MOCINHO TORNA-SE VILÃO
Capítulo 20
Produtores gesticulavam eufóricos, membros da equipe técnica zanzavam de um lado para o outro, enquanto maquiadores e figurinistas não economizavam para deixar os grandes convidados da noite ainda mais deslumbrantes. Afinal, não era todo dia que um astro do rock e uma estrela de cinema apareciam juntos no “Kyle Salmon Live”.
Principalmente duas celebridades tão controversas quanto aquelas.
— Quero que as câmeras foquem mais meu lado esquerdo, Kyle. É meu melhor ângulo. — A voz suave e o sorriso polido eram propositais, e ai de quem ousasse falar não para Natalie Wolf.
— Vamos logo! Façam o que a estrela pede!— Kyle Salmon cuspiu as palavras para Louise Johnson, diretora executiva de seu programa. A mulher deu de ombros, já acostumada ao jeito autoritário do apresentador. — E Louise, pelo amor de Deus, pare de andar em círculos, está me dando nos nervos!
— Claro, Kyle. Você entra em menos de um minuto. — A mulher pronunciou sem se deixar intimidar. Então nos instantes seguintes, o apresentador caminhou ao som de jazz tocado ao vivo por sua banda particular (a melhor de toda América, como os críticos costumavam dizer) fazendo a pausa proposital para que a plateia o ovacionasse seguindo indicações claras de um aviso de “applauses” em neon sobre o stage.
Sua voz grave e inconfundível ecoou pelo auditório lotado quando a música cessou:
— Boa noite, Estados Unidos! Boa noite, auditório! É um prazer tê-los conosco em mais um “Kyle Salmon Live”! E no programa de hoje, receberemos um dos casais mais queridinhos de toda a América!
Nos bastidores do auditório, estralava os dedos enquanto a equipe do programa fazia os últimos ajustes no microfone. Diferente de Natalie, o nervosismo do astro era tangível, algum desinformado poderia até dizer que aquela era a primeira aparição do rapaz em rede televisiva.
Wolf levantou-se depois que os maquiadores finalizaram seu trabalho: a pele tal qual a de uma boneca, perfeita.
— Incrível, Hugo! Eu não poderia ter ficado mais deslumbrante! — Disse depois de conferir seu reflexo no espelho do camarim. Ao que o maquiador sênior esqueceu as formalidades e a abraçou (com cuidado para não lhe borrar o rosto).
— Ma-ra-vi-lho-sa! Foi um dos meus melhores trabalhos, sem dúvidas. Claro que toda essa sua beleza natural já garante noventa e nove por cento do resultado. — Em seguida olhou para os lados e disse-lhe baixinho. — E sabe... sei que muitas pessoas te condenam, mulheres principalmente, mas acho muito corajoso e nobre a sua atitude. O perdão é algo divino.
— Oh, meu querido, obrigada, muito obrigada! É realmente importante saber que tenho seu apoio. — Natalie deu um beijo entre o ar e a bochecha do maquiador. Depois o homem saiu andando de um jeito afetado, não antes de lançar um olhar de condenação para . Ao menos não foi um cuspe, nem um empurrão ou um xingamento. Com olhares de desdém, poderia lidar.
Natalie encarou . E a risada que ela dirigiu-lhe após isso ardeu nos ouvidos do rapaz. Se ele pudesse ter um desejo atendido naquele momento, seria este: apertar um botão mute toda vez que Wolf ameaçasse abrir a boca.
— Você está tão lindo, docinho... — Natalie correu as mãos frias pelo colarinho da camisa do namorado. — Posso confiar que não vai estragar tudo?
semicerrou os olhos.
— Por que eu estragaria?
— Porque às vezes sinto que não gosta de mim de verdade. — Ela fez um beicinho e piscou seus cílios postiços de borboleta prestes a alçar voo.
— Quanta desconfiança, docinho. — Ele contrapôs irônico. Alfinetavam-se com tanta frequência que nem se lembrava como era tratar a atriz de forma diferente. — E eu não tenho cumprido o contrato a risca?
— Sim... mas não queria precisar de cláusulas contratuais para garantir que você não escapasse de mim. — Natalie bateu o indicador na ponta do nariz de , que não esboçou nenhuma reação. — Prometa que vai continuar ao meu lado?
— Não é como se eu tivesse outra opção, hum? — Ele respondeu soturno.
Ao que Natalie balançou a cabeça pesarosamente:
— Ah, , meu querido ... Sabe? Talvez você venha a me amar com o tempo. E então nós ficaremos juntos como sempre deveria ter sido, sem precisar de nenhuma letrinha miudinha redigida em papel. — Endireitou-se quando avistou Louise Johnson com o walk talk na mão:
— Estão prontos? Já posso anunciar?
— Mais prontos do que isso, impossível! — Natalie disse exibindo os dentes, apenas elevou as sobrancelhas um meio centímetro para confirmar. No outro instante, escutaram o anúncio entusiástico do apresentador:
— Recebam Natalie Wolf e !
A plateia foi ao delírio e Kyle deu cambalhotas por dentro. Sabia que a audiência do programa iria disparar. Seus patrocinadores renovariam contratos e “Kyle Salmon Live” seria assunto pelas próximas horas em todas as redes sociais.
Natalie entrou deslumbrante. Usava um vestido rosa bebê justo o suficiente para fazer com que todas as mulheres do auditório desejassem ter a sua silhueta. A inocência da peça estava apenas no nome da cor. tentou ser amistoso, mas não tinha certeza se estava convencendo. De qualquer forma, os aplausos superaram as vaias. Um público bem treinado para não ser tão impiedoso assim.
— Sentem-se, meus queridos! Sentem-se! — Kyle indicou uma poltrona no cenário mobiliado de forma a lembrar uma sala de estar aconchegante. E se não fosse pelo excesso de câmeras, microfones pendentes, (e principalmente Natalie Wolf sentada ao seu lado), talvez até tivesse se sentido confortável.
— Boa noite, América! — Wolf gritou animada e recebeu a resposta da plateia de volta. A mulher esbanjava carisma. — É um prazer estar aqui, Kyle.
— O prazer é todo meu! E estou honrado que o “Kyle Salmon Live” seja o primeiro programa dos Estados Unidos a receber o casal, juntos!
— Oh, Kyle — Natalie colocou a mão sobre a do apresentador e declarou com a voz serena — você sempre soube que quando as coisas tranquilizassem, esta honra seria toda sua.
A plateia aplaudiu e o olhar de perdeu-se sobre os próprios sapatos. Salmon esperou o barulho cessar, reajeitou os óculos que insistiam em escorregar pelo dorso do nariz e cruzou as pernas revelando o pedaço de uma meia escura que combinava com o terno risca de giz escolhido para aquela grande noite.
— Então, sem rodeios, vocês dois não só ignoraram todos os tabloides e redes sociais quando declararam ter reatado depois de... bem... depois dos acontecimentos, — A língua de Kyle coçou. Quis citar o incidente envolvendo os astros da noite, mas sabia que se fizesse isso estaria descumprindo o único motivo pelo qual ambos concordaram em ir ao programa — como também deram a volta por cima. E agora, e Natalie Wolf estarão juntos em “Five Months of Love”*, superprodução de James Taggart que estreia na próxima semana em cinemas de todo mundo.
— Sim, demos mesmo a volta por cima. — Um sorriso seguiu-se a declaração de Natalie.
— Fico feliz que tenham. — Kyle disse automaticamente, como se a resposta da mulher fosse um mero acessório a preceder a fala de , depois se virou para o músico. — , esta foi sua primeira experiência como ator e já teve a oportunidade de viver um personagem complexo no cinema. O que sente em relação a isso?
deu de ombros antes de dizer:
— Minha participação nem é tão grande assim, sou apenas um coadjuvante no filme, Kyle. As verdadeiras estrelas são Natalie e Adam Grant.
Em algum lugar dos bastidores, Louise sorriu orgulhosa, não era segredo que a assistente de Kyle e Grant eram um casal. O apresentador ignorou o jeito meio grosseiro com que o vocalista disse aquilo e contrapôs com um olhar atento:
— Certo, mas quem já assistiu à pré-estreia disse que você está brilhante no papel e que não seria surpresa alguma indicação.
— Talvez eu esteja brilhante porque o personagem é um alcoólatra com problemas para se ajustar. Algo que desempenho bem na vida real, de acordo com a mídia.
nem viu quando falou as palavras, mas ao invés de criar um desconforto geral, o público gargalhou. O sorriso demorou um tempo para surgir nos lábios de Natalie, mas apareceu. No fim, o vocalista também sorriu, hesitante.
— Oh, querido, você está sendo modesto! — Natalie lançou um olhar apaixonado para . Garotas suspiraram na plateia. Ele ainda tinha suas aliadas, afinal. Então a atriz voltou-se para Salmon — Kyle, o tem um talento nato para atuar. E acho que não seria demais dizer que ele está sem beber há nove meses.
Por um breve momento, pensou em dar o pior dos olhares para a atriz. Mas controlou e apenas sorriu bem treinado para as câmeras.
— Ah! Parabéns! Meus parabéns! Isso merece uma salva de palmas, não é auditório? — Kyle disse e o público o fez, claramente constrangido. Não queria que aquilo fosse de domínio público. — O personagem teve influência para isso?
— Acho que várias coisas influenciaram minha decisão. — disse deixando as coisas subentendidas. — Mas, claro, o papel ajudou.
— Muito bom. Então podemos esperar mais filmes com ? E quem sabe, numa próxima vez, vocês atuando juntos como os protagonistas?
— As chances de que isso venha a ocorrer são grandes. — Wolf deu uma piscadinha e resistiu à vontade de perguntar se seria em algum filme de terror em que ele a matasse no final. Rá-rá. Mas certamente ninguém acharia engraçado.
— Bem, outra coisa que preciso saber... ouvi boatos de que estão dispostos a juntar os trapos definitivamente. É verdade ou seriam apenas fofocas? — disse Kyle, na melhor versão de si mesmo e pelo que era conhecido: colocar os famosos em saias justas.
deu um sorriso temeroso, sentindo o rosto corar. Natalie, que se divertia com a pergunta e mais ainda por colocá-lo naquela situação, quebrou o silêncio:
— Claro que são fofocas, ou então eu seria a primeira a saber, não é, ? — A plateia ficou acalorada e recebeu um beliscão da garota que se fosse traduzido em palavras significaria: “fale alguma coisa”.
— Bem... Talvez eu ainda esteja pensando em como surpreendê-la. — a declaração do músico fez a plateia ir ao delírio e Kyle viu as altas cifras reluzirem em sua conta bancária.
— Vejam só! Vejam só! Estou fazendo o papel de casamenteiro! Então, , podemos dizer que as últimas notícias que saíram na mídia sobre sua vida um tanto... boêmia... — Kyle sendo Kyle novamente.
— Era minha despedida de solteiro... — o autor fez uma pausa intencional na sua fala — prolongada.
E o público rolou de rir quando Natalie fingiu puxar a orelha do músico após aquela declaração cheia de ironia.
— Ah, claro! Ficar com uma garota como Natalie Wolf pode ser um pouco intimidador, não?
A mente do astro aquiesceu em silêncio à pergunta do apresentador: “Ah, sim... no pior sentido da palavra.” Mas foram palavras falsas as que saíram de sua boca: — Lógico! Vejam esta garota: ela é linda, inteligente, talentosa... ok, Kyle, pode parar de olhar — Salmon levantou as mãos como um sinal de trégua e o público riu novamente. — Não sou um santo. Cometi muitos erros no passado por causa da bebida e outros excessos... mas tive o perdão da Natalie e juntos superamos isso. Não seria louco de trocá-la por qualquer outra.
O beijo que deu no rosto da atriz fez o auditório ser tomado por novos suspiros apaixonados.
— Obrigado por estar ao meu lado, querida.
Aquilo sim era uma atuação digna de um Globo de Ouro.
— Entendi o aviso, mas seria uma concorrência desleal: eu contra você, não acham? — A plateia negou e Kyle fingiu cara de decepção. — O que há com vocês? São minhas telespectadoras, esqueceram-se? E o que as mulheres veem em cantores de rock? Tudo bem que é boa pinta, tem este olhar penetrante e cabelos bagunçados... mas... o que eu estou dizendo!? Vou parar antes que questionem a minha sexualidade!
Todos no set gargalharam, até Louise esboçou um sorrisinho torto e esqueceu por um minuto suas diferenças com Salmon. Por consequência, também se sentiu mais calmo, finalmente entrando no jogo.
— Obrigado. Você também não está nada mal, Kyle. — Disse confortando o apresentador.
— Posso então fazer uma última pergunta?
— Sim, sem problemas. — O cantor falou tranquilo mesmo sabendo que quando Kyle Salmon pressagiava a si mesmo dali não poderia sair boa coisa.
E ele estava certo. No telão central do auditório, uma sequência de fotos suas ao lado de eram mostradas para toda a América. Os dois na lanchonete em Denver e também no calçadão de Copacabana no Rio de Janeiro. Meu Deus... Fotos tão antigas... Ao menos o rosto da garota não estava nítido em nenhuma delas e agradeceu por isso. Como se não tivesse feito estrago suficiente, Salmon continuou com o que de repente deixara de ser um programa de auditório para se transformar em um júri popular:
— Essa moça misteriosa então foi um caso que ficou no passado?
O coração de apertou e seus lábios não emitiram nenhum som. As câmeras agora focavam o rosto de Natalie que desempenhava o papel de vítima com maestria. Até conseguiu fazer com que os olhos enchessem-se de lágrimas. Bravo. Uma atriz estupenda. Kyle ofereceu-lhe um lenço ao mesmo tempo em que dirigiu um olhar de reprovação para .
— Parece que um gato comeu a língua do vocalista da Dark Paradise... Ou seria um tigre? — Pessoas riram do trocadilho e Salmon balançou seu sapato caro fingindo impaciência, mas no fundo, adorava o fato dos astros estarem excedendo o tempo estipulado no contrato. — E então, ?
O sonoplasta resolveu colocar uma musica dramática transformando aquilo num show de horrores para o músico. O burburinho crescia entre os telespectadores.
E ele exalou forte o ar antes de dizer:
— A garota destas imagens... foi um erro. Só há uma mulher em minha vida. E esta mulher é Natalie Wolf.
— Muito bem. Que merda foi aquela, Natalie?
A atriz levantou os olhos do celular e arqueou as sobrancelhas, sem entender:
— Hum? Do que está falando, docinho?
— A intenção em participar deste maldito programa era melhorar minha imagem, não piorar as coisas. — falou baixo, mas claramente zangado.
— , querido, quer ser mais específico? — A garota tampou os lábios pintados com exatidão artística e deu uma leve desequilibrada no banco quando o motorista passou por um buraco na pista.
— Você pode ser muitas coisas, Natalie. Menos burra. A insinuação de um pedido de casamento, as fotos da . Quer que eu acredite que aquele pamonha do Salmon teve todas essas ideias sozinho?
Natalie bufou. Retirou um espelhinho da bolsa Celine e conferiu a maquiagem. Tudo ainda impecável.
— Ora, pense o que você quiser.
— Sim, eu estou fazendo isso. E o que eu penso neste exato momento... é que você quer continuar me ferrando mesmo depois de tudo. — O homem continuou encarando até que ela largasse o espelho e o olhasse. — Por que diabos, Natalie?
Ela aspirou forte o ar.
— Ok. Se precisar que eu explique, eu explicarei.
ofereceu-lhe um sorriso falso. Pegou uma trufa no barzinho improvisado e jogou na boca. Chocolate ajudava a lidar com a abstinência do álcool.
— Sim, eu preciso.
A mulher colocou o celular na bolsa e subiu a divisória da limusine. Deu um suspiro bem longo, após o qual começou a dizer:
— Sempre soube que você não era do tipo que se apegaria fácil. Mas, puxa, pensei, tudo bem, se no final for eu a garota mais importante da vida dele, não me importarei com essas groupies que querem seus quinze minutos de fama. — Natalie disse dramática. — E então aquela professora de país subdesenvolvido aparece e você me humilha. — Seu tom evoluiu para algo que lembrava uma ameaça, era como se tivesse interpretando vários personagens dentro da sua historinha. —A leva para festas públicas, a convida para sua casa e até viaja para encontrá-la! — De repente estava gritando. — Eu, Natalie Wolf, uma atriz de renome, trocada por aquele ser insignificante! Como acha que eu me senti, ?
Quando ela terminou de falar, o músico ficou tentando entender o que se passava na cabeça dela. Deus...
Que quebra-cabeça complexo.
— Eu me apaixonei, Wolf. — disse. — A finalidade não era te prejudicar. Nunca foi. Não tinha necessidade de mostrar fotos de um relacionamento que ficou no passado.
—No passado? Interessante, porque algumas vezes, você diz o nome dela durante a noite.
Mas o quê?! sentiu o rosto corar. Dizer o nome de uma mulher enquanto dormia ao lado de outra? Seu subconsciente era um filho da puta que não tinha apreço à própria vida.
Além disso, já fazia quase um ano... ele não deveria estar pensando naquela garota, não mais...
Natalie continuou, retirando-o de seus pensamentos:
— Por isso, achei por bem mostrar ao Salmon e ao público aquelas fotos. — Ela abriu o mesmo tipo de sorriso de quem acaba de receber uma boa notícia. — Não é interessante como a sociedade tende a se rebelar contra cretinos traidores, ? E proteger a mim, mulher, o sexo frágil da história? As coisas sempre serão assim... E não se esqueça de que ainda estamos tentando reerguer a sua moral perante a mídia.
parecia estar diante de outra pessoa. Toda a suposta candura e controle de Wolf haviam desaparecido.
Ele quebrou contato visual, mas sentiu quando a atriz tomou assento ao lado dele. Empertigou-se uns centímetros, distanciando-se dela.
— ... eu só quero que você me ame. — Disse com as mãos sobre as dele. — Quero que você esqueça de uma vez por todas as outras garotas, aquela garota e em troca eu serei tudo o que você quiser. É pedir muito? — Agora a atriz falava como uma criancinha que precisava de proteção, seus olhos translúcidos de pedra preciosa, embargados. Era incrível como sofria várias alterações de humor em pouco tempo.
cerrou as sobrancelhas, os olhos estreitados para garota:
— Qual parte da lição sobre o amor você faltou, Natalie? Não é assim que as coisas funcionam. Eu não posso amar você só porque está me pedindo.
— Mas você já me amou uma vez.
O músico nem hesitou ao dizer:
— O que tínhamos não era amor, nós nos encontrávamos para sexo casual, apenas isso.
— E você sempre queria repetir. Não entendo porque me evitar agora que estamos oficialmente juntos. — A voz de Wolf tornou-se melosa e sugestiva. — Lembra o que costumávamos fazer no carro?
Então Wolf resolveu dar-lhe um ótimo refresco para a memória: ajoelhou-se entre suas pernas, as mãos prestes a desabotoar-lhe as calças. Em outra época, a cena teria deixado subindo pelas paredes.
Segurou as mãos dela antes que terminassem de descer o zíper.
— Natalie, isto não vai funcionar. Sinto muito.
A garota piscou bem devagar.
— Tem a ver com o fato de não estar bebendo, ? — Ela disse tentando ser compreensiva. — Eu li sobre o que a abstinência pode fazer com...
a interrompeu:
— Não, Natalie, não tem a ver com a bebida.
A atriz parou. Encarou o músico com olhos arregalados e lábios semiabertos. esperou que ela fosse chorar, gritar, arremessar algumas das comidinhas que estavam sob o frigobar (ou todas essas opções juntas). Mas Natalie apenas voltou para o seu lugar, sentou com as pernas cruzadas, e sorriu comportada.
— Tudo bem, , eu sou paciente. Não vou desistir de nós dois. Eu e você fomos destinados um ao outro. E você vai me amar... Ah, se vai. — Disse e deu uma piscadinha para ele. grunhiu baixo, o maxilar tenso:
— Cristo... você é maluca.
— Maluca por você. — Ela lançou-lhe um beijo no ar. Apoiou o rosto na mão e o encarou com olhos brilhantes de paixão doentia.
O carro agora subia as colinas de Bel Air, era perceptível como a temperatura caia alguns graus e conferia ao lugar arborizado a mesma sensação térmica de um ambiente refrigerado. Construções suntuosas passavam pela janela da limusine como tomadas cinematográficas, lares milionários que aparentavam pertencer a pessoas felizes e de vidas perfeitas.
Só aparentavam.
O rapaz teria suspirado aliviado por estar tão próximo de casa, se esse também não fosse o destino de Natalie. Ela virou-se para ele quando os portões terminaram de abrir, a limusine adentrando os jardins bem cuidados:
— Não vê o quanto funcionamos bem juntos, docinho?
sorriu sombrio.
— Claro. — Você me ferrou, eu te ferrei: somos uma dupla de fodidos.
Formavam mesmo o par perfeito.
*Five Months of Love: é o nome de uma fic maravilhosa aqui do ffobs, da autora Scar. Foi dela que também peguei emprestado os nomes da Louise e do Grant, protagonistas da fic.
Capítulo 21
O líquido verde de uma garrafa de absinto acompanhava-lhe o andar cambaleante e provavelmente era o motivo pelo qual sentia-se aquecido naquela noite fria. Na outra mão, o músico carregava uma chave. Não uma pequena do tipo que as pessoas vivem perdendo, era uma bem grande e nada comum. Afinal, chaves comuns não tinham a palavra “perigo” gravada no metal.
Pulou a cerca de segurança. (Aparentemente, além da dignidade a fada verde do absinto também retira o juízo das pessoas). Os vãos entre as grades eram distantes o suficiente para que algum desavisado passasse o braço por elas.
Mas fez melhor e destrancou o portão.
Em seguida, disse num sussurro inaudível a ouvidos humanos:
— Martin, amigão. Venha aqui.
Dois pontos brilhantes movimentaram-se com uma agilidade graciosa na escuridão. E quando já não eram metros, mas poucos centímetros, a distância que separava do animal, um focinho sobre duas colunas de presas mortais também se tornaram visíveis. O felino caminhou tranquilo para o lado de fora. gargalhou ébrio quando o tigre o lambeu com sua língua áspera e o sufocou com o bafo de felino.
— Ei, Martin, acredita que... a professorinha quis dar um tempo? — O músico disse com a voz enrolada para seu interlocutor atípico — Que somos muitos diferentes e mais um tanto de baboseira? Rá. Quem ela pensa que é? — Bufou e riu debochado.
Mas depois, começou a chorar.
A resposta de Martin foi um bocejo que colocou a mostra todos os dentes afiados. Assunto cansativo de bêbado para um tigre ouvir àquela hora da noite. A piscina era algo muito mais interessante e o bicho não fez cerimônia: pulou executando o nado cachorrinho. Nome afrontoso para definir a performance aquática de um tigre, mas foi isso mesmo. E bateu palmas, orgulhoso.
Na casa anexa à mansão, a luz fraca de um abajur se acendeu, só que foi apagada segundos depois. nem notou, estava ocupado relendo a última mensagem recebida de . Tentando, pela enésima vez, entender o que tinha feito de errado.
[]: Querido , você me perguntou porque eu estava estranha quando saímos da casa dos meus pais. Eu disse que não era nada. Mas a verdade... As coisas aconteceram a um ritmo muito acelerado: num dia você chega aqui, no Rio de Janeiro, bate a minha porta, no outro você está fazendo um show para milhares de pessoas... e eu... bem, minha vida é linear, já a sua tem muitas variáveis. Sinceramente, não sei se tudo isso está me fazendo bem... Acho que preciso de um tempo.
Precisa de um tempo. Rá.
Martin saiu da piscina, chacoalhou seu corpanzil listrado e fez gotículas de água voarem ao entorno. precisou sorver só mais um gole de bebida antes de levantar-se, decidido:
— Quer saber? Relacionamento é uma droga. Pro inferno, ela e todas as mulheres.
Apontou para o tigre.
— Acho que tanto eu quanto você, merecemos ser livres, meu caro amigo.
A conversa atravessava a porta.
Eram duas pessoas. Uma sussurrando em resposta aos berros da outra. reconheceu a voz pertencente ao gritador: Robert Barlet, claro. O tom pesado do empresário repercutia pela alvenaria:
— Não me interessa se ele está dormindo ou se há dez garotas nuas aí dentro, pelo amor de Deus! Você não viu o tanto de repórter lá fora?
— O senhor não vai gostar nada de ser incomodado. — Eva Hernandez falou com seu sotaque carregado, tentando domar um irredutível Robert.
— Cristo, Eva! Tem certeza de que o está mesmo dormindo? Ele pode ter feito alguma besteira. Saia logo da minha frente!
O músico resmungou para o travesseiro. “Ugh... Desaparecem vozes, sumam da minha cabeça”. Ignorar Barlet e continuar dormindo: uma ideia maravilhosa. Isso, se as batidas na porta não continuassem tão insistentes.
então abriu os olhos. As cortinas ainda estavam fechadas. Procurou pelo interruptor ao lado da cama e de pronto já estranhou a falta do abajur. Mas nada comparado ao vislumbre do quarto.
Cacete.
O cômodo havia sido completamente destruído. A televisão fora reduzida a minúsculos cacos (e os estilhaçados espalhados talvez explicassem o corte na mão que ele acabara de notar). Seu violão favorito jazia sem utilidade num canto qualquer e, custou a entender como a principal matéria prima de um único travesseiro, pudesse salpicar todo o cômodo de plumas brancas. A cena seria até cômica se não fosse um desastre completo.
A única coisa intacta, (não tão intacta assim já que estava pela metade), era uma garrafa de absinto que não fazia ideia de como chegara ali, mas que certamente era a resposta para toda aquela bagunça.
Ainda estava boquiaberto quando a voz de Robert ressoou novamente retirando-o do transe:
— ? , está acordado? Você precisa abrir, temos que conversar urgentemente!
Bem. Ele poderia ter dito para Robert Barlet colocar a porta abaixo. Não teria feito diferença e até combinaria com o novo visual do quarto. Mas caminhou cauteloso pelo cômodo tentando evitar as armadilhas de cacos no chão e destrancou a fechadura.
Depois que escutou o som da chave, Robert colocou o rosto para dentro do cômodo. Nada do mau humor típico, na verdade, seu semblante era de espanto. O homem parecia realmente assustado.
— Cristo... — Barlet disse enquanto os olhos faziam uma varredura pelo lugar. Depois encarou o músico. — Você não está com a melhor das caras. Mas está vivo, graças ao bom Jesus.
repousou a mão na testa sentindo o que era efeito de uma ressaca descomunal.
— Dou um jeito em tudo depois... Mas por que você veio até aqui, Robert? E por que veio tão cedo? — O rapaz olhou para os lados procurando por algum relógio. Ah, ali estava o ponteiro dos minutos, perto do pé da cama e sem muita utilidade agora. — É cedo não é?
Barlet cruzou os braços e tentou procurar algum local sem estilhaços de vidro ou plumas de travesseiro para se sentar. A ponta do colchão pareceu um bom lugar.
— Sério? Está realmente perguntando o que eu estou fazendo aqui? — Barlet retrucou.
Do corredor, Eva expiou rapidamente e fez a mais sofrida das caras para aquela bagunça antes de desaparecer de vista.
— Robert, sem joguinhos, por favor. Você sabe que eu não tenho paciência para isso. — disse quase irritado. O gosto na boca estava horrível, o estômago vazio, revirando.
Barlet deu um aceno de queixo para a garrafa de absinto na cama:
— Então foi por isso que aprontou todas na noite anterior, hum?
encarou o recipiente e seu corpo fez associações horríveis entre as dores de cabeça e a bebida verde. Com uma careta de dor, perguntou:
— Todas?
— Meu Deus... você realmente não se lembra de nada? — O empresário disse com a voz mansa, para surpresa de . O músico estava esperando a hora em que o verdadeiro Barlet se revelaria e começaria com a lição de moral. Teria sido melhor se isso acontecesse.
Teria se sentido menos estúpido.
— Porra, Robert, não. Mas aparentemente, uma delas foi quebrar meu quarto todo.
Barlet balançou a cabeça e riu, mas não de um jeito feliz. Disse depois de um suspiro longo:
— , se fosse só isso, tudo estaria bem. Ligue a... — O empresário olhou para o espaço onde ficava o televisor, depois encarou as partes quebradas no chão. — Ah. Não tem TV, óbvio.
A cabeça de latejou ainda mais forte.
— Que tal você mesmo narrar os fatos? Sei que deve estar ansioso por isso mesmo. — Disse e caminhou até o banheiro, deixando a porta entreaberta. — Estou escutando.
Barlet pigarreou e esperou o som da descarga cessar antes de dizer:
— Ok. Bem, por onde começo? Você conseguiu prender seu tigre na carroceria da caminhonete e saiu dirigindo por aí. Parou em um posto de conveniência para fazer estoque de comida e bebida. Parece que sua ideia era viver em exílio com seu felino nas montanhas de Santa Mônica.
lembrou-se de cenas aleatórias do que até então imaginou ter sido um sonho bem lúcido. Quando se deu conta do que aquilo significava, deixou a escova de dente de lado e saiu para fora do banheiro com as calças ainda meio arriadas.
— Meu Deus. O Martin, merda! Onde ele está, Robert? Precisamos encontrá-lo!
O empresário piscou sereno e fez sinal para que se sentasse.
— Calma. Ele está bem. Apesar de um abaixo-assinado pedindo a devolução do seu tigre à África já contar com mais de cinco mil assinaturas no change.org e o Greenpeace considerar você o mais novo inimigo do meio ambiente; seu tigre está bem. — Robert disse com tranquilidade, os cotovelos apoiados nas pernas, desviou o olhar dos restos do que possivelmente seria o violão e encarou o rapaz. — Mas a pergunta não deveria ser: ele atacou alguém?
O músico balançou a cabeça em negação.
— Não, não. O Martin jamais faria mal a alguém. Onde ele está, Robert?
O empresário revirou os olhos. Poderia ter começado um discurso sobre tigres terem instintos predatórios e não serem aconselháveis como animais de estimação. Afinal, qual era o problema em ter um cachorrinho como o resto das pessoas comuns? Mas achou melhor deixar isso para outro momento.
— O Martin está de volta à jaula dele, graças a Deus. — Robert disse. — Ou então nem imagino como as coisas poderiam ter sido piores.
suspirou aliviado. Não se lembrava de ter dirigido, nem do posto, muito menos...
— Como... eu cheguei em casa?
— Ah, sobre isso — Robert coçou o bigode — você fez dois amigos no posto de conveniência. Tiraram da sua cabeça toda essa história de viver na natureza selvagem e o deixaram em casa por volta das duas horas da manhã. Eram seus fãs e não vão falar nada sobre o ocorrido.
cerrou os olhos, forçando a memória:
— Ah, acho que me lembro disso...
— Também lembra de ter dado sua caminhonete de presente para um deles? Um tal de Andie?
— O quê? — O músico arregalou os olhos e gargalhou. — Não. Definitivamente não me lembro dessa parte.
Robert alisou a parte calva da cabeça e os lábios cansados fizeram um movimento tosco que lembrava um sorriso.
— Pois é, ele a devolveu hoje de manhã. Também não falará sobre. Nem queria receber dinheiro para ficar quieto, já achou honra o suficiente ter dirigido sua caminhonete por algumas horas. Bacana, não?
passou a mão pelo rosto e sentou-se na outra ponta da cama.
— Ah... Ok. Que bom. — O músico disse, a expressão ainda confusa. — Então... as coisas não estão assim tão ruins como... como você fez parecer. Estão?
Robert não respondeu de pronto. Primeiro ficou parado, encarando, e esperando que se lembrasse. Mas nada aconteceu.
— Na verdade, tem mais uma coisa, . E isso... bem... é por isso que há uma centena de jornalistas no seu portão.
achava inacreditável que a noite tivesse sido longa o bastante para tantas experiências lúdicas. Mais inacreditável ainda não se lembrar da maioria desses eventos.
— Que coisa, Robert? — Perguntou e contraiu a mandíbula em tensão.
— Lembra da Natalie ter te ligado e você ter pedido para que ela viesse aqui noite passada?
— Não... — disse, e de todas as partes mirabolantes daquela história, ligar para Wolf era a que fazia menos sentido.
— Ah, ...
Robert colocou a mão sobre o ombro de , um gesto puramente paternal. Mesmo que fosse um moleque insolente na maioria das vezes, Barlet amava como a um filho. (Um bem famoso e responsável pela vida de luxo que o empresário levava em Los Angeles). E o homem costumava ser um exagerado, sem dúvidas. Mas daquela vez algo realmente ruim deveria ter acontecido. Ou então os olhos de Robert Barlet não estariam embargados.
Droga.
— Robert.
— Ah... bem... não tem nada confirmado ainda. Por enquanto, não passam de boatos e...
— Robert. Sem suspense. Me diz logo a merda que eu aprontei dessa vez.
Então o empresário finalmente deixou as delongas de lado:
— Só a pior de todas, filho. Estão dizendo que você agrediu sua ex-namorada.
O prédio da “The Hollywood’s Agency” tinha todos os adjetivos que o escritório de Barlet não possuía: suntuoso, bem decorado e com secretárias vistosas tais como modelos de passarela. Robert e chegaram dez minutos antes do combinado. Mesmo que o ambiente já estivesse acostumado a ter celebridades circulando, e a equipe de segurança fosse exigente com relação a jornalistas, devido às atuais circunstâncias, o músico optou por esconder o rosto por baixo do capuz de um moletom e também por óculos escuros.
Shermine, a bela atendente negra que usava uma echarpe colorida, prontificou-se com um sorriso antes que os dois anunciassem a presença:
— Posso ajudá-los? — Perguntou diretamente para o rapaz ignorando Barlet por completo. Ainda que a notícia da suposta agressão à Natalie Wolf já estivesse fervilhando há uns quatro dias, nem todas mulheres pareciam conhecer o fato. Ou então se esqueciam de que canalhas também poderiam ter sorrisos com direito a covinhas.
— Temos uma reunião com Velma Jones e Natalie Wolf. — O empresário disse, cortando o flerte.
— Ah. Robert Barlet e... . — Shermine disse, a cara de nojo nem um pouco profissional. — Elas estão aguardando. O escritório fica no décimo quinto andar.
— Obrigado. — Robert respondeu. só encarou o chão.
O elevador estava no térreo. Lá dentro, depois que a porta se fechou, Barlet balançou a cabeça e deu um daqueles sorrisos de gente irritada, manchas vermelhas formando-se no pescoço:
— Flertar com recepcionistas neste atual momento da sua vida é só uma das piores ideias que você poderia ter, .
O vocalista o encarou sem acreditar.
— Flertando? Pelo amor de Deus. A garota quase me lançou um raio da morte com o olhar. — riu e bufou ao mesmo tempo. — Acredite Robert, tem mil e uma coisas acontecendo na minha cabeça agora, e nenhuma delas envolve sexo.
Ficaram em silêncio. recostado no espelho, os olhos fixos nos inúmeros pontinhos do teto. Só quando o aviso luminoso do elevador indicou que estavam passando pelo nono andar, foi que o rapaz resolveu falar:
— Robert. Você chegou a ver a Natalie depois de... ahn... depois daquela noite?
O empresário balançou a cabeça, sem olhá-lo:
— Não sei como ela está. Ninguém sabe, . Nenhuma imagem foi divulgada.
Por dentro, Robert pensou: “graças a Deus que nenhuma imagem foi divulgada”. Já no íntimo de , ardeu uma centelha de esperança de que tudo aquilo poderia se tratar de um maldito engano, só fofoca barata para jornais sensacionalistas garantirem o ibope da semana.
— Sabe, ainda acho que deveríamos ter contratado um advogado.
— Não, . Se fizéssemos isso, elas certamente entenderiam que estamos predispostos à briga. Vamos ouvir qual a proposta antes de envolver a justiça. De qualquer forma, o fato de Natalie Wolf ter oferecido um acordo, já o deixa no lucro.
Natalie Wolf oferecendo um acordo. sentiu o estômago embrulhar depois de ouvir essa frase. Wolf já era a grande vítima da história. E pelo pouco que ele conhecia da vida, eram os algozes quem deveriam oferecer propostas de acordo, não?
Preferiu não pensar que tipo de acordo seria esse.
Foram os quinze andares mais longos do mundo para . Mesmo assim, o rapaz hesitou por um instante antes de sair. Tremia só de imaginar o reencontro com a mulher. Mas depois seguiu firme, uma parte sua queria acabar com isso.
Barlet apertou o passo para acompanhá-lo. A cada centímetro avançado naquele corredor grandioso, sentia-se patético com seu pequeno escritório em Culver City. Medo de perder seu cliente mais ilustre para uma dessas agências grandes. Mas a verdade era que jamais o trocaria por uma empresa que tinha inúmeras regras do tipo em que o rapaz era mestre em descumprir.
A porta da sala de reuniões já estava aberta. A agente Velma Jones observava o horizonte por detrás do vidro, como uma ave de rapina a procura do alvo, muito embora suas reais presas tivessem acabado de entrar pela porta. A mulher de meia idade possuía um corte de cabelo clássico na altura dos ombros, fios castanhos, da mesma cor das íris. Vestia um tailleur bege. Sua boa forma física garantia que a nuance da peça não lhe fosse desfavorável. Sentado logo a sua direita, havia um homem franzino cujos óculos de grau faziam seus olhos saltarem como os de um sapo. Pelos trajes e semblante sério, só poderia ser um advogado. dirigiu um olhar de “eu te disse” para Barlet.
— Ah! e seu... empresário. — Velma falou depois de analisar Robert com desdém — Sejam bem-vindos, apesar de “bem” não ser uma palavra que define o que o seu cliente fez à minha.
A figura mais intimidadora estava de costas, os cabelos contidos dentro de um lenço floral. Natalie girou a cadeira até se posicionar frente aos dois visitantes. Levantou os óculos escuros em câmera lenta, a fim de conferir maior dramaticidade ao ato.
E desesperou-se ao ver o grande hematoma na parte direita do rosto da atriz.
— Meu Deus... — Ele se ajoelhou frente à Wolf. E em meio a soluços e lágrimas, fez-lhe um pedido de desculpas.
Natalie falou quase que soletrando, sem olhá-lo nos olhos:
— Tirem ele de perto de mim.
— Venha, . Vamos nos sentar. — Barlet puxou até uma cadeira indicada por Jones. O rapaz seguiu o empresário escondendo o rosto com as mãos, envergonhado. Velma sentou-se ao lado da atriz que mantinha o olhar baixo. O advogado permaneceu em silêncio.
— Então Barlet, o que iremos fazer? Veja o que o covarde do seu cliente fez ao rosto de Natalie. Uma barbárie! Como ele pôde? Como ele pôde fazer isso? — Naquele momento, a empresária sabia que era ineficaz dirigir a palavra ao causador da agressão que chorava copiosamente. — Aliás, — Velma apontou para a atriz — sabe quantos milhões de dólares em contratos publicitários esse rosto iria arrecadar nos próximos dias?
E o que mais assustou Robert Barlet na fala de Jones não foi a ameaça implícita no tom da rival, mas a forma como ela se referia a Natalie. Fazia com que Robert associasse a atriz a alguma raça de vaca premiada que não conseguiria cumprir a meta de ordenha mensal.
— Jones, viemos aqui pela proposta de acordo. não se lembra daquela noite. Em sã consciência, ele seria incapaz de machucar uma mosca. — Barlet disse.
— Claro. Mas quando bebe e usa drogas ele espanca moças. — Velma não perdeu a oportunidade.
— Ok, Jones, podemos prosseguir? Queremos resolver a situação da melhor forma possível. — Robert retrucou, mas sem nenhum atrevimento na voz. Não era louco de abusar.
— Sim, sem rodeios. Afinal, seu cliente não aguenta olhar o rosto da namorada. É uma pena que ela também não tenha esta opção. Nas próximas semanas terá de conviver com a marca do que fez.
Barlet não respondeu. Sabia que seria uma discussão sem fim. Velma Jones acenou para o advogado que lhe entregou três vias de um contrato.
— Bem, aqui está a proposta. — Jones repassou uma cópia para Barlet e outra para . — Podem ler. Se quiserem discutir alguma cláusula, o Dr. David irá orientá-los.
Robert deu uma leve sacudida no ombro do seu cliente.
— . , levante o rosto. Você vai querer saber o que está escrito aqui.
O empresário colocou os óculos de grau e enxugou as lágrimas, então leram o que era a minuta de um contrato.
Cláusula 1º
O contratado fica proibido de mencionar o incidente envolvendo a contratante para mídia, amigos, familiares e quaisquer outras pessoas não citadas nesta cláusula. Caso questionado sobre o paradeiro da contratante deverá dizer que a mesma está tratando de assuntos particulares fora do país.
Parágrafo único: O prazo informado pode ser aumentado discricionariamente pela contratante, tendo em vista a recuperação de todas as sequelas ocasionadas pela agressão.
Cláusula 2º
O contratado deverá arcar com todos os tratamentos médicos, estéticos e psicológicos que tiverem de ser suportados pela contratante, ainda que os efeitos surjam em longo prazo.
Cláusula 3º
O contratado pagará todas as multas referentes a rescisões contratuais das obrigações que envolvam a aparição da contratante pelos próximos dois meses.
Parágrafo único: O prazo poderá ser estendido em virtude das condições físicas e psicológicas da contratante.
Cláusula 4º
A contratante e o contratado deverão aparecer juntos em veículo de informação decidido pela contratante quando esta sentir-se a vontade para fazê-lo e então, reatar o namoro.
DA MULTA
O contratado arcará ainda com multa de cinco milhões de dólares a título de indenização por danos morais c/c danos materiais, sendo este valor triplicado em caso de descumprimento deste.”
Quando terminaram de ler todas as cláusulas, Robert Barlet quase gritou de alegria. Estava aliviado: Natalie desistir da acusação e querer reatar com era muito melhor do que qualquer coisa pensada pelo empresário. E acredite, a mente do homem havia elaborado várias teorias mirabolantes.
Só não parecia satisfeito, ou então a ficha não tivesse caído. O rosto disforme da atriz dava-lhe repulsa e ele não podia entender o porquê de Natalie ainda desejar continuar com o namoro mesmo depois de tudo.
O barulho do relógio da sala estava claramente perceptível. Todos esperando por um posicionamento do músico. Ele bateu os dedos na mesa, respirou fundo e encarou a atriz:
— Mas que palhaçada. Esse contrato é totalmente absurdo. É sério que iria assinar isso, Natalie?
A mulher não respondeu. Correu os olhos, de Barlet para Jones, esperando que fizessem algo a respeito. Depois olhou para a bolsa Fendi no próprio colo e descobriu sem querer um estragadinho no couro, praticamente imperceptível, mas que não a impediria de desfazer-se do objeto por este mero detalhe assim que a reunião acabasse.
— . Calado. — Robert disse entredentes, como se fosse um garoto de cinco anos colocando o pai em maus lençóis. Então o empresário virou-se para Velma:
— Totalmente justo, Jones. Não temos nada a acrescentar, nenhum alteração. Vamos assinar da forma que está.
Robert empurrou a caneta para o lado de , mas o músico nem olhou.
— Não, Barlet. — Disse e voltou-se para a ex novamente. — Natalie, você não precisa fazer isso. Não sei quem disse para você que precisa tentar me ajudar, mas não precisa.
Todos na sala entreolharam-se. Menos Wolf, que mantinha os belos olhos azuis, envoltos por hematomas arroxeados, arregalados para .
— , cale sua maldita boca. — Robert balbuciou com o timbre um pouco alterado e sorrindo sem graça. Gotículas de suor instalaram-se inconvenientemente sobre seu bigode denunciando o nervosismo.
Velma, que até então estava sentada, não aguentou mais e levantou-se. Bateu a mão no tampo de vidro da mesa fazendo a caneta rolar e cair no chão.
— Puxa! Você realmente quer enfrentar uma acusação dessas, ? — Jones exclamou, as veias do pescoço saltando, mas nenhum fio do corte impecável saindo do lugar. — Pensa que assim irá redimir sua consciência? Bancar o herói?
olhou apático para a mulher. Na visão do músico, Velma Jones era uma peça totalmente inconveniente cuja função ali era a preocupação com o próprio bolso, apenas.
— Não quero bancar o herói. Quero fazer o que é certo.
Robert Barlet quase caiu da cadeira. Não acreditava que seu cliente poderia ser tão burro a ponto de desperdiçar uma oportunidade daquelas. Ele deu dois tapinhas no rosto do músico até que o rapaz o olhasse de volta:
— Ei, ! Escute. Você não é uma má pessoa. Pense nisso como uma chance que a senhorita Wolf está te dando. No mais, vocês formam um casal tão bonito e...
— Por cristo, Barlet! Você está mesmo dizendo isso? Olhe para ela! Olhe bem para o rosto dela. Meu Deus...
Naquele instante, Robert Barlet desejou com todas as forças socar seu cliente mais importante.
— Uau. Valente. — Jones disse com um sorriso de raposa e braços cruzados. — Será que continuará tão corajoso assim quando confirmarmos para a impressa que tudo realmente aconteceu e você for preso por agressão, hum?
a olhou em silêncio, a preocupação desenhando rugas em seu rosto, e Velma concluiu:
— É. Foi o que eu pensei.
De repente, a voz suave que parecia pertencer a uma garotinha sem forças, fez com que todos se calassem para escutá-la. Natalie teve certeza de que estava prestando atenção antes de continuar:
— , eu e Jones conversamos muito. Foi um erro da minha parte deixar isso tornar-se público. E não, não pense que é porque tenho dó de você, porque não tenho. Acontece que toda essa história também não é boa para mim.
— E é bom para você ser vista ao meu lado depois de tudo? — perguntou, pasmo. Ao que Jones interviu:
— Pelo amor de Deus! Vocês são o rosto de grifes famosas, o casal de celebridades que mais lucra com publicidade! As pessoas os amam! Não é questão de você ser ou não bom para a Natalie, porque sem dúvidas, você não é. Mas precisamos tentar manter as aparências.
— Não acho que conseguiremos “manter as aparências” depois disso. — disse.
Jones e Natalie entreolharam-se, depois a mulher caminhou pela sala, o carpete do lugar abafando seus passos. Parou ao lado de e deu-lhe um olhar sugestivo logo depois de declarar:
— Na verdade, conseguimos sim.
Ele e Barlet ficaram sem entender.
— Para sua sorte, Natalie teve o cuidado de não se deixar fotografar. Assim, a mídia não tem prova nenhuma de que essa agressão realmente aconteceu e poderemos dizer que tudo não passou de um mal-entendido. As pessoas atribuirão isso a uma notícia falsa, há tantas por aí, logo se esquecerão.
Robert Barlet soprou o ar aliviado. Ele fechou os olhos pelo que foi uma fração de segundos e fez um agradecimento a Deus, antes que os abrisse novamente, Velma estava sentada sobre a mesa, o olhar de rapina fixo em :
— No mais, minha equipe já está bolando algo realmente grandioso. Uma nova fase para Wolf e ! — O jeito que Velma falou, fez Robert imaginar o nome dos dois jovens gravados em um daqueles letreiros antigos. — Estamos com a ideia de colocar vocês juntos em um filme! Já pensou, ? Também virar um ícone do cinema?
Velma colocou as mãos sobre os ombros do rapaz. O vocalista teve o vislumbre de algo parecido com um sorriso satisfeito no rosto de Natalie antes dela esconder a face novamente.
Robert sentiu-se intimidado. Malditas oportunistas. Era um plano maligno o daquelas duas mulheres de tirar proveito do próprio infortúnio e tentarem alguma negociação direta com o astro? Não. Não mesmo.
Interviu:
— Seria muito interessante, Jones. Quando vocês tiverem algo concreto podem mandar a documentação para minha agência que analisaremos.
A mulher ergueu as sobrancelhas, depois relaxou a expressão.
— Claro, Barlet.
Os empresários então iniciaram uma conversa animada sobre a vida de , que, vejam só, de crápula agressor de mulheres, de repente passara a futuro ator promissor.
As coisas acontecem a uma velocidade absurda no mundo do show business.
Natalie e o rapaz trocaram um breve olhar neste meio tempo. O da garota, cheio de significados sombrios que não conseguiu decifrar.
Ele não prestava atenção em mais nada a sua volta, nem nas risadinhas estridentes de Jones, nem em Robert que agora dava tapinhas amistosos nas costas da rival. Melhores amigos arranjando o casamento das crias famosas fazedoras de fortuna.
Mas pensou em . Nas horas que passaram juntos, nas conversas banais que tiveram apenas para tentar descobrir algo novo um do outro. Em jantares em família desastrosos e boas impressões. Adoráveis coisas de gente comum que agora ficaram para trás. O coração dele estava em pedaços. Como ficariam nessa história toda? não conseguia enxergar nenhuma saída. Incrível como toda sua vida pode mudar de uma hora para outra. Se ao menos a garota tivesse lhe atendido aquela noite...
Dane-se.
Ela não queria “um tempo”? Pois agora teria todo tempo do mundo. Talvez não fosse para ficarem juntos, afinal. Eram mesmo muito diferentes. Ele e Wolf sim, combinavam bem. Era o que diziam todas as capas de revistas, não era?
Olhou mais uma vez para o rosto disforme de Natalie. Deus do céu. E enquanto a atriz, Robert e Jones discutiam animadamente sobre o tal filme para o qual não lhe pediram opinião, assinou os papéis. Só o advogado de olhar anfíbio viu. Ele conteve a vontade de expressar qualquer emoção depois que o músico terminou a primeira via.
Pronto.
Agora era só voltar a sorrir para as câmeras.
Nota oficial sobre este capítulo: Aqui um spoiler fixo se faz obrigatório. não bateu em Natalie Wolf. Em tempos em que tanto se discute sobre romantização de relacionamentos abusivos e empoderamento feminino eu jamais iria fazer com que o protagonista da minha história agredisse uma mulher e tudo ficasse bem para ele, confundindo a cabeça de possíveis leitoras mais jovens de que algo assim é saudável etc. Então muita calma, garotas, que nem tudo é o que parece ser. Sei que o assunto é sério, e não é minha intenção tratá-lo de forma leviana; assim, as explicações para o que realmente aconteceu serão dadas nos capítulos futuros.
Capítulo 22
Cristiano parecia decepcionado. Ainda assim, os lábios expressaram um meio sorriso para convencê-la do contrário. também sorriu para tentar esconder o desespero: sobre o criado-mudo ao lado da cama, dois convites para a estreia do filme de Natalie Wolf e . Ela engoliu em seco. A garota precisava ter uma conversa séria com a central de controle do destino.
— Tem certeza de que não quer ir? — Cris perguntou. — Achei que gostasse desses filmes de mulherzinha.
— Bem... acho que o senhor me subestimou. Talvez eu não seja tão mulherzinha assim.
Cristiano arqueou uma sobrancelha provocando:
— É... eu deveria ter deduzido que filmes de ação e violência fazem mais o seu tipo.
— Isso mostra que você não conhece tanto assim sua namorada. — zombou fitando os olhos castanhos do rapaz, mas sua risada saiu trêmula. Foi até o armário e começou a mexer nas roupas a esmo, só para ganhar tempo até que o sangue voltasse a circular. Virou-se quando a mão de Cristiano contornou-lhe a cintura. Ele então a levantou até que os lábios dela ficassem à altura dos seus.
— Talvez se minha namorada tivesse mais tempo para mim e não se esquivasse tanto... eu poderia saber mais sobre ela.
Oh...
Mesmo que fosse um mauricinho egoísta (palavras de Josi), conseguia ver virtudes em Cristiano. Era divertido, carinhoso e... lindo. Tinha uma graça quase angelical, ainda que o corpo esguio e bronzeado fosse mais um incentivo para o pecado do que qualquer outra virtude celeste. Ela podia se considerar uma garota de sorte.
— Quem mandou escolher uma nerd? Trabalho é meu sobrenome. — deu-lhe um selinho rápido, depois olhou para o chão, um indicativo sutil para que ele a colocasse de volta. O homem atendeu-lhe, não antes de oferecer um sorriso torto.
— Mas essa garota nerd pode muito bem arrumar um tempo para o namorado... — insinuou — a começar por um almoço com os sogros este fim de semana.
sentiu um frio na espinha em pleno calor carioca. Cristiano concentrou uma sequência de beijos no pescoço da namorada com a clara intenção de embarga-lhe os pensamentos. Ela deu um passo para trás. Cris suspirou.
— Sogros? Não acha que ainda é muito cedo para isso? — respondeu evitando o olhar exigente do rapaz que não estava disposto a desistir.
Cris bufou.
— Cedo? Não aguento mais minha mãe e seus interrogatórios. Todos querem conhecer a garota que me colocou nos eixos.
— Eu fico honrada em ser a responsável por fazer de você um rapaz mais decente, mas realmente acho que devemos esperar mais um pouco. Envolver os pais implica em um passo sério. — Ela disse. — Ei, quer ver um filme na Netflix?
Belo jeito de desviar o assunto.
Cris cerrou os olhos. Cruzou os braços e sentou-se na beirada da cama. O esplendor do homem não combinava nenhum pouco com o cômodo de paredes mofadas. Algo entre raiva e desapontamento ardeu em seus olhos antes que perguntasse:
— Tá legal. Qual é o seu problema?
piscou duas vezes. Surpreendendo-se com o tom repentinamente agressivo do rapaz.
— Por que está falando comigo desse jeito, Cris?
— São as suas evasivas, . A impressão que tenho é a de que você só quer se envolver até certo ponto e se eu tento dar mais um passo, dá um jeito de fugir.
Da janela do quarto, podia-se ouvir o barulho irritante de buzinas. Um engarrafamento condizente com o horário de pico: fim de expediente para a maioria dos cariocas. fechou o vidro, depois se virou para o namorado com um leve balançar de cabeça. Mas a quem queria enganar? Era óbvio que Cristiano tinha razão. Tão óbvio quanto o fato de que jamais poderia admitir isso.
— Você está exagerando.
— Estou? Então prove. E almoce na minha casa este fim de semana. — Ele desafiou e fez aquela coisa de arquear só a sobrancelha direita novamente. costumava adorar o gesto, mas naquele momento só o que sentiu foi uma leve irritação.
— Tá, tudo bem... — Ela disse com a desculpa já na ponta da língua. Era algo tão automático que não conseguia controlar. — Mas esta semana não vai dar, tenho um pacote de provas para corrigir. E também preciso enviar aquele artigo para a revista que te falei e...
Ele revirou os olhos.
— Já entendi. Você não quer conhecer meus pais, não quer ir ao cinema comigo... A propósito, sabe como foi difícil conseguir estes convites? A Gi disse que está tudo esgotado.
Gi...
“Gi” era Gisella: a secretária do escritório publicitário em que Cristiano trabalhava. não a conhecia pessoalmente, mas o nome surgia esporadicamente nas conversas, o que deixaria qualquer outra garota com um pingo de autopreservação no mínimo enciumada. Alguém por favor, avise o rapaz que a única abreviatura de nome feminino que pode sair dos lábios dele é o da namorada. E talvez o da genitora. Ninguém mais.
— Difícil de conseguir, é? Aposto que os ganhou em troca da publicidade que faz para o shopping. — Ela disse na defensiva.
— A questão não é essa.
— Leve a Gisella então. — falou e até tentou fazer uma ceninha para deixar o suposto ciúme mais verossímil.
— Ah, ela certamente iria adorar. — Cristiano falou incrédulo, e isso deveria ter acertado o coração da garota como uma lança.
Mas não sentiu nada.
O rapaz a olhou por tempo necessário para tomar a decisão. Então pegou a carteira sobre o criado-mudo e saiu do quarto, mas deixou as porcarias dos convites. Tudo bem. poderia queimá-los num ritual de vodu mais tarde. Só quando escutou a porta da sala batendo, foi que o pouco de bom senso que ainda lhe restava ordenou: “vá atrás dele. Já.”
Correu descalça pelo corredor e agradeceu pela primeira (e certamente última vez) o fato do elevador do prédio Rio das Ostras demorar uma eternidade para chegar ao seu andar. Cristiano ainda esperava no hall, e respirou aliviada.
— Cris, por favor, não vá embora. — Ela disse baixo para o caso das paredes terem ouvidos e interessarem-se por brigas de casal. — Eu sinto muito.
— Bem, . Quer saber? Foda-se. Está bastante claro que eu dou muito mais importância ao nosso relacionamento do que você.
A porta do elevador abriu para logo apitar impaciente. abraçou Cristiano, mas os braços do rapaz permaneceram abaixados. Nada de reciprocidade.
— Não, é verdade, Cris. É só que... você sabia, quando começamos a namorar eu disse que ainda estava fragilizada.
Cristiano expirou, irritado.
— , pelo amor de Deus! Já tem três meses que estamos juntos, e quase um ano que esse seu ex sumiu do mapa.
Bem, talvez se Cris soubesse a identidade do ex em questão, não trouxesse convites para filmes estrelados por ele para dar a .
— Dez meses. — Ela o corrigiu.
— Que seja. — Cristiano revirou os olhos. — Todo mundo já levou um fora na vida, e passou da hora de você superar isso. Porque a verdade, é que eu estou bem cansado de ser o cara que está substituindo outro.
exalou forte o ar. No final do corredor, uma porta abriu um tanto suficiente para permitir que alguém espiasse.
— Ei. Você tem razão. — Ela apertou a mão do rapaz. — Eu... quero fazer isso funcionar.
— Quer mesmo?
— Quero. E nada melhor do que um cinema na sexta, e no sábado podemos almoçar com seus pais — abriu um sorriso, mordendo o lábio, receosa antes de propor — mas prometa que vai achar um filme melhor.
Ele sorriu de lado e balançou a cabeça, afundando os dedos nos cabelos ondulados. Bom sinal. teve certeza de que aquilo era um indicativo de que seria perdoada.
— Tudo bem. Te pego às sete?
Ufa.
— Sete e meia — Ela falou categórica — quando é para sair com o meu namorado, eu gosto de me arrumar como mulherzinha.
O sorriso de Cris começou tímido, mas de repente tomou seu rosto: o segundo sorriso mais bonito que a garota já conhecera (nenhum segredo a quem pertencia o pódio). Deus... Seria tão mais fácil se o coração dela aceitasse o que seu cérebro já entendeu há tempos...
Então se permitiria gostar de quem realmente se importava com ela.
No fim, aqueles trinta minutos barganhados não foram necessários e às sete horas já estava pronta. Optou por uma maquiagem leve, mantendo a zona de conforto das cores sóbrias. Colocou saltos, indispensáveis para que não ficasse tão baixinha ao lado de Cris. Então aguardou.
Tempo ocioso naquelas circunstâncias era uma merda.
achou que seria fácil esquecer-se de . Ok. Fácil não era bem a melhor palavra para ser utilizada entre “” e “esquecimento”, mas a garota esperou que o tempo fizesse as coisas mais suportáveis, que tratasse todos da mesma forma sem distinção, já que é ele quem apaga todas as feridas, certo?
Mas parece que o tempo se esqueceu dela... Ou então achasse que pessoas estúpidas responsáveis por términos de relacionamento sem nenhum motivo aparente, devessem elas mesmas resolver os seus problemas.
E por um tempo, ela resolveu. Criou uma tática para fugir daquelas sensações e ocupar sua cabeça de todas as formas possíveis: trabalho, filmes (jamais os românticos), trabalho, músicas (nem pensar em Dark Paradise), trabalho e, até deu uma chance para a academia, o espírito esportivo de Cris colaborou para isso, mas ela desistiu depois de uma contusão na primeira semana.
O segredo era nunca ter tempo livre.
Tal como a meia hora que teria agora.
Droga.
Era como uma maldita viciada em recuperação que não resistia à tentação do primeiro gole, mas o objeto do seu vício era bem sólido, charmoso e, naquele momento, provavelmente estava dividindo o tapete vermelho de algum festival ao lado de Natalie Wolf.
Abriu o notebook. O Google era sua página inicial. Digitou o nome de e a ferramenta de busca criou as indexações:
“ Dark Paradise
e Natalie Wolf
escândalos”
A garota cerrou os lábios para aquelas possibilidades, a segunda principalmente. Era politicamente incorreto alimentar sentimentos por um homem que já estava comprometido e pior, que deixara claro para todo o mundo que ela não passara de um erro. Uma aventura.
Os quinze minutos de fama de finalmente tinham acontecido. Ela só não esperava que fosse ser dessa forma: ser mencionada em rede televisiva como a pedra no caminho de Natalie Wolf. Seu coração apertou. Difícil acreditar que o que ela conhecera fosse capaz de algo assim. Mas seres humanos são mesmo complexas caixinhas de surpresas.
Balançou a cabeça e tentou afastar esses pensamentos. Então digitou o que realmente queria saber, e foda-se o fato da sua consciência estar lhe recriminando naquele exato instante.
“ crítica filme”
Primeira notícia:
“ surpreende com atuação brilhante.”
Ok. não precisava terminar de ler aquilo, tentou a segunda.
“O anti-herói Ryan Bale é interpretado com destreza por no longa de James Taggart.”
E mais outra:
“ , o novo talento da sétima arte”
Tudo bem, já chega.
Não era inveja, nem despeito, mas precisava ser bom em tudo? Era muito egoísmo querer que ele se ferrasse e ganhasse um Framboesa de Ouro? Primeiro a música, e agora o cinema... Um tanto injusto esse monopólio de todos os holofotes.
O som do celular a tirou do transe em boa hora: Cris havia estacionado em local proibido e pediu para que a namorada se apressasse.
Ela mesma abriu a porta do carro. Depois de três meses de namoro o cavalheirismo inicial já havia desaparecido. Cris a recebeu com um selinho. A garota gostava daquelas sensações iniciais: o cheiro cítrico do perfume dele, o contato visual. deu um sorriso mais demorado, o que não era difícil de fazer diante daquela vista.
O namorado usava a camisa xadrez que ela elegera como favorita, a mesma da noite em que se conheceram: uma quinta-feira fria de maio, quando acabou saindo devido à insistência de Josi. E no fim das contas, o passeio contra vontade acabou lhe reservando boas surpresas; Cris era uma excelente forma de distração.
Uma distração que vinha funcionando bem até semana anterior, quando seu breve relacionamento com um astro do rock ressurgiu das cinzas durante o Kyle Salmon Live.
— Uau. Você está lindo. — Ela disse.
— Obrigado, doçura. — Cris respondeu e foi só isso mesmo. Nada da boa educação em devolver o elogio dizendo que ela também estava bonita.
— Acho que dá tempo de pegar alguma sessão às oito. — falou enquanto afivelava o cinto de segurança.
— Ah, sim, mas não vamos ao cinema.
— Não?
— Não. Você disse que não queria ver o filme, então dei os convites para a Gi.
Ah, Gi. Querida, Gi.
— Ok. Mas tem muitos outros filmes em cartaz.
— Achei melhor te levar para jantar. Mais romântico.
— Ora, ora... — Ela sorriu dentro da escuridão do veículo. Cristiano deu a seta e aproveitou uma brecha no trânsito para entrar com o carro na avenida.
— Combinei com o Leo e o Edu no Organic Garden.
Ah...
O restaurante de comida saudável que odiava. Afinal, ela não tinha o sistema digestivo de um passarinho. Como se isso não fosse ruim o bastante, teria como companhia os dois amigos narcisistas de Cris e suas namoradas cuja temática de assunto era restrita a assuntos de academia e camarotes de festas caras. Ótimo. Só não sabia em que parte o conceito de romântico encaixava-se ali.
Pegaram a última vaga no estacionamento. Aparentemente, a geração fitness que troca porções calóricas de batatas-fritas por suco de clorofila e salada de almeirão, crescia a um ritmo alarmante para desespero das redes de fast food.
O lugar estava cheio de mulheres magérrimas e homens que poderiam estrelar campanhas publicitárias de todo tipo de suplemento. O tipo de local no qual Cris se encaixava muito bem e recebia o mesmo olhar dado a quem invade uma festa exclusiva. Sentia-se um pouco intimidada ao lado de Cris. Tudo bem que não era uma intimidação do tipo que músicos famosos causam em garotas comuns, mas ainda assim, não era fácil lidar com fato de quase todas as mulheres ali (com exceção da loira artificial sentada em frente a um aquário com carpas) encararem seu namorado como se ele fosse mais apetitoso do que a comida.
Bem, corrigindo: a loira também não resistiu. E tampouco a comida era apetitosa.
O mesmo olhar que a garçonete lançava para ele naquele exato momento, ignorando a presença de enquanto lhes entregava o cardápio. Cris pediu um suco de três frutas exóticas, sem açúcar, claro, e perguntou para a mulher se ela aceitaria suborno e lhe conseguiria uma latinha de refrigerante. A garçonete não achou graça e de quebra encarou-a como se fosse uma alienígena.
Depois que ficaram sozinhos, Cristiano conferiu o relógio para verificar se os amigos estavam muito atrasados: apenas dez minutos.
— , doçura. Só te lembrando, o nome da namorada do Leo é Fabi, e não Babi.
— Da última vez eu a chamei de Babi tantas vezes assim?
O homem deu de ombros. A garçonete chegou com o suco de Cris e uma garrafa de água com gás, o mais parecido com refrigerante que achou no cardápio.
— E quem é a Fabi, mesmo? A que disse que não quer amamentar os filhos para não estragar o silicone ou a que tem um patrimônio de tênis de corrida avaliado em dez mil reais?
A boca de Cristiano transformou-se numa linha dura.
— Poxa, , você também não faz por onde. Apenas não me faz passar vergonha, pode ser? Se não consegue ter assunto legal com meus amigos, só sorria e seja educada.
— Eu tenho assunto legal. Não tenho culpa se seus amigos não gostam das mesmas coisas que eu.
— Ninguém acha matemática e física assuntos legais.
fingiu que aquilo não a magoou e sorveu metade da água gaseificada de uma só vez. Seus olhos arderam. Encarou os enfeites na parede cuja temática tinha a ver com elementos orientais de feng shui. De repente, Cris ficou todo alegre e acenou em direção à entrada, virou o pescoço e viu os rapazes Leo e Edu chegando acompanhados de Fabi/Babi e Mel, respectivamente.
Todos bronzeados e orgulhosos de seus corpos magros com índices de massa corporal abaixo dos padrões das pessoas comuns. Pareciam programados um para o outro, e não, isso não foi um elogio. olhou para baixo encarando o diâmetro das próprias coxas antes de lançar um olhar rápido para Cris, que agora cumprimentava os amigos com empolgação.
Nos momentos seguintes, a professora tentou participar da conversa. Sorrisos e acenos positivos de cabeça para assuntos relacionados a novas sequências de supino, maratonas de triatletismo em locais remotos do planeta e gojiberrys milagrosos para saúde. Nada que pudesse opinar. Cris estava realmente à vontade com aquelas pessoas. Claro, ele pertencia àquele mundo. O sorriso com elas era fácil e intenso de um jeito que a professora nunca tinha visto. Talvez o mais sensato fosse perguntar para Leo e Edu onde se fabricava garotas como Fabi e Mel para que Cris não parecesse tão deslocado ao lado de alguém que claramente não se ajustava ali.
Mel folheou o cardápio com manchas de molho de soja (provavelmente orgânico e com baixo teor de sódio) apenas para decidir qual das dezenas de opções de salada iria ser, enquanto ficou pensando se o atendimento da pizzaria do outro lado da rua seria rápido o suficiente para justificar uma ida de mentirinha ao banheiro. Ela pegou no ar trechos das conversas:
— Sabe, tem essa nova academia perto de casa, é a maior que já vi.
— Montei uma playlist bacana para corrida, vou te passar.
— Viram a última postagem da Pugliesi? Ela descobriu um professor de Power yoga incrível.
— . Está tudo bem?
Quando Cris repetiu novamente, foi que a garota saiu do transe:
— Hum?
— Tá distraída, doçura.
— Não, eu... estava prestando atenção. — Ela balançou a cabeça energeticamente e encenou um sorriso. — Ah, e eu vi. Achei muito legal, o novo professor de yoga da Puglieri.
Mel, a garota cujo tônus muscular era igual ao de um ermitão mestre em artes marciais milenares, encarou com uma leve aversão. Ela e Fabi entreolharam-se, como se a reação da professora apenas confirmasse horas de conversa que as duas tiveram pelas suas costas sobre ser um caso perdido. Edu e Leo fitaram Cris com um ar de lamentação pelo amigo. E por um instante, até teve pena do namorado. A quem queria enganar? O prognóstico daquele relacionamento era o pior possível.
— É Pugliesi. — Os lábios de Cristiano enrugaram-se de um jeito feio para dizer o sobrenome da mulher. — Não me passe vergonha, .
Todos na mesa feita de madeira rústica (provavelmente de reflorestamento e que deve ter caído por causas naturais em alguma fazenda sustentável), trocaram olhares e riram maldosamente. contou até dez. Quando se virou para seu adorável namorado, estava calma:
— Desculpe. Vou voltar a ficar de boca fechada até o fim da noite e fingir ser a namoradinha perfeita que adora os assuntos dos seus amigos. — Ela correu o polegar e o indicador pelos lábios imitando o fechamento de um zíper.
Todos disfarçaram olhando para os próprios cardápios. A tensão na mesa só foi atenuada quando a garçonete reapareceu.
— Já querem fazer os pedidos?
— Ahn... Sim. Para nós, a salada 31, mas se puder retirar o queijo de búfala, por favor. Lactose não está me fazendo bem. — Edu disse e deu uma olhada geral para ver se todos concordavam fazendo uma careta enquanto massageava o próprio estômago. —E traga também o salmão preparo himalaico acompanhado do mix de lentilha com quinoa.
— Pode ser igual para nós dois. — Leo e Fabi acenaram juntos, como casais aparentemente felizes fazem. Céus, eles eram irritantes.
Depois os quatro ficaram olhando para , provavelmente esperando a próxima blasfêmia à geração detox que iria sair dali.
Mas ela não iria dar esse gostinho para eles. Abaixou o cardápio, e virou-se para o namorado com um sorriso artificial:
— O que você quiser, Cris.
Os olhares inquisidores pararam e logo os cinco adeptos de esportes ao ar livre já estavam conversando sobre um novo modelo de tênis que prometia equiparar o desempenho de corrida ao de uma chita. Ou algo mais ou menos assim. E o jantar transcorreu tão leve quanto às calorias ali servidas.
Sem maiores emoções.
Quando voltaram para casa, ficou um bom tempo em silêncio dentro do veículo, pensando em várias coisas.
Pensou que se tivesse dado ouvidos ao coração ao invés da razão, talvez não tivesse deixado que o medo e a insegurança a afastassem de . Talvez na noite em que ligou várias vezes, se tivesse atendido a uma, apenas uma ligação...
Poderia ser ele, e não um homem que a garota não amava, apesar dos esforços, ali com ela naquele momento.
E antes de sair do carro, enquanto ela e Cris conversaram mais algumas coisinhas triviais e trocaram um insípido beijo de despedida, os anjinhos controladores do destino trataram de aprontar mais uma vez, e “Black Hole”, a música que fez para , começou a tocar na rádio.
Comparava o amor de um rapaz por uma garota à força de um buraco negro. Mencionava coisas de física quântica que ela falara para o vocalista só uma vez, mas que foi o suficiente para que ele gravasse. As mesmas coisas que eram consideradas “assunto chato” para Cris e seus coleguinhas prepotentes.
Daquela vez, não convidou Cris para subir. (Ele também não a havia convidado para o vôlei de praia que combinara com seus amigos mesmo). Possivelmente porque já soubesse que a resposta dele seria não.
Já sozinha em seu apartamento, procurou pelo telefone da pizzaria mais próxima da sua casa.
Pediu a mais calórica do cardápio.
Capítulo 23
poderia andar de olhos vendados pelos corredores da Atlantic Records. Afinal, era ali que a Dark Paradise gravava desde os sucessos que se tornariam verdadeiros clássicos daqui alguns anos, como músicas que inevitavelmente figurariam no “lado B” dos seus discos.
Adorava o lugar. Mas sabia que aquela visita em particular, não seria nada agradável.
O frio no ambiente causado pelo excesso de climatizadores mantinha o cheiro enjoativo e característico: uma mistura de pastilhas mentoladas e nicotina — alguns músicos tendiam a fazer vista grossa para as proibições de “não fume” espalhadas pelos corredores. passou pela recepção e ignorou os olhares assustados das secretárias. Em outras ocasiões, elas o teriam recebido com gracejos afetados. Quando Rebecca, a mais jovem das três, fez um sinal de que pegaria o telefone, parou e a encarou através dos Ray-Bans escuros.
— Não precisa avisar que estou aqui. — O homem falou calmo, mas intimidador. — Quero fazer uma surpresa. — Deu um sorriso brilhante e a garota soltou o telefone. O voltou para o gancho meio que em câmera lenta, como se fosse uma bomba prestes a explodir.
então passou pelo primeiro estúdio, onde uma cantora country fazia uma força sobre-humana para executar uma única nota. O vidro antirruído não permitia ao rapaz escutá-la, mas pela cara do agente, ela não devia estar se saindo muito bem. Os próximos quatro estúdios estavam vazios, sobrava apenas o maior deles: o que a Dark Paradise usava para suas gravações.
Não esmurrou a porta de metal (apesar de ter desejado muito fazê-lo). Respirou fundo e apertou o sinal luminoso que substituía uma campainha - essencial para que o local cumprisse a finalidade de não incomodar os músicos enquanto gravavam.
Irônico.
Pois estava prestes a se tornar um incômodo.
Dominic Wilde quem abriu. A cara de descontentamento foi substituída por um ar embasbacado quando ficou cara a cara com o intruso.
— E aí, Dom. Beleza?
— Ah. . Merda.
Dominc tentou fechar a porta em reflexo. foi rápido o suficiente para impedir. Os dois homens faziam páreo no quesito força física. Coloque-os em uma arena e provavelmente haverá um empate. Entretanto, ira costuma ser um ótimo combustível e essa fervilhava nas veias de . A porta chocou-se contra o rosto de Wilde quando forçou a entrada.
E tínhamos nosso vencedor.
Toda agitação atraiu a curiosidade das outras pessoas ali dentro. Jeremy Hunter, o candidato em análise que tentava impressionar com seus agudos altíssimos, parou de cantar e ficou encarando todo sem graça o visitante inesperado.
Mas foi Elijah Nash quem correu os dedos pelos cabelos loiros e bufou antes de dizer:
— . Como você...
— Como descobri que estavam tramando me substituir pelo merdinha ali? É essa frase que está procurando, Nash? — disse e fechou os dedos até que as juntas ficassem brancas.
Jeremy, o “merdinha” em questão, até pensou em se defender, depois achou melhor deixá-los resolverem entre si. Nem tinha entrado para a banda e já podia atestar ser verdadeiro tudo que ouvira sobre a Dark Paradise e confusões. Quanto à desunião, concluiu semanas antes, quando Nash o convidou para fazer um teste para substituir e se tornar o novo vocal da banda. (O que pelo visto, não foi de conhecimento do maior interessado). Perfeito. Se não estivesse no quinto andar, talvez Jerry Hunter cogitasse fazer uma saída emergencial pela janela.
Elijah sorriu dissimulado e arrogante. Cinismo deveria ser seu sobrenome. Depois de um curto silêncio, o guitarrista falou:
— Ok. Foda-se. Parece que temos um X9 aqui, mas não me interessa. Afinal, senhor astro de cinema, você não deveria mesmo estar surpreso.
o encarou, realmente admirado.
— É apenas um teste, . — Dominic disse, o polegar massageando a maçã do rosto atingida pela porta. Bem provável que um hematoma surgisse no local. — Não iríamos trocá-lo de imediato.
— Dom. Cala a boca. — Elijah não se deu o trabalho de olhar a reação do baterista, continuou encarando . — Certo, . Vamos esclarecer as coisas. — Suspirou. — Porque você chegando aqui todo nervosinho e botando banca realmente parece se sentir como a pobre vítima de uma grande injustiça cometida por nós, seus lacaios ingratos. Então vamos lá, diga o que precisa dizer e vamos todos lavar a roupa suja aqui.
levantou bem as sobrancelhas, suas íris queimando em ira.
— Que merda está dizendo, Nash? Lacaios? Desde quando considero vocês menos? Quando, em mais de nove anos de banda, foi que isso aconteceu? Me diga só uma vez. O que estou vendo aqui são os caras que sempre considerei meus amigos, meus irmãos, armando um complô para me tirar a coisa mais importante da minha vida sem que eu faça a mínima ideia do porquê!
Tommy ponderou intervir, mas não teve tempo. Elijah prontificou-se todo altivo para o lado do vocalista, ao que parece, adorando bancar o alfa da banda. Isso é o que acontece quando se é o crânio por trás das maiores composições: o guitarrista excêntrico de vinte e cinco anos tinha poder e sabia disso. Mas não se intimidou, mesmo quando Elijah ficou bem próximo, a vermelhidão dos seus olhos tornando-se visível. Noite mal dormida ou substâncias ilegais?
Bem, talvez, noite mal dormida e substâncias ilegais.
— Rá. Rá. Ora, ora. Então de repente a banda voltou a ser a coisa mais importante da sua vida? Faça as contas, raio de sol. Tem quase um ano que você não dá a mínima para a Dark Paradise! Há meses não nos reunimos para ensaios, porque você sempre tem uma desculpa envolvendo vossa ilustre aparição em programas de TV imbecis! Ah, e não se esqueça: por sua culpa cancelamos a turnê de Still of the Night! E agora está surpreso? Oh! — Elijah fez uma cara insolente e colocou as mãos sobre o rosto arregalando os olhos, todo teatral. — Pois, adivinhe! Você não tem a porra de razão alguma!
E até aquele momento, por mais que estivesse se controlando para não acertar o nariz daquele maldito cretino prepotente chamado Elijah Nash, de repente o vocalista ficou todo sem graça, porque no fundo sabia que o colega meio que tinha razão.
— Você faz parecer que tudo esta uma grande droga para a banda quando a verdade é que as coisas não estão assim tão ruins, Nash. Fomos até indicados para o Grammy! E passei por problemas sérios, por conta da bebida e das consequências dela. Eu precisava de um tempo e vocês sabiam disso.
Elijah nem precisou pensar muito para rebater o colega. Tommy e Dominic? Tommy e Dominic passavam bem e continuaram de boca fechada, obrigado.
— Ah, sim, o tal tempo. É verdade. Engraçado que isso não impediu você de brincar de Jared Leto e ser estrela num filme idiota, não é mesmo? — O guitarrista falou. — Bem. Claro, o filme estúpido encheu e continua enchendo seu bolso, mas o nosso não.
Uma voz comedida aproveitou-se de um pequeno intervalo durante a discussão para se expressar: Jeremy Hunter.
— Er... acho que vou embora... deixar vocês conversarem.
o encarou, o músculo da testa contraído num arco nervoso:
— E você não foi ainda?
Nash tratou de cortar a interação:
— Nossa agente entrará em contato, Jerry.
— Ok. Foi um prazer conhecê-los. Todos vocês. — Jeremy falou um tanto quanto constrangido. — Hum... Você também , você... bem, meio que é um ídolo para mim.
riu sem acreditar na ousadia do rapaz.
— Um grande fã de merda você é, não? Vai se ferrar.
Tommy fez uma menção silenciosa para Jeremy deixar aquilo para lá e o acompanhou até a porta. encarou o melhor amigo com desgosto antes de voltar-se a inquirir Elijah.
Aquela conversa estava longe de ter um fim.
— Espera... É impressão minha ou você disse nossa agente? — quase engasgou quando fez aquela conexão.
Ninguém disse nada e entendeu aquilo como um sim.
— Meu Deus. Querem ferrar com o Robert também?
Elijah sorriu com escárnio, as mãos levantadas em um sinal de “pare”:
— Ei. Primeiro: quem quis ferrar tudo foi você, coleguinha. Isso aqui é uma selva. Vence o mais forte. E neste instante, você é peso morto na banda. Claro que o baba-ovo do Robert não vai querer que ninguém mexa com o filhinho predileto dele. Então sim, ele também está fora. Dois coelhos com uma caixa d’água só.
Todos se entreolharam.
— É cajadada. —Dominic disse.
Elijah parou de sorrir e franziu o cenho para o baterista:
— Quê?
— Você disse: “dois coelhos com uma caixa d’água só”. O certo é dois coelhos com uma cajadada...
— Tá, tá. Tanto faz. — Nash falou revirando os olhos e dando de ombros. — A questão é que você tá fora, .
O vocalista colocou o dedo na cara de Elijah.
— Então de uma hora para outra você se tornou exemplo dentro da banda e quer liderar, hum? Quando o Dominic ficou internado por quatro meses na reabilitação nem eu, nem o Robert, nem ninguém cogitou trocá-lo. E agora... O que há com vocês? Somos uma família. Deveríamos ser a porra de uma família! Dom, Tommy, vocês estão mesmo concordando com isso? Primeiro um silêncio. Então Tommy aproximou-se de .
— Ei, . Fica tranquilo. O Elijah está exaltado. Nenhuma decisão foi tomada.
o olhou com desgosto. Ser traído por Elijah e Dominic não era nada. Ele superaria. Agora seja traído pelo melhor amigo e a decepção terá um gosto totalmente diferente. Aquela merda toda era grande demais para que o rapaz simplesmente deixasse pra lá.
— Ficar tranquilo. Ficar tranquilo enquanto vocês estão me fodendo. — riu furioso.
Tommy deu um tapinha no ombro do colega, a voz baixa:
— Vá para casa. E esfrie a cabeça.
O vocalista deu um passo para trás, livrando-se do toque.
— Tira a mão de mim, Tommy. Você, mais do que ninguém, deveria se envergonhar disso. — Apontou para cada um deles antes de dar as costas e sair pela porta. — Pro inferno. Pro inferno todos vocês.
***
A TV da sala continuava ligada nos créditos finais de um show do Black Sabbath há uns bons minutos. Mas nem notou que o DVD havia terminado, estava mais preocupado com o copo de bebida na mão quando a porta da sala se abriu, a voz de Ingrid surgindo em seguida:
— Olá, encrenca.
O músico correu o olhar - da mulher para a garrafa de uísque na mesinha de centro da sala - pensou em se explicar, então se deu conta de que isso realmente não era necessário. E disse um tanto ríspido, afinal, a melhor defesa de um alcoólatra era sempre o ataque:
— Mas o quê... Como você entrou aqui, Ingrid?
Percebeu que não estava muito sóbrio quando tentou se levantar. Muitos meses sem por nenhuma gota de álcool na boca não o deixariam tão resistente de uma hora para outra. Ao que Ingrid o encarou com pena antes de jogar a bolsa no sofá e ir até o chão onde o homem estava caído.
— Levanta daí. Vem. — Ela sentiu a lufada de álcool que rescendia do hálito do amigo quando colocou os braços ao redor do tronco dele. — Deus. Você é bem pesado.
— Mamãe, o tio está bebádo? — Matthew surgiu por trás da mãe, os olhinhos assustados. A ruiva deu uma olhada rápida para o filho, depois para o sofá em que depositou o homem pesado como um filhote de urso e fez um ruído de alívio quando esticou as costas:
— É bêbado, querido. Mas essa é uma palavra que não precisa aprender agora. Nem nunca. E a Eva não deixou a TV do quarto ligada? Por que não vai lá assistir aos seus desenhos? Mamãe precisa conversar sério com o tio .
Matt inclinou o rosto e dirigiu para o músico um daqueles olhares infantis curiosos que não cessam.
— Ele fez coisa errada e você vai colocá-lo de castigo?
— Sim, vou. Agora vá assistir aos desenhos.
Depois que Matt correu para o quarto, Ingrid levantou a garrafa vazia de Jack Daniel’s e a sacudiu no ar. O olhar de acompanhou o movimento com dificuldade.
— Bem, parece que os meses de sobriedade foram interrompidos.
O homem reclinou o pescoço na beirada do sofá. Correu a mão pelo rosto e suspirou.
— Ingrid, por favor, sem lição de moral. E obrigado por trazer o Matt aqui. Vai ser uma lembrança e tanto para ele.
Ela sentou-se ao lado de , o cheiro de álcool rescendendo forte ao redor. Se riscasse um fósforo, era perigoso causar um incêndio.
— Não imaginei que você estaria assim. — A mulher deu um aceno sútil para o vocalista. — E eu jamais vou te dar lição de moral. Sei que os últimos meses foram barra para você. — Eu agradeço.
— Mas que tal tomar um banho quente e depois comer alguma coisa, sim? Vai lhe fazer bem.
Poderia levantar-se e fazer isso. Não era tão difícil. Afinal, no passado e em situações bem piores, já havia feito coisas que exigiam muito mais controle motor do que alguns passos até o banheiro.
— Tudo bem. Mas já que quer conversar sério. Acho que também vou precisar de um café.
Ela sorriu.
— Tá. Eu faço o café. E faço um bem forte.
*
Ingrid abriu uma série de armários procurando por xícaras. Ela já tinha achado achocolatado na despensa e preparado um copo para Matthew enquanto a água do café esquentava: prioridades maternas. reapareceu pouco tempo depois, passando os dedos pelos cabelos molhados, o que costumava ser o suficiente para dispensar o uso da escova. Ele cheirava a sabonete. Definitivamente, muito melhor do que o cheiro anterior. E se a água também fosse capaz de limpar a consciência, talvez vivesse submergido em uma banheira.
— Ei, antes que eu me esqueça, obrigado por me avisar, sardenta. — puxou uma das cadeiras da bancada da cozinha e se sentou. — Cheguei a tempo de pegar o tal Jeremy no flagra.
Ingrid serviu-lhe o café numa xícara de chá mesmo. Não achou nenhuma menor. Então levantou o rosto quando teve certeza de que não deixaria o líquido transbordar e deu um sorriso cúmplice para .
— De nada. Mas da próxima vez, tente não optar pelo caminho da autodestruição.
sorriu sem direito a dentes. Estava chateado.
— Ainda não acredito que os rapazes fizeram isso comigo. O Elijah e o Dominic, tudo bem. Dá para esperar qualquer coisa deles. Mas o Tommy, Ingrid? — torceu os lábios e seus olhos ficaram perdidos em algum ponto da superfície cremosa do café antes de levantá-los para a mulher. — Ele era meu melhor amigo.
— Ele ainda é, . — Ingrid o corrigiu com ternura. Aprendera que a psicologia infantil usada com Matt também funcionava com astros do rock magoados. Garotos seriam sempre garotos, no fim das contas.
— Não, não é. Ele é um cretino traidor. — fez uma pausa rápida para outro gole de café. A pressa em sorver a bebida queimou-lhe a língua. — Desculpe, é seu marido. Mas ainda assim, ele é um grande filho da mãe.
A mulher revirou os olhos e bateu as mãos na bancada fazendo com que as xícaras oscilassem sob os pratinhos de porcelana.
— Por Deus, . Quem acha que me pediu para avisá-lo sobre o teste do Jeremy?
levantou as sobrancelhas, surpreso. Pensou em argumentar, mas acabou ficando calado.
Sentiu-se bobo.
— De qualquer forma, isso foi bom para você acordar, não é? — Ingrid tomou o primeiro gole da bebida analisando se tinha ficado bom.
— Eu estou bem acordado, Ingrid.
— Usar o álcool para escapar das frustrações não é estar acordado, .
O músico apertou a mão contra o rosto, era bem claro que o assunto “bebida” lhe deixava pouco a vontade.
— Sim, recai hoje, mas eu estive sóbrio pelos últimos dez meses.
— Claro, e acho que de todas as coisas que você fez no último ano, a abstinência realmente é a única boa delas.
— Não é verdade. Este ano foi muito produtivo para mim.
Ingrid engoliu meia bolacha, bem devagar.
— É? Em que sentido?
surpreendeu-se por nada lhe vir à mente nos primeiros segundos, mas não deixou que isso transparecesse. Lá fora, o barulho de um cortador de grama finalmente parou. Pareceu proposital.
— Em todos, ora... para começar, profissionalmente. Fiz um filme.
— Seu filme pode até contar, mesmo tendo sido feito claramente com intenções de abafar o escândalo. Mas o que mais, ? O que fez por você? A música, por exemplo, algo que você ama, há quanto tempo está longe dela?
A ruiva limpou o farelo que caiu sobre a blusa preta enquanto ele formulava a resposta.
— É só um bloqueio criativo, não abandonei a música. — Ele piscou devagar. — Mas uma coisa boa que aconteceu este ano... ah, estou firme ao lado de Natalie desde que ela me perdoou e...
Ingrid nem fez cerimônia para dizer.
— E não é feliz.
Oh. Era tão claro assim?
— Isso não é verdade.
— É sim. Pode confessar, não tem jornalistas aqui.
— Felicidade... — O olhar de perdeu-se no da amiga depois de oferecer-lhe um sorriso lúgubre. — E quem realmente é feliz nesta merda de mundo?
A moça o encarou, admirada. Um pedacinho de farelo ainda estava no canto da sua boca quando disse:
— Nossa. A Natalie realmente conseguiu, não?
— Conseguiu o quê?
— Acabar com você. As coisas que diz ter feito para si próprio, na verdade foram feitas para ela. Aquele incidente foi um trunfo para a Wolf, pois assim todos a vêm como uma santa que lhe ofereceu redenção. Boazinha, não? O que você não percebe, é que ela está tendo controle total da sua vida.
De repente, até se esqueceu do café.
— Puxa, Ingrid. — Ele demorou um bocado pensando em que palavras usar. Não queria que soasse misógino. — Estou surpreso... Achei que, por ser mulher, você jamais falaria uma coisa dessas.
— Sim, você errou. E feio. Mas deixo os julgamentos para seus inquisidores, que não são poucos. E como sua amiga, estou do seu lado para lembrá-lo das suas qualidades, para não deixar esse erro definir quem você é nem o que você fará da sua vida daqui para frente. Pode ser meio pavio curto, metidinho e inconsequente às vezes. Mas também é doce, tem um coração de ouro e é um dos melhores seres humanos que eu já conheci. Não foi à toa que me apaixonei por você antes do Tommy.
A última frase saiu bem natural. Nunca foi mesmo um grande segredo. E naquele momento, funcionava mais como um afago ao ego ferido do vocalista do que uma cantada. estava acostumado a elogios, mas seu sorriso foi tímido.
— Queria que todas as pessoas me vissem através dos seus olhos, sardenta.
Ingrid sorriu.
— O que estou dizendo, é que você precisa se perdoar e voltar a ser quem você é. Sua dívida com a Natalie já está paga.
gostaria que isso fosse verdade, mas não tinha um dia em que não se sentisse em débito com a atriz. Ficar com Natalie Wolf era parte de sua penitência. Uma que provavelmente duraria para o resto da vida.
— Agradeço sua preocupação, Ingrid, mas você está um pouco enganada. Não estou com a Natalie por causa do que aconteceu. Ela também tem seu lado bom, e eu estou bem.
— Então você a ama?
Perguntinha ordinária.
— Ela é uma boa companheira.
— Ótima forma de fugir da resposta.
— Ei, mamãe. — Matthew apareceu com um bigodinho de achocolatado no rosto.
— Eu não estou fugindo da resposta. Eu... amo ela sim. — respondeu e voltou a tomar o café na expectativa de que a mulher deixasse aquilo para lá.
— Ei, mamãe. — Matthew falou novamente depois que foi ignorado pelos adultos.
— Um minuto, Matt. — Os olhos azuis de Ingrid foram do filho para o amigo. — Tudo bem, , se você diz, mas saiba que não seria certo com nenhum de vocês levar isso adiante por pena, peso na consciência ou conveniência. Só pense nisso.
— Vou pensar.
Ele não ia.
— Eu já vou embora. — Ingrid lhe disse. — Promete que vai ficar bem?
— Prometo. — tentou falar aquilo da forma mais séria possível, depois acenou para Matthew. — Ei, Matt. Vamos jogar PS depois, ok? — Mas o garotinho não respondeu. — Matt?
Ingrid agachou e ficou quase da altura do filho.
— Matt, querido, você está chorando?
Lágrimas caíram quase que em sincronia dos olhos do garoto, ele encarou o vocalista.
— Tio ... acho que estraguei seu celular.
— Ah, Matt! — Ingrid lançou-lhe um olhar de bronca. — Mas o que... eu não disse que era para você ficar quietinho vendo TV!?
O garoto fez um biquinho involuntário para o chão, as mãos para trás escondendo o aparelho.
— Deixe eu ver o que você fez, filho. — Disse já lhe tomando o celular. — Ai. Ufa. Não quebrou, só está travado.
O celular não era preocupação para até ele notar o olhar de surpresa que Ingrid deu para o visor.
Inferno.
— Pode deixar, Ingrid.
— Ei, quem é essa? — Ela falou com uma arqueada de sobrancelhas sugestiva. Os olhos ainda fixos no aparelho.
— Ingrid. Me dá isso aqui.
O músico tentou tomar-lhe o celular, mas ela se esquivou.
— Ah! Eu me lembro! O nome dela é , não? Ela era uma garota tão legal... Então vocês ainda têm contato?
— Não.
— Hum...
— Que foi?
— Ama a Natalie, né? Tá bom.
— Eu só fiquei curioso para saber o que ela estava fazendo. Vai dizer que nunca bisbilhotou fotos de ex?
— Tá. Tudo bem. — Era mais fácil devolver o celular do que admitir que olhava perfis de namoricos na internet. — Mas não é certo você dar esperanças à garota e ficar curtindo as fotos dela, já que só estava “curioso”. — Ingrid deu uma entonação toda especial quando disse a última palavra.
perdeu a cor.
— Curtindo as fotos?
— Oh. — Ela arregalou os olhos. — Não foi você quem curtiu?
— Me diz que não está falando sério, Ingrid. — disse e parecia realmente desesperado. O sangue voltou em uma quantidade absurda para o rosto e agora ele estava bem vermelho.
— Ah, não. Matthew Morello! — A forma como Ingrid gritou o nome do filho acionou um alerta na cabecinha do garoto e ele correu de volta para o quarto. Os dois adultos entreolharam-se. Foi quem falou primeiro:
— Merda... Mas que grande merda.
— Pois é...
— Tem como “descurtir”?
— Hum... Acho... que tem, mas... bem... ela fica sabendo que você curtiu do mesmo jeito. Eu acho.
suspirou, mas foi só para puxar mais fôlego e dizer:
— DROGA!
— Puxa... o Matt te colocou em uma saia justa. Sinto muito.
arrependeu-se de pronto de ficar bravo daquele jeito quando viu a cara sem graça da melhor amiga.
— Quer saber? — Ele deu outro suspiro, um mais longo. — Isso também não pode ser o fim do mundo.
— É, não pode. Mas não deixe a Natalie ficar sabendo. E um conselho? Não tenha filhos. Ou tenha, mas deixe o celular longe deles. Sempre.
— Vou me lembrar disso.
Ele estava ficando mais calmo. Ingrid aproveitou o momento para dizer algo que lhe veio à cabeça antes do pequeno incidente:
— Nunca entendi porque você a deixou, . Vocês realmente pareciam feitos um para o outro.
Caramba. Por que as pessoas sempre supunham que era ele o destruidor de corações?
— Não fui eu, Ingrid. Foi ela, está bem? A quem não quis. E agora a garota vai ver que eu curti a foto em que ela está ao lado de um cara que provavelmente é o namorado. Vai achar que estou despeitado.
— Não vai não. — Ingrid gritou o nome de Matthew com energia o suficiente para fazer o garoto obedecer de primeira e se prontificar ao lado dela na sala. Depois se virou para :
— Me dá um abraço... esquece isso, é um mero aborrecimento, uma coisinha boba. E quanto à banda, não se preocupe. Os meninos não vão trocar você.
— Assim espero.
— Sabe quando dizem que ninguém é insubstituível?
deu-lhe um olhar para que prosseguisse.
— Essa regra não vale para o vocalista foda da Dark Paradise.
Ele sorriu. Daquela vez, um sorriso de verdade.
Matt correu para a entrada da casa entretendo-se com pedrinhas do jardim frontal. acompanhou Ingrid até a porta, beijou-lhe o rosto. E torceu para que ela não viesse a interpretar erroneamente o que disse em seguida:
— Obrigado por tudo, sardenta. Sabe? Às vezes me arrependo de ter deixado você escapar quando éramos adolescentes.
A ruiva riu de um jeito divertido. Ela não entenderia errado, estavam velhos demais para isso. Ligou o carro, o barulho do motor competindo com o dos cortadores de grama. Matt ainda sem graça, exibiu apenas metade do rosto por cima do banco traseiro, mas abriu um sorriso quando o vocalista lhe ofereceu uma piscadela. Trocaram acenos até desaparecerem do campo de visão um do outro, e voltou para dentro a procura de aspirinas.
***
[Josi]: Como assim ele curtiu sua foto?!?!?
[]: Pois é. Como assim!? E não foi uma foto qualquer, é a que estou com o Cris. =/
[Josi]: Nããão!!!!
[]: Siiiim!!!!
[Josi]: Será que ele mesmo quem administra o perfil? Famosos devem ter assistentes pessoais para esse tipo de coisa.
[]: Então o assistente pessoal do está muito bem informado e deseja ser despedido.
[Josi]: Verdade. Claro que foi ele. Será que foi uma indireta? Ele curtir justo esta foto, eu quero dizer.
[]: Não sei, mas o que vc acha que eu devo fazer?
[Josi]: Vc poderia curtir de volta, mas provavelmente uma curtida dentro de mais de milhares que cada foto dele já tem, passaria despercebido.
[]: Com certeza. =/
[]: E então?
[Josi]: Eu não deveria estar incentivando isso...
[]: Não, não deveria.
[Josi]: Mas vc ainda tem o número dele?
[]: Tenho.
[Josi]: Então mande algo do tipo:
Josi está digitando...
[Josi]: “Olá, . Como vão as coisas? Tudo bem? Como pode ver hoje mais cedo quando stalkeou meu Instagram, eu estou ÓTIMA! Namorando e muuuuuito feliz. Ah, vi seu filme! Parabéns, ótima atuação, já não posso dizer o mesmo da sua namorada. ”
[]: Eu não vi o filme. E isso ficou meio despeitado, não?
[Josi]: Ou então só um oi. =P
[]: Ou então deixar tudo da forma que está.
[Josi]: É. Também.
[]: É.
[Josi]: Vou dormir. Me avise depois se teve coragem.
[]: Ok. Boa noite. :*
[Josi]: Boa noite. :*
Josi está offline.
*
[]: Olá . Quanto tempo! Sei que passou por muita coisa desde a última vez que nos falamos, mas que bom que deu a volta por cima! Fico feliz que as coisas tenham se acertado entre você e a natureza. Abraços!
Que porcaria este corretor ortográfico.
[]: Fiquei feliz que as coisas tenham ficado bem entre você e a *Natalie, quero dizer.
A garota deitou-se e esperou que conseguisse dormir antes que a ansiedade a matasse. Quanto tempo ele demoraria a responder?
Aliás...
Será que ele responderia?
Então ouvir o assobio do celular alguns minutos depois foi tão emocionante quanto escutar à 5ª sinfonia de Beethoven executada pela Orquestra Filarmônica de Berlim. E de novo. E mais uma vez. O aparelho tinha disparado. Era uma sequência de várias mensagens.
[]: ?!?!
[]: Caramba!!!
[]: Quanto tempo!!!
[]: Sim, as coisas vão bem com a Natalie, e também não tenho problemas com a natureza, reciclo meu lixo e coisas do tipo. lol
[]: Puxa! Estou falando bobeira, mas é que realmente fiquei muito feliz em receber uma mensagem sua.
[]: Mas e vc? Como vão as coisas???
Ela leu tudo duas vezes antes de responder.
[]: Ah! Estou ótima! Vou tentar um Doutorado no fim do ano e, encontrei alguém! Mas isso não é segredo, né? Vc viu mais cedo no meu Instagram. hehe.
Arrependeu do que escreveu tão logo apertou enviar. Ah, despeito... não precisava disso.
[]: Doutorado?! Uau! Espero que dê tudo certo!
[]: Ah, vi sim!
[]: Fico feliz por você =)
Ela pareceu decepcionada com a resposta.
O que não saberia nunca, era que estava longe de estar feliz. E a cara que ele fez naquele momento, não combinava nenhum pouco com o emoticon usado na conversa de WhatsApp.
[]: Obrigada. =)
[]: De verdade.
[]: =)
[]: Eu realmente queria que achasse alguém certo.
[]: Ok, eu entendi. E acredito.
Uns bons minutos se passaram e por um instante ela teve medo de que tivesse se cansado.
Por isso, seu coração disparou de um jeito louco quando o celular apitou de novo. Maldição. não deveria causar essas sensações nela, não depois de tanto tempo.
[]: Você está sozinha?
[]: Sim.
está digitando...
[]: Posso te ligar?
Ela pensou, pensou e, pensou. Concluiu que aquilo era errado, mas a culpa não parecia superar seu desejo de falar com ele. Apertou o botão de enviar antes que sua consciência a fizesse desistir.
[]: Pode
E dane-se.
O celular tocou menos de um minuto depois. Ficou olhando o nome escrito no visor e sorrindo como boba antes de pigarrear e dizer:
— Olá, .
— Ei, oi. — Ouvir a voz dele depois de tanto tempo... foi como se todos os meses pudessem ser condensados em horas, o último beijo trocado acontecido no dia anterior. — Nossa... estou mesmo falando com você.
— Não é? Fazia um bom tempo. — O barulho da risada de ecoou solitário no quarto escuro.
— Achei que nunca mais ouviria sua voz. — disse e, mentalmente, agradeceu ao garoto Matt por isso.
— É. Não seria justo só eu continuar a escutar a sua. — sentiu as bochechas queimarem, ainda bem que não tinha ninguém ali para ver. — Nas suas músicas, eu quero dizer.
— Achei que não iria mais querer escutar minhas músicas.
— Na verdade... não escuto. — Ela consertou. — Mas, você sabe, o Otávio é viciado na sua banda. E também não costuma ouvir num volume baixo... então... sou meio que obrigada a escutar quando vou à Vassouras.
— Não levarei para o lado pessoal, já que rock nunca foi seu estilo favorito. — Mas quando falou, parecia um pouquinho chateado.
— Rá-rá. Sim, vamos fingir que é por isso.
O homem demorou alguns instantes do outro lado da linha processando aquela informação. Foi o tempo necessário para que se arrependesse de algo que lhe custaria maiores explicações.
— Hum. Se não é por isso, por que é então? — Ele perguntou. Claro que perguntaria.
Ela se remexeu no colchão irrequieta, sentou-se sobre as pernas cruzadas e apertou o travesseiro contra o peito.
— Por que você acha, ?
— Não faço ideia.
suspirou, então disse de uma só vez:
— Porque sou uma idiota e penso em você mais do que gostaria.
O telefone ficou mudo. Ela chegou a pensar que tivesse desligado, até que:
— E... com que frequência pensa em mim?
— Eu... eu penso em você o tempo todo, .
A distância boca-coração da garota era mais curta do que a que levava ao cérebro. Sem emitir som algum, ela balbuciou a palavra “merda” uma sequência de vezes.
Então esperou que ele quebrasse o silêncio.
— Puxa... — disse admirado e de um jeito feliz. Durante a pausa que se seguiu, praticamente pode imaginar o tamanho do sorriso que se formou no rosto dele. — Eu... não esperava por isso.
— Que estupidez. Esquece o que eu disse. Por favor.
Ela escutou a risada debochada do outro lado da linha preceder a resposta:
— Esquecer? Bem difícil, já que também penso em você.
parou de contrair o travesseiro contra o peito e descruzou as pernas.
— Pensa?
— Penso. Mas agora que você me disse isso, algo não faz sentido. Por que não quis vir comigo? Por que não atendeu mais minhas ligações? Por que pediu um tempo? Você simplesmente desistiu de nós dois... e agora fala que ainda pensa em mim?
— Porque... bem, achei que não teríamos dado certo.
riu de um jeito curto e nervoso.
— Você achou? Rá. O seu “achismo” custou nossa felicidade, então?
— Ah, , você não pode dizer que seriamos felizes.
— Nem você poderia ter apostado contra a gente, .
É. Ela sabia disso, mas não gostava de admitir que houvesse tomado uma decisão estúpida por medo de sofrer. E, adivinhe só? No fim das contas, acabou sofrendo do mesmo jeito.
Teria sido melhor enfrentar todos seus medos ao lado dele.
— , vamos ser racionais. Ainda estou enrolada com os meus estudos. Você provavelmente teria me pedido para largar tudo e te seguir pelos shows. Então lá estaria eu, toda apaixonada, deixando minhas responsabilidades de lado por um cara cuja fama de mulherengo e boêmio não ajuda o final dessa história. Dia ou outro, teria se enjoado de mim, isso se eu não desse o azar de te pegar na cama com uma das suas groupies antes.
— Como é? — disse ultrajado. — Merda, . Não diga isso. Eu teria virado meu mundo de cabeça para baixo para te encaixar nele.
Ela ficou em silêncio, sentindo o coração batendo dolorido contra o peito. continuou:
— E sim, eu realmente pediria para me acompanhar nas turnês, mas isso, apenas quando não te atrapalhasse. Jamais diria para largar seus estudos ou seu emprego, pois sei o quanto essas coisas lhe são importantes. Aliás, fazem parte de quem você é, e claro, também do que admiro em você.
E assim, descobriu que um homem que estava do outro lado do continente era muito mais compreensível do que o namorado a poucas ruas de distância.
— Tá bom. — Ela disse e agradeceu pela voz não sair chorosa, mesmo os olhos estando cheios de lágrimas.
— “Tá bom”?
— Ok. Esse era o problema inicial, certo? Supus errado. Mas depois as coisas ficaram muito mais complicadas do que a distância ou meus estudos. Você e a Natalie... — o estômago dela esfriou — num dia você estava me fazendo juras de amor no Rio de Janeiro, no outro praticamente já tinha reatado com ela. Por quê?
Claro. A conversa tomaria esse rumo. E realmente não tinha muitos argumentos contra. Na verdade, não tinha nenhum argumento que justificasse uma noite que ele nem sequer lembrava devido ao excesso de álcool.
Por sorte, Natalie vinha cumprindo sua parte no acordo e as agressões nunca foram confirmadas para a mídia, o que significava que não sabia de nada, mas por outro lado, também significava que ela devia considerá-lo um grande mentiroso capaz de inventar tudo que ele havia lhe dito da última vez em que se encontraram.
Ela o escutou suspirar.
— Você não atendia as minhas ligações e...
— Não ouse me culpar, .
— Eu jamais faria isso, . A verdade, é que é muito tarde para achar culpados.
— É. Você seguiu sua vida com a Natalie, e eu segui a minha com o Cristiano.
Mais uma pequena pausa.
— Esse cara te faz feliz?
se enrolou para responder. Aquela era a primeira vez que pensava a respeito de algo tão complexo e... tão simples ao mesmo tempo.
— Ah, ele...
— Ele não faz.
— Não, não é isso. O Cris me faz feliz, só que...
— Não do jeito que você poderia ter sido comigo.
Ela demorou um bocado, em silêncio. E ele entendeu o lapso como um sim.
— O que você está dizendo, ... acha que... ainda tem alguma chance de funcionar entre a gente?
— Não, .
A convicção nas palavras de fez com que se esquecesse de como era respirar, a voz perdesse a força:
— Puxa. Para você um não realmente é um não.
tratou de se explicar:
— O que eu quero dizer, é que sei que isso não é mais possível. Entretanto, um de nós ainda pode ser feliz e, obviamente, esse alguém é você. Então se tem vontade de mandar mensagens em plena madrugada para outro cara, deveria repensar seu namoro.
sentiu o rosto esquentar.
— Ora! Eu não tenho vontade de ficar te mandando mensagens! Só fiz isso porque você curtiu minha foto mais cedo!
— Certo.
Ela não soube dizer se havia ou não ironia na voz do rapaz. continuou depois de um lapso relativamente longo de tempo:
— , se eu pudesse mudar o passado, voltaria àquela noite em Praga e faria tudo diferente. Faria você nunca duvidar de que poderia ter dado certo entre nós dois. Então essa conversa jamais estaria acontecendo. Porque você estaria aqui ao meu lado agora, provavelmente cochilando nos meus braços. Sentindo-se amada, segura, e fazendo de mim o cara mais sortudo desse mundo.
Minha nossa...
— ...
Lágrimas escorreram pelo rosto de e ela não conseguiu dizer mais nada.
— Mas agora minha vida está fodida e não vejo como posso consertá-la. E ainda que me doa, sei que o certo é não alimentar expectativas. Nem deveríamos ter o contato um do outro depois de tantos meses, depois de... tanta coisa.
Por mais que desejasse dizer o contrário, sabia que ele tinha razão.
Desligaram quase ao mesmo tempo. Engraçado como uma parte dentro do peito pudesse doer tanto sem que nada físico a tivesse realmente atingido.
Ela manteve as luzes apagadas. E pela janela do quarto, contemplou uma lua cheia entre nuvens cinzentas, pensando nele. Crateras do satélite pareciam formar um rostinho tristonho que sorria complacente pela sua dor.
E há milhas e milhas dali, nas primeiras horas da noite de um céu estrelado de Los Angeles...
fazia a mesma coisa.
A expressão X9 teve origem nas historias em quadrinho americanas dos anos 30 e nos dias atuais significa fofoqueiro.
Adorava o lugar. Mas sabia que aquela visita em particular, não seria nada agradável.
O frio no ambiente causado pelo excesso de climatizadores mantinha o cheiro enjoativo e característico: uma mistura de pastilhas mentoladas e nicotina — alguns músicos tendiam a fazer vista grossa para as proibições de “não fume” espalhadas pelos corredores. passou pela recepção e ignorou os olhares assustados das secretárias. Em outras ocasiões, elas o teriam recebido com gracejos afetados. Quando Rebecca, a mais jovem das três, fez um sinal de que pegaria o telefone, parou e a encarou através dos Ray-Bans escuros.
— Não precisa avisar que estou aqui. — O homem falou calmo, mas intimidador. — Quero fazer uma surpresa. — Deu um sorriso brilhante e a garota soltou o telefone. O voltou para o gancho meio que em câmera lenta, como se fosse uma bomba prestes a explodir.
então passou pelo primeiro estúdio, onde uma cantora country fazia uma força sobre-humana para executar uma única nota. O vidro antirruído não permitia ao rapaz escutá-la, mas pela cara do agente, ela não devia estar se saindo muito bem. Os próximos quatro estúdios estavam vazios, sobrava apenas o maior deles: o que a Dark Paradise usava para suas gravações.
Não esmurrou a porta de metal (apesar de ter desejado muito fazê-lo). Respirou fundo e apertou o sinal luminoso que substituía uma campainha - essencial para que o local cumprisse a finalidade de não incomodar os músicos enquanto gravavam.
Irônico.
Pois estava prestes a se tornar um incômodo.
Dominic Wilde quem abriu. A cara de descontentamento foi substituída por um ar embasbacado quando ficou cara a cara com o intruso.
— E aí, Dom. Beleza?
— Ah. . Merda.
Dominc tentou fechar a porta em reflexo. foi rápido o suficiente para impedir. Os dois homens faziam páreo no quesito força física. Coloque-os em uma arena e provavelmente haverá um empate. Entretanto, ira costuma ser um ótimo combustível e essa fervilhava nas veias de . A porta chocou-se contra o rosto de Wilde quando forçou a entrada.
E tínhamos nosso vencedor.
Toda agitação atraiu a curiosidade das outras pessoas ali dentro. Jeremy Hunter, o candidato em análise que tentava impressionar com seus agudos altíssimos, parou de cantar e ficou encarando todo sem graça o visitante inesperado.
Mas foi Elijah Nash quem correu os dedos pelos cabelos loiros e bufou antes de dizer:
— . Como você...
— Como descobri que estavam tramando me substituir pelo merdinha ali? É essa frase que está procurando, Nash? — disse e fechou os dedos até que as juntas ficassem brancas.
Jeremy, o “merdinha” em questão, até pensou em se defender, depois achou melhor deixá-los resolverem entre si. Nem tinha entrado para a banda e já podia atestar ser verdadeiro tudo que ouvira sobre a Dark Paradise e confusões. Quanto à desunião, concluiu semanas antes, quando Nash o convidou para fazer um teste para substituir e se tornar o novo vocal da banda. (O que pelo visto, não foi de conhecimento do maior interessado). Perfeito. Se não estivesse no quinto andar, talvez Jerry Hunter cogitasse fazer uma saída emergencial pela janela.
Elijah sorriu dissimulado e arrogante. Cinismo deveria ser seu sobrenome. Depois de um curto silêncio, o guitarrista falou:
— Ok. Foda-se. Parece que temos um X9 aqui, mas não me interessa. Afinal, senhor astro de cinema, você não deveria mesmo estar surpreso.
o encarou, realmente admirado.
— É apenas um teste, . — Dominic disse, o polegar massageando a maçã do rosto atingida pela porta. Bem provável que um hematoma surgisse no local. — Não iríamos trocá-lo de imediato.
— Dom. Cala a boca. — Elijah não se deu o trabalho de olhar a reação do baterista, continuou encarando . — Certo, . Vamos esclarecer as coisas. — Suspirou. — Porque você chegando aqui todo nervosinho e botando banca realmente parece se sentir como a pobre vítima de uma grande injustiça cometida por nós, seus lacaios ingratos. Então vamos lá, diga o que precisa dizer e vamos todos lavar a roupa suja aqui.
levantou bem as sobrancelhas, suas íris queimando em ira.
— Que merda está dizendo, Nash? Lacaios? Desde quando considero vocês menos? Quando, em mais de nove anos de banda, foi que isso aconteceu? Me diga só uma vez. O que estou vendo aqui são os caras que sempre considerei meus amigos, meus irmãos, armando um complô para me tirar a coisa mais importante da minha vida sem que eu faça a mínima ideia do porquê!
Tommy ponderou intervir, mas não teve tempo. Elijah prontificou-se todo altivo para o lado do vocalista, ao que parece, adorando bancar o alfa da banda. Isso é o que acontece quando se é o crânio por trás das maiores composições: o guitarrista excêntrico de vinte e cinco anos tinha poder e sabia disso. Mas não se intimidou, mesmo quando Elijah ficou bem próximo, a vermelhidão dos seus olhos tornando-se visível. Noite mal dormida ou substâncias ilegais?
Bem, talvez, noite mal dormida e substâncias ilegais.
— Rá. Rá. Ora, ora. Então de repente a banda voltou a ser a coisa mais importante da sua vida? Faça as contas, raio de sol. Tem quase um ano que você não dá a mínima para a Dark Paradise! Há meses não nos reunimos para ensaios, porque você sempre tem uma desculpa envolvendo vossa ilustre aparição em programas de TV imbecis! Ah, e não se esqueça: por sua culpa cancelamos a turnê de Still of the Night! E agora está surpreso? Oh! — Elijah fez uma cara insolente e colocou as mãos sobre o rosto arregalando os olhos, todo teatral. — Pois, adivinhe! Você não tem a porra de razão alguma!
E até aquele momento, por mais que estivesse se controlando para não acertar o nariz daquele maldito cretino prepotente chamado Elijah Nash, de repente o vocalista ficou todo sem graça, porque no fundo sabia que o colega meio que tinha razão.
— Você faz parecer que tudo esta uma grande droga para a banda quando a verdade é que as coisas não estão assim tão ruins, Nash. Fomos até indicados para o Grammy! E passei por problemas sérios, por conta da bebida e das consequências dela. Eu precisava de um tempo e vocês sabiam disso.
Elijah nem precisou pensar muito para rebater o colega. Tommy e Dominic? Tommy e Dominic passavam bem e continuaram de boca fechada, obrigado.
— Ah, sim, o tal tempo. É verdade. Engraçado que isso não impediu você de brincar de Jared Leto e ser estrela num filme idiota, não é mesmo? — O guitarrista falou. — Bem. Claro, o filme estúpido encheu e continua enchendo seu bolso, mas o nosso não.
Uma voz comedida aproveitou-se de um pequeno intervalo durante a discussão para se expressar: Jeremy Hunter.
— Er... acho que vou embora... deixar vocês conversarem.
o encarou, o músculo da testa contraído num arco nervoso:
— E você não foi ainda?
Nash tratou de cortar a interação:
— Nossa agente entrará em contato, Jerry.
— Ok. Foi um prazer conhecê-los. Todos vocês. — Jeremy falou um tanto quanto constrangido. — Hum... Você também , você... bem, meio que é um ídolo para mim.
riu sem acreditar na ousadia do rapaz.
— Um grande fã de merda você é, não? Vai se ferrar.
Tommy fez uma menção silenciosa para Jeremy deixar aquilo para lá e o acompanhou até a porta. encarou o melhor amigo com desgosto antes de voltar-se a inquirir Elijah.
Aquela conversa estava longe de ter um fim.
— Espera... É impressão minha ou você disse nossa agente? — quase engasgou quando fez aquela conexão.
Ninguém disse nada e entendeu aquilo como um sim.
— Meu Deus. Querem ferrar com o Robert também?
Elijah sorriu com escárnio, as mãos levantadas em um sinal de “pare”:
— Ei. Primeiro: quem quis ferrar tudo foi você, coleguinha. Isso aqui é uma selva. Vence o mais forte. E neste instante, você é peso morto na banda. Claro que o baba-ovo do Robert não vai querer que ninguém mexa com o filhinho predileto dele. Então sim, ele também está fora. Dois coelhos com uma caixa d’água só.
Todos se entreolharam.
— É cajadada. —Dominic disse.
Elijah parou de sorrir e franziu o cenho para o baterista:
— Quê?
— Você disse: “dois coelhos com uma caixa d’água só”. O certo é dois coelhos com uma cajadada...
— Tá, tá. Tanto faz. — Nash falou revirando os olhos e dando de ombros. — A questão é que você tá fora, .
O vocalista colocou o dedo na cara de Elijah.
— Então de uma hora para outra você se tornou exemplo dentro da banda e quer liderar, hum? Quando o Dominic ficou internado por quatro meses na reabilitação nem eu, nem o Robert, nem ninguém cogitou trocá-lo. E agora... O que há com vocês? Somos uma família. Deveríamos ser a porra de uma família! Dom, Tommy, vocês estão mesmo concordando com isso? Primeiro um silêncio. Então Tommy aproximou-se de .
— Ei, . Fica tranquilo. O Elijah está exaltado. Nenhuma decisão foi tomada.
o olhou com desgosto. Ser traído por Elijah e Dominic não era nada. Ele superaria. Agora seja traído pelo melhor amigo e a decepção terá um gosto totalmente diferente. Aquela merda toda era grande demais para que o rapaz simplesmente deixasse pra lá.
— Ficar tranquilo. Ficar tranquilo enquanto vocês estão me fodendo. — riu furioso.
Tommy deu um tapinha no ombro do colega, a voz baixa:
— Vá para casa. E esfrie a cabeça.
O vocalista deu um passo para trás, livrando-se do toque.
— Tira a mão de mim, Tommy. Você, mais do que ninguém, deveria se envergonhar disso. — Apontou para cada um deles antes de dar as costas e sair pela porta. — Pro inferno. Pro inferno todos vocês.
A TV da sala continuava ligada nos créditos finais de um show do Black Sabbath há uns bons minutos. Mas nem notou que o DVD havia terminado, estava mais preocupado com o copo de bebida na mão quando a porta da sala se abriu, a voz de Ingrid surgindo em seguida:
— Olá, encrenca.
O músico correu o olhar - da mulher para a garrafa de uísque na mesinha de centro da sala - pensou em se explicar, então se deu conta de que isso realmente não era necessário. E disse um tanto ríspido, afinal, a melhor defesa de um alcoólatra era sempre o ataque:
— Mas o quê... Como você entrou aqui, Ingrid?
Percebeu que não estava muito sóbrio quando tentou se levantar. Muitos meses sem por nenhuma gota de álcool na boca não o deixariam tão resistente de uma hora para outra. Ao que Ingrid o encarou com pena antes de jogar a bolsa no sofá e ir até o chão onde o homem estava caído.
— Levanta daí. Vem. — Ela sentiu a lufada de álcool que rescendia do hálito do amigo quando colocou os braços ao redor do tronco dele. — Deus. Você é bem pesado.
— Mamãe, o tio está bebádo? — Matthew surgiu por trás da mãe, os olhinhos assustados. A ruiva deu uma olhada rápida para o filho, depois para o sofá em que depositou o homem pesado como um filhote de urso e fez um ruído de alívio quando esticou as costas:
— É bêbado, querido. Mas essa é uma palavra que não precisa aprender agora. Nem nunca. E a Eva não deixou a TV do quarto ligada? Por que não vai lá assistir aos seus desenhos? Mamãe precisa conversar sério com o tio .
Matt inclinou o rosto e dirigiu para o músico um daqueles olhares infantis curiosos que não cessam.
— Ele fez coisa errada e você vai colocá-lo de castigo?
— Sim, vou. Agora vá assistir aos desenhos.
Depois que Matt correu para o quarto, Ingrid levantou a garrafa vazia de Jack Daniel’s e a sacudiu no ar. O olhar de acompanhou o movimento com dificuldade.
— Bem, parece que os meses de sobriedade foram interrompidos.
O homem reclinou o pescoço na beirada do sofá. Correu a mão pelo rosto e suspirou.
— Ingrid, por favor, sem lição de moral. E obrigado por trazer o Matt aqui. Vai ser uma lembrança e tanto para ele.
Ela sentou-se ao lado de , o cheiro de álcool rescendendo forte ao redor. Se riscasse um fósforo, era perigoso causar um incêndio.
— Não imaginei que você estaria assim. — A mulher deu um aceno sútil para o vocalista. — E eu jamais vou te dar lição de moral. Sei que os últimos meses foram barra para você. — Eu agradeço.
— Mas que tal tomar um banho quente e depois comer alguma coisa, sim? Vai lhe fazer bem.
Poderia levantar-se e fazer isso. Não era tão difícil. Afinal, no passado e em situações bem piores, já havia feito coisas que exigiam muito mais controle motor do que alguns passos até o banheiro.
— Tudo bem. Mas já que quer conversar sério. Acho que também vou precisar de um café.
Ela sorriu.
— Tá. Eu faço o café. E faço um bem forte.
Ingrid abriu uma série de armários procurando por xícaras. Ela já tinha achado achocolatado na despensa e preparado um copo para Matthew enquanto a água do café esquentava: prioridades maternas. reapareceu pouco tempo depois, passando os dedos pelos cabelos molhados, o que costumava ser o suficiente para dispensar o uso da escova. Ele cheirava a sabonete. Definitivamente, muito melhor do que o cheiro anterior. E se a água também fosse capaz de limpar a consciência, talvez vivesse submergido em uma banheira.
— Ei, antes que eu me esqueça, obrigado por me avisar, sardenta. — puxou uma das cadeiras da bancada da cozinha e se sentou. — Cheguei a tempo de pegar o tal Jeremy no flagra.
Ingrid serviu-lhe o café numa xícara de chá mesmo. Não achou nenhuma menor. Então levantou o rosto quando teve certeza de que não deixaria o líquido transbordar e deu um sorriso cúmplice para .
— De nada. Mas da próxima vez, tente não optar pelo caminho da autodestruição.
sorriu sem direito a dentes. Estava chateado.
— Ainda não acredito que os rapazes fizeram isso comigo. O Elijah e o Dominic, tudo bem. Dá para esperar qualquer coisa deles. Mas o Tommy, Ingrid? — torceu os lábios e seus olhos ficaram perdidos em algum ponto da superfície cremosa do café antes de levantá-los para a mulher. — Ele era meu melhor amigo.
— Ele ainda é, . — Ingrid o corrigiu com ternura. Aprendera que a psicologia infantil usada com Matt também funcionava com astros do rock magoados. Garotos seriam sempre garotos, no fim das contas.
— Não, não é. Ele é um cretino traidor. — fez uma pausa rápida para outro gole de café. A pressa em sorver a bebida queimou-lhe a língua. — Desculpe, é seu marido. Mas ainda assim, ele é um grande filho da mãe.
A mulher revirou os olhos e bateu as mãos na bancada fazendo com que as xícaras oscilassem sob os pratinhos de porcelana.
— Por Deus, . Quem acha que me pediu para avisá-lo sobre o teste do Jeremy?
levantou as sobrancelhas, surpreso. Pensou em argumentar, mas acabou ficando calado.
Sentiu-se bobo.
— De qualquer forma, isso foi bom para você acordar, não é? — Ingrid tomou o primeiro gole da bebida analisando se tinha ficado bom.
— Eu estou bem acordado, Ingrid.
— Usar o álcool para escapar das frustrações não é estar acordado, .
O músico apertou a mão contra o rosto, era bem claro que o assunto “bebida” lhe deixava pouco a vontade.
— Sim, recai hoje, mas eu estive sóbrio pelos últimos dez meses.
— Claro, e acho que de todas as coisas que você fez no último ano, a abstinência realmente é a única boa delas.
— Não é verdade. Este ano foi muito produtivo para mim.
Ingrid engoliu meia bolacha, bem devagar.
— É? Em que sentido?
surpreendeu-se por nada lhe vir à mente nos primeiros segundos, mas não deixou que isso transparecesse. Lá fora, o barulho de um cortador de grama finalmente parou. Pareceu proposital.
— Em todos, ora... para começar, profissionalmente. Fiz um filme.
— Seu filme pode até contar, mesmo tendo sido feito claramente com intenções de abafar o escândalo. Mas o que mais, ? O que fez por você? A música, por exemplo, algo que você ama, há quanto tempo está longe dela?
A ruiva limpou o farelo que caiu sobre a blusa preta enquanto ele formulava a resposta.
— É só um bloqueio criativo, não abandonei a música. — Ele piscou devagar. — Mas uma coisa boa que aconteceu este ano... ah, estou firme ao lado de Natalie desde que ela me perdoou e...
Ingrid nem fez cerimônia para dizer.
— E não é feliz.
Oh. Era tão claro assim?
— Isso não é verdade.
— É sim. Pode confessar, não tem jornalistas aqui.
— Felicidade... — O olhar de perdeu-se no da amiga depois de oferecer-lhe um sorriso lúgubre. — E quem realmente é feliz nesta merda de mundo?
A moça o encarou, admirada. Um pedacinho de farelo ainda estava no canto da sua boca quando disse:
— Nossa. A Natalie realmente conseguiu, não?
— Conseguiu o quê?
— Acabar com você. As coisas que diz ter feito para si próprio, na verdade foram feitas para ela. Aquele incidente foi um trunfo para a Wolf, pois assim todos a vêm como uma santa que lhe ofereceu redenção. Boazinha, não? O que você não percebe, é que ela está tendo controle total da sua vida.
De repente, até se esqueceu do café.
— Puxa, Ingrid. — Ele demorou um bocado pensando em que palavras usar. Não queria que soasse misógino. — Estou surpreso... Achei que, por ser mulher, você jamais falaria uma coisa dessas.
— Sim, você errou. E feio. Mas deixo os julgamentos para seus inquisidores, que não são poucos. E como sua amiga, estou do seu lado para lembrá-lo das suas qualidades, para não deixar esse erro definir quem você é nem o que você fará da sua vida daqui para frente. Pode ser meio pavio curto, metidinho e inconsequente às vezes. Mas também é doce, tem um coração de ouro e é um dos melhores seres humanos que eu já conheci. Não foi à toa que me apaixonei por você antes do Tommy.
A última frase saiu bem natural. Nunca foi mesmo um grande segredo. E naquele momento, funcionava mais como um afago ao ego ferido do vocalista do que uma cantada. estava acostumado a elogios, mas seu sorriso foi tímido.
— Queria que todas as pessoas me vissem através dos seus olhos, sardenta.
Ingrid sorriu.
— O que estou dizendo, é que você precisa se perdoar e voltar a ser quem você é. Sua dívida com a Natalie já está paga.
gostaria que isso fosse verdade, mas não tinha um dia em que não se sentisse em débito com a atriz. Ficar com Natalie Wolf era parte de sua penitência. Uma que provavelmente duraria para o resto da vida.
— Agradeço sua preocupação, Ingrid, mas você está um pouco enganada. Não estou com a Natalie por causa do que aconteceu. Ela também tem seu lado bom, e eu estou bem.
— Então você a ama?
Perguntinha ordinária.
— Ela é uma boa companheira.
— Ótima forma de fugir da resposta.
— Ei, mamãe. — Matthew apareceu com um bigodinho de achocolatado no rosto.
— Eu não estou fugindo da resposta. Eu... amo ela sim. — respondeu e voltou a tomar o café na expectativa de que a mulher deixasse aquilo para lá.
— Ei, mamãe. — Matthew falou novamente depois que foi ignorado pelos adultos.
— Um minuto, Matt. — Os olhos azuis de Ingrid foram do filho para o amigo. — Tudo bem, , se você diz, mas saiba que não seria certo com nenhum de vocês levar isso adiante por pena, peso na consciência ou conveniência. Só pense nisso.
— Vou pensar.
Ele não ia.
— Eu já vou embora. — Ingrid lhe disse. — Promete que vai ficar bem?
— Prometo. — tentou falar aquilo da forma mais séria possível, depois acenou para Matthew. — Ei, Matt. Vamos jogar PS depois, ok? — Mas o garotinho não respondeu. — Matt?
Ingrid agachou e ficou quase da altura do filho.
— Matt, querido, você está chorando?
Lágrimas caíram quase que em sincronia dos olhos do garoto, ele encarou o vocalista.
— Tio ... acho que estraguei seu celular.
— Ah, Matt! — Ingrid lançou-lhe um olhar de bronca. — Mas o que... eu não disse que era para você ficar quietinho vendo TV!?
O garoto fez um biquinho involuntário para o chão, as mãos para trás escondendo o aparelho.
— Deixe eu ver o que você fez, filho. — Disse já lhe tomando o celular. — Ai. Ufa. Não quebrou, só está travado.
O celular não era preocupação para até ele notar o olhar de surpresa que Ingrid deu para o visor.
Inferno.
— Pode deixar, Ingrid.
— Ei, quem é essa? — Ela falou com uma arqueada de sobrancelhas sugestiva. Os olhos ainda fixos no aparelho.
— Ingrid. Me dá isso aqui.
O músico tentou tomar-lhe o celular, mas ela se esquivou.
— Ah! Eu me lembro! O nome dela é , não? Ela era uma garota tão legal... Então vocês ainda têm contato?
— Não.
— Hum...
— Que foi?
— Ama a Natalie, né? Tá bom.
— Eu só fiquei curioso para saber o que ela estava fazendo. Vai dizer que nunca bisbilhotou fotos de ex?
— Tá. Tudo bem. — Era mais fácil devolver o celular do que admitir que olhava perfis de namoricos na internet. — Mas não é certo você dar esperanças à garota e ficar curtindo as fotos dela, já que só estava “curioso”. — Ingrid deu uma entonação toda especial quando disse a última palavra.
perdeu a cor.
— Curtindo as fotos?
— Oh. — Ela arregalou os olhos. — Não foi você quem curtiu?
— Me diz que não está falando sério, Ingrid. — disse e parecia realmente desesperado. O sangue voltou em uma quantidade absurda para o rosto e agora ele estava bem vermelho.
— Ah, não. Matthew Morello! — A forma como Ingrid gritou o nome do filho acionou um alerta na cabecinha do garoto e ele correu de volta para o quarto. Os dois adultos entreolharam-se. Foi quem falou primeiro:
— Merda... Mas que grande merda.
— Pois é...
— Tem como “descurtir”?
— Hum... Acho... que tem, mas... bem... ela fica sabendo que você curtiu do mesmo jeito. Eu acho.
suspirou, mas foi só para puxar mais fôlego e dizer:
— DROGA!
— Puxa... o Matt te colocou em uma saia justa. Sinto muito.
arrependeu-se de pronto de ficar bravo daquele jeito quando viu a cara sem graça da melhor amiga.
— Quer saber? — Ele deu outro suspiro, um mais longo. — Isso também não pode ser o fim do mundo.
— É, não pode. Mas não deixe a Natalie ficar sabendo. E um conselho? Não tenha filhos. Ou tenha, mas deixe o celular longe deles. Sempre.
— Vou me lembrar disso.
Ele estava ficando mais calmo. Ingrid aproveitou o momento para dizer algo que lhe veio à cabeça antes do pequeno incidente:
— Nunca entendi porque você a deixou, . Vocês realmente pareciam feitos um para o outro.
Caramba. Por que as pessoas sempre supunham que era ele o destruidor de corações?
— Não fui eu, Ingrid. Foi ela, está bem? A quem não quis. E agora a garota vai ver que eu curti a foto em que ela está ao lado de um cara que provavelmente é o namorado. Vai achar que estou despeitado.
— Não vai não. — Ingrid gritou o nome de Matthew com energia o suficiente para fazer o garoto obedecer de primeira e se prontificar ao lado dela na sala. Depois se virou para :
— Me dá um abraço... esquece isso, é um mero aborrecimento, uma coisinha boba. E quanto à banda, não se preocupe. Os meninos não vão trocar você.
— Assim espero.
— Sabe quando dizem que ninguém é insubstituível?
deu-lhe um olhar para que prosseguisse.
— Essa regra não vale para o vocalista foda da Dark Paradise.
Ele sorriu. Daquela vez, um sorriso de verdade.
Matt correu para a entrada da casa entretendo-se com pedrinhas do jardim frontal. acompanhou Ingrid até a porta, beijou-lhe o rosto. E torceu para que ela não viesse a interpretar erroneamente o que disse em seguida:
— Obrigado por tudo, sardenta. Sabe? Às vezes me arrependo de ter deixado você escapar quando éramos adolescentes.
A ruiva riu de um jeito divertido. Ela não entenderia errado, estavam velhos demais para isso. Ligou o carro, o barulho do motor competindo com o dos cortadores de grama. Matt ainda sem graça, exibiu apenas metade do rosto por cima do banco traseiro, mas abriu um sorriso quando o vocalista lhe ofereceu uma piscadela. Trocaram acenos até desaparecerem do campo de visão um do outro, e voltou para dentro a procura de aspirinas.
[Josi]: Como assim ele curtiu sua foto?!?!?
[]: Pois é. Como assim!? E não foi uma foto qualquer, é a que estou com o Cris. =/
[Josi]: Nããão!!!!
[]: Siiiim!!!!
[Josi]: Será que ele mesmo quem administra o perfil? Famosos devem ter assistentes pessoais para esse tipo de coisa.
[]: Então o assistente pessoal do está muito bem informado e deseja ser despedido.
[Josi]: Verdade. Claro que foi ele. Será que foi uma indireta? Ele curtir justo esta foto, eu quero dizer.
[]: Não sei, mas o que vc acha que eu devo fazer?
[Josi]: Vc poderia curtir de volta, mas provavelmente uma curtida dentro de mais de milhares que cada foto dele já tem, passaria despercebido.
[]: Com certeza. =/
[]: E então?
[Josi]: Eu não deveria estar incentivando isso...
[]: Não, não deveria.
[Josi]: Mas vc ainda tem o número dele?
[]: Tenho.
[Josi]: Então mande algo do tipo:
Josi está digitando...
[Josi]: “Olá, . Como vão as coisas? Tudo bem? Como pode ver hoje mais cedo quando stalkeou meu Instagram, eu estou ÓTIMA! Namorando e muuuuuito feliz. Ah, vi seu filme! Parabéns, ótima atuação, já não posso dizer o mesmo da sua namorada. ”
[]: Eu não vi o filme. E isso ficou meio despeitado, não?
[Josi]: Ou então só um oi. =P
[]: Ou então deixar tudo da forma que está.
[Josi]: É. Também.
[]: É.
[Josi]: Vou dormir. Me avise depois se teve coragem.
[]: Ok. Boa noite. :*
[Josi]: Boa noite. :*
Josi está offline.
[]: Olá . Quanto tempo! Sei que passou por muita coisa desde a última vez que nos falamos, mas que bom que deu a volta por cima! Fico feliz que as coisas tenham se acertado entre você e a natureza. Abraços!
Que porcaria este corretor ortográfico.
[]: Fiquei feliz que as coisas tenham ficado bem entre você e a *Natalie, quero dizer.
A garota deitou-se e esperou que conseguisse dormir antes que a ansiedade a matasse. Quanto tempo ele demoraria a responder?
Aliás...
Será que ele responderia?
Então ouvir o assobio do celular alguns minutos depois foi tão emocionante quanto escutar à 5ª sinfonia de Beethoven executada pela Orquestra Filarmônica de Berlim. E de novo. E mais uma vez. O aparelho tinha disparado. Era uma sequência de várias mensagens.
[]: ?!?!
[]: Caramba!!!
[]: Quanto tempo!!!
[]: Sim, as coisas vão bem com a Natalie, e também não tenho problemas com a natureza, reciclo meu lixo e coisas do tipo. lol
[]: Puxa! Estou falando bobeira, mas é que realmente fiquei muito feliz em receber uma mensagem sua.
[]: Mas e vc? Como vão as coisas???
Ela leu tudo duas vezes antes de responder.
[]: Ah! Estou ótima! Vou tentar um Doutorado no fim do ano e, encontrei alguém! Mas isso não é segredo, né? Vc viu mais cedo no meu Instagram. hehe.
Arrependeu do que escreveu tão logo apertou enviar. Ah, despeito... não precisava disso.
[]: Doutorado?! Uau! Espero que dê tudo certo!
[]: Ah, vi sim!
[]: Fico feliz por você =)
Ela pareceu decepcionada com a resposta.
O que não saberia nunca, era que estava longe de estar feliz. E a cara que ele fez naquele momento, não combinava nenhum pouco com o emoticon usado na conversa de WhatsApp.
[]: Obrigada. =)
[]: De verdade.
[]: =)
[]: Eu realmente queria que achasse alguém certo.
[]: Ok, eu entendi. E acredito.
Uns bons minutos se passaram e por um instante ela teve medo de que tivesse se cansado.
Por isso, seu coração disparou de um jeito louco quando o celular apitou de novo. Maldição. não deveria causar essas sensações nela, não depois de tanto tempo.
[]: Você está sozinha?
[]: Sim.
está digitando...
[]: Posso te ligar?
Ela pensou, pensou e, pensou. Concluiu que aquilo era errado, mas a culpa não parecia superar seu desejo de falar com ele. Apertou o botão de enviar antes que sua consciência a fizesse desistir.
[]: Pode
E dane-se.
O celular tocou menos de um minuto depois. Ficou olhando o nome escrito no visor e sorrindo como boba antes de pigarrear e dizer:
— Olá, .
— Ei, oi. — Ouvir a voz dele depois de tanto tempo... foi como se todos os meses pudessem ser condensados em horas, o último beijo trocado acontecido no dia anterior. — Nossa... estou mesmo falando com você.
— Não é? Fazia um bom tempo. — O barulho da risada de ecoou solitário no quarto escuro.
— Achei que nunca mais ouviria sua voz. — disse e, mentalmente, agradeceu ao garoto Matt por isso.
— É. Não seria justo só eu continuar a escutar a sua. — sentiu as bochechas queimarem, ainda bem que não tinha ninguém ali para ver. — Nas suas músicas, eu quero dizer.
— Achei que não iria mais querer escutar minhas músicas.
— Na verdade... não escuto. — Ela consertou. — Mas, você sabe, o Otávio é viciado na sua banda. E também não costuma ouvir num volume baixo... então... sou meio que obrigada a escutar quando vou à Vassouras.
— Não levarei para o lado pessoal, já que rock nunca foi seu estilo favorito. — Mas quando falou, parecia um pouquinho chateado.
— Rá-rá. Sim, vamos fingir que é por isso.
O homem demorou alguns instantes do outro lado da linha processando aquela informação. Foi o tempo necessário para que se arrependesse de algo que lhe custaria maiores explicações.
— Hum. Se não é por isso, por que é então? — Ele perguntou. Claro que perguntaria.
Ela se remexeu no colchão irrequieta, sentou-se sobre as pernas cruzadas e apertou o travesseiro contra o peito.
— Por que você acha, ?
— Não faço ideia.
suspirou, então disse de uma só vez:
— Porque sou uma idiota e penso em você mais do que gostaria.
O telefone ficou mudo. Ela chegou a pensar que tivesse desligado, até que:
— E... com que frequência pensa em mim?
— Eu... eu penso em você o tempo todo, .
A distância boca-coração da garota era mais curta do que a que levava ao cérebro. Sem emitir som algum, ela balbuciou a palavra “merda” uma sequência de vezes.
Então esperou que ele quebrasse o silêncio.
— Puxa... — disse admirado e de um jeito feliz. Durante a pausa que se seguiu, praticamente pode imaginar o tamanho do sorriso que se formou no rosto dele. — Eu... não esperava por isso.
— Que estupidez. Esquece o que eu disse. Por favor.
Ela escutou a risada debochada do outro lado da linha preceder a resposta:
— Esquecer? Bem difícil, já que também penso em você.
parou de contrair o travesseiro contra o peito e descruzou as pernas.
— Pensa?
— Penso. Mas agora que você me disse isso, algo não faz sentido. Por que não quis vir comigo? Por que não atendeu mais minhas ligações? Por que pediu um tempo? Você simplesmente desistiu de nós dois... e agora fala que ainda pensa em mim?
— Porque... bem, achei que não teríamos dado certo.
riu de um jeito curto e nervoso.
— Você achou? Rá. O seu “achismo” custou nossa felicidade, então?
— Ah, , você não pode dizer que seriamos felizes.
— Nem você poderia ter apostado contra a gente, .
É. Ela sabia disso, mas não gostava de admitir que houvesse tomado uma decisão estúpida por medo de sofrer. E, adivinhe só? No fim das contas, acabou sofrendo do mesmo jeito.
Teria sido melhor enfrentar todos seus medos ao lado dele.
— , vamos ser racionais. Ainda estou enrolada com os meus estudos. Você provavelmente teria me pedido para largar tudo e te seguir pelos shows. Então lá estaria eu, toda apaixonada, deixando minhas responsabilidades de lado por um cara cuja fama de mulherengo e boêmio não ajuda o final dessa história. Dia ou outro, teria se enjoado de mim, isso se eu não desse o azar de te pegar na cama com uma das suas groupies antes.
— Como é? — disse ultrajado. — Merda, . Não diga isso. Eu teria virado meu mundo de cabeça para baixo para te encaixar nele.
Ela ficou em silêncio, sentindo o coração batendo dolorido contra o peito. continuou:
— E sim, eu realmente pediria para me acompanhar nas turnês, mas isso, apenas quando não te atrapalhasse. Jamais diria para largar seus estudos ou seu emprego, pois sei o quanto essas coisas lhe são importantes. Aliás, fazem parte de quem você é, e claro, também do que admiro em você.
E assim, descobriu que um homem que estava do outro lado do continente era muito mais compreensível do que o namorado a poucas ruas de distância.
— Tá bom. — Ela disse e agradeceu pela voz não sair chorosa, mesmo os olhos estando cheios de lágrimas.
— “Tá bom”?
— Ok. Esse era o problema inicial, certo? Supus errado. Mas depois as coisas ficaram muito mais complicadas do que a distância ou meus estudos. Você e a Natalie... — o estômago dela esfriou — num dia você estava me fazendo juras de amor no Rio de Janeiro, no outro praticamente já tinha reatado com ela. Por quê?
Claro. A conversa tomaria esse rumo. E realmente não tinha muitos argumentos contra. Na verdade, não tinha nenhum argumento que justificasse uma noite que ele nem sequer lembrava devido ao excesso de álcool.
Por sorte, Natalie vinha cumprindo sua parte no acordo e as agressões nunca foram confirmadas para a mídia, o que significava que não sabia de nada, mas por outro lado, também significava que ela devia considerá-lo um grande mentiroso capaz de inventar tudo que ele havia lhe dito da última vez em que se encontraram.
Ela o escutou suspirar.
— Você não atendia as minhas ligações e...
— Não ouse me culpar, .
— Eu jamais faria isso, . A verdade, é que é muito tarde para achar culpados.
— É. Você seguiu sua vida com a Natalie, e eu segui a minha com o Cristiano.
Mais uma pequena pausa.
— Esse cara te faz feliz?
se enrolou para responder. Aquela era a primeira vez que pensava a respeito de algo tão complexo e... tão simples ao mesmo tempo.
— Ah, ele...
— Ele não faz.
— Não, não é isso. O Cris me faz feliz, só que...
— Não do jeito que você poderia ter sido comigo.
Ela demorou um bocado, em silêncio. E ele entendeu o lapso como um sim.
— O que você está dizendo, ... acha que... ainda tem alguma chance de funcionar entre a gente?
— Não, .
A convicção nas palavras de fez com que se esquecesse de como era respirar, a voz perdesse a força:
— Puxa. Para você um não realmente é um não.
tratou de se explicar:
— O que eu quero dizer, é que sei que isso não é mais possível. Entretanto, um de nós ainda pode ser feliz e, obviamente, esse alguém é você. Então se tem vontade de mandar mensagens em plena madrugada para outro cara, deveria repensar seu namoro.
sentiu o rosto esquentar.
— Ora! Eu não tenho vontade de ficar te mandando mensagens! Só fiz isso porque você curtiu minha foto mais cedo!
— Certo.
Ela não soube dizer se havia ou não ironia na voz do rapaz. continuou depois de um lapso relativamente longo de tempo:
— , se eu pudesse mudar o passado, voltaria àquela noite em Praga e faria tudo diferente. Faria você nunca duvidar de que poderia ter dado certo entre nós dois. Então essa conversa jamais estaria acontecendo. Porque você estaria aqui ao meu lado agora, provavelmente cochilando nos meus braços. Sentindo-se amada, segura, e fazendo de mim o cara mais sortudo desse mundo.
Minha nossa...
— ...
Lágrimas escorreram pelo rosto de e ela não conseguiu dizer mais nada.
— Mas agora minha vida está fodida e não vejo como posso consertá-la. E ainda que me doa, sei que o certo é não alimentar expectativas. Nem deveríamos ter o contato um do outro depois de tantos meses, depois de... tanta coisa.
Por mais que desejasse dizer o contrário, sabia que ele tinha razão.
Desligaram quase ao mesmo tempo. Engraçado como uma parte dentro do peito pudesse doer tanto sem que nada físico a tivesse realmente atingido.
Ela manteve as luzes apagadas. E pela janela do quarto, contemplou uma lua cheia entre nuvens cinzentas, pensando nele. Crateras do satélite pareciam formar um rostinho tristonho que sorria complacente pela sua dor.
E há milhas e milhas dali, nas primeiras horas da noite de um céu estrelado de Los Angeles...
fazia a mesma coisa.
A expressão X9 teve origem nas historias em quadrinho americanas dos anos 30 e nos dias atuais significa fofoqueiro.
Capítulo 24
passou a se exercitar com maior frequência desde que parou de beber. Gostava de correr no meio da manhã, quando as chances de esbarrar com seus vizinhos reduzia significativamente. Afinal, empresários bem sucedidos tinham coisas mais importantes para fazer àquele horário, como analisar os passivos das empresas ou exigir que as secretárias acertassem a dosagem dos seus expressos longos.
Por um espaço entre cercas-vivas, avistou o garoto puxando um filhote de Border Collie. A cerca, o menino, o cão: tudo parecia à cena onírica de um conto de fadas. O jovem tinha cabelos cor de areia e pele apagada, como se aquela fosse à primeira vez que saísse durante o dia. Ele sorriu e deu um aceno quando viu .
Keith Miller, dezessete anos, o vizinho de frente de . Filho único de um casal de cirurgiões plásticos famosos. Os Miller gastaram boa parte da fortuna em tratamentos para que o pequeno Keith fosse concebido e hoje estivesse por aí, circulando nas redondezas e vendendo “doce” em raves para adolescentes tão ricos quanto ele.
Era um garoto legal, e que também não tinha balanços empresariais com os quais se ocupar em plena manhã.
tirou os fones de ouvido, ele e Keith trocaram o cumprimento cordial esperado entre duas pessoas que não se viam há tempos.
— Keith. Quanto tempo. — disse.
— Pois é. Quase um ano de reabilitação. — O jovem contou enquanto evitava os dentinhos do cão na canela fina. Não tinha nenhum pingo de suor na pele, mesmo com aquelas roupas pretas. — Meus pais andaram dizendo que fui para um colégio interno, mas não é a verdade.
— Disseram, é? Não pra mim.
— Já esteve na reabilitação?
— Bem, não.
— Ah, sério? — Keith sorriu com admiração. — Achei que fosse algo meio que obrigatório para astros do rock.
Agora eles estavam andando um ao lado do outro, no ritmo do cachorrinho que queria conhecer tudo a sua volta: bem devagar. Um Porshe passou acelerando na rua. Havia uma placa, duas esquinas acima, indicando aos motoristas o limite de velocidade compatível com o ideal de segurança que bairros ricos buscam. já teria passado por ela se estivesse sozinho.
— Mas frequento o AA. — achou por bem tentar atender às expectativas do garoto sobre celebridades e uso abusivo de entorpecentes. — Duas vezes por semana.
— Hum. Falar sobre seus problemas para um monte de gente com problemas piores. Uma merda. A gente tinha que fazer isso na reabilitação também.
ficou pensando um pouco, depois apontou para o cachorro quando achou que o assunto “drogas, álcool e reabilitação” pudesse ter acabado.
— E esse carinha aí?
Keith deu uma olhada para o bicho, o focinho fez um gesto parecido com um sorriso.
— É a Portia. Meus pais disseram que eu precisava me socializar.
— E você é daqueles que preferem animais a pessoas.
— É mais questão de pretexto. Cachorros precisam sair para passear. Eu preciso fumar. A Portia é minha desculpa. Saio com ela duas vezes ao dia, fumo de três a cinco cigarros em cada volta. É melhor do que nada.
— Seus pais não sabem que está fumando?
— Meus pais não sabem nem em que ano estamos.
Portia ficou irrequieta de repente e começou a choramingar, exigindo que o dono acelerasse. Keith fez uma expressão de sofrimento e arquejou. Finalmente começou a transpirar e até um pouco de cor surgiu em suas bochechas. Ele tirou um cigarro do bolso, mas ficou só segurando. Fumar naquela subida não parecia mesmo uma boa ideia.
— Ei, sabe. Não tínhamos muito acesso a internet na clínica, mas meus pais me contaram que você teve alguns problemas. — Keith disse. — Foi por isso que começou a frequentar o AA?
— Foi sim.
— Que barra, cara. Mas todo mundo faz cagada uma hora ou outra.
se deu conta de que aquela foi uma das poucas vezes em que não se sentiu desconfortável de falar sobre o incidente para outra pessoa. Bom, um traficantezinho adolescente da elite seria o último a julgá-lo.
Cerca de dez passos depois, Keith perguntou com um sorriso do tipo que incentivava o interlocutor a oferecer uma resposta positiva:
— É verdade que saiu com seu tigre na capota da caminhonete?
bufou uma risada e acenou confirmando ainda que não achasse engraçado de verdade.
— Da hora. — O garoto puxou a coleira de Portia, a cachorra deu um leve solavanco para trás.
— Tanya Miller deve ter surtado. — disse.
Keith gargalhou alto, o que lhe custou puxar bastante fôlego depois. Digamos que a senhora Miller é o oposto do filho no quesito: maravilhar-se com pequenas transgressões de gente bêbada.
— Ficou uma semana falando sobre se mudar. Minha velha é maníaca por segurança, tem câmeras instaladas pela casa inteira. E como você conseguiu colocar o tigre na caminhonete?
— Não faço ideia, e acho que nunca vou saber.
— Meu pai viu a cena pelas nossas câmeras, disse que foi engraçado.
— Mais trágico do que engraçado.
— Ele atacou alguém?
— Não. Mas foi o mesmo dia em que...
— Em que você viu que o álcool tinha tomado total controle da sua vida.
De repente, só o que se ouvia era o som das três respirações. A de Portia muito mais acelerada.
— É. Foi.
Chegaram à parte mais alta da rua. Num espaço aberto e sem casas ao redor, bancos de madeira apodrecida formavam um quadrante entre árvores com corações gravados no tronco. Talvez a intenção do local fosse oferecer uma área para piqueniques, mas mais parecia a cena idealizada por um psicopata para a desova de corpos. O cheiro úmido de folhas decompostas era quase sufocante. O garoto soltou a coleira de Portia e seu focinho diligente foi fazer novas descobertas.
— Vou parar um pouco. — Keith Miller acendeu o cigarro e inspirou a nicotina com a mesma vontade que teve de puxar o ar puro do lugar.
Despediram-se com um choque de punhos.
E antes de recolocar os fones de ouvido, disse para Keith que, não só a senhora Miller deveria saber em que ano estavam como também saberia identificar cheiro de cigarro nas roupas do filho recém-saído da reabilitação.
Afinal, pais nunca são tão burros quanto os adolescentes pensam.
***
Natalie levantou-se da cadeira de sol e caminhou da área de lazer para dentro da mansão, olhares dos jardineiros a seguindo pelo percurso. A garota não havia se preocupado em ocultar mais do que as tiras do biquíni branco já faziam. Era desprovida dos defeitos que habitam o imaginário feminino e sabia disso. Na cozinha, quase deixou cair o copo que acabara de pegar quando sentiu um braço contornar sua cintura. Olhou exasperada para trás e falou entredentes:
— Imbecil! Quer me matar do coração!?
O motorista gargalhou. Retirou a maçã mais bonita da fruteira, limpou-a na manga do paletó e deu uma mordida.
— Não sabia que você tinha um.
Natalie revirou os olhos.
— Você sabe que não deve conversar comigo, Diego. Não aqui.
— Relaxa, ele saiu para correr.
Wolf abriu a geladeira e pegou uma bebida de cor amarelada: alguma mistura de ervas com efeito diurético que tomava durante todo o dia. Bateu a porta do eletrodoméstico com força e encarou o rapaz:
— O não está, mas a casa é cheia de empregados. Não seja idiota.
Diego Hernandez franziu o cenho e apoiou um braço entre Wolf e o espaço livre pelo qual ela planejara sair e escapar da conversa.
— Sim, a casa é cheia de empregados. — O rapaz disse. — E hoje em particular, está cheia de jardineiros. Então me pergunto se o fato de você ficar trançando quase nua na frente deles é porque é uma filha da mãe narcisista ou se a intenção é me provocar.
A mulher tomou três goles da bebida sem se importar com o gosto amargo que tinha. Depois falou com desdém:
— Eu, provocar um motorista de merda? Me poupe.
— Agora eu sou apenas um motorista de merda, é?
— Não, Diego. Você sempre foi um motorista de merda.
O homem já estava acostumado às más-criações da atriz, mas isso não impediu de lançar-lhe uma advertência:
— Cuidado, Natalie.
Ela franziu o cenho para Hernandez.
— Cuidado? Cuidado com o quê? Está me ameaçando?
— Não, só estou dizendo que pode vir a precisar de mim novamente. Seja para seus planos torpes ou outras coisas. — Ele molhou os lábios e olhou sugestivo para o corpo dela. — Sabe, ouvi uma conversa interessante entre as faxineiras dia desses... Faz quanto tempo que você e o patrão não dormem no mesmo quarto?
Natalie fechou a cara, pareceu ter ficado sem graça.
— Vai para o inferno.
— Se você for junto. — Hernandez deu uma piscadinha e continuou encarando, só por diversão, mordeu outro pedaço da maçã.
Da janela da cozinha, Wolf viu os jardineiros porto-riquenhos com suas mãos rudes manuseando delicados botões de rosas amarelas. Eva Hernandez indicando os locais onde queria que as mudas fossem plantadas.
— Você costumava ser menos abusado, Diego. E eu gostava mais quando mantinha sua linda boquinha fechada.
— Claro, pois precisa de um capacho para descontar a forma que o babaca te trata, não? — Disse ele.
— Dobre sua língua quando for falar do .
— . — Hernandez repetiu o nome com desprezo. — Você deveria largar esse otário antes que ele largue você, ser feliz ao lado de alguém que realmente se importa.
Natalie ficou calada, virou-se para pegar um potinho de salada de frutas que Eva havia lhe preparado minutos antes e sentou-se diretamente na bancada da cozinha, as pernas arreganhadas de uma menininha sem modos. Apertou o pé num ponto próximo à virilha do rapaz no mesmo instante em que levou lascivamente à boca uma colherada da salada. Diego estremeceu.
A garota riu com a boca cheia. Apressou em engolir a massa de frutas para poder dizer:
— Nossa. O motorista saiu da garagem para me dar conselhos. Meu Deus. E imagino que esse alguém que me fará feliz seja... você? — Ela gargalhou e revirou os olhos. — Não seja ridículo.
Ao que Diego Hernandez soltou de uma só vez:
— Quando me pediu para socar seu rostinho bonito eu não era nem um pouco ridículo, não é? Eu era útil.
Os pelinhos do braço de Natalie arrepiaram-se e seu coração deu uma batida mais pesada. Diego notou quando os lábios da garota ficaram sem cor.
— Nunca mais diga isso. — Ela disse pausadamente.
Dizer o quê? Que você armou para segurar um panaca que no final das contas continua não te dando à mínima? — Riu presunçoso e dúbio. — Não, eu não seria louco de fazer isso. Fique tranquila, guapita. É o nosso segredinho sujo.
Natalie respirou fundo, retomando o controle.
— Se você abrir a boca, Diego, eu acabo com você. Eu acabo.
— Não vou. Só queria que você caísse na real. — Ele suspirou. — Eu me importo com você, Natalie... — A última frase saiu como a confissão de algo vergonhoso e imoral.
— Importa, é? — Wolf disse sem levantar os olhos do copo, ela agora só brincava com as frutas, tal qual uma criança sem apetite. Era como se Diego acabasse de fazer uma observação sobre a previsão do tempo.
Hernandez aproximou-se da bancada onde a garota estava sentada e colocou as mãos sobre os joelhos dela. Tinham a textura gordurosa do óleo bronzeador. Não era nem de longe o local que o rapaz queria realmente tocar, mas um dos únicos que poderia fazê-lo sem que ela lhe repelisse. Colocou o rosto próximo ao da mulher e falou:
— Sempre fiz tudo que me pediu e agora você me pune, se afasta de mim. E eu sou um idiota. Se me pedir qualquer coisa, qualquer coisa, eu ainda faria.
Natalie correu a mão pela gravata de Hernandez até chegar ao colarinho e disse-lhe ao pé do ouvido:
— Qualquer coisa?
— Qualquer coisa... — Hernandez balbuciou.
A garota fechou os olhos quando sentiu os lábios do homem no seu pescoço, mas depois se afastou com rispidez. Levantou-se da bancada, uma marca exata de óleo ficou gravada no local do mármore onde estava sentada.
— Então confira a calibragem dos pneus e encere os bancos do meu carro.
Diego apertou a mandíbula. Fechou a cara quando Natalie começou a rir de um jeito cruel.
— Rá. Rá. Rá. Que engraçadinha. De que adianta ser linda se é uma vaca ordinária?
— Você fica tão sexy quando está nervoso, guapito. — Natalie disse cheia de manha, os olhos azuis de bola de gude saltando no rosto. Hernandez ainda estava puto e manteve a cara fechada num primeiro momento, mas depois cedeu.
Era Natalie Wolf, oras. Quem não cederia?
— Quer saber, Natalie? Acho mesmo que eu poderia ser o homem que lhe faria feliz.
— É, eu sei que você acha. — O sorriso de Natalie desapareceu até seus lábios virarem uma linha diabólica. — Mas a verdade, Diego, é que atrizes de Hollywood só ficam com imigrantes assalariados nos filmes que eu interpreto.
Hernandez só encarou.
— Vou aproveitar o sol da manhã. — Natalie agora desempenhava o papel de uma executiva séria que dava a ordem do dia para seu funcionário. — Ah, e limpe essa bagunça no chão.
Ele olhou sem entender, ao que a garota empurrou o copo da salada de frutas da bancada. O vidro explodiu em pedaços minúsculos. Uma uva rolou parando na ponta do sapato de Diego.
Se aquele fosse um mundo mais justo, Natalie Wolf teria sido vítima do próprio ardil: pisaria, nem que fosse, em um mísero caquinho e Hernandez poderia constatar se sangue corria nas veias da atriz.
Mas a garota saiu triunfante pela porta, rindo insanamente, os pés descalços totalmente ilesos. Enquanto Diego só controlou a raiva antes de ir até a despensa pegar uma vassoura.
*
A piscina azul-turquesa cintilava como se pequenos diamantes planassem em sua superfície. Wolf estava estirada na cadeira de sol há quinze minutos, irritada por não estar se bronzeando tão rápido: uma disputa entre estrelas na qual o astro-rei deveria sucumbir às vontades dela. Suas vistas escureceram e achou que fosse uma nuvem inconveniente. Abriu os olhos, mas era só Hernandez. O motorista de merda.
— De novo? — Natalie levantou os óculos e o encarou. As vestes do homem incompatíveis com o calor escaldante davam-lhe nervoso.
— Só achei que a princesa gostaria de um copo de água.
Ela riu para a bebida na mão de Diego. O resto do corpo imóvel.
— Que amor. — Fez um biquinho. — Foi cuspe ou drogas o que colocou aí?
— Veneno. — Diego zombou. Mas se cicuta crescesse no jardim da mansão, talvez preparasse um chá com cinco vezes a dose fatal e lhe oferecesse.
A garota deu-lhe uma arqueada de sobrancelhas sugestiva.
— Já limpou tudo lá dentro?
Diego sorriu.
— Já sim, senhorita.
O bronzeador de Natalie deixava ao entorno um cheiro bom e artificial de coco, como se a garota fosse um doce. Mas exposta à luz do dia, Wolf não era tão glamourosa assim. As sardinhas do nariz ficavam mais perceptíveis, manchas avermelhadas de sol coloriam sua pele como queimaduras de água fervente.
— Garoto esperto. — Ela lançou um beijinho no ar para o rapaz. Há metros dali, um dos jardineiros cutucou o colega e trocou alguma informação a respeito. Wolf os encarou até que se sentissem constrangidos e voltassem ao trabalho. Depois se virou para Diego, um sorriso maroto no rosto:
— Vou fazer compras hoje à tarde. Quer me levar?
— Como se eu pudesse dizer não para quem paga meu salário. — Disse e bufou uma risada. — Que horas precisa do carro?
— Te aviso. — A garota abaixou os óculos. Era um modelo gatinho da Dior. — Agora dê o fora, sua tia alcoviteira não tira o olho daqui.
Diego deu uma olhada rápida para Eva Hernandez. A senhora estava mais preocupada em varrer a frente da casa principal do que em tentar descobrir algo sobre a conversa do sobrinho. Uma palerma que não desconfiava de nada.
— Ok. — Respondeu dando-lhe as costas. Wolf inclinou-se na cadeira, a postura destacando sua clavícula ossuda, chamou:
— Ei, Di.
Ele parou e Natalie acenou seu nariz cirurgicamente perfeito para o copo na mão do rapaz:
— Minha água.
— Ah, claro. — Hernandez sorriu. — Já ia me esquecendo.
Despejou-lhe o líquido no alto da cabeça. A garota engoliu o susto e arquejou depois de alguns segundos. Um filete de água ainda escorria preguiçosamente por uma das mechas do cabelo dela quando o motorista saiu dali, murmurando vadia por entre os lábios curvados num sorriso vingativo.
Sobre aquela cena em particular, nenhum dos jardineiros porto-riquenhos ousou manifestar-se a respeito.
Por um espaço entre cercas-vivas, avistou o garoto puxando um filhote de Border Collie. A cerca, o menino, o cão: tudo parecia à cena onírica de um conto de fadas. O jovem tinha cabelos cor de areia e pele apagada, como se aquela fosse à primeira vez que saísse durante o dia. Ele sorriu e deu um aceno quando viu .
Keith Miller, dezessete anos, o vizinho de frente de . Filho único de um casal de cirurgiões plásticos famosos. Os Miller gastaram boa parte da fortuna em tratamentos para que o pequeno Keith fosse concebido e hoje estivesse por aí, circulando nas redondezas e vendendo “doce” em raves para adolescentes tão ricos quanto ele.
Era um garoto legal, e que também não tinha balanços empresariais com os quais se ocupar em plena manhã.
tirou os fones de ouvido, ele e Keith trocaram o cumprimento cordial esperado entre duas pessoas que não se viam há tempos.
— Keith. Quanto tempo. — disse.
— Pois é. Quase um ano de reabilitação. — O jovem contou enquanto evitava os dentinhos do cão na canela fina. Não tinha nenhum pingo de suor na pele, mesmo com aquelas roupas pretas. — Meus pais andaram dizendo que fui para um colégio interno, mas não é a verdade.
— Disseram, é? Não pra mim.
— Já esteve na reabilitação?
— Bem, não.
— Ah, sério? — Keith sorriu com admiração. — Achei que fosse algo meio que obrigatório para astros do rock.
Agora eles estavam andando um ao lado do outro, no ritmo do cachorrinho que queria conhecer tudo a sua volta: bem devagar. Um Porshe passou acelerando na rua. Havia uma placa, duas esquinas acima, indicando aos motoristas o limite de velocidade compatível com o ideal de segurança que bairros ricos buscam. já teria passado por ela se estivesse sozinho.
— Mas frequento o AA. — achou por bem tentar atender às expectativas do garoto sobre celebridades e uso abusivo de entorpecentes. — Duas vezes por semana.
— Hum. Falar sobre seus problemas para um monte de gente com problemas piores. Uma merda. A gente tinha que fazer isso na reabilitação também.
ficou pensando um pouco, depois apontou para o cachorro quando achou que o assunto “drogas, álcool e reabilitação” pudesse ter acabado.
— E esse carinha aí?
Keith deu uma olhada para o bicho, o focinho fez um gesto parecido com um sorriso.
— É a Portia. Meus pais disseram que eu precisava me socializar.
— E você é daqueles que preferem animais a pessoas.
— É mais questão de pretexto. Cachorros precisam sair para passear. Eu preciso fumar. A Portia é minha desculpa. Saio com ela duas vezes ao dia, fumo de três a cinco cigarros em cada volta. É melhor do que nada.
— Seus pais não sabem que está fumando?
— Meus pais não sabem nem em que ano estamos.
Portia ficou irrequieta de repente e começou a choramingar, exigindo que o dono acelerasse. Keith fez uma expressão de sofrimento e arquejou. Finalmente começou a transpirar e até um pouco de cor surgiu em suas bochechas. Ele tirou um cigarro do bolso, mas ficou só segurando. Fumar naquela subida não parecia mesmo uma boa ideia.
— Ei, sabe. Não tínhamos muito acesso a internet na clínica, mas meus pais me contaram que você teve alguns problemas. — Keith disse. — Foi por isso que começou a frequentar o AA?
— Foi sim.
— Que barra, cara. Mas todo mundo faz cagada uma hora ou outra.
se deu conta de que aquela foi uma das poucas vezes em que não se sentiu desconfortável de falar sobre o incidente para outra pessoa. Bom, um traficantezinho adolescente da elite seria o último a julgá-lo.
Cerca de dez passos depois, Keith perguntou com um sorriso do tipo que incentivava o interlocutor a oferecer uma resposta positiva:
— É verdade que saiu com seu tigre na capota da caminhonete?
bufou uma risada e acenou confirmando ainda que não achasse engraçado de verdade.
— Da hora. — O garoto puxou a coleira de Portia, a cachorra deu um leve solavanco para trás.
— Tanya Miller deve ter surtado. — disse.
Keith gargalhou alto, o que lhe custou puxar bastante fôlego depois. Digamos que a senhora Miller é o oposto do filho no quesito: maravilhar-se com pequenas transgressões de gente bêbada.
— Ficou uma semana falando sobre se mudar. Minha velha é maníaca por segurança, tem câmeras instaladas pela casa inteira. E como você conseguiu colocar o tigre na caminhonete?
— Não faço ideia, e acho que nunca vou saber.
— Meu pai viu a cena pelas nossas câmeras, disse que foi engraçado.
— Mais trágico do que engraçado.
— Ele atacou alguém?
— Não. Mas foi o mesmo dia em que...
— Em que você viu que o álcool tinha tomado total controle da sua vida.
De repente, só o que se ouvia era o som das três respirações. A de Portia muito mais acelerada.
— É. Foi.
Chegaram à parte mais alta da rua. Num espaço aberto e sem casas ao redor, bancos de madeira apodrecida formavam um quadrante entre árvores com corações gravados no tronco. Talvez a intenção do local fosse oferecer uma área para piqueniques, mas mais parecia a cena idealizada por um psicopata para a desova de corpos. O cheiro úmido de folhas decompostas era quase sufocante. O garoto soltou a coleira de Portia e seu focinho diligente foi fazer novas descobertas.
— Vou parar um pouco. — Keith Miller acendeu o cigarro e inspirou a nicotina com a mesma vontade que teve de puxar o ar puro do lugar.
Despediram-se com um choque de punhos.
E antes de recolocar os fones de ouvido, disse para Keith que, não só a senhora Miller deveria saber em que ano estavam como também saberia identificar cheiro de cigarro nas roupas do filho recém-saído da reabilitação.
Afinal, pais nunca são tão burros quanto os adolescentes pensam.
Natalie levantou-se da cadeira de sol e caminhou da área de lazer para dentro da mansão, olhares dos jardineiros a seguindo pelo percurso. A garota não havia se preocupado em ocultar mais do que as tiras do biquíni branco já faziam. Era desprovida dos defeitos que habitam o imaginário feminino e sabia disso. Na cozinha, quase deixou cair o copo que acabara de pegar quando sentiu um braço contornar sua cintura. Olhou exasperada para trás e falou entredentes:
— Imbecil! Quer me matar do coração!?
O motorista gargalhou. Retirou a maçã mais bonita da fruteira, limpou-a na manga do paletó e deu uma mordida.
— Não sabia que você tinha um.
Natalie revirou os olhos.
— Você sabe que não deve conversar comigo, Diego. Não aqui.
— Relaxa, ele saiu para correr.
Wolf abriu a geladeira e pegou uma bebida de cor amarelada: alguma mistura de ervas com efeito diurético que tomava durante todo o dia. Bateu a porta do eletrodoméstico com força e encarou o rapaz:
— O não está, mas a casa é cheia de empregados. Não seja idiota.
Diego Hernandez franziu o cenho e apoiou um braço entre Wolf e o espaço livre pelo qual ela planejara sair e escapar da conversa.
— Sim, a casa é cheia de empregados. — O rapaz disse. — E hoje em particular, está cheia de jardineiros. Então me pergunto se o fato de você ficar trançando quase nua na frente deles é porque é uma filha da mãe narcisista ou se a intenção é me provocar.
A mulher tomou três goles da bebida sem se importar com o gosto amargo que tinha. Depois falou com desdém:
— Eu, provocar um motorista de merda? Me poupe.
— Agora eu sou apenas um motorista de merda, é?
— Não, Diego. Você sempre foi um motorista de merda.
O homem já estava acostumado às más-criações da atriz, mas isso não impediu de lançar-lhe uma advertência:
— Cuidado, Natalie.
Ela franziu o cenho para Hernandez.
— Cuidado? Cuidado com o quê? Está me ameaçando?
— Não, só estou dizendo que pode vir a precisar de mim novamente. Seja para seus planos torpes ou outras coisas. — Ele molhou os lábios e olhou sugestivo para o corpo dela. — Sabe, ouvi uma conversa interessante entre as faxineiras dia desses... Faz quanto tempo que você e o patrão não dormem no mesmo quarto?
Natalie fechou a cara, pareceu ter ficado sem graça.
— Vai para o inferno.
— Se você for junto. — Hernandez deu uma piscadinha e continuou encarando, só por diversão, mordeu outro pedaço da maçã.
Da janela da cozinha, Wolf viu os jardineiros porto-riquenhos com suas mãos rudes manuseando delicados botões de rosas amarelas. Eva Hernandez indicando os locais onde queria que as mudas fossem plantadas.
— Você costumava ser menos abusado, Diego. E eu gostava mais quando mantinha sua linda boquinha fechada.
— Claro, pois precisa de um capacho para descontar a forma que o babaca te trata, não? — Disse ele.
— Dobre sua língua quando for falar do .
— . — Hernandez repetiu o nome com desprezo. — Você deveria largar esse otário antes que ele largue você, ser feliz ao lado de alguém que realmente se importa.
Natalie ficou calada, virou-se para pegar um potinho de salada de frutas que Eva havia lhe preparado minutos antes e sentou-se diretamente na bancada da cozinha, as pernas arreganhadas de uma menininha sem modos. Apertou o pé num ponto próximo à virilha do rapaz no mesmo instante em que levou lascivamente à boca uma colherada da salada. Diego estremeceu.
A garota riu com a boca cheia. Apressou em engolir a massa de frutas para poder dizer:
— Nossa. O motorista saiu da garagem para me dar conselhos. Meu Deus. E imagino que esse alguém que me fará feliz seja... você? — Ela gargalhou e revirou os olhos. — Não seja ridículo.
Ao que Diego Hernandez soltou de uma só vez:
— Quando me pediu para socar seu rostinho bonito eu não era nem um pouco ridículo, não é? Eu era útil.
Os pelinhos do braço de Natalie arrepiaram-se e seu coração deu uma batida mais pesada. Diego notou quando os lábios da garota ficaram sem cor.
— Nunca mais diga isso. — Ela disse pausadamente.
Dizer o quê? Que você armou para segurar um panaca que no final das contas continua não te dando à mínima? — Riu presunçoso e dúbio. — Não, eu não seria louco de fazer isso. Fique tranquila, guapita. É o nosso segredinho sujo.
Natalie respirou fundo, retomando o controle.
— Se você abrir a boca, Diego, eu acabo com você. Eu acabo.
— Não vou. Só queria que você caísse na real. — Ele suspirou. — Eu me importo com você, Natalie... — A última frase saiu como a confissão de algo vergonhoso e imoral.
— Importa, é? — Wolf disse sem levantar os olhos do copo, ela agora só brincava com as frutas, tal qual uma criança sem apetite. Era como se Diego acabasse de fazer uma observação sobre a previsão do tempo.
Hernandez aproximou-se da bancada onde a garota estava sentada e colocou as mãos sobre os joelhos dela. Tinham a textura gordurosa do óleo bronzeador. Não era nem de longe o local que o rapaz queria realmente tocar, mas um dos únicos que poderia fazê-lo sem que ela lhe repelisse. Colocou o rosto próximo ao da mulher e falou:
— Sempre fiz tudo que me pediu e agora você me pune, se afasta de mim. E eu sou um idiota. Se me pedir qualquer coisa, qualquer coisa, eu ainda faria.
Natalie correu a mão pela gravata de Hernandez até chegar ao colarinho e disse-lhe ao pé do ouvido:
— Qualquer coisa?
— Qualquer coisa... — Hernandez balbuciou.
A garota fechou os olhos quando sentiu os lábios do homem no seu pescoço, mas depois se afastou com rispidez. Levantou-se da bancada, uma marca exata de óleo ficou gravada no local do mármore onde estava sentada.
— Então confira a calibragem dos pneus e encere os bancos do meu carro.
Diego apertou a mandíbula. Fechou a cara quando Natalie começou a rir de um jeito cruel.
— Rá. Rá. Rá. Que engraçadinha. De que adianta ser linda se é uma vaca ordinária?
— Você fica tão sexy quando está nervoso, guapito. — Natalie disse cheia de manha, os olhos azuis de bola de gude saltando no rosto. Hernandez ainda estava puto e manteve a cara fechada num primeiro momento, mas depois cedeu.
Era Natalie Wolf, oras. Quem não cederia?
— Quer saber, Natalie? Acho mesmo que eu poderia ser o homem que lhe faria feliz.
— É, eu sei que você acha. — O sorriso de Natalie desapareceu até seus lábios virarem uma linha diabólica. — Mas a verdade, Diego, é que atrizes de Hollywood só ficam com imigrantes assalariados nos filmes que eu interpreto.
Hernandez só encarou.
— Vou aproveitar o sol da manhã. — Natalie agora desempenhava o papel de uma executiva séria que dava a ordem do dia para seu funcionário. — Ah, e limpe essa bagunça no chão.
Ele olhou sem entender, ao que a garota empurrou o copo da salada de frutas da bancada. O vidro explodiu em pedaços minúsculos. Uma uva rolou parando na ponta do sapato de Diego.
Se aquele fosse um mundo mais justo, Natalie Wolf teria sido vítima do próprio ardil: pisaria, nem que fosse, em um mísero caquinho e Hernandez poderia constatar se sangue corria nas veias da atriz.
Mas a garota saiu triunfante pela porta, rindo insanamente, os pés descalços totalmente ilesos. Enquanto Diego só controlou a raiva antes de ir até a despensa pegar uma vassoura.
A piscina azul-turquesa cintilava como se pequenos diamantes planassem em sua superfície. Wolf estava estirada na cadeira de sol há quinze minutos, irritada por não estar se bronzeando tão rápido: uma disputa entre estrelas na qual o astro-rei deveria sucumbir às vontades dela. Suas vistas escureceram e achou que fosse uma nuvem inconveniente. Abriu os olhos, mas era só Hernandez. O motorista de merda.
— De novo? — Natalie levantou os óculos e o encarou. As vestes do homem incompatíveis com o calor escaldante davam-lhe nervoso.
— Só achei que a princesa gostaria de um copo de água.
Ela riu para a bebida na mão de Diego. O resto do corpo imóvel.
— Que amor. — Fez um biquinho. — Foi cuspe ou drogas o que colocou aí?
— Veneno. — Diego zombou. Mas se cicuta crescesse no jardim da mansão, talvez preparasse um chá com cinco vezes a dose fatal e lhe oferecesse.
A garota deu-lhe uma arqueada de sobrancelhas sugestiva.
— Já limpou tudo lá dentro?
Diego sorriu.
— Já sim, senhorita.
O bronzeador de Natalie deixava ao entorno um cheiro bom e artificial de coco, como se a garota fosse um doce. Mas exposta à luz do dia, Wolf não era tão glamourosa assim. As sardinhas do nariz ficavam mais perceptíveis, manchas avermelhadas de sol coloriam sua pele como queimaduras de água fervente.
— Garoto esperto. — Ela lançou um beijinho no ar para o rapaz. Há metros dali, um dos jardineiros cutucou o colega e trocou alguma informação a respeito. Wolf os encarou até que se sentissem constrangidos e voltassem ao trabalho. Depois se virou para Diego, um sorriso maroto no rosto:
— Vou fazer compras hoje à tarde. Quer me levar?
— Como se eu pudesse dizer não para quem paga meu salário. — Disse e bufou uma risada. — Que horas precisa do carro?
— Te aviso. — A garota abaixou os óculos. Era um modelo gatinho da Dior. — Agora dê o fora, sua tia alcoviteira não tira o olho daqui.
Diego deu uma olhada rápida para Eva Hernandez. A senhora estava mais preocupada em varrer a frente da casa principal do que em tentar descobrir algo sobre a conversa do sobrinho. Uma palerma que não desconfiava de nada.
— Ok. — Respondeu dando-lhe as costas. Wolf inclinou-se na cadeira, a postura destacando sua clavícula ossuda, chamou:
— Ei, Di.
Ele parou e Natalie acenou seu nariz cirurgicamente perfeito para o copo na mão do rapaz:
— Minha água.
— Ah, claro. — Hernandez sorriu. — Já ia me esquecendo.
Despejou-lhe o líquido no alto da cabeça. A garota engoliu o susto e arquejou depois de alguns segundos. Um filete de água ainda escorria preguiçosamente por uma das mechas do cabelo dela quando o motorista saiu dali, murmurando vadia por entre os lábios curvados num sorriso vingativo.
Sobre aquela cena em particular, nenhum dos jardineiros porto-riquenhos ousou manifestar-se a respeito.
Capítulo 25
marcou com Cristiano na cafeteria de costume, a que ficava entre o trabalho dos dois. Daquela vez não dispensou o cardápio. Sempre teve vontade de experimentar algo diferente da combinação expresso com pão de queijo, e era bem provável que não voltasse ali durante um bom tempo. Talvez nunca mais voltasse. Via as coisas assim: em qualquer rompimento, cada uma das partes tinha direito a uma porção das coisas que construíram juntos. E foi Cris quem descobriu a cafeteria. Ele poderia ficar com ela.
— Oi, doçura. — Ela sentiu o beijo sob sua têmpora. Cris arrastou a cadeira e sentou-se de frente, bem no lugar que achou que o publicitário se sentaria. Ele estava com uma de suas camisas sociais caras e rescendia ao perfume cítrico usual.
— Oi. — Respondeu de volta, a voz baixa o bastante para que nem ela própria se ouvisse direito. De repente, deu-se conta de que aquilo seria só dez vezes mais difícil do que imaginou.
Seu mocaccino especial chegou logo em seguida. Não encontrou apetite para saboreá-lo. A garçonete perguntou ao rapaz se ele já queria pedir. E Cristiano escolheu expresso com pão de queijo. Previsível ao extremo. O homem não se arriscava.
— Ei. — Cris disse e, por debaixo da mesa, sentiu o sapato dele cutucar seu pé. — Nem me esperou, hein? Está com pressa?
— Não, só não sabia quanto tempo iriam demorar para fazer. É uma bebida mais sofisticada do que um expresso.
A voz dela falhou. Mas o rapaz não percebeu, em seguida revelou os dentes brancos que contrastavam com a pele bronzeada:
— Sofisticada igual à minha linda namorada.
Uma risada tímida tremulou no rosto da garota. Sorrisos de propaganda dental e elogios agora não iriam ajudá-la. Nem o que viria em seguida.
Cris empertigou-se na cadeira, apoiou os cotovelos na mesa, as mãos forneceram apoio para o queixo. Uma alegria intensa tomava conta do seu rosto.
— , estou ansioso para contar. Achei que deveria esperar até dia dezessete porque poderia fazer disso uma surpresa, mas não consigo ficar de boca fechada até lá. — Parou retomando o fôlego. — É bom demais, gata.
Com o olhar atento, ela esperou que Cris continuasse. Sentia o copo de mocaccino queimar suas impressões digitais. Apertou mais forte. Naquele momento a dor funcionava como um tipo de aliada.
— A agência vai abrir uma filial em Santiago. Querem que eu treine o pessoal de lá. — O rapaz deu um sorriso, esperando algum comentário.
— Que bom... E por que queria esperar dia dezessete para me contar?
Cristiano a encarou, surpreso, depois começou a rir. ficou tensa.
— Poxa, doçura. É bem engraçado que só eu lembre as datas. — Deu um tempo para ver se adivinharia sozinha. Não adivinhou. Cris fechou os olhos por um instante. Quando os abriu, eles brilhavam. — Dia dezessete fazemos cinco meses.
A garota continuou em silêncio e ainda mais confusa. Alguém traga um especialista em entrelinhas porque eles não estavam se entendendo.
— Ah, claro. Você não fez a conexão, mas lá vai: quero que vá comigo. — Cris bateu as mãos abertas sobre a mesa como um jogador felizardo de pôquer. — Pense nisso como um presente de namoro. E também... um pedido de desculpas. Sei que fui um idiota, falei as coisas erradas, fui egoísta... quis mudar você, sendo que você já é perfeita do jeito que é.
sentiu seu estômago embrulhar. Não soube mais o que dizer, as palavras do homem dançavam em sua cabeça e embaralhavam tudo o que havia preparado.
— Uau... — Ela forçou um sorriso. — Ir com você para o Chile? Assim, do nada?
— Será apenas um mês. E é em janeiro. Coincide com as férias escolares, não?
Ainda era inconcebível para o rapaz que a garota não tivesse se alegrado nenhum pouco. Cinco bancários, quatro homens e uma mulher, entraram na cafeteria. distraiu-se por alguns segundos.
— São as férias escolares, mas... — Ela podia sentir o sangue queimando nas bochechas.
Cris apertou a mão dela, massageando o dorso com o polegar.
— Não se preocupe com o dinheiro. Eu te dou as passagens. A empresa vai fornecer o apartamento. Tudo o que você precisa fazer é ser minha linda acompanhante.
Pronto: ele a deixou totalmente sem alternativa.
Seu mocacinno de três camadas esfriava ainda intocado. A garçonete deixou o pedido de Cris sobre a mesa. aproveitou o momento em que o rapaz desacelerou para dizer:
— Cris, a gente precisa conversar.
— Hum? Achei que já estivéssemos conversando. — Ele falou com a boca cheia.
— Eu não vou com você para o Chile.
Pode ter sido apenas impressão, mas pareceu que o rapaz realmente não chegou a cogitar que fosse recusar a viagem. Ele pigarreou depois que tomou um gole do expresso, havia uma leve tensão na voz:
— Por que tenho a sensação de que não vou gostar desta conversa?
— Não está dando certo para mim. — Ela lançou de uma vez. Nada do pequeno discurso que havia ensaiado no caminho. Se fosse médica, não deveria ser atribuída de dar notícias a doentes terminais. Cris cerrou os olhos tentando entender. Na verdade, processando a informação. Ela havia sido clara o suficiente.
— Você está querendo terminar?
— Eu não estou querendo, eu... estou terminando. E não é nada com você. Acho que...
Ele soltou o pão de queijo e fez um sinal para que ela não dissesse mais nada. Era uma expressão que nunca tinha visto no rosto do homem. A fez se sentir desprezível.
— Para, .
Achou que Cristiano não cobraria maiores explicações, mas a pausa foi só para puxar fôlego:
— Por quê? Por qual motivo você acordou e simplesmente decidiu isso?
Cris falava baixo (telespectadores demais), mas o maxilar estava tenso. Términos em cafeterias lotadas não eram uma boa ideia. Ou eram. Evitava gritos desnecessários e outros excessos.
— Não foi algo que eu decidi hoje, Cris. — tentou ser firme, mas sua voz oscilava. A garganta ardia a cada palavra. — Na verdade eu venho pensando sobre há um tempo.
E a ligação de alguns dias antes não teve nada a ver com isso. Com certeza não.
— É por causa de algo em especial?
— É por causa de muita coisa.
Ele apertou o próprio rosto contra as mãos, expirou, então segurou o braço dela. Tudo levava a crer que partiria para o apelo emocional:
— Não, doçura. Ei... íamos tão bem. Por favor, .
Ele realmente estava implorando. Não eram só suas palavras, também estava nos olhos dele. não imaginou que um homem como Cristiano fosse implorar. Se metade das mulheres daquela cafeteria soubesse que o moreno com pinta de galã global acabara de ficar solteiro, ele não passaria pela porta sem levar uma dúzia de número de telefones.
— Cristiano, não faça isso.
Ele arregalou os olhos.
— Puxa. Você já está me chamando de Cristiano.
— Cris, eu...
— Há quanto tempo, hein? Há quanto tempo estava pensando em terminar?
— Já tem algumas semanas... na verdade... quase um mês que...
O homem balançou a cabeça devagar, um nó de tensão parecia prestes a estourar no seu rosto.
— Um mês? Nossa... Parabéns. — Sorriu sarcástico. — Um mês... Você fingiu muito bem durante esse tempo. Deveria ser atriz. Seus orgasmos deste mês foram fingimento também?
Cristiano falou alto o bastante para que a mesa ao lado olhasse e começasse a cochichar. ficou vermelha.
— Cris, por favor, não precisamos disso.
— Não, , eu não preciso disso. Eu, realmente não preciso disso. — O homem deve ter repassado um sem-número de mulheres que dispensou para ficar com a garota. Justo. Levantou o indicador quando a garçonete entregou dois frappuccinos na mesa ao lado. Fez um sinal para que ela viesse. — A conta, por favor.
— Pode deixar que eu pago. — prontificou-se e colocou suas mãos sobre as dele.
Ele a olhou com repulsa. Puxou o braço quebrando o contato.
— De jeito nenhum. Aliás, — tirou uma nota de cem da sua carteira grifada e a jogou na mesa — diga para a garçonete ficar com o troco.
Vinte reais teriam sido mais do que suficientes para quitar a conta e ainda deixar uma gorjeta generosa, mas claro que ele sabia disso. Foi um golpe baixo, com o único propósito de diminuir a, agora, ex-namorada.
— Eu sinto muito. — Tão logo disse, soube que realmente era desnecessário falar que sentia. Na verdade, era algo inconveniente de se dizer.
A boca dele se abriu, parecia que iria falar alguma coisa, mas acabou desistindo. Apertou os olhos por breves segundos, depois se virou e simplesmente foi embora.
acompanhou a porta se fechando atrás dele, imaginando como teria sido se os papeis daquela tarde estivessem invertidos.
Muito provável que não sentisse nada.
E também bem provável que, se abrisse sua bolsa agora, não encontrasse nenhuma nota de cem na carteira.
***
Eram cinco da tarde quando Natalie entrou no carro. Usava um vestido amarelo ovo que fazia seu bronzeado arder aos olhos. Durante as duas horas anteriores, Diego ficou pensando se ela realmente iria aparecer.
— Rodeo Drive. — A garota falou secamente depois de bater a porta traseira do Land Rover. — Vão fechar a loja para mim se eu não demorar.
— Não quer se sentar ao meu lado? Desse jeito eu fico parecendo o motorista. — Hernandez atreveu-se por força do hábito e Natalie limitou-se a articular um sorrisinho artificial em resposta.
Nos minutos seguintes, Wolf só voltou a abrir a boca para pedir ao rapaz que ligasse o rádio. Não teve “por favor” nem “obrigado”. Foi mais uma ordem do que uma solicitação.
Agora estavam parados em um engarrafamento na Stradella Road. Debaixo do sinal vermelho, artistas de rua aproveitavam para fazer um número entediante de pirofagia.
Hernandez arriscou algumas olhadas para a atriz. Da terceira ela percebeu. Levantou os olhos e o encarou pelo retrovisor no qual uma bonequinha havaiana balançava como se estivesse sofrendo de pequenas convulsões.
— Olhando minhas pernas? — Natalie falou, perniciosa. A garota tinha um ego enorme. Divertia-se em ser desejada, mas não estava disposta a oferecer mais.
O homem fez um ruído curto e irritadiço, algo que poderia ser entendido como um: “claro que não”. Ela continuou dizendo toda segura de si:
— Ah, está sim... gosta delas, não?
— Suas pernas são bonitinhas, mas já vi melhores. — Ele respondeu ao que Natalie sorriu com escárnio.
— De quem? Suas chicanas imundas do subúrbio?
O trânsito havia melhorado repentinamente. Diego engatou a marcha e manteve os olhos fixos além do para-brisa. Um dos artistas agora passava entre os veículos pedindo dinheiro. Quase ninguém abriu os vidros.
— Só para você saber: muitas das chicanas imundas deixariam você no chinelo, magrela.
— Rá. Tá bom.
Num dos outdoors na beira da estrada, sujeito a todo tipo de violação por andarilhos bêbados, o anúncio do último filme da franquia distópica estrelada por Natalie destacava-se. Ela usava um collant de couro e carregava nas costas armas que possivelmente tinham mais quilos do que seu corpo poderia suportar. Truques de computação gráfica. Apesar do enorme sucesso entre o público teen, Wolf odiou interpretar a personagem.
— Mas qual é a desse assunto agora? — Ele a encarou pelo espelho. — Vai me dizer que está com ciúmes?
A garota ainda estava terminando de fazer cara feia a respeito da sua imagem photoshopada quando respondeu:
— Não. Só não gosto que insinuam que não sou bonita o suficiente.
— Você é bonita o suficiente para fazer um cara perder a cabeça.
Os cantos dos lábios dela se curvaram num sorriso satisfeito: foi a resposta certa.
E a recompensa veio logo depois.
— Ei, Di. — Natalie chamou. — Acha que a marquinha do meu biquíni ficou legal?
Subiu o vestido um bocado suficiente para fazer com que Hernandez se esquecesse de que era ele o responsável por controlar o veículo na via de tráfego rápido. Um Ford desviou raspando, buzinas misturaram-se ao xingamento de outro motorista.
— Cuidado! — Natalie disse e gargalhou diabolicamente. — Sou muito nova para morrer.
Hernandez perdeu o momento em que ela resolveu voltar à barra do tecido para o lugar.
— Puta merda... Por que está sem calcinha?
— Não costumo usar.
Ele mordeu a parte de dentro da boca, disse depois que começou a doer:
— Você não queria realmente fazer compras, queria?
— Claro que quero. Comporte-se, seu pervertido.
O homem ofegou sofridamente. Pestanejou algo em espanhol que Natalie não entendeu. Então menos de um minuto depois ela falou como quem não quer nada:
— Mas se tivesse algum lugar privado por perto e se você pudesse ser rápido... Talvez eu lhe fizesse uma boa ação.
Diego conferiu a expressão dela duas vezes, só para ter certeza de que estava falando sério.
— Você realmente faria isso?
A garota deu de ombros. Hernandez entendeu como um sim.
— E quanto tempo eu teria? — Ele perguntou.
— Hum... — Ela analisou lascadinhos do esmalte das unhas com desdém. — Cinco minutos?
— Fechado.
O Land Over virou bruscamente em um cruzamento que não estava no roteiro. Natalie cambaleou perdendo a pose no banco de trás. O rapaz riu.
— Diego! O que está fazendo!?
— Ganhando tempo.
— Enlouqueceu? É óbvio que eu estava brincando. Para de correr!
— Fique tranquila. Se tem algo que motoristas de merda sabem fazer — piscou para ela do retrovisor — é dirigir.
Natalie gritou e tampou os olhos quando a traseira do carro ficou por um triz de uma moto. Encolheu-se toda no banco de trás. Hernandez não tinha problemas em admitir que adorava vê-la naquela situação. Escolheu aleatoriamente uma das muitas ruas arborizadas e desertas de Homby Hills. O lugar era tão silencioso que respirar mais alto poderia ser considerado uma ofensa. Nem passarinhos cantavam ali.
A garota empertigou-se no banco e levantou o rosto quando sentiu o carro diminuindo a velocidade. Seus olhos estavam assustados como os de um bicho entocado.
— Que lugar é esse? — Ela perguntou.
— O “lugar privado onde eu consigo ser rápido.” E você nem precisa tirar a calcinha. — Diego riu. Além de decidido, o homem também era um piadista.
Wolf escutou o som do zíper da calça dele logo após o baque das quatro travas elétricas. O estômago dela esfriou.
— Não falei sério, seu imbecil.
— É feio descumprir acordos, princesa.
— E o que vai fazer se eu me negar? Vai me obrigar?
— Nunca. Só não vou dirigir. E você pode voltar a pé para a casa.
— Peço um táxi.
— Já pode ligar então.
Ela levantou a trava antes que a primeira lágrima caísse. Bateu a porta com força. Como se realmente tivesse alguma ideia em mente, caminhou no sentindo oposto ao veículo. Tropeçou duas vezes em seus scarpins Manolo Blahnik antes de chegar à metade do quarteirão.
Diego gargalhou sozinho. Contou até cinquenta, só depois ligou o veículo e manteve a linha do velocímetro condizente com os passos da atriz. Natalie continuou olhando para frente mesmo quando ele desceu o vidro elétrico.
— Nat, entra no carro.
Ela não respondeu. E ele soube imediatamente que aquilo não estava mais sendo divertido.
— Foi só uma brincadeira, Wolf. Cadê seu senso de humor?
Ainda só o som dos scarpins. Hernandez esticou-se para abrir a porta do carona.
— Natalie, por favor. Entra no carro. Por favor.
Diego estava prestes a implorar mais um pouco. Não precisou. Sem se dar o trabalho de olhá-lo (o que de fato, pouco importava naquele momento), ela entrou. Bateu a porta e continuou em silêncio. Quando Diego pensou em falar alguma coisa, Natalie explodiu:
— EU ODEIO VOCÊ! ODEIO!
Hernandez sentiu o rosto arder no local onde a unha de Natalie o acertou. Ele puxou o freio e segurou as mãos dela no ar, evitando o que seria um possível novo golpe. Teria lhe acertado o nariz.
O carro deu um solavanco e morreu.
Apertou tanto os pulsos da garota que pôde sentir o sangue correndo. As palavras dele saíram rasgadas dentro do veículo fechado, o sotaque mais forte do que o habitual:
— Eu também me odeio. Odeio não ser forte o bastante para me afastar de você. Odeio o homem fraco e estúpido que me tornei desde que você apareceu. E odeio mais ainda o fato de não conseguir fazer com que o sentimento seja recíproco e te odiar de volta, sua mulherzinha maldita e desprezível.
Natalie o encarou. Ficou sem piscar o máximo que pode. Quando o fez, uma lágrima rolou e caiu no alto do seu colo. Diego soltou-lhe os braços e suspirou retomando o controle. Depois deu partida no carro.
— Coloque seu cinto de segurança. Vou te levar para a Rodeo Drive. Então você pode ir comprar suas roupas e ficar bonita para um cara que não se importa.
Passarinhos começaram a cantar na rua Delfern, em Hombry Hills. Ninguém estava lá para ouvir. Wolf caiu em prantos pouco tempo depois que o veículo dobrou a esquina.
E se ódio fosse à única coisa que poderia ter de Natalie Wolf, talvez Diego Hernandez devesse ficar satisfeito. Era melhor que a indiferença.
Era um ótimo avanço.
*
— Senhorita Wolf, já separei o Valentino verde esmeralda que me pediu. Certamente, será a acompanhante mais linda no dia do Grammy. Ah! E precisa experimentar este Dolce, é uma peça exclusiva da última coleção. A Taylor me mata se souber que te mostrei primeiro.
Mas Natalie não prestava atenção no vestido de alta costura nem em Vivienne: a vendedora simpática que preteria qualquer outra cliente quando a atriz resolvia aplacar o tédio na loja mais cara de Rodeo Drive. Os olhos estavam fixos além da vitrine, encarava o motorista recostado no veículo estacionado do outro lado da rua.
Que também não tirava os olhos dela.
— Senhorita Wolf? — Vivienne repetiu com um sorriso polido, característico de bons vendedores.
— Ah, desculpe. — Natalie balançou a cabeça e também sorriu de forma afável. Sabia ser um amorzinho quando era conveniente. A voz chegava a soar até mesmo um pouco infantil. — Realmente é lindo. Mas só preciso de um modelo mais simples... tenho esse evento beneficente, vai ser à noite.
— Tem preferência por cor?
— Preto.
— Um minuto. — Vivienne virou-se rapidamente e logo retornou com um Versace de corte clássico. Natalie tinha uns dez modelos parecidos no closet. Levaria mesmo assim.
— Pode embrulhar para mim, Vi, junto com o Valentino verde.
— Não vai experimentar? — A mulher disse admirada.
— Não precisa. Um Versace jamais decepciona.
Vivienne riu concordando. Seus dentes da frente eram grandes como os de um roedor.
Pagou com um pouco de pressa e quase se esqueceu de uma das sacolas que Vivienne correu para entregar. Já na calçada, desejou que os carros passassem mais depressa enquanto o encarava. Ele parecia o figurante de um filme cult. Diego, com seu terno de segunda mão manchando a pintura da sua Land Over. Diego e seu belo rosto latino com um recente arranhão vermelho. Ela quase pôde ver o sangue brilhando dali.
Por que raios seu coração estava disparando?
Se não estivesse tão distraída, talvez tivesse notado o homem. Estava próximo demais e agia de maneira suspeita. A bolsa fora arrancada do seu braço tão depressa que nem teve tempo de gritar. Alguns pedestres presenciaram a cena. Aproximaram-se e ficaram maravilhados quando reconheceram a atriz. Certamente aquela era a única circunstância em que telespectadores lamentariam um furto com sorrisos bobos. Oh, Natalie Wolf, sinto muito, mas poderia me dar um autógrafo? Sou realmente seu fã.
Diego não estava mais encostado no capô do carro.
— Diego!? — Ela o procurou entre aquelas pessoinhas detestáveis.
Sentiu o corpo esfriar quando viu que ele resolvera bancar o guarda-costas e perseguir o bandido. Aquela sensação ruim no peito... Estava mais preocupada com a segurança do “motorista de merda” do que com a sua bolsa.
E não era uma bolsa qualquer. Era uma Chanel.
O ladrão soltou o objeto depois que sentiu o impacto do que poderia ser tranquilamente uma parede de concreto: mas era apenas um homem de 26 anos em boa forma. Ofegante em cima dos saltos incompatíveis com a maratona, Natalie chegou até eles em seguida. Nem olhou para o acessório de milhares de dólares jogado no chão que motivou tudo aquilo.
— Já soltei a bolsa, me deixa em paz! — O homem conseguiu falar antes do segundo murro. Sangue começou a jorrar como um pequeno vazamento logo acima do olho direito. Mais pessoas cercaram o lugar. Todas inertes, só observando o show gratuito.
— Diego, para com isso! — Natalie pediu com a voz trêmula. Gotas de um vermelho quase fluorescente haviam espirrado no seu vestido. — Diego, para, agora! — ela implorou quando notou o outro homem desacordado. Num último ato de desespero, se agachou e falou no ouvido do seu motorista:
— Ei, guapito, olhe para mim, por favor. Olhe para mim. — Diego Hernandez conteve o próximo golpe e a encarou. Natalie viu o torpor violento esvaziando-se do semblante dele: preocupação. Agora Hernandez estava repassando os últimos minutos e arrependendo-se de cada segundo.
— Meu Deus...
— Vamos embora. — Wolf falou depois de notar que o bandido ainda estava respirando. Isso deveria significar que ficaria bem. Inchado, dolorido, desfigurado, mas bem.
Levantaram-se. Diego sujando a camisa de sangue fresco ao reajeitar sua gravata. As pessoas ao entorno continuavam impassíveis com seus rostos estáticos de bonecos e ninguém ousou falar qualquer coisa.
Wolf puxou o rapaz pela mão (a que não tinha resquícios da violência), em silêncio, como se nada tivesse acontecido. Escutaram o barulho de uma sirene quase ao mesmo tempo em que Diego destravou o alarme. Tomara que seja uma ambulância, e não a polícia. Tomara que seja uma ambulância tomara que seja uma ambulância tomara que...
Era a ambulância.
Entraram no carro e Hernandez custou a dar a partida. Estava tremendo. Num súbito, Natalie se esticou no banco do carona e carimbou um beijo na bochecha dele, bem devagar:
— Heróis merecem muito mais... do que cinco minutos.
E ele se esqueceu de toda a merda feita nos últimos instantes.
Saíram logo em seguida. Sem se preocupar em olhar para trás... Sem nenhum pingo de arrependimento.
— Oi, doçura. — Ela sentiu o beijo sob sua têmpora. Cris arrastou a cadeira e sentou-se de frente, bem no lugar que achou que o publicitário se sentaria. Ele estava com uma de suas camisas sociais caras e rescendia ao perfume cítrico usual.
— Oi. — Respondeu de volta, a voz baixa o bastante para que nem ela própria se ouvisse direito. De repente, deu-se conta de que aquilo seria só dez vezes mais difícil do que imaginou.
Seu mocaccino especial chegou logo em seguida. Não encontrou apetite para saboreá-lo. A garçonete perguntou ao rapaz se ele já queria pedir. E Cristiano escolheu expresso com pão de queijo. Previsível ao extremo. O homem não se arriscava.
— Ei. — Cris disse e, por debaixo da mesa, sentiu o sapato dele cutucar seu pé. — Nem me esperou, hein? Está com pressa?
— Não, só não sabia quanto tempo iriam demorar para fazer. É uma bebida mais sofisticada do que um expresso.
A voz dela falhou. Mas o rapaz não percebeu, em seguida revelou os dentes brancos que contrastavam com a pele bronzeada:
— Sofisticada igual à minha linda namorada.
Uma risada tímida tremulou no rosto da garota. Sorrisos de propaganda dental e elogios agora não iriam ajudá-la. Nem o que viria em seguida.
Cris empertigou-se na cadeira, apoiou os cotovelos na mesa, as mãos forneceram apoio para o queixo. Uma alegria intensa tomava conta do seu rosto.
— , estou ansioso para contar. Achei que deveria esperar até dia dezessete porque poderia fazer disso uma surpresa, mas não consigo ficar de boca fechada até lá. — Parou retomando o fôlego. — É bom demais, gata.
Com o olhar atento, ela esperou que Cris continuasse. Sentia o copo de mocaccino queimar suas impressões digitais. Apertou mais forte. Naquele momento a dor funcionava como um tipo de aliada.
— A agência vai abrir uma filial em Santiago. Querem que eu treine o pessoal de lá. — O rapaz deu um sorriso, esperando algum comentário.
— Que bom... E por que queria esperar dia dezessete para me contar?
Cristiano a encarou, surpreso, depois começou a rir. ficou tensa.
— Poxa, doçura. É bem engraçado que só eu lembre as datas. — Deu um tempo para ver se adivinharia sozinha. Não adivinhou. Cris fechou os olhos por um instante. Quando os abriu, eles brilhavam. — Dia dezessete fazemos cinco meses.
A garota continuou em silêncio e ainda mais confusa. Alguém traga um especialista em entrelinhas porque eles não estavam se entendendo.
— Ah, claro. Você não fez a conexão, mas lá vai: quero que vá comigo. — Cris bateu as mãos abertas sobre a mesa como um jogador felizardo de pôquer. — Pense nisso como um presente de namoro. E também... um pedido de desculpas. Sei que fui um idiota, falei as coisas erradas, fui egoísta... quis mudar você, sendo que você já é perfeita do jeito que é.
sentiu seu estômago embrulhar. Não soube mais o que dizer, as palavras do homem dançavam em sua cabeça e embaralhavam tudo o que havia preparado.
— Uau... — Ela forçou um sorriso. — Ir com você para o Chile? Assim, do nada?
— Será apenas um mês. E é em janeiro. Coincide com as férias escolares, não?
Ainda era inconcebível para o rapaz que a garota não tivesse se alegrado nenhum pouco. Cinco bancários, quatro homens e uma mulher, entraram na cafeteria. distraiu-se por alguns segundos.
— São as férias escolares, mas... — Ela podia sentir o sangue queimando nas bochechas.
Cris apertou a mão dela, massageando o dorso com o polegar.
— Não se preocupe com o dinheiro. Eu te dou as passagens. A empresa vai fornecer o apartamento. Tudo o que você precisa fazer é ser minha linda acompanhante.
Pronto: ele a deixou totalmente sem alternativa.
Seu mocacinno de três camadas esfriava ainda intocado. A garçonete deixou o pedido de Cris sobre a mesa. aproveitou o momento em que o rapaz desacelerou para dizer:
— Cris, a gente precisa conversar.
— Hum? Achei que já estivéssemos conversando. — Ele falou com a boca cheia.
— Eu não vou com você para o Chile.
Pode ter sido apenas impressão, mas pareceu que o rapaz realmente não chegou a cogitar que fosse recusar a viagem. Ele pigarreou depois que tomou um gole do expresso, havia uma leve tensão na voz:
— Por que tenho a sensação de que não vou gostar desta conversa?
— Não está dando certo para mim. — Ela lançou de uma vez. Nada do pequeno discurso que havia ensaiado no caminho. Se fosse médica, não deveria ser atribuída de dar notícias a doentes terminais. Cris cerrou os olhos tentando entender. Na verdade, processando a informação. Ela havia sido clara o suficiente.
— Você está querendo terminar?
— Eu não estou querendo, eu... estou terminando. E não é nada com você. Acho que...
Ele soltou o pão de queijo e fez um sinal para que ela não dissesse mais nada. Era uma expressão que nunca tinha visto no rosto do homem. A fez se sentir desprezível.
— Para, .
Achou que Cristiano não cobraria maiores explicações, mas a pausa foi só para puxar fôlego:
— Por quê? Por qual motivo você acordou e simplesmente decidiu isso?
Cris falava baixo (telespectadores demais), mas o maxilar estava tenso. Términos em cafeterias lotadas não eram uma boa ideia. Ou eram. Evitava gritos desnecessários e outros excessos.
— Não foi algo que eu decidi hoje, Cris. — tentou ser firme, mas sua voz oscilava. A garganta ardia a cada palavra. — Na verdade eu venho pensando sobre há um tempo.
E a ligação de alguns dias antes não teve nada a ver com isso. Com certeza não.
— É por causa de algo em especial?
— É por causa de muita coisa.
Ele apertou o próprio rosto contra as mãos, expirou, então segurou o braço dela. Tudo levava a crer que partiria para o apelo emocional:
— Não, doçura. Ei... íamos tão bem. Por favor, .
Ele realmente estava implorando. Não eram só suas palavras, também estava nos olhos dele. não imaginou que um homem como Cristiano fosse implorar. Se metade das mulheres daquela cafeteria soubesse que o moreno com pinta de galã global acabara de ficar solteiro, ele não passaria pela porta sem levar uma dúzia de número de telefones.
— Cristiano, não faça isso.
Ele arregalou os olhos.
— Puxa. Você já está me chamando de Cristiano.
— Cris, eu...
— Há quanto tempo, hein? Há quanto tempo estava pensando em terminar?
— Já tem algumas semanas... na verdade... quase um mês que...
O homem balançou a cabeça devagar, um nó de tensão parecia prestes a estourar no seu rosto.
— Um mês? Nossa... Parabéns. — Sorriu sarcástico. — Um mês... Você fingiu muito bem durante esse tempo. Deveria ser atriz. Seus orgasmos deste mês foram fingimento também?
Cristiano falou alto o bastante para que a mesa ao lado olhasse e começasse a cochichar. ficou vermelha.
— Cris, por favor, não precisamos disso.
— Não, , eu não preciso disso. Eu, realmente não preciso disso. — O homem deve ter repassado um sem-número de mulheres que dispensou para ficar com a garota. Justo. Levantou o indicador quando a garçonete entregou dois frappuccinos na mesa ao lado. Fez um sinal para que ela viesse. — A conta, por favor.
— Pode deixar que eu pago. — prontificou-se e colocou suas mãos sobre as dele.
Ele a olhou com repulsa. Puxou o braço quebrando o contato.
— De jeito nenhum. Aliás, — tirou uma nota de cem da sua carteira grifada e a jogou na mesa — diga para a garçonete ficar com o troco.
Vinte reais teriam sido mais do que suficientes para quitar a conta e ainda deixar uma gorjeta generosa, mas claro que ele sabia disso. Foi um golpe baixo, com o único propósito de diminuir a, agora, ex-namorada.
— Eu sinto muito. — Tão logo disse, soube que realmente era desnecessário falar que sentia. Na verdade, era algo inconveniente de se dizer.
A boca dele se abriu, parecia que iria falar alguma coisa, mas acabou desistindo. Apertou os olhos por breves segundos, depois se virou e simplesmente foi embora.
acompanhou a porta se fechando atrás dele, imaginando como teria sido se os papeis daquela tarde estivessem invertidos.
Muito provável que não sentisse nada.
E também bem provável que, se abrisse sua bolsa agora, não encontrasse nenhuma nota de cem na carteira.
Eram cinco da tarde quando Natalie entrou no carro. Usava um vestido amarelo ovo que fazia seu bronzeado arder aos olhos. Durante as duas horas anteriores, Diego ficou pensando se ela realmente iria aparecer.
— Rodeo Drive. — A garota falou secamente depois de bater a porta traseira do Land Rover. — Vão fechar a loja para mim se eu não demorar.
— Não quer se sentar ao meu lado? Desse jeito eu fico parecendo o motorista. — Hernandez atreveu-se por força do hábito e Natalie limitou-se a articular um sorrisinho artificial em resposta.
Nos minutos seguintes, Wolf só voltou a abrir a boca para pedir ao rapaz que ligasse o rádio. Não teve “por favor” nem “obrigado”. Foi mais uma ordem do que uma solicitação.
Agora estavam parados em um engarrafamento na Stradella Road. Debaixo do sinal vermelho, artistas de rua aproveitavam para fazer um número entediante de pirofagia.
Hernandez arriscou algumas olhadas para a atriz. Da terceira ela percebeu. Levantou os olhos e o encarou pelo retrovisor no qual uma bonequinha havaiana balançava como se estivesse sofrendo de pequenas convulsões.
— Olhando minhas pernas? — Natalie falou, perniciosa. A garota tinha um ego enorme. Divertia-se em ser desejada, mas não estava disposta a oferecer mais.
O homem fez um ruído curto e irritadiço, algo que poderia ser entendido como um: “claro que não”. Ela continuou dizendo toda segura de si:
— Ah, está sim... gosta delas, não?
— Suas pernas são bonitinhas, mas já vi melhores. — Ele respondeu ao que Natalie sorriu com escárnio.
— De quem? Suas chicanas imundas do subúrbio?
O trânsito havia melhorado repentinamente. Diego engatou a marcha e manteve os olhos fixos além do para-brisa. Um dos artistas agora passava entre os veículos pedindo dinheiro. Quase ninguém abriu os vidros.
— Só para você saber: muitas das chicanas imundas deixariam você no chinelo, magrela.
— Rá. Tá bom.
Num dos outdoors na beira da estrada, sujeito a todo tipo de violação por andarilhos bêbados, o anúncio do último filme da franquia distópica estrelada por Natalie destacava-se. Ela usava um collant de couro e carregava nas costas armas que possivelmente tinham mais quilos do que seu corpo poderia suportar. Truques de computação gráfica. Apesar do enorme sucesso entre o público teen, Wolf odiou interpretar a personagem.
— Mas qual é a desse assunto agora? — Ele a encarou pelo espelho. — Vai me dizer que está com ciúmes?
A garota ainda estava terminando de fazer cara feia a respeito da sua imagem photoshopada quando respondeu:
— Não. Só não gosto que insinuam que não sou bonita o suficiente.
— Você é bonita o suficiente para fazer um cara perder a cabeça.
Os cantos dos lábios dela se curvaram num sorriso satisfeito: foi a resposta certa.
E a recompensa veio logo depois.
— Ei, Di. — Natalie chamou. — Acha que a marquinha do meu biquíni ficou legal?
Subiu o vestido um bocado suficiente para fazer com que Hernandez se esquecesse de que era ele o responsável por controlar o veículo na via de tráfego rápido. Um Ford desviou raspando, buzinas misturaram-se ao xingamento de outro motorista.
— Cuidado! — Natalie disse e gargalhou diabolicamente. — Sou muito nova para morrer.
Hernandez perdeu o momento em que ela resolveu voltar à barra do tecido para o lugar.
— Puta merda... Por que está sem calcinha?
— Não costumo usar.
Ele mordeu a parte de dentro da boca, disse depois que começou a doer:
— Você não queria realmente fazer compras, queria?
— Claro que quero. Comporte-se, seu pervertido.
O homem ofegou sofridamente. Pestanejou algo em espanhol que Natalie não entendeu. Então menos de um minuto depois ela falou como quem não quer nada:
— Mas se tivesse algum lugar privado por perto e se você pudesse ser rápido... Talvez eu lhe fizesse uma boa ação.
Diego conferiu a expressão dela duas vezes, só para ter certeza de que estava falando sério.
— Você realmente faria isso?
A garota deu de ombros. Hernandez entendeu como um sim.
— E quanto tempo eu teria? — Ele perguntou.
— Hum... — Ela analisou lascadinhos do esmalte das unhas com desdém. — Cinco minutos?
— Fechado.
O Land Over virou bruscamente em um cruzamento que não estava no roteiro. Natalie cambaleou perdendo a pose no banco de trás. O rapaz riu.
— Diego! O que está fazendo!?
— Ganhando tempo.
— Enlouqueceu? É óbvio que eu estava brincando. Para de correr!
— Fique tranquila. Se tem algo que motoristas de merda sabem fazer — piscou para ela do retrovisor — é dirigir.
Natalie gritou e tampou os olhos quando a traseira do carro ficou por um triz de uma moto. Encolheu-se toda no banco de trás. Hernandez não tinha problemas em admitir que adorava vê-la naquela situação. Escolheu aleatoriamente uma das muitas ruas arborizadas e desertas de Homby Hills. O lugar era tão silencioso que respirar mais alto poderia ser considerado uma ofensa. Nem passarinhos cantavam ali.
A garota empertigou-se no banco e levantou o rosto quando sentiu o carro diminuindo a velocidade. Seus olhos estavam assustados como os de um bicho entocado.
— Que lugar é esse? — Ela perguntou.
— O “lugar privado onde eu consigo ser rápido.” E você nem precisa tirar a calcinha. — Diego riu. Além de decidido, o homem também era um piadista.
Wolf escutou o som do zíper da calça dele logo após o baque das quatro travas elétricas. O estômago dela esfriou.
— Não falei sério, seu imbecil.
— É feio descumprir acordos, princesa.
— E o que vai fazer se eu me negar? Vai me obrigar?
— Nunca. Só não vou dirigir. E você pode voltar a pé para a casa.
— Peço um táxi.
— Já pode ligar então.
Ela levantou a trava antes que a primeira lágrima caísse. Bateu a porta com força. Como se realmente tivesse alguma ideia em mente, caminhou no sentindo oposto ao veículo. Tropeçou duas vezes em seus scarpins Manolo Blahnik antes de chegar à metade do quarteirão.
Diego gargalhou sozinho. Contou até cinquenta, só depois ligou o veículo e manteve a linha do velocímetro condizente com os passos da atriz. Natalie continuou olhando para frente mesmo quando ele desceu o vidro elétrico.
— Nat, entra no carro.
Ela não respondeu. E ele soube imediatamente que aquilo não estava mais sendo divertido.
— Foi só uma brincadeira, Wolf. Cadê seu senso de humor?
Ainda só o som dos scarpins. Hernandez esticou-se para abrir a porta do carona.
— Natalie, por favor. Entra no carro. Por favor.
Diego estava prestes a implorar mais um pouco. Não precisou. Sem se dar o trabalho de olhá-lo (o que de fato, pouco importava naquele momento), ela entrou. Bateu a porta e continuou em silêncio. Quando Diego pensou em falar alguma coisa, Natalie explodiu:
— EU ODEIO VOCÊ! ODEIO!
Hernandez sentiu o rosto arder no local onde a unha de Natalie o acertou. Ele puxou o freio e segurou as mãos dela no ar, evitando o que seria um possível novo golpe. Teria lhe acertado o nariz.
O carro deu um solavanco e morreu.
Apertou tanto os pulsos da garota que pôde sentir o sangue correndo. As palavras dele saíram rasgadas dentro do veículo fechado, o sotaque mais forte do que o habitual:
— Eu também me odeio. Odeio não ser forte o bastante para me afastar de você. Odeio o homem fraco e estúpido que me tornei desde que você apareceu. E odeio mais ainda o fato de não conseguir fazer com que o sentimento seja recíproco e te odiar de volta, sua mulherzinha maldita e desprezível.
Natalie o encarou. Ficou sem piscar o máximo que pode. Quando o fez, uma lágrima rolou e caiu no alto do seu colo. Diego soltou-lhe os braços e suspirou retomando o controle. Depois deu partida no carro.
— Coloque seu cinto de segurança. Vou te levar para a Rodeo Drive. Então você pode ir comprar suas roupas e ficar bonita para um cara que não se importa.
Passarinhos começaram a cantar na rua Delfern, em Hombry Hills. Ninguém estava lá para ouvir. Wolf caiu em prantos pouco tempo depois que o veículo dobrou a esquina.
E se ódio fosse à única coisa que poderia ter de Natalie Wolf, talvez Diego Hernandez devesse ficar satisfeito. Era melhor que a indiferença.
Era um ótimo avanço.
— Senhorita Wolf, já separei o Valentino verde esmeralda que me pediu. Certamente, será a acompanhante mais linda no dia do Grammy. Ah! E precisa experimentar este Dolce, é uma peça exclusiva da última coleção. A Taylor me mata se souber que te mostrei primeiro.
Mas Natalie não prestava atenção no vestido de alta costura nem em Vivienne: a vendedora simpática que preteria qualquer outra cliente quando a atriz resolvia aplacar o tédio na loja mais cara de Rodeo Drive. Os olhos estavam fixos além da vitrine, encarava o motorista recostado no veículo estacionado do outro lado da rua.
Que também não tirava os olhos dela.
— Senhorita Wolf? — Vivienne repetiu com um sorriso polido, característico de bons vendedores.
— Ah, desculpe. — Natalie balançou a cabeça e também sorriu de forma afável. Sabia ser um amorzinho quando era conveniente. A voz chegava a soar até mesmo um pouco infantil. — Realmente é lindo. Mas só preciso de um modelo mais simples... tenho esse evento beneficente, vai ser à noite.
— Tem preferência por cor?
— Preto.
— Um minuto. — Vivienne virou-se rapidamente e logo retornou com um Versace de corte clássico. Natalie tinha uns dez modelos parecidos no closet. Levaria mesmo assim.
— Pode embrulhar para mim, Vi, junto com o Valentino verde.
— Não vai experimentar? — A mulher disse admirada.
— Não precisa. Um Versace jamais decepciona.
Vivienne riu concordando. Seus dentes da frente eram grandes como os de um roedor.
Pagou com um pouco de pressa e quase se esqueceu de uma das sacolas que Vivienne correu para entregar. Já na calçada, desejou que os carros passassem mais depressa enquanto o encarava. Ele parecia o figurante de um filme cult. Diego, com seu terno de segunda mão manchando a pintura da sua Land Over. Diego e seu belo rosto latino com um recente arranhão vermelho. Ela quase pôde ver o sangue brilhando dali.
Por que raios seu coração estava disparando?
Se não estivesse tão distraída, talvez tivesse notado o homem. Estava próximo demais e agia de maneira suspeita. A bolsa fora arrancada do seu braço tão depressa que nem teve tempo de gritar. Alguns pedestres presenciaram a cena. Aproximaram-se e ficaram maravilhados quando reconheceram a atriz. Certamente aquela era a única circunstância em que telespectadores lamentariam um furto com sorrisos bobos. Oh, Natalie Wolf, sinto muito, mas poderia me dar um autógrafo? Sou realmente seu fã.
Diego não estava mais encostado no capô do carro.
— Diego!? — Ela o procurou entre aquelas pessoinhas detestáveis.
Sentiu o corpo esfriar quando viu que ele resolvera bancar o guarda-costas e perseguir o bandido. Aquela sensação ruim no peito... Estava mais preocupada com a segurança do “motorista de merda” do que com a sua bolsa.
E não era uma bolsa qualquer. Era uma Chanel.
O ladrão soltou o objeto depois que sentiu o impacto do que poderia ser tranquilamente uma parede de concreto: mas era apenas um homem de 26 anos em boa forma. Ofegante em cima dos saltos incompatíveis com a maratona, Natalie chegou até eles em seguida. Nem olhou para o acessório de milhares de dólares jogado no chão que motivou tudo aquilo.
— Já soltei a bolsa, me deixa em paz! — O homem conseguiu falar antes do segundo murro. Sangue começou a jorrar como um pequeno vazamento logo acima do olho direito. Mais pessoas cercaram o lugar. Todas inertes, só observando o show gratuito.
— Diego, para com isso! — Natalie pediu com a voz trêmula. Gotas de um vermelho quase fluorescente haviam espirrado no seu vestido. — Diego, para, agora! — ela implorou quando notou o outro homem desacordado. Num último ato de desespero, se agachou e falou no ouvido do seu motorista:
— Ei, guapito, olhe para mim, por favor. Olhe para mim. — Diego Hernandez conteve o próximo golpe e a encarou. Natalie viu o torpor violento esvaziando-se do semblante dele: preocupação. Agora Hernandez estava repassando os últimos minutos e arrependendo-se de cada segundo.
— Meu Deus...
— Vamos embora. — Wolf falou depois de notar que o bandido ainda estava respirando. Isso deveria significar que ficaria bem. Inchado, dolorido, desfigurado, mas bem.
Levantaram-se. Diego sujando a camisa de sangue fresco ao reajeitar sua gravata. As pessoas ao entorno continuavam impassíveis com seus rostos estáticos de bonecos e ninguém ousou falar qualquer coisa.
Wolf puxou o rapaz pela mão (a que não tinha resquícios da violência), em silêncio, como se nada tivesse acontecido. Escutaram o barulho de uma sirene quase ao mesmo tempo em que Diego destravou o alarme. Tomara que seja uma ambulância, e não a polícia. Tomara que seja uma ambulância tomara que seja uma ambulância tomara que...
Era a ambulância.
Entraram no carro e Hernandez custou a dar a partida. Estava tremendo. Num súbito, Natalie se esticou no banco do carona e carimbou um beijo na bochecha dele, bem devagar:
— Heróis merecem muito mais... do que cinco minutos.
E ele se esqueceu de toda a merda feita nos últimos instantes.
Saíram logo em seguida. Sem se preocupar em olhar para trás... Sem nenhum pingo de arrependimento.
Capítulo 26
— Ele deve ser mais do que um motorista pra você, não?
— Hum?
— Diego Hernandez. — O atendente da delegacia de Los Angeles parou de bater a caneta contra o balcão. Ficou encarando . — Sabe, você não precisava ter vindo aqui pessoalmente. Poderia ter mandado alguém para pagar a fiança.
— E por que quer saber? — franziu o rosto. — Você trabalha para algum jornal ou algo assim?
— Não, eu... Puxa, vocês famosos são desconfiados. — O rapaz disse todo sem graça, então deslizou os olhos de volta para a tela do computador.
arrependeu-se em menos de um minuto do jeito ríspido como falou. Redimiu-se:
— Ei, Leonard, certo?
O nome estava gravado numa plaquinha em cima do balcão. continuou depois que o rapaz o olhou hesitante:
—É que a tia do Diego é como uma mãe para mim. Precisava fazer isso por ela.
— Ah, legal. — Leonard animou-se com a mudança de humor do músico: sinal verde para puxar mais assunto. — Ele tem sorte. Trabalhar para “ ”. — Fez o nome soar como o de uma multinacional importante. — Você deve pagar bem, hum?
deu apenas uma arqueada de sobrancelha em resposta. Piscou bem devagar, tentando não perder a paciência. Pela segunda vez.
— Er... então... logo, logo, Torres vai te atender. — O jovem ajeitou os óculos grandes demais para o rosto miúdo. Sua voz diminuiu um tom, como se estivesse contando algo ultrassecreto. — E isto não é algo que Torres costuma fazer, sabe? Falar pessoalmente.
— E pela sua cara, eu deveria estar preocupado.
— Se você fosse um qualquer eu diria que sim, mas já que é famoso, talvez Torres só queira aproveitar para ver um astro de verdade, diferente deste bando de fracassados. — Leonard lançou um olhar desdenhoso para as excentricidades ao redor. Precisava-se ter senso de humor para trabalhar ali. O lugar mais parecia uma mistura dos bastidores da Universal Studios com um hospício. A esquerda de , separado pela distância de quatro assentos, um homem vestido de palhaço batia os pés no chão com impaciência. A maquiagem havia sido desconfigurada pelo calor angelino e ficou na dúvida se o real propósito da fantasia era assombrar ou divertir criancinhas.
— Esse delegado Torres... acha que ele vai dificultar as coisas? — perguntou.
O atendente riu de alguma piada particular.
— Delegada Torres. É uma mulher. Ou quase isso. — Revirou os olhos por trás dos óculos. —Se for com a sua cara, não vai dificultar.
Ouviram o barulho de saltos altos. notou todos os policiais reajeitarem a postura. Leonard, uma dupla de investigadores que jogava conversa fora, e outra atendente que parecia estar em uma ligação sem relação com trabalho, trataram de arrumar algo útil para fazer. Quem quer que fosse a dona daquele par de sapatos barulhentos, parecia botar banca no lugar. apostaria cinquenta dólares na tal Torres.
A mulher surgiu do corredor. Seu blazer tinha um decote generoso que atraiu o olhar de como um canto de sereia. Os cabelos negros de amazona amarrados em um alto rabo de cavalo também eram algo a se notar. Madura, mas ainda assim, muito atraente.
— Senhor ? — Ela falou, voz estrondosa. Nem se preocupou em proteger a identidade do músico. Mas sejamos justos, quem ligaria para quando Elvis Presley, o verdadeiro rei do rock, estava logo ali, cantando com as mãos algemadas no centro da Delegacia? Ninguém, certamente.
fechou a boca antes que o queixo caísse, abriu novamente para responder:
— Sou eu.
— Pode vir comigo.
A delegada sabia andar nos saltos. teve que apertar o passo para acompanhá-la. Entraram numa sala que levava o nome e o cargo gravados na porta: “Carmen Torres - Chefe do Departamento de Polícia de Los Angeles”
Torres sentou-se e indicou que fizesse o mesmo. Duas pilhas de celulose empoeiradas balançaram na mesa quando a mulher arrastou a cadeira.
— Ok. São vinte e cinco mil dólares. — Carmen lançou de uma vez. — O pagamento pode ser feito por transferência bancária ou por guia de recolhimento.
segurou o ar.
— Vinte e cinco mil dólares? — A admiração com a qual ele repetiu fez com que rugas surgissem em sua testa.
— Exato. — A mulher levantou o olhar para o músico depois de assinar o que seriam alguns ofícios. — Tem alguma objeção, senhor ?
— Bem, eu não entendo muito de lei, mas... — ele ajeitou-se na cadeira, medindo o peso de suas palavras, o queixo afundado entre o polegar e o indicador — isso não é muito alto? Afinal, o cara havia tomado à bolsa da Natalie, o Diego só fez o que foi preciso para pegá-la de volta.
Carmen deixou o resto da papelada de lado e encarou .
— “Só fez o que foi preciso para pegá-la de volta”. Ponto de vista interessante.
— Não... foi?
Ela suspirou e recostou-se na cadeira. Fora da sala podia-se ouvir o chiado incessante de telefones num acorde desarmônico. O crime não para em Los Angeles.
— Vou ser sincera, . Este caso não era para ser exatamente um problema. Minha delegacia tem coisas mais importantes para tratar do que ladrões de bolsas. Mas a “dona da bolsa” em questão, somado ao fato do vídeo rodando a internet... O comissário me ligou pessoalmente. A central de direitos humanos está espalhando que não tomaríamos nenhuma atitude, pois o agressor trabalha para um casal de celebridades. Se eu não fizesse nada, minha cabeça iria rolar.
E depois de tudo que Carmen Torres disse, focou apenas numa palavra:
— Vídeo? — Ele franziu o cenho. — Tem um vídeo do assalto?
— Não viu? — A mulher disse como se fosse óbvio. Ela própria o recebera em três grupos de Whats diferentes. — Alguém filmou de um celular e... viralizou.
Depois de um bom tempo só olhando o músico, Carmen Torres perguntou:
— Ora. Você não tem noção de como o Diego deixou o bandido, não é?
A mente de tentou preencher as lacunas da história contada às pressas pelo motorista antes da polícia chegar e levá-lo. Uma história que, aparentemente, não lhe fora contada com todos os detalhes.
— Eu... é. Não tenho. — Ele disse.
—Tem estômago forte, senhor ?
A resposta de foi um aceno curto.
Torres deu uma olhada rápida para o relógio de pulso antes de se levantar.
— Vou te mostrar o que seu motorista fez. Talvez vendo com seus próprios olhos, passe a achar o valor da fiança bastante razoável.
seguiu a delegada sob uma onda de pescoços virados. (Não por ele, mas por Carmen Torres). Então estavam em um corredor afunilado com celas apertadas que expunham a pintura gasta e o metal enferrujado das grades. Um cheiro pútrido ferroso ardeu nas narinas, algo que lembrava sangue.
— Este... — Torres apontou para o homem encolhido no canto da segunda cela, metade do rosto desfigurado. — é Tyler Walker. Indiciado por tentativa de assalto na Rodeo Drive.
— Cristo... — balbuciou o santo nome na ausência de palavras que definiam melhor o estrago diante dos seus olhos. Quando percebeu a presença de Torres, Walker levantou-se do chão cinzento e correu até o limite da grade. As variações de roxo da sua face ficaram bem nítidas debaixo de uma luz amarela doentia.
— Vão me levar para um hospital? — O ladrão encarou Carmen com o olho esquerdo, o direito estava comprimido e perdido dentro da cavidade ocular inchada.
— Já falamos sobre isso, Walker. Está marcado para amanhã.
— Eu não estou bem, realmente não estou bem. Minha cabeça dói, mal consigo me virar e... Ei! Você, eu estou falando com você sua vaca estúpida! Eu preciso da merda de um hospital! — Cuspiu as palavras como um cão enfurecido quando Torres ofereceu-lhe um belo vislumbre das costas em resposta.
ficou incomodado, mas continuou seguindo a mulher que estava decidida a ignorar o assaltante.
— Ele não passou por um médico? — perguntou.
— Passou sim, e a ficha hospitalar dele é tão grande quanto a criminal. O Walker tem uma cabeça forte. Não é a primeira vez que rouba bolsas de pessoas erradas. Dessa vez teve o azar, ou sorte não sei, do seu motorista ser canhoto. Porque agora se ganhar outra placa de titânio, vai ser do lado direito do rosto. Literalmente um cabeça de ferro.
pensava em vilões de quadrinhos como Magneto e portas detectores de metal quando Torres parou repentinamente em frente à penúltima cela e chamou:
— Diego Hernandez.
A expressão de Diego variou da surpresa para vergonha quando avistou o patrão. Ainda usava o terno do serviço, um traje que não combinava com celas malcheirosas de delegacias.
— Hora de voltar para casa. — A mulher colocou a voz estrondosa em ação. Ela devia dar mais intensidade ao timbre toda vez que desejava intimidar. Aceitável, tinha uma reputação a zelar.
A própria Torres foi quem abriu a cela. Nada de sorrisos ou expressões de alívio da parte de Diego. Nem mesmo levantou-se de pronto. Só quando Carmen perguntou se o rapaz gostaria de prolongar sua estada e serviço de quarto, foi que Hernandez saiu do efeito cataléptico e caminhou receoso para o lado de fora da cela.
— Diego. — falou secamente.
O motorista não conseguiu olhar-lhe diretamente.
— Vamos? — Torres disse. — Acredito que vocês, mais do que ninguém, devem estar loucos para sumirem daqui.
Na volta, passariam novamente por Tyler Walker: o ladrão que agora reconsiderava ser a grande vítima. Quem preparou aquela logística das celas não havia se dado conta do efeito que seria para o homem ver Diego caminhando livre. Ou sabia e não se importava. Então o ato esperado aconteceu: Walker correu até o limite das grades exibindo seu meio rosto de abóbora e rosnou enfurecido:
— Vocês estão soltando este desgraçado!? Vocês realmente estão soltando o filho da puta que quase me matou!?
Ninguém falou nada. notou quando o motorista cerrou os punhos, as juntas da mão esquerda machucadas. Assim que deixaram a área das celas, o alívio preencheu os semblantes de Diego e . O de Torres continuou o mesmo. Nada daquilo era realmente demais para a mulher, já estava acostumada.
— Estão liberados. — Carmen Torres sorriu pela primeira vez. Marcas de expressão criaram formas côncavas ao redor dos lábios carnosos. — E , aqui está meu cartão, qualquer eventualidade pode me ligar.
tomou o cartão feito de um material acetinado. Provavelmente não teria nenhuma eventualidade, mas agradeceu mesmo assim.
Ouviram o sobrenome da Chefe de Policia ecoar da sala caótica depois que se viraram. Então pisaram ansiosos para fora da Delegacia, deixando o cheiro ferroso para trás.
*
No retrovisor do Dodge Challenger, os jardins áridos da Comstock Avenue e suas casas ao melhor estilo californiano fundiam-se num borrão terroso. quem dirigia, tanto pela sequência de eventos anteriores como pelo fato de que ninguém, além do vocalista, possuir autorização para colocar as mãos no possante reformado. Até então, Diego permanecia estático no banco do carona, encarando os sapatos. E totalmente desconfortável com aquela inversão de posições.
— O senhor não precisava pagar a fiança. — Diego quebrou o silêncio. deu de ombros e não falou nada, continuou com o olhar fixo no sinal vermelho. — Mas já que pagou, vou te pagar de volta.
— Não estou te cobrando.
— Eu faço questão.
— Já falei que não precisa, Diego.
A voz de Hernandez endureceu:
— Escuta, senhor , eu sei o que está tentando fazer, e não quero caridade.
Os olhos de deslizaram do trânsito para o rapaz, o pouco da boa educação que havia no seu timbre perdendo-se neste espaço.
— Não quer caridade, hum? Tudo bem. São vinte e cinco mil dólares, Hernandez. Vinte e cinco mil.
A informação recaiu sobre Diego como um grande peso. Claro que não tinha o valor. Era uma piada especialmente dolorosa toda essa merda. tinha tudo. A fama, o amor de Natalie. Todo dinheiro do mundo para esbanjar e de quebra comprar a liberdade dos outros.
Diego Hernandez odiava .
— Vinte e cinco mil... droga. — O rapaz riu de um jeito sofrido, seu orgulho em frangalhos.
engatou a primeira marcha quando o sinal se abriu. Deu um olhar elusivo para o rapaz antes de voltar a encarar o para-brisa.
— Então deixa pra lá, Diego. Não faz diferença.
Mais silêncio. Particularmente agradável, naquela situação. E de repente Bel Air já estava diante das vistas, uma pequena selva verde entre casas intrusas. Durante os segundos que precederam a abertura do portão, Diego questionou:
— Foi à senhorita Wolf quem pediu para você ir até a delegacia?
encarou o rapaz tempo suficiente para fazer com que ele se arrependesse da pergunta. Dois buracos poderiam formar-se no tapete do veículo e atravessar a lataria no lugar onde agora Hernandez encarava o chão.
— Não. Ela não pediu. Aliás, ela não me contou do assalto, nem que você quase matou um homem. E sabe, eu ainda estou tentando entender o porquê.
O motorista queria dizer que faria tudo de novo se precisasse, a recompensa valera a pena, mas não se atreveu:
— Era a senhorita Wolf. Não teria feito o mesmo?
não respondeu. Notou o pomo de adão do rapaz se levantar. Teve a impressão de que várias coisas passaram pelo rosto de Diego.
Coisas que ele jamais deveria saber.
*
se fechou no estúdio, o lugar funcionava como um tipo de refúgio: uma ótima desculpa para não ter que encontrar atrizes insuportáveis trançando pelos corredores da sua casa.
Tinha voltado a compor, mas naquela tarde em especial, não conseguiu concentrar-se na prévia do que seria faixa de um próximo álbum. A cena da delegacia ainda lhe martelava a mente. Ligou o computador e acessou a internet. No Youtube digitou o nome de Natalie Wolf e acresceu da palavra assalto.
O vídeo já passava das cinquenta mil visualizações. Eram dois minutos de gravação feita por um celular. Os punhos de Diego chocando-se contra o rosto do bandido e o som abafado proveniente do ato fizeram encolher-se na cadeira. O ladrão realmente tinha sorte. Sorte era uma definição bem infeliz para aquilo, mas melhor do que coisas piores que poderiam ter acontecido a Tyler Walker. Como seu corpo jazendo gelado dentro de uma gaveta de necrotério, por exemplo.
Nos segundos seguintes do vídeo: Natalie grita aterrorizada, agacha e diz algo para Diego. Então ele para. Eles se levantam. Ele segura sua mão de uma forma íntima, e ela não reluta...
Pelo contrário, ela corresponde.
A cena mais se aproximava de algo amoroso do que uma relação profissional.
Estava ali, diante dos seus olhos, a resposta à pergunta que fizera a Diego mais cedo. De repente, tudo pareceu ser tão óbvio que teve vontade de xingar-se de todos os nomes feios possíveis.
assistiu os últimos segundos novamente: vezes suficientes para ter certeza de que seu juízo crítico não estava sendo afetado por nenhum despeito infundado.
Olhou para a foto de Wolf em cima do piano (é claro que a mulher daria um jeito de marcar território). E a memória do músico fez a conexão com o dia que vinha tentando esquecer: os horríveis hematomas de Natalie, todos condensados ao redor da pinta que era sua marca registrada, logo acima dos lábios, na parte direita do rosto.
Não. Ele não poderia estar pensando isso. Blasfêmia pura. A mulher não seria tão doente assim. Meu Deus.
Mas tudo se encaixava.
Procurou pelo cartão dentro do bolso da calça e discou o número gravado. Ao terceiro toque, Carmen Torres atendeu.
— Delegada Torres? É . Você disse que eu poderia ligar em caso de alguma eventualidade.
— Olá, . Em que posso ajudar?
— Uma pergunta: hoje, quando me mostrou o Walker, você mencionou o fato do Diego ser canhoto. Qual a relevância disso?
escutou a mulher expirar uma risada.
— Duvidando da competência do meu Departamento, senhor ?
— De forma alguma — sorriu e esperou que o gesto pudesse ser captado do outro lado da linha pela chefe de polícia — é mais... uma curiosidade.
Torres pigarreou, mas a explicação foi curta:
— Os socos atingiram a área direita do rosto da vítima.
— Certo, então uma pessoa destra...
— Uma pessoa destra poderia fazer isso, claro, mas as chances são menores. Geralmente canhotos atingem a parte direita de um alvo que esteja posicionado a sua frente, enquanto destros, a parte esquerda. E foram socos repetitivos, todos no lado direito do rosto da vítima.
Tais como os que acertaram Natalie há um ano.
— Entendi.
— Mais alguma coisa que eu possa fazer por você?
— Na verdade, tem sim. Gostaria que calculasse o valor da fiança do assaltante, quero arcar com os custos e também com um atendimento médico.
O telefone ficou mudo por alguns instantes.
— É alguma brincadeira, senhor ?
— E eu sou louco de brincar com uma Chefe de polícia?
Uma gargalhada curta ecoou do outro lado da linha.
— Vocês famosos... — Carmen suspirou. — retorno a ligação informando o valor, não estou na Delegacia agora.
Depois de desligar, caminhou até a janela espelhada que permitia a vista da área de lazer da mansão. Na varanda da casa dos empregados, Diego discutia com sua tia Eva.
Filho da mãe...
O músico ficou andando em círculos pelo estúdio, conexões formando-se em sua cabeça. Antes que o carpete pudesse sofrer alguma sequela, ele parou, bem de frente uma foto de todos os integrantes da Dark Paradise pregada na parede.
Esmurrar o painel de madeira era uma ideia idiota, mas dada a singularidade da situação, estava mais para um experimento científico. Foi até a imagem em tamanho real e escolheu aleatoriamente o que viria a ser seu alvo: Elijah Nash.
Ok. Não tão aleatoriamente assim.
O isolamento acústico do estúdio abafou o som do que foram vários socos, todos atingindo a parte esquerda do rosto do guitarrista. Ele soube imediatamente o que aquilo significava e não pode acreditar.Aquela vaca psicopata... Era sujo, era doentio. Era bom demais para ser verdade. E aí estava o problema: suposições impossíveis de provar.
Sentou-se e ficou encarando o nada.
Se ao menos...
A ideia surgiu como uma inspiração.
Procurou pelo contato dos Miller na lista telefônica online. Era bem improvável que deixassem esse tipo de informação pública. Mas qualquer coisa, bastava atravessar a rua, apertar a campainha e torcer para que Tanya Miller já tivesse perdoado pelo fatídico dia em que os moradores de Bel Air tiveram sua segurança abalada por um roqueiro bêbado e seu tigre de estimação.
Melhor continuar procurando o número do telefone.
O que acabou encontrando no catálogo convencional menos de três minutos depois. Exalou o ar vezes o suficiente para não deixar nenhuma emoção transparecer na voz, e então discou.
— Senhora Miller? É , o seu vizinho. — Uma pausa curta para o que seria pura cordialidade fingida de Tanya Miller. — Encontrei com Keith um dia desses e ele mencionou que vocês possuem sistema de câmeras... Certo... As imagens ficam gravadas? — Outra pausa, dessa vez, para o que seria o sorriso mais satisfeito do mundo no rosto de :
Alívio.
— A senhora poderia me ceder às gravações de uma noite específica?
— Hum?
— Diego Hernandez. — O atendente da delegacia de Los Angeles parou de bater a caneta contra o balcão. Ficou encarando . — Sabe, você não precisava ter vindo aqui pessoalmente. Poderia ter mandado alguém para pagar a fiança.
— E por que quer saber? — franziu o rosto. — Você trabalha para algum jornal ou algo assim?
— Não, eu... Puxa, vocês famosos são desconfiados. — O rapaz disse todo sem graça, então deslizou os olhos de volta para a tela do computador.
arrependeu-se em menos de um minuto do jeito ríspido como falou. Redimiu-se:
— Ei, Leonard, certo?
O nome estava gravado numa plaquinha em cima do balcão. continuou depois que o rapaz o olhou hesitante:
—É que a tia do Diego é como uma mãe para mim. Precisava fazer isso por ela.
— Ah, legal. — Leonard animou-se com a mudança de humor do músico: sinal verde para puxar mais assunto. — Ele tem sorte. Trabalhar para “ ”. — Fez o nome soar como o de uma multinacional importante. — Você deve pagar bem, hum?
deu apenas uma arqueada de sobrancelha em resposta. Piscou bem devagar, tentando não perder a paciência. Pela segunda vez.
— Er... então... logo, logo, Torres vai te atender. — O jovem ajeitou os óculos grandes demais para o rosto miúdo. Sua voz diminuiu um tom, como se estivesse contando algo ultrassecreto. — E isto não é algo que Torres costuma fazer, sabe? Falar pessoalmente.
— E pela sua cara, eu deveria estar preocupado.
— Se você fosse um qualquer eu diria que sim, mas já que é famoso, talvez Torres só queira aproveitar para ver um astro de verdade, diferente deste bando de fracassados. — Leonard lançou um olhar desdenhoso para as excentricidades ao redor. Precisava-se ter senso de humor para trabalhar ali. O lugar mais parecia uma mistura dos bastidores da Universal Studios com um hospício. A esquerda de , separado pela distância de quatro assentos, um homem vestido de palhaço batia os pés no chão com impaciência. A maquiagem havia sido desconfigurada pelo calor angelino e ficou na dúvida se o real propósito da fantasia era assombrar ou divertir criancinhas.
— Esse delegado Torres... acha que ele vai dificultar as coisas? — perguntou.
O atendente riu de alguma piada particular.
— Delegada Torres. É uma mulher. Ou quase isso. — Revirou os olhos por trás dos óculos. —Se for com a sua cara, não vai dificultar.
Ouviram o barulho de saltos altos. notou todos os policiais reajeitarem a postura. Leonard, uma dupla de investigadores que jogava conversa fora, e outra atendente que parecia estar em uma ligação sem relação com trabalho, trataram de arrumar algo útil para fazer. Quem quer que fosse a dona daquele par de sapatos barulhentos, parecia botar banca no lugar. apostaria cinquenta dólares na tal Torres.
A mulher surgiu do corredor. Seu blazer tinha um decote generoso que atraiu o olhar de como um canto de sereia. Os cabelos negros de amazona amarrados em um alto rabo de cavalo também eram algo a se notar. Madura, mas ainda assim, muito atraente.
— Senhor ? — Ela falou, voz estrondosa. Nem se preocupou em proteger a identidade do músico. Mas sejamos justos, quem ligaria para quando Elvis Presley, o verdadeiro rei do rock, estava logo ali, cantando com as mãos algemadas no centro da Delegacia? Ninguém, certamente.
fechou a boca antes que o queixo caísse, abriu novamente para responder:
— Sou eu.
— Pode vir comigo.
A delegada sabia andar nos saltos. teve que apertar o passo para acompanhá-la. Entraram numa sala que levava o nome e o cargo gravados na porta: “Carmen Torres - Chefe do Departamento de Polícia de Los Angeles”
Torres sentou-se e indicou que fizesse o mesmo. Duas pilhas de celulose empoeiradas balançaram na mesa quando a mulher arrastou a cadeira.
— Ok. São vinte e cinco mil dólares. — Carmen lançou de uma vez. — O pagamento pode ser feito por transferência bancária ou por guia de recolhimento.
segurou o ar.
— Vinte e cinco mil dólares? — A admiração com a qual ele repetiu fez com que rugas surgissem em sua testa.
— Exato. — A mulher levantou o olhar para o músico depois de assinar o que seriam alguns ofícios. — Tem alguma objeção, senhor ?
— Bem, eu não entendo muito de lei, mas... — ele ajeitou-se na cadeira, medindo o peso de suas palavras, o queixo afundado entre o polegar e o indicador — isso não é muito alto? Afinal, o cara havia tomado à bolsa da Natalie, o Diego só fez o que foi preciso para pegá-la de volta.
Carmen deixou o resto da papelada de lado e encarou .
— “Só fez o que foi preciso para pegá-la de volta”. Ponto de vista interessante.
— Não... foi?
Ela suspirou e recostou-se na cadeira. Fora da sala podia-se ouvir o chiado incessante de telefones num acorde desarmônico. O crime não para em Los Angeles.
— Vou ser sincera, . Este caso não era para ser exatamente um problema. Minha delegacia tem coisas mais importantes para tratar do que ladrões de bolsas. Mas a “dona da bolsa” em questão, somado ao fato do vídeo rodando a internet... O comissário me ligou pessoalmente. A central de direitos humanos está espalhando que não tomaríamos nenhuma atitude, pois o agressor trabalha para um casal de celebridades. Se eu não fizesse nada, minha cabeça iria rolar.
E depois de tudo que Carmen Torres disse, focou apenas numa palavra:
— Vídeo? — Ele franziu o cenho. — Tem um vídeo do assalto?
— Não viu? — A mulher disse como se fosse óbvio. Ela própria o recebera em três grupos de Whats diferentes. — Alguém filmou de um celular e... viralizou.
Depois de um bom tempo só olhando o músico, Carmen Torres perguntou:
— Ora. Você não tem noção de como o Diego deixou o bandido, não é?
A mente de tentou preencher as lacunas da história contada às pressas pelo motorista antes da polícia chegar e levá-lo. Uma história que, aparentemente, não lhe fora contada com todos os detalhes.
— Eu... é. Não tenho. — Ele disse.
—Tem estômago forte, senhor ?
A resposta de foi um aceno curto.
Torres deu uma olhada rápida para o relógio de pulso antes de se levantar.
— Vou te mostrar o que seu motorista fez. Talvez vendo com seus próprios olhos, passe a achar o valor da fiança bastante razoável.
seguiu a delegada sob uma onda de pescoços virados. (Não por ele, mas por Carmen Torres). Então estavam em um corredor afunilado com celas apertadas que expunham a pintura gasta e o metal enferrujado das grades. Um cheiro pútrido ferroso ardeu nas narinas, algo que lembrava sangue.
— Este... — Torres apontou para o homem encolhido no canto da segunda cela, metade do rosto desfigurado. — é Tyler Walker. Indiciado por tentativa de assalto na Rodeo Drive.
— Cristo... — balbuciou o santo nome na ausência de palavras que definiam melhor o estrago diante dos seus olhos. Quando percebeu a presença de Torres, Walker levantou-se do chão cinzento e correu até o limite da grade. As variações de roxo da sua face ficaram bem nítidas debaixo de uma luz amarela doentia.
— Vão me levar para um hospital? — O ladrão encarou Carmen com o olho esquerdo, o direito estava comprimido e perdido dentro da cavidade ocular inchada.
— Já falamos sobre isso, Walker. Está marcado para amanhã.
— Eu não estou bem, realmente não estou bem. Minha cabeça dói, mal consigo me virar e... Ei! Você, eu estou falando com você sua vaca estúpida! Eu preciso da merda de um hospital! — Cuspiu as palavras como um cão enfurecido quando Torres ofereceu-lhe um belo vislumbre das costas em resposta.
ficou incomodado, mas continuou seguindo a mulher que estava decidida a ignorar o assaltante.
— Ele não passou por um médico? — perguntou.
— Passou sim, e a ficha hospitalar dele é tão grande quanto a criminal. O Walker tem uma cabeça forte. Não é a primeira vez que rouba bolsas de pessoas erradas. Dessa vez teve o azar, ou sorte não sei, do seu motorista ser canhoto. Porque agora se ganhar outra placa de titânio, vai ser do lado direito do rosto. Literalmente um cabeça de ferro.
pensava em vilões de quadrinhos como Magneto e portas detectores de metal quando Torres parou repentinamente em frente à penúltima cela e chamou:
— Diego Hernandez.
A expressão de Diego variou da surpresa para vergonha quando avistou o patrão. Ainda usava o terno do serviço, um traje que não combinava com celas malcheirosas de delegacias.
— Hora de voltar para casa. — A mulher colocou a voz estrondosa em ação. Ela devia dar mais intensidade ao timbre toda vez que desejava intimidar. Aceitável, tinha uma reputação a zelar.
A própria Torres foi quem abriu a cela. Nada de sorrisos ou expressões de alívio da parte de Diego. Nem mesmo levantou-se de pronto. Só quando Carmen perguntou se o rapaz gostaria de prolongar sua estada e serviço de quarto, foi que Hernandez saiu do efeito cataléptico e caminhou receoso para o lado de fora da cela.
— Diego. — falou secamente.
O motorista não conseguiu olhar-lhe diretamente.
— Vamos? — Torres disse. — Acredito que vocês, mais do que ninguém, devem estar loucos para sumirem daqui.
Na volta, passariam novamente por Tyler Walker: o ladrão que agora reconsiderava ser a grande vítima. Quem preparou aquela logística das celas não havia se dado conta do efeito que seria para o homem ver Diego caminhando livre. Ou sabia e não se importava. Então o ato esperado aconteceu: Walker correu até o limite das grades exibindo seu meio rosto de abóbora e rosnou enfurecido:
— Vocês estão soltando este desgraçado!? Vocês realmente estão soltando o filho da puta que quase me matou!?
Ninguém falou nada. notou quando o motorista cerrou os punhos, as juntas da mão esquerda machucadas. Assim que deixaram a área das celas, o alívio preencheu os semblantes de Diego e . O de Torres continuou o mesmo. Nada daquilo era realmente demais para a mulher, já estava acostumada.
— Estão liberados. — Carmen Torres sorriu pela primeira vez. Marcas de expressão criaram formas côncavas ao redor dos lábios carnosos. — E , aqui está meu cartão, qualquer eventualidade pode me ligar.
tomou o cartão feito de um material acetinado. Provavelmente não teria nenhuma eventualidade, mas agradeceu mesmo assim.
Ouviram o sobrenome da Chefe de Policia ecoar da sala caótica depois que se viraram. Então pisaram ansiosos para fora da Delegacia, deixando o cheiro ferroso para trás.
No retrovisor do Dodge Challenger, os jardins áridos da Comstock Avenue e suas casas ao melhor estilo californiano fundiam-se num borrão terroso. quem dirigia, tanto pela sequência de eventos anteriores como pelo fato de que ninguém, além do vocalista, possuir autorização para colocar as mãos no possante reformado. Até então, Diego permanecia estático no banco do carona, encarando os sapatos. E totalmente desconfortável com aquela inversão de posições.
— O senhor não precisava pagar a fiança. — Diego quebrou o silêncio. deu de ombros e não falou nada, continuou com o olhar fixo no sinal vermelho. — Mas já que pagou, vou te pagar de volta.
— Não estou te cobrando.
— Eu faço questão.
— Já falei que não precisa, Diego.
A voz de Hernandez endureceu:
— Escuta, senhor , eu sei o que está tentando fazer, e não quero caridade.
Os olhos de deslizaram do trânsito para o rapaz, o pouco da boa educação que havia no seu timbre perdendo-se neste espaço.
— Não quer caridade, hum? Tudo bem. São vinte e cinco mil dólares, Hernandez. Vinte e cinco mil.
A informação recaiu sobre Diego como um grande peso. Claro que não tinha o valor. Era uma piada especialmente dolorosa toda essa merda. tinha tudo. A fama, o amor de Natalie. Todo dinheiro do mundo para esbanjar e de quebra comprar a liberdade dos outros.
Diego Hernandez odiava .
— Vinte e cinco mil... droga. — O rapaz riu de um jeito sofrido, seu orgulho em frangalhos.
engatou a primeira marcha quando o sinal se abriu. Deu um olhar elusivo para o rapaz antes de voltar a encarar o para-brisa.
— Então deixa pra lá, Diego. Não faz diferença.
Mais silêncio. Particularmente agradável, naquela situação. E de repente Bel Air já estava diante das vistas, uma pequena selva verde entre casas intrusas. Durante os segundos que precederam a abertura do portão, Diego questionou:
— Foi à senhorita Wolf quem pediu para você ir até a delegacia?
encarou o rapaz tempo suficiente para fazer com que ele se arrependesse da pergunta. Dois buracos poderiam formar-se no tapete do veículo e atravessar a lataria no lugar onde agora Hernandez encarava o chão.
— Não. Ela não pediu. Aliás, ela não me contou do assalto, nem que você quase matou um homem. E sabe, eu ainda estou tentando entender o porquê.
O motorista queria dizer que faria tudo de novo se precisasse, a recompensa valera a pena, mas não se atreveu:
— Era a senhorita Wolf. Não teria feito o mesmo?
não respondeu. Notou o pomo de adão do rapaz se levantar. Teve a impressão de que várias coisas passaram pelo rosto de Diego.
Coisas que ele jamais deveria saber.
se fechou no estúdio, o lugar funcionava como um tipo de refúgio: uma ótima desculpa para não ter que encontrar atrizes insuportáveis trançando pelos corredores da sua casa.
Tinha voltado a compor, mas naquela tarde em especial, não conseguiu concentrar-se na prévia do que seria faixa de um próximo álbum. A cena da delegacia ainda lhe martelava a mente. Ligou o computador e acessou a internet. No Youtube digitou o nome de Natalie Wolf e acresceu da palavra assalto.
O vídeo já passava das cinquenta mil visualizações. Eram dois minutos de gravação feita por um celular. Os punhos de Diego chocando-se contra o rosto do bandido e o som abafado proveniente do ato fizeram encolher-se na cadeira. O ladrão realmente tinha sorte. Sorte era uma definição bem infeliz para aquilo, mas melhor do que coisas piores que poderiam ter acontecido a Tyler Walker. Como seu corpo jazendo gelado dentro de uma gaveta de necrotério, por exemplo.
Nos segundos seguintes do vídeo: Natalie grita aterrorizada, agacha e diz algo para Diego. Então ele para. Eles se levantam. Ele segura sua mão de uma forma íntima, e ela não reluta...
Pelo contrário, ela corresponde.
A cena mais se aproximava de algo amoroso do que uma relação profissional.
Estava ali, diante dos seus olhos, a resposta à pergunta que fizera a Diego mais cedo. De repente, tudo pareceu ser tão óbvio que teve vontade de xingar-se de todos os nomes feios possíveis.
assistiu os últimos segundos novamente: vezes suficientes para ter certeza de que seu juízo crítico não estava sendo afetado por nenhum despeito infundado.
Olhou para a foto de Wolf em cima do piano (é claro que a mulher daria um jeito de marcar território). E a memória do músico fez a conexão com o dia que vinha tentando esquecer: os horríveis hematomas de Natalie, todos condensados ao redor da pinta que era sua marca registrada, logo acima dos lábios, na parte direita do rosto.
Não. Ele não poderia estar pensando isso. Blasfêmia pura. A mulher não seria tão doente assim. Meu Deus.
Mas tudo se encaixava.
Procurou pelo cartão dentro do bolso da calça e discou o número gravado. Ao terceiro toque, Carmen Torres atendeu.
— Delegada Torres? É . Você disse que eu poderia ligar em caso de alguma eventualidade.
— Olá, . Em que posso ajudar?
— Uma pergunta: hoje, quando me mostrou o Walker, você mencionou o fato do Diego ser canhoto. Qual a relevância disso?
escutou a mulher expirar uma risada.
— Duvidando da competência do meu Departamento, senhor ?
— De forma alguma — sorriu e esperou que o gesto pudesse ser captado do outro lado da linha pela chefe de polícia — é mais... uma curiosidade.
Torres pigarreou, mas a explicação foi curta:
— Os socos atingiram a área direita do rosto da vítima.
— Certo, então uma pessoa destra...
— Uma pessoa destra poderia fazer isso, claro, mas as chances são menores. Geralmente canhotos atingem a parte direita de um alvo que esteja posicionado a sua frente, enquanto destros, a parte esquerda. E foram socos repetitivos, todos no lado direito do rosto da vítima.
Tais como os que acertaram Natalie há um ano.
— Entendi.
— Mais alguma coisa que eu possa fazer por você?
— Na verdade, tem sim. Gostaria que calculasse o valor da fiança do assaltante, quero arcar com os custos e também com um atendimento médico.
O telefone ficou mudo por alguns instantes.
— É alguma brincadeira, senhor ?
— E eu sou louco de brincar com uma Chefe de polícia?
Uma gargalhada curta ecoou do outro lado da linha.
— Vocês famosos... — Carmen suspirou. — retorno a ligação informando o valor, não estou na Delegacia agora.
Depois de desligar, caminhou até a janela espelhada que permitia a vista da área de lazer da mansão. Na varanda da casa dos empregados, Diego discutia com sua tia Eva.
Filho da mãe...
O músico ficou andando em círculos pelo estúdio, conexões formando-se em sua cabeça. Antes que o carpete pudesse sofrer alguma sequela, ele parou, bem de frente uma foto de todos os integrantes da Dark Paradise pregada na parede.
Esmurrar o painel de madeira era uma ideia idiota, mas dada a singularidade da situação, estava mais para um experimento científico. Foi até a imagem em tamanho real e escolheu aleatoriamente o que viria a ser seu alvo: Elijah Nash.
Ok. Não tão aleatoriamente assim.
O isolamento acústico do estúdio abafou o som do que foram vários socos, todos atingindo a parte esquerda do rosto do guitarrista. Ele soube imediatamente o que aquilo significava e não pode acreditar.Aquela vaca psicopata... Era sujo, era doentio. Era bom demais para ser verdade. E aí estava o problema: suposições impossíveis de provar.
Sentou-se e ficou encarando o nada.
Se ao menos...
A ideia surgiu como uma inspiração.
Procurou pelo contato dos Miller na lista telefônica online. Era bem improvável que deixassem esse tipo de informação pública. Mas qualquer coisa, bastava atravessar a rua, apertar a campainha e torcer para que Tanya Miller já tivesse perdoado pelo fatídico dia em que os moradores de Bel Air tiveram sua segurança abalada por um roqueiro bêbado e seu tigre de estimação.
Melhor continuar procurando o número do telefone.
O que acabou encontrando no catálogo convencional menos de três minutos depois. Exalou o ar vezes o suficiente para não deixar nenhuma emoção transparecer na voz, e então discou.
— Senhora Miller? É , o seu vizinho. — Uma pausa curta para o que seria pura cordialidade fingida de Tanya Miller. — Encontrei com Keith um dia desses e ele mencionou que vocês possuem sistema de câmeras... Certo... As imagens ficam gravadas? — Outra pausa, dessa vez, para o que seria o sorriso mais satisfeito do mundo no rosto de :
Alívio.
— A senhora poderia me ceder às gravações de uma noite específica?
Capítulo 27
Se pudessem apontar o lado ruim de ser famoso, fazer o social em eventos tediosos de parcialidade questionável encabeçaria a lista negra dos rapazes da Dark Paradise. Consideravam uma tortura sem fim aguentar longas horas de bajulações quando poderiam estar em casa assistindo a sua série favorita, ou bebendo bons uísques, ou bebendo bons uísques na companhia de belas garotas, ou fazendo qualquer coisa que não incluísse Natalie. Eram esses os pontos de vista de Tommy, Dom, Elijah e , respectivamente.
— Merda de celular! Justo quando eu ia fazer um “divine” na fase 206 essa porra acaba a bateria! — Elijah disse alto o suficiente para fazer com que pescoços virassem em sua direção pedindo silêncio, para os quais o guitarrista devolveu um sinal nada ortodoxo em resposta.
Ingrid e Tommy abaixaram o rosto para conter as risadas. Ao contrário de Nash, a esposa de Morello gostava das premiações. Era uma desculpa para ficar ao lado marido sem se preocupar com temperatura de mamadeiras ou horário certo de crianças estarem na cama. Horas preciosas de descanso graças a uma babá confiável.
— Não sei se aguento muito mais dessa palhaçada agora que estou sem Candy Crush. — O guitarrista lamentou-se depois de guardar o celular já sem utilidade no bolso da calça.
— Eu tenho uma tática para aguentar. — Dominic disse em resposta a Nash.
— Já vem chapado?
— Não, seu idiota. — O baterista franziu o cenho, mas depois deu um sorriso sórdido. — Foco nas cantoras de música pop que vamos encontrar na festa pós-Grammy. De preferência, as que fazem as coreografias mais elásticas nos palcos.
Dominic e Elijah riram da piadinha suja. Ingrid ficou vermelha e Tommy tampou os ouvidos da esposa, protegendo-a das baboseiras que saiam da boca dos colegas de banda. Na outra ponta da fileira, Robert controlava sua paciência, Natalie revirava os olhos, e não demonstrava nenhuma reação...
Porque estava pensando na sequência de eventos mostrada pelas câmeras dos Miller.
E no fato do carro de Natalie não aparecer em nenhuma das imagens na noite em que foi agredida.
— Vocês vão ficar quietos ou vão esperar sermos expulsos do evento? — Robert Barlet cochichou irritado. Estava sentado entre e Nash, usando um paletó azul marinho e gravata combinando, nada das nuances de gosto duvidoso. O empresário estava feliz pelo fato dos garotos não terem boicotado o Grammy Awards daquele ano. Já querer que eles se comportassem, e tivessem a decência de usar trajes finos ao invés das roupas surradas habituais, foi esperar demais.
— Foda-se se nos expulsarem. As pessoas nunca se lembram dos ganhadores mesmo. Lembram-se dos escândalos. Pode até aumentar as vendas do disco. — Dominic observou todo perspicaz. E uma ideia torpe brilhou nos olhos de Elijah.
— Dom, você é um gênio. — O guitarrista disse antes de se virar para Morello. — Ei, Tommy, o que acha de mostrar seu lindo traseiro na hora de pegar o Grammy? Para ajudar com a venda dos discos, hum?
Ingrid riu alto.
— Por que não mostra o seu? — Tommy lançou de volta. — Mas não fique todo animadinho, Nash. Ouvi boatos de que os Losts Revolvers levam o prêmio este ano.
No palco do evento, Kyle Salmon, apresentava o prêmio de cantor revelação utilizando-se de piadinhas pré-decoradas. A plateia riu de cada uma delas, como robozinhos programados.
— Losts Revolvers... — Elijah bufou o nome da banda rival com escárnio. — Losts Revolvers podem chupar meu pau.
Morello, Dominic e Ingrid só controlaram as gargalhadas depois que uma cantora de R&B sentada atrás deles pediu silêncio. Robert afundou as mãos na testa, envergonhado. Elijah deu um beijo na bochecha do empresário para tentar fazer o homem relaxar, mas que só teve o efeito de tirá-lo do sério mais um pouco. Depois o guitarrista olhou para e notou que o colega permanecia introspectivo:
— Ei, .
saiu do transe e levantou o queixo para Nash.
— Está muito sério, raio de sol. — Elijah disse. Ele e haviam deixado o episódio de Jeremy Hunter para trás e resolvido suas diferenças. Tudo estava em paz novamente dentro da Dark Paradise e os fãs agradeciam. — Nervoso?
— Hum? Não, eu... estou apenas preparando um discurso mental no caso de sermos ganhadores.
Natalie virou-se para o namorado e apertou-lhe a mão em apoio, controlou a vontade de repuxá-la. Um sorriso de rasgar as bochechas cresceu no rosto de Robert Barlet depois de ouvir o comentário do vocalista.
— Que ótimo, ! Muito bem! — O empresário lhe disse, então correu os olhos pelos outros rapazes. — Vocês escutaram? Façam como o vocalista. Cada um de vocês. Preparem algo legal no caso de subirem ao palco, certo?
— Eu já preparei o meu. — Nash respondeu. — Vai ser algo do tipo: não sei o que significa toda essa merda, e pra falar a verdade, não acho que significa alguma coisa.*
Tommy Morello balançou a cabeça e sorriu para Elijah. Dividiam a mesma opinião sobre a premiação ter mais relação com interesses de gravadoras do que com a música em si. Em cima do palco, a vencedora do álbum do ano beijou a estatueta em formato de gramofone depois que terminou seu um milhão de agradecimentos. Durante as palmas, um cinegrafista captou o exato momento em que a concorrente da premiada abriu um bocejo.
— Melhor discurso de todos, Elijah. — Tommy disse em concordância. — Mas aposto cem dólares que você não tem coragem de falar isso no palco.
— Ah, é? Você vai perder.
— Pelo amor de Deus, Thomas, não incentive isso! Não sabe que esse aí é maluco? — Robert Barlet vociferou e Ingrid deu um puxão de orelha no marido em repressão. Os músicos ignoraram e Elijah selou o acordo com Tommy por meio de um aperto de mão:
— Feito, garanhão italiano. Espero que não seja o dinheiro pra comprar o leitinho do menino Matt. — Nash disse.
— Boa. — Dominic também se empolgou com a aposta. — Vamos ver quem faz o melhor lá em cima. Eu vou dizer para os Losts Revolvers se ferrarem. E também mandar um beijo para mamãe e papai, claro.
Os garotos riram e Robert ficou vermelho tentando tirar tudo aquilo de ideia. , ainda incrivelmente concentrado, não falou uma palavra. Olhos verdes perdidos em pensamentos profundos. Conferiu o relógio de pulso. Àquela hora, um de seus contadores já devia estar realizando o acerto de Diego Hernandez sob o fundamento: “você sabe muito bem o porquê, seu cretino de merda”.
Provavelmente, o contador pularia a parte dos xingamentos.
Uma nova salva de palmas inundou o lugar enquanto a loirinha cantora-pop descia do palco carregando seu quarto Grammy da noite.
— Céus, seus colegas são uns animais sem modos. — Natalie balbuciou no ouvido do namorado. — Não sabem se vestir, nem se comportar. Ainda bem que você está investindo no cinema e não vai precisar desta banda para se manter no estrelato.
virou o rosto lentamente para a mulher. Então lhe deu o maior dos olhares de desprezo.
— Estes animais sem modos, são a minha família.
Ela arregalou bem os olhos e esboçou um sorrisinho nervoso.
— , eu... — Natalie começou, mas foi interrompida por Robert.
— Ei, escutem, escutem! Vai ser agora! — Robert balançou os braços e ajeitou a gravata que repentinamente parecia querer estrangulá-lo. Ingrid ensinou-lhe a mesma tática de respiração que trabalhava com Matt quando o garoto estava ansioso.
Josh Gold, roqueiro aposentado dos anos oitenta, foi o incumbido de anunciar o prêmio de melhor álbum de rock enquanto as câmeras focavam cada uma das cinco bandas indicadas. Os garotos da Dark Paradise fizeram caras e bocas quando mostrados nos telões. Ingrid entrou na brincadeira, Robert sorriu sem graça e Natalie virou o rosto, constrangida.
Segundos de suspense: na vigésima nona fileira do Staples Center, os corações de , Thomas, Elijah e Dominic estavam na boca antes de Josh Gold falar:
— E o prêmio de melhor álbum de rock vai para... Still of the Night, da Dark Paradise!
Palmas fervorosas fizeram pano de fundo junto ao single mais tocado do último álbum: Your Toxic Love, composição de e Elijah Nash. Os dois funcionavam muito melhor juntos e até os jurados conservadores do Grammy Awards sabiam disso. Os meninos comemoram barulhentos a sua maneira. Elijah, Dom e Tommy levantaram-se depois de receberem cumprimentos de Ingrid e Robert. ainda estava sentado, perplexo. A câmera focou o instante em que Natalie saudou o namorado com um abraço entusiástico.
— , levanta, caralho! — Elijah disse para o vocalista. Antes que o fizesse, Natalie deu-lhe um leve puxão no braço. Ele a encarou de volta.
— , querido, não se esqueça de agradecer a sua namorada quando estiver lá em cima. — Ela disse.
E foi naquele instante que diabinhos travessos sopraram algo no ouvido de .
— Claro que não vou esquecer. — disse, então seguiu os colegas. Robert Barlet permaneceu em seu lugar, acompanhando com lágrimas nos olhos os passos dos garotos. Um pai orgulhoso.
Nas fileiras centrais próximas ao palco, sentado junto com os membros da sua banda, estava Richie Black, vocalista do Lost Revolvers e também desafeto declarado da Dark Paradise, que não perdeu oportunidade quando os rapazes passaram por ele:
— Ei, , quando sai seu próximo filminho idiota? Soube que vai ser algo do tipo Crepúsculo, é verdade?
ignorou, tanto o comentário quanto a gargalhada geral dos colegas de Black, mas Elijah, claro, preferiu devolver a gentileza:
— Olá, Richie. Vai sair no mesmo mês em que vocês fizerem algo melhor do que o lixo que vocês chamam de música. — Deu um aceno de pescoço para a mulher ao lado dele. — Garota bonita. Melhor do que as prostitutas que estava com você no Rainbow semana passada.
Nash, Dom e Tommy tiveram tempo de rir da carranca da modelo e atual namorada de Black antes de seguirem.
— , anime-se, cara! Nosso primeiro Grammy! — Tommy deu uma sacudida nos ombros do amigo, mas ele nem reagiu, continuou andando meio que no piloto automático.
Subiram os degraus da escada luminosa, ainda ovacionados pela plateia. Josh Gold fez as honras: entregou o troféu e o microfone para . Palmas cessaram e luzes de xênon focaram os quatro enquanto o público esperou pelo discurso de . Um minuto, dois...
E o trilar de grilos poderia ser ouvido dos últimos lugares do Staples Center.
Dominic deu uma arqueada de sobrancelhas para o colega, Tommy sussurrou o nome do vocalista, e quando Elijah pensou em lhe tomar o microfone, começou a dizer:
— Bem... este foi um ano especialmente difícil para a Dark Paradise. Não é segredo o que aconteceu comigo e, obviamente, a banda teve que arcar com as consequências disso. Então... eu gostaria de agradecer ao nosso empresário, Robert Barlet, por ser o pai que eu nunca tive, agradecer aos meus colegas que foram extremamente compreensíveis quando precisei me ausentar dos ensaios e adiar a turnê de Still of Night. — Só a banda entendeu e apenas Elijah riu da ironia — Por fim, quero fazer um agradecimento especial a Natalie Wolf, minha bela acompanhante desta noite. — Algum exímio cinegrafista foi ágil o bastante para reproduzir a face da atriz no telão. Um sorriso em câmera lenta tomando seu rosto bonito.
E que fez questão de retirar:
— Que além de ser uma excelente atriz... também é uma filha da puta mentirosa.
Clamor tomou conta do auditório. Os três colegas de entreolharam-se pasmos. O vocalista continuou sem se abalar:
— Mas antes do agradecimento, gostaria de lhes contar uma breve história. Era uma vez uma atriz que não media esforços para conseguir o que queria. Ela possuía tudo: fama, dinheiro, beleza; era o tipo de garota que poderia ter qualquer homem a seus pés… mas ela queria alguém cujo coração já pertencia à outra. Então essa mulher dissimulada, para quem os fins escusos sempre justificam os meios, não aceitando ser preterida, achou que seria uma boa ideia armar para cima desse cara. A melhor forma de conseguir isso? Forjando uma agressão, claro.
Por baixo do batom carmin, os lábios de Natalie perderam a cor. E como se estivessem acabado de assistir ao ápice de um grande truque de mágica, as pessoas emitiram exclamações de surpresa após ouvirem as palavras do grande vencedor da noite.
— Mas que porra é essa, ? Me dê o microfone. — Dominic tentou puxar o objeto, o vocalista se esquivou.
— Eu ainda não acabei, Dom. — falou para o amigo antes de se voltar para uma plateia atenta de verdade pela primeira vez desde o início da premiação. — Não quero me colocar no papel de vítima, mesmo porque não há vítimas nessa história. E por um lado, até entendo toda a ira da senhorita Wolf e seu desejo de vingança. Eu era um completo idiota à época: alcoólatra, mulherengo, mas preciso deixar claro que nunca fui um agressor de mulheres. Então obrigado por tudo, Natalie. Por ter criado um jogo psicológico baseado em um sentimento de culpa, sobre algo que eu não fiz, só para poder manter um relacionamento de fachada. Obrigado por me proporcionar a experiência de vivenciar um bloqueio criativo que quase me tirou da minha própria banda, tenho certeza de que vou conseguir compor algo bacana sobre isso no futuro. Ah, obrigado também por me fazer estrelar uma merda de comédia romântica sob ameaças de expor uma história falsa que, adivinha só? Vazou de qualquer forma e me fez ser alvo de ódio gratuito enquanto você pagava de santinha para a mídia. É. Muito obrigado por tudo, Natalie. E meu mais sincero: vai se foder.
Quando terminou, um alfinete poderia cair na parte mais afastada do salão que iria doer nos tímpanos.
Mas o alvoroço começou tão logo o vocalista desceu as escadas. As pessoas ainda tentando entender o que de fato tinha acontecido nos últimos instantes. Celebridades agitadas sobre seus assentos, cochichos incoerentes na plateia e o rosto de Natalie exposto nos telões: era essa a cena transmitida ao vivo para toda América e canais filiados ao redor do mundo.
De cima do palco, os colegas observaram caminhando até a saída do evento, passos tranquilos de quem não tinha nada a ver com toda balbúrdia acontecendo ao redor. Seguranças afastaram-se da porta para que ele deixasse o lugar e uma chuva de flashes crepitou sobre o homem quando ele apontou o pé para fora.
De repente música alegre: uma tentativa dos organizadores de apagar os resquícios da cena catastrófica. Aos poucos o ar também foi preenchido pelo barulho de pessoas recompondo-se nos seus lugares.
— Meu Deus, Natalie... — Robert Barlet encarou a atriz com aversão — o que o disse... é verdade?
Natalie Wolf, ainda em estado de choque, demorou um bom tempo para olhar para Robert. Quando o fez, seus olhos estavam embargados, as mãos trêmulas.
— Eu...e-eu... com licença. — A mulher levantou-se, mas manteve a cabeça baixa. Correu em direção à saída tentando ignorar os comentários. Antes de chegar ao hall, tropeçou na calda do vestido verde esmeralda e a humilhação foi completa. Repórteres já a esperavam com uma torrente de perguntas.
O público ainda fervilhava quando Elijah tomou o microfone de volta, bateu os dedos contra a capitação do aparelho, e fez as pessoas protestarem pelo ruído agudo, mas também lhe darem a devida atenção. Então com um sorriso de quem ainda se divertia com o ocorrido, soprou bem o ar antes de dizer:
— Puxa... Definitivamente, nosso vocalista sabe como fazer um bom discurso. E em nome da Dark Paradise, só o que me resta dizer é... que... ahn... que estamos muito felizes com o prêmio. Obrigado.
E quanto à aposta feita: nem Tommy, nem Elijah, nem Dom; ficaram mais ricos aquela noite.
*Nota: Foram mais ou menos essas palavras usadas pelo vocalista do Pearl Jam, Eddie Vedder, quando a banda recebeu o Grammy em 1996.
— Merda de celular! Justo quando eu ia fazer um “divine” na fase 206 essa porra acaba a bateria! — Elijah disse alto o suficiente para fazer com que pescoços virassem em sua direção pedindo silêncio, para os quais o guitarrista devolveu um sinal nada ortodoxo em resposta.
Ingrid e Tommy abaixaram o rosto para conter as risadas. Ao contrário de Nash, a esposa de Morello gostava das premiações. Era uma desculpa para ficar ao lado marido sem se preocupar com temperatura de mamadeiras ou horário certo de crianças estarem na cama. Horas preciosas de descanso graças a uma babá confiável.
— Não sei se aguento muito mais dessa palhaçada agora que estou sem Candy Crush. — O guitarrista lamentou-se depois de guardar o celular já sem utilidade no bolso da calça.
— Eu tenho uma tática para aguentar. — Dominic disse em resposta a Nash.
— Já vem chapado?
— Não, seu idiota. — O baterista franziu o cenho, mas depois deu um sorriso sórdido. — Foco nas cantoras de música pop que vamos encontrar na festa pós-Grammy. De preferência, as que fazem as coreografias mais elásticas nos palcos.
Dominic e Elijah riram da piadinha suja. Ingrid ficou vermelha e Tommy tampou os ouvidos da esposa, protegendo-a das baboseiras que saiam da boca dos colegas de banda. Na outra ponta da fileira, Robert controlava sua paciência, Natalie revirava os olhos, e não demonstrava nenhuma reação...
Porque estava pensando na sequência de eventos mostrada pelas câmeras dos Miller.
E no fato do carro de Natalie não aparecer em nenhuma das imagens na noite em que foi agredida.
— Vocês vão ficar quietos ou vão esperar sermos expulsos do evento? — Robert Barlet cochichou irritado. Estava sentado entre e Nash, usando um paletó azul marinho e gravata combinando, nada das nuances de gosto duvidoso. O empresário estava feliz pelo fato dos garotos não terem boicotado o Grammy Awards daquele ano. Já querer que eles se comportassem, e tivessem a decência de usar trajes finos ao invés das roupas surradas habituais, foi esperar demais.
— Foda-se se nos expulsarem. As pessoas nunca se lembram dos ganhadores mesmo. Lembram-se dos escândalos. Pode até aumentar as vendas do disco. — Dominic observou todo perspicaz. E uma ideia torpe brilhou nos olhos de Elijah.
— Dom, você é um gênio. — O guitarrista disse antes de se virar para Morello. — Ei, Tommy, o que acha de mostrar seu lindo traseiro na hora de pegar o Grammy? Para ajudar com a venda dos discos, hum?
Ingrid riu alto.
— Por que não mostra o seu? — Tommy lançou de volta. — Mas não fique todo animadinho, Nash. Ouvi boatos de que os Losts Revolvers levam o prêmio este ano.
No palco do evento, Kyle Salmon, apresentava o prêmio de cantor revelação utilizando-se de piadinhas pré-decoradas. A plateia riu de cada uma delas, como robozinhos programados.
— Losts Revolvers... — Elijah bufou o nome da banda rival com escárnio. — Losts Revolvers podem chupar meu pau.
Morello, Dominic e Ingrid só controlaram as gargalhadas depois que uma cantora de R&B sentada atrás deles pediu silêncio. Robert afundou as mãos na testa, envergonhado. Elijah deu um beijo na bochecha do empresário para tentar fazer o homem relaxar, mas que só teve o efeito de tirá-lo do sério mais um pouco. Depois o guitarrista olhou para e notou que o colega permanecia introspectivo:
— Ei, .
saiu do transe e levantou o queixo para Nash.
— Está muito sério, raio de sol. — Elijah disse. Ele e haviam deixado o episódio de Jeremy Hunter para trás e resolvido suas diferenças. Tudo estava em paz novamente dentro da Dark Paradise e os fãs agradeciam. — Nervoso?
— Hum? Não, eu... estou apenas preparando um discurso mental no caso de sermos ganhadores.
Natalie virou-se para o namorado e apertou-lhe a mão em apoio, controlou a vontade de repuxá-la. Um sorriso de rasgar as bochechas cresceu no rosto de Robert Barlet depois de ouvir o comentário do vocalista.
— Que ótimo, ! Muito bem! — O empresário lhe disse, então correu os olhos pelos outros rapazes. — Vocês escutaram? Façam como o vocalista. Cada um de vocês. Preparem algo legal no caso de subirem ao palco, certo?
— Eu já preparei o meu. — Nash respondeu. — Vai ser algo do tipo: não sei o que significa toda essa merda, e pra falar a verdade, não acho que significa alguma coisa.*
Tommy Morello balançou a cabeça e sorriu para Elijah. Dividiam a mesma opinião sobre a premiação ter mais relação com interesses de gravadoras do que com a música em si. Em cima do palco, a vencedora do álbum do ano beijou a estatueta em formato de gramofone depois que terminou seu um milhão de agradecimentos. Durante as palmas, um cinegrafista captou o exato momento em que a concorrente da premiada abriu um bocejo.
— Melhor discurso de todos, Elijah. — Tommy disse em concordância. — Mas aposto cem dólares que você não tem coragem de falar isso no palco.
— Ah, é? Você vai perder.
— Pelo amor de Deus, Thomas, não incentive isso! Não sabe que esse aí é maluco? — Robert Barlet vociferou e Ingrid deu um puxão de orelha no marido em repressão. Os músicos ignoraram e Elijah selou o acordo com Tommy por meio de um aperto de mão:
— Feito, garanhão italiano. Espero que não seja o dinheiro pra comprar o leitinho do menino Matt. — Nash disse.
— Boa. — Dominic também se empolgou com a aposta. — Vamos ver quem faz o melhor lá em cima. Eu vou dizer para os Losts Revolvers se ferrarem. E também mandar um beijo para mamãe e papai, claro.
Os garotos riram e Robert ficou vermelho tentando tirar tudo aquilo de ideia. , ainda incrivelmente concentrado, não falou uma palavra. Olhos verdes perdidos em pensamentos profundos. Conferiu o relógio de pulso. Àquela hora, um de seus contadores já devia estar realizando o acerto de Diego Hernandez sob o fundamento: “você sabe muito bem o porquê, seu cretino de merda”.
Provavelmente, o contador pularia a parte dos xingamentos.
Uma nova salva de palmas inundou o lugar enquanto a loirinha cantora-pop descia do palco carregando seu quarto Grammy da noite.
— Céus, seus colegas são uns animais sem modos. — Natalie balbuciou no ouvido do namorado. — Não sabem se vestir, nem se comportar. Ainda bem que você está investindo no cinema e não vai precisar desta banda para se manter no estrelato.
virou o rosto lentamente para a mulher. Então lhe deu o maior dos olhares de desprezo.
— Estes animais sem modos, são a minha família.
Ela arregalou bem os olhos e esboçou um sorrisinho nervoso.
— , eu... — Natalie começou, mas foi interrompida por Robert.
— Ei, escutem, escutem! Vai ser agora! — Robert balançou os braços e ajeitou a gravata que repentinamente parecia querer estrangulá-lo. Ingrid ensinou-lhe a mesma tática de respiração que trabalhava com Matt quando o garoto estava ansioso.
Josh Gold, roqueiro aposentado dos anos oitenta, foi o incumbido de anunciar o prêmio de melhor álbum de rock enquanto as câmeras focavam cada uma das cinco bandas indicadas. Os garotos da Dark Paradise fizeram caras e bocas quando mostrados nos telões. Ingrid entrou na brincadeira, Robert sorriu sem graça e Natalie virou o rosto, constrangida.
Segundos de suspense: na vigésima nona fileira do Staples Center, os corações de , Thomas, Elijah e Dominic estavam na boca antes de Josh Gold falar:
— E o prêmio de melhor álbum de rock vai para... Still of the Night, da Dark Paradise!
Palmas fervorosas fizeram pano de fundo junto ao single mais tocado do último álbum: Your Toxic Love, composição de e Elijah Nash. Os dois funcionavam muito melhor juntos e até os jurados conservadores do Grammy Awards sabiam disso. Os meninos comemoram barulhentos a sua maneira. Elijah, Dom e Tommy levantaram-se depois de receberem cumprimentos de Ingrid e Robert. ainda estava sentado, perplexo. A câmera focou o instante em que Natalie saudou o namorado com um abraço entusiástico.
— , levanta, caralho! — Elijah disse para o vocalista. Antes que o fizesse, Natalie deu-lhe um leve puxão no braço. Ele a encarou de volta.
— , querido, não se esqueça de agradecer a sua namorada quando estiver lá em cima. — Ela disse.
E foi naquele instante que diabinhos travessos sopraram algo no ouvido de .
— Claro que não vou esquecer. — disse, então seguiu os colegas. Robert Barlet permaneceu em seu lugar, acompanhando com lágrimas nos olhos os passos dos garotos. Um pai orgulhoso.
Nas fileiras centrais próximas ao palco, sentado junto com os membros da sua banda, estava Richie Black, vocalista do Lost Revolvers e também desafeto declarado da Dark Paradise, que não perdeu oportunidade quando os rapazes passaram por ele:
— Ei, , quando sai seu próximo filminho idiota? Soube que vai ser algo do tipo Crepúsculo, é verdade?
ignorou, tanto o comentário quanto a gargalhada geral dos colegas de Black, mas Elijah, claro, preferiu devolver a gentileza:
— Olá, Richie. Vai sair no mesmo mês em que vocês fizerem algo melhor do que o lixo que vocês chamam de música. — Deu um aceno de pescoço para a mulher ao lado dele. — Garota bonita. Melhor do que as prostitutas que estava com você no Rainbow semana passada.
Nash, Dom e Tommy tiveram tempo de rir da carranca da modelo e atual namorada de Black antes de seguirem.
— , anime-se, cara! Nosso primeiro Grammy! — Tommy deu uma sacudida nos ombros do amigo, mas ele nem reagiu, continuou andando meio que no piloto automático.
Subiram os degraus da escada luminosa, ainda ovacionados pela plateia. Josh Gold fez as honras: entregou o troféu e o microfone para . Palmas cessaram e luzes de xênon focaram os quatro enquanto o público esperou pelo discurso de . Um minuto, dois...
E o trilar de grilos poderia ser ouvido dos últimos lugares do Staples Center.
Dominic deu uma arqueada de sobrancelhas para o colega, Tommy sussurrou o nome do vocalista, e quando Elijah pensou em lhe tomar o microfone, começou a dizer:
— Bem... este foi um ano especialmente difícil para a Dark Paradise. Não é segredo o que aconteceu comigo e, obviamente, a banda teve que arcar com as consequências disso. Então... eu gostaria de agradecer ao nosso empresário, Robert Barlet, por ser o pai que eu nunca tive, agradecer aos meus colegas que foram extremamente compreensíveis quando precisei me ausentar dos ensaios e adiar a turnê de Still of Night. — Só a banda entendeu e apenas Elijah riu da ironia — Por fim, quero fazer um agradecimento especial a Natalie Wolf, minha bela acompanhante desta noite. — Algum exímio cinegrafista foi ágil o bastante para reproduzir a face da atriz no telão. Um sorriso em câmera lenta tomando seu rosto bonito.
E que fez questão de retirar:
— Que além de ser uma excelente atriz... também é uma filha da puta mentirosa.
Clamor tomou conta do auditório. Os três colegas de entreolharam-se pasmos. O vocalista continuou sem se abalar:
— Mas antes do agradecimento, gostaria de lhes contar uma breve história. Era uma vez uma atriz que não media esforços para conseguir o que queria. Ela possuía tudo: fama, dinheiro, beleza; era o tipo de garota que poderia ter qualquer homem a seus pés… mas ela queria alguém cujo coração já pertencia à outra. Então essa mulher dissimulada, para quem os fins escusos sempre justificam os meios, não aceitando ser preterida, achou que seria uma boa ideia armar para cima desse cara. A melhor forma de conseguir isso? Forjando uma agressão, claro.
Por baixo do batom carmin, os lábios de Natalie perderam a cor. E como se estivessem acabado de assistir ao ápice de um grande truque de mágica, as pessoas emitiram exclamações de surpresa após ouvirem as palavras do grande vencedor da noite.
— Mas que porra é essa, ? Me dê o microfone. — Dominic tentou puxar o objeto, o vocalista se esquivou.
— Eu ainda não acabei, Dom. — falou para o amigo antes de se voltar para uma plateia atenta de verdade pela primeira vez desde o início da premiação. — Não quero me colocar no papel de vítima, mesmo porque não há vítimas nessa história. E por um lado, até entendo toda a ira da senhorita Wolf e seu desejo de vingança. Eu era um completo idiota à época: alcoólatra, mulherengo, mas preciso deixar claro que nunca fui um agressor de mulheres. Então obrigado por tudo, Natalie. Por ter criado um jogo psicológico baseado em um sentimento de culpa, sobre algo que eu não fiz, só para poder manter um relacionamento de fachada. Obrigado por me proporcionar a experiência de vivenciar um bloqueio criativo que quase me tirou da minha própria banda, tenho certeza de que vou conseguir compor algo bacana sobre isso no futuro. Ah, obrigado também por me fazer estrelar uma merda de comédia romântica sob ameaças de expor uma história falsa que, adivinha só? Vazou de qualquer forma e me fez ser alvo de ódio gratuito enquanto você pagava de santinha para a mídia. É. Muito obrigado por tudo, Natalie. E meu mais sincero: vai se foder.
Quando terminou, um alfinete poderia cair na parte mais afastada do salão que iria doer nos tímpanos.
Mas o alvoroço começou tão logo o vocalista desceu as escadas. As pessoas ainda tentando entender o que de fato tinha acontecido nos últimos instantes. Celebridades agitadas sobre seus assentos, cochichos incoerentes na plateia e o rosto de Natalie exposto nos telões: era essa a cena transmitida ao vivo para toda América e canais filiados ao redor do mundo.
De cima do palco, os colegas observaram caminhando até a saída do evento, passos tranquilos de quem não tinha nada a ver com toda balbúrdia acontecendo ao redor. Seguranças afastaram-se da porta para que ele deixasse o lugar e uma chuva de flashes crepitou sobre o homem quando ele apontou o pé para fora.
De repente música alegre: uma tentativa dos organizadores de apagar os resquícios da cena catastrófica. Aos poucos o ar também foi preenchido pelo barulho de pessoas recompondo-se nos seus lugares.
— Meu Deus, Natalie... — Robert Barlet encarou a atriz com aversão — o que o disse... é verdade?
Natalie Wolf, ainda em estado de choque, demorou um bom tempo para olhar para Robert. Quando o fez, seus olhos estavam embargados, as mãos trêmulas.
— Eu...e-eu... com licença. — A mulher levantou-se, mas manteve a cabeça baixa. Correu em direção à saída tentando ignorar os comentários. Antes de chegar ao hall, tropeçou na calda do vestido verde esmeralda e a humilhação foi completa. Repórteres já a esperavam com uma torrente de perguntas.
O público ainda fervilhava quando Elijah tomou o microfone de volta, bateu os dedos contra a capitação do aparelho, e fez as pessoas protestarem pelo ruído agudo, mas também lhe darem a devida atenção. Então com um sorriso de quem ainda se divertia com o ocorrido, soprou bem o ar antes de dizer:
— Puxa... Definitivamente, nosso vocalista sabe como fazer um bom discurso. E em nome da Dark Paradise, só o que me resta dizer é... que... ahn... que estamos muito felizes com o prêmio. Obrigado.
E quanto à aposta feita: nem Tommy, nem Elijah, nem Dom; ficaram mais ricos aquela noite.
*Nota: Foram mais ou menos essas palavras usadas pelo vocalista do Pearl Jam, Eddie Vedder, quando a banda recebeu o Grammy em 1996.
MOCINHO RECUPERA MOCINHA.
OU VICE-VERSA
Capítulo 28
Cristiano ficou encarando. Afinal, o homem parado na porta do prédio não se tratava de um tipo comum. E não eram apenas as tatuagens, os braços tomados por elas, que faziam dele diferente, mas também as roupas, a postura, o cabelo amarrado em um rabo de cavalo curto…
O cara mais parecia um astro do rock.
E, curiosamente, estava apertando o interfone da sua ex-namorada.
Cris não tinha mais nenhum direito de se intrometer na vida de . O fato de ela ter deixado as chaves com o porteiro para que ele próprio pudesse retirar suas coisas confirmava que a garota não fazia questão alguma de encontrá-lo. Mas o rapaz não conseguia fazer conexões básicas naquele momento: seu orgulho ferido estava no comando. Colocou a caixa de papelão de lado e arregaçou as mangas. Dupla utilidade de bíceps bem trabalhados: atrair garotas, mas também intimidar.
Então empurrou a porta de vidro e perguntou sem questão de soar cordial:
— Está procurando quem? — Quando notou que o visitante era estrangeiro repetiu em bom inglês, claro. Publicitários tinham que dominar a língua da terra da rainha se quisessem garantir bons salários.
encarou o homem com cara de quem não quer dividir o lanche e devolveu tão ríspido quanto:
— Uma amiga.
— Hum. Posso saber o que quer com ela?
O músico apertou os olhos, não tinha bem certeza, porque havia excluído das suas redes sociais todas as fotos sugestivas de que ela havia levado o namoro à diante, mas o rosto daquele mauricinho arrogante não lhe era estranho.
— Por acaso você é…
— O namorado dela? Sim, sou. — Cris, o grande mentiroso da vez, elevou o queixo tentando ganhar alguns centímetros com o gesto. — E você quem é?
contraiu a mandíbula, a circulação do rosto parando em algum momento. Merda. Ok. Dentre todas as possibilidades, deveria ter cogitado dar de cara com o atual de quando chegasse ali e não apenas criado finais românticos à lá Nicholas Sparks. (Havia chorado em Diário de Uma Paixão, apesar de que nem se ameaçado de morte, admitiria isso para alguém). Já até podia antever Ingrid dizendo-lhe quando voltasse ao hotel: “Eu avisei! Ninguém chega assim de surpresa na casa de outra pessoa!”.
Não iria contar para ela.
Mordeu o interior da boca antes de responder:
— Sou um conhecido da , me chamo .
E Cris engoliu em seco a informação.
— ? — Ele piscou, fazendo a devida associação. Lembrou-se do serviço de publicidade feito nos últimos meses para o show de rock que ocorreria aquele fim de semana. Horas extras depois do expediente, uma loucura. — Peraí. ... ? Vocalista da Dark Paradise?
— Sim. — Como se ter a profissão mais cobiçada do mundo não fosse o suficiente, achou por bem acrescentar. —E também ex da sua garota.
A atualização de currículo veio acompanhada de um sorriso cruel.
e ex de . Ambas as informações recaíram sobre Cris como um peso de algumas toneladas. O homem que fazia garotas arrancarem os cabelos e recebia no palco calcinhas suficientes para abrir o próprio departamento de roupas íntimas, era o cara que o publicitário vinha tentando substituir.
É. Não era só Cristiano... Homem nenhum poderia competir com aquilo.
— Bem... Agora tudo faz sentido. — Cris molhou os lábios e cruzou os braços, músculos do bíceps quase explodindo a manga da camisa. — Você causou um dano imenso à . E eu quero que vá embora daqui.
arregalou os olhos e bufou uma risada.
— Sério? Um dano imenso?
Cris o encarou, o nó que havia surgido em sua mandíbula saltando ainda mais no rosto.
— Qual é a graça?
— O que você acabou de dizer. Porque não fui eu, foi ela quem saiu fora.
Oh. Ali estava a primeira informação realmente agradável que saiu da boca daquela personificação do mal. Cristiano, no entanto, não deixou transparecer seu deleite.
— Então o que tinha em mente vindo aqui, hein? Tentaria convencê-la a terminar um relacionamento feliz e saudável e voltar para você?
não tinha pensado naquilo antes. Mas sim. Era mais ou menos isso. Só que adoraria alterar a parte do "feliz e saudável" para algo como "monótono e com o cara errado". Entretanto, o que disse foi:
— Não. Apenas queria saber como ela está. Vim como um amigo, só isso. Nada de segundas intenções.
Cris suspirou, acalmando, ou quase isso, porque a verdade era que toda aquela situação estava lhe matando.
— Ah. Ok. Ela está bem. Mas não está aqui. Foi passar o fim de semana na casa dos pais, e não aqui, é fora do Rio.
— É, eu sei. — falou, assim, meio que sem querer. — Que é fora do Rio, quero dizer.
Uma ruga apareceu entre as sobrancelhas de Cristiano.
— Você os conhece?
— Sim... — De repente, sentiu-se detentor de algum tipo de vantagem. — Você não?
Fumaça poderia sair das narinas dilatadas de Cris antes dele começar a dizer:
— Bem, isso não te diz respeito, certo? Agora se me dá licença eu... — Cristiano deu uma olhada para a caixa obstruindo a porta do prédio, a ideia suja brilhou nos seus olhos — preciso terminar de trazer minhas coisas para o apartamento. Vamos morar juntos, eu e a . Então se quiser dizer algo para ela que não envolva furar meu olho, pode me falar que eu repasso a informação.
Ah, merda.
Péssima ideia. Péssima, péssima ideia a de ir até o Rio de Janeiro aquele final de semana. E o fato de ter um show para trinta mil pessoas num ginásio mais tarde não amenizava isso naquele momento. Ele deveria ter ligado, como Ingrid sugeriu. Claro. Isso, se ainda tivesse o telefone da garota em sua lista de contatos. Havia deletado o número depois da última conversa que tiveram.
— Ah... — A boca de formou uma curva, então sua voz baixou meio tom: vergonha. — Que… bom para vocês...
Cristiano deu um sorriso sem direito a dentes, o tipo que você oferece a alguém quando está sofrendo de constipação. Só agora com os ânimos mais refreados, foi que o publicitário percebeu o embrulho na mão do intruso. captou a deixa e logo tratou de dizer:
— Pode então só entregar este livro para ela, por favor? É o último do Amit Goswami. E... diz que eu mandei lembranças.
Cris deu um aceno em concordância. Pegou o pacote e apertou para ter certeza do conteúdo.
— É um romance?
fez uma careta de censura. A garota odiava romances e um namorado que se preze deveria saber disso. Ele sabia.
— Não, é um livro de física quântica. E é o autor favorito dela.
— Ah. Sim... já... ouvi ela comentar. Bem, ao menos não é um buquê de rosas. — Cris riu presunçoso, mas ainda com cara de poucos amigos.
E não conseguiu manter sua grande boca fechada.
— Buquê de rosas? Não, não mesmo. Eu jamais traria um buquê de rosas. Porque ela as acha medíocres. Eu traria girassóis que são suas flores favoritas, e também uma caixa de chocolates. Fica a dica, caso essa também seja outra coisa que não saiba sobre sua garota, hum?
O rosto de Cris ficou com marcas vermelhas como de um desenho animado, sangue ardendo em seus olhos castanhos.
— Olha aqui — deu um passo em direção a e levantou um dedo — você poderia ser o presidente dos Estados Unidos, o Papa... — parou para repensar o quão superior eram seus exemplos se comparados a um vocalista de rock milionário — ou... o Presidente e o Papa juntos. Eu não me importo. Não pense que pode chegar aqui botando banca e insinuar que não conheço minha namorada tão bem quanto você.
até pensou em recuar um passo, mas contrariando todo o bom senso que não existia nele aquele momento, deu dois para frente. Ninguém estava pensando ali, eram apenas Neandertais querendo marcar território sobre uma mulher a alguns quilômetros de distância.
O vocalista o encarou com olhos estreitados e a voz dura:
— Quer saber? Eu não insinuei. Eu afirmei. — Então forçou um sorriso. — Mas se ela escolheu você, desejo mesmo que sejam felizes.
Cristiano fungou. Estava fazendo um exercício e tanto de autocontrole, muito dele relacionado à interpretação: continuar bancando o namorado oficial quando o mais perto de suas bolas que estava disposta a chegar seria para arrancá-las se soubesse o que estava acontecendo ali. A garota não o perdoaria. Mas que se foda. Foi ela quem magoou os sentimentos do publicitário primeiro.
— Já acabou? — Cristiano disse.
— Já sim.
— Então dê logo o fora daqui.
Nada mais precisava ser dito. E já estava se preparando para atravessar a rua, tomado pela aceitação, quando Cristiano ladrou de uma distância segura.
— E , você ficar andando sem seguranças por aí... aqui é o Rio de Janeiro, colega. Pode ser assaltado, ou coisa pior. Aliás... Será que saberia se defender sozinho de uma surra?
Cristiano o estava intimidando. deveria ter ignorado e caminhado até o carro, e então seguido sua vida, voltado para o hotel, cantado suas músicas, ser consolado após o show por algumas daquelas fãs generosas que o veneravam como um deus. Deveria esquecer de vez tudo aquilo.
Mas tudo isso poderia esperar. Porque naquele momento, só o que enxergava era Cristiano parado na sarjeta sorrindo como um grande filho da puta e com escárnio brilhando nos olhos.
O sorriso, o escárnio e também um ou dois dentes.
adoraria arrancar isso tudo da cara dele.
conseguia apontar quatro motivos para justificar a viagem de última hora até Vassouras.
Motivo número um: saber que a banda do ex iria fazer um show épico na capital carioca.
Motivo número dois: receber dezenas de mensagens do outro ex dizendo que algumas tralhas esquecidas há meses no apartamento dela, de repente eram tão essenciais para a sobrevivência do homem que ele não poderia esperar até segunda para pegá-las de volta.
Muitos falecidos no mesmo dia. O Rio de Janeiro estava particularmente hostil aquele sábado.
Uma cadeira arrastou contra o assoalho de madeira e uma garota prestativa levantou-se logo em sequência:
— Senhora Íris, deixa eu te ajudar com os pratos. — Josi disse. A mãe de acabara de impressionar a visita com um estrogonofe saboroso. Josi repetiu duas vezes.
Motivo número três: quando a melhor amiga, roqueira convicta, abdica de ir ao show da Dark Paradise para lhe fazer companhia. Ônus que devem ser suportados em prol da amizade.
— Imagina, Josi! — Íris falou.— Fique sentadinha aí que vou trazer a sobremesa.
— Er... vocês querem ir para a sala, ver se tem algum filme legal na Neflix? Aliás, qual seu tipo de filme preferido? — A pergunta de Otávio foi direcionada para Josi. Ele agia de um jeito estranho. Nenhuma dúvida que a camisa de gola e as borrifadas a mais de perfume tinham relação com a convidada, a quem o garoto encarava como se fosse um aperitivo.
— Ficção Científica! Mas também curto muito terror, suspense, aventura... — Ela lhe respondeu. Mexia excessivamente no cabelo, olhos brilhantes e lábios em formato de coração expandindo-se num sorriso.
Motivo número quatro: seu irmão caçula e sua melhor amiga estarem visivelmente interessados um pelo outro. E nem teve a intenção de bancar o cupido quando convidou Josi para acompanhá-la.
Tá. Talvez um pouquinho.
Josi e Otávio iniciaram uma conversa animada em direção à sala: séries. Geeks sempre se entendem bem. aproveitou para deixá-los sozinhos e foi ajudar a mãe na cozinha. Pegou a bucha e começou pelos copos enquanto Íris separava um jogo de sobremesa para servir pêssegos com creme de leite.
— Acho que o Otávio gostou da sua amiga.— Íris disse. — Ela é um doce.
— Ela é sim.
— O fato de vocês duas terem vindo para cá este fim de semana... foi por que a banda do vai se apresentar no Rio hoje?
Mãe realmente sabia das coisas. Mas naquele caso, ajudou o fato do filho viciado em Dark Paradise lamuriar a semana inteira sobre. É claro que Otávio não iria ver a banda favorita. Que tipo de irmão ele seria se fosse? não pediu, o garoto decidiu sozinho. (E ele ter estourado o valor da mesada com jogos de PS nem teve tanto peso assim).
— Mãe, não quero ser rude, mas podemos mudar de assunto? Eu realmente não me sinto bem falando do .
Íris parou com o abridor de latas no ar e deu um olhar sugestivo para a filha.
— Ainda tem sentimentos por esse rapaz?
A garota não teve tempo de tirar os olhos da pia para responder, nem precisou, Íris era uma expert em entender nas entrelinhas:
— Achei que tivesse sido você a se afastar dele.
— Certa. De novo.
— E ele nunca mais te ligou?
— Não. Nunca.
— Nem depois daquela declaração que ele deu no Grammy?
sorriu soturna, mesmo sentindo como se uma faca tivesse sido girada dentro do seu peito.
— Ele é uma celebridade, mãe. Talvez aquela declaração nem tenha sido para mim. Quantas garotas ele não deve ter conhecido antes, durante, depois… — Ah, a odiosa conclusão. — E ainda que fosse, são águas passadas. É razoável que ele tenha seguido com sua vida.
— Você realmente acredita nisso, ?
— Eu não posso me dar o luxo de acreditar em algo diferente. Ele está no Brasil há cinco dias e vai embora amanhã. Se quisesse poderia ter me procurado, mas não procurou.
Pronto. Lá estavam elas, as lágrimas, reivindicando seu lugar de direito ao mundo e dando um espetáculo para quem quisesse ver.
— Ah, querida.
Sua mãe a abraçou. se sentiu segura como no dia em que tinha sete anos e lhe contou sobre sua primeira desilusão amorosa. Se soubesse que as coisas ficariam piores no futuro, teria desistido do sexo oposto de vez quando teve a chance. Íris passou a mão pelos seus cabelos, sussurrando que tudo ficaria bem, e mesmo que soubesse que aquilo não era totalmente verdade, foi a ideia certa ir até Vassouras. Longe de astros de rock e todo o resto.
— Dizem que as oportunidades aparecem em nossa vida apenas uma vez. — disse — Eu tive a oportunidade perfeita. E… eu estraguei tudo.
— Não, estragou não. Se for pra dar certo entre vocês, o universo vai conspirar para que tenham outra chance.
De repente uma voz forte: Charles. O homem devia estar na sala vendo as notícias quando Josi e Otávio chegaram. Escolheu dar privacidade para os dois, e de quebra, intrometer na conversa da filha:
— Ela fez a coisa certa, Íris. Então não confunda a cabeça da com essas bobeiras.
O policial foi até o refrigerador e retirou uma long neck. Rodou a garrafa na ponta da camisa para abri-la, depois sorveu um gole da bebida.
— Não são bobeiras, Charles. É o coração da sua filha.
Tristeza, arrependimento, raiva: sentiu um misto de tudo. Além, é claro, de descobrir que o vidro da taça não era a prova de descargas de nervosismo durante a lavagem.
— Merda!
Um rastro vermelho escorreu pela pia em direção ao ralo, à cor combinando sublimemente com os frutos das pimenteiras enfileiradas na janela da cozinha.
— ! — Íris exclamou.
— Meu Deus, , tudo bem? — Charles perguntou.
— Sim, sim. Está tudo bem.
— Parece que você vai precisar de uns pontos, querida. — Íris teve tempo de colocar as mãos sobre a boca antes de correr e pegar uma toalha para estancar o ferimento.
— Não mesmo. Já basta o corte, não quero levar agulhadas.
— O médico vai decidir. — Charles lhe disse.
— Meu Deus. Parem vocês dois. — exigiu, o algodão da toalha tomado por escarlate vivo. — Eu vou esperar. O corte não foi fundo.
— Não custa ir até o hospital.
— Pai. — Ela rosnou e Charles franziu os lábios, sabia que a garota era tão geniosa quanto ele: discussão perdida. Tanto Charles quanto Íris ficaram de boca fechada, o que não evitou que lhe dirigissem olhares de preocupação. os ignorou e caminhou em direção à sala, esperando que Otávio e Josi já tivessem falado sobre todas suas séries favoritas.
— Ei, pessoal. — avisou, só no caso dos dois terem se esquecido de que estavam em um ambiente familiar, ninguém respondeu. E não foi por conta de mãos bobas nem línguas fora da cavidade bucal de origem.
Mas porque os dois estavam encarados no televisor.
— É o saguão do hotel Fasano! — Josi disse animada, batendo as mãos sobre as pernas. — Vão ser eles!
— São mesmo! O Elijah, o Dom... Ah! E o Tommy! Ali atrás daquela pilastra! — Otávio complementou, tão ansioso quanto.
permaneceu imóvel no centro da sala. Tudo parou. Seu coração, seu pulmões, seus pés. Ela teria bastante utilidade sendo um exemplar na vitrine do Madame Tussauds naquele momento.
A garota pigarreou, voltando ao mundo dos vivos:
— O que... vocês estão vendo?
— Ah, . É... — Josi atrapalhou-se, como se estivesse fazendo algo bem errado. De fato, estava. — Uma coletiva com a Dark Paradise... Nossa! O que aconteceu com a sua mão? — Fez uma cara de dor quando viu a toalha manchada de sangue.
— Um cortezinho à toa.
— Não é melhor ir ao hospital? — Otávio perguntou e Íris, atrás dele, fez uma cara de que concordava com o filho.
— Não. — sorriu e tomou assento ao lado da amiga. — Quer saber? Vamos ficar aqui e assistir TV, juntos.
— Tem certeza?
— Sim, Josi, eu tenho certeza.
— Ok. Quer... escolher outra coisa? — Otávio perguntou sem firmeza na voz.
— Não. — respondeu e deu um sorriso forçado. — Vamos ver a coletiva.
Otávio e Josi entreolharam-se.
— Tem mesmo certeza?
— Sim! Façam silêncio que quero escutar.
As palavras de ecoaram contra as paredes e silêncio foi lhe devolvido em troca. E caso fosse julgada por esse mini ataque psicótico, ela atribuiria a culpa ao fato de ter perdido sangue agora a pouco. Oh, sim, genial.
— Tá... De qualquer forma, ele não parece estar lá mesmo. — Otávio começou a dizer, todo cuidadoso. “Ele” era , claro. As pessoas evitavam falar o nome do vocalista na presença da professora, como se fosse algum tipo de enfermidade grave. A doença que começa com B.
Charles chegou pouco tempo depois, perdendo todo o drama. E de repente, todos já estavam assistindo à reportagem ao vivo confortavelmente sentados. O pai de fez um ruído curto de lamentação quando notou o que maculava seu canal favorito. Mas ele era voto vencido. De qualquer forma, era menos incômodo ver materializado na tela do seu televisor do que na sua sala de jantar.
— Sei que o assunto é delicado, mas o que virou aquele caso envolvendo o e a ex-namorada? — Charles perguntou.
— A Natalie Wolf retratou-se publicamente com o . Deu uma declaração dizendo que levou um tombo dentro da própria casa, havia misturado alguns remédios para dormir e acabou ficando confusa. — Otávio falou.
— Já as más línguas, contam que ela estava tendo um caso com o motorista e que eles armaram contra o . — Josi complementou. — E eu prefiro essa versão.
O senhor bufou incrédulo.
— O quê? Não. Duvido. Inventar uma coisa dessas? Claro que foi um tombo.
Em pleno século XXI e pessoas achando que lobos se escondendo em peles de cordeiro não passam de invenções contadas pelas fábulas para assustar criancinhas...
Uma loba em especial agradece por ainda existir gente assim.
Aquela entrevista no saguão do Fasano não parecia fazer parte dos planos da Dark Paradise, ou então Robert não estaria visualmente incomodado carregando sacolas de compras feitas em terras tupiniquins, nem a esposa de Tommy precisaria ter corrido para se esconder quando a câmera focou o grupo de estrelas e seus acompanhantes não tão famosos.
Tommy foi o primeiro entrevistado. O baixista respondeu a uma série de perguntas triviais feitas pela jornalista antes dela notar o alguém tentando passar despercebido até os elevadores: , a expressão sem graça de quem é pego de surpresa por uma visita inconveniente numa manhã de domingo. O flash da câmera iluminou seu rosto revelando um corte no lábio inferior e outro logo abaixo da sobrancelha. O homem estava péssimo. Parecia ter acabado de sair de uma briga.
Ingrid, Tommy, Elijah, Dom e Robert encararam o vocalista, assustados. Entreolharam-se logo depois. Então sorriram como se nada estivesse acontecendo: típico de celebridades treinadas para camuflar algo. Essa sequência de atos foi bem sutil e talvez nem todos na sala tenham percebido.
— Oh! Puxa, ! — Joana Carvalho, a jornalista, falou ao microfone, transformando em notícia sua pseudopreocupação com o vocalista. — O que aconteceu?
sorriu antes de responder à mulher:
— Uma esteira de hotel muito rápida para minha falta de coordenação motora.
ao vivo. Puta merda. A terrível sensação de estar afundando em areia movediça tomou conta de . O coração dela arranhava o peito na tentativa de rasgar suas entranhas e alcançar o televisor: ou para lambê-lo ou para quebrá-lo em pedacinhos. As chances eram as mesmas. Meu Deus. Não, não, não. Aquilo não poderia estar acontecendo.
Robert e Dominic disfarçaram olhando para o chão, Ingrid cochichou algo no ouvido de Tommy, e Elijah segurou uma risada. Pois estava mentindo, obviamente.
— Espero que não atrapalhe o show. — Joana deu um sorriso reservado para o horário nobre.
— Não vai. Minhas cordas vocais estão intactas. — deu uma piscadinha, olhos instigantes encarando telespectadoras de todo o país. Os machucados no rosto não atenuavam sua beleza. Na verdade, conferiam-lhe até um certo glamour de pugilista. A cara abobada da repórter era prova disso.
— Claro! Que tolice a minha. — Joana expôs os dentes para cuja perfeição a mãe natureza não fora responsável. — Bem, vocês encerram hoje a turnê sulamericana de Still of Night. Como foi se apresentar em terras brasileiras?
— Ótimo. O público brasileiro é realmente foda.
— Opa! Sem palavrão ao vivo.
Era só não traduzir, Joana. revirou os olhos.
— Desculpe. O público brasileiro é F-O-D-A. — Ele soletrou.
gargalhou e todos a encararam com olhos arregalados. Ela pigarreou e se recompôs. O sangue do ferimento pareceu ter parado e não doía tanto. Ver homens bonitos na televisão talvez tivesse algum efeito anticoagulante-anestésico.
— E o que as pessoas podem esperar do show desta noite? — Joana perguntou para o vocalista.
— Bem... podem esperar um encerramento no alto padrão que a Dark Paradise oferece aos fãs de todo o mundo. Vamos apresentar nossos singles de maior sucesso e também algumas faixas do álbum novo. Vai ser bacana. — Ele disse.
De repente Robert colocou-se entre Joana e o vocalista, dispensando-a com um sorrisinho amarelo. Aquela presença nada deslumbrante certamente tiraria o público feminino do estado de torpor.
— Os músicos precisam se preparar para o show. Obrigado. — Barlet falou.
A câmera focalizou apenas a repórter, o flash reluzindo seu sorriso branco irritante. não prestava atenção no que ela dizia, apenas lutava para enxergar por trás do ombro de Joana, qualquer milímetro a mais do perfil de . A contragosto, Robert com sua camisa social quente demais para a atmosfera carioca, era muito mais visível.
Foi Otávio quem disse primeiro:
— Parece que eles estão discutindo…
— E a pamonha da repórter nem percebeu. — Josi completou.
Algo estava realmente acontecendo. Joana Carvalho ainda tagarelava enquanto Robert e levantavam dedos um para o outro. A garota desejou mandá-la calar a boca para poder ouvir um trecho da discussão.
— Filha! — Sua mãe a repreendeu, então se deu conta de que havia materializado sua vontade com palavras de baixo calão. Ela não respondeu e continuou com os olhos fixos no aparelho. Na outra ponta do sofá, Josi e Otávio riram.
Finalmente a jornalista percebeu a confusão no saguão do hotel. A mulher ficou com uma expressão perplexa quando ignorou as ameaças incompreensíveis do empresário e caminhou na direção dela. O interessante era que Ingrid e os rapazes da Dark Paradise estavam se divertindo com a cena. Fora Robert estar à beira de um ataque cardíaco, não parecia haver nenhum outro problema ali.
— Com licença. — retirou o microfone da mão da repórter que não fez nada para impedir.
Onde estava à jornalista bem preparada mesmo?
deu uma olhada ao redor, ninguém na sala ousava piscar.
— Mas o que ele está fazendo...? — Josi quebrou o silêncio sem esperar resposta em troca.
A câmera deu um zoom no rosto de . Cacete... Mesmo ferido e com o lábio partido o homem ainda era bonito como o inferno e fazia a desordem de jornalistas, os olhares de repreensão que recebia na sala, o risco de extinção que ursinhos pandas corriam... Tudo ficar em segundo plano.
Então com a ajuda do microfone recém-usurpado, a voz de se fez límpida e inconfundível:
— .
Sensações vertiginosas como as de um parque de diversões. A cabeça de girou e girou presa um looping infinito enquanto o restante do seu corpo afundava em queda livre. As pessoas presentes na sala possivelmente haviam acabado de lhe perguntar algo, mas ela não respondeu, estava ocupada demais segurando-se aos braços da poltrona para não cair.
Era como se o homem tivesse se materializado ali. Olhos diretos e certeiros nos seus. Se não tivesse visto de relance e conferido que os outros estavam tão surpresos quanto ela, acreditaria se tratar de um mal entendido.
Que todos mal entendidos tivessem olhos tão lindos quanto àqueles e atendessem pela alcunha de .
continuou:
— Se estiver assistindo... — correu as mãos pelos cabelos numa demonstração de nervosismo. Oh. nervoso. Isso era algo novo. — eu quero pedir desculpa pelo nariz do seu namorado... e... ahn...também pelo enfeite no jardim do seu prédio. Mandei alguém cuidar de tudo e vou arcar com os custos. — Pestanejou algo antes de continuar — Droga. Eu sei, não deveria estar me intrometendo na sua vida, só que não posso ignorar o que você me disse da última vez em que nos falamos. Não posso voltar para L.A. antes de te dizer algo pessoalmente. Você pode me odiar pelo que estou fazendo agora, mas prefiro correr o risco de acreditar que queira escutar o que tenho para falar. Não precisa ser tarde demais para fazermos tudo certo desta vez. Eu... adoraria que fosse ao show esta noite, . Eu realmente adoraria.
Os momentos seguintes aconteceram muito rápido. O próprio segurança de o puxou sem muita delicadeza, o microfone caiu no chão produzindo um som agudo. As mãos grosseiras de Robert foram ao encontro da lente da câmera que passou a focar apenas o chão de mármore lustroso e um embaralhado de pés e pernas agitados.
Alguém levantou o instrumento e Joana conseguiu recompor a pose confiante que por longos segundos ficou perdida sob um ar embasbacado:
— Uau. Isso foi intenso! — A jornalista ajeitou o ponto atrás da orelha e sorriu atrapalhada. — gosta de se utilizar da mídia para declarações imprevisíveis, não? — Concluiu em referência ao incidente envolvendo Natalie Wolf no Grammy. — Agora o que o Brasil e o mundo querem saber é: quem é a misteriosa ?
Joana Carvalho aguardou o sinal ser cortado. A imagem da entrevistadora deu lugar à vinheta da novela preferida de Íris. Otávio abaixou o volume, a expressão atordoada como todos os demais na sala.
Sim. ainda estava viva, obrigada por perguntar.
— Não seria mais fácil ele ter ligado? — Josi quebrou o silêncio e enrugou a testa pensativa. — Aliás, o que ele quis dizer com nariz do seu... Oh meu Deus! OH MEU DEUS! — A boca de Josi trabalhou todos os músculos enquanto invocava o santo nome. —Ele e Cristiano devem ter se encontrado... e aquele filho da mãe... mentiu que ainda estava com você! — As sobrancelhas da garota franziram de um jeito nervoso — Espero que ele tenha ficado pior do que o nesta história.
permaneceu atônita, encarando o rosto da amiga e comprimindo a toalha mais forte.
— Quem este pensa que é? — Charles vociferou. — Expor minha filha desse jeito? Eu vou matá-lo!
— Matá-lo? Pai! Isso foi demais! — Otávio não conteve a emoção. — Ela precisa ir ao show!
— O que você vai fazer, ? — Josi questionou para a amiga que continuava em estado de choque.
— Eu... — A voz de era quase inaudível no meio de turbilhão de opiniões sobre sua vida. Ignoravam o fato de ela ser uma mulher adulta e, o primordial, estar presente na sala.
Íris olhou de Josi para , evitou os olhos do esposo no percurso:
— Filha, para que a dúvida? Você acabou de confessar na cozinha que ainda tem sentimentos por ele.
— Sim, mas... — começou a dizer antes de ser interrompida. De novo.
— Ela o ama sim, mas ainda tem medo. — Josi encarou a amiga. — Não é? Tem medo de que não dê certo entre vocês. Mas sabe, ? Isso pode nunca acontecer, o que pode ocorrer de verdade, é vocês dois serem felizes. Só isso. E você só vai saber se tentar.
— Bem, . — Íris disse. — Você queria uma nova chance, e parece que ela acaba de sair daquele televisor.
O silêncio se fez novamente. Então notou o pai pensativo. As sobrancelhas cerradas e os olhos reflexivos fitavam algum ponto imutável do vazio:
— Ok. Vocês querem saber minha opinião?
— Na verdade, não. — Otávio disse.
Charles arregalou os olhos para o filho, mas deixou passar, e só continuou:
— Eu acho que este rapaz vai fazê-la sofrer mais cedo ou mais tarde... e se isso acontecer…
— Bem, se isso acontecer, eu e seu pai estaremos aqui por você, certo Charles? — Íris falou depois encarou a filha, a voz tenra. — E então, ?
Era a mesma pergunta feita em um apelo quase palpável pelos demais.
Decisão muito importante para ser tomada assim, de uma vez e sob pressão. A garota precisava pelo menos refletir alguns pontos.
Era claro que ela ainda gostava dele. Mas… Uma vida tranquila, um parceiro presente todos os fins de semana, almoço em família aos domingos… provavelmente essas coisas não funcionavam com um astro do rock. Por outro lado, no entanto, ela poderia acompanhar uma banda em turnê pelos quatro cantos do mundo, assistir aos shows mais incríveis dos bastidores, e claro, isso quando não estivesse ao lado de , só os dois, numa casa escondida entre colinas que possuía um simpático tigre de bengala vivendo no jardim.
Caramba. Quais eram as dúvidas dela mesmo?
Para que ser forte e racional quando não havia qualquer outro lugar que ela gostaria de estar, senão ao lado dele?
Seu cérebro de exatas finalmente estava entendendo que talvez não sejam a força e razão as melhores conselheiras para responder às dúvidas do coração.
Claro que não eram.
E ela não tinha mais nenhuma dúvida quando finalmente disse:
— Calcem sapatos confortáveis, porque vamos a um show de rock.
Capítulo 29
Charles quem dirigiu, e duas horas depois, alguns limites de velocidade excedidos e presos num engarrafamento sem fim nas proximidades do ginásio onde iria ocorrer o show da Dark Paradise, escutaram as notas da guitarra de Elijah misturando-se ao clamor da plateia: a banda acabava de iniciar o show.
Íris estalou um beijo na bochecha de antes que a filha saltasse do carro acompanhada de Otávio e Josi. Pais não precisavam fazer parte dos encontros amorosos dos filhos. Aliás, não deveriam. Principalmente quando isso envolvia hard rock e um ginásio abarrotado de jovens. Não era bom para a labirintite da senhora . Ela e o esposo torceriam confortavelmente do apartamento da garota. (E a pedido de , aproveitariam para conversar com a síndica sobre o tal estrago feito no jardim por dois homens exaltados).
Luzes do ginásio refletiam contra nuvens carregadas. A chuva havia escolhido a pior das horas para dar as caras e São Pedro não parecia disposto a dar trégua. Mas o tempo era só um coadjuvante, sua falta de colaboração não impedia a atuação das principais estrelas da noite que arrancavam gritos eufóricos do público. pisou numa poça d’água, mas abstraiu. Não deixaria que um tênis encharcado a tirasse do sério agora que estava tão absurdamente feliz.
Na entrada principal, fãs retardatários protestavam pela fila demorada. Um sacrilégio perder a música “Your Toxic Love”, single do último disco. Era melhor que a bilheteria andasse mais rápido ou então seria preciso conter um motim.
— Ele deve ter deixado seu nome autorizado em algum lugar, certo? — Otávio disse, foi mais uma pergunta retórica.
— Assim espero. Vamos procurar alguém da equipe técnica, tipo... aquele carinha ali. — disse e foi na direção do homem parrudo que carregava uma credencial no pescoço. Esperou que ele deixasse o walk-talk de lado, então sorriu na esperança de anular o semblante de poucos amigos do homem.
— Oi. Você trabalha para a equipe técnica da Dark Paradise?
Ele encarou com um ar prepotente antes de dizer:
— Sou o chefe da equipe. Por quê?
Que doce.
— Porque ela — Josi entrou na frente da amiga, e grande trunfo da noite — é a garota da declaração que o fez agora a pouco.
sorriu meio sem graça. Não combinava muito com sua pessoa este tipo de introdução. Mas parece ter funcionado. Já que o homem arregalou os olhos surpreso.
— Uau! — Ele exclamou. — Acho então que devo colocá-los na parte VIP!
Eles deixaram de encarar o encarregado da equipe técnica e se entreolharam em êxtase.
— Pode apostar que sim!— Josi respondeu extasiada. Otávio acenou entusiasmado e fez um agradecimento mental por não ter que se utilizar do discurso preparado no carro. Até que o homem continuou:
— E também chamar um massagista, servir um cafezinho... — O desmancha-prazeres revirou os olhos, deboche a cada palavra. — Sabe quantas garotas já me abordaram hoje com essa mesma história?
O sorriso dos três diminuiu gradativamente.
— Mas é ela! — Josiane gesticulou aflita. — Pode ver a identidade, ela se chama !
— Claro que se chama, assim como outras vinte antes dela.
— ? — A dona do nome perguntou incrédula. Alguém deveria baixar uma lei referente à exclusividade de denominação. Ou demitir aquele idiota.
— , Silva, Santos, Pereira ... A primeira conseguiu entrar, eu acabei acreditando. — A boca do homem retorceu em sinal de protesto — Mas então mais outra e mais outra... — Ele permaneceu de braços cruzados, encarou a professora. — Você tem alguma prova?
— Prova?
— É. De que você é a verdadeira. Fotos com ele, vídeos. Essas coisas.
— Não... eu... não tenho mais fotos. Não queria que ele achasse que eu estivesse interessada em contar vantagens para tabloides e... o contato telefônico...excluí depois que brigamos.
Meu Deus. Soava idiota quando dito em voz alta. Alguma das impostoras deve ter dito a mesma coisa.
— Sei. No mínimo muito estranho, se você é a “íntima de ”, não guardaria nada que te relacionasse ao cara? — O homem parou por alguns segundos, deu-lhe uma olhada crua dos pés à cabeça. — E sinceramente? Uma garota como você, não combina com aquele músico em cima do palco.
Ela sentiu as bochechas queimarem. Não teve força para responder. Josi apertou a mão da amiga e Otávio gritou alguns xingamentos para o homem que sumiu por entre um aglomerado concentrado na portaria principal.
— Otávio. Não adianta. — A professora suspirou enquanto o cérebro ainda tentava resolver toda problemática física que a separava do vocalista.
— E o que a gente faz agora? — O irmão perguntou.
abriu a carteira. Procurou o cartão de crédito que deveria ser utilizado apenas em emergências. Exatamente o que aquilo era, não? Totalmente aceitável se endividar para garantir encontros com astros do rock.
— Fazemos o lógico: compramos os convites.
E que os momentos posteriores valessem cada centavo.
*
Pagaram quatro vezes o valor da pista Premium. Cambistas tinham suas próprias regras de preços e os ingressos sofreram uma valorização que desafiava teorias consolidadas de economia. Então lá estavam eles, três pessoas no meio de outras milhares. Agulhas num palheiro. Agora era só torcer para que a identificasse com sua visão biônica.
Ótimo. Se fosse submetida a um medidor de estupidez naquele momento, ele alcançaria índices estratosféricos.
— Não acredito que cheguei a achar que isso fosse dar certo. Estamos na melhor área do show e mesmo assim é muito longe. — A professora gritava para que a voz sobressaísse à bateria tempestuosa de Dominic. Nos telões, câmeras faziam um close do que era o homem mais lindo de todos os tempos: . E, sim, ela achava crucial citar nomes já que os demais integrantes vinham empatados logo atrás do primeiro. Deuses do rock para todos os gostos.
— Bem... melhor do que se você estivesse numa das arquibancadas. — Josi gritou de volta. — Aí as chances de ele vê-la seriam iguais à zero.
— E as chances do vê-la aqui são só um pouco acima disso. — Otávio complementou com um balançar de ombros. Afinal, otimismo era para os fracos.
— Tá legal. Não vou desesperar. — torceu o lábio. — Qualquer coisa, podemos correr até o saguão do Fasano e montar acampamento.
— Juntos com outras centenas de fãs que provavelmente estarão lá. — Josiane disse. — Se o Cristiano não tivesse mentido para ele... era provável que estivéssemos assistindo ao show nos bastidores agora.
percebeu que não havia pensado em Cristiano nenhuma vez desde que toda aquela sequência maluca de eventos ocorreu. Na verdade, acabara de pensar, já que havia um risco dela e se desencontrarem e Cris teria grande parcela de culpa por isso. Faria churrasquinho do ex se o encontrasse. E por educação, também perguntaria se o nariz dele estava quebrado…
Se não estivesse, era provável que ela mesma o quebrasse.
Otávio tirou a irmã dos pensamentos sádicos vingativos antes que a garota tomasse gosto pela coisa. Ele apontou para uma frase em pixels coloridos que deslizava logo abaixo de faces exibidas no telão: “Onde está Estella?”. Câmeras captavam o entusiasmo das fãs perante a própria imagem. Rostos aleatórios que em questão de segundos eram substituídos por outros: cinderelas desejando caber no sapatinho.
— Escreveram meu nome errado. Alguém me diga quem fez isso porque eu vou matar.— ironizou, como se uma letra a mais no nome fosse o maior dos seus problemas naquele momento.
Os olhos de Josi se estreitaram. E então ela gritou, pulou e sacudiu a amiga. Tudo ao mesmo tempo:
— É isso!
— É isso o que, Josi? — a olhou sem entender.
— Temos que descobrir quem faz estas filmagens. E ir até lá!
Os três procuraram pela câmera. Foi Otávio quem achou. Estava na parte mais alta da arquibancada. Totalmente inacessível.
— Perfeito. Deve ser mais fácil ser atingida por um raio do que ganhar um close de cinco segundos naquele telão. — disse.
Estatisticamente, não era. Mas ninguém disse nada. Já estavam quase aceitando a ideia de ir de plano B e curtir a noite, quando de repente, o rosto de Otávio adquiriu a mesma expressão daqueles que recebem uma inspiração. Poderia ser um sinal divino, ou só uma coincidência, mas o garoto preferiu acreditar na primeira opção. Então acenou para algo logo atrás das duas garotas:
— Acho que sei o que fazer para o ver você.
*
O Pop10, um portal de notícias filiado a uma emissora televisiva de alta audiência, havia montado uma tenda na parte sul do evento, protegendo os equipamentos contra a chuva ininterrupta. Uma repórter de traços delicados e cabelos cortados retilíneos na altura da nuca conferia a esmo uma prancheta. Não era um rosto conhecido como o de Joana Carvalho, e sim o de alguém que ainda buscava a ascensão no mundo jornalístico.
caminhou até a tenda sob a torcida silenciosa de Josi e Otávio. Ela ainda não estava acreditando que deu ouvidos àquela ideia absurda. Pensou em desistir quando o operador de câmera olhou com cara feia para seus tênis molhados que manchavam o carpete esticado sobre a grama. Mas respirou fundo e tomou coragem para dizer:
— Sei que vai parecer loucura e vocês podem não acreditar, mas saibam, antes de tudo, que não me exporia dessa forma se não fosse verdade.
O câmera e a jornalista entreolharam-se curiosos. A jornalista acariciou o queixo, o olhar interessado na direção de .
— O que vai parecer loucura? — Ela encorajou.
— Pedir sua ajuda para que o saiba que estou aqui. — A professora disse então apontou para a frase no telão. — Sou a .
A repórter arqueou as sobrancelhas, a expressão estupefata:
— A da declaração?
Ela acenou confirmando. O câmera correu os olhos, da garota para a colega, duvidoso. Mas a jornalista continuava persuadida:
— Tem como provar?
— Pois é. Aí que tá... Não tenho. — suspirou.
— Nenhuma foto? Mensagem? Nada?
A professora franziu as sobrancelhas e balançou a cabeça. E lá ia ela passar por sua segunda sabatina do dia.
— Então como podemos ter certeza de que não está mentindo? Dizem que a verdadeira está no camarim. — O câmera cruzou os braços e fechou o cenho. Era mais velho, consequentemente, também deveria ser mais experiente do que a jornalista e mais incrédulo diante de situações como aquela.
— Não podem. Mas tem a minha palavra de que não estou. — respondeu e esperou que isso valesse alguma coisa.
O assistente de câmera bufou uma risada que foi interrompida por uma cotovelada da jornalista.
— Certo... Não... sai daí, ok? — A jornalista conferiu a expressão da professora duas vezes, até ter certeza de que não iria a lugar algum, depois se virou para a equipe. Josi e Otávio acenavam animados há alguns metros dali.
E ? brilhava em cima do palco sem ideia de tudo o que estava acontecendo com aquelas pessoas do tamanho de formiguinhas sob seus pés.
— Ela não tem como provar, e essas fãs fazem de tudo para chamar a atenção, Marina. — O assistente dirigiu um olhar ressabiado para a garota, mas desviou antes que ela o encarasse de volta. — Se a colocarmos ao vivo e esta história não for verdadeira... nossas cabeças vão rolar.
Marina, a jornalista, tinha os olhos brilhantes como de uma criança numa loja de brinquedos. Estava quase cedendo.
— Mas se for verdade... — A repórter rodeou — é um furo de reportagem. Pense bem, Flores. A mídia está louca atrás dessa garota!
— Se for verdade, claro. Mas se não for... Já vi gente sendo despedido por muito menos. Enfim, é só minha opinião, de qualquer forma, você sabe que a última palavra é sua, Marina. — O tal Flores disse. E notou quando um sorriso temeroso competiu com o entusiasmo no rosto de Marina Padovan:
— Se sua história não for verídica, ... você será a responsável por uma despedida em massa da minha equipe. — A jornalista falou.
— Acho que vou ser responsável é por uma promoção da sua equipe. Isso sim. — se atreveu e notou o torpor brilhar ainda mais forte nos olhos de Marina.
— É... tem uma chance disso acontecer... — a mulher falou, vítima de um pequeno devaneio. Então estalou os dedos e se virou para os colegas. — Flores, prepare a câmera, e Denis, entre em contato com nossa editora, pergunte se conseguem nos colocar ao vivo em alguns minutos.
Esse outro rapaz arregalou os olhos, apreensivo.
— Se perguntarem se conferimos a autenticidade da história, o que eu digo?
— Diga que eu conferi. — Respondeu irritadiça uma Marina cansada de ser a garotinha constantemente aconselhada por homens “muito mais experientes” do que ela.
Denis deu de ombros e foi até um computador. nem pensou antes de abraçar a jornalista:
— Obrigada! Muito, obrigada!
A repórter quase se desequilibrou. Depois comemorou junto da garota quando o assistente voltou com a resposta de que poderiam colocá-las ao vivo em 20 minutos, no intervalo da novela: a audiência estaria lá em cima.
E de repente, não era apenas a reportagem, Marina queria mesmo que aquela história tivesse um final feliz. A jornalista reajeitou o terninho e deu uma piscadinha para antes de insinuar:
— Se depois desta noite vocês se acertarem, vou querer uma entrevista exclusiva, certo?
*
— Tá legal. Entramos em cinco minutos. — Uma voz masculina soou por trás de um tripé.
— É só ser você mesma. — Marina tentou tranquilizar . Um ótimo conselho quando não se tinha problemas em frente às câmeras. Otávio e Josi lançavam-lhe sorrisos confiantes. Eles estavam de mãos dadas. deve ter perdido muito mais enquanto arquitetava sua entrada ao vivo para os televisores de todo o país, mas de fato, ela não tinha tempo para pensar no novo casal de pombinhos naquele instante. Engoliu em seco o nervosismo quando o operador de câmera disse:
— Gravando!
Então Marina mostrou que não era apenas um rostinho bonito. A mulher não perdeu a compostura nenhum minuto. Disse tudo de uma só vez, quase sem recobrar o fôlego:
— Boa noite a todos que estão assistindo! Falo ao vivo da HSBC Arena, Rio de Janeiro, onde a banda Dark Paradise fecha sua turnê pelo Brasil com chave de ouro. E com exclusividade, eu, Marina Padovan, vou matar a curiosidade de todos. Estou com ninguém menos do que ela que é assunto em todas as redes sociais: , a musa inspiradora de !
sentiu seu coração perto da boca. Se as pernas não estivessem tão bambas, talvez tivesse saído correndo dali. Era isso. Não tinha como voltar atrás, não agora que a câmera focava seu rosto e ela percebera que os “ensaios de sorrisos” não valeram de nada. Isso que Marina ainda não tinha feito nenhuma pergunta.
— A é professora de Matemática. Ela e se conheceram em Praga, há mais de um ano. Ocorreram alguns desencontros, mas pelo visto, o cantor nunca a esqueceu, não é, ?
Marina lhe apontou o microfone.
— Bem… parece que sim. — gaguejou e a repórter foi rápida o bastante para entender que precisava fazer uma intervenção ou a timidez da entrevistada estragaria tudo.
— A professora procurou nossa emissora para pedir uma ajuda. não tem mais o contato do e o cantor não sabe que ela veio. Então se você aí de casa conhece alguém que esteja aqui no show, mande uma mensagem para esse amigo e diga que ela está na parte sul do evento, no stand do portal Pop10. Ajude nosso apelo a chegar até o vocalista. — Marina virou-se rapidamente para a garota. — Quer dizer mais alguma coisa, ?
— Sim. Só quero agradecer a você Marina Padovan, por ter me dado essa chance. — Disse por fim, fazendo questão de mencionar o nome da jornalista.
— O portal Pop10 é que agradece a você, , por ter nos procurado e permitir que o Brasil pudesse conhecê-la!
— E corta... — O assistente anunciou baixinho. Emissoras concorrentes morreriam quando soubessem a bocada que acabaram de perder. O sorriso constante de Marina não se dissipou até que a luz indicativa da câmera fosse desligada. Voltou-se satisfeita para :
— Obrigada.
— Na verdade, foi você quem fez todo o trabalho. — A professora disse de volta.
— ! — Josi correu até a amiga e lhe deu um abraço de estalar os ossos. —Tem muitas chances disso dar certo!
— Tomara, Josi. Porque foi meio traumatizante. — disse, ainda incrédula pela exposição submetida.
— Marina. — Denis caminhou em direção à jornalista com um olhar surpreso. — Você tem que ver isso.
Ele mostrava o link da notícia nos principais sites de entretenimento.
— Ca-ram-ba! — A jornalista tampou os lábios e ergueu as sobrancelhas. — Conseguimos, ! Criamos uma campanha online para você.
Mas ela nem precisava dizer. Pela maneira como seu celular vibrava, sabia que a curta entrevista, ou melhor, o monólogo de Marina Padovan associada à contribuição da sua imagem, atingira aos fins esperados.
Otávio tirou o telefone do bolso. Conferiu o que seriam várias mensagens.
— Nossos pais, meus amigos... todo mundo assistiu! — O garoto ergueu o olhar para encarar a irmã. — Agora tudo que tem que fazer é esperar e ver se o plano vai dar certo.
E telefones ao redor começaram a tocar.
*
A mão direita do sonoplasta segurava a parte final de uma coxinha, a esquerda administrava algumas dezenas de botões parecidíssimos e os pés acompanhavam a batida do som enquanto os lábios engordurados, na tentativa de adivinhar o refrão, tracejavam um ruído desafinado. Até que essa banda é boa, Marcel pensou, mesmo quando o vocalista parecia estar no mundo da lua e adiantou o refrão, entrando antes do solo de guitarra.
Encarou o computador e notou que se esquecera de mudar a tomada, já fixara naquela loirinha sensacional por tempo demais. Os cinco minutos de fama — ou no caso, segundos — já haviam sido há muito extrapolados.
O telefone vibrou sobre a mesa de som. Não recebia muitas ligações. Alguns poucos amigos ou então a esposa querendo falar alguma coisa sem importância que seguramente poderia esperar. Não era óbvio que não atendia quando estava trabalhando? Já haviam tido esta conversa dezenas de vezes: ligações no meu serviço apenas em caso de vida ou morte. E tinha certeza de que ninguém estava morrendo. Mas então o sinal do WhatsApp disparou, deixando-o realmente preocupado.
Engoliu o resto da coxinha culpando-se por burlar a dieta e dispensar as frutas colocadas dentro de uma tupperware pela esposa zelosa. Limpou as mãos na barra da camisa para pegar o aparelho.
“87 mensagens de 3 conversas.”
Foi direto nas enviadas pela esposa — as outras não haviam sido tão insistentes — e leu com atenção a última linha exibida, na verdade, uma repetição das demais:
[Paty]: A garota do músico está na parte sul do evento! Procura ela!!!
Marcel franziu as sobrancelhas e coçou um local habitual atrás da orelha antes de digitar:
[Marcel]: Quê??? Do que vc tá falando?
A resposta chegou poucos segundos depois: a imagem de uma moça com os cabelos molhados pela chuva. Marcel não entendeu de imediato o que sua esposa queria dizer, até que outro print foi enviado, dessa vez, uma notícia relacionada ao vocalista sob a mira de sua câmera e uma tal de , a garota “molhada” da imagem anterior.
— Que cara maluco!
Marcel riu sozinho, simpatizando-se por aquela história de amor. Então se cometeu de uma missão cupido: alterou o foco da câmera para a parte sul do ginásio e procurou pela garota cujo rosto seria exibido no telão. Não uma garota bonita qualquer, mas uma garota em especial.
Uma que teria mais do que cinco segundos de fama.
Íris estalou um beijo na bochecha de antes que a filha saltasse do carro acompanhada de Otávio e Josi. Pais não precisavam fazer parte dos encontros amorosos dos filhos. Aliás, não deveriam. Principalmente quando isso envolvia hard rock e um ginásio abarrotado de jovens. Não era bom para a labirintite da senhora . Ela e o esposo torceriam confortavelmente do apartamento da garota. (E a pedido de , aproveitariam para conversar com a síndica sobre o tal estrago feito no jardim por dois homens exaltados).
Luzes do ginásio refletiam contra nuvens carregadas. A chuva havia escolhido a pior das horas para dar as caras e São Pedro não parecia disposto a dar trégua. Mas o tempo era só um coadjuvante, sua falta de colaboração não impedia a atuação das principais estrelas da noite que arrancavam gritos eufóricos do público. pisou numa poça d’água, mas abstraiu. Não deixaria que um tênis encharcado a tirasse do sério agora que estava tão absurdamente feliz.
Na entrada principal, fãs retardatários protestavam pela fila demorada. Um sacrilégio perder a música “Your Toxic Love”, single do último disco. Era melhor que a bilheteria andasse mais rápido ou então seria preciso conter um motim.
— Ele deve ter deixado seu nome autorizado em algum lugar, certo? — Otávio disse, foi mais uma pergunta retórica.
— Assim espero. Vamos procurar alguém da equipe técnica, tipo... aquele carinha ali. — disse e foi na direção do homem parrudo que carregava uma credencial no pescoço. Esperou que ele deixasse o walk-talk de lado, então sorriu na esperança de anular o semblante de poucos amigos do homem.
— Oi. Você trabalha para a equipe técnica da Dark Paradise?
Ele encarou com um ar prepotente antes de dizer:
— Sou o chefe da equipe. Por quê?
Que doce.
— Porque ela — Josi entrou na frente da amiga, e grande trunfo da noite — é a garota da declaração que o fez agora a pouco.
sorriu meio sem graça. Não combinava muito com sua pessoa este tipo de introdução. Mas parece ter funcionado. Já que o homem arregalou os olhos surpreso.
— Uau! — Ele exclamou. — Acho então que devo colocá-los na parte VIP!
Eles deixaram de encarar o encarregado da equipe técnica e se entreolharam em êxtase.
— Pode apostar que sim!— Josi respondeu extasiada. Otávio acenou entusiasmado e fez um agradecimento mental por não ter que se utilizar do discurso preparado no carro. Até que o homem continuou:
— E também chamar um massagista, servir um cafezinho... — O desmancha-prazeres revirou os olhos, deboche a cada palavra. — Sabe quantas garotas já me abordaram hoje com essa mesma história?
O sorriso dos três diminuiu gradativamente.
— Mas é ela! — Josiane gesticulou aflita. — Pode ver a identidade, ela se chama !
— Claro que se chama, assim como outras vinte antes dela.
— ? — A dona do nome perguntou incrédula. Alguém deveria baixar uma lei referente à exclusividade de denominação. Ou demitir aquele idiota.
— , Silva, Santos, Pereira ... A primeira conseguiu entrar, eu acabei acreditando. — A boca do homem retorceu em sinal de protesto — Mas então mais outra e mais outra... — Ele permaneceu de braços cruzados, encarou a professora. — Você tem alguma prova?
— Prova?
— É. De que você é a verdadeira. Fotos com ele, vídeos. Essas coisas.
— Não... eu... não tenho mais fotos. Não queria que ele achasse que eu estivesse interessada em contar vantagens para tabloides e... o contato telefônico...excluí depois que brigamos.
Meu Deus. Soava idiota quando dito em voz alta. Alguma das impostoras deve ter dito a mesma coisa.
— Sei. No mínimo muito estranho, se você é a “íntima de ”, não guardaria nada que te relacionasse ao cara? — O homem parou por alguns segundos, deu-lhe uma olhada crua dos pés à cabeça. — E sinceramente? Uma garota como você, não combina com aquele músico em cima do palco.
Ela sentiu as bochechas queimarem. Não teve força para responder. Josi apertou a mão da amiga e Otávio gritou alguns xingamentos para o homem que sumiu por entre um aglomerado concentrado na portaria principal.
— Otávio. Não adianta. — A professora suspirou enquanto o cérebro ainda tentava resolver toda problemática física que a separava do vocalista.
— E o que a gente faz agora? — O irmão perguntou.
abriu a carteira. Procurou o cartão de crédito que deveria ser utilizado apenas em emergências. Exatamente o que aquilo era, não? Totalmente aceitável se endividar para garantir encontros com astros do rock.
— Fazemos o lógico: compramos os convites.
E que os momentos posteriores valessem cada centavo.
Pagaram quatro vezes o valor da pista Premium. Cambistas tinham suas próprias regras de preços e os ingressos sofreram uma valorização que desafiava teorias consolidadas de economia. Então lá estavam eles, três pessoas no meio de outras milhares. Agulhas num palheiro. Agora era só torcer para que a identificasse com sua visão biônica.
Ótimo. Se fosse submetida a um medidor de estupidez naquele momento, ele alcançaria índices estratosféricos.
— Não acredito que cheguei a achar que isso fosse dar certo. Estamos na melhor área do show e mesmo assim é muito longe. — A professora gritava para que a voz sobressaísse à bateria tempestuosa de Dominic. Nos telões, câmeras faziam um close do que era o homem mais lindo de todos os tempos: . E, sim, ela achava crucial citar nomes já que os demais integrantes vinham empatados logo atrás do primeiro. Deuses do rock para todos os gostos.
— Bem... melhor do que se você estivesse numa das arquibancadas. — Josi gritou de volta. — Aí as chances de ele vê-la seriam iguais à zero.
— E as chances do vê-la aqui são só um pouco acima disso. — Otávio complementou com um balançar de ombros. Afinal, otimismo era para os fracos.
— Tá legal. Não vou desesperar. — torceu o lábio. — Qualquer coisa, podemos correr até o saguão do Fasano e montar acampamento.
— Juntos com outras centenas de fãs que provavelmente estarão lá. — Josiane disse. — Se o Cristiano não tivesse mentido para ele... era provável que estivéssemos assistindo ao show nos bastidores agora.
percebeu que não havia pensado em Cristiano nenhuma vez desde que toda aquela sequência maluca de eventos ocorreu. Na verdade, acabara de pensar, já que havia um risco dela e se desencontrarem e Cris teria grande parcela de culpa por isso. Faria churrasquinho do ex se o encontrasse. E por educação, também perguntaria se o nariz dele estava quebrado…
Se não estivesse, era provável que ela mesma o quebrasse.
Otávio tirou a irmã dos pensamentos sádicos vingativos antes que a garota tomasse gosto pela coisa. Ele apontou para uma frase em pixels coloridos que deslizava logo abaixo de faces exibidas no telão: “Onde está Estella?”. Câmeras captavam o entusiasmo das fãs perante a própria imagem. Rostos aleatórios que em questão de segundos eram substituídos por outros: cinderelas desejando caber no sapatinho.
— Escreveram meu nome errado. Alguém me diga quem fez isso porque eu vou matar.— ironizou, como se uma letra a mais no nome fosse o maior dos seus problemas naquele momento.
Os olhos de Josi se estreitaram. E então ela gritou, pulou e sacudiu a amiga. Tudo ao mesmo tempo:
— É isso!
— É isso o que, Josi? — a olhou sem entender.
— Temos que descobrir quem faz estas filmagens. E ir até lá!
Os três procuraram pela câmera. Foi Otávio quem achou. Estava na parte mais alta da arquibancada. Totalmente inacessível.
— Perfeito. Deve ser mais fácil ser atingida por um raio do que ganhar um close de cinco segundos naquele telão. — disse.
Estatisticamente, não era. Mas ninguém disse nada. Já estavam quase aceitando a ideia de ir de plano B e curtir a noite, quando de repente, o rosto de Otávio adquiriu a mesma expressão daqueles que recebem uma inspiração. Poderia ser um sinal divino, ou só uma coincidência, mas o garoto preferiu acreditar na primeira opção. Então acenou para algo logo atrás das duas garotas:
— Acho que sei o que fazer para o ver você.
O Pop10, um portal de notícias filiado a uma emissora televisiva de alta audiência, havia montado uma tenda na parte sul do evento, protegendo os equipamentos contra a chuva ininterrupta. Uma repórter de traços delicados e cabelos cortados retilíneos na altura da nuca conferia a esmo uma prancheta. Não era um rosto conhecido como o de Joana Carvalho, e sim o de alguém que ainda buscava a ascensão no mundo jornalístico.
caminhou até a tenda sob a torcida silenciosa de Josi e Otávio. Ela ainda não estava acreditando que deu ouvidos àquela ideia absurda. Pensou em desistir quando o operador de câmera olhou com cara feia para seus tênis molhados que manchavam o carpete esticado sobre a grama. Mas respirou fundo e tomou coragem para dizer:
— Sei que vai parecer loucura e vocês podem não acreditar, mas saibam, antes de tudo, que não me exporia dessa forma se não fosse verdade.
O câmera e a jornalista entreolharam-se curiosos. A jornalista acariciou o queixo, o olhar interessado na direção de .
— O que vai parecer loucura? — Ela encorajou.
— Pedir sua ajuda para que o saiba que estou aqui. — A professora disse então apontou para a frase no telão. — Sou a .
A repórter arqueou as sobrancelhas, a expressão estupefata:
— A da declaração?
Ela acenou confirmando. O câmera correu os olhos, da garota para a colega, duvidoso. Mas a jornalista continuava persuadida:
— Tem como provar?
— Pois é. Aí que tá... Não tenho. — suspirou.
— Nenhuma foto? Mensagem? Nada?
A professora franziu as sobrancelhas e balançou a cabeça. E lá ia ela passar por sua segunda sabatina do dia.
— Então como podemos ter certeza de que não está mentindo? Dizem que a verdadeira está no camarim. — O câmera cruzou os braços e fechou o cenho. Era mais velho, consequentemente, também deveria ser mais experiente do que a jornalista e mais incrédulo diante de situações como aquela.
— Não podem. Mas tem a minha palavra de que não estou. — respondeu e esperou que isso valesse alguma coisa.
O assistente de câmera bufou uma risada que foi interrompida por uma cotovelada da jornalista.
— Certo... Não... sai daí, ok? — A jornalista conferiu a expressão da professora duas vezes, até ter certeza de que não iria a lugar algum, depois se virou para a equipe. Josi e Otávio acenavam animados há alguns metros dali.
E ? brilhava em cima do palco sem ideia de tudo o que estava acontecendo com aquelas pessoas do tamanho de formiguinhas sob seus pés.
— Ela não tem como provar, e essas fãs fazem de tudo para chamar a atenção, Marina. — O assistente dirigiu um olhar ressabiado para a garota, mas desviou antes que ela o encarasse de volta. — Se a colocarmos ao vivo e esta história não for verdadeira... nossas cabeças vão rolar.
Marina, a jornalista, tinha os olhos brilhantes como de uma criança numa loja de brinquedos. Estava quase cedendo.
— Mas se for verdade... — A repórter rodeou — é um furo de reportagem. Pense bem, Flores. A mídia está louca atrás dessa garota!
— Se for verdade, claro. Mas se não for... Já vi gente sendo despedido por muito menos. Enfim, é só minha opinião, de qualquer forma, você sabe que a última palavra é sua, Marina. — O tal Flores disse. E notou quando um sorriso temeroso competiu com o entusiasmo no rosto de Marina Padovan:
— Se sua história não for verídica, ... você será a responsável por uma despedida em massa da minha equipe. — A jornalista falou.
— Acho que vou ser responsável é por uma promoção da sua equipe. Isso sim. — se atreveu e notou o torpor brilhar ainda mais forte nos olhos de Marina.
— É... tem uma chance disso acontecer... — a mulher falou, vítima de um pequeno devaneio. Então estalou os dedos e se virou para os colegas. — Flores, prepare a câmera, e Denis, entre em contato com nossa editora, pergunte se conseguem nos colocar ao vivo em alguns minutos.
Esse outro rapaz arregalou os olhos, apreensivo.
— Se perguntarem se conferimos a autenticidade da história, o que eu digo?
— Diga que eu conferi. — Respondeu irritadiça uma Marina cansada de ser a garotinha constantemente aconselhada por homens “muito mais experientes” do que ela.
Denis deu de ombros e foi até um computador. nem pensou antes de abraçar a jornalista:
— Obrigada! Muito, obrigada!
A repórter quase se desequilibrou. Depois comemorou junto da garota quando o assistente voltou com a resposta de que poderiam colocá-las ao vivo em 20 minutos, no intervalo da novela: a audiência estaria lá em cima.
E de repente, não era apenas a reportagem, Marina queria mesmo que aquela história tivesse um final feliz. A jornalista reajeitou o terninho e deu uma piscadinha para antes de insinuar:
— Se depois desta noite vocês se acertarem, vou querer uma entrevista exclusiva, certo?
— Tá legal. Entramos em cinco minutos. — Uma voz masculina soou por trás de um tripé.
— É só ser você mesma. — Marina tentou tranquilizar . Um ótimo conselho quando não se tinha problemas em frente às câmeras. Otávio e Josi lançavam-lhe sorrisos confiantes. Eles estavam de mãos dadas. deve ter perdido muito mais enquanto arquitetava sua entrada ao vivo para os televisores de todo o país, mas de fato, ela não tinha tempo para pensar no novo casal de pombinhos naquele instante. Engoliu em seco o nervosismo quando o operador de câmera disse:
— Gravando!
Então Marina mostrou que não era apenas um rostinho bonito. A mulher não perdeu a compostura nenhum minuto. Disse tudo de uma só vez, quase sem recobrar o fôlego:
— Boa noite a todos que estão assistindo! Falo ao vivo da HSBC Arena, Rio de Janeiro, onde a banda Dark Paradise fecha sua turnê pelo Brasil com chave de ouro. E com exclusividade, eu, Marina Padovan, vou matar a curiosidade de todos. Estou com ninguém menos do que ela que é assunto em todas as redes sociais: , a musa inspiradora de !
sentiu seu coração perto da boca. Se as pernas não estivessem tão bambas, talvez tivesse saído correndo dali. Era isso. Não tinha como voltar atrás, não agora que a câmera focava seu rosto e ela percebera que os “ensaios de sorrisos” não valeram de nada. Isso que Marina ainda não tinha feito nenhuma pergunta.
— A é professora de Matemática. Ela e se conheceram em Praga, há mais de um ano. Ocorreram alguns desencontros, mas pelo visto, o cantor nunca a esqueceu, não é, ?
Marina lhe apontou o microfone.
— Bem… parece que sim. — gaguejou e a repórter foi rápida o bastante para entender que precisava fazer uma intervenção ou a timidez da entrevistada estragaria tudo.
— A professora procurou nossa emissora para pedir uma ajuda. não tem mais o contato do e o cantor não sabe que ela veio. Então se você aí de casa conhece alguém que esteja aqui no show, mande uma mensagem para esse amigo e diga que ela está na parte sul do evento, no stand do portal Pop10. Ajude nosso apelo a chegar até o vocalista. — Marina virou-se rapidamente para a garota. — Quer dizer mais alguma coisa, ?
— Sim. Só quero agradecer a você Marina Padovan, por ter me dado essa chance. — Disse por fim, fazendo questão de mencionar o nome da jornalista.
— O portal Pop10 é que agradece a você, , por ter nos procurado e permitir que o Brasil pudesse conhecê-la!
— E corta... — O assistente anunciou baixinho. Emissoras concorrentes morreriam quando soubessem a bocada que acabaram de perder. O sorriso constante de Marina não se dissipou até que a luz indicativa da câmera fosse desligada. Voltou-se satisfeita para :
— Obrigada.
— Na verdade, foi você quem fez todo o trabalho. — A professora disse de volta.
— ! — Josi correu até a amiga e lhe deu um abraço de estalar os ossos. —Tem muitas chances disso dar certo!
— Tomara, Josi. Porque foi meio traumatizante. — disse, ainda incrédula pela exposição submetida.
— Marina. — Denis caminhou em direção à jornalista com um olhar surpreso. — Você tem que ver isso.
Ele mostrava o link da notícia nos principais sites de entretenimento.
— Ca-ram-ba! — A jornalista tampou os lábios e ergueu as sobrancelhas. — Conseguimos, ! Criamos uma campanha online para você.
Mas ela nem precisava dizer. Pela maneira como seu celular vibrava, sabia que a curta entrevista, ou melhor, o monólogo de Marina Padovan associada à contribuição da sua imagem, atingira aos fins esperados.
Otávio tirou o telefone do bolso. Conferiu o que seriam várias mensagens.
— Nossos pais, meus amigos... todo mundo assistiu! — O garoto ergueu o olhar para encarar a irmã. — Agora tudo que tem que fazer é esperar e ver se o plano vai dar certo.
E telefones ao redor começaram a tocar.
A mão direita do sonoplasta segurava a parte final de uma coxinha, a esquerda administrava algumas dezenas de botões parecidíssimos e os pés acompanhavam a batida do som enquanto os lábios engordurados, na tentativa de adivinhar o refrão, tracejavam um ruído desafinado. Até que essa banda é boa, Marcel pensou, mesmo quando o vocalista parecia estar no mundo da lua e adiantou o refrão, entrando antes do solo de guitarra.
Encarou o computador e notou que se esquecera de mudar a tomada, já fixara naquela loirinha sensacional por tempo demais. Os cinco minutos de fama — ou no caso, segundos — já haviam sido há muito extrapolados.
O telefone vibrou sobre a mesa de som. Não recebia muitas ligações. Alguns poucos amigos ou então a esposa querendo falar alguma coisa sem importância que seguramente poderia esperar. Não era óbvio que não atendia quando estava trabalhando? Já haviam tido esta conversa dezenas de vezes: ligações no meu serviço apenas em caso de vida ou morte. E tinha certeza de que ninguém estava morrendo. Mas então o sinal do WhatsApp disparou, deixando-o realmente preocupado.
Engoliu o resto da coxinha culpando-se por burlar a dieta e dispensar as frutas colocadas dentro de uma tupperware pela esposa zelosa. Limpou as mãos na barra da camisa para pegar o aparelho.
“87 mensagens de 3 conversas.”
Foi direto nas enviadas pela esposa — as outras não haviam sido tão insistentes — e leu com atenção a última linha exibida, na verdade, uma repetição das demais:
[Paty]: A garota do músico está na parte sul do evento! Procura ela!!!
Marcel franziu as sobrancelhas e coçou um local habitual atrás da orelha antes de digitar:
[Marcel]: Quê??? Do que vc tá falando?
A resposta chegou poucos segundos depois: a imagem de uma moça com os cabelos molhados pela chuva. Marcel não entendeu de imediato o que sua esposa queria dizer, até que outro print foi enviado, dessa vez, uma notícia relacionada ao vocalista sob a mira de sua câmera e uma tal de , a garota “molhada” da imagem anterior.
— Que cara maluco!
Marcel riu sozinho, simpatizando-se por aquela história de amor. Então se cometeu de uma missão cupido: alterou o foco da câmera para a parte sul do ginásio e procurou pela garota cujo rosto seria exibido no telão. Não uma garota bonita qualquer, mas uma garota em especial.
Uma que teria mais do que cinco segundos de fama.
Capítulo 30
Milhares de pontinhos embaçados: fãs devotos que acompanhavam a melodia da última canção da noite sem se intimidar pela garoa incessante. Mas cantava meio que no piloto automático, só pensava em como era desconcertante ver tantas pessoas reunidas e desejar a presença de apenas uma.
Puxa vida. A vontade de saber se estava ali apertava seu coração a ponto de doer.
Já havia desistido de conferir os rostos no telão. Garotas lindas, mas nenhuma familiar. E se errasse novamente a letra da própria música, corria sério risco dos colegas de banda mandarem um jatinho supersônico buscar o tal Jeremy Hunter para substituí-lo nos minutos restantes da turnê.
Precisava de concentração. E também aceitar o óbvio, claro. Aceitar que naquele momento, a garota para quem se declarara ao vivo, provavelmente estivesse cuidando do nariz quebrado de outro cara enquanto amaldiçoava o vocalista e suas sete gerações futuras por ter agido como um babaca inconsequente.
Ele errou a música mais uma vez.
Então de repente, não ouviu mais o som da guitarra, e não porque havia algum problema de capacitação com a aparelhagem caríssima de Elijah, mas porque o colega parara de tocar. Tommy e Dom também cessaram o baixo e a bateria logo em seguida.
Retaliação?
O vocalista já ia começar um novo pedido de desculpas (o décimo terceiro daquela noite), quando notou Morello fazendo um sinal para que ele escutasse a plateia. o fez; ouviu música. O som orgânico de apenas uma nota executado pelos fãs: um sibilo agudo ensurdecedor. Depois também vieram as palmas. nunca viu algo igual. A estrutura da arena parecia prestes a desmontar sob seus pés. Ele acompanhou os dedos de Elijah indicando o telão assim que o colega anunciou ao microfone:
— Ora, ora. Pode para de procurar, . A ratinha te encontrou.
E em algum lugar daquela multidão, demorou alguns segundos até perceber que o rosto confuso repetido em todos os telões, era o dela.
As lágrimas embaçaram a visão de . E o rapaz preocupando-se com o fato de alguém descobrir sobre suas tendências à emotividade quando se tratava de Nicholas Sparks. Aquilo era só cem vezes pior, mas de um jeito bom. De um jeito fodidamente bom.
— Minha nossa... é mesmo você. — Ele disse. Riu. Enxugou os olhos. Afundou o rosto nas mãos. Riu de novo. E retomando o fôlego, continuou:
— ... você ficaria muito sem graça se eu dissesse, aqui do palco mesmo, que sou completamente louco por você, que não há um dia em que eu não pense em nós dois, e que você deveria cogitar seriamente a ideia de embarcar comigo no avião de volta para Los Angeles e tipo, passar o resto dos seus dias ao meu lado? Ou... prefere que eu não conte nada disso a ninguém e te diga tudo pessoalmente?
O ginásio inteiro gargalhou, depois gritou extasiado quando corações feitos de pixels multicoloridos e efeitos digitais que imitavam a queima de fogos de artifício deslizaram ao redor da imagem de e como um anúncio da virada do ano.
— Peço perdão pelo nosso vocalista. Ele largou a escola meses antes do professor explicar o significado da palavra “discrição”. — Elijah disse, ao que o colega devolveu: — Falou o cara que colocou o conceito dela no dicionário.
Mas voltando ao assunto…
“Se quiser repetir o pedido pessoalmente, não vou importar.” Diante da falta de microfones que lhe dessem igual vantagem, respondeu (torcendo para que o vocalista fosse especialista em leitura labial). Bem, pela forma que sorriu, a garota teve certeza de que seu interlocutor captara a mensagem. Perfeitamente. E quando ele perguntou onde ela estava, respondeu e desejou que a especialidade do homem estivesse a um nível avançado.
— Pista Premium perto das grades? — falou de volta, para o alívio dela. — Ok. Espere aí.
Como se ela fosse a algum lugar.
Mas antes que abandonasse de vez o palco e alcançasse os bastidores, saído diretamente do limbo dos pesadelos de , eis que surge Robert Barlet.
— Ei, ei. O que pensa que está fazendo? — o empresário disse, a cor naturalmente avermelhado da sua pele aumentando uns dois ou três tons. Que tivessem paramédicos ali caso o homem sofresse um infarto. — Perdeu aquele pingo de juízo que ainda lhe resta? Volte imediatamente para aquele palco e termine o show pelo qual os organizadores nos pagaram para fazer!
— Eu volto. Assim que a estiver ao meu lado.
Porque não havia pedido dezenas de toalhas brancas bordadas com suas iniciais, nem massagistas, nem um prato especial preparado pelo melhor chef de cozinha do Rio. Ele só pedira uma coisa para Barlet, e havia sido bem claro.
Mas Robert não queria mesmo saber. E precisou de apenas um sinal com os dedos para que a leva de seguranças logo atrás dele se organizasse em perfeita sincronia e criasse uma barricada humana. teria achado aquilo lindo se eles não estivesse obstruindo a passagem.
— Ah, pelo amor de Deus. Vocês sabem que sou eu quem pago o salário de vocês, não sabem?
Nenhum deles se mexeu. Foi quando teve a melhor e mais estúpida de todas as ideias. O vocalista retirou o emaranhado de fios presos ao corpo e soltou o microfone. Fez um sinal para que a banda continuasse, Elijah segurou muito bem os vocais de Black Hole para o colega. E continuou com o semblante confuso até se dar conta do que tinha em mente.
Cristo. O homem havia perdido a sanidade.
A câmera teve tempo de captar um “FICOU MALUCO?” saindo dos lábios dela antes que mergulhasse contra o público. Um gesto imprevisível, arriscado, e... sem sequelas: foi amortecido pelas mãos dos fãs, claro. Jamais deixariam o ídolo se chocar contra o chão.
Logo estava próximo suficiente para que pudesse distinguir seus traços sem precisar da ajuda de nenhuma câmera de alta resolução. Por cima do ombro do vocalista, ela pode ver o aglomerado de seguranças que corria ao encontro deles, Marina que fazia uma cobertura exclusiva para o canal 11, e uma multidão ainda surpreendentemente comportada, levando em consideração toda essa sequência de eventos.
Ignorou tudo aquilo pelo bem do momento.
E também rindo como uma boba, olhos marejados encarando os machucados da face dele, disse a frase mais romântica que lhe veio à mente naquele instante:
— Deus do céu, você está péssimo.
retirou uma mecha de cabelo do rosto da garota, seu olhar segurou o dela tempo necessário para que entendesse que aquilo estava realmente acontecendo. Caramba. Era real. E fodam-se as lágrimas. Felicidade não podia ter meio-termo.
— Devia ter visto o outro cara. — Ele disse, mas tentou consertar quando se lembrou quem era o outro cara em questão. — Quero dizer, eu sinto muito que…
Ela elevou um indicador até os lábios do músico. Os olhos de foram direto para a atadura que envolvia a mão dela. Agora que tinham todo o tempo do mundo, lhe explicaria tudo mais tarde, quando estivessem juntinhos debaixo de um edredom fazendo planos para as horas seguintes. Dias, semanas, meses, anos. Seu coração expandiu-se com todas as possibilidades.
— Não tem outro cara. Só tem você. Sempre foi você. E sabe, acho que deveríamos arrumar um jeito de deixar claro para os fãs da Dark Paradise que eu também sou louca pelo astro do rock maluco que acaba de fazer um stage diving¹ por mim e... que quero passar o resto dos meus dias ao lado dele. O que você acha?
Os olhos do homem brilharam em efeito às palavras dela, e quando ele sorriu, já sabia qual seria a resposta.
— Você sempre tendo as melhores ideias, garota.
Foi só o que o vocalista disse antes de beijá-la.
E fogos de artifício coloridos reluziram no céu carioca daquela noite.
¹Stage diving é o termo inglês para descrever o ato de pular de cima de um palco em direção ao público. O movimento ganhou fama dentro da cena hardcore punk em Nova York na década de 80.
Puxa vida. A vontade de saber se estava ali apertava seu coração a ponto de doer.
Já havia desistido de conferir os rostos no telão. Garotas lindas, mas nenhuma familiar. E se errasse novamente a letra da própria música, corria sério risco dos colegas de banda mandarem um jatinho supersônico buscar o tal Jeremy Hunter para substituí-lo nos minutos restantes da turnê.
Precisava de concentração. E também aceitar o óbvio, claro. Aceitar que naquele momento, a garota para quem se declarara ao vivo, provavelmente estivesse cuidando do nariz quebrado de outro cara enquanto amaldiçoava o vocalista e suas sete gerações futuras por ter agido como um babaca inconsequente.
Ele errou a música mais uma vez.
Então de repente, não ouviu mais o som da guitarra, e não porque havia algum problema de capacitação com a aparelhagem caríssima de Elijah, mas porque o colega parara de tocar. Tommy e Dom também cessaram o baixo e a bateria logo em seguida.
Retaliação?
O vocalista já ia começar um novo pedido de desculpas (o décimo terceiro daquela noite), quando notou Morello fazendo um sinal para que ele escutasse a plateia. o fez; ouviu música. O som orgânico de apenas uma nota executado pelos fãs: um sibilo agudo ensurdecedor. Depois também vieram as palmas. nunca viu algo igual. A estrutura da arena parecia prestes a desmontar sob seus pés. Ele acompanhou os dedos de Elijah indicando o telão assim que o colega anunciou ao microfone:
— Ora, ora. Pode para de procurar, . A ratinha te encontrou.
E em algum lugar daquela multidão, demorou alguns segundos até perceber que o rosto confuso repetido em todos os telões, era o dela.
As lágrimas embaçaram a visão de . E o rapaz preocupando-se com o fato de alguém descobrir sobre suas tendências à emotividade quando se tratava de Nicholas Sparks. Aquilo era só cem vezes pior, mas de um jeito bom. De um jeito fodidamente bom.
— Minha nossa... é mesmo você. — Ele disse. Riu. Enxugou os olhos. Afundou o rosto nas mãos. Riu de novo. E retomando o fôlego, continuou:
— ... você ficaria muito sem graça se eu dissesse, aqui do palco mesmo, que sou completamente louco por você, que não há um dia em que eu não pense em nós dois, e que você deveria cogitar seriamente a ideia de embarcar comigo no avião de volta para Los Angeles e tipo, passar o resto dos seus dias ao meu lado? Ou... prefere que eu não conte nada disso a ninguém e te diga tudo pessoalmente?
O ginásio inteiro gargalhou, depois gritou extasiado quando corações feitos de pixels multicoloridos e efeitos digitais que imitavam a queima de fogos de artifício deslizaram ao redor da imagem de e como um anúncio da virada do ano.
— Peço perdão pelo nosso vocalista. Ele largou a escola meses antes do professor explicar o significado da palavra “discrição”. — Elijah disse, ao que o colega devolveu: — Falou o cara que colocou o conceito dela no dicionário.
Mas voltando ao assunto…
“Se quiser repetir o pedido pessoalmente, não vou importar.” Diante da falta de microfones que lhe dessem igual vantagem, respondeu (torcendo para que o vocalista fosse especialista em leitura labial). Bem, pela forma que sorriu, a garota teve certeza de que seu interlocutor captara a mensagem. Perfeitamente. E quando ele perguntou onde ela estava, respondeu e desejou que a especialidade do homem estivesse a um nível avançado.
— Pista Premium perto das grades? — falou de volta, para o alívio dela. — Ok. Espere aí.
Como se ela fosse a algum lugar.
Mas antes que abandonasse de vez o palco e alcançasse os bastidores, saído diretamente do limbo dos pesadelos de , eis que surge Robert Barlet.
— Ei, ei. O que pensa que está fazendo? — o empresário disse, a cor naturalmente avermelhado da sua pele aumentando uns dois ou três tons. Que tivessem paramédicos ali caso o homem sofresse um infarto. — Perdeu aquele pingo de juízo que ainda lhe resta? Volte imediatamente para aquele palco e termine o show pelo qual os organizadores nos pagaram para fazer!
— Eu volto. Assim que a estiver ao meu lado.
Porque não havia pedido dezenas de toalhas brancas bordadas com suas iniciais, nem massagistas, nem um prato especial preparado pelo melhor chef de cozinha do Rio. Ele só pedira uma coisa para Barlet, e havia sido bem claro.
Mas Robert não queria mesmo saber. E precisou de apenas um sinal com os dedos para que a leva de seguranças logo atrás dele se organizasse em perfeita sincronia e criasse uma barricada humana. teria achado aquilo lindo se eles não estivesse obstruindo a passagem.
— Ah, pelo amor de Deus. Vocês sabem que sou eu quem pago o salário de vocês, não sabem?
Nenhum deles se mexeu. Foi quando teve a melhor e mais estúpida de todas as ideias. O vocalista retirou o emaranhado de fios presos ao corpo e soltou o microfone. Fez um sinal para que a banda continuasse, Elijah segurou muito bem os vocais de Black Hole para o colega. E continuou com o semblante confuso até se dar conta do que tinha em mente.
Cristo. O homem havia perdido a sanidade.
A câmera teve tempo de captar um “FICOU MALUCO?” saindo dos lábios dela antes que mergulhasse contra o público. Um gesto imprevisível, arriscado, e... sem sequelas: foi amortecido pelas mãos dos fãs, claro. Jamais deixariam o ídolo se chocar contra o chão.
Logo estava próximo suficiente para que pudesse distinguir seus traços sem precisar da ajuda de nenhuma câmera de alta resolução. Por cima do ombro do vocalista, ela pode ver o aglomerado de seguranças que corria ao encontro deles, Marina que fazia uma cobertura exclusiva para o canal 11, e uma multidão ainda surpreendentemente comportada, levando em consideração toda essa sequência de eventos.
Ignorou tudo aquilo pelo bem do momento.
E também rindo como uma boba, olhos marejados encarando os machucados da face dele, disse a frase mais romântica que lhe veio à mente naquele instante:
— Deus do céu, você está péssimo.
retirou uma mecha de cabelo do rosto da garota, seu olhar segurou o dela tempo necessário para que entendesse que aquilo estava realmente acontecendo. Caramba. Era real. E fodam-se as lágrimas. Felicidade não podia ter meio-termo.
— Devia ter visto o outro cara. — Ele disse, mas tentou consertar quando se lembrou quem era o outro cara em questão. — Quero dizer, eu sinto muito que…
Ela elevou um indicador até os lábios do músico. Os olhos de foram direto para a atadura que envolvia a mão dela. Agora que tinham todo o tempo do mundo, lhe explicaria tudo mais tarde, quando estivessem juntinhos debaixo de um edredom fazendo planos para as horas seguintes. Dias, semanas, meses, anos. Seu coração expandiu-se com todas as possibilidades.
— Não tem outro cara. Só tem você. Sempre foi você. E sabe, acho que deveríamos arrumar um jeito de deixar claro para os fãs da Dark Paradise que eu também sou louca pelo astro do rock maluco que acaba de fazer um stage diving¹ por mim e... que quero passar o resto dos meus dias ao lado dele. O que você acha?
Os olhos do homem brilharam em efeito às palavras dela, e quando ele sorriu, já sabia qual seria a resposta.
— Você sempre tendo as melhores ideias, garota.
Foi só o que o vocalista disse antes de beijá-la.
E fogos de artifício coloridos reluziram no céu carioca daquela noite.
¹Stage diving é o termo inglês para descrever o ato de pular de cima de um palco em direção ao público. O movimento ganhou fama dentro da cena hardcore punk em Nova York na década de 80.
Capítulo Bônus
Aquele lugar não combinava com Los Angeles. Deveria ser riscado do mapa, suas casas de estruturas mal-acabadas terem as vigas arrancadas do chão e transportadas para alguma outra cidade desprezível que compartilhava do mesmo tom monocromático de concreto, repetido incessantemente das alamedas sujas ao céu poluído.
“Recalculando rota”
— Inferno! — Natalie cravou as unhas no volante e balbuciou mais uma sequência de palavrões. Como poderia ser estúpida e errar o caminho? Como poderia ser tão estúpida a ponto de errar o caminho três vezes? Talvez fosse a falta de hábito em se sentar do lado do condutor. Estava tão acostumada a ter as necessidades atendidas pelos outros que se esquecera de como é ter que se virar por conta própria às vezes.
Um motorista seria uma boa opção, mas o número do único aceitável para o encargo era sempre atendido pela mesma voz feminina e inexpressiva similar à do GPS: “Não foi possível completar sua chamada.” Um motorista cuja casa insistia em desaparecer pelos trajetos mal desenhados do aplicativo de localização. Aquelas duas mulheres de fala robótica só poderiam ter armado um complô contra ela, com certeza.
Chegou a uma avenida sem as bifurcações que lhe confundiam os sentidos. "Você alcançou o seu destino". Disse a voz apática e Natalie finalmente sentiu-se em trégua com o aparelho, perdoando-o dos erros cometidos por ela própria.
Estacionou a BMW a uma distância de alguns metros, estudando o local. Olhou-se mais uma vez no espelho retrovisor. Ultimamente não tinha tanto prazer em encontrar o próprio reflexo. Para tentar fugir da imprensa, os fios loiros haviam sido cobertos por uma tinta castanha que não a favorecia. O nome da cor remetia a um tipo especial de chocolate e criava uma expectativa frustrada em quem esperava bem mais do que um resultado medíocre.
Um cachorro franzino ladrou por trás de um muro torto quando ela desceu do veículo. Borrões alaranjados pintavam o céu misturando-se à fumaça vinda de uma fábrica próxima: fim de tarde. No ar havia um cheiro de carne assada que combinava com sua visão estereotipada de que moradores do subúrbio faziam churrascos aos domingos. Trancou o carro no mesmo instante em que duas garotinhas saíram da casa apontada como seu destino.
As meninas não tinham mais do que seis anos. Bochechas rosadas e risadas melodiosas denunciavam o momento posterior a alguma travessura. Deduziu que ambas fossem irmãs pela forma como os cabelos estavam presos: exatamente a mesma trança mal feita. A mãe não devia ser do tipo paciente.
A menor foi quem viu Natalie primeiro, seus olhos graúdos tinham a curiosidade de um gatinho. Era o mesmo olhar de Diego: os mesmos cílios longos e naturalmente curvados, a mesma profundidade desconcertante nas íris castanhas. Uma herança genética dos Hernandez. A atriz não levantou os óculos, mas ensaiou seu melhor sorriso.
— Oi, gracinhas! — Não que soubesse lidar com crianças, mas sabia que qualquer expressão alegre, aliada à conveniência de ter um rosto feérico, soaria persuasiva à inocência infantil. — O Diego está?
Suas boquinhas não se mexeram. Elas continuaram a encarar Natalie por alguns segundos (um jogo que Wolf não tinha paciência em jogar). Depois dispararam até o portão chapiscado de amassados laterais que se encaixavam perfeitamente ao formato de chutes, e a maior cantarolou acompanhada da mais nova:
— És lá chica loca!
Fora um ou outro apelido carinhoso que gravara pela repetição de Diego, Natalie não falava espanhol.
Para sorte delas.
Depois Natalie escutou passos arrastados vindos do corredor e seu coração expandiu-se. O músculo não era de pedra, afinal.
Mas foi uma velha quem surgiu cerrando os olhos por trás de lentes embaçadas. Tinha cerca de dois dedos de cabelos brancos visíveis na raiz, à outra parte estava desbotada num tom indefinível entre marrom e vermelho. A tinta também devia ser daquelas cujo nome sugere sofisticação, mais uma vítima de propagandas enganosas.
— Quer o quê? — A velha disse.
— Estou procurando Diego Hernandez. Ele mora aqui, não mora? — Natalie sentiu raiva da forma como as palavras soaram. Categóricas demais, como uma ordem. — É parente dele?
A senhora olhou desconfiada, mas não reconheceu a atriz. Era daquelas que preferem novelas mexicanas a clichês hollywoodianos. As pupilas, que se esforçavam para enxergar além da névoa engordurada das lentes bifocais, demoraram um tempo maior no carro de Natalie.
— Diego é meu neto. E ele não vai falar com a imprensa.
Wolf balançou a cabeça.
— Não sou da imprensa.
— Então quem é você e o que quer com o Diego?
— Sou Kim Boggs. — Usou o nome da personagem de seu filme favorito, o mesmo que empregava para fazer reservas em hotéis. Diego entenderia. — É sobre trabalho.
— Trabalho? Oh… — A velha sorriu pela primeira vez. — Espere um segundo que vou chamá-lo.
Natalie exalou o ar em um alento nervoso. Quando o visse, deveria abraçá-lo? “Seja você mesma. Seja você mesma. Seja você mesma”. Droga, o que estava pensando? Não era uma audição para o próximo filme do Coppola, era apenas Diego, caramba.
Então ele apareceu. Estava tão acostumada a vê-lo em ternos que se esquecera de que Hernandez teria outras peças no guarda-roupa, obviamente. O rapaz usava uma blusa do Los Angeles Rams (torciam para times rivais e ela nunca soube disso). Wolf analisou os movimentos do homem: surpresos, mas também indecifráveis. Não saberia dizer se ele estava feliz ou não em revê-la.
— Quase não acreditei quando disseram que uma “Kim Boggs” estava aqui. — Diego disse lívido, e a atriz identificou surpresa misturada a ressentimento no timbre dele.
— E eu ainda não acredito que estou — ela disse, mas depois consertou — quero dizer, é que sua casa não é fácil de achar.
Aparentemente, ele sorriu.
— Mudou a cor do cabelo. — No seu íntimo, Diego imaginou-se tocando uma das mechas que caiam sobre a blusa de cashmere da atriz, mas os braços permaneceram cruzados, o rosto sério.
— Precisei. Para uma personagem.
— Eu gostei.
Mais um silêncio inoportuno. Desde quando ficar perto de Diego havia se tornado tão constrangedor? Afinal, não havia nada em Natalie que o homem não conhecesse bem. Até os detalhes do corpo que não combinavam com a perfeição exigível pelas capas dos tabloides, “pequenos defeitos” expungidos por programas de photoshop.
Enquanto isso, Diego Hernandez ainda pensava se deveria permitir que qualquer resquício de orgulho se diluísse diante daquela surpresa: Natalie Wolf. Era Natalie Wolf na porta da sua casa, porra. Ninguém precisava ser tão forte assim...
Ah, sim. Precisava.
— Então, o que veio fazer aqui? — Ele perguntou.
A atriz relembrou o discurso mental que ensaiara dentro do carro, quando virou uma rua antes do aviso do GPS.
— Queria saber como estão às coisas. Arrumou outro emprego?
Diego suspirou soturno.
— Poucos bicos aqui e ali. Ninguém quer contratar o motorista que supostamente dormia com a namorada do patrão.
E de repente, o discurso não valera de nada.
— Mas deixa pra lá. — O motorista continuou. Balançou a cabeça como se aquilo não fosse nada demais. Como se estar desempregado, de coração partido e orgulho ferido fossem coisas tão triviais quanto se esquecer de colocar o lixo para fora. — Nem sei bem por quê falei isso.
— Bem, se te faz sentir melhor, sou a megera que supostamente traiu o namorado com o motorista. — Natalie sorriu lúgubre. Contratos quebrados e jornalistas na sua cola: não estavam tão diferentes assim.
Wolf então retirou o envelope pardo de dentro da bolsa. Estendeu para o homem:
— Eu queria que ficasse com isso.
Ele já tinha uma leve desconfiança do que se tratava, mesmo assim perguntou:
— O que tem aqui?
— Uma compensação financeira.
— Pelo o quê?
— Bem... por todo o mal que lhe causei... por... você sabe.... ter usado você. — Natalie pensou no que seu terapeuta diria se estivesse ali. Admitir aquilo para Diego, não doeu tanto quanto imaginou que doeria.
Ele quis abrir o envelope, conferir quanto valia para Wolf, mas se controlou e só lhe devolveu.
— Não. Pode pegar seu dinheiro de volta, Natalie. Por favor.
Ela ficou sem reação por alguns segundos.
— Diego... Você não precisaria trabalhar por um bom tempo, poderia até abrir algo para você, para sua família. Mudar para um bairro melhor. — Wolf achava incrível ter que fornecer argumentos de “como dinheiro era importante neste mundo” para convencer o rapaz.
E ele limitou-se a dizer:
— Nós gostamos daqui.
— É que... — Natalie apertou o envelope entre os dedos. — Isso é o mínimo que eu posso fazer.
— Imagino. É o mínimo para você. Vem até aqui, me entrega uma quantia generosa e depois desaparece no seu carro com a sensação de missão cumprida. É mesmo uma redenção e tanto para sua consciência.
O ar escapou dos pulmões de Wolf e o chão desmoronou debaixo dos seus pés. Guardou o cheque, sentindo o sangue queimar nas maçãs, a boca seca. Gaguejou antes de conseguir dizer:
— Caso as coisas não tenham ficado claras, não quis ofendê-lo. Só queria te dar uma nova chance. Apenas isso.
— Não estou ofendido, não precisa se preocupar. — Falou com a intenção de dar aquele assunto por encerrado. Então uma voz feminina e jovem atravessou o corredor, chamando por ele. Natalie se perguntou quantas pessoas deveriam estar ali dentro, e qual a relação da dona daquela voz, em especial, com Hernandez. Seu coração apertou: ciúmes das hipóteses criadas por sua mente.
— Vou indo. Acho que cheguei numa má hora. — Ela disse.
Ele não contestou. E Natalie sentiu o coração apertar mais uma vez.
Resolveu usar sua última cartada:
— Mas sabe, não foi só por isso que vim aqui, Diego. Tem... este evento no próximo fim de semana e... preciso de um motorista. Você poderia me buscar às oito? E acho que pagar o preço justo pelos seus serviços não ofenderá seus princípios. Certo?
Diego bufou e sorriu incrédulo:
— Você não pode estar falando sério.
— Claro que estou. Por que eu brincaria com algo assim depois de tudo?
— Hum...
— E então?
Como se ele estivesse em condições de recusar trabalho. Rolou os olhos e deu um aceno rápido antes de dizer:
— Tá... Tudo bem. Te levo sim.
Natalie mal acreditou. E ficou aliviada por não ter que travar uma nova batalha para persuadi-lo.
— Ótimo. Muito bom. Então... até sábado.
—Até sábado.
O momento seguinte pegou Diego de surpresa. Wolf deu-lhe um abraço desajeitado e não o soltou. O desejo de que aquela sensação fosse recíproca confirmando-se quando ela também sentiu as mãos dele deslizarem pelas suas costas.
Hernandez murmurou pesaroso próximo ao ouvido da mulher:
— Meu Deus, Natalie... Por que tinha que aparecer aqui, por quê?
— Porque senti sua falta...
Os lábios dela tentaram calá-lo com um beijo tímido. Diego não correspondeu. Ele olhou para dentro da casa, diminuindo o tom de voz até quase virar um sussurro.
— Não posso fazer isso.
— Você está com alguém? — Wolf perguntou ao que Hernandez ficou em silêncio. O entusiasmo dentro dela partiu-se em estilhaços afiados de desapontamento. — Você... está, não está? Meu Deus... Devo mesmo ir embora.
Deu-lhe as costas e caminhou em direção ao carro, rápido o bastante para que ele não tivesse chance de ver seu rosto irromper em lágrimas.
— Ei, Natalie. — Diego chamou.
Ela virou-se mais eufórica do que gostaria.
— O quê é?
— O trabalho de sábado. Está mesmo de pé?
Ah. Isso.
— Claro. Não me deixe esperando, tá? — As palavras queimaram na garganta, mesmo assim a garota deu um sorriso teatral. Vantagens de ser atriz. Então recostou no veículo para procurar as chaves. Péssima hora para perdê-las dentro da bolsa.
Sentiu o toque no ombro e ouviu a voz que disse:
— Espera.
E antes que ela pudesse falar qualquer coisa, Diego a beijou. Dane-se. Natalie era como um tipo especial de heroína na qual ele era viciado. Wolf esqueceu-se da bolsa que caiu aberta no chão, moedinhas tilintaram contra o asfalto, um tubo de gloss rolou para baixo da roda do veículo. Só se repeliram quando escutaram novos passos vindos do corredor. Natalie agachou-se para recolher os objetos inúteis da bolsa e Diego ocupou-se de algo no celular. Ambos disfarçaram bem.
— Nossa, tio Diego! Por que você tá demorando taaanto?
Era a mais velha das sobrinhas. Olhos e ouvidos de algum adulto da casa, aquela pequena espiã.
— Porque estava tratando de trabalho com a senhorita Boggs, Mabel. Pode voltar para dentro, vou logo atrás de você.
— Booooggs? — Ela falou de um jeitinho afetado. Os cabelos estavam ainda mais desordenados na trança caótica. — Mas essa não é a...
Diego não deixou a garota completar a frase, deu uma piscadela e fez um gesto de silêncio com o indicador. E Mabel Hernandez adorou ser a cúmplice daquele segredo.
Natalie achou as chaves. Despediu-se de Diego e da garotinha que agora estava agarrada ao braço de Hernandez como se tivesse algum direito sobre ele que a atriz não possuía. Deu a partida no carro e o barulho do motor tornou sua respiração inaudível. Seus olhos azuis acompanharam as duas pessoas de altura diametralmente opostas desaparecendo à primeira curva. Analisou o bairro pela última vez. O concreto opaco que predominava melancólico, a grama descuidada de uma praça onde mulheres fumavam e encaravam o carro dela com desdém.
Definitivamente, aquele lugar não combinava com Los Angeles. Pelo menos não a parte do glamour e pompa. Mas as famílias ricas de Beverly Hills precisavam de imigrantes para limpar suas mansões, aparar seus jardins e cuidar de suas crianças detestáveis. De motoristas pontuais que não os deixassem se atrasar para eventos estúpidos.
O aroma de um perfume viril agora estava preso entre as tramas do seu cashmere, o gosto do beijo roubado ainda fresco sobre os seus lábios.
De repente Natalie estava chorando. Um choro reconfortante e libertador que a fez se sentir surpreendentemente leve. E pela segunda vez naquele dia, também se lembrou do seu terapeuta.
Aquele intelectual petulante ficaria orgulhoso.
***
Esperou que lhe mandassem safiras no tom de suas íris ou rubis que combinassem com o batom vermelho preferido. Já era uma tradição que, às vésperas de eventos importantes, as maiores grifes duelassem pela sua preferência. Aguardou até aquela manhã. Nada. Uma joalheria dinamarquesa, cujas campanhas publicitárias foram estreladas por Natalie, ainda teve a audácia de enviar a notificação de quebra contratual dois dias antes. Devido às “atuais circunstâncias,” não tinha mais interesse em vincular sua imagem à atriz. A hipocrisia do mundo machista. Se ela fosse homem, marcas de bebida e de cigarros caros teriam abarrotado sua porta de entrada com "presentinhos" pelo seu comportamento reprovável.
Ao menos recebeu o vestido. Um Valentino preto de corte clássico e fenda lateral estava pendurado a um cabide, sem necessidade de ajustes. Agradeceria ao estilista pessoalmente quando tivesse a chance. Escolheu sandálias de tiras minimalistas e complementou o visual com um colar de diamantes.
Então o interfone ecoou pelos cômodos do duplex. Mesmo sabendo de quem se tratava, foi inevitável não se sentir eufórica. Sabia que no fundo, cada etapa do preparo minucioso, as borrifadas extras de perfume...
Tudo era para ele.
Disparou até a porta, os lábios pestanejando antes de finalmente acertar a sequência do alarme. Do lado de fora do prédio, recostado num Rolls Royce Phantom, Hernandez reajeitou a postura quando viu Natalie. A cena familiar trouxe conforto à atriz, mas também a dor de como tudo se acabou: um castelo construído com frágeis cartas de baralho. Ele abriu a porta traseira do veículo e ambos trocaram nada mais do que um cumprimento profissional. O beijo de dias atrás ficando perdido em algum lugar do passado.
O percurso até a premiere tornara-se longo demais. Como se as regras referentes à relatividade do tempo e espaço fossem derrogadas pelo reencontro premeditado. Natalie fitou as ruas iluminadas de Westwood, o colorido neon dos outdoors que atravessava o vidro fumê criando tatuagens efêmeras de sombra e luz na sua pele.
— Quer ouvir música? — Diego disse um tempo depois, a voz entregando nervosismo. Natalie confirmou e o silêncio do veículo foi preenchido por um som conhecido. A garota levantou o rosto e pelo retrovisor encarou os olhos do rapaz estreitando-se em decorrência de um sorriso.
— Song for someone. — Ela disse surpresa. — Eu adoro essa.
— Sim, eu sei.
Claro que sabia.
Quando viraram na Beloit Avenue, Wolf vislumbrou a multidão de fotógrafos. As câmeras apontavam na direção de Jessie Hudson, atriz com quem tivera desentendimentos passados. A concorrente usava joias Cartier da nova coleção. Aquele bracelete de esmeraldas deveria estar no seu braço, não no daquela pseudo-estrela de quinta categoria.
Havia apenas dois carros à frente quando Natalie sentiu a ansiedade queimar no peito, como se os flashes pudessem se metamorfosear em tomates, os aplausos em escárnio. Ela se mexeu desconfortável no banco. O medo de repente pesando sobre seus ombros.
— Meu Deus. Não foi uma boa ideia vir aqui. É a primeira vez desde... Acho que não vou conseguir. Não vou conseguir entrar.
— O que está dizendo?
— Estou dizendo que eu não consigo passar por isso! Dê meia volta com esse carro, por favor!
Ela já tinha retirado o ansiolítico de dentro da bolsa, estava tremendo. Hernandez puxou o freio e virou-se para trás, tendo certeza de estar olhando diretamente nos olhos dela quando disse:
— Ei. Olhe para mim.
Ela olhou.
— Agora, respire fundo, Natalie.
Ela inspirou e expirou algumas vezes. Estava de olhos fechados quando sentiu a mão dele apertar a dela.
Foi o melhor dos calmantes.
— Sabe, você vai ter que enfrentar isso uma hora ou outra. — Ele falou, notando quando a respiração dela voltou ao ritmo normal. — E um erro não pode ser capaz de apagar a grande atriz que você é, Natalie. Todos que estão aí dentro sabem disso. Porque daqui trinta anos, quando os filmes desta geração se tornarem clássicos, não é de nenhum deles que o mundo se lembrará, mas de você. Você é estupenda. Por isso, mantenha a cabeça erguida quando for caminhar por aquele tapete.
E por alguns segundos, tudo o que ela conseguiu fazer foi lançar-lhe um olhar agradecido, pois ele a havia deixado sem palavras. Diego estacionou diante do tapete vermelho, a porta traseira meticulosamente posicionada entre duas fileiras de jornalistas.
— É Natalie Wolf! — Anunciou um fotógrafo depois que a porta do veículo foi aberta. Os flashes iniciaram-se antes mesmo da atriz colocar os pés para fora.
Um dos seguranças que havia estendido a mão para ajudá-la. Mas ao invés de sair do carro, Natalie puxou novamente a maçaneta deixando a agitação caótica da impressa de lado. Ninguém entendeu nada. Tampouco Diego que se virou preocupado depois que a porta bateu:
— Natalie?
E ela sorriu enquanto se inclinava no banco de couro marfim, ajeitando-se para perto dele.
— Está tudo bem? — Diego perguntou.
— Está sim. Está perfeito.
— Então por que não desceu?
— Porque tenho algo para te falar, mas antes, preciso saber... Aquela garota que estava na sua casa... você a ama?
Ele ficou atônito e riu desconcertado.
— Meu Deus. Pra que isso agora, Natalie?
— Apenas me responda, Diego.
Do lado de fora, alguém esmurrou repetitivamente o capô do carro, seguranças retiraram a pessoa antes que o veículo sofresse danos: um fã agitado.
Demorou alguns segundos, antes que Diego dissesse:
— A resposta não ficou clara quando lhe beijei aquele dia? — Ele suspirou. As próximas palavras escapando por entre os dentes cerrados como uma verdade odiosa de se admitir. — No meu coração só houve espaço para você.
Linhas tênues desapareceram da região dos olhos ansiosos de Wolf para dar lugar ao maior dos sorrisos.
— Certo. Desliga o carro.
— O quê?
— Desliga o carro, por favor.
Ele obedeceu, as sobrancelhas elevaram-se indicando que estava confuso.
— Vai me explicar o que está acontecendo?
— Vou, vou sim. — Ela disse. Então acariciou os cabelos negros do rapaz, admirou-lhe os belos traços rústicos e sorriu da testa enrugada de quem “não estava entendendo nada” que Diego fez naquele momento.
Porque a explicação era simples. Do jeito dela, Natalie finalmente estava admitindo o que seu orgulho tolo sempre negara: amava aquele homem. E estava disposta a enfrentar todas as barreiras que isso implicava.
— Lembra quando eu disse para nunca contar aos paparazzi sobre nós? — Natalie se fez mais clara e Hernandez recordou-se das ofertas generosas que recusara dos tabloides quando o escândalo veio a público.
— Claro que me lembro. E eu mantive minha promessa.
A atriz sorriu da cara séria que ele fez.
— Sei que manteve, mas isso não importa, não mais. O que importa, neste exato momento, é você descer, entregar as chaves para o manobrista e vir comigo. Isso, se ainda houver espaço para mim no seu coração.
Os olhos de Diego brilharam em êxtase, seus ouvidos processando o que acabaram de ouvir.
— O quê... Isso... isso é sério? Merda, Natalie, se estiver tirando uma com a minha cara...
— Não, não estou. — Ela o interrompeu. — Quero que você me acompanhe, Diego. Quero você ao meu lado neste tapete vermelho como nunca antes quis algo em toda minha vida...
Tinha um enorme fila de carros logo atrás dos dois.
— Quero que você me diga sim, Diego.
Wolf saiu do veículo primeiro e encorajou o rapaz, que desceu hesitante, ainda sem acreditar que aquilo realmente estava acontecendo. A aglomeração de jornalistas reorganizou-se para aquela tomada exclusiva enquanto lançava um dilúvio de perguntas:
“Natalie! Este é o motorista de Brian Carter? Natalie! Vocês estão juntos? Natalie! Natalie! Então confirma os rumores de que traiu seu ex? Natalie! É verdade que tentou destruir a Dark Paradise?”
Mais e mais questionamentos, todos sintetizados de uma só vez pela resposta sólida da atriz inequívoca sob a postura confiante:
— Este é Diego Hernandez. E... — Virou-se para o rapaz de rosto pasmo e olhos castanhos ofuscados pelo clarão dos flashes.
Olhos tão lindos...
— Então vocês estão juntos? Vocês estão mesmo juntos!? Estão?!— Os gritos vinham de pontos distintos do meio da multidão.
E Natalie perguntou baixinho ao rapaz:
— E então, Diego? O que eu devo responder a eles?
A resposta dele veio precedida de um sorriso, e daquele brilho no olhar que as pessoas reservam apenas para alguns poucos momentos durante toda uma vida.
— A eles eu não sei, guapita. Mas a você… por Deus, Natalie, a você eu digo sim.
Então ela o beijou. Um beijo rápido, mas com duração o suficiente para garantir que todas as casas da América acordassem com aquela cena em seus jornais matinais. Depois lhe ofereceu a mão, e Diego permitiu que Natalie o guiasse na direção do tapete vermelho.
Na direção de um novo começo.
“Recalculando rota”
— Inferno! — Natalie cravou as unhas no volante e balbuciou mais uma sequência de palavrões. Como poderia ser estúpida e errar o caminho? Como poderia ser tão estúpida a ponto de errar o caminho três vezes? Talvez fosse a falta de hábito em se sentar do lado do condutor. Estava tão acostumada a ter as necessidades atendidas pelos outros que se esquecera de como é ter que se virar por conta própria às vezes.
Um motorista seria uma boa opção, mas o número do único aceitável para o encargo era sempre atendido pela mesma voz feminina e inexpressiva similar à do GPS: “Não foi possível completar sua chamada.” Um motorista cuja casa insistia em desaparecer pelos trajetos mal desenhados do aplicativo de localização. Aquelas duas mulheres de fala robótica só poderiam ter armado um complô contra ela, com certeza.
Chegou a uma avenida sem as bifurcações que lhe confundiam os sentidos. "Você alcançou o seu destino". Disse a voz apática e Natalie finalmente sentiu-se em trégua com o aparelho, perdoando-o dos erros cometidos por ela própria.
Estacionou a BMW a uma distância de alguns metros, estudando o local. Olhou-se mais uma vez no espelho retrovisor. Ultimamente não tinha tanto prazer em encontrar o próprio reflexo. Para tentar fugir da imprensa, os fios loiros haviam sido cobertos por uma tinta castanha que não a favorecia. O nome da cor remetia a um tipo especial de chocolate e criava uma expectativa frustrada em quem esperava bem mais do que um resultado medíocre.
Um cachorro franzino ladrou por trás de um muro torto quando ela desceu do veículo. Borrões alaranjados pintavam o céu misturando-se à fumaça vinda de uma fábrica próxima: fim de tarde. No ar havia um cheiro de carne assada que combinava com sua visão estereotipada de que moradores do subúrbio faziam churrascos aos domingos. Trancou o carro no mesmo instante em que duas garotinhas saíram da casa apontada como seu destino.
As meninas não tinham mais do que seis anos. Bochechas rosadas e risadas melodiosas denunciavam o momento posterior a alguma travessura. Deduziu que ambas fossem irmãs pela forma como os cabelos estavam presos: exatamente a mesma trança mal feita. A mãe não devia ser do tipo paciente.
A menor foi quem viu Natalie primeiro, seus olhos graúdos tinham a curiosidade de um gatinho. Era o mesmo olhar de Diego: os mesmos cílios longos e naturalmente curvados, a mesma profundidade desconcertante nas íris castanhas. Uma herança genética dos Hernandez. A atriz não levantou os óculos, mas ensaiou seu melhor sorriso.
— Oi, gracinhas! — Não que soubesse lidar com crianças, mas sabia que qualquer expressão alegre, aliada à conveniência de ter um rosto feérico, soaria persuasiva à inocência infantil. — O Diego está?
Suas boquinhas não se mexeram. Elas continuaram a encarar Natalie por alguns segundos (um jogo que Wolf não tinha paciência em jogar). Depois dispararam até o portão chapiscado de amassados laterais que se encaixavam perfeitamente ao formato de chutes, e a maior cantarolou acompanhada da mais nova:
— És lá chica loca!
Fora um ou outro apelido carinhoso que gravara pela repetição de Diego, Natalie não falava espanhol.
Para sorte delas.
Depois Natalie escutou passos arrastados vindos do corredor e seu coração expandiu-se. O músculo não era de pedra, afinal.
Mas foi uma velha quem surgiu cerrando os olhos por trás de lentes embaçadas. Tinha cerca de dois dedos de cabelos brancos visíveis na raiz, à outra parte estava desbotada num tom indefinível entre marrom e vermelho. A tinta também devia ser daquelas cujo nome sugere sofisticação, mais uma vítima de propagandas enganosas.
— Quer o quê? — A velha disse.
— Estou procurando Diego Hernandez. Ele mora aqui, não mora? — Natalie sentiu raiva da forma como as palavras soaram. Categóricas demais, como uma ordem. — É parente dele?
A senhora olhou desconfiada, mas não reconheceu a atriz. Era daquelas que preferem novelas mexicanas a clichês hollywoodianos. As pupilas, que se esforçavam para enxergar além da névoa engordurada das lentes bifocais, demoraram um tempo maior no carro de Natalie.
— Diego é meu neto. E ele não vai falar com a imprensa.
Wolf balançou a cabeça.
— Não sou da imprensa.
— Então quem é você e o que quer com o Diego?
— Sou Kim Boggs. — Usou o nome da personagem de seu filme favorito, o mesmo que empregava para fazer reservas em hotéis. Diego entenderia. — É sobre trabalho.
— Trabalho? Oh… — A velha sorriu pela primeira vez. — Espere um segundo que vou chamá-lo.
Natalie exalou o ar em um alento nervoso. Quando o visse, deveria abraçá-lo? “Seja você mesma. Seja você mesma. Seja você mesma”. Droga, o que estava pensando? Não era uma audição para o próximo filme do Coppola, era apenas Diego, caramba.
Então ele apareceu. Estava tão acostumada a vê-lo em ternos que se esquecera de que Hernandez teria outras peças no guarda-roupa, obviamente. O rapaz usava uma blusa do Los Angeles Rams (torciam para times rivais e ela nunca soube disso). Wolf analisou os movimentos do homem: surpresos, mas também indecifráveis. Não saberia dizer se ele estava feliz ou não em revê-la.
— Quase não acreditei quando disseram que uma “Kim Boggs” estava aqui. — Diego disse lívido, e a atriz identificou surpresa misturada a ressentimento no timbre dele.
— E eu ainda não acredito que estou — ela disse, mas depois consertou — quero dizer, é que sua casa não é fácil de achar.
Aparentemente, ele sorriu.
— Mudou a cor do cabelo. — No seu íntimo, Diego imaginou-se tocando uma das mechas que caiam sobre a blusa de cashmere da atriz, mas os braços permaneceram cruzados, o rosto sério.
— Precisei. Para uma personagem.
— Eu gostei.
Mais um silêncio inoportuno. Desde quando ficar perto de Diego havia se tornado tão constrangedor? Afinal, não havia nada em Natalie que o homem não conhecesse bem. Até os detalhes do corpo que não combinavam com a perfeição exigível pelas capas dos tabloides, “pequenos defeitos” expungidos por programas de photoshop.
Enquanto isso, Diego Hernandez ainda pensava se deveria permitir que qualquer resquício de orgulho se diluísse diante daquela surpresa: Natalie Wolf. Era Natalie Wolf na porta da sua casa, porra. Ninguém precisava ser tão forte assim...
Ah, sim. Precisava.
— Então, o que veio fazer aqui? — Ele perguntou.
A atriz relembrou o discurso mental que ensaiara dentro do carro, quando virou uma rua antes do aviso do GPS.
— Queria saber como estão às coisas. Arrumou outro emprego?
Diego suspirou soturno.
— Poucos bicos aqui e ali. Ninguém quer contratar o motorista que supostamente dormia com a namorada do patrão.
E de repente, o discurso não valera de nada.
— Mas deixa pra lá. — O motorista continuou. Balançou a cabeça como se aquilo não fosse nada demais. Como se estar desempregado, de coração partido e orgulho ferido fossem coisas tão triviais quanto se esquecer de colocar o lixo para fora. — Nem sei bem por quê falei isso.
— Bem, se te faz sentir melhor, sou a megera que supostamente traiu o namorado com o motorista. — Natalie sorriu lúgubre. Contratos quebrados e jornalistas na sua cola: não estavam tão diferentes assim.
Wolf então retirou o envelope pardo de dentro da bolsa. Estendeu para o homem:
— Eu queria que ficasse com isso.
Ele já tinha uma leve desconfiança do que se tratava, mesmo assim perguntou:
— O que tem aqui?
— Uma compensação financeira.
— Pelo o quê?
— Bem... por todo o mal que lhe causei... por... você sabe.... ter usado você. — Natalie pensou no que seu terapeuta diria se estivesse ali. Admitir aquilo para Diego, não doeu tanto quanto imaginou que doeria.
Ele quis abrir o envelope, conferir quanto valia para Wolf, mas se controlou e só lhe devolveu.
— Não. Pode pegar seu dinheiro de volta, Natalie. Por favor.
Ela ficou sem reação por alguns segundos.
— Diego... Você não precisaria trabalhar por um bom tempo, poderia até abrir algo para você, para sua família. Mudar para um bairro melhor. — Wolf achava incrível ter que fornecer argumentos de “como dinheiro era importante neste mundo” para convencer o rapaz.
E ele limitou-se a dizer:
— Nós gostamos daqui.
— É que... — Natalie apertou o envelope entre os dedos. — Isso é o mínimo que eu posso fazer.
— Imagino. É o mínimo para você. Vem até aqui, me entrega uma quantia generosa e depois desaparece no seu carro com a sensação de missão cumprida. É mesmo uma redenção e tanto para sua consciência.
O ar escapou dos pulmões de Wolf e o chão desmoronou debaixo dos seus pés. Guardou o cheque, sentindo o sangue queimar nas maçãs, a boca seca. Gaguejou antes de conseguir dizer:
— Caso as coisas não tenham ficado claras, não quis ofendê-lo. Só queria te dar uma nova chance. Apenas isso.
— Não estou ofendido, não precisa se preocupar. — Falou com a intenção de dar aquele assunto por encerrado. Então uma voz feminina e jovem atravessou o corredor, chamando por ele. Natalie se perguntou quantas pessoas deveriam estar ali dentro, e qual a relação da dona daquela voz, em especial, com Hernandez. Seu coração apertou: ciúmes das hipóteses criadas por sua mente.
— Vou indo. Acho que cheguei numa má hora. — Ela disse.
Ele não contestou. E Natalie sentiu o coração apertar mais uma vez.
Resolveu usar sua última cartada:
— Mas sabe, não foi só por isso que vim aqui, Diego. Tem... este evento no próximo fim de semana e... preciso de um motorista. Você poderia me buscar às oito? E acho que pagar o preço justo pelos seus serviços não ofenderá seus princípios. Certo?
Diego bufou e sorriu incrédulo:
— Você não pode estar falando sério.
— Claro que estou. Por que eu brincaria com algo assim depois de tudo?
— Hum...
— E então?
Como se ele estivesse em condições de recusar trabalho. Rolou os olhos e deu um aceno rápido antes de dizer:
— Tá... Tudo bem. Te levo sim.
Natalie mal acreditou. E ficou aliviada por não ter que travar uma nova batalha para persuadi-lo.
— Ótimo. Muito bom. Então... até sábado.
—Até sábado.
O momento seguinte pegou Diego de surpresa. Wolf deu-lhe um abraço desajeitado e não o soltou. O desejo de que aquela sensação fosse recíproca confirmando-se quando ela também sentiu as mãos dele deslizarem pelas suas costas.
Hernandez murmurou pesaroso próximo ao ouvido da mulher:
— Meu Deus, Natalie... Por que tinha que aparecer aqui, por quê?
— Porque senti sua falta...
Os lábios dela tentaram calá-lo com um beijo tímido. Diego não correspondeu. Ele olhou para dentro da casa, diminuindo o tom de voz até quase virar um sussurro.
— Não posso fazer isso.
— Você está com alguém? — Wolf perguntou ao que Hernandez ficou em silêncio. O entusiasmo dentro dela partiu-se em estilhaços afiados de desapontamento. — Você... está, não está? Meu Deus... Devo mesmo ir embora.
Deu-lhe as costas e caminhou em direção ao carro, rápido o bastante para que ele não tivesse chance de ver seu rosto irromper em lágrimas.
— Ei, Natalie. — Diego chamou.
Ela virou-se mais eufórica do que gostaria.
— O quê é?
— O trabalho de sábado. Está mesmo de pé?
Ah. Isso.
— Claro. Não me deixe esperando, tá? — As palavras queimaram na garganta, mesmo assim a garota deu um sorriso teatral. Vantagens de ser atriz. Então recostou no veículo para procurar as chaves. Péssima hora para perdê-las dentro da bolsa.
Sentiu o toque no ombro e ouviu a voz que disse:
— Espera.
E antes que ela pudesse falar qualquer coisa, Diego a beijou. Dane-se. Natalie era como um tipo especial de heroína na qual ele era viciado. Wolf esqueceu-se da bolsa que caiu aberta no chão, moedinhas tilintaram contra o asfalto, um tubo de gloss rolou para baixo da roda do veículo. Só se repeliram quando escutaram novos passos vindos do corredor. Natalie agachou-se para recolher os objetos inúteis da bolsa e Diego ocupou-se de algo no celular. Ambos disfarçaram bem.
— Nossa, tio Diego! Por que você tá demorando taaanto?
Era a mais velha das sobrinhas. Olhos e ouvidos de algum adulto da casa, aquela pequena espiã.
— Porque estava tratando de trabalho com a senhorita Boggs, Mabel. Pode voltar para dentro, vou logo atrás de você.
— Booooggs? — Ela falou de um jeitinho afetado. Os cabelos estavam ainda mais desordenados na trança caótica. — Mas essa não é a...
Diego não deixou a garota completar a frase, deu uma piscadela e fez um gesto de silêncio com o indicador. E Mabel Hernandez adorou ser a cúmplice daquele segredo.
Natalie achou as chaves. Despediu-se de Diego e da garotinha que agora estava agarrada ao braço de Hernandez como se tivesse algum direito sobre ele que a atriz não possuía. Deu a partida no carro e o barulho do motor tornou sua respiração inaudível. Seus olhos azuis acompanharam as duas pessoas de altura diametralmente opostas desaparecendo à primeira curva. Analisou o bairro pela última vez. O concreto opaco que predominava melancólico, a grama descuidada de uma praça onde mulheres fumavam e encaravam o carro dela com desdém.
Definitivamente, aquele lugar não combinava com Los Angeles. Pelo menos não a parte do glamour e pompa. Mas as famílias ricas de Beverly Hills precisavam de imigrantes para limpar suas mansões, aparar seus jardins e cuidar de suas crianças detestáveis. De motoristas pontuais que não os deixassem se atrasar para eventos estúpidos.
O aroma de um perfume viril agora estava preso entre as tramas do seu cashmere, o gosto do beijo roubado ainda fresco sobre os seus lábios.
De repente Natalie estava chorando. Um choro reconfortante e libertador que a fez se sentir surpreendentemente leve. E pela segunda vez naquele dia, também se lembrou do seu terapeuta.
Aquele intelectual petulante ficaria orgulhoso.
Esperou que lhe mandassem safiras no tom de suas íris ou rubis que combinassem com o batom vermelho preferido. Já era uma tradição que, às vésperas de eventos importantes, as maiores grifes duelassem pela sua preferência. Aguardou até aquela manhã. Nada. Uma joalheria dinamarquesa, cujas campanhas publicitárias foram estreladas por Natalie, ainda teve a audácia de enviar a notificação de quebra contratual dois dias antes. Devido às “atuais circunstâncias,” não tinha mais interesse em vincular sua imagem à atriz. A hipocrisia do mundo machista. Se ela fosse homem, marcas de bebida e de cigarros caros teriam abarrotado sua porta de entrada com "presentinhos" pelo seu comportamento reprovável.
Ao menos recebeu o vestido. Um Valentino preto de corte clássico e fenda lateral estava pendurado a um cabide, sem necessidade de ajustes. Agradeceria ao estilista pessoalmente quando tivesse a chance. Escolheu sandálias de tiras minimalistas e complementou o visual com um colar de diamantes.
Então o interfone ecoou pelos cômodos do duplex. Mesmo sabendo de quem se tratava, foi inevitável não se sentir eufórica. Sabia que no fundo, cada etapa do preparo minucioso, as borrifadas extras de perfume...
Tudo era para ele.
Disparou até a porta, os lábios pestanejando antes de finalmente acertar a sequência do alarme. Do lado de fora do prédio, recostado num Rolls Royce Phantom, Hernandez reajeitou a postura quando viu Natalie. A cena familiar trouxe conforto à atriz, mas também a dor de como tudo se acabou: um castelo construído com frágeis cartas de baralho. Ele abriu a porta traseira do veículo e ambos trocaram nada mais do que um cumprimento profissional. O beijo de dias atrás ficando perdido em algum lugar do passado.
O percurso até a premiere tornara-se longo demais. Como se as regras referentes à relatividade do tempo e espaço fossem derrogadas pelo reencontro premeditado. Natalie fitou as ruas iluminadas de Westwood, o colorido neon dos outdoors que atravessava o vidro fumê criando tatuagens efêmeras de sombra e luz na sua pele.
— Quer ouvir música? — Diego disse um tempo depois, a voz entregando nervosismo. Natalie confirmou e o silêncio do veículo foi preenchido por um som conhecido. A garota levantou o rosto e pelo retrovisor encarou os olhos do rapaz estreitando-se em decorrência de um sorriso.
— Song for someone. — Ela disse surpresa. — Eu adoro essa.
— Sim, eu sei.
Claro que sabia.
Quando viraram na Beloit Avenue, Wolf vislumbrou a multidão de fotógrafos. As câmeras apontavam na direção de Jessie Hudson, atriz com quem tivera desentendimentos passados. A concorrente usava joias Cartier da nova coleção. Aquele bracelete de esmeraldas deveria estar no seu braço, não no daquela pseudo-estrela de quinta categoria.
Havia apenas dois carros à frente quando Natalie sentiu a ansiedade queimar no peito, como se os flashes pudessem se metamorfosear em tomates, os aplausos em escárnio. Ela se mexeu desconfortável no banco. O medo de repente pesando sobre seus ombros.
— Meu Deus. Não foi uma boa ideia vir aqui. É a primeira vez desde... Acho que não vou conseguir. Não vou conseguir entrar.
— O que está dizendo?
— Estou dizendo que eu não consigo passar por isso! Dê meia volta com esse carro, por favor!
Ela já tinha retirado o ansiolítico de dentro da bolsa, estava tremendo. Hernandez puxou o freio e virou-se para trás, tendo certeza de estar olhando diretamente nos olhos dela quando disse:
— Ei. Olhe para mim.
Ela olhou.
— Agora, respire fundo, Natalie.
Ela inspirou e expirou algumas vezes. Estava de olhos fechados quando sentiu a mão dele apertar a dela.
Foi o melhor dos calmantes.
— Sabe, você vai ter que enfrentar isso uma hora ou outra. — Ele falou, notando quando a respiração dela voltou ao ritmo normal. — E um erro não pode ser capaz de apagar a grande atriz que você é, Natalie. Todos que estão aí dentro sabem disso. Porque daqui trinta anos, quando os filmes desta geração se tornarem clássicos, não é de nenhum deles que o mundo se lembrará, mas de você. Você é estupenda. Por isso, mantenha a cabeça erguida quando for caminhar por aquele tapete.
E por alguns segundos, tudo o que ela conseguiu fazer foi lançar-lhe um olhar agradecido, pois ele a havia deixado sem palavras. Diego estacionou diante do tapete vermelho, a porta traseira meticulosamente posicionada entre duas fileiras de jornalistas.
— É Natalie Wolf! — Anunciou um fotógrafo depois que a porta do veículo foi aberta. Os flashes iniciaram-se antes mesmo da atriz colocar os pés para fora.
Um dos seguranças que havia estendido a mão para ajudá-la. Mas ao invés de sair do carro, Natalie puxou novamente a maçaneta deixando a agitação caótica da impressa de lado. Ninguém entendeu nada. Tampouco Diego que se virou preocupado depois que a porta bateu:
— Natalie?
E ela sorriu enquanto se inclinava no banco de couro marfim, ajeitando-se para perto dele.
— Está tudo bem? — Diego perguntou.
— Está sim. Está perfeito.
— Então por que não desceu?
— Porque tenho algo para te falar, mas antes, preciso saber... Aquela garota que estava na sua casa... você a ama?
Ele ficou atônito e riu desconcertado.
— Meu Deus. Pra que isso agora, Natalie?
— Apenas me responda, Diego.
Do lado de fora, alguém esmurrou repetitivamente o capô do carro, seguranças retiraram a pessoa antes que o veículo sofresse danos: um fã agitado.
Demorou alguns segundos, antes que Diego dissesse:
— A resposta não ficou clara quando lhe beijei aquele dia? — Ele suspirou. As próximas palavras escapando por entre os dentes cerrados como uma verdade odiosa de se admitir. — No meu coração só houve espaço para você.
Linhas tênues desapareceram da região dos olhos ansiosos de Wolf para dar lugar ao maior dos sorrisos.
— Certo. Desliga o carro.
— O quê?
— Desliga o carro, por favor.
Ele obedeceu, as sobrancelhas elevaram-se indicando que estava confuso.
— Vai me explicar o que está acontecendo?
— Vou, vou sim. — Ela disse. Então acariciou os cabelos negros do rapaz, admirou-lhe os belos traços rústicos e sorriu da testa enrugada de quem “não estava entendendo nada” que Diego fez naquele momento.
Porque a explicação era simples. Do jeito dela, Natalie finalmente estava admitindo o que seu orgulho tolo sempre negara: amava aquele homem. E estava disposta a enfrentar todas as barreiras que isso implicava.
— Lembra quando eu disse para nunca contar aos paparazzi sobre nós? — Natalie se fez mais clara e Hernandez recordou-se das ofertas generosas que recusara dos tabloides quando o escândalo veio a público.
— Claro que me lembro. E eu mantive minha promessa.
A atriz sorriu da cara séria que ele fez.
— Sei que manteve, mas isso não importa, não mais. O que importa, neste exato momento, é você descer, entregar as chaves para o manobrista e vir comigo. Isso, se ainda houver espaço para mim no seu coração.
Os olhos de Diego brilharam em êxtase, seus ouvidos processando o que acabaram de ouvir.
— O quê... Isso... isso é sério? Merda, Natalie, se estiver tirando uma com a minha cara...
— Não, não estou. — Ela o interrompeu. — Quero que você me acompanhe, Diego. Quero você ao meu lado neste tapete vermelho como nunca antes quis algo em toda minha vida...
Tinha um enorme fila de carros logo atrás dos dois.
— Quero que você me diga sim, Diego.
Wolf saiu do veículo primeiro e encorajou o rapaz, que desceu hesitante, ainda sem acreditar que aquilo realmente estava acontecendo. A aglomeração de jornalistas reorganizou-se para aquela tomada exclusiva enquanto lançava um dilúvio de perguntas:
“Natalie! Este é o motorista de Brian Carter? Natalie! Vocês estão juntos? Natalie! Natalie! Então confirma os rumores de que traiu seu ex? Natalie! É verdade que tentou destruir a Dark Paradise?”
Mais e mais questionamentos, todos sintetizados de uma só vez pela resposta sólida da atriz inequívoca sob a postura confiante:
— Este é Diego Hernandez. E... — Virou-se para o rapaz de rosto pasmo e olhos castanhos ofuscados pelo clarão dos flashes.
Olhos tão lindos...
— Então vocês estão juntos? Vocês estão mesmo juntos!? Estão?!— Os gritos vinham de pontos distintos do meio da multidão.
E Natalie perguntou baixinho ao rapaz:
— E então, Diego? O que eu devo responder a eles?
A resposta dele veio precedida de um sorriso, e daquele brilho no olhar que as pessoas reservam apenas para alguns poucos momentos durante toda uma vida.
— A eles eu não sei, guapita. Mas a você… por Deus, Natalie, a você eu digo sim.
Então ela o beijou. Um beijo rápido, mas com duração o suficiente para garantir que todas as casas da América acordassem com aquela cena em seus jornais matinais. Depois lhe ofereceu a mão, e Diego permitiu que Natalie o guiasse na direção do tapete vermelho.
Na direção de um novo começo.
Fim!
Nota da autora: Agradecimentos:
À Nataly por durante um ano e nove meses fazer de NCAP ainda melhor sob seu olhar clínico. Perco uma beta, mas ganho uma grande amiga. <3 E claro, por serem minha motivação constante com seus comentários carinhosos e recomendações no grupo do obsession, agradeço a cada uma de vocês, minhas preciosas leitoras. Vocês foram incríveis e eu nunca vou me cansar de dizer isso. Stela e Brian passaram a ser mais reais depois que eu os dividi com vocês. <3
Se você é nova por aqui e gostou da história convido-a a fazer parte do nosso grupo do facebook (cujo link encontra-se logo abaixo) para conhecer meus projetos futuros.
Espero que isso não seja um adeus, mas um "até breve".
Sintam-se abraçadas, ratinhas.
Com amor,
Tatá Ribeiro <3
Nota da beta: Nada mudou, essa palavrinha fim ai me quebrou em múltiplos pedacinhos de novo, e dessa vez é definitivo AAAAAA! Gente, NCAP foi um presente pra mim, Tatá, eu que tenho que agradecer pela nossa parceria maravilhosa e por ter ganhado sua amizade, que foi um presente lindo. Deus, que história maravilhosa! Esse desfecho para a Natalie foi lindo, eu amei que ela se redimiu e no fim assumiu o Diego, impecável. Parabéns por escrever magnificamente bem! NCAP tem um lugarzinho bem especial em meu coração! Volta logo a escrever, viu? Não posso ficar em abstinência de Tatá em minha vida hahaha!
Lembrando que qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.
Para saber quando essa fic vai atualizar, acompanhe aqui.
À Nataly por durante um ano e nove meses fazer de NCAP ainda melhor sob seu olhar clínico. Perco uma beta, mas ganho uma grande amiga. <3 E claro, por serem minha motivação constante com seus comentários carinhosos e recomendações no grupo do obsession, agradeço a cada uma de vocês, minhas preciosas leitoras. Vocês foram incríveis e eu nunca vou me cansar de dizer isso. Stela e Brian passaram a ser mais reais depois que eu os dividi com vocês. <3
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Espero que isso não seja um adeus, mas um "até breve".
Sintam-se abraçadas, ratinhas.
Com amor,
Tatá Ribeiro <3
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