Olympus

Última atualização: 31/12/2022

Prólogo

— Hermes! — Hera gritou, extasiada, após ler o papel em suas mãos. Não acreditava naquelas palavras. — Hermes! Mas que porra é essa aqui?
Hermes respirou fundo e voltou a entrar no escritório de Hera, apoiando-se sobre o batente da porta e cruzando os braços. O sorriso gentil que lhe era peculiar poderia transmitir a imagem de alguém tranquilo, porém estava preocupado com a quantidade excessiva de cartas que havia de entregar ainda naquele dia. A retenção de Hera não ajudaria em nada, mas, a julgar pelo semblante irritado, Hermes não se oporia à qualquer explicação por mais tempo que tomasse. A deusa apenas colocou o papel amarelado sobre sua mesa e se recostou na macia cadeira, encarando o mensageiro com os olhos tão arregalados, que Hermes jurou presenciar um breve colapso interno.
— Você sabe o que tem nesse documento? — Hera perguntou enquanto sorria, incrédula, com uma voz doce. As mudanças temperamentais dela já não eram estranhas para ele e, muito menos, para o resto do Olimpo.
— Não sei — Hermes respondeu com uma careta inocente. Realmente não sabia.
A deusa bateu as duas mãos sobre o vidro da mesa, consumida por uma ira repentina. Seu longo e sedoso cabelo dourado imediatamente começou a flutuar mais elevado do que lhe era normal, acima do ombro, extinguindo a pouca serenidade que ainda restava, e as bochechas coraram de maneira violenta. A postura rígida e as roupas elegantes e sérias dela, como sempre, somente contribuíram para que Hermes concluísse que, qualquer que fosse o conteúdo da carta, não era uma notícia nada boa.
— Aqui diz que uma nova deusa nasceu — Hera falou em um fio de voz, como se estivesse prestes a surtar.
— Isso não é uma boa notícia? — o mensageiro perguntou, contente.
— Uma nova deusa nasceu... de pais mortais — Hera completou enquanto rangia os dentes.
Hermes não conseguiu conter a gargalhada, que aumentava gradativamente. Teve que abrir suas grandes e plumosas asas para o corpo não desequilibrar, pois os olhos marejados já lhe atrapalhavam a visão. O que Hera acabara de dizer soava como uma verdadeira piada em sua cabeça, mas, aos poucos, o riso cessou-se. Hermes notou, pela expressão sóbria de Hera, que não se tratava de uma brincadeira, porém de um acontecimento real.
— Oh — ele colocou a mão na nuca e reteve as asas. — Você está falando sério.
— Claro que eu estou falando sério! — ela esbravejou e voltou a se sentar. — Você acha que eu brincaria sobre algo grave assim?
— Mas isso não é possível, Hera.
— Não me diga — a deusa retrucou em um tom sarcástico, que não abalou o bom humor de Hermes. — Chame Zeus imediatamente. Precisamos fazer algo a respeito.
— Tudo bem — Hermes assentiu com a cabeça e logo em seguida pôs-se a voar para fora da mansão de Hera e de Zeus com uma velocidade inacreditável, em direção ao maior prédio do Olimpo, a empresa do deus do raio.

Capítulo 1

— Bom dia, gata — Hermes apoiou-se no balcão de recepção e abriu seu sorriso mais galanteador.
A mulher sentada apenas lhe lançou um olhar entediado e frívolo, apesar de não ser o suficiente para afetar o ânimo do rapaz. Se havia dois lugares que Hermes adorava visitar eram as empresas de Zeus e de Hades. Ambas eram muito sofisticadas, com decorações modernas, e possuíam atendentes ninfas muito bonitas, mas muito bonitas mesmo.
— Preciso ver o Zeus — o mensageiro sorriu, gentil. — É um caso urgente.
— Você marcou horário? — a recepcionista perguntou, desinteressada.
— Não, você sabe que não, mas estou às ordens de Hera.
— Hera? — A mulher, agora, pareceu curiosa. — Ela está aqui?
— Não, mas pediu para que eu fosse falar com Zeus imediatamente. — Ele fez uma careta sugestiva e começou a dar pequenos passos para o lado, visando aproximar-se do elevador.
— Hermes, você sabe que precisa marcar horário — ela bufou, já pegando o telefone e discando o número da secretária de Zeus. Muito provavelmente eles seriam pegos no flagra, se Hermes subisse sem ser anunciado.
— Você sabe o meu nome. — Os olhos do mensageiro brilharam e, em um pulo, ele jogou-se em cima do balcão, levantando um dos pés e ficando próximo à recepcionista, que se limitou a revirar os olhos e empurrar a cabeça dele para longe sem delicadeza.
— Você vem aqui todo dia, pelo amor dos deuses, é inevitável que eu saiba o seu nome e não é algo facultativo, se quer saber.
— Não importa — Hermes sorriu, satisfeito. — Você sabe o meu nome.
Ele aproveitou que ela, agora, conversava no telefone e pulou as catracas, indo direto para o elevador e apertando o botão que o levaria para o último andar. Como havia, literalmente, mais de uma centena de andares, arrependeu-se no trigésimo segundo por não ter ido voando, chegaria muito mais rápido. Duas de suas características naturais eram a agilidade e a eficiência, coisas que o cubículo metálico não conhecia, ao que tudo indicava. Quando finalmente o som agudo anunciou sua chegada e as portas se abriram, Hermes notou que a secretária de Zeus arrumava seu cabelo e possuía os botões da blusa presos na ordem errada, como quem os ajeitara na pressa, e o batom borrado. Nada daquilo, no entanto, era novidade. Já pegara ela e o próprio deus do raio inumeráveis vezes no meio do sexo, algo que fazia jus à fama de traição de Zeus e deixava Hera furiosa, diga-se de passagem.
— Bom dia — ele cumprimentou-a, simpático, indo em direção à sala de Zeus sem cerimônia alguma.
— Você não pode entrar aí sem antes ser anunciado — a secretária falou, incrédula, e franziu o cenho, pronta para se levantar e impedir que Hermes adentrasse o escritório.
— Sem problemas — ele sorriu, divertido, e abriu a porta sem pudor. — Bom dia, Zeus, estou anunciando a minha própria entrada.
Hermes limitou-se a enfiar metade de seu corpo no cômodo, chamando a atenção de Zeus e, ao fundo, a secretária bateu a mão na testa, como quem reprovava o gesto, mas já não tinha o que fazer.
— Em que posso ajudá-lo, Hermes? — o deus do raio perguntou, cordial, e o mensageiro inclinou levemente a cabeça. Sabia qual seria a reação de Zeus.
— Hera está requisitando sua presença de imediato.
— Não posso agora, estou ocupado trabalhando.
— É um assunto muito importante, creio — Hermes fez uma careta engraçada e Zeus apenas desejou que ele saísse logo dali. — Aparentemente, uma nova deusa nasceu.
— E por que raios isso me tange?
— Porque ela nasceu de pais mortais.
— Hermes — Zeus apoiou as duas mãos juntas sobre sua mesa de vidro fosco e ergueu uma das sobrancelhas, falando com serenidade —, Hera lhe enviou aqui somente para me irritar? Ela está brava com alguma coisa?
— Acredito que não, mas ela parecia bem zangada com o documento que recebeu sobre isso.
Pela primeira vez desde que Hermes entrou, Zeus pareceu levar o assunto a sério, engolindo em seco e franzindo o cenho. Aquilo era simplesmente impossível. Nunca que uma deusa poderia nascer de mortais. Ele apenas interpretou aquilo como um mal-entendido. Ponderou que Hera, na verdade, estivesse tentando irritá-lo, o que lhe parecia algo rotineiro. Não poderia dizer que seu casamento fosse o mais agraciado do Olimpo, com certeza não. Zeus, então, analisou Hermes dos pés à cabeça. O sorriso gentil do rapaz já não lhe enganava, estava apressado.
— Avise Hera que discutiremos sobre isso assim que eu chegar em casa — o deus do raio voltou a fitar a papelada em cima da mesa. Hermes encarou o gesto como uma permissão para que pudesse se retirar.


— ESSE FILHO DA PUTA O QUÊ? — Hera esbravejou ao ouvir o que Hermes lhe contara.
Dessa vez, o mensageiro estava bem menos paciente. Tinha quase certeza que ficaria preso a manhã toda nesse jogo de idas e vindas entre Hera e Zeus, que eram um casal muito complicado quando havia conflito de interesses, ou seja, 90% do tempo. Ele precisava terminar de entregar as correspondências, porém não poderia negar os desejos dos grandes deuses, sobretudo de Zeus.
— Ainda está por vir o dia que meu próprio marido vai respeitar meus desejos e entender a gravidade dos problemas — Hera respirou fundo e colocou a mão sobre a testa junto de sua melhor expressão dramática de sofrimento. — Chame Deméter, então. Tenho certeza de que ela, sendo a remetente da carta, me dará ouvidos.
— Não precisa me chamar, já estou aqui. — Deméter, a deusa da agricultura e das estações, apareceu atrás de Hermes, que levou um susto e arregalou os olhos, segurando-se para não gritar. — Vim o mais rápido que pude.
Embora soubesse que não era exatamente bem-vindo no escritório de Hera no momento — ou quase sempre —, ele não pôde deixar de esperar à porta e ouvir, atento, a conversa. Estava curioso para saber onde a situação iria chegar. Nenhuma das deusas pareceu se incomodar com sua presença. Deméter apenas sentou-se em uma das poltronas do local e Hera apoiou seu quadril sobre a mesa, cruzando os braços.
— Querida irmã — Deméter passou a mão por seus longos e flutuantes cabelos verdes escuros, com a cor da folhagem de uma árvore saudável —, eu mesma não acreditei quando a vi, mas pude sentir em minha própria pele a verdade.
— O que você afirma é muito sério. Deusas não nascem de mortais.
— Eu sei, mas Gaia confirmou seu oráculo. — Deméter apoiou as mãos em seu colo e respirou fundo. — A deusa da primavera nasceu no reino da Terra de um homem e uma mulher comuns.
— Deusa da primavera? — Hera engoliu em seco e sua face ficou um pouco mais pálida. — Perséfone é a deusa da primavera, isso não faz sentido.
— Perséfone agora é a deusa da morte — Deméter fechou o semblante imediatamente e Hermes quase não conteve a risada.
Era muito claro, embora centenas de anos já tivessem se passado, que Deméter nunca aceitara que sua filha preferida tivesse escolhido se casar com Hades. Hermes sempre achou que a justificativa para essa paixão era que Deméter mantivera a própria filha Perséfone em cativeiro e o rei do Submundo lhe oferecia toda a liberdade e gentileza que alguém poderia dar, porém foi em Hades e Perséfone que Hermes viu o que poderia ser o amor genuíno, algo que, até então, somente Eros compreendia. Diferentemente do que todos achavam, Hades era um perfeito cavalheiro com Perséfone e o mensageiro prezava muito pelo casal, sobretudo pela rainha do Submundo, que o tratava com muito carinho. Bom, tratava a quase todos com muito carinho.
— Devemos fazer algo em relação a isso — Hera decidiu e Deméter concordou.
— Acho que deveríamos trazê-la para o Olimpo agora mesmo, querida irmã.
— Ou... — Hermes passou a mão sobre seu cabelo vermelho cacheado, inclinou a cabeça sugestivo e ambas o olharam com o cenho franzido. — Ou vocês poderiam deixá-la na Terra até que atingisse o crescimento suficiente.
— Você diz a idade que ela vai aparentar para sempre? — Hera perguntou, confusa.
— Sim — o mensageiro sorriu, gentil. Hermes não compreendia o tom urgente da rainha do Olimpo, afinal, a menina era imortal, qual era a pressa em trazê-la?
— E por que deveríamos fazer isso? — Deméter perguntou, irritada.
— Você falou com a Mãe Terra, digo, Gaia, não falou? — ele questionou, insinuante. — A nova deusa da primavera com certeza se tornará uma bela mulher, assim como Perséfone é.
— Gaia realmente disse que só não será mais bonita que Afrodite — Deméter confirmou e Hera contorceu o nariz em puro ciúme.
Só lhe faltava isso, uma bela deusa para acabar caindo na lábia de Zeus e adicionando mais um nome à lista de traições com Hera.
— E gostaríamos de protegê-la de Zeus, não acham? — Hermes continuou a falar.
Hera gostou da ideia do rapaz. Teria, pelo menos, alguns bons anos para persuadir a menina a não gostar de Zeus. Talvez, até pudesse pedir para Eros que acertasse uma flecha com ponta de chumbo em seu coração, assim ela repudiaria o seu marido e aquilo seria um problema a menos. Ou, talvez, a convencesse de se tornar uma deusa da castidade, junto a Héstia, Atenas e Ártemis. Os pensamentos, invadindo sua cabeça em uma avalanche, somente contribuíam para seu sorriso aumentar.
Deméter apreciava igualmente a ideia, sobretudo pela saudade que sentia de proteger Perséfone quando ela ainda era sua pequena filha. Ter uma segunda chance de criar alguém capaz de moldar a própria primavera soava como um presente. Dessa vez, não deixaria o mesmo erro acontecer.
— Certo — as deusas responderam, animadas, em uníssono, e Hermes logo perdeu o sorriso. A julgar pelas expressões possessivas nos rostos das duas, já não sabia mais se tinha feito uma proposta que fosse boa para a nova deusa.
— Talvez devêssemos colocá-la sob proteção. — Hermes passou a mão na nuca, tentando se convencer de que aquilo, de algum modo, livraria a deusa da primavera de qualquer plano maligno que Hera, em particular, pudesse colocar em prática.
— Sim! — Deméter afirmou, contente. No fundo, ela gostaria que a menina tomasse o voto da castidade e vivesse com ela no reino dos mortais, algo que planejara para Perséfone e nunca havia sido colocado em prática. — Deveríamos transformar uma ninfa em uma humana, assim ela pode acompanhar a deusa o tempo todo.
— Claro — Hera concordou, hesitante. Estava claro que não era a favor dessa proteção, uma vez que não poderia usar seus poderes sobre a menina como quisesse sem que a ninfa percebesse, mas também sabia que Deméter não mudaria de opinião a respeito disso. — Qual é o nome dela, inclusive? Dessa nova deusa...
— Deméter informou, sorridente, e Hera abriu uma careta de desgosto.
— Que nome horrível. O que aconteceu com as boas designações gregas e romanas?
— Eu achei lindo — Hermes falou, sincero, com um sorriso gracioso. — E sei exatamente qual ninfa poderíamos usar nesse plano.
— Medea — Hera sorriu, satisfeita, acompanhada pelo mensageiro.


Medea, com seu cabelo longo em um tom púrpuro azulado, que chamava muita atenção, revirou os olhos e tirou seus óculos escuros. A jaqueta de couro preta e as botas de saltos finíssimos somente corroboravam para a imagem ranzinza da mulher. Medea estava irritada com o homem em sua frente na fila da cafeteria. A cada dois segundos, ele olhava para trás, na intenção de admirar , que encarava a vitrine de bolos com os olhos estreitos, como se estivesse tomando a decisão mais difícil de sua vida. Quando ele se virou uma última vez, a ninfa pigarreou e abriu um falso sorriso simpático. A verdade é que já deveria estar acostumada, talvez devesse somente se apoiar em uma das pernas, cruzar os braços e respirar fundo, entretanto, qualquer um que conhecesse sua natureza felina sabia que a ninfa não fazia questão de administrar seu autocontrole.
— Ela é linda, não é? — Medea sussurrou e o homem balançou a cabeça, animado, em concordância. — Pois é, mas você não e esse seu espionar pessoas alheias só me faz pensar que você é completamente pervertido. — Agora, seu tom de voz era cínico e o homem pôde jurar que as írises dela estavam douradas. — ENTÃO PARE DE ENCARÁ-LA, SEU OTÁRIO!
— Medea... — , com um semblante angelical, chamou sua atenção. Embora sua intenção fosse a repreender pela atitude grosseira, possuía uma áurea tão naturalmente agradável, que, nem se quisesse, alguém conseguiria ficar bravo ao seu redor. Era quase como um poder, um dom inerente. Medea, no entanto, sabia que o termo “quase” era inadequado, pois a deusa da primavera estava fadada a ter essa influência natural sobre os outros. — Desculpe pela minha amiga — pediu, gentilmente, para o homem assustado. — Eu tenho certeza de que ela não quis lhe insultar.
— Eu quis, sim — Medea ergueu uma das sobrancelhas e ele apenas se virou para a frente, com os olhos arregalados.
— Eu sei que você gosta de uma boa discussão, mas hoje você parece um pouco mais inclinada a pular em alguém do que o normal — sorriu, discreta, o que a provocou com sucesso.
— O que você está inferindo? — Medea perguntou, fingindo não notar o tom sutil de repreensão, e observou a amiga pegar o cardápio sobre a bancada.
— Aqui está escrito “é proibido...”, está vendo? — apontou para as palavras impressas no papel. — O que significa “Medea adora”.
Embora carregasse uma aparência realmente encantadora, sobretudo por sua beleza divina e seu jeito delicado e humilde, que lhe davam um brilho saudável, crescer ao lado da ninfa de personalidade forte a agraciou com habilidades indispensáveis. Um senso de humor aguçado, uma intuição engenhosa, uma competência ímpar para respostas afiadas, um raciocínio rápido, um gosto pela aventura. A favorita de Medea, que, na verdade, não se categorizava como uma competência, e sim como algo que a ninfa adorava ver executar com tanta graciosidade, era o diálogo dissimulado vindo de alguém que parecia tão inocente.
A primeira vez que pisou no reino dos mortais, não poderia ter se sentido mais enfurecida. Xingou até o último fio do cabelo dourado de Hera, que se deliciou com a raiva, ouvindo-a de sua mansão no Olimpo enquanto lixava as unhas. Medea estava fadada a passar os próximos anos como babá, proibida de retornar até que completasse sua punição. Ao longo desses anos, no entanto, pegou-se encantada pelo jeito cativante de , que a surpreendia com sua elegância e bondade, ao mesmo tempo que se dispunha a curtir a vida sem acanhamento. Assim, ambas tiveram anos muito bons na Terra, algo que a ninfa nunca esperaria acontecer. Criaram um laço inabalável. Mal sabia os segredos que Medea guardava, embora estivesse prestes a descobrir.
— Então, um cappuccino e um latte? — perguntou e Medea chacoalhou a cabeça, percebendo que divagava.
— Sim.
voltou-se para o atendente e começou a fazer os pedidos. Medea aproveitou para dar uma olhada no arredor, procurando uma mesa, e deparou-se com um bebê, que tentava morder uma pequena girafa de borracha. Enquanto os pais conversavam animados em uma das mesas, ele intercalava as mordidas com batidas do brinquedo sobre a cadeirinha em que sentava, o que gerou em Medea uma careta de desgosto.
— Humanos são tão bizarros. Será que eles já nascem com cérebros?
— O que disse? — falou, confusa.
— Nada — a ninfa respondeu muito rápido.
— Está tudo bem? — perguntou, cautelosa, oferecendo uma xícara para a amiga, que aceitou e começou a andar em direção à uma das mesas vazias do local. — Você parece incomodada.
— Está tudo bem — ela disse ao se sentar. — Na verdade, está tudo mais que bem.
— Certo — sorriu e deu um gole em sua bebida quente.
O outono lá fora já começava a dar sua primeira aparição, com as folhas marrons das árvores caindo sobre o chão e o vento barulhento varrendo as ruas. Por algum motivo estranho, a secura das folhas incomodava . Tinha a impressão de que a pele de sua nuca estava coçando, mas ela decidiu ignorar a sensação estranha e focar na postura rígida de Medea. Embora soubesse que nada acolhia mais do que um cappuccino fresco logo cedo, o semblante concentrado da amiga lhe deixava preocupada.
— Sabe por que eu lhe trouxe aqui hoje? — a ninfa questionou.
— Porque é minha cafeteria preferida — arriscou.
— Não — Medea revirou os olhos.
— Porque você gosta dos bolinhos de blueberry daqui.
, que respostas idiotas. Claro que não é por isso.
— Sabe, eu acho que um bolinho animaria seu estado de espírito — fez uma careta insinuante e a ninfa só conseguiu pensar que ela faria amizade com Hermes, tinha certeza.
— Eu não preciso de bolinhos, eu preciso que você preste atenção no que eu vou contar. — Medea fechou o semblante e deu um longo gole em sua xícara, como em um sinal implícito para que ela prosseguisse. — Hoje é um dia especial. Você, provavelmente, ficará bem confusa com o que direi, mas é importante que você entenda.
— Você está me assustando.
— Shhh — a ninfa revirou os olhos. — , tem um motivo pelo qual eu fui colocada em sua vida.
— Colocada?
— Pare de me interromper, porra.
— Desculpe. — Um pequeno bico surgiu nos lábios de .
— Enfim, Hera me enviou para sua proteção.
— Quem é Hera?
— Hera, a deusa do casamento, rainha olimpiana — Medea falou como se fosse a maior obviedade do mundo, aceitando que não ficaria calada.
— Você diz Hera como na mitologia grega?
— Quem mais seria? — a ninfa declarou, impaciente. — Hera me enviou para o reino dos mortais e eu somente poderei voltar para o Olimpo, se lhe trouxer sob proteção quando você completar sua idade eterna, o que eu acho que já aconteceu, porque você tem esse mesmo exato rosto desprezível há anos.
— Você sabe que isso soou um absurdo, não sabe? — juntou as sobrancelhas e envolveu as mãos na xícara, para aquecê-las. Teve vontade de rir, mas se conteve, pois a amiga realmente parecia falar sério. — São histórias antigas, Medea, mitos. O que deu em você?
— Ok, vamos tentar do começo — a ninfa respirou fundo e ergueu uma das sobrancelhas, com um semblante sóbrio no rosto. — A muitos e muitos anos atrás, o mundo foi criado por alguém super importante, que também criou os titãs, certo? — Medea perguntou e apenas franziu a testa mais uma vez, focada em ouvir as palavras dela. — Os titãs e as titânides geraram os deuses em uma orgia familiar que pode soar estranho para meros mortais, pois não me parece algo comum por aqui. Enfim, deuses, seres poderosos e um pouco egocêntricos que reinam não somente a Terra, mas o mundo dos mortos e o mundo das criaturas imortais.
— Essa história é o que ensinam nas escolas — declarou, confusa.
— Sim! E também ensinam sobre esses deuses, Atenas, Apolo, Zeus, Hera, Afrodite e muitos outros.
— Certo.
— Então — Medea pigarreou e abriu um largo sorriso —, é aí que você entra, porque, pasme, você é uma deusa.
— Por acaso isso é uma cantada ruim? — fez uma careta e a ninfa bateu a mão na testa.
— Eu estou falando sério, puta que pariu, por que você não acredita em mim, ?
— Porque isso soa um pouco...
— Quer saber? Eu já passei anos cuidando de você, não preciso ter mais trabalho e ficar dando aulas sobre como funciona o Olimpo, você vai descobrir sozinha. — Medea levantou, impaciente, e começou a andar em direção à porta de saída. — Vem comigo.
— Para onde vamos? — estava curiosa, embora não estivesse entendendo nada do que acontecia.
— Ao Olimpo, obviamente.


— Você acha que é uma boa ideia, Hades? — Perséfone perguntou, manhosa, enquanto seu marido preparava o café.
A deusa, que acabara de receber uma carta de sua mãe, Deméter, não sabia exatamente como se sentir.
— Acho difícil de acreditar que isso seria algo bom, coração — ele respondeu sem tirar os olhos da máquina de expresso e Perséfone levantou de sua cadeira para ir até próximo dele, sentando-se sobre a bancada da cozinha ao seu lado.
— Você deveria falar com Zeus — Perséfone piscou os olhos, carinhosa.
Era uma verdade universal que Hades só precisou de uma única batida do coração para se apaixonar por sua esposa. Era daí, inclusive, de onde vinha a justificativa para o apelido carinhoso que ele tanto usava ao se referir a Perséfone, coração. Nada que ela lhe pedisse com apreço seria negado, jamais. Punia sem piedade e clemência aqueles que ousassem pronunciar alguma palavra de hostilidade em relação a ela. Ao contrário de seus irmãos, Hades era completamente devoto à sua esposa, cativando um amor eterno e puro que outras deusas invejavam.
— Não sei se isso vai ajudar. Você imagina como a notícia já deve ter chegado em Hera, ela provavelmente falou com Zeus e ele deve tê-la ignorado.
— Converse com seu irmão, querido. Tente convencê-lo de que ela, pelo menos, tenha um estágio na sua empresa. — Agora a deusa passava a mão sobre seus longos cabelos rosas. — Isso pode ajudá-la, assim como me ajudou, lembra?
— Tudo bem, mas não posso garantir nada, coração. Você sabe como Deméter pode ser possessiva.
— Sei que vai fazer o seu melhor. — A deusa levantou-se, satisfeita, e deu um beijo na bochecha de Hades. — Vou alimentar o Cérbero e depois visitarei Ártemis. Volto na hora do almoço. Vai querer sair, cozinhar ou estará em reunião?
— Podemos almoçar no Olimpo hoje.
— Sério? — Perséfone sorriu, animada, ao abrir a porta para o quintal e Hades riu de seu entusiasmo.
— Claro.
Então, a rainha do Submundo fechou o vidro atrás de si, à procura do cachorro com pelos negros sedosos e olhos azuis cintilantes. Hades virou a pequena xícara de expresso em um único gole, sentindo-se finalmente pronto para começar o dia, que, na verdade, já havia se iniciado com a carta de Deméter. Fechou os botões de seu terno, pegou uma das setes chaves de carros em cima de uma estante e colocou as mãos nos bolsos da calça, caminhando com calma até a garagem. Não havia pressa nenhuma para ver a cara de Zeus logo pela manhã. Lá, entrou em um dos luxuosos veículos esportivos e não demorou muito para que estivesse dirigindo em direção ao Olimpo, mais especificamente à empresa de seu irmão.
Assim que estacionou o carro em frente ao prédio moderno, enfeitado com vidros espelhados e detalhes em branco, não pôde deixar de revirar os olhos. Odiava como o reino dos imortais fazia sol e claridade o tempo todo, preferia muito mais o céu eternamente escuro do Submundo, aconchegava-lhe de modo envolvente e não queimava suas retinas. Desprezível.
Respirou fundo e abriu a porta do carro. Passou o caminho até a recepção pensando na conversa que teria com Zeus, que, com certeza, não estaria interessado no assunto, mas que ficaria surpreso em ver Hades vagando pelo Olimpo, algo que acontecia uma vez a cada dezenas de anos, ou a pedido de Perséfone ou em alguma festa mandatória de Zeus e Hera.
Hades apenas encarou a recepcionista com seu usual olhar letal e sua postura impecável, o suficiente para que ela suasse nervosa, liberando a catraca sem que ele precisasse pronunciar uma palavra sequer. Em questão de segundos, já subia pelo elevador e um barulho agudo anunciou sua chegada. A secretária de Zeus apenas arregalou os olhos e começou a sentir um frio violento, algo que Hades trazia consigo por onde quer que passasse. O deus do Submundo não se deu ao trabalho de cumprimentar a ninfa, sabia muito bem que ela era interesseira e cativava esperanças — em vão — de quebrar o casamento de Zeus e Hera. Aos seus olhos, a ninfa era motivo de repúdio, mais insignificante do que uma poeira no mundo dos mortais. Secretamente, contava os dias para que ela chegasse ao Tártaro, sua passagem para o campo de punição estava garantida, se dependesse de Hades para julgá-la. Passou reto pela secretária e entrou no escritório de Zeus, que abriu um sorriso imenso ao ver o irmão parado à porta.
— Hades! A que prazer devo a companhia? — o deus do raio falou, divertido, e Hades somente fechou ainda mais o semblante. Felicidade vinda dele às oito horas da manhã só era digna de sua querida Perséfone.
— Precisamos conversar. — Ele fechou a porta atrás de si.
— O que aconteceu? — Zeus perguntou, confuso.
— Precisamos conversar sobre essa tal de . — Hades manteve-se de pé, estático, com as mãos no bolso da calça social.
— De novo isso? — Zeus apoiou a cabeça nas mãos e os cotovelos na mesa de vidro fosco, completamente entediado. — Deméter e Hera já vieram aqui mais cedo me encher a paciência por causa dessa deusa aí. Achei que isso tivesse sido resolvido há anos, quando ela nasceu.
— A Perséfone acha que não é uma boa ideia que fique sobre os cuidados somente de Deméter e Hera.
— Engraçado, elas me disseram o contrário. — O deus do raio ergueu uma das sobrancelhas e Hades continuou inexpressivo.
— Você sabe muito bem que Deméter vai praticar a mesma coisa que fazia com Perséfone. Lembre-se do caos que isso gerou na Terra e no Olimpo também. As pessoas começaram a questionar a sua influência e eu acho que...
— Isso foi diferente, Hades, Perséfone estava fadada a ser a deusa da morte.
— Nada indica que a história não possa se repetir — o deus do Submundo sorriu, discreto. — E vai sobrar para você no final, pois quem está tomando a decisão sobre não é Deméter, nem Hera, é você.
— O que você sugere? — Zeus perguntou um pouco mais interessado, admitindo que Hades tinha um ponto importante.
— Sugiro que dê um estágio de meio período para a deusa da primavera em minha empresa e que ela tenha liberdade no Olimpo. Tenho certeza que Deméter vai querer colocá-la na escola de castidade ridícula de Héstia, mas, se isso for acontecer, deve partir de uma atitude voluntária de .
— Algo mais?
— Considerando que ela é nova aqui, vai passar meio período no Tártaro e meio período na Terra sendo ensinada por Deméter, seria interessante se ela morasse com Atenas ou Ártemis, deusas que podem lhe ensinar outras coisas.
— VOCÊ É IDIOTA, HADES? — Hécate, que abriu a porta do escritório de Zeus literalmente em um chute, não parecia estar no melhor dos seus humores. — Quer colocar a menina com as deusas que fizeram voto da castidade quando o objetivo é evitar que ela seja influenciada pela Deméter a fazer esse voto? Por algum acaso você é imbecil?
Depois de quase gritar com o deus do Submundo, Hécate, a deusa das bruxas, ajeitou seu terno preto justo ao corpo e colocou o cabelo chanel, escuro como a noite, atrás das orelhas, procurando acalmar-se. Andou até uma das cadeiras em frente à mesa de Zeus e se sentou acomodada. Seus olhos brilhavam como auroras boreais, em um misto de amarelo e verde que encantavam. Por onde quer que passasse, deixava um efêmero rastro de luz reluzente púrpura. Seria quase delicado e ingênuo, se ela não possuísse uma personalidade forte e um perfil poderoso. Hécate cruzou os braços e começou a bater sua bota de salto fino no chão freneticamente, olhando com cólera os dois deuses constrangidos.
— Coloquem-na para morar com Psique, seus idiotas.
— Psique! — Hades abriu um sorriso contente, apesar de ainda estar atordoado com a entrada repentina da deusa. — Como não pensamos nisso antes? Seria perfeito.
— Por que perfeito? — Zeus manifestou-se, confuso.
— Meus deuses.... e pensar que esse cérebro é o que governa o Olimpo — Hécate revirou os olhos e o deus do raio continuou sem entender. Embora soubesse que a mulher tinha acabado de ofendê-lo, Zeus possuía um respeito tão grande por Hécate, que os insultos nunca lhe incomodavam. — Psique é a única que nasceu e viveu na Terra, assim como .
— Então está decidido. terá um estágio de meio período no Submundo, aprenderá a florescer a primavera na Terra com Deméter no outro período e morará com Psique — Zeus concluiu, já sem ânimo. — Alguma outra demanda?
— Não — Hécate respondeu de súbito e virou-se para Hades, assumindo uma face irritada. — Mas que porra você está fazendo aqui? — Então, ela se levantou de súbito da cadeira, quase voando para cima do rei do Tártaro. — VOCÊ PRECISA COMANDAR O SUBMUNDO E EU NÃO SOU SUA BABÁ!
— Desculpe — Hades falou, sem graça, passando a mão sobre a nuca. — Perséfone pediu para que eu viesse conversar com Zeus.
— Perséfone? — De um segundo ao outro, a deusa das bruxas sorriu com carinho e seus olhos começaram a brilhar ainda mais. A voz, agora doce, da mulher, assustou Zeus. — Como ela está?
— Bem, mas tenho certeza que você sabe disso, trocam cartas o tempo todo e, agora que ela mora comigo, também saem o tempo todo. — Hades cruzou os braços e estreitou os olhos, demonstrando um claro sinal de ciúme.
— Chega de reclamar. Temos trabalho a fazer — Hécate fechou o semblante e bateu duas palmas, transportando-se para o Submundo sem ao menos se despedir de Zeus.

Capítulo 2

— Medea, onde estamos? — perguntou, confusa, assim que entraram em um prédio.
Aquele, no entanto, não era qualquer prédio. Não importava se sediava as editoras das maiores revistas do país ou se possuía uma bela arquitetura, sua importância vinha de outro fator.
Sem saber de onde Medea havia conseguido um cartão de acesso que as liberava nas catracas, apenas observava o que acontecia com cautela enquanto seguia a amiga. Medea não pronunciara nenhuma palavra desde que saíram da cafeteria e aquilo só contribuiu para aumentar sua curiosidade.
As pessoas que transitavam pelo pátio térreo do local pareciam extremamente apressadas, embora fosse somente oito da manhã. Era como se um pequeno caos se instalasse naquele hall de entrada, como se o mundo fosse pequeno demais no momento. havia esbarrado acidentalmente em, pelo menos, três pessoas e nenhuma delas pareceu perceber. O que quer que fosse que conversassem em seus telefones aparentava ser mais importante do que qualquer pedido de desculpas.
Assim que pararam em frente a um dos dez elevadores do local, Medea apertou o botão do painel com uma animação que não lhe era comum. Muito pelo contrário, a única vez que a viu assim foi quando a amiga falou que iria fazer uma pequena visita ao vizinho barulhento de seu apartamento. Diga-se de passagem, nunca mais o viu.
— Por Hades, o que você acha que faz aqui? — a ninfa perguntou, rude, quando uma mulher com um copo de café parou ao seu lado. A estranha apenas franziu o cenho, confusa, olhando para trás para ter certeza de que Medea falava com ela. — Esse elevador está ocupado, vaza daqui.
— Mas o elevador é...
— É por causa de pessoas como você que o shampoo vem com instruções.
— Mas...
— O que eu acabei de falar? — Medea revirou os olhos e a mulher abriu a boca, sem conseguir dizer nada. — Vai lá chorar no cantinho, vai — a ninfa fez um gesto com as mãos para que ela se afastasse.
— Qual o seu problema? — a desconhecida parecia estar em choque.
Não era de se espantar, no entanto, já que Medea não era a pessoa mais educada do mundo.
— O meu problema, no momento, é a sua falta de cérebro.
— Você é louca!
— Oh, por favor, você acha que isso é um insulto?
tinha certeza que ela arranjaria uma discussão com a estranha, se o elevador não tivesse aberto as portas no segundo seguinte, o que fez Medea voltar a abrir um sorriso alegre e puxar para dentro, ignorando o fato de a mulher ter ficado estática, encarando as duas. Ela teria intervindo, se não conhecesse bem demais a amiga. A cabeça quente sempre levava à discussões.
Mesmo sem apertar nenhum botão, o elevador começou a subir. apenas encarou a amiga, que se apoiava em uma das paredes do cubículo, sem prestar muita atenção ao redor. Estava focada em mexer no celular. Pensou em dizer que ela deveria ter mais empatia, agora que estavam a sós, mas o comportamento de Medea estava estranho desde que o dia começou, então preferiu não intervir. Quando o silêncio se instalou por um período longo demais, percebeu que o elevador estava subindo fazia muito tempo e olhou imediatamente para o painel que anunciava os andares. De maneira estranha, o número 378 podia ser visto e ela deu uma risada, achando estar alucinada. Aquilo não era possível. Que prédio tinha mais de duzentos andares? Colocou-se nas pontas dos pés e deu duas batidinhas no visor com o dedo, mas ele somente ia aumentando o número de um em um, como se nada estivesse errado. colocou uma mão na cintura e a outra no queixo. Deveria estar ficando completamente maluca. O delírio talvez explicasse o dia bizarro.
— Medea, acho que tem alguma coisa errada com esse elevador.
— Por que diz isso? — a ninfa perguntou, distraída.
— Porque... — não conseguiu continuar a frase.
Assim que se virou para fitar a amiga, seus olhos arregalaram e sua boca abriu em choque. Medea estava com orelhas muito pontudas e a pele vermelha, mas não como de quem está corada, vermelha como a cor de um rubi, da ponta dos pés até a cabeça. A única coisa que continuava igual eram os longos cabelos escuros.
— O que aconteceu com você? — segurou as bochechas da ninfa e ela revirou os olhos em resposta.
— Eu esqueci de avisar. Você é a deusa da primavera e eu sou uma ninfa do Submundo.
apenas abriu um sorriso forçado, não entendendo nada. Estava convicta que aquilo era tudo um sonho. Um elevador que subia até o infinito e uma Medea no corpo de um ser que jamais havia visto.
— Eu avisei que o Olimpo era real, você que não quis acreditar — a ninfa deu de ombros.
— O quê?
, os deuses existem, é isso que estou tentando lhe dizer. Zeus, Hera, Atenas, Hades, Poseidon, Héstia, eles todos existem. Por algum motivo que eu não sei explicar, você nasceu na Terra, de pais humanos, mesmo sendo uma deusa, o que é algo que nunca aconteceu.
— Então nós realmente estamos indo para o Olimpo?
— Sim. — Medea olhou o painel de relance. — Estamos quase chegando.
— E o que é o Submundo? Quer dizer, você disse que é uma... ninfa do Submundo.
— O Submundo é o lugar para onde vão os mortos.
fez uma careta de incredulidade, erguendo as sobrancelhas e se esforçando para digerir, simultaneamente, o que Medea havia dito e a sua nova aparência. Não teve muito tempo, no entanto, para processar os pensamentos, as portas do elevador se abriram e um cômodo branco e moderno se projetou em sua frente.
— Bom dia, Medea. — Uma ninfa amarela atrás do balcão, com cabelos de cobras iguais aos da Medusa, sorriu, bem-humorada. — Que bom tê-la de volta.
— Tanto faz — Medea segurou o pulso de , puxando-a junto a ela e parou em frente à recepcionista.
— Bem-vinda ao Olimpo, deusa da primavera. — A ninfa sorridente dirigiu-se a , que foi pega de surpresa e arregalou os olhos ao perceber que a estranha encarava-lhe fixamente.
— Muito obrigada. Posso saber por que estamos aqui?
Medea revirou os olhos e a recepcionista deu uma risada, achando a pergunta engraçada. Sem mais delongas, a ninfa amarela apertou uma tecla do seu computador e pediu para que chamassem Psique. questionou-se com quem ela estava falando. Na verdade, no momento, não havia nada sobre o que ela não se questionava.
— Medea. — A mulher atrás do balcão esticou a mão e a ninfa vermelha em sua frente bufou, entregando-lhe o celular que tirou do bolso da calça. A recepcionista sorriu, esperta, e continuou com o braço erguido. Medea revirou os olhos, emburrada, e tirou outro telefone da jaqueta. — Você sabe que isso é proibido no Olimpo.
— Por que é proibido? — perguntou, curiosa, já colocando o seu próprio celular no balcão de mármore.
— Porque isso colocaria o emprego de Hermes no lixo.
— Você sabe muito bem que esse não é o motivo, Medea. — A ninfa amarela estreitou os olhos. — Há alguns anos tivemos problemas com nudes vazados e o escândalo foi... um tanto quanto sério. Zeus não ficou nada feliz.
— Entendi — falou, um pouco surpresa. Até o paraíso tinha seus problemas, ao que tudo indicava.
— Zeus não ficou feliz porque os nudes eram dele — Medea segurou o riso.
— O QUÊ? — arregalou os olhos.
— Cuidado com o que você fala, você sabe bem que as notícias correm rápido por aqui. — A recepcionista ergueu um das sobrancelhas e Medea somente bufou, irritada.
Sem hesitar por um segundo sequer, a ninfa amarela voltou a abrir seu sorriso simpático e apertou um botão debaixo do balcão, que abriu uma janela atrás dela. Estava muito claro, pela paisagem e pelo vento abismal, que aquele cômodo ficava literalmente no meio das nuvens. Agora, com um sorriso dócil e sem ao menos olhar o que fazia, a secretária jogou os celulares pela janela e ficou boquiaberta enquanto via o buraco fechar de modo automático.
O QUE DIABOS ELA HAVIA ACABADO DE FAZER?
arregalou os olhos e virou-se para encarar Medea, que apenas deu de ombros, como se dissesse, de modo implícito, “foi bom enquanto durou, agora pare de chorar”. Alguns minutos depois, na calada e em uma troca de olhares estranha, uma bela mulher abriu uma das portas do local. Diferentemente das outras, ela parecia um ser... normal, como qualquer outro humano. Psique possuía uma expressão serena e arriscaria dizer animada, também. Vestia um vestido branco comprido de seda com um delicado cordão de ouro ao redor da cintura, que evidenciava um corpo muito bonito e uma pele negra reluzente, e um salto dourado.
— Você deve ser a ! — A estranha colocou as mãos nos braços da deusa da primavera, que sorriu, sem graça. percebeu que era estudada pelos olhos cor de mel da mulher em sua frente. Ela percorria cada detalhe de seu rosto como se aquilo fosse nostálgico. E, talvez, fosse. — Você realmente é arrebatadora, o oráculo não mente. Muito prazer, meu nome é Psique. — Antes mesmo que pudesse dizer algo, ela continuou a falar, dessa vez voltando seu olhar para Medea. — Muito obrigada por todo o seu esforço. Espero que você faça um bom retorno para casa.
— Como assim retorno para casa? — perguntou, confusa, enquanto a ninfa andava em direção à uma porta, que não era a mesma que Psique havia usado para chegar até ali.
— Meu apartamento deve estar coberto em poeira — Medea riu, acompanhada pela recepcionista. — Vejo vocês outra hora.
Então, ela fechou a porta atrás de si e sentiu os olhares das outras duas caírem sobre seus ombros. Não havia momento na sua vida que ficara mais confusa que naquele momento, disso ela tinha certeza.
— Não se preocupe, querida, você ainda verá Medea, sobretudo quando estiver estagiando no Submundo.
— Eu vou o quê? — arregalou os olhos e Psique riu, já abrindo uma das portas e balançando a cabeça para que a deusa da primavera a acompanhasse.
— Eu explicarei tudo no caminho.
Assim que deixou o cômodo, foi inevitável ficar boquiaberta. Em sua frente havia um tipo de escada rolante extensa, com degraus de nuvens nada confiáveis, que dava em uma cidade inteira suspensa sobre as nuvens. Uma placa brilhante anunciava a entrada aos céus “Você chegou ao Olimpo”. Assim que Psique pisou em uma das nuvens, não hesitou em fazer o mesmo, observando ao longe aquelas ruas e prédios tão deslumbrantes. Talvez fossem os raios solares, porém absolutamente tudo ali parecia angelical, como se um coro, junto às melhores harpas, soasse ao fundo.
— Então — Psique animou-se ao perceber que estava fascinada com o cenário —, existem muitas regras olimpianas. Acho que as principais são que há uma hierarquia e que as pessoas devem exercer seus papéis. Zeus é o rei de tudo, basicamente, embora Hades governe o Submundo e, Poseidon, os mares. A palavra deles é a palavra final e nós nunca, eu repito, nunca, devemos desobedecê-los, se não quisermos encarar as consequências. Eles possuem o poder de fazer o que quiserem, até mesmo nos matarem. Logo em seguida temos os outros deuses, os semideuses e, por fim, as ninfas, que são facilmente reconhecidas pelas cores vibrantes, com suas orelhas pontudas, suas membranas natatórias nas mãos ou seus cabelos de serpentes. Elas são as mais diferentes dos humanos, os semideuses são os mais parecidos e os deuses, bem, eles podem ter peculiaridades.
— Onde você se encaixa nisso? — perguntou, curiosa.
— Eu sou exceção — Psique respondeu com um sorriso divertido. — Chegaremos nesse ponto depois. Todos, seja no Tártaro, seja no Olimpo, seja na Terra, temos afazeres. Cada pequena decisão feita pelos seres mortais é influenciada por nós. Quando eu digo cada pequena decisão, eu digo desde escolher entre descer de elevador ou escada até causar alguma guerra mundial. Por exemplo, Ares está influenciando os conflitos na Terra nesse instante, Hera está analisando os casamentos que acontecem nas próximas semanas e Eros está fazendo as pessoas se apaixonarem ou se odiarem.
— E por que os deuses têm afazeres?
— O mundo precisa continuar fluindo em harmonia — Psique respondeu, generalista, e mudou de assunto. — Zeus pediu para que você morasse comigo por enquanto, até ter experiência o suficiente para ter sua própria vida sozinha.
Logo que ela terminou de falar, saíram da escada rolante e foi guiada pelas calçadas do Olimpo, enquanto apreciava parques, prédios e outros diversos estabelecimentos de uma cidade maior do que imaginou que seria. Psique apontava para todos os lados, explicando onde ficava cada comércio, mas estava distraída, não conseguia absorver um quarto do que Psique falava. Quando se deu conta, as duas já estavam em frente à uma linda casa, grande demais para uma pessoa morar sozinha e aberta demais para um senso de segurança. Ponderou, no entanto, que o Olimpo era um dos lugares mais seguros do universo, pelo menos, deveria ser. Assim que deu o primeiro passo para dentro da propriedade, o jardim floresceu instantaneamente, o que encantou Psique.
— Isso foi incrível! — Psique ergueu os braços, consumida por uma alegria que lhe era peculiar. — Hera com certeza vai querer que você cuide do jardim da mansão dela.
— Eu que fiz isso?
— Mas é claro, . Você é a deusa da primavera. — Então Psique franziu o cenho e adquiriu uma expressão séria quando percebeu o que se passava. Apressou os passos até a porta da entrada principal e a abriu com urgência. — Nunca lhe ensinaram a controlar seus poderes?
— Eu não sabia que tinha poderes até esse exato momento — informou ao entrar na casa.
Tudo dentro era bem moderno, com uma cozinha em conceito aberto e ilha de mármore, uma sala com uma televisão gigantesca e um sofá que acomodaria muitas pessoas... ou deuses e ninfas. Algo a fazia se sentir confortável, talvez fosse a presença de Psique ou talvez fosse a quantidade abundante de luz natural que entrava pelas grandes janelas de vidro.
sentou-se sobre o balcão gelado da cozinha, observando Psique analisar um papel em sua mão. Pela expressão facial dela, havia alguma coisa errada.
— Aconteceu algo?
— Sim, minha deusa — Psique respondeu no automático. — Achei que você, pelo menos, saberia usar seus poderes, mas, como você nem fazia ideia de que os tinha, tive que ver quem vai lhe ensinar. Nesse documento que Hera me deu, consta que você vai aprender com Deméter.
— E isso é algo ruim?
Psique engoliu em seco e teve um pequeno tique no olho esquerdo. Sabia muito bem que aquilo não seria nada bom para , tendo em vista o que aconteceu com Perséfone há centenas de anos.
— Ainda não posso dizer. Pelo menos, você fará estágio no Submundo para contrabalancear. Perséfone com certeza lhe dará apoio.
— Quando exatamente eu começo esses estágios?
— Acho que amanhã mesmo — ela falou, colocando o papel de volta em uma gaveta.
— Psique — pigarreou —, você é humana, não é? Assim como eu?
— Podemos dizer que sim, mas é um pouco mais complicado.
— Existem outros humanos no Olimpo?
— Não — Psique afirmou, rápido. — Somente eu.
— E eu.
— Não, . — Ela apoiou-se na geladeira e cruzou os braços. De repente, Psique já não parecia mais dócil. — Você não é humana, nunca foi. Você é uma deusa, um ser imortal dotado de qualidades que nem imagina.
— Imortal? Você está dizendo que eu nunca vou morrer?
— Uma grande responsabilidade — Psique ergueu os ombros e ficou perplexa. Ela já sabia que na mitologia os deuses viviam eternamente, mas nunca lhe passou pela cabeça que seria o mesmo com ela. — Vejo que você não está a par de certas informações. De qualquer maneira, vai acabar descobrindo.
— Por que é um pouco complicado? — questionou e pôde perceber o brilho triste que tomou conta dos olhos de Psique. — Digo, por que você não é totalmente humana?
— Meus deuses, ninguém lhe contou nenhum dos acontecimentos do passado, não é? — A mulher de pé enrijeceu os músculos. Passou pela sua cabeça que aquilo havia sido feito de propósito e Psique teria que dar todas as notícias ruins à . — Bom, acredite ou não, eu nasci há mil anos. E, sim, eu deveria estar enterrada debaixo da terra nesse ponto da minha vida. Diziam, lá na Terra, que eu era mais bonita que a própria Afrodite. — olhou-a discretamente dos pés à cabeça e não conseguiu discordar, embora ainda nem conhecesse Afrodite. — Ela não ficou muito feliz com os rumores e mandou Eros, seu filho, verificar se isso era realmente verdade e, se fosse, dar um jeito. Acontece que eu e ele nos apaixonamos. Não foi de um dia para o outro, acredite, demorou mais ou menos um ano, mas a história ficaria longa se eu contasse os detalhes. Enfim, Zeus, como um presente para comemorar nosso amor, me concedeu vida eterna desde que eu vivesse no Olimpo.
— Certo — fez um bico enquanto mergulhava em um estudo na postura corporal de Psique. — Só que você não está mais com o Eros.
— Não — Psique sorriu, surpresa, ao encarar uma com uma expressão divertida no rosto. — Digamos que eu tive um... pequeno desentendimento com Eros.
Psique balançou a cabeça rapidamente de um lado para o outro, como se espantasse os pensamentos, e abriu a geladeira a procura de uma garrafa de água. interpretou o gesto como um sinal para encerrar o assunto.
— O que quer visitar primeiro? — Psique voltou a falar depois de dar um gole em sua bebida. — Posso te falar onde ficam as melhores baladas, parques e cinemas, se quiser.
— Acho que podemos começar com os seus lugares preferidos — falou, já saindo de cima do balcão, e passou a mão pelos cabelos, sentindo um pressentimento estranho.
— Perfeito! Podemos conversar um pouquinho como estão as coisas lá na Terra durante o caminho. Faz muito tempo que não apareço por lá.
— Claro — sorriu, simpática. — Mas temos que fazer um acordo. — Psique apenas assentiu com a cabeça e a deusa prosseguiu. — Precisamos passar em algum lugar para comprarmos roupas. Medea não me avisou que eu viria ao Olimpo antes de eu sair de casa.


estava cansado. Havia passado o dia todo na Terra, encarregado de cumprir suas incumbências. Desde que começara seu trabalho, sentia que a carga horária aumentava gradativamente. Os mortais e suas consciências lhe esgotavam.
Assim que avistou os altos prédios do Olimpo dentre as nuvens, abriu um sorriso discreto, embora cínico, algo que lhe era peculiar. Como único filho de Perséfone e Hades, era agraciado com uma feição extremamente atraente, que não passava despercebida por nenhuma deusa ou ninfa, e com um comportamento inabalável, sarcástico, ludibriante e, sobretudo, perigoso. Para as mulheres, a verdadeira e irresistível linha tênue entre o bom e o perverso; para os homens, alguém a se temer. Não era à toa que era o deus do sofrimento e do prazer, tinha as características e habilidades exatas para isso. Já diziam na Terra que deuses bons levavam ao céu, mas que o traria até você. Não que fosse inteiramente verdade, mas ele não se cansava de ouvir isso.
Logo que avistou a cúpula do Palácio da Corte, retraiu suas belas asas, de penas negras afiadas e reluzentes como o metal, formando um escudo ao redor de seu corpo, e permitiu que fosse puxado pela gravidade e caísse livremente. Adorava a sensação de liberdade que o gesto lhe causava, apreciava ainda mais quando a queda era percorrida com os olhos fechados. Nada era mais seu do que o controle de sua própria vida. Pouquíssimos metros antes de colidir com o chão, abriu suas imponentes asas em toda sua extensão, parando, ajoelhado, na rua bem em frente ao palácio e levantando-se logo em seguida. Seu instinto, todavia, obrigou-o a olhar de relance para a diagonal. Algo em seu peito parecia incomodado, como se alertasse de que estava em perigo.
Quando pousou a vista sobre duas mulheres, sentiu o coração pular uma batida e a íris ficar afiada. Psique conversava com alguém que ele nunca tinha visto antes, mas que imediatamente considerou a mulher mais linda que já vira, ainda mais bela que a própria Afrodite. Os traços finos e delicados do rosto ornavam com seus gestos graciosos. O corpo era perigosamente tentador. E ela exalava uma tranquilidade ameaçadora. Talvez a tenha encarado por tempo demais, pois ela o fitou, curiosa, e uma coroa de flores brotou em sua cabeça, assim como seu cabelo cresceu instantaneamente pelo menos um metro e começou a flutuar. Algo em suas mechas capturou o interesse do deus. Como nunca a havia visto, a cor era um coral vivo e as pontas um pouco mais alaranjadas, como o próprio fogo. Quando percebeu quem ela era, imediatamente fechou o semblante por sentir uma leve e quase imperceptível pontada no estômago. Depreciava, por natureza, qualquer tipo de sentimento que não fosse seu verdadeiro vício: o prazer genuíno. Pensou que nem parecia alguém com mais de duzentos anos de maturidade nas costas. Sentiu desprezo por si mesmo. Hermes apareceu ao seu lado, junto de Eros, que deu dois tapinhas nas costas de , tirando-o de seus devaneios. Os três deuses fecharam as asas e, apesar de um diálogo começar, não conseguia se concentrar por ainda estar atordoado.
— Finalmente meu turno acabou — Hermes reclamou enquanto alongava o corpo.
— Diga por você, eu amo meu trabalho — Eros declarou, animado, porém o mensageiro o ignorou, voltando a falar.
— Quase fiquei de correio particular de Hera e Zeus de novo por causa dessa nova deusa da primavera.
— Será que ela é bonita? — Eros perguntou com um sorriso malicioso e demorou apenas alguns milissegundos para responder mentalmente que sim, com certeza sim. De relance, olhou para o lugar onde elas estavam, mas as duas haviam sumido. — Ainda não tive chance de vê-la.
— Se o oráculo de Gaia estiver correto, ela deve ser um pitelzinho.
— Pitelzinho, Hermes? Mas que porra é essa? — Eros repreendeu-o e cruzou os braços na altura do peito. — Talvez eu atire uma das minhas flechas com ponta de ouro nela, não seria nada mal ter a deusa da primavera como amante.
— Você jogando sujo? — ergueu uma das sobrancelhas, falando em um tom provocativo com o qual os outros dois já estavam acostumados. — Você não consegue nem ir contra as regras de merda da Hera.
Eros restringiu-se a fazer uma careta emburrada. Odiava o fato de que não poderia se divertir manipulando os outros. Tudo porque Zeus colocava a culpa de suas traições nos poderes dele e de Afrodite, alegando que eles haviam o influenciado a fazer sexo com outras. Por mais que Eros e sua mãe, de fato, tivessem um domínio no quesito relacionamentos amorosos e induzissem pessoas a se apaixonarem por outras de acordo com suas vontades e caprichos, isso não queria dizer que estivessem conectados com os atos de Zeus.
— Falando sobre meus poderes — Eros abriu um sorriso dissimulado e fitou , o que deixou Hermes intrigado —, eu sinto em meus ossos que tem alguma coisa errada com você. Algo como... uma atração reprimida.
— Você deve estar louco — Hermes começou a rir escandalosamente. — ? se interessando por alguém?
— Todos podem se apaixonar — Eros retrucou.
— Não o deus do prazer e do sofrimento. Ele é o cara dos filmes que leva todas para a cama e nunca liga no dia seguinte, você sabe disso — o mensageiro continuou a falar. — Quase trezentos anos nas costas e todas os seres do Olimpo, do Submundo e dos mares aos seus pés não foram o suficiente para ele amar alguém, não acho que é agora que isso vai acontecer.
— Não estou apaixonado, não seja idiota, Eros. — Dessa vez, o próprio quem afirmou.
— Hades nunca se apaixonou por alguém sem ser Perséfone, talvez seja o sangue, talvez você esteja fadado a só se apaixonar uma única vez — Eros ponderou, embora estivesse surpreso por nunca ter notado que jamais havia sentido amor profundo por alguém, o que soava muito triste em sua cabeça. Não conseguiria imaginar uma vida de solidão. — Não se preocupe, cara, eu posso garantir que ela te ame de volta.
— Com esse corpo gostoso não haverá necessidade — Hermes proferiu, espirituoso, e o deus do prazer e do sofrimento revirou os olhos.
— Não se atrasem — falou, já começando a andar em direção à calçada. — Ou eu vou sem vocês.


Psique parou de súbito em frente à uma suntuosa construção, o que acarretou em um quase trombo dela com , que andava distraída, tentando dividir sua atenção entre ouvir Psique tagarelar, segurar as dezenas sacolas de compras e tentar acompanhar a paisagem estonteante que era o Olimpo. Tudo, absolutamente tudo, chamava-lhe atenção. Era como se o ar fosse mais limpo, as cores, mais vibrantes, e as pessoas, mais felizes. já perdera a conta de quantas vezes se pegara distraída com os cabelos sedosos e longos das ninfas azuis, ou com o fato de que o andar de todos, como se estivessem flutuando, era extremamente agradável de observar, ou com os belos guardiões olimpianos em seus uniformes impecáveis, que sempre pareciam estar rindo de alguma coisa...
— Pelo amor dos deuses, , tenha mais cuidado.
— Desculpe. Continue, por favor.
— Esse aqui — Psique apontou para a construção suntuosa ao seu lado, com seus pilares monumentais e escadarias gigantes de mármore e sua cúpula banhada a ouro —, é o Palácio da Corte. Basicamente, é onde os grandes deuses decidem sobre punições, eventos e marcos históricos. Seria o equivalente ao tribunal dos mortais.
Psique prosseguiu com seu discurso, mas sentiu uma estranha necessidade de olhar para o lado. Seus ombro e braço esquerdos pareciam mais quentes do que o resto de seu corpo. Pegou-se com a impressão de estar sendo observada. E realmente estava. Sua visão recaiu sobre alguém que estava parado no meio da rua, sem se preocupar com o arredor. Ela não poderia dizer que ele carregava a expressão mais simpática do mundo, muito pelo contrário. As imensas asas abertas, escuras e sóbrias como uma noite sem estrelas, chamaram-lhe a atenção. Traziam um ar de grandiosidade e intimidação como jamais vira e pareciam ser feitas do mais resistente aço cortante. Eram encantadoras, embora aparentassem serem extremamente pesadas. O homem que as sustentava encarava com veemência e fatalidade, como se estivesse tentando entrar em sua mente, como se pudesse invadi-la. Ele estava todo de preto, com uma jaqueta de couro e botas e a face trazia uma beleza ameaçadora. Algo na íris de seus olhos era fúnebre e gélida, o que lembrou da própria morte e a atração contraditória que lhe percorreu o corpo gerou uma coroa florida sobre seus cabelos, com raízes entrelaçadas e belas flores coloridas.
De repente, ela sentiu um frio tomar conta de si, algo nada agradável que a obrigou a passar as mãos sobre os braços. Jurou que uma fumaça de ar saíra de sua boca quando respirou. Por alguns segundos quis desviar o olhar para verificar se a temperatura gélida passaria, mas não conseguiu, estava interessada demais nele. Perigosamente interessada.
, você está prestando... — Psique parou seu monólogo ao se deparar com o surgimento do adorno na cabeça da mulher em sua frente e acompanhou seu olhar quando percebeu que a deusa estava focada em outra coisa. — NÃO, NÃO, NÃO!
Psique segurou pelos braços e quase a arremessou para o outro lado do Olimpo. Empurrou-a para outra rua com tanta vontade, que a deusa da primavera quase perdeu o equilíbrio ao tentar acompanhar seus passos apressados, sentindo sua cabeça estranhamente mil vezes mais leve. O desespero de Psique era evidente e estava confusa, não entendeu a reação repentina, mas, a julgar pela expressão enfurecida, somada ao semblante de desgosto e ao ranger de dentes, ela nem precisaria perguntar nada, a explicação viria naturalmente.
— Não! Nem pensar!
— Nem pensar o quê? — indagou, olhando para os lados na intenção de se localizar.
— Me prometa que você não vai chegar perto de .
?
— O filho de Hades e Perséfone, a própria prole da maldade — Psique falou como se aquilo fosse um fato óbvio. Talvez fosse para quem vivia no reino dos imortais. — Você não quer se envolver com ele, acredite. Eu não sei se Medea lhe contou, mas os deuses vivem relações sexuais complicadas.
— Ela comentou sobre isso. — fez um bico engraçado ao lembrar de como Medea havia resumido tais relações a uma orgia deliberada.
— Com essa sua beleza, os deuses irão atrás de você, mas você deve tomar cuidado. Se quiser virar uma deusa da castidade, assim como Héstia, Atenas e Ártemis, não pode deixar que eles a convençam a dormir com você. Caso não queira, deve ser cautelosa com quem dorme, a difamação corre mais rápido que Hermes, por aqui. — Psique vomitava as palavras com urgência e apenas fazia uma careta de clara desorientação. — Não se envolva com Ares, pois Afrodite irá puni-la. Zeus está fora da lista, Hera lhe mataria. Poseidon também é casado, assim como Hefesto e Hades. Agora, ... é o favorito de Hera, sobretudo por ser da realeza, e ela o quer como marido de sua filha mais nova, Hebe, então ele automaticamente se torna o protegido da rainha e você não quer uma briga contra ela, disso eu tenho certeza. Não só isso, não é o tipo com quem você deve se envolver, ele é fruto do caos, , ele é tão cruel como a morte.
Embora o objetivo de Psique fosse alertar a deusa sobre os males que um complexo amoroso olimpiano causava, estava deslumbrada demais com a aparência de . Sabia, entretanto, que alguém “cruel como a morte” não poderia ser uma boa pessoa. Questionava-se por que Psique parecia temer tanto o filho de Perséfone e Hades. Será que a família era tão vil como descreviam os mitos?
— Então, me prometa que você não vai chegar perto dele.
— Tudo bem — levantou os braços em rendimento.
Psique continuou a falar, muito provavelmente sobre a personalidade ruim de , mas não conseguiu focar nas palavras dela, deparou-se com sua imagem refletida em um dos vidros espelhados de um prédio e não pôde deixar de ficar estática, sentindo sua pressão baixar um pouco.
— O que aconteceu com o meu cabelo? — a deusa arregalou os olhos.
As mechas não se pareciam nem um pouco com o que eram originalmente e tinham um comprimento absurdo, flutuando acima dos ombros. A cor era tão estranha que sentiu estar no corpo de outra pessoa. Em um reflexo, colocou a mão sobre o cabelo, que estava muito mais macio do que lhe era usual.
— Sobre isso — Psique suspirou impaciente —, o Olimpo funciona como uma fonte de recarga, então é normal que seus poderes fiquem um pouco mais evidentes por aqui. Quando você se submete a emoções fortes, principalmente medo, raiva e desejo, seu cabelo expressa isso crescendo. Ao longo do tempo você aprende a controlar, ainda é muito nova. — Psique pegou um conjunto de fios e começou a analisá-los. — Mas admito que é estranho seu cabelo só ficar colorido quando você está nos extremos, você verá que as deusas e os deuses têm cabelos coloridos o tempo todo, assim como as ninfas.

Capítulo 3

Da esquina, destacavam-se os arbustos, agora floridos, da casa de Psique. Ou o que seria a sua casa também a partir de agora. levou um susto ao se deparar com uma estranha de cabelo roxo à porta de entrada. Ártemis possuía as madeixas lisas e lambidas até a altura da cintura, onde apoiava uma das mãos. Usava um moletom cinza e parecia ter acabado de sair da academia, embora apresentasse, naquele instante, uma beleza ímpar, digna de capa de revista. Ela carregava um semblante tão feliz que chegava a ser assustador e uma certa obsessão podia ser vista nas linhas de sua íris. O sorriso divertido que lhe era peculiar contribuía para a imagem jovial e descontraída de Ártemis, mas a deusa tentava esconder sua face de preocupação gerada pela notícia da carta que recebera de Apolo depois do almoço.
— Pelos deuses, como você é bonita! O oráculo não mente. — A deusa da caça segurou as mãos de e a fez rodopiar para ter uma visão completa da moça confusa. — Estava na hora de alguém novo aparecer por aqui, depois de uns milênios a rotina fica chata. — Ela apertou as bochechas rosadas de . — E esses cabelos! Simplesmente divinos! Afrodite ficará furiosa — Ártemis riu, travessa, e Psique a acompanhou. — Mas precisamos cortá-los, quando eles pararem de flutuar, estarão pesando demais e isso vai dar dor de cabeça.
— Ártemis, minha querida deusa — Psique sorriu, carinhosa, já abrindo a porta para que todas entrassem. achou bem estranho o fato de a casa não ter fechadura, somente maçaneta — e de não ter notado antes —, a que devemos a honra de sua presença?
— Sem formalidades, meu amor — a deusa pediu enquanto ia em direção à cozinha. — Vim conhecer a .
— Eu?
— Sim — Ártemis respondeu e chamou-a com um gesto de mão. — Tive uma pequena reunião com Perséfone e Hades no almoço e ela avisou que você estaria por aqui. Olha que notícia ótima! Somos vizinhas agora.
— Hades? — Psique ergueu uma das sobrancelhas em um tom misto de suspeita e dúvida. — No Olimpo? Hades no Olimpo?
— O próprio — Ártemis sorriu, esperta, e revirou os olhos. O breve sarcasmo que escorria de sua voz condizia perfeitamente com o semblante perspicaz. — Amigável, como sempre.
não sabia dizer se morar ao lado da estranha de cabelos roxos realmente era uma notícia ótima, porém achou Ártemis muito simpática e bonita. Aparentava ter, no máximo, vinte e dois anos e exalava um ar de juventude e compostura como nunca vira antes. Talvez fossem características inerentes ao seu ser. Algo em sua aura, entretanto, também trazia um ar felino e levemente fatal, o que não deixava muito confortável. Quando Ártemis deu dois tapinhas sobre um dos bancos da cozinha, a deusa da primavera interpretou aquilo como um convite para se sentar e o fez, largando as sacolas de compras na ilha de mármore. Em seguida, Ártemis tirou um afiado punhal do bolso do moletom e cortou os cabelos de em um único movimento preciso, o que fez as mechas da deusa da primavera voltarem à cor original e assustar as outras duas outras mulheres no recinto, que arregalaram os olhos concomitantemente. , sem se surpreender com mais uma das coisas bizarras que aconteciam no Olimpo, apenas se perguntou se todos carregavam uma pequena adaga no bolso por ali.
— Fascinante — Ártemis olhou para o resto do tufo de cabelo no chão, que ainda se mantinha em cores vívidas de coral e laranja. — Nunca vi isso acontecer.
— Mas também nunca vimos uma deusa nascer de mortais — Psique deu de ombros, tentando aceitar o quanto antes que já não viveria um dia normal a partir de agora, e saiu da cozinha para pegar o aspirador de pó.
— Inclusive, ainda não me apresentei. Sou Ártemis, a deusa da caça e dos animais selvagens, protegida pelo voto da castidade e ao dispor daqueles que me trazem oferendas.
— Muito prazer — sorriu, gentil, jurando que uma luz dourada exalava de Ártemis. — , ...deusa da primavera, eu acho.
— Medea me contou que você é uma deusa que gosta de aventuras, respostas afiadas e tem um bom senso humorístico.
— Eu acho que ela exagerou um pouco. — As bochechas de coraram levemente. — Tenho certeza de que ela foi gentil demais nos elogios.
— Descobriremos depois de amanhã — Ártemis falou, animada, enquanto ia em direção ao sofá da sala. — Venha comigo para o centro de treinamento. Tenho certeza que podemos lhe colocar à prova lá.
— Sábado não dá, Ártemis — Psique interveio e ambas as deusas a olharam.
— Por quê? — perguntou, curiosa. — Eu tenho algum tipo de trabalho ou finais de semanas não existem por aqui?
— Porque acontecerá uma comemoração centenária do casamento de Zeus e Hera e eles darão uma grande festa para os deuses em sua mansão — Psique respondeu, calma, embora a deusa da primavera tenha reconhecido um leve tom de desapontamento, e Ártemis fez uma careta. Ela havia esquecido desse evento.
— Verdade. Então, no domingo — a deusa da caça sugeriu.
— O que acontece nesse centro de treinamento? — questionou, interessada, apoiando os cotovelos sobre a bancada de mármore.
— É um lugar onde Atenas, eu, outros deuses e semideuses autorizados treinamos nossas habilidades e condicionamentos físicos.
— Admito que a ideia não me parece tão convidativa assim — fez uma careta hesitante e desviou o olhar para o eternamente ensolarado quintal. — Quer dizer, não podemos passar o dia assistindo filmes ou fazendo um programa leve?
Então Psique e Ártemis começaram a rir escandalosamente, entreolhando-se, como se aquilo fosse um verdadeiro absurdo. não entendeu o motivo da graça e ficou sem jeito, abrindo um sorriso envergonhado.
— Você realmente tem um humor excelente, isso já está provado. — Ártemis limpava a lágrima que insistia em se formar no canto do seu olho. — Está tarde, então creio que vocês irão dormir em breve. Nos encontramos na festa, . Aconselho que use seu melhor vestido, você não gostaria de deixar Hera ainda mais irritada pela sua apresentação, certo?
— Ainda mais? — arregalou os olhos e Ártemis limitou-se a sorrir, gentil.
Então, a deusa da caça se levantou e foi até a porta, fechando-a atrás de si. Assim como chegou em um piscar de olhos, Ártemis saiu. Psique apenas voltou a sorrir, meiga, e avisou que o quarto disponível era no andar de cima, na última porta do corredor. Foi depois dessa fala que ela se pôs a subir as escadas e sumir de vista também.
não entendeu nada do que aconteceu nos últimos segundos. Respirou fundo e encarou a sala vazia. Passou-lhe pela cabeça que deveria assaltar a geladeira e tomar um banho quente e demorado logo em seguida. Talvez, isso a tirasse de seus devaneios em relação à todas as coisas que não entendera no dia.
Assim que abriu todos os armários da cozinha, encontrando os mais diversos utensílios culinários que não pareciam ter sido usados uma única vez sequer, finalmente deparou-se com uma caixa de cereal, o que lhe pareceu o suficiente na hora. Sem muita cerimônia, considerou aquilo seu jantar e começou a comer diretamente da embalagem, já se dirigindo às escadas.
Logo que pisou no último degrau, encontrou uma sala que continha um piano de calda preto bem no centro e uma grande sacada com uma vista maravilhosa da fachada da casa. Tudo parecia estar perfeitamente limpo. Ela até ousaria dizer intocado.
olhou para os dois lados do corredor. Apesar de Psique ter dito que seu quarto era na última porta, ela não sabia de qual lado, então arriscou andar para a direita primeiro. Encontrou, entretanto, uma aconchegante sala de cinema, com sofás distribuídos em níveis, pôsteres de filmes estrelando ninfas como atrizes, uma iluminação suave e um projetor para a gigantesca tela. questionou porque diabos existia uma sala de cinema, se no andar debaixo havia uma televisão mais que suficiente.
— Eu sou excessivamente rica no Olimpo? — indagou ao enfiar sua mão na caixa de cereal para colocar uma quantidade exagerada de comida na boca e sorriu, contente.
Assim que fechou a porta atrás de si, andou apressadamente para a outra ponta do corredor. Nunca esteve tão feliz em ter girado uma maçaneta antes. O quarto era muito espaçoso, com uma bela cama de casal enorme que poderia ser visualizada logo que entrasse, posicionada em cima de um tapete delicado. Estantes de madeira clara decoradas com luzes cobriam toda a parede que continha a porta. Havia uma escada dourada que deslizava sobre um corrimão próximo ao teto para que objetos pudessem ser alcançados nas partes mais elevadas. Tudo era muito moderno e elegante, embora ainda existissem espaços vazios no local, convidando-a para decorar como bem entendesse. Uma bela e ampla sacada, somada às duas outras portas do quarto, concluíam o cômodo. A primeira porta levava a um closet vazio e a segunda a um banheiro de piso e paredes de mármore puro, com muitos adornos em ouro e o maior espelho que já vira. Estava completamente deslumbrada, sobretudo quando notou a banheira clássica com pés dourados no canto. Sentia-se extasiada e o brilho nos olhos era inevitável. A deusa estava tão mergulhada na felicidade que, em choque, ramos de plantas começaram a invadir todo o quarto, deixando-o ainda mais encantador, o que parecia algo impossível.
— Típico dos deuses — Medea revirou os olhos ao retirar os óculos de sol e apoiou-se no batente da porta. — Sempre com suas casas extravagantes. Você deveria ter visto quando Zeus e Hera ainda moravam em um palácio. Era ridículo.
— Medea! — gritou, feliz, e foi correndo abraçar a ninfa.
— Esqueci como você é afetuosa — ela revirou os olhos outra vez e analisou rapidamente o quarto. — Já vi que você transformou seu quarto em mato. — E, assim que a ninfa terminou de falar, flores começaram a desabrochar sobre os ramos, decorando tanto as estantes quanto as paredes e o teto.
— É bom vê-la de novo também — a deusa falou, sarcástica, e deitou-se sobre a cama, abrindo os braços espaçosamente sobre o edredom macio.
— Deixa eu adivinhar, eu sempre fui uma ótima guia turística e você nunca me valorizou. Agora que Psique está lhe guiando, você me quer de volta.
— Não é isso, você sabe. Psique é uma pessoa incrível — riu e abriu um sorriso tímido em seguida. Não demorou muito para que Medea deitasse ao seu lado e as duas encarassem o teto.
— Um dia e eu já fui substituída?
— Não seja boba.
— Não fique preocupada, aqui você vai viver do melhor que existe — Medea sorriu, compreensiva, como se pudesse ler os pensamentos de , porém, logo seu semblante sereno se tornou malicioso e seus olhos pretos começaram a reluzir. — Assim que aprender a usar seus poderes, vai ver como tudo fica mais... divertido. Como você vai conseguir manipular deuses e mortais, causar o caos na Terra, sair impune de... — encarou Medea com uma expressão séria e uma das sobrancelhas levantadas, o que fez a ninfa revirar os olhos e cruzar os braços. — Você também vai fazer as pessoas felizes e todo esse blá blá blá.
— Você quis dizer fazer as pessoas felizes com os meus afazeres não facultativos? — perguntou, curiosa. Embora não pudesse escolher as próprias ocupações, estava ansiosa para saber qual seria seu papel ali, que, aparentemente, era feito sob medida.
— Sim, toda essa idiotice aí. Mas agora vamos falar sobre o meu dia.
— O que aconteceu no seu dia? — sorriu, gentil.
— Voltei para o meu apartamento, estava um caos. Tinha um tipo de vida crescendo nos alimentos da minha geladeira — Medea falou enquanto encarava suas unhas e fez uma careta de desgosto. — Mas esse não é o ápice do dia. Já voltei a ser escalada para o meu antigo trabalho.
— Deixe-me adivinhar — a deusa da primavera falou, divertida. Medea reconheceu um leve tom perverso em sua voz. — Seu antigo trabalho era importunar os seus pobres colegas de trabalho? Condenar os recém mortos? Torturar as almas vis?
— Não faço nada disso, otária — a ninfa revirou os olhos e riu. A deusa deliciava-se em provocar a falta de paciência da amiga. — Acho que já é tortura o suficiente para as almas quando vagam por cem anos às margens do rio depois que morrem — Medea falou com naturalidade e ficou boquiaberta. — E quem condena os recém mortos são Hades, Perséfone e , que, inclusive, só fica cada vez mais gostoso, convenhamos. Um sorriso do desgraçado e seu útero explode. Ele daria o perfeito amante.
— Psique falou que seria bom eu ficar longe dele.
— Talvez ela tenha razão — Medea concordou com um gesto de cabeça. — Quer dizer, foi ele quem provocou Hera ainda mais e agora ela vai vir atrás de você, assim como fez com Psique.
— Provocou Hera? — sentou em um pulo sobre a cama. — O que quer dizer com isso?
— Nada demais, relaxe. Hera tem um complexo muito irritante quando o assunto é família. Não à toa também, dizem que ela é a deusa do casamento, mas eu diria do ciúme. Não consigo passar cinco minutos na mesma sala que ela sem querer vomitar, mas tenho que admitir que ela tem um guarda-roupa sem igual, ela sabe se vestir.
— Por que ela viria atrás de mim, Medea?
— Você sabe como vocês deuses são sentimentais.
— Somos? — perguntou, confusa.
— Vocês literalmente sentem no corpo quando alguma coisa tange ou afeta vocês. — A ninfa revirou os olhos. — Tão dramáticos. Você ainda não está treinada, mas daqui a pouco vai começar a sentir isso quando alguém cortar alguma flor de um jardim ou derrubar uma árvore e você vai saber exatamente qual é a flor ou a árvore.
— Você está me dizendo que eu vou sentir quando alguém cortar uma flor? — arregalou os olhos e virou-se para encarar uma Medea despreocupada, jogada na cama ao seu lado.
— Não é como se as pessoas saíssem por aí cortando flores, ok? — a ninfa deu de ombros. — Ao que tudo indica, Afrodite identificou um sentimento não usual de atração vinda de Hermes, ou Eros, mas não sabia dizer de qual, já que eles estavam muito próximos um do outro. Ela acabou contando isso para Hera, o que não é surpresa, já que Afrodite ama uma fofoca. Bom, sobrou para você, já que só o fato de existir uma pequena possibilidade de ter sido já teria enfurecido Hera, que o quer de genro. É claro que ela foi tirar satisfação com o , caso contrário não seria a rainha-do-Olimpo-que-consegue-tudo-o-que-quer-mimimi. Ele não ficou nem um pouco feliz com a intromissão de Hera na vida amorosa dele, então tudo o que fez foi sorrir, sarcástico, quando ela perguntou se ele tinha algum tipo de atração por você. Só que um sorriso sarcástico não é exatamente um sim nem um não, é apenas o necessário para se irritar Hera. De qualquer maneira, se for Hermes quem tiver sentido a atração, Hera com certeza não ligaria... E se for Eros... Bom, você não faria isso com Psique, certo? — então Medea deu um sorriso falsamente fofo e concluiu seu relato enquanto se mantinha estática. Mal havia chegado no Olimpo e já havia arranjado problemas. — É frustrante como um dos quatro olimpianos mais desejados já lhe quer. Você está sob a raiva de todas as ninfas que querem subir na vida e a gente sabe que o único meio de isso acontecer é casando com um deus. E convenhamos que daria um belo de um marido. O sexo deve ser absurdamente bom.
ergueu uma das sobrancelhas, um pouco perturbada por tudo que a amiga havia acabado de dizer, e Medea deu de ombros de novo, como quem implicitamente pede para ignorar o problema, sugestão essa que foi não facultativamente aderida pela deusa da primavera por causa da mudança repentina de assunto vinda por parte da ninfa.
— Notei que o piano de cauda ainda está aqui. Por que será que Psique ainda não se livrou dele? Quer dizer, ela basicamente reformou a casa toda.
— Por que ela se livraria do piano? — franziu o cenho enquanto encarava o ramo de folhas no teto.
— Porque ele pertence a Eros — Medea respondeu como se fosse o fato mais óbvio do mundo. — Essa casa pertence a Eros.
— Como assim? — fitou-a, confusa. — Eu achei que essa casa fosse de Psique. Ele mora aqui? Mas eles não haviam terminado ou algo do tipo?
— Eu diria algo do tipo. E não, ele não mora aqui, ele mora com a mãe dele. — Medea fez uma careta de aversão. Ela achava Psique e Eros um casal meloso demais para o seu gosto. — Tem muito drama nessa história aí. — Então voltou a se deitar, dessa vez de barriga para baixo. Ela apoiou seus cotovelos na cama, sua cabeça nas mãos e abriu seu maior sorriso de curiosidade, o que fez Medea revirar os olhos e voltar a falar, porém agora com uma voz mais arrastada. — Ouça com atenção, porque eu não vou repetir nada, ok? Bom, a muitos anos atrás...
— Quantos anos?
— Shhh, isso não é importante — Medea bufou e segurou a risada. — Agora pare de fazer perguntas... A muitos anos atrás, surgiram rumores de que a mulher mais linda do universo habitava a terra. Diga-se de passagem, Afrodite ficou furiosa. Ela mandou seu filho, Eros, matar a mulher, se aquilo fosse verdade. — arregalou os olhos e Medea limitou-se a fazer uma careta em concordância com a indignação. — Acontece que Eros acabou se apaixonando por Psique, algo que não é surpreendente, quero dizer, você já viu essa mulher? Só que, como ela estava prestes a se casar forçadamente com um homem que não amava, Eros raptou-a e levou-a para o Olimpo, onde poderia cuidar dela, desde que Psique não saísse de casa para não ser descoberta por ninguém. Se isso acontecesse, Eros poderia até mesmo ser temporariamente expulso do Olimpo ou, quem sabe, algo pior. — A ninfa fechou a boca em uma linha e encarou com afinco o teto, lembrando-se da história de Prometeu. — Um detalhe importante é que Eros nunca se revelou na sua forma natural de deus enquanto estava com Psique, pois ele queria que ela se apaixonasse pela sua personalidade, não por sua aparência ou sua importância. A condição, portanto, era que Psique enxergasse Eros com outro corpo. Aparentemente, ele também não contou que a havia levado para o Olimpo. — abriu um sorriso sem graça ao pensar nas inúmeras coisas que poderiam dar errado a partir dali. — O plano de esconder Psique funcionou por quase um ano, mas era óbvio que não poderia durar para sempre. Ela sentiu saudades de sua família e pediu para Eros que pudesse vê-los. O idiota manteiga derretida disse que sim, então Psique desceu à Terra e conversou primeiramente com seus pais, que ficaram preocupados, mas respeitaram o desejo dela. O problema foi suas irmãs, que a questionaram sobre a veracidade de Eros. Elas não compreendiam o porquê de ele não poder se mostrar para Psique e convenceram-na de que aquilo era uma armadilha, que Eros fazia mal para Psique, que a mantinha em cativeiro, porque ele sentia ciúmes. Psique ficou tão magoada, que acabou cedendo à sugestão de matar Eros e fugir, achando que realmente estivesse em um tipo de plano maligno.
— Mas eu achei que eles estivessem apaixonados.
— Acho que estavam — Medea estreitou os olhos. Não se lembrava muito bem. A verdade é que não havia participado da história. Na época, ela só frequentava o Submundo. — Bom, o tempo não poderia ter sido pior. No mesmo dia que Psique resolveu aguardar Eros com uma adaga, foi o dia em que ele resolveu revelar sobre seu relacionamento proibido para Afrodite, sua mãe, e para Zeus, que determinaria o destino de ambos a partir de então. Eu tenho quase certeza de que Afrodite deve ter oferecido uma de suas ninfas assistentes para ser secretária de Zeus em troca de ele aceitar o relacionamento de seu filho com Psique. Elas são reconhecidas pelas belezas ímpares entre nós.
— Você está me dizendo que foi nesse dia que ele resolveu aparecer em sua verdadeira forma para Psique?
— Sim, ele achou que ela finalmente estava apaixonada pela pessoa que ele era. Eros pediu para Hera a autorização de um casamento e Zeus presenteou Psique com a imortalidade para que o mais novo casal pudesse viver junto para sempre e toda essa baboseira ridícula. Deve ter sido triste ter voltado para casa, para essa casa, e ver Psique segurando uma adaga com a intenção de enviá-lo diretamente para o Submundo.
— Não é à toa que ela reformou a casa — ergueu as sobrancelhas. — Tudo aqui devia lembrar Eros. Se Psique realmente o amava, deve ter sido muito difícil para ambos.
— Eu não sei o que aconteceu depois disso. Não fiquei muito interessada no drama que veio em seguida. — Medea suspirou e sentou-se sobre a cama. — Acho que eu devo ir. Ártemis pode sentir minha presença e eu sei que ela não vai com a minha cara.
— Por que diz isso? — franziu o cenho, interessada, e levantou da cama, caminhando em direção ao banheiro.
— Digamos que eu sem querer roubei o arco de prata dela.
— Você roubou algo de uma deusa? — parou subitamente e olhou para trás, encarando a amiga. Não sabia o grau de ruindade que isso representava, mas entendia que não era algo sensato.
— Você não deveria achar ruim, foi assim que eu te conheci. A minha punição foi ter que ser sua babá naquele lugar horroroso que você chama de terra natal.
— Sempre tão sutil — a deusa da primavera balançou a cabeça em negação, mesmo que carregasse um sorriso, e Medea a acompanhou, já indo em direção à porta do quarto para voltar para sua casa.
— Mas agora é sério, com o que você trabalha? — perguntou, divertida, antes de entrar no banheiro.
— Sou secretária da Hécate.



— Átropos, Láquesis, venham aqui — Cloto chamou suas irmãs. Estava incrédula com as imagens projetadas na tela. — Venham ver isso.
— O que aconteceu? — Láquesis aproximou-se com sua fita métrica na mão e a apoiou sobre a mesa para poder prender seus cabelos ondulados prateados em um coque.
— Essa é a... — Átropos começou a falar, parando de afiar sua tesoura. Havia acabado de usá-la para cortar seu cabelo curto e liso, também prateado, ainda que essa não fosse sua usual função.
— Sim — Cloto interrompeu-a com um sorriso sombrio no rosto.
Não haviam pessoas mais qualificadas do que as três irmãs Parcas para esse trabalho no Submundo. Agraciadas com o dom da morte, eram elas quem decidiam quando a vida do homem cessaria. Como se o poder de controlar a linha tênue entre o efêmero e a eternidade já não bastasse, também possuíam a habilidade de prever o futuro, tornando-as fontes de oráculos, uma dádiva que era limitada a poucos titãs e deuses.
Bastava que apenas cortassem o rolo de filme, provido por Cloto e medido por Láquesis, com a tesoura de Átropos e a alma deixaria o corpo, dirigindo-se ao mundo das sombras. Embora a aparência jovial das três miúdas Parcas chamassem atenção, sobretudo por causa de suas mechas na cor do mais polido metal e da pele azulada intacta, as Parcas eram deusas milenares, ainda mais arcaicas que Cronos, o deus do tempo.
— E esse é o... — Láquesis levantou uma das sobrancelhas, chocada com a cena projetada sobre a tela.
— Sim — Cloto respondeu, satisfeita.
— Deveríamos chamar Hades.
— Não, Átropos — Cloto sorriu e balançou a cabeça de um lado ao outro com lentidão. — O oráculo ainda não deve ser revelado.
— Mas, irmã, nunca tivemos uma deusa da fertilidade antes. Pelo menos não uma que pudesse... fazer isso. Hades precisa saber. — Láquesis quem interveio, preocupada, dessa vez.


— Eu lhe deixo por aqui — Psique sorriu, carinhosa, e deu uma última olhada nas roupas de .
A deusa da primavera usava um longo vestido de seda branco, com detalhes dourados, parecido com o que Psique vestiu a primeira vez que vira . Em sua cabeça, uma coroa de flores delicada, nos pés, um salto branco e nos pulsos, adornos em ouro.
— Eu realmente tenho que vestir isso? — perguntou, sentindo-se estranha.
— Enquanto estiver na Terra, sim. No Submundo e aqui, não. Deméter é meio chata com essas coisas — Psique sorriu, satisfeita com a aparência da mulher em sua frente, e começou a empurrá-la para dentro da estação de metrô do Olimpo. — Lembre-se de descer na saída certa. Eu lhe encontro em casa na hora do almoço, tudo bem?
Sem ter tempo para protestar, foi empurrada pela enorme multidão de pessoas que estavam a caminho do trabalho. Não seria surpresa dizer que ela atraiu muitos olhares, não somente pelas vestimentas incomuns ou pela beleza extraordinária, mas por ser uma grande novidade no Olimpo. apenas retribuiu com um sorriso tímido o olhar das ninfas. Pôde jurar que ouviu umas pessoas cochichando sobre ela ser a “nova Perséfone”, algo que não foi muito agradável de se escutar, justamente por causa do tom julgador. Quando se deu conta, a sua cabine, uma vez lotada, agora estava vazia e o frear gradativo do trem denunciava que ela havia chegado em seu destino, a Terra.
! — uma Deméter extremamente feliz a recebeu na estação de metrô, que, de maneira bizarra, dava direto para o meio de um campo florido com uma floresta ao fundo.
olhou ao seu redor, não sabia identificar onde estava. Havia algumas ninfas rosas de orelhas pontudas como as de Medea atrás da deusa da agricultura que estudavam com um olhar muito curioso e sorriam, tímidas. O resto do cenário era literalmente o meio do mato. Onde diabos ela estava? Em que país estava? Arregalou os olhos quando Deméter se aproximou e segurou-a pelas mãos de um modo materno.
— Que bom que está aqui. Vamos começar as tarefas do dia — Deméter sorriu, gentil, e se virou de costas para começar a andar.
não deu um único passo para acompanhá-la, mas foi necessário somente um gesto de cabeça de uma das ninfas e ela apressou-se para alcançar a mulher de longos cabelos verdes escuros, que falava rápido demais para oito horas da manhã. Isso a fez estreitar os olhos e pensar que certamente não lembraria um terço das coisas que Deméter pedia.
— Você vai tomar conta da primavera, o que significa que passará seis meses do ano na Terra, três no hemisfério norte e três no sul, tudo bem? — Deméter perguntou, mas não teve tempo de responder. — Sua tarefa é básica, trazer e manter a primavera na Terra. Para isso, preciso que você aprenda a controlar suas emoções muito bem. Muito bem. — A deusa da agricultura sorriu com os olhos arregalados, em uma tentativa — com êxito — de deixar desconfortável. — Erros não são tolerados, os humanos dependem de nós. Isso quer dizer que, se você estiver cansada, não vai ter energia o suficiente para florescer o que precisa, se estiver triste, não vai ter ânimo para manter as flores polinizadas, se estiver brava, o solo não será fértil e, se estiver irritada, ervas daninhas são os únicos produtos possível, entendeu? Existem outros milhares de sentimentos que podemos colocar na lista, mas agora não temos tempo de fazê-lo. Espero que você sempre esteja com um humor impecável. Preciso também que você aprenda a lidar com a dor.
— Lidar com a dor? — fez uma careta preocupada e arregalou levemente os olhos, alternando a vista entre a trilha pela qual andava e uma Deméter sorridente.
— Claro, querida, a dor. — Então a deusa dos cabelos verdes parou de súbito e aproximou-se do rosto de , ficando a dez centímetros dele. — Toda vez que alguém serrar uma árvore, você vai sentir; até o pequeno arrancar de uma folha saudável, você sentirá. — Ela pôs-se a andar com seu sorriso radiante de volta. — É um pouco preocupante que você ainda não tenha sentido isso, seus poderes devem estar muito elementares. Presumo que isso mude já na semana que vem e espero que você saiba lidar com a dor, caso contrário, contate o filho do Hades e da... pensando melhor, não há necessidade de contatar ninguém.
— O quão ruim é essa dor? — perguntou enquanto se virava de costas para observar as três ninfas que as seguiam.
— Depende do quanto você se importa com a primavera.
Só naquele momento, percebeu o quão intimidadora Démeter era. O porte rígido, o vestido justo branco impecável, o coque sem um fio sequer fora do lugar, o sorriso forçado, embora com um toque de contentamento, o queixo empinado, os saltos finíssimos pisando sobre a mais pura terra, a coluna ereta. Tudo indicava um ar autoritário que fez sorrir, levemente desesperada, quando percebeu que ela teria que trabalhar com Deméter pelos próximos sabe-se lá quantos meses. Algo no jeito que a deusa da agricultura a olhava fazia sentir um incômodo no estômago. Talvez fosse seu corpo pedindo para que tomasse cuidado.
— Ótimo, vamos começar — Deméter sorriu abertamente e ergueu a mão em direção à uma das ninfas que as acompanhavam.
Foi-lhe dado um enorme facão afiado, o que fez engolir em seco e, de imediato, questionar-se o que ela faria com aquilo. Mal deu tempo para se preparar ou sequer desenvolver alguma teoria e Deméter, com um único golpe certeiro, passou a lamina através de uma das árvores do local, fazendo a tora cair inerte sobre o solo em um som opaco.
Aquilo gerou uma dor instantânea no coração de , como se mil agulhas o atravessassem. Ela imediatamente sentiu uma falta de ar enlouquecedora, o oxigênio não chegava mais ao seu pulmão e ela não conseguia nem pronunciar um gemido de dor. Precisou estender uma mão para se apoiar na árvore mais próxima, enquanto a outra pousava sobre seu peito. O sufocamento era aterrorizante. Jurou que também não sentia as pernas e cederia. Por que diabos sentia tanta dor? Queria arrancar seu coração fora!
— O que... o que você fez? — perguntou em um fio de voz, gruindo.
As ninfas carregavam uma expressão de dó, mas receberam um comando explícito de Deméter para não ajudar. Olhar a deusa da primavera naquele estado tornava aquele trabalho cinquenta vezes mais difícil e elas não conseguiam esconder o semblante de incômodo. Foi só quando voltou a respirar aos poucos que as ninfas retomaram a tranquilidade.
— É dessa dor que eu estou falando — Deméter abriu um sorriso falsamente inocente. — Agora reconstrua a árvore.
— O quê?

Capítulo 4

— Pelos deuses! — Psique ficou boquiaberta ao se deparar com sentada na bancada da cozinha, que comia uma fruta qualquer que encontrou na geladeira. — O que aconteceu com você?
— Está tão ruim assim? — a deusa da primavera sorriu, sem graça, embora soubesse exatamente como estava. Deméter não havia adotado a metodologia de pequenas conquistas, muito pelo contrário, nunca precisou evoluir tão rápido. A deusa da agricultura não hesitou um segundo sequer quando o assunto era aprendizado prático. Passara o dia arranjando maneiras de desenvolver um reflexo de defesa na deusa da primavera e, para isso, precisou de meios criativos para causar dor, algo que claramente não agradava , mas que era necessário.
Ela sentiu que seu coração havia dilacerado pelo menos dez vezes nas últimas quatro horas. Não poderia negar, no entanto, que havia sido efetivo. Sentia que estava mais apta a filtrar as dores, apesar de algo dentro de si lhe alertar que elas não poderiam ir embora por completo.
Havia um quê natural de disciplina escrita nas linhas da íris de Deméter. Um sentimento de compaixão foi inevitável quando percebeu que a deusa da agricultura havia tido uma criação tão dura quanto dava, mas, a julgar pelo comportamento reservado, aquilo nunca seria admitido.
— O que aconteceu com o seu vestido? — Psique ergueu a barra rasgada da roupa, ainda em choque. A última coisa que esperava no momento era que voltasse para o Olimpo como se tivesse sido arrastada pelo trem e não entrado no trem. — E sua coroa de flores?
— Bem, eu...
— E seu rosto... você chorou? — Psique franziu o cenho e, sem delicadeza alguma, puxou a cabeça de para que pudesse enxergá-la mais de perto, o que quase a fez cair da bancada. — O que a Deméter fez?
— Está tudo bem, só estou um pouco cansada. Estou aprendendo a controlar a dor.
— Por Héstia, não há condições de você continuar o dia assim — Psique suspirou pesadamente e balançou a cabeça em negação. — Vá tomar um banho, vou avisar Hades que não será possível começar o estágio hoje.
— Eu estou bem, não se preocupe.
— Você vê isso? — Psique apontou para a sua expressão cética. — Isso é o quanto de credibilidade eu coloquei nas suas palavras. Eu moro aqui há mais de um milênio, , eu sei o que a dor causa nos deuses. Não estamos falando de um corte superficial, eu diria que deve ter sido algo mais parecido com uma faca sendo enfiada no seu coração.
— É uma boa descrição... — concordou com um leve aceno de cabeça.
— Agora vá tomar banho. Vou escrever uma carta para Hades explicando tudo. — Psique fez um gesto com as mãos para apressar . — E descanse à tarde. Eu tenho que voltar a trabalhar quando meu horário de almoço acabar, mas, se precisar de algo, chame a Ártemis.
Sem mais delongas, apenas obedeceu à Psique e foi para seu quarto. Não demorou muito para que ela tomasse sua ducha, pois a única coisa que seu corpo pedia era que se deitasse na cama para que ela dormisse profundamente. Assim que saiu do banheiro, pegou a primeira roupa que viu no closet, um vestido confortável e curto e desceu as escadas degrau por degrau, torcendo para que Psique não precisasse da ajuda que estava prestes a oferecer para que pudesse retornar ao seu quarto o quanto antes. Sentiu seu corpo ficar mais pesado à medida que o tempo passava. O cansaço execrável finalmente lhe atingira.
— Psique, você precisa de ajuda com a car...
teve que parar a frase no meio quando se deparou com um homem de cabelos cacheados vermelhos e belas asas parado em frente à porta de entrada da casa. Psique entregava-lhe uma carta, mas foi obrigada a fitar quando percebeu por que Hermes estava estático. O deus encontrava-se extasiado e não conseguia desviar o olhar por mais que tentasse, embora não quisesse. , por outro lado, encarava-o com ingenuidade, encantada pelas grandes e delicadas asas de plumas brancas.
Enquanto descia os últimos degraus, Hermes jurou que ela flutuava graciosamente. Ele ousaria dizer que exalava uma aura angelical atípica, nunca esteve tão impactado. Pegou-se preso no sorriso gentil e uma serenidade instantânea invadiu o ambiente, algo que ele teve certeza ser uma característica particular que somente a deusa da primavera poderia trazer. O sorriso que lhe era peculiar apenas aumentou, assim como o bom humor inerente, agora entendia por que tinha uma atração reprimida por . Questionava-se quem não tinha.
, esse é Hermes, o mensageiro — Psique apresentou-o com o cenho franzido, achando estranho o fato de Hermes fixar abertamente seu olhar em .
— Muito prazer. — A deusa da primavera manteve o sorriso gentil e parou ao lado de Psique. — Como você está?
— Sim — Hermes respondeu sem pensar muito nas palavras automáticas que saíam de sua boca.
— Tente babar um pouco menos, ok? — Psique olhou de relance para seu relógio e ergueu mais uma vez a carta, dessa vez mais impaciente. — Eu estou atrasada. Preciso que entregue isso a Hades o mais rápido possível, tudo bem? — Sem ao menos esperar uma resposta, ela saiu da casa, deixando Hermes e para trás.
— Por Zeus, Afrodite irá surtar — o mensageiro abriu um sorriso divertido, como se voltasse à realidade. — Eu preciso estar perto de você quando isso acontecer. Afrodite tem os melhores surtos. Eu levo a pipoca e você a bebida.
— Tudo bem — deu uma leve risada, sem entender muito bem o que ele dizia. — Quer entrar?
— Só Eros saberia dizer o quanto eu adoraria, mas preciso terminar meu turno — Hermes apontou para a carta de Psique.
— Bom, posso, pelo menos, lhe oferecer uma garrafa d'água? — a deusa da primavera sorriu, acolhedora, e os olhos do mensageiro brilharam.
Ele já estava ansioso para encontrar Eros e no final do dia e dizer que, além de muito bonita, também era gentil. Agora a ideia de atingi-la com uma flecha de ponta dourada já não lhe parecia absurda como quando Eros havia sugerido.
— Não precisa, muito obrigado. Você já conheceu a cidade? As pessoas?
— Psique foi extremamente atenciosa e receptiva e me mostrou um pouco da cidade, mas ainda não tive a oportunidade de conhecer muitas pessoas.
— Nós podemos sair hoje mais tarde, posso lhe apresentar para alguns amigos. Tenho certeza de que e Eros estão curiosos para lhe conhecer.
— Isso é muito gentil, mas acho que não estou muito confortável para sair hoje — respondeu ao lembrar que prometera a Psique que ficaria longe de . O semblante levemente tristonho de Hermes, no entanto, denunciava sua decepção súbita, o que originou um compadecimento anormal, como se uma carga intensa de compaixão crescesse dentro de si. — Mas, se quiser, você pode vir aqui para jantar comigo e com Psique.
— Perfeito! — Hermes voltou a sorrir, contente, de um segundo ao outro. — Nos vemos às... oito horas? Oh, antes que eu me esqueça, aqui está seu convite para a comemoração centenária do casamento mais importante da Tríade Real. — Então o mensageiro entregou um envelope azul de adornos dourados para a .
Antes mesmo que ela pudesse expressar qualquer reação, Hermes abriu suas grandes asas e só foi preciso uma batida para que ele já estivesse fora do alcance de vista da deusa da primavera. Era rápido, ela tinha de admitir. apenas balançou a cabeça e fechou a porta, dirigindo-se logo em seguida para seu quarto enquanto lia o papel em suas mãos.
— Caríssima , é com enorme prazer que a convidamos para celebrar mais um centenário de nosso amor matrimonial eterno. — franziu o cenho ao pronunciar as palavras. Não esperava que fosse da natureza de Hera ser tão receptiva ou cordial. — A comemoração... hm, nada de importante nesse parágrafo... importância do casamento... felizes por recebê-la... traje social... amanhã, às sete horas da noite. — Virou o convite para verificar se havia algo no verso, porém a única coisa com a qual se deparou foi um desenho em finas linhas douradas do que ela julgou ser Zeus e Hera um ao lado do outro. — Até que são fofos. E o convite é bonitinho.


— Não acredito que você fez isso! — mal conseguia respirar enquanto tentava segurar o riso e engolir o vinho ao mesmo tempo.
— Não é como se tivesse sido por querer — Medea revirou os olhos e recostou-se na cadeira.
— Mas é claro que foi por querer — Hermes retrucou com um tom de obviedade e Psique balançou a cabeça em concordância ao mesmo tempo que dava a última garfada em sua sobremesa. — A sua sorte é que Hécate gosta muito de você e lhe defendeu, caso contrário você estaria sem seus olhos se dependesse de Hades.
— Outch. — A careta de dor no semblante de foi inevitável.
— Estou impressionada — Psique deu um sorriso divertido. — Não é qualquer um que acerta uma flecha de prata no bumbum do rei do Submundo.
— Bom, eu já sabia que eu seria punida por encontrar o arco de prata da Ártemis — Medea deu de ombros e tomou mais um gole de sua taça —, e eu tinha que provar para a idiota da Elísia que eu era boa de mira.
— Então, realmente foi intencional. — ficou boquiaberta com a audácia da amiga.
— Pelo menos foi com a flecha de prata. — Hermes ergueu as sobrancelhas. — Imagina se fosse com uma das flechas de Eros, você teria causado um caos.
— Como assim? — a deusa da primavera franziu o cenho, sem entender o que o mensageiro havia insinuado.
— Eros possui flechas especiais. — Dessa vez, Psique quem respondeu e não pôde deixar de ficar surpresa com a serenidade e o conforto em sua voz, ainda mais depois de ouvir sobre sua história no dia anterior. — As flechas com pontas de ouro fazem você se apaixonar perdidamente e as com ponta de chumbo, odiar profundamente.
— Hades é casado com Perséfone, não? — perguntou ao se apoiar na mesa. — O que aconteceria se Hades fosse atingido pela flecha com ponta de ouro? Ele amaria ainda mais Perséfone ou se apaixonaria por outra pessoa?
— Eu diria que nenhum dos dois — Hermes sorriu, esperto, e deu uma piscadinha divertida ao se recordar do casal. — Não existe criatura no universo que Hades goste mais do que de Perséfone, é deusamente impossível que se ame mais do que isso. Eros disse que é um dos amores mais puros e genuínos com o qual já se deparou.
— Mais puro que Apolo e Dafne? — como quem encarava um desafio, Medea ergueu a sobrancelha, sugestiva.
— Não vale se não for espontâneo — Psique interveio.
— Espontâneo? — encarou a ninfa vermelha, buscando uma explicação.
— Digamos que Apolo só ama tanto Dafne, pois ele foi atingido por uma flecha de ponta dourada. — A ninfa fez uma careta de incômodo. — Mas acabou não sendo tão ruim que eles não tenham dado certo. Quero dizer, Dafne era insuportável — Medea revirou os olhos ao lembrar do jeito exacerbadamente gracioso e generoso da ninfa rosa, que lhe irritava. — Urgh.
— Dafne era um amor — Psique sorriu, divertida, balançou a cabeça em negação e fitou seu prato vazio sobre a mesa de jantar. — Ela era uma das ninfas que trabalhavam com Deméter. Apolo e ela poderiam ter dado certo, se o incidente não tivesse acontecido.
— Que incidente? — franziu o cenho ao perceber que todos na mesa tencionaram os ombros. — O que aconteceu?
— Zeus matou o filho de Apolo — Hermes engoliu em seco e passou a mão sobre a nuca, incerto para onde olhar. — Apolo não ficou muito contente e resolveu se vingar. Então ele matou os ciclopes, os criadores dos raios, e isso enfureceu Zeus.
— Apolo foi julgado por Hera no Palácio da Corte — Psique continuou. — Sua sentença foi uma expulsão de um ano do Olimpo, mas Zeus não se contentou com a punição e obrigou Eros a atingir Dafne com uma flecha de ponta de chumbo. — já não conseguia esconder a expressão de surpresa. — Dafne parou de amá-lo no segundo seguinte e o repúdio começou a ser cativado, somente para se tornar insuportável, pois Apolo começou a perseguir Dafne para onde quer que ela fosse, na esperança de que um dia ele a tivesse de volta.
— Dafne ficou tão cansada disso que pediu para Zeus transformá-la em um loureiro — Hermes voltou a falar, agora com a voz um pouco mais carregada. — E o grande deus do raio o fez, agraciando-a com a forma de uma coroa de louros que Apolo usa até hoje.
— Afrodite e Adônis? — Medea, sem afeto nenhum pelo relato, manteve a expressão entediada.
— Ok, talvez eles dois concorram para o pódio de amor mais puro e genuíno — Hermes cedeu e balançou a cabeça em concordância.
— Por que Zeus matou o filho de Apolo? — sem se conformar com a mudança de assunto, apenas perguntou, curiosa.
— Talvez, essa seja uma história para outro dia — o mensageiro falou ao encarar seu relógio. — Está tarde e eu preciso dormir, tenho que acordar cedo para entregar as correspondências. Inclusive, o número de cartas aumentou muito desde sua chegada, sabia? — Hermes sorriu, animado, para , que se limitou a erguer as sobrancelhas e apontar para si mesma. — Sim, você. Não duvido que seja manchete dos jornais amanhã.
— Devo admitir que isso não é reconfortante. — deu um último gole em sua taça enquanto levantava da mesa para acompanhar Hermes até a porta.
— Eu preciso ir também. — Medea colocou seu casaco de couro preto. — Para começo de conversa, eu nem deveria estar aqui. — A ninfa se referiu ao jantar para o qual se autoconvidou para participar quando vinha visitar e se deparou com Psique e a deusa da primavera cozinhando algo que ela julgou ser sua próxima refeição. — E Hécate pediu para eu receber uns documentos. Eu não acho que final de semana seja uma expressão do vocabulário dela. — ela revirou os olhos e colocou seus óculos de sol, já na porta. — Urgh, às vezes eu odeio meu trabalho.
— Às vezes eu odeio o meu também — Hermes deu de ombros e respirou fundo. — Obrigado pelo jantar, nos vemos na festa. — Medea apenas acenou, apesar de Psique não saber dizer se foi um sinal de despedida ou sinal de indiferença, e não hesitou um segundo para começar a andar de volta para casa. Hermes, entretanto, foi mais carinhoso e deu um longo abraço nas duas. — Espero que tenham gostado do vinho.
— Estava excelente — sorriu, gentil, e o mensageiro sentiu sua face corar. — Obrigada.


— Fazia tanto tempo que eu não trazia alguém para jantar aqui em casa — Psique suspirou, inclinou o torço para trás e apoiou-se em seus antebraços, sentada na bancada da cozinha. — Esqueci como isso é bom.
— Realmente foi divertido — concordou, terminando de lavar a louça. — Mas fiquei em choque com a história de Dafne e Apolo. Como pode alguém ser privado do amor dessa maneira?
— Inclusive, sobre relacionamentos, não me lembro a última vez que Hermes ficou tão encantado com alguém — Psique sorriu, insinuante.
— Não seja boba, Ártemis estava certa, ter alguém novo no Olimpo depois de milênios é só uma quebra de rotina. Daqui a pouco ele volta a ser o Hermes que você conhece.
— Sabe, Hermes não faria um par ruim.
— Se eu soubesse que você tentaria me arranjar um marido no dia seguinte à minha chegada, talvez eu repensasse sobre fazer amizade com você — virou-se de costas para a pia, encarou Psique e riu divertida.
— Você vai viver eternamente, que pelo menos seja ao lado do amor. Sob o pesado fardo do amor eu afundarei. É um ditado famoso por aqui. Todos no Olimpo estão fadados a amar, é quase como uma lei natural, como se você nascesse predestinada a se apaixonar por uma pessoa em específico. Bom, aparentemente, as exceções são Zeus e Poseidon. — Então Psique apenas sorriu, tímida, e saiu de cima da bancada em um pulo, dirigindo-se até a escada. — Acredite, você pode ter quem quiser com esse rostinho e essa habilidade natural de deixar todos confortáveis à sua volta. — Ela parou no meio de um degrau e voltou a encarar . — Você é agraciada pelo dom único da gentileza casta e da vivacidade, estar perto de você é como deitar em um campo de tulipas, por mais estranho que isso soe. Qualquer homem seria o mais feliz do Olimpo em lhe chamar de esposa, então, escolha bem, pois opções não lhe faltam.
— Eu lhe contarei quando encontrar a pessoa certa.
— Estou com medo de que você já tenha encontrado — Psique sussurrou e sorriu, sem graça, ao se lembrar do dia anterior.


— Psique, você não acha que esse vestido está muito justo? — O sorriso tímido demonstrava o incômodo de .
As curvas marcadas pelo traje repleto de diamantes evidenciavam uma beleza excepcional, como Psique havia frisado o caminho todo até a mansão de Hera e de Zeus. Quase inevitavelmente, a natural delicadeza somada ao acanhamento de deixavam uma nuvem de cortesia sobre ela. A deusa da primavera, no entanto, procurava por um pouco mais de discrição no momento. Não estava confortável em chamar atenção em frente à dezenas de deuses que ela ainda não conhecia, mas estava prestes a fazer uma entrada triunfal, se dependesse somente de sua roupa. O cabelo, agora colorido em coral e longo, com ondas graciosas, só destacava o constrangimento e ela tinha a leve impressão de que poderia cair a qualquer momento naqueles saltos exageradamente finos.
— Não seja tola, você está linda.
— Obrigada. De novo — riu, nervosa, ao encarar a fenda em sua saia, mostrando um pouco mais do que deveria.
— Aqui está o presente, você só precisa entregar para Hera — Psique sorriu, animada, estendendo-lhe um envelope, e basicamente empurrou a deusa até a escadaria de entrada. Antes mesmo que pudesse protestar, Psique apenas voltou a falar rápido na intenção de poder voltar para casa o quanto antes. A necessidade desesperada de não esbarrar com Eros era tudo que a guiava no momento. — Não deixe que Hera lhe intimide, tudo bem?
— Por que esse presente é tão pequeno?
— Isso é um vale presente. Hera sempre troca tudo que as pessoas dão, então essa é a melhor solução. Agora vai — Psique fez um bico, mantendo um semblante sério, e fez gestos com as mãos para que adentrasse o local. — Faça amizades e depois me conte todas as fofocas.
respirou fundo, precisou de uns segundos para tomar coragem e começar a pisar degrau por degrau na grande escadaria de mármore adornada por fontes modernas, cuja água escorria sobre a pedra, embora não tocassem no caminho. Divino, ela diria, ainda que ostentoso demais. Segurando sua saia para que não tropeçasse, ela parou em frente à imponente porta francesa de entrada, que foi aberta por dois gentis guardiões olimpianos. O que encontrou do outro lado, contudo, não foi a cena mais agradável que poderia recebê-la.
— VOCÊ SÓ PODE ESTAR BRINCANDO COMIGO, ZEUS! — Hera esbravejou e rangeu os dentes logo em seguida, apontando o dedo indicador para a face de seu marido, que apenas mantinha uma postura impaciente e um semblante sério. podia, literalmente, sentir a raiva que ela exalava, era como um pulsar em seu corpo. A pupila dilatada, os punhos fechados e os cabelos esvoaçantes denunciavam a ira que consumia a rainha do Olimpo. — Você não poderia ter escolhido um dia melhor, não é, seu idiota ingrato?
— É a minha natureza, Hera, mas você sabe que meu verdadeiro amor é você.
— VOCÊ ACHA QUE EU TENHO CARA DE IMBECIL, ZEUS? Eu quero ver o dia em que eu lhe trair para você perceber o quanto você me machuca.
— Você não faria isso, Hera. — O semblante austero do deus do raio agora tornara-se irritado.
— Não faria? — a deusa do casamento cruzou os braços e sorriu, desafiadora, inclinando levemente o torso para trás. A repentina mudança de humor atordoou um pouco , que não sabia se deveria dar meia volta ou entrar na casa sem fazer barulho e passar despercebida ou continuar parada ali. A terceira opção lhe parecia a menos tentadora e correta, porém seu corpo simplesmente não lhe obedecia, ela estava estática.
— Você não fará isso, porque eu lhe proíbo.
— URGH, VÁ PARA O TÁRTARO, SEU PEDAÇO DE DESCOMEDIMENTO! VOCÊ E A SUA PROLE EXECRÁVEL! Ninguém, Zeus, eu repito, ninguém deve ficar sabendo disso. Eu não vou tolerar que você manche meu nome mais uma vez. Tome conta dessa situação, caso contrário eu mesma darei um jeito nisso e você não poderá reclamar.
— Como você ousa falar assim com... — antes que pudesse concluir sua fala, o deus do raio franziu o cenho e olhou para sua direita, fitando com certa confusão inicial em seus olhos. — .
Hera, ainda irritada pela discussão inacabada, virou-se com uma expressão mortal sobre seu rosto. A deusa da primavera não poderia deixar de admitir, Hera era extremamente bonita, embora os modos coléricos que acabara de presenciar tirassem um pouco de sua polidez. Os cabelos longos e dourados agraciavam-na com um brilho esplêndido que chegava a ser ridículo. Os traços faciais sutis, embora claramente convictos, unido ao vestido vermelho sensual lapidavam uma das mais belas mulheres que já se criou.
A chegada da ilustre convidada gerou em Hera, de um segundo ao outro, um sorriso debochado, analisando dos pés à cabeça na velocidade mais devagar que conseguia. Algo em seu estudo, todavia, a fez estreitar os olhos. não se assemelhava à Perséfone e sequer exalava a mesma aura. A deusa do casamento sentiu-se inquieta com a natural calmaria que concebia ao seu redor, não gostou nem um pouco dessa influência que ela tinha sobre os outros. O encantamento de Zeus, em contrapartida, precisou ser reprimido enquanto estava ao lado de sua esposa. Não poderia esboçar qualquer tipo de admiração sem que Hera tivesse um colapso ali mesmo, apesar de não reprimir qualquer pensamento impuro que passasse por sua cabeça.
— Seja muito bem-vinda ao Olimpo, . — O sorriso, agora tranquilo, de Hera, impedia que a deusa da primavera conseguisse se sentir à vontade. Por um instante, preferiu o comportamento colérico.
— Muito obrigada — ela agradeceu e engoliu em seco logo em seguida, vendo o casal se aproximar. — Vocês têm uma bela casa.
— Eu sei — Hera respondeu, pomposa, e apoiou a mão na cintura. — Estamos... contentes que você veio.
— É um prazer finalmente conhecê-los. Ouvi coisas maravilhosas sobre vocês. — O olhar cínico de Hera fez se questionar se ela notara sua mentira. Zeus, no entanto, não parecia muito absorto na conversa, fitando a convidada atentamente, assim como Hermes fizera no dia anterior, algo que não passou despercebido pela esposa.
— Como foi a sua recepção no Olimpo? Está gostando da cidade? — a deusa do casamento inclinou a cabeça.
— Sim, é uma cidade encantadora. Utópica, eu diria. — fechou sua boca em uma linha ao sentir o incômodo do olhar constante e pesado de Zeus sobre si. — Vocês fizeram um excelente trabalho.
— Obrigada. — Pela primeira vez desde que chegara, Hera transpareceu um pouco de satisfação. — Já teve tempo de conhecer muitas pessoas?
— Ainda não, mas posso lhe garantir que todas as que conheci até agora são muito receptivas.
— Algum candidato para um futuro casamento? — Hera sorriu, dissimulada, com um claro tom de ironia escorrendo de sua voz. — Esse é o meu departamento, posso lhe conceder uma ajudinha se precisar.
— Bom, acho que ainda está muito cedo para...
— Afrodite me contou que Hermes e você se deram bem. Ele é um bom pretendente, não acha? — não pôde deixar de arregalar levemente os olhos ao ouvir aquilo. — Não se preocupe, eu cuido da papelada, você e Hermes darão um belo casal. Que tal fazermos uma cerimônia majestosa? Cinco vestidos, pelo menos dez madrinhas, trezentos convidados, um buffet impecável, um bolo de sete andares, com cinco camadas em cada um, no palácio da ilha sagrada de Aegina, do pico do sol ao anoitecer... Posso lhe passar o contato da minha melhor ninfa decoradora. Os arranjos centrais devem ter as mais belas flores, afinal, não é todo dia que uma deusa da primavera se casa. — Assim que ela terminou a frase carregada de coação, Zeus pareceu sair de um transe somente para encarar sua esposa com a testa franzida e um semblante confuso, um tanto decepcionado. Era óbvio que queria como uma de suas amantes. Hera, então, riu forçadamente. — É brincadeirinha, não se preocupe, nós não a podemos obrigar a se casar. — Naquele instante, já não sabia como reagir, apenas se limitou a dar uma risada fraca. — Só podemos negar o seu pedido matrimonial.
A única imagem que se projetava na mente de naquele instante era Hera colocando qualquer licença matrimonial que quisesse diretamente no triturador.
— Hm... err... onde fica o banheiro? — olhou para os lados. Nunca desejara tanto não estar em um lugar.
— No final do corredor, mas recomendo usar o do salão de comemoração — Zeus quem respondeu dessa vez, apontando para o caminho que levaria à festa.
— Ah, antes que eu me esqueça, feliz aniversário de casamento — sorriu, tímida, e entregou o envelope para Hera, que o abriu na hora sem cerimônia alguma.
— Até que não é tão ruim — Hera falou com um meio sorriso. Ainda não era conhecimento de , mas o vale presente era da loja de cristais favorita da deusa do casamento. Psique acertara com precisão.
— Muito obrigado — Zeus agradeceu com um aceno de cabeça.
Não foi necessário qualquer outro gesto para que começasse a andar à procura do salão de festas. A imensidão do local, no entanto, não parecia estar a seu favor. Ela passava por diferentes cômodos e corredores, mas sempre retornava ao mesmo lugar. Psique avisara-lhe sobre a síndrome de labirinto que a mansão de Zeus e de Hera possuía. Ela respirou fundo, traçando qualquer tentativa falha de criar um caminho que a levasse direto para a porta de saída ou para o salão principal da comemoração. Qualquer um dos dois conviria, apesar de, inconscientemente, ela torcer mais para a primeira opção. Depois de passar pela terceira vez pela mesma sala, resolveu que ficaria ali por alguns segundos até que criasse vontade de voltar a andar. Ou talvez só cativasse a esperança de que alguém fosse passar por ali. Seus únicos desejos eram que essa pessoa não fosse Zeus e que não fosse extremamente proibido pela privacidade que ela estivesse ali. Não gostaria de ser expulsa do Olimpo no seu terceiro dia.
Seu cérebro estava prestes a convencê-la de que ficaria perdida ali até o final da festa. Ou, talvez, até o final da eternidade, se não encontrasse uma saída. Sentou-se no longo sofá de cor creme e cruzou as pernas, observando os belos quadros nas paredes. Três em especial chamaram-lhe atenção. Eram retratos das famílias de Zeus, de Hades e de Poseidon ou o que se denominava a Tríade Real. As molduras eram feitas de ouro e as pinceladas eram suaves como uma pena, obras primas, não poderia negar.
No primeiro retrato posavam Hera e Zeus ao fundo, com sorrisos que ela julgara simpáticos demais para o casal que acabou de conhecer. Em frente a eles estavam seus três filhos legítimos, Hebe, Hefesto e Ares. No segundo retrato, Poseidon e Anfitrite seguravam um bebê. Os sorrisos pareciam genuínos dessa vez, porém Psique lhe avisara que Poseidon era somente uma versão um pouco mais discreta de Zeus. Talvez, fosse um efeito do recém-nascido, alegria genuína. Na terceira e última pintura, Hades abraçava Perséfone pela cintura, ele com um sorriso discreto e ela com um encantador e parecia estar entediado, embora mantivesse uma postura impecável. questionou-se como cada um dos três principais deuses foram parar exatamente onde estavam, governando os mares, o Submundo, o Olimpo e a Terra. Os poucos segundos de paz, no entanto, foram silenciosamente interrompidos quando alguém adentrou o local.
abrira a porta com a mão que não segurava o copo de whisky. As mangas arregaçadas da blusa social branca e botões abertos abaixo do colarinho apenas sugeriam o quão confortável ele estava, ao mesmo tempo que mantinha as maneiras naturais de seriedade. sequer deu mais que um passo cômodo adentro. Ele apenas encarou rapidamente dos pés à cabeça, sem esboçar qualquer reação senão a íris afiada. Ela ainda não sabia, mas ele se perguntou se aquele maldito vestido havia sido feito sob medida para enlouquecê-lo. Marcava as curvas da deusa da primavera como se fizesse jus ao divino. Teve que apertar um pouco mais os dedos sobre o copo de cristal para reprimir aquela pontada no estômago que o irritava. O bom humor não demorou milissegundos para se esvair depois disso.
, por outro lado, não sabia como reagir. A natureza gentil obrigava-a a iniciar uma conversa e lhe pedir direção, embora Psique tenha lhe encorajado a resguardar qualquer tipo de contato com . A indecisão a fez franzir o cenho, algo que não foi interpretado como um sinal de recepção por ele, porém o desabrochar de uma bela flor no cabelo de , perto de seu ouvido, sugeria o contrário.
— O que você faz aqui? — o deus perguntou, preservando o semblante provocativo, ainda que tentasse esconder qualquer traço de surpresa por encontrar ali.
! — uma voz feminina aguda soou no corredor e ele instintivamente fechou a porta atrás de si, evitando qualquer barulho que denunciasse sua localização.
A deusa da primavera ergueu uma das sobrancelhas e abriu um pequeno sorriso quase imperceptível.
— O que você faz aqui? — ela retrucou.
apenas sorriu, esperto, e recostou-se sobre a parede ao lado da porta. O revide apenas o fez ficar ainda mais interessado, algo que seu corpo alertava não ser bom, embora ele ignorasse a sensação. Deu um longo gole em sua bebida ao desviar o olhar da deusa da primavera e ela, por mais que devesse, não conseguia parar de o encarar. , mais do que estudada pelos seus olhos, sentia que tentava ler as entrelinhas, algo que a deixava um pouco exposta. Era aquela mesma sensação invasiva de que ele tentava ler os seus pensamentos.
— Como está Psique? — ele perguntou depois de cuidadosamente apoiar o copo em uma mesa de mogno ao seu lado e colocar as mãos nos bolsos da calça.
— Bem, eu diria. Ainda não posso afirmar com certeza, a conheço há pouco tempo.
— E como você está?
— Me adaptando — ela respondeu, sincera. — Na medida do possível.
— Não me parece que o Olimpo tenha sido inteiramente acolhedor.
— Digamos que a utopia é só um conceito. — não pôde deixar de pensar em Hera ou em Deméter naquele instante. fitava-a como se soubesse exatamente o que ela pensava e a deusa precisou desviar o olhar ao perceber que estava presa no semblante instigante do homem em sua frente. — A mudança às vezes causa um pouco de desconforto.
— Eu sei — respondeu, sereno. — Eu posso sentir.
— O desconforto alheio?
— A dor. — O sorriso lateral mantinha-se inabalável. Era quase perturbador o fato de ele dizer aquilo com tanta naturalidade, ainda que seu jeito fosse uma novidade somente para a deusa da primavera. — Deméter não é para qualquer um.
— Você sentiu a minha dor?
Embora o tom tenha sido curioso, não intencionava prolongar a conversa. A voz de Psique ressoava em sua mente como um teimoso lembrete do que lhe prometera. , entretanto, estava cativado demais pela sensação agradável que gerava na sala e ela, por mais que se convencesse do contrário, gostava do tom de voz aveludado do rapaz. Transmitia uma calmaria invejável, apesar do frio desconfortável começar a invadir o local.
— Eu realmente não quero atrapalhar o seu... hm... encontro. — levantou-se ao perceber que ele não responderia e ajeitou sua longa saia.
— Não se preocupe — sorriu de lado e desencostou-se da parede, o que fez a deusa da primavera parar no seu primeiro passo. — Você não está atrapalhando. E não deveria se retirar, fui eu quem entrei depois. Além do mais, minha passagem de saída acaba de chegar.
E, no segundo seguinte, Eros abriu a porta de maçaneta dourada pela qual entrara. Ele carregava uma expressão impaciente e sua primeira reação teria sido gritar com sobre Hebe, que o perseguia pela festa procurando pelo amigo, se não fosse pela presença claramente notória de outra pessoa no local. Aquilo foi o suficiente para que Eros se calasse imediatamente. O encantamento instantâneo por pesou muito mais do que qualquer gesto de reclamação, cuja existência se tornara insignificante ao fitar a deusa da primavera. Hermes havia sido completamente sensato em sua descrição, era, no mínimo, arrebatadora.
— Oh, wow... Oh... wow!
Ela não pôde deixar de notar que precisou segurar o riso com a falta de palavras de Eros e tossiu discreto para tirar o cupido de seus devaneios quando começou a ficar sem graça com o olhar prolongado sobre si. Ainda submerso na atratividade absurda que a deusa da primavera exalava, Eros balançou a cabeça para espantar os pensamentos. Quando finalmente voltou à realidade, sentiu aquela atração reprimida sobre , a mesma de dois dias atrás, algo que não poderia ser ignorado. Muito pelo contrário, a natureza espirituosa causava-lhe uma vontade quase necessária de provocação.
— Oh, sim. É inevitável — Eros abriu um sorriso dissimulado e alternou os olhares entre os outros dois deuses na sala, que franziram o cenho com a reação inesperada. — Vocês farão mini deuses. Lindos mini deuses.
Como se o véu do sarcasmo caísse sobre novamente, a risada foi irremediável. Ele balançou a cabeça em negação e cruzou os braços, encarando Eros com um ar de deboche. limitou-se a erguer uma das sobrancelhas, um pouco intrigada pelo jeito franco do rapaz. Achou graça no jeito bobo de Eros e em seu comentário, embora soubesse, pelos relatos de Hermes e de Medea, que ele costumava ter uma natureza um pouco mais ácida e confiante do que a que acabara de demonstrar.
— Você deve ser Eros — com o intuito de quebrar o silêncio que se instalara no local, sorriu, simpática, e começou a andar em sua direção para que pudesse cumprimentá-lo. — Muito prazer, sou a , deusa da primavera.
— Muito prazer, eu sou muito bonita — Eros percebeu o que falara e colocou a mão sobre a testa, enquanto a outra apertava a mão de , que deu uma leve risada. — Não foi isso que eu quis dizer. — Então, assim que se afastaram, ele inclinou a cabeça na direção de e começou a sussurrar, na intenção de ser o mais discreto possível. — Pelos deuses, não acredito que o Hermes tinha razão, achei que ele estivesse exagerando. Ela é bonita para caralho e ainda cheira como um mar de rosas.
— Eu... hm... eu consigo lhe ouvir — a deusa da primavera sorriu, sem graça. — Mas obrigada, eu acho.
— Peço desculpas pela má recepção, eu não sei me comportar em situações como essa — Eros passou a mão pelo cabelo rosa, bagunçando-o, e suas bochechas coraram.
— Você não sabe se comportar. Ponto — acrescentou, irônico, e sentiu o olhar cortante do cupido sobre si, que foi prontamente ignorado.
— O que faz aqui? Por que não está na festa? — Eros perguntou, curioso, para .
— Eu estava procurando por um pouco de paz — ela mentiu. O sorriso debochado de denunciava que ele sabia que a deusa não estava ali por simples e livre arbítrio. — Mas acho que já está na hora de voltar.
— Neste caso, você primeiro — Eros segurou a porta para que passasse.
— Muito obrigada — ela sorriu, gentil.
Apesar de estar com a estranha sensação de que carregava um olhar sobre suas costas, a deusa preferiu ignorar o pressentimento e começou a andar pelo longo corredor com altas pilastras de mármore, torcendo para acertar o caminho dessa vez.
— Você viu essa bunda? — Eros sussurrou e limitou-se a revirar os olhos, pegando seu copo para que pudesse sair dali.

Capítulo 5

— Hermes! — abriu um grande sorriso ao se aproximar do rapaz, que a recebeu com um abraço apertado. — Como você está?
— Eu já lhe contei que meu único relacionamento sério é o álcool? — Hermes sorriu, exageradamente simpático. — Você está linda! Que vestido incrível. — Então, ele segurou a mão de para que ela desse uma volta, algo que atraiu os olhares das pessoas ao redor. — Achei que não viria mais.
— Psique demorou para me convencer a sair de casa nesse vestido. — A deusa da primavera aceitou a taça de champanhe que um garçom lhe ofereceu. — Obrigada.
— Ela se perdeu quando chegou aqui — acrescentou com um sorriso debochado.
— Em minha defesa, esse lugar é muito grande. — encarou-o com um olhar desafiador.
Naquele instante, o deus desejou que ela não tivesse o feito, pois aquilo não somente aumentou o sorriso malicioso de Eros, como fora obrigado a trincar o maxilar para reprimir a sensação estranha que surgia em seu peito. Aquilo estava começando a irritá-lo. Irritá-lo até demais. Como se compreendesse o significado daquele desconforto de um segundo ao outro, sentiu uma leve repulsa por si mesmo. Patético.
— Claro — respondeu, ácido, e revirou os olhos, o que a fez franzir o cenho com a mudança repentina de tom de voz. — Espero que Creta não precise da primavera, porque você claramente não vai dar conta.
— Não se preocupe — Eros encarou-a de soslaio, quase sussurrando, e deu uma piscadinha. — É a natureza dele. Você se acostuma. Além do mais, ele está travado em uma batalha interna nesse exato momento.
— O que é Creta? — perguntou, confusa.
— Você não sabe o que é Creta? — franziu o cenho e revirou os olhos.
— Eu realmente não perguntaria se soubesse, não acha? — Embora a escolha de palavras não tenha sido a mais cortês, a nuvem de graciosidade da deusa da primavera amenizava quase que completamente a aspereza dos seus modos. , no entanto, não poderia deixar de admitir que o diálogo dissimulado vindo de alguém que parecia ser tão inocente lhe cativara a atenção.
— Creta é uma cidade na Terra — Eros falou, divertindo-se com a falta de conhecimento que tinha em relação aos acontecimentos históricos olimpianos.
— E é uma cidade especial, porque... — ela inclinou a cabeça na espera de receber alguma resposta.
— Talvez devêssemos ir para que você descubra sozinha — sugeriu, sério, com uma das sobrancelhas erguidas.
— Pelos deuses, Eros. Olhe isso — Hermes cutucou seu amigo e apontou para o outro lado do salão, para onde os quatro olharam. — Ares está acompanhando Afrodite mais uma vez.
— Eu não estou surpreso. Afrodite é muita areia para o caminhãozinho do Hefesto — Eros deu de ombros. — Ele deve sonhar em ser tão bom quanto Ares.
— Eu não sei quem é esse Hefesto, mas confesso que já estou um pouco triste por ele — falou, sem pensar, enquanto olhava o casal.
Afrodite era simplesmente extraordinária. Ela possuía longos cabelos loiros acobreados que flutuavam, como na bela pintura de Botticelli. Seus gestos eram contemplados por uma delicadeza ímpar. jurou que harpas e pássaros cantaram ao fundo quando a deusa do desejo riu na conversa que estava tendo. Já não soava absurdo que ela tivesse aparecido em uma concha vinda dos mares e que flores crescessem por onde passava. Afrodite era encantadora.
— Às vezes, eu também fico triste por Hefesto — falou, discreto, sem desviar o olhar do casal risonho. — Afinal, eles são casados.
— Ares e Afrodite? Eles são casados? — perguntou, sem conseguir parar de analisar a deusa do desejo.
— Afrodite e Hefesto.
— Mas eu achei que Afrodite tivesse algum tipo de relacionamento com Ares e que talvez Hefesto gostasse dela, mas não fosse correspondido.
— Afrodite — apontava sua taça de champanhe para cada uma das pessoas a quem se referia — é casada com Hefesto, mas ela teve filhos com Ares, embora seu verdadeiro amor tenha sido Adônis.
— Mas Hefesto e Ares não são irmãos? — a deusa da primavera franziu o cenho e arregalou os olhos logo em seguida. — Afrodite não é meia-irmã dos dois?
— Sim — respondeu, com certa naturalidade, e voltou a encarar . — Mas o que tem de estranho nisso?
— Oh, merda — Hermes sorriu, sem graça, e virou sua bebida em um único gole. — Ela está vindo. Afrodite está vindo para cá. Ajam naturalmente.
— Por que tártaros você está nessa posição? — Eros proferiu, incrédulo, ao encarar Hermes com o peito inflado, olhando para o teto e segurando o copo vazio na altura do ombro.
— Isso é o seu agir naturalmente? — riu e o mensageiro fechou o semblante.
— É por isso que você não sabe esconder segredos, Hermes — ergueu uma sobrancelha.
— Por que você está tão nervoso? — a deusa perguntou, curiosa.
— Porque ele fica intimidado pela beleza da Afrodite.
, você poderia, por favor, não me difamar assim? — Hermes sussurrou, indignado.
— O quê? — o deus do sofrimento e do prazer perguntou, fingindo perplexidade. — Eu acho isso tão... fofo.
— Você disse... fofo? — Eros imediatamente assumiu uma expressão de repúdio.
— O que está acontecendo com você? — Hermes falou, preocupado, e arregalou os olhos.
— Oh, eu sei o que está acontecendo com ele — o cupido abriu um sorriso malicioso.
Não foi necessário que sequer abrisse a boca para confrontá-lo, um olhar letal e afiado foi o suficiente para que o amigo fechasse a boca em uma linha e começasse a fitar qualquer outro ponto do local. Todos sabiam que aquele tipo de olhar vindo de era capaz de causar dor física por si só.
— Eros! Meu amado filho! — Afrodite colocou as duas mãos no maxilar do rapaz para que pudesse vê-lo mais de perto. — Que bom que veio.
— Oi, mãe — o cupido sorriu, gentil. — Oi, pai.
— Eros — Ares cumprimentou-o com um leve aceno de cabeça. — . Hermes.
— E você deve ser a . — Afrodite focou toda sua atenção na deusa da primavera, que sorriu, sem graça, ao perceber que todos a encaravam. A mulher parecia genuinamente encantada com os traços delicados da nova deusa. — Muito prazer em conhecê-la, sou Afrodite, deusa do desejo. Esse é Ares, deus da guerra.
— O prazer é todo meu. — Antes que pudesse pronunciar qualquer outra palavra, Afrodite voltou a falar, animada.
— Vejo que já conheceu meu garoto Eros. Lindo, não acha? Um belo partido. Ele foi votado um dos cinco deuses mais bonitos de todos os tempos pela LOGQ.
Eros arregalou os olhos e quase engasgou com seu champanhe quando ouviu as palavras saindo da boca de sua própria mãe.
— Sim, claro. Lindo. — O desconforto notável de fez segurar a risada, algo que não foi muito discreto, e ela precisou dar um leve chute em seu tornozelo por debaixo da saia para que ele retomasse sua compostura.
— Outch!
— Hm... — Afrodite estreitou os olhos e começou a estudar detalhadamente as expressões faciais da mulher em sua frente. De um segundo a outro, seu semblante passou de confuso para surpreso. — Oh, que interessante. — Um sorriso gentil surgiu em seu rosto. — Eu não estava esperando por isso. Quer dizer, eu jurava que era Eros.
— Desculpe, não estava esperando pelo quê? — a deusa da primavera franziu o cenho e começou a intercalar seu olhar entre uma Afrodite muito maravilhada e um incomodado.
— Querida, vou ali cumprimentar Hera e já volto, tudo bem? — Ares apontou para a esquerda com a cabeça.
— Não se preocupe, meu amor, eu vou com você. Terminei por aqui.
— O que foi isso? — Hermes perguntou, inquieto, quando o casal finalmente se afastou.
— Eu preciso de um drink... Não, eu preciso de seis drinks. Para quem mais será que ela fez propaganda de mim? — Eros suspirou e sequer hesitou em ir em direção ao bar. — Todo evento é a mesma coisa.
, olhe o bar. É a Celena que está fazendo os drinks — Hermes abriu um sorriso, animado. — Me espere, Eros, eu vou com você! — o mensageiro anunciou, fazendo gestos corridos com os braços, apesar de o cupido já ter sumido de vista dentre o amontado de pessoas.
— Hermes, você quer que eu vá com você? — sugeriu com um leve tom subentendido em sua voz.
O mensageiro pareceu ponderar a proposta por alguns segundos, porém, ao que tudo indicava, ele mudou de ideia no meio do caminho. Naquele instante, algo dentro de a fez entender a situação. Ela abriu um sorriso complacente e entregou sua taça ainda meio cheia para , que a segurou sem entender o gesto.
— Eu vou. — A deusa da primavera passou a mão sobre seu cabelo para ajeitá-lo.
— Eu não acho que seja uma boa ideia. — O próprio Hermes discordou.
— Confie em mim. — somente precisou piscar os olhos poucas vezes e abrir um sorriso terno.
— Eu não acho que o Hermes vai concordar com isso tão fá...
— Tudo bem — o mensageiro balançou a cabeça em concordância.
— O quê?! — perguntou, incrédulo, e estreitou os olhos. — Como você se vendeu tão rápido?
— Eu não poderia dizer não para ela.
— Nos deseje sorte! — a deusa da primavera sorriu para e a sensação irritante em sua barriga o fez fechar o semblante.
— Você pode me trazer um whisky puro? — ele ergueu a taça dela que ainda segurava. — Por favor.
— Claro.
— Ele acabou de dizer por favor? — o mensageiro arregalou os olhos ao fitar a deusa ao seu lado.
Assim que e Hermes começaram a andar em direção ao bar, ela percebeu que ele engoliu em seco. Era visível que ele estava nervoso e não pôde deixar de achar aquilo uma graça. O sorriso simpático que lhe era peculiar poderia transmitir a imagem de alguém tranquilo, porém, naquele instante, ele não era o suficiente para mascarar sua ansiedade.
A deusa da primavera não saberia dizer se Celena era o que Psique se referiria como o “Sob o pesado fardo do amor eu afundarei” de Hermes, já que o mensageiro também não parecera confortável perto de Afrodite, que ela não acreditava ser sua cara metade. Talvez, fosse apenas uma pessoa pela qual Hermes tinha uma atração.
— Ok, você vai para um canto do bar e eu vou para o outro — ela começou a falar rápido. — Eu preciso fazer meu pedido antes de você, entendido? — o mensageiro concordou com a cabeça. — Agora, me dê sua gravata.
— O quê? — ele olhou, confuso, para .
— E abra pelo menos um botão dessa sua camiseta — ela apontou para seu colarinho. — Você está tão nervoso que sua cara inteira está vermelha.
— Oh. — Hermes se apressou a tirar a gravata e estendeu-a para a deusa, que jogou o objeto para trás sem hesitar. — E agora?
— Agora você vai para o seu canto — apontou para o lado oposto de onde ia. Ela colocou seus longos cabelos atrás dos ombros e abriu seu melhor sorriso.
O plano estruturado em sua mente parecia primoroso até ela se aproximar do balcão e notar a presença de duas ninfas fazendo os drinks no bar. não soube dizer qual era Celena. Por alguns segundos, ela entreolhou ambas, porém ainda assim não conseguiu identificar. A deusa da primavera inclinou levemente seu corpo para a direita à procura de Hermes. Quando o encontrou em meio a várias pessoas do outro lado do bar, arregalou os olhos e começou a fazer gestos discretos com os braços para chamar a atenção do mensageiro.
— Qual delas é a Celena? — perguntou, baixo e devagar, para que Hermes pudesse ler seus lábios. Ele, no entanto, apenas reagiu com uma careta confusa. — CE-LE-NA. Qual delas é a Celena? — ainda que falasse o mais alto que podia, Hermes não a entendeu, então suspirou e voltou a se apoiar no balcão, desistindo de tentar se comunicar com o mensageiro.
— O que você gostaria de beber esta noite? — uma das ninfas, a de olhos redondos, orelhas pontudas e tom de pele azul esverdeado, abordou-a enquanto enxugava uma taça.
— Boa noite — sorriu, gentil, torcendo para que essa fosse a tal de Celena. — Eu gostaria de um Dry Martini, por favor... Ah! E um whisky puro.
— Excelentes escolhas, minha deusa — a ninfa sorriu de volta.
— Muito obrigada — estendeu seu palmo na altura do ombro e concentrou-se fixamente em sua mão até que uma azaléia vermelha surgisse ali. A deusa da primavera ofereceu a flor para a ninfa, que sorriu, encantada. — Aqui. Coloque no seu cabelo, vai ficar incrível.
— Obrigada.
— Mas acho que você nem precisa da flor para chamar ainda mais atenção.
— Desculpe, o que disse? — a estranha perguntou, confusa, enquanto colocava o gim e o vermute na coqueteleira.
— Eu acho que aquele deus ali está de olho em você — apontou com a cabeça para Hermes e a ninfa virou de costas discretamente para ver de quem a deusa falava.
— Ah, sim... Hermes...
— Você é tão sortuda.
— Sou?
— Claro! Sabe, deusas como eu morreríamos por ter Hermes como nosso amante... ou namorado... ou marido. Quer dizer, olhe para ele, tão bonito e elegante.
— Sério? — Celena franziu o cenho, parecia começar a demonstrar interesse.
— Com certeza. Não somente ele é filho do grande Zeus, mas ele é mais rápido que o próprio vento. O que eu não daria para que ele prestasse atenção em mim, mas eu sei que não sou boa o suficiente para alguém como Hermes. Você é realmente muito sortuda.
— Bom, ele não é de todo ruim. — Celena inclinou a cabeça ao encarar Hermes, que ficou surpreso ao perceber que a ninfa o analisava. — Ele é um semi-deus...
— Uhum... — sorriu esperta. — Praticamente um deus, já que ele mora aqui no Olimpo.
— Verdade. E ele é bonitinho...
— Muito bonito.
— E ele tem um trabalho bom.
— Sim — a deusa da primavera concordou, com um sorriso alegre, ao perceber que Celena, agora, parecia genuinamente interessada. — Ele entrega cartas, isso é muito importante.
— E ele envia os sonhos criados pelos deuses aos mortais e guia as almas dos mortos para Hades.
— Sério? — franziu o cenho e a ninfa virou-se para fitá-la. — Quero dizer, sim, ele leva os sonhos e guia as almas, você quer algo mais completo do que isso? Urgh, ele é perfeito. — Então, quando Celena se virou uma última vez para trocar olhares com Hermes, fez um pequeno sinal de aprovação com as mãos, algo que fez o mensageiro sorrir, animado. — Eu acho que ele quer pedir um drink, você não acha? — a deusa perguntou, insinuante.
— Oh... Acho que sim. Aqui estão os seus — Celena colocou-os sobre o balcão. — Como eu estou?
— Divina — elogiou enquanto pegava a taça e o copo. — Eu lhe desejaria sorte, mas você nem vai precisar.
Assim que a ninfa foi até o outro lado do bar para abordar Hermes, virou-se de costas para sair dali, entregar o whisky de e, depois, tentar encontrar algum rosto familiar com o qual pudesse conversar. Longe de , de preferência. Psique surtaria só de saber que ela esteve mais próxima dele do que o raio de cinco metros estabelecido por segurança.
O caminho de volta, embora curto, foi o suficiente para que recebesse muitos olhares sobre si. Ela teve quase certeza de que metade da festa comentava sobre sua aparição e aquilo só contribuiu para uma leve ansiedade se instalando sobre seu corpo. O meio sorriso tentava esconder seu desconforto, embora o deixasse ainda mais aparente. E, como a lei de Murphy estipula, qualquer situação que pode ficar pior, ficará pior. Quando finalmente encontrou em meio à multidão, já não poderia voltar atrás no momento em que notou a presença de Hera ao lado dele.
— Quanta gentileza — Hera sorriu, irônica, ao pegar a taça de Martini da mão da deusa da primavera. — Você me trouxe meu favorito.
apenas revirou os olhos com a cena, demonstrando a clara irritação. estava prestes a se pronunciar, porém a rainha do Olimpo continuou sua conversa.
— Então, querido — Hera deu um gole em sua bebida e voltou a encarar —, você já foi falar com Hebe?
— Depende, você já parou de tentar controlar a minha vida pessoal?
— Oh, querido, você sabe que eu só quero o melhor para minha família.
— Eu acho que eu vou... — deu um pequeno passo para o lado enquanto falava, porém Hera fitou-a imediatamente.
— Não, fique. Já estamos acabando — a deusa do casamento insistiu. Por mais que não quisesse permanecer ali, entendia que não poderia negar um pedido de Hera. Precisou, portanto, manter-se parada ao lado dos dois, apenas observando o diálogo.
— Sabe, eu acho que Apolo e Hebe dariam um belo casal — sorriu, provocante, e Hera fechou o semblante. Não havia nada que a irritasse mais do que a ideia de sua filha favorita se relacionando com uma prole gerada pela infidelidade de Zeus. — Ou talvez Ersa e Hebe... Melhor ainda, Héracles e Hebe.
— Basta! — ela esbravejou, chamando atenção de algumas pessoas em sua volta. — Segunda-feira, depois do seu expediente, eu estarei lhe esperando em meu escritório para discutirmos sobre isso.
— Hm... — pareceu ponderar por um instante, colocando uma mão em seu queixo, porém logo em seguida suspirou falsamente, frustrado. — Segunda eu não posso, já tenho compromisso e seria muito rude eu desmarcar.
— Que compromisso? — Hera perguntou, irritada.
— Um encontro — ele respondeu, calmo, com o leve sorriso inabalável que lhe era peculiar.
— Com quem? Com quem é esse encontro que é mais importante do que uma reunião com a própria rainha do Olimpo? É com a Hebe?
O sorriso perverso foi inevitável quando percebeu o quanto estava prestes a irritar ainda mais Hera.
— Com ela — o deus apontou para , que arregalou os olhos, sentindo que uma coroa de flores estava prestes a surgir em sua cabeça.
— COM ELA? — Hera perguntou, incrédula, e colocou as mãos na cintura.
Seus cabelos começaram a flutuar acima dos ombros, evidenciando a ira que agora tomava conta de seu corpo. A deusa da primavera engoliu em seco. A raiva que Hera exalava estremecia os ossos de , apertando-lhe o coração, algo que ela não parecia controlar. Antes que pudesse protestar, Hera saíra abruptamente com seus olhos arregalados e, agora, brilhantes como o próprio sol.
!
— Oh, fique tranquila, — o deus deu uma piscadinha e sorriu de lado. — Não vai dar em nada.


— VOCÊ O QUÊ? — Psique quase engasgou com o seu cereal. — VOCÊ TEM UM ENCONTRO COM ? Você por algum acaso ouve as coisas que eu falo? CINCO METROS, , CINCO METROS!
— Eu juro que não foi algo facultativo — sorriu, sem graça, enquanto se apoiava na parede para tirar seus saltos. Seus pés imploravam por um descanso.
No segundo seguinte, Psique quase derrubou sua colher de susto e a deusa da primavera teve que se segurar na bancada da cozinha. Ártemis abriu a porta em um chute e adentrou a casa, eufórica.
— Pelos deuses, é verdade? — a deusa da caça levantou seus braços em comemoração e seus olhos reluziam mais do que nunca.
— O que é verdade? — Psique balançou a cabeça confusa, ainda assustada com a aparição repentina.
— Que a vai em um encontro com . Um encontro. Encontro. Com . .
— Ok, já entendemos, Ártemis — Psique falou, irritada. — Sim, aparentemente tem um encontro com e eu queria muito entender como tártaros isso aconteceu.
— Eu não estou surpresa — a deusa da caça deu uma leve risada. — Com aquele vestido de ontem, até eu lhe chamaria para um encontro. A festa inteira estava falando sobre você.
— Hera vai me matar ainda mais agora — grunhiu e colocou a mão na testa.
— O que você quer dizer com ainda mais? — Psique estreitou os olhos.
— Bom... — engoliu em seco e foi até a geladeira pegar uma garrafa de água, tentando evitar ao máximo o contato visual com qualquer uma das duas. — O que aconteceu é que eu estava inserida no meio de uma discussão de e Hera. Sem querer, eu estava inserida sem querer — a deusa da primavera frisou, ao receber o olhar mortal de Psique sobre si. — Ela estava pressionando-o em relação à sua vida amorosa e propôs que terminassem a discussão na segunda à noite, mas o disse que estava ocupado, porque teria um encontro comigo.
— E aí você disse que não, que ele não tinha um encontro com você — Psique falou, como se evidenciasse algo óbvio.
— Eu não sei se conseguiria fazer isso, ele não parecia confortável com a reunião forçada que teria com Hera.
— Oh, isso é tão a cara de uma deusa da primavera — Ártemis sorriu, divertida. Ainda com o vestido preto justo e curto da noite anterior, ela começou a tirar seus saltos. A julgar pelas vestimentas, diria que Ártemis sequer passou em casa, deve ter vindo direto da mansão de Hera e Zeus. — Tão empática e bondosa, pensando no que é melhor para os outros. Eu nem sabia que sentia falta de uma deusa da primavera até você chegar.
— Você nunca — Psique arregalou os olhos para ressaltar o que dizia —, nunca, deve interferir nos desejos de Hera, não importa nem se a vida de alguém esteja em jogo. Pelos deuses, no que você estava pensando, ?
— Eu também não tive muita escolha — a deusa da primavera deu de ombros. Sabia que Psique lhe aconselhara com uma boa intenção, mas não concordava em agir contra seus princípios. — Um segundo depois de sugerir esse suposto encontro, Hera já estava, no mínimo, furiosa e saiu do salão voando, literalmente voando. Ela não queria ouvir nada do que eu tinha a dizer e, muito menos, ouvir sobre mim. Eu não acho que ter a festa inteira falando sobre eu ou o meu vestido seja algo favorável, não concorda?
— Então, eu tenho más notícias para você — Ártemis sorriu, sem graça, e abriu o papel acinzentado que segurava. — Você e estão na capa dos jornais.
— O quê? — arregalou os olhos e pegou o objeto que a deusa da caça estendeu em sua direção.
— Não só dos jornais, mas das revistas também — Ártemis acrescentou. — Já são o casal mais popular do Olimpo.
— Meus deuses — Psique riu em desespero. — Foi bom lhe conhecer, .
— Como conseguiram uma foto nossa? Eu não apareci em público com ele.
— Eles estão em todos os lugares, querida — Ártemis sorriu, esperta, e pegou o jornal de novo, analisando a gigantesca foto da primeira página. — E é uma bela reportagem, sabe? nunca saiu em um encontro com alguém, ele é o rei do sexo casual, sem compromisso. Nunca o vi marcar um encontro. Esse jornal vai vender tão fácil quanto as maçãs de ouro de Hera. Eu sugiro que coloquem um guardião na porta de entrada e outro na saída dos fundos, porque os paparazzis com certeza virão aqui.
— Por que eu sinto que ainda não acordei e estou vivendo meu pior pesadelo? — Psique questionou-se, checando a paisagem janela afora.
— Eu não gosto muito dele, mas devo admitir que vocês fazem um belo casal. — Ártemis fez um bico engraçado enquanto lia a reportagem.
— A gente não é um casal — estreitou os olhos e abriu os braços em contrariedade.
— E lá se vai a minha passagem de ida para os Pomares do Elísio. Eu abrigo a deusa que enfureceu Hera. — Psique pareceu entrar em um estado de choque. — Eu vou ser julgada por Tsífone no Tártaro por ter assassinado a calmaria do Olimpo.
— Você vai sobreviver, não seja dramática — Ártemis fez um gesto de desdém com a mão, sem tirar os olhos do jornal. — É verdade que vocês já saíam escondidos antes e só agora resolveram tornar público? E que Hera já está planejando o casamento de vocês na ilha de Aegina? — a deusa da caça ficou boquiaberta com o que acabara de ler.
— Claro que não — respondeu, incrédula, e sentou-se na bancada de mármore. — Eu só estive aqui por três dias, seria, no mínimo, impossível. Sem contar que eu realmente levei a sério quando Psique me pediu para ficar longe de .
— Vocês me parecem estar bem perto nessa foto — a deusa da caça sorriu, divertida, e fechou o semblante.
— Obrigada pela observação, Ártemis. — A deusa da primavera limitou-se a respirar fundo. — Vou mandar uma carta para , pedindo gentilmente para que ele entenda que eu não posso comparecer a esse encontro, o qual eu nem sabia da existência... Ok, talvez eu não faça isso. Não posso deixar que ele vá até o encontro de Hera, que o obrigará a casar com Hebe quando isso claramente não é um desejo dele. Preciso colocar a cabeça no lugar. Antes de resolver isso, irei tomar um longo banho espumado de banheira e dormir por, pelo menos, dez horas — sorriu, satisfeita, e pegou seus sapatos, andando em direção à escada. Foi obrigada, no entanto, a parar no meio do caminho quando Ártemis começou a gargalhar cada vez mais alto, parando somente quando ficou sem ar e precisou secar uma lágrima que escorria sobre sua bochecha.
— Pelos deuses, essa atuação foi incrível — Ártemis bateu palmas. — Vá se trocar e eu lhe encontro em cinco minutos para irmos ao centro de treinamento.
— Desculpe, acho que eu ouvi errado — piscou algumas vezes na esperança de haver um mal-entendido. — Você disse centro de treinamento?
— Exatamente — Ártemis falou, satisfeita, já andando até a porta de entrada. — Cinco minutos. Não se atrase.
— Mas... Mas, Ártemis, nós não dormimos desde ontem.
— Isso é um problema?
Logo que Ártemis fechou a porta para ir até sua casa, sem ao menos esperar uma resposta, jogou a cabeça para trás e grunhiu de cansaço premeditado. Sabia que tinha combinado com a deusa da caça de ir ao centro de treinamento no domingo, só não esperava que a condição adversa de chegar às sete horas da manhã fosse acontecer. Seu corpo doía ao pensar que teria que praticar exercícios com vestígios de álcool em seu sangue. Nenhum ser, mortal ou imortal, deveria ser submetido a um treinamento físico tão cedo em um domingo. Ainda mais um ser que estivesse suscetível a uma ressaca.
— Eu diria que eu estou com dó de você, mas, já que você não me ouviu, eu estou só com um pouquinho — Psique quebrou o silêncio da cozinha, encarando a deusa da primavera com uma sobrancelha erguida. — Você não tem ideia do que Hera é capaz. E isso vai afetar a sua vida, a vida do , a vida de Perséfone e a minha vida também. Seremos punidos com o fim da imortalidade, isso se ela não resolver nos castigar como fez com Prometeu ou Atlas, o que seria ainda pior, porque, se ao menos fôssemos para o Submundo, ainda haveria chances de cairmos nos Campos Elísios.
— Eu prometo que vou resolver isso — sorriu, sem graça. — Talvez, eu possa conversar com Hera, dizer que eu não pretendo casar com ou algo do tipo.
— Sim! Sim, eu acho que... err... — embora Psique tenha começado a fala entusiasmada, ela não pôde deixar de franzir o cenho em desânimo e abaixar o tom de voz quando sua intuição lhe fez perceber que, talvez, estivesse privando de algo que não devesse. — Acho que isso ajuda.
— Certo, vou escrever uma carta ainda hoje para marcarmos um encontro — a deusa da primavera sorriu, gentil, por finalmente sentir que estava fazendo algo que ajudasse Psique. — Oh, antes de eu subir para me trocar, você sabia que Afrodite é casada com seu meio-irmão e teve filhos com seu outro meio-irmão e esses meios-irmãos são irmãos?
— Bizarro, não? — Psique respondeu, um pouco mais animada. — É bom ver alguém que também achou isso estranho.
— Oh, sim, a orgia familiar deliberada. Medea avisou.
— Aqui você é livre para ser e fazer o que quiser sem ser julgado, desde que você não acabe interferindo nos interesses de Zeus. Mas, se pararmos para pensar sobre isso, é meio natural que família se relacione com família, porque metade do Olimpo é filho de Zeus e as próprias famílias reais funcionam assim. Quer dizer, Hera é irmã de Zeus e Hades é tio de Perséfone, sendo que a própria Perséfone é filha de Zeus com a irmã dele, Deméter.
— O quê?
— Eu realmente falei sério quando eu disse que você tinha muitas opções aqui no Olimpo. Agora vá se trocar, porque Ártemis não gosta de atrasos.

Capítulo 6

— Mais uma vez — Ártemis falou, firme, encarando com sua postura impecável e seus braços cruzados.
— Mais uma vez? — a deusa da primavera grunhiu, quase sem ar.
— Pegue mais leve, Ártemis. — Atenas deu uma risada enquanto limpava o suor de sua testa com uma toalha. — Primavera, lembra? Ela não precisa do condicionamento físico.
— Oh, claro — a deusa da caça balançou a cabeça em concordância. — Então... intervalo?
— Isso seria ótimo — suspirou, aliviada. — Eu acho que o chão é um ótimo lugar para descansar, não concordam? Vou ficar aqui só por uns minutinhos.
Assim que chegaram ao centro de treinamento, Ártemis e foram recebidas por Atenas. O local cativara a deusa da primavera sem ao menos precisar mais do que um olhar. O grande domo era envolvido por um vidro espelhado que abria como janelas normais, permitindo que a luz natural penetrasse e que plantas em cascatas se abrigassem ali de maneira saudável e decorassem, em ramos, o vidro. Foi espontâneo, portanto, que sentisse certo conforto. No centro do domo ficava uma arena esportiva rebaixada, rodeada por uma arquibancada de concreto. Mais afastado do núcleo, acompanhando o limite do local, ficavam as mais diversas salas para todos os tipos de treinamentos possíveis, com suas paredes de vidro para que tudo pudesse ser observado. somente pôde dar uma rápida olhada na sala de tiro com arco antes que Atenas viesse se apresentar.
A deusa da guerra e da sabedoria mostrou-se muito receptiva e bondosa, complementando o treino de com a paciência que faltava em Ártemis. Treino o qual fora o suficiente para fazer cada um de seus músculos latejar. A deusa da primavera anotara mentalmente que nunca mais treinaria sob as ordens de Ártemis de novo.
— Você poderia parar, pelo amor dos deuses? — aproximou-se com uma expressão pouco amigável enquanto passava a mão pelo cabelo encharcado de suor.
— Você está em todo lugar? — grunhiu quando tentou se mover para levantar do chão.
— Pelo que eu saiba, você é a pessoa nova por aqui.
— Ele tem um ponto — Ártemis concordou, interessada na cena.
— Parar com o quê? — a deusa da primavera respirou fundo e criou coragem para se colocar de pé, sentindo suas pernas tremerem.
— Urgh! — grunhiu, irritado. — Parar com esse treino.
— Por quê? — ela perguntou, confusa, e Atenas deu uma leve risada.
— Não se preocupe, já estamos terminando — Ártemis garantiu, encarando com certo ar de curiosidade. Nunca sequer chegara tão perto dele, mas agora entendia o porquê das famas de beleza e de mordaz que ele possuía.
— Porque ele sente a sua dor muscular — Atenas sussurrou, segurando o riso, embora o deus tenha escutado de qualquer maneira.
— É angustiante, ainda mais com a sua privação de sono — cruzou os braços e trincou o maxilar. — Se você não consegue aguentar, ficar em casa é uma opção melhor do que me importunar.
— Oh, você não gosta disso? — assumiu um semblante falsamente preocupado e começou a se alongar, o que fez estreitar os olhos com raiva. O cansaço acumulado de uma noite não dormida somente contribuía para uma facilidade de irritá-la. Qualquer grosseria que recebesse seria retribuída com uma resposta afiada, já não importando se viesse de Zeus ou de qualquer outra pessoa. — Bom, eu não gosto de difamação em capa de revista, mas você não me vê reclamando, certo?
— Por que você está falando como se fosse eu quem tivesse vendido a foto e a história para os jornais?
— Não importa quem vendeu isso, , o meu ponto é que você não pode vir aqui reclamar sobre algo que eu não controlo, se eu não faço o mesmo com você.
— Mas você pode evitar, eu, por outro lado, não tenho o controle da mídia.
— Você reparou? — Atenas sussurrou ao fundo, ouvindo silenciosamente a discussão de e .
— Sim! — Ártemis respondeu, surpresa, mantendo um tom de voz tão baixo quanto o da outra deusa. — Eu nunca tinha visto isso antes.
— Nem eu — Atenas abriu um sorriso divertido. — sente a dor de como a de mais ninguém.
— Normalmente, ele gosta quando os outros sofrem, não? — Ártemis franziu o cenho. — É como um combustível.
— Não dessa vez — Atenas fechou a boca em uma linha, intrigada.
— Você realmente está reclamando porque eu estou fazendo exercícios? — abriu os braços, irritada.
— Sim — respondeu, com obviedade.
— Qual o seu problema?
— No momento, você.
— Quer saber, tudo bem — a deusa da primavera suspirou, cansada. — Eu vou parar o treino por aqui e vou andando para casa. Talvez, eu pare para fazer umas flexões no meio do caminho.
— Andando? — o deus riu, sarcástico, e balançou a cabeça em negação.
— Sim, andando. Você poderia, por gentileza, abrir a porta para mim? Meus braços não funcionam — a deusa sorriu, provocante. — Mas, se não quiser, eu mesma posso tentar abri-la.
Ela sabia que estava rangendo os dentes só de pensar que ela percorreria dezenas de quadras com as pernas no limiar do funcionamento. Talvez, até desmaiasse no meio do caminho por causa da falta do café da manhã, porém não poderia deixá-lo ser rude por algo que não tinha controle, ainda que a natureza bondosa lhe obrigasse a parar o treino imediatamente.
— Para uma deusa da primavera, você não é tão gentil como deveria — disse, cínico, e revirou os olhos.
— Oh, desculpe. O poder que eu não escolhi para você está lhe machucando? — retrucou.
O deus restringiu-se a respirar fundo e, de repente, abriu suas grandes asas escuras de penas afiadas, algo que assustou e a fez dar um passo para trás em reflexo. Ártemis e Atenas, que observavam a cena com atenção e braços cruzados, apenas ergueram as sobrancelhas. andou devagar até , que se manteve estática, sentindo um frio na barriga, e delicadamente segurou-a entre seus braços, como se carregasse algo frágil. O toque suave e muito mais cuidadoso do que ela esperava a fez corar de imediato e ela precisou conter-se para que outra coroa de flores não surgisse sobre seus cabelos, embora a cor deles começasse a se tornar coral. Foi somente quando ela já estava envolvida de maneira firme, que percebeu o que estava prestes a acontecer e arregalou os olhos.
— NÃO!
— Tarde demais — ele sussurrou em seu ouvido e sorriu, provocante. Não demorou mais de um segundo para que saísse pelo teto de vidro do domo.
— VOCÊ É LOUCO? — entreolhava freneticamente as asas dele e o chão do Olimpo se afastando. — VOCÊ DEVERIA TER PEDIDO MINHA PERMISSÃO!
— Pelos deuses — piscou os olhos e balançou a cabeça atordoado —, não precisa gritar, eu estou ao seu lado. E eu tinha certeza que você diria não.
— É claro que eu diria não — engoliu em seco quando percebeu que já não conseguia diferenciar as pessoas de meros pontos. — Psique me pediu para que eu ficasse longe de você.
— Ela pediu? — encarou-a com o cenho franzido. Pela primeira vez desde que o conhecera, identificou um traço diferente das usuais ironia e seriedade em sua íris. Ela enxergou certo... pesar.
— E eu não acho que isso seja seguro. — A deusa da primavera ignorou a pergunta, desviando o olhar para as nuvens ao redor. — Não tem nem um cinto de segurança.
O silêncio que se instalou logo em seguida e que perdurou por um longo período a deixou desconfortável. Era como se pudesse sentir que estava chateado. Aproveitando o momento de silêncio, ela estreitou os olhos e começou a estudar a face dele, algo que ela sabia que não deveria fazer, embora não pudesse evitar. possuía uma beleza ameaçadora, isso ela já havia notado. O que não havia percebido era como conseguia sentir a pulsação de seu corpo quando estava tão próxima dele. Ou como a pele muito quente parecia queimar em contato com a sua. Perdeu-se nas linhas esculpidas de seu rosto e não percebeu que demorou tempo demais analisando-o.
— O que você está fazendo? — perguntou em voz baixa, intrigado pela atenção de .
— Hm... — ela desviou o olhar para baixo e falou a primeira coisa que veio em sua mente. — Por que Hera insiste tanto que você case com a Hebe, se você já deixou claro que não quer?
— Eu nunca disse que não queria.
— Oh — ergueu as sobrancelhas em surpresa. — Então por que nós temos um encontro, se a Hebe é uma opção? Por que você não sai com ela?
— Porque, se eu for sair com a Hebe, tem que partir da minha própria vontade. Eu não quero que Hera esteja envolvida nisso, assim como eu não quero que qualquer outra pessoa esteja.
— Isso não me deixa em uma boa posição, apesar de eu também achar que deve partir da sua própria vontade — suspirou e encarou-a. — Hera já não gosta muito de mim...
— Você não precisa ir ao encontro — o deus interrompeu-a prontamente. — Eu sei me virar com Hera, não preciso que você me faça nenhum favor.
— Não precisa encarar como um favor, senão como uma cortesia.
— Talvez você realmente seja a deusa da primavera, afinal — deu um sorriso discreto, que logo sumiu. — Mas, se você quer um conselho, não viva a sua vida tentando agradar a Zeus ou Hera, por mais que deva obedecê-los. Você está no Olimpo. Apesar da hierarquia, não há lugar onde você poderia ter mais liberdade.
— Agradeço o conselho — sorriu, delicada, percebendo o olhar atento de sobre si. — E, se você quiser um conselho também, por favor, tome um banho. De preferência agora, mas, obrigatoriamente, antes do nosso encontro. Você está cheirando a suor de treino.
Ele apenas fechou o semblante e ergueu a sobrancelha. percebeu na hora o que se passava em sua mente e estreitou os olhos. — Não ouse me largar, .


— Sabe, você é como um sonho. Fácil de conversar, atraente, bom de cama e engraçado. Mas o ponto é que eu não preciso de um homem. Não me entenda mal, eu adoro homens. Eu só não preciso deles.
A postura tranquila e o leve sorriso poderiam transmitir certa suavidade à situação, porém as palavras de Hécate seriam duras para a pessoa que as fosse ler.
— Posso chamar Hermes? — Medea perguntou quando terminou de digitar.
— Pode — a deusa das bruxas assentiu, satisfeita. — Ah, preciso que você marque uma reunião urgente com Hades.
— Claro — a ninfa falou enquanto andava até a porta do escritório de Hécate. — Vou marcar uma logo depois do seu horário de almoço.
Assim que Medea fechou a porta atrás de si, ela percebeu a presença de em frente à sua mesa. A deusa da primavera parecia concentrada demais em observar os objetos sobre a superfície de vidro para notar que a amiga acabara de entrar no cômodo.
— Você é pontual.
— Medea — sorriu, gentil, embora tenha levado um breve susto com a quebra do silêncio. — Está pronta?
— Ainda não — a ninfa suspirou e deixou seu computador sobre a mesa. — Só preciso imprimir isso e fazer uma ligação e depois podemos ir.
— Tudo bem.
Apesar de um estranhamento inicial, não poderia deixar de admitir que o lugar era muito bonito. A placa de “Parabéns, você está morto” bem na entrada do Submundo não era a mais acolhedora, mas era sincera. A escuridão absoluta não era algo que lhe agradava, muito pelo contrário, em seu ponto de vista, havia poucas sensações mais prazerosas do que o calor do sol em contato com a sua pele. Nada mais natural do que a necessidade de sol vinda da deusa da primavera. O breu do Submundo parecia se refletir não somente nas pessoas, mas nas construções também. Era como viver em uma eterna noite, onde somente as luzes artificiais se destacavam nos prédios e nos outdoors das ruas. Como no resto daquele universo, o escritório de Hécate na empresa de Hades não poderia ser diferente, porém o chão preto com fios de ouros caóticos trazia uma elegância diferente ao cômodo e os quadros de molduras douradas eram a escolha certa para tornar o ambiente primoroso.
— O que você quis dizer com não dá? — Medea, sentada em cima de sua mesa, conversava no telefone. — O que foi que eu disse sobre você dizer não à Hécate?... Hm, uhum... ENTÃO POR QUE TÁRTAROS VOCÊ ESTÁ ME DIZENDO QUE NÃO DÁ? — arregalou os olhos com o susto ao ouvir a ninfa gritar com a pessoa do outro lado da linha. — Por acaso a palavra urgente não existe no seu vocabulário? Será que eu vou precisar falar para a deusa das bruxas que a secretária do Hades não... Hm, imaginei que não... Isso, querida, depois do almoço... QUATORZE HORAS? A Hécate parece o tipo de pessoa que espera uns minutinhos? Pode marcar aí às treze horas... Sem mas. — Então, a ninfa desligou.
— Uau, deve ser tão... prazeroso trabalhar com você — inclinou a cabeça, arrancando um olhar mortal de Medea.
— É assim que as coisas funcionam no Submundo, ok?
— Cheguei, cheguei! — Hermes apareceu, correndo, no final do longo e largo corredor.
O mensageiro, ainda com o sorriso gentil que lhe era peculiar, aparentava estar apressado. O peito ofegava, como quem suplicava por ar, algo que surpreendera , já que Hermes poderia correr cinco maratonas seguidas sem sequer deixar um pingo de suor escorrer pela testa.
! — Hermes alargou ainda mais o sorriso quando percebeu a presença da deusa. — Eu não consigo me acostumar com tanta beleza.
— Como você está? — deu uma leve risada e cumprimentou-o com um abraço.
— Muito bem. Eu fiquei de lhe procurar para agradecê-la.
— Agradecer? — Medea sorriu, interessada, enquanto dobrava o papel impresso para colocar no envelope.
— Sim, essa perfeição aqui em forma de deusa me ajudou com Celena. Ela, enfim, aceitou sair comigo.
— Isso quer dizer que você finalmente vai parar de tentar flertar com a recepcionista e chegar aqui a tempo?
— Não se iluda, Medeazinha — o mensageiro sorriu, divertido, e a ninfa revirou os olhos. — A vida é curta demais para não flertar com quem quisermos.
— Não me chame assim, otário.
— E quando vocês vão sair? — perguntou, animada.
— Hoje à noite — Hermes inflou o peito contente. Não conseguiria expressar em palavras a ansiedade e o orgulho dentro de si. Havia anos que tentava ter um encontro com Celena, porém a personalidade desajeitada não lhe permitia. — Mas tenho certeza de que não será um encontro digno de capa de revista como o seu.
— Oh, nós precisamos conversar sobre isso no nosso almoço — Medea sorriu, maliciosa, sem desviar o olhar do envelope onde escrevia. — Você precisa fazer compras antes desse encontro.
— Capa de revista... Hera vai me matar, não vai? — O semblante preocupado de só piorou quando Hermes sorriu sem graça, confirmando implicitamente sua suposição.
— Bom, se a ocasião é seu velório, você também precisa fazer compras — a ninfa acrescentou, olhando a amiga dos pés à cabeça. — Você não pode ser enterrada nessas roupas. Quer vir também, Hermes? Acho que faremos compras assim que o turno dela acabar ou depois do almoço mesmo.
— Acho que não haverá compatibilidade de horário, preciso de horas extras com Hades. Não sei se isso ajuda, mas gosta de vestidos pretos ou vermelhos.
— Não ajuda — franziu o cenho, incrédula.
— Anotado — Medea escreveu em um pequeno papel qualquer em cima de sua mesa. — Preciso que entregue isso para Hélio. — A ninfa ergueu um envelope. — Não é urgente, mas seria bom se fosse entregue hoje mesmo.
— Hélio? — Hermes encarou a secretária com um ar de curiosidade, porém tudo o que recebeu em troca foi uma careta. — Oh, que pena. Eu acho que eles são bem diferentes, mas admito que gostaria que desse certo.
— O que está acontecendo? — a deusa da primavera entreolhou ambos.
— Hécate tem um caso com Hélio — Medea sussurrou e olhou para a porta à sua direita, verificando se Hécate não estava prestes a sair. — Na verdade, Hécate tinha um caso com Hélio. Acho que ela vai dar um fim a isso hoje, porque ele quer algo mais sério e ela não quer. Eu tenho a leve impressão de que isso está acontecendo porque ela está interessada em outro deus.
— Bom, eu preciso ir, estou atrasado. Vejo vocês mais tarde — o mensageiro falou, já abrindo suas asas.
— Boa sorte no encontro — sorriu, dócil, e acenou. — Nos conte tudo depois.
— Não vá com a sua camiseta verde, você fica horrível nela. Parece aquela árvore que os humanos decoram com luzinhas no final do ano com esse cabelo vermelho em contraste — Medea acrescentou enquanto colocava seu casaco. — Estou tão feliz que agora podemos almoçar juntas todos os dias por causa do seu estágio. Mal posso esperar para falar mal da idiota da Aura.
Quando estavam prestes a sair, Hécate abriu a porta de seu escritório, inicialmente concentrada nos documentos em mãos.
— Medea, alguma mensagem nova?
— Não, mas já avisei a Mérope sobre a reunião com Hades.
— Perfeito. Peça para o departamento de marketing que... Oh.
Logo que Hécate notou a presença da outra deusa, foi impossível continuar prestando atenção nos papéis que segurava. A delicadeza e a aura afável foram as primeiras coisas a serem sentidas. Hécate nunca fora inclinada à receptividade forçada, sempre prezara pela naturalidade dos acontecimentos e era por esse motivo que raramente fazia questão de sair de seu caminho para conhecer os outros. O caráter firme também lhe concedera uma fama de reservada, embora qualquer um que a conhecesse não hesitaria em descrevê-la como uma mulher singular, simpática e agraciada com um requinte ímpar, ainda que seu temperamento fosse forte.
— Olá — Hécate sorriu e estendeu sua mão para cumprimentá-la.
— Muito prazer, eu sou a .
— A nova deusa da primavera? Não tivemos a oportunidade de nos conhecermos na festa de Zeus e de Hera. Meu nome é Hécate.
Sem saber muito bem como reagir à figura elegante em sua frente, abriu seu maior sorriso e falou a primeira coisa que conseguiu pensar.
— Você gostaria de almoçar com a gente?
Assim que Medea ouviu a pergunta, foi inevitável revirar de olhos e colocar os dedos sob as têmporas, procurando por um fio de paciência que, talvez, nem existisse. Embora Medea gostasse da personalidade de Hécate e lhe concedesse favores pessoais de vez em quando, não poderia deixar de manter sua relação estritamente profissional para um bom convívio diário.
— Agradeço o convite, mas eu preciso resolver assuntos particulares — a deusa das bruxas sorriu de canto e colocou os seus óculos escuros. — Foi bom conhecê-la, . Tente não causar muito estrago por aqui, certo?
A deusa da primavera esperou Hécate atravessar o corredor para chegar aos elevadores antes de voltar a falar, porém, dessa vez, em um sussurro.
— Um pouco rude, não acha? Como ela pôde assumir que eu causo estrago sem ao menos me conhecer?
— Oh, não — Medea engoliu em seco. — Não foi rude, foi um oráculo.
— O quê? — franziu o cenho e virou-se para encarar a amiga, que balançava a cabeça em negação e observava sua chefe sumir por detrás das portas do elevador.
— Ela sabe de alguma coisa que vai acontecer e aparentemente não é algo bom.
— Você está me dizendo que ela sabe o futuro?
— Não só sabe, como sabe que você vai fazer algo inconsequente. — A ninfa pegou a bolsa de e jogou-a na deusa, que segurou o objeto desajeitadamente e tentou acompanhar os passos de Medea enquanto ela andava apressada. — Vamos logo. Talvez eu consiga descobrir o que você vai fazer. Hécate não vai me contar nada, mas ela não é uma deusa do oráculo, então ela tem que ter ouvido de alguém que é. Nós vamos fazer uma pequena visita às Parcas.
— A gente não ia almoçar?
— Pelo amor à fofoca, , prioridades!


— E como foi? — Psique perguntou, distraída, enquanto mexia nas peças do jogo de xadrez em cima da cama de .
— Foi um pouco estranho — a deusa da primavera falou do banheiro, terminando de se vestir.
— O que seria estranho? — Embora prestasse atenção nos movimentos de Psique, sua oponente no jogo, Ártemis parecia curiosa em saber mais sobre o dia de .
— Bom, nós fomos até as Parcas e elas agiram como se já me conhecessem.
— Então, definitivamente, foram elas que lançaram o oráculo — a deusa da caça colocou a mão no queixo, tentando se concentrar. — Vocês conseguiram alguma informação?
— Não, não conseguimos nada. Medea quase arranjou briga com a deusa que estava segurando uma fita métrica...
— Láquesis — Psique interrompeu.
— Láquesis, certo — concordou com a cabeça e voltou a passar seu batom vermelho. — Depois disso, nós almoçamos, e acabou sobrando um tempo, então Medea e eu fomos comprar um vestido.
— Eu ainda sou a favor de você ir de moletom — Psique suspirou e ergueu uma das sobrancelhas, claramente incomodada com a situação, o que fez Ártemis rir. — Nem sei porque você tomou banho. Banhos não são dignos de . Banhos não são dignos da minha ida ao Tártaro. Na verdade, eu não sou nem a favor de você ir.
— Eu não sei porque você reclama tanto disso — a deusa da caça abriu um sorriso divertido, o que fez Psique franzir o cenho. — Quando você chegou aqui, ninguém além de Zeus era a favor de você ficar, mas você o fez do mesmo jeito.
— Mas eu fiz por amor — Psique revidou e voltou a encarar o tabuleiro. — O caso dela não é amor.
— Pode ainda não ser, mas...
— Ainda? Mas? — Psique interrompeu-a em um fio de voz e arregalou os olhos. — O que você sabe, Ártemis?
A deusa da caça olhou rapidamente para a porta do banheiro para se certificar de que não estava ouvindo a conversa.
— Ontem, no centro do treinamento, eu e Atenas reparamos que e têm uma conexão diferente do...
— Por favor, me diga que você não vai falar o que eu acho que você vai falar.
— Ela ainda é muito inexperiente para perceber essas coisas, mas ele parece sentir a presença dela mais do que de qualquer outra pessoa.
— Então ele sabe? — Psique ficou boquiaberta.
— Eu acho que sente, mas não acho que saiba. Também não acho que ele suspeite, até porque é o , ele vai suprimir qualquer sinal de sentimento como se a vida dele dependesse disso.
— Quando Hera perceber isso, ela vai enlouquecer.
— Isso não vai importar para ela — Ártemis pronunciou-se em um tom tão sóbrio e fúnebre, que um calafrio inevitável passou pela nuca de Psique. — Ela vai fazer o que for preciso para casar e Hebe, assim como Zeus fez com Anfitrite e Poseidon. Então, se eu fosse você, eu não me preocuparia com isso de sair com ou com qualquer coisa que está por vir, já tem seu destino escrito e nem eu, nem você e nem ela — Ártemis apontou com a cabeça para o banheiro —, podemos fazer alguma coisa.
— Urgh, eu odeio que isso deveria me deixar tranquila, mas só me deixa triste — Psique passou a mão pela testa, perdendo qualquer interesse que ainda restava pelo jogo.
— Que salto vocês acham que eu deveria usar com esse vestido? — perguntou ao sair do banheiro e as duas, que estavam deitadas em sua cama, imediatamente olharam para a deusa da primavera.
— Pelos deuses, , como você está bonita! — Psique levantou-se, apressada, e aproximou-se para poder vê-la mais de perto. — Eu ainda não acredito que o encontro é com o , mas, por Zeus, como você está bonita.
— Eu acho que tem alguma coisa faltando... — Ártemis estreitou os olhos enquanto analisava dos pés à cabeça.
— Meus saltos? — a deusa da primavera passou a mão pelo vestido preto justo e longo, ajeitando-o, e apontou para baixo, evidenciando os pés descalços.
— Não, não é isso. Você precisa de um tcham.
— Um tcham? — Psique falou em um tom mais alto e apontou para com as duas mãos, expressando a incredulidade em sua face. — Você não acha que essa mulher por si só já é um tcham?
— Isso é muito gentil — sorriu, doce. — Obrigada, Psique.
— Eu sei o que falta — Ártemis sorriu, satisfeita, e levantou-se da cama. Assim que deu três passos em direção à deusa da primavera, ela levantou sua própria saia curta para retirar um punhal do elástico que contornava sua coxa. não pôde conter o choque ao abrir a boca em perplexidade enquanto Psique encarava a situação com brandura. — Não se mexa — Ártemis pediu, séria, e agachou-se para segurar a barra do vestido de .
Sem hesitar por um segundo sequer, traçou um rasgo linear com a lâmina afiada até a altura da sua coxa.
— Oh, você estava certa. Isso dá um tcham — Psique concordou com acenos de cabeça.
— Você sempre carrega uma adaga? — arregalou levemente os olhos, sem conseguir desviar sua visão da saia agora rasgada.
— Saltos pretos. — Ártemis voltou a sentar na cama. — Agora vá, porque você deve estar atrasada.
— Para onde vocês vão, afinal? — Psique perguntou, distraída.
— Eu não sei — respondeu enquanto começava a afivelar o salto.
— O quê? — elas perguntaram em uníssono e encararam a deusa.
— É uma surpresa? — Ártemis continuou, agora com um tom de interesse.
— Nós nunca combinamos isso — deu de ombros. — Nunca combinamos nada, na verdade.
— Como tártaros vocês esperam se encontrar, se não marcaram um lugar para isso? — Psique cruzou os braços e estreitou os olhos, questionando-se como conseguia ficar ainda mais irritada a cada segundo.
— Ela pode ir para a casa dele — Ártemis ergueu a sobrancelha, sugestiva, e trocou olhares com Psique, que não parecia nada contente com a situação.
— Claro, vamos tornar os rumores cinco vezes piores. — Psique fez um gesto com as mãos e começou a andar até a cama, já sem muita paciência para estender a conversa. — Primeiro encontro e o casal olimpiano favorito consome seu amor em uma noite de muito prazer. Essa vai ser a capa do jornal de amanhã. Ou, talvez, como o sexo no primeiro encontro já não precisa mais ser um tabu.
— Uhh! — Ártemis abriu um sorriso curioso e olhou para . — Você precisa nos contar se ele faz jus à fama na cama, se isso acontecer.
— Alguma de vocês tem o endereço dele? — sorriu, gentil, ignorando o que elas haviam acabado de dizer.
— É só falar para o taxista que você está indo para o apartamento do — a deusa da caça respondeu, distraída.
— Ele realmente tem uma fama — sorriu, sem graça, e Psique apenas gesticulou com seus lábios as palavras “Eu avisei” em resposta. — Volto em algumas horas.
— Estaremos aqui — Ártemis falou automaticamente.


Quando deu duas leves batidas sobre a porta de entrada, tudo o que desejou foi que estivesse em frente ao apartamento certo. A única pessoa que encontrara em meio aos infinitos corredores daquele prédio não sabia ao certo lhe dar direções concisas. Seria, portanto, a terceira e última porta pela qual passaria. Depois disso, somente lhe restaria retornar para casa. Sem receber qualquer resposta nos próximos segundos, voltou a bater à porta, desta vez de maneira um pouco mais firme, o que foi o suficiente para que uma pequena fresta aparecesse, dando abertura à escuridão dentro do apartamento, cortada, agora, pelo fino raio de luz vindo do corredor que invadia a sala.
— Oh, desculpe. — deu um passo para trás em reflexo. — A porta estava aberta, eu...
No segundo seguinte, percebeu que não havia ninguém a escutando. O local permanecia vazio. A primeira reação que teve foi fechar a porta para deixá-la do jeito que a encontrou, porém franziu o cenho quando sentiu uma necessidade incontrolável de abri-la novamente. Era quase como se tivesse uma natural inclinação ao desconhecido, como se alguém lhe chamasse lá dentro. Sua mão manteve-se agarrada à maçaneta.
— O que eu estou fazendo? — perguntou-se em um sussurro. — Não posso invadir a casa de alguém.
Decidida a ir embora, a leve irritação foi inevitável quando seu próprio corpo não obedeceu seu cérebro. rangeu os dentes e xingou-se até o último fio de cabelo quando percebeu que a curiosidade seria sua ruína.
— Maldito Olimpo e sentimentos à flor da pele!
Assim que respirou fundo, não hesitou dois segundos antes de abrir a porta e fechá-la novamente atrás de si. A escuridão adentro era tão protuberante que teve dificuldade de se localizar e um cheiro forte e metálico lhe invadiu as narinas, o que a fez segurar a respiração. A ânsia e o frio na barriga, embora devessem ser atribuídos à sensação de risco, pareciam confortar , como se lhe dissessem que estava prestes a descobrir algo que deveria, ainda que aquilo, talvez, não fosse algo bom. Guiava-se a partir da mais pura intuição, mesmo que invadir apartamentos alheios não fosse certo. Andando passo a passo, bem devagar para não tropeçar em nada, e tateando os móveis cegamente, sentia um frio no estômago aumentar de modo gradativo. Aos poucos, as batidas do coração tornaram-se mais rápidas e um desconforto tomou conta de si. Era como se alguém a alertasse do perigo.
— Como existe um lugar tão escuro no Olimpo? Urgh! E que cheiro é esse?
Antes que pudesse falar qualquer outra coisa, a deusa da primavera acidentalmente esbarrou em um objeto. Quando ele se chocou contra o piso frio, o barulho dos estilhaços tomou conta do cômodo. Sua primeira reação foi fazer uma careta sem jeito e parar no mesmo instante.
— Merda. Onde ficam os interruptores dessa casa? — ela olhava, em vão, para todos os lados. Um risco de claridade ao longe, entretanto, acendeu uma leve esperança sobre . — Talvez eu consiga encontrar um interruptor ali perto.
Caminhou devagar até a porta de onde saía o feixe de luz, evitando pisar em qualquer caco que pudesse fazê-la escorregar, embora o barulho de vidro quebrando denunciasse o jeito atrapalhado. Em dois segundos de coragem insana e com o coração batendo mais rápido que as próprias asas de Hermes, colocou a mão sobre a madeira da porta e empurrou-a. O cômodo era um banheiro como outro qualquer, o que surpreendera a deusa, no entanto, foi uma banheira preenchida até a borda com um líquido avermelhado que parecia sangue puro. imediatamente colocou a mão sobre o nariz quando o cheiro forte de ferro invadiu sua respiração e teve que segurar a vontade de vomitar. Sentia que havia acabado de adentrar a cena de um assassinato. O ar parecia denso e pesado, quase fúnebre, ela diria, e aquilo lhe causava uma náusea que revirava seu estômago. Repentinamente, uma cabeça emergiu da água rúbea.
— PUTA QUE PARIU!
A deusa da primavera arregalou os olhos e colocou a mão sobre o peito, dando passos apressados para trás em puro desespero e chocando-se contra a parede.
— Você não é muito discreta, não? — a pessoa pronunciou-se, ácida, com uma voz familiar.
?
— Sim — ele respondeu, finalmente abrindo os olhos.
Agora que o líquido avermelhado escorria de seu rosto, pôde notar que sua usual face saudável parecia consumida pela mais pura exaustão. Ainda que o sorriso sarcástico peculiar, dessa vez menos intenso que o habitual, se mantivesse no semblante, o lábio levemente inchado somado ao corte no supercílio e às olheiras arroxeadas lhe concediam uma fisionomia de fraqueza e soturnez que causava certo alarde em , uma que ela nunca imaginaria ver justamente em .
— VOCÊ ESTÁ NADANDO EM SANGUE?
— Você pode, por favor, parar de gritar?
— Me desculpe. — A deusa finalmente voltou a sentir suas pernas e o coração começava a desacelerar, embora ainda não conseguisse se desencostar da parede ou sequer mover-se. — O que você está fazendo?
— Tomando banho. — finalmente se sentou no fundo banheira e passou as mãos pelo cabelo encharcado. — Por que você invadiu o meu apartamento?
— Você geralmente toma banho em sangue?
Sem responder, apenas revirou os olhos impaciente, levantou e saiu da banheira, o que fez corar e desviar o olhar para qualquer outro canto do cômodo de imediato. O deus, por outro lado, parecia completamente confortável com a presença dela ali, amarrando a toalha em sua cintura sem pressa alguma.
— Eu acho que vou esperar você ficar pronto lá na sala, ok?
— Sinta-se livre para esperar onde quiser, já que você já está confortável o suficiente para invadir a casa.
Assim que ele terminou de falar, a deusa da primavera parou seu olhar sobre e não pôde não ficar completamente aterrorizada com a imagem. Seu corpo carregava feridas e cortes que iam de lado a lado em seu torso, rasgando sua pele de modo brutal. Ela nunca havia visto machucados tão graves em sua vida. O sangue escorria em fios densos sobre sua pele, ainda que não parecesse se incomodar.
— Pelos deuses... — sussurrou, vidrada nas feridas e, agora, dando passos hesitantes até o deus, que franziu o cenho com a aproximação dela. — É o seu sangue. É o seu sangue na banheira. Precisamos ir para o hospital.
— Hospital? Hospitais são somente para as ninfas e para os guardiões. Deuses se curam rápido — deu uma risada debochada, obrigando a encará-lo com um semblante irritado. — São só cortezinhos.
— Não seja ridículo — a deusa balançou a cabeça em negação e encostou o dedo indicador levemente sobre o abdômen dele, enquanto ele mordia o lábio inferior para segurar o gemido de dor. — Sua barriga está rígida, isso deve estar doendo muito. Quem fez isso com você? Quem em sã consciência faria isso com você? Isso é desumano.
— Muito pelo contrário.
A voz terna de era quase capaz de atenuar qualquer austeridade que pudesse expressar. Ele manteve-se em silêncio por alguns longos segundos, analisando-a. Não se lembrava da última vez em que vira um semblante de preocupação dirigido para si e estranhou um pouco a afabilidade, estreitando os olhos.
— São só cortezinhos — repetiu, frio.
— Sua toalha está vermelha de tanto sangue que tem nela — retrucou, um pouco impaciente.
— Não se preocupe com isso.
— Você está falando sério? — Agora, a incredulidade no tom de voz da deusa foi impossível de se conter. — Se você não vai ao hospital, temos que fazer alguma coisa.
— Você veio aqui para me irritar? — trincou o maxilar, encarando-a veemente nos olhos.
— Se eu for ser sincera, eu vim aqui achando que eu teria um jantar agradável, mas, até agora, eu só tive que lidar com alguém sem noção.
— Isso é o que eu estou fazendo. Você acha que é a primeira vez que isso acontece? — apontou para a banheira ensanguentada. — Você é nova por aqui, ainda tem muito o que aprender.
— Por que é tão difícil para você aceitar ajuda?
— Eu sei me cuidar, não preciso de ajuda.
— Ninguém disse que você não sabe — pronunciou-se, irritada, e seu cabelo começou a crescer e flutuar aos poucos sem ela ao menos perceber, tornando-se coral. — Mas você não precisa ser grosso quando alguém lhe oferece ajuda. Aceitar não significa que você não sabe se cuidar. Você só está agindo como uma criança.
Logo que terminou de falar, ela engoliu em seco quando percebeu que a íris de agora estava tão vermelha quanto a água. Ela podia sentir a tensão que exalava dele, era quase palpável.
— Saia — o deus pediu com o único fio de paciência que ainda lhe restava. — Saia agora.
— Não — franziu o cenho e cruzou os braços.
Ela sabia que não deveria ter dito aquilo, muito menos com a convicção com a qual dissera. Conseguia sentir o sangue de pulsando cada vez mais rápido e seus machucados começavam a sangrar ainda mais. Foi preciso que pressionasse o maxilar para não ceder à vontade impetuosa de dar um passo para trás. Tanto pela natural e irritante gentileza que exigia o respeito pelos desejos de , quanto pelo medo que percorria suas veias ao encarar o deus daquele jeito, como se a qualquer instante ele pudesse parti-la ao meio.
— Não? — rangeu os dentes e veias escuras começaram a aparecer debaixo de seus olhos.
— Eu não vou lhe deixar assim.
— Então, você não me deixa escolha — ele encarou-a profundamente nos olhos.
No instante que dissera aquilo, uma dor aguda invadiu o corpo de . Ela sentia os ossos de sua costela trincando um a um só para se regenerarem no segundo seguinte e ele fazer tudo de novo. Um grunhido alto de dor foi inevitável e ela precisou recuar alguns passos para se apoiar no batente da porta. Já não conseguia permanecer de pé sozinha, estava fraca. Segurou a respiração enquanto sentia uma vontade enlouquecedora de implorar para que ele parasse, ainda que não fosse fazê-lo. Com certa dificuldade, escorregando aos poucos pelo batente e tentando evitar quaisquer lágrimas, que mesmo assim insistiam em cair, concentrou-se na figura de e grossos ramos de cipó começaram a surgir e se emaranhar sobre o torso dele.
— Isso é o máximo que você consegue? — sorriu, sarcástico. — Plantas?
Assim que ele terminou de falar, espinhos longos e afiados surgiram sobre o cipó, encravando em sua pele, o que o fez gemer de dor e cessar instantaneamente a dor de .
— Nunca mais faça isso comigo — a deusa falou, irritada e ofegante, observando encará-la com raiva.
Quando notou que ele não estava revidando, esforçando-se somente para se manter de pé, percebeu que o deus estava fraco demais para sequer fazer alguma coisa. Ela imediatamente fez a planta se desfazer e percebeu que perdia a consciência aos poucos.
— Não, não, não, não!
A deusa apressou-se para segurá-lo e se levantou correndo, a tempo de jogar seu corpo na frente do dele. Ela conseguiu abraçá-lo antes que ele caísse no chão, porém não aguentaria o peso sobre si por muito tempo.
— Eu não acredito que isso está acontecendo — falou, irritada, e respirou fundo. — Se você tivesse me ouvido, eu não precisaria lhe carregar até sua cama. Viu como você complica tudo com o seu orgulho?
Sentindo cada vez mais o peso do corpo sobre si, virou-se de costas com dificuldade para que pudesse carregá-lo. O vestido justo, cuja barra estava agora mergulhada em sangue, não ajudava com a tarefa difícil.
— Você deveria me agradecer por eu não estar lhe arrastando pelos pés.
Penosamente e com somente a luz do banheiro lhe guiando, carregou até seu quarto. Colocou-o com o maior cuidado que conseguiu sobre a cama, ainda com dificuldade, e precisou apoiar-se por alguns segundos na parede depois de ajeitá-lo ali. O ar que faltava em seus pulmões aos poucos voltava e a respiração estabelecia seu ritmo natural. Antes que finalmente desencostasse dali, percebeu o quanto parecia vulnerável deitado sobre os lençóis pretos e sem a postura defensiva que lhe era peculiar. O rosto estava pleno, sem o sorriso ludibriante ou a íris fatal, e os ombros leves, como quem não carrega culpa. Traços esculpidos como um verdadeiro deus. Lembrava-lhe até a figura de um anjo caído. Uma sensação estranha lhe invadiu o estômago quando se deu conta que o estudava cautelosamente e ela precisou balançar a cabeça em negação para fingir que seu coração não havia apertado.
Assim que voltou a pisar no corredor, as luzes da casa se acenderam. apenas franziu o cenho em pura confusão, questionando-se como o sistema elétrico daquela casa funcionava. Talvez ele tivesse vida própria. Ela virou-se para trás para checar se havia acordado com a claridade, mas ele sequer havia se mexido. A deusa da primavera apressou-se para ir até a cozinha, tentando ao máximo encontrar as coisas naquele apartamento desconhecido. Procurou por um vaso de planta que pudesse usar para crescer carqueja e babosa. Enfim, o pouco conhecimento que já havia adquirido com o estágio de Démeter seria útil. Não demorou muito para que ela retornasse ao quarto com um balde de água, compressas e as plantas. Os ferimentos levaram mais tempo do que ela previu para serem limpos, o que poderia ser explicado pelo toque delicado e com certa hesitação, evitando qualquer movimento mais brusco que pudesse machucá-lo ainda mais. Assim que colocou as folhas sobre os machucados, a deusa teve a leve impressão de ver franzir o cenho em incômodo, mas deu de ombros depois de fitá-lo por alguns segundos e não receber nenhuma reação.
Quando finalmente terminou de limpar tudo, respirou fundo e sentou-se devagar na poltrona que havia em frente à cama, sentindo o peso do cansaço cair sobre seus ombros. Um longo suspiro foi inevitável depois de um dia tão atarefado. Ela encarou em silêncio, acompanhando a respiração leve e compassada do deus no movimento repetitivo de subir e descer de seu peito, algo que a acolheu de maneira estranha. Era como se transmitisse uma calmaria incomum. Agradável. À medida que o tempo passava, seu corpo finalmente relaxava e ela se permitiu dormir ali mesmo.
Ainda não estava alerta o suficiente quando foi acordada por um barulho incessante de alguém batendo em uma porta, embora ela parecesse longe. Em outro cômodo. Em outro quarto. Longe da cama de , onde acordara sozinha.

Capítulo 7

Hades respirou fundo e voltou a encarar Perséfone, sentada ao seu lado na sala de reunião. Sua esposa não parecia expressar qualquer reação em seu semblante, embora ele soubesse o que se passava em sua mente. A deusa tocava o dedo levemente sobre a borda de sua xícara de café em um movimento repetitivo, encarando o líquido escuro enquanto divagava em seus pensamentos. As Parcas, por outro lado, pareciam muito mais tranquilas do que deveriam. Sentadas do outro lado da mesa, fitando os governantes do Submundo, a notícia que haviam acabado de dar já não era novidade havia dias. Estavam surpresas, no entanto, pela falta de palavras de Perséfone, que sempre parecia ter algum comentário interessante a acrescentar. O silêncio indicava uma reflexão além da que previram. Hades não se oporia a qualquer espera de tempo para que sua esposa se pronunciasse. Ele compreendia a sua necessidade de ponderar. Ele mesmo teria que tomar uma importante decisão mais à frente.
— E vocês conseguem me dizer quando? — Perséfone perguntou, sem tirar os olhos da xícara.
— Você sabe que oráculos não são tão precisos assim — Láquesis respondeu, séria.
— Eu sei que parece uma coisa ruim agora, mas será útil para vocês, acreditem. — Cloto levantou-se com calma, sendo acompanhada pelas irmãs.
— Como exatamente será útil? — Hades pronunciou-se, confuso, ainda que seu tom tenha sido tranquilo. — Damos conta do fluxo de mortes que recebemos.
— Não é por causa do fluxo — Átropos falou ao colocar sua cadeira de volta no lugar. As irmãs concordaram em não comentar sobre tudo o que viram para que o casal não tomasse decisões precipitadas. — Mas vocês não precisam se preocupar com isso. Não é como se pudessem mudar o que vai acontecer.
Assim que as Parcas deixaram Perséfone e Hades a sós na sala de reunião, a deusa encarou o rei do Submundo com certa preocupação em seu olhar, que foi prontamente entendida.
— Eu sei, coração — ele sorriu, fraco. — Eu sinto muito. Sei que você não queria que isso acontecesse.
—Temos que esconder isso de Zeus. Pelo menos, por alguns milênios.
— Você ouviu as Parcas. Os rumores sobre vão chegar muito antes de ela mesma saber que consegue fazer isso. Não temos como saber se isso vai começar amanhã.
— Zeus vai matá-la — Perséfone balançou a cabeça em negação e suspirou. — Pelo amor dos deuses, será Asclépio tudo de novo. Temos que falar com Deméter.
— Não acha que é melhor somente nós sabermos, por enquanto?
— Você não acha que Deméter vai fazer de tudo para manter viva na Terra?
— Coração, eu entendo que você tenha uma certa simpatia pela , mas ela não é filha da Deméter. Você é.
— Você tem um ponto. Devemos contar para ?
— Não vejo porque contar — Hades deu de ombros e levantou-se da cadeira. — Ele não está envolvido.
Perséfone limitou-se a assentir com a cabeça e levantar também, acompanhando seu marido até a porta. Antes que ele voltasse aos afazeres, a deusa parou em sua frente e ajeitou sua gravata, passando a mão delicadamente pelo tecido, assim que terminou. Hades apenas segurou o queixo de Perséfone para que pudesse encará-la nos olhos, como se dissesse que tudo ficaria bem.


, eu sei que você está aí! — Psique pronunciou-se, irritada, enquanto batia incessantemente à porta do apartamento. — Abre logo!
— Psique — Hermes sorriu, carinhoso, ao encontrá-la no corredor. Ainda estava na sua primeira tarefa do dia, então ainda não haviam atrasos que pudessem abalar seu habitual bom humor. — Também precisa falar com ?
— Não, eu preciso falar com a — ela respondeu, finalmente parando de bater à porta.
— Ela está aí? — A confusão do mensageiro foi imediata. — Achei que ela morasse com você.
— Ela mora, mas ela não voltou para casa ontem à noite. — Então, Psique virou sua cabeça em direção ao apartamento de novo. — E O NÃO QUER ABRIR ESSA PORTA!
— Isso me salva tempo, na verdade — Hermes sorriu, satisfeito. — Preciso entregar uma carta a ela.
— Você só vai conseguir fazer isso... QUANDO ELE PARAR DE ME IGNORAR!
— Você poderia, por favor, parar de gritar? — abriu a porta repentinamente, segurando um copo de café e com um semblante irritadiço, assustando os dois. — Não sei se notou, mas eu tenho vizinhos.
— Pelos deuses, que cara horrível — Psique fez uma careta de desgosto. — O que tem nesse café para você ficar assim?
— Hipocrisia — Hermes respondeu.
— Onde ela está? – Psique perguntou, impaciente, porém somente recebeu um olhar de tédio como resposta.
— Roupas amassadas... Expresso... — Hermes franziu o cenho ao analisar a imagem de em sua frente. — Cabelo bagunçado... Falando por favor às sete horas da manhã... Hm. — Então, o mensageiro abriu um sorriso dissimulado e cruzou os braços. — O encontro foi bom. Muito bom.
— Urgh, eu não acredito que recebi a benção da imortalidade para ouvir isso. — Psique segurou a ânsia de vômito.
— Não melhor que o meu, mas, ainda assim, muito bom — Hermes continuou.
— O que vocês estão fazendo aqui? — O humor sarcástico não permitia que tivesse paciência o suficiente para lidar com drama tão cedo pela manhã.
— Eu vim procurar a . Ela precisa estar na Terra em uma hora. — Psique checou seu relógio de pulso. A julgar pelo ombro tensionado, ela não estava nem um pouco confortável de estar ali. — E eu preciso ir, estou atrasada. Meu turno começa em quinze minutos.
— Eu acho que ela é responsável o suficiente para controlar os próprios horários — falou, ácido, e deu um gole em seu café, recebendo um olhar irritado de Psique.
— Eu espero que ela não se atrase — a mulher ergueu a sobrancelha, sugestiva. — Hera não vai gostar nem um pouco de saber que chegou atrasada no estágio da Deméter porque ela estava na sua casa. Se ela se atrasar, eu não vou poupar culpa sobre você.
Sem que qualquer outra palavra pudesse ser dita, Psique apressou-se a andar pelo corredor na intenção de sair dali o mais rápido possível. Hermes, apenas encarando a situação com atenção, restringiu-se a esperar que ela sumisse de vista para voltar a falar.
— Você sabe construir as suas amizades, não?
— Do que você precisa, Hermes? — perguntou, apontando com a cabeça para sala, em um convite implícito para que o amigo entrasse no apartamento.
— Entregar umas coisas. — O mensageiro sentou-se no sofá e começou a separar as cartas, jogando-as no estofado sem cerimônia alguma. — realmente está aqui?
Embora Hermes esperasse uma resposta, continuou apoiado no balcão da cozinha com uma face inexpressiva, denunciando que não iria tocar no assunto.
— Bom, se ela estiver... — Hermes voltou a falar. — Tenho uma carta a ela. Vou deixar junto com as suas. Se ela não estiver aqui, fica a seu cargo entregar.
— Não se preocupe. — A voz de obrigou ambos a olharem para o corredor, de onde ela vinha enquanto segurava os seus saltos nas mãos. — Ele não vai precisar me entregar.
O cabelo bagunçado e a face levemente inchada pela falta de sono não foram o suficiente para que ou Hermes deixassem de encarar a deusa da primavera com certa admiração. O encantamento, todavia, devia-se à sua natural aura acolhedora e terna e aos jeitos graciosos, que, naquele momento, pareciam exalar dela com certa distinção. apenas desviou o olhar para seu copo e deu o último gole em seu café. Hermes, por outro lado, sorriu abertamente e estendeu o envelope para , que não hesitou em abri-lo. Sabia exatamente do que se tratava.
— Hermes — ela chamou-o, ao mesmo tempo que terminava de ler as últimas linhas escritas —, você poderia avisar a Deméter que eu vou me atrasar por conta de uma reunião urgente com Hera?
— Claro — o mensageiro sorriu, prestativo, voltando a procurar as cartas de no meio das dezenas de envelopes.
— Você tem uma reunião com Hera? — perguntou, sério, ainda que estivesse minimamente curioso.
— Tenho — encarou-o com um leve sorriso divertido. — Você não sabia? Toda terça-feira nos reunimos para um chá de café-da-manhã e falamos mal de você.
— Pelo que eu saiba, você não tem o que falar mal de mim — sorriu, malicioso. — Pelo menos, foi isso que eu interpretei dos seus gemidos ontem à noite. — Hermes imediatamente ficou boquiaberto com a fala do outro deus e redirecionou seu olhar para .
— Oh. — A deusa assumiu sua melhor falsa expressão de vergonha, que logo deu espaço a um sorriso esperto. — Pobre, . Sonhando com as coisas que não pode ter.
— Então vocês não dormiram juntos? — Hermes franziu o cenho e recebeu o olhar dos outros dois sobre si. mantinha o semblante indiferente, porém parecia levemente confusa. — Quem é você? — o mensageiro perguntou, ao arregalar os olhos. — O que você fez com o ?
— Eu adoraria prolongar essa conversa, mas eu tenho uma reunião para comparecer. — A deusa começou a colocar seus saltos.
— Você vai assim? — Hermes apontou da cabeça aos pés dela. — Hera vai ter um ataque cardíaco.
olhou para a barra avermelhada com sangue seco de seu vestido branco e não pôde deixar de concordar com o mensageiro.
— Bom... — ela voltou a sorrir, gentil. — Podemos dar um jeito nisso.
Sem ao menos hesitar, aproveitou a fenda que Ártemis já havia feito e rasgou o vestido na altura de sua coxa, arrancando metade do tecido para fora e jogando-o na direção de , que o pegou no ar com prontidão, sem ao menos expressar qualquer surpresa ou desviar o olhar, como se já o esperasse. Um sorriso fascinado, ainda que discreto, foi inevitável enquanto ele a observava tentar desembaraçar o cabelo.
— Espero que tenham um bom dia — a deusa sorriu, terna, e caminhou até a porta. — Hermes, você está convidado para jantar lá em casa hoje à noite. Podemos conversar sobre seu encontro com calma. — O mensageiro apenas assentiu, animado, e falou algo que não conseguiu ouvir, mas que ela encarou como um gesto de confirmação. — , você também está convidado, se quiser jantar. Mas só avisando que os meus jantares realmente envolvem comida.
Antes de fechar a porta atrás de si, trocou um último olhar com , desviando-o rapidamente para a região de seu torso, agora coberto por uma camiseta preta, onde os ferimentos estavam. Ele imediatamente entendeu a mensagem e deu um pequeno sorriso de lado, assentindo com a cabeça apenas uma vez, como quem garante que está tudo bem.


— Pelos deuses — Hera colocou a mão na cintura e respirou fundo ao encarar dos pés à cabeça. — Você está positivamente medieval.
A deusa da primavera sorriu, sem graça, e manteve-se parada à porta de entrada do escritório de Hera. A julgar pelos braços cruzados e a impaciência clara em sua face, a deusa do casamento não parecia nada contente com a presença de , apesar de que não poderia deixar de admitir que cativara uma curiosidade desde que recebera a carta dela perguntando se poderiam conversar a sós. A verdade é que não esperava que nada de proveitoso fosse gerado daquilo que ela queria que fosse um breve diálogo, porém o assunto que estava por vir a deixaria inclinada ao interesse.
— O que aconteceu? — Hera perguntou com um sorriso satisfeito e levemente vil, desencostando seu quadril da mesa para voltar a sentar em sua cadeira. — Arranjou briga com o Cérbero? Ou você só tem um mau gosto para roupas mesmo?
— Não, eu... isso foi apenas um imprevisto — respondeu, ao fitar seus sapatos sujos de sangue, preocupada demais em analisá-los para reparar na referência desconhecida.
— Sente-se — Hera pediu, ao apontar para a cadeira do outro lado de sua mesa.
— Obrigada — sorriu, gentil, e andou com passos cautelosos. Temia que até o barulho de seu salto contra o chão pudesse enfurecer a deusa do casamento.
— A que devo o prazer de sua presença?
— Gostaria de falar sobre .
— Claro que gostaria. — O sorriso sarcástico e os cotovelos apoiados sob a mesa concediam certo ar de irritabilidade à Hera.
— Bom, primeiramente, gostaria de agradecer por me conceder uma reunião em tão curto prazo. — Ainda que Hera tenha apreciado a educação de , tudo que ela fez foi erguer uma das sobrancelhas, exigindo, de maneira implícita, que fosse direta ao ponto. — Entendo que você tenha certa preocupação em relação aos seus laços familiares e também entendo que eu pareço representar uma ameaça...
— Ameaça? — Hera franziu o cenho e encarou-a como se não a entendesse. — Por que você representaria uma ameaça para qualquer deus, querida? Não seja ridícula, você é a deusa da primavera. Não faria mal a uma folha sequer.
— É exatamente esse o ponto. Eu não tenho a intenção de machucar nada nem ninguém, sobretudo os desejos das outras pessoas. Eu acabei de chegar ao Olimpo. Ainda preciso de tempo para me adaptar e acho que a última coisa que procuro no momento é me envolver com outra pessoa, entende?
— Você chama o não envolvimento de sair em capas de revistas com manchetes de encontro? Bem incoerente essa sua definição, não concorda? — A deusa da primavera engoliu em seco com o questionamento de Hera. Embora ela soubesse que as notícias que circulavam não possuíam embasamento algum, não poderia deixar de admitir que, na perspectiva de qualquer outra pessoa, aquilo não soava como um descaso midiático. — A sua prioridade aqui no Olimpo sempre deve ser exercer seu papel de deusa da primavera.
— Certo — concordou, hesitante, e o semblante impaciente de Hera obrigou-a a ser mais objetiva. — Eu não pretendo me casar com , se é isso que lhe preocupa, mas...
— Oh, mas você não vai — Hera interrompeu-a com um sorriso irônico.
— Como eu estava dizendo — , mesmo que soubesse que continuar a falar não era sua melhor escolha, não conseguia deixar que sua gentileza não a guiasse —, sei que é algo que lhe preocupa, mas não acho que deveria. É só que... hm... talvez seja interessante não forçar a fazer algo que ele não queira.
A risada histérica de Hera não foi interpretada como um bom sinal por . Ela vinha carregada de incredulidade, graça e irritação, misturados em uma proporção que apenas servia para confirmar a frustração da deusa da primavera. De um segundo ao outro, Hera voltou a assumir o semblante sério e a risada cessou instantaneamente. Os longos cabelos dourados começavam a flutuar, contribuindo para o indício das mudanças repentinas de humor que tanto se atribuíam à rainha do Olimpo. apenas fechou a boca em uma linha, ponderando se não deveria ter sido inteiramente sincera.
— Sua criança néscia — Hera estreitou os olhos e fitou sua convidada com afinco. — Eu não sabia que audácia e desrespeito eram características de uma deusa da primavera.
— Desculpe, a intenção não era...
— Não me importa a sua intenção. Você está falando com a rainha do Olimpo. Deve tomar mais cuidado, porque seus atos geram consequências. Eu vou fingir que isso não aconteceu, porque você acabou de chegar aqui, mas saiba que eu não estou preocupada com nada que está relacionado ao e você não deveria se preocupar com os meus laços familiares. Como eu já lhe disse, o seu papel é ser deusa da primavera. Somente isso.
— Certo — sorriu, desconfortável.
— Agora, pode ir. — Hera voltou a encarar a papelada sobre sua mesa, com tédio. — Tenho certeza que Deméter está lhe esperando.
Embora não soubesse, sobretudo pelo comportamento inóspito de Hera, suas palavras haviam gerado certo conforto na deusa do casamento. Foi por esse motivo que, quando saiu da sala, Hera desviou rapidamente o olhar para a porta, abriu um pequeno sorriso e balançou a cabeça em negação. Não somente esperava que a nova deusa já não fosse interferir nos seus planos, mas também criava expectativas de que a personalidade forte não lhe permitisse traí-la com Zeus.
— Eu acho que aquele “é brincadeira, nós não podemos lhe obrigar a casar” não era brincadeira — falou, para si mesma, enquanto andava pela mansão de Hera, procurando a saída.


— Cheguei, cheguei! — Hermes fechou a porta do apartamento atrás de si. — Desculpe o atraso.
— Eu sei que você está cheio de coisas para fazer, mas eu não posso mais chegar atrasada ao trabalho.
Hécate estava estressada, algo que ela não conseguia esconder, embora tentasse. Aqueles que não a conheciam, ao presumir pelo terninho preto impecável, botas de saltos finíssimos, cabelo chanel afiado e face jovial, não conseguiriam distinguir, mas ela apresentava uma peculiaridade no tom de voz quase imperceptível, que Hermes particularmente notara. Ele, todavia, não a contestaria. Sabia o porquê de ela estar assim e sentia-se responsável por causar o estresse.
— Eu sei, me desculpe — o mensageiro sorriu, gentil, e aproximou-se da deusa. — Eu não consigo mais conciliar o meu trabalho com isso. E as pessoas estão começando a achar estranho eu estar fazendo tanta hora extra para Zeus e para Hades.
— Talvez, seja melhor nós pedirmos para Afrodite cuidar dele.
— Eu não sei se seria uma boa ideia — Hermes franziu o cenho e cruzou os braços. — Ela já tem três filhos pequenos para tomar conta.
— É verdade — Hécate suspirou e sentou-se no braço do sofá. — Mas eu não posso continuar escondendo o Dionísio aqui. Minha casa não é um lugar bom para um bebê e nós passamos o dia inteiro fora praticamente.
— Eu sei — o mensageiro passou a mão na nuca e desviou o olhar para o chão, pensando em alguma outra alternativa. — Eu não posso mantê-lo na minha casa, ela é muito próxima da mansão de Hera.
— Eu ainda acho que você deveria encarregar alguma ninfa para cuidar do Dionísio.
— Eu não posso fazer isso, Zeus pediu para que eu cuidasse dele e pediu que eu o mantivesse escondido de Hera.
— Zeus realmente deveria parar de gerar tantos filhos, se ele não vai cuidar deles — Hécate replicou, séria.
Hermes respirou fundo e encarou a deusa em sua frente. Sabia que ela estava o ajudando mais do que deveria e não gostaria que Hécate passasse por qualquer tipo de complicação. Cuidar de um filho bastardo de Zeus nunca estivera em seus planos até que o rei do Olimpo o pedisse, temendo que sua esposa matasse sua prole. Desde então, tivera que dividir sua extensa carga horária de trabalho com um plano de paternidade. Suas faltas de habilidades e experiências naturalmente o conduziram a um inicial fracasso que se refletiam em um bebê chorando o dia todo, fraldas mal colocadas e noites sem dormir. Hécate cruzara sua vida como uma salvação naquele momento. Ela encontrara-o passeando com um bebê pelo Submundo, o que não era algo comum, apesar de ser o único lugar que pudesse sair em público, sem que Hera fosse notificada. Soube, de imediato, que Dionísio deveria ser um filho adulterino de Zeus e prontamente ofereceu ajuda, o que não era algo de sua natureza, porém alguma coisa na figura de Hermes a inclinou a fazê-lo.
Antes que o mensageiro pudesse falar qualquer coisa, um choro de bebê obrigou-os a fitarem o andar de cima do loft da cobertura em que Hécate morava.
— Preciso trabalhar. — A deusa voltou seu olhar para Hermes. — Você cuida disso? Eu acho que é troca de fralda, porque eu já o alimentei.
— Claro — o mensageiro sorriu, gentil. — Nos vemos mais tarde.
— Precisamos arranjar um outro meio de cuidar dele — ela suspirou, cansada.
— Eu vou considerar a ideia da ninfa, eu prometo.


— Última aula da semana — Deméter sorriu, contente, ao fitar descendo do vagão do trem.
Os quatro dias que haviam passado tinham sido extremamente produtivos. Deméter ficara impressionada com a rapidez com a qual aprendia a controlar seus poderes. Ela evoluía de maneira mais vertiginosa que o planejado e aquilo significava menos trabalho para a deusa da agricultura, que estava responsável pela primavera desde que Perséfone se tornara rainha do Submundo, há centenas de anos. A alegria, no entanto, não era tão satisfatória quanto esperava. Os modos distintos de e Perséfone pareciam iluminar Deméter em relação ao seu desejo de manter a nova deusa da primavera na Terra. Não importava o quanto ela quisesse, as duas não eram a mesma pessoa. Nunca seriam e ela parecia tomar consciência disso apenas agora. Perséfone não somente mostrara certa inclinação à frivolidade, como era sua filha de sangue, o que gerava um sentimento de amor insubstituível, o qual não poderia suprir com a chegada da nova deusa. , ainda que também pudesse ser tão gentil e benevolente quanto Perséfone, não possuía traços insensíveis, embora soubesse ser astuta em defesa de suas virtudes.
— As ninfas das montanhas já estão lhe esperando — Deméter começou a andar enquanto falava, esperando que a acompanhasse, como sempre. — Hoje iremos aprender uma das coisas mais importantes para você. Seria impossível você levar a primavera para todos os lugares do mundo, se tivesse que florescer e crescer árvore por árvore, arbusto por arbusto e o resto da flora como estávamos praticando. Você, acompanhada das ninfas das montanhas, vai subir até o topo de uma das montanhas e de lá florescer tudo ao seu redor em um raio de duzentos metros para começarmos. Quando você estiver boa o suficiente, vai conseguir fazer isso dos cumes mais elevados e sem precisar ver a paisagem para quilômetros de distância. Isso vai ajudar bastante nas suas tarefas.
— Como, exatamente, eu irei fazer isso para todo o terreno em um raio de duzentos metros? — perguntou, distraída, observando a paisagem que, agora, já lhe era familiar dos campos floridos.
— Concentre-se, querida — Deméter abriu um sorriso erudito e desviou o olhar da trilha para encarar a deusa que a seguia. — Eu não estarei lá para lhe ajudar, mas acho que já está pronta para se virar sozinha. Sente-se no chão, feche os olhos, respire fundo e sinta o solo. Sinta as flores, sinta o vento, sinta as pequenas sementes sob a terra. Notifique as ninfas, se precisar de algo. Eu tenho uma reunião importante sobre um novo planejamento da produção da minha marca, então estarei no Olimpo.
— Certo.
— Ótimo. Continue a trilha e Phaedra a encontrará ao final. Boa sorte.
E, com apenas um breve aceno e um leve sorriso, Deméter começou a caminhar pela mata fechada com delicadeza, como se as árvores se distorcessem para abrirem-lhe caminho. apenas franziu o cenho com a cena, apesar de enxergar graciosidade naquilo. Balançou a cabeça como quem desperta de um devaneio e voltou a caminhar pela trilha que recebia alguns raios de sol, somente aqueles que as folhagens das árvores permitiam passar. Após poucos seis minutos de caminhada silenciosa e agradável, a deusa da primavera ouviu um barulho atípico, um que não se assemelhava nem um pouco com o canto dos pássaros ou do vento deslocando-se entre as folhas. parou, por alguns segundos, olhando, atenta, ao seu redor. Nada parecia fora do normal. Até o verde das folhagens estava certo. Quando foi continuar a andar, no entanto, um susto a fez segurar a respiração e arregalar os olhos. Seu corpo, completamente surpreso, não conseguiu se mexer. Como se o tempo passasse em câmera lenta, um gigantesco leão corria em sua frente, ainda que não em sua direção. No segundo seguinte, um homem jogou-se sobre o animal em um pulo feroz, com uma pupila felina tão letal, que poderia matar alguém apenas com um olhar. Eles sequer pareciam notar a presença da deusa estática e pálida dentre a paisagem e jurou que estava enlouquecendo. Um humano estrangulando um leão com suas próprias mãos. Com as próprias mãos. Aquilo não poderia ser real. Estava vidrada no que parecia ser uma cena de filme. E, em um piscar de olhos, eles haviam sumido de vista e a floresta parecia em paz novamente.


— Boa tarde, Mikaris — sorriu, simpática, ao entrar no elevador e encontrar sua colega de trabalho.
A deusa, apesar de sempre estar inclinada a pensar sob perspectivas positivas, não podia deixar de notar que o Submundo parecia causar um leve traço de mal humor sobre seus habitantes. Especialmente sobre a ninfa que se sentava à mesa em frente à sua e que foi encarregada de tirar as eventuais dúvidas de . Era nessas horas que sentia saudades de Medea. Ela poderia não aderir às palavras mais gentis, mas, pelo menos, expressava o que queria. Mikaris limitou-se a encarar a deusa dos pés à cabeça e voltar a fitar as portas automáticas fechando. A ninfa tinha certeza de que um ser tão delicado como não conseguiria durar em um lugar como o Submundo, ainda que ela não soubesse que o estágio fosse passageiro e sem possibilidades de efetivação se dependesse de Hera.
— Como foi o seu almoço? — A deusa da primavera voltou seu olhar para a mulher ao lado, na esperança de que uma conversa pudesse surgir e disfarçar a lentidão do cubículo.
— Satisfatório. Me alimentei das almas perdidas que vagam à beira do rio Estige.
— Sério? — arregalou os olhos.
— Claro que não — a ninfa franziu o cenho e fitou a deusa. — Eu comi uma salada com as meninas do vigésimo terceiro andar.
— Oh, ainda não estou acostumada com o Submundo.
— Percebe-se. É por isso que você vem vestida assim? — Mikaris apontou para o vestido branco e o salto alto colorido, com um olhar julgador evidente.
Foi instintivo que olhasse para baixo, analisando suas roupas e depois desviasse o olhar para a ninfa, que usava um vestido curto preto justo ao corpo, com mangas longas e scarpins da mesma cor.
— Isso é tão... — Mikares continuou a falar enquanto as portas abriam. — Claro. E de séculos atrás.
— Eu acho bonito — interveio com a usual expressão séria, parado em frente ao elevador com as mãos no bolso da calça social.
Sem saber como reagir, Mikaris apenas ficou levemente pálida com a presença do deus e manteve-se estática, parte por causa da vergonha e parte por causa da beleza ameaçadora. Era muito difícil encontrá-lo vagando fora de seu andar e era ainda mais difícil saber como se comportar diante do que seria o deus mais desejado do Submundo. encarava-a de maneira inexpressiva, ela encarava-o em choque e entreolhava ambos. A deusa, que ficou sem graça com a situação, tentou cortar o silêncio.
sorriu, gentil, e ele imediatamente desviou o seu olhar para ela. — Como você está?
— Não há necessidade para conversa, eu sei que você só está me perguntando por educação — o deus ergueu a sobrancelha e revirou os olhos.
— Se eu não estivesse interessada na resposta, eu não teria perguntado, não acha?
— Sua natureza é bondosa demais — ele retrucou.
— Sua natureza é desconfiada demais — a deusa inclinou a cabeça em falsa ingenuidade.
estreitou os olhos, ficou quieto por alguns segundos e, logo depois, se virou em direção à Mikaris, que continuava parada ao encarar os dois.
— Você não está atrasada para o seu turno? — A voz sóbria dele a fez engolir em seco e assentir.
— Sim, claro. — A ninfa apressou-se a sair do elevador. — Desculpe.
— Eu deveria ir também — sorriu, cortês, e deu um passo em direção ao corredor.
— Você vem comigo.
— Desculpe, o que disse?
Antes que ele respondesse, um barulho agudo anunciou a partida do elevador e segurou firmemente pela cintura e puxou-a para dentro de novo para que a porta não fechasse sobre ela, o que fez seu corpo colar ao dele. A deusa, um pouco desnorteada pela proximidade, colocou as mãos sobre o torso dele em reflexo e corou ao sentir o calor que ele naturalmente exalava. Ela estava perto demais de e aquilo lhe causava uma sensação estranha, como de perigo iminente. O deus parecia tão ocupado em analisar os detalhes de seu rosto com um semblante intrigado que somente aos poucos soltou as mãos de sua cintura e se afastou. Ao contrário de , ele não parecia incomodado, apenas levemente confuso. Balançou a cabeça para voltar à realidade, engoliu em seco e apertou um dos botões do painel. Quando o elevador começou a subir, colocou as mãos nos bolsos da calça e voltou a falar
— Parte do seu estágio aqui é conhecer como as coisas funcionam no Submundo. Hoje eu estou responsável pelos julgamentos finais e você vai observá-los.
— Julgamentos finais? — perguntou, confusa.
— É quando decidimos se os mortos vão para os Campos Asfódelos, para os Campos de Punição do Tártaro ou para os Pomares de Elísio. O primeiro pertence às almas que não são virtuosas nem más, o segundo, às almas que são más e, o terceiro, às almas que são virtuosas. Há as exceções, que são as pessoas de feitos tão grandiosos que se tornam dignas da eternidade no Olimpo.
— Eu não acho que você consiga julgar as pessoas sem ser tendencioso.
, pelo canto do olho, observou por alguns breves segundos antes de voltar a falar.
— Você é muito nova para se expressar com tanta certeza.
— Isso significa que você acha que sempre faz a melhor escolha?
— Imagine um humano apaixonado por outro. O quão longe ele pode ir em nome do amor?
— O quanto a consciência dele permitir, eu acho — franziu o cenho com a pergunta.
— Agora, imagine o oposto, um humano que odeia um outro. O quão longe ele pode ir em nome da vingança? O que torna os atos justificáveis? Ele também pode ir tão longe quanto a consciência dele permitir?
Antes que pudesse responder, as portas do elevador se abriram e começou a andar, passando por um vasto hall com sofás e um balcão de recepção e adentrando um corredor preenchido por salas de reuniões com paredes de vidro. A deusa, ainda levemente confusa, seguia-o em seu encalço.
— Eu não sei, .
— Verdadeiro ou falso? — O deus parou em frente à porta de seu escritório. — Tudo é justo na guerra entre o amor e o ódio.
— Falso — rebateu com convicção.
— É por isso que quem faz o trabalho de julgar sou eu e não você — levantou uma sobrancelha acompanhado de um sorriso sarcástico característico. — Já esteve apaixonada?
— Hm... Creio que não.
— Já odiou alguém?
— Não, mas...
— Então, você não pode se expressar com tanta certeza quando carece desses sentimentos.
— Você acredita que tudo é justo nessa guerra? — franziu o cenho e acompanhou-o ao entrar no espaçoso escritório, intrigada demais para sequer analisar a frivolidade da decoração.
— Não. — encostou seu quadril sobre a mesa, cruzou os braços e encarou-a nos olhos. — Eu não acredito que tudo é justo, mas eu acredito no sofrimento. Ninguém o quer, então faremos todo o cabível para que ele cesse, não acha? E eu também acredito no prazer. Dois sentimentos que estão muito presentes na guerra do amor e do ódio.
— Vamos falar de Apolo e Dafne — ergueu a sobrancelha, sugestiva, e assentiu. — Você acha justo que Dafne tenha tido que se transformar em um loureiro para evitar Apolo?
— Não, mas há a condição de que ela estava sob o efeito da flecha de chumbo de Eros.
— Então, como você a julgaria, sabendo que ela privou Apolo de seu afeto, de seu prazer e de sua felicidade, sabendo que ela tinha consciência de que Apolo estava perdidamente apaixonado por ela e, por consequência, sua transformação lhe causaria dor e sofrimento pela eternidade?
— Eu a encaminharia para os Campos Asfódelos, se ela não tivesse qualquer outro ato vil ou notável em seu histórico. Não somente foi Zeus quem obrigou Eros a atirar a flecha, como eu também a estaria libertando da agonia de uma perseguição indesejada.
— Mas você tem o poder de mandá-la de volta ao Olimpo e acabar com a agonia eterna de Apolo. Então não acha que isso seria uma escolha injusta, mas, dessa vez, para Apolo?
— Meu papel é condenar os mortos, não agradar aos vivos.
— E se Apolo morresse, você o mandaria para o Tártaro por ter amado demais? Você se sentiria julgado de maneira justa, se estivesse no lugar de Apolo?
— Para começo de conversa, eu não iria lhe importunar como o imbecil do Apolo fez com a Dafne — proferiu as palavras com rapidez, sem ao menos ter tempo de filtrar os pensamentos. — Se você não estivesse interessada, isso seria problema meu. Não faz sentido eu causar repúdio em alguém que eu amo, isso não só lhe machucaria, como me machucaria por estar lhe incomodando, ainda mais se chegasse ao ponto de você suplicar a Zeus para que... — antes que pudesse continuar, franziu o cenho e pareceu criar consciência do que dizia. engoliu em seco e desviou o olhar para a janela. — Foi um exemplo hipotético. Usar você nesse contexto foi só um exemplo hipo...
— Pew, pew, pew! — Hermes invadiu o escritório de com Eros em seu encalço. Ambos usavam óculos escuros e não pareceram notar de imediato a presença de . — Tirem os diabéticos da sala, porque o docinho chegou.
— Pelos deuses, quem foi o sortudo que passou por essa sala? — o cupido abriu um sorriso dissimulado. — Essa pessoa está positivamente apaixonada. Diagnóstico do próprio Doutor Amor aqui. Vocês conseguem sentir o cheiro de paixão no ar? Quase tão bom quanto muffins saindo direto do... ?
? — Hermes repetiu, confuso, e escorregou os óculos sobre o nariz para poder enxergar melhor. — ! Você estava certo, Eros, bem que eu senti um cheiro de... amor da minha vida — o mensageiro abriu um sorriso alegre e passou seu braço sobre os ombros da deusa, claramente animado com sua presença. Ela sempre encarava os gestos de Hermes com muita simpatia. A aura afável e o habitual bom-humor tornavam o amigo uma ótima companhia em meio ao caos do Olimpo.
— Como vocês estão? — perguntou, gentil.
— A... — Eros encarou Hermes com animação.
— Ni... — o mensageiro levantou os braços.
— Mados! — o cupido finalizou com um grande sorriso e uma pose que fez rir.
— O que você está fazendo aqui? — Hermes perguntou, confuso, para a deusa.
— O que vocês estão fazendo aqui? — manteve a expressão séria.
O mensageiro não conteve a risada escandalosa, apoiando-se nos joelhos, enquanto tentava resgatar o ar em seus pulmões. não entendia o que estava acontecendo, assim como , e Eros parecia mais preocupado em achar uma posição confortável no grande sofá preto de couro do que em prestar atenção no diálogo.
— Eu adoro o seu humor, cara. — Hermes endireitou a postura e voltou a encarar . — Não sei como você consegue se manter tão sério enquanto faz piadas.
apenas franziu o cenho em resposta. O amigo conhecia-o há centenas de anos. Embora não se pudesse dizer que o deus do sofrimento e do prazer fosse o ser mais comunicativo do universo, não era possível que o mensageiro acreditasse nas próprias palavras.
— Quais são os planos para hoje? — perguntou, entusiasmada.
— Fórmula 1. — Eros voltou a se pronunciar e começou a revezar falas com Hermes.
— GP Itália.
— Melhores lugares da casa.
— Acesso aos bastidores pós corrida.
— Com direito a open de drinks.
— Belas mulheres.
— Um verdadeiro...
— Paraíso — Hermes terminou a frase do cupido e começou a fazer uma pequena dança em comemoração.
— Não vai rolar — ergueu uma sobrancelha.
— Mas você disse que ia — Eros contestou com sua melhor voz de chantagem emocional, que não foi o suficiente para comover o amigo.
— Eu tenho trabalho a fazer. — desencostou-se da mesa para pegar alguns arquivos separados sobre ela.
— Mande todos para o Tártaro de uma vez. Ninguém é genuinamente bom e não egoísta. — Eros deu de ombros.
— E pensar que é você quem distribui amor no mundo — sorriu, esperta, e recebeu um olhar divertido do cupido como resposta.
— Você é sortuda por já não precisar da minha ajuda nesse quesito — ele deu uma piscadinha e a deusa franziu a testa.
— Você está apaixonada e não me contou? — Hermes ficou boquiaberto.
— Do que você está falando? — perguntou, confusa, embora soubesse muito bem que Eros podia sentir o indício de borboletas em seu estômago, cuja existência ela se recusava a reconhecer.
— Sim, Eros — falou, sarcástico. — Do que você está falando?
— Eu... Er... Você não precisa da minha ajuda, porque... porque você é perfeita. Isso, perfeita. Você terá qualquer um que quiser.
— Hmm, isso está em um oráculo? — Hermes perguntou com a curiosidade inocente de uma criança.
— Não precisamos de um oráculo para ter certeza disso. — Eros apontou para . — Olhe só para essa obra de arte. Ela dá conta por si só.
O assentir de cabeça do mensageiro em concordância irritou e ele imediatamente fechou o arquivo em suas mãos, enrijecendo os ombros e estreitando os olhos. Embora encarasse a presença dos dois em seu escritório como um milagre pontual, como um tiro certeiro para lhe salvar de uma situação desagradável, tinha certeza de que a natureza sincera de Eros iria lhe causar algum problema e Hermes não deixaria o cômodo até obter a história completa, algo que não estava disposto a dar nem sob ordens de Zeus. Já havia sido um grande passo aceitar aquela sensação estúpida que crescia em seu peito, não estava disposto a ir além. Estava convencido de que era efêmero e definitivamente irritante.
— Obrigada, eu acho — sorriu, gentil, e colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha, chamando a atenção de todos. — Eu imagino que seja uma oportunidade rara, então. , quer que eu fale com alguém para ver se consigo arranjar um substituto para você?
— Ótima ideia — Hermes proferiu, radiante.
— Por mais que você trabalhe aqui, não é sua responsabilidade fazer isso — respondeu, sério, e voltou a encarar a papelada em suas mãos. — E não seria necessário, porque eu não vou. Como eu já havia dito, eu tenho trabalho a fazer.
Eros bufou, derrotado, inclinando a cabeça para trás, e Hermes fez um pequeno barulho de decepção, que foi baixo, mas não o suficiente para passar despercebido por .
— Urgh, você costumava ser mais legal — Eros murmurou, apesar de saber que somente havia dito aquilo para tentar convencê-lo a ir. — Por que você resolveu começar a fazer a coisa certa só agora que a chegou?
— Se vocês não têm assuntos ligados ao meu trabalho para acrescentarem — falou, sem desviar o olhar dos documentos —, peço que se retirem, por gentileza.
— Por gentileza? — Hermes sorriu, divertido, e encarou a deusa de relance. — Que cavalheiro. Vamos, Eros, vamos voltar ao trabalho.
esperou que Hermes e Eros fechassem a porta de vidro do escritório atrás de si para se aproximar de , em passos silenciosos, e abrir um sorriso curioso, apoiando-se devagar na mesa.
— Por que você não foi?
— Porque eu preciso fazer o meu trabalho. As almas não vão ser encaminhadas sem alguém para julgá-las.
— Sério? — ela perguntou em um falso tom de surpresa e logo depois colocou a mão no queixo. — Mas Perséfone não estava livre hoje?
— Como você sabe disso? — imediatamente desviou o olhar dos papéis para encarar , o que o deixou surpreso por causa da proximidade inesperada.
— Como você mesmo disse, eu trabalho aqui, .

Capítulo 8

Hera descera à Terra para falar com Hélio. A verdade era que, todas as vezes que precisava fazê-lo, sempre havia um apelo à tensão. Como um constante vigilante, Hélio possuía informações privilegiadas sobre os acontecimentos mundanos. Dar a volta no planeta em apenas um dia em infinitas repetições proporcionava-lhe os olhos que alguém jamais teria. Todo canto que a luz tocava era comtemplado pelo deus do sol.
Hera, consciente da vastidão de segredos, eventualmente recorria a Hélio, sobretudo para saber sobre as proles bastardas que Zeus tentava esconder dela. O desconforto, no entanto, era inevitável, pois Hélio e Hera não cativavam uma relação aprazível. Havia uma antipatia implícita que tecia certa hostilidade entre ambos, ainda que o deus atendesse aos desejos da rainha do Olimpo, algo que não poderia ser negado nem se quisesse.
— Hélio — a deusa cumprimentou-o, séria.
— Hera — ele assentiu a cabeça com uma expressão mais austera que a que lhe era peculiar.
— Eu preciso de uma informação.
— Diga-me o que precisa e eu lhe direi se posso ajudá-la.
— Zeus teve mais uma prole execrável com uma... humana — Hera assumiu um semblante de desgosto. Odiava ter que pronunciar aquelas palavras para qualquer pessoa, principalmente para si mesma. — Ele me contou no dia da nossa comemoração centenária de casamento, acredita? Disse que havia dado um jeito nisso há alguns dias, mas meu marido não é capaz de fazer as coisas com competência, você sabe, e os olimpianos vão ficar sabendo de mais uma das traições. Antes que isso aconteça, eu preciso achar essa criança para evitar qualquer comprovação desse boato. Onde ela está?
Hélio franziu o cenho e respirou fundo. Embora não gostasse da personalidade instável de Hera ou de seu abuso de poder, seria hipocrisia dizer que parte de si não sentia compaixão pela figura ressentida da rainha. A quantidade de rumores que se tornavam verdades em relação ao matrimônio de Hera era ofensiva, ainda mais com ela sendo a própria deusa do casamento.
— Zeus gerou um fruto da relação com a humana Sêmele. Desde que o bebê nasceu, há duas semanas, eu não os vi mais.
— Eles simplesmente desapareceram?
— A não ser que estejam vivendo somente à noite, creio que você deve checar a lista de mortos do Submundo.
— Zeus não mataria o próprio filho em vão, muito menos sua amante — Hera bufou, irritada, e passou a mão entre seus longos fios de cabelo dourados.
— Talvez o reino das águas? — Hélio sugeriu, cansado.
Nutrir as hipóteses da rainha do Olimpo não estava na sua lista de afazeres e atrasava o deus em relação ao seu trabalho, algo que exigia extrema pontualidade para a vida dos humanos. Como qualquer outro ser lúcido, no entanto, não se permitiria ir contra às vontades de Hera.
— Pelo bem do idiota do meu marido, eu espero que ele esteja lá.


— Isso é exatamente o que eu precisava — respirou fundo e manteve-se de olhos fechados.
Uma das coisas que ela mais gostava no Olimpo era a acolhedora sensação do sol batendo sobre seu corpo. Embora fosse dia até de noite, aquilo estranhamente não a incomodava como ela achou que iria. A temperatura era sempre agradável, nada muito quente ou muito frio, e já havia se acostumado com a luminosidade constante desde que chegara, algo que parecia contribuir para o bom humor dos olimpianos. Deitada sobre a grama do parque, o ar puro e o calor do sol a mergulhavam em uma tranquilidade que há muito tempo não sentia. Psique, ao seu lado, ao som de pássaros cantando e crianças correndo ao fundo, quase dormia.
— O que aconteceu com o sol?
franziu o cenho com a pergunta de Psique e abriu os olhos, somente para se deparar com a figura de Hermes voando sobre sua cabeça, deitado sobre o ar de barriga para baixo, com suas belas asas de plumagem branca.
— Que coincidência — o mensageiro sorriu, simpático. — Eu não sabia que vocês frequentavam o parque domingo de manhã.
— Você não deveria estar no centro de treinamento? — Psique perguntou, confusa, e sentou-se enquanto Hermes se colocava de pé novamente.
— Me reerguer dos tombos da minha vida amorosa já é o suficiente para meu físico — ele piscou, divertido. — Mas, falando sério, eu deveria estar, muito bem colocado.
— Como foi seu segundo encontro com Celene ontem à noite? — a deusa da primavera perguntou, curiosa, e abriu um sorriso ao perceber a expressão dissimulada em Hermes.
— Você sabe que foi bom.
— Vocês são um casal agora? — Psique pareceu interessada na conversa.
— Não, eu estou dormindo com outra pessoa também — o mensageiro deu de ombros e ergueu as sobrancelhas. Hermes falava tanto sobre Celene nos dias que jantavam juntos que ela sequer imaginou a possibilidade de haver outra pessoa envolvida. — E não se preocupe — ele voltou a falar assim que Psique abriu a boca para intervir —, eu avisei que estou vendo mais alguém. Agora, vamos falar do que realmente importa. — Hermes mostrou a capa da revista que segurava e apontou para uma foto de , que arregalou os olhos ao finalmente se reconhecer. — Eu e a imprensa queremos saber quando o casal mais queridinho do Olimpo vai sair de novo. Nós queremos mais informações, por favor.
— Urgh, eu não aguento mais os paparazzi indo até lá em casa na hora do almoço — Psique grunhiu, irritada. — Sorte a sua que você almoça no Submundo nos dias úteis. A calçada fica lotada, é tão insuportável que parece até o quintal de Hades.
— Você sabe que o encontro foi só uma vez e que não foi facultativo, Hermes — pegou a revista para verificar o que haviam escrito sobre ela na matéria.
— Enfim... — ele falou, com o sorriso simpático. — Nós trouxemos nosso café da manhã e tivemos...
— VOCÊ TEVE! — Eros gritou ao fundo, claramente irritado, e desviou seu olhar para ele, que estava de braços cruzados a dez metros de distância. — VOCÊ QUEM TEVE!
Eu tive a ideia de convidar vocês para se juntar a nós.
— Adoraríamos! — respondeu, já se levantando, e Psique a encarou com seu melhor semblante de incredulidade.
— Não, nós não adoraríamos, estamos bem assim.
— Oh, por favor, Psique — Hermes lacrimejou em falsa tristeza para convencê-la. — Você sabe como nós...
— VOCÊ! — Eros interrompeu-o novamente.
— Você sabe como eu amo passar tempo com você.
— Mas é claro que vamos, seria grosseria recusarmos um convite tão gentil.
, de que lado você está? — Psique retrucou, impaciente.
— Do lado do amor — a deusa respondeu, com um sorriso divertido, enquanto Hermes fazia corações no ar com suas mãos.
— A gente ama o amor — o mensageiro sorriu e bateu sua mão na de .
— Urgh, tudo bem — Psique suspirou em derrota. — Mas vocês que se movam até aqui.
— VOCÊ ESTÁ FALANDO SÉRIO? — Eros começou a andar, irritado, até eles.
— Parece que eu estou brincando? — Psique ergueu uma sobrancelha e Hermes e se entreolharam. Nunca esperavam nenhum tipo de acidez vinda dela. — Vocês vêm até aqui ou nós não iremos.
— Nós, eu repito, nós lhe convidamos para comer a nossa comida e você ainda quer que nós mudemos de lugar? Qual o seu problema? — Eros não conseguia conter a indignação.
— Vamos deixar claro que a comida não é sua. A comida do Olimpo é de graça para todos, então, se você não pagou por ela, teoricamente ela é de todos.
— Mas fui eu quem buscou no mercado.
— Se essa for a lógica, toda a comida é de Deméter, porque é ela quem planta tudo.
— E é essa a companhia selvagem que você quer colocar perto de mim? — Eros encarou Hermes e abriu os braços.
— Rei do drama — Psique revirou os olhos.
sentiu uma necessidade imediata de intervir quando a íris do cupido se tornou afiada. A deusa não fazia ideia de que Psique e Eros sequer conseguiam ficar no mesmo ambiente. O jeito com o qual Psique falava sobre ele não parecia indicar nenhum tipo de remorso, o que claramente não era o caso. Hermes, um pouco frustrado, não conseguiu conter o desapontamento e suspirou devagar, cruzando os braços. O mensageiro cativava esperanças de que os reaproximar pouco a pouco seria suficiente para que o amor reatasse. Nunca achou que sentiria isso, mas preferia a época em que Eros passava menos tempo com ele para estar com Psique, porque, ao menos, tudo parecia estar em perfeita harmonia.
— Porque nós todos não nos movemos para outro lugar? — sugeriu.
— Por que, se todos já estamos aqui?
— Pelo amor dos deuses, Psique, você não vai morrer se der cinco passos para o lado — Eros respondeu, ainda irritado.
— Ok, utilize os seus poderes de deixar todos à sua volta calmos — Hermes pediu para , que franziu o cenho em resposta.
— Eu não sabia que eu conseguia fazer isso.
— Urgh, poderia estar aqui e incitar prazer nesses dois apaixonados em negação — o mensageiro passou a mão sobre a nuca. — Isso tudo se resolveria.
— Você não ousaria! — Psique e Eros falaram em uníssono e olharam para Hermes.
— Talvez nós possamos somente deitar na grama e apreciar o silêncio — sugeriu. — O que acham?
— Você acha que eu confio em ficar perto dela? — Eros passou as mãos pelo cabelo rosa com uma expressão de desespero. — Ela tentou me matar!
— Porque eu achei que você estava me colocando em cativeiro! — Psique levantou-se em um pulo.
— Mas eu não estava!
— Você chama aquilo de quê? De vida? Eu não podia nem sair de casa e ficava o dia inteiro sozinha. Durante um ano, Eros, um ano!
— Eu... Eu... Eu... URGH! EU NÃO LHE SUPORTO! POR QUE VOCÊ ME TRATA ASSIM?
O silêncio em seguida foi desconfortável. As pessoas ao redor imediatamente fitaram a cena. Psique encarava Eros com o cenho franzido e seus olhos estavam carregados pela mais pura tristeza. Eros, por outro lado, trazia raiva e alívio. Alívio por, enfim, ter expressado um pouco de seus sentimentos acumulados, raiva por achar que Psique pensava que ele faria qualquer coisa para machucá-la.
— Eu acho que fomos longe demais dessa vez — Hermes sussurrou e engoliu em seco.


— Eu sinto muito, querida irmã. — Deméter colocou seu copo d’água sobre a mesa. — Eu não sei.
Era notório que Hera estava consumida demais por seus problemas familiares. Os almoços entre ela, Deméter e Héstia costumavam ser regados a discussões sobre a escola de Héstia, acontecimentos recentes no Olimpo, que mantinham Deméter informada, e comentários sobre matrimônios que Hera planejava. Desta vez, o único assunto que a rainha do Olimpo trouxera estava relacionado a um tema que a deixava obcecada: as traições de Zeus. Deméter entendia a profundidade da dor que a infidelidade causava, não por tê-la experimentado, mas por reconhecer que Hera perdia sua autoridade e influência cada vez que Zeus cometia seus atos hediondos.
— Eu gostaria de poder ajudá-la, Hera — Héstia sorria, complacente. — Infelizmente, eu não possuo informações que sejam de grande valor.
— Ainda está por vir o dia em que uma prole de meu marido estúpido será minha ruína — Hera colocou a mão sobre a testa e assumiu seu melhor semblante dramático. — Vocês verão, Gaia lançará seu oráculo.
— Não se preocupe com isso antes do tempo. — Deméter respirou fundo. Sabia o que a irmã pretendia fazer. Hera poderia ser generosa, agradável, interessante; poderia ser tudo, menos prudente. — Mas não faça nada que possa causar arrependimento depois.
— Como se eu já não tivesse problemas o suficiente — a rainha do Olimpo revirou os olhos e bufou, passando a mão por seus belos cabelos dourados flutuantes.
— O que mais lhe aflige? — Héstia perguntou, genuinamente preocupada.
A amabilidade e a generosidade eram características inerentes à deusa da castidade e do lar. Seus cabelos laranjas traziam certa alegria à figura sempre serena e, ao corpo robusto, uma postura acolhedora imbatível. Héstia cativava cortesia em qualquer um que conhecesse, embora soubesse manter o comportamento sério devido ao caráter extremamente correto.
, me aflige — Hera respondeu, um pouco abatida.
— Por causa das manchetes, você diz? — Héstia franziu o cenho.
— Manchetes? — Deméter parecia confusa.
— Há rumores de que e estão saindo — a deusa da castidade respondeu. — Está em todos os jornais e revistas.
e ? — Deméter deu uma leve risada e tomou um gole de seu vinho. — Isso é algum tipo de piada?
— Ultrajante, não acha? — Hera revirou os olhos. Seus cabelos flutuando acima do ombro denunciavam sua insatisfação. — Pelo menos, ela me garantiu de que nada aconteceria.
— É inesperado, certamente, mas seria apenas a história se repetindo — Deméter deu de ombros, o que fez a rainha do Olimpo estreitar os olhos. Ela estranhou o fato de a irmã não ter expressado qualquer reação protetora em relação à .
— Você não acha que é uma má ideia? — Hera instigou, curiosa. — Quer dizer, você estaria tranquila em saber que a história de Hades e Perséfone aconteceria de novo?
— Não acho que seria exatamente a mesma história — Deméter encarou a irmã, desconfiada.
— Por que diz isso? — Héstia questionou-a.
— Por dois simples fatores — a deusa da agricultura voltou a falar. — Eu reconheço que grande parte das ações de Perséfone foram geradas por causa da minha criação severa, algo que não acontece com , pois eu já não tenho a necessidade de criar uma prole perfeita quando ela sequer é minha filha. O outro fator é que e Perséfone não são a mesma pessoa. — Hera ergueu as sobrancelhas quando notou que já não poderia contar com a estratégia de Deméter de manter a nova deusa na Terra. — Perséfone tinha uma pequena inclinação à perversidade, ainda que não notasse. Não à toa cometeu um ato de traição, mas também se encaixou bem nas tarefas do Submundo. — Deméter falava com certo pesar. Arrependia-se por não ter se comportado de maneira diferente na época. — possui um excelente coração. Existe um quê de generosidade romântica e um temperamento refinado que a tornam uma deusa rara. Quando eu digo mesma história, seria como o equilíbrio entre o bom e o mal, entende? Eu, particularmente, não esperava que e ela acabassem juntos, mas não fariam um casal ruim.
Hera não gostou nem um pouco das palavras que ouvira. Héstia, por outro lado, ficou ainda mais ansiosa para conhecer .
— E seus poderes? Como vai o desenvolvimento? — a deusa da castidade, perguntou animada.
— É realmente impressionante como ela evolui rápido — Deméter respondeu, satisfeita, mais orgulhosa com o resultado de seu trabalho do que com o esforço de .
— Você acha que ela já pode começar a trabalhar? — Hera sorriu, dissimulada. Adoraria se passasse os próximos três meses na Terra.
— Primeiro, acho que ela precisa aprender a voar. — Deméter recostou-se na cadeira, sempre com uma postura impecável.
— Ela ainda não sabe voar? — Hera franziu o cenho.
— Cada coisa no seu tempo — Héstia sorriu, terna.
— Poderíamos jogá-la de um penhasco para acelerar o processo — a rainha do Olimpo revirou os olhos.


— Você já inseriu no sistema os números dessa semana? — Mikaris perguntou, desinteressada, enquanto encarava a tela de seu computador. , na mesa em frente, apenas assentiu com a cabeça. — Ótimo.
A ninfa levantou-se e abriu uma das gavetas do armário de arquivos. Retirou uns documentos em pastas pretas, verificando se eram os corretos enquanto andava até a deusa da primavera. Sem cerimônia alguma, colocou-os sobre a mesa de e voltou até sua cadeira.
— Entregue isso para a secretária de . Andar noventa e sete.
— Certo. Volto em alguns minutos — sorriu, gentil, e não recebeu resposta, algo que ela já esperava depois de quase duas semanas trabalhando com a ninfa.
Não demorou muito para que o barulho agudo do elevador anunciasse sua chegada. Eram quatro e meia da tarde e os funcionários que ainda não haviam ido embora estavam se preparando para ir. Afinal, era o Inferno, por que Tártaros eles teriam funcionários aplicados que saíam na hora certa?
O hall do andar estava vazio, sem qualquer sinal de vida. atravessou-o com a companhia do barulho de seu salto contra o chão. Passou pelo corredor com as salas de reunião e quando finalmente chegou em frente ao escritório de , a mesa de sua secretária estava desocupada. Não havia nada além de um computador desligado sobre a superfície. Teria deixado os documentos ali mesmo, se não tivesse desviado o olhar para dentro da sala de por acaso. Ele parecia observar com atenção. Sentado, uma mão segurava um papel e a outra, o queixo. A deusa da primavera apenas apontou para os arquivos que tinha em mão e ele fez um gesto com a cabeça para que ela entrasse.
— Mikaris pediu para que eu entregasse isso para sua secretária. — fechou a pesada porta de vidro atrás de si e andou até a mesa de .
Quando ele se levantou, ela não conseguiu evitar desviar seu olhar para a blusa branca dele. Uma pequena mancha avermelhada marcava o tecido na altura do peito e ela imediatamente reconheceu o que poderia ser. acompanhou o olhar confuso de e encarou suas próprias roupas.
— Está tudo bem? — ela perguntou, preocupada.
Ele sabia que não sairia da sala sem uma boa explicação. A verdade era que já nem se oporia a dar uma. Aquela sensação estranha no estômago lhe dava liberdade e conforto suficiente para que ele quisesse falar. já havia aceitado que não conseguia ir contra suas vontades perto de , embora atribuísse esse sentimento patético à natural afabilidade que ela trazia consigo aonde quer que fosse.
— Sim — ele respondeu, tranquilo, e afastou sua cadeira. — Ainda tenho uns machucados muito profundos que estão demorando para cicatrizarem.
— Você acha que, se suturarmos, ajudaria?
O estranhamento causado pela preocupação genuína de o fez estreitar os olhos. Não sabia se algum dia iria se acostumar com as reações dela, principalmente com a gentileza suave.
— Eu não sei — respondeu, sincero. — Já era para eu estar curado no dia seguinte, não sei porque está demorando tanto dessa vez.
— Ajudaria se eu soubesse o que causou essas feridas — ergueu uma sobrancelha, sugestiva.
— Bom, parcialmente você sabe, mas não vamos falar sobre isso — disse em um tom sério e a deusa abriu seu sorriso mais gentil.
— Não se preocupe, quando estiver pronto e, se quiser conversar, eu estarei aqui. Agora me diga, você tem agulha e fio? Precisamos cuidar disso — ela apontou para a mancha vermelha na camisa.
— Perséfone deixou uma caixa de primeiros socorros ali — o deus apontou para um dos armários da estante que cobria toda a parede atrás de sua mesa. — Não sei o que tem dentro, mas, do jeito que ela é precavida, não duvido que tenha tudo o que precisa e o que não precisa também.
andou até o armário e retirou a caixa. tinha razão, pelo peso, deveria ter tudo e mais um pouco. Ela apoiou-a sobre a mesa e começou a procurar os objetos enquanto desabotoava a camisa com calma.
— Você sabe que não precisa fazer isso, não sabe?
— Você não aprendeu nada, não é mesmo? — perguntou, sem desviar o olhar da caixa.
— Aprendi que você sempre tem uma resposta na ponta da língua — ele deu um pequeno sorriso.
— Não custa nada receber ajuda dos outros — a deusa falou enquanto colocava as luvas de plástico. — Além do mais, não acho que seja muito agradável suturar a si mesmo.
não respondeu, apenas se limitou a observar o que fazia. Ela retirou os instrumentos esterilizados da embalagem. Estava tentando trabalhar com o que tinha, ainda que não fosse a pessoa mais experiente para isso. Quando finalmente terminou de preparar tudo, andou até , que estava parado de pé, em frente à sua cadeira, com as mãos nos bolsos e o semblante inabalável que lhe era peculiar. tentou achar alguma posição favorável para fazer a sutura. Depois de mais de quatro tentativas, apenas revirou os olhos e segurou firmemente pela cintura, colocando-a sentada sobre a mesa e se encaixou entre suas pernas. Não que o problema fosse achar uma posição, mas também não iria se opor a ficar assim,
A deusa da primavera, um pouco surpresa, encarou-o por alguns segundos, sem que qualquer um dos dois desviasse o olhar. Segundos que ela não conseguiu decifrar o que a íris de dizia. Balançou a cabeça quando voltou à realidade e engoliu em seco.
— Eu nunca fiz isso antes, então você vai ter que confiar em mim — falou, tranquila, enquanto limpava o ferimento, que era maior do que ela esperava.
— Você nunca fez isso antes? — arregalou os olhos e ela pôde ver seus ombros tensionados.
— Se você se estressar, só vai doer mais.
Para a surpresa de , sequer sentiu a agulha sobre sua pele. Manteve uma expressão serena e as mãos nos bolsos da calça. Aquela tranquilidade contribuiu para a concentração de , que tentava fazer a sutura com a maior delicadeza que conseguia.
— Eu... hm... Eu gostaria de... de lhe agradecer.
— Pelo que, exatamente? — a deusa perguntou, distraída.
— Por hoje e pelo dia do que seria nosso falso encontro. — respirou fundo antes de continuar. — Sei que não fui a pessoa mais educada do universo, então... hm... obrigado.
— É sempre um prazer ajudá-lo, sorriu, terna, fitou-o nos olhos rapidamente e voltou a suturá-lo enquanto ele observava sua face de concentração. — Pronto. Não ficou a sutura mais bonita do mundo, mas creio que vá ajudar.
deu um passo para trás e estendeu a mão para , que a segurou para sair da mesa.
— Hades e Perséfone farão uma festa nesse final de semana — o deus começou a vestir sua camisa de novo. — Tenho certeza de que eles vão lhe enviar o convite, mas gostaria de convidá-la pessoalmente.
— Eu adoraria ir — sorriu, alegre, e o gesto causou um frio da barriga do deus, sem ele sequer tentar reprimir.
Mikaris, encarando a cena do outro lado do vidro, arregalou os olhos. Subira para tentar descobrir porquê estava demorando tanto e se deparou com e ela em seu escritório, enquanto ele abotoava a camisa. Os jornais estavam prestes a vender uma ótima história.


— Psique! — abriu a porta, animada.
— Pelos deuses! — Psique jogou a revista que lia para o alto com o susto. — O que aconteceu?
— Adivinha só quem ela viu hoje? — Ártemis apareceu atrás da outra deusa na porta de entrada, com um sorriso animado. — Adônis!
— Sério? — Psique franziu o cenho. — Achei que Ares o tivesse matado.
— Conte a história — Ártemis pediu enquanto andava até o sofá para se juntar a Psique.
— Certo — fechou a porta e foi até a cozinha para pegar um copo d’água. — Hoje foi um dia tranquilo, um desses dias especiais que Deméter está com um humor excelente.
— Dias? No plural? — Psique franziu o cenho.
— Ela é legal — respondeu, com um sorriso divertido.
— Você é a deusa da primavera — Ártemis interveio, com tom de obviedade. — Você está naturalmente inclinada a ver o lado bom das pessoas.
— Sério? Até mesmo o de Hera? — perguntou e, logo em seguida, balançou a cabeça como quem volta à realidade. — Enfim, nesses dias, Deméter permite que eu pratique o que eu quiser. Hoje, em especial, era aniversário de uma das ninfas da terra, Athania, então eu e as outras ninfas resolvemos fazer uma pequena estufa de vidro para ela como presente.
— Tão fofo, não? — Ártemis fitava Psique com os olhos brilhando.
— Não plantamos nada dentro para que ela tivesse a oportunidade de escolher o que quisesse, mas, na entrada, eu resolvi crescer rosas — a deusa da primavera estreitou os olhos ao lembrar da cena. — Só que não importava quais flores eu quisesse, as únicas que cresciam eram anêmonas.
— Adônis! — Psique sorriu, alegre.
— Sim! — Ártemis abriu os braços em animação.
— E elas eram vermelhas, não? — Psique perguntou, curiosa.
— Todas elas, sem exceção — colocou a mão sobre o queixo. — E eu estranhamente não senti uma conexão forte com essas flores como sinto com o resto.
— Adônis! — Psique e Ártemis falaram em uníssono.
— As flores eram Adônis? — a deusa da primavera estava intrigada com toda a felicidade das duas.
— Sim — a deusa da caça sorriu. — Estou surpresa que você não conheça a história.
— Eu acho melhor você ficar surpresa quando ela conhecer alguma história — Psique acrescentou.
comentou sobre isso na comemoração centenária de Hera e de Zeus, se eu não me engano — pronunciou o nome do deus do prazer e do sofrimento e Psique respirou fundo. — Ele disse algo sobre Adônis ser o verdadeiro amor de Afrodite.
— Adônis era como vocês, nascido na Terra — Ártemis começou a falar. — Porém, não era um deus, apenas um simples humano. Ele era um excelente caçador, eu adorava observá-lo. Além de ser habilidoso, ele era tão bonito quanto um deus, apesar de não bonito o suficiente para Afrodite, mas, convenhamos, quem é?
— Mas tinha um bom coração, era nobre, genuíno — Psique continuou. — Um dia, na floresta, ele encontrou Afrodite e eles se apaixonaram perdidamente com um único olhar.
— Isso aconteceu porque uma flecha de Eros havia esbarrado na deusa do desejo antes. — Ártemis levantou o dedo indicador. — Mas... Eros não especificou por quem ele gostaria que sua mãe se apaixonasse, já que foi sem querer, o que abria a possibilidade de que Afrodite poderia se apaixonar por quem ela quisesse, o que torna o amor ainda mais puro.
— Mas em um fatídico dia — Psique arregalou os olhos —, um enorme javali feriu Adônis. Afrodite desceu até a Terra em uma batida da asa de Hermes, porém chegou tarde demais. Adônis estava quase morto.
— As lágrimas de Afrodite que se juntaram ao sangue dele caíram sobre a terra e anêmonas vermelhas surgiram sobre o chão. — Ártemis parecia mergulhada demais no relato, com uma expressão de choque. — E é por isso que Afrodite não desce mais à Terra na primavera.
— Temos quase certeza de que o javali era Ares — Psique ergueu uma das sobrancelhas. — Ele morre de ciúmes dos amantes de Afrodite, apesar de ele mesmo ser um.
— Quem mais poderia ser? — Ártemis sorriu, sarcástica. — Bom, agora que já contamos a história, vamos para o assunto pelo qual eu vim aqui em primeiro lugar. Vocês vão para a festa de Hades nesse final de semana? Eu acabei de comprar o vestido perfeito. Super curto, super justo e super brilhante. Fa-bu-lo-so.
— Acho que sim, me parece uma boa oportunidade para conhecer mais pessoas — deu de ombros.
— Espere aí — Psique estreitou os olhos. — Como você sabe que também foi convidada para a festa de Hades nesse final de semana, se o envelope do nosso convite está fechado em cima da ilha da cozinha?
me convidou pessoalmente há dois dias lá no estágio.
— Como é que vocês estão se tornando meu casal favorito? — Ártemiu sorriu, incrédula. — Eu nem gosto dele.
— Pelos bons deuses — Psique colocou a mão na testa e escorregou no sofá —, então quer dizer que as revistas podem estar certas.
— Do que você está falando? — franziu o cenho junto à Ártemis.
— Vocês não viram as notícias de hoje? — Psique pegou a revista que havia caído no chão. — Está em todo lugar.
— Eu estive um pouco ocupada esses dias por causa de uns projetos da escola de Héstia — a deusa da caça pegou o objeto que Psique estendia e começou a ler. — Como emagrecer para ficar tão linda quanto Afrodite? Esse artigo é péssimo, quando as pessoas vão entender que ser magra não significa ser bonita?
— Na outra página — Psique suspirou.
— O amor deixou de ser um mito? — Ártemis lia o artigo. — Nosso casal olimpiano preferido deixou muito claro que seu relacionamento já não é uma mera paixão e, muito menos, uma única noite de sexo. Em seu segundo encontro, e foram vistos nessa última quarta-feira, juntos, no escritório do nosso glorioso deus enquanto ele terminava de abotoar sua blusa. Será que a nova deusa da primavera vai ser a responsável por fechar a caixa de Pandora dele? , reconhecido por sua fama de sexo casual... Ok, acho que podemos parar por aqui.
— O QUÊ? — segurou a revista para terminar de ler a matéria. — Por que a mídia me odeia?
— Não duvido que Hera derrube a porta de entrada daqui a pouco. — Psique respirou fundo, olhando para o teto em desânimo.
— Pelos deuses, vocês fizeram sexo no escritório dele? — Ártemis sorriu, dissimulada. — Isso é tão uma cena de filme.
— Está mais para uma cena do meu pior pesadelo — Psique suspirou.
— Nada disso aqui é verdade! — a deusa da primavera arregalou os olhos.
— Então vocês não estavam juntos no escritório dele na quarta à noite? — Ártemis ergueu uma sobrancelha.
— Bom, sim, estávamos, mas...
— E ele estava sem camisa? — Psique interrompeu .
— Estava, mas...
— VOCÊS ESTÃO PLANEJANDO UM CASAMENTO? — a deusa da caça sorriu. — EU POSSO SER MADRINHA?
— Ninguém vai se casar! — colocou a mão na testa e seu cabelo começou a flutuar sobre seus ombros. — Eu estava o ajudando com um machucado, só isso.
— Nós deveríamos falar com Afrodite ou Eros. — Ártemis ignorou tudo o que havia dito e encarou Psique profundamente nos olhos. — Precisamos saber se o amor é genuíno.

Capítulo 9

As duas leves batidas na porta denunciavam a chegada de . A deusa engoliu em seco e passou as mãos, que suavam, sobre o vestido curto. Não sabia porque estava tão nervosa. Talvez, tenha sido a dramaticidade de Psique quando recebeu a carta de Hera exigindo um encontro imediato.
— Entre — a rainha olimpiana pediu.
— Com licença — abriu a porta e sorriu sem jeito. — Queria me ver?
Hera lentamente direcionou seu olhar para a deusa da primavera. Sua íris carregava um misto de irritação e tédio, o que fez se manter parada no mesmo lugar.
— Eu não acho que eu lhe mandaria uma carta exigindo um encontro urgente se não quisesse, não acha? — Hera respondeu, seca, e voltou a encarar os papéis em sua mesa.
— Certo.
— Olha só que engraçado... — ela deu uma risada contida. — Em um dia você tem a audácia de aparecer por aqui e me garantir que não vai se envolver com ninguém — então, seu tom de voz passou a ser debochado —, porque você acabou de chegar aqui e blá blá blá. E, uma semana depois, aparece nas capas de várias revistas em um segundo encontro. Com . Vamos falar sobre hipocrisia, hm?
— Hera, eu juro que não é o que parece.
— Sabe, governar o Olimpo significa tomar decisões que nem sempre queremos. — A deusa do casamento levantou-se e começou a andar a passos lentos até . — Isso inclui... atos de contenção, digamos assim. Você não quer que atos de contenção ocorram com você, não é mesmo? — Hera ficou boquiaberta, em falsa surpresa, e depois voltou a sorrir. — Ou, melhor, você não quer que atos de contenção ocorram com... Digamos... seus amigos, não é mesmo? Eu me pergunto se Hermes seria capaz de aguentar o castigo de Prometeu... ou se a doce Psique aguentaria o de Atlas.
— Não, por favor! — balançou a cabeça em negação para que Hera parasse. Apesar de não conhecer as histórias, entendia que aquilo não era um final feliz, muito pelo contrário. — Eles não têm nada a ver com isso.
— Ótimo, fico feliz que estejamos na mesma página, querida — a rainha ergueu a sobrancelha, sugestiva. — Os encontros precisam parar. Imediatamente.
— Não eram encontros, eu só fui entregar alguns arquivos para ele. — franziu o cenho quando Hera chegou perto demais. — Não aconteceu nada, eu nem sei como isso foi parar em uma revista.
A deusa do casamento estreitou os olhos e fitou durante alguns segundos, em silêncio. Nada no semblante confuso da nova deusa parecia denunciar uma mentira. Ela falava a verdade. De um instante a outro, Hera sorriu, satisfeita, e voltou a andar até sua mesa.
— Perfeito.
— Precisa de mais alguma coisa? — perguntou, hesitante.
— Já que você gentilmente insiste — Hera encostou o quadril sobre a mesa e cruzou os braços —, por que você não faz a manutenção do meu jardim? Tenho certeza de que ninguém mais no mundo seria melhor do que você para esse trabalho. Uma das ninfas lhe guiará até o jardim, já que da última vez você... se perdeu.
— Mas eu preciso voltar para o estágio no Sub...
— Isso é tudo — Hera interrompeu-a e fez um gesto com as mãos para que se retirasse.
Poucos minutos depois, a deusa da primavera já estava no jardim, sem nenhuma supervisão. O quintal daquela mansão era admirável, por falta de palavras para descrevê-lo. Não lhe careciam belas fontes, pássaros, árvores, flores e pedras. Tornava-se quase um recanto espiritual de tão vasto e sereno. Talvez, afinal, aquilo nem fosse uma punição.
Distraída em cultivar astilbes lilases e mergulhada em seus próprios pensamentos, quase não percebeu as vozes não familiares ao fundo. A magia de somente se concentrar um pouco e ver as mais belas flores brotarem era surreal, o suficiente para esquecer os arredores. Ou, talvez, quase esquecer. Quando voltou à realidade, as vozes pareciam ainda mais evidentes, então balançou a cabeça e tentou voltar a se concentrar nos seus afazeres, porém a curiosidade pulsava em seus ossos. Tinha que ouvir o que estava sendo dito.
Odiava como todos os seus sentimentos ficavam à flor da pele no Olimpo. Cantarolou uma música para tentar focar, porém, ainda assim, não foi o suficiente e pegou-se andando devagar atrás dos altos arbustos do jardim. Assim que se deparou com Zeus, Atenas e Ares sentados em uma mesa embaixo de um guarda sol, arregalou os olhos e recuou para não ser vista.
— Você sabe como eu amo um jogo de estratégia, Ares — a deusa da sabedoria deu um gole em sua xícara de chá —, mas você precisa tomar mais cuidado. também sofre as consequências.
— Eu sei — o deus da guerra revirou os olhos e bufou. — Por que o filho de Perséfone e Hades tinha que estar relacionado ao sofrimento? Isso tira a graça dos meus genocídios.
— Nós podemos encarar isso com um moderador — Atenas sugeriu.
— Você está explorando as minhas belas criações, Ares? — Zeus deu uma leve risada.
— Você sabe como os humanos me divertem com suas suscetibilidades — o deus respondeu com um meio sorriso dissimulado.
— Não saia do controle — Zeus ergueu uma sobrancelha, apesar de não parecer muito preocupado. –— Toda vez que você exagera nas guerras, aparece com os machucados e a última coisa que eu quero é Perséfone no meu pé e Hera reclamando no meu ouvido o dia todo.
— Acho que vocês estão aflitos demais por nada — Ares revirou os olhos. — Hades passou por coisas piores e ainda está vivo, não está? A prole dele carrega o mesmo sangue. — Os olhos do deus da guerra brilharam. — O caos deve ser causado e ele tem que lidar com isso.
— Você é um caso perdido. — Atenas colocou a mão na testa.


— Se você vir algum paparazzi passando, você...
— Atropela ele e, se ele ainda estiver se mexendo, dá ré — Medea interrompeu Psique.
— Não! Por Héstia, o que você tem na cabeça?
— Quem teve a ideia de trazer essa idiota com a gente? — Ártemis bufou no banco de trás do carro.
— Vocês prometeram se comportar — Psique suspirou. Era a quarta vez em dois minutos que Ártemis e Medea se desentendiam e ela já estava arrependida de ter concordado em ir à festa. — Se você vir um paparazzi, me avise. Eles passaram a semana inteira tentando tirar fotos de .
— Oh, é bom vocês regularem isso. — Ártemis abriu um sorriso sem graça. — A última foto que imprimiram dela no jornal foi ela comendo cereal na cozinha. A colher estava literalmente prestes a entrar na boca dela. Vocês precisam começar a fechar a cortina.
-— Falando dela — Medea apertou a buzina do carro freneticamente —, cadê essa mulher? Eu não quero chegar atrasada!
— JÁ ESTAMOS ATRASADAS E A CULPA É SUA! — Ártemis enfiou sua cabeça entre os bancos da frente. — Foi você quem ficou falando para ela mudar de roupa e vetou os cinco primeiros vestidos!
— Não buzine, por favor, estamos tentando ser discretas — Psique acrescentou, ainda que soubesse que nenhuma das duas a ouviu.
— Mas é claro que eu vetei! — Medea encarou a deusa. — Para as festas ridículas de Hera, você tem que se vestir como se fosse ir a um funeral. Para as festas de Hades, você se veste como se realmente estivesse indo à uma festa. Precisamos fazer uma declaração com nossas roupas.
Embora Ártemis concordasse com o que a ninfa acabara de dizer, limitou-se a respirar fundo e cruzar os braços. Jamais concordaria com qualquer afirmação que saísse da boca da ninfa. Nem se estivesse certa. Não conseguia suportar a presença do ser que havia roubado o seu arco de prata, não importava quanto tempo já houvesse passado e nem se ela havia cumprido sua punição na Terra. Não era a mais complacente das deusas, tinha que admitir.
— Eu sei que combinamos paz — Psique interveio e olhou para Medea —, mas eu lhe aconselho a tomar cuidado com o jeito que você fala. Ártemis ainda é uma deusa.
— Desculpe — a ninfa revirou os olhos.
As três pareciam tão atentas à conversa que não notaram entrar no carro até ela fechar a porta.
— Esse é o único vestido que entram nas duas categorias que Medea pediu. — encarou sua roupa. — Muito justo e muito curto.
— Pelos deuses, você está maravilhosa! — Ártemis sorriu, encantada. — É coral como a cor do seu cabelo!
— O quê? — a ninfa perguntou, indignada. — O seu cabelo não é coral.
— Ele fica quando ela está sob influência de sentimentos extremos — a deusa da caça respondeu, sem desviar o olhar do vestido. Estava vidrada.
— Eu não sei por que eu ainda fico impressionada — Psique falou. — Você sempre se supera.
— Podemos ir? — Medea perguntou, apressada, já acelerando o carro.
— Sim, podemos. — sorriu.
— Não nos mate, de preferência — Ártemis acrescentou.
Embora a viagem tenha sido bem mais estressante do que planejara, por conta das discussões intermináveis de Ártemis e Medea, Psique limitou-se a ignorá-las e fitar a paisagem pela janela. Era muito raro ela sair do Olimpo, ainda mais para visitar o Submundo.

E era ainda mais raro ela esconder um segredo.

Não conseguia agir naturalmente nem se quisesse. Estava com medo que percebesse algo, agora que ela já estava acostumada com sua presença, com o seu jeito de ser. A deusa da primavera, entretanto, parecia concentrada demais em apaziguar as discussões para notar a ansiedade de Psique.
— Pelos deuses, se você quase subir na calçada mais uma vez, eu saio desse carro! — Ártemis gritou, extasiada.
— Pode sair — a ninfa revirou os olhos.
— Medea... — suspirou.
— Pode sair, porque já chegamos — Medea rangeu os dentes. — Como vocês são dramáticas, não me deixam nem terminar a frase.
— Terminar a frase, claro. — estreitou os olhos em sarcasmo.
— Já? — Psique piscou e pareceu voltar à realidade.
— Onde você estava com a cabeça? — Ártemis perguntou.
— Estava me perguntando se vai ter oblivium nessa festa.
— O que é oblivium? — franziu o cenho com o tom de voz preocupado de Psique.
— Oblivium é a melhor cura para a sua ressaca moral — Medea sorriu, maliciosa, enquanto saía do carro. — É uma bebida que lhe faz esquecer o passado.
— Todo o seu passado? — arregalou os olhos.
— Existem tipos de oblivium — Psique começou a explicar. — Para as almas no Submundo, é aquele que você esquece absolutamente tudo, até quem você é. O da festa de Hades é só para você não lembrar das coisas que você fez na noite anterior.
— E nós vamos deixar o oblivium totale bem longe da Psique — Ártemis falou.
— Foi só uma vez — Psique rebateu. — Você nunca esquece?
— Psique quase bebeu oblivium totale depois do incidente com Eros — Medea sussurrou para que somente pudesse ouvir enquanto entregava a chave do carro para o manobrista. — Mas só Hades sabe o que aconteceu direito. Eu acho que tem histórias que nós nunca saberemos.
A deusa da primavera tinha certeza de que a ninfa continuou falando, porém estava encantada demais com a vista para prestar atenção. Era contra toda a sua racionalidade acreditar que ainda não morava naquela bela casa. Sabia que Hades e Perséfone eram afortunados, afinal, eles governavam o Submundo. Só não sabia que aquilo refletiria tão bem em uma única construção de vidros espelhados sob um céu tão escuro e sem estrelas em contraste com as paredes pretas foscas que só eram notadas de relance. Plantas e luzes decoravam o que poderia ser considerado a primeira maravilha do mundo subterrâneo. Cascatas brilhantes de água desciam em fontes ornamentais perto da entrada e a maior porta que já vira na vida estava aberta, adornada por dois guardas olimpianos e dois garçons distribuindo champanhe.
— Isso é tão... — começou a falar sem saber para onde olhar.
— Deslumbrante — Ártemis completou. — Nunca achei que uma casa em um lugar tão fúnebre pudesse ser tão incrível como essa.
— Urgh, não acredito que a otária da Penélope está aqui — Medea revirou os olhos ao se deparar com a ninfa de pele azul clara na porta de entrada. — Onde fica o bar?
— Quem é Penélope? — perguntou, confusa, acompanhando o olhar da amiga.
— A secretária de Zeus — Medea respondeu com semblante de desgosto.
— Dessa vez, eu tenho que concordar com ela — Psique sussurrou enquanto já adentravam a casa. — Penélope não é o ser mais confiável do universo. Zeus trai Hera com ela quase todos os dias, é horrível.
— Eu nem sei como Hera e Penélope estão coexistindo no mesmo lugar — Medea acrescentou. — Bom, se precisar da minha presença, estarei no bar. A tequila me aguarda.
— Tudo bem, eu vou acompanhar... — parou de falar e franziu o cenho ao virar para o outro lado e perceber que Psique e Ártemis haviam sumido. — Talvez eu vá com vo... — a deusa voltou seu olhar para Medea, porém ela também havia desaparecido. — Para onde todas foram?
Verificando mais uma vez se reconhecia algum rosto por perto, suspirou e começou a andar, na esperança de encontrar alguém com quem pudesse conversar. Sabia que Hermes e Eros estavam lá, eles nunca perdiam uma festa e costumavam ser os primeiros a chegar. O problema seria achá-los, já que o local parecia estar lotado. passou por alguns cômodos, todos com uma decoração minimalista moderna e com pessoas rindo com seus copos nas mãos.
Uma sensação estranha invadiu-lhe o estômago depois de alguns minutos caminhando, como se a alertasse que algo ruim estava prestes a acontecer. Distraída com o desconforto, somente se localizou quando entrou em um cômodo e, do outro lado da sala, fitou e Hera conversando. Diga-se de passagem, nenhum dos dois parecia muito contente com o assunto da discussão, embora mantivessem posturas tranquilas. A deusa do casamento estava interessada em balançar suavemente seu Dry Martini e o deus mantinha o semblante sério.
— Ela tem uma personalidade forte, não acha? — Olhos de auroras boreais apareceram ao lado de . Hécate segurava uma taça de champanhe e vestia o seu usual terninho preto e botas de saltos altos finos, dessa vez, cintilantes. — Mas seus olhos agora carecem de todo aquele espírito. Daquele fogo que anuncia, ao mesmo tempo, a virtude e a sensatez.
— Hera, você diz? — fraziu o cenho e voltou a encarar , que a encarou de relance com sua íris frívola.
— Sim — Hécate assentiu com a cabeça. — E pensar que, antes de se casar com Zeus, ela parecia enxergar melhor.
— Então ela nem sempre foi assim?
— Homens — a deusa das bruxas sorriu, sarcástica. — Nossa maior fraqueza.
— Estamos falando de homens? — Afrodite apareceu, animada, e logo direcionou seu olhar para onde as outras duas deusas fitavam. — é tão bonito, não acha? Ele é tão bonito que poderia ser minha própria prole. Você deveria mandar uma garrafa de vinho para Perséfone e Hades, agradecendo-lhes pela vista.
— Nasceu com a beleza de um deus e uma lábia irresistível. — Hécate balançou lentamente a cabeça em negação. — Só Zeus sabe como ele faz isso.
— Irresistível? — franziu cenho ao pensar sobre como sempre agira de maneira irritadiça ou levemente orgulhosa, ainda que estivesse mais afável nas últimas vezes que o vira. — Eu não o descreveria desse jeito.
— Todos no Olimpo e fora dele o descreveriam assim — Hécate sorriu, sugestiva.
— Não se preocupe, querida — Afrodite jogou seus longos cabelos acobreados acima dos ombros e jurou que harpas soaram ao fundo —, você vai concordar daqui a pouco. Ainda mais com essas borboletas no estômago.
— O quê? — a deusa da primavera arregalou os olhos.
— Não seja boba — Afrodite falou e Hécate ergueu uma das sobrancelhas, completamente interessada no assunto. — Eu sinto essa sua atração, mas não se preocupe, ela é recíproca. gosta de você também, ele gosta da tranquilidade que você exala, ele gosta do seu jeito desafiador, enxerga o seu coração celestial e puro. Ele se sente seguro ao seu lado, como se você não pudesse lhe causar... sofrimento.
— Eu... — tentou falar, porém foi interrompida por Afrodite.
— E você... você gosta da beleza ameaçadora. Gosta que ele não lhe trata como a deusa delicada e frágil que acabou de chegar, mas com a proteção e o respeito que você quer. Mas você deve tomar cuidado. Ele não conhece sentimentos de aprovação inferiores ao amor.
— Não quero ser indelicada, mas eu não tenho a intenção de me envolver com ele — disse, sem jeito.
— Ah, mas isso é inevitável — Hécate sorriu, dissimulada.
— Oráculo? — Afrodite ponderou, despreocupada, observando Hera e ao fundo.
— Uhum — a deusa das bruxas assentiu.
— Uma pena que Hera não queira aprovar essa união — Afrodite suspirou e cruzou os braços.
— Acho que ela vai — Hécate falou. — E vai ser obrigada a protegê-la, .
— Oh, ela é muito boa nisso. — Afrodite concordou ao pensar em seu casamento com Hefesto. — Não há deusa que faria um melhor papel de protetora das mulheres casadas.
— De que oráculo você está falando? — franziu o cenho e encarou Hécate.
— Não se preocupe com isso. Como as próprias Parcas dizem, você não pode evitar os acontecimentos nem se quiser.
— Eu não deveria ao menos estar preparada para o que vai vir? — A deusa da primavera, apesar de não notar nenhum sinal de estresse no semblante de Hécate, não estava muito confortável com a situação.
— Oh, mas você vai estar.
— Ele está vindo para cá — Afrodite sorriu, animada. — Aproveite, ! Nos vemos mais tarde!
— Para onde... — respirou fundo ao perceber que Hécate já havia ido embora, deixando somente seu efêmero rastro de luz púrpura, e levando Afrodite consigo. — Por que as pessoas têm essa mania de sumir? — a deusa revirou os olhos e ajeitou seu vestido, que insistia em subir. — E por que essa saia fica subindo? Que... sei lá, inferno!
— Me chamou? — parou em sua frente.
Como sempre, o deus parecia carregar uma íris gélida como a morte, embora estivesse calmo. Algo em seu tom de voz, no entanto, denunciava certo cansaço. balançou a cabeça rapidamente ao perceber o quanto ela achou fácil lê-lo, o quanto já estava acostumada com sua presença. Culpava as palavras de Afrodite por tê-la influenciado demais.
sorriu, gentil. — Como você está?
— Eu estou... — hesitou alguns segundos antes de continuar. — Bem.
— E como está Hera? — ergueu uma sobrancelha e ele abriu um pequeno sorriso. — Imagino que a conversa tenha sido, no mínimo, agradável, já que você me parece tão contente agora.
— E eu imagino que você tenha acesso aos mesmos jornais que eu — o deus revidou.
— Sabe, eu acho que no fundo não tem como agradá-la.
— Eu não sei porque você estaria tentando fazer isso.
— Normalmente, eu não faria, mas é como se meu corpo quisesse — franziu o cenho ao parar para analisar a sua vontade inerente de querer paz genuína. — Pelo menos, Hera pareceu satisfeita no nosso último encontro.
— Último encontro? — estreitou os olhos em incômodo. — Que último encontro?
— Ontem à tarde ela me chamou para ir até seu escritório para conversarmos sobre as matérias das revistas. — hesitou ao continuar por causa do semblante irritado de . — Nós conversamos um pouco, foi bem breve, mas um pouco assustador. E depois ela me pediu para dar um jeito no jardim e...
— O que ela disse exatamente?
, eu não acho que seja uma boa ideia eu lhe contar.
— O que ela disse exatamente? — ele repetiu, porém, dessa vez, em um tom muito mais sóbrio.
desviou o olhar para o lado e engoliu em seco. Apesar de entender que aquilo também estava relacionado a , não queria que a personalidade forte dele acabasse gerando qualquer atitude impulsiva e descuidada.
— Você confia em mim? — o deus perguntou, encarando-a nos olhos.
— Tudo bem — suspirou ao perceber que ele parecia controlado. — Hera disse para eu não me envolver com você ou atos de contenção iriam acontecer, seja lá o que isso for. Ela citou um tal de Prometeu e... Atlas, eu acho.
— Ela lhe ameaçou? — trincou o maxilar e sua íris tornou-se vermelha instantaneamente.
Todo o controle que ainda restava tinha desaparecido em questão de milissegundos.
— Vamos falar de um ambiente inóspito, não? — sorriu, sem graça, e colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha, tentando amenizar o clima, porém logo sentiu a raiva que o deus começava a exalar. — ...
— Hera não pode fazer isso. — Seus olhos imediatamente começaram a procurar pela rainha olimpiana.
, por favor, não. — , em reflexo, segurou seu braço ao perceber que ele estava prestes a ir atrás dela. — Eu não quero deixar as coisas piores do que elas já estão. Eu não acho que irritar Hera vai ajudar.
— Ela não pode fazer isso com você, ! — falou, nervoso. — Você não entende? Ela não pode agir desse jeito, isso não é postura de alguém que governa o Olimpo!
Sua temperatura corporal aumentou e ele sentia o sangue pulsar em suas veias. Se visse Hera em sua frente, não responderia pelos seus atos e não mediria palavras. Por que estava tão nervoso de repente? Estava completamente cego, mergulhado em uma irritação que jamais sentira antes. Estava irracional, algo que não lhe era peculiar. De onde tártaros vinha esse sentimento tão intenso? Não permitiria que Hera controlasse a vida de e, muito menos, a sua.
O semblante preocupado da mulher em sua frente, no entanto, foi o suficiente para que ele percebesse a ira tomando conta de si. , pelo que seria a primeira vez em sua vida, pensou duas vezes, enquanto a fitava e sentia a mão delicada sobre sua pele. Contra sua própria vontade, respirou fundo e fixou seu olhar em .
— Eu vou respeitar as suas vontades — falou. — Mas quero que saiba que não concordo.
apenas sorriu com ternura como resposta. Não houve tempo, também, para que qualquer coisa fosse dita, pois Medea, nitidamente fora de si, após algumas doses de gin tônica, um shot de tequila e dois sex on the beach, apareceu, sorridente, e apoiou-se nos ombros de .
— Você se apaixonou e nem falou nada? — a ninfa perguntou embolado.
— Do que você está falando? — deu uma risada ao perceber que Medea usava um óculos escuro com o qual não chegara à festa. — Trinta minutos e você já está assim?
— Hécate me contou tudinho sobre como você está fadada a se apaixonar pelos flertes do . — A ninfa não aparentava notar a presença do deus em sua frente.
— Ok, eu acho que já acabamos por hoje. — tirou o copo com vodka da mão da amiga e segurou-o prontamente, com um sorriso provocante nos lábios. — Que tal um pouco de água?
— Urgh, você é tão uma boa influência — Medea revirou os olhos. — Me chame quando você for assaltar um banco ou fazer xixi na grama do vizinho, sei lá. — A ninfa colocou os óculos na ponta do nariz. — Você dirige na volta, otária.
Antes que pudesse protestar, Medea já havia andado, apressada, até a multidão.
— Me desculpe por isso — a deusa falou, sem graça.
— Flertes do ? — ele ergueu uma sobrancelha e não conseguiu conter a expressão maliciosa.
— É a sua fama — sorriu, desafiadora. — Me disseram que você é bom nesse tal jogo da... conquista — ela sussurrou a última palavra e aquilo arrepiou a nuca do deus.
— Quem lhe disse isso?
— Isso é importante?
— Não, não é — sorriu de volta.
— Mas é verdade o que dizem? — a deusa perguntou. — É verdade que você tem uma natural inclinação a destruir corações?
— Eu não sei do que você está falando. — Ele cruzou os braços.
— Negação só torna as coisas mais óbvias. — fitou-o, dissimulada, algo que o deixava maluco. — Faça em mim.
— O quê? — parecia tanto confuso, como chocado. — Fazer o quê?
— O seu melhor flerte.
— Eu não sei do que você está falando — o deus repetiu.
— Não seja negligente, deu um passo para a frente, aproximando-se dele. Ficando próxima demais para que o deus conseguisse manter a respiração compassada. — Vai ser o nosso segredo.
Ele manteve-se parado por alguns longos segundos, analisando o semblante curioso de . A verdade era que, nem se quisesse, seria capaz de negar-lhe um pedido. Ele estava mergulhado demais nos gestos dela. Nunca achara que encontraria nela um porto seguro, em uma deusa com uma competência ímpar para respostas afiadas que ao mesmo tempo fosse tão inocente, inocência de quem acredita que o mundo é um lugar bom. Não imaginava que esse tipo de mulher sequer existisse.
Sem se preocupar com quem lhes observava, estendeu a mão para como se cedesse implicitamente ao seu pedido. Ela aceitou sem hesitar e o deus guiou-a até um corredor um pouco mais vazio, onde ele abriu uma porta e fez um gesto para que ela entrasse.
— O seu truque é trazer mulheres para quartos escuros no meio de festas? — franziu o cenho. — Acho que eu preferiria uma cantada ruim.
— Eu precisava de um lugar mais reservado. — fechou a porta atrás de si.
A pouca luz que entrava pela janela não ajudava a analisar o cômodo. O máximo que ela conseguia observar em meio ao breu eram alguns quadros na parede.
, eu...
Quando se virou, ele estava parado a poucos centímetros dela, com ambas as mãos nos bolsos e uma respiração tranquila, observando-a com atenção. Um misto contraditório de calmaria e nervosismo invadiu-lhe o corpo. Ela sentia o calor que a proximidade trazia. Ela sentia o cheiro do perfume dele. Ela até sabia que ele estava com aquele maldito sorriso de lado. As rápidas batidas do coração poderiam ser ouvidas, se não fosse pela música abafada ao fundo. Com delicadeza, ele ofereceu novamente sua mão e a conduziu até a parede da sala até que as costas dela encontrassem a superfície gélida.
— Feche os olhos — pediu em um sussurro.
— Mas nós estamos no escuro.
— Feche os olhos — ele repetiu, um pouco mais impaciente.
Assim que ela o fez, sem aviso prévio, agarrou-a firmemente pela cintura e pressionou seu corpo contra o dela. não pôde deixar de engolir seco ao senti-lo tão próximo, ao sentir o calor de sua pele. aproximou sua cabeça perto do pescoço dela, encostando levemente os lábios ali e sorrindo ao sentir o calafrio que percorria o corpo de a cada beijo que dava. De modo devagar, sentindo a pele macia dela encostar em sua boca, ele subiu até que pudesse sussurrar com a voz rouca em seu ouvido.
— Não é sobre ter um flerte planejado. Não é ter um passo a passo do que fazer.
tirou uma das mãos da cintura dela e agarrou sua coxa, subindo lentamente a mão até que ela atingisse a barra de seu vestido e começou a brincar com o tecido, voltando a sussurrar.
— É sobre o que você quer.
Ele levantou devagar a saia, apreciando o toque contra a pele macia dela até encostar de relance em sua calcinha e depois soltou-a, levando a mão agora livre para agarrar os cabelos acima da nuca dela e trazê-la ainda mais para perto de si.
— Porque o flerte, , é um jogo. Seu corpo fala. Ele fala o que gosta e eu posso sentir isso.
apertou ainda mais a cintura de e deliciou-se ao vê-la morder o canto do lábio inferior. Fora a primeira vez em centenas de anos que aquele jogo já não lhe parecia mais seguro. Como se ele não estivesse mais no controle. Vendo-a assim, pressionada contra seu corpo, tão vulnerável, não conseguia evitar a vontade incontrolável de agarrá-la ali mesmo.
Não somente sentia o próprio prazer em poder finalmente a ter em seus braços como queria há semanas, mas também sentia o prazer que ela emanava. Sentia o toque malicioso, sentia seu coração acelerar com a necessidade desesperadora de o ter beijando o seu pescoço, sentia o calafrio percorrer cada milímetro de seu corpo. Aquilo o estava deixando louco.
tirou a mão do cabelo dela e desceu-a devagar pelas costas dela até chegar em sua coxa novamente, agarrando-a com força até que levantasse a perna dela na altura de seu quadril. Queria que aquelas pernas o envolvessem para pressioná-la ainda mais contra aquela bendita parede. Queria beijá-la até que ela implorasse por mais. Queria...
— Você realmente faz jus à fama — sussurrou, em um misto de preocupação e atordoamento, e saiu de seu transe, tirando a mão da sua perna, ainda que não conseguisse se afastar. — Eu acho que eu... hm... eu acho que eu deveria ir.
— Claro. — Ele engoliu em seco.
colocou as mãos sobre o peito do deus, encarando-o por alguns breves segundos. Por mais que soubesse que deveria sair dali, por mais que sua intuição lhe implorasse por isso, tinha que admitir que queria mais. Não queria ter que sair daquela sala, não queria ter que encontrar outras pessoas e, mais importante, não queria que tirasse as mãos de sua cintura. Desejava loucamente que ele tivesse continuado a subir a mão por sua perna e não parasse na calcinha.
— Eu... eu preciso cumprimentar algumas pessoas ainda. — O deus limpou a garganta e deu um passo para trás.
— Certo — sorriu sem jeito e começou a andar, levemente desnorteada.
— Outro lado, deusa — ele riu e apontou com a cabeça para a porta.
— Certo. — Ela corou.


— Credo, casamentos — Medea revirou os olhos teatralmente. — Imagina você chegar em casa e alguém querer... conversar com você. Urgh, que desgraça.
— Mas a premissa de um casamento não é você gostar de fazer coisas com a pessoa? — perguntou, confusa.
— Eu espero que vocês tenham trazido a pipoca, senhoritas — Hermes chegou perto das duas com os braços levantados e a deusa estranhou a ausência de Eros —, porque eu estou prestes a fazer um show.
Sem hesitar, o mensageiro começou a dançar no ritmo da música. Estava claro que ele não tinha ideia do que estava fazendo, quase tropeçou no próprio pé três vezes e perdeu o equilíbrio outras três. Medea, também tomada pelo álcool, assumiu um semblante de desgosto, levantando da espreguiçadeira ao lado da piscina para se aproximar do deus. A ninfa puxou a gravata de Hermes até ficar a cinco centímetros dele e uma pequena gota de suor atravessou a testa dele.
— Pare de me fazer passar vergonha.
— E comece a sair comigo? — Hermes ergueu uma sobrancelha, sugestivo, e sorriu.
— Como você ousa falar assim com um deus? — Hefesto, que estava de passagem em direção ao bar da festa, parou e franziu o cenho, nitidamente irritado.
— Não se preocupe, meu ranzinzinha favorito — o mensageiro respondeu, divertido. — É só o jeito dela.
— Ela é apenas uma ninfa! — Hefesto encarou-a e Medea sorriu, tímida, em resposta. — Você não pode falar assim com um grandioso deus!
percebeu que as pessoas ao redor começavam a observar a situação e respirou fundo para criar coragem antes de intervir.
— Ela só está brincando, não tem por que ficarmos bravos — falou. — E ela também está levemente embriagada.
— Quem é você e por que acha que pode se dirigir a mim? — Hefesto olhou-a dos pés à cabeça e, só então, a deusa notou o semblante desagradável dele. Aquele deus era, de longe, o que menos parecia ter uma feição “esculpida pelos anjos” de deus, muito pelo contrário, na verdade.
, muito prazer — ela sorriu, simpática, e recebeu um grunhido em resposta. — Eu sou a deusa da primavera.
— Por Zeus, existem deuses para tudo hoje em dia.
— Isso foi um pouco rude, mas eu vou lhe dar o benefício da dúvida, porque você parece uma pessoa legal. — manteve a expressão gentil, por mais que não gostasse nem um pouco do jeito brusco e das palavras grosseiras do deus ferreiro.
— Vai me dar o benefício da dúvida? — Hefesto questionou-a com indignação. — Eu não preciso de benefício nenhum vindo de uma deusa inferior inútil como você. — O deus começou a dar passos lentos em direção à , que também começava a dar passos para trás em reflexo. — Acha que pode me oferecer algo? Até Deméter pode fazer seu trabalho ridículo. Você não serve para nada.
— Eu não quis insultá-lo. — franziu o cenho. Apesar de ela estar mais irritada do que com medo, Hefesto não parecia muito controlado no momento e seu corpo alertava-a para se afastar. — Entendo que exista uma certa hierarquia por aqui, mas acho que houve um mal-entendido.
— Está dizendo que você acha que uma ninfa qualquer pode desrespeitar um deus?
— Não acho que ninguém possa desrespeitar ninguém, acho que isso foi só uma brincadeira.
— Hefesto... — Hermes tentou chamar sua atenção quando chegou a dois passos da borda da piscina, mas não conseguiu que o outro deus o ouvisse. — Hefesto, ela ainda não sabe... — antes que o mensageiro terminasse a frase, a deusa da primavera caiu com tudo dentro da piscina — andar sobre as águas.
O barulho imediatamente chamou a atenção de todos que estavam no jardim e dos que conseguiam enxergar a cena pelas paredes de vidro da casa. Por poucos segundos, o silêncio instalou-se no local, mas não demorou muito para que murmúrios tomassem conta de cada um dos deuses, ninfas e guardiões na festa. Medea e Hermes arregalaram os olhos e correram desesperados até a piscina. , ainda confusa, nadou até a superfície e começou a tossir. Sentia a água invadir seus pulmões.
Perséfone e Hades saíram da casa, apressados, para ver o que estava acontecendo e chegou alguns segundos atrasado. Não entendiam o que tinha causado todo aquele alvoroço. Ao deparar-se com Hefesto encarando sem remorso algum, a deusa tirando seu cabelo encharcado do rosto e Hermes e Medea oferecendo suas mãos para que ela saísse da piscina, não pensou duas vezes antes fechar suas mãos em punhos e começar a andar furioso em direção a Hefesto. Hades, nem se quisesse, pararia o filho. Havia de admitir, estava ansioso para ver o estrago.
— O QUE VOCÊ FEZ? — perguntou com a íris vermelha, asas abertas e afiadas e as veias escuras debaixo dos olhos começando a aparecer.
— Eu não fiz nada — Hefesto respondeu, firme, com o semblante ríspido que lhe era peculiar. — Essa deusa que me desrespeitou.
— DESRESPEITOU? ELA É A DEUSA DA PRIMAVERA! — apontou para . — DA PORRA DA PRIMAVERA! ELA NÃO MACHUCARIA NEM A MERDA DE UMA FOLHA!
— Eu não acredito que eu sou casada com ele — Afrodite sussurrou, frustrada, para Atenas enquanto elas observavam a cena de longe.
— ELA DEFENDEU UMA NINFA QUE DESRESPEITOU OUTRO DEUS! — Hefesto agora parecia irritado. — ISSO É UM ATO DE ULTRAJE!
— SE VOCÊ SE IMPORTA TANTO COM ESSA MERDA DE RESPEITO — segurou-o pelo colarinho, sentindo as mãos do outro deus em seus pulsos, e falou entre os dentes, consumido por uma ira incontrolável —, ENTÃO POR QUE VOCÊ NÃO ESTAVA TRATANDO UMA DEUSA COM RESPEITO?
— Oh, eu estou amando isso — Ares sorriu, animado, segurando sua taça de champanhe.
Perséfone, que sabia que Hades deixaria ir até o fim, respirou fundo ao ouvir o comentário de Ares.
— CHEGA! — A deusa da morte chamou a atenção de todos. — Hefesto, peço que se retire imediatamente.
— Mas...
— Imediatamente — ela interrompeu-o e demorou alguns segundos até soltar seu colarinho, encarando Hefesto com ódio.
— Eu estaria tão envergonhada se eu fosse essa nova deusa — Penélope, observando tudo do primeiro andar, sussurrou para outra ninfa enquanto segurava o riso.
Hera, que abraçava Zeus bem ao lado da secretária, sorriu, maldosa, ao ouvi-la e encarou-a com uma sobrancelha erguida.
— Eu não ficaria tão feliz, já que, da próxima vez, será você no lugar dela. E nunca mais fale de uma deusa assim a não ser que queira virar uma planta qualquer no meu jardim... Ou, quem sabe, adubo.

Capítulo 10

— Não se preocupe, querida — Perséfone escovava delicadamente o cabelo de , que agora estava em um coral vivo e muito longo. — Hefesto é um deus muito ranzinza, amargo. Ele adora descontar seus fracassos nos outros.
A deusa da primavera, sentada em frente à uma penteadeira, olhava para suas mãos em seu colo. Sua visão estava turva por causa das lágrimas que insistiam em cair. Sabia que não tinha feito nada de errado, mas só de pensar que todos na festa haviam visto a cena, sentia-se chateada novamente. Depois do incidente, Perséfone sugeriu que tomasse um banho, mas nem os minutos mais longos de sua vida debaixo do chuveiro foram suficientes para fazê-la ficar um pouco mais feliz.
— Por que ele é assim? — perguntou.
— Hefesto tem uma história meio triste — Perséfone suspirou, sem tirar a concentração do que fazia. — Quando nasceu, era coxo e sua aparência era tão repulsiva que Hera o rejeitou imediatamente. Jogou-o do Olimpo, fazendo-o cair no mar. Humanos diriam que foi horrível, eu sei. Tétis e Eurínome, ninfas marinhas, encontraram-no vivo e resolveram cuidar dele. Ao longo de seu crescimento, acabou desenvolvendo uma habilidade excepcional para o trabalho dos metais. Ele fez o escudo de Zeus, o arco e flecha de Eros, o tridente de Poseidon e muitos outros instrumentos que o permitiram voltar para o Olimpo. Hera, para provar suas boas intenções com a volta do filho, lhe ofereceu a mão de Afrodite.
— Ela obrigou Afrodite a se casar com ele? — arregalou os olhos e fitou Perséfone através do espelho.
— Não foi preciso — a rainha do submundo sorriu. — Afrodite queria casar com Hefesto.
— Por quê? — não conseguia pensar em um motivo sequer que justificasse a união entre eles.
— Porque ela achou que ganharia joias invejáveis feitas pelo marido, mas não demorou muito para perceber que a vida que Hefesto lhe oferecia não era de seu agrado. — Perséfone colocou a escova sobre a penteadeira, passando a mão pelos fios úmidos e virando sobre a cadeira. A deusa da morte segurou com leveza seu queixo para que pudesse encará-la nos olhos. — O lugar isolado onde Hefesto morava na Terra não a agradava. Então, Afrodite arranjou amantes por diversão e se mudou para o Olimpo.
Após terminar de falar, Perséfone tocou na ponta do nariz de e sorriu, materna. Ela sentia uma natural simpatia pela nova deusa da primavera. Não que visse seu próprio reflexo ali, já não estava mais conectada à primavera havia milênios, mas tinha uma capacidade incrível de deixar as pessoas confortáveis à sua volta e Perséfone atribuía a qualidade à uma das melhores características da nova deusa. Via nos seus gestos a doçura que ela deveria ter, mas também enxergava uma coragem e uma ousadia atípicas. E com essa parte ela definitivamente se compactuava.
— Bom — a rainha do submundo sorriu —, acho que está na hora de me retirar, afinal, você tem uma visita. — Logo em seguida, duas leves batidas puderam ser ouvidas da porta do quarto. — Saiba que é bem-vinda para passar a noite, querida. — Ela parou antes de girar a maçaneta. — E não se preocupe com o que aconteceu hoje. A mídia vai esquecer daqui a dois dias e isso tudo será apenas uma memória.
Perséfone, então, abriu a porta e deu de cara com o que já esperava: com o braço levantado, prestes a bater mais uma vez.
— Onde está seu pai? — a deusa da morte perguntou.
— Falando com a equipe de limpeza — respondeu com o cenho franzido. Não esperava que Perséfone ainda estivesse no quarto.
— Oh, não — ela suspirou e balançou a cabeça em negação, já começando a andar, apressada, pelo corredor. — Ele sabe que assusta a equipe de limpeza. Da última vez, ele achou que seria uma boa ideia lhes apresentar Cérbero. Pelo amor dos deuses, Cérbero!
acompanhou Perséfone sumir de vista e voltou seu olhar para dentro do quarto, de onde o encarava. Ele limpou a garganta e apoiou o ombro no batente da porta, cruzando os braços.
— Como você está?
— Bem, não se preocupe — ela sorriu fraco. — Sua mãe é muito atenciosa.
— Com você. — ergueu uma sobrancelha, sugestivo.
— Isso é ciúmes? — falou, divertida, porém fechou o semblante ao ver a preocupação na face do deus. — Acho melhor eu ir. Já dei muito trabalho por hoje.
— Você não deu trabalho. E... e se quiser, pode ficar. Imagino que esteja cansada.
— Mas Psique vai ficar...
— Preocupada? — interrompeu-a. — Psique vai demorar para voltar para casa hoje. Ela está no hospital com Medea.
— NO HOSPITAL? — arregalou os olhos e colocou a mão em reflexo na penteadeira.
— Você sempre grita, não? — ele franziu o cenho, sério. Não era como se não amasse o drama dela também. Muito pelo contrário.
— Você está calmo demais. — A deusa levantou-se à procura de suas roupas.
— Medea só vai tomar um soro. Ela bebeu demais. Não se preocupe, Psique está só de acompanhante — sorriu ao vê-la andar para lá e para cá. — Você precisa descansar.
— Você viu minhas roupas? Eu jurava que tinha deixado aqui.
— Eu vi.
— “Eu vi?” — parou imediatamente e encarou-o com um semblante confuso. — É só isso que você tem a me dizer?
— Sim.
— Não! — Ela revirou os olhos e andou até ele, encostando a ponta do dedo no peito dele. — Agora você precisa me dizer onde elas estão.
— Na máquina de lavar.
— Urgh. — respirou fundo e colocou as mãos na cintura. — Tudo bem, me diga onde é o hospital e eu vou de roupão mesmo.
— Só pode ser brincadeira — fitou-a, irritado. — Pelos deuses, Psique e Medea podem sobreviver sem você. Elas têm, tipo, mil anos.
suspirou e olhou para o chão. Estava ponderando a sugestão de dormir ali mesmo, estava triste e exausta demais para tentar voltar para casa. Além do mais, tinha razão, Psique e Medea sabiam se virar. Era ela que não conhecia nada daquele mundo.
— Tudo bem, mas não quero atrapalhar.
— Você nunca iria — respondeu com o que ela considerou ser um pequeno sorriso e entrou no quarto sem cerimônia alguma, andando até a porta que dava no closet.
— O que você está fazendo?
— Aqui. — Ele saiu enquanto segurava uma camiseta preta. — Vista isso quando for dormir.
— Por acaso... — estreitou os olhos, analisando a roupa em sua mão. — Esse é seu quarto?
limitou-se a assentir com a cabeça e a deusa arregalou os olhos.
— Certo. E onde fica o quarto de visitas?
— Não tem quarto de visitas — deu de ombros e voltou a andar até a porta.
— Você está me dizendo que essa casa gigantesca não tem um único quarto de visitas sequer? Pare de mentir, isso é impossível.
— Bom — sorriu, divertido, e passou a mão entre os cabelos, bagunçando-os —, Hades não é o ser mais social do mundo, ele tem uma fama muito ruim, então já era esperado que ele não fosse receber visitas. Quando Perséfone se mudou e engravidou, ela transformou o escritório em um quarto — o deus apontou para as paredes, sugerindo que aquele era o cômodo — e a segunda biblioteca no escritório, mas essa informação é irrelevante.
— E onde você vai dormir, se eu dormir aqui?
— Em uma das salas.
— Então sala tem mais de uma?
— Claro, existe sala de estudos, sala de televisão, sala de estar. Várias salas.
— Nem pensar que você vai dormir em uma sala — riu e levantou-se, indo pegar um travesseiro. — Eu durmo em uma sala.
— Você é visita — retrucou com obviedade.
— Exatamente.
— O quê? — O deus ficou confuso.
— Oh, mas esse problema é fácil de resolver. — Perséfone adentrou o quarto com um copo de água, que ofereceu à . — Durmam na mesma cama — a deusa da morte sorriu, terna, e andou até , colocando ambas as mãos em sua face. — Você deve nos visitar mais vezes, querido. Eu sinto saudades, sabia? E você não quer deixar a deusa da morte triste, não é? — Então, ela voltou até o corredor, de onde Hades a esperava. — E não esqueçam de apagar as luzes. Somos ricos, mas também somos ecológicos. — Perséfone fechou a porta atrás de si, porém ainda foi possível ouvi-la do corredor. — Nós criamos um filho tão conservador, acredita? Nós!
— Eu não acho que ele seja conservador, coração. Ele já dormiu com metade do Submundo.
— Exatamente! Então, qual o problema de dormir com alguém na mesma cama?
— Bom... ela é deusa da primavera.
— Oh. — Perséfone ficou quieta por alguns segundos e os deuses no quarto não falaram nada, curiosos com a conversa. — Você tem razão. Oh! Esqueci de comentar mais cedo, você viu que a Hécate...
A distância já não permitia que a conversa fosse ouvida. apenas encarou , que deu um gole em seu copo de água e deu de ombros. Não se oporia à ideia de dormir na mesma cama, até porque ela encarava aquilo sem qualquer fundo de segundas intenções e realmente estava cansada. O deus, distinguindo a aprovação implícita, suspirou e foi em direção ao banheiro.
Seria mentira se ele dissesse que aquilo não causava um pouco de estranhamento, mas talvez um bom estranhamento. O problema de se deitar com ela era que... Bom, era ela. Não ninfas ou deusas quaisquer. Era ela.
Não demorou muito para que tomasse seu banho e saísse de lá somente para se deparar com uma já encolhida na cama, debaixo das cobertas. Quando estava prestes a apagar as luzes, parou seu olhar sobre a deusa. Um misto de acolhimento e serenidade completamente incomuns para ele invadiu seu corpo e estreitou os olhos. Não lembrava a última vez que se sentira calmo e confortável assim. O que raios estava acontecendo com ele? Desde quando não conseguia controlar seus sentimentos? Respirou fundo, balançou a cabeça, cansado demais depois do dia agitado, e deitou-se.
Geralmente, não tinha dificuldade em pegar no sono, ainda mais exausto daquela maneira, mas naquele momento parecia que seu corpo estava submerso demais em um emaranhado de pensamentos para conseguir dormir. Fitou rapidamente pelo canto do olho. Notou que ela se mexia um pouco, chegando mais perto dele, ainda que estivesse de olhos fechados. voltou a encarar o teto, mas a cada dez segundos desviava sua atenção para a deusa quando a via se aproximando.
— O que você está fazendo?
— Está muito frio — respondeu em um sussurro. — E você está quentinho.
revirou os olhos e acabou com todo o espaço que ainda restava entre eles, envolvendo-a entre seus braços e observando-a aconchegar-se ali. O encaixe foi perfeito, não poderia negar. A cabeça de em seu peito obrigou-o a apoiar sua face nos cabelos dela, que exalavam um cheio floral agradável. Tendo-a tão perto de si, subitamente sentiu uma necessidade desesperadora de protegê-la a todo custo e franziu o cenho com aquilo.


— Você vai amar os mares! — Hermes sorriu com seu usual bom humor. — É tão diferente do Olimpo. Nós deveríamos pedir para Poseidon fazer aquele truque de se comunicar com os peixes.
— Uma pena que Psique não possa ir com a gente — suspirou, tentando acompanhar os passos apressados do mensageiro. — Ela costuma agarrar qualquer oportunidade de sair do Olimpo.
— É muito azar mesmo precisarem dela no trabalho de última hora — Hermes ponderou. — Mas até aí, como os humanos fazem coisas todos os dias da semana, nós automaticamente também trabalhamos todos os dias.
Da esquina, já era possível ver a casa de Afrodite. Eros, no jardim perto da entrada, segurava uma caixa e estava concentrado demais em discutir com o que parecia ser uma criança de seis anos.
— Ele está gritando com uma criança? — arregalou os olhos ao fitar a cena e Hermes deu uma risada.
— É um dos gêmeos. Eros tem três irmãos mais novos, Deimos e Fobos, que são os gêmeos, e Harmonia. Eu acho que esse é o Deimos, ele sempre está arranjando briga com Eros.
— Eles são deuses do quê?
— Deimos é o deus do terror, Fobos é o deus do medo e acho que Harmonia é autoexplicativo — Hermes sorriu, simpático, ao abrir o portão de ouro da casa de Afrodite. — Digamos que os dois primeiros são iguaizinhos ao pai.
— Graças a Zeus que vocês chegaram — Eros respirou fundo, segurando a caixa acima da cabeça para que Deimos não pudesse alcançá-la. — Essas proles estão me deixando louco.
— FOBOS! — Um grito agudo pôde ser ouvido de dentro da casa e Eros imediatamente revirou os olhos. — ISSO É MEU! EU VOU CONTAR PARA A MAMÃE!
— Seus pais não estão aí? — Hermes perguntou, confuso, segurando o pacote que o amigo havia lhe entregado.
— Você é a nova deusa da primavera? — Deimos perguntou, curioso, com seus grandes olhos brilhantes fixados em .
— Sim — ela sorriu, gentil.
— Machuca se eu arrancar as flores do jardim da mamãe? — o menino perguntou com um sorriso levemente cruel e arregalou os olhos.
— Por que você é assim? — Eros empurrou-o para dentro da casa e fechou a porta atrás de si. — Há tantos deles, eu não consigo controlar. Eles são três e nós somos dois, eu... Quer dizer, e eu sou um. Estou em desvantagem.
— Você precisa de ajuda? — ofereceu gentilmente e uma gota de suor escorreu pela têmpora de Hermes.
— Sim! — Os olhos do cupido brilharam em esperança. — Sim! Sim! Sim!
— Agora? — o mensageiro perguntou com a garganta seca e viu Eros assentir com a cabeça desesperadamente. — Pode ser amanhã? Hoje eu prometi que mostraria os mares para .
— Amanhã também ajuda — o cupido sorriu, satisfeito.
— Mas se você está tão...
Antes que pudesse completar a frase, Hermes quase jogou-a para fora da casa em direção à calçada. A deusa, um pouco confusa, apenas inclinou a cabeça, sem ao menos conseguir se despedir de Eros. Quando se deu conta, Hermes já a arrastava para outro quarteirão com seus passos apressados de novo.
— O que foi isso? — perguntou, olhando para trás.
— Você é gentil demais — Hermes sorriu, divertido. — Eu tenho certeza que ia dizer que se Eros estivesse tão desesperado por ajuda, não teria problema você adiar nossa ida aos mares.
— Mas ele realmente parecia precisar de ajuda, Hermes. Você não acha que devemos voltar?
— E cuidar dos gêmeos? — o mensageiro riu escandalosamente até que uma lágrima atravessasse sua bochecha. — Você está louca? Na última vez que eu fiquei de babá, Afrodite voltou para casa e eu estava amarrado de ponta cabeça no lustre nas escadarias. Você tem que ver o quão efetivo são os poderes deles.
— Hm — parou para pensar por alguns segundos. — Será que é seguro ajudar amanhã?
— É disso que eu estou falando — Hermes sorriu em concordância. — Oh, não.
— Oh, não? — A deusa desviou seu olhar da rua para o semblante preocupado do mensageiro. — O que aconteceu?
— Alguém precisa de mim.
— Mas eu achei que hoje fosse seu dia de folga.
— E é, mas isso é urgente — Hermes respondeu, agitado, já entregando a caixa para . — Entregue isso para . O apartamento é a três quadras daqui, é só você seguir reto.
— Mas, Hermes, a gente...
— Eu preciso ir. — Ele abriu suas enormes asas de plumas. — Não tenho certeza quando vou voltar. Me desculpe, sei que tinha combinado de ir com você hoje, mas não sei quanto tempo vou demorar.
— Tudo bem — suspirou ao ver o deus sumir pelos ares.


— Você está maluco? — Psique arregalou os olhos enquanto segurava Harmonia no colo.
— Mas nós precisamos de ajuda — Eros apontou para Deimos e Fobos, que corriam pela casa como se não existisse um objeto sequer em seus caminhos.
— Eu sei, mas se eles tivessem dito sim, iam entrar aqui e me ver, Eros. Eu disse que estaria trabalhando. Nós combinamos em deixar isso — Psique apontava para o deus e para si mesma — em sigilo por enquanto.
— Não foi a escolha mais sábia, eu sei — o cupido concordou enquanto recolhia os brinquedos do chão. — Mas, pelo menos, eles disseram que não podiam. Agora não tem nem como eles acharem que você está aqui, já que eu os convidei para me ajudarem.
— Você deu sorte que era Hermes que estava com ela — Psique sorriu. Não podia deixar de admitir que gostava do fato de Eros não querer esconder o relacionamento. — Imagina se fosse Héstia ou uma ninfa, elas com certeza iriam aceitar.


— Estou aqui. — Hermes deu duas leves batidas na porta mesmo que já estivesse com metade do corpo para dentro do apartamento.
— Olha só quem chegou — Hécate apontou para o deus enquanto segurava o bebê no colo. — Isso mesmo, o Hermes. Her-mes.
— Algum progresso com a fala? — ele perguntou ao fechar a porta atrás de si.
— Nenhum — a deusa sorriu, desanimada, e entregou Dionísio para Hermes. — Vou buscar as coisas dele lá no quarto e depois podemos ir.
— Tudo bem.
Assim que Hécate sumiu de vista, Hermes sorriu para o bebê e começou a esfregar a ponta de seu nariz na barriga dele, o que fazia Dionísio rir. Pegou-se tão absorto nas bochechas coradas e rechonchudas e na risada gostosa que não notou quando a deusa das bruxas voltou à sala com duas pequenas malas.
— Eu sei que foi bem estressante, mas vou sentir falta dele — Hécate sorriu fraco e Hermes andou até ela.
— Também vou. — O deus beijou sua testa. — Mas podemos visitá-lo com frequência.
— Hm, verdade. — Hécate segurou o bebê de novo e Hermes pegou as malas. — Minha casa ou sua casa depois daqui?
— Sua.
— Ok.


— Oi — sorriu, sem graça, quando abriu a porta de seu apartamento.
— O que faz aqui? — ele perguntou, confuso. Não esperava a presença dela.
— Eu vim lhe entregar isso. — Ela estendeu o pacote.
— Não era o Eros que ia me entregar isso?
— Acho que sim, mas ele acabou ficando de babá para os irmãos dele, então creio que pediu para Hermes. Só que alguma coisa aconteceu com o Hermes também, então eu fiquei encarregada de entregar essa encomenda.
— Por que ele lhe encarregaria de fazer algo assim? — perguntou, já andando em direção à cozinha.
, parada em frente à porta de entrada e sem saber o que fazer, esperou alguns segundos antes de entrar no apartamento e fechar a porta atrás de si. Não conseguia discernir pela expressão naturalmente séria e sarcástica de se era bem-vinda ou não, mas já se sentia confortável o suficiente para entrar.
— Porque estávamos juntos quando ele precisou ir, então ele me entregou essa caixa.
— Hm. — distraiu-se por alguns segundos enquanto abria o pacote. — Vocês estavam indo ao cinema? Ele passou a semana inteira falando sobre uma estreia de um filme que eu não lembro o nome.
Nem tinha se dado conta quando começou a se sentir cômodo o suficiente ao redor da deusa da primavera a ponto de começar uma conversa com naturalidade. Até então, isso era restrito a Hermes e Eros e somente eles.
— Não, não estávamos indo ao cinema — respondeu enquanto observava uma quantidade gigante de arquivos e papéis jogados no chão da sala. — Hermes ia me levar para visitar os mares pela primeira vez.
— Você nunca esteve lá?
— Não tive a oportunidade até agora, mas acho que terei que adiar dessa vez também.
— Por quê? — começou a escrever uma carta, apoiando-a no balcão de mármore preto.
— Porque ele disse que não tinha previsão de volta desse compromisso urgente de última hora.
O deus desviou o olhar por dois segundos para fitar . Ela aparentava um leve desânimo, ainda que tentasse escondê-lo.
— Eu tenho tempo agora — sugeriu, despretensioso. — Quer ir?
— Você me parece ocupado. — A deusa olhou para todos aqueles papéis. — Não quero atrapalhar.
— Acho que preciso de uma pausa, de qualquer maneira.
— Você acha que o Hermes vai ficar chateado se eu não for com ele?
— Acredite — abriu um sorriso malicioso e voltou a escrever —, não existe qualquer outra coisa no mundo que estaria dando mais prazer para ele do que a que ele está fazendo nesse exato instante.
— Bom, nesse caso, acho que não tem porque não irmos — sorriu, sem jeito.
— Vou me trocar, então.
A deusa assentiu com a cabeça e fitou entrar no corredor. O silêncio não demorou muito para se instalar na sala e pegou-se distraída ao observar os detalhes da decoração até que seu olhar pousou sobre a encomenda aberta em cima da ilha da cozinha. Aquela caixa que lhe pareceria tão comum, se não causasse uma sensação de frio na barriga, como se a estivesse chamando. De novo, culpava a intensidade dos seus sentimentos à flor da pele no Olimpo.
Ouvira falar de uma tal caixa de Pandora nos últimos dias. Nenhum humano sabia dizer o que havia dentro dela, mas a curiosidade era tanta que acabaram abrindo. E o arrependimento foi certo. Tinha medo que aquilo fosse acontecer ali também, sobretudo com aquele frio na barriga estranho que estava sentindo. De onde ela estava, não conseguia ver o que tinha dentro, mas não poderia deixar de admitir que estava curiosa. Curiosa até demais. Não iria mexer em nada que não fosse seu, porém algo naquele objeto misterioso a atraía de maneira intensa. Queria saber o que estava lá dentro e o brilho nos olhos a denunciavam.
— Você pode ver, se quiser.
levou um susto com a voz de e balançou a cabeça, como se voltasse à realidade. Ele encostava o ombro na parede, com os braços cruzados, e agora com sua usual jaqueta preta de couro, acompanhando todas as outras roupas pretas também. Ela não fazia ideia há quanto tempo ele estava parado ali e, muito menos, há quanto tempo ela estava olhando a caixa. Em sua cabeça, foram apenas segundos.
— É algo seu, — ela falou, sorrindo. — Eu posso estar curiosa, mas não tem a ver comigo.
— Muito pelo contrário. Isso é para você.
— Para mim? — perguntou, confusa, e apontou para si mesma.
não respondeu, apenas apontou com a cabeça para a caixa, incentivando a deusa a andar até ela. Sem hesitar, chegou próximo o suficiente para enxergar o objeto que estava lá dentro. A luz refletia ao encontrar-se com o metal e a deusa imediatamente arregalou os olhos quando percebeu o que era.
— O que é isso? — franziu o cenho e encarou , mesmo sabendo a resposta para sua própria pergunta.
— É um presente. — Ele aproximou-se dela. — Pode tirar daí.
, com muita delicadeza, segurou o objeto em suas mãos. Era uma bela coroa composta pelas mais delicadas pedras preciosas e por fios de ouros tão puros que pareciam emitir sua própria luz e tão finos que pareciam que poderiam quebrar com o mais leve toque.
— Toda deusa tem uma coroa — voltou a falar. — Algumas vezes em sua vida você precisará usá-la e uma coroa de flores não vai dar conta do recado. Geralmente, são os pais que dão, então imaginei que você ainda não tivesse uma.
— Eu não posso aceitar isso — falou, em choque. Não conseguia pensar que um objeto tão valioso e luxuoso como aquele pudesse ser um simples presente a ser aceito.
— Você não gostou? — ele perguntou, preocupado.
— Não é isso... É só que é um presente... caro demais.
— Não se preocupe com isso — sorriu. — Foi um favor, não me custou nada. Essas pontas douradas representam os raios de sol. Os fios de ouro se entrelaçando nos raios são os ramos das plantas. As flores azuis representam a serenidade, as rosas representam a ternura, as laranjas, a alegria, e as brancas, a pureza. As esmeraldas são só folhas mesmo. Mas, se você não gostou, podemos mandar refazer.
— Você está louco? — ficou boquiaberta. — Eu a amei do jeitinho que está!
— Quando começar a trazer a primavera para a Terra, vai ter que usar todos os dias.
— Eu não sei como lhe agradecer. — segurou o rosto dele, animada, e beijou sua bochecha enquanto segurou firmemente sua cintura em reflexo. — Isso é muito gentil.
A verdade era que ela não precisaria lhe agradecer. Vê-la ali entre seus braços e com um sorriso tão genuíno era o suficiente para justificar qualquer esforço que fizesse. Estava com medo que não gostasse da coroa, mas o sorriso carinhoso foi o suficiente para que ele parasse de segurar a respiração. E, como em um estalar de dedos, o deus percebeu que já estava envolvido demais.


, onde estamos? — perguntou enquanto ele a deixava no solo.
A deusa olhou para ambos os lados, encontrando apenas areia e um mar cristalino. Era uma das mais belas ilhas que já havia visto em toda sua vista, ainda que fosse pequena. Parecia que ninguém jamais havia pisado ali.
— Na metade do caminho — ele respondeu, retraindo suas grandes asas negras, e começou a dobrar a barra de sua calça e tirar o sapato.
— É para eu tirar o meu também? — a deusa olhou para seus saltos altos.
— Não precisa. Eu... eu gosto da sensação da água no meu pé — estendeu sua mão e ela aceitou. — Vamos.
— Para onde? — franziu o cenho quando notou que ele andava em direção às águas calmas do mar.
— Conhecer os mares — ele respondeu, com obviedade, sem deixar de olhar para a frente.
— Mas nós vamos só entrar no mar? Eu já fazia isso quando era humana.
— Ainda não vamos entrar.
— Como assim? — piscou algumas vezes.
— Vamos andar até o reino de Poseidon e depois entramos no mar.
— Você sabe que isso está soando absurdo, não sabe? Até porque não é possí... — a deusa parou de falar assim que percebeu que estava andando sobre a água. Sobre a água. Ela soltou a mão dele na hora, chamando a atenção do deus. — Você está andando na... Não. Como?
— Você também pode andar. — franziu o cenho e manteve a mão erguida.
— Como?
— Bom, isso deve partir de você. Imaginar que tem um chão transparente em cima da água ajuda.
apenas engoliu seco e alternava seu olhar entre , que esperava com paciência, e as leves ondas batendo em seus saltos, molhando-os. Hesitante, deu seu primeiro passo sobre a água e arregalou os olhos quando percebeu que não afundou.
— Agora o outro — ele incentivou, encarando a cena com certo interesse.
A deusa colocou seu outro pé sobre a água e abriu um pequeno sorriso contente. Deu os primeiros três passos maravilhada com a sensação de leveza e os outros vinte correu como uma criança. Quando, enfim, começou a andar até , franziu o cenho com o olhar fixo dele sobre si.
— Tem algo de errado?
— Não... Er... Não. É só que... — ele hesitou por alguns segundos, pensando se deveria falar ou não, e passou a mão na nuca. — Hm... Nada.
Os próximos quinze minutos foram preenchidos por uma completamente fascinada em observar toda a vida marinha diante de seus pés e rindo com a animação em excesso da deusa. Ela parava a cada cinco segundos para mostrar algum cavalo marinho, os corais ou algum peixe colorido e quase pulou em cima de por causa do susto quando uma grande arraia passou embaixo deles.
, acho que estou ficando louca. — franziu o cenho enquanto encarava o fundo do mar cristalino.
— Você precisa ser mais específica.
— Estou vendo uma estátua em perfeitas condições.
— Você não está ficando louca — o deus sorriu.
A cada passo que davam, conseguia observar mais e mais esculturas. E agora restos de pilastras também. A deusa estreitou os olhos e apenas a encarava, comtemplando suas reações. Adorava aquele brilho no olhar de fascínio puro que a deusa carregava. Ninguém que nascera no Olimpo tinha aquele estranhamento. Para eles, tudo isso era tão mundano, tão normal. Quase se esqueciam da beleza gritante que os Titãs lapidaram. Quando finalmente viu uma construção do que parecia ser uma casa, levantou a cabeça para fitar o deus, que assentiu como resposta.
— Isso é uma cidade submersa, .
— É o que os humanos chamam de Atlantis, a cidade perdida — o deus começou a explicar.
— Atlantis existe?
— Existia. Ela jamais se reerguerá, mas foi uma cidade muito bonita enquanto durou. Pelo menos, é o que dizem. Eu não cheguei a ver com meus próprios olhos antes de ela virar apenas escombros do que foi um dia.
— O que aconteceu?
— Eu não sei — o deus deu de ombros. — Foi uma guerra de milhares de anos atrás. Mas gosto de vir aqui. É diferente de ver outras cidades por cima, na Terra. Tem um toque de... mistério.
— É bem bonito.
— Olhe ali — apontou para duas grandes esculturas. — Esse é Poseidon e aquela é Anfitrite. Eles guardavam a entrada de Atlantis. Poseidon é o deus dos mares e Anfitrite é a deusa dos mares, apesar de ela tecnicamente não ser uma deusa, já que ela é uma nereida.
— O que é uma nereida?
— Filha de um deus com uma ninfa.
— Eles moravam aqui?
— Creio que sim. Se seguirmos leste por alguns metros, conseguiremos ver o antigo palácio de ouro deles, mas teremos que deixar para outro dia. — Ele encarou o céu e colocou a mão na testa para bloquear um pouco da claridade diretamente sobre seus olhos. — Pretendo voltar antes de o sol se pôr, o mar pode ser um lugar muito perigoso no escuro.
começou a andar e fez um gesto com a cabeça para que o acompanhasse. Eles caminharam por mais alguns poucos minutos até que o deus parou e ficou analisando o fundo do mar com o cenho franzido. limitou-se a direcionar seu olhar para o mesmo lugar que fitava, mas não havia nada fora do comum. Apenas a água cristalina, areia e alguns poucos peixes nadando. Sem dizer uma palavra sequer, ele apenas estendeu a mão para que ela a segurasse e, quando a deusa aceitou, ele entrou na água como se fosse algo perfeitamente normal, mas logo foi puxado para trás quando ela não se mexeu.
— Como? — sussurrou, intrigada.
— Imagine que o chão invisível sumiu e agora você...
Antes mesmo que ele pudesse terminar a frase, de um segundo ao outro, ela caiu dentro da água, levando consigo. Rapidamente, na metade do caminho até o fundo, o deus conseguiu pará-los, apoiando-se no que parecia um degrau invisível enquanto segurava a mão dele com firmeza, com o corpo pendente. Ele levantou-a até sua altura sem dificuldade nenhuma e segurou-a pela cintura.
— Eu deveria ter falado para imaginar a escada antes.
— Teria ajudado, não vou mentir, mas obrigada por me segurar — sorriu.
— Não foi nada. — Ele apertou ainda mais as mãos em volta dela e puxou-a mais para perto. — Você está bem?
— Sim, foi só um pequeno susto.
encarou-a por alguns segundos, tentando analisá-la, e, quando se convenceu de que ela estava bem, continuou descendo e guiando a deusa junto de si. Não demorou muito para que percebesse que algo extraordinário acontecia: andar debaixo d’água era tão fácil como andar em terra firme. Era como se surgisse um chão imaginário onde ela quisesse.
— Você vai sentir como se estivesse no pico de uma montanha, com bem menos oxigênio — a voz de saía abafada —, mas daqui a pouco se acostuma.
— Deuses respiram em baixo d’água... e... falam.
— Sim — ele riu com a expressão de surpresa dela. — Estamos quase chegando.
estava simplesmente maravilhada com o quanto a água era cristalina àquela profundidade. Os raios de sol pareciam iluminar a areia como na superfície. Ficou tão entretida em ver seu salto flutuar sobre os grãos que levou um susto quando se deparou com enormes muros guardados pelo que pareciam guardiões olimpianos com belas caudas coloridas de peixes e guelras. Mantinham o semblante sério, uma postura impecável e seguravam tridentes de prata.
prosseguiu sem hesitar, porém foi obrigado a voltar atrás quando percebeu que continuou parada, concentrada demais em observar o arco que levava ao outro lado do muro. Não havia absolutamente nada daquele outro lado senão a mesma paisagem de dunas de areia e águas claras. gentilmente segurou-a pelas costas e começou a andar, tirando-a de seus devaneios e levando-a junto consigo. Antes que pudesse abrir a boca para falar qualquer coisa, quando atravessaram o arco, uma cidade inteira projetou-se à sua frente como em um passe de mágica. A deusa arregalou os olhos e parou instantaneamente. Ela encarou , boquiaberta, e ele assentiu, como se confirmasse de modo implícito que aquilo era real.
Carros aquáticos e modernos passavam por todos as alturas e lugares. Prédios de última geração espelhados erguiam-se do chão com a arquitetura mais avançada que já havia visto. Uma estufa hermética de vários andares em forma de esfera flutuava sobre o centro da cidade. Eram tantos detalhes que ela não sabia para onde olhar. Foi preciso balançar a cabeça de um lado ao outro algumas vezes e dar dois passos para trás, atravessando o portal e vendo tudo desaparecer diante de seus olhos, e outros dois para frente de novo, para ter certeza de que tudo aquilo era real.
— Vamos? — perguntou sem olhar para trás.
— Vamos — ela respondeu no automático.
— Você primeiro. — O deus apontou para o que parecia ser uma corrente de água turva.
— O que é isso?
— Isso é como nós vamos visitar toda a cidade.
— O quê?
— São como tubos largos que funcionam como uma esteira. São correntes de água que conectam toda a cidade. A não ser que você prefira ir nadando, mas, nesse caso, eu lhe encontro lá.
— Lá onde?
apenas sorriu, sarcástico, e suspirou. A deusa deu um passo para a frente e, um segundo depois, já estava sendo levada pelo fluxo d’água, como se realmente flutuasse. não demorou muito para estar ao seu lado. Enquanto ela apreciava a vista, ele se segurava para não a olhar.

Capítulo 11

— Arancini, cestinhas de peras e camarões, melão com parma, mini tacos de ceviche com maçã verde e crab cake — Hera checava a lista em suas mãos. — Algo mais?
Por mais que não fosse uma opinião popular, Perséfone criara um carinho especial pela rainha olimpiana. Estava ciente das mudanças de humor e dos eventuais colapsos internos quando as coisas não fluíam do jeito que Hera queria. A deusa do casamento, no entanto, foi muito importante para que Perséfone conquistasse a liberdade que possuía atualmente e era inevitável, desde então, que fosse grata à mulher sentada do outro lado da mesa.
— Acho que não. — A rainha do Submundo respirou fundo.
Ela gostava de organizar a festa anual de celebração aos deuses e gostava da companhia da outra deusa, porém Perséfone admitia que ficar até de madrugada no escritório da empresa de Hera não era seu momento favorito do dia. Ou do mês.
— Bom, agora só falta resolver o menu de drinks. Eu estava pensando em algo mais sofisticado com um toque especial. Acho que podemos criar um drink personalizado para essa...
Antes que Hera pudesse concluir sua fala, duas leves batidas à porta puderam ser ouvidas e ambas as deusas desviaram seu olhar para lá. Sem cerimônia, Afrodite enfiou a cabeça para dentro da sala com um grande sorriso.
— Oh, que bom que ainda está aqui! — A deusa do desejo parecia animada. — Posso entrar?
— Claro. — Hera apontou para a cadeira ao lado de Perséfone. — A que devo o prazer de sua companhia?
— Séfi! — Afrodite pareceu notar a presença da rainha do Submundo. — Não sabia que estaria aqui.
— Estamos resolvendo alguns assuntos pendentes do baile de celebração — Perséfone sorriu, sem conseguir esconder o cansaço.
— Hmm, teremos um evento glamoroso de novo? — Os olhos de Afrodite brilharam. Qualquer ocasião que justificasse um belo vestido e muitos paparazzis era motivo de entusiasmo para a deusa. — Ano passado vocês se superaram!
— Nós estamos fazendo o melhor que podemos — Hera sorriu. — Mas, então, o que lhe traz aqui?
— Eu preciso conversar com você sobre um casamento. Mais especificamente, preciso da sua permissão.
— Um casamento? — a rainha do Olimpo sorriu, interessada. — Eu adoraria falar sobre isso. Vocês não amam quando duas pessoas se apaixonam?
— Hm... — Perséfone ponderou. — Eu prefiro quando duas morrem.
— É um casamento muito especial. — Afrodite sentou-se sobre a mesa de Hera. Como sempre, sem qualquer noção de espaço pessoal. — Nós não faremos nenhuma cerimônia ainda, mas já pensamos nas flores, no menu, nos convites, no glamour e queremos o seu consentimento. Até Ares concordou com esse casamento, acredita?
— O que isso quer dizer? — Perséfone franziu o cenho, confusa.
— Você pode nos contextualizar? — Hera pediu.
— Claro — Afrodite assentiu. — Bom, ontem, eu e Ares estávamos conversando. Lembra daquele dia na festa de celebração dos seus infinitos anos de puro pesadelo com Zeus...
— A comemoração centenária do nosso casamento?
— Sim, isso aí — a deusa do desejo falou em desdém. — Então, nós estávamos discutindo sobre como eu jurava na festa que Eros era a pessoa pela qual a deusa da primavera estava atraída. Quer dizer, quem não estaria? Ele saiu na capa da LOGQ, pelo amor dos deuses! Enfim, na verdade o sentimento era por , o que convém muito bem, já que ele também gosta dela. O ponto é que não importa, porque Eros...
? — Hera estreitou os olhos e ficou subitamente interessada, o que fez Perséfone a encarar pelos cantos dos olhos.
— Não — Afrodite corrigiu. — Eros.
— Vocês estavam discutindo sobre a deusa da primavera? Ela fez algo?
— Não — a deusa do desejo sorriu, curiosa com o comportamento de Hera. — Pelo menos, ainda não.
— O que você quer dizer com ainda não? — a rainha do Olimpo perguntou.
— Bem, eu não acho que ela vá fazer nada — Afrodite deu de ombros, já se distraindo com esse novo assunto —, mas Ares tem essa teoria esquisita de que pode reviver os mortos.
— O QUÊ? — Perséfone arregalou os olhos e pôde sentir sua pressão cair.
— O QUÊ? — Hera repetiu, incrédula.
— Absurdo, não acham? — Afrodite deu uma risada e começou a olhar para suas unhas. — Imaginem, uma deusa nascida de humanos com um poder desses. Como se os titãs fossem bonzinhos desse jeito.
— Por que... — a rainha do Submundo engoliu em seco antes de continuar. — E por que ele acha que um absurdo desses é plausível?
— A teoria dele é que é uma deusa da fertilidade. E, se formos parar para pensar, ela realmente é. Uma deusa da primavera dá vida às árvores, às flores e todas essas coisas aí.
— Então ela poderia dar vida aos mortos também. — O olhar de Hera envolvia um misto de confusão e hesitação.
Foi quando esse olhar passou a ser levemente perverso que Perséfone entendeu o que se passava na mente da deusa do casamento. Não tinha dúvidas de que os pensamentos de Hera a levavam para o episódio de Asclépio.
— Isso não é possível — Perséfone interveio com seu melhor semblante de deboche. — Se pudesse reviver os mortos, eu também poderia quando era deusa da primavera.
— É um bom ponto — Afrodite concordou.
— Mas você não foi deusa da primavera por tempo o suficiente para termos certeza de que isso é impossível, Perséfone. — Hera ergueu a sobrancelha sem perder o sorriso animado.
— Você mesma me disse que ela nem sabe voar. — A rainha do Submundo cruzou os braços. — Como espera que a mesma deusa que talvez nem seja capaz de voar também traga pessoas de volta à vida? Pelos deuses, isso seria realmente um absurdo.
— Isso é só uma hipótese — Afrodite acrescentou. — Ares consegue propor absurdos quando quer.
— Só uma hipótese — Hera abriu um sorriso maldoso e Perséfone engoliu em seco.
— Enfim, preciso discutir sobre esse casamento — a deusa do desejo continuou. — Está tarde e eu não quero perder meu sono de beleza.


e mal haviam tocado a campainha e Anfitrite já havia aberto a porta, sorridente, como se já esperasse pelo casal.
— Finalmente! — a rainha dos mares sorriu, simpática, e encheu o peito de orgulho. Enquanto andava até eles, estendeu os braços para segurar as mãos de . — Como eu estava ansiosa para lhe conhecer!
— Muito prazer — a deusa da primavera sorriu, tímida, com o jeito expansivo de Anfitrite. — Como você está?
— Oh! — a rainha colocou a mão no peito, emocionada, e seus olhos começaram a brilhar, o que fez franzir o cenho. — Eu estou bem. Que gentil da sua parte perguntar. Entrem, entrem!
encarou o deus de relance e ele apenas apontou com a cabeça para a porta para que ela passasse primeiro. Aquela troca de olhar, no entanto, dizia mais do que o necessário e ambos sabiam. não estava com uma sensação muito boa em relação àquela visita.
Assim que entraram na casa, Anfitrite começou a guiá-los. Embora o exterior da casa fosse bem moderno, dentro parecia uma casa bem acolhedora, típica de lugares com recém-nascidos por conta da bagunça inevitável. Foi somente quando eles adentraram a biblioteca e e Anfitrite começaram a conversar entre si que reparou na aparência da outra deusa. Ela tinha cabelos vinhos longos e ondulados, que estavam em constante movimento por conta da água. Usava um vestido sereia e longo bem justo ao corpo que possuía duas medalhas douradas nos ombros, sustentando uma capa cintilante e quase transparente que iria até o chão se não flutuasse. Na cabeça, uma pequena coroa de ouro e, no braço, um belo bracelete que representava o formato de uma onda.
— Oh, me desculpe. — Anfitrite passou o dedo indicador no canto do olho, como se uma lágrima caísse ali, apesar de não conseguir identificar o que era choro e o que era água do mar. — Eu estou muito sensível ainda por causa da gravidez.
— Não há porque se desculpar, isso é perfeitamente normal — sorriu, reconfortante, o que só fez a rainha chorar ainda mais.
— Obrigada, querida. — A deusa dos mares se recompôs e desviou sua atenção para a parede atrás deles, acima da lareira. — Já ia esquecer. Esse — Anfitrite apontou para um retrato enorme — é o meu primogênito recém-nascido, Tritão.
— Ele é tão fofo. — fitou as bochechas rosadas do bebê com cabelo branco como a neve.
— Oh, sim. Ele parece bem... funcional.
— Funcional? — a deusa da primavera franziu o cenho e encarou o deus ao seu lado, que levantou os ombros e as sobrancelhas, confuso.
— Então, sobre aquilo que estávamos falando, se precisar — cruzou os braços e olhou sério para a rainha —, pode me chamar, não tem problema.
— Anfitrite! — Uma voz desconhecida soou por trás de uma das portas do cômodo.
e imediatamente se entreolharam. A deusa da primavera não fazia ideia de quem era aquela voz, mas o deus logo estreitou os olhos e a deusa conseguiu ler as entrelinhas de sua íris. não estava nem um pouco confortável, muito pelo contrário. Os ombros ficaram tensos e a água ao redor dele pareceu ficar vinte graus mais fria de repente, o que obrigou a deusa a passar as mãos em seus braços em uma rápida tentativa de aquecê-los. Gelo era uma opção melhor no momento.
Anfitrite apenas andou até a porta, abriu-a e enfiou metade do corpo para dentro da sala. Em questão de segundos, ela já andava sorridente em direção à .
— Ele quer lhe conhecer, querida.
— Ele quem? — a deusa da primavera franziu o cenho, confusa.
— Poseidon — respondeu com desgosto.
Anfitrite assentiu com a cabeça e colocou a mão nas costas de para levá-la até a entrada do escritório de Poseidon. Quando fez menção de entrar também, a rainha o impediu.
— Sozinha.
O deus bufou e parou, trincando o maxilar quando encarou-o, curiosa. Antes que Anfitrite voltasse a fechar a porta, a deusa da primavera jurou que havia sussurrado alguma coisa, mas ela não ouviu e muito menos teve tempo de ler seus lábios. De um segundo a outro, estava trancada com Poseidon naquela sala desconhecida.
— o deus sorriu, satisfeito, e levantou-se da cadeira. Não passou despercebido por ela o seu olhar de análise dos pés à cabeça, o que a fez erguer uma sobrancelha. Aparentemente, discrição não era um dos atributos de Poseidon. — Deusa da primavera. Acho que estamos nos conhecendo meio tarde, não acha?
— Considerando que nós viveremos até a eternidade, um mês me parece pouca coisa. O que também me parece pouca coisa é a quantidade de pessoas nessa sala, não acha?
Poseidon apenas inclinou a cabeça, curioso. Esperava alguém um pouco mais... ingênua. Isso, no entanto, não interferiria em seus planos. Ah, como Zeus ficaria enciumado, mal poderia esperar por sua reação quando soubesse. Ficara horas em sua última reunião com seu irmão ouvindo sobre como a nova deusa da primavera era uma das mais belas criaturas da história do Olimpo. Quem não ficaria enciumado quando ele, o próprio rei dos mares, tivesse uma amante que nem Zeus poderia ter?
De maneira calma, ele apontou para seu lado, pedindo implicitamente que andasse até ali. A deusa engoliu em seco e deu passos cautelosos e demorados. Psique avisara-a que deveria obedecer à Tríade Real se não quisesse ter consequências. Foi uma das primeiras coisas que ela falou no dia em que se conheceram. Ela também avisou que Poseidon poderia ser um tanto quanto parecido com Zeus, ainda que mais discreto.
— O Olimpo está lhe tratando bem? — o deus sorriu, sedutor, e arregalou levemente os olhos.
— Na medida do possível.
— Na medida do possível? — Poseidon colocou sua mão sobre o braço dela. — Uma bela deusa como você merecia o melhor tratamento que existe. Os mares estarão sempre de portas abertas para você. Tenho certeza de que todos os seus desejos serão satis...
— Você poderia, por favor, retirar sua mão daí? — interrompeu-o, educada, embora estivesse incomodada, e o deus imediatamente franziu o cenho. Não estava acostumado com a rejeição. Muito pelo contrário, o que não lhe faltava eram deusas e ninfas aos seus pés.
— Como eu dizia, seus desejos serão satisfeitos aqui.
— Certo, mas como eu dizia, por favor, retire a sua mão.
— Sabe, desde que chegou, você já tem fama. Hera pode discordar, mas não há como negar, você é tão linda quanto Afrodite, talvez até mais.
— Você não está ouvindo o que eu estou dizendo? — perguntou, irritada, e tentou tirar a mão dele de seu braço, porém ele só o apertou ainda mais.
— Eu lhe pergunto o mesmo.
— Não vou lhe pedir de novo. Me solte!
Poseidon, ainda em choque com a recusa, apenas a fitou, confuso. Não teve muito tempo para qualquer reação, no entanto, já que, no segundo seguinte, abriu as portas brutalmente. Suas grandes asas estavam maiores do que nunca e jurou que cada pequena pena parecia ser uma navalha afiada. O deus possuía a íris vermelha. A raiva percorrendo em suas veias era palpável para qualquer um que estivesse dentro daquela casa.
— Ela pediu para você soltá-la — falou entredentes.
— Cuidado como fala comigo. — Poseidon estreitou os olhos e grunhiu quando ele apertou ainda mais sua mão contra o braço dela.
— Outch! — a deusa falou, incrédula, embora os dois estivessem concentrados demais um no outro para ouvi-la.
Em um piscar de olhos, estava segurando o pulso de Poseidon para que ele soltasse . O deus dos mares gritou de dor quando sentiu a palma efervescente de sobre sua pele gelada. Estava quente como carvão em brasa. Não demorou muito para que Poseidon estivesse o pressionado contra a parede.
— Você vai pedir desculpas para ela agora — falou, irritado, apertando ainda mais seu braço contra o pescoço dele.
— Ou o quê? — Poseidon retrucou, irritado, apesar de debochado também. Sabia muito bem que não precisaria nem de um segundo para trocar de posição com o outro deus.
... — sentiu um calafrio percorrer seu corpo quando viu não somente o vidro da parede trincando, como o que parecia ser uma cauda de um enorme tubarão. — Eu não acho que violência seja a resposta...
— Não é a resposta, é a porra da solução! — estava consumido pela raiva.
— Eu não vou falar mais de uma vez. — Poseidon trincou o maxilar. — Me largue ou a sua punição será pior que a de Prometeu. Você sabe muito bem quem está ameaçando, .
— O que está acontecendo aqui? — Anfitrite adentrou o escritório carregando uma bandeja de prata com um bule e algumas xícaras e pires.
— Como diabos ela acha que vamos tomar algo na água do mar? — sussurrou, confusa.
apenas sorriu, sarcástico. Ele sabia que a última coisa que Poseidon gostaria que acontecesse era que sua amada esposa soubesse o que ele estava fazendo. Diferentemente de Hera, toda vez que o deus dos mares traía Anfitrite, ela se escondia em uma caverna nas profundezas dos mares, cuja localização era desconhecida por Poseidon. Só voltava quando queria e levava seu filho junto consigo, o que não era uma boa política para ele.
— Não ouse — o deus dos mares sussurrou para .
— Então, nunca mais chegue perto de .
Poseidon, de relance, encarou Anfitrite, confusa. apenas passava a mão delicadamente sobre seu braço. A deusa da primavera não ousaria intervir, não era hora. Ela não sabia do que era capaz, mas só de pensar que, na iminência de desmaiar, ele quebrara todas as suas costelas, preferia não se intrometer.
— Tudo bem — o rei cedeu.
deu dois passos para trás, largando o deus, que colocou a mão no pescoço. Sem desviar a íris vermelha e irritada, voltou a falar.
— Nada. Não está acontecendo nada.
— Querido? — Anfitrite encarou Poseidon.
— Era só uma brincadeira, amor.
— Eu agradeço que você tenha me ajudado, mas já é a segunda vez. Eu tenho que aprender a me virar, sussurrou enquanto via Afrodite e Poseidon conversarem.
A deusa dos mares mantinha um semblante desconfiado.
— A partir do dia em que você souber controlar seus poderes, eu nunca vou precisar intervir, mas, por enquanto, você não tem noção do que um deus desses é capaz e essa briga não é justa — ele respondeu, convicto, sem desviar o olhar de Poseidon.
— Com licença. — O rei dos mares levantou o dedo indicador, pedindo silêncio, enquanto a outra mão segurava um telefone vibrando. — Poseidon. Pode falar.
A onda de silêncio tomou conta da sala instantaneamente e a troca de olhares foi intensa enquanto Poseidon conversava com a pessoa do outro lado da linha. Anfitrite encarou com veemência, sabia que tinha algo ali que não estavam contando para ela. mantinha o usual olhar frio, encarando a rainha de volta até desviar o olhar para , que parecia entender pouca coisa além do desconforto no fundo de seu estômago. A deusa da primavera fitou Anfitrite, que não pareceu querer intimidar logo de cara, e depois voltou seu olhar para de novo, que dessa vez lia as entrelinhas da íris da deusa. Mais uma vez ela se sentia nua, como se ele estivesse tendo sucesso em tentar lê-la. Então, naturalmente, ela suspirou aliviada quando todos escutaram a voz de Poseidon.
— Hm... Uhum. Sim, claro. Eu vou tomar conta disso, não se preocupe.
— O que aconteceu? — Anfitrite cruzou os braços.
— Parece que todas as plantas da nossa estufa principal morreram. — O rei trincou os dentes e virou-se para . — Coincidência?
— Bom — ela sorriu com falsa inocência e , sem perceber, se deliciou com o sarcasmo daquela voz —, o que me parece é que você tem muito, muito trabalho em suas mãos, não?


— Antes de entrarmos — Eros fechou os olhos e respirou fundo, com a mão envolvendo a maçaneta da porta de entrada —, sabe aquelas famílias que se juntam nos feriados, brigam, discutem, alguém vai parar no hospital, mas que no final do dia se amam? — assentiu com a cabeça e Medea revirou os olhos. — A minha não é como esta.
— O que disse? — a deusa da primavera sorriu fraco e encarou a ninfa, que parecia não querer aceitar seu destino.
— Vocês conhecem o meu pai, Ares, o deus da guerra — Eros voltou a falar e ouviu um barulho de vidro quebrando dentro da casa de Afrodite. — O cara é mal, ele sabe se impor, ele sabe tanto causar a ordem como a desordem, mas aqui... — o cupido fez uma pausa dramática. — Aqui ele é um refém.
— Eu não acredito que você está me fazendo de babá — Medea sussurrou, irritada, porém a ignorou. — E ainda me fazendo ouvir esse discurso de merda. Eu não concordei com isso.
— Queria avisar também que a casa está uma bagunça. — Eros abriu a porta. — Hermes e eu não estamos dando conta sozinhos.
O hall de entrada com duas enormes escadarias com corrimãos de ouro estava a própria definição de caos, o que fez e Medea arregalarem os olhos. Hermes voava para todos os lados, carregando vasos de cristais — e qualquer outra coisa que pudesse quebrar — em seus braços enquanto balançava a perna para que Deimos a soltasse. Fobos corria como se tivesse toda a energia do mundo e Harmonia, no chão da sala mais ao fundo, chorava e gritava. Não tinha um quadro que estivesse reto ou uma parede que não estivesse riscada.
— Não. — Medea imediatamente fechou a porta de entrada e fitou o cupido com incredulidade. — Nem fodendo.
— Mas vocês disseram que iriam ajudar. — Eros encarou-a com olhos suplicantes.
— Nós vamos — sorriu, gentil, e abriu a porta de novo, já adentrando a casa.
— Nem se você acertasse uma flecha de ouro em por mim — Medea riu, debochada, e manteve-se parada.
— Você gosta dele? — a deusa franziu o cenho.
— Não — Eros respondeu certeiro e cruzou os braços. — Ela só acha ele atraente, assim como todo mundo no Olimpo.
— E no Submundo — Medea acrescentou. — Assim como todas as pessoas que enxergam, eu diria.
— A mulher das flores. — Fobos parou de correr para observar .
— Ela voltou! — Deimos sorriu e soltou a perna de Hermes sem ao menos se importar que cairia da altura do segundo andar.
— E trouxe uma ninfa. — Fobos chegou perto delas e ameaçou tocar a bota de saltos finos de Medea em pura curiosidade.
— Não ouse, otário — a ninfa fitou-o com um tique no olho direito.
— Você não pode chamar uma criança de otária! — Hermes gritou.
— Eu não sei se me importo — Eros deu de ombros e foi atrás de Deimos, que já começava a subir na bancada da cozinha.
— Do que você tem medo, deusa? — Fobos parou em frente à com um sorriso ao mesmo tempo doce e maligno e Medea assustou-se com a falsa ingenuidade. — Do que você tem mais medo?
Antes mesmo que pudesse responder, uma sensação estranha tomou conta de sua barriga e não demorou muito para que seu corpo ficasse gelado, como se a temperatura caísse cinquenta graus de um segundo ao outro. Nunca agradecera tanto à estranha habilidade divina de seus órgãos se curarem tão rápido. Estaria à beira de um colapso térmico se não fosse por uma resistência física anormal.
— O que ele está fazendo? — Medea perguntou, assustada, sem tirar os olhos da cena.
— Ele está vasculhando a mente dela — Eros respondeu, tirando uma faca da mão de Deimos, que relutava em resposta. — Está procurando seus medos.
Deimos, aproveitando que o cupido virou a cabeça durante dois segundos para encarar Fobos, enfiou a faca no ombro de Eros, que rangeu os dentes e grunhiu de dor, o que fez arregalar os olhos.
— O que nós conversamos sobre isso? — Eros retirou a faca de si sem hesitar e o machucado se curou instantaneamente. — Espera só até sua mãe saber disso.
— Quase como o próprio Hades essas proles. — A ninfa entreolhou os meninos com receio.
— Não se preocupe, — o cupido sorriu. — Fobos não está autorizado a provocar medos em deuses, só os descobrir.
— Provocar medo? — a deusa falou, já sentindo o corpo esquentar novamente.
— Ele tem o poder de criar medos nas pessoas — Hermes respondeu e segurou Fobos, colocando-o nos ombros.
— Os medos dela são chatos — Fobos falou, entediado. — Ela tem medo de Hera ou Afrodite estarem certas.
— Certas sobre o quê? — engoliu em seco.
— Você sabe muito bem. — Fobos encarou-a nos olhos com cinismo cravado nas linhas de sua íris. Cinismo demais para quem era somente uma criança. — Sabe qual a parte mais legal do medo? É que o medo faz a gente cometer loucuras.
— O que quer dizer com isso? — Até o mensageiro ficou preocupado com o tom de voz fúnebre.
— E os medos da ninfa? — Deimos sugeriu, travesso, e Medea arregalou os olhos.
— Talvez devêssemos brincar lá fora, não? — Hermes riu com a reação dela.
— Talvez devêssemos falar sobre os seus. — Fobos ergueu uma sobrancelha, insinuante. — Eu acho que todos adorariam saber que você tem medo que eles descubram seu caso com...
— Hora de brincar lá fora — Hermes sorriu com um leve toque de desespero e voou rapidamente para a varanda de vidro no fundo da casa, abrindo as portas francesas e trancando Fobos no quintal logo em seguida.
— Você sabe que ele — Eros apontou para o menino batendo no vidro enquanto gritava — vai conseguir entrar na casa nem que seja pela chaminé, não sabe?
— Quer dizer que você está guardando segredos? — Medea sorriu, maliciosa, e fitou Hermes.
— Todos estamos, não acha, Eros? — sorriu, esperta, chamando atenção dos outros deuses.
— O que você quer dizer com isso? — o cupido estreitou os olhos.
— Hermes, você poderia, por favor, encontrar Fobos? — a deusa sorriu gentil, ignorando Eros. — Ele já sumiu do quintal.
— Claro — o mensageiro assentiu, nada animado com a tarefa.
— Medea — falava enquanto recolhia os brinquedos do chão —, você consegue cuidar da Harmonia?
— Disso? — a ninfa apontou para a criança ainda esperneando no chão.
— Eros, não deixe que seu irmão destrua nada, tudo bem?
— Você pode fazer ela parar de fazer esse negócio estranho com a cara dela? — Medea perguntou com os braços cruzados enquanto encarava Harmonia.
— Chorar? — Eros franziu o cenho.
Não demorou muito para que as coisas estivessem um pouco mais organizadas. Hermes tentava a todo custo tirar Fobos da entrada de cachorro na porta dos fundos, onde ele havia ficado preso. Eros brincava com Deimos, que parecia se comportar um pouco melhor. O cupido atribuía essa mudança de comportamento à , que trazia consigo não somente uma beleza ímpar, mas um jeito agradável e calmo à sua volta que ele achava ter influenciado Deimos. Medea finalmente havia cedido ao pedido de Harmonia, deixando-a fazer seu cabelo e sua maquiagem. Diga-se de passagem, o grito de horror foi inevitável quando ela se olhou no espelho.
— Isso — Medea apontou com uma cara de desgosto para o próprio cabelo cheio de presilhas e glitter enquanto Eros e Hermes seguravam a risada —, isso é o que salvou vocês dos gritos irritantes dela. Eu seria grata pela minha existência, idiotas.
— Quem aqui — apareceu atrás do balcão da cozinha com um saco de farinha e um pacote de gotas de chocolate nas mãos — quer comer cookies?
— Eu! Eu! Eu! — as três crianças e Hermes gritaram em uníssono e correram para sentar nas cadeiras da ilha de mármore.
— Ótimo — a deusa sorriu e arrastou todos os ingredientes na direção deles. — Podem começar a fazer, então.
— Ah, então eu não quero — Deimos fez uma careta e cruzou os braços.
— Eu também não. — Harmonia imitou o irmão mais velho, embora no fundo não se oporia a fazer os cookies.
— Oh, que pena. — ergueu uma sobrancelha, desafiadora, e Fobos encarou-a, animado, levantando-se sobre a cadeira e colocando as mãos na ilha. Sabia que gostaria do que estava por vir só pela cara da deusa. — Porque quem fizer os melhores biscoitos, poderá escolher qual desenho vamos assistir e poderá escolher o sorvete também.
— EU VOU ACABAR COM VOCÊS! — Deimos encarou seus irmãos com um sorriso assustador.
— Não é preciso competição — Harmonia sorriu, tranquila. — Se todos nós fizermos juntos, os três ganham e a gente pode escolher...
— Você é chata — Fobos fez uma careta ao interrompê-la. — Você não vai poder chorar quando eu te destruir, Deimos.
— Vocês realmente levam isso a sério, não? — Medea franziu o cenho.
— Regra. — juntou as mãos na altura do peito. — Quanto menos sujeira fizerem, mais pontos vocês ganham.

Capítulo 12

— Eu não me lembro a última vez que tantos deuses se reuniram fora de uma festa — Hermes falou, animado, ao encarar os deuses à sua volta. — Pã, Nice, Éris, Nemesis, Íris, Tália, Éos, Ilítia, Eufrosina... — ele nomeava todos que passavam por seus olhos. — Hipnos, Boreas, Noto, Euro, Zéfiro, Selene, Mnemósine, Têmis. Até Gaia está aqui.
— Anteros está aqui. Anteros. — Eros passou as mãos em seus cabelos rosas. — Que audiência, não?
— Eu acho que Himeros e Pothos também estão — o mensageiro fez uma careta de preocupação. Sabia que o cupido não cativava as melhores relações com seus três irmãos mais velhos.
— Ele já deve estar atravessando o Estige. — procurou por Hades no meio da multidão e assentiu com a cabeça ao avistá-lo. — Vamos entrar.
— Está nervoso? — Hermes perguntou, colocando seu capacete alado enquanto andava.
— Não tem porquê estar — deu de ombros.
— Ele tem razão — Eros sorriu, dissimulado, e deu dois tapinhas nas costas de . — Todos estarão mais preocupados em prestar atenção nessa beleza de túnica preta do que nas palavras que ele está dizendo.
ergueu uma sobrancelha, sério, e o cupido segurou a risada.
— Não vai entrar? — Eros perguntou quando percebeu que o mensageiro ficou parado em frente aos enormes portões de entrada da Corte do Fim dos Mundos.
— Prometi para que a esperaria aqui — Hermes respondeu.
— Ela vai vir? — parou de andar e virou-se imediatamente.
— Claro — Eros falou, incrédulo. — Quem vai perder esse julgamento? Esse tipo de coisa só acontece a cada milênio.
— Não posso esperar, eu preciso ir — respirou fundo e continuou a andar. — Vejo vocês lá dentro.
— Eu vou com você. — O cupido apressou o passo. — Preciso falar com Afrodite antes de Héracles chegar.
Hermes observou Hera e Zeus entrarem na Corte. A deusa, como esperado, não parecia no melhor de seus humores. Já seu marido, mantinha o semblante contente. Afinal, não era todo dia que uma prole sua recebia uma honraria tão grande como a que estava prestes a vir. Hermes também cumprimentou Atenas, Héstia e Ártemis, que chegava com seu arco prata de caça envolto de seu torço. Os outros deuses já estavam dentro da suntuosa construção. Todos vestiam suas túnicas e suas coroas, prontos para assistirem ao julgamento.
— Desculpe o atraso. — aproximou-se de Hermes um pouco ofegante.
O mensageiro sequer conseguiu pronunciar alguma coisa. Ele estava completamente mergulhado na graciosidade da deusa da primavera. Extasiado. Ele facilmente se reduzia a essa palavra. Não conseguia deixar de achar que ela flutuava ao andar, que seus gestos eram vistos em câmera lenta. Os cabelos soltos e levemente desalinhados por causa da breve corrida que foi necessária para chegar a tempo, somados à túnica branca, aos braceletes de ouro e a uma coroa esplêndida era tudo o que precisava para se tornar o ser mais bonito que Hermes já havia visto. Ela irradiava uma luz dourada, como se o próprio sol a iluminasse. Seria possível arpas tocarem ao fundo? De onde vinha tanta claridade no Submundo? Eros havia atingido uma flecha dourada nele?
— Hermes? — franziu o cenho e acenou, trazendo o semideus de volta à realidade.
— Hm — ele respondeu, ainda distraído.
— Não deveríamos entrar?
— Entrar.
— Hermes, o Caronte está chegando — apontou para o condutor do barco, que podia ser visto atravessando o rio Estige.
— O Caronte! — Hermes fez uma careta e finalmente percebeu o atraso. — Vamos, por aqui.
O mensageiro guiou-a por entre a Corte. A sala de audiência era formada por arquibancadas semicirculares de onde os deuses assistiam o julgamento. Cada um deles estava de pé em seu lugar e murmúrios de empolgação tomavam conta do local. Uma grande cúpula no pé direito alto e várias pilastras de mármore evidenciavam a suntuosidade exagerada do local.
, designado para avaliar a chegada de Héracles, estava de pé atrás da tribuna e lia alguns documentos. Assim que Hermes e adentraram a sala, todos os olhos caíram sobre ela, que engoliu em seco. , distraído, desviou rapidamente o olhar para os dois que haviam acabado de chegar, voltou-o de novo para os papéis que segurava, mas, quando percebeu quem era, foi inevitável não fitar a deusa da primavera de novo. Nunca imaginou que pudesse ficar ainda mais bonita do que a achava. Pegou-se fascinado pelo sorriso tímido de uma deusa que ainda não conhecia seus deveres, mas parecia se encaixar melhor do que ninguém.
Perséfone, encarando seu filho de longe, conseguia ver a estima atípica nele. Qualquer um que não o conhecesse diria que ele apenas analisava com seriedade e até mesmo com um leve sarcasmo, mas a rainha do Submundo sabia que aquele olhar, aquele olhar discreto e vidrado, transbordava muito mais do que aparentava.
A verdade era que ele nunca, tão desesperadamente, quis alguém em sua vida como a queria naquele instante. Se ele achou que a festa de casamento de Zeus e Hera fosse mais do que suficiente para encaixar em todas as coisas que ele queria e precisava, fazendo jus à forma mais divina inventada pelos deuses, mal sabia ele onde estava se metendo quando finalmente pôde conhecê-la. Simplesmente não havia igual. Nunca poderia haver.
observou cada um dos deuses ao seu redor. No primeiro nível da arquibancada, de um lado estavam Poseidon, Anfitrite, Zeus, Hera, Héstia, Atenas, Ártemis, uma cadeira vazia, que sugeria ser o lugar de Hermes ou dela mesma. Do outro, Hades, Perséfone, Ares, Afrodite, Eros, Hécate, Deméter e outra cadeira vazia. Cada um a fitava de um modo. Poseidon e Zeus, em particular, com luxúria; Hera, com desdém; Perséfone, com carinho e Afrodite, com ciúmes. possuía a mais bela coroa do local, não havia dúvidas. Era delicada e imponente, como a mais admirável joia que a deusa do desejo já vira.
— Eu quero essa coroa — Afrodite sussurrou para Ares.
— Nós podemos mandar fazer uma melhor, meu amor — o deus respondeu.
— Mas eu quero essa. Essa é a mais bonita que já vi.
— Eu acho que nesse ponto da vida você já deveria saber que nenhuma coroa seria bonita o suficiente para equivaler a sua beleza. — Ares ergueu a sobrancelha e Afrodite pareceu contentar-se com o elogio.
Enquanto isso, Hermes guiava até seu lugar. Ela sentou-se ao lado de Deméter, que a recebeu com um sorriso e, duas cadeiras ao lado, Eros acenava freneticamente para a deusa.
— Olá, mestra cuidadora, razão da minha existência, deusa regente dos mundos, andarilha miraculosa...
— Você não precisa chamá-la assim só porque ela ficou de babá dos seus irmãos por um dia. — Hermes revirou os olhos e cruzou os braços. — Eu também estava lá, sabia?
— Isso é inveja — Eros sorriu, malicioso, e observou o mensageiro se afastar. — A mulher tem habilidades!
Não demorou muito para que Hermes já estivesse em seu lugar e o silêncio tomou conta do local. sequer precisou falar algo para que todos ficassem quietos, era como se existisse um grande respeito implícito. A deusa da primavera encarava a situação com muita curiosidade, mexendo as mãos em inquietude a cada dois segundos. Héracles, um belo homem de cachos castanhos e olhos azuis como oceanos limpos, adentrou a sala a passos hesitantes, parou bem embaixo do centro da cúpula e analisou o seu redor, claramente confuso.
— Seja bem-vindo, Héracles, à Corte do Fim dos Mundos nas terras subterrâneas — começou a falar, sério, com o semblante levemente sarcástico que lhe era peculiar. — Eu sou o , deus do prazer e do sofrimento e serei o responsável pelo seu julgamento.
— Eu estou morto — Héracles concluiu, calmo, e estranhou a reação.
Para onde foram as lágrimas de tristeza e os “não” dramáticos proclamados do fundo do pulmão em um grito de negação? Desde que ela se lembrava, a morte nunca se foi algo para comemorar.
— Sim, você está — assentiu. — Seu destino na Terra foi cumprido e agora a eternidade lhe espera. Todas as almas são encaminhadas para os lugares que merecem.
— E para onde eu vou?
— Você é um homem de coragem excepcional — continuou. Em sua mais plena honestidade, o deus não queria estar ali. Todos sabiam quem Héracles era e o que tinha feito, por que somente não jogavam o homem no Olimpo de uma vez? Não era como se ele não tivesse capacidade para se virar, claramente. — Você teve muitas conquistas dignas de louvor. Derrotou a Hidra, a serpente de nove cabeças.
Hera revirou os olhos ao ouvir isso. Tinha projetado ela mesma o monstro para derrotar Héracles, alguém que ela encarava como uma prole execrável de seu marido.
— Trouxe o javali de Erimanto ao seu primo Eristeu, caçou a corça de Cerínia após um ano de espera....
— Nem eu consegui caçar esses chifres de ouro — Ártemis sussurrou para Atenas ao seu lado. — A corça era muito rápida.
— Livrou o lago Estínfalo das aves com ajuda de Atenas, desviou o curso de um rio para limpar os estábulos de Augias, libertou as éguas que se alimentavam da carne humana... — arregalou os olhos ao ouvir . — Capturou o touro de Creta — Poseidon respirou fundo e cruzou os braços, decepcionado —, lutou contra as guerreiras Amazonas para conseguir o cinto de Hipólita, derrotou Ortro e guiou o rebanho de bois de Gerião; domou, raptou e devolveu Cérbero...
Hades e Perséfone entreolharam-se, divertidos, e Hermes engoliu em seco. Até então se perguntava se o rei e a rainha do Submundo sabiam que Hermes quem havia guiado Héracles até a entrada do reino das sombras. Atenas, também envolvida na história, não sentia nenhum remorso. Ela ajudara Héracles a não se ferir com o veneno de Cérbero.
— Roubou os pomos de ouro das Hespérides e libertou Prometeu...
— Pelos deuses... — Hera sussurrou para si mesma e colocou a mão na testa em frustração. — Atlas foi a minha maior perda de tempo.
— E, finalmente, matou o leão de Nemeia com as próprias mãos.
Quando terminou de falar, percebeu que havia vivenciado o último ato. Vira um estranho na floresta estrangulando um enorme leão com as próprias mãos, mas jurava ter sido um pequeno delírio ou um sonho. Não fazia ideia de que aquele mesmo homem seria futuramente... endeusado.
— Além de seus doze trabalhos, atravessou desertos e mares e escolheu o caminho da virtude sabendo o que lhe aguardava. Com o consentimento da Tríade Real, como recompensa, faremos de você uma divindade e você será bem recebido no Olimpo.
— No Olimpo? — Héracles piscou, confuso, algumas vezes, e se viu nele, como quando acabara de chegar na cidade no meio das nuvens. — O que é o Olimpo?
— O Monte Olimpo é onde os grandes moram, minha prole — Zeus interveio.
— Hm... — Hades ergueu a sobrancelha, cético. — Parte dos grandes.
— É a terra onde o sol nunca se põe e onde nada lhe faltará. Pelo menos, enquanto o rei e a rainha quiserem. — falou, irônico. — Agora, você tem direito a um desejo. Sugiro que faça uma escolha sábia, já que não terá volta.
— Eu posso desejar qualquer coisa?
— Qualquer coisa que a Tríade Real aprovar — sorriu com a pergunta.
— Eu posso pedir para me casar com alguém?
— Nesse caso você teria que ter a aprovação não somente da Tríade — o deus do prazer e do sofrimento apoiou os cotovelos na tribuna —, mas de Hera também, a deusa do casamento.
— Isso pode parecer loucura — Héracles passou a mão na nuca —, mas eu acho que estou apaixonado pela mais bela criatura que já vi.
— Não é loucura, querido — Afrodite sorriu, gentil, e jogou seu cabelo atrás do ombro.
— Eu quero me casar com você. — Héracles virou-se em direção à , que imediatamente arregalou os olhos e apontou para si mesma.
— Eu? — a deusa da primavera perguntou, confusa, e olhou para trás para se certificar de que não havia se enganado, mas tudo o que viu foi outros deuses chocados, encarando-a.
— Ela? — Afrodite franziu o cenho em incredulidade.
— Não — fechou o semblante instantaneamente e endireitou a coluna. — Pedido negado.
— Por mim, está autorizado — Hera sorriu, satisfeita.
As coisas estavam saindo melhores do que ela esperava.
— Mas você nem me conhece — riu, nervosa. — Como você quer casar com alguém que nem conhece? Muitas coisas acontecem antes de você considerar casar com uma pessoa.
— Eu estou apaixonado por você. — Héracles colocou a mão sobre o peito. — Foi amor à primeira vista.
— Ele está mesmo. — Eros recostou-se na cadeira, preocupado. — Eu sinto.
— Eu não vejo porque não. — Zeus deu de ombros.
— Se não está se envolvendo com ninguém, também não vejo porque não — Poseidon concordou.
— Pelo amor dos deuses... — Hermes colocou a mão na testa.
— Não tem como eu aprovar isso — Hades interveio e Perséfone assentiu a cabeça em concordância ao seu lado. — Ela deve se casar se quiser, não porque ele quer.
— Mas ele tem o direito ao desejo dele — Ares retrucou.
— Esse desejo teoricamente é limitado. — Héstia inclinou a cabeça. — Assim como ele não pode pedir para ser mais poderoso que um de nós, ele não pode pedir para que ela se case com ele.
— Ele pode — Zeus falou, irredutível. — Não há nada nas regras que proíba pedir um casamento com uma deusa, ainda mais uma pessoa digna de divindade. Ele agora é um de nós.
— Essas regras têm milhares de anos já! — estava claramente irritado. — São mais velhas do que metade dessa sala!
— Mas enquanto não forem reescritas — Hera ponderou —, são elas que regem esse julgamento.
— Isso é um absurdo! — Perséfone rebateu, cética.
— Héracles — manifestou-se com uma postura calma, embora seu coração batesse rápido só de pensar na possibilidade de seu destino estar nas mãos de regras milenares incongruentes —, você tem certeza de que quer isso? Você pode pedir o que quiser, absolutamente o que quiser. Você pode pedir que sua eternidade seja tranquila, que todos os dias sejam como férias no seu próprio barco à beira mar, pode pedir uma mansão, um chef de cozinha particular... pode pedir a paz mundial, se quiser!
— Não dê ideias — Ares cruzou os braços.
— Posso ressuscitar um morto?
— Não — Hades respondeu como se fosse algo óbvio.
— Posso pedir para ser rico?
— Não há necessidade — Deméter franziu o cenho.
— Não há? — Hécate retrucou com uma sobrancelha erguida.
— Não importa, estou convicto de que quero me casar com a mais bela das deusas que já vi. O que seria uma vida com dinheiro, se eu não posso ser feliz ao lado de quem amo?
— Urgh. — Hermes segurou a ânsia de vômito enquanto Eros quase chorava de emoção.
— Oh, o amor realmente pode ser algo lindo, ele está certo sobre isso.
— Cale a boca, Eros. — O mensageiro jogou um lenço de papel na cara do cupido sem delicadeza alguma.
Afrodite revirou os olhos com o comentário de Héracles e se recostou na cadeira enquanto bufava. , por outro lado, sentia uma gota de suor atravessar sua testa quando percebeu o quão obstinado o semideus estava.
— Pedir para se casar com uma deusa é algo bem inteligente, devo assumir — Poseidon sussurrou para Zeus. — Ele agora vai ter mais poder do que já foi lhe dado.
— Mas, veja bem — a deusa da primavera continuou a falar e ela sentiu o olhar inquieto de sobre si —, você ainda não viu todas as deusas e deuses. E se você se apaixonar ainda mais por outra pessoa, mas estar casado comigo? Ou, pior, e se você não gostar da minha personalidade e eu da sua? Casamentos no Olimpo são laços eternos e inquebráveis.
— Mas todas as deusas já não estão aqui? — Héracles perguntou, confuso, e precisou pensar rápido.
— Não... ainda falta a... a... hm... — ela olhava para todos os lados, tentando identificar faces que ela nunca nem havia visto na vida. — A Hebe!
Hera imediatamente arregalou os olhos e pôde sentir sua raiva crescendo do outro lado da sala. Nenhum outro nome viera em sua mente senão pela filha mais querida da rainha olimpiana, que nem em um milhão de anos aceitaria um matrimônio entre Hebe e um filho bastardo de Zeus, independentemente do quão glorificado ele fosse.
— Oh, sim — abriu um pequeno sorriso sarcástico ao fitar Hera. — Hebe é uma das deusas mais bonitas que já se viu. Eu não tomaria decisões precipitadas se fosse você, Héracles.
— Hm, vocês têm um ponto. — O herói colocou a mão no queixo.
— Jamais! — Hera pronunciou com seus cabelos esvoaçantes e levantou-se. — Jamais permitirei um casamento desses!
— Por que não? — Zeus franziu o cenho. — Nossa bela filha seria casada com um homem de tamanha glória.
— Mas se Hebe não for mais bela que — Hera precisou engolir seco ao pronunciar essas palavras —, você, Héracles, estará desperdiçando seu desejo.
— É verdade — ele concordou.
— Nós devemos casá-los, então — a rainha olimpiana sorriu, satisfeita.
— Só por cima do meu cadáver. — rangeu os dentes e bateu as mãos na tribuna.
— Eu sugiro que façamos o seguinte — Deméter falou pela primeira vez. — Peça que tenha um encontro com e com Hebe e que possa casar com a que mais gostar.
— O que você está fazendo? — arregalou os olhos e os murmúrios tomaram conta do local. — Eu não quero me casar com um estranho.
— São as leis, — Zeus encarou-a, resoluto. — Se não quiser obedecê-las, a próxima a ser julgada aqui será você.
— Oh, mas casamento arranjado é tão... arcaico — a deusa da primavera sorriu, sem graça, e colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Me lembrem de requisitar uma atualização dessas leis assim que sairmos daqui, ok?
— Eu sinto falta do mundo de cinco minutos atrás — Hermes suspirou enquanto fitava com preocupação.
— Então eu peço o que aquela deusa sugeriu. — Héracles apontou para Deméter.
— Aprovado — Zeus e Poseidon falaram em uníssono.
— Eu não acho que conseguiremos algo melhor que isso conhecendo seus irmãos — Perséfone sussurrou para seu marido.
— Aprovado — Hades falou em um suspiro hesitante e imediatamente fitou-o, incrédulo.
— Bom, enquanto não houver casamento, não há necessidade da minha interferência. — Hera revirou os olhos e cruzou os braços.
— Se ninguém mais tiver nada a ser acrescentado — precisou lutar contra a vontade de mandar todos na sala para a puta que pariu depois de quebrar cada um daqueles ossos e arrancar e esmagar seus olhos um a um. Ele segurou a tribuna até os nós de seus dedos tornarem-se brancos. Como tártaros aquele merda de ser humano tinha tido a audácia de pronunciar o nome dela? De pedir algo assim? Ele não tinha medo de sofrer pelo resto da eternidade insignificante dele? —, o julgamento está encerrado. Héracles, você terá a honra de ser encaminhado para o Olimpo por sua coragem excepcional e tem direito a encontros com as deusas na garantia de um... matrimônio.
— Bem-vindo ao resto de sua vida, minha prole — Zeus sorriu e apontou para o corredor por onde Héracles deveria seguir, que dava para uma longa passarela suspensa entre penhascos rochosos e pontiagudos sob o céu vermelho daquela parte do Submundo.


E mais uma vez caía com suas grandes asas negras e afiadas envolvendo seu corpo. Mas algo não parecia o mesmo. Ultimamente, sentia-se muito mais exausto, mais sobrecarregado. Questionava-se se estava trabalhando demais, se o mundo estava tendo mais conflitos. Será que deveria conversar com Ares? Exigir que ele repensasse na agressividade natural dele. Todas aquelas guerras na Terra deveriam estar sugando a energia de .
Ou, talvez, fossem as trezentas cartas ainda fechadas de Hera esperando-o em cima de sua mesa no escritório. Quando o assunto era irritá-lo, a deusa do casamento parecia possuir um dom especial para essa tarefa. Não importava quantas vezes fosse grosso, invasivo ou deixasse claro que não tinha mais paciência para os assuntos irritantes e nem um pouco urgentes de Hera, ela parecia insistir em mantê-lo preso naquele jogo. E aquelas cartas pareciam falar com ele. Chamá-lo.
Havia uma terceira hipótese, mas ele se recusava a pensar que poderia ser real. Afinal, ele era o deus do prazer e do sofrimento, nada além daquilo deveria o agradar. Ainda mais um outro sentimento tão medíocre.
Pegou-se tão preso em suas próprias reflexões que, por questões de centímetros, não colidiu com o chão. No último segundo, abriu suas asas e o asfalto da rua trincou debaixo de seus pés. Mais um pouco e estaria enterrado debaixo do concreto. Seu corpo poderia se curar rápido, mas só a dor dos outros já era o suficiente de sofrimento por um dia, não precisava esfregar sua cara no asfalto para provar o seu ponto.
— Eu não lembrava que podíamos danificar patrimônios públicos. — ergueu a sobrancelha com um sorriso divertido. — Zeus vai adorar saber que a rua deverá ser refeita.
— Receptiva como uma verdadeira deusa da primavera — sorriu, sarcástico, e começou a andar em sua direção. — E eu não lembrava que você podia faltar no estágio da Deméter.
— E como você sabe, se isso for verdade, claro, que eu estou faltando no estágio?
— Porque eu estou burlando as regras e saindo bem mais cedo do meu trabalho — ele deu uma piscadinha. — E, até onde eu sei, nós temos a mesma carga horária.
— Eu não estou em serviço. Deméter tem sido bem generosa comigo esses dias por causa do que aconteceu no julgamento da Corte do Fim dos Mundos.
— Isso explica a calça jeans.
— Sim. — deu uma volta. — Gostou?
— Dizem por aí que você pode usar um saco de batata e continuar bonita.
E talvez, só talvez, tenha começado esse rumor, pois talvez, só talvez, ele tenha deixado isso escapar de sua boca na presença de Hermes.
— Olha só — ela colocou a mão no queixo, pensativa —, eles têm razão.
— O que faz aqui? — olhou para os dois lados da rua, procurando por alguém que conhecesse.
— A mídia vai gostar de chamar de terceiro encontro se nos acharem aqui agora, mas eu gosto de chamar de abandono.
— Quem lhe abandonou aqui?
— Psique. Aparentemente, o seu julgamento não afetou só a mim, mas o Olimpo inteiro está tendo que trabalhar a qualquer hora como nunca antes. — deu de ombros. — Por que você está carregando tantas sacolas?
— É a minha janta.
— Você vai comer tudo isso? — A deusa ficou boquiaberta.
— Não — revirou os olhos e sorriu, discreto. — Era para eu jantar com o Hermes, mas ele precisou atender o Zeus. Ele e Hera parecem estar no meio de uma discussão a distância. Quer subir? — o deus apontou com a cabeça para a entrada de seu prédio. — Tem comida o suficiente para umas quatro pessoas, já que Hermes come um banquete todo praticamente sozinho.
— Bom — olhou para trás e pareceu ponderar por alguns segundos, só até sua barriga roncar e erguer uma sobrancelha —, já que estamos aqui, claro.
Assim que entraram no apartamento, foi direto para a cozinha enquanto fechava a porta atrás de si. A deusa sentou-se em cima de uma das bancadas. Achava estranho como não tinha cadeiras na ilha da cozinha. Ela até se perguntou se eles iriam usar a mesa da sala de jantar, mas ele avisou que Hermes havia deixado as correspondências ali antes de eles irem buscar a janta e não queria mexer no que não era dele.
— Como foi o seu dia? — perguntou enquanto abria as embalagens.
— Nada demais — deu de ombros e apoiou-se de costas na bancada, ao lado dela, mexendo na comida sem muito apetite. — Precisei chamar o Controle hoje, porque alguém morreu.
— O quê? — quase engasgou. — Como alguém morre no mundo dos mortos? Vocês literalmente têm uma plaquinha escrito “Parabéns, você está morto” na entrada do Submundo.
— Foi uma ninfa.
— Uma ninfa? — A deusa juntou a sobrancelhas e sentiu um aperto no coração.
— Existe uma pequena categoria de humanos — deixou a comida de lado e cruzou os braços — que não aceitam que estão mortos. Normalmente, são pessoas que fariam parte do Tártaro. Eles são perigosos, porque não há nada que eles não fariam por outra vida, é só isso que anseiam. Eles ficam contidos em uma parte especial do Submundo, mas, como todo lugar, precisa de manutenção. A cada seis meses, alguém da equipe de infraestrutura precisa entrar para uma análise, mas, dessa vez, a ninfa que entrou não seguiu o protocolo e as almas... Bom, elas sugaram a vida dela.
— E, quando isso acontece, as almas voltam à Terra?
— Não — deu de ombros. — Não, porque nunca aconteceu de uma única alma sugar inteiramente a vida de uma ninfa. Cada uma pega um pouco para si. Seria preciso um deus da fertilidade para que todas conseguissem voltar.
— E qual é exatamente seu papel nisso tudo? — encarou-o, confusa.
— Eu preciso assinar alguns documentos de responsabilidade e analisar o que precisamos mudar. Depois disso, repasso as minhas ordens para as outras áreas e elas colocam as coisas em prática.
— Você tem muitas responsabilidades diferentes, não?
— Como assim? — franziu o cenho e fitou-a.
— Bom, você tem seu turno na Terra, causando sofrimento e prazer em quem quiser e sentindo isso também, e você também tem diferentes papeis no Submundo, como juiz no julgamento final e isso que você acabou de dizer.
— Alguns deuses são assim. — Ele não pôde deixar de ficar incomodado com o semblante desanimado dela. — Hermes, Hécate, Hera, Zeus, Poseidon... Assim como tem deuses que não são, como Hefesto, Ares, Deméter, Afrodite, Hebe, Anfitrite, Eros.
— Você acha que eu sou uma dessas deusas que só tem um único trabalho? Quer dizer, eu sei que atualmente eu faço estágio no Submundo e na Terra, mas Deméter já me liberou para trazer a primavera, então acho que esse vai ser meu trabalho integral agora.
— Você acha que um único trabalho significa pouca coisa?
— Não, eu... eu não sei. Acho que as palavras de Hefesto ficaram na minha cabeça. Fico me perguntando qual exatamente é meu papel aqui, se a Deméter consegue fazê-lo.
— Você não deve se sentir mal por causa disso. — ergueu os ombros, como se o que acabara de dizer fosse algo óbvio. Ela já sabia que o deus tinha uma peculiar facilidade de fazê-la se sentir confortável e protegida, mas, desde que chegara ao Olimpo, fora a primeira vez que isso ficou muito claro em sua mente. — Você é literalmente uma das poucas razões pelas quais os mortais nos veneram. Talvez, fazer mais de um papel seja apenas autonegação. Eu, por exemplo, sou produto da morte ou o que chamam de prole do caos. É da minha natureza trazer dor. Fazer outros trabalhos faz isso parecer apenas uma pequena parte da minha vida, faz isso parecer que eu não faço só coisas ruins.
— Mas você também traz prazer.
— Eu sinto abstinência de sofrimento, sorriu. — Como eu disse, eu só me engano, porque não controlo, é inerente ao meu ser. De vez em quando, eu preciso ver alguém no limiar da morte, naquele desespero em vão de se segurar no último segundo de vida como se aquilo fosse estender qualquer tempo que a pessoa simplesmente não tem mais.
— Você não ama quando alguém está prestes a morrer e você aparece? — Uma voz desconhecida invadiu a cozinha e colocou a mão no peito com o susto. — Aquele momento em que uma pessoa está se segurando na beira do penhasco escorregadio, achando que você vai oferecer a mão para ajudá-lo, mas, na verdade, você está ali só para observar e apreciar? — Hades abriu um sorriso extremamente perverso. — Ou até mesmo para dar um empurrãozinho.
— Eu avisei que era bom ele bater antes de entrar. — Hermes balançou a cabeça em negação e foi direto mexer nas suas pilhas intermináveis de envelopes.
— O que você está fazendo aqui? — falou, entediado.
— Eu poderia perguntar a mesma coisa — Hades retrucou. — Até onde eu sei, há muitas coisas a serem feitas no Submundo ainda.
— E você veio me chamar para eu voltar a trabalhar? — franziu o cenho, analisando-o. — Perséfone pediu para você vir.
— Ela disse que seria bom nós termos... — O rei do Submundo tirou suas luvas pretas e seus óculos escuros, revelando o olhar mais cético que já vira. — Tempo de qualidade.
— Eu sinto que eu não deveria estar aqui. — A deusa remexeu-se, desconfortável.
— Eu e você, querida — Hermes disse sem desviar o olhar dos papéis.
. — Hades fitou-a com seu sorriso ainda cruel. — Eu ouvi dizer que você fez uma visita a Poseidon. — O deus da morte começou a bisbilhotar os documentos de sem pressa, que logo retirou os papéis da mão de seu pai. — Me disseram que você se virou perfeitamente bem. — Ele lançou um olhar para . Um olhar que ela não conseguiu decifrar. — Você precisa me ensinar como você fez isso. Não é fácil ter um irmão dotado de tanta falta de discernimento como ele. Então, diga-me, como você fez isso?
— Não fui eu quem lidei com...
— Você o transformou em uma planta? — Hades interrompeu-a.
— Não. — franziu o cenho.
— Você o defenestrou em direção ao tubarão?
— Eu... O quê?
— O clássico, então. Raízes enforcando os órgãos? Ou, melhor ainda, cipós o pendurando de cabeça para baixo em um precipício até ele perder a consciência enquanto um galho afiado em brasa atravessa seu corpo?
olhou de relance para , que mantinha uma expressão de normalidade plena demais para aquele diálogo. Ela estava no mínimo aterrorizada com aquela conversa.
— Não, não, nada disso!
— Oh — Hades fitou-a com dó. — Não me diga que foi algo menos pior do que transformá-lo em planta. Isso já é amador o suficiente.
A deusa da primavera encarou mais uma vez, que pareceu entender o que o cenho franzido significava.
— Ele é o deus da morte, — ele deu de ombros.


Psique terminava de colocar as flores no cabelo de enquanto Ártemis escolhia os saltos. O clima na sala de estar não era um dos melhores, mas a deusa da primavera estava absorta demais em seus próprios pensamentos para sequer notar o seu arredor, passando a mão em movimentos de ida e volta no tecido sofá.
— Então... — a deusa da caça tentou quebrar o silêncio. — Hera quem lhe enviou esse vestido?
— Junto com um bilhete sutil até demais. — Psique ergueu a sobrancelha.
— Como assim? — Ártemis encarou-as, curiosa.
Querida , espero que tenha um primoroso encontro. Deixo aqui um presente de boa sorte para você, tenho certeza que ficará esplêndida nele lia o pequeno papel em sua mão. — Sua excelentíssima, Hera.
— Ela realmente sabe o que cai bem em você. — Ártemis entregou um salto para a outra deusa provar.
havia de admitir, o vestido era simplesmente lindo. Uma saia longa, que, apesar de possuir camadas, cobria toda a parte debaixo com leveza. Em cima, somente um tecido trançado que cruzava seu torço. Tudo aquilo em branco, o que tornava a peça coincidentemente — ou não — parecida com um vestido de casamento não tradicional.
— Eu queria estar vestindo um moletom dessa vez — suspirou, desanimada.
— O objetivo era ela fazer Héracles não gostar dela. — Psique balançou a cabeça em negação. — Mas quais as chances de isso acontecer agora? Hera sempre arranja um jeito de conseguir o que quer.
— Acredite — Ártemis arregalou os olhos —, depois de eu a ter visto castigar uma amante de Zeus, a única coisa que eu teria medo de fazer nessa vida é ir contra os desejos de Hera. Mas, pensando pelo lado positivo, pelo menos me disseram que o encontro de Hebe e Héracles foi tão bom que até Eros sentiu borboletas no estômago ao passar perto deles. E, vamos combinar, o moletom não ia diminuir as chances de ele gostar de você.
— Terminei por aqui — Psique sorriu, frustrada, e segurou o queixo de para que ela prestasse atenção no que dizia. — Não seja você mesma ou é garantia de ele se apaixonar.
— Ótimo conselho. — Ártemis apontou para Psique. — Tente não fazer esse negócio de fazer todos a sua volta se sentirem confortáveis.
— Eu vou tentar — sorriu fraco. — Obrigada pela ajuda.
A deusa da primavera colocou-se de pé e o som de três batidas concisas na porta chamou a atenção das três.
— Você acha que é ele? Héracles? — Psique estreitou os olhos.
— Não pode ser. — segurou sua saia para que pudesse andar até a entrada. — Eu vou encontrá-lo no parque.
— Oh! — Ártemis deu uns pulinhos, animada, ao perceber do que se tratava. — É a minha surpresa para vocês!
— Surpresa? — a deusa da primavera franziu o cenho e abriu a porta. — O que você...
Antes mesmo que pudesse continuar a pergunta, um rosto conhecido apareceu em sua frente. imediatamente abriu um sorriso genuíno e conteve o melhor que pôde a vontade de gritar de felicidade.
— Cedrico!
! — o homem abraçou-a apertado, tirando-a do chão. — Que saudades!
— Cedrico? — Psique e Ártemis entreolharam-se, confusas.
— O que você está fazendo no Olimpo? — tocou seu rosto com delicadeza.
— Voltando para casa — ele respondeu. Havia esquecido o quanto a mulher em sua frente era bonita.
— Vocês já se conhecem? — Ártemis aproximou-se, confusa.
— Ele trabalhava no mesmo lugar que Medea, então nos encontrávamos na recepção quase todos os dias depois do turno dela — sorriu. — Não sabia que você morava no Olimpo! Não sabia que você conhecia tudo... isso.
— Por que ela lhe chamou de Cedrico? — Ártemis perguntou, confusa.
— Era o meu nome na Terra.
— Cedrico? — Psique indagou com certo desgosto. — Dentre todos os nomes existentes e também não existentes você escolheu Cedrico?
— Me pareceu adequado. Aparentemente, é o nome de um personagem fictício muito famoso e bonito na Terra.
— Se Cedrico não é seu nome — estreitou os olhos —, então qual é?
— Apolo, deus da juventude e da beleza ao seu dispor.
— Meu irmão — Ártemis acrescentou. — Que finalmente foi autorizado a voltar para o Olimpo.
— Autorizado? — perguntou, divertida. — O que você fez?
— Longa história, uma para outra hora, já que agora me parece que você tem um compromisso. — O deus segurou-a pela mão e a fez dar uma volta. — Quem é o sortudo ou a sortuda merecedora da mais bela visão do mundo que você é?
— Eu já não tenho mais energias para reter as cantadas escancaradas que você recebe — Psique revirou os olhos.
— Héracles — a deusa da primavera sorriu fraco e olhou para o chão.
— Hm, um cara bem famoso, não? — Apolo sorriu, contente. — Não que seja páreo para a sua beleza, mas ainda assim... um ótimo partido.
— Você está tão desatualizado. Ela não quer casar com o Héracles, ela quer casar com o . — Ártemis puxou o irmão para dentro da casa, mas continuou a falar quando abriu a boca para interrompê-la. — Agora vamos ao que interessa. Use os seus poderes de oráculo para ver se realmente estará casada com Héracles no futuro.
— Você sabe que não funciona assim — Apolo colocou as mãos na cintura e sorriu. — Eu não vejo o que eu quero, as profecias e visões vêm quando preciso saber de algo relevante.
— Acho melhor você já ir, — Psique fitou seu relógio de pulso. — Se sair agora, vai chegar exatamente no horário.
— Você poderia... você sabe, chegar um pouco atrasada — Ártemis sugeriu. — Quanto mais, melhor.
— Você vai sozinha? — Apolo perguntou ao perceber que ela estava prestes a fechar a porta de entrada atrás de si, ignorando o que a outra deusa falava.
— Sim, o parque não é longe daqui — deu de ombros.
— Não seja tola, eu vou com você.
Apolo ajeitou sua jaqueta preta, bagunçou seus cabelos roxos e deu um rápido beijo na bochecha de Ártemis. A deusa da caça nem conseguiu terminar de falar para ele voltar a tempo da janta, pois o deus já havia ido.
esquecera como Apolo tinha um quê de excelência. Não estava exatamente igual como da última vez que o vira. Seu cabelo, agora roxo, era castanho e costumava usar ternos enquanto morava na Terra, mas o sorriso e os traços delineados da mandíbula permaneciam iguais. Não era à toa que Apolo dormisse todo dia com uma pessoa diferente após o trabalho, por onde quer que passasse, chamava muita atenção. Caminharam em silêncio por alguns minutos, com os braços entrelaçados por intermédio do deus, até que Apolo, sem desviar o olhar, sorriu e começou a falar.
— Você está curiosa, não está? Quer saber porque eu fui expulso do Olimpo por um tempo.
— Não — fitou-o rapidamente, notando a presença da coroa de louros. — Tudo bem, talvez eu esteja curiosa.
— Por onde será que eu começo?
— Hermes já me contou que você foi expulso porque matou os ciclopes, os criadores dos raios.
— E ele tem razão — Apolo sorriu fraco. — Há algumas dezenas de anos eu tive um filho, Asclépio. Ele era um menino especial, era o deus da medicina. Tinha mãos meticulosas como as de um neurocirurgião. Tudo estava bem enquanto ele morava no Olimpo, ele trabalhava no hospital olimpiano como chefe de cirurgia.
— O que aconteceu?
— Quando Asclépio começou a influenciar os humanos na Terra, Hades começou a receber menos almas no Inferno. Você pode imaginar que ele não ficou nem um pouco contente. Por causa do medo de acabar não recebendo mais almas, Hades falou com Zeus e Poseidon e eles decidiram que Asclépio não poderia mais viver.
— Por que eles fariam isso? Por que eles não arranjaram outro jeito de lidar com a situação? Eles poderiam, sei lá, pedir que Asclépio trabalhasse somente no Olimpo e não descesse mais para a Terra.
— As coisas não funcionam assim por aqui. — Apolo franziu o cenho, confuso. Achava que já entendesse isso após morar alguns poucos meses no Olimpo. — Detalhes podem gerar catástrofes. É por isso que tudo que é considerado uma ameaça é eliminado por aqui. Quando Gaia e Cronos reinavam a Terra, uma profecia foi lançada por um oráculo. Um dos filhos de Cronos seria sua ruína. Era por isso que ele engolia suas proles logo que nasciam. Só que bastou apenas um pequeno deslize em um dia para que as coisas dessem errado. Gaia implorou ao seu marido que lhe deixasse ter um tempo com seu filho, nem que fosse muito pouco. Cronos ficou com o coração apertado ao ver sua esposa tão triste, então ele deixou, contanto que engolisse o filho depois. O problema foi que aquele filho era Zeus, responsável por matar seu próprio pai e libertar Poseidon e Hades. Viu? Detalhes podem gerar catástrofes.
— Ainda me parece uma medida muito extrema. Eu aposto que Asclépio estaria fazendo um excelente trabalho mesmo se só pudesse fazê-lo no Olimpo.
— Bom, chega de falar sobre o que não podemos mudar. Vamos falar sobre você.
— Sobre mim? Achei que gostaria de saber sobre os últimos acontecimentos aqui no Olimpo.
— Mas falar sobre você é falar sobre os últimos acontecimentos aqui no Olimpo — Apolo sorriu, malicioso. — Eu fui recepcionado por uma bela foto sua de túnica e coroa na capa de uma revista de fofocas com uma manchete chamativa. A escolha dos sonhos: ou Héracles? Eu achei o título particularmente clichê, mas tinha muitas ninfas comprando a revista.
— Toda vez que eu acho que não pode ficar pior, a imprensa me surpreende — revirou os olhos. — Vai ser a vigésima vez que eles vão me difamar e vai ser a mesma coisa de sempre. Hera vai me chamar para falar que eu não posso casar com , vai surtar comigo e aí ele vai surtar com ela por ter surtado comigo, aí Psique vai reclamar e...
— Pelos deuses, para que tanta negatividade? Por que Hera lhe chamaria para falar que você não pode... Você e estão noivos?
— Não!
— Então por que Hera ficaria irritada com isso?
— Por que a mídia faz parecer que nós estamos, mas não estamos nem saindo.
— Só que você já falou para ela que é um mal-entendido? — Apolo franziu o cenho ao tentar conectar os pontos.
— Já, mas ela não acredita em mim.
— Se ela não acredita, é porque existe a possibilidade de ser verdade.
— Se ela não acredita, é porque ela é teimosa e não quer ver. — colocou as mãos na cintura, indignada, e parou para fitar Apolo, que sorria e colocava a mão no queixo pensativo.
— Por Zeus, você gosta de e ele gosta de você!
— Por que as pessoas ficam falando isso? Não é verdade.
— E você está em negação! Provavelmente sempre esteve, mas está ainda mais em negação agora, porque não quer criar expectativas caso se case com Héracles! — Apolo arregalou os olhos, animado. — Admito que por essa eu não esperava. Você é tão a definição de uma bela flor cintilante com raízes profundas escondida no fundo de uma caverna de ametista onde nenhum homem sequer ousaria se aventurar e ele é tão... — o deus revirou os olhos teatralmente. — Meh.
— Isso é ciúmes? — brincou.
— Não — Apolo respondeu rápido demais e voltou a sorrir, dissimulado. — É mais um desejo reprimido. Por você. E talvez um pouco por ele também, eu ainda tenho olhos.
— Olha só. Então ele realmente é o desejo de todos os seres que enxergam.
— Você sabe por que eu acho que vocês combinam? — Apolo voltou a andar e o acompanhou. — Ele é o único deus que eu conheço que, não importa o quanto ele queira ficar, é bom em se afastar das pessoas que não o merecem. É exatamente por esse motivo que só se apaixonará por uma pessoa, uma pessoa rara, rara como você. E é o que todos queremos ser, não? Excepcionais.
— Do que você...
— Vocês claramente não têm muitas semelhanças, mas aposto que você é o que ele quer, talvez um pouco de que ele precisa também, e ele... ele pode trazer o melhor de você, eu consigo enxergar isso. O que não é um vínculo inicial muito forte, mas é mais do que suficiente.
apenas respirou fundo e voltou a andar. Apolo soava como o próprio discurso das revistas que ela tanto começava a repudiar nesse ponto.


— Eros, você precisa fazer isso — suspirou, cansado.
Já era a quarta vez seguida que pedia a mesma coisa. Eros, sentado no sofá do apartamento de Hermes, respirou fundo sem tirar os olhos da televisão. Sabia que, se fitasse com os olhos suplicantes, não conseguiria negar seu pedido. Merda de coração de manteiga derretida. Hermes, apoiado no balcão da cozinha, encarava a situação calado, embora sentisse certo enjoo no estômago por causa de sua tristeza.
— Eu não sei mais como lhe dizer isso, , mas eu não posso. Você sabe que eu não posso. — Eros cruzou os braços, irredutível.
— Eu farei qualquer coisa em troca.
— Tentador, mas não o suficiente. — Eros fitou-o de relance. — Todos sabem que não é justo, mas nem por isso eu tenho que colocar tudo a perder.
— Tecnicamente... — Hermes interveio com um fio de voz. — Ele já fez isso por você. colocou tudo a perder por você uma vez. Claro que não foi na intenção de você retornar o favor, mas o objetivo é que nós nos ajudemos sempre que precisarmos.
— Vocês viram Prometeu com seus próprios olhos antes de Héracles o soltar — Eros voltou a falar. — Vocês viram a dor nos olhos dele. Eu não vou aguentar um castigo desses. Eu não vou aguentar um abutre comendo meu fígado para ele se regenerar instantaneamente e ficar nesse ciclo de sofrimento até um outro Héracles aparecer para me soltar. Isso porque Prometeu apenas levou o fogo para os humanos, o que você está me pedindo interfere na vida de Zeus e de Hera e vai contra as proibições deles.
— Eros — respirou fundo e olhou para o teto —, eu lhe imploro.
— O quê? — Hermes sussurrou, surpreso.
— Eu lhe imploro. Você sabe em quanta agonia eu estou agora para lhe dizer isso? Normalmente eles dão uma epidural para esse tipo de dor.
— Eu sinto muito, . — Eros olhou para o chão com pesar. — Eu mantenho a minha posição.
— Por que você está fazendo isso comigo?
Diferentemente do que o cupido esperava, o deus parecia exausto.
— Como deus do amor, , eu lhe pergunto, por Hades, por que você se importa tanto com isso? Você pode ter todo mundo que quiser, por que ela?
— Porque todo mundo não é ela.
— Eu sei o quanto você gosta dela, cara, e você sabe o quanto eu sou escravo do amor, mas eu não posso fazer o que você quer.
— Você me deixa sem escolhas, Eros, que porra! — De um segundo ao outro, abriu suas enormes asas pretas e afiadas e a íris começava a ficar levemente avermelhada. — Eu vou dar um jeito nessa merda.
Um silêncio ensurdecedor tomou conta da sala. O mensageiro fechou os olhos, tentando juntar todo o resquício de paciência que ainda restava em seu sangue. Às vezes, era impressionante como Eros podia ser agraciado com um poder tão forte, tão único e tão vital e mesmo depois de milênios, ainda não saber usá-lo com maestria.
— Ele vai fazer alguma coisa idiota, não vai? — Eros perguntou depois de ver pular da varanda.
— E ele está certo — Hermes ergueu uma sobrancelha e o cupido o encarou, confuso. — Você não está fazendo o seu papel, então alguém tem que fazer.
— Meu papel? — Eros levantou-se, irritado. — Meu papel é seguir as ordens da família real. Se Hera me proibiu de fazer isso, então eu não posso fazer isso. É muito simples.
— Por Héstia, você é o deus do amor, como você mesmo disse! Não consegue ver porque está agindo assim? Você não acha estranho que ele não tenha mais dormido com nenhuma mulher desde que ela chegou? Você não acha estranho ele estar fazendo coisas certas e decentes?
— Eu sei que ele gosta da .
— Não, Eros. — Hermes cruzou os braços e balançou calmamente a cabeça em negação. — As pessoas se apaixonam todo dia. ? não se apaixona. Nunca. Isso nunca vai acontecer de novo. Já percebeu como ele sente a dor dela como se fosse na própria pele? Quantas vezes na vida você viu uma conexão tão forte como essa? Quantas vezes você viu alguém sentir dor assim pelo outro? Você é o cupido, você sabe melhor do que ninguém que isso é coisa de milênios, de pessoas tão destinadas uma a outra quanto um próprio oráculo. E para ? Para ele, isso é coisa de uma vez na eternidade. Isso está o matando, Eros. Amá-la está o matando e ele nem deve perceber. Você entende?
— Mas não tem o que ele fazer. E se ela se apaixonar por outra pessoa? E se ela se apaixonar por Héracles? Ele não pode evitar que ela se case com outro.
— Se ela se apaixonar por Héracles, então tudo está resolvido, mas ele não está agindo assim por possessão.
— Então o que é?
— Proteção. Ele só não quer que ela se case contra sua vontade. Você, acima de tudo e todos, sabe que amar genuinamente não é ter, é fazer o que é melhor para o outro, independentemente do quanto isso machuca. sabia desde que nasceu que ia casar com Hebe e também sabe o quanto isso é um porre. Você acha que ele vai permitir que a mesma coisa aconteça com a pessoa que ele ama?
— Não é questão de permitir. Nós vivemos sob regras.
— Eu não acho que você diria isso se fosse você e Psique no lugar deles. — Hermes ergueu a sobrancelha, sugestivo, enquanto colocava o casaco. — Se dependesse de Hades, Psique estaria a muitas camadas abaixo da terra agora e você sabe disso, mas fez aquilo por você, Eros, por você. Você acha que foi fácil convencer Hades? Acha que as suas atitudes inconsequentes só geraram problemas para você? Agora tem que morar no Olimpo por sua causa. Então não venha me falar de regras.
Eros bufou. Odiava estar errado.
— Se você for dormir aqui, pode usar o meu quarto. Eu volto amanhã.
— Aonde você vai?
Hermes limitou-se a fechar a porta atrás de si, deixando um Eros confuso para trás.

Capítulo 13

Especialmente naquela manhã, a claridade incomodava seus olhos. grunhiu, cansada, e virou-se na cama para enterrar a cabeça no travesseiro. Seu corpo parecia leve, mas uma sensação de embrulho no estômago lhe dizia o contrário. Sabia que já era a hora do almoço, mas se deu mais cinco minutos debaixo das cobertas como se aquilo fosse o suficiente para recuperar suas energias.
— Eu não acredito que tenho que trabalhar amanhã. Eu não quero trabalhar amanhã. Eu não quero trabalhar nunca mais — suspirou, cansada, e sentou-se. — Eu quero férias.
Passou a mão no pescoço, esperou alguns segundos no silêncio e, sem cerimônia alguma, levantou-se e saiu do quarto. Somente quando estava nos últimos degraus da escada, notou a presença de Hermes, e Medea na cozinha. Um trio um tanto quanto inusitado na opinião dela. Eles pareciam concentrados em conversar, então apenas arregalou os olhos de leve e tentou dar meia volta, porém Psique foi mais rápida.
! Acordou na hora certa, estamos prestes a almoçar.
— Olha só. Então ela está viva — a ninfa sorriu, sarcástica. — Na última vez que entrei no seu quarto, você parecia um defunto dormindo naquela cama.
— Obrigada pela descrição agradável. — ergueu uma sobrancelha, fechando o roupão, e Medea sorriu, satisfeita. — Não sabia que teríamos visitas.
— Nem eu! — respondeu, surpresa, para a deusa, como se morasse na casa enquanto comia sorvete direto do pote.
— Ei! Isso é a sobremesa. — Psique colocou as mãos na cintura, indignada.
imediatamente estendeu a mão para que Medea lhe desse o pote e assim que ela o fez, ele abriu um sorriso malicioso e deu uma rápida colherada sem que ninguém além de percebesse e sem desviar do olhar dela também.
— Você... — sussurrou a deusa ao estreitar os olhos e encarou-a, desafiador.
— Nos conte tudo sobre ontem — Hermes sorriu, animado, colocando mais um prato na mesa. — Eu quero saber absolutamente tudo sobre seu encontro com Héracles.
— Oh, sim! — Psique sorriu, animada, e sentou-se à mesa, apontando para o lugar de , que andou hesitante até a cadeira. — O quão ruim foi?
— Finalmente um momento para você usar as sábias lições que eu lhe ensinei — Medea sorriu enquanto colocava comida em seu prato. — Eu tenho ótimas dicas para afastar homens. Sabem aquele filme “Como Perder um Homem em Dez Dias”? Eu que escrevi o roteiro.
— Sério? — Hermes perguntou, maravilhado.
— Claro que não, otário. É só um modo de dizer — Medea franziu o cenho, incrédula.
— Ela lhe ensinou a dar uma samambaia do amor para o Héracles, atrapalhando a noite do poker, e depois chorar porque ele não regou a planta? — franziu o cenho, falsamente triste, embora não conseguisse conter o tom divertido. — Ou você colocou um monte de absorvente no banheiro dele?
— Você colocou absorventes no banheiro dele no primeiro encontro? — Hermes fitou , horrorizado. — O máximo que você faz no banheiro em um primeiro encontro é xixi. Marcar território.
— Como você conhece esse filme? — perguntou, interessada, encarando .
— Eles descem para a Terra depois do turno — Psique quem respondeu. — Sabe-se lá para fazer o que.
— Para assistirem comédias românticas no cinema mundano? — Medea começou a rir escandalosamente.
— Nunca fez sexo no cinema? — O ceticismo escorria das palavras de como nunca.
— E ainda assim sabe a história do filme? — sorriu, divertida. — Tem certeza de que está fazendo as coisas certo?
— Quer descobrir? — o deus desafiou-a.
— Meu homem aqui é multifuncional — Hermes deu dois tapinhas nas costas de , que não ousou desviar o olhar de .
— Hm, que assunto agradável para um almoço — Psique sorriu, traumatizada. — Eu sinto falta do tempo que não tinha visto isso.
— Eu estou amando. Continuem.
Medea amava uma pitada de desordem e balbúrdia. Com moderação, no entanto. Não seria novidade apontar instabilidade como uma de suas características naturais mais marcantes. Às vezes precisava de uma boa discussão, às vezes o tratamento de silêncio era desprezo suficiente.
— Que tal você continuar com a parte do encontro? — Psique sugeriu e os olhos de Hermes brilharam.
— Você consegue imaginar se o Héracles estiver ainda mais apaixonado por você depois desse encontro e lhe pedir em casamento?
A pupila de tornou-se afiada, como se ele se sentisse ameaçado. Hermes, já acostumado com os gestos muito sutis — e quase passados por despercebidos — de , fechou a boca em uma linha. Não se atreveria a dizer mais nada, mesmo que sua espontaneidade orgânica lhe incentivasse o contrário.
Quando se tem centenas ou milhares de anos, é normal achar que já se sentiu tudo na vida. Então, quando um sentimento novo aparece, não é nada mais do que natural não saber lidar com ele. E certamente Hermes não sabia o que fazer ou falar para lidar com nessa situação. Ele não poderia simplesmente dizer “ela está apaixonada e muito iludida depois de ter dormido uma noite com você, vá contar agora que você não quer nada sério antes que quebre o coração dela. E seja gentil.”, como estava acostumado a fazer.
— Ainda existiria a chance de você se apaixonar por ele também e viverem felizes para sempre. Credo. — acrescentou a ninfa.
— O quê? — Psique parecia confusa. — Se ela se apaixonasse, seria algo bom.
— Oh, eu sou a Psique e acredito no amor e na melosidade.
— Bom, eu ficaria muito feliz por você, porque, diferentemente da Medea, eu também sou feita a base de carbono.
— Mas o plano era o fazer não gostar de você, certo? — Hermes coçou a garganta, quase soprando de tão baixo que falava.
Foi inevitável que sorrisse sem graça. e Psique imediatamente a encararam, preocupados. Não era possível que eles estivessem vendo aquela expressão.
— O que você fez? — Psique perguntou.
— Eu não fiz nada. — A deusa passou as mãos nos braços. — Nós fomos até a borda do Olimpo, que inclusive é um pouco assustadora. Parecia que eu ia cair.
— E depois... — Hermes incentivou.
— Perdemos a reserva no restaurante, porque ficamos muito engajados na conversa. Acabamos comendo tacos na rua mesmo.
— O quê? — Psique estava com um tique no olho esquerdo. — Por que você faria isso? Você gosta de Héracles? Está apaixonada por ele?
— Não, não estou — falou, desconfortável, ao sentir todos os olhares sobre si, sobretudo o de Medea, que ficou estática, segurando sua taça de vinho. — Eu não consegui não ser gentil. Ele é uma pessoa muito boa, sabiam?
— Pelos deuses — suspirou e recostou-se na cadeira, passando a mão furiosamente sobre os cabelos.
— Meu endereço é Rua das Almas Perdidas, número 143 para quando você for me enviar o convite de casamento — Medea franziu o cenho, seca. Sabia que era gentil, mas não esperava que fosse ser tão ingênua nessa situação, muito pelo contrário. — É claro que o cara é bonzinho. Ele foi mandado para o Olimpo, o cara é um anjo, ele foi canonizado. De lua de mel, ele vai querer fazer caridade na Terra e ainda vai querer doar os presentes do casamento para os desafortunados! Mas disso a gente já sabe!
— A pergunta é se você quer casar com ele. — Psique segurou a respiração.
— Eu... — desviou o olhar do chão para e de para o chão novamente. — Não. Não. Eu não estou entendendo toda essa pressão de vocês. Ele é um cara legal, mas não é dele que eu gosto.
— Então você gosta de outra pessoa — o mensageiro abriu seu maior sorriso, recuperando instantaneamente o bom humor e se jogou em cima da mesa, levantando uma das pernas. — Quem?
— Apropriado. — Psique deu um gole em seu vinho, um pouco mais aliviada.
Ela sabia que, se se apaixonasse por Héracles, aquilo resolveria todos os problemas que Hera pudesse criar, ou melhor, evitaria qualquer problema que ela pudesse criar. Parte de seu coração, no entanto, sentia compaixão demais enquanto ela observava e se olharem. Maldito sistema medieval do Olimpo.
— Eu me expressei errado, eu simplesmente quis dizer que eu não gosto dele dessa maneira.
— Então, vamos torcer para que ele não lhe escolha — Medea deu de ombros. — Apesar de que eu acho bem difícil se você tiver sido... você mesma.
— Alguém quer vinho? — perguntou ao se levantar, ignorando os comentários da ninfa, puramente por negação.
— Por favor — pediu e passou a mão no colarinho da camisa social branca. Estava apertado demais ou era impressão sua? — A garrafa inteira, se possível.
— Eu nunca diria não ao álcool — Medea concordou e ergueu a taça.
pegou o primeiro vinho que achou na adega e deixou-o em cima da ilha de mármore da cozinha. Abriu duas gavetas e, na terceira, esqueceu o que estava procurando. Deparou-se com uma carta vinda de Eros. Nunca confundiria aquela letra rebuscada e romântica. “Para o meu verdadeiro amor”. Não tinha um destinatário, então apenas franziu o cenho e segurou o delicado envelope. Olhou a frente e o verso, mas não havia nada além daquelas palavras.
— Psique, que carta é essa? — ainda segurava o papel entre os dedos.
— Oh — Psique sorriu, sem graça, e se levantou imediatamente. — Não é nada.
— O seu embrulho no estômago e o coração acelerado indicam o contrário — sorriu, sarcástico.
Ela detestava essa coisa divina que os deuses chamavam de poder. Em sua opinião, aquilo era invasão de privacidade, isso sim. Quem lhe deu o direito de contar seus batimentos cardíacos sem sua permissão?
— Eu disse que não é nada — Psique tirou a carta da mão de , jogou de volta na gaveta e a fechou o mais rápido que conseguiu.
— De quem era? — Hermes perguntou, confuso. Não se lembrava de ter entregue uma carta para Psique na última semana.
— Ninguém.
— Eros — sentou-se no balcão e sorriu, divertida.
— Você está trocando cartas com Eros? — Medes perguntou, surpresa.
— Cartas de amor — ergueu uma sobrancelha quando percebeu o que acontecia.
— CARTAS DE AMOR? — Hermes gritou.
— O que tem na carta? — Os olhos de Medea brilharam.
— Nada que seja do seu interesse — Psique respondeu, afiada.
— Hm...Segredos — sugeriu.
— Mais de um, com certeza — acrescentou.
A verdade era que estava até surpreso. Passara por toda aquela fase insuportavelmente melodramática de Eros tentando superar Psique. Como seria possível, depois de tanto sofrimento, alguém estar disposto a talvez passar por isso tudo de novo?
— Você está grávida do Eros! — A ninfa ficou boquiaberta.
— SÉRIO? — Hermes colocou a mão sobre o coração, completamente chocado.
— Claro que não — Medea revirou os olhos, não acreditando em suas próprias palavras. — Por Hades, a sua face bonitinha não compensa a lerdeza — a ninfa falou, porém logo franziu o cenho e voltou a encarar Psique. — Você não está gravida do Eros, não está?
— Claro que eu não estou!
— Deixe a gente ver a carta! — Medea sorriu, animada.
— Isso é um assunto privado.
— Ah, Psique, o que é tão ruim que você não possa compartilhar com a gente? — Hermes levantou-se e começou a andar devagar até ela.
— Não se aproxime — Psique pegou a carta de volta e segurou-a contra o peito, dando passos para trás.
Não foram necessários mais de dois segundos para que Hermes começasse a correr atrás de Psique, que começou a gritar e correr também. Quando eles saíram pela porta dos fundos e foram parar no quintal, Medea engoliu o resto de seu vinho e foi atrás dos dois. Não estava realmente interessada em saber o que tinha na carta, no fundo não ligava para a vida amorosa de Psique, mas o semblante desesperado dela era o suficiente para suprir sua necessidade por entretenimento.
— Você acha que eles estão juntos de novo? — levantou e trouxe as taças até a ilha da cozinha. — Psique e Eros.
— Eu tenho quase certeza — assentiu. — Depois do episódio no parque, de repente ela começou a precisar trabalhar todo final de semana e o humor dela melhorou bastante também.
— Eros começou a sumir nas festas que Psique vai. — ofereceu uma taça de vinho para ela. — Desaparece, volta, desaparece de novo e quando volta parece que não sabe nada do que aconteceu enquanto sumiu.
— Agora que você falou... — franziu o cenho e o observou se apoiar no balcão ao seu lado. — No dia da festa de Hades, nenhum dos dois estava no incidente da piscina.
— Mas eles estavam se divertindo — o deus constatou o óbvio com um sorriso irônico e deu um gole em sua bebida.
Como não havia notado isso antes? Talvez o fato de que sua atenção naquela festa estivesse em outro cômodo da casa de seus pais.
Durante alguns longos segundos, balançou lentamente sua taça, observando o líquido com muita concentração. O semblante sério no rosto dele fez a deusa colocar uma mecha atrás da orelha e desviar o olhar para qualquer outro canto. Às vezes, com mais frequência do que queria admitir, pegava-se questionando o que tanto pensava. Era tão quieto na maioria dos momentos.
, eu... hm... eu... hm... err...
— Acho que eu nunca tinha lhe visto sem palavras — ela sorriu.
— Eu preciso lhe contar uma coisa.
— Aconteceu algo? — A deusa instantaneamente assumiu um semblante preocupado. — Está tudo bem?
— Ontem eu... ontem eu roubei o arco de Eros e duas flechas de ponta de ouro.
— Por favor, me diga que você não fez o que eu estou pensando.
— Para atirar uma delas em Héracles. — O deus olhou para baixo e engoliu em seco. — E a outra em Hebe. Para eles se apaixonarem.
apenas congelou e não conseguiu pronunciar uma palavra sequer. Não conseguia decifrar nem se tentasse. Estava sempre com aquela expressão de quem provoca, de quem sabe demais, de quem tem o controle da situação, levando-a ao limite, mas sabendo o que faz. Ela sabia que ele não era a pessoa mais virtuosa ou íntegra do Olimpo, sempre era meio ácido e fechado e parte de seu trabalho era causar sofrimento, mas jamais, jamais esperava que ele fosse capaz de trapacear. Talvez fosse apenas um efeito colateral olimpiano dela achar que havia bondade em tudo o que existia.
— Mas eu não atirei — continuou. — Porque você nunca me perdoaria.
— Não mesmo — ela respondeu, firme. — Você não pode obrigar duas pessoas a se apaixonarem sem ao menos elas saberem e concordarem com isso, !
— Eu sei. — O deus voltou a fitá-la nos olhos. — Mas você não entende o que significa um casamento forçado no Olimpo.
— Como assim eu não entendo? Você acha que eu estou achando tudo isso super divertido? Ter que me casar com um estranho?
— Olhe para todos os casamentos arranjados desse lugar, . Hera e Zeus, Poseidon e Anfitrite, Afrodite e Hefesto. Você acha que algum deles é feliz? Zeus trai tanto Hera que ela ficou paranoica. Anfitrite sofre em silêncio com as traições. E Afrodite nem se fala, ela só machuca o Hefesto com os filhos que tem com Ares. Casamentos no Olimpo não têm volta. Você não tem direito ao divórcio, isso é a mesma coisa que dizer que Hera não é boa em seu próprio trabalho. Você entende onde está se metendo se Héracles lhe escolher? Pode ser que as coisas... deem certo. Assim como pode ser que você viva eternamente infeliz e então você vai ter desejado escolher as flechas de ouro enquanto podia.
O silêncio tomou conta da cozinha por alguns longos segundos antes que conseguisse dizer algo. Não sabia se estava certo, mas sabia que ele tinha um bom ponto. Vê-lo ali, com os olhos suplicantes e segurando a respiração sem ao menos saber que o fazia, fez seu cabelo começar a crescer e mudar para aquele coral vivo alaranjado aos poucos. Era como se finalmente estivesse entendendo a gravidade da situação. Aquilo não tangia somente ela. Tangia todas as pessoas que agora faziam parte da sua vida.
Por algum motivo que ele não sabia explicar, o sofrimento alheio, por menor que fosse, era como um combustível para sua felicidade, algo que lhe mantinha vivo, alerta. Vê-la ali, entretanto, afundando cada vez mais no mar de pensamentos que invadia sua cabeça, não o deu nenhum prazer. Muito pelo contrário, a dor reprimida abria um rasgo no meio do seu peito, como se fosse sua própria. Como tártaros estava deixando aquilo acontecer a si mesmo? Como ficara tão vulnerável? E pior, como estava deixando aquilo acontecer com ela?
— A gente não sabe, . — Ela colocou a mão delicadamente sobre o rosto dele. — A gente não sabe ainda se ele vai me escolher.
— Esse é o problema. — O deus suspirou e virou-se em direção à . — Ele vai lhe escolher. Você tem esse negócio de querer ver o lado bom de todo mundo, especialmente quando ninguém mais consegue. E é por isso que você não é difícil de conquistar. Você é difícil de merecer.
Medea, que entrava na casa seguida de Psique e Hermes, parou de súbito, fazendo os outros trombarem nela. Antes mesmo que o mensageiro pudesse reclamar, ela lançou-lhe um olhar mortal e fez um gesto urgente com as mãos para que eles voltassem para o quintal.
— Eu não sei o que você quer que eu diga, . — suspirou e sentiu um aperto no coração quando passou a mão sobre os cabelos dele em carinho e o deus instantaneamente fechou os olhos. — Não tem nada que eu possa fazer e não tem nada que você possa fazer também. E eu não posso ser injusta com Héracles e não o tratar bem, entende? Ele não fez nada para merecer isso.
— Você ouviu o que eu acabei de lhe dizer, ? — Ele se virou, subitamente irritado, e apoiou as mãos sobre a bancada de mármore, fitando o chão.
— Por favor, fique calmo.
— Como você pode pedir para eu ficar calmo com você trocando a sua liberdade por uma vida que você não escolheu? Por uma vida que você não merece!
— Olhe para mim. — levantou-se e se enfiou no pequeno espaço entre os braços dele e a bancada. — Olhe para mim, . — Assim que ele o fez, ela sorriu, gentil. — Eu entendo. Eu entendo que você só esteja me protegendo do que pode ser uma vida desagradável, mas que opções eu tenho? Já é muito tarde para reescrever as regras, já é muito tarde para tentar achar uma brecha nisso tudo e eu não posso ir contra as regras, porque, até onde eu sei, viver casada no Olimpo é melhor que estar entre as almas perdidas do Submundo por não ter seguido as leis, não acha?
— Por favor, não se case.
— Isso já não depende de mim.
— Por favor, eu estou lhe pedindo para lutar de volta.
— Você não pode me pedir isso, é a mesma coisa que me pedir para ir para o Tártaro. Por que você está tão preocupado com isso, afinal?
— Oh, me desculpe, eu não sabia que você queria casar a força.
— É óbvio que eu não gostaria de me casar assim, , mas, como eu disse, olhe as opções que eu tenho!
O deus manteve-se calado por alguns minutos, a poucos centímetros dela, analisando seu rosto. Sua respiração passou de enraivecida para compassada paulatinamente. Com delicadeza, ele segurou firme em sua cintura, trazendo-a ainda mais para perto e voltou a falar, dessa vez tão baixo quanto um sussurro dolorido. Estava muito claro que aquele era seu último fio de esperança.
— Você deveria estar com alguém que lhe dedicaria a vida para fazê-la feliz, não um cara que lhe escolheu só porque lhe achou bonita.
— Isso... — hesitou. Não conseguia dizer aquelas palavras sem que seu coração machucasse. — Isso não é nossa escolha. Não é minha e não é sua. E pode acontecer de ele não me escolher.
— E se ele escolher? O que você vai fazer?
— Eu vou me casar.
— Não brinque com a sorte, . O Olimpo não funciona a base dela, isso é um jogo de poder. Você acha que a Hera está jogando limpo? Você acha que ela não faria de tudo para você acabar com Héracles?
— Pelo menos ela não ficaria mais no meu pé e nem no seu — ela sorriu fraco.
— Você não sabe do que está falando.
— Eu não tenho escolha, , será que você consegue entender isso? Por que você fica me pedindo para eu não casar se acontecer de ele me escolher? Você prefere que eu vá para o Tártaro? Por que você está tão incomodado?
— Porque eu odeio a ideia de ter que viver sem você! Porque amar é algo difícil para mim! — O deus afastou-se brutalmente. Sua íris estava vermelha como sangue e as veias negras sob os olhos começavam a aparecer. — Porque essa merda de sentimento não vai embora e isso está me matando! Te amar está me matando!
Medea e Hermes, que ouviam e viam tudo pela porta de vidro dos fundos, ficaram boquiabertos. Psique colocou a mão na testa e quase desmaiou. Sabia que queria que fosse feliz, mas agora tinha certeza de que iria para o Tártaro por abrigar a deusa que arruinou os planos de Hera.
— Isso está indo bem, hein — a ninfa sorriu, sarcástica, e colocou os óculos de sol, irritada com toda a claridade desnecessária do Olimpo.
— Eu nem acreditava que era capaz de amar alguém. — Psique balançava a cabeça lentamente em negação.
— Já estava na hora. — O mensageiro olhou-a contente. — E ela é perfeita para ele, convenhamos.
— E com aquele corpo, ele é perfeito para ela. — Medea apontou para dos pés à cabeça. — Eu poderia encarar essa bunda o dia todo e... — a ninfa parou ao receber o olhar de reprovação de Psique.
— Sabe... — Hermes ponderou. — Tem um jeito de não se casar com Héracles.
— O que você está pensando? — Psique perguntou, interessada.
— De acordo com as leis, Héracles não pode se casar com ela se ela já estiver casada.
— Finalmente alguma coisa útil vinda do seu cérebro — Medea concordou.
— Você está sugerindo o que eu acho que você está sugerindo? — Psique franziu o cenho.
— Que e se casem — Hermes respondeu com obviedade.
— E como isso difere da situação atual dela? Seria só trocar um deus por outro.
— Semideus — Medea corrigiu Psique. — Podemos atirar flechas de ouro neles!
— Não. — O mensageiro colocou a mão no queixo, pensativo. — Isso iria contra os princípios dela e, consequentemente, os dele também.
— Eu achei que não tivesse princípios. — A ninfa franziu o cenho.
— Bom, agora ele tem. Respeitar os dela.
— A gente podia só... acelerar o processo — Psique falou em falso descaso, começando a ter afinidade pela ideia. — Ele a ama, ela o ama... Só precisamos dar um pequeno empurrãozinho.
— Ela o ama? — Hermes e Medea falaram em uníssono.
— Claro que sim! — Psique respondeu, cética. — Vocês não veem como ela é um amor com todos, mas o trata até com sarcasmo às vezes? Ela fica confortável o suficiente para ser o ela mais puro possível perto dele. E vocês não perceberam como ela ficou toda feliz durante uma semana depois que deu a coroa para ela?
— Ele deu aquela coroa para ela? — os dois falaram juntos novamente.
— Eu não sabia que ele tinha um gosto tão bom. — Medea ficou surpresa. — Aquela coroa foi votada a mais bonita do século segundo a revista Divine.
— E se isso não funcionar? — Hermes perguntou, preocupado. — E se o plano de acelerar o processo não funcionar?
— Melhor do que não ter uma opção — Medea justificou. — Quantos dias temos?
— Cinco — Psique sorriu, sem graça.
— Você quer fazer duas pessoas casarem em cinco dias? — o mensageiro riu, incrédulo. — Com Hera contra esse casamento ainda?
— Ok, mudança de plano — a ninfa respirou fundo. — Se o resolveu começar a agir como um olimpiano insosso agora, então nós vamos precisar fazer a parte suja. Hermes, você consegue levar pensamentos para a mente dos humanos, certo?


— VOCÊ DEIXOU O DIONÍSIO COM UM VELHO BÊBADO? — Hécate arregalou os olhos enquanto segurava no colo o menino que já aparentava dois anos, observando todas as garrafas de vidro acumuladas no chão da sala.
— Tecnicamente eu o deixei com uma ninfa... que mora com um velho bêbado. — Hermes fez um gesto com as mãos.
— Por que você faria isso? — a deusa das bruxas fitou-o, incrédula.
Antes que Hermes pudesse falar algo, o homem dormindo profundamente no sofá da sala roncou e virou-se de lado, chamando atenção dos deuses e da ninfa, que assumia uma forma humana e que não ousaria intervir na discussão deles.
— Que outra opção eu tinha? — o mensageiro suspirou, embora não estivesse com o bom humor abalado. — Se eu o deixasse com uma ninfa do Olimpo, ela iria contar para Hera imediatamente. Se eu deixasse com as ninfas da terra, Deméter descobriria e contaria para sua irmã imediatamente. E se eu deixasse com as ninfas da água, Anfitrite descobriria e contaria para Hera imediatamente também. Eu precisava de alguém que morasse no meio de uma cidade e a minha única opção era Uphena. — Hermes apontou para a ninfa ao seu lado.
— Pelos deuses, esse bebê vai aprender a fazer vinho aos cinco meses de idade. — Hécate balançou a cabeça em negação, apesar de saber que Hermes tinha feito o máximo que podia.
— Claro que não — o mensageiro sorriu. — Olha como ele está gordinho e com as bochechas coradas. Não poderia estar em melhores mãos. Dionísio está crescendo muito rápido, daqui a pouco já vai saber se defender sozinho.
— Tudo bem — a deusa cedeu e olhou para a ninfa. — Mas, por favor, jogue fora todas essas garrafas, o Dionísio pode acabar se machucando com elas.



deu duas batidas na porta de entrada, porém não obteve resposta. Sem nem hesitar — ou ligar se estava invadindo ou não —, colocou a mão na maçaneta e abriu a porta. Como esperava, todas as luzes do primeiro andar da casa estavam apagadas e as cortinas, fechadas. Um completo silêncio.
Primeiro, vasculhou a cozinha com o olhar. Encostou a porta atrás de si e começou a andar até a mesa de jantar, mas algo instantaneamente o fez parar: um pequeno arrepio na nuca. Estava sendo observado. Ele pousou o olhar felino e afiado em uma fresta da cortina da sala e lá estava o que procurava. Inconfundível.

Uma lente de câmera.

Um sorriso letal surgiu em seu rosto. Sem fazer um barulho sequer, chegou perto da janela. Perto o suficiente para ver se havia alguém do outro lado, mas não o suficiente para que fosse notado. Em um piscar de olhos, ele se colocou em frente à fresta, abriu as cortinas com um pequeno gesto no dedo e de repente estava de frente com um paparazzi. O homem do outro lado do vidro estava estático. Olhos arregalados, olheiras profundas, narinas infladas e palidez no rosto. Tudo denunciava arrependimento instantâneo.
— Olá. — abriu ainda mais seu sorriso. — Será que eu deveria perguntar o que você faz aqui?
No primeiro sinal de que ele iria responder algo — provavelmente se desculpar em vão —, , com o dedo indicador, apontou-o de um lado ao outro. A partir de então, o estranho já não conseguiria mais falar. Não conseguia sequer desgrudar seus lábios por mais que tentasse.
— Eu não pensaria isso se fosse você. — ergueu a sobrancelha. — Está afim de cortar sua própria língua fora hoje?
Sério mesmo que aquele idiota estava considerando correr? De um deus?
— Veja bem, eu não acho que seja educado você invadir a propriedade alheia e perseguir uma deusa, você não concorda? — E o paparazzi balançou a cabeça em concordância. — Eu não lhe dei permissão para se mover. — encarou-o fundo nos olhos, cético, e agora o homem já não tinha nem controle do próprio corpo. — Enfim, vamos falar de um pouco de hipocrisia. Se você concordou comigo sobre não invadir propriedades alheias e perseguição, então qual seria a sua explicação para esse contexto? — Ele esperou em silêncio. — Oh, é verdade. Você não pode falar. Mas não se preocupe, você não teria nada a dizer, já que isso é uma situação inexplicável. E inaceitável também. — Então, fechou um botão de sua camisa social e ajeitou suas mangas, com muita tranquilidade e demora, mesmo sabendo que a qualquer momento o coração do homem fosse escapar por sua goela de tão rápido que batia. — Mas, como eu sou um deus muito misericordioso, hoje iremos fazer uma troca justa. Se você quer ver tudo, então de tudo você verá.
E, com um último sorriso, dessa vez genuíno, estalou os dedos e o paparazzi desapareceu. Estava sozinho. E o estranho, no Tártaro.
Em um relance, notou que seu casaco de couro estava em uma das cadeiras da mesa de jantar e andou até ela. Foi quando estava prestes a ir embora que percebeu a presença de alguém deitado no sofá. Deu passos devagar até que pudesse reconhecer a silhueta. estava dormindo calmamente. Respirava com uma tranquilidade que dava inveja e sorria como se estivesse mergulhada em um belo sonho.
O deus revezou olhares entre ela e a porta. Sabia que já estava atrasado, mas não conseguiria deixá-la ali. respirou fundo e colocou seu casaco sobre o ombro. Apontou dois dedos para ela e subiu-os, com a maior delicadeza que conseguia. flutuava agora. Ele subiu as escadas, acompanhado pelo corpo que ainda pairava no ar, tentando a todo custo não a acordar, embora ela estivesse confortável demais em seu sono profundo. Colocou-a sobre a cama e agachou-se ao seu lado, tirando uma mecha de cabelo que cobria seu rosto.
— Eu sei que é meio ridículo eu estar falando com uma pessoa que está dormindo — franziu o cenho —, principalmente porque só fazemos isso quando temos que admitir algo que não queremos. Mas eu queria lhe pedir perdão.
Antes de ir, beijou a testa de e logo em seguida pulou da varanda. Não demorou muito para que suas belas asas escuras como a noite o levassem até a mansão de Hera. Quinze minutos de atraso. Um absurdo para alguns, um charme para outros e uma irritação a mais para a deusa do casamento. engoliu em seco e ficou mais alguns segundos em silêncio antes de criar coragem para dar duas batidas na porta do escritório da rainha olimpiana.
— Entre.
Com a postura firme de sempre, ele abriu a porta somente para encontrar Hera com um sorriso vitorioso no rosto, sentada em sua cadeira. Aquilo o teria deixado louco se não estivesse mais preocupado com outras coisas. A deusa observou aproximar-se a passos calmos e mexia em seus cabelos dourados presos em um rabo de cavalo alto.
— A que devo essa ilustríssima presença?
— Nós precisamos conversar. — não se sentou, apenas colocou as mãos nos bolsos da calça e encarou-a com frivolidade.
— Tudo pelo meu querido sobrinho — Hera sorriu, doce, e apoiou os cotovelos na mesa de vidro.


A pilha de papéis em cima da ilha da cozinha estava enorme. terminava de preencher e organizar os documentos que Mikaris havia pedido para ela fazer em casa. A deusa da primavera estava completamente enganada quando achou que o dia seria tranquilo quando foi interrompida na saída de casa naquela manhã e Psique avisou-a que era feriado. Aparentemente, o trabalho a seguiria em qualquer lugar, sendo feriado ou não, e não conseguiu não se frustrar com a quantidade anormal de almas que haviam chegado ao Submundo naquela semana. Sabia que aquilo não era culpa de ninguém, talvez um pouco de Ares e de Atenas, mas o cansaço era desmotivador.
Psique, sentada no sofá, estava concentrada demais no filme que via e somente saiu de seu transe quando percebeu que começava a subir a escada.
— Aonde você vai?
— Preciso de um tempo. Esses formulários estão me deixando louca — ela sorriu, terna.
— Se quiser — Psique voltou a encarar a televisão como quem não quer nada e levantou um papel brilhante entre os dedos —, eu tenho um ticket para o jogo de beisebol hoje. É daqui a uma hora.
— Você não vai?
— Tenho que trabalhar hoje.
— Trabalhar? De feriado? — falou, divertida. — Sei.
— Trabalhar. — Psique fitou a deusa e ergueu a sobrancelha, séria. — Assim como você está fazendo agora.
— O meu trabalho não inclui um namoro secreto. — deu de ombros e pegou o ticket que ela oferecia antes que Psique fizesse uma cara feia e recuasse sua mão de volta. — Eu preciso de algo para me distrair. Acho que esse negócio do Héracles está me deixando ansiosa.
— Tente não pensar muito nisso.
— Sábias palavras — a deusa disse enquanto subia as escadas.

Capítulo 14

— Com licença — sorriu, gentil, quando o guardião se virou para fitá-la. — Você poderia me dizer onde fica a cadeira 22B?
O homem de uniforme dourado e vermelho apenas sorriu, encantado. Sabia da fama, beleza e graciosidade de , mas vê-la de tão perto era como um sonho. Ele precisou balançar a cabeça de um lado ao outro quando notou que uma luz celestial parecia começar a iluminar a deusa.
Então era tudo verdade. Uma pele de porcelana, um cheiro floral único, um corpo delineado pela pena de ouro de Zeus e um passo mais leve que o ar. Parecia até o próprio cadeado para a caixa de Pandora. Como de repente já não sentia mais o fundo de seu estômago e as pontas de seus dedos? Ele estava ficando cego ou aquela luz celestial estava aumentando?
— Eu não tenho certeza se estou na seção certa. — estava distraída, olhando seu ticket enquanto também segurava um balde de pipoca e uma garrafa de água. Demorou um pouco para ela voltar a olhar o guardião e perceber que ele a encarava, maravilhado. — Está tudo bem?
— Sim... Err... Sim, claro. Posso dar uma olhada no seu ingresso?
— Aqui — sorriu, alegre, e estendeu o papel brilhante.
— Hm. Estamos na seção certa. Sua cadeira é um dos melhores lugares da casa na minha opinião — o guardião sorriu, animado, e apontou para uma fileira. — Fica ali. Posso lhe acompanhar.
— Oh, não se preocupe, não quero atrapalhar.
— Não vai me atrapalhar. Será um prazer, minha querida deusa.
— Me chame de — ela sorriu, simpática, e começou a segui-lo.
O estádio era grande e parecia lotado. não fazia ideia de quais times estavam jogando, mas separou os espectadores entre os que usavam roxo e os que usavam branco. A animação podia ser sentida no ar. Era quase palpável. Todos gritavam, extasiados, antes mesmo de os jogadores entrarem em campo. Crianças se inclinavam sobre as grades para que fossem notadas pelos atletas quando eles aparecessem pelo corredor. Foi inevitável que ela não sorrisse com todo aquele entusiasmo.
— Muito obrigada — sorriu, gentil, quando pararam em frente à uma cadeira com o número “22” escrito no encosto. — Na Terra, geralmente damos alguma gorjeta, mas eu não sei como funciona por aqui.
— Não se preocupe, a sua presença já é recompensa o suficiente.
— Uau, hm... obrigada, eu acho.
— Nem precisa agradecer, querida — Afrodite quem respondeu, sarcástica. — Você é uma celebridade agora. Se você respirar perto deles, eles ficarão maravilhados.
— Não sabia que você estaria aqui — falou enquanto se sentava.
— E perder as finais? — a deusa encarou-a, chocada. — Minhas ninfas estão jogando hoje, obviamente vou dar apoio.
se distraiu tanto ao analisar todos os pequenos detalhes daquele estádio que não notou as cadeiras ao seu redor serem preenchidas uma a uma, até que a última, ao seu lado, também fosse.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou, surpreso, e se sentou.
— Assistindo ao jogo — riu com a pergunta dele.
— É proibido estar aqui? — Afrodite franziu o cenho.
— Não sabia que gostava de beisebol — o deus continuou a falar, ignorando a outra deusa.
— Eu nunca vi um jogo.
— Claramente, docinho sorriu, divertido, e apontou para o balde excessivamente grande de pipoca.
— Você que é o estranho por não ter um balde gigante de pipoca em um jogo — rebateu, incrédula. — Mas não se preocupe, eu gosto de compartilhar.
— Oh, que gentil. — Ele colocou a mão sobre o peito com um tom sarcástico. — Por que você quis ver um jogo de beisebol?
— Psique tinha um ingresso e ela não quis vir.
— Hermes tinha um ingresso e ele não quis vir — ergueu uma sobrancelha, sugestivo.
— Olhem quem está lá — Afrodite sorriu e colocou um punhado de pipoca na boca. Afinal, um show estava prestes a começar. — Penélope. Quer dizer, eu sei que todos acham que ela é bonita, mas, vamos combinar, ela é, no máximo, mediana.
segurou a risada com a candidez de Afrodite e se esforçava para não ouvir a conversa. Nenhum assunto que tangia Hera era do seu interesse.
— Talvez um quatro de dez. Ou um cinco, porque eu tenho compaixão.
— Bom, eu... — a deusa da primavera foi logo interrompida.
— Ela se acha demais. Eu não tenho ideia de onde essa autoconfiança vem. Porque enquanto pessoas idiotas podem não saber que são idiotas, porque são idiotas, claramente pessoas não atraentes deveriam saber que não são atraentes por causa de espelhos.
— Talvez essa confiança venha do fato de que ela não liga para o que os outros acham dela — sugeriu como quem não quer nada. — E talvez você também devesse aderir, Afrodite.
Então, ele roubou pipoca da enquanto recebia um olhar nada sutil de reprovação vindo da deusa do desejo.
Sejam muito bem-vindos, amantes do esporte! O dia hoje amanheceu lindo para uma bela partida de beisebol, não acham? Enquanto nossos times se preparam em campo, o que vocês acham de um pouco de amor? — O apresentador soou por todo o estádio.
— Eu já vi casais se formarem por causa dessa kiss cam, sabiam? — Afrodite sorriu, animada. Querendo ou não, ela adorava como o amor a fazia ter borboletas na barriga, mesmo que fosse amor alheio.
— Você tem água? — perguntou.
— Aqui, mas cuidado que a tampa não está... — ergueu sua garrafa d’água e , sem prestar muita atenção em seu movimento automático, derrubou-a. — Mil perdões, pelos deuses!
— Está tudo bem. — A voz de não soou nada convincente. — Acontece.
— Você disse que... está tudo bem? — Afrodite indagou, surpresa. — Acontece?
— Mas caiu tudo na sua calça — ela sorriu sem graça. — Aqui, eu tenho um papel.
, você não precisa limpar essa...
— Oh, meu Zeus, o ingresso cobria entretenimento além do jogo? — Afrodite perguntou, indignada, cobrindo a visão com seu balde de pipoca.
— O quê? — franziu o cenho.
— Olhe onde está a sua mão — respondeu com obviedade.
Sem dizer nada, apenas com um sorriso envergonhado em sua face, afastou-se e ofereceu o papel ao deus, que aceitou com uma risada. Não se lembrava a última vez que havia visto tanta ingenuidade. Era... gostoso. Agradável.


Assim que desceu do vagão, deparou-se com uma cena incomum. Somente uma única ninfa estava lá para recebê-la na Terra, diferentemente dos outros dias, que Deméter a esperava, sorridente.
— Bom dia — a deusa da primavera sorriu, gentil.
— Bom dia. — Athania apontou para o caminho que elas deveriam seguir.
— Algum motivo para Deméter não aparecer?
— Ela está ocupada com uma reunião no Olimpo.
— O que faremos hoje, então? — perguntou sem parar de caminhar.
— Ela deixou alguns livros de botânica para você estudar.
— Ótimo. — A deusa suspirou, desanimada.
— Temos a opção de tentar voar de novo.
— Acho melhor não — sorriu em desespero. — A última vez foi uma catástrofe.
— Eu não diria catástrofe.
— Porque você é muito gentil. Nós sabemos que foi péssimo. Eu esqueci quantas vezes caí de cara no chão. Não sei como não quebrei todos os meus ossos naquele dia. Talvez eu seja uma dessas deusas que não voam, como Ártemis ou Afrodite.
— Então ficamos com botânica mesmo.
Passadas exatas três horas, ainda continuava deitada na mesma posição sobre a grama em um dia ensolarado. O livro em sua frente parecia bem menos interessante do que absolutamente qualquer outra coisa ao seu redor. As joaninhas, as formigas, as raízes que agora ela mesma podia controlar, a umidade da terra, o som do vento passando entre as folhas das árvores, a barra do seu vestido...
Ela observava as ninfas regarem as flores, apesar de que a própria chuva daria conta de mantê-las, mas gostava de pensar que aquilo ocupava o dia delas quando Deméter não estava por perto. Observou também uma bela borboleta azul pousar sobre um ramo de folha e perdeu noção do tempo, encarando a criatura estática em sua frente. Como se as duas competissem para ver quem se mexia primeiro.
— Divertindo-se? — Deméter perguntou ao fundo.
virou-se na grama com o susto e levantou-se em um pulo. Tentou limpar o vestido com as mãos o mais rápido que conseguiu.
— Como estão os estudos?
— Bem — a deusa da primavera sorriu sem jeito.
— Perfeito.
Havia alguma coisa errada com Deméter e podia sentir isso com o frio em sua barriga. A falta de animação denunciava o pressentimento ruim. Os ombros pareciam tensos e o olhar chateado, porém, conhecendo sua personalidade, não ousaria perguntar se tinha algo errado. Aquilo somente irritaria Deméter e ela perguntaria porque ela achava que algo estaria errado.
— Eu andei pensando, acho que já está na hora.
— Desculpe, na hora do que exatamente? — sorriu, confusa.
— Hora de você governar a primavera por si só.
— O quê?
— Está mais do que na hora. Em um mês a primavera do hemisfério sul começa, quero você dando conta disso. Mas se lembre que você ainda terá aulas nos seus meses livres. Preciso lhe ensinar coisas que vão facilitar o seu trabalho... como flutuar. Acho que hoje seria o dia perfeito para isso.
— Não é melhor eu estar completamente preparada? — sugeriu e Deméter fechou o semblante.
— Isso seria mais trabalho para mim, querida. Além do mais, a prática leva à perfeição. Agora, vamos, você não vai querer trazer a primavera tendo que andar para todos os lados.


Hades mal havia colocado a chave na fechadura e o barulho de latidos atrás da porta invadiu a casa. Assim que colocou o pé para dentro, pôde ver todos os sete rabos abanando para lá e para cá e muitas faces contentes com línguas para fora. Seus cachorros sempre lhe recebiam em casa animados. O deus agachou-se para fazer carinho em cada um deles antes mesmo de fechar a porta atrás de si. Perséfone, já acostumada com aquela rotina, quase nem notou a chegada do marido, estava concentrada demais em ler a carta que segurava.
— Boa noite, coração. — Hades aproximou-se dela e deu um beijo rápido em sua bochecha. — Está tudo bem?
— Uhum — a rainha do Submundo respondeu, distraída.
— Você parece um pouco distante. — O deus ergueu uma sobrancelha, sugestivo, enquanto afrouxava sua gravata.
— Lembra daquele dia que eu comentei sobre Afrodite ter dito para Hera que Ares suspeitava que fosse uma deusa da fertilidade?
— Me recordo. — Hades sentou na poltrona da sala e observava Perséfone andar para lá e para cá, seguida pelos cachorros.
— Duas coisas aconteceram hoje. A primeira foi quando eu fui visitar Ártemis no Olimpo. Ela comentou sobre Adônis ter aparecido na presença de .
— Adônis apareceu fora da primavera?
— Exatamente! — Perséfone colocou as mãos no cabelo rosa. — Ártemis acha que Adônis apareceu pedindo vida, porque...
— Porque é uma deusa da fertilidade — Hades completou, pensativo.
— Rumores e mais rumores. O oráculo das Parcas está começando a se consolidar. Para completar tudo isso, Deméter acaba de me mandar uma carta. — A deusa estendeu o papel amarelado para seu marido. — Aparentemente, Hera comentou com ela hoje sobre a possibilidade da reviver os mortos. Deméter disse que não acha isso possível, porque nem ela, que é uma deusa da fertilidade, nem eu, que já fui uma, conseguimos reviver os mortos, mas ela também disse que Hera parece bem obstinada a usar isso quando precisar.
— Como uma carta na manga. — Hades suspirou enquanto lia o papel. — Então não está tudo bem. Pelo menos, as Parcas disseram que a habilidade dela seria útil para nós, o que não garante que algo ruim vá acontecer.
— Não garante? — Perséfone colocou as mãos na cintura e parou de andar. — Agora que Hera sabe, nada impede que ela conte para Zeus. E você sabe muito bem o que isso significa.
— Zeus não faria isso, coração, ele precisa passar por Poseidon e por mim.
— Mas ele já fez isso antes, querido.
Antes que Hades pudesse dizer qualquer coisa — o que ele, na verdade, não faria, já que sua esposa estava completamente certa —, um toque sutil, porém firme, na porta pôde ser ouvido. Os deuses trocaram um olhar entre si, confusos. Não era nada comum receberem uma visita, ainda mais uma não planejada.
— Hermes? — Perséfone franziu o cenho. — O que faz aqui?
— Tenho uma carta para entregar.
— Uma carta? Você não está fora do seu horário de trabalho?
— É um favor — ele sorriu.
— Quem mandou? — Hades chegou perto da porta.
.
? — Perséfone ergueu a sobrancelha. — Aconteceu alguma coisa?
— Não sei, ele parecia o mesmo de sempre. — Hermes deu de ombros. — Se não se importam, preciso ir.
— Claro. Obrigada. — A deusa assentiu com a cabeça e fechou a porta, já abrindo a carta.
O que Tártaros tinha de tão urgente a dizer? Não se lembrava da última vez em que ele precisara de algo, assumindo que era isso.
Passando rapidamente os olhos pelas palavras, eles iam se arregalando cada vez mais. Perséfone apressou-se para se sentar na poltrona mais próxima, sentindo suas pernas fracas. Foi quando ela colocou a mão em seu peito que Hades notou: estava no limiar de um colapso interno.
— Eu... eu... – ela falava sem ar. — Eu... EU NÃO CRIEI ESSA PROLE PARA ISSO! — Então seu cabelo rosa parecia pegar fogo enquanto ele ganhava altura e uma cor azulada em volta. — Hades, pegue a chave do carro. Nós vamos ao Olimpo.


— Então é aqui que você trabalha. — abriu a porta sem cerimônias.

Ele realmente era filho de Hades.

Atenas e Ares imediatamente direcionaram seus olhares para o deus parado à porta. A face levemente menos saudável que o normal, mas o sarcasmo e cansaço de sempre, intrínseco. Ares, que se apoiava na mesa, ergueu-se, inclinando a cabeça, e Atenas apenas sorriu, acolhedora. Não era uma visita esperada.
— O que estamos discutindo? — andou até eles.
— Bom, nós estamos tentando encontrar a prole de Zeus que foi gerada de um adultério — Atenas falou com a maior naturalidade possível e Ares bateu a mão na testa.
— Hera disse que não era para comentarmos sobre isso com ninguém, Atenas.
— Oh — a deusa sorriu sem graça. — Desculpe.
— Uma prole de adultério — fingiu interesse. Uma nova prole infiel de Zeus não era novidade para ele ou sequer para o resto do Olimpo. — Claro. Quem exatamente?
Atenas abriu a boca para falar, mas Ares imediatamente lançou um olhar repreendedor e a deusa bufou, revirando os olhos. Por que tão sigiloso?
— Seria... Dionísio? — O deus do sofrimento ergueu uma sobrancelha, com o seu olhar sarcástico habitual, surpreendendo os outros dois.
— Como você sabe?
— Quem não sabe? — ele rebateu a pergunta de Ares. — Oh, por Hades, desde quando é segredo que Hera está atrás das proles ilegítimas de Zeus? Da última vez que eu chequei, isso acontece há milênios.
— O que você quer? — o deus da guerra foi direto ao ponto.
— Nos ajudar? — Atenas sugeriu, animada.
— Não. — começou a andar em volta. Nunca tinha visitado o escritório de Ares, mesmo nesses trezentos anos de vida. — Eu não tenho interesse em procurar pessoas. Eu tenho outra agenda.
— E o que está na sua agenda para você aparecer aqui?
— Uma excelente pergunta, Ares.
— Eu estou ocupado agora — ele apontou para os mapas em cima da mesa. — Se quiser conversar, vai ter que ser em outra hora.
— Eu posso sair se precisarem de privacidade. — Atenas apontou para a porta.
— Seria ótimo, obrigado. — sentou-se.
— Não — Ares falou, incrédulo. — Realmente estamos ocupados.
— Não seja mais um trabalho na minha lista, por favor — respirou fundo. — Meu detector de mentiras é bem preciso e você sabe disso. Não estou interessado em lidar com... — ele fitou Ares da cabeça aos pés, debochado. — Você... hoje. Eu adoraria entender essa sua pressa gigante para terminar seus planos com Atenas e ir para a casa de uma certa ninfa de Afrodite. Mas, afinal, por que você preferiria isso, se você pode ter uma conversa perfeitamente agradável comigo?
— O quê? — Atenas encarou Ares, indignada. — Afrodite sabe disso?
— Ela não vai ligar — o deus da guerra jogou verde.
— Eu posso ser bem mais charmoso que as ninfas. — ergueu uma sobrancelha, sugestivo.
— Eu te odeio — Ares suspirou. — Atenas, podemos terminar essa reunião mais tarde?
— Sorte a sua que eu ainda gosto de trabalhar com você. — Ela trincou o maxilar enquanto juntava a papelada em cima da mesa. — Afrodite irá surtar se souber disso, Ares! Pelo amor dos deuses, a deusa mais bonita do universo não é suficiente para você? — Ela continuava enquanto andava até a porta. — Imagine só o que ela não faria com aquela personalidade instável dela. Iria dizimar todas as mulheres para quem você já sorriu. O trabalho que ia ser para tirar ela de um Ato de Fúria, você tem noção? E você nem se dá conta de que Afrodi...
— Privacidade, enfim — sorriu, satisfeito, e fez um gesto com a mão, o que fez com que a porta do escritório se fechasse sozinha. — Agora que estamos sozinhos, que tal falarmos sobre o que você anda fazendo?
— O que eu ando fazendo? — Ares voltou a se sentar em sua cadeira. — É sobre as amazonas?
— Eu sei como você ama controlar os homens. E, convenhamos, nós somos criaturas rancorosas.
— Certo, então não é sobre elas.
— Mas não ingratas.
— O que isso quer dizer, ?
— Que você não precisa fazer parte da destruição para apreciar o caos.
— Você está maluco? E perder a parte realmente boa? Não, não, não.
— O problema, Ares — agora as pupilas de estavam finas, letais —, é que suas atrocidades estão ficando cada vez piores e você sabe muito bem o que elas causam no meu corpo. Eu achei que tivéssemos um trato.
— Isso está te matando?
— Ainda não — concordou contra sua vontade.
— Então não quebrei o trato. — Ares juntou as mãos e apoiou os cotovelos na mesa, com uma expressão levemente vitoriosa.¬
— Eu acho que falta um pouco de empatia, não acha?
— Você quer empatia do grande deus da guerra? —¬¬ Ares riu com desdenho. — Com quem você acha que está falando? Héstia? ? Apolo? Pelo amor dos deuses.
Sem paciência para sequer expressar uma única palavra, apenas respirou fundo. Ele tentou a conversa franca, mas, se ações eram o que ele precisava, então não tinha muitas escolhas. E, convenhamos, não que ele fosse contra.
— Veja bem — encarava os quadros pendurados na parede enquanto Ares franzia o cenho, começando a suar frio de repente —, sabe essa sensação dolorida que está começando a consumir seu corpo? Isso é o meu normal. Agora, se forçarmos um pouco mais... — Então Ares segurou a vontade de urrar levemente, fechando as mãos em punhos. — Isso é o que eu sinto quando eu vou trabalhar na Terra. Você sabe, músculos se contraindo como se eles precisassem ocupar o menor espaço possível no corpo. Mas isso... — Assim que fechou a boca em uma linha, Ares não aguentou e seus dedos fincaram na mesa de madeira. O suor agora escorria livre sob sua têmpora e estava pálido como a pelugem das asas de Hermes. Seu corpo implorava para que ele parasse com a dor, mas Ares era moldado pela teimosia. — Isso é o que eu sinto quando você faz merda na Terra com a sua necessidade irritante de causar ou continuar guerras, fome, solidão e loucura. Ruim, não? Ossos quebrando e rasgos na pele, profundos a ponto de vermos todas as camadas. Sangue saindo do corpo e sendo criado constantemente em um fluxo de sofrimento eterno.
... — O outro deus trincou os dentes.
— Não tente revidar, você não vai conseguir, a dor não permite. Concentre-se nela.
E quando finalmente voltou a encarar Ares nos olhos, a dor cessou. O deus da guerra, aliviado, respirou todo o ar pelo qual seu pulmão implorava e recostou-se na cadeira.
— Agora que temos mais empatia — sorriu e levantou-se —, que tal considerarmos causar menos caos na Terra, hm?
— Você acha que vir aqui e mostrar como você se sente vai mudar alguma coisa? Eu tenho milênios de anos a mais que você, . Não ache que uma pequena demonstração de dor vai me convencer a fazer as coisas do seu jeito.
— Nós realmente temos um ego fodido. — O deus do sofrimento e do prazer revirou os olhos. — Você sabe muito bem, por causa desses seus milênios de anos, que não é bom nós não mantermos uma boa relação, porque eventualmente eu vou precisar de você e você, de mim. — Ares assentiu. Realmente era verdade. — Mas, se você não quer manter isso de maneira civilizada, eu fico imaginando o que vai acontecer se eu pedir um favor à Pandora. — sorriu, falsamente gentil.
— Pandora? — Ares engoliu em seco.
— Tão apegada à caixa... — ele falou enquanto andava até a porta. — Ótima conversa. Eu tenho certeza que, sendo o grande e poderoso deus que você é, você achará uma excelente alternativa para as suas matanças. — Então ele deu uma última longa olhada diretamente para Ares, vendo em seus olhos o poder do ludíbrio. — Boa sorte com a procura de Dionísio.
Logo que fechou a porta atrás de si, Ares relaxou seu corpo e olhou para o teto. Quando Tártaros tinha ficado tão parecido com o seu próprio pai? E desde quando vinha conversar civilizadamente sobre as coisas?
Apesar das reflexões terem ido mais longe do que ele esperava, deixando-o pensativo no escritório por mais meia hora, Ares sabia que não dava importância genuína para se estivesse machucado ou não, entretanto não poderia arriscar que o outro deus fosse falar com Pandora.
Se pedisse para que ela finalmente libertasse o último mal, Ares estaria perdido. E facilmente poderia pedir isso a ela. Primeiramente, porque ele era o único além de Epimeteu que sabia aonde ela estava. E em segundo lugar, Pandora poderia ser concebida com todas as graças de todas as deusas, poderia ser considerada a mulher mais bonita do Olimpo por alguns, mas ela jamais deixaria de ceder um favor a , o deus que todos almejavam. Ainda mais para prejudicá-lo, um deus não muito popular, ele tinha que admitir.
Então, se ela finalmente resolvesse abrir a caixa de novo e libertar a Esperança para os humanos, como Ares conseguiria manter sua agressividade e impiedade na excelência e primordialidade de sempre? Como poderia se saciar com a selvageria dos homens? Como conseguiria continuar vivendo nesse mundo insosso e... puro?
Ew.
Enquanto Ares se afundava em seus próprios pensamentos, Hermes e , no corredor, seguravam suas respirações para ouvir qualquer barulho vindo de dentro do escritório. Para suas surpresas, nenhum mínimo som pôde ser ouvido.
— Você acha que ele morreu lá dentro? — o mensageiro sussurrou.
— Não.
— Você acha que ele vai descobrir que você não sabe de verdade onde a Pandora está?
— Mas eu sei — sorriu, malicioso. — Eu sempre soube.
— O quê? — Hermes ficou pálido. — E você nunca contou para Eros ou para mim?
— E como vai o Dionísio? — ergueu a sobrancelha e Hermes fechou a boca em uma linha.


— Se você continuar a encarando assim por mais dois segundos, isso vai ficar fora da lei. — Eros ergueu a sobrancelha.
— Não seja ridículo. — Hermes recostou sobre a cadeira, rindo. — Ela já está acostumada a esse ponto.
— Isso é ainda pior — o cupido rebateu, incrédulo.
— Não me incomoda — deu uma risada leve e tomou um gole da sua xícara.
— Você é gentil demais para dizer a verdade. — Eros colocou a mão na frente dos olhos do mensageiro, que se mexeu alguns centímetros para o lado.
— Eu não consigo parar, é como um imã.
Eros não ficaria surpreso se os olhos de Hermes assumissem o formato de corações. O mensageiro, diferentemente do que os outros pensavam e como Eros já sabia, não estava apaixonado por , mas a sua aura angelical e sua beleza venusiana eram características tão fortes, especialmente em sua perspectiva, que olhá-la era como sentar em um banco na frente de sua obra de arte favorita no museu. Irresistível, imperiosa e, sobretudo, fascinante.
— Ela é o tipo que faz você esquecer que tem um tipo.
— Ela é o tipo de todo mundo — Eros concordou com Hermes.
— Por que Tártaros vocês estão falando da em terceira pessoa, se ela está aqui do lado? — Perséfone suspirou. — Vocês não podem ser mais normais?
— Você estaria pedindo muito. — Ártemis virou sua taça de vinho.
— Eu não gosto dessa disposição de assentos — Hermes bufou. — Por que Hera nos colocaria juntos?
— Ninguém está feliz com essa mesa, acredite — Hefesto pronunciou-se pela primeira vez.
— Vocês podem não iniciar uma discussão, por favor? — a deusa da morte falou. — Estamos em um ensaio de janta só, não necessariamente são os nossos lugares oficiais.
— Eu espero que não mesmo, olha isso. — Eros apontou para cada um dos deuses sentados ao redor na mesa redonda, cada vez mais incrédulo.
— Quer dizer... — Hermes balançou levemente a cabeça em concordância. — Por que você está aqui? Você não deveria estar com as suas irmãs?
— Eu não nasci grudada nelas — Láquesis respondeu, ríspida.
— Essas próximas horas vão ser ótimas — sussurrou para Ártemis, que apenas derreteu na cadeira.
Antes que Eros ou Hermes pudessem fazer qualquer comentário, as luzes do local se apagaram e holofotes com uma forte luz branca começaram a girar em várias direções até convergirem para um único ponto no palco principal. Não era nem preciso que algo fosse dito, todos sabiam o que estava prestes a vir. Até mesmo . Hera surgiu devagar de um suporte que subia, aparecendo aos poucos. Seu vestido justo e longo era tão pomposo, cheio de plumas, que era difícil de enxergar a deusa.
De um segundo a outro, quase pulou da cadeira de susto, colocando a mão sobre o peito e arregalando os olhos. Uma orquestra começou a tocar ao fundo e canhões de brilho jogaram purpurina contra o ar, em uma explosão de cores. Onde diabos ela estava?
Cinquenta dançarinos agora caminhavam pelo palco em ritmos musicais, acompanhados de pessoas se pendurando pelo teto em tecidos. De onde saía tantas pessoas?
— O que está acontecendo? — perguntou para Eros ao seu lado.
— Hera e suas extravagâncias, é isso que está acontecendo.
— Eu gosto. — Hermes dançava sentado ao ritmo da música, segurando sua taça.
Mais meia hora passou e as apresentações finalmente pararam. Não que elas tivessem sido ruins, muito pelo contrário, não pôde deixar de ficar encantada com todas aquelas cores e danças coordenadas. Era glamoroso, no mínimo. O que aconteceu em seguida, no entanto, não proporcionou o mesmo nível de entretenimento. Zeus e Hera subiram ao palco para dar um discurso — longo demais em sua opinião, mas a verdade era que tudo pelo que não tinha afinidade se tornava tedioso.
— Eu achei que a gente ia vir aqui aprender a usar os três garfos dessa mesa. — A deusa encarava todos aqueles apetrechos em sua frente.
— Também, mas isso é a septuagésima quarta etapa do jantar de ensaio — Eros respondeu, entediado.
— Septuagésima quarta? — encarou-o, boquiaberta. — Quando tempo vai durar todo esse ensaio?
— Algumas horas. — Ártemis virou o que seria a sua sexta taça de vinho naquele ponto da noite. — O segredo é a bebida.
Perséfone, cansada já de lidar com Ártemis sem filtro algum, Eros reclamando de seu trabalho, Hefesto procurando defeitos em tudo e Hermes, achando tudo incrível, contrariando o deus ferreiro em tudo que podia, retirou-se da mesa para ir ao banheiro. E talvez nem fosse voltar. Gostava muito das companhias de Láquesis e , sobretudo com assuntos que tangiam Deméter e o Submundo, mas depois do longo dia com Hera, tendo que planejar cada pequeno centímetro cúbico daquela festa, sentia que merecia um momento de paz.
— Claro que não, o segredo é o álcool — Hermes falou, confiante.
— Isso é a mesma ideia dita de maneira diferente, idiota — Ártemis revirou os olhos.
Enquanto Eros, Hermes e Ártemis entravam em uma discussão acirrada e Láquesis parecia distraída demais ao conversar com Hefesto, respirou fundo, girando lentamente a taça de vinho em sua mão. Nada ao redor parecia mais interessante que o líquido escuro deslizando contra o vidro.
— A gente sabe que o segredo não é esse. — Uma voz carregada de malícia soou baixa atrás da orelha de . — O segredo... — tirou o cabelo da nuca dela, respirando calmamente a centímetros de sua pele, sentindo o cheiro floral da deusa preencher cada parte de seu pulmão — é tornar aquilo que nos entedia... — ele deslizou o dedo quente devagar sobre a nuca dela, descendo pelas costas aos poucos — em algo a nosso favor. — Então ele sentou na cadeira vaga ao lado de , abrindo um sorriso de lado. — Vamos deixar Hera louca.
— Estamos falando de amor? — Eros interrompeu-os, sentindo uma forte reviravolta no estômago. — Sente isso, Hermes?
— O quê? — O mensageiro olhou para trás, confuso.
— Cheiro de...
— Nada — completou, rápida, com a sobrancelha erguida.
— Ela é afiada — Eros retrucou com um sorriso divertido. — Bem o seu tipo, , já que estávamos falando disso mais cedo.
— Ainda não sinto cheiro de nada — Hermes falou, confuso.
— Podemos? — ofereceu a mão dele e ficou confusa.
Sem tempo de fazê-la questionar, Hera anunciou que a pista de dança estava liberada. Diga-se de passagem, a existência de todos parecia ser moldada no tempo dele. Tudo parecia funcionar exatamente quando queria, como no dia em que o conheceu e Eros chegou na hora certa.
— Oh! — Hermes levantou da cadeira, animado. — Ártemis, vamos dançar!
— Eu vou pegar um drink antes.
— Então, vamos eu e você, Eros! — E o mensageiro puxou seu amigo para fora da mesa antes que ele pudesse reclamar.
— E você está dançando comigo só porque quer irritar Hera? — aceitou a mão.
— Eu não gosto de ficar entediado.
— Oh, entendi — ela sorriu, desafiadora. — E também não gosta que eu fique?
— Você gosta de assumir as coisas, não gosta?
— Pelo que eu me recordo — ela colocou seus braços no ombro dele —, foi você quem veio me oferecer uma solução para o tédio.
Touché sorriu. — É da minha natureza querer irritar, Hera. Assim como é da sua agradá-la.
— Não, não é. — chegou mais perto. — Eu já sei ler as suas linhas agora, . Você a irrita porque quer, não porque é da sua natureza.
— Eu não gosto de pessoas controladoras em excesso.
Ao estreitar os olhos, a deusa da primavera pôde ver verdade na face honesta dele. Antes que pudesse se entregar ao silêncio, ela inclinou levemente a cabeça, em um sinal claro de quem vai fazer uma última pergunta.
— O que vamos fazer para irritar Hera?
— Viver bem e viver muito — ele respondeu.
E, sem aviso prévio, ele segurou firmemente na cintura e na coxa dela, girando e deitando seu corpo quase como se ela fosse tocar o chão. Suas faces separadas por centímetros e olhos penetrados um ao outro. perguntava-se onde ele havia aprendido a dançar assim, e ele, como Tártaros ela conseguia ser tão tentadora.
não precisava pensar em um passo sequer, seu corpo estava completamente guiado pelos passos e mãos firmes de percorrendo todo seu corpo. A deusa deslizava entre os movimentos e sua única preocupação era tentar desviar o seu olhar do dele, o que não aconteceu uma vez sequer.
— Deméter interrompeu-os. — Posso lhe roubar por um minuto?
— É algo importante? — ele perguntou.
— É algo prudente.
— Eu acho que é hora de eu ir pegar um drink — sorriu sem graça.
— Não precisa se dar ao trabalho de sair. — colocou as mãos nos bolsos da calça, calmo. — Essa conversa já acabou.
— Acabou? — Deméter franziu o cenho, irritada. — , você não acha que isso — ela apontou para os outros dois deuses em sua frente — é um pouco demais?
— Um pouco demais? — perguntou, confusa.
— Vai gerar rumores de traição. — Deméter encarou-o nos olhos, ignorando a presença da outra deusa.
— Traição? — colocou as mãos na cintura.
— Traição? — estreitou os olhos. — Você quer falar sobre traição?
— Vamos ser sensatos e relembrar a posição na qual você mesmo se colocou — Deméter respondeu, decidida.
— Que tal falarmos sobre a sua traição antes de você vir aqui falar sobre isso com nenhum fundamento?
— Eu sinto que essa conversa não é para mim. — estava perdida.
— Do que você está falando? — A deusa da agricultura parecia perdida.
— Faz tanto tempo assim que você está suprimindo essa memória para esquecê-la? Ou você só está em negação por ter traído sua própria irmã? — levantou os ombros em descaso.
— Como você sabe disso? — Deméter colocou a mão em frente à boca, completamente chocada. — Nem Perséfone sabe disso.
— Quando enterramos nossos segredos mais sujos e suamos frio de pensar que alguém poderia descobrir, eu vou saber. — trincou o maxilar. — Eu vou sentir. Eu vou sentir, porque é sofrido fazer isso.
— Ok, eu oficialmente não deveria fazer parte dessa conversa. — virou-se para sair. — Isso é privado demais.
— O que é privado demais? — Hera chegou com seu sorriso curioso e a deusa da primavera imediatamente fechou a boca em uma linha, não acreditando que justamente Hera teria aparecido.
— Certas coisas nós não podemos compartilhar, não acha, Hera? — Deméter indagou, persuasiva.
— Oh, certamente — ela concordou e sua irmã respirou, aliviada. — Mas nada não pode ser compartilhado com a rainha do Olimpo. Estava de saída, ? Ou é você quem não quer compartilhar algo?
— Não, eu... — virou-se, claramente desconfortável com a situação. — Hermes me chamou.
— Hermes está ocupado. — Hera ergueu a sobrancelha. — Quer mentir sobre outra coisa?
— Você não precisa ser grossa com ela — interveio. — Não é ela que está escondendo algo.
— Escondendo? — a rainha franziu o cenho. — Eu achei que estávamos respeitando coisas privadas, não as escondendo. Isso são coisas muito diferentes.
— Acho que não precisamos discutir isso agora. A sua festa precisa da sua atenção em outros...
— Não — Hera interrompeu Deméter. — Algum de vocês está mentindo. — Então os olhos de Hera tornaram-se fortemente dourados enquanto ela analisava a face um a um dos outros três deuses, mas tudo que via era confusão. — Por que eu não consigo... — uma olhada para trás foi o suficiente para ficar ainda mais zangada. — Zeus! Pare de bloquear o que eu quero ver!
— Você não pode sair por aí tirando a verdade das pessoas contra a vontade delas — o deus do raio repreendeu-a. — Você sabe que isso é ilegal aqui.
— Isso só é ilegal, porque você mente para mim — ela bufou em resposta. — Um deles está escondendo um segredo sério.
— É algo que deveríamos saber? — Zeus perguntou, apreensivo.
— Eu genuinamente acho que é algo que vocês não deveriam saber — falou com seriedade.
— Então nós queremos saber. — O rei olimpiano mudou de ideia, gerando um sorriso em Hera.
— Eu tentei. — fitou Deméter.
— Não, você não tentou! — ela rebateu, furiosa. — Se não fosse você fazendo todo esse teatro, nada disso teria acontecido!
— O quê? — ficou boquiaberta. — Quem veio nos interromper para conversar sobre traição foi você.
— Por que você veio falar sobre traição? — Hera questionou, interessada.
— Por que todos os eventos do Olimpo têm que acabar em discussão? — revirou os olhos, exausta.
— Porque eu não acho que era uma boa ideia ter dançando assim com a — Deméter respondeu com obviedade e Hera ficou imediatamente furiosa.
— É proibido até dançar agora? — ergueu as mãos, sem paciência.
! — Os cabelos dourados de Hera flutuavam com voracidade.
— Não tente virar isso para mim. — Ele rangeu os dentes, encarando Deméter com raiva. — Você quem fez merda, eu não fiz porra nenhuma.
— O que você fez, Deméter? — Zeus franziu o cenho. Deméter era a única deusa em milhares de anos que nunca havia lhe dado uma dor de cabeça sequer. Ele duvidava que essa seria a primeira vez.
— Sim, Deméter — ressaltou, frívolo. — O que você fez?
— Não provoque — sussurrou enquanto lhe dava um leve chute por debaixo de sua saia.
— Ouch! — o deus reclamou. — O seu salto é muito fino.
— É melhor termos essa conversa depois. — Deméter engoliu em seco.
— O que você fez? — Hera perguntou, desconfiada. — Eu quero saber agora.
— Eu... — a deusa da agricultura limpou a garganta duas vezes antes de conseguir prosseguir. — Eu... err... Digamos que eu sei quem é o pai de Perséfone.
— Você sabe? — A rainha estreitou os olhos e Zeus imediatamente sentiu a sua pressão cair. — Então quem é? Por que você nunca me contou isso antes?
— Realmente é melhor termos essa conversa depois. Em um lugar mais privado — o deus do raio falou baixo.
Hera, no entanto, não era nem um pouco ignorante, muito pelo contrário. Em sua relação com Zeus, ela se sentia constantemente em um limiar entre as coisas ruins e boas. Detestava como todo dia ela acordava com a certeza de que poderia cair para um lado ou para o outro sem saber qual. Isso a fazia se sentir desesperada. Ao longo de todos esses anos com Zeus, tinha presenciado a morte, tinha presenciado a dor excruciante, tinha presenciado o medo. Nenhum deles, no entanto, tinha a preparado para o que sentia naquele momento.
— Perséfone é filha do meu marido? — Hera perguntou, rangendo os dentes.
Deméter não teve coragem de responder.
— ELA É FILHA DE ZEUS? COMO VOCÊ PÔDE FAZER ISSO COMIGO? COM A SUA PRÓPRIA IRMÃ?
— Hera...
— Você não tem o direito de dizer uma palavra!
— Hera — Zeus tentou encostar no ombro de sua esposa, que apenas virou-se, furiosa —, vamos conversar em outro lugar, por favor, todos estão olhando.
— De todas as merdas que você fez, Zeus, nenhuma delas foi tão horrível quanto essa!
— Chega! Eu não aguento mais vocês brigando! — interrompeu-os, cansada. — Vocês não conseguem deixar ninguém em paz, ficam querendo entrar em conversas que não lhe pertencem e ainda querem ter discussões no meio de todo mundo? Arranjem um lugar privado para resolver os problemas de vocês sem envolverem os outros!
, tentando não demonstrar nenhuma reação externamente, manteve as mãos nos bolsos da calça e a postura calma. Internamente, por outro lado, nunca esteve mais atraído por . Ela parecia tão... forte.
Hera, já carregada de raiva e injetada com toda adrenalina que possuía, lançou um olhar mortal para . O que, no entanto, não foi o suficiente.
— Não me venha falar o que fazer. — A deusa da primavera estreitou os olhos.
— Você não...
A rainha olimpiana, entretanto, não conseguiu terminar sua frase. Um enorme rasgo no chão atravessou o salão, levando Zeus, Hera e Deméter junto consigo para o fundo. A música parou instantaneamente e todos os outros deuses que antes conversavam ou dançavam, agora assistiam a cena em um silêncio cortante. Todos sentiam que, se alguém se movesse, seria cortado pelo ar afiado do local.
— Você os mandou direto para o inferno. — inclinou-se para ver a profundidade infinita do rasgo. — Estou impressionado.
Hades e Perséfone, ao fundo, fitavam a cena. Meio surpresos, meio preocupados, completamente impressionados.

Capítulo 15

Assim que as portas automáticas se abriram, respirou com vontade o ar gelado que invadiu seus pulmões. Não que o ar do Olimpo não fosse completamente puro e ameno, o problema eram todos os olhares que recebia enquanto andava na rua. Ela sabia do que todos falavam. Afinal, não era todo dia que o Olimpo tinha tantas decisões a serem tomadas por causa de uma só deusa nascida de humanos. Na verdade, isso não tinha acontecido nenhum dia desde que os titãs surgiram.
Diga-se de passagem, o caminho até o mercado não tinha sido o melhor possível. Ela respirou fundo, sorriu, satisfeita, com a falta de pessoas e começou a andar até os carrinhos e não poderia ter ficado mais feliz ao encontrar um rosto familiar.
— Até que enfim, alguém para me ajudar! Que bom que você está aqui! — ela sorriu, animada, e apressou o passo para chegar perto de . — Você não tem ideia do quanto esses saltos estão me matando. — apoiou-se no carrinho que ele segurava e tirou os sapatos um a um, finalmente sentindo o chão frio contra seu pé. — Urgh, eu juro que eu achei que teria que mudar o caminho para o hospital depois do décimo quarteirão.
— Ok, sobe — fez um gesto com a cabeça, apontando para o carrinho.
Sem hesitar, jogou os saltos dentro e entrou logo depois, aconchegando-se como conseguia.
— Quem diria, o grande deus do sofrimento e do prazer sendo gentil.
— Por que você veio andando com esses saltos para um mercado tão longe da sua casa?
— Psique, para variar — suspirou e apontou para um dos corredores, onde entrou. — Ela ficou com vontade de tomar um sorvete de amora que só vendem aqui.
— Amora? — ele estranhou. — Essa definitivamente não é uma fruta muito bem vista por aqui.
— Por que não?
— Bom, conta a história, que as amoras são vermelhas por causa da cor do sangue e do sofrimento. E as pessoas supersticiosas daqui acreditam que essa fruta vai trazer isso para a vida delas, mas esse é o meu papel — ele revirou os olhos. — Perséfone me contava, quando eu ainda era pequeno, essas histórias antes de eu dormir, mas as histórias olimpianas são dramáticas demais, acho que você já deve ter notado.
— Eu tenho a impressão que você não é tão paciente assim — deu uma risada divertida.
— A muito tempo atrás, um casal apaixonado, Tisbe e Píramo, foi proibido de se casar. — fez uma careta de desgosto. Não aturava essa ideia arcaica que ainda reinava até no Olimpo. — Mas a gente sabe que isso não vai impedir que as pessoas continuem se amando. O que aconteceu foi que eles combinaram de se encontrar em segredo um dia, perto de uma bela fonte ao lado de uma amoreira, que, até aquela época, gerava frutos brancos. Por algum azar do destino, que eu gosto de chamar de meu pai antes de conhecer a minha mãe, um leão ensanguentado que havia acabado de comer parou na fonte para beber água. Foi nessa hora que Tisbe chegou, mas obviamente ela saiu correndo. Um pouco de noção sempre é bom. No meio do caminho, o seu véu caiu e o leão o mastigou, deixando-o encharcado de sangue. Quando Píramo chegou e viu o tecido vermelho, ele logo assumiu que ela havia sido comida pelo leão e se matou. Viu quanto drama?
— O que aconteceu depois disso? — ela perguntou, curiosa.
— Bom, Tisbe encontrou Píramo morto e correu para pegá-lo no colo e chorou. Logo em seguida, ela se matou também. Em homenagem ao acontecimento, que comoveu muito os deuses, por causa de todo esse ideal de sacrifícios pelo amor verdadeiro que temos, eles pintaram as amoras com a cor do sangue para representar a coragem deles.
— Oh, espero que agora eles possam passar a eternidade juntos pelo menos.
— Claro — desviou o olhar.
Nunca contaria para a deusa da primavera, do jeito doce que era, que eles não estavam no mesmo lugar no Submundo. Isso acabaria com a ideia pura e ingênua dela de que o amor sempre vencia no final.
— Mas deixa eu adivinhar. — O deus ergueu uma sobrancelha. — Você se ofereceu para comprar o sorvete raro da Psique.
— Sim, mas foi por questão de privacidade — ela retrucou, rápido, quando viu que ele ia falar algo sobre sua generosidade excessiva. — Tem dias que Eros aparece escondido lá em casa e eles acham que eu não sei. Queria deixar os dois à sós. Mas e você, o que faz aqui? Compras para estocar a geladeira?
— Até deuses precisam comer — sorriu, sarcástico, e abriu um pergaminho que ia até o chão. — E essa é a lista de compras do Hermes que ele me passou.
— Você está falando sério? — riu e segurou uma parte do longo papel. — Cortador de grama? Por que isso está na lista dele? Ele mora em um prédio. E que tipo de mercado do Olimpo tem um cortador de grama?
— Respostas que eu também procuro — concordou e enrolou o pergaminho novamente. — Mas não é como se eu fosse realmente comprar tudo isso, eu só perguntei se ele queria uma ou outra coisa, já que eu estava indo ao mercado e ele pode se virar sozinho depo...
— Oh, pare aqui! — a deusa gritou, animada, dando um susto em , e começou a pegar um monte de caixas de cereal das prateleiras.
— Por algum acaso você vai... alimentar todo o Olimpo?
— Claro que não — revirou os olhos, divertida. — É que a Psique consome uma quantidade bizarra de cereais e, apesar da comida do Olimpo ser de graça, ela não é bem distribuída.
— Isso é trabalho de Zeus e de Deméter. — observava, curioso, ela organizar as embalagens dentro do carrinho e em cima de si mesma. — Já provou o da caixa laranja?
— Caixa laranja? — ela franziu o cenho.
— É o único que eu compro. — Ele deu dois passos para trás para enxergar todas as prateleiras. — O design não é dos melhores, já que é um cereal de criança.
— Por acaso você come o mesmo cereal desde que era criança?
— Não, Fobos que me apresentou — respondeu, já pegando uma caixa e entregando para a deusa, que fitava os desenhos na embalagem.
— Ele gosta de você, então. Ele não é muito de compartilhar, eu diria.
— Acho que sim — o deus deu de ombros e voltou a empurrar o carrinho. — Ele gosta que eu e ele compartilhamos o mesmo medo.
—, Qual medo?
olhou-a de relance e notou seu semblante gentil. Não era nenhuma novidade que o deus do sofrimento e do prazer fosse uma pessoa reservada, especialmente quando o assunto estava relacionado a qualquer sentimento profundo. Nunca na vida compartilhara qualquer segredo assim, tão íntimo, tão expositivo, com ninguém. Nem com Eros e nem com Hermes. E, sinceramente, passava grande parte do tempo ignorando o seu subconsciente em relação a isso.
— Medo de não ser livre — ele respondeu, segurando o ar em seu pulmão.
— Parece um medo muito válido para mim.
— E quais os seus?
— Fobos disse que eu tenho medo de que Hera esteja certa.
— O que isso significa exatamente? — parou de andar e fitou-a com o semblante sério, perigoso.
Não seria correto mentir, sabia disso. A postura preocupada do deus, no entanto, quase a fez mudar de ideia. Ela ainda não conseguia admitir para que sentia as malditas borboletas no estômago toda vez que o encontrava. Ou dizer que não conseguia desviar o olhar nem se quisesse quando o observava de longe. Ou deixá-lo saber que se sentia protegida com ele, que ela adorava a preocupação que ele tinha com a sua liberdade. Estava com medo que Hera estivesse certa... porque, se ela realmente estivesse, teria que abrir mão daquela felicidade genuína e transbordante que ele gerava nela para proteger as pessoas que a acolheram tão bem no Olimpo. Afinal, não havia amor que pudesse superar a imagem das pessoas que ela amava sofrendo como Prometeu.
— Não sei — sorriu fraco e desviou o olhar. — Quer dizer, Hera está certa sobre muitas coisas.
— O que ela lhe deu de tão precioso para você dizer isso?
— Primeiramente, eu não aceito suborno.
— É verdade — sorriu, sarcástico. — Você faria pela gentileza.
— E segundo — ela ignorou-o —, Hera está certa quando diz que Zeus é um babaca, por exemplo.
— Um babaca — ele repetiu, debochado.
— Um babaca — falou com convicção, arrancando uma leva risada dele. — Realmente não deve ser satisfatório estar em um casamento onde seu marido lhe trai, ainda mais quando você é a deusa do casamento e precisa manter uma reputação, não acha?
— O que eu acho é que deveriam criar a lei do divórcio por aqui, assim como os mortais têm na Terra. Se eu fosse Hera, seria a primeira a assinar os papéis.


— Thanatus! — Hermes batia na porta em sua quinta tentativa, cada vez mais forte. — Eu sei que você e seus irmãos estão em casa.
— Cara —, Morfeu, o deus dos sonhos bons, abriu a porta — são nove e meia da noite.
— É, cara. — Oizus apareceu atrás de seu irmão, coçando o olho em cansaço. — Existem deuses que foram exilados por menos.
— Pare de ser tão dramático — Filotes, a deusa da amizade, falou sem desviar o olhar da televisão.
— O Thanatus está aí? — o mensageiro voltou a sorrir. — Preciso falar com ele.
— No escritório, talvez? — Morfeu encarou Oizus para confirmar, mas ele ergueu os ombros em descaso como resposta. — Acho que no escritório.
— Como se ele pudesse estar em outro lugar — Nêmesis revirou os olhos. — O cara vive de trabalho e de trabalho e só de trabalho.
— Ah, você jura? — Momo, o deus do sarcasmo e da ironia, rebateu.
— Qualquer dia desses você vai se arrepender de falar assim comigo — Nêmesis estreitou os olhos.
— Eu ouviria, cara — Filotes alertou. — Você sabe... ela faz jus ao próprio dom.
— Eu não tenho medo da vingança — Momo ignorou.
— Mas deveria — Morfeu sussurrou. — Enfim, você é bem-vindo para entrar, Hermes. Você já sabe onde é o escritório.
— Obrigado. — O mensageiro passou pela porta e andou, apressado, pelo corredor.
Nunca esteve tão ansioso para acabar seu turno. Apesar de gostar muito de todos os filhos de Nix, aquela casa sempre era um teste de paciência com doze vozes falando o tempo todo. Não tinha ideia de como a deusa da noite ainda conseguia morar com seus filhos.
Dois toques breves e uma breve respiração funda depois, Hermes ouviu alguém o autorizando para entrar. Sem hesitar, ele abriu a porta e os outros três deuses dentro do recinto olharam-no.
— Olá — o mensageiro sorriu. — Vim buscar uns documentos para Zeus com o Thanatus.
— Oh, sim — o deus da morte balançou a cabeça. — Tinha esquecido que você ia passar aqui.
— Hermes, querido — Nix sorriu, acolhedora. — Como você está?
Muito embora Nix fosse sempre muito simpática, havia um quê especial em sua áurea que a deixava meio sombria. Claro, existia o nítido fato de ela ser a deusa da noite, mas era algo mais... perverso. E aquilo sempre fazia os pelos da nuca de Hermes se arrepiarem. Era como se ele soubesse que ela sempre estaria pronta para trazer a escuridão consigo... mesmo ela nunca tendo feito isso. Então, talvez, fossem só seus pensamentos o deixando desconfiado por nada.
— O que são esses documentos? — Hipnos perguntou, curioso.
— O mesmo de sempre — Thanatos deu de ombros.
— Isso é só Zeus pegando no pé de Hades — Nix respondeu.
— Pai — Morfeu bateu na porta já aberta, chamando atenção dos outros —, estamos atrasados já.
— Urgh — Hipnos gemeu e arrastou os pés devagar até alcançar o irmão. — Trabalhar é exaustivo. Eu quero tirar uma soneca.
— Você está louco? — Morfeu abriu a boca em perplexidade. — Trabalhar é incrível.
— Você diz isso só porque você traz os sonhos bons.
— Isso é inveja — Morfeu sorriu, divertido, e fechou a porta atrás de si e de Hipnos.
— Aqui — Thanatos ergueu algumas folhas. — Ah! Entregue isso para Hera também.
— O que é isso? — Hermes encarou o envelope amarelado com o carimbo “confidencial” vibrando em suas mãos.
— Algum projeto novo que ela está criando. Aparentemente, envolve todos os reinos, mas você não ouviu isso de mim.
— Pode deixar.
— Projetos secretos? — Nêmesis, que ouvia a conversa através da porta junto a seus irmãos, interveio, curiosa.
— Vocês estavam escutando? — Nix colocou as mãos na cintura. — Eu não acredito! Centenas de anos nas costas e eu ainda tenho que ensinar bons modos?
— Óbvio — Momo rebateu. — Vivemos pelo entretenimento de irritar Hera.
— Pelos deuses — Hermes franziu o cenho —, você e seriam ótimos amigos.
e o deus do sarcasmo? — Nêmesis balançou a cabeça em concordância. — Eu vejo. E você, irmã, poderia fazer isso acontecer.
— Eu não me intrometo no curso natural das coisas. — Filotes cruzou os braços.
— Eu tenho que discordar. — Thanatos ergueu uma sobrancelha.
— Ok — Hermes sorriu, apressado. Estava presenciando o começo do que seria uma longa discussão familiar, ele sabia. — Obrigada pelos documentos. Nos vemos no Submundo.


A única luz naquele escritório vinha do abajur da mesa de . Ela recostava-se sobre a cadeira, pensativa, enquanto mordia a ponta de sua caneta. Mikaris havia pedido para que ela achasse o erro na planilha, mas nem as sete vezes que havia checado foram o suficiente para que ela avistasse algo fora do normal. Havia de admitir, no entanto, que aqueles números não batiam. Depois de alguns longos segundos encarando a tela do computador sem ao menos prestar atenção de verdade, suspirou e levantou de sua cadeira. De nada adiantaria ficar ali, exausta, depois de um longo dia de trabalho.
Olhou de relance o relógio na parede. Nove e cinquenta e um. Psique a mataria quando chegasse em casa. colocou seus saltos e juntou a papelada que levaria junto consigo. Quando havia acabado de apagar a luz, sentiu uma sensação estranha na barriga e virou seu olhar para o corredor. Na porta, uma pessoa esperava-a parada na escuridão, apoiada contra o batente da porta. A deusa derrubou todos os documentos de seus braços e permaneceu estática, sentindo seu sangue parar de circular instantaneamente.
— Você é desastrada, não?
? — parou de segurar a respiração.
— Quem mais seria? — o deus franziu o cenho e andou até ela para pegar os papéis no chão.
— Qual o seu problema!? — agachou e bateu nele com um dos arquivos.
— Outch! Por que você é tão agressiva?
— Eu achei que você fosse me sequestrar! Me matar!
— Eu não sequestro ou mato pessoas desse jeito.
— Você sequestra e mata? — ficou boquiaberta.
— Não! Eu... — ele respirou fundo e levantou, segurando a papelada. — Psique disse que você queria visitar Creta.
— Você me deixou curiosa sobre Creta naquela noite — a deusa deu de ombros e começou a andar para fora do escritório, já segurando os papéis de novo e com em seu encalço. — Eu comentei com ela que queria ver o que essa cidade tinha de tão especial.
— O labirinto, obviamente — ele ergueu a sobrancelha. — O labirinto do Minotauro. Do jeito que você é perdida, eu aposto um pomo de ouro de Hera que você não consegue chegar ao centro do labirinto antes de mim.
— Não me parece muito justo, você deve conhecer muito bem o caminho.
— Faz duzentos anos que não vou para Creta.
— O que eu posso fazer com um pomo de ouro? Quanto vale um pomo de ouro no Olimpo? — perguntou, interessada, parou de andar e virou-se para trás, fazendo parar a dez centímetros dela com um sorriso desafiador.
— Um pomo de ouro vale uma vida.
— Tudo bem — aceitou e puxou levemente a gravata do deus, fazendo-o chegar ainda mais perto. A deusa mordeu o lábio inferior e sorriu logo em seguida. — E se eu perder?
— Durma comigo.
, eu...
— Não — ele riu com a hesitação dela. — Não esse tipo de dormir. Deitar ao meu lado. Pelo menos, uma última vez. — parou de falar de repente, passou a mão pelos cabelos, bagunçando-os, e se afastou um pouco. — Só deitar.
Estava tão confortável que quase falou mais do que deveria.
— Tem certeza? Você quer trocar uma vida por...
— De certa maneira, uma vida também — o deus sorriu fraco.
— Tudo bem — ela falou, confusa. — Quando quer ir para Creta?
— Agora.
— Agora?
— Agora — respondeu, firme, e ela encarou-o em silêncio por alguns segundos.
Ele só poderia estar brincando.
— São quase dez horas da noite.
— Perfeito, não acha? No escuro é ainda melhor — o deus sorriu, provocante, e jogou os documentos dela para trás sem ao menos hesitar.
, você não pode...
— Sim, eu posso — ele interrompeu-a.
— Mas...
— Você reclama demais.
Então, a segurou entre os braços repentinamente, fazendo-a segurar em seu pescoço em reflexo, e arregalou seus olhos quando viu que ele andava sem direção à parede de vidro do prédio.
— Você precisa parar de fazer isso!
— O que nós tínhamos combinado sobre gritar? — perguntou, calmo, ao se colocar de costas na beirada. Seus corpos atravessavam o vidro como se não houvesse nada ali.
— Estamos no quinquagésimo quarto andar, , pelo amor dos deuses, não faça isso.
— Tarde demais.
Quando o deus deixou seu corpo cair junto à gravidade, levando entre seus braços, tudo o que ela conseguiu fazer foi gritar enquanto seu pulmão possuía ar e ele apenas riu com sua reação.


— Pela milésima vez, não foi trapaça, se eu não quebrei nenhuma regra — sorriu, divertida, e tirou os cabelos que teimavam em cair em seu rosto por causa do forte vento gelado vindo do oceano.
— Mas era uma regra implícita — ergueu a sobrancelha, ainda inconformado.
— Mas, nessa lógica, eu poderia criar qualquer regra na minha cabeça e dizer que era implícita.
não fazia ideia de que horas eram. Não tinha ideia de quantas horas haviam passado. A única coisa que sabia era que, quando chegaram em Creta, a lua estava cheia e iluminava a bela cidade. Não foi difícil de encontrar os escombros do labirinto e também não foi difícil derrotar na aposta.
— Para uma deusa da primavera, você está desonesta demais — o deus sorriu. Aquele mesmo sorriso perigoso de sempre. — Eu esperava isso de mim, mas de você? Jamais.
— Você nunca disse que eu não poderia chegar ao centro por cima dos muros — ela deu de ombros e voltou a olhar o mar.
A brisa fria atingia o penhasco com força. A noite limpa e estrelada contrastava com o mar agitado, encontrando-se em uma perfeita linha harmônica entre o céu e o oceano. O cheio salgado da água parecia mais ameno que o normal e achava aquilo estranhamente acolhedor. Sentada na beira do penhasco rochoso, com a seu lado, tudo parecia calmo em excesso. Sua vida andava tão agitada ultimamente que tudo aquilo era como um sonho. E ela estava com medo de acordar.
— Eu me pergunto se o estágio no Submundo está fazendo efeito demais sobre você — o deus riu e balançou a cabeça em negação. — Mas devo admitir que você merece o pomo de ouro.
— Por que esse pomo vale uma vida? O que faz dele tão especial?
— Ele vale a eternidade, . É como as ninfas, os semideuses, os guardiões e outras criaturas podem viver para sempre como nós.
— Você escolheria viver para sempre, se isso fosse uma opção para você?
— Eu não sei — respondeu, sincero, e fitou-a nos olhos. — O Olimpo pode ser um lugar ótimo, mas é estranho você pensar que nada é um limite para você. As coisas ruins demais que fazemos parecem tão distantes depois de um tempo, não são memórias eternas. E não podemos recorrer ao oblivium toda vez que nos sentimos mal por causa dessas coisas também, isso só faz as coisas ruins ficarem mais... fáceis.
— O bom de se viver eternamente é que você tem tempo para fazer o que é certo.
sorriu fraco e eles ficaram em silêncio por alguns minutos, apenas apreciando a vista. estava tão absorto em seus pensamentos que só percebeu que a deusa havia levantado quando ela já o havia encarado por um bom tempo de pé.
— O que você está fazendo? — ele perguntou quando fez um pequeno gesto com as mãos.
— Preciso que você abra as pernas.
— Por quê? — franziu o cenho, estranhando o pedido dela.
— Porque eu preciso de calor — respondeu com obviedade e sentou-se entre as pernas dele, aconchegando-se no peito de . — Esse vento está muito gelado.
— Você quem escolheu esse lugar — o deus falou, confuso.
— ela engoliu em seco e ele olhou para baixo, para poder encará-la. O silêncio que tomou conta antes de ela voltar a falar fez seu coração disparar —, eu também amo você.
— O quê? — ele ficou sem ar. Completamente sem ar.
— Desculpe por não ter dito nada naquele dia do almoço. Eu sei que deveria ter dito na hora, mas você me pegou de surpresa.
, por favor, não...
— Estou com medo que eu acabe me casando com Héracles, então não queria deixar de falar isso para você caso as coisas... Bem, caso eu acabe me casando.
— Não se preocupe com isso — sussurrou e suspirou logo em seguida, desviando o olhar para cima. — Você não vai acabar se casando com ele.
— Espero que não.
O deus nunca na vida sentira seu estômago revirar como agora. Era um misto tão grande de dor e alegria que não sabia como reagir. Queria poder mandar o mundo ir para a puta que pariu, agarrar ali mesmo e não ligar para absolutamente nada que viria depois. Xingava-se mentalmente por estar sentindo aquelas benditas borboletas na barriga que não pareciam ir embora por nada desde que chegara. Queria jogar no Tártaro aquela vontade irritante que a deusa da primavera gerava nele de querer ser uma pessoa melhor. Queria jogar Hera do próprio Monte Olimpo. Mas, acima de tudo, queria poder ter nos braços todos os dias que acordasse. E aquilo, aquilo, estava o matando.
Eros, deitado em sua enorme cama com pepinos nos olhos e uma máscara facial no rosto, sentou-se em um pulo quando sentiu tamanha carga de amor consumir cada pequena célula de seu corpo. Era como uma recarga instantânea de adrenalina. No momento em que se tocou de quem vinha todo aquele poder que sentia, arregalou os olhos e sussurrou para si mesmo.
— Puta merda.


— Você não acha isso estranho? — Psique perguntou, curiosa, ao folhear pela décima vez a revista de fofoca enquanto deitava no sofá.
— O que, exatamente? — falou, distraída, terminando de lavar a louça.
— Aquele vestido horroroso que a Penélope usou na semana passada? — Medea revirou os olhos sem os desviar da televisão. — Quer dizer, além de feio, eu conseguia ver tudo. Literalmente tudo. Não foi à toa que Zeus gostou tanto. Eu nem sei como Hera não surtou. Acho que ela ainda não ficou sabendo, só pode.
— Não, Medea, não é... Realmente, aquele vestido era horrível — Psique concordou. — Mas com certeza foi de propósito, para chamar atenção. E o pior de tudo, vocês vão ver, em questão de dois dias todos estarão usando esse vestido.
— Por que as amantes de Zeus têm que ser tão influentes? — Medea fingiu vomitar.
— Achei que vocês fossem as grandes defensoras do usem o que quiser — riu, divertida.
— E somos — a ninfa respondeu, indignada. — Todo mundo pode usar o que quiser, mas isso não tira o meu direito de julgar. Eu não tenho um bom caráter, vou direto para o Tártaro mesmo.
— E eu não tenho como me defender, é como amar a fofoca, é inevitável.
— Viu? — Medea ergueu as sobrancelhas e apontou para Psique. — Até a santa concorda.
— Não é possível que o vestido seja tão... — começou a falar, mas, ao se virar para trás, se deparou com uma Psique com um semblante cético, segurando uma foto de Penélope. — Ok. Não é o melhor dos vestidos.
— Sabe o que não inclui esse vestido, mas ainda assim pode sair em capas de revistas? — Psique ergueu uma das sobrancelhas, sugestiva. — Esses dois tickets que eu tenho para um drive-in....
— Eu sei o que você está fazendo — a deusa da primavera sorriu e estreitou os olhos. — Parem de armar encontros comigo e com .
— Mas esse não era o ponto sobre eu achar algo estranho — Psique suspirou, derrotada, e voltou a deitar no sofá, folheando a revista pela décima primeira vez.
— O que você tanto procura nesse negócio? — Medea perguntou, levemente irritada.
Não aguentava mais o barulho de vai e volta das páginas que se sobressaíam em relação ao som da televisão.
— Olha só, ontem teve um artigo sobre o jogo de beisebol, falando sobre como você e querem que Afrodite abençoe o casamento com amor. Anteontem, sobre o encontro com comida chinesa na casa dele...
— Você está procurando fofocas sobre nós? — franziu o cenho, porém Psique a ignorou e continuou.
— Hoje teve um artigo sobre o mercado.
— O mercado? — a deusa da primavera parou de lavar a louça imediatamente e secou as mãos para ir até o sofá e checar a revista. – Como alguém sabe que nos encontramos no mercado se só tinha eu e ele lá? Nem existem caixas ou seguranças no Olimpo!
— Olhos em todos os lugares — Medea deu de ombros com naturalidade.
A ninfa sabia mentir muito bem.
— Sim, olhos em todos os lugares — Psique sorriu sem graça, tentando esconder a gota de suor que atravessava sua testa, enquanto observava ler o artigo. — E eu tenho certeza que amanhã sairá alguma matéria sobre sua ida a Creta com .
— Oh, o Olimpo está super ansioso por essa — Medea finalmente desviou o olhar da televisão e sorriu, maliciosa. — Eu diria que vamos ter algo bem romântico, com um quê de “nosso casal olimpiano preferido planeja sua lua de mel em Creta”. Melhor ainda! “Planeja o chá de bebê”. Hmm, isso ia gerar o que falar, não? Eu deveria trabalhar na imprensa.
— Você sabe que o papel da imprensa não é difamar as pessoas, não sabe?
— Eu sou a deusa da primavera, eu sou muito boazinha e sensata — a ninfa bufou e escorregou no sofá.
— Depois de todos esses artigos — Psique continuou, com um semblante preocupado —, Hera ainda não apareceu aqui cuspindo fogo pela boca, não requisitou sua presença urgente no escritório dela, não mandou ninguém matar a gente... O que está acontecendo?
— Você tem razão. — franziu o cenho e deixou a revista em cima do sofá. — É realmente estranho. Você acha que...
— Oh, não... — Psique engoliu em seco.
— Oh, não?... Oh, não! — a deusa arregalou os olhos quando percebeu o que acontecia, sentindo um embrulho no estômago. — Não, não, não...
— Não? — Medea perguntou, avoada. — Não o quê?
— NÃO, NÃO, NÃO! — Psique ficou de pé no sofá em um pulo.
Ártemis, que abria a porta, sorridente, naquele mesmo segundo, fitou Medea na sala e logo perdeu a aura feliz que a encobria. Não demorou muito, no entanto, para sua expressão passasse de irritada para preocupada quando viu , pálida, apoiar-se na ilha da cozinha e Psique, estática, encarando o chão.
— Pelos deuses, que funeral estamos atendendo? O da dignidade da Medea?
— Oi, Ártemis — a ninfa sorriu, falsamente simpática. — Como é bom ver você também.
— Urgh — a deusa da caça revirou os olhos e fechou a porta atrás de si. — O que ela está fazendo aqui?
— Aparentemente, pagando por mais um pecado, já que você continua parada no mesmo cômodo que eu.
— Vocês duas podem parar? — Psique falou, irritada.
— O que está acontecendo? — Ártemis perguntou, confusa, e foi até a geladeira.
— Hera — sussurrou sem desviar o olhar do chão. — Hera.
— Hera? — a outra deusa repetiu. Não estava entendendo absolutamente nada.
— Saíram três artigos sobre encontros entre e . E um está por vir. — Psique colocou a mão na testa e voltou a sentar no sofá.
— Oh, sim! — Ártemis sorriu, animada. — Eu amei aquele do beisebol. Vocês formam um belo casal! As fotos estavam bonitinhas, mas admito que a coluna poderia ter mais detalhes. O que aconteceu depois da kiss cam?
— Mas Hera ainda não apareceu furiosa. — escorregou devagar sobre o mármore até sentar no chão. — Sabe o que isso significa?
— Que ela finalmente parou de pegar no seu pé — Ártemis deu de ombros e mordeu sua maçã.
— Que ela não tem mais motivos para pegar no pé de ! — Psique disse com obviedade.
— Oh, não... — a deusa da caça fez uma careta de desespero quando encaixou as peças.
— Alguém pode me dizer o que está acontecendo? — Medea perguntou, impaciente.
— Héracles vai se casar comigo — respondeu em um fio de voz.
— O QUÊ? — A ninfa desligou a televisão e encarou a amiga.
— É a única explicação. Se, depois de todos esses escândalos nos jornais, ela ainda não apareceu aqui para matar , então é porque ela não precisa vir aqui brigar, porque tudo está resolvido. — Psique levantou os braços. — Medea, você poderia, por favor, levar para dar uma volta? Acho que ela precisa de um pouco de ar.
— O quê? Mas nós não temos que conversar sobre esse casamento? E eu não sei... Ah... — a ninfa sorriu, esperta, quando recebeu um olhar mortal de Psique. — Sim, eu estou super ansiosa para lhe mostrar o meu caminho favorito pelo Olimpo. — Medea puxou pela mão e ela nem teve tempo de contrariar, já que, de um segundo ao outro, a ninfa praticamente a jogou para fora da casa. — Você sabia que eles refazem todas as calçadas do Olimpo uma vez por ano? É por isso que o chão é tão perfeito.
— Isso é verdade? — perguntou, ainda tentando entender toda aquela pressa.
— Não, mas continue andando.
Antes mesmo que Ártemis e Psique pudessem ver pela janela os dois últimos passos de no final da rua, três leves batidas ritmadas soaram na porta de entrada. Psique não hesitou um segundo antes de abri-la e puxar Hermes para dentro pelo colarinho. Um bilhão de sentimentos passavam por seu corpo e ela sentia o peso do mundo sobre suas costas. Diga-se de passagem, o mensageiro parecia confuso com o comportamento desesperado.
— Oi? — Hermes fitou Ártemis e depois voltou seu olhar para uma Psique extremamente apreensiva. — Está tudo bem por aqui?
— POR QUE TÁRTAROS... — então Psique rangeu os dentes quando percebeu que os vizinhos poderiam ouvir e começou a sussurrar. — Por que Tártaros e Héracles vão se casar? Eu achei que tivéssemos um plano.
e Héracles vão se casar? — Hérmes perguntou, surpreso, e olhou Ártemis, que parecia ainda mais perdida que ele. — Desde quando?
— Você não sabia? — Psique balançou a cabeça e deu um passo para trás.
— Não — o deus arrumou a blusa. — Nem tem como isso ser possível.
— Como assim?
— Por que fez um acordo com Hera.
— Do que você está falando, Hermes?
— Eu achei que você soubesse. Naquele dia que almoçamos aqui, foi correndo fazer um acordo com Hera no final da tarde. Ele propôs que, em troca de um casamento dele com Hebe, fosse livre para se casar com quem quisesse.
— Oh, meu Zeus — Ártemis sentou nas cadeiras da ilha da cozinha em choque.
— Hera concordou imediatamente — Hermes sorriu fraco. — Foi por isso que eu nem coloquei o pensamento de querer se casar com Hebe na cabeça de Héracles como nós combinamos.
— E VOCÊ NÃO CONTOU ISSO PARA NÓS? DESDE QUANDO VOCÊ SABE DISSO? — Psique ignorou qualquer possibilidade de outras pessoas ouvirem-na e colocou as mãos em seu cabelo, furiosa.
— Desde quando isso aconteceu — o mensageiro passou a mão na nuca e desviou o olhar sem graça. — Eu não contei mesmo?
— Me conte exatamente o que aconteceu, sem poupar detalhes!
— Tudo bem, tudo bem... — Hermes suspirou. — Eu estava entregando algumas cartas para Hera, mas o escritório estava com a porta fechada, então eu fiz o procedimento usual, esperei apoiado na parede ao lado da porta...

A que devo essa ilustríssima presença?
Nós precisamos conversar. não se sentou, apenas colocou as mãos nos bolsos da calça e encarou-a com frivolidade.
Tudo pelo meu querido sobrinho Hera sorriu, doce, e apoiou os cotovelos na mesa de vidro.
Eu vou ser breve. Quem você já contatou para dar um jeito de fazer Héracles se casar com ?
Eu não sei do que você está falando, .
Não se faça de desentendida, Hera. Eu não sou Zeus, eu não caio nos seus truques de falsa ingenuidade.
Você não joga justo.
Ok a deusa fechou o semblante. Eu falei com alguns deuses, mas obviamente não vou citar nomes.
Então nós vamos fazer uma troca.
Você precisa ter algo que me interesse.
Eu me casarei com Hebe.
Finalmente recuperou a sanidade, querido sobrinho?
Se você parar de ser hostil com a e deixá-la se casar com quem quiser.
Hera franziu o cenho com a condição e recostou-se sobre a cadeira novamente. Nem em um milhão de anos acharia que faria aquela proposta, sobretudo por uma deusa irrelevante. Afinal, que tipo de benefícios aquilo traria para ele? Demorou alguns segundos até que ela erguesse as sobrancelhas em surpresa.

estava apaixonado.

Para o seu maior desespero, estava apaixonado. Aquilo até teria algum efeito sobre os sentimentos de Hera... se estar no poder não fosse puramente um jogo de estratégia.
Enfim, as coisas pareciam fluir de acordo com seus planos. Aquela seria a troca perfeita para a família real.
Fechado a deusa sorriu, satisfeita.

— Pelo amor dos deuses — Psique ficou boquiaberta. — Como ele pôde fazer uma coisa dessas?
— Ele a ama, não ama? — Hermes falou, confuso.
— Isso é melhor do que a novela das seis — Ártemis sorriu, animada.
— O que mais você sabe? — Psique colocou as mãos na cintura e engoliu em seco, ainda surpresa por causa do que acabara de ouvir.
— Bom, a exatos sete minutos atrás, eu estava indo coletar as correspondências de fim do dia de Hera, mas me deparei com a Íris.
— O que a Íris estava fazendo lá? — a deusa da caça interveio, curiosa.
— Exatamente! O que a Íris estava fazendo lá? Eu trabalho para Hera há milênios e ela acha que pode só chegar e roubar o meu trabalho? Só porque ela deixa rastros coloridos de um arco-íris ela se torna especial? Eu posso começar a andar com purpurina se eu quiser.
— O quê? — Psique perguntou, confusa.
— Ela foi contratada para entregar e trazer as correspondências de Hera. Uma mensageira particular, acreditam? Que descaso com o meu trabalho!
— Hermes, foque!
— Certo. — O deus balançou a cabeça rapidamente. — Eu e Íris estávamos brigando bem em frente ao escritório de Hera quando, de repente, ouvimos uma discussão começar. Pelo que eu entendi, estavam na sala Hera, Zeus e Héracles. — Psique e Ártemis entreolharam-se. — Era para ele decidir isso só depois de amanhã, depois do baile de celebração dos deuses, mas Héracles disse que já havia decidido e que queria se casar com Hebe.
— O quê? — as duas arregalaram os olhos e falaram em uníssono.
— Claro que Hera reprovou a escolha. Ela vai casar e Hebe agora. Só que Zeus ficou bravo, porque teoricamente Héracles tem o desejo dele, então ele defendeu seu filho, o que fez Hera começar com aquele discurso de “Você não consegue ver que eu estou fazendo o melhor para essa família, seu tolo ingrato?”. Zeus, para piorar a situação, sugeriu que Hebe e Héracles se casassem e que e ficassem juntos, já que, segundo as capas de revistas e manchetes de jornais, eles estavam saindo, o que foi o suficiente para fazer Hera chutar a porta do escritório e voar para sei lá onde.
Então, Hermes sorriu terno e ficou em silêncio, encarando as duas, que ficaram confusas com o silêncio repentino.
— E? — Psique incentivou-o a continuar.
— E? — o mensageiro franziu o cenho. — Eu não sei o que acontece depois. Não sei o que ficou decidido.
— Como assim não sabe? — Ártemis abriu os braços em incredulidade.
— Psique me chamou, então eu tive que sair.
— Pois volte para lá imediatamente. — Psique começou a empurrá-lo pelas costas até a porta. — E volte quando tiver mais notícias.

Continua...

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Nota da autora: Olá, musas olimpianas! Espero que estejam bem! Queria acrescentar aqui um pequeno comentário de esclarecimento. Visando propósitos criativos, procurei trazer os mitos gregos para um cenário contemporâneo, mas, para que isso fosse possível, precisei fazer certas alterações em características, histórias e personalidades. Também gostaria de ressaltar que há diversas versões da mitologia, então escolhi as que mais me chamaram atenção e trabalhei em cima delas.
Deixem um comentário para fazer a autora feliz, por favor ❤️
Espero que vocês tenham um ótimo Ano Novo!

Nota da beta: QUE ACORDO FOI ESSE, MEU DEUS???? Que timing horrível para um acordo, justamente quando o Héracles já estava decidido... estou torcendo aqui para Hermes voltar com notícias boas hahahaha ❤️


Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.

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