Última atualização da primeira parte: 30/04/2020
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Capítulo 1

Eu disse que aquilo não iria dar em coisa boa, mas todos a quem alertei fizeram questão de me ignorar por completo. A cena não era das melhores e eu só conseguia pensar em não vomitar. Meu pai remexeu em um bocado de terra, fazendo o cheiro fétido piorar.
– Isso é realmente necessário, pai?
Ele riu na minha cara.
– Liga pro seu tio enquanto eu dou uma olhada aqui.
– Mas, pai...
– É pra fazer o que eu disse, .
Quando meu pai me chamava pelo primeiro nome, eu sabia que devia atender sua ordem sem questionamento algum. Eu me permiti dar uns passos para longe da carnificina e busquei o celular. Tio Bobby atendeu em dois toques.
, a que devo o prazer da sua ligação?
– Papai quer que o senhor nos encontre.
Deu para ouvir ele bufando do outro lado da linha.
– E onde o doente do meu irmão te levou dessa vez?
– Supai, Arizona.
– Fica perto de Tucson?
Tampei o microfone do celular.
– Pai, estamos perto de Tucson? – Gritei.
– Fica a quase 500 milhas daqui! – Ele gritou de volta.
– Nem um pouco, tio. – Respondi, voltando a falar ao telefone. – Umas dez horas talvez, considerando a estrada de terra e a trilha... por quê?
– Os Winchester estão por lá, – Só de ouvir aquele maldito nome, meu coração palpitou. – vão chegar muito mais rápido do que eu. Do que seu pai está precisando?
– Na verdade, é com o senhor mesmo. Achamos que nosso caso atual pode ter a ver com o que aconteceu no Kentucky mês passado.
– Em qual hotel vocês estão?
– Jacob Lake Inn.
– Avisa pro seu pai que o reforço está a caminho.
– Ok, tio, obrigada.
Desliguei e voltei para perto do meu pai, que agora explorava um aglomerado de carne que algum dia tinha sido um crânio.
– E então? – Ele perguntou.
– Tio Bobby falou que está vindo. – Eu disse, colocando meus óculos escuros. – Alguma suspeita?
– Estão todos sem cérebro, sem exceção.
– Vítimas de zumbis ou será que eram todas loiras?
Ele se virou para mim com um profundo olhar de reprovação enquanto eu ria e mascava com mais força meu chiclete de morango, que já estava velho. O banho – mesmo sob um chuveiro de onde quase não saía água – foi confortante depois de um dia inteiro debaixo do sol. Meu pai, no quarto ao lado, provavelmente estava enfiado em suas pesquisas enquanto eu procurava aproveitar o tempo longe daquela loucura. Botei as roupas mais frescas que tinha e bati em sua porta. Sua cara estava gritando que a noite não havia sido muito boa.
– Bom dia, pai.
– Bom dia, . Já vai sair?
– To cheia de fome, pensei em tomar café naquela lanchonete a uns quilômetros ao norte e queria saber se vou sozinha ou te espero.
– Pode ir na frente que eu te alcanço. De lá, voltamos pra cena.
– Se quiser, eu te espero pra irmos num carro só. – Insisti.
Meu pai não precisou dizer mais nada. Ele me encarou, reafirmando tudo o que havia acabado de dizer com apenas um olhar. Eu dei meia volta e peguei a chave do meu carro no quarto. Pedi ovos mexidos com torradas e manteiga. A internet no celular não estava das melhores, mas eu esperava pacientemente enquanto lia sobre as possibilidades do nosso caso.
Assim que a garçonete simpática colocou meu pedido na mesa, diante de mim, alguém lascou um beijo no meu rosto. Meu cérebro tentou processar todas as informações possíveis o quanto antes, como o que fazer para me defender, já que meu pai nunca faria aquilo, mas meu olho reconheceu o Impala estacionado do lado de fora, vizinho do meu carro, antes mesmo que as feições de um Dean sorrindo sacana aparecessem para mim. Eu senti meu coração ter uma leve arritmia. Braços me envolveram por trás e logo Sam – eu ainda não havia o visto, mas tudo indicava que era ele – depositou um beijo no topo da minha cabeça. Tentava manter a respiração normal enquanto me recuperava do susto.
– Vocês são dois grandes filhos da puta. – Eu disse, bloqueando o celular e o guardando no bolso da jaqueta.
– Já me chamaram de coisa pior. – Dean disse e pegou uma das minhas torradas enquanto eu dava lugar a Sam para que ele se sentasse ao meu lado.
– O que estão fazendo aqui?
– Bobby nos pediu pra vir o mais rápido possível.
Engoli em seco. Meu tio me pagava.
– Eu disse a ele que precisávamos dele especificamente.
– Qual é?! – Dean quase gritou, a boca cheia da minha torrada. – Nossa presença não pode ser tão ruim assim.
Notei que Sam me olhava pelo canto do olho, disfarçando tanto quanto podia. Eu olhei para ele e lhe lancei um sorriso pequeno, imediatamente retribuído. Ele levantou o braço e chamou a garçonete de volta.
– Pode me trazer o mesmo? – Perguntou, apontando para meu prato violado.
A senhora sorriu gentilmente, como antes, e se dirigiu ao balcão. Eu peguei uma boa garfada e coloquei na boca.
– Onde está nosso grande Abraham Singer?
– No hotel, se recuperando de uma possível ressaca, eu acho. – Murmurei, dando outra garfada nos ovos.
– E sabemos com o que estamos lidando aqui? – Sam perguntou.
– Corpos destroçados por completamente, só que o curioso é que nenhum cérebro ou fragmento de cérebro foi encontrado em nenhum deles.
– O que a polícia disse? – Ele insistiu no assunto.
– Estão considerando um serial killer psicopata que guarda os cérebros como uma espécie de souvenir.
– Disseram a mesma coisa no Kentucky. – Dean observou.
– Vocês estavam lá?
– Não acompanhamos toda a investigação que seu tio fez, mas vimos o suficiente. – Dean seguiu com a conversa e se levantou. – Vou ali fora fazer uma ligação, se a dama e o vagabundo me dão licença.
Deu para ouvir Sam revirando os olhos enquanto Dean saía pela única porta do estabelecimento. Ele olhou para trás e acompanhou o irmão até que ele ficasse bem ao nosso lado, apenas separado de nós pelo grande painel de vidro que servia como janela.
– Eu tentei evitar, mas não consegui pensar numa desculpa boa o suficiente e, quando o Dean coloca alguma coisa na cabeça, ninguém consegue tirar.
– Tá tudo bem, Sammy.
– Pela sua cara, eu realmente diria que tá tudo bem, mas você não me engana, . Eu só queria que você soubesse que pode conversar comigo se e quando quiser.
Virei meu corpo de lado e olhei em seus olhos.
– Está me perguntando se eu ainda sou a mesma otária que gosta do cara que tem olhos pra todas as mulheres do mundo, menos pra babaca aqui? – Perguntei, com um sorriso cheio de ironia e sarcasmo no rosto. – Porque, se for isso, acho que minhas últimas palavras acabaram de responder por si só.
Eu me voltei para meu café da manhã – ou o que restava dele. Dean seguia no telefone enquanto o carro do meu pai encostava no estacionamento e o prato de Sam chegava simultaneamente.
...
– O que foi, Sam?
– Quer que eu converse com ele sobre isso?
– Seis meses atrás, eu queria?
– Não.
– E por que iria querer agora?
Sam deu de ombros.
– Se você segurou esse sentimento por mais seis meses, deve significar alguma coisa e você poderia perceber que talvez fosse uma boa ideia.
– Não é uma boa ideia.
– Por quê não?
Apontei com a cabeça para Dean, do lado de fora, desligando o telefone e cumprimentando meu pai, os dois caminhando lentamente na direção da porta. Sam comeu rapidamente um bocado de ovo antes de se levantar para receber um caloroso abraço do meu pai. Nós discutimos alguns detalhes extras e, depois de Dean e meu pai fazerem seus respectivos pedidos, eu deixei a mesa para ir ao banheiro. Quando saí, os três já estavam do lado de fora e, pelo vidro, pareciam estar em uma discussão quente.
– ... claro que não! – Dean gritou.
– Você deve estar ficando louco então, certamente.
– Eu que estou ficando louco, Singer?
Os olhos do meu pai pareceram brilhar ao me verem.
, qual a velocidade máxima que você já atingiu com seu carro?
Eu olhei bem para a cara de Dean, a primeira vez desde que ele chegara que toda a tensão se separou por completo do meu corpo.
– Espera, você não tá querendo comparar, né, Winchester?
Dean cerrou os olhos.
– Se você quiser, botamos os dois, lado a lado, numa reta.
Eu não pude evitar rir.
– Dean, seu carro tem o quê, duzentos e cinquenta cavalos?
– Duzentos e setenta!
– Que seja! Quer mesmo colocar ele na pista contra o meu Charger?
– Minha namorada não perderia por nada. – Ele disse, sorridente e convencido.
– Sabe que o carro dela tem quase trezentos e noventa cavalos, não sabe, espertão? – Sam se pronunciou e deu uns tapinhas nas costas do irmão enquanto este se mostrava praticamente ofendido. – Deveria saber, porque foi você que recomendou que ela mexesse no motor.
A comitiva seguiu até a cena do dia anterior. Eu até gostaria de ter ficado surpresa, mas eu não costumava ser surpreendida por nada, mesmo que tudo que eu e meu pai achamos na noite anterior simplesmente desaparecesse. Dean franziu a testa enquanto meu pai reafirmava insistentemente que ele tinha certeza do que tinha visto.
– Tem certeza de que não foi uma alucinação? – Sam me perguntou e eu neguei com a cabeça imediatamente.
– Eu estava aqui. Vi tudo.
– Bem, – Dean disse, remexendo na terra. – é algo diferente do Kentucky.
– Por isso disse que meu tio é quem deveria estar aqui. – Aproveitei o momento.
Sam me cutucou com o braço, me repreendendo em silêncio.
– Dean, não acha que deveríamos ir à polícia descobrir o que podemos sobre o assunto?
Ele se demonstrou interessado e logo estava caminhando para o carro. Eu voltei para o hotel na frente, sem querer muito assunto com ninguém. Pedi uma pizza e tomei um banho enquanto esperava. Depois de algumas fatias a mais do que deveria, eu peguei no sono. Já estava escuro lá fora quando fui acordada por batidas insistentes na porta. Atendi com a cara completamente amassada. Sam riu.
– Desculpa ter te acordado, é que tenho novidades. – Ele me mostrou a pasta.
Esfreguei meus olhos numa tentativa falha de focar a visão e dei passagem para Sam. Olhei para o corredor fora do quarto e vi o Chevelle fodido no estacionamento.
– Meu tio tá aqui? – Perguntei.
– Saiu com meu irmão e seu pai pra ir até uma cidade próxima.
Eu acendi a luz do quarto e quase me ceguei. Logo, sentei na ponta da cama.
– O que você descobriu?
– Há relatos da década de 30 que contam uma história um pouco parecida com a que estamos vendo hoje. – Sam começou, me passando alguns papeis que olhei rapidamente. – Se trata de um ritual em que bruxas que só afeta pessoas más. Criminosos foragidos ou coisas do tipo. Tem que ser sempre em grupos de treze e eles devem ter os cérebros retirados de esquartejarem o corpo para... bem... que tal pularmos esses detalhes culinários desnecessários?
Eu revirei os olhos e me prendi numa página com a foto de uma mesma mulher, com datas muito diferentes.
– O ritual tem que ser feito por cinco mulheres e elas fazem tudo isso pra garantir um certo tipo de imortalidade.
– Alguma pista de quem podem ser essas mulheres?
– Nada, mas seu pai, seu tio e meu irmão foram atrás de algo que pode se transformar em uma informação mais útil do que isso.
– Tem mais algum detalhe do ritual que você não tenha me dito?
– Infelizmente, isso foi tudo o que consegui. Liguei pra um contato em Denver que vai tentar me passar mais detalhes.
Eu levantei da cama, buscando a caixa de pizza que ainda tinha duas fatias.
– Quer um pedaço? – Ofereci para Sam. – Já está fria, mas...
Ele sorriu e esticou a mão. Nós dois comemos nossas respectivas fatias rapidamente e logo um silêncio constrangedor tomou conta do quarto. Eu tentava olhar para ele sem ser notada, mas eu sabia que era só questão de tempo.
– Dá pra ver na sua cara que as coisas estão piores do que da última vez, . – Sam disse, proferindo cada palavra com o máximo de carinho possível.
– Não é da sua conta.
– Desde o momento que você me contou, é da minha conta sim.
– Sam, talvez eu não queira tratar do assunto.
– Mas, se você não falar comigo, vai falar com quem? Seu pai?
– Não vou falar com ninguém! – Gritei.
– E até quando isso vai ficar te prejudicando? Até causar um dano irreversível?
– Qual é, Sammy, uma maldita paixão platônica não pode ser tão ruim assim.
Ele se levantou e se aproximou de mim.
– Não consigo ficar quieto, sabendo que você não tá bem. Sabe que eu te amo como uma irmã.
– É só eu não ver o Dean que isso vai passar.
– Ultimamente, você tem feito tudo menos se afastar do meu irmão.
– Acontece.
...
– Sam, eu realmente prefiro lidar com isso do meu jeito, por favor. – Eu disse, colocando a mão espalmada em seu peito e procurando relaxar. – Desculpa se estou sendo grossa, mas eu acredito estar tomando a melhor decisão pra mim. Você não tem culpa de nada e não faz ideia do quanto me magoa ver que ele não enxerga todo o esforço que eu fiz.
– Meu irmão é burro, , ele não enxergaria nem se você esfregasse na cara dele.
– E se eu esfregar e estragar o relacionamento profissional?
, você não vai estragar nada.
– Prefiro não correr o risco, Sam.
Minha voz praticamente se arrastou tão lentamente quanto eu arrastei meu corpo até o banheiro.


Capítulo 2

– Ei, o problema dele certamente não é na embreagem. Eu disse que é o câmbio. – Reclamei.
O mecânico olhou para mim com mais raiva ainda e, com um sorriso bem cínico, devolveu os cabos da embreagem para o lugar. Eu reproduzi o mesmo sorriso, puxei o celular do bolso e fui para o lado de fora da oficina, sem tirar os olhos do animal que certamente não sabia o que estava fazendo com meu carro. Ele parecia particularmente assustado com o pequeno cadeado contra demônios adesivado no canto do parabrisa e eu ria só de imaginar a cara daquele babaca se abrisse a mala.
O telefone chamou mais algumas vezes e eu desisti. Meu ombro ainda doía depois de um metamorfo em Livermore tentar arrancar a tatuagem com uma faca. Fomos para Lincoln e, enquanto meu pai ficava em casa tentando descobrir por que um metamorfo queria me disponibilizar para uma possível possessão, eu lutava com um cara da cidade vizinha que não entendia nada de mecânica de carros antigos. Eu não estava com um bom pressentimento, então desisti daquilo e escolhi sacrificar meu corpo. Paguei a mão de obra e levei o carro para a fazenda. Meu pai me esperava na varanda da casa.
– E então?
Revirei os olhos.
– Vou fazer eu mesma.
– Mas e o ombro?
– Não importa. – Eu falei, ativando o elevador que levantava o carro. – Amanhã eu mexo nisso.
– Ainda tá claro, dá tempo de uma volta. – Meu pai disse, apontando para nosso estábulo.
A fazenda era um bom disfarce, no geral. Rendia com o gado leiteiro e de corte suficientemente para nenhum órgão do governo duvidar de nós. Harold, um senhor em quem meu pai confiava cegamente, tomava conta da fazenda enquanto viajámos pelo país. A casa era totalmente protegida e todos os funcionários sabiam que não deveriam chegar perto dela a custo nenhum. Mantínhamos uma camada de sal em cada porta e janela, prendendo com fita adesiva. No teto, várias chaves de Salomão estavam desenhadas com tinta visível apenas sob luz negra. Na porta para o porão, nosso armazém particular, o mesmo cadeado contra demônios que tínhamos em nossos carros. Conforme descobríamos mais coisas, adicionávamos mais proteção em nossa casa. Harold era o único que sabia o que fazíamos e se encarregava pessoalmente de resolver o problema caso um dos sensores de movimento ao redor e dentro da casa ativasse.
No final do dia, a fazenda ainda era um grande conforto para toda a maluquice do dia a dia. Os cavalos, que eu havia insistido em ter, era do que eu mais sentia falta quando estava na estrada. Eu e meu pai ainda mantínhamos bem a tradição de família do interior. Minha mãe nos deixou antes da loucura começar. Ela queria ir morar na cidade a todo custo, meu pai não. Eu fiquei com meu pai como parte de um acordo entre os dois. Tinha sete anos na época, não fazia ideia do que estava acontecendo, mas percebi que havia algo de estranho quando meu pai viajava sem dizer onde ia e quando iria voltar, me deixando com minha mãe sempre. As aulas que perdia eram repostas pelo meu próprio pai quando ele chegava em casa. Quando eu tinha 16 anos, um homem de idade próxima dele bateu na nossa porta sangrando. Era John Winchester.
Naquela noite, meu pai se viu obrigado a me contar sobre tudo. Não dormi por dias, apavorada. E mesmo que ele repetisse que a casa era o lugar mais seguro do mundo, eu não acreditava. Em uma tentativa de me ajudar – já que nem meu tio Bobby conseguia me livrar do susto –, meu pai entrou em contato com John e pediu que ele deixasse os meninos comigo na fazenda durante um tempo. Sam era dois anos mais novo que eu e Dean tinha vinte anos, quatro acima de mim. Eu era adolescente, meus hormônios não podiam estar em um pior momento. Dean tinha todo seu jeito garanhão e eu acabei começando uma paixão que se arrastava por sete anos – embora Sam, que era o único com quem eu dividia meu segredo, tivesse tomado conhecimento do fato apenas no último ano. Eu tentava e tentava me livrar daquele sentimento, mas estava tão preso a mim quanto minha própria pele. Era praticamente inevitável, mas tudo o que eu queria era não pensar nele enquanto estava em cima do cavalo.
– Aconteceu alguma coisa? – Meu pai, sempre observador, perguntou.
– Só o ombro, doendo. – Arrumei uma desculpa rápida.
– Sei que não é o ombro e você sabe disso.
Olhei de volta para ele fingindo estar indignada.
– Por que não pode ser o ombro?
– Porque sua cara não é de dor.
– Eu não sabia que existia essa de “cara que não é de dor”.
– Existe, e é a sua cara nesse exato momento.
Observei que Storm estava querendo comer um pouco e dei uma parada. Ele abaixou a cabeça imediatamente e começou a pegar todo o capim que conseguia.
– O senhor conseguiu algo referente ao que aconteceu?
– Você está se referindo ao nosso último caso?
Eu apenas assenti.
– Não cheguei em nada, mas é claramente estranho. – Ele disse, se afastando um pouco com Apple, sua égua preferida. – Nós mexemos diretamente com todo tipo de coisa do submundo e não me surpreenderia se algum demônio estivesse interessado em alguma coisa envolvendo usar seu corpo. Isso daria acesso a uma boa quantidade de armas que, se fossem destruídas, me daria um puta prejuízo.
– Ter acesso às armas que temos seria algo meio lógico, mas como passar por todas as armadilhas pra chegar até elas?
Ele arqueou as sobrancelhas.
– É, faz sentido.
– Pois é. – Resmunguei.
Toquei Storm e cavalgamos até o limite de nossa propriedade com a fazenda vizinha. Na volta para casa, Harold nos esperava na varanda e nem precisamos nos aproximar para saber do que se tratava.
– Quem foi, Harry? – Meu pai perguntou.
– Um rapaz chamado Curtis, do Maine.
– Já estou indo arrumar a mala! – Disse antes de receber qualquer ordem.
Em quarenta e cinco minutos, pegamos a estrada. Foram quase dois dias de viagem para o condado de Somerset. Meu pai e eu fechamos com um motel na beira da estrada e nos encaminhamos para a residência de Curtis Jackman. Eu estava arrumando minhas armas na mochila quando o barulho me chamou atenção. O Impala parou ao lado do meu Charger em instantes. Só pode ser brincadeira...
Dean saiu do carro gargalhando.
– Olha só quem encontramos de novo. – Ele brincou e me deu um abraço. – Daqui a pouco, vai ser mais útil você e seu pai viajarem com a gente de uma vez por todas.
– O que os Winchester estão fazendo aqui? – Meu pai perguntou enquanto apertava a mão de Dean e Sam me abraçava.
– Um contato nos pediu para vir com urgência.
– Jackman?
– Jackman. – Dean repetiu.
Nós batemos na porta e ele rapidamente nos atendeu, com uma cara não muito boa.
– Que bom que vieram todos juntos. – Ele disse e nos deu passagem. – Entrem.
Um casal estava parado no meio da sala, próximos demais um do outro. Assim que nos viram, seus olhos se tornaram negros. Eu respirei fundo e me mantive um passo atrás do meu pai, que sempre dominava muito melhor aquele tipo de situação. Olhei para o teto e havia uma chave de Salomão.
– Curtis, pega seu carro e vai dar uma volta. – Eu disse a ele.
– Vocês são realmente patéticos. – A mulher disse com um sorriso enorme. – Singer e Dean Winchester. Nunca foi tão fácil atrair meus alvos.
Eu praticamente não tive tempo de gritar. Sam me puxou para trás, me jogando contra a parede do hall de entrada, e deu um soco em um Curtis com olhos completamente vermelhos. Caí no chão e meu pai se jogou ao meu lado enquanto Dean dava um jeito de empurrar Curtis para dentro da chave. O barulho que ouvi foi ensurdecedor, mas logo o único som no ambiente era o de nós quatro ofegando. Sam estava com as mãos nos joelhos e sua boca estava sangrando um pouco enquanto o irmão recuperava o fôlego, apoiado na parede. Meu pai saiu do meu lado e parou bem de frente para os três.
– O que você quis dizer com isso? – Ele perguntou à mulher, que insistia em olhar fixamente para mim.
Sam se abaixou ao meu lado e me ajudou a levantar.
– Responda! – Meu pai gritou.
– Me obrigue. – Ela sussurrou, próxima a seu rosto.
O rosto do meu pai ficou vermelho de raiva.
Exorcizamus te, omnis immundus spiritus, omnis...
Os três começaram a se contorcer, mas mantinham o rosto erguido. Meu pai não parou até que os corpos foram finalmente abandonados. Enquanto ele checava se algum dos corpos tinha pulso, eu observei pela janela que alguém se aproximava à pé da casa. Em silêncio, cutuquei Sam e apontei. Ele se comunicou com Dean apenas com um olhar. Nós nos escondemos na sala de jantar, atrás de uma parede, enquanto Dean ficou no banheiro e meu pai, atrás da escada.
O estalar da madeira sob os pés de quem ou o quê seja lá que estivesse entrando na casa fez minha espinha gelar. O homem estava se aproximando dos corpos e poderia nos ver facilmente de onde estava, mas meu pai estava do outro lado do cômodo, apontando uma arma. Ele, de repente, virou para onde estávamos. Sam colocou a mão na minha boca e me puxou para trás. Eu prendi a respiração enquanto a madeira estalava cada vez mais alto até que ouvi um tiro. Meu coração quase parou.
Tiramos um pouco de gasolina de cada tanque e espalhamos pela casa para maquiar os estragos. Ninguém se sentia bem no caminho de volta para o motel, mas a minha cabeça se preocupava mais em pensar no que a mulher havia dito do que em ter acabado de perder a chance de salvar quatro pessoas que não tinham nada a ver com aquela guerra. Algo me dizia, feliz ou infelizmente, que eu não era a única com a mente presa àquele detalhe.
Meu pai nem me deu tempo para pensar, apenas me empurrou para dentro do quarto.
– Tem alguma coisa que você não tá me dizendo, ?
– Como assim?
– To falando do que aconteceu em Livermore e, agora, aqui.
– Sei tanto quanto o senhor.
– Então por que eu tenho um pressentimento...
– Porra, pai! – Eu o interrompi. – Eu sou sua filha, não sou a merda de um caso.
– Agora passou a ser, . Você e o Winchester. Eu preciso ir falar com o Dean.
Ele bateu a porta do meu quarto com violência quando saiu. Esperei alguns segundos e saí também. Sam estava encostado do lado de fora do quarto e me olhava quase preocupado.
– Ei, – Eu o chamei, disposta a cortar o clima estranho. – será que você pode me emprestar o macaco do seu carro?
Sam arqueou as sobrancelhas.
– Posso, claro, mas qual o motivo, se não se importa em me contar?
– Problema na caixa de marcha.
Ele riu de mim.
– Claro.
Forrei um papelão no chão e deitei embaixo do carro enquanto Sam me passava algumas ferramentas. Eu afrouxei um parafuso e identifiquei que meu óleo de transmissão estava vazando.
– Merda... – Deixei soltar.
– O que houve? – Sam perguntou.
– Vou precisar comprar um óleo e soldar uma peça aqui embaixo mas não faço ideia de onde vou conseguir isso por aqui.
– E nosso único contato passou dessa pra melhor, então não seria uma boa ideia levar pra uma cidade maior?
Eu me empurrei para sair e limpei a mão em um pedaço de papel higiênico que eu havia trazido.
– Vocês tem alguma coisa que possa prender meu carro no do meu pai pra ele me rebocar?
– Tem uma corda, deve dar pro gasto.
– Você pode pegar pra mim?
Sam me ajudou a unir os carros e logo eu estava de volta ao quarto. Deixei meu pai avisado sobre minha intenção de ir em outra cidade o mais rapidamente possível e ele me deu certeza de que iríamos assim que o dia clareasse. Havia um pequeno restaurante ao lado do motel e eu me dirigi para lá assim que senti o estômago roncar pela primeira vez. Pedi uma lasanha, prato do dia, e sentei em uma mesa escondida no canto.
O barulho do sino, indicando a abertura da porta, chamou minha atenção. Dean deu uma boa olhada em volta e pareceu satisfeito ao me identificar. Passou no balcão, falou alguma coisa com uma das atendentes, e voltou a andar na minha direção.
– Oi. – Ele disse ao se sentar à minha frente. – Tudo bem?
Dei um gole na minha cerveja e logo ofereci a long neck para ele, que se aproveitou da minha boa vontade sem pensar duas vezes.
– Talvez a cerveja pudesse estar mais gelada.
– Isso é verdade, mas acho que você sabe a respeito do que eu to falando.
– Você quer falar sobre a filha da puta que citou especificamente nossos nomes?
– Será que estou? – Ele brincou.
Parei para pensar por alguns instantes.
– Sam não te contou nada, contou?
– Por quê? – Despertei sua curiosidade. – Ele tem algo pra me contar?
Ufa.
– Ele descobriu um segredo meu e eu pedi pra ficar entre a gente.
– E isso tem algo a ver com o que rolou hoje. – Dean afirmou.
– Não, não tem.
– Tem certeza?
Por alguns segundos, meu cérebro parou no tempo e eu, curiosamente, imaginei se poderia ter algo a ver com aquilo. Os irmãos ficaram com meu pai enquanto eu corri para a casa do meu tio, inventando uma história sem pé nem cabeça de que eu havia tido uma epifania e precisava investigar um detalhe. Não era completamente mentira. Encontrei meu tio no quintal de casa e ele me recebeu com um caloroso sorriso, não tão caloroso assim depois que ouviu minhas ideias.


Capítulo 3

– Então, basicamente, há uma lenda um tanto quanto pesada da qual eu já ouvi falar. – Meu tio começou, me entregando um livro. – Cupido não é tão bonitinho quanto falam em nenhuma das suas versões, e eu desconfio de uma, especificamente. Na verdade, no que me diz respeito, o que se chama de Cupido tinha nome e sobrenome: Michael Shakespeare.
– Estamos falando do mesmo Shakespeare?
– Sim. Ele deveria ter sido um tio-avô de William Shakespeare e faleceu em 1523. As informações escassas contam que ele estava apaixonado por uma mulher de tal forma que a paixão o consumiu e se transformou loucura. Sua insanidade o fez se suicidar se jogando de um penhasco. De tudo o que eu já ouvi, o que faz mais sentido é que Michael hoje é um espírito atordoado que faz com quem pessoas se apaixonem perdidamente por outras até que isso se transforme em loucura e termine da mesma forma.
Segurei meu fôlego por mais tempo do que o normal e meu tio notou.
– O que aconteceu, ?
Não consegui responder enquanto minha mente criava teorias assustadoras. Levantei a manga da minha blusa até o ombro e alisei a tatuagem.
– Isso só me protege de demônios, certo?
...
– Dean Winchester. – Eu disse, sem pensar duas vezes.
Meu tio se demonstrou completamente assustado e, quando Bobby Singer estava assustado, era sinal de coisa muito ruim. Eu encostei na cadeira e todos os meus músculos pareceram doer de repente.
– Por favor, não conta pro meu pai. – Foi tudo o que eu consegui dizer.
Nós começamos buscando qualquer possibilidade de localização dos restos mortais de Michael Shakespeare, e aquela talvez tenha sido a busca mais inútil de toda a minha vida. Não tínhamos nenhum objeto pessoal para usar em um ritual. Basicamente, na história comum, não constava a existência de um Michael Shakespeare. Ficamos sem opções e meu tio decidiu visitar Pamela Barnes, uma grande amiga que ele jurava ser a melhor vidente do mundo. Ligamos para meu pai – que já tinha finalizado no Maine – e dissemos que estávamos indo resolver um possível caso.
O trecho até Illinois foi pequeno mas suficiente para que eu enviasse uma curta mensagem de texto para Sam. “Me liga assim que ninguém estiver vendo, é urgente.” Meu tio me deu uma boa olhada pelo canto do olho e eu quase pude ouví-lo me repreendendo por qualquer motivo – tio Bobby era tão bom em ser meu amigo quanto em me corrigir. O telefone tocou assim que eu saí do carro. Recebi mais uma olhada repreensiva e me afastei da vaga onde paramos.
– Oi, Sam.
– O que houve? – Ele perguntou imediatamente.
– Precisamos conversar.
– Sobre o quê?
– Eu e meu tio achamos que minha condição pelo Dean pode ser uma maldição das feias.
– O quê?! É sério isso?
– É mais do que sério.
– Onde você tá?
– Illinois, na porta da casa de Pamela Barnes.
– A vidente?
– Meu tio acha que ela pode identificar o que tá acontecendo e mostrar como acabar com isso.
– Eu vou dar um jeito de ir praí agora.
– Não! – Eu gritei. – Não é isso que eu quero. Eu só preciso de um favor.
– O que você quiser, eu faço. – Sam quase se declarou.
– Se acontecer qualquer coisa comigo, conta pro Dean.
, como assim? O que pode acontecer contigo?
– Eu preciso ir.
Desliguei o telefone quando meu tio assobiou. Pamela sorriu imensamente e abriu os braços para me receber, me apertando com força.
– Será que um dia você deixa de ser tão maravilhosa assim? – Ela perguntou em meio a um riso.
– Você foi uma ótima professora. – Emendei.
Então Pamela deu uma olhada para meu tio.
– Bobby, vai dar uma volta.
Ele olhou para mim e assentiu, dirigindo-se ao meu carro. Pamela me ofereceu a mão e eu aceitei, entrando em sua casa.
– Seu tio me contou o que tá acontecendo enquanto você fofocava com o Winchester mais novo.
– Como você...? – Eu ia questionar mas desisti com um leve riso. – Quer saber? Esquece.
– Sente-se, querida. – Pamela disse, me apontando o sofá, e logo tomou o lugar ao meu lado. – Mandei Bobby passear porque assim poderíamos ter um momento de mulheres, não acha?
– Sinceramente, eu preferiria ter esse momento em uma situação mais feliz.
– Ah, querida, não seja pessimista. Vamos, me dê suas mãos.
Ela praticamente as agarrou e fechou os olhos. Murmurava algumas palavras que certamente não eram inglês, e eu acreditava também não serem latim, porém não estava conseguindo escutar muito bem. Os segundos estranhos junto a Pamela pareceram anos.
Comecei a sentir dificuldade para respirar. O ar parecia que simplesmente não chegava em meus pulmões. O desespero surgiu e, da mesma forma repentina, se foi. Pamela abriu os olhos e me encarou com uma expressão aliviada. Àquela altura, eu nem sabia se ficava aliviada também porque, honestamente, não sabia o que pensar.
– Não conte ao seu tio, mas não há nada de anormal em uma paixão platônica na sua idade.
– Quer dizer...
– Quer dizer que, – Pamela me interrompeu. – mesmo que toda a dúvida de vocês tenha fundamento, você está limpa. Não há sinal de maldição, feitiço ou qualquer coisa dessa natureza. Mas agora, pelo que vi, temos um segredo pra guardar.
– Pam...
– Não se preocupe comigo. – Ela me interrompeu novamente. – Agora, eu não teria tanta certeza de que seu tio já não ligou pro Winchester ameaçando ele de morte caso aconteça qualquer coisa com a menina dos olhos dele.
Engoli em seco e saí correndo da sala de Pamela, deixando ela rindo de mim. Meu tio estava parado, encostado no carro, com a cabeça abaixada até o momento em que me ouviu. Ele se levantou, o rosto preocupado, e eu procurei sorrir.
– Pamela disse que estou limpa. – Disse logo, sem enrolar.
– Tem certeza?
– O senhor confia nela muito mais do que eu, tio.
Ele levou uns segundos para assimilar tudo.
– Então...
– Aconteceu de eu gostar do filho do John, tio. E eu sei que talvez seja pedir demais, mas gostaria que tanto Dean quanto meu pai não ficassem sabendo disso.
– Sam sabe? – Ele perguntou, as sobrancelhas arqueadas.
Eu assenti em silêncio. Ele entrou para se despedir e voltamos para a estrada. Não foi surpresa encontrar Sam, no quintal do meu tio, com a cara mais preocupada que eu já havia visto na vida. Os dois se cumprimentaram brevemente e eu recebi um incomum abraço apertado. Entramos e meu tio, mais uma vez, explicou tudo para Sam, que questionou a eficiência de Pamela algumas vezes, pois queria ter certeza de que eu não iria me machucar. Mas, ainda assim, restava o que o demônio de Somerset havia dito e nós não tínhamos por onde começar a procurar.
Assim que surgiu um trabalho pequeno, eu tratei de pegar a estrada com meu bebê e um celular cheio de Bon Jovi. Fui para Liberty, um dos vários condados da Flórida, atrás do que poderia ser uma simples aparição, não sem meu pai protestar intensamente. Levei dois dias de viagem, parando uma noite para dormir. O primeiro lugar em que parei foi no escritório do xerife do condado. Coloquei uma boa roupa social e entrei pela porta principal, sendo recebida por um garoto que, provavelmente, tinha uns quatro anos a menos que eu.
– Agente Hewitt. – Eu disse, mostrando de longe o distintivo falso. – Gostaria de ver o xerife.
O garoto fez cara de prestativo e pegou o telefone, trocando algumas palavras com quem estivesse do outro lado da linha.
– Terceira porta à direita, por favor. – Ele disse, me indicando um corredor.
Eu agradeci apenas com o olhar e caminhei com passos firmes até a porta. O xerife abriu a porta no exato momento em que eu ia bater.
– Agente Hewitt, por favor, entre. – Ele me cedeu espaço cordialmente enquanto eu notava uma placa prateada que destacava as letras “Travis Mitchell” em cima da mesa. – Bem, no que posso ajudar os federais hoje?
Eu me sentei numa poltrona de couro antigo.
– Bem, eu gostaria de saber mais sobre o caso de Lauren Kyle.
– Qual o interesse do FBI numa tentativa de suicídio?
– Meus superiores me pediram pra vir pois acreditam que o laudo da perícia tá errado quanto a essa conclusão.
– A senhorita está questionando a eficiência da minha equipe?
– Eu estou apenas seguindo ordens, xerife Mitchell. Gostaria, por favor, de ver o laudo completo da investigação e visitar a senhorita Kyle.
Ele ponderou por alguns instantes.
– Vou pegar os documentos, um minuto.
Eu saí de lá parcialmente satisfeita e me dirigi para o sanatório. Lauren não estava nem um pouco convencida de que eu não a achava louca e demorou a se abrir comigo, mesmo eu usando todas as técnicas que conhecia. Precisei ir comer no refeitório nojento do lugar para que uma enfermeira fosse praticamente correndo atrás de mim. Voltei para a sala com Lauren carregando um sanduíche natural de procedência duvidosa. Ela pareceu esperançosa quando entrei.
– Você tá pronta pra me contar o que houve?
– Só se você conseguir me tirar daqui.
Respirei fundo enquanto o cérebro processava que eu teria que mentir, mesmo contra a minha vontade.
– Prometo fazer tudo o que tiver à minha altura.
Lauren suspirou.
– Tem uma coisa que aconteceu... Bem... – Ela hesitou, mexendo as mãos de forma nervosa. – Eu não posso, vão aumentar minha pena por isso.
Eu me sentei à sua frente e segurei uma de suas mãos.
– Lauren, eu te prometo que, não importa o que seja dito aqui nessa sala, vai ficar entre a gente.
Mais hesitação.
– Faz três anos, eu fui atacada voltando do trabalho. Eu estava com a minha arma na bolsa e acabei atirando no homem. Chequei o pulso, ele estava morto. E então, na semana passada, ele apareceu na minha casa.
– E você tem certeza de que é o mesmo homem? São três anos de distância.
– Você lembraria se tivesse sido atacada.
– Então ok. O que aconteceu? Ele apareceu do nada, ele tocou a campainha...?
– Ouvi um barulho no quarto e fui checar. Ele estava parado ao lado da minha cama. Eu corri, mas não consegui abrir nenhuma porta. Me tranquei no banheiro e ele estava lá. Olhou fundo nos meus olhos e começou a dizer que ia me matar lentamente. – Neste momento, Lauren começou a chorar. – Ele não parava de repetir a frase. Gritei com toda a minha força, mas não saiu nenhuma voz da minha garganta. Eu tentei usar a arma, mas ela emperrou, e tudo o que eu tinha eram as facas da cozinha, e então...
Ela cobriu as cicatrizes recentes no pulso.
– Ele voltou a aparecer aqui, mas os enfermeiros correm pra me ver por qualquer motivo e, logo, ele desaparece. – Lauren declarou, um pouco mais calma.
A situação exigia mais delicadeza do que eu pensava mas, pelo menos, era uma coisa relativamente fácil. Pensava em jeitos de consolá-la, mas eu era péssima naquilo.
– Lauren, preciso te fazer uma pergunta muito importante, ok? Você pode me dizer onde foi que isso aconteceu e em que data?
Eu e meu carro praticamente voamos de lá para o escritório do xerife. Já estava tarde e eu estava morrendo de sono, só que Lauren era alguém que merecia aquela atenção toda naquele exato instante. O homem estava entrando em sua viatura quando eu cheguei. Mitchell deu uma boa olhada no meu carro antes de olhar de volta para mim.
– O que houve, agente?
– Preciso saber de um corpo achado nos arredores da FL-65 em março de 2010, com provável data de morte estipulada para o dia 03.
– Mas no que interessa a...
– Xerife, não importa no que interessa, importa apenas que interessa e ponto final.
Ele não gostou do meu tom de voz, mas entrou no prédio e saiu com uma pasta em mãos alguns poucos minutos depois.
– Mark Carter é o cara que você procura.
– E onde está o corpo dele?
O xerife arqueou as sobrancelhas.
– No cemitério, fica a uma quadra daqui, naquela direção. – Ele disse, apontando para a rua ao lado da delegacia. – Mas eu acho que já é tarde pra resolver isso. Temos esse motel aqui do lado. Não é de luxo, mas é de bom tamanho e os donos são ótimas pessoas.
Meus neurônios trabalharam enquanto processavam a imagem do xerife, louco para entrar na sua viatura e ir para casa. Eu assenti e entrei no carro, ligando a luz interna e fingindo que estava lendo os papeis que ele havia acabado de me entregar. Esperei dois minutos depois dele ter desaparecido do meu campo de visão para seguir para o cemitério.
O lugar era pequeno e aberto, cheio de casas em volta. Enquanto eu iluminava as lápides, rezava para ninguém acordar e decidir espiar pela janela. Levei alguns minutos, mas achei. Busquei minha pá e um galão de gasolina no carro. Tirei cuidadosamente a parte da grama acima do túmulo e cavei até meus braços quase pedirem para parar. Foi quando encontrei o caixão. Com medo de fazer barulho demais, quebrei a tampa até expor completamente os ossos. Molhei tudo com o combustível e, de cima, joguei um palito de fósforo aceso. O clarão que o fogo fez de primeira quase me deu um ataque cardíaco mas, logo, ele se assentou.
Tudo demorou quase meia hora para queimar por completo. Eu dava uma boa olhada em volta a cada dez segundos, pronta para correr de volta para o carro ao primeiro sinal de problema. Devolvi o que tinha de barro e cobri tudo com a tampa de grama, tentando fazer o melhor trabalho possível no escuro.
Entrei no carro e dirigi uns cinco minutos até chegar em um motel beira de estrada na cidade de Blountstown. Tomei um banho e fui para um abençoado Burguer King 24h, quase do lado do motel. Eu nem vi as horas quando voltei para o quarto, só lembro de tudo ficando escuro e eu desmaiando na cama sem nem tirar os sapatos.


Capítulo 4

Um tempo na fazenda iria me fazer bem, mas meu pai praticamente me obrigou a meter o pé para Phoenix a fim de ver minha mãe porque fazia tempo demais que eu não ia lá. Parei em frente ao prédio onde ela trabalhava, em uma vaga que surgiu quase como se tivesse sido planejado. Comprei café e cachorro quente na barraca da esquina e segui esperando. Já havia passado das cinco da tarde quando ela saiu. Olhou para os lados, provavelmente procurando um táxi, antes de se assustar ao perceber a minha presença. Suas sobrancelhas – um tanto quanto parecidas com as minhas – se arquearam enquanto ela caminhava na minha direção. Fui recebida com um beijo no rosto.
– Querida, não sabe como fico feliz em te ver.
– Oi, mãe. – Resmunguei, prevendo mentalmente a tortura das próximas horas.
Ela ajeitou dois pratos na mesa e colocou uma fatia de pizza em cada.
– Se eu soubesse que você viria, teria pensado em algo melhor. Desculpa.
– Não tem problema, vou ficar bem com pizza.
– E então, como as coisas estão? – Ela perguntou, sentando-se na cadeira ao lado da minha. – Seu pai te deu uma folga daquela cidadezinha fantasma?
– Na verdade, a cidade tá ganhando novos moradores. Até abriu uma oficina perto da nossa propriedade. A senhora talvez soubesse, se passasse por lá.
Ela parou de comer.
– Bem, , talvez eu não passe lá por alguns motivos bem óbvios.
– Por exemplo?
– Por exemplo não dar de cara com seu pai.
– Não dar de cara com a filha faz parte do pacote e você não tá nem aí?
– Se foi pra você vir até aqui dizer essas coisas pra mim, , não precisa vir. Fiquei feliz de te ver porque pensei que poderíamos ter um momento de mãe e filha, o que certamente não temos faz tempo. Mas tudo o que você faz é se comportar como uma adolescente sem educação.
– Bem, você podia ter feito alguma coisa para me educar e corrigir esse comportamento, mas não estava lá pra seguir com a sua obrigação, não é mesmo?
...
Eu larguei a pizza em cima do prato e me levantei.
– Já entendi, foi um erro vir pra cá.
– Filha...
– Eu vou voltar pra minha cidadezinha fantasma, mãe. Não deveria ter vindo.
– Eu gostaria que você ficasse.
– E eu não tenho saco pra isso.
Bati a porta com mais força do que o necessário. Dirigi para o sudeste até me afastar o suficiente da grande cidade. Encostei em uma lanchonete e eu nunca fiquei tão feliz quanto fiquei quando vi que eles serviam panquecas. Pedi uma e me sentei próxima à porta do banheiro. Tão cedo quanto a garçonete pôs minhas panquecas em cima da mesa, meu telefone tocou. Deixei tocar até parar enquanto dava uma garfada que queimou o céu da minha boca. O telefone tocou de novo e eu busquei o aparelho na minha bolsa.
– Oi, pai. – Atendi.
– Se você tá falando de boca cheia, é sinal de que as coisas estão boas por aí.
– Na verdade, – Eu comecei e engoli o que estava na minha boca. – eu não aguentei passar mais que duas horas com a sua querida ex.
– Você não tá mais em Phoenix?
– Não, to em algum lugar entre o Arizona e o Novo México.
– Ótimo então, porque eu preciso da sua ajuda em Socorro. Fica uma hora ao sul de Albuquerque.
– Trabalho?
– Sim. Os Winchester já estão lá e eu estou a caminho, devo chegar amanhã de noite ou na madrugada do outro dia, e acho que talvez seja uma pista do que anda acontecendo.
– Você deve estar brincando comigo... – Sussurrei para mim mesma.
– O quê?!
– Ah, nada. Não teria problema eu chegar lá amanhã de manhã, teria?
– Bem, eu acho que não.
– Vou ficar por aqui então e depois pego a estrada.
– Ok, se cuide.
Eu desliguei e terminei minhas panquecas. Pedi outras para viagem – parte porque estava morrendo de fome e parte porque elas estavam deliciosas. Andei mais algumas milhas até achar um motel que parecia aceitável e me hospedei. Peguei a estrada antes do sol nascer e, logo, estava chegando à cidade. Fiz o percurso em quarenta minutos com o pé quase sempre no final do acelerador. Bati na porta do quarto de motel com a cabeça decidida a seguir um rumo diferente. Ninguém respondeu e eu bati de novo, um pouco mais forte. Sam me atendeu abotoando a camiseta. Eu ri.
– Eu volto em outra hora.
– Me dá um minuto. – Ele respondeu.
Sam apenas riu e voltou a fechar a porta. Chequei o celular e enviei uma mensagem de texto para meu pai, avisando que havia chegado bem a Socorro. Decidi esperar no carro, onde Sam certamente me procuraria. Quando virei a esquina entre o corredor de quartos e o estacionamento, trombei com alguém, o destino me sacaneando – só para não fugir do padrão.
– Olha o nosso anjo da guarda aí. – Dean brincou.
– Dean Winchester... – Eu quase desenhei as palavras com a minha voz. – Se eu fosse você, não iria nessa direção.
– Estamos em quartos separados, – Ele respondeu, rindo. – solicitação especial do mais novo.
– Então vou deixar você ir encontrar a garota que deve estar te esperando enquanto aguardo pacientemente os dois machinhos satisfazerem suas necessidades fisiológicas.
Eu ia seguir meu caminho, mas Dean segurou meu braço.
– Não tenho garota nenhuma.
– Ah é! – Revirei os olhos. – Esqueci que, se você tem que pagar, não é garota, é puta.
Dean riu.
– Que língua apimentada.
– Você tá brincando com uma mulher armada, Winchester.
– Eu ando armado também.
Sam saiu do quarto cambaleando e com o cabeço completamente bagunçado. Eu e Dean nos olhamos quase constrangidos.
– Desculpa por... – Sam não terminou a frase.
– Sem problemas. Agora podemos falar sobre o que me fez vir até aqui?
– Café da manhã? – Dean sugeriu, apontando com o dedão para o outro lado da rua.
Eu e Sam nos entreolhamos quando Dean pediu uma porção de frango frito antes das oito da manhã. Na minha mente, um filme de Biologia sobre artérias entupidas de dez anos atrás que meu pai havia me mostrado passava lentamente. Meu estômago embrulhou só de imaginar a quantidade de gordura àquela hora. Cheguei a perder a fome enquanto dividíamos a mesa.
– Basicamente, motivos pra desconfiar, nós temos, mas o que um vampiro estaria fazendo em uma cidade com menos de dez mil habitantes?
– Talvez seja justamente isso. – Dean interrompeu o irmão, a boca cheia de frango. – Discrição. Ninguém desconfiaria de nada aqui. É uma cidade minúscula.
– Nós não somos “ninguém”, – Eu disse. – mas isso não importa. Temos as pistas que precisamos, agora temos que descobrir o que teriam os vampiros a ver com o que rolou no Maine. Ou melhor, se isso tem ligação com eles. Porque, até onde sei, qualquer um poderia ter colocado aquele papel por baixo da porta do seu quarto.
– Não foi você nem ninguém que faça ideia de que a gente se conhece, . – Dean se referiu ao papel colocado em seu quarto com meu nome. – Temos uma pista de um vampiro e isso é tudo. Vamos atrás dele ou dela tentar descobrir mais.
– Tá, e como vamos achar esse vampiro? Vamos oferecer sangue pra todos os moradores ou o quê?
A ironia de Sam nos colocou pensativos enquanto voltávamos para o motel. Eu me divertia com a cara dele, gritando que não estava entendendo minha postura. No mais, eu me sentia devidamente aliviada por achar que estava começando a me desprender do sentimento por Dean. Ele me ofereceu uma caixa de cookies quando entramos em seu quarto.
– Uma garotinha dos escoteiros passou vendendo ontem.
– Escoteiros num motel? – Eu perguntei enquanto tirava um da caixa.
– Não foi aqui. – Sam afirmou. – Foi num restaurante mais ao norte da cidade.
– Menos pior. Mas e o nosso caso?
– Caso ou caso? Porque, se eu fosse apostar, diria que os demônios querem que a gente fique junto. Será que nosso DNA combinado vai resultar em algo terrível?
– Como em A Experiência II?
– E lá vamos nós pras referências que eu não entendo. – Sam resmungou, me fazendo rir.
– De qualquer forma, meu pai tá vindo e trazendo meu tio Bobby. São os dois caras que mais conhecem de tudo depois do seu pai. Se tem alguém que pode resolver, são aqueles dois.
– Isso significa que vamos ficar de folga durante o dia?
– Você talvez, garanhão, mas eu e vamos atrás de uma pista. – Sam declarou.
Eu não estava entendendo nada, mas me mantive em silêncio.
– Que pista? – Dean perguntou, interessado.
– Eu até diria pra você seguir a gente, mas o Impala não vai bater o Charger.
Nós dois rimos e eu balancei a chave do carro propositalmente, seguindo Sam que se encaminhava para a porta. Entramos no carro, nos ajeitamos e eu liguei o som em um volume mais baixo.
– Preciso repetir a pergunta que seu irmão fez. De que pista você tá falando?
– Pista nenhuma, só sai com o carro.
Olhei para cima e Dean estava nos observando da janela do quarto. Fingi que não vi, dei partida e pegamos a estrada.
– Posso perguntar o motivo da alegria repentina? – Ele perguntou o que tanto queria.
– Eu e meu carro passamos um bom tempo juntos, isso é maravilhoso pra qualquer mulher.
– Acho que o termo “qualquer” talvez seja um exagero.
Desviei o olhar da estrada por alguns instantes para encarar Sam com uma cara de deboche quase ensaiada.
– Reformulando então... Isso é maravilhoso pra mim.
– Só isso?
Eu abri o porta-luvas, revelando a garrafa de wishky pela metade. Sam riu.
– Ah sim, agora faz mais sentido. Mas, ainda assim...
– Se for falar do Dean, pode parando por aí.
– Mas eu...
– Pode parando, Winchester! – Gritei e aumentei um pouco volume.
– Se Dean tivesse aqui, ele provavelmente faria uma piada envolvendo masturbação feminina.
– O quê?!
Sam riu.
– Não vou repetir e sei que você ouviu.
Eu joguei quase cem milhas por hora enquanto nós brincávamos de fazer nada na US-25. O dia claro e o asfalto limpo me fizeram quase perder a noção da nossa missão ali. Voltamos pro motel quando meu pai me ligou, dizendo que poderia chegar mais cedo do que o previsto e ordenando que nos preparássemos enquanto ele cruzava a fronteira do Texas com o Novo México. Conferimos armas e munições em um terreno vazio a dez minutos de distância do motel e voltamos para lá. Deixei o carro no estacionamento e fui para a recepção. O rapaz que tinha mais piercings do que fios de cabelo me deu más notícias.
– Sem vagas. – Eu anunciei quando voltei ao quarto de Sam. – Vou esperar meu pai chegar e vamos atrás de outro com vaga pra todo mundo.
– Se quiser tomar um banho enquanto espera... – Sam ofereceu. – Eu to nojento e aguento bem mais disso do que você aguenta.
– Tá dizendo que eu não aguento a estrada, criança? – Debochei enquanto pegava uma toalha limpa dobrada em cima da cama. – Nenhuma puta usou essa, usou?
– Essa tá reservada para ladies como você. – Dean brincou e me deu as costas, voltando-se para o notebook.
A banheira até parecia bem limpa, mas meu subconsciente se recusava a pensar na ideia de deitar ali, mesmo que fosse extremamente convidativo. Eu liguei a água na temperatura mais alta que consegui aguentar. Minha pele chegou a ficar vermelha mas, ainda assim, a água parecia me massagear. Respirei fundo uma, duas, três vezes, tantas quanto necessárias. Quando finalmente deixei o banheiro, estava sozinha. Dei uma olhada pela janela e o Impala não estava lá. Logo, permiti que meu corpo enrolado na toalha se arrastasse até a cama de Sam. Eu me joguei e fechei os olhos, concentrada em não pensar em absolutamente nada.
Como nada na vida era perfeito, senti repentinamente que estava sendo vigiada. De supetão, eu levantei em completo estado de alerta. Dean estava apoiado na parede com o ombro, rindo de mim. Tentei me cobrir o máximo possível, garantindo que a toalha não escapasse de nenhum espaço importante.
– D-desculpa, – Gaguejei. – achei que vocês t-tinham saído.
– Sam saiu e eu fiquei. Dica pra vida, verifica se a porta tá trancada da próxima vez.
Puxei o lençol para cima do meu corpo.
– Vai embora, Dean.
Ele revirou os olhos, ainda rindo, e me deu as costas.
– Tranca a porta! – Ele gritou, já do lado de fora do quarto.


Capítulo 5

O primeiro tiro, como sempre, foi apenas uma forma de “chamar” os outros. Ainda não estava muito acostumada com o coice da nova escopeta, mas minha mira não estava tão ruim. Eu permaneci de costas para meu tio, de olho em cada movimento. A pequena bolsa com munição estava pesada e me incomodando. O pior era o silêncio, que me incomodava muito mais que qualquer peso. Podia ver meu pai de onde estava. Ele, como sempre, dava cada passo com maestria, parecendo que havia nascido para aquele tipo de vida. A madeira estalou no cômodo ao lado e eu posicionei a arma, tensa.
– Não atira, – Sam disse. – sou eu.
Abaixei a arma enquanto Sam saía de trás da parede, abraçado por trás por um deles, recebendo uma gravata nada confortável. Eu voltei a arma para a mesma posição de antes. O homem riu.
– Se eu fosse você, aprendia a atirar antes de apontar essa merda pra mim.
Carreguei a arma, mais certa do que nunca da minha mira, mas receosa de não obter o efeito esperado com o tiro.
– E se eu fosse você, aprendia a não pegar amigo meu como refém.
Antes que eu pensasse em puxar o gatilho, Dean conseguiu se esgueirar por trás dele e enfiou uma faca em seu ombro. Ele riu quando sua vítima caiu e Sam conseguiu se desvencilhar do homem, praticamente correndo na minha direção.
– Vampiros não deveriam deixar cadáveres ainda com sangue tão próximos deles. – Dean brincou, rindo.
Nossa chegada causou uma briga um tanto quanto feia e resultou na morte de três pessoas que não tinham nada a ver com aquilo. Felizmente – ou não –¸ nós tínhamos fácil acesso a sangue de três cadáveres. Pegamos as cordas que tínhamos. Meu pai, que praticamente não se incomodava com o ato em si, abriu o abdômen de um deles e “lavou” a corda nas entranhas do desconhecido. Amarramos o vampiro em uma coluna, dentro de uma casa abandonada que encontramos por perto. Eu puxei uma maleta que encontrei pela casa e me sentei de frente para o homem. O pouco de consciência que ainda lhe restava fazia com que ele olhasse para mim com ódio, enquanto eu devolvia o olhar cheio de sarcasmo. Meu tio se encostou em uma parede próxima e meu pai se aproximou, carregando um pote cheio de sangue e uma faca.
– Informo previamente que não é minha primeira vez interrogando um monstro como você pra saber o que tá rolando a respeito da minha filha e, quem não me respondeu antes, eu matei.
– Eu imagino. – Ele respondeu, agonizando.
– Posso saber seu nome?
– Não te interessa.
Meu pai riu.
– Bonito nome, ‘não te interessa’. Você se importaria de me ajudar com uma informação? Estou particularmente focado em saber se você tem algo a ver com a perseguição incomum que minha filha anda sofrendo.
Foi a vez do homem rir, mesmo com dor.
– Até onde sei, não é só sua filha que tá sendo perseguida. E se você é tão bom quanto diz que é, deveria saber que não se trata de nenhum tipo de perseguição.
– Então do que se trata?
Ele permaneceu em silêncio, com os lábios lacrados. Meu pai molhou a faca no sangue que estava no pote enquanto o vampiro acompanhou com os olhos.
– Do que se trata, ‘não te interessa’?
O mutismo continuou, sendo apenas interrompido pelo grunhido do homem após a facada que meu pai acertou em sua coxa direita, exibindo todas as suas presas em um sorriso macabro.
– Ainda não sabe do que se trata? Porque, de onde veio essa, tem mais.
– Traz o Winchester aqui. – Ele rosnou.
– Nenhum Winchester vai colocar o pé nessa cidade tão cedo, ‘não te interessa’.
Ele fungou com o nariz e sorriu.
– Será que não?
– Estou aqui, pode falar. – A voz de Dean ecoou pelo ambiente.
Ele se colocou no espaço que havia entre eu e meu pai em posição militar. Embora não soubesse exatamente onde e como Dean estava escondido, todos nós tínhamos conhecimento de que ele não escaparia do olfato de um vampiro.
– Fiquei me perguntando quanto tempo você demoraria pra aparecer.
– Eu tava tirando uma água do joelho. – Dean ironizou.
– Tenho minhas dúvidas.
Dean pegou a faca, ainda suja do sangue, e cravou na outra coxa do vampiro, arrancando mais um grunhido profundo.
– Eu, diferentemente do meu querido amigo Abe, atiro antes e faço perguntas depois, então sugiro que você não brinque comigo. – Ele rosnou.
– Conto o que você quiser, basta pedir.
– Então você vai me explicar detalhadamente o que tá acontecendo e, se eu não me sentir satisfeito com a resposta, eu corto o seu pescoço antes de você pensar em me dirigir outro desses seus olhares cheios de uma imponência que só existe na sua imaginação.
– Tem um grupo de bruxas milenares interessado em capturar vocês dois juntos por conta do que vocês fizeram com Lilith.
– Necessariamente juntos?
– Aparentemente, vocês dois devem estar o tempo inteiro juntos pra que possibilitem um ritual que colocaria Lilith como chefe do inferno.
– Qual a sua parte nisso?
– A recompensa que tá sendo oferecida é muito boa.
– E o que bruxas tem a ver com um demônio? – Ele perguntou.
– Aí eu não sei.
O corte foi rápido e preciso, me deixando surpresa mesmo que eu estivesse atenta ao que estava acontecendo. Arrumamos nossas coisas e ateamos fogo ao corpo. Em questão de horas, estávamos entrando no estado do Colorado. Paramos em um recuo na beira da estrada, guiados por meu tio. Saímos de nossos carros em silêncio, com nossas mentes trabalhando solitariamente em processar, interpretar e responder os últimos acontecimentos. Eu deixei os homens se aproximarem enquanto apenas encostei na lateral do meu carro.
– Acho que isso aqui é um adeus, já que nós dois separados somos inúteis. – Eu disse enquanto Sam encostava ao meu lado.
– Ou é justamente o contrário. – Meu pai disse.
– Abe...
– Cala a boca, Robert.
– É da vida da que nós estamos falando! – Meu tio gritou.
– Sou o pai dela, a melhor pessoa pra tomar essa decisão.
– O senhor quer justamente fazer o oposto. – Deduzi. – Quer nos colocar juntos porque vai atrair o que tá atrás da gente e, assim, as respostas vão começar a surgir.
– E com as respostas, a gente pode descobrir como se livrar disso. De novo. – Dean me completou.
Eu e ele nos olhamos por longos e silenciosos segundos. Fui a primeira a desviar o olhar, logo assim que começou a ficar constrangedor.
– Achei que ficou claro, quando eu me tornei uma caçadora como vocês, que eu poderia dar uma pausa do serviço quando bem entendesse. Isso ainda está de pé?
– Claro, mas...
– Mas então eu vejo vocês daqui a uns dias.
Meu pai sabia das minhas escapadas, claramente, mas não fazia ideia de qual era o meu destino. Certamente, nem sabia que meu destino era sempre o mesmo, ou ao menos eu achava que não. Ele daria um ótimo detetive caso tivesse uma vida normal e isso era, com certeza, motivo para desconfiar de que ele sabia da cabana no meio dos Everglades. Ninguém me viu seguindo para o sudeste do país mas poderiam me rastrear se procurassem pelas minhas possíveis identidades falsas. Por isso, dormi dentro do carro mesmo. Em uma mercearia fajuta na beira da estrada, me abasteci com bastante macarrão instantâneo, comida enlatada e refeições congeladas. O Charger, é claro, não se sentia muito confortável com o terreno do parque, mas minhas pequenas modificações fizeram com que o trecho se tornasse mais fácil com o tempo.
Eu havia encontrado aquela construção de um quarto, uma cozinha e um banheiro por acaso durante uma investigação muito louca. Quando deu vontade de escapar do mundo pela primeira vez, fui para lá. Enchi o lugar com chaves de Salomão da mesma tinta que usávamos na fazenda. Minha próxima vontade era instalar irrigadores abastecidos com água benta que ficassem ligados o dia inteiro, mas meu cérebro ainda não havia processado como fazer aquilo sozinha.
Toda vez que eu voltava lá, me surpreendia com o lugar seguir intacto. Eu joguei a bolsa com minhas roupas em cima da cama enquanto terminava de retirar as coisas do carro. Uma minúscula hidrelétrica em um riacho próximo fornecia energia suficiente para a casa. Fervi um pouco de leite e misturei com achocolatado. Nunca sabia ao certo quanto tempo passaria lá, então sempre existia a possibilidade de eu ter comprado mais coisas do que o necessário. Dormi antes de chegar na metade do copo.
A manhã do outro dia chegou cedo demais para mim. Eu me revirei na cama, lutando insistentemente para não acordar e levantar antes da hora que pretendia. Quanto mais sono, melhor, pois significava menos tempo consciente de tudo que estava acontecendo. Saí, eventualmente, para dar uma caminhada em volta do lugar, não sem levar duas pistolas na cintura e uma escopeta na mão. Era janeiro e o frio era de matar, mas eu não desanimei. Rodei e rodei até não conseguir mais achar necessidade naquilo. Voltei para a cabana, mais chocolate quente e, então, eu me senti mais leve. Um longo período debaixo da água quente da banheira antiga foi mais que útil. Fiquei mais três dias, sozinha em meio à selva, eu e meus pensamentos.
Era sempre surpresa quando eu voltava para casa. Meu pai devia ter escutado o barulho de longe e me esperava na varanda do casarão da fazenda, claramente contendo uma excitação engraçada.
– Fez bom proveito do tempo longe? – Ele perguntou quando eu o abracei a fim de cumprimenta-lo.
– Ótimo, eu diria. Perdi alguma coisa?
– Nossas galinhas estavam sumindo e eu comecei a achar estranho até que encontrei um buraco na grade suficiente para uma raposa se esgueirar.
– E consertou o buraco? – Perguntei.
– Na verdade, Harold tá lá agora, escondido atrás de uma folha de compensado, esperando a raposa aparecer pra atirar nela.
– Coitada da raposa.
– Coitadas das nossas galinhas. – Meu pai implicou.
– A raposa não sobrevive se não comer.
– Ela comeu as galinhas da pessoa errada, então não vai sobreviver de qualquer jeito.
Eu dei o primeiro passo para dentro de casa e, de repente, uma sensação estranha tomou conta de mim, fazendo com que eu abrisse mais os olhos para dar uma boa vistoriada no local.
– Aconteceu alguma coisa?
– Eu ia te fazer a mesma pergunta. – Respondi meu pai. – Tem alguma coisa errada aqui.
– Que tipo de coisa errada?
– Parece o campo eletromagnético que um fantasma criaria.
– Mas a casa tá protegida contra essas coisas. – Meu pai disse, as sobrancelhas arqueadas.
– E é justamente isso que me assusta.
Meu pai buscou uma arma com balas de sal grosso em cima do aparador do hall de entrada.
– Você acha que nossa segurança possa estar comprometida?
Eu respirei fundo, dei mais alguns passos. Estava nervosa sem entender o motivo. Pensei, pensei, pensei. Decidi relaxar e não preocupar meu velho.
– Deixa pra lá, deve ser o trabalho mexendo com a minha cabeça.
– Tem certeza?
Eu nem respondi e já subi para o meu quarto, completamente exausta da viagem de dois dias de Miami até o Kansas. Fiz um pouco mais do que havia feito durante todos os outros dias longe dali e levantei quase com um tapa na cara. Meu pai batia o pé no chão de madeira próximo da cabeceira da cama.
– Tem serviço.
– Eu preciso ir? – Perguntei, sonolenta.
Singer negando um caso?
Eu ri e me sentei na beira do colchão. Meu mundo girou.
Singer tá se sentindo quase bêbada.
– Bem, como sempre, você não é obrigada a ir. Eu to indo com seu tio pra uma cidade no interior de Washington. Devo sair em menos de meia hora mas eu ligo pra avisar sobre o andamento das coisas.
Meu pai deu um beijo na minha testa.
– Toma cuidado.
Eu enrolei, esperei que ele saísse e desci o terreno da propriedade para o estábulo. Storm sentiu meu cheiro antes mesmo de eu entrar na construção e começou a fazer festa. Eu busquei uma escova no almoxarifado e entrei na baia dele, sendo recepcionada por um beijo babado na minha cabeça. Empurrei Storm um pouco para trás enquanto ria.
– Calma, garotão, eu sigo comendo igual você mas pesando bem menos.
Ele se posicionou próximo a mim, quase como se entendesse minhas palavras. Eu ri da situação e comecei a pentear delicadamente sua crina, tomando cuidado para desembaraçar fio por fio sem machucar meu bebê com uma lentidão exagerada. Levei horas ali.



Capítulo 6

A ligação chegou às seis da manhã e eu certamente não estava muito satisfeita com ser acordada antes da hora. Meu pai estava saindo de Washington em direção à Dakota do Sul para deixar meu tio em casa e, de lá, seguiria para uma cidade na Georgia que estranhamente estava registrando muitos casos de combustão espontânea – dois já seriam de se estranhar, mas trinta e dois realmente era alarmante e piscava amarelo neon.
– Eu posso passar em casa pra te pegar. – Ele insistiu sutilmente. – É um desvio de duas horas, no máximo, do meu trajeto, não vai mudar muita coisa. Ou podemos combinar de nos encontrarmos em alguma parte da estrada.
– Verifiquei ontem que tem uma criança completando seis meses de vida hoje em Lawrence e eu vou pra lá montar guarda.
– Sam e Dean estão ocupados?
– Eu nem cogitei ligar pra eles, pai.
– Bem, Lawrence é problema dos dois até então.
– Lawrence é problema de qualquer caçador do jeito que as coisas andam e, se eu quiser voltar pra casa, são duas horas de direção apenas, sem motéis.
...
– Eu tenho certeza, pai. – Interrompi a frase que certamente terminaria com uma insistência final.
– Maldita a hora em que eu te coloquei nessa vida.
– Ressuscite John Winchester e reclame com ele.
Ouvi meu pai rir antes de desligar. Ainda estava com muito sono, principalmente depois de ter entrado na madrugada com minhas leituras, mas minha consciência já havia desistido de continuar dormindo por mim. O céu estava ameaçando começar a clarear e, da minha janela, não se dava para ver quase nada, a não ser a luz fraca que emanava da pequena casa de Harold. Coloquei uma roupa quente e saí na varanda de casa. Olhei bem em volta, me questionando se o que eu estava para fazer era seguro.
Ver o sol nascer no oriente enquanto cavalgava era uma das minhas coisas preferidas. Storm estava calmo naquela manhã e parecia tão satisfeito quanto eu com aqueles minutos solitários. Nós passeamos juntos por um tempo. Eu peguei uma fruta da macieira próxima ao estábulo, ele pegou várias. Sinceramente, me questionava sobre a real necessidade de ir até Lawrence, já que fazia tanto tempo que nada de ruim acontecia por lá de fato, mas a voz no meu ombro insistia em tentar me convencer de já começar a arrumar as malas para pegar a estrada.
A viagem foi tranquila. O EMF não registrou nada a noite inteira e eu me senti, de certa forma, aliviada por estar preocupada desnecessariamente. Voltei para casa quando o sol já estava apontando. Larguei tudo de qualquer jeito no sofá e botei um pouco de água parar ferver a fim de fazer um pouco de café. Sentei na poltrona do meu pai, já planejando esquecer a água no fogo. Quando pensei em começar a relaxar, o celular vibrou. O identificador de chamada não me agradou nada.
Revirei os olhos enquanto pegava o aparelho na minha mão e atendia a chamada.
– Sam...
– Cadê seu tio, pelo amor de Deus? – Ele quase gritou do outro lado da linha.
– Tá em casa, até onde eu sei.
– Por que aquele velho filho da puta não tá com seu pai? – Outra pessoa gritou.
– Dean?!
– Seu pai não tá na Georgia? – Sam perguntou.
– Sim, mas o que tá acontecendo?
– Deu merda, precisamos de ajuda.
– Onde vocês tão?
– Ajuda de verdade, , – Dean rosnou. – de gente grande.
– Tá de sacanagem com a minha cara, né? – Eu reclamei, já me levantando e indo para o quarto arrumar a bolsa. – Onde vocês estão, cacete?
– Evansville, Indiana. – Sam me respondeu. – Não vem sozinha, .
– O que tá acontecendo?
– Boa pergunta. Viemos investigar um rugaru, mas encontramos ghouls criando humanos em uma fazenda na US-41, colada na divisa com o Kentucky. Só que nos pegaram e estamos trancados em uma espécie de porão.
– Gastei a bateria do meu celular tentando ligar pro filho da puta do seu tio...
– Dá pra parar de xingar meu tio, Dean?! – Gritei. – To saindo do Kansas e indo praí. Vou tentando ligar pros dois no caminho.
Ambos suspiraram do outro lado.
, é perigoso você sozinha. – Dean finalmente baixou a bola. – O Sam tá certo em avisar pra você não vir sozinha.
– Fiquem vivos. – Eu disse e desliguei.
O carro nunca desenvolveu tão bem na estrada quanto naquele dia. Embora meu estômago protestasse, não parei para almoçar. Eventualmente, precisei abastecer e comprei apenas um café e barras de chocolate enquanto o tanque do carro ficava cheio. Estrada, estrada e mais estrada. Dirigia consultando as imagens via satélite pelo celular e chequei onde eles poderiam estar.
Cheguei ao lugar no final da tarde – era a terceira propriedade em que eu parava – mas meu sexto sentido estava gritando naquela. Encostei logo na saída da US-41 e deixei três espingardas carregadas no banco da frente, junto com um facão recém-amolado. No meu colo, duas pistolas automáticas com seus respectivos pentes completos. Segurei uma enquanto dirigia em marcha lenta, adentrando a propriedade. Havia uma construção em ruínas do que parecia ter sido um casarão algum dia. Eu havia tentado ligar para meu pai e meu tio desde que havia saído de Lincoln, mas nenhum dos dois atendia. Pensei em tentar novamente antes de sair do carro, mas eu estava sem sinal.
Desliguei o motor e olhei em volta com exacerbada cautela. Ghouls não costumavam fazer emboscadas até onde eu sabia, então pensei ser seguro deixar a proteção do carro. Encaixei as duas pistolas no cós da calça e o facão na bainha adaptada no cinto. Com uma das espingardas em mãos e as outras cobertas com um casaco, tranquei o carro e comecei a me aproximar da construção. Dei uma olhada pelas brechas das janelas, procurando fazer o mínimo de barulho possível, mas não encontrei ninguém. Não foi difícil achar a porta para um porão quando dei a volta no lugar. Olhei em volta novamente e decidi arrombar o cadeado na porrada.
A primeira coronhada gerou gritos. Eu me ajoelhei e tentei olhar pela fresta das madeiras que formavam a porta. Haviam pessoas lá dentro. Levantei de novo, decidida a terminar de arrancar o cadeado, quando alguém me puxou para trás pelo pescoço. Fui lançada para longe e, antes mesmo de associar o que tinha acontecido, dei um primeiro tiro em vão. O homem dava passos firmes na minha direção, o que dava tempo de sobra para mirar e acabar com a cabeça dele com um tiro só.
Meu coração estava na boca, mas não tinha tempo para agir. Corri de volta e dei mais algumas coronhadas até o cadeado ceder. De cara, vi expressões aliviadas ao me ver, mas todos pareciam bem aterrorizados ainda. Nem sabia por onde começar, só tratei de fechar a porta novamente quando entrei. Olhei para todos assustada. Uma mulher, próxima a mim, tremia. O lugar deveria ter quase cem pessoas.
– Alguém pode me dizer o que aconteceu? – Perguntei.
Eles se entreolharam.
– Seria interessante se a senhorita pudesse nos dizer. – Um rapaz disse.
Busquei o celular no bolso e selecionei uma imagem.
– Você viu esses dois aqui?
O homem negou.
– Talvez estejam na sala ao lado.
– Sala ao lado?!
– Tem uma abertura pequena na parede logo ali. – Ele disse, apontando para o canto do lugar.
Eu atravessei por entre as pessoas até o ponto indicado. O buraco dava para enfiar o meu braço, nada mais, e o outro lado era completamente escuro.
– Sam! – Gritei. – Dean!
Ouvi um burburinho e aguardei.
?!
Senti um grande alívio.
– Vocês poderiam ter contado o que tava acontecendo com mais precisão. – Reclamei. – Como eu acesso o lado de vocês?
– Por dentro da casa.
– Cacete...
– E seu pai?
– Não consegui falar com ele, nem com meu tio. Como que eu dou a volta?
– Você tá sozinha, não vai fazer merda.
Dei meia volta e olhei de novo para as pessoas que ainda estavam curiosas a meu respeito.
– Tem alguém aqui que saiba atirar? – Gritei.
Uma mulher levantou a mão.
– Sou policial.
– Eu fui fuzileiro. – Um homem à minha esquerda se manifestou.
– Mais alguém?
Um rapaz delgado hesitava em levantar a mão.
– Eu já cacei com meu pai. – Ele murmurou.
– Ótimo. – Eu disse, empurrando a espingarda para ele. – Você sabe manusear?
Ele apenas assentiu. Fiz sinal para que os outros dois se aproximassem de mim e lhes entreguei minhas pistolas sem pensar duas vezes, passando um pouco de munição para o moleque com minha espingarda.
– Nós precisamos dar a volta e resgatar o reforço que tá do outro lado da parede. Vocês tem capacidade de me dar cobertura?
O homem e a mulher fizeram que sim, mas o rapaz estava claramente inseguro. Coloquei a mão no ombro dele.
– É só mirar na cabeça e atirar, ok?
Retirei o facão da bainha e me encaminhei para a saída.
– Vocês fiquem aqui, em silêncio, que vamos voltar em breve. – Anunciei.
Subi até a porta. Olhei para o antigo fuzileiro ao meu lado e ele apontava sua arma para a saída. Empunhei o facão e abri a porta usando a lâmina. Do lado de fora, não parecia ter nada fora do lugar. Nós quatro saímos em silêncio e voltamos a fechar o porão. A porta de entrada da casa caiu quando tentei abrir. O barulho foi estrondoso e ficamos completamente em alerta, aguardando longos segundos até voltarmos a nos movimentar. Testei uma porta, era um banheiro. A outra, uma minúscula dispensa. A terceira porta parecia extremamente sugestiva. Eu a abri e o pouco de claridade que entrou permitiu iluminar o rosto de algumas pessoas. Busquei pela lanterna no meu bolso e, assim que eu a liguei, Dean praticamente me atropelou.
– Eles só voltam quando escurece, precisamos tirar essas pessoas daqui agora.
Nós observamos enquanto as pessoas, sob nosso comando, se organizavam e se afastavam na direção da estrada. Eu estava guardando as armas de volta na mala do carro quando Dean se aproximou.
– Você sabe que não deveria ter vindo sozinha.
– Vão me tratar como café com leite até quando?
– Provavelmente, pra sempre. – Ele brincou. – Cadê meu irmão?
– Não tá com você?
O rosto dele se fechou.
– Sam! – Dean gritou, olhando para todos os lugares possíveis. – Sammy!
Ele correu para dentro da casa novamente e eu fui atrás dele, mas Sam não estava lá. Eu vi um vulto se mexendo próximo à janela e outro perto dele.
– Dean, cala a boca. – Falei, baixo.
Como se pudéssemos nos comunicar mentalmente, ele olhou exatamente para o mesmo lugar que eu. Dean tampou minha boca e começou a me puxar na direção do porão. O tempo fechado não colaborava com a luminosidade e eu não conseguia distinguir nenhuma forma no escuro, mas ouvi Dean fechando uma porta.
– As armas...
– Quieta. – Dean ordenou.
Eu busquei a lanterna no meu bolso e a acendi. O cômodo não tinha nem um metro quadrado. A madeira acima de nós estalava, e as paredes tinham manchas de sangue. Não estava conseguindo respirar direito. A primeira porrada na porta gelou minha espinha inteira e eu, automaticamente, desliguei a lanterna. Dean se colocou entre eu e a porta imediatamente. Os sons denunciavam que eram muitos e nós não tínhamos arma nenhuma. Eram raros os momentos em que eu permitia que o pânico tomasse conta de mim, mas Sam havia sumido e nós estávamos muito fodidos. Comecei a chorar e me deixei cair no chão. Dean se ajoelhou ao meu lado na mesma hora.
– Ei...
– Eu não quero morrer aqui. – Resmunguei.
– Ninguém vai morrer aqui, , eu te prometo.
Ele se sentou ao meu lado e me puxou para si. Em outro momento, eu ia estar adorando aquilo, mas eu podia palpar a morte e não havia espaço na minha cabeça para emoções de menininha. Dean acariciou a minha cabeça, tentando me tranquilizar. A cada novo som, meu corpo inteiro tremia.
– Cadê a lanterna? – Ele perguntou.
Entreguei na mão dele e Dean acendeu a luz novamente.
– Achei que pudesse ajudar. – Ele sussurrou.
Dean buscou um canivete do seu bolso e fez um pequeno corte em sua mão. Aos poucos e com muito mais calma do que eu possuía naquele momento, desenhou um cadeado contra demônios na porta e voltou ao meu lado. Nossos olhos se encontraram por longos e estranhos instantes. Eu fui a primeira a desviar.
– Acho melhor desligar a lanterna e economizar bateria porque a gente nunca sabe do que pode precisar. – Ele disse.
Em silêncio, eu apenas assenti. Assim que voltamos a ficar no escuro, Dean me abraçou, levando-me para junto do seu peito, em uma tentativa reconfortante de me distrair das porradas em volta de nós.


Capítulo 7

Despertamos com o barulho de tiros do lado de fora. Com meus batimentos cardíacos nas alturas e sem previsão de calmaria, iluminei o relógio. Eram quase seis da manhã.
– Você tá bem? – Dean perguntou.
Os tiros estavam mais perto. Ironicamente, eu podia ouvir uma voz ao longe, chamando pelo meu nome, e quase sorri.
– A cavalaria chegou. – Declarei.
– Só espero que meu irmão esteja com eles. – Ele disse após dar um longo e cansado suspiro.
Ainda incertos sobre o que de fato estava acontecendo do lado de fora, decidimos permanecer em silêncio por mais alguns instantes. Quando o tiroteio cessou e as vozes de meu pai, meu tio Bobby e – graças a Deus – Sam ficaram mais claras, nós nos levantamos e começamos a gritar de volta. Aguardamos ter certeza de que eles estavam no mesmo cômodo que nós e então destravamos a porta. Meu pai me puxou de lá e me abraçou forte junto a meu tio, não importava o quanto eu estava cheirando terrivelmente mal.
– Da próxima vez que você tentar algo estúpido como isso, me avisa antes. – Meu pai gritou na minha cara, como já era de se esperar. – E você, Winchester...
Ele me soltou e andou ameaçadoramente na direção de Dean, com um dedo em riste na direção de seu rosto. Meu tio fez o imparcial e apenas observou enquanto Sam não saiu do lado do irmão. Eu, imediatamente, me coloquei entre Dean e meu pai.
– Ele não fez nada, pai.
– Sabe lá Deus o que teria acontecido a você se Sam não tivesse me ligado! – Ele gritou.
– Não foi Dean que me trouxe até aqui. Vim sozinha, dirigindo meu próprio carro, completamente sóbria e consciente do que estava fazendo.
– E desde quando você embarca numa maldita missão desse porte sem me avisar, ?
– Nós três tentamos avisar! – Eu gritei de volta. – Se você tivesse atendido a porra da ligação dos Winchester antes de mim, provavelmente eu que estaria te resgatando agora.
– Se não fosse por ele, você estaria em casa agora.
– Se não fosse por ele, – Rebati. – talvez você nem tivesse quem resgatar agora, cacete, então por que tá insistindo em falar merda?
– Abe, com a sua licença...
– Não dou licença porra nenhuma! – Meu pai gritou. – , no seu carro, pra casa, agora.
Eu não podia acreditar naquela palhaçada. Minha relação com meu pai tinha sempre se baseado em manter o máximo possível de amizade e, por mais que nossa vida fosse sempre preenchida por emoções extremas, nós nunca discutíamos. Claro, nós tínhamos conversas acaloradas com frequência, mas nunca foi humilhante para nenhum dos lados. Mediante isso e meu temperamento esquentado, eu olhei firme nos olhos dele e segurei a respiração.
– Ou você para com essa merda agora ou eu garanto que vou entrar no meu carro e ir pra onde você não vai me achar.
...
– Cacete, pai! – Eu devolvi, gritando na mesma intensidade que ele. – Você quer mesmo fazer tempestade em copo d’água? Faz, porra! Mas me deixa fora disso. Eu não sou um dos seus alvos e não vou aceitar você tendo um ataque de nervos.
– Vocês dois precisam se acalmar. – Meu tio disse, paciente como sempre.
Permaneci entre meu pai e Dean por mais alguns segundos enquanto girava a chave do carro entre meus dedos e decidia por o pé na estrada – sem dar satisfação a ninguém, para variar. Calada, me dirigi ao carro, entrei, fechei a porta e dei partida. Olhei para o retrovisor a fim de ajeitar o espelho e me deparei com Dean, tentando me encontrar no reflexo e um olhar mais perdido do que nunca. O que vi me fez segurar inconscientemente a respiração por alguns instantes, mas bastou um vislumbre de lucidez para perceber que todas as ideias que passaram pela minha cabeça enquanto eu olhava fixamente de volta para Dean não passavam de uma grande bobagem.
O carro levantou poeira quando parti o mais rápido que pude. Meu cérebro tomou a decisão antes que eu pudesse compreender que estava caminhando para o sul do país, de volta para o meu esconderijo secreto nos Everglades. A estrada me pareceu estranhamente confortável e, mesmo tomada por um cansaço intimidador pelo qual a última noite era responsável, eu não parei de dirigir. Não parecia nem um pouco sensato se fosse levado em conta o meu destino final, mas eu não fazia o tipo que se importava. Cheguei à cabana em alguma hora um pouco depois da meia noite.
A primeira coisa que notei ao sair do carro foi o objeto enorme que se movia próximo à varanda. De acordo com os meus hábitos de vida, eu não deveria ter medo de nada, mas a maldita píton era realmente gigante. Minha primeira reação foi pegar a .9mm no carro, mas meu cérebro estava rindo de mim mesma. Peguei minhas malas – a de roupa e as de armas. Tranquei o carro e, carregando sem jeito uma lanterna, iluminei o caminho enquanto contornava a cobra pelo lado mais distante de sua cabeça.
Depois de conferir que não havia nenhum outro animal indesejado dentro da cabana, tranquei tudo muito bem fechado, arrumei a cama e deitei para dormir. No outro dia, acreditei ainda ser cedo quando acordei com um barulho familiar. Não era pra ter sinal de celular nesse fim de mundo, foi a primeira coisa que pensei, e não levantei correndo para atender. O identificador de chamadas estava lotado de chamadas perdidas do meu pai, mas a última era de Sam.
Dei uma boa olhada pela janela da frente para checar se a visitante da noite passada ainda estava lá e, graças a Deus, não estava. Redisquei o número de Sam e me sentei no assoalho da varanda, enquanto observava meu carro – que precisava ser lavado.
– Oi, onde você tá? – Dean atendeu do outro lado.
A minha mente levou alguns segundos constrangedores até processar o que tinha acabado de acontecer.
– Em algum lugar, por aí. Por quê? O que houve?
– Bem, você foi embora sem dizer nenhuma palavra pra mim e, depois do que aconteceu, não consigo deixar de me sentir culpado pela briga com seu pai.
Eu me joguei para trás e deitei no piso de madeira.
– Deixa isso pra lá.
– Eu não consigo deixar malditos casos pra lá. Nós crescemos juntos e o que sinto por você não foge muito do que eu sinto pelo Sam.
– Essa doeu... – Pensei, mais alto do que deveria e gostaria, mais desgostosa da vida do que jamais havia me sentido.
– O quê?!
– Nada. – Corrigi meu erro rapidamente. – Tá tudo bem, Dean, não precisa se preocupar.
– Nós podemos conversar pessoalmente, ?
– Já disse pra deixar isso pra lá.
– Por que a gente não pode se ver?
– Pelo amor de Deus, Dean, o que houve?
Ele falou alguma coisa, mas eu só conseguia ver o carro do meu pai se aproximando na distância. Revirei os olhos, puta da vida, mas meu subconsciente me avisava que Dean estava me chamando insistentemente do outro lado da linha.
– Desculpa, eu vou precisar desligar.
– Mas, ...
Não escutei o resto. Pensei seriamente em me trancar dentro da casa e fechar tudo, mas o carro estava do lado de fora e meu pai me esperaria pelo tempo que fosse preciso. Estava preparada para tudo naquele instante, principalmente para mais discussão. Eu escondi rapidamente o celular por dentro da calça e, depois de constatar que havia esquecido de colocar o celular no modo silencioso, torci para Dean não ligar de volta naqueles próximos minutos. Permaneci completamente calada, observando-o se aproximar.
– Não vai nem me perguntar como eu descobri? – Ele disse, sentando ao meu lado.
– De que importa se agora eu perdi o pouco de privacidade que eu tinha?
– Você faz drama demais, .
– E você foi um grande filho da puta. – Rebati. – Vir até aqui só me deixa mais puta.
– Eu ainda sou seu pai.
– Não parecia meu pai quando tava me fazendo passar vergonha em público.
Em público. – Ele repetiu. – Seu tio.
– E os Winchester.
– Grandes coisas, . Você tem que entender que eu sou seu pai e que não vou permitir que você corra riscos desnecessários. E sim, qualquer um que te leve pra esses riscos vai estar criando um grande problema comigo.
– Então o senhor criou um puta problema consigo mesmo, porque ninguém te obrigou a me contar sobre John Winchester. Você podia ter inventado uma mentira e eu, provavelmente, acreditaria.
...
– Deixa pra lá.
, por favor.
– Eu não quero conversar, pai. – Insisti, me levantando. – Você me fez passar vergonha e agora me tirou a única coisa que eu tinha, que era o segredo desse lugar.
– Meu Deus, você é tão rancorosa quanto sua mãe.
– É que eu sou filha dela, né?
Arrumei minhas coisas e, sob protesto, deixei o lugar, com meu pai no encalço. A cabeça procurou lugares para escapar, mas o carro do meu pai estava colado ao meu na estrada e decidi me render. Peguei a estrada em direção ao Kansas, de volta para casa, com uma pausa para dormir no caminho. Eventualmente, é claro, os serviços iam começar a surgir e minha consciência não me permitiria fugir da responsabilidade. Meu pai foi com Rufus, um amigo de longa data, para Brookings, que ficava a quase uma hora de distância da casa do meu tio. Eu, ainda distante, decidi me trancar entre quatro paredes e ajudar com a parte do estudo de casos. Já estávamos no terceiro dia e a suspeita era de um espírito vingativo cujo corpo havia sido enterrado em uma vala comum – nosso tipo preferido de caso, só que não.
Eu me encontrava entretida no computador, invadindo alguns sites em busca de informação. O telefone tocou e meu tio, que estava quase desmaiando no sofá, pulou e correu para a mesa.
– Agente Willis. – Ele atendeu, me mantendo atenta. – Seu filho da puta, esse número é pra coisa séria.
Relaxei quando ouvi as palavras e voltei a fixar minha atenção na tela de LCD. Os dados eram escassos e, até então, eu só podia dizer o mesmo que sabia no dia anterior: era um morador de rua e ponto final. Eu já estava cansada de ler a mesma coisa com palavras diferentes em cada página que eu visitava quando os passos pesados do meu tio se arrastaram até o cômodo onde eu estava.
– Você tem visita. – Ele resmungou.
– Quem? – Perguntei, enchendo a mão de mais algumas batatas fritas que eu havia feito mais cedo naquele mesmo dia.
– Winchester.
Quando meu tio revirou os olhos, eu nem precisei perguntar de qual dos irmãos se tratava. Eu levantei e bati as mãos nas laterais da calça para tentar me livrar do pouco de gordura nos meus dedos.
– Onde ele tá?
– Na porta de entrada. – Meu tio respondeu e caminhou para a cozinha. – Vou dar privacidade pra vocês dois, seja lá do que se trata. E é melhor você terminar isso antes de rolar a chance do seu pai aparecer por aqui, já que ele ainda não superou o que aconteceu em Indiana.
Eu deixei a sala e me encaminhei para a porta. Respirei fundo umas três vezes antes de abrí-la.
– Você tá caçando sarna pra se coçar. – Eu disse. – Meu pai tá em uma cidade aqui do lado.
– Azar o meu então. – Dean disse. – Eu tentei fazer isso por telefone.
– Meu Deus, garoto...
Em silêncio, eu caminhei até o galpão onde meu tio mantinha suas ferramentas para consertar os carros em seu quintal. Mexi em um macaco hidráulico apenas por devaneio.
– As coisas estão meio entranhas, então eu queria saber se vou falar à toa caso comece a falar o propósito de dirigir meio país pra falar com você.
– Fala, Dean. – Eu ordenei, evitando ao máximo qualquer tipo de contato visual.
– Eu sinto muito por ter te ligado naquele dia. Te coloquei em um perigo e não tinha como garantir que as coisas iam terminar bem. Colocar minha vida em risco é uma coisa, você não tem nada a ver com isso.
– Tudo bem.
– “Tudo bem”?! – Ele questionou, indignado. – Eu praticamente abro meu coração pra você e é isso que você responde?
– Me diz então o que você esperava que eu respondesse.
– Qualquer coisa além de “tudo bem”.
– “Ok” serve?
Ele bufou.
– Puta que pariu, garota...
– Você só veio falar isso, Dean?
– Dá pra você, pelo menos, olhar na minha cara enquanto eu falo com você?
Respirei fundo e me virei. Ele, certamente, não estava em um dos seus dias normais.


Capítulo 8


Eu revirei os olhos.
– Sam, movimentos circulares. Daqui a pouco você vai levar um coice.
Nós dois estávamos tirando férias de nós mesmos em conjunto. Meu pai havia acertado as coisas com Dean. Os dois quase saíram no tapa antes disso quando ele nos flagrou caminhando pelo ferro velho do meu tio, Dean implorando perdão por algo que não havia sido um erro. Eu e ele nos acertamos – ou seria melhor ‘eu e eles’? – e estávamos trabalhando em deixar aquele episódio para trás. Como sempre, eu não estava tão ansiosa quanto os outros para pegar um novo trabalho e acabei sendo deixada de lado com Sam, que estava passando um tempo na fazenda comigo, relembrando os velhos tempos.
Naquela manhã específica, era dia de dar uma geral nos cavalos. Sam insistiu que poderia me ajudar com o banho, mas eu percebi logo que ele não sabia do que se tratava aquilo tudo e trocamos de lugar: ele com a mangueira, eu com as escovas. Seven parecia peculiarmente agitado naquele dia, e todos ficavam agitados em dia de banho. Tomei cuidado para que ele não me machucasse quando avançou na direção de Sam, buscando a origem da água.
– Você nem vai me dizer que tanto você e meu irmão conversaram no dia em que deixei ele na casa do Bobby? – Sam fez a pergunta de um milhão de dólares.
– Alguém já disse que vocês dois são insistentes além do possível?
Ele deu de ombros e riu.
– E você, esquentada além do impossível.
– Costumam me dizer isso... – Eu murmurei. – Pode parar de jogar água.
– Mas eu to falando sério. – Sam disse, encostando na parede externa do estábulo.
– Eu também estou.
Sam riu de mim.
– O que Dean demorou tanto pra falar?
– Ele só queria pedir desculpas, eu já disse.
– Não rolou nada além disso?
Eu bufei e, ironicamente, Seven também.
– Por que você tá, de repente, insistindo tanto no assunto? Você falou alguma coisa pra ele?
– Não falei nada que não devia pro meu irmão.
– Sam!
– Mas eu não falei, ! – Ele gritou. – Eu realmente quero saber, porque você é péssima em fingir que não se importa.
– Eu parei de me importar.
Ele riu de novo, quase uma gargalhada.
– Por favor, você consegue me superar quando se trata de ser ruim em mentir.
Soltei o cabresto de Seven e o levei até o piquete, externo ao estábulo. Sam abriu o portão para mim enquanto eu livrava um de meus cavalos da contenção. Eu me virei de supetão para ele, que levou um pequeno susto com minha atitude.
– Você precisa parar de se preocupar comigo, Sammy.
– Tenta outra. – Ele disse.
– Se eu fosse você, – Ouvimos a voz de Dean ao longe. – eu puxava ela pela nuca e...
Ele não terminou a frase e eu olhei, puta da vida, para Sam.
– Seu resgate chegou.
– Eu só vou embora se você quiser. – Ele sussurrou antes que Dean chegasse perto demais para ouvir.
– Chegou mais cedo do que o planejado, Dean. – Eu disse, com certo tom de deboche.
– Se quiserem que eu vá embora pra dar privacidade pros dois pombinhos... – Dean disse, gesticulando em direção a nós dois.
– Posso garantir que o homem que ela quer não sou eu. – Sam respondeu o irmão.
– Em que homem Singer teve tempo de por os olhos?
– Ninguém, idiotas. – Respondi asperamente. – Se você veio buscar seu irmão, agiliza as coisas, porque eu tenho coisas pra fazer.
– Ela tá de TPM? – Dean perguntou a Sam como se eu nem estivesse ali.
– Não, só to saturada.
– Saturada de quê?! – Ele questionou.
Eu joguei a toalha por cima dos ombros e dei as costas para os dois, me dirigindo para a casa. Harold estava andando na minha direção, firme. Meu corpo inteiro ficou tenso enquanto eu parei no meio do caminho.
– O que houve?
– Demônios. – Harold disse enquanto eu ouvia os irmãos se aproximando rapidamente. – Huntsville, Alabama.
– É cidade grande. – Dean observou.
– Foda-se. Harold, pega três fardos de sal grosso no celeiro e coloca dentro do meu carro.
Ele assentiu e saiu correndo enquanto eu voltava a andar na direção de casa. Joguei as coisas dentro da mala de qualquer jeito e saí para o carro. Harold estava chegando perto com o carrinho de mão e Sam, colocando suas coisas no Impala. Eu entrei antes que Harold terminasse de carregar e girei a chave na ignição. Nada.
– Merda... – Sussurrei para mim mesma.
Tentei outras três vezes e o carro nem fez esboço de ligar. Eu saí do carro e olhei para os dois, que já estavam dentro do Impala.
– Vão na frente, to com problemas.
– O que houve? – Dean perguntou.
– Não sei. Não tá dando ignição.
– Entra no carro com a gente, eu te deixo aqui na volta.
– Eu vou no meu carro, Dean.
Ele revirou os olhos, saiu do carro dele e foi até o meu. Abriu a porta de trás e pegou minha bolsa.
– Você não pode andar de carona uma vez na vida?
– Não, Dean, larga as minhas coisas aí.
Simplesmente não fui levada a sério e ele caminhou para o seu carro, levando minhas roupas junto. Eu bufei algumas vezes antes de aceitar a derrota. Enquanto eu enchia a bolsa da mala com o maior número de armas e munição que eu conseguia, ele foi lá e pegou os fardos de sal grosso que eu havia pedido a Harold. Terminamos de carregar e partimos. Eu liguei para meu pai assim que saímos dos limites da fazenda, já deixando claro que não queria saber de nenhuma histeria porque estava indo pegar um caso sem ele.
A viagem, por sorte, era relativamente curta, e apenas os irmãos revezaram no volante até chegarmos em uma das maiores cidades do Alabama. Eu – puta da vida – tentava obter o máximo de informação possível no banco de trás sobre o caso. Nós três estávamos tensos porque manter o disfarce em cidade grande não era tão fácil, muito menos achar nossos alvos. Paramos em um hotel na beira da estrada. Recebemos um olhar de reprovação quando solicitamos um quarto só e quando saímos, não muito tempo depois de colocarmos nossas melhores roupas.
– Agentes Carter, Lane e Fortus. – Dean nos apresentou à mulher na porta. – Thomas Dylan mora aqui?
Eu segurei o riso. No carro, havíamos feito piadas com o nome do nosso procurado.
– Sim, ele é meu filho. No que ele interessa ao FBI?
– Chegou ao nosso conhecimento que ele deu entrada no hospital ontem com diversos hematomas cuja origem a senhora disse desconhecer. – Sam disse, tentando trazer calma ao ambiente com sua voz sempre tranquila.
– Acham que eu machuquei meu filho?
– Senhora, estamos apenas seguindo ordens. – Dean disse, firme. – Se não nos deixar ver a criança agora, vamos voltar com um mandado e levar seu filho para um hospital, sem a senhora. Teríamos um processo muito mais traumatizante. Então a senhora que decide.
Ela respirou fundo e nos deu passagem.
– Thomas é uma criança hiperativa, eu acredito que ele tenha caído da escada.
– E a senhora não ouviu?
– Você não tem filhos, com certeza. Se tivesse, saberia que é impossível ver tudo o que eles fazem. Ter filhos deixa qualquer um louco e, às vezes, a gente se tranca num mundinho só nosso pra poder respirar e dar conta das responsabilidades.
– Senhora Dylan, – Sam disse. – não estamos questionando sua capacidade como mãe. Apenas gostaríamos de descobrir o que aconteceu com seu filho.
– Pode me levar até ele? – Pedi.
Nós começamos a subir as escadas, a mulher na frente, e eu dei uma olhada para trás. Dean fez sinal para que eu terminasse de subir logo e me deu as costas antes mesmo de eu tirar minha atenção dele. Thomas era delgado. Estava usando bermuda e regata, evidenciando as dezenas de manchas roxas em seus pequenos braços e pernas. O trabalho era mais fácil quando se tratava de atirar em monstros. Ver uma criança de quatro anos, que não tinha nada a ver com aquilo, sofrendo não era exatamente o que tinha me transformado em uma caçadora.
– Olá, Thomas, tudo bem? – Perguntei com a voz mais doce que consegui fazer.
Ele assentiu sem tirar os olhos do boneco do Homem de Ferro com o qual brincava.
– Eu sou um tipo de policial. – Disse, entregando o distintivo falso em suas mãos, o que chamou sua atenção na hora. – Vim aqui ajudar sua mãe a cuidar dos machucados que você tem.
Ele virou a cabeça repentinamente na minha direção e eu torci para que minha reação não tivesse ficado muito na cara. Engoli em seco e me abaixei ao seu lado.
– Como você se machucou, Thomas?
– A mamãe me jogou da escada.
– Thomas! – Serena Dylan gritou. – Agente, eu não...
– Vou precisar chamar um amigo enquanto sua mãe fica aqui, Thomas. Tem problema?
Ele negou com a cabeça e se voltou para o Homem de Ferro. Desci as escadas tentando não denunciar minha velocidade. Dean estava na cozinha e Sam, na sala de jantar ao lado. Eu cheguei perto dele e segurei seu braço, puxando-o para perto.
– O garoto ainda tá possuído. – Sussurrei em seu ouvido.
Dean olhou imediatamente para Sam e fez sinal para que ele se mantivesse em silêncio mas se aproximasse.
– Tem giz de cera na sala, eu consigo desenhar uma armadilha embaixo do tapete. Você tem como manter o menino lá em cima por uns cinco minutos?
Eu assenti.
– Sam, sobe com ela.
Quando cheguei no último degrau e olhei para o quarto de Thomas, impedi Sam de dar mais um passo. Puxei a arma do coldre e ele fez o mesmo. Serena estava deitada no chão com um ferimento na cabeça, de onde saía uma quantidade considerável de sangue. Dei uma boa olhada em volta, a arma pronta para ser usada, mas não havia ninguém.
– Dean! – Gritei.
Ele subiu as escadas correndo e ficou estático ao nos ver, a mão lentamente se direcionando ao coldre pendurado em sua calça. Sam puxou o EMF do bolso mas não acusava nada, então ele rapidamente pegou o telefone e discou o número da emergência enquanto abaixava ao lado da mulher e checava se havia pulsação.
– Vão vocês, eu fico. – Disse. – Até então, eu existo e sou filha de um fazendeiro do Kansas, sem passagem pela polícia.
– O que você vai dizer quando chegarem aqui? – Sam perguntou.
– A polícia não vem agora de cara. Quem vai aparecer são os paramédicos. Ninguém deles vai me pedir qualquer informação. Então, quando a ambulância sair, eu encontro com vocês na rua de trás.
– Vão querer saber quem era o homem que efetuou a ligação pra emergência. – Ele ressaltou.
– Digo que era meu pai.
– E descobrem que seu pai tava do outro lado do país. – Dean disse. – Vamos embora nós três.
– Mas Dean...
– Vamos! – Ele insistiu.
Eu olhei uma última vez para o corpo de Serena no chão antes de dar meia volta. Nós descemos rapidamente pelas escadas. Estava fechando a porta quando notei o estranho livro sobre a mesa de centro. Entrei de volta correndo na casa e Dean me gritou imediatamente. Peguei o livro, de aparência velha e com um pentagrama invertido desenhado em sua capa. Nós entramos no carro esbaforidos e seguimos, rumo ao interior do estado. Depois de muito tempo que Dean, dirigindo, notou assustado o que eu carregava nas mãos.
A página marcada descrevia um ritual que envolvia um casal de caçadores que estivesse esperando um filho. O homem e a mulher deveriam ser sequestrados juntos e medicados com ervas alucinógenas que, sob efeito do feitiço certo, fariam com que os dois se envolvessem. Quinze dias após o sequestro, a líder do grupo de bruxas deveria fazer com que a mulher sangrasse até a morte e, então, literalmente abrir a barriga e retirar o útero da mulher, obrigando o rapaz a se alimentar do útero com o que seria seu filho e, após isso, ele deveria se deitar com um demônio – Lilith, é claro.
Senti minha alma quase deixar meu corpo enquanto lia os detalhes minuciosos do ritual. Minha respiração foi ficando pesada e pesada, até que apaguei por completo. Quando voltei a mim, estávamos em algum quarto e já era noite.
– O que aconteceu? – Perguntei, a voz tão mole quanto meu corpo estava.
– Acharam o corpo do menino sem vida nos fundos da casa. – Sam respondeu. – Vamos até a casa verificar se tem algum sinal do que devemos fazer agora. Eu só vou tomar um banho antes.
Eu assenti enquanto esperava minha visão se acostumar com a claridade da TV. Dean se sentou ao meu lado na cama antes disso.
– Era o mais perto da cidade que não levantaria suspeitas e só tinha um quarto, então nós vamos dormir no carro.
– Pelo amor de Deus, Dean, eu não tenho medo de ficar no mesmo quarto que vocês.
– Não se trata de medo, se trata de respeito.
– Se for assim, vamos dormir três no carro.
Ele revirou os olhos.
– Todo caso que nós pegamos juntos acaba em cima dessa merda sem pé nem cabeça que não conseguimos solucionar. – Dean observou. – A gente tem que começar a seguir a ideia do seu pai, ficar junto e deixar que eles venham até nós. Não tem jeito mais fácil.
– E também não tem jeito mais perigoso.
– Eu não disse que ser fácil significa que não é perigoso.
– Você leu o que eu li? – Perguntei, apontando para o livro aberto em cima da mesa de refeições. – Eu não me senti bem, Dean. Não sei dizer o que houve, mas parecia que eu tinha tomado um porre de tão ruim que eu fiquei.
– Relaxa, é sua mente jogando com você. E comigo. Nós vamos lá descobrir o que houve e trabalhar em cima das novas informações.
Se conseguirmos novas informações.
– Nós vamos conseguir. E outra coisa, deixa seu pai fora disso por enquanto, ok?
Eu me limitei a fazer que sim.


Capítulo 9

Perguntava a mim mesma, em segredo, se ele fazia de propósito. Desde Huntsville, nós havíamos decidido que ficaríamos juntos, embora isso atrapalhasse muito o meu plano de tentar me desfazer do sentimento que nutria insanamente por ele. Em especial, naquele dia, as coisas estavam muito difíceis. Nós estávamos tentando nos infiltrar como novos vizinhos em uma festa local, na cidade de Greenville, e Dean acidentalmente caiu na piscina após tropeçar em um desnível no chão. Ele saiu da piscina na velocidade da luz e me chamou. Assim que paramos ao lado do carro, em uma área um pouco distante da festa, Dean tirou a blusa e me entregou, pegando uma toalha pequena em sua bolsa e começando a se secar. Eu engoli em seco enquanto observava cada movimento mínimo de seus músculos. Era uma puta tortura.
– Você tá fazendo de sacanagem, né?
– O quê? – Ele perguntou enquanto secava o cabelo.
Desviei o olhar dele.
– Nada.
– Do que você tá falando?
– Nada, Winchester! – Insisti em negar enquanto dava a volta no carro e ficava de costas para ele e sua barriga terrivelmente exposta. – Vamos ficar?
– Aquela advogada me dá arrepios, mas não acho que sejam presságios. Talvez o lugar não tem muita sorte, só isso.
Torci com força sua blusa, tirando o máximo de água possível enquanto fingia não estar escutando suas palavras.
– De novo... Por que Sam não veio?
Ele caminhou ao meu lado, verificando uma nova blusa, seca.
– Eu preciso perguntar. Você e Sam estão tendo alguma coisa?
Eu engasguei. De todas as reações que eu podia ter, eu simplesmente engasguei do nada. Meu subconsciente estava rindo de mim enquanto eu procurava lembrar como se respirava e rezava com todas as forças para não estar ficando vermelha.
– Haja amor. – Ele murmurou.
– O amor que eu tenho pelo Sam é tudo, menos esse amor que você tá pensando.
– Por que você tá sempre reafirmando isso?
– Talvez porque seja verdade.
Dean colocou a blusa de volta.
– É o terceiro caso seguido e nós estamos sem pistas novas.
– Temos o ritual, – Eu disse. – os envolvidos... De que pista nova nós precisamos?
– Você acha mesmo que isso é o suficiente pra gente lutar contra isso?
– Não é mais simples a gente simplesmente manter uma boa distância um do outro que aí vão ter que encontrar outras pessoas pra isso?
Ele revirou os olhos.
– Vamos ter essa conversa de novo?
Dei a volta no carro e abri a porta do motorista para que ele entrasse.
– Vamos. – Respondi com firmeza.
Andar de Impala estava me tirando do sério, mas meu tio estava trabalhando no Charger para mim nos tempos vagos e ainda não tinha finalizado o serviço. Dean dirigir o tempo todo era só mais um obstáculo. No entanto, ele me esticou as chaves.
– Não, obrigada. – Recusei.
Ele deu de ombros e entrou, aguardando eu entrar no meu lugar.
– Se não tentarem com a gente, vão achar outras pessoas.
– Que achem. Então nós vamos lá e lutamos contra Lilith e seja lá quem estiver com ela.
, quinze dias, um casal de caçadores. Nós não nos permitimos rastrear. Não fazemos ideia da quantidade de caçadores que tem por aí, de quais avisar. Não dá pra adivinhar quem vai ser o casal escolhido e muito menos encontrar eles depois de serem raptados.
Estiquei meu braço e girei a chave na ignição. Dean ficou olhando para mim – eu, olhando exatamente para o mais longe possível – por longos minutos até finalmente decidir sair com o carro. Ele era tão teimoso quanto meu pai, mas me dava menos lições de moral, e talvez isso fizesse dele um cara menos insuportável. Ainda existia muito sentimento em mim. No começo, quando Dean decidiu que íamos rodar um pouco juntos, foi difícil e uma tortura. O amor platônico acabou se transformando em tédio e, posteriormente, em vontade de chutá-lo onde doeria mais.
Nós realmente não tínhamos nada e estávamos de mãos atadas. De fato, não poderíamos ser possuídos, o que com certeza era uma vantagem – ou ao menos seria, se tivéssemos mais informações. Eu costumava ouvir que nós sempre encontrávamos o que estivéssemos procurando, mas não estava acreditando naquele dito popular desde que nossa busca começara. Já não sabia mais o tanto de estrada que tínhamos rodado. Fomos à manicômios e prisões. Hospitais? Estávamos quase confundindo eles com nossos hotéis. E tudo o que ganhamos foi um jantar grátis e uma velha tarada que acreditava que Dean era a reencarnação de seu marido. Ah! E um hematoma no abdômen. Aquela merdinha realmente estava incomodando e merecia ser esquecido da lista.
– Agente Jett. – Eu me identifiquei ao rapaz que atendeu a porta. – Sua mãe está em casa?
– Mãe! – Ele gritou e entrou de volta, deixando a porta aberta.
Uma mulher se aproximou. Aparentava ter, ao menos, dez anos à minha frente.
– Senhora Morgan, – Eu a cumprimentei e apresentei o distintivo falso. – agente Jett, FBI. Poderíamos conversar sobre seu marido?
– O que você quer saber que eu já não disse à polícia?
– Não estamos trabalhando com a polícia local pois eles não nos querem por perto. Quando nós resolvermos o caso, vamos tirar crédito deles, e a polícia daqui é orgulhosa demais pra aceitar que somos melhores no que fazemos. Mediante isso, escolhemos não confiar em nenhuma informação que seja dita por qualquer policial daqui.
Jenny Morgan me deixou entrar e ligou a cafeteira. Sem pedir permissão, me sentei à mesa e coloquei meu bloco de notas onde eu pudesse fazer todas as anotações que precisasse.
– Quando a senhora viu seu marido pela última vez?
– Três noites atrás, eu o vi na calçada de casa.
– Ele parecia estar sob efeito de alguma substância alucinógena, talvez?
– Não sei dizer. – Ela disse, passando as mãos pelo fino cabelo e se sentando de frente para mim. – Ele tava confuso, com certeza, mas parecia estar em um embate consigo mesmo. Andou de um lado pro outro várias vezes e se virava pra porta de entrada com um olhar pesado.
– E a senhora viu isso de onde?
– Da janela do meu quarto.
– Não pensou em chamar por ele?
Ela se retraiu.
– Fiquei com medo.
– Posso perguntar o motivo?
A cafeteira apitou e ela voltou à bancada, enchendo duas canecas e esticando uma delas para mim.
– Derek não era exatamente o marido perfeito.
– Por quê?
– Tivemos problemas com bebidas por um longo tempo. Eu cheguei a dar entrada no divórcio, mas acabei ficando por causa do nosso filho. Então ele começou a se tratar, frequentar reuniões dos Alcoólicos Anônimos e, por um tempo, fez efeito. Mas as coisas começaram a parecer estranhas nos últimos dias e eu vi que o velho Derek nunca havia ido embora completamente.
– Então a senhora acha que ele estava bêbado?
– Tenho certeza.
– E o que quis dizer com “as coisas começaram a parecer estranhas nos últimos dias”?
– Não conversávamos. Ele sempre chegava em casa, pedia a janta e, se não tivesse pronta, comia qualquer coisa que tivesse na geladeira ou na despensa até ficar. Passou a dormir no outro quarto. Saía antes de eu acordar.
Eu fingi que estava anotando alguma coisa enquanto a lâmpada acendia sobre a minha cabeça, então me levantei, deixando o café intacto e retirando um cartão de visita de um dos bolsos internos do meu blazer.
– Se a senhora se lembrar de mais algum detalhe importante ou precisar de ajuda, não hesite em me ligar.
Ela assentiu e tomou meu cartão em mãos enquanto eu saía da casa sem esperar que ela reagisse. Desci os degraus da varanda com mais velocidade do que pretendia. Dean olhava para mim rindo de dentro do carro.
– E então?
– Rugaru.
– Tem certeza?
– Absoluta.
Ele deu de ombros.
– Então encaixa.
– Encaixa no quê?
Dean deu dois tapinhas no rádio.
– Frequência policial. Uma casa de família, quantidade de sangue suficiente pra indicar homicídio de, pelo menos, quatro pessoas diferentes.
– Onde?
– Consultei o GPS, fica a uns três minutos daqui.
– E o que você tá esperando?
Esperamos calmamente até que a equipe de perícia da polícia local se retirou porque não estávamos muito dispostos a mentir para autoridades – não naquele caso. Quando eles foram embora, estava tarde e a luz do dia já não existia mais. Preparamos algumas armas e nossas lanternas. O estômago doeu quando eu me contorci para passar por baixo da fita de isolamento, mas eu não podia parar tudo a fim de me recuperar de um ‘chutezinho’.
A primeira coisa em que coloquei a mão ao entrar na casa foi um retrato acima da lareira, um casal feliz e dois meninos que provavelmente era uma imagem de fachada. Eu devolvi o objeto decorativo para o seu lugar e iluminei o cômodo em volta. O cheiro de sangue incomodava, mas não era o pior que eu havia sentido. De onde estava, podia ver Dean vasculhando a cozinha.
– Alguma coisa aí? – Perguntei.
– Não. E você?
– Nada que pareça...
Houve um grito alto na casa ao lado. Sem jeito, nós corremos desesperadamente na direção dos vizinhos. Derek – ou o que havia sido ele um dia – estava sobre um corpo completamente despedaçado. A vítima não tinha mais jeito, nós precisávamos garantir que não houvesse uma próxima de qualquer forma. Eu escalei o lado de fora da casa até a janela onde havíamos visto algumas pessoas enquanto Dean e o maçarico que havíamos levado aguardavam, prontos para chamar a atenção de Derek quando fosse necessário.
Uma mulher e uma criança desceram por onde eu subi mas, quando estava me preparando para deixar a casa também, houve um estrondo e tudo apagou. Os sons estavam distantes, mas ainda estavam lá. Eu não estava entendendo nada. Meu peito estava mais pesado do que o comum e eu quase não conseguia respirar. Tentei mover meus braços usando toda a força que tinha e não obtive sucesso. Mais um estrondo e meus olhos começaram a se abrir lentamente. Assim que eu associei a figura, despertei rapidamente enquanto Derek se aproximava de mim com olhos arregalados e todos os dentes à mostra.
– Ei, seu filho da puta! – Meu parceiro gritou do outro lado.
O maçarico chegou na hora certa e Dean ateou fogo a Derek sem pensar duas vezes. Quando eu pensei que tinha acabado ali, Derek veio andando na minha direção novamente, em chamas, porém muito mais lentamente. Ele se preparou para me dar um soco e eu desviei a tempo, rolando pelo chão. Porém a estrutura não devia ser muito boa e ela cedeu. Primeiro com Derek. Depois, eu escutei os estalos e só tive tempo de virar para olhar para Dean. Ele praticamente pulou na minha direção e me segurou, o que não adiantou de muito.
Caímos no chão do primeiro andar, um outro impacto pior ainda. Ele estava por cima de mim e eu sentia meu corpo inteiro doendo. Seu peso me impedia de respirar fundo e eu me perguntava se Dean estaria acordado ou não. Empurrei seu corpo para longe e, ofegando, Dean se posicionou ao meu lado.
– Acho que quebrei uma costela. – Ele sussurrou.
– Nós temos que sair daqui rápido.
Eu virei a cabeça para Dean e ele fez o mesmo, olhando sério para mim. Em alguns segundos, nós caímos na gargalhada, mas a primeira risada foi suficiente para fazer tudo doer. Resmunguei alto e comecei a tentar me levantar. Nós caminhamos até o carro lentamente enquanto escutávamos as sirenes ficarem cada vez mais altas. Dean escondeu o carro em uma rua vazia e desligou o motor. Ainda com vontade de rir, eu simplesmente deitei em seu ombro e tentei relaxar, mas as dores não deixavam. Mesmo assim, ele ameaçou uma risada.
– Não conta isso pro seu pai, por favor.
– Viramos uma dupla cheia de segredos. – Murmurei e fechei os olhos.
Passamos alguns dias em um motel de qualidade questionável, nos recuperando. Um tomava conta do outro e, com o tempo, o tédio de estar o tempo inteiro ao lado dele se transformou em prazer. Demoramos duas semanas para pegar um novo caso. Fomos para Omaha, em Nebraska, atender o que aparentava ser uma aparição de fantasmas interligados. O contato coma polícia era inevitável. Eu entrei na frente e Dean vistoriava o ambiente logo atrás de mim, como sempre fazíamos. Por algum motivo, eu me sentia tão radiante quanto o Sol naquele dia.
– Boa tarde, agente Young e Jagger, poderíamos falar com o delegado?
– Vou chamá-lo. – O homem assentiu.
Eu me virei para Dean com uma piada bem ruim em mente e o que vi me destruiu. Ele olhava fixamente para a bunda de uma mulher que passava por nós. Achei que os últimos dias podiam ter alguma coisa de diferente. Acabei me permitindo desenterrar o sentimento e voltei ao mesmo lugar do começo, uma mente solitária que achava motivo para sofrer o tempo inteiro.
Terminei o caso omitindo como eu realmente estava e pedi uma pausa logo a seguir.


Capítulo 10

Era o melhor cheiro do mundo, meu pai estava fazendo uma omelete francesa que só ele sabia fazer. Cheguei a considerar levantar disposta, mas minha preguiça de sempre estava acima de qualquer prato, por mais delicioso que fosse. Então me arrastei até a cozinha.
– Bom dia, mocinha.
– Bom dia, pai. – Respondi enquanto ele colocava o prato para mim. – Inspirado?
– Vou precisar sair e seu guarda costas tá vindo pra cá.
Mais Winchester...
– Qual das minhas duas torturas?
– Seu tio.
– Graças a Deus! – Pensei realmente alto demais.
– Quem vê não diz que você passou meses passeando no Impala do John.
Engoli em seco.
– Nós estávamos indo atrás de pistas que ajudassem a resolver o mistério sobre o que Lilith quer com nós dois.
– E tudo o que conseguiram foi voltar pra casa com mais cicatrizes do que já tinham, como sempre.
Meu pai se sentou ao meu lado com a maior caneca que tínhamos, repleta de café.
– Pra onde o senhor vai?
– Um lugar.
– E quando você começou a esconder as coisas de mim?
– Desde quando você faz o mesmo.
Eu me encolhi e dei uma garfada na omelete. Meu pai saiu antes do meu tio chegar, mas não fiquei sozinha nem por uma hora. Nós nos unimos à frente da televisão para olhar a tela sem se importar com o que estava de fato passando e fizemos apenas isso, até um dos Winchester ligarem para ele. Rapidamente, meu tio montou uma pequena base de trabalho e eu ocupei o lugar ao seu lado na mesa de jantar.
– Exatamente o quê estamos procurando? – Eu perguntei quando abri o notebook.
– Qualquer coisa ligada a assassinatos em rios. Se envolver o rio Missouri ou o Mississipi, melhor ainda.
– Dean e Sam estão resolvendo um caso perto da sua casa e o senhor tá aqui comigo?
– Eles estão em Montana, numa cidadezinha com nome engraçado.
– E qual a suspeita?
– Suicídios aleatórios, sempre no primeiro dia do mês.
– Algum padrão entre as vítimas?
– Mulheres entre vinte e quarenta anos. Aparentemente, todas haviam passado pela doutora North, na única clínica de fertilidade da cidade.
– As mulheres eram inférteis? – Questionei.
– Aparentemente... – Meu tio me respondeu e deu de ombros, voltando a um livro que ele estava vasculhando.
Eu digitei rapidamente no meu notebook atrás de algumas informações, ligando algumas palavras em uma ferramenta de busca. Meus olhos filtraram os resultados até que apareceu um link que incluísse todos os termos que eu estava procurando.
– “Hapi é deus do Nilo, responsável pela enchente anual do rio egípcio. Era associado a Osíris, deus da vegetação e do além, que também agia sobre a fecundidade. Os egípcios, no passado, acreditavam que uma mulher infértil fazia com que suas plantações não tivessem sucesso. Então sacrificavam essas mulheres, jogando-as no Nilo, oferecendo-as a Hapi, amigo de Osíris, que o convencia a trazer de volta o sucesso da agricultura egípcia.” – Eu li.
– Você acha que é isso?
– Já se passou mais de uma hora e estamos aqui ainda. Foi nosso melhor tiro.
– Diz como matá-lo?
Eu ri.
– O que achei já é difícil, o senhor ainda quer algo estranho a respeito?
Ele ponderou por alguns instantes.
– Seu pai tem algum livro sobre deuses egípcios?
– Talvez na biblioteca, mas não tenho certeza.
Meu tio se levantou imediatamente e me deixou sozinha na sala de jantar. Sem ter muito o que fazer, fui até a cozinha beber água. Dei uma olhada pela janela e vi que uma pessoa estava saindo do bosque próximo à casa. Não havia estrada naquela direção, nem propriedade de onde a pessoa – que agora eu identificara como sendo uma mulher – pudesse estar vindo.
– Tio. – Chamei, com urgência na voz.
Ele foi até mim imediatamente e eu me limitei a apontar. Nós fechamos a cortina com movimentos sutis e apagamos a luz de dentro. O vidro fumê daria conta de nos permitir espiar a aproximação sem sermos descobertos. Ela foi chegando cada vez mais perto, até que começou a subir os degraus que levavam à nossa varanda. Ouvi três batidas na porta. Meu tio fez menção de ir atender, porém eu o segurei.
– Se for um demônio, já era. Teu uma chave de Salomão bem na porta. – Sussurrei.
– Tem certeza de que tá intacto?
– Harold confere todas as noites. Mas o senhor sabe muito bem que toda a água da fazenda foi santificada e tem sal embaixo da pia.
Ele assentiu e me permitiu ir atender a porta. Não precisei olhar de volta para saber que ele estaria completamente alerta a partir daquele instante. Eu parei em frente à porta e respirei fundo, planejando meu melhor sorriso.
– Boa tarde. – Disse ao abrir a porta.
A mulher era Bela Talbot e meu sorriso sumiu imediatamente.
– Achei que você tava no inferno.
– E eu estava. – Ela disse com aquele maldito sotaque britânico irritante e com um sorriso perverso nos lábios. – Mas acho que voltei e com a vantagem de possuir meu antigo corpo.
As palavras fizeram as engrenagens funcionarem no meu cérebro e eu voltei a sorrir.
– Então você é um demônio. – Concluí, dando dois passos para trás e me virando para ir até a cozinha.
Voltei com uma bacia de água e os olhos dela ficaram arregalados.
– Não sabe como eu esperei por isso.
! – Bela gritou. – Espere, por favor, eu não...
Simplesmente joguei tudo o que tinha em cima dela e a ouvi gritar com um sorriso no rosto. Em algum lugar da minha mente, sabia que meu tio estava logo atrás de mim.
– Eu já tinha muitos motivos pra querer você morta antes. Agora, mais do que nunca, virou meu dever te matar.
– Me escuta antes, por favor.
– Escutar?! – Eu ri.
– É sobre Lilith! – Ela disparou. – Sei que você tem interesse nisso.
– E por que eu deveria confiar em você?
– Como eu saberia disso?
– As notícias correm, querida.
, ela pode ter informações...
– Da mesma forma que teve informações em Portland, sua filha da puta? – Eu interrompi meu tio.
– O que houve em Portland? – Ele perguntou.
– Por que não responde, Bela?
Eu dei as costas e deixei os dois em silêncio. Fui até a despensa, do outro lado da casa, e busquei uma mangueira, conectando uma das pontas à pia da cozinha e levando a outra ponta comigo. Voltei ao hall de entrada com a cara fechada.
– Tio, abre a torneira pra mim.
...
– A torneira. – Repeti.
Escutei seus passos enquanto ele se afastava até a cozinha. Apontei a saída da mangueira para Bela, que à essa altura estava completamente aterrorizada. Quando a água saiu, seu grito foi como música para meus ouvidos. Foi aí que ela percebeu que não ia conseguir fugir e estava presa. Seu terror era diretamente proporcional ao quão satisfeita eu estava ficando naquele instante.
– Vocês estão correndo perigo, Lilith está planejando... – Ela disse, a voz quase extinta e o corpo queimando.
Eu não dei ouvidos, muito menos esperei a frase terminar. Comecei o ritual de exorcismo antes de meu tio se reaproximar. Quando tudo terminou e o corpo de Bela caiu, sem vida. Eu olhei para trás e ele não parecia nem um pouco feliz. Arrastamos o corpo até uma área atrás da casa de Harold e ateamos fogo até não sobrar mais nada. Já estava bem escuro e eu fiquei esperando até a última chama se apagar. Voltei para casa e meu tio me aguardava, sentado na varanda e batendo o pé.
– Estou esperando você me contar sobre Portland.
– Deixa isso pra lá, tio.
Singer...
– Não vai colar. Não hoje. – Eu não permiti que ele começasse a brigar comigo.
Fui dormir naquele dia sem jantar. Antes do sol nascer, no outro dia, eu desci para o estábulo e tirei Storm da baia. Depois de colocar a cela e o montar, entramos na direção do bosque à toda. A lua, para minha sorte, estava cheia e o céu estava limpo, mas nem por causa disso eu deixei de levar uma das melhores lanternas que tínhamos em casa. Vasculhei cada canto das árvores e não vi nada que pudesse ser facilmente notado. Nossa cavalgada chegou ao fim quando chegamos do limite da propriedade com o rio Arkansas. Eu dei mais uma olhada em volta antes de dar meia volta e me direcionar ao local onde eu me meu pai costumávamos praticar nossa pontaria.
O sol estava começando a apontar no céu e a iluminação já era suficiente para que eu deixasse Storm preso um pouco mais longe, à direita da clareira onde eu sempre ia dar alguns tiros. Eu olhei fixamente para ele enquanto tirava a bolsa com as armas e as munições de sua garupa. Arrumei meus alvos, carreguei a arma e dei o primeiro tiro. Storm reagiu, lá longe, mesmo estando ligeiramente acostumado com a situação. Dei outros dois e ele reagia menos. Dei passos para mais longe, aumentando a distância entre eu e o alvo, e atirei em cheio. Não sei quanto tempo fiquei ali. Horas? Talvez. O tempo estava esquentando e acabei tirando o casaco. Foi então que notei a silhueta se aproximando. Sabe-lá Deus por quanto tempo meu tio estava caminhando para nos encontrar. Ele não cederia ao seu medo de cavalos nem para economizar suas articulações, mesmo que ele costumasse enfrentar coisas bem piores do que um belo quarto de milha.
Fingi que não vi e dei mais dois tiros sequenciais.
– Já tá pronta pra me responder?
As imagens estavam bem vívidas em minha mente. Eu e meu pai estávamos em Portland, atendendo a um chamado de um de seus contatos, que possivelmente havia identificado um ninho de vampiros, dois anos antes daquela data. Nós tínhamos acabado de dar de cara com um deles e meu pai foi rápido em decepá-lo. Fomos para o motel escolhido e, enquanto pedíamos nossos quartos na recepção, uma risada conhecida invadiu o pequeno cômodo. Eu olhei para trás e fui surpreendida por um grande aperto. Jo e eu nos abraçamos com força enquanto os olhos de Ellen, sua mãe, brilhavam para nós.
– Bom ver vocês dois vivos ainda, Abe. – Ela disse, me dando um grande abraço.
Vi, pelo canto do olho, a expressão do rapaz da recepção mudar de solícito para curioso. Naquele mesmo dia, mais tarde, nós montamos uma emboscada próximo a um galpão abandonado, já identificado como nosso principal alvo. Eu e Jo fomos rebaixadas a ajudantes de caçadores e serviríamos para resgatá-los ou pedir por reforço, caso necessário. E foi de lá, de cima de um prédio em construção, que nós vimos o Impala chegando. Eu engoli em seco. Tinha certeza de que Jo era apaixonada por Dean tanto quanto eu era. Mas então, momentos depois, durante uma conversa amigável para nos distrair do tédio da tocaia, descobrimos que pensávamos ser inimigas uma da outra: eu achava que ela gostava de Dean e ela achava que eu gostava Sam.
Poucos segundos depois dos irmãos saírem do galpão com nossos pais em posturas amigáveis, nós ainda achamos espaço para rir da situação. No dia seguinte, nós estávamos prontos para deixar Portland quando demos de cara com Bela. A filha da puta estava atrás do Colt porque precisava se livrar de um pacto feito com um demônio, só que Dean não estava com ele. Revoltada, ela – como sempre, ardilosa – me sequestrou, me mantendo em cárcere privado por dois dias, e foi de encontro ao demônio. Não satisfeita, me ofereceu. Nos termos dela, o demônio assumiria meu corpo como moradia e, assim, teria acesso a coisas que não deveria. As coisas deram errado, é claro, quando seu plano foi destruído pela minha tatuagem. O demônio ficou iradíssimo com Bela e, daí para frente, eu não lembrava de mais nada, apenas de acordar no meio da estrada dentro de um carro caindo aos pedaços.
Não vimos mais Bela após aquele dia, graças a Deus. Ouvimos falar de algumas merdas que ela havia feito pela estrada, mas procuramos manter o máximo de distância possível. Inevitavelmente, chegou aos nossos ouvidos que ela havia sido morta. Durante uma missão em Detroit, caçando um demônio, descobrimos que Bela jurava vingança a todos que encontrava no inferno. Não imaginávamos que chegaria o dia em que ela voltaria – muito menos em seu próprio corpo. De qualquer forma, mais inacreditável ainda era a coragem dela de me olhar nos olhos e se fingir de boa moça depois de Portland.
Meu tio parecia satisfeito com os poucos detalhes. Apenas comentou que havia colocado as cinzas de Bela em uma caixa de madeira, no nosso porão, por questão de segurança. Ele não reclamou de mais nada e se juntou a mim para dar alguns tiros.


Capítulo 11

Eu e meu pai estávamos em uma cidadezinha de nome estranho em Oklahoma e tínhamos acabado de mandar um demônio para a puta que pariu. A sensação de trabalho feito me fazia sorrir enquanto jogava minha mala no banco traseiro do carro. Meu pai fez o mesmo e deu a volta no seu, olhando firmemente para mim.
– O que está lhe atormentando, meu caro Abraham Singer? – Imitei um sotaque britânico de época.
– Vai pra casa, eu tenho coisas a resolver.
– Que coisas?
– Achei que tinha virado lei não ficar questionando o que o outro tá aprontando.
Bufei, sem muita paciência e sem poder de discordar.
– Quanto tempo? – Perguntei.
– Não muito, talvez uns três dias.
Eu assenti e permiti que meu pai me abraçasse. Nós entramos em nossos respectivos carros ao mesmo tempo e partimos em direções diferentes. Em meu íntimo, eu não estava muito certa sobre estar indo para casa ou para qualquer outro lugar. Ainda pensava na cabana no Everglades, mas parecia sem sentido desde que meu pai me encontrara lá. E enquanto meu cérebro devaneava sobre minha vontade de não ficar em casa de pernas pra cima, em senti uma queda brusca de temperatura. Meu coração gelou imediatamente e eu encostei o carro na lateral da I-135. Busquei pelo pé de cabra de ferro embaixo do banco.
Minha respiração estava pesada, eu tinha que fazer força para trazer o ar para dentro e o levar para fora. A temperatura continuava baixa quando eu notei o vulto no meu retrovisor central. Olhei para trás, completamente aterrorizada e segurando o pé de cabra em posição de ataque.
– Cheyenne... – Eu ouvi uma voz cadavérica sussurrar em meu ouvido.
Dei um grito ensurdecedor e me virei violentamente, acertando em cheio a janela com o pé de cabra. O vidro estilhaçou por completo porém, imediatamente, a temperatura voltou ao normal. Eu dei uma boa olhada em volta e um carro se aproximava. Respirei fundo e abaixei a cabeça, esperando passar despercebida. Quando decidi devolver o pé de cabra ao seu lugar e voltar para a estrada, me deparei com um papel no banco do passageiro. Eu o peguei em minhas mãos, era uma foto antiga em que estávamos eu, com pouco mais de dois anos, minha mãe e sua irmã. Não via aquela imagem fazia anos.
Imediatamente, busquei o telefone e disquei o número da minha mãe. Ela atendeu calma.
– Oi, filha!
Sua tranquilidade me contagiou imediatamente.
– M-mãe, tá tudo bem?
– Sim, está, e com você?
Outro carro vinha na minha direção.
– Comigo tá tudo ótimo. – Procurei moular a voz, mas acabei esquecendo de disfarçar a situação por completo e permiti que um silêncio gigante pairasse no ar.
– Bem, diga o que quer. Certamente não ligou só pra perguntar se estou bem.
– Na verdade, eu realmente liguei só pra isso. – Disse e, pelo menos, era a verdade.
– O que houve, filha?
– Foi só um mau pressentimento e...
– Querida, só um instante que tem outra chamada entrando na linha.
Enquanto esperava, coloquei o celular no viva-voz e voltei para o asfalto. Levei alguns segundos longos até que ouvisse o som da chamada sendo retomada.
– Filha... – Minha mãe voltou a falar, chorosa, e meu coração gelou.
– Mãe, o que houve?
– É sua tia, minha querida. Sua tia July. Ela foi encontrada...
Minha mãe não conseguiu terminar a frase e soluçava intensamente. Eu continuei dirigindo, embora com os nervos à flor da pele.
– Mãe! – Insisti.
– O marido dela não sabe dizer. Eles se mudaram recentemente para uma cidadezinha no Wyoming, Cheyenne, e...
Depois daquela palavra, eu não ouvi mais nada. Eu estava completamente ciente de que minha mãe continuava falando, mas minha mente abstraiu tudo o que estava acontecendo naquele instante. Passei direto pela entrada da estrada que me levaria para casa e me dirigi para o Wyoming. Liguei para meu pai, que prontamente abandonou o que estava fazendo após me ouvir contar tudo o que tinha acabado de acontecer. Ele me garantiu que informaria meu tio e que os dois me encontrariam lá. Menos de dois minutos depois, o telefone tocou.
– Alô?
, graças a Deus!
– Sam?!
– Onde você tá?
– Na estrada, em algum lugar perto da divisa de Oklahoma com o Kansas, por quê?
– Um fantasma apareceu pro Dean no banheiro de um motel onde estávamos, escreveu o nome de uma cidade do Wyoming no espelho embaçado e depois surgiu uma foto sua em cima da cama.
Eu não consegui responder, estava atônita.
?
– Cheyennne. – Disse.
– Como você sabe?
– Uma tia minha morreu. Recebi uma visita parecida com a do Dean.
... Bem... Eu sinto muito.
– Tá tudo bem. Eu já estou a caminho, deixa que eu resolvo isso.
– Nós estamos chegando na cidade, pra ser sincero. – Ele disse. – Estávamos na vizinhança.
Minha mãe estava desolada. Eu cheguei na cidade no começo do dia seguinte, completamente exausta por não ter parado para descansar. Meu pai não chegou muito tempo depois, e talvez aquela fosse a primeira vez em que eu não os via se atacarem desde o divórcio. Esperamos a poeira baixar. Estávamos em cinco, numerosos demais para não sermos notados.
– Onde vocês vão ficar? – Ela perguntou, se direcionando a meu pai e eu.
– Ainda não decidimos. – Menti.
– Eu estou em um hotel simples, próximo ao aeroporto, e eles tem vagas pra vocês.
– Nós viemos apenas prestar condolências, Caroline, já estamos indo.
Minha mãe se encolheu.
– Até você, ?
– Temos um negócio pra fechar na fazenda. Não podemos demorar. – Dei uma desculpa fajuta.
Aguardamos escondidos em uma rua sem saída. Quando a noite baixou e todos naquela cidade pareciam envolvidos em uma grande preguiça, nos preparamos e invadimos a casa que pertencia à minha tia. Seu então viúvo estava fora de casa, traumatizado com o que havia acabado de acontecer. Meu cabelo, preso num forte rabo de cavalo, estava me causando uma dor de cabeça chata e era fácil de se notar. Procuramos por enxofre a princípio, mas não havia exatamente nada de estranho – a não ser o fato de que havia ocorrido uma morte ali mais cedo. Checamos armários, portas, gavetas, embaixo da cama, sob o sofá. A única coisa que não foi inconclusiva foi o EMF, que verificou atividade no local, mas não havia nada definido.
No outro dia, Sam e Dean se disfarçaram de agentes do FBI e foram até o necrotério local cobrar uma autópsia. Eu e meu pai estávamos pensando em uma desculpa para continuar ali sem minha mãe desconfiar de alguma coisa. Não havia sinal de demônios, o que parecia ser bom, mas não ter uma informação concreta era uma merda. Ficamos em um motel em Buford, logo ao lado de Cheyenne, esperando não sermos vistos demais. Dean e Sam nos encontraram lá depois do almoço. As páginas não eram poucas e Dean as tacou na mesa.
– Escoriações no trato reprodutivo, hematomas distribuídos na face interna das coxas, presença de comprimidos não digeridos no estômago que podem ser ecstasy, pulmão de fumante de longa data, vermes no cérebro, ruptura de intestino, trombose nos pés... O marido dela disse que estava tudo normal na manhã de ontem.
– Você podia pegar mais leve, ainda se trata da minha tia. – Resmunguei.
– Desculpa. – Sam disse. – Infelizmente, não tem outro jeito e talvez seja melhor descobrir me ouvindo dizer do que lendo friamente no relatório do legista.
– Concluímos então que não tem algo normal aqui. De onde partir? – Meu tio se manifestou.
– July era hipocondríaca.
– Minha tia era neurótica. – Corrigi meu pai. – Tinha pavor de morrer.
– Buruburus acentuam seu medo e Tulpas são a materialização de algo em que acreditamos muito.
– Você quer dizer que foi uma combinação, Bobby?
– Não estou afirmando nada, garotos.
Eu odiava aquelas pesquisas sem pé nem cabeça, então deitei na cama, levantando as pernas e as apoiando na parede, formando um ângulo perpendicular entre minhas coxas e meu abdômen. Era de se esperar que eu pegasse no sono facilmente, mas eu não imaginei que seria tão fácil como foi. Estava sozinha quando acordei, o quarto completamente mergulhado em uma escuridão profunda. Tentei fazer com que meus olhos se acostumassem com o breu, mas não obtive sucesso. De repente, um telefone começou a tocar e ficou bem óbvio de que eu não estava sozinha no quarto. Sam remexeu na cama ao lado.
– É o seu?
– Claro que não. – Respondi.
Ele atendeu o telefone e se manteve em silêncio pelos instantes iniciais.
– Certo, estou indo praí nesse exato momento. – Ele respondeu.
Segundos depois, ele acendeu a luz e minha cabeça doeu instantaneamente.
– O que houve?
– Acharam outro corpo, mesmas características, mesmo tudo.
Ele foi para o banheiro se vestir enquanto eu aguardava pacientemente, sentada em frente ao notebook e olhando as últimas pesquisas feitas a fim de descobrir um ponto de partida. Busquei o telefone e liguei para o meu pai. Surgiu um outro corpo durante a noite nas mesmas condições e nós seguíamos sem linha de raciocínio até que, durante uma refeição em uma lanchonete na beira da estrada, escutei alguém falando sobre um incêndio. Meu pai, meu tio ou os meninos, ninguém além de mim pegou o assunto no ar, mas algo me dizia para insistir.
Havia uma clínica clandestina em Cheyenne. Tratavam imigrantes ilegais e moradores de rua, no geral. Dois meses atrás, um grupo extremista filiado a Ku Klux Klan ateou fogo ao local, matando alguns pacientes que estavam no lugar. Enquanto minha mente processava que não haveria possibilidade de fantasmas se eles pegaram fogo, descobri que duas carcaças foram resgatadas e devolvidas às respectivas famílias para que pudesse ser feito um enterro. Um corpo, da enfermeira Olivia Lux, o outro era do enfermo Charlie Cushing. Eu liguei os pontos. Recebi um aviso de Olivia antes de Charlie atacar minha tia. Como aquilo era possível, não importava, mas nós precisávamos localizar os restos mortais dos dois.
Eu fiquei para o enterro. Inventei que havia desistido e me juntei a minha mãe, enlutada pela perda precoce de sua irmã. Quando meus avós morreram, eu era nova demais para sofrer. Não fui criada muito próxima de minha tia, então não nutria tanto sentimento por ela, embora acreditasse que devia. Minha mãe estava transtornada por perder a única irmã, com quem ela tinha uma amizade sincera. Eu procurei me comportar enquanto meu pai e meu tio iam atrás do túmulo de Charlie Cushing. Sam e Dean ficaram por garantia, parte por mim e parte pelo caso.
De alguma forma, o velório me afetou sentimentalmente. E, enquanto eu arrumava as coisas dentro do carro, eu só conseguia observar Dean, falando alegre ao telefone com meu tio. Nosso trabalho era uma merda, podíamos morrer a qualquer instante. Além disso, tínhamos demônios na nossa cola, além de outros tipos diversos de criaturas que visavam se beneficiar com nossa captura. Eu lutava diariamente contra coisas que a maioria das pessoas nem sequer acreditavam que existia, e meu medo era dizer para Dean que eu sentia algo por ele.
Sam pareceu ler minha mente quando me aproximei do Impala e se afastou de forma discreta. Eu esperei o fim da ligação em silêncio. Dean olhou para mim curioso.
– O que houve?
– Queria saber se você tinha um minuto pra conversarmos em particular.
– Bem, – Ele deu de ombros. – sou todo seu.
Deu passos curtos e demorados na direção do final da rua. Ele me seguiu em silêncio, mas eu esperava que ele insistisse e, assim, me transmitisse um pouco de coragem. Nós andamos até certo ponto e me surpreendeu que Dean ainda não tivesse dito nenhuma piadinha.
– Preciso te contar uma coisa. – Falei.
– Sou todo ouvidos.
Suspirei.
– Não tenho sido muito sincera com você a respeito de algumas coisas que estão rolando desde... Desde sempre, eu acho. Mas enfim... E-eu... Bem, eu...
Ele parou de caminhar ao meu lado e se virou para mim.
, por favor, você tá com receio de me contar alguma coisa?
O meu cérebro processou rápido demais e eu acabei partindo para a ação. Em segundos, percebi que estava literalmente forçando meus lábios nos de Dean. Eu tentei achar sentido, mas logo voltei a realidade e percebi que ele não estava nem de longe retribuindo, muito menos considerando a possiblidade. Então me afastei. Olhei bem nos olhos dele e sabia que minha expressão não era das melhores. Eu engoli o choro, junto com meu orgulho, e corri na direção do meu carro, agradecendo a Deus por tê-lo preparado para partir antes de fazer aquela merda.
Em algum lugar da minha mente, eu podia ouvir a voz de Dean a gritar meu nome. Também podia ver Sam e seu rosto transbordando preocupação na beira do estacionamento. Mesmo assim, joguei meu celular pela janela e dei partida.


Capítulo 12

Minha mãe não estava em casa ainda, mas eu consegui abrir a porta com um clipe de papel que estava no carro. Odiei fazer aquilo, principalmente porque tinha aprendido com quem era o motivo da minha aflição, mas não tive escolha. Meu pai, definitivamente, não me procuraria lá, o que me passava uma certa tranquilidade, ainda mais por eu ter colocado meu carro dentro da garagem. Ela, é claro, tomou um susto quando voltou para casa, mas prometeu não falar nada a ninguém.
Passei alguns dias trancada dentro de casa. Nem sabia dizer se deveria chorar, parecia muito infantil, só que a vontade existia. Eu não tinha fome e estava passando cada segundo precioso do meu dia olhando para o teto, debaixo de camadas e camadas de cobertores. Mas então eu decidia tomar banho e mergulhava no meu próprio mundo, chegando a ficar debaixo da água quente por mais de hora. Eu me sentia completamente vazia. Ainda achava que devia chorar, gritar, ou qualquer coisa que me permitisse exteriorizar o que estava sentindo.
Os Winchester eram toda a referência de homem que eu tinha além de meu pai e meu tio. Eu achava que era protegida demais por estes dois últimos e os considerava – percebia agora – mais do que considerava minha própria mãe. John era inconstante. Vinha repentinamente, e nos deixava da mesma forma. Em um dia, ele estava com sorrisos de orelha a orelha. No outro, porém, nem sequer falava comigo. E eu procurava entender seu humor, ainda mais consciente do que ele enfrentava no seu dia a dia. Posteriormente, descobri que isso era normal e que meu pai e meu tio fingiam muito bem por mim.
Sam era um irmão caçula, como deveria ser, mas às vezes me assustava que ele fosse tão mais amadurecido que eu. Até conhecê-los, eu ainda estudava na escola local. Não que houvesse muitas pessoas, mas eu tinha uma experiência limitada com garotos da minha idade. Sam era dois anos mais novo e, ainda assim, parecia tão adulto quanto meu pai. Com exceção dos nossos passeios de cavalo pela fazenda. Eu odiava o gado e não costumava passar perto dos galpões ou piquetes, porém o estábulo era minha área favorita. Como eu e Sam não gostávamos tanto de ficar trancados na sala vendo TV, passávamos boa parte do nosso tempo lá, nos divertindo com os animais e falando besteiras aleatórias.
Já com Dean era diferente. Ele tinha um incrível senso de proteção para comigo. Talvez, bem parecido com o que ele tinha com Sam, mas a minha mente funcionava de outra forma. Eu estava plenamente consciente de que não possuíamos nenhum vínculo familiar. Minha cabeça era de uma adolescente com dezesseis anos, louca para viver uma história de amor. E Dean estava entrando na idade onde um garoto vira homem. Corpo pegando forma, voz engrossando... Eu não precisava ser de cidade grande para receber aqueles estímulos e os interpretar como algo interessante.
Ele me ensinou praticamente tudo o que eu sabia. Meu pai não queria que eu me envolvesse mas queria que eu soubesse de tudo. Dean acreditava que o ataque era a melhor defesa. Foi ele que me ensinou a manusear armas. Não nego, era um tanto quanto rígido. Gritava comigo como se estivéssemos no exército, cronometrava minhas ações de forma pormenorizada. Erros não eram permitidos, e assim eu me tornei boa no que fazia. A parte do estudo ficava comigo, mesmo ele detestando qualquer coisa que abrangesse ficar sentado, apenas lendo. Então ele basicamente me contava histórias diariamente e eu tinha um prazo para achar a solução. Tudo, é claro, sem meu pai ficar sabendo.
Minha primeira missão foi com os meninos. Um demônio em Tulsa, perto de casa. Disse a meu pai que estava indo visitar minha mãe porque sabia que ele não ligaria para ela por nada nesse mundo. Nós saímos bem e eu voltei com um olho roxo e um braço quebrado. Meu pai estava esperando na varanda de casa, com cara de poucos amigos. Eu acho que nunca vi meu pai com tanta raiva como vi naquele dia. John chegou no meio tempo e eles tiveram que ser separados para não se arrebentarem no tapa. Porém foi um marco. Eu e meu pai raramente brigávamos e, assim que ficamos sozinhos, conversamos a respeito e eu passei a atuar no campo.
Herdei minha paixão por carros de Dean também. Meu pai era igualmente apaixonado, mas tinha preguiça de mexer na mecânica. Eu gostava de colocar a mão na massa. Quando meu pai percebeu isso, me deu um Charger 69. Liguei para Dean na hora, literalmente, e passamos algumas semanas mexendo nele dentro do quintal do meu tio, na Dakota do Sul. Pintamos ele de cinza e preto, reformamos a tapeçaria interna, turbinamos ele, corremos o país atrás de peças que tornassem seu interior e exterior o mais original possível. Quando John morreu, eu não sabia como reagir. O Impala estava uma merda devido ao acidente que eles haviam sofrido logo antes. Sofri a perda dele, mas Dean o venerava intensamente. Então, em silêncio, eu lhe preparei uma surpresa.
Ele permaneceu internado por algumas semanas para se recuperar. Eu reboquei o Impala com a ajuda de meu tio até seu ferro velho e trabalhei nele, procurando restaurá-lo o mais perfeitamente possível. Dean fugiu do hospital e nós não estávamos sabendo de nada. Ele foi para lá e foi uma surpresa generalizada. Não precisamos dizer nada, pois apenas o olhar era o suficiente para que eu dissesse o quanto sentia pela morte de John e ele me agradecesse pelo que eu estava fazendo. Terminamos o Impala juntos, naquela vez e nas outras vezes em que ele conseguiu foder o carro.
Tudo o que eu havia vivido girava em torno de Dean Winchester. Naquela maldita madrugada, enquanto eu devaneava mais um pouco debaixo do chuveiro, era só nisso que eu conseguia pensar. Eu me perguntava se a culpa era minha. Dean não sabia de nada, como eu poderia esperar que ele reagisse bem? Provavelmente, eu reagiria da mesma forma se estivesse no lugar dele. Mas não parecia certo. Eu deveria ter contado, mas ele deveria ter pego os sinais. Minha cabeça estava uma merda naquele instante. Com raiva de mim mesma, fechei a água violentamente.
Eu lembrava vagamente de eu e minha mãe termos conversado sobre aquela noite. Ela precisaria viajar a trabalho, mas eu não me lembrava dos detalhes. Estava sozinha. A casa era menor do que a casa da fazenda mas ali, me sentindo solitária, ela parecia uma imensidão. Rodava os dois andares inteiros procurando algo para fazer e não encontrei nada, como sempre. Voltei para a cama. Estava frio como nunca havia visto. Enquanto pensava no quanto insignificante me sentia, eu ouvi um barulho que parecia vir do vidro da janela. Imediatamente, me lembrei que não estava na casa da fazenda. Não havia sal nas portas ou chaves de Salomão em volta da casa inteira.
Respirava devagar, quase não conseguindo encher o pulmão. Meu coração, no entanto, palpitava. O barulho, mais uma vez. Eu tinha uma arma, mas estava no carro. Mais uma vez, aquele maldito barulho insistia em ressoar pelo quarto vazio e eu me encolhi. Lá longe, ouvi uma voz a me chamar, não muito alto. Outro barulho e eu não aguentei. Virei na direção da janela com um pulo, o coração na boca, e lá estava Sam. Demorei a me acalmar enquanto olhava fixamente para ele. Não dissemos nada, Sam com o olhar mais triste que eu já havia visto. Ele fez sinal para que eu o deixasse entrar e eu hesitei. Neguei com a cabeça e voltei a me encolher, dessa vez cobrindo meu corpo inteiro.
Foi ali que as primeiras lágrimas caíram. Lágrimas por estar longe do meu pai, lágrimas por estar deixando Sam do lado de fora, lágrimas por me sentir a maior idiota do mundo e, finalmente, lágrimas por amar alguém tão ardentemente e não ser correspondida. Eu solucei, gritei contra o travesseiro. Tirei toda aquela frustração de dentro de mim até sentir que minha cabeça ia explodir de tanto chorar.
Levantei da cama após ter certeza de que Sam não estava mais na janela. Havia um carro de vidros claros parado na frente da casa da minha mãe. De lá, era visível que Sam estava desmaiado no banco da frente. Meu coração se apertou, mas eu não estava pronta para ter nenhum tipo de conversa com ele.
– Tem um rapaz lá fora implorando pra você ir até lá. – Minha mãe disse quando chegou no outro dia.
Eu me limitei a negar enquanto ela me obrigava a colocar uns burritos para dentro.
– Vai me dizer que tudo isso tem a ver com um garoto?
– Não quero falar sobre o assunto, mãe. – Resmunguei.
Podia ver ela quase sorrindo pelo canto do olho. Minha mãe deu a volta na mesa e se sentou ao meu lado. Ameaçou me abraçar mas desistiu no meio do caminho.
– Independente de qualquer coisa, saiba que estou feliz por você estar aqui comigo. Pode ficar o quanto quiser.
Assenti e dei uma mordida na comida. Sam ficou na vizinhança por mais dois dias e depois se foi, deixando uma carta que eu queimei sem ler por debaixo da porta. Minha consciência ainda estava em recuperação, mas eu sentia falta do meu pai. No entanto, ele viria ao meu encontro assim que soubesse onde eu estava, mesmo que isso significasse dar de cara com minha mãe. Então, duas semanas depois de ir para a casa da minha mãe, pedi que ela comprasse um celular pré-pago para mim. Eu disquei os números sem hesitar.
– Alô?
– Tio, sou eu.
– Meu Deus, ! Onde você está? – Ele gritou, desesperado, do outro lado da linha.
– Eu preciso de um favor. To bem, não tem nada de paranormal acontecendo. Minha saúde está ótima, minha integridade física também. Mas eu preciso ficar sozinha.
, seu pai tá desesperado.
– E é por isso mesmo que to ligando pro senhor. Sei que posso confiar meu segredo a você.
– Onde você tá?
– Na casa da minha mãe. E por favor, não diga isso a ninguém. Só conta pro meu pai que eu to bem e que nada disso é culpa dele nem sua.
– Então é culpa de quem?
– É a ? – Eu ouvi, bem baixo, a voz de Dean do outro lado.
Desliguei imediatamente e aquilo, em si, talvez fosse uma resposta. Se meu tio queria saber quem era o culpado pelo meu desaparecimento, Dean não havia contado nada para ninguém. E se ele queria saber onde eu estava, Sam também não. Por um lado, estava grata que, mesmo com problemas, a fidelidade deles ainda estivesse intacta.
Fiquei observando por uns dias até ter certeza de que Sam ainda não estava espreitando. Era tarde da noite quando eu fui até a garagem e peguei duas automáticas na mala do carro. Havia um pequeno parque a cem metros da casa. Tudo estava apagado e os carros transitando na rua eram poucos. Eu caminhei lentamente até o parque e me sentei em um banco escondido. Parecia que podia nevar a qualquer instante se não fosse Phoenix, eu sentia, mas acho que não me importava muito àquela altura. Talvez, o frio incomodasse o suficiente para me impedir de pensar no que eu não queria.
Um cachorro de rua passou por mim, olhando desconfiado, e se aproximou lentamente. Eu me mostrei amigável até o ponto dele permitir ser tocado e então acariciei o topo da sua cabeça. Devia ser algo próximo das duas da manhã, não tinha como ter certeza pois estava sem relógio. Um bar, fechado, ali perto me chamou a atenção, só que eu havia prometido que não iria me afundar em álcool – outro hábito que havia aprendido, infelizmente, com Dean. E o que me deixava mais puta naquele momento era que, mesmo tendo sido de um jeito tão infeliz, eu não conseguia sentir raiva dele. Porém estava decidida a deixar aquilo de lado, e eu incluía a vida de caçadora nos meus planos. Eu amava meu pai mais do que saberia dizer, mas talvez ficar com minha mãe fosse a melhor escolha para mim desde o começo.


Capítulo 13

Phoenix era uma cidade grande, lotada de oficinas, mas eu realmente não queria qualquer uma. Foi uma merda ser aceita, mas Phill parecia ser um cara bem legal. O mercado de trabalho não estava dos melhores, não estava fácil achar um bom funcionário. Phill devia ter entre 40 e 50 anos, herdara a oficina do pai e eu acreditava que só tinha me dado uma chance porque eu literalmente forcei uma demonstração do meu conhecimento. Era quinta e ele queria que eu começasse. O salário era uma bosta, para dizer a verdade, porém eu não estava me importando muito. Meu primeiro carro era um fusca reformado. Era um carro clássico, de fato, mas caracterizado como carro de madame, e aquilo acabava com seu charme.
Phill estava olhando atentamente para mim e deixando seu trabalho de lado.
– Quer saber se eu vou procurar o motor na frente? – Brinquei.
– Na verdade, o motor desse tá na frente. – Ele disse e deu de ombros. – Não pergunte. Dentro de tudo o que você já viu nesse carro, trocar o motor de posição é o de menos.
Eu acionei o elevador e coloquei o carro para subir.
– Foi você que fez a adaptação?
– Eu não aceitaria. – Phill respondeu. – O dono do carro é novo por aqui.
– E qual o problema relatado?
– Não tá dando partida.
– Será que o carro tá afogado? – Questionei.
– É carro de mulher, tudo é possível.
Revirei os olhos e comecei a examinar o carro. Meia hora de testes, conclui que o problema era o motor de arranque e tratei de trabalhar para consertar o problema. Conferi a bateria, ok. Então parti para o próximo problema e identifiquei a necessidade de trocar o pinhão. Phill pareceu surpreso e deixou a oficina para ir até o escritório, informar o que estava acontecendo e quanto seria gasto. Enquanto eu fiquei de olho no Maverick que estava com Phill, encostou um Ford Landau completamente arrebentado. Respirei fundo. Olhei para trás, porém Phill não estava ali perto, então fui atender o cliente. De dentro do carro, saiu um homem relativamente bem vestido e tão surpreso quanto era de se esperar.
– Ei... Hm... Bom dia. O Phill está?
Ele claramente observava meu macacão, mais que curioso.
– Ele tá lá dentro fazendo um telefone pra um cliente. Em que posso ajudá-lo?
– Você é nova aqui. – Ele afirmou.
– To começando agora.
– Bem... – Ele disse, me esticando a mão. – É um prazer conhecê-la. Sou cliente antigo do Phill, meu nome é Cesar.
– Eu vou chamá-lo pra você.
– Se Phill te contratou, deve ser porque você é boa. – Cesar falou e colocou a chave do carro nas minhas mãos. – Fala pra ele que eu quero a pintura pra ontem.
– Sim, senhor.
Ele estava caminhando na direção da rua quando parou.
– Esse Charger não é daqui. – Concluiu.
– Não, – Eu disse, inflando o peito. – é meu.
Suas sobrancelhas se arquearam.
– Uma mulher de Charger?
Dei de ombros.
– Qual o problema?
– Nenhum. – Ele respondeu e me deu as costas.
Olhei rapidamente para o carro, raciocinando. O rapaz era cliente antigo do Phill e chegava com um carro arrebentado? Era colecionador, certeza, e eu queria encher os olhos desses tipos.
– Senhor Cesar, o senhor pretende trocar esses retrovisores pelos originais?
Cesar estava mais surpreso do que nunca.
– É praticamente impossível encontrar.
– Sei de alguém que pode ter. – Afirmei.
– Aposto duzentos dólares que você não consegue.
Eu sorri.
– Adoro um desafio.
Levou duas semanas, mas o retrovisor finalmente chegou pelo correio. Encontrá-lo me custou apenas duas ligações; uma delas, é claro, para meu tio. Cesar não podia ter ficado mais surpreso e me chamou para conhecer sua propriedade. Ele possuía um salão de carros antigos e, além de passear com eles eventualmente, cobrava uma taxa simbólica para aqueles que desejassem fazer visitas. Cesar viajava literalmente o país inteiro atrás de carros arrebentados e os levava para Phill consertar. Três semanas depois, ele e Phill decidiram me colocar à prova com um Mustang do mesmo ano do meu Charger que, de Mustang, só tinha a lataria – e, mesmo assim, em péssimo estado. O motor inteiro havia sumido e nada da sua estrutura original estava conservada. Nós paramos a oficina para atender aquele carro e levamos quase um mês inteiro.
O dia oficial de colocar o Mustang à prova havia chegado. Cesar chegou animado. Busquei a chave no escritório e entreguei em suas mãos. Ele as empurrou de volta para mim.
– Por favor, a honra é sua. – Cesar disse.
Phill, à distância, olhava quase que orgulhoso. Certamente me senti lisonjeada e aceitei a oferta, entrando no carro imediatamente. A cor, vermelho sangue, combinava perfeitamente com aquela máquina. O painel, em madeira pintada de preto e com o fundo branco, havia ficado sensacional. Eu olhava para cada detalhe mínimo no interior no carro e me sentia extremamente feliz por ter feito parte daquele projeto, além de estar me encontrando. Girei a chave e o carro ligou, bom começo. Engatei a marcha e comecei a tirar o carro de dentro da oficina, até colocá-lo devidamente estacionado na rua. Saí do carro e devolvi a chave para Cesar.
– Tudo certo.
– Surpreendente. – Ele observou. – Ainda bem que não fiz mais apostas com você.
Nós dois rimos.
– Assumo que foi uma decisão inteligente.
Cesar ofereceu a mão para mim.
– Você teria disponibilidade pra viajar, ?

– O quê?!
– Viajar. – Ele repetiu.
– Acho que não to entendendo o que você quer dizer.
– Bem, eu literalmente viajo o país ocasionalmente pra comprar carros que estejam acabados. Então acontece a parte que você já conhece, eu trago aqui pro Phill. Já pedi pra ele ir comigo várias vezes, só que ele não deixa essa oficina por nada. Mas você é nova aqui, nova de idade, não parece ter muitas responsabilidades por aí e eu gostaria e preciso de alguém pra me ajudar a baixar os preços dos carros que eu compro.
– E valores?
Cesar riu.
– Você gosta de ir direto ao ponto, né? Pago passagem, hotel, alimentação, metade do valor economizado no carro e uma diária de duzentos dólares.
Por dentro, estava mais surpresa do que sabia dizer, mas não deixei transparecer.
– Podemos conversar, – Disse, tentando parecer extremamente profissional. – mas teria como falarmos a respeito de um assunto meio polêmico?
– Claro, sobre o que você quer falar?
– Eu sou mulher e você...
Deixei a frase no ar e esperei pela sua reação.
– E eu sou casado com um homem.
Cesar gargalhava enquanto eu ruborizava, ficando com as bochechas da cor do Mustang. Phill não se sentiu satisfeito – de um modo bom, ele certamente estava feliz pelo meu sucesso, mas incomodado com perder a funcionária. Fui para casa mais rápida do que sempre naquele dia. Minha mãe já havia chegado do trabalho e notou minha felicidade, me olhando desconfiada.
– Ganhou na loteria? – Ela perguntou.
– Quase. – Respondi, colocando minha bolsa em cima de uma das banquetas da cozinha. – Vou precisar fazer uma viagem no final de semana, não sei quanto tempo vou ficar fora.
– Você e seu pai andaram se falando então.
– Não, é trabalho.
– Seria esse o motivo da sua felicidade repentina?
– Pode ser que sim. Dinheiro a mais é sempre bom.
Minha mãe estava rodeando a mesa, hesitante. Fingi que não estava reparando enquanto pegava um pouco de água para mim.
– Seu pai ligou hoje.
Meu coração quase parou.
– O que ele disse? – Murmurei.
– Disse que você está desaparecida e perguntou se eu sei de alguma coisa.
– E o que você respondeu?
– Que eu sou a última pessoa que você procuraria num caso desses, o que era verdade até algumas semanas atrás.
Não respondi mais.
– Você vai me contar o que tá acontecendo eventualmente, ?
– Pra quê, mãe?
– Bem, talvez pra eu te ajudar. Ou pelo menos pra me deixar de fora de seja lá o que aconteceu entre você e seu pai.
– Não aconteceu nada entre eu e meu pai.
– Então por que você não pode fazer simplesmente um telefonema?
– Porque não! – Insisti e deixei o copo sujo em cima da pia, indo imediatamente para o cômodo que, naqueles dias, havia se tornado o meu quarto.
Phill não estava com cara de muitos amigos no dia seguinte à novidade. Como sempre, eu cheguei, deixei minha bolsa no escritório e me vesti para o trabalho. Havia uma 280SL 70 em cima do elevador desde o dia anterior e, como havíamos dado prioridade ao Mustang, seu conserto ficou para trás. Esperei que ele se aproximasse.
– O proprietário da Mercedes pediu que o carro ficasse pronto até amanhã de manhã. – Phill disse, brevemente. – Ele vai precisar do carro pra uma exposição.
– Vai ser terminado ainda hoje.
Ele fingiu que não tinha mais assunto e partiu para o carro no qual estava trabalhando. Eu me divertia com sua portura.
– Tá com ciúmes, Phill? – Perguntei, pegando uma chave de boca.
– Ciúmes de quê?
– Do César.
Phill forçou uma risada bem falsa.
– César gosta mais de homem do que você e eu tenho idade pra ser seu pai.
– E você sabe muito bem que não to falando desse tipo de ciúme.
Ele ficou em silêncio enquanto acertava um tripé de iluminação bem abaixo do Galaxie no seu elevador.
– Se você fizesse ideia do quanto é difícil conseguir um auxiliar nessa cidade, me entenderia.
– Bem, posso trabalhar aqui enquanto não estiver viajando com o César.
Phill bufou e limpou as mãos no seu macacão.
– Você não vai ficar muito tempo com o César.
– Como assim?
– Não tem muita gente com o conhecimento que você tem, ainda mais com a sua disposição. O mundo dos colecionadores se trata de sempre ter o melhor, e é por isso que eu dificilmente contrato um auxiliar pra mim. É só questão de tempo até alguém te oferecer um valor maior e condições melhores.
– Tenho motivos pra não sair de Phoenix.
– Quais?
– Um teto pra morar.
– O valor que pagariam pelo que você sabe fazer compraria mais de um teto facilmente.
Eu podia jurar que estava realmente pensando naquilo. Dinheiro fácil, um trabalho digno – ou, ao menos, não incluía falsificar cartões de crédito o tempo inteiro. Não precisaria me preocupar com ser encontrada pela polícia, daria o orgulho que meu pai sempre gostaria de ter: um que não envolvesse exorcizar demônios e queimar cadáveres em decomposição. Parecia extremamente tentador e eu não podia negar que havia interesse da minha parte, mas Phill estava sendo gentil a seu modo e me dando uma oportunidade única. Era uma espécie de “carinho” que eu gostaria de retribuir, só que ir embora era o extremo oposto disso.
A primeira viagem foi remarcada para o primeiro sábado após a oferta de Cesar. Fiz questão de contar todos os detalhes para minha mãe. Na manhã do meu voo, esperei que minha mãe entrasse no banheiro e busquei o celular pré-pago que ainda mantinha e disquei o número do meu tio. Ele não atendeu de primeira, então tentei de novo.
– Como vai minha criança favorita?
– Pela sua animação, posso deduzir que o senhor tá sozinho.
– Curtindo uma garrafa de alguma coisa da década de 60.
Eu ri.
– Ah, tá explicado.
– Qual o motivo da ligação?
– Eu arrumei um emprego.
– Sobre a oficina, você já contou.
– É outro. Vou viajar com um colecionador pra inspecionar carros que ele tá interessado em comprar.
Pude ouvir ele suspirar.
– Fico feliz de saber que você tá encontrando seu caminho.
– Bem, eu liguei pra saber se meu pai ou ‘você sabe quem’ corre o risco de estar próximo a Califórnia hoje e amanhã.
– Você tá indo pra Califórnia?
– Sim, e volto pra Phoenix na segunda.
Meu tio deu uma longa pausa que, com certeza, foi para mais um gole.
– Até onde eu sei, eles estão bem distantes de lá.
– Ótimo então. O senhor já sabe onde eu vou estar.
... – Ele me chamou.
– Sim?
– Você precisa falar com seu pai. Sabe disso, não sabe?
Eu suspirei.
– Tio, é complicado.
– Ele foi ver a Pamela e ela foi bem categórica ao dizer que você não queria ser encontrada. Só que você precisa entender que você é tudo pro seu pai. Ele tá sem chão.
– Eu não to pronta ainda, tio.
– Então arrume um jeito de se preparar, ok? De qualquer forma, eu fico grato de ter sido a pessoa que você escolheu pra manter atualizado sobre você.
– Volto a ligar quando estiver em Phoenix novamente.
– Vou aguardar sua ligação então.
A campainha tocou enquanto eu desligava. Cesar estava exuberante e, agora que eu sabia de sua opção sexual, as peças se encaixavam bem na minha cabeça. Coloquei minha mochila nas costas e, depois de ter certeza de que meu Charger estava bem trancado na garagem, me despedi da minha mãe e fomos para o aeroporto.


Capítulo 14

Dean's POV

Puta que pariu. Aquela situação toda estava me tirando do sério. Eu sabia que, do outro lado da ligação, era . Eu tinha certeza absoluta e aquele filho da puta do Bobby desligou antes que eu tivesse a chance de falar com ela. Será que Bobby sabia? Abe com certeza não sabia. Caso contrário, provavelmente teria colocado minha cabeça a prêmio. Mas aquela filha da puta da ... Caralho, eu só queria conversar com ela e nem essa chance ela me deu. Simplesmente jogou tudo na minha cara de uma vez. Só faltava ela me dizer que esperava que eu reagisse melhor que aquilo.
Eu a chamei, mais de uma vez, mas ela fingiu que não ouviu. Quando pensei em ligar, vi seu celular no chão. Cheio de raiva, eu chutei com toda a minha força. Sam viu de longe a cena inteira e parecia saber do que se tratava muito melhor do que eu.
– O que você fez, Dean?
– Você deveria perguntar o que ela fez. – Gritei.
– De acordo com tudo o que eu sei e conheço a respeito de vocês dois, eu tenho certeza de que foi você quem fez merda.
– Do que você tá sabendo? – Eu rosnei, avançando ameaçadoramente na direção do meu irmão.
– De tudo, seu idiota! – Sam gritou de volta. – Você convive com a garota por anos e não consegue notar que ela é louca por você?
Eu simplesmente joguei as chaves no chão de qualquer jeito e saí andando. Era uma cidadezinha de fim de mundo, tinha uma rua só e nenhum bar. Tinha álcool, mas no carro, e eu ia socar a cara do meu irmão se eu passasse por ele de novo. Meu Deus, eu realmente precisava passar por aquilo tudo sóbrio?
No relógio, não havia passado nem trinta minutos, mas a minha mente estava a mil por hora. Sam levou o carro até onde eu estava, sentado na sarjeta.
– Entra logo na merda do carro.
– Vai se foder.
– Ficar me xingando não vai consertar a merda que você fez.
Dar razão para Sam era uma das últimas coisas que eu costumava fazer. Peguei a chave com ele, dei a volta do carro e abri a mala. Merda.
– Sam, você mexeu na minha bebida?
– Você fez sabe lá o quê com a e acha que merece beber pra esquecer isso?
O sangue esquentou e eu não pensei muito antes de ter uma reação. Literalmente puxei Sam para fora do carro e o joguei contra a lataria. Ele parecia assustado mas, ao mesmo tempo, não estava surpreso.
– Não mexe na minha bebida!
– De que importa a sua bebida quando você sacaneou a única mulher que jamais te abandonaria, Dean? Pensa nisso! Pensa na quantidade de vezes que você foi pra cama com outra mulher e ela teve que assistir em silêncio.
– Como eu deveria saber, cacete?
– Era só você olhar pra ela. A merda é que você é um babaca e nunca teve olhos pra .
– Quando ela te contou?
– Ela não precisou me contar, Dean, essa é a questão. Foi fácil ver tudo sem ela me dizer uma palavra.
– Eu achei que ela tava apaixonada por você!
– Pelo amor de Deus, Dean. Vai ficar aqui discutindo comigo ao invés de ir atrás dela?
Eu tentei. Deus, eu queria que ela soubesse o quanto tentei. Perguntei em vários lugares mas ninguém havia visto o Charger. Mais cedo ou mais tarde, eu precisaria ligar para o Abe. Adiei o máximo possível e dirigimos até a casa do Bobby, na esperança de que houvesse se refugiado lá. Quando o telefone dele tocou, nós quatro estávamos nos preparando para levar o caso para a polícia. Abe, por sorte – ou não –, tinha ido no banheiro no exato momento em que Bobby atendeu a ligação. Eu podia ver na cara dele que era ela do outro lado.
– É a ?
Bobby desligou e eu soquei a mesa dele. Abe surgiu correndo.
– Era ela, Bobby? – Persisti.
– É sobre a minha filha? – Abe gritou, junto comigo.
– Vocês dois, abaixem a bola. pediu pra avisar que está bem.
– Onde ela tá? – Perguntei.
– Ela não me disse.
– A gente rastreia o telefone.
– Por favor. A criança aprendeu tudo o que nós sabemos e aprimorou. Acham mesmo que ela ligaria de um celular rastreável?
Que saco. Não havia lugar onde eu pudesse procurá-la, muito menos por onde começar. Aquilo estava me tirando do sério. Pelo menos, não havia como Sam controlar minha bebida ali. O problema era que, ironicamente, minha adrenalina estava tão alta que o álcool não estava fazendo efeito. Mas o cérebro ainda funcionava, e eu havia notado um detalhe específico. Sam foi até o pátio da casa atrás de mim e eu decidi que era hora de confrontá-lo.
– Você sabe onde ela tá. – Afirmei. – Foi por isso que você sumiu por uns dias. E ainda me fez acreditar que se tratava de um caso.
– Dean...
– Não tenta mentir, você teria me levado junto se fosse um caso.
– Eu não ia mentir, só ia dizer que não vou falar onde ela tá.
– Por quê não?
– Ela se recusou a me receber. Passei dias plantado na frente de onde ela tá e só nos vimos uma vez. E, mesmo assim, ela só olhou na minha cara e, quando eu pedi pra entrar, ela me deu as costas.
– Sam, por favor, me diz onde ela tá.
– A merda tá feita, Dean, e você precisa viver com isso.
– Eu preciso conversar com ela, não posso deixar as coisas ficarem assim.
– Você não deveria ter deixado as coisas chegarem a esse ponto.
Dei mais um gole no uísque. Eu podia ouvir a mente de Sam me repreendendo em silêncio.
– Sam, por favor.
– Não, Dean. Desculpa.
– Sammy...
– Me chamar assim não vai me sensibilizar, se esse é o seu objetivo. Quando ela quiser conversar contigo, ela vai deixar claro, com certeza.
– E se ela não quiser?
– Desculpa, mas não dá pra não dizer que você merece perder a .
Eu estava me odiando. Esperei que todos fossem dormir. Empurrei o carro até uma distância segura e então dei a partida, me dirigindo para qualquer lugar longe dali. Depois eu buscaria Sam. Naquele momento, tudo o que eu precisava era ficar sozinho. Como ficávamos perto da divisa com outros dois estados, eu segui dirigindo na direção da capital o Iowa. Achei que teria paciência para andar mais, só que acabei me derrotando com menos de quatro horas de estrada. Encostei no primeiro motel que vi. No quarto, eu percebi que ainda não tinha abastecido o estoque de bebida do carro. O motel tinha cerveja e cerveja não me adiantaria de nada naquele instante.
Meu primeiro instinto era bater com a cabeça na parede bem forte para desmaiar. Mas, caso desse errado – e as chances de dar errado não eram pequenas –, eu acabaria com uma puta dor de cabeça além de tudo o que já estava acontecendo de ruim. Caralho, , que merda que você fez comigo. Eu me sentei na beira da cama. Mexi no meu cabelo compulsivamente como se aquilo fosse me arranjar uma solução. Liguei para todos os números que já havia usado e deixei recados, implorando de toda forma possível para que tivéssemos a chance de conversar a respeito do que havia acontecido. Meu Deus, ela estava me enlouquecendo sem dizer palavra alguma.
O meu sangue estava esquentando. A palavra perfeita para me definir era “impaciente”. Eu já estava cansado de deixar mensagens, de ficar me olhando no espelho, imaginando o que dizer quando a encontrasse. Eu podia ouvir sua voz, sua risada nos momentos mais impropriados. Ela ria das besteiras que eu falava quando Sam simplesmente olhava para a minha cara e pensava “sério, cara?”. Tinha uma voz na minha cabeça que insistia em gritar que eu havia sido um grande babaca e isso só fazia meu coração bater mais rápido.
Quando dei por mim, tinha dado um soco na parede e chutado uma cadeira a ponto de quebrá-la. Eu não sabia se era aquela a minha intenção, mas a dor não superava a minha loucura. Não fazia ideia do que aquele sentimento significava, muito menos sabia o que era. Mas eu queria vê-la. Deus, como eu queria encontrar naquele instante. Sam estava certo sobre jogar na minha cara o quanto eu – provavelmente – havia feito sofrer quando dava ideia para todas as mulheres possíveis com exceção dela. Não estava irritado por eu estar errado e Sam certo, mas sim por ter magoado uma pessoa que definitivamente tinha uma grande importância na minha vida.
tinha me salvado mais vezes do que eu poderia contar nas mãos e eu estava disposto a rodar aquela merda de país inteiro atrás dela. De qualquer forma, eu precisava ter por onde começar. Fugi do motel, de volta para a casa de Bobby. Já estava claro e, contra o meu plano, Sam já estava acordado.
– Onde você tava?
– Por aí.
– Vai ficar de TPM agora?
Eu bati na porta do quarto de Bobby com força e ele não demorou a atender.
– É bom ser caso de vida ou morte pra me acordar assim.
– Me dá o número dela.
Bobby ficou me encarando como se eu fosse retardado.
– Filho, não vou fazer isso.
– Bobby...
– Não adianta insistir, cacete. Eu não sei o que rolou e sei que é culpa sua, é suficiente pra eu querer te matar.
– E, se me deixar falar com ela, eu posso corrigir.
– Ah, rapaz, você não deveria ter permitido seja lá o que aconteceu, pra começo de conversa. Eu tenho todas as razões do mundo pra te odiar. Não me dê mais uma razão, Dean.
Eu deixei o lugar em direção à delegacia. Não me surpreenderia se estivesse sendo seguido, mas eu realmente não me importava. Apareci na entrada e me identifiquei como agente do FBI.
– Preciso falar com a Xerife Mills com urgência.
– Ela tá na sala dela, mas...
– Ótimo. – Eu interrompi o agente.
Já conhecia o caminho e ignorei a tentativa do moleque de me impedir. Jody ficou surpresa quando eu abri a porta de supetão.
– Preciso da sua ajuda.
– Xerife, me desculpa, eu...
– Tá tudo bem, Craig! – Ela gritou. – Fecha a porta, por favor.
Eu obedeci.
– O que o Bobby fez dessa vez?
– Eu preciso descobrir qual número ligou pra ele ontem, por volta das cinco da tarde, e rastrear esse número, de preferência.
– Você sabe que eu posso me ferrar por causa disso.
– E não estaria pedindo se tivesse outro jeito.
Ela hesitou e se levantou, me levando até uma sala no final do corredor.
– Thomas, esse é Dean, ele tá precisando de uma ajuda. Faça o que ele disser.
O rapaz esticou a mão para mim e eu a apertei.
– Preciso saber quem ligou pra um número.
– Qual o número?
– 712 475 4432.
Ele jogou o número no computador e apareceu uma lista.
– Qual o horário e dia da ligação?
– Ontem, cinco da tarde.
– Número privado, deve ser um celular pré-pago.
– Não tem nem como rastrear?
– Pode até ser possível, mas a gente não tem essa tecnologia aqui. O FBI ou a CIA talvez consigam.
Eu estava sinceramente esperançoso de conseguir resolver meu problema ali. Nunca me senti tão pisoteado. Pedi que Jody mantivesse segredo sobre minha visita. Bobby e Sam estavam decididos a não me ajudarem. Liguei para Harold e ele, aparentemente, nem sabia ainda que havia desaparecido.
Os dias estavam passando e nenhuma notícia dela. Abe estava maluco, mesmo ela mandando notícias ocasionalmente por Bobby. Minha vontade de encontrá-la só aumentava. Eu não fazia ideia de como era gostar de alguém. Se era daquele jeito, não havia vantagem em ter um relacionamento. Aquela situação só me sufocava mais. Dia e noite, o nó na minha garganta só crescia. Queria ver , precisava ver . O problema é que eu não sabia o que fazer, nem sabia se tinha algo ao meu alcance. Bobby me odiava e Sam também, mas não me ajudavam a corrigir a merda toda que tinha acontecido.
Qual era o ponto naquela porra toda?


Capítulo 15

Eu e Cesar estávamos em Las Vegas, minha primeira ida à cidade. Estávamos visitando um Phantom 31. Teoricamente, estava tudo ok, mas eu estava cismada com um detalhe dos faróis. O homem estava jurando de pés juntos que eram originais. Não era o padrão de Cesar comprar carros inteiros, mas o Phantom era um sonho pessoal dele e não tinha a ver com sua coleção. Tirei fotos dos faróis e me prendi ao computador quando chegamos de volta ao hotel. Eu havia convencido Cesar de esperar um pouco.
Parecia absurdo, mas os padrões dos raios do farol não me convenceram e eu bati na tecla certa: eles não eram originais. Depois disso, fiz uma vistoria muito mais minuciosa no carro e descobri outros pequenos detalhes. Cesar me confessou que, como não era para sua exposição, não precisava estar tão perfeito assim, mas ainda era bom economizar. Eu identifiquei outros problemas, detalhei tudo em uma lista rigorosa e entreguei o relatório para que Cesar levasse ao proprietário do Phantom. Voltamos para Phoenix com o carro e eu nunca havia visto meu novo patrão tão feliz. Seu companheiro, Pietre, nos encontrou no aeroporto. Por mais que insistissem em me levar até em casa, eu preferi pegar um táxi sozinha.
– Mãe?!
– To aqui em cima, querida. Como foi a viagem? Fez dinheiro?
– Tirei um lucro razoável. Alguma novidade?
Eu escutei seus passos firmes descendo a escada.
– O escritório fechou contrato com uma firma ligada à indústria petrolífera, talvez eu tenha que viajar durante a semana que vem.
– Então a senhora também fez dinheiro enquanto eu estava fora.
– De certa forma, sim.
– Tá arrumada.
– Reunião agora no almoço com um executivo.
– Então você já tá de saída.
– Sim, vou passar no escritório antes. Tem comida na geladeira, só esquentar no micro-ondas.
– Tá ok, obrigada.
– Ah! – Ela disse quando já estava se aproximando da porta. – Tem uma surpresa pra você no seu quarto.
Eu fiquei curiosa, mas a fome era maior. Abri a geladeira e percorri as prateleiras com meu olhar. Um sanduíche de frango estava dando bobeira na parte superior e eu não pensei duas vezes. Dei uma mordida e estava tão gostoso quanto parecia. Enchi um copo com achocolatado e dei um bom gole. Agora que estava alimentada, coloquei mais um pouco de achocolatado no copo e, com a bolsa a tira colo, fui para o quarto descobrir do que minha mãe estava falando. O copo caiu da minha mão assim que eu abri a porta.
– O que você tá fazendo aqui?
– Por favor, , eu só vim conversar.
– Sam, vai embora.
, por favor, eu poderia ter contado pra todo mundo onde você tá e fiquei de bico calado. Isso não vale de nada? Se não quiser falar nada, só escuta. Por favor.
Meu coração parecia que ia pular do meu peito a qualquer momento.
– Fala logo o que você veio dizer e vai embora, por favor. – Pedi.
– Primeiramente, eu queria dizer que não consigo imaginar o que você tá sentindo agora, – Ele começou. – mas queria que você pensasse no seu pai. Com tudo isso, ele tá ficando louco e as notícias que você tá mandando pelo Bobby não são suficientes.
– Achei que eu tivesse direito à minha privacidade.
– E você tem, , mas estamos falando do seu pai. Você sabe que ele é, de longe, a pessoa que mais vai te amar durante sua vida inteira.
– O melhor jeito dele demonstrar isso deveria ter sido me impedindo de entrar naquela vida.
Aquela vida foi o que nós vivemos por anos. Foi como crescemos. E foi como eu te conheci, não me arrependo disso.
– Foi como conheci Dean também. Por que você nem menciona o nome dele? Por que não foi ele que veio aqui?
– Não falei nele porque não quero te irritar e ele não veio porque nem eu nem seu tio contamos onde você tá. Mas, já que você quer falar dele, meu irmão tá revirando tudo atrás de você. Foi tentar te rastrear depois que você ligou pro seu tio e nunca esteve tão bêbado. E eu poderia ter vindo até aqui dizer que você tá errada em não ter dado uma chance pra ele se explicar, mas não. Eu só vim dizer que seu pai tá sofrendo e você precisa voltar pra ele.
Eu evitava contato visual com ele de todas as formas possíveis. Passei por Sam e me sentei na lateral da cama, olhando fixamente para a parede.
– Você me diz isso porque não viu a cara de nojo que ele fez pra mim. – Eu disse.
– Eu realmente não vi. Mas eu vi o desespero dele quando você partiu. Eu vi o Dean se afogar na bebida, me jogar contra o carro e ameaçar enfiar a mão na minha cara. Vi quando ele voou no pescoço do seu tio da mesma forma. Não to aqui pra defender meu irmão, , mas ele não é de todo ruim como você tá dizendo e você saberia disso se tivesse dado a ele a chance de se explicar.
– Quer dizer que a culpada sou eu?
– Pelo amor de Deus, , eu to fazendo o advogado do diabo aqui.
– Cacete... – Eu murmurei, dando um soco no colchão.
– O mais engraçado é que vocês dois são iguaizinhos.
– Vai se foder, Sam.
– Vou, depois que você me garantir que vai pensar no que eu vim aqui dizer.
– Quer mesmo que eu encare seu irmão?
– Quero que você encare seu pai. Foda-se meu irmão.
Eu assenti.
– Preciso ficar sozinha, Sammy.
Sua feição ficou um pouco mais tranquila e eu o acompanhei até a porta. Quando pensei que havia me livrado dele, Sam se virou de volta para mim, segurou minha cabeça, puxando-a para si, e depositou um beijo sobre o meu cabelo.
– Eu te amo, viu? Não tanto quanto seu pai te ama, mas amo de verdade.
Enquanto ele ia se afastando na direção do carro provavelmente alugado, minha cabeça voltava a ser um novelo de lã completamente embaraçado. Todas as minhas memórias passavam em alta velocidade pela minha mente.
– Eu também amo você, Sam. – Gritei.
Ele sorriu e foi embora. No outro dia, eu acordei cedo e fui trabalhar como se nada tivesse acontecido. Manter a cabeça ocupada certamente seria a melhor forma de lidar com minha indecisão. Phill e eu paramos tudo para resolver um problema grave em um Amphicar, problema esse que nem eu nem ele sabíamos resolver. No final da noite, estava exausta. Saí duas horas mais tarde do que o comum da oficina e não havia mais disposição em mim nem para comer.
Tomei um banho e deitei. Havia semanas que eu não sonhava. Naquela noite, minha mente me levou para um cenário muito comum na minha infância: a Lincoln Junior Senior Highschool. Aqueles corredores me davam mais calafrios que um espírito. Todo mundo achava Abraham Singer um cara muito estranho, então a filha dele devia ser estranha também. Ninguém ia muito com a minha cara, o que me fazia necessariamente não gostar do lugar. A melhor coisa que aconteceu quando eu me tornei uma aspirante a caçadora foi meu pai me tirar no colégio.
Eu acreditava facilmente que aquele lugar não teria sido reformado desde que eu saí de lá. No meu sonho, tudo era exatamente igual na minha infância. Quase podia sentir o cheiro de café que emanava da sala dos professores. De repente, o sinal tocou e, aos poucos, aqueles corredores bizarros se encheram de crianças. Fiquei observando, sem reação, quando Dean saiu da porta mais próxima de mim. Ele me viu e sorriu.
– Tá atrasada.
Claramente podia sentir meu coração palpitando e meu subconsciente tentando acordar a qualquer custo enquanto ele se aproximava.
– Essas crianças dão um baita trabalho, mas é confortante ver seu rosto depois de um dia cheio.
Olhei em volta, procurando algo que pudesse me salvar.
– O que houve, querida?
– Isso não é verdade. – Murmurei.
– Do que você tá falando?
Continuei atônita e determinada em buscar uma forma de sair dali, mas eu sentia como se estivesse completamente paralisada. Quando me voltei a Dean, seu globo ocular estava completamente branco e ele apresentava um sorriso macabro em seu rosto. Eu, imediatamente, dei um passo para trás.
– O que você quer, Lilith?
– Não podem fugir de mim. Essa caçada só está fazendo tudo se tornar mais divertido e, acredite, eu posso ser muito paciente quando eu quero.
– Você sabe que isso é um sonho.
– Do que importa se eu vou insistir em manter você e Dean como meus alvos? Quanto mais vocês correm de mim, mais entusiasmada eu fico.
Ele – ou seria correto dizer ‘ela’? – abriu passagem para que eu visse o corredor lotado de crianças mortas. Eu podia sentir meu coração pulsando em cada centímetro cúbico do meu corpo, por menor que fosse. Todos os meus sentidos estavam aumentados e eu não conseguia correr. Pensei em atacar Lilith de alguma forma, mas ela simplesmente desaparecera. Quando acordei, estava banhada em suor.
Minha primeira reação foi dar uma boa olhada em volta, conferindo se estava tudo bem. Havia um EMF escondido em algum canto da pequena cômoda onde mantinha minhas roupas. Eu o busquei imediatamente e sua inatividade me deixou um pouco menos agitada. Sentei na cama enquanto tentava recuperar meu ritmo respiratório normal. Ironicamente, eu sabia que só havia uma coisa a ser feita naquele exato momento.
Disquei, um por um, os números que meu pai poderia estar usando. Era engraçado perceber como minha mente era incrível para aquele tipo de coisa. Mas, de todos os números possíveis, um deles fugiu da minha memória e obviamente era aquele o correto. Tentei diversas sequências diferentes e aleatórias para os três números finais e não obtive sucesso. De repente, uma luz se acendeu sobre a minha cabeça. Com tudo aquilo estourando, ele com certeza estava com meu tio. Digitei, no aparelho, o número dele e aguardei pacientemente.
, o que houve?
– Tio, o senhor tá com o meu pai?
– Sim, ele tá lá fora exatamente agora. Por quê? O que houve?
– Tem como passar o telefone pra ele?
Meu tio hesitou.
– Tá tudo bem, ?
– Sim, tio, eu só quero falar com meu pai.
Eu ouvi o rangido tão conhecido da porta da casa do meu tio e depois, ele gritando meu pai. De alguma forma, eu sentia que estava tomando a melhor decisão possível naquele instante e me sentia bem com aquilo.
– Pronto. – Ele atendeu.
– Pai, sou eu.
Houve uma longa pausa enquanto eu o ouvia respirar profundamente.
?
– Oi, pai.
– Filha, onde você tá?
– Em Phoenix.
– Phoenix?! – Ele questionou. – Mas eu liguei pra sua mãe e...
– Ela provavelmente mentiu por mim. Não culpa ela, por favor.
, o que houve? Por que você sumiu?
– Pai, por favor, eu não quero falar sobre isso.
– Mas, ... Eu... Você pretende voltar pra casa?
– Se o senhor me aceitar de volta, sim.
– Mas é claro que eu te aceito de volta, minha querida, quantas vezes você quiser. Eu vou te buscar, chego em dois dias.
– Eu posso ir sozinha, pai, não é tão longe.
– Só que eu faço questão. Vou te buscar.
Fui até a oficina agradecer tudo o que Phill havia me permitido fazer e conhecer. Expliquei, por alto, o motivo pelo qual estava indo embora e ele me desejou sucesso. Com Cesar, falei apenas pelo telefone. Ele se demonstrou igualmente chateado, mas grato por tudo o que havíamos conseguido juntos. Com minha mãe, foi difícil. Nós havíamos nos aproximado naqueles últimos dias como nunca antes. Havíamos recuperado o laço de mãe e filha. Claro que não integralmente, mas era um progresso. Só que meu pai chegou e eu não tinha mais tempo para enrolar aquela conversa.
Eu olhei para minha mãe, na entrada de casa, com o olhar mais desolado que eu já havia visto. Imediatamente, larguei tudo e saí correndo para lhe dar um abraço, o primeiro em anos. Minha mãe tentou segurar as lágrimas tanto quanto pode.
– Obrigada por tudo. – Eu disse. – Me desculpa por não ter vindo antes.
– Você vai ser sempre bem vinda aqui, minha querida.
Nós sorrimos uma para a outra e eu voltei para o meu Charger. Olhei pelo retrovisor para meu pai que, no carro de trás, mantinha um sorriso de orelha a orelha. Fixei meu olhar no horizonte, dei partida e seguimos para a estrada.


Capítulo 16

Eu podia jurar que ter aqueles barulhos de volta na minha vida era sensacional. O leve coice da arma chegava a ser satisfatório. Meu pai viu o sorriso no meu rosto e seu semblante se iluminou. A cidade era Babylon, em Nova Iorque, pequena mas nem tanto. Tínhamos ido atrás de um lobisomem. Serviço completado, disfarces descartados, pegamos logo a estrada, rumo ao sul do país. Um pouco antes da divisa do estado, a noite caiu e eu decidi parar porque tinha perdido completamente o jeito. Havia um bar bem próximo ao hotel e eu e meu pai decidimos que seria um bom jeito de comemorar o fim do meu primeiro caso de volta. Assim que chegamos, ele me mandou para o balcão a fim de pedir duas cervejas enquanto ele ia ao banheiro. Fiz sinal para a garçonete, que prontamente me atendeu.
– Boa noite, o que vai querer?
– Duas da melhor cerveja que vocês tiverem na casa.
Ela me deu as costas e colocou as duas garrafas em cima do balcão. Eu agradeci com um aceno de cabeça.
– O que uma mocinha linda como você faz perdida num lugar ermo como esse?
Em um primeiro momento, meu coração gelou, mas então notei que eu não reconhecia a voz de lugar nenhum. Logo, era apenas um babaca qualquer. Eu me limitei a puxar meu casaco para trás, o suficiente para deixar a arma a mostra. Então me virei para o homem só pelo prazer de ver sua expressão se transformar de um sacana para alguém aterrorizado. Ele tinha um charme, não evitei notar, mas definitivamente não era o meu tipo. O que mais me chamou a atenção é que ele não foi embora.
– Tira?
– Federal. – Respondi, dando um grande gole na cerveja.
– Sabe, eu sempre gostei da ideia de ficar com uma mulher armada.
– O pai dela tá armado também, então vaza daqui, moleque. – Meu pai chegou, usando uma das suas vozes ameaçadoras.
Eu ri e dei um tchauzinho sarcástico para o homem enquanto pegava a garrafa para meu pai.
– Você vai gostar, tá na temperatura perfeita.
– Não duvido. Quem era o babaca?
– Não faço a mínima ideia, mas ele não se demonstrou muito preocupado com o fato de eu estar portando uma arma.
– Você disse a ele que tinha uma arma?
– Não, eu só mostrei.
Meu pai revirou os olhos e bebeu um pouco.
– Crianças... – Ele murmurou para si mesmo, sabendo que eu iria ouvir inevitavelmente. – Como é estar de volta?
– Mais gostoso do que essa cerveja.
– Então é muito bom mesmo.
– Maravilhoso.
Nós bebemos o resto de nossas cervejas em silêncio e solicitamos, cada um, mais uma garrafa. O telefone do meu pai tocou. Ele viu o identificador de chamadas e devolveu o celular para o bolso. Não questionei, não se questionava nada do que Abraham Singer fazia.
– Estou pronto pra ouvir o motivo pelo qual você se mandou do nada.
– Eu sabia...
– Sabia o quê?
– Que o senhor não ia deixar esse assunto passar batido.
– Mas eu deveria?
– Sim, pai, deveria.
– Bem, difícil acreditar, já que você se escondeu com sua mãe, com quem você nunca se deu bem e, de repente, de quem você é melhor amiga.
– Vai reclamar agora de eu ter acertado as coisas com a mamãe?
– Não, , não é isso, é que...
– É que...? – Insisti.
– Por que você ligou pro seu tio e não ligou pra mim?
– Talvez porque eu posso confiar que meu tio vai respeitar minha vontade muito mais do que o senhor respeitaria.
...
– Meu nome, que o senhor escolheu. – Pentelhei. – Agora, se me dá licença, eu gostaria de conversar sobre algo mais agradável.
– Os Winchester tem algo a ver com isso, não tem?
Fui tomando todo o líquido da garrafa até zerar. Chamei a garçonete novamente.
– Outra? – Ela perguntou, retirando a garrafa vazia da minha frente.
– Não. Quero um uísque, por favor.
Meu pai me observou, pacientemente, bebericar o líquido como quem faz graça.
– Quem cala, consente.
– Não estou consentindo com nada.
– Então por que não responde?
– Porque não tem de onde o senhor ter tirado essa ideia.
– Duvido seriamente, já que nunca vi os irmãos tão desesperados como vi antes de você dar notícia. Principalmente Dean. O garoto estava ensandecido com o seu desaparecimento, como se ele fosse o culpado por causa daquilo.
Meu Deus, aquele maldito uísque não ia ajudar em nada.
– Sim, pai, Dean e Sam Winchester sabem o motivo do meu sumiço e eu duvido seriamente de que eles contariam ao senhor, mesmo sob tortura. Sabe por quê? Ao contrário do senhor, eles respeitam a minha vontade. – Rosnei. – E, se o senhor quiser minimamente que exista a chance de eu ligar pra você em vez de ligar pro meu tio da próxima que isso acontecer, vai deixar esse assunto pra lá e nem vai considerar a possibilidade de falar com os dois a respeito.
– Você é igualzinha à sua mãe.
– Sabia que ela dizia a mesma coisa quando queria reclamar de algo que eu estava fazendo?
Eu retirei dinheiro do bolso e coloquei em cima do balcão, torcendo para ser suficiente para cobrir meus gastos e deixando meu pai sem reação. Deixei o bar imediatamente, entrando no meu carro. Cheguei a ligar o motor, mas não deixei a vaga. Ao invés disso, busquei o telefone e disquei um número conhecido.
? – A voz do outro lado atendeu e cada milímetro da minha pele estava extremamente consciente de que não era a voz de Sam. – , é você?
Eu não consegui responder e também não consegui desligar. Parte de mim queria ouvir o que ele tinha a dizer, mas era impossível responder algo que não começasse com “vai se foder”.
, por favor, eu não faço ideia do quanto te magoei. Me escuta, por favor, me dá a chance de conversarmos a respeito disso tudo. Eu quero consertar as coisas com você e...
– Me dá essa merda aqui. – Eu ouvi Sam dizer. – , me desculpa, eu tava no banheiro e...
– Tá tudo bem, Sam. – Respondi depois de engolir em seco. – Você tem condições de ir pra um lugar privado?
– Claro, me dá um instante.
Eu aguardei calma, tentando devolver minha respiração ao seu ritmo normal. Ouvi vozes conversando, mas não consegui identificar as palavras, mesmo que elas estivessem obviamente alteradas. Então uma porta se bateu e eu ouvi novamente a respiração de Sam próxima ao microfone do celular.
– Pode falar.
– Onde você tá? – Perguntei.
– Sandusky, Ohio.
– Você acha que consegue dar uma escapada? Preciso conversar.
– Me diz o local.
– Tem certeza de que seu irmão não tá escutando?
– Absoluta.
– Em quanto tempo você consegue chegar na minha casa?
– Você diz a fazenda?
– Sim.
– Alugando um carro amanhã cedo, acredito que chego na sua casa no dia seguinte. No máximo, à tarde.
– Posso te esperar pro almoço?
– Claro. Mas tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa que eu precise saber antes?
– Tá tudo ótimo, só preciso de um amigo.
Dava quase para ouvir Sam sorrindo.
– E é por isso que eu to aqui. Vou estar lá, sem falta.
– Sam. – Eu o chamei. – Por favor, não conte pro Dean.
, você nem precisava me pedir uma coisa dessas.
Eu sorri.
– Obrigada, Sammy.
Estar em casa era realmente tudo o que eu queria naquele momento. Desliguei o telefone assim que cheguei, deixei as coisas imediatamente no meu quarto e desci para o estábulo. As reações que eu provoquei deixaram bem claro que eu não era a única com saudade de estar ali. Storm colocou a cara para fora da baia imediatamente, se contorcendo todo para ver minha chegada. Eu parei em frente a ele, impaciente como sempre tinha sido, mas ainda era o meu bebezão. Abri a porta com cuidado, porque ele poderia me machucar com facilidade se continuasse tão agitado. Esperei até que ele se aquietasse e saímos em direção a área onde eu treinava minha pontaria.
– Demorou. – Eu gritei quando vi a silhueta se aproximando.
– A mulher na locadora de carros não parecia estar querendo me ajudar muito.
– Ela devia estar com ciúmes da nossa relação.
– Ah, certamente.
Eu ajeitei a espingarda e dei um tiro. Acertei em cheio.
– Tem certeza de que Dean não te seguiu?
– Nós tivemos uma conversa não muito amigável sobre ele respeitar sua vontade de ficar longe dele.
– E ele aceitou numa boa?
– Claro que não, eu escapei no meio da noite.
Ri de Sam e dei mais um tiro, acertando meu alvo novamente. Sam começou a se desvencilhar da mochila em suas costas e se posicionou ao meu lado.
– Devo dizer que sua casa é um dos primeiros lugares onde ele te procuraria.
– Mas ele provavelmente não vai pensar que eu vim pro lugar mais óbvio.
– É, provavelmente não.
Sam também deu um tiro com uma pistola que ele carregava consigo.
– Sobre o que você quer falar? – Ele perguntou.
– Voltei à ativa.
– Bobby nos contou.
– Parece que vocês cuidaram de tudo.
– Quase tudo, ou então você não teria me chamado pra vir até aqui.
– Talvez eu só queria ver um rosto amigo.
– Mas algo me diz que não. – Sam disse e deu mais um tiro.
Eu dei mais alguns tiros enquanto ele me observava com uma paciência descomunal. Muitas informações passavam pela minha mente naquele momento e nenhuma delas era desconfortável.
– Não sei como vão seguir as coisas a partir desse momento.
– Você contou pro seu pai? – Sam perguntou.
– Claro que não, ele mataria o Dean.
– Com certeza, mataria. Mas ainda não acho que você me chamou aqui pra dizer que seu pai mataria meu irmão se soubesse que ele é o motivo do seu desaparecimento.
Respirei fundo.
– As coisas vão mudar agora e eu não sei como vou lidar com isso.
– Com isso o quê?
– Não quero ver Dean. Nunca mais.
– Você tá falando sério, ?
– Sam, – Eu disse. – você, mais do que ninguém, sabe o quanto eu sofri em silêncio por causa dele. Eu não tenho sangue frio pra continuar vendo Dean do jeito que eu via antes. Cada caso que nós enfrentávamos juntos... Aquilo tem que acabar.
– Sabe que você me envolve nessa conversa também.
Meus ombros murcharam.
– Não tem nada a ver com você.
– Posso te fazer uma pergunta sincera e você me promete que não vai ficar chateada?
– Fala.
– Por que você não dá a chance dele se explicar? Nem que seja por mensagem de texto, partindo do pressuposto de que você não quer ouvir a voz do meu irmão. Se Dean não te afeta mais, não vejo motivo pra não conversar com ele, resolver isso tudo e seguir em frente.
– Tá, mas quem disse que ele não me afeta mais?
A feição dele se transformou.
– Pois é, Sammy. – Eu murmurei, apontei minha arma e dei mais um tiro. – Aliás, a Jo gosta de você.
– O quê?
– A única Jo que conhecemos, Sam, é apaixonada por você.
– E por que você tá me dizendo isso agora?
– Não desejo pra ninguém o que eu to sentindo agora.
– Você realmente acha que não existe a possibilidade de as coisas melhorarem se vocês conversarem?
– Eu não quero que as coisas melhorem entre a gente, Sam. Quero que as coisas tenham um fim.
– É inflexibilidade demais, mesmo pra você.
Dei de ombros e mais um tiro na sequência.
– E se eu pedisse pra você conversar com ele em prol do que você sente por mim e com a adição de eu me esforçar pra tentar conversar com a Jo?
– Talvez aí eu pensasse na possibilidade, mas não deixa de ser chantagem.
– Eu nunca disse que não era chantagem. – Sam finalizou e guardou a arma. – Só não quero perder meu irmão pro desespero do jeito que eu to perdendo. Ele te ama, . Talvez não do jeito que você espera, mas...
– Talvez?! – Questionei. – Talvez, Sam?
– Ok, ele certamente não te ama do jeito que você...
– Eu não ligo.
– Me deixa terminar! – Ele gritou. – To tentando dizer que eu sei que ele tá disposto a tentar de tudo pra consertar as coisas e, quando eu digo tudo, eu realmente quero dizer tudo.
Desviei o olhar de Sam para o espantalho que usávamos como alvo e constatei que ele precisava ser trocado.
– Que tal uma pausa nesse assunto e uma sugestão de um chocolate quente por conta da casa?
Sam sorriu, satisfeito, e iniciamos nosso caminho de volta. Demos boas risadas enquanto assistíamos episódios repetidos de House – bem, ao menos repetidos para mim –, felizes por estarmos tão aquecidos quanto gostaríamos. A noite ia ser longa.


Capítulo 17

– Para com essa merda!
– Que boquinha suja.
– Caralho, Dean, eu juro...
– Os dois vão ficar de gracinha até que horas? – John perguntou rispidamente.
Eu me encolhi no banco onde estava e olhei com ódio para Dean, torcendo para que seu pai fosse embora logo. Ele estava em um dos seus dias de mau humor e eu estava de TPM, doida para falar uma gracinha, mas minha educação e meu respeito por John Winchester ainda estavam superando meus hormônios. Estava em minha casa e não podia reafirmar minha autoridade, aquilo me incomodava. Mas logo, antes do esperado, ele partiu com meu pai e meu tio a caminho de uma cidade na Carolina do Norte. Sam foi tomar um banho e Dean se sentou ao meu lado, com cara de quem estava decidido a me incomodar.
– Vamos lá, de qual criatura você desconfiaria no caso de recorrentes desaparecimentos numa área onde as pessoas costumam acampar?
– Sai pra lá.
– Eu to tentando te ajudar. Não foi isso que você pediu?
– Você até costuma tentar me ajudar, mas hoje você tá pentelhando.
Ele riu.
– Tá fazendo efeito, pelo jeito.
– Vai se foder.
– Eu já to fodido na vida e nem tenho idade pra comprar bebida ainda.
– Como se você não conseguisse o que precisa com seu pai. E, só pra constar, não entendi o que tem uma coisa a ver com a outra.
– Talvez eu consiga as bebidas com ele e você vai entender quando começar a beber.
– Tomara que isso não aconteça. – Murmurei.
– Tá começando a escurecer, é uma boa hora pra ir lá fora treinar sua pontaria. O que você acha?
– Como que estar começando a escurecer é algo bom nesse caso?
Dean levantou, se colocou à minha frente e me ofereceu a mão.
– Se você for boa numa situação de merda, vai ser perfeita numa situação sem dificuldade.
Nós descemos para o porão da casa e começamos a separar alguns equipamentos de acordo com nossa necessidade. Dean ia jogando tudo dentro da bolsa e eu tentava prestar atenção nos detalhes.
– Meu pai vai matar a gente por usar isso sem autorização.
– Eu coloco o meu na reta e deixo você de fora, não tem problema. – Ele disse.
Dei de ombros, um tanto quanto insegura. Eu hesitei na porta de casa, observando as sombras que se formavam ao redor da propriedade. Uma brisa gelada fez com que meu corpo inteiro tremesse e cada pelo na minha pele se arrepiasse. Dean estava já andando à minha frente quando percebeu que eu não estava acompanhando seu ritmo. Ele olhou para trás e riu de mim.
– Qual é! Não confia que eu vou te proteger?
– Eu sei da sua capacidade, Dean, só não sei da capacidade do que tá aí fora.
Ele me deu as costas e voltou a andar.
– Não vou deixar nada de machucar, . Vamos logo.
Meus primeiros passos foram incertos na direção do desconhecido. Nós caminhamos em silêncio até uma distância decente do estábulo para assustar os cavalos minimamente, dentro do possível. Ele ajeitou as latas de café e olhou de volta para mim.
– Dá uns dez passos pra trás.
– As coisas em que nós deveríamos atirar geralmente não ficam tão longe assim.
– Os passos, . Dez. – Ele insistiu.
Eu obedeci. Ele ficou ajeitando as coisas ainda enquanto eu observava, parada. Quando acabou, caminhou até mim e me entregou uma arma.
– O que tem de errado?
– Não tá carregada. – Eu respondi.
– Certo. – Dean respondeu e, agilmente, trocou o pente. – Derruba as dez latas em menos de meio minuto.
– Você mal me ensinou a mirar ainda.
– O relógio não para pra você falar.
Eu atirei aleatoriamente até as balas acabarem e, quando terminei, fui atingida por seu olhar decepcionado.
– Achei que estávamos melhor que isso.
– Estávamos?! Você, talvez, mas eu comecei nisso ontem.
Dean revirou os olhos e se posicionou atrás de mim, envolvendo meus braços com os seus. Sobre minha mão, ele segurou a arma e a levantou.
– Confia em mim? – Ele sussurrou, próximo demais da minha pele, e meu corpo inteiro arrepiou.
– Confio.
– Relaxa o dedo.
Ele encaixou seu indicador junto ao meu, próximo ao gatilho. Pude sentir ele encher os pulmões e prender a respiração – junto comigo. Em seguida, Dean apertou o gatilho exatamente a quantidade de vezes necessárias. Todos os latões caíram, mas eu ainda estava tensa por conta da proximidade entre nossos corpos. Depois de mais algumas tentativas frustradas, nós voltamos para dentro. Sam estava na sala de estar com os pés em cima da mesa de centro e assistindo um episódio de Os Simpsons.
Queria muito um banho, mas a janta já estava atrasada. Lavei bem as mãos e liguei meu notebook, colocando McFLY para tocar. Estava tão entretida entre cantar ‘Broccoli’ e montar a lasanha que esqueci completamente de que não estava sozinha em casa. Em uma das minhas voltas, dançando como se não houvesse amanhã, dei de cara com Dean. O susto que eu tomei fez meu coração palpitar.
– Você não pode fazer isso, seu filho da puta.
– Que viadagem é essa que você tá escutando, hein?
– Não é viadagem. – Protestei enquanto ele se aproximava do meu notebook. – E é melhor você não mexer em nada aí.
– Por que você escuta isso?
Isso é música britânica, de qualidade, e fala sobre os problemas do cotidiano que eu nunca vou passar, pelo jeito. E é romântico, então me deixa.
– Hm, então é romance que você quer?
– Dean! – Eu gritei. – Não mexe aí!
Ele conseguiu me afastar com apenas um dos braços enquanto pausava a música e mexia em alguma coisa que eu não queria que ele mexesse. Segundos depois, uns acordes conhecidos começaram a tocar. Dean aproveitou para puxar minha mão e, consequentemente, meu corpo para perto de si, me abraçando pela cintura. Enquanto John Bongiovi cantava ‘Bed of Roses’, ele – muito mal – tentou me guiar por alguns passos no meio da cozinha. Comecei a rir da sua descoordenação, mas as coisas acabaram ficando estranhas quando nós trocamos um olhar mais demorado do que o normal. Parecia que nossas respirações estavam sincronizadas e eu sentia meu coração batendo muito rápido. Eu estava desesperada e achando que ia ter um infarto, até que ele esticou o pescoço para olhar o que estava sobre a bancada da pia.
– Você tá fazendo aquela sua lasanha?
Fiquei no mesmo lugar, praticamente ainda imóvel e frustrada por completo. Ainda tocava Bon Jovi e, de alguma forma, eu sentia que aquilo só piorava o modo como eu estava me sentindo. Dean viu que eu fiquei estática e deu um passo para trás.
– O que houve?
– Nada. – Eu menti.
Ele demorou, mas riu.
– Se eu não te conhecesse, diria até que você sente alguma coisa por mim. – Dean brincou e deixou a cozinha logo depois de pegar uma amostra do meu molho com os próprios dedos.
Fiquei sem fome, por algum motivo. Minha barriga estava estranha e, quanto mais eu tentava parar de pensar naqueles olhos, mais eles invadiam a minha mente. A sensação era horrível, mas eu não conseguia parar de sentir aquilo. Não era a primeira vez que eu tinha pensamentos impróprios sobre Dean Winchester e, cada vez que voltávamos a nos encontrar, o sentimento só ia ficando mais e mais intenso.
Depois de ficar sem fome, eu fiquei sem sono. Havia perdido as duas únicas certezas na minha vida: a vontade de comer e a vontade de dormir. Cheguei a pensar que estava enlouquecendo e o tédio me proporcionava essa “alegria”. Eram três horas da manhã e eu estava literalmente encarando o teto. Olhei no relógio e meu coração disparou. 3h33. Por um segundo, achei que minha mente estava me pregando peças, mas a casa estava tremendo.
– Dean! – Eu gritei insistentemente. – Dean, socorro!
Ele entrou no quarto escancarando a porta e com uma arma em mãos.
– Vamos, agora.
Nós três descemos correndo para o quarto do pânico que meu pai havia construído no porão, eu e Sam ofegando enquanto Dean se mostrava focado no problema.
– O que tá acontecendo?
Os dois fizeram sinal para que eu me calasse. Acima de nós, vozes ecoavam como se estivessem dentro da casa. Meu celular, pensei, mas o idiota estava na minha mesa de cabeceira. Eu segurei Dean firmemente pelo braço e me aproximei dele.
– Dean, são demônios?
Ele olhou para trás e, pela sua expressão, pude constatar que ele não fazia ideia do quão assustava eu estava. Dean se virou para mim e me segurou delicadamente pelos ombros.
– São, mas você tá completamente segura aqui.
– Tem certeza?
– Seu pai construiu esse lugar com as próprias mãos e ele nunca falha.
– Você me levou lá fora...
, eu iria te proteger de qualquer coisa que tivesse chegado perto da gente. Precisa confiar em mim, por favor.
Sam estava encolhido, ao nosso lado, assustado mas decidido a agir assim que fosse preciso. Nós começamos a escutar barulho das coisas quebrando acima de nós. Cada estrondo fazia com que eu desse um salto. Dean e Sam, cada irmão de um lado, tentavam me acalmar. Mesmo depois de terem colocado uma arma na minha mão, não parecia nada seguro.
– Você disse que eles não podiam entrar.
– Não quer dizer que eles não possam destruir a casa. – Sam concluiu. – Pelo barulho, imagino que estejam fazendo isso.
– Então não é seguro?
Dean revirou os olhos.
, quando eu disse que você não bateria nos outros carros na época que eu tava te ensinando a dirigir, você bateu? – Ele ralhou.
– O que tem uma coisa a ver com a outra? – Sam perguntou.
– Eu to dizendo agora que ninguém vai te fazer mal enquanto você tiver aqui dentro, . Ficar nervosa não vai ajudar em nada caso nós precisemos agir.
– Mas se meu pai voltar...
– Seu pai tá com o nosso pai, eles não vão voltar porque acabaram de sair. Mas, mesmo que voltassem, os dois juntos são imbatíveis, mesmo pro mais poderoso dos demônios.
– Você confia nele, Sam?
– O quê?! Mas é claro que confio!
Eu olhei de volta para Dean e assenti. Era dezembro e Sam era o único agasalhado. Todo o sono que havia me abandonado voltou violentamente. Não podia me apoiar na parede nem sentar no chão, pois o metal terminaria de me congelar. A destruição foi diminuindo gradativamente e dando espaço para que o vento lá fora se fizesse audível. Enquanto eu pensava no frio, lembrei que havia dois sacos de dormir no armário embaixo da estante de armas. Sorri e fui até lá, removendo-os e os esticando na área disponível, que não era muita coisa.
– Surpresa.
Os olhos de Sam brilharam.
– Você é um gênio, Singer.
– Podem ficar, – Dean disse. – eu fico acordado.
– Pra quê? Não dá pra fazer nada daqui de dentro.
– Vai dormir, Sam.
– É grande o suficiente. – O irmão mais novo insistiu. – A gente pode dividir.
Assustada e com o coração sem parar de palpitar, eu lembrei do sentimento de mais cedo. Parte de mim queria aquilo de volta, a outra estava aterrorizada e queria Dean o mais perto possível por questões de segurança.
– Eu sou menor que o Sam e ele não vai passar frio com a roupa que tá usando. – Declarei. – Dois corpos próximos promovem calor e, pra ser bem sincera, tá um frio da porra aqui. Você se importaria de dividir o saco de dormir comigo?
, não. Seu pai não gostaria.
– Por favor, Dean, meu pai não tá aqui.
Dean ficou ao meu lado dentro do saco de dormir e Sam se aproximou com o dele o máximo possível, garantindo que eu recebesse bastante calor deles. Eu achei que estava com sono, mas os garotos começaram a roncar antes mesmo de eu pensar em fechar os olhos. Fui me ajeitando lentamente, incomodada com a falta de um lugar decente para repousar a cabeça. Queria pedir que Dean me cedesse um de seus braços, mas aí já seria exagero demais. Ainda estava frio, mas menos pior. O barulho, agora já extinto, ecoava na minha cabeça, e eu tinha certeza de que, se eu dormisse – e eu provavelmente ia dormir, já que estava sentindo tanto sono –, aquilo ia me causar pesadelos. Na minha mente, em um cantinho escondido, meu subconsciente ria da possibilidade do meu pai nos encontrar naquela situação.


Capítulo 18

– Mais uma, por favor. – Pedi.
– Garota, você tem certeza de que está bem? – O senhor, atrás da bancada do bar, perguntou receoso, mas sem deixar de encher meu copo.
– Agradeço a sua preocupação, mas nem senti a onda ainda.
O homem sentado ao meu lado arregalou os olhos quando me viu virar tudo de uma vez.
– A mulher da vítima tá limpa. – Meu pai disse, surgindo de supetão, e eu dei um pulo na banqueta.
– Caralho, pai...
– Você é pai dela? – O senhor perguntou. – Sua filha bebe igual gente grande.
– É de família. – Ele respondeu. – Só por causa disso, tem como encher o copo dela e trazer um pra mim também?
Eu ri, pegando a pasta que havia chegado com meu pai. Folheei as primeiras páginas, mas fechei a pasta imediatamente, preocupada com a possibilidade das fotos do cadáver serem vistas por qualquer um. A cidade era pequena e as fofocas espalhariam rápido de que tinha um pai e uma filha metendo o nariz no assassinato do proprietário da única mercearia em quilômetros. Abaixei a pasta até que o balcão a escondesse, torcendo para a má iluminação me favorecer.
– Pai, podemos conversar lá fora? – Perguntei, forçando uma simpatia que não era minha.
Liguei a luz interna do carro dele e comecei a dar uma olhada no relatório do médico legista, certamente mais inconclusivo para mim do que foi para ele. As marcas no corpo foram feitas antes e depois da morte, porém não havia indicativo de qual objeto havia sido usado pois, nas palavras do legista, “as feridas apresentam padrões jamais vistos ou registrados”. Teoricamente, a causa da morte havia sido dada como overdose. Substância? Crack. O problema é que Prince Carlisle havia sofrido um acidente poucos meses atrás e ficado paraplégico. A esposa havia instalado câmeras escondidas pela casa a fim de observar o marido do trabalho porque não confiava nas enfermeiras que havia contratado. A polícia já havia analisado as gravações e a única irregularidade era um halo que circundava a cama da vítima segundos antes de ser constatado o seu falecimento.
– Algum seguro, alguma vantagem em ter esse cara morto?
– Não, nada. – Meu pai respondeu. – Meu instinto tá me dizendo pra investigar as enfermeiras.
– E o meu tá mandando investigar o acidente. – Declarei. – Às vezes, o que causou o acidente tem a ver com isso.
– Foi um acidente de carro, um caminhão perdeu o controle, nada demais.
– A gente nunca acha que algo é ‘nada demais’.
Meu pai bufou.
– Eu vou atrás das enfermeiras e você vai atrás da família.
– Por que eu sempre tenho que ir falar com a família? – Protestei.
– Se eu tenho alguém pra ir lidar com o luto dos outros no meu lugar...
– Às vezes sua filha também não gosta disso.
– Mas é minha filha e vai me obedecer. – Ele disse, firme. – Acho melhor irmos logo pro motel. Tá ficando tarde demais e, quanto mais cedo começarmos, mais cedo terminamos.
– Ok, vou tomar só mais uma dose.
, não sabemos o que tem por aqui e você quer ficar dando bobeira na rua pela noite?
– É uma dose de tequila só.
Ele revirou os olhos, entrou no carro e partiu. Entrei, tomei mais um copo e saí logo. Na outra manhã, estava me arrependendo dos drinks – como eu já sabia que ia acontecer. Achei que meu pai me esperaria para tomarmos café da manhã juntos, mas o carro dele nem estava mais no estacionamento. Conseguia até escutar o sermão sobre levar o trabalho a sério. Pelo amor de Deus, nós falsificávamos cartões de crédito mais do que trocávamos de roupa. Acordar tarde era o de menos naquele “ramo”.
Ajeitei o blazer, o cabelo e separei o distintivo falso. Odiava não poder estar usando roupas mais despojadas. Revisei tudo na minha mente e bati na porta. Uma mulher me atendeu cerca de um minuto depois.
– Senhora Carlisle, agente Speight, FBI. Meu parceiro esteve aqui ontem.
– Ficou faltando alguma coisa, agente?
– Nós estamos partindo pra uma nova linha de investigação. Possivelmente, vou repetir algumas perguntas, mas gostaria de conversar com a senhora, por favor. Caso a senhora não se sinta desconfortável, é claro.
Ela hesitou mas me deu passagem, me guiando até uma sala de estar humilde e oferecendo a poltrona solitária para que eu sentasse. Ela sentou de frente para mim.
– Senhora Carlisle...
– Por favor, – Ela me interrompeu. – Elizabeth.
– Bem... – Eu me corrigi. – Elizabeth, preciso saber se há uma possibilidade, mesmo que ínfima, de seu marido ter inimigos.
– Prince era um homem dos negócios, mas a cidade não tem competidores, como você deve ter visto.
– Não existe a possibilidade de não haver competição justamente porque ele reprimia qualquer um que tentasse?
– Meu marido era um bom homem. Eu sei que você deve ouvir isso com frequência, mas...
– Você tá certa. – Eu a interrompi. – Realmente escuto isso com frequência.
– Agente, por favor...
Elizabeth não terminou a frase.
– Vamos falar do dia do acidente do seu marido.
– O que tem o acidente a ver com isso?
– Como eu disse, estamos com uma nova linha de investigação.
Novamente, a viúva hesitou, dessa vez cruzando as mãos sobre as pernas.
– Prince estava indo visitar seu irmão, que mora em uma fazenda no vale.
– Muito longe do acidente?
– Faltavam três quilômetros pra ele chegar.
– Seu marido já teve algum problema familiar?
– Não.
– Elizabeth, posso ver em seus olhos que a senhora pensou em alguma coisa.
As mãos sobre as pernas se mexeram mais ainda.
– Não foi nada, apenas negócios.
– Sobre o quê?
– Patrick fornecia carne para o açougue, mas Prince ficou sabendo de algumas irregularidades e suspendeu o contrato com o irmão.
– Patrick não ficou chateado? – Questionei.
– Acredito que não, isso nunca afetou o relacionamento deles. Inclusive Patrick comprou toda a aparelhagem pra quando Prince voltou do hospital.
– E onde tá essa aparelhagem agora?
– Ainda no quarto onde ele ficou. Eu não consegui...
Elizabeth fez uma pausa e segurou uma lágrima. Sinceramente, não estava comprando muito a história, mas decidi manter a pose.
– Posso dar uma olhada?
– Se não se importa, gostaria de tentar manter o espírito do meu marido em paz no momento.
Saí de lá insatisfeita, direto pro motel. Meu primeiro instinto foi pesquisar pelo nome de Patrick Carlisle. De fato, houvera um escândalo envolvendo seu nome por causa de algumas carcaças contaminadas com um parasito de nome difícil de se pronunciar – resumindo, um verme. A fazenda ficava na cidade vizinha, então aguardei que meu pai voltasse da casa de uma das enfermeiras para podermos ir juntos. Fomos os dois no carro do meu pai. Ele estava misteriosamente silencioso no trajeto e escolhi acreditar que não tinha a ver com o caso.
Atravessamos uma larga porteira. Havia uma guarita, mas ninguém dentro dela. Deixei que meu pai batesse na porta e aguardamos. Uma jovem nos atendeu e nós, imediatamente, deixamos os distintivos à mostra.
– Agentes Shaw e Speight, – Meu pai nos identificou. – viemos ver o senhor Patrick Carlisle.
– Bem, o senhor Patrick está viajando para o norte do país a trabalho. – Ela respondeu. – Sou a empregada da casa, eu posso ajudar em alguma coisa?
– Faz quanto tempo que a senhorita trabalha aqui?
– Em torno de cinco anos.
– Então a senhorita conhece a irmão dele, Prince.
– Sim, claro. Terrível o que aconteceu a ele. Fiquei sabendo do seu falecimento ontem.
– Como a senhorita descreveria a relação entre o senhor Patrick e o senhor Prince?
Eu olhei, ressabiada, para toda a elegância das palavras que meu pai estava escolhendo.
– Bem, eram irmãos. Às vezes, brincavam das coisas mais estúpidas. Em outras horas, não se falavam. Patrick não gostava da mulher de Prince, é claro, mas isso não é incomum em famílias tradicionais como os Carlisle.
– Linda, quem está aí? – Uma voz gritou de dentro da casa.
A jovem nos deu um sorriso amarelado.
– O FBI, senhor. – Ela gritou mas, imediatamente, trouxe a voz de volta a um tom mais baixo. – É o pai do senhor Patrick. Está senil, vive falando de bruxaria por aqui, como se ainda vivesse nos velhos tempos da Luisiana. E ele ainda não sabe sobre Prince, então...
Meu pai e eu forçamos um sorriso amigável enquanto o senhor se aproximava da porta.
– Boa tarde, agentes, em que podemos ajudar?
Uma mulher, um pouco mais nova que ele, de repente surgiu, com passos largos, rápidos e firmes.
– Aaron, vamos entrar, querido. – Ela disse, puxando-o pelo ombro. – Desculpe, agentes, não sabemos de nada.
E desapareceu para dentro da casa. Eu fiquei inquieta e Linda também. Meu pai tirou um cartão de visita do bolso e entregou para Linda.
– Quando o Patrick voltar, por favor, nos ligue.
Ele começou a descer a escadaria da entrada, porém eu hesitei. Linda, mais uma vez, confirmou se não havia ninguém atrás dela e se virou para mim.
– Todas as manhãs, a senhora Carlisle vai até o centro da cidade por volta das oito horas e só volta para o almoço, servido sempre ao meio dia.
Eu olhei de volta para o meu pai, que não havia notado o que havia acontecido. Eu assenti, em silêncio, e também entreguei um cartão para ela. Corri, então, para o carro, entrando imediatamente. Meu pai não demorou a dar a partida.
– Não preciso nem observar que tem alguma coisa de errado naquela senhora.
– Não precisa. – Concordei. – Mas a empregada tá limpa e talvez seja verdade o que ela disse sobre Patrick estar viajando.
– Vamos precisar montar uma tocaia. Vou pedir pro seu tio vir pra cá.
– Vai fazer meu tio cruzar o país inteiro só pra isso?
– Vou, por quê?
Dei de ombros.
– Nada.
Eu fiz questão de embebedar meu pai naquela noite, pois isso me garantiria que ele pegasse pesado no sono e demorasse a acordar. Na manhã seguinte, eu saí sem avisar ninguém e dirigi até a fazenda. Eram nove horas da manhã quando cheguei à propriedade. Bati novamente na porta e Linda, mais uma vez, me atendeu.
– Bom dia, agente. Em que posso ajudá-la hoje?
– Vim ver o senhor Carlisle.
Ela assentiu, receosa, e deu um passo para trás.
– Ele está na sala de TV, é a primeira porta.
Eu atravessei o hall de entrada prestando atenção nos detalhes e ciente de que não estava muito segura ali. Antes de sair entrando no cômodo, me posicionei próxima ao batente.
– Senhor Carlisle? – Chamei e ele atendeu imediatamente, esperto demais, me fazendo concluir que não havia nada de senilidade ali. – Sou a agente Speight, gostaria de conversar com o senhor sobre a relação entre seus filhos Patrick e Prince.
– Ah, querida, por favor, sente-se. Estou assistindo um filme maravilhoso sobre o velho oeste, dos que não se fazem hoje em dia.
Eu sorri gentilmente e me sentei em uma poltrona.
– O que gostaria de saber?
– Quero saber se há algum problema entre os dois.
– Bem, – Ele começou. – Patrick e Prince sempre foram muito competitivos, mas se amam profundamente. O problema entre eles é aquela... Hm... A mulher de Prince. Ela o afastou da família por algum motivo.
– Linda me contou que o senhor fala sobre bruxas.
O semblante dele se fechou.
– Dizem que eu sou louco quando falo sobre isso.
– E se eu disser que acredito no senhor?
Ele quase sorriu.
– Elizabeth é uma delas, tenho certeza. Ela é a culpada pela desgraça na vida do Patrick. Quis se vingar porque, quando ela se ofereceu para Patrick, ele a negou. Então ela arruinou o rebanho dele e ainda fez Prince sofrer aquele acidente. Não duvido que a senhorita esteja aqui porque ela a fez acreditar que Patrick é culpado disso.
Estava concentrada em verificar aquela história quando meu celular começou a vibrar no bolso. Olhei o número no identificador de chamadas e ignorei. Menos de um minuto depois do celular parar de vibrar, a ligação entrou de novo.
– O senhor pode me dizer onde é o banheiro, por favor? – Perguntei.
– Primeira porta à direita, querida.
Assenti e me encaminhei para o banheiro, já com o celular em mãos. A chamada caiu novamente mas, antes mesmo que eu pudesse retornar para o número, eu estava recebendo outra chamada.
– O que foi? – Atendi, falando o mais baixo possível.
– Sai daí agora. – Sam disse.
– O quê?!
– Nós esbarramos no mesmo caso. Encontramos seu pai no motel e ele disse onde você tava. Dean tá indo praí agora.
Merda. Eu desliguei o telefone imediatamente, esquecendo de apertar a descarga para disfarçar.
– Senhor Carlisle, eu vou precisar ir. Surgiu uma emergência.
– Mas e o...?
– Eu volto pra resolver isso, prometo.
Ele fez menção de me levar até a porta, mas eu fui mais rápida e disparei até lá. Abri, dei uma boa olhada no entorno e literalmente corri até meu carro. Antes de abrir a porta, voltei a olhar para o lugar à minha volta. De repente, uma mão tapou minha boca.


Capítulo 19

Eu imediatamente joguei meu cotovelo para trás, acertando algo em cheio, mas logo meus braços também foram imobilizados com um abraço forte na altura da minha cintura.
– Para de lutar, , pelo amor de Deus. – Dean disse, sussurrando perto demais do meu ouvido, me deixando mais puta ainda. – Eu vou te soltar. Por favor, não grita e não me bate.
O aperto foi afrouxando lentamente e eu ainda estava decidindo se iria reagir ou não. Ao invés de partir para a porradaria – e Deus, como eu queria bater naquele filho da puta –, eu abri a porta e entrei no carro. Ele ficou do lado de fora, me observando. Encaixei a chave na ignição e girei. Não houve nenhum som. Eu olhei para ele e, cheia de ódio, saí do carro.
– O que você fez com o meu carro? – Esbravejei.
– Pode ser que eu tenha tirado um certo fusível geral.
– Dean...
– Deixa eu me explicar! – Ele gritou.
– Eu não quero explicação. Já parou pra pensar nisso?
, por favor, tenta...
– Tentar o quê, Dean? – Eu o interrompi. – Tentar te entender? Ah, brilhante ideia, não é mesmo? Por que será que você não tentou me entender, Dean?
– Que chance que eu tive? Você foi embora!
– Será que foi porque você me olhou como se eu fosse a pessoa mais repulsiva do mundo?
– Eu não te olhei assim.
– Me poupe dessa, Dean. – Eu disse e lhe dei as costas, andando para longe dele.
Imediatamente, Dean apertou o passo na minha direção e parou de frente para mim. Eu desviei o olhar no mesmo instante.
– Você me beijou e não me deu nem cinco segundos pra reagir, . Você foi embora. Eu fui atrás de você assim que assimilei tudo, mas não dava pra eu ser mais rápido que seu carro. Quando eu percebi que o meu irmão sabia e não tinha contado nada pra mim, deixei a raiva tomar conta de mim e acabei perdendo a chance de ir atrás com meu carro.
– Só falta você me dizer que ia me dar uma fechada, sair do carro, me puxar pela cintura e me dar um beijo cinematográfico.
– Não, , mas eu ia querer te ouvir e conversar a respeito.
– Eu não quero falar mais nada. Foi uma paixão que durou mais de sete anos e você tá de parabéns, conseguiu mandar tudo pra puta que pariu com apenas um olhar.
– Sete anos, ? – Ele perguntou. – Passou esse tempo todo comigo e não me contou nada?
– Agora eu sou a culpada. – Debochei.
– Não to te culpando, só queria saber o porquê de você não ter conversado comigo em nenhum momento. Ficamos sozinhos várias vezes, tínhamos intimidade suficiente pra tratar do assunto como adultos.
– É, mas você também tinha intimidade suficiente com todo e qualquer rabo de saia que surgisse na sua frente. Você queria que eu me sujeitasse a me tornar mais um número na sua vida?
– Você nunca seria só um número pra mim, ! – Ele gritou. – Ter um relacionamento com alguém significa colocar a pessoa na reta de tudo o que a gente caça. Por isso, eu nunca pensaria em ter uma coisa séria com qualquer pessoa, e por isso que eu tenho esse comportamento errante, se assim posso dizer. Você já corre risco demais, viraria um alvo piscando em neon se nós tivéssemos um relacionamento. E eu nunca iria querer você no meio da linha de tiro. Você é minha família e eu te amo.
Meus ombros murcharam.
¬– Mas não ama do jeito que eu gostaria que amasse. – Eu declarei. – Não é suficiente pra mim. Perdi a conta das vezes em que eu tive que engolir em seco porque você tava comendo outra mulher e eu não podia me sentir ofendida porque você não era meu. Tive que manter segredo de todo mundo com medo da reação do meu pai. Eu não tinha uma irmã pra desabafar como você tem, Dean, então eu peguei emprestado o seu. Desculpa não ter te consultado sobre isso. Mas tudo o que Sam dizia a respeito era “Você quer que eu converse com ele a respeito?”, e isso só fazia com que eu me sentisse fraca.
...
– Por favor, Dean, me deixa terminar. – Insisti. – Todo o sentimento de frustração que estava em mim quando eu decidi tentar a chance e te beijar... Tudo se transformou em vergonha de sentir o que eu sentia. A sua rejeição foi a coisa mais violenta que eu já tive que enfrentar e acabou comigo. Eu quase não to conseguindo respirar agora, Dean, de tão pesado que meu peito tá. Doeu em mim nos últimos anos e aquele olhar que você me deu foi a facada final. Eu decidi colocar um ponto final nisso, e prefiro que continue assim, pelo meu próprio bem. Então, por favor, devolve o fusível do meu carro e me deixa ir embora. E, se você realmente me ama como acabou de me dizer, não me procura nunca mais.
Não percebi que tinha começado a chorar. Dean se aproximou e tentou limpar meu rosto com os dedos. Seu olhar repousava com cautela sobre mim. Eu achei que ele fosse me beijar. Meu cérebro até processou que era isso que eu queria. Cheguei a respirar fundo mas, então, ele deu um passo para trás e tirou o fusível do bolso da sua calça.
– Não existem palavras que possam descrever o quanto eu sinto muito por ter te magoado, . Eu faria de tudo pra corrigir isso mas, se é assim que você quer, vou procurar te agradar.
– Por favor, não conta pro meu pai sobre isso.
– Não vou. – Ele disse imediatamente.
– Eu interroguei a mulher da vítima e ela não me deixou ver onde a vítima ficava. Ela tentou criar uma estorinha sobre inimizade entre os irmãos. – Falei. – Eu vim aqui falar com o pai deles, que dizem ser senil, mas está completamente lúcido. A mulher dele não deixa falar com ele de jeito nenhum, mas a empregada tá disposta a ajudar. Tem algo sobre bruxaria nessa história. Ele acha que somos agentes do FBI, to usando o sobrenome Speight.
Ele assentiu e desviou o olhar.
– Pega o culpado por isso, Dean. Nada vai me deixar mais satisfeita do que isso.
Ele fingiu um sorriso fraco e foi até meu carro, abrindo o capô e colocando o fusível de volta no lugar. Assim que Dean terminou, eu entrei no carro e parti. Era possível vê-lo em pé, imóvel, olhando para toda a poeira que eu acabara de levantar com minha retirada. A primeira coisa que fiz quando peguei o asfalto foi discar o número do meu tio. Uma, duas, três vezes. Nada. Na quarta, eu tive sorte e ele atendeu.
, to tentando falar com você faz um tempo.
– Você tá em casa, tio?
– Sim, estou. Seu pai tinha me chamado pra ajudar num caso, mas acho que você tava junto.
– Tava. E eu acho que o senhor sabe o que aconteceu.
Ele suspirou.
– Você tá bem, querida?
Eu respirei fundo mais vezes do que poderia contar. O peito ainda estava pesado.
– To, – Menti. – mas gostaria de me afastar com uma desculpa lógica pra isso.
– Sabe que você é bem-vinda aqui a qualquer momento.
– Devo chegar amanhã à noite, tio.
– Ótimo, vou ficar te esperando.
Liguei para meu pai, contei sobre uma suposta ligação do meu tio, me pedindo ajuda com carros. A pista estava chata, o que era ótimo para me distrair. Sentia a mesma coisa que senti depois do beijo, aquela sensação de que eu deveria estar me desmanchando em lágrimas, mas algo estava bloqueando. Eu pretendia, de fato, dirigir até em casa, pois era um bom ponto para usar como metade do caminho, mas nem cheguei a atravessar a fronteira do Arkansas com o Missouri. Atrasou minha viagem em pouco menos que um dia, mas eu estava pouco me fodendo.
O filho de Jody Mills estava para jogar uma partida pelo campeonato de futebol juvenil do estado e ela nos convidou, minutos depois da minha chegada, para prestigiar o momento. Eu tentei parecer animada, principalmente para não preocupar meu tio. No meio do jogo, depois de um gol perdido, eu olhei bem para ele e constatei o óbvio.
– Você tá completamente bêbado num evento de crianças?
– To bêbado porque é um evento de crianças.
– Se é tão ruim assim, por que veio?
– Porque a xerife nos chamou.
Eu notei o olhar dele naquele exato momento e meu coração se encheu de complacência.
– Tá afim de uma policial, tio?
– Olha quem fala, você tá afim de um Winchester. – Ele rebateu e eu, pela primeira vez em meses, consegui rir da situação.
– Bem, Dean não tem poder pra me colocar atrás das grades.
– Ela tem mas não vai me colocar. Não depois de termos salvado a vida do filho dela.
– Que joga muito mal, inclusive.
– O garoto não é tão ruim.
– Eu que não sou. – Respondi. – O senhor quer um cachorro quente?
Ele fez que sim.
– Com tudo o que tiver direito, por favor.
– Sim, senhor.
– Você tem dinheiro?
Revirei os olhos e ri para ele. Desci a escadaria da arquibancada até a barraquinha próxima ao campo e fiz meu pedido. O senhor preparava nossos lanches enquanto eu dava uma olhada em volta. Embaixo da arquibancada, mal se podia ver um casal trocando carícias desnecessárias. Ri da situação, peguei os lanches e voltei para meu lugar. Meu tio tinha uma expressão diferente no rosto.
– O que houve? – Perguntei enquanto entregava o lanche dele e me sentava ao seu lado.
– Seu pai quebrou o braço.
– O quê?!
– Calma, ele disse que já foi no hospital e foi uma fratura leve, que o próprio corpo vai consertar.
– É culpa minha...
– Não diz isso pra ele, o filho da puta tá pulando de felicidade porque você não tava lá na hora.
Esperei até que meu coração começasse a se recuperar da notícia para puxar o celular do bolso e ligar para meu pai. Ele foi breve em dizer que estava bem e parecia ter frisado que, se não fosse por Dean, provavelmente teria sofrido ferimentos mais graves ou o pior, teria sido morto. Eu estava certa em desconfiar de Elizabeth e parte de mim comemorou receber essa notícia. Ele precisaria ficar com o gesso por um mês e então, provavelmente, tudo ficaria bem, o que significava necessariamente que eu precisaria voltar para casa a fim de ajudá-lo.
O time de Sioux Falls ganhou por dois a um e as crianças estavam comemorando demais para que a xerife pensasse em olhar para nós. Fiquei com pena por conta do meu tio. Ele, certamente, tinha experiência e uma certa resistência a esses sentimentos, mas ainda deveria ser ruim. De qualquer forma, nós compramos mais um cachorro quente e partimos para casa. Chegando lá, eu só queria parar de pensar na vida. Eu e meu tio sentamos para ver televisão, acompanhados de algumas garrafas de cerveja. De repente, uma luz acendeu sobre a minha cabeça.
– Tio, por que você e meu pai dão tanta importância pra família mas nunca falam sobre meus avós?
Ele arregalou os olhos.
– De onde veio isso, garota?
– Da minha mente. – Respondi. – Eu sempre pensei em perguntar isso, mas vocês nunca parecem estar de bom humor pra eu correr o risco.
– Você tomou cerveja demais.
– Não mais que o senhor, e não foge da minha pergunta.
– Que criança abusada. – Ele observou e, após sua fala, se levantou com uma ligeira dificuldade e caminhou até a cozinha.
Meu tio voltou com mais cervejas nas mãos.
– E então?
– E então que não tem o que contar. Logo depois de eu casar com sua tia Karen, seus avós ficaram irritados porque Karen não era católica.
– Sério isso? – Eu perguntei, quase rindo.
– Seríssimo. Eu, obviamente, não engoli. Seu pai também ficou muito puto, porque ele já conhecia sua mãe e, como você sabe, ela também não é católica. E aí seus avós praticamente nos chutaram do ninho e foram embora.
– Vocês nunca os procuraram?
– Eu tentei, mas era tarde demais.
Vi que o assunto chegou em um ponto desconfortável e me arrependi imediatamente de ter começado a conversa. Peguei mais uma cerveja e abri, dando um gole comprido.
– Não tem nada melhor passando na TV? – Perguntei.


Capítulo 20

Homens são um saco e toda mulher nasce com essa premissa fixa em seu sistema operacional. Já não bastasse a TPM, mulheres ainda tinham que lidar com o egocentrismo que parece ser essencial se você quiser nascer com um pinto entre as pernas. Mas, mesmo assim, mulheres vivem com homens desde sempre. Eu era um exemplar perfeito da mais retardada delas: ao invés de um, eu vivia com quatro. Bem, ultimamente eram três, já que eu e Dean aparentemente havíamos colocado um fim na nossa história – e eu não estava muito certa sobre meu grau de satisfação quanto a esse pequeno detalhe. Mas, de toda forma, homens ainda eram um saco.
O milésimo soco veio com tudo e acertou o meu espaço hipocondríaco. Sem paciência para planejar uma reação, eu simplesmente joguei meu corpo contra o filho da puta e ele entrou no cadeado. Sam surgiu com a faca suja.
– Demorou, hein! – Reclamei, ofegando e com as mãos no joelho.
– Peguei um resistente.
– Ah, jura? – Eu apontei para o cadeado e o demônio dentro dele. – Eu tenho um vivo e você...
– Não fazem ideia de com quem estão mexendo. – O homem rosnou.
Sam abriu o cantil preso em sua cintura e jogou meio litro de água benta nele. Nós sorrimos enquanto o homem gritava.
– Seu pai sabe que a caçulinha da turma tá achando que é gente?
– O caçulinha é ele. – Eu ironizei, apontando para Sam, então puxei uma cadeira que havia por perto e me sentei. – Pode começar, sou toda ouvidos.
Ele riu.
– O que a mocinha acha que vai conseguir com essa prepotência?
– Informações. Caso contrário, tem uma piscina de água benta lá nos fundos e eu realmente estou curiosa pra descobrir como vai ser se eu te jogar lá.
– Quem brinca com ameaças é criança.
– E quem brinca com facas é o quê? – Sam perguntou, deixando a mostra sua faca contra demônios.
– Ah, o rapaz fala!
– Só um pouco. – Ele respondeu. – Sabe como é, sou o caçulinha. Agora... Onde está Lilith?
O homem cuspiu na minha direção.
– Eu to achando que você quer brincar com a mangueira.
Sam sorriu e deu meia volta, nos deixando sozinhos.
– Vamos lá, amigo, eu to querendo te ajudar.
– Eu tenho todo tempo do mundo pra dizer, quantas vezes você precisar, que eu não tenho medo de uma menininha como você.
– Talvez eu tenha todo tempo do mundo pra ouvir também. Mas aí talvez eu tenha uma arma secreta.
Sam estava de volta, com a ponta de uma mangueira na mão. Ele torcia a porção final e a água meramente pingava em sua abertura.
– E aí, parceiro? Vai ser por bem ou por mal?
– Vai se foder.
Em menos de um segundo, ele estava sendo atingido por litros e mais litros de água benta. Seus gritos denunciavam que a dor era excruciante. O pior de tudo é que eu estava realmente me divertindo com aquilo. Sam, então, fechou novamente a saída de água.
– Já tá considerando colaborar? – Perguntei.
– Só fez cócegas.
Nós voltamos a jogar água benta nele mas, dessa vez, nenhum dos dois tinha a intenção de parar enquanto não fosse necessário. Infelizmente – ou não, as facetas daquele contexto eram várias –, nós ouvimos algo que não era um grito de dor. Assim que nossos cérebros processaram o som, Sam desligou a água.
– Como? Eu não escutei.
– Eu não sei onde ela tá.
– Repete. – Sam ordenou, a faca brincando na sua mão.
– Eu não sei! – O homem gritou, repetindo sua frase anterior. – Eu não sei onde Lilith está! Não me reporto a ela.
– Então você se reporta a quem? – Sam o ameaçou novamente com a mangueira.
– Um humano! É um humano, eu não sei. Ele que sempre me invoca.
– E qual a sua função nisso tudo?
– Somos marcados pra tirar a ordem de qualquer lugar a fim de atrair você e o Winchester mais velho.
– E qual o nome do humano?
– Se eu disser, vocês vão me matar.
– Dou minha palavra que não vamos. – Eu disse, séria.
O homem olhou para nós dois repetidas vezes, revezando entre eu e Sam.
– Shawn Coltry.
Eu estendi o braço para trás e Sam colocou a faca na minha mão. Os olhos do demônio se arregalaram.
– Você disse que não iam me matar.
Sorri e dei de ombros.
– Acontece que eu minto.
Tive o prazer de enfiar aquela faca no abdômen dele. Havia um anjinho no meu ombro dizendo que eu deveria me importar com o humano que se transformara na casca de um demônio, mas o diabinho do outro lado estava falando mais alto. Nós não nos importamos em limpar a bagunça daquela vez. A intenção era que as pessoas certas ficassem sabendo e que o recado fosse dado. Nós estávamos indo atrás de Lilith, mesmo que custasse nossa vida. A chacina que estava ficando para trás em cada lugar que o esquadrão de Lilith passava incomodava. Nós lutávamos contra aquilo. Silenciosamente, nós estávamos salvando tantas pessoas quanto possível. Mas ainda tinham várias carnificinas no nosso rastro.
Arrumamos as coisas no motel e partimos, imediatamente, para a próxima cidade. Deixei Sam dirigir enquanto eu descansava um pouco. Fizemos uma pausa na viagem para encher o tanque do carro e eu assisti ele se afastar para trás da loja de conveniência. Nem precisei me esforçar para saber o que ele estava fazendo. Coloquei a gasolina até a boca e entrei na loja para pagar. Próximo ao caixa, havia uma estante com barras de chocolates variadas. Peguei duas e coloquei sobre a bancada. Na televisão, o jornal tratava do desaparecimento de uma das cascas que Sam havia encarado.
– São vinte e cinco dólares.
Eu coloquei o cartão de crédito de sabe lá quem na máquina enquanto mantinha minha atenção fixa na tela. Tomei um susto quando senti uma mão no meu ombro. Sam deu um sorriso amarelo.
– Ela é afetada demais. – Brincou com o atendente, quase me empurrando na direção do carro.
Eu caí em mim assim que saímos da loja.
– Desculpa, acho que deu erro na matrix.
– Matrix?!
– Nada. – Respondi. – E Dean?
– Achei que era assunto proibido.
Dei a volta no carro e abri a porta do motorista, olhando para ele por cima do teto do carro. Entramos no carro e partimos sem demorar.
– Estamos trabalhando na mesma coisa, até onde sei, então é inevitável.
Sam engoliu em seco.
– Então não vamos falar sobre como ele tá se sentindo?
Isso é assunto proibido.
– Ah sim. Ok então, vamos falar sobre trabalho.
– Ótimo.
– Dean atirou pra perguntar depois.
Eu revirei os olhos.
– É a cara dele. Então agora temos Shawn Coltry?
– Sim. – Ele respondeu, puxando a mochila que estava no banco de trás. – Vou ver se consigo alguma informação inicial.
Sam começou a abrir o notebook enquanto eu mantinha meus olhos na estrada. Avançamos noite adentro no asfalto. Descobrimos que Shawn era filho de um professor de ocultismo da UCLA e começamos a considerar dirigir para lá, só que eu estava exausta e Sam não estava muito melhor que eu. Demorou, mas finalmente encontramos um motel na beira da estrada. A placa de “vagas” estava acesa. Nós estacionamos em frente ao que provavelmente era a recepção. Um senhor estava atrás da bancada. Deixei que Sam tomasse a frente.
– Boa noite. – Sam cumprimentou o homem. – Dois quartos, por favor.
– Filho, sinto informar que só temos um pra noite.
Sam coçou a cabeça.
– Onde é o lugar mais próximo pra gente se hospedar por aqui?
– Seguindo na direção oeste, mais uma hora, no máximo.
Ele olhou para trás, para mim. Eu dei de ombros.
– Nós vamos ficar com ele. – Afirmei.
Sam chegou mais perto de mim.
– Tem certeza?
– Não tenho saco pra mais uma hora dentro do carro. Você tem?
Ele ponderou por alguns segundos e se virou para fechar com o senhor. Fui pegar as coisas no carro enquanto Sam acertava tudo. Quando abrimos a porta, era uma cama só. Sam se virou para mim, com um olhar de “eu te avisei”, mas eu estava cansada demais pra pensar. Tiramos no pedra-papel-tesoura quem tomava banho primeiro e eu ganhei. Eu amava um bom banho, mas amava mais ainda um bom colchão. Quando saí do banheiro, Sam estava ajeitando uma porção de travesseiros no chão.
– O que você tá fazendo?
– Ajeitando as coisas pra eu dormir.
– Pelo amor de Deus, Sam, a cama tem espaço pra nós dois.
, eu não vou...
Por conta própria, me abaixei e comecei a jogar os travesseiros de volta para o colchão. Sam continuou protestando, mas eu o mandei para o banheiro antes que ele tivesse uma chance de voltar a fazer o que estava fazendo. Eu deitei logo e tive que me esforçar para não dormir antes que Sam voltasse. Ele claramente estava esperando que eu dormisse, sua expressão facial denunciou.
– É melhor você deitar logo e, se ameaçar sair durante a noite, você vai criar um puta problema comigo, senhor Winchester.
– Isso foi uma ameaça, senhorita Singer?
– Pode ser que tenha sido, então...
Sam riu.
– Eu posso pelo menos dormir com a cabeça numa posição contrária à sua? Faria com que eu me sentisse menos desrespeitoso.
– Você não tá me desrespeitando, Sam.
– Ah, qual é, nós não somos mais crianças.
– Nunca fomos. – Respondi enquanto ele colocava um travesseiro do lado oposto da cama.
– Eu preciso perguntar... – E Sam deitou. – Como você ficaria com Dean numa situação dessas?
– Achei que deixei claro que isso era assunto proibido.
– E eu achei que era proibido falar sobre os sentimentos dele, não os seus.
– To fazendo uma adição ao acordo então.
– Mas eu não concordei com essa parte antes de entrar nessa, então eu posso questionar. – Sam disse e se sentou na cama. – Não é possível que, depois disso tudo, você esteja tão bem quanto aparenta estar.
– Por quê não?!
– Porque eu vi o que você sentia por ele. Eu vi como você ficou na merda.
– Sam, por favor, corta o assunto.
– Não, . – Ele disse, muito mais firme do que costumava falar. – Não é sobre o Dean, é sobre você. Sou seu amigo, não um estranho. Eu sei bem que você não pode conversar com outra pessoa a respeito disso e eu sei que esse tipo de coisa acaba com você. Pode mentir pra si mesma, mas não pode mentir pra mim.
– Você devia ter dormido no chão. – Resmunguei.
, é sério isso?
– É, Sam.
Eu bufei e joguei minha cabeça contra o travesseiro.
– Eu ainda amo seu irmão, Sam, se você quer saber, mas esse sentimento tá indo embora, graças a Deus, e eu to ótima longe dele. Melhor do que jamais estive.
– Tem certeza, ?
– Por favor, me dá um voto de confiança.
Ele ainda me olhou por um tempo até finalmente voltar a se deitar. Eu virei para o lado mas, por mais que estivesse morrendo de cansaço, demorei muito até perder a consciência. Quando acordei, no dia seguinte, parecia que tinha tomado um porre. Olhei no relógio, passava das três da tarde. Ao tomar ciência do horário, praticamente dei um pulo da cama. Estava sozinha no carro e, lá fora nem sinal de Sam – e nem do meu carro, eu ia matar aquele filho da puta. Busquei meu celular imediatamente e disquei o número dele.
– Cadê meu carro, Sam?
– Bom dia, bela adormecida. To chegando daqui a uns minutos.
– A gente tá no meio do nada. Onde você foi?
– Buscar sinal. Shawn Coltry foi dado como desaparecido na última noite e Dean já tá indo checar.
– Que bom ouvir esse nome assim que eu acordo. – Resmunguei.
– Você que pediu.
– Ele me chamou pra ir junto e eu pensei que você talvez pudesse disfarçar as coisas se passasse um tempo com seu pai.
O cansaço ainda estava cravado na gente, mas tínhamos serviço. Pagamos a comida, deixamos uma gorjeta e fomos para a estrada. Discutimos ardentemente sobre o que fazer quanto a Shawn Coltry mas não chegamos a lugar nenhum. De qualquer forma, eu precisava encontrar meu pai e Sam precisava encontrar Dean. Nós sentíamos que éramos como uma família, mas não éramos de fato uma. Foi então que decidimos tirar férias de nós mesmos – nem que fosse por uma semana. Então eu deixei Sam na rodoviária e parti para o Kansas.


Capítulo 21

Dias como aqueles eram memoráveis. Eu não costumava pegar nenhum caso sozinha, mas estava disposta a tomar umas porradas. Até porque, aparentemente, aquilo era tudo o que eu iria conseguir. Afinal de contas, ir atrás de um kitsune sozinha era ideia de gente maluca. Tomei muita porrada – muita porrada mesmo –, mas consegui finalizar o que tinha ido fazer em Utah. Voltei para o motel onde estava hospedada e tentei disfarçar o máximo possível que estava arrebentada. Coloquei um casaco de moletom e um capuz por cima da minha cabeça.
Eu devia estar de TPM. Meu corpo inteiro estava mais sensível, minha mente também. Eu deitei na cama e tentei relaxar meus músculos, mas tudo só doía mais. Meu telefone tocou e eu fiz o mínimo de esforço para atendê-lo, colocando a ligação no viva voz.
– Oi, pai. – Resmunguei.
– Não é seu pai.
Desliguei assim que reconheci a voz. Não era a primeira vez que Dean tentava entrar em contato comigo. Agora que eu estava longe de Sam, era pior. Sam dizia sempre que o irmão queria me mandar recados, mas respeitava quando eu dizia que não queria escutar – bem, respeitava quase sempre, talvez o mínimo para que eu não batesse nele. Sam tinha ido ajudar meu tio com um caso na Dakota do Norte e Dean ainda estava com meu pai, na trilha de Lilith. Aparentemente, nenhum dos dois tinha apanhado. Também não sabiam que eu estava completamente fodida, Deus me livre meu pai descobrir que eu tinha apanhado além do necessário, então não podia ficar puta também. Eu tomei um calmante e um relaxante muscular. O telefone tocou de novo, eu atendi sem dizer nada.
?! – Meu pai chamou.
– O que foi? – Gemi.
– Você tá bem?
– Eu conto quando voltar pra casa.
– Dean tentou ligar agora a pouco mas ele disse que a ligação caiu. Vou passar pra ele.
Ele estava usando meu pai para chegar até mim e aquilo só me fez ficar mais puta ainda. Eu não podia desligar, meu pai certamente estava curioso sobre o que estava rolando e havia a possibilidade dele conferir a duração da chamada depois de tudo.
– Ei, por favor, não desliga, vou me afastar do seu pai. – Ele sussurrou.
Segui sem responder e o silêncio durou cerca de um minuto.
– Eu quero te ver, , é sério. Se você sente o que diz sentir por mim, por favor, para de fugir. Eu sei que você pediu pra eu deixar pra lá mas, me desculpa, eu não consigo ficar quieto a respeito disso. Quero voltar ao que era antes.
Revirei os olhos.
– Diz alguma coisa. – Ele reclamou quando eu não respondi.
A memória ainda estava vívida na minha mente. Havia chegado até aquele caso por conta de um contato dos irmãos e acabei descobrindo, da pior forma possível, que era uma dos números que haviam passado na mão dele. Mais do que nunca, eu estava cheia de raiva de Dean. O pior é que aquela raiva não conseguia afetar meu sentimento. Só de imaginar encontrar Dean, meu coração já derretia todo. Eu ainda estava sob efeito da proximidade no nosso último encontro e ele não fazia ideia.
– Não vou ser mais um número. – Murmurei, não me importando se ele iria ouvir ou não.
, o que eu preciso fazer pra te convencer de que você não é e nunca vai ser mais um número pra mim?
– Sei lá, Dean, volta no passado e muda o que aconteceu.
– Você sabe que não dá.
– Então descobre outro jeito que seja igualmente bom que aí, talvez, eu considere uma conversa cara a cara. Enquanto isso não acontecer, pode tirando seu cavalinho da chuva.
– Mas ...
– Por favor, não insista. Já falei mais do que pretendia. Vou desligar e não vou mais falar contigo.
Não hesitei e cumpri com a minha promessa. Fiquei na cidade por mais dois dias para encobrir alguns rastros com toda a paciência do mundo. Comecei a pensar em voltar para Lincoln antes mesmo de terminar o que estava fazendo. Peguei a estrada para o sul pela manhã e andei até meio dia. Parei em um restaurante amigável, com decoração dos anos 80, para almoçar. Fiz o pedido e me sentei no meio do lugar. Alguns minutos depois, meu telefone vibrando me tirou do devaneio.
– O que foi, Sam?
– Você sabe de alguma informação sobre um tipo de criatura que dê choque?
– O quê?!
– Pode ser que eu esteja com o cabelo torrado.
– Meu Deus, Sam, você tá bem?
Uma menina deixou meu prato em cima da mesa e foi atender ao casal que havia acabado de se sentar à minha mente.
– Dentro do possível, sim, mas nós ainda temos que descobrir como matar essa coisa.
– Dean tá com você?
– Seu pai teve que ir resolver algumas coisas na fazenda, até onde eu sei, e Dean foi passear por aí sem avisar ninguém. Eu e seu tio estamos em campo.
– Por que você não me disse nada?
– Eu achei que você já soubesse.
Mexi na comida com o garfo e não sabia exatamente o quanto estava disposta a comer.
– Meu tio tá bem? – Perguntei.
– Ele falou que só precisa de um tempo pra se recuperar.
Bufei.
– Se eu souber de alguma coisa, aviso vocês.
Desliguei o celular e cortei um pedaço de frango para colocar a boca. A mesma menina que me serviu se virou para mim.
– Desculpa te incomodar, é que eu não pude evitar ouvir você falando ao telefone. Você estava na linha com Sam Winchester?
Eu arregalei os olhos e não respondi nada.
– É que você falou no nome dele e do irmão. O Dean me passou um número, mas eu nunca consegui falar com ele. Eu devo uma ao cara, sabe...
Ela fez cara de quem estava falando explicitamente sobre sacanagem, mordendo os lábios e ameaçando me cutucar. Meus ombros murcharam e eu perdi a fome no mesmo instante. A vontade que tive foi a mesma de sempre que eu encontrava qualquer uma das piranhas que haviam cruzado o caminho dele: enfiar a mão naquelas carinhas de putas. Respirei fundo, me contive e tentei fazer a melhor postura possível.
– Acho que você pode estar confundindo. Não são irmãos. Sam é uma mulher, minha prima, e Dean é o cachorro dela. – Menti descaradamente.
Esperei até que fosse possível escapar sem levantar suspeita. Mal toquei na comida. Deixei dinheiro suficiente em cima da mesa e parti, sem saber exatamente para onde estava indo. O cansaço que desse um tempo, eu não tinha saco para ficar por ali. Eu queria socar a cara dela até desfigurá-la, mas queria mais ainda fazer isso com Dean. Era um saco como eu não conseguia me livrar dele. Estava enraizado em mim e me fazendo mal. Eu nunca quis ser o tipo sentimental, muito menos naquele nível. As luzes piscando ao longe talvez fossem uma boa solução.
Eu entrei no bar sem saber exatamente o que tinha ido procurar. O lugar era um tanto mais ‘salubre’ do que os bares que eu costumava encontrar pelo caminho. As banquetas em volta do balcão principal eram em forma de sela e eu achei uma graça. Fui me aproximando, ainda de olho nas duas mesas de sinuca que talvez me proporcionassem a descontração que eu queria. Com jeito, me sentei e fiz sinal para a menina que servia um casal quando cheguei. Enquanto eu a esperava, uma banda começava a ajeitar os equipamentos em um pequeno palco do outro lado do bar.
– Boa noite, bem-vinda ao Raul’s. Qual seu pedido?
– Por enquanto, só uma cerveja, por favor.
A primeira música foi Patience, do Guns. Eles tinham habilidade, era inegável, mas eu era melhor ainda em entornar uma garrafa. Pedi mais uma e puxei o celular do bolso. Havia uma chamada perdida de Sam, mas eu decidi não retornar. Pelo amor de Deus, fazer frente para ele estava me custando mais do que se eu simplesmente jogasse a toalha. Da terceira cerveja, eu pulei para uma dose de uísque e decidi chutar o balde. Que eu saísse dali carregada, não importava. Eu desci do banco e caminhei até a mesa de sinuca.
– Entro na próxima. – Disse.
Um homem alto me olhou de cima a baixo.
– Aqui é pra valer, boneca.
Eu coloquei uma nota de cinquenta dólares na lateral da mesa.
– Não sou boneca porra nenhuma. ¬– Rosnei.
De qualquer forma, o homem e seu parceiro acreditaram na minha palavra e me levaram a sério. Mais uma dose de uísque e várias cervejas depois, eles ainda estavam surpresos de eu ter conseguido arrancar tanto dinheiro deles. Era uma descontração, certamente, mas a cabeça ainda estava pesada por causa das músicas melosas que a banda da noite insistia em tocar. Que saco. Assim que uma das partidas acabou, eu encostei o taco que estava usando no suporte da parede.
– Desistiu? – Luke, quem mexeu comigo à princípio, provocou.
Eu apontei com o dedão para o banheiro.
– Necessidades fisiológicas.
– Esperamos você?
– Não, eu entro de novo quando der.
Os dois assentiram e começaram a ajeitar um novo jogo enquanto eu me afastava. A fila estava enorme. Eu possivelmente desistiria se não tivesse com a bexiga começando a dor de tão apertada. O telefone tocou novamente, era meu pai. Mesmo assim, decidi não atender. Quando a ligação finalmente caiu, uma mensagem de texto que Sam havia deixado se tornou evidente.

“O que houve que você não tá atendendo ninguém??? Dean sumiu, me liga!”


Ele que achasse o irmão. Saí do banheiro e voltei ao balcão. Senti que estava sendo observada, mas estava decidida a não arrumar confusão com nenhum outro babaca naquela noite. Pedi mais uma cerveja e voltei para a mesa de sinuca. No microfone, alguém limpou a garganta.
– Boa noite, galera.
Meu coração gelou quando eu reconheci a voz e meus olhos ficaram gigantes. Eu estava bebendo a noite inteira, mas a minha garganta estava completamente seca. Fiquei imóvel.
– Antes de mais nada, eu gostaria de dizer que to completamente sóbrio e que to sendo obrigado a fazer isso pra ter uma conversa com uma garota então, por favor, vai ser ruim mas não precisam vaiar muito.
Dean fez sinal para a banda. Eu conhecia os primeiros acordes, é claro, não tinha como não conhecer. Ele cantava bem, ou eram os meus ouvidos sob efeito de seja lá o que fosse. Já havia escutado Dean cantar por todos os cantos do país e eu gostava. A letra de I’ll be there for you era jogo baixo, principalmente comigo. O filho da puta sabia que ele havia me ensinado a gostar de Bon Jovi e que aquilo sempre iria significar alguma coisa.
– Você é a garota? – Luke perguntou.
Eu ouvi mas não conseguia responder, estava prestando muita atenção naquele momento. A música acabou e as pessoas que estavam no recinto aplaudiram. Permaneci parcialmente em transe enquanto Dean trocava algumas palavras com o vocalista da banda. Ele desceu do palco, olhando diretamente para mim. Meu subconsciente queria que eu saísse correndo, mas minhas pernas travaram. Quando eu achei que tinha força o suficiente para me mover, já era tarde demais. Meu rosto estava queimando e meu coração estava completamente fora do ritmo, me deixando sem ar.
– Finalmente...
– Você não deveria ter vindo até aqui.
Ele me esticou a mão.
– Mas eu vim e não vou embora. Paguei cinquenta dólares pro cara da banda tocar, então me concede essa dança?
Dean me tomou à força pela mão, me abraçando pela cintura. Era a nossa música. Até então, eu nem sabia que nós tínhamos uma música, mas Dean lembrava daquela noite na minha casa. Desde aquele momento, toda vez em que eu escutava Bed of Roses, eu ainda conseguia sentia o cheiro da lasanha sendo preparada. Se eu me esforçasse muito, ainda era possível sentir Dean me abraçando. Mas ele estava ali, ele estava me abraçando, ele lembrava de ter dançado aquela música comigo, e isso tudo estava fazendo com que cada terminação nervosa do meu corpo entrasse em estado de alerta.
– Podemos conversar agora? – Ele perguntou.
– O que você quer falar que ainda precise ser dito?
– Primeiramente, que você não é um número pra mim.
Eu forcei uma risada.
– Fala isso pra porrada de mulher em quem eu já vi você passar o olho. Ou melhor! Pras duas com quem eu cruzei caminho na última semana, cujos comentários sórdidos eu fui obrigada a escutar.
– Me desculpa por isso, . Mas não adianta de nada, você é cabeça dura e não acredita em mim de jeito nenhum!
– Deve ser porque eu te conheço.
– E isso quer dizer que eu não posso mudar?
– Não sei, Dean, me diz você.
Ele revirou os olhos e riu de nervoso.
– Você mandou eu descobrir um jeito de te convencer de que você não é só mais um número.
– Acha que é só botar Bon Jovi pra tocar e pronto? Voltamos a ser como antes e fingimos que tudo isso nunca aconteceu?
– Em primeiro lugar, Bon Jovi é muito bom, mas não é só isso. E em segundo lugar, – Ele disse, brincando com uma mecha de cabelo minha que estava perdida do resto, na lateral do meu rosto. – não quero voltar a ser como antes.
E então Dean se aproximou, segurou meu rosto em suas mãos e me beijou.


Capítulo 22

Eu podia sentir que já estava acordando lentamente havia um tempo. Não queria abrir os olhos, não queria que aquele sonho acabasse. Era uma merda pensar que cada pedacinho do meu mundo iria despencar no momento em que eu visse a manhã chegando. Mas então eu estava sentindo um braço sobre meu tronco. Conhecia bem aquelas mãos, embora nunca as tivesse tocado intimamente. Eu sorri, incrédula ainda. Fui me rastejando lentamente, procurando sair daquele abraço sem acordá-lo. Queria olhar para ele e ver com meus próprios olhos o rosto de Dean Winchester, dormindo ao meu lado. Infelizmente – ou talvez não –, eu me mexi demais e acabei fazendo com que Dean chegasse mais perto ainda de mim, inspirando forte o ar entre meus fios de cabelo. Ele resmungou alguma coisa e voltou a dormir.
Assim que ele começou a roncar de novo, eu consegui me desvencilhar e fugir para o banheiro. Estava doida para fazer xixi desde o segundo que acordei. De início, era só isso, mas o chuveiro me pareceu realmente convidativo e eu comecei a tirar minhas roupas. O inverno estava ameaçando chegar, mas as temperaturas baixas vieram na frente. Não havia nada mais perfeito para aquele momento do que uma água fervendo na minha pele. Alonguei meu corpo inteiro e tirei o máximo de impurezas possível que haviam se acumulado por conta do longo tempo na estrada. Quando fechei o registro, descobri a merda que eu tinha feito.
Com as mãos, tentei tirar o máximo de excesso de água do meu corpo. Torci o cabelo até onde aguentei e saí do boxe. Estava frio demais do lado de fora. Fui me esgueirando até a porta do banheiro e a destranquei. Coloquei a cara para fora e Dean ainda estava completamente adormecido. Eu praticamente corri até onde as toalhas estavam, ainda intactas, e corri de volta para a proteção do banheiro. O ambiente lá dentro estava menos pior quanto à temperatura, pois o vapor do chuveiro havia ajudado a esquentar o cômodo. Enquanto eu secava meus braços, batidas fortes na porta me assustaram.
, você tá aí? – A voz de Dean, abafada pelas paredes, ecoou.
– To. – Gritei de volta. – Me dá um segundo.
Terminei de me secar e coloquei uma roupa limpa, do tipo mais confortável possível. Abri a porta e encontrei Dean sentado na ponta da cama, ofegando.
– O que houve?
– Achei que você tinha ido embora.
– Por que eu iria?
Ele passou as mãos no cabelo e finalmente olhou para mim.
– Não sei, , me desculpa.
Sentei ao seu lado.
– E agora? – Questionei.
– E agora nós paramos com esses casos paralelos, entregamos eles a outros caçadores e vamos atrás da Lilith.
– Sei que isso é importante, mas estava falando de nós dois exclusivamente.
– Ah... Isso...
Ele deixou a frase no ar enquanto eu o encarava, rindo.
– Dean Winchester não tem nenhuma piadinha pra fazer?
Eu me levantei para ir até o frigobar, mas Dean se levantou junto, me puxou pelo braço e me beijou. De primeira, eu tomei um susto. Meu cérebro quase quis protestar e então ele garantiu que nossos corpos permanecessem próximos com um abraço pela cintura. Quando ele separou seus lábios dos meus, os dois sem fôlego, Dean encostou nossas testas. Ouvir sua respiração ofegante estava me deixando tensa.
– Eu não sei, . Fiquei louco quando você sumiu. Nunca senti aquilo antes na minha vida. E, cada vez que eu pensava em outra mulher, eu só conseguia imaginar tudo o que te fiz sentir durante esses anos todos.
– Esquece isso... – Murmurei.
– Não quero esquecer. Eu não sei o que aconteceu nesses meses, , mas tem alguma coisa em mim que quer que dê certo.
Levantei sua cabeça até que seu olhar se fixasse no meu. Quando isso aconteceu, eu simplesmente esqueci o que ia dizer. Dean, delicadamente, voltou a se aproximar. Senti seus lábios roçando nos meus e fomos surpreendidos pelo toque do seu celular. Ele olhou para mim, revirou os olhos e fez cara de insatisfeito. Dean estava de volta.
– É melhor que alguém tenha morrido. – Ele atendeu.
Voltei meu caminho para o frigobar. Enchi um copo de água e, quando me virei de volta para ele, sua expressão não era a melhor. Deixei a água para depois enquanto o observava escutar quem quer que estivesse do outro lado da linha.
– Tá ok, eu to com ela. – Dean respondeu.
Meu telefone tocou e era meu pai. Com Dean, na linha, provavelmente era Sam. Tinha acontecido alguma coisa enquanto estávamos na nossa ‘bolha’. Ainda estava presa à sua reação e não conseguia atender meu próprio celular.
– Nós vamos praí agora.
Quando ele desligou, só olhou para mim, preocupado.
– Arruma suas coisas.
– O que houve?
– Harold sumiu.
Partimos dali à toda. Dean raramente entrava no meu carro sem falar uma gracinha sobre como o Impala era melhor que o Charger em mil aspectos, mas não havia espaço para piadas naquele instante. Não paramos. Quando um cansava, o outro assumia o volante. Talvez eu nunca tivesse corrido tanto com o carro. Havia algumas viaturas espalhadas pela entrada da nossa propriedade. Dean levantou o vidro quase preto do meu carro e ficou imóvel no banco. Um policial, na varanda de casa, olhou para o carro e depois se virou para meu pai. Eu estacionei de tal forma que o lado onde Dean estava ficou o menos visível possível. Estava bem óbvio que minha postura firme foi estranhada à princípio.
– Desculpa a demora, pai.
Ele me puxou para um abraço imediatamente.
– O que já se sabe até agora?
– Se é de fato um desaparecimento de cunho criminal, – O oficial com meu pai me respondeu. – quem quer que tenha feito isso é extremamente talentoso.
Se é?
, querida, acho melhor você ir até seu quarto se acalmar um pouco.
O tom na voz do meu pai queria dizer alguma coisa. Eu olhei de volta para o oficial, bufando, e entrei em casa. A porta do quarto estava aberta e Sam estava sentado na beira da cama.
– Finalmente! – Ele sussurrou, se levantando. – Cadê o Dean?
– No meu carro, esperando uma hora melhor pra sair. Por que diabos vocês chamaram a polícia?
– Seu pai acha que eles podem ter acesso a tecnologias que não temos e, assim, descobrir uma possível explicação pra tudo isso.
– Ele já montou alguma história?
– Disse que você estava indo visitar sua mãe de surpresa e voltou antes de chegar lá porque ficou sabendo do que aconteceu.
– Isso vai dar uma merda...
– O quê?!
– Polícia, Sammy, polícia.
– Seu pai sabe o que tá fazendo.
– Será que sabe mesmo? – Questionei.
Um pé surgiu por baixo da cortina que tampava minha janela. Eu tomei um susto, mas logo reconheci os sapatos. Dean entrou ofegando.
– Isso vai dar merda. – Ele reclamou.
– Eu disse pro seu irmão, mas parece que ele não quer me escutar.
– Espera aí! Vocês dois estão juntos. – Sam afirmou.
Dean limpou as mãos nas laterais da calça e olhou para mim, que desviei o olhar imediatamente.
– O quê?!
– Vocês dois. – Ele apontou. – Juntos. não tá com cara de derrotada e nem tá bufando de raiva de você. Então vocês estão juntos.
Nós trocamos um breve olhar. Um pedaço daquele sorriso sacana dele invadiu seu rosto.
– Ainda estamos definindo qual a palavra melhor pra isso.
– Abe já sabe?
– Não. – Eu e Dean formamos um uníssono.
– E nem vai ser por você que ele vai ficar sabendo. – Acrescentei.
Sam levantou as mãos, como se estivesse em rendição. O filho da mãe estava rindo. Como acontecia frequentemente, a descontração cedeu lugar à tensão em fração de segundos. Próximos à janela do quarto, a voz de pessoas desconhecidas se tornou mais audível do que deveria. De repente, um silêncio. Éramos nós tentando ouvir o que eles estavam dizendo e eles tentando ouvir o que estava acontecendo dentro do quarto. Fiz sinal de silêncio para os dois e apontei para a porta do banheiro da minha suíte. Com passos curtos e leves, rezando para que a madeira não estalasse, peguei o controle da televisão e liguei, aumentando o volume de forma que não ficasse nem muito baixo nem tão alto que parecesse estranho. Além do som da TV, não havia nenhum outro. Eu entrei no banheiro então e fechei a porta imediatamente. Sob o olhar curioso dos irmãos, eu liguei o chuveiro.
– Onde meu tio tá? – Perguntei a Sam.
– Na estrada, com Rufus. Seu pai vai se juntar a eles em breve, assim que resolver tudo com a polícia.
– Por que mesmo que ele chamou a polícia? – Dean questionou.
– É bom você nem escutar a justificativa. – O irmão respondeu. – O que fazemos agora?
Eu olhei para os dois. O espaço não era minúsculo, mas estava suficientemente desconfortável. O vapor da água, eventualmente, ia deixar o banheiro quente demais para nós três. Duas batidas na porta nos tiraram do silêncio sepulcral.
, eu vou até a delegacia encontrar com o xerife pra resolver algumas questões burocráticas e volto assim que possível. – Meu pai gritou.
– Tá ok, pai. – Gritei de volta.
Prestei bastante atenção, procurando ouvir os carros se afastando. Fui a primeira a sair do banheiro, confirmando se estávamos sozinhos na casa. Enquanto o tempo passava, nós arrumamos os quartos onde os irmãos costumavam ficar e comemos macarrão instantâneo. Dean e Sam fizeram o trabalho de Harold, confirmando se as principais armadilhas em volta da casa estavam intactas. Eu fiz sopa para a janta, mesmo com todos os homens da casa protestando.
Já era tarde quando nós decidimos nos render ao cansaço. As teorias eram várias, mas nada encaixava por completo no desaparecimento de Harold. Precisávamos pensar e, àquela altura, dormir era essencial. Eu entrei no meu quarto e enrolei no banho até não poder mais. Quando saí do banheiro, Dean estava sentado no peitoril da janela. Eu tomei um susto, tentei me cobrir o máximo possível com a toalha e ele riu.
– Que menina assustada.
– O que você tá fazendo aqui?
– Vim te ver.
– Dean, o meu pai tá no quarto ao lado.
– Eu sei. – Ele disse, começando a andar na minha direção. – Sei que não falamos sobre isso ainda e tá tudo bem quanto a isso, mas eu queria te ver antes de tentar dormir.
Ele acariciou minha bochecha com seus dedos, me fazendo inevitavelmente sorrir.
– Dean, sonhei com isso por tanto tempo mas, com tudo o que tá acontecendo, não me parece certo priorizar isso agora.
– Também sei disso. – Ele disse e beijou minha testa. – Acho melhor eu ir embora então.
– Eu quero que você fique. – Resmunguei. – Só deixa eu me vestir antes.
Dean me deu uma boa olhada de cima a baixo e olhou de volta para meus olhos, sacana como sempre. Eu fiz sinal para que ele se virasse enquanto buscava por um confortável pijama em uma das minhas gavetas. Voltei para o banheiro afim de colocar a roupa e, na volta, encontrei ele concentrado em mexer nos livros que eu tinha em cima da minha bancada.
– A Sombra do Vento?
– O melhor livro do mundo. – Respondi e me sentei na cama.
– Sobre o que se trata?
– Um mistério incrível envolvendo um rapaz que descobre coisas absurdas em uma mansão abandonada. Tem um pouco de sobrenatural também, mas não sei ao certo se o autor realmente quis colocar como coisas de outro mundo ou se era apenas pra criar um clima de mistério.
– Você podia trabalhar fazendo resenha de livros.
– Podia, mas não trabalho.
Ele riu e devolveu o livro para o lugar.
– Até hoje, você não me disse o motivo de ter demorado tanto pra dizer alguma coisa sobre o que você sentia por mim.
– Temos mesmo que ter essa conversa?
– Temos. – Ele afirmou.
Levantei da cama e parei de frente para ele.
– A gente não pode simplesmente repetir o beijo de duas manhãs atrás?
Dean sorriu para mim.
– Uma oferta tentadora, eu diria, mas acho que vou permanecer com a minha ideia de termos essa conversa.
– É uma pena então, porque eu não to tentada a negociar. Ou você me beija ou eu te acompanho até seu quarto.
Ele riu mais ainda e me puxou para seus braços. Dean me beijou suavamente enquanto me segurava pela cintura. Eu desci minhas mãos dos seus ombros até suas mãos e me aninhei em seu peito.
– Não sabe o quanto eu quis isso. – Sussurrei contra a blusa que ele estava usando.
– Me desculpa não ter visto antes. – Ele respondeu. – Eu fui...
Fomos interrompidos pela luz forte de faróis iluminando o cômodo inteiro. Nós nos olhamos, ele com a sobrancelha arqueada. Espiei pelo canto da janela, era meu tio. Saímos para o corredor ao mesmo tempo que Sam e meu pai. Os aventureiros pareciam cansados ao chegarem ali. Meu tio desligou o carro, abriu a porta e olhou, principalmente, para mim e Dean. Em silêncio, ele deu a volta no carro e, da mala, tirou o corpo amarrado de Harold. Ele não estava morto, mas talvez fosse melhor que estivesse. Seus olhos estavam completamente vermelhos.


Capítulo 23

Dean levou longos minutos, que pareceram horas, convencendo meu pai a deixar aquilo nas nossas mãos. Sim, por ‘nossas’, eu queria dizer minhas e de Dean. Abraham Singer não era bobo, ele sentia cheiro de problema, não importa o quão longe o problema estivesse. Do meu ponto de vista, eu e Dean termos alguma coisa era um puta problema para o meu pai. Os estereótipos de pais recebendo os primeiros namorados de suas filhas não eram exatamente favoráveis. Naquele instante, eu me colocava na posição do meu pai: sua única menina e um cara que colocava a garota dos seus olhos na frente da linha de tiro. Meu Deus, meu pai mataria Dean quando descobrisse. Depois, provavelmente iria querer me matar também. Mas tudo isso não me impediu de aguardar, paciente, que Dean viesse se juntar a mim na varanda da casa do próprio Harold. Eu me sentei em um banco e Dean logo puxou o seu.
– E então? Por onde devemos começar? – Perguntei.
O que um dia havia sido Harold pigarreou.
– Quer dizer que você virou a putinha do Winchester e só faz o que ele manda?
Dean rosnou, avançando na direção dele. Imediatamente, coloquei meu braço no caminho para impedí-lo de prosseguir.
– Quer dizer que gostamos de nos organizar pra dividir o crédito quando fodemos com um filho da puta igual a você.
– É Set, o nome.
– Foda-se. – Dean cuspiu. – O que você quer?
– O engraçado é que vocês pensam que as coisas são fáceis.
– Só é mais engraçado do que quando a sua raça acha que vai escapar e acaba voltando pro poço imundo de onde vocês vieram e de onde nunca deveriam ter saído.
– Blá blá blá, já acabou?
Ele se levantou e, com o galão de água benta em mãos, andou até a margem da chave de Salomão, imediatamente jogando o líquido sobre a cabeça de ‘Harold’. De certa forma, doía em mim ver aquela cena.
– Ok, ok, ok. Eu falo.
Dean sorriu.
– Ótimo, pode começar falando sobre o motivo pelo qual você escolheu o Harold.
– Foi por acaso, eu não escolhi especificamente. Quando vi, já tinha acontecido. Mas, aparentemente, é um corpo com grande utilidade, já que me coloca em contato direto com os Singer e os Winchester.
– Use nomes. – Ordenei.
– Lilith tá feliz com isso e quer que eu seja o informante dela.
– Foi por isso que você desapareceu?
– Pode ter sido. Aqueles dois filhos da puta me pegaram no caminho de volta pra cá.
– Desde quando? – Perguntei.
– Desde quando o quê, docinho?
Dean cravou a faca na coxa dele.
– Ouse falar assim com ela mais uma vez – Ele rosnou. – e eu vou garantir pessoalmente que sejam suas últimas palavras.
O demônio riu para nós dois.
– Quer dizer que tá dando certo?
Eu olhei para Dean imediatamente, que girou a faca no seu lugar antes de removê-la do corpo de Harold. Nós seguimos em direção à minha casa em silêncio, até que eu tropecei no escuro e Dean me salvou de cair de cara na grama.
– Ele tá mentindo. – Ele disse, olhando dentro dos meus olhos.
– Sei disso. Foi rápido demais, sem nenhuma resistência.
– Então qual a intenção dele em nos fazer acreditar nessa história?
– Nos distrair? – Sugeri, questionando minhas próprias palavras, quando uma luz acendeu na minha cabeça. – Foi sobre isso que Bela tentou me alertar.
– Bela?!
– Bela Talbot.
– Ela não tava morta?
Revirei os olhos e olhei de volta para a casa de Harold.
– Obviamente, ela foi pro inferno e voltou.
– O que ela te disse?
– Não muito, eu mandei ela de volta.
Dean olhou para mim, sério.
– Por quê?
– Porque ela era um demônio, Dean. Não tínhamos motivo pra confiar nela antes, quem dirá como um demônio.
– E quem te garante que ela não veio como uma distração também?
– Deu pra ver nos olhos dela.
Ele desviou o olhar do meu, dando uma boa vasculhada em volta. Ainda me lembrava o medo que eu sentia quando nós, bem mais novos do que naquele dia, saíamos para atirar no escuro.
– Ok, teorias. Qual seria a vantagem de possuírem o corpo do Harold? Destruir as armas que vocês têm? Conhecer a rotina de vocês? Descobrir o que nós sabemos e o que nós planejamos?
– A última opção parece a mais óbvia. – Eu disse. – Nenhum demônio conseguiria entrar na casa dele, muito menos chegar perto de invadir o nosso porão. Mas, mesmo assim, nós sabemos por experiência própria que, quando as coisas estão muito fáceis, tem algo errado.
– Ou talvez ele esteja falando a verdade de cara, querendo que a gente realmente desconfie e vá atrás de investigar todas as opções, menos a real.
– Pode ser também. Mas o que fazemos então?
– Tiramos o demônio do Harold.
– Dean...
– Eu sei dos riscos. – Ele sussurrou quase que agressivamente. – Acha que eu não tive que tomar esse tipo de decisão antes? Deixar o demônio no corpo dele é tão arriscado quanto.
Deixei meus ombros caírem enquanto aceitava as opções.
– Fala com meu pai sobre isso. – Declarei e terminei o caminho para casa.
Quando meu pai voltou para casa, horas depois, sua expressão derrotada denunciava o resultado da noite. Nós preparamos tudo e demos para Harold um funeral de caçador, como qualquer um de nós teria. Vasculhamos sua casa, em busca de quaisquer objetos que pudessem o prender por ali. Desde sua escova de dente até o cortador de unha, tudo foi jogado no fogo com ele. Eu fiquei ali até a última brasa se apagar, quando o dia já estava clareando. Meu pai estava firme como no funeral de John Winchester, mas eu o conhecia e quase podia ver seu interior se despedaçando com mais uma cerimônia da qual ele nunca quisera fazer parte. Um a um, todos foram se afastando, até que só restávamos eu e Dean. Ele me olhava pelo canto do olho e eu fingia não perceber. Deixei, em silêncio, que ele se aproximasse sorrateiramente de mim, enquanto eu ficava de olho nas cinzas.
– Seu pai conseguiu informações antes de...
– Antes de ele morrer? – Usei as palavras sem medo.
– Existe algo de especial em nós, como se fossemos destinados a isso desde sempre.
– Quer dizer, então, que eu só tenho sentimentos por você por causa de um tipo de maldição?
– Se fosse assim, eu também teria esses mesmos sentimentos.
Permaneci atenta as cinzas. Dean, ao meu lado, estava impaciente, como sempre.
– Me promete uma coisa? – Ele pediu.
– Fala.
– Não vou fazer seu funeral. Nem agora, nem daqui a trinta anos.
– Nós todos vamos morrer, mais cedo ou mais tarde.
– Que seja mais tarde então. Pelo menos, mais tarde do que eu.
Finalmente me voltei para ele e olhei em seus olhos.
– Então eu vou ter que fazer seu funeral?
– Eu preferiria assim.
– E o que eu prefiro?
– Winchester. – Meu pai gritou da varanda de casa. – Preciso de ajuda aqui.
Ele me olhou mais uma vez antes de partir. Eu ainda fiquei ali, meditando sobre o quão perto nós sempre estávamos de uma situação daquele tipo. Deixei que os irmãos e meu pai removessem todo o conteúdo de dentro da caixa de metal onde havíamos cremado o corpo de Harold. Eles foram até o riacho, próximo à casa, e despejaram tudo lá. O cheiro estava insuportável e, antes que desconfiassem, meu pai simplesmente ateou fogo ao seu carro. Eu não podia questionar, ninguém ali estava apto para tomar decisões e talvez houvesse um pouco de arrependimento no futuro. Mas, naquele momento, nós precisávamos disfarçar. Uma simples pane no carro parecia uma boa ideia.



– O que vocês descobriram? – Perguntei, encostava no umbral da porta do quarto do meu pai.
– Achei que Dean tava te contando mais cedo.
– Ele estava sendo minimamente educado quanto a situação e decidiu não comentar.
Meu pai se levantou da cama e andou até sua janela, encarando o horizonte. Os empregados já haviam chegado e a fazenda seguia funcionando como se nada tivesse acontecido.
– Há um novo grupo de demônios. Querem a mesma coisa que Lilith, mas querem outro como rei do inferno.
– E por que ninguém fala de Lúcifer nesse meio tempo?
– É simples. Ninguém fala dele porque ele realmente sumiu.
– Então não é só Lilith que tá atrás de mim e do Dean.
– Não, não é. E olha que eu nem cheguei na pior parte ainda.
Fingi uma risada.
– Isso sim é surpreendente. Qual seria a pior parte, se é possível haver uma?
– Parece que o outro grupo é ainda mais forte que o de Lilith, como se algo maior houvesse despertado com o cheiro da caçada.
– E o que fazemos agora?
– Não dá pra fugir, então lutamos.
– Como?
– Primeiramente, procurando na literatura se há algo sobre outros possíveis rituais que envolvam a liderança do inferno.
– Vamos dar isso de mão beijada pra eles?
– Ainda é melhor do que ter a sua cabeça a prêmio. O que acontece entre eles vai ser sempre motivo de guerra pra nós, caçadores, não importa quem esteja no comando.
– Ok então. Mas, se houve um ‘primeiramente’, quer dizer que há um ‘em segundo lugar’.
– Só vamos conseguir mais informações se você e Dean ficarem juntos. Separados, podemos até chegar a algo, mas a espera vai ser muito maior.
– Sem problemas por mim.
– Antigamente, você faria uma piadinha.
– Não estou para piadas hoje.
– Faz sentido. – Meu pai observou. – No que você está pensando?
– Nesse exato momento, em que outras informações vocês conseguiram.
– Nada mais.
– Mataram Harold por esse pouco?
– O demônio nele não sabia de mais nada.
– Pai, eu...
Não consegui terminar a frase. Queria protestar, mas entendia o fundamento. Não hesitaria em fazer aquilo com qualquer outra pessoa, então por que diabos estava me incomodando tanto? A noite não dormida estava me cobrando seu preço. Meus olhos, quase fechados, não me permitiam acreditar na possibilidade de trabalho pesado pela frente. Queria ficar com raiva do meu pai por ter matado Harold. Queria ficar com raiva de Dean por ter permitido. Mas eu, na mesma situação, não faria diferente. Talvez, dado o meu gênio instável e esquentado, eu nem teria conseguido aquele mínimo de informação.
– Posso entrar? – Dean me despertou de um longo devaneio com três pancadas na porta pela manhã do dia seguinte.
– Claro que sim.
Ele se sentou ao meu lado, cauteloso.
– Como você tá?
– Desnorteada, talvez. Um pouco fora de mim.
– Quando esse tipo de coisa acontece, eu costumo usar isso como alimento pra minha frustração. Eventualmente, isso me dá mais força pra lutar contra tudo o que caçamos.
– Talvez meu pai não devesse ter me contado sobre seu pai.
– Do que você tá falando?
– De quando eu descobri que monstros existiam. As coisas podiam ter sido diferentes, e eu nunca desconfiaria de nada.
– Mas então nós não teríamos nos conhecido.
– Ou talvez sim. Afinal de contas, não dá pra dizer que um qualquer bate na sua porta, tarde da madrugada, ensanguentado, e não é seu amigo. Nossa convivência seria inevitável, mais cedo ou mais tarde. Mas aí você não me veria como uma mulher forte, justamente por eu não saber a verdade, e nossas chances seriam menores ainda.
– Pensou nisso tudo só agora?
– Tenho pensado em várias coisas desde que aconteceu.
– Precisamos ocupar essa sua pequena mente paranoica então.
– Não sou paranoica.
– É sim! – Dean protestou. – Você ouviu as besteiras que acabou de dizer?
– Dean, eu não gosto dessa vida como você. Tem seus momentos de satisfação, mas eu passei bem perto da vida normal. Ainda gostaria de testar se seria possível.
– Não gosto dessa vida também. É que eu tenho quase um dever com ela.
– Eu sei, e jamais te pediria pra abandonar a caçada porque sei bem o que você escolheria.
– Se me falassem que, abandonando a caçada agora, eu te garantiria proteção pelo resto da sua vida, eu abandonaria sem pensar duas vezes. E falo isso independente de estarmos juntos ou não. Você sabe muito bem que, desde sempre, eu tenho sentimentos por você, embora você só tenha estado satisfeita com eles nesses últimos dias.
– Eu também abandonaria tudo pra te proteger, Dean.
– Mas...? – Ele me instigou a continuar.
– Mas Harold está morto e poderia ser você.
– Não com a tatuagem. – Dean me corrigiu. – Não poderia ser eu, nem Sam, nem seu pai, nem seu tio.
– Você tem certeza disso? Porque não me parece seguro.
– Eu tenho certeza. – Ele disse. – Mas, agora, nós precisamos partir pra briga.


Capítulo 24

Eu e Sam trocamos um olhar que gritava “fodeu” quando o legista não estava olhando. Ele se apressou em nos entregar o relatório e pedir que saíssemos pois, aparentemente, a família de Shawn Coltry queria retirar logo o corpo. Dean nos esperava do lado de fora do necrotério, com uma cara não muito melhor que a gente. Enquanto andava a seu encontro, dava uma lida superficial nas páginas.
– A gente tá muito fodido ou só um pouco?
Sam fez cara de quem reprovava o palavrão.
– Bastante, eu diria. Não há nenhum sinal conclusivo na autópsia.
– Nada?!
– Nada. – Respondi. – Tem uns trinta ‘Sem alterações dignas de nota.’ nessas folhas.
Ele passou a mão pelo cabelo e deu uma volta em seu próprio eixo.
– Deixa eu ver se entendi... Voltamos à estaca zero?
– Na verdade, não. – Sam respondeu. – A polícia apreendeu notebook e celular encontrados na casa dele, estão na delegacia e ainda não foram analisados. Por que vocês dois não vão até o endereço do Coltry enquanto eu tento conseguir alguma coisa com os aparelhos?
Trocamos um breve olhar e assentimos.
, dá as chaves do seu carro pro Sam.
Eu virei a cabeça imediatamente na direção de Dean.
– O quê?!
– Pelo amor de Deus, , não precisa fazer um escândalo.
– Então por que ele não leva o seu? Afinal de contas, o Impala é uma herança dos dois e o Charger é exclusivamente meu.
– Vocês dois vão fazer escândalo aqui? – Sam ralhou. – A chave do Impala já tá comigo e não é a primeira vez que eu fico com o carro. Sem pirraça, Dean.
Eu olhei, vitoriosa, para ele enquanto tirava a chave do meu carro de dentro do bolso da calça. O local não ficava tão longe e nós trocamos palavras triviais no caminho. Chegando lá, o assunto era diferente. Primeiro, era estranho não haver nenhum tipo de isolamento, já que o corpo havia sido encontrado lá. Ou talvez houvesse anteriormente e alguém – ou algo – tivesse removido as fitas. Estacionei, estrategicamente, em um local de onde pudéssemos observar de longe em um primeiro instante. Depois de consideramos seguro, eu e Dean saímos do carro. Estava dando a volta nele quando Dean avançou na minha direção, me jogou contra a lataria e me beijou violentamente. Tentei gritar, espernear, mas ele seguia me segurando muito firme no mesmo lugar. Já estava ficando sem fôlego quando ele descolou nossos lábios, mas manteve as mãos de forma estranha na lateral do meu rosto, como se quisesse cobrí-lo.
– Demônio. – Ele sussurrou contra a minha pele.
Minha respiração se manteve irregular por mais alguns instantes até que ele, habilmente, abriu a porta do carro atrás de mim.
– Entra.
Obedeci sua voz grave e esperei pacientemente que ele voltasse para dentro do carro também.
– Eu e seu pai passamos por esse cara faz dois meses.
– Isso quer dizer, pelo menos, que estamos na trilha certa.
– Ou então que estão nos enganando perfeitamente.
Eu engoli em seco.
– No que você quer apostar?
Dean apontou para a casa.
– Tem gente lá dentro. E, por gente, eu quero dizer ‘demônio’. Essa é a minha aposta.
– Demônios de alto ou baixo escalão?
– Operários, com certeza.
– Vale a pena capturar?
– Onde você quer chegar, ?
Sorri.
– Você vai ficar sabendo quando precisar. Ainda não respondeu minha pergunta.
– Que pergunta?
– Sobre capturar algum deles.
– Eu acho que não, mas não estamos em posição de aceitar desperdícios.
– Vamos entrar então?
– Você tá doida pra sair no tapa com alguém ou é impressão minha? – Dean perguntou, querendo fazer graça mas com uma expressão facial que denunciava sua preocupação.
Soltei uma risada nervosa. Nós nos preparamos, tomamos todas as precauções possíveis e impossíveis, mas nos decepcionamos ao entrar na casa. Não havia ninguém nem nada lá dentro, só nós. Tudo parecia extremamente em ordem, o que era para lá de esquisito. Mesmo com a polícia tendo passado lá antes de nós, nunca ficava tão ‘limpinho’. Pelo menos, eu e Dean parecíamos estar com a mesma suspeita e não deu outra. No armário embaixo da pia, o saco de feitiço se revelou imediatamente quando eu decidi investigar as partes do móvel. Quando eu mostrei para Dean, que fazia o mesmo com a estante da sala, ele sorriu como se as coisas começassem a se encaixar. O telefone dele tocou no mesmo instante. Era Sam, avisando das informações que havia conseguido na delegacia, e nosso prognóstico era, naquele exato momento, favorável.
Tess era o nome da mulher que atendeu quando liguei para o número mais discado da agenda de Shawn Coltry. Não sabíamos o que esperar, então eu fui sozinha ao seu encontro após escurecer. Quando senti o cano gelado da arma encostando na minha nuca, não foi surpresa. Eu sorri enquanto me virava para trás sem fazer movimentos bruscos. Não era uma mulher e sim um homem que me aguardava.
– Você não é a Tess. – Respondi.
– Não importa quem eu sou.
Christo. – Murmurei.
– Entra no carro e dirige. – O homem rosnou após seus olhos ficarem completamente negros.
Assim que entrei, Dean e Sam se revelaram no banco de trás, este último colocando uma faca imediatamente junto à garganta do demônio. Dirigimos por tempo suficiente até chegarmos a um local sem possíveis testemunhas.
– Tá parecendo um gato com medo de água. – Dean disse. – Fica tranquilo. Se você nos ajudar, nós vamos ajudar você.
– Os boatos que correm por aí não me deixam confiar nisso.
– Você tem duas escolhas: morrer lentamente como um covarde – Desenhei a última palavra com os lábios. – ou morrer rapidamente e deixando, ao menos, uma última boa colaboração pra humanidade.
– Não vou falar nada.
– Primeira opção então. – Eu olhei para o cadeado desenhado previamente por Sam, agora nos pés do demônio. – Ótimo.
Arregacei as mangas do casaco de moletom que estava usando e busquei a faca da mão de Dean. O caminho sujo até matá-lo não teve interrupções. Se ele fosse falar, teria dado um jeito de me interromper. Cavamos uma cova rasa para a casca e partimos no sentido oposto da cidade. O primeiro motel indicava vagas e, quando Dean deu seta para entrar, eu o segui fielmente. Deixei que os rapazes dessem entrada nos quartos enquanto me certificava de ter os carros devidamente trancados e uma bolsa completa. Os irmãos saíram da recepção quando terminei, Sam se direcionando a escada que levava ao segundo andar de quartos e Dean andando diretamente para mim.
– Bem... Chegamos num momento estranho.
– Qual? – Perguntei, colocando a bolsa no chão.
– Não viajamos desde que tudo aconteceu. Tínhamos um padrão, mas...
– Mas agora nós nos beijamos?
Dean riu, me fazendo automaticamente sorrir também.
– Não sei o que você espera de mim, de verdade, e não quero te decepcionar de novo.
Arqueei as sobrancelhas, uma leve preocupação aparecendo lá no fundo.
– O que houve?
– Você quer que eu fique com você? Ou sei lá. Quer dizer, não sei. Eu sempre fico com o Sam, mas agora nós temos algo e...
Eu sorri quando Dean ficou sem palavras e tinha certeza de que estava corada. Abaixei a cabeça, desviando o olhar do dele. Não conseguia pensar sob a pressão de estar sendo observada por Dean. Quando voltei a encará-lo, ele parecia preocupado.
– Você quer ficar comigo, Dean?
– Tenta me entender, eu não quero...
– É uma resposta de sim ou não. – Eu o interrompi. – Prometo não ficar chateada.
– Eu sou homem, , é claro que quero.
Dei o único passo que nos separava enquanto nossas respirações ficavam mais intensas visivelmente. Eu estava quase o beijando quando, do andar de cima, se ouviu um assobio. Nós nos olhamos, rindo, certos da cara de sacana que Sam estaria fazendo no corredor do segundo andar. Dean, então, se abaixou e pegou a minha bolsa.
– Vou ficar mal acostumada. – Observei, rindo dele.
Dean revirou os olhos e nós começamos a caminhar na direção dos quartos. Estava completamente alheia à realidade, fixada na escada, quando percebi que estava sendo chamada.
– O que foi?
– O nosso quarto é no primeiro andar.
– Não tinha quarto vago em cima?
– Na verdade, – Ele disse, jogando a bolsa por cima do ombro e buscando a chave no bolso. – eu achei que você gostaria de não ficar colada no mesmo quarto que o seu cunhado.
– Hm... Meu cunhado. – Brinquei, enquanto me aproximava de um Dean que mal tinha fechado a porta mas já se transformara em outro. – Se eu soubesse que você seria tão mais legal assim, tinha te beijado a mais tempo.
Ele largou minha bolsa no chão e me puxou para um beijo enquanto mantinha um sorriso nos lábios. Segurava firme na minha cintura enquanto eu repousava minhas mãos em seus ombros. Quando dei por mim, Dean me puxou para cima e caminhou até a cama, me mantendo sentada em seu colo. A essa altura, uma de suas mãos já estava embrenhada no meu cabelo, fazendo uma pressão delicada e firme ao mesmo tempo. Deixei que ele, rapidamente, tirasse meu casaco e, logo depois, fiz o mesmo com o dele. Dean fez uma pequena pausa para remover sua camisa e, nesse momento, olhou para mim. Seu olhar me fez derreter por dentro, despertando um sentimento que, até então, eu desconhecia. Se tivesse que apostar, diria que era um lampejo do que seria amor.
Ele voltou as mãos à minha cintura, dessa vez por baixo da blusa, promovendo uma reação em cadeia e eriçando todos os pelos do meu corpo. Mentalmente, estava agradecendo a mim mesma por ter pensado naquela possibilidade antes de sair de casa e de ter colocado em dia todas as minhas ‘obrigações’ femininas. Dean removeu a minha blusa e, quando nossas peles se encostaram, tudo no mundo pareceu fazer sentido, até mesmo as mais absurdas loucuras do nosso dia a dia. Descendo os lábios para o meu colo, Dean me fez inevitavelmente soltar um gemido. Ele sorriu.
– Estamos em um motel, não tem problema fazer barulho.
– Não é esse o problema, Dean. – Murmurei.
– O que houve então?
Foi instintivo. Dei tempo para meu cérebro processar todas as informações e me cobri, como se fosse para me proteger. Ele assustado e eu mais ainda, tentei sair do seu colo mas, de alguma forma, suas mãos ainda me seguravam e seu olhar me sustentava como nunca.
– Eu fiz alguma coisa errada?
– Não, você não fez nada.
– Então me conta o que tá acontecendo.
– É besteira.
Ele me soltou mas, àquela altura, eu já havia desistido de sair. Olhou para mim com o semblante mais bondoso que eu já havia visto na minha vida inteira e sorriu.
– Vamos combinar uma coisa. Sem segredos a partir de agora e sem abertura para exceções.
– Você é cara de pau, não mantém segredo nenhum porque não tem vergonha.
– E você tem vergonha de quê? De você mesma? – Ele perguntou. – Porque a vista daqui tá muito boa pra falar a verdade e...
– Dean!
Só serviu para fazê-lo rir.
– Você é linda, .
– Mais linda que as outras?
O sorriso se desfez e se transformou em sobrancelhas arqueadas e uma testa franzida.
– Do que você tá falando?
– Das suas outras.
, eu não...
– Sem segredos, lembra? – Eu o interrompi.
Dean respirou fundo algumas vezes.
– Não vou te comparar a ninguém. Nunca estive com uma mulher que eu amasse. Tenho certeza de que você teve outros caras também e, nem por isso, to pensando nisso agora. Pra mim, o seu passado é o seu passado, não me diz respeito.
– Nunca estive com outro homem, Dean. Você é o primeiro.
Seus ombros caíram.
– Tá de sacanagem, né?
Grande reação, babaca...
– Não to.
Ele voltou a colocar as mãos em mim, mas logo as tirou. Olhou para o lado, confuso, e eu nunca quis tanto ler sua mente. Enquanto isso, meus neurônios entendiam que eu havia quebrado o clima perfeitamente e que Dean, a qualquer momento, iria me xingar. A ideia de que ele pudesse sair para procurar outra passou pela minha cabeça em um instante e quase doeu em mim. Eu, então, puxei seu rosto para que ele olhasse de volta para os meus olhos. Tentei sorrir.
– Quer dizer então que você me ama?
– Você ainda tem dúvida?!
– Bem, achei que era como se ama uma irmã, e seria bem estranho.
Ele relaxou um pouco.
– Como eu disse antes, ficar sem você foi terrível pra mim. Parece bobagem mas, , eu juro, eu tava quase enlouquecendo. Não vou dizer que nunca tive olhos pra você. É claro que tive, você é uma mulher bonita e é inevitável não notar. Mas eu descobri, do nada, que tinha te magoado, e queria tanto consertar as coisas com você que esse sentimento só apareceu sem ser chamado.
– Então você não queria esse sentimento?
– Não vou mentir. Antes, claro que não. Mas agora, me sentir assim a respeito de nós dois faz com que eu me sinta uma pessoa melhor. Não abriria mão por nada.
Eu fechei os olhos, tentando pensar melhor em como respondê-lo.
– Eu confio em você, Dean. – Falei.
... – Ele murmurou.
Segurei seu rosto com minhas duas mãos. Levei uma delas para a nuca, onde fiz questão de acariciar seu cabelo. Respirei fundo uma, duas, três vezes e sorri o melhor sorriso que tinha.
– Eu confio em você. – Repeti, firme.
Quem eu estava querendo enganar? Estava mesmo tentando resistir a Dean? Dean Winchester?!


Capítulo 25

Nós fizemos amor na cama, e depois contra a parede. Quando descobri que gostava daquilo, nós fomos para o chuveiro e, àquela altura, Dean estava acabado. Ele queria mais e eu também, mas a inexperiência e subsequente vergonha me impediam de pedir. Embora nós dois estivéssemos exaustos, estávamos bem. Era muito melhor do que a sensação de exorcizar um demônio ou decaptar um vampiro. Talvez, naquele exato instante, eu entendesse momentaneamente o porquê de sua cabeça de baixo pensar mais do que a de cima.
Como era de se esperar, ele apagou profundamente. Seu sono pesado me permitiu acordar mais cedo e sentar, com meu notebook no colo, para dar uma olhada geral em algumas das páginas que poderiam trazer um caso novo a qualquer momento. Com Lilith, estávamos cegos, e qualquer passo só seria dado após a chegada de novas informações. Ficar esperando não era uma opção. Eu estava sedenta por trabalho e tinha certeza de que os rapazes também. Estava lendo um blog sobre mortes suspeitas quando uma mão repousou sobre a minha coxa nua. O contato com a pele gelada me fez estremecer. Dean sorriu, ainda de olhos fechados.
– Deixa isso pra lá e deita aqui comigo. – Resmungou.
– Posso ter achado trabalho.
– A gente vê depois. – Ele insistiu, buscando minha mão e me puxando para ele.
Rindo, coloquei o notebook com cuidado no chão. Em um movimento só, Dean terminou de me fazer deitar junto a ele. Desceu uma de suas mãos até minha coxa, fazendo pressão para que eu a passasse por cima das pernas dele. Quando Dean me puxou com força, mais uma vez, para ficar o mais perto de mim possível, ele sorriu, sacana como sempre, antes de me beijar. Pouco tempo depois, já estava me virando de barriga para cima e agilmente colocando seu corpo sobre o meu.
Dean apoiava seu peso em um dos braços enquanto dava uma boa olhada em mim, por um todo. Eu estremeci com aquilo, o filho da mãe sabia exatamente qual botão apertar para mexer comigo. Ele enfiou as mãos por debaixo da sua blusa que eu usava, feliz da vida, querendo que aquele cheiro colasse em mim a todo e qualquer custo.
– Isso não vai dar certo. – Ele sussurrou, me colocando em estado de alerta no mesmo instante.
– O quê?! – Gritei, deixando bem óbvio o meu pânico.
Dean riu, aquele riso que acabava comigo.
– Eu vou acabar gostando de ter alguém comigo o tempo inteiro e aí não vou querer trabalhar.
– A gente manda o Sam pro campo e deixa ele fazer o serviço sujo enquanto nós ficamos na cama.
– Não me dá ideia errada.
Nós dois rimos e ele voltou a me beijar por um breve momento.
– Espero não ter feito merda ontem.
– Não fez. – Declarei. – Tá tudo bem.
– Tem certeza?
Caprichei no sorriso para ele e estiquei um de meus braços, procurando colocar minha mão entre suas pernas, mesmo que ainda sobre o tecido da cueca que eu queria dissipar. Dean aumentou o aperto na minha cintura e fechou os olhos por um momento.
– Você não deveria ter feito isso. – Ele disse entredentes.
Com velocidade e precisão, ele me deixou apenas de calcinha. Deitou ao meu lado e me puxou para cima dele sem pensar duas vezes. Quando ele se levantou para beijar o meu pescoço, me colocou inevitavelmente sentada em seu colo. Nós estávamos fazendo amor novamente antes que eu percebesse. Suas mãos, sempre firmes, me tinham como propriedade mas, ao mesmo tempo, pareciam querer me proteger. E eu estava inebriada, fosse por amor ou pela luxúria com a qual ele me possuía naquele momento. Não queria que aquele momento acabasse nunca.
Enquanto Dean me apertava cada vez mais – e eu sabia bem o que estava por vir –, alguém bateu na porta.
, sou eu. – A voz, abafada, do meu pai ecoou pelo quarto.
Eu gelei e senti Dean ficar apavorado. Ele saiu de cima de mim, já procurando pela cueca enquanto eu me encaixava de qualquer jeito na calça que havia ficado pelo chão. Meu pai bateu na porta de novo.
?!
Dei uma última olhada em Dean, que já estava colocando a blusa. Eu chutei a bolsa dele para debaixo da cama e coloquei minha camisa. Não me importei com o sapato, pois não era importante naquele instante. Coloquei o notebook nas mãos de Dean e me dirigi à porta. Por garantia, dei uma breve ajeitada no cabelo antes de abrir.
– Oi, pai!
– Demorou a atender. – Ele disse, começando a entrar.
– Eu e Dean estávamos finalizando um raciocínio.
Ele deu uma olhada por cima do ombro.
– Winchester! Quer que eu dê um tiro nele por estar te perturbando a essa hora da manhã?
– Hoje não. – Brinquei.
Sobre o lençol, minha calcinha branca se misturava a cor do tecido do motel. Eu arregalei os olhos. Dean viu imediatamente e puxou a peça para dentro do seu bolso. Meu coração estava na boca e eu comecei a ofegar repentinamente.
– Qual era o assunto?
– Lilith. – Dean respondeu ao notar meu estado. – Estávamos tentando pensar em alguma teoria aceitável que encaixasse em tudo que aconteceu.
– E então?
– Nada encaixou em tudo. – Falei. – Por que o senhor não avisou que estava vindo?
– Porque eu não estava, mas foi inevitável. Meu caso era nada mais nada menos do que dois moleques malucos inventando coisa.
Dean revirou os olhos.
– Os velhos seres humanos...
– E foi inevitável por quê?
– Sobrenatural ou não, os moleques arrebentaram o meu carro.
– Como assim?!
– Assim! Enquanto eu estava dentro da casa, sequestraram meu carro e jogaram ele no rio. Bobby me deu uma carona.
– Meu tio tá aqui? – Perguntei.
– Ele só me deixou e saiu correndo pra ajudar o Rufus.
– Se quiser, , pode deixar seu carro com seu pai que eu te levo em casa quando for necessário.
Ele riu.
? Ficar no Impala?!
– Tá tudo bem, pai. – Disse, ciente de que era motivo suficiente para que ele começasse a desconfiar. – Eu não pretendo demorar, nós te alcançamos.
Ele olhou para mim e depois para Dean, repetidas vezes.
– Tem certeza? Vocês dois?!
Eu fiz que sim com a cabeça enquanto esticava a chave do carro para ele. Busquei algumas armas e as coloquei no Impala. Enquanto fazíamos a troca, Sam desceu. Tínhamos trabalho. A cidade não era muito longe e não estávamos certos sobre exatamente o quê estava acontecendo. Partimos, de qualquer jeito. Sam e Dean como agentes do FBI, eu como representante da CIA. Gostava daqueles tipos de caso, onde eu deveria atuar mandando nos dois irmãos e, por Deus, era uma sensação maravilhosa. Nós entramos no prédio em silêncio e não tentaram nos barrar quando ultrapassamos a fita isolante da suposta cena do crime. Talvez fossem as roupas, talvez não. Andamos até o homem mais bem vestido do local e já apresentamos nossos distintivos.
– O FBI eu entendo, mas a CIA?!
– Suspeita de bioterrorismo. – Eu disse. – O que temos até então?
– Bem... Não me surpreende vocês estarem aqui de qualquer forma. Sou o delegado responsável, Griffith Doodle.
Dean, atrás de mim, segurou uma risada, enquanto eu formalmente apertava a mão do homem.
– Agente Chloe. Esses sãos os agentes Ruess e Penny. O cadáver foi revirado?
– Meu pessoal já identificou o morto. É William Port, um dos melhores mecânicos da cidade. Podemos mostrar as fotos tiradas com o cadáver no momento em que foi encontrado.
– Ótimo, eu agradeço. Alguma coisa de anormal?
– Macroscopicamente, a única coisa anormal é a morte de alguém que parecia ser minimamente saudável. Nosso legista é extremamente competente e esperamos que ele consiga algumas respostas. Sintam-se livres pra acompanhar o caso da nossa delegacia.
Eu assenti e me afastei, dando uma olhada em volta e com Dean na minha cola.
– Foi fácil demais, a polícia costuma resistir a ter federais por perto. – Ele sussurrou.
– Eu sei. – Respondi. – Vamos voltar à noite.
Ele riu.
– Cadê minha calcinha, Dean?
– Sua calcinha?!
– Não finge que não sabe.
Sam estava terminando de falar com o delegado e já se encaminhava na nossa direção. Dean se aproximou exageradamente, colocando sua boca no meu ouvido e me inebriando com aquela voz grossa e baixa desgraçada.
– Se você quiser de volta, vai ter que me satisfazer o suficiente hoje à noite.
Mantive a postura para não deixar transparecer o quanto ele tinha me afetado. Ainda não estava pronta para dividir com Sam detalhes sórdidos da minha vida entre quatro paredes com o irmãozinho dele.
– Eu vou pro necrotério, vocês dois vão pra delegacia acompanhar os depoimentos das testemunhas. – Ele declarou.
– E quanto que eu precisei de supervisão? – Resmunguei. – Vão os dois pro necrotério, eu vou sozinha pra delegacia.
– Então eu preciso de supervisão? – Dean me interrompeu. – Você pro necrotério, eu pra delegacia e você, querida Singer, fica aqui pro caso de aparecer algo suspeito.
– Você é péssimo com testemunhas, Dean. Você fica aqui.
– Meu Deus! – Sam gritou, atraindo olhares. – pro necrotério, eu fico com as testemunhas e Dean fica na cena do crime. Ponto final.
Nós trocamos um olhar rapidamente entre nós mesmos. Dean esticou a chave do carro na direção de Sam.
– Cuida bem da minha namorada.
Ele assentiu e nós começamos a nos afastar enquanto ele seguia no sentido contrário.
– Com namorada... Ele quis dizer você ou o Impala?
– Provavelmente o carro, Sammy.
Sam riu, deixando escapar uma gargalhada, e nós seguimos nosso caminho. Não havia nada de muito novo no corpo de William Port, embora o cheiro de enxofre e a substância suspeita encontrada no estômago – que com certeza era ectoplasma – não fosse uma combinação muito comum. Ter por onde trilhar o caminho já era muito bom para alguém que persistia na frustração por conta da ausência de achados com Lilith.
Fiquei esperando do lado de fora do necrotério até que, perto de escurecer, Sam passou para me pegar. Voltamos ao local do crime e Dean não estava com a melhor cara do mundo.
– Demoraram!
– A culpa não foi nossa, garanto. Algo de novo?
– O maior tédio do mundo. E vocês?
– Acho melhor nos alojarmos pra colocar as ideias em ordem – Sam sugeriu.
O motel não era dos melhores, mas também não era dos piores. Na falta de uma opção melhor, até que não era muito ruim. Fizemos questão de organizar uma pequena base antes de enchermos uns aos outros com todas as novas informações recém obtidas. Estava claro, para nós três, que se tratava de um caso envolvendo fantasmas e/ou demônios, o que era – de certa forma – bastante curioso. Sam estava responsável por checar mortes suspeitas na cidade nos últimos anos. Eu me mantinha ocupada com investigar mortes fora da cidade de pessoas que pudessem ter qualquer tipo ligação com a vítima ou com alguma das testemunhas. Enquanto isso, Dean se distanciava um pouco do macabro, procurava furos nos depoimentos das testemunhas e dava uma olhada em todos os dados existentes sobre William Port.
Eu me pegava parando para observar os meninos. Era até estranho quando a palavra ‘meninos’ passava pela minha mente, porque eu estava entre dois homens crescidos – e bota crescidos nisso –, quisesse eu admitir ou não. As testas franzidas eram a parte mais ‘fofa’, porque denunciavam a concentração dos dois. Eu encostei na minha cadeira, ainda observando cada detalhe, mais focada em Dean dessa vez. Ele percebeu, pelo canto de olho, e se virou para confirmar que eu estava o encarando. Em silêncio, nós dois sustentamos o olhar do outro por um longo tempo. Dean até deixou um lapso de sorriso aparecer no canto dos seus olhos, mas logo voltou sua atenção ao notebook. Quase senti ciúmes e acabei decidindo voltar ao trabalho também.
Já havia se passado uns longos minutos depois de um dos meus devaneios mais intensos quando meu celular vibrou em cima da mesa. Dei uma olhada no identificador, era meu pai. Em silêncio, eu deixei os meninos para não os atrapalhar e saí do quarto.
– Oi, pai. O que houve?
– Cheguei em casa agora, seu carro chegou bem. Como andam as coisas por aí?
– Caminhando progressivamente.
– Você sabe quando deve voltar?
– Depende de como as coisas se resolverem aqui e de...
Um barulho estranho começou a sair no alto-falante do celular.
– Pai?! – Chamei, mas ninguém me respondeu.
De repente, as luzes do corredor externo do motel começaram a piscar. Enquanto não senti a temperatura caindo, achei que estava tudo bem. Quando eu menos esperava, tudo ficou escuro.


Capítulo 26

Quando as luzes piscaram, eu soube que havia algo errado. Olhei para Sam, que também desviou sua atenção do notebook. Nós dois olhamos para a cadeira vazia.
! – Eu a chamei, me levantando na mesma hora.
Ela não respondeu, eu chamei de novo. Quando abri a porta, ela não estava mais lá.
! – Gritei e o silêncio em resposta fez minha espinha gelar.
Puxei o celular do bolso mas vi, no mesmo instante, que o celular dela estava no chão. Do jeito que saí, entrei de volta e fui direto para a bolsa de armas.
– O que houve? – Sam perguntou.
– Ela sumiu.
– Dean, você tem certeza?
Eu joguei a bolsa por cima do ombro.
– Você vem ou não?
– Pra onde?
– Atrás dela.
– Nós precisamos sentar primeiro e procurar onde ela pode estar. As possibilidades são infinitas e...
– É a , não qualquer vítima! – Gritei.
– Sei disso mais do que você.
– Você não sabe porra nenhuma!



– Quem tá aí? – Resmuguei.
Não estar vendo nada era o que mais me incomodava. Eu não tinha medo do escuro, mas tinha uma urgência em saber o que se escondia lá. Também não havia som, ou qualquer outra coisa que indicasse que eu não estava ali sozinha, o que era mais desesperador ainda. Parei de respirar, procurando tatear ao meu redor. A parede fria tinha um revestimento estranho que me parecia metal. Bati e não houve som ressoante, então era maciço. Meu celular não estava nos meus bolsos e, mesmo que estivesse em qualquer outro lugar, seria praticamente impossível tatear o chão até encontrá-lo. Supondo que esse absurdo fosse realizado, não haveria sinal. Ótimo, eu deveria esperar, e minha paciência praticamente não existia. A macicez do material que me cercava também explicava o silêncio extremo. Poderia estar havendo uma rave do lado de fora e eu não estaria escutando, o que me deixava mais puta de escutar a minha respiração o tempo inteiro. Segurei o fôlego, mas nem assim outro som poderia ser ouvido ali dentro.
Eu sentei no chão e esperei. Esperei, e esperei, e esperei. Era estranho que a temperatura não estivesse insuportavelmente baixa. Cantarolei todas as músicas que eu me lembrava do Guns N Roses para tentar desviar minha atenção do quão devagar o tempo estava passando, mas não foi muito útil.



– Eu não me importo. – Rosnei. – Ache todas as bruxas do mundo, nós vamos encontrar ela.
Abraham estava no outro lado do país e já havia se decidido por pegar um avião ao invés do habitual asfalto. Meus nervos estavam fazendo minha cabeça doer, parecia que eu ia explodir a qualquer segundo. Não conseguia sentar, mas também não conseguia ficar em pé. Sam estava conseguindo se manter tranquilo, mas eu? Não tinha como.
Nós chegamos de volta ao motel com três mapas: um do país, um do estado e um da cidade, este último sendo particularmente difícil de encontrar e piorando o quanto eu estava surtando. Saí esticando o primeiro mapa em cima da mesa enquanto Sam procurava uma caixa de fósforos. Tirei o pequeno papel do meu bolso e colei com fita adesiva na cadeira, onde ficasse visível para mim e longe do fogo.
Ubicumque in occultatione sis defigo te defioccutasis ut mihi pareas igni... fiat notum.
O fogo foi consumindo o papel, e me senti parcialmente aliviado quando foi revelado que ela ainda estava no mesmo estado que nós. Lá fora, o frio estava congelando e a madrugada avançava. Só Deus sabia onde tinha ido. Repeti o feitiço mais duas vezes com os outros dois mapas restantes, confirmando minha suspeita de que ela ainda estava por perto. Sam começou a abrir uma imagem de satélite da área que encontramos e nós começamos a olhar, procurando por qualquer coisa que parecesse suspeita.



Eu estava começando a querer ficar desacordada quando ouvi um som além da minha respiração. Parte de mim comemorava. A outra parte estava preocupada com o que podia ser. Em segundos, uma brecha no lugar deixou entrar um pouco de luz, iluminando porcamente o recinto. Quando a porta se abriu de vez, eu precisei cobrir meus olhos.
– Olha, olha, olha... Nossa estimada está bem. – O sotaque britânico na voz de um homem ecoou pela sala.
Acabei me permitindo liberar a vista um pouco. A claridade ainda era demais para mim porém, dessa vez, emanava de uma lâmpada incandescente pendurada no centro do que parecia ser um porão transformado em quarto do pânico. O homem era um pouco mais novo que meu pai.
– O que você quer?
– A pergunta correta seria “o que você quer”, minha cara. Perdoe-me a falta de educação. Meu nome é Crowley.



Eu dirigia o mais rápido que podia enquanto Sam permanecia atento ao telefone.
– O Abe deve pousar em meia hora.
– E o Bobby?
– Não atende ainda.
– A merda toda acontecendo e ele simplesmente some do mapa. Me faz até duvidar do envolvimento dele nisso.
– Você tá se escutando, Dean?
Eu afundei mais o pé no acelerador.
– Seu trabalho é se certificar de que eu to no caminho certo e só.



– Seu nome não é a resposta que eu quero. Já perguntei. O que você...
– Eu sei, eu sei. – Ele me interrompeu. – Já disse que a pergunta certa não é essa.
Christo.
Seus olhos, imediatamente, se tornaram vermelhos, cor de sangue. Era bem óbvio que minha mente estava gritando de pavor, mas eu precisava me manter firme e não deixar transparecer.
– Lilith não podia fazer o trabalhinho sujo com as próprias mãos, não é?
– Na verdade... – Ele desenhava as palavras com a voz. – Lilith não tem nada a ver com isso.
Eu engoli em seco.
– Você é o segundo grupo.
– O mais forte, digamos.
– Então eu sinto te informar que tem 50% de falha no seu plano.
– Dean Winchester? – Ele sorriu ao dizer seu nome. – Minha cara, entenda que tomar o poder por meio de um ritual não quer dizer permanecer no poder. Lilith querer isso só me garante que ela não tem capacidade de conquistar meu reino sozinha.
Seu reino?



A estrada ficava cada vez mais curta enquanto nós chegávamos a o que parecia ser um mausoléu. Eu e Sam descemos imediatamente do carro, armas e facas preparadas para entrar em ação ao menor sinal de perigo. Ironicamente, não parecia haver nenhum motivo para desconfiarmos de outra pessoa ou ser ali conosco. Ele abriu o portão de ferro, pesado, que rangeu. Assim que eu liguei a lanterna na direção da entrada do lugar, havia uma palavra pintada em vermelho.
PEGADINHA

Era sangue. Era sangue dela. Alguém tinha machucado . Ou pior. Minha cabeça nunca esteve tão fora do lugar. Meu corpo inteiro doía. De repente, aquelas letras tão fáceis pareciam um idioma completamente diferente e eu não sabia nem quem eu mesmo era. Não conseguia nem reconhecer mais onde Sam estava. Eu queria vomitar.



– Reino, império, como preferir. Você e o Winchester foram uma ótima distração, cara , e eu deveria até agradecê-los, no caso de eu ser bonzinho, o que claramente diverge da realidade.
– Diz logo o que você quer.
– Eu quero te proteger. Garantir que Lilith nunca chegará a você.
– Novamente, você tá deixando metade do plano de fora.
– Blá blá blá, tá ok, eu estendo pro caçador.
– Se...?
– Não tem ‘se’, minha cara. Lilith só conseguiria o que quer com vocês. Já eu tenho cartas na manga que usarei em meu favor.
– Quer que eu faça um pacto com você? – Perguntei, rindo. – Só pode estar brincando.
– Não é um pacto, é mais como... Um entendimento. Eu corro contra o tempo pra impedir que Lilith capture você, consigo a liderança do inferno e eu e meus demônios ficamos de fora do caminho de vocês, pra sempre, desde que façam o mesmo conosco.
– E eu deveria simplesmente acreditar em você?
Ele riu.
– Querida, nunca duvide da minha palavra.



Sam estava me chamando, eu podia ouvir mas não podia responder. Senti meu corpo encolhendo dentro de mim mesmo, como se isso fosse possível. Em minha mente, o sorriso dela. Puta que pariu, aquela garota me enlouquecia. Lembrava bem dos nossos primeiros dias juntos. Qualquer garota pareceria atraente para mim àquela época e calhou de ser a vítima dos meus pensamentos mais sujos em momentos nada puros. Vê-la crescendo enquanto eu mesmo crescia era um inferno, porque eu me sentia culpado por aquilo. Mas aí ela me enlouquecia. Como me enlouquecia! Seu senso de ‘eu mando nessa porra e ai de quem tentar me desbancar’ fazia com que eu me deliciasse com seus surtos de raiva passageiros. Eu adorava como ela tinha pé firme para tudo e nunca recuava perante um desafio.
No fundo, quando ela me beijou, eu soube. Soube que ela era tudo o que eu gostaria de ter, mesmo que soubesse que não merecia. Os sorrisos, o jeito de mandona, o olhar que queria gritar que me amava... Eu fui muito estúpido. Mas então eu a tinha. Naquele instante, não mais. Meu corpo se recusava a acreditar naquela cena. Minha cabeça parecia que ia explodir. Sam abaixou ao meu lado, no chão, e tentou me puxar. Eu continuava olhando para o sangue. O sangue era dela, eu sentia lá no fundo.



– E se eu não concordar?
– Digamos que eu não preciso de vocês, mas vocês certamente poderiam obter vantagens comigo. Porque, menina, eu garanto tomar o poder do inferno antes que você possa imaginar, mas eu e meus demônios não vamos poupar ninguém quando esse dia chegar. Sabendo disso, você pode escolher me ferrar e se entregar a Lilith ou me ajudar e se esconder.
– Como?
Ele tirou dois sacos de juta do bolso interno do sobretudo preto que usava.
– Podem fazer o que quiserem, desde que permaneçam com isso. No momento em que usarem, nem eu mesmo poderei encontrá-los. Então apenas não entrem na rua errada e estarão a salvo.
– Escapar dela não é só o que quero.
– Eu te dou a mão e você quer o braço inteiro, não? – Ele observou, rindo. – Ninguém consegue encontrar Lilith.
Eu apontei para os sacos de feitiço.
– Garanto que a bruxa que fez esses consegue.
Eu fiz esses.
Engoli em seco.
– Se não temos mais nada para negociar...
– Espera! – Gritei. – Eu não disse que concordo.
– Não precisa. – Ele disse, se aproximando e colocando os sacos de feitiço, um em cada bolso do meu casaco, dando um tapinha leve por cima deles. – Isto é uma garantia da minha palavra.
– Eu quero a cabeça dela. – Afirmei.
– Um tanto vingativa para uma garota tão nova.
– Lilith afetou minha vida de mais formas que eu saberia dizer. Foi por conta dela que um dos meus teve de ser morto. Me fez perder tempo, me fez perder parte da minha vida. Afetou os que eu amo e eu garanto que não importa a minha idade, eu quero a cabeça dela.
– Devo pensar, então, que concorda com o que eu propus.
– Mediante as minhas condições, sim.
– Então discutiremos isso depois.
– Mas...



Houve um som estranho e, quando olhei para trás, de repente, estava ali. Não me dei o trabalho de secar as lágrimas antes de correr até ela. Eu a apertei em meus braços mas, logo depois, a soltei. Segurei seu rosto em minhas mãos e percorri, brevemente, seu corpo, à procura de ferimentos. estava bem, sem sangue e sem machucados. Mas, ainda assim, seu rosto estava apavorado, imediatamente contagiando o meu. Ela olhava nos meus olhos mas estava mais distante do que eu jamais a havia visto ficar.
– O que houve?
– Me leva pra casa, Dean.
, o que tá acontecendo?
Ela hesitou, olhou para o chão e eu detestava quando ela fazia aquilo.
, sou seu namorado, seu melhor amigo por anos. Seja lá o que houve, você pode me contar.



Dean nunca esteve tão chocado na vida dele e eu só queria encontrar a lógica naquilo tudo. Cada palavra que saia da minha boca parecia chocar Sam e Dean mais ainda. Porém, naquele exato momento, nós precisávamos sentar e analisar a situação por completo. A lógica podia ficar para depois. Afinal de contas, coisas lógicas nunca haviam sido o nosso forte mesmo.


Capítulo 27


Ele me jogou contra a parede com força. Nós sorrimos um para o outro enquanto Dean avançava sua boca ferozmente na direção da minha. O jeito com que ele segurava minhas coxas com suas mãos, sem se importar com o quanto ele fincava seus dedos na minha pele, e investia contra mim estava completamente me deixando louca. Meu telefone tocava em cima da mesa de cabeceira, provavelmente Sam querendo nos atualizar da evolução do seu trabalho de esconder nossas pegadas, onde o abandonamos para dar uma pequena escapada de volta para o motel.
Dean terminou do jeito que gostava, olhando firme nos meus olhos, como se fosse me penetrar com seu olhar. Ele estava exausto mas, mesmo assim, me mantinha suspensa enquanto recostava sua cabeça em meu ombro, a respiração mais ofegante do que nunca. De alguma forma, eu tinha certeza de que ele estava com um sorriso no rosto enquanto eu acariciava seu cabelo.
– Eu avisei que a gente ia ficar distraído um com o outro e perder tempo com isso.
– Tá dizendo que eu sou uma perda de tempo, Winchester?
– Se o tanto que eu fiz hoje não é o suficiente pra te dizer o quanto eu quero perder tempo com você...
Aos poucos, ele começou a me devolver ao chão enquanto eu protestava, fazendo uma cara de criança birrenta que só arrancou uma risada dele.
– A gente precisa dar o fora daqui.
– Ou, quem sabe, um segundo round... – Sugeri, sacana.
– Não me provoca, Singer.
– Ou o quê?
Três batidas fortes fizeram a porta estremecer.
– Eu fui educado o suficiente pra não entrar de uma vez, então me façam o favor de não me deixar esperando por muito tempo nesse corredor insalubre.
O sotaque britânico nos pegou de surpresa, fazendo com que Dean terminasse de me soltar. Minhas pernas, ainda não estáveis, bambearam. Eu quase caí no chão.
– Eu juro que vou matar esse filho da puta presunçoso.
– Consigo ouvir daqui de fora, Winchester.
Ele revirou os olhos.
– Como se eu me importasse. – Dean insistiu.
Nós dois nos apressamos em colocarmos de volta nossas roupas. Dean abriu a porta e Crowley entrou. Eu, automaticamente, dei um passo para trás.
– O velho receio da nossa querida Singer. Nunca muda, não é mesmo?
– Não confio em ninguém. – Respondi.
– E nem deveria. Mas não vim aqui discutir se há credibilidade em mim ou não. Vamos aos negócios?
Dean assentiu enquanto ficava o mais próximo possível de mim.
– Tenho informações de fonte confiável de que alguns dos de Lilith estão residindo em um bairro abandonado. Redman, no condado de Los Angeles. Em torno de 15 minutos da Base Aérea de Edwards.
– E você simplesmente quer que a gente enfie a cara numa área militarizada. – Dean reclamou.
– Infelizmente, os meus não podem ir. Seriam reconhecidos imediatamente e, caso vocês não tenham notado, estamos tentando lutar uma guerra silenciosa aqui.
– Então nós não seríamos reconhecidos? Brilhante plano.
– Na verdade, jovem insolente Winchester, eu vim avisá-los de que estou colocando alguns que me devem favores para irem checar a situação sem que os dois pombinhos precisem se apresentar.
– Não veio aqui só dizer isso, Crowley. – Falei. – Diz logo o que você quer e como encontrou a gente.
– Só precisei encontrar o carro, se isso responde parte dos seus questionamentos. Quanto ao restante... Eu preciso de um favor.
– Não trabalhamos pra você. – Dean disse, bufando, e eu imediatamente o segurei pelo braço.
– Você pode até não concordar porém, além de eu ter feito este acordo com sua querida namoradinha e não com você, o que proponho oferece vantagem para ambos os lados.
Dean praticamente rosnou e nos deu as costas.
– Há uma cripta nos fundos de uma igreja abandonada em Woburn, no Illinois. Preciso de uma ossada que está lá dentro.
– Pra quê, Crowley? – Insisti.
– Já contei que sou filho de uma das maiores bruxas de todos os tempos?
– Não vi onde isso faz alguma diferença.
– É a ossada de uma freira herege que viveu no começo do segundo milênio, bisavó materna de outra freira, mais famosa. Agnes, célebre autora do famoso livro dos Condenados. A cripta está completamente protegida contra quaisquer seres não humanos e eu preciso dessa ossada pra terminar o que comecei e tirar Lilith da jogada.
– Esse livro existe mesmo?
– Certamente existe, minha cara.
– E como isso nos beneficia? – Dean retornou, contrariado, à conversa.
– Se existe algo que possa tirar vocês dois da mira de Lilith, está lá.
– E colocar você diretamente na linha de sucessão.
Crowley riu.
– Não dá pra ganhar sem perder. – Ele deu de ombros e desapareceu.
Dean ficou parado por alguns instantes antes de voltar à realidade.
– Você não pode seriamente estar considerando isso.
– Por quê não?
– Por todos os motivos do mundo, ! – Ele gritou contra o meu rosto.
– É por você, Dean! Por você que eu quero fazer isso. Pra não ter que me preocupar se você vai estar aqui quando eu acordar pela manhã ou quando eu voltar de uma ida ao comércio mais próximo pra comprar um maldito pedaço de torta pra você.
– Quem me garante que não vamos acabar mortos quando esse filho da puta não precisar mais da gente?
– Quem me garante que Lilith não vai nos matar antes? – Elevei minha voz. – Ele teve a chance de me matar sem deixar rastros, Dean, e eu to aqui, não to?
– Não quer dizer nada.
– Quer dizer sim! Quer dizer que você não confia nem um pouco no meu instinto.
– Ah, mas eu não confio mesmo, .
– Na hora de me foder, você foi totalmente o contrário, né? Confiou pra cacete!
Dava para ver o susto em seu rosto. Eu me mantive firme, não ia deixar que Dean gritasse comigo em qualquer hipótese.
– Acho que eu demorei pra descobrir que você é o mesmo filho da puta que sempre foi. Desde que isso começou, eu disse que seria mais um número na sua cama e você insistiu em dizer que não. Tá satisfeito agora, Winchester? Feliz, agora que conseguiu me fazer de otária?
... – Ele ameaçou falar, com a voz muito mais baixa do que antes.
– Foda-se, Dean. Não preciso de você pra fazer nada, vou resolver essa merda toda sozinha.
Busquei minha bolsa, tirando propositalmente o saco de feitiço que Crowley havia me entregado e colocando em cima do criado mudo, ao lado da cama. Saí pela porta sem olhar para trás, com o coração saltando do meu peito e bufando de raiva. Enquanto caminhava com passos firmes pelo corredor, senti meu braço sendo segurado com força. Dean me puxou de volta e quase colou seu rosto no meu, me segurando firme embora eu lutasse para me desvencilhar dele.
– Te deixei ir embora uma vez, não vou cometer o mesmo erro de novo.
– Me solta.
– Eu sinto muito pelo que disse, . Não deveria ter me comportado dessa forma e eu gostaria muito de resolver isso tudo ao seu lado. Por favor, eu...
No final do corredor, alguém limpou a garganta. Nós dois não nos afastamos, mas viramos a cara imediatamente na direção do som. Meu pai carregava uma bolsa no ombro e estava com uma das piores caras que eu já havia visto. Por um instante, eu quis que Dean me segurasse mais perto ainda, como se para me proteger. Meu peito descia e subia devagar, no ritmo de uma respiração ligeiramente pesada.
, me espera no estacionamento.
– Pai...
– Eu dei uma ordem.
Hesitei, mas então Dean afrouxou gradativamente suas mãos nos meus braços.
– Vai, . – Ele sussurrou.
Nós dois trocamos um olhar rapidamente antes de eu me afastar. Caminhei de cabeça baixa até passar pelo meu pai. Conforme ia me afastando, pisava com mais cautela, tentando escutar qualquer coisa que conseguisse, mas o lugar estava imerso em um silêncio assustador. Terminei de sair no mesmo instante em que Sam estava encostando com o carro alugado. Uma lâmpada acendeu acima da minha cabeça. Olhei para trás uma última vez quando me conscientizei de que, felizmente, estava pronta para partir a qualquer momento com a bolsa colada a mim. Não deixei Sam desligar o carro e saí entrando no banco do passageiro.
– O que houve?
– Illinois, vamos.
– Mas o Dean...
– Vamos, Sammy. – Teimei.
Ele olhou para mim, desconfiado, mas saiu com o carro. A estrada não era longa, mas o tempo foi mais do que suficiente para que eu colocasse Sam por dentro de todos os detalhes possíveis. O meu telefone tocou, algumas vezes meu pai, algumas Dean, duas vezes o meu tio. O de Sam possuía praticamente o mesmo padrão de ligações perdidas, mas ele parecia confiar em mim bem mais do que o irmão mais velho e escolheu tentar a sorte comigo. Chegamos ao local indicado por Crowley no dia seguinte, depois de um tempo revezando no volante. As ruínas da igreja apareceram logo assim que saímos do asfalto. Sam olhou para mim, como se quisesse se certificar do que estávamos prestes a fazer.
– É seguro? – Ele perguntou, antes de sairmos do carro.
– Teoricamente, sim. Mas nem por isso eu deixei de trazer minhas armas.
Ele olhou para a igreja, ou o que teria sido uma.
– Vamos lá então.
Sam chegou um amontoado de folhas para o lado com os pés. Uma chave de Salomão se dispunha ao lado de outra, aparentemente formando um círculo em volta do local. Embora aquilo devesse me deixar tranquila, eu estava tensa. Queriam deixar aquilo longe das mãos de demônios especificamente e eu estava indo lá, entregar de mão beijada para um britânico com complexo de superioridade. Àquela altura, eu agradecia por Dean ter devolvido o saco de feitiço para o bolso do meu casaco.
Uma porta pesada de madeira protegia a entrada para uma escadaria banhada em escuridão. Estava já entrando quando Sam me segurou, olhando para mim como se estivesse fazendo algo obviamente errado. Com uma lanterna em mãos, ele tomou minha posição. Cada degrau fazia com que a temperatura caísse mais. Finalmente, chegamos ao que parecia ser uma tumba, com um caixão de material duvidoso erguido no centro. Sam olhou para mim imediatamente.
– Pedra, papel ou tesoura? – Ele tentou brincar.
Eu acabei perdendo. O cheiro não era exatamente agradável, como sempre. O cadáver estava encolhido e mumificado. Não sabia se gostava daquilo ou não. Sam segurou um saco de lixo grande enquanto eu, tentando não pensar muito no que estava fazendo, colocava o cadáver dentro do saco com as mãos devidamente calçadas com sacos plásticos menores. Ele deu um nó no saco e nós começamos a subir de volta para o carro. Tudo, estranhamente, parecia na mais perfeita ordem. Colocamos o material na mala e entramos no carro, partindo logo. O silêncio entre nós não durou muito.
– Acho que tenho uma ideia.
– Fala. – Respondi.
– Dentro de tudo que aconteceu, acho que seria justo pesquisarmos um pouco sobre quem foi essa mulher antes de entregá-la pro Crowley. Nós podemos tomar conhecimento de algum detalhe importante. Acredito que, à essa altura, isso possa fazer a diferença e nos dar uma vantagem que teremos que torcer pra não ser necessária.
Ponderei por pouquíssimos segundos.
– Justo.
Sancha de Castela havia sido uma das poucas mulheres que frequentaram o Mosteiro de Rupertsberg em seus anos de auge. Não havia nada de interessante em sua existência a não ser quando, depois de quatro décadas de vida, se entregou aos encantos de um padre não tão celibatário quanto seu cargo exigia. Sancha deu à luz a Hildegarda que, posteriormente, deu à luz a Agnes, a freira mais amaldiçoada da história. Alguns registros diziam que os clérigos julgavam a descendência de Sancha amaldiçoada pela sua transgressão. Teoricamente, ela havia sido mantida em cativeiro até sua morte, doze anos depois de se tornar mãe. Hildegarda foi mais azarada, e continuamente violentada por membros do clero que justificavam seus erros com base em declarações infundadas de qualquer pessoa conveniente. Ela engravidou repetidas vezes, porém apenas Agnes havia vingado. Quando começou a se alimentar de outra coisa que não fosse leite materno, mãe e filha foram separadas, a bebê sendo entregue a um convento como órfã. Anos mais tarde, Agnes era atormentada com alucinações severas a ponto de escrever um livro com sua própria pele e sangue. Nós, caçadores, eventualmente ouvíamos falar dele. Dizia-se ser um livro com feitiços para todo tipo de coisa e era, claro, um conhecido objeto de desejo.
Por garantia e sem ter muita certeza do que estávamos fazendo, Sam e eu removemos alguns ossículos do cadáver com extremo cuidado. Guardamos em uma caixa de papelão extremamente bem embalada e encontramos com Crowley não muito tempo depois. Nossa missão, por enquanto, estava acabada. Nós estávamos pegando a estrada em direção ao Kansas quando meu celular tocou e eu decidi não adiar mais aquela conversa. Sam encostou em um posto de gasolina que apareceu no canto da pista e não questionou quando eu me afastei. Refiz a ligação, Dean não demorou a atender.
– Você foi pro Illinois, não foi?
– Fui sim, Dean, e já estou indo pra casa.
– Deveria ter falado comigo!
– Vai querer brigar agora? E, no final das contas, vim com Sam. Deu tudo certo. Nós dois estamos muito bem, obrigada por perguntar. Se você se preocupar em gastar menos tempo me criticando, talvez escute as notícias que eu e seu irmão temos.
– Eu peguei um trabalho, . Vou ficar fora por um tempo.
– Isso tem a ver com o meu pai?
– Tem a ver com trabalho. – Ele repetiu como se fosse um robô. – É coisa grande então, por favor, em hipótese alguma vá atrás de mim. Nem você, nem o Sammy.
– Dean, o que meu pai te disse?
– Nada demais. Nada que eu não já soubesse.
– Por favor, eu gostaria de conversar com você.
– Nós conversamos quando eu voltar. Prometo que conversamos se você me prometer que não vai atrás de mim, pelo menos dessa vez.
– Dean...
, eu preciso ir.
Respirei fundo.
– O que eu digo pro Sammy?
– Pode dizer a verdade, frisando em me deixar terminar isso sozinho.
– Tudo bem, só volta bem. Tem pessoas que te amam e que gostariam da sua companhia.
– Ok.
Ele desligou, sem me dar tempo de falar mais nada. Sam estava terminando quando eu voltei ao carro. Nós pegamos de volta a estrada. Alguns segundos depois, meu celular vibrou. “Você não é mais um número pra mim. Não importa o que acontecer, lembre-se disso.” Eu senti um mal estar enquanto apertava meu celular contra meu peito. Havia alguma coisa errada naquilo.


Capítulo 28


Sam estava, visivelmente, tenso o tempo inteiro. Meu pai passou em casa enquanto estávamos dormindo. Bem, tentando dormir – ao menos, eu. Se ele quisesse que eu soubesse de sua passagem, teria deixado claro. Mas foi tudo na surdina da noite e eu tinha certeza, além de que aquilo tinha a ver com o comportamento estranho de Dean, de que era melhor fingir que não havia percebido. Ele deixou uma bolsa com roupas sujas e, a julgar pelo eco de seus passos no corredor, buscou algumas outras limpas. Também ouvi o que possivelmente indicava que ele havia visitado o nosso porão. Logo depois, o motor da F250 que ele havia arrumado ligou e partiu para longe da casa.
Tentei ligar, repetidas vezes. Era dever meu assumir que ele havia feito um bom trabalho substituindo Harold por Austin, um caçador com quem ele já havia feito alguns trabalhos. Não era de minha inteira confiança, embora seus números como caçador fossem incontestáveis. Aparentemente, o tanto que recusei suas ligações foi o suficiente para o tirar do sério e desistir de ter qualquer conversa comigo. Ótimo então, eu podia lidar com aquilo sozinha. Ainda mais se fosse mantendo uma rotina saudável na fazenda enquanto não surgisse nenhum trabalho extra.
Deixando de lado a caçadora e personificando a garota do campo, fui tocar o gado para mudança de piquete. Os funcionários, nem um pouco acostumados com a minha presença, estranharam. Ficou mais inusitado ainda quando Sam foi notado, apoiado em uma das cercas.
– Só faltou você estar mastigando capim. – Observei, me aproximando.
Sam sorriu.
– Ainda não cheguei nessa fase. Tá tudo bem por aqui?
– Dentro do controle. Aconteceu alguma coisa?
– Dean não manda notícia já faz dois dias.
– Com tudo o que aconteceu...
– Eu sei, , mas ele me mandaria pelo menos um “ok”.
Meu semblante se fechou. Passei pela porteira e galopei até a entrada de casa. Sem me preocupar com prender Storm devidamente, atravessei a varanda e pulei direto para o meu quarto pela janela. Busquei o celular e disquei, um por um, os números dele. Nenhum deles atendeu. O próximo número foi instinto.
!
– Tio, Dean tá com você?
– Não, por quê?
– O senhor sabe dele?
– Até onde eu sabia, ele tava contigo. Aconteceu alguma coisa?
– E do meu pai? O senhor sabe?
– Não, . O que tá acontecendo?
– Eu ligo depois.
Convenientemente, a F250 apontava na entrada da fazenda. Sam se aproximava a pé. Lancei um olhar para ele no mesmo momento.
– O que houve?
– Dean falou comigo como se estivesse se despedindo e eu acho que meu pai tem alguma coisa a ver com isso.
– Eu saberia, se esse fosse o caso.
– Sam, eu preciso que você vá pro quarto de hóspedes e fique lá.
– Mas ...
– Agora. – Ordenei, o carro já próximo o suficiente para me deixar tensa.
Meu pai não olhou para mim quando saiu do carro. Pretendia fingir que não estava me vendo, certamente, mas eu estava decidida a me impor frente a Abraham Singer, ele estivesse acostumado com isso ou não. Imediatamente, me coloquei entre o caminho dele e a porta.
– Onde ele tá?
, sai do caminho.
– Não sem você me responder.
– Você não sabe com o que tá brincando.
– Acontece que eu herdei o seu sangue quente e, se você não me disser onde ele tá agora, não sei se você vai ter notícias minhas de novo.
– Tem certeza de que tá me ameaçando, ?
– Tenta a sorte.
Ele bufou e finalmente olhou nos meus olhos, agarrando meu braço com força.
– Dean foi resolver um caso com djinns que supostamente estariam alojados em Dearing mas não é seu problema e você não vai atrás dele.
– Qual é o seu problema?!
– Eu que deveria perguntar qual é o seu.
Eu tentei me desvencilhar e ele apertou mais o meu braço.
– Você tá comprando uma briga que não tem como ganhar.
– Mal saiu das fraldas e quer brincar de ser gente grande.
– Surpresa, pai, eu já tenho 28!
Consegui uma brecha e soltei meu braço, andando propositalmente como se pretendesse me afastar da casa. Quando saí do campo de vista do meu pai, pulei a janela do quarto. Observando o corredor com cautela, desci ao porão para pegar meu objeto de desejo, um dos potes com sangue de cordeiro que guardávamos no freezer. Sem que ninguém me visse, voltei a pular a janela do quarto, dessa vez para fora. Tentei fazer o mínimo de barulho possível ao abrir e fechar a porta do carro. Empurrei o carro até uma distância segura onde os cilindros abaixo do meu capô não se fizessem tão audíveis, embora fosse praticamente impossível. Vez ou outra, dava uma olhada para trás a fim de conferir se não estava sendo observada. Com muito esforço, consegui chegar na porteira. Entrei no carro imediatamente e liguei o motor do carro. Que sentissem minha falta depois.
O percurso de quatro horas, eu fiz em três. Uma placa me indicou uma lanchonete à beira da pista e eu segui para lá, sem me preocupar se estava trajada para a situação – quem dirá com o cheiro de esterco que provavelmente exalava da minha calça jeans. Busquei um distintivo falso no porta luvas e entrei. A moça atrás do balcão me olhou de cima a baixo.
– Agente Marshall. – Falei, abrindo o distintivo na frente dela. – Houve algum caso de aparecimento de corpos dessangrados por aqui recentemente?
– Seu colega passou aqui anteontem. Acho que ele foi pra fazenda do velho Montgomery.
– E onde fica isso?
– Sentido sul, menos de dez minutos daqui. É fácil identificar, o pórtico da fazenda leva o nome do falecido. Logo do lado da estrada, tem uma construção grande. Era o frigorífico dele.
– Obrigada. – Eu disse, já me virando para seguir caminho.
– Ei, espera. O que tá acontecendo por lá?
– Seja lá o que estiver acontecendo, mantenha distância. – Eu falei, firme, sem me virar de volta para ela.
Suas indicações foram precisas. Eu estacionei o carro entre alguns arbustos do outro lado da pista. Passava menos de um carro por minuto. Esperei alguns minutos, dando uma boa olhada em volta, o que me permitiu ver o Impala jogado entre algumas árvores à distância. Não sabia se era bom ou ruim. Molhei três facas no pote com sangue de cordeiro e as guardei em bainhas que eu tinha presas ao cós da minha calça. Por garantia, carreguei duas pistolas com balas de prata. Esperei que nenhum carro estivesse no meu campo de visão para atravessar.
O lugar havia, certamente, sido abandonado já fazia um tempo. O cheiro de morte era impossível de não sentir. Assim que entrei, a primeira coisa que eu vi foi onde deveriam ser penduradas as carcaças. Talvez, devido à sua estrutura, a câmera de resfriamento fosse quase um frasco de perfume que não deixava aquele cheiro horrível se dissipar. A iluminação precária não facilitava a visualização das estruturas, mas havia uma porta à esquerda. Pé após pé, eu fui em silêncio até lá. Espiei um pouco e vi que a área estava limpa, com exceção de uma cadeira colocada ao centro e o contorno do homem que eu queria encontrar. Dei mais uma olhada em volta e entrei. A primeira coisa que fiz foi ajoelhar atrás dele e começar a desamarrar suas mãos.
– Vamos, acorda.
Dean remexeu na cadeira. Dei mais uma olhada em volta e prendi a respiração, tentando escutar qualquer som que pudesse ser suspeito. Nada. Parei ao seu lado e comecei a tentar devolver um pouco de sangue para Dean, fazendo uma pressão constante na bolsa para que alguma coisa retornasse ao corpo dele. Enquanto eu me concentrava em ouvir qualquer som anormal, ele começou a abrir os olhos, conotando certa dificuldade.
... – A voz dele arrastou.
– Fica quieto que eu vou tirar você daqui. – Sussurrei.
– O que você tá fazendo aqui?
– Comprando um par de sutiãs vermelhos, da cor que você gosta, – Ironizei. – pra usar hoje à noite.
– Eu disse pra não vir atrás de mim.
– Ah, sim, claro. Você visivelmente tá conseguindo resolver tudo, não é mesmo?
Terminei de devolver o sangue da bolsa para dentro do corpo. O pouco de experiência veterinária que eu tinha com os animais da fazenda me faziam questionar se eu deveria ter feito aquele processo tão rápido, mas tempo era algo precioso demais naquele instante. Removi a agulha de seu braço e me abaixei na sua frente, desatando suas pernas.
– Isso fica com você, garanhão. – Eu disse, entregando uma das minhas facas.
Ajudei Dean a se levantar e passei seu braço por trás do meu ombro. Eu não tinha muita massa muscular nem nada que destacasse minha utilidade com Dean naquele instante, mas eu era o único apoio disponível. Ele tropeçou nos primeiros passos mas, logo depois, conseguiu firmar um pouco os pés. Aos poucos, pareceu ir recuperando os sentidos dos membros inferiores. Nós fomos dando passos pequenos na direção do lugar por onde eu tinha entrado, ele ainda depositando peso em mim.
– Seu pai estava certo.
– Do que você tá falando?
– Você e eu, isso... Não pode dar certo.
– Como assim? – Perguntei.
– Nós dois. – O vigor na sua voz aparentava estar se recuperando. – Eu só vou servir pra te colocar em perigo, na linha de tiro. Não quero ser o responsável pela sua morte. Você merece muito mais que isso.
Revirei os olhos.
– Eu sei que eu queria saber o que aconteceu naquele dia, mas você realmente quer falar sobre isso agora?
– Quero. – Ele afirmou.
– Dean, nós precisamos sair daqui.
– Isso não pode ficar... !
Foi instintivo. Eu me virei para me defender e, perdendo meu apoio repentinamente, Dean caiu no chão. Eu não conseguia vê-lo. O homem era mil vezes mais forte que eu e tentava colocar as mãos no meu pescoço. Com todo meu corpo lutando para impedí-lo, pegar a faca ficou difícil. Por cima do ombro do homem, vi outro chegando e só conseguia pensar em Dean. Uma força que eu desconhecia fez com que eu me livrasse do primeiro homem, acertando a barriga dele em cheio com o joelho. Quando ele se contorceu, me preparei para pegar a faca, mas o filho da puta me puxou pelo braço. Do mesmo jeito que ele tentou me virar, acertei uma cotovelada na cara dele. O primeiro soco acertou em cheio a minha boca e o gosto de sangue não era surpreendente. Quando tentei reagir, outro no nariz e eu senti tudo à minha volta girar.
O canto onde Dean deveria estar se encontrava vazio. Eu me distraí e o homem conseguiu me colocar contra a parede, apertando seu antebraço contra o meu pescoço.
– Pena que uma menininha como você não serve de nada pra gente.
Eu queria lutar, mas minhas forças já estavam fugindo do meu corpo. A dor, a falta de ar, tudo se juntava contra mim. As minhas vistas começaram a escurecer logo e eu me convenci de que o fim havia chegado. Quando finalmente aceitei meu destino, eu vi a lâmina atravessar a barriga do homem. O aperto na minha garganta sumiu e eu consegui puxar uma boa quantidade de ar. Dean estava visivelmente sem energias, mas ainda olhou preocupado para mim.
– Você tá bem?
– Vou ficar bem quando... – Fiz uma pausa para pegar mais ar. – ... quando você retirar as besteiras que acabou de falar.
Dean ofegava.
– São só dois?
– São. – Ele respondeu.
Nós dois levamos um tempo para nos recuperarmos.
, você sabe que é verdade. – Dean quebrou o silêncio.
– Ah, eu sei?
– Se não sabe, deveria saber que eu sou sua sentença de morte. Eu acho melhor nós seguimos caminhos diferentes a partir de agora, pela sua própria segurança.
Eu olhava para ele, incrédula.
– Eu acabo de te salvar e é assim que você me agradece?
, tenta me entender.
Parei por um instante, como se as peças encaixassem.
– Era uma missão suicida, não era? Você não queria ser salvo.
...
– Não mente pra mim! – Gritei.
Dean sequer olhava nos meus olhos e também não me respondia. Eu não sabia no que acreditar.
– Quer saber, Dean? Foda-se. Vai embora então, porra! Como um covarde filho da puta que você é, sem nem ao menos me dar a chance de saber o que aconteceu pra chegar ao ponto de você falar essas merdas.
– Você acha que é fácil.
– Não é o que você quer? Então fique com isso.
Eu me virei, decidida a ir embora, contendo as lágrimas, quando Dean me puxou de volta e, pela nuca, me levou até sua boca. Não sabia se o gosto de sangue era meu ou dele. Cada parte da minha cabeça latejava de dor, mas eu definitivamente só conseguia retribuir. Dean se afastou e encostou sua testa na minha, também com dor.
– Não é o que eu quero, . Eu quero você.
– Então fica. – Eu disse, chorando.
Ele olhou nos meus olhos por alguns instantes.
– Você tá sangrando. Muito.
Dei de ombros. Enquanto eu ainda ajudava Dean, nós saímos para encontrar Sam e meu pai, que tinham acabado de parar do lado de fora, com cara de preocupados. Sam foi o primeiro a correr na nossa direção e tomou meu lugar, ajudando o irmão. Assim que relaxei, foi inevitável cair no chão. Minha garganta e peito doíam ainda por conta do sufocamento, e eu sentia como se minha cabeça fosse explodir. Meu pai imediatamente surgiu ao meu lado, tirando um lenço do bolso e entregando para mim.
– Se continuar me desobedecendo, vai ser só isso que vai conseguir. E um dia eu não vou estar aqui pra te resgatar.
– Eu não precisava de resgate e, se isso foi uma ameaça, agradeço, mas já tenho várias.
, eu quero que você...
– Você não quer nada. – Eu resmunguei. – Você vai me respeitar porque sou sua filha, não seu funcionário. Não importa se você tem medo, preocupação ou simplesmente queira mandar em mim por função do hábito, você vai aceitar que eu sou grande o suficiente pra fazer minhas escolhas e lidar com as consequências delas. Então eu vou entrar no meu carro com o cara que mandou pra morrer a custo de nada, vou levar ele pra casa e cuidar dele, você goste ou não.
...
– Se você tiver uma objeção, – Disse, me levantando lentamente. – não tem problema, porque sei que meu tio nunca vai fechar a porta pro Dean, muito menos pra mim. E eu não me importo em dirigir até a Dakota do Sul.
Meu pai se manteve imóvel, a cara fechada que ele geralmente usava com monstros, não com a filha.
– Foi o que pensei. – Finalizei minha argumentação. – Sammy, me ajuda aqui.


Capítulo 29


Havia um ferimento grande que ia da têmpora até o maxilar de Dean. Possivelmente, precisava de uns pontos, mas eu não tinha sangue frio para fazer aquela parte do processo. Peguei algumas gases antigas que tínhamos em casa e embebi uma parte delas em álcool 70º. Dean protestou quando eu encostei em sua pele, próximo ao machucado.
– Se você foi homem o suficiente pra fazer essa merda sozinho, tem que ser homem o suficiente pra aguentar uma limpeza de ferimento.
– Vai ficar jogando na minha cara até quando?
Desprezei as gases sujas e busquei um novo conjunto, dessa vez umedecendo com água morna. Voltei a trabalhar em Dean, tentando ao máximo manter meu rosto sem reação.
– Até quando você se conscientizar da merda que você fez.
– Você não entende meus motivos.
– Certamente, não, Dean.
– Então não precisa cuidar de mim.
– Se você continuar com essa pirraça, eu vou voltar com o álcool.
Passos ecoaram atrás de mim, me fazendo diminuir a velocidade com a qual cuidava dele.
– Seu pai acabou de sair e levou bastante roupa, se serve de alguma coisa.
– Obrigada, Sam.
Ele limpou a garganta.
– Posso ter um momento a sós com meu irmão?
Terminei de secar a ferida e joguei todas as gases na sacola plástica aos pés da cadeira que estava usando. Limpei as mãos na calça e me levantei. No mesmo instante em que me virei, a mão de Dean capturou o meu braço que estava mais próximo dele. Eu me limitei a olhar para ele e, sem dizer uma palavra, me libertei. Não tinha a mínima intenção de escutar a conversa por trás das paredes, então me direcionei ao meu quarto. Fechei a porta, tirei as roupas empapadas de suor e fui para o banheiro da suíte. Um banho quente era tudo o que eu procurava no final do dia e, em especial naquela madrugada, era o que eu precisava.
Deixei o celular tocando música baixinho na janela do banheiro e decidi, de última hora, lavar o cabelo. Estava já na segunda etapa quando ouvi batidas na porta do banheiro, que estava aberta. Afastei um pouco a cortina, suficientemente para ver Dean, estático, no batente. Forcei uma cara fechada e devolvi a cortina para o seu devido lugar.
– O que você quer?
– Achei que você fosse terminar o serviço.
– Pode esperar. – Resmunguei.
Ele deu passos, claramente entrando no banheiro. Pelo som, podia imaginar que ele estava sentando na bancada da pia.
– Eu sinto muito, .
– Não é o suficiente.
– Eu sei que não, mas você não faz ideia das coisas que seu pai disse pra mim.
– Certamente não faço, porque você não fez o mínimo esforço pra me contar.
– Você é implicante demais.
Eu sorri. No tom de voz dele, podia sentir o seu revirar de olhos padrão. Dean estava certo, afinal de contas. Não tinha capacidade mental de negar minha felicidade e alívio por ter conseguido resgatá-lo a tempo, com danos que uns dias de repouso poderiam recuperar facilmente, mas dar corda para as maluquices de Dean Winchester era suicídio – literalmente, às vezes. Se eu me fizesse de fácil, o que era extremamente natural para mim naquela condição, Dean ia achar que estava tudo bem e, por mais que eu estivesse feliz, não tinha nada que estivesse bem.
– Sonhei com você quando estava lá.
– E isso é problema meu por qual motivo?
– Dizem que os sonhos que as vítimas dos djinns tem não são intencionais, é apenas o cérebro da pessoa projetando o que a pessoa gostaria de viver.
Voltei a afastar a cortina, deixando meu rosto à mostra.
– Ainda não entendi o que eu tenho a ver com isso.
Ele me fitou com aquele olhar penetrante que eu odiava resistir.
– Você sabe bem o que tem a ver com isso.
Fechei o ralo da banheira e deixei começar a encher. Joguei um pouco de sabonete líquido na água e me mantive em silêncio enquanto a água subia. A espuma se espalhava pela superfície da banheira inteira e eu me dei por satisfeita. Fechei o registro e escorreguei para baixo, me escondendo sob a espuma. Afastei de vez a cortina inteira, Dean ficando um tanto quanto surpreso.
– O que você quer de mim, Winchester?
– Seu perdão. Um daqueles seus hambúrgueres artesanais. Quem sabe um...
Ele fez cara de sacana e eu tratei de franzir a testa, desviando o olhar do dele.
– Hora errada pra esse tipo de piada?
– Não podia ser uma hora mais errada. – Afirmei.
Dean sorriu, fitando o chão.
– Seu pai colocou as cartas na mesa comigo, e eu entendi. Ele não quer essa vida pra você, quer que você se case, tenha filhos, construa uma família, e sabe que nunca vamos ter isso. E eu não poderia concordar mais com ele. Quero que você tenha isso tudo. Essa vida não é pra você.
– Acho que já conversamos sobre isso.
– Já?
– Se meu pai não me queria nessa vida, não me explicasse quem era John Winchester.
– E nós não teríamos nos conhecido.
– Até pouco tempo, você nem ligava pra mim.
– Eu sempre liguei pra você. Não querer me envolver romanticamente com você antes não quer dizer que eu não te amava e eu já te disse isso. Também já disse que abandonaria essa vida por você, mas seu pai me mostrou que talvez as consequências, a essa altura, sejam inevitáveis. E ele tem razão. Meu rosto e meu nome já estão marcados demais. Você ainda tem jeito.
– Lembro bem que você disse que abandonaria essa vida se fosse pra me proteger. Se isso já é inviável, então acho que não tem mais discussão. E eu sou conhecida como a garota dos Winchester, tenho tanto jeito quanto você.
– Não é só pra te proteger que eu deixaria essa vida.
– Pra quê mais?
– Pra ter com você o que eu e o Sammy nunca tivemos.
Seu olhar denunciava a dor que ele sentia e eu conseguia sentir parte daquele peso nas minhas costas. Foi assim que Dean baixou completamente a minha guarda. Estiquei a mão para ele, convidando-o para perto. Ele aceitou meu convite e se sentou junto à banheira, no chão. Eu o puxei para mim, enlaçando seu pescoço com um braço molhado, tomando cuidado com onde deixava o peso se apoiar. Beijei a área limpa de seu rosto e relaxei.
– Eu também não quero essa vida pra sempre, pra ser sincera. – Declarei. – Mas só serve se for com você.
– Eu não posso viver outra realidade.
– Diz isso sem tentar.
– Tentar e dar errado sairia muito caro pra você.
– E se der certo, Dean? Nunca passou isso pela sua cabeça?
Ele fechou os olhos e sorriu, recostando a cabeça na borda da banheira. Eu olhei para o teto e tentei relaxar ao som de sua respiração pesada. Não sei em que altura ele dormiu, mas não foi difícil perceber que ele estava inconsciente. Saí da banheira e, no mais profundo silêncio, me sequei e me vesti. Sam estava quase dormindo na sala, com a televisão ligada em um canal aleatório. Pela janela, saí para a varanda e, com passos curtos e leves, caminhei para fora dela. Crowley permanecia em pé, no limite da propriedade, logo atrás de onde eu sabia que havia uma chave de Salomão. Em silêncio e me mantendo do lado seguro, me aproximei.
– E então?
– Matar Lilith pode não ser a coisa mais fácil do mundo, mas não é impossível, certamente.
– O que você quer dizer com isso?
– Eu infiltrei um dos meus no exército de Lilith e tenho informações de que ela vai estar em Chicago.
– Uma cidade grande?! Não é arriscar demais, até mesmo para ela?
– Você ainda não me deixou colocar a cereja no topo do bolo.
Eu revirei os olhos.
– Diz o que você tem que dizer, Crowley.
– Lilith tem uma filha.
– Achei que ela tinha milhares de anos.
– Tem, mas Lilith nunca morreu. Lúcifer a transformou em demônio ainda em vida. Ela pode se transportar para outros corpos, mas habita originalmente o seu e tem todas as características humanas possíveis.
– Como você?
– Eu participei de outro esquema, querida. Não se esqueça de que minha mãe é a bruxa mais poderosa viva. Quando morri, conseguir voltar ao meu corpo foi a parte mais fácil. Mas não estamos aqui pra falar de mim, creio que você deve concordar. Então, preciso mastigar mais a comida ou você já está pronta para engolir?
– Tem como me informar quando ela estiver, com certeza, longe de Chicago?
– Não tenho melhor intenção que essa, minha cara.
– Qual o nome da garota?
– Hope Gilbert.
Seus olhos mostraram significativa reação de uma hora para a outra.
– Acho que você tem problemas.
Eu estava sozinha em um piscar de olhos. Quando dei as costas para o local onde Crowley estava, Dean me observava atentamente e nem um pouco feliz da varanda de casa. Abaixei a cabeça a caminhei de volta, certa de que iria ouvir uma tentativa de sermão quando terminasse de me aproximar dele. Seus olhos estavam pesados e a pele de seu rosto, repleta de machucados. Seus braços também não escapavam da situação e isso me apertava o coração, porque me colocava ciente dos riscos que ele tinha enfrentado. Nos últimos passos, eu decidi levantar a cabeça e colocar as cartas na mesa como se não houvesse nada a ser perdido.
– Dean...
– Sabe que eu quero explicações.
– E vai ter, se souber ouvir.
– Estou ouvindo.
– Ótimo então.
Subi a escada para a varanda com pequenos saltos, tomei o rosto dele em minhas mãos com cuidado e o beijei como se fosse a última vez. Ele me envolveu com seus braços, claramente sentindo dor ao forçar seu corpo, mas sem deixar de me segurar com a mesma força. Eu separei nossos lábios mas me mantive praticamente colada a ele, não me importando muito com o cheiro desagradável de sangue misturado com suor. Dean me continha como se não houvesse outra opção.
– O que foi que meu pai disse?
– O que foi que o Crowley disse?
– Perguntei primeiro.
Dean riu.
– Você parece uma criança.
– Olha quem fala. – Reclamei e ergui a cabeça, a fim de olhar em seus olhos. – Vamos, você me conta e eu prometo que respondo qualquer pergunta que você quiser.
– Você é teimosa, vai ficar com raiva do seu pai e não quero ser o protagonista nisso.
– Com raiva do meu pai, eu já estou, posso garantir. – Afirmei. – Agora cabe a você decidir se vou ficar com raiva de você também ou não.
Ele bufou e sentou no assoalho da varanda, me puxando para que eu fosse com ele. Nós dois ficamos observando o celeiro em silêncio por alguns instantes.
– Te ensinei a atirar ali.
– Tava pensando nisso também. – Comentei.
– Seu pai me deu um ultimato. Ou eu deixo você, ou ele dá um jeito de me fazer deixar.
– E você simplesmente aceitou.
– Fui criado pra obedecer qualquer ordem do meu pai sem questionar. Quando ele morreu, seu pai e seu tio assumiram o lugar dele.
– E eu, Dean? Onde eu encaixo nisso tudo?
– Seu pai não estava sem razão. Você tem tempo de sair dessa vida, ter uma vida normal, viver com mais segurança do que nós temos aqui.
– Então vem comigo, Dean! – Eu o chamei, sem pensar duas vezes. – Se for pra deixar essa vida e ficar sem você, sem o Sammy, não faz o mínimo de sentido pra mim. Eu não quero uma vida onde vocês não estejam.
– Eu não sei fazer outra coisa além de clonar cartões e atirar em coisas, , além de constar como alguém que deveria estar morto.
– Nós demos um jeito pra ficar fora do rastro da polícia durante todos esses anos. Quando eu passei um tempo com a minha mãe, trabalhei como mecânica. Não era o melhor salário do mundo, mas...
De repente, eu troquei um breve olhar com ele. Seus olhos brilhavam como eu nunca tinha visto e havia um resquício de sorriso em seus lábios que me parecia a coisa mais pacífica que eu havia presenciado durante minha vida inteira. Ele me puxou para perto carinhosamente, me abraçando e colocando um beijo por cima do meu cabelo.
– O que o Crowley disse?
– Lilith tem uma filha em Chicago.
– O quê?!
– Minha reação em um primeiro momento foi essa também, mas Crowley me lembrou que Lúcifer transformou Lilith em demônio enquanto ela ainda era humana, o que faz isso parecer um pouco menos ilógico.
– E a ideia do Crowley é...?
– Não nos falamos muito exatamente porque você apareceu e ele fugiu.
Ouvimos passos atrás de nós e Sam saiu na varanda com o telefone de casa em mãos.
– Bobby precisa de ajuda.
Eu troquei um último olhar com Dean e me levantei.
– Vai na frente, eu termino de limpar as feridas do seu irmão e a gente vai logo atrás.
Dean levantou, bateu as mãos nas coxas e se virou para nós dois.
– To pronto pra outra.
– Você perdeu muito sangue, além de estar correndo um sério risco de ter uma porção de feridas infeccionadas nesse seu rostinho de modelo texano.
– A gente para pra comer no caminho e você cuida de mim quando encostarmos pra dormir. Eu dirijo ou você dirige?


Capítulo 30


Meu tio me olhava parte com raiva, parte satisfeito, porque talvez ele entenderia meu pai mas gostaria mais de ter a sobrinha ao seu lado. Eu entendia, às vezes, que o significado de família para ele era muito diferente do que era para mim, principalmente depois dele ter perdido a tia Karen. Talvez, por causa disso, fosse mais fácil dele não ser totalmente contra eu e Dean estarmos juntos. Mesmo assim, ele ainda me olhava torto. Nós chegamos para salvá-lo de um lobisomen e ele, em sua postura de autossuficiente padrão, nos esnobou desde o primeiro instante. Mas, no final das contas, talvez sua tolerância se devesse à presença de sua querida sobrinha em sua cozinha, se empenhando em fazer seu prato preferido.
Dean se aproximou em silêncio, depois de um banho bem tomado. As feridas ainda estavam feias, mas o tempo trataria de curar aquilo. Ele enfiou o dedo na panela com molho, comportamento padrão de Dean Winchester, e provou. Pela cara, estava satisfeito com o resultado.
– Uma pimenta aqui cairia bem.
– Se você quiser, eu deixo você comandar tudo aqui. – Resmunguei, fazendo ele rir.
– Vai ficar brigada com seu pai até quando?
– Por que isso interessa agora?
– Porque você vai ter que contar pro seu tio, eventualmente, e a gente precisa deles pra fazer qualquer movimento com a Lilith.
Eu bufei e larguei o pano de prato em cima da bancada.
– Já lidamos com todo tipo de coisa, nós dois e o Sammy. Podemos lidar com isso também.
– Não sei se temos todo esse poder, . Isso é a maior coisa que já enfrentamos.
– O que é a maior coisa que vocês já enfrentaram? – Meu tio entrou na conversa, chegando sem ser anunciado.
Eu olhei para Dean, não muito satisfeita. Ele também não estava exatamente feliz, mas tinha mais paciência que eu para aquele tipo de situação. De qualquer forma, era lucro, porque aquilo afastaria ele das minhas panelas.
– Lilith.
Meu tio arqueou as sobrancelhas.
– Bem, vocês finalmente não falaram besteira. Mas isso é óbvio demais, então vocês não estão me falando tudo.
– Meu pai não tá falando comigo. – Joguei logo na mesa, me virando para os dois e apoiando a base das costas na bancada. – Ele tá puto com... Bem, o senhor sabe o quê.
Ele olhou de cara feia para Dean.
– Perguntei sobre Lilith, não sobre seu pai.
Eu revirei os olhos. Sam pareceu ouvir o chamado e se juntou a nós, parando próximo a mesa de jantar. A parte que mais me preocupava era contar que estava em negociação com um demônio. Foi quando decidi mentir.
– Descobrimos que Lilith tem uma filha em Chicago chamada Hope Gilbert.
– Como descobriram isso?
– Sam descobriu cruzando alguns dados pela internet. – Fui mais rápida que os meninos. – Mas o que importa é que temos uma carta na manga e agora, mais do que nunca, precisamos bolar um plano pra agir.
– Ok, isso parece a coisa mais absurda que eu já vi nessa vida.
– Eu sei, mas...
– O que o seu pai falou sobre isso? – Meu tio me interrompeu.
Eu simplesmente dei de ombros, sem ter muito como responder.
– Ele sumiu, não faço ideia de onde esteja e deixou bem claro que não quer saber das minhas ligações.
– E você não achou justo me contar disso? – Ele elevou a voz.
Meu tio era duro comigo, e justo também. Eu me encolhi onde estava, os meninos apenas escutando como sempre faziam quando se tratava de assuntos familiares. Sam foi o primeiro a se recolher para a sala, onde ele deveria passar a noite. Dean também ficaria lá, mas uma parte minha queria que ele ficasse comigo no quarto e a outra sabia que meu tio iria pirar com a possibilidade. Na manhã seguinte, sem nos despedirmos, deixamos a Dakota do Sul rumo, de volta, ao Kansas. Perto da divisa com o estado, após o anoitecer, eu não estava exatamente devagar quando o estrobo e a sirene de uma viatura policial surgiram na nossa traseira. Eu olhei para os meninos e respirei fundo, encostando e dando graças a Deus por ter sido escolhida a motorista daquele percurso.
– Boa noite, policial.
– Documentos.
Eu busquei minha licença no bolso da jaqueta e o documento do carro no para-sol. Entreguei imediatamente, evitando olhar nos olhos do policial.
– Saia do carro, por favor.
Dei uma olhada silenciosa e explicativa para os dois, que não moveram um músculo. Eu comecei a sair do carro e, no mesmo momento em que pisei fora, o policial me puxou pelo braço e me jogou contra a lataria, forçando meus braços para trás do meu corpo. Pareceu cronometrado, pois não houve um segundo de diferença entre este instante e Sam e Dean saindo do carro, já com suas respectivas pistolas apontadas na cara do policial e uma cara de poucos amigos.
– Que porra é essa? – Dean rosnou.
Eu olhei para ele, imediatamente, com um olhar de ‘deixa disso’, mas ele parecia completamente certo de que não ia arredar pé dali.
– Vocês dois, voltem pra dentro do carro agora. Caso contrário, prendo vocês também.
– Traz as algemas então. – Dean, mais uma vez, instigou o policial.
Senti o gelado do metal prendendo meus braços numa posição nada confortável enquanto ele se encaminhava na direção de Dean. Ao se aproximar, uma coronhada bem dada tratou de deixá-lo desacordado. Eu não sabia se estava agradecida ou assustada, mas sabia que meu coração estava mais acerelado do que de costume. Dean olhou para mim, como quem perguntava o que fazer em seguida. Eu simplesmente dei de ombros, os olhos arregalados.
– Tem câmera na maldita viatura, Dean. – Sam falou, indo na direção do carro e com as mãos na cabeça, desesperado tanto quanto eu.
– Verifica se ela transmite simultaneamente. – Dean disse, vindo para perto de mim com um molho de chaves em mãos. – A gente precisa levar ele pra algum lugar.
– Se meu pai chegar em casa e ver isso, a casa acaba de cair.
– Pra onde você sugere então?
Sam fez um barulho na viatura e saiu com algo em mãos e fios pendurados.
– Os dados têm que ser coletados, não tem nenhum tipo de transmissão.
– Ótimo. E então, ?
– Eu que te fiz uma pergunta.
– Eu não sei! – Dean gritou.
Em meio às perguntas, ninguém reparou que o policial havia acordado e estava se colocando de pé. No exato em que notei sua silhueta contra a vegetação da margem da estrada, não tive tempo de avisar Dean. Ele foi atingido imediatamente por um taser e, logo depois, o policial apontou uma arma para mim.
– Mãos no capô. Agora!
Uma luz veio do céu. Não consegui ver mais nada desde então, apenas me limitei a tampar meus olhos com o antebraço. Um cheiro de fumaça invadiu minhas narinas, me fazendo questionar o que estava acontecendo ali. Quando me permiti dar uma espiada, um homem em um sobretudo marfim nos encarava – três crianças sem entender o que estava acontecendo.
– Quem é você? – Dean perguntou, forçando a voz a ficar mais grossa.
O homem sorriu levemente, com uma calmaria e paz que eu desconhecia. Ele se aproximou de mim com passos curtos. Dean levantou a arma na direção dele.
– Vou perguntar mais uma vez. Quem é você?
Eu, de alguma forma, me sentia presa àquele homem. Não conseguia reagir, mesmo quando Dean disparou o primeiro tiro. O homem esticou a mão na direção da minha cabeça, Dean ainda atirando e com cara de aterrorizado. Quando ele começou a vir deter o homem, eu saí de órbita. E então as memórias me atingiram como um torpedo.
A sensação de estar morrendo era vívida, como se eu pudesse sentí-la. Castiel – agora eu me lembrava dele – foi o primeiro a chegar. Ele se ajoelhou ao meu lado, lágrimas nos olhos. Era a primeira vez que ele sentia aquilo e, embora assombrado, não conseguia tirar os olhos de mim. Eu virei a cabeça e Dean estava sem vida, já com lábios roxos. O aperto no meu coração era tanto que me sufocava. Castiel, em um momento, se levantou. Havia alguém atrás dele e eu não conseguia me lembrar quem era. Por mais que as sensações fossem terríveis, era como um pesadelo onde eu não conseguia fugir do meu destino. Tudo o que eu podia fazer era continuar deitada no chão, embebida em meu próprio sangue, e esperar.
– Lúcifer, já disse. O que você quer?
Era de Lúcifer mesmo que ele estava falando? Essa parte não era memória, eu realmente não tinha vivido aquilo em nenhum momento. Castiel se aproximava dele, imponentemente, com toda a coragem que eu jamais havia visto em alguém. O outro homem sorria de forma macabra.
– Se você perder eles, vai perder tudo o que ama, Castiel. É tudo o que eu quero.
– Tem que haver outro jeito! – Ele gritou em resposta.
– Na verdade... Há. Mas tenho minhas condições.
– Eu estou ouvindo. – Castiel insistiu.
– Você vai apagar a sua existência da memória deles. Você, especificamente, sem alteração no acordo, porque eu sei bem o quanto isso vai doer em você. E eu quero que você olhe eles de cima, Castiel. Quero que você os veja sendo felizes sem você e quero que você se sinta um merda, como eu me senti!
– É essa a condição?
– Se você tentar interferir na vida deles, seja por um segundo, em qualquer situação, eu estalo meus dedos e eles viram pó.
– Feito. – Castiel disse, sem pensar duas vezes.

Quando eu abri de novo os olhos para a realidade, tudo estava lá. O carinho imensurável por um anjo no qual eu ainda não conseguia acreditar. As risadas causadas por seu jeito atrapalhado ainda estavam bem fixas na minha mente. De alguma forma, eu ainda sentia aquilo tudo. A primeira vez de Castiel perto de um cavalo, como ele questionava nossos hábitos alimentares, cada observação sem fundamento que ele fazia mediante nossos casos que, no final das contas, faziam todo o sentido. Todas as memórias voltaram de uma vez. Eu olhei para ele sem acreditar, porque tanta coisa fazia sentido naquele instante que eu não sabia por onde começar.
Assisti e aguardei enquanto ele recuperava a memória de Sam e Dean. Nós três, no final daquela sessão, estávamos sem reação. O primeiro a fazer um movimento foi Dean, que o abraçou com uma força descomunal. Sam, sem conseguir conter o sorriso, o abraçou logo em seguida com fortes tapas nas costas. Eu, por minha vez, ainda estava estática e incrédula. Castiel sorriu para mim mais uma vez.
– Também senti sua falta, criança. – Ele disse e me abraçou.
As coisas só ficavam mais e mais estranhas, mas eu sentia uma necessidade enorme de abraçá-lo de volta. Foi o que fiz, sem mais hesitar. Meu coração, batendo mais forte ainda, estava completamente descompassado. Eu tentava assimilar a quantidade de memórias recém retornadas à minha mente com a realidade do momento. Castiel me soltou e se posicionou centralmente a nós três.
– Bem, meus amigos, tenho boas notícias. Lúcifer está morto.
– Castiel, e-eu... – Dean se atrapalhou nas palavras. – Por onde você esteve esse tempo todo?
Ele sorriu.
– Olhando vocês, mas também olhando Lúcifer. Há uma guerra no inferno de tamanho imensurável que está se desencadeando por falta de lealdade.
– C-Cas, e-eu... E-eu... – As palavras simplesmente não queriam sair da minha boca.
, senti tanta falta de você.
Eu olhava de Sam para Dean como se procurasse apoio, mas os dois estavam no mesmo estado catatônico que eu.
– Entendo que estejam assustados, e responderei a quaisquer perguntas que vocês possam vir a ter. Mas, exatamente agora, acho melhor sairmos da estrada.
– Castiel, por quê? – Sam perguntou.
– Porque a vida de vocês três vale muito mais do que a minha felicidade em ter vocês por perto.
– Você poderia ter tentado alguma forma de se comunicar com a gente, seja lá como.
– E correr o risco de Lúcifer me descobrir e machucar vocês? De jeito nenhum!
– Se Lúcifer morreu... – Dean começou a falar. – Quem matou?
Castiel olhou para o chão e de volta para nós, focando especialmente em mim.
– Crowley matou Lúcifer.


Capítulo 31


– Dá uma olhada na internet, sei lá...
– Eu já olhei. – Resmunguei, revirando os olhos. – Esse é o caminho mais rápido.
– Quando a polícia pegar a gente, eu quero que você invente uma boa história e diga que eu te enganei esse tempo todo. E trate de fazer uma boa atuação e treinar uma cara de indignada, assustada ou qualquer outra coisa.
– Dean, ninguém vai pegar a gente.
– Você tem certeza demais das coisas. A gente tá numa das cidades mais populosas da merda desse país e você...
– O sinal fechou! – Eu gritei, o interrompendo. – Se continuar com essa sua neura de estarmos em uma cidade grande, vai bater o carro.
– Melhor ainda não termos vindo com o Impala.
– É, muito melhor... – Murmurei, olhando o painel cheio de botões da Honda.
O hostel que arrumei online ficava próximo ao lago Michigan, o que significava que, no pior dos casos, fugiríamos pelo canal que levava ao lago Superior e, consequentemente, ao Canadá. Se eu sabia dos riscos? É claro que sabia. Mas ficar sentada, de braços cruzados, esperando pelo próximo movimento de Lilith, era mais arriscado ainda. Nós nos acomodamos em um quarto com banheiro privativo. Inventei uma história sobre despedida de solteira e discrição, que a mulher da recepção aceitou fácil até demais. Os rapazes não precisariam se identificar.
Dois segundos depois de Sam, o último, ajeitar suas coisas em cima da pequena mesa, Castiel se projetou para dentro do quarto. Eu respirei fundo enquanto tentava controlar o susto.
– Acho que eu preciso calibrar melhor isso. – Ele murmurou, a voz grave de sempre.
– Você acha? – Questionei, ainda afetada. – Ótimo!
– O que você conseguiu? – Dean perguntou energicamente.
– A garota existe. – Castiel começou. – Trabalha como atendente em uma lanchonete chamada Stan’s Donuts and Coffe.
– Donuts. – Dean repetiu. – Ótimo, a comida favorita de policiais.
– A sua também. – Sam interviu.
– Alguma garantia de que ela é realmente quem Crowley disse que é?
Dean revirou os olhos só de ouvir o nome. Eu quase sorri.
– Senti algo quando encostei nela.
– Só por garantia... Você fez isso como, Cas?!
– Entregando o dinheiro pra pagar o café.
– E você tomou o café? – Insisti.
– Joguei no lixo.
– Por garantia, mais uma vez, que dinheiro você usou pra pagar? – Dean perguntou.
– Peguei da bolsa de uma mulher que estava no banheiro.
Nós três trocamos um olhar. Eu ri. Sabia que era errado, mas não pude evitar. Precisávamos controlar a possibilidade de levantar suspeitas, então ficamos no quarto durante o restante do dia. Não que levantar suspeita fosse fácil na nossa situação. Chicago tinha, por si só, quase três milhões de habitantes. O Illinois, quase treze milhões, o quinto estado mais habitado do país. Atravessando a fronteira, tínhamos o estado que abrigava a capital canadense, e aí mais – pelo menos – quatorze milhões. O Michigan e Indiana ficavam mais perto ainda, apenas um lago de distância, e possuíam uma população estimada em dez e sete milhões, respectivamente. Eu tinha feito minha pesquisa, conhecia o país inteiro, e só precisava de uma boa história para justificar minha presença ali.
Nem assim Sam e Dean deixaram de se sentir tensos no outro dia, enquanto eu me arrumava para deixar o hostel rumo à Stan’s Donuts and Coffee. Discutimos bastante até chegar àquela decisão. Castiel foi fundamental, principalmente no que dizia respeito a manter os meninos sob controle. Eu sabia que Dean ia dar um jeito ou outro para fazer uma besteira – Castiel não era um bloqueio, era apenas um atraso. Mesmo assim, eu dei uma boa olhada na calçada antes de adentrar o ambiente.
Atrás do balcão, apenas dois homens. Arqueei as sobrancelhas por alguns breves instantes antes de terminar de dar meus passos até o caixa.
– Boa tarde, senhora. Em que posso ajudar?
Eu hesitei. O painel acima da cabeça dele denunciava o menu eletrônico, anunciando mil e um tipos de donuts diferentes. A desculpa era ótima para justificar minha confusão e demora. Não havia garota nenhuma ali.
– B-boa tarde. Eu q-quero um com recheio de... De... de Doce de leite! Isso. Quero um com recheio de doce de leite e cobertura de chocolate.
– Certo. – O rapaz me respondeu, mexendo no computador. – E pra beber?
– Um capuccino, por favor.
– Perfeito. Deu US$ 9,65.
Entreguei uma nota de dez dólares e deixei o troco. Quando o rapaz me entregou o pedido, sentei em uma mesa que me desse uma boa vista, tanto do lado de fora quanto da porta de entrada e da movimentação atrás das bancadas. Eu comi de forma exageradamente lenta, aguardando como se o tempo fosse me trazer uma resposta, mas foi à toa. Não havia mais motivo para me demorar ali, não sem chamar atenção. Eu me levantei, fui até o caixa, levei alguns donuts sortidos para a viagem e saí da loja. Ainda na calçada, puxei o celular e disquei um dos números que estava com Dean. Ele atendeu em dois toques.
– Não consegui nada.
– Como assim?
– Ou Cas me passou uma informação errada, ou ele confundiu as coisas. Não sei. Mas não é aqui...
Eu fiquei sem palavras. Em minha direção, vinha uma garota. Devia ter por volta de vinte anos. Era loira, olhos verdes oliva. Eu nunca havia visto Lilith em sua forma original, mas meu instinto dizia que parecia com aquela garota. O uniforme da loja de onde eu acabara de sair denunciava que ela era sim meu alvo. Ignorei completamente a voz de Dean, que me chamava incansavelmente do outro lado da linha. Desliguei o aparelho, enfiei no bolso do sobretudo e – me certificando de que não havia câmeras apontadas para nós, coisa que eu já havia feito ao entrar – sorri para a moça.
– Com licença... Hope Gilbert?
Ela levantou os olhos para mim e sorriu.
– Sim. Posso ajudar?
– Tudo bem com você? – Perguntei, cordialmente, e retirei um cartão de visitas previamente forjado de um dos meus bolsos. – Meu nome é Melanie Pattinson, sou coordenadora de equipe da South Corner. Um amigo, parceiro de projeto, esteve aqui e te viu. Temos uma estilista que pediu por modelos com características específicas. Você encaixa perfeitamente na sua descrição, chega a parecer sobrenatural, e eu sei que isso tudo parece loucura, mas gostaria de saber se você teria um tempo para nos conhecermos melhor.
Hope estava assustada. Até então, nada fora dos trilhos.
– Bem... Senhora...?
– Melanie, pode me chamar de Melanie. – Respondi.
– Melanie, isso é demais pra mim. Acho que fui atingida por uma avalanche.
– Sem problemas, querida. Por isso, o meu cartão. Não é nada pornográfico, somos uma agência seríssima. Você conhece o estúdio fotográfico na Ada Street, não muito longe daqui?
Ela deu de ombros.
– Sim, passo por ele com certa frequência.
– Seriam sessões divididas em três dias. É pra uma coleção de vestidos de gala. O cachê total soma US$ 600 mais um dos vestidos. À sua escolha.
Hope, mais uma vez, hesitou. A garota era, no mínimo, muito inteligente. Eu a observei em silêncio enquanto ela me inspecionava por completo.
– Posso pensar?
– Claro. Mais uma vez, é pra isso que há o cartão.
Trabalhei no meu melhor sorriso.
– Me ligue e nós marcamos um encontro.
– Farei isso.
Sorri mais uma vez e me afastei, o sorriso desaparecendo assim que virei a esquina. Busquei o celular no bolso, Dean estava ligando naquele exato momento. Confirmei que não estava sendo seguida e atendi.
– Você ficou louca?!
– Ela mordeu a isca. – Declarei.
– O quê?!
– Ela mordeu a isca, Dean.
– Mas você não disse...
– Esquece o que eu disse. – Eu o interrompi. – A garota mordeu a isca. Agora é só aguardar.
A pesquisa prévia muito bem feita por Sam teria que dar um jeito. A agência existia, a funcionária existia, tinha características parecidas com as minhas – que o óculos escuro e o cabelo mal arrumado embaixo do chapéu tenebroso deveriam dar um jeito de permitir confundir caso ela se deparasse com uma foto da verdadeira Melanie Pattinson. Uma busca no Google, que ela provavelmente faria, deixaria tudo confirmado e era só esperar. O problema era que nós, caçadores, não esperávamos. Não éramos pacientes coiotes caçadores de papaléguas, que colocavam um pouco de grãos sob uma pedra suspensa e esperávamos, espreitando de cima de um morro, pelo momento de soltar a pedra e pegar nosso alvo. Nós éramos humanos. Entrávamos para caçar com nossos rifles e, se possível, utilizávamos métodos para localizar nossa presa antes. Nós queríamos o sangue, a matança, o cheiro de carnificina que ficava para trás, mesmo quando alguns inocentes eram vitimados no caminho e nosso emocional se abalava. Era doentio pensar assim? Que fosse! Era a verdade.
Por isso que sentar e esperar pela ligação de Hope naqueles três dias era mórbido. Queríamos a ação, mas precisávamos esperar. Não haveria ação. Haveria, sim, mais espera. Através do celular, Crowley mandava mensagens, confirmando que Lilith estava seguramente distante de nós. A questão era que, no quarto dia, eu tinha um encontro com Hope. A falta de procura de detalhes na ligação me fez desconfiar de uma coisa: ela não fazia ideia de quem era.
Consegui, ironicamente ou não, que ela me encontrasse próximo ao lago, em uma praça harmoniosa e desprovida de câmeras públicas. Depois de uma troca de palavras investigativa – da minha parte –, convidei-a para seguir comigo até o estúdio. O carro estava parado em local estratégico, previamente estudado. Um sedan de luxo com vidros escuros aguardando uma mulher tão bem vestida quanto eu – e a situação era engraçada ao extremo para mim e os meninos – não ia ser estranhado. Cas, vestido de chofer, nos recebeu sorridente e abriu a porta. Primeiro, eu entrei. Logo depois, Hope entrou no carro também e partimos. Seguimos o plano A, e ele deu certo. Ofereci água e ela aceitou, pegando no sono em alguns instantes após o primeiro gole.
Dispensávamos violência ou quaisquer de seus derivados naquele caso. Hope era inocente, até que se provasse o contrário. Até então, ela nem fazia ideia do que estava acontecendo. Estávamos nos Everglades, na cabana. A construção estava infestada de proteções contra todo tipo de ser, com exceção de anjos, para que Castiel tivesse passe livre ali. Revezávamos conforme havia necessidade. Hope nos questionou, aterrorizada, várias e várias vezes, sobre o que queríamos com ela, se iríamos matá-la, se ela podia fazer alguma coisa para barganhar por sua liberdade. Nós insistíamos que ela não iria sofrer, que ela era apenas uma isca.
Hope não entendia nada. Quando perguntei sobre sua mãe, ela disse que morreu no parto e havia sido criada apenas pelo pai. Perguntei sobre o nome Lilith, nada ainda. Aquilo me fazia pensar que Lilith ou espreitava a menina como o coiote faz com o papaléguas, sem se deixar conhecer, o que ia fazer com que demorássemos bastante, ou que ela tinha informantes, e aí poderíamos incluir o pai da jovem. Tudo era muito impreciso. Questionei Hope sobre a possibilidade dela ter contado sobre mim para alguém, disse que se tratava de uma amiga, mas ela não iria achar nada com a real South Corner. Ok, ponto para nós.
Por enquanto, não tínhamos intenção de que Lilith nos descobrisse. Ainda não sabíamos o que iríamos fazer quando ela chegasse, só sabíamos que a briga ia ser feia. Precisávamos nos preparar, e Hope nos daria todo o tempo do mundo. Disquei o número da única pessoa que poderia nos ajudar em um dos momentos em que me permiti ir até o lado de fora da cabana. Ele atendeu em dois toques.
– Vocês o quê?!
– Tio, não tinha outro jeito e...
– Vocês fazem ideia do quão arriscado isso foi?
– Mas deu certo, não deu? – Reclamei.
– Pode estar dando certo até agora, mas vocês têm tempo de sobra pra dar errado.
Nós ficamos em silêncio por alguns instantes.
, vocês deviam ter me consultado.
– Foi uma ação rápida.
– Rapidez geralmente anda de mãos dadas com falta de planejamento.
– Não foi mal planejado, tio, tanto que não tivemos que apelar pra nenhum plano secundário. – Eu insisti na nossa capacidade. – Além do mais, o Cas tá com a gente.
Ele respirou fundo. Conhecia meu tio e sabia que ele estava andando de um lado para o outro da cozinha, bufando e segurando o celular com mais força do que o necessário.
– Traga a garota pra cá.
– Ok, vou combinar com...
– Não. – Ele me interrompeu. – Me diga exatamente a sua localização. Vou mandar gente de confiança. Lilith tá de olho em vocês, especificamente. Vão pra outro lugar, disfarcem. Tem um caso no Iowa, vocês devem ir pra lá.
– Mas nós acabamos de voltar do norte!
– Faça o que eu disse, . O reforço chega, no máximo, em um dia.
E desligou.


Capítulo 32


Sentar e esperar. Puta que pariu!
– Ei. – Dean me chamou. – Precisamos ir.
– Preciso falar com meu tio. – Resmunguei, pegando novamente no celular e discando o número de novo, à toa.
– O Cas tá de olho.
– Não estou na cabeça do Cas.
– Mas ele tá contando pra gente.
Revirei os olhos.
– Às vezes, eu acho que você namora mais com ele do que comigo.
Dean fez cara de poucos amigos e Sam riu da piada.
– Nós estamos atrasados.
– Nós sempre estamos atrasados. – Reclamei mais. – Vira pra mim.
Ajeitei a gravata borboleta no pescoço de Sam e ri.
– Você tá uma graça.
Às vezes, eu acho que você namora mais com o Sam do que comigo. – Dean resmungou, me fazendo revirar os olhos novamente. – Piadas a parte, é sério, precisamos ir.
– Estou pronta.
Sam foi na frente enquanto eu pegava uma carteira que comprei especialmente para aquela noite. Dean aproveitou que estávamos sozinhos e espalmou a mão na minha bunda, apertando com vigor em seguida.
– Você tá linda nesse vestido, mas eu mal posso esperar pra tirar ele do seu corpo e...
– E nada! Sam tá no mesmo quarto.
– Puta que pariu.
– Aceita.
Deixei Dean com um sorriso no rosto. O caminho até a associação beneficente que iríamos visitar naquela noite foi curto e silencioso. Adentramos o local com os irmãos me segurando pelo braço, um de cada lado. Nunca me senti tão nova, a média de idade ali era de sessenta anos. Tratei de buscar uma taça de vinho do primeiro garçom que passou por nós. Dean protestou porque não peguei uma para ele.
– Vocês estão vendo a senhora Rockfeller em algum lugar?
– Quando você fala em voz alta, – Dean zombou do irmão. – parece bem pior.
Sam deu de ombros.
– É o que temos, não é?
– Meninos, comportem-se. – Murmurei. – Seja como for, vamos dar um jeito de fazer dar certo, como sempre fazemos, ok?
– Ok, mamãe.
– Dean!
– Tá bom, parei.
– Vou conversar com os convidados e tentar obter alguma informação útil sobre os curadores do evento. Enquanto isso, não ajam como completos idiotas.
Sam se afastou, nos deixando sozinhos. Havia, próximo a nós, uma pequena banda que tocava baladas românticas. Antes que eu pudesse notar, Dean estava estendendo uma mão para mim.
– Não vamos ter oportunidade como essa novamente. – Ele sorriu.
Nós nos encaminhamos para o espaço reservado para dança. Dean colocou as duas mãos em minha cintura, me puxando para bem perto, e eu tratei de enlaçar o seu pescoço.
– O que exatamente estamos fazendo aqui?
– Aproveitando o pouco de vida normal que podemos experimentar. – Dean respondeu.
– Eu estava me referindo diretamente ao caso mas, já que você quer enveredar por esse caminho, deveria parar de falar besteira.
– Que besteira eu estou falando agora, senhorita?
– O pouco de vida normal, Winchester?!
– É, pouco. – Ele insistiu.
– Você joga a toalha muito fácil. Seu pai teria vergonha.
– Não é sobre jogar a toalha, , é sobre...
Eu tomei seu rosto em minhas mãos e o puxei para perto, tratando de encaixar meus lábios nos dele imediatamente e o impedir de continuar derramando palavras em vão. O aperto em minha cintura aumentou. Agora, embrenhava meus dedos no cabelo dele e puxava delicadamente os fios que estavam ao meu alcance. Senti sua mão subindo pelas minhas costas, até alcançar meu pescoço e, mantendo o mesmo tipo de pressão, me obrigar a afastar nossos rostos.
– Eu amo você, .
– Então não diga que não tem possibilidade fora disso aqui.
– Mas não...
– Quieto. – Ralhei.
A banda já tinha parado mas nos recusávamos a colocar distância entre nós. Poderia apostar que nossos batimentos cardíacos e frequências respiratórias estavam em sincronia. Os nossos olhares, ao menos, certamente estavam. Esperei um novo beijo, mas um grito quebrou o bonito momento que compartilhávamos. Foi instantâneo. Eu levantei a saia do vestido e busquei pela arma, presa à cinta liga. Quando pensei em olhar para Dean, ele já estava com a sua. As pessoas corriam, nos deixando mais confusos ainda. Foi aí que eu pensei na única coisa que estava faltando naquele quadro. Sam.
Veio a baixa na temperatura, vieram as luzes piscando, e veio aquela maldita sensação de que as coisas começariam a dar errado. Muito errado. No meio da confusão, Sam surgiu de um ambiente lateral ao nosso. Ele ajudava a direcionar as pessoas para fora do lugar enquanto eu queria enfiar a mão na cara dele pelo susto. As luzes, ainda inconstantes, nos deixavam saber que o problema estava ali, entre nós. E, enquanto nós trocávamos olhares sem entender nada, uma fumaça negra entrou na última pessoa, que ainda se encaminhava para deixar o local. Olhou para nós e partiu junto à multidão.
– Você olhou bem pra mulher?
– Eu sou péssimo com rostos.
– Merda... A velha tá viva?
– Dean, a lista de convidados. Nós podemos checar...
– ... Um por um? Ótimo, vamos pro asilo mais próximo.
– Dean!
! – Ele me gritou de volta, confuso. – Precisamos sair daqui, vão começar a desconfiar.
– Isso são sirenes?
– Merda! – Nós três gritamos em uníssono.
A corrida até onde o Impala estava encostado foi uma das mais rápidas das nossas vidas. Empurramos o carro, ainda desligado, com bastante empenho. Quando saímos do campo de vista da casa, em direção à rua de baixo, a iluminação das luzes estroboscópicas das viaturas estavam já visíveis. Nós andamos mais um pouco, por segurança, e ligamos o carro, disparando para longe imediatamente. Três inconsequentes, ofegantes e preocupados com o quase flagra.
– Eu to ficando velho, não aguento mais isso. – Dean resmungou no banco ao meu lado.
– Queria que eu tivesse empurrado o carro?!
– Força eu sei bem que você tem porque...
– Toma muito cuidado com o que você vai falar. – Sam o interrompeu. – Eu sei bem das possibilidades e você gosta de esquecer que eu estou por perto.
Dean abriu um meio sorriso.
– Pra onde agora?
– Motel?
– Eu to com fome, nós mal ficamos na festa.
– Você sempre tá com fome, .
De repente, uma luz forte surgiu no banco de trás, ao lado de Sam. Segundos depois da minha vista começar a querer se ajustar, a figura de Castiel se tornou mais clara. Eu revirei os olhos enquanto ele nos olhava de cima a baixo.
– Ligar faz bem, Cas.
– Me perdoe, é que o assunto é urgente e sigiloso.
– Desembucha então.
– Crowley está te procurando.
– Deixa ele procurar. – Minha voz saiu arrastada.
– Ele disse que descobriu algo e só contava a você, mas eu arranquei a informação dele à força.
– E então?!
– Ele disse que Lilith está de olho em Sam através de uma pessoa de quem ele gosta muito.
– Jo?!
Eu e Dean trocamos olhares curiosos.
– Quem?!
– Ah, por favor, não finja que isso não era possível.
– Do que você tá falando?
– Era pra eu ficar de stand by em um motel qualquer enquanto você e se aventuravam por aí?
– Sammy!
– Eu também tenho o direito. – Ele se defendeu, abaixando os ombros. – Precisamos ir pro Nebraska.
– Mas o caso...
– Se não formos todos nós, eu vou sozinho.
Sam estava decidido. Um olhar de Dean bastou para dizer que ele concordava com o pedido do irmão. Enquanto eu fazia a meia volta na estrada e apertava o pé no acelerador mais ainda, Dean ligava para Aidan, outro caçador que morava nas redondezas, e repassava o caso, e era por isso que nós sempre deixávamos uma boa quantia em dinheiro adiantada em qualquer lugar que nos hospedássemos. Sam, no banco de trás, insistia em algo no celular, provavelmente ligando para Jo. Mas tanto ela quanto a mãe possuíam uma tatuagem como a nossa, antipossessão, e não havia jeito de terem corrompido Jo. Havia?
Meu pé pesou mais ainda. Jo era o que eu tinha mais próximo de uma melhor amiga e era inevitável me preocupar. Eu queria ir mais rápido – Sam também, e ele fazia questão de deixar isso bem claro –, mas nem o carro nem nossas necessidades fisiológicas permitiriam. Paramos obrigatoriamente em uma lanchonete no meio do Wyoming. Foi só assim que notei as roupas que ainda usávamos. Montando um esquema de segurança, Sam e Dean permitiram que eu trocasse de roupa no estacionamento, em um canto onde a iluminação do sol, que estava por nascer, ainda não tinha chegado. Logo depois, foi a vez dos irmãos. Soltei o cabelo e deixei as mechas caírem por sobre meus ombros, procurando fazer com que parecessem o mais naturais possíveis.
– Não estou conseguindo falar com ela.
– Ellen também tá fora de área.
– Ok, mas nós precisamos estar bem pra ir atrás delas então, os dois, tratem de se alimentar.
Sam correu os olhos pelo menu exposto em painéis logo acima do balcão.
– Eles não têm nada que eu vá comer, então acho que vou arrumar um carro e ir na frente.
– Senta aí. – Ordenei. – Recebemos a notícia tem menos de sete horas, elas podem muito bem estar ocupadas em uma caçada.
– Jo teria me contado.
– Mulheres não dizem tudo, querido. Além do mais, se for alguma coisa perto, ela provavelmente iria atrás de resolver o problema e te contaria depois.
– Mas o Cas não tá encontrando nenhuma das duas.
– O Cas não é onipotente!
– Eu ficaria mais interessado em saber o que significa onipotente se você não tivesse acabado de dizer que mulheres não dizem tudo.
– Cala a boca, Dean, isso é sério.
– E quando não é?
– Vocês dois, sentem-se que eu vou fazer o pedido.
– Mas, ...
Bastou um olhar e Sam se calou. Perguntei à atendente sobre outros pratos fora do cardápio e descobri o pedido perfeito para cada um. O clima estava estranho, então não insisti em uma conversa quando me juntei aos dois. Não havia ninguém além de nós no local, o que fez ser fácil notar quando outra pessoa entrou pela porta. Castiel caminhou lenta e firmemente até nós e se sentou ao lado de Sam, olhando para nós três com cautela.
– Nada.
– Droga. – Sam murmurou e deixou um soco no tampo da mesa.
– Sam, você pode estar se preocupando por motivo nenhum.
– Já disse isso, mas ele não muda de ideia. – Dean falou.
– Que outro motivo justificaria Cas não encontrar as duas?
– Eu não sei de tudo.
– Isso que é ser onipotente?
– Dean, – Sussurrei. – não é hora pra piadinha.
– Eu sei, mas...
Uma senhora chegou com uma larga bandeja em mãos, depositando nossos pedidos na mesa e deixando uma generosa jarra de café esfumaçante. A fome se abriu após a primeira garfada e eu acabei minha refeição antes dos meninos. Checava o celular de minuto em minuto, sem sucesso. Nós terminamos, deixamos tudo pago e seguimos para o estacionamento. De lá, Sam e Dean tentaram insistir mais um pouco nas ligações para mãe e filha antes de pegarmos a estrada e ficarmos inconstantes a respeito de sinal de celular.
Entrei no carro e sentei no lado do carona, ciente de que estava mentalmente incapaz de que conseguir continuar dirigindo. Foi de lá que vi a F250 surgir. Meu pai deixou o carro com um olhar pesado e a postura derrotada. Eu ergui os olhos para observá-lo melhor e concluí tudo antes que ele abrisse a boca. Aparentemente – e para a infelicidade geral –, Sam também leu meu pai e se pôs, com passos firmes, a andar em sua direção.
– Onde?
– Sam, por favor, calma.
– Me diz onde!
O grito foi angustiante. Eu engoli em seco e senti as lágrimas começarem a se formar em meus olhos, a visão já completamente embaçada. Em algum lugar da minha mente, estava ciente de que Sam estava querendo bater no meu pai.
– Rio Elkhorn, na altura do aeroporto. Dizem que foi afogamento.
– As duas? – Eu perguntei.
Os olhos do meu pai brilhavam de uma forma que eu jamais havia visto na minha vida inteira. Ele se aproximou de mim e me tomou em seus braços, me apertando de forma impiedosa.
– Por favor, nunca mais me deixe brigar com você.
– Foram as duas, pai? – Insisti na pergunta.
Seu olhar respondeu por suas palavras. Antes que nós pudéssemos prever, Sam tomou o Impala para si próprio e partiu. Eu e Dean não reagimos, e nem conseguiríamos, mesmo que quiséssemos. Entramos no carro do meu pai em silêncio e partimos, com um pouco menos de urgência, na mesma direção que Sam.


Capítulo 33


Existia algo naquela cerimônia que nos tirava de órbita. Sam estava inconsolável mas estava por perto, o que já era confortante para nós. Não bastava a perda, não podíamos lidar também com uma possível fuga de um dos nossos. Era bom que ele não fosse igual a mim, pronto para cair fora ao menor sinal de problema. No fundo, eu me sentia fraca por isso. A cabana nos Everglades ainda estava lá, inclusive, e eu imaginava como me sentiria se Sam fizesse o que eu fazia, de sumir por três ou mais dias sem dar notícia. Após uma situação daquelas, sabe lá Deus o que passaria pela cabeça dele.
Sam era basicamente apaixonado por tudo. Ele se apaixonava facilmente por qualquer coisa e, quando Sam tinha paixão por algo ou alguém, não havia nada que fosse capaz de entrar em seu caminho. Era uma característica que possuía desde que nos conhecemos, pelo menos. Naquele instante, depois de anos, eu concluía que se devia a Dean, que era extremamente apaixonado pelo irmão mais novo. Ele era tudo o que Sam tinha de exemplo, e Sam era tudo para Dean, então tudo o que Sam via quando criança era o irmão se doar ao extremo para ele. Quando ele cresceu, não foi surpreendente que se mantivesse similar a esse aspecto do mais velho. Na verdade, era o que Dean esperava, que Sam fosse uma pessoa melhor que ele.
Dean era outro que me incomodava. Sua autoestima era uma merda, pior que a minha – se é que isso era possível. Suas tendências suicidas me tiravam do sério. Claro que o ápice tinha sido quando meu próprio pai o enviara para morrer, mas eu ainda me preocupava. Enquanto viajávamos, às vezes acordava no susto. Em uma dessas vezes, ele estava no banheiro e minha audição estava, por algum motivo, prejudicada. Outro dia, ele tinha ido pegar café da manhã para nós. Nesses momentos e em outros semelhantes, a ausência dele me fez pular da cama e o coração ir à boca. Dean me encarava, assustado, quando voltava para mim. Eu estava à beira de enlouquecer. Cremar Ellen e Jo era apenas uma extensão dessa loucura.
Um de seus braços em volta do meu corpo me prendia no lugar. Meu pai, talvez enciumado, olhava para nós dois pelo canto do olho. Castiel ficou de longe, talvez um pouco receoso de mal ter voltado e já estar no meio de uma cerimônia como aquela. O ar parecia pesado aos meus pulmões. Tudo o que queríamos era pular aquilo tudo e acordar em um belo dia de sol, onde o corpo de Ellen e Jo não passassem apenas de um dos piores pesadelos que já havíamos vivido – e olha que não eram poucos.
– Devíamos deixar Sam...?
– Não. – Eu o interrompi. – Pensei nisso também, mas não acho que é seguro. Se quiser dar uma distância, observar de longe, sei lá...
– Eu não sei o que quero agora.
– Também não sei.
O braço me apertou um pouco mais e ele beijou o topo da minha cabeça. A silhueta de Crowley fez-se presente ao longe, deixando todos nós rígidos, meu pai e Dean em especial. Eu me desvencilhei o mais delicadamente possível do abraço, sua linguagem corporal protestando imediatamente.
– Não inventa.
– Dean, por favor.
– Não vou deixar você encontrar esse cara sozinha.
– Cas vai comigo. Você, fique aqui de olho no seu irmão. Eu já volto.
Meu anjo da guarda, quase que literalmente, estava de prontidão. Meu pai deu um passo em minha direção e eu apenas neguei com a cabeça, pedindo com o olhar para que ele me deixasse fazer aquilo. Dizer que estava consciente dos meus atos talvez fosse exagero. Àquela altura, nada parecia lógico e minha mente não estava exatamente sã. Ou seja, eu definitivamente não sabia o que estava fazendo ali, caminhando ao lado de Castiel, fingindo que estava tudo bem e que eu sabia o que estava fazendo.
– Sua companhia de hoje não é exatamente agradável aos meus olhos, jovem Singer.
– Aí é problema seu. – Declarei. – Diz o que tem que dizer e dá o fora daqui.
– Você costumava ser mais educada.
– Crowley, não estou para brincadeiras. Ou você abre o bico...
– Ou o quê, pequena marionete dos Winchester?
Castiel tirou a adaga dos anjos de dentro de seu sobretudo, deixando-a livre para que Crowley visse.
– Como pode ver, não estou de brincadeira. Você tem uma última chance de me dizer o que quer.
– A ossada que você e o Winchester mais novo conseguiram pra mim... Eu obtive informações importantes a partir dela.
– E então?
– Existe um feitiço, – Ele começou a falar, colocando a mão no bolso e retirando um papel de lá. – data do século XV, criado por bruxas que dominavam a Escandinávia e...
– Crowley, não sou historiadora. Por favor, direto ao ponto.
– Vocês, jovens, insistem em pular a melhor parte!
– Crowley...
– Ok! Esse feitiço tem ingredientes curiosos. Dentre eles, algum material genético do hospedeiro de Lilith, mas permitiria que vocês a invocassem. Foi nosso trato, não foi, ? Eu conseguia a liderança do inferno e você, a cabeça do demônio mais cobiçado.
– Posso confiar em você?
– A questão não é se pode, cara . A questão é se você deveria.
E ele desapareceu, deixando a folha, um saco plástico miúdo contendo cabelo e um frasco contendo uma substância viscosa e enegrecida. O cabelo era do hospedeiro de Lilith? Tinha que ser, faria lógica que fosse. Castiel abaixou para pegar o que ficou, dando uma boa olhada em volta antes.
– O que vamos fazer?
Olhei de volta, para além dos corpos, e nós éramos observados com bastante atenção por meu pai e os irmãos. Respirei fundo, estava mais frio do que o normal naquela época do ano. Nós tínhamos um longo dia pela frente, o que seria bom para fazer o processo do luto passar em velocidade máxima.
Eu odiava roubar carros, mas estava longe demais do meu. Separados, seríamos mais úteis. Meu tio estava indo a nosso encontro com um fulgurito que, por milagre, ele tinha em casa. Precisaríamos, ainda, do sangue de um demônio, e logo concluí que era isso que Crowley tinha deixado junto ao feitiço e ao cabelo. Foi no aguardo de meu pai, que havia ido buscar os ossos de uma virgem no porão de casa, que me conscientizei de que estávamos fazendo tudo no impulso e que nada nunca parecera tão absurdo dentro de nossas vidas.
Nós, experientes caçadores, possivelmente alguns dos melhores do país, estávamos prestes a realizar um ritual cujo gabarito havia sido transmitido por um demônio do alto escalão. Nós estávamos confiando em demônios? Que merda, estávamos piores do que eu imaginava. E se Crowley estivesse no time de Lilith durante aquele tempo todo? E se tudo estivesse certo, mas Lilith já tivesse trocado de hospedeiro? E se Lilith fosse tão forte quanto imaginávamos e o cadeado não fosse suficiente para contê-la? Bem, talvez as mil e uma precauções que tínhamos tomado fossem justamente a resposta para tais questões, mas aí entrava uma última pergunta: como achávamos que podíamos prever algo que nunca havíamos vivido?
– Acho que estamos prontos. – Meu pai disse. – Dean, tira daqui. Sam, você vai com eles.
– Mas... – Sam começou.
– Sem “mas”.
– Nós ficamos. – Eu declarei, firme. – Todos nós sofremos com isso tudo, então é agora ou nunca. Todos nós queremos olhar na cara dessa filha da puta antes de mandá-la pra puta que pariu. E acho que falo por nós três quando digo que temos esse direito.
– Só que isso pode sair do controle.
– É simples. Atirar primeiro, sem perguntas, sem a tortura que tenho certeza de que todos nós gostaríamos de infligir a ela. É matar de primeira. Somos bons nisso, não somos?
– Sem querer interromper mas já interrompendo... – Dean falou. – Com nós três aqui ou não, isso tem que ser feito o mais rápido possível.
A literatura era bem clara quanto ao que era necessário para matar Lilith. Ela tinha um destaque especial, capítulos inteiros dedicados a ela, por ser o primeiro demônio. Ali, no quintal da minha casa, aquilo tudo acabava. E, na falta de uma palavra melhor, era gratificante ter esperado até ali para usar o Colt e sua última bala. Parecendo ler meus pensamentos, meu pai engatilhou o revólver. Nós seis trocamos um último olhar. Sam usou um punhal para abrir um pequeno corte em sua mão e jogou seu sangue no bowl com os outros ingredientes.
Quod si vos non explanare, non faciam vos fascinavit non potuerunt ultra historiam legere...
– Eu te amo. – Dean sussurrou em meu ouvido.
... et ponet illud in indica mihi si interpres...
– Eu também te amo. – Disse de volta, olhando em seus olhos firmemente, o coração saltando do peito sob a observação cautelosa de meu pai e tio.
... quod ego multum rideat, si hoc accidit.
A minha vida inteira passou pelos meus olhos naquele mísero instante. A culpa pela separação dos meus pais era uma coisa que me perseguia. Antes, achava que minha mãe não gostava de mim e, por isso, fugiu. E então vinha a frustração por não ter estado com Dean desde o primeiro momento. Talvez, olhando pelo ponto de vista de uma mulher crescida, tivesses sido melhor. Nós estávamos juntos, ambos tínhamos ambos a cabeça bem mais amadurecida. Portanto, as chances de um relacionamento dar certo seriam melhores que se tivéssemos nos envolvido antes. Cada caçada, cada tiro, cada vampiro decepado, cada arranhão e hematoma... Eu lembrava de tudo como se tivesse acabado de passar por tais momentos. Até mesmo de Castiel, que ficara apagado de nossas lembranças por um bom tempo. Eu lembrava dele, de ter descoberto sobre anjos e quase ter surtado, do medo inicial e do posterior carinho.
Tudo foi muito rápido mas, na minha cabeça, pareceram anos. Os olhos ficando brancos, o sorriso diabólico e o tiro. Estava consciente de que meu corpo havia tremido e, após o barulho da arma disparando, eu fiquei aérea, como se nunca tivesse ouvido um tiro antes. Havia um zumbido persistente em meus ouvidos e eu tinha certeza de que meu coração havia ido a uma frequência de batimentos tão baixa que eu deveria ter desmaiado. Mas ali, em nossa frente, estava o corpo de Lilith. Bem, o último deles, é claro. Respirei fundo, tentando recompor minha postura, e troquei um olhar breve com Dean, meu pai, depois tio Bobby, Sam e, por último, Castiel.
Estava acabado. Aquelas dezenas de meses de tortura, incertos do futuro que nos aguardava e do que poderia acontecer no próximo segundo, jaziam ali, junto ao corpo com um belo buraco na testa. Para nós, era só mais um demônio. Para eu e Dean, era liberdade. Mas ainda havia um negócio a finalizar.
Demos um jeito de cremar o corpo com a ajuda de Austin, que procurara permanecer alerta a qualquer necessidade de ajuda desde o primeiro momento. As cinzas foram guardadas em um saco plástico, que foi guardado em uma caixa, que foi guardada em uma urna com sigilos e cadeados, que foi guardada em um cofre dentro do nosso cofre. Eu estava já de banho tomado e encontrava com Dean na cozinha. Apoiei as mãos na bancada enquanto o observava. Ele tentou abrir um sorriso para mim.
– E agora?
– Bem, Crowley disse que tinha uma carta na manga para conseguir a liderança do inferno e que, quando ele a conseguisse, ficariam ele e seus subordinados fora do nosso caminho.
– Mas você não está contando com isso.
– Lilith era nosso objetivo e nós conseguimos. Não sabemos de que carta na manga ele está falando, e pode ser que isso seja apenas um blefe, mas não existe isso de ficarem fora do nosso caminho, Dean. Demônios mexem com gente inocente o tempo inteiro, e isso não seria exatamente o nosso caminho?
– Talvez você devesse conversar com seu pai. – Ele apontou por cima do meu ombro. – Agora que vocês, teoricamente, fizeram as pazes... Vocês fizeram as pazes, certo?
– Não começa, Dean.
– Ele sabe mais do que todo mundo.
– Achei! – Sam gritou da sala de jantar. – Eu sabia que tinha algo pra ser investigado nisso.
Eu e Dean trocamos um olhar e nos juntamos a Sam, sendo seguidos pelos três outros ocupantes da casa imediatamente.
– O nome verdadeiro de Crowley é Fergus Roderick MacLeod e, recentemente, a propriedade onde seu túmulo se encontrava foi leiloada e comprada por um magnata britânico. E eu sabia que já tinha lido algo sobre os ossos daquela freira que fomos buscar, . – Meu pai aproveitou a breve pausa de Sam, buscando por um dos livros abertos por cima da mesa, para me dar uma olhada curiosa e taxativa. – Os ossos, ou fragmentos deles, de quem estiver coordenando o inferno, somados a ossos dessa freira, ,se forem cremados juntos...
– Fala logo, caralho!
– Isso fecha os portões do inferno. Pra sempre.


Capítulo 34


– Você vai ficar bem, não vai?
– Quanto drama, Dean. – Eu reclamei e me aproximei dele, deixando que ele me envolvesse com seus braços e me puxasse para si, dando um beijo no topo da minha cabeça. – Até parece que é a primeira vez que faço uma caçada sem você.
– Faz tanto tempo que parece que nunca aconteceu.
– Três meses!
– O quê?
– Faz três meses que eu cacei sem você. E quem vê mal acredita que você não tinha olhos pra mim antes.
– Quem está sendo dramática agora?
, vamos! – Meu pai chamou.
Nós dois rimos e nos beijamos mais uma vez.
– Vai mandando notícias e não esquece de avisar quando pousar.
– Fica tranquilo, Dean, não é como se eu estivesse indo sozinha.
– Só ficaria tranquilo se fosse eu te protegendo.
– Tá tirando meu pai como um nada? – Beijei sua boca uma última vez. – Vou contar pra ele.
– Não vai, não! – Ele gritou enquanto eu me afastava.
Dei tchau para Sam com a mão e corri para o carro. A viagem até o aeroporto levaria mais de três horas e eu, meu pai, meu tio e Austin estávamos desconfortáveis com o que poderia acontecer com aquela decisão. A história essa simples: estávamos indo para a Inglaterra para visitar algumas fazendas criadoras de gado Angus porque estávamos querendo investir em gado de corte para complementar a renda. Eu e meu pai éramos os donos da fazenda, Austin era o nosso ajudante e especialista e meu tio era o velho que não podia ficar sozinho. Ele, em particular, não gostou mundo da sua parte na mentira, mas não tinha muito o que fazer a respeito. Envolver outros caçadores também seria um erro, a informação poderia parar rapidamente nas mãos erradas e teríamos um plano completamente arruinado.
O voo da United Airlines era o mais barato e com menor tempo de parada – apenas uma, em Nova Iorque, para troca de aeronave. Três horas até lá e, depois, sete horas para Londres. Eu não tinha o mínimo otimismo referente àquilo, mas havia a necessidade de ter aquela missão concluída. E já dizia o ditado: se quer bem feito, faça você mesmo. Só seria segredo se continuasse entre a gente.
Eu dormi durante boa parte do voo, na verdade, contrariando todo o meu nervosismo. Fui acordada com o alerta para encaixar os cintos de segurança, já avisando do eminente pouso no Heathrow. Comprei um celular descartável imediatamente e fiz uma ligação a cobrar para casa, o que poderia facilmente explicar no caso de dar errado e irmos parar na mão da polícia.
– Preciso ser rápida. – Disse quando Dean atendeu, me colocando propositalmente próxima a um dos seguranças espalhados pelo saguão do aeroporto e falando alto. – Chegamos em Londres. Meu pai tá indo ver como vai ser pra alugar os carros, então não sei quanto tempo vamos levar por aqui ainda.
– Você tá bem?
– Claro que sim. Por que não estaria? – Sorri. – Meu tio não tá muito confortável com tudo ainda. Ele não para de reclamar que queria estar em casa.
– É de se esperar que ele seja assim.
– Um belo velho rabugento... Mas eu vou ajudar meu pai, não sei o quanto de paciência ele ainda tem depois que a aeromoça derrubou refrigerante nele. Se precisar falar com algum de nós, liga pra esse número. Pode ligar do telefone de casa, meu pai disse que vai custear o que for necessário.
– Quando você volta?
– Se tudo correr certo nas fazendas, meu pai ainda vai ter que ver algo com alguns órgãos governamentais aqui referente à exportação do sêmen. – Disse bem alto, me sentindo uma completa idiota, percebendo que finalmente tinha chamado a atenção do segurança. – Eu li alguma coisa sobre a legislação pecuária britânica, mas não sou uma especialista.
– Me liga se acontecer alguma coisa, vou ficar sempre por perto do telefone.
– Pode deixar. E mantenha meus cavalos vivos, por favor.
– Não vou chegar nem perto daquele estábulo.
– Vai sim. – Resmunguei. – Até então, estamos programados para voltar em uma semana. Se tudo der certo, vamos tentar adiantar a volta. Eu te mantenho informado.
– Espero mesmo. Amo você.
Eu desliguei sem responder, foi quando me conscientizei das palavras que tinha acabado de escutar. Ciente de que não podia demonstrar nenhuma reação estranha, respirei fundo de olhos fechados, tentando me tranquilizar. Precisava de uma desculpa para aquilo.
– Com licença, – Eu me dirigi ao segurança. – onde fica a farmácia mais próxima?
O segurança abriu um sorriso minimamente educado para mim.
– Há uma ao lado do ambulatório. É só seguir as placas.
– Obrigada. – Sorri em resposta e deixei o lugar.
Pronto, ele lembraria de mim e das minhas palavras. A viagem até Grays não foi muito longa. Levou cinco minutos a menos do que o previsto pelo GPS. Não foi surpresa que encontrássemos um hotel da rede Ibis por lá, e foi exatamente onde ficamos. Só de entrar no saguão do hotel, percebi a grande diferença entre o estabelecimento e os lugares onde nós costumávamos ficar. Tudo parecia extremamente luxuoso para mim, muito embora o hotel tivesse sido um dos mais baratos na minha lista de procura quando começamos a organizar brevemente o plano.
Meu pai fechou os três quartos – um para mim, um para ele e meu tio e um para Austin – e subimos. Fiquei em um andar separado, o que não deixou ninguém feliz, mas seria bom ter um pouco de privacidade, mesmo que mínima. A cama parecia confortável, os lençóis eram os primeiros brancos que eu via fora de casa, tinha uma mesa de trabalho decente com cadeira giratória onde eu poderia dormir, a televisão era de plasma. Caralho, um lugar para guardar as roupas! O banheiro... Ah, o banheiro! Por Deus, eu poderia ficar ali para sempre. Finalmente, não tinha nojo de nenhuma superfície. Parecia o paraíso, até as batidas na porta.
– Quem é?
– Serviço de quarto, senhorita.
Oi?!
– Eu não pedi nada.
– Foi um senhor que ligou da América e fez o pedido. – A voz do outro lado da porta afirmou. – Se a senhorita não desejar, posso devolver o pedido e não será descontado nada do seu cartão de crédito.
Dei uma espiada pelo olho mágico – olho mágico, aquilo era surreal! – e me pareceu tudo certo. Ainda com medo, destranquei a porta.
– O senhor se identificou como caseiro de sua propriedade. Disse para lhe servirmos lasanha com suco de manga, da fruta. Como foi informado que não tínhamos, ele pediu maracujá.
Suspirei mais tranquila. Aquilo só podia ser coisa dele. Deixei que o funcionário adentrasse o quarto e depositasse o pedido na mesa de trabalho. Puxei uma nota de cinco libras e entreguei ao rapaz. Não dávamos gorjeta nos Estados Unidos porque não tínhamos motivo para tal. Fazendo isso, eu me sentia até mais fina. Sorri ao levantar a cloche e observar o prato. Então me sentei, levando o celular comigo.
– Como você sabia que eu estava morrendo de fome? – Sussurrei.
– Você tá sempre morrendo de fome.
– Idiota...
– O prato tá bom?
– Me dá um segundo. – Retirei um pedaço e coloquei na boca, levando um tempo para mastigar. – Não é tão boa quanto a minha, mas dá pro gasto.
– Você sabe qual foi a minha atenção.
– Claro que sei. – Disse e peguei outra garfada. – Nós vamos sair cedo amanhã. A primeira parada é em uma fazenda. Depois, vamos passar na propriedade do velho.
– O que vocês vão usar como desculpa?
– Vou assumir o papel de interessada na história da área.
– As histórias não estão casando, na minha opinião.
– E que escolha temos?
Podia ouvir o sorriso em seus lábios. Forçado, mas ainda sabia que estava lá. Terminei meu prato e, satisfeita, gastei um bom tempo no banho. A noite foi tranquila quando comparada à minha ansiedade. Cheguei a pensar que não conseguiria dormir, ainda mais com o jet lag. Decidimos, pelo bem maior, ignorar o horário local. Configurei o despertador para as seis horas da manhã em casa, meio dia ali. O verão na Europa estava de matar. Nós seguimos direto para o almoço servido do hotel, sem muito hesitar. Comemos rápido e, mais rápido ainda, deixamos o hotel rumo aos primeiros passos da nossa missão.
A fazenda Rainbow era muito mais do que o nome transparecia. As dez mil cabeças de gado eram bem mais agressivas que a bonita fachada do portão. Meu pai, caçador à parte, também estava maravilhado. Enquanto ele conversava animadamente com o gerente da fazenda, eu praticamente corria ao estábulo. Criavam Andaluz, uma das minhas raças favoritas. Os animais eram gigantes e meus olhos estavam, com certeza, brilhando de pura satisfação.
– Você tá com os americanos? – Um rapaz, que eu não vi se aproximar, perguntou.
Eu me recompus rapidamente do susto enquanto o homem alto se aproximava.
– Sim, estou. – Respondi. – São belos animais os que vocês têm aqui.
– Eles são mesmo. – O homem mexeu no animal para o qual eu dava a minha atenção, oferecendo a mão para mim logo em seguida. – Prazer, Taylor.
.
– Você monta? – Ele perguntou, apontando para o animal.
– Criamos Quarto de Milha.
– São bonitos também, têm o temperamento um pouco parecido. Ainda acho a marcha dos nossos melhor. Aceita?
Não vi quando Taylor pegou o material para selar o cavalo, mas me coloquei em prontidão, ansiosa para aquela experiência. Meu pai viu de longe quando eu deixei o estábulo e riu da minha cara de satisfeita. O que eu não esperava era que, durante a cavalgada, Taylor me desse de bandeja tudo o que eu queria a respeito da minha próxima visita. Não fazia ideia de que a fazenda do velho Paul McConney fazia limite cerca a cerca com a Rainbow.
– A porteira ali é a divisão. Os homens que fazem a nossa segurança aqui à noite dizem que costumam ver fantasmas por ali. Papo de maluco, só porque teve um cemitério particular ali faz algumas décadas.
– Sério? – Perguntei, fingindo desinteresse e incredulidade. – Vocês também têm desses por aqui?
– Desses o quê?
– Funcionários que acreditam em fantasmas.
– Você não acredita?
Eu olhava fixa para além da cerca, quase que alheia a todo o resto. Disfarçando, busquei o EMF no bolso largo da bata que eu usava. Positivo. Merda. Eu tinha outro problema, tirar Taylor da minha cola. Minha mente era boa em tramar desculpas prontas rapidamente, mas eu parecia não estar em pleno funcionamento aquele dia.
?!
– Sim?
– Aconteceu alguma coisa?
Tic tac, .
– Aqui parece muito com a parte da nossa fazenda onde enterramos meus avós. – Menti, sentindo um alívio interno por ter inventado a narrativa perfeita, finalmente, na minha cabeça.
– Sinto muito por isso. – Taylor disse, e eu podia imaginar Dean bufando de raiva por ciúmes quando eu lhe contasse aquela história. – Você... Você acha melhor retornarmos?
– Se importaria de me deixar sozinha por uns instantes? – Pedi. – Desculpa se parecer um abuso, mas...
– Não, claro! Você tem certeza de que saberá voltar sozinha?
– Certeza absoluta.
– Tire seu tempo então. E, mais uma vez, sinto muito pelos seus avós.
Fingi um sorriso em agradecimento. Assisti enquanto ele se afastava com seu cavalo e, tocando o meu a passos lentos, me aproximei da cerca. Taylor já estava fora do meu campo de vista quando me aproximei. Prendi o cavalo na tábua de madeira que separava as propriedades e pulei, não sem antes dar uma nova checada no entorno. O EMF, que deixei ligado, estava maluco. Busquei o telefone descartável e o maldito estava sem sinal. Nervosa, continuei avançando, sabendo que estava fazendo o mais arriscado possível ao investir naquilo sem reforço.
Lápides estavam espalhadas no que, provavelmente, tivera sido um gramado em seu pleno funcionamento. A área estava tomada por árvores de copas não tão altas mas frondosas, fazendo a sombra incomodar um tanto a minha vista na busca pelos nomes escritos nas lápides. E então eu achei. Achei a maldita lápide que procurava. Observei mais em volta, tendo certeza do que estava fazendo. Surpreendentemente, meu tio se aproximava ao longe e montado em um cavalo, para a minha duplas surpresa. Trazendo pás!
– Como você soube?
– O moleque chegou lá com uma história bem estranha. – Ele me deu as pás antes de descer. – Não acredito que você me fez andar em um desses.
– De nada. Vamos logo.
– Eu to velho, .
– Tio, não tem tempo.
Levamos vinte minutos. Vinte malditos minutos. Assim que encontramos o caixão, eu tratei de começar a quebrar a madeira. Assim que cedeu, eu enfiei a mão e busquei o primeiro osso que encontrei: uma falange. Não precisávamos de mais, certo? Nem tanto. Eu estava pronta para ir embora quando meu tio deu outra porrada com a pá e pegou um rádio.
– Precisava mesmo disso?
– Eu que digo pra irmos logo agora.
– Onde o senhor pegou as pás?
– Deixe aí, ninguém viu.
Os cavalos voltaram correndo, seguindo nossos comandos. Desci do cavalo com habilidade e ajudei meio tio. Enfiei o maldito rádio por dentro da calça, dando uso à blusa propositalmente larga demais. Não tinha tempo para nojo, precisávamos correr.
– Senhor Singer! – Taylor apareceu correndo. – Abraham não está com vocês?
– Achei que ele estava aqui.
– Austin disse que ele iria até vocês.
– Mas ele não foi.
– Pai! – Eu gritei imediatamente. – Pai!
– Taylor! – Outro rapaz vinha correndo na nossa direção. – Os seguranças não estão encontrando o homem em nenhum local.
– Merda.
Eu senti o ar me faltar, parecia prever a merda. A vontade era de vomitar.
– Pai! – Gritei de novo.
– Um dos carros em que vocês vieram sumiu. – Bryan, o gerente, se aproximou.
, volta com o outro carro para o hotel. Às vezes, ele foi embora por algum problema e esqueceu de avisar.
– Tio, eu...
– Faz o que eu to falando. Nós aguardamos aqui.
Eu queria chorar, sabia que meu pai não iria embora sozinho por nada. Mas corri. Sabia que precisava correr contra o tempo. Meu tio me acompanhou a passos largos até o carro e me parou antes que eu entrasse.
– Vai embora. – Ele ordenou.
– O quê?
– Pega o próximo voo para os Estados Unidos. Diz que sua mãe morreu.
– Mas ela não...
– Foi trote, , agora vai embora e faz o que tem que ser feito.
Mais de duas décadas e meia caçando ao lado do meu tio. Foi a primeira vez em que vi o pânico tomar conta do seu olhar.


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