Última atualização dessa parte: 27/11/2017

PARTE I
Apresentando:
A mocinha e o cara que ainda não sabe se é ou não o herói desta história.

Capítulo 1

O guia apontava para um quadro de Monet. Tons sobrepostos de lilás, branco e verde. Misturas sem nenhum critério lógico que criavam jardins perfeitos, as folhas feitas de tinta a óleo, quase tão verossímeis quanto as que precipitavam sobre as calçadas naquele começo de outono. Um grupo de turistas japoneses disparou flashes contra a tela antes de seguir o guia para outra parte do museu.
Perto dali, uma garota apenas observava. Não queria saber de passeios guiados e não tinha mais saco para ouvir sobre história da arte. Ela estava deitada no banco, o tênis Converse apoiado no braço de madeira, fazendo com que os pés ficassem ligeiramente mais altos que suas pernas, num ângulo de 15º graus. A cabeça repousando sobre os braços cruzados e os olhos fixos na cúpula do museu.
Amava a arquitetura, os cálculos matemáticos que envolviam sua construção. A cúpula, por exemplo, placas de vidro fumê predispostas lado a lado cobriam todo o espaço poligonal criando um domo perfeito. Quem fez aquilo, merecia ter seu nome exposto em alguma plaquinha como todos os demais artistas impressionistas do museu. Ah, se merecia.
Conferiu o relógio. Ainda faltava uma hora para o check-in do hotel. Plano B de passar o tempo: analisar a ala de esculturas realistas. Cálculos de sustentação e proporcionalidade direta; uma arte que a atraia muito mais do que os abstratos cujo índice de desafio matemático era próximo de zero. Caminhou na contramão de um novo grupo de turistas, em direção a uma sequência de estátuas de bronze que representavam deuses do Olímpio. E foi naquele instante que ela o viu, bem ao centro do salão, analisando os olhos frios e inexpressivos de uma Pallas Athena com um interesse legítimo.
Primeiro foram as roupas dele que chamaram sua atenção, descoladas demais. O líder de uma gangue de motoqueiros deveria se vestir daquela forma, (ou então um adolescente rebelde que colecionasse vinis dos Sex Pistols no porão dos pais), não caras que seguramente já passaram dos vinte e cinco anos. A calça vinho justa não dificultaria qualquer garota a imaginá-lo sem elas, e talvez tenha sido essa sua intenção quando as vestiu naquela manhã. Suas botas militares faziam um par e tanto com a jaqueta de couro surrada. Tudo nele se complementava bem. Até o Ray-Ban e aquele boné pareciam itens imprescindíveis, uma exigência. Pouco importava se ninguém usava óculos escuros dentro de museus.
não precisaria de réguas ou compassos para saber se eram aceitáveis as proporções áureas do rosto dele. A estrutura óssea tinha a mesma perfeição matemática encontrada em modelos de revista. Maxilar marcado, queixo quadrado e maçãs do rosto proeminente. Era bem provável que o homem estrelasse propagandas de perfume montado em puros-sangues nas praias de Saint-Tropez, ainda que se vestisse como um pivete descolado. Afinal, ele era lindo. Entre tantas obras de arte, aquele cara definitivamente era a mais primorosa do lugar.
Ele se virou de repente. E desviou o olhar fingindo interesse genuíno no que quer que estivesse a sua frente.
Eram as partes íntimas de um Apolo. Minúsculas.
Sentiu suas bochechas queimarem e desejou sumir dali. Quando achou que já fosse seguro voltar o olhar, ele estava bem próximo. Perto o suficiente para que ela reparasse nos cabelos que escapavam da lateral do boné, fios castanhos escuros que desciam até os ombros. Também sentiu o perfume almiscarado. Céus, nada do que já havia sentido antes. A matéria-prima deveria ser importada direta do Olimpo. Ela afundaria o rosto no pescoço dele e se intoxicaria com aquele aroma, mas o rapaz certamente a acharia uma maluca e chamaria os seguranças. Prestou atenção no zumbido metálico que escapava-lhe dos fones de ouvido, tentando decifrar a música: rock pesado.
Teve certeza de que ele sorriu. Possivelmente um sorriso direcionado para ela. Os lábios curvando-se um pouco mais para o lado esquerdo. Tão sexy.
E se tivesse correspondido, talvez ele puxasse assunto. Talvez até a convidasse para tomar um café numa daquelas ruas pitorescas de Praga, logo abaixo do museu. Então os minutos até o chek-in se tornariam menos vazios e ela teria uma história para contar quando voltasse ao Brasil.
Mas não correspondeu.
E só observou quando ele se virou e caminhou em direção à saída.


Capítulo 2

— Como é mesmo o seu nome?
O recepcionista do hotel a analisou com desconfiança, mas ela achou compreensível. O cabelo preso já teve dias melhores. A calça jeans desbotada também não lhe conferiria a melhor das aparências. Era uma mochila surrada que pendia do seu ombro, não uma Louis Vitton sofisticada. Nada nela combinava com aquele recinto: um hotel classificado com cinco estrelas quando na verdade merecia uma constelação inteira.
— É . — Repetiu, forçando um sorriso.
— Certo... Encontrei sua reserva. — O homem falou polido, sem tirar os olhos da tela do computador. — Queira nos desculpar por dificultar sua entrada, mas chegamos a pensar que era uma das fãs da banda.
— Sem problemas. — falou, o timbre amigável. Fingiu não se importar por quase ter sido derrubada pelo segurança troglodita do hotel. Não queria fazer uma cena, não perto daquelas madames de cabelos impecáveis e sapatos que valiam mais do que pagava sua bolsa de estudos anualmente.
Lá fora, os seguranças ainda tentavam conter a multidão de garotas e rapazes que ameaçavam invadir o lugar. Eles seguravam pôsteres e capas de CDs contra o peito. Alguns gritavam compulsivamente.
— Aqui está seu cartão senhorita . O quarto fica no sétimo andar. O café é servido entre seis e dez e meia. Bagagem?
A mão do recepcionista aguardou a poucos centímetros da campanhinha por uma resposta. Tinha unhas incrivelmente polidas para um homem. Em outro ponto da recepção, o mensageiro virou o rosto, em alerta. Era um garoto jovem e usava luvas. achava que só nos filmes eles se vestiam daquela maneira.
— Só essa. — Com um olhar rápido, a garota indicou a mochila. — Mas eu mesma levo, obrigada.
Já era uma piada ela estar naquele saguão que poderia refletir sua áurea de tão brilhante. A piada seria ainda maior se a sua mochila subisse para o quarto em um carregador de malas dourado.
Não mesmo. Melhor evitar.
O recepcionista voltou a mão para trás do balcão e sorriu, os olhos se estreitando por trás de lentes bifocais numa armação arredondada:
— Desejamos uma excelente estada.
Carregava poucas roupas para os dois dias em Praga. Só peças coringas conforme as orientações de um blog para mochileiros. Camisetas de cores sóbrias: uma combinação sensata para os dois pares de calças jeans, um moletom folgado (que agora já estava saindo dos braços e indo direto para o chão encarpetado do quarto). Botas Timberland, além dos Converse nos seus pés. Também havia um nécessaire cheio de maquiagem para quando toda aquela história de praticidade começasse a dar no saco.
Deixou a bagagem num canto do quarto. Suas costas agradeceram. Ela fez uma ceninha antes de acender as luzes. Queria ter certeza de que o interior era tão pomposo quanto sugeriam as fotos do Booking.
Não, era muito melhor do que esperava.
— Caramba, não acredito que fiz essa loucura. — Disse sozinha, mas se perdoando. Afinal, era só uma noite. O preço estava convidativo, uma promoção de última hora. E ela havia economizado tanto naqueles hostels de banheiros coletivos que entendeu a extravagância como uma boa aplicação, um tipo de investimento. Seu corpo todo concordou quando os membros deslizaram pelo lençol acetinado da cama.
Bem... Só se vive uma vez.
Tinha todo o dia pela frente, livre de compromissos do Mestrado. E não queria saber de mais museus, nem de igrejas. Tudo o que queria era conforto. Ficar estirada na cama até que outra ideia surgisse, parecia a melhor opção.
A ideia surgiu quatro horas depois.
Ela se levantou ainda grogue. Abriu as persianas e encontrou uma vista de tirar o fôlego. Como uma das daquelas telas que vira mais cedo no museu. As luzes dos postes cintilavam contra um crepúsculo púrpuro. Abaixo, na portaria do hotel, encarou a multidão que parecia ter triplicado. Não entendia porque algumas pessoas ferravam os pés e as panturrilhas só para ter um vislumbre rápido de celebridades. Seus ídolos eram Newton, Gauss e Turing. Todos matemáticos, todos mortos, e que, definitivamente, contribuíram muito mais para a humanidade do que cantores de rock sonhariam fazer. Revirou os olhos antes de deixar a persiana escorregar deliberadamente das mãos e foi procurar algo para comer.
Na parte da frente da mochila havia um pacote de Doritos pela metade. Retirou uma Coca-cola no frigobar. Se a mãe estivesse ali, a janta improvisada viria acompanhada de um sermão sobre bons hábitos alimentares. Os Doritos ainda estavam crocantes. Benditos aditivos químicos. Ela já havia quase terminando o pacotinho quando seus olhos encontraram a carta de opções do hotel, ao acaso.
O Hotel Maxence agradece a preferência. Para fazer de sua estada confortável e inesquecível, dispomos de uma sala de ginástica, sala de convivência além de sauna e piscina aquecida...
Piscina aquecida.
As palavras dançaram rente suas vistas. Seus músculos cansados das longas caminhadas pelas ruas íngremes de Praga estirando-se na água quente...
Suspirou baixinho. Quase podia sentir suas pernas implorarem por aquilo. E já estava incluso na diária. Então para que pensar duas vezes?

*

Piscinas de hotéis deveriam ficar as moscas. Só existiam para que o estabelecimento garantisse mais uma estrelinha dourada nos guias hoteleiros. Pelo menos era nisso que vinha tentando acreditar enquanto o elevador subia, já que, como não pensou em nadar no frio europeu, não levou nenhuma roupa de banho. Nem mesmo um biquíni brasileiro pequenininho. E isso definitivamente era um problema naquele momento.
Quando as portas se abriram ela ficou aliviada por não ter ninguém. Poderia colocar seu plano em ação, rápido.
O roupão do hotel era macio e tinha um cheiro incrível de flores, não do tipo que lembrava amaciante, mas rosas de verdade. O nome da rede Maxence havia sido bordado com linhas douradas pouco acima do peito. Deixou-o bem próximo da escada e refez o coque dos cabelos antes de entrar. Para aquela viagem, teve o bom senso de levar alguns sutiãs que combinassem com as calcinhas, graças a Deus. E era um conjunto de lingerie preto de microfibra. Se visto de relance, poderia muito bem ser confundido com um biquíni.
A piscina ficava na cobertura. Era uma decorrência lógica que as paredes daquele andar fossem substituídas por vidros: a vista era um espetáculo à parte e desaconselhava os que sofriam de vertigem a se aproximar. O ambiente estava à penumbra. Tinha um ar intergaláctico com todos aqueles leds violetas nas paredes e dentro da piscina, como se a água fosse uma mistura incandescente fruto de alguma experiência química. Das caixas de som, um lounge instrumental escapava e conferia a deixa perfeita para que ela curtisse o isolamento daquele paraíso artificial.
recostou na parede de pastilhas azul petróleo e submergiu o corpo na água. E se não estivesse tão segura da teoria que criara no elevador, talvez ouvisse o ranger da porta de metal antes que os passos ficassem cada vez mais próximos na direção da piscina.
Na sua direção.
Merda... Não ousou olhar. Seria melhor evitar o máximo de contato visual caso tivesse que sair dali correndo.
Quem quer que fosse, mergulhou de forma nada diplomática, lançando água por todos os cantos e dilacerando a atmosfera harmônica do lugar. Ótimo. Era sua chance de fugir dali. Quando o hóspede levantasse o rosto para fora d’água, ela já estaria a meio caminho da entrada, o corpo bem protegido dentro do roupão.
Mas quando seus pés já alcançavam o terceiro degrau, quando a sensação de sair dali correndo já causara uma pequena descarga de adrenalina no corpo, ela escutou a voz do intruso: grave, firme, ainda assim, encantadora, como se ele acabasse de fazer-lhe um convite irrecusável.
— Espero que não esteja saindo por minha causa.
Ela desceu novamente, pisando um degrau em falso e afundando para dentro da água. Ótimo. Os cabelos que não deveriam molhar, escaparam do coque. Mas agora isso não tinha importância.
— O quê?
— A piscina. Tem espaço suficiente para nós dois. — O hóspede continuou.
— Eu... não estava saindo. Só estava... empurrando meu roupão para longe da beirada.
O homem se movimentou, saindo da zona sombreada, seus traços entrando em foco. E... Puxa vida. Talvez o cenário tenha ajudado: piscina, pouca luz, essas coisas. Mas a grande verdade, é que o cara era mesmo um gato e os demais elementos meros colaboradores do contexto. Devido à luz neon, , não soube dizer com certeza, mas talvez os olhos dele fossem claros. Como se ele precisasse de mais essa vantagem.
Ah, acredite, não precisava.
Ela piscou forte, a fim de disfarçar o olhar que provavelmente estava lhe dirigindo naquele momento, algo que muito provavelmente chegava perto do que devia ser uma garotinha de onze anos vendo um menino bonito pela primeira vez.
— Ah. Sinto muito por isso. — Ele sorriu. Era um sorriso do tipo que formava covinhas simétricas abaixo das maçãs e fazia se esquecer de problemas relacionados a biquínis e lingeries.
— Tudo bem... — Ela devolveu o gesto, ainda sentindo-se como uma colegial no auge da puberdade.
De repente o rapaz franziu o cenho, suas sobrancelhas desceram e seus olhos semicerraram como quem se força a desvendar algum enigma.
— Ei, sabe de uma coisa? Você me é familiar.
Ela o encarou. Não, isso não era possível. Nem se estivesse sofrendo de uma amnésia grave se esqueceria de um rosto daqueles.
— Eu acho que não... — nem terminou a frase quando teve um lampejo: coloque um boné e óculos escuros nele e então... Ai, meu Deus.
Era o cara do museu.
Ela ficou vermelha ao mesmo tempo em que desejou: por favor, que ele não se lembre. Por favor, por favor, por favor.
—Ah, era você no museu hoje mais cedo, não era? — Ele disse.
— É... passei por lá.
Droga. Que ele não se lembre do incidente do pênis de bronze. Por favor. Por fa...
— Admirando as genitálias de uma estátua. — Ele mordeu o lábio, contendo o sorriso.
Merda.
— Eu... — gaguejou.— Estava admirando a estátua por inteiro.
— Claro que estava. Foi só uma brincadeira. — Ele levantou os braços como se quisesse estabelecer uma trégua, havia tatuagens espalhadas por eles. Depois lhe estendeu a mão direita, se aproximando. — Vamos começar de novo. Prazer, .
. —Ela retribuiu ao aperto — Britânico?
— O sotaque entrega?
— Entrega sim.
— E o seu, de onde é?
— Brasil.
O homem a encarou, sugestivo.
— Ah. Belas praias, ótimo clima... Garotas bonitas.
Ela ficou vermelha. De novo.
— É... as pessoas realmente gostam das praias.
deu um sorriso ainda mais largo. Submergiu o rosto, depois voltou à superfície reajeitando seu cabelo comprido para trás. Deus do céu. Melhor do que aquilo, só se toda a sequência de atos tivesse acontecido em câmera lenta.
— Está em Praga a passeio?
sentou-se em um dos degraus dentro da água, a barra de metal gelada esfriou nas suas costas. Pela paisagem panorâmica da cobertura, as luzes de um avião piscaram sincronicamente no céu noturno.
— Passeio, trabalho, estudo. Estou unindo o útil ao agradável.
— E o que você faz quando não esta vendo as genitálias renascentistas nos museus? — perguntou.
A garota revirou os olhos, mas sorriu mesmo assim:
— Estou estudando em Frankfurt há quase três meses, terminando meu mestrado. E aproveitei o fim de semana de folga para relaxar. Sempre quis conhecer Praga, então achei uma promoção de passagens incrível para cá. E... é isso.
Minha nossa, , cale sua boca antes que você comece a contar como perdeu dois dos seus dentes de leite aos sete anos.
Já eram mais palavras trocadas com outra pessoa do que qualquer nativo dali. Muita informação fornecida para um total desconhecido. Charmoso, mas ainda assim, desconhecido.
— Legal. Faz mestrado em que?
— Matemática.
— Matemática? — levantou um músculo da testa, admirado. — Puxa, é difícil achar garotas que gostem de números, não?
— É verdade, não somos muitas. — Ela sorriu, concordando. — E você? O que faz quando não está invadindo banhos de piscina particulares?
Primeiro ele riu, achou que a garota estivesse brincando. Mas quando permaneceu séria, esperando uma resposta, viu que ela realmente não tinha nenhuma ideia de quem ele fosse. Então disse:
— Eu... trabalho para uma banda.
Os olhos de se arregalaram, surpresos.
— A banda que está hospedada no hotel?
deu um aceno postivo.
— A própria.
— Puxa! E você é o que? Algum tipo de relações públicas?
Ele demorou a responder, controlando a vontade de rir.
— É. Pode se dizer que sim. Meio que faço a parte do cartão de visitas.
— Hum... você tem estilo para isso.
— Vou entender como um elogio. — Mudou de assunto antes que ela percebesse alguma coisa. Aquilo estava sendo exageradamente divertido. — Que tipo de som você curte?
Ela ficou pensando por um momento e focou na forma como ela retorceu os lábios, imaginando como seria beijá-la. não percebeu.
— Gosto de um estilo específico do meu país. — Ela respondeu. — Nós chamamos de MPB.
— Aham. Conheço Garota de Ipanema, claro. Notas suaves, vocais tranquilos. Muito bacana. — Ele disse e achou aquele garoto uma caixinha de surpresas. — E rock? Gosta?
— Bem...digamos que o mais próximo de rock que tenho na minha playlist é uma versão em jazz de Sweet Child o’ Mine.
O rapaz sorriu para ela.
— Então não conhece a banda que está hospedada no hotel?
— Nunca nem ouvi falar. — Confessou, a expressão sincera.
— E teria interesse em conhecer? Posso conseguir um ingresso para o show.
— Puxa... — ela demorou um pouco, então dispensou tal qual a garota responsável que era — obrigada, mas melhor não. Ainda tenho que revisar um artigo para amanhã, senão até cogitaria ver caras tatuados quebrando guitarras.
gargalhou com a resposta, mas teve quase certeza de que notou uma pontada de decepção nos olhos dele.
— Quebrar guitarras é tão anos setenta. Nenhuma banda hoje em dia faz isso. — Ele disse. — Pelo menos não se estiverem sóbrios.
— E como são os caras para os quais você trabalha?
— São uns malucos que só pensam em mulheres e bebidas — levantou o indicador e advertiu — mas que não quebram guitarras. Aquelas belezinhas são praticamente da família.
Enquanto ele falava, não conseguia parar de encarar aqueles lábios. Tentadores. Do tipo que não se pode olhar muito tempo sem ter vontade de por a boca sobre eles. Era melhor piscar se não quisesse que tivesse a impressão errada. Hum... talvez fosse melhor que tivesse a impressão errada, seja lá o que isso significasse.
De repente, a música mudou para um lounge de vocais sussurrados e pegada erótica, e a garota se perguntou se aquilo não foi obra de algum telespectador oculto para deixá-la ainda mais sem graça.
As palavras desapareceram. No instante seguinte, se aproximou. Seus olhos pareciam feitos de algum material liquefeito, misturando-se às cores da piscina. Com a água lhe tampando até o pescoço, ele disse:
— Foi uma grande coincidência, não acha?
piscou, finalmente.
— O quê?
— Primeiro o museu... depois aqui...
Então péssima hora para mais pessoas resolverem aparecer na cobertura.
O barulho arrastado da porta de metal veio seguido de pisadas fortes. Eram sapatos sociais. E pela forma que eles repercutiam no chão, pesados e exigentes, asseguravam que quem quer que fosse o dono deles, não deveria estar de bom humor.
— Só pode ser brincadeira... — pestanejou baixinho e afundou metade do rosto na piscina, se escondendo.
— Ah! Vejam só! Olá, !
Não funcionou.
— E aí? Se divertindo? — O homem falou com zombaria, levantando os braços como se toda insatisfação do mundo coubesse ali naquele gesto. Baixo, corpulento, um bigode farto que contrastava com os poucos fios encaracolados amarrados em um rabinho de cavalo ridículo: este era Robert Barlet.
— Oi Robert. — disse, sem nenhuma energia na voz.
— Sabia que o procuramos por todo lugar? Dominic até deu a ideia de ligarmos para a polícia! Eu cheguei a imaginar quais desculpas deveria bolar para a mídia.
revirou os olhos e deu de ombros antes de responder:
— Dom é um exagerado, assim como você.
— Exagerado? Eu? — O homem apontou para si mesmo, num espaço entre os bolsos da camisa de botões e uma corrente grossa dourada — Você some a porra de um dia inteiro, com todas aquelas malditas entrevistas agendadas, e eu sou exagerado?
— Tudo bem, Barlet. Já entendi e já estou saindo. Só precisava de um pouco de privacidade antes do show.
O homem encarou a garota ao lado de , era como se apenas naquele momento tivesse se dado conta da presença de outra pessoa ali.
— Ah, agora é assim que você chama as suas fãs bonitas? De privacidade?
“Fãs?” A palavra estava muito clara na mente de . Seus ouvidos entenderam bem, mas nada saiu dos lábios dela. Estava confusa.
a olhou. Foi um olhar rápido e envergonhado. As coisas vistas por aquela perspectiva... Parecia que era a responsável por incitar o rapaz a dar um pontapé no que quer que fosse importante para aquele intruso. Ah, sim, entrevistas. Que certamente, não eram de emprego.
O rapaz se voltou para o homem que insistia em manter a cara de poucos amigos:
— Robert, quando terminarmos a turnê, lembre-me de arrumar um empresário que não pegue tanto no meu pé, ok?
— Muito engraçado. — Robert fez um ruído de puro descontentamento. — Vou marcar isso na minha agenda, junto com outra nota: “procurar uma banda mais compromissada para agenciar”.
desejou um buraco para afundar a cabeça (mas a piscina já estava de bom tamanho). Como eu fui idiota! Agora lhe era bem óbvio: um homem daqueles só poderia ser famoso. Repassou o diálogo várias vezes, tentando se sentir menos estúpida.
— Desculpe por isso . De qualquer forma, foi um prazer conhecê-la. Boa sorte com seu Mestrado.
O coração da garota disparou. Ainda estava digerindo o fato de ter conversado com um astro e tê-lo tratado como um mortal comum.
— O-Obrigada... — A voz dela saiu baixinha.
E quando saiu da piscina ela arriscou uma última olhadela. (Quem não olharia?) Ele balançou as mãos pelos cabelos escuros. A água escorreu pelas tatuagens dos braços. Todas aquelas divisões no abdômen... o garoto se cuidava. Ele era o estereótipo perfeito do que uma celebridade deveria ser.
— Pode me jogar a toalha, papai? — falou presunçoso para o homem.
Robert Barlet revirou os olhos antes de lançar a toalha na direção de :
— Se você fosse meu filho, acredite, eu iria ficar muito feliz em te dar uma boa surra.
continuou atônita, mesmo depois que eles saíram e o único som orgânico no recinto voltou a ser sua respiração, muito mais descompassada, por sinal. Entrar na piscina em roupas íntimas, de repente perdera a importância. Nem era um problema de verdade.
— Caramba... Eu conversei com um astro do rock... — Disse em voz alta, extasiada. Só para ter certeza de se lembrar daquela sensação quando a realidade a empurrasse de volta para seu mundo medíocre.
Newton, Gauss e Turing eram demais. E continuariam sendo. Mas aquilo... aquilo foi sensacional.
Puta merda.
Afundou o corpo dentro da piscina e gritou, bolinhas de água eclodiram na superfície. Por que raios recusou o convite para ir ao show? Estúpida, estúpida, estúpida!
Odiou-se pela segunda vez naquele dia.



Capítulo 3

desembaraçava os cabelos quando começou o frisson. Correu até o parapeito da sacada e não julgou mais aquelas pessoas lá embaixo. (As mulheres, principalmente). Se todos os astros de rock fossem daquele jeito, não pensaria duas vezes antes de substituir sua coleção de MPB por vinis de Metal.
Vistos do sétimo andar, todos não passavam de pontinhos. Os que iam à frente como uma comitiva, poderiam ser os seguranças. A repetição previsível de ternos escuros fazia dessa dedução quase certa. estaria entre os outros quatro: os dispersos pelos braços de fãs enlouquecidas que os pontos pretos não conseguiam conter.
Um SUV prateado abriu suas portas e dois rapazes cumpriram a única e honrada função de fechá-las depois que os integrantes da banda entraram. Os gritos histéricos declinaram junto com o clarão dos flashes quando o motorista driblou o aglomerado de carne humana e partiu à velocidade comedida para evitar um atropelamento. Era isso: horas de espera em troca de segundos de visão truncada por cabeças e ombros dos que levavam a vantagem genética de serem mais altos.
Quando desceu até a recepção, a multidão já tinha partido. Um dos funcionários do hotel juntava as bitucas de cigarro e outras sujeiras deixadas pelos fãs desordeiros. se virou para o mensageiro que separava notas graúdas de gorjeta entre suas luvinhas de garoto de comercial.
— Ei. Por acaso você sabe o nome da banda que acabou de sair? — Ela perguntou.
— Claro. — O rapaz riu, achando-a uma alienígena por não saber algo supostamente tão óbvio. — É a Dark Paradise, senhorita.
A garota agradeceu e saiu em busca de algo para comer. Evitou os fast-food de franquias conhecidas e comeu um lanche rápido de rua, tudo para fazer da sua experiência em Praga mais real, como uma verdadeira nativa. Na volta passou numa loja de conveniência e comprou uma lata de Coca. Colocou-a no espaço vazio deixado pela anterior no frigobar antes de se enfiar sob duas camadas de cobertas.
Sabia que se deitasse naquele instante, teria as exatas oito horas de sono que precisava. Oito horas antes de tomar um café decente e fazer a revisão do artigo. Acontece que a ansiedade nunca se importou muito com necessidades fisiológicas (tampouco com trabalhos de Mestrados deixados para última hora). Queria mesmo era fazer novas descobertas. E elas nada tinham haver com as ruas exóticas de Praga ou o sanduíche que mais tarde descobriria ser grego (lá se fora o item: experimentar a culinária local), e sim com um certo astro do rock hospedado no seu hotel.
Apoiou o notebook sobre as pernas cruzadas. O indexador do Google deu a opção tão logo que digitou a letra P de Paradise. Descobriu que a banda de já estava em seu quinto disco de sucesso e se perguntou onde esteve durante este tempo. Talvez fosse mesmo uma alienígena. Procurou pelo nome de entre os integrantes, estava prestes a descobrir a função do rapaz na banda. Então, surpresa.
O filho da mãe era simplesmente o vocalista.
— Sem chance! — Pronunciou cada sílaba bem devagar, assombrada. Já se imaginando numa conversa com os amigos: quem acreditaria que o vocalista de uma banda mundialmente famosa atrasou o show para ficar conversando com uma simples anônima?
Nem ela acreditava.
O próximo passo óbvio foi acessar o Youtube e descobrir que as músicas tinham mais visualizações do que a população de um pequeno país. Seus clipes eram ousados e protagonizava o mesmo papel em todos eles: o bad boy irresistível de olhar psicótico e avassalador. Inspirador para os rapazes, e uma tentação para as mocinhas.
Então a voz dele. Céus. Ela não esperava por aquilo. Claro, teria que ser bacana. E bacana já era suficiente para um cara boa-pinta segurar a banda se as composições fossem boas. Mas não sabia que cordas vocais pudessem alcançar notas tão estrondosas sem perder o timbre de veludo. Foi a coisa mais doce, e também intensa, que as míseras caixinhas de som do notebook já tiveram o prazer de tocar.
Envolvida pelas melodias da Dark Paradise, pela voz macia de e pelas lembranças da piscina, nem viu o tempo passar. Restavam-lhe sete das oito horas de sono. Desligou o computador, e com um turbilhão de sensações que lhe queimavam o peito, se forçou a dormir. Mesmo sabendo que agora isso seria quase impossível.

*

As risadas arrastadas eram típicas da euforia alcoólica e retiniam de um jeito azucrinante nos ouvidos. estava na terceira tentativa de ignorar aquilo. Pressionara a cabeça contra o travesseiro de todas as formas possíveis, nenhuma adiantou. A festinha parecia estar dentro do seu quarto e o relógio marcava quase uma da manhã.
Ela sempre foi à garota legal. A que não se envolvia em brigas e adorava passar despercebida, a que preferiria fingir que nada estava acontecendo a chamar a atenção de pessoas em corredores de hotéis.
Deixou essa garota para trás quando criou coragem para abrir a porta e apontou metade do corpo para fora.
Eram apenas quatro as pessoas que faziam barulho por um ginásio inteiro. Duas mulheres e dois rapazes, mas não pareciam ser casais. A não ser que garotas europeias não se importassem em serem revezadas daquele jeito. não é do tipo de julgar, ou puritana, mas ficou constrangida. Era explícito demais.
As meninas eram comuns, mas os garotos... Só poderiam ser da banda. As roupas tinham aquele descaso típico e proposital dos astros do rock. A mensagem por trás das jaquetas de couro e calças enceradas era bastante clara: tenha aversão, mas me deseje. Se qualquer outro rapaz tentasse fazer igual com roupas de departamento, o resultado seria medíocre já que aquelas peças surradas deveriam ter sido estragadas propositalmente pelas mãos habilidosas de caros estilistas italianos.
O loiro de cabelos desfiados usava mais maquiagem nos olhos do que qualquer garota gótica que conhecera, depressões no rosto anguloso faziam as maçãs sobressaírem. Ele vestia uma regata cinza, os furos por onde os braços passavam eram grandes o suficiente para revelar uma pele branca que não via sol com frequência. O outro rapaz tinha algo maníaco nos olhos, típico de usuários de drogas, mas talvez estivesse prejulgando e ele fosse só estranho. Os cabelos longos e enrolados conferiam-lhe um ar selvagem. Uma garota estaria se lamentando do excesso de volume com um cabelo daqueles ao invés de usá-los a seu favor. E o músico não parecia ser do tipo que gastava horas com cremes modeladores (como uma garota também teria reclamado). Os dois tinham tatuagens, obviamente. Eram tantas que uma genitália desenhada ali certamente passasse despercebida.
Parece que o item: “ser atraente” constava na ficha de admissão da Dark Paradise, quase tão essencial como “ter talento para tocar um instrumento”. responderia com certeza quem era quem, se o rosto de não tivesse sido sua principal preocupação durante o tempo em que procurou pelas imagens na internet.
— Estamos fazendo muito barulho? — O loiro falou depois de longos segundos, finalmente notando a presença da intrusa. A menina ao seu lado usava uma jaqueta de couro que certamente pertencia ao músico.
— Um pouquinho. — sorriu para tentar afastar qualquer animosidade.
— Prometo que iremos parar. — Ele foi tão educado que ficou constrangida por um instante, como se fosse ela a quebrar as regras de boa vizinhança que deveria existir em hotéis.
— Obrigada.
Fechou a porta e se deitou novamente. Mas o silêncio que se seguiu não foi duradouro. Ao contrário, as risadas aumentaram quase como em retaliação.
Sentiu o rosto queimar de raiva e lembrou-se da época da escola: dos populares que sempre se davam bem no final e riam da sua cara. Eles haviam crescido e se tornado astros de rock, afinal. Se tivesse trazido os fones de ouvido poderia ignorá-los e trabalhar no seu artigo até que aquelas pessoas detestáveis tivessem se cansado.
Meia hora depois, lhe ocorreu que talvez eles nunca se cansassem.
Quando abriu a porta de novo e se esgueirou pelo espaço restante do corredor, não era para brigar nem nada assim, mas para mostrar que não se dera por vencida. Apesar de terem estragado sua noite de sono, ainda tinha a opção das cadeiras do lounge do hotel à cama macia. Sua mãe sempre dizia que tudo tinha um lado bom. E naquele caso, seu artigo tinha que estar perfeito. Então vamos lê-lo a exaustão, certo?
Só não podia pensar tanto na cama macia para que todo esse otimismo realmente funcionasse.
Certificou-se de fechar bem a cara quando passou por eles numa pose altiva de quem perdeu o sono, mas não a dignidade.
— Não conseguiu dormir? — O loiro falou e as garotas riram da piada sem graça. A ruiva de farmácia roçava o quadril nas pernas dele. Alguém tinha que avisá-la que sua saia lápis havia subido até metade das coxas.
— Coitadinha. — A vadia ruiva disse com um biquinho. E de repente, desejou que a saia lápis revelasse o útero da menina.
— Agradeço a preocupação e extrema consideração da parte de vocês. — farpeou e apertou o notebook contra o peito antes de ir até o hall do elevador. — Boa noite.
Sentiu a mão no seu ombro logo depois.
— Sabe, se quisesse participar era só ter falado. — Sob a maquiagem preta, o loiro tinha olheiras arroxeadas que combinavam com suas íris azuis acinzentadas. Cheiro de nicotina e perfume reascendia-la da camiseta numa mistura ridiculamente funcional. O que dizer sobre? O bastardo violador de sonos alheios era bonito de doer.
— E por que eu iria querer isso? — apertou ainda mais o notebook contra o peito, como um escudo.
— Para se vangloriar que ficou com o guitarrista da Dark Paradise. — Ele disse com uma piscadela, a frase saiu com a naturalidade de quem já deve tê-la usado em outras ocasiões.
demorou a processar a informação.
— Céus, você é convencido. — Ela olhou para a garota ruiva que a encarava com fúria. — E não está ocupado o bastante?
— A cama é grande. — O rapaz devolveu com um sorriso petulante.
Ela revirou os olhos. Por um instante, achou que aquela conversa maluca fosse um delírio ocasionado pelo cansaço.
— Tentador, mas vou dispensar. — deu um sorrisinho falso. — Sou ciumenta, não gosto de dividir.
O rapaz passou a língua de um jeito lascivo pelos lábios. Talvez a recusa tenha acionado algum instinto predatório no guitarrista; o jogo da caça e caçador.
— Hum... O que está carregando ai?
Os dois olharam para o computador.
— O que parece? Um notebook. — Ela disse.
— Engraçadinha. Aonde vai com ele?
— Vou estudar, já que dormir não é uma opção.
— É, não é. E o que uma ratinha como você faz? — A mão do guitarrista levantou uma mecha do cabelo dela. As unhas eram pintadas de preto de um jeito despretensioso, sem se preocupar em preencher todos os cantos. Um desleixo proposital.
— Elijah, deixa a menina em paz. — A voz do outro homem retumbou firme — Ela não deve nem ser maior de idade, seu otário.
Elijah, o guitarrista, deu uma olhada rápida e fria para o colega:
— Tá. Fica na sua, Dom.
Dominic se esquivou da garota morena e caminhou em direção a Elijah. A menina pareceu demorar alguns segundos para notar que o roqueiro a deixou de lado. Coisas que muito álcool na corrente sanguínea faz com as pessoas.
— Cara, olha o que está fazendo. — Dom retrucou. lembrou-se de repente de tê-lo visto num dos clipes. Era Dominic Wilde, o baterista da Dark Paradise. Não tinha aquele ar soturno quando estava no palco, e sim uma fúria violenta bem externada sobre os pratos da bateria. — Eu não vou dar conta daquelas duas, sozinho. E a ruiva está soltando fogo pelas ventas.
olhou novamente para a garota antes de se virar para o guitarrista.
— Deveria ouvir seu amigo, Elijah. — o encarou quando falou o seu nome. E não desviou os olhos quando ele se voltou ultrajado para ela.
— Puxa, ratinha, assim magoa meus sentimentos.
— Suas amigas vão ajudá-lo com isso.
— Toma, panaca. — Dominic riu maldoso. — Podia ter dormido sem essa.
O guitarrista levantou o indicador fazendo um sinal para que o amigo saísse. Quando forçou um passo para aumentar a distância entre os dois, ele obstruiu sua passagem, sorrindo presunçoso antes de finalmente desistir da investida:
— Quer saber? Vai se ferrar, sua vaca.
A garota respirou fundo, chamou o elevador e torceu para que chegasse depressa.
— Ela nem é tão bonita assim. — Disse a “parceira de uma noite só” de Elijah o tipo de frase que se esperaria sair da boca de um homem despeitado. fingiu não escutar.
Ok. não estava com eles. Menos mal. Era melhor que não a visse com olheiras, cabelos bagunçados e, para fechar com chave de ouro seu visual pós-apocalíptico: usando o moletom cinza. Que maravilha. Preferia que o vocalista guardasse a imagem dos dois na piscina. Ela se lembraria dele como o astro do rock que não a dividiu com ninguém durante aqueles minutos. Claro, na sua idealização poderia fingir que houve um beijo e que agora não estaria com nenhuma groupie, mas apenas dormindo como um bom garoto.
Ouvir o aviso do elevador foi reconfortante. Aquele andar se tornara hostil. Então quando a porta de metal deslizou, lá estava ele. A risada melodiosa parando de repente quando os olhos se cruzaram. Como poderia ser tão perfeito? A única explicação óbvia era a de que divindades realmente vinham até a Terra para copular com humanos. Estava ali um de seus descendentes diretos, comprovando que semideuses caminhavam entre os homens.
Ele a encarou, surpreso, e quis acreditar que a felicidade genuína na expressão de era real, e não fruto da sua mente cansada. As aspirantes a modelo que o acompanhavam eram só um detalhe. Sim, aspirantes. No plural. As duas pareciam uma mistura genética de Mila Kunis com Megan Fox que superara as expectativas. Aquele cubículo metálico carregava apenas espécimes perfeitos.
Ótimo. Que pesadelo.
Odiou a sorte delas e a previsibilidade do seu destino: as garotas teriam , ela não. subiria até a suíte presidencial e eles terminariam a noite com sexo, drogas e rock’n’roll. trabalharia no artigo nada empolgante sobre caracterização de polinômios ortogonais acompanhada do seu moletom velho. Perfeito. Mais para as híbridas Kunis-Fox do que para ela, propriamente falando.
Então, algo surpreendente aconteceu. lembrou-se do nome de . Nem suas tias-avós lembravam-se mesmo depois das vinte e uma festas natalinas que passaram juntas, quanto mais se anos de convivência fossem restringidos há minutos com alguém desinteressante.
A não ser que ela não fosse tão desinteressante assim.
. — Fora dos palcos, o timbre de era doce aos ouvidos como vozes de anjos deveriam ser. — Ainda acordada?
Mantenha a calma. Mantenha a calma. Mantenha a calma! Repetiu para si mesma, mas as bochechas em chamas pareciam estar entendendo o aviso de um jeito errôneo.
— Ei, oi! Pois é... Não estou conseguindo dormir, então vou revisar um artigo. Estão descendo ou subindo? Ah, que bobagem, claro que estão subindo. — Ela teve raiva do barulho estranho da sua risada. Estúpida.
As acompanhantes a olharam com desdém. Era quase como se dissessem: “óbvio, vadia, agora saia da nossa frente e volte para sua realidade patética”.
Mas disse algo que retirou instantaneamente o sarcasmo delas:
— Na verdade... Eu vou acompanhar as moças até a recepção. Elas já estão de saída.
Os dois pares de olhos femininos se entreolharam sem acreditar.
— O quê!? , mas você disse... — a forma como a mais bonita falou o nome dele... Sua voz era excessivamente aguda, como a de uma criança fazendo manha.
— Eu sei o que eu disse, gata. Mas tenho que pegar um avião logo cedo e preciso dormir. — disse, irredutível. E o sorriso que dirigiu para depois que disse aquilo foi licencioso. Repleto de significados que só ela conseguiu captar.
As meninas não esconderam a decepção. imaginou qual achou que passaria a noite com ele. Ou talvez fossem as duas juntas? Mais provável, levando em consideração a fama de astros do rock. O aviso do elevador começou a soar irritadiço, como uma bomba relógio. Ela entrou rápido e evitou contato físico. Arriscou um olhar breve para o astro e tentou disfarçar quando viu que ele percebeu. Precisava parar com isso, sempre era pega.
Nunca um percurso até o térreo foi tão longo. O desapontamento das garotas era quase palpável dentro do cubículo. E não foi cristão da sua parte, mas ficou feliz por dispensá-las. As musas saíram pisando baixo e se despediu das garotas numa última sessão de melação gratuita.
Antes de ir, escutou a menos bonita, mas ainda assim espetacular, dizer:
, me autografe aqui. — O “aqui” era o peito esquerdo da garota. Ele não se intimidou, já deveria ter feito aquilo outras vezes.
— Que máximo! Vou correr para um estúdio de tatuagem assim que amanhecer. — Complementou a puro-sangue quando finalizou a obra. imaginou o que os futuros namorados da garota achariam daquilo. Se fossem fãs da Dark Paradise, talvez até entendessem como um tipo de prêmio: uau, estou colocando a boca onde já esteve.
Evitou pensar.
O lounge ficava à esquerda da recepção. ainda estava estarrecida quando procurou uma mesa com boa iluminação e começou a revisar o artigo, ou melhor, tentar revisá-lo considerando a sequência de eventos recentes.
Os minutos passavam e ela ainda não havia feito praticamente nada. Então de repente ouviu a voz hipnótica de um querubim a chamando:
.
Quase deu um pulo da cadeira.
! Oi...
O homem mostrou um sorriso brilhante.
— Te assustei?
— Não. É que... Eu estava um pouco concentrada e não ouvi você chegando. — Obviamente, poderia pular a parte em que ele era o motivo da sua perda de concentração.
— Falei com meus colegas.
— Hum.
— Expliquei que estavam atrapalhando os hóspedes.
O quê? Você realmente fez isso? Preocupou-se comigo?
— Sério?
— Sério. — Ele respondeu. — Pode voltar para seu quarto, não irão mais incomodar você.
— Obrigada. Foi... Muito legal da sua parte. — falou sem graça.
— Quer subir agora e dividir o elevador?
Não que elevadores fossem como o transporte público no Brasil e atrasassem horas, mas também não era sempre que vinham acompanhados de celebridades.
— Ah. Sim. Pode ser.
— Então junte suas coisas que eu te acompanho.
Ela fechou o notebook. O que resumia o significado de todas as “suas coisas”.
No elevador funcionava melhor assim: apenas os dois, sem nenhuma fã oferecida. A porta cerrou depois que apertou o número treze. E escolheu algum ponto fixo do metal para repousar o olhar. Havia muitas distrações ali dentro, todas relacionadas ao corpo e ao rosto do astro do rock.
— Também pode apertar o sete, por favor? — ela pediu, já antecipando um sorriso cortês.
a olhou de um jeito tentador. O sorriso torto que acompanhou o ato apenas complementou a fácil tarefa de tirar o controle restante das suas pernas.
— E por que quer isso? — O homem perguntou molhando os lábios e o coração de quase pulou para fora do peito.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos. Esperando que alguém surgisse dos bastidores para dizer que aquilo era uma pegadinha. Como ninguém apareceu, lhe respondeu, embaraçada:
— Porque... O meu andar é o sétimo?
— É, mas o décimo terceiro é o meu. E eu tinha outra coisa em mente.
A garota também desejou ter metade daquela confiança para fazer com que frases simples soassem naturalmente como coisas sacanas.
Mas tudo que saiu da sua boca foi um bobo:
— Ah...
Ele se aproximou, algo de impudico nos olhos verdes.
— E o que eu pensei foi... O que acha de revisar seu artigo outra hora?
Meu Deus.
Aquilo foi uma indireta. Não. Uma direta mesmo. Com luzes luminosas dançando em volta e uma seta néon apontada em sua direção que dizia: “garota mais sortuda do universo”, caso ainda lhe restassem dúvidas.
O elevador já passava do quinto andar.
. — Ele a trouxe de volta a órbita. A forma como dizia seu nome... Acionava um gatilho mágico em algum ponto entre a pelve e a virilha. — O que me diz?
— É... Eu acho que o meu artigo pode esperar.
Ele sorriu pondo a mostra todas aquelas covinhas.
— Exatamente o que eu queria ouvir.
Afinal, só se vive uma vez. A garota pensou. E aparentemente, esse era um lema perfeito para aquele fim de semana.



Capítulo 4

até tentou prestar atenção no décimo terceiro andar, saber o que o fazia ser mais especial do que os demais. Mas havia coisas mais importantes acontecendo naquele exato instante: como a forma que se aproximou e a recostou contra a parede, por exemplo. As mãos dela encontraram arabescos de um papel de parede absurdamente detalhado. (Ah, ali estava uma diferença: os hóspedes do sétimo andar não tinham paredes daquelas para admirar pelos corredores).
— Caramba... — a voz de era um sussurro próximo ao ouvido dela — a forma como você morde seus lábios quando está nervosa... é excitante.
— Eu... fico mordendo eles?
— Fica.
— Não é proposital.
— Sei.
— Eu juro.
— Tá. Eu acredito.
O beijo veio logo depois: um solavanco exigente e violento que confirmou suas expectativas de como astros do rock deveriam beijar. Aprovado com louvor. E quando pareceu se esquecer de respirar, diminuiu a pressão. Os lábios deslizando com suavidade sobre os dela, sem a urgência desesperadora que fazia as pernas da garota oscilarem. Puta merda. Que jogo diabólico era aquele? Não importava, desde que os dois continuassem a jogar.
Deixou que seu novo vocalista favorito conduzisse o movimento. Ele claramente sabia o que estava fazendo. Só ela ainda não havia sido apresentada a beijos assim, surpreendentes, mas tão fáceis de acompanhar. E a garota quis reduzir-se ainda mais àqueles lábios a cada sinal de aprovação que lhe emitia o corpo dele.
tirou algo no bolso da calça. (Calma, coraçãozinho agitado, era só o cartão magnético). Os olhos ainda fechados, os lábios bem ocupados em causar sensações curiosas no pescoço da garota. Uma das mãos procurou a entrada da porta.
Aquilo demoraria uma eternidade.
— Maldito cartão. — Ele pestanejou.
— Me dá, deixa eu tentar.
Um clique e pronto: aquela luzinha verde se acendendo foi algo lindo de se ver.
— Você é um gênio, garota. Claramente só um de nós está pensando aqui. — disse.
— Você não precisa pensar, só precisa... continuar a fazer o que estava fazendo.
, . Quando foi que se tornou tão atrevida?
Andar e ao mesmo tempo ajudá-lo a desafivelar o cinto foi ainda mais difícil do que acertar o cartão de primeira. O som baixo que escapou da garganta de quando ele a puxou para si... foi algo primitivo, e despertou coisas que a garota nem sabia que existiam dentro dela. Deus. Talvez alguém devesse recalcular a distância entre a porta e a cama de lençóis egípcios. Torná-la menor para quando astros do rock se hospedassem ali.
O corpo dele indicou a direção da cama. não soube como, mas de repente, os dois estavam no colchão, as pernas de criando um espaço entre as coxas dela. E então, contato visual; aqueles olhos verdes poderiam matá-la de súbito se continuassem a encará-la daquele jeito.
— Tira o moletom. Quero sentir sua pele. — Ele disse.
Ela obedeceu. E quando também tirou a camisa, ela já sabia o que esperar, mas isso não a impediu de se sentir maravilhada pela segunda vez naquele dia. correu os dedos por um dragão inofensivo, rosas em chamas e corações apunhalados. Desejou também poder deixar sua marca ali.
Depois a garota sentiu os dedos dele no cós da sua calça. Quando ouviu o estalo do primeiro daqueles três botões desnecessários foi que se lembrou da calcinha que escolheu para aquela noite em que sexo não estava nos seus planos: coraçõezinhos. Dezenas deles.
Ai merda.
Uma garota ousada não ligaria para isso, mas uma garota ousada tampouco usaria uma calcinha daquelas...
Se livraria delas e fingiria não estar usando nada.
— É uma hora ruim para eu dizer que preciso usar o banheiro? — falou baixinho, para amenizar o peso daquilo.
Ele arfou. Então seus lábios pararam aquela coisa maravilhosa que estavam fazendo próximo à orelha dela.
— Tá brincando, né?
— Não estou não. Coisas de garota. — O afastou, ainda que contrariada, e escutou o suspiro de descontentamento dele quando já estava de pé ao lado do colchão.
— Não demora... — avisou — senão vou atrás de você.
E ela quis demorar.
cambaleou antes de acender as luzes do banheiro. Não entendeu de imediato que todas aquelas garotas que a encaravam com o rosto ruborizado eram suas próprias replicações entre jogos de espelhos. A banheira de mármore confirmava as expectativas de ser muito maior do que poderia imaginar: dava para dar braçadas ali dentro. E até se afogar.
Dos objetos espalhados pelo balcão de mármore da pia, o perfume foi o único que não resistiu e tocou. Abriu a tampa. O cheiro dele... tão sofisticado. Chanel, claro. As demais coisas eram versões de grife de artigos que humanos comuns comprariam em farmácias. E caso alguma vez se perguntasse quem seria louco o bastante para pagar dez vezes mais em uma loção de barbear só porque era Dior ou Armani agora já saberia a resposta.
— Seu nome ressoou do quarto. O sotaque britânico ainda mais acentuado. — Não me faça ir até ai...
— Tá. Estou terminando.
E não foram as outras parafernálias de gente rica que fez com que ela parasse e perdesse a cor. Mas os dois preservativos usados dentro da lixeira.
Algo dentro dela se esmaeceu tão rápido que lhe causou uma ânsia. Talvez um balde de água fria naquele momento tivesse causado uma sensação melhor do que a que lhe corroeu o estômago. De repente, estar ali pareceu ser um erro. Sua imagem replicada naqueles malditos espelhos. “Stelas” encaravam-na como um lembrete: não se sinta especial.
A calcinha, com todos os seus horríveis coraçõezinhos, continuou no devido lugar.
Arrumou forças para voltar e encará-lo. Ver que o rosto dele ainda transbordava a euforia, os olhos ainda a desejavam, foi como levar o golpe final. Mas a expressão de desvaneceu em câmera lenta, e pensou que foi porque a cara dela deveria estar impagável.
Ele falou finalmente, um ritmo cuidadoso na voz:
— O que aconteceu?
olhou bem para ele.
— Aquelas meninas. — pausou retomando o controle das palavras. — Vocês não estavam subindo para o apartamento, né?
— Quê?
— Porque elas já tinham subido.
demorou a responder, e quando o fez não tinha nada de preocupado na voz, mas apenas curiosidade:
— E por que isso tem que ser um problema?
Não foi o fato dele não contestar, mas falar como se aquilo não fosse nada demais, que fez com que ela se sentisse ainda mais estúpida.
— Céus. Como eu sou idiota.
A garota procurou o moletom, e caminhou até a porta. demorou alguns segundos, mas então fez o esperado: se levantou e foi atrás dela. viu que o estrago ainda não tinha chegado às partes mais irrigadas do corpo dele. O que certamente não demoraria a acontecer.
— Meu Deus, . Vem aqui.
Ela se virou apenas para dizer:
— Quer saber o que eu achei? Que você tinha dispensado aquelas garotas para ficar comigo. Mas você as teria dispensado de qualquer forma.
riu, mais um som atordoado do que uma risada, na verdade.
— Caramba. É sério que isso está acontecendo?
— Sim, . Eu não quero ser mais um trofeuzinho para sua noite. Ah, quero dizer, na verdade, aquelas garotas eram os troféus, eu estou mais para uma medalhinha de participação.
, ei. Pare com isso. Olha só... pensa que... sei lá... pensa que terá assunto para falar com as amigas e vamos fazer desta noite boa para nós dois. Que tal? — Ele se voltou todo meloso para cima dela.
revirou os olhos.
— Ah, é este o argumento que todos os membros da Dark Paradise usam para transar com as garotas?
deu um sorriso torto e petulante. Algo em seu rosto revelando que estava ficando sem paciência.
— Eu nunca precisei de argumentos para convencer uma garota a transar comigo.
Ela suspirou. Foi um suspiro longo e raivoso.
— Desculpe fazer você perder seu precioso tempo, rock star. — Pegou o notebook na mesa do vestíbulo antes de abrir a porta. Depois se voltou com uma simulação teatral de quem estava se esquecendo de algo importante. — Ah! Mas tem duas vadias no sétimo andar que adorariam ter assunto para falar com as amigas! E segundo o Elijah, a cama dele é bastante grande para caber vocês todos. Boa noite.
não soube como, mas de repente, estava posicionado entre ela e a porta. O fato do homem continuar apenas de calça jeans não facilitava as coisas.
— Tudo bem, . Pode ir. Mas antes, só me diga uma coisa. — respirou fundo, suavizando os nódulos de tensão no rosto. — Somos dois adultos que nunca mais voltarão a se ver depois de hoje. E a química foi recíproca. Então por que você precisa fazer disso algo tão importante ao invés de relaxar e ter uma noite legal, hum?
Ela mordeu a parte de dentro da boca até que começasse a doer. Ele esperou.
— Porque queria que minha primeira vez fosse um pouco mais especial. — Disse num tranco só e a frase pareceu ter tirado um peso enorme das suas costas.
parou. A expressão indecifrável.
— Isto... é uma piada?
o olhou de um jeito dramático.
— Você está me vendo rir?
— Um minuto... — Ele olhou para baixo, as mãos levantadas como se o gesto fizesse algum sentido para compreender aquela informação. — Você está dizendo que não tem experiência em ficar só uma noite ou... que nunca fez sexo antes?
— É exatamente o que estou dizendo. Que eu nunca fiz sexo antes.
Agora a cara dele que estava sendo impagável.
— Porra. Você é virgem? — Ele gargalhou, e falou aquilo como se a garota carregasse uma marca escarlate da vergonha. — Achei que virgens fossem espécies em extinção.
rolou os olhos e procurou a maçaneta da porta.
— Espera! Ei, espera. Desculpe. — A mão dele repousou sobre a dela, repuxando-a até que os dedos desgrudassem do metal. — Calma. Foi meu jeito de dizer que acho isso o máximo.
— Forma engraçada de se expressar.
— Ai, caramba. Vem cá.
No começo ela relutou, mas depois cedeu e deixou que ele a conduzisse até o sofá de proporções exageradas como todo o resto da suíte. Então começou a falar:
— Ok. Sei que fui estúpida. Eu deveria ter te contado. Só que a forma como as coisas aconteceram... foi tudo rápido, não tive oportunidade. E eu realmente gostei de você. — Escondeu o rosto entre os joelhos. Sentiu os dedos dele afagando seus cabelos logo depois.
— Mas você parecia tão segura no que fazia. E, cacete... você já tem 21 anos.
A garota levantou o olhar na direção dele.
— Obrigada por me lembrar.
Ele riu, mas de um jeito gentil.
— É muito bonitinho... uma virgem.
Droga. Ele a havia rebaixado de mulher sexy para garota bonitinha. Droga, droga, droga! bateu a mão nos joelhos e se colocou de pé em segundos. O constrangimento parecia um órgão de tão forte dentro dela.
— Tá. Tudo bem... então... é isso! Já vou indo. E mais uma vez, desculpe pelo tempo perdido.
O músico balançou a cabeça. Depois a segurou pelo pulso, com cuidado:
— Ei. Calma, aí. Não tem essa de tempo perdido. — E demorou alguns segundos, até ter certeza de que aquelas eram as palavras que realmente queria dizer. — Vamos só conversar então.
o encarou, atônita.
— Conversar comigo sem roupas? — Ergueu as sobrancelhas ainda desconfiada.
— Não. Fique com suas roupas, por favor. Eu não iria me concentrar no que você falasse.
Deus.
— Puxa. — Ela disse. — Eu... não esperava por isso...
O rapaz suspirou e sorriu soturno.
— Seja boazinha comigo, ok? É a primeira vez que isso me acontece também. Uma garota me prometer sexo e depois me deixar a ver navios.
pensou em contra-argumentar, mas achou melhor não falar nada. De alguma forma, ele tinha razão.
— Então... sobre o que quer falar? — O músico perguntou.
Ela o encarou.
— Eu... não sei.
se levantou e foi até o balcão onde jazia um uísque trinta anos inviolado: um dos presentes enviados por uma TV local na tentativa de conseguir uma entrevista exclusiva. A bebida cor de âmbar quase precipitou para fora do copo.
— Quer que eu prepare um para você? — O rapaz perguntou.
— Melhor não. Vai que daqui a pouco estou tirando a roupa.
Ele tomou um gole e limpou o excesso dos lábios com o dorso da mão, sorriu maliciosamente.
— É. Melhor não.
— Mas estou com fome.
arqueou as sobrancelhas e a fitou com um ar gozador:
— E o que é que as virgens comem?
A almofada passou de raspão pelos cabelos castanhos do músico, e o equivalente a um gole da sua bebida milionária caiu no carpete.
— Aqueles chocolates em cima do frigobar estão de bom tamanho. — apontou. — Os salgadinhos também.
olhou com desdém para as embalagens. Depois lhe entregou o cardápio do serviço de quarto.
— Não mesmo. Escolha algo decente. E peça o mesmo para mim.

*

As fritas e os dois cheeseburgers chegaram meia hora depois. A cozinha do hotel já tinha encerrado o expediente quando eles ligaram, mas abririam uma exceção para o hóspede ilustre da suíte mais cara. Que consideração da parte deles.
a observava comer com um interesse genuíno.
— O que foi? — falou com a boca cheia e as palavras saíram de um jeito engraçado.
— Você tem passado fome nos últimos dias?
— Estou parecendo tão desesperada assim?
— Não, mas... se achar que o seu lanche não é suficiente, pode ficar com o meu.
Ela sorriu sem jeito para .
— Não vai ser preciso, obrigada. — Depois achou melhor reconsiderar. — Talvez... só algumas batatinhas.
Ele ainda a encarava admirado.
— Vai continuar fazendo essa cara? — Ela perguntou fingindo irritação.
— Tá. Parei. É que eu realmente estava desacostumado a ver mulheres que não comem mais do que uma folha de alface na minha frente.
fez uma careta.
— Me deixa adivinhar. Modelos?
— Principalmente. Devem ter o sistema digestivo atrofiado.
— E o assunto?
— O assunto com elas? Sapatos, grifes, cientologia... Sapatos. Eu mais escuto.
— Nossa, deve ser empolgante.
revirou os olhos.
— Você nem imagina.
esperou alguns segundos, então teve cuidado de soar totalmente desinteressada quando disse:
—Ah, eu ouvi suas músicas no Youtube mais cedo.
ficou alerta de repente.
— Hum... mesmo? — Ele colocou a mão sobre o maxilar perfeito e levantou as sobrancelhas, atento.
— Ahãn. — respondeu, ainda com comida na boca.
— E o que achou? E é melhor não me enganar, senhorita virgem.
Ela fingiu não ouvir a última parte.
— Qualquer coisa eu que falar agora pode soar suspeito. Mas de verdade, achei muito legal.
deu um sorriso de satisfação.
— Muito bom saber. Gostou de alguma em particular?
A garota pensou um pouco. Depois tomou um gole de coca desconsiderando o fato de ele continuar ansioso, esperando uma resposta.
— Tem uma romântica — ela levou o guardanapo à boca e a expectativa quase matou — alguma que fala sobre o tempo parar e conspirações do universo favoráveis ao cara e a garota ficarem juntos para sempre.
— We’ll never be apart.
— Essa mesma! — falou com uma empolgação legítima. Depois tentou se recompor. — É muito... nossa. É muito linda.
Ele propôs:
— Quer ouvir ao vivo?
A garota o olhou, por fim encarou algum ponto entre os músculos que saltavam do abdômen do rapaz.
— Você vai cantar assim? Sem camisa?
— Quer ouvir ou não quer?
— Quero.
retirou um violão de dentro do case. Seria uma exclusiva versão acústica já que guitarras elétricas aquele horário eram contraindicadas. Ele afinou as cordas, depois soltou a voz. Foi lindo. Ainda melhor do que se fosse vê-lo no palco. E sentiu as bochechas dormentes por causa do sorriso idiota que se formou no seu rosto quando ele terminou.
Depois falaram de Matemática e até Física Quântica. mais ouviu do que falou, na verdade. explicava sobre partículas de Bóson, fendas duplas e buracos negros, curvas convergentes em complexas teorias de polígonos hexadecimais. E a garota não soube dizer com certeza, mas achou que ele realmente prestava atenção. A forma como repousou o queixo entre as mãos e o jeito que sorriu quando ela se empolgou um pouco mais com o assunto... Não eram todos os garotos que permaneciam interessados depois dos primeiros cinco minutos. E eles já estavam naquilo há quase meia hora. Mesmo sem qualquer expectativa de sexo.
Era um ouvinte desinteressado.
Não lembra como o copo de uísque chegou até suas mãos, mas lembra de ter sido ela a insistir e de ter relutado.
Depois das duas primeiras doses, não conseguia mais se concentrar no que ele dizia sem ter vontade de tocá-lo.
Foi ela quem tomou a iniciativa de tirar a blusa. ficou parado, apenas encarando. Seus olhos fixaram na pele próxima ao sutiã dela. E quando fez que ia desabotoar a calça, ele a segurou pelo braço e perguntou se tinha certeza do que estava fazendo. A resposta veio silenciosa na forma de um beijo que não poderia ser interpretado de outra forma além de sim, ela sabia perfeitamente o que estava fazendo.
Então a acompanhou até a cama, controlando a vontade de acelerar os passos. Quando soltou o fecho do sutiã da garota, fez aquilo com a delicadeza que ela merecia, e não como o cara ansioso que era. O olhar que lhe lançou depois, a fez sentir borboletas no estômago. Borboletas, não; sutil demais. Foi mais como... pterossauros.
Ela se lembrou da calcinha no mesmo instante em que os dedos dele encontraram o elástico da peça.
— Modelo interessante. — Ele sorriu para ela, não dela. E os coraçõezinhos não pareceram ser um problema tão grande, afinal.
— Minha mãe ainda acha que eu tenho doze anos.
— Sua mãe compra suas calcinhas? — falou surpreso.
— Sim. Quero dizer. Algumas. Não todas.
— ele suspirou com ironia — não percebe que esse é um plano maligno dos seus pais de tentarem sabotar sua vida sexual?
A garota riu. O rapaz se calou, tendendo seu corpo sobre o dela. Quando as peles se encontraram foi indescritível. A temperatura, o cheiro... não era mais sangue que passava pelas cavidades do coração dela, mas festins e confetes. O queixo dele roçou propositalmente na barriga de e o toque áspero da barba por fazer a incendiou. Definitivamente, era mais o rosto de um homem do que o de um garoto.
Os extintos dela compensaram sua falta de experiência, e quando enroscou as suas pernas nas de , de repente se deu conta de que sabia o que estava fazendo.
Tudo corria bem. Céus, mais do que bem. Isso que ainda nem tinham se livrado das peças de baixo. Mas então suspirou. E o beijo que deveria continuar nos lábios dela, mudou de direção, pausando firme e demorado, bem no centro da testa.
— Desculpa, mas eu não posso fazer isso. — disse.
Ela o encarou, depois piscou devagar.
— O quê? Por quê? Tem algo errado comigo?
riu do próprio infortúnio. Foi uma risada triste, como se aquela fosse a pergunta mais imbecil a se fazer.
— Não. Não tem nada de errado com você. Eu te acho linda. — O suspiro que se seguiu à declaração foi longo.
— Então... por que parou?
— Porque você não é só linda, mas também é uma garota legal. A mais legal que eu já conheci, e não vou ficar com a consciência tranquila sabendo que um momento que deveria ser especial para você, vai ser com um cretino como eu.
Uau.
Então tentou achar as palavras certas.
— Você se considera um cretino?
— Não me considero um santo. — disse, e evitou olhá-la nos olhos. Mas depois criou coragem para encará-la e dizer. — Você é a garota certa. E por esse motivo, é a garota errada para mim.
Ela demorou alguns segundos para contestar. Absorvendo o sentido daquilo.
— Eu... não me importo. Realmente não me importo, . — Foi mais enfática quando disse pela segunda vez, mas sua língua enrolou um pouco no final da frase: uísque agia rápido. — Virgindade é algo superestimado pela sociedade. Vai ser uma libertação me livrar... disso.
Ele balançou a cabeça, devagar.
— Não é com a sociedade que estou preocupado, e sim com você. E em como vai se sentir depois que eu desaparecer da sua vida como um cafajeste.
...
— Acredite. Daqui um tempo, quando realmente achar um cara legal. Você vai me agradecer por isso.
...
tentou reestabelecer o contato físico, mas ele se desvencilhou. Então com uma expressão de pesar, o músico caminhou em direção ao banheiro, apertando as mãos contra o rosto:
— Cacete... não acredito que estou fazendo isso. Devo ser o cara mais burro deste mundo.
O chuveiro foi ligado pouco tempo depois.
Competindo com o barulho metálico da água, ouviu uma sequência de palavrões: “merda-porra-droga”. Não necessariamente nesta ordem. Xingar era uma ótima forma de controlar os ânimos, a primeira fase da aceitação. E pelo jeito que ele protestou, a garota imaginou que a torneira deve ter sido girada totalmente para o lado frio.
Propositalmente.

*

A partir dali, as coisas poderiam ter sido bem diferentes. Ela poderia ter voltado para seu quarto e tentado dormir. Ele poderia ter se servido de mais algumas doses de uísque e passado o resto da noite sozinho.
Mas os dois preferiram ficar juntos.
Assim descobriram mais coisas um do outro, como o fato de ter terminado a faculdade com apenas 19 anos e logo em seguida já conseguir uma bolsa de mestrado. E ela estava nervosa porque voltaria para o Brasil naquele mês e não tinha ideia de como seria sua vida a partir dali. Quando perguntou se ela era algum tipo de prodígio, ficou vermelha e disse que não era nada demais, que só gostava de Matemática e pronto. nem soube o porquê, mas contou que tinha medo de aviões, assim, do nada, e ao invés de rir da cara dele como os colegas faziam durante as turbulências, tentou tranquilizá-lo com argumentos de aerodinâmica.
nunca tinha conversado tanto assim com uma garota. Ele ficou assombrado com a quantidade de coisas que ela sabia. E mais ainda, com a quantidade de coisas sobre a própria vida que se sentiu a vontade para revelar a alguém que conhecera há menos de um dia.
As horas passaram, obviamente. E desejou, tanto quanto , que aquele filete dourado que escapava por um vão miserável da cortina não fosse o sol.
Foi ela quem conferiu o relógio do celular.
— Nossa. São quase sete horas.
— Sério? — lamentou e se sentiu especial. — Puxa, você fez o tempo parar.
— Eu tenho que tentar dormir um pouco.
— É... eu tenho que pegar um avião daqui duas horas.
E o silêncio que se instalou no quarto de repente foi constrangedor.
— Então... acho que isso é um adeus. — não soube onde arrumou forças para dizer.
— Pois é. Parece que sim.
A garota se levantou e procurou pelos sapatos. Vestiu o moletom amarrotado sem nenhuma empolgação. Mas de súbito se alegrou: ainda tinha o cheiro dele no tecido.
— Vou só lavar meu rosto antes de ir. — falou.
— Tudo bem.
Quando ela voltou para o quarto, já tinha se vestido e terminava o cadarço do All Star. Os cabelos castanhos ainda estavam desarrumados, mas parecia ser a sua intenção deixá-los daquele jeito. Ele voltou o rosto em direção a ela, um sorriso triste nos lábios. devolveu o gesto e lhe disse antes de sair:
— Ah, e , eu sei que isso vai parecer clichê e tudo mais. Mas eu queria dizer que essa noite foi muito especial para mim. Você não é um cretino como pensa. Na verdade, você é um cara muito legal.
Ele permitiu que um meio sorriso escapasse dos lábios.
— Não pareceu clichê. Essa noite foi especial para mim também. Se cuida.
realmente quis acreditar na veracidade daquelas palavras, mas era um pouco ingênuo pensar que ele estivesse sendo mais do que educado.
— Ok. Se cuida você também.
A maçaneta já estava na sua mão. Gelada até seus ossos. Ela teve esperança de que a impedisse. Que a convencesse a largar seus compromissos enfadonhos de mestrado e fosse com a Dark Paradise para outro ponto do mundo. Mas o rapaz continuou sentado na beira da cama, sem nada dizer. Então fechou a porta com cuidado e seus sapatos não fizeram barulho no corredor encarpetado. Já no elevador, encarou-se no espelho. Havia novas marcas no seu rosto: um arranhão abaixo do queixo e um corte superficial no lábio que tinha gosto metálico. Teve orgulho delas.
Não foi nem um pouco difícil acertar o cartão magnético no ponto correto. Afinal, agora não tinha distrações bonitas e que cheiravam bem penduradas no seu pescoço.
Então escutou o telefone tocar quando ainda estava do lado de fora do quarto. Seu coração disparou de um jeito insano. Era incrível que depois de tudo que passou na noite anterior, o músculo ainda arrumasse forças para tanto entusiasmo. Atendeu ao quarto toque.
— Alô?
?
Aquela voz. Uma descarga elétrica percorreu o corpo da garota.
?
— Oi.
— Oi... como sabia o meu quarto? — Questionou ainda que isso realmente não tivesse a mínima importância.
— Perguntei na recepção.
— Ah.
continuou:
— Olha só. Estou indo tomar café da manhã com uns caras muito, muito chatos. E queria que uma garota legal me acompanhasse para isso não ser assim... tão maçante. Quer ir?
Ela sorriu do outro lado da linha, o rosto cansado se iluminando.
— E o que essa garota legal ganha em troca?
— O prazer da minha companhia.
— Justo.
— Passo aí em dez minutos?
— Até menos.
— Boa menina. Até daqui a pouco então.
— Até.

*

No restaurante do hotel, todos os olhares se voltavam para . Um dos hóspedes pediu uma foto e perguntou se se importava. De repente, fora alçada ao status de namorada do roqueiro. Que honra. E ele era gentil com os fãs. Continuou com o sorriso mesmo quando a primeira foto evoluiu para uma dúzia de autógrafos.
! — Dominic quem gritou. Ele e os outros membros da banda esperavam em uma mesa ampla como a de uma confraria. Também havia dois produtores, além do empresário, Robert Barlet.
Quando viu todos eles reunidos, não se sentiu mais tão segura. Colocou a mão no ombro do vocalista e disse baixo no ouvido dele, um pouco embaraçada:
— Tem certeza de que posso me sentar com vocês? Não quero atrapalhar.
— Tenho sim. E você não atrapalha.
Ela o segurou novamente.
— Tá. Mas não vai me fazer pegar na mão de ninguém para me apresentar, nem nada do tipo. Tudo bem?
— Ok. Vou ser sutil.
O cantor segurou a mão de em público, sem se preocupar com os efeitos daquilo caso paparazzi estivessem ali, então falou alto para os colegas:
— Pessoal! Esta aqui é minha amiga . Sem gracinhas e sejam legais com ela.
Sutil como um labrador hiperativo em uma loja de bibelôs.
Elijah Nash recebeu o colega com uma salva de palmas inapropriada para o ambiente polido do hotel Maxence. Duas senhoras na mesa à esquerda da deles levantaram os narizes aristocráticos por trás das xícaras para encará-lo. Depois o guitarrista olhou para com interesse. Ele e Dominic Wilde haviam trocado um olhar rápido antes disso.
— Vejam só. É a ratinha da noite anterior. A que queria silêncio para se concentrar em seus trabalhinhos de escola.
lançou um olhar mortífero para o colega. O vocalista deu um passo à frente da garota, como um gesto de proteção. Elijah jogou seu cabelo loiro estilo anos 80 para trás, cruzou os braços e disse:
— Conte para nós, querida, seus estudos renderam? O digitou para você enquanto suas mãozinhas prestavam outros favores para ele?
quis se esconder. Ela apertou o braço de com força, um jeito mímico de dizer: “Quero ir embora daqui. Agora.”
— Elijah, não faz isso cara. — Aquele era um rosto era novo. As costeletas e o cavanhaque conferiam-lhe um pouco mais de idade do que os demais: Tommy Morello, o baixista da Dark Paradise. Foi um pouco difícil reconhecê-lo sem o chapéu Fedora que usava em quase todos os clipes, mas era ele; tão bonito quanto os outros colegas. Aqueles rapazes honravam bem a definição da expressão “tanto faz”.
— É, gata. Fique tranquila. — Dominic arrastou mais uma cadeira para a mesa, ao lado da outra vazia, e indicou que se sentasse. Ele havia trocado a jaqueta da noite anterior por uma camiseta e escondido os olhos castanhos sob óculos escuros modelo aviador. — Nós não mordemos.
— A não ser que você queira. — Elijah deu uma piscadinha e mordeu uma maçã bem devagar, uma forma de irritá-la mais um pouco e, por algum motivo que não entendia, implicar .
— Seria bom ir parando, Nash. Agora. — não se intimidou e seu jeito tranquilo foi de certa forma ameaçador.
— Elijah, para com isso. — Tommy dirigiu um olhar de reprovação para o guitarrista. — Sente-se com a gente, .
Elijah sorriu presunçoso e arrumou outra coisa para ocupar o tempo que não fosse a garota nova: a mistura de três tipos diferentes de iogurtes, cereais e geleias na sua tigela não devia combinar, mas ele também parecia estar ligado no piloto automático enquanto levava colheradas à boca.
Robert Barlet, que conversava ao telefone, pareceu não notar a pequena rusga entre os garotos — ou talvez elas acontecessem com tanta frequência que deixaram de ser interessantes. O empresário gesticulava ansioso, como se a pessoa do outro lado da linha pudesse captar aquela sequência de gestos:
—Não Mike, o cachê é fixo... Sim. São duas horas de show... O quê?! Não... Sim... Acha mesmo? Ora, então peça para os malditos do Lost Revolvers fazerem o show se eles cobram mais barato, aqueles plagiadores de merda...
— Ei Robert. — falou. — Desliga isso, cara. Hora da refeição é momento sagrado.
— É, Barlet. Desliga isso. — Dominic reforçou. Quando Robert só levantou a palma da mão para pedir que se calassem, o baterista lançou um pedaço de croissant na direção do empresário. Um pãozinho francês também voou em seguida. O primeiro acertou um ponto calvo na cabeça de Barlet, o outro caiu direto na xícara de café, fazendo o líquido quente transbordar e cair nas calças sociais do homem de meia idade. Ele se levantou de uma só vez arrastando a cadeira, o atrito do metal contra o piso fez os ouvidos arderem.
— E é uma cesta de três pontos! — Dom comemorou como um jogador de basquete.
A pele rosada de Robert Barlet inflou em chamas enquanto os rapazes riam.
— Mike. Ligo mais tarde. — Ele bufou quando o dedo alcançou a tecla end. Depois se virou para os garotos, os olhos percorrendo um a um, sem preocupar em distinguir culpados. — Acham isso engraçado?
Hilário. — Elijah falou de um jeito vagaroso, como se substancias ilegais fizessem mais efeito no seu organismo do que sua mistura atípica de iogurtes.
— Vocês são umas crianças. — O empresário fervilhou. — Sou a porra de uma babá de marmanjos que se portam como pirralhos!
— Nós também te amamos Robert. — Tommy falou mais com a intenção de apaziguar os ânimos do que implicar Barlet. Os outros dois moços da equipe técnica não falaram nada, mas teve certeza de que viu um deles controlar a vontade de rir.
— Que seja. Acabem logo com esse café, não temos tempo a perder. — Robert falou ao mesmo tempo em que tentou limpar a mancha na calça. Só piorou.
Os olhos da garota percorreram o ambiente. As demais mesas se portavam como o esperado para um hotel cinco estrelas. Pessoas bem vestidas com a quantidade certa de calorias distribuídas em pratinhos de porcelana. Casais fingindo terem mais interesse no que o parceiro tinha a dizer do que na mistura de ovos com bacon que levavam à boca. A mesa da Dark Paradise soava como uma horrível transgressão à ordem social, mas era inegável: aquele jeito despojado e autêntico de encarar a vida era algo inspirador. Libertador, até. desejou ter mais cafés da manhã assim, mais noites como a anterior.
E quando eles se distraíram e já não era tão interessante para Dominic e Elijah implicarem , se voltou para ela, quase num sussurro para ninguém entender:
— Mudou sua concepção sobre caras tatuados e rock?
— Depois dessa noite, sim. — Afirmou veementemente. — Com exceção do Elijah.
sorriu, concordando.
— É, ele realmente sabe ser um babaca.
riu meio de lado.
— Também quero perguntar uma coisa.
— Pode dizer.
— Na piscina do hotel — a garota parou, receosa — por que não me disse quem você era?
E ele demorou alguns segundos antes de dizer.
— Faria diferença?
—Não.
— Então você já sabe a resposta.

*

Que mania odiosa esta do relógio de abreviar o tempo quando os dois estavam juntos. Mas nos minutos finais, ao menos fez questão de que cada segundo fosse preenchido com a presença dela. E o beijo que trocaram no elevador até o térreo, não tinha a intensidade necessária para tirar o fôlego, mas, ainda assim, fazia o coração acelerar. Era o que se esperar de um beijo de despedida.
O rosto de Robert Barlet foi a primeira coisa que eles viram no saguão. Barlet levantou os braços com impaciência e teve a ligeira impressão de que o empresário não gostava muito dela.
— Até que enfim! Companhias aéreas não são como shows, ! Se você se atrasa, eles não esperam.
— Me dá só um minuto, Barlet. — falou com tranquilidade e não se importou quando o empresário saiu pestanejando baixo, depois se voltou para . A garota notou que ele segurava um cartão. Antes que pudesse deduzir do que se tratava, antecipou:
— É o meu número. Pode me mandar mensagem quando estiver de bobeira e quiser falar sobre fendas duplas e buracos negros.
ficou olhando para o papel na mão de , imaginando se as letras gravadas em alto relevo seriam macias ao toque. Ele esperou.
. Não precisa fazer isso. Eu vou saber lidar com a situação como uma adulta.
Ele suspirou baixo, mas não tinha impaciência no seu rosto.
— “Como é imensa a felicidade da virgem sem culpa. Esquecendo o mundo, e pelo mundo sendo esquecida”.
A garota o olhou, confusa.
— É a letra de uma de suas músicas?
— Não, é Alexander Pope. — respondeu e quando arqueou uma sobrancelha, ele complementou. — Que é? Você lê livros de Física Quântica para passar o tempo. Eu leio poesia para me inspirar a compor. Agora pegue o cartão.
, eu...
—Pegue logo o maldito cartão, .
A garota não relutou mais.
O vocalista não esperou que Robert chamasse uma segunda vez. E escutou a multidão em coro gritar pelo nome da maior estrela da Dark Paradise segundos depois que ele partiu. Conseguiu ver de relance antes do carro sair em direção ao aeroporto. Longe dela para sempre.
Então sentiu um vazio no peito...
Num lugar que não existia antes da noite anterior.



Capítulo 5

Morava ali há mais de três semanas e ainda não sabia dizer com certeza a cor da fachada do prédio. Era como se uma chuva ácida tivesse caído torrencialmente sobre a construção, mas poupado seus vizinhos, até deixar o edifício "Rio das Ostras" com a mesma nuance de um portador de icterícia.
queria poder dizer "por dentro é legal", mas isso também não seria verdade. Os eletrodomésticos e móveis do dono anterior haviam deixado contornos exatos no chão e nas paredes, como sinalizações policiais da ocorrência de uma chacina. A única suíte tinha uma vista para o apartamento dos outros: o quarto de uma garotinha que possuía um exército de bonecas loiras e pôsteres do garoto menos popular de uma boy band. De qualquer forma, o lugar era um combo funcional para uma jovem de vinte e um anos que resolve morar sozinha: preço; mais, proximidade da universidade; mais, um chuveiro que funcionava bem.
Resumindo, ela amava o lugar.
As telas decorativas na parede, as roupas de cama combinando e o conjunto de bibelôs sob a mesinha de centro: tudo era mão de Íris. não reclamou, nem mesmo pelo fato de que as folhas opulentas da zamioculca agora estarem ocupando o espaço onde planejara colocar a coleção de vinis antigos, pois confiava no bom gosto da mãe. Além do que, seria bom ser responsável por outra vida. (Ainda que plantas não pudessem reclamar de quem se esquece das suas necessidades vitais).
ministrava aulas durante o dia para o ensino médio, mas passava a outra parte do tempo na Universidade Federal do Rio de Janeiro finalizando o projeto de pesquisa do seu mestrado. Não porque queria ser considerada aluna exemplar (longe dela ser a garota nova a competir com todos aqueles professores de egos colossais), mas porque não podia se dar ao luxo de passar mais do que duas horas no escritório mofado do apartamento sem ter uma crise respiratória.
Nos finais de semana, se permitia ouvir música enquanto ajeitava o apartamento. E quando o rock intruso da Dark Paradise surgia entre a sequência aleatória de MPBs, era inevitável: seu coração sempre apertava um pouquinho.
O cartão com o número de ainda estava na parte mais segura da carteira, já amassado nas pontas. Não foram poucas às vezes que pensou em enviar uma mensagem de texto para o rapaz. Geralmente a ideia surgia depois de algumas batidas feitas com vodka barata. Mas não saberia lidar com a decepção caso não fosse respondida, por isso escondia o cartão sempre que a vontade ficava mais forte do que seu juízo.
Talvez fosse melhor nunca tê-lo conhecido, afinal, o homem fez com que todos os garotos que conheceu dali em diante se tornassem menininhos incipientes nas artes de sedução. Claro. Quem experimenta do fruto proibido, não se satisfará mais com a previsibilidade do paraíso.
E o mais triste, não era pensar que o tempo iria desvanecer suas recordações daquela noite...
Mas saber que ela seria ainda mais turva nas lembranças dele.

***


Eram apenas duas horas até Vassouras e daquela vez saiu cedo. Queria chegar a tempo de tomar o café da manhã com sua família. Sentia falta disso: os quatro juntos na mesa, o cheiro de pão fresquinho acompanhado das atualizações de Charles sobre acontecimentos políticos do mundo, e também as últimas fofocas sobre os vizinhos. Esta última parte, cortesia de Íris. Encontrou a porta já destrancada, (sua mãe sofria da mesma fé cega ensinada a moradores de cidades interioranas de achar que locais menos povoados estão alheios ao mal do mundo). A casa tinha cheiro de alvejante e tinta a óleo. Notou o quadro novo na parede da sala, uma reprodução da praça matriz. O verde da grama mais pastel do que a realidade. Íris provavelmente alterara o tom a fim de combinar melhor com a decoração da sala.
—Mãe? Pai? — Nenhum adulto respondeu de volta. Mas competindo com o barulho fictício de tiros e granadas, a garota ouviu o som familiar de notas de guitarra e bumbos de bateria atravessando as paredes centenárias. A música vinha do quarto do irmão e era Dark Paradise. Melhor recepção de todas.
Ela subiu as escadas, rindo a cada degrau a respeito daquela coincidência. O deus do destino era mesmo um grande fanfarrão que adorava lhe pregar peças. Ignorou o aviso de "não entre sem ser convidado" colado com fita adesiva na porta do quarto de Otávio, mas bateu duas vezes, só por garantia:
— Irmã mais velha chegando! — falou com uma alegria matinal atípica. Passar o fim de semana na cidade natal era um ótimo desafogo das responsabilidades carregadas na capital carioca. — E este aviso é muito rebelde sem causa, não acha?
O jovem de dezenove anos não desviou os olhos do jogo. Uma granada cintilante explodiu na tela do monitor, o bom rock da Dark Paradise fazendo pano de fundo para o cenário de guerra simulado.
— Ei, olá. — Otávio sorriu, ainda sem piscar e ainda sem olhar para a irmã. Fez uma careta de dor quando seu avatar levou um tiro. — O aviso na porta é para a sua própria proteção. Eu poderia estar fazendo algo bem íntimo e que você não gostaria de ver.
A irmã revirou os olhos.
— Eca. Vou fingir que você não disse isso.
— Mamãe sabia que você viria? Porque ela não está em casa.
Como toda boa irmã, ela não pediu licença para entrar no quarto. Empurrou uma toalha molhada de cima da cama e se sentou no colchão, as mãos evitando a parte úmida absorvida pelo lençol. Era tão difícil assim para o garoto depositar a peça usada no cesto de roupa suja?
— Não avisei. Era para ser uma visita surpresa. — Ela fechou os olhos quando a música chegou à parte do solo de guitarra, mas outra rajada de tiro prejudicou a exclusividade do som. — Sabe onde mamãe foi?
— Ah. Ela foi... — Otávio apertou uma sequência rápida de botões, mas não conseguiu evitar a morte do seu jogador. —Não... NÃO! Mas que droga! Pirralhos paquistaneses viciados. Não dá para competir com eles.
Os lábios de se contorceram num sorrisinho maldoso.
— Não que eu esteja do lado dos paquistaneses... mas quem sabe agora não seja uma boa hora para dar atenção a sua irmã carente que acabou de chegar de uma viagem exaustiva de um lugar tão tão distante?
Otávio deixou o controle de lado e olhou para o rosto da irmã, pela primeira vez. Pausou a tela no momento em que estilhaços de um prédio demolido voavam por todas as direções.
— Dramática. — Ele riu de soslaio. — Como vão as coisas?
A garota inclinou o corpo até que as costas alcançassem a cabeceira da cama e aninhou o cabelo em um coque que funcionou como apoio contra a madeira.
— Vão bem. O serviço é muito legal. Estou gostando muito.
Otávio a encarou. O olhar tinha a mesma compaixão com a qual se analisa um passarinho caído do ninho.
— Eu perguntei como vão as coisas com você. E não como é o seu serviço.
o olhou surpresa, perguntando-se quando o irmão ficara tão perspicaz. Agora no monitor, um ranking estatístico do fim de jogo trazia o nome de Otávio em terceiro lugar: 15 nomes na lista de bravos soldados entre mortos e vitoriosos.
—Ah. Eu estou bem. — A frase soou boba e automática, como a resposta dada a um atendente de telemarketing que finge interesse por sua vida pessoal antes de te empurrar algum plano telefônico.
— É mesmo? Porque já é a terceira vez só este mês que você vem à Vassouras.
Ela ficou muda por um instante.
— Mas são só duas horas e... tem algum problema nisso?
O controle do vídeo game ainda estava sobre a mesa de computador, mas Otávio não pareceu ansioso para pegá-lo novamente. Ele empurrou os pés da irmã pegando um espaço na beirada da cama.
— Não tem problema quando você é uma velha solitária com dez gatos, mas quando se tem 21 anos e está morando sozinha pela primeira vez no Rio de Janeiro... É bem estranho.
gargalhou, mas os músculos do seu rosto não pareceram fazer os movimentos necessários para que aquilo soasse como uma piada boa. Foi mais como um drama.
— Não tem amigos ou... alguém... para passar um tempo juntos? — O irmão tomou muito cuidado quando disse "alguém", como se estivesse falando algo obsceno.
Ela pensou bastante antes de responder.
— É claro que eu tenho amigos! — suspirou. — Tá. Uma amiga, a Josi... Quero dizer, na verdade ela é minha aluna, mas acho que eu posso incluí-la aí.
— E porque não sai com ela? Sabe, não precisa ficar vindo aqui todo fim de semana. Nós podemos viver sem você.
Ela chutou o ombro do irmão com delicadeza.
— Porque ela está na quarta tentativa de engatar um relacionamento e precisa dos fins de semana para se dedicar a isso. — Enfatizou aquilo como se Josi estivesse desenvolvendo projetos científicos para a NASA. Otávio olhou de lado para a irmã e riu presunçoso.
— Mulheres.
Antes que aquela sessão de análise a fizesse se sentir a pessoa mais solitária do planeta, tratou de mudar o assunto:
— Mas chega de falar de mim. — Ela apontou para o ar, sinalizando ondas sonoras invisíveis. — Desde quando você gosta de Dark Paradise?
O que na prática, era um assunto que também dizia respeito a ela.
Otávio olhou para a irmã, surpreso. Ambos partilhavam do mesmo tom avelã das íris. Uma herança materna.
— Desde quando nasci. — Ele brincou, como se aquilo fosse elementar. — E desde quando você se interessa por música boa?
A garota fez um som debochado que lembrava um balão de festa perdendo o ar.
— Rá! Meu gosto musical sempre foi bom.
— Ah, tá, até parece.
Suas lembranças levaram-na a uma noite especial em Praga. O coraçãozinho tolo disparou. Então ela mentiu, sem contudo, se sentir culpada.
— É que na Europa todo mundo ouve eles. Tocava em todo lugar quando eu estava por lá. — Manteve o timbre tranquilo, uma encenação perfeita. — Até que não é ruim.
Otávio tornou a olhá-la. Daquela vez com o mesmo ar fanático de quando estava matando soldados adultos comandados por crianças paquistanesas.
— Tá brincando? É claro que eles não são ruins! Eles são os melhores do mundo! O último álbum deles teve cinco faixas de sucesso!
— Mesmo? — A garota falou tentando soar desinteressada.
— Sim! O Elijah destrói na guitarra! E o ? Que voz é aquela, cara! Ele já até foi eleito o melhor vocalista pela Rolling Stone.
Os nomes causaram uma repulsa e um aperto no peito da garota, respectivamente.
— Hum... O Tommy também é um cara legal. — disse. — Quero dizer, um bom baixista.
Otávio ficou embasbacado.
— Olha só... Sabe até o nome do baixista? Estou gostando de ver.
— É, mas não se anime muito. Eu ainda sou fissurada por Caetano Veloso e Tom Jobim. Muito mais do que rock.
— Podemos pesquisar se isso tem cura. — Ele sorriu debochado. — E aí? Vai ficar o final de semana todo?
— Vou sim. Vai ter que me aturar até amanhã à noite.
Ele deu uma levantada de ombros, seu olhar soltando para o rosto da irmã.
— Eu estava com saudades. Mamãe e papai pegando só no meu pé é um saco.
— Você é um amor.
Do térreo, a voz de Íris ressoou melodiosa junto com o bater dos saltos contra o assoalho de madeira:
— Filha? Você está aqui?
— Estou! Já vou descer! — Ela respondeu de volta, colocando-se de pé num sobressalto.
E Otávio a chamou antes que ela saísse.
— Ei, . — Ele continuou depois que a irmã voltou-se para ele. — Não tem problema se sentir sozinha de vez em quando. Venha sempre que quiser.
Ela sorriu. Mas antes que pudesse falar mais alguma coisa, a imagem do monitor já tinha se transformado em um novo cenário caótico de guerra. Soldados em pixels voltando à vida para se matarem num ciclo vicioso. E de repente, aquela versão solícita do seu irmão caçula, já não estava mais ali.

***


Tudo na casa em Vassouras sugeria que a pessoa responsável por aquele lar fosse uma fervorosa dona de casa, mas ledo engano de quem pensasse assim. Cuidar do lar e criar os dois filhos, foi só algo que Íris fez no meio tempo em que lecionava para o estado e pintava suas telas. Era quase uma super mulher. A disposição e o bom humor de Íris também eram algo tão fora do normal que muitas vezes duvidava que a mulher fosse mesmo sua genitora. A garota não herdara nada disso.
Íris já havia feito às compras de supermercado e agora amassava as sacolas biodegradáveis até virarem bolinhas disformes, otimizando o espaço dentro do puxa-saco. Ela se virou para a filha depois de finalizar o pequeno ritual:
— Ontem fui à casa da Cleo. Eu contei que você passou num concurso e está dando aulas. Ela ficou surpresa, nem sabia que você já tinha se formado.
Essa era outra mania de Íris que não tinha herdado: aumentar as coisas.
— Mãe... — A garota reclamou depois de retirar da geladeira uma garrafa com um restinho de refrigerante que já havia perdido o gás. — É um processo seletivo, não é um concurso de verdade. E outra, ser professora de ensino médio não causará inveja na sua vizinha que tem filhas estudantes de Medicina. Então poupe saliva.
Íris fez uma cara de recriminação e tomou a garrafa da mão de . Nem pensar que deixaria a garota tomar aquele veneno de manhã. Retirou laranjas da fruteira e também os ingredientes necessários para preparar um sanduíche. Cortou a muçarela de modo que coubesse perfeitamente dentro do pão, sem revelar as bordas, levou as tiras finas remanescentes até a boca. O estômago de roncou. E ela se lembrou de repente porque aquelas viagens rápidas valiam a pena.
— Eu não estava contando vantagem, eu me orgulho de você. E você ainda é jovem, . As coisas vão se acertando com o tempo. — Agora a mãe parecia o pai deles falando. O pai que nunca estava em casa em finais de semanas consecutivos. Durezas de ser policial.
— Vão sim.
— Ei, Otávio! — A mulher gritou da porta da cozinha quando avistou o garoto tentando caminhar sem fazer barulho. Ele congelou a pose e encarou a mãe sem nenhum entusiasmo. — Esquece um pouco o vídeo game e venha ficar um pouco com sua irmã!
— Ah, adivinhem só? — Com todos ali reunidos achou que era o momento de dar a boa notícia. — Meu trabalho de mestrado foi selecionado para ser apresentado num congresso em Boulder no final do mês. Meu orientador não poderá ir e a UFRJ pagará minhas passagens e as diárias.
Íris parou de salpicar manjericão desidratado entre fatias de tomate e sorriu para a filha.
— Que bom! E onde fica Boulder, exatamente?
— Nos Estados Unidos, Colorado.
— Querida, é uma grande oportunidade! Parabéns!
— Estados Unidos? E quando você vai? — Otávio perguntou.
— Na última quinta-feira do mês.
— Uau. Acho que também quero seguir carreira acadêmica. Ser pago para ser um eterno estudante. — ignorou a implicância do irmão. Já Íris o encarou com um olhar acusador:
— Para isso é preciso se dedicar a sua faculdade. Não existem especializações sobre jogos de Playstation se é isso que você tinha em mente.
O garoto fingiu não ouvir e pegou o maior dos sanduíches. Íris agora espremia as laranjas. Não gostava de sucos de caixinha nem nada que tinha mais nomes químicos do que ingredientes naturais na sua composição.
— Você fala como se eu estivesse indo a passeio quando na verdade eu vou a trabalho, Otávio. — disse.
— Tá, mas isso não impede você de se divertir um pouco, não é? Sair à noite e essas coisas.
— E o que você sugere para uma garota com tempo e dinheiro escassos?
— Hum... no seu lugar, eu assistiria a um show. Pensa? Os shows lá devem ser épicos. — Otávio respondeu.
— Boulder não é tão grande assim, é mais um complexo universitário. — A garota se serviu de um gole do suco. Havia couve misturada à laranja. — Mas fica a quarenta minutos de Denver, a capital. Talvez... ah, deixa para lá.
Otávio já tinha tirado o smartphone do bolso.
— Vamos organizar uma agenda cultural para você então. Vai ficar até que dia?
— Na segunda eu já pego o avião de volta.
— Entre sexta e domingo então.
— Entre sábado à noite e domingo. — Ela corrigiu. — Porque no sábado de manhã eu tenho que estar cedo na Universidade.
— Ok. Vejamos... As opções são... orquestra filarmônica transiberiana... — Otávio fez uma careta e a irmã riu. — Eminen?
torceu o nariz.
— Bem, parece que o Colorado não é tão agitado assim... — Otávio falou, mas de repente, seu sorriso quase não se conteve no rosto. — Ah! Que puta coincidência! Bem... mas é na sexta à noite.
— O que tem na sexta?
— A Dark Paradise vai tocar em Denver.
Talvez tenha sido um pedaço da folha de couve que não tenha sido bem triturada, ou então foi a informação súbita de Otávio que fez com que engasgasse. Ela tossiu para valer e lágrimas brotaram dos seus olhos.
Tudo bem, senhor deus controlador do destino, já pode parar, não?
— Levante os braços, querida! — Íris correu em direção à garota, já munida de um copo da água. —Levante os braços!
Otávio lançou um olhar perplexo para a irmã antes de ter um ataque de riso. pigarreou e limpou os olhos, depois respirou fundo:
— Ok. Já passou. — Então tentou falar desinteressada, usando da vantagem de já estar vermelha pela tosse recente. — Quando é mesmo que eles vão tocar em Denver?
— Sexta. E começa cedo, nove horas.
Ela mordeu um pedaço de sanduíche só por distração. Engoliu antes de dizer:
—Ah, quer saber? Acho que seria legal ir a um show deles.
O rosto de Otávio se iluminou.
— Puxa, não sabe como eu a invejo neste exato momento, maninha.
*

A noite estava fresca e oferecia um céu salpicado de estrelas. Otávio e estavam sentados em um banco próximo a uma fonte, comendo cachorros-quentes. O ar tinha cheiro de grama cortada.
Do nada, Otávio quebrou o silêncio:
, desculpe por hoje mais cedo. É que sei o tanto que prioriza o estudo e se esquece de viver as outras coisas da vida. Eu estava só preocupado. Não queria ser intrometido.
o olhou por alguns segundos. Aquela observação pareceu criar o momento perfeito para que ela pudesse dizer:
— Não, está tudo bem. E sabe? Na verdade, eu conheci alguém quando estava na Europa.
Ele pareceu surpreso, mais pelo fato da irmã ter oferecido aquela informação do que a possibilidade dela estar com alguém. Próximo deles, um garotinho passou correndo em uma bicicleta de rodinhas.
— E vocês estão juntos? — Otávio perguntou.
— Não... — se deu conta de como aquilo soava absurdo e riu. O irmão continuou ouvindo. — Mas ele vai estar em Denver na mesma semana que eu.
As sobrancelhas de Otávio se ergueram de um jeito surpreso, terminou de engolir o cachorro-quente e então perguntou:
— Ele também é da área de Exatas?
— Não. Bem, e ele não sabe que eu vou estar em Denver.
— Você não pegou contato?
— Sim. Tenho o número dele e até queria mandar uma mensagem, mas...
— Ele é casado?
— Não! Por Deus, não. — riu. De repente, aquilo era a menor das suas preocupações.
—Então qual o problema em enviar a mensagem?
A garota pendeu o rosto para trás e suspirou, a lua prateada refletiu em seus olhos. Achou engraçado o irmão fazer tudo parecer tão simples.
— Tenho medo de que ele não me responda, de que eu não tenha significado tanto assim para ele.
Otávio procurou as palavras certas para que a irmã não o julgasse um imaturo.
, é muito simples. Se você não mandar a mensagem, ele não vai saber que você vai estar lá. Então vai tirar a chance de ver se era para dar certo entre vocês. Agora, se ele não responder, vai saber que este cara é um idiota e poderá ir atrás de alguém que te mereça de verdade.
Fazia sentido. Seu irmãozinho viciado em jogos eletrônicos era um gênio.
— Tem razão.
Íris enviou mensagens no celular dos dois dizendo que o jantar estava pronto. Nenhum deles estava com fome. (E também nenhum contaria sobre os cachorros-quentes.) Levantaram-se e caminharam bem devagar, quando estavam quase na porta de casa, Otávio disse.
— Você deveria chamá-lo para ir ao show da Dark Paradise com você.
riu. Ah, se Otávio soubesse...
— É, eu deveria chamar.

***


Foi quase uma semana bolando o que deveria escrever, mais alguns dias para adquirir coragem e enviar a mensagem de texto. Então apertou a tecla send do texto de apenas duas linhas exatamente uma hora antes de pegar seu voo de conexão para Denver, em Nova York. Ajudaria a lidar com a expectativa saber que não poderia mexer no aparelho durante a viagem.
Quando finalmente pisou em terra e tirou o telefone do modo avião, a alegria que sentiu foi parecida com a do casal de senhores ao seu lado que davam um abraço caloroso de reencontro (aeroportos são fábricas de gestos carinhosos sinceros). havia respondido. E tomou bastante o fôlego antes de reler as palavras do homem:
[]: Claro que me lembro de vc, ! A garota prodígio que gosta de números e Física quântica. Me passe seu nome completo, convidada VIP. A gente se vê amanhã. ;)



Capítulo 6

Vinte e sete mil pessoas aglomeraram-se na KeyArena aquela noite. Jovens vestidos de preto dos pés a cabeça e garotas de batom vinho nos lábios. O nome “Dark Paradise” era repetido em perfeita sincronia, como um grito de guerra, e o coração de vibrava na mesma sequência das ondas sonoras que repercutiam pelo estádio lotado.
Ela sabia precisar os números porque Rose Willians, a deslumbrante âncora da rede televisiva local, estava impecável num tailleur azul repassando todas as informações. A repórter ignorava os gritos eufóricos que a presença da câmera causava nos fãs amontoados atrás de uma inócua linha de segurança e escolhia aleatoriamente seus entrevistados.
Na área VIP as coisas eram um pouco diferentes. A comida ruim e a bebida forte demais. Um tipo de bourbon que teria adorado, mas que teria feito perder o controle motor antes de encerrar o primeiro copo. Ela estava sentindo-se deslocada ao lado de garotas que usavam saltos incompatíveis com o conforto exigido para shows de rock e de homens que pareciam estar ali mais pelo benefício duplo do lugar: uísque e mulheres bonitas bêbadas. Todos tinham aquele bronzeado típico de pessoas ricas e dentes que doíam os olhos de tão brancos. Duvidou que algum deles gostasse de rock de verdade, e invejou as pessoas da pista que se divertiam sem preocupar-se em desmanchar penteados elaborados ou em utilizar o evento com o propósito de paquera.
O show estava com quarenta minutos de atraso. Apesar de ingleses, os meninos da Dark Paradise não tinham nenhum pouco da pontualidade britânica. E quando ela já estava achando toda aquela opulência chata demais, as luzes do complexo desvaneceram. Um som gutural escapou do público quando a iluminação restringiu-se aos fogos de artifício que reluziram no céu de Denver.
Era a forma sutil da Dark Paradise dizer que o show estava começando.
Boa noite, Colorado!
A voz inequívoca de acordou um monstro adormecido na arena. não conseguiu esboçar nenhuma reação. Estava petrificada. Depois de alguns segundos, voltou o queixo para o lugar.
soube vestir-se a caráter. O cós da calça de couro era baixo o suficiente para fazer com que mulheres presentes esquecessem-se de que pagaram para ter um concerto de rock, e não devaneios eróticos. Os braços expostos do vocalista sugeriam que ele não se importava com a temperatura daquela noite, ou então o minúsculo colete de pelos o aquecia de forma satisfatória. Seus cabelos longos até os ombros funcionavam como o melhor dos acessórios emoldurando seu rosto bonito. O homem combinava muito bem com a fama e sabia disso. Dominic, Tommy e Elijah poderiam estar nus agora que não iria notar.
Estão prontos para o Rock and Roll?! — O vocalista exclamou e a resposta da plateia veio num tempestuoso sim. — Então hoje é noite de rock, Denver!!!
Guitarras e baterias uniram-se para iniciar Wild Way of Life, um dos últimos sucessos da banda e que previsivelmente ocupava o topo no ranking de mais tocadas. As pessoas pulavam no ritmo da batida, os instrumentos alcançavam notas perfeitas; a voz de , tons inimagináveis. Cristo. Era inacreditável pensar que alguém pudesse ter sido agraciado aleatoriamente com dom tão divino.
Em algum ponto do show, convidou uma garota da pista para subir ao palco. A pobrezinha chorava compulsivamente enquanto mostrava para o ídolo as mãos trêmulas. Uma nova gritaria tomou conta das pessoas: alguns felizes pela menina, outros frustrados por não partilharem da mesma sorte.
— Ei, não chore. — pediu e a fã soluçou ainda mais alto, lágrimas borrando-lhe a máscara de cílios. Ele aninhou a garota franzina num abraço. — Qual seu nome?
— É Me-Melanie. — Gaguejou a adolescente cujo rosto rubro de choro era exibido nos telões gigantescos sem complacência.
— Melanie, vou cantar uma música que se chama I Just Wanna a Special Thing e... — foi obrigado a pausar depois que a plateia manifestou-se de forma enlouquecida. Era um dos títulos mais românticos da banda — quero sua ajuda, você poderia fazer isso?
A garota o fez, desafinada, mas a plateia ajudou. Quando a música chegou ao solo, abraçou Melanie de modo que seus lábios quase se encostassem aos dela. Então a beijou.
E de repente, todas as garotas em KeyArena quiseram ser a anônima Melanie.
A menina precisou sair dali com ajuda da equipe técnica: emoção demais. tentou definir se aquela sensação queimando na boca do estômago era o que o ciúme fazia com as pessoas. Não... O que sentiu estava mais próximo da adoração. Ela era sua mais nova e fiel devota.
O show chegou ao fim e a ansiedade devorava as entranhas de como um bicho faminto: a credencial pendurada no pescoço era o seu grande trunfo. Tentou controlar a respiração enquanto um assessor da banda gritava na expectativa de fazer seu aviso sobressair ao som residual de um pedido por bis.
— Pessoal! Vou falar apenas uma vez, então atenção: quem tem a credencial pode vir comigo! Aos outros, uma boa noite. — O homem vestido como um agente da CIA deu as costas e cerca de trinta sortudos amontoaram-se até perceberem que o espaço exigia a formação de uma fila indiana. não acelerou o passo, mas ficou estralando os dedos compulsivamente enquanto aguardava no último lugar.
Pararam num ponto específico dos bastidores e os fãs vibraram baixinho apontando para a estrela pregada na porta do camarim. O assessor desapareceu seguindo ordens de um walk-talk, foi quando Robert Barlet deu as caras. Ainda mantinha o bigode farto combinando com o rabinho de cavalo e o mau gosto extremo para combinação de cores (o paletó amarelo era a prova disso). Pelo visto, não levou a sério a promessa de arrumar outra banda para empresariar.
— Ok, ok. Formem grupos de seis pessoas, não importa se não conhece o coleguinha de trás, a banda está cansada e temos que fazer isso rápido. Podem ficar até cinco minutos, nenhum segundo a mais, portanto, quem trouxe a coleção inteira de CDs da família, é melhor escolher um só para autografar. Fotografias são permitidas, mas não se esqueçam: CINCO minutos, então seja legal para que todos do grupo possam tirar as suas. — As palavras desaguaram da boca de Barlet, torrencialmente e sem nenhuma emoção.
entrou depois de quase meia hora. Dentro do camarim, Elijah Nash posava para fotos ao lado de fãs fazendo caras nada ortodoxas. O guitarrista parecia descender de uma linhagem nobre de vampiros, destacava-se. Dominic Wilde autografava CDs enquanto garotas passavam as mãos pelos seus cabelos cacheados. viu o baterista guardar dois bilhetinhos no bolso da calça, provavelmente números de telefones. Em outro canto do camarim, Tommy Morello dava conselhos sobre marcas de baixos para um fã, tal como um amigo faria.
Então deu-se conta de que não estava ali.
Ela correu os olhos pelo lugar mais uma vez, sentindo-se estúpida. Aparentemente, confundira a gentileza de ter ganhado um ingresso, que não significava nada para um astro milionário, com a reciprocidade do reencontro. Desejou desaparecer dali.
— Ei, garota. — Tommy achou que aquela menina que deixava o desapontamento transbordar na face era só mais uma fã em choque, e não alguém com o coração partido. — Venha aqui.
Ela apontou para si mesma, Morello acenou positivamente e caminhou até ele forçando um sorriso. Não que fosse difícil sorrir para aquele homem, porque, Jesus, como era bonito, mas dada a sua atual situação, teria preferido não interagir com ninguém, mesmo que o objeto do contato tivesse lábios perfeitos sombreados por um cavanhaque sexy. Qual era essa de hormônios femininos e homens de barba?
— Olá Tommy.
— E aí? Gostou do show?
Ela esperou alguns segundos, ainda esperançosa de que aparecesse. Continuou o diálogo quando se deu conta de que isso não aconteceria.
— Gostei sim.
Tommy olhou para as mãos dela procurando por CDs, pôsteres ou alguma camisa da banda.
— Você é uma fã atípica. Não trouxe nada para autografar.
Ela riu.
— Acho que fiquei um pouco emocionada.
— Vamos resolver isso.
Morello pegou um CD dentro de uma das gavetas do camarim. Assinou com pilot preta em cima da capa, a perna da letra M invadindo um pouco o rosto de .
— Obrigada, Tommy. Ah, o não veio para a sessão de autógrafos?
O baixista sorriu, já acostumado ao fato dos fãs sempre esperarem encontrar o vocalista da Dark Paradise muito mais do que ele ou qualquer outros integrantes juntos.
valoriza muito este contato com os fãs, mas certamente... tinha outras coisas para fazer... — O homem embaralhou-se inventando uma desculpa pelo colega. — Acho que... precisou ir a uma entrevista. Sinto desapontá-la.
— Tudo bem. E obrigada. — Ela ergueu o CD até a altura dos olhos. — Meu irmão é muito fã da banda, vai ficar feliz.
— Legal, mande um abraço para ele. Qual o seu nome?
. — Ela hesitou um segundo antes de dizer. — Acho que você não vai se lembrar, mas eu já tomei café da manhã com vocês uma vez.
Tommy uniu as sobrancelhas, tentando resgatar o rosto da garota de alguma lembrança.
— Ah... é verdade. A amiga do . Foi em Amsterdã?
— Praga.
— Certo, puxa. É uma pena que ele não esteja aqui, tenho certeza de que adoraria revê-la.
— É... Uma pena. Bem, diga que eu mandei um oi. — falou e ouviu sua própria consciência remedando-a com sarcasmo. Menininha estúpida.
Não fez questão de passar por Elijah nem Dominic. Mesmo que todas as estatísticas fossem desfavoráveis, preferiu não correr o risco de ser lembrada. Quando o segurança apareceu para avisar que o tempo tinha acabado, ela não se opôs como fizeram os outros fãs. Então seguiu as placas vermelhas indicativas da saída com um aperto no coração a acompanhando pelo percurso.
Achou que estivesse ouvindo coisas quando escutou alguém chamá-la.
— Ei, garota.
Era o assessor que os havia levado até o camarim. olhou para os lados para ver se havia mais alguém. Não havia.
— Você está falando comigo?
— Estou se você for uma tal de ... . — O homem olhou para uma prancheta quando pronunciou o nome dela. — É isso?
— Sim, sou eu.
— Então vem comigo.
Ela obedeceu e o seguiu por um corredor estreito que cortava a parte baixa do ginásio. O aviso constante dos pais de nunca falar com estranhos era uma regra que poderia sofrer derrogações quando se tratasse de estranhos que trabalham para bandas de rock, certo? Confiou e não fez nenhuma pergunta, mesmo que não houvesse outras pessoas num raio de metros. Chegaram a uma porta sinalizada como saída de emergência e foram para fora do estádio.
No céu nublado, a lua revelava-se na forma de um filete minguante. sentiu o ar gelado e correu a mão pelos braços numa vã tentativa de se aquecer. Metros à diante, diminutos aglomerados de fãs ainda prolongavam a noite bebendo nas calçadas.
O assessor parou em frente a um carro utilitário e abriu a porta do carona. Indicou que ela entrasse.
— Está entregue, senhorita .
E ali no banco do motorista, estava a razão de todo o turbilhão de sentimentos que experimentara nos últimos instantes. A porta do carona bateu, então eram apenas ela e o vocalista da Dark Paradise dentro do veículo. Foi fácil para seu cérebro associar as linhas daquele rosto as suas lembranças mais felizes, mas precisou de um tempo para processar a informação e entender que daquela vez era mesmo o homem em carne e osso, e não o devaneio de um sonho louco, o que estava materializado a sua frente.
— Olá, garota prodígio. — deu um sorriso com direito a covinhas que afastou todas as dúvidas e medos dela. Cacete. Ainda bem que estava sentada. O coração dela disparou antes que a boca terminasse a frase curta:
— Ei, rock star.
— Olha só para você, não mudou nada. — O vocalista correu os dedos pelo braço dela. O toque fez com que todo o sistema nervoso de se concentrasse naquela rota de pelinhos arrepiados.
— Ah, eu mudei sim. Cortei o cabelo. — Ela brincou.
O rapaz pegou uma mecha e conferiu o tamanho. Diferente de , não sabia onde colocar as mãos. Achou melhor deixá-las comportadas sobre as pernas.
— Ah, sim, foram o que? Longos três centímetros?
— Por aí.
Ele também estava diferente. notou a argola nova na orelha esquerda. Agora o vocalista tinha dois furos daquele lado. Mas não falou nada sobre isso, com medo de que ele a achasse uma maníaca por detalhes.
— Moça ousada. Gostou do show?
— Sim. Menos da parte em que você beija a garota, obviamente.
Transparente. Mas isso não era mesmo difícil de deduzir.
— Ah, aquilo é pura encenação. — sorriu torto para ela, os olhos verdes camuflados dentro do veículo escuro. — Preciso dizer que “não é o que está pensando”?
— Não. — balançou a cabeça. — Primeiro porque vai soar clichê. E segundo, porque você não me deve satisfação.
Ele parou e ficou encarando, antes de dizer de repente:
— Ah, caramba, me dá logo um abraço.
Ela não teve tempo de fazê-lo. Não precisou. mesmo se dispôs a abraçá-la. E Deus. Aquilo foi bom. encaixou o queixo na curva do pescoço dele e inspirou forte. Era dali que brotava o perfume viril que recendia por todo o carro. Ficaram assim por um bom tempo, até que ele tomasse a iniciativa de soltá-la com a mesma delicadeza que se coloca uma criança sonolenta na cama. Rá. Comparação infeliz. Mulher alguma pegaria no sono ao lado de um homem daqueles. Sem chance.
— Achei que nunca mais veria você. — A voz dele era quase um sussurro.
— Não é? E aqui estamos nós, escapando do seu próprio show pelos fundos. A propósito, belo disfarce. — apontou para as roupas de . O vocalista trocara as vestes inusitadas do palco por uma camiseta branca e jeans destroyed. Básico dos básicos. — Combinou bem com o carro.
— Estou parecendo alguém que você apresentaria para os pais?
Oh. Esta pergunta era séria? O homem não podia criar esperanças em outro ser humano assim. Era maldade.
— Não com todas estas tatuagens aparecendo e este cabelo arrumado pelo travesseiro. — Ela fingiu uma careta. — Meus pais são tradicionais demais.
— É? Talvez se eu usar uma camisa de mangas compridas e prender o cabelo...
A imagem de em trajes sociais fez com que a garota perdesse um tempo devaneando. Ela não deixou que ele notasse, e disse:
— Sim, mas não tem que se preocupar com isso, já que você nunca vai conhecê-los.
— Nunca se sabe. — Ele lhe deu uma piscadela. não soube o que dizer, limitou-se a rir. — E aí, conseguiu arrumar um trampo?
O rosto dela se iluminou.
— Ah, você se lembra?
— Eu não estava tão bêbado assim. Lembro que sua bolsa de mestrado iria terminar e você estava com medo do que faria quando voltasse ao Brasil.
Ela balançou a cabeça devagar.
— Eu arrumei um trabalho. Não é lá essas coisas, mas eu gosto e paga meu aluguel. Sou professora de Matemática numa escola de ensino médio.
Os lábios dele curvaram-se em satisfação.
—Eu sabia que você conseguiria.
— É... e estou admirada que se lembre dessas coisas. Aliás, estou admirada que tenha respondido minha mensagem para começo de conversa.
bufou, como se tivesse falado o maior dos absurdos.
— Não se subestime, garota.
— Eu não me subestimo. Mas, bem, eu superestimo você. — Ela continuou. — E uma hora atrás, milhares de pessoas dentro desse estádio confirmariam que eu estou certa em pensar dessa forma.
franziu a testa e deu a um olhar de censura. A garota olhou para os próprios pés no escuro do veículo, sem graça.
— E mesmo assim eu estava aqui fora esperando por você, não? — disse.
— É...
— Bem... — O homem continuou diante da expressão ainda titubeante da sua convidada. — Ajudaria se soubesse como me senti quando vi a sua mensagem?
Ela levantou o olhar de súbito para ele. Um sim tácito.
— Eu estava voltando para casa depois de ter me reunido com os garotos. Não foi o melhor dos ensaios e sai do estúdio com a cabeça quente. — Ele deu um meio sorriso e imaginou uma discussão entre roqueiros bonitos a respeito de solos de guitarra imperfeitos e intensidade de agudos. — Então quando o sinal fechou, eu conferi as mensagens do celular e lá estava a sua, enviada algumas horas antes. Quando vi quem tinha assinado quase bati o carro.
ficou sem reação. Indiretamente poderia ter sido responsabilizada por imprudências de trânsito. Mas que se dane. Saber que o músico reagiu positivamente a sua mensagem, naquele momento era muito mais importante que a integridade física de uma Ferrari. Ou um Batmóvel. (Ou qualquer que seja o tipo de carro que vocalistas dirijam).
— E sabe o que achei mais engraçado? Você assinar “de Praga.” Como se eu precisasse de especificações geográficas para me lembrar de você. — Os olhos dele estavam fixos além do para-brisas encarando um grupo de adolescentes que tocava guitarras imaginárias sem se dar conta que o ídolo estava a poucos metros dali.
— E não precisa? — perguntou.
então parou de encará-los e olhou diretamente para ela.
— O que você acha?
Um silêncio curto.
— E pensar que eu quase não mandei a mensagem. — Ela disse depois de um tempo.
— E pensar que demorei uma boa meia hora para escolher as palavras certas para dizer a você.
O rosto de ficou vermelho. O que quer que aquele homem estivesse fazendo causaria danos irreversíveis no coração dela. Astros do rock não eram os melhores caras para se morrer de amores, ela sabia disso. Mas estava dando a entender que, de alguma forma, a garota também o deixava nervoso.
Ele pareceu sentir-se um pouco embaraçado de repente. Mudou de assunto:
— Ah, e... o que veio fazer no Colorado?
— Vai ter um congresso de Matemática, meu tema de mestrado foi selecionado.
Um sorriso surgiu no rosto dele.
— Olha só, as coisas realmente deram certo para você.
— É. Estão dando certo.
Ficaram em silêncio. Era o indicativo de que as últimas novidades a respeito da vida de haviam chegado ao fim. A regra não se aplicava ao músico, obviamente. Tudo o que a garota precisasse saber, bastaria um único clique no Wikipédia e problema resolvido. então conferiu as horas no celular.
— Ei, você ainda tem um Kraken morando no seu estômago?
Ela estreitou os olhos em reprovação, mas deu o braço a torcer:
— Se você falar mais alto vai acordá-lo.
conteve o riso.
— Deixa eu só ver se o Earl colocou o que eu pedi aqui. — Ele inclinou-se para alcançar o porta luvas. Seu braço roçou na barriga de e ela segurou o ar. Dentro do repartimento havia um boné do Chelsea e um par de óculos escuros. Um kit- disfarce para que vocalistas famosos pudessem andar por aí como pessoas comuns. — Ok. Vamos comer alguma coisa.
***

analisou a situação: , com roupas não muito diferentes daquelas encontradas em lojas de departamento, dirigindo um veículo popular. Dirigindo para ela. E por um instante, a ideia de que pudessem formar um casal não lhe pareceu tão absurda assim.
A estação musical reprisava antigos sucessos românticos.
— Já imaginou que daqui uns dez anos serão suas músicas tocando na sessão Flash Back?
não desviou os olhos da estrada, mas sorriu.
— Prefiro imaginar onde nós dois estaremos daqui a dez anos.
A garota lançou-lhe um olhar sarcástico e bufou uma risada.
— Fácil. Você, em algum iate cercado de bebida e mulheres. Já eu, sozinha. Numa casa cheia de gatos, assistindo a uma reprise de Dirty Dancing.
O homem riu para valer.
— Muito dramática sua versão. Prefiro assim: eu e você, na nossa casa, no máximo dois gatos e, disputando no “pedra, papel ou tesoura”, quem vai acordar para trocar as fraldas do bebê.
Após a declaração piegas, olhou a garota de relance, conferindo se suas palavras surtiram-lhe efeito. É. Aquilo foi algo bom de escutar. Mas... foco, ! O homem era um galanteador nato! Seu pai a instruíra a afastar-se de rapazes assim antes mesmo de ensinar-lhe como amarrar os próprios cadarços.
— Essa foi a coisa mais brega... que alguém já me disse.
— Confessa que você adorou. — Ele fez uso daquele maldito sorriso que esquentava e esfriava o corpo dela nas partes certas. Deslizou a mão do câmbio para um ponto acima do joelho da garota. nem sabia que tinha células nervosas suficientes naquela região para ficar tão elétrica. O rapaz era um expert em mapeamento de zonas erógenas femininas.
— É... — forçou as palavras. Nem notou que desacelerava o veículo. Os pneus chacoalharam britas soltas no asfalto antes de entrar num estacionamento. As luzes de um outdoor iluminaram o rosto dele.
— Mc Donalds? — Ela disse surpresa depois que tirou a chave da ignição.
— Não vai me dizer que não come mais hambúrguer?
— Claro que como. Mas... Aqui não é muito exposto? Podemos pedir pelo drive.
— Lá dentro vai ser mais confortável. E não tem ninguém. — disse, enquanto colocava o RayBan e o boné, indicando o estacionamento vazio.
não quis ser desmancha prazeres, mas o disfarce era óbvio demais. Só uma celebridade usaria óculos escuros no período noturno. Fora as tatuagens dele, tão exclusivas. Bastava juntar as peças com o fato da Dark Paradise ter se apresentando em Denver aquela noite e... bingo.
Empurraram a porta. O grupo de atendentes recompôs-se nos devidos lugares, oferecendo-lhes quatro caixas livres para que pudessem escolher. Foram no de sorriso mais cortês. O moço tinha uma plaquinha de metal com seu nome reluzindo no peito: Max. E o tempo inteiro, ficou encarando como se estivesse prestes a desvendar um difícil caso de detetive. Então quando estendeu o cartão Platinum para fazer o pagamento, o garoto berrou ao certificar-se do nome ali gravado:
— Rá! Eu sabia! O VOCALISTA DA DARK PARADISE!
Nem um aviso de incêndio seria capaz de fazer o mesmo. Cinco empregados saíram apressados da cozinha e os outros atendentes rabugentos de repente se transformaram nos seres mais solícitos do planeta: funcionários do mês. Toda a tietagem durou cerca de dez minutos. Em compensação, o lanche acabou não sendo cobrado e veio lotado de adesivinhos: “especial para você”.
e sentaram-se nos fundos. Ela tentou ignorar os olhares dos empregados que acabavam intimidando com o excesso de gentilezas. O vocalista parecia nem se importar. Devia estar acostumado. Quando já estavam de saída, Max fez a um pedido:
— Você poderia cantar um trecho de Glory Days? Foi com ela que pedi a mão da minha namorada.
Uma plateia uniformizada formou-se logo atrás do garoto: pressão sutil para o vocalista. retirou os óculos escuros, sério, as sobrancelhas erguendo-se por cima dos olhos verdes. Passado alguns segundos de suspense, finalmente falou:
— E... ela disse sim?
Max deleitou-se por um instante, as mãos bem abertas em volta do rosto onde uma barba rala despontava em partes aleatórias.
— Claro, cara! Depois dessa música, ela não me dispensaria!
O público improvisado aplaudiu. e o garoto bateram as mãos no ar, como velhos amigos.
— Ok. Mas já vou avisando que a esta altura da noite, um playback seria a melhor opção. — O músico preveniu.
— Não, ! Queremos você ao vivo! — Uma funcionária gritou, encorajando o ídolo que, convenhamos, não precisava fazer o tipo modesto.
Então ouviu uma dúzia de suspiros apaixonados quando o vocalista da Dark Paradise soltou a voz. Não seria surpresa se um novo pedido de casamento surgisse ali. Despediram-se de todos e caminharam até o carro sob o barulho remanescente de aplausos. abriu a porta para quase no mesmo instante em que seu telefone tocou.
— É o Tommy. Tenho que atender.
A ligação não durou mais que um minuto. A garota ouviu a última parte da conversa.
— Precisava comer alguma coisa. E tem uma moça aqui comigo que, se não comesse algo rápido, teria uma crise de hipoglicemia. Salvei a vida dela. —Uma pausa. — Ah sim, valeu a pena. Ela é linda. — riu antes de se despedir. Um clique e a ligação foi encerrada. esperou ele entrar no carro, então lhe disse enquanto afivelava o cinto de segurança:
— É feio jogar a culpa na donzela.
— Eu já vi você atacando comida. Não é nada bonito.
— Falando assim você não me deixa nem um pouco sem graça. — Soou dramática. Depois perguntou de má vontade. — Tem que ir embora agora?
— Tenho.
Não esperava que a reposta fosse essa.
— Ah.
— Mas... você pode vir comigo.
Os olhos da garota brilharam. Ele continuou:
— Isto se você gostar de festas pura ostentação e gente cheia de frescura.
E tudo o que quis saber foi:
— Vai ter comida?
Ela remediou antes que o olhar dele ficasse ainda mais assustado:
— Brincadeira! Claro que eu gostaria de ir. Mas acho que não estou vestida de acordo.
O rapaz olhou para as próprias roupas, depois a encarou.
— Preciso começar um discurso sobre?
É. Não precisava.
— Ok. — respondeu. — Vamos lá. Ver estas pessoas cheias de frescura.



Capítulo 7

A festa era oferecimento de uma marca de bebidas patrocinadora do show e acontecia num salão de eventos no centro de Denver. Por trás do vidro filmado, viu as pessoas que aguardavam do lado de fora. Nenhum segredo que deveriam pertencer à nata do Colorado. Homens bonitos em trajes finos, mulheres que deixariam as modelos da Victoria’s Secret no chinelo. Ah, correção. Eram mesmo as modelos da Victoria’s Secret. E a professora ia à contramão de toda a pompa com suas calças jeans e camiseta básica, mas ao menos ela e estavam combinando neste quesito.
O veículo utilitário também destoava das outras belezinhas entregues aos manobristas. notou uma moça fumando próxima ao meio fio olhar de cara feia para o automóvel deles. Provavelmente não teria feito isso se soubesse quem era o motorista vítima do seu descaso.
Tinha apenas um carro a frente quando virou-se para ela:
, olha só. — O rapaz se atrapalhou. — Não me leve a mal, mas a imprensa certamente vai estar aí e…
A garota ficou toda sem graça, adiantou-se antes que ele continuasse:
— Eu já sei. Sem contato físico.
ergueu as sobrancelhas, depois as curvou como quem vai começar um pedido de desculpas, mas o pedido não veio. Do Porsche à frente, desceram uma celebridade local e seu acompanhante bem mais jovem, para o deleite dos fotógrafos.
— É. Sem contato físico. — Disse por fim. — Então, se alguém perguntar, fale apenas que você trabalha como relações públicas da banda.
não deveria se importar com aquilo, era um pedido plausível. Eles não tinham nada mesmo, por isso não seria legal que a imagem dos dois juntos circulasse pelos jornais e comprometesse o vocalista. A garota acenou positivamente. E ao menos por fora, não transpareceu incomodada.
só havia se esquecido de dizer que o evento era para os meninos da Dark Paradise e que ele era o garoto propaganda da bebida em questão. Logo na entrada, havia um banner com a sua imagem no qual estava envolvido por braços femininos que lhe entornavam um líquido âmbar no torso nu. Caramba. A indústria sabia mesmo explorar a figura do astro. Sua voz, seu rosto, seu corpo: tudo nele era aproveitado à exaustão.
Os paparazzi clamaram por algumas fotos e concedeu-lhes alguns segundos de atenção. ficou no seu devido lugar de direito: bem escondida atrás das câmeras enquanto mulheres ofereciam-se para o vocalista descaradamente. A professora controlou o impulso de fazer carão e concentrou sua raiva em uma goma de mascar até que a mandíbula começasse a doer.
Robert Barlet veio na direção dos dois segurando uma bebida concorrente a do patrocinador do evento. Tentou pedir licença às pessoas, mas depois desistiu e só lhes empurrou para abrir passagem. Suor reluzia-lhe na testa, visível sob a luz fluorescente que criava sombras engraçadas no seu rosto.
, que bom que chegou. — O empresário estava calmo, o que era uma novidade. Nem se deu o trabalho de olhar para a garota. — Os patrocinadores precisam de algumas fotos, depois está dispensado.
— Lembra-se da , Barlet?
Os olhos do empresário viraram-se rapidamente para a convidada de , sem dedicar mais do que dois segundos de contato visual.
— Prazer.
Ele não lembrava.
apertou a goma de mascar entre os dentes, tinha perdido todo o gosto. Robert virou-se para novamente:
— O Tommy já precisou ir embora, mas chame os meninos, uma foto com vocês três vai ser legal. Se precisar de mim, vou estar no balcão com a Ammy Rydes. Estamos quase chegando num acordo para colocá-los no festival de Seattle ano que vem.
O empresário deu as costas e um garçom passou carregando uma bandeja de bebidas. retirou um copo sem nem olhar o que estava sendo servido. pensou em fazer o mesmo, mas dispensou quando viu que era destilado.
Depois o vocalista a encarou por trás de um olhar desinteressado. Como as pessoas ao redor não ouviam o que ambos conversavam, poderiam muito bem deduzir que aquela garota estava aborrecendo o músico com assuntos cansativos. Uma tática interessante.
— Sabe que é muito ruim ficar te olhando e não poder te tocar? — Ele tomou um gole da bebida sem encará-la diretamente, os olhos percorreram o entorno e pausaram sobre um grupo de pessoas que tentava chamar sua atenção vigorosamente. Acenou para eles.
entendeu o jogo e olhou para as unhas esboçando sua melhor cara de paisagem.
— Sei exatamente o quanto é ruim.
Os lábios dele curvaram-se sobre a borda do copo, olhos semicerrados, um sorriso comportado.
— Vai ficar mais autêntico se segurar uma bebida. Você tem mania de mexer muito com as mãos quando está nervosa. — Ele acenou para outro garçom que trazia garrafinhas de água além de bebidas alcoólicas. foi de primeira opção.
— Obrigada pela dica, logo se vê que é um expert no assunto. — Sorveu um gole do líquido cristalino sem nenhuma sede de verdade. — E eu não mexo muito com as mãos quando estou nervosa. — Complementou, mexendo as mãos. segurou a vontade de rir.
— É um meio cruel. Por isso aprendemos todos os tipos de truques para sobreviver nele. — O rapaz revirou os olhos e bocejou. Para os telespectadores, aquele seria o exato momento em que a garota estaria falando sobre indicativos de quedas em bolsas de valores ou mudanças climáticas.
— Bem. E o que fazemos agora? Porque eu não tenho muito dom teatral e isto não está nenhum um pouco divertido.
Ele permaneceu sério, ainda que os olhos dirigissem-lhe um interesse velado.
— Ok, querida relações públicas, é assim que as coisas vão ser: eu vou tirar as malditas fotos enquanto você apenas se comporta. Depois daremos o fora e então voltaremos àquela conversa que iniciamos em Praga meses atrás.
Quando ele terminou, sentiu a pele formigar por baixo da camiseta. Oh. Não era uma boa hora para dizer que o problema da primeira noite continuava ali.
então foi até os patrocinadores. Garotas rodearam-no como mariposas numa lâmpada neste ínterim. desviou o olhar antes que a cena causasse-lhe uma nova onda de ciúmes. Caminhou até o balcão tomando assento entre desconhecidos e concentrou-se na garrafinha de água, goles pequenos para que o líquido durasse até voltar.
Demorou alguns segundos antes que notasse o cara parado ao seu lado. Primeiro ela encarou as tatuagens na mão direita dele. Dentre elas, um modesto “fuck” soletrado do dedo mínimo ao indicador. Então levantou o rosto até encontrar as pupilas dilatadas do rapaz: Elijah Nash.
— Ora, ora, se eu não conheço você. — O guitarrista encarou-a com um interesse torpe enquanto retinia pedrinhas de gelo no copo de uísque. Ainda usava a mesma roupa espalhafatosa do show: uma mistura de cavaleiro templário com David Bowie em sua fase mais alternativa.
— Conhece é? — A garota disse, surpresa que ele se lembrasse.
— Sim, conheço. — Nash confirmou. — Só que você realmente está muito longe do continente europeu, ratinha.
— É . — Ela corrigiu. — Então você se lembra.
— Claro que eu me lembro, não é sempre que recebo um não. E não são todas garotas que possuem esta adorável carinha de sonsa que você tem. — Elijah bateu o indicador no nariz de , então tomou assento ao seu lado. A garota franziu o cenho e sorveu o resto da água num só gole. Lá se ia sua única distração. Nash pediu mais dois copos de uísque para o garçom. Ao que parece, uma das doses para ela.
— E o que a trás pra esses lados? — O guitarrista apoiou o cotovelo no balcão, as sobrancelhas erguendo-se sobre as íris acinzentadas. — Ah, não, espera. Eu vou adivinhar. Você é a acompanhante sem graça que minhas amigas disseram que o trouxe para o evento.
deu um sorriso falso. Focou nas dezenas de garrafas distribuídas em fileiras atrás do barman e, mentalmente, contou até dez.
— Disseram é? Acho que elas estão parcialmente certas.
— Na parte de você ser sem graça ou na parte de ter vindo com o ? — Elijah perguntou, ultrapassando a tênue linha que separa um comentário engraçado de algo maldoso.
— Tire você suas próprias conclusões. — Ela respondeu. Quando o garçom chegou com as duas bebidas, pensou em recusar, mas por fim aceitou. Se tinha que aguentar aquele guitarrista arrogante que não o fizesse sóbria. O líquido âmbar desceu queimando. Elijah riu quando a garota engasgou.
— Só acho que o príncipe do rock está quebrando um recorde. Repetindo mulher com tanta oferta no mercado. — Ele correu a mão pela coxa dela, então pausou. — E eu adoraria saber o que você tem de tão especial para deixar o tão interessado...
empurrou a mão dele em reflexo.
— Eu também não gosto de você, Elijah.
Nash esboçou uma cara teatral muito melhor do que a que tentava fazer com . Repousou o copo de uísque e gargalhou insanamente.
— Quem disse que eu não gosto de você, ratinha? Na verdade, eu gosto bastante. O suficiente para lhe dar um conselho.
Ela o olhou e esperou que continuasse. Perguntou quando viu que Elijah permaneceria em silêncio:
— E qual é?
A resposta veio num gatilho, rápida e séria:
— Afastar-se o mais rápido que puder do .
sentiu um aperto no peito, mas não deixou que a voz transparecesse nenhuma emoção.
— Bem, acho que sou grandinha para conselhos.
O guitarrista enrugou a testa, o canto da boca curvando-se no que era o mais arrogante dos sorrisos.
— Tudo bem, ratinha, mas quando o destruir seu coração, e acredite, isto não vai demorar muito a acontecer, não diga que ninguém te avisou.
Elijah sorveu o resto da bebida e bateu o copo vazio contra o balcão. Antes de sair, estalou um beijo na bochecha de . A garota teve raiva do misto de sensações que aquele gesto lhe causou.
— Demorei muito? — reapareceu. O perfume, a voz, ambos familiares, rescenderam nos sentidos da professora. Ela virou-se mais eufórica do que gostaria.
— Só uma eternidade.
O vocalista abriu um sorriso muito maior do que uma mera relações públicas merecia.
— Vem, vamos logo embora daqui. — Ele falou e já havia se colocado de pé antes mesmo que terminasse aquelas palavrinhas mágicas.
O caminhar do astro pelo salão reiniciou uma onda do que sua presença naturalmente causava nas pessoas: pescoços virados, cochichos e olhares voluptuosos. Nada novo, fora o fato de conseguir atenção de tabela. A forma como as garotas a encaravam deixariam a raposa da fábula de Esopo uma incipiente quando o assunto fosse despeito. Ela fervilhou por dentro, passos comedidos em direção àquela coisa maravilhosa chamada saída. Então em algum ponto entre a portaria e a pista de dança, ouviu o timbre irritante de Nash.
E os trompetes angelicais imaginários que retumbavam em sua cabeça pararam abruptamente.
— Ei, raio de sol! — Elijah acenou para . — Não finja que não nos conhece só porque somos os coadjuvantes do seu show!
Elijah e Dominic estavam sentados no que seria uma área VIP para os músicos. Havia uma latina no colo de Elijah, uma loira massageando os ombros de Dom, e mais um exército de groupies em saias microscópicas circundando o local, só esperando até que algum deles gritasse “próxima”.
virou-se para e daquela vez a cara de insatisfação dele não era encenação.
— Já ouviu falar do conceito de “fazer um social”?
sorriu soturna.
— Tudo bem, vá falar com eles.
caminhou até Wilde e Nash. Abraçou o primeiro e limitou-se a dar um tapinha nas costas do segundo:
— E aí? Se divertindo?
Quando o vocalista não fez sinal de que iria se sentar, Dominic manifestou-se:
— Não seja arrogante e sente-se um pouco com a gente.
— Não sou arrogante, Dom. Mas parece que todos os lugares já estão ocupados. — correu os olhos pelo harém particular dos colegas.
— Ah, mas isto é muito fácil de resolver! — Elijah disse ao mesmo tempo em que empurrou a garota do seu colo e enxotou a de Dominic como se fosse uma galinha. Pronto. Dois lugares livres surgiram num espaço improvável.
— Chamem suas amiguinhas e desapareçam daqui. — Nash falou para elas, mas depois mudou de ideia e fez uma concessão para duas das cinco meninas — Ei. Você, cabelo cor de cenoura, e você, peitos enormes. Vocês duas ficam.
Dom riu concordando tal qual um papagaio de pirata. começava a achar que toda atitude do baterista limitava-se aos cabelos selvagens e às calças de couro super justas. As outras três garotas preteridas saíram reclamando, aquela cujo traseiro esquentava o lugar ao lado de Wilde olhou com um carão de quem lhe arrancaria os olhos se tivesse a chance.
— Problema resolvido. — Nash exclamou erguendo as mãos, mas hesitou novamente.
— A está cansada e tem que levantar cedo. Preciso levá-la embora.
— Porra, , vai dispensar uma rodada com seus irmãos? Vamos lá, vamos provar para a imprensa que não somos desunidos como eles dizem por ai. — Dominic falou com seu timbre grave, depois se virou para — Você se importa?
A garota apontou para si própria, surpresa.
— Eu? Bem, não... não me importo. Se o quiser ficar, nós ficamos.
a encarou com uma expressão de quem pergunta: “o que você está fazendo?”. Ela respondeu da mesma forma silenciosa, o olhar implorando: “o que queria que eu fizesse?”.
— Ah, que garota legal. — Dom disse, a voz mole de um viciado. — Gostei de você, princesa. Senta aqui do meu lado.
— Não, Dominic. Ela não vai se sentar ao seu lado. — antecipou possessivo e sentiu-se traidora do movimento feminista por um instante.
O baterista levantou as mãos em sinal de paz:
— Sem problemas, irmão. Não sabia que essa era especial.
— É, ela é sim especial. — foi ainda mais categórico e o ego de não se coube dentro dela.
— Então só nos apresente sua amiga. — Domic disse.
— Vocês se lembram da . Nós a conhecemos em Praga. — disse enquanto tomava um assento ao lado da sua convidada, já mais calmo. No sofá envernizado de frente para eles, Dominic e Elijah apertaram-se entre as duas garotas remanescentes.
Dom Wilde continuou com o olhar de biruta e depois deu um sorriso preguiçoso de concordância, mesmo que não se lembrasse de . Aliás, era bem possível que nem soubesse o próprio nome, dado o estado em que se encontrava naquele momento. Nash por outro lado, não perdeu a chance:
— Ora, claro que me lembro. Eu e a já conversamos bastante hoje. — O guitarrista fez aquilo soar de um jeito dúbio. — Não é, ratinha?
deslizou o rosto, do guitarrista para a garota:
— Conversaram é?
lançou um olhar de fuzilamento para Nash. O guitarrista ignorou e complementou:
— Sim, seu brinquedinho novo tem muita personalidade. — Elijah disse, olhando diretamente para . — E concordo com você, ela realmente é muito especial.
Antes que abrisse a boca, Elijah elevou o indicador:
Maaas… não precisa se preocupar. foi fiel como um bom cachorrinho. Enquanto você a deixou sozinha, a mercê de outros caras no balcão, eu a protegi.
— O quê?! Elijah, eu... — alterou-se, a interrompeu.
— Bem, Nash, eu e já estávamos conversados. — abaixou o dedo do colega num ímpeto, olhos verdes destilando ira e o timbre de voz baixo o suficiente para soar como uma ameaça. — E acabo de me dar conta de que não preciso te dar satisfação nenhuma sobre isso.
O desconforto era tão substancial que poderia se solidificar entre os dois. Todo restante da mesa permaneceu estático, manequins de cera não teriam feito melhor. As pessoas ao redor encaravam.
— Isso mesmo , comece logo uma cena. — Elijah sorriu presunçoso, inclinando-se em direção ao vocalista para instigá-lo. — Venha para cima de mim e vamos movimentar as coisas nesta festa chata pra cacete.
Paparazzi já estavam a postos, esperando o momento certo para captar a sequência esperada do que parecia ser uma briga. inclinou-se de modo que falasse bem próxima dos dois:
— Ei, ei! Como relações públicas da Dark Paradise preciso pedir para que vocês dois parem com isso. Já!
Elijah cerrou o cenho e encarou a garota.
— Relações públicas? — O filho da mãe bufou uma risada. — Que merda é essa agora?
continuou:
— Como eu estava dizendo, não me deixou esperando tanto tempo assim. E, Nash, eu e você não conversamos mais do que dois minutos, e foram apenas coisas triviais. Por isso, que tal parar de ser um babaca e não fazer com que eu me arrependa de ser educada, ok? Então, Dominic, — o baterista a olhou num sobressalto — onde está a bebida que você disse que nos serviria? Porque nossos copos ainda estão vazios.
Os três rapazes ficaram em silêncio encarando a garota, as seguintes ações ocorrendo em sequência: Elijah gargalhou de um jeito doentio debatendo as mãos sobre o tampo da mesa. Dom, sofrendo o efeito retardatário de alguma substância ilegal, também riu. E passada a surpresa, relaxou os ombros, então olhou cautelosamente para , dando o braço a torcer.
Tudo estava em paz, novamente.
E Dom virou-se para com uma aprovação implícita no olhar:
— Cara... Eu adoro sua garota nova.



Capítulo 8

A garrafa de tequila, imperante sob a luz amarelada de um lustre baixo, havia sido ideia de Dominic. Ao seu entorno, foram organizados seis copinhos. O baterista serviu-se e também distribuiu as demais doses: uma para cada membro da banda, outra para a ruiva opulenta, mais uma para a senhorita peituda e, por fim, uma dose para . (A única garota na mesa que não compartilhava nenhuma das características marcantes das outras duas meninas).
Ninguém tomou a bebida até que Nash terminasse de explicar as regras:
— Para quem ainda não brincou de “eu nunca”, e parece que é só a , — Elijah riu do olhar de irritação da garota antes de continuar — o jogo funciona da seguinte forma: quando for sua vez, você deve dizer algo que nunca fez. Então os participantes que já fizeram o que foi declarado, devem virar. Se ninguém fez, quem bebe é o declarante. O jogo só termina quando a garrafa estiver vazia e ganha quem estiver mais sóbrio.
Regras estabelecidas e o jogo seguiu de acordo. Tudo bem previsível. era a que vinha mantendo o copo intocado por mais tempo na mesa. É o que acontece quando se passa a adolescência mais na companhia de livros do que em festas: você não se torna a pessoa mais divertida para este tipo de jogo. , Elijah e Dom dividiam o primeiro lugar do pódio, sem nenhum sinal visível de embriaguez.
A maioria das declarações eram tão óbvias quanto as respostas. Como a ruiva dizer que nunca participou de um ménage à trois. Com exceção de , todos viraram os copos. Até a própria declarante. Que se mostrou uma mentirosa no fim das contas.
Na terceira rodada, também começou a virar esporadicamente. Afinal, não tinha graça ser a puritana da mesa. Notou a cara de preocupação de a cada vez que fazia isso. Mas tudo estava bem desde que não visse rostos duplicados e soubesse contar todos os dedos da mão, certo?
A garrafa já estava pela metade quando chegou a vez de Dominic:
— Caramba, eu já fiz de tudo nesta vida — ele parou pensativo — mas algo que nunca fiz e nunca farei — enfatizou com uma careta — foi ficar com alguém do mesmo sexo.
Risinhos. Garota A e garota B viraram as doses e até ai nenhuma novidade. Para , a verdadeira surpresa foi ver o copo de Elijah vazio. Ok. Talvez não tão surpresa. Afinal, o homem era a típica pessoa que se lixava para convenções morais e isso deveria refletir em sua sexualidade de alguma forma. Dom e não demonstraram nenhuma reação, já deveriam saber do leque de opção mais amplo do colega.
— Bem, ainda temos tequila suficiente para uma última rodada. — Nash disse com o rosto voltado para o vocalista e um sorriso presunçoso nos lábios. — Então vamos lá príncipe gótico, não nos decepcione! Conte-nos algo que a mídia ainda não contou.
Todos olharam para , que fez o brinde e declarou sem emoção:
— Quer saber algo que a impressa ainda não revelou? Eu nunca me apaixonei de verdade.
Elijah olhou de soslaio para . Ela leu “eu te avisei” na expressão soberba do guitarrista. Em seguida, ele, Dominic, ruiva e peituda, viraram as doses. e entreolharam-se: os copos solitários e cheios até a borda formando um belo par sobre a mesa.
Nash passou os olhos de para , seu copinho vazio perdendo-se entre seus dedos compridos:
— E não é que eles têm isso em comum? Dois coraçõezinhos de pedra, afinal.
— E não é que temos? — disse com um meio sorriso para o colega. — Ok, rapazes. A companhia está muito boa, mas eu e a precisamos ir.
— O quê? Agora?! Não mesmo! Ainda não. — Elijah grunhiu. — Vocês só vão embora daqui depois que dançarmos uma música! Este cara é o melhor DJ do Colorado.
, que cansara de demonstrar bons modos, disse irritado:
Dançar? Sério, Nash?
— Vamos, ratinha? — O guitarrista ignorou e virou-se para .
— Melhor não. — falou antes que a garota abrisse a boca.
Elijah deu uma arqueada de sobrancelhas para o colega:
— Você se chama ? Porque acho que ela pode decidir por si mesma. — Nash ignorou e olhou diretamente para a professora, a peituda o encarou com um bico proporcional a sua comissão de frente. — O que acha, ratinha? Uma música só, palavra de escoteiro.
O guitarrista fez um sinal de figuinha e beijou os próprios dedos. correu os olhos, de para Elijah, o álcool resolvendo fazer efeito de uma só vez, mudando os rostos em câmera lenta.
— Meu Deus, Elijah, você é muito insistente. — A garota disse, mas o homem dirigiu-lhe um olhar de amolecer o coração. — Ok... só uma música!
teve tempo de lançar um olhar de desculpas para antes que Nash a puxasse até a pista de dança. Dominic e sua acompanhante também se levantaram. considerou ficar sentado, mas no final acabou cedendo. Afinal, alguém tinha que vigiar para que Elijah não fizesse nenhuma besteira.
O DJ lançou uma versão exclusiva de Bizarre Love Triangle. fechou os olhos, dançando no ritmo da batida, e quando os abriu novamente, encontrou Dominic com a expressão vazia, como se algo tivesse roubado a essência do baterista. Nem a garota serpenteando entre suas pernas como uma naja parecia ter algum efeito sobre ele. À sua esquerda, estava , a única parte do corpo que se movimentava era a mão balançando um copo de borboun.
Rock star... pulou na frente dele. — Você está desanimado! — Ela encostou as mãos na gola do rapaz, mas depois se afastou num lampejo, a voz arrastada. — Ooops! Esqueci, sem contato físico!
ergueu o olhar para ela depois de bebericar a bebida.
— Não estou desanimado. Estou preocupado. Acho que você passou da conta um pouco.
Ela franziu o rosto.
— Quê!? Sou uma santa! Fui a que menos virei no jogo!
Ao redor, as pessoas dançavam freneticamente outro clássico remasterizado dos anos 80. teve que levantar a voz meio tom para que a garota o escutasse:
— Sim. Mas estas pessoas estão acostumadas a beber.
— O que você disse? — perguntou. Ao que falou ainda mais alto:
— Eu disse que VOCÊ NÃO ESTÁ ACOSTUMADA A BEBER.
— Caramba! Quando foi que você ficou tão chato? Deixe a garota se divertir! — Elijah surgiu entre os dois com a peituda a tiracolo. O guitarrista então falou para , o timbre metálico como amplificadores ardendo nos tímpanos:
! Vamos rodar?
— O quê? — A garota disse de volta, sem entender.
— Segure minha mão, ratinha! Vamos girar o mundo!
Ela o fez.
! Não...! — tentou alertá-la, mas já era tarde — ... Faça isso.
As pessoas atrás dos ombros de Elijah passavam em fast motion, rostos borrados entre sombras ocasionadas pela luz negra. Os olhos pintados de preto e o sorriso maníaco do guitarrista eram o único ponto imutável para a garota. A ânsia subiu-lhe num tranco. Soltou as mãos de Nash e as leis da física entraram em ação, fazendo-a perder o equilíbrio. Levantou-se do chão já com a mão direita sobre a boca. Por sorte, o banheiro era próximo e não havia fila.
ficou de joelhos sob o piso lustroso, ao lado do vaso sanitário. Seus cabelos encaracolados caíram sob o rosto. Antes de ter a segunda ânsia, sentiu a mão sobre eles.
— Coloque tudo para fora, garota. Você vai se sentir melhor.
? — Ela viu a ponta da bota dele, linhas bordadas no couro que criavam desenhos de chamas.
— Estou aqui.
— Me descu...
Não conseguiu terminar a frase.
E lá se vai o BigMac. disse e não achou nenhum pouco engraçado.
De repente, a porta se abriu. Música invadiu o banheiro junto com o barulho de conversas de garotas. As vozes pararam e, a que deveria pertencer à alfa do bando, falou de um jeito autoritário:
Ei!!! Esse aqui é o banheiro feminino! Não pode ficar aqui!
Outra voz mais aguda interrompeu a primeira:
— Gente, mas não é o ?!
Que maravilha.
— Sem-chance !!! — A garota disse, teve apenas um vislumbre dos saltos altos aproximando-se: Louboutins. — !!! Sou sua maior fã! Pode me dar um autógrafo?
sentiu apertar seu ombro antes de falar polido para as meninas:
— Ei... Obrigado. Mas depois, tudo bem? Esta não é uma boa hora para minha amiga.
A professora desejou sumir dali. Direto para um mundo onde seu suco gástrico e jamais conhecessem um ao outro, onde mais telespectadoras não surgissem do nada pedindo autógrafos para o homem.
— Ah, pobrezinha! Eu tenho aspirinas. — Um zíper se abriu e a voz da garota ficou mais próxima: corporativismo feminino. — Dê para ela amanhã de manhã.
— Obrigado. — disse, o burburinho das garotas sumiu pouco tempo depois. — . Tem jeito de sair mais alguma coisa dai?
— Oh. Deus. Nossa. Acho que não.
— Ótimo. Quer... beber mais um pouco ou... quer ir embora?
o encarou, olheiras surpreendentemente fundas haviam surgido ao redor dos seus olhos.
— Eu te odeio.
riu malicioso.
— A segunda opção então.
fez com que a garota se apoiasse no seu ombro e deslizou o braço ao redor da cintura dela. E fodam-se os paparazzi. Uma pena que tanto contato físico tenha se dado em circunstâncias tão desfavoráveis. o acompanhou. De repente sentiu a brisa cortante no rosto. Estavam do lado de fora, onde uma boa dúzia de pessoas aguardava o serviço de manobristas que escolhera uma péssima hora para se tornar caótico. Parece que um dos funcionários pisou mais forte no acelerador e acabou fazendo com que um Bugatti batesse na traseira de uma Lamborghini. ajudou a se sentar num dos bancos da entrada e foi conversar com os funcionários. Voltou logo depois com as chaves do veículo.
— Você dá conta de andar mais um pouco? — O vocalista disse para ela. — O estacionamento é aqui ao lado e podemos ir até lá. Ou então esperar mais não sei quantos minutos até que eles nos entreguem o carro.
foi categórica:
— Só quero ir embora daqui.
Caminharam bem devagar, e quando viraram para o espaço aberto do estacionamento, conferiu para ver se não tinha ninguém da imprensa. Aparentemente não tinha. Então com um movimento rápido ergueu no colo e a carregou nos braços, a garota nem protestou. Parecia mesmo mal. Quase no meio do caminho, a escutou dizer:
— Desculpa.
olhou para ela.
— Não precisa se desculpar, quem está na pior é você. Mas vou matar o Elijah quando tiver a chance, tudo isso é culpa dele. — Ele suspirou, as sobrancelhas semicerrando de um jeito triste. — E minha também por não ter cuidado melhor de você.
colocou a mão sobre o estômago e gemeu antes de dizer:
— Não. Eu quem estraguei nossa noite juntos, pela segunda vez. Quis ser legal com seus amigos e acabei concordando em beber e beber...
esboçou um sorriso. Calmamente, disse:
— Você não estragou da primeira vez. E quanto a esta noite... Bem. Esperar não é tão ruim assim. Na verdade, é uma novidade para mim.
o encarou. Da posição em que estava, podia notar uma barba curta começando a despontar no queixo dele.
— Sou uma idiota. Nunca mais vou ingerir bebidas alcoólicas.
— É o que todo mundo fala depois que toma o primeiro porre. Isso não faz de você uma idiota, só uma garota vivendo o que toda pessoal normal vive um dia.
— Sim, mas eu não precisava ter incluído você nisso.
Daquela vez, ele não conteve a risada.
— Acredite. Estou achando muito engraçado. Seu inglês fica muito bonitinho quando você está bêbada.
— Fica é?
— Uhum.
Ela escancarou os olhos. Olhou para baixo, a calçada oscilando a cada movimento de .
— Ai, meu Deus. Você está me carregando no colo.
— Agora que você percebeu? — O homem lançou-lhe um olhar incrédulo.
— A sua relações públicas. Sendo carregada no colo.
Os lábios de curvaram-se num sorriso malicioso.
— Vou te despedir.
— Caramba. Foi um emprego curto.
— Darei boas referências.
A pele morna dele contrastava com a brisa noturna adoravelmente. O homem funcionava como um aquecedor ambulante acompanhado do bônus de ser prestativo com garotas idiotas que não sabiam beber. escutou o estalo agudo do alarme do carro e o baque das quatro travas de segurança. a apoiou num dos braços para abrir a porta do carona.
— Isso foi um presságio? Você ter que me carregar no colo, quero dizer. — Aproveitou-se da quantidade significativa de álcool que estava no seu sangue para ficar mais ousada. Ele ainda olhava para a maçaneta do veículo.
— Não sei. Eu não deveria ter pedido sua mão aos seus pais antes?
— Ah não... meu pai te colocaria para fora com um pontapé.
Maldita sinceridade alcoólica. Os olhos dele tornaram-se tristes. Aparentemente, havia ficado magoado. Era isso ou fingimento barato.
— Caramba. Já é a segunda vez que você fala isso. Eu sou tão mal partido assim?
Ela não fez cerimônia alguma para responder:
— Trabalha numa banda de rock, já dormiu com várias garotas ao mesmo tempo. Sim. Você é o pior de todos.
sentou-se no banco do carona, batendo a cabeça no percurso. Reclamou apesar de não ter sentido nada. O álcool havia anestesiado seu sistema nervoso. Escutou o som da risada dele antes da porta do motorista se abrir. Quando o motor do carro rugiu, virou-se para ela:
— Qual o nome do seu hotel?
— Hum... Hotel...California? — Ela gargalhou, resquícios da fase eufórica da bebida.
— Hotel California. Igual à música, hum? — perguntou enquanto dava ré no veículo.
— É.
— Deixa eu adivinhar, quem administra são os Eagles.
— Exato.
Ele olhou de soslaio para ela.
— Você disse que não gostava de rock.
— É um clássico.
— Fala sério, , qual o nome do seu hotel. — ameaçou com seus lindos e inofensivos olhos verdes de gatinho. — Senão vou te levar para Los Angeles.
A professora ficou desperta de uma hora para outra.
— E o que tem em Los Angeles?
— Minha casa.
— Não diga... — Ela encarou o ângulo perfeito que era o maxilar dele, perdendo-se naquela imagem por um minuto. Mudou de assunto quando notou que ficara tenso. — Ah... tem... um cartão na minha bolsa.
Venceu as letrinhas embaralhadas e digitou o endereço no GPS do smartphone. Chegaram à pousada quinze minutos depois. Luzinhas vermelhas como a de sirenes policiais piscavam ao redor de uma placa indicativa de vagas. O lugar já deveria ter tido seu período de glória, mas hoje estava decadente. estacionou próximo à entrada e esperou o que aconteceria em seguida: se o carro seria ou não desligado.
Ele girou a chave na ignição e o carro ficou silencioso, tudo que se ouvia de repente era o barulho de sinos de vento pendurados na portaria principal da pousada. gostaria de convidá-lo para ir até o quarto dela, mas os acontecimentos anteriores minaram quaisquer expectativas suas de que a beijasse ou lhe oferecesse algo mais íntimo do que um aperto de mão.
Ela lançou-lhe um olhar embaraçado.
— Então... você vai voltar para o seu hotel agora?
a encarou.
— Tá brincando? Alguém tem que ficar de olho para você não se afogar no próprio vomito. — Ele riu, mas permaneceu séria. — Você... não quer que eu fique aqui?
Ela piscou rapidamente, digerindo a ideia de que passaria outra noite com o rapaz.
— Não! Eu quero! Mas é que aqui não tem lençóis egípcios, nem piscinas aquecidas.
— Posso viver sem isso. — Um sorriso iluminou o rosto dele.
Eles desceram e caminharam até a recepção. Charlotte Green, a dona do lugar, estava sentada à penumbra vendo um filme antigo. Parecia com uma daquelas tias legais e solteironas que acobertam as travessuras dos sobrinhos. A senhora empertigou-se na cadeira, a escassez de luz dava ao seu coque platinado a aparência de uma cobertura de bolo.
— Boa noite, . — Charlotte encarou com um sorriso que fez seus olhinhos pequenos quase desparecerem no rosto. Aparentemente, a beleza de não tinha contraindicações e nem faixas etárias. — Oh, parece que o show foi realmente bom.
— Boa noite, senhora Green. Este aqui é... — ficou pensativa em como deveria apresentá-lo.
— Olá, sou o . — Ele antecipou-se. A mulher não era do tipo que conhecia a geração atual de cantores de rock mesmo.
— Prazer. — Ela disse, então lançou um olhar de cumplicidade para . — Vocês precisam de cobertores extras? Ou toalhas?
— Não, está tudo bem.
— Ok. Avisem se precisarem de qualquer coisa.
O quarto era pequeno e tinha um papel de parede em tons pastéis que combinava com a mobília. fez um calculo rápido da proporção entre a largura dos ombros do rapaz e o tamanho da cama: faltariam uns bons centímetros para que pudesse ficar totalmente à vontade. Ele por outro lado, não estava preocupado com estas questões. Havia tirado as botas, a camiseta, e agora desabotoava a calça. pausou o olhar ali, no exato momento em que os dedos de desceram o zíper.
— Uau. Rápido. — Ela disse e desviou o olhar para o chão. riu da cara que a garota fez.
— Calma. Só estou tornando minha estada aqui mais confortável, nada que você nunca tenha visto antes. Alguma objeção?
— Nenhuma. Vai... tirar a roupa toda?
Ele molhou os lábios antes de dizer:
— Gosto de dormir como vim ao mundo, mas em consideração a ter uma donzela no quarto... vou ficar com isto. — Apontou para a peça íntima. De grife, obviamente. Caramba. Se o estilista dono da marca visse como ficava bem nela, talvez reconsiderasse o nome bordado na bainha.
ficou com o queixo caído por bons instantes. Aquele homem fazia com que ela prestasse atenção em partes da anatomia masculina que nem sabia que poderiam ser tão inspiradoras. Balançou a cabeça saindo do transe:
— Tá. Tudo bem. — Ela falou enquanto procurava um pijama dentro da mala. Então disse de repente. — Ei. Quer ouvir uma coisa engraçada?
— Você vai vomitar de novo?
parou de revirar a mala e o encarou com ar de censura.
— Isso não é engraçado, é trágico.
— Tem razão, desculpa. — O vocalista conteve o riso. — Pode dizer.
passando duas noites comigo. Sem sexo.
— Isso também é trágico. — bufou.
— Será que dá para fazer uma música sobre? Tipo... “O homem que esperou demais”.
— Acho que dá para fazer um álbum inteiro. — falou antes de se jogar na cama, braços cruzados atrás do pescoço exibindo tatuagens nos bíceps. — Mas seria melhor algo como “a garota pela qual valia a pena esperar”.
O ego dela inflou.
— Você sabe mesmo o que dizer para deixar uma garota feliz, não?
— Só a verdade.
escondeu o sorriso. Apagou a luz principal e deixou aceso apenas o abajur ao lado da cama. Sentiu o olhar dele sobre seu corpo quando retirou a blusa para colocar a camisola. Então se deitou próxima o suficiente, inspirando o aroma da loção pós-barba que ainda rescendia do rosto dele.
Chamou baixinho um tempo depois:
— Ei, .
O timbre era de quem já adentrava o estado da vigília:
— Hum?
— Amanhã estarei sóbria e a situação de hoje vai ser resolvida. Já o problema da nossa primeira noite... continua aqui.
Primeiro um silêncio. Depois a resposta.
— Eu imaginei que estaria.
— Sério? — Ela gaguejou.
— Só não sei se devo ficar feliz ou não por isso. Já que ainda torço para que você encontre o cara certo. Mas ao mesmo tempo, desejo que esse filho da mãe nunca apareça.
As risadas dos dois ressoaram conjuntas na escuridão. enroscou uma perna no cobertor, a outra desnuda por cima do lençol. Do lado de fora, o vento noturno agitava os sininhos de ventos da entrada. Uma música triste.
...
.
— Eu gostaria que você fosse esse cara certo.
Sentiu o polegar dele roçar de leve sua barriga, estremeceu. Então ouviu o suspiro longo do rapaz logo em seguida.
— Ah, ...
O jeito doloroso com que usou aquelas duas palavras fez com que ela murchasse. Virou-se de costas e tentou definir contornos embaralhados dos móveis do quarto. Um pé deslizou pela panturrilha dela, a voz surgiu logo depois, um sussurro próximo ao seu ouvido:
— Tente dormir, garota.
Ela se encolheu.
— Vou tentar, se o mundo parar de girar.
— Ele vai parar. Boa noite.
Os lábios dele repousaram-lhe no alto da cabeça. Um beijo que, inegavelmente, alcançava a parte errada do corpo dela...
Pela segunda vez.



Capítulo 9

O lado ruim daquela manhã: as cavidades do estômago ardiam como se tivessem sido preenchidas com cimento e a dor de cabeça era infernal. Quanto ao gosto metálico na boca, ainda estava decidindo se merecia ser classificado como tolerável ou algo realmente desagradável.
O lado bom: o rosto de ser a primeira coisa que os olhos dela encontraram. Linhas suaves revestiam as feições do rapaz ainda ocupado com belos sonhos. poderia passar horas apenas olhando para ele e...
Ai, meu Deus!
Ela quase se desequilibrou. O corpo ainda precisava de tempo para se estabilizar, mas não tinha minuto algum para conceder. Correu até o banheiro. só acordou depois, com o barulho da torneira da pia sendo ligada. A garota usava a escova dental com uma energia desnecessária caso quisesse manter todos os dentes na boca.
— Bom dia... — falou em meio a um bocejo. — Tá melhor?
— Droga! Já são quase nove horas. Droga! Droga! Droga! — disse depois de cuspir o antisséptico bucal. — Ah, bom dia! Da ressaca, melhorei, mas agora acho que terei uma parada cardíaca.
— Que horas você tem que estar lá?
— Que horas eu tinha que estar lá. — Ela corrigiu. — Começava às oito. Eu não acredito que perdi a hora! Viu meus sapatos?
apontou para os scarpins atrás da poltrona. A garota os pegou e teve certeza de que aquela mancha bem na ponta era resquício da sua bile.
— Ah... ótimo.
— Arrume sua mala. — sentou-se na beirada da cama. Não demorou mais do que três minutos para se vestir. —Vou pagar a conta para ir adiantando.
— O quê? Não, não. Você não vai pagar a conta, . — Contestou enquanto tentava acertar o fecho do brinco. — Apenas peça o táxi para mim, por favor.
Ele a encarou.
— Eu não vou pedir um táxi. Vou te deixar lá.
parou, segurando o pé direito do sapato no ar, a expressão atônita. Preciosos segundos perdidos a fim de explicar ao homem o que lhe custaria aquele gesto de gentileza:
— É em Bolder, . Fica a quarenta minutos daqui.
— Consigo reduzir este tempo pela metade se o motor do carro ajudar.
, não precisa...
— Fazer isso, eu sei. Mas não tenho compromisso algum hoje, então pare de ser orgulhosa e deixe-me assumir parcela de responsabilidade pela noite passada. Ah. E tome os analgésicos. Estão em cima da mesa.
Ela não relutou mais. No fundo, estava adorando aquilo.
— Tá... eu termino em menos de dez minutos.

*


Nenhuma nuvem maculava o céu daquela manhã. O sol já despontava bem alto: um lembrete de que estava absurdamente atrasada. E se não estivesse tão nervosa, teria prestado atenção à bela arquitetura da Universidade do Colorado quando entrou derrapando o carro. Cinco jovens próximos a uma mureta de tijolinhos olharam todos de uma vez quando ele freou.
girou a chave na ignição e o motor cansado protestou logo depois. virou-se para o rapaz, lançando-lhe o maior de todos os olhares de gratidão.
— Muito obrigada.
— Não foi nada.
Ela empertigou o terninho, buscando aprovação.
— Estou apresentável pelo menos?
O músico sorriu maliciosamente para ela.
— Se todas as professoras fossem assim na minha época de estudante, eu teria sido o primeiro da classe.
A garota esboçou um sorriso e devolveu-lhe o gesto. Mas a verdade? Nenhum deles estava realmente feliz. encarou as íris do homem por tanto tempo que poderia reconhecer a cor numa paleta com mais trinta tons diferentes de verde. Ele apertou-lhe a mão. Forte. E a expressão dela tinha um misto de dor e tristeza quando lhe disse:
— Realmente preciso ir, e meio que odeio o fato de ter que me despedir de você. De novo.
acenou, concordando.
— Acho que nós dois não combinamos muito com essa coisa de despedida.
colou os lábios sobre os do homem. Um selinho comportado e hesitante no começo, mas que seguiu o curso esperado quando as mãos de reivindicaram mais sua presença. Beijos de despedida sempre deixam a sensação de que continuam inacabados quando terminam. E ela sentiu a garganta arder do que provavelmente seria um dos sintomas mais agudos de angústia contida. Não podia chorar. Não na frente dele.
— Vá arrumar suas coisas. Vou esperar até que você me mande uma mensagem dizendo que está tudo certo. — disse, e mesmo que aquilo só postergasse o momento por alguns instantes, a garota viu-se feliz com o fato de ele ainda não ir embora de verdade. Doce e adorável ilusão.
Correu até chegar ao stand no qual seu banner sobre polinômios ortogonais já deveria estar exposto há duas horas. Os outros congressistas tinham o perfil CDF esperado de estudantes de exatas: óculos grossos, rostos fundos devido a noites em claro fazendo cálculos (ou assistindo Netflix) e, nos casos mais extremados, homens que pareciam terem sido vestidos pelas mães.
A garota olhou seu reflexo numa porta de metal. Os cabelos resolveram rebelar-se contra ela justo naquela manhã e o tailleur preto estava fazendo seu traseiro parecer muito maior do que realmente era. Mais parecia a secretária sexy de um filme pornô do que uma congressista de matemática.
Que ótimo.
Ok. Foco, . Foco no que é importante: recuperar o tempo perdido.
Ao menos a tese dela não era tão chamativa assim. Não como a do indiano que tratava sobre “formulações matemáticas de mecânica quântica”. Ninguém teria dado falta dela, afinal de contas.
Ninguém com exceção de um dos organizadores do evento que veio em sua direção.
. — O homem não se deu ao trabalho de olhar nos olhos da garota enquanto fazia riscos rápidos numa prancheta, como se a mão sofresse de um tique nervoso. — Da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.
Ela demorou a responder.
— Sou eu. Prazer, senhor...
— Dickens. — Ele levantou o olhar. Tinha o rosto liso, sem nenhum fio de barba despontando, o cabelo dividido exatamente em duas partes iguais. O tipo de pessoa que não deveria aceitar nada fora do lugar...
Ou atrasos.
— Acho que sua Universidade não ficará feliz em saber que não teve representante durante toda manhã. E imagino que você não espera receber um certificado depois disso.
— Senhor Dickens, eu...
—Está dispensada, pode ir para casa.
sentiu um frio na barriga e não era efeito de ressaca da noite anterior, mas medo. Todos os recursos da viagem haviam sido pagos pela universidade. Se não comprovasse a participação no evento, seria obrigada a restituir todos os gastos. Conclusão esta que não agradou nenhum pouco seu bolso.
— Senhor Dickens, eu assumo minha culpa pelo atraso, mas o evento só termina à noite. — Lançou-lhe um olhar de misericórdia — Então, por favor, peço que reconsidere.
— Poupe suas energias, senhorita . Eu nunca volto atrás numa decisão. — O homem prepotente finalizou e deu-lhe as costas.
ficou sem reação. Nem se lembrava de que esperaria uma mensagem sua até o telefone começar a assoviar dentro da bolsa. Por sorte, Dickens já estava em outro ponto do corredor, ou então bem provável que também a penalizasse por não ter colocado o aparelho no silencioso.
[]:?Deu tudo certo?
Ela digitou com mãos trêmulas:
[]:Você ainda está aqui?
[]:No estacionamento em frente ao campus.
[]:Estou indo aí.

*


Então contou para ele e daquela vez não teve vergonha de deixar as lágrimas caírem. Dane-se para o que pensasse sobre ela, estava ferrada mesmo. escutou, sério, apenas manifestando-se com leves acenos em alguns momentos. Depois, quando viu que a garota já tinha terminado de falar (e só continuaria a chorar mesmo), disse:
— Isso não está certo. Quem esse cara pensa que é?
A professora ergueu os olhos vermelhos para encontrar o rosto dele:
— Ele é o chefe do Departamento de Matemática da Universidade de Chicago, . O cara é simplesmente um dos melhores do mundo. Até a NASA investe em projetos de pesquisa dele.
Os olhos do músico adquiriram uma espécie de exaltação de quem não se dá por vencido:
— Desce do carro, vamos lá falar com ele de novo.
ficou parada, encarando que saíra do veículo e agora estava parado ao lado da porta dela.
, você ouviu o que eu falei? Dickens não vai reconsiderar, ele foi muito claro.
— Acho que vale a tentativa. — O rapaz contra-argumentou, então abriu a porta do carona. — Desce.
Ela desceu, meio que no piloto automático e sentindo que aquilo era uma má ideia. No meio do caminho, quando um grupo de meninas apontou para , foi que deu-se conta de que o rapaz estava sem os acessórios que ajudavam a manter sua identidade de astro do rock em sigilo.
— Ei, Clark Kent — a garota o cutucou — você esqueceu os óculos e o boné.
— Não esqueci não.
Quando o olhou, sem entender, explicou:
— É que em alguns momentos um rosto famoso tem suas vantagens.
— E este é um desses momentos? — Perguntou enquanto acompanhava-lhe os passos céleres.
— Não sei.
E a professora engoliu em seco a informação.
O burburinho começou rápido, tal como uma enchente, alastrando-se por todo o evento. Visitantes e congressistas mais curiosos chegaram a abandonar stands para ver de perto o vocalista da Dark Paradise. tentou ficar calma apesar das circunstâncias. Avistou Dickens conversando com um cara engravatado no corredor no qual acabaram de adentrar todos: ela, , e uma pequena multidão de caras nerds que também gostavam de rock. Ronald Dickens e o colega pararam a conversa para apreciar a cena.
— Já sei. — virou-se para a . — É o cara de camisa xadrez segurando uma prancheta.
— Ele mesmo. Só que ainda acho que isso não é uma boa ideia...
Mas já estava se apresentando para os dois senhores. Balançou a mão de Dickens com tanta energia que foi como se poeira tivesse emergido da áurea certinha do organizador.
— É um prazer finalmente conhecê-lo, senhor Dickens.
Ronald Dickens o olhou com curiosidade.
— Finalmente? Já ouviu falar de mim?
— Claro. Sei que o senhor é o chefe do Departamento de Matemática e que tem contribuído com pesquisas maravilhosas para o país.
Oh. Era esse o plano brilhante? quase teve um ataque de riso em meio à própria desgraça.
Os olhos de Dickens brilharam e um sorrisinho curvou levemente os lábios franzidos do homem. A professora limitou-se a observar, escondida atrás de um grupinho de pessoas.
O vocalista continuou:
— Acho que o senhor não me conhece, mas...
— Eu conheço você, senhor . Tenho duas filhas adolescentes. Adivinhe qual a banda preferida delas?
Estava ali uma coisa que ninguém esperava.
— Ah, sério? — falou admirado. Ronald sorriu enquanto balançava a cabeça em afirmação. — Puxa... que honra.
— E como posso ajudá-lo, senhor ? Pois suspeito que Matemática não seja, como dizem os jovens, — Dickens fez um sinal de aspas com os indicadores — “a sua praia”.
— Na verdade, eu quem gostaria de ajudá-los.
O coordenador o encarou confuso, depois falou com um interesse implícito firmemente controlado por trás do tom tranquilo:
— Continue.
— Bem... nossa banda sempre investe parte dos lucros em projetos. Você sabe, causas sociais, ambientais. E por uma coincidência, encontrei essa garota hoje cedo... — deu-se conta de que não estava ao seu lado. Deslizou os olhos e a encontrou escondida atrás de dois garotos que poderiam fazer parte do elenco de “The Big Bang Theory”. O vocalista sibilou o nome dela por entre os dentes. então se aproximou, as bochechas incandescentes de vergonha como a de uma garotinha pega fazendo traquinagens. Dickens a analisou por completo.
— Senhorita .
sorriu sem graça e continuou:
— Como eu ia dizendo, encontrei a senhorita hoje de manhã e vi os banners do congresso com ela, aí pensei, “cara, isso é um sinal”. Sabe, eu sou espirituoso. O senhor é espirituoso, senhor Dickens?
— Não.
abaixou os olhos e encarou os próprios sapatos. Aquilo não estava saindo bem. nem se importou e continuou a falar:
— Então nossa banda decidiu... Na verdade, eu decidi pela banda, que deveríamos investir em educação dessa vez. E a senhorita me falou maravilhas sobre os projetos de pesquisa que vocês desenvolvem aqui.
— Falou mesmo, senhor ?
— Claro.
—E qual atraiu sua atenção, especificamente?
olhou de soslaio para a garota e começou a dizer:
— O que tem todos aqueles cálculos...
— O que desenvolve softwares para cálculos de análise e simulação de acústica em salas de prática musical. — complementou. — É que quer incentivar futuros músicos a ensaiarem sem incomodar os pais e os vizinhos.
— Ah, esse é um programa bem interessante. Na verdade, eu sou o precursor dele aqui na Universidade. — Ronald Dickens falou para os dois.
— Caramba, mais uma coincidência! — bateu no ombro do homem. Ronald quase se desequilibrou. — Estou falando com a pessoa certa.
Muita coincidência. — Dickens correu os olhos, do vocalista para , sucessivamente. — Então, senhor , você teria interesse em investir nos nossos projetos de pesquisa?
— Claro.
— Mesmo que sejam valores altos?
sorriu tal qual um astro milionário de vinte e seis anos faria.
— Sem problemas. Posso pedir para meu agente entrar em contato?
— Sim, eu aguardarei. — Ronald falou, em seguida entregou um cartão para o músico. Os dois selaram o acordo com um aperto de mão. então se virou para o homem, como se estivesse se esquecendo de um mero detalhe:
— Ah, Dickens, e quanto a senhorita ...
Ronald Dickens olhou a prancheta. Fez novos tiques nervosos acompanhados de um meio sorriso.
— Você tem cinco minutos para arrumar o stand, senhorita . — O homem a encarou. — E não faça com que eu me arrependa de ter voltado atrás.
— Não farei, senhor. — disse. O sentimento de gratidão por não se cabendo dentro dela. — Muito obrigada.
— Tudo bem. — Após, Dickens virou-se para . — E senhor , eu realmente aprecio muito sua ajuda, mas agora gostaria que o foco do evento voltasse a ser as teses de Matemática dos pesquisadores, e não o vocalista da Dark Paradise.
o encarou um pouco confuso, mas depois entendeu.
— Ah. Claro. Já estou de saída. Bem, foi um prazer conhecê-los. — O músico lançou um olhar comportado para . — E senhorita , continue com seu brilhante trabalho.
A agitação causada pela sua presença foi se recompondo aos poucos depois que ele saiu.
Não devem ter se passado mais do que cinco minutos, então viu Dickens novamente, caminhando a passos largos ao redor dos stands e aproximando-se como quem não quer nada, a prancheta ainda agarrada ao braço. E com o timbre apático, mas com os olhos trespassados por uma leve comoção, virou-se para ela falando baixinho:
— Senhorita . Não sei como você e se conheceram e não preciso saber, mas... poderia pedir para que ele desse um autógrafo para minhas filhas?

*


Postergar despedidas ao máximo: a atividade favorita de e . carregou as sacolas contendo salgadinhos de sabores variados, uma garrafa de coca-cola e duas barras de chocolate. indicou a sombra generosa de um carvalho e os dois sentaram-se sobre a relva verde, observando, ao longe, um jogo de futebol americano que acontecia em outra parte do campus.
— Acabo de me dar conta de que você tem péssimos hábitos alimentares, senhorita . — Ele deu ênfase ao sobrenome dela de propósito enquanto rasgava a embalagem metálica. Cheiro de salgadinho de queijo rescendeu no ar.
— Minha mãe vive dizendo a mesma coisa, senhor . — Ela concordou, mas virou um gole de coca mesmo assim, sem nenhuma culpa. Depois lambeu o pó alaranjado dos dedos: gosto artificial de queijo nacho apimentado. Riu sozinha de repente.
— Que é? — perguntou.
— Só estou repassando sua história de conspiração da cabala mística para explicar meu atraso.
— Pode dizer. Eu sou genial.
A garota revirou os olhos.
— Conhecendo ao acaso numa fila de cafeteria? Acha que Dickens acreditou nesta maluquice?
, eu poderia ter falado que você foi abduzida por extraterrestres que ele não se importaria, desde que eu mantivesse a promessa de investir no projeto dele.
— Ah é, ainda tem isso. Fiz você prometer doar muito dinheiro para o Dickens.
— Não é uma doação. É um investimento em projetos de pesquisa. A banda sempre emprega parte do lucro mesmo, ajuda com a isenção de impostos. Não é grande coisa.
Realmente, não era grande coisa quando se tinha mais dinheiro do que o próprio tio Patinhas. Pensamentos nebulosos, que não tinham haver com quantias monetárias vultosas, contraíram as feições do rosto de . notou.
— Que foi?
— Ainda tem o fato de fazer você dormir ao lado de uma bêbada em uma pousada que parecia cenário do filme Psicose.
riu pra ela.
— Ah, mas a dona do hotel era tão legal, duvido que tenha corpos escondidos no porão. Já aquela garota bêbada...
Ela sorriu, mas um tipo de sorriso que ainda era relutante.
— Você não precisava ter feito tudo isso, .
— Você fala isso com tanta frequência — ele suspirou — seria legal relaxar um pouco, .
— É difícil relaxar quando estou fazendo você pagar por uma sequência de irresponsabilidades minhas.
Ele franziu o cenho.
— Na verdade, eu que levei uma moça sem experiência de vida para uma festa que unia dois elementos perigosos: bebida e Elijah.
Hum. Fato.
— Falando em Elijah... — aproveitou a deixa — por que vocês dois se farpeiam tanto?
retorceu os lábios, mas o movimento foi tão sutil que poderia ter passado despercebido se não fosse o olhar clínico da garota.
— Bem... — Ele começou: suspiro longo, história longa. — Teve uma garota uma vez. A Katie. No início era apenas uma fã, mas acabou ficando íntima da banda e seguiu-nos numa turnê, há uns dois anos. Elijah convidou-a para as festas que fazíamos em Los Angeles e... eu não sabia que ele estava realmente apaixonado por ela.
Aquele aperto que sentiu no coração deveria ser o que as pessoas chamavam de ciúmes. Uma novidade para ela.
— E então... você ficou com a tal Katie?
— E então uma noite, depois de uma dessas festas que aconteceram na minha casa, eu entrei no quarto e a garota estava deitada na minha cama. Sem nenhuma peça de roupa.
— Ah, e foi muito difícil de resistir. — falou com mais ironia que gostaria, sua risada soando estranha, e a encarou meio de lado.
— Como eu disse, não sabia que o Elijah se importava com ela. Não tinha porque eu resistir. — O olhar dele ficou distante de repente, perdido em algum ponto do passado. — E isso realmente me deixou mal, pois éramos grandes amigos.
Ela tratou de mudar de assunto.
— Seu voo para Los Angeles é daqui três horas?
Assunto ruim, por sinal.
— Sim. — Ele saiu do transe para conferir o relógio, depois olhou para a garota, os olhos adquirindo um brilho travesso. — Mas nós dois poderíamos mudar nossos planos. Quer ir para Las Vegas? Tomar outro porre?
A garota fez uma careta.
— Com exceção da parte do porre, eu adoraria ir para Vegas com você. Isso se eu não fosse uma mortal comum que tem que lutar para ganhar a vida, senhor bon vivant. Amanhã já pego meu voo de volta. — Ela também conferiu o relógio. — Falando nisso, o horário de almoço está acabando, é melhor eu voltar se não quiser que o Dickens puxe minha orelha.
— É, não pode abusar da sorte duas vezes. Vai que não aparece nenhum outro cara para te salvar.
A professora deu um soco sutil no braço do rapaz.
— Ah, não se esqueça dos autógrafos para as filhas dele. — rasgou o plástico que cobria os dois CDS comprados na loja de conveniência junto das outras comidinhas Junk Food. — Elas se chamam Lauren e Chloe.
assinou e os entregou para , depois cerrou as sobrancelhas e sorriu soturno:
— E lá vamos nós com mais essa história de despedidas... Mas sabe o que é diferente agora?
— O quê? — guardou os CDS na bolsa enquanto imaginou duas adoráveis mocinhas Dickens satisfeitas com o presente.
— Não precisamos mais contar com os acasos do destino para nos encontrarmos. Temos os números de telefone um do outro e você sabe que não estou em nenhuma, como você disse mesmo? — pausou e rolou os olhos — “Banheira de hidromassagem com dez modelos russas magérrimas” quando leio suas mensagens. Logo, não temos desculpas para não mantermos contato.
— Eu disse cinco, cinco modelos russas magérrimas.
— Como se isso mudasse muita coisa. — fingiu estar bravo, mas sorriu quando disse:
— Feche os olhos.
fez o que o rapaz pediu. Sentiu a mão dele na sua nuca e escutou um clique metálico. Passou os dedos pelo pescoço, notando a nova textura sob sua pele.
— É... o seu cordão de prata?
O objeto deveria ter um valor grande para o astro, já que também o usava na noite em que se conheceram.
— Sim. É meu talismã da sorte. Você vai usar até a próxima vez em que nos encontrarmos. Então me devolverá.
— Tem certeza?
— A mesma certeza que tenho sobre o que estou sentindo agora.
As palavras de surtiram efeito imediato no coração da garota. Ela virou-se para olhá-lo nos olhos.
— E o que é?
— Que estou deixando em Boulder uma das melhores coisas que me aconteceram nos últimos tempos. — Ele sorriu quando continuou com aquela expressão vacilante. Correu as mãos pelo rosto dela até parar no alto das maçãs. — E eu não estou falando do meu cordão, sua tolinha.
De repente, ela precisou lutar com todas as forças para não desistir daquele congresso e ir até o fim do mundo com . E enquanto sentia os lábios dele firmes sobre os seus, as mãos envoltas a sua cintura, a garota pensou que Elijah, ou qualquer outro que tivesse a mesma opinião do guitarrista, só poderia estar errado. Porque , aquele adorável rapaz que por um acaso também era um astro do rock (detalhezinho bobo e sem importância naquele momento), era perfeito demais para estragar tudo que havia construído com a garota naquele fim de semana às avessas.
Aquele rapaz, jamais destruiria seu coração.



Capítulo 10

O cansaço fez com que mantivesse o rosto afundado no travesseiro em protesto à claridade matinal. Cada parte do seu corpo doía absurdamente. Que raios haviam acontecido noite passada? Pelo visto, nada importante o bastante que valesse o esforço da sua mente em branco. Então de repente sentiu os lábios que se empenhavam num lugar curioso do seu corpo. Cacete. Aquilo era muito melhor do que receber café da manhã na cama e ele precisava dar o braço a torcer. Abriu os olhos e encarou por baixo dos lençóis. Seu coração disparou.
? — falou ainda grogue de sono e do que seria efeito rebote de muito álcool na noite anterior. A garota parou imediatamente o que estava fazendo. A face surgiu depois que afastou camadas de lençóis e fios de cabelos castanhos. Um rosto que ele não reconheceu.
— É Lindsay! — A menina exclamou magoada e o olhar revelou a mais profunda decepção.
esforçou-se para resgatar aqueles traços de alguma memória recente. Ela tinha olhos azuis, brilhantes como faróis. Do tipo que não são fáceis de esquecer.
— Ah. Lindsay. Desculpe. — Ele disse. Percebeu que estava no seu quarto em Los Angeles, apesar de não ter a mínima ideia de como chegara ali. — Acho que bebi um pouco além da conta.
A garota sorriu, belos incisivos centrais destacando como pastilhas de menta na boca. Perdoou fácil, fácil.
— Verdade! Você estava muito bêbado ontem! — Ela entrelaçou as pernas e balançou os pezinhos delicados no ar. — Foi uma boa festa.
— É... foi. — Ele cerrou as sobrancelhas e sentiu uma pontada no lugar onde deveria estar seu fígado. — Pode refrescar minha memória? Onde foi que nos conhecemos?
A garota endireitou-se na cama e aninhou o rosto no ombro dele: lindos seios. Mais um motivo para não ser esquecida.
— Aqui na sua casa! Na festa que o Elijah deu! Ele nos apresentou... — Lindsay piscou os cílios, esperançosa. — Sou amiga dele, lembra?
O vocalista suspirou. Claro que Elijah aproveitar-se-ia do fato de não estar em casa para fazer uma festa. Típico do guitarrista.
— Ahãm... — mentiu com um sorriso dissimulado e o rosto da garota se iluminou. — Puxa. Nós dois... foi incrível noite passada.
Lindsay o abraçou e ficou toda de sorrisinho para ele. sentiu o perfume dela, adocicado ao extremo, remetia a uma loja de doce.
— Que dia da semana é hoje, Lindsay?
— Domingo.
Sua mente resolveu pegar no tranco e as peças começaram a encaixar-se. Chegara de Denver a noite anterior, cansado, e encontrou a casa infestada de pessoas que nunca tinha visto: modelos iniciantes que sonham em ascender às passarelas das maiores grifes, figurões de filmes lado B, e mais todo tipo de gente bonita e alternativa que Elijah adorava colecionar. “Amigos”, dizia ele, mas o guitarrista mal sabia apontar-lhes os nomes.
E agora estava naquela situação que odiava: com uma garota desconhecida que provavelmente se enquadrava na categoria “recém-chegada-a-Los-Angeles-para-ser-atriz-mas-que-logo-estará-dançando-em-casas-noturnas-com-notas-de-cinquenta-enfiadas-no-traseiro”. Sabia que o próximo passo seria Lindsay exigir um pouco de romantismo, depois perguntaria se ele ligaria no outro dia e etcétera e etcétera e etcétera. Precisava dispensá-la. Rápido. E mesmo que já tivesse passado por isso um sem número de vezes, ainda se sentia pouco a vontade para fazê-lo.
Ouviu a voz carregada de sotaque espanhol preceder três batidinhas polidas na porta:
— Senhor ?
Salvo pelo gongo.
— Pode entrar, Eva.
A garota Lindsay escondeu-se entre os lençóis acetinados quando a senhora apontou o rosto para dentro do quarto.
— Desculpe incomodá-lo, mas Robert está ao telefone e insistiu para que eu o chamasse.
— Quem? — Por um minuto, esqueceu a quem pertencia aquele nome, a conexão entre as palavras e memória visual ainda falha.
— Seu... empresário, senhor. — Eva falou de forma branda na esperança de que o patrão não a repreendesse pela audácia. Robert sabia ser convincente, e a funcionária pensou que se não fizesse as vontades do homem do outro lado da linha colocaria seu emprego em risco. — Ele já ligou milhares de vezes.
Lindsay ainda encarava com aqueles absurdos olhos azuis de gato siamês. Ele soltou um longo suspiro de aborrecimento, puramente teatral, antes de dizer:
— Preciso tratar de negócios sérios aqui, Ashley. — Levantou-se e pegou a boxer jogada ao lado da cama. Eva desviou o olhar. — Vista-se que a senhora Hernandez vai acompanhá-la até a porta.
— Eu já disse, meu nome é Lindsay. — A garota cerrou os olhos e falou entredentes, sem nenhum pouco da doçura anterior.
— Que seja. — disse, cansado de bancar o bom moço. — Dê logo o fora daqui.
A moça arregalou os olhos. Depois se vestiu com uma irritação tangível, o zíper do vestido decotado subiu assoviando. Pegou o par de sandálias e partiu em direção à porta. Antes de sair, virou-se para , as íris azuis agora tinham um quê diabólico de ira:
— Vai pro inferno, . — Fez um gesto feio com o dedo. — E saiba que sua música é uma droga.
— É e o seu boquete também. — devolveu para a garota que saiu pestanejando ao lado de Eva.
— Oi, Robert. — O vocalista finalmente ofereceu atenção a um impaciente Robert Barlet, já de saco cheio no outro lado da linha.
O empresário não manteve a simpatia, como era de se esperar, e descarregou palavras pesadas ao telefone. contou dez palavrões a cada sentença pronunciada. Era difícil imaginar que Robert já estivesse tão mal disposto às... — o músico conferiu o relógio — onze da manhã de um domingo ensolarado.
— Bom dia para você também. — alfinetou.
Segundos de silêncio, mas que logo foram cortados pelo tom furioso de Barlet:
— Bom dia? Já leu o jornal de hoje?
— Jornal? Acabei de acordar e não assino nenhum jornal. — sabia que fazer tempestade em copo d’água era uma das características marcantes do empresário, então não se importava quando Robert Barlet causava alarde suficiente para que um ladrão de frutas fosse confundido com um terrorista internacional.
— Ah, eu sei! Por isso mandei sua empregada ir até a banca e trazer-lhe um exemplar do Daily News.
Outro suspiro de , dessa vez de impaciência. Chamou pela funcionária que aquela altura já colocara Lindsay porta afora. Eva Hernandez deu as caras como um cachorrinho adestrado.
— Eva, você comprou o Daily News? — Ele perguntou e a senhora afirmou com um aceno. — Traga para mim, por favor.
Eva Hernandez saiu apressada para atender ao pedido. Robert continuou:
— Antes de pegá-lo, adivinhe só quem está estampando a coluna de entretenimento?
não perdeu a compostura e aguardou. Eva surgiu com o jornal bem enrolado ao lado de um generoso copo de suco de laranja. O vocalista passou as páginas sem muita emoção enquanto desfrutava da bebida.
— Ok. Cheguei à coluna de entretenimento.
Então ficou mudo depois de fazer a leitura mental da manchete escancarada em nuance escarlate:
“Vocalista da Dark Paradise é visto com moça misteriosa em lanchonete McDonald’s no Colorado.”
— Droga... — pestanejou baixinho, como se o som de sua voz pudesse passar despercebido pelo empresário. Obviamente, isso não aconteceu.
— Droga mesmo, . Viu as fotos? Abra na página dois da coluna. A minha favorita está aí.
O vocalista já antevia o que encontraria nas páginas seguintes e não precisava de Robert para lhe dizer que aquilo não era nada bom.
— Abriu? — A voz de Barlet martelava-lhe a cabeça como se toda aquela insistência pudesse fornecer uma resposta satisfatória.
— Abri sim.
— Agora leia o terceiro parágrafo.
— Tudo bem, Robert. Já entendi.
Leia. — A voz do empresário soou ameaçadora e mesmo sabendo que não precisava passar por aquilo, não quis contrariá-lo.
, vocalista da banda inglesa Dark Paradise, foi visto na madrugada da última sexta feira, após o show em Denver-Colorado, acompanhado de garota misteriosa numa lanchonete da rede McDonald’s. A menina estava bem íntima do cantor e a cena levantou suspeitas de que possa estar passando por um momento tumultuado em seu relacionamento com a queridinha da América: Natalie Wolf. — Ele pausou a leitura. Não era preciso continuar. Robert ficou em silêncio, esperando o que o astro teria a dizer em sua defesa. Nada aconteceu.
— Ótimo, . Está calculando o tamanho da merda?
— Porra, Robert, isso não é nada demais, eu estava apenas acompanhando uma amiga. Que mal há nisso? — Enfatizou como se ele próprio pudesse ser convencido das palavras falaciosas.
, você está limpando ketchup do lábio da garota.
— E daí? Não faria isso por uma amiga?
— Você está tirando o molho com a sua boca.
ficou em silêncio mais uma vez. Gostaria de desviar o foco da conversa, mas sabia que isso era impossível. Se Robert viu, o resto da América já estaria por dentro do assunto.
— Ok, Barlet. E o que eu faço agora?
A resposta foi antecedida de uma gargalhada cínica. O empresário gostava quando o intrépido ficava fragilizado e a sua mercê, por isso não foi condescendente com o apelo.
— No seu lugar? Eu rezaria. Pois a agente da sua namorada já me ligou possessa. E garantiu que a Natalie está a caminho da sua casa.

*

Poucos minutos antecederam o aviso de Robert e o barulho ensurdecedor do helicóptero que finalizava um pouso sem permissão no heliporto particular de . O astro correu até a pia e escovou os dentes veementemente na tentativa de apagar qualquer sinal de álcool no hálito. A namorada vegana e garota propaganda de um novo shake emagrecedor já chegaria brava o suficiente por conta da notícia que estampava o jornal, saber que ele havia bebido na noite anterior só pioraria as coisas.
Teve tempo de jogar uma água no rosto e vestir a primeira peça de roupa que encontrou pela frente antes que os passos firmes de Wolf alcançassem o corredor. Respirou fundo e manteve-se firme, mesmo quando a garota empurrou a porta sem nenhuma diplomacia.
O que significa isto? — Natalie esticava o jornal na mão esquerda. A direita segurava a bolsa Prada, presente dado pelo músico no dia dos namorados, e também Lulu, seu chihuahua, que por algum motivo não conhecido odiou desde o primeiro minuto em que se conheceram.
— Querida, por favor, eu posso explicar... — nem viu quando a frase clichê saiu de sua boca. Em seguida, Wolf livrou-se da miniatura canina e o esbofeteou com a bolsa cara.
— Então explique! — A atriz possuía uma força desproporcional para o corpo esguio e teve que suar para segurá-la.
— Então calma! — Suplicou tentando ganhar tempo enquanto imaginava uma boa desculpa para a traição escancarada no tabloide. Quando conseguiu controlar a namorada, disse com a cara mais hipócrita do mundo:
— A garota aproveitou-se que eu estava bêbado depois do show, foi isso.
As feições da atriz ganhadora de duas estatuetas do Oscar e um Globo de Ouro contorceram-se num sorriso cínico:
— Oh! Pobrezinho. Está dizendo que foi vítima da situação?
O rapaz não falou nada. Então Natalie avançou-lhe mais uma vez, ferindo-lhe com as unhas esmaltadas de vermelho (sua manicure havia feito um ótimo trabalho). desvencilhou-se e a empurrou contra a cama. O perfume doce de Lindsay ainda estava nítido sob os lençóis. Lulu puxava a barra da calça do vocalista e latia de forma estridente.
— Natalie, para! Podemos conversar como pessoas civilizadas, por favor?
A jovem não respondeu de imediato. Tomou controle da respiração e só lançou um olhar de trégua para o músico uns bons minutos depois.
— Tá. Tá bem. Mas se acha que sou idiota para acreditar em qualquer história furada, então não me conhece direito.
levantou-se e se livrou do cachorro vestido de forma afeminada. Se gostasse do bicho, até o defenderia do mau gosto de Natalie, mas preferia achar que ele fazia por merecer. Depois foi até o frigobar e abriu uma lata de energético. A namorada revirou os olhos:
— Oh, por favor! Tão cedo?
Podia ver a cara de reprovação da garota antes mesmo dela pensar em fazê-la. Desde que começaram o namoro improvável, há seis meses, essa parecia ser a única expressão que Natalie Wolf possuía quando estava com ele. Já para os diretores de Hollywood, era uma artista de múltiplas facetas.
— Sim, Natalie, tão cedo. — Então se surpreendeu com a coragem repentina para proferir as próximas palavras. — Você quer a verdade? Eu não estava tonto, também não fui coagido. Eu realmente quis ficar com aquela garota.
Natalie arregalou os olhos azuis, a boca articulada em surpresa. Não estava acostumada a ser preterida por ninguém, seja diretores famosos ou qualquer outro homem, ainda que fosse um dos vocalistas mais bem pagos da atualidade.
— E você tem coragem de me falar isso assim? Como se fosse algo aceitável?
— O que você quer que eu faça? Prefere que eu a engane? Não sou tão bom ator quanto você, .
Ela cruzou os braços, um sorriso maníaco seguido de pequenos espasmos formou-se nos lábios finos.
? É este o nome da piranha?
nem percebeu quando chamou a namorada pela alcunha diferente, mas era elementar, já que a professora não saia nenhum minuto dos seus pensamentos. Mesmo com Wolf fazendo toda aquela cena.
— A não é piranha, Natalie. — Elevou a voz para dizer. Não sabia o porquê de fazer aquilo, já que nem estava ali para se importar como seu nome era usado em vão. Natalie colocou as mãos sobre a boca, como se fosse chorar. Era uma atriz tão competente que não saberia dizer se estava interpretando ou se realmente se chocara com o que acabara de perceber.
— Oh, meu Deus. Você está apaixonado por ela.
O vocalista revirou os olhos:
— Não.
— Está sim, posso ver.
— Já disse que não.
— Seja homem, seu desgraçado!
Primeiro ele ficou em silêncio. Então virou metade do energético, desviou os olhos da janela vultosa do quarto e encarou Wolf:
— Porra, Natalie. E se eu estiver?
A loira ficou sem reação. Mas depois juntou os pertences que haviam se espalhado pelo tapete e preparou-se para sair, não antes de pegar o cachorro irritante.
— Se você estiver, , então se prepare para conhecer meu pior lado.
Ela esboçou um sorrisinho insano e saiu pisando duro depois de bater a porta, o crânio astuto já articulando vingança. E ao invés de ir atrás dela, jogou-se no colchão e fechou os olhos, sua cabeça repassando um filme dos últimos minutos. Pensou na garota Ashley (Lindsay, ou o que fosse), e tantas outras errantes que já passaram pela sua cama, em Natalie e seu furor violento de ira.
E também pensou em . No tanto de coisa nova que aquela garota lhe causava. Então pela primeira vez, o fato da sua vida ser uma grande bagunça realmente o incomodou. Deu-se conta de que, apesar de não ter assumido com todas as letras, a verdade é que talvez Natalie tivesse razão. Talvez ele estivesse mesmo apaixonado ainda que fosse muito cabeça dura para aceitar.
Merda...



Capítulo 11

Match! — Tommy Morello comemorou ao mesmo tempo em que sorveu mais um gole de cerveja. Estavam no Barley’s, um bar de fachada simples localizado na Echo Park que unia três grandes qualidades: bebida gelada, funcionamento vinte e quatro horas e clientes hipsters que não ligavam a mínima para o fato de e Tommy Morello estarem ali. Apesar da atmosfera decadente, o local trazia certa nostalgia aos músicos. Lembrava-lhes da época inglória do anonimato, quando ser estrelas do rock não passava de um devaneio tolo.
— Melhor de três? — propôs, sua mente já elaborando uma nova jogada capaz de diminuir a vantagem sobre o baixista que embolsara a bola oito finalizando o jogo.
— Tá, mas hoje você vai levar uma surra no snooker. — Morello caçoou e tratou de organizar a mesa novamente. Depois falou como quem não quer nada. — Ei, a Ingrid me mostrou o jornal de ontem. Belas fotos.
deu um suspiro de contrariedade e retorceu o rosto, antes de dizer, aborrecido:
— Que fotos? Ah. De um jornaleco de merda e sem credibilidade chamado Daily News? Sério que a Ingrid lê esse tipo de lixo?
Morello riu, os lábios bem destacados pelo cavanhaque.
— Bem, a Ingrid e todo resto do mundo, eu acho. — Então pausou e encarou , dessa vez, manifestando certa preocupação. — Mas e aí? Ficou tudo bem entre você e a Natalie?
O vocalista suspirou.
— Se você considerar “ficar tudo bem” ela ir até minha casa e partir para cima de mim com uma bolsa... — concentrou-se e lançou: quatro acertos. — Eu diria que estamos ótimos.
— Cara... — Tommy fez uma careta de dor que sintetizou a aflição pelo colega e a sensação que teve quando viu as bolas paradas na mesa. Uma jogada difícil.
— Mas as coisas poderiam ter sido piores. Ao menos ela não encontrou a garota que passou a noite na minha cama saindo de fininho. — complementou como se aquilo fosse a maior das vantagens. Morello levantou os olhos do verde sintético da mesa e encarou o amigo com repreensão.
— Porra, . Você tem que parar com isso.
O vocalista sorriu presunçoso.
— Parar de dificultar o jogo para você?
— Não, seu otário. — Tommy olhou sério para ele. — Com essa vida desregrada. E eu não quero fazer papel de Robert, porque sei que ele já deve ter te enchido com toda essa merda. Mas me diz, onde você estava com a cabeça? Levar uma groupie num McDonalds? Assim, pra todo mundo ver? Cara, isso foi estúpido até para você.
— A não é bem uma fã.
As sobrancelhas de Morello ergueram-se uns bons centímetros.
— Ei. Espera aí. Este nome não me é estranho. — O baixista bateu o indicador na têmpora depois o mirou no colega. — A garota que foi ao camarim depois do show! A que disse que era sua amiga?
Os olhos de brilharam. Uma resposta silenciosa.
— Caramba. Eu não a reconheci pelas fotos do jornal. Ficaram bem desfocadas. — Tommy complementou.
— Sim. Ao menos ela foi poupada disso.
— É, mas você e a Natalie não.
deu de ombros.
— É a vida.
Morello esqueceu o jogo por alguns instantes e encarou o amigo:
— Cristo... porque tenho a sensação de que você não está nem aí para seu namoro nesta história toda?
— Porque... talvez eu não esteja. — respondeu e no fundo, Tommy não ficou mesmo surpreso. Afinal, não era segredo que o laço que unia e Wolf estava mais próximo de um acordo comercial do que de um relacionamento romântico. Então o baixista perguntou:
— Já esta menina, a tal de , tem algo não tem? Você a levou para a mesa do café em Praga, então a reencontra no Colorado...
— Ela me mandou uma mensagem dizendo que estaria em Denver e eu a convidei para o show. Nada demais.
Aquela informação fez Tommy arregalar os olhos até que rugas surgissem na sua testa.
— Peraí. Para. Você passou seu número pra ela?
— Qual é, Tommy, tem algum problema isso? — perguntou com um olhar de censura para o colega.
— Nenhum, só achei... interessante. — Morello respondeu, sugestivo. tentou voltar a atenção para o jogo, mas desistiu porque o colega ainda encarava.
— Porra, Morello. Por que está me olhando desse jeito?
— Ah, seu bastardo filho da mãe...
— Quê?
— Se eu não te conhecesse, eu diria que por essa aí você se apaixonou.
engoliu em seco, sem dar o braço a torcer. Seu rosto ficou vermelho.
— Ainda bem que você me conhece.
— Mas você está?
— O quê?
— Apaixonado?
cruzou os braços e olhou bem para o amigo, as veias do pescoço se estufando.
— Mas que bosta, vai todo mundo me acusar disso agora?!
Morello segurou o impulso de rir.
— Estar apaixonado não é crime.
— Não é crime, mas te deixa prisioneiro de uma mulher só.
— Puxa, obrigado. — O homem falou dramático e tentou consertar.
— Não me leve a mal, Tommy. A Ingrid é ótima. Mas você sabe que perde bastante coisa. — Ergueu o indicador. — E eu não estou incentivando nada errado aqui. Amo sua esposa como uma irmã. Só estou... comentando.
— Você está analisando sob uma perspectiva diferente, meu amigo. Eu não perdi. Eu ganhei. — Morello suspirou, como um verdadeiro esposo apaixonado, e revirou os olhos. — Mas o que estamos dizendo? Em tese, você também está comprometido com a Natalie Wolf.
fez uma careta.
— É mais uma estratégia de marketing. Ela faz bem para minha imagem, eu faço bem para a imagem dela... — o vocalista torceu o lábio, pensativo — bem, não tenho muita certeza desta última parte. Mas resumindo, todos saem contentes no final.
Tommy calculou a próxima jogada antes de dizer:
— Cara, acho que ela não deve entender assim. Ou não teria ido até sua casa tirar satisfação, nem se comportaria como uma megera na maior parte das vezes. Se não gosta dela, dê logo o fora.
A observação nada educada de Tommy sobre Wolf fez dar uma gargalhada longa. Era verdade, Natalie não passava de uma mulher fria e maquiavélica. Então nem se deu ao trabalho de defendê-la.
— Não, não é bem assim. Não dá. A assessoria de impressa diz que não pegaria bem para a minha imagem.
O baixista bufou.
— Que imagem, ? Astros do rock não tem que se preocupar com imagem! Quanto mais bad boy, melhor. — Morello fez uma ressalva depois que o amigo cruzou os braços e riu. — Com exceção do baixista pai de família, claro.
— A verdade, Tommy... é que a Natalie não é do tipo que aceita bem um término. — O vocalista suspirou e Morello o encarou, confuso.
— Qual é? Você tem medo dela, ?
Ao que respondeu ao colega com outra pergunta:
— Sabe o que eu ouvi da boca da própria Natalie? Que ela inventou todo aquele boato envolvendo a atriz Tess Gardner sobre drogas e dormir com diretores para conseguir papéis. E só porque a garota começou a namorar um ex dela. O boato destruiu a carreira da Gardner, mas Natalie entende isso como justiça. Então você me pergunta se eu tenho medo. É. Talvez um pouco. A Wolf é influente. E não hesita em usar isso para o mal.
Tommy puxou o ar.
— Caramba. Ela deve ser uma sociopata. Li em algum lugar que eles são ótimos atores. — Se não estivesse olhando a reação do amigo diria que ele estava brincado, mas o semblante do baixista permaneceu sério. — E acho que você ainda quer ter uma vida longa e feliz... talvez ao lado desta quem sabe...
Uma garçonete com maquiagem carregada deixou-lhes mais duas cervejas antes de sair mascando uma goma de mascar ruidosamente.
— Não, não. Se eu largar a Natalie, não vou me envolver com ninguém. O mundo ainda tem muita distração, se é que você me entende. — piscou sugestivamente e Morello devolveu-lhe um olhar complacente.
— Você sabe que existem outras coisas além da conjunção carnal, certo? Tipo: assistir filmes com a pessoa amada, passear de mãos dadas...
— Ah sim, Dr. Morello, PhD. em relacionamentos, eu sei. E já te adianto, não caio nessa. — O vocalista esboçou uma careta quando experimentou a cerveja que não estava tão gelada quanto gostaria. — Como você mesmo disse, “perspectivas diferentes”, meu amigo.
— Então só me explica algo. Se, de acordo com sua teoria hedonista de que o mundo tem distrações suficientes para te entreter até sua próxima reencarnação, por que você ficou com a novamente, hum? É algum caso de sexo incrível demais que autoriza uma exceção a sua regra?
ficou sem saber o que dizer. Morello reparou:
— E aí?
— Ainda não sei se ela é uma exceção.
— Como assim?
— Ainda não teve sexo.
Morello demorou um tempo maior do que o calculado por para quebrar o silêncio. E quando abriu a boca, o baixista riu para valer.
— Quê?! O que andaram fazendo então?! Palavras cruzadas?
correu a mão pelo rosto e suspirou. Sabia que estava dando a Thomas Morello conteúdo suficiente para ser zoado pela próxima década.
— Apenas... conversamos.
Aquilo foi o bastante para fazer Tommy deixar o taco de sinuca de lado.
— Ah, então gosta de conhecer suas garotas “de uma noite só” mais profundamente? Saber se vocês têm afinidade antes de foder? Rá. Essa é nova. E contraria sua tese.
O vocalista revirou os olhos.
— Não é isso, seu idiota. — deu uma olhada rápida para os lados, a pessoa mais próxima era a garçonete, distraída com a reprise de um filme passando no televisor. Mesmo assim, baixou o tom de voz até quase virar um sussurro. — A garota era virgem. Eu não achei que fosse certo ficar com ela e depois sumir.
O baixista alisou o cavanhaque e ficou encarando, surpreso.
— Vejam só. tem princípios. — Então franziu o cenho. — Ok. Vamos fingir que isso explica, mais ou menos, o motivo de não ficar com ela na primeira noite, porque sumir nunca é legal, seja a garota inexperiente ou não. Mas e em Denver?
— Foram alguns meses depois, achei que tivesse uma chance dela já ter conhecido alguém e... eu não ter essa responsabilidade toda. — se explicou. — Além do mais, ela acabou bebendo um pouco além da conta e precisei bancar a babá.
Tommy pausou o polegar no queixo e fez cara de Sherlock Holmes.
— Bem, vocês conversaram, cuidou dela quando a garota tomou um porre... Engraçado, parecem coisas de quem realmente se importa. O que você está tramando? Algum teste de resistência?
expirou, irritado.
— Porra, Tommy. Talvez por essa garota em particular eu esteja um pouco mais interessado. Satisfeito? Podemos jogar agora?
— Rá! Então você assume que está caindo em contradição, amigo!
manteve o olhar fixo no jogo, mais para não dar o braço a torcer do que calcular um novo lance. Morello continuou:
— Vai encontrá-la de novo?
O vocalista franziu o cenho.
— Ela ficou com uma coisa minha, preciso pegar de volta.
— É mesmo? O que ela ficou?
— Minha corrente de prata.
— Aquela que você nunca tira em hipótese nenhuma?
preferiu não ver o olhar que o amigo seguramente estava lhe lançando naquele momento. Acenou com a cabeça e concordou.
— Hum... — Morello limitou-se a dizer. Uma palavrinha tão curta, mas que soou de um jeito demasiadamente longo.
— Que foi?
— Nada.
— Fala logo, Tommy.
— Parece que essa garota te acertou de jeito. Igual a este strike que eu vou fazer... agora. — o baixista comemorou. Finalizara a segunda rodada.
— Ah, droga — resmungou — hoje estou sem sorte.
— Talvez seja a falta do colar. Ou então foi a tal que tirou totalmente a sua concentração.
— Rá-rá.
— Mas sabe o que dizem, azar no jogo...
— Nem começa.
Morello deu uma risada demorada. Em seguida disse:
— Tá, tá. Mas sabe o que seria o certo? Você ligar para essa garota o mais rápido possível, só para pegar o colar de volta. Afinal, é seu talismã da sorte. Vai que você pega uma faringite ou tropeça na caixa de retorno no próximo show.
— Só pra isso, não é? — O vocalista falou cheio de ironia.
— Só pra isso. Mas claro, você poderia chamar ela para ficar uns dias... levá-la lá em casa para conhecer a Ingrid. Para não fazer a moça vir à toa para cá, pobrezinha.
— E mais nada.
— É.
fitou a televisão ao longe. Na tela, o casal do dramalhão acabava de trocar um beijo apaixonado.
Num repente, virou o resto da garrafa. Foi até Tommy e deu-lhe um tapinha nas costas.
— A cerveja é por sua conta hoje, amigo.
Morello o encarou sem entender.
— Ok. Mas e o jogo? Aonde você vai?
Ao que respondeu, com o indicador levantado, a fim de redobrar o aviso:
— Dessa vez, e só dessa vez, vou seguir seu conselho. E dar um jeito de pegar meu colar de volta.



Capítulo 12

Bel Air é um dos bairros mais caros e exclusivos de Los Angeles: um composto de ruas sinuosas entre colinas com construções que variam desde casas campestres até mansões de valores astronômicos. O tipo de lugar em que o jornal é entregue bem enrolado dentro de um saco plástico (ainda que o céu azul não traga previsões de chuva) e cujos moradores acordam sempre de bom humor às segundas-feiras. É como viver numa versão terrena do Olimpo.
— Aquela ali é da Salma Hayek. — Diego Hernandez, o motorista, apontou para uma casa em estilo gregoriano com incalculáveis janelinhas reluzentes.
— Uau. Luxuosa. — respondeu e perguntou-se com que frequência todos aqueles quartos realmente eram ocupados.
— Mas a senhorita vai para uma ainda mais bela. — O motorista encarou a garota pelo espelho retrovisor. viu apenas as sobrancelhas negras erguerem-se sobre os olhos castanhos. Belos traços latinos. — É a primeira vez que vejo o senhor contratar um serviço de intérprete. Já o conhecia antes?
— Não. — Falou sem ficar vermelha, uma mentira que pareceu verídica. — Estou feliz pelo serviço, só espero que não seja um cantor excêntrico.
Diego riu.
— Ah, todos da Dark Paradise são. Mas não diga para o patrão que eu falei isso. — Ele deu uma piscadela para a garota.
— Não vou dizer. — sorriu em cumplicidade.
Naquele ponto, as casas ficavam escondidas por trás de árvores centenárias encarregadas de criar um ambiente privado para moradores mais exigentes. A recompensa por morar em um local tão alto era uma vista de tirar o fôlego das esplêndidas montanhas de Santa Monica.
A garota ainda estava acostumando-se à opulência a sua volta quando o carro parou. Fora o muro envolto por trepadeiras, a única coisa visível era o portão: uma verdadeira antiguidade com ares da Belle Époque que se abriu com o clique do controle remoto. Diego reduziu a velocidade, adentrando no terreno arborizado onde pequenas margaridas pareciam ter sido borrifadas na grama aparada. O barulho do motor fez com que pássaros voassem assustados, como se a presença humana fosse algo esporádico ali. Então o coração de disparou quando ela avistou a casa.
Suntuosos álamos contornavam a fachada formada por pedras enfileiradas. Um serviço de tamanha perfeição que sugeria que seus responsáveis demoraram um século para executá-lo. Tudo ali parecia ter saído direto de um conto de fadas e não se assemelhava a nenhum dos devaneios dela sobre o lugar: era mais a residência de um rei do que a de um astro do rock.
O motorista desceu do carro para ajudá-la. ainda parada, queixo caído, digerindo tudo aquilo.
— É demais, não? — Diego mais afirmou do que perguntou.
— O quê? — piscou, saindo do transe.
— A casa. — O rapaz sorriu, então retirou a mala da garota do porta-malas. Levava o suficiente para os quatro dias. — É ou não a mais linda que você já viu?
— É perfeito. Eu nunca vi nada igual.
Um toque de campainha que deve ter ressoado melodioso por um sem número de cômodos precedeu o som da porta se abrindo. segurou o ar quando o viu. usava uma camisa que nada tinha de especial além do fato de acentuar tão bem as partes do corpo dele e inspirar a garota de mil formas diferentes. Por qual motivo mesmo um vocalista necessitava de tantos músculos se apenas suas cordas vocais precisavam ser espetaculares?
— Senhorita , prazer, sou . — Rosto sério, sorriso comportado. Apertou a mão dela de maneira tão convincente em fingir que aquele primeiro encontro era genuíno que imaginou se contracenar não seria mais um de seus dons. — Espero que tenha feito boa viagem.
— O prazer é meu, senhor . — Falou tão persuasiva quanto ele. Também tinha feito seu dever de casa. — A viagem foi ótima.
virou-se para o motorista.
— Obrigado, Diego, aviso se precisar de mais alguma coisa. — Depois disse para a garota. — Vamos?
controlou a vontade de atirar-se sobre o vocalista quando a porta foi fechada. Quem esperou doze horas dentro de um avião poderia esperar mais alguns minutos, certo?
Tá. Segundos e não se fala mais nisso.
leu os pensamentos dela e tratou de estabelecer contato físico. O homem não era bom apenas com os lábios, mas também tinha os melhores abraços do mundo. Deus... não que fosse o mais essencial naquele momento, mas como gostou de se sentir envolvida por braços fortes. Era uma boa hora para estudar anatomia e aprender o nome de todos os músculos daquela região.
— Caramba, senti sua falta... — falou próximo ao ouvido dela, inspirando-lhe entre os cabelos. ficou envergonhada.
— Eu não devo estar cheirando bem depois de doze horas de voo.
— Tá brincando? Seu cheiro natural é o melhor. — então a soltou, posicionando seu rosto a poucos centímetros do dela. quis protestar pela quebra do contato físico, mas ficar cara a cara com aqueles olhos verdes de floresta equatorial também não era nada mal. — Fique parada um pouco.
— O que você está fazendo? — Ela riu.
— Só te olhando.
— É alguma tentativa de me hipnotizar?
— Está funcionando?
— Vai ter que fazer melhor do que isso.
— Ah, eu vou... — O jeito que ele falou aquilo fez imaginar coisas. Menininha de mente fértil. — Mas não agora.
Claro que não. Malditos modos e etiqueta. A garota deu uma boa olhada ao redor.
— Então... é aqui que você vive.
— Quando não estamos em turnê, é sim.
— Sua família mora com você?
— Não. Minha mãe e meus dois irmãos moram na Inglaterra. Só me visitam de vez em quando. — respondeu. Não falou nada sobre o pai. achou melhor não perguntar.
Aquela casa deveria ser tão premiada por revistas de arquitetura quanto seu dono o era pela música. Claramente, o interior passara por uma reforma. Tudo ali era moderno, mas sem entrar em conflito com a fachada atemporal. O chão feito de cimento queimado combinava com os móveis de tons neutros distribuídos pela sala: estilo minimalista. Uma das paredes fora adornada com fotos dos meninos da Dark Paradise em escala de cinza. Todos tão lindos que mais pareciam modelos de campanha publicitária do que músicos. Para que tocar instrumentos quando se têm uma beleza daquelas? Bobagem. Na mais chamativa, uma inofensiva píton envolvia o tronco nu de . Ele notou a garota reparando.
— Eu sei. Exagerado demais. — fez uma careta. — Mas tente dizer isso quando se tem um empresário como o Robert.
— É bem artístico... foi algum trabalho específico?
Ele a olhou por um bom tempo.
, assim você me decepciona. É sério que não fica a madrugada inteira pesquisando sobre mim no Google? — Fingiu estar chateado.
— Não. Sinto muito.
— Foi capa do nosso segundo álbum.
A professora ergueu as sobrancelhas.
—Uau. Imagino quantas pessoas não devem ter comprado apenas por isso. Garotas, quero dizer.
deu um sorriso de quem não se importa nenhum pouco em ser o fetiche sexual de metade das mulheres da Terra. Depois continuou analisando as reações de à casa:
— E aí? Atendeu as suas expectativas?
Ela virou-se para o rapaz, fazendo um biquinho.
— Mais ou menos... É que imaginei a sala pintada de preto e crucifixos de cabeça pra baixo ao lado de uma foto do Ozzy.
— Tisc tisc. Você e sua mania de generalizar astros de rock... — Ele balançou a cabeça em total descrença teatral, mas só para revelar em seguida:
— Tá. Tenho uma foto com o Ozzy no meu estúdio.
— Nossa! Tem um estúdio?
Surpresa ingênua levando em consideração o tamanho do terreno.
— Sim. E também uma quadra de tênis, mesmo nunca tendo pegado numa raquete. Coisa dos antigos proprietários.
— E quem são os antigos proprietários? — Bisbilhotou.
— Tom Cruise e Katie Holmes.
— Oh.
Seguiu até um corredor espaçoso. O astro passou por algumas portas fechadas, ignorando-as. Então abriu a última delas.
— Aqui... é meu quarto.
A cama não decepcionou. Tinha proporções suficientes para caber um time inteiro de futebol (feminino, no caso). O único elemento decorativo era um violão posicionado estrategicamente ao lado do leito e que talvez estivesse ali mais para cumprir a finalidade para a qual fora criado do que enfeitar o cômodo.
— Sóbrio, mas bonito. Um verdadeiro quarto de menino. — observou.
Ele indicou novamente o corredor:
— Vou te mostrar o seu.
O quarto de hóspedes deixou a garota sem palavras. Decoração medieval com abuso de elementos vermelhos, do papel de parede acetinado às almofadas sobre a cama. Um lustre de cristal refratou a claridade pelas suas dezenas de pedrinhas quando acendeu o interruptor. suspeitou que aquele fosse o melhor de todos os dormitórios da casa. O único defeito era não ser tão próximo do quarto do vocalista.
— Está bom para você? — perguntou.
— Tá brincando? ... é maior do que o meu apartamento. Vou sentir falta deste quarto a minha vida inteira! — A garota se jogou no colchão. Maldito hábito infantil de fazer isso sempre que avistava uma cama convidativa. — Isso é muito bom!
O rapaz a encarou.
— Quer descansar um pouco?
— Eu dormi a viagem inteira. Não estou cansada.
— Puxa. Não sabe como a invejo por isso. — Ele disse, recostado no portal. Ao seu lado, a porta não possuía assim tanta vantagem no quesito altura. Era cômico pensar que um cara daqueles tivesse medo de alguma coisa.
— É mesmo. Eu tinha me esquecido. Imagino que seja uma loucura para você conseguir sair em turnê. Como consegue relaxar durante os voos?
deu um sorriso curto.
— Uísque. — Depois acenou para o lado de fora. — Vamos? Quero te apresentar o Martin.
colocou-se de pé num pulo.
— Martin? Legal! Adoro cachorros. — Respondeu e logo pensou num Border Collie ou um Golden Retriever, já que a casa tinha hectares suficientes para que um cão de grande porte pudesse aprontar suas travessuras com tranquilidade.
— Que bom, mas o Martin não é um cachorro.
Ela ficou sem graça ao extremo.
— Ah. Desculpe.
riu da reação dela e tratou de explicar:
— Eu disse que não era um cachorro, mas também não é uma pessoa. Na verdade é um felino.
— Ufa. Também amo gatos. — Respirou aliviada. Então seguiu até uma parte do terreno que não tinha observado antes. As árvores eram praticamente inexistentes e uma grade ampla envolvia uma clareira.
— Martin! — O vocalista gritou o nome do animal que estava camuflado em uma depressão coberta por arbustos. Em seguida, o bicho correu até as barras de metal que o separava das pessoas.
— Sem chance... — A frase saiu de forma espaçada — Você tem um tigre de estimação. Você realmente tem um tigre de estimação! Por que não estou surpresa?
— Sua cara é de surpresa. — curvou os lábios, presunçoso.
A garota revirou os olhos.
— Você entendeu o que eu quis dizer. Ei. Por acaso é o tigre que vocês usaram no clipe de “Lost Soul”?
— É sim. — sorriu enquanto o animal que supostamente deveria lhe destroçar com as garras afiadas lambia-lhe como um cachorrinho amistoso. — Então você está vendo nossos clipes, hum?
A garota ficou vermelha.
— Às vezes assisto um ou outro. — Não era saudável admitir que via ao mesmo clipe quinze vezes seguidas. — Eu nem sabia que pessoas poderiam ter tigres de estimação.
— É... mas o Martin está aqui temporariamente. Era um desses animais usados em circos e que sofria maus tratos, estou arrumando toda a papelada para ele ir morar em um santuário na África.
— Ele parece tão manso.
— Ele é.
— Será que... posso encostar? — Questionou receosa, mas a mão já estava a poucos centímetros do pelo reluzente do animal.
— Por sua conta e risco.
O toque fez com que o bicho se virasse bruscamente em direção à garota. Ela soltou um gritinho mais de ansiedade do que de medo.
— Quer desistir? — Ele desafiou.
— Não... — Colocou a mão novamente e jurou ter sentido o felino ronronar como um bom gatinho persa. — Eu estou acariciando um tigre. Eu estou acariciando um tigre de verdade! — repetiu a frase que soou como um mantra.
observou a cena com ar de orgulho:
— Você é bem corajosa, garota. A última pessoa que fez isso ficou sem a mão.
— Engraçadinho.
— O Martin acabou de comer um paparazzo intrometido, está de barriga cheia — ironizou — já você, deve estar faminta.
Ela não precisou dizer nada, sorriu.
— Só vou tomar um banho para me livrar do banho de saliva que o Martin me deu, então a levarei para jantar. O que acha?
— Acho uma excelente ideia. O banho e a refeição, nesta ordem.

*


caminhou até o quarto de . O cômodo rescendia a perfume amadeirado em meio ao vapor de chuveiro. Ela teve um vislumbre rápido da boxer branca antes que ele subisse os jeans. Desejou ter chegado alguns segundos antes, quando aquelas duas peças inconvenientes ainda estivessem dobradas dentro de um armário, e não moldando absurdamente bem o corpo do homem a sua frente. O vocalista havia penteado todo o cabelo para trás fazendo seu belo rosto sobressair, nenhum fio de cabelo molhado fora do lugar.
— Ei, já está pronta? — Perguntou depois de notá-la, ali parada, e ver que tinha entrado em algum modo-zumbi de apreciação do corpo dele.
— Ah. Ahãn. — Ela respondeu, antes que baba escorresse.
deu aquele sorrisinho sexy que já era sua marca registrada. O fato do homem ainda estar sem camisa elevou o efeito do gesto à décima potência.
— Você estava me espionando, ?
— Não...
Ele se aproximou, devagar. E a garota inspirou mais forte aquela mistura maravilhosa que rescendia da pele dele: banho morno e creme de barbear demasiadamente caro.
— Pois eu acho que você estava.
Com um único movimento, a jogou na cama. Ela só teve tempo de piscar, atônita. não sabia o que de fato era um bom lençol até sentir aquilo. Ou melhor, os lençóis do hotel em Praga eram bons, aqueles ali eram o nirvana do tecido. Mas no que diabos estava pensando? Roupas de cama? É sério, ? Quem na verdade levava o prêmio de “melhor textura de todas” era a pele do homem que repentinamente roçava sobre a sua. Ela gemeu. O corpo dele então deu sinais de que estava se divertindo com a situação. Oh, céus, sinais rápidos. Muito rápidos. agradeceu por sua anatomia ser mais sutil.
De repente, notou que havia se esquecido de algo realmente importante. Ah, sim, respirar. Era bom por os pulmões para trabalhar de vez em quando caso quisesse continuar viva.
...
— Estou te apertando? — O vocalista falou licencioso. E entendeu naquele instante porque diziam que mulheres eram mais auditivas do que visuais.
— Está...
— Quer que eu pare de fazer... Isso? — Empertigou-se mais sobre ela, fazendo-a sentir as partes mais rígidas do corpo dele. Que tortura. E o sádico parecia gostar daquela provocação, apesar de que ela também estava se saindo uma ótima masoquista.
Meu Deus. Sim e não... — A garota respondeu.
Ele riu. De tão próximo que estava o som percorreu todas as estruturas do corpo da garota, voltou, e então acertou um ponto em especial.
— Sim, ou não?
— Deixa eu respirar primeiro e depois nós decidimos. Pode ser?
inclinou-se o suficiente para que colocasse a função vital para funcionar. Seus rostos estavam a um palmo de distância. Os olhares fixos um no outro. Ela correu os dedos pela linha do maxilar dele suavemente, em silêncio, até que tomou coragem para lhe dizer:
... você mexe tanto comigo. Eu acho que... realmente gosto de você.
Então a olhou de um jeito novo. E daria tudo para saber o que se passou na cabeça dele naquele momento. Mas certamente, não era algo bom. Havia desgosto em seus olhos.
Ele apoiou os braços no colchão e a garota retomou mais ar ao mesmo tempo em que se lamentou por perder aquele contato. levantou-se. Oh, que desmancha-prazeres. só pediu um minuto e não que ele construísse um muro de Berlim entre os dois.
— Já pode voltar. — A garota ofereceu-lhe seu melhor sorriso.
Mas já estava de costas, vestindo a camiseta e procurando um sapato que combinasse com a logo da banda AC/DC estampada na peça. apostaria em um Converse ou nas botas militares.
— É difícil manter o controle. — Ele contraiu a mandíbula. — Você está ficando cada vez mais irresistível.
continuou encarando o homem com a esperança de que as costas dele se cansassem e que resolvesse dar-lhe um vislumbre do seu rosto.
— Que bom. — Ela disse. — Por quê... a intenção é essa, não é?
Ele suspirou, passando os dedos por seus cabelos de astro de cinema:
— Sim e não.
— Oi?
sentou-se na beirada da cama segurando as botas militares. Rá. Bingo. Ótima escolha.
— Lembra da nossa conversa em Praga, certo? — perguntou sem tirar os olhos do calçado.
também se ajeitou no colchão, as pernas cruzadas voltadas para ele.
— Sim, conversa longa. Qual parte em especial?
— Dá parte em que eu digo que você merecia coisa melhor.
A garota franziu o cenho e fez um biquinho bem demorado, só para indicar que estava realmente pensando.
— Hum... não tanto quanto outras coisas mais lúdicas que fizemos aquela noite.
Ele parou de amarrar os cadarços e olhou para ela, duas mechas do cabelo escuro caiando perfeitamente sobre as laterais do rosto.
— Qual é, . Então você não deu a mínima para as coisas que falei aquela noite?
Ela apertou as mãos contra os lençóis macios, fixando toda sua inquietude ali.
— Pode ser mais específico? Porque não estou entendendo aonde quer chegar.
Tensão tomou conta do rosto dele. Olhos verdes em tom de acusação encararam-na antes de dizer:
— Eu estou vendo a forma como olha para mim.
perguntou que forma seria essa ainda que já tivesse uma ligeira ideia: algo como um cachorrinho faminto em frente a um forno de assar frangos. Mas ele logo concluiu poupando-a do jogo de adivinhação:
— A forma de quem espera coisas que eu não tenho para oferecer.
Ela o encarou, daquela vez ainda mais confusa. Então com um suspiro de dor, lhe disse:
— Paixão, amor. Estas merdas.
E antes que pudesse abrir a boca, o homem continuou:
— Poderia tê-la nesta cama agora, e então de mais mil formas diferentes por esta casa durante os quatro dias que passaremos juntos, se eu soubesse que depois estaria tudo bem, que você lidaria com isso como as outras lidam. Mas sei que não vai ser assim. Você já está se envolvendo, . E eu te avisei, droga. Avisei que eu não me apaixono.
Uau. A garota queria focar em uma parte especial da conversa sobre os dois naquela cama e demais móveis da casa (era uma mesa de snooker na sala de jogos?), mas a merda foi tanta que ela não pode dar essa vantagem para seu corpo e teve que deixar sua razão no comando.
— Por que está dizendo essas coisas?
— Porque eu vou te desapontar mais cedo ou mais tarde. — Os músculos da testa dele contraíram-se mais um pouco. — E quero saber... Já conheceu alguém?
— Quer saber se eu ainda sou virgem, é isso? Pode falar a palavra, ela não é tão feia assim. — A garota elevou um pouco a voz.
— E então? — Ele perguntou, simplesmente ignorando a ironia incutida nas palavras dela.
ficou em silêncio.
— Cristo... — revirou os olhos. — Você está tentando pelo menos?
— Tentado me livrar da minha virgindade em menos de um mês para que eu já chegasse aqui “pronta para você”? Bem, eu poderia ter colocado um anúncio no jornal, mas acho que as pessoas não teriam levado a sério.
O homem ficou vermelho da linha do pescoço até o colarinho. Ele exalou uma risada totalmente forçada.
— Porra, , não foi isso que eu quis dizer. Você está tentando encontrar alguém legal? Um cara certo para você?
demorou a responder:
— É muito difícil achar um cara certo, quando só tenho o cara errado em pensamento, .
Tão logo as palavras saíram, ela se arrependeu. Maldita boca. ficou em silêncio e viu o alerta no olhar dele. Ótimo. Ela estragou tudo. Depois o rapaz voltou a atenção novamente para os cadarços, deve ter desfeito os laços umas três vezes antes de dizer:
— Viu só? Era disso que eu estava falando.
...
— Deixa pra lá. Vou te levar para jantar.
Mas a garota ainda não estava disposta a mudar de assunto.
— Me diz por que estamos fazendo isso. Por que me convidou para vir até sua casa, pra começo de conversa?
Então péssima hora para o celular dele tocar.
retirou o aparelho do bolso da calça. Quem quer que fosse, fez com que as linhas do seu rosto suavizassem. Pediu licença e saiu do cômodo. ficou encarando o vazio do quarto, correndo as mãos pelos lençóis e imaginando quantas mulheres já devem ter visitados aqueles aposentos. Bem, melhor não pensar. Quando voltou, o nó em sua mandíbula havia se desfeito.
— Então, onde foi que nós paramos? — O homem perguntou, mais transigente.
— Na parte em que eu digo que você está me confundindo, . E que eu pergunto o que quer de mim.
Ele olhou para telespectadores invisíveis dos dois lados, depois mordeu os lábios.
— Sua amizade.
— Amigos se beijam na boca e fazem insinuação de sexo?
— Poderia ser uma amizade com vantagens, se você não se apaixonasse.
O coração da garota apertou. Aquilo estava virando uma discussão de relação sem que houvesse alguma “relação” entre eles. Deveria parar antes que ele começasse a achar a presença dela ali um erro.
— Deixa para lá. — Ela bateu as mãos sobre os joelhos e levantou-se da cama. De repente, sua barriga roncou alto o suficiente para fazer com que Martin acordasse no jardim. Ambos se olharam. Ao menos aquele sinal indiscreto fez com que risse. Conquistou o homem pelo estômago, literalmente. — E vamos comer, se é que você pode me levar para jantar sem que isso comprometa seu plano maligno de se distanciar de mim.
Ele indicou o estômago da garota.
— Levar você para jantar não parece fazer parte de nenhum plano maligno. Está mais para uma necessidade fisiológica.
desfez o biquinho persistente. Estava bom de discussões para aquele dia.
— Ok. Mas só porque eu não comi nada decente naquele avião.
E durante um longo momento, apenas sorriu. Ah, se aquela garota fizesse ideia do poder que tinha sobre ele...
— Então se prepare — o rapaz disse depois de um tempo — porque vou te levar ao melhor restaurante de Los Angeles.



Capítulo 13

Pessoas comuns tinham um carro na garagem para atender toda a família. Músicos da Dark Paradise tinham um carro para cada dia da semana sem famílias para atender. não entendia muito bem de automóveis, mas podia dizer com certeza que os dois restaurados eram relíquias. James Dean deve ter dirigido uma daquelas belezinhas num de seus filmes, o banco traseiro do outro, pode muito bem ter servido de cenário para que Elvis e Priscilla Presley fizessem seus bebês. Também havia os modelos modernos de pura ostentação: muitos milhões em quatro rodas.
— Puxa, e eu colecionando papel de cartas. — disse, extasiada. Nunca iria entender essa coisa de garotos e carros.
— Têm mais alguns na casa em Hamptons.
— Rá. Sabia que você escondia os outros em algum lugar. — Ela caçoou. — Eu deduzi que cinco não seriam o suficiente para uma pessoa só.
ficou sem graça.
— Não quis ser arrogante... É que eu gosto muito de carros.
— Não foi arrogante. Eu só estou brincando. — Levando em consideração o fato de ter um tigre morando naquela casa, aquilo realmente era muito natural para um jovem sem limite de conta bancária. — Vai fazer “uni duni tê” para saber qual deles vai ser? — Ela não resistiu.
— Já está escolhido. — a encarou de um jeito demasiadamente longo. Deus... Se ele soubesse o que aqueles olhares causavam no corpo dela, os usaria com mais moderação. Ou não. — Que bom que optou por calça jeans.
Antes que ela perguntasse qual a relação entre roupas e passeios de carro, entregou-lhe um capacete.
— Moto? Sério? — Ela ergueu as sobrancelhas.
— Por quê? Tem medo?
— Nunca andei.
O vocalista deu um sorrisinho sórdido.
— Que bom que essa primeira vez eu serei capaz de atender sem nenhum peso na consciência.
A garota revirou os olhos.
— Você tem medo de aviões, mas anda de motos. Bem incoerente.
— Não dá para comparar. Aqui sou eu quem piloto e não estou a trinta mil pés de altura.
— Matematicamente falando, você estaria mais seguro a trinta mil pés do que dirigindo esta lápide antecipada.
Ele bufou uma risada. Ajudou-a afivelar o capacete depois deu duas batidinhas na proteção acrílica:
— Pode confiar em mim que não vou te deixar cair, ok?
sentiu o efeito da ansiedade nas mãos molhadas de suor, mesmo assim, respondeu:
— Tudo bem.
A moto era uma BMW branca e de cara tinha uma vantagem sobre suas concorrentes de garagem: a proximidade que teria do piloto. Poderia envolver os braços pelo abdômen do motorista sem ter que ficar constrangida. A jaqueta de couro cumpria bem a função de protegê-la do ar frio ao entorno, além do fato de ter o cheiro de imbuído na peça: um deleite para seus sentidos. Com o rosto recostado no ombro dele, ela disse:
— Deus! Isso é bom!
— Não é?
Estavam gritando um com o outro: culpa da péssima acústica que motos têm pelo simples fato de serem motos.
— Se meu pai souber que eu estou andando de moto...
— Se seu pai soubesse os pensamentos impuros que eu tenho a respeito da filha dele, essa seria a menor das suas preocupações esta noite.
Oh. era um filho da mãe contraditório que faria com que a garota tivesse uma overdose de estrogênio. segurou mais forte o abdômen de aço do rapaz, para não cair. Só por precaução. Realmente não teve nada a ver com o calor que ela sentiu próximo a pelve. Não mesmo.
— Você gosta disso, não é? — Ele perguntou malicioso.
— Do quê?
— De ficar passando a mão pelo meu corpo.
— Não é como se eu tivesse muita escolha. — rebateu.
— Ah, você tem. Poderia deixá-las bem comportadas em um só ponto.
— Ok. — Ela o fez.
O homem protestou:
— Ei, não estou pedindo para deixar de fazer o que estava fazendo.
— Então você quer que eu continue? Quer que eu o atice e depois pare? — Ele não respondeu. E ali estava uma ótima aplicação do ditado “quem cala, consente.” — Tudo bem.
A garota apertou mais forte, subindo até o tórax dele. Era como uma armadura de músculos. Cristo. Aquele homem era perfeito e ela não se cansaria disso nunca. Que ilusão tola a de pensar que ela o esqueceria assim tão facilmente. Não era como se paixão fosse água saindo de uma torneira e bastasse fechar para que deixasse de brotar.
Em seguida, criou coragem para descer uma das mãos até um ponto por cima do jeans do rapaz.
— Quer começar um problema aí? — Ele protestou, mas sua voz arrastada não convenceu.
— Eu gostaria... — respondeu em provocação.
— Resposta errada, criança levada.
— Se isso fizer você esquecer toda essa história de paternalismo comigo e manutenção da minha pureza, eu vou adorar bancar a levada.
Pararam num sinal vermelho. Então pressionou a mão da garota contra a sua ereção e sentiu o “problema” na fase mais crítica.
— Satisfeita? — Ele perguntou.
Céus. Definitivamente ela era uma criança, mas uma bem idiota que não sabia o que fazer naquela situação. Tirou a mão dali e riu como a boba que era.
Uma caminhonete estacionou ao lado deles. Se havia alguma dúvida a respeito do outro motorista ter visto ou não as “brincadeirinhas” entre os dois, ela se confirmou depois que o sinal abriu e eles ouviram as buzinadas rápidas antes do veículo sair.
— Merda. Isso vai demorar a passar. — reclamou.
— Eu gostaria de dizer que eu sinto muito. Mas eu não sinto.
— Estamos indo para um ambiente familiar. Não vai ser legal eu chegar assim.
— Falta muito para chegar?
— Depois daquela esquina.
— Puxa...
Ele pestanejou algo antes de ter uma ideia:
— Fale alguma coisa broxante.
— Que tipo de coisa? — A garota perguntou ao mesmo tempo em que riu.
— Qualquer coisa.
— Hum... Posso falar sobre minha tese de Matemática.
Ela começou a falar.
— Não, não. Não está dando certo. — contestou. — Isso está me fazendo lembrar do seu traseiro naquele terninho que usou no congresso em Denver.
apertou os olhos de vergonha.
— Ai, meu Deus... Eu sabia que aquele tailleur tinha sido uma escolha horrível.
O homem gargalhou.
— Foi uma escolha deliciosa. Mas não é só por isso que não está funcionando.
A garota aguardou ele complementar.
— É que quando você fala este tanto de coisa complexa, eu me dou conta do quanto é inteligente. E isso faz com que eu te admire ainda mais.
— Hum... — Um sorriso comprimiu as bochechas dela contra o capacete.
— Por consequência, me mantém excitado.
— Puxa... Obrigada. — O sorriso dela ficou ainda maior.
O rapaz ficou em silêncio, continuou:
— Então... Acho que você pode imaginar seus pais transando. Em especial, a vez que conceberam você.
resmungou bem alto.
— Cara! Isso não se fala!
riu pra valer antes de perguntar:
— Mas funcionou?
— É traumático. Mas sim, funcionou.
— De nada.
O fim da rua dava acesso ao bairro Echo Park. Suas casas não eram tão majestosas ao estilo de Bel Air, mas ainda assim eram espetaculosas. Quando desligou a moto, suspirou, contrariada. Não se importaria de ter ficado abraçada a ele até o fim daquela noite. Só então percebeu que havia algo de errado com a casa. Tudo bem que ela tinha portas, janelas, um belo trabalho de fachada rústica e um jardim frontal a perder de vista. Mas era isso que era, uma casa.
— Eu disse que te levaria ao melhor restaurante de Los Angeles. E aqui está ele. — falou enquanto a ajudava a descer da moto.
procurou algum nome escrito na fachada, só para ter certeza.
— Não tem placa?
— É um restaurante bem exclusivo. Somos os únicos clientes da noite. Sem ninguém para atrapalhar.
O poder de fazer o mundo dançar sua própria música.
— Nossa. Quando eu crescer, quero ser como você. — Ela disse e o rapaz sorriu em resposta, depois apontou para o rosto dela:
— Capacete.
— Ah, sim.
a ajudou. ajeitou os cabelos e focou na íris da garota. Ela sentiu seu sangue borbulhar.
— Pronta?
— Pronta.
A campainha era uma sequência de três notas melodiosas. só notou os brinquedos no jardim da frente no instante em que a porta se abriu.
— Vocês chegaram! — Uma jovem de sorriso expansivo e cabelo trançado bateu as mãos com euforia. Nem o próprio Papai Noel em noite de 25 de dezembro deveria ser mais bem recebido. A mulher tinha belas sardinhas espalhadas pelo rosto. Bônus de ser ruiva natural. Ela continuou olhando para , sorrindo. fez o mesmo. Por entre as pernas da anfitriã, um garotinho de cabelos acobreados apareceu e apontou uma arma de brinquedo para :
— Bang! Bang!
O vocalista entrou na brincadeira. Colocou a mão no peito, gemeu e fez um giro dramático. Depois deu três passos largos e caiu deliberadamente sobre a grama fofa fingindo a própria morte. ainda estava com os olhos arregalados: explicações e apresentações, por favor.
— Tio , tio ! — O garotinho falou com a voz lamuriosa e linguinha presa de criança. — Pode viver de novo! Era mentirinha!
abriu um olho e esperou que ele se aproximasse, então pegou o garoto no colo e o girou no ar:
— Rá! Te peguei!
— Ai! Me põe no chão! — O menininho pediu, mas sua cara não era de quem estava achando ruim de verdade. Mesmo assim, o fez, em seguida finalmente teve o bom senso de apresentar todos ali.
— Matt, Ingrid. Esta é minha amiga . — Virando-se para sua convidada, repetiu o ato. — , estes são Ingrid e Matthew, a bela esposa e o filho pentelho do Tommy.
Então era isso. O fabuloso destino deu um jeito de ser ainda mais generoso com a garota e ela estava prestes a conhecer outro pedacinho do Éden. Endereço: Tommy Morello, baixista da Dark Paradise. Duas casas de celebridades em um só dia.
! Não fale essas palavras perto dele! — Ingrid tentou fazer com que sua voz suave de sininhos soasse intimidadora. — Não quero que ele aprenda outro palavrão.
— Ah, Ingrid. Ele nem ouviu... — defendeu-se, mas foi antes de Matt começar a dar pulinhos ao redor do próprio corpo e cantarolar:
— Pentelho! Pentelho! Pentelho!
Ingrid revirou os olhos.
— Eu deveria proibir você de vir aqui, .
— Você me ama, sardenta. — disse com segurança, os lábios curvados num sorriso convencido. Deu um beijo demorado no topo da cabeça de Ingrid, o mesmo tipo de beijo que dava em depois de negar-lhe carinhos mais íntimos: fraternalismo típico.
— Correção: o Tommy te ama, eu te aturo de tabela. — Ingrid riu e em seguida afastou-se da porta para que eles entrassem. — Venha, , e por favor, não repare a bagunça.
Não estava bagunçado. Organização poderia ser o lema daquela residência. A casa tinha um estilo colonial e era fácil imaginar uma família feliz reunida ao redor da lareira em dias mais frios. O assoalho de madeira e os tons terrosos nas paredes também reforçavam a sensação de conforto que um lar deve ter. Assim como em Bel Air, nada de morcegos, oferendas ao diabo ou pentagramas invertidos. estava ficando realmente desapontada com os astros do rock.
— E onde está o adorável homem que partilhamos? — perguntou, brincando com a ponta da trança de Ingrid.
— Ajeitando as últimas coisas na cozinha. — A moça respondeu ao mesmo tempo em que girou a chave na maçaneta para trancá-la.
O vocalista esperou que ela se virasse, então com o cenho franzido, disse-lhe:
— Porr... — não teve chance de terminar o palavrão antes de Ingrid dirigir-lhe um olhar matador. — “Porr...ta”, Ingrid. Não me diga que você deixou o Tommy cozinhar.
— Ele quis ajudar. Ficou muito feliz em saber que você traria uma amiga. — Ingrid olhou para : belos olhos brilhantes. Era o tipo de olhar que a professora jamais se cansaria de receber. — Fez um verdadeiro banquete para vocês.
— Eu prometi à trazê-la ao melhor restaurante de LA e você me apronta isso. — resmungou, ao que Ingrid riu e respondeu:
— Fizemos uns cursos juntos de culinária mediterrânea. Ele está melhorando.
— Está mesmo? — duvidou.
— Está... — a ruiva confirmou, mas sem muita segurança na voz — só que não vamos ferir os sentimentos dele. Se não gostarem de alguma coisa, não digam nada e façam cara de que gostaram, certo?
Estava ali uma mulher que amava seu homem.
Tommy Morello surgiu logo depois, o rapaz era um espetáculo com toda aquela ascendência italiana gritante nos traços. Ingrid a sortuda de ser a responsável pelo aro dourado na mão esquerda do baixista. Que feito: uma anônima conseguir se casar com um dos membros da Dark Paradise. suspirou por dentro, desejando uma vida daquela ao lado do vocalista da banda.
— Hey! — Tommy secou as mãos em um avental. Ele e cumprimentaram-se como os bons amigos que eram. Beleza masculina multiplicada na sala.
— Esta aqui é a...
Tommy não deixou terminar a frase:
! — O baixista recebeu a professora com um abraço caloroso. Poderia ser impressão dela, mas Tommy e Ingrid pareciam amá-la antes mesmo de conhecê-la. — Que bom que você e o reencontraram-se em Denver!
— Oi, Tommy. — A garota sorriu. — Você se lembrou.
— Claro! Agora sim, sua cara está bem melhor! — O baixista disse e ela ficou vermelha. — Muito melhor do que aquele dia no Colorado.
— A carinha dela estava ruim, é? — perguntou, interessado.
— Poxa! Parecia que a tinha tomado a maior decepção de todas! — Tommy completou e senhor sorriu malicioso, feliz por ser o causador daquilo. Como se fosse algum segredo o que a garota sentia por ele.
— Tommy, eu vou te matar na sua própria casa. — brincou, suas bochechas queimando de vergonha.
— Amor, isso não se faz! É feio entregar uma garota assim. — Ingrid abraçou o marido e deu-lhe um selinho demorado. Oh... Se tivesse um marido daqueles, também daria abraços sem avisos e o beijaria sempre que possível.
Em seguida a convidada sentiu o puxão na barra da calça: Matthew. O garotinho deu-lhe um sorriso expansivo tal qual o da mãe. Que fofura. Já tinha carinha de homem, a beleza dos progenitores bem expressada nos traços. Um futuro destruidor de corações.
— Você é namorada do tio ?
O jeitinho que ele falou aquilo era puro, tão puro que teve vontade de sentar ao lado do menino de aproximadamente três anos e explicar sua problemática com o vocalista, mas certamente Ingrid não aprovaria. E por um instante, ninguém pareceu notar a conversa entre os dois mais novinhos da sala.
apoiou-se nos joelhos e abaixou-se uns bons centímetros:
— Oi. Não, querido, sou amiga do tio .
O garotinho puxou a manga da camisa xadrez de botões. Adorável mania dos pais de vestirem suas crianças como adultos em miniatura.
— Papai disse que o tio gosta de você.
— Falou?
— Ahãm. Você e o tio vão se casar? Como papai e mamãe?
ficou olhando o garoto sem saber o que dizer. Quem disse que as piores perguntas feitas por crianças são as que dizem respeito à origem dos bebês, nunca passou por uma situação parecida com aquela.
Ingrid apareceu de repente.
— Ei, filho, está conhecendo a amiga do tio , é? Achou ela legal?
O garotinho respondeu com um aceno de cabeça bem demorado enquanto olhava a convidada, depois ficou com vergonha e escondeu o rosto atrás das pernas da mãe. sorriu, repassando as coisas que ele disse. Tudo bem que crianças fantasiavam. Elas transformam pessoas legais em fadas madrinhas, gente chata em bruxas e juram que o bicho papão se esconde dentro do armário. Mas Matt realmente parecia ter informações especiais.
Tommy surgiu retirando a garota dos seus próprios pensamentos.
, eu não sei o que o te disse, mas posso garantir que você está prestes a comer a melhor refeição da sua vida.
A sala de estar sugeria que a família Morello gostava de receber amigos com frequência. Muitas pessoas, provavelmente. Ingrid não estava exagerando quando disse que eles preparavam um banquete. Comida e mais comida estendia-se de uma ponta a outra da mesa. O astro da noite: um cordeiro saboroso temperado com ervas finas. Culinária mediterrânea enchia os olhos e era uma ótima distração. Faria bem para o corpo de ocupar-se de outra coisa que não fosse pensar em , só para variar.
Mesmo com cadeiras suficientes, os anfitriões sentaram-se próximos. Matt logo ao lado da mãe. e na parte oposta, também um ao lado do outro, tão perto que ela pôde senti-lo esbarrar na sua perna algumas vezes.
— Então, , o disse para o Tommy que você é formada em Matemática. — Ingrid falou depois de sorver um pouco de vinho Pinot Noir: uma harmonização perfeita para o prato da noite, segundo Tommy.
— Sou sim.
— Nossa, tão novinha! E ele também disse que você já leciona, é verdade?
Tommy pigarreou e olhou para a esposa:
— Querida, isso é tudo mentira, o não falou tanta coisa sobre a assim. Aliás, ele não contou nadinha a respeito dela.
— Ah, é verdade, ele não disse nada. — Ingrid sorriu em conluio com o esposo.
olhou de soslaio para o vocalista, seu pé cutucando propositalmente a bota militar dele.
— Então você fala de mim para seus amigos?
— Só o essencial para estabelecer um pré-diálogo. — Ele deu de ombros, sem tirar os olhos do prato e fingiu acreditar antes de virar-se novamente para o casal:
— Bem, sou formada em Matemática, estou terminando um Mestrado e também leciono em escolas públicas.
— Crianças? — Ingrid perguntou.
— Adolescentes. — respondeu e a ruiva ficou ainda mais admirada.
— Puxa. Que garota ótima você arrumou, .
Tão logo disse a frase, Ingrid olhou para o esposo. Não trocaram nenhuma palavra. Até nisso eram perfeitos. O típico casal que conversa pelo olhar.
— Sim, Ingrid. A é uma ótima amiga. — fez questão de ressaltar. Então deu uma piscadinha para a garota. E ela devolveu-lhe um sorriso, mais cordial do que feliz.
— E você, Ingrid? Fale-me mais sobre sua vida. — perguntou de uma forma que não soasse indelicado caso a mulher não trabalhasse fora e limitasse-se a ser esposa de um músico milionário. O que de fato, seria totalmente compreensivo.
— Péssimo assunto para à hora da janta. — falou debochado e ficou sem entender.
— O quê? Eu falei algo errado? — A garota perguntou, meio que constrangida.
Tommy e Ingrid riram. Na verdade Ingrid mais implicou do que riu antes de dizer:
— Não falou nada errado, . Eu administro um cemitério. acha meus interesses muito fúnebres.
Os olhos de brilharam.
— Sério? Eu sou apaixonada por cemitérios!
lançou um olhar descrente para a garota. O de Ingrid foi mais motivador.
— Ouviu isso, ? — Tommy falou. — A também gosta de cemitérios. Será que nós músicos da Dark Paradise só atraímos mulheres excêntricas?
— Acho que músicos atraem todo tipo de mulher, por isso você escolheu a mais interessante delas. — Ingrid antecipou a resposta e Morello colou os lábios nos da esposa.
— Não tenho como discordar disso. — Depois o baixista virou-se para os convidados. — Estão gostando da comida?
— Deliciosa. Você não estava exagerando quando disse que seria a melhor comida do mundo. — confirmou e o anfitrião ficou todo orgulhoso.
— Realmente está perfeita, Tommy. — concordou. — Nem vai ser preciso mentir pra te agradar conforme Ingrid orientou assim que chegamos.
riu e Ingrid quase engasgou com um pedaço de carne. Depois de instaurar um pequeno pandemônio na mesa, tratou de mudar de assunto:
— Ei, garota prodígio. — O vocalista lançou um olhar acusador para a comida de . — Não estou vendo verduras no seu prato.
— Ah, sempre me esqueço de colocar.
enrugou as sobrancelhas e disse com uma entonação que variava entre brincadeira e censura:
— Preciso ter uma conversa séria com a sua mãe, .
Morello não deixou aquilo escapar.
, você está preocupado com a alimentação dela? — O baixista perguntou com um sorriso torto, o que se formou no rosto da ruiva ao seu lado, não muito diferente. — É uma amizade muito bonita a de vocês.
ficou visivelmente constrangido.
— A come muita besteira, eu só fiz uma observação. Ei, Matt. — O garotinho levantou o rosto bem rápido. Olhinhos acobreados e curiosos na direção do vocalista. — Conte para a tia a importância de comer vegetais.
Matthew tratou logo de dizer, com a boca cheia mesmo:
— Mamãe falou que eu tenho que comer os vegetais pra ficar forte.
Ingrid fez cara de mãe orgulhosa.
— Own, filho! Mamãe disse isso mesmo, mas engula a comida antes de conversar, mamãe também já lhe pediu. Lembra?
— Você não come os vegetais, tia ? — Matthew perguntou.
— Ah, eu... Vou comer. — Ela respondeu, envergonhada. Ótimo. Uma criança estava lhe dando lições de moral sobre alimentação saudável. Logo ela passaria a ser considerada mau exemplo e banida da casa.
— Posso te dar meus bróquis pra você também ficar forte. — Matt ofereceu.
— Querido, não precisa. Tem muito brócolis para a tia se servir. — Ingrid corrigiu.
— Você quer fazer mais alguma pergunta para a tia , Matt? — Tommy perguntou e estrategicamente levou mais uma garfada à boca enquanto encarava o vocalista de um jeito cômico.
O menininho fez um aceno rápido de cabeça. Ingrid correu os dedos pela sua trança de princesa medieval e sorveu mais vinho, disfarçando.
A expressão de tornou-se preocupada e alerta:
—Tommy, Tommy... O que você está aprontando, hum?
O baixista ignorou o amigo e falou para o filho, sem se deixar intimidar:
— Pode perguntar, Matt.
Ao que Matthew disse:
—Tio , você deixa a tia ver minha coleção de dinossauros?
Gargalhadas de Ingrid e um suspiro de alívio de . Já Tommy fez um olhar decepcionado. Parece que não era isso que o baixista tinha em mente. imaginou pai e filho ensaiando à exaustão alguma pergunta para deixar o “Tio ” sem graça. Uma pena.
Depois do jantar, Tommy e serviram-se de doses de Bourbon e foram tratar de trabalho no estúdio. Boa música repercutiu pela casa. seguiu Ingrid por um corredor decorado com discos de platina até o quarto de Matt. Lá viu a coleção de dinossauros do garoto (e aprendeu que um simpático T-Rex de pelúcia era o seu favorito). Ingrid Morello então colocou o filho na cama, deixando acesa uma luminária que criou sombras de estrelas e planetas na parede.
Em seguida as duas foram até a varanda, ficou encantada com as árvores aparadas em formas geométricas que contornavam a piscina. Toda aquela beleza a deixaria mal acostumada quando voltasse ao Brasil.
— Finalmente! Momento das garotas! — Ingrid sorriu daquele jeito largo. A mulher deveria registrar o gesto e cobrar royalties toda vez que outras pessoas tentassem copiá-lo. Abriu uma garrafa nova de vinho e serviu duas taças.
— Obrigada. — retribuiu o sorriso expansivo.
— Então, está gostando de Los Angeles?
— Não conheci muito além do limite da casa do , mas estou sim.
— Ah, não! Você não foi à calçada da fama? Ele precisa levá-la lá. Oh, bem... Mas não seria muito inteligente caminhar por aí, você sabe. Multidões.
— É verdade. — riu — mas não tem problema. Já fico mais do que satisfeita por ter sido convidada para o jantar maravilhoso desta noite. Aposto que a calçada da fama não ganha disso.
— Oh, . Que gentileza.
Ingrid desfez e refez parte da trança, os olhos azuis tenros. Se não fosse o anel de diamante gigantesco no dedo esquerdo, a ruiva com vestido simples e sandálias de dedo poderia muito bem ser confundida com uma adorável garota comum.
— Sabe, é a primeira vez que o traz alguém aqui. — Ingrid confessou baixo, como se uma terceira pessoa pudesse escutá-las. — E a forma que olha para você... Eu nunca o vi olhar daquele jeito para ninguém antes.
Algo se agitou no peito de . Possivelmente esperança. Mas a sensação logo se desfez quando a garota lembrou-se da conversa que teve com o astro mais cedo.
— Que gentil, Ingrid. Mas não deve ser mais do que impressão. já deixou claro que somos apenas amigos. Com vantagens, segundo ele. — Finalizou esboçando um suspiro bem longo e revirando os olhos.
Sininhos ressoaram da boca de Ingrid, uma gargalhada sutil.
, eu conheço o há muito tempo. Você não é só uma amiga, pode ter certeza. E ele sabe disso, é por isso que está com medo.
Agora a expressão da professora era de curiosidade.
— Medo?
— Sim, afinal, não deve ser fácil para o homem deixar toda uma vida de ostentação para assumir alguém. — A mulher deu um sorrisinho debochado para os próprios pés.
Fazia sentido.
— Hum... Como aconteceu entre você e o Tommy?
Os olhos de Ingrid foram a algum lugar do passado, nostálgicos.
— Nossa... Uma conturbada relação de altos e baixos. Os meninos ainda não eram famosos. E eu, uma adolescente, ia com algumas amigas ouvi-los tocar nas garagens das casas. Levávamos cervejas. Tommy começou a me dar lições de moral sobre boas companhias e bebidas. — O rosto da ruiva se iluminou. — Ele sempre foi o mais certinho deles.
— Vocês formam um casal incrível.
— Obrigada.
Ficaram em silêncio por alguns instantes, os lábios curvados enquanto o paladar desfrutava do vinho caro. Daquela vez, apreciou com moderação. Tempo depois, Ingrid falou:
— Você gostaria de ser mais do que uma amiga para ele, não gostaria?
sorriu lúgubre, olhos fixos nas ondas da piscina que se movimentavam devagar e refletiam o brilho da lua.
— Acho que seria muita pretensão para uma garota como eu.
Ingrid ofereceu-lhe um sorriso complacente.
— Sou uma garota como você.
— Bem, mas...
— Olha só, acho que tenho uma ideia.

*

A volta para o castelo (que tinha a modéstia de chamar de casa), foi sem mãos bobas devido a estômagos cheios. Na colina que dava acesso à residência, a temperatura parecia ter diminuído uns bons graus.
— Você e a Ingrid conversaram muito. — disse enquanto aguardava a abertura do portão. notou uma luz acendendo-se na casa dos funcionários depois que o rapaz entrou com a moto.
— Ah, sim. Ela é muito legal.
— Falaram mal dos homens? — O músico perguntou, satírico.
— Rá. Não dispúnhamos de tanto tempo assim. — implicou de volta, para logo depois dizer como quem não quer nada. — Na verdade, a Ingrid me chamou para fazer algumas coisas amanhã.
— É? Fazer o que especificamente?
— Coisas de garota. Ela quer me mostrar o cemitério, a calçada da fama e outras coisas.
— Cemitério, hum? Coisas de Ingrid, você quis dizer.
Após estacionar, desceu da moto e ajudou a fazer o mesmo. A professora sorriu enquanto o rapaz desabotoava-lhe o capacete.
— Ela também me convidou para sair à noite. É a despedida de solteira de uma amiga dela.
Por trás da proteção acrílica, o vocalista cerrou as sobrancelhas.
— E você quer ir?
— Seria legal sair para dançar um pouco.
notou a contração nos lábios dele depois que retirou o capacete.
— Achei que ficaríamos mais tempo juntos. — Ele falou claramente chateado. A garota não se abalou:
— Achei que sua intérprete teria direito a um dia de folga para conhecer Los Angeles.
cerrou ainda mais o cenho.
— Hum. Onde é essa tal despedida de solteiro especificamente?
— Ah, o nome era... — parou, pensativa — The Black alguma coisa.
The Black Sheep? — Olhos verdes encararam-na estarrecidos.
— É. Isso.
— O Black Sheep não é ambiente para você, . Aliás, nem para a Ingrid. O Tommy sabe disso?
Ela o olhou com interesse:
— Provavelmente, apesar de que estamos no século XXI e minhas ancestrais já queimaram os sutiãs há um tempo, então acho que isso é algo que a Ingrid pode decidir sozinha. Mas só por curiosidade, por que não é ambiente?
— As pessoas vão lá para paquerar. — respondeu como se aquilo fosse o maior dos pecados capitais. revirou os olhos e sorriu torto.
— Ah, acho que o anel na mão esquerda de Ingrid é grande demais para alguém ousar se aproximar.
— Sim, mas e você? Não tem nenhum anel no seu dedo para afastar os homens. — O timbre do vocalista foi de puro descontentamento.
A garota fez um movimento rápido de sobrancelhas:
— Eu não preciso afastar nenhum homem de mim.
— O que disse? — O homem contraiu o maxilar mais um pouco. Foi pego de surpresa.
— Eu sou solteira, .
Alguns segundos de silêncio, quebrados pelo tom desgostoso do vocalista:
— Sim, você é.
— E você já deixou claro que somos amigos e que não passará disso.
não respondeu de imediato. Abriu a casa e o acompanhou: passos comedidos pela arquitetura de tons frios. Ela esperou que fosse continuar contra-argumentando, entretanto, o rapaz limitou-se a dizer:
— Tem razão. Você é livre para fazer o que quiser. Divirta-se amanhã.
Mas o sorriso que ele esboçou ao final da frase não a convenceu.
— Obrigada. Boa noite.
Ela entrou no quarto de hóspedes, o papel de parede carmim saltou aos seus olhos como brasa queimando. Ouviu a porta ao fim do corredor ser fechada tempo depois. Não teve o uso de nenhuma força desnecessária.
E amanhã, era melhor que a segunda parte do plano de Ingrid também funcionasse.



Capítulo 14

[]: Como está aí?
[]: Acho que a amiga da Ingrid deve desistir do casamento ou então acordar com uma ressaca moral muito grande.
[]: Me fala quando eu puder mandar o motorista.
[]: Você já me disse isso.
[]: Umas vinte vezes.
[]: Não custa repetir.
[]: 😛
[]: Estou perdendo uma explicação interessante do Warner sobre tanatopraxia. Tchauzinho.
[]: Quem é Warner?
[]: Trabalha com a Ingrid. É gay. Quer saber o que é tanatopraxia também?
[]: Não mesmo. Tchau.
[]: 😘


Sete minutos depois:


[]: Ei.
[]: Oi. De novo.
[]: Despedidas de solteira não deveriam ser só para mulheres?
[]: Já disse que o Warner é gay. E é o melhor amigo da Pam, a garota que vai se casar.
[]: Certo. Sem mais homens então?
[]: Sem mais homens.
[]: Ok. Até.
[]: Até.


Nove minutos depois:


[]: Vcs estão em uma mesa bem isolada, certo?
[]: Vai me perguntar se estamos todas de burca também?
[]: Deveria ter usado burca. Ou qualquer coisa que não fosse aquela saia curta.
[]: Os garotos do bar pareceram aprová-la.
[]: 😒
[]: Brincadeirinha.
[]: 😛
[]: Se aí não estiver legal ou vc estiver cansada, não precisa ficar sem graça com a Ingrid, ok?
[]: Aqui está legal. Só estou com problemas de entrosamento pq vc me manda mensagem de dez em dez minutos. A Ingrid disse que vai esconder meu cel.
[]: Vou esperar onze minutos então.
[]: ?
[]: Para mandar a próxima mensagem.
[]: kkkkkk. 🙂
[]: 😉


Quatro minutos depois:


[]: Ei.
[]: Não se passaram nem cinco minutos!
[]: Quero saber se vc já jantou, para eu poder dispensar a Eva.
[]: Estou bem. Pode falar para a Eva ir deitar.
[]: Ok.
[]: Boa noite, durma bem. 😘
[]: Não vou dormir agora.


— Ele de novo? — Ingrid perguntou para depois de bebericar a Margarita. Pam, a noiva, virava shots de tequila sem parcimônia. Seria admirável se àquela altura ainda conseguisse soletrar as vogais do alfabeto sem enrolar a língua. Warner já havia desistido de repreendê-la e se concentrou em brincar com o guarda-chuvinha do seu Sex on The Beach.
— Sim, que coisa! Não parou um minuto. — respondeu, uma mão no celular e a outra ocupada com o canudinho de um Mojito a sua frente.
Ingrid sorriu.
— Sabe o que isso significa, não é? — A ruiva perguntou e em seguida sorveu mais um gole do coquetel, o azul turquesa da bebida combinando com o tom dos seus olhos. — Que o plano está dando certo.
— É isso ou então o vai me odiar.
— Ah, não. Ele não vai odiá-la. Mas deve estar roendo as unhas neste momento. — A esposa de Tommy complementou . Depois olhou para cima e encarou a anfitriã do evento. — Pam, querida, desça da mesa, sim? Guarde o vislumbre da sua calcinha apenas para o seu marido.
Warner revirou os olhos antes de falar para Ingrid:
— Já vou indo, chérie. Cuide para que a Pamela não faça nenhuma besteira. E quando chegar em casa, beije bastante aquele seu marido delicioso por mim.
— Ei, Warner, venha aqui! Você não pode ir ainda! — Pam falou para o amigo que já estava longe, o tombo que levaria da mesa teria sido fenomenal se Ingrid não a tivesse segurado.
— Por Deus, Pam! Você poderia ter se machucado! — Ingrid advertiu.
— Warner é meu parceiro de dança! E por que todos já estão indo embora?! — A loira fez um biquinho, as pálpebras moles sobre os olhos ébrios. — Quem vai dançar comigo agora, hein?
— Eu e a vamos dançar com você. — Mal Ingrid falou, Pam puxou as duas para dentro da multidão. Mas antes, a ruiva ainda conseguiu virar-se para — Ei, tem tempo que aquele nosso amigo não te manda nenhuma mensagem. Será que está tudo bem com ele?
— Verdade... Melhor eu mandar uma mensagem, por precaução. — disse com uma piscadela.
— É, só por precaução. —Ingrid confirmou, um sorrisinho cúmplice nos lábios.


[]: Caindo na pista agora! 😁
[]: Rock star. Você está ai?
[]: Sim.
[]: Não devo demorar. Pode dormir.
[]: Não estou com sono.
[]: Okay.


Vinte minutos depois:


[]: O que está fazendo?
[]: Dançando.
[]: Você leva o celular para a pista?
[]: Posso deixá-lo na mesa e não te responder mais.
[]: Fique com o cel. Muita gente aí?
[]: Sim. Vou mandar uma foto.
[]: Tá.
[]: Pronto. Só não repara meu cabelo.
[]: Nada errado com o seu cabelo. Mas quem é esse atrás de você?
[]: Quem?
[]: Quem?! O cara que está comendo seu traseiro com os olhos. 😒
[]: Uau. Não tinha reparado. Ele é bonito. 😁
[]: ????
[]: Pq está demorando a responder?????


[]: Ele se chama Hugh.
[]: WTF !!!
[]: O que foi????
[]: ???


[]: ?


Ingrid precisou correr atrás de Pam. Repentinamente, a noiva pensou não ter muita certeza sobre o casamento e desapareceu meio a lágrimas rumo ao banheiro. Quem poderia condená-la depois de tantas doses de tequila? ficou sozinha com Hugh na pista. Não estavam conversando há muito tempo, mas já foi o suficiente para que a garota o classificasse como petulante e isso retirasse a importância dos demais atrativos do rapaz.
— Gata, que tal parar de mexer um pouco no celular?
— Hãn?
— Ainda estou aqui. — Hugh disse. Tinha um corte rockabilly que combinava com o rosto anguloso e um piercing reluzente no lábio inferior.
— Ah, desculpa. É que eu estou esperando uma mensagem. — guardou o aparelho na bolsa. — Prontinho. O que você estava dizendo mesmo?
— Eu perguntei sua idade. — O rapaz disse em meio a uma baforada alcoólica.
— Tenho vinte e um. E você? — Ela manteve o sorriso cortês, mas deu dois passos para trás quando ele tentou aproximar-se mais: limite espacial.
— Vinte e quatro. Mas já te disse isso. — Hugh falou, irritadiço. apostou que o rapaz já deveria ter virado muito mais do que algumas longs necks antes daquele contato.
— Ah, mesmo? — Ela falou sem graça. — Eu estou meio desligada.
— É, estou percebendo.
— Bem, preciso ir atrás das minhas amigas. Foi um prazer conhecê-lo.
Hugh segurou o braço dela. olhou para a mão dele em reflexo.
— Suas amigas estão bem. Relaxa. — Disse ele.
— Eu realmente preciso ir.
Jogos de luzes piscavam e pessoas dançavam freneticamente ao redor, o rosto do rapaz sob a iluminação negra transformou-se em algo assombroso.
— Tem a ver com o fato de você mexer no celular?
— Também. — não achou que fosse educado dizer “totalmente” naquela situação.
— Aposto que ele é um otário.
— O quê? — A garota o olhou por uns bons segundos.
— O cara de quem você está esperando mensagem.
— Ele não é. — falou, o sorriso cortês havia se perdido em algum ponto entre Hugh a segurar e resolver abrir a boca para falar merda.
— Se ele não está aqui com você, ele é sim.
— Solta meu braço. — Ela tentou forçar, mas Hugh segurou mais forte.
— Se você me der um beijo.
Solta meu braço.
— Acha que é legal provocar e depois sair fora, é?
E Hugh acabava de ganhar mais uma estrelinha no curso de “como ser um perfeito filho da mãe” quando ouviu a voz familiar:
— Solta ela.
Primeiro, perguntou-se como chegou ali tão rápido. Extrapolar limites de velocidade, furar sinais de trânsito e um superpoder de teletransporte estava entre as possibilidades. Depois a garota sentiu-se segura, mesmo sabendo que parte da ira irradiando dos olhos do vocalista deveria ser direcionada a ela. era uns bons centímetros mais alto do que Hugh, mas nem precisava. A expressão ameaçadora foi suficiente para intimidar o cara.
— Você é surdo, seu merdinha? — O vocalista foi mais categórico. — Solta logo braço dela, porra!
E sentiu seu braço livre no instante seguinte.
— Tá. Tudo bem, tudo bem. Já soltei sua garota. Tranquilo, cara, tranquilo, sou um fã do seu trabalho. — Hugh levantou a mão que não estava segurando a long neck em sinal de paz. Teve o bom senso de fazer uma saída à francesa e desapareceu sem reclamações. friccionou a parte do braço onde um leve vergão apareceu.
, . Está tudo bem? — Ingrid surgiu repentinamente, tais como fadas madrinhas e anjos da guarda fazem às vezes em situação de risco, preocupada. Pam estava sabe-se lá aonde.
— Não, Ingrid, não está tudo bem. E sabe por quê? — falou entredentes. Depois elevou a voz. — Porque você convidou a para vir nesta espelunca e deixou que um babaca se aproveitasse dela!
! — exclamou, horrorizada pela forma como o rapaz falou com a melhor amiga. Ingrid, por outro lado, não se abalou. Então disse tranquila, a voz de sinos em ação:
— Ela não é uma criança, .
apertou os lábios e exalou o ar com força, para em seguida dizer:
— Também não é uma grande adulta, hum? — O vocalista deu as costas para Ingrid e puxou pela mão, sem delicadeza. — Vem, vamos embora daqui.
— Eu... Ah... Eu te mando uma mensagem, Ingrid. — Ela conseguiu falar para a mulher antes de quase tropeçar com o puxão do rapaz. Então com as bochechas queimando, e o rosto baixo como o de uma adolescente sendo punida pelo pai severo após aprontar todas, saiu acompanhada de .
Sentindo uma chuva de olhares em sua direção.

*

A única coisa desconfortável dentro do Audi TT era o silêncio persistente. deslizou sobre o banco de couro excessivamente macio e bufou. Ela esperou que fosse a dar o primeiro passo para um diálogo. Quando notou que ele limitar-se-ia a encarar a avenida e continuaria com a mandíbula contraída em tensão, foi que a garota deixou o orgulho de lado:
— Você não vai conversar comigo?
Nada.
, vai fazer papel de criança? — Ela foi mais enfática e o homem resolveu cooperar:
— Quem fez papel de criança foi você, . — O timbre dele era um resmungo frio e descontente.
— Por quê? O que eu fiz?
esperou chegar ao sinal vermelho, então encarou a garota, os olhos estreitados.
— Deixou aquele idiota te beijar?
Ela voltou a ficar muda.
— Seu silêncio é um sim?
— Não teve beijo nenhum.
— Será que foi por que eu cheguei? — O rapaz perguntou com um tom que variava entre raiva e sarcasmo.
— Não, eu não queria beijá-lo. E sei me defender, . Não precisava ter aparecido e feito papelão.
— Ah, você sabe se defender? — Riu irritado. — Não parecia. O cara estava bêbado e apertando seu braço! Ainda não acredito que a Ingrid fez isso, te levar naquela porcaria de lugar. Estou realmente puto com ela! — quebrou o contato visual e voltou a encarar além do para-brisa, seus punhos fechados chocaram-se contra o volante violentamente, depois, deu um longo olhar de desprazer para . — E com você também.
O sinal abriu. A garota encarou através do vidro do passageiro quando saiu com o carro. Luzes amarelas manchavam o piche negro conferindo ao asfalto a aparência de um rio denso.
Os lábios dela curvaram-se num sorriso involuntário. Cacete. Tentou disfarçar.
— Você está rindo? — perguntou estarrecido.
— Não. — Ela mordeu o interior da bochecha até começar a doer. Descontrole infeliz. Não poderia sorrir num momento daqueles.
— Ótimo.
Ao que perguntou logo em seguida:
— Você... Está com ciúmes de mim?
Ele bufou. Com o rosto contraído e os dedos apertados no volante, respondeu:
— Claro que não.

*

O portão demorou uma eternidade para se abrir, como se àquela hora da noite suas engrenagens estivessem cansadas demais para funcionar. Talvez fosse impressão. É claro que era impressão. não colocou o carro na garagem, parou bruscamente em frente à porta dianteira. Subiu os degraus da entrada e o seguiu.
— Não bata a porta assim, seus funcionários vão reparar. — Ela lhe disse depois que o estrondo da madeira ardeu nos tímpanos.
— É a porra da minha casa. Eu bato a porta se eu quiser. — cuspiu as palavras e deu-lhe as costas. não desistiu:
— O que vai fazer agora?
— Dormir. Sugiro que faça o mesmo. — Respondeu ríspido, então caminhou pelo corredor da casa sem preocupar-se em acender as luzes. Sabia o caminho de cor. ficou parada na parte iluminada da sala. A imagem do vocalista em preto e branco projetado numa fotografia de parede sorria para ela.
— Ei. Espera. — A garota pediu.
ergueu o queixo em sua direção. Não disse nada.
— Se realmente eu sou apenas uma amiga, por que fez tudo isso, ?
— Porque sou responsável por você enquanto está hospedada na minha casa. — O rapaz falou do corredor escuro. desejou acender os interruptores, fazer com que a luz preenchesse as sombras no seu rosto para decifrar-lhe a expressão.
Por favor. Você sabe que essa alegação é ridícula, não sabe? Acha que isso já não me aconteceu outras vezes? Nem sempre você estará ao meu lado para me proteger.
recostou na parede, braços cruzados e voz apática:
— O que você faz da sua vida enquanto não é minha convidada, é problema seu. Então não se sinta importante, porque você não é.
sentiu o rosto formigar. Demorou uns bons segundos para juntar forças e dizer:
— Uau. Você tinha razão, . Você é a merda de um filho da mãe cretino.
E em seguida, viu o lábio do rapaz curvar-se de um jeito vil.
— Sim, eu sou. Ao menos eu te avisei, não?
— É avisou, sim. — odiou o timbre lamurioso que escapou da sua garganta.
respondeu por fim, antes de virar-se em direção ao quarto e deixá-la sozinha na sala:
— Então não precisa fingir que está surpresa. Boa noite.

*

A luz verde de um despertador piscava ao lado da cabeceira. A garota perdera o sono. Na verdade, nem chegou a encontrá-lo. A mente ainda martelava as palavras de . Ideia estúpida achar que Ingrid pudesse ter razão. Cafajestes não mudam. ocupou-se em acompanhar os números mudando no aparelho digital. Minutos dolorosos. A claridade passou pela fresta da porta no exato instante em que um seis deu lugar a um sete. Eram quase três da manhã.
? — A voz de não chegava a ser um sussurro, mas soou baixa e receosa.
— Que é?
— Você já está dormindo?
— Se eu estou respondendo de volta, o que você acha?
Ela escutou o ruído curto de uma risada perder-se na escuridão.
— Acho que você é uma garotinha mal educada e sem modos, que entendeu o sentido da pergunta.
Não queria sorrir. Não iria dar esta vantagem para ele. Seus lábios curvaram-se, mas foi rápida o bastante para esconder o rosto contra o travesseiro.
— O que você quer, ?
— Entrar. Posso?
— É a “porra da sua casa”. — Falou imitando-lhe o timbre indelicado de mais cedo. — Você pode fazer o que quiser.
A porta entreabriu-se e segundos depois ela sentiu a ondulação no colchão. sentara-se ao lado dela. acendeu o abajur, seus olhos contraíram-se por alguns instantes. Oh. Ajudaria manter seu orgulho íntegro se aquele cafajeste em particular não fosse tão desconcertante. Canalha lindo.
— Você estava chorando. — Ele mais afirmou que perguntou.
— O que te importa?
— Me importa se eu for o motivo disso.
A garota não respondeu, virou-se na cama e ofereceu-lhe as costas. Focou no contorno dos móveis refletidos no papel de parede carmim.
— Por que fez sua mala? — perguntou ainda que já soubesse a resposta.
— Vou pedir um táxi assim que amanhecer e ir para um hotel.
— Não precisa fazer isso.
— Preciso sim. Quero facilitar as coisas para você e sair do seu caminho. — Ela falou contra o travesseiro, a voz saindo abafada.
— Eu não quero que você vá embora, .
— Então que merda você quer, ?
Um repuxão sutil no cobertor, e a garota sentiu a pele do rapaz por baixo do lençol.
— Quero que escute o que eu tenho para dizer.
— Já ouvi bastante mais cedo... — Concentração. Era disso que precisava enquanto aquele contato físico repentino deturpava-lhe os sentidos.
— Não. Aquilo foi papel de moleque. Então escute o que tenho para dizer agora e desconsidere o que eu falei antes, por favor. — A voz de era um murmúrio no ouvido dela. Dedos gentis acariciaram-lhe a nuca, causando-lhe arrepios.
— Cristo... — A garota ofegou — percebe que está me deixando louca?
— Sim, eu sei. Mas vou consertar as coisas.
— Então conserte.
Ele expirou forte, sentiu a lufada de ar quente atingir o seu pescoço.
— Primeiro, você me perguntou no carro se eu fiquei com ciúmes.
— E?
— Eu fiquei.
Ela permaneceu em silêncio. continuou:
— Segundo... Você é sim importante.
— Ah, sim. Por isso tenho que achar o cara certo e blá, blá, blá. — A garota bufou com ironia.
— Por Deus, , não é só isso.
— Hum? — Ela continuou a encarar a parede, ainda que agora a vontade de olhá-lo nos olhos fosse maior do que qualquer coisa.
— Você é importante porque apronta toda essa merda na minha cabeça. Eu não entendia muito bem o que era isso, mas agora eu entendo. E... É bom. Realmente bom.
Descargas elétricas acertaram em cheio o coração dela.
— Isso... É seu jeito de dizer que também está apaixonado?
— Sim, merda. — Ele confessou num sussurro. torceu a ponta da fronha nos dedos. De repente, a alegria quase não lhe coube dentro do peito.
— Pois prefiro ouvir do jeito tradicional.
comprimiu os lábios contra a pele dela, só para dizer:
— Dane-se. Eu estou apaixonado por você.
Meu Deus...
— Fale de novo — pediu — agora sem nenhum palavrão.
A garota escutou o ruído da risada dele. Ela também riu.
— Eu estou apaixonado por você, . Satisfeita?
As bochechas da professora arderam. Tinha o maior dos sorrisos do mundo enfeitando-lhe a face.
— Sim...
Então um braço forte contornou sua cintura, as pernas dele enroscaram-se as suas. sentiu a ereção de encaixando acima da curvatura do seu quadril.
Quase perdeu as forças.
— E , se você quiser... eu não preciso voltar para meu quarto agora... — murmurou licencioso para ela, o hálito quente do rapaz afagou-lhe o pescoço. Os olhos da garota se fecharam, sua atenção estava toda focada na audição, nas palavras que saiam da boca dele, nos sinais que seus corpos emitiam. — então esta noite poderia terminar de um jeito totalmente novo para nós.

*

já sabia o que estava descobrindo naquele momento, mas o rapaz sentia que daquela vez tudo era diferente. Paixão era algo fantástico que tinha o poder de transformar egoístas insaciáveis em altruístas diligentes. De repente, era ela o centro de tudo. E cuidou para que os atos seguintes confirmassem suas palavras, pois não tinha mais dúvidas de que o sentimento era real. Cuidou para que se sentisse segura, e também para transformar a noite em uma lembrança inesquecível para os dois.
Porque soube, naquele momento, que se deixasse aquela garota ir embora, corria um grande risco de nunca mais sentir aquilo por mais ninguém.
E quando terminaram, eles não tinham nenhuma urgência em levantar. Talvez não se levantassem nunca. Os lençóis eram um emaranhado de tecido junto aos membros, a respiração ofegante e os batimentos acelerados pulsavam contra o peito. respirou fundo. Cheiro de sexo era melhor que os perfumes caros que o vocalista usava e instigava a garota a querer mais do que conheceu nos instantes anteriores. Partes suas doíam, partes que estiveram adormecidas por muito tempo.
Ainda bem que acordaram.
— Ei... — O homem sorria vitorioso, não para menos com tudo aquilo que fez a garota sentir. O orgulho era escancarado no rosto dele. — Como você está?
— Diferente... E ótima. — Ela afundou o rosto no peito de , inspirou mais do aroma viril que exalava da pele dele.
— Machuquei você? — Ele tinha uma mecha de cabelo de enrolada no polegar, levou-a até o rosto, a outra mão parando na pelve da garota. Uma indicação sutil que a fez estremecer. Era uma força nova e ela não sabia como controlá-la.
— Não, você foi um cavalheiro. Foi... perfeito.
Raios de sol conseguiram atravessar espaços mínimos da janela coberta, um brilho de suor delineou a estrutura óssea perfeita do vocalista. Olharam o despertador: sinalizava seis da manhã.
— Maldito tempo que não para quando estou com você. — reclamou. sorriu e a abraçou, beijos céleres em repetição no pescoço dela. Os lábios do homem sabiam bem o que fazer quando não queriam fazer uso de palavras. — Não vou te deixar sair desta cama pelo resto do dia, tá?
— Se não propusesse isso, eu mesmo iria propor. — falou, então perguntou cheio de segundas intenções. — Ei. Sabe o que dizem sobre o sexo?
A garota nem precisou pensar tanto, a resposta já estava na ponta da língua.
— Que é viciante?
Ele riu. Foi um som que desejou nunca mais deixar de ouvir.
— Que da segunda vez, é ainda melhor...



Capítulo 15

O sol já estava alto quando abriu os olhos. A garota nem sabia que era possível pegar no sono depois de experimentar tantas sensações diferentes. Dormir não deveria perder a importância? Sua mão percorreu o entorno do leito, mas não encontrou .
Ela se vestiu e caminhou descalça pelo piso frio. Ao contrário do que ouviu em conversas paralelas de outras garotas, conseguiu andar bem. Nada em sua postura sugeria que era uma “ex-virgem”. Seguiu os ruídos de talheres vindos da cozinha e o cheiro de café da manhã fez sua boca salivar. O banquete organizado era algo fora de série. Poderia tranquilamente atender uma família inteira de ursos famintos depois do período de hibernação (ou uma garota de vinte e um anos cuja reputação de esfomeada começava a precedê-la).
E melhor do que qualquer outra coisa, ali estava . Depositando panquecas sobre os pratos. Camisa cinza justa, calça surrada e botas Chelsea. O homem estava glorioso em toda sua simplicidade.
— Uau... Tudo isso está incluso na diária? — Ela disse e levantou o olhar encontrando o dela, coisas implícitas foram ditas no silêncio desta fração de segundo, sorrisinhos bobos formando-se nos rostos dos dois.
— Ei, garota. — colou os lábios sobre os de . Os cabelos do rapaz estavam úmidos de um banho recente. — Conseguiu dormir um pouco?
— Divinamente. Você fez tudo isso? — Ela apontou para mesa, maravilhada. Lembrou-se do seu leite com cereais, não sentiu nenhum pouco de saudade.
— Alguma parte, sim... — O homem apertou um sorriso. Péssimo mentiroso.
— Qual parte?
— Ok. Na verdade eu só fiz as panquecas, a Eva é responsável pelo resto.
— Eu sabia. — A garota serviu-se de um pedaço. Eva e sua santa mão para preparar as melhores refeições. — Mas as panquecas estão divinas.
Ele recostou-se no balcão, seu cabelo caindo de um jeito quase artístico sobre o rosto. Céus. Era bem possível que não soubesse o quanto era bonito.
Na verdade, era bem possível que soubesse.
— Acordei com muita inspiração matinal, só que eu a aproveitei de outras maneiras que não na cozinha. — O rapaz disse e quando parou o garfo no ar, ele respondeu à dúvida implícita no rosto dela:
— Eu compus algo. E é sobre você.
— Oh... Mesmo? devolveu o garfo ao prato. Encantamento era seu sobrenome e brilhava nos seus olhos. Enquanto ela só se ocupara de ter bons sonhos a respeito da noite anterior, aproveitou para transformar todas as suas emoções em letras e melodias. Garoto esperto.— Posso ouvir depois?
— É claro que você vai ouvir. Quero saber se vai aprovar antes de eu mostrar para os rapazes.
Ela havia pensado em meninos com violões desafinados fazendo serenatas nas janelas (o que já era legal o suficiente). Mas claro que com o vocalista da Dark Paradise não seria assim. O homem elevava a arte a patamares muito maiores.
— Hum... Mostrar para os rapazes? Então... Essa música pode tornar-se faixa de um álbum?
— A intenção é essa. — quase riu da ingenuidade da professora. — Por quê? Não quer dividir sua música com o resto do mundo?
— Claro, claro que sim! É que fui pega de surpresa, mas achei lisonjeador ganhar uma música.
— Bom... — Ele disse de um jeito tristonho antes de tirar o sorriso do rosto. — Só precisa esperar eu voltar, então mostro para você.
— Voltar? Vai sair?
— Tenho que fechar as datas da nova turnê com o Robert. Tentei desmarcar a reunião, mas os organizadores vieram de fora. De qualquer forma, não vai demorar. — se explicou.
— Tudo bem, mas tenha certeza de tentar incluir a América do Sul, sim? — Ela sugeriu com um sorriso. — Vocês têm muitos fãs por lá.
— Ah, não conte para ninguém, mas isso já está sendo estudado. — Disse ele. — Almoçamos juntos quando eu chegar, certo? A Eva virá conversar com você, vai preparar o que a senhorita quiser.
— Hum... E a mesa vai estar tão linda assim?
— Claro. E posso até trazer flores para colocar ao centro.
riu, achando fofo. de repente deu-se conta de que todo seu vasto conhecimento sobre o sexo oposto na verdade restringia-se à anatomia. A partir de agora precisaria aprender sobre coisas mais complexas, como: alterações de humor, período menstrual e o nome de todas as variações de vermelhos existentes na cartela de esmaltes. Teria muito trabalho pela frente.
Então o músico perguntou quando viu que a garota não mudara a expressão:
— Por que está rindo? — Ele sorriu de volta. — Garotas gostam disso, não?
— Ah, sim. Eu gostaria de flores no centro da mesa. — Ela lhe disse com um ar de aprovação.
— E quais são suas flores favoritas?
— Girassóis.
— Girassóis?
— Sim, girassóis.
— Nada de rosas vermelhas, então?
— Nada de rosas vermelhas.
— Você é atípica até nisso. — O homem curvou um sorriso e entendeu a observação como um elogio. — Mas por que girassóis?
Ela bateu o indicador duas vezes na bochecha antes de responder:
— Vejamos... Primeiro porque eles são lindos. Tem uma cor alegre que me remete a dias ensolarados em cartões postais com céu de brigadeiro. Ah, e ainda por cima são comestíveis! Quando secam, na verdade estão preparando suas sementes, que são deliciosas. É isso. Girassóis são flores bem úteis.
Quando ela terminou, estava rindo para valer.
— Caramba, com você tudo tem que dar um jeito de evoluir para comida? Se queria comer os girassóis, talvez fosse melhor dizer que prefere chocolates a flores.
Excelente conclusão.
— É. Acho que prefiro os chocolates. Agora mudando de assunto... O que vou fazer uma manhã toda sem você? — A garota perguntou com um olhar de sensibilizar o mais duro dos corações.
— Bem, vamos pensar... — Ele esticou os braços e fez cara de intelectual, a bainha da camisa levantou revelando o abdômen definido. A visão fez reviver lembranças da noite anterior, mais precisamente, lembranças envolvendo aquele tanquinho em posição horizontal executando uma performance sensacional sobre o corpo dela. Uau. — Você pode nadar, ver filmes, mexer nas minhas gavetas...
— É tentador.
— Ok. Qualquer coisa menos mexer nas minhas gavetas. — zombou, depois se aproximou ainda mais. — Mas acho que a melhor opção seria você descansar, pois quando eu chegar... Quero ensiná-la outras coisas que perdeu nestes vinte e um anos.
O corpo dela estremeceu em lugares novos e maravilhosos.
— Boa ideia, saiba que estou adorando ser sua aluna.
— E eu nunca pensei que ser professor pudesse ser tão divertido...

*


Descansaria mais um pouco se sua mente irrequieta entrasse em acordo com o resto do corpo e não quisesse relembrar cada instante das últimas horas. Era impossível pregar os olhos com tantas lembranças vívidas. A casa tinha mil e uma opções para passar o tempo, mas ela preferiu esperar pacientemente pela única que não estava disponível no momento.
Resolveu tomar um banho demorado. Depois colocou a primeira peça de roupa que viu pela frente: era uma camisa larga do Iron Maiden, o perfume de incutido no tecido. Cogitou esconder aquela peça na mala e levá-la como um souvenir quando fosse embora.
Estava desembaraçando os cabelos quando ouviu a porta de entrada se fechando. Seu coração disparou.
Ela correu em direção à sala e gritou ainda do corredor:
— Ei, rock star, voltou cedo!
Mas não foi quem encontrou.
— Own... Usando a camiseta dele. Isto é tão fofo. — Lábios finos pintados de vermelho esboçaram um meio sorriso, para então se estreitarem:
— E patético.
A mulher estava sentada na poltrona, inerte. Como se posasse para um artista habilidoso pintar-lhe os detalhes do rosto bem esculpido. Dona de olhos azuis, acesos e dissimulados, como uma serpente a espera de um bote. Cabelos loiros de surfista californiana na altura dos ombros. Suas pernas esguias e cruzadas sustentadas por saltos altíssimos revelavam um bronzeado invejável. Ela era um espécime perfeito da raça humana.
— Natalie... Wolf? disse embasbacada, sem ainda se dar conta do real significado daquela presença ali.
— Olá. — A loira balançou a mão com um gestinho bobo, como se antevisse as palavras que proferiria em seguida, dispensando-as. Levantou-se e caminhou em direção à garota, cada passo de modelo de passarela reduzia a autoestima e confiança de pela metade. Natalie parou, um vestido branco justíssimo moldava-se ao corpo magro e fazia os ossos da clavícula e quadril sobressaírem. — E você é?
Ela não era ninguém.
— Eu... Ah... Me chamo .— As palavras saíram queimando a garganta.
A atriz colocou-se perto o suficiente para esfregar toda sua beleza angelical no que sobrou da autoconfiança da garota.
— É funcionária da casa? Nunca havia visto você, mas talvez seja porque e eu ficamos mais no quarto dele do que nos outros cômodos da mansão.
sentiu uma leve vertigem após Natalie dizer isso.
— Hum. Não, eu... Sou a intérprete. — Tão logo falou, a professora teve certeza de que soou estúpida. Wolf encarou a garota com um sorrisinho sugestivo nos lábios.
— Ah. Em outras palavras, você está dormindo com o meu namorado.
A frase saiu com tanta tranquilidade que deixou a garota sem reação, foi pior do que se Natalie tivesse aprontado um escândalo. era a outra da história, a oficial era simplesmente uma das atrizes mais deslumbrantes do mundo.
Meu Deus... não sabia que ele namorava. Eu juro. — Ela disse, o coração que até pouco tempo irradiava felicidade, agora em frangalhos. não era apenas um cretino, era um hipócrita. O estômago de embrulhou após seu cérebro fazer aquela conexão.
— Oh, querida. Eu acredito em você, acredito sim.
Wolf colocou a mão sobre as da garota, dedos frios e macios de menina milionária. Então a guiou até a mesa em que e ela haviam feito suas refeições uma hora antes. Sentou-se diante de como se fossem melhores amigas.
— Você é diferente das outras. Parece inocente. Bem, e eu sei como é um sonho de consumo. — Natalie revirou os belos olhos. — Afinal, somos celebridades. E às vezes os fãs podem ser tão insistentes... Ainda mais se forem bonitas como você, fica difícil para um homem resistir, não é mesmo?
ficou em silêncio por bons segundos. Ao menos o choque era tanto que seus dutos lacrimais também foram pegos de surpresa e não tiveram tempo de ridicularizá-la. Suas cordas vocais resolveram pegar no tranco, finalmente:
— Nem sei o que dizer... a não ser pedir-lhe desculpas.
Natalie pareceu nem se importar.
— O que você faz, realmente? Pois acredito que não seja intérprete.
— Sou professora. — A profissão de , que sempre lhe foi motivo de orgulho, soou insignificante quando mencionada na casa frequentada por cantores famosos e astros de Hollywood.
— Professora? Que gracinha. — Natalie disse com um sorriso artificial de candidata a miss. — O que vamos fazer agora, ? Pois eu gostaria de evitar uma cena. chegará e tentará me convencer de que você não é ninguém. E não quero fazê-la passar por isso.
O ar entrou cortando-lhe os pulmões:
— Sim. Você tem razão. Eu preciso ir embora. Acharei um hotel até o dia do meu voo.
— Esperar até o dia do seu voo? — Wolf fez uma cara admirável de surpresa. — Tenho uma ideia melhor. Arrume suas coisas enquanto eu ligo para minha agente. Acho que ela consegue trocar sua passagem. Talvez possa embarcá-la num avião hoje mesmo.
sentiu o rosto formigar. Não chore sua estúpida, não ouse chorar...
— Claro, eu... Com licença.
No quarto, trocou a camiseta idiota de por uma blusa de cetim. Uma que estava reservando para uma ocasião especial que agora não iria mais acontecer. Juntou as demais peças de roupa sem o mesmo cuidado de quando as selecionou, socando-as no interior da bagagem. Enxugou uma lágrima obstinada antes que Natalie a visse despontar no corredor. O barulho da mala de rodinhas ecoou pela casa de um jeito derrotado.
Natalie Wolf despediu-se da pessoa ao telefone. Estava com a expressão inatingível.
— Boas notícias, ! Minha agente conseguiu trocar sua passagem para o voo das dez. Não tem conexões. Reservei um ótimo hotel ao lado do aeroporto para que você possa esperar bem confortável.
— Que bom. — disse, mas não conseguia realmente entender aquilo como uma boa notícia. — Obrigada. E mais uma vez, sinto muito.
Natalie delineou um sorriso contido e não se deu o trabalho de gastar muitas palavras.
— O carro está esperando.
A atriz a acompanhou até a porta. Diego já havia aberto o porta-malas do SUV parado na entrada principal. A cara que fez quando viu e Natalie juntas evoluiu do espanto para pena. Em seguida, abaixou os olhos em discrição. O que acontecia na casa de , ficava na casa de .
A garota já ia sentar-se no banco traseiro do veículo quando escutou seu nome pela última vez:
— Ah, .
Nem havia percebido que Natalie estava tão próxima, os saltos da mulher deveriam ter algum sensor antirruído ou talvez fosse à forma graciosa com que seus pés deslizavam, mas isso realmente não era relevante naquele momento em que o orgulho da professora quebrara-se em caquinhos mais finos que a ponta do salto agulha de Wolf.
— Acho que isto não lhe pertence.
Então sentiu-se idiota pela enésima vez quando os braços de Natalie contornaram seu pescoço retirando a corrente que havia lhe entregado em Boulder.
E antes que Diego manobrasse, ela teve um último vislumbre da atriz: lábios da cor de suculentas cerejas entreabrindo-se vagarosamente em superioridade enquanto balbuciavam “adeus”, uma despedida fingida acompanhada de um aceno.
Que fez questão de não retribuir.

*


— Intérprete, hein?
Ela nem se importou com a malícia na voz de Diego. Manteve os olhos fixos através da janela do veículo, as cores da casa de Bel Air de repente perdendo toda a graça.
— Bem, eu sinto muito que a senhorita tenha passado por isso. — O motorista continuou, sem nenhum atrevimento no timbre daquela vez.
mexeu-se no banco traseiro. Na correria, notou que esquecera seus brincos. O carro ainda não havia deixado o terreno, mas o objeto não era tão valioso a ponto de merecer a volta. Aliás, mesmo que fossem de ouro e cravejados de esmeraldas, ela não teria a audácia de enfrentar Wolf novamente. Bijuteria barata. Que alguém fizesse bom proveito deles.
— Diego — a voz de era um misto de dor e tristeza — eu não quero ir para hotel nenhum. Quero que me deixe direto no aeroporto.
O motorista encarou-a pelo retrovisor, suas sobrancelhas negras quase se uniram quando ele contraiu a testa.
— Tem certeza?
— Tenho. Não posso ficar num hotel que ela tenha pagado. — Disse ao mesmo instante em que enxugou uma nova lágrima.
— Você quem sabe. — Hernandez ofereceu-lhe um sorriso de conforto, mas só viu os olhos dele estreitados no espelhinho minúsculo.
O portão se abriu. Aquele inferno estava chegando ao fim. Dane-se que seus efeitos ainda fossem perdurar por um bom tempo. Lidaria com isso depois. Então bem quando a garota achava que as coisas não poderiam ficar piores, o tal Murphy vem para provar que suas teorias são as mais implacáveis sempre.
O conversível preto com peculiares bancos vermelhos obstruía a passagem. Típico carro de astro do rock. Elijah recostado na lataria, cabelo loiro preso em um coque samurai, o olhar tórpido escondido sob um Ray-ban escuro. Usava uma camiseta preta, calças jeans e tênis vans roxos de adolescente. Era duro admitir, mas mesmo naquele em que seria um dos piores momentos da vida de , sua mente idiota ainda conseguiu arrumar um jeito de devanear coisas indecentes a respeito do homem ali parado. Santo Deus. Estava perdendo o juízo.
— O que ele está fazendo aqui? — Diego falou antes de descer o vidro, primeiro sem preocupar-se em esconder a insatisfação na voz, mas o timbre tornou-se firme e cortês quando se voltou para o guitarrista:
— Pois não, senhor Nash?
Elijah levantou os óculos wayfarer. Deu outro trago no cigarro e soltou baforadas em formatos espirais. A cena ridiculamente parecia uma tomada de comercial.
— Olá, Antonio Banderas trinta anos mais jovem. Cadê o ?
— O patrão não está, senhor Nash. — O sarcasmo do guitarrista não abalou a estrutura da voz de Diego nem um milímetro. Elijah Nash então apoiou seus braços na porta do carro, as tatuagens coloridas saltando na pele pálida.
— Hum... E que encomenda linda é esta que você vai levando aí, hein? — Colocou o rosto para o interior do veículo e talvez Diego tenha resistido ao desejo de subir o vidro naquele instante. Uma sutil tentativa de homicídio por decapitação. torceu para que esconder a face por trás das mãos fosse um disfarce eficiente.
— Ah! Ratinha?
Não foi.
— Não é uma boa hora para ouvir suas idiotices, Elijah. — virou-se para ele em contragosto.
— Uau. Você está péssima. Andou chorando?
— Não é da sua conta.
— Ouch. — O cretino riu. Jogou o cigarro no chão e o apertou contra o solado do tênis. — Ela está ai, não está? Aquela vadia magricela da Wolf. Estou vendo o carro dela. Aposto que vocês não ficaram amigas.
A garota desejou sumir.
— Diego, por favor, leve-me embora daqui.
O motorista deu um aceno em resposta e em seguida olhou para as mãos de Elijah ainda fixas na porta.
— Com licença, senhor Nash, sim?
O guitarrista sorriu prepotente para o motorista:
— Com licença uma ova.
Destrancou as travas de segurança, abriu a porta traseira e sentou-se ao lado da garota. O cheiro de nicotina ardeu no interior do veículo.
— Pra onde você vai? — Elijah perguntou.
conjeturou ignorá-lo, mas concluiu que lhe responder talvez fizesse com que a conversa acabasse logo e Nash sumisse dali.
— Para o aeroporto. A namorada do trocou minha passagem para hoje à noite. Um amor. — Ela falou com um quê de raiva e ironia.
— O sabe que você está indo embora?
— Pro inferno ele.
Elijah gargalhou. Oh, criatura insolente. Seria pedir demais que tivesse ao menos a decência de fingir que não estava adorando a situação?
— Ele vai demorar a chegar?
— Para de me fazer tanta pergunta, Elijah. Não vê que eu... — o temido aconteceu e ela desabou em lágrimas — Deus... Só quero ficar sozinha.
Então sentiu os calos dos dedos dele sobre a sua pele. Definitivamente, a mão de um guitarrista. Era algum tipo de carinho e a garota ficou realmente surpresa. Achava Elijah uma besta insensível que mais machucaria do que confortaria caso resolvesse estabelecer contato físico. Estava enganada.
— Puxa, . Não, não. Você não vai para o aeroporto.
Ela limpou os olhos para conseguir desembaçar a imagem do rapaz em sua retina.
— Abre o porta-malas, Zorro de terno. — Nash falou para Diego. — Vou cuidar da ratinha até que ela e o se resolvam.
A garota o encarou, atônita.
— Hãn?
— Eu acho que o não vai ficar feliz em saber que você foi embora assim. Fica comigo até conversarem. E você disse que seu voo é só à noite, certo? Vamos comer alguma coisa. Posso pedir pizza, o que acha? Gosta de pizza?
Ela digeriu as palavras dele antes de dizer:
— Por que está fazendo isso?
— Vou exigir um resgate.
riu e chorou ao mesmo tempo. Em seguida, deu um murro suave no braço do guitarrista, bem em cima do desenho de uma caveira.
— Vai se ferrar, seu maluco.
— Isso é jeito de falar com seu benfeitor? —Elijah encenou uma cara de cão magoado, fazendo a professora rir. — Eu sei que é meio difícil para você acreditar, mas me preocupo com você. E com o idiota do , também... Na verdade, mais com você do que com ele.
Ela fungou, tentando desobstruir as vias áreas do nariz inchado.
— Não sei, isso não parece ser uma boa ideia.
— Sabe o que não parece uma boa ideia, hum? Você ficar sozinha no aeroporto um dia inteiro, correndo o risco de a imprensa descobrir que a “concubina” de foi enxotada da casa dele pela Natalie Fucking Wolf. Quer ter esses cinco minutos de fama?
A cena que se formou na cabeça de foi chocante. Fora de cogitação passar por uma segunda humilhação daquelas.
— Isso... É possível de acontecer? A imprensa, quero dizer?
— Ah, garotinha bobinha, bobinha... tisc tisc. — O guitarrista balançou a cabeça de um jeito moroso. — Você realmente não aprendeu nada sobre esse mundo de merda dos famosos?
— Senhorita ? — Diego a olhou esperando por uma resposta.
ficou em silêncio. Havia se esquecido de que o motorista estava ali, atento a todo o diálogo.
— É, “senhorita”. O que vai ser? — Elijah disse, arqueando uma das sobrancelhas.
A garota olhou de Diego para Elijah, sucessivamente. Decisão difícil e que exigia uma tomada de decisão rápida. Por isso, não estava totalmente segura quando disse:
— Pode deixar, Diego. Eu vou com o Elijah, obrigada.
Nash e Diego enrugaram a testa. Por um segundo, pareceram não acreditar no que tinham acabado de ouvir. Ok. Era o esperado de Hernandez, mas aparentemente, nem o próprio guitarrista levara-se a sério quando fez a proposta. quase se arrependeu da decisão naquele instante.
Elijah então sorriu meio que em câmera lenta: arrebatador, como todo o seu conjunto.
— Ótima escolha, ratinha... E sabe? Acho que vamos nos divertir muito juntos.

***


?! — correu para o interior da própria casa, o sangue havia desaparecido do rosto assim que avistou o carro da Natalie parado na entrada. Música clássica inundava o lugar a partir do televisor de inúmeras polegadas: Carmina Burana.
Sentada na sala, Wolf sorria como uma garotinha perversa. A corrente de balançando no dedo indicador. A atriz tinha uma veia exagerada para a dramatização.
— Tente de novo, docinho.
— Onde ela está? — falou letal, o maxilar cerrado de raiva.
— Oh. — A atriz fez um biquinho. — Não era essa a recepção que eu esperava.
Ele ignorou a mulher e discou o número da professora: caixa de mensagem. Correu a mão pelos cabelos escuros, irritado. Deixou o aparelho de lado e virou-se para Natalie.
— O que você fez, porra?!
— Nada que outra mulher em meu lugar faria diferente. Coloquei aquela vadia pra correr daqui.
— MERDA, WOLF! Você não tinha este direito! — Ele falou alto o suficiente para fazer a voz ecoar pela sala.
Natalie não se abalou.
— Ah, tinha sim. Sou sua namorada.
— Não, você não é.
procurou pelo controle remoto e desligou o televisor. A casa ficou silenciosa de repente.
— Não sou? — Ela arregalou os olhos redondos de boneca francesa. — Engraçado. Porque nosso contrato ainda diz que somos.
— Nosso contrato diz que posamos para a mídia juntos. Isso não faz de nós namorados.
Wolf não esboçou nenhuma reação. Olhos apáticos e oblíquos. O vocalista continuou:
— Estou perdendo a paciência, Natalie. Cadê a garota?
— Deve estar no inferno.
pestanejou enquanto tentava ligar mais uma vez para o celular de . E mais uma vez desligado. Num ímpeto de raiva, esmurrou a mesa a sua frente, água de um vaso de lilases precipitou para fora. Depois pisou firme em direção à atriz. Segurou-a pelos braços até sentir o sangue dela pulsar em suas mãos.
— Vai me bater? — Natalie sorriu como se quisesse aquilo.
— Ah, se você fosse um cara pode ter certeza de que eu gostaria. — disse com olhos estreitados em ataque. Ouviu a voz preocupada de Diego pedindo calma, mas não se virou e continuou encarando a mulher. Isso, até o motorista dizer:
— A garota pediu para que eu a levasse ao aeroporto.
então soltou Natalie sem nenhuma delicadeza, ela quase se desequilibrou, o vocalista bateu as mãos contra os bolsos da calça procurando as chaves do carro. Já ia saindo pela porta quando Diego completou:
— Mas eu não levei.
Todos os três se entreolharam. Natalie com uma expressão de alegria incompatível com a tensão presente.
— E? — encarou Diego, impaciência tomando seu rosto.
A boca de Diego abriu-se de várias formas diferentes antes das palavras saírem.
— E Nash chegou aqui. Eles saíram juntos.
Então de repente a chave ficou pesada na mão de , os pés não sabiam o que fazer. Toda sua obstinação perdeu-se e a expressão no rosto murchou. A risadinha de Natalie começou baixa, até transformar-se numa gargalhada que repercutiu diabólica pela casa.
Oh. Não leve para o lado pessoal, . A vadiazinha não iria mesmo contentar-se apenas com o vocalista bonitinho... Se também poderia ter o restante da banda.



Capítulo 16

— Quer se vingar dele?
Quê?
— Eu e você. O que acha?
o encarou. Elijah continuou abrindo e fechando o isqueiro, os pés pra cima da mesa. Uma falta de modos que combinava com o sorriso arrogante no rosto dele.
— Viu só? Agora você está sendo um idiota. — Ela disse. — Sabia que isso era uma má ideia. Eu deveria ter ido direto para o aeroporto.
A garota deu uma olhada rápida para o apartamento a sua volta. Surpreendentemente organizado. Havia certa obsessão pela cor branca que predominava das paredes ao mobiliário suntuoso. Uma mistura refinada de cheiros cítricos ainda rescendia do porcelanato brilhante da cozinha, sugerindo que alguma imigrante caprichosa acabara o serviço de limpeza a pouco. Se uma equipe médica quisesse usar o chão do lugar para uma cirurgia cardíaca, com certeza teria o aval da vigilância sanitária. A única coisa destoante do duplex localizado em uma área nobre de Los Angeles era o próprio guitarrista. Ele certamente teria se encaixado melhor como o administrador de uma masmorra sadomasoquista recheada de garotas seminuas despencando de correntes presas ao teto.
Elijah colocou um cigarro na boca, mas não o acendeu. Ficou com o objeto parado no canto dos lábios.
— Convenhamos, ratinha. Eu precisava tentar.
— Hum. Claro. — A garota revirou os olhos e tentou achar graça no pedaço de pizza no prato. Pepperoni. Em outras circunstâncias, provavelmente estaria deliciosa, mas não quando ela estava de coração partido.
— Então só me responda uma coisa, hipoteticamente. — Elijah disse, retirando-a de seus pensamentos. ofereceu-lhe um aceno de queixo para que continuasse. — Hipoteticamente, se você não tivesse conhecido o , se tivesse me conhecido apenas... Teria ficado comigo?
— Hipoteticamente?
— É. — O guitarrista ainda balançava os tênis sobre o tampo da mesa, teve vontade de empurrar-lhe os pés para o chão, arrancar-lhe do rosto o sorrisinho confiante.
— Não. — Ela resumiu de súbito.
— Por quê?
— As circunstâncias em que nos conhecemos. Te odiei de cara.
Nash deu um sorriso de orelha a orelha tal como o cretino seguro de si que era.
— Não vamos fingir que isso é verdade. Porque não é.
quase engasgou.
— É, mas... Não é totalmente mentira. — Disse ela. — A verdade é que não gosto do seu jeito e da sua falta de filtro antes de falar as coisas e magoar as pessoas. Detesto este perfil de bad boy que você interpreta o tempo inteiro.
Ele não se abalou nem um pouco, ao contrário, balançou a cabeça como se estivesse satisfeito por terem reconhecido seu esforço de passar uma péssima impressão.
— Eu não interpreto, . Quem interpreta é o , que paga de bom moço quando na verdade é um canalha. Ele e Natalie já estavam juntos quando vocês se conheceram em Praga, sabia disso?
já imaginava que isso fosse bem possível, de qualquer forma, doeu ouvir.
— Não, não sabia.
— Pois é. Sei que você deve odiá-la, mas ela provavelmente te odeia mais. E sabe quem é o vilão desta história? — Nash deu-lhe uma olhada sugestiva — Dica: não é você, muito menos a Wolf.
Ela mordeu outro pedaço da pizza. Parecia plástico. Sem sabor.
— Agora voltando um pouco o assunto. — Os lábios dele curvaram-se de um jeito insinuante. — Você admitiu que gosta um pouco de mim, hum?
— Quando você não está sendo desagradável, gosto um pouquinho sim... — A professora deu o braço a torcer.
— E também admite que me acha atraente?
ficou vermelha. Depois se levantou da cadeira e cruzou os braços numa postura altiva para encarar o guitarrista.
— Tá legal, já entendi toda essa necessidade de autoafirmação. Claramente é mais a respeito de você e do do que a respeito de mim.
Olhos cinzentos borrados de lápis estudaram a garota.
— Do que está falando? — O cigarro fez uma espécie de dança atrapalhada nos lábios dele.
— O me contou sobre a tal Katie.
O objeto caiu da boca de Elijah, deliberadamente. Ele o agarrou no ar.
— Claro que contou. — O guitarrista expirou desgostoso. — E tenho certeza de que o conseguiu fazer as coisas parecerem boas para ele no fim das contas, como sendo vítima do charme da Katie e ter se arrependido. Estou errado?
— Não foi bem assim... — disse, insegura.
Oh, . Admiro sua obstinação em defendê-lo, mesmo depois do que ele a fez passar hoje. — O guitarrista retirou os pés do tampo de vidro e arrastou o corpo na cadeira, parou com as mãos debaixo do queixo e lançou-lhe um olhar atento. — Vamos lá. Conte-me novamente esta história detestável que eu já sei de cor. Vou adorar ouvir qual versão dos fatos ele deu para você.
Ela ficou sem graça. Elijah arqueou a sobrancelha, esperando. A garota então falou:
— Bem... Ele disse que foi surpreendido, que Katie o esperou na cama dele. E que não sabia que você estava apaixonado por ela.
O guitarrista bufou e riu alto, o ruído evoluindo para um som raivoso.
— Ah, ela o surpreendeu em todas as vezes que o esperava na cama dele?
Elijah encarou a professora com complacência enquanto ela dava-se conta de que sua estupidez acabava de quebrar um novo recorde. Teria o Guinness um capítulo reservado apenas para garotas idiotas que ousavam se apaixonar por astros do rock cretinos?
— O sabia sim que eu gostava da Katie, . Ele era meu melhor amigo, porra.
— Então... Ele mentiu?
Nash não respondeu com palavras, levantou as mãos para o ar e arregalou os olhos. Um “o que você acha?” gestual.
— Mas por que ele faria isso? — sentou-se novamente. Cinco fatias grandes de pizza esfriavam na embalagem.
— Porque seu perfil é muito claro. Garota inexperiente: o prato predileto dele. Sabia que se contasse a verdade você o teria julgado, talvez dificultasse as “coisas” pra ele.
E a professora percebeu o exato momento em que sua angústia tornou-se ácida e transformou-se em raiva dentro do peito.
De repente, escutaram o barulho das chaves na porta de entrada. ficou tensa, mas Elijah não se surpreendeu. Dominic surgiu em seguida, fones de ouvido e bermuda de corrida. A camisa estava pendurada no ombro e suor escorria-lhe na pele. O baterista quase deu um pulo quando os viu na cozinha.
— Merda, Elijah. Já falei para você não trazer suas garotas para o meu apartamento.
encarou Nash.
— “Suas” garotas? Apartamento dele?
Dom passou pelos dois e abriu a geladeira. Tinha mais cerveja do que comida no eletrodoméstico. Como esses garotos de hábitos desregrados conseguiam manter os músculos dos corpos saltados permaneceria uma incógnita. O baterista virou uma garrafa de água direto no bico, o pomo de adão levantando a cada golada. Depois de sorver metade do líquido, depositou o vidro na mesa e encarou a professora.
—Ei. Você não me é estranha. — Dominic disse.
Ao que Elijah colocou-se atrás de e deu-lhe um abraço surpresa. O corpo dela formigou.
— Ela estava ali de fora ronronando e enroscando-se pelas minhas pernas. — Nash falou para o amigo. — Podemos ficar com ela?
O baterista cerrou as sobrancelhas escuras e correu os olhos, de Elijah para .
— Ah, cara. Esta é a garota do . — Dom disse com o dedo apontado para o guitarrista em reprovação. — Suma com ela daqui, seu otário.
— Ela não é mais do .
— Não quero saber, ela não pode ficar.
— Eu também moro aqui. — Elijah contestou.
— De favor. Você nem ajuda com as despesas. — Dominic disse e deu o assunto por encerrado. ficou estarrecida. Sim. Definitivamente, ter ido ali foi uma péssima ideia.
— Não ajam como seu eu não estivesse aqui, por favor. E não me tratem como se eu fosse um pertence, ou um bicho de estimação. Elijah, obrigada pela pizza, por me acolher no seu... No apartamento do Dom, mas vou pedir um táxi e ir para o aeroporto. Como deveria ter feito desde o início.
— Viu só o que você fez? — Elijah disse com o cenho franzido para o colega.
Dominic Wilde deu de ombros, pegou a maior das cinco fatias de pizza da embalagem e a enrolou como uma cigarrilha antes de anunciar:
— Vou tomar um banho. Quando eu terminar, é melhor que ela não esteja mais aqui. — Então se voltou para a professora. — Sinto muito, boneca, mas é que o é meio... Possessivo.
Ah, ótimo.
levantou-se assim que o baterista sumiu pelo corredor. A porta de um quarto se fechou e Heavy metal ecoou pelo apartamento tempo depois: Judas Priest. Esta mania de ligar o chuveiro e música ao mesmo tempo ainda acabaria com a água do mundo.
— Não precisa ir embora ainda. — Elijah falou assim que notou a garota em pé ao seu lado.
— Você ouviu o dono do apartamento.
— Ouvi. Mas não vou te levar agora.
— Não precisa se incomodar. A avenida é movimentada, vou esperar por um táxi lá embaixo. — sorriu, polida.
— Não, você não vai. Ainda faltam mais de cinco horas para seu voo. — Elijah devolveu o gesto.
Ambos encararam a chave presa à maçaneta na porta de entrada. Depois se entreolharam.
— Nem pense nisso. — Elijah atenuou o que seria uma ordem com um sorriso brilhante que pôs a mostra todos seus dentes perfeitos.
— Pensar no quê? — Ela se fez de desentendida e deu um passo lento em direção à sala, disfarçando.
Por alguns segundos ficaram os dois apenas se olhando e rindo como idiotas. Então cansou-se daquele joguinho silencioso e disparou em direção à porta. Maldito apartamento de proporções gigantescas. Quase escorregou no porcelanato lustroso da sala. Elijah não ficou atrás. No quesito pernas longas ele tinha uma vantagem evidente sobre a garota. Ganhou a corrida e ainda garantiu segundos de vantagem para sacudir as chaves depois que seus dedos ágeis de guitarrista arrancaram-nas da maçaneta. Nem precisou esticar os pés para dificultar para a professora. O desgraçado era alto. sentiu-se ridícula pulando ao entorno do homem para tentar alcançar o molho.
— Sério que você vai insistir? — Ele perguntou, divertindo-se pra valer. — Você é baixinha. Nunca vai conseguir.
— Eu não sou baixinha, você... que é.... uma girafa! — Ela falou ofegando. Aquilo estava sendo um exercício e tanto. —Maldição. Qual o seu tamanho, hein?
O protótipo de deus nórdico abriu um sorriso gigantesco.
— Eu não sou de medir, mas as garotas sempre elogiam. Eu chutaria uns vinte e dois centímetros.
As bochechas dela inflamaram.
— Idiota. Não foi isso o que eu quis dizer.
Elijah gargalhou. aproveitou a distração que o momento de narcisismo causou no homem e forçou todo seu peso no braço direito do guitarrista. Ele desequilibrou-se, mas ao invés de soltar o molho como a mente limitada da garota previu, apoiou-se na cintura dela e os dois caíram. Sorte que o belo sofá de couro italiano estava no caminho para amortecer a queda.
O rosto do guitarrista parou a poucos centímetros do dela.
Droga! Sai de cima de mim, Elijah! — tentou livrar as mãos e bater no peito dele. Nash nem se mexeu, mas riu licencioso.
— Então peça com mais convicção.
A garota ficou em silêncio. A sensação do corpo dele pesando sobre o dela de repente foi o menor dos problemas. O apelo de lábios carnudos fabricados diretamente no departamento de luxúria do inferno rente aos seus, sim, era algo alarmante.
— Ou então... Não peça. — O guitarrista falou com a voz pastosa e sentiu o hálito picante de pepperoni quase se fundindo ao dela.
Uma persuasão irresistível: provavelmente seria assim que “ratinhas” tontas descreveriam o bote de serpentes, caso pudessem voltar dos mortos e confirmar os fatos.
— Eu...
— Ele não precisaria saber, . Nunca. — Concluiu com a eloquência esperada de alguém que estava disposto a fazer daquilo um segredo, olhos azuis bem da cor de um perigoso mar profundo em conluio com o seu interlocutor.
— Elijah...
.
O olhar de Nash segurou o dela por tempo demais. Cacete.
— Não conto se você não contar. — Ele reafirmou.
Então alguém bateu a porta. Na verdade, foi mais uma sequência de espancamento contra a madeira maciça numa tentativa de colocá-la abaixo. Do outro lado, a voz de alcançou quase os mesmos decibéis reservados para o palco:
— Nash, SEU VICIADO DE MERDA, eu sei que está aí, abre logo!
e Elijah entreolharam-se.
— Ai, meu Deus. — ela balbuciou. — Sai logo de cima de mim!
— Bosta... — Elijah resmungou. — Ele precisava chegar bem na hora da diversão e estragar tudo.
Nash empertigou-se no sofá. levantou-se num pulo e procurou por um espelho, o reflexo da geladeira inox cumpriu bem o papel. Ajeitou os cabelos enquanto recuperava o fôlego. O guitarrista também foi até a cozinha. Sentou-se calmamente à mesa e pegou um pedaço de pizza enquanto a garota o olhava, atônita.
— O que está fazendo, Nash?
— Comendo.
— Você não vai abrir?
— Não. — Ele falou com a boca cheia.
o encarou, seus lábios curvados em hostilidade.
— E toda aquela história sobre eu e o conversarmos?
— Mudei de ideia. — Elijah respondeu ainda apático e a professora teve vontade de matá-lo. — Ele não é homem para você, ratinha.
Novas batidas insistentes ecoaram para dentro do apartamento. O som dos murros misturou-se à batida pesada do heavy metal que ainda vinha do quarto de Dominic. O baterista estava alheio a tudo isso em seu mundinho próprio. Pobres dos vizinhos que eram obrigados a aguentar os excessos dos astros de rock.
—Elijah, ele vai derrubar a porta!— bateu o pé e foi mais incisiva. — Abre logo! Eu quero ouvir o que o tem para dizer.
O guitarrista suspirou e revirou os olhos. Levantou sem nenhuma pressa e caminhou até o hall. Quando abriu a porta, tinha todos os músculos do rosto tensionados como um animal enfurecido. Os tendões dos dedos saltados e punhos cerrados.
! Que surpresa desagradável. — Elijah encenou sarcástico.
O vocalista pegou o colega pelo colarinho e o empurrou para dentro do apartamento. Não tão sutil quanto pedir licença, mas também eficiente para desobstruir a passagem.
, não faça isso! — correu até o homem. Ele então soltou Elijah e a olhou com desprezo. A garota imaginou que ser atingida no rim esquerdo teria doído menos.
Uau, . Nem vinte e quatro horas depois de ficarmos juntos você vem para o apartamento do meu colega de banda. — disse com repulsa. — Estou realmente impressionado.
O queixo dela caiu uns bons centímetros, não acreditou no que estava ouvindo.
O quê!? Então é assim que as coisas vão ser? Reverterá a situação a seu favor e vai dar lição de moral quando você é o mulherengo da história? — Ela rosnou.
ficou em silêncio. A garota aproveitou-se da vantagem momentânea para perguntar:
— Por que não disse que tinha namorada?
a encarou tão confuso quanto sem graça. Suas sobrancelhas uniram-se enquanto os lábios ficaram apertados.
— Porra, . Minha vida não é bem um segredo.
A boca da garota formou uma vogal “o” que combinou perfeitamente com o jeito como os olhos dela se arregalaram.
— Você está insinuando que eu sabia e... E que mesmo assim aceitei ficar com você... SEU CRETINO!
Nããão, que absurdo, ! — Elijah falou dissimulado, achando a maior graça do mundo no inferno dos outros.
suspirou, sofrido. Parece que não estava mais a ponto de explodir. Os nós dos dedos de repente relaxaram, junto com sua expressão.
— Tá, tudo bem. Admito que errei. Presumi que você sabia e não se importava como as outras sempre fazem. Mas as coisas entre eu e Natalie não são bem como parecem, . Você deveria ter me esperado e me dado à chance de explicar, droga!
Elijah gargalhou debochado:
— Caramba. Você é mesmo inacreditável, príncipe gótico. E o que tinha em mente, hum? Que as duas fariam as unhas uma da outra e assistiriam Vampire Diaries até você chegar?
se virou para o colega, a veia do pescoço saltando.
— Você ainda esta falando, Nash? Porque meu assunto aqui é com a . Eu não sabia que a Natalie apareceria, ela estava gravando fora e... — De repente teve uma vaga ideia do que poderia ter acontecido. Então encarou o guitarrista com os olhos acesos em fúria. — Ah, seu maldito filho da puta... Foi você.
— Eu o quê? — Elijah franziu o cenho. O pedaço de pizza parado no ar.
Você contou para Natalie.
Nash ergueu as sobrancelhas.
— Quê?! Não, eu não contei. Tenho coisas mais importantes para fazer do que sabotar suas fodas, coleguinha. — O guitarrista falou ultrajado.
— Você chegar a minha casa justamente quando a estava saindo foi uma coincidência então, hein?
— Eu ia mostrar uma composição nova e queria sua opinião. Então sim, foi uma coincidência. — Elijah retrucou.
— E por que diabos trouxe a aqui para o apartamento se só queria me mostrar uma música?
O guitarrista ficou em silêncio, apertou com os dentes o sorriso que lhe teria brotado nos lábios caso não tivesse apreço à própria vida. cerrou os olhos até quase fazer suas íris verdes desaparecerem:
— Eu sabia...
Antevendo o que iria acontecer, colocou-se entre os dois. Olhando por aquela perspectiva, sua tentativa de separar uma briga iminente era ridícula. Ela mais parecia um filhotinho de pinscher zero entre dois Dobermans gigantes. Mas sua voz conseguiu ter um efeito diametralmente oposto a sua altura, graças a Deus.
— Parem já com isso! — Ela ladrou e eles pareceram dar-lhe ouvidos. Depois a garota olhou para o vocalista, o timbre mais baixo. — , eu estou pronta para ouvir suas explicações. Se é que você tem alguma.
Os dois músicos relaxaram. Machos alfa de beleza desconcertante e furiosos despertam desejos instintivos femininos, mas aquele não era o momento em que gostaria de vê-los digladiando como homens das cavernas. Ela esperou Elijah distanciar-se e quebrar o contato visual com o colega para ter certeza de que eles não se atracariam num rompante. Então o vocalista disse:
— Eu... Não sei por onde começar.
— Que tal pelo fato de você me dizer que estava apaixonado? Aquilo foi encenação?
Os músculos da testa de contraíram-se.
— Claro que não, . Eu não tinha porque brincar com algo tão sério.
A garota continuou:
— E quanto a sua namorada? É apaixonado por ela também?
soprou todo ar dos pulmões e nem hesitou antes de responder:
— Por Cristo, não.
Por dentro, sentiu-se um pouquinho mais segura, mas não deixou transparecer.
— Então... Vai terminar com ela?
Ele mordeu o interior da boca, correu as mãos pelos cabelos, o rosto tenso.
— É complicado...
A professora voltou a ficar confusa. Elijah assistia a cena de camarote na cozinha, comendo o segundo pedaço de pizza. A discussão acalorada abrira-lhe o apetite repentinamente.
— O que é complicado, ? — Ela perguntou.
— As coisas no meu meio, . Não funcionam da mesma forma que o seu. Não posso me dar ao luxo de simplesmente terminar com ela e esperar que tudo fique bem. Temos contratos publicitários milionários e mais um tanto de merda envolvida.
O choque deixou a garota paralisada. Sua boca ficou seca e as palavras arranharam a garganta.
— Ah, já entendi. É complicado ficar com uma professora anônima quando se tem uma atriz de Hollywood ao seu lado. É ruim para sua imagem.
apertou seu maxilar e a encarou com os lábios estreitos.
— Eu não disse isso, .
— Nem precisou, amiguinho. — Elijah exclamou da cozinha. A risada que ele deu soou como um grunhido. — Ei, ratinha. Se você fosse a minha garota, eu não me importaria de posar com você na frente de todos os paparazzi do mundo. — O guitarrista finalizou com uma piscadela. — Pense nisso.
Lágrimas inundaram os olhos dela. puxou a mala tomando cuidado para não arranhar o piso polido do apartamento, depois simplesmente saiu pela porta.
a alcançou antes que o elevador chegasse.
— Espera, .
A garota virou-se para ele, ira e decepção ardiam em seus olhos. Um “plim” refinado sinalizou a chegada do elevador. A porta de metal abriu-se convidativa.
— Eu achei que você estivesse mudando, . — Ela disse e a tristeza na sua voz foi perceptível.
pensava a mesma coisa. Da mesma forma, também achava que deveriam conversar até que tudo entre os dois estivesse resolvido, todas as arestas aparadas. Por isso, nem ele entendeu o porquê de ter sido tão estupidamente orgulhoso e dizer:
— Só aviso uma coisa, . Se você entrar neste elevador, eu não vou atrás de você.
A garota elevou as sobrancelhas por curtos segundos, admirada.
— É claro que não virá. — Ela entrou sem vacilar, a rodinha da mala quase pegando no pé dele. — E sabe? Eu acho que prefiro assim, porque da mesma forma que eu apronto esta “merda” toda na sua cabeça, você também bagunça meu mundo. E eu sinto falta da organização que havia em mim antes de ter te conhecido. Adeus, .
Quando a porta se fechou, o vocalista xingou-se de todos os palavrões imagináveis para justificar o tamanho da sua idiotice. Mas ele não ia atrás de meninas, elas que deveriam se jogar aos seus pés. Era essa a ordem natural das coisas em sua vida, não era?
Ah, merda. Paixão era uma droga antagônica. Quem disse que o amor e o ódio caminhavam juntos sabia muito bem do que estava falando.
Do saguão, escutou as risadas maldosas de Nash em meio à música ainda alta. Seu sangue fervilhou nas veias. Voltou pisando firme para o apartamento, e antes que chegasse à cozinha, onde o colega estava sentado calmamente brincando com uma azeitona do prato, viu a guitarra branca no canto da sala. Ela pareceu uma ótima alternativa para extravasar sua raiva.
Mas não da forma tradicional.
Quando Elijah deu-se conta do que o colega tinha em mente, soltou o pedaço de pizza que, seguindo a maravilhosa lei de Murphy, caiu no chão com a cobertura virada para baixo.
— Ah, não... não, NÃO, ! A Broadcaster edição limitada, NÃO! — Nash protestou.
Por uma infeliz coincidência, o instrumento estava próximo à bateria de Dominic que enfeitava o canto da sala como uma peça de decoração. Pratos voaram, bumbos estouraram e a guitarra de Elijah executou seu último ato: perda total. O guitarrista caiu de joelhos, estarrecido, e agarrou os resquícios da Fender nos braços como se fosse um bebê moribundo.
Isto disse — é por tentar me ferrar. — Depois saiu pela porta e aguardou o elevador. Já do lado de fora do prédio, sentiu a frente fria característica do fim de tarde invernal corta-lhe o rosto. Carros percorriam a toda a avenida movimentada. Olhou para os lados mais de uma vez.
não estava em lugar nenhum.
E no vigésimo primeiro andar do edifício, depois que o som estrondoso da música cessou, Dom saiu do quarto assobiando as notas da melodia que haviam colado na cabeça, tranquilidade que só durou até ele colocar os pés na sala e então ficar paralisado com o vislumbre da sua bateria totalmente destruída.
Ao que Elijah o olhou todo sem graça:
— Ei, adivinhe só quem veio nos visitar?



Capítulo 17

Carol leitor, existe a versão deste capítulo para maiores de 18 anos neste link. Boa leitura!

— Você quer ficar na fossa, eu respeito, mas se esta música tocar mais uma vez, juro que vou quebrar este aparelho.
A música era Love Hurts do Nazareth e já estava quase decorando o refrão antes de Josi desligá-la. O quarto tinha o cheiro abafado de alguém que não saía da cama há um bom tempo.
— Hum... — grunhiu. — Como você entrou aqui?
— Fiquei com uma cópia da sua chave quando me pediu para cuidar da sua planta, lembra? — A garota de cabelos cacheados deu um sorriso de lado para . Usava maquiagem, mas nada exagerado para àquela hora do dia. Os lábios em formato de coração receberam uma camada grudenta de gloss e havia blush nas bochechas, bem de leve. — E o que são todos esses potes de sorvete? Acha que está gravando uma sequência de Bridget Jones?
Josi esgueirou-se por entre as roupas espalhadas no chão do quarto, alcançando as cortinas. A luminosidade contraiu as pupilas de e ela pestanejou mais uma vez.
— Me deixe em paz, Josiane. — Pediu com a voz afetada. — E feche esta droga.
— Chega de se empanturrar com isso. — Josi levantou o pote vazio e fez uma careta de nojo. — Você precisa é de um drinque bem forte... E de um banho.
cheirou a própria pele e torceu o nariz. Josi continuou encarando a professora, e também melhor amiga, com ar de reprovação, mas também benevolência. A garota de dezessete anos já ficara em situação bem pior depois de levar um fora e sabia que aquilo era doloroso.
— É muito cedo para beber, Josi. E também tenho que trabalhar mais tarde. Que horas são, afinal?
— Quase três, mas seu caso é uma emergência. Então não é cedo demais para beber. E... eu te consegui isso. — Josiane entregou-lhe um papel pequeno, cuidadosamente dobrado. — Não precisa se preocupar com trabalho até amanhã.
A professora endireitou-se na cama e sentiu o corpo doer: ficar na mesma posição horas seguidas resultava nisso. Desdobrou o papel. Era um atestado médico falso com uma CID de virose.
—Josiane! — exclamou horrorizada.
— De nada. — Josi replicou com um sorriso meio maníaco. Os grandes olhos castanhos maliciosos. se perguntou quantas vezes a garota já devia ter apresentado documentos daquele tipo para justificar faltas à escola. — Agora levante. Vou preparar algo para bebermos enquanto você toma um banho. Você está fedendo.
gemeu contrariada, mas arrastou-se até o banheiro. Teria que sair da cama algum dia mesmo, então que fosse naquele instante. Conferiu seu reflexo no espelho da pia: olheiras profundas devido aos últimos dias derramados em prantos. Um banho seria bom. Ligou o chuveiro e a água quente fez o efeito relaxante esperado. Melhor remédio de todos. Só quando a pele começou a formar manchas vermelhas foi que ela fechou a torneira. Colocou sua roupa mais confortável (que por sinal também tinha furos suficientes para pertencer a uma vítima de um paredão do fuzilamento) e foi até a cozinha.
Josi havia lavado morangos. Ela própria os trouxera, claro, já que jamais abastecia o apartamento com frutas, verduras ou qualquer tipo de comida que não tinha mais de uma etapa industrial em seu processo de fabricação.
A péssima dona de casa cruzou os braços e recostou-se na bancada da pia.
— Sou sua professora, você é menor de idade, e está me preparando bebidas alcoólicas no meu apartamento. — falou como uma adulta responsável. Ao menos a única existente no lugar de setenta metros quadrados. —Preciso dizer que isso é ruim?
— Não precisa, pois ninguém vai ficar sabendo. —A garota prendeu os cachos em um coque improvisado. Uma caneta fez às vezes de presilha. — E quem está preparando as bebidas, quem invadiu seu apartamento, quem te deu um atestado falso, fui eu. Falaremos isso caso a polícia carioca esteja desenvolvendo habilidades de Minority Report e bata a sua porta nos próximos segundos.
suspirou, mas depois deu de ombros. As coisas não poderiam piorar, e dane-se, ela precisava mesmo de uma bebida.
— E então? — Josi insinuou enquanto misturava vodka aos morangos, ou mais morangos à vodka. Não importava. — Vai me contar o que aconteceu em Los Angeles?
Josiane era a única pessoa que sabia sobre . Por algum motivo, a adolescente mostrou-se mais confiável do que qualquer outro adulto para ser a confidente de .
Talvez pelo fato da professora não ter muitos adultos em seu ciclo de amizade. Bem, talvez por Josi ser a única em seu ciclo de amizade. Então contou. Deu detalhes da casa de Bel Air: como o tigre que vivia no jardim da mansão e viu os olhos grandes de Josi expandirem-se mais alguns centímetros. Falou sobre a visita à casa de Tommy e Ingrid. E claro, a respeito de como ela e finalmente haviam levado as coisas à segunda base, sem dar muito detalhes. Disse apenas o suficiente para fazer Josi suspirar.
E também contou sobre Natalie Wolf. Como a atriz apareceu triunfante na casa fazendo-a experimentar o patamar estratosférico da humilhação. Sobre Elijah Nash, e a ideia estúpida de dar ouvidos ao guitarrista.
No final, Josi estava sem ar. E o copo de já pela metade: história longa.
— Você não sabia que ele namorava? — A pergunta da garota tinha um quê malicioso e trazia implícita a ideia de que aquilo era óbvio demais, o típico questionamento cuja resposta já é dada nas entrelinhas pelo interlocutor.
— E você sabia? — perguntou, antevendo a descoberta de uma pequena e perdoável traição. Josi não respondeu. — Ah, droga. Você sabia.
— Ver futilidades na internet ajuda de vez em quando, mas nem tudo que lemos é verdade, então... — aumentou a dose da amiga depois de revelar aquela verdade subentendida, como se o álcool pudesse ser o consolo para esquecer o desfecho trágico da semana.
— Ótimo. Estou sendo punida por não ler notícia de fofoca.
— Punida? Que tal ver o lado bom disso tudo? namora uma atriz de Hollywood e está atrás de você. Como se não bastasse, Elijah Nash, o guitarrista gato que parece um vampiro viking saído de True Blood, também. Caramba... o que são aqueles homens, hein? A banda poderia tocar arrocha que eu pararia para ouvir.
ignorou aquela observação. Ajudaria focar nos defeitos, não nas qualidades da Dark Paradise. Josi continuou:
— Pode ser um pouco maluco, mas acho que deveria se sentir lisonjeada.
— Claro, e não se esqueça de mencionar que sou odiada pela mulher mais estonteante do planeta. Que por sinal, é namorada de . É muito lisonjeador isso. — Sou mais você. Ela é magra demais.
deu um sorriso de gratidão à amiga. Mas a quem queriam enganar? Tentar diminuir Natalie era tão incontestável quanto aceitar que ninguém poderia competir com aquele protótipo da perfeição.
— E isso tudo aconteceu há o quê? Cinco dias? — Josi perguntou.
— Já tem uma semana.
— Ele te procurou?
mostrou as mensagens no celular. As últimas haviam sido enviadas no dia anterior:
[Cretino FDP]: , me atende.
[Cretino FDP]: , por favor.
[Cretino FDP]: Droga, ! Atende a porra do telefone!
Josi fez uma cara dramática.
— Espera aí. Ele te ligou, mandou mensagem e você... não respondeu?
balançou a cabeça confirmando. Sorveu mais um gole da caipivodka de morango. Deliciosa. E incrível demais para ter sido preparada por uma garota de apenas dezessete anos.
— Sua idiota! Você tem algum problema de cabeça? —Josiane disse sem nenhum pouco de pudor.
Ah, a doce e sincera amizade.
— Não tenho problema de cabeça. Mas tenho orgulho e amor próprio. Wolf disse que eu não sou a primeira. Certamente não serei a última — a professora defendeu-se — e Elijah também me contou outras coisas sobre das quais não gostei. O mundo que eles vivem, Josi... É assustador. E eu estava ficando deslumbrada, não devo me envolver mais. Sei que me senti especial, mas a verdade é que é um astro galanteador. Foi melhor eu sair fora antes que ele enjoasse de mim e me dispensasse.
não tinha certeza se Josi realmente prestara atenção no que ela falara.
— Wolf, Nash...blá blá blá... bem, pelo menos você terá história para contar aos seus filhos, cujo pai, não será . — A adolescente levantou o copo indicando um brinde. — Saúde!
— Sua tentativa é me agradar? Pois não está funcionando...
— Não, minha função aqui é embebedá-la e ser boa ouvinte. Não prometi falar nada que você fosse gostar de escutar.
No instante seguinte, o telefone tocou obstinadamente. Como se a sensação de urgência pudesse ser captada pelo aparelho que tremelicava sobre a mesa. A combinação das letras no visor causou infinitas sensações no peito de . Josi foi mais rápida e o pegou num sobressalto. Antes que a professora pudesse impedi-la, ou terminar de ameaçá-la com uma dúzia de palavrões, Josiane já havia dito:
— Alô?
A garota não era tão boa com números, mas nas aulas de inglês era uma das primeiras da sala.
— Não, é a amiga dela quem está falando. Meu nome é Josi. E sou uma grande fã sua.
Josiane... desliga isso! balbuciou e fez uma sequência mímica cômica que sugeriam a morte da amiga.
Josi ignorou.
— Ah, e eu realmente adoro a música Burning House. — Pausa seguida de um sorriso brilhante de Josi. — Puxa, sério que esta é composição sua? Ela é demais. — A adolescente parou novamente para escutar o que quer que estivesse dizendo, olhos direcionados para . — Oh, sim ela está com muita raiva. Na verdade, está ao meu lado neste exato instante, ameaçando-me por ter atendido a sua ligação. — Mais um silêncio e um sorrisinho bobo nos lábios da menina. — Ok, verei o que posso fazer.
Josiane colocou o telefone contra o peito enquanto a encarava descrente.
Como pôde? — A professora inquiriu — Você é minha amiga! Deveríamos ser um time contra o filho da mãe!
— Sim, eu sou sua amiga, por isso acho que o certo que você tem a fazer... — Josi estendeu-lhe o telefone — é conversar com ele.
Ela ficou encarando o objeto na mão de Josiane.
— Ao menos escute o que ele tem para dizer.
A professora suspirou. Talvez sua amiga estivesse certa, de qualquer forma, só havia um jeito de descobrir.
— Ora, ora, se não é o cantor mais canalha de todos os tempos. — surpreendeu-se com a audácia das palavras. Sóbria e na presença dele, provavelmente não teria sido tão corajosa assim. — Será que o Grammy tem uma categoria para isso, hein?
? — Por um instante a voz dele quase fez com que ela se esquecesse do motivo pelo qual estava com raiva.
— Sou eu.
— Que bom que me atendeu. — O rapaz parecia aliviado.
— Aham. E onde está a Natalie Wolf, neste momento? Filmando o remake de Bonequinha de Luxo? — disse e Josi apenas balançou a cabeça para a amiga em recriminação.
Genial, . Genial.
— Andou bebendo? — Ele perguntou.
— Não responda à minha pergunta com outra pergunta. — disse na defensiva.
Ela o escutou suspirar antes de dizer:
— Eu não sei o que a Natalie está fazendo, porque não estamos mais juntos.
demorou alguns instantes processando a informação.
— Está dizendo...
— Estou dizendo que eu terminei com ela. Oficialmente. — A voz de foi firme.
— E... todos os contratos milionários?
— Fodam-se os contratos.
— Hum.
— O que foi?
— Não sei se acredito em você. Já mentiu para mim uma vez.
— Eu não menti, .
— Você omitiu. É praticamente a mesma coisa, . Mas e então? O que você quer?
O rapaz atrapalhou-se do outro lado da linha antes de dizer:
— Primeiramente, te pedir desculpas.
riu dramática. Uma pena que não estava ali para ver a cara que ela fez.
— É muito fácil falar isso por telefone.
— Claro. — O músico concordou de pronto. — Ajudaria se eu fizesse um pedido pessoalmente?
olhou para Josi, ela roía as unhas de ansiedade, a expressão do tipo “que raios de amiga é você? Ponha logo a conversa no viva-voz!”.
— Eu não vou até Los Angeles, . Não mesmo. — A professora revirou os olhos e bufou. — Se quiser me pedir desculpas, você que supere seu pânico de voar da mesma forma que faz para os shows e venha até o Rio.
— Isso significa que você está disposta a me perdoar? — perguntou e sentiu a esperança incutida nas palavras dele.
— Isso significa que estou disposta ao diálogo.
— Ótimo. Então autorize minha entrada. Estou aqui embaixo.
Adrenalina correu nas veias da garota. Aquilo só poderia ser brincadeira ou então o inglês dela não era tão bom como imaginava.
— O que você disse? — Ela perguntou só para ter certeza, mas talvez não acreditasse ainda que ele repetisse mil vezes.
— Eu disse que estou na porta do seu prédio. E o seu porteiro não entende uma palavra do que estou dizendo. — falou tranquilo. escutou o som da própria pulsação dentro dos ouvidos.
Impossível. Você não tem meu endereço.
— Rua das Laranjeiras, prédio “Rio das Ostras”. Um edifício amarelo. Ou bege. Ou marrom. Bem... não dá para definir que cor é essa. Mas acredita em mim agora?
ficou muda.
— O que ele está dizendo? — Josiane perguntou com olhos castanhos esbaforidos. fez um sinal com a mão para que a amiga esperasse.
— Como... você descobriu?
— Vantagens por ter investido num certo projeto da Universidade do Colorado: acesso a informações pessoais dos congressistas. — disse. — Estou esperando.
O telefone foi desligado em seguida.
Josi balançou a amiga que havia entrado numa espécie de estado cataléptico. piscou e colocou o aparelho na mesa. Ela inspirou e expirou, repetidas vezes, como se estivesse entrando em trabalho de parto. Deu uma olhada por toda a extensão do apartamento, depois para a blusa velha no corpo.
, o que aconteceu? Por que está pálida?
— Meu Deus, Josiane... me ajude a arrumar o apartamento.
Josi fez uma expressão surpresa para valer. Os olhos brilharam:
— O vocalista da Dark Paradise está no Rio?
— Ele está aqui embaixo, Josi. Anda rápido!
Josiane ajeitou a bagunça na pia e correu para o quarto. Juntou todas as roupas jogadas no chão e as socou dentro do guarda roupa. Trocou a blusa esfarrapada, colocou um pouco de gloss nos lábios. Bendita hora em que a amiga surgiu e a obrigou a tomar um banho. Abriu a janela do quarto. Cheiro de brisa marítima seria melhor do que o odor morno do cômodo fechado há dias. Então correu até o interfone na cozinha. O porteiro atendeu de primeira.
— Boa tarde, senhor Luis. — Ela pigarreou e tentou soar tranquila mesmo com os nervos à flor da pele. — Tem... um rapaz tatuado aí embaixo? — Facilitou as coisas para o funcionário. Tatuagens eram ótimos pontos de referência.
— Ah, oi . Tem sim. Ele é conhecido seu? — O porteiro disse desconfiado e provavelmente não tinha nada a ver com as tatuagens, mas com o fato de duvidar que uma professorinha medíocre era conhecida de um cara daqueles. Oh. Maldita falta de amor próprio. Tinha que se dar um pouco de crédito. Afinal, o homem veio de Los Angeles só para vê-la. pôs a mão no coração. As coisas estavam um caos dentro do peito. Ótimo. Trabalho de parto e agora um infarto. Tudo no mesmo dia. — Pode liberar a entrada dele, por favor.
Quando colocou o interfone no gancho, olhou estarrecida para sua aluna.
— Nossa. — Foi só o que falou, demais palavras mostrando-se desnecessárias.
— Tá. Vamos fazer assim: ele entra, eu tieto ele um pouco, claro. — Josi disse com um sorrisinho de lado. — Depois vou embora para vocês conversarem.
A professora sorriu de volta. Acordo justo.
— Combinado.
E mesmo que já fosse esperado, o som da campainha fez o corpo de dar um leve solavanco. Ela olhou para Josi pedindo uma aprovação implícita. A amiga fez um gesto afirmativo de indicador. Mas a professora conferiu o rosto no espelho novamente e ajeitou o cabelo, só por precaução.
Então abriu a porta.
parecia ainda mais bonito do que da última vez, como se ter passado por um voo exaustivo não tivesse o efeito de macular nenhum um pouco o viço do seu semblante. Talvez fosse assim com todas as celebridades. Ele retirou os óculos de sol, como se já soubesse que aqueles olhos verdes vinham acompanhados de um solvente de mágoas femininas. Ponto para ele. Puta merda. Era muito difícil continuar forte diante daquela imagem. E o homem nem havia aberto a boca ainda.
— Olá. — disse. Ah, uma palavrinha tão curta. Mas garotas deviam derreter-se por muito menos, uma mísera letra do alfabeto saindo daqueles lábios tão perfeitos e sacanas já cumpriria bem o papel.
— Oi.
fez um aceno de queixo rápido para dentro do apartamento.
— Posso entrar?
A professora deu-lhe passagem.
— Pode.
duvidou que desde os anos 70, época em que o prédio Rio das Ostras foi construído, um espécime tão perfeito quanto já havia caminhado por aquelas estruturas. Talvez sugerisse à síndica colocar uma plaquinha como marco da passagem ilustre depois que ele fosse embora. Josiane estava com um sorriso idiota nos lábios. agiu rápido, antes que baba escorresse da boca da sua aluna.
— Ah, . Esta é a minha amiga, Josi.
Ele sorriu para a adolescente e estendeu-lhe a mão.
— Ei. Prazer. E obrigado pela ajuda.
— O prazer é meu... Imagina. — Josi suspirou e ficou sem piscar por mais de seis segundos. De acordo com a ciência, quando alguém age assim, de duas uma: ou ela está alimentando desejos sexuais por esta pessoa ou deseja matá-la. E Josi não era nenhuma psicopata. — Bem, eu vou deixar vocês dois conversarem... parece que... já nem estão me vendo aqui. Tudo bem. Vou embora. , me ligue depois, ok?
Nem escutaram quando a porta se fechou.
— E então? — disse. Algum dos dois tinha que começar aquilo. Só ficar olhando para ele era ótimo, mas não chegaria a lugar nenhum. — Por que está aqui?
— Porque precisávamos conversar, não podíamos deixar as coisas daquele jeito. — As mãos de estavam bem comportadas dentro do bolso da calça. notou a barba curta sombreando o rosto dele, ressaltando ainda mais o maxilar perfeito. Que beleza. Enquanto os últimos dias fizeram a garota ganhar olheiras, o desleixo do rapaz só o deixou ainda mais bonito.
— Podíamos sim. E deixamos. — Ela foi incrivelmente categórica. Ah, tola orgulhosa.
— Não, , não deixamos. E você acabou de me dizer que estava disposta a conversar, já esqueceu? Ou estava me testando? — disse, sua mandíbula levemente tensa.
— Droga, . Você não pode fazer isso. Não pode aparecer aqui, assim do nada, e achar que tudo vai ficar bem. — cerrou os punhos na defensiva. Deu-se conta de que, de tão nervosa, nem ofereceu para que ele se sentasse.
O abraço de a pegou de surpresa. Foi forte o suficiente para deixar claro que, da parte dele, não havia nenhum pouco de orgulho. Desde a última vez, não se importava mais em ser sincero quanto ao que sentia. Na verdade, não tinha muito controle sobre isso. A garota tinha o dom de desarmá-lo de todas as formas.
No começo não queria ser tão fácil, mas era difícil resistir. Inspirou o perfume que recendia da pele do músico. Seu cérebro já entendia aquele aroma familiar como cheiro de segurança. Agora como se sentir segura ao lado de alguém que tinha “desordem” como lema de vida era uma total falta de bom senso. Maldição. Seu coração estava fazendo o cérebro funcionar às avessas.
A professora fechou os olhos, tentando em vão conter as lágrimas. Mas as desgraçadas estavam realmente empenhadas em fazer um estrago. Sentiu quando uma acertou o tecido da camiseta. Pronto. teria um belo vislumbre dela vulnerável e descobriria que toda aquela firmeza que ela tentava vender era fachada.
O sistema nervoso de concentrou-se no toque de , dedos que percorreram os lugares exatos do rosto dela.
— Ei. Agora que eu estou aqui... eu posso te olhar nos olhos... — ele estabeleceu contato com aquelas íris verdes que levavam vantagem de longe. Não era justo. — E dizer, que eu sinto muito. Eu realmente sinto muito.
Ela mordeu o interior da boca.
— Eu gostaria que essas palavras pudessem resolver as coisas, mas ainda estou bem magoada, . — replicou, mas desejou que sua voz não saísse tão distraída e pastosa. — E não foi só quanto a Natalie, realmente fiquei ofendida com o fato de você pensar que eu ficaria com o Elijah.
— Claro, e com razão. Eu assumo a totalidade da culpa em ser um idiota.
Ele a soltou. Na verdade foi quem deu um passo para trás. Conversas sérias não precisavam de tantos dedos e braços entrelaçados. respeitou os limites dela. Deu uma olhada na sala pela primeira vez e então viu o toca discos no canto. O vocalista sorriu. Que tipo de menina de vinte e um anos colecionava vinis antigos?
Só a melhor delas, ele supôs.
— O que você estava ouvindo? — Perguntou e foi até o aparelho. Era uma relíquia.
ficou vermelha, se tivesse chegado algumas horas antes, teria ouvido a garota esgoelando totalmente desafinada um dueto para Dan McCafferty.
— Nazareth. — Ela respondeu poupando-o dos demais detalhes.
— Ah, é bom. — estudou o aparelho antigo. — Então você também tem vinis de rock aqui, hum?
— Esse é novo. — sacudiu a cabeça. — Quero dizer, comprei recentemente num sebo. Claro que não é novo. Eu meio que estou aumentando meu repertório.
O rapaz a olhou de soslaio. Tinha aquele esboço de sorriso que formava covinhas no rosto.
— E eu tenho alguma influência nisso?
Malditas covinhas.
— O que você acha? — Ela disse, o cenho ainda franzido.
recolocou a agulha no vinil. E “Love Hurts” retumbou imponente pela sala. De repente, a música ouvida à exaustão nos últimos dias, soou demasiadamente surreal agora que o objeto da sua fixação estava ali, em carne e osso (e muitos músculos) parado à sua frente.
— A melodia é boa, mas a letra é depressiva demais. — Ele falou.
— Mas é verdade, não? O amor realmente pode machucar.
— É, pode... mas ainda assim, não quero desistir dele. — aproximou-se, o solado dos coturnos repercutindo contra o assoalho antigo quase faziam páreo com as batidas do coração de . — Você quer?
Ela não conseguiu responder.
... — Ele já estava parado a sua frente.
— Deus. Isto é uma merda. —Ela disse e enxugou mais lágrimas. — Eu sou sempre tão racional, mas acabo sendo uma estúpida quando o assunto é você. Por quê?
sorriu soturno.
— Então acho que temos um impasse. Porque eu sou um inconsequente e parece que você é a única capaz de trazer um pouco de equilíbrio para minha vida.
— Oh,
Ela não impediu quando as mãos dele envolveram a sua cintura. De repente seu corpo oscilou em um balanço ritmado. Estava sendo guiada pelos passos de um dançarino que surpreendentemente sabia o que estava fazendo. Uma valsa improvisada na sala. Uau. Será que havia algo em que o homem não era bom?
Aquela música piegas e sofrida de repente poderia ser a música dos dois, e não o hino de dor eleito por uma garota solitária. colocou os braços sobre os ombros dele. Ele encostou o rosto próximo à têmpora da garota, a barba arranhou-lhe de um jeito sutil que a fez arrepiar.
— Lembra todas as vezes que eu lhe disse para procurar o cara certo? — balbuciou e os lábios curvaram-se num meio sorriso que não viu, mas sentiu na pele. — Lembro.
— Pois esqueça toda aquela baboseira. E me deixa ser o cara certo para você.
Um giro sutil e a inclinou. Os lábios do homem então repousaram no pescoço de e a tensão explodiu dentro dela. Se o braço de não estivesse firme nas suas costas em apoio, provavelmente a menina teria dado com a cara no chão. Bem... seria uma ótima forma de ganhar um galo. Teria valido a pena.
Quando a trouxe novamente para a vertical, ela quase teve uma vertigem. sentiu as mãos por baixo da bainha da sua camisa. Entendeu de imediato o que elas queriam. Levantou os braços e permitiu que retirasse-lhe a peça. Desculpe, Dan McCafferty, realmente o amor é uma droga, machuca e tudo mais. Mas pessoas apaixonadas são fracas, tem memória de peixinho dourado e em alguns momentos, deixam a libido falar mais forte.
repetiu o gesto com o astro e a camiseta de logo estava no chão. Passou os dedos pelo peito do rapaz, onde a cauda escamosa e colorida de um dragão serpenteava-lhe a pele. As mãos de subiram pelas costelas dela, desabotoando o fecho do sutiã com a experiência de quem já fizera aquilo incontáveis vezes. Merda. Pelo bem de sua sanidade, ela realmente não precisava pensar sobre isso naquela hora. Nem nunca.
Não eram apenas os olhos verdes de que levavam vantagem, parece que os seios de também tinham algum efeito hipnótico sobre o homem. Ela ficou lisonjeada de início, mas de repente, o fato do sol ainda estar imperioso no céu daquela tarde a fez sentir-se exposta demais.
A noite era mais complacente em causar boas impressões.
Quando tentou tampar-se com os braços, envergonhada. a segurou pelos pulsos de um jeito delicado, mas do qual ela não conseguiria se soltar nem se quisesse.
— Não faça isso, garota. — Ele disse. — Você sabe que te acho linda.
a abraçou e o atrito das peles desnudas fez gemer involuntariamente. Ele agachou-se, o rosto rente aos seios dela, então sua língua diligente causou-lhe uma balbúrdia de sensações. Maldição. Como discutir a relação depois disso? Ela viu estrelas em pleno céu ensolarado. Ok. Não viu, pois a janela da sala estava fechada. Senão ela as teria visto, ah se teria.
Era hora de terminar aquela dança em outro cômodo do apartamento.
A dona do lugar indicou o caminho. Havia zero glamour ali quando comparado à casa de Los Angeles, mas que se dane. fechou as cortinas. A brisa fez com que o tecido oscilasse como velas de barco a deriva. E pensar que não muito longe dali, poderiam estar ouvindo o som de ondas quebrando-se na areia, e não o barulho de um trânsito caótico. Que pena não ter o dinheiro necessário para alugar uma cobertura em Copacabana.
e olharam para o colchão. Ela pensou na bagunça visual que eram todos aqueles lençóis amarrotados, florzinhas ridículas estampadas no tecido do travesseiro misturando-se a um edredom de Poá rosa: a mais duvidosa das combinações. Mas nas belas íris de , a garota viu apenas o reflexo de pensamentos sacanas. Ele certamente não estava importando-se com camas desfeitas quando sua intenção era mesmo desfazê-las.
O rapaz a sentou sobre o colchão, como se ela própria não soubesse fazê-lo, então tendeu seu corpo sobre o dela, e as costas da garota seguiram o curso esperado até encontrarem o lençol macio.
— Eu nem perguntei. — disse com a boca colada ao ouvido dela. — Você tinha algum compromisso ou algo do tipo?
Rá. Era sério isso? O casamento do irmão de poderia estar acontecendo naquele momento que ela mandaria um cartão bem colorido desculpando-se pela ausência.
— Não... eu... não tenho nada programado pelas próximas horas... — Ela respondeu e sua respiração já estava ridiculamente alterada.
— Pelas próximas horas, é? Bem, acho que é suficiente.
Quando a beijou, a exaltação do homem era tanta que a garota sentiu os dentes dele prendendo-se ao seu lábio inferior. Algo meio violento, mas que parecia proposital. Ela ignorou a dor, e focou exclusivamente no prazer inesperado daquele gesto rude. Mais provável que fosse o misto das duas coisas que estava elevando a potência daquilo aos extremos.
observou as reações dela. deu-lhe sinais positivos para que continuasse o jogo de acordo com aquelas novas regras. Claro, afinal, era ele o astro do show. E ela pediria bis depois, com certeza. Diferente da primeira noite, o rapaz não queria mais ser cauteloso com suas ações. E sabia que estava sendo um pouco afoito, mas desejava demais a garota para ser gentil daquela vez.
sentiu o gosto metálico na boca, não soube precisar se o sangue era seu ou dele: ela também havia exagerado nas mordidas. Cristo. Aquilo era animalesco demais. Não poderia estar certo. Mas a verdade, era que se sentia bem fazendo a coisa errada. Então ele falou enquanto desabotoava o short dela, um sorrisinho infame moldando-se perfeitamente aos lábios inchados:
— Nova lição de sexo, garota prodígio: as melhores fodas, vêm depois das piores brigas.
Ela sorriu como uma garotinha boba que não sabia lidar de forma saudável com expectativas. Queria pagar para ver.

***
O corpo dele pesou sobre o seu pouco tempo depois. A pulsação no peito de era absurda e não havia uma mecha sequer de seu cabelo castanho que não estivesse imbuída em suor.
— Caramba... isso foi... muito bom. — conseguiu arrumar forças para dizer então suspirou. arquejou quando ele saiu de dentro dela.
— Foi demais. Meu Deus… demais.
— E esta tudo bem?
— Eu estou bem. — abraçou o homem desfalecido ao seu lado, seus dedos brincando com uma mecha escura do cabelo dele. — E dessa vez eu falo sério sobre não deixar você sair desta cama nunca mais.
O sorriso de foi de pura satisfação.
— Nem para pegar as minhas coisas no hotel?
Os olhos dela brilharam.
— Ah, para isso posso abrir uma exceção. Tem planos de ficar no Rio até quando?
— Até domingo. — disse e fez as contas. Não seria muito. Já era quinta-feira. — Você vai estar disponível nos próximos dias?
Por um instante foi tentador cogitar a ideia de usar o atestado falso deixado por Josi.
— Eu dou aula hoje à noite, e amanhã, além do trabalho, tenho o Mestrado. Mas no sábado estou livre e... ah, droga. — Ela franziu o cenho e colocou o rosto entre as mãos.
a olhou, uma leve preocupação traçando rugas na pele reluzente de suor.
— O que foi?
— Sábado é aniversário de casamento dos meus pais.
— Certo.
— Eles não vivem no Rio. Moram em Vassouras, uma cidadezinha há duas horas daqui. Eu não posso deixar de ir.
— Ah. — Ele disse claramente decepcionado. Seu belo rosto não deveria passar por tanta provação.
— O que nós vamos fazer?
— Bem... Eu poderia ir com você, se não tiver problema.
Ela o encarou realmente surpresa.
— Você quer ir comigo até a casa dos meus pais?
— Se não for inconveniente.
sorriu como uma boba.
— É claro que não é inconveniente.
Meu Deus.
Depois ficaram ali. Olhando para o teto sem nada dizer ( sempre descobria uma nova manchinha de mofo na pintura cada vez que fazia isso). E nem um deles soube, mas ambos tiveram o mesmo pensamento: como a vida lhes preparou tanta surpresa desde aquela primeira noite em Praga. Quem diria que agora estariam lado a lado, num quartinho abafado, planejando envolver mais pessoas naquela história cheia de reviravoltas.
roçou a mão na barriga dela, um movimento circular ao redor do umbigo. Os lábios de pararam certeiros no ombro do rapaz, ela o mordeu bem de leve.
Então confessou:
— Eu nunca levei ninguém à casa dos meus pais antes.
Ao que disse de volta:
— E eu nunca conheci os pais de uma garota antes.
Ambos suspiraram. O de , um pouquinho mais longo. Depois gargalhou sozinho, a garota levantou o rosto e o encarou com curiosidade:
— Que foi?
— Lembra quando saímos da festa em Denver e estávamos indo para o estacionamento?
Ela nem precisou pensar muito para resgatar a lembrança.
— Claro.
— Naquela noite você disse que seu pai me expulsaria da sua casa com um pontapé.
Ela colocou a mão no rosto e riu envergonhada. De que forma misteriosa trabalha o destino, não?
— Ai, droga. Falei.
Gargalhadas preencheram o ar, para depois vir a voz de , tomada por uma leve tensão:
— Bem...Você não estava falando sério... estava?



Capítulo 18

A estrada até Vassouras não deveria causar grandes emoções. Afinal, aquele caminho sinuoso fora feito a exaustão nos últimos meses. Mas um misto de sensações corroíam as entranhas de , como o frio na barriga: cujo agente causador encontrava-se impecavelmente vestido, perfumado e sentado ao seu lado, no banco do carona.
O músico havia se esforçado para causar uma boa impressão. Escolheu uma camisa social cinza que escondia as tatuagens e não economizou tempo para deixar seu belo cabelo no lugar. agora tinha um topete e parecia uma versão moderna do Elvis Presley. (E ao menos o pai de era fã do rei do rock). Ele também poderia ter tirado os brincos, mas realmente não iria pedir isso quando o rapaz já havia feito tanto por ela. A nova versão de era o suficiente para que o conservador senhor apenas torcesse o nariz ao invés de confundir o astro com um traficante de drogas.
mantinha os olhos fixos na estrada enquanto ajustava a altura do som. MPB, claro. Seu carro, suas regras.
— Você está nervosa? — Ele perguntou na terceira vez em que em notou a garota mordendo o lábio.
Sim, claro que ela estava nervosa.
— Não. Você está?
— Não... — respondeu hesitante. — Afinal, não é um show para cinquenta mil pessoas, são apenas seus pais, certo?
— Sim, são apenas meus pais. E você é só um amigo que estou levando para jantar com eles.
Os dedos de que batucavam os acordes de Sampa no painel de plástico do Fiat Uno pararam de repente.
— E eles acreditaram nisso? Que eu sou apenas um amigo?
acionou o lavador do para-brisa na esperança de tirar uma manchinha do seu campo de visão antes de contrapor:
— E por que não acreditariam?
— Porque não acho que seus pais sejam bobos, . Alguém que vem de fora para um jantar certamente não iria querer ser apenas um “amigo” da filha deles.
— Oh, bem... — Ela se atrapalhou para dizer, ajeitou novamente o corpo no banco do motorista. — Você não veio apenas para conhecê-los, na verdade foi mais um acidente de percurso.
— Certo.
Um carro os ultrapassou. A garota mantinha a velocidade comedida, precisava ganhar tempo para se tranquilizar. Depois de um silêncio curto, disse:
— Me fale mais sobre o senhor e a senhora . Quero me preparar para não fazer feio.
sorriu, o gesto funcionando como um remédio dissipando a tensão no veículo.
— Bem... Íris é professora de inglês no estado, e também pintora. Era um hobby, mas ela realmente está se dando bem. Tem página na internet e tudo mais. Meu irmão costuma dizer que as telas são de gosto duvidoso, mas eu acho o estilo muito legal.
— Ah, uma artista. — suspirou um pouco aliviado, como se aquilo significasse alguma vantagem para ele. Pintores, músicos e loucos deviam ter algum código de conduta que os faziam ser legais uns com os outros. — Ok. E seu pai?
—Papai é coronel da polícia. — fez uma pausa proposital para esperar a reação de .
A expressão dele variou da surpresa ao terror.
— É. — Ela continuou. — Os garotos sempre faziam essa cara. E talvez seja por isso que eu nunca levei ninguém à minha casa.
O homem expirou sofrido. O desespero nos olhos dele quase fez gargalhar.
— Rá. Ótimo. Então você estava minimizando as coisas. Seu pai não vai simplesmente me expulsar aos pontapés, ele vai atirar em mim quando souber que estou dormindo com a filhinha dele.
A garota quase pisou no freio por engano. Notou o seu convidado ilustre apertar os dedos no banco. Não soube dizer se foi por medo de um acidente ou pela descoberta da profissão de Charles . Bem, em ambos os casos, sua vida corria algum risco. E era jovem, famoso e lindo demais para morrer.
— Por Cristo! Não, não vai, porque ele nunca vai saber uma coisa dessas! — exclamou constrangida. O assunto sexo e seus pais não combinavam. Não deveriam coexistir no mesmo espaço, jamais.
riu da reação exagerada dela.
— Calma, . Eu tenho muito amor à vida para insinuar qualquer coisa para um coronel da polícia. Ele e sua mãe já devem ter imaginação suficiente.
ignorou a última parte da resposta e seu rosto foi relaxando aos poucos. A pasta de MPB já tinha terminado há um bom tempo e nenhum dos dois tinham se dado conta disso. Até que a garota falou:
— A música acabou. Pode escolher agora.
— Tem algum rock? — Claro que ele perguntaria.
— Tem de uma banda chamada Dark Paradise. Conhece?
riu.
— Ah, até que eles são bonzinhos.
— Eles são os melhores. Coloque.
—Não. Estou enjoado deles. — contestou sarcástico. — Do vocalista principalmente.
— Então não vou ter muitas outras opções... E sobre o vocalista desta banda em questão, tenho que dizer: apesar de ser metidinho, ele é um arraso... e não estou me referindo exclusivamente ao que ele faz em cima dos palcos.
encontrou os olhos de por um instante, os cantos dos lábios dele mantiveram-se curvados por bons segundos. Ok. O homem tinha todo direito do mundo de vangloriar-se.
Depois ficou surpreso quando descobriu uma música da banda Firehouse numa pasta intitulada “sucessos românticos do passado”. nem se lembrava de ter aquela sequência ali. Grandes chances de terem sido adicionadas enquanto uma certa professorinha buscava reviver lembranças envolvendo Praga e um astro do rock.
— Ei, tem Firehouse aqui. É hard rock dos bons. — Ele disse.
O carro popular não tinha um motor potente, mas a aparelhagem de som era razoável. E When I look into your eyes preencheu o interior do veículo divinamente. Mais belo ainda foi o fato de acompanhar o vocal e dar um show improvisado. Não teria sido má ideia abaixar o volume naquele instante e deixá-lo cantar à capela até o destino.
Quando a música terminou, recolocou a sequência de MPB. Admitiu, ainda que um tanto vacilante, que havia gostado da melodia de Sozinho. E explicou-lhe o que dizia a letra daquela canção de Caetano Veloso, umas das favoritas dela. Ao final, a expressão dele foi à mesma de uma criança que acabara de descobrir vários mistérios envolvendo estrelas, planetas e outros assuntos correlatos ao universo.
— Canta para mim? — Ele pediu.
— Quê?
— Canta um pedaço para eu ouvir. Gosto quando você fala sua língua nativa.
E porque ela desafinou quando sua voz subiu uma oitava na parte do refrão, ele gargalhou de um jeito doce. Mas quando o encarou, para também rir de si mesma, sentiu no olhar dele apenas uma grande admiração. Então se deu conta de que ela poderia ter cantado com a perfeição de uma soprano ou estar tão rouca a ponto de nem ouvir a própria voz, que não importaria, pois teria achado o momento precioso da mesma forma pelo simples fato de ser ela, e não qualquer outra, ali ao lado dele.
O dourado do sol agora se dispersava por entre tons de vermelho, rosa e azul no céu da tarde. Nuvens amontoadas agrupavam-se no horizonte como carneirinhos recolhendo-se dos perigos da noite em algum lugar seguro.
Uma placa indicou Vassouras a menos de dez quilômetros.
— Ei. — então disse de repente, depois de correr as mãos pelos cabelos, notando algum detalhe que passara despercebido. — Talvez seja bom eu retirar os brincos.
arqueou as sobrancelhas e a sugestão de um sorriso passou brevemente pelos seus lábios. Que o rapaz não a visse rindo daquela piada particular.
— É... Talvez você devesse tirar.

***


A fachada havia sido pintada recentemente num tom laranja vívido. Ideia de Íris, com certeza. Essa nuance jamais passaria pelo crivo conservador de Charles. Os arbustos que decoravam a frente da casa colonial estavam bem aparados. Não havia muitas flores, mas o pequeno jardim era bem agradável aos olhos e se destacava entre os demais.
Antes de apertar a campainha, virou-se para o rapaz.
— Não se preocupe com o inglês. Como eu disse, Íris é professora, papai se vira muito bem e Otávio fez um ano de intercâmbio. Todos certamente vão se entender essa noite. — O vocalista deu um aceno de cabeça em resposta e ela continuou. — Ah, e , ignore o interrogatório que Charles certamente lhe fará. Sabe como é... Mal de policial.
E também de pai superprotetor.
curvou os lábios, covinhas revelando-se no seu rosto. Ah, ninguém na casa resistiria a esse sorriso... Tão encantador. Já era meio caminho andado.
— Claro, garota. Tudo por você.
sentiu-se bajulada e sorriu de volta, mas depois que o som das duas notas agudas repercutiu pelo sobrado, viu o pomo de Adão dele se levantando.
Ela também engoliu em seco o nervosismo.
Então ouviram os passos firmes contra o piso de madeira preceder a abertura da porta frontal. Íris estava com um vestido amarelo que lhe caia muito bem. Novo com certeza. Ela não repetiria roupa no dia do seu aniversário de casamento, mesmo que a ocasião fosse exclusiva para cinco pessoas.
, querida!
Abraçou a filha como se não a visse há tempos. Ao que parece, o fato de a garota visitá-los frequentemente, nunca seria o bastante. A senhora de meia idade tinha o mesmo cheiro de um campo de lavandas num início de manhã. Os cabelos castanhos estavam bem escovados e olhos cor de mel, naquela noite, foram destacados com uma maquiagem clássica. Se o que dizem a respeito da filha ficar parecida com a mãe for verdade, poderia ficar tranquilo que a garota não decepcionaria.
Em seguida, Íris deu uma boa analisada em . O mesmo tipo de olhar que o músico recebia sempre que uma mulher avistava aqueles traços pela primeira vez.
Ah, mamãe, mamãe, no seu aniversário de casamento?
— Oh, e você deve ser o . — Ela disse, encantada. Nem se preocupou em fazer com que o sorriso bobo fosse um pouquinho menor.
— Muito prazer, senhora . Agora já sei de quem herdou tanta beleza.
O homem sabia mesmo conquistar aliadas.
— Oh! Que gentileza, ! — Íris disse e até colocou a mão no peito para dar mais ênfase a sua cara de felicidade. — A está muito bem acompanhada. Por favor, entrem!
Adornando o hall de entrada, havia uma sequência de três quadros em estilo abstrato. Eram os objetos mais modernos que o casarão centenário possuía. teceu elogios às telas e a artista desmanchou-se em sorrisos. O cheiro de boa comida já rescendia forte no lugar.
Estavam terminando as apresentações quando ouviram o barulho nada cortês vindo das escadas. Impressionava o fato de cada degrau permanecer intacto mesmo quando Otávio insistia em descê-los como um animal de tração. Obviamente, Íris nunca deixava isso passar:
— Otávio! Isso são modos? Sua irmã trouxe companhia, venha conhecê-lo!
Para horror de Íris, senhora perfeição, o filho caçula tinha o rosto cansado de quem passara horas em frente ao Playstation. Parece que Otávio não estava muito animado com aquele jantar em família. Mas quando avistou , cerrou as sobrancelhas e ficou encarando.
— Puxa, você se parece muito com... — Otávio ia dizendo quando a irmã o interrompeu.
— Otávio. Este é .
Foi como tomar uma dose de adrenalina. A fadiga desapareceu de pronto do semblante do garoto, a euforia tomando seu lugar.
— PUTA.QUE.PARIU! — Os olhos de Otávio fitaram , admirados.— Caramba. Quero dizer... prazer.
Bem, ali estava uma coisa muito mais interessante que o último lançamento de Assassin’s Creed.
— E aí. — ofereceu-lhe um daqueles cumprimentos de garotos. — falou muito bem de você.
Íris não entendeu muito bem a reação do filho, mas deixou por isso mesmo. disfarçou, iniciando uma conversa animada sobre pintura a óleo que atraiu toda a atenção da mulher. Otávio aproveitou o momento e puxou a irmã num canto.
, o que o está fazendo na nossa casa? — Ele sussurrou, a expressão atônita.
— É uma história um pouco longa. Mas digamos que de alguma forma você ajudou para que ela desse certo. — A garota deu uma piscadela para o irmão. Continuou depois que Otávio a encarou, ainda sem entender. — Foi você quem me incentivou a mandar a mensagem para ele, lembra?
O caçula arregalou os olhos.
— O cara de Denver... era ele?
fez um gesto afirmativo acompanhado de uma risadinha luminosa.
— Caralho! Por que você não me contou? — Otávio disse com o tom injuriado, mas a felicidade era demais para começar uma discussão.
— Ué. Teria mudado algo?
—Claro! Eu teria dado um jeito de ir à sua mala ver o show deles de camarote, poxa! Ah, caramba, ! na nossa casa! — Otávio disse aumentando o tom de voz. — Me diga que vocês já estão pensando em casamento e filhos, por favor.
— Shhh! — pediu silêncio. — Papai e mamãe não sabem quem é e tem que continuar assim para que ele fique a vontade, não quero que o fato dele ser famoso possa influenciá-los de alguma forma. Tudo bem?
O garoto enrugou as sobrancelhas. Por que esconder algo tão fantástico? Sua irmã era uma idiota. Mas depois simplesmente respondeu:
— Tá, tá. Tudo bem.
A garota o olhou de forma sugestiva e cruzou os braços.
— O que é? Eu prometo! — Ele foi ainda mais enfático.
— Então para de fazer essa cara de cachorrinho reencontrando o dono depois da guerra!
Otávio fez um gesto bem rápido em concordância antes que Íris se aproximasse.
— Meninos, está tudo bem?
— Perfeito. — disse. Deu um cutucão no irmão depois que o pegou encarando com a mesma cara que ele havia acabado de prometer não fazer.
— Er...Tudo ótimo, mãe. — Otávio disse enquanto alisava a parte do braço atingida pelo cotovelo da irmã. — Já estou com fome. Vamos jantar?
Acompanharam a anfitriã até a sala de jantar, e recostou no ombro de no caminho.
— Prepare-se para conhecer Charles. — Ela sussurrou para o músico. — Ele nunca ouviu falar de Dark Paradise, também não pinta quadros... E acredito que seu sorrisinho sexy meio de lado não vai funcionar com ele.
O rapaz deu um aceno curto. Depois franziu a testa, preocupado:
— Ok. Mas isso não pode ser tão difícil quanto você faz parecer, hum?
— Bem... estamos a poucos minutos de descobrir.
Cinco lugares estavam postos a mesa. Íris escolheu a melhor porcelana e também sua toalha de mesa rendada favorita. O cheiro característico no ambiente confirmava as expectativas de que Charles havia preparado sua famosa costela assada. Uma coisa boa do senhor : ele era ótimo na cozinha e não tinha vergonha disso.
Sons de sapato social precederam a entrada de Charles. Usava uma camisa branca e calça caqui. (Ele e Íris estavam formando um par e tanto com toda aquela pompa). Marcas da idade lhe eram fortes ao redor dos tenros olhos castanhos e seus cabelos grisalhos diminuíam em locais específicos do couro cabeludo. Ainda era corpulento: ser policial o obrigava a exercitar-se e ele nunca abandonara o hábito. Estava segurando uma faca na mão direita, mas destinada exclusivamente para a carne, claro. Não tinha nada haver com intimidações. Já pode ficar calmo, .
— Olá, , tudo bem? — Charles disse para a filha, sem dedicar, neste ínterim, mais do que um olhar rápido e carregado de suspeita na direção de .
— Oi, papai. Este é... — O nervosismo não a deixou terminar a frase. O músico antecipou-se e estendeu a mão para o homem:
— Sou . É um prazer conhecê-lo, senhor .
Charles deu-lhe uma nova olhada dos pés à cabeça. Depois, trocando a faca de mão, respirou fundo uma vez e correspondeu ao cumprimento. — Sente-se.

*


— Então... — Charles pausou, desfrutando de um gole mais demorado do vinho tinto. Todos estavam ligeiramente tensos na mesa. Principalmente , com toda essa coisa de ter que causar boa impressão para alguém que claramente estava tentando dificultar ao máximo para ele. — Você e se conhecem há muito tempo?
O músico engoliu a comida bem devagar antes de responder, ganhando tempo para planejar cada palavra.
— Já tem alguns meses, senhor.
Resposta errada. Para Charles , qualquer coisa que dissesse respeito à filha, deveria ser compartilhada com ele imediatamente. remediou quando notou a cara intimidadora do policial e a tensão nos olhos de :
— Mas tem pouco tempo que nos reencontramos.
— Hum, talvez seja por isso que ela nunca mencionou você. — Charles complementou, um doce. — Onde vocês se conheceram?
— Em Praga.
O pai da garota animou-se por um breve momento:
— Ah, durante o mestrado? Também é da área da Matemática?
Uma nova tensão instalou-se na mesa no exato instante em que serviu-se de mais um pedaço de costela.
— Não, senhor. Eu sou músico. — respondeu e os olhos de Charles fuzilaram a filha em silêncio.
— Músico. Tá. Mas de verdade, você trabalha com o quê?
— Charles! — Íris o repreendeu. Teria engasgado se não fosse o vinho. por sua vez escondeu o rosto entre as mãos e abaixou o olhar até encontrar as listras horizontais estampadas na sua saia.
— Ora, Íris, eu fiz uma simples pergunta. — O policial retrucou.
— Pai, para sua informação ele é... — Otávio começou a dizer todo animado. Ao que deu um chute na perna do irmão por baixo da mesa— AAAI!
Três pares de olhos atônitos encararam o garoto.
— O que foi isso, Otávio? — Charles disse em repreensão.
— Er... não foi nada. Desculpa. Só... “bati” minha perna “sem querer” no pé da . — O garoto franziu o cenho para a irmã. — Cuidado com seu pézinho, maninha.
Ela se fez de desentendida enquanto comia as ervilhas. Havia verdura suficiente no prato para fazer Íris olhar admirada. E a mulher poderia agradecer a um garotinho de três anos por isso.
— Então? — Charles não se dava mesmo por satisfeito. — Tem alguma profissão fora a música, ?
levantou o rosto, limpou os cantos da boca com o guardanapo e disse quase se desculpando:
— Bem... receio que eu seja apenas músico, senhor. Mas não toco sozinho, tenho uma banda de rock. — Falou, como se partilhar da mesma paixão com mais três roqueiros malucos pudesse fazer do seu fardo menor e mais bem aceito pelo senhor .
— Hum... — Charles bufou — eu também tinha uma banda quando era mais novo. — Todos na sala o olharam, admirados. Charles nunca tinha revelado isso para os filhos. — Eu era bom, a Íris gostava. — O policial concluiu.
O suspiro de alívio que Íris deu foi quase perceptível. Achou ótimo o fato de o marido mostrar que ele e nem sempre foram tão diferentes.
— É verdade, meu bem. Você era realmente talentoso. — Ela disse. — O que você faz na banda, ?
— Sou o vocalista. — respondeu orgulhoso, sem se deixar intimidar com os comentários do coronel.
— Oh, um cantor! — Íris bateu as mãos, extasiada. Depois se voltou para o esposo. — Que bacana, não é mesmo, Charles?
Ele não respondeu diretamente a pergunta. Mas a cara feia que fez já falou por si. O homem pigarreou, então ignorou o apelo da esposa e continuou com a total falta de delicadeza:
— Eu tocava baixo, mas claro, isso era apenas um passatempo. Não conseguiria sustentar minha família se fosse apenas músico. Quer constituir uma família, senhor ?
já havia deixado os talheres de lado e ia começar a censurar o pai quando sentiu o toque de por baixo da mesa. Estava tudo bem. O rapaz era grandinho e sabia lidar com um pai ciumento. Então ele falou para Charles, não antes de dar uma piscadinha para a filha do homem:
— Claro, senhor. Assim que a estiver pronta.
ficou vermelha, e Charles, possesso com aquela indireta. Ver a filha cair nas mãos de um tipo como era demais para um pai conservador.
— Bom, então seria interessante começar a cogitar outro emprego. — O policial falou sem alterar o tom. — O dinheiro da música é o suficiente para arcar com suas despesas?
— Ah, sim. O bastante para não sairmos devendo a própria bebida. — respondeu. Só Otávio riu da piada. O garoto já havia desistido de comer há um bom tempo e apenas mexia no prato sem perder detalhes da conversa. teve quase certeza de que o músico sorriu antes de sorver mais um gole de vinho.
Íris, claramente tensa, dava sinais de que mataria o esposo quando tivesse a chance.
— Já conversamos demais, não? Charles, que tal deixar o rapaz comer? — A mulher falou toda sem graça.
— Uma última coisa, . — O policial não desistia. Ocorreu a Íris que seu esposo arrumaria trabalho fácil se estivessem na época da Inquisição. — Como está saindo com minha filha, não vai se importar que eu lhe pergunte o quanto ganha em uma noite.
Pronto. Íris e estavam prestes a ter um infarto. E enquanto Otávio continha a vontade de explodir em gargalhadas, sorriu educado.
— Sem problemas. — Ele respondeu, uma ruguinha charmosa formou-se em sua testa indicando que o rapaz realmente estava fazendo as contas. — Bem, vai variar um pouco. Temos uma boa porcentagem da venda dos ingressos, mas também muitas despesas, tipo... empresários, equipe técnica, gastos com a viagem... e somos em quatro. Acho que no final, a média é de uns quinhentos por integrante. É. É isso mesmo.
Tão logo terminou de dizer, voltou a ocupar-se do pedaço suculento de costela no prato.
— Quinhentos dólares por show? — Charles observou, realmente surpreso. — Até que é bastante dinheiro.
O vocalista olhou para o homem:
— Quinhentos mil dólares, senhor.
A informação fez Charles cuspir a bebida. O linho branco da sua camisa e a toalha de renda não ficaram felizes com a atitude. Íris tentou limpar os tecidos com o guardanapo, mas só fez piorar as manchas. Otávio não segurou mais a vontade de rir, enquanto a irmã permaneceu paralisada, os olhos pasmos. E , bem, vendo o ambiente tenso que indiretamente tinha causado, apenas disse:
— Hum... Onde fica o banheiro?
Otávio levantou-se como se um aviso de incêndio tivesse ressoado dentro da casa, olhos brilhantes em direção ao astro:
— Eu te mostro!
Os dois saíram da mesa e Charles aproveitou a deixa para dizer, estupefato:
— Quinhentos mil. Ele disse quinhentos mil dólares por integrante? Eles ganham dois milhões por show? , isto é uma piada?
Recuperada do choque, respirou fundo. Então disse com autoridade, invertendo a situação entre pai e filha, uma carranca nada amistosa formando-se no seu rosto:
—Não, com certeza é verdade. Eles costumam lotar estádios. Mas, quanta grosseria perguntar sobre dinheiro, papai. Eu não acredito que me fez passar por isso!
— Querida, quem é o , afinal? — Íris perguntou de forma mais tenra, mas ainda assim, com uma ansiedade latente na voz.
Otávio reapareceu, desacompanhado de , pegando o fim da conversa:
— Caramba, como vocês são desinformados... Ele é o vocalista da Dark Paradise! A minha banda favorita!
Para elucidar mais as coisas, o garoto retirou o celular do bolso e procurou pela capa do último álbum da banda. fazia a melhor pose de bad boy possível. Era o tipo de imagem que Charles não tiraria da mente tão cedo.
— Filha, este moço é muito famoso! — Íris falou o óbvio, extasiada. — E rico...
Todos estavam em pé na sala. Senhor e senhora com os olhos estatelados para a imagem no celular do filho, os de Íris brilhavam.
— Sim, e provavelmente também um mau elemento. — Charles disse sem dar o braço a torcer. — Não se deixe enganar, ele não é muito diferente de qualquer outro meliante drogado com passagem pela polícia. — Charles gesticulou correndo o olhar, do celular de Otávio para o rosto da esposa. — Olha o tanto de tatuagem, Íris! Deve ter até “naquele” lugar, pelo amor de Deus!
Todos olharam para . Otávio perguntando com um sorrisinho sugestivo:
— Ele tem?
Um tomate não seria vermelho suficiente para descrever o rosto dela naquele momento.
— Otávio, respeite a sua irmã! — Íris interviu. — E Charles, não diga essas coisas! E tudo que ensinamos aos nossos filhos sobre não julgar? Dê um crédito ao rapaz!
—Ora, Íris, você mesma diz que o que o Otávio escuta é subversivo demais. Não me interessa se esse tal de tem milhões na conta bancária, um cara desse não está disposto a levar ninguém a sério. —Depois Charles virou-se para a filha, os olhos destilando ira. —, seria bom afastar-se dele.
A garota ficou ainda mais vermelha. Desta vez, de raiva.
— Ah, papai, não precisa se preocupar, pois tenho certeza de que neste exato momento o está tramando uma fuga pela janela do banheiro. Com licença.
Dito isso, a garota caminhou a passos largos até o corredor, a ladainha de seu pai ficando distante. Ela escorou na parede e deixou o corpo deslizar até o chão, colocou o rosto entre os joelhos.
A porta se abriu logo depois.
— Ei.
levantou o rosto e encarou com grandes olhos de cachorrinho abandonado.
— Ei...
— Causamos uma impressão e tanto lá, não?
— Desculpa por isso, .
— Não esquenta, eu certamente teria feito a mesma coisa no lugar dele. — O homem levantou uma mecha do cabelo cacheado que escapava pelo rosto dela. — Acha que já é seguro voltarmos?
o olhou de um jeito demorado.
— Você realmente não quer sair correndo daqui? Nem me matar por ter te colocado nesta furada?
Ele riu, o semblante descontraído.
— Não. Eu quero voltar lá e tentar ganhar a confiança do seu pai.
— Sério?
— Sério. — estendeu-lhe a mão. — Vem comigo?
— Claro... — Ela se levantou. — Vamos terminar logo com isso.

*




Capítulo 19

O pedido de desculpas de Charles não parecia ser sincero, mas foi suficiente para fazer com que as coisas corressem bem dali em diante. Durante a sobremesa, o coronel até deu o braço a torcer, sorrindo a respeito de algo engraçado que disse, e finalmente pode aliviar os nós de tensão no rosto.
— Filha, você e devem estar cansados para voltar ao Rio, por que não dormem aqui? — A proposta partiu de Íris e pegou todos de surpresa.
Charles arregalou os olhos. poderia ser quem fosse, mas a ideia de sua garotinha dormindo com um rapaz debaixo do mesmo teto era demais para ele. Íris remediou quando percebeu isso:
— Em quartos separados, é claro.
Charles respirou aliviado. olhou para e ela deixou a entender que a decisão era dele.
— Se não for incômodo, por mim tudo bem.
Íris encarou o esposo que deu de ombros.
— Ótimo. Vou arrumar o quarto de hóspedes. Fiquem a vontade.

*


A felicidade era tanta que mal cabia dentro dela. estava dormindo na sua casa. Em quartos separados, mas na sua casa. Acordar no meio da noite e dar-se conta disso causou-lhe uma nova onda de taquicardia. E não porque ele era famoso, mas porque o coração de não fazia nada além de se ocupar em acelerar toda vez que pensava no rapaz.
E daí que ele poderia vir a ter uma estrela com seu nome na calçada da fama? Ou que havia Grammys enfeitando sua casa em Hamptons ao invés de troféus de latão ganhados em eventos esportivos do ensino médio? Só o que importava, era que estava apaixonada por ele. E claro, a certeza de que o sentimento era recíproco.
Que deliciosa coincidência quando sincronias assim acontecem, não?
Passou pela porta do quarto de hóspedes e resistiu à vontade de bater na porta. A verdade era que só queria um copo de água quando se levantou e foi até a cozinha durante a madrugada, não burlar as conservadoras regras paternais sobre “namorados” dormindo em casa e proibições de visitas noturnas.
Por isso encontrar Charles sentado no escuro a assustou para valer.
— A carne estava um pouco salgada, não? — O homem contraiu as pálpebras quando ela acendeu a luz.
— Pai! — Ela disse colocando a mão sobre o peito. — Que susto. — Riu sem jeito. — É... estava um pouquinho.
Charles também sorriu em concordância. Deu uma olhada por cima do ombro da filha para ver se estava sozinha. Será que o policial estava montando guarda na casa? Bem provável. abriu a geladeira e serviu dois copos com água gelada. Estendeu um para o pai.
— Obrigado. — Falou antes de virar metade do líquido. — E me desculpe por hoje mais cedo. A situação saiu um pouco do meu controle.
— Ah, tudo bem. No final deu tudo certo. Boa noite. — A garota beijou-lhe o topo da cabeça e já ia saindo quando o homem disse:
— Eu só espero que não esteja pensando em largar seus estudos. Ou o seu emprego.
Ela parou. Franziu o rosto e o encarou, sem entender.
— O quê?
— Certamente esse rapaz vai passar a maior parte do tempo viajando para fazer shows. O que vai fazer quando isso começar a interferir?
A professora torceu a ponta do pijama entre os dedos. Que péssimo assunto para se discutir àquela hora.
— Bem, acho que é cedo demais para eu me preocupar com isso, mas só para seu conhecimento, eu jamais desistiria do meu Mestrado ou do meu emprego.
— Então talvez vocês tenham um problema.
Os músculos do rosto dela contraíram-se em interrogação.
— Problema relacionado ao fato de eu não abandonar meus estudos?
Charles levantou-se e foi até a pia, disse depois de abrir a torneira:
— Você é esperta, , entendeu o que eu quis dizer. Enquanto você estiver aqui, estudando, e ele nessas turnês pelo mundo, o que acha que vai acontecer?
O policial enxugou o copo com um pano de prato e ficou encarando a filha. desejou que as luzes ainda estivessem apagadas para que a insegurança em seu rosto não se tornasse visível quando disse:
e eu podemos dar um jeito nisso. Muita gente namora a distância.
Pingos da torneira bateram ruidosamente contra a pia metálica. Charles suspirou e olhou a garota com complacência.
— Gente normal, sim. Não cantores de rock. Não estou apostando contra você, filha. Mas acha mesmo que isso tem chance de terminar sem que você saia magoada no final?
A garota não respondeu. Claro que ela sabia de todas as estatísticas desfavoráveis, mas não gostava de pensar nelas. Quanto mais ouvi-las de uma das pessoas que mais amava.
Charles continuou diante do silêncio que se instalou desconfortavelmente entre os dois:
— Antes de dormir, eu e sua mãe pesquisamos a respeito dele na Internet.
Oh. Claro que eles fariam isso. O que não evitou que lhe dirigisse um olhar ultrajado.
— Puxa, vocês nem mesmo esperaram ele sair debaixo do seu teto?
Charles ignorou e prosseguiu:
— Lá no Wikipédia, diz que ele e aquela atriz, Natalie Wolf, são namorados.
O som do estralar ansioso de dedos precedeu a resposta de :
— Eles terminaram.
— Hum...
Tudo o que passou pela cabeça de Charles foi traduzido na expressão do seu rosto: ceticismo e pena. Coisas que a garota sabia que poderia esperar de qualquer um, claro, mas não dele.
Aquilo doeu.
— Ele também esteve envolvido em muito escândalo. Parece ter problemas sérios com a bebida. É isso que quer para sua vida?
— Pai, são sites de fofoca. E isso foi antes de...
— De ele te conhecer? — Mais uma vez o pai a olhou de um jeito benevolente. — As pessoas não mudam de uma hora para outra, nem por causa de ninguém. Não duvido que hoje este rapaz esteja apaixonado. O que eu realmente não acredito é que leve isso a sério por muito tempo. E eu não gostaria de ver você sofrendo quando ele a dispensar por uma dessas atrizes famosas, ou então se envolver com problemas mais sérios.
Por problemas mais sérios, ele queria dizer álcool, e outros tipos de drogas. Coisas que e ainda não haviam conversado abertamente. A garota não teve argumentos. Pois no fundo, as palavras do pai também eram as representações dos seus piores medos.
Foi péssimo ser lembrada deles.
Charles suspirou, desencostou da bancada da pia e cruzou os braços:
— Só pense a respeito, . Você pode ficar nisso e deixar este rapaz destruir seu coração, sua carreira. Ou ser a primeira a sair fora e então focar nos seus estudos. São apenas duas opções. Então seja inteligente, e escolha aquela que não colocará em xeque seu futuro. Garanto que essa paixão passará, você então vai conhecer alguém do seu meio, que te coloque com os dois pés no chão, e daqui alguns anos, quando estiver fazendo seu Doutorado fora do país, como sempre desejou, você vai perceber que eu tinha razão. — Charles caminhou até a filha e beijou-lhe a testa. — Apenas pense.
Os chinelos de borracha quase não fizeram barulho quando o homem desapareceu subindo as escadas.
Ela ainda ficou ali por muito tempo, como a vigilante de algum perigo externo que jamais viria a acontecer. O ponteiro dos segundos soava de uma forma assustadora pela casa silenciosa. E o medo de que o aviso do seu pai fosse um presságio virou uma daquelas coisas ruins que mantém as pessoas acordadas durante a madrugada. De repente, estava pensando em questões complexas da vida.
Sobre .
Maldita foi à hora em que resolveu ir até a cozinha para pegar aquele copo de água.



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