Capítulo 9 - Sentimentos
“Não posso escolher como me sinto, mas posso escolher o que fazer a respeito.” (William Shakespeare)
Era cedo demais para qualquer coisa, mas Skye e Caitlin (do grupinho popular de Zara e Dominic) me enchiam de perguntas e elogios enquanto eu tentava localizar um dos livros de Matemática III dentro do armário. Por sorte o achei nos fundos de uma bagunça que nem eu mesma sabia como tinha feito, e nada de bilhetinhos sacanas.
Ia ser um bom começo de dia.
As meninas ao meu lado falavam sem parar e eu só acenava com a cabeça. Não sabia o que queriam comigo, mas aparentemente se declararam ‘Time ’ após os cumprimentos que recebi pelo fatídico soco em Dominic. Eu conseguia dar risada da maluquice das duas, mas ainda não me sentia confortável. Estava há dias esperando uma revanche e, bem, aquelas garotas não combinavam comigo.
As coisas ficaram realmente estranhas quando Skye cutucou a amiga ao ver Ella no corredor.
— Lá vem a esquisita da vila.
Não adiantaria revidar por Ella ou fazer uma cena ao lado das meninas. Depois da conversa com sobre se impor, eu começaria a pensar duas vezes antes de agir. Não sabia com quem estava lidando e não poderia prejudicar meus amigos do celeiro secreto.
E eu também não sabia quem tentava me atacar naquela escola e, com exceção do meu grupo de renegados, eu suspeitava de qualquer um.
Caitlin balançava a cabeça em negação — Vocês estão vendo aquilo no cabelo dela?
Aquele comentário iluminou minha mente e eu sorri com vontade.
Fingi o máximo de animação que eu consegui. Eu podia mentir mal, mas pelo menos sabia encenar bem. Obrigada, séries!
— Ai, meu Deus.
Caitlin concordou com a minha frase de impacto.
— Não é?
Minhas bochechas já doíam pelo sorriso enorme em meu rosto.
— Como ela conseguiu aquilo? — as meninas ainda concordavam comigo — É a última moda em Paris!
Skye e Caitlin se olharam sem entender, e eu fiz o máximo para não sair do personagem. Confusas, soltaram em um uníssono.
— É?
Me esforçava para parecer incrédula — Claro. Como vocês não estão por dentro?
As meninas pareciam incertas com suas respostas.
— Nossa Vogue ainda não chegou e…
Interrompi Skye assim que Ella passou por nós. Fechei o meu armário, chamando a menina mais nova.
— Ei, garota fashionista!
Ella girou nos calcanhares ao ouvir minha voz. A menina olhava com cautela, provavelmente por eu estar na companhia de dois dos populares que sempre tiravam sarro dela.
Sua voz saiu confusa — Eu?
Minha animação se dobrou — Claro! Onde você arrumou esse acessório de cabelo? É incrível!
Algumas pessoas já passavam entre nós visivelmente interessadas. O interior podia ser mau e cafona, mas adolescentes sempre precisavam ser incluídos em alguma coisa. Eu mesma me sentia assim.
Me aproximei de Ella, sorrindo — Você precisa me dizer onde conseguiu. As minhas amigas de Paris e Nova Iorque não tiram isso da cabeça. É a nova moda na cidade grande.
Ella ainda parecia confusa, mas conseguiu captar bem o que eu estava tentando fazer.
— Eu que fiz. Tenho outro na mochila, você quer?
Coloquei a mão no peito, emocionada. Os adolescentes aleatórios continuavam assistindo a nossa cena com atenção.
— Jura? Você é incrível. Muito obrigada!
— De nada, .
Peguei o objeto laranja das mãos de Ella. Era um laço enorme, de cor quase neon, com um elástico da mesma tonalidade. Ajeitei meu cabelo, prendendo boa parte dele com o acessório de cor gritante e ficando com o mesmo penteado que a menina usava.
— O que achou?
Mal me importava de olhar no espelho. O sorriso de Ella já era o suficiente.
— Está linda.
Pisquei para a menina, que saiu andando pelo corredor em meio aos cochichos e questionamentos de “nós precisamos achar um igual” e “nunca usarei isso”. Mais uma vez o nome separava os interesses da The Cotswold School e eu não pude me sentir mais feliz com isso.
Naquele momento eu entendi que o meu plano de revidar não serviria apenas para mim ou para aquelas meninas de outro dia no corredor. Serviria também para os meus amigos do celeiro. E eu começaria pelos mais novos. Ella precisava de apoio moral. Noah e Riley precisavam se livrar dos valentões que os obrigavam a fazer seus milhões de trabalhos (confronto recente que tinha levado Noah a colar chicletes nas cadeiras alheias e ir parar na detenção). Eu tentaria fazer a minha parte. Era um ótimo jeito de aproveitar aquela maluquice de Time pela escola.
Skye e Caitlin ainda me olhavam enquanto eu fazia uma selfie com o celular. Suas expressões eram impagáveis e eu mordia o lábio para não gargalhar.
Me virei para elas, antes de correr até o bloco do refeitório.
— Vocês precisam de um. — e olhei para as mãos de Caitlin, sussurrando em seguida — Essa cor de bolsa já está ultrapassada, lançaram uma nova mês passado. — as meninas abriram a boca em surpresa. Era uma bela mentira, eu não fazia ideia do que estava sendo lançado ou não, mas não ia perder aquela oportunidade — Cuidado para não virar piada por aí.
Me afastei com passos largos, ainda sorrindo. Não achava certo causar brigas entre meninas, mas sabia que aquelas duas só iriam entender a mesma língua venenosa que falavam.
Mila se postou ao meu lado no corredor.
— O que é isso no seu cabelo? — e então deu de ombros, como se já esperasse qualquer coisa diferente vindo de mim — Sanduíches?
Após comer um lanche bem gostoso (que Mila insistiu ser o melhor sanduíche da roça), minha amiga e eu fomos para a sala de aula antes mesmo de o sinal tocar. Teríamos uma prova importante e, segundo Mila, era essencial sentar alguns minutos antes na cadeira para se concentrar e ter sucesso. Eu não tinha mais o que fazer por aquele pátio limpo demais, então acatei a esquisitice dela.
Assim que entramos na sala, Mila arrumou em sua mesa o estojo e o lápis rosa-choque com um pompom na ponta. Eu ainda achava graça daquele estilo princesa, mas era impossível dizer que não era tudo a cara da menina.
Com tudo pronto, Mila correu até o banheiro mais próximo, me deixando sozinha naquela sala ainda vazia. Eu tinha alguns minutos mais até o toque do sinal e me permiti relaxar, tanto para a prova quanto para o turbilhão de coisas que se passava em minha cabeça. Levantei de minha cadeira, me espreguiçando com os braços para cima. Após o movimento que sempre me relaxava, encostei de volta à mesa, fechando os olhos. Me permiti inspirar e expirar algumas vezes, procurando uma serenidade que eu nem sabia se tinha.
Muitas coisas diferentes transbordavam e lutavam pela minha atenção. Meus novos amigos, meu grupo secreto, meu cachorro, a semana de provas que estava por vir, a pintura de nossa casa, o e-mail de Bree que eu tinha esquecido de responder e os beijos de ... Tantos e com aquele gosto diferente que eu sempre sentia, talvez pelo sabor esquisito do licor de menta barato que ele bebia ou só pela lembrança daquilo. Ou talvez (só talvez) por outras coisas que eu ainda fazia questão de não querer entender.
Meu braço se arrepiou com uma lembrança que atingiu minha mente. Aquela noite eu tinha sonhado algo muito confuso, meio perturbador e, hm, sexy. Braços firmes contornavam minha cintura e aquela pele macia e quente se encostava com a minha. Era um sonho tão vívido que só de lembrar meu coração já começava a bater mais forte.
O corpo de quem me apertava era 90% igual ao de Logan, mas algumas características não batiam. Eu conseguia analisar muitas pintas por seu tronco… Seus cabelos eram uma bagunça de fios loiros, mas às vezes pareciam castanhos. O rosto era indefinido e isso só fazia os arrepios em meus braços piorarem. Mas os olhos, ah, eles eu sabia exatamente de onde minha imaginação tirava. Eram azul-claro, uma cópia perfeita dos olhos lindos de . Nos beijávamos tão forte que eu sentia meu pulmão quase sufocar.
Só de lembrar daquele brilho azul-claro tudo na minha cabeça já beirava a indecência. Tive de rir sozinha, ainda de olhos fechados.
Meu Deus. O que aquilo poderia significar?
Abri os olhos, surpresa, quando senti uma respiração próxima às minhas bochechas. Mal tive tempo para reação e o sorriso de Kyle se juntou aos meus lábios. Uma de suas mãos foi posta no lado esquerdo do meu rosto, tentando mais aproximação.
Minha falta de reação fez com que meus olhos continuassem abertos. E com isso eu pude ver entrar na sala de aula, já que ele também estava em minha classe de Literatura Inglesa. Seu olhar foi direto no meu, logo desviando e sentando em sua cadeira de sempre. Aqueles olhos (melhores que os do sonho) eram o que eu precisava para acordar.
Ah sim, mais um delicioso clichê para compor minha vida no interior. Por que tinha que ter a mesma esquisitice de Mila antes de provas?
Dei um pequeno empurrão no peito de Kyle, ganhando espaço entre nós.
— O que está fazendo?
— Tentei uma surpresa. — Kyle me olhava sem entender. Pelo visto, na região, beijar uma vez realmente poderia significar algum compromisso.
Eu tentava olhar com o canto dos olhos, mas era impossível pelo ângulo em que ele estava. Aquele era o pior clichê ruim que poderia acontecer comigo!
— Não fico à vontade com isso, estamos na sala de aula. — tentei soar o mais firme possível.
O menino franziu o cenho, mas o sorriso ainda estava em sua boca.
— Tudo bem, me desculpe.
— A gente pode se falar depois?
Ele deu uma piscada no olho direito — Claro. Te vejo depois das aulas. — e saiu da sala passando por Mila, que entrava apressada. Minha amiga parecia surpresa ao ver Kyle e eu sabia que estava pronta para me encher de perguntas.
Fiz um sinal de ‘pare’ com uma das mãos. Só então percebi que elas tremiam.
— Nem começa. Vamos focar na prova.
Mila respirou fundo, talvez lembrando do nervosismo que sentia mais cedo.
— Boa sorte para nós duas.
Passei o teste todo incomodada, principalmente pelo fato de não conseguir ter uma visão de ou do que ele estava fazendo. Eu sabia que não devia explicações a ninguém, mas não me sentia bem com aquela situação. Realmente não queria que achasse que eu beijava todos os caras da região, incluindo ele.
E eu realmente não queria perder a oportunidade de sentir os lábios dele de novo.
Precisava dar um jeito de terminar com Kyle o que nem mesmo tinha começado.
Mal terminei de escrever a última frase da última questão e já estava fora da sala de aula. Fiz o máximo para me concentrar e escrever tudo o que eu sabia, e mesmo assim fui uma das últimas a acabar.
Quando adentrei o corredor, Mila me esperava escorada nos armários. Pela minha cara e os nós que estavam no meu cabelo de tanto eu enrolá-los na caneta, ela sabia que eu tinha passado longe do ‘dez’.
— Na próxima estudamos juntas, ok? — tive de sorrir para aquilo, mesmo exausta. Precisava estudar mais e ter a ajuda dela seria ótimo.
Meu sorriso morreu quando avistei, no fim do corredor, o menino da jaqueta de couro e sua amiga, Alene. Era importante falar com Kyle o quanto antes, mas eu ainda tentava fugir de Alene de todas as formas. Mila se apressou para sua próxima atividade enquanto eu marchava sem forças até o garoto. Seu sorriso pareceu crescer quando percebeu que eu ia diretamente até ele.
Que desculpa eu teria que inventar agora?
Olhando de longe Kyle era atraente e misterioso, mas, pensando bem, ele parecia ser o clichê dos bad boys. Tudo o que eu nunca curti: popularidade, arrogância, falta de interesse. Mas mesmo assim isso não me dava o direito de brincar com o que quer que fosse que ele sentisse (ou não) por mim.
Um sinal com a cabeça indicando as portas de saída foi o suficiente para que ele me seguisse para fora do corredor brilhante, o que deixou Alene apenas me observando. Esse seria um problema para outra hora.
Saí do bloco principal, indo para a parte externa da escola, onde tem os bancos de pedra e um pouco de grama e árvores, parecido com os fundos de uma propriedade. Quando a porta fechou atrás dele, eu me virei, respirando fundo. Levei um susto com a sua aproximação, seu rosto já quase encostado no meu novamente.
Dei um grande passo para trás, colocando as mãos em seu peito.
— Quero conversar com você.
Sua expressão ficou confusa — Algo de errado?
Para quê inventar algo se eu simplesmente podia falar a verdade?
— Acabei de chegar na vila. — ele me mediu com um sorriso tranquilo no rosto — Não sei se quero me envolver com alguém. Entende?
Tudo bem, talvez inventar um pouquinho só.
Sabia que havia provocado o menino e inclusive tinha imposto ele como um plano de escape ao interior, mas aquilo simplesmente não fazia mais sentido. Eu tinha os meus amigos do celeiro e não queria ninguém me beijando de surpresa pelos corredores da escola.
Sua expressão, antes delicada e simpática, se fechou por completo.
— Ok. — e colocou as mãos na jaqueta — Quem é o outro cara?
Tentei ao máximo controlar a vontade de tirar o meu sapato e jogar nele.
— Desculpe, o quê?
Kyle deu de ombros. Sua expressão ainda fria como gelo. Seus olhos azul escuro estavam sombrios e alguma coisa me dizia que não era só por conta da nossa conversinha.
— Você ouviu bem, . Primeiro o bolo para o evento beneficente e agora isso.
Tive de rir, incrédula — Por que está me cobrando como se fossemos namorados?
Eu ainda tentava lutar contra o que Mila tinha falado outro dia, de que “beijos são sempre especiais”. Não era possível que beijar alguém uma vez fosse um sinal de compromisso sério. Era bizarro demais até mesmo para Bourton-on-the-Water.
Ele me mediu novamente, parecendo comprar minhas palavras. Ou simplesmente estava sem vontade de discutir com a garota maluca da escola.
E então Kyle foi embora sem falar nada. Eu não iria questionar sua reação e não me sentia culpada por qualquer coisa. Tinha sido apenas um beijo e realmente não existia nada entre nós. A única coisa que preenchia minha cabeça era como eu iria resolver aquele acontecimento desnecessário da aula de Literatura, com vendo o menino rebelde me beijar de surpresa.
Andei até a árvore mais próxima, me sentando na sombra que ela fazia. Encostei em seu tronco, fechando os olhos e fazendo o ritual de mais cedo, de inspirar e expirar com força, para ver se tudo aquilo sumia da minha mente.
Quando abri os olhos, por ironia do destino (ou porque tudo em Bourton-on-the-Water é ridiculamente pequeno e você encontra todo mundo o tempo inteiro!), avistei sentado na árvore mais a frente, com um livro nas mãos e fones de ouvido. Seus cabelos pareciam mais penteados e existia uma linha fina em sua testa, talvez pela concentração ao ler aquelas páginas.
Nossos olhares se encontraram por segundos, mas ele logo voltou a atenção ao seu livro esquisito.
Bom, era oficial: eu me sentia mal e precisava realmente resolver aquela situação horrível o quanto antes. Sabia que não iria fazer uma cena ou deixar de falar comigo, mas não conseguia tirar aquele sentimento ruim de dentro de mim. Queria resolver o quanto antes, mas sabia que não era a melhor ideia abordar ele na escola, mesmo que estivéssemos um pouco escondidos nos fundos onde os alunos descolados ficavam. Além de ninguém saber que éramos amigos, aquilo poderia ser uma munição nova para mais fofocas sobre mim — e eu odiaria que fosse vítima também.
E se eu tinha uma desconfiança grande de que Zara implicava comigo... Talvez as coisas ficassem pior se eu fosse vista com .
Meus olhos ainda o mediam, observando seus poucos movimentos. Antes que o meu coração surtasse, peguei o celular do bolso da saia cafona e digitei rapidamente, enviando a mensagem em seguida.
* : , precisamos conversar.
Vi o menino se distrair de seu grande livro, pegando o celular em mãos. Seus olhos claros rapidamente se encontraram com os meus, mas esse contato durou dois segundos. E então digitou algo rápido, colocando o aparelho na grama novamente e voltando a ler.
Suspirei pesadamente. Não resolvia a minha ansiedade, mas ajudava um pouco.
Quando fechei os olhos a lembrança do sonho me atingiu por completo. Me questionava se aquilo era uma saudade ou um desejo do que eu ainda não sabia que procurava.
Estava perdida em pensamentos quando o sinal de saída tocou, me fazendo pular de susto. Por sorte não tinha ninguém além de por perto. Levantei do gramado, já que ainda tinha uma longa tarde na detenção. Segui para o pátio e, para a minha surpresa, continuou sentado e encostado na árvore, sem mexer um músculo. Provavelmente iria esperar ali sozinho para a aula de Culinária Doméstica que eu faltaria de novo.
Na detenção, por sorte, Zara nem olhou na minha cara, o que significa que também não inventou nada surreal para que eu fizesse. Os últimos dias tinham sido de redações de mil palavras sobre agressão e “paz no interior” a circular todas as letras ‘h’ de um jornal completo. Misturando aquilo e Cotswolds, me senti em uma tortura do século passado.
A menina parecia ainda mais dura do que nos outros dias, com suas feições fechadas. Não me importava e também não queria saber o porquê, contanto que não sobrasse para mim. Estava farta de Zara exercer o seu poder para pedir coisas ridículas durante os dias de detenção e ainda achava seriamente que ela tinha algo contra mim.
Assim que acabei os afazeres, corri para longe da sala, pois, pelo horário, ainda conseguiria pegar saindo da extracurricular que fazíamos juntos. Não conseguia parar de pensar um segundo naquele misto de sentimentos que tomava o meu corpo aquele dia. Será que estava puto, triste, decepcionado? Só de pensar naquelas possibilidades meu estômago revirava. Sabia que a nossa amizade não ia se abalar por coisa boba, mesmo que em pouco tempo, mas estava tão nervosa que precisava falar com ele o quanto antes.
Por completo azar (já tinha usado a cota de sorte do dia com Zara), esbarrei em Kyle. Um esbarrão digno de livros e filmes. Ele ajeitou sua jaqueta de couro com as mãos, como se eu tivesse amassado alguma parte. Mal tive tempo de pedir desculpas quando as palavras saíram de sua boca.
— As coisas vão começar a ficar mais difíceis para você, . — e continuou andando como se tivesse me desejado uma boa tarde.
Uau. Pelo jeito beijos realmente eram muitos importantes no interior.
Felizmente estava tão decidida a falar com que ia deixar aquele conflito para depois. Amanhã pensaria em como me livrar do rancor de Kyle sem fazer besteiras ou simplesmente esperaria o garoto esquecer. Seria mais um problema a resolver na minha lista.
Por não achar na sala de Culinária, resolvi que era a hora de ir embora. Assim que atravessei uma das pontes de pedra sobre o rio Windrush, estava decidida em entrar no mercado vende-tudo dos , mas uma mensagem de mamãe fez meus planos irem para o ralo novamente.
Na tela do celular, uma frase em capslock. “PRECISO DE VOCÊ EM CASA. JÁ ESTÁ VINDO?”. Tinha que ensinar minha mãe a mexer naquele teclado ou ela sempre gritaria em seu WhatsApp.
Respirei fundo, seguindo finalmente o caminho de casa. Enviei uma mensagem em nosso grupo do celeiro, perguntando se poderíamos nos reunir, e aguardei uma resposta enquanto andava pelas ruas de pedra da vila.
Me sentia aliviada de novo ao ler aquelas mensagens. Pelo menos no celeiro não tinha como escapar.
Nem precisei entrar em casa para saber que algo estava errado.
— O que aconteceu aqui?
Em frente ao gramado da nossa casa havia um pequeno caminhão vermelho e alguns homens uniformizados. Bombeiros. Minha mãe me olhou parecendo abalada. Astra já pulava com suas patinhas em cima de mim.
— Suspeita de incêndio.
Meu coração acelerou no mesmo momento.
— O quê? Você está bem?
Ela tentou um sorriso carinhoso — Eu não estava em casa. Mas Astra está bem.
Passamos algumas horas conversando com os bombeiros e verificando cada item da casa que poderia ter ocasionado o princípio de fogo na parte direita da nossa sala de estar. Ainda me sentia tonta e confusa por aquilo. Nossa casa não era a mais nova da região, mas fogo? Nem os apartamentos velhos em Nova Iorque e Holanda pegavam fogo do nada.
Ao pensar nisso um sentimento ruim tomou conta do meu peito. Tão ruim quanto a ansiedade que eu sentia para falar com .
— Secador? Chapinhas? Nada? — um dos bombeiros ainda me olhava esquisito. Meu cabelo estava tão bagunçado que era até engraçado ouvir aquelas perguntas.
— Não. Não usei nada pela manhã.
Mamãe esfregava as mãos uma na outra — Talvez eu tenha deixado algo aceso, será? Eu não me lembro.
O homem à nossa frente nos mediu — A senhora tem marido? — franzi o cenho na hora — Talvez seja melhor falar com ele.
Minha mãe pareceu atônita por alguns segundos.
— Desculpe, o que disse?
O bombeiro deu de ombros — Se lembrar de algo, nos telefone.
Quando ia questionar, ouvi meu nome sendo chamado. Ao olhar para trás constatei Mila no início do gramado com uma expressão apavorada. Corri até minha amiga com Astra me acompanhando.
— , o que aconteceu aqui? — a menina saltou de sua bicicleta rosa chiclete — Vi uma confusão quando estava atravessando a vila. O que aconteceu? Está tudo bem com vocês?
Assenti para todas as perguntas — Princípio de incêndio em nossa casa.
Ela parecia realmente preocupada — Eu sinto muito.
Minha mãe se aproximou, seu semblante cansado. Parecia não ter ideia do que tinha acontecido com a nossa casa e me chateava que ela se sentisse culpada, já que meu pai estava em Londres novamente.
Tentando amenizar a situação, puxei minha amiga pelo braço.
— Mãe, essa aqui é a Mila. Minha nova amiga que te contei.
Mamãe abriu um largo sorriso, provavelmente já gostando de Mila de cara e também se lembrando da história que tinha contado dias atrás. Elas se cumprimentaram e logo minha mãe entrou em casa com o cachorro, que parecia decepcionado pela bagunça no gramado já ter acabado.
— O que estava fazendo por esses lado da vila?
Minha amiga sorriu, cochichando — Estava em um encontro escondido com Mason.
Tive de sorrir junto — Fico feliz. Você vai ao celeiro?
Ela concordou — Sim. Estava indo lanchar e depois seguir para lá.
— Você me espera tomar um banho para irmos juntas? Mamãe tinha feito um bolo mais cedo, podemos comer antes também.
Mila parecia animada — Claro, .
— Legal. Quer conhecer o meu quarto?
— Com certeza. Se não existir algo rosa lá, nunca vou te perdoar.
***
Após algumas fatias de bolo, muitos sucos e biscoitos (minha mãe tinha se animado com Mila em nossa casa), minha amiga e eu saímos em direção ao celeiro.
A bicicleta de Mila tinha aquele suporte para sentar atrás, posto em cima da roda traseira. Eu sabia que não era a pessoa mais leve do mundo, mas ela parecia feliz ao pedalar, mesmo fazendo um pouco mais de força que o normal.
Em poucos minutos já estávamos abrindo a porta do celeiro.
Ella, que estava deitada em um bolo de feno com , se levantou correndo ao me ver. Seus braços envolveram meu corpo.
— Obrigada, !
A abracei de volta — Conta comigo.
Ninguém no celeiro parecia entender. Eu sorria para a menina, que parecia muito feliz. Já tinha tirado o penteado dos meus cabelos antes de ir ao celeiro, mas usaria no próximo dia na escola com toda certeza.
, agora sentado no feno ridículo, parecia curioso. Seu olhar em mim fez meu coração dar um salto. Sua expressão era a mesma de sempre, mas eu sentia que ele não agiria normal comigo hoje.
Ele tinha os seus motivos, não é?
— O que você fez dessa vez?
Estranhei aquela pergunta sair sem nenhum cinismo ou sarcasmo. Dei de ombros, sorrindo de lado (o que pareceu deixar ele ainda mais curioso).
— Decidi utilizar a minha bizarra popularidade para o bem.
Mais ao fundo, Mason sacudiu seu copo — Um brinde a isso.
Ajudei Mila a organizar os salgadinhos que tinha pegado furtivamente da despensa de casa. No canto direito Ella e continuavam deitados no bolo de feno, a menina com a cabeça em um dos ombros de , assistindo a alguma coisa gravada no celular. Ella tinha uma nova cor de mechas e aquilo me deu uma ideia.
Caminhei novamente a eles, limpando as pontas dos dedos sujas de farelo em minha calça.
— Ella, tem um minuto?
Ela desviou o olhar do celular, mas ainda estava aninhada no ombro de .
— Claro, .
Também tinha conseguido a atenção de , que me olhava sem expressão.
Ia ser uma longa noite.
— Onde eu posso pintar o meu cabelo aqui na vila? — e revirei os olhos dramaticamente — Têm sido dias fáceis para os meus inimigos.
Parecia fútil, mas era difícil, ainda mais com toda aquela perfeição dentro da escola. Ou todo mundo tinha o cabelo perfeitamente natural ou eu que estava muito fora daquela curva.
Ella sentou rapidamente — Eu posso pintar o seu!
Tentei ao máximo não parecer chocada e aquilo, incrivelmente, tirou um sorrisinho escroto dos lábios de .
— Você tem certeza? — eu não queria ser mal educada, mas ainda achava a menina muito doidinha.
— Sim. Eu pinto o meu. — e então apontou para o outro lado do celeiro — E também o da Bronwen.
Segui seu dedo, reparando na menina ruiva. Os seus cabelos estavam mais vermelhos que da última vez em que tinha a visto.
Aquilo me deu a segurança que eu precisava.
— Combinado. Do que precisa?
Ella bateu palmas — Coisas normais. — a menina ficou pensativa e logo cutucou as costelas de , que assistia a cena — Consigo com você?
Sua expressão era serena até demais — Se não tiver o que você precisa na loja, pego em outra vila.
Franzi o cenho no mesmo momento. Ella ficou ainda mais animada, dando um beijo na bochecha do garoto do mercado.
— Obrigada, ! Você é o melhor.
Ella levantou do feno, já enumerando nos dedos tudo o que poderia fazer com os meus cabelos. Eu só queria um retoque de raíz, mas sabia que ia ter algo diferente se deixasse a menina extravasar sua criatividade.
— , vai ser o máximo!
Pisquei para ela — Talvez uma colorida também?
Ella deu um gritinho de animação — Maravilhoso!
— Vim o mais rápido que pude! Podem começar. — a voz de Hayden preencheu o lugar. Ele tinha sido o último a chegar. Seus cabelos estavam colados em sua testa, entregando sua corrida até o celeiro.
levantou do bloco de feno, dando um beijo na cabeça de Ella. Já eu ganhei uma levantada de sobrancelhas, como se ele não estivesse com paciência no momento para estar do meu lado.
Ok. Estava bem claro que a gente precisava conversar o quanto antes. Realmente seria uma longa, longa noite.
Nos organizamos em um círculo para ouvir a emergência dos mais novos, já que essa seria uma ‘noite da reclamação’ um pouco diferente a pedido de Riley e Noah.
Mason olhava cauteloso para o irmão — Já está todo mundo aqui. Qual é o grande problema, Riley?
— O baile da temporada dos novatos. — o menino escondeu o rosto com as mãos, assim como Noah.
Suspirei alto — Quantos bailes horríveis vamos ter esse ano?
Mila me cutucou — Veteranos não vão nesse. Não é descolado.
O suspiro agora era de alívio total. Eu era novata, mas estava no último ano, o que, querendo ou não, me fazia uma veterana também.
Mason franziu o cenho — O que vocês fizeram?
O alerta de Mason me fez lembrar que Noah, aparentemente, estava revidando os valentões da escola. Seria esse o motivo da noite emergencial? Eu já estava começando a traçar um plano para ajudar os mais novos com o poder do meu esquisito “Time ”, mas ainda precisava pensar nos detalhes para não ganhar mais algumas semanas de detenção.
Noah quase gritou — Nada! E é essa a questão.
Todos tinham um ponto de interrogação no rosto. Olhei para Mila, que segurava seu riso. Eles eram sempre desesperados com as coisas?
— Não entendi, pessoal. — minha voz saiu confusa.
Ella sorria com o nervosismo do amigo — Relaxa, Riley. Conta logo que estou ansiosa para saber o que você precisa do baile.
Riley passou as mãos em seu suéter que tinha alguma referência nerd que eu não fazia questão de entender.
— Scarlett me convidou para ir com ela.
Enquanto os meninos batiam palmas e gritavam em comemoração, eu vi o sorriso de Ella sumir por completo. Por todo carinho que tinha com ela, eu estava começando a achar que a menina sentia algo pelo mais velho, mas agora… Bom, talvez não fosse bem isso.
— Você aceitou? — a menina parecia medir suas palavras.
Noah olhou incrédulo para a garota — Mas é claro que ele aceitou! É a Scarlett Patel!
Mason já estava impaciente — Está bem, mas qual é o grande problema com isso?
Noah olhou para o garoto, como se tudo aquilo fosse muito óbvio.
— Meu querido Mason, graças à minha irmã eu já assisti muitos filmes de garotas. Nós sabemos o que pode acontecer. — Riley sacudia a cabeça em aprovação — Não é normal uma garota popular chamar alguém como nós — Noah apontou para ele mesmo e depois ao amigo — para o baile. — Riley continuava concordando de prontidão — A não ser que seja com intenções muito malvadas.
— E não malvadas como a gente gostaria que fosse! — Riley ainda parecia elétrico.
O melhor amigo concordou, esperando alguma reação do resto do grupo. Era sério aquilo? Com o silêncio em conjunto, Noah ajeitou seu boné e continuou seu discurso.
— A questão é: se ele não for, pode perder o melhor dia de sua vida. Mas se for, corre o risco de ser o pior dia de todos.
Bronwen revirou os olhos — Vocês são muito dramáticos.
Noah a olhou com descrença — Você só está com esse humor porque é um baile que as garotas convidam.
— Se eu quisesse ir, eu iria. — a garota replicou, fazendo pouco caso — Diferente de você, que não tem par.
— Saiba você que está chovendo mulher para me levar ao baile!
Mason e reviraram os olhos ao mesmo momento.
— Querem parar? — o loiro cortou os dois — Do que exatamente vocês estão com medo?
Riley olhou para o irmão — Não quero ser zoado na frente de todo mundo, Mason.
— Mas ela não te convidou?
Ele consertou os grandes óculos no rosto — Você nunca viu aqueles filmes idiotas em que as garotas populares pisam nos nerds e esquisitos?
Aquilo podia ser o interior, eu podia estar dentro de um celeiro velho, mas a história era a mesma que se passa em uma metrópole. Existiam grupinhos e isso surtava todo mundo, como em qualquer lugar.
Noah me olhou, parecendo ter uma grande ideia.
— ! — arregalei os olhos no mesmo momento. Estava demorando para sobrar algo para mim — Você é a mais popular do nosso grupo, o que a gente faz?
Dei de ombros, rindo da reação desesperada dos meus novos amigos.
— Me desculpem, meninos. Nunca fui popular.
Noah bufou alto — Conta outra! Você é linda e super gostosa e… — foi interrompido por um tapa em sua cabeça. De .
— Cala a boca. — e então olhou para Riley — Mantém o convite. Algum de nós dá um jeito de falar com Scarlett, certo? — todos concordamos com gestos, deixando Riley mais tranquilo.
Noah deu um passo para longe de .
— Eu acho que a deveria falar com ela e...
Nem o deixei terminar — Se você me chamar de gostosa de novo, vou te socar.
Com o fim do assunto “Scarlett”, a noite de encontro no celeiro seguiu um ritmo normal, sem emoções. Mason e Mila se beijavam em um canto cheio de bolos de feno. Clássico de cinema. Bronwen fazia competições de quem conseguia formar mais arcos de fumaça (em um narguilé velho) com Hayden e Noah. O último não conseguia ao menos tragar direito, por não parar de rir um segundo sequer. Eu estava sentada e escorada nas costas de Riley, enquanto ele mexia em alguma coisa próximo a Ella. Já havia tomado a minha cota de álcool do dia, tanto que os dois falavam sobre um plano de ir nadar no lago do condado vizinho no final de semana e eu pensava seriamente na possibilidade de ir junto.
se mantinha próximo ao som, com seu copo de whisky barato quase vazio. Seus olhares tortos me incomodavam. Eu não sabia definir o significado deles e muito menos conseguia ter coragem para levantar e perguntar com todos os nossos amigos ainda presentes. Não estava o evitando, já que nem conseguia cogitar essa ideia. Só precisava estar sozinha com ele para falarmos.
Depois de uma despedida em conjunto e com Noah me fazendo prometer que eu iria falar com Scarlett na escola, todos já haviam ido embora. Por sempre voltar com , tive de negar a carona de bicicleta de Hayden, só para não deixar um clima pior. Eu ainda não sabia como entrar no assunto, mas não poderia deixar passar daquela noite.
Andei até o garoto, que ainda estava sentado no seu bolo de feno cativo.
— ? — ele nem sorriu ao ouvir seu apelido. Resolvi relevar e continuar — Você me ignorou a noite toda. Podemos falar agora?
olhou em volta do celeiro vazio, logo dando mais um gole em seu copo antes de se levantar.
— Eu não gosto de jogos, . — franzi o cenho no mesmo momento, esperando ele continuar — Se você prefere Kyle, tudo bem. Só preciso saber.
Certo, ia ser uma conversa bem direta.
Era super natural que isso fosse questionado, já que ele sabia dos boatos escrotos e também tinha visto o beijo que Kyle e eu trocamos na entrada da escola algumas semanas atrás.
era direto em tudo o que queria, mas ainda me surpreendia com a sua naturalidade para falar sobre Kyle. Ele não parecia chateado ou muito menos com ciúmes, e eu não sabia o que sentia sobre isso.
Então a única coisa que eu fiz, vergonhosamente, foi gaguejar coisas sem sentido.
A expressão serena de nem se alterou.
— Achei que você tinha gostado do nosso beijo.
A palavra “nosso” me arrepiou por completo.
Eu não queria dizer o que senti sobre o nosso beijo, e também não queria ficar me explicando sobre Kyle. Eu o achava legal e o tinha considerado um belo escape de Bourton-on-the-Water, mas isso tinha sido antes de ser convidada para participar do grupo secreto do celeiro. Antes de estar tão próxima de .
— Eu gostei. Te beijei de volta algumas vezes, não lembra? — minha voz saiu mais incerta do que eu tinha imaginado.
Ele pôs o copo no bolo de feno. Era uma boa hora para tentar consertar aquele acontecimento de filme de uma vez por todas.
— Kyle me pegou de surpresa, . Você nos viu, eu não reagi bem.
Ele sacudiu a cabeça, com o semblante ainda tranquilo. A voz também serena e sem grandes alterações.
— Eu não estou te cobrando nada. — e deu de ombros — Só não gosto de ser feito de otário.
Abri a boca algumas vezes, mas tinha ficado sem palavras novamente. Ele devia mesmo achar que eu estava tentando ficar com os dois! A verdade era que eu não tinha ideia do que estava acontecendo, mas entendia que também me sentiria esquisita se me beijasse quase que escondido nos lugares e então ficasse com outra menina pela escola.
Eu era uma adolescente horrível.
Com a minha falta de palavras, ele continuou.
— Eu entendo que você queira ficar com ele, faz mais o seu estilo da cidade grande.
Sua voz novamente não parecia magoada ou grossa, mas eu podia sentir as pontadas de ressentimento. Dentro de mim.
Eu realmente era uma pessoa horrível, mas naquela situação eu não tinha culpa.
Ou tinha?
— Eu não tenho algo com ele e nem quero ter.
O menino riu pelo nariz — Não estou com ciúmes, .
— Eu sei disso. Só estou sendo direta e te dizendo que não rola nada entre Kyle e eu. Não gosto dele e nem quero continuar o que a gente, sem querer, começou. — respirei fundo, deixando meus ombros caírem — Podemos voltar ao normal?
Aquela tensão durou mais alguns segundos enquanto nos olhávamos intensamente. Até que revirou os olhos claros e fez uma careta, abaixando uma de suas sobrancelhas. Eu entendi como “estou dando o braço a torcer” e me aproximei dele, abraçando forte seu corpo.
— Me desculpe pela confusão. — minha voz saiu abafada por sua jaqueta jeans.
Eu nunca tinha sido tão direta e sincera durante a minha estadia na vila. Na verdade, nunca fui tão direta assim em toda a minha vida. Eram coisas novas e eu já sentia uma paz dentro de mim.
Aquele clichê de novela não ia acabar com a nossa amizade.
Ainda em seus braços, senti o seu cheiro de sempre e o apertei mais. Quando nos soltamos, tinha um sorriso cínico nos lábios.
Ele ajeitou os cabelos com as mãos — Talvez eu tenha ficado com ciúmes. Mas só porque ele é um retardado.
Tive de rir — Sério? — e deu de ombros, apertando minha cintura — Qual é o seu problema com Kyle?
Ele pareceu um pouco incrédulo, como se aquela pergunta fosse completamente desnecessária. Kyle parecia ter algum mistério e, se já houve um real conflito com ou alguém do celeiro, eu gostaria de saber.
— Mason já teve uns atritos com ele. Eu acho que ele esconde algo, não me parece normal. Se eu fosse você, desconfiaria dele sobre os bilhetes que recebeu.
Ainda achava esquisita a implicância que tinha com o garoto da jaqueta de couro, mas depois daquele encontro estranho na escola… A frase de mais cedo “As coisas vão começar a ficar mais difíceis para você, ” tinha me deixado com um buraco no estômago.
— Achou que eu ia entrar para a gangue das jaquetas de couro? — revirou os olhos com as minhas palavras — Eu faço parte dos renegados de Bourton-on-the-Water! Vocês não vão se livrar de mim.
Nossos olhos se encontraram novamente e, bem, simplesmente assim, eu sabia que tudo estava de volta ao nosso normal.
“Nosso”.
se afastou um pouco, encostando no bloco de feno que antes estava sentado.
— Isso é esquisito, . — ele uniu as sobrancelhas — Somos amigos, nos beijamos poucas vezes e você…
Meu coração batia forte — Eu o quê?
Ele suspirou — Você me tira do sério, cidade grande. — e riu ao fazer o comentário, debochado — Satisfeita?
Eu não sabia dizer se estava satisfeita. Mas se eu também conseguia fazer ele sentir algo esquisito, estranho e incrivelmente interessante, por mim, tudo bem.
— E isso é bom ou ruim?
Ele parecia me analisar — Tem dois lados. Você me irrita e me faz querer te agarrar. Às vezes isso acontece ao mesmo tempo.
Um sorriso preencheu meus lábios — Vou encarar isso como “bom”.
Ele deu alguns passos até mim — Você é doida, .
Eu não gostava de ser chamada de doida ou maluca, mas falava sempre de uma forma engraçada e eu simplesmente não conseguia ver maldade ali. Se aquilo era uma tradução torta de “você não combina com Cotswolds”, por mim, tudo bem também.
— Você que está me fazendo ficar assim. — mordi os lábios com a careta que ele fez.
— Ok. — seu semblante agora era sério. demorou alguns segundos para continuar — Você me deixa louco. — e disse simplesmente.
Tive de sorrir — Você me deixa confiante.
Sorri ainda mais ao perceber segurando minha nuca.
Ele deu de ombros — Sua confiança me deixa louco também.
E nossos lábios finalmente se encontraram naquela noite.
Não sabia de onde vinha aquele sentimento, mas tudo em me fazia sentir bem, bonita e decidida. O seu sorriso sincero, seu interesse em mim e até mesmo o jeito diretão, sem joguinhos. Tinha tempos que não me relacionava com alguém sem precisar pisar em ovos e, em pouco tempo, via que era esse tipo raro de gente que apenas “é”. Sem preocupações desnecessárias, sem pegadinhas. Ele estava ali comigo, me beijando ou jogando conversa fora, porque simplesmente queria.
E, nossa, era exatamente o que eu precisava.
Em pouco tempo já era mais do que natural estar ao lado dele. Eu conseguia ser a minha melhor versão. Não precisava estar sempre arrumada, não precisava me importar em ser sempre engraçada ou sexy, para chamar sua atenção. Me lembrava claramente do dia do banho no rio, em nossa primeira festa no celeiro, que eu estava completamente destruída, descabelada e usando a sua camisa velha para não morrer de frio… E, mesmo assim, ele conseguia abrir a boca e dizer com sinceridade que eu era linda.
Nos afastamos e aquele sorriso torto ainda preenchia os seus lábios.
— Minha confiança, é?
Ele concordava com a cabeça, seus olhos “azuis demais” ainda grudados nos meus.
— Acho que um pouco da sua loucura, também.
Ri pelo nariz — Culpe Cotswolds.
Um sorriso cheio de malícia apareceu em seu rosto. Se eu culpava Cotswolds, automaticamente poderia culpar também. Estava realmente doida e livre. Ele tinha muita culpa sim.
se encostou novamente no feno, respirando fundo. Não me cansava de analisar seu semblante, seus cabelos incrivelmente rebeldes e aquele sorriso lindo. Suas palavras preencheram minha mente.
— Quer ir embora? — neguei sem ao menos pensar antes. Ele continuou — Posso te agarrar mais, então?
Meu riso se tornou mais fácil e, quando fez menção de se desencostar para me beijar novamente, fiz um sinal para que parasse. Seus olhos claros eram uma mistura de confusão e malícia, e eu estava gostando bastante.
O analisei minuciosamente. Seus olhos se mantinham nos meus, talvez observando o que eu estava tentando observar nele. A cada dia que se passava eu sentia uma atração bizarra ainda maior por aquele garoto e isso estava ficando muito difícil de esconder.
— Está me conferindo? — sua voz saiu engraçada.
Tive de concordar — Você também me tira do sério.
Vi o menino respirar fundo — Mais uma coisa que temos em comum.
Aquele clima era tão bom que eu nem conseguia pensar no caos de mais cedo e de como eu estava ansiosa para resolver tudo com ele. Ali, naquele celeiro sujo, estava bem claro uma coisa: sempre estaríamos bem se fossemos nós mesmos.
Sério, era 100% o que eu precisava.
O olhei de lado, trocando o peso entre minhas pernas.
— É mesmo? Vamos falar sobre isso. Sem julgamentos no celeiro, não é?
Ele concordava com a cabeça — Você me tira do sério desde nossas briguinhas lá no mercado.
Ri ainda mais — Me arrependo parcialmente daquilo.
Ele tinha um sorriso irônico nos lábios — Mais uma coisa que temos em comum.
Respirei fundo — Tenta mais uma.
nem hesitou — Desde o dia do banho no rio eu não consigo parar de pensar em como o seu corpo vai encaixar no meu.
Eu esperava que tudo entre nós fosse bem direto, mas ouvir aquilo em sua voz tranquila, com aquele sotaque pesado, fez um arrepio muito doido percorrer meu corpo inteiro. As lembranças do sonho misturadas às suas palavras super diretas faziam eu me sentir quase tonta.
Demorei um pouco mais do que gostaria para responder aquilo. O sorrisinho cínico de crescia a cada segundo que eu continuava calada.
— Mais uma coisa… — minha voz saiu baixa.
Ele riu, sacudindo a cabeça — Que sorte a minha.
Concordei — Me fala mais sobre o que está pensando… Ou já pensou.
Eu precisava de mais um empurrãozinho para fazer a minha maluquice do dia.
comprimiu os olhos, talvez medindo suas palavras.
— Estou pensando… No seu jeito doido. — dei alguns passos para trás, mas ainda o encorajava a falar — Nosso banho no rio. — nossos olhos se mantinham colados e aquilo foi o necessário para que eu simplesmente tirasse a blusa. Ele pareceu hesitar, mas fiz um gesto para que continuasse seus pensamentos — Seu beijo. — ri sozinha ao desabotoar a calça e retirar. Depois do fatídico dia do banho no rio Windrush eu sempre ia para o celeiro com uma lingerie decente. Ele comprimiu os olhos ainda mais e respirou fundo antes de continuar — E, obviamente, em tudo isso aí...
Meu sorriso mal cabia em meus lábios. Ele passava tanta verdade em seus olhares que eu me sentia a garota mais poderosa e gostosa do mundo todo.
Como que uma coisa não tangível podia ser tão sexy? A franqueza que via nos olhos claros dele me deixava sem ar. Era sexy não ter joguinhos, se arriscar e simplesmente fazer o que queríamos.
Fazer um pouco do que a minha mente já tinha iniciado em um sonho muito doido naquela madrugada…
Meu corpo todo se arrepiou. Era tão gostoso ter intimidade com que eu nem conseguia pensar duas vezes para fazer alguma coisa. Não culpava o álcool e nem nada mais (como a pureza excessiva no ar de Cotswolds).
Minha voz saiu divertida — Sua vez!
Suas sobrancelhas se uniram, como se o fizessem acordar. Seus olhos azuis percorreram os meus e, segundos depois, ele estava sem a camisa que usava.
Foi impossível não suspirar.
Queria tanto parar com aquela cena de filme e beijá-lo… Ele era lindo demais. Seus semi cachinhos castanhos, seus olhos azuis como o céu limpo, seu sorriso quase sempre arrogante, seu jeitinho tão simples… Eu queria ver mais, conhecer mais. Queria poder dizer e pensar que tinha de um jeito que os outros definitivamente não tinham. Era uma particularidade que só eu teria com ele dentro daquele celeiro ou até mesmo dentro da vila inteira. A nossa amizade já era incrível em pouco tempo, apimentar aquilo parecia cada vez mais irresistível.
— Sua vez. — seu sotaque era ainda mais carregado na voz rouca.
Aquilo tudo era melhor do que o dia do banho no rio porque ali eu podia olhar para ele sem pudor algum. Não precisava me importar se outras pessoas iriam reparar que eu estava sim o conferindo, por completo. Ali já estava tudo certo. O nosso beijo era incrível, as coisas só poderiam melhorar.
Dei alguns passos a sua direção. Levantei uma sobrancelha, surpresa, ao reparar em uma mini tatuagem em sua costela direita.
Quando minha barriga se encostou na dele, pude ouvir seu suspiro. Estava na desvantagem de roupas, mas sequer me importava. Queria o corpo do menino colado ao meu o quanto antes.
— Posso fazer o que eu quiser?
A visão de só de calça jeans era maravilhosa. Não queria que aquilo acabasse ainda… Os olhos dele pareciam mais escuros, as pupilas super dilatadas. Com o canto dos meus olhos vi apertar com as mãos o bloco de feno em que ainda se mantinha apoiado.
Tive de sorrir ainda mais com aquela reação.
— Quem manda é você, cidade grande.
Bom, para mim, era o suficiente.
— Ótimo. Porque sonhei com algumas ideias.
Foi a última coisa que consegui falar antes de suas mãos me puxarem pela nuca em um dos beijos mais intensos que já tinha dado na vida.
Minha cabeça ainda se mantinha em um dos ombros de , enquanto tentava fazer a respiração do meu corpo voltar ao normal. Eu acompanhava o ritmo louco do peito do menino, tentando respirar fundo.
Sua jaqueta era a única coisa que nos aquecia, mesmo mal cobrindo um terço do corpo de cada um. Já tinha perdido a noção do tempo em que estávamos assim, deitados em um bloco de feno olhando para o teto do velho celeiro.
Não ouvia nada além do vai e vem de seus pulmões.
— Isso foi… — ele engoliu em seco, quebrando o quase silêncio entre nós e terminando sua frase com dificuldade — Nossa...
Tive de concordar com poucas palavras — Mais uma coisa, não é?
Ouvi sua risada fraca, em concordância. Aquilo tudo ainda era muito doido. Já tinha vivido alguns relacionamentos interessantes, mas com parecia tudo muito diferente e… Certo. Não sabia explicar, porque a única coisa que passava por minha cabeça no momento era rir com o fato de ter feito tudo aquilo no meio de um celeiro velho, sujo, salpicado de feno e praticamente abandonado.
Aquela risada, antes interna, tomou conta dos meus lábios. Quando percebi, já gargalhava olhando em seus olhos. os comprimiu, claramente sem entender.
— O que foi? — ele sorria junto, mas ainda estava confuso.
Respirei para não engasgar — Ai, meu Deus. Nós transamos no celeiro!
finalmente pescou minha piada, rindo junto comigo. Era uma risada incrédula, minha e dele, até que um estalo ocorreu em minha mente.
— Você nunca tinha feito isso, não é? — minha voz saiu mais animada do que eu esperava.
Mais uma vez o garoto do mercado tinha um ponto de interrogação em seu rosto.
— Transar?
Revirei os olhos — Não, ridículo. No celeiro.
Ele riu mais — Claro que não.
Virei meu corpo ainda mais em sua direção — Consegui! — seu olhar esquisito estava de volta — Finalmente consegui que você fizesse algo pela primeira vez também!
Sua gargalhada preencheu o celeiro velho — Você é realmente doida.
Colei seu peito no meu. Nossos rostos próximos.
— Posso ser. Não se acostumou com isso ainda?
Suas mãos subiram para as minhas bochechas. Não tinha ideia de onde aquela loucura tinha saído e de onde ela iria nos levar, mas ia me deixar sentir o que quer que fosse.
Sua voz soou carinhosa — Preciso de mais um tempo.
— Que bom, porque temos o ano todo.
Era interessante como a sintonia entre nós, mesmo recente, parecia de longa duração. Ficamos mais alguns longos minutos daquele jeito, conversando e rindo, até a hora de pegar a estrada de terra para casa. fazia piada com o penteado igual de Ella que eu tinha feito mais cedo na escola, e eu não parava de rir ao relembrar que era muito esquisito ele ir para o celeiro levando camisinhas na carteira. Incrivelmente tudo parecia exatamente igual, de volta ao nosso “normal”, como tinha imposto mais cedo. E eu simplesmente adorava demais aquilo.
Na esquina da minha casa, parecendo ler os meus pensamentos recentes, segurou o meu queixo, de forma cafona e delicada.
— Gosto que nada pareça esquisito, cidade grande.
Tive de concordar de prontidão. Não era esquisito. Pelo menos não naquele momento.
— Gosto disso também.
Ele riu, encostando os seus lábios nos meus. Seu sotaque extremamente caipira invadiu meus ouvidos.
— Você é uma surpresa boa, .
De repente um mix doido de sentimentos tomou meu corpo. Eu poderia gargalhar até minha barriga doer ou simplesmente derramar lágrimas sem saber o porquê. Conseguiria gritar, sofrer ou até mesmo criar uma grande briga entre nós. Era confuso e gostoso, tudo ao mesmo tempo, como se meu corpo tivesse recebido uma carga alta de energia.
Me despedi de e o assisti sumir com sua bicicleta verde na escuridão até depois da esquina de minha casa. Ia guardar aquela noite para sempre, porque só de relembrar todos os acontecimentos, meu corpo voltava a entrar naquela pane de sentimentos conjuntos, tudo rolando esquisitamente ao mesmo tempo.
Tive de sorrir sozinha ao cruzar nosso gramado de casa, já imaginando o que eu poderia sonhar aquela noite — e se meus sonhos conseguiriam superar a realidade que eu agora conhecia. Tinha o grande pressentimento de que a resposta desse questionamento seria não.
Me aninhei nos lençóis da cama me perguntando se era assim que alguém genuinamente feliz se sentia. Porque estava começando a achar que sim.
Era cedo demais para qualquer coisa, mas Skye e Caitlin (do grupinho popular de Zara e Dominic) me enchiam de perguntas e elogios enquanto eu tentava localizar um dos livros de Matemática III dentro do armário. Por sorte o achei nos fundos de uma bagunça que nem eu mesma sabia como tinha feito, e nada de bilhetinhos sacanas.
Ia ser um bom começo de dia.
As meninas ao meu lado falavam sem parar e eu só acenava com a cabeça. Não sabia o que queriam comigo, mas aparentemente se declararam ‘Time ’ após os cumprimentos que recebi pelo fatídico soco em Dominic. Eu conseguia dar risada da maluquice das duas, mas ainda não me sentia confortável. Estava há dias esperando uma revanche e, bem, aquelas garotas não combinavam comigo.
As coisas ficaram realmente estranhas quando Skye cutucou a amiga ao ver Ella no corredor.
— Lá vem a esquisita da vila.
Não adiantaria revidar por Ella ou fazer uma cena ao lado das meninas. Depois da conversa com sobre se impor, eu começaria a pensar duas vezes antes de agir. Não sabia com quem estava lidando e não poderia prejudicar meus amigos do celeiro secreto.
E eu também não sabia quem tentava me atacar naquela escola e, com exceção do meu grupo de renegados, eu suspeitava de qualquer um.
Caitlin balançava a cabeça em negação — Vocês estão vendo aquilo no cabelo dela?
Aquele comentário iluminou minha mente e eu sorri com vontade.
Fingi o máximo de animação que eu consegui. Eu podia mentir mal, mas pelo menos sabia encenar bem. Obrigada, séries!
— Ai, meu Deus.
Caitlin concordou com a minha frase de impacto.
— Não é?
Minhas bochechas já doíam pelo sorriso enorme em meu rosto.
— Como ela conseguiu aquilo? — as meninas ainda concordavam comigo — É a última moda em Paris!
Skye e Caitlin se olharam sem entender, e eu fiz o máximo para não sair do personagem. Confusas, soltaram em um uníssono.
— É?
Me esforçava para parecer incrédula — Claro. Como vocês não estão por dentro?
As meninas pareciam incertas com suas respostas.
— Nossa Vogue ainda não chegou e…
Interrompi Skye assim que Ella passou por nós. Fechei o meu armário, chamando a menina mais nova.
— Ei, garota fashionista!
Ella girou nos calcanhares ao ouvir minha voz. A menina olhava com cautela, provavelmente por eu estar na companhia de dois dos populares que sempre tiravam sarro dela.
Sua voz saiu confusa — Eu?
Minha animação se dobrou — Claro! Onde você arrumou esse acessório de cabelo? É incrível!
Algumas pessoas já passavam entre nós visivelmente interessadas. O interior podia ser mau e cafona, mas adolescentes sempre precisavam ser incluídos em alguma coisa. Eu mesma me sentia assim.
Me aproximei de Ella, sorrindo — Você precisa me dizer onde conseguiu. As minhas amigas de Paris e Nova Iorque não tiram isso da cabeça. É a nova moda na cidade grande.
Ella ainda parecia confusa, mas conseguiu captar bem o que eu estava tentando fazer.
— Eu que fiz. Tenho outro na mochila, você quer?
Coloquei a mão no peito, emocionada. Os adolescentes aleatórios continuavam assistindo a nossa cena com atenção.
— Jura? Você é incrível. Muito obrigada!
— De nada, .
Peguei o objeto laranja das mãos de Ella. Era um laço enorme, de cor quase neon, com um elástico da mesma tonalidade. Ajeitei meu cabelo, prendendo boa parte dele com o acessório de cor gritante e ficando com o mesmo penteado que a menina usava.
— O que achou?
Mal me importava de olhar no espelho. O sorriso de Ella já era o suficiente.
— Está linda.
Pisquei para a menina, que saiu andando pelo corredor em meio aos cochichos e questionamentos de “nós precisamos achar um igual” e “nunca usarei isso”. Mais uma vez o nome separava os interesses da The Cotswold School e eu não pude me sentir mais feliz com isso.
Naquele momento eu entendi que o meu plano de revidar não serviria apenas para mim ou para aquelas meninas de outro dia no corredor. Serviria também para os meus amigos do celeiro. E eu começaria pelos mais novos. Ella precisava de apoio moral. Noah e Riley precisavam se livrar dos valentões que os obrigavam a fazer seus milhões de trabalhos (confronto recente que tinha levado Noah a colar chicletes nas cadeiras alheias e ir parar na detenção). Eu tentaria fazer a minha parte. Era um ótimo jeito de aproveitar aquela maluquice de Time pela escola.
Skye e Caitlin ainda me olhavam enquanto eu fazia uma selfie com o celular. Suas expressões eram impagáveis e eu mordia o lábio para não gargalhar.
Me virei para elas, antes de correr até o bloco do refeitório.
— Vocês precisam de um. — e olhei para as mãos de Caitlin, sussurrando em seguida — Essa cor de bolsa já está ultrapassada, lançaram uma nova mês passado. — as meninas abriram a boca em surpresa. Era uma bela mentira, eu não fazia ideia do que estava sendo lançado ou não, mas não ia perder aquela oportunidade — Cuidado para não virar piada por aí.
Me afastei com passos largos, ainda sorrindo. Não achava certo causar brigas entre meninas, mas sabia que aquelas duas só iriam entender a mesma língua venenosa que falavam.
Mila se postou ao meu lado no corredor.
— O que é isso no seu cabelo? — e então deu de ombros, como se já esperasse qualquer coisa diferente vindo de mim — Sanduíches?
Após comer um lanche bem gostoso (que Mila insistiu ser o melhor sanduíche da roça), minha amiga e eu fomos para a sala de aula antes mesmo de o sinal tocar. Teríamos uma prova importante e, segundo Mila, era essencial sentar alguns minutos antes na cadeira para se concentrar e ter sucesso. Eu não tinha mais o que fazer por aquele pátio limpo demais, então acatei a esquisitice dela.
Assim que entramos na sala, Mila arrumou em sua mesa o estojo e o lápis rosa-choque com um pompom na ponta. Eu ainda achava graça daquele estilo princesa, mas era impossível dizer que não era tudo a cara da menina.
Com tudo pronto, Mila correu até o banheiro mais próximo, me deixando sozinha naquela sala ainda vazia. Eu tinha alguns minutos mais até o toque do sinal e me permiti relaxar, tanto para a prova quanto para o turbilhão de coisas que se passava em minha cabeça. Levantei de minha cadeira, me espreguiçando com os braços para cima. Após o movimento que sempre me relaxava, encostei de volta à mesa, fechando os olhos. Me permiti inspirar e expirar algumas vezes, procurando uma serenidade que eu nem sabia se tinha.
Muitas coisas diferentes transbordavam e lutavam pela minha atenção. Meus novos amigos, meu grupo secreto, meu cachorro, a semana de provas que estava por vir, a pintura de nossa casa, o e-mail de Bree que eu tinha esquecido de responder e os beijos de ... Tantos e com aquele gosto diferente que eu sempre sentia, talvez pelo sabor esquisito do licor de menta barato que ele bebia ou só pela lembrança daquilo. Ou talvez (só talvez) por outras coisas que eu ainda fazia questão de não querer entender.
Meu braço se arrepiou com uma lembrança que atingiu minha mente. Aquela noite eu tinha sonhado algo muito confuso, meio perturbador e, hm, sexy. Braços firmes contornavam minha cintura e aquela pele macia e quente se encostava com a minha. Era um sonho tão vívido que só de lembrar meu coração já começava a bater mais forte.
O corpo de quem me apertava era 90% igual ao de Logan, mas algumas características não batiam. Eu conseguia analisar muitas pintas por seu tronco… Seus cabelos eram uma bagunça de fios loiros, mas às vezes pareciam castanhos. O rosto era indefinido e isso só fazia os arrepios em meus braços piorarem. Mas os olhos, ah, eles eu sabia exatamente de onde minha imaginação tirava. Eram azul-claro, uma cópia perfeita dos olhos lindos de . Nos beijávamos tão forte que eu sentia meu pulmão quase sufocar.
Só de lembrar daquele brilho azul-claro tudo na minha cabeça já beirava a indecência. Tive de rir sozinha, ainda de olhos fechados.
Meu Deus. O que aquilo poderia significar?
Abri os olhos, surpresa, quando senti uma respiração próxima às minhas bochechas. Mal tive tempo para reação e o sorriso de Kyle se juntou aos meus lábios. Uma de suas mãos foi posta no lado esquerdo do meu rosto, tentando mais aproximação.
Minha falta de reação fez com que meus olhos continuassem abertos. E com isso eu pude ver entrar na sala de aula, já que ele também estava em minha classe de Literatura Inglesa. Seu olhar foi direto no meu, logo desviando e sentando em sua cadeira de sempre. Aqueles olhos (melhores que os do sonho) eram o que eu precisava para acordar.
Ah sim, mais um delicioso clichê para compor minha vida no interior. Por que tinha que ter a mesma esquisitice de Mila antes de provas?
Dei um pequeno empurrão no peito de Kyle, ganhando espaço entre nós.
— O que está fazendo?
— Tentei uma surpresa. — Kyle me olhava sem entender. Pelo visto, na região, beijar uma vez realmente poderia significar algum compromisso.
Eu tentava olhar com o canto dos olhos, mas era impossível pelo ângulo em que ele estava. Aquele era o pior clichê ruim que poderia acontecer comigo!
— Não fico à vontade com isso, estamos na sala de aula. — tentei soar o mais firme possível.
O menino franziu o cenho, mas o sorriso ainda estava em sua boca.
— Tudo bem, me desculpe.
— A gente pode se falar depois?
Ele deu uma piscada no olho direito — Claro. Te vejo depois das aulas. — e saiu da sala passando por Mila, que entrava apressada. Minha amiga parecia surpresa ao ver Kyle e eu sabia que estava pronta para me encher de perguntas.
Fiz um sinal de ‘pare’ com uma das mãos. Só então percebi que elas tremiam.
— Nem começa. Vamos focar na prova.
Mila respirou fundo, talvez lembrando do nervosismo que sentia mais cedo.
— Boa sorte para nós duas.
Passei o teste todo incomodada, principalmente pelo fato de não conseguir ter uma visão de ou do que ele estava fazendo. Eu sabia que não devia explicações a ninguém, mas não me sentia bem com aquela situação. Realmente não queria que achasse que eu beijava todos os caras da região, incluindo ele.
E eu realmente não queria perder a oportunidade de sentir os lábios dele de novo.
Precisava dar um jeito de terminar com Kyle o que nem mesmo tinha começado.
Mal terminei de escrever a última frase da última questão e já estava fora da sala de aula. Fiz o máximo para me concentrar e escrever tudo o que eu sabia, e mesmo assim fui uma das últimas a acabar.
Quando adentrei o corredor, Mila me esperava escorada nos armários. Pela minha cara e os nós que estavam no meu cabelo de tanto eu enrolá-los na caneta, ela sabia que eu tinha passado longe do ‘dez’.
— Na próxima estudamos juntas, ok? — tive de sorrir para aquilo, mesmo exausta. Precisava estudar mais e ter a ajuda dela seria ótimo.
Meu sorriso morreu quando avistei, no fim do corredor, o menino da jaqueta de couro e sua amiga, Alene. Era importante falar com Kyle o quanto antes, mas eu ainda tentava fugir de Alene de todas as formas. Mila se apressou para sua próxima atividade enquanto eu marchava sem forças até o garoto. Seu sorriso pareceu crescer quando percebeu que eu ia diretamente até ele.
Que desculpa eu teria que inventar agora?
Olhando de longe Kyle era atraente e misterioso, mas, pensando bem, ele parecia ser o clichê dos bad boys. Tudo o que eu nunca curti: popularidade, arrogância, falta de interesse. Mas mesmo assim isso não me dava o direito de brincar com o que quer que fosse que ele sentisse (ou não) por mim.
Um sinal com a cabeça indicando as portas de saída foi o suficiente para que ele me seguisse para fora do corredor brilhante, o que deixou Alene apenas me observando. Esse seria um problema para outra hora.
Saí do bloco principal, indo para a parte externa da escola, onde tem os bancos de pedra e um pouco de grama e árvores, parecido com os fundos de uma propriedade. Quando a porta fechou atrás dele, eu me virei, respirando fundo. Levei um susto com a sua aproximação, seu rosto já quase encostado no meu novamente.
Dei um grande passo para trás, colocando as mãos em seu peito.
— Quero conversar com você.
Sua expressão ficou confusa — Algo de errado?
Para quê inventar algo se eu simplesmente podia falar a verdade?
— Acabei de chegar na vila. — ele me mediu com um sorriso tranquilo no rosto — Não sei se quero me envolver com alguém. Entende?
Tudo bem, talvez inventar um pouquinho só.
Sabia que havia provocado o menino e inclusive tinha imposto ele como um plano de escape ao interior, mas aquilo simplesmente não fazia mais sentido. Eu tinha os meus amigos do celeiro e não queria ninguém me beijando de surpresa pelos corredores da escola.
Sua expressão, antes delicada e simpática, se fechou por completo.
— Ok. — e colocou as mãos na jaqueta — Quem é o outro cara?
Tentei ao máximo controlar a vontade de tirar o meu sapato e jogar nele.
— Desculpe, o quê?
Kyle deu de ombros. Sua expressão ainda fria como gelo. Seus olhos azul escuro estavam sombrios e alguma coisa me dizia que não era só por conta da nossa conversinha.
— Você ouviu bem, . Primeiro o bolo para o evento beneficente e agora isso.
Tive de rir, incrédula — Por que está me cobrando como se fossemos namorados?
Eu ainda tentava lutar contra o que Mila tinha falado outro dia, de que “beijos são sempre especiais”. Não era possível que beijar alguém uma vez fosse um sinal de compromisso sério. Era bizarro demais até mesmo para Bourton-on-the-Water.
Ele me mediu novamente, parecendo comprar minhas palavras. Ou simplesmente estava sem vontade de discutir com a garota maluca da escola.
E então Kyle foi embora sem falar nada. Eu não iria questionar sua reação e não me sentia culpada por qualquer coisa. Tinha sido apenas um beijo e realmente não existia nada entre nós. A única coisa que preenchia minha cabeça era como eu iria resolver aquele acontecimento desnecessário da aula de Literatura, com vendo o menino rebelde me beijar de surpresa.
Andei até a árvore mais próxima, me sentando na sombra que ela fazia. Encostei em seu tronco, fechando os olhos e fazendo o ritual de mais cedo, de inspirar e expirar com força, para ver se tudo aquilo sumia da minha mente.
Quando abri os olhos, por ironia do destino (ou porque tudo em Bourton-on-the-Water é ridiculamente pequeno e você encontra todo mundo o tempo inteiro!), avistei sentado na árvore mais a frente, com um livro nas mãos e fones de ouvido. Seus cabelos pareciam mais penteados e existia uma linha fina em sua testa, talvez pela concentração ao ler aquelas páginas.
Nossos olhares se encontraram por segundos, mas ele logo voltou a atenção ao seu livro esquisito.
Bom, era oficial: eu me sentia mal e precisava realmente resolver aquela situação horrível o quanto antes. Sabia que não iria fazer uma cena ou deixar de falar comigo, mas não conseguia tirar aquele sentimento ruim de dentro de mim. Queria resolver o quanto antes, mas sabia que não era a melhor ideia abordar ele na escola, mesmo que estivéssemos um pouco escondidos nos fundos onde os alunos descolados ficavam. Além de ninguém saber que éramos amigos, aquilo poderia ser uma munição nova para mais fofocas sobre mim — e eu odiaria que fosse vítima também.
E se eu tinha uma desconfiança grande de que Zara implicava comigo... Talvez as coisas ficassem pior se eu fosse vista com .
Meus olhos ainda o mediam, observando seus poucos movimentos. Antes que o meu coração surtasse, peguei o celular do bolso da saia cafona e digitei rapidamente, enviando a mensagem em seguida.
* : , precisamos conversar.
Vi o menino se distrair de seu grande livro, pegando o celular em mãos. Seus olhos claros rapidamente se encontraram com os meus, mas esse contato durou dois segundos. E então digitou algo rápido, colocando o aparelho na grama novamente e voltando a ler.
* : OK.
Suspirei pesadamente. Não resolvia a minha ansiedade, mas ajudava um pouco.
Quando fechei os olhos a lembrança do sonho me atingiu por completo. Me questionava se aquilo era uma saudade ou um desejo do que eu ainda não sabia que procurava.
Estava perdida em pensamentos quando o sinal de saída tocou, me fazendo pular de susto. Por sorte não tinha ninguém além de por perto. Levantei do gramado, já que ainda tinha uma longa tarde na detenção. Segui para o pátio e, para a minha surpresa, continuou sentado e encostado na árvore, sem mexer um músculo. Provavelmente iria esperar ali sozinho para a aula de Culinária Doméstica que eu faltaria de novo.
Na detenção, por sorte, Zara nem olhou na minha cara, o que significa que também não inventou nada surreal para que eu fizesse. Os últimos dias tinham sido de redações de mil palavras sobre agressão e “paz no interior” a circular todas as letras ‘h’ de um jornal completo. Misturando aquilo e Cotswolds, me senti em uma tortura do século passado.
A menina parecia ainda mais dura do que nos outros dias, com suas feições fechadas. Não me importava e também não queria saber o porquê, contanto que não sobrasse para mim. Estava farta de Zara exercer o seu poder para pedir coisas ridículas durante os dias de detenção e ainda achava seriamente que ela tinha algo contra mim.
Assim que acabei os afazeres, corri para longe da sala, pois, pelo horário, ainda conseguiria pegar saindo da extracurricular que fazíamos juntos. Não conseguia parar de pensar um segundo naquele misto de sentimentos que tomava o meu corpo aquele dia. Será que estava puto, triste, decepcionado? Só de pensar naquelas possibilidades meu estômago revirava. Sabia que a nossa amizade não ia se abalar por coisa boba, mesmo que em pouco tempo, mas estava tão nervosa que precisava falar com ele o quanto antes.
Por completo azar (já tinha usado a cota de sorte do dia com Zara), esbarrei em Kyle. Um esbarrão digno de livros e filmes. Ele ajeitou sua jaqueta de couro com as mãos, como se eu tivesse amassado alguma parte. Mal tive tempo de pedir desculpas quando as palavras saíram de sua boca.
— As coisas vão começar a ficar mais difíceis para você, . — e continuou andando como se tivesse me desejado uma boa tarde.
Uau. Pelo jeito beijos realmente eram muitos importantes no interior.
Felizmente estava tão decidida a falar com que ia deixar aquele conflito para depois. Amanhã pensaria em como me livrar do rancor de Kyle sem fazer besteiras ou simplesmente esperaria o garoto esquecer. Seria mais um problema a resolver na minha lista.
Por não achar na sala de Culinária, resolvi que era a hora de ir embora. Assim que atravessei uma das pontes de pedra sobre o rio Windrush, estava decidida em entrar no mercado vende-tudo dos , mas uma mensagem de mamãe fez meus planos irem para o ralo novamente.
Na tela do celular, uma frase em capslock. “PRECISO DE VOCÊ EM CASA. JÁ ESTÁ VINDO?”. Tinha que ensinar minha mãe a mexer naquele teclado ou ela sempre gritaria em seu WhatsApp.
Respirei fundo, seguindo finalmente o caminho de casa. Enviei uma mensagem em nosso grupo do celeiro, perguntando se poderíamos nos reunir, e aguardei uma resposta enquanto andava pelas ruas de pedra da vila.
* Hayden King: Hoje tem reunião de “emergência” para Noah e Riley.
* Noah Singh: Por que tá usando aspas em emergência? É um assunto sério, imbecil.
* Noah Singh: Por que tá usando aspas em emergência? É um assunto sério, imbecil.
Me sentia aliviada de novo ao ler aquelas mensagens. Pelo menos no celeiro não tinha como escapar.
Nem precisei entrar em casa para saber que algo estava errado.
— O que aconteceu aqui?
Em frente ao gramado da nossa casa havia um pequeno caminhão vermelho e alguns homens uniformizados. Bombeiros. Minha mãe me olhou parecendo abalada. Astra já pulava com suas patinhas em cima de mim.
— Suspeita de incêndio.
Meu coração acelerou no mesmo momento.
— O quê? Você está bem?
Ela tentou um sorriso carinhoso — Eu não estava em casa. Mas Astra está bem.
Passamos algumas horas conversando com os bombeiros e verificando cada item da casa que poderia ter ocasionado o princípio de fogo na parte direita da nossa sala de estar. Ainda me sentia tonta e confusa por aquilo. Nossa casa não era a mais nova da região, mas fogo? Nem os apartamentos velhos em Nova Iorque e Holanda pegavam fogo do nada.
Ao pensar nisso um sentimento ruim tomou conta do meu peito. Tão ruim quanto a ansiedade que eu sentia para falar com .
— Secador? Chapinhas? Nada? — um dos bombeiros ainda me olhava esquisito. Meu cabelo estava tão bagunçado que era até engraçado ouvir aquelas perguntas.
— Não. Não usei nada pela manhã.
Mamãe esfregava as mãos uma na outra — Talvez eu tenha deixado algo aceso, será? Eu não me lembro.
O homem à nossa frente nos mediu — A senhora tem marido? — franzi o cenho na hora — Talvez seja melhor falar com ele.
Minha mãe pareceu atônita por alguns segundos.
— Desculpe, o que disse?
O bombeiro deu de ombros — Se lembrar de algo, nos telefone.
Quando ia questionar, ouvi meu nome sendo chamado. Ao olhar para trás constatei Mila no início do gramado com uma expressão apavorada. Corri até minha amiga com Astra me acompanhando.
— , o que aconteceu aqui? — a menina saltou de sua bicicleta rosa chiclete — Vi uma confusão quando estava atravessando a vila. O que aconteceu? Está tudo bem com vocês?
Assenti para todas as perguntas — Princípio de incêndio em nossa casa.
Ela parecia realmente preocupada — Eu sinto muito.
Minha mãe se aproximou, seu semblante cansado. Parecia não ter ideia do que tinha acontecido com a nossa casa e me chateava que ela se sentisse culpada, já que meu pai estava em Londres novamente.
Tentando amenizar a situação, puxei minha amiga pelo braço.
— Mãe, essa aqui é a Mila. Minha nova amiga que te contei.
Mamãe abriu um largo sorriso, provavelmente já gostando de Mila de cara e também se lembrando da história que tinha contado dias atrás. Elas se cumprimentaram e logo minha mãe entrou em casa com o cachorro, que parecia decepcionado pela bagunça no gramado já ter acabado.
— O que estava fazendo por esses lado da vila?
Minha amiga sorriu, cochichando — Estava em um encontro escondido com Mason.
Tive de sorrir junto — Fico feliz. Você vai ao celeiro?
Ela concordou — Sim. Estava indo lanchar e depois seguir para lá.
— Você me espera tomar um banho para irmos juntas? Mamãe tinha feito um bolo mais cedo, podemos comer antes também.
Mila parecia animada — Claro, .
— Legal. Quer conhecer o meu quarto?
— Com certeza. Se não existir algo rosa lá, nunca vou te perdoar.
Após algumas fatias de bolo, muitos sucos e biscoitos (minha mãe tinha se animado com Mila em nossa casa), minha amiga e eu saímos em direção ao celeiro.
A bicicleta de Mila tinha aquele suporte para sentar atrás, posto em cima da roda traseira. Eu sabia que não era a pessoa mais leve do mundo, mas ela parecia feliz ao pedalar, mesmo fazendo um pouco mais de força que o normal.
Em poucos minutos já estávamos abrindo a porta do celeiro.
Ella, que estava deitada em um bolo de feno com , se levantou correndo ao me ver. Seus braços envolveram meu corpo.
— Obrigada, !
A abracei de volta — Conta comigo.
Ninguém no celeiro parecia entender. Eu sorria para a menina, que parecia muito feliz. Já tinha tirado o penteado dos meus cabelos antes de ir ao celeiro, mas usaria no próximo dia na escola com toda certeza.
, agora sentado no feno ridículo, parecia curioso. Seu olhar em mim fez meu coração dar um salto. Sua expressão era a mesma de sempre, mas eu sentia que ele não agiria normal comigo hoje.
Ele tinha os seus motivos, não é?
— O que você fez dessa vez?
Estranhei aquela pergunta sair sem nenhum cinismo ou sarcasmo. Dei de ombros, sorrindo de lado (o que pareceu deixar ele ainda mais curioso).
— Decidi utilizar a minha bizarra popularidade para o bem.
Mais ao fundo, Mason sacudiu seu copo — Um brinde a isso.
Ajudei Mila a organizar os salgadinhos que tinha pegado furtivamente da despensa de casa. No canto direito Ella e continuavam deitados no bolo de feno, a menina com a cabeça em um dos ombros de , assistindo a alguma coisa gravada no celular. Ella tinha uma nova cor de mechas e aquilo me deu uma ideia.
Caminhei novamente a eles, limpando as pontas dos dedos sujas de farelo em minha calça.
— Ella, tem um minuto?
Ela desviou o olhar do celular, mas ainda estava aninhada no ombro de .
— Claro, .
Também tinha conseguido a atenção de , que me olhava sem expressão.
Ia ser uma longa noite.
— Onde eu posso pintar o meu cabelo aqui na vila? — e revirei os olhos dramaticamente — Têm sido dias fáceis para os meus inimigos.
Parecia fútil, mas era difícil, ainda mais com toda aquela perfeição dentro da escola. Ou todo mundo tinha o cabelo perfeitamente natural ou eu que estava muito fora daquela curva.
Ella sentou rapidamente — Eu posso pintar o seu!
Tentei ao máximo não parecer chocada e aquilo, incrivelmente, tirou um sorrisinho escroto dos lábios de .
— Você tem certeza? — eu não queria ser mal educada, mas ainda achava a menina muito doidinha.
— Sim. Eu pinto o meu. — e então apontou para o outro lado do celeiro — E também o da Bronwen.
Segui seu dedo, reparando na menina ruiva. Os seus cabelos estavam mais vermelhos que da última vez em que tinha a visto.
Aquilo me deu a segurança que eu precisava.
— Combinado. Do que precisa?
Ella bateu palmas — Coisas normais. — a menina ficou pensativa e logo cutucou as costelas de , que assistia a cena — Consigo com você?
Sua expressão era serena até demais — Se não tiver o que você precisa na loja, pego em outra vila.
Franzi o cenho no mesmo momento. Ella ficou ainda mais animada, dando um beijo na bochecha do garoto do mercado.
— Obrigada, ! Você é o melhor.
Ella levantou do feno, já enumerando nos dedos tudo o que poderia fazer com os meus cabelos. Eu só queria um retoque de raíz, mas sabia que ia ter algo diferente se deixasse a menina extravasar sua criatividade.
— , vai ser o máximo!
Pisquei para ela — Talvez uma colorida também?
Ella deu um gritinho de animação — Maravilhoso!
— Vim o mais rápido que pude! Podem começar. — a voz de Hayden preencheu o lugar. Ele tinha sido o último a chegar. Seus cabelos estavam colados em sua testa, entregando sua corrida até o celeiro.
levantou do bloco de feno, dando um beijo na cabeça de Ella. Já eu ganhei uma levantada de sobrancelhas, como se ele não estivesse com paciência no momento para estar do meu lado.
Ok. Estava bem claro que a gente precisava conversar o quanto antes. Realmente seria uma longa, longa noite.
Nos organizamos em um círculo para ouvir a emergência dos mais novos, já que essa seria uma ‘noite da reclamação’ um pouco diferente a pedido de Riley e Noah.
Mason olhava cauteloso para o irmão — Já está todo mundo aqui. Qual é o grande problema, Riley?
— O baile da temporada dos novatos. — o menino escondeu o rosto com as mãos, assim como Noah.
Suspirei alto — Quantos bailes horríveis vamos ter esse ano?
Mila me cutucou — Veteranos não vão nesse. Não é descolado.
O suspiro agora era de alívio total. Eu era novata, mas estava no último ano, o que, querendo ou não, me fazia uma veterana também.
Mason franziu o cenho — O que vocês fizeram?
O alerta de Mason me fez lembrar que Noah, aparentemente, estava revidando os valentões da escola. Seria esse o motivo da noite emergencial? Eu já estava começando a traçar um plano para ajudar os mais novos com o poder do meu esquisito “Time ”, mas ainda precisava pensar nos detalhes para não ganhar mais algumas semanas de detenção.
Noah quase gritou — Nada! E é essa a questão.
Todos tinham um ponto de interrogação no rosto. Olhei para Mila, que segurava seu riso. Eles eram sempre desesperados com as coisas?
— Não entendi, pessoal. — minha voz saiu confusa.
Ella sorria com o nervosismo do amigo — Relaxa, Riley. Conta logo que estou ansiosa para saber o que você precisa do baile.
Riley passou as mãos em seu suéter que tinha alguma referência nerd que eu não fazia questão de entender.
— Scarlett me convidou para ir com ela.
Enquanto os meninos batiam palmas e gritavam em comemoração, eu vi o sorriso de Ella sumir por completo. Por todo carinho que tinha com ela, eu estava começando a achar que a menina sentia algo pelo mais velho, mas agora… Bom, talvez não fosse bem isso.
— Você aceitou? — a menina parecia medir suas palavras.
Noah olhou incrédulo para a garota — Mas é claro que ele aceitou! É a Scarlett Patel!
Mason já estava impaciente — Está bem, mas qual é o grande problema com isso?
Noah olhou para o garoto, como se tudo aquilo fosse muito óbvio.
— Meu querido Mason, graças à minha irmã eu já assisti muitos filmes de garotas. Nós sabemos o que pode acontecer. — Riley sacudia a cabeça em aprovação — Não é normal uma garota popular chamar alguém como nós — Noah apontou para ele mesmo e depois ao amigo — para o baile. — Riley continuava concordando de prontidão — A não ser que seja com intenções muito malvadas.
— E não malvadas como a gente gostaria que fosse! — Riley ainda parecia elétrico.
O melhor amigo concordou, esperando alguma reação do resto do grupo. Era sério aquilo? Com o silêncio em conjunto, Noah ajeitou seu boné e continuou seu discurso.
— A questão é: se ele não for, pode perder o melhor dia de sua vida. Mas se for, corre o risco de ser o pior dia de todos.
Bronwen revirou os olhos — Vocês são muito dramáticos.
Noah a olhou com descrença — Você só está com esse humor porque é um baile que as garotas convidam.
— Se eu quisesse ir, eu iria. — a garota replicou, fazendo pouco caso — Diferente de você, que não tem par.
— Saiba você que está chovendo mulher para me levar ao baile!
Mason e reviraram os olhos ao mesmo momento.
— Querem parar? — o loiro cortou os dois — Do que exatamente vocês estão com medo?
Riley olhou para o irmão — Não quero ser zoado na frente de todo mundo, Mason.
— Mas ela não te convidou?
Ele consertou os grandes óculos no rosto — Você nunca viu aqueles filmes idiotas em que as garotas populares pisam nos nerds e esquisitos?
Aquilo podia ser o interior, eu podia estar dentro de um celeiro velho, mas a história era a mesma que se passa em uma metrópole. Existiam grupinhos e isso surtava todo mundo, como em qualquer lugar.
Noah me olhou, parecendo ter uma grande ideia.
— ! — arregalei os olhos no mesmo momento. Estava demorando para sobrar algo para mim — Você é a mais popular do nosso grupo, o que a gente faz?
Dei de ombros, rindo da reação desesperada dos meus novos amigos.
— Me desculpem, meninos. Nunca fui popular.
Noah bufou alto — Conta outra! Você é linda e super gostosa e… — foi interrompido por um tapa em sua cabeça. De .
— Cala a boca. — e então olhou para Riley — Mantém o convite. Algum de nós dá um jeito de falar com Scarlett, certo? — todos concordamos com gestos, deixando Riley mais tranquilo.
Noah deu um passo para longe de .
— Eu acho que a deveria falar com ela e...
Nem o deixei terminar — Se você me chamar de gostosa de novo, vou te socar.
Com o fim do assunto “Scarlett”, a noite de encontro no celeiro seguiu um ritmo normal, sem emoções. Mason e Mila se beijavam em um canto cheio de bolos de feno. Clássico de cinema. Bronwen fazia competições de quem conseguia formar mais arcos de fumaça (em um narguilé velho) com Hayden e Noah. O último não conseguia ao menos tragar direito, por não parar de rir um segundo sequer. Eu estava sentada e escorada nas costas de Riley, enquanto ele mexia em alguma coisa próximo a Ella. Já havia tomado a minha cota de álcool do dia, tanto que os dois falavam sobre um plano de ir nadar no lago do condado vizinho no final de semana e eu pensava seriamente na possibilidade de ir junto.
se mantinha próximo ao som, com seu copo de whisky barato quase vazio. Seus olhares tortos me incomodavam. Eu não sabia definir o significado deles e muito menos conseguia ter coragem para levantar e perguntar com todos os nossos amigos ainda presentes. Não estava o evitando, já que nem conseguia cogitar essa ideia. Só precisava estar sozinha com ele para falarmos.
Depois de uma despedida em conjunto e com Noah me fazendo prometer que eu iria falar com Scarlett na escola, todos já haviam ido embora. Por sempre voltar com , tive de negar a carona de bicicleta de Hayden, só para não deixar um clima pior. Eu ainda não sabia como entrar no assunto, mas não poderia deixar passar daquela noite.
Andei até o garoto, que ainda estava sentado no seu bolo de feno cativo.
— ? — ele nem sorriu ao ouvir seu apelido. Resolvi relevar e continuar — Você me ignorou a noite toda. Podemos falar agora?
olhou em volta do celeiro vazio, logo dando mais um gole em seu copo antes de se levantar.
— Eu não gosto de jogos, . — franzi o cenho no mesmo momento, esperando ele continuar — Se você prefere Kyle, tudo bem. Só preciso saber.
Certo, ia ser uma conversa bem direta.
Era super natural que isso fosse questionado, já que ele sabia dos boatos escrotos e também tinha visto o beijo que Kyle e eu trocamos na entrada da escola algumas semanas atrás.
era direto em tudo o que queria, mas ainda me surpreendia com a sua naturalidade para falar sobre Kyle. Ele não parecia chateado ou muito menos com ciúmes, e eu não sabia o que sentia sobre isso.
Então a única coisa que eu fiz, vergonhosamente, foi gaguejar coisas sem sentido.
A expressão serena de nem se alterou.
— Achei que você tinha gostado do nosso beijo.
A palavra “nosso” me arrepiou por completo.
Eu não queria dizer o que senti sobre o nosso beijo, e também não queria ficar me explicando sobre Kyle. Eu o achava legal e o tinha considerado um belo escape de Bourton-on-the-Water, mas isso tinha sido antes de ser convidada para participar do grupo secreto do celeiro. Antes de estar tão próxima de .
— Eu gostei. Te beijei de volta algumas vezes, não lembra? — minha voz saiu mais incerta do que eu tinha imaginado.
Ele pôs o copo no bolo de feno. Era uma boa hora para tentar consertar aquele acontecimento de filme de uma vez por todas.
— Kyle me pegou de surpresa, . Você nos viu, eu não reagi bem.
Ele sacudiu a cabeça, com o semblante ainda tranquilo. A voz também serena e sem grandes alterações.
— Eu não estou te cobrando nada. — e deu de ombros — Só não gosto de ser feito de otário.
Abri a boca algumas vezes, mas tinha ficado sem palavras novamente. Ele devia mesmo achar que eu estava tentando ficar com os dois! A verdade era que eu não tinha ideia do que estava acontecendo, mas entendia que também me sentiria esquisita se me beijasse quase que escondido nos lugares e então ficasse com outra menina pela escola.
Eu era uma adolescente horrível.
Com a minha falta de palavras, ele continuou.
— Eu entendo que você queira ficar com ele, faz mais o seu estilo da cidade grande.
Sua voz novamente não parecia magoada ou grossa, mas eu podia sentir as pontadas de ressentimento. Dentro de mim.
Eu realmente era uma pessoa horrível, mas naquela situação eu não tinha culpa.
Ou tinha?
— Eu não tenho algo com ele e nem quero ter.
O menino riu pelo nariz — Não estou com ciúmes, .
— Eu sei disso. Só estou sendo direta e te dizendo que não rola nada entre Kyle e eu. Não gosto dele e nem quero continuar o que a gente, sem querer, começou. — respirei fundo, deixando meus ombros caírem — Podemos voltar ao normal?
Aquela tensão durou mais alguns segundos enquanto nos olhávamos intensamente. Até que revirou os olhos claros e fez uma careta, abaixando uma de suas sobrancelhas. Eu entendi como “estou dando o braço a torcer” e me aproximei dele, abraçando forte seu corpo.
— Me desculpe pela confusão. — minha voz saiu abafada por sua jaqueta jeans.
Eu nunca tinha sido tão direta e sincera durante a minha estadia na vila. Na verdade, nunca fui tão direta assim em toda a minha vida. Eram coisas novas e eu já sentia uma paz dentro de mim.
Aquele clichê de novela não ia acabar com a nossa amizade.
Ainda em seus braços, senti o seu cheiro de sempre e o apertei mais. Quando nos soltamos, tinha um sorriso cínico nos lábios.
Ele ajeitou os cabelos com as mãos — Talvez eu tenha ficado com ciúmes. Mas só porque ele é um retardado.
Tive de rir — Sério? — e deu de ombros, apertando minha cintura — Qual é o seu problema com Kyle?
Ele pareceu um pouco incrédulo, como se aquela pergunta fosse completamente desnecessária. Kyle parecia ter algum mistério e, se já houve um real conflito com ou alguém do celeiro, eu gostaria de saber.
— Mason já teve uns atritos com ele. Eu acho que ele esconde algo, não me parece normal. Se eu fosse você, desconfiaria dele sobre os bilhetes que recebeu.
Ainda achava esquisita a implicância que tinha com o garoto da jaqueta de couro, mas depois daquele encontro estranho na escola… A frase de mais cedo “As coisas vão começar a ficar mais difíceis para você, ” tinha me deixado com um buraco no estômago.
— Achou que eu ia entrar para a gangue das jaquetas de couro? — revirou os olhos com as minhas palavras — Eu faço parte dos renegados de Bourton-on-the-Water! Vocês não vão se livrar de mim.
Nossos olhos se encontraram novamente e, bem, simplesmente assim, eu sabia que tudo estava de volta ao nosso normal.
“Nosso”.
se afastou um pouco, encostando no bloco de feno que antes estava sentado.
— Isso é esquisito, . — ele uniu as sobrancelhas — Somos amigos, nos beijamos poucas vezes e você…
Meu coração batia forte — Eu o quê?
Ele suspirou — Você me tira do sério, cidade grande. — e riu ao fazer o comentário, debochado — Satisfeita?
Eu não sabia dizer se estava satisfeita. Mas se eu também conseguia fazer ele sentir algo esquisito, estranho e incrivelmente interessante, por mim, tudo bem.
— E isso é bom ou ruim?
Ele parecia me analisar — Tem dois lados. Você me irrita e me faz querer te agarrar. Às vezes isso acontece ao mesmo tempo.
Um sorriso preencheu meus lábios — Vou encarar isso como “bom”.
Ele deu alguns passos até mim — Você é doida, .
Eu não gostava de ser chamada de doida ou maluca, mas falava sempre de uma forma engraçada e eu simplesmente não conseguia ver maldade ali. Se aquilo era uma tradução torta de “você não combina com Cotswolds”, por mim, tudo bem também.
— Você que está me fazendo ficar assim. — mordi os lábios com a careta que ele fez.
— Ok. — seu semblante agora era sério. demorou alguns segundos para continuar — Você me deixa louco. — e disse simplesmente.
Tive de sorrir — Você me deixa confiante.
Sorri ainda mais ao perceber segurando minha nuca.
Ele deu de ombros — Sua confiança me deixa louco também.
E nossos lábios finalmente se encontraram naquela noite.
Não sabia de onde vinha aquele sentimento, mas tudo em me fazia sentir bem, bonita e decidida. O seu sorriso sincero, seu interesse em mim e até mesmo o jeito diretão, sem joguinhos. Tinha tempos que não me relacionava com alguém sem precisar pisar em ovos e, em pouco tempo, via que era esse tipo raro de gente que apenas “é”. Sem preocupações desnecessárias, sem pegadinhas. Ele estava ali comigo, me beijando ou jogando conversa fora, porque simplesmente queria.
E, nossa, era exatamente o que eu precisava.
Em pouco tempo já era mais do que natural estar ao lado dele. Eu conseguia ser a minha melhor versão. Não precisava estar sempre arrumada, não precisava me importar em ser sempre engraçada ou sexy, para chamar sua atenção. Me lembrava claramente do dia do banho no rio, em nossa primeira festa no celeiro, que eu estava completamente destruída, descabelada e usando a sua camisa velha para não morrer de frio… E, mesmo assim, ele conseguia abrir a boca e dizer com sinceridade que eu era linda.
Nos afastamos e aquele sorriso torto ainda preenchia os seus lábios.
— Minha confiança, é?
Ele concordava com a cabeça, seus olhos “azuis demais” ainda grudados nos meus.
— Acho que um pouco da sua loucura, também.
Ri pelo nariz — Culpe Cotswolds.
Um sorriso cheio de malícia apareceu em seu rosto. Se eu culpava Cotswolds, automaticamente poderia culpar também. Estava realmente doida e livre. Ele tinha muita culpa sim.
se encostou novamente no feno, respirando fundo. Não me cansava de analisar seu semblante, seus cabelos incrivelmente rebeldes e aquele sorriso lindo. Suas palavras preencheram minha mente.
— Quer ir embora? — neguei sem ao menos pensar antes. Ele continuou — Posso te agarrar mais, então?
Meu riso se tornou mais fácil e, quando fez menção de se desencostar para me beijar novamente, fiz um sinal para que parasse. Seus olhos claros eram uma mistura de confusão e malícia, e eu estava gostando bastante.
O analisei minuciosamente. Seus olhos se mantinham nos meus, talvez observando o que eu estava tentando observar nele. A cada dia que se passava eu sentia uma atração bizarra ainda maior por aquele garoto e isso estava ficando muito difícil de esconder.
— Está me conferindo? — sua voz saiu engraçada.
Tive de concordar — Você também me tira do sério.
Vi o menino respirar fundo — Mais uma coisa que temos em comum.
Aquele clima era tão bom que eu nem conseguia pensar no caos de mais cedo e de como eu estava ansiosa para resolver tudo com ele. Ali, naquele celeiro sujo, estava bem claro uma coisa: sempre estaríamos bem se fossemos nós mesmos.
Sério, era 100% o que eu precisava.
O olhei de lado, trocando o peso entre minhas pernas.
— É mesmo? Vamos falar sobre isso. Sem julgamentos no celeiro, não é?
Ele concordava com a cabeça — Você me tira do sério desde nossas briguinhas lá no mercado.
Ri ainda mais — Me arrependo parcialmente daquilo.
Ele tinha um sorriso irônico nos lábios — Mais uma coisa que temos em comum.
Respirei fundo — Tenta mais uma.
nem hesitou — Desde o dia do banho no rio eu não consigo parar de pensar em como o seu corpo vai encaixar no meu.
Eu esperava que tudo entre nós fosse bem direto, mas ouvir aquilo em sua voz tranquila, com aquele sotaque pesado, fez um arrepio muito doido percorrer meu corpo inteiro. As lembranças do sonho misturadas às suas palavras super diretas faziam eu me sentir quase tonta.
Demorei um pouco mais do que gostaria para responder aquilo. O sorrisinho cínico de crescia a cada segundo que eu continuava calada.
— Mais uma coisa… — minha voz saiu baixa.
Ele riu, sacudindo a cabeça — Que sorte a minha.
Concordei — Me fala mais sobre o que está pensando… Ou já pensou.
Eu precisava de mais um empurrãozinho para fazer a minha maluquice do dia.
comprimiu os olhos, talvez medindo suas palavras.
— Estou pensando… No seu jeito doido. — dei alguns passos para trás, mas ainda o encorajava a falar — Nosso banho no rio. — nossos olhos se mantinham colados e aquilo foi o necessário para que eu simplesmente tirasse a blusa. Ele pareceu hesitar, mas fiz um gesto para que continuasse seus pensamentos — Seu beijo. — ri sozinha ao desabotoar a calça e retirar. Depois do fatídico dia do banho no rio Windrush eu sempre ia para o celeiro com uma lingerie decente. Ele comprimiu os olhos ainda mais e respirou fundo antes de continuar — E, obviamente, em tudo isso aí...
Meu sorriso mal cabia em meus lábios. Ele passava tanta verdade em seus olhares que eu me sentia a garota mais poderosa e gostosa do mundo todo.
Como que uma coisa não tangível podia ser tão sexy? A franqueza que via nos olhos claros dele me deixava sem ar. Era sexy não ter joguinhos, se arriscar e simplesmente fazer o que queríamos.
Fazer um pouco do que a minha mente já tinha iniciado em um sonho muito doido naquela madrugada…
Meu corpo todo se arrepiou. Era tão gostoso ter intimidade com que eu nem conseguia pensar duas vezes para fazer alguma coisa. Não culpava o álcool e nem nada mais (como a pureza excessiva no ar de Cotswolds).
Minha voz saiu divertida — Sua vez!
Suas sobrancelhas se uniram, como se o fizessem acordar. Seus olhos azuis percorreram os meus e, segundos depois, ele estava sem a camisa que usava.
Foi impossível não suspirar.
Queria tanto parar com aquela cena de filme e beijá-lo… Ele era lindo demais. Seus semi cachinhos castanhos, seus olhos azuis como o céu limpo, seu sorriso quase sempre arrogante, seu jeitinho tão simples… Eu queria ver mais, conhecer mais. Queria poder dizer e pensar que tinha de um jeito que os outros definitivamente não tinham. Era uma particularidade que só eu teria com ele dentro daquele celeiro ou até mesmo dentro da vila inteira. A nossa amizade já era incrível em pouco tempo, apimentar aquilo parecia cada vez mais irresistível.
— Sua vez. — seu sotaque era ainda mais carregado na voz rouca.
Aquilo tudo era melhor do que o dia do banho no rio porque ali eu podia olhar para ele sem pudor algum. Não precisava me importar se outras pessoas iriam reparar que eu estava sim o conferindo, por completo. Ali já estava tudo certo. O nosso beijo era incrível, as coisas só poderiam melhorar.
Dei alguns passos a sua direção. Levantei uma sobrancelha, surpresa, ao reparar em uma mini tatuagem em sua costela direita.
Quando minha barriga se encostou na dele, pude ouvir seu suspiro. Estava na desvantagem de roupas, mas sequer me importava. Queria o corpo do menino colado ao meu o quanto antes.
— Posso fazer o que eu quiser?
A visão de só de calça jeans era maravilhosa. Não queria que aquilo acabasse ainda… Os olhos dele pareciam mais escuros, as pupilas super dilatadas. Com o canto dos meus olhos vi apertar com as mãos o bloco de feno em que ainda se mantinha apoiado.
Tive de sorrir ainda mais com aquela reação.
— Quem manda é você, cidade grande.
Bom, para mim, era o suficiente.
— Ótimo. Porque sonhei com algumas ideias.
Foi a última coisa que consegui falar antes de suas mãos me puxarem pela nuca em um dos beijos mais intensos que já tinha dado na vida.
Minha cabeça ainda se mantinha em um dos ombros de , enquanto tentava fazer a respiração do meu corpo voltar ao normal. Eu acompanhava o ritmo louco do peito do menino, tentando respirar fundo.
Sua jaqueta era a única coisa que nos aquecia, mesmo mal cobrindo um terço do corpo de cada um. Já tinha perdido a noção do tempo em que estávamos assim, deitados em um bloco de feno olhando para o teto do velho celeiro.
Não ouvia nada além do vai e vem de seus pulmões.
— Isso foi… — ele engoliu em seco, quebrando o quase silêncio entre nós e terminando sua frase com dificuldade — Nossa...
Tive de concordar com poucas palavras — Mais uma coisa, não é?
Ouvi sua risada fraca, em concordância. Aquilo tudo ainda era muito doido. Já tinha vivido alguns relacionamentos interessantes, mas com parecia tudo muito diferente e… Certo. Não sabia explicar, porque a única coisa que passava por minha cabeça no momento era rir com o fato de ter feito tudo aquilo no meio de um celeiro velho, sujo, salpicado de feno e praticamente abandonado.
Aquela risada, antes interna, tomou conta dos meus lábios. Quando percebi, já gargalhava olhando em seus olhos. os comprimiu, claramente sem entender.
— O que foi? — ele sorria junto, mas ainda estava confuso.
Respirei para não engasgar — Ai, meu Deus. Nós transamos no celeiro!
finalmente pescou minha piada, rindo junto comigo. Era uma risada incrédula, minha e dele, até que um estalo ocorreu em minha mente.
— Você nunca tinha feito isso, não é? — minha voz saiu mais animada do que eu esperava.
Mais uma vez o garoto do mercado tinha um ponto de interrogação em seu rosto.
— Transar?
Revirei os olhos — Não, ridículo. No celeiro.
Ele riu mais — Claro que não.
Virei meu corpo ainda mais em sua direção — Consegui! — seu olhar esquisito estava de volta — Finalmente consegui que você fizesse algo pela primeira vez também!
Sua gargalhada preencheu o celeiro velho — Você é realmente doida.
Colei seu peito no meu. Nossos rostos próximos.
— Posso ser. Não se acostumou com isso ainda?
Suas mãos subiram para as minhas bochechas. Não tinha ideia de onde aquela loucura tinha saído e de onde ela iria nos levar, mas ia me deixar sentir o que quer que fosse.
Sua voz soou carinhosa — Preciso de mais um tempo.
— Que bom, porque temos o ano todo.
Era interessante como a sintonia entre nós, mesmo recente, parecia de longa duração. Ficamos mais alguns longos minutos daquele jeito, conversando e rindo, até a hora de pegar a estrada de terra para casa. fazia piada com o penteado igual de Ella que eu tinha feito mais cedo na escola, e eu não parava de rir ao relembrar que era muito esquisito ele ir para o celeiro levando camisinhas na carteira. Incrivelmente tudo parecia exatamente igual, de volta ao nosso “normal”, como tinha imposto mais cedo. E eu simplesmente adorava demais aquilo.
Na esquina da minha casa, parecendo ler os meus pensamentos recentes, segurou o meu queixo, de forma cafona e delicada.
— Gosto que nada pareça esquisito, cidade grande.
Tive de concordar de prontidão. Não era esquisito. Pelo menos não naquele momento.
— Gosto disso também.
Ele riu, encostando os seus lábios nos meus. Seu sotaque extremamente caipira invadiu meus ouvidos.
— Você é uma surpresa boa, .
De repente um mix doido de sentimentos tomou meu corpo. Eu poderia gargalhar até minha barriga doer ou simplesmente derramar lágrimas sem saber o porquê. Conseguiria gritar, sofrer ou até mesmo criar uma grande briga entre nós. Era confuso e gostoso, tudo ao mesmo tempo, como se meu corpo tivesse recebido uma carga alta de energia.
Me despedi de e o assisti sumir com sua bicicleta verde na escuridão até depois da esquina de minha casa. Ia guardar aquela noite para sempre, porque só de relembrar todos os acontecimentos, meu corpo voltava a entrar naquela pane de sentimentos conjuntos, tudo rolando esquisitamente ao mesmo tempo.
Tive de sorrir sozinha ao cruzar nosso gramado de casa, já imaginando o que eu poderia sonhar aquela noite — e se meus sonhos conseguiriam superar a realidade que eu agora conhecia. Tinha o grande pressentimento de que a resposta desse questionamento seria não.
Me aninhei nos lençóis da cama me perguntando se era assim que alguém genuinamente feliz se sentia. Porque estava começando a achar que sim.
Capítulo 10 - Casualidades
“Existem momentos únicos na nossa vida que nos fazem felizes pela simples casualidade de terem cruzado o nosso caminho.” (Fábio Jesuíno)
Nem um sinal de pela The Cotswolds School, como quase sempre. Eu sabia que não era fácil achar um aluno no meio de quase mais de mil pessoas, mas às vezes tentava me esforçar. Naquele momento eu não queria ser vista por ninguém, muito menos por ele. Ainda não me sentia preparada para esse momento… Constrangedor.
Na noite passada a adrenalina estava no meu corpo, pulsando loucamente, mas hoje, na luz do dia, depois de tomar um banho, tirar os vários nós do cabelo e beber um café preto bem forte… Bem, o que parecia normal ontem me deixava louca agora.
Os flashes da noite passada ainda me davam longos arrepios.
— É mesmo? Vamos falar sobre isso. Sem julgamentos no celeiro, não é?
Ele concordava com a cabeça — Você me tira do sério desde nossas briguinhas lá no mercado.
Ri ainda mais — Me arrependo parcialmente daquilo.
Ele tinha um sorriso irônico nos lábios — Mais uma coisa que temos em comum.
Respirei fundo — Tenta mais uma.
nem hesitou — Desde o dia do banho no rio eu não consigo parar de pensar em como o seu corpo vai encaixar no meu.
Corri para a sala da próxima aula, sem nem me preocupar com os novos boatos do dia. Eu provavelmente era um dos três tópicos principais, ficaria sabendo depois o que o povo do interior tinha inventado dessa vez.
Mila se sentou ao meu lado, como sempre fazia nas aulas que tínhamos juntas. Aquele turbilhão de pensamentos já estava me deixando com náuseas. Percebi seu olhar fixo em mim, então não pude deixar de verificar se tinha algo estranho em meu corpo.
Paranoia, vai embora, por favor.
— Que sorriso bobo é esse?
— Hum? — não pude conter a confusão. Eu estava sorrindo sem perceber?
Que droga!
Ela franziu o cenho, se divertindo com minhas reações.
— Eu perguntei que sorriso bobo é esse na sua cara!
— Ah, — fechei minha expressão. Eu corria o risco de ainda estar sorrindo involuntariamente — não é nada. — seu olhar era pura descrença — Ganhei um presente, nada demais.
Mila sorriu mais ainda, pegando minha isca. E ainda diziam que eu não servia para mentiras.
— Hum! — e logo se debruçou sobre a sua mesa, se aproximando mais ainda de mim — Presente Nova Iorquino?
Fiz o máximo para não parecer surpresa. E o máximo também para não ser burra a ponto de responder aquilo.
Tinha contado mais alguns detalhes da minha antiga relação com o meu ex-namorado de Nova Iorque enquanto minha amiga me esperava ficar pronta para o celeiro, na tarde anterior. Não sabia de onde tinha vindo aquele interesse repentino em Logan, até porque não guardava fotos aparentes e nem nada. Mas, como estava realmente me esforçando para ser uma boa amiga para Mila (ela adorava esses papos de meninas), respondi tudinho. E, bem, aparentemente ela tinha fantasiado com aquilo a noite inteira.
Mais flashes da noite anterior me fizeram suspirar alto.
O meu sorrisinho de lado pareceu suficiente para Mila, que sentou direito em sua mesa com uma expressão de vitória. As pessoas ainda achavam difícil saber algo sobre mim? Pois lá estava minha amiga, contente por saber algo que nem sequer era verdade.
Meu celular vibrou e percebi que o de Mila também. Só poderia ser uma coisa: nosso grupo do celeiro secreto.
* Noah Singh: @, não esquece do plano!
Mila me olhou de lado novamente, mas agora o sorrisinho convencido não estava em seus lábios. Ela parecia um pouco confusa e seus olhos me perguntavam algo do tipo “o que você fez dessa vez?”. Dei de ombros, respondendo Noah.
* : Já descobriram a hora que ela vai estar no ginásio?
Pela manhã, bem cedo (muito mesmo), Noah e Riley tinham enviado em nosso grupo algumas fotos de Scarlett, a menina que tinha convidado o irmão mais novo de Mason para o baile dos novatos. Tinha fotos demais, como um stalker provavelmente teria, mas deixei de lado. Pelo menos eu saberia com certeza quem era a tal garota.
O plano que eu estava sendo obrigada a seguir era bem simples: eu iria “esbarrar” com Scarlett no ginásio, bem na hora da sua aula de Educação Física e então perguntaria, casualmente, sobre o baile e Riley. Parecia um plano bem bobo, mas a julgar que aquele lugar tinha nomeado um movimento feminino de “Time ”, eu me sentia poderosa para ajudar os meninos com aquilo.
* Riley Hunt: Terceira aula, .
* Noah Singh: Aproveita e descobre se ela é Time ? E se tem uma amiga que queira ME convidar, estou disponível!!
* Noah Singh: Mas por pouco tempo, muito pouco tempo…
Revirei os olhos, Mila sorria ao meu lado.
* Bronwen Wilkinson-Johnson: @Noah Um total de ZERO pessoas surpresas com essa informação.
Assim que o sinal tocou corri para o ginásio, indo direto para o vestiário.
Parei em frente a uma das pias com espelhos de meio corpo, respirando fundo. Ao ouvir um burburinho, fingi guardar algumas coisas em minha mochila. As meninas mais novas me olhavam desconfiadas, como se se perguntassem o que uma veterana do quarto ano estava fazendo ali.
No meio delas consegui achar Scarlett, que felizmente vinha na direção das pias. Enquanto a menina lavava as mãos, consertei o meu laço laranja na cabeça. Ainda estava tentando fazer a moda de Ella pegar.
A menina me olhou de lado — Ella realmente te influenciou.
Virei a sua direção, sorrindo — Não resisto a uma tendência nova.
Scarlett sorriu — Eu sempre gostei também, .
Bom, ponto positivo a ser relatado aos meninos.
Fiz um gesto com a cabeça, o que fez o meu laço ficar levemente caído.
— Você é… — fingi estar envergonhada — Desculpe, qual é o seu nome?
— Scarlett. — e sorriu ainda mais — Qual a novidade por aqui?
Os meninos tinham razão pelo desespero. Scarlett era a típica menina rica e popular da escola, que poderia muito bem passar o seu tempo livre humilhando outras pessoas. Eu nunca gostei muito de filmes americanos adolescentes, mas se encaixava completamente.
Dei de ombros — Acho que nada além desse baile que estão dizendo por aí.
Era a primeira semana na The Cotswolds School em que eu não era o assunto principal. Pelo menos não por enquanto, já que tinha me recusado a ouvir as fofocas do dia.
Scarlett juntou suas mãos, soltando um pequeno grito animado. Me lembrava Ella animada com alguma coisa, como pintar o meu cabelo. Eu ainda tentava parecer animada quando a menina me lembrava disso e do que eu tinha concordado, mas ainda estava apavorada. O que me deu na noite passada?
— Não é o máximo? Eu amo essa época de festas na escola!
Tive de reprimir uma careta por toda aquela animação exagerada.
— Então você vai?
— Mas é claro! É a única festa no ano em que nós garotas podemos escolher os nossos pares. — e pegou em minhas mãos como se fossemos grandes amigas — Você já tem par? Você vai, não é?
— Os alunos do último ano ficam de fora nessa. — sorri aliviada. Isso eu nem precisei fingir. Estava realmente aliviada por não precisar ir a nenhum baile caipira em que meninas escolhem os meninos.
Scarlett parecia triste — Que pena, acho que você iria arrasar. — e deu de ombros — Suas apoiadoras não param de crescer, acho que você seria rainha do baile.
Meu estômago se embrulhou no mesmo momento.
O pessoal do celeiro ainda tentava me ajudar a identificar quem estava por trás daquele grupo sinistro de Facebook, mas ainda não tínhamos tido sucesso.
Balancei a cabeça, ignorando todos aqueles sentimentos esquisitos que o tal “Time ” ainda me causavam.
— E você, já convidou alguém?
Suas bochechas queimaram — Na verdade, sim.
Bom, tinha chegado exatamente na parte em que eu queria. Já achava Scarlett uma boa pessoa, mas precisava saber de tudo para repassar aos meninos.
— É mesmo? Quem é o sortudo?
Ela parecia ainda mais envergonhada — Minhas amigas me desafiaram, mas eu realmente gosto dele. Ele é tão bonitinho e diferente...
Franzi o cenho para aquela confissão — Então não é de brincadeira? Já que te desafiaram.
Sua expressão ficou confusa — Por que eu faria isso com alguém? Quer dizer, elas me desafiaram porque eu sou uma medrosa! — e se abanou, como eu imaginava que Mila faria nessa ocasião — Nunca brincaria com alguém assim.
Tive de sorrir com vontade — Espero que vocês se divirtam muito.
Ela riu, antes de sair do banheiro — Qualquer coisa eu conto com o Time , certo?
Meu café da manhã quase voltou por completo.
— Com certeza.
Voltando para o bloco principal para não perder as próximas horas de aula, encontrei Mila a caminho da nossa sala de Biologia II. A menina fez uma leve careta pelo meu penteado.
— Você não vai desistir dessa moda, não é? — e suspirou — Deu certo?
— Não mesmo. — sorri de lado, pegando o celular no bolso — Deu certo.
* : Scarlett é uma garota normal e legal. Bom baile, @Riley!
Não demorou muito para que a resposta viesse.
* Riley Hunt: Valeu, ! Te devo uma.
* Noah Singh: Você é a melhor… O que vai fazer daqui a dois sábados??
***
Meu período na detenção tinha finalmente acabado.
E isso significava que eu poderia voltar para as aulas extracurriculares que tinha escolhido no início do ano letivo. Parecia besteira ficar animada com isso, mas eu sentia falta de discutir sobre assuntos sérios no grupo de Línguas, queimar algumas coisas nos fornos avançados em Culinária Doméstica e fazer alguma bagunça com glitter e cartolinas ridiculamente grandes demais no grupo de Artes.
Com a proximidade do baile dos novatos, o pessoal que fazia as aulas extras de Artes tinha se candidatado para fazer banners, painéis e outras coisas cafonas, e bem, eu estava tão bem esses dias que resolvi entrar na comissão com os meus poderes de corte, costura e tintas.
E a melhor parte era que eu estava 100% livre das maluquices que Zara aprontava comigo. Eu tinha alguns bons planos para aproveitar essa onda ao meu favor na escola, mas iria ser cautelosa. Não ia sobreviver a mais algumas semanas em detenção com a Comissão Estudantil de Direitos Humanos.
Corri para a atividade de Culinária, que já tinha se iniciado há dez minutos.
Estava bem atrasada, mas aqui vão os meus motivos: tinha passado os exatos dez minutos em negação, dúvida e drama adolescente, pois sabia o que iria encontrar lá. Ainda não sabia se estava preparada para ver novamente. Parecia bobo e caipira da minha parte, mas eu não conseguia evitar.
Para completar o meu pânico, assim que entrei na sala (que já tinha começado, óbvio), estavam todos formando duplas. Fechei os olhos ao ouvir o cumprimento da professora. Ela nem mesmo precisou explicar o que iria acontecer ou com quem eu ficaria. Já tinha assistido muitos filmes, lido alguns livros bem fantasiosos sobre adolescentes em escolas… Eu sabia exatamente quem era a minha dupla.
Tudo ficou ainda mais certo quando , da segunda bancada a direita, simplesmente acenou para mim.
Andei a passos arrastados até ele. A náusea dos mil pensamentos voltando com tudo.
Sério, quantos clichês eu ainda viveria naquele lugar?
Contornei a bancada, derrotada, ficando ao seu lado. Suspirei de imediato ao perceber que ele ficava lindo até mesmo em um avental branco esquisito com o emblema da The Cotswold School.
— Hoje é aquele clichê que todo mundo precisa de uma dupla e a professora me colocou junto de você?
me olhou como se eu fosse completamente doida, mas tinha um sorriso divertido no rosto.
Deu de ombros ao dizer — Eu que coloquei seu nome com o meu.
Seu sotaque do interior parecia ainda mais forte naquele dia. Como isso era possível?
Joguei minha bolsa na bancada — E posso saber por quê?
Ele pegou minha mochila pela alça, com uma cara nada boa, e a colocou no chão.
— Nada de bolsas sujas na minha cozinha.
Nem precisei fingir que estava ofendida — Já vi que você quem vai dar as regras hoje.
Ele sorriu de lado — Exatamente.
Olhei ao redor e ninguém reparava em nossa conversa. Aquilo me deixou relaxar um pouco. Ainda não sabia da fofoca do dia e esperava que ela não fosse criada agora na parte da tarde.
A professora deu algumas ordens, animadamente. parecia prestar atenção em tudo, o que era bom, porque eu era muito, muito ruim naquilo. Só tinha entrado naquela aula para explodir alguns fornos e fazer bagunça na escola perfeitinha.
ainda vestia o uniforme cinza por baixo do avental branco e eu nunca tinha percebido como ele fica bem de gravata e suéter cafona. Suas mãos estavam nos bolsos, e seus olhos claros bem concentrados.
— Você não vai anotar nada? — sussurrei, olhando-o de lado.
— Shh. — ele nem fez questão de me olhar ao fazer o gesto de “fique quieta”.
— A escolha é sua, eu não vou lembrar nadinha.
deu um sorriso de lado, ainda olhando para frente, me fazendo suspirar novamente. Ia ser uma longa tarde.
Após mais algumas instruções muito animadas, a professora finalmente revelou qual seria a tarefa do dia: um festival italiano. Os adolescentes bons demais na cozinha (incluindo ) pareciam felizes. No meu ponto de vista seria uma bagunça completa, com molho por tudo que é canto.
Sorri ao imaginar os uniformes bem passados sendo arruinados por condimentos e macarrão. me olhou, finalmente, analisando minhas roupas. Revirei os olhos, vestindo o avental igual ao dele.
— Pronto. — e fiz uma pose exagerada — Quais são os próximos passos?
— Precisamos pensar no que fazer.
Foi impossível conter minha risada — Você sabe que eu sou péssima nisso, não é?
— Sei sim.
— E mesmo assim me escolheu?
— Eu tenho gostos estranhos, .
Tive de rir ainda mais, vendo ele começar a preparar a bancada. Duas meninas ao nosso lado esquerdo me olharam feio e eu tentei me conter. Odiaria que espalhassem alguma fofoca envolvendo . Ou algo sobre a garota da cidade grande ter colocado coisas ilegais nas massas alheias.
— Não é muito bom fazer dupla com a garota que teoricamente vende coisas ilícitas pela escola. — sussurrei ao seu lado.
Ele nem me olhou — Não estou nem aí.
Eu sabia que ele já tinha mandado o “não estou nem aí” várias vezes quando sempre o questionava sobre estar ao meu lado pela vila ou pela escola. Mas eu gostava muito de ouvir de novo, então não me cansava.
Enquanto arrumava algumas tigelas, panelas e um refratário grande vidro, me aproximei um pouco mais dele. Seu cabelo estava completamente bagunçado, mas parecia interessante como sempre. Fingi cheirar os ingredientes que ele separava um a um, e levei meu nariz até o mais próximo possível dele, sem fazer alarde.
parou o que estava fazendo para me olhar, rindo sem graça.
— O que é?
— Estou vendo se você cheira a coisas ilícitas. — voltei ao meu lugar na bancada — Está muito bonzinho.
Ele revirou os olhos, rindo ao colocar o restante das coisas na bancada.
— Eu sou bonzinho. — deu de ombros — Você que enche o meu saco.
Inspirei fundo, ajeitando o avental no corpo.
— Ok, chef. — consegui sua atenção no mesmo momento — O que vamos fazer para ganhar desses adolescentes ridiculamente bons na cozinha?
Seu olhar era desafiador — Você vai experimentar a melhor… — e parou de falar, apertando os olhos claros — Você já morou na Itália? — neguei com a cabeça — Já foi na Itália? — neguei novamente — Ótimo. Então você e Cotswolds vão experimentar a melhor lasanha do mundo!
Saindo da aula de Culinária, segui até a saída da escola, que já estava vazia. Nossa super lasanha não tinha ganhado o festival italiano, mas ficou em terceiro lugar. Como eu nem sabia o que era o molho que tinha feito, eu encarei como uma grande vitória pessoal.
Me distrai com sua presença e, quando vi, já estávamos andando pela vila conversando sobre coisas aleatórias. Eu me sentia tão bem. Era bom demais estar ao seu lado sem que as coisas ficassem esquisitas, mesmo depois da noite anterior que passamos juntos.
— Ok. — seu semblante agora era sério. demorou alguns segundos para continuar — Você me deixa louco. — e disse simplesmente.
Tive de sorrir — Você me deixa confiante.
Sorri ainda mais ao perceber segurando minha nuca.
Ele deu de ombros — Sua confiança me deixa louco também.
Meu corpo todo se arrepiou com a lembrança de suas palavras. Sacudi a cabeça, me esforçando para focar no que ele falava.
— ? — ele me olhava de lado, esperando uma resposta.
— Desculpe, o que foi?
Ele riu — Você ganhou algo de presente?
— Não entendi. — e eu não tinha entendido mesmo.
deu de ombros, dando alguns passos em direção ao mercado. Tínhamos parado na fachada.
— Algo de Nova Iorque. — sua voz saiu casual, enquanto entrava pela porta da frente que tinha acabado de abrir.
Minha habilidade para não parecer chocada ou surpresa estava sendo testada novamente em Cotswolds. Eu não sabia se me sentia mais nas nuvens ainda por ele se importar com aquilo ou se simplesmente me ofendia. Mas, como ele mesmo tentava impor, eu me esforçava para não me importar com o que os outros achavam.
Entrei a passos largos no mercado, fechando a porta atrás de mim.
— Não, não ganhei. — suas sobrancelhas se uniram em surpresa. Mila havia falado demais, com toda certeza — Mila me fez algumas perguntas e eu não respondi. Então essa foi a conclusão dela.
— Sobre nós?
Aquilo me deu um frio na barriga muito louco. Existia um “nós”?
Respirei fundo o máximo que consegui — Sobre o porquê de eu agir um pouco estranho hoje.
Ele deu um sorrisinho de lado — Entendo.
E então andou mais para os fundos do mercado, contornando o balcão para deixar sua mochila surrada. Tive de ir atrás.
— “Entendo”? — tentei imitar o seu tom, mas eu com certeza não sabia fazer um bom sotaque britânico sem parecer retardada.
Ele me olhou estranho — Agora eu que não entendi.
Procurei dar o meu melhor sorriso junto com a minha melhor expressão despreocupada. Eu estava ficando doida e finalmente teria bons motivos para me chamar assim. Pra que essa paranoia toda? Somos amigos, concordamos que nada parecia estranho…
— Quer saber? Não é nada. — e dei de ombros para finalizar. Tinha que fugir dali ou poderia colocar tudo a perder sem nem entender como! — Bom trabalho hoje!
— Espera, . — seu olhos claros pareciam confusos — Eu fiz algo de errado?
Deixei os ombros caírem. Sempre pedia motivos para tudo e sempre jogava na minha cara o quanto eu não curtia as coisas. A sinceridade me pareceu a única opção com ele.
— Não! Eu que estou agindo estranho, já que não fiz isso ontem.
riu — Ah, é por isso?
— Claro que é por isso! Pelo que mais seria?
Ele deu de ombros, ainda achando graça do meu desespero. Contornou o balcão e colocou o avental do mercado, andando até onde eu estava parada. Ficava tão bonito quanto com o da aula de Culinária… Sua expressão ainda era divertida, mas eu vi que tentava medir as suas palavras.
— Vamos conversar sobre ontem. — e parou a centímetros de mim.
— Tudo bem. — engoli em seco.
— Eu pensei nisso o dia inteiro. — ele chegou mais perto, fazendo aquela coisa clichê de colocar uma parte do meu cabelo atrás de minha orelha. Com a careta que eu fiz para aquilo, ele riu divertido, provavelmente pensando a mesma coisa que eu. Eu começava a ver que o clichê era atraído por mim no interior. Meu placar pessoal já deveria estar em 5 x 0 Cotswold — Quer uma palavra para descrever ontem à noite? — meu estômago deu uma volta junto com meu aceno positivo com a cabeça — É muito difícil uma só, mas foi... Diferente.
— Diferente? — não pude nem mesmo conter a frustração em minha voz.
Ele sorriu mais, ainda segurando meu rosto com uma das mãos.
— Eu gosto do que é diferente. Dezoito anos nessa mesmice aqui, lembra?
Então aquele era o jeito dele de me dizer que o que fizemos foi bom demais, não é? Eu ia me permitir pensar que era aquilo sim e pronto.
Mais uma vez: se eu era diferente de Cotswold ou qualquer outra coisa que lembrasse a região, me sentia feliz.
— Lembro sim. — manteve o sorriso com a minha resposta, me puxando para mais próximo pela cintura, ainda com a mão apoiada em meu rosto. Seus lábios encostaram-se aos meus e todos aqueles flashbacks malditos que eu estava tendo o dia todo voltaram com mais intensidade.
“Você é uma surpresa boa, .”
Até que nós ouvimos um barulho próximo à nossa cena. se descolou de mim, olhando para o lado. Annabelle, sua irmã mais nova, estava parada próxima a nós.
— Não era para o mercado estar aberto, ? — a voz de Annabelle soou aborrecida.
se afastou por completo de mim, indo falar com a menina.
— O que você está fazendo aqui hoje? — e revirou os olhos, indo até o balcão pegar algo, talvez sua mochila ou celular — Meu pai sabe que está aqui a essa hora?
— É meu pai também e ele não estava em casa. — o nariz arrebitado de Annabelle parecia compor toda a sua insatisfação — Vim ver se você arrumava algo para comer.
Assisti suspirar. Não queria ficar no meio daquele momento de irmãos, mas não sabia como escapar.
— Tá, Annabelle. — foi até os fundos do mercado e voltou em poucos segundos com uma embalagem de isopor em mãos — Agora volta para casa.
A menina mal se moveu, finalmente me olhando nos olhos.
— Oi, .
— Oi, Annabelle. — tentei ser o mais simpática possível, tentando amenizar a então briga entre irmãos — Está tudo bem?
— Não. — ela me olhou com certo deboche, logo encarando novamente — Estou com fome.
Percebi respirar fundo. Será que a interrupção da irmã tinha o chateado tanto assim? Porque eu me sentia mais envergonhada do que irritada. Se a resposta fosse sim, então ponto para mim. Uma declaração pequena e depois isso.
Ele me olhou, piscando lentamente — A gente pode se falar mais tarde?
— Claro. Preciso fazer umas coisas em casa, sem problemas. — fiz um aceno para ele, logo reproduzindo o mesmo para a menina — Tchau, Annabelle.
E tudo o que recebi foi um aceno mal humorado de volta.
* Mila Hughes: Oi, amiga! Quer uma carona mais tarde?
Sorri ao ler aquela mensagem ao sair do clima pesado no mercado dos . Ainda era incrível ler ou ouvir Mila me chamando de “amiga”.
* : Sim! Ao anoitecer?
* Mila Hughes: Só e Mason têm essa esquisitice. Eu sou descolada, lembra? Às 19h40 passo ai.
***
No celeiro as coisas estavam tranquilas.
Os meninos mais novos pareciam em êxtase por Riley ir ao baile com Scarlett. Hayden reclamava sobre algum problema do grupo de Línguas, enquanto Bronwen revirava os olhos, claramente discordando. Mila fazia pequenas tranças no cabelo de Ella, enquanto Mason e jogavam cartas.
Ao chegar, arrumamos a mesa improvisada com algumas comidas e bebidas aleatórias. Estava concentrada no que escolher quando veio buscar mais algum salgadinho.
— Me desculpe pela minha irmã hoje. — falou próximo ao meu ouvido, me arrepiando. Sua mão direita passou levemente pela minha cintura — O que trouxe?
— Antes que você reclame, Mila me avisou em cima da hora.
Ele me olhou entediado — Me surpreenda, cidade grande.
— Vinho…
franziu o cenho, parando com o carinho na minha pele.
— Você bebe vinho?
Dei de ombros — Foi a única coisa com álcool que achei em casa e que meu pai não daria falta. — e voltei ao assunto anterior — Está tudo bem, Annabelle é criança. Eu entendo.
Ele ainda achava graça da garrafa de vinho tinto — Você sabe que era para trazer uma comida, certo?
Na verdade eu sabia e não sabia. Mila tinha avisado bem em cima da hora, eu não tinha mentido sobre isso. Mas também não tinha me esforçado para pegar algo mais elaborado em casa. Mamãe tinha feito alguns bolinhos, mas não tinha o suficiente para o nosso grupo do celeiro e eu achei que salgadinhos de trigo com uvas passas (os preferidos de papai, odiados por seus filhos — eu e Arthur) não fariam muito sucesso por aqui.
Foi a minha vez de bufar alto — Aquelas aulas de culinária não estão fazendo efeito ainda. Por que a gente não fez algo para trazer hoje?
— Porque era um festival italiano, cidade grande.
— Então tá… — sacudi a garrafa — Vinho é o grande acompanhamento para essa noite, então.
me mediu — Se quiser me agradar com bebida, traga cerveja. Eu sinto falta de cerveja. — e voltou do nada ao assunto anterior, como eu tinha feito antes — Enfim, Annabelle tem ciúme de mim, eu acho besteira, mas...
— , ela é uma criança.
Ele analisava o rótulo do vinho que tinha desprezado há segundos atrás.
— Pode até ser, mas não mimada e chata como foi hoje.
— Vamos esquecer isso e curtir nossa noite, pode ser? Tenho hora certa para voltar.
A noite de sexta-feira no celeiro foi divertida e tranquila.
Acabou que todos comemos alguns salgadinhos duvidosos que Noah levou e algumas fatias de bolo que Mila tinha feito mais cedo. E, por incrível que pareça, ninguém estava no clima de bebidas, então foi um festival de refrigerante quente e água mineral.
Eu achava que a decisão de zero álcool da noite tinha sido tomada por , apenas para implicar comigo e com a boba garrafa de vinho que levei.
Todos conversaram sobre a semana, o estresse com as provas, o baile dos novatos e o grande evento que seria Ella pintar o meu cabelo nesse final de semana. Era uma rotina normal em nosso grupo de apoio para enfrentar Cotswold e qualquer mal que Bourton-on-the-Water pudesse executar para nos atingir.
Quando me afastei do grupo para encher o copo com Coca-Cola quente, se postou ao meu lado. O restante do pessoal estava um pouco mais ao fundo do celeiro, sentados nos blocos de feno agrupados. Eu conseguia ouvir os assuntos e as risadas que cada um dava, pois ecoavam de um jeito gostoso em todo o ambiente.
— Preciso te perguntar uma coisa. — ele encostou de lado na mesa improvisada de comidinhas, me olhando. Fiz um sinal para que continuasse, ficando de frente para — Acha uma bobeira ninguém aqui saber o que está rolando entre nós?
Aquilo me pegou de surpresa. Tinha ficado tão apavorada e com medo de que as coisas não ficassem normais entre nós que nem tinha pensado em como seria quando o pessoal do grupo do celeiro secreto descobrisse.
— Eu não faço ideia.
Ele sorriu de lado — Eu acho que… — e passou a mão direita na nuca — Eu acho que nós podemos manter as coisas casuais. — seus olhos claros me fitavam com interesse — Por favor, não se ofenda com isso. É só para descomplicar, sem rótulos, só nós dois…
Ah, sim. “Nós”.
Aquilo não me deixava ofendida, mas me fazia pensar nas coisas de uma outra forma. Casuais. Seria bem melhor do que agir como um casal apaixonado, coisa que nós não éramos.
Eu estava certa de que era amiga de e adorava isso. Era tudo tão bom. Nossas conversas, nosso jeito. Os beijos e tudo mais só melhoravam. Sabia que tinha um prazo de validade dentro daquela vila, e, mesmo sendo muito difícil de aceitar, acreditava que também.
Meu pai não ficaria anos em Bourton-on-the-Water e tinha muitos planos, então o que eu queria mesmo era curtir todo o meu tempo naquela vila esquisita, sem me importar com as coisas, como sempre fazia. Queria me sentir livre para fazer o que quisesse. Queria que e os demais fizessem parte de tudo.
E, definitivamente, queria continuar o que eu e ele tínhamos começado. E sem drama.
Suspirei antes de responder — Não me ofendi.
— E então? — ele parecia receoso com a minha resposta.
Dei de ombros — Casuais? Eu gosto disso.
Parecia mentira, mas eu gostava. Iria aproveitar o ano ao lado dele.
Seu sorriso cresceu e eu me derreti. Seria bom, mesmo sabendo de todos os riscos que eu corria...
puxou um brinde tímido — À nós, cidade grande.
O “nós” embrulhou meu estômago.
— Isso aí! — e levantei meu copo — À casualidade.
brindou comigo, piscando seu olho esquerdo. Seu sorriso me fazia sorrir junto sem dificuldade alguma. Aquilo não podia dar errado. Nós éramos livres, nos divertíamos e estávamos afim de curtir a vida.
Desde que vivêssemos as coisas juntos, estava tudo bem.
Definitivamente não podia dar errado.
Nem um sinal de pela The Cotswolds School, como quase sempre. Eu sabia que não era fácil achar um aluno no meio de quase mais de mil pessoas, mas às vezes tentava me esforçar. Naquele momento eu não queria ser vista por ninguém, muito menos por ele. Ainda não me sentia preparada para esse momento… Constrangedor.
Na noite passada a adrenalina estava no meu corpo, pulsando loucamente, mas hoje, na luz do dia, depois de tomar um banho, tirar os vários nós do cabelo e beber um café preto bem forte… Bem, o que parecia normal ontem me deixava louca agora.
Os flashes da noite passada ainda me davam longos arrepios.
— É mesmo? Vamos falar sobre isso. Sem julgamentos no celeiro, não é?
Ele concordava com a cabeça — Você me tira do sério desde nossas briguinhas lá no mercado.
Ri ainda mais — Me arrependo parcialmente daquilo.
Ele tinha um sorriso irônico nos lábios — Mais uma coisa que temos em comum.
Respirei fundo — Tenta mais uma.
nem hesitou — Desde o dia do banho no rio eu não consigo parar de pensar em como o seu corpo vai encaixar no meu.
Corri para a sala da próxima aula, sem nem me preocupar com os novos boatos do dia. Eu provavelmente era um dos três tópicos principais, ficaria sabendo depois o que o povo do interior tinha inventado dessa vez.
Mila se sentou ao meu lado, como sempre fazia nas aulas que tínhamos juntas. Aquele turbilhão de pensamentos já estava me deixando com náuseas. Percebi seu olhar fixo em mim, então não pude deixar de verificar se tinha algo estranho em meu corpo.
Paranoia, vai embora, por favor.
— Que sorriso bobo é esse?
— Hum? — não pude conter a confusão. Eu estava sorrindo sem perceber?
Que droga!
Ela franziu o cenho, se divertindo com minhas reações.
— Eu perguntei que sorriso bobo é esse na sua cara!
— Ah, — fechei minha expressão. Eu corria o risco de ainda estar sorrindo involuntariamente — não é nada. — seu olhar era pura descrença — Ganhei um presente, nada demais.
Mila sorriu mais ainda, pegando minha isca. E ainda diziam que eu não servia para mentiras.
— Hum! — e logo se debruçou sobre a sua mesa, se aproximando mais ainda de mim — Presente Nova Iorquino?
Fiz o máximo para não parecer surpresa. E o máximo também para não ser burra a ponto de responder aquilo.
Tinha contado mais alguns detalhes da minha antiga relação com o meu ex-namorado de Nova Iorque enquanto minha amiga me esperava ficar pronta para o celeiro, na tarde anterior. Não sabia de onde tinha vindo aquele interesse repentino em Logan, até porque não guardava fotos aparentes e nem nada. Mas, como estava realmente me esforçando para ser uma boa amiga para Mila (ela adorava esses papos de meninas), respondi tudinho. E, bem, aparentemente ela tinha fantasiado com aquilo a noite inteira.
Mais flashes da noite anterior me fizeram suspirar alto.
O meu sorrisinho de lado pareceu suficiente para Mila, que sentou direito em sua mesa com uma expressão de vitória. As pessoas ainda achavam difícil saber algo sobre mim? Pois lá estava minha amiga, contente por saber algo que nem sequer era verdade.
Meu celular vibrou e percebi que o de Mila também. Só poderia ser uma coisa: nosso grupo do celeiro secreto.
* Noah Singh: @, não esquece do plano!
Mila me olhou de lado novamente, mas agora o sorrisinho convencido não estava em seus lábios. Ela parecia um pouco confusa e seus olhos me perguntavam algo do tipo “o que você fez dessa vez?”. Dei de ombros, respondendo Noah.
* : Já descobriram a hora que ela vai estar no ginásio?
Pela manhã, bem cedo (muito mesmo), Noah e Riley tinham enviado em nosso grupo algumas fotos de Scarlett, a menina que tinha convidado o irmão mais novo de Mason para o baile dos novatos. Tinha fotos demais, como um stalker provavelmente teria, mas deixei de lado. Pelo menos eu saberia com certeza quem era a tal garota.
O plano que eu estava sendo obrigada a seguir era bem simples: eu iria “esbarrar” com Scarlett no ginásio, bem na hora da sua aula de Educação Física e então perguntaria, casualmente, sobre o baile e Riley. Parecia um plano bem bobo, mas a julgar que aquele lugar tinha nomeado um movimento feminino de “Time ”, eu me sentia poderosa para ajudar os meninos com aquilo.
* Riley Hunt: Terceira aula, .
* Noah Singh: Aproveita e descobre se ela é Time ? E se tem uma amiga que queira ME convidar, estou disponível!!
* Noah Singh: Mas por pouco tempo, muito pouco tempo…
Revirei os olhos, Mila sorria ao meu lado.
* Bronwen Wilkinson-Johnson: @Noah Um total de ZERO pessoas surpresas com essa informação.
Assim que o sinal tocou corri para o ginásio, indo direto para o vestiário.
Parei em frente a uma das pias com espelhos de meio corpo, respirando fundo. Ao ouvir um burburinho, fingi guardar algumas coisas em minha mochila. As meninas mais novas me olhavam desconfiadas, como se se perguntassem o que uma veterana do quarto ano estava fazendo ali.
No meio delas consegui achar Scarlett, que felizmente vinha na direção das pias. Enquanto a menina lavava as mãos, consertei o meu laço laranja na cabeça. Ainda estava tentando fazer a moda de Ella pegar.
A menina me olhou de lado — Ella realmente te influenciou.
Virei a sua direção, sorrindo — Não resisto a uma tendência nova.
Scarlett sorriu — Eu sempre gostei também, .
Bom, ponto positivo a ser relatado aos meninos.
Fiz um gesto com a cabeça, o que fez o meu laço ficar levemente caído.
— Você é… — fingi estar envergonhada — Desculpe, qual é o seu nome?
— Scarlett. — e sorriu ainda mais — Qual a novidade por aqui?
Os meninos tinham razão pelo desespero. Scarlett era a típica menina rica e popular da escola, que poderia muito bem passar o seu tempo livre humilhando outras pessoas. Eu nunca gostei muito de filmes americanos adolescentes, mas se encaixava completamente.
Dei de ombros — Acho que nada além desse baile que estão dizendo por aí.
Era a primeira semana na The Cotswolds School em que eu não era o assunto principal. Pelo menos não por enquanto, já que tinha me recusado a ouvir as fofocas do dia.
Scarlett juntou suas mãos, soltando um pequeno grito animado. Me lembrava Ella animada com alguma coisa, como pintar o meu cabelo. Eu ainda tentava parecer animada quando a menina me lembrava disso e do que eu tinha concordado, mas ainda estava apavorada. O que me deu na noite passada?
— Não é o máximo? Eu amo essa época de festas na escola!
Tive de reprimir uma careta por toda aquela animação exagerada.
— Então você vai?
— Mas é claro! É a única festa no ano em que nós garotas podemos escolher os nossos pares. — e pegou em minhas mãos como se fossemos grandes amigas — Você já tem par? Você vai, não é?
— Os alunos do último ano ficam de fora nessa. — sorri aliviada. Isso eu nem precisei fingir. Estava realmente aliviada por não precisar ir a nenhum baile caipira em que meninas escolhem os meninos.
Scarlett parecia triste — Que pena, acho que você iria arrasar. — e deu de ombros — Suas apoiadoras não param de crescer, acho que você seria rainha do baile.
Meu estômago se embrulhou no mesmo momento.
O pessoal do celeiro ainda tentava me ajudar a identificar quem estava por trás daquele grupo sinistro de Facebook, mas ainda não tínhamos tido sucesso.
Balancei a cabeça, ignorando todos aqueles sentimentos esquisitos que o tal “Time ” ainda me causavam.
— E você, já convidou alguém?
Suas bochechas queimaram — Na verdade, sim.
Bom, tinha chegado exatamente na parte em que eu queria. Já achava Scarlett uma boa pessoa, mas precisava saber de tudo para repassar aos meninos.
— É mesmo? Quem é o sortudo?
Ela parecia ainda mais envergonhada — Minhas amigas me desafiaram, mas eu realmente gosto dele. Ele é tão bonitinho e diferente...
Franzi o cenho para aquela confissão — Então não é de brincadeira? Já que te desafiaram.
Sua expressão ficou confusa — Por que eu faria isso com alguém? Quer dizer, elas me desafiaram porque eu sou uma medrosa! — e se abanou, como eu imaginava que Mila faria nessa ocasião — Nunca brincaria com alguém assim.
Tive de sorrir com vontade — Espero que vocês se divirtam muito.
Ela riu, antes de sair do banheiro — Qualquer coisa eu conto com o Time , certo?
Meu café da manhã quase voltou por completo.
— Com certeza.
Voltando para o bloco principal para não perder as próximas horas de aula, encontrei Mila a caminho da nossa sala de Biologia II. A menina fez uma leve careta pelo meu penteado.
— Você não vai desistir dessa moda, não é? — e suspirou — Deu certo?
— Não mesmo. — sorri de lado, pegando o celular no bolso — Deu certo.
* : Scarlett é uma garota normal e legal. Bom baile, @Riley!
Não demorou muito para que a resposta viesse.
* Riley Hunt: Valeu, ! Te devo uma.
* Noah Singh: Você é a melhor… O que vai fazer daqui a dois sábados??
Meu período na detenção tinha finalmente acabado.
E isso significava que eu poderia voltar para as aulas extracurriculares que tinha escolhido no início do ano letivo. Parecia besteira ficar animada com isso, mas eu sentia falta de discutir sobre assuntos sérios no grupo de Línguas, queimar algumas coisas nos fornos avançados em Culinária Doméstica e fazer alguma bagunça com glitter e cartolinas ridiculamente grandes demais no grupo de Artes.
Com a proximidade do baile dos novatos, o pessoal que fazia as aulas extras de Artes tinha se candidatado para fazer banners, painéis e outras coisas cafonas, e bem, eu estava tão bem esses dias que resolvi entrar na comissão com os meus poderes de corte, costura e tintas.
E a melhor parte era que eu estava 100% livre das maluquices que Zara aprontava comigo. Eu tinha alguns bons planos para aproveitar essa onda ao meu favor na escola, mas iria ser cautelosa. Não ia sobreviver a mais algumas semanas em detenção com a Comissão Estudantil de Direitos Humanos.
Corri para a atividade de Culinária, que já tinha se iniciado há dez minutos.
Estava bem atrasada, mas aqui vão os meus motivos: tinha passado os exatos dez minutos em negação, dúvida e drama adolescente, pois sabia o que iria encontrar lá. Ainda não sabia se estava preparada para ver novamente. Parecia bobo e caipira da minha parte, mas eu não conseguia evitar.
Para completar o meu pânico, assim que entrei na sala (que já tinha começado, óbvio), estavam todos formando duplas. Fechei os olhos ao ouvir o cumprimento da professora. Ela nem mesmo precisou explicar o que iria acontecer ou com quem eu ficaria. Já tinha assistido muitos filmes, lido alguns livros bem fantasiosos sobre adolescentes em escolas… Eu sabia exatamente quem era a minha dupla.
Tudo ficou ainda mais certo quando , da segunda bancada a direita, simplesmente acenou para mim.
Andei a passos arrastados até ele. A náusea dos mil pensamentos voltando com tudo.
Sério, quantos clichês eu ainda viveria naquele lugar?
Contornei a bancada, derrotada, ficando ao seu lado. Suspirei de imediato ao perceber que ele ficava lindo até mesmo em um avental branco esquisito com o emblema da The Cotswold School.
— Hoje é aquele clichê que todo mundo precisa de uma dupla e a professora me colocou junto de você?
me olhou como se eu fosse completamente doida, mas tinha um sorriso divertido no rosto.
Deu de ombros ao dizer — Eu que coloquei seu nome com o meu.
Seu sotaque do interior parecia ainda mais forte naquele dia. Como isso era possível?
Joguei minha bolsa na bancada — E posso saber por quê?
Ele pegou minha mochila pela alça, com uma cara nada boa, e a colocou no chão.
— Nada de bolsas sujas na minha cozinha.
Nem precisei fingir que estava ofendida — Já vi que você quem vai dar as regras hoje.
Ele sorriu de lado — Exatamente.
Olhei ao redor e ninguém reparava em nossa conversa. Aquilo me deixou relaxar um pouco. Ainda não sabia da fofoca do dia e esperava que ela não fosse criada agora na parte da tarde.
A professora deu algumas ordens, animadamente. parecia prestar atenção em tudo, o que era bom, porque eu era muito, muito ruim naquilo. Só tinha entrado naquela aula para explodir alguns fornos e fazer bagunça na escola perfeitinha.
ainda vestia o uniforme cinza por baixo do avental branco e eu nunca tinha percebido como ele fica bem de gravata e suéter cafona. Suas mãos estavam nos bolsos, e seus olhos claros bem concentrados.
— Você não vai anotar nada? — sussurrei, olhando-o de lado.
— Shh. — ele nem fez questão de me olhar ao fazer o gesto de “fique quieta”.
— A escolha é sua, eu não vou lembrar nadinha.
deu um sorriso de lado, ainda olhando para frente, me fazendo suspirar novamente. Ia ser uma longa tarde.
Após mais algumas instruções muito animadas, a professora finalmente revelou qual seria a tarefa do dia: um festival italiano. Os adolescentes bons demais na cozinha (incluindo ) pareciam felizes. No meu ponto de vista seria uma bagunça completa, com molho por tudo que é canto.
Sorri ao imaginar os uniformes bem passados sendo arruinados por condimentos e macarrão. me olhou, finalmente, analisando minhas roupas. Revirei os olhos, vestindo o avental igual ao dele.
— Pronto. — e fiz uma pose exagerada — Quais são os próximos passos?
— Precisamos pensar no que fazer.
Foi impossível conter minha risada — Você sabe que eu sou péssima nisso, não é?
— Sei sim.
— E mesmo assim me escolheu?
— Eu tenho gostos estranhos, .
Tive de rir ainda mais, vendo ele começar a preparar a bancada. Duas meninas ao nosso lado esquerdo me olharam feio e eu tentei me conter. Odiaria que espalhassem alguma fofoca envolvendo . Ou algo sobre a garota da cidade grande ter colocado coisas ilegais nas massas alheias.
— Não é muito bom fazer dupla com a garota que teoricamente vende coisas ilícitas pela escola. — sussurrei ao seu lado.
Ele nem me olhou — Não estou nem aí.
Eu sabia que ele já tinha mandado o “não estou nem aí” várias vezes quando sempre o questionava sobre estar ao meu lado pela vila ou pela escola. Mas eu gostava muito de ouvir de novo, então não me cansava.
Enquanto arrumava algumas tigelas, panelas e um refratário grande vidro, me aproximei um pouco mais dele. Seu cabelo estava completamente bagunçado, mas parecia interessante como sempre. Fingi cheirar os ingredientes que ele separava um a um, e levei meu nariz até o mais próximo possível dele, sem fazer alarde.
parou o que estava fazendo para me olhar, rindo sem graça.
— O que é?
— Estou vendo se você cheira a coisas ilícitas. — voltei ao meu lugar na bancada — Está muito bonzinho.
Ele revirou os olhos, rindo ao colocar o restante das coisas na bancada.
— Eu sou bonzinho. — deu de ombros — Você que enche o meu saco.
Inspirei fundo, ajeitando o avental no corpo.
— Ok, chef. — consegui sua atenção no mesmo momento — O que vamos fazer para ganhar desses adolescentes ridiculamente bons na cozinha?
Seu olhar era desafiador — Você vai experimentar a melhor… — e parou de falar, apertando os olhos claros — Você já morou na Itália? — neguei com a cabeça — Já foi na Itália? — neguei novamente — Ótimo. Então você e Cotswolds vão experimentar a melhor lasanha do mundo!
Saindo da aula de Culinária, segui até a saída da escola, que já estava vazia. Nossa super lasanha não tinha ganhado o festival italiano, mas ficou em terceiro lugar. Como eu nem sabia o que era o molho que tinha feito, eu encarei como uma grande vitória pessoal.
Me distrai com sua presença e, quando vi, já estávamos andando pela vila conversando sobre coisas aleatórias. Eu me sentia tão bem. Era bom demais estar ao seu lado sem que as coisas ficassem esquisitas, mesmo depois da noite anterior que passamos juntos.
— Ok. — seu semblante agora era sério. demorou alguns segundos para continuar — Você me deixa louco. — e disse simplesmente.
Tive de sorrir — Você me deixa confiante.
Sorri ainda mais ao perceber segurando minha nuca.
Ele deu de ombros — Sua confiança me deixa louco também.
Meu corpo todo se arrepiou com a lembrança de suas palavras. Sacudi a cabeça, me esforçando para focar no que ele falava.
— ? — ele me olhava de lado, esperando uma resposta.
— Desculpe, o que foi?
Ele riu — Você ganhou algo de presente?
— Não entendi. — e eu não tinha entendido mesmo.
deu de ombros, dando alguns passos em direção ao mercado. Tínhamos parado na fachada.
— Algo de Nova Iorque. — sua voz saiu casual, enquanto entrava pela porta da frente que tinha acabado de abrir.
Minha habilidade para não parecer chocada ou surpresa estava sendo testada novamente em Cotswolds. Eu não sabia se me sentia mais nas nuvens ainda por ele se importar com aquilo ou se simplesmente me ofendia. Mas, como ele mesmo tentava impor, eu me esforçava para não me importar com o que os outros achavam.
Entrei a passos largos no mercado, fechando a porta atrás de mim.
— Não, não ganhei. — suas sobrancelhas se uniram em surpresa. Mila havia falado demais, com toda certeza — Mila me fez algumas perguntas e eu não respondi. Então essa foi a conclusão dela.
— Sobre nós?
Aquilo me deu um frio na barriga muito louco. Existia um “nós”?
Respirei fundo o máximo que consegui — Sobre o porquê de eu agir um pouco estranho hoje.
Ele deu um sorrisinho de lado — Entendo.
E então andou mais para os fundos do mercado, contornando o balcão para deixar sua mochila surrada. Tive de ir atrás.
— “Entendo”? — tentei imitar o seu tom, mas eu com certeza não sabia fazer um bom sotaque britânico sem parecer retardada.
Ele me olhou estranho — Agora eu que não entendi.
Procurei dar o meu melhor sorriso junto com a minha melhor expressão despreocupada. Eu estava ficando doida e finalmente teria bons motivos para me chamar assim. Pra que essa paranoia toda? Somos amigos, concordamos que nada parecia estranho…
— Quer saber? Não é nada. — e dei de ombros para finalizar. Tinha que fugir dali ou poderia colocar tudo a perder sem nem entender como! — Bom trabalho hoje!
— Espera, . — seu olhos claros pareciam confusos — Eu fiz algo de errado?
Deixei os ombros caírem. Sempre pedia motivos para tudo e sempre jogava na minha cara o quanto eu não curtia as coisas. A sinceridade me pareceu a única opção com ele.
— Não! Eu que estou agindo estranho, já que não fiz isso ontem.
riu — Ah, é por isso?
— Claro que é por isso! Pelo que mais seria?
Ele deu de ombros, ainda achando graça do meu desespero. Contornou o balcão e colocou o avental do mercado, andando até onde eu estava parada. Ficava tão bonito quanto com o da aula de Culinária… Sua expressão ainda era divertida, mas eu vi que tentava medir as suas palavras.
— Vamos conversar sobre ontem. — e parou a centímetros de mim.
— Tudo bem. — engoli em seco.
— Eu pensei nisso o dia inteiro. — ele chegou mais perto, fazendo aquela coisa clichê de colocar uma parte do meu cabelo atrás de minha orelha. Com a careta que eu fiz para aquilo, ele riu divertido, provavelmente pensando a mesma coisa que eu. Eu começava a ver que o clichê era atraído por mim no interior. Meu placar pessoal já deveria estar em 5 x 0 Cotswold — Quer uma palavra para descrever ontem à noite? — meu estômago deu uma volta junto com meu aceno positivo com a cabeça — É muito difícil uma só, mas foi... Diferente.
— Diferente? — não pude nem mesmo conter a frustração em minha voz.
Ele sorriu mais, ainda segurando meu rosto com uma das mãos.
— Eu gosto do que é diferente. Dezoito anos nessa mesmice aqui, lembra?
Então aquele era o jeito dele de me dizer que o que fizemos foi bom demais, não é? Eu ia me permitir pensar que era aquilo sim e pronto.
Mais uma vez: se eu era diferente de Cotswold ou qualquer outra coisa que lembrasse a região, me sentia feliz.
— Lembro sim. — manteve o sorriso com a minha resposta, me puxando para mais próximo pela cintura, ainda com a mão apoiada em meu rosto. Seus lábios encostaram-se aos meus e todos aqueles flashbacks malditos que eu estava tendo o dia todo voltaram com mais intensidade.
“Você é uma surpresa boa, .”
Até que nós ouvimos um barulho próximo à nossa cena. se descolou de mim, olhando para o lado. Annabelle, sua irmã mais nova, estava parada próxima a nós.
— Não era para o mercado estar aberto, ? — a voz de Annabelle soou aborrecida.
se afastou por completo de mim, indo falar com a menina.
— O que você está fazendo aqui hoje? — e revirou os olhos, indo até o balcão pegar algo, talvez sua mochila ou celular — Meu pai sabe que está aqui a essa hora?
— É meu pai também e ele não estava em casa. — o nariz arrebitado de Annabelle parecia compor toda a sua insatisfação — Vim ver se você arrumava algo para comer.
Assisti suspirar. Não queria ficar no meio daquele momento de irmãos, mas não sabia como escapar.
— Tá, Annabelle. — foi até os fundos do mercado e voltou em poucos segundos com uma embalagem de isopor em mãos — Agora volta para casa.
A menina mal se moveu, finalmente me olhando nos olhos.
— Oi, .
— Oi, Annabelle. — tentei ser o mais simpática possível, tentando amenizar a então briga entre irmãos — Está tudo bem?
— Não. — ela me olhou com certo deboche, logo encarando novamente — Estou com fome.
Percebi respirar fundo. Será que a interrupção da irmã tinha o chateado tanto assim? Porque eu me sentia mais envergonhada do que irritada. Se a resposta fosse sim, então ponto para mim. Uma declaração pequena e depois isso.
Ele me olhou, piscando lentamente — A gente pode se falar mais tarde?
— Claro. Preciso fazer umas coisas em casa, sem problemas. — fiz um aceno para ele, logo reproduzindo o mesmo para a menina — Tchau, Annabelle.
E tudo o que recebi foi um aceno mal humorado de volta.
* Mila Hughes: Oi, amiga! Quer uma carona mais tarde?
Sorri ao ler aquela mensagem ao sair do clima pesado no mercado dos . Ainda era incrível ler ou ouvir Mila me chamando de “amiga”.
* : Sim! Ao anoitecer?
* Mila Hughes: Só e Mason têm essa esquisitice. Eu sou descolada, lembra? Às 19h40 passo ai.
No celeiro as coisas estavam tranquilas.
Os meninos mais novos pareciam em êxtase por Riley ir ao baile com Scarlett. Hayden reclamava sobre algum problema do grupo de Línguas, enquanto Bronwen revirava os olhos, claramente discordando. Mila fazia pequenas tranças no cabelo de Ella, enquanto Mason e jogavam cartas.
Ao chegar, arrumamos a mesa improvisada com algumas comidas e bebidas aleatórias. Estava concentrada no que escolher quando veio buscar mais algum salgadinho.
— Me desculpe pela minha irmã hoje. — falou próximo ao meu ouvido, me arrepiando. Sua mão direita passou levemente pela minha cintura — O que trouxe?
— Antes que você reclame, Mila me avisou em cima da hora.
Ele me olhou entediado — Me surpreenda, cidade grande.
— Vinho…
franziu o cenho, parando com o carinho na minha pele.
— Você bebe vinho?
Dei de ombros — Foi a única coisa com álcool que achei em casa e que meu pai não daria falta. — e voltei ao assunto anterior — Está tudo bem, Annabelle é criança. Eu entendo.
Ele ainda achava graça da garrafa de vinho tinto — Você sabe que era para trazer uma comida, certo?
Na verdade eu sabia e não sabia. Mila tinha avisado bem em cima da hora, eu não tinha mentido sobre isso. Mas também não tinha me esforçado para pegar algo mais elaborado em casa. Mamãe tinha feito alguns bolinhos, mas não tinha o suficiente para o nosso grupo do celeiro e eu achei que salgadinhos de trigo com uvas passas (os preferidos de papai, odiados por seus filhos — eu e Arthur) não fariam muito sucesso por aqui.
Foi a minha vez de bufar alto — Aquelas aulas de culinária não estão fazendo efeito ainda. Por que a gente não fez algo para trazer hoje?
— Porque era um festival italiano, cidade grande.
— Então tá… — sacudi a garrafa — Vinho é o grande acompanhamento para essa noite, então.
me mediu — Se quiser me agradar com bebida, traga cerveja. Eu sinto falta de cerveja. — e voltou do nada ao assunto anterior, como eu tinha feito antes — Enfim, Annabelle tem ciúme de mim, eu acho besteira, mas...
— , ela é uma criança.
Ele analisava o rótulo do vinho que tinha desprezado há segundos atrás.
— Pode até ser, mas não mimada e chata como foi hoje.
— Vamos esquecer isso e curtir nossa noite, pode ser? Tenho hora certa para voltar.
A noite de sexta-feira no celeiro foi divertida e tranquila.
Acabou que todos comemos alguns salgadinhos duvidosos que Noah levou e algumas fatias de bolo que Mila tinha feito mais cedo. E, por incrível que pareça, ninguém estava no clima de bebidas, então foi um festival de refrigerante quente e água mineral.
Eu achava que a decisão de zero álcool da noite tinha sido tomada por , apenas para implicar comigo e com a boba garrafa de vinho que levei.
Todos conversaram sobre a semana, o estresse com as provas, o baile dos novatos e o grande evento que seria Ella pintar o meu cabelo nesse final de semana. Era uma rotina normal em nosso grupo de apoio para enfrentar Cotswold e qualquer mal que Bourton-on-the-Water pudesse executar para nos atingir.
Quando me afastei do grupo para encher o copo com Coca-Cola quente, se postou ao meu lado. O restante do pessoal estava um pouco mais ao fundo do celeiro, sentados nos blocos de feno agrupados. Eu conseguia ouvir os assuntos e as risadas que cada um dava, pois ecoavam de um jeito gostoso em todo o ambiente.
— Preciso te perguntar uma coisa. — ele encostou de lado na mesa improvisada de comidinhas, me olhando. Fiz um sinal para que continuasse, ficando de frente para — Acha uma bobeira ninguém aqui saber o que está rolando entre nós?
Aquilo me pegou de surpresa. Tinha ficado tão apavorada e com medo de que as coisas não ficassem normais entre nós que nem tinha pensado em como seria quando o pessoal do grupo do celeiro secreto descobrisse.
— Eu não faço ideia.
Ele sorriu de lado — Eu acho que… — e passou a mão direita na nuca — Eu acho que nós podemos manter as coisas casuais. — seus olhos claros me fitavam com interesse — Por favor, não se ofenda com isso. É só para descomplicar, sem rótulos, só nós dois…
Ah, sim. “Nós”.
Aquilo não me deixava ofendida, mas me fazia pensar nas coisas de uma outra forma. Casuais. Seria bem melhor do que agir como um casal apaixonado, coisa que nós não éramos.
Eu estava certa de que era amiga de e adorava isso. Era tudo tão bom. Nossas conversas, nosso jeito. Os beijos e tudo mais só melhoravam. Sabia que tinha um prazo de validade dentro daquela vila, e, mesmo sendo muito difícil de aceitar, acreditava que também.
Meu pai não ficaria anos em Bourton-on-the-Water e tinha muitos planos, então o que eu queria mesmo era curtir todo o meu tempo naquela vila esquisita, sem me importar com as coisas, como sempre fazia. Queria me sentir livre para fazer o que quisesse. Queria que e os demais fizessem parte de tudo.
E, definitivamente, queria continuar o que eu e ele tínhamos começado. E sem drama.
Suspirei antes de responder — Não me ofendi.
— E então? — ele parecia receoso com a minha resposta.
Dei de ombros — Casuais? Eu gosto disso.
Parecia mentira, mas eu gostava. Iria aproveitar o ano ao lado dele.
Seu sorriso cresceu e eu me derreti. Seria bom, mesmo sabendo de todos os riscos que eu corria...
puxou um brinde tímido — À nós, cidade grande.
O “nós” embrulhou meu estômago.
— Isso aí! — e levantei meu copo — À casualidade.
brindou comigo, piscando seu olho esquerdo. Seu sorriso me fazia sorrir junto sem dificuldade alguma. Aquilo não podia dar errado. Nós éramos livres, nos divertíamos e estávamos afim de curtir a vida.
Desde que vivêssemos as coisas juntos, estava tudo bem.
Definitivamente não podia dar errado.
Capítulo 11 - Decisões
“O único poder que você tem é o poder de suas decisões. Use-o à vontade.” (Paulo Coelho)
— O que está acontecendo?
A voz de preencheu o celeiro, abafando até mesmo a música que tocava. Parei o que estava fazendo, olhando sua expressão confusa. Quando eu ia abrir a minha boca para começar a explicar, ele continuou.
— Melhor: o que você está aprontando?
Bom, o “você” foi entoado diretamente para mim.
Tive de sorrir — Estamos ensinando os meninos a dançar! — levantei os dois braços com a animação das minhas palavras.
comprimiu os olhos claros, ainda desconfiado.
Era uma tarde de sábado sem patrulha e todos resolveram correr para o celeiro para aproveitar um pouco o dia. Tinha ido de carona com Mila, pois estava ocupado fazendo algo em Stow-on-the-Wold para o seu pai e só chegaria bem mais tarde do que o nosso grupo tinha combinado de se encontrar. E como aquela ideia de ensinar os mais novos a dançar tinha surgido em meio ao tédio e à falta de reclamações da semana para fazer em conjunto (essa nem eu sabia como tinha acontecido), ele estava confuso por motivos óbvios.
Um sorriso surgiu em seus lábios e eu tive vontade de sair correndo e abraçá-lo forte. Ele vestia a sua fiel jaqueta jeans e seu cabelo castanho meio encaracolado parecia amassado, como se tivesse usado um boné a tarde toda.
Esse pensamento de usando um boné me fez sorrir ainda mais. Era uma bobeira, mas devia ficar demais...
— O quê? — mantinha a expressão cautelosa, mas seus olhos passeavam pelo celeiro velho. Todos formavam duplas (menos Bronwen, que tinha dito que aquilo era uma completa palhaçada) e estavam dançando uma música lenta no meio do ambiente. Mila e Mason. Riley e Ella. Noah e… Hayden, com o mais velho bem estressado por Noah não acertar um passo sequer.
Andei à sua direção, trocando a música pelo celular. Por sorte Mila tinha várias músicas românticas demais salvas em uma playlist fofa para casais apaixonados.
— Para o baile! Noah e Riley são péssimos. — falei ainda com a animação de antes.
Riley resmungou — Ei!
Me virei ao mais novo — Você sabe que é verdade, Hunt!
O menino deu de ombros, ainda segurando Ella pela cintura. As mechas da menina estavam em tranças e o sorriso dela por estar dançando com Riley deixava meu coração mais calmo. Queria que eles fossem juntos para o baile cafona, mas infelizmente nisso o ‘Time ’ não poderia se meter. Era um assunto entre os dois.
Segurei a mão de , puxando-o para o centro do celeiro.
— Vem, você é o meu par. — vi o seu sorriso crescer com as minhas palavras.
Noah soltou as mãos de Hayden, me encarando incrédulo.
— Você disse que não ia ter par porque é a supervisora de dança!
— Eu não tinha par até chegar. — falei com a cara mais lavada do mundo.
Noah bufou alto — Por que eu não posso ser o seu par, então? Ele chegou por último!
se limitou a dar uma risada cínica ao menino. Segundos depois puxou a minha cintura com firmeza, deixando nossos corpos colados. Minha reação foi uma mistura de suspiro com pernas tremendo.
— É assim, ? — ainda encarava Noah com deboche.
O baixinho revirou os olhos — Muito engraçado, . Posso tentar?
Eu estava com tanto bom humor que afastei pelo peito, ignorando a briguinha entre os dois.
— Parem. — peguei em suas mãos novamente, fazendo um leve carinho. O sorriso maravilhoso estava de volta — Vamos ensinar a dançar lento. — sussurrei as minhas próximas palavras — Você sabe ou vou ter que te ensinar também?
pareceu pensar e depois fez um giro junto comigo. Ali estava mais uma habilidade esquisita que eu ainda não sabia sobre ele.
— Não faltei essa aula, cidade grande. — e postou a mão em minha cintura — Vamos ensinar esse pessoal a dançar!
***
Naquela noite de domingo eu não precisava de uma desculpa para sair de casa e voltar tarde. Havia falado com todas as letras o que faria nas próximas horas, coisa que deixou mamãe e papai bem animados. Nos últimos dias eles estavam um pouco desconfiados sobre os meus encontros com “amigos” para “atividades extracurriculares que salvariam o meu histórico muito, muito manchado”. Eu realmente não era uma pessoa de mentiras, mas sobre o celeiro eu não poderia contar aos meus pais. Tentava respeitar ao máximo a boa relação que tinha com os dois, mas sabia que se falasse sobre o grupo secreto as coisas não iriam acabar bem.
Eles tinham me pegado desprevenida quando voltei do encontro de sábado à tarde e por pouco não fui pega na mentira (o que eu sempre fui muito ruim).
No último encontro no celeiro tínhamos dançado todas as músicas da playlist de Mila, o que resultou em muitas risadas e pisões em pés alheios. dançava ridiculamente bem e era fácil de acompanhar, o que só tornou a tarde ainda mais divertida. Era muito gostoso saber que eu tinha os dois lados dele: amizade e aquela paixonite deliciosa que eu não via a hora de repetir ainda mais.
E, bem, minha amiga tinha me convidado para ir até a sua casa e mostrar como realmente deve ser um quarto lindo e rosa.
Aceitei sem pensar duas vezes.
— Estou indo para o jantar que te falei na casa de Mila, tudo bem?
Minha mãe pareceu acordar do que estava fazendo na grande mesa da sala de jantar. Em todas as mudanças ela sempre encontrava alguma coisa local para fazer de hobbie. Em Bourton-on-the-Water era pintura. Ela se inspirava no Birdland, um parque com muitos pássaros na vila. Pelo comentário que meu pai fez, eu sabia que dentro daquele lugar tinha um jardim com mais de quinhentas aves, incluindo flamingos, araras e até pinguins.
Sério, Cotswolds era um mundo paralelo à realidade.
— Sabe chegar onde eles moram?
Concordei com um gesto, já colocando o celular no bolso. Em Bourton-on-the-Water eu não sentia a necessidade de levar carteira, documentos ou até mesmo uma bolsa. E aquilo incrivelmente me fazia um pouco mais alegre.
— Não é muito difícil. Ela mora naquela casa enorme próximo ao Dragonfly Maze.
The Dragonfly Maze era uma das grandes atrações turísticas da vila. Um labirinto enorme com pistas para solucionar e assim encontrar o seu final. Doía admitir que parecia divertido...
Minha mãe bateu palmas — Ótimo! Divirta-se. — e então estalou os dedos, ganhando minha atenção novamente — Não coma nada que você não queira!
Revirei os olhos mesmo sorrindo. Ela falava isso para mim desde que eu tinha seis anos, após um episódio horrível onde me fizeram jantar algo que eu não suportava.
— Vejo vocês mais tarde!
Minha caminhada até a casa dos Hughes não foi muito longa. Mila tinha me ensinado uma forma mais rápida de chegar e, por incrível que pareça, consegui ir sem me perder nas diversas ruas minúsculas da vila. O sol estava quase se pondo, então apressei os meus passos para chegar antes do anoitecer. Tinha medo de que a família de Mila também fizesse as coisas pelo sol, assim como insistia.
Até mesmo de longe era possível ver a residência da família, que provavelmente era a maior da região. A construção devia ter três andares, sem contar o sótão. Era feita de pedras claras e com grandes janelas por todos os cantos. Mesmo com a pegada antiga, parecia que tinham feito uma leve reforma na casa para modernizá-la, e eu gostava bastante daquilo. O jardim era enorme, talvez duas ou três vezes maior do que o da nossa casa. Vi até mesmo um chafariz e não pude deixar de me sentir impactada com aquilo. Era um outro nível de riqueza, coisa que eu nunca tinha visto sem ser em filmes.
Eu realmente não entendia o problema da família de Mason. Não fazia sentido de forma alguma, era tudo surreal demais, até mesmo para Gloucestershire, o condado do século passado em que vivíamos.
Antes mesmo de bater na porta, esta se abriu, revelando um sorriso enorme e minha amiga, Mila. Ela me abraçou com vontade e eu retribui com a mesma intensidade.
— Você estava esperando da janela, não é?
Ela ajeitou seu vestido rosa bebê com as mãos — Estava ansiosa, ! Vem, quero te mostrar a casa.
Bom, por dentro tudo era ainda mais imponente. Entramos pelo que parecia ser a sala de estar e da porta já era possível ver um ambiente totalmente aberto, onde na ponta era possível ver a cozinha planejada com uma grande ilha no meio. A sala tinha grandes sofás de cor clara, tapetes que pareciam ter sido aspirados há pouco, estantes cobertas de livros dos mais diferentes tipos e algumas obras de arte pelas paredes. Era minimalista e requintado, coisa que eu só tinha visto em alguns apartamentos em Nova Iorque, de alguns colegas da escola. Do lado direito da sala era possível ver uma escada branca de madeira e mármore, que dava para o segundo andar, mas que antes se abria em um grande mezanino.
Era tudo tão bonito que eu entendi a diversão de Mila ao me mostrar cada canto.
Percorremos todo o primeiro andar e então minha amiga me puxou escada acima, onde entendi que ficavam todos os quartos. Segundo ela, o terceiro e último andar era apenas o escritório dos pais, que às vezes trabalhavam de casa; e um ateliê para sua mãe.
No corredor do segundo andar já era possível adivinhar qual quarto era o de Mila. Mais uma vez eu não segurei minhas palavras.
— Sua porta é rosa com flores.
Minha amiga sorriu — É assim desde criança. Sempre amei.
Tive de rir — É bem a sua cara mesmo. Eu gostei.
Ela abriu a porta, revelando um ambiente limpo, claro, muito grande (como tudo naquela casa) e… Rosa. Parecia um quarto de princesa, com véu em cima da cama, penteadeira no estilo medieval, tapetes felpudos e muitas, muitas almofadas fofinhas.
E era incrível por ser realmente a cara de Mila.
Mesmo tudo aquilo tendo nada a ver comigo e com o meu estilo, eu tinha adorado. Cada detalhe era a cara da menina, tudo parecia ter sido pensado há anos para ser o cantinho dela. Suspirei ao pensar nisso. Com tantas mudanças era impossível eu ter um quarto nesse nível.
Após me mostrar cada coisinha, de vestidos lindos a alguns livros românticos de capa grossa, Mila correu até uma mesa lateral próxima da cama, abraçando um porta retrato branco. Consegui ver que era uma foto dela com Mason.
— Minha mãe acha que eu tenho uma paixonite não correspondida por ele.
Peguei a foto de suas mãos, analisando o retrato por completo. Os dois se olhavam de uma forma única. Completamente apaixonados. Pelo fundo era possível ver que a foto tinha sido tirada no celeiro.
Mila suspirou ao meu lado — Eu o amo tanto.
Não pude deixar de sorrir — Vocês são lindos.
Ela sentou em sua cama enorme, ainda com aquele olhar de menina apaixonada.
— , você já sentiu um amor tão grande assim? Às vezes não sei como consigo, tudo que faço é pensar nele e em nosso futuro juntos.
Eu já havia me sentido assim, nas nuvens, mas ainda doía relembrar aquele sentimento. Por ter decidido que queria Mila mais do que tudo em minha vida, já tinha me acostumado a soltar um pouco mais daquele passado.
— Já sim. Com Logan, de Nova Iorque.
Minha amiga pareceu concordar — Também foi o seu primeiro namorado?
— Sim. E diferente de mim, espero que Mason seja o seu primeiro e último.
Estava longe de ser romântica no nível Mila, mas entendia que ela acreditava que eles poderiam ficar juntos para sempre. E, bem, eu torcia de verdade para que isso pudesse ser realidade.
Mila sorriu ainda mais, se jogando nas almofadas.
— Obrigada, . É importante para mim saber que nossos amigos nos apoiam.
Sentei em sua cama fofinha — Então, qual é o seu filme preferido?
Conversamos sobre coisas aleatórias por vários minutos, compartilhando interesses e vontades que tínhamos. Quando vi, já estava sem os meus tênis, deitada na cama com Mila e suas milhares de almofadas fofas. Eu já tinha sorrido tanto ali com ela que as minhas bochechas chegavam a doer.
Enquanto eu terminava de contar uma aventura ridícula que tinha passado na França, alguém bateu na porta do quarto.
— Olá, meninas. — o pai de Mila adentrou o cômodo, sorrindo. O senhor Hughes usava roupas bem passadas e cinzas, o que me lembrava muito o uniforme cafona da The Cotswold School, mas com mais estilo — Prontas para jantar?
Com a afobação de Mila, mal tinha tido tempo de conversar direito com os seus pais. Tinha apenas dado um aceno quando os avistamos na cozinha antes de subir para o quarto da menina. Mila se pôs de pé, estendendo a mão para que eu a pegasse. Me levantei e agarrei seus dedos, descendo as escadas de mãos dadas com a minha amiga.
Durante todo o jantar minhas bochechas foram a teste novamente, e agora pareciam já ter se acostumado com tantas risadas. Felizmente a comida era algo que eu amava e nem tive vergonha quando pensei em repetir a sobremesa, que era o meu sorvete favorito.
Tinha ouvido várias histórias de Mila quando era pequena, acontecimentos da região e sobre o quão talentosa a mãe de Mila era para artesanato. Fiquei de apresentar mamãe, que também adorava essas coisas.
Na hora de ir embora eu fui a primeira a dar um grande abraço em minha amiga.
— Obrigada por vir. — ela disse em meio ao meu aperto — É muito importante para eles.
— Então é importante pra mim também, Mila. Obrigada por me convidar.
— Te vejo amanhã?
Pisquei um dos olhos — Com certeza.
Saí da casa dos Hughes com a melhor sensação possível. De carinho, atenção, felicidade. Amizade. Me peguei andando pelas ruas de Bourton-on-the-Water com um grande sorriso estampado no rosto.
Com tantos pensamentos diferentes e pela felicidade momentânea, minha cabeça fazia com que meu corpo andasse sem ao menos prestar atenção no caminho. Quando reparei, percebi estar em frente a uma grande casa de pedra escura, como a nossa, porém mais antiga. Na caixa de cartas estava escrito em letras garrafais: “”. Abri mais os olhos, entendendo que era ali que e sua família moravam. As luzes de fora da casa eram fracas e uma única janela estava acesa, no segundo andar. Meu corpo tremeu um pouco ao pensar que ele poderia estar ali, tão próximo.
Os últimos dias tinham sido bem interessantes. Era divertido ter os amigos do celeiro, e mais divertido ainda poder beijar quando eu quisesse — mesmo que o pessoal do grupo não tivesse ideia do que rolava entre nós. Mas só a possibilidade de fazer isso já me deixava feliz.
Sério, não tinha como aquilo tudo dar errado.
— A casa não é tão boa assim para ficar admirando.
Junto com meu coração, meu corpo deu um pulo de susto. olhava para mim com um grande sorriso no rosto, enquanto eu provavelmente parecia ter quase desmaiado.
— Quer me matar de susto?
Sua expressão continuou divertida — Por quê? Está bisbilhotando?
Revirei os olhos no mesmo momento — Estou indo para casa e me perdi. Estava na Mila.
— Eu sei. Estava com Mason agora há pouco.
Avistei seus olhos claros, ainda tentando fazer com que meus batimentos cardíacos voltassem ao normal. me olhava engraçado, talvez tentando adivinhar o que eu estava fazendo na porta de sua casa.
Resolvi terminar aquilo antes que passasse mais vergonha.
— A gente se vê mais tarde então.
Ele riu alto — Está me evitando só porque te peguei bisbilhotando?
Meu tom de voz subiu — Quê? Eu não estava fazendo…
Fui interrompida por mais uma risada — Vem cá.
Sua mão me puxou para perto, colando nossos corpos. Com certeza dava para ver a surpresa em meu rosto novamente. Me afastei depressa, olhando para os lados.
Sussurrei, como se fosse adiantar alguma coisa depois das risadas escandalosas do garoto do mercado.
— Quer que todo mundo ache que estamos nos agarrando no escuro?
— Eu não estou nem aí.
Tive de rir — Estavam fumando.
fez uma cara ofendida, mas logo riu pelo nariz.
— Gosto de como você já conhece o meu humor. Mas é verdade sobre alguém nos ver e eu já te falei isso: não estou nem aí.
Eu ainda achava muito bom ouvir aquilo. Não me cansava.
— Legal, a gente se vê depois então. — nem eu sabia porquê estava fugindo. Talvez a vergonha de ter sido pega bisbilhotando...
— Quero aproveitar mais um pouquinho, não posso?
Me puxou novamente para ficar coladinho. A primeira vez sempre é mais fácil de evitar, mas uma segunda chance de poder sentir aquele calor, suas mãos em meu corpo e seus lábios… Era complicado.
— Ah, e o seu cabelo está lindo.
Tive de sorrir, já esquecendo por completo da minha fuga. Como ele fazia isso?
— Ella realmente me surpreendeu.
concordou — Ela é boa. — e me olhou engraçado — É até um pouco esquisito ver você com o cabelo tão arrumadinho assim.
Me afastei — O que quer dizer, seu grosso?
Ele riu — Geralmente as coisas estão um pouco confusas… — fez um gesto em cima da minha cabeça — Aí.
Dei um tapa em seu braço — Falou o garoto que vive com nós nos cachos.
— E você acha uma graça, não é?
Minha habilidade de não corar para nada estava sendo testada mais uma vez.
Dei de ombros — Eu gosto do seu jeito despreocupado, não vou negar.
— Eu também gosto do seu jeito, . É lindo. — dei mais um tapa nele — Ai! O que eu disse de errado agora? Dessa vez não foi ironia.
— Nada. Obrigada.
— Está sentindo falta das nossas brigas sem propósito, cidade grande?
— ?
Arregalei os olhos quando ouvi sendo chamado, provavelmente por Annabelle. O menino me puxou para mais próximo dos arbustos ao lado da entrada de sua casa, achando graça. Tive que colocar as mãos em sua boca para evitar que fossemos pegos por sua irmã mais nova, que faria muitas perguntas indevidas.
Assim que Annabelle fechou a porta, sem retorno do irmão, suspirou, mas sem deixar o sorriso divertido de lado.
— Eu não queria, mas é melhor entrar.
Tentei fugir pela terceira vez no dia — Tudo bem. — e dei de ombros, tentando parecer casual — Amanhã a gente termina.
Seu olhar ficou surpreso — Vou sonhar com isso. — mas então uma careta muito forçada tomou seu rosto — Que mentira, não vou conseguir dormir. Me espera aqui.
Após ver correr para dentro de sua casa, resolvi que esperaria.
Ainda achava incrível a facilidade que ele tinha para me convencer de qualquer coisa… Aguardei por quase cinco minutos até que ele apareceu novamente, vindo a minha direção da forma mais descontraída possível.
— E aí, vamos?
Nem fiz questão de perguntar para onde e apenas o segui na escuridão segura de Bourton-on-the-Water. Andamos algumas ruas de pedra da vila, conversando sobre coisas aleatórias. estava mais solto que o normal e contava com animação alguma besteira que Mason tinha feito mais cedo. Eu apenas ouvia, sorrindo e imaginando que ele com certeza conseguiria qualquer coisa de mim com aquele jeito natural e despretensioso.
Era difícil admitir, mas eu já sabia que Cotswolds era a coisa mais diferente que já tinha acontecido na minha vida. , também. Eu entendia que éramos amigos de verdade, conseguia conversar normalmente e também entender quando existiam segundas intenções entre nós. E a melhor parte… Eu podia ser eu mesma ao seu lado. Me sentia tranquila e decidida para manter tudo OK entre nós. Sem drama, só curtindo mesmo.
De verdade, a nossa conversa sobre “casualidades” não tinha mudado nada entre nós. “Nós”. Eu ainda suspirava só de pensar naquela palavra minúscula que era capaz de causar tantos sentimentos conjuntos.
Parei de andar ao perceber que tinha calado a boca e observava um muro baixo de pedras com atenção.
— The Model Village. — li a placa velha em voz alta — O que é isso?
— Uma miniatura de Bourton-on-the-Water.
Esperei sem reação para que ele começasse a rir, mas nada aconteceu. Bom, nada além de simplesmente pular a pequena cerca, invadindo propriedade privada como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Lá vamos nós de novo.
Olhei rápido para os dois lados e tinha um total de zero pessoas naquela rua estreita. Pulei o muro de pedras, logo encontrando mais à frente, já sentado em uma mureta. Andei a passos largos até o menino, mas ainda com medo de que qualquer barulho fizesse com que a gente fosse pego pela patrulha ou qualquer vizinho fofoqueiro.
— E essa é a segunda coisa que eu invado em pouco mais de um mês.
Ele me olhou de lado — Eu sou muita emoção para você, cidade grande?
Precisava concordar que sim, ele era muita emoção para mim. E precisava perguntar como ele sabia que podia transitar por aquele lugar sinistro sem ser pego. Eu estava abraçando o interior, mas quebrar regras assim ainda era um pouco demais.
Respirei fundo, me sentando ao seu lado.
— Vai me dar uma nova lição sobre como eu fiz nada de interessante nos mil lugares em que morei?
Ele riu baixo — Já passamos desse capítulo.
A miniatura de Bourton-on-the-Water estava bem à nossa frente. E, bem, era realmente uma miniatura da já pequena vila em que vivíamos. Nada surpreendente ou que valesse algumas libras como entrada.
estava certo em pular a cerca.
— Ótimo. — falei enquanto observava as mini construções a frente — Esse lugar é um refúgio ou é só rebeldia do momento?
O garoto do mercado se ajeitou em seu lugar, dobrando uma das pernas ao se virar para mim.
— Mason e eu nos escondíamos aqui para fumar, isso antes de achar o celeiro. — e dei de ombros — Não sou tão caipira assim.
Ri pelo nariz — Eu só te chamei de caipira quando brigou comigo no mercado. Opiniões mudam.
parecia satisfeito — Acho que já ganhei minha noite com isso, podemos ir embora!
Empurrei o seu ombro — Deixa de ser ridículo.
— Sério, eu sei que sua vida não era nem um pouco animada como é aqui, mas… Você pode falar sobre o que quiser, qualquer coisa vai ser novidade para mim ou para alguém do celeiro.
Comprimi os olhos — Só não quero parecer metida. Estou aceitando o interior, lembra?
Seus olhos claros conseguiam brilhar na pouca luz.
— Faz sentido, . — bagunçou os cabelos embolados com as mãos — Só quero que se sinta à vontade de falar ou fazer o que quiser.
O olhei de lado — Ainda mais?
Ele pegou uma de minhas mãos e deu um beijo fofo — Fico feliz.
Eu também ficava feliz. Pela segunda vez na vida eu conseguia me sentir bem no lugar em que morávamos. A comparação era horrível e a de meses atrás se mataria só de pensar isso, mas Bourton-on-the-Water era tão boa quanto Nova Iorque. Me sentia acolhida, parte de alguma coisa.
Puxei levemente pela mão e depois pela camisa, colando nossos lábios. Quando nos separamos, mal segurei as palavras em minha boca.
— Um dia te levo em um tour pelas cidades em que já morei.
Era uma promessa que eu não fazia ideia se conseguiria cumprir, mas fez sentido para aquele momento. Ele riu sincero e se levantou, ajeitando sua jaqueta jeans no corpo. Eu estava pronta para fazer o mesmo, mas fez um sinal para que eu ficasse em meu lugar.
Seu tom era animado — Isso aí que você falou é um futuro incerto, mas hoje, aqui e agora, vou te dar um tour pela cidade em que eu sempre morei.
Era incrivelmente gostoso e engraçado ver tão solto daquele jeito. Eu sabia que tínhamos poucas semanas como amigos e até mesmo como algo a mais, então ainda me surpreendia com o seu jeito simples, direto e despojado. Ele era lindo demais e aquele brilho divertido em seus olhos só deixava tudo melhor.
Suspirei alto, sorrindo em seguida.
— Nunca pensei que ficaria animada para isso.
E eu realmente estava animada. Tinha semanas que estava aceitando o interior e Bourton-on-the-Water parecia e era incrível.
Ah, nada como a falta de poluição urbana para mudar alguém.
desceu até a mini vila projetada, pisando com um incrível cuidado dentro da maquete de pedras. As ruas da miniatura eram curtas, mas dava para um adulto de cada vez andar sem problemas. Tudo era incrivelmente bem parecido com a vila, desde as construções de pedras até os tipos de árvores, calçadas, jardins e portões das propriedades. Parecia uma cidade de bonecas em tamanho real. Uma mistura de bonito com assustador, bem a cara da região da Veneza da Inglaterra.
Ele andou em algumas ruas, procurando por algo. Quando achou deu um assobio.
— Sua casa está aqui. — apontava para uma casa de pedra escura, ridiculamente parecida com a que meus pais tinham alugado.
— Quem morava lá antes de nós? Já que não é normal alguém da vila se mudar.
deu de ombros — Uma família que se mudou para Bath. — ele andou um pouco mais, atravessando talvez a menor ponte de pedra do mundo feita em maquete — The Cotswolds School.
A maquete não era muito fiel à nossa escola, até porque nem era possível. Eu podia falar mal o quanto eu quisesse daquele lugar, mas era uma instituição enorme e bem estruturada. Só me incomodavam as pessoas e o jeito esquisito, muita perfeição. Ainda achava muito estranho tudo aquilo, não conseguia sentir uma naturalidade naquele lugar branco, limpo e organizado demais.
Quando achei com os olhos novamente, ele estava na ponta final da maquete, no canto direito. Andei até lá, pela mureta, onde olhava tudo de cima.
— Aqui fica a saída da vila, com a estrada que dá em Stow-on-the-Wold e Stroud. Aquela mais na frente dá em Oxford e, então, Londres.
Era uma parte interessante saber a saída que nos levava à cidade grande.
Ele deu vários passos para a esquerda, andando em algumas mini ruas. Fui acompanhando pelo muro, tentando me equilibrar ao máximo para não cair nas construções. Seria uma bela notícia de jornal caso eu quebrasse algum osso naquele lugar. “Adolescentes invadem propriedade privada e garota quebra a perna na menor ponte de pedra do mundo!”.
Tão cafona quanto tudo aquilo.
— Está vendo aqui? — continuou — É onde fica o mercado do meu pai. — e então se virou um pouco para a direita, apontando para outra mini rua, mas que dava em um quarteirão aberto de restaurantes — Já tivemos mais duas lojas nessa rua aqui também.
Hm, um assunto pessoal. Concordei de prontidão, deixando ele continuar.
— Tinha mais algumas em Chippin Campden, Stroud, Bath, que claramente não temos aqui nesse lindo cenário. — ele riu sozinho — Mas isso é passado.
Precisava motivar a falar mais. Ainda sentia que sabia pouco dele, mesmo parecendo que eu sabia de tudo. E a história sobre o seu passado era o que mais me deixava confusa. Sabia um pouco depois que conversei com Mila, mas queria entender se ele ainda tinha questões onde eu poderia, sei lá, tentar ajudar.
Se ele já estava me ajudando muito a sobreviver ao interior, queria ter a oportunidade de devolver o sentimento.
— Você ajudava em todas? Parece ser muita coisa.
Ele me olhou de relance, logo procurando mais coisas na estrutura.
— Não, eram lojas grandes. Eu só estudava mesmo, os negócios ficavam com o meu pai.
— Seu pai parece ser o máximo.
Pude vê-lo sorrir — Ele é. — e então chegou perto de uma mini construção de pedra alaranjada — Aqui é a casa de Mason. Quando éramos crianças cismamos de fazer uma casa na árvore no quintal dele. Está lá sem acabar até hoje.
Eu ainda acompanhava os seus passos olhando por cima da miniatura.
— Há quanto tempo são amigos?
me olhou com uma careta. Será que ele tinha percebido que estava muito falante naquela noite?
— Sei lá. Acho que desde sempre. — e subiu para a parte de cima, vindo a minha direção — Somos amigos desde os dois, três anos. Gostou do seu tour particular?
— Foi inesquecível. — ele riu, debochado — Um pouco cafona e caipira, mas ótimo. Ele se aproximou de mim ainda com o sorriso de deboche nos lábios.
— Você ainda acha que tudo aqui é cafona e caipira?
Dei de ombros — Essa miniatura é bem cafona. Mas tudo na vila? Não.
colou os nossos lábios, sorrindo em seguida.
— Bom para mim.
Passei as mãos no seu rosto quando ele se sentou ao meu lado novamente. Queria saber mais, ele tinha de continuar falando.
— Eu não falo muito da cidade grande, mas vocês também não falam muito sobre o plano de ir embora.
Ele sustentou o meu olhar, mas desviou para o lado.
— É um plano sério, .
— Quem disse que eu não acreditei?
Seus olhos encontraram os meus novamente.
— Não gostamos de falar o tempo todo para que os mais novos não fiquem tristes.
Concordei com gestos, entendendo 100% a proteção que eles estavam dando aos amigos.
— Me conta? O plano é ir embora?
se ajeitou na mureta. Quando ele ia começar a falar, balançou a cabeça, sorrindo. E, para a minha surpresa, deitou todo o seu corpo, colocando as pernas dobradas no muro, as mãos por cima do abdômen e a sua cabeça apoiada em meu colo.
— Queremos mais do que Cotswolds pode oferecer, isso você já sabe. — ele disse despreocupado. Eu ainda permanecia com um suspiro entalado em minha garganta pelo gesto carinhoso — Você vem da cidade grande, deve ser a primeira a entender.
Eu entendia, sim. Entendia bem o que eles buscavam, porque mesmo admitindo que Bourton-on-the-Water era um bom lugar para se morar, não dava para sustentar a ideia de ficar ali para sempre.
Concordei com um gesto, finalmente cedendo ao desejo de passar as mãos em seus cabelos.
— Acho corajoso, .
Ele sorriu, encontrando os meus olhos — ? Quer me pedir algo?
— O apelido não era para momentos fofos, sérios e raros também?
levantou a sobrancelha — Tem razão. — e suspirou — Eu quero fazer tudo, ! Quero experimentar tudo o que for possível.
— Gosto disso. O que pensa em estudar?
— Oceanografia. É a minha primeira opção. — seu sorriso calmo enchia meu coração de calor — Imagina só estudar e desbravar aquela imensidão? Sair de um lugar com quatro mil moradores e ir descobrir o que é quase infinito. — ele fechou os olhos, talvez imaginando os seus planos virando realidade — Vamos tentar as faculdades locais. Oxford, Cambridge. Mas a ideia mesmo é sair da Inglaterra.
Os pelos dos meus braços se arrepiaram. Era bom ouvir falando de algo com tanta… Vontade. Me perguntava porque não conseguia sentir essa garra para encontrar o meu lugar no mundo, estudar o que eu queria… Ainda me sentia tão dependente dos meus pais, da minha família, que não conseguia imaginar estar em uma cidade ou país diferente deles. Com toda certeza Arthur, meu irmão mais velho, era bem mais forte do que eu. Ele tinha escolhido ficar em Nova Iorque e, mesmo me convidando para ficar junto, eu não tinha conseguido.
E ali, no meio daquela vila minúscula na Veneza da Inglaterra, alguém finalmente estava fazendo com que eu me sentisse diferente em relação a isso.
Será que estava na hora de falar com meus pais sobre faculdade? Sobre… Encontrar o meu próprio caminho?
Encostei o dedo na ponta do seu nariz, o que fez me olhar engraçado.
— Eu ainda não sei o que quero fazer. — dei de ombros ao dizer — Acho que não tenho notas o suficiente para entrar na faculdade no ano que vem.
— É uma coisa que ainda dá tempo de consertar, . Eu estudo sério desde o início do ensino médio, mas isso é porque eu preciso manter um foco, senão me perco… — ele suspirou — Acho que sou bom em todas as matérias, mas sei que não são só notas que nos fazem passar na faculdade.
Tive de ficar surpresa com essa confissão. Entendi que o plano era sério, mas manter os estudos da faculdade desde o início do ensino médio era outra coisa. Me admirava também ele ser tão metódico nisso e ainda conseguir curtir os amigos, o celeiro e suas garrafas de álcool com cores gritantes demais.
Afaguei seus cabelos — Engraçado, porque você não tem cara de nerd.
Ele riu — Sorte a minha, porque eu sou um pouco neurótico com isso. Preciso passar.
— Estamos invadindo propriedade privada e tem pouca luz aqui. Não me faça sair correndo agora.
revirou os olhos — Quer ouvir outra coisa doida então? — concordei ao passar as mãos em suas bochechas — Eu guardo dinheiro desde os meus onze anos. — franzi o cenho — Meu pai me paga pelo que faço no mercado e eu já tive alguns outros trabalhos pela vila, até mesmo para a família de Mason, para conseguir juntar mais. — o ouvi suspirar — Esse ano que preciso focar mais fico trabalhando apenas com o meu pai. Pareço maluco ou a doida continua sendo só você?
Eu nunca tinha visto alguém tão determinado com alguma coisa. Por que eu não conseguia me sentir assim?
— Não, . Você só está correndo atrás do que quer.
Ele sorriu — Mason também faz isso há anos. Sei que não dá para pagar a faculdade inteira, mas dá para sustentar até conseguir uma bolsa ou um emprego… Ou até mesmo para pagar alojamento, comida, essas coisas, por um tempo até que a gente se adapte.
Naquele momento eu mal tinha palavras. Foi ali que eu entendi que era bem maior do que um simples plano de ir estudar em outro lugar. Era uma meta de vida. E corria atrás daquilo há anos, sendo estudando ou juntando todo o dinheiro possível. Foi impossível não suspirar. Aquele arrepio estava de volta, assim como a dúvida em minha cabeça: eu conseguiria fazer o mesmo?
Ele tossiu, o que chamou minha atenção — Minha vontade de ir embora é tanta que eu estudo com prazer, acho que isso faz diferença. — só consegui concordar com a cabeça — , eu nunca senti que algo é tão certo na minha vida quanto ir embora dessa vila.
Alisei novamente os seus cabelos com as mãos.
— Vou te ensinar algumas gírias e confusões que você pode passar na cidade grande.
Ele pareceu satisfeito — Combinado.
— Minha primeira lição é: nunca ande de bicicleta depois do anoitecer.
— Depois das oito está proibido, então?
Revirei os olhos, puxando um cachinho de seu cabelo entre os dedos.
— Segunda lição: falar horário pelo sol é coisa de caipira.
— Que bom que ainda tenho tempo para aprender. Você pode fazer um manual para nós, os caipiras que querem fugir para a cidade grande.
Passei as mãos em seus cabelos e foi impossível não suspirar com aquilo. Cada pedaço do seu corpo em que eu mexia, principalmente de um jeito descontraído, fazia o meu estômago dar voltas. Seus semi cachinhos castanhos eram macios e um pouco embolados, o que o deixava ainda mais lindo. Suas bochechas estavam um pouco mais rosadas que o normal e, por estar tão pertinho, eu podia contar algumas das suas mil sardas pelo nariz. Ele era incrível e eu me sentia cada vez mais agradecida por ter sido salva da masmorra psicológica e ancestral que era Bourton-on-the-Water.
Ele era o plano de escape perfeito.
olhava para o nada, ainda deitado em minhas pernas.
— Você também sente o seu prazo de validade por aqui?
— Desde o primeiro dia em que cheguei na vila. Não é bem um lugar que meus pais ficariam por anos.
No fundo eu sentia uma pontinha de tristeza com a certeza de que ficaria pouco por ali, igual … Sacudi a cabeça, tentando afastar aqueles pensamentos. Iria aproveitar tudo, conforme o planejado. Deixaria para depois pensar nas despedidas e nas perdas.
— Nunca tinha sentido isso até esse ano. Dá medo não passar na faculdade, não sei o que fazer… É o único plano.
— O plano vai dar certo, .
Ele voltou seu olhar para mim, sorrindo de leve.
— São muitos momentos fofos em um dia só. Obrigado, .
Após mais alguns carinhos, meu telefone começou a vibrar, o que indicava que já estava tarde e meus pais queriam saber por onde eu estava. Nós andamos até a esquina da minha casa, onde sempre me deixava após uma noite no celeiro.
Abracei o menino com força — Obrigada por hoje.
Ele sorriu — Amigos são para isso.
Naquele momento eu tinha entendido completamente o que era ser amigo de alguém e também conseguir se envolver emocionalmente. Tinha a tensão sexual sempre, mas também existia o carinho, consideração, admiração e, principalmente, a vontade de conhecer um ao outro.
Tínhamos passado a noite toda falando sobre passados, futuros, vontades e qualquer outro assunto que passasse pela cabeça. Mesmo nos beijando de vez em quando, aquilo não era um encontro para isso, o beijo acontecia pela nossa conexão. Estava bem claro que não era toda vez que iriamos nos agarrar e tirar a roupa por aí, e, incrivelmente, aquilo me deixava feliz demais.
Antes que ele sumisse a caminho de sua casa, soltei:
— Nós podemos ir algum dia desses ao Dragonfly Maze? — me corrigi na hora — Pagando ingressos, claro.
riu — Podemos. O que deu em você?
Dei de ombros — Quero conhecer mais da região. Melhor começar com os pontos turísticos, não é? O The Model Village já foi…
Ele gargalhou e concordou com a cabeça, ainda achando graça do meu pedido. Mas então fechou a sua expressão, respirando fundo em seguida, como se fosse medir suas próximas palavras.
— Sabe, … Se você quiser, posso te ajudar com o lance da faculdade. — ele coçou a nuca — Eu e Mason estudamos juntos toda semana, fazemos alguns simulados. Se achar que precisa de apoio, lembra de mim.
— Obrigada.
Minhas mãos tremiam com aquela ideia e tudo o que consegui fazer foi dar um beijo na bochecha de . Falar ou pensar sobre faculdade mexia demais comigo… Mexia tanto que dei meia volta do meu caminho para casa, a passos largos, para simplesmente beijar de verdade aquele garoto.
Minhas mãos contornaram o seu pescoço e ele reagiu alguns segundos depois, talvez surpreso pela minha reação. Nossos corpos foram colados e todas aquelas sensações passeavam pela minha pele ao sentir as nossas línguas se tocando.
Quando nos afastamos eu tinha um grande sorriso no rosto, e também.
— Nossas despedidas podem ser sempre assim? — ele perguntou rindo.
Tive de rir — Como quiser, garoto do mercado.
Respirei fundo ao ver acenar e seguir o caminho da sua casa. Meu corpo ainda tremia, pelos mil pensamentos e pelo contato das nossas bocas.
Decisão mais do que tomada: amanhã falaria com papai sobre faculdade.
Poderia até mesmo integrar ao plano do celeiro. Tudo daria certo.
— O que está acontecendo?
A voz de preencheu o celeiro, abafando até mesmo a música que tocava. Parei o que estava fazendo, olhando sua expressão confusa. Quando eu ia abrir a minha boca para começar a explicar, ele continuou.
— Melhor: o que você está aprontando?
Bom, o “você” foi entoado diretamente para mim.
Tive de sorrir — Estamos ensinando os meninos a dançar! — levantei os dois braços com a animação das minhas palavras.
comprimiu os olhos claros, ainda desconfiado.
Era uma tarde de sábado sem patrulha e todos resolveram correr para o celeiro para aproveitar um pouco o dia. Tinha ido de carona com Mila, pois estava ocupado fazendo algo em Stow-on-the-Wold para o seu pai e só chegaria bem mais tarde do que o nosso grupo tinha combinado de se encontrar. E como aquela ideia de ensinar os mais novos a dançar tinha surgido em meio ao tédio e à falta de reclamações da semana para fazer em conjunto (essa nem eu sabia como tinha acontecido), ele estava confuso por motivos óbvios.
Um sorriso surgiu em seus lábios e eu tive vontade de sair correndo e abraçá-lo forte. Ele vestia a sua fiel jaqueta jeans e seu cabelo castanho meio encaracolado parecia amassado, como se tivesse usado um boné a tarde toda.
Esse pensamento de usando um boné me fez sorrir ainda mais. Era uma bobeira, mas devia ficar demais...
— O quê? — mantinha a expressão cautelosa, mas seus olhos passeavam pelo celeiro velho. Todos formavam duplas (menos Bronwen, que tinha dito que aquilo era uma completa palhaçada) e estavam dançando uma música lenta no meio do ambiente. Mila e Mason. Riley e Ella. Noah e… Hayden, com o mais velho bem estressado por Noah não acertar um passo sequer.
Andei à sua direção, trocando a música pelo celular. Por sorte Mila tinha várias músicas românticas demais salvas em uma playlist fofa para casais apaixonados.
— Para o baile! Noah e Riley são péssimos. — falei ainda com a animação de antes.
Riley resmungou — Ei!
Me virei ao mais novo — Você sabe que é verdade, Hunt!
O menino deu de ombros, ainda segurando Ella pela cintura. As mechas da menina estavam em tranças e o sorriso dela por estar dançando com Riley deixava meu coração mais calmo. Queria que eles fossem juntos para o baile cafona, mas infelizmente nisso o ‘Time ’ não poderia se meter. Era um assunto entre os dois.
Segurei a mão de , puxando-o para o centro do celeiro.
— Vem, você é o meu par. — vi o seu sorriso crescer com as minhas palavras.
Noah soltou as mãos de Hayden, me encarando incrédulo.
— Você disse que não ia ter par porque é a supervisora de dança!
— Eu não tinha par até chegar. — falei com a cara mais lavada do mundo.
Noah bufou alto — Por que eu não posso ser o seu par, então? Ele chegou por último!
se limitou a dar uma risada cínica ao menino. Segundos depois puxou a minha cintura com firmeza, deixando nossos corpos colados. Minha reação foi uma mistura de suspiro com pernas tremendo.
— É assim, ? — ainda encarava Noah com deboche.
O baixinho revirou os olhos — Muito engraçado, . Posso tentar?
Eu estava com tanto bom humor que afastei pelo peito, ignorando a briguinha entre os dois.
— Parem. — peguei em suas mãos novamente, fazendo um leve carinho. O sorriso maravilhoso estava de volta — Vamos ensinar a dançar lento. — sussurrei as minhas próximas palavras — Você sabe ou vou ter que te ensinar também?
pareceu pensar e depois fez um giro junto comigo. Ali estava mais uma habilidade esquisita que eu ainda não sabia sobre ele.
— Não faltei essa aula, cidade grande. — e postou a mão em minha cintura — Vamos ensinar esse pessoal a dançar!
Naquela noite de domingo eu não precisava de uma desculpa para sair de casa e voltar tarde. Havia falado com todas as letras o que faria nas próximas horas, coisa que deixou mamãe e papai bem animados. Nos últimos dias eles estavam um pouco desconfiados sobre os meus encontros com “amigos” para “atividades extracurriculares que salvariam o meu histórico muito, muito manchado”. Eu realmente não era uma pessoa de mentiras, mas sobre o celeiro eu não poderia contar aos meus pais. Tentava respeitar ao máximo a boa relação que tinha com os dois, mas sabia que se falasse sobre o grupo secreto as coisas não iriam acabar bem.
Eles tinham me pegado desprevenida quando voltei do encontro de sábado à tarde e por pouco não fui pega na mentira (o que eu sempre fui muito ruim).
No último encontro no celeiro tínhamos dançado todas as músicas da playlist de Mila, o que resultou em muitas risadas e pisões em pés alheios. dançava ridiculamente bem e era fácil de acompanhar, o que só tornou a tarde ainda mais divertida. Era muito gostoso saber que eu tinha os dois lados dele: amizade e aquela paixonite deliciosa que eu não via a hora de repetir ainda mais.
E, bem, minha amiga tinha me convidado para ir até a sua casa e mostrar como realmente deve ser um quarto lindo e rosa.
Aceitei sem pensar duas vezes.
— Estou indo para o jantar que te falei na casa de Mila, tudo bem?
Minha mãe pareceu acordar do que estava fazendo na grande mesa da sala de jantar. Em todas as mudanças ela sempre encontrava alguma coisa local para fazer de hobbie. Em Bourton-on-the-Water era pintura. Ela se inspirava no Birdland, um parque com muitos pássaros na vila. Pelo comentário que meu pai fez, eu sabia que dentro daquele lugar tinha um jardim com mais de quinhentas aves, incluindo flamingos, araras e até pinguins.
Sério, Cotswolds era um mundo paralelo à realidade.
— Sabe chegar onde eles moram?
Concordei com um gesto, já colocando o celular no bolso. Em Bourton-on-the-Water eu não sentia a necessidade de levar carteira, documentos ou até mesmo uma bolsa. E aquilo incrivelmente me fazia um pouco mais alegre.
— Não é muito difícil. Ela mora naquela casa enorme próximo ao Dragonfly Maze.
The Dragonfly Maze era uma das grandes atrações turísticas da vila. Um labirinto enorme com pistas para solucionar e assim encontrar o seu final. Doía admitir que parecia divertido...
Minha mãe bateu palmas — Ótimo! Divirta-se. — e então estalou os dedos, ganhando minha atenção novamente — Não coma nada que você não queira!
Revirei os olhos mesmo sorrindo. Ela falava isso para mim desde que eu tinha seis anos, após um episódio horrível onde me fizeram jantar algo que eu não suportava.
— Vejo vocês mais tarde!
Minha caminhada até a casa dos Hughes não foi muito longa. Mila tinha me ensinado uma forma mais rápida de chegar e, por incrível que pareça, consegui ir sem me perder nas diversas ruas minúsculas da vila. O sol estava quase se pondo, então apressei os meus passos para chegar antes do anoitecer. Tinha medo de que a família de Mila também fizesse as coisas pelo sol, assim como insistia.
Até mesmo de longe era possível ver a residência da família, que provavelmente era a maior da região. A construção devia ter três andares, sem contar o sótão. Era feita de pedras claras e com grandes janelas por todos os cantos. Mesmo com a pegada antiga, parecia que tinham feito uma leve reforma na casa para modernizá-la, e eu gostava bastante daquilo. O jardim era enorme, talvez duas ou três vezes maior do que o da nossa casa. Vi até mesmo um chafariz e não pude deixar de me sentir impactada com aquilo. Era um outro nível de riqueza, coisa que eu nunca tinha visto sem ser em filmes.
Eu realmente não entendia o problema da família de Mason. Não fazia sentido de forma alguma, era tudo surreal demais, até mesmo para Gloucestershire, o condado do século passado em que vivíamos.
Antes mesmo de bater na porta, esta se abriu, revelando um sorriso enorme e minha amiga, Mila. Ela me abraçou com vontade e eu retribui com a mesma intensidade.
— Você estava esperando da janela, não é?
Ela ajeitou seu vestido rosa bebê com as mãos — Estava ansiosa, ! Vem, quero te mostrar a casa.
Bom, por dentro tudo era ainda mais imponente. Entramos pelo que parecia ser a sala de estar e da porta já era possível ver um ambiente totalmente aberto, onde na ponta era possível ver a cozinha planejada com uma grande ilha no meio. A sala tinha grandes sofás de cor clara, tapetes que pareciam ter sido aspirados há pouco, estantes cobertas de livros dos mais diferentes tipos e algumas obras de arte pelas paredes. Era minimalista e requintado, coisa que eu só tinha visto em alguns apartamentos em Nova Iorque, de alguns colegas da escola. Do lado direito da sala era possível ver uma escada branca de madeira e mármore, que dava para o segundo andar, mas que antes se abria em um grande mezanino.
Era tudo tão bonito que eu entendi a diversão de Mila ao me mostrar cada canto.
Percorremos todo o primeiro andar e então minha amiga me puxou escada acima, onde entendi que ficavam todos os quartos. Segundo ela, o terceiro e último andar era apenas o escritório dos pais, que às vezes trabalhavam de casa; e um ateliê para sua mãe.
No corredor do segundo andar já era possível adivinhar qual quarto era o de Mila. Mais uma vez eu não segurei minhas palavras.
— Sua porta é rosa com flores.
Minha amiga sorriu — É assim desde criança. Sempre amei.
Tive de rir — É bem a sua cara mesmo. Eu gostei.
Ela abriu a porta, revelando um ambiente limpo, claro, muito grande (como tudo naquela casa) e… Rosa. Parecia um quarto de princesa, com véu em cima da cama, penteadeira no estilo medieval, tapetes felpudos e muitas, muitas almofadas fofinhas.
E era incrível por ser realmente a cara de Mila.
Mesmo tudo aquilo tendo nada a ver comigo e com o meu estilo, eu tinha adorado. Cada detalhe era a cara da menina, tudo parecia ter sido pensado há anos para ser o cantinho dela. Suspirei ao pensar nisso. Com tantas mudanças era impossível eu ter um quarto nesse nível.
Após me mostrar cada coisinha, de vestidos lindos a alguns livros românticos de capa grossa, Mila correu até uma mesa lateral próxima da cama, abraçando um porta retrato branco. Consegui ver que era uma foto dela com Mason.
— Minha mãe acha que eu tenho uma paixonite não correspondida por ele.
Peguei a foto de suas mãos, analisando o retrato por completo. Os dois se olhavam de uma forma única. Completamente apaixonados. Pelo fundo era possível ver que a foto tinha sido tirada no celeiro.
Mila suspirou ao meu lado — Eu o amo tanto.
Não pude deixar de sorrir — Vocês são lindos.
Ela sentou em sua cama enorme, ainda com aquele olhar de menina apaixonada.
— , você já sentiu um amor tão grande assim? Às vezes não sei como consigo, tudo que faço é pensar nele e em nosso futuro juntos.
Eu já havia me sentido assim, nas nuvens, mas ainda doía relembrar aquele sentimento. Por ter decidido que queria Mila mais do que tudo em minha vida, já tinha me acostumado a soltar um pouco mais daquele passado.
— Já sim. Com Logan, de Nova Iorque.
Minha amiga pareceu concordar — Também foi o seu primeiro namorado?
— Sim. E diferente de mim, espero que Mason seja o seu primeiro e último.
Estava longe de ser romântica no nível Mila, mas entendia que ela acreditava que eles poderiam ficar juntos para sempre. E, bem, eu torcia de verdade para que isso pudesse ser realidade.
Mila sorriu ainda mais, se jogando nas almofadas.
— Obrigada, . É importante para mim saber que nossos amigos nos apoiam.
Sentei em sua cama fofinha — Então, qual é o seu filme preferido?
Conversamos sobre coisas aleatórias por vários minutos, compartilhando interesses e vontades que tínhamos. Quando vi, já estava sem os meus tênis, deitada na cama com Mila e suas milhares de almofadas fofas. Eu já tinha sorrido tanto ali com ela que as minhas bochechas chegavam a doer.
Enquanto eu terminava de contar uma aventura ridícula que tinha passado na França, alguém bateu na porta do quarto.
— Olá, meninas. — o pai de Mila adentrou o cômodo, sorrindo. O senhor Hughes usava roupas bem passadas e cinzas, o que me lembrava muito o uniforme cafona da The Cotswold School, mas com mais estilo — Prontas para jantar?
Com a afobação de Mila, mal tinha tido tempo de conversar direito com os seus pais. Tinha apenas dado um aceno quando os avistamos na cozinha antes de subir para o quarto da menina. Mila se pôs de pé, estendendo a mão para que eu a pegasse. Me levantei e agarrei seus dedos, descendo as escadas de mãos dadas com a minha amiga.
Durante todo o jantar minhas bochechas foram a teste novamente, e agora pareciam já ter se acostumado com tantas risadas. Felizmente a comida era algo que eu amava e nem tive vergonha quando pensei em repetir a sobremesa, que era o meu sorvete favorito.
Tinha ouvido várias histórias de Mila quando era pequena, acontecimentos da região e sobre o quão talentosa a mãe de Mila era para artesanato. Fiquei de apresentar mamãe, que também adorava essas coisas.
Na hora de ir embora eu fui a primeira a dar um grande abraço em minha amiga.
— Obrigada por vir. — ela disse em meio ao meu aperto — É muito importante para eles.
— Então é importante pra mim também, Mila. Obrigada por me convidar.
— Te vejo amanhã?
Pisquei um dos olhos — Com certeza.
Saí da casa dos Hughes com a melhor sensação possível. De carinho, atenção, felicidade. Amizade. Me peguei andando pelas ruas de Bourton-on-the-Water com um grande sorriso estampado no rosto.
Com tantos pensamentos diferentes e pela felicidade momentânea, minha cabeça fazia com que meu corpo andasse sem ao menos prestar atenção no caminho. Quando reparei, percebi estar em frente a uma grande casa de pedra escura, como a nossa, porém mais antiga. Na caixa de cartas estava escrito em letras garrafais: “”. Abri mais os olhos, entendendo que era ali que e sua família moravam. As luzes de fora da casa eram fracas e uma única janela estava acesa, no segundo andar. Meu corpo tremeu um pouco ao pensar que ele poderia estar ali, tão próximo.
Os últimos dias tinham sido bem interessantes. Era divertido ter os amigos do celeiro, e mais divertido ainda poder beijar quando eu quisesse — mesmo que o pessoal do grupo não tivesse ideia do que rolava entre nós. Mas só a possibilidade de fazer isso já me deixava feliz.
Sério, não tinha como aquilo tudo dar errado.
— A casa não é tão boa assim para ficar admirando.
Junto com meu coração, meu corpo deu um pulo de susto. olhava para mim com um grande sorriso no rosto, enquanto eu provavelmente parecia ter quase desmaiado.
— Quer me matar de susto?
Sua expressão continuou divertida — Por quê? Está bisbilhotando?
Revirei os olhos no mesmo momento — Estou indo para casa e me perdi. Estava na Mila.
— Eu sei. Estava com Mason agora há pouco.
Avistei seus olhos claros, ainda tentando fazer com que meus batimentos cardíacos voltassem ao normal. me olhava engraçado, talvez tentando adivinhar o que eu estava fazendo na porta de sua casa.
Resolvi terminar aquilo antes que passasse mais vergonha.
— A gente se vê mais tarde então.
Ele riu alto — Está me evitando só porque te peguei bisbilhotando?
Meu tom de voz subiu — Quê? Eu não estava fazendo…
Fui interrompida por mais uma risada — Vem cá.
Sua mão me puxou para perto, colando nossos corpos. Com certeza dava para ver a surpresa em meu rosto novamente. Me afastei depressa, olhando para os lados.
Sussurrei, como se fosse adiantar alguma coisa depois das risadas escandalosas do garoto do mercado.
— Quer que todo mundo ache que estamos nos agarrando no escuro?
— Eu não estou nem aí.
Tive de rir — Estavam fumando.
fez uma cara ofendida, mas logo riu pelo nariz.
— Gosto de como você já conhece o meu humor. Mas é verdade sobre alguém nos ver e eu já te falei isso: não estou nem aí.
Eu ainda achava muito bom ouvir aquilo. Não me cansava.
— Legal, a gente se vê depois então. — nem eu sabia porquê estava fugindo. Talvez a vergonha de ter sido pega bisbilhotando...
— Quero aproveitar mais um pouquinho, não posso?
Me puxou novamente para ficar coladinho. A primeira vez sempre é mais fácil de evitar, mas uma segunda chance de poder sentir aquele calor, suas mãos em meu corpo e seus lábios… Era complicado.
— Ah, e o seu cabelo está lindo.
Tive de sorrir, já esquecendo por completo da minha fuga. Como ele fazia isso?
— Ella realmente me surpreendeu.
concordou — Ela é boa. — e me olhou engraçado — É até um pouco esquisito ver você com o cabelo tão arrumadinho assim.
Me afastei — O que quer dizer, seu grosso?
Ele riu — Geralmente as coisas estão um pouco confusas… — fez um gesto em cima da minha cabeça — Aí.
Dei um tapa em seu braço — Falou o garoto que vive com nós nos cachos.
— E você acha uma graça, não é?
Minha habilidade de não corar para nada estava sendo testada mais uma vez.
Dei de ombros — Eu gosto do seu jeito despreocupado, não vou negar.
— Eu também gosto do seu jeito, . É lindo. — dei mais um tapa nele — Ai! O que eu disse de errado agora? Dessa vez não foi ironia.
— Nada. Obrigada.
— Está sentindo falta das nossas brigas sem propósito, cidade grande?
— ?
Arregalei os olhos quando ouvi sendo chamado, provavelmente por Annabelle. O menino me puxou para mais próximo dos arbustos ao lado da entrada de sua casa, achando graça. Tive que colocar as mãos em sua boca para evitar que fossemos pegos por sua irmã mais nova, que faria muitas perguntas indevidas.
Assim que Annabelle fechou a porta, sem retorno do irmão, suspirou, mas sem deixar o sorriso divertido de lado.
— Eu não queria, mas é melhor entrar.
Tentei fugir pela terceira vez no dia — Tudo bem. — e dei de ombros, tentando parecer casual — Amanhã a gente termina.
Seu olhar ficou surpreso — Vou sonhar com isso. — mas então uma careta muito forçada tomou seu rosto — Que mentira, não vou conseguir dormir. Me espera aqui.
Após ver correr para dentro de sua casa, resolvi que esperaria.
Ainda achava incrível a facilidade que ele tinha para me convencer de qualquer coisa… Aguardei por quase cinco minutos até que ele apareceu novamente, vindo a minha direção da forma mais descontraída possível.
— E aí, vamos?
Nem fiz questão de perguntar para onde e apenas o segui na escuridão segura de Bourton-on-the-Water. Andamos algumas ruas de pedra da vila, conversando sobre coisas aleatórias. estava mais solto que o normal e contava com animação alguma besteira que Mason tinha feito mais cedo. Eu apenas ouvia, sorrindo e imaginando que ele com certeza conseguiria qualquer coisa de mim com aquele jeito natural e despretensioso.
Era difícil admitir, mas eu já sabia que Cotswolds era a coisa mais diferente que já tinha acontecido na minha vida. , também. Eu entendia que éramos amigos de verdade, conseguia conversar normalmente e também entender quando existiam segundas intenções entre nós. E a melhor parte… Eu podia ser eu mesma ao seu lado. Me sentia tranquila e decidida para manter tudo OK entre nós. Sem drama, só curtindo mesmo.
De verdade, a nossa conversa sobre “casualidades” não tinha mudado nada entre nós. “Nós”. Eu ainda suspirava só de pensar naquela palavra minúscula que era capaz de causar tantos sentimentos conjuntos.
Parei de andar ao perceber que tinha calado a boca e observava um muro baixo de pedras com atenção.
— The Model Village. — li a placa velha em voz alta — O que é isso?
— Uma miniatura de Bourton-on-the-Water.
Esperei sem reação para que ele começasse a rir, mas nada aconteceu. Bom, nada além de simplesmente pular a pequena cerca, invadindo propriedade privada como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Lá vamos nós de novo.
Olhei rápido para os dois lados e tinha um total de zero pessoas naquela rua estreita. Pulei o muro de pedras, logo encontrando mais à frente, já sentado em uma mureta. Andei a passos largos até o menino, mas ainda com medo de que qualquer barulho fizesse com que a gente fosse pego pela patrulha ou qualquer vizinho fofoqueiro.
— E essa é a segunda coisa que eu invado em pouco mais de um mês.
Ele me olhou de lado — Eu sou muita emoção para você, cidade grande?
Precisava concordar que sim, ele era muita emoção para mim. E precisava perguntar como ele sabia que podia transitar por aquele lugar sinistro sem ser pego. Eu estava abraçando o interior, mas quebrar regras assim ainda era um pouco demais.
Respirei fundo, me sentando ao seu lado.
— Vai me dar uma nova lição sobre como eu fiz nada de interessante nos mil lugares em que morei?
Ele riu baixo — Já passamos desse capítulo.
A miniatura de Bourton-on-the-Water estava bem à nossa frente. E, bem, era realmente uma miniatura da já pequena vila em que vivíamos. Nada surpreendente ou que valesse algumas libras como entrada.
estava certo em pular a cerca.
— Ótimo. — falei enquanto observava as mini construções a frente — Esse lugar é um refúgio ou é só rebeldia do momento?
O garoto do mercado se ajeitou em seu lugar, dobrando uma das pernas ao se virar para mim.
— Mason e eu nos escondíamos aqui para fumar, isso antes de achar o celeiro. — e dei de ombros — Não sou tão caipira assim.
Ri pelo nariz — Eu só te chamei de caipira quando brigou comigo no mercado. Opiniões mudam.
parecia satisfeito — Acho que já ganhei minha noite com isso, podemos ir embora!
Empurrei o seu ombro — Deixa de ser ridículo.
— Sério, eu sei que sua vida não era nem um pouco animada como é aqui, mas… Você pode falar sobre o que quiser, qualquer coisa vai ser novidade para mim ou para alguém do celeiro.
Comprimi os olhos — Só não quero parecer metida. Estou aceitando o interior, lembra?
Seus olhos claros conseguiam brilhar na pouca luz.
— Faz sentido, . — bagunçou os cabelos embolados com as mãos — Só quero que se sinta à vontade de falar ou fazer o que quiser.
O olhei de lado — Ainda mais?
Ele pegou uma de minhas mãos e deu um beijo fofo — Fico feliz.
Eu também ficava feliz. Pela segunda vez na vida eu conseguia me sentir bem no lugar em que morávamos. A comparação era horrível e a de meses atrás se mataria só de pensar isso, mas Bourton-on-the-Water era tão boa quanto Nova Iorque. Me sentia acolhida, parte de alguma coisa.
Puxei levemente pela mão e depois pela camisa, colando nossos lábios. Quando nos separamos, mal segurei as palavras em minha boca.
— Um dia te levo em um tour pelas cidades em que já morei.
Era uma promessa que eu não fazia ideia se conseguiria cumprir, mas fez sentido para aquele momento. Ele riu sincero e se levantou, ajeitando sua jaqueta jeans no corpo. Eu estava pronta para fazer o mesmo, mas fez um sinal para que eu ficasse em meu lugar.
Seu tom era animado — Isso aí que você falou é um futuro incerto, mas hoje, aqui e agora, vou te dar um tour pela cidade em que eu sempre morei.
Era incrivelmente gostoso e engraçado ver tão solto daquele jeito. Eu sabia que tínhamos poucas semanas como amigos e até mesmo como algo a mais, então ainda me surpreendia com o seu jeito simples, direto e despojado. Ele era lindo demais e aquele brilho divertido em seus olhos só deixava tudo melhor.
Suspirei alto, sorrindo em seguida.
— Nunca pensei que ficaria animada para isso.
E eu realmente estava animada. Tinha semanas que estava aceitando o interior e Bourton-on-the-Water parecia e era incrível.
Ah, nada como a falta de poluição urbana para mudar alguém.
desceu até a mini vila projetada, pisando com um incrível cuidado dentro da maquete de pedras. As ruas da miniatura eram curtas, mas dava para um adulto de cada vez andar sem problemas. Tudo era incrivelmente bem parecido com a vila, desde as construções de pedras até os tipos de árvores, calçadas, jardins e portões das propriedades. Parecia uma cidade de bonecas em tamanho real. Uma mistura de bonito com assustador, bem a cara da região da Veneza da Inglaterra.
Ele andou em algumas ruas, procurando por algo. Quando achou deu um assobio.
— Sua casa está aqui. — apontava para uma casa de pedra escura, ridiculamente parecida com a que meus pais tinham alugado.
— Quem morava lá antes de nós? Já que não é normal alguém da vila se mudar.
deu de ombros — Uma família que se mudou para Bath. — ele andou um pouco mais, atravessando talvez a menor ponte de pedra do mundo feita em maquete — The Cotswolds School.
A maquete não era muito fiel à nossa escola, até porque nem era possível. Eu podia falar mal o quanto eu quisesse daquele lugar, mas era uma instituição enorme e bem estruturada. Só me incomodavam as pessoas e o jeito esquisito, muita perfeição. Ainda achava muito estranho tudo aquilo, não conseguia sentir uma naturalidade naquele lugar branco, limpo e organizado demais.
Quando achei com os olhos novamente, ele estava na ponta final da maquete, no canto direito. Andei até lá, pela mureta, onde olhava tudo de cima.
— Aqui fica a saída da vila, com a estrada que dá em Stow-on-the-Wold e Stroud. Aquela mais na frente dá em Oxford e, então, Londres.
Era uma parte interessante saber a saída que nos levava à cidade grande.
Ele deu vários passos para a esquerda, andando em algumas mini ruas. Fui acompanhando pelo muro, tentando me equilibrar ao máximo para não cair nas construções. Seria uma bela notícia de jornal caso eu quebrasse algum osso naquele lugar. “Adolescentes invadem propriedade privada e garota quebra a perna na menor ponte de pedra do mundo!”.
Tão cafona quanto tudo aquilo.
— Está vendo aqui? — continuou — É onde fica o mercado do meu pai. — e então se virou um pouco para a direita, apontando para outra mini rua, mas que dava em um quarteirão aberto de restaurantes — Já tivemos mais duas lojas nessa rua aqui também.
Hm, um assunto pessoal. Concordei de prontidão, deixando ele continuar.
— Tinha mais algumas em Chippin Campden, Stroud, Bath, que claramente não temos aqui nesse lindo cenário. — ele riu sozinho — Mas isso é passado.
Precisava motivar a falar mais. Ainda sentia que sabia pouco dele, mesmo parecendo que eu sabia de tudo. E a história sobre o seu passado era o que mais me deixava confusa. Sabia um pouco depois que conversei com Mila, mas queria entender se ele ainda tinha questões onde eu poderia, sei lá, tentar ajudar.
Se ele já estava me ajudando muito a sobreviver ao interior, queria ter a oportunidade de devolver o sentimento.
— Você ajudava em todas? Parece ser muita coisa.
Ele me olhou de relance, logo procurando mais coisas na estrutura.
— Não, eram lojas grandes. Eu só estudava mesmo, os negócios ficavam com o meu pai.
— Seu pai parece ser o máximo.
Pude vê-lo sorrir — Ele é. — e então chegou perto de uma mini construção de pedra alaranjada — Aqui é a casa de Mason. Quando éramos crianças cismamos de fazer uma casa na árvore no quintal dele. Está lá sem acabar até hoje.
Eu ainda acompanhava os seus passos olhando por cima da miniatura.
— Há quanto tempo são amigos?
me olhou com uma careta. Será que ele tinha percebido que estava muito falante naquela noite?
— Sei lá. Acho que desde sempre. — e subiu para a parte de cima, vindo a minha direção — Somos amigos desde os dois, três anos. Gostou do seu tour particular?
— Foi inesquecível. — ele riu, debochado — Um pouco cafona e caipira, mas ótimo. Ele se aproximou de mim ainda com o sorriso de deboche nos lábios.
— Você ainda acha que tudo aqui é cafona e caipira?
Dei de ombros — Essa miniatura é bem cafona. Mas tudo na vila? Não.
colou os nossos lábios, sorrindo em seguida.
— Bom para mim.
Passei as mãos no seu rosto quando ele se sentou ao meu lado novamente. Queria saber mais, ele tinha de continuar falando.
— Eu não falo muito da cidade grande, mas vocês também não falam muito sobre o plano de ir embora.
Ele sustentou o meu olhar, mas desviou para o lado.
— É um plano sério, .
— Quem disse que eu não acreditei?
Seus olhos encontraram os meus novamente.
— Não gostamos de falar o tempo todo para que os mais novos não fiquem tristes.
Concordei com gestos, entendendo 100% a proteção que eles estavam dando aos amigos.
— Me conta? O plano é ir embora?
se ajeitou na mureta. Quando ele ia começar a falar, balançou a cabeça, sorrindo. E, para a minha surpresa, deitou todo o seu corpo, colocando as pernas dobradas no muro, as mãos por cima do abdômen e a sua cabeça apoiada em meu colo.
— Queremos mais do que Cotswolds pode oferecer, isso você já sabe. — ele disse despreocupado. Eu ainda permanecia com um suspiro entalado em minha garganta pelo gesto carinhoso — Você vem da cidade grande, deve ser a primeira a entender.
Eu entendia, sim. Entendia bem o que eles buscavam, porque mesmo admitindo que Bourton-on-the-Water era um bom lugar para se morar, não dava para sustentar a ideia de ficar ali para sempre.
Concordei com um gesto, finalmente cedendo ao desejo de passar as mãos em seus cabelos.
— Acho corajoso, .
Ele sorriu, encontrando os meus olhos — ? Quer me pedir algo?
— O apelido não era para momentos fofos, sérios e raros também?
levantou a sobrancelha — Tem razão. — e suspirou — Eu quero fazer tudo, ! Quero experimentar tudo o que for possível.
— Gosto disso. O que pensa em estudar?
— Oceanografia. É a minha primeira opção. — seu sorriso calmo enchia meu coração de calor — Imagina só estudar e desbravar aquela imensidão? Sair de um lugar com quatro mil moradores e ir descobrir o que é quase infinito. — ele fechou os olhos, talvez imaginando os seus planos virando realidade — Vamos tentar as faculdades locais. Oxford, Cambridge. Mas a ideia mesmo é sair da Inglaterra.
Os pelos dos meus braços se arrepiaram. Era bom ouvir falando de algo com tanta… Vontade. Me perguntava porque não conseguia sentir essa garra para encontrar o meu lugar no mundo, estudar o que eu queria… Ainda me sentia tão dependente dos meus pais, da minha família, que não conseguia imaginar estar em uma cidade ou país diferente deles. Com toda certeza Arthur, meu irmão mais velho, era bem mais forte do que eu. Ele tinha escolhido ficar em Nova Iorque e, mesmo me convidando para ficar junto, eu não tinha conseguido.
E ali, no meio daquela vila minúscula na Veneza da Inglaterra, alguém finalmente estava fazendo com que eu me sentisse diferente em relação a isso.
Será que estava na hora de falar com meus pais sobre faculdade? Sobre… Encontrar o meu próprio caminho?
Encostei o dedo na ponta do seu nariz, o que fez me olhar engraçado.
— Eu ainda não sei o que quero fazer. — dei de ombros ao dizer — Acho que não tenho notas o suficiente para entrar na faculdade no ano que vem.
— É uma coisa que ainda dá tempo de consertar, . Eu estudo sério desde o início do ensino médio, mas isso é porque eu preciso manter um foco, senão me perco… — ele suspirou — Acho que sou bom em todas as matérias, mas sei que não são só notas que nos fazem passar na faculdade.
Tive de ficar surpresa com essa confissão. Entendi que o plano era sério, mas manter os estudos da faculdade desde o início do ensino médio era outra coisa. Me admirava também ele ser tão metódico nisso e ainda conseguir curtir os amigos, o celeiro e suas garrafas de álcool com cores gritantes demais.
Afaguei seus cabelos — Engraçado, porque você não tem cara de nerd.
Ele riu — Sorte a minha, porque eu sou um pouco neurótico com isso. Preciso passar.
— Estamos invadindo propriedade privada e tem pouca luz aqui. Não me faça sair correndo agora.
revirou os olhos — Quer ouvir outra coisa doida então? — concordei ao passar as mãos em suas bochechas — Eu guardo dinheiro desde os meus onze anos. — franzi o cenho — Meu pai me paga pelo que faço no mercado e eu já tive alguns outros trabalhos pela vila, até mesmo para a família de Mason, para conseguir juntar mais. — o ouvi suspirar — Esse ano que preciso focar mais fico trabalhando apenas com o meu pai. Pareço maluco ou a doida continua sendo só você?
Eu nunca tinha visto alguém tão determinado com alguma coisa. Por que eu não conseguia me sentir assim?
— Não, . Você só está correndo atrás do que quer.
Ele sorriu — Mason também faz isso há anos. Sei que não dá para pagar a faculdade inteira, mas dá para sustentar até conseguir uma bolsa ou um emprego… Ou até mesmo para pagar alojamento, comida, essas coisas, por um tempo até que a gente se adapte.
Naquele momento eu mal tinha palavras. Foi ali que eu entendi que era bem maior do que um simples plano de ir estudar em outro lugar. Era uma meta de vida. E corria atrás daquilo há anos, sendo estudando ou juntando todo o dinheiro possível. Foi impossível não suspirar. Aquele arrepio estava de volta, assim como a dúvida em minha cabeça: eu conseguiria fazer o mesmo?
Ele tossiu, o que chamou minha atenção — Minha vontade de ir embora é tanta que eu estudo com prazer, acho que isso faz diferença. — só consegui concordar com a cabeça — , eu nunca senti que algo é tão certo na minha vida quanto ir embora dessa vila.
Alisei novamente os seus cabelos com as mãos.
— Vou te ensinar algumas gírias e confusões que você pode passar na cidade grande.
Ele pareceu satisfeito — Combinado.
— Minha primeira lição é: nunca ande de bicicleta depois do anoitecer.
— Depois das oito está proibido, então?
Revirei os olhos, puxando um cachinho de seu cabelo entre os dedos.
— Segunda lição: falar horário pelo sol é coisa de caipira.
— Que bom que ainda tenho tempo para aprender. Você pode fazer um manual para nós, os caipiras que querem fugir para a cidade grande.
Passei as mãos em seus cabelos e foi impossível não suspirar com aquilo. Cada pedaço do seu corpo em que eu mexia, principalmente de um jeito descontraído, fazia o meu estômago dar voltas. Seus semi cachinhos castanhos eram macios e um pouco embolados, o que o deixava ainda mais lindo. Suas bochechas estavam um pouco mais rosadas que o normal e, por estar tão pertinho, eu podia contar algumas das suas mil sardas pelo nariz. Ele era incrível e eu me sentia cada vez mais agradecida por ter sido salva da masmorra psicológica e ancestral que era Bourton-on-the-Water.
Ele era o plano de escape perfeito.
olhava para o nada, ainda deitado em minhas pernas.
— Você também sente o seu prazo de validade por aqui?
— Desde o primeiro dia em que cheguei na vila. Não é bem um lugar que meus pais ficariam por anos.
No fundo eu sentia uma pontinha de tristeza com a certeza de que ficaria pouco por ali, igual … Sacudi a cabeça, tentando afastar aqueles pensamentos. Iria aproveitar tudo, conforme o planejado. Deixaria para depois pensar nas despedidas e nas perdas.
— Nunca tinha sentido isso até esse ano. Dá medo não passar na faculdade, não sei o que fazer… É o único plano.
— O plano vai dar certo, .
Ele voltou seu olhar para mim, sorrindo de leve.
— São muitos momentos fofos em um dia só. Obrigado, .
Após mais alguns carinhos, meu telefone começou a vibrar, o que indicava que já estava tarde e meus pais queriam saber por onde eu estava. Nós andamos até a esquina da minha casa, onde sempre me deixava após uma noite no celeiro.
Abracei o menino com força — Obrigada por hoje.
Ele sorriu — Amigos são para isso.
Naquele momento eu tinha entendido completamente o que era ser amigo de alguém e também conseguir se envolver emocionalmente. Tinha a tensão sexual sempre, mas também existia o carinho, consideração, admiração e, principalmente, a vontade de conhecer um ao outro.
Tínhamos passado a noite toda falando sobre passados, futuros, vontades e qualquer outro assunto que passasse pela cabeça. Mesmo nos beijando de vez em quando, aquilo não era um encontro para isso, o beijo acontecia pela nossa conexão. Estava bem claro que não era toda vez que iriamos nos agarrar e tirar a roupa por aí, e, incrivelmente, aquilo me deixava feliz demais.
Antes que ele sumisse a caminho de sua casa, soltei:
— Nós podemos ir algum dia desses ao Dragonfly Maze? — me corrigi na hora — Pagando ingressos, claro.
riu — Podemos. O que deu em você?
Dei de ombros — Quero conhecer mais da região. Melhor começar com os pontos turísticos, não é? O The Model Village já foi…
Ele gargalhou e concordou com a cabeça, ainda achando graça do meu pedido. Mas então fechou a sua expressão, respirando fundo em seguida, como se fosse medir suas próximas palavras.
— Sabe, … Se você quiser, posso te ajudar com o lance da faculdade. — ele coçou a nuca — Eu e Mason estudamos juntos toda semana, fazemos alguns simulados. Se achar que precisa de apoio, lembra de mim.
— Obrigada.
Minhas mãos tremiam com aquela ideia e tudo o que consegui fazer foi dar um beijo na bochecha de . Falar ou pensar sobre faculdade mexia demais comigo… Mexia tanto que dei meia volta do meu caminho para casa, a passos largos, para simplesmente beijar de verdade aquele garoto.
Minhas mãos contornaram o seu pescoço e ele reagiu alguns segundos depois, talvez surpreso pela minha reação. Nossos corpos foram colados e todas aquelas sensações passeavam pela minha pele ao sentir as nossas línguas se tocando.
Quando nos afastamos eu tinha um grande sorriso no rosto, e também.
— Nossas despedidas podem ser sempre assim? — ele perguntou rindo.
Tive de rir — Como quiser, garoto do mercado.
Respirei fundo ao ver acenar e seguir o caminho da sua casa. Meu corpo ainda tremia, pelos mil pensamentos e pelo contato das nossas bocas.
Decisão mais do que tomada: amanhã falaria com papai sobre faculdade.
Poderia até mesmo integrar ao plano do celeiro. Tudo daria certo.
Capítulo 12 - Revoluções
“A verdadeira revolução acontece quando mudam os papéis e não apenas os autores”. (Gilbert Cesbron)
— Ainda não acredito que você fez isso.
Eu encarava a tela do computador com um sorriso torto no rosto. Nem eu mesma entendia de onde tinha tirado toda a determinação e maluquice dos últimos dias.
Bree, minha grande amiga de Nova Iorque, me olhava com uma expressão de descrença e eu só conseguia sorrir. Era mais uma de nossas conversas por vídeo que sempre fazíamos, mesmo separadas por um oceano. Depois que eu resolvi não a ignorar mais (não fazia o mínimo sentido a minha infantilidade), combinamos de voltar com o nosso papo semanal por vídeo. Sempre considerei como a minha terapia e pelo jeito continuava funcionando. Para nós duas.
— Já falei da minha teoria sobre falta de poluição, não é?
Ela sacudiu a cabeça — Um milhão de vezes…
Sim, eu ainda achava que ar puro demais me deixava com a normalidade afetada.
Ri sozinha com as lembranças dos últimos dias. Finalmente tinha colocado de pé um dos planos para ajudar o pessoal do celeiro. E, como prometido, eu começaria pelos mais novos.
— Eu tenho um plano.
Todos se mantinham em silêncio ouvindo minhas palavras até que Noah não se aguentou.
— Você vai fingir ser a minha namorada na escola?
— A ideia é começ… — parei na mesma hora. — O quê? Não!
O baixinho deu de ombros — Eu acho que resolveria muita coisa.
— Resolve sua vida ser o namorado da garota que rouba coisas e vende drogas na escola?
Ele piscou algumas vezes, como se parecesse pensar bastante. O restante dos nossos amigos seguravam risadas.
— Sim — Noah relaxou —, com certeza.
— Não é esse o plano — revirei os olhos. — Vai querer ouvir?
Ele concordou com a cara mais lavada do mundo.
— Por favor, .
Espremi os olhos esperando mais alguma gracinha. Olhei para , que balançava a cabeça para os lados, como se o que eu estava prestes a falar fosse um grande erro. Mas ali era a maior investida que eu iria fazer: devolver a implicância dos valentões de Noah e Riley. Aqueles meninos eram como Dominic e precisavam de um sacode forte para colocar os pés no chão.
Como eu não podia sair socando todo mundo na escola, precisávamos nos organizar.
Voltei a falar — O plano é o seguinte…
O acordado seria focar nos dois garotos do terceiro ano que pegavam no pé de Noah e Riley. Eles faziam parte de um comitê chato da escola e nós iríamos sabotar os slides de uma apresentação deles na próxima semana, que teria a presença da diretoria e possivelmente valeria alguma coisa para o currículo escolar na hora de aplicar para a faculdade. Os dois passariam vergonha e seria fácil, já que tinham obrigado os mais novos do celeiro a montar todo o material. Além disso, Hayden tinha conseguido vídeos bem comprometedores dos dois fazendo algumas merdas pela escola, como assediar meninas mais novas.
Se eles soubessem que Noah e Riley tinham um grupo secreto para apoiá-los… Pensariam duas vezes antes de praticar bullying.
Mexer em uma apresentação estava longe de ser o melhor plano do mundo contra os valentões da escola, mas era o que tínhamos. Noah ficou super empolgado e isso foi o suficiente.
— Não acham pouco? Eles roubam nossa comida, podemos colocar laxante nesse dia? Por favor! — todos se entreolharam e depois dirigiram os rostos confusos até mim. — , por favor — Noah suplicou.
Respirei fundo — Vamos colocar. Se eles roubarem o lanche de vocês nesse dia, OK. Se não roubarem, deixem para lá!
Os dois meninos mais novos trocaram um high five em êxtase.
Em todos os detalhes sobre o plano adicionava o comentário “você é doida” ou “muito doida mesmo” em minhas pausas. No final, com tudo aparentemente certo, o encarei.
— Vai apenas reclamar ou vai ajudar também?
Ele comprimiu os olhos claros e o seu sorrisinho de lado foi o suficiente para que todos entendessem que, sim, ele estaria dentro.
A risada de Bree me acordou para a realidade.
— Sabe que isso de pregar peças com os populares é muito surreal, não é?
Tive de rir junto — Tudo aqui é muito surreal! — minha amiga balançou a cabeça, talvez tentando imaginar tudo o que eu já tinha contado de doido e que existia em Bourton-on-the-Water. — Mas foi uma lavagem de alma. ‘Time ’ entrando em campo.
Nessas últimas semanas eu tinha me empenhado para valer nessa história de grupo de apoio do Facebook. Se isso já estava rolando e estava totalmente fora do meu controle, decidi que a melhor coisa a se fazer era aproveitar e ir a favor da maré. Eu tinha amigos. Não era possível que algo desse errado.
Bem, talvez não tão errado... Mas valia a pena arriscar.
Noah mantinha o seu plano de se infiltrar no ‘Time ’ e dias atrás tinha finalmente conseguido. O nosso grupo de mensagens do celeiro secreto tinha novas notificações todas as manhãs, com Noah fazendo o seu boletim diário sobre o que estavam falando dentro daquilo. A surpresa dessa semana, que foi super importante para pensarmos em mais planos, era que Ella tinha sido convidada por um membro, já que eu estava sendo vista pela The Cotswold School com os seus acessórios neon demais (que agora eu usava só nas cores da escola para não levar uma detenção a toa). Essa era uma parte que eu não tinha desistido também. Era o meu melhor suporte para Ella.
Estava realmente buscando ajudar onde conseguia, dando apoio onde era possível. Eu gritava com adolescentes que representavam países nos debates de Línguas, falando sobre temas como igualdade de sexo. Tinha feito alguns cartazes de empoderamento na extracurricular de Artes e os espalhado pela escola, para que as meninas trocassem entre si os seus talentos e se apoiassem mais dentro daquela escola esquisita e, bem, repressora. Eu tinha até mesmo marcado horários no banheiro do bloco de Ciências para conversar com algumas garotas que queriam dicas sobre as coisas mais aleatórias possíveis — de meninos a cores da estação.
Era engraçado e assustador ao mesmo tempo. Nunca tinha sido popular e nunca fiz questão, mas era interessante ver tanta gente, principalmente meninas da minha idade ou mais novas, se importando de verdade com o que eu tinha a dizer.
Mais uma experiência única e doida que só o interior da Inglaterra poderia me proporcionar.
— Mas termina de contar — Bree ainda parecia surpresa. — Você fez isso com a ajuda dos amigos secretos?
— Isso! — respondi de prontidão. Ela era a única pessoa de fora que sabia do celeiro. — Os meninos mais novos… Alguns garotos implicam com eles, obrigam a fazer as tarefas, essas coisas de filme. São de algum comitê ridículo e algum esporte que eu não fiz questão de entender.
Bree revirou os olhos — É por isso que eu odeio atletas.
Tive de rir — Seu ex-namorado era do time de Lacrosse.
— Não é o suficiente para odiar?
— Seu atual namorado, George, não é atleta?
Bree bufou — Ele acha que é. Mas desde quando o xadrez tem importância na escola? — e ela então abanou o ar. — O menino que você socou é de algum time?
Um tremor passou pelo meu corpo ao lembrar o episódio com Dominic. Sinceramente ainda estava esperando uma revanche, mesmo depois de tanto tempo.
— Não. Mas era um idiota, o que dá no mesmo.
— Com toda a certeza, amiga — Bree concordou. — Mas e aí? Plano contra os valentões…
Eu tinha definitivamente perdido o juízo nos últimos dias. No dia o plano deu errado antes mesmo de começar.
Ao contar os detalhes para minha amiga de Nova Iorque, me lembrava dos acontecimentos recentes.
Conforme o combinado, Noah e Riley entregaram a apresentação de slides certinha para os valentões e, infelizmente, os dois não quiseram o lanche dos novatos. Seria um complemento bem interessante para a nossa vitória.
Mas tudo começou a desandar quando Hayden e Bronwen se perderam em meio ao nervosismo, dando bandeira por aí. As coisas ficaram confusas e quase tive que intervir no plano no meio de sua execução, mas no final o pessoal conseguiu ajustar os cabos, trocar pendrives (quem ainda utilizava aquilo? Só podia ser em Bourton-on-the-Water) e o plano esquisito deu certo.
As coisas foram tão doidas que os dois valentões ficaram nervosos e começaram a puxar todos os cabos possíveis para que a apresentação parasse de rodar, mas isso só piorou as coisas. Foi tudo muito rápido e, quando vimos, todos os aparelhos estavam no chão, cadeiras caindo do palco e até mesmo um deles desabou de uma mini escada. Igualzinho em um filme americano com adolescentes fazendo besteiras pela escola.
Na sequência vimos as meninas indo à loucura, aos gritos e, incrivelmente, sendo apoiadas por parte dos garotos da escola. Essa última cena eu não fiz muita questão de questionar, o importante era que tinha dado certo. Depois daquilo era só torcer para que ninguém descobrisse quem tinha feito aquela merda toda na escola. E até o momento tinha funcionado, pois só vimos algumas pessoas distribuindo cartazes para que o assédio terminasse dentro daquela instituição. Os valentões tinham sido suspensos.
Era isso. Com uma pegadinha tínhamos começado uma revolução na The Cotswold School.
Bree parecia chocada do outro lado do vídeo. Eu sorri. Já estava anestesiada sobre os últimos acontecimentos. Pelo menos ninguém tinha a noção de quem fez aquela confusão toda. Tinha certeza que se soubessem do meu envolvimento seria suspensa, com toda certeza.
— Sério, isso foi muito igual a um filme ruim de adolescentes — ela piscou, atônita. — O ar sem poluição realmente está te afetando.
— Eu te disse…
— Os meninos ficaram felizes? — concordei com um gesto. — Que bom, pelo menos isso no meio do caos.
— Já estão até querendo escolher uma próxima vítima — ri sozinha. — Mas fez todo mundo prometer deixar de lado até que a escola se esqueça disso.
— E até agora ninguém sabe quem foi?
Concordei — Imagina ter mais uma pessoa pegando no meu pé abertamente dentro daquele lugar?
— Então a tal Zara ainda está pegando no seu pé?
— De uma forma mais indireta, mas sim — fiz uma careta ao relembrar os últimos embates com Zara. Ainda não sabia o que aquela garota queria comigo e tinha certeza que ela fugiria se eu fosse direta ao questionar. — Não sei qual o problema dela comigo, mas ainda vou descobrir… Não acho que seja por ela ter sido namorada de .
Bree levantou as sobrancelhas — O líder do celeiro namorava a rainha da escola?
Dei de ombros — Nada é perfeito, não é?
Ela concordou — Isso tudo parece digno de uma fanfic.
Fanfic mesmo era o que tinha acontecido logo após o plano, quando, ao me esconder dos valentões que buscavam quem tinha sido o responsável por toda aquela algazarra no auditório, acabei correndo até a outra ponta da escola.
Como eu era a principal pessoa a ser apontada para começar aquela mini revolução na The Cotswold School, precisava de um álibi forte. Corri tanto, tanto, que cheguei completamente suada e descabelada no último bloco da instituição, onde ficava a sala da oficina de Artes.
Assim que entrei coloquei todo o equipamento para mexer com madeira e me sujei o máximo possível. Se alguém viesse me questionar, eu teria uma personagem para encenar. Após meia hora fingindo estar fazendo algo, recebi uma mensagem de Hayden dizendo que estava tudo bem e que eu poderia sair de onde quer que eu estivesse. Respirei fundo, deixando as coisas de lado e caminhando até a saída da escola. Evitaria até o meu armário para não causar suspeitas.
Andei pela parte de fora, onde temos um jardim com muitas árvores e bancos de pedra e, ao passar pelo contorno do ginásio, avistei Zara encostada em uma das paredes. A garota parecia brava ao falar com alguém que, ao caminhar um pouco mais, percebi ser Kyle, o garoto da jaqueta de couro.
Rapidamente me escondi em uma das árvores, torcendo para que não me vissem ou então achariam que eu poderia estar escondida para ouvir a conversa dos dois. Meu coração bateu mais forte quando consegui ouvir Kyle falar:
— Eu não sei, Zara… — ele pareceu dar de ombros. — Não acho que isso vá ser o suficiente.
— O que você pensou, então? — Zara parecia estressada. — Preciso de algo rápido depois da sua mancada.
— Ela não se importou com nada disso até agora, Zara — vi Kyle revirar os olhos. — E eu não acho que ela esteja aqui por causa do seu pai.
Aquilo foi o suficiente para o meu coração ainda acelerado errar algumas batidas. Não tinham falado abertamente o meu nome, mas eu sabia, lá no fundo, que aquela conversa era sim sobre mim.
Colocar o pai de Zara na conversa não fazia sentido algum, mas me lembrava de Kyle me perguntando se minha família estava ali por causa dos Ward...
Zara olhou para os lados e me escondi ainda mais.
— Não fale isso em voz alta — a ouvi suspirar. — Pense em algo. Precisa ser bom, estamos ficando sem tempo.
Corri ainda mais para longe do ginásio, esperando não ser vista por ninguém.
Até agora eu não entendia o que aquilo queria dizer, mas de uma coisa eu sabia: precisava ficar com os dois olhos bem abertos nos próximos dias.
— O que esse babaca falou para você naquele dia mesmo? — Bree perguntou.
Tentei a minha melhor imitação de rebelde da jaqueta de couro.
— “As coisas vão ficar mais difíceis para você, ”.
— Já aceitei os seus outros amigos, mas esse Kyle é muito caipira — ela revirou os olhos ao dizer. — Quem fica assim por causa de um beijo?
— Você acha que tem alguma coisa aí ou eu que estou paranóica?
— Tem coisa aí, — Bree pareceu pensar. — Pelo que você diz, essa garota gosta de mexer com o seu psicológico. Talvez Kyle esteja atrás dela para ter ideias de como fazer da sua vida um inferno?
Pisquei algumas vezes, me faltando palavras.
— Nossa, obrigada pelos pesadelos.
A verdade era que eu também tinha achado muito esquisito aquela cena entre Zara e Kyle e, principalmente, o que tinha ouvido o menino falar. “Ela não se importou com nada disso até agora, Zara”. Parecia paranoia pensar que era sobre mim, mas eu tinha sentido a mesma coisa do que naquela outra vez com as meninas no corredor. Eu adoraria que não fosse sobre mim, mas todos os meus sentidos gritavam que, sim, era sobre a garota da cidade grande.
Estava tão cansada daquilo… Mas tentava manter a cabeça erguida. Eu tinha amigos que acreditavam em mim, tinha , tinha meu cachorro… E tinha o esquisito ‘Time ’.
Sinceramente achava que nada que Zara ou outra pessoa pudesse inventar naquela escola poderia me atingir tanto. Eu estava começando a me blindar de coisas boas.
Teria de ser um tiro muito poderoso.
Meu corpo se arrepiou ao pensar isso. Precisava compartilhar essa informação com Mila, que sempre via bondade em todo mundo. Talvez não fosse tão ruim assim e eu só estava maluca mesmo, com mania de perseguição.
Seguimos falando de coisas aleatórias sobre nossas vidas em Nova Iorque e Cotswolds. Minhas bochechas chegavam a doer de tanto que eu sorria.
— , eu adoro como você não sabe esconder nada — ela dava risada e minha expressão sorridente se transformou em um ponto de interrogação. — Eu contei o nome vinte e três vezes. Da última vez que nos falamos você conseguiu controlar, mas agora está demais. Pode soltar tudo.
Revirei os olhos — Ele é do grupo, você sabe.
— Sim, eu sei. Já rolou quantas vezes?
Abri a boca — Como você faz isso?
Bree deu de ombros, convencida.
— Amiga, são anos decifrando você pessoalmente e por vídeo, que é bem mais difícil! Pode falar, sem rodeios e com todos os detalhes possíveis.
Nunca era demais pensar em e falar sobre ele com uma pessoa que não o conhecia… Era bem tentador.
A primeira coisa que veio à minha cabeça foi a última noite que conseguimos passar juntos.
Tinha chegado ao celeiro completamente encharcada da chuva repentina na estrada de terra. Os cabelos quase cacheados de estavam arrepiados, suas roupas tão molhadas quanto as minhas.
Meu dia já tinha sido bem difícil na The Cotswold School (um boato novo sobre eu conseguir roubar gabaritos de testes do quarto ano em troca de algo para aliviar o meu vício em cigarros suspeitos) e Noah não estava me ajudando naquela noite. já tinha avançado no menino algumas vezes, mas ele continuava enchendo os meus ouvidos com gracinhas e piadas de mau gosto.
Tudo isso porque, com a chuva torrencial que pegamos no caminho, minha blusa clara estava transparente. até procurou uma camisa para que eu pudesse me trocar, mas Mason tinha levado as últimas que estavam por lá.
Teria que aguentar aquilo até ir embora ou dar um soco em Noah.
— , não precisa ficar assim. Você é linda e gost…
— Chega! — cortei Noah na mesma hora, já irada. Estava de mau humor e pronta para descontar em alguém. Me parecia justo fazer isso em quem tentava me tirar do sério. Andei até onde Noah estava, levantando a minha blusa até quase o queixo, deixando meu sutiã agora realmente à mostra. Baixei a blusa em um ímpeto, ainda estressada. — Satisfeito? Era isso que você queria ver? Não me enche mais o saco! O celeiro ficou em silêncio. Noah me encarava, boquiaberto. Mila, ao seu lado, parecia envergonhada. Virei de costas, indo sentar em um dos bolos de feno. Meu olhar encontrou os olhos de e ele apenas levantou as sobrancelhas, também surpreso pela minha reação.
Mason, Riley, Hayden, Ella e até mesmo Bronwen, pareciam em choque.
Marchei até o outro lado do celeiro, mas ainda consegui ouvir a voz de Noah.
— Cara, você nem reagiu!
Soube que era para quando ouvi sua voz.
— Cala a boca, pirralho.
Noah continuou — Tenho muito o que aprender com você, .
— Você já viu as meninas de lingerie para tomar banho no rio.
Quando riu, eu me virei, possessa. Noah ainda estava chocado.
— Mas eu não olhei tão diretamente, né?
Grunhi alto — Querem parar?
me olhou esquisito, talvez agora entendendo o quão irada eu estava.
Passei a noite emburrada no meu canto. Mila tentava me animar, mas eu ainda me sentia triste e estressada. Tinha decidido que aqueles boatos não iriam me afetar, mas ainda era uma tarefa bem difícil. O resto do pessoal jogava cartas e ria sem parar, mas eu não me sentia no clima. Estourar com Noah só tinha piorado as coisas.
Na hora de ir embora, enrolou um pouco, parecendo esperar todos irem para finalmente encarar o meu mau humor. Sua expressão era divertida, mas eu sabia que ele estaria pronto para jogar umas verdades na minha cara, se fosse necessário.
Quando não tinha mais ninguém à vista na estrada de terra mal iluminada, encarei seu rosto.
— Podemos ir?
ponderou com um aceno. Seu próximo movimento foi me puxar para mais perto, colando os nossos lábios com vontade. Eu tinha ficado surpresa, mas consegui rir e retribuir na hora.
Nos descolamos para pegar algum fôlego. respirava fundo enquanto passava o seu nariz no meu pescoço, me causando vários arrepios.
— Esperei por esse momento a noite toda — sua voz saiu mais rouca que o normal.
Ri pelo nariz, meu mau humor indo embora na hora.
— Podíamos ter saído antes.
Ele concordou com um suspiro — Você estava muito estressada por causa da chuva, não queria brigar.
— Não iria brigar com você.
Sua risada fez cócegas na minha nuca — Conta outra, — e me encarou, seus olhos azul-claro brilhando. — Mas eu tenho uma proposta... Vamos gastar essa frustração aí em alguma coisa? — riu com malícia. — Também tenho sonhado com ideias, cidade grande.
Já estava tonta de tanto falar sobre .
Bree ainda ria — Eu tenho que concordar com a teoria do ar puro. Desde quando você é doida desse jeito?
— É exatamente o que me diz sempre — suspirei alto. — Acha que estou tão diferente?
Bree pareceu me analisar pela câmera.
— Você está mais feliz, amiga. Se essa maluquice repentina te deixa assim, eu fico feliz também — tive de sorrir com aquilo. — E está mais loira. Eu aprovo.
— Deixei uma amiga pintar o meu cabelo…
Bree gargalhou — Acho que sua doideira não tem mais cura.
Só consegui dar de ombros quando ela abanou o ar ao continuar:
— Você eu já entendi que sim, mas seus pais estão bem?
— Sim — sorri mais uma vez. — Daquele jeito doido deles com mudanças novas. Acredita que tem uma bandeira de Cotswolds em nossa casa?
Balancei a cabeça para os lados. Meus pais tinham relaxado mais no interior da Inglaterra e faziam coisas diferentes, que não era possível fazer na cidade grande. Era difícil admitir, mas eu gostava que eles estivessem curtindo.
Esse assunto me lembrou a última conversa séria que tive com eles. Mesma conversa que era o motivo central para estar há quase uma hora na chamada de vídeo com a minha amiga.
Entrei em casa, sendo recepcionada por duas patinhas tentando me abraçar. Astra.
Peguei o cachorro no colo em meio a sua agitação. Ele já estava enorme, quando mamãe percebesse o tamanho que ele ia ficar…
Estranhei a calmaria na sala de estar. Nada de aparelhos eletrônicos, séries antigas ou uma música sequer. Se eu não conhecesse bem os meus pais, imaginaria que isso era…
— , estávamos te esperando — meu pai falou com o semblante calmo.
… Uma emboscada.
Olhei para os lados, deixando o cachorro no chão. O mesmo saiu correndo para o pé de mamãe, que, diferente de meu pai, me olhava desconfiada.
— Aconteceu alguma coisa? — tentei controlar o tom de voz. Por sorte só tínhamos dançado e comido porcaria no celeiro, ou eu estaria perdida.
Meu pai deu duas batidinhas na poltrona ao seu lado. Entendi como uma ordem e nem questionei, sentando em seguida.
— Filha — mamãe começou —, queremos saber se está tudo bem com você aqui na vila.
— Está, mãe. Por quê?
Eu não tinha nem motivos para fazer essa pergunta. As saídas tardes, as desculpas ruins que eu sempre dava… Estava bem na cara que eu estava escondendo alguma coisa deles.
Meu pai agora parecia medir as suas palavras.
— Nós adoramos que você tenha achado amigos aqui na vila, mas…
Engoli em seco — Mas?
Aquilo não era bom. Não era o jantar que eles sempre faziam para dizer que estávamos deixando a cidade em duas semanas, mas soava igualzinho. Meu coração de repente deu um salto. Foi ali, naquele momento tenso e esquisito, que eu percebi que estava longe de querer sair de Cotswold.
Papai passou a mão na barba por fazer.
— Você tem chegado tarde em dias de semana, com escola na manhã seguinte.
Mamãe completou — E seus sapatos estão sempre muito sujos de terra.
Meu pai finalizou — Se está acontecendo algo, pode compartilhar com a gente.
Eu não consegui conter o sorriso em meus lábios.
— Não estamos indo embora?
— Não — papai franziu a testa. — Você mudou de ideia de novo?
— Não! — eu estava rindo sozinha. Abanei o ar com as mãos. — Mãe, tudo aqui em Bourton-on-the-Water tem grama, terra e água. Está tudo bem.
Foi a vez dela franzir a testa — E as chegadas muito tarde em casa?
— Peço desculpas. Sei que vocês confiam em mim e estou aproveitando que temos quatro mil habitantes aqui para experimentar o que é viver… Sem medo.
Essa última parte poderia ser um exagero, mas era a mais pura verdade. Em que outro lugar do mundo eu poderia voltar de bicicleta de um terreno abandonado depois da meia noite?
Meu pai ponderou — Fico feliz que você sinta segurança por aqui.
— Eu sinto, pai. E é bom. O pessoal aqui anda de bicicleta à noite sem medo algum. — suspirei. — Se vocês quiserem posso trazer alguns dos amigos aqui para que possam conhecer. Mãe, a Mila você já conhece.
— Tudo bem — ele suspirou, olhando de lado para minha mãe. — Só estamos preocupados… Não queremos colocar um horário para você chegar, nunca tivemos isso. Mas quero que você seja responsável nos dias que tem escola na manhã seguinte.
Tinha sido a intervenção mais fácil que eu já sofri com os meus pais. Realmente o interior estava mudando todos nós.
Procurando não prolongar mais o assunto e correr o risco de falar demais sobre o meu grupo secreto, levantei do sofá, com Astra agora tentando morder os cadarços dos meus tênis.
— Super combinado. Obrigada — mas dei meia volta antes mesmo de começar a andar para o meu quarto. — Aproveitando vocês dois aqui nessa emboscada… Preciso fazer a minha.
Papai franziu o cenho — O que você aprontou agora?
Era esquisito, mas pareceu o momento certo para falar sobre um possível futuro estável.
Durante aquela chamada de vídeo eu me senti ainda mais em casa. Bree tinha contado sobre tudo e mais um pouco, como o fato de que meu irmão mais velho, Arthur, ficava mostrando fotos minhas em Cotswolds dizendo que visitaria em breve. Minha amiga dizia que tentaria vir junto, o que foi o suficiente para que eu pudesse sorrir ainda mais.
— Sua semana foi agitada — ela sorria para a câmera. Meu coração se encheu de saudade. — E a sua novidade? A minha é que eu achei um vestido lindo para a formatura. Quando chegar te envio uma foto estilosa.
— A minha novidade é… — respirei fundo. — Falei com o meu pai, você sabe… Sobre faculdade.
A expressão de Bree era uma completa surpresa. Demorou alguns segundos para que ela reagisse e eu já pensava que nossa conversa tinha congelado o vídeo quando ela deu um grito.
— Aqui?
Era uma promessa antiga, mas eu esperava que ela lembrasse. E eu não tinha me decepcionado. Faculdade era o mesmo que aceitar a casa em Bourton-on-the-Water. Significava ficar em um só lugar por no mínimo quatro anos.
Dei de ombros, fingindo casualidade.
— Possivelmente…
— Não me venha com expressões blasé! — ela bateu palmas, ainda rindo. — Ai, que notícia maravilhosa!
— Ainda não é certo, mas…
— Mas já importa muito! Só de ter essa possibilidade. Nossa… Vai ser o máximo!
É, eu também achava que seria o máximo. Ainda tinha minhas dúvidas sobre o que queria fazer no próximo ano, mas toda aquela vontade de de correr atrás dos seus sonhos me fazia querer sentir o mesmo.
— , só… — Bree parecia controlar seu tom de voz. — Só não some de novo, está bem? Eu sinto a sua falta. Somos melhores amigas… Não quero que isso aconteça de novo.
Suspirei — Você tem razão, me desculpe — e dei de ombros. Aquilo era verdade. Éramos sim melhores amigas. Bree era aquele tipo de amizade que, mesmo distante, não mudava em nada. E eu podia ficar triste por estar tão longe, mas sabia que ela me ajudaria mesmo com tanta distância e fuso horários diferentes. — Eu não sei o que aconteceu comigo. Fiquei muito chateada com as fotos que vocês postaram… É difícil entender que eu não faço mais parte da vida de vocês.
— Claro que faz!
Sorri fraco — Não do jeito que eu gostaria.
— É difícil para mim também, sabe? — concordei com um gesto. — Mas a nossa amizade sobrevive a tudo, cara. Não faz mais isso, eu estou aqui.
— Obrigada. Conta sempre comigo também.
— E, olha, sobre o Logan… — foi a vez de Bree suspirar. — Ele é um idiota e eu estou do seu lado sempre — e revirou os olhos. — Mas ele também é meu amigo, espero que você entenda isso.
— Eu sei, Bree. Está tudo bem, de verdade.
Era doido falar isso em voz alta mas, sim, estava tudo bem. Tinha claramente um assunto mal resolvido com Logan, mas estava me esforçando para que aquilo tudo virasse um passado que não doesse mais.
— Tem certeza? Podemos conversar sobre isso, ver um meio termo.
— Não. É sério. Logan é passado, está tudo bem.
Minha amiga sorriu — Fico feliz, . E espero que esteja sendo sincera.
— Por incrível que pareça, eu estou.
— Ótimo — ela bateu palmas agora em frente à câmera. — Eu adorava vocês como casal, mas odiava ver só você sofrendo.
— Eu sei, mas agora a gente foca no presente, combinado?
— Super combinado! Bate aqui — e fez um sinal de aceno até a tela do computador.
Encostei a minha mão na dela de prontidão.
— Sempre juntas.
— Sempre juntas.
Sorrimos ao mesmo tempo. Minha amiga continuou:
— Então, você tem tempo para ouvir a última da Celina? É algo bem bizarro.
Apenas concordei, ainda com um sorriso no rosto. Como eu consegui ignorar essa amizade de anos? As mudanças eram sempre difíceis, aceitar o novo lugar tinha o dobro de dificuldade, mas falar com Bree era a coisa mais fácil desde que eu me entendia por gente.
Assim como tinha feito uma revolução (quase sem querer) na The Cotswold School, também faria na minha vida. O passado ficava no passado e agora era a hora de focar no futuro… Só me faltava descobrir o que eu realmente queria além da certeza de ter Bree, meus amigos do celeiro e sempre por perto.
— Ainda não acredito que você fez isso.
Eu encarava a tela do computador com um sorriso torto no rosto. Nem eu mesma entendia de onde tinha tirado toda a determinação e maluquice dos últimos dias.
Bree, minha grande amiga de Nova Iorque, me olhava com uma expressão de descrença e eu só conseguia sorrir. Era mais uma de nossas conversas por vídeo que sempre fazíamos, mesmo separadas por um oceano. Depois que eu resolvi não a ignorar mais (não fazia o mínimo sentido a minha infantilidade), combinamos de voltar com o nosso papo semanal por vídeo. Sempre considerei como a minha terapia e pelo jeito continuava funcionando. Para nós duas.
— Já falei da minha teoria sobre falta de poluição, não é?
Ela sacudiu a cabeça — Um milhão de vezes…
Sim, eu ainda achava que ar puro demais me deixava com a normalidade afetada.
Ri sozinha com as lembranças dos últimos dias. Finalmente tinha colocado de pé um dos planos para ajudar o pessoal do celeiro. E, como prometido, eu começaria pelos mais novos.
— Eu tenho um plano.
Todos se mantinham em silêncio ouvindo minhas palavras até que Noah não se aguentou.
— Você vai fingir ser a minha namorada na escola?
— A ideia é começ… — parei na mesma hora. — O quê? Não!
O baixinho deu de ombros — Eu acho que resolveria muita coisa.
— Resolve sua vida ser o namorado da garota que rouba coisas e vende drogas na escola?
Ele piscou algumas vezes, como se parecesse pensar bastante. O restante dos nossos amigos seguravam risadas.
— Sim — Noah relaxou —, com certeza.
— Não é esse o plano — revirei os olhos. — Vai querer ouvir?
Ele concordou com a cara mais lavada do mundo.
— Por favor, .
Espremi os olhos esperando mais alguma gracinha. Olhei para , que balançava a cabeça para os lados, como se o que eu estava prestes a falar fosse um grande erro. Mas ali era a maior investida que eu iria fazer: devolver a implicância dos valentões de Noah e Riley. Aqueles meninos eram como Dominic e precisavam de um sacode forte para colocar os pés no chão.
Como eu não podia sair socando todo mundo na escola, precisávamos nos organizar.
Voltei a falar — O plano é o seguinte…
O acordado seria focar nos dois garotos do terceiro ano que pegavam no pé de Noah e Riley. Eles faziam parte de um comitê chato da escola e nós iríamos sabotar os slides de uma apresentação deles na próxima semana, que teria a presença da diretoria e possivelmente valeria alguma coisa para o currículo escolar na hora de aplicar para a faculdade. Os dois passariam vergonha e seria fácil, já que tinham obrigado os mais novos do celeiro a montar todo o material. Além disso, Hayden tinha conseguido vídeos bem comprometedores dos dois fazendo algumas merdas pela escola, como assediar meninas mais novas.
Se eles soubessem que Noah e Riley tinham um grupo secreto para apoiá-los… Pensariam duas vezes antes de praticar bullying.
Mexer em uma apresentação estava longe de ser o melhor plano do mundo contra os valentões da escola, mas era o que tínhamos. Noah ficou super empolgado e isso foi o suficiente.
— Não acham pouco? Eles roubam nossa comida, podemos colocar laxante nesse dia? Por favor! — todos se entreolharam e depois dirigiram os rostos confusos até mim. — , por favor — Noah suplicou.
Respirei fundo — Vamos colocar. Se eles roubarem o lanche de vocês nesse dia, OK. Se não roubarem, deixem para lá!
Os dois meninos mais novos trocaram um high five em êxtase.
Em todos os detalhes sobre o plano adicionava o comentário “você é doida” ou “muito doida mesmo” em minhas pausas. No final, com tudo aparentemente certo, o encarei.
— Vai apenas reclamar ou vai ajudar também?
Ele comprimiu os olhos claros e o seu sorrisinho de lado foi o suficiente para que todos entendessem que, sim, ele estaria dentro.
A risada de Bree me acordou para a realidade.
— Sabe que isso de pregar peças com os populares é muito surreal, não é?
Tive de rir junto — Tudo aqui é muito surreal! — minha amiga balançou a cabeça, talvez tentando imaginar tudo o que eu já tinha contado de doido e que existia em Bourton-on-the-Water. — Mas foi uma lavagem de alma. ‘Time ’ entrando em campo.
Nessas últimas semanas eu tinha me empenhado para valer nessa história de grupo de apoio do Facebook. Se isso já estava rolando e estava totalmente fora do meu controle, decidi que a melhor coisa a se fazer era aproveitar e ir a favor da maré. Eu tinha amigos. Não era possível que algo desse errado.
Bem, talvez não tão errado... Mas valia a pena arriscar.
Noah mantinha o seu plano de se infiltrar no ‘Time ’ e dias atrás tinha finalmente conseguido. O nosso grupo de mensagens do celeiro secreto tinha novas notificações todas as manhãs, com Noah fazendo o seu boletim diário sobre o que estavam falando dentro daquilo. A surpresa dessa semana, que foi super importante para pensarmos em mais planos, era que Ella tinha sido convidada por um membro, já que eu estava sendo vista pela The Cotswold School com os seus acessórios neon demais (que agora eu usava só nas cores da escola para não levar uma detenção a toa). Essa era uma parte que eu não tinha desistido também. Era o meu melhor suporte para Ella.
Estava realmente buscando ajudar onde conseguia, dando apoio onde era possível. Eu gritava com adolescentes que representavam países nos debates de Línguas, falando sobre temas como igualdade de sexo. Tinha feito alguns cartazes de empoderamento na extracurricular de Artes e os espalhado pela escola, para que as meninas trocassem entre si os seus talentos e se apoiassem mais dentro daquela escola esquisita e, bem, repressora. Eu tinha até mesmo marcado horários no banheiro do bloco de Ciências para conversar com algumas garotas que queriam dicas sobre as coisas mais aleatórias possíveis — de meninos a cores da estação.
Era engraçado e assustador ao mesmo tempo. Nunca tinha sido popular e nunca fiz questão, mas era interessante ver tanta gente, principalmente meninas da minha idade ou mais novas, se importando de verdade com o que eu tinha a dizer.
Mais uma experiência única e doida que só o interior da Inglaterra poderia me proporcionar.
— Mas termina de contar — Bree ainda parecia surpresa. — Você fez isso com a ajuda dos amigos secretos?
— Isso! — respondi de prontidão. Ela era a única pessoa de fora que sabia do celeiro. — Os meninos mais novos… Alguns garotos implicam com eles, obrigam a fazer as tarefas, essas coisas de filme. São de algum comitê ridículo e algum esporte que eu não fiz questão de entender.
Bree revirou os olhos — É por isso que eu odeio atletas.
Tive de rir — Seu ex-namorado era do time de Lacrosse.
— Não é o suficiente para odiar?
— Seu atual namorado, George, não é atleta?
Bree bufou — Ele acha que é. Mas desde quando o xadrez tem importância na escola? — e ela então abanou o ar. — O menino que você socou é de algum time?
Um tremor passou pelo meu corpo ao lembrar o episódio com Dominic. Sinceramente ainda estava esperando uma revanche, mesmo depois de tanto tempo.
— Não. Mas era um idiota, o que dá no mesmo.
— Com toda a certeza, amiga — Bree concordou. — Mas e aí? Plano contra os valentões…
Eu tinha definitivamente perdido o juízo nos últimos dias. No dia o plano deu errado antes mesmo de começar.
Ao contar os detalhes para minha amiga de Nova Iorque, me lembrava dos acontecimentos recentes.
Conforme o combinado, Noah e Riley entregaram a apresentação de slides certinha para os valentões e, infelizmente, os dois não quiseram o lanche dos novatos. Seria um complemento bem interessante para a nossa vitória.
Mas tudo começou a desandar quando Hayden e Bronwen se perderam em meio ao nervosismo, dando bandeira por aí. As coisas ficaram confusas e quase tive que intervir no plano no meio de sua execução, mas no final o pessoal conseguiu ajustar os cabos, trocar pendrives (quem ainda utilizava aquilo? Só podia ser em Bourton-on-the-Water) e o plano esquisito deu certo.
As coisas foram tão doidas que os dois valentões ficaram nervosos e começaram a puxar todos os cabos possíveis para que a apresentação parasse de rodar, mas isso só piorou as coisas. Foi tudo muito rápido e, quando vimos, todos os aparelhos estavam no chão, cadeiras caindo do palco e até mesmo um deles desabou de uma mini escada. Igualzinho em um filme americano com adolescentes fazendo besteiras pela escola.
Na sequência vimos as meninas indo à loucura, aos gritos e, incrivelmente, sendo apoiadas por parte dos garotos da escola. Essa última cena eu não fiz muita questão de questionar, o importante era que tinha dado certo. Depois daquilo era só torcer para que ninguém descobrisse quem tinha feito aquela merda toda na escola. E até o momento tinha funcionado, pois só vimos algumas pessoas distribuindo cartazes para que o assédio terminasse dentro daquela instituição. Os valentões tinham sido suspensos.
Era isso. Com uma pegadinha tínhamos começado uma revolução na The Cotswold School.
Bree parecia chocada do outro lado do vídeo. Eu sorri. Já estava anestesiada sobre os últimos acontecimentos. Pelo menos ninguém tinha a noção de quem fez aquela confusão toda. Tinha certeza que se soubessem do meu envolvimento seria suspensa, com toda certeza.
— Sério, isso foi muito igual a um filme ruim de adolescentes — ela piscou, atônita. — O ar sem poluição realmente está te afetando.
— Eu te disse…
— Os meninos ficaram felizes? — concordei com um gesto. — Que bom, pelo menos isso no meio do caos.
— Já estão até querendo escolher uma próxima vítima — ri sozinha. — Mas fez todo mundo prometer deixar de lado até que a escola se esqueça disso.
— E até agora ninguém sabe quem foi?
Concordei — Imagina ter mais uma pessoa pegando no meu pé abertamente dentro daquele lugar?
— Então a tal Zara ainda está pegando no seu pé?
— De uma forma mais indireta, mas sim — fiz uma careta ao relembrar os últimos embates com Zara. Ainda não sabia o que aquela garota queria comigo e tinha certeza que ela fugiria se eu fosse direta ao questionar. — Não sei qual o problema dela comigo, mas ainda vou descobrir… Não acho que seja por ela ter sido namorada de .
Bree levantou as sobrancelhas — O líder do celeiro namorava a rainha da escola?
Dei de ombros — Nada é perfeito, não é?
Ela concordou — Isso tudo parece digno de uma fanfic.
Fanfic mesmo era o que tinha acontecido logo após o plano, quando, ao me esconder dos valentões que buscavam quem tinha sido o responsável por toda aquela algazarra no auditório, acabei correndo até a outra ponta da escola.
Como eu era a principal pessoa a ser apontada para começar aquela mini revolução na The Cotswold School, precisava de um álibi forte. Corri tanto, tanto, que cheguei completamente suada e descabelada no último bloco da instituição, onde ficava a sala da oficina de Artes.
Assim que entrei coloquei todo o equipamento para mexer com madeira e me sujei o máximo possível. Se alguém viesse me questionar, eu teria uma personagem para encenar. Após meia hora fingindo estar fazendo algo, recebi uma mensagem de Hayden dizendo que estava tudo bem e que eu poderia sair de onde quer que eu estivesse. Respirei fundo, deixando as coisas de lado e caminhando até a saída da escola. Evitaria até o meu armário para não causar suspeitas.
Andei pela parte de fora, onde temos um jardim com muitas árvores e bancos de pedra e, ao passar pelo contorno do ginásio, avistei Zara encostada em uma das paredes. A garota parecia brava ao falar com alguém que, ao caminhar um pouco mais, percebi ser Kyle, o garoto da jaqueta de couro.
Rapidamente me escondi em uma das árvores, torcendo para que não me vissem ou então achariam que eu poderia estar escondida para ouvir a conversa dos dois. Meu coração bateu mais forte quando consegui ouvir Kyle falar:
— Eu não sei, Zara… — ele pareceu dar de ombros. — Não acho que isso vá ser o suficiente.
— O que você pensou, então? — Zara parecia estressada. — Preciso de algo rápido depois da sua mancada.
— Ela não se importou com nada disso até agora, Zara — vi Kyle revirar os olhos. — E eu não acho que ela esteja aqui por causa do seu pai.
Aquilo foi o suficiente para o meu coração ainda acelerado errar algumas batidas. Não tinham falado abertamente o meu nome, mas eu sabia, lá no fundo, que aquela conversa era sim sobre mim.
Colocar o pai de Zara na conversa não fazia sentido algum, mas me lembrava de Kyle me perguntando se minha família estava ali por causa dos Ward...
Zara olhou para os lados e me escondi ainda mais.
— Não fale isso em voz alta — a ouvi suspirar. — Pense em algo. Precisa ser bom, estamos ficando sem tempo.
Corri ainda mais para longe do ginásio, esperando não ser vista por ninguém.
Até agora eu não entendia o que aquilo queria dizer, mas de uma coisa eu sabia: precisava ficar com os dois olhos bem abertos nos próximos dias.
— O que esse babaca falou para você naquele dia mesmo? — Bree perguntou.
Tentei a minha melhor imitação de rebelde da jaqueta de couro.
— “As coisas vão ficar mais difíceis para você, ”.
— Já aceitei os seus outros amigos, mas esse Kyle é muito caipira — ela revirou os olhos ao dizer. — Quem fica assim por causa de um beijo?
— Você acha que tem alguma coisa aí ou eu que estou paranóica?
— Tem coisa aí, — Bree pareceu pensar. — Pelo que você diz, essa garota gosta de mexer com o seu psicológico. Talvez Kyle esteja atrás dela para ter ideias de como fazer da sua vida um inferno?
Pisquei algumas vezes, me faltando palavras.
— Nossa, obrigada pelos pesadelos.
A verdade era que eu também tinha achado muito esquisito aquela cena entre Zara e Kyle e, principalmente, o que tinha ouvido o menino falar. “Ela não se importou com nada disso até agora, Zara”. Parecia paranoia pensar que era sobre mim, mas eu tinha sentido a mesma coisa do que naquela outra vez com as meninas no corredor. Eu adoraria que não fosse sobre mim, mas todos os meus sentidos gritavam que, sim, era sobre a garota da cidade grande.
Estava tão cansada daquilo… Mas tentava manter a cabeça erguida. Eu tinha amigos que acreditavam em mim, tinha , tinha meu cachorro… E tinha o esquisito ‘Time ’.
Sinceramente achava que nada que Zara ou outra pessoa pudesse inventar naquela escola poderia me atingir tanto. Eu estava começando a me blindar de coisas boas.
Teria de ser um tiro muito poderoso.
Meu corpo se arrepiou ao pensar isso. Precisava compartilhar essa informação com Mila, que sempre via bondade em todo mundo. Talvez não fosse tão ruim assim e eu só estava maluca mesmo, com mania de perseguição.
Seguimos falando de coisas aleatórias sobre nossas vidas em Nova Iorque e Cotswolds. Minhas bochechas chegavam a doer de tanto que eu sorria.
— , eu adoro como você não sabe esconder nada — ela dava risada e minha expressão sorridente se transformou em um ponto de interrogação. — Eu contei o nome vinte e três vezes. Da última vez que nos falamos você conseguiu controlar, mas agora está demais. Pode soltar tudo.
Revirei os olhos — Ele é do grupo, você sabe.
— Sim, eu sei. Já rolou quantas vezes?
Abri a boca — Como você faz isso?
Bree deu de ombros, convencida.
— Amiga, são anos decifrando você pessoalmente e por vídeo, que é bem mais difícil! Pode falar, sem rodeios e com todos os detalhes possíveis.
Nunca era demais pensar em e falar sobre ele com uma pessoa que não o conhecia… Era bem tentador.
A primeira coisa que veio à minha cabeça foi a última noite que conseguimos passar juntos.
Tinha chegado ao celeiro completamente encharcada da chuva repentina na estrada de terra. Os cabelos quase cacheados de estavam arrepiados, suas roupas tão molhadas quanto as minhas.
Meu dia já tinha sido bem difícil na The Cotswold School (um boato novo sobre eu conseguir roubar gabaritos de testes do quarto ano em troca de algo para aliviar o meu vício em cigarros suspeitos) e Noah não estava me ajudando naquela noite. já tinha avançado no menino algumas vezes, mas ele continuava enchendo os meus ouvidos com gracinhas e piadas de mau gosto.
Tudo isso porque, com a chuva torrencial que pegamos no caminho, minha blusa clara estava transparente. até procurou uma camisa para que eu pudesse me trocar, mas Mason tinha levado as últimas que estavam por lá.
Teria que aguentar aquilo até ir embora ou dar um soco em Noah.
— , não precisa ficar assim. Você é linda e gost…
— Chega! — cortei Noah na mesma hora, já irada. Estava de mau humor e pronta para descontar em alguém. Me parecia justo fazer isso em quem tentava me tirar do sério. Andei até onde Noah estava, levantando a minha blusa até quase o queixo, deixando meu sutiã agora realmente à mostra. Baixei a blusa em um ímpeto, ainda estressada. — Satisfeito? Era isso que você queria ver? Não me enche mais o saco! O celeiro ficou em silêncio. Noah me encarava, boquiaberto. Mila, ao seu lado, parecia envergonhada. Virei de costas, indo sentar em um dos bolos de feno. Meu olhar encontrou os olhos de e ele apenas levantou as sobrancelhas, também surpreso pela minha reação.
Mason, Riley, Hayden, Ella e até mesmo Bronwen, pareciam em choque.
Marchei até o outro lado do celeiro, mas ainda consegui ouvir a voz de Noah.
— Cara, você nem reagiu!
Soube que era para quando ouvi sua voz.
— Cala a boca, pirralho.
Noah continuou — Tenho muito o que aprender com você, .
— Você já viu as meninas de lingerie para tomar banho no rio.
Quando riu, eu me virei, possessa. Noah ainda estava chocado.
— Mas eu não olhei tão diretamente, né?
Grunhi alto — Querem parar?
me olhou esquisito, talvez agora entendendo o quão irada eu estava.
Passei a noite emburrada no meu canto. Mila tentava me animar, mas eu ainda me sentia triste e estressada. Tinha decidido que aqueles boatos não iriam me afetar, mas ainda era uma tarefa bem difícil. O resto do pessoal jogava cartas e ria sem parar, mas eu não me sentia no clima. Estourar com Noah só tinha piorado as coisas.
Na hora de ir embora, enrolou um pouco, parecendo esperar todos irem para finalmente encarar o meu mau humor. Sua expressão era divertida, mas eu sabia que ele estaria pronto para jogar umas verdades na minha cara, se fosse necessário.
Quando não tinha mais ninguém à vista na estrada de terra mal iluminada, encarei seu rosto.
— Podemos ir?
ponderou com um aceno. Seu próximo movimento foi me puxar para mais perto, colando os nossos lábios com vontade. Eu tinha ficado surpresa, mas consegui rir e retribuir na hora.
Nos descolamos para pegar algum fôlego. respirava fundo enquanto passava o seu nariz no meu pescoço, me causando vários arrepios.
— Esperei por esse momento a noite toda — sua voz saiu mais rouca que o normal.
Ri pelo nariz, meu mau humor indo embora na hora.
— Podíamos ter saído antes.
Ele concordou com um suspiro — Você estava muito estressada por causa da chuva, não queria brigar.
— Não iria brigar com você.
Sua risada fez cócegas na minha nuca — Conta outra, — e me encarou, seus olhos azul-claro brilhando. — Mas eu tenho uma proposta... Vamos gastar essa frustração aí em alguma coisa? — riu com malícia. — Também tenho sonhado com ideias, cidade grande.
Já estava tonta de tanto falar sobre .
Bree ainda ria — Eu tenho que concordar com a teoria do ar puro. Desde quando você é doida desse jeito?
— É exatamente o que me diz sempre — suspirei alto. — Acha que estou tão diferente?
Bree pareceu me analisar pela câmera.
— Você está mais feliz, amiga. Se essa maluquice repentina te deixa assim, eu fico feliz também — tive de sorrir com aquilo. — E está mais loira. Eu aprovo.
— Deixei uma amiga pintar o meu cabelo…
Bree gargalhou — Acho que sua doideira não tem mais cura.
Só consegui dar de ombros quando ela abanou o ar ao continuar:
— Você eu já entendi que sim, mas seus pais estão bem?
— Sim — sorri mais uma vez. — Daquele jeito doido deles com mudanças novas. Acredita que tem uma bandeira de Cotswolds em nossa casa?
Balancei a cabeça para os lados. Meus pais tinham relaxado mais no interior da Inglaterra e faziam coisas diferentes, que não era possível fazer na cidade grande. Era difícil admitir, mas eu gostava que eles estivessem curtindo.
Esse assunto me lembrou a última conversa séria que tive com eles. Mesma conversa que era o motivo central para estar há quase uma hora na chamada de vídeo com a minha amiga.
Entrei em casa, sendo recepcionada por duas patinhas tentando me abraçar. Astra.
Peguei o cachorro no colo em meio a sua agitação. Ele já estava enorme, quando mamãe percebesse o tamanho que ele ia ficar…
Estranhei a calmaria na sala de estar. Nada de aparelhos eletrônicos, séries antigas ou uma música sequer. Se eu não conhecesse bem os meus pais, imaginaria que isso era…
— , estávamos te esperando — meu pai falou com o semblante calmo.
… Uma emboscada.
Olhei para os lados, deixando o cachorro no chão. O mesmo saiu correndo para o pé de mamãe, que, diferente de meu pai, me olhava desconfiada.
— Aconteceu alguma coisa? — tentei controlar o tom de voz. Por sorte só tínhamos dançado e comido porcaria no celeiro, ou eu estaria perdida.
Meu pai deu duas batidinhas na poltrona ao seu lado. Entendi como uma ordem e nem questionei, sentando em seguida.
— Filha — mamãe começou —, queremos saber se está tudo bem com você aqui na vila.
— Está, mãe. Por quê?
Eu não tinha nem motivos para fazer essa pergunta. As saídas tardes, as desculpas ruins que eu sempre dava… Estava bem na cara que eu estava escondendo alguma coisa deles.
Meu pai agora parecia medir as suas palavras.
— Nós adoramos que você tenha achado amigos aqui na vila, mas…
Engoli em seco — Mas?
Aquilo não era bom. Não era o jantar que eles sempre faziam para dizer que estávamos deixando a cidade em duas semanas, mas soava igualzinho. Meu coração de repente deu um salto. Foi ali, naquele momento tenso e esquisito, que eu percebi que estava longe de querer sair de Cotswold.
Papai passou a mão na barba por fazer.
— Você tem chegado tarde em dias de semana, com escola na manhã seguinte.
Mamãe completou — E seus sapatos estão sempre muito sujos de terra.
Meu pai finalizou — Se está acontecendo algo, pode compartilhar com a gente.
Eu não consegui conter o sorriso em meus lábios.
— Não estamos indo embora?
— Não — papai franziu a testa. — Você mudou de ideia de novo?
— Não! — eu estava rindo sozinha. Abanei o ar com as mãos. — Mãe, tudo aqui em Bourton-on-the-Water tem grama, terra e água. Está tudo bem.
Foi a vez dela franzir a testa — E as chegadas muito tarde em casa?
— Peço desculpas. Sei que vocês confiam em mim e estou aproveitando que temos quatro mil habitantes aqui para experimentar o que é viver… Sem medo.
Essa última parte poderia ser um exagero, mas era a mais pura verdade. Em que outro lugar do mundo eu poderia voltar de bicicleta de um terreno abandonado depois da meia noite?
Meu pai ponderou — Fico feliz que você sinta segurança por aqui.
— Eu sinto, pai. E é bom. O pessoal aqui anda de bicicleta à noite sem medo algum. — suspirei. — Se vocês quiserem posso trazer alguns dos amigos aqui para que possam conhecer. Mãe, a Mila você já conhece.
— Tudo bem — ele suspirou, olhando de lado para minha mãe. — Só estamos preocupados… Não queremos colocar um horário para você chegar, nunca tivemos isso. Mas quero que você seja responsável nos dias que tem escola na manhã seguinte.
Tinha sido a intervenção mais fácil que eu já sofri com os meus pais. Realmente o interior estava mudando todos nós.
Procurando não prolongar mais o assunto e correr o risco de falar demais sobre o meu grupo secreto, levantei do sofá, com Astra agora tentando morder os cadarços dos meus tênis.
— Super combinado. Obrigada — mas dei meia volta antes mesmo de começar a andar para o meu quarto. — Aproveitando vocês dois aqui nessa emboscada… Preciso fazer a minha.
Papai franziu o cenho — O que você aprontou agora?
Era esquisito, mas pareceu o momento certo para falar sobre um possível futuro estável.
Durante aquela chamada de vídeo eu me senti ainda mais em casa. Bree tinha contado sobre tudo e mais um pouco, como o fato de que meu irmão mais velho, Arthur, ficava mostrando fotos minhas em Cotswolds dizendo que visitaria em breve. Minha amiga dizia que tentaria vir junto, o que foi o suficiente para que eu pudesse sorrir ainda mais.
— Sua semana foi agitada — ela sorria para a câmera. Meu coração se encheu de saudade. — E a sua novidade? A minha é que eu achei um vestido lindo para a formatura. Quando chegar te envio uma foto estilosa.
— A minha novidade é… — respirei fundo. — Falei com o meu pai, você sabe… Sobre faculdade.
A expressão de Bree era uma completa surpresa. Demorou alguns segundos para que ela reagisse e eu já pensava que nossa conversa tinha congelado o vídeo quando ela deu um grito.
— Aqui?
Era uma promessa antiga, mas eu esperava que ela lembrasse. E eu não tinha me decepcionado. Faculdade era o mesmo que aceitar a casa em Bourton-on-the-Water. Significava ficar em um só lugar por no mínimo quatro anos.
Dei de ombros, fingindo casualidade.
— Possivelmente…
— Não me venha com expressões blasé! — ela bateu palmas, ainda rindo. — Ai, que notícia maravilhosa!
— Ainda não é certo, mas…
— Mas já importa muito! Só de ter essa possibilidade. Nossa… Vai ser o máximo!
É, eu também achava que seria o máximo. Ainda tinha minhas dúvidas sobre o que queria fazer no próximo ano, mas toda aquela vontade de de correr atrás dos seus sonhos me fazia querer sentir o mesmo.
— , só… — Bree parecia controlar seu tom de voz. — Só não some de novo, está bem? Eu sinto a sua falta. Somos melhores amigas… Não quero que isso aconteça de novo.
Suspirei — Você tem razão, me desculpe — e dei de ombros. Aquilo era verdade. Éramos sim melhores amigas. Bree era aquele tipo de amizade que, mesmo distante, não mudava em nada. E eu podia ficar triste por estar tão longe, mas sabia que ela me ajudaria mesmo com tanta distância e fuso horários diferentes. — Eu não sei o que aconteceu comigo. Fiquei muito chateada com as fotos que vocês postaram… É difícil entender que eu não faço mais parte da vida de vocês.
— Claro que faz!
Sorri fraco — Não do jeito que eu gostaria.
— É difícil para mim também, sabe? — concordei com um gesto. — Mas a nossa amizade sobrevive a tudo, cara. Não faz mais isso, eu estou aqui.
— Obrigada. Conta sempre comigo também.
— E, olha, sobre o Logan… — foi a vez de Bree suspirar. — Ele é um idiota e eu estou do seu lado sempre — e revirou os olhos. — Mas ele também é meu amigo, espero que você entenda isso.
— Eu sei, Bree. Está tudo bem, de verdade.
Era doido falar isso em voz alta mas, sim, estava tudo bem. Tinha claramente um assunto mal resolvido com Logan, mas estava me esforçando para que aquilo tudo virasse um passado que não doesse mais.
— Tem certeza? Podemos conversar sobre isso, ver um meio termo.
— Não. É sério. Logan é passado, está tudo bem.
Minha amiga sorriu — Fico feliz, . E espero que esteja sendo sincera.
— Por incrível que pareça, eu estou.
— Ótimo — ela bateu palmas agora em frente à câmera. — Eu adorava vocês como casal, mas odiava ver só você sofrendo.
— Eu sei, mas agora a gente foca no presente, combinado?
— Super combinado! Bate aqui — e fez um sinal de aceno até a tela do computador.
Encostei a minha mão na dela de prontidão.
— Sempre juntas.
— Sempre juntas.
Sorrimos ao mesmo tempo. Minha amiga continuou:
— Então, você tem tempo para ouvir a última da Celina? É algo bem bizarro.
Apenas concordei, ainda com um sorriso no rosto. Como eu consegui ignorar essa amizade de anos? As mudanças eram sempre difíceis, aceitar o novo lugar tinha o dobro de dificuldade, mas falar com Bree era a coisa mais fácil desde que eu me entendia por gente.
Assim como tinha feito uma revolução (quase sem querer) na The Cotswold School, também faria na minha vida. O passado ficava no passado e agora era a hora de focar no futuro… Só me faltava descobrir o que eu realmente queria além da certeza de ter Bree, meus amigos do celeiro e sempre por perto.
Capítulo 13 - Descobertas (Parte 1)
“As mais belas descobertas ocorrem quando as mesmas coisas são vistas com um novo olhar.” (Malu Schneider)
Senti alguém me puxando com violência para um dos corredores largos e extremamente polidos da escola.
— Eu quero respostas agora — demorou um pouco para reconhecer devido ao susto, mas era Mila. E, assim como seu puxão, sua expressão não era nem um pouco amigável. — Fala, ! Vai ficar me olhando com essa cara?
Ainda era difícil de entender o que estava acontecendo ali.
— Ficou maluca?
— Você que ficou maluca de me esconder as coisas.
— Como é que é?
— Você e — abri a boca assim que suas palavras atingiram minha mente, ficando completamente sem fala. — Me poupa disso e de desculpas. Mason viu vocês ontem no celeiro e já colocou na parede — fechei a boca, tentando entender tudo aquilo. — Ele já confessou. E agora?
— Mila, eu não tenho culpa! A gente nem conversou sobre nada ainda.
Era uma meia mentira, mas minha amiga não precisava saber daquilo. Ela pareceu relaxar.
— Desde quando?
— Desde uns dias depois de quando você me perguntou se estava rolando algo com a gente.
— Eu sabia que tinha algo entre vocês dois! — seu grito foi alto demais, me fazendo arregalar os olhos e tapar sua boca com uma das mãos. Tudo o que ouvi depois disso foi um longo resmungo.
— Para com isso! Quer que inventem que estamos brigando por aqui e por causa de garotos ainda?
Mila respirou fundo assim que foi solta.
— Tudo bem, posso me controlar. Mas você devia ter me contado! — ela se debruçou na parede do corredor, olhando para tudo menos meus olhos. — Pensei que éramos amigas.
E então eu me vi em Mila. Eu sempre sentia a desconfiança nas pessoas em relação a minha amizade com elas, mas nunca o contrário. Era sempre eu quem partia, sempre eu quem ficava pouco tempo para conseguir pessoas ao meu redor que realmente sabiam e queriam me chamar de amiga.
Ouvir aquilo de Mila, sem ao menos me olhar, me machucou.
Não me controlei em nada e a abracei de imediato.
— Nós somos amigas. Não duvida disso — senti seu aperto e logo nos separamos. — Me desculpe se te chateei, mas foi tudo muito rápido e eu não sei muito bem o que está acontecendo.
Uma nova meia mentira.
Ela sorriu — Ele é bem difícil.
Tive de suspirar, o que ela provavelmente entendeu como uma concordância. não era difícil, ele era até muito direto em tudo, mas a situação em si… Parecia tudo muito bom e muito difícil ao mesmo tempo. Mas ainda mantinha o meu pensamento: não tinha como aquilo dar errado.
— E toda essa coisa do grupo ser secreto, entende? — tentei arrumar uma desculpa para Mila e até mesmo para mim. — Fico muito confusa.
— Tudo bem... — e me arrastou até o pátio lotado. — Vamos comer alguma coisa?
Estranhei sua mudança de humor, mas a segui a passos arrastados. Chegamos até nosso canto no pátio principal, mas Mila não se sentou. Minha amiga me olhou estranho e continuou andando até o final do local aberto, que estava quase vazio. Cotswolds e essa mania de ocupar só o centro.
Segui Mila mais uma vez, me sentando ao seu lado no banco de pedra.
— Mudando de ares?
— Eu quero saber de tudo, ! — Mila parecia realmente ansiosa. — Para de me enrolar! Eu entendo que não conte, mas você é menina.
Ah, sim. O lugar calmo era para arrancar coisas de mim sem ninguém perceber.
— Ótima desculpa.
— !
— Tudo bem! O que você quer saber? — minha amiga fez uma cara de tédio. — Eu sei que é tudo, mas começando por onde?
— Onde vocês se beijaram pela primeira vez?
— Na estrada de terra que dá no celeiro.
— E como foi? Ele disse algo bonito? Você sentiu as famosas borboletas no estômago?
— Mila, é sério isso?
— Deixa de ser chata, !
— Está bem! — resmunguei baixo. — Nós estávamos indo embora, como sempre vou de carona com ele. E então a bicicleta emperrou e fomos andando.
Minha amiga torcia — Sim!
— Fomos andando… E ele resolveu beber uma garrafa verde esquisita, licor de menta.
— Sim… — suas mãos se juntaram em seu peito.
— Aí eu falei para ele que queria experimentar aquilo.
— Sim!!
— E então ele me beijou. Você sabe, para experimentar o licor e tal.
Mila parecia que ia explodir.
— Ai, meu Deus! Isso é tão…
Cortei sua fala — Romântico?
— Sim! Ai, meu Deus.
— Mila…
— , beijos são sempre especiais.
Quase sufoquei com aquilo. Qual era o problema de Cotswolds?
— Não começa com isso, por favor. Somos dois amigos, estamos nos divertindo e nos agarrando por aí quando existe oportunidade.
Ela ainda parecia sonhadora, provavelmente ignorando todas as minhas negações. Eu adorava estar com , sério, mas não existia um namoro ali. Pelo menos não ainda…
Sacudi a cabeça com esse pensamento. O romantismo de Mila estava me afetando, não era possível.
— Ai, ! — suas mãos pousaram novamente em seu peito, naquele gesto de princesa da Disney. — Você e , isso é demais!
Percebi que minha amiga tinha falado aquilo alto demais quando uma menina do segundo ano que tinha acabado de sentar no banco ao lado nos olhou.
— e quem? — a garota parecia curiosa.
Eu abri a boca mas nada saiu. Mila parecia tão congelada quanto eu, só que conseguiu proferir as erradas palavras:
— O ex-namorado Nova Iorquino dela! Logan! — e passou as mãos na testa, visivelmente nervosa. — Eles eram demais.
— Legal — a garota do segundo ano sorriu. — Time !
Sorrimos sem graça para ela ao nos levantarmos para sair de lá o mais rápido possível. Andando lado a lado, Mila tentava se desculpar.
— Sinto muito, . Eu surtei!
— Que ótimo, agora eles realmente sabem alguma coisa do meu passado.
As últimas semanas tinham sido mais tranquilas, sem nenhum boato sobre mim. Tudo o que o pessoal falava era sobre uma menina que tinha barba e escondia de todos ou sobre um garoto do time de xadrez que tinha sido visto tentando fotografar seus colegas de classe sem roupa no banheiro. Era até esquisito não ser o foco da escola, mas eu me sentia aliviada.
Mila abanou o ar ao encaixar o seu braço no meu. Andamos até a parte de trás dos blocos com as salas de aula e sentamos na grama perto de uma árvore grande demais.
— Você não sentiu nada?
Sobre aquilo eu não conseguiria fazer pouco caso. Eu tinha sentido alguma coisa naquele dia, além de ter ficado perplexa? Eu gostei, era óbvio. Mas Mila não precisava saber de tudo isso.
Dei de ombros enquanto mordia meu sanduíche. Provavelmente para minha amiga aquilo foi um “sim, com certeza!”. Ela se derreteu.
— Que legal ter um casal no grupo como eu e Mason!
— Mila...
— Para, .
— Nós não somos um casal — respirei fundo. — Estamos nos divertindo, sendo casuais...
Aquilo saiu esquisito até para mim, mas era a verdade. Estávamos nos divertindo. era lindo, divertido, direto e fazia eu me sentir nas nuvens. Era o melhor amigo que eu poderia querer. E pronto, ponto final.
Nada daria errado, não tinha como dar.
— Ninguém sabe do futuro, pare de ser chata — ela se aproximou mais, seus olhos ganhando uma emoção diferente. — Vocês têm ficado sempre?
— Não todos os dias.
Ela sorriu — Entendo. E ele beija bem?
Foi impossível reprimir uma risada.
— Beija sim.
Eu não queria dar detalhes como aquele, mas era impossível não pensar nos beijos e no jeito como conseguia tocar meu corpo. Suspirei sem ao menos conseguir me controlar.
Todos os nossos amigos já tinham sumido pela estrada de terra.
me olhou engraçado e eu já sabia o que vinha a seguir. Tinha dias desde a nossa primeira vez juntos e eu já sentia meu coração bater acelerado só ao pensar que poderíamos fazer tudo aquilo de novo.
Pela minha falta de reação, ele disse:
— Vem cá.
Foi o suficiente para que meu corpo se encaixasse no seu. Era um abraço quentinho, confortável, gostoso. Suspirei sem ao menos me dar conta. Como uma pessoa só podia causar um misto tão grande de sensações?
Encarei seus olhos claros e tudo o que ele fez foi sorrir. Nos beijamos pelo que pareceu durar minutos, até que se afastou, entrelaçando nossas mãos e fazendo menção para entrar no celeiro novamente.
— Sabe, eu pensei nesse momento nosso a noite inteira.
Eu mentiria se não concordasse.
— Eu também — suspirei. — E é bom realmente estarmos iguais.
Ele riu — Sou eu, cidade grande. E continuarei sendo. Tantas coisas em comum, não é?
Era muito mais do que o suficiente para mim.
Entramos no celeiro já aos beijos. Suas mãos firmes passeavam pelo meu corpo e aqueles arrepios loucos estavam de volta como nunca.
Quando percebi que estava viajando na minha mente por muitos segundos, vi Mila me olhando incrédula. Meu coração disparou no mesmo momento. Sua careta aumentava cada vez mais, provavelmente imaginando tudo o que estava se passando em minha cabeça.
Ela não conseguiria imaginar tudo, tudo, mas só um pedaço deixava meu coração mais acelerado.
— Não...
— Mila, deixa eu falar primeiro.
— Vocês fazem mais do que se beijar?
Levantei da grama, falando mais alto sem perceber.
— Eu não sei o que aconteceu comigo, acho que é a falta de poluição urbana!
Ela revirou os olhos, me puxando novamente para baixo.
— Desde quando?
— Desde o dia em que fizemos a noite de emergência pro Riley — Mila abriu a boca de novo, sem palavras. — Foi coisa do momento!
— Aconteceu mais vezes? — arregalei os olhos no mesmo momento. — Não acredito nisso!
Eu tinha vários motivos para me estressar com aquilo, mas nada parecia me tirar do sério.
— Me desculpa, mas qual é o grande problema nisso? Eu não tenho namorado, ele também não tem namorada...
— Eu sei que não, amiga, mas... — ela fez uma careta. — Não é muito certo isso. Como você consegue?
— Transar com ele sem compromisso? — suas bochechas pareceram queimar. Eu deveria dizer “dormir” ou “fazer amor”? — Deixa isso para lá, por favor.
Ela deu de ombros — Tudo bem — e logo me olhou engraçado. — Foi bom?
Tive de gargalhar no mesmo momento.
— Primeiro você me repreende e depois me pergunta como foi? — Mila deu de ombros novamente, como se dissesse “sou curiosa”. — Foi ótimo. Na verdade, é ótimo — meu sorriso era cheio de malícia, fazendo Mila ficar sem graça. — Ele é incrível.
— Você não acha isso perigoso? — minha expressão ficou confusa. — Quero dizer, você pode se machucar.
— Estamos nos divertindo, só isso — foi a minha vez de dar de ombros, enquanto Mila apenas concordava em silêncio.
Eu tinha medo de me machucar?
Sério, chega. Não tinha como dar errado.
Minha amiga continuou — Você sabe que só tem ele aqui até o final do ano.
Sim, eu sabia.
— Eu sei, Mila. Eu também sou temporária… Só estou tentando aproveitar o tempo que tenho, coisa que nunca fiz em nenhum outro lugar. Não me importa se eu sei que tudo isso tem prazo de validade. Eu só estou fazendo o que me dá vontade.
Aquilo sim era uma grande verdade. Doía, mas era a mais pura verdade.
Mila concordou com a cabeça, agora olhando para o nada. Era a minha oportunidade de tocar no assunto meio polêmico sobre a faculdade. Eu sabia que e Mason estavam 100% focados, mas não conseguia ver isso refletido em minha amiga.
— Você acha que eles conseguem? — questionei, analisando sua expressão.
— Acho sim — ela suspirou. — E é isso que me preocupa, porque eu não tenho certeza se eu consigo também.
Peguei em sua mão e então Mila olhou em meus olhos. Eu sentia exatamente a mesma coisa, mas ainda tinha o agravante de que não sabia o que queria. Tinha conversado com papai sobre faculdade e estabilidade, mas eu queria ir embora com os meninos? Era esse o meu sonho?
Sentia que ainda tinha que descobrir algumas coisas antes de tomar uma decisão daquele tamanho, mas iria tentar o meu máximo durante esse período de indecisão. Por mim, por meu irmão, por , por Bree… E ainda mais por Mila.
Cutuquei minha amiga — Eu tenho uma ideia para nós também passarmos na faculdade — me ajeitei na grama assim que conquistei sua atenção. — É o seguinte…
***
Mila grudou nossas cadeiras no mesmo momento em que o sinal tocou. Seus olhares esquisitos estavam me matando, principalmente por serem muito parecidos com o restante da The Cotswold School.
Minha amiga olhou para os lados, esperando que todas as pessoas que não fossem da próxima aula saíssem da sala.
— Precisamos conversar.
— Estou vendo que sim — franzi o cenho. — Qual o problema com você e todo mundo?
Mila suspirou, parecendo preocupada.
— Pensei que você estava só com .
— Não entendi, Mila.
A menina falou ainda mais baixo e eu tive que me concentrar para entender todas as palavras.
— — e então suspirou novamente —, todos estão falando de você.
Meu sangue gelou. Alguém sabia o que eu e fazíamos dentro do celeiro velho?
Pelo meu choque e confusão, Mila continuou.
— Estão dizendo que você foi pega com Kyle no banheiro do vestiário — sua expressão fofa e delicada se transformou em uma careta. — Isso não é verdade, né?
— Como é que é?
Meu grito fez com que as poucas pessoas na sala me olhassem como se eu fosse louca. Provavelmente aquilo viraria outra fofoca, do tipo “garota se agarra com alguém e depois descobre que deu ruim”.
— Foi o que eu ouvi! Precisava te contar, porque percebi que você não sabia o que todos estavam falando por aí.
— Mila, é mentira! Quem te disse isso?
— Praticamente todo mundo da escola.
Aquela resposta não melhorou em nada o meu dia.
Vi entrar na sala no mesmo momento em que minha amiga comentava sobre toda a escola falar sobre um boato falso entre Kyle e eu. jogou sua mochila na carteira (como sempre) e começou a folhear um caderno grande. Geralmente ele dava um pequeno sorriso ou aceno para nós duas, mas pelo jeito ele já sabia da “novidade”.
Foquei em Mila — Você não pode acreditar nisso. Você não acredita, não é?
— Acredito em você, que é minha amiga — a menina sorriu fraco. — O que vai fazer?
— O que eu tenho feito nas últimas semanas — respirei fundo. — Questionar e revidar.
As aulas passaram arrastadas e eu não conseguia me concentrar.
Mila anotava tudo em seu caderno rosa pink enquanto eu imitava o gesto de , ao meu lado direito: mordia sem parar um lápis preto. Eu fazia isso pela ansiedade, já ele provavelmente pelo tédio da aula de Literatura.
Sabia que ele não acreditava nas fofocas da escola, mas eu tentava me colocar em seu lugar. Só de imaginar alguém inventando coisas de com outra garota eu tinha vontade de socar novamente o Dominic (ou Kyle ou Zara… A lista estava grande).
Assim que o sinal tocou novamente, juntei todas as minhas coisas com a maior calma e caminhei até o pátio central. Pedi para que Mila buscasse um lanche para nós enquanto eu fazia o que precisava.
Na mesa de sempre, Kyle estava sentado com os seus dois amigos, Leon e Alene. Os três, de longe, pareciam adolescentes comuns, mas eu sabia que era um grupo estranho e com tendências a fazer coisas ruins.
Parei em frente a eles, encarando Kyle.
— Posso falar com você? — minha voz saiu firme.
Kyle me olhava sorridente, como se o nosso embate de semanas atrás nem tivesse acontecido.
— Claro, . O que houve?
Mantive minha expressão séria.
— Como se você não soubesse.
— Ah! — ele deu de ombros. — É sobre o boato?
Fiz o possível para não subir em cima da mesa e chutar aquele rostinho bonito.
— É claro que é sobre o boato — tentei ao máximo manter a calma em minha voz. — Por que fez isso?
Leon e Alene nos olhavam sem reação.
— Não fui eu, .
— Sério, Kyle? — ele mantinha um sorriso escroto nos lábios. O que tinha de errado com o pessoal do interior com beijos e tudo mais? Realmente… — Depois de ter praticamente me ameaçado quando eu disse que não queria ter nada com você?
— Não sei do que está falando, .
Infelizmente Kyle parecia fazer o mesmo jogo de Zara. Era indiferente após atacar, para que eu passasse por louca. Aquele pensamento me deixou até tonta, só de lembrar os dois tramando algo nas costas do ginásio outro dia… Esperava algo, mas não alguma coisa desse nível. Era baixo até mesmo para eles.
— Então você não tem noção de quem possa ter sido? — minha voz saiu carregada de deboche.
— Não — ele fez pouco caso novamente. — Algumas meninas não gostam de mim, outras gostam demais. Podem ter inventado essa história.
Suspirei, olhando para Alene, que ainda me encarava sem expressão alguma.
— E você? Sei bem que não gostou que faltei ao teste do time de futebol.
A menina se manteve calada. Foi o suficiente para Kyle abrir a boca e dizer:
— Sabe, , desde que você chegou na região, coisas estranhas têm acontecido por aqui. Agressão, sabotagem em apresentações… Essa escola sempre foi normal.
Gelei no mesmo momento. Não era possível que ele soubesse que eu tinha ajudado a estragar a apresentação dos valentões.
— Você é um babaca — cuspi as palavras sem ao menos perceber.
— Cuidado, . Agressão verbal também pode te levar a detenção… — e seu sorriso irônico estava de volta. — Alguém pode estar contando as punições para depois rolar uma expulsão, nunca se sabe.
Tudo o que fiz foi dar meia volta e sair dali o mais rápido possível. Não podia dar mais munição para alguém como Kyle dentro daquele lugar.
Mila ainda estava na fila do lanche e eu só fiz um gesto que indicava algo como “depois falamos”, e saí do pátio sem nem olhar para trás. Não fazia ideia do que aquele pessoal estranho queria de mim, ou o que eu tinha feito para merecer toda aquela atenção errada.
Meu pensamento cortou pela metade quando, em um dos corredores brancos e limpos demais, ouvi alguém me chamar.
— ? — me virei e, para meu terror pessoal, Zara me encarava. — Podemos conversar por um instante?
Dei de ombros, procurando terminar aquilo o mais rápido possível.
— Do que precisa?
— Preciso saber se a fofoca da escola é verdade.
Aquele realmente não era o meu dia. E, para completar, eu ainda teria que dar satisfação de um rumor para a rainha do feno?
Encarei Zara ainda sem expressão.
— Você quer confirmar uma fofoca, é sério?
A garota me mediu — Nossa escola não admite esse tipo de comportamento. E eu, como sua orientadora, preciso saber o que realmente aconteceu — e me deu um sorrisinho quase simpático. — Ou você poderá ganhar uma advertência por causa disso.
Eu realmente não ligava nem um pouco para advertências, ainda mais em uma vila bizarramente pequena como Bourton-on-the-Water. Nada daquilo ali iria manchar o meu histórico de escolas grandes. Mas foi impossível não parecer chocada.
— Eu vou receber uma advertência por causa de uma fofoca?
— Sim — Zara continuava firme —, a não ser que você tenha provas de que não estava no ginásio no horário do acontecido.
Tive de rir — Era para a escola estar ao meu favor, já que a imagem manchada por uma mentira é a minha.
Ela negou — A reputação da escola é mais importante do que a sua — quando eu ia responder, ela continuou. — Acredito que você precisa conversar com a psicóloga. Vai te fazer bem.
Meu sangue ferveu — Faça o que quiser, Zara.
— Você vai receber sua advertência semana que vem, assim como acompanhamento psicológico. Na cidade grande você pode até fazer o que bem entender, mas aqui, na The Cotswolds School, vai precisar seguir as regras — me olhou de cima a baixo com um sorriso quase sincero no rosto. — A começar por esse casaco. Preciso falar de novo?
Qual seria a advertência que eu ganharia caso acertasse um soco no rosto da menina de ouro da região? Será que contaria o suficiente para a expulsão que Kyle mencionou? Ainda me dava ânsia só de pensar em como era apaixonado por aquela garota...
Quando percebi, já estava falando demais.
— Por que está espalhando mentiras sobre mim?
Sua expressão nem se alterou — Eu não sou o tipo de garota que faz isso, .
— Eu vi você e Kyle discutindo no ginásio — olhei a prancheta em sua mão, uma sensação ruim me consumindo de imediato. — E esses seus papéis de anotação são iguais aos que deixaram em meu armário — minha voz saiu mais chocada do que eu esperava.
Zara arrumou a tiara dourada na cabeça após apertar a pasta brilhosa nas mãos.
— Eu não sei do que você está falando. Tem certeza que não está usando o que vende por aqui?
É claro que ela não ia confirmar as minhas suspeitas.
Infelizmente eu não consegui ter uma reação apropriada para aquela provocação. Meu coração doía só de lembrar das coisas horríveis que falavam sobre mim naqueles corredores e, possivelmente, por toda a vila de quatro mil pessoas.
— , continuo achando que não tem espaço para você aqui em Cotswolds — o tom de voz de Zara era amigável, o que não combinava com as palavras malvadas que saíam de sua boca. — Mas pode deixar que dou um jeito nisso para você.
Assim que Zara saiu andando pelo corredor, uma menina ruiva preencheu a minha vista. Era Bronwen. Sua expressão era um misto de surpresa e incômodo. Olhei em seus olhos ainda com a cabeça a mil. Eu realmente não estava afim de mais embate.
Assim que passei pela minha colega de celeiro a vi abrir a boca, mas a fechou em seguida. Eu mal fiz questão de parar para ouvir o que quer que fosse.
Passei o restante do dia com aquilo dentro da cabeça. Estava de saco cheio e precisava bolar um plano para revidar o mais rápido possível. Não deixaria Zara e Kyle saírem ilesos desse jeito.
Assim que adentrei a sala do grupo de Línguas, Bronwen, a única presente, se levantou de sua cadeira. Eu já estava esperando algum comentário, mas sinceramente não estava no clima.
Já tinha ouvido muita merda para um dia só.
— , eu não quero ser intrometida, mas… — ela começou.
Eu mal segurei as palavras em minha boca.
— Por que está se importando comigo agora?
A garota ruiva arregalou os olhos, provavelmente não esperando que eu fosse despejar grosserias. Bronwen demorou alguns segundos para se recompor.
— O celeiro é para isso, .
— Eu sei me virar sozinha com garotas que acham que são melhores que as outras.
A menina piscou algumas vezes, finalmente dando de ombros.
— Se eu puder ajudar em algo… — estranhei ainda mais a sua reação. — Zara é minha prima.
Aquela era realmente uma informação nova.
— Prima?
Ela apontou para si mesma — Bronwen Wilkinson-Johnson. O Johnson é da parte de Zara.
Eu não fazia ideia de quais sobrenomes Zara tinha, mas só lembrava do Ward.
— Obrigada, mas não preciso da sua ajuda com isso.
Bronwen parecia manter a sua casca durona de sempre, mas percebi que vacilou com o meu posicionamento.
— Você que sabe — ela deu de ombros. — Mas se lembre sempre do celeiro para essas coisas.
— Peço que não conte para ninguém. Isso é um problema só meu.
— De novo: você que sabe, cidade grande — ela me olhou uma última vez, indo para o seu lugar.
O restante do pessoal entrou na sala em um timing perfeito, prontos para mais um debate ridículo entre países problemáticos. Hayden abriu um grande sorriso ao meu ver e só aquele gesto me deixou mais tranquila.
O garoto se aproximou.
— Meu país vai falar umas verdades para o Brasil hoje — seu sorriso era desafiador. — Está preparada?
Tive de rir junto com ele — Você não sabe o quanto.
***
Já tinha trocado de roupa três vezes quando a mensagem chegou em meu celular.
Me sentia exausta pelo dia na escola, mas aquele seria o meu escape. Eu veria os meus amigos, agarraria nos fundos do celeiro e esqueceria de tudo o que tinha rolado com Kyle e Zara.
* : Vi que cancelaram. Espero que esteja bem. Qualquer coisa estou por aqui.
Minha mensagem nem chegou, deu um check apenas.
Respirei fundo, me jogando de costas na cama fofa. Foi o suficiente para que Astra pulasse no colchão, deitando ao meu lado.
Precisava arrumar algo para me distrair nessa noite ou ficaria maluca.
Senti alguém me puxando com violência para um dos corredores largos e extremamente polidos da escola.
— Eu quero respostas agora — demorou um pouco para reconhecer devido ao susto, mas era Mila. E, assim como seu puxão, sua expressão não era nem um pouco amigável. — Fala, ! Vai ficar me olhando com essa cara?
Ainda era difícil de entender o que estava acontecendo ali.
— Ficou maluca?
— Você que ficou maluca de me esconder as coisas.
— Como é que é?
— Você e — abri a boca assim que suas palavras atingiram minha mente, ficando completamente sem fala. — Me poupa disso e de desculpas. Mason viu vocês ontem no celeiro e já colocou na parede — fechei a boca, tentando entender tudo aquilo. — Ele já confessou. E agora?
— Mila, eu não tenho culpa! A gente nem conversou sobre nada ainda.
Era uma meia mentira, mas minha amiga não precisava saber daquilo. Ela pareceu relaxar.
— Desde quando?
— Desde uns dias depois de quando você me perguntou se estava rolando algo com a gente.
— Eu sabia que tinha algo entre vocês dois! — seu grito foi alto demais, me fazendo arregalar os olhos e tapar sua boca com uma das mãos. Tudo o que ouvi depois disso foi um longo resmungo.
— Para com isso! Quer que inventem que estamos brigando por aqui e por causa de garotos ainda?
Mila respirou fundo assim que foi solta.
— Tudo bem, posso me controlar. Mas você devia ter me contado! — ela se debruçou na parede do corredor, olhando para tudo menos meus olhos. — Pensei que éramos amigas.
E então eu me vi em Mila. Eu sempre sentia a desconfiança nas pessoas em relação a minha amizade com elas, mas nunca o contrário. Era sempre eu quem partia, sempre eu quem ficava pouco tempo para conseguir pessoas ao meu redor que realmente sabiam e queriam me chamar de amiga.
Ouvir aquilo de Mila, sem ao menos me olhar, me machucou.
Não me controlei em nada e a abracei de imediato.
— Nós somos amigas. Não duvida disso — senti seu aperto e logo nos separamos. — Me desculpe se te chateei, mas foi tudo muito rápido e eu não sei muito bem o que está acontecendo.
Uma nova meia mentira.
Ela sorriu — Ele é bem difícil.
Tive de suspirar, o que ela provavelmente entendeu como uma concordância. não era difícil, ele era até muito direto em tudo, mas a situação em si… Parecia tudo muito bom e muito difícil ao mesmo tempo. Mas ainda mantinha o meu pensamento: não tinha como aquilo dar errado.
— E toda essa coisa do grupo ser secreto, entende? — tentei arrumar uma desculpa para Mila e até mesmo para mim. — Fico muito confusa.
— Tudo bem... — e me arrastou até o pátio lotado. — Vamos comer alguma coisa?
Estranhei sua mudança de humor, mas a segui a passos arrastados. Chegamos até nosso canto no pátio principal, mas Mila não se sentou. Minha amiga me olhou estranho e continuou andando até o final do local aberto, que estava quase vazio. Cotswolds e essa mania de ocupar só o centro.
Segui Mila mais uma vez, me sentando ao seu lado no banco de pedra.
— Mudando de ares?
— Eu quero saber de tudo, ! — Mila parecia realmente ansiosa. — Para de me enrolar! Eu entendo que não conte, mas você é menina.
Ah, sim. O lugar calmo era para arrancar coisas de mim sem ninguém perceber.
— Ótima desculpa.
— !
— Tudo bem! O que você quer saber? — minha amiga fez uma cara de tédio. — Eu sei que é tudo, mas começando por onde?
— Onde vocês se beijaram pela primeira vez?
— Na estrada de terra que dá no celeiro.
— E como foi? Ele disse algo bonito? Você sentiu as famosas borboletas no estômago?
— Mila, é sério isso?
— Deixa de ser chata, !
— Está bem! — resmunguei baixo. — Nós estávamos indo embora, como sempre vou de carona com ele. E então a bicicleta emperrou e fomos andando.
Minha amiga torcia — Sim!
— Fomos andando… E ele resolveu beber uma garrafa verde esquisita, licor de menta.
— Sim… — suas mãos se juntaram em seu peito.
— Aí eu falei para ele que queria experimentar aquilo.
— Sim!!
— E então ele me beijou. Você sabe, para experimentar o licor e tal.
Mila parecia que ia explodir.
— Ai, meu Deus! Isso é tão…
Cortei sua fala — Romântico?
— Sim! Ai, meu Deus.
— Mila…
— , beijos são sempre especiais.
Quase sufoquei com aquilo. Qual era o problema de Cotswolds?
— Não começa com isso, por favor. Somos dois amigos, estamos nos divertindo e nos agarrando por aí quando existe oportunidade.
Ela ainda parecia sonhadora, provavelmente ignorando todas as minhas negações. Eu adorava estar com , sério, mas não existia um namoro ali. Pelo menos não ainda…
Sacudi a cabeça com esse pensamento. O romantismo de Mila estava me afetando, não era possível.
— Ai, ! — suas mãos pousaram novamente em seu peito, naquele gesto de princesa da Disney. — Você e , isso é demais!
Percebi que minha amiga tinha falado aquilo alto demais quando uma menina do segundo ano que tinha acabado de sentar no banco ao lado nos olhou.
— e quem? — a garota parecia curiosa.
Eu abri a boca mas nada saiu. Mila parecia tão congelada quanto eu, só que conseguiu proferir as erradas palavras:
— O ex-namorado Nova Iorquino dela! Logan! — e passou as mãos na testa, visivelmente nervosa. — Eles eram demais.
— Legal — a garota do segundo ano sorriu. — Time !
Sorrimos sem graça para ela ao nos levantarmos para sair de lá o mais rápido possível. Andando lado a lado, Mila tentava se desculpar.
— Sinto muito, . Eu surtei!
— Que ótimo, agora eles realmente sabem alguma coisa do meu passado.
As últimas semanas tinham sido mais tranquilas, sem nenhum boato sobre mim. Tudo o que o pessoal falava era sobre uma menina que tinha barba e escondia de todos ou sobre um garoto do time de xadrez que tinha sido visto tentando fotografar seus colegas de classe sem roupa no banheiro. Era até esquisito não ser o foco da escola, mas eu me sentia aliviada.
Mila abanou o ar ao encaixar o seu braço no meu. Andamos até a parte de trás dos blocos com as salas de aula e sentamos na grama perto de uma árvore grande demais.
— Você não sentiu nada?
Sobre aquilo eu não conseguiria fazer pouco caso. Eu tinha sentido alguma coisa naquele dia, além de ter ficado perplexa? Eu gostei, era óbvio. Mas Mila não precisava saber de tudo isso.
Dei de ombros enquanto mordia meu sanduíche. Provavelmente para minha amiga aquilo foi um “sim, com certeza!”. Ela se derreteu.
— Que legal ter um casal no grupo como eu e Mason!
— Mila...
— Para, .
— Nós não somos um casal — respirei fundo. — Estamos nos divertindo, sendo casuais...
Aquilo saiu esquisito até para mim, mas era a verdade. Estávamos nos divertindo. era lindo, divertido, direto e fazia eu me sentir nas nuvens. Era o melhor amigo que eu poderia querer. E pronto, ponto final.
Nada daria errado, não tinha como dar.
— Ninguém sabe do futuro, pare de ser chata — ela se aproximou mais, seus olhos ganhando uma emoção diferente. — Vocês têm ficado sempre?
— Não todos os dias.
Ela sorriu — Entendo. E ele beija bem?
Foi impossível reprimir uma risada.
— Beija sim.
Eu não queria dar detalhes como aquele, mas era impossível não pensar nos beijos e no jeito como conseguia tocar meu corpo. Suspirei sem ao menos conseguir me controlar.
Todos os nossos amigos já tinham sumido pela estrada de terra.
me olhou engraçado e eu já sabia o que vinha a seguir. Tinha dias desde a nossa primeira vez juntos e eu já sentia meu coração bater acelerado só ao pensar que poderíamos fazer tudo aquilo de novo.
Pela minha falta de reação, ele disse:
— Vem cá.
Foi o suficiente para que meu corpo se encaixasse no seu. Era um abraço quentinho, confortável, gostoso. Suspirei sem ao menos me dar conta. Como uma pessoa só podia causar um misto tão grande de sensações?
Encarei seus olhos claros e tudo o que ele fez foi sorrir. Nos beijamos pelo que pareceu durar minutos, até que se afastou, entrelaçando nossas mãos e fazendo menção para entrar no celeiro novamente.
— Sabe, eu pensei nesse momento nosso a noite inteira.
Eu mentiria se não concordasse.
— Eu também — suspirei. — E é bom realmente estarmos iguais.
Ele riu — Sou eu, cidade grande. E continuarei sendo. Tantas coisas em comum, não é?
Era muito mais do que o suficiente para mim.
Entramos no celeiro já aos beijos. Suas mãos firmes passeavam pelo meu corpo e aqueles arrepios loucos estavam de volta como nunca.
Quando percebi que estava viajando na minha mente por muitos segundos, vi Mila me olhando incrédula. Meu coração disparou no mesmo momento. Sua careta aumentava cada vez mais, provavelmente imaginando tudo o que estava se passando em minha cabeça.
Ela não conseguiria imaginar tudo, tudo, mas só um pedaço deixava meu coração mais acelerado.
— Não...
— Mila, deixa eu falar primeiro.
— Vocês fazem mais do que se beijar?
Levantei da grama, falando mais alto sem perceber.
— Eu não sei o que aconteceu comigo, acho que é a falta de poluição urbana!
Ela revirou os olhos, me puxando novamente para baixo.
— Desde quando?
— Desde o dia em que fizemos a noite de emergência pro Riley — Mila abriu a boca de novo, sem palavras. — Foi coisa do momento!
— Aconteceu mais vezes? — arregalei os olhos no mesmo momento. — Não acredito nisso!
Eu tinha vários motivos para me estressar com aquilo, mas nada parecia me tirar do sério.
— Me desculpa, mas qual é o grande problema nisso? Eu não tenho namorado, ele também não tem namorada...
— Eu sei que não, amiga, mas... — ela fez uma careta. — Não é muito certo isso. Como você consegue?
— Transar com ele sem compromisso? — suas bochechas pareceram queimar. Eu deveria dizer “dormir” ou “fazer amor”? — Deixa isso para lá, por favor.
Ela deu de ombros — Tudo bem — e logo me olhou engraçado. — Foi bom?
Tive de gargalhar no mesmo momento.
— Primeiro você me repreende e depois me pergunta como foi? — Mila deu de ombros novamente, como se dissesse “sou curiosa”. — Foi ótimo. Na verdade, é ótimo — meu sorriso era cheio de malícia, fazendo Mila ficar sem graça. — Ele é incrível.
— Você não acha isso perigoso? — minha expressão ficou confusa. — Quero dizer, você pode se machucar.
— Estamos nos divertindo, só isso — foi a minha vez de dar de ombros, enquanto Mila apenas concordava em silêncio.
Eu tinha medo de me machucar?
Sério, chega. Não tinha como dar errado.
Minha amiga continuou — Você sabe que só tem ele aqui até o final do ano.
Sim, eu sabia.
— Eu sei, Mila. Eu também sou temporária… Só estou tentando aproveitar o tempo que tenho, coisa que nunca fiz em nenhum outro lugar. Não me importa se eu sei que tudo isso tem prazo de validade. Eu só estou fazendo o que me dá vontade.
Aquilo sim era uma grande verdade. Doía, mas era a mais pura verdade.
Mila concordou com a cabeça, agora olhando para o nada. Era a minha oportunidade de tocar no assunto meio polêmico sobre a faculdade. Eu sabia que e Mason estavam 100% focados, mas não conseguia ver isso refletido em minha amiga.
— Você acha que eles conseguem? — questionei, analisando sua expressão.
— Acho sim — ela suspirou. — E é isso que me preocupa, porque eu não tenho certeza se eu consigo também.
Peguei em sua mão e então Mila olhou em meus olhos. Eu sentia exatamente a mesma coisa, mas ainda tinha o agravante de que não sabia o que queria. Tinha conversado com papai sobre faculdade e estabilidade, mas eu queria ir embora com os meninos? Era esse o meu sonho?
Sentia que ainda tinha que descobrir algumas coisas antes de tomar uma decisão daquele tamanho, mas iria tentar o meu máximo durante esse período de indecisão. Por mim, por meu irmão, por , por Bree… E ainda mais por Mila.
Cutuquei minha amiga — Eu tenho uma ideia para nós também passarmos na faculdade — me ajeitei na grama assim que conquistei sua atenção. — É o seguinte…
Mila grudou nossas cadeiras no mesmo momento em que o sinal tocou. Seus olhares esquisitos estavam me matando, principalmente por serem muito parecidos com o restante da The Cotswold School.
Minha amiga olhou para os lados, esperando que todas as pessoas que não fossem da próxima aula saíssem da sala.
— Precisamos conversar.
— Estou vendo que sim — franzi o cenho. — Qual o problema com você e todo mundo?
Mila suspirou, parecendo preocupada.
— Pensei que você estava só com .
— Não entendi, Mila.
A menina falou ainda mais baixo e eu tive que me concentrar para entender todas as palavras.
— — e então suspirou novamente —, todos estão falando de você.
Meu sangue gelou. Alguém sabia o que eu e fazíamos dentro do celeiro velho?
Pelo meu choque e confusão, Mila continuou.
— Estão dizendo que você foi pega com Kyle no banheiro do vestiário — sua expressão fofa e delicada se transformou em uma careta. — Isso não é verdade, né?
— Como é que é?
Meu grito fez com que as poucas pessoas na sala me olhassem como se eu fosse louca. Provavelmente aquilo viraria outra fofoca, do tipo “garota se agarra com alguém e depois descobre que deu ruim”.
— Foi o que eu ouvi! Precisava te contar, porque percebi que você não sabia o que todos estavam falando por aí.
— Mila, é mentira! Quem te disse isso?
— Praticamente todo mundo da escola.
Aquela resposta não melhorou em nada o meu dia.
Vi entrar na sala no mesmo momento em que minha amiga comentava sobre toda a escola falar sobre um boato falso entre Kyle e eu. jogou sua mochila na carteira (como sempre) e começou a folhear um caderno grande. Geralmente ele dava um pequeno sorriso ou aceno para nós duas, mas pelo jeito ele já sabia da “novidade”.
Foquei em Mila — Você não pode acreditar nisso. Você não acredita, não é?
— Acredito em você, que é minha amiga — a menina sorriu fraco. — O que vai fazer?
— O que eu tenho feito nas últimas semanas — respirei fundo. — Questionar e revidar.
As aulas passaram arrastadas e eu não conseguia me concentrar.
Mila anotava tudo em seu caderno rosa pink enquanto eu imitava o gesto de , ao meu lado direito: mordia sem parar um lápis preto. Eu fazia isso pela ansiedade, já ele provavelmente pelo tédio da aula de Literatura.
Sabia que ele não acreditava nas fofocas da escola, mas eu tentava me colocar em seu lugar. Só de imaginar alguém inventando coisas de com outra garota eu tinha vontade de socar novamente o Dominic (ou Kyle ou Zara… A lista estava grande).
Assim que o sinal tocou novamente, juntei todas as minhas coisas com a maior calma e caminhei até o pátio central. Pedi para que Mila buscasse um lanche para nós enquanto eu fazia o que precisava.
Na mesa de sempre, Kyle estava sentado com os seus dois amigos, Leon e Alene. Os três, de longe, pareciam adolescentes comuns, mas eu sabia que era um grupo estranho e com tendências a fazer coisas ruins.
Parei em frente a eles, encarando Kyle.
— Posso falar com você? — minha voz saiu firme.
Kyle me olhava sorridente, como se o nosso embate de semanas atrás nem tivesse acontecido.
— Claro, . O que houve?
Mantive minha expressão séria.
— Como se você não soubesse.
— Ah! — ele deu de ombros. — É sobre o boato?
Fiz o possível para não subir em cima da mesa e chutar aquele rostinho bonito.
— É claro que é sobre o boato — tentei ao máximo manter a calma em minha voz. — Por que fez isso?
Leon e Alene nos olhavam sem reação.
— Não fui eu, .
— Sério, Kyle? — ele mantinha um sorriso escroto nos lábios. O que tinha de errado com o pessoal do interior com beijos e tudo mais? Realmente… — Depois de ter praticamente me ameaçado quando eu disse que não queria ter nada com você?
— Não sei do que está falando, .
Infelizmente Kyle parecia fazer o mesmo jogo de Zara. Era indiferente após atacar, para que eu passasse por louca. Aquele pensamento me deixou até tonta, só de lembrar os dois tramando algo nas costas do ginásio outro dia… Esperava algo, mas não alguma coisa desse nível. Era baixo até mesmo para eles.
— Então você não tem noção de quem possa ter sido? — minha voz saiu carregada de deboche.
— Não — ele fez pouco caso novamente. — Algumas meninas não gostam de mim, outras gostam demais. Podem ter inventado essa história.
Suspirei, olhando para Alene, que ainda me encarava sem expressão alguma.
— E você? Sei bem que não gostou que faltei ao teste do time de futebol.
A menina se manteve calada. Foi o suficiente para Kyle abrir a boca e dizer:
— Sabe, , desde que você chegou na região, coisas estranhas têm acontecido por aqui. Agressão, sabotagem em apresentações… Essa escola sempre foi normal.
Gelei no mesmo momento. Não era possível que ele soubesse que eu tinha ajudado a estragar a apresentação dos valentões.
— Você é um babaca — cuspi as palavras sem ao menos perceber.
— Cuidado, . Agressão verbal também pode te levar a detenção… — e seu sorriso irônico estava de volta. — Alguém pode estar contando as punições para depois rolar uma expulsão, nunca se sabe.
Tudo o que fiz foi dar meia volta e sair dali o mais rápido possível. Não podia dar mais munição para alguém como Kyle dentro daquele lugar.
Mila ainda estava na fila do lanche e eu só fiz um gesto que indicava algo como “depois falamos”, e saí do pátio sem nem olhar para trás. Não fazia ideia do que aquele pessoal estranho queria de mim, ou o que eu tinha feito para merecer toda aquela atenção errada.
Meu pensamento cortou pela metade quando, em um dos corredores brancos e limpos demais, ouvi alguém me chamar.
— ? — me virei e, para meu terror pessoal, Zara me encarava. — Podemos conversar por um instante?
Dei de ombros, procurando terminar aquilo o mais rápido possível.
— Do que precisa?
— Preciso saber se a fofoca da escola é verdade.
Aquele realmente não era o meu dia. E, para completar, eu ainda teria que dar satisfação de um rumor para a rainha do feno?
Encarei Zara ainda sem expressão.
— Você quer confirmar uma fofoca, é sério?
A garota me mediu — Nossa escola não admite esse tipo de comportamento. E eu, como sua orientadora, preciso saber o que realmente aconteceu — e me deu um sorrisinho quase simpático. — Ou você poderá ganhar uma advertência por causa disso.
Eu realmente não ligava nem um pouco para advertências, ainda mais em uma vila bizarramente pequena como Bourton-on-the-Water. Nada daquilo ali iria manchar o meu histórico de escolas grandes. Mas foi impossível não parecer chocada.
— Eu vou receber uma advertência por causa de uma fofoca?
— Sim — Zara continuava firme —, a não ser que você tenha provas de que não estava no ginásio no horário do acontecido.
Tive de rir — Era para a escola estar ao meu favor, já que a imagem manchada por uma mentira é a minha.
Ela negou — A reputação da escola é mais importante do que a sua — quando eu ia responder, ela continuou. — Acredito que você precisa conversar com a psicóloga. Vai te fazer bem.
Meu sangue ferveu — Faça o que quiser, Zara.
— Você vai receber sua advertência semana que vem, assim como acompanhamento psicológico. Na cidade grande você pode até fazer o que bem entender, mas aqui, na The Cotswolds School, vai precisar seguir as regras — me olhou de cima a baixo com um sorriso quase sincero no rosto. — A começar por esse casaco. Preciso falar de novo?
Qual seria a advertência que eu ganharia caso acertasse um soco no rosto da menina de ouro da região? Será que contaria o suficiente para a expulsão que Kyle mencionou? Ainda me dava ânsia só de pensar em como era apaixonado por aquela garota...
Quando percebi, já estava falando demais.
— Por que está espalhando mentiras sobre mim?
Sua expressão nem se alterou — Eu não sou o tipo de garota que faz isso, .
— Eu vi você e Kyle discutindo no ginásio — olhei a prancheta em sua mão, uma sensação ruim me consumindo de imediato. — E esses seus papéis de anotação são iguais aos que deixaram em meu armário — minha voz saiu mais chocada do que eu esperava.
Zara arrumou a tiara dourada na cabeça após apertar a pasta brilhosa nas mãos.
— Eu não sei do que você está falando. Tem certeza que não está usando o que vende por aqui?
É claro que ela não ia confirmar as minhas suspeitas.
Infelizmente eu não consegui ter uma reação apropriada para aquela provocação. Meu coração doía só de lembrar das coisas horríveis que falavam sobre mim naqueles corredores e, possivelmente, por toda a vila de quatro mil pessoas.
— , continuo achando que não tem espaço para você aqui em Cotswolds — o tom de voz de Zara era amigável, o que não combinava com as palavras malvadas que saíam de sua boca. — Mas pode deixar que dou um jeito nisso para você.
Assim que Zara saiu andando pelo corredor, uma menina ruiva preencheu a minha vista. Era Bronwen. Sua expressão era um misto de surpresa e incômodo. Olhei em seus olhos ainda com a cabeça a mil. Eu realmente não estava afim de mais embate.
Assim que passei pela minha colega de celeiro a vi abrir a boca, mas a fechou em seguida. Eu mal fiz questão de parar para ouvir o que quer que fosse.
Passei o restante do dia com aquilo dentro da cabeça. Estava de saco cheio e precisava bolar um plano para revidar o mais rápido possível. Não deixaria Zara e Kyle saírem ilesos desse jeito.
Assim que adentrei a sala do grupo de Línguas, Bronwen, a única presente, se levantou de sua cadeira. Eu já estava esperando algum comentário, mas sinceramente não estava no clima.
Já tinha ouvido muita merda para um dia só.
— , eu não quero ser intrometida, mas… — ela começou.
Eu mal segurei as palavras em minha boca.
— Por que está se importando comigo agora?
A garota ruiva arregalou os olhos, provavelmente não esperando que eu fosse despejar grosserias. Bronwen demorou alguns segundos para se recompor.
— O celeiro é para isso, .
— Eu sei me virar sozinha com garotas que acham que são melhores que as outras.
A menina piscou algumas vezes, finalmente dando de ombros.
— Se eu puder ajudar em algo… — estranhei ainda mais a sua reação. — Zara é minha prima.
Aquela era realmente uma informação nova.
— Prima?
Ela apontou para si mesma — Bronwen Wilkinson-Johnson. O Johnson é da parte de Zara.
Eu não fazia ideia de quais sobrenomes Zara tinha, mas só lembrava do Ward.
— Obrigada, mas não preciso da sua ajuda com isso.
Bronwen parecia manter a sua casca durona de sempre, mas percebi que vacilou com o meu posicionamento.
— Você que sabe — ela deu de ombros. — Mas se lembre sempre do celeiro para essas coisas.
— Peço que não conte para ninguém. Isso é um problema só meu.
— De novo: você que sabe, cidade grande — ela me olhou uma última vez, indo para o seu lugar.
O restante do pessoal entrou na sala em um timing perfeito, prontos para mais um debate ridículo entre países problemáticos. Hayden abriu um grande sorriso ao meu ver e só aquele gesto me deixou mais tranquila.
O garoto se aproximou.
— Meu país vai falar umas verdades para o Brasil hoje — seu sorriso era desafiador. — Está preparada?
Tive de rir junto com ele — Você não sabe o quanto.
* Mason Hunt: Celeiro cancelado, pessoal.
Respirei fundo, encarando o aparelho.Me sentia exausta pelo dia na escola, mas aquele seria o meu escape. Eu veria os meus amigos, agarraria nos fundos do celeiro e esqueceria de tudo o que tinha rolado com Kyle e Zara.
* Hayden King: OK. Alguém passando mal?
* Ella Bennett: Ai, gente. Eu estava quase saindo. O que aconteceu?
Senti a vontade de perguntar a mesma coisa. O que tinha acontecido e com quem? Mas Mason foi mais rápido.* Ella Bennett: Ai, gente. Eu estava quase saindo. O que aconteceu?
* Mason Hunt: Surgiu um jantar aqui em casa. Desculpa, galera. está atolado também.
* Mason Hunt: Tento marcar amanhã ou depois, vamos nos falando.
Franzi o cenho para aquela informação sobre . Esperava que estivesse bem. Digitei uma mensagem no privado para ele.* Mason Hunt: Tento marcar amanhã ou depois, vamos nos falando.
* : Vi que cancelaram. Espero que esteja bem. Qualquer coisa estou por aqui.
Minha mensagem nem chegou, deu um check apenas.
Respirei fundo, me jogando de costas na cama fofa. Foi o suficiente para que Astra pulasse no colchão, deitando ao meu lado.
Precisava arrumar algo para me distrair nessa noite ou ficaria maluca.
Capítulo 14 - Descobertas (Parte 2)
“As mais belas descobertas ocorrem quando as mesmas coisas são vistas com um novo olhar.” (Malu Schneider)
Quando meus olhos abriram já era noite.
Tinha dormido jogada de qualquer jeito na cama, com meu cachorro devidamente aninhado no edredom ao meu lado. Pisquei forte por alguns segundos antes de conseguir forças para me levantar. Minha cabeça latejava de leve e eu tinha um gosto ruim na boca, o que me fez suspirar alto.
Pelo menos nenhum pesadelo tinha me atrapalhado.
Sentei na ponta da cama, espreguiçando os braços o máximo que consegui. Astra fez o mesmo ao meu lado, levando as patinhas da frente longe, levantando seu bumbum de cachorro. Achei meu celular em meio a algumas almofadas, já vendo as mensagens recebidas horas atrás.
Olhei no relógio do celular e já passava de uma da manhã. Nesse horário eu já teria ido ao celeiro, voltado e estaria dormindo lindamente, mas algo tinha me feito acordar (provavelmente a posição horrível) e agora não tinha mais volta.
Sem pensar duas vezes sentei na cadeira em frente à mesa onde estava o meu computador, abrindo o mesmo sem cerimônias. Abri o meu Facebook, nada de novo. E então resolvi olhar os documentos enviados por Bree, em meu e-mail.
Péssima escolha.
A primeira mensagem que gritava na caixa de entrada tinha como remetente Logan Hills, meu ex-namorado de Nova Iorque. Estava tarde para o drama recorrente da minha vida, o que me levantou a fechar o computador e me jogar na cama novamente.
A verdade estava bem clara: eu não iria conseguir dormir.
Girei algumas vezes na cama, com meu cachorro achando graça para iniciar uma bagunça em meio ao edredom. Astra era uma boa distração, mas de repente o meu quarto pareceu pequeno demais, sufocante demais… Precisava esfriar a cabeça, esquecer aquele maldito e-mail não lido e, como não tinha tido o escape do dia com o meu grupo do celeiro secreto, faria isso por conta própria.
Desci as escadas de fininho, tentando fazer o mínimo de barulho possível, já que meus pais estavam dormindo no andar de cima. Consegui chegar ao andar principal, mas a próxima batalha foi conseguir deixar Astra em casa, sem que o cachorro começasse a latir loucamente.
Quando vi, já estava fazendo a loucura de sair de casa escondida, coisa que nunca (nunca mesmo) tinha feito na cidade grande. Talvez por ser perigoso demais ou talvez por não ter para onde ir...
Naquela vila pacata eu não sentia medo, mesmo sendo tudo um pouco vazio, escuro e meio sinistro ao anoitecer. Bourton-on-the-Water parecia um lugar bem propício para assassinatos em série sem a luz do dia. Mas eu sabia que podia andar sozinha de madrugada que ninguém se importaria.
Além da patrulha, claro, mas já devia ser tarde demais para encherem o saco de alguém que só quer sair de casa.
Parei de andar pelas ruas de pedras quando dei de cara com duas bicicletas encostadas em um muro baixo. O meu sorriso foi instantâneo. Provavelmente seria a primeira pessoa a roubar algo na região e só de perceber isso meu corpo tremeu. Qual é o problema do ser humano com coisas erradas e proibidas?
Devolveria aquilo, mas, se estava ali, sem amarração nenhuma… Iria aproveitar. Eu não sabia andar direito naquela coisa ridícula, mas era madrugada, quem iria conseguir registrar as minhas quedas de cara no chão?
Peguei uma das bicicletas às pressas, olhando para todos os lados furtivamente. Pedalei os primeiros metros igual uma criança provavelmente faria, quase caindo várias vezes. Se eu ia abraçar o interior e aquela cafonice que era fazer tudo de bicicleta, precisaria da ajuda do pessoal do celeiro para me ensinar. Já conseguia imaginar rindo da minha cara ao sugerir rodinhas para crianças…
Suspirei quando seu rosto preencheu minha mente, sem parar de pedalar sem um destino definido. Me preocupava com ele e não saber o que tinha acontecido me deixava louca.
Andei aos tropeços pelo que pareceram minutos. Quando me vi longe das casas da região, me permiti gritar. Meu peito chegava a doer, mas eu não estava nem aí. Precisava daquilo, pelas últimas semanas, últimos minutos. Pelas treze mudanças.
De repente o grito se tornou uma risada e eu percebi que, finalmente, me sentia feliz.
E foi só ali, com esse momento esquisito, que me toquei para onde o meu “pedalar sem destino” tinha me levado: a estrada de terra que dava no celeiro. Fazia sentido, já que eu considerava aquele lugar como um escape. Era um dos lugares que mais me deixava feliz. Feliz de verdade.
Corri um pouco mais, indo na direção que parecia me chamar.
Saltei daquilo que já tinha me deixado de joelho ralado alguns minutos antes, encostando-a na cerca velha na entrada do celeiro. Só então percebi que as luzes internas estavam acesas. Meu corpo gelou no mesmo momento. Talvez essa fosse uma péssima ideia… Madrugada, a vila vazia… E se algum grupo de marginais de Cotswolds também usasse aquele lugar como ponto de encontro?
Antes que minhas pernas fizessem o caminho oposto, abri a grande porta, espiando a parte de dentro. No mesmo instante uma melodia atingiu meus ouvidos, me deixando confusa. Era como um… Violão. E então palavras muito bem cantadas, em um timbre que eu nunca tinha ouvido.
Era bom. Muito bom.
Franzi o cenho, tentando entender o que era aquilo. Meu corpo inteiro se arrepiou quando eu entendi que ali, naquele celeiro velho, sujo e parcialmente abandonado, estava cantando. E tocando violão.
“Ele gosta de música”. As palavras de Mason preencheram a minha cabeça, me lembrando da noite em que contávamos um pouco sobre cada um. E aquilo era uma das coisas sobre .
Estava explicado porque minha mensagem não chegou — e nem chegaria.
Ao abrir um pouco mais a porta, meus olhos o acharam. estava sentado no chão batido do celeiro, com suas costas apoiadas em um dos grandes blocos de feno espalhados por ali. Ele estava mais ao canto direito do lugar, e por isso não tinha a visão completa da entrada. Parecia tão absorto que o abrir da porta não chamou sua atenção.
Andei a passos curtos, respirando fundo e evitando qualquer grande barulho para que ele não se assustasse.
O que foi impossível de evitar assim que falei o seu nome.
— ?
Me arrependi no mesmo momento em que abri a boca. Sua expressão quase soltou de seu rosto pelo susto.
— ? — ele olhou para o relógio, se recompondo. — São quase duas horas da manhã.
— Eu sei. Está sozinho aqui?
Ele soltou o braço do violão, mas ainda o mantinha no colo.
— Como você chegou aqui?
— De bicicleta — olhei em volta, o que o fez comprimir os olhos claros.
— Você não tem bicicleta — me olhou desconfiado, mal acreditando em suas próprias palavras. — Você roubou uma?
— Roubar é uma palavra muito forte.
— ...
— Eu devolvo pela manhã! — me dei por vencida.
Ele soltou uma gargalhada alta.
— Você não existe.
parecia sorridente, mas ainda retraído. Exatamente do mesmo jeito que ficava dentro da The Cotswold School ou no mercado vende-tudo de seu pai. Foi assim, simples assim, que percebi uma coisa: ele estava 100% sóbrio.
E era uma novidade ver sóbrio dentro daquele celeiro.
Ele sempre dizia que ali era um lugar sem regras, que ele faz e sente o que quiser. Eu sabia que bebida e baseados não eram escapatória para nada, mas mesmo assim não consegui não ficar surpresa.
Andei até onde ele estava, ainda com cautela. Eu queria deixar a curiosidade gritar dentro daquele celeiro, mas sabia que podia ser difícil com coisas pessoais. E, bem, se ele estava tocando violão no celeiro às duas da manhã, escondido, aquilo provavelmente era bem pessoal.
— O que você está fazendo aqui sozinho?
Ele deu de ombros — Às vezes venho aqui para ficar sozinho.
— Porque você não gosta muito de ficar em casa.
Ele riu pela minha lembrança.
— Isso aí.
Fiz um barulho com a boca, de repente estranhando o clima esquisito entre nós. Talvez tenha sido um erro entrar e atrapalhar tudo...
— O que estava tocando?
Ele mal se alterou — Nada demais.
— Bom… — tentei pensar em qualquer coisa ridícula para dizer, mas nada me vinha à cabeça. — Acho que vou indo, nem sei porque vim parar aqui…
— Não! — ele me interrompeu, ainda calmo. — Fica aqui comigo.
Mantive a minha cautela de antes ao dizer:
— Não estou atrapalhando? Eu entendi que é algo que você gosta de fazer sozinho, está tudo bem.
— Cidade grande — sorriu —, você nunca atrapalha.
Olhei em volta do celeiro, logo voltando meus olhos a .
— O que houve? — ele fez uma careta ao perceber que eu fazia uma careta.
— Você é canhoto — e então me sentei no bloco de feno que ele estava apoiando suas costas, juntando as pernas. — Como eu não tinha percebido antes?
olhou para o violão, um pouco constrangido.
— Eu bebo com as duas mãos, deve ser por isso.
De onde eu estava sentada, via o menino de cima e de costas para mim. Pelo clima esquisito, eu até preferia que ele não me encarasse. Ainda não sabia o que tinha ido fazer ali, mas era um bom escape… Principalmente se o garoto do mercado estivesse junto.
Conversamos sobre coisas aleatórias e, quando percebi, já estava deitada de barriga para cima, olhando para o teto de madeira. Eu mexia minhas pernas lentamente, enquanto contava alguma coisa esquisita que aconteceu na aula de Culinária esses dias, ainda sentado no chão, com o seu violão de canhoto no colo.
Estar ali às duas da manhã, sem propósito e sem marcar era estranho. Mas assim como muitas coisas diferentes que eu só tinha feito em Bourton-on-the-Water, parecia um pouco… Certo.
Quando ele terminou sua história doida, ficamos alguns minutos em silêncio. Não sabia dizer se foram muitos ou poucos, mas não era desconfortável. Era gostoso ter a presença dele, mesmo que fosse para fazer literalmente nada.
Nem me lembrava da última vez em que tinha me sentido assim com alguém.
— Que tipo de música você gosta? — quebrou o nosso silêncio ao perguntar.
Suspirei alto. Eu adorava música e tinha um gosto específico. Muito era influência direta do meu irmão ou meu pai, que viviam comprando CDs e vinis sempre que possível.
— Bandas como The Strokes e Franz Ferdinand — vi concordar com a cabeça. — Meu irmão sempre gostou de Red Hot Chilli Peppers, então eu coloco na minha lista sempre — eu sentia falta de Arthur. Meu coração apertou ao lembrar da carta que tinha recebido dele dias atrás. — E você?
— Gosto das mais antigas — ele riu. — Você já devia imaginar, por Cotswolds...
— Incrivelmente, não — falei sincera. sempre me surpreendia em qualquer coisa e eu sabia que no tema música não seria diferente. — Do que você gosta?
Descobrir coisas novas sobre nunca era demais.
— Meu pai gosta de Dire Straits, Pink Floyd… Então sempre ouvi essas coisas quando pequeno até hoje — ele falava devagar enquanto eu concordava com todas as suas palavras. — Eu gosto também. E Bruce Springsteen, Queen — pareceu pensar um pouco. — Elton John.
— Eu gosto de Elton John! — disse sem ao menos pensar. — Meu pai sempre escuta em casa.
Ele me olhou por cima do ombro, sorrindo.
E então silêncio entre nós se fez presente outra vez.
Com o canto dos olhos vi que observava o teto sem pretensão. A única coisa que me sobrou foi estudar sua expressão. Era serena, mas ainda tinha aquele ar esquisito. Se ele tinha o costume de ir até o celeiro para ficar sozinho com frequência, eu me sentia triste. Por ele e por qualquer motivo que ele tivesse para fazer aquilo. Queria que achasse o conforto de ser feliz, mesmo tendo a vida tão bagunçada pela história da sua mãe.
Com certeza eu incluiria ele no meu Time .
Ri sozinha ao pensar nisso. Ele provavelmente brigaria comigo por qualquer maluquice que fosse inventar, mas para tirar um sorriso do seu rosto eu faria de tudo. Talvez um plano mais simples, com…
Prendi a respiração com a surpresa de ouvir algumas notas sendo tocadas.
Girei a cabeça de lado, mas continuei deitada, olhando seu perfil. Fiz o máximo para reprimir um longo suspiro. tocava o seu violão olhando para o nada e, às vezes, para os seus próprios dedos. Ele não cantava, mas a música era tão bem tocada que eu achava bem familiar.
Era uma cena e tanto para o meu coração.
Só no refrão eu consegui lembrar o nome da música. I Guess That’s Why They Call It The Blues, do Elton John. Papai sempre ouvia e eu amava aquela melodia, letra, tudo. E ouvir tocando aquilo só melhorava e muito a música.
Assobiei e fiz pequenos barulhos com a boca, entrando no ritmo da música, mas também sem cantar a letra em si. Ele me olhou rapidamente pelo ombro e sorriu de um jeito fofo, o que me fez continuar.
No último refrão não me aguentei e quando percebi já estava sussurrando baixinho a letra.
And I guess that's why they call it the blues
Acho que é por isso que chamam de tristeza
Time on my hands should be time spent with you
O tempo em minhas mãos deveria ser o tempo que passo com você
Laughing like children, living like lovers
Rindo como crianças, vivendo como amantes
Rolling like thunder under the covers
Retumbando como trovão sob os cobertores
And I guess that's why they call it the blues
Acho que é por isso que chamam de tristeza
Logo após veio um pequeno solo no violão, que me derreteu ainda mais ao perceber a expressão concentrada que fazia.
Não me cansava de pensar que ele era lindo demais.
Quando a música acabou, nada fiz. Não aplaudi, não disse qualquer elogio. Não nos olhamos. De repente eu entendia que existia alguma barreira entre e a música, e como eu ainda não sabia o que era, respeitaria esse passo dele.
Continuei deitada no bolo de feno, mas agora me sentia anestesiada. Parecia ser o efeito que ele fazia em mim. Pisquei forte e quando abri os olhos, aquele oceano azul claro me encarava de cima. Seus cabelos estavam bagunçados como sempre, sua expressão calma, mas pelas suas íris sabia que devia estar pensando em várias coisas ao mesmo tempo.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele me abraçou, quase deitando por cima de mim. Seu corpo estava quente e só consegui suspirar quando suas mãos tocaram a minha barriga por dentro da camisa que eu vestia. Ele passou o seu nariz por toda a extensão do meu pescoço e eu fechei os olhos para aproveitar todas aquelas sensações. Segundos depois nossas bocas estavam coladas para mais um dos diversos beijos que já tínhamos compartilhado.
Engraçado que todos eles pareciam ser o primeiro.
descolou seus lábios dos meus, sorrindo. Passei as duas mãos em seu rosto, enquanto ele se equilibrava nos cotovelos para não me esmagar.
— Agora minha noite está completa — sua voz saiu quase como um sussurro.
— Obrigada — concordei, não controlando a língua dentro da minha boca. — Eu nem sabia que era isso que eu precisava.
Ele me olhou sereno e eu pude sentir a ternura em suas feições.
— , o que realmente faz aqui a essa hora?
Me permiti suspirar alto e pesadamente.
— Por que algumas pessoas tentam ser más comigo nessa vila?
manteve o olhar calmo. Seus olhos claros eram sinceros e intensos.
— Ainda estão implicando com você na escola?
— Se você ouviu as fofocas de hoje, já sabe que sim.
O garoto concordou, tirando um dos braços do feno para mexer em meu cabelo.
— Eu sou um fantasma lá, mas mesmo assim continuo sabendo de tudo.
— E você acredita?
— Acredito no que você me contar, cidade grande.
Revirei os olhos — Só me diga que não acredita nesse boato, por favor.
Ele sorriu — Não acredito que você ainda se envolva com Kyle. Já tivemos essa conversa, lembra?
— Obrigada.
— Minha opinião importa tanto assim?
Franzi o cenho — Desde quando não importa?
— Isso é porque eu te agarro pela vila?
Empurrei seu ombro, o que fez ele deitar ao meu lado.
— Obrigado por ser tão compreensivo.
— Vem cá.
Ele me puxou novamente para o seu corpo e eu o abracei com vontade. Aquele momento gostoso pareceu durar minutos e logo ele estava me afastando para olhar em meus olhos.
— Se quiser resolver esses problemas na escola, podemos ver como te ajudar — fez uma careta fofa. — O Time deveria servir para você também, não?
Aquilo parecia ótimo, mas só de lembrar quem provavelmente estava por trás de tudo, meu corpo já gelava. Eu não precisava reclamar da ex-namorada de . Principalmente para ele mesmo. Não era certo…
— Estou bem. Mas agradeço a preocupação.
Ele concordou, me apertando um pouco mais, o que incrivelmente ajudou.
Daria um jeito de desabafar com Mila, era a melhor opção. O combo de minha amiga + nunca pareceu tão bom.
***
Para o meu alívio pessoal, no dia seguinte todos os meus novos amigos estavam juntos no celeiro.
— Pensei que não fosse chegar nunca! — Mila parecia bêbada, mesmo eu sabendo que ela nunca bebia. — Está perdendo toda a diversão.
E foi então que ela o viu. Todos viram. Nem fiz questão de segurá-lo mais.
Para completar o time dos renegados, Astra, meu cachorro filhote caramelo, estava no celeiro. Ele tinha me seguido por boa parte da vila, já que fui andando pela estrada de terra por ter perdido todas as caronas que me ofereceram. Mamãe tinha feito um banquete no jantar e insistiu em ver fotos antigas de nós quatro, o que resultou em uma bela caminhada até o celeiro velho.
Infelizmente não vi bicicletas livres por aí para pegar emprestado.
Meu cachorro, que não é nada bobo, me seguiu sem que eu tivesse percebido. Só no centro da vila me dei conta da minha companhia inusitada e, com medo de voltar e ficar presa com meus pais naquela nostalgia de fotos e recordações, resolvi levar o cachorro comigo.
Larguei a coleira de Astra no chão, logo o perdendo de vista nos bolos de fenos. O cachorro latia e se esfregava em tudo, principalmente em meus amigos.
— Galera, esse é o Astra — falei alto, só assistindo a bagunça se formar.
Hayden franziu o cenho, mas sua expressão logo mudou assim que Astra pulou em sua direção.
— chega por último e já traz convidados novos?
Dei de ombros — Pode ser o mascote daqui. Acho que falta isso, não?
apareceu ao meu lado como uma assombração.
— Acho ótimo. Ele tem o espírito do celeiro.
Astra corria já cheio de feno grudado em seus pelos dourados. Noah e Riley corriam atrás dele. Até Bronwen parecia feliz com a visita do cachorro.
— Como você trouxe ele até aqui? — Mila perguntou, sorrindo.
— Ele me seguiu. Só reparei depois da ponte.
— Acho que ele quer ser parte dos renegados — Ella disse feliz, se abaixando para ser abraçada pelo cachorro.
Mila suspirou — Mas todos o amam.
— Talvez ele só odeie Cotswolds — Mason ponderou, analisando o bicho.
— Gente, ele é um cachorro — Riley entrou na discussão sem sentido. — Como pode odiar Bourton-on-the-Water? É perfeito para cães.
Franzi o cenho na hora, olhando acusadoramente para cada um.
— O quanto vocês já beberam?
Ella ajeitou em sua cabeça os laços enormes e muito, muito neon.
— O suficiente para proclamar seu cachorro como o mascote do celeiro — a menina mais nova disse animada.
— Então Noah não é mais o mascote? — Hayden segurava uma risada junto com os demais.
Noah bufou alto — Cala a boca.
Bronwen, que agora era quem estava ganhando a atenção de Astra, quase gritou.
— Parem com isso!
Todos começaram a reclamar, rir, fazer festa, tudo ao mesmo tempo. Era confuso. Com certeza tinham bebido alguma coisa bem forte no início da noite.
Tudo parecia enérgico demais, com exceção de , que tinha sentado em seu bolo cativo de feno e estava lá, na dele, só observando o restante dos nossos amigos se divertindo com Astra e piadas ruins.
O garoto do mercado estava esquisito… E pela segunda vez desde que eu tinha pisado em Cotswolds, parecia sóbrio e cansado. Tentei me enganar deixando para lá ao pensar que poderia ser uma noite mal dormida, já que ele estava tocando violão escondido no celeiro durante a madrugada.
Mas eu tinha uma pulga grande atrás da orelha.
Ele estava esquisito, muito diferente do garoto que eu já tanto conhecia e gostava.
Mason e não tinham sido muito claros sobre o porquê do cancelamento do encontro na noite passada, mas todos pareceram não ligar muito, então resolvi que era melhor deixar para lá isso também.
Ouvi Riley, Noah e Hayden gritando palavras sem sentido para Astra, e só depois percebi que todos tinham jogado coisas aleatórias para o cachorro pegar.
Noah empurrava os amigos o tempo inteiro.
— Aposto que ele vai preferir minhas bolas!
Hayden o olhou estranho — Pensa duas vezes antes de falar as coisas que sua mente perturbada inventa.
O mais baixo fez uma expressão estranha, como se não tivesse entendido.
Astra simplesmente pegou cada objeto de uma vez, formando um arco de três coisas coloridas com sua pequena boca. Aquele cachorro era impossível.
— É, — Mason ria. — Ele tem o seu gênio.
A noite fluiu bem, com Astra correndo para todos os lados e uma música esquisita tocando de fundo. Todos conversavam, bebiam e jogavam cartas. Menos , que ainda estava esquisito, sentado no seu feno com Mason ao seu lado.
Nossos olhares se cruzaram e sorrimos, mas eu pude ver que o sorriso dele não era o mesmo de sempre. Mas a preocupação bateu de verdade quando ele negou o baseado que Mason tinha acabado de acender.
Sabia que não estava assim por causa dos últimos acontecimentos da escola, mas isso me lembrou que eu tinha um plano de me explicar para aquelas pessoas. Não sabia dizer o porquê, mas sentia que precisava deixar claro que eu não me envolvia com uma pessoa ruim como Kyle
Parei no meio do celeiro salpicado de feno, tentando chamar a atenção de meus amigos.
— Galera! — não foi muito difícil. Todos pararam o que estavam fazendo para me observar. se mantinha longe. — Preciso falar uma coisa sobre a fofoca da escola.
— Você não precisa fazer isso, — Mila falou ao meu lado direito.
Assenti para minha amiga, sabendo que eu realmente não precisava fazer aquilo, mas sentia que devia. Eu não poderia deixar que uma fofoca boba causasse algum problema entre nós.
— Sei que não preciso, mas quero — o pessoal continuava me olhando atento. — Vocês devem ter ouvido a fofoca da semana. Eu só queria dizer que não é verdade. Me importo muito com a opinião de todos aqui dentro, e por isso acho que preciso ser sincera — de longe pude ver franzir o cenho. — Quando cheguei aqui na vila me senti sozinha e achei um escape em poucas pessoas. Kyle foi uma delas. Não vou negar que nos beijamos por aí, mas a fofoca da escola não é verdadeira. Eu não sou esse tipo de pessoa.
A expressão de continuava esquisita.
Mason foi o primeiro a falar.
— , concordo com a Mila. Você realmente não precisa fazer isso.
Sorri para o garoto loiro — Obrigada, Mason. Mas vocês me salvaram da vila. Devo isso a todos aqui.
Arrisquei um olhar mais intenso a , mas este agora parecia entretido no teto de madeira. Aquilo me fez suspirar. Pensava que estávamos bem.
Noah não perdeu a oportunidade de soltar uma gracinha.
— Talvez seja melhor você se envolver com pessoas mais novas… Nunca inventariam algo de você assim, sabe?
Tive de revirar os olhos, enquanto o resto do celeiro ria.
— Você não perde uma.
— É o meu papel aqui dentro — o menino baixinho deu de ombros.
Ella parecia curiosa, enquanto Bronwen fazia o máximo para ignorar minha existência.
— O que aconteceu então?
— Nós realmente estávamos no ginásio, mas nada aconteceu. Eu fui buscar meus tênis de corrida nos armários e Kyle me seguiu. O resto é invenção.
Mila arriscou uma pergunta, que provavelmente tinha guardado desde o outro dia.
— Ele que inventou tudo isso?
— Eu não faço ideia.
Bronwen me olhou de lado e fiz o máximo para ignorá-la também. Ela tinha visto uma de minhas cenas com Zara e aquilo era o suficiente para incluir mais uma na lista de quem estaria inventando aquelas coisas ridículas sobre mim.
Assim como eu desconfiava de Kyle, também acreditava que a culpa da fofoca da vez poderia ser de outra pessoa. Uma pessoa que deixava bem claro que não ia com a minha cara: Zara.
Eu só não queria Bronwen bancando a sabe-tudo para cima de mim. Não éramos amigas.
Além disso, não ia falar algo assim no celeiro, até porque nunca tinha contado a ninguém as provocações surreais que recebia da menina. Aquilo mexia com o meu psicológico e eu preferia esquecer e ignorar, não precisava de alguém sentindo pena do que a ex-namorada de fazia comigo naqueles corredores brancos demais.
Mas tinha decidido que falaria com Mila.
Acabando com o clima que eu mesma tinha criado, soltei:
— E então, vamos beber?
Era sábado à noite e todos ali pareciam merecer esquecer um pouco as merdas acontecidas durante a semana. ficou a noite inteira em seu bolo de feno ridículo, sem dar muita atenção aos demais. Tirando isso, a noite foi tão agradável que pareceu durar pouco.
Quando vi, já estava na hora de ir embora.
— Hoje você vai aceitar minha carona? — Noah tentava um sorriso sedutor. — Já fiz uns cálculos e tenho várias maneiras de você ficar bem segura e perto de mim.
Tive de revirar os olhos — Me esquece, criança.
O garoto riu, logo indo embora com Riley. Mila então se aproximou, visto que eu era a única parada na estrada de terra.
— , quer ir comigo?
— Não, eu já tenho… — parei de falar assim que percebi se movimentando para ir embora. Sem mim. Fiquei chocada, mas não ao ponto de não conseguir chamar sua atenção.
Ele olhou de lado para mim, sem entender.
— O que houve?
O olhei incrédula — Você está indo embora sem mim?
Ele mantinha a expressão serena — Achei que você tivesse carona, já que não veio comigo.
Fiz o máximo para não revirar os olhos.
— Você sempre é a minha carona para ir embora.
Ele me olhou esquisito — Preciso ir mais rápido hoje, por isso achei que iria com Mila. E ainda tem o cachorro...
Eu não ia engolir aquilo tão rápido. Já bastava a falta de interesse dele em mim durante todo o período dentro do celeiro, e agora eu o tinha pegado tentando fugir.
— Você está bravo comigo?
pareceu achar graça da minha pergunta. Nesse meio tempo, vi que Mila e Mason já tinham ido embora. Ele querendo ou não, ia ser a minha carona.
— Não, . Por que estaria?
— Por você ter me ignorado o celeiro inteiro.
— Não estou te ignorando.
O olhei desconfiada — E nem bebeu, não fumou, não comentou nada. O que tem de errado com você hoje?
Ele suspirou, parecendo se dar por vencido.
— Gosto que você tenha reparado, mas não é nada demais.
Eu pensei em diversas coisas que pudesse ter feito ou falado, mas nada demais vinha à minha cabeça. Bom, nada além da fofoca de que eu e Kyle estávamos praticamente transando no banheiro do vestiário masculino. Aquele pensamento me dava calafrios, pois me lembrava outra conversa não muito agradável.
Meu sangue cheio de álcool falou demais.
— Você está assim por causa da fofoca? Pensei que estávamos bem.
Ele piscou pesadamente por alguns segundos, antes de falar.
— Acha que estou com ciúmes?
E mais uma vez eu agradecia a todos os deuses por ter a habilidade de não corar por qualquer coisa. Respirei fundo, não sabendo como desenvolver a minha próxima resposta sem parecer uma louca (coisa que adoraria).
— Só estou preocupada que isso tenha abalado alguma coisa entre nós.
E lá estava o “nós” novamente.
sorriu sincero — Estamos bem. Já disse que acredito em você, cidade grande — e deu de ombros. — E agora eu sempre falo quando estou com ciúmes.
— Então qual é o problema? — a indignação estava presente em minha voz. — Você nem ameaçou bater no Noah quando ele fez graça pra mim.
— Só não estou bem esses dias — suspirou ao dizer. — Fui eu quem cancelou o celeiro ontem, não estava me sentindo bem e hoje aumentou um pouco.
Fiz de tudo para engolir aquela resposta, afinal, realmente não parecia bem. Seu rosto estava abatido e sua falta de interesse na bebida era algo assustador.
— Tudo bem — me dei por vencida. — Posso te levar para casa então?
Ele deu uma risada fraca — Para que eu possa cair no rio e ficar pior?
Dei um pequeno empurrão nele, me aproximando de sua bicicleta. Astra aguardava ansiosamente ao nosso lado, exausto.
— Vem logo.
manteve o sorriso — É “vem cá”.
— O quê?
— Quando eu quero que você chegue perto. Eu falo “vem cá”. Sempre funciona.
Franzi o cenho — Quer que eu teste em você?
— Seria ótimo.
— Vem cá.
Ele riu novamente, logo se aproximando de mim. Para minha surpresa, seus braços envolveram a minha cintura em um abraço gostoso e quentinho. O abracei de volta, acariciando os seus cabelos. Apertei com mais vontade, sentindo ainda mais o calor da sua pele contra a minha.
— Vou usar essa tática também.
Ele riu, depositando um beijo demorado em minha bochecha.
— Vamos, preciso ir antes que eu desmaie aqui.
— .
Ele me olhou, cansado — Hm?
— Você está doente?
Se eu vivia todos os clichês ali, com ele, tinha medo desse.
Ele riu — Não. Talvez um resfriado, apenas. Annabelle estava gripada esses dias.
Concordei, aliviada — Está bem. Se precisar de algo…
— Eu sei, — e me deu um novo beijo na bochecha. — Obrigado.
Eu sabia que ele estava escondendo alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, esquisitamente, sabia que não era sobre mim. Minha cabeça se encheu de ideias e suposições loucas, e a única coisa que consegui dizer foi:
— Pronto para sua carona?
Ele me olhou pelos ombros, sorrindo.
— Me mostra o que você sabe, cidade grande.
Subi na bicicleta com uma sensação ruim no peito. Esperava que isso passasse pela manhã e que tudo realmente estivesse bem, como sempre.
Iria focar a minha mente doida nas descobertas que tinha feito nesses últimos dias. Pensar em algo para me proteger de Kyle e Zara e, principalmente, sabendo de e sua admiração pela música, planejaria algo para devolver tudo de bom que ele fazia por mim sem ao menos perceber.
O Time também serviria para o bem.
Quando meus olhos abriram já era noite.
Tinha dormido jogada de qualquer jeito na cama, com meu cachorro devidamente aninhado no edredom ao meu lado. Pisquei forte por alguns segundos antes de conseguir forças para me levantar. Minha cabeça latejava de leve e eu tinha um gosto ruim na boca, o que me fez suspirar alto.
Pelo menos nenhum pesadelo tinha me atrapalhado.
Sentei na ponta da cama, espreguiçando os braços o máximo que consegui. Astra fez o mesmo ao meu lado, levando as patinhas da frente longe, levantando seu bumbum de cachorro. Achei meu celular em meio a algumas almofadas, já vendo as mensagens recebidas horas atrás.
* Noah Singh: Se alguém estiver de bobeira, estou disponível.
* Hayden King: @Noah como se alguém quisesse ficar sozinho com você.
Tive de rir daquilo. Tinha mais trinta mensagens no grupo do celeiro, todas com Noah e Hayden se ofendendo. No privado, mensagens de Mila e Bree.* Hayden King: @Noah como se alguém quisesse ficar sozinho com você.
* Mila Hughes: Amiga, quer vir para cá?
* Bree Anderson: Te mandei por e-mail uns formulários da NYU!
Respondi as duas. Para Mila, pedi desculpas; para Bree disse que olharia amanhã cedo. Rolei mais algumas mensagens na tela até parar no contato de . Minha mensagem de mais cedo continuava ali, sozinha. E nem mesmo tinha chegado para ele.* Bree Anderson: Te mandei por e-mail uns formulários da NYU!
Olhei no relógio do celular e já passava de uma da manhã. Nesse horário eu já teria ido ao celeiro, voltado e estaria dormindo lindamente, mas algo tinha me feito acordar (provavelmente a posição horrível) e agora não tinha mais volta.
Sem pensar duas vezes sentei na cadeira em frente à mesa onde estava o meu computador, abrindo o mesmo sem cerimônias. Abri o meu Facebook, nada de novo. E então resolvi olhar os documentos enviados por Bree, em meu e-mail.
Péssima escolha.
A primeira mensagem que gritava na caixa de entrada tinha como remetente Logan Hills, meu ex-namorado de Nova Iorque. Estava tarde para o drama recorrente da minha vida, o que me levantou a fechar o computador e me jogar na cama novamente.
A verdade estava bem clara: eu não iria conseguir dormir.
Girei algumas vezes na cama, com meu cachorro achando graça para iniciar uma bagunça em meio ao edredom. Astra era uma boa distração, mas de repente o meu quarto pareceu pequeno demais, sufocante demais… Precisava esfriar a cabeça, esquecer aquele maldito e-mail não lido e, como não tinha tido o escape do dia com o meu grupo do celeiro secreto, faria isso por conta própria.
Desci as escadas de fininho, tentando fazer o mínimo de barulho possível, já que meus pais estavam dormindo no andar de cima. Consegui chegar ao andar principal, mas a próxima batalha foi conseguir deixar Astra em casa, sem que o cachorro começasse a latir loucamente.
Quando vi, já estava fazendo a loucura de sair de casa escondida, coisa que nunca (nunca mesmo) tinha feito na cidade grande. Talvez por ser perigoso demais ou talvez por não ter para onde ir...
Naquela vila pacata eu não sentia medo, mesmo sendo tudo um pouco vazio, escuro e meio sinistro ao anoitecer. Bourton-on-the-Water parecia um lugar bem propício para assassinatos em série sem a luz do dia. Mas eu sabia que podia andar sozinha de madrugada que ninguém se importaria.
Além da patrulha, claro, mas já devia ser tarde demais para encherem o saco de alguém que só quer sair de casa.
Parei de andar pelas ruas de pedras quando dei de cara com duas bicicletas encostadas em um muro baixo. O meu sorriso foi instantâneo. Provavelmente seria a primeira pessoa a roubar algo na região e só de perceber isso meu corpo tremeu. Qual é o problema do ser humano com coisas erradas e proibidas?
Devolveria aquilo, mas, se estava ali, sem amarração nenhuma… Iria aproveitar. Eu não sabia andar direito naquela coisa ridícula, mas era madrugada, quem iria conseguir registrar as minhas quedas de cara no chão?
Peguei uma das bicicletas às pressas, olhando para todos os lados furtivamente. Pedalei os primeiros metros igual uma criança provavelmente faria, quase caindo várias vezes. Se eu ia abraçar o interior e aquela cafonice que era fazer tudo de bicicleta, precisaria da ajuda do pessoal do celeiro para me ensinar. Já conseguia imaginar rindo da minha cara ao sugerir rodinhas para crianças…
Suspirei quando seu rosto preencheu minha mente, sem parar de pedalar sem um destino definido. Me preocupava com ele e não saber o que tinha acontecido me deixava louca.
Andei aos tropeços pelo que pareceram minutos. Quando me vi longe das casas da região, me permiti gritar. Meu peito chegava a doer, mas eu não estava nem aí. Precisava daquilo, pelas últimas semanas, últimos minutos. Pelas treze mudanças.
De repente o grito se tornou uma risada e eu percebi que, finalmente, me sentia feliz.
E foi só ali, com esse momento esquisito, que me toquei para onde o meu “pedalar sem destino” tinha me levado: a estrada de terra que dava no celeiro. Fazia sentido, já que eu considerava aquele lugar como um escape. Era um dos lugares que mais me deixava feliz. Feliz de verdade.
Corri um pouco mais, indo na direção que parecia me chamar.
Saltei daquilo que já tinha me deixado de joelho ralado alguns minutos antes, encostando-a na cerca velha na entrada do celeiro. Só então percebi que as luzes internas estavam acesas. Meu corpo gelou no mesmo momento. Talvez essa fosse uma péssima ideia… Madrugada, a vila vazia… E se algum grupo de marginais de Cotswolds também usasse aquele lugar como ponto de encontro?
Antes que minhas pernas fizessem o caminho oposto, abri a grande porta, espiando a parte de dentro. No mesmo instante uma melodia atingiu meus ouvidos, me deixando confusa. Era como um… Violão. E então palavras muito bem cantadas, em um timbre que eu nunca tinha ouvido.
Era bom. Muito bom.
Franzi o cenho, tentando entender o que era aquilo. Meu corpo inteiro se arrepiou quando eu entendi que ali, naquele celeiro velho, sujo e parcialmente abandonado, estava cantando. E tocando violão.
“Ele gosta de música”. As palavras de Mason preencheram a minha cabeça, me lembrando da noite em que contávamos um pouco sobre cada um. E aquilo era uma das coisas sobre .
Estava explicado porque minha mensagem não chegou — e nem chegaria.
Ao abrir um pouco mais a porta, meus olhos o acharam. estava sentado no chão batido do celeiro, com suas costas apoiadas em um dos grandes blocos de feno espalhados por ali. Ele estava mais ao canto direito do lugar, e por isso não tinha a visão completa da entrada. Parecia tão absorto que o abrir da porta não chamou sua atenção.
Andei a passos curtos, respirando fundo e evitando qualquer grande barulho para que ele não se assustasse.
O que foi impossível de evitar assim que falei o seu nome.
— ?
Me arrependi no mesmo momento em que abri a boca. Sua expressão quase soltou de seu rosto pelo susto.
— ? — ele olhou para o relógio, se recompondo. — São quase duas horas da manhã.
— Eu sei. Está sozinho aqui?
Ele soltou o braço do violão, mas ainda o mantinha no colo.
— Como você chegou aqui?
— De bicicleta — olhei em volta, o que o fez comprimir os olhos claros.
— Você não tem bicicleta — me olhou desconfiado, mal acreditando em suas próprias palavras. — Você roubou uma?
— Roubar é uma palavra muito forte.
— ...
— Eu devolvo pela manhã! — me dei por vencida.
Ele soltou uma gargalhada alta.
— Você não existe.
parecia sorridente, mas ainda retraído. Exatamente do mesmo jeito que ficava dentro da The Cotswold School ou no mercado vende-tudo de seu pai. Foi assim, simples assim, que percebi uma coisa: ele estava 100% sóbrio.
E era uma novidade ver sóbrio dentro daquele celeiro.
Ele sempre dizia que ali era um lugar sem regras, que ele faz e sente o que quiser. Eu sabia que bebida e baseados não eram escapatória para nada, mas mesmo assim não consegui não ficar surpresa.
Andei até onde ele estava, ainda com cautela. Eu queria deixar a curiosidade gritar dentro daquele celeiro, mas sabia que podia ser difícil com coisas pessoais. E, bem, se ele estava tocando violão no celeiro às duas da manhã, escondido, aquilo provavelmente era bem pessoal.
— O que você está fazendo aqui sozinho?
Ele deu de ombros — Às vezes venho aqui para ficar sozinho.
— Porque você não gosta muito de ficar em casa.
Ele riu pela minha lembrança.
— Isso aí.
Fiz um barulho com a boca, de repente estranhando o clima esquisito entre nós. Talvez tenha sido um erro entrar e atrapalhar tudo...
— O que estava tocando?
Ele mal se alterou — Nada demais.
— Bom… — tentei pensar em qualquer coisa ridícula para dizer, mas nada me vinha à cabeça. — Acho que vou indo, nem sei porque vim parar aqui…
— Não! — ele me interrompeu, ainda calmo. — Fica aqui comigo.
Mantive a minha cautela de antes ao dizer:
— Não estou atrapalhando? Eu entendi que é algo que você gosta de fazer sozinho, está tudo bem.
— Cidade grande — sorriu —, você nunca atrapalha.
Olhei em volta do celeiro, logo voltando meus olhos a .
— O que houve? — ele fez uma careta ao perceber que eu fazia uma careta.
— Você é canhoto — e então me sentei no bloco de feno que ele estava apoiando suas costas, juntando as pernas. — Como eu não tinha percebido antes?
olhou para o violão, um pouco constrangido.
— Eu bebo com as duas mãos, deve ser por isso.
De onde eu estava sentada, via o menino de cima e de costas para mim. Pelo clima esquisito, eu até preferia que ele não me encarasse. Ainda não sabia o que tinha ido fazer ali, mas era um bom escape… Principalmente se o garoto do mercado estivesse junto.
Conversamos sobre coisas aleatórias e, quando percebi, já estava deitada de barriga para cima, olhando para o teto de madeira. Eu mexia minhas pernas lentamente, enquanto contava alguma coisa esquisita que aconteceu na aula de Culinária esses dias, ainda sentado no chão, com o seu violão de canhoto no colo.
Estar ali às duas da manhã, sem propósito e sem marcar era estranho. Mas assim como muitas coisas diferentes que eu só tinha feito em Bourton-on-the-Water, parecia um pouco… Certo.
Quando ele terminou sua história doida, ficamos alguns minutos em silêncio. Não sabia dizer se foram muitos ou poucos, mas não era desconfortável. Era gostoso ter a presença dele, mesmo que fosse para fazer literalmente nada.
Nem me lembrava da última vez em que tinha me sentido assim com alguém.
— Que tipo de música você gosta? — quebrou o nosso silêncio ao perguntar.
Suspirei alto. Eu adorava música e tinha um gosto específico. Muito era influência direta do meu irmão ou meu pai, que viviam comprando CDs e vinis sempre que possível.
— Bandas como The Strokes e Franz Ferdinand — vi concordar com a cabeça. — Meu irmão sempre gostou de Red Hot Chilli Peppers, então eu coloco na minha lista sempre — eu sentia falta de Arthur. Meu coração apertou ao lembrar da carta que tinha recebido dele dias atrás. — E você?
— Gosto das mais antigas — ele riu. — Você já devia imaginar, por Cotswolds...
— Incrivelmente, não — falei sincera. sempre me surpreendia em qualquer coisa e eu sabia que no tema música não seria diferente. — Do que você gosta?
Descobrir coisas novas sobre nunca era demais.
— Meu pai gosta de Dire Straits, Pink Floyd… Então sempre ouvi essas coisas quando pequeno até hoje — ele falava devagar enquanto eu concordava com todas as suas palavras. — Eu gosto também. E Bruce Springsteen, Queen — pareceu pensar um pouco. — Elton John.
— Eu gosto de Elton John! — disse sem ao menos pensar. — Meu pai sempre escuta em casa.
Ele me olhou por cima do ombro, sorrindo.
E então silêncio entre nós se fez presente outra vez.
Com o canto dos olhos vi que observava o teto sem pretensão. A única coisa que me sobrou foi estudar sua expressão. Era serena, mas ainda tinha aquele ar esquisito. Se ele tinha o costume de ir até o celeiro para ficar sozinho com frequência, eu me sentia triste. Por ele e por qualquer motivo que ele tivesse para fazer aquilo. Queria que achasse o conforto de ser feliz, mesmo tendo a vida tão bagunçada pela história da sua mãe.
Com certeza eu incluiria ele no meu Time .
Ri sozinha ao pensar nisso. Ele provavelmente brigaria comigo por qualquer maluquice que fosse inventar, mas para tirar um sorriso do seu rosto eu faria de tudo. Talvez um plano mais simples, com…
Prendi a respiração com a surpresa de ouvir algumas notas sendo tocadas.
Girei a cabeça de lado, mas continuei deitada, olhando seu perfil. Fiz o máximo para reprimir um longo suspiro. tocava o seu violão olhando para o nada e, às vezes, para os seus próprios dedos. Ele não cantava, mas a música era tão bem tocada que eu achava bem familiar.
Era uma cena e tanto para o meu coração.
Só no refrão eu consegui lembrar o nome da música. I Guess That’s Why They Call It The Blues, do Elton John. Papai sempre ouvia e eu amava aquela melodia, letra, tudo. E ouvir tocando aquilo só melhorava e muito a música.
Assobiei e fiz pequenos barulhos com a boca, entrando no ritmo da música, mas também sem cantar a letra em si. Ele me olhou rapidamente pelo ombro e sorriu de um jeito fofo, o que me fez continuar.
No último refrão não me aguentei e quando percebi já estava sussurrando baixinho a letra.
And I guess that's why they call it the blues
Acho que é por isso que chamam de tristeza
Time on my hands should be time spent with you
O tempo em minhas mãos deveria ser o tempo que passo com você
Laughing like children, living like lovers
Rindo como crianças, vivendo como amantes
Rolling like thunder under the covers
Retumbando como trovão sob os cobertores
And I guess that's why they call it the blues
Acho que é por isso que chamam de tristeza
Logo após veio um pequeno solo no violão, que me derreteu ainda mais ao perceber a expressão concentrada que fazia.
Não me cansava de pensar que ele era lindo demais.
Quando a música acabou, nada fiz. Não aplaudi, não disse qualquer elogio. Não nos olhamos. De repente eu entendia que existia alguma barreira entre e a música, e como eu ainda não sabia o que era, respeitaria esse passo dele.
Continuei deitada no bolo de feno, mas agora me sentia anestesiada. Parecia ser o efeito que ele fazia em mim. Pisquei forte e quando abri os olhos, aquele oceano azul claro me encarava de cima. Seus cabelos estavam bagunçados como sempre, sua expressão calma, mas pelas suas íris sabia que devia estar pensando em várias coisas ao mesmo tempo.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele me abraçou, quase deitando por cima de mim. Seu corpo estava quente e só consegui suspirar quando suas mãos tocaram a minha barriga por dentro da camisa que eu vestia. Ele passou o seu nariz por toda a extensão do meu pescoço e eu fechei os olhos para aproveitar todas aquelas sensações. Segundos depois nossas bocas estavam coladas para mais um dos diversos beijos que já tínhamos compartilhado.
Engraçado que todos eles pareciam ser o primeiro.
descolou seus lábios dos meus, sorrindo. Passei as duas mãos em seu rosto, enquanto ele se equilibrava nos cotovelos para não me esmagar.
— Agora minha noite está completa — sua voz saiu quase como um sussurro.
— Obrigada — concordei, não controlando a língua dentro da minha boca. — Eu nem sabia que era isso que eu precisava.
Ele me olhou sereno e eu pude sentir a ternura em suas feições.
— , o que realmente faz aqui a essa hora?
Me permiti suspirar alto e pesadamente.
— Por que algumas pessoas tentam ser más comigo nessa vila?
manteve o olhar calmo. Seus olhos claros eram sinceros e intensos.
— Ainda estão implicando com você na escola?
— Se você ouviu as fofocas de hoje, já sabe que sim.
O garoto concordou, tirando um dos braços do feno para mexer em meu cabelo.
— Eu sou um fantasma lá, mas mesmo assim continuo sabendo de tudo.
— E você acredita?
— Acredito no que você me contar, cidade grande.
Revirei os olhos — Só me diga que não acredita nesse boato, por favor.
Ele sorriu — Não acredito que você ainda se envolva com Kyle. Já tivemos essa conversa, lembra?
— Obrigada.
— Minha opinião importa tanto assim?
Franzi o cenho — Desde quando não importa?
— Isso é porque eu te agarro pela vila?
Empurrei seu ombro, o que fez ele deitar ao meu lado.
— Obrigado por ser tão compreensivo.
— Vem cá.
Ele me puxou novamente para o seu corpo e eu o abracei com vontade. Aquele momento gostoso pareceu durar minutos e logo ele estava me afastando para olhar em meus olhos.
— Se quiser resolver esses problemas na escola, podemos ver como te ajudar — fez uma careta fofa. — O Time deveria servir para você também, não?
Aquilo parecia ótimo, mas só de lembrar quem provavelmente estava por trás de tudo, meu corpo já gelava. Eu não precisava reclamar da ex-namorada de . Principalmente para ele mesmo. Não era certo…
— Estou bem. Mas agradeço a preocupação.
Ele concordou, me apertando um pouco mais, o que incrivelmente ajudou.
Daria um jeito de desabafar com Mila, era a melhor opção. O combo de minha amiga + nunca pareceu tão bom.
Para o meu alívio pessoal, no dia seguinte todos os meus novos amigos estavam juntos no celeiro.
— Pensei que não fosse chegar nunca! — Mila parecia bêbada, mesmo eu sabendo que ela nunca bebia. — Está perdendo toda a diversão.
E foi então que ela o viu. Todos viram. Nem fiz questão de segurá-lo mais.
Para completar o time dos renegados, Astra, meu cachorro filhote caramelo, estava no celeiro. Ele tinha me seguido por boa parte da vila, já que fui andando pela estrada de terra por ter perdido todas as caronas que me ofereceram. Mamãe tinha feito um banquete no jantar e insistiu em ver fotos antigas de nós quatro, o que resultou em uma bela caminhada até o celeiro velho.
Infelizmente não vi bicicletas livres por aí para pegar emprestado.
Meu cachorro, que não é nada bobo, me seguiu sem que eu tivesse percebido. Só no centro da vila me dei conta da minha companhia inusitada e, com medo de voltar e ficar presa com meus pais naquela nostalgia de fotos e recordações, resolvi levar o cachorro comigo.
Larguei a coleira de Astra no chão, logo o perdendo de vista nos bolos de fenos. O cachorro latia e se esfregava em tudo, principalmente em meus amigos.
— Galera, esse é o Astra — falei alto, só assistindo a bagunça se formar.
Hayden franziu o cenho, mas sua expressão logo mudou assim que Astra pulou em sua direção.
— chega por último e já traz convidados novos?
Dei de ombros — Pode ser o mascote daqui. Acho que falta isso, não?
apareceu ao meu lado como uma assombração.
— Acho ótimo. Ele tem o espírito do celeiro.
Astra corria já cheio de feno grudado em seus pelos dourados. Noah e Riley corriam atrás dele. Até Bronwen parecia feliz com a visita do cachorro.
— Como você trouxe ele até aqui? — Mila perguntou, sorrindo.
— Ele me seguiu. Só reparei depois da ponte.
— Acho que ele quer ser parte dos renegados — Ella disse feliz, se abaixando para ser abraçada pelo cachorro.
Mila suspirou — Mas todos o amam.
— Talvez ele só odeie Cotswolds — Mason ponderou, analisando o bicho.
— Gente, ele é um cachorro — Riley entrou na discussão sem sentido. — Como pode odiar Bourton-on-the-Water? É perfeito para cães.
Franzi o cenho na hora, olhando acusadoramente para cada um.
— O quanto vocês já beberam?
Ella ajeitou em sua cabeça os laços enormes e muito, muito neon.
— O suficiente para proclamar seu cachorro como o mascote do celeiro — a menina mais nova disse animada.
— Então Noah não é mais o mascote? — Hayden segurava uma risada junto com os demais.
Noah bufou alto — Cala a boca.
Bronwen, que agora era quem estava ganhando a atenção de Astra, quase gritou.
— Parem com isso!
Todos começaram a reclamar, rir, fazer festa, tudo ao mesmo tempo. Era confuso. Com certeza tinham bebido alguma coisa bem forte no início da noite.
Tudo parecia enérgico demais, com exceção de , que tinha sentado em seu bolo cativo de feno e estava lá, na dele, só observando o restante dos nossos amigos se divertindo com Astra e piadas ruins.
O garoto do mercado estava esquisito… E pela segunda vez desde que eu tinha pisado em Cotswolds, parecia sóbrio e cansado. Tentei me enganar deixando para lá ao pensar que poderia ser uma noite mal dormida, já que ele estava tocando violão escondido no celeiro durante a madrugada.
Mas eu tinha uma pulga grande atrás da orelha.
Ele estava esquisito, muito diferente do garoto que eu já tanto conhecia e gostava.
Mason e não tinham sido muito claros sobre o porquê do cancelamento do encontro na noite passada, mas todos pareceram não ligar muito, então resolvi que era melhor deixar para lá isso também.
Ouvi Riley, Noah e Hayden gritando palavras sem sentido para Astra, e só depois percebi que todos tinham jogado coisas aleatórias para o cachorro pegar.
Noah empurrava os amigos o tempo inteiro.
— Aposto que ele vai preferir minhas bolas!
Hayden o olhou estranho — Pensa duas vezes antes de falar as coisas que sua mente perturbada inventa.
O mais baixo fez uma expressão estranha, como se não tivesse entendido.
Astra simplesmente pegou cada objeto de uma vez, formando um arco de três coisas coloridas com sua pequena boca. Aquele cachorro era impossível.
— É, — Mason ria. — Ele tem o seu gênio.
A noite fluiu bem, com Astra correndo para todos os lados e uma música esquisita tocando de fundo. Todos conversavam, bebiam e jogavam cartas. Menos , que ainda estava esquisito, sentado no seu feno com Mason ao seu lado.
Nossos olhares se cruzaram e sorrimos, mas eu pude ver que o sorriso dele não era o mesmo de sempre. Mas a preocupação bateu de verdade quando ele negou o baseado que Mason tinha acabado de acender.
Sabia que não estava assim por causa dos últimos acontecimentos da escola, mas isso me lembrou que eu tinha um plano de me explicar para aquelas pessoas. Não sabia dizer o porquê, mas sentia que precisava deixar claro que eu não me envolvia com uma pessoa ruim como Kyle
Parei no meio do celeiro salpicado de feno, tentando chamar a atenção de meus amigos.
— Galera! — não foi muito difícil. Todos pararam o que estavam fazendo para me observar. se mantinha longe. — Preciso falar uma coisa sobre a fofoca da escola.
— Você não precisa fazer isso, — Mila falou ao meu lado direito.
Assenti para minha amiga, sabendo que eu realmente não precisava fazer aquilo, mas sentia que devia. Eu não poderia deixar que uma fofoca boba causasse algum problema entre nós.
— Sei que não preciso, mas quero — o pessoal continuava me olhando atento. — Vocês devem ter ouvido a fofoca da semana. Eu só queria dizer que não é verdade. Me importo muito com a opinião de todos aqui dentro, e por isso acho que preciso ser sincera — de longe pude ver franzir o cenho. — Quando cheguei aqui na vila me senti sozinha e achei um escape em poucas pessoas. Kyle foi uma delas. Não vou negar que nos beijamos por aí, mas a fofoca da escola não é verdadeira. Eu não sou esse tipo de pessoa.
A expressão de continuava esquisita.
Mason foi o primeiro a falar.
— , concordo com a Mila. Você realmente não precisa fazer isso.
Sorri para o garoto loiro — Obrigada, Mason. Mas vocês me salvaram da vila. Devo isso a todos aqui.
Arrisquei um olhar mais intenso a , mas este agora parecia entretido no teto de madeira. Aquilo me fez suspirar. Pensava que estávamos bem.
Noah não perdeu a oportunidade de soltar uma gracinha.
— Talvez seja melhor você se envolver com pessoas mais novas… Nunca inventariam algo de você assim, sabe?
Tive de revirar os olhos, enquanto o resto do celeiro ria.
— Você não perde uma.
— É o meu papel aqui dentro — o menino baixinho deu de ombros.
Ella parecia curiosa, enquanto Bronwen fazia o máximo para ignorar minha existência.
— O que aconteceu então?
— Nós realmente estávamos no ginásio, mas nada aconteceu. Eu fui buscar meus tênis de corrida nos armários e Kyle me seguiu. O resto é invenção.
Mila arriscou uma pergunta, que provavelmente tinha guardado desde o outro dia.
— Ele que inventou tudo isso?
— Eu não faço ideia.
Bronwen me olhou de lado e fiz o máximo para ignorá-la também. Ela tinha visto uma de minhas cenas com Zara e aquilo era o suficiente para incluir mais uma na lista de quem estaria inventando aquelas coisas ridículas sobre mim.
Assim como eu desconfiava de Kyle, também acreditava que a culpa da fofoca da vez poderia ser de outra pessoa. Uma pessoa que deixava bem claro que não ia com a minha cara: Zara.
Eu só não queria Bronwen bancando a sabe-tudo para cima de mim. Não éramos amigas.
Além disso, não ia falar algo assim no celeiro, até porque nunca tinha contado a ninguém as provocações surreais que recebia da menina. Aquilo mexia com o meu psicológico e eu preferia esquecer e ignorar, não precisava de alguém sentindo pena do que a ex-namorada de fazia comigo naqueles corredores brancos demais.
Mas tinha decidido que falaria com Mila.
Acabando com o clima que eu mesma tinha criado, soltei:
— E então, vamos beber?
Era sábado à noite e todos ali pareciam merecer esquecer um pouco as merdas acontecidas durante a semana. ficou a noite inteira em seu bolo de feno ridículo, sem dar muita atenção aos demais. Tirando isso, a noite foi tão agradável que pareceu durar pouco.
Quando vi, já estava na hora de ir embora.
— Hoje você vai aceitar minha carona? — Noah tentava um sorriso sedutor. — Já fiz uns cálculos e tenho várias maneiras de você ficar bem segura e perto de mim.
Tive de revirar os olhos — Me esquece, criança.
O garoto riu, logo indo embora com Riley. Mila então se aproximou, visto que eu era a única parada na estrada de terra.
— , quer ir comigo?
— Não, eu já tenho… — parei de falar assim que percebi se movimentando para ir embora. Sem mim. Fiquei chocada, mas não ao ponto de não conseguir chamar sua atenção.
Ele olhou de lado para mim, sem entender.
— O que houve?
O olhei incrédula — Você está indo embora sem mim?
Ele mantinha a expressão serena — Achei que você tivesse carona, já que não veio comigo.
Fiz o máximo para não revirar os olhos.
— Você sempre é a minha carona para ir embora.
Ele me olhou esquisito — Preciso ir mais rápido hoje, por isso achei que iria com Mila. E ainda tem o cachorro...
Eu não ia engolir aquilo tão rápido. Já bastava a falta de interesse dele em mim durante todo o período dentro do celeiro, e agora eu o tinha pegado tentando fugir.
— Você está bravo comigo?
pareceu achar graça da minha pergunta. Nesse meio tempo, vi que Mila e Mason já tinham ido embora. Ele querendo ou não, ia ser a minha carona.
— Não, . Por que estaria?
— Por você ter me ignorado o celeiro inteiro.
— Não estou te ignorando.
O olhei desconfiada — E nem bebeu, não fumou, não comentou nada. O que tem de errado com você hoje?
Ele suspirou, parecendo se dar por vencido.
— Gosto que você tenha reparado, mas não é nada demais.
Eu pensei em diversas coisas que pudesse ter feito ou falado, mas nada demais vinha à minha cabeça. Bom, nada além da fofoca de que eu e Kyle estávamos praticamente transando no banheiro do vestiário masculino. Aquele pensamento me dava calafrios, pois me lembrava outra conversa não muito agradável.
Meu sangue cheio de álcool falou demais.
— Você está assim por causa da fofoca? Pensei que estávamos bem.
Ele piscou pesadamente por alguns segundos, antes de falar.
— Acha que estou com ciúmes?
E mais uma vez eu agradecia a todos os deuses por ter a habilidade de não corar por qualquer coisa. Respirei fundo, não sabendo como desenvolver a minha próxima resposta sem parecer uma louca (coisa que adoraria).
— Só estou preocupada que isso tenha abalado alguma coisa entre nós.
E lá estava o “nós” novamente.
sorriu sincero — Estamos bem. Já disse que acredito em você, cidade grande — e deu de ombros. — E agora eu sempre falo quando estou com ciúmes.
— Então qual é o problema? — a indignação estava presente em minha voz. — Você nem ameaçou bater no Noah quando ele fez graça pra mim.
— Só não estou bem esses dias — suspirou ao dizer. — Fui eu quem cancelou o celeiro ontem, não estava me sentindo bem e hoje aumentou um pouco.
Fiz de tudo para engolir aquela resposta, afinal, realmente não parecia bem. Seu rosto estava abatido e sua falta de interesse na bebida era algo assustador.
— Tudo bem — me dei por vencida. — Posso te levar para casa então?
Ele deu uma risada fraca — Para que eu possa cair no rio e ficar pior?
Dei um pequeno empurrão nele, me aproximando de sua bicicleta. Astra aguardava ansiosamente ao nosso lado, exausto.
— Vem logo.
manteve o sorriso — É “vem cá”.
— O quê?
— Quando eu quero que você chegue perto. Eu falo “vem cá”. Sempre funciona.
Franzi o cenho — Quer que eu teste em você?
— Seria ótimo.
— Vem cá.
Ele riu novamente, logo se aproximando de mim. Para minha surpresa, seus braços envolveram a minha cintura em um abraço gostoso e quentinho. O abracei de volta, acariciando os seus cabelos. Apertei com mais vontade, sentindo ainda mais o calor da sua pele contra a minha.
— Vou usar essa tática também.
Ele riu, depositando um beijo demorado em minha bochecha.
— Vamos, preciso ir antes que eu desmaie aqui.
— .
Ele me olhou, cansado — Hm?
— Você está doente?
Se eu vivia todos os clichês ali, com ele, tinha medo desse.
Ele riu — Não. Talvez um resfriado, apenas. Annabelle estava gripada esses dias.
Concordei, aliviada — Está bem. Se precisar de algo…
— Eu sei, — e me deu um novo beijo na bochecha. — Obrigado.
Eu sabia que ele estava escondendo alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, esquisitamente, sabia que não era sobre mim. Minha cabeça se encheu de ideias e suposições loucas, e a única coisa que consegui dizer foi:
— Pronto para sua carona?
Ele me olhou pelos ombros, sorrindo.
— Me mostra o que você sabe, cidade grande.
Subi na bicicleta com uma sensação ruim no peito. Esperava que isso passasse pela manhã e que tudo realmente estivesse bem, como sempre.
Iria focar a minha mente doida nas descobertas que tinha feito nesses últimos dias. Pensar em algo para me proteger de Kyle e Zara e, principalmente, sabendo de e sua admiração pela música, planejaria algo para devolver tudo de bom que ele fazia por mim sem ao menos perceber.
O Time também serviria para o bem.
Capítulo 15 - Clichês
“Eu tô sempre indo embora, mas aí vai um super clichê: é de tanto que eu só queria ficar. E queria que você não achasse que sou sempre louca, ainda que eu seja”. (Tati Bernardi)
As palavras escritas no quadro branco não faziam sentido algum pra mim. Até era uma matéria que eu gostava, mas minha cabeça estava longe. Olhei mais uma vez o meu caderno. No final dele, junto com a última folha, tinha deixado a carta que recebi de meu irmão dias atrás. Ainda doía ler, mas ter aquilo o tempo todo comigo me dava mais força.
Eu sentia muita saudade de Arthur...
Por sorte, meu celular vibrou com uma mensagem de me salvando daquele tédio melancólico. Foi impossível não sorrir.
* : Não, por quê?
* : Qual é a furada?
* : Te encontro no mercado.
Apressei o passo até a saída do bloco, entrando no seguinte onde meu armário ficava. Parei de andar quando ouvi risadas altas e Hayden no meio de tudo aquilo. Aparentemente o time de futebol da escola estava quase todo ao redor de meu amigo, que mexia em seu armário sem expressão alguma. Os demais davam risadas e quando um deles derrubou um livro de Hayden no chão foi que eu percebi o que estavam fazendo.
Tive de respirar fundo, bem fundo, para não me meter.
Hayden olhou para o livro no chão, se abaixou para pegar e voltou a mexer no armário. Dei uns passos para a direita e vi Kieran, o capitão do time, mas diferente dos demais, ele não sorria. Todos falavam gracinhas, cutucavam Hayden, até que o mesmo fechou a porta do armário e tentou sair da rodinha, ainda bem calmo, sem dar o gostinho para aquele grupo de idiotas.
Só vi Kieran rir quando um dos brutamontes deu uma cotovelada nele, como se bullying fosse uma grande piada, mas que precisava ser explicada. Julguei aquilo como bem esquisito, mas não iria me importar com quem não merece.
Eu queria ajudar Hayden, mas sabia bem que se me metesse agora só iria piorar as coisas. Se ele estava agindo daquele jeito é porque não queria dar corda.
Peguei tudo do meu armário em poucos segundos e marchei para fora da escola, contornando os prédios baixos pela parte do pátio lateral com as árvores e bancos de pedras mais escondidos. Falaria com Hayden para ver se ele queria revidar aquela palhaçada com o nosso time secreto.
Apressei o passo novamente, indo em direção ao mercado dos .
O caminho era curto, mas foi o suficiente para bagunçar o meu cabelo já antes despenteado.
Ao chegar, contornei o mercado, indo para os fundos. Franzi o cenho ao procurar por , mas estava sozinha por ali. Em questão de segundos ele saiu pela porta de serviço. Ainda estava com o uniforme da The Cotswold School (o que era ótimo, porque eu também estava) e sua mochila em um dos ombros.
Sorriu ao me ver parada ali, ainda um pouco ofegante pelos passos largos.
— Veio correndo? — Perguntou de um jeito engraçado.
— Mais ou menos.
Seus braços contornaram o meu corpo e foi o suficiente para que eu me derretesse pela segunda vez no dia. Senti um beijo em minha cabeça antes de me soltar. Percebi que ele estava com um molho de chaves na mão esquerda quando o jogou para o alto e pegou no ar.
— Vamos? — Perguntou animado.
O olhei com cautela.
— Vamos? Para onde?
— Stroud e Stow-on-the-Wold.
Meu olhar cauteloso se transformou em desconfiado.
— Está me sequestrando?
— Depende. Tem hora para voltar para casa? — Ele riu ao dizer. Eu só consegui dar de ombros. — Voltamos a tempo do jantar.
Ele andou até a caminhonete estacionada ali. Era antiga, mas bem conservada. Tinha cabine dupla e aquela parte atrás para carregar coisas. Como eles tinham um mercado e moravam quase na roça moderna, fazia sentido.
— Legal! — Pesquei o celular em minha mochila. — Vou avisar minha mãe. Meu pai vai ficar doido, ele quer muito fazer um passeio pelas vilas.
sorriu. — Anota as minhas preciosas dicas, então.
Tive que rir também. — Isso é para não precisar ir ao labirinto esquisito que te pedi?
— Dragonfly Maze? — Concordei com a cabeça. — Não, eu não esqueci disso. Ainda vamos.
Abri a porta da caminhonete, sentando no banco do carona. Passei o cinto de segurança e joguei a minha bolsa em meus pés. fez o mesmo, com a diferença de jogar a mochila de qualquer jeito no banco de trás do carro. Ele analisou os espelhos por alguns segundos antes de girar a chave para ligar o motor.
Foi só ali que uma coisa me atingiu a cabeça.
— Você dirige bem? — O olhei de lado. — Quanto tempo tem de carteira?
Ele já não era a melhor pessoa andando de bicicleta, não custava perguntar…
Mas ignorou completamente a minha primeira pergunta.
— Aprendi quando pequeno ainda. Ajudava meu pai a pegar alguns produtos para o mercado em outras vilas e também em Londres.
Eu não estava satisfeita com aquela resposta.
— Então, dirige bem?
Ele riu pelo nariz. — Está preocupada com o quê? A estrada é muito vazia.
— Sim, mas você dirige do lado errado da rua.
— Vocês que dirigem errado.
Revirei os olhos. — Só tente não matar nós dois. — Me segurei no cinto, nervosa. riu abertamente. — Eu tenho um pouco de medo de carro, não estou brincando.
Alguns anos atrás meu irmão tinha batido o carro e foi um horror. Eu não estava junto, mas vi o carro amassado igual uma lata e aquilo ainda me dava pesadelos. Ele se livrou de ferimentos graves por um milagre.
me cutucou. — Quer deixar para outro dia, então?
— Não! — Suspirei. — Está tudo bem, só não corre igual um doido, por favor.
— Cidade grande. — Ele sorriu de uma forma fofa. — Eu dirijo bem e há anos, ninguém vai morrer. Confia em mim.
Isso não tinha me deixado mais tranquila, mas deixei passar.
A estrada realmente estava vazia, mas só de carros.
Por todos os lados havia muitas árvores, pastos e até animais selvagens. Parecia um pouco com a que chegamos de Londres quando viemos direto para Bourton-on-the-Water de carro. Mas aquele dia tinha sido tão cansativo que eu nem prestei atenção a tudo o que tinha à minha volta.
Início de mudanças era sempre o mesmo drama.
Eu alternava os meus olhares entre a janela e . Ele estava concentrado na direção, talvez honrando o que disse sobre não morrermos com ele fazendo besteira no volante.
Só então reparei que a parte de dentro da caminhonete também era antiga. Tão antiga que o rádio tinha entrada de CD. Tinha um tempo que eu não via aquilo.
— Pode ligar, se quiser.
Olhei para ele com um sorriso, ligando o rádio em seguida. Não conhecia as estações da Inglaterra (e muito menos de Cotswolds), então procurei por alguns segundos alguma que me agradasse. Passei por notícias da região, cultos religiosos e uma música pop até parar em uma que eu reconheci. Aumentei um pouco o volume quando me lembrei o quanto meu irmão gostava daquela música.
Era You Only Live Once, da banda The Strokes.
Voltei a olhar a paisagem, curtindo o embalo que a música trazia para aquele momento. Quando olhei de canto de olho para , ele estava com um braço dobrado na janela aberta, sua mão direita no canto da boca, relaxado. A sua outra mão segurava no volante. Ele olhava a estrada com atenção ainda, mas agora cantava a música sem deixar sair um som de sua boca.
O sorriso bobo estava de volta ao meu rosto.
Virei para a janela novamente, dando a privacidade que talvez ele precisasse naquele momento tranquilo.
Chegamos a Stroud depois de quase cinquenta minutos de estrada. Eu soube disso pela grande placa avisando que estávamos dentro da vila de Gloucestershire.
As ruas eram bem parecidas com Bourton-on-the-Water, mas tudo aparentava ser maior e com mais gente habitando e mais estrutura para viver (segundo um dos comentários aleatórios de papai, Stroud tinha mais de 33 mil habitantes, bem acima dos 4 mil da nossa vila).
estacionou em uma rua não muito movimentada, mas ao cruzarmos para uma outra, percebi que estávamos no centro comercial. Muitas lojas, bares, lugares de serviços básicos espalhados por ali. Tudo misturado ao exagero de verde. Árvores de todos os tipos, jardins enormes por todos os cantos. Era quase uma vila modelo, mas eu tinha que confessar que Bourton-on-the-Water ganhava disparado em beleza. Ele parou em frente à uma loja enorme e fez um sinal com a cabeça para entrarmos.
Um menino correu na nossa direção, sorrindo. Aparentava ter no máximo doze anos, um pouco mais velho que Annabelle, a irmã mais nova de . Estava vestindo um uniforme de escola, mas não era da The Cotswold School como nós.
Aquela cena foi bem familiar…
sorriu e cumprimentou o garoto com um soquinho na mão.
O lugar lembrava muito o mercado vende-tudo da família de , mas era bem maior. Talvez duas ou três vezes maior. Com tantas caixas, prateleiras, mostruários… Parecia mais um depósito. E fazia sentido ir buscar coisas novas ali, pensando nisso.
— Tudo bem por aqui, Jim? — Perguntou ainda com o seu sorriso lindo no rosto. O garoto novo concordou com a cabeça. — Essa aqui é a .
Fiz o mesmo gesto do soquinho quando Jim se virou para mim.
— Já gostei dela. — Jim sorriu abertamente ao dizer.
— Arruma uma do seu tamanho, pirralho.
— Sua irmã tem quantos anos?
bagunçou o cabelo do menino, que ainda ria das provocações. Uma mulher mais velha se aproximou já com os braços abertos na direção dele.
— , meu querido.
Os dois se abraçaram por alguns segundos e percebi a mulher o apertando ainda mais. Eu entendia ela, também fazia isso.
— Como está, senhora Wilson?
— Bem, bem.
apontou para mim — .
— É um prazer, querida. Alicia. — Ela disse sincera.
— Igualmente, senhora.
Ela olhou para , rindo.
— Trouxe reforços, não é? — E pareceu surpresa. — Quem pediu vinte caixas disso?
Arregalei os meus olhos sem ao menos perceber. Só me toquei quando os três riram de mim.
— Estou brincando, querida — A senhora Wilson confessou a mentira para o meu alívio.
piscou o olho direito para mim, divertido, e então sumiu indo para os fundos da loja com o menino mais novo.
— É nova na região?
— Sim. Nos mudamos há alguns meses de Paris.
— Que bom — Alicia sorriu. — Aqui é um bom lugar.
— Já consigo ver que é um lugar especial — Respondi sem ao menos pensar.
A senhora concordou. — São amigos desde que chegou?
Eu não precisava dizer que trocamos farpas em nossos primeiros encontros, então só a imitei no gesto anterior, concordando com a cabeça. A mulher continuou:
— Que bom. é um garoto muito especial.
Isso eu tinha que concordar também. era muito especial. Em vários sentidos.
Demorou segundos para que ele estivesse de volta, com Jim em seu encalço. Para o meu bem, ele carregava apenas quatro caixas pequenas e, visto que estava com a expressão calma, pareciam leves.
Ele colocou tudo no balcão, assinou alguma coisa que Alicia o entregou e logo estávamos nos despedindo daquele pessoal simpático. Franzi o cenho ao perceber que era uma simpatia diferente… Não era forçada e estranha como em Bourton-on-the-Water.
— Mande lembranças para o seu pai, querido. — Alicia o abraçou novamente, logo passando suas duas mãos no rosto de . — Cada dia mais lindo. — Ele riu com o gesto carinhoso e eu tive que concordar com aquela senhora pela terceira vez seguida. Ele era lindo demais. — Boa viagem aos dois.
Peguei duas das quatro caixas e vi sorrir em agradecimento. Estavam leves, então as abracei junto ao peito. Não sabia o que era, mas teria o devido cuidado.
Andamos até a caminhonete, onde deixou tudo, fechando a porta em seguida.
— Estamos livres. — Ele disse animado. — Vamos comer?
Andamos pelas ruas comerciais da vila olhando para todos os cantos, à procura de um lugar interessante e que me agradasse. Tinha entendido que conhecia a região, mas mesmo assim parecia indeciso de onde poderíamos ir.
Um sorriso bobo se formou em meu rosto quando pensei na possibilidade de ele estar tentando ao máximo me agradar.
As ruas curtas não estavam cheias, mas era possível avistar turistas o tempo inteiro, assim como em Bourton-on-the-Water. As lojas de artesanato, lembranças e os diversos cafés tinham mesinhas nas calçadas estreitas, me fazendo lembrar um pouco do charme que só Paris tinha nesse quesito.
É, tudo bem. Esse seria mais um ponto que eu colocaria o interior próximo a cidade grande.
estalou os dedos ao meu lado, um sorriso gigante em seus lábios.
— Já sei. — Mas então uma careta tomou conta da sua expressão. — Você tem problemas para comer?
Sacudi a cabeça em negação, o que o fez suspirar aliviado.
— Então já sei exatamente aonde te levar. — Continuou. — Bom que você conhece a região antes, vamos andar um pouquinho.
E tão rápido e simples quanto Astra caindo no rio Windrush ou nosso beijo do nada na estrada de terra do celeiro, entrelaçou seus dedos nos meus, voltando a caminhar lado a lado, de mãos dadas. Um gesto simples, tão simples, mas que fez o meu coração se derreter.
Pela terceira vez no dia.
Passamos por mais algumas ruas com lojas e restaurantes, como um casal normal de adolescentes, despreocupados, curtindo a vibe. A todo momento meus olhos me traíam e eu me pegava observando seu perfil descontraído. Seus olhos claros tinham um brilho diferente naquele dia e suas bochechas uma tonalidade mais rosada pelo sol raro que fazia na Inglaterra.
Assim que sentamos na mesa do restaurante, sacudi a cabeça em negativa.
— Sua ideia de almoço é hambúrguer e batata frita?
— Isso nunca tem erro. — deu de ombros, mas logo fez uma careta. — A não ser que você seja vegetariana.
— Não sou. — Respondi com um sorriso. — Hambúrguer e batata frita não tem erro comigo.
Vi que ele sorriu de lado, mas ainda tinha uma expressão diferente no rosto.
— O que houve? — Questionei ao pegar um dos cardápios jogados na mesa.
— Sei lá, tem algumas coisas simples que eu ainda não sei sobre você.
Concordei, pensando sobre a mesma coisa. Eu queria saber tudo sobre e sentia que aos poucos ia conseguir isso.
Fizemos nossos pedidos e vi observar algumas pessoas que passavam por ali. Pareciam turistas, como em Bourton-on-the-Water, já que tiravam fotos de todas as coisas possíveis.
— Está melhor, né? — Perguntei, tomando de volta sua atenção. Seus olhos claros me olharam com confusão. — O último dia em que nos vimos, no celeiro… Você estava esquisito e disse que podia ser gripe, como Annabelle.
Ele pareceu se lembrar e eu julguei aquilo como esquisito.
— Ah sim, estou bem, obrigado. — Franzi o cenho com suas palavras, o que o fez rir. — Não acreditou?
— Nem um pouco, garoto do mercado.
suspirou. — Estou bem, é sério. Tinham sido dias difíceis em casa, mas nada demais. Junta estudo, trabalho, Annabelle, coisas da faculdade…
Foi o suficiente para que eu me sentisse mais aliviada de saber que eram problemas cotidianos que estavam deixando ele diferente.
— Você fala pouco das suas coisas pessoais, família… Então nunca sei qual é o seu problema.
Foi a vez dele franzir o cenho. — Acha que não sou transparente?
Tive que rir. — Quando está puto ou estressado, você com certeza é transparente. Mas para falar sobre suas coisas, não.
Ele fez uma careta. — Tem dias que não consigo disfarçar mesmo. — E deu de ombros. — Mas você também não fala coisas da sua família, está me cutucando com isso por quê, cidade grande?
Foi o momento perfeito para meu deboche.
— Virando o jogo cedo assim? — Comprimi os olhos, mas ele só deu de ombros. — O que quer saber? Posso passar a tarde toda falando das loucuras do meu pai.
pareceu pensar por alguns segundos.
— Seu irmão.
Fiquei surpresa pela sua curiosidade ser sobre o meu irmão, mas, ao mesmo tempo, me senti feliz. Arthur estava sendo um tópico constante na minha cabeça e poder falar sobre ele e a saudade absurda que eu sentia poderia ajudar a amenizar o caos que estava meu coração nos últimos dias.
— Posso falar disso também. — Declarei, suspirando alto. — Ele se chama Arthur. É quatro anos mais velho do que eu e ficou em Nova Iorque para fazer faculdade.
— Você sente falta dele?
— Todos os dias.
concordou. — Penso nisso todos os dias, sabe? Deixar Annabelle aqui…
— Vai doer, mas ela vai entender.
Ele me encarou por alguns segundos, sem nada dizer.
— Você entendeu?
Eu entendi sim os motivos de Arthur ter ficado em Nova Iorque, mas isso não diminuía a dor que eu sentia até agora. Ainda era difícil a distância, mas eu sabia que meu irmão não aguentava mais as loucuras e mudanças de papai.
Infelizmente eu não tinha a mesma força ainda para me separar deles.
Comentei sobre o curso que meu irmão fazia, como era a personalidade dele, mas sem entrar em muitos detalhes sobre o porquê de Arthur não morar mais com a gente. Era um assunto delicado e ainda abria umas feridas doídas em meu coração.
Eu entendia, mas realmente não doía menos.
concordava com tudo o que eu falava e quando nossos pratos chegaram, alguns minutos de silêncio confortável se fez entre nós. Eu achei que foi o momento ideal para mudar a nossa conversa e talvez conseguir entender um pouco mais do mistério que era o garoto do mercado.
— Foi esquisito ver Mason se formar antes de você?
Ele fez uma careta, um pouco surpreso pela pergunta aleatória que saiu da minha boca, mas acabou concordando com um gesto.
— Foi, mas pelo menos agora eu não preciso comprar uma roupa para a formatura, posso usar a dele.
Aquela era a parte que eu me derretia… Mesmo com tantos problemas, tantas chateações, ele não reclamava ou sequer ficava rabugento culpando tudo e todos. Deve ter sido horrível ver o melhor amigo de sempre viver as coisas sem você, mas como Mason ainda esperava para ir para a faculdade, aquilo deveria amenizar.
Nós conversamos novamente sobre a faculdade e sobre as provas que estavam próximas. Sobre coisas que tinham acontecido no celeiro, na escola, mas nada sério ou super profundo em questões de intimidade. Tentei cutucar algum assunto sobre seu pai ou Annabelle, mas ele comentou as mesmas coisas que já tinha me falado antes.
Mesmo querendo conhecer tudo sobre , eu me sentia bem naquele clima. Só de estar curtindo aquele dia com ele, fora daquela vila doida, era o suficiente no momento.
Quando estávamos andando de volta para a caminhonete de , ele voltou a abrir a boca.
— E aí, tem dicas o suficiente para o seu pai?
Sorri com aquela pergunta. Papai ficaria doido só de saber que eu estava visitando alguma outra vila da região.
Sentei no banco do carona, bem mais tranquila do que na primeira vez que fiz isso naquele dia, observando se ajeitar na parte do motorista.
— Agora vamos passar em Stow-on-the-Wold, tudo bem? — Ele praticamente afirmou, ligando o motor.
— OK! — Respondi com animação. — Mais caixas?
Ele riu. — Não. Vamos pegar Mason. — Meu cenho franziu e isso foi o suficiente para que continuasse: — Ele veio resolver umas coisas para o Sheppard, dono do bar que trabalha.
O caminho até Stow-on-the-Wold foi rápido e mais uma vez o silêncio entre nós dois foi preenchido pelas músicas que saíam do antigo rádio. Não chegamos a entrar na vila, mas sim bem no comecinho dela. Logo vimos Mason sentado em um banco de pedra quase no meio do nada, com a cabeça baixa e os cotovelos apoiados nos joelhos. Parecia um ponto de encontro entre eles, para não tomar mais tempo de naquela viagem.
Ao ouvir a aproximação do carro, Mason levantou a cabeça, os olhos claros pareciam cansados e o cabelo loiro era uma bagunça grande. Ele se levantou, andando a passos rápidos até nós e em segundos estava sentado no banco da parte de trás. O menino cumprimentou com um aperto de mãos e meio abraço e, em seguida, estalou um beijo em minha bochecha.
— Todos prontos? — Foi o que disse antes de dar partida novamente.
Diferente do silêncio em que estávamos, Mason puxava assunto, falando sobre alguma coisa ou alguém que eu não entendi bem, que ele tinha visto na vila de Stow-on-the-Wold. O garoto do mercado concordava e às vezes ria de algo, mas eu estava tão concentrada em segurar tudo o que eu sentia que nem sequer fiz questão de saber sobre o que eu dois falavam.
A verdade era que sempre era interessante ver a relação natural que os dois melhores amigos tinham. Era como se soubessem tudo um do outro, pudessem compartilhar tudo e aquilo fazia o meu peito se encher e se apertar ao mesmo tempo.
Me sentia feliz por poder presenciar tudo aquilo, mas doía entender que nunca teria algo parecido. E, por isso, acho que fazia tanta questão de ter Mila próxima de mim, uma amizade verdadeira que eu estava disposta a ajudar em tudo, para tudo.
— Você sempre faz isso? — Perguntei quando eles calaram a boca pela primeira vez em dez minutos. — Pelas vilas.
Vi concordar com um gesto.
— Toda quarta-feira eu pego algo para o meu pai. Semana passada foi em Bath. — Ele explicava enquanto cruzava as ruas da vila. — Mas faço isso depois da escola, hoje que precisei vir antes pelo horário da senhora Wilson.
Os pensamentos dentro da minha cabeça fervilhavam de uma só vez quando ele continuou falando:
— Semana que vem vou a Stratford-Upon-Avon.
Tive de rir. — Por que tudo aqui tem que ter um nome difícil?
Mason se debruçou entre os dois bancos da frente, olhando para a janela.
— Charme da região.
— O que tem nesse lugar? — Questionei.
— Você gosta de Literatura? — Foi difícil não fazer uma careta daquelas ao ouvir a pergunta de Mason. — Bom, é a cidade que Shakespeare nasceu. E que está enterrado também.
— Parece interessante. — Falei casualmente e me surpreendi com a sinceridade em minhas palavras.
também pareceu perceber isso.
— Quer vir semana que vem? — Ele disse, me olhando de lado.
Nem precisei pensar para que as palavras saíssem pela minha boca.
— Quero.
Ele riu. — Combinado. Podemos vir depois das aulas, talvez fique melhor.
Concordei em silêncio, minha cabeça a mil. Virei meu corpo para trás, encarando Mason, que olhava para a frente sem muita atenção.
— Vem também?
Mason colocou os olhos claros nos meus, e então deu de ombros.
— Posso trocar uns turnos no bar.
— Podemos trazer Mila? — Disparei a pergunta no ar.
Percebi me olhando de lado de novo, antes de voltar sua atenção para a estrada vazia até Bourton-on-the-Water. Seria mais um dos clichês que eu viveria e — estranhamente — queria viver naquela vila doida de quatro mil habitantes. Aquele dia com tinha sido incrível de um jeito tão simples que eu queria que Mila também vivesse aquilo, principalmente se estivesse em minha companhia e na de Mason, seu namorado que não deveria ser secreto.
se mexeu no banco, talvez também esperando uma reação do amigo.
Eu ainda encarava Mason, que finalmente abriu um sorriso de canto, mas parecia sem jeito.
— Se ela quiser — ele começou —, eu vou adorar.
Suas palavras foram suficientes para que eu pegasse o celular em minha bolsa, já procurando o número de Mila nos contatos.
— Ótimo! Vou falar com ela agora mesmo.
Vi que Mason assentiu em silêncio e se recostou no banco de trás, e por um momento eu achei que ele estava ansioso com aquilo.
Cruzei o olhar com quando ele colocou sua mão esquerda em minha perna, apertando de leve, por um segundo. Ainda se mantinha atento à estrada, mas eu percebi que aquilo foi um tipo de agradecimento pela minha ideia de levar Mila com a gente. Eu entendia e começava a perceber que as coisas pareciam mais fáceis para o nosso casal de amigos quando eu estava por perto, já que nós duas éramos amigas de frequentar a casa uma da outra e ninguém iria desconfiar se eu simplesmente levasse Mason para estar com a gente.
Se eu tinnha diversos planos para o “Time ”, com certeza um deles seria (e deveria!) ser fazer Mason e Mila passarem mais tempo juntos, como um casal normal.
Digitei rápido, a animação percorrendo minhas veias. Um sentimento tão gostoso que foi impossível não sorrir a cada palavra que meus dedos formavam no teclado.
* : Amiga, semana que vem eu e você vamos conhecer a cidade esquisita do Shakespeare. Se prepare para o romance.
As palavras escritas no quadro branco não faziam sentido algum pra mim. Até era uma matéria que eu gostava, mas minha cabeça estava longe. Olhei mais uma vez o meu caderno. No final dele, junto com a última folha, tinha deixado a carta que recebi de meu irmão dias atrás. Ainda doía ler, mas ter aquilo o tempo todo comigo me dava mais força.
Eu sentia muita saudade de Arthur...
Por sorte, meu celular vibrou com uma mensagem de me salvando daquele tédio melancólico. Foi impossível não sorrir.
* : Tem alguma prova nos últimos tempos de hoje ou trabalho nas extras?
* : Não, por quê?
* : Preciso da sua presença em uma missão.
* : Não, doida. Só eu e você.
* : Qual é a furada?
* : Matar os dois últimos tempos, bora?
* : Te encontro no mercado.
* : Combinado.
Apressei o passo até a saída do bloco, entrando no seguinte onde meu armário ficava. Parei de andar quando ouvi risadas altas e Hayden no meio de tudo aquilo. Aparentemente o time de futebol da escola estava quase todo ao redor de meu amigo, que mexia em seu armário sem expressão alguma. Os demais davam risadas e quando um deles derrubou um livro de Hayden no chão foi que eu percebi o que estavam fazendo.
Tive de respirar fundo, bem fundo, para não me meter.
Hayden olhou para o livro no chão, se abaixou para pegar e voltou a mexer no armário. Dei uns passos para a direita e vi Kieran, o capitão do time, mas diferente dos demais, ele não sorria. Todos falavam gracinhas, cutucavam Hayden, até que o mesmo fechou a porta do armário e tentou sair da rodinha, ainda bem calmo, sem dar o gostinho para aquele grupo de idiotas.
Só vi Kieran rir quando um dos brutamontes deu uma cotovelada nele, como se bullying fosse uma grande piada, mas que precisava ser explicada. Julguei aquilo como bem esquisito, mas não iria me importar com quem não merece.
Eu queria ajudar Hayden, mas sabia bem que se me metesse agora só iria piorar as coisas. Se ele estava agindo daquele jeito é porque não queria dar corda.
Peguei tudo do meu armário em poucos segundos e marchei para fora da escola, contornando os prédios baixos pela parte do pátio lateral com as árvores e bancos de pedras mais escondidos. Falaria com Hayden para ver se ele queria revidar aquela palhaçada com o nosso time secreto.
Apressei o passo novamente, indo em direção ao mercado dos .
O caminho era curto, mas foi o suficiente para bagunçar o meu cabelo já antes despenteado.
Ao chegar, contornei o mercado, indo para os fundos. Franzi o cenho ao procurar por , mas estava sozinha por ali. Em questão de segundos ele saiu pela porta de serviço. Ainda estava com o uniforme da The Cotswold School (o que era ótimo, porque eu também estava) e sua mochila em um dos ombros.
Sorriu ao me ver parada ali, ainda um pouco ofegante pelos passos largos.
— Veio correndo? — Perguntou de um jeito engraçado.
— Mais ou menos.
Seus braços contornaram o meu corpo e foi o suficiente para que eu me derretesse pela segunda vez no dia. Senti um beijo em minha cabeça antes de me soltar. Percebi que ele estava com um molho de chaves na mão esquerda quando o jogou para o alto e pegou no ar.
— Vamos? — Perguntou animado.
O olhei com cautela.
— Vamos? Para onde?
— Stroud e Stow-on-the-Wold.
Meu olhar cauteloso se transformou em desconfiado.
— Está me sequestrando?
— Depende. Tem hora para voltar para casa? — Ele riu ao dizer. Eu só consegui dar de ombros. — Voltamos a tempo do jantar.
Ele andou até a caminhonete estacionada ali. Era antiga, mas bem conservada. Tinha cabine dupla e aquela parte atrás para carregar coisas. Como eles tinham um mercado e moravam quase na roça moderna, fazia sentido.
— Legal! — Pesquei o celular em minha mochila. — Vou avisar minha mãe. Meu pai vai ficar doido, ele quer muito fazer um passeio pelas vilas.
sorriu. — Anota as minhas preciosas dicas, então.
Tive que rir também. — Isso é para não precisar ir ao labirinto esquisito que te pedi?
— Dragonfly Maze? — Concordei com a cabeça. — Não, eu não esqueci disso. Ainda vamos.
Abri a porta da caminhonete, sentando no banco do carona. Passei o cinto de segurança e joguei a minha bolsa em meus pés. fez o mesmo, com a diferença de jogar a mochila de qualquer jeito no banco de trás do carro. Ele analisou os espelhos por alguns segundos antes de girar a chave para ligar o motor.
Foi só ali que uma coisa me atingiu a cabeça.
— Você dirige bem? — O olhei de lado. — Quanto tempo tem de carteira?
Ele já não era a melhor pessoa andando de bicicleta, não custava perguntar…
Mas ignorou completamente a minha primeira pergunta.
— Aprendi quando pequeno ainda. Ajudava meu pai a pegar alguns produtos para o mercado em outras vilas e também em Londres.
Eu não estava satisfeita com aquela resposta.
— Então, dirige bem?
Ele riu pelo nariz. — Está preocupada com o quê? A estrada é muito vazia.
— Sim, mas você dirige do lado errado da rua.
— Vocês que dirigem errado.
Revirei os olhos. — Só tente não matar nós dois. — Me segurei no cinto, nervosa. riu abertamente. — Eu tenho um pouco de medo de carro, não estou brincando.
Alguns anos atrás meu irmão tinha batido o carro e foi um horror. Eu não estava junto, mas vi o carro amassado igual uma lata e aquilo ainda me dava pesadelos. Ele se livrou de ferimentos graves por um milagre.
me cutucou. — Quer deixar para outro dia, então?
— Não! — Suspirei. — Está tudo bem, só não corre igual um doido, por favor.
— Cidade grande. — Ele sorriu de uma forma fofa. — Eu dirijo bem e há anos, ninguém vai morrer. Confia em mim.
Isso não tinha me deixado mais tranquila, mas deixei passar.
A estrada realmente estava vazia, mas só de carros.
Por todos os lados havia muitas árvores, pastos e até animais selvagens. Parecia um pouco com a que chegamos de Londres quando viemos direto para Bourton-on-the-Water de carro. Mas aquele dia tinha sido tão cansativo que eu nem prestei atenção a tudo o que tinha à minha volta.
Início de mudanças era sempre o mesmo drama.
Eu alternava os meus olhares entre a janela e . Ele estava concentrado na direção, talvez honrando o que disse sobre não morrermos com ele fazendo besteira no volante.
Só então reparei que a parte de dentro da caminhonete também era antiga. Tão antiga que o rádio tinha entrada de CD. Tinha um tempo que eu não via aquilo.
— Pode ligar, se quiser.
Olhei para ele com um sorriso, ligando o rádio em seguida. Não conhecia as estações da Inglaterra (e muito menos de Cotswolds), então procurei por alguns segundos alguma que me agradasse. Passei por notícias da região, cultos religiosos e uma música pop até parar em uma que eu reconheci. Aumentei um pouco o volume quando me lembrei o quanto meu irmão gostava daquela música.
Era You Only Live Once, da banda The Strokes.
Voltei a olhar a paisagem, curtindo o embalo que a música trazia para aquele momento. Quando olhei de canto de olho para , ele estava com um braço dobrado na janela aberta, sua mão direita no canto da boca, relaxado. A sua outra mão segurava no volante. Ele olhava a estrada com atenção ainda, mas agora cantava a música sem deixar sair um som de sua boca.
O sorriso bobo estava de volta ao meu rosto.
Virei para a janela novamente, dando a privacidade que talvez ele precisasse naquele momento tranquilo.
Chegamos a Stroud depois de quase cinquenta minutos de estrada. Eu soube disso pela grande placa avisando que estávamos dentro da vila de Gloucestershire.
As ruas eram bem parecidas com Bourton-on-the-Water, mas tudo aparentava ser maior e com mais gente habitando e mais estrutura para viver (segundo um dos comentários aleatórios de papai, Stroud tinha mais de 33 mil habitantes, bem acima dos 4 mil da nossa vila).
estacionou em uma rua não muito movimentada, mas ao cruzarmos para uma outra, percebi que estávamos no centro comercial. Muitas lojas, bares, lugares de serviços básicos espalhados por ali. Tudo misturado ao exagero de verde. Árvores de todos os tipos, jardins enormes por todos os cantos. Era quase uma vila modelo, mas eu tinha que confessar que Bourton-on-the-Water ganhava disparado em beleza. Ele parou em frente à uma loja enorme e fez um sinal com a cabeça para entrarmos.
Um menino correu na nossa direção, sorrindo. Aparentava ter no máximo doze anos, um pouco mais velho que Annabelle, a irmã mais nova de . Estava vestindo um uniforme de escola, mas não era da The Cotswold School como nós.
Aquela cena foi bem familiar…
sorriu e cumprimentou o garoto com um soquinho na mão.
O lugar lembrava muito o mercado vende-tudo da família de , mas era bem maior. Talvez duas ou três vezes maior. Com tantas caixas, prateleiras, mostruários… Parecia mais um depósito. E fazia sentido ir buscar coisas novas ali, pensando nisso.
— Tudo bem por aqui, Jim? — Perguntou ainda com o seu sorriso lindo no rosto. O garoto novo concordou com a cabeça. — Essa aqui é a .
Fiz o mesmo gesto do soquinho quando Jim se virou para mim.
— Já gostei dela. — Jim sorriu abertamente ao dizer.
— Arruma uma do seu tamanho, pirralho.
— Sua irmã tem quantos anos?
bagunçou o cabelo do menino, que ainda ria das provocações. Uma mulher mais velha se aproximou já com os braços abertos na direção dele.
— , meu querido.
Os dois se abraçaram por alguns segundos e percebi a mulher o apertando ainda mais. Eu entendia ela, também fazia isso.
— Como está, senhora Wilson?
— Bem, bem.
apontou para mim — .
— É um prazer, querida. Alicia. — Ela disse sincera.
— Igualmente, senhora.
Ela olhou para , rindo.
— Trouxe reforços, não é? — E pareceu surpresa. — Quem pediu vinte caixas disso?
Arregalei os meus olhos sem ao menos perceber. Só me toquei quando os três riram de mim.
— Estou brincando, querida — A senhora Wilson confessou a mentira para o meu alívio.
piscou o olho direito para mim, divertido, e então sumiu indo para os fundos da loja com o menino mais novo.
— É nova na região?
— Sim. Nos mudamos há alguns meses de Paris.
— Que bom — Alicia sorriu. — Aqui é um bom lugar.
— Já consigo ver que é um lugar especial — Respondi sem ao menos pensar.
A senhora concordou. — São amigos desde que chegou?
Eu não precisava dizer que trocamos farpas em nossos primeiros encontros, então só a imitei no gesto anterior, concordando com a cabeça. A mulher continuou:
— Que bom. é um garoto muito especial.
Isso eu tinha que concordar também. era muito especial. Em vários sentidos.
Demorou segundos para que ele estivesse de volta, com Jim em seu encalço. Para o meu bem, ele carregava apenas quatro caixas pequenas e, visto que estava com a expressão calma, pareciam leves.
Ele colocou tudo no balcão, assinou alguma coisa que Alicia o entregou e logo estávamos nos despedindo daquele pessoal simpático. Franzi o cenho ao perceber que era uma simpatia diferente… Não era forçada e estranha como em Bourton-on-the-Water.
— Mande lembranças para o seu pai, querido. — Alicia o abraçou novamente, logo passando suas duas mãos no rosto de . — Cada dia mais lindo. — Ele riu com o gesto carinhoso e eu tive que concordar com aquela senhora pela terceira vez seguida. Ele era lindo demais. — Boa viagem aos dois.
Peguei duas das quatro caixas e vi sorrir em agradecimento. Estavam leves, então as abracei junto ao peito. Não sabia o que era, mas teria o devido cuidado.
Andamos até a caminhonete, onde deixou tudo, fechando a porta em seguida.
— Estamos livres. — Ele disse animado. — Vamos comer?
Andamos pelas ruas comerciais da vila olhando para todos os cantos, à procura de um lugar interessante e que me agradasse. Tinha entendido que conhecia a região, mas mesmo assim parecia indeciso de onde poderíamos ir.
Um sorriso bobo se formou em meu rosto quando pensei na possibilidade de ele estar tentando ao máximo me agradar.
As ruas curtas não estavam cheias, mas era possível avistar turistas o tempo inteiro, assim como em Bourton-on-the-Water. As lojas de artesanato, lembranças e os diversos cafés tinham mesinhas nas calçadas estreitas, me fazendo lembrar um pouco do charme que só Paris tinha nesse quesito.
É, tudo bem. Esse seria mais um ponto que eu colocaria o interior próximo a cidade grande.
estalou os dedos ao meu lado, um sorriso gigante em seus lábios.
— Já sei. — Mas então uma careta tomou conta da sua expressão. — Você tem problemas para comer?
Sacudi a cabeça em negação, o que o fez suspirar aliviado.
— Então já sei exatamente aonde te levar. — Continuou. — Bom que você conhece a região antes, vamos andar um pouquinho.
E tão rápido e simples quanto Astra caindo no rio Windrush ou nosso beijo do nada na estrada de terra do celeiro, entrelaçou seus dedos nos meus, voltando a caminhar lado a lado, de mãos dadas. Um gesto simples, tão simples, mas que fez o meu coração se derreter.
Pela terceira vez no dia.
Passamos por mais algumas ruas com lojas e restaurantes, como um casal normal de adolescentes, despreocupados, curtindo a vibe. A todo momento meus olhos me traíam e eu me pegava observando seu perfil descontraído. Seus olhos claros tinham um brilho diferente naquele dia e suas bochechas uma tonalidade mais rosada pelo sol raro que fazia na Inglaterra.
Assim que sentamos na mesa do restaurante, sacudi a cabeça em negativa.
— Sua ideia de almoço é hambúrguer e batata frita?
— Isso nunca tem erro. — deu de ombros, mas logo fez uma careta. — A não ser que você seja vegetariana.
— Não sou. — Respondi com um sorriso. — Hambúrguer e batata frita não tem erro comigo.
Vi que ele sorriu de lado, mas ainda tinha uma expressão diferente no rosto.
— O que houve? — Questionei ao pegar um dos cardápios jogados na mesa.
— Sei lá, tem algumas coisas simples que eu ainda não sei sobre você.
Concordei, pensando sobre a mesma coisa. Eu queria saber tudo sobre e sentia que aos poucos ia conseguir isso.
Fizemos nossos pedidos e vi observar algumas pessoas que passavam por ali. Pareciam turistas, como em Bourton-on-the-Water, já que tiravam fotos de todas as coisas possíveis.
— Está melhor, né? — Perguntei, tomando de volta sua atenção. Seus olhos claros me olharam com confusão. — O último dia em que nos vimos, no celeiro… Você estava esquisito e disse que podia ser gripe, como Annabelle.
Ele pareceu se lembrar e eu julguei aquilo como esquisito.
— Ah sim, estou bem, obrigado. — Franzi o cenho com suas palavras, o que o fez rir. — Não acreditou?
— Nem um pouco, garoto do mercado.
suspirou. — Estou bem, é sério. Tinham sido dias difíceis em casa, mas nada demais. Junta estudo, trabalho, Annabelle, coisas da faculdade…
Foi o suficiente para que eu me sentisse mais aliviada de saber que eram problemas cotidianos que estavam deixando ele diferente.
— Você fala pouco das suas coisas pessoais, família… Então nunca sei qual é o seu problema.
Foi a vez dele franzir o cenho. — Acha que não sou transparente?
Tive que rir. — Quando está puto ou estressado, você com certeza é transparente. Mas para falar sobre suas coisas, não.
Ele fez uma careta. — Tem dias que não consigo disfarçar mesmo. — E deu de ombros. — Mas você também não fala coisas da sua família, está me cutucando com isso por quê, cidade grande?
Foi o momento perfeito para meu deboche.
— Virando o jogo cedo assim? — Comprimi os olhos, mas ele só deu de ombros. — O que quer saber? Posso passar a tarde toda falando das loucuras do meu pai.
pareceu pensar por alguns segundos.
— Seu irmão.
Fiquei surpresa pela sua curiosidade ser sobre o meu irmão, mas, ao mesmo tempo, me senti feliz. Arthur estava sendo um tópico constante na minha cabeça e poder falar sobre ele e a saudade absurda que eu sentia poderia ajudar a amenizar o caos que estava meu coração nos últimos dias.
— Posso falar disso também. — Declarei, suspirando alto. — Ele se chama Arthur. É quatro anos mais velho do que eu e ficou em Nova Iorque para fazer faculdade.
— Você sente falta dele?
— Todos os dias.
concordou. — Penso nisso todos os dias, sabe? Deixar Annabelle aqui…
— Vai doer, mas ela vai entender.
Ele me encarou por alguns segundos, sem nada dizer.
— Você entendeu?
Eu entendi sim os motivos de Arthur ter ficado em Nova Iorque, mas isso não diminuía a dor que eu sentia até agora. Ainda era difícil a distância, mas eu sabia que meu irmão não aguentava mais as loucuras e mudanças de papai.
Infelizmente eu não tinha a mesma força ainda para me separar deles.
Comentei sobre o curso que meu irmão fazia, como era a personalidade dele, mas sem entrar em muitos detalhes sobre o porquê de Arthur não morar mais com a gente. Era um assunto delicado e ainda abria umas feridas doídas em meu coração.
Eu entendia, mas realmente não doía menos.
concordava com tudo o que eu falava e quando nossos pratos chegaram, alguns minutos de silêncio confortável se fez entre nós. Eu achei que foi o momento ideal para mudar a nossa conversa e talvez conseguir entender um pouco mais do mistério que era o garoto do mercado.
— Foi esquisito ver Mason se formar antes de você?
Ele fez uma careta, um pouco surpreso pela pergunta aleatória que saiu da minha boca, mas acabou concordando com um gesto.
— Foi, mas pelo menos agora eu não preciso comprar uma roupa para a formatura, posso usar a dele.
Aquela era a parte que eu me derretia… Mesmo com tantos problemas, tantas chateações, ele não reclamava ou sequer ficava rabugento culpando tudo e todos. Deve ter sido horrível ver o melhor amigo de sempre viver as coisas sem você, mas como Mason ainda esperava para ir para a faculdade, aquilo deveria amenizar.
Nós conversamos novamente sobre a faculdade e sobre as provas que estavam próximas. Sobre coisas que tinham acontecido no celeiro, na escola, mas nada sério ou super profundo em questões de intimidade. Tentei cutucar algum assunto sobre seu pai ou Annabelle, mas ele comentou as mesmas coisas que já tinha me falado antes.
Mesmo querendo conhecer tudo sobre , eu me sentia bem naquele clima. Só de estar curtindo aquele dia com ele, fora daquela vila doida, era o suficiente no momento.
Quando estávamos andando de volta para a caminhonete de , ele voltou a abrir a boca.
— E aí, tem dicas o suficiente para o seu pai?
Sorri com aquela pergunta. Papai ficaria doido só de saber que eu estava visitando alguma outra vila da região.
Sentei no banco do carona, bem mais tranquila do que na primeira vez que fiz isso naquele dia, observando se ajeitar na parte do motorista.
— Agora vamos passar em Stow-on-the-Wold, tudo bem? — Ele praticamente afirmou, ligando o motor.
— OK! — Respondi com animação. — Mais caixas?
Ele riu. — Não. Vamos pegar Mason. — Meu cenho franziu e isso foi o suficiente para que continuasse: — Ele veio resolver umas coisas para o Sheppard, dono do bar que trabalha.
O caminho até Stow-on-the-Wold foi rápido e mais uma vez o silêncio entre nós dois foi preenchido pelas músicas que saíam do antigo rádio. Não chegamos a entrar na vila, mas sim bem no comecinho dela. Logo vimos Mason sentado em um banco de pedra quase no meio do nada, com a cabeça baixa e os cotovelos apoiados nos joelhos. Parecia um ponto de encontro entre eles, para não tomar mais tempo de naquela viagem.
Ao ouvir a aproximação do carro, Mason levantou a cabeça, os olhos claros pareciam cansados e o cabelo loiro era uma bagunça grande. Ele se levantou, andando a passos rápidos até nós e em segundos estava sentado no banco da parte de trás. O menino cumprimentou com um aperto de mãos e meio abraço e, em seguida, estalou um beijo em minha bochecha.
— Todos prontos? — Foi o que disse antes de dar partida novamente.
Diferente do silêncio em que estávamos, Mason puxava assunto, falando sobre alguma coisa ou alguém que eu não entendi bem, que ele tinha visto na vila de Stow-on-the-Wold. O garoto do mercado concordava e às vezes ria de algo, mas eu estava tão concentrada em segurar tudo o que eu sentia que nem sequer fiz questão de saber sobre o que eu dois falavam.
A verdade era que sempre era interessante ver a relação natural que os dois melhores amigos tinham. Era como se soubessem tudo um do outro, pudessem compartilhar tudo e aquilo fazia o meu peito se encher e se apertar ao mesmo tempo.
Me sentia feliz por poder presenciar tudo aquilo, mas doía entender que nunca teria algo parecido. E, por isso, acho que fazia tanta questão de ter Mila próxima de mim, uma amizade verdadeira que eu estava disposta a ajudar em tudo, para tudo.
— Você sempre faz isso? — Perguntei quando eles calaram a boca pela primeira vez em dez minutos. — Pelas vilas.
Vi concordar com um gesto.
— Toda quarta-feira eu pego algo para o meu pai. Semana passada foi em Bath. — Ele explicava enquanto cruzava as ruas da vila. — Mas faço isso depois da escola, hoje que precisei vir antes pelo horário da senhora Wilson.
Os pensamentos dentro da minha cabeça fervilhavam de uma só vez quando ele continuou falando:
— Semana que vem vou a Stratford-Upon-Avon.
Tive de rir. — Por que tudo aqui tem que ter um nome difícil?
Mason se debruçou entre os dois bancos da frente, olhando para a janela.
— Charme da região.
— O que tem nesse lugar? — Questionei.
— Você gosta de Literatura? — Foi difícil não fazer uma careta daquelas ao ouvir a pergunta de Mason. — Bom, é a cidade que Shakespeare nasceu. E que está enterrado também.
— Parece interessante. — Falei casualmente e me surpreendi com a sinceridade em minhas palavras.
também pareceu perceber isso.
— Quer vir semana que vem? — Ele disse, me olhando de lado.
Nem precisei pensar para que as palavras saíssem pela minha boca.
— Quero.
Ele riu. — Combinado. Podemos vir depois das aulas, talvez fique melhor.
Concordei em silêncio, minha cabeça a mil. Virei meu corpo para trás, encarando Mason, que olhava para a frente sem muita atenção.
— Vem também?
Mason colocou os olhos claros nos meus, e então deu de ombros.
— Posso trocar uns turnos no bar.
— Podemos trazer Mila? — Disparei a pergunta no ar.
Percebi me olhando de lado de novo, antes de voltar sua atenção para a estrada vazia até Bourton-on-the-Water. Seria mais um dos clichês que eu viveria e — estranhamente — queria viver naquela vila doida de quatro mil habitantes. Aquele dia com tinha sido incrível de um jeito tão simples que eu queria que Mila também vivesse aquilo, principalmente se estivesse em minha companhia e na de Mason, seu namorado que não deveria ser secreto.
se mexeu no banco, talvez também esperando uma reação do amigo.
Eu ainda encarava Mason, que finalmente abriu um sorriso de canto, mas parecia sem jeito.
— Se ela quiser — ele começou —, eu vou adorar.
Suas palavras foram suficientes para que eu pegasse o celular em minha bolsa, já procurando o número de Mila nos contatos.
— Ótimo! Vou falar com ela agora mesmo.
Vi que Mason assentiu em silêncio e se recostou no banco de trás, e por um momento eu achei que ele estava ansioso com aquilo.
Cruzei o olhar com quando ele colocou sua mão esquerda em minha perna, apertando de leve, por um segundo. Ainda se mantinha atento à estrada, mas eu percebi que aquilo foi um tipo de agradecimento pela minha ideia de levar Mila com a gente. Eu entendia e começava a perceber que as coisas pareciam mais fáceis para o nosso casal de amigos quando eu estava por perto, já que nós duas éramos amigas de frequentar a casa uma da outra e ninguém iria desconfiar se eu simplesmente levasse Mason para estar com a gente.
Se eu tinnha diversos planos para o “Time ”, com certeza um deles seria (e deveria!) ser fazer Mason e Mila passarem mais tempo juntos, como um casal normal.
Digitei rápido, a animação percorrendo minhas veias. Um sentimento tão gostoso que foi impossível não sorrir a cada palavra que meus dedos formavam no teclado.
* : Amiga, semana que vem eu e você vamos conhecer a cidade esquisita do Shakespeare. Se prepare para o romance.
Capítulo 16 - Planos
“Não são os grandes planos que dão certo; são os pequenos detalhes.” (Stephen Kanitz)
Era a segunda vez em poucos dias que ia a casa de Mason para estudar junto com ele e . Ainda me sentia com dor de estômago só de pensar nas provas preparatórias para a faculdade…
Não era o meu programa preferido (mesmo que estivesse por lá), mas tinha feito um acordo comigo mesma: se era isso que eu queria, iria tentar ao máximo melhorar as minhas notas. Estava fazendo isso por mim, por Bree, por meu irmão (que tanto tentava me incentivar com essas coisas) e pelo sorriso que jogava para mim quando eu simplesmente acertava algo nos simulados doidos que eles faziam juntos.
Era um combo e tanto de motivação.
Quando parei em frente a quase mansão da família Hunt, me permiti suspirar ao relembrar de como eu tinha caído naquela furada sem tamanho.
Estava arrumando minhas coisas na bancada da aula de Culinária, quando me cutucou de lado. Infelizmente (e felizmente, claro), a professora continuava com aquele clichê difícil de trabalhos em dupla e, como o interior sempre tentava me provocar, se mantinha como meu parceiro naquilo.
— Essa semana vai ser difícil para mim, preciso estudar — ele deu de ombros ao falar, me observando organizar a bagunça que eu não tinha provocado.
Pelo jeito ali a regra seria: quem não sabe fazer nada, arruma.
— Está com dificuldade em alguma matéria?
Vi negar com um aceno, logo se encostando de costas na bancada. Algumas pessoas tentavam entender o que falávamos baixo, mas eu mal me importava. Tinha muita louça para lavar.
— É a prova preparatória para o vestibular — e suspirou — Você não vai fazer?
Foi impossível reprimir uma careta. Só de pensar em faculdades e provas eu tinha vontade de vomitar.
— Não me decidi ainda.
— Se quiser estudar… Bem, eu e Mason vamos focar essa semana.
Eu sabia que eles estudavam juntos, mas aquele convite era… Interessante. Mesmo Mason já tendo se formado, eu achava legal que eles mantivessem esse hábito. Mostrava o quanto eles queriam aquilo, enquanto eu apenas fugia da realidade.
— Mila não vai também? — perguntei e o vi coçar a nuca na mesma hora.
— É complicado, porque a gente estuda na casa de Mason. Lá em casa é a maior bagunça por causa de Annabelle. Ela não consegue ficar quieta com Mason lá dentro. E, bem, ninguém sabe que somos amigos, né.
— E eu posso ir na casa de Mason?
Ele deu de ombros.
— A gente mente que você é chefe de alguma comissão.
Bom, e simples assim, eu estava prestes a fazer mais alguns questionários intermináveis nas próximas horas.
Novamente eu, Mason e .
Ah, essa parte ainda me incomodava bastante. Em minha primeira vinda tinha questionado sobre Mila, mesmo que já soubesse da resposta. Aquele assunto em particular ainda me tirava completamente do sério e eu tinha que fazer algo rápido para mudar alguma coisa daquela situação horrível. Mila era uma das pessoas mais incríveis que eu já tinha conhecido em dezessete anos e não deixaria um preconceito ridículo da Veneza da Inglaterra apagar o que aquela garota era.
Toquei a campainha e logo Mason abriu a porta, sem cerimônias.
— Pode entrar — seu sorriso me convidou a dar os primeiros passos dentro da grande sala de estar.
Assim como a casa de Mila, aquele lugar era enorme. Mesmo estando ali pela segunda vez, parecia que ainda sobravam detalhes que meus olhos não tinham percebido na última visita. Definitivamente tudo era igual àquelas casas do núcleo rico das famílias de filmes ou novelas.
— Seus pais estão? — fiz a pergunta que tanto me afligia.
Na última vez, os pais de Mason não estavam e aquilo foi um alívio. Pelo que ele e Riley reclamavam dos mesmos nas noites de reclamação, eu não queria encontrar com eles tão cedo.
Sério, era muito difícil engolir toda aquela história de Mila não ser boa o suficiente, não me descia.
— Ainda não, — vi Mason colocar as mãos nas têmporas — mas chegarão em breve. Já sabem que você está aqui e vão perguntar sobre o que aconteceu no baile. Ainda não aceitaram as minhas desculpas.
Suspirei. Aquilo realmente iria acontecer naquela tarde, não tinha como fugir mais.
A parte das desculpas eu já esperava. Acenei para Mason, andando ao seu lado até o escritório grande demais.
— Pode deixar, lembro de cada detalhe da nossa mentira.
— Ótimo. já está aí, quer algo para beber?
Senti um frio na barriga ao lembrar que estava há poucos passos de mim.
— Não, obrigada. Qual é a morte de hoje? Matemática?
Mason riu ao abrir as portas do escritório, que realmente era grande demais, muito maior do que o de papai em nossa casa alugada. O carpete era verde musgo e tinha uma mesa enorme de madeira maciça na ponta do cômodo, além de dois sofás nas laterais. Parecia uma biblioteca, com estantes do chão até o teto cobertas de livros dos mais variados assuntos.
Uma pena que tanto conhecimento não era o suficiente para quebrar pensamentos arcaicos e preconceituosos.
estava sentado despojadamente no carpete, suas costas apoiadas em um dos sofás de couro escuro. Um de seus joelhos estava dobrado para cima, enquanto a sua outra perna descansava no chão. Ele lia alguma coisa até que levantou os seus olhos claros demais para encontrar os meus.
Seu sorriso era tão lindo que tive que suspirar novamente.
Assim que reparei no que ele vestia olhei para Mason, fazendo uma careta em seguida. Os dois usavam calças de corrida e uma blusa que também parecia bem esportiva.
— A morte de hoje é Educação Física?
riu — Estávamos correndo antes de você chegar.
Eu não era muito fã de exercícios físicos, mas se gostava, bem, quanto mais melhor, né? Já que eu tinha todo o prazer de poder ver sem roupa...
— Legal — comprimi meus olhos ao sentar em um dos grandes sofás. — Eu faço qualquer coisa se hoje Literatura ficar de fora.
A tarde de estudos novamente pareceu interminável, mas naquele dia eu tinha aprendido um pouco mais sobre as técnicas que eles usavam para estudar e se planejar. Era inteligente, de verdade. E me admirava que eles conseguiam manter um bom ritmo de estudos conciliado com trabalho, escola e estar com os amigos.
Fizemos algumas provas antigas e eu fiquei feliz por acertar questões que eles consideraram difíceis. Talvez as coisas não estivessem tão ruins e eu poderia, sim, tentar algumas universidades…
Se era isso o que eu queria, com a ajuda de meus novos amigos acreditava que poderia, sim, ser uma realidade.
Me permiti relaxar quando eles finalmente resolveram que era hora de parar com tudo aquilo, que já estava bom pelo dia. Minha cabeça doía e meus ombros pareciam tensos demais quando deitei em um dos sofás, sem cerimônia alguma.
cutucou minhas costelas e reclamei na hora, mas ao abrir os olhos percebi que ele tinha sumido dali. Franzi o cenho para Mason.
— Ele foi ao banheiro.
Respirei fundo. Tinha dias que eu queria ficar sozinha com Mason para fazer algumas perguntas e aquele era o momento perfeito.
Eu precisava ser direta.
— Qual é o problema dele com o violão?
Mason pareceu não entender. Ou pelo menos fingiu muito bem.
— Como assim?
— Em meus primeiros dias de celeiro você disse que ele gostava de música — o menino loiro me olhou rápido ao terminar de anotar algo em seu caderno, o que me fez continuar: — Uns dias atrás eu estava com insônia e fui para o celeiro.
Mason mexia a cabeça em afirmação enquanto fechava alguns livros. Tinha uma pilha enorme onde ele estava sentado e por um momento eu pensei que ele preferia encarar aquilo a falar comigo sobre os problemas de .
— Ele estava lá, tocando violão. De madrugada, sabe? — sussurrei, olhando para a porta, com receio de aparecer por ali.
Pela expressão que Mason fez, parecia que eu tinha acabado de ofender alguém da sua família.
— Ele tocou para você?
Dei de ombros — Acho que sim.
Não era bem “acho”, eu tinha certeza que tinha, sim, tocado aquele violão para mim. Estávamos conversando sobre música, sobre gostos em comum e ele tocou o que nós dois conhecíamos. Mas a cara de Mason estava tão chocada que eu preferi amenizar o que já parecia um assunto muito, muito mais delicado do que eu esperava.
O garoto piscou os olhos algumas vezes e então um grande sorriso preencheu seus lábios.
— Que bom, .
Não entendi muito bem o que aquilo significava, já que aquele sorriso ainda era um mistério para mim.
Suspirei alto.
— Mason — ele me encarou novamente —, ele não toca mais porque a mãe dele foi embora, né?
Aquilo estava preso na minha cabeça há dias. Eu sabia que o passado de era triste e confuso, mas ele deixar de lado algo que provavelmente amava por causa do abandono da mãe… Me doía em todas as partes do corpo.
O melhor amigo de nem mesmo alterou sua expressão ao me responder.
— Elena o ensinou a gostar de música.
Eu encarei aquilo como um “sim, é por isso mesmo”.
— Ele parece gostar muito, fico triste.
— Isso tem anos, . está bem — Mason falou de um jeito carinhoso.
— Ouvi ele cantando também…
Ah, sim. Agora eu tinha conseguido deixar Mason Hunt chocado.
— cantou para você? — ele falou baixo, mas as palavras saíram tão graves que eu até me assustei com o tom.
— Não — ele pareceu relaxar, mas de uma forma decepcionada. — Quando entrei ele estava cantando, mas parou quando me viu.
Foi a vez de Mason suspirar alto. Ele passou uma das mãos nos cabelos loiros e curtos, bagunçando-os um pouco. Balançou a cabeça para os lados, como uma negativa para ele mesmo. Parecia pensar em mil coisas ao mesmo tempo e, principalmente, se valia a pena falar mais sobre aquilo comigo.
Mas, quando ele ia abrir a boca para quebrar o nosso esquisito silêncio, abriu a porta do escritório com uma cara de tédio. Por um momento meu coração pareceu que ia parar só de pensar que ele pudesse ter ouvido tudo aquilo, mas logo meu corpo se aquietou quando o garoto do mercado disse:
— Miriam chegou e vai nos obrigar a tomar o chá da tarde — seus olhos claros reviraram. — Vamos logo.
Bom, aquilo iria ser a segunda parte do pesadelo que eu viveria naquela mesma tarde. Primeiro horas de estudo sem pausa e, então, uma sessão de chá com a mãe de Mason.
Assim que entramos na sala principal para receber visitas (foi o que Mason disse, super entediado), eu reconheci bem a mulher do churrasco que papai deu assim que chegamos em Bourton-on-the-Water. Seu corpo era esguio, os cabelos loiros sem um fio fora do coque super preso. Vestia roupas bem cortadas e passadas, em tons pastéis que só uma pessoa esnobe e rica usaria. Suas feições pareciam jovens e bonitas e, bem lá no fundo, lembrava bem os próprios filhos.
Quando eu ia cumprimentar da forma mais educada que conhecia, Miriam me abraçou, o que foi um choque não só para mim, mas para Mason também.
— Querida, é um prazer finalmente ter você aqui em nossa casa.
Está bem… Eu tinha perdido alguma coisa?
— Obrigada, senhora Hunt.
— Não, não — ela fez um gesto delicado, o sorriso ainda moldado no rosto bonito. — Me chame de Miriam, por favor.
Encarei Mason após dar o meu melhor sorriso para sua mãe, mas ele apenas deu de ombros como se dissesse: “eu não faço ideia do que foi isso”.
Nós quatro nos sentamos à mesa de jantar, que já estava farta de bolos, doces, pães, geléias e mais uma infinita quantidade de comidinhas que provavelmente eram uma boa combinação com o chá da tarde da Inglaterra. Eu sinceramente não era muito fã de chá, preferia café, mas… Ia encenar a minha melhor versão da cidade grande em eventos chatíssimos, como sempre fazia com meus pais em Nova Iorque.
Pelo menos a conversa na mesa foi fácil. Miriam me perguntava coisas sobre minha família, nossas mudanças e como estávamos nos acostumando a Cotswolds. Comentou sobre encontrar minha mãe com frequência em um clube que eu não fazia ideia do que era e que elas tinham que marcar um grande almoço em família, em breve.
assistia tudo calado enquanto comia um pãozinho sem muita vontade. Já Mason sacudia tanto a perna ao meu lado que às vezes fazia a mesa se mexer junto com seu nervosismo. Eu sabia que o garoto não tinha um bom relacionamento com os pais, mas não sabia porque aquele encontro casual o estressava tanto. Tínhamos um plano caso o assunto “baile beneficente” entrasse em pauta, estava tudo bem.
Mas eu comecei a sentir o problema que viria quando, ao terminar de contar sobre como sabia falar três línguas diferentes, Miriam soltou:
— Muito interessante… — ela sorriu, feliz. — Aposto que fica linda com um sotaque francês, né, Mason?
Eu só vi Mason suspirar alto e parar de mastigar o enorme pedaço de bolo que agora preenchia sua boca. Eles perceberam a emboscada no mesmo momento. Infelizmente, com o silêncio de todos, foi uma ótima oportunidade para a Miriam continuar a falar.
— , fico muito feliz que você seja amiga de Mason e — a mulher mais velha olhou para os dois e depois voltou a me observar, serena. — Uma garota interessante e bem criada vai ajudar que não façam besteiras.
Mason fez uma careta e , que já tinha engolido aquele pedaço enorme, apenas prendeu o riso.
— Mãe…
— E quem sabe vocês não passam mais tempo juntos? Aposto que vocês dois têm muito em comum.
E, de repente, já tinha sido excluído do papo por completo. Ele percebeu e só deu de ombros, enquanto Mason mantinha a expressão neutra, porque sabia exatamente o que a mãe estava fazendo. E eu também.
A senhora Hunt estava tentando juntar nós dois.
Quase me permiti gargalhar com ao pensar nisso.
Por entender o que estava rolando, eu passei a só concordar e sorrir, sem prestar grande atenção, o que fez Mason relaxar um pouco ao meu lado. Me mantive super educada, solícita e contadora das melhores histórias fúteis de papai e mamãe e seus amigos, esperando que aquela morte terminasse o mais rápido possível.
O ápice daquela cafonice foi quando Riley apareceu na sala e, ao me ver, arregalou os olhos. sorriu de lado, mas Mason só sacudia a cabeça, como se esperasse que o irmão não fosse nada sutil com a minha presença ali.
— Querido, essa é a — Miriam fez um gesto na minha direção ao falar com o filho mais novo, que ainda me observava sem reação. — A menina nova que chegou da cidade grande, se lembra?
Riley apenas concordou com um gesto, olhando para e Mason sem entender. Vi que ele fugiu de participar do chá horroroso quando deu meia volta correndo, já subindo as escadas para o segundo andar.
Miriam me olhou, parecendo escolher as próximas palavras.
— Ele é um doce, mas muito tímido — ela bebeu um gole da xícara. — Ainda mais perto de meninas lindas como você. Não é, Mason?
Vi que Mason estava pronto para levantar da mesa e dar um show, então a minha língua mal coube dentro da minha boca.
— Ah, Miriam, eu finalmente peço desculpas pelo baile beneficente. Foi uma semana muito difícil e tive que ficar em casa. Problemas pessoais, acho que você compreende — suspirei, tomando meu chá com a melhor pose possível. Já tinha frequentado muitos lugares narizes em pé em Nova Iorque, sabia com quem estava lidando. Coloquei a mão no peito, emocionada. — Por sorte minha grande amiga conseguiu me substituir a tempo e sei que tudo ocorreu bem.
Mason parou a sua xícara na metade do rosto, chocado e provavelmente tendo o início de um derrame. continha um riso.
Eu sabia (e Mason também) que aquela não era a mentira que tínhamos combinado, mas eu não aguentava mais. Eu precisava cutucar aquela mulher de uma forma que ela sentiria.
A mãe de Mason pareceu surpresa e chocada, mas confesso que disfarçou bem.
— Então foi sua ideia o que aconteceu?
— Sim — sorri, ainda com uma emoção falsa —, foi a meu pedido que Mila Hughes dançou com Mason — olhei para o menino e depois para a mãe. ainda segurava aquela risada, seu rosto já começava a ficar rosado. — Mamãe e papai são apaixonados por ela, está sempre lá em casa compartilhando conhecimentos. É a garota mais viajada e inteligente da região, me inspiro muito nela — suspirei de novo. — Não sei o que teria sido se Mila não ajudasse. — e bebi o chá novamente. — Por que, algum problema?
Mason arregalou ainda mais os olhos e agora mordia o lábio para não rir.
A mãe de Mason demorou alguns segundos para se recompor.
— Não, querida.
— Oh, que bom, Miriam. Eu e Mason dançamos numa próxima, não é mesmo? — dei uma risada forçada. — Isso me lembra um baile da Amfar que nós fomos no MET. A senhora já teve a oportunidade? Mamãe ama.
Depois daquilo, todo e qualquer assunto na mesa eu adicionava um comentário, como: “é sério? Mila também” ou “Mila já foi lá” ou “Mila com certeza saberia o que fazer nesse momento”. Miriam não fazia ideia da proximidade que Mila e eu tinhamos, e por isso parecia cada vez mais atordoada e aquilo fez toda a tortura da tarde valer a pena.
Quando finalmente nos levantamos para nos despedir, a mulher voltou com o assunto que assombrava Mason:
— Uma pena sobre o baile, realmente. Mas no próximo ano vocês podem ir juntos.
Me preparei para abrir a boca e dizer que certamente estaria bem longe dali no próximo ano, já que não teria mais escola e, com certeza, meus pais estariam curados desse surto “eu amo o interior”.
Mas Mason foi mais rápido.
— Não vou estar aqui no ano que vem, mãe.
A mulher fechou o sorriso grande demais na hora. Ignorou o filho e continuou fazendo planos. Tudo o que consegui fazer foi um gesto simples, como se concordasse com toda aquela loucura que ouvia. Não queria causar mais, porque entendia que aquele assunto era mais delicado do que qualquer outra coisa.
Nos despedimos e Mason levou e eu até a porta.
Foi a hora perfeita para entregar mais um dos meus planos.
— Eu não volto mais, mas vou continuar estudando.
— Por causa da minha mãe? — Mason parecia abalado.
— Não. Porque vou montar meu próprio grupo de estudos. — ele franziu o cenho com a minha resposta. — Com Mila. Só vim esses dias para entender como vocês fazem isso e pegar as dicas. Já tinha combinado com ela.
Mason abaixou a cabeça e eu pude perceber que estava sentido. Não por eu não vir mais, mas sim por Mila não poder estar ali. Aquela situação era uma das coisas mais graves que me atingiram em Bourton-on-the-Water.
Eu sabia que Mason amava Mila com todas as forças, mas entendia a situação ser difícil. Ele também não era um garoto problema. E mesmo achando tudo errado, não queria causar confusão dentro de casa, já que ainda tinha Riley por ali, mesmo que ele fosse embora para a faculdade junto com .
O irmão quase gêmeo de sorriu fraco ao me olhar.
— É uma boa ideia, . Queria conseguir fazer o mesmo.
— Se ela não pode participar, crio um só com ela — dei de ombros ao dizer. — Assim nós quatro estamos estudando no mesmo nível, não é?
riu — Vamos embora, doida. Te levo em casa.
Já respirando o ar fora daquele ambiente doido que era a casa dos Hunt, percebi que me observava ao andar lado a lado comigo.
— O que foi?
— Desde quando você sabe mentir assim? — ele perguntou, cínico.
— Eu não estava mentindo. Só encenei… Nada do que disse era mentira. — o garoto do mercado riu com as minhas simples palavras.
— Isso faz parte do plano de revidar?
O olhei de lado — Eu tenho um time a honrar, . A mãe dele não concorda sobre ir fazer faculdade fora?
— Não, ela odeia essa ideia. Os pais de Mason querem que ele vá para Oxford e depois volte para continuar os negócios da família. Já até escolheram o curso para ele…
— Isso é horrível.
deu de ombros — Mas ele tem outras escolhas, vai dar certo.
— E você? — mais uma vez as palavras saíam antes de eu realmente pensar nelas. — Seu pai também é contra?
Ele ajeitou a mochila velha nas costas, mas me olhou de lado com um sorrisinho.
— Ele apoia, mas iria preferir que eu ficasse. Meu pai acha que quero fugir daqui.
— E não é isso?
— Daqui, — seu tom foi firme. — Não dele e de Annabelle.
Mesmo com todos aqueles planos se moldando sobre faculdade, futuro e tudo mais, eu ainda me sentia muito desconfortável ao pensar em seguir o meu próprio rumo, minhas próprias escolhas, assim como os dois melhores amigos faziam.
Tinha que confessar que até mesmo invejava a determinação de e Mason… Mas eu daria um passo de cada vez. Iria focar no grupo de estudos com Mila, e aproveitar o restante do ano naquela vila.
Meu pensamento se cortou pela metade quando me puxou para perto e eu só pude suspirar. A ponta gelada do seu nariz cheirava o meu pescoço em toda a sua extensão.
— Foi engraçado ouvir a mãe de Mason falando que vocês formam um belo casal.
Suspirei ainda mais com seu toque.
— Está com ciúmes de mim?
Ele riu no pé do meu ouvido.
— Sempre estou.
Tive que rir — Ela deve achar que eu sou o tipo do Mason, e não o seu.
balançou a cabeça, achando graça do meu comentário. Um sorriso cresceu em seus lábios.
— , você é muito o meu tipo.
— É mesmo?
— Demais. Em tudo.
Aquilo fez a minha pele se arrepiar. Pela confissão tão espontânea.
— Que bom — me afastei de seu corpo. — Isso deixa tudo mais interessante.
— Por quê? — sua expressão era debochada. — Vai fazer ciúmes em mim?
— Não, acho isso uma besteira — ele sorriu quando me aproximei dos seus lábios. — É interessante saber que você se sente assim. Só isso. Porque eu também sinto. — Colei nossos lábios. — E eu e Mason nunca daríamos certo. Ele não é o meu tipo.
Na verdade, fisicamente, ele era mais o meu tipo do que . Era loiro, tinha os cabelos mais curtos e lisos, com o porte mais atlético e mesmo tendo a mesma altura de , parecia um pouco mais alto. Lembrava muito pouco Logan, meu ex-namorado de Nova Iorque, mas ao mesmo tempo lembrava muito.
Então, lá no fundo, eu acabava preferindo , por ser uma experiência completamente diferente do que eu já tive no passado, de todas as formas e sentidos.
— O que é o seu tipo, então?
— Caipiras que se acham os donos do mundo — o puxei pela camisa ao ver o sorriso debochado de volta em seu rosto. — Está bem: meninos de cabelo enrolado, bagunçados, desleixados. Espertinhos que formam grupos secretos, metidos e que ficam bem sexy de roupa cinza cafona. Satisfeito?
Ele sorriu de lado — Desde quando eu sou metido?
— De tudo o que eu falei foi só isso que te incomodou?
— O resto eu sei que é verdade — ele deu de ombros. — Principalmente a parte do “sexy com roupas cafonas”.
— Aí está, metido — ele sorriu de uma forma gostosa que fez meu coração derreter na hora. — Vamos?
Andamos até a esquina da minha casa, que não era muito longe de onde Mason morava. Mesmo com a distância, vi algo que pensei que meus olhos nunca iriam ver na vida. Mamãe estava agachada no jardim da frente da casa, usando roupas estranhas e fazendo alguma coisa com as plantas.
Isso era muito diferente e estranho. Realmente o interior estava proporcionando coisas inéditas para toda a nossa família…
Olhei para , que me observava de uma forma engraçada, parado ao meu lado.
— Minha mãe está mexendo no jardim e isso é esquisito — confessei, o que o fez rir. — Melhor você ficar por aqui.
— Tem problema em ser vista comigo, cidade grande? — e então aquele tom debochado estava de volta, mas com uma diversão diferente.
— Claro que não — devolvi no mesmo tom. — Só estou te poupando de ouvir um milhão de perguntas. Ou você quer fazer isso agora?
Ri com sarcasmo, mas manteve aquele olhar em mim. Seus olhos azul-claros desviaram para onde minha mãe estava e logo voltaram para mim. Um sorrisinho preencheu seus lábios.
— A gente se vê mais tarde, .
— Foi o que eu pensei. Até amanhã.
Ele me deu um aceno e em segundos já descia uma das pequenas ruas de pedras. Respirei fundo e me virei para a nossa casa, andando alguns metros até ficar a uma distância próxima de minha mãe. Parei a sua frente, que ainda estava abaixada, de costas, mexendo na terra.
— Astra cavou a grama? — foi o que perguntei.
Ela deu um mini pulo de susto, mas eu sabia que era uma mentira. Com certeza estava bisbilhotando o que acontecia na esquina entre e eu.
— A vizinha da rua de baixo me deu algumas mudas, disse que ficaria lindo aqui — mamãe deu de ombros. — Resolvi testar.
É, então, o interior estava realmente mexendo com todo mundo. Na cidade grande minha mãe não conseguia manter nem um cacto vivo. Imagine só ela cuidando de um jardim daquele tamanho…
— Posso ajudar? — perguntei, já jogando minhas coisas na parte da calçada e me abaixando ao seu lado.
Mamãe pareceu acordar de um devaneio, me olhando esquisito. Acho que ela pensou a mesma coisa: o interior estava mexendo com a sua filha.
Parecendo evitar qualquer possível discussão sobre como é muito legal ver eu, , finalmente aceitando um lugar assim tão rápido (rápido, tá bem, cof cof), minha mãe apenas sorriu, me entregando uma pá curva demais.
Demorou minutos, mas a pergunta finalmente veio:
— Aquele era o ?
Sério, eu já sabia, então nem reação tive ao responder.
— Era, sim. Como te avisei, fui estudar com ele e Mason Hunt.
Ela concordou com a cabeça, parecendo colocar uma concentração desnecessária na mudinha de planta que enfiava na terra.
— E por que não o convidou para vir até aqui?
Tive que rir — Acho que ele só quis evitar as perguntas que você faria a ele.
Minha mãe me olhou, abriu a boca, mas pareceu pensar duas vezes, talvez concordando que ela ia, sim, fazer muitas perguntas a . Sobre qualquer coisa.
— Ele que é filho do dono do mercado? — a ouvi falar e só concordei com a cabeça. — Uma pena o que aconteceu com a família deles.
Franzi o cenho ao ouvir aquilo. Sabia que a história da família era triste e complicada, mas me surpreendia de mamãe saber daqui, já que não tinha proximidade alguma com eles. Ou com qualquer amigo próximo deles.
A fofoca ali corria de uma forma que eu nunca vi em nenhuma cidade ou país.
— Papai já decidiu o que quer fazer no aniversário? — resolvi mudar de assunto antes que ouvisse coisas que não gostaria.
— Ainda não, mas você sabe o que ele espera.
Suspirei, concordando.
— Você acha que ele vem? — ela me olhou de lado e por um segundo vi que sua expressão parecia triste. Minha mãe também sentia muita saudade do meu irmão, só evitava dar ênfase nisso o tempo todo. — Dessa vez eu não tenho certeza…
— Eu também não — ela bateu as mãos no avental cafona que vestia. — Mas falei com ele ontem, vamos aguardar.
Concordei de prontidão, me levantando junto com ela.
A questão era que meu irmão mais velho, Arthur, batia de frente com o papai em 90% do tempo. Nosso último encontro de família não foi tão amistoso no final e, como são duas pessoas muito orgulhosas, ficavam eu e minha mãe no meio desse impasse todo.
Mas nós duas sabíamos que, no final do dia, meu pai queria que Arthur estivesse aqui com a gente. E eu sabia também que meu irmão sentia a mesma coisa.
Se eu mal tinha planos definidos, pelo menos esperava que meu irmão fizesse alguns esse ano.
E que eu fosse incluída neles.
Era a segunda vez em poucos dias que ia a casa de Mason para estudar junto com ele e . Ainda me sentia com dor de estômago só de pensar nas provas preparatórias para a faculdade…
Não era o meu programa preferido (mesmo que estivesse por lá), mas tinha feito um acordo comigo mesma: se era isso que eu queria, iria tentar ao máximo melhorar as minhas notas. Estava fazendo isso por mim, por Bree, por meu irmão (que tanto tentava me incentivar com essas coisas) e pelo sorriso que jogava para mim quando eu simplesmente acertava algo nos simulados doidos que eles faziam juntos.
Era um combo e tanto de motivação.
Quando parei em frente a quase mansão da família Hunt, me permiti suspirar ao relembrar de como eu tinha caído naquela furada sem tamanho.
Estava arrumando minhas coisas na bancada da aula de Culinária, quando me cutucou de lado. Infelizmente (e felizmente, claro), a professora continuava com aquele clichê difícil de trabalhos em dupla e, como o interior sempre tentava me provocar, se mantinha como meu parceiro naquilo.
— Essa semana vai ser difícil para mim, preciso estudar — ele deu de ombros ao falar, me observando organizar a bagunça que eu não tinha provocado.
Pelo jeito ali a regra seria: quem não sabe fazer nada, arruma.
— Está com dificuldade em alguma matéria?
Vi negar com um aceno, logo se encostando de costas na bancada. Algumas pessoas tentavam entender o que falávamos baixo, mas eu mal me importava. Tinha muita louça para lavar.
— É a prova preparatória para o vestibular — e suspirou — Você não vai fazer?
Foi impossível reprimir uma careta. Só de pensar em faculdades e provas eu tinha vontade de vomitar.
— Não me decidi ainda.
— Se quiser estudar… Bem, eu e Mason vamos focar essa semana.
Eu sabia que eles estudavam juntos, mas aquele convite era… Interessante. Mesmo Mason já tendo se formado, eu achava legal que eles mantivessem esse hábito. Mostrava o quanto eles queriam aquilo, enquanto eu apenas fugia da realidade.
— Mila não vai também? — perguntei e o vi coçar a nuca na mesma hora.
— É complicado, porque a gente estuda na casa de Mason. Lá em casa é a maior bagunça por causa de Annabelle. Ela não consegue ficar quieta com Mason lá dentro. E, bem, ninguém sabe que somos amigos, né.
— E eu posso ir na casa de Mason?
Ele deu de ombros.
— A gente mente que você é chefe de alguma comissão.
Bom, e simples assim, eu estava prestes a fazer mais alguns questionários intermináveis nas próximas horas.
Novamente eu, Mason e .
Ah, essa parte ainda me incomodava bastante. Em minha primeira vinda tinha questionado sobre Mila, mesmo que já soubesse da resposta. Aquele assunto em particular ainda me tirava completamente do sério e eu tinha que fazer algo rápido para mudar alguma coisa daquela situação horrível. Mila era uma das pessoas mais incríveis que eu já tinha conhecido em dezessete anos e não deixaria um preconceito ridículo da Veneza da Inglaterra apagar o que aquela garota era.
Toquei a campainha e logo Mason abriu a porta, sem cerimônias.
— Pode entrar — seu sorriso me convidou a dar os primeiros passos dentro da grande sala de estar.
Assim como a casa de Mila, aquele lugar era enorme. Mesmo estando ali pela segunda vez, parecia que ainda sobravam detalhes que meus olhos não tinham percebido na última visita. Definitivamente tudo era igual àquelas casas do núcleo rico das famílias de filmes ou novelas.
— Seus pais estão? — fiz a pergunta que tanto me afligia.
Na última vez, os pais de Mason não estavam e aquilo foi um alívio. Pelo que ele e Riley reclamavam dos mesmos nas noites de reclamação, eu não queria encontrar com eles tão cedo.
Sério, era muito difícil engolir toda aquela história de Mila não ser boa o suficiente, não me descia.
— Ainda não, — vi Mason colocar as mãos nas têmporas — mas chegarão em breve. Já sabem que você está aqui e vão perguntar sobre o que aconteceu no baile. Ainda não aceitaram as minhas desculpas.
Suspirei. Aquilo realmente iria acontecer naquela tarde, não tinha como fugir mais.
A parte das desculpas eu já esperava. Acenei para Mason, andando ao seu lado até o escritório grande demais.
— Pode deixar, lembro de cada detalhe da nossa mentira.
— Ótimo. já está aí, quer algo para beber?
Senti um frio na barriga ao lembrar que estava há poucos passos de mim.
— Não, obrigada. Qual é a morte de hoje? Matemática?
Mason riu ao abrir as portas do escritório, que realmente era grande demais, muito maior do que o de papai em nossa casa alugada. O carpete era verde musgo e tinha uma mesa enorme de madeira maciça na ponta do cômodo, além de dois sofás nas laterais. Parecia uma biblioteca, com estantes do chão até o teto cobertas de livros dos mais variados assuntos.
Uma pena que tanto conhecimento não era o suficiente para quebrar pensamentos arcaicos e preconceituosos.
estava sentado despojadamente no carpete, suas costas apoiadas em um dos sofás de couro escuro. Um de seus joelhos estava dobrado para cima, enquanto a sua outra perna descansava no chão. Ele lia alguma coisa até que levantou os seus olhos claros demais para encontrar os meus.
Seu sorriso era tão lindo que tive que suspirar novamente.
Assim que reparei no que ele vestia olhei para Mason, fazendo uma careta em seguida. Os dois usavam calças de corrida e uma blusa que também parecia bem esportiva.
— A morte de hoje é Educação Física?
riu — Estávamos correndo antes de você chegar.
Eu não era muito fã de exercícios físicos, mas se gostava, bem, quanto mais melhor, né? Já que eu tinha todo o prazer de poder ver sem roupa...
— Legal — comprimi meus olhos ao sentar em um dos grandes sofás. — Eu faço qualquer coisa se hoje Literatura ficar de fora.
A tarde de estudos novamente pareceu interminável, mas naquele dia eu tinha aprendido um pouco mais sobre as técnicas que eles usavam para estudar e se planejar. Era inteligente, de verdade. E me admirava que eles conseguiam manter um bom ritmo de estudos conciliado com trabalho, escola e estar com os amigos.
Fizemos algumas provas antigas e eu fiquei feliz por acertar questões que eles consideraram difíceis. Talvez as coisas não estivessem tão ruins e eu poderia, sim, tentar algumas universidades…
Se era isso o que eu queria, com a ajuda de meus novos amigos acreditava que poderia, sim, ser uma realidade.
Me permiti relaxar quando eles finalmente resolveram que era hora de parar com tudo aquilo, que já estava bom pelo dia. Minha cabeça doía e meus ombros pareciam tensos demais quando deitei em um dos sofás, sem cerimônia alguma.
cutucou minhas costelas e reclamei na hora, mas ao abrir os olhos percebi que ele tinha sumido dali. Franzi o cenho para Mason.
— Ele foi ao banheiro.
Respirei fundo. Tinha dias que eu queria ficar sozinha com Mason para fazer algumas perguntas e aquele era o momento perfeito.
Eu precisava ser direta.
— Qual é o problema dele com o violão?
Mason pareceu não entender. Ou pelo menos fingiu muito bem.
— Como assim?
— Em meus primeiros dias de celeiro você disse que ele gostava de música — o menino loiro me olhou rápido ao terminar de anotar algo em seu caderno, o que me fez continuar: — Uns dias atrás eu estava com insônia e fui para o celeiro.
Mason mexia a cabeça em afirmação enquanto fechava alguns livros. Tinha uma pilha enorme onde ele estava sentado e por um momento eu pensei que ele preferia encarar aquilo a falar comigo sobre os problemas de .
— Ele estava lá, tocando violão. De madrugada, sabe? — sussurrei, olhando para a porta, com receio de aparecer por ali.
Pela expressão que Mason fez, parecia que eu tinha acabado de ofender alguém da sua família.
— Ele tocou para você?
Dei de ombros — Acho que sim.
Não era bem “acho”, eu tinha certeza que tinha, sim, tocado aquele violão para mim. Estávamos conversando sobre música, sobre gostos em comum e ele tocou o que nós dois conhecíamos. Mas a cara de Mason estava tão chocada que eu preferi amenizar o que já parecia um assunto muito, muito mais delicado do que eu esperava.
O garoto piscou os olhos algumas vezes e então um grande sorriso preencheu seus lábios.
— Que bom, .
Não entendi muito bem o que aquilo significava, já que aquele sorriso ainda era um mistério para mim.
Suspirei alto.
— Mason — ele me encarou novamente —, ele não toca mais porque a mãe dele foi embora, né?
Aquilo estava preso na minha cabeça há dias. Eu sabia que o passado de era triste e confuso, mas ele deixar de lado algo que provavelmente amava por causa do abandono da mãe… Me doía em todas as partes do corpo.
O melhor amigo de nem mesmo alterou sua expressão ao me responder.
— Elena o ensinou a gostar de música.
Eu encarei aquilo como um “sim, é por isso mesmo”.
— Ele parece gostar muito, fico triste.
— Isso tem anos, . está bem — Mason falou de um jeito carinhoso.
— Ouvi ele cantando também…
Ah, sim. Agora eu tinha conseguido deixar Mason Hunt chocado.
— cantou para você? — ele falou baixo, mas as palavras saíram tão graves que eu até me assustei com o tom.
— Não — ele pareceu relaxar, mas de uma forma decepcionada. — Quando entrei ele estava cantando, mas parou quando me viu.
Foi a vez de Mason suspirar alto. Ele passou uma das mãos nos cabelos loiros e curtos, bagunçando-os um pouco. Balançou a cabeça para os lados, como uma negativa para ele mesmo. Parecia pensar em mil coisas ao mesmo tempo e, principalmente, se valia a pena falar mais sobre aquilo comigo.
Mas, quando ele ia abrir a boca para quebrar o nosso esquisito silêncio, abriu a porta do escritório com uma cara de tédio. Por um momento meu coração pareceu que ia parar só de pensar que ele pudesse ter ouvido tudo aquilo, mas logo meu corpo se aquietou quando o garoto do mercado disse:
— Miriam chegou e vai nos obrigar a tomar o chá da tarde — seus olhos claros reviraram. — Vamos logo.
Bom, aquilo iria ser a segunda parte do pesadelo que eu viveria naquela mesma tarde. Primeiro horas de estudo sem pausa e, então, uma sessão de chá com a mãe de Mason.
Assim que entramos na sala principal para receber visitas (foi o que Mason disse, super entediado), eu reconheci bem a mulher do churrasco que papai deu assim que chegamos em Bourton-on-the-Water. Seu corpo era esguio, os cabelos loiros sem um fio fora do coque super preso. Vestia roupas bem cortadas e passadas, em tons pastéis que só uma pessoa esnobe e rica usaria. Suas feições pareciam jovens e bonitas e, bem lá no fundo, lembrava bem os próprios filhos.
Quando eu ia cumprimentar da forma mais educada que conhecia, Miriam me abraçou, o que foi um choque não só para mim, mas para Mason também.
— Querida, é um prazer finalmente ter você aqui em nossa casa.
Está bem… Eu tinha perdido alguma coisa?
— Obrigada, senhora Hunt.
— Não, não — ela fez um gesto delicado, o sorriso ainda moldado no rosto bonito. — Me chame de Miriam, por favor.
Encarei Mason após dar o meu melhor sorriso para sua mãe, mas ele apenas deu de ombros como se dissesse: “eu não faço ideia do que foi isso”.
Nós quatro nos sentamos à mesa de jantar, que já estava farta de bolos, doces, pães, geléias e mais uma infinita quantidade de comidinhas que provavelmente eram uma boa combinação com o chá da tarde da Inglaterra. Eu sinceramente não era muito fã de chá, preferia café, mas… Ia encenar a minha melhor versão da cidade grande em eventos chatíssimos, como sempre fazia com meus pais em Nova Iorque.
Pelo menos a conversa na mesa foi fácil. Miriam me perguntava coisas sobre minha família, nossas mudanças e como estávamos nos acostumando a Cotswolds. Comentou sobre encontrar minha mãe com frequência em um clube que eu não fazia ideia do que era e que elas tinham que marcar um grande almoço em família, em breve.
assistia tudo calado enquanto comia um pãozinho sem muita vontade. Já Mason sacudia tanto a perna ao meu lado que às vezes fazia a mesa se mexer junto com seu nervosismo. Eu sabia que o garoto não tinha um bom relacionamento com os pais, mas não sabia porque aquele encontro casual o estressava tanto. Tínhamos um plano caso o assunto “baile beneficente” entrasse em pauta, estava tudo bem.
Mas eu comecei a sentir o problema que viria quando, ao terminar de contar sobre como sabia falar três línguas diferentes, Miriam soltou:
— Muito interessante… — ela sorriu, feliz. — Aposto que fica linda com um sotaque francês, né, Mason?
Eu só vi Mason suspirar alto e parar de mastigar o enorme pedaço de bolo que agora preenchia sua boca. Eles perceberam a emboscada no mesmo momento. Infelizmente, com o silêncio de todos, foi uma ótima oportunidade para a Miriam continuar a falar.
— , fico muito feliz que você seja amiga de Mason e — a mulher mais velha olhou para os dois e depois voltou a me observar, serena. — Uma garota interessante e bem criada vai ajudar que não façam besteiras.
Mason fez uma careta e , que já tinha engolido aquele pedaço enorme, apenas prendeu o riso.
— Mãe…
— E quem sabe vocês não passam mais tempo juntos? Aposto que vocês dois têm muito em comum.
E, de repente, já tinha sido excluído do papo por completo. Ele percebeu e só deu de ombros, enquanto Mason mantinha a expressão neutra, porque sabia exatamente o que a mãe estava fazendo. E eu também.
A senhora Hunt estava tentando juntar nós dois.
Quase me permiti gargalhar com ao pensar nisso.
Por entender o que estava rolando, eu passei a só concordar e sorrir, sem prestar grande atenção, o que fez Mason relaxar um pouco ao meu lado. Me mantive super educada, solícita e contadora das melhores histórias fúteis de papai e mamãe e seus amigos, esperando que aquela morte terminasse o mais rápido possível.
O ápice daquela cafonice foi quando Riley apareceu na sala e, ao me ver, arregalou os olhos. sorriu de lado, mas Mason só sacudia a cabeça, como se esperasse que o irmão não fosse nada sutil com a minha presença ali.
— Querido, essa é a — Miriam fez um gesto na minha direção ao falar com o filho mais novo, que ainda me observava sem reação. — A menina nova que chegou da cidade grande, se lembra?
Riley apenas concordou com um gesto, olhando para e Mason sem entender. Vi que ele fugiu de participar do chá horroroso quando deu meia volta correndo, já subindo as escadas para o segundo andar.
Miriam me olhou, parecendo escolher as próximas palavras.
— Ele é um doce, mas muito tímido — ela bebeu um gole da xícara. — Ainda mais perto de meninas lindas como você. Não é, Mason?
Vi que Mason estava pronto para levantar da mesa e dar um show, então a minha língua mal coube dentro da minha boca.
— Ah, Miriam, eu finalmente peço desculpas pelo baile beneficente. Foi uma semana muito difícil e tive que ficar em casa. Problemas pessoais, acho que você compreende — suspirei, tomando meu chá com a melhor pose possível. Já tinha frequentado muitos lugares narizes em pé em Nova Iorque, sabia com quem estava lidando. Coloquei a mão no peito, emocionada. — Por sorte minha grande amiga conseguiu me substituir a tempo e sei que tudo ocorreu bem.
Mason parou a sua xícara na metade do rosto, chocado e provavelmente tendo o início de um derrame. continha um riso.
Eu sabia (e Mason também) que aquela não era a mentira que tínhamos combinado, mas eu não aguentava mais. Eu precisava cutucar aquela mulher de uma forma que ela sentiria.
A mãe de Mason pareceu surpresa e chocada, mas confesso que disfarçou bem.
— Então foi sua ideia o que aconteceu?
— Sim — sorri, ainda com uma emoção falsa —, foi a meu pedido que Mila Hughes dançou com Mason — olhei para o menino e depois para a mãe. ainda segurava aquela risada, seu rosto já começava a ficar rosado. — Mamãe e papai são apaixonados por ela, está sempre lá em casa compartilhando conhecimentos. É a garota mais viajada e inteligente da região, me inspiro muito nela — suspirei de novo. — Não sei o que teria sido se Mila não ajudasse. — e bebi o chá novamente. — Por que, algum problema?
Mason arregalou ainda mais os olhos e agora mordia o lábio para não rir.
A mãe de Mason demorou alguns segundos para se recompor.
— Não, querida.
— Oh, que bom, Miriam. Eu e Mason dançamos numa próxima, não é mesmo? — dei uma risada forçada. — Isso me lembra um baile da Amfar que nós fomos no MET. A senhora já teve a oportunidade? Mamãe ama.
Depois daquilo, todo e qualquer assunto na mesa eu adicionava um comentário, como: “é sério? Mila também” ou “Mila já foi lá” ou “Mila com certeza saberia o que fazer nesse momento”. Miriam não fazia ideia da proximidade que Mila e eu tinhamos, e por isso parecia cada vez mais atordoada e aquilo fez toda a tortura da tarde valer a pena.
Quando finalmente nos levantamos para nos despedir, a mulher voltou com o assunto que assombrava Mason:
— Uma pena sobre o baile, realmente. Mas no próximo ano vocês podem ir juntos.
Me preparei para abrir a boca e dizer que certamente estaria bem longe dali no próximo ano, já que não teria mais escola e, com certeza, meus pais estariam curados desse surto “eu amo o interior”.
Mas Mason foi mais rápido.
— Não vou estar aqui no ano que vem, mãe.
A mulher fechou o sorriso grande demais na hora. Ignorou o filho e continuou fazendo planos. Tudo o que consegui fazer foi um gesto simples, como se concordasse com toda aquela loucura que ouvia. Não queria causar mais, porque entendia que aquele assunto era mais delicado do que qualquer outra coisa.
Nos despedimos e Mason levou e eu até a porta.
Foi a hora perfeita para entregar mais um dos meus planos.
— Eu não volto mais, mas vou continuar estudando.
— Por causa da minha mãe? — Mason parecia abalado.
— Não. Porque vou montar meu próprio grupo de estudos. — ele franziu o cenho com a minha resposta. — Com Mila. Só vim esses dias para entender como vocês fazem isso e pegar as dicas. Já tinha combinado com ela.
Mason abaixou a cabeça e eu pude perceber que estava sentido. Não por eu não vir mais, mas sim por Mila não poder estar ali. Aquela situação era uma das coisas mais graves que me atingiram em Bourton-on-the-Water.
Eu sabia que Mason amava Mila com todas as forças, mas entendia a situação ser difícil. Ele também não era um garoto problema. E mesmo achando tudo errado, não queria causar confusão dentro de casa, já que ainda tinha Riley por ali, mesmo que ele fosse embora para a faculdade junto com .
O irmão quase gêmeo de sorriu fraco ao me olhar.
— É uma boa ideia, . Queria conseguir fazer o mesmo.
— Se ela não pode participar, crio um só com ela — dei de ombros ao dizer. — Assim nós quatro estamos estudando no mesmo nível, não é?
riu — Vamos embora, doida. Te levo em casa.
Já respirando o ar fora daquele ambiente doido que era a casa dos Hunt, percebi que me observava ao andar lado a lado comigo.
— O que foi?
— Desde quando você sabe mentir assim? — ele perguntou, cínico.
— Eu não estava mentindo. Só encenei… Nada do que disse era mentira. — o garoto do mercado riu com as minhas simples palavras.
— Isso faz parte do plano de revidar?
O olhei de lado — Eu tenho um time a honrar, . A mãe dele não concorda sobre ir fazer faculdade fora?
— Não, ela odeia essa ideia. Os pais de Mason querem que ele vá para Oxford e depois volte para continuar os negócios da família. Já até escolheram o curso para ele…
— Isso é horrível.
deu de ombros — Mas ele tem outras escolhas, vai dar certo.
— E você? — mais uma vez as palavras saíam antes de eu realmente pensar nelas. — Seu pai também é contra?
Ele ajeitou a mochila velha nas costas, mas me olhou de lado com um sorrisinho.
— Ele apoia, mas iria preferir que eu ficasse. Meu pai acha que quero fugir daqui.
— E não é isso?
— Daqui, — seu tom foi firme. — Não dele e de Annabelle.
Mesmo com todos aqueles planos se moldando sobre faculdade, futuro e tudo mais, eu ainda me sentia muito desconfortável ao pensar em seguir o meu próprio rumo, minhas próprias escolhas, assim como os dois melhores amigos faziam.
Tinha que confessar que até mesmo invejava a determinação de e Mason… Mas eu daria um passo de cada vez. Iria focar no grupo de estudos com Mila, e aproveitar o restante do ano naquela vila.
Meu pensamento se cortou pela metade quando me puxou para perto e eu só pude suspirar. A ponta gelada do seu nariz cheirava o meu pescoço em toda a sua extensão.
— Foi engraçado ouvir a mãe de Mason falando que vocês formam um belo casal.
Suspirei ainda mais com seu toque.
— Está com ciúmes de mim?
Ele riu no pé do meu ouvido.
— Sempre estou.
Tive que rir — Ela deve achar que eu sou o tipo do Mason, e não o seu.
balançou a cabeça, achando graça do meu comentário. Um sorriso cresceu em seus lábios.
— , você é muito o meu tipo.
— É mesmo?
— Demais. Em tudo.
Aquilo fez a minha pele se arrepiar. Pela confissão tão espontânea.
— Que bom — me afastei de seu corpo. — Isso deixa tudo mais interessante.
— Por quê? — sua expressão era debochada. — Vai fazer ciúmes em mim?
— Não, acho isso uma besteira — ele sorriu quando me aproximei dos seus lábios. — É interessante saber que você se sente assim. Só isso. Porque eu também sinto. — Colei nossos lábios. — E eu e Mason nunca daríamos certo. Ele não é o meu tipo.
Na verdade, fisicamente, ele era mais o meu tipo do que . Era loiro, tinha os cabelos mais curtos e lisos, com o porte mais atlético e mesmo tendo a mesma altura de , parecia um pouco mais alto. Lembrava muito pouco Logan, meu ex-namorado de Nova Iorque, mas ao mesmo tempo lembrava muito.
Então, lá no fundo, eu acabava preferindo , por ser uma experiência completamente diferente do que eu já tive no passado, de todas as formas e sentidos.
— O que é o seu tipo, então?
— Caipiras que se acham os donos do mundo — o puxei pela camisa ao ver o sorriso debochado de volta em seu rosto. — Está bem: meninos de cabelo enrolado, bagunçados, desleixados. Espertinhos que formam grupos secretos, metidos e que ficam bem sexy de roupa cinza cafona. Satisfeito?
Ele sorriu de lado — Desde quando eu sou metido?
— De tudo o que eu falei foi só isso que te incomodou?
— O resto eu sei que é verdade — ele deu de ombros. — Principalmente a parte do “sexy com roupas cafonas”.
— Aí está, metido — ele sorriu de uma forma gostosa que fez meu coração derreter na hora. — Vamos?
Andamos até a esquina da minha casa, que não era muito longe de onde Mason morava. Mesmo com a distância, vi algo que pensei que meus olhos nunca iriam ver na vida. Mamãe estava agachada no jardim da frente da casa, usando roupas estranhas e fazendo alguma coisa com as plantas.
Isso era muito diferente e estranho. Realmente o interior estava proporcionando coisas inéditas para toda a nossa família…
Olhei para , que me observava de uma forma engraçada, parado ao meu lado.
— Minha mãe está mexendo no jardim e isso é esquisito — confessei, o que o fez rir. — Melhor você ficar por aqui.
— Tem problema em ser vista comigo, cidade grande? — e então aquele tom debochado estava de volta, mas com uma diversão diferente.
— Claro que não — devolvi no mesmo tom. — Só estou te poupando de ouvir um milhão de perguntas. Ou você quer fazer isso agora?
Ri com sarcasmo, mas manteve aquele olhar em mim. Seus olhos azul-claros desviaram para onde minha mãe estava e logo voltaram para mim. Um sorrisinho preencheu seus lábios.
— A gente se vê mais tarde, .
— Foi o que eu pensei. Até amanhã.
Ele me deu um aceno e em segundos já descia uma das pequenas ruas de pedras. Respirei fundo e me virei para a nossa casa, andando alguns metros até ficar a uma distância próxima de minha mãe. Parei a sua frente, que ainda estava abaixada, de costas, mexendo na terra.
— Astra cavou a grama? — foi o que perguntei.
Ela deu um mini pulo de susto, mas eu sabia que era uma mentira. Com certeza estava bisbilhotando o que acontecia na esquina entre e eu.
— A vizinha da rua de baixo me deu algumas mudas, disse que ficaria lindo aqui — mamãe deu de ombros. — Resolvi testar.
É, então, o interior estava realmente mexendo com todo mundo. Na cidade grande minha mãe não conseguia manter nem um cacto vivo. Imagine só ela cuidando de um jardim daquele tamanho…
— Posso ajudar? — perguntei, já jogando minhas coisas na parte da calçada e me abaixando ao seu lado.
Mamãe pareceu acordar de um devaneio, me olhando esquisito. Acho que ela pensou a mesma coisa: o interior estava mexendo com a sua filha.
Parecendo evitar qualquer possível discussão sobre como é muito legal ver eu, , finalmente aceitando um lugar assim tão rápido (rápido, tá bem, cof cof), minha mãe apenas sorriu, me entregando uma pá curva demais.
Demorou minutos, mas a pergunta finalmente veio:
— Aquele era o ?
Sério, eu já sabia, então nem reação tive ao responder.
— Era, sim. Como te avisei, fui estudar com ele e Mason Hunt.
Ela concordou com a cabeça, parecendo colocar uma concentração desnecessária na mudinha de planta que enfiava na terra.
— E por que não o convidou para vir até aqui?
Tive que rir — Acho que ele só quis evitar as perguntas que você faria a ele.
Minha mãe me olhou, abriu a boca, mas pareceu pensar duas vezes, talvez concordando que ela ia, sim, fazer muitas perguntas a . Sobre qualquer coisa.
— Ele que é filho do dono do mercado? — a ouvi falar e só concordei com a cabeça. — Uma pena o que aconteceu com a família deles.
Franzi o cenho ao ouvir aquilo. Sabia que a história da família era triste e complicada, mas me surpreendia de mamãe saber daqui, já que não tinha proximidade alguma com eles. Ou com qualquer amigo próximo deles.
A fofoca ali corria de uma forma que eu nunca vi em nenhuma cidade ou país.
— Papai já decidiu o que quer fazer no aniversário? — resolvi mudar de assunto antes que ouvisse coisas que não gostaria.
— Ainda não, mas você sabe o que ele espera.
Suspirei, concordando.
— Você acha que ele vem? — ela me olhou de lado e por um segundo vi que sua expressão parecia triste. Minha mãe também sentia muita saudade do meu irmão, só evitava dar ênfase nisso o tempo todo. — Dessa vez eu não tenho certeza…
— Eu também não — ela bateu as mãos no avental cafona que vestia. — Mas falei com ele ontem, vamos aguardar.
Concordei de prontidão, me levantando junto com ela.
A questão era que meu irmão mais velho, Arthur, batia de frente com o papai em 90% do tempo. Nosso último encontro de família não foi tão amistoso no final e, como são duas pessoas muito orgulhosas, ficavam eu e minha mãe no meio desse impasse todo.
Mas nós duas sabíamos que, no final do dia, meu pai queria que Arthur estivesse aqui com a gente. E eu sabia também que meu irmão sentia a mesma coisa.
Se eu mal tinha planos definidos, pelo menos esperava que meu irmão fizesse alguns esse ano.
E que eu fosse incluída neles.
Capítulo 17 - Liberdades
“Querer ser livre é também querer livres os outros”. (Simone de Beauvoir)
Mais cedo tinha recebido uma mensagem cheia de segredos de . As palavras eram simples: “Tenho uma coisa para você. Vamos ao celeiro uma hora antes do combinado”.
Aquilo foi o suficiente para me sufocar o resto da tarde.
Eu fiquei imaginando o que poderia ser e, principalmente, o que ele poderia estar aprontando para mim. Meu estômago gelava só de pensar em preparando algo para mim… O que quer que fosse.
Depois de passear com Astra pela vila por horas para fazer o tempo passar mais rápido, deixei o cachorro com mamãe e sai porta a fora antes mesmo que ela pudesse me fazer qualquer pergunta que eu não saberia como responder. Ultimamente meus pais tinham se interessado mais sobre os amigos que eu tinha pela vila de Bourton-on-the-Water, mas quando começavam a perguntar demais… Eu tinha que me controlar para não falar demais sobre ou dar com as línguas nos dentes sobre todo o nosso grupinho secreto, já que estava parecendo ser uma coisa frequente minha mãe visitar Miriam, a mãe de Mason e Riley — e vice-versa.
Ainda não sabia o que achava daquela união das duas, mas, com o coração pulando a cada minuto que passava, mal me importava. Sério, eu me importaria depois caso Miriam estivesse montando um plano para juntar Mason e eu (coisa que eu não duvidava que fosse acontecer em breve). Mamãe já sabia de toda a história errada de Mason e Mila, e isso, bem no fundo, me tranquilizava que nenhum outro baile seria forçado entre nós.
Dei uma corrida breve até o mercado vende tudo dos e respirei fundo ao ver caminhando a alguns metros da construção, com sua fiel bicicleta verde e velha ao lado. Apressei os passos quando seu sorriso se abriu.
Minutos depois já estávamos pedalando pela estrada de terra, em silêncio. Na verdade, não tinha falado uma palavra desde que o vira no mercado e tinha montado em sua bicicleta. Só os nossos olhares pareciam o suficiente para o momento.
Quando pisamos dentro do celeiro, foi a hora que não aguentei mais.
— Então, o que tem para mim aqui?
deu um sorriso fofo, o que me deixou ainda mais curiosa. Eu adorava surpresa e algo vindo dele… Me fazia derreter sem querer.
— Tem eu só — ele deu de ombros ao dizer.
— Não entendi.
O garoto do mercado riu ainda mais, botando as mãos nos bolsos da sua jaqueta jeans.
— Eu menti, — ele deu de ombros, como se mal se importasse se eu ficaria estressada ou não com aquilo. — Só queria ficar sozinho com você antes da noite começar.
Tudo bem, aquilo me pegou de surpresa.
E, pensando bem, ele tinha razão. A gente sempre beijava depois do celeiro… Antecipar aquilo não era uma má ideia. Mas tive que achar graça.
— Está com saudade de mim?
Ele pendeu a cabeça para o lado direito. Alguns fios de cabelo quase chegando aos seus olhos claros demais.
— Estou.
Se estava querendo ser fofo, tinha conseguido fácil, fácil. Abracei seu corpo sem nem pensar duas vezes.
Eu gostava desse lado de . Ele era sempre direto, sem jogos, simplesmente falava o que queria. E, ah, se ele sentia a minha falta… Eu tinha a liberdade para fazer o que quiser, porque com certeza eu sentia a falta dele o tempo inteiro.
Encurtei a distância que existia entre nós com alguns passos e antes mesmo que eu pudesse fazer algo, seus lábios se colaram nos meus.
Demorou pouco até a sua jaqueta jeans ser jogada no bolo de feno próximo a nós. A verdade era que eu também sentia falta daqueles momentos com ele e isso incrivelmente fazia com que ele parecesse ainda mais lindo aos meus olhos no momento. Seus cabelos semi cacheados ainda estavam um pouco úmidos do provável banho recém tomado para ir até ali e eu me permitia inalar todo aquele perfume gostoso que parecia mais uma mistura de sabonete fresco com algum shampoo que ele devia roubar da irmã mais nova.
O pensamento de que ele precisaria de um banho novo já, já tomou minha cabeça…
Não consegui segurar uma risada, o que o fez parar e me olhar, ainda bem próximo. Seus olhos claros diziam algo como “você é doida” e eu só dei de ombros, voltando a grudar o meu corpo no dele.
Nossa sessão de amassos durou por muitos minutos e era uma delícia sentir mil coisas ao mesmo tempo só pelo fato de que encostava os seus dedos em mim. Já estávamos ofegantes, aproveitando aquele raro momento sozinhos, mas nem isso diminuía o frio que fazia dentro do celeiro velho.
Acariciava as pontas dos dedos dele em um silêncio que parecia durar horas. Olhávamos para o teto, aproveitando a companhia um do outro até que eu não me aguentei:
— Sabe, você podia ter falado que a gente tinha vindo mais cedo ainda.
— Foi o mais cedo que consegui na loja — ele gargalhou em meu ombro. — Se desse antes, com certeza teria te arrastado para cá.
Quando eu ia abrir a boca para dizer uma piadinha, ouvimos um barulho. olhou no relógio no mesmo momento e seus olhos azuis quase saltaram do rosto.
Ficou bem claro que era a hora da galera chegar.
Ele se apressou para vestir a camisa completamente amassada e colocar de volta a jaqueta, enquanto eu tentava de toda forma desembolar os nós dos cabelos com os dedos. Parecia uma cena de filme e comecei a suar frio só de pensar no que ouviríamos dos nossos amigos…
Segundos depois da nossa euforia, Noah abre o celeiro e seu olhar parecia um laser quando nos atingiu. e eu agora estávamos sentados lado a lado no bolo de feno, com a expressão mais lavada do mundo.
Antes que pudesse abrir a boca, Noah olhou para trás e soltou um resmungo alto, brigando com Hayden que agora o empurrava para entrar por conta do frio que fazia.
O mais alto olhou para os fundos e deu um aceno para nós. Só consegui levantar o meu braço, quase congelada. Isso foi o suficiente para me olhar de lado. Sua expressão era uma sombra.
— Eu me lembrei agora que você é péssima com mentiras.
Já podia sentir o meu rosto arder. Eu era sim horrível para mentiras… Se alguém falasse algo, eu iria gaguejar com toda a certeza do mundo.
— Preciso de cobertura com Noah — sussurrei.
Ele riu, descendo do feno e girando para ficar de pé à minha frente.
— Pode deixar comigo — piscou um dos olhos ao dizer.
Tudo o que fiz foi o analisar rápido. Seu cabelo estava bagunçado, a camisa já viu momentos melhores, mas…
— Seu zíper — sussurrei novamente, já me virando para os demais.
Com minha visão periférica, vi que franziu o cenho, sem entender. Percebi que sua confusão durou poucos segundos quando ele arregalou os olhos claros.
— Obrigado.
Tive de rir, me levantando também.
— Boa sorte para nós.
No momento em que fechei a boca e meus pés tocaram o chão sujo cheio de feno, Mason entrou no celeiro com Riley. Sua expressão era um vazio ao perceber que o melhor amigo já estava ali e que provavelmente não tinha falado nada sobre aquilo.
Os dois se cumprimentaram com um meio abraço, mas Mason ainda tinha aquele vinco esquisito na testa.
— Onde você se meteu? — o ouvi falar para . — Chegou mais cedo e nem avisou.
Incrivelmente, manteve a expressão relaxada.
— Annabelle queria me prender em casa, precisei fugir.
Mason observou o amigo com um sorriso irônico. Suas próximas palavras foram baixas, mas com volume suficiente para que eu pudesse ouvir tudo.
— Vocês precisam de uma desculpa melhor — o olhei apavorada. Mason continuou: — Ainda tem feno no seu cabelo.
passou as mãos nos fios castanhos, dando aquela risada cínica para o melhor amigo. Mason apenas sacudiu a cabeça, provavelmente indo arrumar as bebidas novas que trouxe.
— OK — me olhou ao dizer. — Mason já sabe.
— Eu percebi. Depois eu que minto mal.
Foi a minha vez de sacudir a cabeça em reprovação, com um sorrisinho no canto dos lábios. Quando eu ia me afastar dele, sua mão fechou em meu pulso de forma delicada, me segurando no lugar. Seus olhos estavam mais abertos que o normal e, parecendo impossível, ainda mais azuis.
Nos encaramos sem dizer uma palavra pelo que pareceram minutos, mas eu sabia que foram poucos segundos naquela sintonia. E mais uma vez eu entendi o que ele queria dizer mesmo sem abrir a boca. Aquele encontro tinha sido incrível e era muito, muito difícil manter segredo depois de tanta intimidade.
Meu peito pesou um pouco, uma sensação diferente. Eu adorava ficar ao seu lado, mexer em seus cabelos, tirar as suas roupas…
Mas a paz entre nós terminou quando Noah brotou ao nosso lado.
— Estou atrapalhando o clima? — o mais novo disse, cínico.
— Não tem clima algum aqui — revirou os olhos, soltando minha mão em seguida —, cai fora.
Noah continuou:
— , se me permite…
O cortei na hora.
— Não permito.
Ele continuou sem nem se afetar.
— Eu sou melhor partido que o .
— Ah, é? — riu na mesma hora. — Desde quando?
— Eu sempre te ofereço carona — Noah ajeitou o boné na cabeça, como se as palavras do mais velho não o afetasse. — Você não veio sozinha hoje?
Franzi o cenho — O quê?
— Se veio mais cedo, você veio andando sozinha?
Ali estava a armadilha cara de pau de Noah. Eu precisava ser esperta.
— Eu vim com — dei de ombros, tentando ser o mais casual possível. — Estava de bobeira, aceitei vir mais cedo.
— Entendi — pela primeira vez sua voz era em um tom sarcástico. — Da próxima lembra de mim, está bem?
— Vaza, Noah — disse sem paciência alguma. — É dia da patrulha, pode ir para lá.
O menino saiu bufando alto quando me olhou engraçado. Uma mistura de alívio e pânico.
Depois daquilo, tudo ocorreu tranquilamente bem no celeiro.
Mas era muito, muito difícil impedir que meus olhos buscassem o tempo inteiro. Tinha alguma coisa nele naquela noite que estava mais… Mais inexplicável e gostoso do que sempre.
“Sempre”.
Um sentimento muito doido tomava conta do meu peito e, sem pensar muito, eu consegui entender o que era: liberdade. Eu finalmente tinha entendido o que ele e os demais tanto sentiam dentro daquele lugar, o que tanto tentavam preservar ao meio de tanta coisa errada e sem noção dentro da vila de Bourton-on-the-Water.
Ninguém poderia me impedir de ser eu mesma ali dentro.
Essa epifania podia muito bem ser pelo meu corpo ainda parecer estar em combustão, mas eu não me importava. O que importava mesmo era aquela sensação. Eu queria que todo mundo pudesse sentir a mesma coisa. Fosse para fazer a loucura que fizemos no celeiro minutos atrás (e com forte chances de sermos pegos a qualquer momento) ou para expressar ideias, vontades e sonhos.
Era incrível como aquele garoto despretensioso e normal me fazia sentir. Com ao meu lado, eu simplesmente podia fazer qualquer coisa.
Sai do meu devaneio quando Mila me cutucou nas costelas. Estávamos todos sentados em um círculo mal feito, discutindo sobre o que fazer para o aniversário de Ella. Aparentemente, todo ano ela gostava de algo bem extravagante no celeiro e todos eram obrigados a dar ideias.
Os olhos escuros de minha amiga brilhavam ao me contar a sua ideia e um aperto tomou conta do meu peito. Eu queria muito que Mila sentisse a mesma coisa que eu.
Concordei com um gesto e dei algumas ideias do tema de festa que poderíamos fazer, já que estava bem claro que eles queriam beber, dançar e comer coisas aleatórias.
Para a minha felicidade pessoal, parecia tão avoado quanto eu.
— Hmm, ? — me virei para ele. — O que você acha?
Perguntei ao perceber que ele estava 100% calado ao lado de Riley, que só concordava com a cabeça ou fazia caretas quando a ideia era um pouco doida para sua timidez.
Os olhos de se focaram nos meus no mesmo momento em que eu bebi um gole da minha bebida ruim, quase derrubando tudo em cima de mim. Limpei o canto da boca com o polegar e ele pareceu acompanhar cada movimento que eu fazia.
Ele parecia um pouco sem graça, o que eu não entendi, mas logo depois concordou:
— Acho bom.
Provavelmente não tinha gostado da minha ideia ruim e não queria estragar o clima entre nós. Dei de ombros, continuando a discussão com os demais.
Pelo jeito, teríamos uma festa à fantasia no celeiro. Eu não me fantasiava desde que era criança, para pegar doces no Halloween em Nova Iorque com minha amiga Bree. Mil ideias já surgiam na minha cabeça, ia aproveitar a festa para ser criativa… Talvez usar o galpão de Artes perfeitinho da The Cotswold School para inventar algo legal.
se levantou da rodinha enquanto Hayden discursava sobre todo mundo combinar o que usaria para ninguém ficar repetindo e passar vergonha, e eu não pensei duas vezes em seguir ele.
O garoto do mercado ainda parecia sem jeito, agora encostado na mesa de feno improvisada que usávamos para colocar as piores e mais baratas bebidas do mundo.
— O que houve? — disparei assim que parei ao seu lado. — Não gostou das ideias?
Ele se virou para mim, ainda com aquela expressão que era pouco comum em seu rosto lindo. Olhou ao redor, como se precisasse se certificar de que ninguém mais estava ouvindo a nossa conversa.
— Minha mente me traiu, nada demais — franzi o cenho e ele riu, mas logo voltou a falar mais baixo. — Hoje você gemeu demais falando meu apelido fofo... — ele mordeu o lábio e meu corpo congelou. — Foi a primeira coisa que veio na minha cabeça e eu fiquei sem graça, me desculpe.
Engoli em seco. Era uma delícia ouvir aquele tipo de coisa vindo dele.
— Ainda está com saudade de mim?
Ele riu — Sempre estou, cidade grande.
Nosso olhar se congelou novamente, como antes de Noah nos perturbar mais cedo. Minha língua coçou para dizer algumas coisas, mas, por sorte, Mila entrelaçou o seu braço no meu.
Olhei para ela na hora, sorrindo.
— Eu estou tão animada com a nossa viagem! — minha amiga suspirou e até riu abertamente. — Nem vou conseguir dormir!
Iríamos a Stratford-Upon-Avon no dia seguinte, a terra de Shakespeare. Romântico, fofo, clichê, igual Mila.
nos olhou com a cabeça pendendo para o lado assim que Mason brotou ali, passando o braço nos ombros do amigo-irmão.
— Prontas para a rebeldia e matar aula amanhã?
***
Depois de quase uma hora de viagem, uma grande placa verde com letras brancas nos recepcionava. "Bem-vindos a Stratford-Upon-Avon”.
dirigia com toda calma do mundo, com atenção, enquanto Mason e Mila tagarelavam no banco de trás. Pareciam um casal de filmes românticos e eu amava demais aquilo.
Pelas ruas já dava para ver que era um lugar muito maior que Bourton-on-the-Water ou Stroud. Era uma cidade de verdade. A arquitetura do lugar era parecido com o que tínhamos em Cotswolds, só que parecia mais… Dramática, caricata.
Estacionamos o carro em uma das ruas paralelas à principal e catei todas as minhas coisas, já que seria um dia inteiro de passeio. Pela janela aberta eu já sabia que o vento frio era um pouco pior que na nossa vila, mas quando pisei na calçada, meu corpo inteiro tremeu.
deu a volta para me encontrar, enquanto Mila e Mason ajeitavam suas coisas na mochila dele. O passeio já valeu quando, ao também estremecer pela rajada de vento frio que passou por ali, Mila foi devidamente aquecida com a jaqueta do namorado. Um gesto fofo, clichê e romântico (sim, de novo), do jeito de Mila.
Eu me sentia feliz só ao perceber que eles finalmente viveriam um dia normal juntos.
Por toda a cidade de Stratford-Upon-Avon, andamos pelas ruas olhando absolutamente tudo. Por sorte, passamos em frente a um dos mil lugares turísticos sobre Shakespeare e um deles teve a decência de nos dar um mapa de atrações e coisas legais para se fazer por ali.
— As pontes parecem com a nossa vila — ouvi Mila comentar.
Aquilo me fez franzir o cenho na mesma hora.
— Você nunca veio aqui? É tão perto.
Minha amiga deu de ombros, ainda observando tudo com seus grandes olhos escuros.
Mila e Mason andavam de mãos dadas ao nosso lado e quando eu ia apontar o exato lugar onde o poeta nasceu, o Shakespeare's Birthplace, passou seu braço direito em meus ombros, me abraçando.
Foi instantâneo abraçá-lo pela cintura.
Sua voz me atingiu depois de um leve beijo em minha cabeça.
— Não me esqueci do Dragonfly Maze.
Sorri com todos os dentes, o apertando ainda mais.
— Próxima?
Senti ele sorrir sem nem mesmo olhar para o seu rosto.
— Próxima — ele respondeu.
Andamos pelo que pareceu ser a cidade inteira. Vimos tudo, participamos de tudo. Nunca foi tão proveitoso matar aula para escapulir, porque eu sabia que algumas perguntas na parte de Literatura seriam exatamente pelo que eu estava vivendo e presenciando ali.
Meu estômago roncou alto quando saímos da Anne Hathaway's Cottage.
— Bom, chegou o momento em que Mila e eu vamos pagar um lindo almoço para vocês.
, que de verdade tinha adorado passear por aí com seu braço apoiado em mim e mantinha a posição, pareceu animado.
— Ah, é?
Mila fez um gesto positivo e Mason estava quase derretendo ao seu lado.
Segurei um suspiro ao reparar aquilo. Eles mereciam viver aquilo todo santo dia.
— Sim! — minha mão fechada tocou a de Mila, como se fosse um soquinho. — As garotas que mandam hoje.
— Nos surpreenda, cidade grande.
Almoçamos, rimos, conversamos e eu queria que aquele dia nunca acabasse. Puxei para sentar em um banco de pedras enquanto Mason e Mila estavam um pouco distantes, curtindo a companhia um do outro.
Eu terminava de tomar um sorvete de baunilha e ele só me observava de lado. Estava incrivelmente lindo com uma camisa cinza claro (bem diferente do uniforme horroroso da The Cotswold School) que acendia ainda mais aqueles olhos claros demais.
— Estava pensando sobre uma coisa — comecei, conquistando a atenção de . — Uma coisa que você falou nos primeiros dias em que fui ao celeiro…
— Eu já tinha bebido?
O empurrei de leve com os ombros, arrancando um daqueles sorrisos maravilhosos de seu rosto tranquilo.
— Você disse que no celeiro podemos ser nós mesmos, que Cotswold não nos domina lá dentro.
Ele me olhou com carinho.
— E é isso mesmo, .
Tive de sorrir — Eu entendo agora. Sei que você acha que eu sou doida, principalmente com essa coisa de Time — ele revirou os olhos claros na hora, mas ainda tinha um sorriso no rosto. — Mas eu sinto isso, sabe? Essa liberdade. E eu quero que todo mundo sinta também.
— Por isso o passeio de hoje?
Nós olhamos para Mason e Mila, que continuavam afastados, curtindo a vibe um do outro. Era gostoso e triste olhar aquela cena. Tinha que ser assim todos os dias, sem exceção.
— Queria poder fazer mais.
— Eu sei. Eu também — ele confessou. Depois de um momento calado, continuou: — Eu fico feliz… Que você se sinta assim, .
Eu queria abrir a boca e dizer que a culpa daquele sentimento era 99% dele, mas não consegui. Seus olhos azul-claros brilharam com uma ansiedade diferente e eu só suspirei.
— Você também acha que é falta de poluição urbana?
— Com certeza, cidade grande — riu, sarcástico. — Você precisava de um detox em uma vila de quatro mil habitantes.
Em vez de devolver com algum comentário sacana, apenas embrulhei o copinho vazio do sorvete e o abracei de lado, sem nem pensar. Senti seu corpo ficar rígido e relaxar em questão de segundos, como se eu o tivesse pegado de surpresa.
E era isso o que eu sempre gostaria de fazer.
Quando voltamos a caminhar para conhecer mais lugares, aquela ventania gelada voltou, me fazendo tremer novamente. Agora Mila andava de braços cruzados comigo, enquanto os meninos estavam a alguns passos atrás de nós, falando sobre coisas aleatórias. Mila apontava para tudo, olhava tudo, tirava foto de nós o tempo inteiro.
Ia ser uma lembrança e tanto.
— Obrigada, amiga — ela falou baixinho, me apertando mais para próximo de si. — Estou tão feliz.
Repeti o seu gesto, com um sorriso de verdade no rosto.
— Eu também, amiga.
Olhei de relance para trás. Mason e andavam lado a lado, ainda conversando. O garoto do mercado ouvia algo e quando percebeu que eu o encarava, me deu um sorriso lindo, levantando as sobrancelhas de um jeito que sempre faz.
Andamos mais algumas ruas daquele jeito e o frio parecia aumentar. Eu estava prontinha para abrir a boca e ser a estraga-prazeres dizendo que era melhor irmos antes de piorar, quando colocou a sua fiel jaqueta jeans em meus ombros. Foi rápido como Astra caindo no rio ou como ele me beijando na estrada de terra vazia que dá no celeiro.
Em um segundo, sua jaqueta pesou em meus ombros e seu cheiro me tomou por completo. No outro segundo, ele já estava ao lado de Mason, voltando a conversa como se nada tivesse acontecido.
E o que eu fiz? Eu suspirei. Alto.
Mila me apertou na mesma hora, mas, graças a Deus, nada falou.
O sol deu indícios de que iria se pôr, então a coisa mais sensata (infelizmente) era partir. Minutos depois já estávamos na estrada, com dirigindo novamente.
— Isso foi bom demais — Mila quase gritou quando entrou no carro. Tínhamos sido recepcionados novamente pela placa da cidade, que agora dizia: “Voltem sempre!”.
ainda olhava a estrada, mas consegui acompanhar o seu sorriso.
— Na próxima vez podemos ir a Londres.
Mason e Mila concordaram de prontidão. Pelo meu silêncio, me olhou de lado, desconfiado.
— O quê? — foi a única coisa que consegui dizer.
— Não vai responder sobre Londres? A cidade grande?
Dei de ombros — Pode ser outra vila?
franziu o cenho.
— Ainda não quer conhecer Londres?
Tive de suspirar. Não queria falar sobre aquilo ainda, só sabia que não queria ir até a cidade grande mais próxima. Era tão difícil aceitar essa minha mudança?
— Não — respondi simplesmente.
Mason percebeu o clima esquisito e colocou a cabeça entre os nossos bancos.
Gastando minha segunda grande sorte do dia, resolveu ficar calado.
— Londres ou não, estou morrendo de fome — Mason desviou a conversa. — Para em algum lugar e depois resolvemos o que fazer na próxima viagem.
Muitos minutos depois, deixou todos nós nos fundos do mercado dos . Mila foi andando para casa e Mason tomou o caminho contrário, pois tinha um turno de trabalho no bar do Sheppard naquela noite.
Estava pronta para ir embora, mas ele me segurou pelo punho.
— Te levo na esquina.
Pelo jeito ainda estava preocupado em esbarrar com minha mãe e suas mil perguntas sem noção.
Concordei de prontidão, pegando minha bolsa e começando a andar para casa com ele ao meu lado. Fomos em um silêncio confortável e toda aquela tarde se repassava como um filme em minha cabeça. Eu me sentia leve, feliz, diferente.
Queria me sentir assim todos os dias.
Mamãe não estava mexendo no jardim, mas, pela luz acesa da sala, entendi que poderiam estar me esperando para jantar. Estava pronta para me despedir de quando ele me olhou de lado e eu soube que tinha algo a me dizer. Meu corpo todo se arrepiou, minha cabeça imaginando mil e uma coisas.
— Queria te agradecer por hoje — ele pegou em minhas mãos, acariciando a palma delas com os polegares. — Obrigado por se importar com Mason.
Minha garganta ficou seca na mesma hora. Eu sabia como a amizade deles era algo fora do normal, incrível e, no fundo, ainda sentia um pouco de inveja. Eu nunca teria aquilo. Mas ficava feliz por ter.
— Eu vou precisar sumir um pouco essa semana — ele soltou uma de minhas mãos para coçar a nuca e foi difícil segurar um sorriso. — Consegui negociar uma folga com meu pai e vou focar nas redações e outras coisas que faltam para a faculdade.
Aquele assunto ainda me assombrava. Eu mantinha os meus estudos semanais com Mila (sim, tínhamos um grupo nós duas para fazer simulados loucos e gigantes) e já tinha aplicado para algumas faculdades — inclusive a NYU, mas ainda me parecia uma realidade distante, utópica.
— Não vou te ver, então?
Ele confirmou: — Acredito que não.
Concordei com um gesto. Algo doía dentro de mim, mas, ao mesmo tempo, ficava feliz. O coração podia pesar, mas só por estar explicando para mim que ficaria fora, fazia algo se encaixar dentro do meu peito.
Beijei seus lábios. Ele correspondeu na hora e logo perdemos cinco minutos de fôlego encostados em uma árvore centenária da vila de quatro mil habitantes.
Seus dedos seguraram meu maxilar quando nos afastamos.
— Se sentir muita saudade, me avise.
Tive que rir — Pode deixar, garoto mau do mercado.
Ele se afastou depois de estalar um beijo em minha bochecha.
— A gente se vê mais tarde, .
Demorou alguns segundos para sumir pelas ruas de pedra da vila.
Junto com o meu coração.
Mais cedo tinha recebido uma mensagem cheia de segredos de . As palavras eram simples: “Tenho uma coisa para você. Vamos ao celeiro uma hora antes do combinado”.
Aquilo foi o suficiente para me sufocar o resto da tarde.
Eu fiquei imaginando o que poderia ser e, principalmente, o que ele poderia estar aprontando para mim. Meu estômago gelava só de pensar em preparando algo para mim… O que quer que fosse.
Depois de passear com Astra pela vila por horas para fazer o tempo passar mais rápido, deixei o cachorro com mamãe e sai porta a fora antes mesmo que ela pudesse me fazer qualquer pergunta que eu não saberia como responder. Ultimamente meus pais tinham se interessado mais sobre os amigos que eu tinha pela vila de Bourton-on-the-Water, mas quando começavam a perguntar demais… Eu tinha que me controlar para não falar demais sobre ou dar com as línguas nos dentes sobre todo o nosso grupinho secreto, já que estava parecendo ser uma coisa frequente minha mãe visitar Miriam, a mãe de Mason e Riley — e vice-versa.
Ainda não sabia o que achava daquela união das duas, mas, com o coração pulando a cada minuto que passava, mal me importava. Sério, eu me importaria depois caso Miriam estivesse montando um plano para juntar Mason e eu (coisa que eu não duvidava que fosse acontecer em breve). Mamãe já sabia de toda a história errada de Mason e Mila, e isso, bem no fundo, me tranquilizava que nenhum outro baile seria forçado entre nós.
Dei uma corrida breve até o mercado vende tudo dos e respirei fundo ao ver caminhando a alguns metros da construção, com sua fiel bicicleta verde e velha ao lado. Apressei os passos quando seu sorriso se abriu.
Minutos depois já estávamos pedalando pela estrada de terra, em silêncio. Na verdade, não tinha falado uma palavra desde que o vira no mercado e tinha montado em sua bicicleta. Só os nossos olhares pareciam o suficiente para o momento.
Quando pisamos dentro do celeiro, foi a hora que não aguentei mais.
— Então, o que tem para mim aqui?
deu um sorriso fofo, o que me deixou ainda mais curiosa. Eu adorava surpresa e algo vindo dele… Me fazia derreter sem querer.
— Tem eu só — ele deu de ombros ao dizer.
— Não entendi.
O garoto do mercado riu ainda mais, botando as mãos nos bolsos da sua jaqueta jeans.
— Eu menti, — ele deu de ombros, como se mal se importasse se eu ficaria estressada ou não com aquilo. — Só queria ficar sozinho com você antes da noite começar.
Tudo bem, aquilo me pegou de surpresa.
E, pensando bem, ele tinha razão. A gente sempre beijava depois do celeiro… Antecipar aquilo não era uma má ideia. Mas tive que achar graça.
— Está com saudade de mim?
Ele pendeu a cabeça para o lado direito. Alguns fios de cabelo quase chegando aos seus olhos claros demais.
— Estou.
Se estava querendo ser fofo, tinha conseguido fácil, fácil. Abracei seu corpo sem nem pensar duas vezes.
Eu gostava desse lado de . Ele era sempre direto, sem jogos, simplesmente falava o que queria. E, ah, se ele sentia a minha falta… Eu tinha a liberdade para fazer o que quiser, porque com certeza eu sentia a falta dele o tempo inteiro.
Encurtei a distância que existia entre nós com alguns passos e antes mesmo que eu pudesse fazer algo, seus lábios se colaram nos meus.
Demorou pouco até a sua jaqueta jeans ser jogada no bolo de feno próximo a nós. A verdade era que eu também sentia falta daqueles momentos com ele e isso incrivelmente fazia com que ele parecesse ainda mais lindo aos meus olhos no momento. Seus cabelos semi cacheados ainda estavam um pouco úmidos do provável banho recém tomado para ir até ali e eu me permitia inalar todo aquele perfume gostoso que parecia mais uma mistura de sabonete fresco com algum shampoo que ele devia roubar da irmã mais nova.
O pensamento de que ele precisaria de um banho novo já, já tomou minha cabeça…
Não consegui segurar uma risada, o que o fez parar e me olhar, ainda bem próximo. Seus olhos claros diziam algo como “você é doida” e eu só dei de ombros, voltando a grudar o meu corpo no dele.
Nossa sessão de amassos durou por muitos minutos e era uma delícia sentir mil coisas ao mesmo tempo só pelo fato de que encostava os seus dedos em mim. Já estávamos ofegantes, aproveitando aquele raro momento sozinhos, mas nem isso diminuía o frio que fazia dentro do celeiro velho.
Acariciava as pontas dos dedos dele em um silêncio que parecia durar horas. Olhávamos para o teto, aproveitando a companhia um do outro até que eu não me aguentei:
— Sabe, você podia ter falado que a gente tinha vindo mais cedo ainda.
— Foi o mais cedo que consegui na loja — ele gargalhou em meu ombro. — Se desse antes, com certeza teria te arrastado para cá.
Quando eu ia abrir a boca para dizer uma piadinha, ouvimos um barulho. olhou no relógio no mesmo momento e seus olhos azuis quase saltaram do rosto.
Ficou bem claro que era a hora da galera chegar.
Ele se apressou para vestir a camisa completamente amassada e colocar de volta a jaqueta, enquanto eu tentava de toda forma desembolar os nós dos cabelos com os dedos. Parecia uma cena de filme e comecei a suar frio só de pensar no que ouviríamos dos nossos amigos…
Segundos depois da nossa euforia, Noah abre o celeiro e seu olhar parecia um laser quando nos atingiu. e eu agora estávamos sentados lado a lado no bolo de feno, com a expressão mais lavada do mundo.
Antes que pudesse abrir a boca, Noah olhou para trás e soltou um resmungo alto, brigando com Hayden que agora o empurrava para entrar por conta do frio que fazia.
O mais alto olhou para os fundos e deu um aceno para nós. Só consegui levantar o meu braço, quase congelada. Isso foi o suficiente para me olhar de lado. Sua expressão era uma sombra.
— Eu me lembrei agora que você é péssima com mentiras.
Já podia sentir o meu rosto arder. Eu era sim horrível para mentiras… Se alguém falasse algo, eu iria gaguejar com toda a certeza do mundo.
— Preciso de cobertura com Noah — sussurrei.
Ele riu, descendo do feno e girando para ficar de pé à minha frente.
— Pode deixar comigo — piscou um dos olhos ao dizer.
Tudo o que fiz foi o analisar rápido. Seu cabelo estava bagunçado, a camisa já viu momentos melhores, mas…
— Seu zíper — sussurrei novamente, já me virando para os demais.
Com minha visão periférica, vi que franziu o cenho, sem entender. Percebi que sua confusão durou poucos segundos quando ele arregalou os olhos claros.
— Obrigado.
Tive de rir, me levantando também.
— Boa sorte para nós.
No momento em que fechei a boca e meus pés tocaram o chão sujo cheio de feno, Mason entrou no celeiro com Riley. Sua expressão era um vazio ao perceber que o melhor amigo já estava ali e que provavelmente não tinha falado nada sobre aquilo.
Os dois se cumprimentaram com um meio abraço, mas Mason ainda tinha aquele vinco esquisito na testa.
— Onde você se meteu? — o ouvi falar para . — Chegou mais cedo e nem avisou.
Incrivelmente, manteve a expressão relaxada.
— Annabelle queria me prender em casa, precisei fugir.
Mason observou o amigo com um sorriso irônico. Suas próximas palavras foram baixas, mas com volume suficiente para que eu pudesse ouvir tudo.
— Vocês precisam de uma desculpa melhor — o olhei apavorada. Mason continuou: — Ainda tem feno no seu cabelo.
passou as mãos nos fios castanhos, dando aquela risada cínica para o melhor amigo. Mason apenas sacudiu a cabeça, provavelmente indo arrumar as bebidas novas que trouxe.
— OK — me olhou ao dizer. — Mason já sabe.
— Eu percebi. Depois eu que minto mal.
Foi a minha vez de sacudir a cabeça em reprovação, com um sorrisinho no canto dos lábios. Quando eu ia me afastar dele, sua mão fechou em meu pulso de forma delicada, me segurando no lugar. Seus olhos estavam mais abertos que o normal e, parecendo impossível, ainda mais azuis.
Nos encaramos sem dizer uma palavra pelo que pareceram minutos, mas eu sabia que foram poucos segundos naquela sintonia. E mais uma vez eu entendi o que ele queria dizer mesmo sem abrir a boca. Aquele encontro tinha sido incrível e era muito, muito difícil manter segredo depois de tanta intimidade.
Meu peito pesou um pouco, uma sensação diferente. Eu adorava ficar ao seu lado, mexer em seus cabelos, tirar as suas roupas…
Mas a paz entre nós terminou quando Noah brotou ao nosso lado.
— Estou atrapalhando o clima? — o mais novo disse, cínico.
— Não tem clima algum aqui — revirou os olhos, soltando minha mão em seguida —, cai fora.
Noah continuou:
— , se me permite…
O cortei na hora.
— Não permito.
Ele continuou sem nem se afetar.
— Eu sou melhor partido que o .
— Ah, é? — riu na mesma hora. — Desde quando?
— Eu sempre te ofereço carona — Noah ajeitou o boné na cabeça, como se as palavras do mais velho não o afetasse. — Você não veio sozinha hoje?
Franzi o cenho — O quê?
— Se veio mais cedo, você veio andando sozinha?
Ali estava a armadilha cara de pau de Noah. Eu precisava ser esperta.
— Eu vim com — dei de ombros, tentando ser o mais casual possível. — Estava de bobeira, aceitei vir mais cedo.
— Entendi — pela primeira vez sua voz era em um tom sarcástico. — Da próxima lembra de mim, está bem?
— Vaza, Noah — disse sem paciência alguma. — É dia da patrulha, pode ir para lá.
O menino saiu bufando alto quando me olhou engraçado. Uma mistura de alívio e pânico.
Depois daquilo, tudo ocorreu tranquilamente bem no celeiro.
Mas era muito, muito difícil impedir que meus olhos buscassem o tempo inteiro. Tinha alguma coisa nele naquela noite que estava mais… Mais inexplicável e gostoso do que sempre.
“Sempre”.
Um sentimento muito doido tomava conta do meu peito e, sem pensar muito, eu consegui entender o que era: liberdade. Eu finalmente tinha entendido o que ele e os demais tanto sentiam dentro daquele lugar, o que tanto tentavam preservar ao meio de tanta coisa errada e sem noção dentro da vila de Bourton-on-the-Water.
Ninguém poderia me impedir de ser eu mesma ali dentro.
Essa epifania podia muito bem ser pelo meu corpo ainda parecer estar em combustão, mas eu não me importava. O que importava mesmo era aquela sensação. Eu queria que todo mundo pudesse sentir a mesma coisa. Fosse para fazer a loucura que fizemos no celeiro minutos atrás (e com forte chances de sermos pegos a qualquer momento) ou para expressar ideias, vontades e sonhos.
Era incrível como aquele garoto despretensioso e normal me fazia sentir. Com ao meu lado, eu simplesmente podia fazer qualquer coisa.
Sai do meu devaneio quando Mila me cutucou nas costelas. Estávamos todos sentados em um círculo mal feito, discutindo sobre o que fazer para o aniversário de Ella. Aparentemente, todo ano ela gostava de algo bem extravagante no celeiro e todos eram obrigados a dar ideias.
Os olhos escuros de minha amiga brilhavam ao me contar a sua ideia e um aperto tomou conta do meu peito. Eu queria muito que Mila sentisse a mesma coisa que eu.
Concordei com um gesto e dei algumas ideias do tema de festa que poderíamos fazer, já que estava bem claro que eles queriam beber, dançar e comer coisas aleatórias.
Para a minha felicidade pessoal, parecia tão avoado quanto eu.
— Hmm, ? — me virei para ele. — O que você acha?
Perguntei ao perceber que ele estava 100% calado ao lado de Riley, que só concordava com a cabeça ou fazia caretas quando a ideia era um pouco doida para sua timidez.
Os olhos de se focaram nos meus no mesmo momento em que eu bebi um gole da minha bebida ruim, quase derrubando tudo em cima de mim. Limpei o canto da boca com o polegar e ele pareceu acompanhar cada movimento que eu fazia.
Ele parecia um pouco sem graça, o que eu não entendi, mas logo depois concordou:
— Acho bom.
Provavelmente não tinha gostado da minha ideia ruim e não queria estragar o clima entre nós. Dei de ombros, continuando a discussão com os demais.
Pelo jeito, teríamos uma festa à fantasia no celeiro. Eu não me fantasiava desde que era criança, para pegar doces no Halloween em Nova Iorque com minha amiga Bree. Mil ideias já surgiam na minha cabeça, ia aproveitar a festa para ser criativa… Talvez usar o galpão de Artes perfeitinho da The Cotswold School para inventar algo legal.
se levantou da rodinha enquanto Hayden discursava sobre todo mundo combinar o que usaria para ninguém ficar repetindo e passar vergonha, e eu não pensei duas vezes em seguir ele.
O garoto do mercado ainda parecia sem jeito, agora encostado na mesa de feno improvisada que usávamos para colocar as piores e mais baratas bebidas do mundo.
— O que houve? — disparei assim que parei ao seu lado. — Não gostou das ideias?
Ele se virou para mim, ainda com aquela expressão que era pouco comum em seu rosto lindo. Olhou ao redor, como se precisasse se certificar de que ninguém mais estava ouvindo a nossa conversa.
— Minha mente me traiu, nada demais — franzi o cenho e ele riu, mas logo voltou a falar mais baixo. — Hoje você gemeu demais falando meu apelido fofo... — ele mordeu o lábio e meu corpo congelou. — Foi a primeira coisa que veio na minha cabeça e eu fiquei sem graça, me desculpe.
Engoli em seco. Era uma delícia ouvir aquele tipo de coisa vindo dele.
— Ainda está com saudade de mim?
Ele riu — Sempre estou, cidade grande.
Nosso olhar se congelou novamente, como antes de Noah nos perturbar mais cedo. Minha língua coçou para dizer algumas coisas, mas, por sorte, Mila entrelaçou o seu braço no meu.
Olhei para ela na hora, sorrindo.
— Eu estou tão animada com a nossa viagem! — minha amiga suspirou e até riu abertamente. — Nem vou conseguir dormir!
Iríamos a Stratford-Upon-Avon no dia seguinte, a terra de Shakespeare. Romântico, fofo, clichê, igual Mila.
nos olhou com a cabeça pendendo para o lado assim que Mason brotou ali, passando o braço nos ombros do amigo-irmão.
— Prontas para a rebeldia e matar aula amanhã?
Depois de quase uma hora de viagem, uma grande placa verde com letras brancas nos recepcionava. "Bem-vindos a Stratford-Upon-Avon”.
dirigia com toda calma do mundo, com atenção, enquanto Mason e Mila tagarelavam no banco de trás. Pareciam um casal de filmes românticos e eu amava demais aquilo.
Pelas ruas já dava para ver que era um lugar muito maior que Bourton-on-the-Water ou Stroud. Era uma cidade de verdade. A arquitetura do lugar era parecido com o que tínhamos em Cotswolds, só que parecia mais… Dramática, caricata.
Estacionamos o carro em uma das ruas paralelas à principal e catei todas as minhas coisas, já que seria um dia inteiro de passeio. Pela janela aberta eu já sabia que o vento frio era um pouco pior que na nossa vila, mas quando pisei na calçada, meu corpo inteiro tremeu.
deu a volta para me encontrar, enquanto Mila e Mason ajeitavam suas coisas na mochila dele. O passeio já valeu quando, ao também estremecer pela rajada de vento frio que passou por ali, Mila foi devidamente aquecida com a jaqueta do namorado. Um gesto fofo, clichê e romântico (sim, de novo), do jeito de Mila.
Eu me sentia feliz só ao perceber que eles finalmente viveriam um dia normal juntos.
Por toda a cidade de Stratford-Upon-Avon, andamos pelas ruas olhando absolutamente tudo. Por sorte, passamos em frente a um dos mil lugares turísticos sobre Shakespeare e um deles teve a decência de nos dar um mapa de atrações e coisas legais para se fazer por ali.
— As pontes parecem com a nossa vila — ouvi Mila comentar.
Aquilo me fez franzir o cenho na mesma hora.
— Você nunca veio aqui? É tão perto.
Minha amiga deu de ombros, ainda observando tudo com seus grandes olhos escuros.
Mila e Mason andavam de mãos dadas ao nosso lado e quando eu ia apontar o exato lugar onde o poeta nasceu, o Shakespeare's Birthplace, passou seu braço direito em meus ombros, me abraçando.
Foi instantâneo abraçá-lo pela cintura.
Sua voz me atingiu depois de um leve beijo em minha cabeça.
— Não me esqueci do Dragonfly Maze.
Sorri com todos os dentes, o apertando ainda mais.
— Próxima?
Senti ele sorrir sem nem mesmo olhar para o seu rosto.
— Próxima — ele respondeu.
Andamos pelo que pareceu ser a cidade inteira. Vimos tudo, participamos de tudo. Nunca foi tão proveitoso matar aula para escapulir, porque eu sabia que algumas perguntas na parte de Literatura seriam exatamente pelo que eu estava vivendo e presenciando ali.
Meu estômago roncou alto quando saímos da Anne Hathaway's Cottage.
— Bom, chegou o momento em que Mila e eu vamos pagar um lindo almoço para vocês.
, que de verdade tinha adorado passear por aí com seu braço apoiado em mim e mantinha a posição, pareceu animado.
— Ah, é?
Mila fez um gesto positivo e Mason estava quase derretendo ao seu lado.
Segurei um suspiro ao reparar aquilo. Eles mereciam viver aquilo todo santo dia.
— Sim! — minha mão fechada tocou a de Mila, como se fosse um soquinho. — As garotas que mandam hoje.
— Nos surpreenda, cidade grande.
Almoçamos, rimos, conversamos e eu queria que aquele dia nunca acabasse. Puxei para sentar em um banco de pedras enquanto Mason e Mila estavam um pouco distantes, curtindo a companhia um do outro.
Eu terminava de tomar um sorvete de baunilha e ele só me observava de lado. Estava incrivelmente lindo com uma camisa cinza claro (bem diferente do uniforme horroroso da The Cotswold School) que acendia ainda mais aqueles olhos claros demais.
— Estava pensando sobre uma coisa — comecei, conquistando a atenção de . — Uma coisa que você falou nos primeiros dias em que fui ao celeiro…
— Eu já tinha bebido?
O empurrei de leve com os ombros, arrancando um daqueles sorrisos maravilhosos de seu rosto tranquilo.
— Você disse que no celeiro podemos ser nós mesmos, que Cotswold não nos domina lá dentro.
Ele me olhou com carinho.
— E é isso mesmo, .
Tive de sorrir — Eu entendo agora. Sei que você acha que eu sou doida, principalmente com essa coisa de Time — ele revirou os olhos claros na hora, mas ainda tinha um sorriso no rosto. — Mas eu sinto isso, sabe? Essa liberdade. E eu quero que todo mundo sinta também.
— Por isso o passeio de hoje?
Nós olhamos para Mason e Mila, que continuavam afastados, curtindo a vibe um do outro. Era gostoso e triste olhar aquela cena. Tinha que ser assim todos os dias, sem exceção.
— Queria poder fazer mais.
— Eu sei. Eu também — ele confessou. Depois de um momento calado, continuou: — Eu fico feliz… Que você se sinta assim, .
Eu queria abrir a boca e dizer que a culpa daquele sentimento era 99% dele, mas não consegui. Seus olhos azul-claros brilharam com uma ansiedade diferente e eu só suspirei.
— Você também acha que é falta de poluição urbana?
— Com certeza, cidade grande — riu, sarcástico. — Você precisava de um detox em uma vila de quatro mil habitantes.
Em vez de devolver com algum comentário sacana, apenas embrulhei o copinho vazio do sorvete e o abracei de lado, sem nem pensar. Senti seu corpo ficar rígido e relaxar em questão de segundos, como se eu o tivesse pegado de surpresa.
E era isso o que eu sempre gostaria de fazer.
Quando voltamos a caminhar para conhecer mais lugares, aquela ventania gelada voltou, me fazendo tremer novamente. Agora Mila andava de braços cruzados comigo, enquanto os meninos estavam a alguns passos atrás de nós, falando sobre coisas aleatórias. Mila apontava para tudo, olhava tudo, tirava foto de nós o tempo inteiro.
Ia ser uma lembrança e tanto.
— Obrigada, amiga — ela falou baixinho, me apertando mais para próximo de si. — Estou tão feliz.
Repeti o seu gesto, com um sorriso de verdade no rosto.
— Eu também, amiga.
Olhei de relance para trás. Mason e andavam lado a lado, ainda conversando. O garoto do mercado ouvia algo e quando percebeu que eu o encarava, me deu um sorriso lindo, levantando as sobrancelhas de um jeito que sempre faz.
Andamos mais algumas ruas daquele jeito e o frio parecia aumentar. Eu estava prontinha para abrir a boca e ser a estraga-prazeres dizendo que era melhor irmos antes de piorar, quando colocou a sua fiel jaqueta jeans em meus ombros. Foi rápido como Astra caindo no rio ou como ele me beijando na estrada de terra vazia que dá no celeiro.
Em um segundo, sua jaqueta pesou em meus ombros e seu cheiro me tomou por completo. No outro segundo, ele já estava ao lado de Mason, voltando a conversa como se nada tivesse acontecido.
E o que eu fiz? Eu suspirei. Alto.
Mila me apertou na mesma hora, mas, graças a Deus, nada falou.
O sol deu indícios de que iria se pôr, então a coisa mais sensata (infelizmente) era partir. Minutos depois já estávamos na estrada, com dirigindo novamente.
— Isso foi bom demais — Mila quase gritou quando entrou no carro. Tínhamos sido recepcionados novamente pela placa da cidade, que agora dizia: “Voltem sempre!”.
ainda olhava a estrada, mas consegui acompanhar o seu sorriso.
— Na próxima vez podemos ir a Londres.
Mason e Mila concordaram de prontidão. Pelo meu silêncio, me olhou de lado, desconfiado.
— O quê? — foi a única coisa que consegui dizer.
— Não vai responder sobre Londres? A cidade grande?
Dei de ombros — Pode ser outra vila?
franziu o cenho.
— Ainda não quer conhecer Londres?
Tive de suspirar. Não queria falar sobre aquilo ainda, só sabia que não queria ir até a cidade grande mais próxima. Era tão difícil aceitar essa minha mudança?
— Não — respondi simplesmente.
Mason percebeu o clima esquisito e colocou a cabeça entre os nossos bancos.
Gastando minha segunda grande sorte do dia, resolveu ficar calado.
— Londres ou não, estou morrendo de fome — Mason desviou a conversa. — Para em algum lugar e depois resolvemos o que fazer na próxima viagem.
Muitos minutos depois, deixou todos nós nos fundos do mercado dos . Mila foi andando para casa e Mason tomou o caminho contrário, pois tinha um turno de trabalho no bar do Sheppard naquela noite.
Estava pronta para ir embora, mas ele me segurou pelo punho.
— Te levo na esquina.
Pelo jeito ainda estava preocupado em esbarrar com minha mãe e suas mil perguntas sem noção.
Concordei de prontidão, pegando minha bolsa e começando a andar para casa com ele ao meu lado. Fomos em um silêncio confortável e toda aquela tarde se repassava como um filme em minha cabeça. Eu me sentia leve, feliz, diferente.
Queria me sentir assim todos os dias.
Mamãe não estava mexendo no jardim, mas, pela luz acesa da sala, entendi que poderiam estar me esperando para jantar. Estava pronta para me despedir de quando ele me olhou de lado e eu soube que tinha algo a me dizer. Meu corpo todo se arrepiou, minha cabeça imaginando mil e uma coisas.
— Queria te agradecer por hoje — ele pegou em minhas mãos, acariciando a palma delas com os polegares. — Obrigado por se importar com Mason.
Minha garganta ficou seca na mesma hora. Eu sabia como a amizade deles era algo fora do normal, incrível e, no fundo, ainda sentia um pouco de inveja. Eu nunca teria aquilo. Mas ficava feliz por ter.
— Eu vou precisar sumir um pouco essa semana — ele soltou uma de minhas mãos para coçar a nuca e foi difícil segurar um sorriso. — Consegui negociar uma folga com meu pai e vou focar nas redações e outras coisas que faltam para a faculdade.
Aquele assunto ainda me assombrava. Eu mantinha os meus estudos semanais com Mila (sim, tínhamos um grupo nós duas para fazer simulados loucos e gigantes) e já tinha aplicado para algumas faculdades — inclusive a NYU, mas ainda me parecia uma realidade distante, utópica.
— Não vou te ver, então?
Ele confirmou: — Acredito que não.
Concordei com um gesto. Algo doía dentro de mim, mas, ao mesmo tempo, ficava feliz. O coração podia pesar, mas só por estar explicando para mim que ficaria fora, fazia algo se encaixar dentro do meu peito.
Beijei seus lábios. Ele correspondeu na hora e logo perdemos cinco minutos de fôlego encostados em uma árvore centenária da vila de quatro mil habitantes.
Seus dedos seguraram meu maxilar quando nos afastamos.
— Se sentir muita saudade, me avise.
Tive que rir — Pode deixar, garoto mau do mercado.
Ele se afastou depois de estalar um beijo em minha bochecha.
— A gente se vê mais tarde, .
Demorou alguns segundos para sumir pelas ruas de pedra da vila.
Junto com o meu coração.
Capítulo 18 - Simplicidades
“Todas as grandes coisas são simples”. (Winston Churchill)
Aquela era uma ótima tarde para invadir a oficina de Artes.
— Riley, pode acender a luz — olhei para os dois meninos que ainda se mantinham escorados na parede que não tinha vista da janela. — Já entramos, está tudo bem.
O garoto mais novo ajeitou os grandes óculos de grau no rosto, andando até o interruptor. Respirou fundo, mas ainda parecia nervoso.
Noah descolou dos tijolos.
— Você não vai ficar em detenção por isso?
Dei de ombros na mesma hora. Se alguém me dedurar, pensaria nisso depois.
— Por pegar fantasias emprestadas? — fiz pouco caso.
Foi a vez dele fazer um gesto como se dissesse “estou satisfeito com a sua resposta”. Que bom, porque eu também estava.
Reviramos a grande sala em que o meu bagunceiro grupo de Artes funcionava três vezes na semana. Tínhamos esperado que todos saíssem para entrar escondido, porque se fôssemos pegar algumas coisinhas ali, certamente iriam me encher de perguntas que eu não estava disposta a responder.
Os meninos fizeram a bagunça que eu já esperava, tomados pela indecisão de quantas coisas levar dali. Pedaços de panos diversos, chapéus, capas. Parecia uma chuva de coisas coloridas e com paetês demais.
Por fim, quinze minutos depois, estavam prontos para partir com uma bolsa cheia demais em mãos. Atravessamos a janela por onde entramos e deixei que a tranca automática fizesse seu papel. Pela manhã tinha passado por ali e colocado um pedaço fino de madeira, o que nos permitiu entrar sem precisar ser pela porta principal.
Eu me sentia elevando o Time para outro nível. E eu gostava muito disso, era impossível negar.
E quando soubesse daquilo, iria proclamar de vez a minha loucura em Bourton-on-the-Water.
— E você? — Riley me encarava de uma forma curiosa enquanto eu me certificava de que ninguém tinha nos visto. — Vai se vestir de que?
Dei o meu melhor sorriso.
— Vai ser uma surpresa.
***
No dia seguinte eu já estava pronta antes mesmo de anoitecer.
Arrumei com esforço a bagunça dos meus fios loiros e rebeldes, tentando o melhor penteado que consegui fazer sozinha. Sabia que se estivesse horroroso, Ella insistiria para consertar. Vesti uma roupa que não era adequada para a noite que combinamos no celeiro, enfiando as verdadeiras peças em minha mochila, com o maior cuidado possível.
Mamãe e papai assistiam televisão quando desci as escadas até o final. Astra, meu cachorro de pelo caramelo, dormia entre os pés dos dois, como se precisasse se encostar em qualquer calor humano ao seu alcance. Dei um aceno breve aos dois e parti.
Ao sair pela porta principal, encontrei Mila. Seu sorriso foi o suficiente para que eu corresse até onde estava encostada com a sua bicicleta rosa chiclete.
— Cadê a sua roupa? — ela franziu o cenho quando a abracei. — Não vou te levar assim, não é justo.
Revirei os olhos, mas ainda tinha um sorriso grande nos lábios.
— Vou vestir lá.
Ela me mediu um pouco, mas deu de ombros. Só então percebi que vestia uma roupa toda rosa com frufru da mesma cor. Uma bailarina.
— Você está linda — minhas palavras a fizeram corar na hora. — Vamos ver se você consegue chegar lá usando isso aí e não nos derrubar no rio.
— O ruim na bicicleta é — ela piscou um olho para mim antes que eu pudesse sentar no suporte em cima da roda traseira. Até ouvir o nome dele me deixava sem ar. — Vamos lá, garota da cidade grande. Temos uma longa noite com os nossos amigos.
Com aquelas palavras no ar e meu sorriso ainda maior no rosto, Mila pedalou pela vila de quatro mil habitantes até a entrada da estrada de terra.
Nossa chegada ao celeiro foi rápida e eu me permiti ir curtindo o vento no rosto, o ritmo tranquilo de minha amiga ao pedalar e o sol que estava começando a se pôr no horizonte. Quando percebi, Mila já me pedia para descer da bicicleta. Ela soltou em seguida, largando a mesma na cerca caindo aos pedaços que ainda sobrevivia por ali.
Pela quantidade de veículos de duas rodas, já tinham chegado praticamente todos.
Mila arrumava sua roupa enquanto eu me trocava ao lado do celeiro, correndo. Tirei a blusa e deixei os shorts, colocando um vestido fofo e rodado por cima. Meus cabelos estavam com fivelas também fofas e inclui uma faixa atravessada ao corpo, como se tivesse acabado de ser premiada em algum concurso.
Sai dos arbustos e Mila soltou uma gargalhada ao me ver.
— Você sabe aproveitar as oportunidades, .
Foi o suficiente para que entrássemos no celeiro, lado a lado, de braços dados.
Por dentro, tudo estava decorado como tínhamos deixado na noite anterior. Luzes coloridas espalhadas pelo teto alto, toalhas coloridas para as mesas improvisadas de feno. Balões de ar que começavam a murchar, mas ainda assim pareciam bonitos e davam uma cara de festa naquele lugar velho, sujo e lindo.
E meus amigos, todos vestidos das mais variadas coisas.
Bom, era uma festa à fantasia. Para Ella.
E por ser para Ella, já era esperado que todo mundo exagerasse um pouquinho.
Eu me sentia prestes a vomitar por estar naquela situação e pelo que eu vestia. Mason estalou um beijo na bochecha de Mila. O quase irmão gêmeo de usava um uniforme completo de basquete, acredito que da sua época de glória na The Cotswold School. Mais ao fundo, Bronwen estava toda de preto com algumas coisas prateadas pela roupa. Pelo seu gosto e humor, só podia ser alguma coisa de filme de terror ou algum livro de fantasia, que eu sei que ela adorava ler.
Do outro lado, já brigando entre si, Hayden e Noah estavam ridículos. O mais novo parecia o mais estranho super-herói visto na história, enquanto Hayden parecia uma versão pobre do Coringa. Riley, como esperado, era algo simples, que remete a alguma coisa de Star Wars que eu não entendia e nem fazia questão de entender.
E Ella Bennett, a estrela da nossa festinha, era nada mais do que uma rainha de Copas. Pelo seu dom com a máquina de costura, já esperava que estivesse maravilhosa, mas confesso que fiquei surpresa no trabalho detalhado que aquela roupa e maquiagem levaram.
A garota fashionista correu na nossa direção, me abraçando de lado.
— Você seria fácil, fácil a Miss Cotswold.
Foi impossível não fazer uma careta.
— Feliz aniversário, querida — a apertei de volta.
Noah foi o primeiro a abrir a boca.
— … — olhei em sua direção e ele pareceu pensar nas próximas palavras. — Eu estou maravilhado e chocado ao mesmo tempo!
Revirei os olhos, rindo. De longe, eu era a mais ridícula daquele lugar. Meu vestido era igual ao de uma princesinha, cabelos feitos, sapato de boneca e uma faixa enorme no corpo escrito “Eu amo Cotswold”, com o brasão do distrito, roubado de uma das bandeiras que meus pais insistiam em pendurar pela casa.
Antes que eu pudesse responder com alguma ofensa, a porta do celeiro se abriu com um estalo e, com esse gesto simples, eu perdi tudo.
Eu não me sentia nervosa só por estar vestindo algo ridículo e que meus amigos adorariam tirar fotos para esfregar para sempre na minha cara. Eu estava devidamente nervosa e ansiosa porque tinha exatos oito dias que eu não via a cara de .
Parece pouco, eu sei, mas, desde que a nossa trégua no mercado tinha acontecido, o máximo que fiquei sem ver foi, sei lá, dois dias seguidos. Agora, com oito, eu parecia estar sofrendo as consequências de algum tipo de abstinência.
E ao vê-lo entrar ali, com aquele sorriso maravilhoso no rosto, foi a perdição que faltava para a noite ficar perfeita.
trocou um gesto com Mason e vi que dava risada da roupa improvisada do melhor amigo. Ella o abraçou assim como fez comigo e vi depositar um beijo carinhoso na cabeça da menina. Ele olhou para os demais e aquelas íris azuis demais se demoraram em mim.
Seus passos até mim foram breves e então seu sotaque carregado fez meu corpo se arrepiar:
— Cidade grande.
Acompanhei o seu sorriso e, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, contornei os meus braços em seu corpo e o abracei com força. Senti a surpresa em sua reação, mas foi tão rápido que pareceu que ele tinha me abraçado de volta de imediato. Nos separamos e ele me observou com um sorriso no rosto.
— Você está vestida de… O que é isso?
A única coisa que consegui fazer sem tremer foi dar de ombros.
— Sou uma das adoradoras de Cotswolds. Era isso ou escrever “Rainha do Feno”.
Ele riu alto, mas ainda me analisava com calma. Olhou meus sapatos, o vestido, passou um dedo na faixa. Até que colocou a mão em minha bochecha direita, sem se importar com como aquele gesto carinhoso ia ser interpretado pelos demais. Com a outra mão livre, ele tocou a ponta dos meus cabelos.
— Prefiro você com o cabelo bagunçado.
E eu continuo agradecendo o fato de que não coro por nada nesse mundo.
Foi a minha vez de observar o garoto à minha frente quando ele deu um passo para trás. Ele parecia se divertir com a minha confusão. vestia uma calça jeans normal, blusa branca, tênis. Nada demais. Era diferente do que ele sempre usava, mas aquilo, definitivamente, não era uma fantasia.
— E você é o que? — olhei em seus olhos claros. — A pessoa mais sem graça do mundo?
Ele riu, aquela expressão de deboche tomando seus lábios.
— Eu sou a capa de “Born in the USA”, do Springsteen — ele disse como se fosse óbvio. Virou de costas e vi um boné vermelho no bolso de trás do jeans.
Franzi o cenho na hora. Já esperava que ele fosse chato para se fantasiar no meio de todo mundo.
— Igual aquele filme do Adam Sandler. Bem original.
E então ele franziu o cenho, como se não entendesse. Também já esperava que ele não conhecesse os filmes bobos que eu assistia sem cansar. Pegou seu celular do bolso e me mostrou a tela, como se tivesse se preparado para perguntas durante a noite.
— É o álbum favorito do meu pai — observei o print da capa do álbum. — Cresci ouvindo isso e “americano” é uma boa fantasia, não? — ele passou as mãos na camisa simples, como se aquilo fosse grande coisa. — Pareço alguém da cidade grande?
Tive de rir — Não, não parece.
— Para de fingir que você não achou demais.
Antes de se afastar para falar com os demais, deixou um beijo em minha bochecha.
Nosso encontro se animou ainda mais com a chegada de e ficou bem claro que os oito dias sem ele foi algo que deixou saudade em todo mundo.
Pelo menos não era só eu que parecia ansiosa para ter um pouco da sua atenção.
Mas quando vi que ele escapuliu para os fundos do celeiro ao falar para Mason que ia “pegar as novas plantas”, eu não pensei duas vezes. Assim como não pensei duas vezes quando, ao avistá-lo de costas, parado, puxei a sua camisa.
Ele se virou na hora, com uma expressão de susto que se tornou um sorriso gostoso em seguida.
— Ei — ele soou, surpreso.
Nem deixei que falasse qualquer coisa mais. O abracei pela nuca, colando os nossos lábios. Suas mãos contornaram minha cintura, apertando meu corpo contra o seu. Pelo menos aquele desejo era bem recíproco.
Nos beijamos de uma forma tão gostosa que eu já começava a sentir minhas mãos tremerem. Me encostei mais em , mas um barulho próximo nos fez separar o beijo. Olhamos para o lado ao mesmo tempo e lá estava Hayden, com a expressão mais sem graça do mundo.
— É só alguém que foi fazer xixi na árvore sem dignidade alguma — a voz dele era divertida, mas dava para ver que estava chocado pela descoberta recente.
Continuamos abraçados, olhando para ele, sem uma reação apropriada. Meu coração batia tão forte que eu fiquei com medo de conseguir ouvir.
— Continuem. Eu não vi nada — riu enquanto Hayden se afastava. — Estamos quites, .
Dava para ver claramente o ponto de interrogação em meu rosto.
— Já aconteceu o contrário, ele não vai espalhar. Posso voltar a te beijar?
nem esperou a resposta para voltar a me beijar com a mesma vontade de segundos atrás. Ri em sua boca, o que o fez me olhar divertido.
— Além de saudade de mim, o que aconteceu de interessante nessa semana que fiquei longe?
Ia deixar passar essa afirmação de que eu estava com saudade dele, porque era a verdade, né? E tinha outra verdade fácil: eu queria conversar, contar tudo a ele sobre esses últimos dias em que não nos vimos. Tínhamos trocado mensagens, mas nada comparado a estar à sua frente, olhando em seus olhos lindos.
Fingi pensar um pouco antes de dizer:
— Me exaltei um pouco no debate de segunda-feira — suas sobrancelhas se uniram. — É, até Bronwen ficou com essa cara que você está fazendo — tive de rir, sendo acompanhada por . — E olha que ela faz pouco caso de tudo que é sobre mim.
Ele apertou a minha cintura, ainda com aquele sorriso gostoso nos lábios.
— Bronwen é uma pessoa chata e difícil, mas espero que até o final do ano vocês se deem bem.
Foi a minha vez de levantar as sobrancelhas em surpresa.
— Ah, é? — ele concordou. — E pra quê?
— Ela é difícil, , mas é uma boa amiga — e deu de ombros, me roubando um beijo rápido. — Só isso? Eu que trago emoção para esse lugar?
Ele estava brincando, mas eu quase concordei sério. Ele trazia sempre todos os sentimentos, no maior nível possível.
— Hm, teve isso do debate — comecei a enumerar os dedos perto do seu rosto. — Tem um lanche novo na cafeteria da escola. É horrível — coloquei mais um dedo. — Mila e eu fizemos um simulado gigante ontem — e mais um. — Ah! Temos um novo alvo para o Time .
— Já me arrependo de perguntar, mas: quem é?
— Lembra que te contei sobre Hayden e os meninos do time de futebol? — ele concordou com um gesto, perdendo seu sorriso na hora. — Ele quer revidar.
parecia ainda mais sério.
— , não é uma boa ideia.
Tive de rir — Por que todo mundo sempre tem medo do time de futebol da escola?
Ele balançou a cabeça, ainda com a expressão fechada.
— Nada a ver — revirou os olhos claros, soltando minha cintura e dando um passo para trás. — Eu sei que você quer surfar essa onda maluca do Time e já aceitei — e revirou os olhos novamente ao falar “Time ”. — Mas nem tudo dá para ser do seu jeito.
— Não entendi, . Foi Hayden quem pediu ajuda — olhei em seus olhos tensos. — Não só de mim, do grupo todo.
Ele suspirou e coçou a cabeça, como se já estivesse arrependido do que ainda nem tinha falado.
— Hayden é gay.
Demorei alguns segundos para responder aquilo. Não era e nem seria um problema, nunca, mas com certeza tinha sido uma surpresa para mim.
— Eu estou chocada — foi a única coisa que consegui dizer —, mas isso não tem nada a ver. Ou tem?
fez aquela careta de novo, visivelmente arrependido de tocar naquele assunto comigo.
— Ele namorava o Kieran, capitão do time de futebol.
— O quê? — gritei sem ao menos perceber. só concordou, suspirando. — Como assim?
— Exatamente. E ninguém sabe, porque Kieran nunca assumiu.
— E é por isso que ele fica caçoando do Hayden por aí?
concordou e meu coração ficou apertado. Aquele era mais um dos pontos horríveis que eu tinha vivido em Cotswolds.
— Sim — ele suspirou alto, bagunçando seus cabelos com as mãos. — Então, por favor, sobre qualquer plano maluco que esteja na sua cabeça agora: pare. Não faça. Isso vai além do que ajudar dois meninos a não fazer as tarefas dos veteranos.
— Eu… — ainda estava desnorteada com aquela informação sobre o babaca do Kieran. — Eu vou conversar com Hayden.
fechou os olhos, como se estivesse falando com uma criança birrenta.
— Conversar o quê, ?
— Não vou piorar as coisas.
— Hayden entrou no celeiro por isso, entende? — ele olhou para os lados, se certificando de que ninguém tinha saído do celeiro. — Mason era do time de futebol da escola, ele ouvia as piadinhas. Um dia fui encontrar com ele no ginásio e nós vimos Hayden e Kieran juntos. Foi uma confusão.
Agora fazia sentido Hayden cutucar por pegar nós dois nos beijando.
— E o que aconteceu?
Um sentimento ruim tomou conta do meu corpo. Se Cotswolds era horrível com Mila, uma menina negra, imaginava como seria com pessoas que se assumem gays.
— Rolou uma briga e nós defendemos Hayden — ele colocou um dedo na sobrancelha direita, onde tinha uma pequena linha branca demais. — E eu ganhei isso, pelo soco que levei na cara — suspirou, talvez relembrando esse dia. — Eu não gosto de brigas, , evito ao máximo, de verdade. Mexer com Kieran não vai ser boa coisa.
Era uma história difícil e depois de ver como os meninos tratavam Hayden… Tudo ficava incrivelmente pior. A minha vontade era de sacanear um a um, mas, como alertou, poderia ser um grande problema.
Mas, ainda assim, eu sentia que não era eu quem deveria escolher isso.
— Acho que é uma decisão do Hayden — disse com calma.
— , se vão me bater, acho que é uma decisão em conjunto.
Foi a minha vez de revirar os olhos, deixando o garoto a minha frente ainda mais impaciente.
— Vai ser perfeito, . Ninguém vai bater em ninguém!
— Boa tentativa com o meu apelido — ele riu de lado, com ironia. — O que ele te contou?
— Eu já vi os meninos pegando no pé dele algumas vezes, . É terrível — pelo menos com isso ele concordou. Continuei meu discurso. — É o nosso último ano. Hayden deve passar na faculdade, você não acha? — ele deu de ombros. — É a única chance dele revidar. E o plano vai ser tranquilo, zero conflito direto!
Quando apertou os olhos claros eu sabia que ele se daria por vencido. Pelo menos naquele momento.
— Eu ainda não gosto disso, , mas vou ouvir o plano de vocês.
Abracei seu corpo com vontade e demorou alguns segundos para que ele retribuísse.
— E o que houve com você hoje, rock star? — ele franziu o cenho, não entendendo minha pergunta. — pra cá, pra lá. Esqueceu meu apelido horroroso dado por vocês?
sorriu — Senti saudade até de dizer o seu nome.
— Mais uma coisa…
Ele gargalhou, talvez pela mesma lembrança que eu tive. Estávamos contando quantas coisas tínhamos em comum e geralmente aproveitamos isso para construir um momento fofo.
Bom, pelo menos eu fazia por isso…
Deixa pra lá.
— Já temos muitas coisas em comum em nossa lista, não é?
— Espero que só continue aumentando — confessei, sem pensar duas vezes.
Ele me puxou para perto.
— Mais uma… — sua voz saiu baixa. Sorri com seus lábios encostados nos meus. — Que sorte a minha.
Antes que todos os meus sentidos se perdessem, descolei meu corpo do seu, puxando-o pela mão.
— Vem, vamos. Trouxe uma música nova para dançarmos.
pareceu achar graça daquilo, mas me acompanhou para voltar ao celeiro.
As coisas na parte de dentro continuavam iguais. Música tocando, salgadinhos calóricos demais sendo comidos e bebidas de gosto duvidoso sendo tomadas como se não houvesse amanhã.
Corri até onde a caixinha de som estava e escolhi uma música da nossa playlist no celular que estava conectado. Eu tinha criado uma para compartilharmos, assim tocaria de tudo e de todos os gostos ali dentro. Todo dia de celeiro eu baixaria as músicas, já que continuávamos sem sinal de internet naquela parte da vila (o que, incrivelmente, eu achava algo bom demais).
Cliquei na faixa “(I’m Gonna) Love Me Again” e uma batida animada ecoou por todo o celeiro sujo. tinha um sorriso no rosto e levantou as sobrancelhas ao perceber quem cantava: Elton John. Eu tinha escutado em casa, quando papai estava assistindo ao filme/biografia do cantor. Algumas partes fizeram tanto sentido, o sentimento era tanto do celeiro…
Eu já estava no meio daquele lugar, dançando do jeito esquisito que sempre fazíamos ali dentro. Do jeito que queríamos, livres.
Singing, I’m gonna love me again (Cantando, eu vou me amar novamente)
Check in on my very best friend (Veja só o meu melhor amigo)
Na segunda frase do refrão, apontei para , ainda cantando. Ele gargalhou, enquanto os demais vinham dançar junto. Como em meses alguém podia ser sim meu melhor amigo de sempre?
Find the will to fill my cells
Rise above the broken rails
Unbound by any ties that break or bend
I’m free, and don’t you know?
No clown that claimed he used to know me then
I’m free, and don’t you know?
And oh-oh-oh, I’m gonna love me again
Não demorou muito para que todos fizessem suas danças ridículas junto comigo. Podiam não conhecer a letra da música, mas a batida era o suficiente. ainda me observava, divertido. Se os demais não entendiam, eu tinha certeza que ele sim. E aquilo era muito mais do que o suficiente.
Dançamos mais músicas juntos como se o mundo fosse acabar. E como se Bourton-on-the-Water, Cotswold ou qualquer outro lugar da Veneza da Inglaterra não pudesse nos parar.
Ella, a aniversariante do dia, tirava fotos aleatórias do pessoal. Me vi em selfies com a garota fashionista, fotos abraçando Mila de lado. Senti flashes até quando sorria para , que ainda mantinha aquele olhar diferente e gostoso no rosto.
A sensação era de liberdade, de felicidade, de amizade. Algo queimava diferente em meu peito pela energia, pelos sorrisos e pelo olhar que jogava em mim toda vez que me fazia girar para dançar em alguma música animada.
Demorei alguns segundos para entender a movimentação que Ella tentava fazer, juntando todos no centro do celeiro. Em frente ao celular de alguém, enquanto uma música ainda estourava animadamente na caixinha de som. Suados, meio bêbados e vestindo coisas horríveis, todos sorrimos para a foto em grupo.
Uma eterna lembrança que eu levaria comigo, dentro ou fora da vila de Bourton-on-the-Water.
Simples assim, aquele tinha sido um dos melhores dias da minha vida.
Aquela era uma ótima tarde para invadir a oficina de Artes.
— Riley, pode acender a luz — olhei para os dois meninos que ainda se mantinham escorados na parede que não tinha vista da janela. — Já entramos, está tudo bem.
O garoto mais novo ajeitou os grandes óculos de grau no rosto, andando até o interruptor. Respirou fundo, mas ainda parecia nervoso.
Noah descolou dos tijolos.
— Você não vai ficar em detenção por isso?
Dei de ombros na mesma hora. Se alguém me dedurar, pensaria nisso depois.
— Por pegar fantasias emprestadas? — fiz pouco caso.
Foi a vez dele fazer um gesto como se dissesse “estou satisfeito com a sua resposta”. Que bom, porque eu também estava.
Reviramos a grande sala em que o meu bagunceiro grupo de Artes funcionava três vezes na semana. Tínhamos esperado que todos saíssem para entrar escondido, porque se fôssemos pegar algumas coisinhas ali, certamente iriam me encher de perguntas que eu não estava disposta a responder.
Os meninos fizeram a bagunça que eu já esperava, tomados pela indecisão de quantas coisas levar dali. Pedaços de panos diversos, chapéus, capas. Parecia uma chuva de coisas coloridas e com paetês demais.
Por fim, quinze minutos depois, estavam prontos para partir com uma bolsa cheia demais em mãos. Atravessamos a janela por onde entramos e deixei que a tranca automática fizesse seu papel. Pela manhã tinha passado por ali e colocado um pedaço fino de madeira, o que nos permitiu entrar sem precisar ser pela porta principal.
Eu me sentia elevando o Time para outro nível. E eu gostava muito disso, era impossível negar.
E quando soubesse daquilo, iria proclamar de vez a minha loucura em Bourton-on-the-Water.
— E você? — Riley me encarava de uma forma curiosa enquanto eu me certificava de que ninguém tinha nos visto. — Vai se vestir de que?
Dei o meu melhor sorriso.
— Vai ser uma surpresa.
No dia seguinte eu já estava pronta antes mesmo de anoitecer.
Arrumei com esforço a bagunça dos meus fios loiros e rebeldes, tentando o melhor penteado que consegui fazer sozinha. Sabia que se estivesse horroroso, Ella insistiria para consertar. Vesti uma roupa que não era adequada para a noite que combinamos no celeiro, enfiando as verdadeiras peças em minha mochila, com o maior cuidado possível.
Mamãe e papai assistiam televisão quando desci as escadas até o final. Astra, meu cachorro de pelo caramelo, dormia entre os pés dos dois, como se precisasse se encostar em qualquer calor humano ao seu alcance. Dei um aceno breve aos dois e parti.
Ao sair pela porta principal, encontrei Mila. Seu sorriso foi o suficiente para que eu corresse até onde estava encostada com a sua bicicleta rosa chiclete.
— Cadê a sua roupa? — ela franziu o cenho quando a abracei. — Não vou te levar assim, não é justo.
Revirei os olhos, mas ainda tinha um sorriso grande nos lábios.
— Vou vestir lá.
Ela me mediu um pouco, mas deu de ombros. Só então percebi que vestia uma roupa toda rosa com frufru da mesma cor. Uma bailarina.
— Você está linda — minhas palavras a fizeram corar na hora. — Vamos ver se você consegue chegar lá usando isso aí e não nos derrubar no rio.
— O ruim na bicicleta é — ela piscou um olho para mim antes que eu pudesse sentar no suporte em cima da roda traseira. Até ouvir o nome dele me deixava sem ar. — Vamos lá, garota da cidade grande. Temos uma longa noite com os nossos amigos.
Com aquelas palavras no ar e meu sorriso ainda maior no rosto, Mila pedalou pela vila de quatro mil habitantes até a entrada da estrada de terra.
Nossa chegada ao celeiro foi rápida e eu me permiti ir curtindo o vento no rosto, o ritmo tranquilo de minha amiga ao pedalar e o sol que estava começando a se pôr no horizonte. Quando percebi, Mila já me pedia para descer da bicicleta. Ela soltou em seguida, largando a mesma na cerca caindo aos pedaços que ainda sobrevivia por ali.
Pela quantidade de veículos de duas rodas, já tinham chegado praticamente todos.
Mila arrumava sua roupa enquanto eu me trocava ao lado do celeiro, correndo. Tirei a blusa e deixei os shorts, colocando um vestido fofo e rodado por cima. Meus cabelos estavam com fivelas também fofas e inclui uma faixa atravessada ao corpo, como se tivesse acabado de ser premiada em algum concurso.
Sai dos arbustos e Mila soltou uma gargalhada ao me ver.
— Você sabe aproveitar as oportunidades, .
Foi o suficiente para que entrássemos no celeiro, lado a lado, de braços dados.
Por dentro, tudo estava decorado como tínhamos deixado na noite anterior. Luzes coloridas espalhadas pelo teto alto, toalhas coloridas para as mesas improvisadas de feno. Balões de ar que começavam a murchar, mas ainda assim pareciam bonitos e davam uma cara de festa naquele lugar velho, sujo e lindo.
E meus amigos, todos vestidos das mais variadas coisas.
Bom, era uma festa à fantasia. Para Ella.
E por ser para Ella, já era esperado que todo mundo exagerasse um pouquinho.
Eu me sentia prestes a vomitar por estar naquela situação e pelo que eu vestia. Mason estalou um beijo na bochecha de Mila. O quase irmão gêmeo de usava um uniforme completo de basquete, acredito que da sua época de glória na The Cotswold School. Mais ao fundo, Bronwen estava toda de preto com algumas coisas prateadas pela roupa. Pelo seu gosto e humor, só podia ser alguma coisa de filme de terror ou algum livro de fantasia, que eu sei que ela adorava ler.
Do outro lado, já brigando entre si, Hayden e Noah estavam ridículos. O mais novo parecia o mais estranho super-herói visto na história, enquanto Hayden parecia uma versão pobre do Coringa. Riley, como esperado, era algo simples, que remete a alguma coisa de Star Wars que eu não entendia e nem fazia questão de entender.
E Ella Bennett, a estrela da nossa festinha, era nada mais do que uma rainha de Copas. Pelo seu dom com a máquina de costura, já esperava que estivesse maravilhosa, mas confesso que fiquei surpresa no trabalho detalhado que aquela roupa e maquiagem levaram.
A garota fashionista correu na nossa direção, me abraçando de lado.
— Você seria fácil, fácil a Miss Cotswold.
Foi impossível não fazer uma careta.
— Feliz aniversário, querida — a apertei de volta.
Noah foi o primeiro a abrir a boca.
— … — olhei em sua direção e ele pareceu pensar nas próximas palavras. — Eu estou maravilhado e chocado ao mesmo tempo!
Revirei os olhos, rindo. De longe, eu era a mais ridícula daquele lugar. Meu vestido era igual ao de uma princesinha, cabelos feitos, sapato de boneca e uma faixa enorme no corpo escrito “Eu amo Cotswold”, com o brasão do distrito, roubado de uma das bandeiras que meus pais insistiam em pendurar pela casa.
Antes que eu pudesse responder com alguma ofensa, a porta do celeiro se abriu com um estalo e, com esse gesto simples, eu perdi tudo.
Eu não me sentia nervosa só por estar vestindo algo ridículo e que meus amigos adorariam tirar fotos para esfregar para sempre na minha cara. Eu estava devidamente nervosa e ansiosa porque tinha exatos oito dias que eu não via a cara de .
Parece pouco, eu sei, mas, desde que a nossa trégua no mercado tinha acontecido, o máximo que fiquei sem ver foi, sei lá, dois dias seguidos. Agora, com oito, eu parecia estar sofrendo as consequências de algum tipo de abstinência.
E ao vê-lo entrar ali, com aquele sorriso maravilhoso no rosto, foi a perdição que faltava para a noite ficar perfeita.
trocou um gesto com Mason e vi que dava risada da roupa improvisada do melhor amigo. Ella o abraçou assim como fez comigo e vi depositar um beijo carinhoso na cabeça da menina. Ele olhou para os demais e aquelas íris azuis demais se demoraram em mim.
Seus passos até mim foram breves e então seu sotaque carregado fez meu corpo se arrepiar:
— Cidade grande.
Acompanhei o seu sorriso e, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, contornei os meus braços em seu corpo e o abracei com força. Senti a surpresa em sua reação, mas foi tão rápido que pareceu que ele tinha me abraçado de volta de imediato. Nos separamos e ele me observou com um sorriso no rosto.
— Você está vestida de… O que é isso?
A única coisa que consegui fazer sem tremer foi dar de ombros.
— Sou uma das adoradoras de Cotswolds. Era isso ou escrever “Rainha do Feno”.
Ele riu alto, mas ainda me analisava com calma. Olhou meus sapatos, o vestido, passou um dedo na faixa. Até que colocou a mão em minha bochecha direita, sem se importar com como aquele gesto carinhoso ia ser interpretado pelos demais. Com a outra mão livre, ele tocou a ponta dos meus cabelos.
— Prefiro você com o cabelo bagunçado.
E eu continuo agradecendo o fato de que não coro por nada nesse mundo.
Foi a minha vez de observar o garoto à minha frente quando ele deu um passo para trás. Ele parecia se divertir com a minha confusão. vestia uma calça jeans normal, blusa branca, tênis. Nada demais. Era diferente do que ele sempre usava, mas aquilo, definitivamente, não era uma fantasia.
— E você é o que? — olhei em seus olhos claros. — A pessoa mais sem graça do mundo?
Ele riu, aquela expressão de deboche tomando seus lábios.
— Eu sou a capa de “Born in the USA”, do Springsteen — ele disse como se fosse óbvio. Virou de costas e vi um boné vermelho no bolso de trás do jeans.
Franzi o cenho na hora. Já esperava que ele fosse chato para se fantasiar no meio de todo mundo.
— Igual aquele filme do Adam Sandler. Bem original.
E então ele franziu o cenho, como se não entendesse. Também já esperava que ele não conhecesse os filmes bobos que eu assistia sem cansar. Pegou seu celular do bolso e me mostrou a tela, como se tivesse se preparado para perguntas durante a noite.
— É o álbum favorito do meu pai — observei o print da capa do álbum. — Cresci ouvindo isso e “americano” é uma boa fantasia, não? — ele passou as mãos na camisa simples, como se aquilo fosse grande coisa. — Pareço alguém da cidade grande?
Tive de rir — Não, não parece.
— Para de fingir que você não achou demais.
Antes de se afastar para falar com os demais, deixou um beijo em minha bochecha.
Nosso encontro se animou ainda mais com a chegada de e ficou bem claro que os oito dias sem ele foi algo que deixou saudade em todo mundo.
Pelo menos não era só eu que parecia ansiosa para ter um pouco da sua atenção.
Mas quando vi que ele escapuliu para os fundos do celeiro ao falar para Mason que ia “pegar as novas plantas”, eu não pensei duas vezes. Assim como não pensei duas vezes quando, ao avistá-lo de costas, parado, puxei a sua camisa.
Ele se virou na hora, com uma expressão de susto que se tornou um sorriso gostoso em seguida.
— Ei — ele soou, surpreso.
Nem deixei que falasse qualquer coisa mais. O abracei pela nuca, colando os nossos lábios. Suas mãos contornaram minha cintura, apertando meu corpo contra o seu. Pelo menos aquele desejo era bem recíproco.
Nos beijamos de uma forma tão gostosa que eu já começava a sentir minhas mãos tremerem. Me encostei mais em , mas um barulho próximo nos fez separar o beijo. Olhamos para o lado ao mesmo tempo e lá estava Hayden, com a expressão mais sem graça do mundo.
— É só alguém que foi fazer xixi na árvore sem dignidade alguma — a voz dele era divertida, mas dava para ver que estava chocado pela descoberta recente.
Continuamos abraçados, olhando para ele, sem uma reação apropriada. Meu coração batia tão forte que eu fiquei com medo de conseguir ouvir.
— Continuem. Eu não vi nada — riu enquanto Hayden se afastava. — Estamos quites, .
Dava para ver claramente o ponto de interrogação em meu rosto.
— Já aconteceu o contrário, ele não vai espalhar. Posso voltar a te beijar?
nem esperou a resposta para voltar a me beijar com a mesma vontade de segundos atrás. Ri em sua boca, o que o fez me olhar divertido.
— Além de saudade de mim, o que aconteceu de interessante nessa semana que fiquei longe?
Ia deixar passar essa afirmação de que eu estava com saudade dele, porque era a verdade, né? E tinha outra verdade fácil: eu queria conversar, contar tudo a ele sobre esses últimos dias em que não nos vimos. Tínhamos trocado mensagens, mas nada comparado a estar à sua frente, olhando em seus olhos lindos.
Fingi pensar um pouco antes de dizer:
— Me exaltei um pouco no debate de segunda-feira — suas sobrancelhas se uniram. — É, até Bronwen ficou com essa cara que você está fazendo — tive de rir, sendo acompanhada por . — E olha que ela faz pouco caso de tudo que é sobre mim.
Ele apertou a minha cintura, ainda com aquele sorriso gostoso nos lábios.
— Bronwen é uma pessoa chata e difícil, mas espero que até o final do ano vocês se deem bem.
Foi a minha vez de levantar as sobrancelhas em surpresa.
— Ah, é? — ele concordou. — E pra quê?
— Ela é difícil, , mas é uma boa amiga — e deu de ombros, me roubando um beijo rápido. — Só isso? Eu que trago emoção para esse lugar?
Ele estava brincando, mas eu quase concordei sério. Ele trazia sempre todos os sentimentos, no maior nível possível.
— Hm, teve isso do debate — comecei a enumerar os dedos perto do seu rosto. — Tem um lanche novo na cafeteria da escola. É horrível — coloquei mais um dedo. — Mila e eu fizemos um simulado gigante ontem — e mais um. — Ah! Temos um novo alvo para o Time .
— Já me arrependo de perguntar, mas: quem é?
— Lembra que te contei sobre Hayden e os meninos do time de futebol? — ele concordou com um gesto, perdendo seu sorriso na hora. — Ele quer revidar.
parecia ainda mais sério.
— , não é uma boa ideia.
Tive de rir — Por que todo mundo sempre tem medo do time de futebol da escola?
Ele balançou a cabeça, ainda com a expressão fechada.
— Nada a ver — revirou os olhos claros, soltando minha cintura e dando um passo para trás. — Eu sei que você quer surfar essa onda maluca do Time e já aceitei — e revirou os olhos novamente ao falar “Time ”. — Mas nem tudo dá para ser do seu jeito.
— Não entendi, . Foi Hayden quem pediu ajuda — olhei em seus olhos tensos. — Não só de mim, do grupo todo.
Ele suspirou e coçou a cabeça, como se já estivesse arrependido do que ainda nem tinha falado.
— Hayden é gay.
Demorei alguns segundos para responder aquilo. Não era e nem seria um problema, nunca, mas com certeza tinha sido uma surpresa para mim.
— Eu estou chocada — foi a única coisa que consegui dizer —, mas isso não tem nada a ver. Ou tem?
fez aquela careta de novo, visivelmente arrependido de tocar naquele assunto comigo.
— Ele namorava o Kieran, capitão do time de futebol.
— O quê? — gritei sem ao menos perceber. só concordou, suspirando. — Como assim?
— Exatamente. E ninguém sabe, porque Kieran nunca assumiu.
— E é por isso que ele fica caçoando do Hayden por aí?
concordou e meu coração ficou apertado. Aquele era mais um dos pontos horríveis que eu tinha vivido em Cotswolds.
— Sim — ele suspirou alto, bagunçando seus cabelos com as mãos. — Então, por favor, sobre qualquer plano maluco que esteja na sua cabeça agora: pare. Não faça. Isso vai além do que ajudar dois meninos a não fazer as tarefas dos veteranos.
— Eu… — ainda estava desnorteada com aquela informação sobre o babaca do Kieran. — Eu vou conversar com Hayden.
fechou os olhos, como se estivesse falando com uma criança birrenta.
— Conversar o quê, ?
— Não vou piorar as coisas.
— Hayden entrou no celeiro por isso, entende? — ele olhou para os lados, se certificando de que ninguém tinha saído do celeiro. — Mason era do time de futebol da escola, ele ouvia as piadinhas. Um dia fui encontrar com ele no ginásio e nós vimos Hayden e Kieran juntos. Foi uma confusão.
Agora fazia sentido Hayden cutucar por pegar nós dois nos beijando.
— E o que aconteceu?
Um sentimento ruim tomou conta do meu corpo. Se Cotswolds era horrível com Mila, uma menina negra, imaginava como seria com pessoas que se assumem gays.
— Rolou uma briga e nós defendemos Hayden — ele colocou um dedo na sobrancelha direita, onde tinha uma pequena linha branca demais. — E eu ganhei isso, pelo soco que levei na cara — suspirou, talvez relembrando esse dia. — Eu não gosto de brigas, , evito ao máximo, de verdade. Mexer com Kieran não vai ser boa coisa.
Era uma história difícil e depois de ver como os meninos tratavam Hayden… Tudo ficava incrivelmente pior. A minha vontade era de sacanear um a um, mas, como alertou, poderia ser um grande problema.
Mas, ainda assim, eu sentia que não era eu quem deveria escolher isso.
— Acho que é uma decisão do Hayden — disse com calma.
— , se vão me bater, acho que é uma decisão em conjunto.
Foi a minha vez de revirar os olhos, deixando o garoto a minha frente ainda mais impaciente.
— Vai ser perfeito, . Ninguém vai bater em ninguém!
— Boa tentativa com o meu apelido — ele riu de lado, com ironia. — O que ele te contou?
— Eu já vi os meninos pegando no pé dele algumas vezes, . É terrível — pelo menos com isso ele concordou. Continuei meu discurso. — É o nosso último ano. Hayden deve passar na faculdade, você não acha? — ele deu de ombros. — É a única chance dele revidar. E o plano vai ser tranquilo, zero conflito direto!
Quando apertou os olhos claros eu sabia que ele se daria por vencido. Pelo menos naquele momento.
— Eu ainda não gosto disso, , mas vou ouvir o plano de vocês.
Abracei seu corpo com vontade e demorou alguns segundos para que ele retribuísse.
— E o que houve com você hoje, rock star? — ele franziu o cenho, não entendendo minha pergunta. — pra cá, pra lá. Esqueceu meu apelido horroroso dado por vocês?
sorriu — Senti saudade até de dizer o seu nome.
— Mais uma coisa…
Ele gargalhou, talvez pela mesma lembrança que eu tive. Estávamos contando quantas coisas tínhamos em comum e geralmente aproveitamos isso para construir um momento fofo.
Bom, pelo menos eu fazia por isso…
Deixa pra lá.
— Já temos muitas coisas em comum em nossa lista, não é?
— Espero que só continue aumentando — confessei, sem pensar duas vezes.
Ele me puxou para perto.
— Mais uma… — sua voz saiu baixa. Sorri com seus lábios encostados nos meus. — Que sorte a minha.
Antes que todos os meus sentidos se perdessem, descolei meu corpo do seu, puxando-o pela mão.
— Vem, vamos. Trouxe uma música nova para dançarmos.
pareceu achar graça daquilo, mas me acompanhou para voltar ao celeiro.
As coisas na parte de dentro continuavam iguais. Música tocando, salgadinhos calóricos demais sendo comidos e bebidas de gosto duvidoso sendo tomadas como se não houvesse amanhã.
Corri até onde a caixinha de som estava e escolhi uma música da nossa playlist no celular que estava conectado. Eu tinha criado uma para compartilharmos, assim tocaria de tudo e de todos os gostos ali dentro. Todo dia de celeiro eu baixaria as músicas, já que continuávamos sem sinal de internet naquela parte da vila (o que, incrivelmente, eu achava algo bom demais).
Cliquei na faixa “(I’m Gonna) Love Me Again” e uma batida animada ecoou por todo o celeiro sujo. tinha um sorriso no rosto e levantou as sobrancelhas ao perceber quem cantava: Elton John. Eu tinha escutado em casa, quando papai estava assistindo ao filme/biografia do cantor. Algumas partes fizeram tanto sentido, o sentimento era tanto do celeiro…
Eu já estava no meio daquele lugar, dançando do jeito esquisito que sempre fazíamos ali dentro. Do jeito que queríamos, livres.
Singing, I’m gonna love me again (Cantando, eu vou me amar novamente)
Check in on my very best friend (Veja só o meu melhor amigo)
Na segunda frase do refrão, apontei para , ainda cantando. Ele gargalhou, enquanto os demais vinham dançar junto. Como em meses alguém podia ser sim meu melhor amigo de sempre?
Find the will to fill my cells
Rise above the broken rails
Unbound by any ties that break or bend
I’m free, and don’t you know?
No clown that claimed he used to know me then
I’m free, and don’t you know?
And oh-oh-oh, I’m gonna love me again
Não demorou muito para que todos fizessem suas danças ridículas junto comigo. Podiam não conhecer a letra da música, mas a batida era o suficiente. ainda me observava, divertido. Se os demais não entendiam, eu tinha certeza que ele sim. E aquilo era muito mais do que o suficiente.
Dançamos mais músicas juntos como se o mundo fosse acabar. E como se Bourton-on-the-Water, Cotswold ou qualquer outro lugar da Veneza da Inglaterra não pudesse nos parar.
Ella, a aniversariante do dia, tirava fotos aleatórias do pessoal. Me vi em selfies com a garota fashionista, fotos abraçando Mila de lado. Senti flashes até quando sorria para , que ainda mantinha aquele olhar diferente e gostoso no rosto.
A sensação era de liberdade, de felicidade, de amizade. Algo queimava diferente em meu peito pela energia, pelos sorrisos e pelo olhar que jogava em mim toda vez que me fazia girar para dançar em alguma música animada.
Demorei alguns segundos para entender a movimentação que Ella tentava fazer, juntando todos no centro do celeiro. Em frente ao celular de alguém, enquanto uma música ainda estourava animadamente na caixinha de som. Suados, meio bêbados e vestindo coisas horríveis, todos sorrimos para a foto em grupo.
Uma eterna lembrança que eu levaria comigo, dentro ou fora da vila de Bourton-on-the-Water.
Simples assim, aquele tinha sido um dos melhores dias da minha vida.
Capítulo 19 - Lembranças (Parte 1)
“O tempo não comprou passagem de volta. Tenho lembranças e não saudades.” (Mário Lago)
— Procura mais no fundo da prateleira.
Ouvi ele resmungar alguma coisa enquanto se debruçava ainda mais na escada, mas não entendi qual era a provável ofensa contra mim.
— Eu sei exatamente tudo o que tem nesse lugar, — a voz de saiu em um tom tedioso. De cima da escada ele olhou em meus olhos. — Se eu te disse que não tem, é porque não tem mesmo.
Foi a minha vez de resmungar.
O drama do dia era o seguinte: mamãe tinha inventado de fazer um bolo de aniversário para meu pai e toda vez ela colocava um tema ou assunto que ele tinha cismado naquele ano. Para o meu azar, estávamos na febre de Angry Birds e, para isso, minha mãe precisava de muitos, muitos granulados coloridos.
Coisa que não tinha no mercado dos . E nem em outro lugar de Bourton-on-the-Water (eu tinha feito ligar para outras lojas procurando aquela merda).
Observei descer a longa escada com calma. Quando pôs os pés no chão, esfregou as mãos, provavelmente tentando se livrar da poeira das grandes prateleiras da parte de cima da loja. Estávamos só nós dois e mais um cliente aleatório que ele já tinha atendido. Algumas pessoas que pareciam turistas entravam e diziam que estavam “dando uma olhada”, então nada que atrapalhasse ele a me ajudar com algo bobo como granulados para bolo.
E estávamos praticando bem a ideia de “não me importo de ser visto com você fora do celeiro”.
Eu estava adorando.
— Será que fica muito ruim colorir os normais? — ele coçou a cabeça quando o olhei. — Sei lá, mas acho que tenho corantes para comida.
Quando eu ia abrir a minha boca para dizer algo, meus olhos se prenderam em um novo cliente, que estava a alguns passos atrás de . Meu coração bateu tão forte que eu fiquei com medo de achar que eu ia infartar.
— O que aconteceu? — ele perguntou, talvez pelo choque em meu rosto.
Andei a passos largos até a pessoa que tinha acabado de entrar no mercado, sem acreditar muito no que via. Meus pés iam ficando mais rápidos ao se aproximar cada vez mais dele.
O garoto abriu os braços, me encaixando em um abraço particularmente perfeito. Seus braços me apertaram forte e eu engoli a minha vontade de chorar.
— Você veio.
Ele respondeu ainda abafado contra meu abraço.
— Eu não tinha te prometido?
Nos soltamos, mas eu ainda o olhava como se ele fosse irreal demais tão perto de mim.
— Mas você não respondeu mais as cartas, pensei que tinha desistido!
Ele riu do meu desespero, passando as mãos em meus cabelos.
— Sobre isso, nós temos que começar a usar e-mails. É mais rápido e mais seguro que chegue. Enviei várias cartas desde a que prometi vir, você não recebeu todas? — sacudi a cabeça em negação. — E-mails a partir de agora!
observava aquela cena nos olhando esquisito. Meus olhos sequer piscavam.
Eu só conseguia olhar para aquele cabelo castanho escuro que era o mesmo de sempre, assim como o brilho nos olhos castanhos esverdeados.
— Quem é ele? — foi a única coisa que saiu da boca de .
Castanhos esverdeados, como os meus.
— Meu irmão — minha voz saiu como um sussurro.
Arthur se virou para , e então sua expressão se contorceu em uma careta. Ele pareceu analisar meu amigo do celeiro sem muita cerimônia. Provavelmente mil coisas passavam pela sua cabeça sobre quem seria.
— E quem é ele? — foi a vez de Arthur perguntar, mas em português, nossa língua natal.
— É um amigo — respondi também em português, o que fez franzir o cenho ao meu lado.
Meu irmão comprimiu os olhos, mas logo esboçou um dos seus grandes sorrisos.
— Arthur — o mais velho direcionou sua mão até . O gesto era internacional, então demorou um segundo para que o garoto do mercado o cumprimentasse de volta.
— .
Eu ainda olhava chocada para o meu irmão mais velho, parado à minha frente. Tinha mais de um ano que não nos víamos pessoalmente e era difícil acreditar que meus olhos não estavam me traindo ou que aquilo era uma miragem provocada pela falta de poluição urbana.
Quando vi levantar as sobrancelhas, pronto para mais perguntas, resolvi puxar meu irmão para fora do mercado.
— A gente se vê mais tarde? — o garoto do mercado concordou na hora, com um aceno.
Respirei fundo, arrastando meu irmão para as ruas de pedra de Bourton-on-the-Water. Mesmo fora do mercado, aquela sensação de irrealidade ainda me atingia com força. Não dava para acreditar que Arthur estava ali. Que tinha vindo nos ver.
Eu sentia tanta falta do meu irmão.
Desde que ele ficou cansado das mudanças excessivas e tinha resolvido ficar permanentemente em Nova Iorque nos víamos muito, muito pouco. Era o que dava pela longa distância, então eu tentava aproveitar ao máximo quando era possível estarmos juntos.
Eu ainda não me sentia preparada para o que ele tinha feito. Ainda precisava de alguma coisa…
E tinha visto como essa separação afetou a nossa família. Realmente eu estava longe de estar pronta para ver a expressão que mamãe fez quando Arthur saiu de casa.
— Conseguiu chegar exatamente no dia do aniversário dele — minha voz ainda saía chocada.
Arthur sorriu, começando a acompanhar meus passos. Só ali percebi que carregava uma mochila enorme nas costas.
— Acha que o velho vai surtar?
— Com certeza — o abracei de novo. — Vai ser incrível!
A expressão no rosto do meu irmão mais velho dizia que ele não sabia se seria tão incrível assim, mas eu sinceramente esperava que fosse. Na última vez que nós quatro ficamos juntos, como uma família, tinha rolado alguns atritos, mas eu duvidava que papai fosse causar alguma briga nova por conta de coisas do passado.
— A casa fica aqui perto? — ele perguntou tranquilo, observando tudo ao redor. Parecia chocado como eu, mas de uma forma diferente. Estava sem reação para o lugar que vivíamos, 100% diferente de todas as cidades grandes.
— Sim. Mamãe e papai não sabem que você vinha, né?
Ele negou entre gestos.
— Não. E espero que isso não crie confusão.
— Eles estão completamente diferentes aqui em Cotswolds. Acho que o clima antigo e de cidade pequena mexeu com a cabeça deles.
Tinha anos que era tão raro estarmos nós quatro juntos que a gente esquecia de tudo. E o interior de Inglaterra tinha mudado meus pais também, para melhor.
Andamos pelas ruas curtas e eu apontava para tudo e todos, tentando fazer com que Arthur absorvesse rapidamente tudo daquele lugar. Um frio muito doido percorreu o meu corpo quando eu percebi uma coisa: eu queria que meu irmão gostasse de Bourton-on-the-Water.
Assim como eu gostava.
Nem acredito que já tem quase cinco meses que estamos aqui e como tudo faz sentido agora.
— Como foi a mudança de Paris?
Já tínhamos falado sobre isso, mas não pessoalmente. Suspire ao responder:
— Igual a Chicago.
— É mesmo? — ele levantou as sobrancelhas. — Pensei que lá fosse uma cidade melhor.
Só pude dar de ombros.
— A cidade é incrível, mas o clima foi o mesmo de Chicago.
— Quando você me disse que iam se mudar para a Inglaterra, achei que fossem ficar na cidade grande.
— Invenções de papai — parei em frente a nossa grande casa. — Seja bem-vindo à Veneza da Inglaterra. Não repare se tudo estiver de ponta cabeça. Vamos?
Diferente do silêncio constrangedor que eu esperava, assim que Arthur entrou em nossa sala um misto de alegria, abraços e latidos de cachorro pairou no ar. Toda vez que nos encontrávamos era incrível e diferente. Meu irmão sempre tinha novas histórias e eu sempre tinha novas reclamações sobre os nossos pais.
Minha mãe apertava as bochechas do filho mais velho.
— Você tem almoçado todos os dias? — a resposta de Arthur saiu engraçada devido ao aperto. — Não está parecendo, meu filho. Sorte que fiz um super almoço hoje, você vai adorar.
Meu pai se mantinha ao lado de minha mãe, esperando a sua vez de cumprimentar o filho que não via há quase um ano. Quando mamãe correu para ver alguma coisa na cozinha grande demais de nossa casa, os dois se abraçaram e eu imaginei que as desavenças do último encontro já estavam resolvidas.
Foi ali que percebi que prendi a respiração até que eles se falassem. Além de querer muito que Arthur gostasse de Cotswold, eu queria que todos agissem como a família que sempre fomos.
Astra latia sem parar. Minha mãe gritou da cozinha:
— Arthur, por favor, dê atenção ao cachorro.
Meu irmão abaixou e o cachorro explodiu em felicidade.
— E você, cara? Quem é?
Abaixei junto, recebendo algumas lambidas de Astra.
— Esse é o Astra. Papai trouxe de Londres.
Arthur me olhou sorrindo.
— Finalmente você tem o seu cachorro.
Tive de sorrir junto.
— Eu te falei que o interior os deixou diferentes.
E, assim como a recepção ao meu irmão, o almoço foi tranquilo e alegre. Mamãe falava sem parar sobre a vila, as amigas novas que tinha feito e outras coisas que nem eu conseguia acompanhar. Arthur sorria o tempo todo, como se fizesse questão de mostrar que estava feliz pela mulher. O mesmo acontecia do outro lado da mesa, onde papai tinha um sorriso tão grande nos lábios que era impossível não imitar.
Como família, sempre tivemos os atritos da convivência, mas no fim sempre existiu o amor e respeito que sentíamos uns pelos outros. Mesmo com todas as mudanças loucas (e tudo de ruim que elas traziam para Arthur e eu), eu ainda me sentia uma garota sortuda. Principalmente quando pensava nas famílias dos meus amigos do celeiro secreto. Mason e Riley com seus pais intolerantes e mandões, com a mãe que abandonou tudo e todos do nada…
Sinceramente ainda não entendia como tinha a força de estar sempre bem, não descontar em nada de forma ruim e ainda cuidar de sua irmã do jeito que fazia.
Eu queria poder ajudar mais.
Quando o almoço terminou, nos juntamos na sala para conversar ainda mais e eu só tive um novo momento a sós com o meu irmão mais velho quando papai decidiu que era hora da sua soneca pós-almoço. Mostrei cada canto da nossa enorme casa para Arthur, terminando em meu quarto. Foi a primeira vez que fez sentido ter um quarto de hóspedes naquele lugar.
Meu irmão se sentou na ponta da minha cama e só então percebi que ainda estava com a sua mochila em mãos.
— Trouxe uma coisa de Nova Iorque para você. Acredito que seja especial — Arthur disse ao me entregar um pacote médio.
O embrulho, muito mal feito por sinal, era vermelho sangue. Minha cor preferida. Um bolo de fita adesiva transparente remendava o presente. Girei a caixa em mãos. E lá estava o que meu coração mais esperava ver e ser verdade.
“De: Logan. Com amor.”
Com amor.
A única coisa que consegui fazer foi suspirar alto e lentamente.
— Como ele está?
— Bem — Arthur deu de ombros.
— E os outros?
— Estão todos bem — Arthur sorria abertamente. — Bree me mandou fazer um relatório sobre o interior, para que ela venha depois de minhas considerações – ele balançou a cabeça. — Sua amiga é maluca.
Sim, Bree era completamente maluca, mas só de pensar que ela poderia me visitar ali…
Sorri ainda mais.
***
No dia seguinte fiz a única coisa que me vinha à cabeça: levar Arthur para realmente conhecer a vila.
Eu queria que ele visse como o Rio Windrush era ridículo (principalmente a proibição de nadar por ali), queria que ele reparasse que tinha um ar esquisito de perfeição por todos os cantos. Mas, mais do que tudo, eu queria que ele entendesse que, mesmo sendo muito estranho, eu estava feliz ali. Estava feliz por entender que eu posso fazer o que eu tenho vontade, por ter amigos e por ter planos para o futuro.
Nós andamos por muitas ruas de pedras, vimos cafés, a The Cotswold School, o lugar esquisito dos pássaros que eu não me lembrava mais o nome. Passamos próximo ao Dragonfly Maze e a lembrança da promessa de aqueceu meu peito.
Me peguei sorrindo para a casquinha de sorvete que tinha em mãos e meu irmão não deixou aquilo passar.
— Então, tem amigos por aqui?
O olhei de lado, um sorrisinho já tomando meus lábios.
— O que você diria se eu dissesse que tenho um grupo de amigos e que ele é secreto?
— Eu diria que você está vivendo um filme de adolescentes — ele riu com as próprias palavras.
Andei a passos largos até um dos bancos de pedra na margem do rio Windrush e que, por sorte, tinha uma vista interessante, ao longe, do mercado vende-tudo dos .
— Então se sente, meu irmão, porque você tem muitas histórias minhas para ouvir!
Assim como ouviu atentamente todas as histórias doidas de mamãe, Arthur fez comigo. Mas eu sabia que ele estava verdadeiramente interessado… Só ele conseguia entender como era difícil mudar tanto de cidade e país, sozinho. Sem amigos e sem a menor pretensão de ter algum tipo de amizade, já que a gente nunca sabia por quanto tempo ficaria no lugar.
Aquele pensamento mais uma vez apertou o meu peito. Eu tinha prometido que viveria só o presente e que assim seria até o final do ano, quando as coisas provavelmente mudariam por completo…
Tagarelei um pouco mais, mas meus olhos foram atraídos para a fachada do mercado. saía com uma mochila nas costas, com Annabelle em seu encalço. Não parei de falar, mas foi o suficiente para Arthur olhar exatamente para onde meus olhos não conseguiam desviar.
reparou em nós, dando um aceno breve. Sua irmã só nos olhou.
Isso de “não me importo de ser visto com você fora do celeiro” era realmente muito, muito bom.
— E esse cara aí? — chegou a pergunta que eu já esperava. — Ele não te olha só como amiga.
— A gente tem… se divertido.
Arthur concordou com um gesto, olhando em volta da vila antes de pairar seus olhos em mim.
— Fico feliz, .
— Eu também — sorri, pegando o meu celular no bolso. Rapidamente achei a foto que todos tiramos juntos na festa à fantasia de Ella. — Esse aqui é o grupo doido que eu chamo de amigos.
Rodamos um pouco mais na vila até a hora do almoço, já que nossos pais nos esperavam para mais uma refeição juntos. Tivemos mais uma tarde alegre e aquilo me deixava cada vez mais nas nuvens.
Antes de começar um jogo de tabuleiro entre nós quatro, decidi que levaria Astra para dar uma volta, já que o cachorro tinha prontamente latido por quase uma hora, com tanta energia dentro do seu corpo. Andamos um pouco pelas ruas próximas e a vila estava estranhamente mais vazia. Parecia que as pessoas tinham saído para outra parte de Cotswold, como quando teve aquele baile ridículo beneficente em que quase fui obrigada a dançar com Mason.
Meu cachorro cheirava tudo e, na volta, quando nós passamos por uma rua de pedras diferente, ouvi algo estranho ao me espremer na calçada de um dos muitos cafés pequenos que tinham por ali.
— Acho que ela volta, sabe? — uma mulher de meia idade cochichou tão alto que foi impossível não ouvir.
— Por tudo o que já o vi sofrer, espero que não — uma segunda pessoa falou.
Pareceu uma conversa normal, mas o que fez meu coração gelar foi:
— Coitado do Rory, parece que nunca vai ter sossego… Os filhos não merecem isso.
Meu coração esfriou e pegou fogo em questão de segundos quando eu percebi que aquelas mulheres estavam falando da família de . Eu sabia que as pessoas fofocavam sobre a história dele, mas nunca tinha visto acontecer.
Um sentimento ruim me atingiu e eu não consegui entender o porquê. Contornei a rua com Astra novamente, passando na principal que daria no mercado dos , mas, já no final da rua dava para ver que as portas estavam completamente fechadas. Tinha visto sair de lá mais cedo com Annabelle, mas as portas fechadas era algo bem atípico.
Sacudi a cabeça tentando deixar aquela dormência esquisita de lado. A vila estava mais vazia que o normal, talvez por isso o mercado tivesse ganhado um folga.
Digitei uma mensagem para .
* : Está tudo bem? Vi o mercado fechado, ia passar com Astra…
Não tive retorno de imediato, mas também não esperava. Ele sempre demorava a dar sinal de vida pelo celular.
***
Não tive notícias de por quase dois dias. Era normal que ele demorasse para responder suas mensagens, mas aquele sentimento estranho crescia dentro de mim. Era muito, muito esquisito não ter notícias dele. Mas o celeiro já estava confirmado para aquela noite, porque Hayden queria debater sobre os possíveis planos contra o time de futebol.
Arrumei uma desculpa para sair e meu irmão sorriu quando percebeu que eu estava fugindo para ver os amigos que tinha pela vila. Ele me ajudou a enrolar a mamãe e eu prometi que voltaria em poucas horas.
Desci a rua a passos largos, meu coração já acelerado para encontrar com na esquina e entender o porquê do sumiço repentino dele.
Meus passos cessaram quando meu celular começou a vibrar loucamente.
* Riley Hunt: OK eu e Noah.
* Hayden King: Vou me atrasar, guardem o que quer que tenha lá para mim.
* Mila Hughes: @ precisa de carona, amiga?
* Riley Hunt: Noah pediu para dizer que ele pode dar carona para a …
* : @Mila Não precisa. Vou com .
* Bronwen Johnson-Wilkinson: Saindo...
* Hayden King: Noah como sempre lido e ignorado com sucesso. kkkkkkkkk
* Riley Hunt: Ele pediu para que eu te chamasse de ‘imbecil’. Recado dado.
* Mason Hunt: @Riley Vou até o seu quarto fazer vocês pararem.
Mandei algumas mensagens no privado de . Nada. Resolvi recorrer ao grupo:
* : Alguém sabe do ?
* Hayden King: O vi no mercado. Daqui a pouco aparece.
Olhei o celular novamente e percebi que a mensagem tinha sido enviada e tinha chegado, então ele ainda estava pela vila, onde tinha sinal. Mas não tive retorno. Resolvi ligar, o que também foi em vão.
Me encostei em uma das cercas de pedras de uma casa grande demais, suspirando alto. Mila atendeu em dois toques e me pegou na esquina com sua bicicleta rosa chiclete. Pelo caminho, contei tudo o que deu sobre o meu irmão e minha amiga parecia genuinamente feliz pela visita que Arthur estava fazendo à vila.
O sorriso e carinho de Mila me fizeram sentir aquela felicidade de novo, uma esperança doida de que as coisas no futuro podem e vão ser melhores. Está tudo bem pela vila, as pessoas parecem que se esqueceram de mim na escola, meu irmão estava na vila…
Entrei no celeiro com um sorriso daqueles, acenando para todos os meus amigos. Mas uma parte de mim fraquejou quando eu não vi por ali.
E, mal sabia eu, que não o veria pela noite inteira.
— Procura mais no fundo da prateleira.
Ouvi ele resmungar alguma coisa enquanto se debruçava ainda mais na escada, mas não entendi qual era a provável ofensa contra mim.
— Eu sei exatamente tudo o que tem nesse lugar, — a voz de saiu em um tom tedioso. De cima da escada ele olhou em meus olhos. — Se eu te disse que não tem, é porque não tem mesmo.
Foi a minha vez de resmungar.
O drama do dia era o seguinte: mamãe tinha inventado de fazer um bolo de aniversário para meu pai e toda vez ela colocava um tema ou assunto que ele tinha cismado naquele ano. Para o meu azar, estávamos na febre de Angry Birds e, para isso, minha mãe precisava de muitos, muitos granulados coloridos.
Coisa que não tinha no mercado dos . E nem em outro lugar de Bourton-on-the-Water (eu tinha feito ligar para outras lojas procurando aquela merda).
Observei descer a longa escada com calma. Quando pôs os pés no chão, esfregou as mãos, provavelmente tentando se livrar da poeira das grandes prateleiras da parte de cima da loja. Estávamos só nós dois e mais um cliente aleatório que ele já tinha atendido. Algumas pessoas que pareciam turistas entravam e diziam que estavam “dando uma olhada”, então nada que atrapalhasse ele a me ajudar com algo bobo como granulados para bolo.
E estávamos praticando bem a ideia de “não me importo de ser visto com você fora do celeiro”.
Eu estava adorando.
— Será que fica muito ruim colorir os normais? — ele coçou a cabeça quando o olhei. — Sei lá, mas acho que tenho corantes para comida.
Quando eu ia abrir a minha boca para dizer algo, meus olhos se prenderam em um novo cliente, que estava a alguns passos atrás de . Meu coração bateu tão forte que eu fiquei com medo de achar que eu ia infartar.
— O que aconteceu? — ele perguntou, talvez pelo choque em meu rosto.
Andei a passos largos até a pessoa que tinha acabado de entrar no mercado, sem acreditar muito no que via. Meus pés iam ficando mais rápidos ao se aproximar cada vez mais dele.
O garoto abriu os braços, me encaixando em um abraço particularmente perfeito. Seus braços me apertaram forte e eu engoli a minha vontade de chorar.
— Você veio.
Ele respondeu ainda abafado contra meu abraço.
— Eu não tinha te prometido?
Nos soltamos, mas eu ainda o olhava como se ele fosse irreal demais tão perto de mim.
— Mas você não respondeu mais as cartas, pensei que tinha desistido!
Ele riu do meu desespero, passando as mãos em meus cabelos.
— Sobre isso, nós temos que começar a usar e-mails. É mais rápido e mais seguro que chegue. Enviei várias cartas desde a que prometi vir, você não recebeu todas? — sacudi a cabeça em negação. — E-mails a partir de agora!
observava aquela cena nos olhando esquisito. Meus olhos sequer piscavam.
Eu só conseguia olhar para aquele cabelo castanho escuro que era o mesmo de sempre, assim como o brilho nos olhos castanhos esverdeados.
— Quem é ele? — foi a única coisa que saiu da boca de .
Castanhos esverdeados, como os meus.
— Meu irmão — minha voz saiu como um sussurro.
Arthur se virou para , e então sua expressão se contorceu em uma careta. Ele pareceu analisar meu amigo do celeiro sem muita cerimônia. Provavelmente mil coisas passavam pela sua cabeça sobre quem seria.
— E quem é ele? — foi a vez de Arthur perguntar, mas em português, nossa língua natal.
— É um amigo — respondi também em português, o que fez franzir o cenho ao meu lado.
Meu irmão comprimiu os olhos, mas logo esboçou um dos seus grandes sorrisos.
— Arthur — o mais velho direcionou sua mão até . O gesto era internacional, então demorou um segundo para que o garoto do mercado o cumprimentasse de volta.
— .
Eu ainda olhava chocada para o meu irmão mais velho, parado à minha frente. Tinha mais de um ano que não nos víamos pessoalmente e era difícil acreditar que meus olhos não estavam me traindo ou que aquilo era uma miragem provocada pela falta de poluição urbana.
Quando vi levantar as sobrancelhas, pronto para mais perguntas, resolvi puxar meu irmão para fora do mercado.
— A gente se vê mais tarde? — o garoto do mercado concordou na hora, com um aceno.
Respirei fundo, arrastando meu irmão para as ruas de pedra de Bourton-on-the-Water. Mesmo fora do mercado, aquela sensação de irrealidade ainda me atingia com força. Não dava para acreditar que Arthur estava ali. Que tinha vindo nos ver.
Eu sentia tanta falta do meu irmão.
Desde que ele ficou cansado das mudanças excessivas e tinha resolvido ficar permanentemente em Nova Iorque nos víamos muito, muito pouco. Era o que dava pela longa distância, então eu tentava aproveitar ao máximo quando era possível estarmos juntos.
Eu ainda não me sentia preparada para o que ele tinha feito. Ainda precisava de alguma coisa…
E tinha visto como essa separação afetou a nossa família. Realmente eu estava longe de estar pronta para ver a expressão que mamãe fez quando Arthur saiu de casa.
— Conseguiu chegar exatamente no dia do aniversário dele — minha voz ainda saía chocada.
Arthur sorriu, começando a acompanhar meus passos. Só ali percebi que carregava uma mochila enorme nas costas.
— Acha que o velho vai surtar?
— Com certeza — o abracei de novo. — Vai ser incrível!
A expressão no rosto do meu irmão mais velho dizia que ele não sabia se seria tão incrível assim, mas eu sinceramente esperava que fosse. Na última vez que nós quatro ficamos juntos, como uma família, tinha rolado alguns atritos, mas eu duvidava que papai fosse causar alguma briga nova por conta de coisas do passado.
— A casa fica aqui perto? — ele perguntou tranquilo, observando tudo ao redor. Parecia chocado como eu, mas de uma forma diferente. Estava sem reação para o lugar que vivíamos, 100% diferente de todas as cidades grandes.
— Sim. Mamãe e papai não sabem que você vinha, né?
Ele negou entre gestos.
— Não. E espero que isso não crie confusão.
— Eles estão completamente diferentes aqui em Cotswolds. Acho que o clima antigo e de cidade pequena mexeu com a cabeça deles.
Tinha anos que era tão raro estarmos nós quatro juntos que a gente esquecia de tudo. E o interior de Inglaterra tinha mudado meus pais também, para melhor.
Andamos pelas ruas curtas e eu apontava para tudo e todos, tentando fazer com que Arthur absorvesse rapidamente tudo daquele lugar. Um frio muito doido percorreu o meu corpo quando eu percebi uma coisa: eu queria que meu irmão gostasse de Bourton-on-the-Water.
Assim como eu gostava.
Nem acredito que já tem quase cinco meses que estamos aqui e como tudo faz sentido agora.
— Como foi a mudança de Paris?
Já tínhamos falado sobre isso, mas não pessoalmente. Suspire ao responder:
— Igual a Chicago.
— É mesmo? — ele levantou as sobrancelhas. — Pensei que lá fosse uma cidade melhor.
Só pude dar de ombros.
— A cidade é incrível, mas o clima foi o mesmo de Chicago.
— Quando você me disse que iam se mudar para a Inglaterra, achei que fossem ficar na cidade grande.
— Invenções de papai — parei em frente a nossa grande casa. — Seja bem-vindo à Veneza da Inglaterra. Não repare se tudo estiver de ponta cabeça. Vamos?
Diferente do silêncio constrangedor que eu esperava, assim que Arthur entrou em nossa sala um misto de alegria, abraços e latidos de cachorro pairou no ar. Toda vez que nos encontrávamos era incrível e diferente. Meu irmão sempre tinha novas histórias e eu sempre tinha novas reclamações sobre os nossos pais.
Minha mãe apertava as bochechas do filho mais velho.
— Você tem almoçado todos os dias? — a resposta de Arthur saiu engraçada devido ao aperto. — Não está parecendo, meu filho. Sorte que fiz um super almoço hoje, você vai adorar.
Meu pai se mantinha ao lado de minha mãe, esperando a sua vez de cumprimentar o filho que não via há quase um ano. Quando mamãe correu para ver alguma coisa na cozinha grande demais de nossa casa, os dois se abraçaram e eu imaginei que as desavenças do último encontro já estavam resolvidas.
Foi ali que percebi que prendi a respiração até que eles se falassem. Além de querer muito que Arthur gostasse de Cotswold, eu queria que todos agissem como a família que sempre fomos.
Astra latia sem parar. Minha mãe gritou da cozinha:
— Arthur, por favor, dê atenção ao cachorro.
Meu irmão abaixou e o cachorro explodiu em felicidade.
— E você, cara? Quem é?
Abaixei junto, recebendo algumas lambidas de Astra.
— Esse é o Astra. Papai trouxe de Londres.
Arthur me olhou sorrindo.
— Finalmente você tem o seu cachorro.
Tive de sorrir junto.
— Eu te falei que o interior os deixou diferentes.
E, assim como a recepção ao meu irmão, o almoço foi tranquilo e alegre. Mamãe falava sem parar sobre a vila, as amigas novas que tinha feito e outras coisas que nem eu conseguia acompanhar. Arthur sorria o tempo todo, como se fizesse questão de mostrar que estava feliz pela mulher. O mesmo acontecia do outro lado da mesa, onde papai tinha um sorriso tão grande nos lábios que era impossível não imitar.
Como família, sempre tivemos os atritos da convivência, mas no fim sempre existiu o amor e respeito que sentíamos uns pelos outros. Mesmo com todas as mudanças loucas (e tudo de ruim que elas traziam para Arthur e eu), eu ainda me sentia uma garota sortuda. Principalmente quando pensava nas famílias dos meus amigos do celeiro secreto. Mason e Riley com seus pais intolerantes e mandões, com a mãe que abandonou tudo e todos do nada…
Sinceramente ainda não entendia como tinha a força de estar sempre bem, não descontar em nada de forma ruim e ainda cuidar de sua irmã do jeito que fazia.
Eu queria poder ajudar mais.
Quando o almoço terminou, nos juntamos na sala para conversar ainda mais e eu só tive um novo momento a sós com o meu irmão mais velho quando papai decidiu que era hora da sua soneca pós-almoço. Mostrei cada canto da nossa enorme casa para Arthur, terminando em meu quarto. Foi a primeira vez que fez sentido ter um quarto de hóspedes naquele lugar.
Meu irmão se sentou na ponta da minha cama e só então percebi que ainda estava com a sua mochila em mãos.
— Trouxe uma coisa de Nova Iorque para você. Acredito que seja especial — Arthur disse ao me entregar um pacote médio.
O embrulho, muito mal feito por sinal, era vermelho sangue. Minha cor preferida. Um bolo de fita adesiva transparente remendava o presente. Girei a caixa em mãos. E lá estava o que meu coração mais esperava ver e ser verdade.
“De: Logan. Com amor.”
Com amor.
A única coisa que consegui fazer foi suspirar alto e lentamente.
— Como ele está?
— Bem — Arthur deu de ombros.
— E os outros?
— Estão todos bem — Arthur sorria abertamente. — Bree me mandou fazer um relatório sobre o interior, para que ela venha depois de minhas considerações – ele balançou a cabeça. — Sua amiga é maluca.
Sim, Bree era completamente maluca, mas só de pensar que ela poderia me visitar ali…
Sorri ainda mais.
No dia seguinte fiz a única coisa que me vinha à cabeça: levar Arthur para realmente conhecer a vila.
Eu queria que ele visse como o Rio Windrush era ridículo (principalmente a proibição de nadar por ali), queria que ele reparasse que tinha um ar esquisito de perfeição por todos os cantos. Mas, mais do que tudo, eu queria que ele entendesse que, mesmo sendo muito estranho, eu estava feliz ali. Estava feliz por entender que eu posso fazer o que eu tenho vontade, por ter amigos e por ter planos para o futuro.
Nós andamos por muitas ruas de pedras, vimos cafés, a The Cotswold School, o lugar esquisito dos pássaros que eu não me lembrava mais o nome. Passamos próximo ao Dragonfly Maze e a lembrança da promessa de aqueceu meu peito.
Me peguei sorrindo para a casquinha de sorvete que tinha em mãos e meu irmão não deixou aquilo passar.
— Então, tem amigos por aqui?
O olhei de lado, um sorrisinho já tomando meus lábios.
— O que você diria se eu dissesse que tenho um grupo de amigos e que ele é secreto?
— Eu diria que você está vivendo um filme de adolescentes — ele riu com as próprias palavras.
Andei a passos largos até um dos bancos de pedra na margem do rio Windrush e que, por sorte, tinha uma vista interessante, ao longe, do mercado vende-tudo dos .
— Então se sente, meu irmão, porque você tem muitas histórias minhas para ouvir!
Assim como ouviu atentamente todas as histórias doidas de mamãe, Arthur fez comigo. Mas eu sabia que ele estava verdadeiramente interessado… Só ele conseguia entender como era difícil mudar tanto de cidade e país, sozinho. Sem amigos e sem a menor pretensão de ter algum tipo de amizade, já que a gente nunca sabia por quanto tempo ficaria no lugar.
Aquele pensamento mais uma vez apertou o meu peito. Eu tinha prometido que viveria só o presente e que assim seria até o final do ano, quando as coisas provavelmente mudariam por completo…
Tagarelei um pouco mais, mas meus olhos foram atraídos para a fachada do mercado. saía com uma mochila nas costas, com Annabelle em seu encalço. Não parei de falar, mas foi o suficiente para Arthur olhar exatamente para onde meus olhos não conseguiam desviar.
reparou em nós, dando um aceno breve. Sua irmã só nos olhou.
Isso de “não me importo de ser visto com você fora do celeiro” era realmente muito, muito bom.
— E esse cara aí? — chegou a pergunta que eu já esperava. — Ele não te olha só como amiga.
— A gente tem… se divertido.
Arthur concordou com um gesto, olhando em volta da vila antes de pairar seus olhos em mim.
— Fico feliz, .
— Eu também — sorri, pegando o meu celular no bolso. Rapidamente achei a foto que todos tiramos juntos na festa à fantasia de Ella. — Esse aqui é o grupo doido que eu chamo de amigos.
Rodamos um pouco mais na vila até a hora do almoço, já que nossos pais nos esperavam para mais uma refeição juntos. Tivemos mais uma tarde alegre e aquilo me deixava cada vez mais nas nuvens.
Antes de começar um jogo de tabuleiro entre nós quatro, decidi que levaria Astra para dar uma volta, já que o cachorro tinha prontamente latido por quase uma hora, com tanta energia dentro do seu corpo. Andamos um pouco pelas ruas próximas e a vila estava estranhamente mais vazia. Parecia que as pessoas tinham saído para outra parte de Cotswold, como quando teve aquele baile ridículo beneficente em que quase fui obrigada a dançar com Mason.
Meu cachorro cheirava tudo e, na volta, quando nós passamos por uma rua de pedras diferente, ouvi algo estranho ao me espremer na calçada de um dos muitos cafés pequenos que tinham por ali.
— Acho que ela volta, sabe? — uma mulher de meia idade cochichou tão alto que foi impossível não ouvir.
— Por tudo o que já o vi sofrer, espero que não — uma segunda pessoa falou.
Pareceu uma conversa normal, mas o que fez meu coração gelar foi:
— Coitado do Rory, parece que nunca vai ter sossego… Os filhos não merecem isso.
Meu coração esfriou e pegou fogo em questão de segundos quando eu percebi que aquelas mulheres estavam falando da família de . Eu sabia que as pessoas fofocavam sobre a história dele, mas nunca tinha visto acontecer.
Um sentimento ruim me atingiu e eu não consegui entender o porquê. Contornei a rua com Astra novamente, passando na principal que daria no mercado dos , mas, já no final da rua dava para ver que as portas estavam completamente fechadas. Tinha visto sair de lá mais cedo com Annabelle, mas as portas fechadas era algo bem atípico.
Sacudi a cabeça tentando deixar aquela dormência esquisita de lado. A vila estava mais vazia que o normal, talvez por isso o mercado tivesse ganhado um folga.
Digitei uma mensagem para .
* : Está tudo bem? Vi o mercado fechado, ia passar com Astra…
Não tive retorno de imediato, mas também não esperava. Ele sempre demorava a dar sinal de vida pelo celular.
Não tive notícias de por quase dois dias. Era normal que ele demorasse para responder suas mensagens, mas aquele sentimento estranho crescia dentro de mim. Era muito, muito esquisito não ter notícias dele. Mas o celeiro já estava confirmado para aquela noite, porque Hayden queria debater sobre os possíveis planos contra o time de futebol.
Arrumei uma desculpa para sair e meu irmão sorriu quando percebeu que eu estava fugindo para ver os amigos que tinha pela vila. Ele me ajudou a enrolar a mamãe e eu prometi que voltaria em poucas horas.
Desci a rua a passos largos, meu coração já acelerado para encontrar com na esquina e entender o porquê do sumiço repentino dele.
Meus passos cessaram quando meu celular começou a vibrar loucamente.
* Riley Hunt: OK eu e Noah.
* Hayden King: Vou me atrasar, guardem o que quer que tenha lá para mim.
* Mila Hughes: @ precisa de carona, amiga?
* Riley Hunt: Noah pediu para dizer que ele pode dar carona para a …
* : @Mila Não precisa. Vou com .
* Bronwen Johnson-Wilkinson: Saindo...
* Hayden King: Noah como sempre lido e ignorado com sucesso. kkkkkkkkk
* Riley Hunt: Ele pediu para que eu te chamasse de ‘imbecil’. Recado dado.
* Mason Hunt: @Riley Vou até o seu quarto fazer vocês pararem.
Mandei algumas mensagens no privado de . Nada. Resolvi recorrer ao grupo:
* : Alguém sabe do ?
* Hayden King: O vi no mercado. Daqui a pouco aparece.
Olhei o celular novamente e percebi que a mensagem tinha sido enviada e tinha chegado, então ele ainda estava pela vila, onde tinha sinal. Mas não tive retorno. Resolvi ligar, o que também foi em vão.
Me encostei em uma das cercas de pedras de uma casa grande demais, suspirando alto. Mila atendeu em dois toques e me pegou na esquina com sua bicicleta rosa chiclete. Pelo caminho, contei tudo o que deu sobre o meu irmão e minha amiga parecia genuinamente feliz pela visita que Arthur estava fazendo à vila.
O sorriso e carinho de Mila me fizeram sentir aquela felicidade de novo, uma esperança doida de que as coisas no futuro podem e vão ser melhores. Está tudo bem pela vila, as pessoas parecem que se esqueceram de mim na escola, meu irmão estava na vila…
Entrei no celeiro com um sorriso daqueles, acenando para todos os meus amigos. Mas uma parte de mim fraquejou quando eu não vi por ali.
E, mal sabia eu, que não o veria pela noite inteira.
Capítulo 20 - Lembranças (Parte 2)
“O tempo não comprou passagem de volta. Tenho lembranças e não saudades.” (Mário Lago)
* : Cadê você??
Mandei a terceira mensagem igual e voltei a encarar o teto, com o celular agarrado ao peito. Três dias inteiros sem ter retorno. Ou no privado, ou no grupo. Mason dizia que estava tudo bem com o seu melhor amigo, mas não respondia a ninguém e isso era estranho demais.
Eu não sabia porque, mas sentia uma angústia sem igual pelo sumiço dele. Era horrível ouvir todos os boatos da vila, e mais horrível ainda era saber que provavelmente todos eram verdade. Meu coração pesava também por não ter ideia de onde ele estava, então não tinha nem como tentar ajudar com o que quer que fosse.
Eu estava prestes a tocar a campainha daquela casa.
Olhei novamente a minha última mensagem enviada. Um estalo percorreu meu corpo, o que me fez dar um pulo da cama. Procurei a primeira roupa que estava em minha frente, vestindo tudo com pressa. Catei os tênis que estavam jogados no tapete, calçando-os rapidamente. O ritmo do meu coração era tão forte que eu me sentia um pouco tonta.
Desci as escadas correndo, dando qualquer desculpa para mamãe, que estava de pé na ilha da cozinha, provavelmente preparando o jantar. Meu irmão apenas franziu o cenho, mas fez um gesto como se dissesse “eu me viro aqui, depois falamos”. Saí de casa determinada, indo em direção ao outro lado da vila — e então à entrada para a estrada de terra do celeiro.
A minha mensagem tinha sido enviada, mas não entregue.
poderia estar no celeiro.
Estava tão eufórica e esperançosa que não precisava cometer novamente a loucura de “roubar” uma bicicleta em algum jardim alheio. Eu iria andando. Sabia que era uma tentativa frustrada (porque o celular dele poderia simplesmente estar sem bateria ou desligado), mas resolvi que seria melhor me agarrar naquela ponta de esperança, mesmo que muito pequena e remota. Era melhor do que ter mais uma noite com zero retorno de .
Juntei em minha cabeça todas as peças possíveis para que eu não fosse fraca e voltasse atrás da loucura que estava fazendo. não gostava de ficar em casa e poderia acontecer igual ao dia em que o encontrei tocando violão sozinho no celeiro, em plena madrugada. Ele também não tinha recebido as minhas mensagens.
Cortei todas as mini ruas da vila, andando a passos tão rápidos que a rua principal virou quase um borrão em meus olhos. Poucos minutos depois eu já estava entrando na estrada de terra e mal iluminada do celeiro, quase colocando os pulmões para fora.
Tanto faz, nada me pararia.
Alguma coisa me dizia que eu estava indo para o lugar certo, mesmo sem ter ideia de onde seria isso. Meus passos rápidos viraram uma corrida descompassada. Meu coração batia mais forte do que nunca, meus cabelos bagunçados já grudavam em minha nuca, mas um pressentimento estranho me mantinha seguindo em frente. Eu só parei quando percebi que estava na metade do caminho e tudo ia ficando mais escuro. Respirei fundo, colocando as mãos nos joelhos. Passei uma das mãos na testa e no pescoço, em uma falha tentativa de me recuperar um pouco da corrida desengonçada.
Suspirei alto, uma vontade de gritar entalada na garganta. Mas, quando olhei para a frente, muitos metros à frente, uma sombra tomou forma.
Uma bicicleta velha e verde estava jogada no chão de terra.
Meus pés travaram, mas meus olhos contornaram todos os lugares possíveis. Girei várias vezes no mesmo lugar, tentando achar o que eu tanto queria.
E então eu o vi.
Sentado na grama, afastado da estrada de terra, quase invisível naquele ambiente praticamente sem iluminação.
A posição que seu corpo estava não era tão ruim assim, mas algo gritava para mim que tudo estava muito errado. estava sentado com os joelhos dobrados para cima, os braços aninhados nos joelhos e sua cabeça totalmente para baixo.
Dei passos largos até onde ele estava, tentando manter a força na minha voz ao dizer:
— ?
demorou muitos segundos para levantar a cabeça e me olhar. As roupas sujas de terra quase me preocuparam, mas o que me atingiu em cheio foi o seu olhar vazio. O brilho diferente de sempre naquele olho tão azul não estava mais lá.
Cheguei a arfar só de tentar imaginar o que podia ter acontecido.
Ele me observou calado, parecendo se esforçar para conseguir focar sua vista em mim.
— Está tudo bem? — tentei mais uma vez.
O garoto do mercado piscou forte ao continuar me observando, e então voltou para a posição anterior, com a cabeça enfiada entre os braços.
Toda e qualquer confiança que eu ainda sentia morreu com aquele gesto.
Respirei fundo algumas vezes antes de tentar novamente.
— Posso te levar para casa? — percebi que minha voz saiu tensa. — Você caiu da bicicleta?
Me agachei na hora para olhar mais de perto, já procurando por qualquer tipo de ferida ou arranhão por seu corpo. Demorou mais alguns segundos, mas quando levantou a cabeça novamente, mais uma parte de mim morreu. Suas mãos se apoiaram na grama suja, seus joelhos despencaram…
E foi assim que eu percebi. Mesmo com várias noites no celeiro com direito a muito álcool, eu nunca havia visto daquele jeito. E realmente pensei que nunca veria…
Completamente bêbado.
Ele começou a falar coisas sem muito sentido, a maioria apenas resmungos sobre a vida ou repetir o que entendi como "ela estava lá".
— — tentei novamente, e ele me olhou no mesmo instante, atônito — O que aconteceu?
Seus olhos finalmente focaram em mim e vi uma leve surpresa em sua expressão.
— ? — fiz um gesto afirmativo ao ouvir suas palavras tortas pela bebida. — O que...
— Você se machucou?
Me assustei quando ele balançou a cabeça com força e, em um piscar de olhos, se levantou da maneira mais desengonçada possível.
Era isso. Completamente bêbado.
ficou alguns segundos em pé, cambaleando de leve no mesmo lugar. Vi quando respirou fundo, parecendo se controlar. Quando me olhou de novo, esperei o pior.
— Ela estava… em Snowshill — sua voz saiu rouca, difícil. — Aqui do lado.
Quando eu ia abrir a boca, ele me interrompeu:
— Visitando uma amiga doente — suas palavras eram arrastadas e emboladas. — Você consegue acreditar nisso? Visitando uma amiga doente! — e agora já praticamente gritava. — Ano passado Annabelle teve catapora e quem estava aqui? Eu! — seus olhos eram uma mistura esquisita que beiravam a dor e… ódio. — Quando meu pai perdeu tudo, alguma visita? Não. E quando eu fiz dezoito anos? Nada!
Sua raiva já começava a me deixar tonta. Eu não sabia como agir.
— , eu… — foi o que consegui dizer.
Ele me olhou de um jeito que eu me preparei para levar uma rasteira.
— Eu não preciso das suas palavras de consolo, . Eu só preciso gritar.
Respirei fundo, tentando encontrar a calma que parecia fugir daquela estrada semi abandonada. cambaleava de um lado para o outro, andando em um círculo mal feito.
— Me deixa te ajudar… — tentei mais uma vez. Minha voz ainda saía falhada. — Do que você está falando?
Eu sabia que ele estava bêbado, mas tinha consciência de que não tinha contado a sua história para mim.
Ele cerrou os olhos claros em minha direção.
— Vai fingir que não sabe?
Respirei fundo pela décima quinta vez em minutos.
— Me desculpe.
Mas ele mal me ouviu.
— Ou vai me fazer falar algo que você já ouviu mil boatos nessa merda de vila?
Antes que eu pudesse pensar em reagir, ele deu um soco certeiro em uma das muitas árvores da beira da estrada de terra. Meu único movimento foi olhar aquela cena com o coração apertado. Eu não sabia o que fazer e ver tão destruído era muito… difícil.
suspirou alto, o que me pareceu uma forte tentativa para conter as lágrimas que teimavam em tentar escapar.
Aquilo deu um estalo em meu peito.
Pela primeira vez em alguns minutos eu soube exatamente como agir. Meus passos foram rápidos e logo meus braços estavam ao seu redor. Ele finalmente parou de andar, talvez até amolecendo no que eu forçava ser um abraço.
— Se acalma — minha voz saiu abafada em seu peito.
Ficamos assim por muitos segundos, minutos. Eu conseguia sentir o corpo de tremer de leve. Nos separamos por uma pequena distância e seus olhos claros tão vermelhos e molhados fizeram meu coração quase parar.
Quando ele abriu a boca, eu sabia que não estava preparada para o que viria.
— Acharam ela na cidade vizinha. Os detetives — eu podia sentir sua força ao segurar as lágrimas novamente. — Acharam a minha mãe, .
Meu choque foi o suficiente para que ele se soltasse da minha pegada e, um segundo depois, estava sentado de forma desajeitada no chão de terra. Ele estava pronto para desabar quando o segurei.
Foi naquele momento que eu fiquei apavorada. Se ele apagasse naquele fim de mundo, eu não conseguiria ajudar em nada. E, do jeito que ele estava, eu tinha medo de que desmaiasse por horas.
Meu instinto falou mais alto e eu o sacudi na mesma hora.
Minha voz tremia.
— Eu sei que você está fora de si, mas tenta, por favor.
Ele me olhou sem expressão alguma. Parecia pronto para me mandar ir a merda já que eu não parava de sacudir seu braço direito. O álcool parecia ter finalmente tomado conta do seu corpo por completo.
— O que você quer mesmo? — ele piscou pesado e eu quase infartei.
— Quero que fique aqui — respirei fundo ao dizer. — Vou arrumar ajuda para te levar para casa.
revirou os olhos e deitou as costas na grama.
— Eu não preciso de ajuda.
Eu ia brigar, mas reparei seus olhos já fechados. Sacudi seu braço pela milésima vez.
— Não dorme!
Ele puxou o braço com mais força do que normalmente faria.
— Não me enche, .
Em outra situação eu ficaria sentida com aquilo, mas o meu medo falava mais alto.
— , por favor.
Ele abriu os olhos ao ouvir o seu apelido. Realmente era uma arma secreta. Me olhou por um instante antes de dizer de forma embolada:
— Chama… o Mason.
Levantei de prontidão.
— Não saia daqui.
Montei na bicicleta verde e, sem pensar duas vezes, pedalei como se minha vida dependesse disso.
***
Entrei no bar do Sheppard com a calma que eu nem sabia que tinha. Assim que os olhos de Mason se encontraram com os meus, ele soube. Seus passos foram bem rápidos e antes que ele pudesse indagar algo, soltei com o melhor tom de voz possível:
— Preciso da sua ajuda.
— Onde ele está?
Demorou um piscar de olhos para Mason pegar as suas coisas, dar alguma desculpa qualquer para o dono do bar e sair correndo dali comigo. Ele disse que me levaria na bicicleta e eu fiquei um pouco aliviada só de ouvir aquilo, já que meus braços tremiam tanto que eu realmente estava com medo de sofrer um acidente naquela vila.
— Deixei ele perto do celeiro, um pouco antes, na estrada mesmo — suspirei ao dizer. — Acharam a mãe dele em algum lugar, Mason.
O menino à minha frente nada falou, só fez um gesto simples com a cabeça. Sua expressão estava tão fechada que só pude entender que ele também estava com medo.
Mason corria na bicicleta e eu mantinha os olhos fechados para não fazer nenhum movimento que nos deixasse cair. Talvez a adrenalina do momento estivesse fazendo ele andar tão rápido na bicicleta velha de .
Apenas contei os minutos que passavam como o vento forte em meu rosto.
***
estava deitado no mesmo lugar onde o deixei, mas agora de barriga para cima, as pernas e braços jogados e abertos na grama. Se alguém mais passasse ali certamente acharia que ele estava morto.
Soltei do quadro da bicicleta, com Mason andando a passos largos até o amigo. Ele se agachou ao lado de , cutucando o menino nos braços.
— ? — gemeu após vários cutucões. — Irmão, vamos. Vou te levar para casa.
abriu os olhos com dificuldade, sendo colocado sentado com a ajuda de Mason. Aquela cena partiu ainda mais o meu coração. Ele sacudiu a cabeça, como se negasse. Mason pareceu entender o que o amigo tentava falar.
— Nós vamos para casa. Estou aqui para te levar.
— Eu não vou a lugar algum — respondeu e fez menção para deitar novamente, mas por sorte Mason o segurou sentado. — Me deixa em paz, cara.
Mason trocou olhares comigo e depois soltou:
— Se você vai ficar aqui, eu também vou.
Aquilo pareceu acordar um pouco .
— O quê?
— Se você ficar aqui, eu fico — e deu de ombros. — Estou sempre com você, lembra?
Meus olhos se encheram d’água novamente. Eu já sabia que e Mason eram melhores amigos desde sempre, mas ainda me comovia ver o jeito com que se apoiavam em tudo.
Eu tive grandes amigos em Nova Iorque, mas aquilo ali, o que eles tinham, eu nunca tinha sentido.
resmungou mais um pouco.
— Tanto faz.
Mason ainda o segurava.
— O que aconteceu com você?
O menino do mercado bufou alto.
— A mesma merda de sempre.
Mason me olhou de relance, mas nada saiu da minha boca.
continuou, em meio a soluços de bêbado:
— Quem iria imaginar… Oito anos… depois.
Mason sacudiu a cabeça, como se entendesse.
— Vem, vamos para casa agora. Já estamos aqui há três horas falando sobre isso.
O menino ao seu lado o olhou de cenho franzido.
— Tudo isso?
Quase me permiti rir por sua mentira. Mason sorriu de leve.
— Tudo isso. Agora, vamos. Você não quer deixar Annabelle preocupada.
Aquilo parecia a arma final para fazer se levantar por conta própria. Mas Mason continuou:
— E nem o seu pai. É uma hora para se apoiar. E por isso eu e estamos aqui também.
olhava para o nada.
— …
Meu corpo gelou assim que ele falou o meu nome de um jeito esquisito. Seu olhar azul-claro se encontrou com o meu, mas seus olhos nada diziam. Ele abriu a boca para continuar a dizer algo, mas a fechou, como se pensasse duas vezes.
Mason confirmou.
— Sim, — e o levantou pelos braços. — Vamos para casa.
Queria muito ter conseguido levar para casa sozinha, mas isso só ia atrair atenção indevida pela vila. Eu não queria que um ser vivo sequer visse ele daquele jeito, tão despedaçado.
Mason carregava o menino de lado, com os braços moles da bebida encaixados em seu ombro. Eles tinham praticamente a mesma altura, mas eu conseguia ver a dificuldade de Mason para levar , que parecia que iria desabar na estrada de terra a qualquer momento. Eu tentava ajudar da melhor maneira, levando a bicicleta e tirando qualquer pedra ou objeto esquisito do caminho dos dois.
Foi um caminho longo e difícil, mas, depois de muitos minutos (inclusive segurando o meu choro), chegamos à casa dos .
Observei Mason analisar a fachada da casa, ainda calado. Vi quando franziu o cenho e talvez eu tenha percebido a mesma coisa: todas as luzes estavam apagadas. Isso indicava que, provavelmente, não tinha ninguém em casa.
Mason abaixou perto de , que agora estava sentado na sacada, e começou a mexer nos bolsos do amigo. Inspecionou calça e casaco, até dar um leve sorriso ao ter um molho de chaves em mãos.
Aceitei a mini vitória. Pelo menos a gente não ia precisar arrombar a casa de e piorar ainda mais aquela noite.
Ele se levantou, abriu a porta principal e sumiu dentro da casa. Esperei na escuridão do lado de fora, perto de muitas moitas do jardim de entrada. Minutos depois — e algumas unhas devidamente roídas pela ansiedade, Mason saiu pela porta ajeitando seu casaco. Sua expressão parecia indecifrável.
— Rory não está em casa — e se abaixou perto de novamente. — Me ajuda a levar ele para o quarto.
Concordei com um gesto, já pegando um lado do corpo de para servir de apoio. Ele continuava apagado na pequena escada, o que fazia o meu coração se quebrar um pouco mais.
— E Annabelle? — perguntei antes de levantar.
— Também não.
Mais uma vez tentei manter a calma que eu nem sabia de onde tirar. Nos levantamos e, deixando um rastro de objetos caídos pelo caminho, conseguimos, juntos, colocar dentro da sala de casa.
Foi difícil. Meu corpo tremia com o seu peso, mesmo que Mason tentasse suportar 70% com o seu próprio corpo. Carregar alguém desacordado era mais complicado do que carregar alguém que conseguia ao menos rastejar um pouco.
— Por aqui — Mason apontou com a cabeça para a direita e entramos em um corredor completamente escuro.
Tropecei em um tapete e xinguei baixinho, mas nem o movimento brusco da quase queda fez acordar. Continuamos nos arrastando por mais alguns metros, até que Mason abriu uma das portas. Por sorte, a casa dos tinha apenas um andar, senão estaríamos completamente ferrados.
Vi que estávamos no banheiro quando a luz se acendeu.
— Vou jogar ele dentro do chuveiro — a voz de Mason saiu cansada. — Você arruma a cama, por favor?
Suspirei alto quando o peso de saiu do meu ombro direito. Não sei como, mas Mason conseguiu fazer o melhor amigo ficar embaixo do chuveiro e deixou a água cair.
Eu ainda estava absorta em tudo o que acontecia. Me sentia quebrada, pequena e impotente. Muito impotente por não ter nada que pudesse fazer para consertar tudo aquilo para .
— É a próxima porta do corredor, na direita.
Saí pelo corredor assim que ouvi um gemido fraco vindo de . Com toda aquela água gelada ele iria acordar e eu não sabia se estava preparada para vê-lo naquele estado deplorável novamente.
Parei em frente à porta que Mason falou e, quando a abri e acendi as luzes, toda a falsa calma que eu estava tentando transparecer se ruiu na hora.
Eu nunca tinha entrado no quarto dele.
Por me mudar tanto, eu levava a sério o quarto de uma pessoa. Era sempre o lugar em que cada um podia ser você mesmo, expor as coisas que mais gostava, decorar do jeito que a sua personalidade pedia. E, do mesmo jeito que eu amei o quarto de Mila, eu amei o de .
Era simples, mas transmitia exatamente o que ele era: direto, divertido e especial. As paredes tinham um tom de azul, muito parecido com os seus olhos claros demais. As cortinas, verdes. O espaço tinha uma escrivaninha branca cheia de livros e papéis jogados, um notebook aberto e uma luminária. Na direita, um armário um pouco grande demais, uma poltrona cheia de roupas jogadas de qualquer jeito. Na esquerda, uma cama de casal com lençóis verdes.
E na única parede livre, muitas fotos. Fotos de todos os lugares diferentes do mundo, como se ele fizesse uma lista pessoal do que gostaria de visitar sem falta quando saísse de Cotswolds.
Retirei a colcha da cama e toda a bagunça que estava por ali, para que ele pudesse deitar sem problemas, mas um detalhe na escrivaninha me chamou atenção e meu corpo congelou.
A única foto com pessoas era uma no celeiro.
E eu estava nela.
Uma emoção diferente tomou meu corpo e eu tive que respirar fundo umas dez vezes para não perder o controle das lágrimas que queriam sair desde o momento em que o encontrei sentado e destruído naquela estrada de terra.
Peguei a foto nas mãos, analisando o clique. Estávamos todos fantasiados para a festa de Ella. Eu tinha várias fotos nossas daquele dia, mas o que me pegou desprevenida foi que tinha um clique completamente diferente, um que eu nem mesmo tinha visto antes. Todos estavam praticamente falando na foto e sorria ao me olhar ao seu lado, enquanto eu mesma dava risada de algo, de olhos fechados.
Meu coração errou uma batida com o que eu senti olhando aquilo.
Por sorte, antes que tudo dentro de mim desmoronasse, Mason entrou no quarto. estava pendurado ao seu corpo, mas parecia semi acordado agora, pois conseguiu dar alguns passos até a beirada da cama. Seu cabelo estava molhado, mas, de alguma forma, seu corpo estava seco, e vestia uma espécie de roupão de banho.
Quando ele conseguiu se sentar desajeitadamente na cama, Mason disse como se lesse minha mente:
— Foi o mais fácil que achei.
Concordei de prontidão, já tentando ajudar o garoto a colocar na cama. parecia estar meio acordado, meio dormindo, mas eu sabia que estava muito bêbado ainda.
Assim que ele conseguiu deitar, peguei um dos cobertores e o cobri. Não foi uma surpresa que ele apagou na mesma hora. Mason suspirou alto, se jogou na poltrona com as milhares de roupas e eu me mantive concentrada em .
Sua expressão agora parecia um pouco mais tranquila, mas nada tiraria aquela sensação horrível de impotência do meu corpo.
— E se ele passar mal? — quebrei nosso silêncio, ainda olhando dormir. — Não tem ninguém aqui.
— Vou ficar até amanhecer — Mason respondeu na mesma hora.
— O que fazemos agora?
— É a primeira vez que temos notícias de Elena. Ele vai precisar de uns dias.
Me virei para observar Mason. Ele coçou a nuca e aquilo me deixou mais tranquila pela familiaridade do gesto. Pensava se ou Mason que tinha começado com aquilo.
Afofei as cobertas novamente e passei as mãos em seus cabelos molhados, tentando tirar um pouco da sua testa. Sua pele estava quente, mesmo que o banho com certeza tenha sido gelado. Depositei um beijo em sua bochecha, tentando passar toda a força que eu podia.
— Me avisa como ele está, por favor.
Ouvi um barulho afirmativo vindo de Mason.
— Obrigado por me chamar, .
Foi a minha vez de concordar.
— Ele vai ficar bem, né?
Mason sorriu quando o olhei. Mais uma vez consegui ver o quanto ele estava preocupado com o amigo, mas algo me dizia que eles já tinham passado por isso antes.
— Sim, vai ficar tudo bem.
Concordei com um gesto pela milésima vez naquela noite. Quando me afastei para ir embora, acabei falando demais:
— Ele… — suspirei alto. — Eu sei que é esquisito falar isso em pouco tempo morando aqui, mas… Ele é o melhor amigo que eu já tive.
Mason sorriu tão sincero que eu quase me permiti chorar.
— Eu sei, . Sinto a mesma coisa, talvez seja o super poder de … E você é importante para ele.
— Mesmo? — minha voz saiu realmente surpresa.
— Mesmo. Eu e ele somos irmãos de famílias diferentes, conheço muito bem.
— Obrigada, Mason.
Deixei um beijo rápido em sua bochecha, como um segundo agradecimento. Desci as escadas com a promessa de que ele me mandaria mensagens durante a noite para que eu pudesse acompanhar a recuperação de , já que estava tarde e eu não tinha uma boa desculpa para ficar fora de casa naquele dia.
Quando saí porta afora, marchei na direção da minha casa com um turbilhão de sentimentos no peito e na mente.
E, mesmo com toda aquela confusão e sem saber muito como agir, de uma coisa eu tive certeza: sabia que lembranças daquele nível não eram fáceis de esquecer ou deixar de lado, mas faria de tudo para melhorar aquela parte da vida de . Por tudo o que ele já tinha feito por mim, em poucos meses.
* : Cadê você??
Mandei a terceira mensagem igual e voltei a encarar o teto, com o celular agarrado ao peito. Três dias inteiros sem ter retorno. Ou no privado, ou no grupo. Mason dizia que estava tudo bem com o seu melhor amigo, mas não respondia a ninguém e isso era estranho demais.
Eu não sabia porque, mas sentia uma angústia sem igual pelo sumiço dele. Era horrível ouvir todos os boatos da vila, e mais horrível ainda era saber que provavelmente todos eram verdade. Meu coração pesava também por não ter ideia de onde ele estava, então não tinha nem como tentar ajudar com o que quer que fosse.
Eu estava prestes a tocar a campainha daquela casa.
Olhei novamente a minha última mensagem enviada. Um estalo percorreu meu corpo, o que me fez dar um pulo da cama. Procurei a primeira roupa que estava em minha frente, vestindo tudo com pressa. Catei os tênis que estavam jogados no tapete, calçando-os rapidamente. O ritmo do meu coração era tão forte que eu me sentia um pouco tonta.
Desci as escadas correndo, dando qualquer desculpa para mamãe, que estava de pé na ilha da cozinha, provavelmente preparando o jantar. Meu irmão apenas franziu o cenho, mas fez um gesto como se dissesse “eu me viro aqui, depois falamos”. Saí de casa determinada, indo em direção ao outro lado da vila — e então à entrada para a estrada de terra do celeiro.
A minha mensagem tinha sido enviada, mas não entregue.
poderia estar no celeiro.
Estava tão eufórica e esperançosa que não precisava cometer novamente a loucura de “roubar” uma bicicleta em algum jardim alheio. Eu iria andando. Sabia que era uma tentativa frustrada (porque o celular dele poderia simplesmente estar sem bateria ou desligado), mas resolvi que seria melhor me agarrar naquela ponta de esperança, mesmo que muito pequena e remota. Era melhor do que ter mais uma noite com zero retorno de .
Juntei em minha cabeça todas as peças possíveis para que eu não fosse fraca e voltasse atrás da loucura que estava fazendo. não gostava de ficar em casa e poderia acontecer igual ao dia em que o encontrei tocando violão sozinho no celeiro, em plena madrugada. Ele também não tinha recebido as minhas mensagens.
Cortei todas as mini ruas da vila, andando a passos tão rápidos que a rua principal virou quase um borrão em meus olhos. Poucos minutos depois eu já estava entrando na estrada de terra e mal iluminada do celeiro, quase colocando os pulmões para fora.
Tanto faz, nada me pararia.
Alguma coisa me dizia que eu estava indo para o lugar certo, mesmo sem ter ideia de onde seria isso. Meus passos rápidos viraram uma corrida descompassada. Meu coração batia mais forte do que nunca, meus cabelos bagunçados já grudavam em minha nuca, mas um pressentimento estranho me mantinha seguindo em frente. Eu só parei quando percebi que estava na metade do caminho e tudo ia ficando mais escuro. Respirei fundo, colocando as mãos nos joelhos. Passei uma das mãos na testa e no pescoço, em uma falha tentativa de me recuperar um pouco da corrida desengonçada.
Suspirei alto, uma vontade de gritar entalada na garganta. Mas, quando olhei para a frente, muitos metros à frente, uma sombra tomou forma.
Uma bicicleta velha e verde estava jogada no chão de terra.
Meus pés travaram, mas meus olhos contornaram todos os lugares possíveis. Girei várias vezes no mesmo lugar, tentando achar o que eu tanto queria.
E então eu o vi.
Sentado na grama, afastado da estrada de terra, quase invisível naquele ambiente praticamente sem iluminação.
A posição que seu corpo estava não era tão ruim assim, mas algo gritava para mim que tudo estava muito errado. estava sentado com os joelhos dobrados para cima, os braços aninhados nos joelhos e sua cabeça totalmente para baixo.
Dei passos largos até onde ele estava, tentando manter a força na minha voz ao dizer:
— ?
demorou muitos segundos para levantar a cabeça e me olhar. As roupas sujas de terra quase me preocuparam, mas o que me atingiu em cheio foi o seu olhar vazio. O brilho diferente de sempre naquele olho tão azul não estava mais lá.
Cheguei a arfar só de tentar imaginar o que podia ter acontecido.
Ele me observou calado, parecendo se esforçar para conseguir focar sua vista em mim.
— Está tudo bem? — tentei mais uma vez.
O garoto do mercado piscou forte ao continuar me observando, e então voltou para a posição anterior, com a cabeça enfiada entre os braços.
Toda e qualquer confiança que eu ainda sentia morreu com aquele gesto.
Respirei fundo algumas vezes antes de tentar novamente.
— Posso te levar para casa? — percebi que minha voz saiu tensa. — Você caiu da bicicleta?
Me agachei na hora para olhar mais de perto, já procurando por qualquer tipo de ferida ou arranhão por seu corpo. Demorou mais alguns segundos, mas quando levantou a cabeça novamente, mais uma parte de mim morreu. Suas mãos se apoiaram na grama suja, seus joelhos despencaram…
E foi assim que eu percebi. Mesmo com várias noites no celeiro com direito a muito álcool, eu nunca havia visto daquele jeito. E realmente pensei que nunca veria…
Completamente bêbado.
Ele começou a falar coisas sem muito sentido, a maioria apenas resmungos sobre a vida ou repetir o que entendi como "ela estava lá".
— — tentei novamente, e ele me olhou no mesmo instante, atônito — O que aconteceu?
Seus olhos finalmente focaram em mim e vi uma leve surpresa em sua expressão.
— ? — fiz um gesto afirmativo ao ouvir suas palavras tortas pela bebida. — O que...
— Você se machucou?
Me assustei quando ele balançou a cabeça com força e, em um piscar de olhos, se levantou da maneira mais desengonçada possível.
Era isso. Completamente bêbado.
ficou alguns segundos em pé, cambaleando de leve no mesmo lugar. Vi quando respirou fundo, parecendo se controlar. Quando me olhou de novo, esperei o pior.
— Ela estava… em Snowshill — sua voz saiu rouca, difícil. — Aqui do lado.
Quando eu ia abrir a boca, ele me interrompeu:
— Visitando uma amiga doente — suas palavras eram arrastadas e emboladas. — Você consegue acreditar nisso? Visitando uma amiga doente! — e agora já praticamente gritava. — Ano passado Annabelle teve catapora e quem estava aqui? Eu! — seus olhos eram uma mistura esquisita que beiravam a dor e… ódio. — Quando meu pai perdeu tudo, alguma visita? Não. E quando eu fiz dezoito anos? Nada!
Sua raiva já começava a me deixar tonta. Eu não sabia como agir.
— , eu… — foi o que consegui dizer.
Ele me olhou de um jeito que eu me preparei para levar uma rasteira.
— Eu não preciso das suas palavras de consolo, . Eu só preciso gritar.
Respirei fundo, tentando encontrar a calma que parecia fugir daquela estrada semi abandonada. cambaleava de um lado para o outro, andando em um círculo mal feito.
— Me deixa te ajudar… — tentei mais uma vez. Minha voz ainda saía falhada. — Do que você está falando?
Eu sabia que ele estava bêbado, mas tinha consciência de que não tinha contado a sua história para mim.
Ele cerrou os olhos claros em minha direção.
— Vai fingir que não sabe?
Respirei fundo pela décima quinta vez em minutos.
— Me desculpe.
Mas ele mal me ouviu.
— Ou vai me fazer falar algo que você já ouviu mil boatos nessa merda de vila?
Antes que eu pudesse pensar em reagir, ele deu um soco certeiro em uma das muitas árvores da beira da estrada de terra. Meu único movimento foi olhar aquela cena com o coração apertado. Eu não sabia o que fazer e ver tão destruído era muito… difícil.
suspirou alto, o que me pareceu uma forte tentativa para conter as lágrimas que teimavam em tentar escapar.
Aquilo deu um estalo em meu peito.
Pela primeira vez em alguns minutos eu soube exatamente como agir. Meus passos foram rápidos e logo meus braços estavam ao seu redor. Ele finalmente parou de andar, talvez até amolecendo no que eu forçava ser um abraço.
— Se acalma — minha voz saiu abafada em seu peito.
Ficamos assim por muitos segundos, minutos. Eu conseguia sentir o corpo de tremer de leve. Nos separamos por uma pequena distância e seus olhos claros tão vermelhos e molhados fizeram meu coração quase parar.
Quando ele abriu a boca, eu sabia que não estava preparada para o que viria.
— Acharam ela na cidade vizinha. Os detetives — eu podia sentir sua força ao segurar as lágrimas novamente. — Acharam a minha mãe, .
Meu choque foi o suficiente para que ele se soltasse da minha pegada e, um segundo depois, estava sentado de forma desajeitada no chão de terra. Ele estava pronto para desabar quando o segurei.
Foi naquele momento que eu fiquei apavorada. Se ele apagasse naquele fim de mundo, eu não conseguiria ajudar em nada. E, do jeito que ele estava, eu tinha medo de que desmaiasse por horas.
Meu instinto falou mais alto e eu o sacudi na mesma hora.
Minha voz tremia.
— Eu sei que você está fora de si, mas tenta, por favor.
Ele me olhou sem expressão alguma. Parecia pronto para me mandar ir a merda já que eu não parava de sacudir seu braço direito. O álcool parecia ter finalmente tomado conta do seu corpo por completo.
— O que você quer mesmo? — ele piscou pesado e eu quase infartei.
— Quero que fique aqui — respirei fundo ao dizer. — Vou arrumar ajuda para te levar para casa.
revirou os olhos e deitou as costas na grama.
— Eu não preciso de ajuda.
Eu ia brigar, mas reparei seus olhos já fechados. Sacudi seu braço pela milésima vez.
— Não dorme!
Ele puxou o braço com mais força do que normalmente faria.
— Não me enche, .
Em outra situação eu ficaria sentida com aquilo, mas o meu medo falava mais alto.
— , por favor.
Ele abriu os olhos ao ouvir o seu apelido. Realmente era uma arma secreta. Me olhou por um instante antes de dizer de forma embolada:
— Chama… o Mason.
Levantei de prontidão.
— Não saia daqui.
Montei na bicicleta verde e, sem pensar duas vezes, pedalei como se minha vida dependesse disso.
Entrei no bar do Sheppard com a calma que eu nem sabia que tinha. Assim que os olhos de Mason se encontraram com os meus, ele soube. Seus passos foram bem rápidos e antes que ele pudesse indagar algo, soltei com o melhor tom de voz possível:
— Preciso da sua ajuda.
— Onde ele está?
Demorou um piscar de olhos para Mason pegar as suas coisas, dar alguma desculpa qualquer para o dono do bar e sair correndo dali comigo. Ele disse que me levaria na bicicleta e eu fiquei um pouco aliviada só de ouvir aquilo, já que meus braços tremiam tanto que eu realmente estava com medo de sofrer um acidente naquela vila.
— Deixei ele perto do celeiro, um pouco antes, na estrada mesmo — suspirei ao dizer. — Acharam a mãe dele em algum lugar, Mason.
O menino à minha frente nada falou, só fez um gesto simples com a cabeça. Sua expressão estava tão fechada que só pude entender que ele também estava com medo.
Mason corria na bicicleta e eu mantinha os olhos fechados para não fazer nenhum movimento que nos deixasse cair. Talvez a adrenalina do momento estivesse fazendo ele andar tão rápido na bicicleta velha de .
Apenas contei os minutos que passavam como o vento forte em meu rosto.
estava deitado no mesmo lugar onde o deixei, mas agora de barriga para cima, as pernas e braços jogados e abertos na grama. Se alguém mais passasse ali certamente acharia que ele estava morto.
Soltei do quadro da bicicleta, com Mason andando a passos largos até o amigo. Ele se agachou ao lado de , cutucando o menino nos braços.
— ? — gemeu após vários cutucões. — Irmão, vamos. Vou te levar para casa.
abriu os olhos com dificuldade, sendo colocado sentado com a ajuda de Mason. Aquela cena partiu ainda mais o meu coração. Ele sacudiu a cabeça, como se negasse. Mason pareceu entender o que o amigo tentava falar.
— Nós vamos para casa. Estou aqui para te levar.
— Eu não vou a lugar algum — respondeu e fez menção para deitar novamente, mas por sorte Mason o segurou sentado. — Me deixa em paz, cara.
Mason trocou olhares comigo e depois soltou:
— Se você vai ficar aqui, eu também vou.
Aquilo pareceu acordar um pouco .
— O quê?
— Se você ficar aqui, eu fico — e deu de ombros. — Estou sempre com você, lembra?
Meus olhos se encheram d’água novamente. Eu já sabia que e Mason eram melhores amigos desde sempre, mas ainda me comovia ver o jeito com que se apoiavam em tudo.
Eu tive grandes amigos em Nova Iorque, mas aquilo ali, o que eles tinham, eu nunca tinha sentido.
resmungou mais um pouco.
— Tanto faz.
Mason ainda o segurava.
— O que aconteceu com você?
O menino do mercado bufou alto.
— A mesma merda de sempre.
Mason me olhou de relance, mas nada saiu da minha boca.
continuou, em meio a soluços de bêbado:
— Quem iria imaginar… Oito anos… depois.
Mason sacudiu a cabeça, como se entendesse.
— Vem, vamos para casa agora. Já estamos aqui há três horas falando sobre isso.
O menino ao seu lado o olhou de cenho franzido.
— Tudo isso?
Quase me permiti rir por sua mentira. Mason sorriu de leve.
— Tudo isso. Agora, vamos. Você não quer deixar Annabelle preocupada.
Aquilo parecia a arma final para fazer se levantar por conta própria. Mas Mason continuou:
— E nem o seu pai. É uma hora para se apoiar. E por isso eu e estamos aqui também.
olhava para o nada.
— …
Meu corpo gelou assim que ele falou o meu nome de um jeito esquisito. Seu olhar azul-claro se encontrou com o meu, mas seus olhos nada diziam. Ele abriu a boca para continuar a dizer algo, mas a fechou, como se pensasse duas vezes.
Mason confirmou.
— Sim, — e o levantou pelos braços. — Vamos para casa.
Queria muito ter conseguido levar para casa sozinha, mas isso só ia atrair atenção indevida pela vila. Eu não queria que um ser vivo sequer visse ele daquele jeito, tão despedaçado.
Mason carregava o menino de lado, com os braços moles da bebida encaixados em seu ombro. Eles tinham praticamente a mesma altura, mas eu conseguia ver a dificuldade de Mason para levar , que parecia que iria desabar na estrada de terra a qualquer momento. Eu tentava ajudar da melhor maneira, levando a bicicleta e tirando qualquer pedra ou objeto esquisito do caminho dos dois.
Foi um caminho longo e difícil, mas, depois de muitos minutos (inclusive segurando o meu choro), chegamos à casa dos .
Observei Mason analisar a fachada da casa, ainda calado. Vi quando franziu o cenho e talvez eu tenha percebido a mesma coisa: todas as luzes estavam apagadas. Isso indicava que, provavelmente, não tinha ninguém em casa.
Mason abaixou perto de , que agora estava sentado na sacada, e começou a mexer nos bolsos do amigo. Inspecionou calça e casaco, até dar um leve sorriso ao ter um molho de chaves em mãos.
Aceitei a mini vitória. Pelo menos a gente não ia precisar arrombar a casa de e piorar ainda mais aquela noite.
Ele se levantou, abriu a porta principal e sumiu dentro da casa. Esperei na escuridão do lado de fora, perto de muitas moitas do jardim de entrada. Minutos depois — e algumas unhas devidamente roídas pela ansiedade, Mason saiu pela porta ajeitando seu casaco. Sua expressão parecia indecifrável.
— Rory não está em casa — e se abaixou perto de novamente. — Me ajuda a levar ele para o quarto.
Concordei com um gesto, já pegando um lado do corpo de para servir de apoio. Ele continuava apagado na pequena escada, o que fazia o meu coração se quebrar um pouco mais.
— E Annabelle? — perguntei antes de levantar.
— Também não.
Mais uma vez tentei manter a calma que eu nem sabia de onde tirar. Nos levantamos e, deixando um rastro de objetos caídos pelo caminho, conseguimos, juntos, colocar dentro da sala de casa.
Foi difícil. Meu corpo tremia com o seu peso, mesmo que Mason tentasse suportar 70% com o seu próprio corpo. Carregar alguém desacordado era mais complicado do que carregar alguém que conseguia ao menos rastejar um pouco.
— Por aqui — Mason apontou com a cabeça para a direita e entramos em um corredor completamente escuro.
Tropecei em um tapete e xinguei baixinho, mas nem o movimento brusco da quase queda fez acordar. Continuamos nos arrastando por mais alguns metros, até que Mason abriu uma das portas. Por sorte, a casa dos tinha apenas um andar, senão estaríamos completamente ferrados.
Vi que estávamos no banheiro quando a luz se acendeu.
— Vou jogar ele dentro do chuveiro — a voz de Mason saiu cansada. — Você arruma a cama, por favor?
Suspirei alto quando o peso de saiu do meu ombro direito. Não sei como, mas Mason conseguiu fazer o melhor amigo ficar embaixo do chuveiro e deixou a água cair.
Eu ainda estava absorta em tudo o que acontecia. Me sentia quebrada, pequena e impotente. Muito impotente por não ter nada que pudesse fazer para consertar tudo aquilo para .
— É a próxima porta do corredor, na direita.
Saí pelo corredor assim que ouvi um gemido fraco vindo de . Com toda aquela água gelada ele iria acordar e eu não sabia se estava preparada para vê-lo naquele estado deplorável novamente.
Parei em frente à porta que Mason falou e, quando a abri e acendi as luzes, toda a falsa calma que eu estava tentando transparecer se ruiu na hora.
Eu nunca tinha entrado no quarto dele.
Por me mudar tanto, eu levava a sério o quarto de uma pessoa. Era sempre o lugar em que cada um podia ser você mesmo, expor as coisas que mais gostava, decorar do jeito que a sua personalidade pedia. E, do mesmo jeito que eu amei o quarto de Mila, eu amei o de .
Era simples, mas transmitia exatamente o que ele era: direto, divertido e especial. As paredes tinham um tom de azul, muito parecido com os seus olhos claros demais. As cortinas, verdes. O espaço tinha uma escrivaninha branca cheia de livros e papéis jogados, um notebook aberto e uma luminária. Na direita, um armário um pouco grande demais, uma poltrona cheia de roupas jogadas de qualquer jeito. Na esquerda, uma cama de casal com lençóis verdes.
E na única parede livre, muitas fotos. Fotos de todos os lugares diferentes do mundo, como se ele fizesse uma lista pessoal do que gostaria de visitar sem falta quando saísse de Cotswolds.
Retirei a colcha da cama e toda a bagunça que estava por ali, para que ele pudesse deitar sem problemas, mas um detalhe na escrivaninha me chamou atenção e meu corpo congelou.
A única foto com pessoas era uma no celeiro.
E eu estava nela.
Uma emoção diferente tomou meu corpo e eu tive que respirar fundo umas dez vezes para não perder o controle das lágrimas que queriam sair desde o momento em que o encontrei sentado e destruído naquela estrada de terra.
Peguei a foto nas mãos, analisando o clique. Estávamos todos fantasiados para a festa de Ella. Eu tinha várias fotos nossas daquele dia, mas o que me pegou desprevenida foi que tinha um clique completamente diferente, um que eu nem mesmo tinha visto antes. Todos estavam praticamente falando na foto e sorria ao me olhar ao seu lado, enquanto eu mesma dava risada de algo, de olhos fechados.
Meu coração errou uma batida com o que eu senti olhando aquilo.
Por sorte, antes que tudo dentro de mim desmoronasse, Mason entrou no quarto. estava pendurado ao seu corpo, mas parecia semi acordado agora, pois conseguiu dar alguns passos até a beirada da cama. Seu cabelo estava molhado, mas, de alguma forma, seu corpo estava seco, e vestia uma espécie de roupão de banho.
Quando ele conseguiu se sentar desajeitadamente na cama, Mason disse como se lesse minha mente:
— Foi o mais fácil que achei.
Concordei de prontidão, já tentando ajudar o garoto a colocar na cama. parecia estar meio acordado, meio dormindo, mas eu sabia que estava muito bêbado ainda.
Assim que ele conseguiu deitar, peguei um dos cobertores e o cobri. Não foi uma surpresa que ele apagou na mesma hora. Mason suspirou alto, se jogou na poltrona com as milhares de roupas e eu me mantive concentrada em .
Sua expressão agora parecia um pouco mais tranquila, mas nada tiraria aquela sensação horrível de impotência do meu corpo.
— E se ele passar mal? — quebrei nosso silêncio, ainda olhando dormir. — Não tem ninguém aqui.
— Vou ficar até amanhecer — Mason respondeu na mesma hora.
— O que fazemos agora?
— É a primeira vez que temos notícias de Elena. Ele vai precisar de uns dias.
Me virei para observar Mason. Ele coçou a nuca e aquilo me deixou mais tranquila pela familiaridade do gesto. Pensava se ou Mason que tinha começado com aquilo.
Afofei as cobertas novamente e passei as mãos em seus cabelos molhados, tentando tirar um pouco da sua testa. Sua pele estava quente, mesmo que o banho com certeza tenha sido gelado. Depositei um beijo em sua bochecha, tentando passar toda a força que eu podia.
— Me avisa como ele está, por favor.
Ouvi um barulho afirmativo vindo de Mason.
— Obrigado por me chamar, .
Foi a minha vez de concordar.
— Ele vai ficar bem, né?
Mason sorriu quando o olhei. Mais uma vez consegui ver o quanto ele estava preocupado com o amigo, mas algo me dizia que eles já tinham passado por isso antes.
— Sim, vai ficar tudo bem.
Concordei com um gesto pela milésima vez naquela noite. Quando me afastei para ir embora, acabei falando demais:
— Ele… — suspirei alto. — Eu sei que é esquisito falar isso em pouco tempo morando aqui, mas… Ele é o melhor amigo que eu já tive.
Mason sorriu tão sincero que eu quase me permiti chorar.
— Eu sei, . Sinto a mesma coisa, talvez seja o super poder de … E você é importante para ele.
— Mesmo? — minha voz saiu realmente surpresa.
— Mesmo. Eu e ele somos irmãos de famílias diferentes, conheço muito bem.
— Obrigada, Mason.
Deixei um beijo rápido em sua bochecha, como um segundo agradecimento. Desci as escadas com a promessa de que ele me mandaria mensagens durante a noite para que eu pudesse acompanhar a recuperação de , já que estava tarde e eu não tinha uma boa desculpa para ficar fora de casa naquele dia.
Quando saí porta afora, marchei na direção da minha casa com um turbilhão de sentimentos no peito e na mente.
E, mesmo com toda aquela confusão e sem saber muito como agir, de uma coisa eu tive certeza: sabia que lembranças daquele nível não eram fáceis de esquecer ou deixar de lado, mas faria de tudo para melhorar aquela parte da vida de . Por tudo o que ele já tinha feito por mim, em poucos meses.
Capítulo 21 - Certezas
“A vida voa na sua cara, esbarra no seu rosto, suja sua vaidade, corrompe suas certezas, e você não pode fazer nada. A não ser lavar o rosto e começar tudo de novo.” (Tati Bernardi)
Minha mente ainda transbordava com pensamentos variados.
Tinha alguns dias desde o fatídico momento em que corri pela estrada e achei quase desmaiado no meio do nada. Mason dizia que ele estava bem, mas eu ainda não tive um momento a sós com para realmente perguntar como ele estava e o que eu poderia fazer para ajudar.
A lembrança de abalado, suas lágrimas… Tudo ainda me arrasava demais. Só de pensar no tamanho de seu sofrimento eu me sentia fraca. Fraca por não saber como ajudar da melhor forma. E, principalmente, fraca por não ter como mudar a sua história.
Em Cotswold eu tive a certeza de que bons amigos era a base para se ter uma vida feliz. Com era assim, e eu não deixaria que fosse diferente entre nós. Acima de tudo (incluindo todos os beijos e amassos a mais) éramos amigos. E eu tinha certeza que queria fazer tudo para deixá-lo feliz.
O problema é que nada do que eu pensava fazia sentido ainda. Eu precisava de um plano. Um plano urgente.
Ele precisava de mim.
— Você sabe que eu quero te ajudar em qualquer coisa, não é? — Mila disse ao meu lado.
A olhei de imediato. Minha amiga me observava atentamente.
Suas simples palavras me atingiram de um jeito que eu não estava preparada para enfrentar. Porque, naquele momento, eu sentia que poderia contar com Mila para tudo no mundo. Mesmo se estivesse do outro lado do oceano. Era como Bree, minha amiga de Nova Iorque. Eu senti muita sinceridade em seus olhos e palavras.
Em poucas semanas, Mila tinha me conquistado por completo. Eu odiava dizer isso, mas Cotswolds tinha me conquistado também.
— Obrigada por querer ser minha amiga — confessei sem nem pensar.
Ela franziu o cenho, confusa.
— Por que eu não gostaria de ser sua amiga?
Dei de ombros.
— É difícil encarar isso quando você muda treze vezes de casa.
— Não importa o tempo que você fique por aqui, agora é a sua casa. E nós somos amigas, simples assim. — Mila sorriu. — Agora me conta porque está com essa cara? Quero ajudar de verdade.
Não fazia ideia se Mila sabia (por Mason) do episódio de dias atrás que presenciei com e toda a história da mãe dele ter sido encontrada, mas eu sabia que era exatamente por isso que eu estava agindo estranha desde que pisei na The Cotswold School.
Era inevitável. A cena de desmoronando rodava sem parar na minha cabeça. Nada conseguia me distrair.
Quando eu ia abrir a boca para dar alguma desculpa, Zara passou por nós e aquele olhar atravessado fez eu me calar na hora. O último boato ridículo da escola já tinha chegado aos meus ouvidos, mas parecia bem menos criativo do que os anteriores. Começava a me sentir otimista sobre finalmente o pessoal caipira e doido da escola se esquecer de mim — ou apenas ficar sem munição para inventar qualquer coisa a meu respeito.
Mila piscou algumas vezes depois de me cutucar.
— Por que ela te odeia tanto?
Franzi o cenho para o seu comentário.
— Só ela sabe, Mila. Só ela…
Antes que eu pudesse fazer qualquer novo comentário, entrou na sala de aula. Parecia o mesmo de sempre. O uniforme meio amassado, o tênis meio sujo. O cabelo bagunçado.
Lindo (também como sempre).
Seus olhos claros se encontraram com os meus por um segundo e recebi uma piscadela simples. Foi o suficiente para entender que, pelo menos hoje, ele estava bem.
Um alívio percorreu meu corpo como um todo.
— Então? Quero saber de tudo. — Mila respirou fundo, mas sorriu ao continuar: — Te pego mais tarde para irmos juntas, ok?
Foi a segunda vez pela manhã que me senti feliz e aliviada. Do mesmo jeito que tinha dias que eu não ficava sozinha com , também não tinha rolado encontro no celeiro. Mason jogou alguma desculpa para todos até que tudo se acalmasse e voltasse ao "normal".
Concordei de prontidão antes de começar uma bela desculpa para a minha cara de enterro. Só a lembrança de ter celeiro mais tarde me faria conseguir viver aquele dia.
***
— Não. Não mesmo — ouvi a voz de negando sem parar assim que entrei no celeiro com Mila. — Não, cara… Onde você arrumou essa ideia? — seus olhos se encontraram com os meus. — Ah, .
Dei o meu melhor sorriso ao tentar disfarçar o pulo que meu coração deu quando aquele mar azul claro me atingiu.
— E aí, meus amigos! Tudo bem? — fingi uma animação exagerada.
Percebi que todos estavam apreensivos. Com exceção de Mason, que ria — e Bronwen, claro, que sempre fazia pouco caso de qualquer coisa.
me olhava sem parar. Sua expressão era claramente entediada quando concluiu sua série de negativas:
— Não. E sem chances alguma.
Meus ombros caíram no mesmo momento.
— Eu disse que era para me esperar! — bufei alto, olhando para todos os demais. — Eu que ia falar com o , ele ia aceitar!
Estávamos bolando o plano do Time que Hayden tanto pediu, mas, por saber que ainda era contra, eu iria tentar… amenizar um pouco a loucura.
— Por causa das suas táticas persuasivas, não é? — Hayden riu ao perguntar.
A voz do mais alto era puro deboche e eu quase fiquei sem graça. Quase.
— Que táticas? — Noah questionou, inocente.
Eu não conseguia ter certeza de que Hayden estava me provocando pelo que ele já sabia, mas eu sabia bem que alguns desconfiavam que rolava algo entre e eu.
Para a minha sorte, entrou no joguinho escroto do amigo. Ele me olhou com a cara mais lavada do mundo ao dizer:
— É, , que táticas são essas? — e piscou os olhos claros. — Quero muito saber.
Era gostoso e apavorante perceber que ele realmente estava de volta ao seu normal.
Como sempre.
“Sempre”.
Engoli em seco. Se queriam me deixar sem graça, ia deixar todos na mão.
— De debates! Ontem mesmo eu ganhei uma discussão contra o Canadá — debochei, voltando meu olhar para . — Acha que não posso convencer você?
O garoto riu, logo se levantando do bloco de feno em que estava sentado. Me deu um beijo na bochecha que quase fez meus olhos fecharem.
— Boa tentativa, cidade grande — e sussurrou em meu ouvido antes de sair andando. — Esperava mais.
— Espera! Eu tenho outras táticas…
Noah continuou:
— Quais são? Também quero saber.
Hayden e Mason davam risada do garoto mais novo, que ainda mantinha um ponto de interrogação no rosto.
— É esquisito ouvir inocência nas suas palavras — Hayden cutucou Noah. — Volte ao normal, por favor.
— Inocência? — ele pareceu pensar enquanto todos esperavam uma reação. — Espera aí… ! — quando ele começou eu já estava do outro lado do celeiro, pronta para fugir. — Vem ser persuasiva comigo, eu aceito qualquer coisa!
A noite no celeiro continuou bem e tranquila. Era um alívio enorme ver sorrindo, então me permiti relaxar e curtir o tédio que parecia ser coletivo.
Depois da última festa que demos, para Ella, todo o estoque de bebidas tinha acabado e, por uma falta de organização, ninguém tinha resolvido isso até o momento. Sendo assim, estávamos todos sentados ou deitados nos bolos de feno, olhando para o teto ou tendo conversas paralelas e sem sentido.
Noah assobiava sem parar, até que Hayden jogou algo no menino.
— Seu imbecil! Podia ter me cegado.
— Deixa de ser dramático, tampinha — o maior retrucou.
Riley e Bronwen tentavam separar uma gritaria de xingamentos, enquanto o resto do pessoal continuava deitado nos bolos de feno, sem dar uma palavra.
Levantei de uma vez, dando um assovio alto, o que fez todos se calarem.
— Chega!
Noah me olhou de lado ao abrir a boca:
— Eu adoro mulheres que sabem controlar as coisas.
Revirei os olhos.
— Cala a boca.
— Gosto quando são difíceis também, sabia? — ele deu de ombros.
Foi a vez de jogar algo no amigo, que desviou na hora.
— A próxima vai ser meu tênis sujo.
— Galera — pedi atenção novamente —, vamos arrumar algo para fazer, por favor.
— , bebe alguma coisa que o tédio passa — Mason falou enquanto ainda olhava o teto.
Revirei os olhos novamente. A única garrafa no celeiro era uma de cor laranja e de procedência super duvidosa e vencida, que Hayden tinha achado perdida por ali. Nem teve coragem de tomar.
— Podemos jogar — Noah falou baixinho.
levantou no mesmo momento.
— Até que enfim uma ideia boa!
O menor continuou:
— Pode ser strip poker?
Todos olharam para ele, sem reação. Riley foi o primeiro a falar.
— Nós nem sabemos jogar poker. sempre ganha, não tem mais graça.
— E esse é o único problema, Riley? — Ella o olhou esquisito. O menino ajeitou os grandes óculos no rosto, afirmando. — Ficar sem roupa está OK, então?
As bochechas de Riley coraram.
— Eu não tinha entendido essa parte!
suspirou, passando as mãos nos cabelos semi encaracolados e bagunçados.
— Por mais que eu adore humilhar vocês nas cartas, vamos jogar algo que ninguém precise ficar pelado — e me olhou de lado. — Alguma sugestão, cidade grande?
Meu corpo ferveu. Não era uma má ideia jogar strip poker com . Tinha alguns dias que não conseguíamos ficar sozinhos, então só imaginar aquela cena me deixava nas nuvens.
Respirei fundo, espantando todos aqueles pensamentos.
— Se vocês forem jogar “eu nunca”, me jogo no rio proibido — declarei.
Os olhos de Noah brilharam. Eu estava bem disposta a fazer qualquer coisa que nos tirasse do tédio profundo, mas não sabia até onde o baixinho iria.
Seus braços levantaram em animação.
— Essa é uma ótima ideia, ! — e ajeitou o grande boné na cabeça. — Vamos jogar “Meus Podres”!
Minha careta foi instantânea.
— Isso é coisa caipira?
— Não vou jogar essa coisa estúpida — Bronwen revirou os olhos ao se pronunciar pela primeira vez na noite.
Noah mal olhou para a menina ruiva.
— Isso é porque você não tem nada para contar.
Bronwen quase avançou no mais novo, sendo parada por Hayden.
— Odeio admitir isso, mas é uma boa ideia. — Hayden confessou. — Quem topa?
O restante do grupo deu de ombros, incluindo , que ainda olhava para o teto junto com Mason. Noah bateu palmas, em completa animação.
— Eu começo!
Bom, aquele jogo era basicamente um "eu nunca" caipira.
Os mais novos juraram que era algo que os adolescentes de agora jogavam, mas não ficamos muito convencidos. A ideia era contar alguma maluquice que você já tenha feito, ou que os outros fizeram. Nada de novo. A não ser que quem perdesse algo que não entendi bem, deveria beber da garrafa estranha que estava há anos esquecida no celeiro.
Observei todos se organizarem e iniciarem o jogo. Ouvi histórias doidas, outras nem tanto. Dei risada com algumas, outras fiquei seriamente preocupada. Mas, quando chegou na minha vez, foi o momento em que mais senti uma coisa estranha no corpo.
Eu não tinha o que contar.
Não tinha o que contar sobre nada do que fiz fora de Bourton-on-the-Water.
Mesmo vivendo na cidade grande desde sempre, e tendo contato com tudo o que é de mais moderno possível, eu realmente não tinha feito nada memorável (ou nada que adolescentes deveriam estar fazendo por aí).
Acabei contando uma história de minha amiga Bree só para não ter que beber da terrível garrafa velha. Ninguém iria saber, mas algo ainda me incomodava. Eu tinha dezessete anos e era assim tão normal e sem graça?
Olhei para o fundo do celeiro, onde exalava uma fumaça para o alto, como se precisasse de muita concentração para aquilo. Sem pensar duas vezes, levantei do meu lugar sem dizer uma palavra. Cheguei ao seu lado, me sentando no seu bolo de feno cativo.
O menino do mercado me olhou de lado, sem entender.
— O jogo ridículo já acabou?
Ele tinha desistido na primeira rodada, quando Noah soltou uma gracinha super sem graça. comentou na mesma hora que ele e Mason não precisavam passar por aquilo.
Ele franziu o cenho, aguardando que eu dissesse algo.
Eu precisava ser direta.
— Quero experimentar.
demorou alguns segundos para ter uma reação e entender sobre o que eu estava falando. Até que se levantou do feno, se sentando ao meu lado. Sua expressão era curiosa, mas ao mesmo tempo com cautela.
— Você quer experimentar um baseado? — sua voz saiu pausada.
Concordei de prontidão.
— Sim, por favor.
E então ele gargalhou. De mim, comigo. Tanto faz.
— Não acho uma boa ideia, .
— Posso saber porque não?
Ele sorriu, cínico.
— Primeiro porque você pediu “por favor” e nunca fez isso — e deu mais uma gargalhada. — E segundo porque você mal achou sua bebida preferida — deu de ombros. — Aliás, isso seria ótimo. Quer experimentar mais da sua bebida verde favorita?
Aquele comentário fez meu corpo se arrepiar, como toda vez em que ele me beijava. Então falar sobre alguma referência de quando nos beijamos dava no mesmo.
E eu não sabia dizer se aquilo era bom ou ruim. Para mim.
Tive de revirar os olhos.
— Vai ou não deixar eu viver a minha vida?
levantou as sobrancelhas.
— Já que está tão determinada, tome.
Peguei o pequeno cigarro embrulhado com os dedos, examinando aquilo. Eu já sabia que tiraria mais sarro da situação, mas realmente estava curiosa para saber o que sentiria fumando aquilo. Seria minha primeira vez, e eu fiquei feliz que seria ao lado do garoto mau do mercado.
— O que eu faço? — questionei, ainda encarando o mini cigarro enrolado.
Recebi instruções rápidas, mas que provavelmente eu executaria bem errado. Depois de tentar tragar a tosse foi inevitável, tirando mais gargalhadas dos lábios de .
— Posso perguntar porque vocês sempre se isolam no fundo do celeiro?
deu de ombros.
— Não deixamos os mais novos fumarem nada além do narguilé.
Franzi o cenho para aquela informação.
— Achei um pouco hipócrita.
Ele deu de ombros novamente.
— Pode ser, mas preferimos assim.
Levei o cigarro à boca mais uma vez, puxando-o. Foi uma nova tentativa bem falha de tragar aquilo, mas pelo menos não tossi sem parar.
Foi o suficiente para sorrir e perguntar:
— O que achou?
Eu não tinha comentários, fora o gosto esquisito parecido com morte. O máximo que consegui foi dar de ombros, como ele havia feito segundos atrás.
— Não tenho uma opinião formada ainda. Mas o gosto é ruim.
— Você tem um gosto difícil — sorriu ao dizer.
— Acho que sim.
Traguei aquele treco novamente, tentando tirar uma opinião e entender o que ele tanto gostava naquilo. Ele continuou me olhando com um sorriso engraçado no rosto. Sua voz saiu mais baixa que o normal.
— Isso é muito sexy.
Entreguei o cigarro em suas mãos, sorrindo deliberadamente com aquele comentário.
— É mesmo?
— Muito — ele tragou o baseado, ainda olhando em meus olhos. — A vontade de te beijar sem parar só aumentou.
Eu não sabia se já era efeito daquilo, mas aquele comentário fez meus sentidos ficarem mais aguçados. Cheguei mais perto do menino, ainda com um sorriso nos lábios.
— Há quanto tempo está com essa vontade?
tragou novamente, soltando a fumaça para o alto.
— Você sabe que tem dias que não conseguimos ficar sozinhos. — e deu de ombros, cravando os olhos claros em minha boca — Então sua resposta é: muitos dias com vontade.
Tive de sorrir ainda mais. Eu adorava a nossa relação espontânea e direta, algo que nunca tinha vivido na vida. Sempre existia algum drama ou algum receio, mas com tudo era simplesmente simples.
O sorriso em seus lábios cresceu quando passei minha mão direita em sua nuca, mal me importando se alguém do celeiro estaria vendo (além de Mila e Mason e Hayden, que já sabiam do nosso relacionamento esquisito).
— Precisamos resolver isso hoje — foi o que consegui dizer.
Seus olhos continuaram colados nos meus e senti seus lábios quase chegando aos meus.
Dei um passo para trás por instinto, deixando com um sorriso cínico no rosto. Eu queria muito enchê-lo de beijos, passar as mãos em todo o seu corpo, tirar suas roupas… Como eu queria! Mas não queria que nos beijássemos na frente de todos.
Ainda queria que tudo rolasse sem drama.
Sem cerimônias, ele apagou o cigarro com as pontas dos dedos e se levantou.
— Vamos embora.
Aquele comentário me acordou.
— Como é? — questionei, sem entender.
já estava a alguns passos distantes, indo falar com Mason.
— Agora — sua voz saiu firme, mesmo já de longe.
Mila correu em minha direção, com um saquinho de balas rosas em mãos.
— , vocês brigaram?
Ainda olhava atônita para , que agora dava um grande ‘tchau’ a todos, depois de devidamente vestir sua mochila velha.
— Não. — tentei respirar fundo para não gaguejar. Meu corpo ainda estava arrepiado só com os mil pensamentos que eu tinha sobre o que estávamos prestes a fazer fora do celeiro. Sozinhos. — Só preciso chegar em casa para o jantar hoje.
Minha amiga fez uma pequena careta, me entregando então o saco transparente com as balas.
— Tinha esquecido de te entregar isso na aula hoje.
— O que é?
— Minha mãe fez — e me deixou um sorriso carinhoso. — Para você.
Abracei Mila sem nem pensar.
— Obrigada, Mila. Te mando mensagens mais tarde.
Me despedi de todos com um grande aceno, mas sem antes receber mais uma gracinha especial de Noah.
— Acho que precisamos implementar abraços como sinal de despedida.
Quando eu ia responder, deu um assobio. Ele já estava pronto na porta do grande celeiro antigo.
— Nos seus sonhos, pirralho — minha voz saiu debochada.
Corri para a saída, o que fez com que fechasse a porta com rapidez logo após meus pés pisarem fora do celeiro.
O garoto subiu em sua bicicleta, em silêncio, e eu tratei de fazer o mesmo. Em segundos já estávamos andando pela estrada de terra mal iluminada, no sentido contrário ao centro de Bourton-on-the-Water. Eu não sabia qual era o plano que tinha na cabeça, mas a excitação de algo super espontâneo e doido me deixava mais sem fôlego do que o normal.
pedalou por alguns poucos minutos e parou no meio do nada, perto de uma ponte de pedra que eu nunca tinha visto — e que também atravessava o rio Windrush, como qualquer outra na vila. Soltei da bicicleta sem dizer uma palavra, mas esperando por mil respostas dele. Quando ia abrir a minha boca para perguntar onde estávamos, seus lábios já estavam grudados nos meus.
O barulho surdo da bicicleta caindo no chão de terra foi o menos preocupante, já que pareceu zero se importar. Seus lábios me beijavam com uma urgência digna de quem estava há dias sem aquele contato tão pessoal. Eu conseguia entender, já que sentia a mesma coisa, a mesma vontade dentro de mim.
Enquanto nos beijávamos, eu tratava de arrumar um jeito de tirar sua camisa azul o quanto antes. No espaço de tempo que consegui descolar nossas bocas e retirar a sua primeira peça de roupa, ele colou seus lábios em meu ouvido, dando pequenos beijos próximo a nuca.
— A partir de hoje está proibido ficarmos mais de três dias sem isso.
Puxei seu rosto para colar nossos lábios novamente.
— Vai ser a coisa mais fácil do meu ano — confessei.
riu. Suas mãos entravam na minha blusa fina, mas minha língua não ficava quieta na minha boca. Falei várias coisas que passavam pela minha cabeça, sem filtro. Só quando ele me agarrou pela cintura e me fez sentar no parapeito da pequena ponte, foi que calei a boca e cruzei as pernas em volta de seu corpo, voltando a beijar seus lábios com mais vontade.
Quando estava pronta para dizer mais algum pensamento aleatório, riu:
— Você tem a mesma reação que eu tenho quando fumo.
Parei de beijar seu pescoço para olhar em seus olhos. Em confusão. já estava sem blusa e seu peito arfava. Seus olhos azul-claros tinham um brilho diferente, aquele que eu adorava e que pareciam ser especiais, só para mim. Seus cabelos enrolados nas pontas estavam mais bagunçados que sempre e tudo aquilo só o deixava mais lindo.
De repente eu mal sabia o que dizer ou o que fazer, mas sabia que sentia algo diferente do normal. Sentia sua pele mais macia, assim como sentia a minha própria pele mais macia. Sentia também meu corpo quase flutuando, principalmente com as suas mãos passeando por tudo.
Aquela sensação era maravilhosa.
Por que eu não tinha experimentado aquilo antes?
Puxei sua boca para mais perto, fazendo nossos troncos colarem novamente.
— E qual é essa reação? — questionei.
Ele mordeu meu lábio inferior.
— Deixar de se importar com as coisas.
Então era assim que ele fazia as maluquices dele. Chapado. Fazia total sentido para mim, pelo menos no momento.
Tive de rir daquele comentário.
— Você acha que eu me importo demais?
— Você é doida, — deu de ombros. — Mas se importa, sim.
Afastei nossas bocas, tendo novamente a visão incrível que era só de jeans.
— Quero um exemplo.
Ele sorriu de lado, logo passando as mãos em meus cabelos.
— Estamos nos agarrando em uma ponte, em local público praticamente inabitado. E você está me pedindo motivos sobre suas loucuras.
Eu sabia daquilo, bem no fundo. E sabia que em qualquer dia normal eu teria evitado tirar a camisa de no meio do nada assim. Mas aquilo mal importava, principalmente pela vontade que eu estava de juntar nossos corpos o quanto antes.
— Vamos dar um show aqui, então.
O sorriso sacana se encheu de seus lábios.
— Cidade grande, você me deixa louco!
Ok, tudo podia ser culpa de um simples baseado, certo?
Após tirarmos metade de nossas roupas e finalmente sentir a pele um do outro como parecia tão necessário, recobrei um pouco do meu bom senso, vestindo tudo de volta. Sentamos em uma parte gramada perto da ponte de pedra, um pouco escondidos, caso alguma alma penada resolvesse passar por ali naquele momento.
Muitos minutos se passaram em silêncio. Eu só conseguia ouvir a respiração de . Seu braço direito estava sobre os meus ombros, minha cabeça escorada nele.
Acariciei seus cabelos macios e embolados.
— Como você está? — quebrei o silêncio de nossas respirações.
— Com vontade de você ainda — ele disse, de imediato.
Deixei um riso escapar pelo nariz.
— Estou falando sério.
deu de ombros.
— Eu também.
Passamos mais alguns minutos em silêncio, até que resolveu abrir a boca novamente.
— Estou bem. Obrigado pela ajuda naquela noite.
— Amigos são para isso.
Ele se moveu em nosso abraço, fixando seus olhos claros nos meus.
— Você com certeza já sabia a história da minha família e eu provavelmente não tenho mais o que te dizer. Então obrigado, de verdade. Eu precisava extravasar.
O apertei mais contra meu corpo.
— Toda família é complicada, . Às vezes precisamos de um confronto.
Ele concordou com um gesto.
— Foi um momento difícil, mas eu estou bem.
— Eu não posso dizer que entendo, mas imagino.
Para a minha surpresa, ele continuou a falar:
— Se minha mãe decidiu ir embora, só tenho que sentir que quem perde em tudo isso é apenas ela… — sua voz grave saiu baixa. — A gente recebe o que aceita, né? E, muitos anos atrás, eu decidi que o melhor era extravasar com os meus amigos, mas poupar meu pai e minha irmã. Eles só merecem ver o meu melhor. Meu pai se vira há anos para que nada nos afete… Mason conseguiu encobrir o que eu fiz dias atrás. Eles merecem o melhor de mim.
Pisquei algumas vezes, tentando espantar a onda de emoção que tentava me atingir. Eu queria ouvir tudo sobre , saber tudo sobre ele… Mas era muito triste a sua história.
Ninguém merecia passar por aquilo, principalmente uma pessoa tão boa e sincera como ele.
— Eu não sei porque isso ainda mexe tanto comigo — sua voz falhou de leve e o olhei nos olhos no mesmo momento. — O meu pai, ele… Ele meio que já superou, sabe? Mas eu ainda sinto uma raiva acumulada que eu só percebo ter quando esse assunto volta.
Tentei abrir a boca para dizer alguma coisa, mas as palavras sumiram.
Ele continuou:
— Tudo o que eu mais quero é que isso vire passado, que esse pesadelo termine logo.
Meu instinto fez com que meus braços o abraçassem mais forte. Era um sinal simples para dizer "eu entendo", mesmo que nada na minha vida tenha chegado perto do que sentia e guardava dentro do seu peito.
Eu já entendia bem que sair de Cotswolds para sempre era a solução para acalmar tudo aquilo, porque seria como um ponto final, um recomeço para ele. E, pela primeira vez, meu peito não pesou quando eu entendi que o perderia no final daquele ano.
Tentando amenizar um pouco o clima, falei:
— Só não esperava que você se lembrasse de tudo.
deu uma risada e algo dentro de mim se aqueceu.
— Mason colocou um post-it em mim.
Eu tive que gargalhar pela surpresa das suas palavras.
— Está brincando?
— É uma regra nossa quando bebemos demais: “Sempre se lembre da vergonha que passou”.
Acompanhei sua risada gostosa por alguns segundos, até que seus olhos se encaixaram nos meus novamente.
— E você? — perguntou. — Está tudo bem? Seu irmão já foi?
Os últimos dias têm sido bons lá em casa. Arthur continuava entre nós e era maravilhoso ter meu irmão perto. Conversamos sobre tudo e mais um pouco, fiquei sabendo sobre a faculdade, seu emprego, seu novo namorado (que se chamava Haland) e tudo mais o que foi possível.
— Ele fica mais uma semana por aqui… Foi o que conseguiu no emprego.
concordou e voltou a ficar calado. Parecia pensar em algumas coisas ao olhar para o nada que era a estrada de terra. Sua risada aleatória me deixou sem entender. Quando perguntei qual era a graça, ele respondeu ainda rindo:
— Sabe quantos dias tinham que você não me pedia motivos para fazer as coisas? Eu não faço ideia, mas eram muitos, .
Eu também gostava de pensar naquilo. Mesmo que ele desse risada (um som que eu particularmente adorava), era interessante pensar no meu progresso dentro da vila… Dos meus amigos, minhas conquistas, meus novos planos.
Bati de leve em seu braço, ainda entrelaçado no meu.
— O que quer dizer com isso, seu ridículo?
— Nada demais. Só que gosto muito dessa sua aceitação sobre o interior e tudo o que tem por aqui.
Quando eu ia comentar algo, senti uma coisa estranha em meu corpo. Era uma mistura de felicidade com ansiedade severa, o que fez meu coração se acelerar.
Minha resposta imediata foi levantar da grama e dizer:
— Vamos embora.
estranhou minha pressa.
— Vai ficar paranóica?
Antes que eu pudesse responder, meu estômago roncou alto. gargalhou.
— Acho que você está com fome.
— Que sensação horrível! O que você tem dentro dessa mochila?
De todo aquele dia — e tudo o que tinha acontecido recentemente, tive mais do que uma certeza. Meus amigos eram tudo. Mas, … era mais do que qualquer coisa. Era amizade, loucura, paixão, conhecimento e certeza.
A certeza do que eu precisava para viver direito.
Minha mente ainda transbordava com pensamentos variados.
Tinha alguns dias desde o fatídico momento em que corri pela estrada e achei quase desmaiado no meio do nada. Mason dizia que ele estava bem, mas eu ainda não tive um momento a sós com para realmente perguntar como ele estava e o que eu poderia fazer para ajudar.
A lembrança de abalado, suas lágrimas… Tudo ainda me arrasava demais. Só de pensar no tamanho de seu sofrimento eu me sentia fraca. Fraca por não saber como ajudar da melhor forma. E, principalmente, fraca por não ter como mudar a sua história.
Em Cotswold eu tive a certeza de que bons amigos era a base para se ter uma vida feliz. Com era assim, e eu não deixaria que fosse diferente entre nós. Acima de tudo (incluindo todos os beijos e amassos a mais) éramos amigos. E eu tinha certeza que queria fazer tudo para deixá-lo feliz.
O problema é que nada do que eu pensava fazia sentido ainda. Eu precisava de um plano. Um plano urgente.
Ele precisava de mim.
— Você sabe que eu quero te ajudar em qualquer coisa, não é? — Mila disse ao meu lado.
A olhei de imediato. Minha amiga me observava atentamente.
Suas simples palavras me atingiram de um jeito que eu não estava preparada para enfrentar. Porque, naquele momento, eu sentia que poderia contar com Mila para tudo no mundo. Mesmo se estivesse do outro lado do oceano. Era como Bree, minha amiga de Nova Iorque. Eu senti muita sinceridade em seus olhos e palavras.
Em poucas semanas, Mila tinha me conquistado por completo. Eu odiava dizer isso, mas Cotswolds tinha me conquistado também.
— Obrigada por querer ser minha amiga — confessei sem nem pensar.
Ela franziu o cenho, confusa.
— Por que eu não gostaria de ser sua amiga?
Dei de ombros.
— É difícil encarar isso quando você muda treze vezes de casa.
— Não importa o tempo que você fique por aqui, agora é a sua casa. E nós somos amigas, simples assim. — Mila sorriu. — Agora me conta porque está com essa cara? Quero ajudar de verdade.
Não fazia ideia se Mila sabia (por Mason) do episódio de dias atrás que presenciei com e toda a história da mãe dele ter sido encontrada, mas eu sabia que era exatamente por isso que eu estava agindo estranha desde que pisei na The Cotswold School.
Era inevitável. A cena de desmoronando rodava sem parar na minha cabeça. Nada conseguia me distrair.
Quando eu ia abrir a boca para dar alguma desculpa, Zara passou por nós e aquele olhar atravessado fez eu me calar na hora. O último boato ridículo da escola já tinha chegado aos meus ouvidos, mas parecia bem menos criativo do que os anteriores. Começava a me sentir otimista sobre finalmente o pessoal caipira e doido da escola se esquecer de mim — ou apenas ficar sem munição para inventar qualquer coisa a meu respeito.
Mila piscou algumas vezes depois de me cutucar.
— Por que ela te odeia tanto?
Franzi o cenho para o seu comentário.
— Só ela sabe, Mila. Só ela…
Antes que eu pudesse fazer qualquer novo comentário, entrou na sala de aula. Parecia o mesmo de sempre. O uniforme meio amassado, o tênis meio sujo. O cabelo bagunçado.
Lindo (também como sempre).
Seus olhos claros se encontraram com os meus por um segundo e recebi uma piscadela simples. Foi o suficiente para entender que, pelo menos hoje, ele estava bem.
Um alívio percorreu meu corpo como um todo.
— Então? Quero saber de tudo. — Mila respirou fundo, mas sorriu ao continuar: — Te pego mais tarde para irmos juntas, ok?
Foi a segunda vez pela manhã que me senti feliz e aliviada. Do mesmo jeito que tinha dias que eu não ficava sozinha com , também não tinha rolado encontro no celeiro. Mason jogou alguma desculpa para todos até que tudo se acalmasse e voltasse ao "normal".
Concordei de prontidão antes de começar uma bela desculpa para a minha cara de enterro. Só a lembrança de ter celeiro mais tarde me faria conseguir viver aquele dia.
— Não. Não mesmo — ouvi a voz de negando sem parar assim que entrei no celeiro com Mila. — Não, cara… Onde você arrumou essa ideia? — seus olhos se encontraram com os meus. — Ah, .
Dei o meu melhor sorriso ao tentar disfarçar o pulo que meu coração deu quando aquele mar azul claro me atingiu.
— E aí, meus amigos! Tudo bem? — fingi uma animação exagerada.
Percebi que todos estavam apreensivos. Com exceção de Mason, que ria — e Bronwen, claro, que sempre fazia pouco caso de qualquer coisa.
me olhava sem parar. Sua expressão era claramente entediada quando concluiu sua série de negativas:
— Não. E sem chances alguma.
Meus ombros caíram no mesmo momento.
— Eu disse que era para me esperar! — bufei alto, olhando para todos os demais. — Eu que ia falar com o , ele ia aceitar!
Estávamos bolando o plano do Time que Hayden tanto pediu, mas, por saber que ainda era contra, eu iria tentar… amenizar um pouco a loucura.
— Por causa das suas táticas persuasivas, não é? — Hayden riu ao perguntar.
A voz do mais alto era puro deboche e eu quase fiquei sem graça. Quase.
— Que táticas? — Noah questionou, inocente.
Eu não conseguia ter certeza de que Hayden estava me provocando pelo que ele já sabia, mas eu sabia bem que alguns desconfiavam que rolava algo entre e eu.
Para a minha sorte, entrou no joguinho escroto do amigo. Ele me olhou com a cara mais lavada do mundo ao dizer:
— É, , que táticas são essas? — e piscou os olhos claros. — Quero muito saber.
Era gostoso e apavorante perceber que ele realmente estava de volta ao seu normal.
Como sempre.
“Sempre”.
Engoli em seco. Se queriam me deixar sem graça, ia deixar todos na mão.
— De debates! Ontem mesmo eu ganhei uma discussão contra o Canadá — debochei, voltando meu olhar para . — Acha que não posso convencer você?
O garoto riu, logo se levantando do bloco de feno em que estava sentado. Me deu um beijo na bochecha que quase fez meus olhos fecharem.
— Boa tentativa, cidade grande — e sussurrou em meu ouvido antes de sair andando. — Esperava mais.
— Espera! Eu tenho outras táticas…
Noah continuou:
— Quais são? Também quero saber.
Hayden e Mason davam risada do garoto mais novo, que ainda mantinha um ponto de interrogação no rosto.
— É esquisito ouvir inocência nas suas palavras — Hayden cutucou Noah. — Volte ao normal, por favor.
— Inocência? — ele pareceu pensar enquanto todos esperavam uma reação. — Espera aí… ! — quando ele começou eu já estava do outro lado do celeiro, pronta para fugir. — Vem ser persuasiva comigo, eu aceito qualquer coisa!
A noite no celeiro continuou bem e tranquila. Era um alívio enorme ver sorrindo, então me permiti relaxar e curtir o tédio que parecia ser coletivo.
Depois da última festa que demos, para Ella, todo o estoque de bebidas tinha acabado e, por uma falta de organização, ninguém tinha resolvido isso até o momento. Sendo assim, estávamos todos sentados ou deitados nos bolos de feno, olhando para o teto ou tendo conversas paralelas e sem sentido.
Noah assobiava sem parar, até que Hayden jogou algo no menino.
— Seu imbecil! Podia ter me cegado.
— Deixa de ser dramático, tampinha — o maior retrucou.
Riley e Bronwen tentavam separar uma gritaria de xingamentos, enquanto o resto do pessoal continuava deitado nos bolos de feno, sem dar uma palavra.
Levantei de uma vez, dando um assovio alto, o que fez todos se calarem.
— Chega!
Noah me olhou de lado ao abrir a boca:
— Eu adoro mulheres que sabem controlar as coisas.
Revirei os olhos.
— Cala a boca.
— Gosto quando são difíceis também, sabia? — ele deu de ombros.
Foi a vez de jogar algo no amigo, que desviou na hora.
— A próxima vai ser meu tênis sujo.
— Galera — pedi atenção novamente —, vamos arrumar algo para fazer, por favor.
— , bebe alguma coisa que o tédio passa — Mason falou enquanto ainda olhava o teto.
Revirei os olhos novamente. A única garrafa no celeiro era uma de cor laranja e de procedência super duvidosa e vencida, que Hayden tinha achado perdida por ali. Nem teve coragem de tomar.
— Podemos jogar — Noah falou baixinho.
levantou no mesmo momento.
— Até que enfim uma ideia boa!
O menor continuou:
— Pode ser strip poker?
Todos olharam para ele, sem reação. Riley foi o primeiro a falar.
— Nós nem sabemos jogar poker. sempre ganha, não tem mais graça.
— E esse é o único problema, Riley? — Ella o olhou esquisito. O menino ajeitou os grandes óculos no rosto, afirmando. — Ficar sem roupa está OK, então?
As bochechas de Riley coraram.
— Eu não tinha entendido essa parte!
suspirou, passando as mãos nos cabelos semi encaracolados e bagunçados.
— Por mais que eu adore humilhar vocês nas cartas, vamos jogar algo que ninguém precise ficar pelado — e me olhou de lado. — Alguma sugestão, cidade grande?
Meu corpo ferveu. Não era uma má ideia jogar strip poker com . Tinha alguns dias que não conseguíamos ficar sozinhos, então só imaginar aquela cena me deixava nas nuvens.
Respirei fundo, espantando todos aqueles pensamentos.
— Se vocês forem jogar “eu nunca”, me jogo no rio proibido — declarei.
Os olhos de Noah brilharam. Eu estava bem disposta a fazer qualquer coisa que nos tirasse do tédio profundo, mas não sabia até onde o baixinho iria.
Seus braços levantaram em animação.
— Essa é uma ótima ideia, ! — e ajeitou o grande boné na cabeça. — Vamos jogar “Meus Podres”!
Minha careta foi instantânea.
— Isso é coisa caipira?
— Não vou jogar essa coisa estúpida — Bronwen revirou os olhos ao se pronunciar pela primeira vez na noite.
Noah mal olhou para a menina ruiva.
— Isso é porque você não tem nada para contar.
Bronwen quase avançou no mais novo, sendo parada por Hayden.
— Odeio admitir isso, mas é uma boa ideia. — Hayden confessou. — Quem topa?
O restante do grupo deu de ombros, incluindo , que ainda olhava para o teto junto com Mason. Noah bateu palmas, em completa animação.
— Eu começo!
Bom, aquele jogo era basicamente um "eu nunca" caipira.
Os mais novos juraram que era algo que os adolescentes de agora jogavam, mas não ficamos muito convencidos. A ideia era contar alguma maluquice que você já tenha feito, ou que os outros fizeram. Nada de novo. A não ser que quem perdesse algo que não entendi bem, deveria beber da garrafa estranha que estava há anos esquecida no celeiro.
Observei todos se organizarem e iniciarem o jogo. Ouvi histórias doidas, outras nem tanto. Dei risada com algumas, outras fiquei seriamente preocupada. Mas, quando chegou na minha vez, foi o momento em que mais senti uma coisa estranha no corpo.
Eu não tinha o que contar.
Não tinha o que contar sobre nada do que fiz fora de Bourton-on-the-Water.
Mesmo vivendo na cidade grande desde sempre, e tendo contato com tudo o que é de mais moderno possível, eu realmente não tinha feito nada memorável (ou nada que adolescentes deveriam estar fazendo por aí).
Acabei contando uma história de minha amiga Bree só para não ter que beber da terrível garrafa velha. Ninguém iria saber, mas algo ainda me incomodava. Eu tinha dezessete anos e era assim tão normal e sem graça?
Olhei para o fundo do celeiro, onde exalava uma fumaça para o alto, como se precisasse de muita concentração para aquilo. Sem pensar duas vezes, levantei do meu lugar sem dizer uma palavra. Cheguei ao seu lado, me sentando no seu bolo de feno cativo.
O menino do mercado me olhou de lado, sem entender.
— O jogo ridículo já acabou?
Ele tinha desistido na primeira rodada, quando Noah soltou uma gracinha super sem graça. comentou na mesma hora que ele e Mason não precisavam passar por aquilo.
Ele franziu o cenho, aguardando que eu dissesse algo.
Eu precisava ser direta.
— Quero experimentar.
demorou alguns segundos para ter uma reação e entender sobre o que eu estava falando. Até que se levantou do feno, se sentando ao meu lado. Sua expressão era curiosa, mas ao mesmo tempo com cautela.
— Você quer experimentar um baseado? — sua voz saiu pausada.
Concordei de prontidão.
— Sim, por favor.
E então ele gargalhou. De mim, comigo. Tanto faz.
— Não acho uma boa ideia, .
— Posso saber porque não?
Ele sorriu, cínico.
— Primeiro porque você pediu “por favor” e nunca fez isso — e deu mais uma gargalhada. — E segundo porque você mal achou sua bebida preferida — deu de ombros. — Aliás, isso seria ótimo. Quer experimentar mais da sua bebida verde favorita?
Aquele comentário fez meu corpo se arrepiar, como toda vez em que ele me beijava. Então falar sobre alguma referência de quando nos beijamos dava no mesmo.
E eu não sabia dizer se aquilo era bom ou ruim. Para mim.
Tive de revirar os olhos.
— Vai ou não deixar eu viver a minha vida?
levantou as sobrancelhas.
— Já que está tão determinada, tome.
Peguei o pequeno cigarro embrulhado com os dedos, examinando aquilo. Eu já sabia que tiraria mais sarro da situação, mas realmente estava curiosa para saber o que sentiria fumando aquilo. Seria minha primeira vez, e eu fiquei feliz que seria ao lado do garoto mau do mercado.
— O que eu faço? — questionei, ainda encarando o mini cigarro enrolado.
Recebi instruções rápidas, mas que provavelmente eu executaria bem errado. Depois de tentar tragar a tosse foi inevitável, tirando mais gargalhadas dos lábios de .
— Posso perguntar porque vocês sempre se isolam no fundo do celeiro?
deu de ombros.
— Não deixamos os mais novos fumarem nada além do narguilé.
Franzi o cenho para aquela informação.
— Achei um pouco hipócrita.
Ele deu de ombros novamente.
— Pode ser, mas preferimos assim.
Levei o cigarro à boca mais uma vez, puxando-o. Foi uma nova tentativa bem falha de tragar aquilo, mas pelo menos não tossi sem parar.
Foi o suficiente para sorrir e perguntar:
— O que achou?
Eu não tinha comentários, fora o gosto esquisito parecido com morte. O máximo que consegui foi dar de ombros, como ele havia feito segundos atrás.
— Não tenho uma opinião formada ainda. Mas o gosto é ruim.
— Você tem um gosto difícil — sorriu ao dizer.
— Acho que sim.
Traguei aquele treco novamente, tentando tirar uma opinião e entender o que ele tanto gostava naquilo. Ele continuou me olhando com um sorriso engraçado no rosto. Sua voz saiu mais baixa que o normal.
— Isso é muito sexy.
Entreguei o cigarro em suas mãos, sorrindo deliberadamente com aquele comentário.
— É mesmo?
— Muito — ele tragou o baseado, ainda olhando em meus olhos. — A vontade de te beijar sem parar só aumentou.
Eu não sabia se já era efeito daquilo, mas aquele comentário fez meus sentidos ficarem mais aguçados. Cheguei mais perto do menino, ainda com um sorriso nos lábios.
— Há quanto tempo está com essa vontade?
tragou novamente, soltando a fumaça para o alto.
— Você sabe que tem dias que não conseguimos ficar sozinhos. — e deu de ombros, cravando os olhos claros em minha boca — Então sua resposta é: muitos dias com vontade.
Tive de sorrir ainda mais. Eu adorava a nossa relação espontânea e direta, algo que nunca tinha vivido na vida. Sempre existia algum drama ou algum receio, mas com tudo era simplesmente simples.
O sorriso em seus lábios cresceu quando passei minha mão direita em sua nuca, mal me importando se alguém do celeiro estaria vendo (além de Mila e Mason e Hayden, que já sabiam do nosso relacionamento esquisito).
— Precisamos resolver isso hoje — foi o que consegui dizer.
Seus olhos continuaram colados nos meus e senti seus lábios quase chegando aos meus.
Dei um passo para trás por instinto, deixando com um sorriso cínico no rosto. Eu queria muito enchê-lo de beijos, passar as mãos em todo o seu corpo, tirar suas roupas… Como eu queria! Mas não queria que nos beijássemos na frente de todos.
Ainda queria que tudo rolasse sem drama.
Sem cerimônias, ele apagou o cigarro com as pontas dos dedos e se levantou.
— Vamos embora.
Aquele comentário me acordou.
— Como é? — questionei, sem entender.
já estava a alguns passos distantes, indo falar com Mason.
— Agora — sua voz saiu firme, mesmo já de longe.
Mila correu em minha direção, com um saquinho de balas rosas em mãos.
— , vocês brigaram?
Ainda olhava atônita para , que agora dava um grande ‘tchau’ a todos, depois de devidamente vestir sua mochila velha.
— Não. — tentei respirar fundo para não gaguejar. Meu corpo ainda estava arrepiado só com os mil pensamentos que eu tinha sobre o que estávamos prestes a fazer fora do celeiro. Sozinhos. — Só preciso chegar em casa para o jantar hoje.
Minha amiga fez uma pequena careta, me entregando então o saco transparente com as balas.
— Tinha esquecido de te entregar isso na aula hoje.
— O que é?
— Minha mãe fez — e me deixou um sorriso carinhoso. — Para você.
Abracei Mila sem nem pensar.
— Obrigada, Mila. Te mando mensagens mais tarde.
Me despedi de todos com um grande aceno, mas sem antes receber mais uma gracinha especial de Noah.
— Acho que precisamos implementar abraços como sinal de despedida.
Quando eu ia responder, deu um assobio. Ele já estava pronto na porta do grande celeiro antigo.
— Nos seus sonhos, pirralho — minha voz saiu debochada.
Corri para a saída, o que fez com que fechasse a porta com rapidez logo após meus pés pisarem fora do celeiro.
O garoto subiu em sua bicicleta, em silêncio, e eu tratei de fazer o mesmo. Em segundos já estávamos andando pela estrada de terra mal iluminada, no sentido contrário ao centro de Bourton-on-the-Water. Eu não sabia qual era o plano que tinha na cabeça, mas a excitação de algo super espontâneo e doido me deixava mais sem fôlego do que o normal.
pedalou por alguns poucos minutos e parou no meio do nada, perto de uma ponte de pedra que eu nunca tinha visto — e que também atravessava o rio Windrush, como qualquer outra na vila. Soltei da bicicleta sem dizer uma palavra, mas esperando por mil respostas dele. Quando ia abrir a minha boca para perguntar onde estávamos, seus lábios já estavam grudados nos meus.
O barulho surdo da bicicleta caindo no chão de terra foi o menos preocupante, já que pareceu zero se importar. Seus lábios me beijavam com uma urgência digna de quem estava há dias sem aquele contato tão pessoal. Eu conseguia entender, já que sentia a mesma coisa, a mesma vontade dentro de mim.
Enquanto nos beijávamos, eu tratava de arrumar um jeito de tirar sua camisa azul o quanto antes. No espaço de tempo que consegui descolar nossas bocas e retirar a sua primeira peça de roupa, ele colou seus lábios em meu ouvido, dando pequenos beijos próximo a nuca.
— A partir de hoje está proibido ficarmos mais de três dias sem isso.
Puxei seu rosto para colar nossos lábios novamente.
— Vai ser a coisa mais fácil do meu ano — confessei.
riu. Suas mãos entravam na minha blusa fina, mas minha língua não ficava quieta na minha boca. Falei várias coisas que passavam pela minha cabeça, sem filtro. Só quando ele me agarrou pela cintura e me fez sentar no parapeito da pequena ponte, foi que calei a boca e cruzei as pernas em volta de seu corpo, voltando a beijar seus lábios com mais vontade.
Quando estava pronta para dizer mais algum pensamento aleatório, riu:
— Você tem a mesma reação que eu tenho quando fumo.
Parei de beijar seu pescoço para olhar em seus olhos. Em confusão. já estava sem blusa e seu peito arfava. Seus olhos azul-claros tinham um brilho diferente, aquele que eu adorava e que pareciam ser especiais, só para mim. Seus cabelos enrolados nas pontas estavam mais bagunçados que sempre e tudo aquilo só o deixava mais lindo.
De repente eu mal sabia o que dizer ou o que fazer, mas sabia que sentia algo diferente do normal. Sentia sua pele mais macia, assim como sentia a minha própria pele mais macia. Sentia também meu corpo quase flutuando, principalmente com as suas mãos passeando por tudo.
Aquela sensação era maravilhosa.
Por que eu não tinha experimentado aquilo antes?
Puxei sua boca para mais perto, fazendo nossos troncos colarem novamente.
— E qual é essa reação? — questionei.
Ele mordeu meu lábio inferior.
— Deixar de se importar com as coisas.
Então era assim que ele fazia as maluquices dele. Chapado. Fazia total sentido para mim, pelo menos no momento.
Tive de rir daquele comentário.
— Você acha que eu me importo demais?
— Você é doida, — deu de ombros. — Mas se importa, sim.
Afastei nossas bocas, tendo novamente a visão incrível que era só de jeans.
— Quero um exemplo.
Ele sorriu de lado, logo passando as mãos em meus cabelos.
— Estamos nos agarrando em uma ponte, em local público praticamente inabitado. E você está me pedindo motivos sobre suas loucuras.
Eu sabia daquilo, bem no fundo. E sabia que em qualquer dia normal eu teria evitado tirar a camisa de no meio do nada assim. Mas aquilo mal importava, principalmente pela vontade que eu estava de juntar nossos corpos o quanto antes.
— Vamos dar um show aqui, então.
O sorriso sacana se encheu de seus lábios.
— Cidade grande, você me deixa louco!
Ok, tudo podia ser culpa de um simples baseado, certo?
Após tirarmos metade de nossas roupas e finalmente sentir a pele um do outro como parecia tão necessário, recobrei um pouco do meu bom senso, vestindo tudo de volta. Sentamos em uma parte gramada perto da ponte de pedra, um pouco escondidos, caso alguma alma penada resolvesse passar por ali naquele momento.
Muitos minutos se passaram em silêncio. Eu só conseguia ouvir a respiração de . Seu braço direito estava sobre os meus ombros, minha cabeça escorada nele.
Acariciei seus cabelos macios e embolados.
— Como você está? — quebrei o silêncio de nossas respirações.
— Com vontade de você ainda — ele disse, de imediato.
Deixei um riso escapar pelo nariz.
— Estou falando sério.
deu de ombros.
— Eu também.
Passamos mais alguns minutos em silêncio, até que resolveu abrir a boca novamente.
— Estou bem. Obrigado pela ajuda naquela noite.
— Amigos são para isso.
Ele se moveu em nosso abraço, fixando seus olhos claros nos meus.
— Você com certeza já sabia a história da minha família e eu provavelmente não tenho mais o que te dizer. Então obrigado, de verdade. Eu precisava extravasar.
O apertei mais contra meu corpo.
— Toda família é complicada, . Às vezes precisamos de um confronto.
Ele concordou com um gesto.
— Foi um momento difícil, mas eu estou bem.
— Eu não posso dizer que entendo, mas imagino.
Para a minha surpresa, ele continuou a falar:
— Se minha mãe decidiu ir embora, só tenho que sentir que quem perde em tudo isso é apenas ela… — sua voz grave saiu baixa. — A gente recebe o que aceita, né? E, muitos anos atrás, eu decidi que o melhor era extravasar com os meus amigos, mas poupar meu pai e minha irmã. Eles só merecem ver o meu melhor. Meu pai se vira há anos para que nada nos afete… Mason conseguiu encobrir o que eu fiz dias atrás. Eles merecem o melhor de mim.
Pisquei algumas vezes, tentando espantar a onda de emoção que tentava me atingir. Eu queria ouvir tudo sobre , saber tudo sobre ele… Mas era muito triste a sua história.
Ninguém merecia passar por aquilo, principalmente uma pessoa tão boa e sincera como ele.
— Eu não sei porque isso ainda mexe tanto comigo — sua voz falhou de leve e o olhei nos olhos no mesmo momento. — O meu pai, ele… Ele meio que já superou, sabe? Mas eu ainda sinto uma raiva acumulada que eu só percebo ter quando esse assunto volta.
Tentei abrir a boca para dizer alguma coisa, mas as palavras sumiram.
Ele continuou:
— Tudo o que eu mais quero é que isso vire passado, que esse pesadelo termine logo.
Meu instinto fez com que meus braços o abraçassem mais forte. Era um sinal simples para dizer "eu entendo", mesmo que nada na minha vida tenha chegado perto do que sentia e guardava dentro do seu peito.
Eu já entendia bem que sair de Cotswolds para sempre era a solução para acalmar tudo aquilo, porque seria como um ponto final, um recomeço para ele. E, pela primeira vez, meu peito não pesou quando eu entendi que o perderia no final daquele ano.
Tentando amenizar um pouco o clima, falei:
— Só não esperava que você se lembrasse de tudo.
deu uma risada e algo dentro de mim se aqueceu.
— Mason colocou um post-it em mim.
Eu tive que gargalhar pela surpresa das suas palavras.
— Está brincando?
— É uma regra nossa quando bebemos demais: “Sempre se lembre da vergonha que passou”.
Acompanhei sua risada gostosa por alguns segundos, até que seus olhos se encaixaram nos meus novamente.
— E você? — perguntou. — Está tudo bem? Seu irmão já foi?
Os últimos dias têm sido bons lá em casa. Arthur continuava entre nós e era maravilhoso ter meu irmão perto. Conversamos sobre tudo e mais um pouco, fiquei sabendo sobre a faculdade, seu emprego, seu novo namorado (que se chamava Haland) e tudo mais o que foi possível.
— Ele fica mais uma semana por aqui… Foi o que conseguiu no emprego.
concordou e voltou a ficar calado. Parecia pensar em algumas coisas ao olhar para o nada que era a estrada de terra. Sua risada aleatória me deixou sem entender. Quando perguntei qual era a graça, ele respondeu ainda rindo:
— Sabe quantos dias tinham que você não me pedia motivos para fazer as coisas? Eu não faço ideia, mas eram muitos, .
Eu também gostava de pensar naquilo. Mesmo que ele desse risada (um som que eu particularmente adorava), era interessante pensar no meu progresso dentro da vila… Dos meus amigos, minhas conquistas, meus novos planos.
Bati de leve em seu braço, ainda entrelaçado no meu.
— O que quer dizer com isso, seu ridículo?
— Nada demais. Só que gosto muito dessa sua aceitação sobre o interior e tudo o que tem por aqui.
Quando eu ia comentar algo, senti uma coisa estranha em meu corpo. Era uma mistura de felicidade com ansiedade severa, o que fez meu coração se acelerar.
Minha resposta imediata foi levantar da grama e dizer:
— Vamos embora.
estranhou minha pressa.
— Vai ficar paranóica?
Antes que eu pudesse responder, meu estômago roncou alto. gargalhou.
— Acho que você está com fome.
— Que sensação horrível! O que você tem dentro dessa mochila?
De todo aquele dia — e tudo o que tinha acontecido recentemente, tive mais do que uma certeza. Meus amigos eram tudo. Mas, … era mais do que qualquer coisa. Era amizade, loucura, paixão, conhecimento e certeza.
A certeza do que eu precisava para viver direito.
Continua...
Nota da autora: Oi, meninas!
Uma das minhas resoluções para 2024 é finalizar essa história...
Bora comigo?
Me segue no IG: @marcellabautora
Obrigada e já, já tem att nova. Beijos!!
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