senti um otário completo. Será que parecia tão desinteressado assim por sua vida? Talvez não devesse estar chocado, afinal não podia me avaliar como um grande expert nesse quesito compromisso e senti-
Quer dizer, não sabia ao certo como agir em situações assim. Armas, tanques e explosivos, sim, mas mulheres com as quais me importava? Não, não mesmo. Minha mãe havia me ensinado como tratá-las com respeito, e me esforçava para seguir tais ensinamentos; a vida, contudo, mostrou-me diversas vezes que o melhor era mostrar indiferença, o que basicamente havia me levado àquela encruzilhada de agora.
O que havia cultivado a vida inteira em confronto com o que queria fazer.
O último estava ganhando. Felizmente o primeiro ainda conseguia se expressar e pude manter o rosto em branco e não mostrar a pontada de ansiedade que sentia ao esperar por sua resposta.
Enfim ela abriu um sorrisinho apagado e murmurou:
- Tudo bem. Foi até bem produtivo.
E de novo o silêncio.
- Você já jantou?
Assentiu.
- Sim, você disse que iria demorar. Por quê? Você não comeu nada?
Não, ainda não, pensei, deixando meu olhar passear rapidamente por suas pernas cobertas por uma calça de moletom e pela regata branca que não escondia direito o tom azul de seu sutiã. O clima estava esquisito demais para que ficasse tendo esse tipo de pensamento, mas não conseguia me conter ao me lembrar de cada detalhe que aquelas roupas confortáveis cobriam.
Imaginação masculina era uma coisa bem problemática porque basicamente só produzia material sexual. Mesmo nas horas mais inapropriadas, como aquelas em que você precisa descobrir o que diabos há de errado com sua parceira.
- Já jantei – voltei-me a sua pergunta.
- Então precisa que eu digitalize alguma coisa para você?
Sacudi a cabeça.
- Os dessa semana são apenas classe D e C. Minha secretária faz.
- Não tenho nem ideia de sobre o que você está falando, mas fico feliz por isso. Não estava nem um pouco a fim de fazer isso hoje.
Eu, que tanto prezava a distância que mantinha de problemas alheios, encontrei-me perguntando e, consequentemente, quase não me reconhecendo:
- Por quê?
Ao invés de responder, ela virou todo o corpo para mim, ficando sentada transversalmente ao encosto do sofá. O joelho direito dobrado e deitado sobre a almofada enquanto a perna esquerda estava jogada sobre seu calcanhar direito.
- , faz um tempo que você não vê Cookie.
Mas... o quê?
- O quê?
- Faz tempo que você não vê Cookie, meu cachorro.
- Sei perfeitamente bem quem é Cookie, .
- Oh! Ok. Então... faz tempo que ele não te vê e, como você já deve ter percebido, nós, , por algum motivo desconhecido gostamos de sua companhia.
Pisquei devagar. Aquele estava sendo literalmente uma das conversas mais esquisitas que já tivera com – e isso dizia muita coisa. Ao ver que não receberia uma resposta, continuou:
- Cookie sente sua falta.
Assenti, aquela parte mais reservada de mim voltando a aparecer e impedindo que, de certo modo, também sentia saudades daquele cachorro bobalhão e meio esquisito.
Um brilho estranho cruzou seus olhos e seu tom esfriou um pouco mais ao falar:
- Estou acostumada a levá-lo para dar uma volta no parque depois do trabalho ao menos três vezes por semana. Amanhã será um desses dias e queria saber se você gostaria de nos acompanhar.
Ah! Era isso? Por que ela não havia dito antes? Realmente não entendia o porquê de as mulheres terem que complicar algumas coisas tão simples.
- Claro – assenti uma vez. – Parece ótimo.
Primeiro veio surpresa, depois um sorriso tomou seu bonito sorriso e o franzir de cenho que parecia ter congelado em seu rosto desde que chegara sumiu completamente.
- Ótimo. Você é in-
que quer que ela fosse dizer foi cortado abruptamente quando várias emoções diferentes passaram rápido demais por seu rosto para que pudesse identificá-las. Só fui capaz de entender alguma coisa quando sua adorável expressão de confusão se fez presente. Ela tombou a cabeça para o lado e me encarou por alguns segundos.
lgum instinto primitivo estava me dizendo que aquele tempo que ela estava em silêncio era mais importante do que parecia. Estava começando a me sentir nervoso. E não apreciava aquilo nem um pouco.
Sou o quê, ? – murmurei a primeira coisa que me veio à cabeça.
Qualquer coisa para trazê-la de volta à realidade.
- O quê?
- O que você estava dizendo.
- Ah! Não era nada importante.
- Então por que estava me olhando desse jeito?
- Nada, não. Só acabei de decidir uma coisa.
- Decidir o quê?
Ela apenas sorriu e voltou a se sentar direito no sofá.
- Vamos ver TV.
Suas mudanças bruscas me deixavam com dor de cabeça, então, decidindo abandonar o assunto já que claramente não conseguiria uma resposta satisfatória, virei-me para ficar de frente para televisão.
- Não... – passei a mão pelo rosto antes de descansar o braço sobre o encosto do sofá atrás de . – Não sei onde está o controle.
- Ah, tudo bem – se remexeu para tirar o celular do bolso e, depois de deslizar o dedo pela tela algumas vezes, apontou para televisão e ligou no canal que estávamos acostumados a assistir.
- Tecnologia moderna ainda me surpreende – murmurei, a atenção em seu celular.
soltou uma gargalhada e, tão inesperadamente como tudo o mais que ela fazia, pousou a cabeça em meu peito, aconchegando-se ao meu lado como na noite anterior quando fomos dormir. Completamente congelado, olhei para baixo e para seus cabelos loiros espalhados sobre minha camisa. parecia estar completamente confortável, sua mão direita pousada sobre o lugar onde meu coração estava.
A série que tanto gostava ficou passando na tela, completamente esquecida enquanto me decidia sobre o que fazer. Só depois de alguns minutos me dei por vencido e deixei que meu braço pousasse em suas costas. Pensei, então, que teria alguma paz e poderia assistir meu seriado favorito.
É. Não foi isso que aconteceu. Nem de longe.
Não quando o cheiro de chiclete emanava do seu cabelo, impregnando meus sentidos, e definitivamente não quando, graças a posição privilegiada em que estava, podia ver a curva de seu decote e sentir minha boca salivar de vontade de lamber aqueles mamilos gordinhos. Ou quando o calor de sua coxa queimava a minha, mesmo só estando encostada nela.
Tudo aquilo só me fazia pensar em uma única coisa, ou, melhor dizendo, uma única coisa nos mais variados jeitos. Estava excitado. Sendo sincero, tinha passado o dia inteiro assim. Cada vez que me lembrava do que havia acontecido naquela sala, sentia-me endurecendo e precisava me concentrar para pensar em outra coisa a fim de aguentar as horas de trabalho.
Agora, contudo, não estava mais na Interprises. Não tinha compromissos e pessoas me enchendo o saco por informações ou obrigações. Também não tinha nenhum motivo para não levá-la para meu quarto. Apesar de meus pensamentos, entretanto, tentei de novo e controlar, já que ela parecia tão inocente apenas assistindo televisão.
Respirei fundo e cometi o erro de olhar ao meu redor em busca de alguma distração, uma vez que a TV não estava funcionando. Minha atenção caiu no ponto exato da parede onde nós havíamos transado pela primeira vez. Quase podia sentir suas pernas ao meu redor e seus gemidos em meu ouvido. Todo o esforço que fiz foi para o lixo e me senti endurecer por debaixo da calça. Desistindo dessa luta ingrata, empurrei com cuidado para longe e me levantei.
- Hey! – exclamou quando me abaixei para pegá-la no colo. – O que você está fazendo?
- Estou com fome.
- A cozinha é para o outro lado – franziu o cenho, olhando-me confusa enquanto continuava o caminho até o quarto.
- Não é esse tipo de fome.
Observei o desejo aparecer em seus olhos e o jeito como ela passou a língua pelos lábios. Chutei a porta do quarto quando passamos e apoiei o joelho no colchão para deitá-la sobre a cama. Os planos que tinha antes, contudo, desapareceram assim que me encontrei ajoelhado entre suas pernas. Ela separou as coxas e se apoiou sobre o cotovelo para se erguer um pouco e me olhar.
- ?
Coloquei minhas mãos em sua cintura e lentamente fui abaixando aquela calça folgada. Felizmente tinha tirado seus sapatos na sala para ”ficar mais à vontade”, então foi mais fácil deixá-la só de calcinha.
- O que... não vai rasgar dessa vez? – as palavras saíram entrecortadas, seus olhos em mim e as bochechas corando enquanto me observava deslizar aquele pedaço minúsculo delicadamente por suas pernas.
- Não – sacudi a cabeça e fiz questão que me visse colocar sua calcinha no bolso de trás da minha calça. – Essa aqui eu vou guardar – espalmei minhas mãos em suas coxas e as puxei em direções opostas.
Minha atenção imediatamente foi para sua vagina. jogou a cabeça para trás e tombou de volta no colchão.
- Agora finalmente vou poder lamber essa bucëtinha do jeito que eu quero. Finalmente descobrir o gosto. Sabe como vai ser, ? Vou te chupar até você gozar, aí, quando você estiver sensível demais para sequer pensar, vou chupar esse seu botãozinho – passei o dedo por seu clitóris e ela estremeceu, soltando um gemido – ainda mais forte e te fazer gozar de novo até que você não tenha mais voz para gritar. Vou beber até a última gota do que você tem para me dar. Então, e só então, vou te comer.
Ela soltou outro gemido ainda mais alto e não pude evitar o sorriso ao ter a certeza de que, além de uma apreciação pela dor, também gostava quando falava sujo com ela. Abaixei a cabeça e soprei sobre seu clitóris inchado antes de abrir com meus dedos suas dobras rosadas e fechar meus lábios naquela parte. Chupei forte uma vez antes de descer a língua por sua abertura e para dentro dela. estava molhada e seu gosto explodia em meus sentidos.
Minha cabeça zumbia e eu queria mais, cada vez mais. Voltei a me concentrar em seu botãozinho, satisfeito por ouvi-la gemer. Levantei os olhos e a visão à minha frente me fez ficar ainda mais duro. tinha uma das mãos embrenhadas no próprio cabelo enquanto a outra amassava o lençol com força. Seus seios, infelizmente ainda cobertos pela regata, estavam empinados para cima graças ao jeito que ela arqueava as costas e jogava a cabeça para trás contra o travesseiro. Estava se mexendo tanto que precisar segurar suas coxas para mantê-la aberta e no lugar.
Ela estava cada vez mais perto do orgasmo. Seus gemidos estavam ficando mais afobados, mais constantes. A mão em seu cabelo havia descido para apertar o próprio seio.
Sabendo o quanto apreciava pontadas leves de dor, passei o dente por seu clitóris e, com um grito, estava gozando. Voltei minha língua para sua entrada, chupando e lambendo cada gota.
Como havia prometido.
Deitei-me sobre ela, meu peso sobre meus antebraços, e encostei minha boca em sua orelha, mordiscando o lóbulo antes de murmurar:
- Um, .
Ela virou a cabeça para me encarar com olhos nublados por sob as pálpebras meio semi-cerradas, o peito subindo e descendo freneticamente para tentar normalizar sua respiração, seu rosto todo corado. Pousei minha mão no meio de seus seios, meus dedos acariciando a curva, mas sem chegar aos mamilos claramente distinguiveis embaixo da blusa. Desci meus dedos até tê-los de volta em sua vagina. Ela sibilou quando deslizei o polegar propositalmente sobre seu clitóris sensível.
Sorri.
- Agora vamos ao segundo.





Continue lendo...







Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


comments powered by Disqus