Capítulo 1 - Mudanças
“Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças.” (Leon C. Megginson)
Anão Último Mudanças Os fones de ouvido já machucavam minhas orelhas.
Eu passava as músicas aleatórias na mesma rapidez em que a paisagem avançava pela janela. Paisagem que, ironicamente, combinava com a música enjoada que eu decidira deixar tocando. Tinha uma animação desnecessária, que já me dava dor de cabeça.
Em um ato de total rebeldia, retirei os fones sem cuidado algum, como se aquilo fosse simplesmente fazer a raiva aliviar um pouco. Eu estava cansada. Cansada de sempre passar pela mesma coisa, cansada por estar a mais de duas horas sentada em um banco traseiro desconfortável de algum carro ridículo que meu pai julgava ser ideal para a viagem.
Era isso. Eu estava simplesmente cansada. Cansada até mesmo do meu próprio drama.
Por horas, tudo não passava de borrões nas janelas, devido à velocidade em que estávamos. Em um dia normal eu estaria elogiando minha mãe pelo ponteiro do velocímetro marcar 100 km/h, mas meu humor simplesmente não permitia.
— Por que não no centro? — minha mãe ergueu as finas sobrancelhas, me encarando pelo retrovisor central, como se aquela fosse uma pergunta muito ruim para o momento. — Londres parece realmente bonita — dei de ombros, tentando deixar de lado o assunto que eu mesma comecei. Pela décima vez.
Ela pareceu relaxar na direção, mantendo seu olhar na estrada. Meu pai, como sempre, no banco do carona, jogava algo irritante em seu tablet. Desde que descobriu essa tecnologia — e Angry Birds, ficou mais difícil conquistar a sua atenção.
A única coisa que me restava era encarar a janela embaçada. Algumas casas pareciam realmente distantes umas das outras, dando espaço para um grande destaque de verde, junto com jardins e árvores que deviam ter mais de duzentos anos. Duzentos anos no mesmo lugar. Por que aquilo soava tão interessante para mim?
A cada distrito que passávamos havia apenas casas e mais casas. Alguns pequenos comércios na beira da estrada principal. Nada de prédios, o que já significava um mau sinal. Algumas pessoas sempre dizem que quando começamos a ver somente mato na estrada, estamos perdidos. Minha grande amiga de Nova Iorque, Bree, diz que se não vemos prédios, estamos em um lugar pior.
O interior.
Ah, sim. Era oficial. Eu estava no interior.
Nosso destino, enfim, e infelizmente, não era a cidade cosmopolita de Londres. Infelizmente. Indo na contramão de tudo o que já fizemos, e de todos os outros doze lugares em que já moramos, estávamos indo diretamente para o interior. Minha mãe dizia que era bem melhor do que o subúrbio, mas eu simplesmente não conseguia ver tanta diferença entre os dois. Para mim, dava no mesmo. Tecnologia atrasada, falta de internet, casas velhas de madeiras e gente caipira.
— Eu li em um blog que o distrito de Cotswolds é o mais antigo da Inglaterra. A arquitetura é muito século X e fica a apenas duas horas de Londres! — meu pai comentava feliz. Ele é o mestre dos comentários aleatórios, para tudo e sobre tudo. Semana passada ele tagarelou por horas com um amigo sobre as regras do rúgbi e como este é um esporte de classe. Às vezes eu me pego pensando em como ele tem tempo para saber de tantas coisas.
— Se é tão perto assim de Londres, por que não Londres?
— Minha querida, só estamos tentando algo novo — pude vê-lo sorrir ao conseguir derrubar três alvos com um passarinho só. — Tenho certeza que você vai gostar.
Minha mãe balançava a cabeça, em afirmação.
— A casa é linda — e dirigiu seu olhar para mim, pelo espelho central. — Você sempre quis morar em uma casa grande.
— Nosso trato ainda está de pé?
— Com certeza. Assim que arrumarmos tudo, você pode ter o que quer.
E o que eu queria era um cachorro. Na falta de meus antigos amigos e do meu irmão, eu teria ele.
Meu pai continuava tagarelando sobre o incrível condado de Gloucestershire, onde ficava o distrito de Cotswold, que ia ser a nossa nova casa. Eu ainda, sinceramente, não sabia como ele possuía forças para isso. É a nossa décima terceira casa nova.
Que tipo de pessoa se anima com a décima terceira mudança?
— Vocês sabiam que Cotswold tem o metro quadrado mais caro da Inglaterra?
Mesmo cansada dos comentários aleatórios de papai sobre o lugar mais caipira do mundo, aquilo me chamou atenção. O que faz um distrito típico do século X ter apenas famílias ricas? Naquele momento eu pude entender um pouco o que estávamos fazendo ali. Mesmo sendo interior e bizarro, ainda era um condado de ricos.
Típico dos meus pais. Estava ali a diferença do subúrbio.
Mas eu não poderia deixar a oportunidade de ser chata passar.
— Então não vamos ver carroças por aqui?
— Pelo contrário! — ele exclamou, mas isso não fez a minha cara emburrada passar. — Os moradores aqui têm uma ótima condição. Acho mais fácil vermos apenas carros caros e importados.
Papai continuava falando demais, até que uma placa enorme toda decorada nos apontou que tínhamos chegado ao nosso novo destino. “Bem vindos a Veneza da Inglaterra, Bourton-on-the-Water, no condado de Gloucestershire”.
Se o interior já soava péssimo, imagine morar na Veneza da Inglaterra.
— O nome do rio que corta a vila é Windrush — meus olhos se fecharam automaticamente, minhas mãos foram levadas às minhas têmporas, buscando paciência. — Jogadores britânicos disputam todo ano em equipes um jogo aquático nesse rio. Dura cerca de trinta minutos, deve ser divertido de se ver — ele suspirou alto. — Dizem que essa disputa acontece há mais de um século!
Minha mãe passava devagar pelas ruas, observando os dois lados junto com meu pai. Haviam várias lojinhas feitas de pedra, cafés e eu podia jurar ter visto até mesmo um pub.
— Acho que aqui vamos conseguir tomar o típico chá inglês, que também é chamado de cream tea. Ele pode ser servido com ou sem leite e acompanhado de scones caseiros, geleia e cloted cream. Cloted cream é um creme de leite encorpado, típico da Cornuália. Incrível!
Incrível seria se alguém se importasse com cloted cream como meu pai.
Nem minha mãe conseguiu reprimir a careta.
— Você gravou isso tudo?
Após darmos algumas voltas, de acordo com o nosso GPS alugado, havíamos chegado. E o nosso destino era uma casa enorme. Eu tive de suspirar ao sair do carro. Nossa décima terceira casa nova era realmente linda.
E eu odiava ter que admitir isso.
Parecia que tinha saído de um filme ou algum livro de época famoso. Toda ornamentada em calcário e muito verde das plantas que subiam pelas paredes externas e janelas, aquela era a maior casa que já tivemos. Tinha dois andares, sem contar com o provável sótão. Era completamente diferente dos apartamentos antigos que alugávamos na cidade grande.
O que mais chamava atenção era a falta de muros. Nenhuma casa da rua de pedras tinha um muro as separando, e parecia que no condado inteiro de Gloucestershire isso não existia. A parte da frente dava em um enorme gramado verdinho, com alguns tipos de flores e plantas decorando naturalmente a entrada da casa.
Mesmo emburrada com o lugar e toda essa palhaçada de décima terceira mudança, eu senti algo gostoso ao ver a casa. Parecia e soava diferente de qualquer outra coisa que eu já tenha vivido.
Mesmo que eu realmente não quisesse confessar isso.
Meu pai colocou suas pesadas mãos em meus ombros.
— O que achou? É bonita, não é? — apenas agitei a cabeça, afirmando. Olhei para seu rosto e ele parecia realmente feliz. Não pude conter de me sentir mal por estar tão chateada por estar nesse fim de mundo. Eu mal tinha culpa de me sentir assim, já havia feito muito sacrifício para acompanhá-los por todos os lugares.
Ele então pegou uma grande caixa no porta-malas do nosso carro alugado. Esta tinha uma grande etiqueta com a palavra “Sobrevivência”. Isso significava documentos, tecnologia, e qualquer outra coisa que devia estar lá primeiro do que o caminhão de mudanças, caso acontecesse algum imprevisto.
— Nós precisamos comprar coisas típicas da Inglaterra e do distrito para colocar em nossa casa. — meu pai continuava falando sem parar sobre o nosso adorável distrito da Inglaterra. — Será que eles fazem churrascos com os vizinhos por aqui?
Por dentro a casa se mostrou ainda mais maravilhosa. Por sorte, o caminhão de mudanças já havia chegado e o caseiro responsável por nos entregar as chaves já havia colocado boa parte das caixas dentro da casa. Algumas outras foram entulhadas na garagem. Como a casa já estava completamente mobiliada, nossos móveis foram descartados na França. Lembrar disso fez com que o meu mau humor se despertasse novamente. Seria o ápice da minha vida em Cotswold caso o meu quarto estivesse decorado como para uma menininha.
Em vez de todo aquele branco e aparelhos de última geração que às vezes nos davam até ‘bom dia’, nossa casa era 70% de madeira. Eu não posso dizer que não era bonita ou aconchegante. Era sim. Mas eu ainda preferia o luxo da cidade grande e da geladeira que me avisava as coisas bobas que sempre esqueço.
Mas a casa em geral não me importava. O ponto principal era: meu quarto. Meus pais haviam avisado que ficava no segundo andar da casa, o que já me agradava. Quanto mais longe do jardim bonito, melhor.
Subi as escadas de madeira e, para minha surpresa, elas não faziam barulhos de velhice como em qualquer casa do interior. Seguindo instruções de meu pai, segui até a segunda porta a direita. Era grande e larga, de madeira escura.
Abri a porta devagar, logo suspirando aliviada. Era um quarto de gente normal. Havia uma cama de casal no meio, um armário grande e cor de marfim do lado direito (será que todas as minhas roupas caberiam ali?). No lado esquerdo uma janela enorme que mantinha uma vista para o Rio Windrush, por vários metros de distância. Na parede em frente à cama, ao lado da porta, havia um grande espelho de corpo todo.
Era o ideal. Parecia um pouco com um quarto de algum filme bobo americano para garotas de quinze anos, só que do interior e caipira. Mas eu ainda achava que, com meu toque pessoal, poderia me sentir bem ali dentro.
Não que eu realmente me importasse na decoração, já que não sabia quanto tempo que poderia chamar aquele local de meu.
Cheguei perto do espelho, meu reflexo parecia cansado e de saco cheio. Minhas roupas ficavam em um contraste absurdo com o quarto, modernas demais. Passei as mãos em meus cabelos, que estavam em um tamanho médio. Eu gostava do que via. Principalmente por ser tão diferente do que via e vi ao meu redor.
O problema de mudar constantemente era sempre o pavor de aceitação, ainda mais quando você tem que enfrentar uma nova escola. Eu estava preparada para ser o centro das atenções em Bourton-on-the-Water?
Sem modéstia ou qualquer outra coisa, eu realmente gostava do que via em meu reflexo. Gostava das roupas que vestia, gostava da minha silhueta e, sem dúvidas, gostava dessa sensação de diferença. Eu sempre tive uma fisionomia normal, me sentia bonita, mesmo sem ter o corpo do que muitos costumam chamar de “gostosa”. Eu sabia que conseguia chamar atenção, se quisesse. Na verdade, sabia que qualquer menina conseguia fazer isso. Bastava autoestima e uma roupa que você julgasse bonita.
Mas, com o pouco que eu tinha visto sobre aquela vila, o medo principal não era ser o alvo de perguntas bobas, como “como é a cidade grande”, “quantos países você conhece” ou “quantas línguas você fala”, mas sim o fato de que, por somente ter quatro mil habitantes, aquele local era o mesmo de sempre. Todo mundo se conhecia, não era possível ser o contrário. Eu teria o desafio de fazer amigos em um lugar que todo mundo se conhece desde que nasceram.
Sacudi a cabeça, tentando me libertar desses pensamentos. Deixaria isso para amanhã, na escola nova. Ajeitei os fios desajeitados de meu cabelo com as mãos, e um movimento pela janela me chamou atenção. Dei passos largos até o local, logo a abrindo para cima, com facilidade. Pelo menos as corredeiras pareciam novas.
A vista era bonita, eu devia confessar novamente. No fundo, bem fundo mesmo, eu via o corte do rio Windrush. Mais perto, campos verdes com muitas árvores e casas de pedras. Vizinhos.
Alguns adolescentes de uniformes, provavelmente da The Cotswolds School (meu pai já deu uma palestra sobre ser a única escola de formação da região e que pessoas de outras vilas vinham estudar aqui), passavam perto do rio, alguns rindo e deitando na grama verde demais. Será que alguém pulava naquele rio intocado? Aquilo era completamente diferente de tudo o que eu já tinha passado em minha vida. Verde demais, sossego demais.
Meu pai apareceu em meu campo de visão, em nosso jardim.
— Minha querida, sei que a vista é linda, mas venha nos ajudar!
Desci as escadas em passos largos, logo encontrando meus pais. Coloquei algumas caixas para dentro, ajudando com o conteúdo em outras. Mamãe se concentrava nas coisas de cozinha, enquanto meu pai ficou responsável pelos equipamentos eletrônicos e outras coisas da sala de estar. Minha mãe não era nem um pouco tecnológica, mas duvido que fique sem assistir seu CSI diário na televisão paga.
Olhando pela grande janela da frente, uma criança passou brincando com uma bola de futebol, provavelmente indo para o campo verde perto das pequenas pontes.
— Nós podemos tirar um fim de semana e ir até Londres para assistirmos uma partida de futebol — meu pai chegou de repente, observando a janela junto comigo. Eu nunca gostei muito de esportes, mas era sempre divertido ir a estádios com ele. Em Nova Iorque eu ia assistir beisebol só para usar mãos de espuma gigantes e comer cachorro quente. — Estou em dúvida se quero torcer para o Manchester United, Arsenal ou para o Tottenham Hotspur — ele falava agora mais para si mesmo. — Será que Cotswolds tem um clube próprio?
Tive de controlar a minha vontade de rir com sarcasmo. Se Cotswold tinha um time próprio de futebol? Parecia uma boa piada aos meus ouvidos, já que a região não parecia ter ao menos eletricidade.
— Tenho que escolher antes do jogo, porque dizem por aqui que um dos principais rivais do Arsenal é o Tottenham, já que eles disputam regularmente o North London Derby.
Não fazia ideia do que era North London Derby e nem gostaria de saber. Além de ser o rei dos comentários aleatórios, meu pai também ganhava a coroa com suas explicações demoradas. A regra sempre foi: só pergunte algo a papai se você realmente precisa saber, pois perderá bons minutos — e até horas, com suas histórias gigantes sobre tudo.
Chequei meu celular pela décima vez, enquanto meu pai tagarelava sobre alguma coisa sem importância para mim. — Vocês realmente me trouxeram para um lugar sem sinal de telefone?
Meu pai parou de falar sobre futebol.
— Vamos ter internet em alguns dias.
— E até lá eu fico incomunicável?
Mamãe apareceu do nada.
— Deixe de ser dramática. Até o começo da próxima semana já temos tudo instalado em nossa casa.
Quase sufoquei.
— O que vocês esperam que eu faça por aqui? — eu fazia gestos exagerados, enquanto eles me olhavam com calma. — Querem que eu vá sentar na grama e ler livros de história medieval para saber mais sobre aqui?
Minha mãe revirou os olhos.
— Faça o que quiser, só não fique reclamando. O lugar é lindo, você vai achar coisas para fazer.
Meu pai parecia concordar.
— E principalmente ao ar livre! Vai ser ótimo.
Mamãe continuou: — , vá conhecer a vila. Fazer amigos.
Aquilo me atingiu como uma bala provavelmente faria. Eu não era antissocial, mas, sempre que fazia amigos, nos mudávamos. Era como se minha vida fosse um jogo em que a tarefa para mudar de fase era conquistar amigos.
A olhei de cara feia.
— Vocês estão mesmo felizes nesse fim de mundo? — deram de ombros. — Vou fazer exatamente o que disse, que ai já vamos embora mais cedo.
Sai de casa com mamãe chamando por meu nome, mas já era tarde demais. Eu não queria ser grossa com meus pais. Sempre fomos uma família bem feliz e harmoniosa, mas era sempre difícil nos primeiros dias. E eu sabia que ela entendia isso. Eles tinham a companhia um do outro, em qualquer lugar do mundo. Eu era a filha que tinha que ir junto, apenas.
As ruas estreitas de pedra me deixavam com pior humor. Como alguém pode preferir essa cidade congelada no tempo a uma grande metrópole, onde tudo é completamente acessível, fácil, prático e às suas ordens? Eu não conseguia entender.
Os cidadãos de Cotswolds se encontravam espalhados em pequenos cafés, bancos de pedra nas calçadas e sentados na grama próxima à divisão do rio. Perdi a conta de quantos sorrisos recebi ao passar por tudo aquilo.
Tudo ficava pior ao perceber como Bourton-on-the-Water parecia coisa de filme romântico e meloso. A placa de entrada não mentia nem um pouco, o distrito era sim a Veneza da Inglaterra. As casas de pedra, os caminhos de flores e extensos jardins… E o grande rio cruzando as ruas. Tudo parecia extremamente lindo e perfeito, de um jeito completamente irreal. Romeo e Julieta poderiam facilmente morar aqui com suas famílias complicadas.
Mas o que mais me irritava era a falta de sinal. De telefone. Que tipo de cidade, em pleno século XXI, tem problemas com rede telefônica? Eu andava com meu celular em mãos, como uma maluca procurando sinal. Alguns curiosos olhavam as casas ao redor, com câmeras de última geração nos pescoços. Flashes e mais flashes. Poses e mais poses ridículas perto dos grandes lagos e imóveis mais antigos. Turistas. Eu odiava ser turista. Odiava viajar. Mas naquela hora eu queria pertencer ao grupo de viajantes, pois só assim eu não deveria ter de morar no fim de mundo do século X chamado Cotswolds.
Com certeza, Bourton-on-the-Water seria o pior dos treze lugares em que já moramos. Eu estava certa antes mesmo da escola. Na cidade grande eu simplesmente me enfiava entre todos, despercebida, apenas parte de uma multidão. Incrivelmente, eu me sentia parte de alguma coisa, de certa maneira. Em Cotswolds, eu não sabia como fazer aquilo. Não sabia nem como começar. Não queria admitir, mas seria péssimo ser completamente ignorada em uma vila com menos de quatro mil habitantes.
As pessoas pela vila não pareciam ligar para novidades. Eu era uma novidade. Ficaria para trás, com certeza.
Seria apenas mais um ano longo, sem amigos, vivendo num fim de mundo.
A melhor decisão do momento foi sentar em um dos vários bancos velhos de pedra escura, espalhados pela margem do rio. Eu já havia desistido do meu celular. Respirei fundo, analisando ainda mais aquela vila idiota. E, mais à minha direita, havia uma loja de esquina, que se nomeava “Mercearia” no letreiro. Algumas letras ao lado estavam bem apagadas, dificultando minha leitura de longe. Bem original. E caipira.
Andei na direção da tal loja. Talvez eu conseguisse o que queria: meu cachorro. Bem, não exatamente meu cachorro, mas pelo menos uma luz de onde consegui-lo. Meu pai sempre disse que as menores lojas são as que mais possuem informações, porque geralmente são de familiares locais.
O mercado não parecia ser grande coisa, mas provavelmente seria o único na rua onde eu me encontrava. Eu não poderia me deixar perder em Cotswold. E muito menos em uma vila ridiculamente pequena e velha como Bourton-on-the-Water.
O local era maior do que por fora. O chão de madeira escura parecia ter sido polido a pouco tempo. Diversas prateleiras ficavam no meio da loja, assim como nas paredes indo até o teto, como se fossem armários de madeira antigos com vários nichos. Algumas pessoas olhavam produtos diferenciados nas prateleiras, já que o mercado parecia vender de tudo. Um garoto de cabelos castanhos tentava ajudar uma senhora com um chapéu duas vezes maior que a circunferência de sua própria cabeça. Suas roupas eram mais do mesmo: cinza e cafona, como toda Cotswolds.
Parei no meio das prateleiras, sem saber o que fazer. Era óbvio que ali eu não acharia um cachorro para levar para casa. O menino me olhou de lado, e meu coração quase parou quando ele simplesmente deixou a velha de lado e decidiu vir até mim.
Pela primeira vez eu tinha chamado a atenção de alguém naquele lugar idiota. Sua expressão era absolutamente calma, como se fosse normal garotas se perderem pelo mercado da região. Ele parou ao meu lado, deixando um sorriso a mostra.
— Olá, tudo bem?
Eu nunca tinha percebido o quanto amava o sotaque britânico. É tão bonito quanto o francês, mas o das pessoas de Cotswold parecia ser mais forte que o normal, mais carregado por ser do interior. Eu poderia falar o dia inteiro se tivesse um sotaque desses. Dois anos na França e eu mal conseguia forçar como eles falam de verdade.
Concordei entre gestos, não querendo prolongar muito aquilo.
— Você sabe onde eu posso conseguir um cachorro?
Ele franziu o cenho, parecendo pensar.
— Não acho que temos isso por aqui.
Aquilo era o fim do meu dia.
— Não há cachorros aqui?
— Claro que tem, mas não para comprar. — acho que a minha reação arrasada o preocupou. — Talvez você precise ir a Londres. Tem locais de adoção por lá — e pareceu dar de ombros. — Está de passagem na cidade?
Não consegui reprimir a careta em meu rosto. Podia até ser falta de educação, mas foi impossível. Pelo fato de, infelizmente, eu não estar apenas de passagem e pelo fato de eu querer um cachorro não o faça perceber que eu também moro nesse fim de mundo.
— Infelizmente não — suas sobrancelhas se ergueram em surpresa. — Moro aqui agora. Acabamos de chegar.
— Possuem parentes por Cotswolds? — balancei a cabeça em negação. Isso fez com que sua expressão se tornasse confusa. — Ah, estão vindo de Londres?
— Paris.
— Paris? — as feições confusas continuaram em seu rosto, mas eu juro que pude ver um sorriso reprimido. Qual era a graça por virmos de Paris? — O que te traz até Cotswolds?
— O emprego do meu pai. Ele é consultor financeiro. Está trabalhando com as contas públicas da Inglaterra, algo assim.
Sempre foi difícil explicar para as pessoas os motivos de tantas viagens e mudanças, o mesmo para explicar direito o que meu pai fazia. O fato era que, por ser especialista em desenvolvimento econômico de regiões com negócios e indústria de larga escala, ele vivia viajando, de acordo com os interesses dos países. Geralmente era convocado quando algum problema financeiro grande estava acontecendo no local.
As viagens constantes eram chatas, mas o sonho particular que papai tinha de “combater a fraude pública no mundo” (como ele mesmo dizia) era bonito. Humanitário, eu sempre achei.
O foco da vez era a Inglaterra, não sei exatamente o distrito ou condado, mas foi isso que me fez ir parar em Bourton-on-the-Water. Eu não sabia o que estava acontecendo pela Inglaterra e nem me interessava.
— Isso parece complicado — ele fez uma careta confusa, coisa que eu já esperava. É sempre assim. — Mas Cotswold?
Dei de ombros, ignorando seus olhares curiosos. Para que tanto interesse em uma estrangeira qualquer? Parece que isso não acaba nunca.
— A resposta dele foi “qualidade de vida”. Mas por que a surpresa? Esse lugar é tão caipira assim que não recebe gente da cidade grande para morar?
Seu olhar me intrigava. Globos azuis como o mar. Será que a minha grosseria desnecessária tinha o afetado? Bom, naquele momento pouco me importava. Eu ainda queria um cachorro.
Ele então me observou de cima a baixo, talvez analisando as minhas roupas. Acompanhei o seu olhar. Eu vestia saia e blusa preta, junto com um casaco no estilo sobretudo vermelho sangue. Não havia nada demais, mas já era o suficiente para me destacar como diferente em Cotswold. Mas tanto faz. O que afinal esse desconhecido tinha a ver com a minha vida?
— Garotas como você passam por aqui apenas como turistas. Tiram fotos, compram coisas inúteis nos mercados e depois vão embora.
Então estava certo. Eu havia ofendido o primeiro caipira do local.
Naquele momento eu poderia socá-lo até seu rostinho lindo ficar roxo.
— O que você quer dizer com isso? — espera aí, rostinho lindo? — Quem você pensa que é? Nem me conhece!
Ele mal se afetou com as minhas palavras rudes.
— Me desculpe se te ofendi, mas só disse a verdade — e simplesmente deu de ombros. — Você não combina com Cotswold.
Por mais irada que eu estivesse, aquilo me confortou. Eu não “combinava” com Cotswold. Talvez esse tenha sido um dos melhores elogios que eu recebi nos últimos meses.
Mas eu não podia deixar aquilo barato. Eu não sabia explicar por que, mas precisava jogar minha frustração em alguém.
— E você? — meus olhos analisaram novamente suas roupas, até chegar ao seu rosto. Trajes cinza e branco, sem personalidade alguma. Nenhum sinal de vergonha ou timidez por parte dele. — Fica por aqui espalhando grosserias ou só gosta da velharia?
Seu olhar tranquilo ainda me atingia.
— Eu cresci aqui, então já me acostumei. Mas desde que visitei Londres vi que a vida pode ser diferente — ele deu um sorriso para uma senhora que passou entre nós. — E eu trabalho aqui, caso não tenha percebido.
Resolvi me calar. Toda a simpatia anterior fora derrubada facilmente. Se todas as pessoas de Cotswold fossem desse jeito, preferia não pedir ajuda para nada durante nossa estadia por Bourton-on-the-Water. Humores voláteis, como na cidade grande. Será que pelo menos isso aquele fim de mundo se pareceria com Nova Iorque ou Paris?
O garoto bonitinho deu de ombros, mexendo em algo nas prateleiras ao meu lado e logo sendo chamado por um senhor usando roupas sociais demais.
Olhei em volta. Eles realmente vendiam de tudo. Nas prateleiras era possível encontrar desde temperos a camisetas com “I LOVE BOURTON” ou “RIO WINDRUSH PASSA AQUI”. Guarda-chuvas, bolsas, itens de farmácia e muitos outros.
Se eles queriam ter uma loja sem definição, conseguiram.
— Está matriculada na escola? — sua voz rouca me atingiu novamente, assim que estava pronta para colocar meus pés fora do mercado.
Dei meia volta, observando-o subir em uma pequena escada de madeira velha, para alcançar as prateleiras altas da parede. Nelas, garrafas coloridas com algum conteúdo desconhecido estavam enfileiradas.
— The Cotswold School — não consegui reprimir uma careta. Até o nome da escola soava velho, chato e antiquado. — Se você estuda, provavelmente é lá, certo? Acho que aqui não tem outra escola.
Ele me olhou de lado enquanto colocava algo em uma das prateleiras.
— Você tem razão. Estudo lá também.
A única coisa que fiz foi um barulho estranho com a boca.
— Legal.
O garoto desceu a pequena escada, ficando próximo de mim novamente. Seu humor de volta ao modo “simpático”. Deve ser instinto natural dos nativos por aqui.
— Como você veio da cidade grande deve estar achando tudo um saco, mas você acaba se acostumando — tive de reprimir uma gargalhada. Quem já morou em Nova Iorque, Paris, Chicago, Flórida e Holanda não se acostuma tão fácil com um fim de mundo que se chama de “Veneza do interior da Inglaterra”. — Aqui nós temos algumas coisas legais para se fazer. Tem vários cafés, restaurantes e pubs. E as pessoas gostam de se encontrar, fazer piquenique perto do Rio, essas coisas.
— Tantas coisas, menos cachorros.
Ele soltou uma risada que eu fiz o máximo para não sorrir junto, ainda tinha que me fingir ofendida.
— Vá a Londres, é bem perto.
Um garoto mais ou menos da altura do menino entrou no mercado. Seus cabelos claros estavam completamente bagunçados, mas, diferente do outro, suas roupas eram menos sóbrias.
— E aí meu irmão! Vamos?
O garoto do mercado olhou para ele, concordando de prontidão.
— Só um segundo, vou pegar minhas coisas lá dentro.
O loiro me olhou de lado, sorrindo de leve. Realmente simpatia deve ser algo normal em Cotswold.
— Tudo bem?
Apenas concordei com a cabeça. Ele tirou um celular do bolso, discando algumas coisas na tela sensível. Não consegui reprimir um suspiro de alívio. Meu pai não havia mentido, existia sim internet no fim do mundo. Eu só tinha que descobrir como fazer o meu celular funcionar e pronto.
A porta dos fundos se abriu com rapidez e o garoto do mercado saiu depressa, carregando uma mochila preta nos ombros. Ele gritou algo para um homem que havia acabado de aparecer atrás da máquina registradora, logo andando até a nossa direção. Ou melhor, até o seu amigo.
Eles se cumprimentaram com um meio abraço. E depois disso ele olhou em minha direção.
— Boa sorte com o cachorro, a gente se vê — e andou para fora do mercado. Antes de sair, virou-se novamente, com um sorriso que julguei ser sincero. — Bem-vinda a Cotswold!
Ver o menino do mercado com seu amigo havia me machucado. Pois me fazia lembrar um fato bem constante da minha vida: eu não tinha amigos. E, mais uma vez, estava em um local completamente estranho. Sem conhecer ninguém. Doía mais pela nostalgia que eu sentia em todo começo de cidade/país novo. Meus amigos que me acompanhavam até o momento, de longe, faziam mais falta ainda. A minha vontade era de dar uma de rebelde e pegar o primeiro voo até Nova Iorque, só para vê-los de perto mais uma vez.
Sentada mais uma vez no banco gelado de pedra, de frente para aquele rio estúpido, eu via o outro lado da vila, onde dois adolescentes andavam de bicicleta, correndo um atrás do outro. Eu ainda sabia andar naquilo?
Eu reclamava pela milésima vez.
— Eu não vou fazer isso!
Seus olhos verdes reviraram novamente – , deixa de ser menininha.
Fiz uma careta ofendida.
— Eu não sou menininha!
Bree cortou a conversa, me ameaçando com um empurrão.
— Anda logo!
Logan ria da minha cara de espanto.
— Princesa, confia em mim. Está segura.
O medo da vez era: aprender a andar de bicicleta. Quando criança, com todas as viagens loucas, meu pai nunca tinha parado para me ensinar a andar naquele treco. Depois de um joguinho de “eu nunca” ridículo (bem ridículo mesmo, quem diz que nunca andou de bicicleta na vida?), Logan e Bree me obrigavam a andar naquele veículo de morte.
— Eu tenho treze anos e moro perto do metrô. Preciso mesmo fazer isso?
O Central Park estava até vazio para a época. Algumas pessoas passeavam de bicicleta, outras de patins ou skate. No fundo, em uma quadra de baseball, uma gritaria constante.
Bree se sentou na grama, como sinal de desistência.
— Logan, deixe ela. Quando chegar o dia em que a bicicleta for o único meio de transporte que ela terá, vamos ver como vai ser!
Revirei os olhos em sua direção.
— Deixe de ser dramática. Onde eu estaria para ter só bicicletas? Na roça? — ela deu de ombros. Logan continuava parado ao meu lado. — Não vai me livrar dessa?
— Se você tentar, assisto aquele filme de adolescentes dramáticos com você.
Aquilo sim foi um incentivo.
— Pipoca com refil?
Ele riu mais ainda.
— O quanto você quiser.
Respirei fundo, já imaginando o desespero de minha mãe quando visse o meu futuro machucado.
— Vamos nessa.
Observando a vila, via muitas pessoas andando de bicicleta. Parecia ser o transporte mais normal da região.
Ri sem humor algum, falando alto.
— Bree, sua filha da puta.
Um casal que estava sentado às margens do rio olhou para trás, com cara feia. Nem me dei o trabalho de pedir desculpas, logo saindo daquele lugar.
Derrotada e sem cachorro, meu destino era voltar para aquela casa de comercial de margarina. A caminhada não parecia ser longa, caso eu não me perdesse. Mais uma vez. Não poderia me deixar perder naquele buraco.
Enquanto caminhava, meu casaco vermelho sangue pesava em meus ombros, mas não conseguia me importar com isso. A única coisa que eu não poderia fazer era se entregar a esse universo antigo, como meus pais já haviam feito. Por mais que eu adorasse usar cinza, decidira que aquela cor estava banida do meu armário.
Sem muita dificuldade, cheguei novamente a nossa nova casa. Ela, pra minha raiva, continuava linda.
Adentrei pela porta central, logo encontrando papai e mamãe sentados no grande sofá branco, em frente à televisão um pouco grande mais. A maioria das coisas já tinha achado o seu local apropriado, mas isso não diminuía a sensação de bagunça e papelão amontoado.
E, bom, tínhamos sinal de televisão.
Assim que percebeu minha presença, meu pai logo tratou de dar dois “tapinhas” ao seu lado vago, para que me sentasse.
— Querida, conseguiu seu cachorro?
— Ainda não, acho que vou precisar ir a Londres.
Meu pai concordou, rindo de algo do filme maluco e preto e branco que eles assistiam. Nós já tínhamos televisão a cabo ou era assim que as pessoas de Bourton-on-the-Water ainda viam seus canais?
— Me parece um bom motivo para conhecer Londres.
Me acomodei no sofá branco até que o filme acabasse. Minha mãe subiu as escadas, desejando boa noite. Meu pai zapeava alguns canais, como se buscasse alguma desculpa para que pudesse ir dormir cedo também.
— Como foi seu passeio? — apenas resmunguei alguns comentários sobre falta do que fazer e a simpatia exagerada das pessoas. — Nós conhecemos nossos vizinhos enquanto você estava fora — meu pai chegava ao canal quinhentos, ainda insatisfeito com a programação. — Acho que vai ser fácil fazer amigos por aqui.
Felizmente, meu pai não tinha percebido a ironia em minhas palavras. Pensando no episódio do mercado, me vi falando.
— Acho que não vai ser tão fácil assim.
— O que, minha querida?
Eu não podia falar para o meu pai, em nosso primeiro dia na cidade nova, sobre como seria difícil fazer novas amizades pela região. Todos se conhecem desde que nasceram, era como se eu fosse o indivíduo extra que ninguém precisava.
— Nada, pai.
A televisão foi desligada. Meu pai se levantou, logo estendendo sua mão para que eu a pegasse. Nós caminhamos até a escada, subindo-a em seguida. Paramos na porta do meu quarto novo, enquanto meu pai soltava alguma curiosidade sobre o tipo de madeira que usaram na construção da casa.
Algo como do século passado, como Cotswold inteira.
— Nós vamos ser felizes aqui, você vai ver.
Seu sorriso tinha o que eu mais gostava no mundo. Sinceridade. E aquilo fazia com que eu tivesse esperanças de que não fosse tudo como Chicago ou como na França. Seria diferente, pois já estávamos fazendo, infelizmente, o diferente: estávamos no interior.
O maior problema mesmo era saber por quanto tempo seríamos felizes em Cotswold. Ou se o nosso tempo por ali daria tempo de criar algum tipo de felicidade.
Sem ter o que falar, aceitei seu beijo de boa noite na testa.
— Confio em você, pai.
Anão Último Mudanças Os fones de ouvido já machucavam minhas orelhas.
Eu passava as músicas aleatórias na mesma rapidez em que a paisagem avançava pela janela. Paisagem que, ironicamente, combinava com a música enjoada que eu decidira deixar tocando. Tinha uma animação desnecessária, que já me dava dor de cabeça.
Em um ato de total rebeldia, retirei os fones sem cuidado algum, como se aquilo fosse simplesmente fazer a raiva aliviar um pouco. Eu estava cansada. Cansada de sempre passar pela mesma coisa, cansada por estar a mais de duas horas sentada em um banco traseiro desconfortável de algum carro ridículo que meu pai julgava ser ideal para a viagem.
Era isso. Eu estava simplesmente cansada. Cansada até mesmo do meu próprio drama.
Por horas, tudo não passava de borrões nas janelas, devido à velocidade em que estávamos. Em um dia normal eu estaria elogiando minha mãe pelo ponteiro do velocímetro marcar 100 km/h, mas meu humor simplesmente não permitia.
— Por que não no centro? — minha mãe ergueu as finas sobrancelhas, me encarando pelo retrovisor central, como se aquela fosse uma pergunta muito ruim para o momento. — Londres parece realmente bonita — dei de ombros, tentando deixar de lado o assunto que eu mesma comecei. Pela décima vez.
Ela pareceu relaxar na direção, mantendo seu olhar na estrada. Meu pai, como sempre, no banco do carona, jogava algo irritante em seu tablet. Desde que descobriu essa tecnologia — e Angry Birds, ficou mais difícil conquistar a sua atenção.
A única coisa que me restava era encarar a janela embaçada. Algumas casas pareciam realmente distantes umas das outras, dando espaço para um grande destaque de verde, junto com jardins e árvores que deviam ter mais de duzentos anos. Duzentos anos no mesmo lugar. Por que aquilo soava tão interessante para mim?
A cada distrito que passávamos havia apenas casas e mais casas. Alguns pequenos comércios na beira da estrada principal. Nada de prédios, o que já significava um mau sinal. Algumas pessoas sempre dizem que quando começamos a ver somente mato na estrada, estamos perdidos. Minha grande amiga de Nova Iorque, Bree, diz que se não vemos prédios, estamos em um lugar pior.
O interior.
Ah, sim. Era oficial. Eu estava no interior.
Nosso destino, enfim, e infelizmente, não era a cidade cosmopolita de Londres. Infelizmente. Indo na contramão de tudo o que já fizemos, e de todos os outros doze lugares em que já moramos, estávamos indo diretamente para o interior. Minha mãe dizia que era bem melhor do que o subúrbio, mas eu simplesmente não conseguia ver tanta diferença entre os dois. Para mim, dava no mesmo. Tecnologia atrasada, falta de internet, casas velhas de madeiras e gente caipira.
— Eu li em um blog que o distrito de Cotswolds é o mais antigo da Inglaterra. A arquitetura é muito século X e fica a apenas duas horas de Londres! — meu pai comentava feliz. Ele é o mestre dos comentários aleatórios, para tudo e sobre tudo. Semana passada ele tagarelou por horas com um amigo sobre as regras do rúgbi e como este é um esporte de classe. Às vezes eu me pego pensando em como ele tem tempo para saber de tantas coisas.
— Se é tão perto assim de Londres, por que não Londres?
— Minha querida, só estamos tentando algo novo — pude vê-lo sorrir ao conseguir derrubar três alvos com um passarinho só. — Tenho certeza que você vai gostar.
Minha mãe balançava a cabeça, em afirmação.
— A casa é linda — e dirigiu seu olhar para mim, pelo espelho central. — Você sempre quis morar em uma casa grande.
— Nosso trato ainda está de pé?
— Com certeza. Assim que arrumarmos tudo, você pode ter o que quer.
E o que eu queria era um cachorro. Na falta de meus antigos amigos e do meu irmão, eu teria ele.
Meu pai continuava tagarelando sobre o incrível condado de Gloucestershire, onde ficava o distrito de Cotswold, que ia ser a nossa nova casa. Eu ainda, sinceramente, não sabia como ele possuía forças para isso. É a nossa décima terceira casa nova.
Que tipo de pessoa se anima com a décima terceira mudança?
— Vocês sabiam que Cotswold tem o metro quadrado mais caro da Inglaterra?
Mesmo cansada dos comentários aleatórios de papai sobre o lugar mais caipira do mundo, aquilo me chamou atenção. O que faz um distrito típico do século X ter apenas famílias ricas? Naquele momento eu pude entender um pouco o que estávamos fazendo ali. Mesmo sendo interior e bizarro, ainda era um condado de ricos.
Típico dos meus pais. Estava ali a diferença do subúrbio.
Mas eu não poderia deixar a oportunidade de ser chata passar.
— Então não vamos ver carroças por aqui?
— Pelo contrário! — ele exclamou, mas isso não fez a minha cara emburrada passar. — Os moradores aqui têm uma ótima condição. Acho mais fácil vermos apenas carros caros e importados.
Papai continuava falando demais, até que uma placa enorme toda decorada nos apontou que tínhamos chegado ao nosso novo destino. “Bem vindos a Veneza da Inglaterra, Bourton-on-the-Water, no condado de Gloucestershire”.
Se o interior já soava péssimo, imagine morar na Veneza da Inglaterra.
— O nome do rio que corta a vila é Windrush — meus olhos se fecharam automaticamente, minhas mãos foram levadas às minhas têmporas, buscando paciência. — Jogadores britânicos disputam todo ano em equipes um jogo aquático nesse rio. Dura cerca de trinta minutos, deve ser divertido de se ver — ele suspirou alto. — Dizem que essa disputa acontece há mais de um século!
Minha mãe passava devagar pelas ruas, observando os dois lados junto com meu pai. Haviam várias lojinhas feitas de pedra, cafés e eu podia jurar ter visto até mesmo um pub.
— Acho que aqui vamos conseguir tomar o típico chá inglês, que também é chamado de cream tea. Ele pode ser servido com ou sem leite e acompanhado de scones caseiros, geleia e cloted cream. Cloted cream é um creme de leite encorpado, típico da Cornuália. Incrível!
Incrível seria se alguém se importasse com cloted cream como meu pai.
Nem minha mãe conseguiu reprimir a careta.
— Você gravou isso tudo?
Após darmos algumas voltas, de acordo com o nosso GPS alugado, havíamos chegado. E o nosso destino era uma casa enorme. Eu tive de suspirar ao sair do carro. Nossa décima terceira casa nova era realmente linda.
E eu odiava ter que admitir isso.
Parecia que tinha saído de um filme ou algum livro de época famoso. Toda ornamentada em calcário e muito verde das plantas que subiam pelas paredes externas e janelas, aquela era a maior casa que já tivemos. Tinha dois andares, sem contar com o provável sótão. Era completamente diferente dos apartamentos antigos que alugávamos na cidade grande.
O que mais chamava atenção era a falta de muros. Nenhuma casa da rua de pedras tinha um muro as separando, e parecia que no condado inteiro de Gloucestershire isso não existia. A parte da frente dava em um enorme gramado verdinho, com alguns tipos de flores e plantas decorando naturalmente a entrada da casa.
Mesmo emburrada com o lugar e toda essa palhaçada de décima terceira mudança, eu senti algo gostoso ao ver a casa. Parecia e soava diferente de qualquer outra coisa que eu já tenha vivido.
Mesmo que eu realmente não quisesse confessar isso.
Meu pai colocou suas pesadas mãos em meus ombros.
— O que achou? É bonita, não é? — apenas agitei a cabeça, afirmando. Olhei para seu rosto e ele parecia realmente feliz. Não pude conter de me sentir mal por estar tão chateada por estar nesse fim de mundo. Eu mal tinha culpa de me sentir assim, já havia feito muito sacrifício para acompanhá-los por todos os lugares.
Ele então pegou uma grande caixa no porta-malas do nosso carro alugado. Esta tinha uma grande etiqueta com a palavra “Sobrevivência”. Isso significava documentos, tecnologia, e qualquer outra coisa que devia estar lá primeiro do que o caminhão de mudanças, caso acontecesse algum imprevisto.
— Nós precisamos comprar coisas típicas da Inglaterra e do distrito para colocar em nossa casa. — meu pai continuava falando sem parar sobre o nosso adorável distrito da Inglaterra. — Será que eles fazem churrascos com os vizinhos por aqui?
Por dentro a casa se mostrou ainda mais maravilhosa. Por sorte, o caminhão de mudanças já havia chegado e o caseiro responsável por nos entregar as chaves já havia colocado boa parte das caixas dentro da casa. Algumas outras foram entulhadas na garagem. Como a casa já estava completamente mobiliada, nossos móveis foram descartados na França. Lembrar disso fez com que o meu mau humor se despertasse novamente. Seria o ápice da minha vida em Cotswold caso o meu quarto estivesse decorado como para uma menininha.
Em vez de todo aquele branco e aparelhos de última geração que às vezes nos davam até ‘bom dia’, nossa casa era 70% de madeira. Eu não posso dizer que não era bonita ou aconchegante. Era sim. Mas eu ainda preferia o luxo da cidade grande e da geladeira que me avisava as coisas bobas que sempre esqueço.
Mas a casa em geral não me importava. O ponto principal era: meu quarto. Meus pais haviam avisado que ficava no segundo andar da casa, o que já me agradava. Quanto mais longe do jardim bonito, melhor.
Subi as escadas de madeira e, para minha surpresa, elas não faziam barulhos de velhice como em qualquer casa do interior. Seguindo instruções de meu pai, segui até a segunda porta a direita. Era grande e larga, de madeira escura.
Abri a porta devagar, logo suspirando aliviada. Era um quarto de gente normal. Havia uma cama de casal no meio, um armário grande e cor de marfim do lado direito (será que todas as minhas roupas caberiam ali?). No lado esquerdo uma janela enorme que mantinha uma vista para o Rio Windrush, por vários metros de distância. Na parede em frente à cama, ao lado da porta, havia um grande espelho de corpo todo.
Era o ideal. Parecia um pouco com um quarto de algum filme bobo americano para garotas de quinze anos, só que do interior e caipira. Mas eu ainda achava que, com meu toque pessoal, poderia me sentir bem ali dentro.
Não que eu realmente me importasse na decoração, já que não sabia quanto tempo que poderia chamar aquele local de meu.
Cheguei perto do espelho, meu reflexo parecia cansado e de saco cheio. Minhas roupas ficavam em um contraste absurdo com o quarto, modernas demais. Passei as mãos em meus cabelos, que estavam em um tamanho médio. Eu gostava do que via. Principalmente por ser tão diferente do que via e vi ao meu redor.
O problema de mudar constantemente era sempre o pavor de aceitação, ainda mais quando você tem que enfrentar uma nova escola. Eu estava preparada para ser o centro das atenções em Bourton-on-the-Water?
Sem modéstia ou qualquer outra coisa, eu realmente gostava do que via em meu reflexo. Gostava das roupas que vestia, gostava da minha silhueta e, sem dúvidas, gostava dessa sensação de diferença. Eu sempre tive uma fisionomia normal, me sentia bonita, mesmo sem ter o corpo do que muitos costumam chamar de “gostosa”. Eu sabia que conseguia chamar atenção, se quisesse. Na verdade, sabia que qualquer menina conseguia fazer isso. Bastava autoestima e uma roupa que você julgasse bonita.
Mas, com o pouco que eu tinha visto sobre aquela vila, o medo principal não era ser o alvo de perguntas bobas, como “como é a cidade grande”, “quantos países você conhece” ou “quantas línguas você fala”, mas sim o fato de que, por somente ter quatro mil habitantes, aquele local era o mesmo de sempre. Todo mundo se conhecia, não era possível ser o contrário. Eu teria o desafio de fazer amigos em um lugar que todo mundo se conhece desde que nasceram.
Sacudi a cabeça, tentando me libertar desses pensamentos. Deixaria isso para amanhã, na escola nova. Ajeitei os fios desajeitados de meu cabelo com as mãos, e um movimento pela janela me chamou atenção. Dei passos largos até o local, logo a abrindo para cima, com facilidade. Pelo menos as corredeiras pareciam novas.
A vista era bonita, eu devia confessar novamente. No fundo, bem fundo mesmo, eu via o corte do rio Windrush. Mais perto, campos verdes com muitas árvores e casas de pedras. Vizinhos.
Alguns adolescentes de uniformes, provavelmente da The Cotswolds School (meu pai já deu uma palestra sobre ser a única escola de formação da região e que pessoas de outras vilas vinham estudar aqui), passavam perto do rio, alguns rindo e deitando na grama verde demais. Será que alguém pulava naquele rio intocado? Aquilo era completamente diferente de tudo o que eu já tinha passado em minha vida. Verde demais, sossego demais.
Meu pai apareceu em meu campo de visão, em nosso jardim.
— Minha querida, sei que a vista é linda, mas venha nos ajudar!
Desci as escadas em passos largos, logo encontrando meus pais. Coloquei algumas caixas para dentro, ajudando com o conteúdo em outras. Mamãe se concentrava nas coisas de cozinha, enquanto meu pai ficou responsável pelos equipamentos eletrônicos e outras coisas da sala de estar. Minha mãe não era nem um pouco tecnológica, mas duvido que fique sem assistir seu CSI diário na televisão paga.
Olhando pela grande janela da frente, uma criança passou brincando com uma bola de futebol, provavelmente indo para o campo verde perto das pequenas pontes.
— Nós podemos tirar um fim de semana e ir até Londres para assistirmos uma partida de futebol — meu pai chegou de repente, observando a janela junto comigo. Eu nunca gostei muito de esportes, mas era sempre divertido ir a estádios com ele. Em Nova Iorque eu ia assistir beisebol só para usar mãos de espuma gigantes e comer cachorro quente. — Estou em dúvida se quero torcer para o Manchester United, Arsenal ou para o Tottenham Hotspur — ele falava agora mais para si mesmo. — Será que Cotswolds tem um clube próprio?
Tive de controlar a minha vontade de rir com sarcasmo. Se Cotswold tinha um time próprio de futebol? Parecia uma boa piada aos meus ouvidos, já que a região não parecia ter ao menos eletricidade.
— Tenho que escolher antes do jogo, porque dizem por aqui que um dos principais rivais do Arsenal é o Tottenham, já que eles disputam regularmente o North London Derby.
Não fazia ideia do que era North London Derby e nem gostaria de saber. Além de ser o rei dos comentários aleatórios, meu pai também ganhava a coroa com suas explicações demoradas. A regra sempre foi: só pergunte algo a papai se você realmente precisa saber, pois perderá bons minutos — e até horas, com suas histórias gigantes sobre tudo.
Chequei meu celular pela décima vez, enquanto meu pai tagarelava sobre alguma coisa sem importância para mim. — Vocês realmente me trouxeram para um lugar sem sinal de telefone?
Meu pai parou de falar sobre futebol.
— Vamos ter internet em alguns dias.
— E até lá eu fico incomunicável?
Mamãe apareceu do nada.
— Deixe de ser dramática. Até o começo da próxima semana já temos tudo instalado em nossa casa.
Quase sufoquei.
— O que vocês esperam que eu faça por aqui? — eu fazia gestos exagerados, enquanto eles me olhavam com calma. — Querem que eu vá sentar na grama e ler livros de história medieval para saber mais sobre aqui?
Minha mãe revirou os olhos.
— Faça o que quiser, só não fique reclamando. O lugar é lindo, você vai achar coisas para fazer.
Meu pai parecia concordar.
— E principalmente ao ar livre! Vai ser ótimo.
Mamãe continuou: — , vá conhecer a vila. Fazer amigos.
Aquilo me atingiu como uma bala provavelmente faria. Eu não era antissocial, mas, sempre que fazia amigos, nos mudávamos. Era como se minha vida fosse um jogo em que a tarefa para mudar de fase era conquistar amigos.
A olhei de cara feia.
— Vocês estão mesmo felizes nesse fim de mundo? — deram de ombros. — Vou fazer exatamente o que disse, que ai já vamos embora mais cedo.
Sai de casa com mamãe chamando por meu nome, mas já era tarde demais. Eu não queria ser grossa com meus pais. Sempre fomos uma família bem feliz e harmoniosa, mas era sempre difícil nos primeiros dias. E eu sabia que ela entendia isso. Eles tinham a companhia um do outro, em qualquer lugar do mundo. Eu era a filha que tinha que ir junto, apenas.
As ruas estreitas de pedra me deixavam com pior humor. Como alguém pode preferir essa cidade congelada no tempo a uma grande metrópole, onde tudo é completamente acessível, fácil, prático e às suas ordens? Eu não conseguia entender.
Os cidadãos de Cotswolds se encontravam espalhados em pequenos cafés, bancos de pedra nas calçadas e sentados na grama próxima à divisão do rio. Perdi a conta de quantos sorrisos recebi ao passar por tudo aquilo.
Tudo ficava pior ao perceber como Bourton-on-the-Water parecia coisa de filme romântico e meloso. A placa de entrada não mentia nem um pouco, o distrito era sim a Veneza da Inglaterra. As casas de pedra, os caminhos de flores e extensos jardins… E o grande rio cruzando as ruas. Tudo parecia extremamente lindo e perfeito, de um jeito completamente irreal. Romeo e Julieta poderiam facilmente morar aqui com suas famílias complicadas.
Mas o que mais me irritava era a falta de sinal. De telefone. Que tipo de cidade, em pleno século XXI, tem problemas com rede telefônica? Eu andava com meu celular em mãos, como uma maluca procurando sinal. Alguns curiosos olhavam as casas ao redor, com câmeras de última geração nos pescoços. Flashes e mais flashes. Poses e mais poses ridículas perto dos grandes lagos e imóveis mais antigos. Turistas. Eu odiava ser turista. Odiava viajar. Mas naquela hora eu queria pertencer ao grupo de viajantes, pois só assim eu não deveria ter de morar no fim de mundo do século X chamado Cotswolds.
Com certeza, Bourton-on-the-Water seria o pior dos treze lugares em que já moramos. Eu estava certa antes mesmo da escola. Na cidade grande eu simplesmente me enfiava entre todos, despercebida, apenas parte de uma multidão. Incrivelmente, eu me sentia parte de alguma coisa, de certa maneira. Em Cotswolds, eu não sabia como fazer aquilo. Não sabia nem como começar. Não queria admitir, mas seria péssimo ser completamente ignorada em uma vila com menos de quatro mil habitantes.
As pessoas pela vila não pareciam ligar para novidades. Eu era uma novidade. Ficaria para trás, com certeza.
Seria apenas mais um ano longo, sem amigos, vivendo num fim de mundo.
A melhor decisão do momento foi sentar em um dos vários bancos velhos de pedra escura, espalhados pela margem do rio. Eu já havia desistido do meu celular. Respirei fundo, analisando ainda mais aquela vila idiota. E, mais à minha direita, havia uma loja de esquina, que se nomeava “Mercearia” no letreiro. Algumas letras ao lado estavam bem apagadas, dificultando minha leitura de longe. Bem original. E caipira.
Andei na direção da tal loja. Talvez eu conseguisse o que queria: meu cachorro. Bem, não exatamente meu cachorro, mas pelo menos uma luz de onde consegui-lo. Meu pai sempre disse que as menores lojas são as que mais possuem informações, porque geralmente são de familiares locais.
O mercado não parecia ser grande coisa, mas provavelmente seria o único na rua onde eu me encontrava. Eu não poderia me deixar perder em Cotswold. E muito menos em uma vila ridiculamente pequena e velha como Bourton-on-the-Water.
O local era maior do que por fora. O chão de madeira escura parecia ter sido polido a pouco tempo. Diversas prateleiras ficavam no meio da loja, assim como nas paredes indo até o teto, como se fossem armários de madeira antigos com vários nichos. Algumas pessoas olhavam produtos diferenciados nas prateleiras, já que o mercado parecia vender de tudo. Um garoto de cabelos castanhos tentava ajudar uma senhora com um chapéu duas vezes maior que a circunferência de sua própria cabeça. Suas roupas eram mais do mesmo: cinza e cafona, como toda Cotswolds.
Parei no meio das prateleiras, sem saber o que fazer. Era óbvio que ali eu não acharia um cachorro para levar para casa. O menino me olhou de lado, e meu coração quase parou quando ele simplesmente deixou a velha de lado e decidiu vir até mim.
Pela primeira vez eu tinha chamado a atenção de alguém naquele lugar idiota. Sua expressão era absolutamente calma, como se fosse normal garotas se perderem pelo mercado da região. Ele parou ao meu lado, deixando um sorriso a mostra.
— Olá, tudo bem?
Eu nunca tinha percebido o quanto amava o sotaque britânico. É tão bonito quanto o francês, mas o das pessoas de Cotswold parecia ser mais forte que o normal, mais carregado por ser do interior. Eu poderia falar o dia inteiro se tivesse um sotaque desses. Dois anos na França e eu mal conseguia forçar como eles falam de verdade.
Concordei entre gestos, não querendo prolongar muito aquilo.
— Você sabe onde eu posso conseguir um cachorro?
Ele franziu o cenho, parecendo pensar.
— Não acho que temos isso por aqui.
Aquilo era o fim do meu dia.
— Não há cachorros aqui?
— Claro que tem, mas não para comprar. — acho que a minha reação arrasada o preocupou. — Talvez você precise ir a Londres. Tem locais de adoção por lá — e pareceu dar de ombros. — Está de passagem na cidade?
Não consegui reprimir a careta em meu rosto. Podia até ser falta de educação, mas foi impossível. Pelo fato de, infelizmente, eu não estar apenas de passagem e pelo fato de eu querer um cachorro não o faça perceber que eu também moro nesse fim de mundo.
— Infelizmente não — suas sobrancelhas se ergueram em surpresa. — Moro aqui agora. Acabamos de chegar.
— Possuem parentes por Cotswolds? — balancei a cabeça em negação. Isso fez com que sua expressão se tornasse confusa. — Ah, estão vindo de Londres?
— Paris.
— Paris? — as feições confusas continuaram em seu rosto, mas eu juro que pude ver um sorriso reprimido. Qual era a graça por virmos de Paris? — O que te traz até Cotswolds?
— O emprego do meu pai. Ele é consultor financeiro. Está trabalhando com as contas públicas da Inglaterra, algo assim.
Sempre foi difícil explicar para as pessoas os motivos de tantas viagens e mudanças, o mesmo para explicar direito o que meu pai fazia. O fato era que, por ser especialista em desenvolvimento econômico de regiões com negócios e indústria de larga escala, ele vivia viajando, de acordo com os interesses dos países. Geralmente era convocado quando algum problema financeiro grande estava acontecendo no local.
As viagens constantes eram chatas, mas o sonho particular que papai tinha de “combater a fraude pública no mundo” (como ele mesmo dizia) era bonito. Humanitário, eu sempre achei.
O foco da vez era a Inglaterra, não sei exatamente o distrito ou condado, mas foi isso que me fez ir parar em Bourton-on-the-Water. Eu não sabia o que estava acontecendo pela Inglaterra e nem me interessava.
— Isso parece complicado — ele fez uma careta confusa, coisa que eu já esperava. É sempre assim. — Mas Cotswold?
Dei de ombros, ignorando seus olhares curiosos. Para que tanto interesse em uma estrangeira qualquer? Parece que isso não acaba nunca.
— A resposta dele foi “qualidade de vida”. Mas por que a surpresa? Esse lugar é tão caipira assim que não recebe gente da cidade grande para morar?
Seu olhar me intrigava. Globos azuis como o mar. Será que a minha grosseria desnecessária tinha o afetado? Bom, naquele momento pouco me importava. Eu ainda queria um cachorro.
Ele então me observou de cima a baixo, talvez analisando as minhas roupas. Acompanhei o seu olhar. Eu vestia saia e blusa preta, junto com um casaco no estilo sobretudo vermelho sangue. Não havia nada demais, mas já era o suficiente para me destacar como diferente em Cotswold. Mas tanto faz. O que afinal esse desconhecido tinha a ver com a minha vida?
— Garotas como você passam por aqui apenas como turistas. Tiram fotos, compram coisas inúteis nos mercados e depois vão embora.
Então estava certo. Eu havia ofendido o primeiro caipira do local.
Naquele momento eu poderia socá-lo até seu rostinho lindo ficar roxo.
— O que você quer dizer com isso? — espera aí, rostinho lindo? — Quem você pensa que é? Nem me conhece!
Ele mal se afetou com as minhas palavras rudes.
— Me desculpe se te ofendi, mas só disse a verdade — e simplesmente deu de ombros. — Você não combina com Cotswold.
Por mais irada que eu estivesse, aquilo me confortou. Eu não “combinava” com Cotswold. Talvez esse tenha sido um dos melhores elogios que eu recebi nos últimos meses.
Mas eu não podia deixar aquilo barato. Eu não sabia explicar por que, mas precisava jogar minha frustração em alguém.
— E você? — meus olhos analisaram novamente suas roupas, até chegar ao seu rosto. Trajes cinza e branco, sem personalidade alguma. Nenhum sinal de vergonha ou timidez por parte dele. — Fica por aqui espalhando grosserias ou só gosta da velharia?
Seu olhar tranquilo ainda me atingia.
— Eu cresci aqui, então já me acostumei. Mas desde que visitei Londres vi que a vida pode ser diferente — ele deu um sorriso para uma senhora que passou entre nós. — E eu trabalho aqui, caso não tenha percebido.
Resolvi me calar. Toda a simpatia anterior fora derrubada facilmente. Se todas as pessoas de Cotswold fossem desse jeito, preferia não pedir ajuda para nada durante nossa estadia por Bourton-on-the-Water. Humores voláteis, como na cidade grande. Será que pelo menos isso aquele fim de mundo se pareceria com Nova Iorque ou Paris?
O garoto bonitinho deu de ombros, mexendo em algo nas prateleiras ao meu lado e logo sendo chamado por um senhor usando roupas sociais demais.
Olhei em volta. Eles realmente vendiam de tudo. Nas prateleiras era possível encontrar desde temperos a camisetas com “I LOVE BOURTON” ou “RIO WINDRUSH PASSA AQUI”. Guarda-chuvas, bolsas, itens de farmácia e muitos outros.
Se eles queriam ter uma loja sem definição, conseguiram.
— Está matriculada na escola? — sua voz rouca me atingiu novamente, assim que estava pronta para colocar meus pés fora do mercado.
Dei meia volta, observando-o subir em uma pequena escada de madeira velha, para alcançar as prateleiras altas da parede. Nelas, garrafas coloridas com algum conteúdo desconhecido estavam enfileiradas.
— The Cotswold School — não consegui reprimir uma careta. Até o nome da escola soava velho, chato e antiquado. — Se você estuda, provavelmente é lá, certo? Acho que aqui não tem outra escola.
Ele me olhou de lado enquanto colocava algo em uma das prateleiras.
— Você tem razão. Estudo lá também.
A única coisa que fiz foi um barulho estranho com a boca.
— Legal.
O garoto desceu a pequena escada, ficando próximo de mim novamente. Seu humor de volta ao modo “simpático”. Deve ser instinto natural dos nativos por aqui.
— Como você veio da cidade grande deve estar achando tudo um saco, mas você acaba se acostumando — tive de reprimir uma gargalhada. Quem já morou em Nova Iorque, Paris, Chicago, Flórida e Holanda não se acostuma tão fácil com um fim de mundo que se chama de “Veneza do interior da Inglaterra”. — Aqui nós temos algumas coisas legais para se fazer. Tem vários cafés, restaurantes e pubs. E as pessoas gostam de se encontrar, fazer piquenique perto do Rio, essas coisas.
— Tantas coisas, menos cachorros.
Ele soltou uma risada que eu fiz o máximo para não sorrir junto, ainda tinha que me fingir ofendida.
— Vá a Londres, é bem perto.
Um garoto mais ou menos da altura do menino entrou no mercado. Seus cabelos claros estavam completamente bagunçados, mas, diferente do outro, suas roupas eram menos sóbrias.
— E aí meu irmão! Vamos?
O garoto do mercado olhou para ele, concordando de prontidão.
— Só um segundo, vou pegar minhas coisas lá dentro.
O loiro me olhou de lado, sorrindo de leve. Realmente simpatia deve ser algo normal em Cotswold.
— Tudo bem?
Apenas concordei com a cabeça. Ele tirou um celular do bolso, discando algumas coisas na tela sensível. Não consegui reprimir um suspiro de alívio. Meu pai não havia mentido, existia sim internet no fim do mundo. Eu só tinha que descobrir como fazer o meu celular funcionar e pronto.
A porta dos fundos se abriu com rapidez e o garoto do mercado saiu depressa, carregando uma mochila preta nos ombros. Ele gritou algo para um homem que havia acabado de aparecer atrás da máquina registradora, logo andando até a nossa direção. Ou melhor, até o seu amigo.
Eles se cumprimentaram com um meio abraço. E depois disso ele olhou em minha direção.
— Boa sorte com o cachorro, a gente se vê — e andou para fora do mercado. Antes de sair, virou-se novamente, com um sorriso que julguei ser sincero. — Bem-vinda a Cotswold!
Ver o menino do mercado com seu amigo havia me machucado. Pois me fazia lembrar um fato bem constante da minha vida: eu não tinha amigos. E, mais uma vez, estava em um local completamente estranho. Sem conhecer ninguém. Doía mais pela nostalgia que eu sentia em todo começo de cidade/país novo. Meus amigos que me acompanhavam até o momento, de longe, faziam mais falta ainda. A minha vontade era de dar uma de rebelde e pegar o primeiro voo até Nova Iorque, só para vê-los de perto mais uma vez.
Sentada mais uma vez no banco gelado de pedra, de frente para aquele rio estúpido, eu via o outro lado da vila, onde dois adolescentes andavam de bicicleta, correndo um atrás do outro. Eu ainda sabia andar naquilo?
Eu reclamava pela milésima vez.
— Eu não vou fazer isso!
Seus olhos verdes reviraram novamente – , deixa de ser menininha.
Fiz uma careta ofendida.
— Eu não sou menininha!
Bree cortou a conversa, me ameaçando com um empurrão.
— Anda logo!
Logan ria da minha cara de espanto.
— Princesa, confia em mim. Está segura.
O medo da vez era: aprender a andar de bicicleta. Quando criança, com todas as viagens loucas, meu pai nunca tinha parado para me ensinar a andar naquele treco. Depois de um joguinho de “eu nunca” ridículo (bem ridículo mesmo, quem diz que nunca andou de bicicleta na vida?), Logan e Bree me obrigavam a andar naquele veículo de morte.
— Eu tenho treze anos e moro perto do metrô. Preciso mesmo fazer isso?
O Central Park estava até vazio para a época. Algumas pessoas passeavam de bicicleta, outras de patins ou skate. No fundo, em uma quadra de baseball, uma gritaria constante.
Bree se sentou na grama, como sinal de desistência.
— Logan, deixe ela. Quando chegar o dia em que a bicicleta for o único meio de transporte que ela terá, vamos ver como vai ser!
Revirei os olhos em sua direção.
— Deixe de ser dramática. Onde eu estaria para ter só bicicletas? Na roça? — ela deu de ombros. Logan continuava parado ao meu lado. — Não vai me livrar dessa?
— Se você tentar, assisto aquele filme de adolescentes dramáticos com você.
Aquilo sim foi um incentivo.
— Pipoca com refil?
Ele riu mais ainda.
— O quanto você quiser.
Respirei fundo, já imaginando o desespero de minha mãe quando visse o meu futuro machucado.
— Vamos nessa.
Observando a vila, via muitas pessoas andando de bicicleta. Parecia ser o transporte mais normal da região.
Ri sem humor algum, falando alto.
— Bree, sua filha da puta.
Um casal que estava sentado às margens do rio olhou para trás, com cara feia. Nem me dei o trabalho de pedir desculpas, logo saindo daquele lugar.
Derrotada e sem cachorro, meu destino era voltar para aquela casa de comercial de margarina. A caminhada não parecia ser longa, caso eu não me perdesse. Mais uma vez. Não poderia me deixar perder naquele buraco.
Enquanto caminhava, meu casaco vermelho sangue pesava em meus ombros, mas não conseguia me importar com isso. A única coisa que eu não poderia fazer era se entregar a esse universo antigo, como meus pais já haviam feito. Por mais que eu adorasse usar cinza, decidira que aquela cor estava banida do meu armário.
Sem muita dificuldade, cheguei novamente a nossa nova casa. Ela, pra minha raiva, continuava linda.
Adentrei pela porta central, logo encontrando papai e mamãe sentados no grande sofá branco, em frente à televisão um pouco grande mais. A maioria das coisas já tinha achado o seu local apropriado, mas isso não diminuía a sensação de bagunça e papelão amontoado.
E, bom, tínhamos sinal de televisão.
Assim que percebeu minha presença, meu pai logo tratou de dar dois “tapinhas” ao seu lado vago, para que me sentasse.
— Querida, conseguiu seu cachorro?
— Ainda não, acho que vou precisar ir a Londres.
Meu pai concordou, rindo de algo do filme maluco e preto e branco que eles assistiam. Nós já tínhamos televisão a cabo ou era assim que as pessoas de Bourton-on-the-Water ainda viam seus canais?
— Me parece um bom motivo para conhecer Londres.
Me acomodei no sofá branco até que o filme acabasse. Minha mãe subiu as escadas, desejando boa noite. Meu pai zapeava alguns canais, como se buscasse alguma desculpa para que pudesse ir dormir cedo também.
— Como foi seu passeio? — apenas resmunguei alguns comentários sobre falta do que fazer e a simpatia exagerada das pessoas. — Nós conhecemos nossos vizinhos enquanto você estava fora — meu pai chegava ao canal quinhentos, ainda insatisfeito com a programação. — Acho que vai ser fácil fazer amigos por aqui.
Felizmente, meu pai não tinha percebido a ironia em minhas palavras. Pensando no episódio do mercado, me vi falando.
— Acho que não vai ser tão fácil assim.
— O que, minha querida?
Eu não podia falar para o meu pai, em nosso primeiro dia na cidade nova, sobre como seria difícil fazer novas amizades pela região. Todos se conhecem desde que nasceram, era como se eu fosse o indivíduo extra que ninguém precisava.
— Nada, pai.
A televisão foi desligada. Meu pai se levantou, logo estendendo sua mão para que eu a pegasse. Nós caminhamos até a escada, subindo-a em seguida. Paramos na porta do meu quarto novo, enquanto meu pai soltava alguma curiosidade sobre o tipo de madeira que usaram na construção da casa.
Algo como do século passado, como Cotswold inteira.
— Nós vamos ser felizes aqui, você vai ver.
Seu sorriso tinha o que eu mais gostava no mundo. Sinceridade. E aquilo fazia com que eu tivesse esperanças de que não fosse tudo como Chicago ou como na França. Seria diferente, pois já estávamos fazendo, infelizmente, o diferente: estávamos no interior.
O maior problema mesmo era saber por quanto tempo seríamos felizes em Cotswold. Ou se o nosso tempo por ali daria tempo de criar algum tipo de felicidade.
Sem ter o que falar, aceitei seu beijo de boa noite na testa.
— Confio em você, pai.
Capítulo 2 - Comportamentos
"O comportamento é um espelho em que cada um vê a sua própria imagem." (Johann Goethe)
Eu odiava primeiros dias.
Principalmente primeiros dias em lugares que, aparentemente, todos se conheciam há anos.
O caminho da nossa nova casa caipira até a escola não foi um dos piores. Por ser perto, pelo menos não precisava pegar o ônibus cafona e cinza (o subúrbio parecia ter problemas com cores) com pessoas que eu não fazia questão de socializar tão cedo. Eu não tinha nenhum plano para sobreviver àquela escola ou a todos os dias em Bourton-on-the-Water, a única coisa que me vinha à cabeça era reclamar. Com um pouco de insistência talvez a população de quatro mil caipiras resolvesse ouvir alguém sábio da cidade grande e fazer as coisas do jeito certo.
Seria um ótimo começo que tudo isso fosse demolido e apagado do mapa.
Problema resolvido.
Meus pais insistiam em fazer com que eu amasse o interior. Falavam besteiras sobre ar puro, falta de buzinas às sete horas da manhã de um dia útil e como aquilo iria rejuvenescer-los. Minha vontade era ter um pote com poluição urbana só para jogar em alguém que me enchesse o saco naquele primeiro dia de aula.
Além de toda aquela confusão de nova mudança e novas pessoas eu ainda tinha que lidar com um fato que provavelmente iria acontecer: por não fazer parte daquele ambiente, eu seria excluída. Não podia deixar que uma cidade pequena como aquela me fizesse sentir excluída. Como eu poderia ser excluída de algo assim?
Por ter chegado à cidade há apenas um dia, meus uniformes não estavam exatamente do melhor tamanho para o meu corpo, o que me fazia sentir mais deslocada ainda. Enquanto as meninas gostosas usavam a saia da menor maneira possível, eu estava me enquadrando nas saias das nerds, esquisitas e renegadas. Em nenhuma escola dos diversos países em que já tinha morado tive de usar uniformes tão clássicos e antiquados quanto aquele. Eu me sentia indo para alguma aula de poção junto com o lerdo do Longbottom (já que, de acordo com meu sábio pai, algumas gravações de Harry Potter foram feitas por toda região de Cotswolds).
O diretor da renomada The Cotswold School me olhava com atenção.
— Você já passou por muitas escolas — e sorriu amarelo. A minha cara feia não se alterou. — Mas, muito boas, por sinal. Tenho ótimas recomendações.
Recomendações? Meu pai havia aprontado mais uma vez. Que tipo de pessoa que troca de escola dez vezes tem alguma boa recomendação? Não fiz nem questão de responder ao senhor grisalho sentado à minha frente.
— A senhorita tem algum interesse nas matérias extracurriculares de nossa instituição?
— Sinceramente? — ele acenou em afirmação, ainda mantendo seu sorriso moldado no rosto velho. — Não — que depois de minha pronúncia, murchou.
— Bom, nós temos muitas atividades interessantes. Teatro, Ciências, Esportes… — continuei olhando-o sem expressão alguma. — Acho que a senhorita pode analisar melhor nossas opções, pois todos os alunos devem fazer atividades extras para concluir sua formação.
— Até mesmo os que provavelmente não estarão por aqui até o fim do ano letivo?
Eu não me encaixava no tipo de garota problema. Nem um pouco. E nem gostaria de ser a rebelde da cidade cinza e sem sal. Mas aquela escola e todo o ambiente rústico e imbecil de Cotswold me tiravam do sério. Toda aquela gentileza, fofura e falta de sujeiras nas ruas, tudo, completamente tudo, me irritava. E isso afetava diretamente meu humor e simpatia.
Talvez eu realmente precisasse de um plano para irmos a Londres o quanto antes.
Quando saí da sala do diretor até me senti mal, eu realmente não era esse tipo de pessoa, mas já havia passado. Provavelmente eu ia ser vista como um problema de curto tempo para a diretoria já que, pelo meu adorável histórico, ele também não imaginava que eu fosse ficar muito tempo pela região.
Ao sair da sala do diretor, encostei meus ombros lentamente na parede branquíssima dos corredores, aguardando a pessoa que vinha me ajudar com a escola. Eu não conseguia parar de questionar que tipo de lugar tinha aquilo. Quem precisava de um orientador particular em uma escola no meio do nada?
A falta de imperfeições em Bourton-on-the-Water era surreal. Eu observava as pessoas andando pelo pátio super bem ornamentado e se esquivando pelos corredores com armários recém-pintados. Nada daquilo parecia certo ou normal. Os uniformes passados demais, os cabelos dos alunos brilhantes demais. Sorrisos demais às sete da manhã. Parecia que eu estava vivendo um dos piores filmes da atualidade, onde todos exalavam uma felicidade constante e eu simplesmente não conseguia sentir o mesmo.
A última pessoa que eu gostaria que fosse meu orientador na escola era algum popular fútil ou a garota mais linda do lugar. Meu uniforme era o mais cafona, eu tinha mau humor e não havia penteado os cabelos ao sair (como forma de protesto). Mas como o destino nunca foi muito favorável aos meus desejos, vi uma garota perfeita caminhando até a minha direção, cumprimentando quase todos que passavam pelo largo corredor. Ela mantinha seus cabelos perfeitamente loiros moldados por uma tiara dourada, assim como o sorriso extremamente branco em seu rosto. Suas vestes eram as mesmas que as minhas, na técnica, pois eu parecia muito uma versão pobre das princesas da Disney perto daquela perfeição toda.
— É , não é? — a menina me olhou de lado, guardando alguns papéis em sua prancheta branca. Concordei em um sussurro. O que aconteceu comigo? Uma garota perfeitinha do interior não teria poder algum contra mim. — Seu nome é lindo. Último ano? — ela me entregou uma pastinha com vários papéis dentro.
— Obrigada — peguei o objeto em suas mãos, com cuidado. — Sim, último ano.
Ela parou na minha frente, sorrindo abertamente.
— Sou Zara Ward. Penúltimo ano, chefe da comissão estudantil de direitos humanos — ela fez uma careta. — E sua orientadora na escola.
Ótimo. Até nome de princesa ela tinha.
Após sua apresentação nada modesta, Zara me levou em todos os cantos possíveis da escola. Para uma cidade do interior onde cabras, ovelhas e feno são atrações principais, a escola era grande. O suficiente para que eu me sentisse completamente perdida entre corredores, grandes portas e muita gente. E para uma cidade do interior onde não existem cachorros para se comprar ou adotar, havia muitas crianças e adolescentes pelo pátio principal. Se existia algum lugar secreto na vila onde os alunos pudessem descontar suas frustrações com cigarros, bebidas, baseados ou fazendo sei lá o que, eles escondiam bem.
— Nossa escola recebe todos os estudantes das regiões próximas. Stroud, Stow-on-the-Wold e outros. Por isso você vai ver muita gente que não pertence a nossa vila — concordei com um gesto enquanto olhava as pessoas passando pelos enormes corredores. — A psicóloga da escola quer vê-la depois — ela ainda sorria para mim. E eu já estava extremamente cansada disso. Além dos olhares que recebíamos constantemente dos demais alunos. O pior era receber esses olhares por estar ao lado de Zara, somente. — Você pode ficar depois do horário algum dia?
— Psicóloga?
— Procedimento padrão para novos alunos — assim que ela terminou de rabiscar algo na prancheta, levou seus olhos até os meus. — Te vejo mais tarde, boa aula!
Só então eu percebi que estava parada em uma das diversas salas de aula da The Cotswold School. E na grande porta estava o mesmo número em que constava na primeira folha do meu papel de admissão.
Quando estava pronta para entrar na sala, Zara deu meia volta, me chamando alto pelo nome. A garota loira continuou me olhando. Sem entender nada, continuei parada em meu lugar.
— Você não pode usar isso.
— O quê?
— Seu casaco — ela disse com a maior naturalidade possível, me analisando novamente. — É vermelho. As cores da escola são cinza, azul e amarelo.
Analisei meu sobretudo vermelho sangue. Eu com certeza teria um azul no armário.
— O de cor azul está em casa, o que eu tenho que usar?
Zara deu de ombros.
— O suéter da escola.
Reprimi uma careta.
— Esse? — apontei para ela. — Cinza?
A garota sorriu um pouco.
— Cinza. Te vejo depois.
Me dando por vencida, retirei a última peça de roupa que me separava da cafonice caipira de Bourton-on-the-Water. A partir daquele momento eu era um deles já que, pelo menos na The Cotswold School, era obrigada a ser como todos.
As aulas passavam com uma velocidade fora do normal, fazendo com que eu tentasse arrancar meus cabelos de quinze em quinze minutos. Por ter chegado à vila e a escola no meio da semana me sentia completamente perdida, e nem aquela prancheta perfeita demais iria me ajudar com os desafios do dia.
Eu fazia o máximo para prestar atenção no que os professores diziam, mas a minha mente ia para longe. Meus olhos analisavam cada canto da sala, cada rosto, cada acessório esquisito e cinza, talvez buscando algo que fosse um pouco familiar para mim, algo que eu pudesse reconhecer e tentar uma aproximação. Primeiros dias eram sempre terríveis e com o meu mau comportamento as coisas poderiam ficar piores.
Depois de me perder em alguns corredores largos demais, consegui finalmente adentrar a sala de literatura inglesa (coisa que eu não estava nem um pouco feliz de encontrar na minha grade de horários). Contornando com os olhos todos os presentes, eu o vi. Com seu cabelo bagunçado, o jeito desleixado de sentar na carteira ridiculamente branca e sua jaqueta de couro. Sim, jaqueta de couro. No meio do mar cinza de alunos, ele usava uma jaqueta de couro preta. Mesmo olhando de longe, parecia a solução de todos os meus problemas com Cotswold.
Seus olhos extremamente azuis me acompanharam até que eu me sentasse na cadeira ao seu lado. Felizmente, era a única disponível.
No fundo e ao lado do possível rebelde de Bourton-on-the-Water.
Pelas cidades e países que tinha passado, mesmo sendo difícil fazer e manter amigos, não era tão complicado assim arrumar alguém para um relacionamento curto. Depois de Nova Iorque, onde tive um namorado (o primeiro e de verdade), a tristeza daquele estranho fim de uma relação tinha mexido um pouco com a forma com que eu agia em frente aos garotos. Eu não era o tipo de menina que ficava com todos, mas, quando gostava do que via, me esforçava um pouco para ter.
Lembrar de Logan, meu ex-namorado da América do Norte, ainda me deixava um pouco nas nuvens. Mesmo com um quase fim conturbado e com várias histórias que tivemos, era complicado pensar que provavelmente nunca ficaríamos juntos. Na França, depois que nos vimos, a separação foi tão difícil que eu tinha decidido que iria acabar com aquela tortura e que tentaria manter a melhor distância enquanto ainda sofresse com as frequentes mudanças de papai. Logan era alto, com os olhos verdes como um oceano provavelmente era, de pertinho. Seu sorriso era lindo e me fazia derreter toda vez em que o via. Nosso envolvimento começou com uma amizade inocente e, quando vimos, já éramos um casal sem ao menos nos beijar. Era incrível pensar em como éramos inocentes, de verdade.
Mas, pensando nos outros lugares em que estive, Logan era a curva fora do meu “perfil” de garotos. Sempre tive uma queda por caras mais decididos e diferentes, e provavelmente em Cotswolds não seria ao contrário, já que a única pessoa que tinha chamado a minha atenção até o momento era a que vestia uma jaqueta de couro — indo na contramão total de toda a região.
Durante toda a aula chatíssima senti o olhar do menino me queimando. Eu estava pronta para perguntar qual era o problema dele, mas não podia perder a oportunidade de fazer alguma amizade. Já pelo estilo ele era diferente. Talvez fosse diferente também dos demais habitantes de Bourton-on-the-Water e se interessasse por novidades. No caso, a novidade do momento era eu. E eu faria o rebelde da sala se interessar por mim.
Ter alguém para passar o tempo seria mais fácil do que arrumar novos amigos. Poderia já estar imaginando coisas demais, mas o garoto parecia um bom escape para a solidão que daqui uns dias me alcançaria.
Senti algo tocando meu braço, o que me fez sair daquele devaneio em plena sala de aula. Assim que virei o rosto, meus olhos se fixaram naquele oceano azul escuro.
— Você é a menina que chegou da cidade grande.
Aquilo não foi uma pergunta.
— Eu mesma.
Ele reprimiu uma risada, que parecia irônica. Só deixava melhor a sua pose de bad boy.
— Bom, seja bem-vinda a Cotswolds.
Fiz uma careta.
— Obrigada, eu acho.
Ele piscou o olho direito, logo saindo da sala de aula como se nada tivesse acontecido. Na minha mente aquilo já era um baita progresso. Eu havia falado com alguém interessante no meu primeiro dia.
Ao reparar que metade dos alunos se levantaram em direção à saída da sala junto com o menino rebelde, voltei a me sentir perdida naquela multidão. Parecendo perceber minha confusão, a garota que estava a duas cadeiras à minha frente me encarava com uma expressão divertida no rosto.
— Precisa de ajuda para procurar a próxima aula?
Seu sotaque era mais forte do que o do menino do mercado e isso me fez suspirar. Eu nunca conseguiria ter aquilo e, assim, sempre seria a pessoa diferente do local. Não que eu quisesse ser comparada a algum caipira da Veneza da Inglaterra, mas não era nada legal ser a pessoa mais deslocada da região.
Peguei a pasta com vários papéis que tinha recebido mais cedo, a qual eu ainda julgava completamente desnecessária já que não me ajudava a andar por aqueles corredores imensos. Li a terceira linha do material que dizia “Biologia II”. Meu estômago chegou a embrulhar.
— Biologia II. Tenho que andar mil quilômetros para chegar lá?
A menina sorriu. Sua pele escura brilhava com o pouco sol que batia da janela do canto e isso só a deixava mais bonita. Eu gostava daquilo, parecia diferente também. Como eu.
— Me chamo Mila — seu sorriso (branco demais, como todos da vila) pareceu o mais convidativo até o momento. Até mesmo do rebelde. Então foi impossível não retribuir.
— .
— Sua aula é aqui mesmo. Quer sentar ao meu lado?
Peguei minhas poucas coisas e andei até a cadeira ao lado de Mila. Seria legal ter uma boa companhia durante a morte que estava por vir em Biologia II.
— Obrigada.
O sinal tocou e uma nova quantidade de alunos adentrou a nossa sala de aula. Em questão de segundos um professor alto e careca já estava falando coisas que não pareciam nem um pouco interessantes.
Eu sentia o olhar de Mila ao meu lado, mas, mesmo gostando da aura da menina, não estava a fim de ser a pessoa nova que socializa com todos no primeiro dia. Com esse mau humor mantive minha postura até a tortura de uma hora e quarenta acabar.
Eu esperava milhões de perguntas sobre a cidade grande, minha vida e do porque meus pais estavam me torturando com o interior. Mas em nenhum momento Mila ou alguém da The Cotswold School pareceu interessado na nova menina problema do local. Eu poderia conviver com aquilo, já que realmente não gostava de responder às mesmas perguntas de sempre. “O metrô é realmente aquilo que a gente vê nos vídeos do Facebook?”, “Os prédios são realmente daquele tamanho, igual nos filmes?” e o famoso “Você já viu tal artista em tal lugar?”. Sempre um horror. Principalmente pelas pessoas se interessarem apenas pelos estereótipos de cada lugar em que já vivi. Isso me faria pensar se, daqui há alguns anos, alguém me perguntaria algo sobre Bourton-on-the-Water. Eu não saberia o que responder de bom.
Vila de quatro mil habitantes, no meio do nada, que possui um campeonato esquisito de futebol no Rio esquisito que corta todo o local.
Não tinha atrativos nem para escrever um parágrafo completo.
Antes de sair da sala, Mila me encarou com seus olhos brilhantes.
— Fiz algo que te chateou?
Fiz uma careta ao levantar da minha mesa. Seu olhar era extremamente preocupado. Se eu questionava o meu comportamento grosseiro na vila, eu também questionava a gentileza exacerbada da população local. A menina acabou de me conhecer e estava muito preocupada comigo. Isso daria um bom filme de terror.
— Não, está tudo bem.
Ela não pareceu convencida, pois sustentou aquele olhar. Por que ela simplesmente não poderia ser como as pessoas da cidade grande? Se eu esbarro em alguém em Paris ou deixo alguém falando sozinho em um corredor de Nova Iorque sou simplesmente ignorada. Fácil, simples e prático. Custava muito a galera se esforçar desse jeito?
— O que foi? — questionei.
Mila sustentou o olhar por mais alguns segundos, dando de ombros em seguida.
— Nada.
Saímos da sala lado a lado, entrando naquele mar de pessoas no corredor recém encerado. Mila acenava para diversas pessoas e aquilo fez com que meu coração congelasse. Eu realmente não queria me envolver com pessoas populares da escola de adoradores de feno.
— Por favor, não me diga que você é popular na escola.
Ela franziu o cenho como se minhas palavras tivessem saído em mandarim.
— O que te leva a pensar que eu sou popular?
Me ajeitei nas roupas cinzas cafonas e grandes demais, tentando disfarçar a irritação.
— Você não para de falar com todo mundo.
— , essa é uma cidade pequena. Todo mundo se conhece. Eu entendo que você deve ser uma garota criada em cidade grande, mas tem que se adaptar ao interior. Todo mundo se cumprimenta por aqui.
Aquilo era o suficiente para que eu fugisse de Mila, antes que meu mau humor liberasse uma voadora na menina, que não tinha nada a ver com a minha merda de vida.
Resolvi ignorar seu comentário.
— Ah, você sabe onde eu consigo um chip novo para o meu celular? — a menina balançou a cabeça em afirmação, como se essa fosse a parte mais fácil do seu dia.
— Claro. Vai até ao mercado depois da ponte de pedra. Tem uma fachada antiga, mas lá você encontra de tudo.
Ótimo. Eu teria que voltar no último lugar que gostaria de ir.
Sorri para Mila, já andando em direção ao portão de saída da escola, pronta para ficar livre de toda aquela educação com desconhecidos.
— Obrigada!
Eu novamente procurava por rostos conhecidos no pátio de saída, apenas para me enganar. Qual conhecido eu poderia achar em uma cidade que estava há apenas um dia? De longe vi o menino do mercado. Ele cumprimentou rapidamente uma menina de cabelos castanhos, sem parecer ter muito interesse. Provavelmente o caipira local era a sensação da escola e era só isso que me faltava.
Apertei o passo para fora da The Cotswold School, visto que um grupinho de meninas mais novas já começava a fofocar com os olhares pesando sobre mim. Eu não tinha tempo para aquilo e nem queria me interessar sobre possíveis fofocas da escola sobre a “nova garota da cidade grande”. Ser essa pessoa já era o suficiente para meu dia ficar ruim.
Decidida a fazer o caminho de casa sem me perder, ouvi um assobio muito perto. Na cidade grande eu nunca olharia para trás, mas meus sentidos estavam esquisitos no interior.
O menino rebelde da jaqueta de couro acenava. Parei de andar até que seus passos me alcançassem. O garoto jogou sua mochila no ombro direito, me olhando de lado.
— O que achou do seu primeiro dia?
— Uma morte menos terrível do que eu esperava.
Ele riu pelo nariz.
— Com o passar dos dias piora. Está indo para casa?
Dei de ombros. Eu queria ser simpática com ele (já que queria que o menino rebelde tivesse interesse em mim), mas não queria companhia até o mercado do garoto louco.
Deus, como pode ser difícil ter bom humor.
— Indo para casa.
O menino continuou andando ao meu lado.
— Meu carro fica do outro lado.
Fiz pouco caso. Não queria saber porque ele iria embora de carro numa vila onde temos quatro mil habitantes. E eu também não estava na minha melhor aparência, então queria fugir daquele papo o mais rápido possível. Precisava ajustar aqueles uniformes e pentear o cabelo para colocar o meu plano em prática.
Andando da escola até nossa casa caipira, o menino rebelde permanecia ao meu lado e isso só me fazia questionar onde estaria o tal carro do garoto. Acabamos passando em frente ao mercado “vende de tudo”. Parei próximo a entrada, o que fez o menino me olhar com interesse.
— Você mora por aqui?
Achei uma pergunta boba, porque perto do mercado só se via outras lojinhas específicas e restaurantes pequenos. E também pelo “por aqui”, como se a vila fosse algo que não pudesse ser contornada a pé em alguns minutos.
— Preciso ver se tem algo no mercado para o meu celular.
Ele ajeitou a mochila novamente nos ombros.
— Meu carro está do outro lado da ponte. Te vejo amanhã na escola?
Tive de sorrir, já que o interesse dele em mim fazia com que eu me sentisse menos deslocada dentro daquela vila.
— Claro. A gente se vê.
Adentrei o mercado em passos largos, sem fazer questão de olhar quem estava presente no balcão, mas sabia que o garoto do mercado poderia estar por lá. Não queria gastar minha saliva com novas conversas. Comigo, havia mais duas pessoas olhando as prateleiras e eu realmente achei que eram turistas pela quantidade de souvenirs e camisetas esquisitas da região que carregavam em suas pequenas cestas de ferro. Na pequena parte de “faça você mesmo” eu olhava todas as cores de linhas, tentando achar a mais próxima do cinza cafona dos uniformes.
Mesmo estando bem concentrada em minha tarefa, com o canto dos olhos vi o menino que já esperava atrás do balcão principal. Ele passava as compras de alguém no computador. Com o passar dos minutos dentro do mercado e encarando aquela quantidade precária de carretéis de linha, sentia o olhar do menino do mercado me queimando, mas realmente não estava afim de mais conversa com desconhecidos. Todos os tipos de linhas pareciam distantes demais e aquilo começava a me irritar. Eu continuaria com os uniformes mais desajeitados da região.
Cheguei mais próximo do balcão, colocando os dez carretéis coloridos que mais pareciam chegar perto das cores bizarras da The Cotswold School. O menino do mercado me olhou de lado, já começando a passar os pequenos pacotinhos na caixa registradora.
— Só tem essas cores?
Ele mal olhou para minha compra.
— O cinza mais claro deve ficar bom no uniforme. Já precisei usar uma vez.
Concordei com um gesto.
— Eu preciso ir a Londres para fazer meu celular funcionar ou é só cachorros que não temos por aqui?
Esperava por um sorriso ou um olhar qualquer, mas sua expressão dura não se alterou.
— Temos alguns acessórios por aqui.
Respirei fundo, um pouco intimidada por toda aquela dureza.
— Você sabe o que é um nano chip de celular?
Ele franziu o cenho, finalmente levando seus olhos até os meus. Só aí percebi que o menino também usava as roupas cinzas da escola. Parecia cansado e eu arriscava dizer que ele estava com a pele mais branca do que da última vez.
— Qual o modelo do seu celular?
Tirei o mesmo da mochila.
— Esse aqui. Você não deve conhecer.
Ele franziu o cenho novamente, como se tivesse ficado ofendido com a minha afirmação. Eu era obrigada a saber se alguém do interior entendia de tecnologia?
O menino foi até o canto do balcão e pegou uma embalagem rosa demais.
— Está aqui.
— Vocês só têm essa marca?
Eu não entendia nada de telefonia na Inglaterra, mas a julgar pela primeira impressão do pacote aquilo provavelmente não era a melhor opção do país.
O menino fez pouco caso.
— É o que os turistas mais compram.
Tive de rir.
— Por falta de outra opção neste fim de mundo, não é?
Ele nem sequer me olhou.
— Se você quer que o seu telefone funcione por aqui, vai ter que ser esse mesmo.
Resmunguei em voz “baixa” (ou pelo menos tentei):
— Realmente não dá para esperar grande coisa dessa vila caipira.
— Você só morou em cidades grandes?
Me surpreendi com sua pergunta.
O olhei sem pudor. Seus olhos pareciam mais claros do que da última vez que o vi.
— Pareço com alguém que já usou botas de cowboy e coletou feno por aí como vocês?
O garoto do mercado pareceu me ignorar novamente, colocando o chip no balcão. Sua voz se mantinha firme, mesmo que seu sotaque carregado demais deixasse tudo mais leve.
— Já que nada aqui é a sua altura, vá procurar em outro lugar — e finalizou com um sorriso que eu julguei como cínico. — Aliás, boa sorte com isso.
Eu precisava, mais do que tudo, arrumar um jeito de sobreviver e permanecer sã no interior. Principalmente onde o único lugar que vendia coisas diferentes na região era velho e decadente. E aparentemente tinha como vendedor um garoto que não ia com a minha cara. Não queria brigar com as pessoas e nem mesmo ficar explicando como a cidade grande era 100% diferente de tudo aquilo que eles conheciam. Ficava cansada só em pensar nesse debate desnecessário de “interior decadente cheio de feno e velharia” x “cidade grande desenvolvida e moderna”.
— Obrigada — sorri com vontade. — Sua grosseria me faz lembrar a cidade grande. Vocês aceitam libra aqui ou é alguma moeda do século passado?
Ele continuava sem expressão ao contar o troco.
— Obrigado pela preferência.
Eu realmente não sabia de onde tinha saído aquela ignorância, mas provavelmente por algum motivo (além do meu mau humor) eu tinha pisado no calo do caipira da Veneza da Inglaterra.
Saí do mercado a passos largos, logo dando de cara com a menor ponte de pedras já construída no mundo (sem exageros, pois provavelmente era sim). Ela ajudava a atravessar uma parte mais estreita do Rio Windrush, onde ao redor tinha muita grama verdinha e bancos de pedra para admirar a região. O lugar era bonito, isso eu não podia negar, mas ainda era velho e pequeno. Meu único pensamento era se o rio poderia ser fundo o bastante para que eu me afogasse junto com meu uniforme cinza.
Mesmo sem referência alguma, aquela pintura natural me lembrava bons lugares…
Bree escovava os seus cabelos acobreados pela milésima vez.
— Você sabe o que fazer, não é?
Eu não fazia a mínima ideia do que fazer, mas não queria demonstrar minha insegurança. Os meus quatorze anos recém-feitos me davam uma coragem incrível.
— Claro! Já li todas as revistas possíveis.
Minha amiga concordou.
— Use todas as dicas, então. Eu não posso te ajudar muito com isso.
A questão da vez era: Logan tinha me convidado para uma tarde no Central Park. Não era o lugar mais romântico do mundo, mas tínhamos um local preferido: uma escada de pedras perto do chafariz. Me lembrava dos filmes bobos que costumávamos ver juntos. E eu estaria tranquila como nos filmes, mas Bree insistia em dizer que aquela seria a data do nosso primeiro beijo.
Aquilo me dava arrepios dos pés a cabeça.
Ao chegar ao nosso ponto de encontro, Logan já me esperava com um grande sorriso nos lábios. Seu cabelo claro e olhos verdes pareciam mais convidativos do que nunca. Nos abraçamos e sentamos em um local próximo ao chafariz, mas ainda um pouco distante da multidão que costuma passar diariamente no local.
Pela minha expressão de pânico e falta de assunto (o que era bem raro), o menino deu uma risada.
— Bree encheu a sua cabeça?
Meus olhos se arregalaram ainda mais.
— Sobre o quê? O que aquela mentirosa te disse?
Logan deu de ombros.
— Não me disse nada, . Eu só te conheço bem demais. E conheço nossa amiga também.
Minhas bochechas queimaram, mas felizmente eu não corava com facilidade.
— Desculpe, só estou nervosa.
Ele pareceu mais curioso, sem deixar o sorriso no canto dos lábios.
— E posso saber por quê?
Eu tinha que ser direta ou teria um infarto a qualquer momento.
— Isso é um encontro?
— Tudo que chamo você para fazer é um encontro. — eu não tinha uma resposta para aquilo. — Eu gosto de você.
Meu coração batia de forma descompassada, como se fosse sair do meu peito. Eu já esperava alguma confissão, pois sentia um clima entre a gente. A verdade era que eu não sabia que ia ser tão direto assim. Logan costumava falar o que vinha a sua cabeça e dizer o que sentia por mim, pelo jeito, não ia ser diferente.
Abri a boca várias vezes para dizer algo, mas nada saia.
— Logan…
— Não precisa se declarar, . Só quero saber se você sente o mesmo.
Depois de segundos estática, sofrendo por dentro, com aquela ansiedade gritando em todo meu corpo, me permiti soltar as palavras que tanto guardava há um tempo.
— Eu gosto de você.
Logan sorriu.
— Ótimo.
E um segundo depois nossos lábios já estavam colados.
Além de lembranças boas em um lugar que eu amava, isso me fazia lembrar também a possível quantidade de mensagens que teria em meu celular e e-mail. Aquele pensamento fez com que eu suspirasse alto. Eu sentia falta de ter uma conversa com alguém que já me conhecesse e que já soubesse pelo menos o mínimo sobre minha personalidade, gostos e problemas de família.
O episódio com o menino do mercado só servia para confirmar uma coisa: seria realmente difícil ter amigos em Bourton-on-the-Water.
A única alternativa era andar até nossa nova casa, respirando todo o ar puro demais de Cotswolds.
Pensar sobre meu comportamento me afetava um pouco. A cada cidade que passávamos (ou país ou continente) minha defesa pessoal ganhava mais um alerta. Ficava cada vez mais difícil me abrir com alguém ou simplesmente aceitar uma gentileza à toa. Lembrar da menina da sala de aula me deu dor no estômago. Por que eu tinha que ser desse jeito?
Encarando a tela do meu notebook, eu só conseguia constatar uma simples questão: ainda estávamos sem internet. Papai tinha prometido que tudo estaria resolvido no primeiro dia da mudança, mas ele sempre era enrolado com tecnologias e coisas parecidas. Tudo que fosse além de seu tablet e jogos de aplicativos já parecia complexo demais para ser resolvido sozinho.
Mesmo sem conexão com o mundo de verdade (e com a cidade grande, claro) vasculhei algumas pastas antigas da máquina, sem procurar algo específico. Eu não queria olhar fotos antigas e muito menos conversas salvas no histórico do computador. Queria apenas que alguma coisa fizesse sentido para mim nos próximos dias. Meu irmão sempre costumava dizer que o ser humano consegue sobreviver apenas cinco dias sem comunicação com o mundo exterior, e eu já estava há quase dois dias completos sem telefone, internet ou qualquer mensagem de alguma rede social.
Fechei o computador com pouca delicadeza, talvez tentando descontar a minha frequente frustração naquele ato. Olhando minha janela grande demais eu podia ver boa parte da vila, além do corte do Rio Windrush e as bruscas pontes de pedras por toda a sua extensão. Algumas pessoas passavam andando calmamente, outras com mais velocidade em suas bicicletas top de linha.
Eu realmente não estava afim de abraçar o interior como meus pais tanto desejavam, mas precisava de um plano urgente para conseguir sobreviver ao lugar sem danos muito sérios. A ideia seria me ocupar com a maior quantidade de atividades possíveis, para que o interior realmente não me afetasse tanto. Faria com que papai me levasse a Londres todos os finais de semana e, com certeza, conseguiria o meu cachorro o quanto antes.
Ele seria o responsável por escutar todas as minhas lamentações.
Ouvi duas batidas fracas, o que fez com que minha atenção se virasse para a porta agora aberta. Meu pai entrou no quarto com uma das mil caixas que estavam espalhadas no corredor do andar superior. Ele fez uma careta, como se já se arrependesse da discussão que ele mesmo iria provocar.
— Querida, você sabe que temos um prazo de 48 horas para desfazer caixas e malas.
Sim, eu sabia. Era uma regra boba que minha mãe havia inventado com meu irmão mais velho, Arthur, alguns anos atrás. Ao contrário de mim e papai, os dois não conseguiam suportar um resquício de bagunça.
E eu tinha escolhido que aquela provocação iria ficar algumas semanas espalhada pela casa.
— Como tive que ir para a escola no dia seguinte, eu tenho direito a mais prazo.
Ele ponderou a minha resposta, provavelmente agora se arrependendo da discussão que iria travar com mamãe depois.
— Domingo?
Sorri fraco.
— Vou fazer o meu melhor.
— E como foi o primeiro dia de aula?
Dei de ombros.
— Como todos os outros.
Meu pai pareceu pensar, finalmente colocando a caixa perto da cama de madeira.
— Fico feliz. Me deixe feliz também com essas caixas, por favor.
— Claro, pai.
Assim que ele ia deixar o quarto, voltou para soltar uma pequena bomba:
— Domingo vamos receber algumas pessoas da vila aqui em casa. Não fuja.
Minha expressão nem se alterou, mesmo que meu coração pudesse estar batendo um pouco mais forte que o normal. Era esperado que meus pais fizessem isso, principalmente no interior. Sempre quando nos mudamos para uma cidade nova eles faziam questão de convidar os vizinhos mais próximos do nosso apartamento e então era organizado um grande jantar de “boas vindas” (para eles mesmos).
Suspirei pela décima quinta vez no dia. Além de mil caixas, o final de semana seria de tortura social.
Os próximos dias na The Cotswold School foram tranquilos e sem muitas novidades. Por ter chegado no meio da semana, e também por já ter perdido duas semanas chatíssimas de aulas, eu fiz o possível para não dormir na sala e conseguir acompanhar o ritmo dos outros alunos. Eu poderia reclamar do chão branco demais, das paredes esquisitas, dos armários perfeitos e dos alunos sorridentes, mas ficava difícil tentar falar mal do ensino da instituição. Se havia uma escola utópica para ser estudada sobre o seu funcionamento, provavelmente seria aqui na Veneza da Inglaterra.
Durante o intervalo procurei me sentar com alguém próximo da última aula que tive, para tentar aproximação pelo menos para conseguir as matérias das semanas anteriores. Mesmo de mau humor aquele ainda era o último ano do ensino médio, e não dava para queimar mais ainda o meu currículo estudantil. Meu pai tentava consertar com jantares, indicações e alguns favores, mas quase sempre não funcionava.
Lanchei com uma menina engraçada no segundo dia e ouvi muitas fofocas da escola, mesmo não conhecendo ninguém. A garota parecia feliz em ser a primeira a contar os podres da galera para a novata.
No dia seguinte consegui três companhias para o intervalo. As meninas, que provavelmente se conheciam desde a infância - já que falavam sobre diversos assuntos de forma íntima, pareciam animadas demais com a minha presença. Como sempre, respondi perguntas bobas da cidade grande e, principalmente, sobre qual era o meu tipo de garoto (aparentemente o interior tinha um tipo certo também que eu não me encaixava). As três meninas loiras, as quais eu nem lembrava o nome, segundos depois de sermos apresentadas, eram legais, mas nenhuma conexão tinha sido feita entre nós. Eu não ia aguentar estar em um grupo onde se combinava a cor de esmalte em cada semana.
Realmente se isso era Cotswolds eu era bem diferente.
Ainda vestindo roupas largas demais para o meu corpo fui obrigada a ir até a psicóloga da escola, o que já tinham me comunicado que era uma atividade obrigatória entre novos alunos. Depois daquela tortura, que faria com que eu ficasse mais uma hora extra dentro da escola, eu correria para casa e ajustaria todas as minhas roupas, pois já estava cansada de puxar a saia cinza e cafona a cada dois minutos.
Assim que cheguei a secretaria geral de alunos (que tipo de escola precisa de uma secretaria para cada nível escolar?), uma mulher baixinha me direcionou até a sala de acompanhamento psicológico, mais para o final do corredor. A sala era branca demais, com móveis de madeira de lei e grandes poltronas azuis, uma das cores da escola.
Sentada em frente a uma grande mesa estava a tal psicóloga. O nome Silver Williams pousava em uma placa dourada e enorme em cima da mesa.
Me aproximei, logo sentando em uma das poltronas grande demais.
Seu sorriso se iluminou.
— ! Que prazer te conhecer.
Apenas assenti com a cabeça, esperando aquele teatro acabar o mais rápido possível.
— Li sua ficha e achei incrível. Quantas mudanças?
— Treze.
— Quantas línguas você fala?
Fiz uma careta, me surpreendendo com a pergunta.
— Três.
Não era surpresa que depois de tantas mudanças o Inglês não fosse meu único idioma. A verdade era que eu aprendia com mais facilidade por viver nos lugares por um tempo considerável. Com Inglês e Francês tinha sido assim. O Português eu herdava da família, mesmo tendo saído do Brasil com menos de um ano. Minha mãe insista que saber Português ainda seria um diferencial para mim em algum estágio da vida. Como não tínhamos voltado no Brasil desde os meus cinco anos de idade — e também não tínhamos plano algum de parar em Portugal ou algum país doido da África, eu realmente duvidava daquilo.
Silver anotava tudo em um caderno minúsculo.
— Bom, deixa eu me apresentar. Sou a doutora Silver Williams — e apontou para a placa ridícula com o seu nome marcado. — Psicóloga chefe da The Cotswold School. Meu trabalho aqui é garantir a integração de novos alunos, como você, além de servir de apoio para alunos já adaptados, em qualquer situação. Você ficaria surpresa com o número de adolescentes que surtam no último ano.
— Posso imaginar.
— Então, , me conta um pouco sobre os seus planos. Vi aqui que você está no quarto ano, já sabe o que quer fazer depois da formatura?
Eu já havia pensado nisso algumas vezes, mas sempre evitava ir muito a fundo. Não sabia nem onde estaria na semana que vem, imagine só no próximo ano. A ideia de ir para a faculdade me deixava em êxtase, mas também trazia um pânico crescente. Entrar na faculdade, onde quer que fosse, significaria estabilidade na minha vida. E estabilidade significava também que eu teria que deixar a minha família para trás. Eu não era como Arthur, que havia ficado em Nova Iorque para fazer o seu curso e deixar essa loucura dos meus pais de lado.
Ainda precisava de apoio emocional.
Resolvi responder a coisa mais simples, pois, se entrasse muito no assunto, Silver iria me massacrar com suas opiniões baseadas em Freud e Sartre.
— Ainda não sei.
Eu sabia que tinha problemas, muitos problemas mesmo, só não precisava ouvir isso da psicóloga perfeitinha da escola limpa demais.
— Temos um programa de apoio de estudos para as universidades de Cambridge e Oxford, caso tenha interesse.
Eu não tinha, mas resolvi pegar o folheto que ela segurava em suas mãos sobre o tal programa. Cambridge e Oxford pareciam ótimas, mas eu ainda precisava de tempo para decidir o que realmente queria fazer nos próximos anos.
Aquela pressão de “último ano” me dava dor de estômago.
Com a minha falta de papo, Silver continuou.
— Sabe pelo menos o curso que quer fazer?
— Não. Mas talvez escolha Design de Moda ou algo parecido.
Sua expressão se iluminou novamente.
— É uma ótima escolha! Já aplicou para as suas atividades extracurriculares? Não temos nada ligado diretamente a moda, mas você pode participar das que são mais criativas, vai te ajudar a ganhar pontos na hora de escolher a universidade.
Se eu ia ser obrigada a escolher algo extra para fazer na escola, meu maior protesto era ir na direção onde eu poderia fazer mais coisas erradas. Talvez a escola se incomodasse e me mandasse embora antes mesmo de meu pai achar que era a hora de deixar essa experiência do interior de lado.
Eu olhava a lista gigante de atividades extracurriculares sem entender como existia aquilo tudo no fim do mundo. Carreguei meu papel até a secretaria do quarto ano, onde encontrei um homem gorducho com um sorriso esquisito no rosto.
— É aqui que eu posso fazer inscrição nas atividades extras?
O cara sorriu mais, ainda sem mostrar os dentes.
— Boa tarde! Sim, senhorita. Em quais gostaria? Líder de torcida?
Franzi o cenho, sem conter a língua em minha boca.
— Existe essa cafonice aqui?
Ele escondeu o quase sorriso na hora.
— Você é da área de ciências, então?
Legal. No fim do mundo ou éramos líderes de torcida ou nerds.
O uniforme fora das proporções normais me incomodou mais ainda.
Resolvi acabar com aquilo antes mesmo de começar ou eu subiria na mesa para falar umas boas verdades para ele.
— Vou fazer essa aqui — e apontei no grande folheto.
Ele chegou mais perto para olhar e depois assentiu.
— Culinária doméstica?
Com certeza eu explodiria um forno no primeiro dia.
— Sim.
— Apenas essa?
— Qual outra que eu possa causar algum estrago por aqui?
Culinária doméstica, Oficina de Artes e Línguas.
Era o que eu faria para me ocupar durante aquele ano na The Cotswold School. Culinária para tentar explodir uma das salas ou, com sorte, envenenar alguns alunos com comidas e temperos ruins; Artes por ser algo mais próximo do que eu gostaria de trabalhar algum dia, então faria um esforço para me sair bem. E Línguas, bem, eu já sabia falar Francês, então era a maneira mais fácil de conseguir pontos extras no meu currículo escolar já tão denegrido e manchado pelas diversas mudanças.
A orientação era que eu deveria procurar a sala de cada atividade para me “apresentar” ao grupo. Aparentemente não havia nenhuma classificação para aquilo, se inscrevia quem queria e entrava quem estivesse com vontade também. Pareceu o suficiente para mim.
O grupo de Culinária era pequeno (o que eu já esperava), com um total de quase onze pessoas. Na sala tinham várias bancadas com fogões acoplados, fornos e utensílios de cozinha que eu nunca tinha visto na vida. Algumas garotas me contavam animadas que seria ótimo ter uma referência da culinária francesa e eu simplesmente sorri deixando-as achar que eu sabia alguma coisa de cozinha.
Quem me dera. Elas iriam descobrir a verdade da pior forma.
No grupo de Artes encontrei mais pessoas em um espaço dividido entre área de “pensar” e área de “produzir”. Achei bem cafona, mas relevei no mau humor, já que era a atividade que poderia chegar o mais próximo ao que eu provavelmente faria na faculdade. O pessoal da área de produção mexia com pedaços de madeira, ferro, tinturas, panos e outras coisas que não consegui acompanhar. A galera do planejamento se empenhava em organizar um grande mood board que ia do teto ao chão, com referências de projetos, fotos, datas e alguns post-it amarelo gritante. No total era uma bagunça só, mesmo com tudo devidamente em seu lugar, com as paredes e chão brancos demais.
Eu gostava. Conseguiria estragar outra sala perfeitinha da instituição.
Mas foi o grupo de Línguas que mais me chamou atenção. A sala era menor do que as demais que visitei, com muitas cadeiras e duas mesas grandes, postas uma em frente à outra. Não tinha ideia do que o grupo de Línguas fazia para ganhar pontos extras para a faculdade, mas com certeza seria a parte mais fácil do meu dia.
Uma garota ruiva me olhava com a sobrancelha arqueada. Sua maquiagem era escura demais para aquele horário do dia.
— Precisa de ajuda?
Dei de ombros.
— Me inscrevi aqui. Pediram para que eu viesse me apresentar.
A garota cerrou os olhos, mas ainda mantinha um pequeno sorriso no rosto.
— Que ótimo. Qual língua você fala?
— Francês e Português.
Sua expressão nem mesmo se alterou. Ela provavelmente estava bem acostumada a ver adolescentes falando línguas totalmente desnecessárias para a sua idade.
— Legal. Nosso grupo funciona toda quinta — e me entregou um folheto. Estava começando a ficar cansada de folhetos. — Se quiser ficar hoje para dar uma olhada, fique à vontade.
— O que vocês fazem por aqui?
Ela pareceu ignorar minha pergunta.
— Estamos precisando de uma pessoa para liderar uma parte da América do Sul. Você é fluente em Português?
— Sim.
A garota ruiva cutucou um menino alto demais.
— Temos a pessoa que faltava.
O sorriso do garoto cresceu assim que me olhou.
— Perfeito! Você pode ficar hoje?
Era minha vez de ignorar todos ali.
— O que vocês fazem por aqui mesmo?
Os dois me olhavam com interesse agora.
— Debates — a ruiva mexia na pontinha de seu longo cabelo. — Desde o ano passado fazemos debates aqui como se fosse uma ONU júnior. Discutimos sobre assuntos de nível mundial como porta-vozes de países.
OK. Eu poderia falar umas boas verdades sobre alguns países em que já vivi.
— Eu fico. Português?
— Brasil. Senta ali no canto.
— E vamos falar sobre o que?
— Paz mundial.
Minha risada saiu sem que eu pudesse evitar.
— Eu vou ser o Brasil falando sobre paz mundial?
Eles não acharam graça nenhuma no que eu disse.
— Sim. Vamos começar?
A morte da primeira semana não tinha sido o debate esquisito sobre a paz mundial. Na sexta-feira, quando estava pronta para ir embora ao som do último sinal, boa parte da minha sala permaneceu sentada e só então percebi que a maioria vestia roupas diferentes da minha.
Meu coração palpitou quando pensei no que poderia vir a seguir. Cutuquei a menina que tinha me ajudado na aula de literatura inglesa.
— Não estamos liberados?
Ela olhou a minha direção com um sorriso simples.
— Temos educação física.
Era uma ótima hora para correr daquele lugar. Mas assim que levantei, um cara de meia idade apareceu dentro de nossa sala.
— Como prometido, vim buscar vocês na sala hoje, pois tenho um comunicado: os testes para o time de futebol estão abertos até a próxima quinta-feira. Isso vale também para as líderes de torcida — algumas meninas comemoraram. A garota ao meu lado nem se abalou. Graças a Deus. — Então, vamos lá?
Cutuquei Mila novamente.
— É obrigatório?
E ela deu de ombros, já colocando sua mochila nas costas.
— Sim, como qualquer outra atividade dentro dessa escola.
E a sorte da semana foi que, como eu tinha chegado muito em cima do começo das aulas (ou melhor, tinha perdido o começo), ninguém tinha avisado meus pais sobre as diferenças dos uniformes. Aparentemente o cafona que eu usava não era o único da instituição. Os alunos deviam ter roupas diferentes para o frio (com calça, casaco e meia-calça) e para atividades físicas (shorts, camisa cinza esquisita e short-saia para as meninas).
A minha opção, coisa que o treinador não gostou nem um pouco, foi ficar apenas olhando toda aquela aula péssima acontecer. Eu não era o tipo de garota com o melhor porte atlético e muito menos era amante de esportes ou coisas parecidas. Não tinha o mínimo interesse em correr dez vezes aquela quadra poliesportiva enorme e também não estava afim de ver garotas loiras demais pulando com pompons coloridos para animar o time provavelmente ruim da escola.
Vindo da cidade grande eu conhecia muita coisa e muita gente - e outros países e continentes, mesmo que não os levasse durante a minha vida. O interior parecia perfeito aos olhos de quem visse, mas tudo ainda soava bem esquisito e forçado demais para mim. Será que aquelas pessoas já tinham vivido algum problema comum da sociedade, como bad hair day ou festas ruins? Pegar o metrô cheio demais às sete da manhã, derrubar café na sua blusa limpinha, pisar em um coco de cachorro com sua bota nova… Essas coisas. Aquele lugar realmente era perfeito demais para ser verdade. Eu me sentia em um filme bizarro, provavelmente americano, onde todo mundo tem a vida que sempre sonhou. E, por me sentir em um filme, tinha outra coisa que não saia da minha cabeça: toda perfeição sempre é chamariz para alguma coisa bem errada.
Será que eu era a coisa bem errada naquele lugar?
Esperava que sim.
Saindo da escola (finalmente) meu olhar encontrou novamente o garoto rebelde da jaqueta de couro. Ele estava encostado em um carro preto, que parecia velho porém conservado o bastante para ser categorizado como estiloso. Seu semblante despreocupado o deixava ainda mais atraente. O menino conversava com um garoto de mesma estatura, porém com cabelos um pouco mais escuros.
Talvez por encará-lo demais, seus olhos azuis escuro se encontraram com os meus. Aquilo me fez lembrar que eu ainda tinha um jeitinho de fugir daquela esquisitice do interior, mesmo que ele ainda fosse um caipira de Cotswold. Sua jaqueta de couro me indicava que eu podia julgar pela aparência, pois ele provavelmente seria um adolescente diferente para a região. De tudo o que eu tinha vivido na cidade grande ele era a coisa mais próxima de uma boa lembrança naquela velharia de Bourton-on-the-Water.
Ainda me encarando, o garoto sorriu de lado, piscando um de seus olhos lindos para mim. Resolvi aceitar aquilo e sorri de novo.
Estava decidido.
Eu realmente faria o rebelde da vila se interessar por mim.
Capítulo 3 - Lições
“A vida dá lições que só se dão uma vez.” (Winston Churchill)
— Conseguiu achar o seu celular?
Aquele assunto me deixava com dor de estômago. A questão era que, nos últimos dias, meu celular tinha simplesmente desaparecido. O irônico era que eu tinha o chip em mãos (finalmente e vindo de Londres, por papai), mas nada de achar o celular. Eu já havia procurado meu aparelho pela casa inteira, já tinha deixado um aviso no quadro arrumadíssimo dos “Achados e Perdidos” da escola e até mesmo feito a exata rota do dia em que o perdi. E com a falta de sucesso em tudo isso, só me restava uma opção: o mercado decadente da região.
Meu corpo lutava desde a semana passada para não ir até lá, mas eu sabia que, se o garoto do mercado tivesse visto meu celular, ele ainda estaria lá, intacto.
E sem mensagens, sem uso, sem internet. Sem vida social.
Suspirei alto.
— Ainda não. Mas acho que descobri onde possa estar.
Meu pai deu uma pequena risada.
— Como você conseguiu perder algo em uma vila de quatro mil habitantes?
Eu ainda não sabia como conseguia fazer muitas coisas naquela vila de quatro mil habitantes (como, por exemplo, sobreviver), mas não queria chatear papai. O meu mau humor diário já fazia isso por si só.
— Com certeza quem achou, guardou. Então tenho um problema a menos.
Ele ponderou com os olhos enquanto se levantava em direção ao escritório. O telefone fixo gritava por todos os cantos da casa.
— Espero que resolva o seu problema com as mil caixas no andar de cima também. Não se esqueça que vamos ter visitas amanhã.
Esperei papai sair da sala para bufar alto. Aquilo era uma tarefa que eu tentava evitar também, como a busca pelo meu celular inútil. A questão era que eu não tinha aberto uma caixa sequer da mudança e elas transbordavam do meu quarto para o corredor do segundo andar. No fundo minha mãe ficava louca com aquela falta de organização proposital, mas eu via que ela tentava não descontar mais frustração em mim.
Eu já era a frustração em pessoa.
Subi as escadas em segundos, encarando aquela quantidade de caixas de papelão marrom ridiculamente empilhadas uma em cima da outra. Seria trabalho para todo o final de semana.
Abri as caixas devagar, uma por uma. Já tinha aceitado que meu sábado seria todo perdido naquela tarefa. Depois de horas me vi sentada no meio do quarto com todo aquele caos à minha volta. Muitas caixas de roupas e casacos pesados, objetos pessoais, livros e tudo o que foi possível trazer na mudança Paris-Cotswolds. Mas uma específica tirava a minha paciência e eu relutava para não abri-la.
A caixa das recordações.
Quando você se muda com frequência é normal que suas recordações sejam guardadas além de um diário bobo e cafona. Eu costumava não só escrever sobre as coisas que via e vivia, mas também tentava guardar objetos, entradas de museus, ingressos de shows, cartas e muitas, muitas fotos.
Isso me fez pensar se eu teria alguma foto de lembrança em Bourton-on-the-Water.
Provavelmente não.
Olhar aquela caixa no meio da bagunça só me fez suspirar. Era o momento de mexer na ferida. A mudança de Paris não tinha sido a pior, mas eu sabia que dentro daquilo acharia bem mais do que a França.
A caixa, já surrada pelo tempo de uso, fazia com que uma sensação de nostalgia transbordassem pelo meu corpo e mente. Eu amava relembrar coisas boas, mas, depois que a sensação de conforto da lembrança ia embora, só restava a tristeza mesmo. Tristeza de não conviver mais com aquelas pessoas, tristeza por não ter feito tudo o que eu gostaria no pouco tempo em que vivi naqueles lugares.
A cada foto que passava em minhas mãos meu coração apertava ainda mais. Em uma delas, a minha preferida, eu via minha grande amiga de Nova Iorque, Bree e meu ex-namorado (também nova iorquino), Logan. Nós três fazíamos caretas diferentes, no auge de nossos trezes anos. Crescer e viver na cidade grande abria a minha mente para muitas coisas, mas eu ainda sentia (mesmo depois de passar um tempo considerável em algumas das maiores cidades do mundo) falta de alguma coisa. Nem Nova Iorque me fazia sentir completa.
Em meio a um bolo de fotos antigas, um pequeno papel chamava a minha atenção. Doía por eu já saber de quem seria, mesmo sem conseguir lembrar exatamente sobre o que era aquela cartinha. Por mais doloroso que fosse, suas palavras doces e inocentes ainda me acalmavam. Mesmo quando ele estava do outro lado do oceano.
“,
Hoje descobri que sem você na escola tudo fica realmente sem graça. Não ri de mim. É a verdade. Não vejo a hora do nosso cinema de sexta-feira. Você pode escolher qualquer filme de menininha que quiser, desde que eu possa te abraçar o tempo inteiro.
Com amor,
Logan.”
Com aquela nostalgia à flor da pele, resolvi que era a hora certa de ensaiar uma carta para minha amiga Bree. Provavelmente ela estaria tranquila esperando notícias do fim do mundo, mas despedaçava o meu coração a nossa falta de comunicação. Ela era a única pessoa que eu confiava minha amizade e isso era triste de várias formas.
Peguei uma folha em branco de um dos cadernos jogados naquela bagunça. Já que eu estava no interior, escreveria a punho e depois, com internet, mandaria por e-mail para ela. Eu tentava pensar em tudo o que sentia e como colocar aquilo em palavras. Palavras que não soassem deprimidas ou ingratas, como eu sempre tentava fazer no início de alguma mudança. Já era complicado demais para mim, imagine fazer os outros ouvirem suas lamentações do outro lado do oceano.
Segurei a caneta na mão esquerda, dando início a um dos mil e-mails que viriam durante o ano. Eu sentia falta de comunicação, sentia falta de um diálogo com alguém que já soubesse coisas sobre mim e, principalmente, sentia falta de sentir algo verdadeiro sobre as pessoas.
Bourton-on-the-Water ainda soava irreal e surreal para mim.
“Bree,
Você acaba de receber a sua primeira mensagem direto do fim do mundo. Parabéns! Já sabendo como meu humor deve estar (bem ruim, só para te confirmar) vou tentar te contar de forma simples tudo o que tenho vivido no interior da Inglaterra. A palavra mais recorrente em minha cabeça é: frustração. Não por estar longe de vocês e do meu irmão, mas sim por estar em um lugar em que eu não acho real. Em breve vou te enviar umas fotos bem sinistras daqui para que você possa entender 1% da história. Bourton-on-the-Water, a mini vila de quatro mil habitantes que meus pais resolveram abraçar, é ridícula. A atração daqui é um rio que corta toda a extensão da vila, com pontes ainda mais ridículas de pedra para atravessar. Não tem cachorros para adotar e também não existem lojas de roupas na moda. Aqui tudo é cinza e desbotado, o que não combina com a paisagem verde e colorida. Não dá para entender.
Ah! Eles possuem aqui uma mini vila, como uma maquete gigante, da própria vila. Como se aqui não fosse pequeno o suficiente, eles fazem uma versão reduzida para turistas.
Deixando o sentimento ranzinza de lado, sinto sua falta. Sinto falta de nossas conversas, das suas grosserias e das nossas ligações de madrugada. Assim que as coisas se normalizarem por aqui nossa rotina deve se ajustar também. Ainda estou com dificuldades da internet, celular e pessoas, claro.
Espero que esteja tudo bem em Nova Iorque.
Sinto como se nunca tivesse saído daí.
Mil beijos direto da Veneza da Inglaterra.
Sua amiga, .”
***
O final de semana já parecia infinito pela arrumação do meu novo quarto e, para completar, meus pais decidiram que teríamos visita no domingo à tarde. E quando eles dizem “visita” eu sempre esperava metade da região para uma grande festa de boas vindas aos vizinhos.
Era sempre assim.
Dentre as muitas lições do interior, uma delas era “seja um bom vizinho”. Eu não sabia quem tinha falado isso para meus pais, mas também não estava interessada em descobrir muito mais sobre ser um caipira.
Parecia que metade da vila estava em nosso imenso quintal verdinho e sem cercas. Meu pai fazia hambúrgueres na grelha recém comprada (não sei onde e nem quando) enquanto mamãe verificava se todos os convidados tinham bebidas geladas em suas mãos. Os copos que ela distribuía eram grandes e tinham pequenos canudos branco e vermelho, deixando tudo o mais clichê possível.
A grande desculpa da festa improvisada era conhecer os vizinhos e, quem sabe, fazer novas amizades. Esse segundo destaque servia mais para mim, já que não tinha tido muito sucesso na The Cotswold School nos primeiros dias.
Meu pai me puxou para perto de uma família arrumadinha demais.
— , esses aqui são os Hunt.
Cumprimentei um a um. A mãe tinha os cabelos mais loiros da região, presos em um rabo de cavalo baixo sem um fio solto. Seu sorriso parecia sincero. O pai, com os cabelos um pouco mais escuros, mas ainda loiros, era alto e tinha uma barba esquisita (talvez por ser branco demais e ainda loiro). Ao seu lado, aparentemente, os dois filhos. Um mais baixo com óculos de grau enormes, que me cumprimentou sem graça. O maior, talvez um pouco mais velho do que eu, acenou com a cabeça. Provavelmente estavam lá obrigados, como todos os outros filhos presentes.
Quando o menino mais velho olhou para o lado, eu tive um estalo. Era o mesmo garoto que tinha chegado no mercado decadente e saído com o menino do mercado decadente.
Realmente estávamos em uma vila bem pequena.
Ele me olhou engraçado, seus olhos claros quase fechados com a claridade momentânea de Cotswold.
— Acho que já te vi por aí. Seja bem-vinda a Cotswold.
O mais baixinho olhava para os pés.
– É, bem-vinda a Cotswold.
O pouco que ouvi da conversa dos pais, tinha descoberto que a família Hunt era uma das produtoras da região. Fazia total sentido que papai convidasse quem fosse influente, para conhecê-los e também para que ficasse sabendo de tudo o que acontecesse por ali. Ele tinha essa facilidade de adentrar os meios sociais mais altos. E em Bourton-on-the-Water com certeza não seria diferente.
Me distanciei daquele papo de produção de feno e cabras caipiras, andando novamente pelo enorme quintal abarrotado de pessoas. Olhava para todos com um sorriso no rosto, como já tinha aprendido quando mais nova. Aquele teatro realmente não era um problema para mim. Eu e Arthur, meu irmão mais velho, sempre acompanhamos nossos pais nas festas da alta sociedade onde todos sorriem demais sem necessidade alguma.
E no meio daquelas pessoas irreconhecíveis eu o vi novamente.
O garoto rebelde da jaqueta de couro.
Seu sorriso era maravilhoso enquanto contava alguma coisa para um menino da mesma idade que ele. Suas roupas eram diferentes de qualquer um da região, principalmente pela jaqueta que gritava “cidade grande”.
Me aproximei dos dois, ainda admirando a beleza do garoto rebelde.
— Vejo que meu pai convidou todo o distrito.
O menino, ao perceber minha aproximação, sorriu mais ainda. Seus olhos azul-escuros brilhavam no pouco sol que fazia.
— Vim representar Stow-on-the-Wold. Como você está?
— Bem, obrigada — olhei para o amigo dele. — .
O garoto respondeu algo que eu não compreendi, visto que o rebelde encostou em meu braço esquerdo.
— E eu sou Kyle.
O olhei surpresa. Não tinha reparado que ainda não sabia o nome dele.
— Então, Stow-on-the-Wold?
Kyle continuou com o sorriso lindo.
— Fica a alguns minutos daqui. Você provavelmente não vai querer conhecer, mas, se quiser, conta comigo.
— Tem mais de quatro mil habitantes?
Ele riu com o nariz.
— Eu estudo em Bourton-on-the-Water, o que você acha?
Franzi o cenho pela surpresa. Se Bourton fosse a maior vila de Cotswold eu estava realmente mal. Precisava arrumar um plano para irmos para Londres o quanto antes.
No meio tempo que falamos sobre besteiras, o tal amigo de Kyle sumiu. E eu não me importava com aquilo, já que estava mais interessada em saber sobre a vida do rebelde.
— Já se adaptaram por aqui?
Neguei com gestos.
— Se você vir quantas caixas tem dentro do meu quarto, ficaria horrorizado.
Eu não tinha acabado com as caixas, mas pelo menos tinha respeitado a regra de não termos bagunça nas áreas comuns da casa. Tudo bem, por mim, meu quarto permanecer uma zona.
Ainda era um protesto silencioso contra o interior.
Ele olhou para algumas pessoas que conversavam animadamente ao nosso lado, logo me olhando de soslaio.
— Seria um ótimo lugar para se conhecer.
Meu corpo se aqueceu por um momento. O que seria ótimo mesmo é ter alguém interessado em mim, tanto em amizade quanto para qualquer relacionamento. Tinha anos que eu não me relacionava mais sério com alguém, depois de Logan, em Nova Iorque. Na França os poucos casos eram passageiros, ninguém que me despertasse alguma coisa a mais. E, por não ter uma situação “encerrada” com Logan, tudo parecia mais do mesmo.
Ninguém parecia à altura do que eu já tinha vivido antes.
Resolvi ignorar o comentário de Kyle. Mesmo com o plano de fazer o rebelde se interessar por mim, eu ainda queria a oportunidade de ter alguém para conversar antes de estragar tudo com um relacionamento vazio e sem futuro.
— Nós estamos em algumas aulas juntos, não é?
E então ele riu. De mim, comigo. Tanto faz, mas só riu. Depois balançou a cabeça em negação.
— , você não precisa ativar o seu modo do interior comigo — aquilo fez meu corpo arrepiar. — Eu não quero saber sobre as aulas naquela escola perfeitinha.
— Do que quer saber então?
Kyle deu de ombros, encostando em uma cadeira livre.
— Quero saber sobre você. O que uma garota como você — e me olhou apertando os olhos azul-escuros — veio fazer no século passado?
Seu olhar me intrigava.
— É uma longa história.
Ele olhou em volta, me incentivando a falar.
— É uma boa fuga disso tudo aqui.
Contei ao menino o básico da minha vida: muitas mudanças, meu pai doido pelo interior e a minha clara preferência pela cidade grande. Kyle ouviu tudo com atenção, como se tentasse gravar cada palavra que saísse da minha boca. Sua atenção exagerada me deixava feliz, mas também desconfiada.
Desconfiada se ele queria ser meu amigo ou simplesmente me agarrar por alguns dias. O jogo era meu.
Sua atenção foi tomada de mim quando um senhor mais velho o puxou para falar com outros senhores mais velhos ainda. O menino me deu uma piscadela com o olho direito ao se afastar.
— Eu ainda quero saber de tudo, .
Ao me ver sozinha, olhei novamente em volta. As pessoas comiam os hambúrgueres de papai, que ainda tagarelava sem parar com todos. A entrada do quintal da casa tinha algumas bandeiras esquisitas, que provavelmente eram de referência ao distrito de Cotswolds ou ao condado de Gloucestershire.
E, como a vila toda estava por lá, Zara não seria diferente. Ela estava acompanhada de duas pessoas, provavelmente seu pai e sua mãe. Os cabelos loiros brilhavam mais fora da escola e aquilo me irritava um pouco. Mesmo não a conhecendo, algo dentro de mim dizia que eu precisava ficar longe daquela menina. Eu com certeza não era uma garota problema, mas não queria dar sorte ao azar. No interior a minha realidade podia se inverter e, por pouca sorte, a garota perfeitinha da região cismar com a minha cara.
Eu realmente não precisava disso.
Papai pediu a atenção de todos, me chamando para se juntar a ele e mamãe. Andei até os dois, enquanto o mais velho já começava um de seus longos discursos. Além de sabe-tudo, meu pai tinha uma ótima aptidão para palestrar desnecessariamente. Como o pessoal da região ainda não o conhecia, pareciam animados. Eu daria um mês para que eles já não perguntassem mais nada diretamente a ele.
— Queridos recém amigos! — papai falou alto e vi muitos sorrisos de volta. — Em nome de nossa família gostaria de agradecer a ótima recepção aqui na vila de Bourton-on-the-Water! Tem poucos dias que chegamos para morar nessa casa incrível e, mesmo com vários empecilhos, escola nova depois do início das aulas… — nessa parte ele olhou para mim de um jeito carinhoso, e mesmo constrangida eu não pude deixar de retribuir. — Falta de internet… — boa parte do seu público riu. — Já temos a certeza de que será um período maravilhoso compartilhar esse local com todos vocês. Muito obrigado e vamos comer hambúrgueres!
O olhando falar percebi que o mesmo vestia um avental branco com os dizeres “I LOVE BOURTON”, provavelmente comprado no mercado da grosseria em pessoa. E aquilo fez uma ponta de coragem aparecer no meu corpo.
Estava na hora de buscar meu celular perdido.
Era uma ótima saída para fugir daqueles sorrisos brancos demais, do interesse repentino na cidade grande e, principalmente, de enfrentar a Zara. Não queria ser amiga dela e nem de qualquer grupo que ela pertencesse. Eu tinha que encontrar meu próprio lugar e espaço em Bourton-on-the-Water. Questão de honra à cidade grande.
Esperei a palestra de papai terminar para conseguir sair da visão das pessoas e fugir até o mercado decadente. Para que não dessem meu sumiço, apenas indiquei aos dois que iria verificar se ainda tínhamos gelo o suficiente para não fazer feio com o pessoal do interior. Aquela desculpa horrível pareceu o suficiente para minha mãe, visto seu enorme sorriso no rosto. Provavelmente ela tinha achado que eu finalmente iria abraçar o interior.
Talvez nunca, mãe.
Como já era esperado por mim, o restante da vila parecia deserto. Meus pais realmente já tinham começado a missão “boa vizinhança”. A margem do Rio Windrush só contava com as folhas caídas das árvores próximas e as pontes de pedras por sua extensão não agrupavam uma sequer alma. Pelo caminho, todo meu corpo relutava em dar meia volta, mas eu precisava fazer aquilo. Eu estava evitando ao máximo pisar naquele lugar, já que tinha aceitado a falta de carisma minha com aquele menino. Não precisava e nem queria me esforçar para melhorar aquilo.
Eu torcia para que ele não estivesse por lá também, mas como não tinha o visto em nossa casa achava difícil ter tirado o dia de folga. O que ele faria em um final de semana naquela região sem nenhum atrativo?
Assim que coloquei meus pés no recinto seus olhos caíram sobre mim. A sua expressão (antes feliz) ficou sem uma reação.
O garoto parecia organizar uma das várias prateleiras altas do mercado. Uma variedade irritante de produtos se espalhava por elas.
— Ah, a menina do cachorro — ele desceu da pequena escada lentamente, fazendo pouco caso da minha presença ou necessidade de ajuda. — Veio fazer mais grosserias?
Não pude me conter em revirar os olhos.
— Você fala como se fosse a pessoa mais gentil e educada do mundo.
— Eu me esforço de vez em quando.
Antes que eu pudesse me controlar, as palavras saltaram de minha boca:
— Se esforce mais.
Ele nem sequer revirou os olhos, provavelmente já cansado da discussão sem motivo que teríamos a seguir.
— O que você quer?
O ideal seria ir direto ao ponto ou nos mataríamos antes de eu conseguir o meu celular de volta. Eu ainda precisava de internet e linha telefônica para sobreviver aos quatro mil caipiras.
— Acho que deixei meu celular por aqui na última vez que vim.
O garoto me olhou estranho, mas então andou até o balcão, se abaixando para pegar algo. Ele veio até mim, jogando o aparelho em minhas mãos.
— Sorte sua que eu guardo qualquer porcaria que esquecem por aqui.
Bom, tudo bem se ele começar, não é?
— Normal você achar que é porcaria, talvez não saiba diferenciar as coisas.
Ele me olhou novamente sem emoção.
— Acha que eu não conheço coisas de marca? — nem fiz questão de responder. — Você agora deve estar se perguntando se eu sei o que é internet, não é?
Dei de ombros.
— Você que está dizendo isso.
Ele deu um sorrisinho, tirando algo do bolso. Era um iPhone de última geração. Nem eu tinha aquele modelo mais recente.
— Aqui é uma cidade pequena, não uma roça. Posso voltar pro meu trabalho sem ser perturbado agora?
O menino deu de ombros pela minha falta de resposta. Minha cabeça girava. Como começamos a discutir mesmo?
— Ei, não acabei!
Mais uma vez eu tinha falado demais.
Ele deu meia volta no mesmo momento.
— O que você quer mais? Já te entreguei o celular.
Eu não sabia o que dizer, mas não podia deixar que ele fosse embora assim, de novo. Queria entender o que estava acontecendo e porque meu inconsciente fazia com que eu simplesmente atacasse aquela pessoa, sem motivo algum.
Queria entender também o porquê de ele não estar comendo hambúrgueres e tomando bebidas geladas demais em nosso quintal. Será que ele não tinha ido por minha causa?
Balancei a cabeça devido a toda aquela confusão gritando em minha mente. Então disse a primeira bosta que veio em minha cabeça.
— Quero saber onde compro coisas para cachorro por aqui.
Ele olhou em volta do mercado, depois para o próprio corpo, como se procurasse por algo. Logo seus olhos azul-claros estavam me encarando novamente. Azul como o mar. Mas sua expressão não combinava com a delicadeza daquela cor, era de puro cinismo.
— Isso aqui é um mercado. Só eu vejo isso? — não tive nem tempo de me pronunciar antes da próxima grosseira: — Não um ponto gratuito de informações.
Eu não conseguia ser forte como ele. Meus olhos reviraram no mesmo momento.
— Deve ser pela sua simpatia que os negócios não vão bem.
Eu não sabia o que acontecia comigo. Só sabia que precisava brigar com aquele desconhecido. A minha última frase pareceu ter efeito, finalmente.
— Se eu tivesse coisas de cachorro aqui, te dava de graça só para não vir mais.
E então eu fiz uma coisa que nunca me permiti. Fiquei boquiaberta.
— Como é que é?
Eu sabia, lá no fundo, que não tinha direito algum de ficar ofendida com as grosserias, pois eram recíprocas. Mas eu fiquei. Era como se o interior inteiro me desse uma voadora desnecessária.
— Qual parte você não entendeu? — ele disse e simplesmente me deu as costas, indo mexer em algo no largo balcão. Minha boca permaneceu completamente aberta.
Aquilo foi o suficiente para meu surto momentâneo.
— Seu caipira, quem você pensa que é?
— Não. Quem você pensa que é? — ele repetiu a minha pergunta, dando bastante ênfase no “você”. — Chegou há poucos dias e só porque veio da cidade grande acha que todos aqui devem te tratar como rainha?
— Como é que é?
— Como pode ver: não espere isso de mim.
O que estava acontecendo comigo?
Eu não queria brigas e muito menos inimizades. Eu já não tinha amigos, imagina fazer inimigos com apenas alguns dias morando na cidade? Sem chances. Também não precisava soltar mais farpas e veneno com alguém como ele. Ele ainda era bonitinho demais para isso. Acho que, depois de tudo, eu só queria ficar ali, conversando com alguém sem precisar fingir aparências. Não importava no nível de desastre social que fosse.
Então eu me vi fazendo algo que eu não me permitia há anos. Admitir culpa. Talvez seja o ar puro demais de Cotswold.
— Tudo bem, eu sinto muito — ele me olhou rapidamente, como se não acreditasse nem um pouco no que acabara de ouvir. Nem eu mesma acreditava. Talvez seja mesmo a abstinência da poluição das cidades grandes. — Eu não quero brigar.
Ele fez um barulho com a boca que soou mais como um “tanto faz”.
— O que eu preciso dizer para você me tratar bem, como faz com todo mundo?
— Experimente chegar aqui soltando um “boa tarde” ou simplesmente um “por favor” antes de me pedir algo.
Ali estava mais uma das muitas lições que eu iria aprender em Bourton-on-the-Water. As pessoas do interior se cumprimentam o tempo todo, se conhecem e, como descobri naquela discussão, se ferem rapidamente com falta de educação básica.
Respirei fundo, controlando minha raiva.
— Tudo bem. Me desculpe — suas sobrancelhas se levantaram em surpresa. — Fui mal educada. Não é só porque odeio esse lugar e odeio morar aqui que tenho que descontar meu mau humor nas pessoas. Satisfeito?
O garoto ainda me olhava de lado.
— Não, mas já está bem melhor.
— Pode falar comigo sem brigar agora? — ele nem se deu o trabalho de me olhar novamente. Meus olhos reviraram pela quinta vez no dia. — Por favor.
E, com isso, o menino começou a simplesmente rir. De mim, comigo. Tanto faz.
— Você é realmente uma pessoa difícil, não é?
— Quer que eu repita o “por favor”?
Ele me encarava, cínico.
— Seria ótimo.
— Por favor.
— Deixa para a próxima – e deu as costas, indo para os fundos do mercado, me deixando completamente sozinha e com a maior cara de idiota de Cotswold.
O quê?
A única coisa que consegui fazer foi encarar a pequena porta que o menino entrou, incrédula. Sorte não ter mais ninguém dentro do mercado ou eu teria que ser mal educada com mais pessoas por aqui.
O menino dos olhos azuis apareceu novamente segurando algo em mãos, como se nada tivesse acontecido. Eu ainda olhava sem reação para tudo aquilo. Ele realmente iria me deixar ali falando sozinha?.
— Qual é o seu problema?
Ele me encarou como se não entendesse.
— O que foi?
— Eu disse “por favor” e você simplesmente me ignorou.
— Não é só porque você resolveu ser educada que eu tenho que obedecer algo.
E pela segunda vez no dia, em um curto espaço de tempo, aquele menino tinha me deixado boquiaberta.
— Quer saber? — ele me olhou de lado, fazendo pouco caso. — Eu não preciso da sua ajuda. E muito menos de qualquer coisa que venha dessa cidade caipira idiota.
Suas sobrancelhas se levantaram novamente.
— Boa tarde.
Aquilo fez com que a ira inundasse todo o meu corpo. Em cada pedaço do meu ser eu podia sentir uma vontade imensa de socá-lo até a morte. Mas a única coisa que pude fazer foi respirar fundo, revirar os olhos novamente e caminhar para a saída. Já não bastava morar em uma cidade onde bolos de feno podiam ser atrações especiais, imagina aturar provocações de um morador caipira.
Quando eu já estava colocando meu pé para fora, ouvi um assobio em minhas costas. Olhei em sua direção novamente, incrédula com seu ato.
— Você briga comigo duas vezes e nem me diz o seu nome? — e deu de ombros. — Como vou dizer para meus amigos que uma louca veio aqui discutir comigo de novo?
Sorri, cínica.
— Continua chamando de “garota do cachorro”.
Ele me olhou sério, sem cortar o contato visual.
— Por favor, fala.
E foi naquele momento que eu aprendi que algumas palavras são muito fáceis de serem usadas com diversos tipos de interpretações, principalmente se for para manipular um outro alguém. Ele podia ser muito bom ator ou o “por favor” dele transbordava sinceridade.
Aquilo me deixou sem ação. A única coisa que eu poderia fazer era ser uma pessoa melhor, já que pedir desculpas não pareceu muito convincente.
— .
Ele apertou os olhos e eu pude jurar que vi um sorriso no canto de seus lábios.
— Bom te conhecer, .
— E você? vai ficar como “garoto do mercado” ainda? Ou prefere “garoto mau do mercado”?
Ele riu.
— Isso seria bom, nunca me acharam muito rebelde por aqui.
— Imagino por quê.
— Na verdade, não imagina não.
— Se a sua grosseria fizer parte da sua personalidade, imagino sim.
— Você é a única pessoa nessa vila que está fazendo grosserias por aí.
— Vai dizer ou não?
E pela primeira vez eu vi um sorriso sincero em seu rosto. Então percebi que, além de ser uma briga infantil e sem contexto algum, ele estava gostando de me provocar daquele jeito.
— .
***
A segunda semana seria diferente.
Tinha passado a última noite do final de semana remodelando meus uniformes grandes e cafonas. Minha saia poderia estar um pouco curta demais, mas aquilo não fez com que eu chamasse atenção pelos grandes corredores da The Cotswold School. Ou eu continuava muito ruim para o padrão local ou tinha alguma coisa errada. Não parecia como nos filmes adolescentes, mas eu tinha meu celular de volta e poderia ignorar qualquer um.
Minha percepção dos primeiros dias naquela escola não tinham se alterado em nada. Os corredores continuavam brancos demais e os alunos, perfeitos. Por já ter escolhido me integrar em alguns grupos de atividades extracurriculares, talvez fosse mais fácil focar nas pessoas que participavam deles, e não nas centenas de estudantes esquisitos e penteados demais que passavam pelos mil blocos diferentes da The Cotswold School.
Seria menos um esforço para mim.
Uma coisa que ainda não tinha feito era correr atrás da chave do meu armário, que começaria a fazer falta nessa semana, visto a lista enorme de materiais que tinha recebido na prancheta perfeitinha de minha orientadora escolar, Zara. Então a primeira coisa que fiz naquela segunda-feira de manhã foi organizar a minha vida.
Isso iria me distrair da saia curta demais e dos poucos olhares que recebia.
Eu sinceramente não queria ser a atração da escola dos adoradores de feno, mas precisava confessar que aquela falta de interesse na garota nova me deixava com a auto estima em um nível que eu nunca havia presenciado antes. Não era uma garota cheia de si ou que se achava a rainha do local, longe de tudo isso, mas eu entendia que possuía o meu charme quando tinha vontade.
E se um uniforme curtinho não fez isso, não sabia o que tinha de errado. Se era eu ou a região mesmo. Com qualquer uma das opções eu ficaria feliz, afinal, eu não combinava com Cotswolds, certo?
Certo.
Assim que fechei a porta branca do meu armário, percebi que tinha uma pessoa encostada próxima ao mesmo. Uma garota de cabelos caramelo meio cacheados me observava com atenção, como se esperasse que meu ritual matinal com o armário se acabasse logo.
Virei a sua direção, mantendo o contato visual que ela mesma estabelecia. Isso fez com que a tal garota desse um passo para frente, esticando sua pequena mão a mim.
— Oi, me chamo Alene.
Realmente, simpatia era uma coisa que eu tinha que me acostumar muito rapidamente no interior. Ou então eu não sobreviveria.
— .
— Eu sei — ela deu de ombros, fazendo um gesto para que eu a acompanhasse pelo corredor. Sem muito saber o que fazer, acompanhei a menina. — Em que ano está? Último?
Olhei com o canto dos olhos para Alene, que parecia andar tranquilamente.
— Isso. Você é algum tipo de orientadora?
Eu odiaria ter outra garota bonitinha demais vomitando regras da escola para mim.
A menina dos pequenos cachos riu. E eu podia jurar que era de mim, não comigo.
— Imagina! Apenas gosto de conhecer as pessoas novas na escola. Tudo bem para você? — ela pareceu pensar. — Não que a gente receba muitas pessoas novas por aqui.
A única coisa que pude fazer foi dar de ombros. Alene começou a tagarelar algo sobre as pessoas que passavam, mas eu não dava muita atenção às suas falas. O que mais me chamava atenção era o fato de todos ficarem nos observando. Senti o mesmo desconforto quando estava com Zara por esses mesmos corredores. Provavelmente ela era uma das populares patricinhas do local e, por estar ao seu lado no momento, recebia os olhares maldosos da manhã.
Eu não sabia se ficava feliz ou triste por isso.
— Foi bom te conhecer, até depois! — ela deu um pequeno aceno, enquanto se distanciava calmamente.
Continuei sem entender nada sobre aquela aproximação repentina de Alene. Não tinha reconhecido a garota de nenhuma das aulas em que fiquei acordada na última semana e provavelmente também não a tinha visto pelos grandes corredores da escola. Mas se a menina queria apenas conhecer a garota nova da cidade grande, então eu aceitaria aquilo.
Depois do nosso primeiro final de semana no interior, e depois de ficar muito puta da vida com tudo, eu me sentia anestesiada. Ainda queria reclamar (e muito), mas tinha decidido que não gastaria toda a minha energia com isso. Se eu tinha que viver um ano de interior — ou menos, caso papai surtasse em breve, eu viveria com indiferença.
Tinha aprendido que o que a gente não sente, não guarda. E eu faria o interior ser uma página em branco em minha vida.
Antes que eu pudesse seguir novamente meu caminho, a menina deu meia volta. Seus cachinhos fizeram um movimento engraçado, como se ela estivesse em um comercial cafona de xampu.
— Ah! Esqueci de uma coisa! — procurei continuar na mesma posição, esperando outra reação da garota. — Você está oficialmente convocada para a seleção do time de futebol feminino. Pela própria líder do grupo.
Reprimi uma forte careta. Eu queria perguntar quem tinha me inscrito naquilo ou se ela estava me confundindo com alguém de Cotswold, mesmo que tivesse acabado de me conhecer. Mas caso a resposta fosse positiva eu ficaria extremamente arrasada. Eu realmente preferia guardar o que a grosseria em pessoa dona do mercado havia dito para mim.
Eu não combinava com Cotswolds.
Eu definitivamente não combinava com Cotswolds.
Procurei então dar de ombros, já que não conhecia ninguém do time e nem faria questão. A primeira bola que eu chutasse eles já me colocariam para fora do ginásio, sem ao menos completar o teste de equipe.
Durante toda a semana eu corria de aula em aula e mantive meu compromisso com os grupos que tinha me inscrito quando cheguei. A diversão da semana foi quando as garotas de Culinária Doméstica descobriram que eu era um terror na cozinha.
1 , 0 Cotswolds.
A atividade mais esperada por mim era o grupo engraçado de Línguas, já que eu imaginava que nada poderia ser mais bizarro do que debater a paz mundial com alunos que sempre moraram na roça. Era terrível confessar, mas estava animada com a possibilidade de ter com quem conversar dentro daquela escola, mesmo que em outro idioma.
Andando de uma sala para outra, fui surpreendida em um dos blocos próximo ao grupo de Línguas.
— !
Parei no corredor ao mesmo tempo que ouvi meu nome. Ao me virar dei de cara com Zara, que sorria abertamente. Talvez se falasse o nome dela várias vezes ela aparecia perto, como uma assombração pronta para entregar papéis e seus próximos horários naquele lugar grande demais.
— Vejo que conseguiu ajeitar um pouco os uniformes.
Acompanhei seu olhar, que media meu corpo por inteiro, logo parando em minhas pernas um pouco descobertas demais.
— Fiz o possível para melhorar isso.
Zara pareceu concordar, mesmo fazendo uma leve careta.
— Entendo. Como estão os primeiros dias por aqui?
— Normais.
Ela sorriu um pouco mais.
— Ainda sem amigos? — aquilo foi como um tapa na cara. — Eu li a sua ficha, sei que você tem dificuldade de se encaixar nos lugares. Tem certeza que não precisa de ajuda da psicóloga?
Minha vontade era jogar a primeira coisa na cabeça loura da princesa do feno.
— Não, obrigada. Estou bem.
A menina deu de ombros, me olhando de um jeito que, depois, julguei como sacana.
— Talvez aqui não tenha espaço para você, .
Aquela provocação descarada, as paredes brancas demais, o corredor com muita luz e muitas pessoas lindas sorrindo o tempo todo só comprovaram uma teoria: eu realmente estava em um filme ruim de adolescente.
Mal tive como responder Zara, que saiu andando como se tivesse me falado a maior gentileza do mundo.
Adentrei a sala de Literatura Inglesa ainda com as pernas bambas. Estava acostumada a pessoas maldosas na cidade grande e também ao conceito de má educação, mas nunca tinha sentido tão diretamente. As histórias de implicância com alunos e tudo mais passavam por mim e por meu grupo de colegas como se o assunto nem existisse, mesmo que estivesse acontecendo sempre a nossa volta.
Nunca tinha sido o alvo daquilo.
A menina que tinha falado comigo na semana passada, Mila, também parecia pouco interessada em minha pessoa. Sentei ao seu lado e tudo o que consegui foi um sorriso e um “bom dia” educado. Provavelmente eu tinha a chateado pela minha falta de educação.
E aquilo era bem triste, de verdade.
Minhas pernas ainda estavam fora de controle e meu coração batia um pouco mais rápido que o normal, mas eu tentava respirar fundo para entender o motivo daquele ataque sem necessidade de Zara. Assim que o professor de Literatura Inglesa começou a falar, minha mente foi embora junto com suas palavras chatas, tentando procurar se realmente havia um motivo para tudo aquilo estar acontecendo ou se eu poderia simplesmente estar em um pesadelo muito, muito ruim.
***
Minha segunda semana, que tinha tudo para ser um pouco melhor, foi mais do mesmo. Falando com pessoas aleatórias, assistindo as mesmas aulas chatas e tentando ignorar a perfeição diária que eu não conseguia acompanhar nem em meu melhor dia com meu cabelo matinal.
A melhor parte dos meus dias na The Cotswold School era a hora do intervalo, onde eu podia dormir onde quisesse ou comer alguma das coisas saudáveis demais que se vendia na cafeteria central. Eles tinham outros lugares para comprar lanches, mas eu julgava o local do pátio principal como o menos saudável e isso me agradava bastante.
Sabe se lá porquê.
Após pegar o lanche que julguei como o menos pior, esbarrei com a menina do cabelo caramelo novamente. Alene. Ela fez questão de que eu sentasse com ela e seu grupo, e eu torcia para que não fosse ninguém do time de futebol feminino.
Eu realmente estava fora daquilo. Esporte e suor não combinavam comigo.
Andei lentamente até a mesa da minha suposta nova colega, tendo uma surpresa agradável logo de início. Kyle, o menino da jaqueta de couro preta, também estava lá. E seu sorriso parecia ainda mais bonito do que no churrasco cafona de papai.
Ele estava sentado de uma forma despojada e me cumprimentou com um aceno, como se fizesse pouco caso da minha presença em sua preciosa mesa do intervalo. Se ele ia jogar o jogo da indiferença eu sabia andar nas regras.
Alene se sentou ao seu lado, me puxando junto. Kyle deu um longo beijo em sua bochecha direita.
Se o rebelde da região tinha namorada isso seria realmente decepcionante.
A sua frente um menino moreno balançava seu copo cheio de gelo, fazendo um barulho estranho. Kyle tomou parte das apresentações.
— Já conhece Alene. Este é Leon — e apontou para o menino ao seu lado. Só depois percebi que era o mesmo que estava conversando com ele em nosso quintal, o mesmo que eu também não tinha prestado atenção no nome.
O tal Leon me olhava com interesse.
— Já ouvimos algumas coisas de você. Alene não perde tempo.
Eu queria me sentir ofendida, mas dei de ombros. O que for que tivessem ouvido de mim, provavelmente era fofoca bizarra da cidade grande. Não tinha o que esconder de nenhum dos países e cidades em que tinha saído, então pouco me importava.
— Não ouvi de vocês, mas não vamos fazer disso uma competição.
Não queria ser vista como a rebelde de Bourton-on-the-Water, mas aquele garoto em nossa mesa me dava um pouco de esperança para aquela vila. Não era arrogância, prepotência. Era por seu estilo despojado e moderno, o que já o distanciava gritantemente do resto do pessoal da The Cotswold School.
Alene chamou minha atenção, enquanto os dois meninos pareciam me medir.
— Já escolheu algum grupo da escola?
Franzi o cenho para aquela pergunta.
— De extracurriculares?
Todos riam na mesa, o que fez a menina continuar.
— Não, . Um grupo para ficar junto sempre, fazer amigos.
Qual era o problema das pessoas do interior e amizades? Cada um tinha o seu tempo e eu já percebia que o meu não seria respeitado por ali. Eu teria que ser obrigada a achar um grupo qualquer antes que todos iniciassem meu massacre social.
Decidi dar de ombros novamente.
— Acho que vou ser a garota que lancha com pessoas diferentes todos os dias.
Kyle me olhou de lado.
— Justo. Pode ficar aqui, se quiser.
— Caso eu enjoe da perfeição?
Ele passou a mão em sua jaqueta, provavelmente satisfeito por eu ter relacionado ele abertamente como um escape do interior.
— Por favor.
Escutar um “pode ficar aqui” passou despercebido de mim, pois eu ainda não considerava aquilo como uma realidade. As palavras maldosas de Zara ainda ecoavam em minha mente e, pelo menos por um tempo, seria difícil que eu não concordasse com ela.
Talvez eu realmente não fosse adaptável a Cotswolds.
E eu gostava daquilo.
Mas por que também doía tanto sentir a exclusão social de todos?
Nas demais aulas durante a semana tentei colocar o plano da ‘indiferença’ em jogo, mas não deixava passar uma pequena oportunidade de tentar conversar com alguém. Lá no fundo, bem no fundo mesmo, ainda tinha uma ponta de esperança que eu poderia encontrar alguém com o mínimo em comum.
***
Assim que adentrei a sala de Línguas todos pararam de falar. Não sabia qual era o debate esquisito da vez, mas de uma coisa eu tinha certeza: eu não estava atrasada.
Me aproximei de uma menina com cabelos escuros, que ainda não tinha gravado o nome.
— Começaram mais cedo hoje?
Algumas pessoas fofocavam em suas bancadas e aquilo me deu um desconforto instantâneo. Será que alguém tinha ouvido a provocação de Zara?
Ou simplesmente concordavam com ela…
A garota parecia impaciente.
— Desculpe, . Precisamos começar mais cedo hoje, não foi possível te avisar antes.
Ao ouvir aquelas palavras foi praticamente impossível conseguir esconder a decepção que eu sentia. Eu não gostava de joguinhos entre grupos e muito menos ser alvo de algo sem saber o por quê. Além do mau humor eu não havia feito nada de ruim para qualquer um caipira daquela vila.
— Não entendi, fiz algo que vocês não gostaram aqui no grupo?
O garoto alto demais, Hayden, me olhava triste. A menina ruiva com a maquiagem escura demais, Bronwen, não media muito as suas palavras.
— A escola é fofoqueira, , mas a maioria das coisas são verdades.
Aquilo fez o meu corpo gelar. Eu já tinha ouvido alguém da escola falar que tinha “ouvido coisas sobre mim” essa semana, e aquilo não podia ser nada bom.
— O que quer dizer com isso? — ela não mudou sua expressão cínica. — Eu realmente não estou entendendo o que eu tenho a ver com os boatos dessa escola.
A ruiva suspirou alto.
— , eu sinto muito, mas as pessoas dessa escola parecem não querer ficar perto de você… Alguém espalhou um boato de que sua família só veio para o interior porque você não foi aceita em Londres.
Minha visão ficou turva por alguns segundos.
— Como é?
A menina continuou:
— Algo sobre você ter problemas sociais, pegar coisas que não são suas… que ninguém deve confiar na sua índole.
Aos poucos meu mundo pareceu se destruir em mil pedacinhos diferentes. Mal tinha chegado na vila e já tinha a pior reputação possível, mesmo que nada fosse verdade. Se alguém estava com vontade de me deixar mal por ali, estava fazendo um ótimo trabalho.
Tudo que eu pude fazer foi levantar o rosto e deixar transparecer o mínimo de tristeza em minhas feições.
— Tudo bem, obrigada pelo aviso.
A expressão da ruiva pareceu amolecer por alguns segundos.
— Eu realmente sinto muito.
— Vocês querem que eu saia do grupo de Línguas?
O super alto, Hayden, pulou de sua cadeira.
— Claro que não!
Bronwen fez um gesto para que ele se acalmasse.
— Não, . Nós não somos como os hipócritas dessa escola — e suspirou novamente. — Vamos ficar de olho em você, mas todo mundo é inocente até que se prove o contrário.
Saí da sala do grupo meio sem chão. Eu ainda queria bancar a garota que não se importava com nada do interior, mas ficava mais difícil a cada dia que se passava. Eu não tinha amigos e não tinha perspectiva de melhora nisso.
Parei no grande pátio central, vendo alguns alunos andarem por ali. O sinal principal tocou, fazendo com que em poucos segundos o espaço se enchesse de todo o tipo de estudantes. O grupo dos nerds, das patricinhas, dos roqueiros (mesmo de roupa cinza), dos artistas, dos renegados e dos esportistas.
E eu não conseguia me encaixar em nenhum deles.
Tudo provavelmente por causa de um boato inventado por sabe-se lá quem.
Doía pensar que minha exclusão em uma vila de quatro mil habitantes se dava por causa de pessoas de baixa índole, que se davam o trabalho de me atingir sem ao menos me conhecer.
Em poucos dias eu tinha aprendido várias lições diferentes com o interior. As pessoas se afetam na hora com falta de educação (como “bom dia” e “como vai a família?”); todo mundo se cumprimentava, independente de já terem se visto vinte vezes durante o mesmo dia; todo mundo sorria demais, mesmo que parecesse quebrado por dentro; as coisas eram perfeitas e tudo tinha o seu lugar (menos algo vindo da cidade grande).
E a principal, que eu iria guardar para sempre: o interior também podia ser mau.
Ao chegar em casa senti como se a máscara da indiferença tivesse caído rapidamente de meu rosto, dando passagem para as lágrimas que eu segurava desde a provocação ridícula que tinha recebido de Zara.
“Talvez aqui não tenha espaço para você, ”.
Aquilo fazia mais sentido a cada dia que eu vivia na vila, pelos olhares, acontecimentos recentes e falta de conexão com qualquer coisa daquele lugar.
Em todas as mudanças o meu período de adaptação tinha sido difícil, mas nada se comparava ao que eu estava passando em Bourton-on-the-Water. O sentimento de vazio era tanto que eu me permitia chorar abertamente por toda aquela confusão e injustiça social que estava passando.
Ouvi a porta do quarto sendo aberta e mal esperei que alguém falasse primeiro.
— Eu quero ir embora.
Mamãe parecia realmente surpresa, ainda com a mão na maçaneta da porta entreaberta. Eu reclamava, ficava de birra e implicava com tudo quando a gente se mudava, mas nunca chorava. Nunca.
Chorar era difícil para mim e me fazia sentir mais fraca do que o normal.
— , o que aconteceu?
Estar em prantos era novidade até para mim e enquanto minhas lágrimas caiam pelas bochechas, minha mãe ia ficando cada vez mais assustada.
— Não importa o que aconteceu, mãe! Eu quero ir embora desse lugar agora.
— Você pode conversar comigo. Alguém implicou com você na escola?
Tive que franzir o cenho para aquela pergunta, já que eu nunca tinha passado por problemas em nenhuma das escolas.
Sequei o rosto com as palmas das mãos, em derrota.
— Não importa, mãe. Podemos seguir um pedido meu pela primeira vez, por favor?
Minha mãe se recompôs, provavelmente evitando a possível briga que teríamos ao entrar naquele assunto. Eu sempre seguia os dois pelas mudanças mais loucas em todo canto do mundo. Em treze mudanças essa era a primeira vez que eu pedia para ir embora.
O semblante de mamãe mudou por completo.
— Vou conversar com o seu pai. Mudar de vila, talvez?
Meus problemas não iam acabar apenas mudando de vila, já que a The Cotswold School recebia alunos de todo o distrito. Nada ia mudar em minha vida.
O meu pedido poderia parecer um pouco demais, mas eu precisava de um forte motivo para fazê-lo e a implicância de Bourton-on-the-Water comigo era mais do que o suficiente.
— Não. Londres.
— Conseguiu achar o seu celular?
Aquele assunto me deixava com dor de estômago. A questão era que, nos últimos dias, meu celular tinha simplesmente desaparecido. O irônico era que eu tinha o chip em mãos (finalmente e vindo de Londres, por papai), mas nada de achar o celular. Eu já havia procurado meu aparelho pela casa inteira, já tinha deixado um aviso no quadro arrumadíssimo dos “Achados e Perdidos” da escola e até mesmo feito a exata rota do dia em que o perdi. E com a falta de sucesso em tudo isso, só me restava uma opção: o mercado decadente da região.
Meu corpo lutava desde a semana passada para não ir até lá, mas eu sabia que, se o garoto do mercado tivesse visto meu celular, ele ainda estaria lá, intacto.
E sem mensagens, sem uso, sem internet. Sem vida social.
Suspirei alto.
— Ainda não. Mas acho que descobri onde possa estar.
Meu pai deu uma pequena risada.
— Como você conseguiu perder algo em uma vila de quatro mil habitantes?
Eu ainda não sabia como conseguia fazer muitas coisas naquela vila de quatro mil habitantes (como, por exemplo, sobreviver), mas não queria chatear papai. O meu mau humor diário já fazia isso por si só.
— Com certeza quem achou, guardou. Então tenho um problema a menos.
Ele ponderou com os olhos enquanto se levantava em direção ao escritório. O telefone fixo gritava por todos os cantos da casa.
— Espero que resolva o seu problema com as mil caixas no andar de cima também. Não se esqueça que vamos ter visitas amanhã.
Esperei papai sair da sala para bufar alto. Aquilo era uma tarefa que eu tentava evitar também, como a busca pelo meu celular inútil. A questão era que eu não tinha aberto uma caixa sequer da mudança e elas transbordavam do meu quarto para o corredor do segundo andar. No fundo minha mãe ficava louca com aquela falta de organização proposital, mas eu via que ela tentava não descontar mais frustração em mim.
Eu já era a frustração em pessoa.
Subi as escadas em segundos, encarando aquela quantidade de caixas de papelão marrom ridiculamente empilhadas uma em cima da outra. Seria trabalho para todo o final de semana.
Abri as caixas devagar, uma por uma. Já tinha aceitado que meu sábado seria todo perdido naquela tarefa. Depois de horas me vi sentada no meio do quarto com todo aquele caos à minha volta. Muitas caixas de roupas e casacos pesados, objetos pessoais, livros e tudo o que foi possível trazer na mudança Paris-Cotswolds. Mas uma específica tirava a minha paciência e eu relutava para não abri-la.
A caixa das recordações.
Quando você se muda com frequência é normal que suas recordações sejam guardadas além de um diário bobo e cafona. Eu costumava não só escrever sobre as coisas que via e vivia, mas também tentava guardar objetos, entradas de museus, ingressos de shows, cartas e muitas, muitas fotos.
Isso me fez pensar se eu teria alguma foto de lembrança em Bourton-on-the-Water.
Provavelmente não.
Olhar aquela caixa no meio da bagunça só me fez suspirar. Era o momento de mexer na ferida. A mudança de Paris não tinha sido a pior, mas eu sabia que dentro daquilo acharia bem mais do que a França.
A caixa, já surrada pelo tempo de uso, fazia com que uma sensação de nostalgia transbordassem pelo meu corpo e mente. Eu amava relembrar coisas boas, mas, depois que a sensação de conforto da lembrança ia embora, só restava a tristeza mesmo. Tristeza de não conviver mais com aquelas pessoas, tristeza por não ter feito tudo o que eu gostaria no pouco tempo em que vivi naqueles lugares.
A cada foto que passava em minhas mãos meu coração apertava ainda mais. Em uma delas, a minha preferida, eu via minha grande amiga de Nova Iorque, Bree e meu ex-namorado (também nova iorquino), Logan. Nós três fazíamos caretas diferentes, no auge de nossos trezes anos. Crescer e viver na cidade grande abria a minha mente para muitas coisas, mas eu ainda sentia (mesmo depois de passar um tempo considerável em algumas das maiores cidades do mundo) falta de alguma coisa. Nem Nova Iorque me fazia sentir completa.
Em meio a um bolo de fotos antigas, um pequeno papel chamava a minha atenção. Doía por eu já saber de quem seria, mesmo sem conseguir lembrar exatamente sobre o que era aquela cartinha. Por mais doloroso que fosse, suas palavras doces e inocentes ainda me acalmavam. Mesmo quando ele estava do outro lado do oceano.
“,
Hoje descobri que sem você na escola tudo fica realmente sem graça. Não ri de mim. É a verdade. Não vejo a hora do nosso cinema de sexta-feira. Você pode escolher qualquer filme de menininha que quiser, desde que eu possa te abraçar o tempo inteiro.
Com amor,
Logan.”
Com aquela nostalgia à flor da pele, resolvi que era a hora certa de ensaiar uma carta para minha amiga Bree. Provavelmente ela estaria tranquila esperando notícias do fim do mundo, mas despedaçava o meu coração a nossa falta de comunicação. Ela era a única pessoa que eu confiava minha amizade e isso era triste de várias formas.
Peguei uma folha em branco de um dos cadernos jogados naquela bagunça. Já que eu estava no interior, escreveria a punho e depois, com internet, mandaria por e-mail para ela. Eu tentava pensar em tudo o que sentia e como colocar aquilo em palavras. Palavras que não soassem deprimidas ou ingratas, como eu sempre tentava fazer no início de alguma mudança. Já era complicado demais para mim, imagine fazer os outros ouvirem suas lamentações do outro lado do oceano.
Segurei a caneta na mão esquerda, dando início a um dos mil e-mails que viriam durante o ano. Eu sentia falta de comunicação, sentia falta de um diálogo com alguém que já soubesse coisas sobre mim e, principalmente, sentia falta de sentir algo verdadeiro sobre as pessoas.
Bourton-on-the-Water ainda soava irreal e surreal para mim.
“Bree,
Você acaba de receber a sua primeira mensagem direto do fim do mundo. Parabéns! Já sabendo como meu humor deve estar (bem ruim, só para te confirmar) vou tentar te contar de forma simples tudo o que tenho vivido no interior da Inglaterra. A palavra mais recorrente em minha cabeça é: frustração. Não por estar longe de vocês e do meu irmão, mas sim por estar em um lugar em que eu não acho real. Em breve vou te enviar umas fotos bem sinistras daqui para que você possa entender 1% da história. Bourton-on-the-Water, a mini vila de quatro mil habitantes que meus pais resolveram abraçar, é ridícula. A atração daqui é um rio que corta toda a extensão da vila, com pontes ainda mais ridículas de pedra para atravessar. Não tem cachorros para adotar e também não existem lojas de roupas na moda. Aqui tudo é cinza e desbotado, o que não combina com a paisagem verde e colorida. Não dá para entender.
Ah! Eles possuem aqui uma mini vila, como uma maquete gigante, da própria vila. Como se aqui não fosse pequeno o suficiente, eles fazem uma versão reduzida para turistas.
Deixando o sentimento ranzinza de lado, sinto sua falta. Sinto falta de nossas conversas, das suas grosserias e das nossas ligações de madrugada. Assim que as coisas se normalizarem por aqui nossa rotina deve se ajustar também. Ainda estou com dificuldades da internet, celular e pessoas, claro.
Espero que esteja tudo bem em Nova Iorque.
Sinto como se nunca tivesse saído daí.
Mil beijos direto da Veneza da Inglaterra.
Sua amiga, .”
O final de semana já parecia infinito pela arrumação do meu novo quarto e, para completar, meus pais decidiram que teríamos visita no domingo à tarde. E quando eles dizem “visita” eu sempre esperava metade da região para uma grande festa de boas vindas aos vizinhos.
Era sempre assim.
Dentre as muitas lições do interior, uma delas era “seja um bom vizinho”. Eu não sabia quem tinha falado isso para meus pais, mas também não estava interessada em descobrir muito mais sobre ser um caipira.
Parecia que metade da vila estava em nosso imenso quintal verdinho e sem cercas. Meu pai fazia hambúrgueres na grelha recém comprada (não sei onde e nem quando) enquanto mamãe verificava se todos os convidados tinham bebidas geladas em suas mãos. Os copos que ela distribuía eram grandes e tinham pequenos canudos branco e vermelho, deixando tudo o mais clichê possível.
A grande desculpa da festa improvisada era conhecer os vizinhos e, quem sabe, fazer novas amizades. Esse segundo destaque servia mais para mim, já que não tinha tido muito sucesso na The Cotswold School nos primeiros dias.
Meu pai me puxou para perto de uma família arrumadinha demais.
— , esses aqui são os Hunt.
Cumprimentei um a um. A mãe tinha os cabelos mais loiros da região, presos em um rabo de cavalo baixo sem um fio solto. Seu sorriso parecia sincero. O pai, com os cabelos um pouco mais escuros, mas ainda loiros, era alto e tinha uma barba esquisita (talvez por ser branco demais e ainda loiro). Ao seu lado, aparentemente, os dois filhos. Um mais baixo com óculos de grau enormes, que me cumprimentou sem graça. O maior, talvez um pouco mais velho do que eu, acenou com a cabeça. Provavelmente estavam lá obrigados, como todos os outros filhos presentes.
Quando o menino mais velho olhou para o lado, eu tive um estalo. Era o mesmo garoto que tinha chegado no mercado decadente e saído com o menino do mercado decadente.
Realmente estávamos em uma vila bem pequena.
Ele me olhou engraçado, seus olhos claros quase fechados com a claridade momentânea de Cotswold.
— Acho que já te vi por aí. Seja bem-vinda a Cotswold.
O mais baixinho olhava para os pés.
– É, bem-vinda a Cotswold.
O pouco que ouvi da conversa dos pais, tinha descoberto que a família Hunt era uma das produtoras da região. Fazia total sentido que papai convidasse quem fosse influente, para conhecê-los e também para que ficasse sabendo de tudo o que acontecesse por ali. Ele tinha essa facilidade de adentrar os meios sociais mais altos. E em Bourton-on-the-Water com certeza não seria diferente.
Me distanciei daquele papo de produção de feno e cabras caipiras, andando novamente pelo enorme quintal abarrotado de pessoas. Olhava para todos com um sorriso no rosto, como já tinha aprendido quando mais nova. Aquele teatro realmente não era um problema para mim. Eu e Arthur, meu irmão mais velho, sempre acompanhamos nossos pais nas festas da alta sociedade onde todos sorriem demais sem necessidade alguma.
E no meio daquelas pessoas irreconhecíveis eu o vi novamente.
O garoto rebelde da jaqueta de couro.
Seu sorriso era maravilhoso enquanto contava alguma coisa para um menino da mesma idade que ele. Suas roupas eram diferentes de qualquer um da região, principalmente pela jaqueta que gritava “cidade grande”.
Me aproximei dos dois, ainda admirando a beleza do garoto rebelde.
— Vejo que meu pai convidou todo o distrito.
O menino, ao perceber minha aproximação, sorriu mais ainda. Seus olhos azul-escuros brilhavam no pouco sol que fazia.
— Vim representar Stow-on-the-Wold. Como você está?
— Bem, obrigada — olhei para o amigo dele. — .
O garoto respondeu algo que eu não compreendi, visto que o rebelde encostou em meu braço esquerdo.
— E eu sou Kyle.
O olhei surpresa. Não tinha reparado que ainda não sabia o nome dele.
— Então, Stow-on-the-Wold?
Kyle continuou com o sorriso lindo.
— Fica a alguns minutos daqui. Você provavelmente não vai querer conhecer, mas, se quiser, conta comigo.
— Tem mais de quatro mil habitantes?
Ele riu com o nariz.
— Eu estudo em Bourton-on-the-Water, o que você acha?
Franzi o cenho pela surpresa. Se Bourton fosse a maior vila de Cotswold eu estava realmente mal. Precisava arrumar um plano para irmos para Londres o quanto antes.
No meio tempo que falamos sobre besteiras, o tal amigo de Kyle sumiu. E eu não me importava com aquilo, já que estava mais interessada em saber sobre a vida do rebelde.
— Já se adaptaram por aqui?
Neguei com gestos.
— Se você vir quantas caixas tem dentro do meu quarto, ficaria horrorizado.
Eu não tinha acabado com as caixas, mas pelo menos tinha respeitado a regra de não termos bagunça nas áreas comuns da casa. Tudo bem, por mim, meu quarto permanecer uma zona.
Ainda era um protesto silencioso contra o interior.
Ele olhou para algumas pessoas que conversavam animadamente ao nosso lado, logo me olhando de soslaio.
— Seria um ótimo lugar para se conhecer.
Meu corpo se aqueceu por um momento. O que seria ótimo mesmo é ter alguém interessado em mim, tanto em amizade quanto para qualquer relacionamento. Tinha anos que eu não me relacionava mais sério com alguém, depois de Logan, em Nova Iorque. Na França os poucos casos eram passageiros, ninguém que me despertasse alguma coisa a mais. E, por não ter uma situação “encerrada” com Logan, tudo parecia mais do mesmo.
Ninguém parecia à altura do que eu já tinha vivido antes.
Resolvi ignorar o comentário de Kyle. Mesmo com o plano de fazer o rebelde se interessar por mim, eu ainda queria a oportunidade de ter alguém para conversar antes de estragar tudo com um relacionamento vazio e sem futuro.
— Nós estamos em algumas aulas juntos, não é?
E então ele riu. De mim, comigo. Tanto faz, mas só riu. Depois balançou a cabeça em negação.
— , você não precisa ativar o seu modo do interior comigo — aquilo fez meu corpo arrepiar. — Eu não quero saber sobre as aulas naquela escola perfeitinha.
— Do que quer saber então?
Kyle deu de ombros, encostando em uma cadeira livre.
— Quero saber sobre você. O que uma garota como você — e me olhou apertando os olhos azul-escuros — veio fazer no século passado?
Seu olhar me intrigava.
— É uma longa história.
Ele olhou em volta, me incentivando a falar.
— É uma boa fuga disso tudo aqui.
Contei ao menino o básico da minha vida: muitas mudanças, meu pai doido pelo interior e a minha clara preferência pela cidade grande. Kyle ouviu tudo com atenção, como se tentasse gravar cada palavra que saísse da minha boca. Sua atenção exagerada me deixava feliz, mas também desconfiada.
Desconfiada se ele queria ser meu amigo ou simplesmente me agarrar por alguns dias. O jogo era meu.
Sua atenção foi tomada de mim quando um senhor mais velho o puxou para falar com outros senhores mais velhos ainda. O menino me deu uma piscadela com o olho direito ao se afastar.
— Eu ainda quero saber de tudo, .
Ao me ver sozinha, olhei novamente em volta. As pessoas comiam os hambúrgueres de papai, que ainda tagarelava sem parar com todos. A entrada do quintal da casa tinha algumas bandeiras esquisitas, que provavelmente eram de referência ao distrito de Cotswolds ou ao condado de Gloucestershire.
E, como a vila toda estava por lá, Zara não seria diferente. Ela estava acompanhada de duas pessoas, provavelmente seu pai e sua mãe. Os cabelos loiros brilhavam mais fora da escola e aquilo me irritava um pouco. Mesmo não a conhecendo, algo dentro de mim dizia que eu precisava ficar longe daquela menina. Eu com certeza não era uma garota problema, mas não queria dar sorte ao azar. No interior a minha realidade podia se inverter e, por pouca sorte, a garota perfeitinha da região cismar com a minha cara.
Eu realmente não precisava disso.
Papai pediu a atenção de todos, me chamando para se juntar a ele e mamãe. Andei até os dois, enquanto o mais velho já começava um de seus longos discursos. Além de sabe-tudo, meu pai tinha uma ótima aptidão para palestrar desnecessariamente. Como o pessoal da região ainda não o conhecia, pareciam animados. Eu daria um mês para que eles já não perguntassem mais nada diretamente a ele.
— Queridos recém amigos! — papai falou alto e vi muitos sorrisos de volta. — Em nome de nossa família gostaria de agradecer a ótima recepção aqui na vila de Bourton-on-the-Water! Tem poucos dias que chegamos para morar nessa casa incrível e, mesmo com vários empecilhos, escola nova depois do início das aulas… — nessa parte ele olhou para mim de um jeito carinhoso, e mesmo constrangida eu não pude deixar de retribuir. — Falta de internet… — boa parte do seu público riu. — Já temos a certeza de que será um período maravilhoso compartilhar esse local com todos vocês. Muito obrigado e vamos comer hambúrgueres!
O olhando falar percebi que o mesmo vestia um avental branco com os dizeres “I LOVE BOURTON”, provavelmente comprado no mercado da grosseria em pessoa. E aquilo fez uma ponta de coragem aparecer no meu corpo.
Estava na hora de buscar meu celular perdido.
Era uma ótima saída para fugir daqueles sorrisos brancos demais, do interesse repentino na cidade grande e, principalmente, de enfrentar a Zara. Não queria ser amiga dela e nem de qualquer grupo que ela pertencesse. Eu tinha que encontrar meu próprio lugar e espaço em Bourton-on-the-Water. Questão de honra à cidade grande.
Esperei a palestra de papai terminar para conseguir sair da visão das pessoas e fugir até o mercado decadente. Para que não dessem meu sumiço, apenas indiquei aos dois que iria verificar se ainda tínhamos gelo o suficiente para não fazer feio com o pessoal do interior. Aquela desculpa horrível pareceu o suficiente para minha mãe, visto seu enorme sorriso no rosto. Provavelmente ela tinha achado que eu finalmente iria abraçar o interior.
Talvez nunca, mãe.
Como já era esperado por mim, o restante da vila parecia deserto. Meus pais realmente já tinham começado a missão “boa vizinhança”. A margem do Rio Windrush só contava com as folhas caídas das árvores próximas e as pontes de pedras por sua extensão não agrupavam uma sequer alma. Pelo caminho, todo meu corpo relutava em dar meia volta, mas eu precisava fazer aquilo. Eu estava evitando ao máximo pisar naquele lugar, já que tinha aceitado a falta de carisma minha com aquele menino. Não precisava e nem queria me esforçar para melhorar aquilo.
Eu torcia para que ele não estivesse por lá também, mas como não tinha o visto em nossa casa achava difícil ter tirado o dia de folga. O que ele faria em um final de semana naquela região sem nenhum atrativo?
Assim que coloquei meus pés no recinto seus olhos caíram sobre mim. A sua expressão (antes feliz) ficou sem uma reação.
O garoto parecia organizar uma das várias prateleiras altas do mercado. Uma variedade irritante de produtos se espalhava por elas.
— Ah, a menina do cachorro — ele desceu da pequena escada lentamente, fazendo pouco caso da minha presença ou necessidade de ajuda. — Veio fazer mais grosserias?
Não pude me conter em revirar os olhos.
— Você fala como se fosse a pessoa mais gentil e educada do mundo.
— Eu me esforço de vez em quando.
Antes que eu pudesse me controlar, as palavras saltaram de minha boca:
— Se esforce mais.
Ele nem sequer revirou os olhos, provavelmente já cansado da discussão sem motivo que teríamos a seguir.
— O que você quer?
O ideal seria ir direto ao ponto ou nos mataríamos antes de eu conseguir o meu celular de volta. Eu ainda precisava de internet e linha telefônica para sobreviver aos quatro mil caipiras.
— Acho que deixei meu celular por aqui na última vez que vim.
O garoto me olhou estranho, mas então andou até o balcão, se abaixando para pegar algo. Ele veio até mim, jogando o aparelho em minhas mãos.
— Sorte sua que eu guardo qualquer porcaria que esquecem por aqui.
Bom, tudo bem se ele começar, não é?
— Normal você achar que é porcaria, talvez não saiba diferenciar as coisas.
Ele me olhou novamente sem emoção.
— Acha que eu não conheço coisas de marca? — nem fiz questão de responder. — Você agora deve estar se perguntando se eu sei o que é internet, não é?
Dei de ombros.
— Você que está dizendo isso.
Ele deu um sorrisinho, tirando algo do bolso. Era um iPhone de última geração. Nem eu tinha aquele modelo mais recente.
— Aqui é uma cidade pequena, não uma roça. Posso voltar pro meu trabalho sem ser perturbado agora?
O menino deu de ombros pela minha falta de resposta. Minha cabeça girava. Como começamos a discutir mesmo?
— Ei, não acabei!
Mais uma vez eu tinha falado demais.
Ele deu meia volta no mesmo momento.
— O que você quer mais? Já te entreguei o celular.
Eu não sabia o que dizer, mas não podia deixar que ele fosse embora assim, de novo. Queria entender o que estava acontecendo e porque meu inconsciente fazia com que eu simplesmente atacasse aquela pessoa, sem motivo algum.
Queria entender também o porquê de ele não estar comendo hambúrgueres e tomando bebidas geladas demais em nosso quintal. Será que ele não tinha ido por minha causa?
Balancei a cabeça devido a toda aquela confusão gritando em minha mente. Então disse a primeira bosta que veio em minha cabeça.
— Quero saber onde compro coisas para cachorro por aqui.
Ele olhou em volta do mercado, depois para o próprio corpo, como se procurasse por algo. Logo seus olhos azul-claros estavam me encarando novamente. Azul como o mar. Mas sua expressão não combinava com a delicadeza daquela cor, era de puro cinismo.
— Isso aqui é um mercado. Só eu vejo isso? — não tive nem tempo de me pronunciar antes da próxima grosseira: — Não um ponto gratuito de informações.
Eu não conseguia ser forte como ele. Meus olhos reviraram no mesmo momento.
— Deve ser pela sua simpatia que os negócios não vão bem.
Eu não sabia o que acontecia comigo. Só sabia que precisava brigar com aquele desconhecido. A minha última frase pareceu ter efeito, finalmente.
— Se eu tivesse coisas de cachorro aqui, te dava de graça só para não vir mais.
E então eu fiz uma coisa que nunca me permiti. Fiquei boquiaberta.
— Como é que é?
Eu sabia, lá no fundo, que não tinha direito algum de ficar ofendida com as grosserias, pois eram recíprocas. Mas eu fiquei. Era como se o interior inteiro me desse uma voadora desnecessária.
— Qual parte você não entendeu? — ele disse e simplesmente me deu as costas, indo mexer em algo no largo balcão. Minha boca permaneceu completamente aberta.
Aquilo foi o suficiente para meu surto momentâneo.
— Seu caipira, quem você pensa que é?
— Não. Quem você pensa que é? — ele repetiu a minha pergunta, dando bastante ênfase no “você”. — Chegou há poucos dias e só porque veio da cidade grande acha que todos aqui devem te tratar como rainha?
— Como é que é?
— Como pode ver: não espere isso de mim.
O que estava acontecendo comigo?
Eu não queria brigas e muito menos inimizades. Eu já não tinha amigos, imagina fazer inimigos com apenas alguns dias morando na cidade? Sem chances. Também não precisava soltar mais farpas e veneno com alguém como ele. Ele ainda era bonitinho demais para isso. Acho que, depois de tudo, eu só queria ficar ali, conversando com alguém sem precisar fingir aparências. Não importava no nível de desastre social que fosse.
Então eu me vi fazendo algo que eu não me permitia há anos. Admitir culpa. Talvez seja o ar puro demais de Cotswold.
— Tudo bem, eu sinto muito — ele me olhou rapidamente, como se não acreditasse nem um pouco no que acabara de ouvir. Nem eu mesma acreditava. Talvez seja mesmo a abstinência da poluição das cidades grandes. — Eu não quero brigar.
Ele fez um barulho com a boca que soou mais como um “tanto faz”.
— O que eu preciso dizer para você me tratar bem, como faz com todo mundo?
— Experimente chegar aqui soltando um “boa tarde” ou simplesmente um “por favor” antes de me pedir algo.
Ali estava mais uma das muitas lições que eu iria aprender em Bourton-on-the-Water. As pessoas do interior se cumprimentam o tempo todo, se conhecem e, como descobri naquela discussão, se ferem rapidamente com falta de educação básica.
Respirei fundo, controlando minha raiva.
— Tudo bem. Me desculpe — suas sobrancelhas se levantaram em surpresa. — Fui mal educada. Não é só porque odeio esse lugar e odeio morar aqui que tenho que descontar meu mau humor nas pessoas. Satisfeito?
O garoto ainda me olhava de lado.
— Não, mas já está bem melhor.
— Pode falar comigo sem brigar agora? — ele nem se deu o trabalho de me olhar novamente. Meus olhos reviraram pela quinta vez no dia. — Por favor.
E, com isso, o menino começou a simplesmente rir. De mim, comigo. Tanto faz.
— Você é realmente uma pessoa difícil, não é?
— Quer que eu repita o “por favor”?
Ele me encarava, cínico.
— Seria ótimo.
— Por favor.
— Deixa para a próxima – e deu as costas, indo para os fundos do mercado, me deixando completamente sozinha e com a maior cara de idiota de Cotswold.
O quê?
A única coisa que consegui fazer foi encarar a pequena porta que o menino entrou, incrédula. Sorte não ter mais ninguém dentro do mercado ou eu teria que ser mal educada com mais pessoas por aqui.
O menino dos olhos azuis apareceu novamente segurando algo em mãos, como se nada tivesse acontecido. Eu ainda olhava sem reação para tudo aquilo. Ele realmente iria me deixar ali falando sozinha?.
— Qual é o seu problema?
Ele me encarou como se não entendesse.
— O que foi?
— Eu disse “por favor” e você simplesmente me ignorou.
— Não é só porque você resolveu ser educada que eu tenho que obedecer algo.
E pela segunda vez no dia, em um curto espaço de tempo, aquele menino tinha me deixado boquiaberta.
— Quer saber? — ele me olhou de lado, fazendo pouco caso. — Eu não preciso da sua ajuda. E muito menos de qualquer coisa que venha dessa cidade caipira idiota.
Suas sobrancelhas se levantaram novamente.
— Boa tarde.
Aquilo fez com que a ira inundasse todo o meu corpo. Em cada pedaço do meu ser eu podia sentir uma vontade imensa de socá-lo até a morte. Mas a única coisa que pude fazer foi respirar fundo, revirar os olhos novamente e caminhar para a saída. Já não bastava morar em uma cidade onde bolos de feno podiam ser atrações especiais, imagina aturar provocações de um morador caipira.
Quando eu já estava colocando meu pé para fora, ouvi um assobio em minhas costas. Olhei em sua direção novamente, incrédula com seu ato.
— Você briga comigo duas vezes e nem me diz o seu nome? — e deu de ombros. — Como vou dizer para meus amigos que uma louca veio aqui discutir comigo de novo?
Sorri, cínica.
— Continua chamando de “garota do cachorro”.
Ele me olhou sério, sem cortar o contato visual.
— Por favor, fala.
E foi naquele momento que eu aprendi que algumas palavras são muito fáceis de serem usadas com diversos tipos de interpretações, principalmente se for para manipular um outro alguém. Ele podia ser muito bom ator ou o “por favor” dele transbordava sinceridade.
Aquilo me deixou sem ação. A única coisa que eu poderia fazer era ser uma pessoa melhor, já que pedir desculpas não pareceu muito convincente.
— .
Ele apertou os olhos e eu pude jurar que vi um sorriso no canto de seus lábios.
— Bom te conhecer, .
— E você? vai ficar como “garoto do mercado” ainda? Ou prefere “garoto mau do mercado”?
Ele riu.
— Isso seria bom, nunca me acharam muito rebelde por aqui.
— Imagino por quê.
— Na verdade, não imagina não.
— Se a sua grosseria fizer parte da sua personalidade, imagino sim.
— Você é a única pessoa nessa vila que está fazendo grosserias por aí.
— Vai dizer ou não?
E pela primeira vez eu vi um sorriso sincero em seu rosto. Então percebi que, além de ser uma briga infantil e sem contexto algum, ele estava gostando de me provocar daquele jeito.
— .
A segunda semana seria diferente.
Tinha passado a última noite do final de semana remodelando meus uniformes grandes e cafonas. Minha saia poderia estar um pouco curta demais, mas aquilo não fez com que eu chamasse atenção pelos grandes corredores da The Cotswold School. Ou eu continuava muito ruim para o padrão local ou tinha alguma coisa errada. Não parecia como nos filmes adolescentes, mas eu tinha meu celular de volta e poderia ignorar qualquer um.
Minha percepção dos primeiros dias naquela escola não tinham se alterado em nada. Os corredores continuavam brancos demais e os alunos, perfeitos. Por já ter escolhido me integrar em alguns grupos de atividades extracurriculares, talvez fosse mais fácil focar nas pessoas que participavam deles, e não nas centenas de estudantes esquisitos e penteados demais que passavam pelos mil blocos diferentes da The Cotswold School.
Seria menos um esforço para mim.
Uma coisa que ainda não tinha feito era correr atrás da chave do meu armário, que começaria a fazer falta nessa semana, visto a lista enorme de materiais que tinha recebido na prancheta perfeitinha de minha orientadora escolar, Zara. Então a primeira coisa que fiz naquela segunda-feira de manhã foi organizar a minha vida.
Isso iria me distrair da saia curta demais e dos poucos olhares que recebia.
Eu sinceramente não queria ser a atração da escola dos adoradores de feno, mas precisava confessar que aquela falta de interesse na garota nova me deixava com a auto estima em um nível que eu nunca havia presenciado antes. Não era uma garota cheia de si ou que se achava a rainha do local, longe de tudo isso, mas eu entendia que possuía o meu charme quando tinha vontade.
E se um uniforme curtinho não fez isso, não sabia o que tinha de errado. Se era eu ou a região mesmo. Com qualquer uma das opções eu ficaria feliz, afinal, eu não combinava com Cotswolds, certo?
Certo.
Assim que fechei a porta branca do meu armário, percebi que tinha uma pessoa encostada próxima ao mesmo. Uma garota de cabelos caramelo meio cacheados me observava com atenção, como se esperasse que meu ritual matinal com o armário se acabasse logo.
Virei a sua direção, mantendo o contato visual que ela mesma estabelecia. Isso fez com que a tal garota desse um passo para frente, esticando sua pequena mão a mim.
— Oi, me chamo Alene.
Realmente, simpatia era uma coisa que eu tinha que me acostumar muito rapidamente no interior. Ou então eu não sobreviveria.
— .
— Eu sei — ela deu de ombros, fazendo um gesto para que eu a acompanhasse pelo corredor. Sem muito saber o que fazer, acompanhei a menina. — Em que ano está? Último?
Olhei com o canto dos olhos para Alene, que parecia andar tranquilamente.
— Isso. Você é algum tipo de orientadora?
Eu odiaria ter outra garota bonitinha demais vomitando regras da escola para mim.
A menina dos pequenos cachos riu. E eu podia jurar que era de mim, não comigo.
— Imagina! Apenas gosto de conhecer as pessoas novas na escola. Tudo bem para você? — ela pareceu pensar. — Não que a gente receba muitas pessoas novas por aqui.
A única coisa que pude fazer foi dar de ombros. Alene começou a tagarelar algo sobre as pessoas que passavam, mas eu não dava muita atenção às suas falas. O que mais me chamava atenção era o fato de todos ficarem nos observando. Senti o mesmo desconforto quando estava com Zara por esses mesmos corredores. Provavelmente ela era uma das populares patricinhas do local e, por estar ao seu lado no momento, recebia os olhares maldosos da manhã.
Eu não sabia se ficava feliz ou triste por isso.
— Foi bom te conhecer, até depois! — ela deu um pequeno aceno, enquanto se distanciava calmamente.
Continuei sem entender nada sobre aquela aproximação repentina de Alene. Não tinha reconhecido a garota de nenhuma das aulas em que fiquei acordada na última semana e provavelmente também não a tinha visto pelos grandes corredores da escola. Mas se a menina queria apenas conhecer a garota nova da cidade grande, então eu aceitaria aquilo.
Depois do nosso primeiro final de semana no interior, e depois de ficar muito puta da vida com tudo, eu me sentia anestesiada. Ainda queria reclamar (e muito), mas tinha decidido que não gastaria toda a minha energia com isso. Se eu tinha que viver um ano de interior — ou menos, caso papai surtasse em breve, eu viveria com indiferença.
Tinha aprendido que o que a gente não sente, não guarda. E eu faria o interior ser uma página em branco em minha vida.
Antes que eu pudesse seguir novamente meu caminho, a menina deu meia volta. Seus cachinhos fizeram um movimento engraçado, como se ela estivesse em um comercial cafona de xampu.
— Ah! Esqueci de uma coisa! — procurei continuar na mesma posição, esperando outra reação da garota. — Você está oficialmente convocada para a seleção do time de futebol feminino. Pela própria líder do grupo.
Reprimi uma forte careta. Eu queria perguntar quem tinha me inscrito naquilo ou se ela estava me confundindo com alguém de Cotswold, mesmo que tivesse acabado de me conhecer. Mas caso a resposta fosse positiva eu ficaria extremamente arrasada. Eu realmente preferia guardar o que a grosseria em pessoa dona do mercado havia dito para mim.
Eu não combinava com Cotswolds.
Eu definitivamente não combinava com Cotswolds.
Procurei então dar de ombros, já que não conhecia ninguém do time e nem faria questão. A primeira bola que eu chutasse eles já me colocariam para fora do ginásio, sem ao menos completar o teste de equipe.
Durante toda a semana eu corria de aula em aula e mantive meu compromisso com os grupos que tinha me inscrito quando cheguei. A diversão da semana foi quando as garotas de Culinária Doméstica descobriram que eu era um terror na cozinha.
1 , 0 Cotswolds.
A atividade mais esperada por mim era o grupo engraçado de Línguas, já que eu imaginava que nada poderia ser mais bizarro do que debater a paz mundial com alunos que sempre moraram na roça. Era terrível confessar, mas estava animada com a possibilidade de ter com quem conversar dentro daquela escola, mesmo que em outro idioma.
Andando de uma sala para outra, fui surpreendida em um dos blocos próximo ao grupo de Línguas.
— !
Parei no corredor ao mesmo tempo que ouvi meu nome. Ao me virar dei de cara com Zara, que sorria abertamente. Talvez se falasse o nome dela várias vezes ela aparecia perto, como uma assombração pronta para entregar papéis e seus próximos horários naquele lugar grande demais.
— Vejo que conseguiu ajeitar um pouco os uniformes.
Acompanhei seu olhar, que media meu corpo por inteiro, logo parando em minhas pernas um pouco descobertas demais.
— Fiz o possível para melhorar isso.
Zara pareceu concordar, mesmo fazendo uma leve careta.
— Entendo. Como estão os primeiros dias por aqui?
— Normais.
Ela sorriu um pouco mais.
— Ainda sem amigos? — aquilo foi como um tapa na cara. — Eu li a sua ficha, sei que você tem dificuldade de se encaixar nos lugares. Tem certeza que não precisa de ajuda da psicóloga?
Minha vontade era jogar a primeira coisa na cabeça loura da princesa do feno.
— Não, obrigada. Estou bem.
A menina deu de ombros, me olhando de um jeito que, depois, julguei como sacana.
— Talvez aqui não tenha espaço para você, .
Aquela provocação descarada, as paredes brancas demais, o corredor com muita luz e muitas pessoas lindas sorrindo o tempo todo só comprovaram uma teoria: eu realmente estava em um filme ruim de adolescente.
Mal tive como responder Zara, que saiu andando como se tivesse me falado a maior gentileza do mundo.
Adentrei a sala de Literatura Inglesa ainda com as pernas bambas. Estava acostumada a pessoas maldosas na cidade grande e também ao conceito de má educação, mas nunca tinha sentido tão diretamente. As histórias de implicância com alunos e tudo mais passavam por mim e por meu grupo de colegas como se o assunto nem existisse, mesmo que estivesse acontecendo sempre a nossa volta.
Nunca tinha sido o alvo daquilo.
A menina que tinha falado comigo na semana passada, Mila, também parecia pouco interessada em minha pessoa. Sentei ao seu lado e tudo o que consegui foi um sorriso e um “bom dia” educado. Provavelmente eu tinha a chateado pela minha falta de educação.
E aquilo era bem triste, de verdade.
Minhas pernas ainda estavam fora de controle e meu coração batia um pouco mais rápido que o normal, mas eu tentava respirar fundo para entender o motivo daquele ataque sem necessidade de Zara. Assim que o professor de Literatura Inglesa começou a falar, minha mente foi embora junto com suas palavras chatas, tentando procurar se realmente havia um motivo para tudo aquilo estar acontecendo ou se eu poderia simplesmente estar em um pesadelo muito, muito ruim.
Minha segunda semana, que tinha tudo para ser um pouco melhor, foi mais do mesmo. Falando com pessoas aleatórias, assistindo as mesmas aulas chatas e tentando ignorar a perfeição diária que eu não conseguia acompanhar nem em meu melhor dia com meu cabelo matinal.
A melhor parte dos meus dias na The Cotswold School era a hora do intervalo, onde eu podia dormir onde quisesse ou comer alguma das coisas saudáveis demais que se vendia na cafeteria central. Eles tinham outros lugares para comprar lanches, mas eu julgava o local do pátio principal como o menos saudável e isso me agradava bastante.
Sabe se lá porquê.
Após pegar o lanche que julguei como o menos pior, esbarrei com a menina do cabelo caramelo novamente. Alene. Ela fez questão de que eu sentasse com ela e seu grupo, e eu torcia para que não fosse ninguém do time de futebol feminino.
Eu realmente estava fora daquilo. Esporte e suor não combinavam comigo.
Andei lentamente até a mesa da minha suposta nova colega, tendo uma surpresa agradável logo de início. Kyle, o menino da jaqueta de couro preta, também estava lá. E seu sorriso parecia ainda mais bonito do que no churrasco cafona de papai.
Ele estava sentado de uma forma despojada e me cumprimentou com um aceno, como se fizesse pouco caso da minha presença em sua preciosa mesa do intervalo. Se ele ia jogar o jogo da indiferença eu sabia andar nas regras.
Alene se sentou ao seu lado, me puxando junto. Kyle deu um longo beijo em sua bochecha direita.
Se o rebelde da região tinha namorada isso seria realmente decepcionante.
A sua frente um menino moreno balançava seu copo cheio de gelo, fazendo um barulho estranho. Kyle tomou parte das apresentações.
— Já conhece Alene. Este é Leon — e apontou para o menino ao seu lado. Só depois percebi que era o mesmo que estava conversando com ele em nosso quintal, o mesmo que eu também não tinha prestado atenção no nome.
O tal Leon me olhava com interesse.
— Já ouvimos algumas coisas de você. Alene não perde tempo.
Eu queria me sentir ofendida, mas dei de ombros. O que for que tivessem ouvido de mim, provavelmente era fofoca bizarra da cidade grande. Não tinha o que esconder de nenhum dos países e cidades em que tinha saído, então pouco me importava.
— Não ouvi de vocês, mas não vamos fazer disso uma competição.
Não queria ser vista como a rebelde de Bourton-on-the-Water, mas aquele garoto em nossa mesa me dava um pouco de esperança para aquela vila. Não era arrogância, prepotência. Era por seu estilo despojado e moderno, o que já o distanciava gritantemente do resto do pessoal da The Cotswold School.
Alene chamou minha atenção, enquanto os dois meninos pareciam me medir.
— Já escolheu algum grupo da escola?
Franzi o cenho para aquela pergunta.
— De extracurriculares?
Todos riam na mesa, o que fez a menina continuar.
— Não, . Um grupo para ficar junto sempre, fazer amigos.
Qual era o problema das pessoas do interior e amizades? Cada um tinha o seu tempo e eu já percebia que o meu não seria respeitado por ali. Eu teria que ser obrigada a achar um grupo qualquer antes que todos iniciassem meu massacre social.
Decidi dar de ombros novamente.
— Acho que vou ser a garota que lancha com pessoas diferentes todos os dias.
Kyle me olhou de lado.
— Justo. Pode ficar aqui, se quiser.
— Caso eu enjoe da perfeição?
Ele passou a mão em sua jaqueta, provavelmente satisfeito por eu ter relacionado ele abertamente como um escape do interior.
— Por favor.
Escutar um “pode ficar aqui” passou despercebido de mim, pois eu ainda não considerava aquilo como uma realidade. As palavras maldosas de Zara ainda ecoavam em minha mente e, pelo menos por um tempo, seria difícil que eu não concordasse com ela.
Talvez eu realmente não fosse adaptável a Cotswolds.
E eu gostava daquilo.
Mas por que também doía tanto sentir a exclusão social de todos?
Nas demais aulas durante a semana tentei colocar o plano da ‘indiferença’ em jogo, mas não deixava passar uma pequena oportunidade de tentar conversar com alguém. Lá no fundo, bem no fundo mesmo, ainda tinha uma ponta de esperança que eu poderia encontrar alguém com o mínimo em comum.
Assim que adentrei a sala de Línguas todos pararam de falar. Não sabia qual era o debate esquisito da vez, mas de uma coisa eu tinha certeza: eu não estava atrasada.
Me aproximei de uma menina com cabelos escuros, que ainda não tinha gravado o nome.
— Começaram mais cedo hoje?
Algumas pessoas fofocavam em suas bancadas e aquilo me deu um desconforto instantâneo. Será que alguém tinha ouvido a provocação de Zara?
Ou simplesmente concordavam com ela…
A garota parecia impaciente.
— Desculpe, . Precisamos começar mais cedo hoje, não foi possível te avisar antes.
Ao ouvir aquelas palavras foi praticamente impossível conseguir esconder a decepção que eu sentia. Eu não gostava de joguinhos entre grupos e muito menos ser alvo de algo sem saber o por quê. Além do mau humor eu não havia feito nada de ruim para qualquer um caipira daquela vila.
— Não entendi, fiz algo que vocês não gostaram aqui no grupo?
O garoto alto demais, Hayden, me olhava triste. A menina ruiva com a maquiagem escura demais, Bronwen, não media muito as suas palavras.
— A escola é fofoqueira, , mas a maioria das coisas são verdades.
Aquilo fez o meu corpo gelar. Eu já tinha ouvido alguém da escola falar que tinha “ouvido coisas sobre mim” essa semana, e aquilo não podia ser nada bom.
— O que quer dizer com isso? — ela não mudou sua expressão cínica. — Eu realmente não estou entendendo o que eu tenho a ver com os boatos dessa escola.
A ruiva suspirou alto.
— , eu sinto muito, mas as pessoas dessa escola parecem não querer ficar perto de você… Alguém espalhou um boato de que sua família só veio para o interior porque você não foi aceita em Londres.
Minha visão ficou turva por alguns segundos.
— Como é?
A menina continuou:
— Algo sobre você ter problemas sociais, pegar coisas que não são suas… que ninguém deve confiar na sua índole.
Aos poucos meu mundo pareceu se destruir em mil pedacinhos diferentes. Mal tinha chegado na vila e já tinha a pior reputação possível, mesmo que nada fosse verdade. Se alguém estava com vontade de me deixar mal por ali, estava fazendo um ótimo trabalho.
Tudo que eu pude fazer foi levantar o rosto e deixar transparecer o mínimo de tristeza em minhas feições.
— Tudo bem, obrigada pelo aviso.
A expressão da ruiva pareceu amolecer por alguns segundos.
— Eu realmente sinto muito.
— Vocês querem que eu saia do grupo de Línguas?
O super alto, Hayden, pulou de sua cadeira.
— Claro que não!
Bronwen fez um gesto para que ele se acalmasse.
— Não, . Nós não somos como os hipócritas dessa escola — e suspirou novamente. — Vamos ficar de olho em você, mas todo mundo é inocente até que se prove o contrário.
Saí da sala do grupo meio sem chão. Eu ainda queria bancar a garota que não se importava com nada do interior, mas ficava mais difícil a cada dia que se passava. Eu não tinha amigos e não tinha perspectiva de melhora nisso.
Parei no grande pátio central, vendo alguns alunos andarem por ali. O sinal principal tocou, fazendo com que em poucos segundos o espaço se enchesse de todo o tipo de estudantes. O grupo dos nerds, das patricinhas, dos roqueiros (mesmo de roupa cinza), dos artistas, dos renegados e dos esportistas.
E eu não conseguia me encaixar em nenhum deles.
Tudo provavelmente por causa de um boato inventado por sabe-se lá quem.
Doía pensar que minha exclusão em uma vila de quatro mil habitantes se dava por causa de pessoas de baixa índole, que se davam o trabalho de me atingir sem ao menos me conhecer.
Em poucos dias eu tinha aprendido várias lições diferentes com o interior. As pessoas se afetam na hora com falta de educação (como “bom dia” e “como vai a família?”); todo mundo se cumprimentava, independente de já terem se visto vinte vezes durante o mesmo dia; todo mundo sorria demais, mesmo que parecesse quebrado por dentro; as coisas eram perfeitas e tudo tinha o seu lugar (menos algo vindo da cidade grande).
E a principal, que eu iria guardar para sempre: o interior também podia ser mau.
Ao chegar em casa senti como se a máscara da indiferença tivesse caído rapidamente de meu rosto, dando passagem para as lágrimas que eu segurava desde a provocação ridícula que tinha recebido de Zara.
“Talvez aqui não tenha espaço para você, ”.
Aquilo fazia mais sentido a cada dia que eu vivia na vila, pelos olhares, acontecimentos recentes e falta de conexão com qualquer coisa daquele lugar.
Em todas as mudanças o meu período de adaptação tinha sido difícil, mas nada se comparava ao que eu estava passando em Bourton-on-the-Water. O sentimento de vazio era tanto que eu me permitia chorar abertamente por toda aquela confusão e injustiça social que estava passando.
Ouvi a porta do quarto sendo aberta e mal esperei que alguém falasse primeiro.
— Eu quero ir embora.
Mamãe parecia realmente surpresa, ainda com a mão na maçaneta da porta entreaberta. Eu reclamava, ficava de birra e implicava com tudo quando a gente se mudava, mas nunca chorava. Nunca.
Chorar era difícil para mim e me fazia sentir mais fraca do que o normal.
— , o que aconteceu?
Estar em prantos era novidade até para mim e enquanto minhas lágrimas caiam pelas bochechas, minha mãe ia ficando cada vez mais assustada.
— Não importa o que aconteceu, mãe! Eu quero ir embora desse lugar agora.
— Você pode conversar comigo. Alguém implicou com você na escola?
Tive que franzir o cenho para aquela pergunta, já que eu nunca tinha passado por problemas em nenhuma das escolas.
Sequei o rosto com as palmas das mãos, em derrota.
— Não importa, mãe. Podemos seguir um pedido meu pela primeira vez, por favor?
Minha mãe se recompôs, provavelmente evitando a possível briga que teríamos ao entrar naquele assunto. Eu sempre seguia os dois pelas mudanças mais loucas em todo canto do mundo. Em treze mudanças essa era a primeira vez que eu pedia para ir embora.
O semblante de mamãe mudou por completo.
— Vou conversar com o seu pai. Mudar de vila, talvez?
Meus problemas não iam acabar apenas mudando de vila, já que a The Cotswold School recebia alunos de todo o distrito. Nada ia mudar em minha vida.
O meu pedido poderia parecer um pouco demais, mas eu precisava de um forte motivo para fazê-lo e a implicância de Bourton-on-the-Water comigo era mais do que o suficiente.
— Não. Londres.
Capítulo 4 - Amizades
“A amizade é, acima de tudo, certeza — é isso que distingue do amor.” (Marguerite Yourcenar)
Novamente aquele pátio lotado me intimidava.
Não esperava coisa diferente depois de toda a loucura que vivi nas últimas semanas dentro da vila de Bourton-on-the-Water e da própria perfeição surreal da The Cotswold School. Eu tinha ido de rebelde da cidade grande à excluída social por, supostamente, roubar coisas, criar mentiras e, pelo que tinha chegado aos meus ouvidos naquela manhã: vender coisas ilícitas por aí.
Eu precisava entrar para o livro de recordes mundiais pelo volume de má reputação adquirida em tão pouco tempo, em um só lugar e com quatro mil habitantes.
Depois de tudo o que tinha descoberto, ser indiferente ficava cada dia mais difícil. Buscando a minha sala para a próxima aula eu via pessoas passando pelos corredores ridiculamente limpos demais, ainda sem prestar atenção na garota nova. Bom, a garota nova e cleptomaníaca, claro.
Abri meu armário brilhoso, limpo e lustrado demais, e encontrei um dos mil livros que precisaria para acompanhar aquela semana. Em um cantinho tinha deixado um adesivo motivacional cafona que meu pai sempre me entregava nos inícios de mudanças. Para Cotswold ele usou “O segredo da vida não é ter tudo o que você quer, mas amar tudo que você tem”. Respirei fundo olhando aquilo. Ainda conseguia ver com clareza a sua expressão quando minha mãe sentou nós dois na sala de estar e contou sobre a minha cena em prantos para que fossemos embora para Londres. Mesmo com o semblante abatido, ele tinha prometido.
— Londres?
— Qualquer lugar bem longe de Cotswold, pai.
— Vou fazer o possível para agilizar isso.
Aquela ponta de esperança era o que me fazia estar de pé dentro daquela escola esquisita. Eu teria que aguentar tudo e todos por pouco tempo, já que meu pai nunca deixava uma promessa passar.
Era uma das suas melhores qualidades.
Voltando a olhar para aquela multidão de cabelos arrumados demais às oito da manhã, eu não podia deixar de imaginar como poderia ser a minha nova vida em Londres. De volta para a cidade grande. Imaginava se as escolas seriam mais a minha cara e se as pessoas seriam mais simpáticas e menos perversas com quem acaba de chegar. Seriam as pessoas de Londres tão loucas quanto Nova Iorque? Ou tão fashionistas quanto Paris? Os pensamentos de estar novamente na cidade grande me deixavam nas nuvens. E esse sentimento de lembrança e saudade sempre me traziam boas recordações.
Já havia perdido a conta de quantos minutos estava ali, deitada em uma toalha felpuda na grama, apenas olhando as nuvens que passavam no céu. Até que um furacão em forma de pessoa senta ao meu lado, derrubando o lanche que eu tinha deixado semi acabado por ali.
Nem precisava olhar para saber quem era.
— Eu amo essa cidade!
Bree se jogou ao meu lado, me cutucando com o cotovelo esquerdo. Olhei em sua direção e seu sorriso estava mais largo do que sempre. Algo realmente bom devia ter acontecido.
— George finalmente reparou em você?
Ela me cutucou novamente, ainda sorrindo.
— Isso seria incrível, mas não — e revirou os olhos junto comigo. — Ele ainda vai se arrepender por isso.
Fiz apoio com meus cotovelos, olhando agora a grande movimentação do parque.
— O que de tão incrível aconteceu então?
Minha amiga me olhou de lado.
— A escola é incrível, tenho amigos incríveis, minha bolsa nova da Saint Laurent chegou…
Tive de revirar os olhos novamente.
— Você conseguiu, não é?
Ela levantou com pressa, batendo palmas animadas em seguida.
— Adivinha quem conseguiu os ingressos mais incríveis para aquele show?
A verdade era que eu sentia falta da cidade grande em todos os aspectos. De mobilidade urbana e acesso à cultura até coisas bobas e fáceis, como ir em um show de algum artista da moda. Eu sentia falta de inclusão, de opções e alternativas. Coisas que não conseguia ver nem nas pessoas de Bourton-on-the-Water.
Era hora do intervalo e depois de escolher o melhor lanche possível (com as poucas opções que existiam dentro da instituição), fui interrompida da minha paz e devaneio quando um garoto entrou na minha frente (engomadinho demais, vale ressaltar). Seu olhar era curioso e eu estava pronta para acertar minha bandeja nele, caso viesse me contar mais algum boato maldoso.
Realmente estava cansada de ser a sensação rebelde do lugar.
— Você é a garota que veio da cidade grande, não é? Me chamo Dominic.
Concordei com gestos.
— .
— Eu conheço vários lugares também, meus pais gostam de viajar.
Aquilo me pareceu interessante. Alguém viajado em Cotswold?
Fiz pouco caso, já que “gostar de viajar” poderia muito bem ser “visitar todos os distritos cafonas do interior da Inglaterra”.
— Já esteve em Nova Iorque?
Dominic me olhou incrédulo.
— Como visitar os Estados Unidos sem passar por lá?
Aquelas palavras mudaram o meu dia. Seria possível achar pessoas sãs em Bourton-on-the-Water? Pessoas que já tenham saído dessa bolha de perfeição e conhecido o mundo real. Das cidades grandes, metrópoles, trânsito infernal e um belo índice de poluição visual, sonora e do ar.
Cara, como eu sentia falta de Nova Iorque.
— Vem sentar em nossa mesa, vou te apresentar alguns amigos.
E então apontou para uma mesa um pouco cheia demais no meio do pátio. Eu não estava muito a fim de comer sozinha, então, na hora, pareceu uma boa ideia. E pareceu uma boa ideia verificar se a galera viajada da vila de quatro mil habitantes acreditava nos boatos sinistros que rondavam por aí.
Não custava nada conferir.
No meio dos amigos de Dominic fui bombardeada de perguntas sobre minha vida e a cidade grande. Eu me sentia bem falando dos lugares que tanto amava. Respondi perguntas sobre minha família, meus interesses e, principalmente, Nova Iorque. O grande grupo se apresentou com pressa e eu não fazia ideia se tinha conseguido gravar o nome de todos, mas não me importava muito no momento.
Antes que o intervalo terminasse a minha orientadora pessoal, Zara, apareceu na mesa, sentando-se como se fizesse aquilo todos os dias. E provavelmente fazia.
Até que a princesa da Veneza da Inglaterra se deu conta de minha presença, ficando extremamente surpresa.
— ! — e depois de se recompor muito rápido, mostrou seu lindo sorriso a todos. — Vejo que já conhece meus amigos.
Senti um tom exagerado no ‘meus’, mas preferi deixar de lado. Depois da última que tinha levado de Zara queria fugir de um possível novo confronto. E queria fugir também de qualquer grupo que ela pertencesse.
Eu realmente não precisava aguentar nada daquilo, ainda mais da rainha do feno.
Dominic me olhou de lado, talvez imaginando se eu já tinha tentado enfrentar a senhora popular da região.
— Estávamos contando a sobre nossos planos de fazer uma bela viagem de formatura.
Lewis, que tinha um cabelo espetado, olhou para o menino.
— E como isso está quase impossível já que o nosso grupo não se forma junto.
Dominic sorriu presunçoso.
— Mais tempo para planejar nossas merecidas férias, não é, ?
Zara permaneceu com seu olhar em mim. Sem entender, a encarei de volta. Tinha algo de errado comigo ali?
— Você não pode usar isso.
Minha única reação foi encará-la incrédula. Os demais na mesa se calaram na mesma hora. Olhei para minha roupa, já identificando a causa.
— É azul.
Ela continuou sem expressão alguma.
— É azul demais.
Tive de segurar a minha gargalhada, deixando apenas um riso tocar os meus lábios. Aquilo era sério? Pela expressão de Zara, era. E ela ainda aguardava alguma reação minha sobre sua intervenção.
Respirando fundo tirei o sobretudo azul, colocando-o em cima da mesa.
Abri a bolsa ao meu lado, tirando de lá o suéter cafona e cinza. O vesti com rapidez. Zara deu um sorriso sem mostrar os dentes.
— Bem melhor.
— Algum de vocês viu Harriet? — Lewis abriu a boca, talvez tentando cortar o clima tenso na mesa.
Skye amassou uma bolinha de papel.
— Eu a vi mais cedo gesticulando demais com aquela prima estranha dela.
Dominic parecia aéreo a conversa boba.
— Zara — a menina olhou para ele, sorrindo —, sabia que o pai de é importante em Londres?
O rosto de Zara ficou sério. Eu queria correr daquela mesa.
Olhei para Dominic, querendo extinguir a pauta “vamos saber mais sobre ”.
— Meu pai é consultor financeiro. Nada de emocionante — dei de ombros, fazendo pouco caso daquilo. Já estava de saco cheio de explicar o porquê de trocarmos tanto de país. — Ele está resolvendo alguns problemas por aqui, eu acho.
Zara me analisava, séria. Eu não entendia, mas, por um segundo, a cor pareceu fugir de seu rosto. Ela logo se recompôs, sorrindo de leve.
— Parece importante.
Dominic parecia interessado.
— Ele resolve problemas grandes? De empresas?
Neguei com gestos, enquanto terminava de engolir um pedaço de meu sanduíche.
— Países, estados. Essas coisas. Ele trabalhou anos na Casa Branca, hoje viaja o mundo onde precisam dele.
Zara me olhava estranho. Dominic se aproximava de mim cada vez mais.
— Parece realmente importante.
Dei de ombros, tomando um gole de suco.
– Acho que sim.
Uma garota adentrou o pátio do refeitório completamente agitada. Seus cabelos castanhos tinham mechas laranja por toda parte, com a frente presa com um pequeno laço amarelo, deixando seus fios jogados para trás. O sol era pouco na manhã, mas ela carregava em seu rosto grandes óculos azuis em formato de coração.
Podia até ser uma combinação bem exótica, mas eu gostava. Gostava porque finalmente tinha visto alguém que parecia estar na mesma situação que eu: odiava aquele uniforme cinza cafona e, principalmente, o jeito velho como as pessoas se vestiam por aqui.
O menino rebelde, Kyle, não era tanto assim, só colocava a jaqueta por cima do uniforme antiquado.
— Tem como essa garota ser mais estranha? — a tal da Caitlin falou, com puro cinismo em sua voz. — Que coisa ridícula.
— Como é o nome dela mesmo? — Lewis fez pouco caso. — Ela tem aula com a gente, não é?
Foi a vez de Skye dar de ombros:
— Não faço ideia. Não reparo em gente do tipo dela.
A menina das mechas coloridas não podia ouvir o que esse pessoal falava, mas eu senti raiva por ela. Se aquela mesa em que eu estava sentada era a mais legal e viajada de Bourton-on-the-Water... Eu definitivamente não combinava com nada de Cotswold!
A garota excêntrica sentou em uma mesa próxima a nossa. Perto o suficiente para que Lewis e Aaron, que estava calado até o momento, jogassem pedacinhos de guardanapo na menina. Eu sentia vergonha. Sentia vergonha por estar sentada naquela mesa, participando daquele episódio ridículo.
Foi ali que eu percebi que Bourton-on-the-Water não ia ser diferente da cidade grande em um sentido: existiriam grupinhos fúteis e sem noção também. E eu, desde o começo, deveria escolher as minhas possíveis amizades.
Não era aquilo que eu queria fazer parte, mesmo que por pouco tempo.
Não satisfeitos com os pedaços de guardanapo, os dois garotos falavam gracinhas sobre a menina. Esta nem ao menos se dava ao trabalho de responder ou olhar para os idiotas do meu lado. Já devia, infelizmente, estar acostumada.
Aquela cena me deu tanto nojo que a única reação normal foi pegar a minha bandeja e levantar. Dominic segurou em meu punho.
— , o que houve? — e sua expressão preocupada parecia realmente sincera. — Fizemos algo que te chateou?
Zara, Caitlin e Skye fofocavam algo no canto, enquanto o resto da mesa ainda perturbava a menina ao lado. Nenhum deles parecia ver que aquilo não estava certo.
Aquilo serviu como um estalo em minha mente. podia não ser a melhor pessoa de Bourton-on-the-Water, mas pelo menos parecia ter uma índole melhor do que todo esse pessoal junto. Falava na cara. Eu não sabia dizer por que aquela brincadeirinha deles me magoava tanto. Talvez seja por eu não me sentir parte desse lugar, assim como a menina do cabelo laranja.
Sacudi a cabeça em negação.
— Não, só preciso ir resolver umas coisas na secretaria — ele não pareceu muito convencido, mas me soltou para ir. — A gente se vê.
Depois de alguns passos para longe daquela mesa, já respirava melhor. Coloquei minha bandeja em um dos lixos e decidi procurar o que fazer. Eu não tinha nada para resolver na secretaria.
Dominic veio correndo ao meu encontro.
— Será que eu posso te levar para conhecer a região qualquer dia desses?
A raiva se dissipou no mesmo segundo em que as palavras de Dominic invadiram meus ouvidos. Eu queria morrer de rir. Gargalhar na cara de Dominic até não aguentar mais. Se eu queria que alguém me desse um tour particular por Bourton-on-the-Water? Ninguém merecia aquilo. Muito menos eu.
Mas o meu instinto de educação estava bem aflorado, coisa que não funcionava há dias. Já bastava brigar com desconhecidos loucos pelos mercados da região, eu não poderia fazer o mesmo pela escola, afinal, seria uma prisão diária.
— Claro, por que não?
Ele sorriu abertamente, acenando com a cabeça.
— A gente se vê então.
Após o fim do último sinal decidi que sairia daquele lugar o mais rápido possível, para evitar qualquer pessoa, mesmo que novos conhecidos. Eu não queria bater papo, não queria ouvir os boatos sobre mim e também não queria fazer parte de qualquer coisa ali dentro.
Passei batida por Kyle, que apenas deu um aceno esquisito com a mão. Respondi com um gesto, ainda em passos largos para fugir da The Cotswold School sem precisar abrir a boca.
Nem o meu plano de fazer o rebelde da vila se interessar por mim fazia sentido agora. Tudo o que eu queria era correr de lá o mais rápido possível.
Na esquina que me libertaria do quarteirão imenso que era aquela escola, a grosseria em pessoa entrou em meu campo de visão. Eu já conseguia respirar melhor fora daquele ambiente tóxico, então me permiti diminuir os passos. se despedia de algumas pessoas com um livro grosso em uma de suas mãos.
Até que seus olhos pararam em mim.
E o sorriso murchou na hora.
Seus passos até mim, ou até a rua, já que eu continuava andando como uma tartaruga, pareceram durar horas.
— Estava me esperando para mais grosseria?
Ele podia ser irritante, mas ainda o achava bonitinho demais. Seus olhos azul-claros estavam um pouco fechados devido a claridade do dia e seu cabelo com pequenas ondas nas pontas pareciam mais desgrenhados (provavelmente por ele ter dormido em alguma aula chata).
E se fosse por esse motivo já tínhamos algo em comum além do grande potencial para espalhar grosseiras por aí.
— Alguém já disse que você é muito pretensioso?
Ele sorriu, balançando a cabeça em negação.
— Não estou afim disso hoje.
Dei de ombros, sem ao menos responder. Resolvi dar novamente inicio a minha caminhada para casa, ignorando qualquer pessoa.
Poucos minutos depois (e bem longe da escola) senti passos ao meu lado, me acompanhando.
— Trégua?
Era .
— Como quiser.
— Ótimo — ele sorriu, ajeitando em suas mãos o livro que ainda parecia pesado e desnecessário demais. — Será que conseguimos conversar sem um jogar o outro no rio?
— Podemos fazer isso?
— Nadar no rio é proibido.
Franzi o cenho para aquela informação. Nadar em rios é proibido desde quando?.
— Que notícia boa.
pareceu concordar, mas logo mudou de assunto.
— A fofoca do dia é que você não durou muito na mesa de Dominic. O que houve?
Estranhei sua pergunta por uma fofoca da escola, mas podia deixar essa discussão para depois. Estávamos sendo legais.
Pelo menos ele não estava perguntando se eu tinha roubado algo de algum armário naquela semana.
— Eles podem ser legais, mas fazem coisas que não concordo.
pareceu concordar novamente. O silêncio se instalou enquanto andávamos a caminho de nossas casas. Depois da nossa última briga no mercado decadente eu mal sabia como me comportar ao seu lado. Eu não podia me dar ao luxo de ter inimigos em Cotswold, afinal, nem amigos eu tinha.
— — ele me olhou de lado, como um incentivo a continuação da minha fala. — Olha, me desculpe pela última vez que nos falamos. Eu não sou assim.
— Está tudo bem, não se preocupe.
Tive de respirar fundo.
— Isso significa que você aceita minhas desculpas ou não?
— Isso realmente interessa ou muda alguma coisa?
Parei de andar no mesmo instante. Era quase como um dejá-vu. Eu já podia me ver gastando palavras rudes e mal educadas com ele por todo o caminho. Eu já podia até mesmo me ver jogando ele no rio proibido. Mas eu não queria aquilo, e queria muito menos que ele me tratasse indiferente como todo mundo por aqui. Já era o suficiente vir morar no fim do mundo e ter um boato falso de cleptomaníaca espalhado por aí. Estava cansada de grosserias.
— Sim, muda tudo.
E foi só nesse momento que ele percebeu que eu já não o acompanhava lado a lado.
— O que houve? — continuei parada, olhando-o. — Tudo bem! Está desculpada.
Andei a passos largos até chegar ao seu lado novamente.
— Obrigada.
— Sinto muito pela grosseria ontem também.
— Você teve os seus motivos.
— Isso, com certeza — o olhei no mesmo momento, como se não acreditasse naquilo. Até pedindo desculpas ele tinha que implicar comigo? — Ok! Deixa isso pra lá, é melhor.
— Eu não te devo satisfação alguma, mas essa cidade me irrita.
sorriu de lado com o meu comentário.
— Já tive esses dias.
— E quando isso vai passar?
Ele sorriu mais ainda, balançando a cabeça.
— Nunca.
— Outra notícia boa, obrigada.
Ele deu de ombros.
— Não é Paris, mas dá para sobreviver.
O olhei de lado.
— E Londres?
Minha esperança ainda estava bem acesa. Toda vez que lembrava da expressão de papai eu tinha forças para acreditar que iríamos conseguir ir para Londres o quanto antes. Então qualquer assunto sobre aquela cidade me interessava bastante.
— Não conhece Londres? — neguei com a cabeça. — Vale a pena. Não tem nada a ver com tudo isso aqui.
Isso eu já esperava, mas deixei passar novamente para que nossa trégua continuasse valendo. Eu queria saber sobre as coisas diferentes que aquela cidade grande tinha, quais eram as coisas imperdíveis, os melhores lugares para se frequentar. Sabia que estava esperando muito de alguém que morava (provavelmente) desde sempre naquele fim de mundo, mas queria aproveitar o bom momento que estávamos passando.
— Alguma dica legal sobre Londres?
Ele deu de ombros novamente.
— Fui poucas vezes para me divertir, mas posso te contar algumas coisas que acho interessante.
Sem perceber, fiz o caminho do mercado com ele. Isso fez com que , ao chegar na fachada do local, me olhasse confuso.
— Precisa de algo do mercado?
Eu não podia dizer que simplesmente me distraía muito com a sua presença e suas dicas de Londres, então acabei o seguindo. Tinha que inventar qualquer desculpa.
— Não, mas vou almoçar ali no restaurante da esquina. É bom?
Ele concordou com gestos enquanto entrava no mercado.
— É sim. Meu pai é muito amigo da dona, costumávamos almoçar lá sempre nos finais de semana.
Tive que entrar correndo para acompanhar suas falas. Estava sonhando ou ele simplesmente estava contando algo da sua vida por pura vontade, sem patadas?
Ele parou atrás do balcão, após se abaixar para deixar sua mochila. Aquela era a minha hora.
— Bom, vou indo então.
Quando ia me responder algo, uma menina baixinha de cabelos longos e loiros saiu pela porta atrás dele.
— , que demora foi essa?
? Então o meio ogro tinha um apelido legal.
Ele olhou para trás, logo puxando a menina para mais perto, abraçando-a de lado.
— Deixa de ser pentelha, foram dez minutos só — a menina fez uma cara enfezada, que logo se dissipou com o beijo que deu em sua testa. — Foi rapidinho — ela se desvencilhou de seus braços, logo ajeitando o cabelo. O nariz empinado combinava direitinho com o garoto à sua frente. — Vai para casa agora, vai.
E com isso, a tal menina loira percebeu que eu encarava aquela cena como uma idiota.
— Precisa de algo? — seus grandes olhos azuis me fitavam com curiosidade. — Gostei do seu casaco.
Como protesto silencioso eu tinha colocado de volta meu sobretudo “azul demais”.
Eu sorri em resposta.
— Não, obrigada — e reparei que ela usava uma jaqueta rosa com muito estilo para alguém da idade dela. — Gostei do seu casaco também.
riu, saindo detrás do balcão.
— Annabelle, essa aqui é a . Ela estuda lá na escola.
— Oi, — ela me fitou de cima a baixo novamente, mas ainda com um sorriso singelo no rosto. Annabelle aparentava no máximo onze anos. — É nova na cidade?
nem me deixou responder:
— veio de Paris.
O olhar da menina se iluminou.
— Uau! — e então chegou mais perto de mim. — É sério? Lá deve ser lindo — e se virou para e depois para mim de novo. — É lindo, não é?
Não pude deixar de rir.
— É sim. Muito lindo.
ainda ria da reação da garota.
— Agora vai, pirralha.
A menina fechou a cara, logo me fitando novamente.
— , você tem irmãos?
Levantei as sobrancelhas em surpresa pela sua pergunta.
— Tenho um, mais velho.
Ela suspirou, olhando de canto de olho para .
— Espero que não seja chatinho como o meu.
a agarrou pela cintura, fazendo a menina rir novamente.
— Eu ouvi isso, peste. Vai pra casa antes que meu pai venha me perturbar!
Ela se soltou, fazendo uma reverência exagerada.
— Como quiser, querido irmão — e eu não contive meu sorriso junto a eles. — Tchau, ! Qualquer dia me conta sobre Paris.
Isso sim era novo. O garoto do mercado sendo realmente simpático e alegre com alguém.
Vi Annabelle se afastar, atravessando a ponte de pedra.
— Ela é linda.
me olhou engraçado.
— É de família essas coisas.
A sorte da minha vida era que eu não corava fácil.
— Vocês são irmãos de verdade?
Ele riu, cínico.
— Continuamos na trégua, certo?
— Claro — dei de ombros. — Vou indo.
Ele me olhou de lado, deixando escapar um sorriso.
— Espera. Quero te fazer um convite — mas logo o sorriso se fechou por completo. — Se você não for grossa de novo, é claro.
Franzi o cenho de imediato, pouco me importando com o final da sua fala.
— Um convite?
Meu corpo paralisou no mesmo momento. Um convite. queria me fazer um convite. Não sabia se fazia pouco caso daquilo ou se alimentava minha mente de poucas esperanças, já que poderíamos voltar a brigar a qualquer momento.
E ele poderia me convidar simplesmente para ‘conhecer a região’.
Respirei fundo, enquanto ele mexia em alguma coisa no caixa. Tentava com todas as forças me manter serena, pois não sabia o que estava por vir.
Ele sacudiu a cabeça em afirmação.
— Vou encontrar uns amigos mais tarde. Quero que você vá comigo.
Por um momento eu vacilei. Eu queria amigos, mas não sabia onde estava me metendo. E eu não queria fazer parte do grupo em que estive na hora do intervalo. Não queria nem ao menos ser chamada para ser parte dele.
— É o grupo de Dominic?
E então a grosseria em pessoa riu.
— Está louca? Não.
— Posso saber pelo menos do que se trata? — ele levantou as sobrancelhas, me olhando esquisito, como se já esperasse algo rude sair de minha boca. Ele havia começado. Odiava que me chamassem de louca. — Quero estar preparada caso você me chame para olhar as cabras da região.
Seus olhos claros cerraram.
— Você acha que sabe de tudo, conhece de tudo, não é? — não fiz a menor questão de responder. Nós íamos começar a brigar de novo? — Ótimo, melhor assim — e me ignorou, voltando a mexer no computador a sua frente. — Te pego assim que anoitecer.
— Vai ao menos perguntar onde eu moro?
— Só tinha uma casa à venda em toda a vila. Sei onde você mora.
Revirei os olhos.
— Te encontro na esquina.
Ele concordou com um aceno, sem tirar os olhos do computador.
Era a minha deixa para ir embora de vez.
***
Fiz o possível e o impossível para estar pronta antes de anoitecer.
A coisa mais caipira que presenciei em Bourton-on-the-Water era o costume de combinar um horário de acordo com o sol e não com números certos de um relógio.
Depois de ficar quarenta minutos esperando a noite cair (porque certamente eu não sabia que horas isso acontecia), inventei uma desculpa aos meus pais de que teria uma atividade extracurricular na escola junto ao time cafona de futebol feminino. Eles não compraram de início, mas depois que eu disse que era obrigatório, valia nota e iria para o meu currículo escolar já muito manchado por treze mudanças, eles pareceram mudar de opinião.
Sai de casa caminhando até a esquina, conforme o combinado de mais cedo. Ele estava encostado em um muro de pedras, com uma das pernas no mesmo. Sua feição despreocupada só fazia com que ele parecesse mais bonito do que eu me lembrava.
Aquilo gelou meu estômago. Não por ele ser atraente, mas pelo fato de que eu estava sendo convidada para tentar ser amiga dele e de seus outros amigos. Provavelmente amigos de infância.
Em todas as mudanças a parte mais difícil era se entregar para a amizade, pois o medo de ir embora a qualquer momento era constante. Eu não conseguia fazer amigos de verdade, porque só pensava em como seria ruim deixá-los depois de um curto período de tempo. A verdade é que doía bastante conhecer pessoas incríveis e simplesmente ir embora. Somente em Nova Iorque que consegui me libertar um pouco mais. Acredito que tenha sido por minha pouca idade e também por termos ficado tanto tempo direto lá. As viagens eram curtas naquele período, então a nossa casa de verdade se mantinha fixa na América do Norte. Era como se eu só fosse fazer uma viagem de férias e voltasse, já que não tinha idade o suficiente para ficar em casa sozinha.
Então aquela sensação desesperadora encontrou meu corpo novamente.
se descolou da parede de pedras, soltando um singelo “E ai”. Diferente de todos os dias que o vi, ele estava moderno e com estilo. Sua calça jeans era escura e sua blusa branca com detalhes azuis, que combinavam com seus olhos claros.
Ele estava lindo. E era bem difícil admitir isso.
falava algo e foi então que eu reparei em uma coisa ao seu lado. Uma bicicleta.
— Você só pode estar brincando.
Ele me olhou estranho, talvez não entendendo o porquê de minha reclamação repentina.
— O que houve? — mantive meu olhar na bicicleta. Ele acompanhou, rindo alto em seguida. — Nem comece a reclamar.
— Eu não tenho uma bicicleta para acompanhar você.
franziu o cenho, talvez achando graça da minha expressão.
— E quem disse que você precisa de uma?
A muito contragosto aceitei subir na bicicleta verde. Eu mal me lembrava de como andava naquilo, imagine confiar em alguém para ir de carona.
— Se você nos derrubar, te jogo no rio proibido.
ria com as minhas reclamações. Eu as fazia enquanto tentava me ajeitar da melhor maneira em sua bicicleta. Não era das mais novas ou do último modelo lançado (como se eu soubesse muito sobre bicicletas), mas parecia o suficiente para a região.
O garoto esperava pacientemente eu me ajeitar no quadro central, colocando então as mãos na parte que sobrava do guidão.
— Pronta? — sacudi a cabeça em afirmação. Ele colocou os braços por cima dos meus, segurando nas pontas. Aquela aproximação fez com que eu suspirasse. — Tente não nos derrubar.
Eu precisava admitir que a sensação era diferente. Mais do que isso, era ótima. Quando você mora apenas em cidades grandes, barulhentas e cheias de falta de espaço, você simplesmente esquece de pequenas coisas boas como essa. O céu escuro estava completamente estrelado, e graças a grande área de vegetação e plantações, eu podia vê-lo tranquilamente. Nada de postes de luz, nada de aviões cruzando o céu de dois em dois minutos. Nada daquele barulho caótico de buzinas e pessoas reclamando da vida.
Meu Deus, o que estava acontecendo comigo?
Mas é claro que eu não ia admitir isso para . Pelo menos não agora.
Ele continuava sereno, pedalava em um ritmo ideal, fazendo com que o vento nos atingisse sem muita força.
Nós cruzamos a vila e logo chegamos em uma estrada de terra que só tinha mato de ambos os lados, assim como grandes fazendas e celeiros abandonados em terrenos distantes e enormes.
Depois de alguns minutos na estrada de terra mal iluminada, diminuiu a velocidade, parando em frente a uma cerca de madeira velha, tão velha que só tinha alguns metros e um portão baixo que, acredito eu, nem fechava mais.
Ele saltou da bicicleta depois que fiz o mesmo.
— Não foi tão ruim assim, foi? — neguei entre gestos. Estava evitando o máximo falar, não queria brigar de novo. O que eu queria era aproveitar cada momento daquela noite. — Vamos entrar.
Assim que acompanhei seus passos, meus olhos foram dominados pela imagem de um grande celeiro. A falta de luz na área externa dava um ar sombrio ao local e eu só pude imaginar essa falta de iluminação em uma cidade como Nova Iorque. Nada bom.
Eu devia realmente considerar a falta de poluição como um motivo para a minha maluquice. Naquele momento tudo o que conseguia pensar era em como eu havia aceitado “encontrar uns amigos” em um celeiro abandonado, no meio do nada que é Bourton-on-the-Water.
fez menção em abrir a grande porta, me olhando sobre o ombro esquerdo. Com toda certeza eu mantinha a minha cautela.
— Tudo bem aí? — concordei entre gestos novamente, ainda observando atentamente o local quase abandonado. — Fica tranquila, lá dentro é mais bonito.
— Vocês são um grupo de motoqueiros rebeldes, por acaso?
Ele riu pelo nariz, balançando a cabeça, como se minha cautela o divertisse.
— Você não veio da cidade grande? Aposto que isso aqui é nada.
Depois de prometer várias coisas a vários deuses entrei no tal celeiro, logo atrás de .
E realmente era mais bonito por dentro.
O local, mesmo coberto por quadrados prensados de feno, tinha uma ambientação diferente. Várias luzes, como pisca-pisca fixos, rodeavam as paredes do local. O chão batido era salpicado com feno, como se alguém tivesse feito nevar trigo ou algo assim. Apesar de ser um grande espaço aberto, um grupo de adolescentes se mantinha junto, no canto direito, local onde uma música baixa tocava.
Eles tinham uma caixa de som bluetooth dentro do celeiro abandonado.
Uma mesa antiga era decorada com várias garrafas de vidro, que supus automaticamente ser com conteúdo alcoólico.
cumprimentou todo mundo com um grande “e aí”.
A música foi colocada em pause.
Seria um grande momento para correr daquele lugar.
— Galera, quero apresentar a vocês uma pessoa — falou mais alto, conquistando mais ainda a atenção de todos. Mais ainda porque desde que colocamos o pé dentro desse celeiro, os olhares são só para nós. Ou para mim. Tanto faz. — Essa aqui é a . Chegou à cidade há poucas semanas, estuda na The Cotswold School, assim como nós.
Recebi alguns olhares mais convidativos, outros nem tanto. Pude reconhecer alguns rostos da escola e das atividades extracurriculares que eu tinha escolhido. A menina que havia me ajudado no primeiro dia, Mila, acenou brevemente com uma das mãos.
Uma garota de longos cabelos ruivos vestindo apenas roupas pesadas e pretas levantou seu copo em minha direção.
— Bem-vinda a Cotswold! — e então bebeu todo o conteúdo de uma vez. — Ou ao inferno, se preferir.
Me controlei para não deixar que meus olhos se abrissem demais, afinal, eu ainda era a garota da cidade grande que já sabe e viu de tudo. Dei de ombros, olhando de soslaio para . Ele apenas revirou os olhos.
— Essa é a Bronwen. Personalidade forte.
Olhei para a menina ruiva no mesmo momento. Não tinha a reconhecido em meio a tanta maquiagem preta.
— Nos conhecemos. Grupo de Línguas.
pareceu concordar em meio a careta que Bronwen fazia para mim. Aquilo me lembrou que a menina tinha prometido ‘ficar de olho’ no que eu faria dentro da escola.
Onde eu tinha me metido? Se já era difícil, imaginava que seus amigos não seriam diferentes.
Um garoto pálido de cabelos negros se levantou, vindo até nós.
— Não consigo nem falar o tamanho do prazer que é te conhecer, — e então me olhou de cima a baixo. — Você é muito linda, cara!
pôs a mão na frente do garoto, antes que ele pudesse chegar mais perto.
— Nem começa, Noah.
O menino riu, dando uma piscadela para mim. Ele era baixinho e usava roupas largas de skatista. Seu boné colorido com os dizeres “SKATER” parecia grande demais para sua pequena cabeça.
— É só para ela conhecer as principais características de todo mundo — e gargalhou, voltando ao seu lugar em um bolo quadrado de feno.
O garoto Hayden (o alto demais e também da extracurricular esquisita de Línguas) falou comigo em Francês, enquanto a ruiva rebelde ao seu lado revirava os olhos.
— Bem vinda, !
O baixinho Noah o olhou de lado.
— Quê?
— Ela está em nosso grupo de Línguas.
Noah ajeitou o boné na cabeça.
— Cara, que sorte a sua!
Vi revirar os olhos e respirar fundo, mexendo em algo no bolso.
— Então, — e me olhou de lado, logo apontando para quem tinha me comprimentado em Francês. — Você já conhece Hayden — seu dedo foi até a garota que eu também já conhecia, mas ele talvez não soubesse disso. — Mila — ao seu lado um garoto com estilo muito parecido com , porém com cabelos mais claros. O mesmo garoto que eu havia visto com em meu primeiro dia em Cotswold (e também no super churrasco de papai). — Mason. Você não vai vê-lo na escola, ele já se formou ano passado — e contornou o celeiro, apontando para outro garoto de cabelos claros, porém de menor estatura. — E Riley, seu irmão.
Os dois meninos que estavam em nossa casa na última semana acenaram brevemente, parecendo lembrar de mim também.
Bourton-on-the-Water era realmente uma vila muito pequena.
— Por que não vai me apresentar, ? — o tal do Noah reclamou, ajeitando novamente o boné grande demais.
Quando eu ia questionar, a grande porta do celeiro se abriu em um rompante, logo adentrando uma menina afobada, com uma bolsa amarela nas mãos. A reconheci no mesmo momento em que a vergonha atingiu o meu corpo. Era a menina que o grupo de Dominic chamava de esquisita no intervalo mais cedo, enquanto eu ainda estava presente na mesa.
— Vocês não vão acreditar no que eu... — ela falava completamente animada, mas ao perceber a minha presença se calou. — Oi! Quem é a novata? — e andou mais ainda pelo celeiro, chegando perto de nós. Pela sua expressão ela não havia me reconhecido. E se tivesse, estava fingindo bem. — Finalmente temos gente nova! Teve votação e eu fiquei de fora, né? — ela abanou o ar, me analisando em seguida. — Tudo bem? — concordei com a cabeça, rindo de seu jeito. — Me chamo Ella, e você?
— .
— O que você acha de bebidas afrodisíacas?
Eu mal consegui responder, pois logo fui cortada por :
— Como você pode ver, Ella também tem uma personalidade forte.
Ella foi até , dando um leve tapinha em sua bochecha.
— Você vai me amar quando ver o que tenho aqui!
A cópia loira de , Mason, deu um passo à frente.
— Apresentações feitas, que ótimo. Posso reclamar sobre a minha vida agora?
Franzi o cenho no mesmo instante. Estariam todos da região finalmente contaminados pelo meu mau humor constante? Talvez eu tenha conseguido espalhar um pouco de poluição urbana das minhas mil caixas da mudança.
pareceu reparar na minha expressão confusa.
— , pelo menos uma vez na semana nós fazemos a noite da reclamação. Cada um diz o que tem sido um saco e pronto.
Todos se sentaram nos bolos de feno próximos. Mila me puxou pelo braço delicadamente, fazendo-me sentar junto a ela. Seu interesse em mim, diferente da última vez que a vi, me fez sorrir.
— Reclamar? Acho que posso fazer isso.
deu de ombros.
— Te convidei de propósito hoje, já que reclamar parece ser uma das suas maiores qualidades.
— Posso reclamar de você.
— Fique à vontade, acho que você não será a única.
A minha vontade era abrir a boca e dizer umas boas verdades a ele, mas resolvi dar de ombros também. Mason apertou os olhos, como se a nossa pequena discussão o cansasse.
— Posso começar então? — todos ficaram em silêncio. — Meu pai quer que eu arrume um emprego de verdade. Ele acha que trabalhar no bar do Sheppard é vergonhoso para a família — ele e Riley reviraram os olhos ao mesmo tempo. — O meu problema é que eu não quero criar ovelhas ou vacas, então não tenho muitas opções aqui em Bourton-on-the-Water.
se levantou rapidamente.
— Você não pode se mudar agora, Mason.
Mason o olhou de volta.
— Não vou me mudar.
A grosseria do mercado pareceu relaxar.
— Então o que vamos fazer sobre isso?
— Nada! Eu gosto de trabalhar no bar. E do que adianta tentar algo novo agora? Ano que vem vamos para a faculdade mesmo.
“Vamos para a faculdade”? Era bom saber que eles tinham planos de vida fora de Cotswold.
O grupo começou a discutir fervorosamente sobre o problema de Mason, mas a menina de preto interrompeu.
— Eu tenho uma reclamação! — a menina ruiva se levantou, se virando diretamente para . — Quem você pensa que é para trazer alguém do nada para o nosso espaço?
A expressão do menino não se alterou.
— Não começa, Bronwen.
— É, não começa princesa punk de Cotswold — o tal Noah “SKATER” falou, recebendo um xingamento da menina. — Só porque ela é linda e tem uma incrível bun…
o cortou:
— Cala a boca, Noah.
O baixinho me olhava.
— Ela não é do tipo que fica com as bochechas vermelhas. Gostei!
Eu ia responder, mas falou primeiro.
— Nem se dá o trabalho, vai por mim.
Bronwen marchou até o outro lado do celeiro, indo em direção a suposta mesa de bebidas. Mason se deu por vencido, visto que seu assunto tinha morrido.
— Beleza. Quem é o próximo agora?
Eu não tinha o que reclamar naquela noite, então só ouvi os desabafos daqueles adolescentes diferentes. Na verdade eu tinha sim o que reclamar, mas pretendia não assustá-los com tudo o que eu poderia dizer. Se eu tinha ganhado uma chance de participar de algo normal, tentaria um pouco mais que o habitual.
Depois que todos revelaram suas mágoas e irritações, a música no grande celeiro antigo voltou e pequenos grupinhos de conversas foram feitos. ria de alguma coisa com Mason e eu pensava se eles eram amigos inseparáveis. Parecia que sim. Os demais conversavam entre si, comiam alguns salgadinhos na mesa improvisada e tomavam líquidos suspeitos em copos transparentes.
Observar aqueles adolescentes espalhados pelo celeiro velho me trazia esperança de que viver em Bourton-on-the-Water por algum tempo não seria o meu fim. Suas roupas tinham estilo, mesmo que diversificados e isso me fazia sentir em casa. Na cidade grande. Eram coisas que eu não conseguia ver pelas ruas da vila, que parecia sempre extremamente antiquada.
O menino chamado Noah era facilmente um skatista. Suas bermudas largas faziam par com uma camiseta de tal tamanho. Boné virado para trás, além da personalidade despreocupada. Eu gostava, era urbano o suficiente para me levar de volta a realidade.
A garota Bronwen era claramente a rebelde do grupo. Suas roupas negras e cabelo cor de fogo se misturavam com a expressão carrancuda. Bonitinha, mas parecia que ficava de mau humor vinte e quatro horas por dia. Ela conversava com Mila, a menina que fazia Literatura Inglesa e Biologia II comigo. Seus cabelos negros brilhavam na pouca luz dentro do celeiro e ela parecia realmente interessada no que a outra falava. Seu vestido rosa claro entrava em contraste com a sua pele negra. Ela era linda e agia como uma princesa indefesa, ao contrário da menina a sua frente.
Noah mostrava algo para o irmão de Mason, Riley. O garoto concordava, fazendo seus grandes óculos de grau preto balançarem. Os dois não deviam ter mais do que quinze anos. Riley usava um suéter bordado com alguma referência de Star Wars, que não fiz muita questão de entender.
Hayden, o mais alto de todos, tinha uma expressão risonha ao ouvir alguma besteira (provavelmente) da conversa entre Noah e Riley. Seus cabelos cor de areia eram bagunçados e suas roupas combinavam de uma forma esquisita, e eu não conseguia dizer se o estilo dele era de esportista ou década de noventa.
. Completamente diferente da escola e do mercado, ele podia facilmente penetrar nas ruas de Nova Iorque, Londres e qualquer outra metrópole. Qual era o problema dele? Suas roupas eram muito melhores que as cores cinzas ridículas da The Cotswold School que ele insistia em usar até no trabalho. Mason podia ser claramente irmão do garoto do mercado, tirando o fato de que era loiro. Seu estilo era muito parecido, roupas na moda, mas com aquele desleixo que todo homem tem. E que faz total diferença para ser mais atrativo.
E por fim, Ella. A garota mais excêntrica que tinha conhecido em dezessete anos. Suas mechas coloridas brilhavam e seu grande laço verde no topo da cabeça deixava tudo mais incrível. Sua personalidade era clara: fazia o que tinha vontade sem se importar com o que o resto da população pensaria. Ella ajudava a consolidar aquela esperança de sobreviver, já que ela conseguia fazer isso muito bem pela vila, mesmo com tanta implicância e intolerância.
Ao meu ver sozinha no meio daquelas pessoas diferentes e esquisitas, me encontrei em algum lugar. Mila fez um gesto para que eu chegasse mais próximo, o que fez com que a garota ruiva se afastasse.
— Então — olhei ao redor do celeiro, falando alto e ignorando os olhares de Bronwen à minha direita —, vocês são o grupo de populares da escola que se encontram escondidos?
Parte do grupo deu uma risada divertida, o que me fez ficar intrigada. Eu tinha falado algo demais? parecia se divertir com a minha frustração.
— Esse não é um grupo que Dominic pertenceria — Mason tentou explicar, fazendo todos pararem de rir. — Não somos populares. É como se fossemos o contrário.
— Isso é um grupo de renegados? — falei sem ao menos pensar.
franziu a testa.
— Isso doeu.
Minha boca abriu, mas nada saia.
— Me desculpe, eu…
E então ele abanou o ar, rindo novamente.
— Brincadeira. Mas sim, é como se fosse.
Mila chamou minha atenção.
— Os populares da escola são Zara, Dominic, Skye, Aaron, Lewis e Caitlin. Eles tiram um pouco de sarro de algum de nós, mas nunca em conjunto — ela concluiu, dando um tapa em Noah por algum comentário que não entendi. — Ninguém sabe do nosso grupo ou que andamos juntos. Por isso não ficamos juntos na escola, assim ninguém perturba a gente.
Mason completou:
— Dentro do celeiro nós não julgamos, não brigamos e não questionamos. É um lugar livre para que todos nós possamos fazer o que bem entender.
concordava com o amigo.
— Aqui nós podemos ser nós mesmos, fazer o que quisermos — e tomou mais um gole do que seja lá dentro do seu copo. — Cotswold não nos domina aqui dentro.
Meu corpo inteiro parecia formigar.
Era como se fosse uma legião. De renegados. Em Bourton-on-the-Water.
Cada um parecia ter um estilo específico, mas todos tinham uma coisa em comum além da amizade.
Eles não combinavam com Cotswold.
— Então — voltei a olhar para todos —, vocês possuem um clube secreto e convidam uma desconhecida? — todos concordaram, menos Bronwen, que ainda fazia pouco caso da minha existência. Não que eu me importasse. — E se eu fosse maluca e contasse a todos pela manhã? O grupo de vocês já era.
– Confiamos em você — Mila disse simplesmente.
— Eles confiam — Bronwen nem se quer me olhou.
Mason a olhou atravessado.
— Se e Mila confiam, todos nós confiamos.
Aquilo me chocou em dobro. confiava em mim? O mesmo que tinha trocado farpas comigo desde o primeiro dia em que nos vimos?
Mason continuou mais uma vez:
— Você tem o suficiente: odeia Cotswold. Portanto, bem vinda ao celeiro.
Então a grosseria do mercado deu um passo para frente, abraçando Ella de lado e acabando com todos os meus questionamentos.
— Que comece a nossa noite!
O “comece a nossa noite” era claramente uma abertura para que todos dessem início a ingestão de álcool do dia.
Hayden, o menino do debate, distribuiu copos a todos, e até mesmo para mim. Eu queria correr ao mesmo tempo em que queria ficar e compartilhar tudo com aquele grupo maluco.
O problema da vez era que aquilo eu não estava acostumada. De beber e tudo mais. Eu mal tinha experimentado algumas cervejas, não saia escondido e nem fazia coisas ilegais. Era simplesmente tudo o que eu evitava da cidade grande.
Ou, na verdade, tudo o que nunca tinha experimentado.
Sei que idolatro Nova Iorque e todas as outras cidades imensas que já moramos, mas o bom de todos esses lugares, ao meu ver, era a acessibilidade à cultura (museus, shows de bandas incríveis e últimos lançamentos do cinema mundial), transporte (uma entrada de metrô a cada esquina), boas lojas de moda (de todos os tipos e gostos) e a parte de gastronomia (onde um fast food é melhor que o outro!).
Mas a parte de festas loucas e ficar de ressaca…
Essa parte da minha vida não combinava com um filme de adolescente, ou algo bem doido de seriado, como Gossip Girl.
Nada mesmo.
Olhei novamente para o copo transparente em minhas mãos. Será que eu conseguiria ser rápida o suficiente para jogar o conteúdo em algum canto sem alguém perceber? Mila ainda se mantinha perto de mim, conversando com a menina exótica mais nova, Ella. Vi uma parte do grupo se juntando em uma pequena roda, com seus devidos copos transparentes cheios em mãos e aquilo me deu um mau pressentimento. caminhou até o local onde o pessoal sentava nos grandes retângulos de feno.
E uma ideia louca passou pela minha cabeça.
— Por favor, não me diga que vocês vão jogar verdade ou consequência.
Mila franziu o cenho, falando mais alto em direção ao garoto do mercado.
— Vamos jogar alguma coisa?
me olhou estranho e eu percebi que mesmo de longe ele tinha reparado em minha pergunta.
— , eu lá sou homem de jogar verdade ou consequência? — seu tom era zombeteiro, mas suas palavras fizeram com que meu corpo todo acelerasse. Apenas o fato de ele se chamar de “homem” já fazia isso.
Suspirei alto pelas reações de meu próprio corpo estúpido.
— Menos mal, então.
Ele observou o copo em minha mão.
— Você ainda não bebeu ou isso já é outra dose?
— Está me controlando?
E então levantou os braços, como se julgasse a si próprio inocente.
— Vou te deixar em paz.
Depois de ouvir um pouco mais sobre o celeiro, os dias que eles se encontravam e como faziam para que ninguém desconfiasse, me sentei em um dos bolos de feno do outro lado, longe da música. Mila me acompanhou, sentando-se ao meu lado.
— Você está em algumas de minhas aulas, não é? — acenei com a cabeça em concordância. Eu me lembrava bem de Mila, pois foi a única que me ajudou no primeiro dia com horários e salas. Sem contar que eu a achei uma das garotas mais bonitas do lugar, com sua beleza tão simples e natural. Não era impactante como Zara, mas ainda assim, linda. — Imaginei que fosse te convidar.
E lembrava da grosseira que tinha feito com ela também.
Não pude conter a expressão surpresa.
— E por quê?
— Você não combina com Cotswold. Não está claro isso?
— É a segunda pessoa que me diz isso em poucos dias.
Ela piscou para mim, sorrindo.
— E esse é o primeiro requisito para fazer parte de nosso grupo.
— Então vocês fingem que não são amigos na escola? Ou pela cidade?
Ela ainda me olhava sorridente. Seu vestido de babados rosa claro só a deixava mais fofa.
— Não todos, nós apenas procuramos não andar com o grupo inteiro, mas as pessoas acabam sabendo que nos conhecemos. É uma vila bem pequena — ela fazia pequenos gestos enquanto falava. — Por exemplo, não tem como fingir com e Mason. Eles são melhores amigos de infância.
— E o resto do pessoal?
— é amigo de infância de Bronwen também. Riley entrou por ser irmão de Mason — eu ainda tentava entender a relação dessas pessoas aleatórias dentro do celeiro. — Noah é melhor amigo de Riley. Os únicos que não possuem uma relação direta com alguém aqui são Hayden e Ella.
— Mas então como eles vieram parar aqui? Do mesmo jeito que eu fui convidada?
Ela sacudiu a cabeça, parecendo pensar um pouco.
— Riley estava com problemas para fazer amigos, até que Noah chegou de Stroud. Os pais dele possuem negócios aqui nas fazendas. Mas mesmo os dois ficando amigos na escola, eram muito humilhados lá. Mason não aguentava mais isso e trouxe os dois para conviver no celeiro. Melhorou a auto estima dos garotos — ela olhou para frente, logo rindo de Bronwen dando um escândalo com Hayden sobre alguma coisa que agora estava derramada no chão já sujo do celeiro. — Hayden ganhou o seu lugar quando ajudou e Mason a saírem de uma enrascada há uns dois anos. Ninguém entra em muitos detalhes, mas foi o suficiente para tê-lo aqui. E, bom, Ella você pode imaginar apenas ao vê-la. Ela não combina com nada disso aqui e, assim como você, isso é o suficiente.
Eu ainda estava transbordando admiração por tudo aquilo.
— E você?
— Além de ser namorada de Mason, eu sofri um pouco de bullying. Você deve imaginar por quê — eu não entendia porque, mas resolvi deixar para outro momento. — Meu primeiro encontro com o Mason foi aqui. Ele diz que já confiava em mim.
Tudo o que eu pude fazer foi suspirar. Pensava estar completamente sozinha nesse fim de mundo. Ali, naquele celeiro velho, eu percebi que estava errada, muito errada. Aquelas pessoas haviam se unido para sobreviver às maldades e maluquices de Bourton-on-the-Water, simplesmente pelo fato de quererem muito mais do que tudo aquilo.
Realmente incrível.
— Mila, nem sei o que te dizer. Isso é incrível.
Ela sorriu novamente, concordando.
— É sim. e Mason juntos sempre dá em ideias incríveis.
— Garota da cidade grande — Ella chegou perto de nós. — Que bom ter gente nova aqui no celeiro.
Mila se levantou do feno, me deixando sozinha com Ella, que esboçou um sorriso. Eu queria saber mais sobre as ideias de Mason e , mas era a hora exata para me desculpar por mais cedo com aquela menina.
— Olha, eu queria pedir desculpas por mais cedo e…
Mas fui completamente interrompida.
— Eu não me importo com o que o grupo de Dominic fala ou com qualquer outra pessoa da escola ou da vila — Ella sorriu novamente. — Eu sei que você não faz parte deles, por isso nem precisa se preocupar.
Aquela cena bizarra ainda se passava em minha cabeça.
— Mas eu podia ter te defendido.
— — ela levantou as sobrancelhas, como se me contasse um grande segredo —, eu não me importo — podiam ser simples palavras, mas fizeram um sentido enorme. Ella não se importava. E isso era mais do que o suficiente. — Então não se preocupe também.
Mila se sentou conosco novamente, segurando uma garrafinha de água mineral. Será que eu conseguia me livrar daquele copo e ficar só na água gelada também?
— Conta mais sobre você, .
Ella parecia animada novamente.
— É verdade que você veio de Paris? — concordei entre gestos, cheirando novamente o conteúdo do meu copo. Nada bom. — Ah, deve ser perfeito! A moda, as pessoas, o romance no ar.
Minha expressão se comprimiu em uma careta depois de tomar um gole daquilo. Não sabia o que era pior: a bebida ou a animação das meninas com o romantismo da França.
— A moda sim, mas o resto não é tudo o que pensam.
Expliquei um pouco como tinha chegado até Cotswold. Contei de algumas cidades que já morei, do que eu gostava e como estava sendo a minha receptividade em Bourton-on-the-Water.
— Você se acostuma — Mila olhava para os meninos à frente. — Essa velharia, falta de cor nas pessoas — a menina ajeitou os babados de seu vestido de princesa. — Só não deixa que isso domine você.
Era exatamente o que eu estava tentando fazer.
— É sério que devemos usar só as cores da escola? Cinza? — as meninas concordaram. Olhei para Ella, que levantou as sobrancelhas em dúvida. — Não implicam com você?
— O diretor já tentou várias vezes, mas eu continuo no meu direito — Ella fez pouco caso, comendo algo que eu não entendi o que era.
Mila me cutucou de lado.
— Você não tem noção de como aquele velho a detesta!
Ella soltou uma risada, talvez relembrando as batalhas que já teve com o diretor da escola.
— É bem simples, garota da cidade grande — seus grandes cílios piscavam para mim. — Eu uso as cores da escola, não tem como ele me proibir.
— Mas e o seu cabelo?
— Isso meu pai já resolveu.
Tive de sorrir imaginando como ele conseguiria burlar a chatice da The Cotswold School.
— Como?
— Doando a nova biblioteca — meu riso cessou na hora. — Isso me permitiu cabelos coloridos naquele lugar antiquado.
Então estava aí o motivo de eu ser barrada com o meu casaco “azul demais” para a escola. E foi naquele momento que eu me senti de volta à minha querida Manhattan, mas de uma forma mais caipira, se isso era possível. Como meu pai havia dito, as pessoas de Cotswold eram realmente ricas. Mas aquilo soava muito distante e estranho para mim, então ver Ella falando sobre doações de bibliotecas me levou a uma nova realidade sobre o meu novo lugar de estadia.
As pessoas realmente tinham dinheiro por lá, mas por que não iam embora daquele fim de mundo?
Ou explodiam tudo e começavam do zero, soluções boas assim.
— Hoje não pude usar meu casaco por ser azul demais.
Ella e Mila me olharam incrédulas.
— O quê?
— Exatamente o que vocês ouviram. “Azul demais”.
— Quem te disse isso, ? — Mila parecia chocada. — O diretor?
— Minha orientadora.
Ella revirou os olhos.
— Pior ainda. Você aceitou isso?
— Ela ficou me encarando, eu tirei para não discutir. Não estava a fim.
Mila parecia irritada, mas todo seu conjunto angelical fazia com que ele permanecesse no estágio fofinha.
— Algumas pessoas aqui são assim. Elas agem como se fossem donas do colégio ou da vila, e principalmente das regras absolutas. Querem que você se sinta inferior.
— Tirando isso, temos boas pessoas por aqui — Ella tentou ser positiva.
Eu não queria apontar nomes e fiquei feliz por Mila e Ella deixarem essa passar. Provavelmente elas sabiam muito bem de quem eu falava, mas realmente não queria criar intrigas ou comentar qualquer coisa maldosa que Zara tinha falado para mim, além do meu casaco muito azul para a região.
Mas pensando naquilo, meu corpo tremeu um pouco com o sentimento de raiva. Quem aquela garota pensava que era para me barrar de usar um casaco? Ali eu percebi que as expressões de Zara eram como um confronto pessoal.
Ela não queria que eu chamasse mais atenção.
“Talvez aqui não tenha espaço para você”.
Não sabia se já era a bebida falando por mim (pequenos goles podem sim te deixar bêbado), mas as palavras saíram de minha boca.
— Na próxima não vou aceitar mudar de casaco.
Ella bateu palmas, logo pedindo um brinde. Reprimi a careta no mesmo momento, juntando nossos copos (e garrafinha de água).,br> — É isso aí!
Para disfarçar o gole sofrido na bebida esquisita, olhei ao redor do celeiro.
Noah e Riley riam de alguma coisa que Hayden mostrava a eles - e até mesmo Bronwen, a ruiva do debate que tinha prometido ficar de olho em mim, sorria com alguma coisa da dupla de amigos.
E no fundo do celeiro, sentados em um bloco de feno grande, estavam a grosseria do mercado decadente e seu melhor amigo. sorria ao lado de Mason, dividindo um cigarro. O cheiro que veio até mim não foi o de um cigarro qualquer e mesmo com pouca experiência nessas coisas eu sabia o que era. Maconha.
Tentei fazer o máximo para não parecer chocada, mas como nada é fácil na vida, ele percebeu o meu olhar e fez um gesto com uma das mãos, me chamando para ir até eles. Provavelmente pensava que eu fazia aquilo quase todos os dias na cidade grande.
Deixei as meninas tagarelando ao meu lado, andando poucos passos até . Ele deu dois tapinhas no espaço livre do grande quadrado de feno em que estava sentado.
— Senta aqui — fiz o que me fora pedido, ainda incerta dos meus próximos passos. — E aí, gostou do pessoal?
Antes que eu pudesse responder, ele pegou o cigarro das mãos de Mason, que agora soprava a fumaça para o alto. Tudo o que consegui foi dizer exatamente a verdade.
— Acho que me sinto parte de alguma coisa.
Ele tragou forte, concordando com a cabeça.
— Bem-vinda aos renegados de Bourton-on-the-Water — e soltou a fumaça para o alto. — Quer?
Neguei com gestos, sacudindo meu copo quase cheio, que agora parecia ser de conteúdo infinito.
— Estou bem. O que vocês costumam fazer por aqui?
— Como você já deve ter percebido desde que pisou aqui, Bourton-on-the-Water não tem muito o que fazer. Principalmente para adolescentes. Então nós nos viramos sozinhos.
— Fazendo um grupo secreto no meio do nada?
Ele balançou a cabeça, devolvendo o baseado ao amigo.
— Quando éramos mais novos nos juntávamos aqui escondidos de nossos pais para beber licor de menta, furtado da casa de Mason.
Tive de rir — Licor de menta?
balançou a cabeça novamente, me olhando de lado.
— Hoje nossos pais acham que nos encontramos em algum lugar, mas nunca desconfiaram daqui.
Não podia deixar aquilo passar.
— Licor de menta?
Eu não fazia ideia do que era aquilo, mas parecia algo bem caipira.
— Só não acho que imaginem que hoje seja para beber vodca — ele enfatizou a bebida alcoólica, me olhando sugestivamente, como se esperasse mais um questionamento meu. Fiquei calada, segurando minha risada. — E whisky barato, claro.
Mason deu uma risada junto com ele.
— Whisky barato é a melhor coisa que existe.
A garota ruiva passou por nós, cortando o celeiro sem antes me jogar um olhar esquisito. Acompanhei os seus passos, falando para os meninos ainda sentados no bolo de feno.
— Eu acho que ela não foi muito com a minha cara.
Mason revirou os olhos, abraçando Mila pela cintura, que tinha aparecido ali do nada.
— Não se preocupe. Bronwen tenta manter uma pose de rebelde, mas ninguém leva muito a sério.
Mila concordou, brincando com os dedos de Mason.
— E você é a rebelde da vez. Garota da cidade grande, deixa claro seu ódio por Cotswold, essas coisas.
— Ela acha que posso tirar o lugar dela aqui?
Será que ninguém mais tinha ouvido os boatos bizarros sobre mim na escola?
Mila abanou o ar com uma das mãos.
— Ela é gente boa, mas é meio maluca. Não se preocupe.
O resto da noite foi preenchido com mais conversas e mais descobertas sobre cada um ali. A minha cabeça girava com tanta informação e principalmente pelas duas bebidas suspeitas que tinham me servido.
Eu precisaria aprender algo sobre álcool ou implorar para que eu fosse café com leite como Mila parecia ser.
Olhando novamente todo o exterior daquele celeiro velho eu realmente me senti parte de alguma coisa. Ali dentro a minha crise de choro para papai e mamãe mal faziam sentido e eu quase me esquecia de toda a maldade que tinha vivido nos meus poucos dias em Bourton-on-the-Water.
Tinha vontade de saber mais sobre aquele grupo e sobre aquelas pessoas. Queria ver como Riley podia ser mais um geek doido e Noah um pequeno galanteador com bonés grandes demais para sua cabeça. Hayden e seu porte atlético, mas que arrasava no Francês e nos debates mais esquisitos que eu já tinha visto na vida. Ella e sua essência fora do comum, com cabelos coloridos e uma atitude incrível para uma garota tão jovem. Até mesmo Bronwen, para descobrir o que poderia causar nela essa aversão a mim, fora os boatos pesados da escola.
Queria saber mais sobre Mason, seu jeito despojado e seu melhor amigo de infância, . Sobre eu tinha mil e uma dúvidas e vontades…
E Mila. Com todo aquele jeito de princesa, o que era quase 100% diferente de mim, eu sentia a vibração mais incrível do mundo. Algo me dizia que viveríamos coisas incríveis naquela vila. Juntas.
Com a cabeça a mil e antes que Mila subisse em sua bicicleta rosa chiclete, um impulso tomou conta de meu corpo. Eu precisava consertar a besteira que tinha feito no primeiro dia de aula. E precisava que aquela menina visse que eu estava sim interessada em tê-la em minha vida.
Peguei nas mãos de Mila, tirando ela de perto do pessoal.
— Mila — ela me olhava com atenção. — Me desculpe se te tratei mal no meu primeiro dia de aula. Eu não sou assim.
A expressão da menina ficou abatida.
— Eu só estava tentando me aproximar.
— pediu? — o meu pensamento foi: será que tinha pedido para Mila verificar se eu era maluca antes de me convidar para o grupo secreto?
A menina balançou a cabeça. Seus olhos escuros ainda pareciam chateados.
— Não, . Só estava tentando ser sua colega.
Aquilo me machucou como um golpe de boxe provavelmente faria. Enquanto eu despejava mau humor e falta de interesse por tudo e por todos, no primeiro dia mesmo tinha uma menina incrível que só queria conversar comigo e, quem sabe, ser minha colega.
Mila continuou:
— Quando contei a Mason, ele disse que era para eu deixar de lado, porque não tem como ser colega de alguém que não quer isso.
Eu era uma pessoa horrível.
Apertei suas mãos.
— Eu sinto muito. Sou uma pessoa horrível.
Mila deu de ombros, me dando um meio abraço.
— Está tudo bem agora, de verdade. Já entendi o seu jeito.
Tomei um pouco de distância dela, sem entender.
— Meu jeito?
— Esse ar sabe-tudo da cidade grande.
— Tem certeza que não influenciou?
A menina sorriu sincera.
— Não, . Eu só fui com a sua cara, queria que fôssemos colegas de turma.
— E agora? — perguntei, receosa.
Mila sorriu ainda mais, subindo em sua bicicleta. Mason vinha logo atrás.
— Agora acho que vamos ser amigas.
Olhar Mila ir embora com o namorado me fez ter uma das melhores sensações de Bourton-on-the-Water. Eu conseguia ver simplicidade, felicidade e sinceridade. Em tudo.
O resto do pessoal já pedalava na estrada de terra mal iluminada, indo em direção ao centro da vila. Antes de desaparecer de nossa vista, ouvi Noah gritar.
— Muito, muito prazer, ! Sonha comigo!
— Cidade grande.
Um assobio baixo me despertou. Quando olhei para o lado, me esperava próximo de sua bicicleta verde.
— Acho que isso vai pegar, não é?
O garoto do mercado tinha uma expressão divertida, como se achasse graça da minha frustração momentânea.
— Provavelmente, sim.
— Acho que prefiro “menina do cachorro”.
Ele me olhou de soslaio antes de subir na bicicleta, ignorando completamente meu comentário anterior.
— Você nunca tinha feito nada disso, não é?
Por mais que ele estivesse completamente certo, me senti ultrajada com o seu cinismo.
— O que te faz pensar isso? Apenas sou fraca para bebidas.
— Pode confessar, — ele deixou a bicicleta de lado, cruzando os braços no peitoral. Sua expressão séria tentando conter um riso o deixava ainda mais lindo. — Não vou te julgar por isso. Ainda estamos no celeiro.
Fiquei alguns segundos sem falar nada, logo bufando alto em desistência.
— Você está certo. Não sou a rebelde da cidade grande que vocês acham.
— Ninguém te acha uma rebelde da cidade grande — abri a boca, como se tivesse sido desmascarada de uma bela mentira. — Que foi? Fala sério, . Não é só porque você tem mau humor na escola que é uma garota problema.
— Tudo bem. Como você soube que nunca fiz essas coisas?
— Você ficou horrorizada com o baseado — ele segurou uma nova risada, logo se recompondo. — Aliás, me desculpe por isso. Não foi certo.
pedindo desculpas? O que ele fumou devia realmente ser muito forte.
Tentei ao máximo parecer natural.
— Não foi nada demais.
Ele não pareceu muito convencido, mas me olhou de lado, puxando a bicicleta para si novamente.
— Ok, menina do cachorro. Vamos, vou te deixar em casa.
— Você vai andar de bicicleta bêbado?
— Se você quiser ir a pé... Pelo meu estado nós chegamos só de manhã.
Antes de subir na bicicleta, relutante, vi palavras saindo involuntariamente de minha boca.
— — ele me olhou de prontidão, suas sobrancelhas levantadas. — Por que me trouxe aqui hoje?
— Preciso realmente te dar um motivo para isso?
Meu coração disparou. Bebidas fazem isso, certo?
— Todas as vezes que nos falamos, quase nos matamos.
Ele riu sereno, encostando-se na cerca velha de madeira.
— Eu já te disse, . Você não combina com isso tudo — e fez um gesto como se quisesse me mostrar os arredores. — Você não precisa sofrer sozinha. É isso.
Foi a minha vez de levantar as sobrancelhas, surpresa.
— Então isso quer dizer que a gente não briga mais?
Ele sacudiu a cabeça, divertido.
— Só se for necessário. Por exemplo, quando você transborda grosseria.
— É coisa da cidade grande.
Aquilo pareceu o suficiente para ele.
— Vamos?
Eu estava quase pronta para ir embora (já que só tinha sobrado nós dois naquele meio do nada), mas precisava tirar a dúvida que martelava em minha cabeça o tempo todo.
— Você ouviu o que falam de mim na escola?
Ele respondeu sem medir palavras.
— Que você é uma péssima amizade?
Respirei fundo.
— Algo assim. E que eu roubo coisas.
fez uma careta.
— Ouvi sim, . Só não achei que fosse verdade.
Sorri com vontade sem ao menos perceber.
— E não é. Obrigada.
— Na verdade, ninguém do grupo acreditou.
Eu queria dizer que Bronwen acreditava um pouco, já que parecia não ir com a minha cara, mas deixei para outro momento.
— Vamos?
Após alguns minutos em silêncio, enquanto pedalava sua bicicleta tranquilamente, eu consegui pensar em como o meu dia tinha sido louco. Fazer novas amizades era sempre um desafio, mas às vezes acontece sem ao menos você perceber. E ali estava eu, andando de bicicleta com a pessoa que eu considerava ser a mais grossa e antipática da região.
Ao chegar em minha casa, me deparei com um dos muitos desafios da vila. Eu teria que subir pela parte de fora até a janela do meu quarto, no segundo andar. Além de ser parte do “batismo” do celeiro, disse que seria bem mais fácil do que explicar aos meus pais o cheiro esquisito de maconha e álcool assim que eles ouvissem passos pela casa.
Eu resolvi acatar, afinal, realmente não fazia esse tipo de coisa na cidade grande.
— Antes de você ir: uma confissão.
Meu coração deu um pulo, muito provavelmente pela bebida. Sério.
— Sobre o que?
cerrou os olhos, mantendo a voz baixa devido a hora.
— Como você não tem nada a ver com isso tudo aqui, foi fácil ver isso desde o primeiro dia que te conheci — e então ele esclareceu algo que eu nem sabia que precisava. — Esperei você se encaixar em algum grupo na escola para ter a certeza. E como isso não aconteceu eu tive a confirmação de que você precisava estar no celeiro com a gente.
Eu queria fazer mil perguntas sobre aquilo, principalmente pelo fato de ele ter me monitorado em silêncio nas últimas semanas, mas deixei passar. Deixei passar por estar um pouco alta e por simplesmente estar aproveitando tanto aquele momento que não queria mais brigas ou grosserias com .
Queria só receber um sorriso e, quem sabe, encontrar com eles numa próxima vez.
— Obrigada — o menino pareceu satisfeito. — Estou pronta.
me observou escalar a escada improvisada até o segundo andar, que dava diretamente na janela do meu quarto. Eu usava os pedaços de madeira que as trepadeiras cresciam em cima, pisando em cada um com o maior cuidado possível. Sua risada abafada já me dava nos nervos.
— Quer parar? — sussurrei olhando para baixo, em sua direção. — Vai me fazer cair!
Ele revirou os olhos, ainda me observando escalar a parede.
— Sobe logo isso, não tenho a noite toda.
— Grosso!
Consegui jogar meu corpo para dentro do quarto, caindo sem muitos estragos. Olhei para o jardim. estava me observando, sem expressão.
— Tudo certo aí?
Concordei com um gesto, o que foi o suficiente para que ele subisse novamente em sua bicicleta verde. Antes que ele desse a primeira pedalada, chamei seu nome.
— — ele olhou para cima, pelos ombros. Bebidas nos fazem falar demais, certo? — Obrigada.
Certo.
Ele sorriu e eu não pude deixar de acompanhar.
— Te vejo mais tarde?
Franzi o cenho.
— O quê?
Ele sorriu mais ainda.
— É um jeito de falar, . Você acostuma.
E então ele foi embora, pedalando até sumir na escuridão.
“Você acostuma”. Eu teria amigos de novo.
Novamente aquele pátio lotado me intimidava.
Não esperava coisa diferente depois de toda a loucura que vivi nas últimas semanas dentro da vila de Bourton-on-the-Water e da própria perfeição surreal da The Cotswold School. Eu tinha ido de rebelde da cidade grande à excluída social por, supostamente, roubar coisas, criar mentiras e, pelo que tinha chegado aos meus ouvidos naquela manhã: vender coisas ilícitas por aí.
Eu precisava entrar para o livro de recordes mundiais pelo volume de má reputação adquirida em tão pouco tempo, em um só lugar e com quatro mil habitantes.
Depois de tudo o que tinha descoberto, ser indiferente ficava cada dia mais difícil. Buscando a minha sala para a próxima aula eu via pessoas passando pelos corredores ridiculamente limpos demais, ainda sem prestar atenção na garota nova. Bom, a garota nova e cleptomaníaca, claro.
Abri meu armário brilhoso, limpo e lustrado demais, e encontrei um dos mil livros que precisaria para acompanhar aquela semana. Em um cantinho tinha deixado um adesivo motivacional cafona que meu pai sempre me entregava nos inícios de mudanças. Para Cotswold ele usou “O segredo da vida não é ter tudo o que você quer, mas amar tudo que você tem”. Respirei fundo olhando aquilo. Ainda conseguia ver com clareza a sua expressão quando minha mãe sentou nós dois na sala de estar e contou sobre a minha cena em prantos para que fossemos embora para Londres. Mesmo com o semblante abatido, ele tinha prometido.
— Londres?
— Qualquer lugar bem longe de Cotswold, pai.
— Vou fazer o possível para agilizar isso.
Aquela ponta de esperança era o que me fazia estar de pé dentro daquela escola esquisita. Eu teria que aguentar tudo e todos por pouco tempo, já que meu pai nunca deixava uma promessa passar.
Era uma das suas melhores qualidades.
Voltando a olhar para aquela multidão de cabelos arrumados demais às oito da manhã, eu não podia deixar de imaginar como poderia ser a minha nova vida em Londres. De volta para a cidade grande. Imaginava se as escolas seriam mais a minha cara e se as pessoas seriam mais simpáticas e menos perversas com quem acaba de chegar. Seriam as pessoas de Londres tão loucas quanto Nova Iorque? Ou tão fashionistas quanto Paris? Os pensamentos de estar novamente na cidade grande me deixavam nas nuvens. E esse sentimento de lembrança e saudade sempre me traziam boas recordações.
Já havia perdido a conta de quantos minutos estava ali, deitada em uma toalha felpuda na grama, apenas olhando as nuvens que passavam no céu. Até que um furacão em forma de pessoa senta ao meu lado, derrubando o lanche que eu tinha deixado semi acabado por ali.
Nem precisava olhar para saber quem era.
— Eu amo essa cidade!
Bree se jogou ao meu lado, me cutucando com o cotovelo esquerdo. Olhei em sua direção e seu sorriso estava mais largo do que sempre. Algo realmente bom devia ter acontecido.
— George finalmente reparou em você?
Ela me cutucou novamente, ainda sorrindo.
— Isso seria incrível, mas não — e revirou os olhos junto comigo. — Ele ainda vai se arrepender por isso.
Fiz apoio com meus cotovelos, olhando agora a grande movimentação do parque.
— O que de tão incrível aconteceu então?
Minha amiga me olhou de lado.
— A escola é incrível, tenho amigos incríveis, minha bolsa nova da Saint Laurent chegou…
Tive de revirar os olhos novamente.
— Você conseguiu, não é?
Ela levantou com pressa, batendo palmas animadas em seguida.
— Adivinha quem conseguiu os ingressos mais incríveis para aquele show?
A verdade era que eu sentia falta da cidade grande em todos os aspectos. De mobilidade urbana e acesso à cultura até coisas bobas e fáceis, como ir em um show de algum artista da moda. Eu sentia falta de inclusão, de opções e alternativas. Coisas que não conseguia ver nem nas pessoas de Bourton-on-the-Water.
Era hora do intervalo e depois de escolher o melhor lanche possível (com as poucas opções que existiam dentro da instituição), fui interrompida da minha paz e devaneio quando um garoto entrou na minha frente (engomadinho demais, vale ressaltar). Seu olhar era curioso e eu estava pronta para acertar minha bandeja nele, caso viesse me contar mais algum boato maldoso.
Realmente estava cansada de ser a sensação rebelde do lugar.
— Você é a garota que veio da cidade grande, não é? Me chamo Dominic.
Concordei com gestos.
— .
— Eu conheço vários lugares também, meus pais gostam de viajar.
Aquilo me pareceu interessante. Alguém viajado em Cotswold?
Fiz pouco caso, já que “gostar de viajar” poderia muito bem ser “visitar todos os distritos cafonas do interior da Inglaterra”.
— Já esteve em Nova Iorque?
Dominic me olhou incrédulo.
— Como visitar os Estados Unidos sem passar por lá?
Aquelas palavras mudaram o meu dia. Seria possível achar pessoas sãs em Bourton-on-the-Water? Pessoas que já tenham saído dessa bolha de perfeição e conhecido o mundo real. Das cidades grandes, metrópoles, trânsito infernal e um belo índice de poluição visual, sonora e do ar.
Cara, como eu sentia falta de Nova Iorque.
— Vem sentar em nossa mesa, vou te apresentar alguns amigos.
E então apontou para uma mesa um pouco cheia demais no meio do pátio. Eu não estava muito a fim de comer sozinha, então, na hora, pareceu uma boa ideia. E pareceu uma boa ideia verificar se a galera viajada da vila de quatro mil habitantes acreditava nos boatos sinistros que rondavam por aí.
Não custava nada conferir.
No meio dos amigos de Dominic fui bombardeada de perguntas sobre minha vida e a cidade grande. Eu me sentia bem falando dos lugares que tanto amava. Respondi perguntas sobre minha família, meus interesses e, principalmente, Nova Iorque. O grande grupo se apresentou com pressa e eu não fazia ideia se tinha conseguido gravar o nome de todos, mas não me importava muito no momento.
Antes que o intervalo terminasse a minha orientadora pessoal, Zara, apareceu na mesa, sentando-se como se fizesse aquilo todos os dias. E provavelmente fazia.
Até que a princesa da Veneza da Inglaterra se deu conta de minha presença, ficando extremamente surpresa.
— ! — e depois de se recompor muito rápido, mostrou seu lindo sorriso a todos. — Vejo que já conhece meus amigos.
Senti um tom exagerado no ‘meus’, mas preferi deixar de lado. Depois da última que tinha levado de Zara queria fugir de um possível novo confronto. E queria fugir também de qualquer grupo que ela pertencesse.
Eu realmente não precisava aguentar nada daquilo, ainda mais da rainha do feno.
Dominic me olhou de lado, talvez imaginando se eu já tinha tentado enfrentar a senhora popular da região.
— Estávamos contando a sobre nossos planos de fazer uma bela viagem de formatura.
Lewis, que tinha um cabelo espetado, olhou para o menino.
— E como isso está quase impossível já que o nosso grupo não se forma junto.
Dominic sorriu presunçoso.
— Mais tempo para planejar nossas merecidas férias, não é, ?
Zara permaneceu com seu olhar em mim. Sem entender, a encarei de volta. Tinha algo de errado comigo ali?
— Você não pode usar isso.
Minha única reação foi encará-la incrédula. Os demais na mesa se calaram na mesma hora. Olhei para minha roupa, já identificando a causa.
— É azul.
Ela continuou sem expressão alguma.
— É azul demais.
Tive de segurar a minha gargalhada, deixando apenas um riso tocar os meus lábios. Aquilo era sério? Pela expressão de Zara, era. E ela ainda aguardava alguma reação minha sobre sua intervenção.
Respirando fundo tirei o sobretudo azul, colocando-o em cima da mesa.
Abri a bolsa ao meu lado, tirando de lá o suéter cafona e cinza. O vesti com rapidez. Zara deu um sorriso sem mostrar os dentes.
— Bem melhor.
— Algum de vocês viu Harriet? — Lewis abriu a boca, talvez tentando cortar o clima tenso na mesa.
Skye amassou uma bolinha de papel.
— Eu a vi mais cedo gesticulando demais com aquela prima estranha dela.
Dominic parecia aéreo a conversa boba.
— Zara — a menina olhou para ele, sorrindo —, sabia que o pai de é importante em Londres?
O rosto de Zara ficou sério. Eu queria correr daquela mesa.
Olhei para Dominic, querendo extinguir a pauta “vamos saber mais sobre ”.
— Meu pai é consultor financeiro. Nada de emocionante — dei de ombros, fazendo pouco caso daquilo. Já estava de saco cheio de explicar o porquê de trocarmos tanto de país. — Ele está resolvendo alguns problemas por aqui, eu acho.
Zara me analisava, séria. Eu não entendia, mas, por um segundo, a cor pareceu fugir de seu rosto. Ela logo se recompôs, sorrindo de leve.
— Parece importante.
Dominic parecia interessado.
— Ele resolve problemas grandes? De empresas?
Neguei com gestos, enquanto terminava de engolir um pedaço de meu sanduíche.
— Países, estados. Essas coisas. Ele trabalhou anos na Casa Branca, hoje viaja o mundo onde precisam dele.
Zara me olhava estranho. Dominic se aproximava de mim cada vez mais.
— Parece realmente importante.
Dei de ombros, tomando um gole de suco.
– Acho que sim.
Uma garota adentrou o pátio do refeitório completamente agitada. Seus cabelos castanhos tinham mechas laranja por toda parte, com a frente presa com um pequeno laço amarelo, deixando seus fios jogados para trás. O sol era pouco na manhã, mas ela carregava em seu rosto grandes óculos azuis em formato de coração.
Podia até ser uma combinação bem exótica, mas eu gostava. Gostava porque finalmente tinha visto alguém que parecia estar na mesma situação que eu: odiava aquele uniforme cinza cafona e, principalmente, o jeito velho como as pessoas se vestiam por aqui.
O menino rebelde, Kyle, não era tanto assim, só colocava a jaqueta por cima do uniforme antiquado.
— Tem como essa garota ser mais estranha? — a tal da Caitlin falou, com puro cinismo em sua voz. — Que coisa ridícula.
— Como é o nome dela mesmo? — Lewis fez pouco caso. — Ela tem aula com a gente, não é?
Foi a vez de Skye dar de ombros:
— Não faço ideia. Não reparo em gente do tipo dela.
A menina das mechas coloridas não podia ouvir o que esse pessoal falava, mas eu senti raiva por ela. Se aquela mesa em que eu estava sentada era a mais legal e viajada de Bourton-on-the-Water... Eu definitivamente não combinava com nada de Cotswold!
A garota excêntrica sentou em uma mesa próxima a nossa. Perto o suficiente para que Lewis e Aaron, que estava calado até o momento, jogassem pedacinhos de guardanapo na menina. Eu sentia vergonha. Sentia vergonha por estar sentada naquela mesa, participando daquele episódio ridículo.
Foi ali que eu percebi que Bourton-on-the-Water não ia ser diferente da cidade grande em um sentido: existiriam grupinhos fúteis e sem noção também. E eu, desde o começo, deveria escolher as minhas possíveis amizades.
Não era aquilo que eu queria fazer parte, mesmo que por pouco tempo.
Não satisfeitos com os pedaços de guardanapo, os dois garotos falavam gracinhas sobre a menina. Esta nem ao menos se dava ao trabalho de responder ou olhar para os idiotas do meu lado. Já devia, infelizmente, estar acostumada.
Aquela cena me deu tanto nojo que a única reação normal foi pegar a minha bandeja e levantar. Dominic segurou em meu punho.
— , o que houve? — e sua expressão preocupada parecia realmente sincera. — Fizemos algo que te chateou?
Zara, Caitlin e Skye fofocavam algo no canto, enquanto o resto da mesa ainda perturbava a menina ao lado. Nenhum deles parecia ver que aquilo não estava certo.
Aquilo serviu como um estalo em minha mente. podia não ser a melhor pessoa de Bourton-on-the-Water, mas pelo menos parecia ter uma índole melhor do que todo esse pessoal junto. Falava na cara. Eu não sabia dizer por que aquela brincadeirinha deles me magoava tanto. Talvez seja por eu não me sentir parte desse lugar, assim como a menina do cabelo laranja.
Sacudi a cabeça em negação.
— Não, só preciso ir resolver umas coisas na secretaria — ele não pareceu muito convencido, mas me soltou para ir. — A gente se vê.
Depois de alguns passos para longe daquela mesa, já respirava melhor. Coloquei minha bandeja em um dos lixos e decidi procurar o que fazer. Eu não tinha nada para resolver na secretaria.
Dominic veio correndo ao meu encontro.
— Será que eu posso te levar para conhecer a região qualquer dia desses?
A raiva se dissipou no mesmo segundo em que as palavras de Dominic invadiram meus ouvidos. Eu queria morrer de rir. Gargalhar na cara de Dominic até não aguentar mais. Se eu queria que alguém me desse um tour particular por Bourton-on-the-Water? Ninguém merecia aquilo. Muito menos eu.
Mas o meu instinto de educação estava bem aflorado, coisa que não funcionava há dias. Já bastava brigar com desconhecidos loucos pelos mercados da região, eu não poderia fazer o mesmo pela escola, afinal, seria uma prisão diária.
— Claro, por que não?
Ele sorriu abertamente, acenando com a cabeça.
— A gente se vê então.
Após o fim do último sinal decidi que sairia daquele lugar o mais rápido possível, para evitar qualquer pessoa, mesmo que novos conhecidos. Eu não queria bater papo, não queria ouvir os boatos sobre mim e também não queria fazer parte de qualquer coisa ali dentro.
Passei batida por Kyle, que apenas deu um aceno esquisito com a mão. Respondi com um gesto, ainda em passos largos para fugir da The Cotswold School sem precisar abrir a boca.
Nem o meu plano de fazer o rebelde da vila se interessar por mim fazia sentido agora. Tudo o que eu queria era correr de lá o mais rápido possível.
Na esquina que me libertaria do quarteirão imenso que era aquela escola, a grosseria em pessoa entrou em meu campo de visão. Eu já conseguia respirar melhor fora daquele ambiente tóxico, então me permiti diminuir os passos. se despedia de algumas pessoas com um livro grosso em uma de suas mãos.
Até que seus olhos pararam em mim.
E o sorriso murchou na hora.
Seus passos até mim, ou até a rua, já que eu continuava andando como uma tartaruga, pareceram durar horas.
— Estava me esperando para mais grosseria?
Ele podia ser irritante, mas ainda o achava bonitinho demais. Seus olhos azul-claros estavam um pouco fechados devido a claridade do dia e seu cabelo com pequenas ondas nas pontas pareciam mais desgrenhados (provavelmente por ele ter dormido em alguma aula chata).
E se fosse por esse motivo já tínhamos algo em comum além do grande potencial para espalhar grosseiras por aí.
— Alguém já disse que você é muito pretensioso?
Ele sorriu, balançando a cabeça em negação.
— Não estou afim disso hoje.
Dei de ombros, sem ao menos responder. Resolvi dar novamente inicio a minha caminhada para casa, ignorando qualquer pessoa.
Poucos minutos depois (e bem longe da escola) senti passos ao meu lado, me acompanhando.
— Trégua?
Era .
— Como quiser.
— Ótimo — ele sorriu, ajeitando em suas mãos o livro que ainda parecia pesado e desnecessário demais. — Será que conseguimos conversar sem um jogar o outro no rio?
— Podemos fazer isso?
— Nadar no rio é proibido.
Franzi o cenho para aquela informação. Nadar em rios é proibido desde quando?.
— Que notícia boa.
pareceu concordar, mas logo mudou de assunto.
— A fofoca do dia é que você não durou muito na mesa de Dominic. O que houve?
Estranhei sua pergunta por uma fofoca da escola, mas podia deixar essa discussão para depois. Estávamos sendo legais.
Pelo menos ele não estava perguntando se eu tinha roubado algo de algum armário naquela semana.
— Eles podem ser legais, mas fazem coisas que não concordo.
pareceu concordar novamente. O silêncio se instalou enquanto andávamos a caminho de nossas casas. Depois da nossa última briga no mercado decadente eu mal sabia como me comportar ao seu lado. Eu não podia me dar ao luxo de ter inimigos em Cotswold, afinal, nem amigos eu tinha.
— — ele me olhou de lado, como um incentivo a continuação da minha fala. — Olha, me desculpe pela última vez que nos falamos. Eu não sou assim.
— Está tudo bem, não se preocupe.
Tive de respirar fundo.
— Isso significa que você aceita minhas desculpas ou não?
— Isso realmente interessa ou muda alguma coisa?
Parei de andar no mesmo instante. Era quase como um dejá-vu. Eu já podia me ver gastando palavras rudes e mal educadas com ele por todo o caminho. Eu já podia até mesmo me ver jogando ele no rio proibido. Mas eu não queria aquilo, e queria muito menos que ele me tratasse indiferente como todo mundo por aqui. Já era o suficiente vir morar no fim do mundo e ter um boato falso de cleptomaníaca espalhado por aí. Estava cansada de grosserias.
— Sim, muda tudo.
E foi só nesse momento que ele percebeu que eu já não o acompanhava lado a lado.
— O que houve? — continuei parada, olhando-o. — Tudo bem! Está desculpada.
Andei a passos largos até chegar ao seu lado novamente.
— Obrigada.
— Sinto muito pela grosseria ontem também.
— Você teve os seus motivos.
— Isso, com certeza — o olhei no mesmo momento, como se não acreditasse naquilo. Até pedindo desculpas ele tinha que implicar comigo? — Ok! Deixa isso pra lá, é melhor.
— Eu não te devo satisfação alguma, mas essa cidade me irrita.
sorriu de lado com o meu comentário.
— Já tive esses dias.
— E quando isso vai passar?
Ele sorriu mais ainda, balançando a cabeça.
— Nunca.
— Outra notícia boa, obrigada.
Ele deu de ombros.
— Não é Paris, mas dá para sobreviver.
O olhei de lado.
— E Londres?
Minha esperança ainda estava bem acesa. Toda vez que lembrava da expressão de papai eu tinha forças para acreditar que iríamos conseguir ir para Londres o quanto antes. Então qualquer assunto sobre aquela cidade me interessava bastante.
— Não conhece Londres? — neguei com a cabeça. — Vale a pena. Não tem nada a ver com tudo isso aqui.
Isso eu já esperava, mas deixei passar novamente para que nossa trégua continuasse valendo. Eu queria saber sobre as coisas diferentes que aquela cidade grande tinha, quais eram as coisas imperdíveis, os melhores lugares para se frequentar. Sabia que estava esperando muito de alguém que morava (provavelmente) desde sempre naquele fim de mundo, mas queria aproveitar o bom momento que estávamos passando.
— Alguma dica legal sobre Londres?
Ele deu de ombros novamente.
— Fui poucas vezes para me divertir, mas posso te contar algumas coisas que acho interessante.
Sem perceber, fiz o caminho do mercado com ele. Isso fez com que , ao chegar na fachada do local, me olhasse confuso.
— Precisa de algo do mercado?
Eu não podia dizer que simplesmente me distraía muito com a sua presença e suas dicas de Londres, então acabei o seguindo. Tinha que inventar qualquer desculpa.
— Não, mas vou almoçar ali no restaurante da esquina. É bom?
Ele concordou com gestos enquanto entrava no mercado.
— É sim. Meu pai é muito amigo da dona, costumávamos almoçar lá sempre nos finais de semana.
Tive que entrar correndo para acompanhar suas falas. Estava sonhando ou ele simplesmente estava contando algo da sua vida por pura vontade, sem patadas?
Ele parou atrás do balcão, após se abaixar para deixar sua mochila. Aquela era a minha hora.
— Bom, vou indo então.
Quando ia me responder algo, uma menina baixinha de cabelos longos e loiros saiu pela porta atrás dele.
— , que demora foi essa?
? Então o meio ogro tinha um apelido legal.
Ele olhou para trás, logo puxando a menina para mais perto, abraçando-a de lado.
— Deixa de ser pentelha, foram dez minutos só — a menina fez uma cara enfezada, que logo se dissipou com o beijo que deu em sua testa. — Foi rapidinho — ela se desvencilhou de seus braços, logo ajeitando o cabelo. O nariz empinado combinava direitinho com o garoto à sua frente. — Vai para casa agora, vai.
E com isso, a tal menina loira percebeu que eu encarava aquela cena como uma idiota.
— Precisa de algo? — seus grandes olhos azuis me fitavam com curiosidade. — Gostei do seu casaco.
Como protesto silencioso eu tinha colocado de volta meu sobretudo “azul demais”.
Eu sorri em resposta.
— Não, obrigada — e reparei que ela usava uma jaqueta rosa com muito estilo para alguém da idade dela. — Gostei do seu casaco também.
riu, saindo detrás do balcão.
— Annabelle, essa aqui é a . Ela estuda lá na escola.
— Oi, — ela me fitou de cima a baixo novamente, mas ainda com um sorriso singelo no rosto. Annabelle aparentava no máximo onze anos. — É nova na cidade?
nem me deixou responder:
— veio de Paris.
O olhar da menina se iluminou.
— Uau! — e então chegou mais perto de mim. — É sério? Lá deve ser lindo — e se virou para e depois para mim de novo. — É lindo, não é?
Não pude deixar de rir.
— É sim. Muito lindo.
ainda ria da reação da garota.
— Agora vai, pirralha.
A menina fechou a cara, logo me fitando novamente.
— , você tem irmãos?
Levantei as sobrancelhas em surpresa pela sua pergunta.
— Tenho um, mais velho.
Ela suspirou, olhando de canto de olho para .
— Espero que não seja chatinho como o meu.
a agarrou pela cintura, fazendo a menina rir novamente.
— Eu ouvi isso, peste. Vai pra casa antes que meu pai venha me perturbar!
Ela se soltou, fazendo uma reverência exagerada.
— Como quiser, querido irmão — e eu não contive meu sorriso junto a eles. — Tchau, ! Qualquer dia me conta sobre Paris.
Isso sim era novo. O garoto do mercado sendo realmente simpático e alegre com alguém.
Vi Annabelle se afastar, atravessando a ponte de pedra.
— Ela é linda.
me olhou engraçado.
— É de família essas coisas.
A sorte da minha vida era que eu não corava fácil.
— Vocês são irmãos de verdade?
Ele riu, cínico.
— Continuamos na trégua, certo?
— Claro — dei de ombros. — Vou indo.
Ele me olhou de lado, deixando escapar um sorriso.
— Espera. Quero te fazer um convite — mas logo o sorriso se fechou por completo. — Se você não for grossa de novo, é claro.
Franzi o cenho de imediato, pouco me importando com o final da sua fala.
— Um convite?
Meu corpo paralisou no mesmo momento. Um convite. queria me fazer um convite. Não sabia se fazia pouco caso daquilo ou se alimentava minha mente de poucas esperanças, já que poderíamos voltar a brigar a qualquer momento.
E ele poderia me convidar simplesmente para ‘conhecer a região’.
Respirei fundo, enquanto ele mexia em alguma coisa no caixa. Tentava com todas as forças me manter serena, pois não sabia o que estava por vir.
Ele sacudiu a cabeça em afirmação.
— Vou encontrar uns amigos mais tarde. Quero que você vá comigo.
Por um momento eu vacilei. Eu queria amigos, mas não sabia onde estava me metendo. E eu não queria fazer parte do grupo em que estive na hora do intervalo. Não queria nem ao menos ser chamada para ser parte dele.
— É o grupo de Dominic?
E então a grosseria em pessoa riu.
— Está louca? Não.
— Posso saber pelo menos do que se trata? — ele levantou as sobrancelhas, me olhando esquisito, como se já esperasse algo rude sair de minha boca. Ele havia começado. Odiava que me chamassem de louca. — Quero estar preparada caso você me chame para olhar as cabras da região.
Seus olhos claros cerraram.
— Você acha que sabe de tudo, conhece de tudo, não é? — não fiz a menor questão de responder. Nós íamos começar a brigar de novo? — Ótimo, melhor assim — e me ignorou, voltando a mexer no computador a sua frente. — Te pego assim que anoitecer.
— Vai ao menos perguntar onde eu moro?
— Só tinha uma casa à venda em toda a vila. Sei onde você mora.
Revirei os olhos.
— Te encontro na esquina.
Ele concordou com um aceno, sem tirar os olhos do computador.
Era a minha deixa para ir embora de vez.
Fiz o possível e o impossível para estar pronta antes de anoitecer.
A coisa mais caipira que presenciei em Bourton-on-the-Water era o costume de combinar um horário de acordo com o sol e não com números certos de um relógio.
Depois de ficar quarenta minutos esperando a noite cair (porque certamente eu não sabia que horas isso acontecia), inventei uma desculpa aos meus pais de que teria uma atividade extracurricular na escola junto ao time cafona de futebol feminino. Eles não compraram de início, mas depois que eu disse que era obrigatório, valia nota e iria para o meu currículo escolar já muito manchado por treze mudanças, eles pareceram mudar de opinião.
Sai de casa caminhando até a esquina, conforme o combinado de mais cedo. Ele estava encostado em um muro de pedras, com uma das pernas no mesmo. Sua feição despreocupada só fazia com que ele parecesse mais bonito do que eu me lembrava.
Aquilo gelou meu estômago. Não por ele ser atraente, mas pelo fato de que eu estava sendo convidada para tentar ser amiga dele e de seus outros amigos. Provavelmente amigos de infância.
Em todas as mudanças a parte mais difícil era se entregar para a amizade, pois o medo de ir embora a qualquer momento era constante. Eu não conseguia fazer amigos de verdade, porque só pensava em como seria ruim deixá-los depois de um curto período de tempo. A verdade é que doía bastante conhecer pessoas incríveis e simplesmente ir embora. Somente em Nova Iorque que consegui me libertar um pouco mais. Acredito que tenha sido por minha pouca idade e também por termos ficado tanto tempo direto lá. As viagens eram curtas naquele período, então a nossa casa de verdade se mantinha fixa na América do Norte. Era como se eu só fosse fazer uma viagem de férias e voltasse, já que não tinha idade o suficiente para ficar em casa sozinha.
Então aquela sensação desesperadora encontrou meu corpo novamente.
se descolou da parede de pedras, soltando um singelo “E ai”. Diferente de todos os dias que o vi, ele estava moderno e com estilo. Sua calça jeans era escura e sua blusa branca com detalhes azuis, que combinavam com seus olhos claros.
Ele estava lindo. E era bem difícil admitir isso.
falava algo e foi então que eu reparei em uma coisa ao seu lado. Uma bicicleta.
— Você só pode estar brincando.
Ele me olhou estranho, talvez não entendendo o porquê de minha reclamação repentina.
— O que houve? — mantive meu olhar na bicicleta. Ele acompanhou, rindo alto em seguida. — Nem comece a reclamar.
— Eu não tenho uma bicicleta para acompanhar você.
franziu o cenho, talvez achando graça da minha expressão.
— E quem disse que você precisa de uma?
A muito contragosto aceitei subir na bicicleta verde. Eu mal me lembrava de como andava naquilo, imagine confiar em alguém para ir de carona.
— Se você nos derrubar, te jogo no rio proibido.
ria com as minhas reclamações. Eu as fazia enquanto tentava me ajeitar da melhor maneira em sua bicicleta. Não era das mais novas ou do último modelo lançado (como se eu soubesse muito sobre bicicletas), mas parecia o suficiente para a região.
O garoto esperava pacientemente eu me ajeitar no quadro central, colocando então as mãos na parte que sobrava do guidão.
— Pronta? — sacudi a cabeça em afirmação. Ele colocou os braços por cima dos meus, segurando nas pontas. Aquela aproximação fez com que eu suspirasse. — Tente não nos derrubar.
Eu precisava admitir que a sensação era diferente. Mais do que isso, era ótima. Quando você mora apenas em cidades grandes, barulhentas e cheias de falta de espaço, você simplesmente esquece de pequenas coisas boas como essa. O céu escuro estava completamente estrelado, e graças a grande área de vegetação e plantações, eu podia vê-lo tranquilamente. Nada de postes de luz, nada de aviões cruzando o céu de dois em dois minutos. Nada daquele barulho caótico de buzinas e pessoas reclamando da vida.
Meu Deus, o que estava acontecendo comigo?
Mas é claro que eu não ia admitir isso para . Pelo menos não agora.
Ele continuava sereno, pedalava em um ritmo ideal, fazendo com que o vento nos atingisse sem muita força.
Nós cruzamos a vila e logo chegamos em uma estrada de terra que só tinha mato de ambos os lados, assim como grandes fazendas e celeiros abandonados em terrenos distantes e enormes.
Depois de alguns minutos na estrada de terra mal iluminada, diminuiu a velocidade, parando em frente a uma cerca de madeira velha, tão velha que só tinha alguns metros e um portão baixo que, acredito eu, nem fechava mais.
Ele saltou da bicicleta depois que fiz o mesmo.
— Não foi tão ruim assim, foi? — neguei entre gestos. Estava evitando o máximo falar, não queria brigar de novo. O que eu queria era aproveitar cada momento daquela noite. — Vamos entrar.
Assim que acompanhei seus passos, meus olhos foram dominados pela imagem de um grande celeiro. A falta de luz na área externa dava um ar sombrio ao local e eu só pude imaginar essa falta de iluminação em uma cidade como Nova Iorque. Nada bom.
Eu devia realmente considerar a falta de poluição como um motivo para a minha maluquice. Naquele momento tudo o que conseguia pensar era em como eu havia aceitado “encontrar uns amigos” em um celeiro abandonado, no meio do nada que é Bourton-on-the-Water.
fez menção em abrir a grande porta, me olhando sobre o ombro esquerdo. Com toda certeza eu mantinha a minha cautela.
— Tudo bem aí? — concordei entre gestos novamente, ainda observando atentamente o local quase abandonado. — Fica tranquila, lá dentro é mais bonito.
— Vocês são um grupo de motoqueiros rebeldes, por acaso?
Ele riu pelo nariz, balançando a cabeça, como se minha cautela o divertisse.
— Você não veio da cidade grande? Aposto que isso aqui é nada.
Depois de prometer várias coisas a vários deuses entrei no tal celeiro, logo atrás de .
E realmente era mais bonito por dentro.
O local, mesmo coberto por quadrados prensados de feno, tinha uma ambientação diferente. Várias luzes, como pisca-pisca fixos, rodeavam as paredes do local. O chão batido era salpicado com feno, como se alguém tivesse feito nevar trigo ou algo assim. Apesar de ser um grande espaço aberto, um grupo de adolescentes se mantinha junto, no canto direito, local onde uma música baixa tocava.
Eles tinham uma caixa de som bluetooth dentro do celeiro abandonado.
Uma mesa antiga era decorada com várias garrafas de vidro, que supus automaticamente ser com conteúdo alcoólico.
cumprimentou todo mundo com um grande “e aí”.
A música foi colocada em pause.
Seria um grande momento para correr daquele lugar.
— Galera, quero apresentar a vocês uma pessoa — falou mais alto, conquistando mais ainda a atenção de todos. Mais ainda porque desde que colocamos o pé dentro desse celeiro, os olhares são só para nós. Ou para mim. Tanto faz. — Essa aqui é a . Chegou à cidade há poucas semanas, estuda na The Cotswold School, assim como nós.
Recebi alguns olhares mais convidativos, outros nem tanto. Pude reconhecer alguns rostos da escola e das atividades extracurriculares que eu tinha escolhido. A menina que havia me ajudado no primeiro dia, Mila, acenou brevemente com uma das mãos.
Uma garota de longos cabelos ruivos vestindo apenas roupas pesadas e pretas levantou seu copo em minha direção.
— Bem-vinda a Cotswold! — e então bebeu todo o conteúdo de uma vez. — Ou ao inferno, se preferir.
Me controlei para não deixar que meus olhos se abrissem demais, afinal, eu ainda era a garota da cidade grande que já sabe e viu de tudo. Dei de ombros, olhando de soslaio para . Ele apenas revirou os olhos.
— Essa é a Bronwen. Personalidade forte.
Olhei para a menina ruiva no mesmo momento. Não tinha a reconhecido em meio a tanta maquiagem preta.
— Nos conhecemos. Grupo de Línguas.
pareceu concordar em meio a careta que Bronwen fazia para mim. Aquilo me lembrou que a menina tinha prometido ‘ficar de olho’ no que eu faria dentro da escola.
Onde eu tinha me metido? Se já era difícil, imaginava que seus amigos não seriam diferentes.
Um garoto pálido de cabelos negros se levantou, vindo até nós.
— Não consigo nem falar o tamanho do prazer que é te conhecer, — e então me olhou de cima a baixo. — Você é muito linda, cara!
pôs a mão na frente do garoto, antes que ele pudesse chegar mais perto.
— Nem começa, Noah.
O menino riu, dando uma piscadela para mim. Ele era baixinho e usava roupas largas de skatista. Seu boné colorido com os dizeres “SKATER” parecia grande demais para sua pequena cabeça.
— É só para ela conhecer as principais características de todo mundo — e gargalhou, voltando ao seu lugar em um bolo quadrado de feno.
O garoto Hayden (o alto demais e também da extracurricular esquisita de Línguas) falou comigo em Francês, enquanto a ruiva rebelde ao seu lado revirava os olhos.
— Bem vinda, !
O baixinho Noah o olhou de lado.
— Quê?
— Ela está em nosso grupo de Línguas.
Noah ajeitou o boné na cabeça.
— Cara, que sorte a sua!
Vi revirar os olhos e respirar fundo, mexendo em algo no bolso.
— Então, — e me olhou de lado, logo apontando para quem tinha me comprimentado em Francês. — Você já conhece Hayden — seu dedo foi até a garota que eu também já conhecia, mas ele talvez não soubesse disso. — Mila — ao seu lado um garoto com estilo muito parecido com , porém com cabelos mais claros. O mesmo garoto que eu havia visto com em meu primeiro dia em Cotswold (e também no super churrasco de papai). — Mason. Você não vai vê-lo na escola, ele já se formou ano passado — e contornou o celeiro, apontando para outro garoto de cabelos claros, porém de menor estatura. — E Riley, seu irmão.
Os dois meninos que estavam em nossa casa na última semana acenaram brevemente, parecendo lembrar de mim também.
Bourton-on-the-Water era realmente uma vila muito pequena.
— Por que não vai me apresentar, ? — o tal do Noah reclamou, ajeitando novamente o boné grande demais.
Quando eu ia questionar, a grande porta do celeiro se abriu em um rompante, logo adentrando uma menina afobada, com uma bolsa amarela nas mãos. A reconheci no mesmo momento em que a vergonha atingiu o meu corpo. Era a menina que o grupo de Dominic chamava de esquisita no intervalo mais cedo, enquanto eu ainda estava presente na mesa.
— Vocês não vão acreditar no que eu... — ela falava completamente animada, mas ao perceber a minha presença se calou. — Oi! Quem é a novata? — e andou mais ainda pelo celeiro, chegando perto de nós. Pela sua expressão ela não havia me reconhecido. E se tivesse, estava fingindo bem. — Finalmente temos gente nova! Teve votação e eu fiquei de fora, né? — ela abanou o ar, me analisando em seguida. — Tudo bem? — concordei com a cabeça, rindo de seu jeito. — Me chamo Ella, e você?
— .
— O que você acha de bebidas afrodisíacas?
Eu mal consegui responder, pois logo fui cortada por :
— Como você pode ver, Ella também tem uma personalidade forte.
Ella foi até , dando um leve tapinha em sua bochecha.
— Você vai me amar quando ver o que tenho aqui!
A cópia loira de , Mason, deu um passo à frente.
— Apresentações feitas, que ótimo. Posso reclamar sobre a minha vida agora?
Franzi o cenho no mesmo instante. Estariam todos da região finalmente contaminados pelo meu mau humor constante? Talvez eu tenha conseguido espalhar um pouco de poluição urbana das minhas mil caixas da mudança.
pareceu reparar na minha expressão confusa.
— , pelo menos uma vez na semana nós fazemos a noite da reclamação. Cada um diz o que tem sido um saco e pronto.
Todos se sentaram nos bolos de feno próximos. Mila me puxou pelo braço delicadamente, fazendo-me sentar junto a ela. Seu interesse em mim, diferente da última vez que a vi, me fez sorrir.
— Reclamar? Acho que posso fazer isso.
deu de ombros.
— Te convidei de propósito hoje, já que reclamar parece ser uma das suas maiores qualidades.
— Posso reclamar de você.
— Fique à vontade, acho que você não será a única.
A minha vontade era abrir a boca e dizer umas boas verdades a ele, mas resolvi dar de ombros também. Mason apertou os olhos, como se a nossa pequena discussão o cansasse.
— Posso começar então? — todos ficaram em silêncio. — Meu pai quer que eu arrume um emprego de verdade. Ele acha que trabalhar no bar do Sheppard é vergonhoso para a família — ele e Riley reviraram os olhos ao mesmo tempo. — O meu problema é que eu não quero criar ovelhas ou vacas, então não tenho muitas opções aqui em Bourton-on-the-Water.
se levantou rapidamente.
— Você não pode se mudar agora, Mason.
Mason o olhou de volta.
— Não vou me mudar.
A grosseria do mercado pareceu relaxar.
— Então o que vamos fazer sobre isso?
— Nada! Eu gosto de trabalhar no bar. E do que adianta tentar algo novo agora? Ano que vem vamos para a faculdade mesmo.
“Vamos para a faculdade”? Era bom saber que eles tinham planos de vida fora de Cotswold.
O grupo começou a discutir fervorosamente sobre o problema de Mason, mas a menina de preto interrompeu.
— Eu tenho uma reclamação! — a menina ruiva se levantou, se virando diretamente para . — Quem você pensa que é para trazer alguém do nada para o nosso espaço?
A expressão do menino não se alterou.
— Não começa, Bronwen.
— É, não começa princesa punk de Cotswold — o tal Noah “SKATER” falou, recebendo um xingamento da menina. — Só porque ela é linda e tem uma incrível bun…
o cortou:
— Cala a boca, Noah.
O baixinho me olhava.
— Ela não é do tipo que fica com as bochechas vermelhas. Gostei!
Eu ia responder, mas falou primeiro.
— Nem se dá o trabalho, vai por mim.
Bronwen marchou até o outro lado do celeiro, indo em direção a suposta mesa de bebidas. Mason se deu por vencido, visto que seu assunto tinha morrido.
— Beleza. Quem é o próximo agora?
Eu não tinha o que reclamar naquela noite, então só ouvi os desabafos daqueles adolescentes diferentes. Na verdade eu tinha sim o que reclamar, mas pretendia não assustá-los com tudo o que eu poderia dizer. Se eu tinha ganhado uma chance de participar de algo normal, tentaria um pouco mais que o habitual.
Depois que todos revelaram suas mágoas e irritações, a música no grande celeiro antigo voltou e pequenos grupinhos de conversas foram feitos. ria de alguma coisa com Mason e eu pensava se eles eram amigos inseparáveis. Parecia que sim. Os demais conversavam entre si, comiam alguns salgadinhos na mesa improvisada e tomavam líquidos suspeitos em copos transparentes.
Observar aqueles adolescentes espalhados pelo celeiro velho me trazia esperança de que viver em Bourton-on-the-Water por algum tempo não seria o meu fim. Suas roupas tinham estilo, mesmo que diversificados e isso me fazia sentir em casa. Na cidade grande. Eram coisas que eu não conseguia ver pelas ruas da vila, que parecia sempre extremamente antiquada.
O menino chamado Noah era facilmente um skatista. Suas bermudas largas faziam par com uma camiseta de tal tamanho. Boné virado para trás, além da personalidade despreocupada. Eu gostava, era urbano o suficiente para me levar de volta a realidade.
A garota Bronwen era claramente a rebelde do grupo. Suas roupas negras e cabelo cor de fogo se misturavam com a expressão carrancuda. Bonitinha, mas parecia que ficava de mau humor vinte e quatro horas por dia. Ela conversava com Mila, a menina que fazia Literatura Inglesa e Biologia II comigo. Seus cabelos negros brilhavam na pouca luz dentro do celeiro e ela parecia realmente interessada no que a outra falava. Seu vestido rosa claro entrava em contraste com a sua pele negra. Ela era linda e agia como uma princesa indefesa, ao contrário da menina a sua frente.
Noah mostrava algo para o irmão de Mason, Riley. O garoto concordava, fazendo seus grandes óculos de grau preto balançarem. Os dois não deviam ter mais do que quinze anos. Riley usava um suéter bordado com alguma referência de Star Wars, que não fiz muita questão de entender.
Hayden, o mais alto de todos, tinha uma expressão risonha ao ouvir alguma besteira (provavelmente) da conversa entre Noah e Riley. Seus cabelos cor de areia eram bagunçados e suas roupas combinavam de uma forma esquisita, e eu não conseguia dizer se o estilo dele era de esportista ou década de noventa.
. Completamente diferente da escola e do mercado, ele podia facilmente penetrar nas ruas de Nova Iorque, Londres e qualquer outra metrópole. Qual era o problema dele? Suas roupas eram muito melhores que as cores cinzas ridículas da The Cotswold School que ele insistia em usar até no trabalho. Mason podia ser claramente irmão do garoto do mercado, tirando o fato de que era loiro. Seu estilo era muito parecido, roupas na moda, mas com aquele desleixo que todo homem tem. E que faz total diferença para ser mais atrativo.
E por fim, Ella. A garota mais excêntrica que tinha conhecido em dezessete anos. Suas mechas coloridas brilhavam e seu grande laço verde no topo da cabeça deixava tudo mais incrível. Sua personalidade era clara: fazia o que tinha vontade sem se importar com o que o resto da população pensaria. Ella ajudava a consolidar aquela esperança de sobreviver, já que ela conseguia fazer isso muito bem pela vila, mesmo com tanta implicância e intolerância.
Ao meu ver sozinha no meio daquelas pessoas diferentes e esquisitas, me encontrei em algum lugar. Mila fez um gesto para que eu chegasse mais próximo, o que fez com que a garota ruiva se afastasse.
— Então — olhei ao redor do celeiro, falando alto e ignorando os olhares de Bronwen à minha direita —, vocês são o grupo de populares da escola que se encontram escondidos?
Parte do grupo deu uma risada divertida, o que me fez ficar intrigada. Eu tinha falado algo demais? parecia se divertir com a minha frustração.
— Esse não é um grupo que Dominic pertenceria — Mason tentou explicar, fazendo todos pararem de rir. — Não somos populares. É como se fossemos o contrário.
— Isso é um grupo de renegados? — falei sem ao menos pensar.
franziu a testa.
— Isso doeu.
Minha boca abriu, mas nada saia.
— Me desculpe, eu…
E então ele abanou o ar, rindo novamente.
— Brincadeira. Mas sim, é como se fosse.
Mila chamou minha atenção.
— Os populares da escola são Zara, Dominic, Skye, Aaron, Lewis e Caitlin. Eles tiram um pouco de sarro de algum de nós, mas nunca em conjunto — ela concluiu, dando um tapa em Noah por algum comentário que não entendi. — Ninguém sabe do nosso grupo ou que andamos juntos. Por isso não ficamos juntos na escola, assim ninguém perturba a gente.
Mason completou:
— Dentro do celeiro nós não julgamos, não brigamos e não questionamos. É um lugar livre para que todos nós possamos fazer o que bem entender.
concordava com o amigo.
— Aqui nós podemos ser nós mesmos, fazer o que quisermos — e tomou mais um gole do que seja lá dentro do seu copo. — Cotswold não nos domina aqui dentro.
Meu corpo inteiro parecia formigar.
Era como se fosse uma legião. De renegados. Em Bourton-on-the-Water.
Cada um parecia ter um estilo específico, mas todos tinham uma coisa em comum além da amizade.
Eles não combinavam com Cotswold.
— Então — voltei a olhar para todos —, vocês possuem um clube secreto e convidam uma desconhecida? — todos concordaram, menos Bronwen, que ainda fazia pouco caso da minha existência. Não que eu me importasse. — E se eu fosse maluca e contasse a todos pela manhã? O grupo de vocês já era.
– Confiamos em você — Mila disse simplesmente.
— Eles confiam — Bronwen nem se quer me olhou.
Mason a olhou atravessado.
— Se e Mila confiam, todos nós confiamos.
Aquilo me chocou em dobro. confiava em mim? O mesmo que tinha trocado farpas comigo desde o primeiro dia em que nos vimos?
Mason continuou mais uma vez:
— Você tem o suficiente: odeia Cotswold. Portanto, bem vinda ao celeiro.
Então a grosseria do mercado deu um passo para frente, abraçando Ella de lado e acabando com todos os meus questionamentos.
— Que comece a nossa noite!
O “comece a nossa noite” era claramente uma abertura para que todos dessem início a ingestão de álcool do dia.
Hayden, o menino do debate, distribuiu copos a todos, e até mesmo para mim. Eu queria correr ao mesmo tempo em que queria ficar e compartilhar tudo com aquele grupo maluco.
O problema da vez era que aquilo eu não estava acostumada. De beber e tudo mais. Eu mal tinha experimentado algumas cervejas, não saia escondido e nem fazia coisas ilegais. Era simplesmente tudo o que eu evitava da cidade grande.
Ou, na verdade, tudo o que nunca tinha experimentado.
Sei que idolatro Nova Iorque e todas as outras cidades imensas que já moramos, mas o bom de todos esses lugares, ao meu ver, era a acessibilidade à cultura (museus, shows de bandas incríveis e últimos lançamentos do cinema mundial), transporte (uma entrada de metrô a cada esquina), boas lojas de moda (de todos os tipos e gostos) e a parte de gastronomia (onde um fast food é melhor que o outro!).
Mas a parte de festas loucas e ficar de ressaca…
Essa parte da minha vida não combinava com um filme de adolescente, ou algo bem doido de seriado, como Gossip Girl.
Nada mesmo.
Olhei novamente para o copo transparente em minhas mãos. Será que eu conseguiria ser rápida o suficiente para jogar o conteúdo em algum canto sem alguém perceber? Mila ainda se mantinha perto de mim, conversando com a menina exótica mais nova, Ella. Vi uma parte do grupo se juntando em uma pequena roda, com seus devidos copos transparentes cheios em mãos e aquilo me deu um mau pressentimento. caminhou até o local onde o pessoal sentava nos grandes retângulos de feno.
E uma ideia louca passou pela minha cabeça.
— Por favor, não me diga que vocês vão jogar verdade ou consequência.
Mila franziu o cenho, falando mais alto em direção ao garoto do mercado.
— Vamos jogar alguma coisa?
me olhou estranho e eu percebi que mesmo de longe ele tinha reparado em minha pergunta.
— , eu lá sou homem de jogar verdade ou consequência? — seu tom era zombeteiro, mas suas palavras fizeram com que meu corpo todo acelerasse. Apenas o fato de ele se chamar de “homem” já fazia isso.
Suspirei alto pelas reações de meu próprio corpo estúpido.
— Menos mal, então.
Ele observou o copo em minha mão.
— Você ainda não bebeu ou isso já é outra dose?
— Está me controlando?
E então levantou os braços, como se julgasse a si próprio inocente.
— Vou te deixar em paz.
Depois de ouvir um pouco mais sobre o celeiro, os dias que eles se encontravam e como faziam para que ninguém desconfiasse, me sentei em um dos bolos de feno do outro lado, longe da música. Mila me acompanhou, sentando-se ao meu lado.
— Você está em algumas de minhas aulas, não é? — acenei com a cabeça em concordância. Eu me lembrava bem de Mila, pois foi a única que me ajudou no primeiro dia com horários e salas. Sem contar que eu a achei uma das garotas mais bonitas do lugar, com sua beleza tão simples e natural. Não era impactante como Zara, mas ainda assim, linda. — Imaginei que fosse te convidar.
E lembrava da grosseira que tinha feito com ela também.
Não pude conter a expressão surpresa.
— E por quê?
— Você não combina com Cotswold. Não está claro isso?
— É a segunda pessoa que me diz isso em poucos dias.
Ela piscou para mim, sorrindo.
— E esse é o primeiro requisito para fazer parte de nosso grupo.
— Então vocês fingem que não são amigos na escola? Ou pela cidade?
Ela ainda me olhava sorridente. Seu vestido de babados rosa claro só a deixava mais fofa.
— Não todos, nós apenas procuramos não andar com o grupo inteiro, mas as pessoas acabam sabendo que nos conhecemos. É uma vila bem pequena — ela fazia pequenos gestos enquanto falava. — Por exemplo, não tem como fingir com e Mason. Eles são melhores amigos de infância.
— E o resto do pessoal?
— é amigo de infância de Bronwen também. Riley entrou por ser irmão de Mason — eu ainda tentava entender a relação dessas pessoas aleatórias dentro do celeiro. — Noah é melhor amigo de Riley. Os únicos que não possuem uma relação direta com alguém aqui são Hayden e Ella.
— Mas então como eles vieram parar aqui? Do mesmo jeito que eu fui convidada?
Ela sacudiu a cabeça, parecendo pensar um pouco.
— Riley estava com problemas para fazer amigos, até que Noah chegou de Stroud. Os pais dele possuem negócios aqui nas fazendas. Mas mesmo os dois ficando amigos na escola, eram muito humilhados lá. Mason não aguentava mais isso e trouxe os dois para conviver no celeiro. Melhorou a auto estima dos garotos — ela olhou para frente, logo rindo de Bronwen dando um escândalo com Hayden sobre alguma coisa que agora estava derramada no chão já sujo do celeiro. — Hayden ganhou o seu lugar quando ajudou e Mason a saírem de uma enrascada há uns dois anos. Ninguém entra em muitos detalhes, mas foi o suficiente para tê-lo aqui. E, bom, Ella você pode imaginar apenas ao vê-la. Ela não combina com nada disso aqui e, assim como você, isso é o suficiente.
Eu ainda estava transbordando admiração por tudo aquilo.
— E você?
— Além de ser namorada de Mason, eu sofri um pouco de bullying. Você deve imaginar por quê — eu não entendia porque, mas resolvi deixar para outro momento. — Meu primeiro encontro com o Mason foi aqui. Ele diz que já confiava em mim.
Tudo o que eu pude fazer foi suspirar. Pensava estar completamente sozinha nesse fim de mundo. Ali, naquele celeiro velho, eu percebi que estava errada, muito errada. Aquelas pessoas haviam se unido para sobreviver às maldades e maluquices de Bourton-on-the-Water, simplesmente pelo fato de quererem muito mais do que tudo aquilo.
Realmente incrível.
— Mila, nem sei o que te dizer. Isso é incrível.
Ela sorriu novamente, concordando.
— É sim. e Mason juntos sempre dá em ideias incríveis.
— Garota da cidade grande — Ella chegou perto de nós. — Que bom ter gente nova aqui no celeiro.
Mila se levantou do feno, me deixando sozinha com Ella, que esboçou um sorriso. Eu queria saber mais sobre as ideias de Mason e , mas era a hora exata para me desculpar por mais cedo com aquela menina.
— Olha, eu queria pedir desculpas por mais cedo e…
Mas fui completamente interrompida.
— Eu não me importo com o que o grupo de Dominic fala ou com qualquer outra pessoa da escola ou da vila — Ella sorriu novamente. — Eu sei que você não faz parte deles, por isso nem precisa se preocupar.
Aquela cena bizarra ainda se passava em minha cabeça.
— Mas eu podia ter te defendido.
— — ela levantou as sobrancelhas, como se me contasse um grande segredo —, eu não me importo — podiam ser simples palavras, mas fizeram um sentido enorme. Ella não se importava. E isso era mais do que o suficiente. — Então não se preocupe também.
Mila se sentou conosco novamente, segurando uma garrafinha de água mineral. Será que eu conseguia me livrar daquele copo e ficar só na água gelada também?
— Conta mais sobre você, .
Ella parecia animada novamente.
— É verdade que você veio de Paris? — concordei entre gestos, cheirando novamente o conteúdo do meu copo. Nada bom. — Ah, deve ser perfeito! A moda, as pessoas, o romance no ar.
Minha expressão se comprimiu em uma careta depois de tomar um gole daquilo. Não sabia o que era pior: a bebida ou a animação das meninas com o romantismo da França.
— A moda sim, mas o resto não é tudo o que pensam.
Expliquei um pouco como tinha chegado até Cotswold. Contei de algumas cidades que já morei, do que eu gostava e como estava sendo a minha receptividade em Bourton-on-the-Water.
— Você se acostuma — Mila olhava para os meninos à frente. — Essa velharia, falta de cor nas pessoas — a menina ajeitou os babados de seu vestido de princesa. — Só não deixa que isso domine você.
Era exatamente o que eu estava tentando fazer.
— É sério que devemos usar só as cores da escola? Cinza? — as meninas concordaram. Olhei para Ella, que levantou as sobrancelhas em dúvida. — Não implicam com você?
— O diretor já tentou várias vezes, mas eu continuo no meu direito — Ella fez pouco caso, comendo algo que eu não entendi o que era.
Mila me cutucou de lado.
— Você não tem noção de como aquele velho a detesta!
Ella soltou uma risada, talvez relembrando as batalhas que já teve com o diretor da escola.
— É bem simples, garota da cidade grande — seus grandes cílios piscavam para mim. — Eu uso as cores da escola, não tem como ele me proibir.
— Mas e o seu cabelo?
— Isso meu pai já resolveu.
Tive de sorrir imaginando como ele conseguiria burlar a chatice da The Cotswold School.
— Como?
— Doando a nova biblioteca — meu riso cessou na hora. — Isso me permitiu cabelos coloridos naquele lugar antiquado.
Então estava aí o motivo de eu ser barrada com o meu casaco “azul demais” para a escola. E foi naquele momento que eu me senti de volta à minha querida Manhattan, mas de uma forma mais caipira, se isso era possível. Como meu pai havia dito, as pessoas de Cotswold eram realmente ricas. Mas aquilo soava muito distante e estranho para mim, então ver Ella falando sobre doações de bibliotecas me levou a uma nova realidade sobre o meu novo lugar de estadia.
As pessoas realmente tinham dinheiro por lá, mas por que não iam embora daquele fim de mundo?
Ou explodiam tudo e começavam do zero, soluções boas assim.
— Hoje não pude usar meu casaco por ser azul demais.
Ella e Mila me olharam incrédulas.
— O quê?
— Exatamente o que vocês ouviram. “Azul demais”.
— Quem te disse isso, ? — Mila parecia chocada. — O diretor?
— Minha orientadora.
Ella revirou os olhos.
— Pior ainda. Você aceitou isso?
— Ela ficou me encarando, eu tirei para não discutir. Não estava a fim.
Mila parecia irritada, mas todo seu conjunto angelical fazia com que ele permanecesse no estágio fofinha.
— Algumas pessoas aqui são assim. Elas agem como se fossem donas do colégio ou da vila, e principalmente das regras absolutas. Querem que você se sinta inferior.
— Tirando isso, temos boas pessoas por aqui — Ella tentou ser positiva.
Eu não queria apontar nomes e fiquei feliz por Mila e Ella deixarem essa passar. Provavelmente elas sabiam muito bem de quem eu falava, mas realmente não queria criar intrigas ou comentar qualquer coisa maldosa que Zara tinha falado para mim, além do meu casaco muito azul para a região.
Mas pensando naquilo, meu corpo tremeu um pouco com o sentimento de raiva. Quem aquela garota pensava que era para me barrar de usar um casaco? Ali eu percebi que as expressões de Zara eram como um confronto pessoal.
Ela não queria que eu chamasse mais atenção.
“Talvez aqui não tenha espaço para você”.
Não sabia se já era a bebida falando por mim (pequenos goles podem sim te deixar bêbado), mas as palavras saíram de minha boca.
— Na próxima não vou aceitar mudar de casaco.
Ella bateu palmas, logo pedindo um brinde. Reprimi a careta no mesmo momento, juntando nossos copos (e garrafinha de água).,br> — É isso aí!
Para disfarçar o gole sofrido na bebida esquisita, olhei ao redor do celeiro.
Noah e Riley riam de alguma coisa que Hayden mostrava a eles - e até mesmo Bronwen, a ruiva do debate que tinha prometido ficar de olho em mim, sorria com alguma coisa da dupla de amigos.
E no fundo do celeiro, sentados em um bloco de feno grande, estavam a grosseria do mercado decadente e seu melhor amigo. sorria ao lado de Mason, dividindo um cigarro. O cheiro que veio até mim não foi o de um cigarro qualquer e mesmo com pouca experiência nessas coisas eu sabia o que era. Maconha.
Tentei fazer o máximo para não parecer chocada, mas como nada é fácil na vida, ele percebeu o meu olhar e fez um gesto com uma das mãos, me chamando para ir até eles. Provavelmente pensava que eu fazia aquilo quase todos os dias na cidade grande.
Deixei as meninas tagarelando ao meu lado, andando poucos passos até . Ele deu dois tapinhas no espaço livre do grande quadrado de feno em que estava sentado.
— Senta aqui — fiz o que me fora pedido, ainda incerta dos meus próximos passos. — E aí, gostou do pessoal?
Antes que eu pudesse responder, ele pegou o cigarro das mãos de Mason, que agora soprava a fumaça para o alto. Tudo o que consegui foi dizer exatamente a verdade.
— Acho que me sinto parte de alguma coisa.
Ele tragou forte, concordando com a cabeça.
— Bem-vinda aos renegados de Bourton-on-the-Water — e soltou a fumaça para o alto. — Quer?
Neguei com gestos, sacudindo meu copo quase cheio, que agora parecia ser de conteúdo infinito.
— Estou bem. O que vocês costumam fazer por aqui?
— Como você já deve ter percebido desde que pisou aqui, Bourton-on-the-Water não tem muito o que fazer. Principalmente para adolescentes. Então nós nos viramos sozinhos.
— Fazendo um grupo secreto no meio do nada?
Ele balançou a cabeça, devolvendo o baseado ao amigo.
— Quando éramos mais novos nos juntávamos aqui escondidos de nossos pais para beber licor de menta, furtado da casa de Mason.
Tive de rir — Licor de menta?
balançou a cabeça novamente, me olhando de lado.
— Hoje nossos pais acham que nos encontramos em algum lugar, mas nunca desconfiaram daqui.
Não podia deixar aquilo passar.
— Licor de menta?
Eu não fazia ideia do que era aquilo, mas parecia algo bem caipira.
— Só não acho que imaginem que hoje seja para beber vodca — ele enfatizou a bebida alcoólica, me olhando sugestivamente, como se esperasse mais um questionamento meu. Fiquei calada, segurando minha risada. — E whisky barato, claro.
Mason deu uma risada junto com ele.
— Whisky barato é a melhor coisa que existe.
A garota ruiva passou por nós, cortando o celeiro sem antes me jogar um olhar esquisito. Acompanhei os seus passos, falando para os meninos ainda sentados no bolo de feno.
— Eu acho que ela não foi muito com a minha cara.
Mason revirou os olhos, abraçando Mila pela cintura, que tinha aparecido ali do nada.
— Não se preocupe. Bronwen tenta manter uma pose de rebelde, mas ninguém leva muito a sério.
Mila concordou, brincando com os dedos de Mason.
— E você é a rebelde da vez. Garota da cidade grande, deixa claro seu ódio por Cotswold, essas coisas.
— Ela acha que posso tirar o lugar dela aqui?
Será que ninguém mais tinha ouvido os boatos bizarros sobre mim na escola?
Mila abanou o ar com uma das mãos.
— Ela é gente boa, mas é meio maluca. Não se preocupe.
O resto da noite foi preenchido com mais conversas e mais descobertas sobre cada um ali. A minha cabeça girava com tanta informação e principalmente pelas duas bebidas suspeitas que tinham me servido.
Eu precisaria aprender algo sobre álcool ou implorar para que eu fosse café com leite como Mila parecia ser.
Olhando novamente todo o exterior daquele celeiro velho eu realmente me senti parte de alguma coisa. Ali dentro a minha crise de choro para papai e mamãe mal faziam sentido e eu quase me esquecia de toda a maldade que tinha vivido nos meus poucos dias em Bourton-on-the-Water.
Tinha vontade de saber mais sobre aquele grupo e sobre aquelas pessoas. Queria ver como Riley podia ser mais um geek doido e Noah um pequeno galanteador com bonés grandes demais para sua cabeça. Hayden e seu porte atlético, mas que arrasava no Francês e nos debates mais esquisitos que eu já tinha visto na vida. Ella e sua essência fora do comum, com cabelos coloridos e uma atitude incrível para uma garota tão jovem. Até mesmo Bronwen, para descobrir o que poderia causar nela essa aversão a mim, fora os boatos pesados da escola.
Queria saber mais sobre Mason, seu jeito despojado e seu melhor amigo de infância, . Sobre eu tinha mil e uma dúvidas e vontades…
E Mila. Com todo aquele jeito de princesa, o que era quase 100% diferente de mim, eu sentia a vibração mais incrível do mundo. Algo me dizia que viveríamos coisas incríveis naquela vila. Juntas.
Com a cabeça a mil e antes que Mila subisse em sua bicicleta rosa chiclete, um impulso tomou conta de meu corpo. Eu precisava consertar a besteira que tinha feito no primeiro dia de aula. E precisava que aquela menina visse que eu estava sim interessada em tê-la em minha vida.
Peguei nas mãos de Mila, tirando ela de perto do pessoal.
— Mila — ela me olhava com atenção. — Me desculpe se te tratei mal no meu primeiro dia de aula. Eu não sou assim.
A expressão da menina ficou abatida.
— Eu só estava tentando me aproximar.
— pediu? — o meu pensamento foi: será que tinha pedido para Mila verificar se eu era maluca antes de me convidar para o grupo secreto?
A menina balançou a cabeça. Seus olhos escuros ainda pareciam chateados.
— Não, . Só estava tentando ser sua colega.
Aquilo me machucou como um golpe de boxe provavelmente faria. Enquanto eu despejava mau humor e falta de interesse por tudo e por todos, no primeiro dia mesmo tinha uma menina incrível que só queria conversar comigo e, quem sabe, ser minha colega.
Mila continuou:
— Quando contei a Mason, ele disse que era para eu deixar de lado, porque não tem como ser colega de alguém que não quer isso.
Eu era uma pessoa horrível.
Apertei suas mãos.
— Eu sinto muito. Sou uma pessoa horrível.
Mila deu de ombros, me dando um meio abraço.
— Está tudo bem agora, de verdade. Já entendi o seu jeito.
Tomei um pouco de distância dela, sem entender.
— Meu jeito?
— Esse ar sabe-tudo da cidade grande.
— Tem certeza que não influenciou?
A menina sorriu sincera.
— Não, . Eu só fui com a sua cara, queria que fôssemos colegas de turma.
— E agora? — perguntei, receosa.
Mila sorriu ainda mais, subindo em sua bicicleta. Mason vinha logo atrás.
— Agora acho que vamos ser amigas.
Olhar Mila ir embora com o namorado me fez ter uma das melhores sensações de Bourton-on-the-Water. Eu conseguia ver simplicidade, felicidade e sinceridade. Em tudo.
O resto do pessoal já pedalava na estrada de terra mal iluminada, indo em direção ao centro da vila. Antes de desaparecer de nossa vista, ouvi Noah gritar.
— Muito, muito prazer, ! Sonha comigo!
— Cidade grande.
Um assobio baixo me despertou. Quando olhei para o lado, me esperava próximo de sua bicicleta verde.
— Acho que isso vai pegar, não é?
O garoto do mercado tinha uma expressão divertida, como se achasse graça da minha frustração momentânea.
— Provavelmente, sim.
— Acho que prefiro “menina do cachorro”.
Ele me olhou de soslaio antes de subir na bicicleta, ignorando completamente meu comentário anterior.
— Você nunca tinha feito nada disso, não é?
Por mais que ele estivesse completamente certo, me senti ultrajada com o seu cinismo.
— O que te faz pensar isso? Apenas sou fraca para bebidas.
— Pode confessar, — ele deixou a bicicleta de lado, cruzando os braços no peitoral. Sua expressão séria tentando conter um riso o deixava ainda mais lindo. — Não vou te julgar por isso. Ainda estamos no celeiro.
Fiquei alguns segundos sem falar nada, logo bufando alto em desistência.
— Você está certo. Não sou a rebelde da cidade grande que vocês acham.
— Ninguém te acha uma rebelde da cidade grande — abri a boca, como se tivesse sido desmascarada de uma bela mentira. — Que foi? Fala sério, . Não é só porque você tem mau humor na escola que é uma garota problema.
— Tudo bem. Como você soube que nunca fiz essas coisas?
— Você ficou horrorizada com o baseado — ele segurou uma nova risada, logo se recompondo. — Aliás, me desculpe por isso. Não foi certo.
pedindo desculpas? O que ele fumou devia realmente ser muito forte.
Tentei ao máximo parecer natural.
— Não foi nada demais.
Ele não pareceu muito convencido, mas me olhou de lado, puxando a bicicleta para si novamente.
— Ok, menina do cachorro. Vamos, vou te deixar em casa.
— Você vai andar de bicicleta bêbado?
— Se você quiser ir a pé... Pelo meu estado nós chegamos só de manhã.
Antes de subir na bicicleta, relutante, vi palavras saindo involuntariamente de minha boca.
— — ele me olhou de prontidão, suas sobrancelhas levantadas. — Por que me trouxe aqui hoje?
— Preciso realmente te dar um motivo para isso?
Meu coração disparou. Bebidas fazem isso, certo?
— Todas as vezes que nos falamos, quase nos matamos.
Ele riu sereno, encostando-se na cerca velha de madeira.
— Eu já te disse, . Você não combina com isso tudo — e fez um gesto como se quisesse me mostrar os arredores. — Você não precisa sofrer sozinha. É isso.
Foi a minha vez de levantar as sobrancelhas, surpresa.
— Então isso quer dizer que a gente não briga mais?
Ele sacudiu a cabeça, divertido.
— Só se for necessário. Por exemplo, quando você transborda grosseria.
— É coisa da cidade grande.
Aquilo pareceu o suficiente para ele.
— Vamos?
Eu estava quase pronta para ir embora (já que só tinha sobrado nós dois naquele meio do nada), mas precisava tirar a dúvida que martelava em minha cabeça o tempo todo.
— Você ouviu o que falam de mim na escola?
Ele respondeu sem medir palavras.
— Que você é uma péssima amizade?
Respirei fundo.
— Algo assim. E que eu roubo coisas.
fez uma careta.
— Ouvi sim, . Só não achei que fosse verdade.
Sorri com vontade sem ao menos perceber.
— E não é. Obrigada.
— Na verdade, ninguém do grupo acreditou.
Eu queria dizer que Bronwen acreditava um pouco, já que parecia não ir com a minha cara, mas deixei para outro momento.
— Vamos?
Após alguns minutos em silêncio, enquanto pedalava sua bicicleta tranquilamente, eu consegui pensar em como o meu dia tinha sido louco. Fazer novas amizades era sempre um desafio, mas às vezes acontece sem ao menos você perceber. E ali estava eu, andando de bicicleta com a pessoa que eu considerava ser a mais grossa e antipática da região.
Ao chegar em minha casa, me deparei com um dos muitos desafios da vila. Eu teria que subir pela parte de fora até a janela do meu quarto, no segundo andar. Além de ser parte do “batismo” do celeiro, disse que seria bem mais fácil do que explicar aos meus pais o cheiro esquisito de maconha e álcool assim que eles ouvissem passos pela casa.
Eu resolvi acatar, afinal, realmente não fazia esse tipo de coisa na cidade grande.
— Antes de você ir: uma confissão.
Meu coração deu um pulo, muito provavelmente pela bebida. Sério.
— Sobre o que?
cerrou os olhos, mantendo a voz baixa devido a hora.
— Como você não tem nada a ver com isso tudo aqui, foi fácil ver isso desde o primeiro dia que te conheci — e então ele esclareceu algo que eu nem sabia que precisava. — Esperei você se encaixar em algum grupo na escola para ter a certeza. E como isso não aconteceu eu tive a confirmação de que você precisava estar no celeiro com a gente.
Eu queria fazer mil perguntas sobre aquilo, principalmente pelo fato de ele ter me monitorado em silêncio nas últimas semanas, mas deixei passar. Deixei passar por estar um pouco alta e por simplesmente estar aproveitando tanto aquele momento que não queria mais brigas ou grosserias com .
Queria só receber um sorriso e, quem sabe, encontrar com eles numa próxima vez.
— Obrigada — o menino pareceu satisfeito. — Estou pronta.
me observou escalar a escada improvisada até o segundo andar, que dava diretamente na janela do meu quarto. Eu usava os pedaços de madeira que as trepadeiras cresciam em cima, pisando em cada um com o maior cuidado possível. Sua risada abafada já me dava nos nervos.
— Quer parar? — sussurrei olhando para baixo, em sua direção. — Vai me fazer cair!
Ele revirou os olhos, ainda me observando escalar a parede.
— Sobe logo isso, não tenho a noite toda.
— Grosso!
Consegui jogar meu corpo para dentro do quarto, caindo sem muitos estragos. Olhei para o jardim. estava me observando, sem expressão.
— Tudo certo aí?
Concordei com um gesto, o que foi o suficiente para que ele subisse novamente em sua bicicleta verde. Antes que ele desse a primeira pedalada, chamei seu nome.
— — ele olhou para cima, pelos ombros. Bebidas nos fazem falar demais, certo? — Obrigada.
Certo.
Ele sorriu e eu não pude deixar de acompanhar.
— Te vejo mais tarde?
Franzi o cenho.
— O quê?
Ele sorriu mais ainda.
— É um jeito de falar, . Você acostuma.
E então ele foi embora, pedalando até sumir na escuridão.
“Você acostuma”. Eu teria amigos de novo.
Capítulo 5 - Passados
“Amor não se conjuga no passado; ou se ama para sempre, ou nunca se amou verdadeiramente.” (M. Paglia)
Dias após a minha primeira noite no grupo secreto do celeiro (que eu esperava não ser a última, claro) eu ainda procurava rostos conhecidos pelos longos corredores e pátios da The Cotswold School. Era estranho passar pelas pessoas que compartilhei um momento naquele dia sem nem ao menos receber um cumprimento.
O segredo do grupo era real.
Quando contornava o segundo corredor claríssimo em direção a minha longa aula de Matemática II esbarrei com Noah e Riley, que riam sobre algo com mais dois meninos igualmente baixinhos. Olhei com o canto do olho para Noah, já esperando algum comentário, mas nada recebi. Marchei direto a sala já encontrando algum lugar para passar aquelas próximas horas intermináveis.
Era oficial. Eu precisava de colegas pela escola antes que ficasse maluca.
Quando o sinal tocou, andei apressadamente para o pátio com as lanchonetes. Meu estômago reclamava alto sem vergonha alguma. Assim que cheguei na parte dos grandes bancos, pela primeira vez vi o menino do mercado no canto esquerdo, possivelmente pegando algo para comer e depois sumir. encontrou o meu olhar e sustentou, acompanhando meus passos. Eu entendi como um teste e desviei, olhando para o outro lado.
Mas ao adentrar a tortura de Literatura Inglesa (ironicamente) meu dia melhorou. Mila estava sentada em sua provável cadeira cativa e alguns de seus materiais rosa demais se estendiam na mesa ao lado.
Eu entendi de primeira.
— Estava me esperando?
Mila assentiu com um sorriso.
— Claro, . Até guardei sua cadeira.
Não pude evitar sorrir.
— Obrigada — e também não pude evitar uma careta. — Mas precisava ser tão na frente?
Ela tentou imitar minha expressão.
— Você gosta de dormir em Literatura?
Dei de ombros, colocando meus livros na carteira.
— Sempre gosto de ter essa opção.
entrou na sala e cumprimentou metade da turma. Deu um sorriso para Mila e para mim (eu acho), e logo sentou duas cadeiras à minha direita, já abrindo seu grande caderno e livro.
Olhei para Mila.
— Isso é muito estranho. Como vocês conseguem?
— Você vai se acostumar. Não é tão difícil assim.
Kyle sentou ao meu lado, me fazendo cerrar os olhos. Com toda a confusão do celeiro eu tinha me esquecido completamente do menino.
— E aí, ?
Sua jaqueta de couro era de uma cor diferente.
— Oi, Kyle.
O menino cumprimentou Mila. Olhei com canto de olho para que ainda se mantinha focado nas anotações, mesmo sem aula nenhuma acontecendo.
As aulas passaram rápido e quando vi já estava andando/correndo em direção a nossa casa. Quando botei os pés dentro do recinto senti aquele cheiro maravilhoso que só minha mãe conseguia fazer.
Bolo de baunilha com chocolate, sua especialidade em doces.
Aquele aroma fez meu corpo quase levitar em sua direção. Mamãe estava em frente a grande ilha da nossa exagerada cozinha.
— , chegou bem na hora!
Por ter ficado em tempo integral na escola, devido a atividade extracurricular de Línguas, acabei perdendo o almoço em casa.
— Esse cheiro é o que estou pensando?
Minha mãe concordou de prontidão.
— Sim, seu preferido.
Na verdade era o preferido do meu irmão mais velho, mas depois que ele tinha resolvido ficar em Nova Iorque eu tinha absorvido algumas coisas dele, para que sempre o sentisse próximo. Mamãe sabia bem daquilo e eu gostava.
Bati palmas, animada.
— Obrigada!
E eu sabia também que ela e papai estavam tentando amenizar os sintomas ruins que eu tinha em Bourton-on-the-Water, principalmente após minha crise aos prantos para irmos embora para Londres.
O pensamento de ir embora me deu uma sensação esquisita no estômago.
Quando eu ia dar a primeira garfada no bolo quentinho, meu celular posto anteriormente na bancada se iluminou.
* : Te pego hoje ao anoitecer, cidade grande.
Foi impossível não crescer ainda mais o meu sorriso.
***
me esperava na esquina, encostado no muro de pedras. Ficava cada vez mais difícil não o achar atraente. O jeito despreocupado que ele tinha, seu olhar para o nada.
E sua bicicleta verde esquisita.
Assim que me avistou, descolou do muro e pediu para que eu me apressasse.
— Anoitece às oito.
Revirei os olhos.
— Como eu ia saber disso?
Ele riu, subindo na bicicleta.
— O que disse para seus pais?
— Mesma desculpa que da última vez: extracurricular valendo nota para o meu histórico extra manchado.
concordava, enquanto eu me encaixava no quadro da bicicleta.
— Pronta?
Fizemos o mesmo caminho pela estrada de terra mal iluminada e, incrivelmente, eu senti a mesma sensação do que na primeira vez indo ao celeiro. pedalava sem pressa, como se tivesse todo o tempo do mundo. E realmente parecia que tínhamos todo o tempo do mundo, o que era incrível.
A vida em Bourton-on-the-Water parecia correr em uma linha do tempo diferente. Eu não sentia a rotina e muito menos sentia a sensação de que o dia ou a semana, ou até mesmo as horas, passavam rápido demais. A monotonia do lugar fazia com que todos andassem tranquilos, sem pressa, sem correr e sem se estressar.
Aquilo era um dos pontos que eu não conseguia relacionar com toda a minha vida em cidades grandes. Tudo era sempre um pouco caótico - o que dava uma pontada de emoção em viver naquelas cidades. A vida lá passava rápido demais, assim como todos os dias da semana. Sempre faltava tempo para alguma coisa, talvez pela grande quantidade e opção de tudo, em tudo e por tudo.
Eu não sabia o que sentia ainda sobre conseguir agir com calma no interior. Ainda me sentia na roça junto com quatro mil caipiras, mas precisa admitir (mesmo que só em minha consciência) de que aquela calmaria tinha suas qualidades.
Assim que abrimos a porta já avistei Noah encostado na parte de dentro da entrada do celeiro. O menino mais novo fez um pequeno aceno para nós, visivelmente sem ânimo.
Eu o conhecia a um dia, mas sabia que aquilo era bem atípico.
bagunçou seus cabelos com uma das mãos, fazendo o bico de Noah aumentar ainda mais.
— Sobrou para você hoje, pirralho?
Noah lutava contra os cabelos rebeldes após o carinho nada delicado de .
— Eu sempre perco nessas coisas. Você devia participar, eu teria mais chances.
O garoto do mercado deu uma risada.
— Os mais velhos são imunes, criança.
Enquanto andávamos para mais próximo de onde a galera estava reunida, cutuquei o braço de antes que o perdesse para as bebidas.
— Colocaram Noah de castigo?
achou graça e eu consegui sentir sua animação com o pensamento de deixar o menino mais novo sendo castigado por alguma coisa. Ele sacudiu a cabeça, mantendo o sorriso de antes no rosto.
— Não. Ele só perdeu na rodada de hoje.
Minha reação de pânico fez com que ele se divertisse ainda mais. Eu ainda não sabia de muita coisa sobre o celeiro secreto ou sobre o que eles faziam ali dentro (tirando beber e ouvir música). Era o que faltava ter prendas bizarras entre as pessoas do grupo.
— Perdeu o quê?
— Hoje tem patrulha. É a vez dele ficar de olho.
Não sabia também como funcionava a questão da patrulha pela região de Bourton-on-the-Water, mas se eles tinham um revezamento interno para verificar se estava tudo bem naquela estrada velha, mal iluminada e sem asfalto, parecia algo realmente importante.
Algo que poderia tirar o “secreto” daquele grupo.
Quando nos aproximamos do grupo, Ella nos recepcionou com pulinhos.
— Eu disse, pessoal! — e bateu palmas em comemoração. — Eu disse que ela iria voltar!
Tive de rir ao acompanhar a animação da menina. Suas mechas laranja balançavam por todo seu cabelo.
— Pareci tão antipática assim?
Ella abanou o ar, me puxando pelas mãos até onde o resto do pessoal estava espalhado.
— Claro que não, garota da cidade grande. Só fiquei feliz!
Cumprimentei a todos, inclusive Bronwen, que parecia um pouco menos revoltada que no último dia em que a vi. Continuava sendo uma recepção não muito calorosa, mas eu sabia que não ia ganhar aquela batalha tão cedo.
E também não me importava muito.
Ao chegar próximo a Riley, que estava mais distante de todos, percebi seu suéter com outra referência nerd que eu não fazia ideia do que poderia ser.
— Suéter legal.
O garoto sorriu abertamente.
— Você é fã?
— Talvez, se você me contar mais sobre essa coisa de patrulha, Riley.
O menino ajeitou os grandes óculos de grau no rosto.
— O que precisa saber, ?
Achei engraçado ouvir meu nome sendo falado, já que todos insistiam em me chamar de ‘cidade grande’. Deixei passar.
— Noah vai precisar ficar a noite toda vigiando?
O baixinho balançou a cabeça em negação.
— Sabemos a hora e os dias da patrulha. Se passar por aqui, deve ser daqui a pouco.
Mason brotou ao lado do irmão, bagunçando seu cabelo com uma das mãos assim como havia feito com Noah.
— E quando passar estaremos livres para curtir a nossa noite.
Por conta da espera da patrulha da noite passar, todos permaneceram sem muita animação, sem música e, como percebi sozinha, sem falar com o tom de voz muito elevado. Eu conversava com Mila sobre uma chatice da última aula e Ella parecia se divertir fazendo uma trança esquisita em meus cabelos. E de repente Hayden gargalhou alto, tão alto, que a luz do celeiro se apagou por inteiro. Meu corpo congelou. Eu sabia que estava segura e tinha várias pessoas ali para me ajudar caso algo acontecesse naquele fim de mundo, mas mesmo assim meu coração dava saltos.
Bourton-on-the-Water tinha quatro mil habitantes. Se alguém morresse em um celeiro abandonado não seria tão difícil achar o culpado.
Não é?
Não consegui controlar o receio em minha voz.
— O que aconteceu?
Todos permaneceram em silêncio. E já que não tive retorno, resolvi fazer o mesmo.
O silêncio total no grupo durou cerca de cinco minutos até que as luzes se acenderam novamente. Antes que eu pudesse questionar, Mason estava ao meu lado de mãos dadas com a namorada.
— Patrulha passando.
Meu coração ainda se mantinha acelerado.
— Eles não podem entrar nos celeiros para verificar?
Hayden jogava alguma coisa na direção de Noah, que por pouco desviou.
— Eles podem, cidade grande. Mas só onde não é propriedade privada.
Meus olhos se arregalaram tanto que gargalhou do outro lado do celeiro (onde provavelmente permaneceu imóvel até as luzes voltarem).
— Nós estamos invadindo propriedade privada?
Meu tom foi tão esganiçado que Mila agarrou meu braço no mesmo segundo.
— Não, amiga.
Ouvir aquela palavra tão doce saindo de seus lábios fez meu corpo se acalmar. “Amiga”.
Olhei em seus olhos escuros.
— Não?
Ele sacudiu a cabeça, onde mantinha uma tiara prateada. Como uma coroa de princesa.
— Não.
Passei os olhos ao redor do celeiro, procurando uma resposta em alguém. Mila chamou minha atenção novamente.
— O celeiro faz parte do terreno de uma das fazendas dos meus pais — ela sentou em um dos blocos de feno, já com sua garrafa de água mineral devidamente em mãos. — Meus bisavós maternos começaram o legado da família Hughes aqui nesta terra. A fazenda foi a primeira, tinha muito potencial e vários animais — e suspirou, como se fosse dizer a coisa mais emocionante do mundo. — Eles se casaram aqui dentro do celeiro.
E para Mila provavelmente era.
— Agora tudo faz um pouco mais de sentido.
Noah observava nossa conversa, assim como os demais.
— Não parece mais tão rebelde, não é?
Olhei em sua direção, mas antes que pudesse responder, Mila me chamou de volta.
— Meu pai resolveu que seria melhor deixar essa área apenas para os animais, pois muitos estavam com dificuldade de se alimentar pela região há alguns anos atrás — e sorriu. — Então a área da fazenda virou tipo uma reserva em nome da nossa família.
Já achava aquilo tudo incrível, mas a história de Mila fazia com que fosse ainda mais admirável.
— E o celeiro? Ninguém vem aqui ver como está?
Ela fez um gesto com a cabeça, o que fez sua tiara brilhar ainda mais.
— Tecnicamente, sim — e então minha nova amiga deu de ombros. — Eu peguei essa tarefa. Expliquei aos meus pais que queria ajudar.
Tive que sorrir com sua conclusão.
— Então você é a responsável pela manutenção aqui.
— Isso. E assim ninguém entra em nosso espaço.
A tensão instalada naquele celeiro velho ia se dissipando a cada minuto. E a cada novo gole nas bebidas alcóolicas também. Quando percebi todos já estavam curtindo sua noite, conversando sobre coisas aleatórias nos bolos de feno espalhados por todo interior.
Noah estava deitado em um quadrado, de barriga pra baixo.
— Quer dizer que tenho uma chance com você?
Franzi o cenho, sem nem entender como tínhamos chegado naquele assunto.
— Ficou louco?
O garoto continuou na mesma posição.
— Vou entender isso como um “talvez”.
revirou os olhos, empurrando o menor para o lado e se sentando no feno prensado. Hayden estalou os dedos.
— Eu pensei em fazermos algo diferente hoje — e assim ganhou a atenção de todos, inclusive a minha. — Como somos amigos há bastante tempo, nos conhecemos. Mas nada sabe sobre nós. Ou nosso celeiro.
Todos me olharam, o que me fez gaguejar.
— Como assim?
Mason ponderou.
— Ok. Em vez de fazermos alguma reclamação da nossa vida idiota em Cotswold, vamos falar sobre coisas que gostaríamos que soubesse — e os demais pareceram concordar com a sugestão. Menos Bronwen, que ainda insistia em me ignorar. — Beleza! Quem começa?
Me sentei ao lado de Mila, que levantou o braço.
— Eu posso começar — todos se sentaram próximos, formando um círculo mal feito, — , tem muitas coisas sobre todos nós e muitos porquês de fazermos esse grupo — concordei de prontidão. — Minha primeira coisa que você precisa saber é: ninguém na vila sabe que Mason e eu somos namorados.
Eu abri a boca no mesmo momento.
— Como é?
Minha nova amiga tentou parecer confiante.
— A família de Mason não me aceita.
Vi Mason fechar os olhos, assim como Riley.
— Quem não te aceitaria, Mila? Você parece uma princesa!
Hayden quebrou o silêncio que ficou depois de minha fala.
— A família Hunt tem seus preconceitos. Bourton-on-the-Water é o distrito mais conservador de Cotswold, se é que eu posso chamar isso de “conservador”.
Todos balançaram a cabeça em negação. Eu engoli minhas palavras. Tinha ficado claro que o problema era ridículo e do século XV, assim como toda aquela porcaria de vila.
O “problema” era por Mila ser negra.
Olhei para minha nova amiga.
— Eu sinto muito, Mila.
Ela concordou, agradecendo.
— Foi difícil no começo, para nós dois e todos nossos amigos. Mas Cotswold não pode destruir o que sentimos um pelo outro.
Mason se esticou até alcançar a mão de Mila.
— Nada destrói isso.
As bochechas de Mila coraram no mesmo instante.
— Quem é o próximo?
Eu ainda tentava digerir tudo aquilo, mas então Ella levantou sua mão cheia de pulseiras coloridas.
— Euzinha! Você sabia que eu mesma faço as minhas roupas?
Olhei para Ella em choque.
— Isso é maravilhoso!
A menina balançou os cabelos, feliz.
— Quero suas dicas da cidade grande depois.
— Quando quiser.
Naquele dia eu aprendi várias coisas de meus novos amigos.
Aprendi que cada um tem uma história diferente. Com passados tristes e felizes, assim como ânsia por futuros melhores.
Mila fazia parte de uma das famílias mais poderosas da região. Seu pai controlava boa parte da produção de lã do condado. O fato da família de Mason e Riley não a aceitarem deu um nó na minha cabeça. Se era para ser tradicional, Mila seria a principal escolha da região. Mas, infelizmente, um preconceito bobo falava mais alto.
Noah era de Stroud, outra cidade do condado de Gloucestershire, e tinha ido para Bourton-on-the-Water há três anos. Tinha duas irmãs de idades distintas, fazendo com que ele fosse o filho do meio. Gostava muito de skate, assim como suas roupas no celeiro mostrava, mas não sabia subir em um sem cair de cara no chão.
Ella, além de fazer suas próprias roupas, era a mais viajada do grupo. Ninguém mais tinha saído do país, diferente dela. Seu pai trabalhava em uma empresa de grande porte em Londres, mas sua mãe, que morava em Liverpool, tinha uma marca de roupas própria. Nada de muito luxo, mas já inspirava a filha a continuar seu legado.
Hayden tagarelou sobre seus tempos como artilheiro do time de futebol, mas acabou deixando de lado o porquê de não jogar mais na escola. Pelo menos ele ainda parecia bem interessado no grupo de Línguas, o que era esquisito para um craque do futebol.
Ella parecia realmente animada.
— Você precisava ver, garota da cidade grande. Hayden era o melhor de todos!
O loiro super alto parecia constrangido.
— Não precisa exagerar, baixinha.
Ella continuava:
— Eu estou falando sério. Todos concordam, não é?
Percebi Hayden trocar um olhar demorado com e Mason, e não sei porque, mas achei que eles tinham um pouco de tristeza naquilo.
Bronwen, como eu já esperava, revirou os olhos e disse que nada da vida dela iria fazer diferença na minha. Eu aceitei abertamente aquilo.
— Eu não preciso dizer que somos zoados na escola, não é? — Riley deu um sorriso engraçado, que foi acompanhado por todos nós. — E meu gosto por coisas nerds não ajuda muito. Então a coisa mais diferente que tenho para te contar sobre mim é que eu já invadi o sistema da The Cotswold School.
Noah concordava com gestos.
— Ele é muito bom com computadores.
Hayden não perdeu a oportunidade.
— Tão ruim com esportes, mas tão bom para essas coisas esquisitas.
Os meninos mais novos devolveram alguns xingamentos, mas logo Riley continuou a sua história:
— Todos nós íamos reprovar na prova de Álgebra Avançada. Fiz minha contribuição para a vila.
Era engraçado, mesmo parecendo bem fora da lei.
— E você ajudou a todos, até os que te perturbam por lá?
O menino fez uma careta.
— Não costumo guardar rancores, .
Era ótimo ver que mesmo com todas as chateações, ter pessoas implicando e toda a peculiaridade que Riley tinha, aquilo tudo não era motivo para ele ficar no mesmo nível que os demais.
— Eu provavelmente vou precisar das suas habilidades para passar em Literatura Inglesa.
O baixinho corou.
— Conta comigo.
Mason bagunçou os cabelos com as próprias mãos, olhando para Mila com o canto do olho.
— Eu já terminei a escola, . Hoje trabalho em um bar no centro da vila, o Sheppard — e deu de ombros. — Estou esperando e Mila terminarem o colegial para decidir os meus próximos passos.
Concordei com um gesto.
—Parece um bom plano.
Ele riu mais.
— Sobre algo que eu gosto, fico com esportes — e passou os olhos na roupa descolada e esportiva. — Mas acho que isso já deu para perceber.
Dava para perceber de longe, então eu apenas sorri concordando novamente.
se espreguiçou.
— Minhas coisas são básicas. Você já conhece Annabelle. Meu pai é dono do mercado local... Moramos nós três apenas — concordei, prestando atenção em cada palavra. — Não temos nada além do mercado.
O resto da galera pareceu inquieto, mas eu queria saber mais.
— E sobre algo que você goste muito?
Ele fez pouco caso da minha curiosidade.
— Gosto da ideia de ir embora daqui.
— Ele gosta de música — Mason disse em uma risada. o olhou no mesmo momento, com uma cara nada boa. — O que foi? É a verdade.
Pela expressão de , deixei passar mais perguntas.
— E o que vocês querem saber sobre mim?
Noah foi o primeiro:
— Você namoraria alguém mais novo?
O celeiro explodiu em uma gargalhada. Bronwen jogou algo no amigo, que desviou. A menina ruiva me olhou com intensidade.
— O que você acha que está fazendo aqui? Em Bourton-on-the-Water?
Antes que alguém reclamasse, eu disse que estava tudo bem em responder aquilo.
— Meu pai é uma espécie de consultor financeiro. Como eu disse para vocês, já trabalhou até mesmo com as contas na Casa Branca, lá nos Estados Unidos. Eu não sei explicar com muitos detalhes, mas ele faz auditoria nas contas públicas. Geralmente são países ou cidades muito importantes.
Mason parecia interessado.
— Acha que está acontecendo alguma coisa em Londres?
Ponderei com um gesto.
— Eu sinceramente não faço ideia. Meu pai não comenta muito sobre trabalho, por ser sigilo. E para não ficarmos preocupados também.
Riley ajeitou os grandes óculos.
— Parece importante. Mas por que não foram morar em Londres?
— Meu pai respondeu que isso é sobre qualidade de vida. Viver um pouco longe da cidade grande, ver novos ares... — suspirei, achando uma completa palhaçada todo aquele discurso emocionado “eu amo o interior” que meu pai fizera ao anunciar nossa décima terceira casa nova. — Morar em uma casa de verdade, e não em um apartamento velho alugado.
— Parece um sonho americano, falando assim — fez uma careta.
— Deixa de ser quando você se muda pela décima terceira vez.
Todos pareciam chocados. Riley deu um pulo de seu feno.
— Você já se mudou treze vezes?
— Treze.
Percebi trocar um olhar com Mason, como se parecesse impressionado também.
Não era o meu assunto preferido, mas depois de tantas confissões eu devia uma boa explicação sobre minha vida para aquelas pessoas. Pessoas que eram meus novos amigos. Depois dos dez anos de idade as coisas começaram a ficar difíceis, porque você simplesmente aprende o que é amizade e saudade.
O celeiro explodiu em perguntas e tudo que fiz foi rir.
— Vou tentar explicar rápido. Sou menor, então acompanho meus pais. Nasci no Brasil e com um ano de vida apenas fomos para Chicago, nos Estados Unidos — eu contava com os dedos enquanto falava. — Rio de Janeiro, Chicago, Boston, São Paulo, Los Angeles, Washington, Montreal, Nova Iorque, Amsterdam, Paris, Bourton-on-the-Water. Onze, mas em Chicago e Montreal mudamos duas vezes.
Ella ainda estava surpresa.
— Me diz depois para que eu possa anotar?
Tive que rir junto com os demais.
— O importante é vocês saberem que já passei por lugares demais.
A menina das mechas laranja bateu palmas.
— Bom pra mim. Mais lugares com boa moda para você me dar dicas!
— Acho que é isso — dei de ombros, dando uma piscadela para Ella. — Ah! Tenho um irmão mais velho, mas ele não mora com a gente.
Mila pareceu interessada.
— Ele também viaja pelo mundo?
— Arthur se cansou em Nova Iorque. Ficou e faz faculdade por lá.
Todos pareceram satisfeitos com aquela confissão e eu não pude deixar de sorrir junto. Era ótimo saber um pouco mais sobre todas aquelas pessoas diferentes, principalmente tendo a consciência de que todos estavam ali para se proteger de todo o mal que o interior de Cotswold poderia ter.
Ainda tinha muitas dúvidas sobre todos e tudo, mas a principal em minha cabeça era sobre uma conversa paralela que tinha ouvido.
— Eu tenho mais uma coisa para perguntar.
Mason virou seu copo de uma vez só.
— Manda!
Achei engraçado o seu jeito, mas deixei de lado.
— Na última noite vocês falaram sobre faculdade — Mason olhou de lado para no mesmo momento. — Qual é o plano?
O garoto do mercado começou:
— Acho que já deu para perceber que aqui não temos uma universidade — e todos deram uma risadinha, que tive de acompanhar. Imagine só, Cotswold com uma universidade. — Então o nosso plano é fazer faculdade longe. O mais longe possível.
Aquilo me fez franzir a testa sem ao menos perceber.
— O mais longe possível?
Mason continuou enquanto todos assentiram com a cabeça.
— Oxford, Cambridge… — e deu meia volta no seu bolo de feno. — Itália, Paris, Espanha… O mundo afora é o limite.
De novo achei aquilo incrível. Diferente dos demais da região, que provavelmente iam seguir os negócios já bem estruturados da família, aquele grupo secreto queria muito mais. Queriam desbravar o mundo e fazer uma boa faculdade.
fez um barulho engraçado com a boca.
— Esse é o plano de agora. Já tivemos outros para nos livrarmos de Cotswold.
— E quais eram os outros planos?
Os mais novos se entreolharam, permanecendo em silêncio.
Incrivelmente Mila foi a primeira a se pronunciar.
— Fugir.
— Não sei se entendi.
— Ir embora de Cotswold para sempre, . Esse era o plano — olhou para Mason sugestivamente. — E ainda é.
Aquilo era uma novidade para mim, em todos os sentidos. Pela primeira vez não era eu quem tinha prazo de validade no lugar.
Resolvi engolir aquilo, mesmo passando seco em minha garganta.
— Mas não consigo entender uma coisa. Se todas as famílias por aqui têm dinheiro, porque vocês precisam fugir?
Hayden coçou a cabeça, como se fosse uma coisa difícil e longa de se explicar — Nossas famílias têm muitas posses por aqui, é verdade. Mas o problema é que todos querem que a gente continue o legado.
fez aquele barulho com a boca novamente.
— E nós queremos mais do que isso.
Hayden continuou:
— Meus pais super topam pagar uma faculdade em Oxford ou Cambridge, mas preciso voltar para cuidar dos negócios. Não existe outra opção.
Franzi o cenho.
— Vocês estão falando sério?
Todos concordaram com a cabeça.
Mason suspirou.
— O interior é esquisito, . As famílias por aqui são muito ligadas à tradição. Ninguém sai da região, muitos por terem negócios locais e também pela notável qualidade de vida. Alguns viajam, mas a maioria vive nessa bolha de Bourton-on-the-Water, ou até mesmo Cotswold. Todo o distrito é assim.
Hayden voltou a falar.
— E é isso que a gente luta contra. Além de todos nós queremos mais do que isso, queremos viver uma vida nossa. Ninguém aqui quer ser legado de coisa que não gosta.
bateu palmas, conquistando a atenção de todos.
— Muita informação para um dia só, meus amigos. Vamos beber?
A única coisa que se passava em minha cabeça era como aquilo tudo era maravilhoso e como aquelas pessoas ali, tão diferentes entre si, eram maravilhosas também.
E tudo aquilo fazia com que o meu medo voltasse à tona. Seria terrível perder tudo aquilo, inclusive as novas pessoas que eu tinha em minha vida. A vontade de me incluir, de agregar e de participar era imensa, mas eu ainda achava que precisava manter meu pé atrás.
Eu respirei fundo, tentando não surtar.
Após alguns minutos em silêncio, Mila me olhou com cautela.
— Está tudo bem, ?
A expressão de Mila parecia preocupada. Resolvi dissipar aqueles pensamentos loucos da minha cabeça o quanto antes, já que ela já começava a reparar. Não demoraria para que talvez os outros me perguntassem qual era o meu problema também.
— Sim — dei o melhor sorriso que consegui. — Está tudo bem.
Mason passou por nós e deu um longo beijo na bochecha de Mila, que se encolheu em um sorriso. Ao ver os dois juntos uma ponta de esperança martelava meu peito. Ainda existia amor verdadeiro por aí.
Mila ainda estava perdida em sentimentos, mas a chamei de volta.
— Vocês são lindos juntos.
Minha nova amiga me olhou sorrindo.
— Mason é incrível.
Tive de concordar.
— Ele parece ser.
Mila colocou as mãos no peito, suspirando. A cena era idêntica à de uma princesa sonhando acordada com o seu príncipe encantado.
— Eu o amo tanto.
Era lindo e engraçado ver Mila reagir daquela forma, principalmente pelo melhor amigo de . Difícil pensar que Mason era tão romântico e meloso quanto ela, já que eu tinha uma concepção completamente invertida de . Mas era triste pensar que um preconceito bobo e surreal impedia que eles fossem felizes daquele jeito por toda a vila. Me machucava por provavelmente machucar Mila.
— E você? — Mila me cutucou de lado. — Estamos aqui a noite inteira falando de nós, dos outros — Ella se juntou a Mila, e concordava de prontidão, com um sorriso no rosto. Bronwen passou perto do nosso grupinho de meninas e fez um gesto indicando que ia se sentar com os meninos, assim que Ella tentou puxá-la. Acho que ela não queria que sobrasse para si também. — Queremos saber de você.
Não consegui reprimir uma careta.
— Minha vida não é muito emocionante.
— Como não? — Mila parecia realmente surpresa. — Você cresceu na cidade grande, nas mais românticas do mundo! — e suspirou, sonhadora. — Já deve ter vivido muita coisa, conhecido muita gente.
Eu tinha sim vivido muita coisa e conhecido muita gente. Mas aquilo não significava que era interessante.
— Eu nunca tive muitos amigos próximos, por causa das mudanças. Mas consegui ter um namorado, em Nova Iorque.
As meninas vibraram. Ella sentou mais próximo.
— Meninos de Nova Iorque devem ser lindos.
Tive de rir — Ele é lindo.
— E qual é o nome dele? — Mila me olhava nos olhos, com curiosidade. — Americanos são tudo de bom.
Minha risada saiu novamente.
— Logan.
— Quem é Logan? — a voz de tomou conta da conversa. Me virei bruscamente, dando de cara com seu sorriso despreocupado. — Estou me intrometendo na conversa de garotas, não é? — ele fez uma careta, sorrindo novamente.
Não sei porque, mas fiquei sem palavras. Mila me deu uma olhada engraçada.
— É o ex-namorado nova iorquino da .
Paris, França
— Noelle, eu juro que morro se precisar ler mais algum livro sobre a Literatura Francesa.
A menina riu, dando de ombros.
— Não é tão ruim assim.
Sacudi a cabeça, saindo pelo grande portão de ferro. Um engarrafamento incrível cobria todas as pistas da rua principal. Mas o que me chamou atenção não foram as buzinas ou as respostas malcriadas dos motoristas estressados. E sim uma figura parada no final da grande calçada, de braços cruzados.
E com um sorriso lindo no rosto.
Larguei tudo no chão e corri. Bolsa, caderno, qualquer coisa que pudesse atrasar mais aquela distância. Ouvi Noelle gritando algo, mas não fazia questão de entender.
Seus braços envolveram minha cintura, enquanto minhas mãos tremiam em seu pescoço.
— Não acredito que você está aqui.
Logan me afastou, passando suas mãos pelo meu rosto. Seus olhos verdes me observando com a maior calma existente.
— Como eu senti a sua falta.
Colamos nossos lábios e então tudo pareceu tão fácil.
— Acho que você deixou isso cair no chão — me assustei com a voz de Noelle, que parecia sem graça.
Ri para a menina, pegando minhas coisas, ainda trêmula. Balancei a cabeça, falando em francês.
— Noelle, esse é o Logan.
O menino sorriu, fazendo a garota corar. Logan arriscou um francês:
— O namorado dela — e então fez uma careta, voltando ao inglês. — É assim que se fala em francês?
Eu sorria tanto que minhas bochechas doíam.
— É sim.
Foi o suficiente para minha colega de classe acenar e sumir.
Meus olhos ainda não acreditavam naquilo.
— Por quanto tempo?
— Arrumei quinze dias.
— Veio sozinho?
Logan riu, logo olhando para trás. Bree estava encostada em um táxi.
— Trouxe uma bagagem extra.
Ainda era bom lembrar de Logan, mesmo com todos os problemas que existiram nos últimos meses — e talvez, anos. Mas a energia que o celeiro insistia em emanar em meu corpo fazia com que aqueles pensamentos destrutivos fossem embora.
Enquanto as meninas continuavam a falar sobre relacionamentos e romance, eu observava de longe. Ele estava em seu bolo de feno, o mais distante, novamente dividindo um cigarro suspeito com o melhor amigo, Mason.
Eu não conseguia tirar meus olhos dele.
Era incrível ver o seu jeito despojado, sua informalidade e o jeito como ele bagunçava o cabelo já despenteado.
Mesmo sendo muito difícil de admitir até para minha mente, não era completamente o meu tipo de garoto. Era diferente de Logan ou de qualquer outro que eu já tinha me relacionado, mas aquela arrogância natural me atraía de alguma forma. E isso fazia com que eu me esquecesse completamente do escape que tinha apostado, Kyle.
se levantou do seu bolo de feno, falando alguma coisa com Mason. Nossos olhos se encontraram, finalmente, e eu já não sabia o que Mila e Ella tagarelavam ao meu lado. Eu sei que era horrível ignorar minha mais nova amiga, mas a bebida que eu já tinha ingerido me deixava mais descontraída, o que levava meu corpo a ficar desinibido.
Sério. Eu tinha que adquirir uma resistência ao álcool o quanto antes.
Ele se aproximou de nós trazendo duas garrafas coloridas em mãos. Eu poderia jurar que Mila tinha o mesmo olhar apavorado que o meu. Ella pareceu se lembrar de seu copo vazio e correu até a mesa das bebidas ilícitas.
Eu já sabia que Mila não era chegada em bebidas alcóolicas e o grupo secreto do celeiro parecia respeitar isso muito bem. Mas como eu tinha vindo da cidade grande, achava que eu era obrigada a experimentar tudo o que eles tinham naquele celeiro velho.
— Tenho duas garrafas aqui que você pode amar ou odiar — e terminou com um sorriso cínico. — Está pronta?
Fiz uma careta.
— Posso saber o que é primeiro?
— A careta é para depois da bebida, cidade grande.
Revirei os olhos enquanto Mila parecia se divertir com aquela cena. Sortuda era ela que não ia precisar experimentar aquilo.
— Tudo bem. Vamos lá.
Antes de me entregar um copo, me olhou engraçado.
— Respira fundo porque é a nossa quarta e quinta tentativas.
Mila trocou sua expressão de divertida para confusa.
— O que vocês estão aprontando?
Revirei os olhos novamente, finalmente pegando o copo com um dos líquidos questionáveis das mãos de .
— Ele cismou que a gente precisa encontrar uma bebida que seja do meu gosto.
O garoto do mercado deu um gole na própria garrafa com conteúdo amarelo.
— Precisamos fazer esse teste, você nunca curtiu nada na cidade grande.
Mila deu uma risadinha enquanto eu simplesmente dava um tapa no ombro dele.
— Deixa de ser ridículo — e bebi o conteúdo amarelo de uma vez só. Tinha um gosto terrível e amargo. Minha careta foi instantânea. — Que coisa horrível!
se divertia.
— Bom, vamos excluir essa — e me entregou outro copo, agora de cor transparente. — Estou torcendo por esse aqui, porque é um dos meus preferidos.
Eu não sabia se acreditava nele ou simplesmente saía correndo dali, para não ter que beber mais nada com gosto de morte.
Peguei o copo de suas mãos, com uma pequena dose. Só o cheiro já arrepiava os pelos dos meus braços. Tomei de uma vez também, segurando a careta no final ao máximo.
Uma tentativa bastante frustrada.
riu junto com Mila.
— Tem gosto de quê?
Dei uma tossida forte, secando os olhos em seguida.
— Parece que industrializaram o gosto de morte.
Ele franziu o cenho.
— Está dizendo que meu gosto é de merda?
Mila só dava risadas, provavelmente adorando aquela cena esquisita entre nós dois.
— Só estou dizendo que não é nem um pouco o meu gosto.
deu de ombros.
— Experiências quatro e cinco falharam então — e deu meia volta em direção ao seu bolo de feno, onde Mason ainda fumava alguma coisa. — Me aguarde!
Mais uma vez me vi do lado de fora do grande celeiro velho, com todos os meus novos amigos se aprontando para ir embora. A ideia de todos pedalando suas bicicletas por aí cheios de álcool no sangue (com exceção de Mila) me dava vontade de sorrir ainda mais.
era um filho da puta, mas estava certo. Eu nunca tinha feito nada parecido com aquilo.
Ele tirou sua bicicleta verde da cerca, me olhando com cautela.
— Sei que não devo me meter na sua vida, mas preciso te dizer isso.
Franzi o cenho no mesmo momento.
— Vai reclamar sobre algo que fiz?
— Você está de amizade com aquele menino de Stow-on-the-Wold? — tive de segurar o riso. O que quer que fosse eu iria tirar proveito da situação. — Eu não gosto dele, . É má influência.
Foi impossível não gargalhar. Kyle má influência? Uma jaqueta de couro fazia isso na região?
— Vocês fumam maconha em um celeiro abandonado.
— Isso te influencia mal?
— E plantam nos fundos, eu vi.
Ele parecia pensar em uma resposta para aquilo.
— Não vou discutir isso com você.
— Quer mais exemplos de má influência?
— Pelo menos eu não finjo ser outra pessoa. Só deixo de fazer na frente de quem não interessa.
— Isso é por ele parecer rebelde?
deu de ombros.
— Eu sou rebelde onde posso, no celeiro.
— Ele deve ser assim o tempo todo — provoquei.
— Não sou porque não posso perder a minha bolsa.
A declaração do menino me fez ficar sem palavras por alguns segundos. A família dele não era rica como as demais?
Balancei a cabeça, me recompondo.
— Não somos amigos. E não sei o que ele quer comigo.
subiu na bicicleta, me olhando torto.
— Eu sei o que ele quer com você.
Dei um tapa em seu ombro.
— Vamos, me leve para casa sem cair.
— Não antes da minha outra pergunta.
Meu corpo gelou. Os olhos de brilhavam naquele breu. Ele suspirou, chegando mais próximo do meu rosto.
— Aconteceu alguma coisa lá dentro?
Meu coração deu um salto. Ele tinha reparado que eu estava o medindo o tempo inteiro?
— O que quer dizer?
— Achei que em um momento você ficou um pouco esquisita comigo e com o pessoal.
Tentei manter o tom equilibrado em minha voz.
— Besteira sua.
cerrou os olhos como se não acreditasse naquilo.
— Sem julgamentos no celeiro, lembra?
Respirei fundo. Eu queria questionar ele novamente sobre o porquê de ter me chamado para o grupo secreto, porque queria muito uma resposta além do “você não combina com Cotswold”. Mas sabia que aquilo poderia trazer a hostilidade de volta às nossas conversas.
A verdade era que eu queria tanto ter novos amigos (e tinha adorado ouvir Mila me chamar assim) que me sentia extremamente confusa. Principalmente pelo fato de acreditar que eu não ficaria na vila de Bourton-on-the-Water por muito tempo.
Todos no celeiro pareciam divertidos, bem resolvidos com suas vontades e amizades e eu não conseguia tirar da minha cabeça como seria doloroso me apegar tanto naquelas pessoas e depois ir embora de repente, como sempre.
— Você não entende. Tudo pra mim passa rápido demais. Já me mudei treze vezes.
nem se abalou.
— O que isso te impede de sair com novos amigos?
— Posso ir embora semana que vem, caso meu pai fique enjoado dessa experiência. Não quero…
— Não quer o quê? — eu não conseguia terminar minha frase. — Não quer ter novas pessoas na sua vida? Ou não gostou do pessoal e só percebeu hoje?
— Eu adorei todos. Eu só não quero…
Ele me interrompeu:
— Se machucar?
— Acho que você entende um pouco, então.
— A vila pode não ser grande coisa, , mas todos que te apresentei são amigos de verdade. E isso vale muito.
— Você e Mason são inseparáveis, não é?
— Eu me sinto muito feliz em dizer que sim, somos. Acho que nada no mundo acaba com a amizade que temos.
Naquele momento eu entendi o que sentia e o que queria que eu me deixasse sentir também. Tinha conquistado muitos amigos durante a vida, mas nada com aquele brilho no olhar dele ao falar sobre o melhor amigo de infância.
E então, na frente daquele celeiro velho e sujo, eu fiz um dos meus maiores avanços para “ser uma pessoa melhor” em Bourton-on-the-Water. Eu me dei por vencida.
— Legal. Qual o seu conselho para mim?
me olhou engraçado.
— O mais simples e clichê de todos: viva sua vida. Aceite os novos amigos, a nova casa e tudo mais. Só curte, aproveita o interior, porque certamente será a sua primeira e última vez em um lugar assim. Você não precisa de um motivo para tudo o que for fazer.
— Vou precisar usar uma blusa do mercado escrita “RIO WINDRUSH PASSA AQUI”?
Ele riu.
— Você não é da cidade grande, sabe de tudo e já viveu de tudo? O interior vai ser nada pra você.
Eu ia levar aquilo como compromisso pessoal.
***
Depois de anotar mil coisas durante a aula de matemática, minha mão já doía. Particularmente naquela manhã parecia que o professor tinha tomado café demais, o que fazia a gente ter que correr mais do que o costume para acompanhar. Eu ainda tinha dificuldade de entender 100% o que os locais falavam com aquele sotaque super concentrado, imaginem só teoremas de matemática.
Quando o sinal tocou, meu coração suspirou de alívio.
Eu precisava comer algo e também precisava fazer mil perguntas que não saiam da minha cabeça.
— Mila — ganhei sua atenção, fazendo minha amiga fechar seu caderno. — Queria te perguntar uma coisa. Sobre ontem.
Ela concordou, talvez já adivinhando o que eu queria pedir.
— É sobre a família de Mason?
Neguei com gestos.
— Na verdade... É sobre a família de .
Ela levantou as sobrancelhas, em surpresa.
— ?
— Sim. Você poderia me contar mais coisas? — ela olhou em volta do pátio. — Ele foi o único que não falou nada demais e achei que o pessoal ficou meio apreensivo. Pode ser coisa da minha cabeça também. É coisa da minha cabeça?
Mila fez um careta.
— Não é coisa da sua cabeça.
— E você pode me contar? Se não for algo que prejudique sua amizade, claro.
Minha amiga concordou, logo se preparando para uma longa história.
— Isso fica entre nós?
— Amigas são para isso.
Ela sorriu abertamente, mas logo murchou seu sorriso.
— A história da família é triste, . Mas até prefiro que você já saiba, e ainda mais por algum de nós, porque daqui a pouco você pode ouvir algo na vila — ela se ajeitou no banco, se aproximando mais de mim, com a voz baixa. Eu tentava me manter alerta para o caso de alguém estar muito próximo de nós ou até mesmo de aparecer por ali. Mesmo que eu nunca o visse pela escola. — Quando o tinha onze anos, eu acho, a mãe dele foi embora.
— Para onde?
— Ninguém sabe. Annabelle era bem novinha e Rory ficou completamente devastado. A família era rica, com um império de lojas por todo o condado de Gloucestershire. Rory abriu loja por loja, foi tudo mérito dele e de seu trabalho. Quando Elena foi embora, da noite para o dia, Rory enlouqueceu. Gastou todo o seu dinheiro com detetives particulares, com viagens de busca e tudo mais. Ele estava realmente convencido de que havia acontecido alguma coisa com sua esposa.
Prendi a respiração.
— E aconteceu?
— nunca fala sobre isso, só sei o geral e o que consegui arrancar de Mason. Mas o fato é que Elena mandou uma carta semanas depois, porque ficou sabendo que o marido a procurava como se tivesse acontecido um crime, sequestro ou coisa parecida.
— Uma carta de despedida?
Minha nova amiga confirmou.
— E pedindo para que ele não a procurasse. Que aquela não era sua vida, que sentia muito... Essas coisas.
Eu não conseguia fechar a boca.
— Estou chocada.
— O que aconteceu foi o seguinte: Rory gastou todas as economias da família. Suas lojas foram à falência e ele teve dificuldades até mesmo de sustentar e Annabelle. A única coisa que sobrou foi o mercado perto da ponte, porque os moradores de Bourton-on-the-Water arremataram as dívidas e entregaram de presente para ele.
— Os não possuem família em outros distritos?
Mila fez um gesto com as mãos.
— Essa é uma parte complicada também. Elena é de Chippin Campden, outro distrito do nosso condado. A família dela é grande e poderia ter ajudado, mas eles e Rory nunca se deram bem. É quase o que acontece comigo e com a família de Mason... A família de Elena é muito rica, produtores em escala para a Inglaterra e outros países da Europa, então não ficaram muito felizes quando a filha resolveu se casar com um zé ninguém de Bourton-on-the-Water. Rory começou do zero, seus pais morreram cedo.
Eu estava chocada com toda aquela história. parecia tão tranquilo, tão sem segredos.
— Eu nem sei o que comentar, Mila. Agora entendo porque ele não quis falar nada.
— Mas é bom você saber o básico que todos sabem, para não ser pega de surpresa.
— Você tem razão, obrigada por me contar.
— Tem outra coisa importante também. Esse período em que Rory não aceitou perder Elena durou mais ou menos um ano. É por isso que não se formou com Mason, no ano passado.
— Ele perdeu um ano de escola para ajudar o pai — sussurrei, ainda mais chocada.
Mila concordou, sua expressão triste.
— É por isso que ele faz poucas matérias com o quarto ano. Montaram uma grade especial para que ele pudesse se formar sem perder mais um ano.
— E a mãe nunca apareceu?
Mila negou com a cabeça.
— Até hoje ninguém sabe onde Elena está.
A conversa que tive com Mila no intervalo ficou em minha cabeça durante todas as aulas da manhã. Quando o sinal tocou novamente, avisando o fim das aulas normais, corri para conseguir chegar do outro lado da escola, no bloco onde teríamos a atividade extracurricular de Culinária Doméstica.
Não sabia que ideia era aquela de colocar uma aula de comida em pleno horário de almoço, mas esperava ter uma surpresa bem agradável ao chegar no local. Comida de graça e já prontinha, quem sabe.
Entrei com pressa na sala, apenas dando um singelo ‘boa tarde’ ao professor encostado na bancada principal. Joguei meus materiais no único lugar vago, mais para o fim da sala, e por lá fiquei.
Para a minha infelicidade não tínhamos comida pronta, mas havia um lanche suspeito para cada um. O desafio do dia seria fazer uma receita de muffin de banana com calda de chocolate e por alguns minutos eu esqueci o tamanho da fome que sentia. Seria divertido aprender algo realmente novo e prazeroso de se fazer.
Eu estava tão concentrada em fazer aquele muffin esquisito dar certo que nem tinha reparado quem estava a três bancadas de mim, mais ao lado direito. Era impossível não reconhecer aqueles meio cachos rebeldes na cabeça dele.
.
Ele parecia igualmente concentrado em sua receita, mas tudo indicava que ele estava bem mais avançado - e também bem mais prático do que eu. Eu era realmente um desastre na cozinha e tinha decidido que não iria competir em nada naquela atividade extra.
Como eu tinha decidido não comer o lanche suspeito da aula extracurricular de Culinária Doméstica, minha opção foi procurar algo nas cantinas da The Cotswold School, já que teria a oficina de Artes no próximo horário.
Ao lembrar que nada ali me agradava, resolvi que a melhor ideia possível seria andar pela vila. Algum café seria melhor.
Já no centro da vila, um pouco distante do quarteirão enorme da escola, namorei algumas vitrines e cardápios enquanto meu estômago dava pulos. Pelo vidro da loja vi aquela cabeleira que já reconhecia de longe e mal contive as palavras em minha boca.
Naquela hora pouco me importou o nosso grupo secreto.
— Seu muffin ficou bom?
parou de andar, me olhando surpreso.
— ! — e então coçou a nuca. — Pensei que nem tinha me visto. Sua bancada era uma zona.
Revirei os olhos.
— Eu sou nova nessa coisa de cozinha.
Ele riu com vontade.
— Sorte nossa que o professor parou de colocar todas as receitas prontas para experimentação — e passou as mãos nos cabelos. — Sou novo demais para morrer de intoxicação.
Bati em seu ombro.
— Deixa de ser ridículo. Ficou… Comível.
gargalhou.
— Se quiser te dou umas dicas. Faço essa atividade há um tempo.
Chegamos onde eu queria: saber por que ele fazia aquela aula de cozinha. Tudo bem que tem gente que ama essas coisas, mas realmente não era o perfil de .
— Posso perguntar por que você faz essa aula?
Ele deu de ombros.
— Eu não sabia cozinhar. Me ajudou bastante em casa.
Aquela afirmação tão naturalmente falada me atingiu um pouco. Pela história que Mila tinha me contado provavelmente precisou ajudar seu pai também nas tarefas de casa, como cozinhar para sua irmã mais nova.
Aquilo doía meu coração. Eu queria falar que sentia muito, mas ele ainda não sabia que eu estava por dentro de toda a história triste de sua família.
A única coisa que fiz foi concordar.
— Entendi. Se a próxima receita ficar pior, te peço ajuda.
Ele piscou seu olho azul-claro.
— Te vejo mais tarde?
E sem ao menos receber minha resposta, continuou seu caminho para longe, provavelmente indo ao mercado decadente da sua família.
Chegando ao grupo de Artes descobri que, como o Halloween estava um pouco próximo, o pessoal iria fazer coisas relacionadas a data comemorativa. Um dos meninos que fazia trio comigo, um baixinho engraçado, organizava alguns materiais roxo e preto, e eu já estava triste por ter que participar daquilo.
Eu não gostava nada de fantasias ou Dia das Bruxas.
Só dos doces, claro.
Mas como eu tinha colocado em minha cabeça que iria participar ativamente dos grupos de atividades extracurriculares que tinha me inscrito, iria aceitar aquela tortura por algumas semanas.
— Legal. Onde posso encontrar essas coisas para fazer junto com vocês? — eu ainda observava aquela bagunça roxa. — Posso incluir uns detalhes laranjas e eu sei costurar. Dá para fazer alguns acessórios legais para a escola.
O menino parecia concordar, achando incrível o fato de que alguém ali sabia usar uma linha e agulha.
— Eu achei naquele mercado pequeno, perto da ponte de pedras menorzinha. — fazia sentido que as pessoas só achassem coisas diferentes onde trabalhava, já que lá eles realmente vendiam de tudo. Era isso ou duas longas horas até Londres. — É da família daquele menino que namorava Zara. Sabe quem é?
A real sorte da minha vida era não ter grandes reações no susto por nada, porque com certeza minha expressão era a mais chocada possível. e Zara? Balancei levemente a cabeça, tentando dar meu melhor sorriso.
— Sei qual é! Eles realmente vendem de tudo por lá. Coisas para o Halloween não iam ficar de fora.
Andei a passos largos até o final do corredor a procura de uma pessoa. Por sorte consegui pegar Mila saindo de sua monitoria de ‘Direitos Humanos’, provavelmente indo para casa. E por sorte eu tinha escutado no dia anterior o seu papo sobre hoje ter aquela atividade que tanto parecia chata para mim.
Corri a sua direção, parando ao seu lado em segundos.
Minha amiga me olhou sem entender.
— O que aconteceu, ?
Meu coração ainda batia forte com a nova informação que eu tinha da vila.
— Preciso conversar com você — Mila franziu o cenho, preocupada. — Você tem um tempo agora?
Ela me pegou pelo braço e vi que estávamos indo em direção ao pátio principal, onde passávamos nosso intervalo. Sentamos em uma das mesas de pedra mais afastadas, próximo ao início do jardim. Joguei minhas coisas na mesa, enquanto Mila sentava calmamente, sem destruir seu material ou qualquer coisa perfeita que deveria ter dentro da sua bolsa rosa chiclete limpinha.
As palavras mal ficavam em minha boca.
— Primeiro, eu preciso que você entenda que isso que vou perguntar não é por ciúmes ou nada parecido, tudo bem?
Mila pareceu ainda mais confusa e preocupada.
— Está me assustando, . Você fez alguma coisa?
Foi a minha vez de franzir o cenho. Minha reputação de louca da cidade grande era tanto assim? Abanei o ar e ela entendeu que não era nada daquilo.
— Não. Preciso que você me conte sobre uma coisa. De .
Suas sobrancelhas se levantaram.
— Ainda tem alguma dúvida sobre a família dele?
— Ele e Zara foram namorados?
Mila me olhou por alguns instantes sem piscar.
— Sim, mas tem anos isso.
Eu não sabia porque aquilo me chateava tanto, mas sabia que não era por ciúmes, como já tinha dito a Mila.
— Como? Quer dizer, ela não é a pessoa mais simpática do mundo.
— Tem bastante tempo isso. Ela era… Diferente.
Era impossível reprimir minha expressão. Um misto de surpresa, decepção e confusão. Eu realmente não estava com ciúmes, apenas não conseguia entender como uma pessoa igual Zara tinha conseguido alguém como .
Simplesmente não combinava.
— Não consigo entender, Mila.
— Eu não vou mentir para você. Ele fazia qualquer coisa por ela — Mila soltou um pequeno suspiro, talvez relembrando as coisas loucas que já tenha feito por Zara. — Digo, qualquer coisa mesmo. Ele era completamente cego por Zara.
— Isso não me pareceu muito saudável.
— Ele sempre teve o pé no chão, mas ela conseguia qualquer coisa.
— Do ?
Mila reprimiu uma risada.
— Ele é difícil mesmo, então eu acho que ela merecia uma medalha.
— Por quanto tempo?
Minha amiga pareceu pensar.
— Acho que o namoro deles durou uns dois anos, mas eles eram amigos de infância.
Não consegui reprimir a careta novamente.
— E ela era diferente como?
— Não sei te explicar, , mas Zara mudou do nada. Ela era como nós… Queria mais do que Cotswold, só que algo mudou a cabeça dela. Hoje eles nem se olham.
Finalmente em casa, jogada em minha cama, consegui respirar fundo por tudo o que tinha passado nos últimos dias.
Pensava no celeiro, em meu começo de amizade com Mila, em . Em namorando Zara… E nas maldades que a menina já tinha feito comigo.
Meu celular tocou um barulho esquisito e por algum motivo muito louco do destino, era por causa de uma notificação de nova postagem de minha melhor amiga de Nova Iorque, Bree.
Quando abri a tela se preencheu com uma foto divertida dela com pessoas que eu não conhecia e, ao seu lado direito, Logan. Todos pareciam felizes, completos e bem com seus supostos novos amigos.
Eu não era uma garota de sentir ciúmes, mas ver aquela foto tinha pesado o meu coração.
Minhas mãos tremiam como nunca e meu coração parecia gelar no peito.
— Você está sendo egoísta.
Sua expressão era cínica.
— Tem certeza que eu sou o egoísta dessa relação?
Abri a boca, sem reação. Foi o suficiente para ouvir uma nova provocação.
— Eu não vou te esperar para sempre, .
Aquilo me atingiu pior do que deveria. Minha voz tremia pela raiva.
— Quando foi que eu pedi para você me esperar?
Logan continuava com a cara cínica que tanto me tirava do sério.
— Achava que fosse um consentimento, já que sua família é complicada.
— Eu sei o que acontece toda vez que a gente se separa. E Bree nem precisa me contar.
Sua voz perdeu a força de antes.
— Você sabe que não significa nada.
— E você continua se envolvendo com todas as garotas possíveis de Nova Iorque. Com amigas, colegas, conhecidas… Parece que só faz porque sabe que vai chegar aos meus ouvidos.
— Eu não faço essas coisas para te atingir.
— Então porque quando eu me relaciono com outra pessoa você joga as coisas na minha cara?
Logan revirou os olhos, me deixando ainda mais impaciente.
— É diferente, . Eu sinto muito porque eu gosto de você!
— Essa é uma maneira muito estranha de gostar, sabia?
— Você tem algo mais para dizer ou posso ir embora?
Aquela briga, aos olhos de algumas pessoas, poderia não parecer tão séria. Mas para nós era. E muito. Logan tinha ido me visitar em Paris e tudo estava indo bem, até que as fofocas chegassem aos meus ouvidos.
Era muito fácil declarar seu amor por mim do outro lado do oceano e varrer toda a cidade, se relacionando com o maior número de garotas possíveis.
Desde que nos separamos em Nova Iorque era muito complicado manter a exclusividade que os namorados tinham, mas todas as suas palavras de carinho e amor me diziam que estávamos sim eu um relacionamento sério, mesmo de longe. O problema era que apenas eu sofria com isso, sozinha, negando qualquer pessoa que quisesse se aproximar de mim - ou até mesmo apenas querer descobrir um pouco mais sobre mim. Tudo pelo receio de pensar em como ele se sentiria.
Diferente de Logan, que não perdia uma oportunidade.
— Vamos nos mudar para a Inglaterra.
Seu olhar pareceu ainda mais transtornado.
— O quê?
— Tenho mais duas semanas na França.
— Realmente, … — ele riu com escárnio. — Não dá para entender! Não dá para entender como você faz isso com a sua própria vida, como você faz com a minha!
— Não te culpo por não entender.
Sua expressão ficou cínica novamente.
— Você já tem um lugar para chamar de lar: Nova Iorque.
— Pode ir embora.
— Você que decide.
— Para mim, acabou.
Seus olhos verdes me olharam vazios antes de partir para o outro lado da rua, onde entrou em um táxi qualquer.
>
Doía admitir, mas estava certo.
Não podia deixar minha vida passar por medo do que aconteceria no dia seguinte.
Quando estávamos saindo da França (e com a briga homérica que tive com Logan) tinha decidido que iria fazer mais por mim. Minha cabeça tinha mudado desde que ouvi de minha colega, Noelle, que eu era a única que deixava de viver a minha vida, já que meus amigos de Nova Iorque pareciam viver muito bem entre si e com a distância presente entre nós. E que no final de tudo eu que sobrava, triste, vazia e sozinha.
Infelizmente foi uma promessa que durou até o meu primeiro passo em Cotswold, pela revolta, melancolia, solidão e por estar completamente inconformada com tudo. Com meus pais, com a escolha deles que eu era obrigada a seguir e com toda a arrogância do meu ex-namorado em nossa última conversa.
Se o grupo secreto do celeiro tinha despertado essa motivação em mim novamente, eu ia tentar segui-la (pelo menos por um tempo).
Eu tinha decidido que não ia imitar o passado. Iria escolher ter amigos.
Eu abraçaria o interior e teria um futuro completamente diferente.
Dias após a minha primeira noite no grupo secreto do celeiro (que eu esperava não ser a última, claro) eu ainda procurava rostos conhecidos pelos longos corredores e pátios da The Cotswold School. Era estranho passar pelas pessoas que compartilhei um momento naquele dia sem nem ao menos receber um cumprimento.
O segredo do grupo era real.
Quando contornava o segundo corredor claríssimo em direção a minha longa aula de Matemática II esbarrei com Noah e Riley, que riam sobre algo com mais dois meninos igualmente baixinhos. Olhei com o canto do olho para Noah, já esperando algum comentário, mas nada recebi. Marchei direto a sala já encontrando algum lugar para passar aquelas próximas horas intermináveis.
Era oficial. Eu precisava de colegas pela escola antes que ficasse maluca.
Quando o sinal tocou, andei apressadamente para o pátio com as lanchonetes. Meu estômago reclamava alto sem vergonha alguma. Assim que cheguei na parte dos grandes bancos, pela primeira vez vi o menino do mercado no canto esquerdo, possivelmente pegando algo para comer e depois sumir. encontrou o meu olhar e sustentou, acompanhando meus passos. Eu entendi como um teste e desviei, olhando para o outro lado.
Mas ao adentrar a tortura de Literatura Inglesa (ironicamente) meu dia melhorou. Mila estava sentada em sua provável cadeira cativa e alguns de seus materiais rosa demais se estendiam na mesa ao lado.
Eu entendi de primeira.
— Estava me esperando?
Mila assentiu com um sorriso.
— Claro, . Até guardei sua cadeira.
Não pude evitar sorrir.
— Obrigada — e também não pude evitar uma careta. — Mas precisava ser tão na frente?
Ela tentou imitar minha expressão.
— Você gosta de dormir em Literatura?
Dei de ombros, colocando meus livros na carteira.
— Sempre gosto de ter essa opção.
entrou na sala e cumprimentou metade da turma. Deu um sorriso para Mila e para mim (eu acho), e logo sentou duas cadeiras à minha direita, já abrindo seu grande caderno e livro.
Olhei para Mila.
— Isso é muito estranho. Como vocês conseguem?
— Você vai se acostumar. Não é tão difícil assim.
Kyle sentou ao meu lado, me fazendo cerrar os olhos. Com toda a confusão do celeiro eu tinha me esquecido completamente do menino.
— E aí, ?
Sua jaqueta de couro era de uma cor diferente.
— Oi, Kyle.
O menino cumprimentou Mila. Olhei com canto de olho para que ainda se mantinha focado nas anotações, mesmo sem aula nenhuma acontecendo.
As aulas passaram rápido e quando vi já estava andando/correndo em direção a nossa casa. Quando botei os pés dentro do recinto senti aquele cheiro maravilhoso que só minha mãe conseguia fazer.
Bolo de baunilha com chocolate, sua especialidade em doces.
Aquele aroma fez meu corpo quase levitar em sua direção. Mamãe estava em frente a grande ilha da nossa exagerada cozinha.
— , chegou bem na hora!
Por ter ficado em tempo integral na escola, devido a atividade extracurricular de Línguas, acabei perdendo o almoço em casa.
— Esse cheiro é o que estou pensando?
Minha mãe concordou de prontidão.
— Sim, seu preferido.
Na verdade era o preferido do meu irmão mais velho, mas depois que ele tinha resolvido ficar em Nova Iorque eu tinha absorvido algumas coisas dele, para que sempre o sentisse próximo. Mamãe sabia bem daquilo e eu gostava.
Bati palmas, animada.
— Obrigada!
E eu sabia também que ela e papai estavam tentando amenizar os sintomas ruins que eu tinha em Bourton-on-the-Water, principalmente após minha crise aos prantos para irmos embora para Londres.
O pensamento de ir embora me deu uma sensação esquisita no estômago.
Quando eu ia dar a primeira garfada no bolo quentinho, meu celular posto anteriormente na bancada se iluminou.
* : Te pego hoje ao anoitecer, cidade grande.
Foi impossível não crescer ainda mais o meu sorriso.
me esperava na esquina, encostado no muro de pedras. Ficava cada vez mais difícil não o achar atraente. O jeito despreocupado que ele tinha, seu olhar para o nada.
E sua bicicleta verde esquisita.
Assim que me avistou, descolou do muro e pediu para que eu me apressasse.
— Anoitece às oito.
Revirei os olhos.
— Como eu ia saber disso?
Ele riu, subindo na bicicleta.
— O que disse para seus pais?
— Mesma desculpa que da última vez: extracurricular valendo nota para o meu histórico extra manchado.
concordava, enquanto eu me encaixava no quadro da bicicleta.
— Pronta?
Fizemos o mesmo caminho pela estrada de terra mal iluminada e, incrivelmente, eu senti a mesma sensação do que na primeira vez indo ao celeiro. pedalava sem pressa, como se tivesse todo o tempo do mundo. E realmente parecia que tínhamos todo o tempo do mundo, o que era incrível.
A vida em Bourton-on-the-Water parecia correr em uma linha do tempo diferente. Eu não sentia a rotina e muito menos sentia a sensação de que o dia ou a semana, ou até mesmo as horas, passavam rápido demais. A monotonia do lugar fazia com que todos andassem tranquilos, sem pressa, sem correr e sem se estressar.
Aquilo era um dos pontos que eu não conseguia relacionar com toda a minha vida em cidades grandes. Tudo era sempre um pouco caótico - o que dava uma pontada de emoção em viver naquelas cidades. A vida lá passava rápido demais, assim como todos os dias da semana. Sempre faltava tempo para alguma coisa, talvez pela grande quantidade e opção de tudo, em tudo e por tudo.
Eu não sabia o que sentia ainda sobre conseguir agir com calma no interior. Ainda me sentia na roça junto com quatro mil caipiras, mas precisa admitir (mesmo que só em minha consciência) de que aquela calmaria tinha suas qualidades.
Assim que abrimos a porta já avistei Noah encostado na parte de dentro da entrada do celeiro. O menino mais novo fez um pequeno aceno para nós, visivelmente sem ânimo.
Eu o conhecia a um dia, mas sabia que aquilo era bem atípico.
bagunçou seus cabelos com uma das mãos, fazendo o bico de Noah aumentar ainda mais.
— Sobrou para você hoje, pirralho?
Noah lutava contra os cabelos rebeldes após o carinho nada delicado de .
— Eu sempre perco nessas coisas. Você devia participar, eu teria mais chances.
O garoto do mercado deu uma risada.
— Os mais velhos são imunes, criança.
Enquanto andávamos para mais próximo de onde a galera estava reunida, cutuquei o braço de antes que o perdesse para as bebidas.
— Colocaram Noah de castigo?
achou graça e eu consegui sentir sua animação com o pensamento de deixar o menino mais novo sendo castigado por alguma coisa. Ele sacudiu a cabeça, mantendo o sorriso de antes no rosto.
— Não. Ele só perdeu na rodada de hoje.
Minha reação de pânico fez com que ele se divertisse ainda mais. Eu ainda não sabia de muita coisa sobre o celeiro secreto ou sobre o que eles faziam ali dentro (tirando beber e ouvir música). Era o que faltava ter prendas bizarras entre as pessoas do grupo.
— Perdeu o quê?
— Hoje tem patrulha. É a vez dele ficar de olho.
Não sabia também como funcionava a questão da patrulha pela região de Bourton-on-the-Water, mas se eles tinham um revezamento interno para verificar se estava tudo bem naquela estrada velha, mal iluminada e sem asfalto, parecia algo realmente importante.
Algo que poderia tirar o “secreto” daquele grupo.
Quando nos aproximamos do grupo, Ella nos recepcionou com pulinhos.
— Eu disse, pessoal! — e bateu palmas em comemoração. — Eu disse que ela iria voltar!
Tive de rir ao acompanhar a animação da menina. Suas mechas laranja balançavam por todo seu cabelo.
— Pareci tão antipática assim?
Ella abanou o ar, me puxando pelas mãos até onde o resto do pessoal estava espalhado.
— Claro que não, garota da cidade grande. Só fiquei feliz!
Cumprimentei a todos, inclusive Bronwen, que parecia um pouco menos revoltada que no último dia em que a vi. Continuava sendo uma recepção não muito calorosa, mas eu sabia que não ia ganhar aquela batalha tão cedo.
E também não me importava muito.
Ao chegar próximo a Riley, que estava mais distante de todos, percebi seu suéter com outra referência nerd que eu não fazia ideia do que poderia ser.
— Suéter legal.
O garoto sorriu abertamente.
— Você é fã?
— Talvez, se você me contar mais sobre essa coisa de patrulha, Riley.
O menino ajeitou os grandes óculos de grau no rosto.
— O que precisa saber, ?
Achei engraçado ouvir meu nome sendo falado, já que todos insistiam em me chamar de ‘cidade grande’. Deixei passar.
— Noah vai precisar ficar a noite toda vigiando?
O baixinho balançou a cabeça em negação.
— Sabemos a hora e os dias da patrulha. Se passar por aqui, deve ser daqui a pouco.
Mason brotou ao lado do irmão, bagunçando seu cabelo com uma das mãos assim como havia feito com Noah.
— E quando passar estaremos livres para curtir a nossa noite.
Por conta da espera da patrulha da noite passar, todos permaneceram sem muita animação, sem música e, como percebi sozinha, sem falar com o tom de voz muito elevado. Eu conversava com Mila sobre uma chatice da última aula e Ella parecia se divertir fazendo uma trança esquisita em meus cabelos. E de repente Hayden gargalhou alto, tão alto, que a luz do celeiro se apagou por inteiro. Meu corpo congelou. Eu sabia que estava segura e tinha várias pessoas ali para me ajudar caso algo acontecesse naquele fim de mundo, mas mesmo assim meu coração dava saltos.
Bourton-on-the-Water tinha quatro mil habitantes. Se alguém morresse em um celeiro abandonado não seria tão difícil achar o culpado.
Não é?
Não consegui controlar o receio em minha voz.
— O que aconteceu?
Todos permaneceram em silêncio. E já que não tive retorno, resolvi fazer o mesmo.
O silêncio total no grupo durou cerca de cinco minutos até que as luzes se acenderam novamente. Antes que eu pudesse questionar, Mason estava ao meu lado de mãos dadas com a namorada.
— Patrulha passando.
Meu coração ainda se mantinha acelerado.
— Eles não podem entrar nos celeiros para verificar?
Hayden jogava alguma coisa na direção de Noah, que por pouco desviou.
— Eles podem, cidade grande. Mas só onde não é propriedade privada.
Meus olhos se arregalaram tanto que gargalhou do outro lado do celeiro (onde provavelmente permaneceu imóvel até as luzes voltarem).
— Nós estamos invadindo propriedade privada?
Meu tom foi tão esganiçado que Mila agarrou meu braço no mesmo segundo.
— Não, amiga.
Ouvir aquela palavra tão doce saindo de seus lábios fez meu corpo se acalmar. “Amiga”.
Olhei em seus olhos escuros.
— Não?
Ele sacudiu a cabeça, onde mantinha uma tiara prateada. Como uma coroa de princesa.
— Não.
Passei os olhos ao redor do celeiro, procurando uma resposta em alguém. Mila chamou minha atenção novamente.
— O celeiro faz parte do terreno de uma das fazendas dos meus pais — ela sentou em um dos blocos de feno, já com sua garrafa de água mineral devidamente em mãos. — Meus bisavós maternos começaram o legado da família Hughes aqui nesta terra. A fazenda foi a primeira, tinha muito potencial e vários animais — e suspirou, como se fosse dizer a coisa mais emocionante do mundo. — Eles se casaram aqui dentro do celeiro.
E para Mila provavelmente era.
— Agora tudo faz um pouco mais de sentido.
Noah observava nossa conversa, assim como os demais.
— Não parece mais tão rebelde, não é?
Olhei em sua direção, mas antes que pudesse responder, Mila me chamou de volta.
— Meu pai resolveu que seria melhor deixar essa área apenas para os animais, pois muitos estavam com dificuldade de se alimentar pela região há alguns anos atrás — e sorriu. — Então a área da fazenda virou tipo uma reserva em nome da nossa família.
Já achava aquilo tudo incrível, mas a história de Mila fazia com que fosse ainda mais admirável.
— E o celeiro? Ninguém vem aqui ver como está?
Ela fez um gesto com a cabeça, o que fez sua tiara brilhar ainda mais.
— Tecnicamente, sim — e então minha nova amiga deu de ombros. — Eu peguei essa tarefa. Expliquei aos meus pais que queria ajudar.
Tive que sorrir com sua conclusão.
— Então você é a responsável pela manutenção aqui.
— Isso. E assim ninguém entra em nosso espaço.
A tensão instalada naquele celeiro velho ia se dissipando a cada minuto. E a cada novo gole nas bebidas alcóolicas também. Quando percebi todos já estavam curtindo sua noite, conversando sobre coisas aleatórias nos bolos de feno espalhados por todo interior.
Noah estava deitado em um quadrado, de barriga pra baixo.
— Quer dizer que tenho uma chance com você?
Franzi o cenho, sem nem entender como tínhamos chegado naquele assunto.
— Ficou louco?
O garoto continuou na mesma posição.
— Vou entender isso como um “talvez”.
revirou os olhos, empurrando o menor para o lado e se sentando no feno prensado. Hayden estalou os dedos.
— Eu pensei em fazermos algo diferente hoje — e assim ganhou a atenção de todos, inclusive a minha. — Como somos amigos há bastante tempo, nos conhecemos. Mas nada sabe sobre nós. Ou nosso celeiro.
Todos me olharam, o que me fez gaguejar.
— Como assim?
Mason ponderou.
— Ok. Em vez de fazermos alguma reclamação da nossa vida idiota em Cotswold, vamos falar sobre coisas que gostaríamos que soubesse — e os demais pareceram concordar com a sugestão. Menos Bronwen, que ainda insistia em me ignorar. — Beleza! Quem começa?
Me sentei ao lado de Mila, que levantou o braço.
— Eu posso começar — todos se sentaram próximos, formando um círculo mal feito, — , tem muitas coisas sobre todos nós e muitos porquês de fazermos esse grupo — concordei de prontidão. — Minha primeira coisa que você precisa saber é: ninguém na vila sabe que Mason e eu somos namorados.
Eu abri a boca no mesmo momento.
— Como é?
Minha nova amiga tentou parecer confiante.
— A família de Mason não me aceita.
Vi Mason fechar os olhos, assim como Riley.
— Quem não te aceitaria, Mila? Você parece uma princesa!
Hayden quebrou o silêncio que ficou depois de minha fala.
— A família Hunt tem seus preconceitos. Bourton-on-the-Water é o distrito mais conservador de Cotswold, se é que eu posso chamar isso de “conservador”.
Todos balançaram a cabeça em negação. Eu engoli minhas palavras. Tinha ficado claro que o problema era ridículo e do século XV, assim como toda aquela porcaria de vila.
O “problema” era por Mila ser negra.
Olhei para minha nova amiga.
— Eu sinto muito, Mila.
Ela concordou, agradecendo.
— Foi difícil no começo, para nós dois e todos nossos amigos. Mas Cotswold não pode destruir o que sentimos um pelo outro.
Mason se esticou até alcançar a mão de Mila.
— Nada destrói isso.
As bochechas de Mila coraram no mesmo instante.
— Quem é o próximo?
Eu ainda tentava digerir tudo aquilo, mas então Ella levantou sua mão cheia de pulseiras coloridas.
— Euzinha! Você sabia que eu mesma faço as minhas roupas?
Olhei para Ella em choque.
— Isso é maravilhoso!
A menina balançou os cabelos, feliz.
— Quero suas dicas da cidade grande depois.
— Quando quiser.
Naquele dia eu aprendi várias coisas de meus novos amigos.
Aprendi que cada um tem uma história diferente. Com passados tristes e felizes, assim como ânsia por futuros melhores.
Mila fazia parte de uma das famílias mais poderosas da região. Seu pai controlava boa parte da produção de lã do condado. O fato da família de Mason e Riley não a aceitarem deu um nó na minha cabeça. Se era para ser tradicional, Mila seria a principal escolha da região. Mas, infelizmente, um preconceito bobo falava mais alto.
Noah era de Stroud, outra cidade do condado de Gloucestershire, e tinha ido para Bourton-on-the-Water há três anos. Tinha duas irmãs de idades distintas, fazendo com que ele fosse o filho do meio. Gostava muito de skate, assim como suas roupas no celeiro mostrava, mas não sabia subir em um sem cair de cara no chão.
Ella, além de fazer suas próprias roupas, era a mais viajada do grupo. Ninguém mais tinha saído do país, diferente dela. Seu pai trabalhava em uma empresa de grande porte em Londres, mas sua mãe, que morava em Liverpool, tinha uma marca de roupas própria. Nada de muito luxo, mas já inspirava a filha a continuar seu legado.
Hayden tagarelou sobre seus tempos como artilheiro do time de futebol, mas acabou deixando de lado o porquê de não jogar mais na escola. Pelo menos ele ainda parecia bem interessado no grupo de Línguas, o que era esquisito para um craque do futebol.
Ella parecia realmente animada.
— Você precisava ver, garota da cidade grande. Hayden era o melhor de todos!
O loiro super alto parecia constrangido.
— Não precisa exagerar, baixinha.
Ella continuava:
— Eu estou falando sério. Todos concordam, não é?
Percebi Hayden trocar um olhar demorado com e Mason, e não sei porque, mas achei que eles tinham um pouco de tristeza naquilo.
Bronwen, como eu já esperava, revirou os olhos e disse que nada da vida dela iria fazer diferença na minha. Eu aceitei abertamente aquilo.
— Eu não preciso dizer que somos zoados na escola, não é? — Riley deu um sorriso engraçado, que foi acompanhado por todos nós. — E meu gosto por coisas nerds não ajuda muito. Então a coisa mais diferente que tenho para te contar sobre mim é que eu já invadi o sistema da The Cotswold School.
Noah concordava com gestos.
— Ele é muito bom com computadores.
Hayden não perdeu a oportunidade.
— Tão ruim com esportes, mas tão bom para essas coisas esquisitas.
Os meninos mais novos devolveram alguns xingamentos, mas logo Riley continuou a sua história:
— Todos nós íamos reprovar na prova de Álgebra Avançada. Fiz minha contribuição para a vila.
Era engraçado, mesmo parecendo bem fora da lei.
— E você ajudou a todos, até os que te perturbam por lá?
O menino fez uma careta.
— Não costumo guardar rancores, .
Era ótimo ver que mesmo com todas as chateações, ter pessoas implicando e toda a peculiaridade que Riley tinha, aquilo tudo não era motivo para ele ficar no mesmo nível que os demais.
— Eu provavelmente vou precisar das suas habilidades para passar em Literatura Inglesa.
O baixinho corou.
— Conta comigo.
Mason bagunçou os cabelos com as próprias mãos, olhando para Mila com o canto do olho.
— Eu já terminei a escola, . Hoje trabalho em um bar no centro da vila, o Sheppard — e deu de ombros. — Estou esperando e Mila terminarem o colegial para decidir os meus próximos passos.
Concordei com um gesto.
—Parece um bom plano.
Ele riu mais.
— Sobre algo que eu gosto, fico com esportes — e passou os olhos na roupa descolada e esportiva. — Mas acho que isso já deu para perceber.
Dava para perceber de longe, então eu apenas sorri concordando novamente.
se espreguiçou.
— Minhas coisas são básicas. Você já conhece Annabelle. Meu pai é dono do mercado local... Moramos nós três apenas — concordei, prestando atenção em cada palavra. — Não temos nada além do mercado.
O resto da galera pareceu inquieto, mas eu queria saber mais.
— E sobre algo que você goste muito?
Ele fez pouco caso da minha curiosidade.
— Gosto da ideia de ir embora daqui.
— Ele gosta de música — Mason disse em uma risada. o olhou no mesmo momento, com uma cara nada boa. — O que foi? É a verdade.
Pela expressão de , deixei passar mais perguntas.
— E o que vocês querem saber sobre mim?
Noah foi o primeiro:
— Você namoraria alguém mais novo?
O celeiro explodiu em uma gargalhada. Bronwen jogou algo no amigo, que desviou. A menina ruiva me olhou com intensidade.
— O que você acha que está fazendo aqui? Em Bourton-on-the-Water?
Antes que alguém reclamasse, eu disse que estava tudo bem em responder aquilo.
— Meu pai é uma espécie de consultor financeiro. Como eu disse para vocês, já trabalhou até mesmo com as contas na Casa Branca, lá nos Estados Unidos. Eu não sei explicar com muitos detalhes, mas ele faz auditoria nas contas públicas. Geralmente são países ou cidades muito importantes.
Mason parecia interessado.
— Acha que está acontecendo alguma coisa em Londres?
Ponderei com um gesto.
— Eu sinceramente não faço ideia. Meu pai não comenta muito sobre trabalho, por ser sigilo. E para não ficarmos preocupados também.
Riley ajeitou os grandes óculos.
— Parece importante. Mas por que não foram morar em Londres?
— Meu pai respondeu que isso é sobre qualidade de vida. Viver um pouco longe da cidade grande, ver novos ares... — suspirei, achando uma completa palhaçada todo aquele discurso emocionado “eu amo o interior” que meu pai fizera ao anunciar nossa décima terceira casa nova. — Morar em uma casa de verdade, e não em um apartamento velho alugado.
— Parece um sonho americano, falando assim — fez uma careta.
— Deixa de ser quando você se muda pela décima terceira vez.
Todos pareciam chocados. Riley deu um pulo de seu feno.
— Você já se mudou treze vezes?
— Treze.
Percebi trocar um olhar com Mason, como se parecesse impressionado também.
Não era o meu assunto preferido, mas depois de tantas confissões eu devia uma boa explicação sobre minha vida para aquelas pessoas. Pessoas que eram meus novos amigos. Depois dos dez anos de idade as coisas começaram a ficar difíceis, porque você simplesmente aprende o que é amizade e saudade.
O celeiro explodiu em perguntas e tudo que fiz foi rir.
— Vou tentar explicar rápido. Sou menor, então acompanho meus pais. Nasci no Brasil e com um ano de vida apenas fomos para Chicago, nos Estados Unidos — eu contava com os dedos enquanto falava. — Rio de Janeiro, Chicago, Boston, São Paulo, Los Angeles, Washington, Montreal, Nova Iorque, Amsterdam, Paris, Bourton-on-the-Water. Onze, mas em Chicago e Montreal mudamos duas vezes.
Ella ainda estava surpresa.
— Me diz depois para que eu possa anotar?
Tive que rir junto com os demais.
— O importante é vocês saberem que já passei por lugares demais.
A menina das mechas laranja bateu palmas.
— Bom pra mim. Mais lugares com boa moda para você me dar dicas!
— Acho que é isso — dei de ombros, dando uma piscadela para Ella. — Ah! Tenho um irmão mais velho, mas ele não mora com a gente.
Mila pareceu interessada.
— Ele também viaja pelo mundo?
— Arthur se cansou em Nova Iorque. Ficou e faz faculdade por lá.
Todos pareceram satisfeitos com aquela confissão e eu não pude deixar de sorrir junto. Era ótimo saber um pouco mais sobre todas aquelas pessoas diferentes, principalmente tendo a consciência de que todos estavam ali para se proteger de todo o mal que o interior de Cotswold poderia ter.
Ainda tinha muitas dúvidas sobre todos e tudo, mas a principal em minha cabeça era sobre uma conversa paralela que tinha ouvido.
— Eu tenho mais uma coisa para perguntar.
Mason virou seu copo de uma vez só.
— Manda!
Achei engraçado o seu jeito, mas deixei de lado.
— Na última noite vocês falaram sobre faculdade — Mason olhou de lado para no mesmo momento. — Qual é o plano?
O garoto do mercado começou:
— Acho que já deu para perceber que aqui não temos uma universidade — e todos deram uma risadinha, que tive de acompanhar. Imagine só, Cotswold com uma universidade. — Então o nosso plano é fazer faculdade longe. O mais longe possível.
Aquilo me fez franzir a testa sem ao menos perceber.
— O mais longe possível?
Mason continuou enquanto todos assentiram com a cabeça.
— Oxford, Cambridge… — e deu meia volta no seu bolo de feno. — Itália, Paris, Espanha… O mundo afora é o limite.
De novo achei aquilo incrível. Diferente dos demais da região, que provavelmente iam seguir os negócios já bem estruturados da família, aquele grupo secreto queria muito mais. Queriam desbravar o mundo e fazer uma boa faculdade.
fez um barulho engraçado com a boca.
— Esse é o plano de agora. Já tivemos outros para nos livrarmos de Cotswold.
— E quais eram os outros planos?
Os mais novos se entreolharam, permanecendo em silêncio.
Incrivelmente Mila foi a primeira a se pronunciar.
— Fugir.
— Não sei se entendi.
— Ir embora de Cotswold para sempre, . Esse era o plano — olhou para Mason sugestivamente. — E ainda é.
Aquilo era uma novidade para mim, em todos os sentidos. Pela primeira vez não era eu quem tinha prazo de validade no lugar.
Resolvi engolir aquilo, mesmo passando seco em minha garganta.
— Mas não consigo entender uma coisa. Se todas as famílias por aqui têm dinheiro, porque vocês precisam fugir?
Hayden coçou a cabeça, como se fosse uma coisa difícil e longa de se explicar — Nossas famílias têm muitas posses por aqui, é verdade. Mas o problema é que todos querem que a gente continue o legado.
fez aquele barulho com a boca novamente.
— E nós queremos mais do que isso.
Hayden continuou:
— Meus pais super topam pagar uma faculdade em Oxford ou Cambridge, mas preciso voltar para cuidar dos negócios. Não existe outra opção.
Franzi o cenho.
— Vocês estão falando sério?
Todos concordaram com a cabeça.
Mason suspirou.
— O interior é esquisito, . As famílias por aqui são muito ligadas à tradição. Ninguém sai da região, muitos por terem negócios locais e também pela notável qualidade de vida. Alguns viajam, mas a maioria vive nessa bolha de Bourton-on-the-Water, ou até mesmo Cotswold. Todo o distrito é assim.
Hayden voltou a falar.
— E é isso que a gente luta contra. Além de todos nós queremos mais do que isso, queremos viver uma vida nossa. Ninguém aqui quer ser legado de coisa que não gosta.
bateu palmas, conquistando a atenção de todos.
— Muita informação para um dia só, meus amigos. Vamos beber?
A única coisa que se passava em minha cabeça era como aquilo tudo era maravilhoso e como aquelas pessoas ali, tão diferentes entre si, eram maravilhosas também.
E tudo aquilo fazia com que o meu medo voltasse à tona. Seria terrível perder tudo aquilo, inclusive as novas pessoas que eu tinha em minha vida. A vontade de me incluir, de agregar e de participar era imensa, mas eu ainda achava que precisava manter meu pé atrás.
Eu respirei fundo, tentando não surtar.
Após alguns minutos em silêncio, Mila me olhou com cautela.
— Está tudo bem, ?
A expressão de Mila parecia preocupada. Resolvi dissipar aqueles pensamentos loucos da minha cabeça o quanto antes, já que ela já começava a reparar. Não demoraria para que talvez os outros me perguntassem qual era o meu problema também.
— Sim — dei o melhor sorriso que consegui. — Está tudo bem.
Mason passou por nós e deu um longo beijo na bochecha de Mila, que se encolheu em um sorriso. Ao ver os dois juntos uma ponta de esperança martelava meu peito. Ainda existia amor verdadeiro por aí.
Mila ainda estava perdida em sentimentos, mas a chamei de volta.
— Vocês são lindos juntos.
Minha nova amiga me olhou sorrindo.
— Mason é incrível.
Tive de concordar.
— Ele parece ser.
Mila colocou as mãos no peito, suspirando. A cena era idêntica à de uma princesa sonhando acordada com o seu príncipe encantado.
— Eu o amo tanto.
Era lindo e engraçado ver Mila reagir daquela forma, principalmente pelo melhor amigo de . Difícil pensar que Mason era tão romântico e meloso quanto ela, já que eu tinha uma concepção completamente invertida de . Mas era triste pensar que um preconceito bobo e surreal impedia que eles fossem felizes daquele jeito por toda a vila. Me machucava por provavelmente machucar Mila.
— E você? — Mila me cutucou de lado. — Estamos aqui a noite inteira falando de nós, dos outros — Ella se juntou a Mila, e concordava de prontidão, com um sorriso no rosto. Bronwen passou perto do nosso grupinho de meninas e fez um gesto indicando que ia se sentar com os meninos, assim que Ella tentou puxá-la. Acho que ela não queria que sobrasse para si também. — Queremos saber de você.
Não consegui reprimir uma careta.
— Minha vida não é muito emocionante.
— Como não? — Mila parecia realmente surpresa. — Você cresceu na cidade grande, nas mais românticas do mundo! — e suspirou, sonhadora. — Já deve ter vivido muita coisa, conhecido muita gente.
Eu tinha sim vivido muita coisa e conhecido muita gente. Mas aquilo não significava que era interessante.
— Eu nunca tive muitos amigos próximos, por causa das mudanças. Mas consegui ter um namorado, em Nova Iorque.
As meninas vibraram. Ella sentou mais próximo.
— Meninos de Nova Iorque devem ser lindos.
Tive de rir — Ele é lindo.
— E qual é o nome dele? — Mila me olhava nos olhos, com curiosidade. — Americanos são tudo de bom.
Minha risada saiu novamente.
— Logan.
— Quem é Logan? — a voz de tomou conta da conversa. Me virei bruscamente, dando de cara com seu sorriso despreocupado. — Estou me intrometendo na conversa de garotas, não é? — ele fez uma careta, sorrindo novamente.
Não sei porque, mas fiquei sem palavras. Mila me deu uma olhada engraçada.
— É o ex-namorado nova iorquino da .
Paris, França
— Noelle, eu juro que morro se precisar ler mais algum livro sobre a Literatura Francesa.
A menina riu, dando de ombros.
— Não é tão ruim assim.
Sacudi a cabeça, saindo pelo grande portão de ferro. Um engarrafamento incrível cobria todas as pistas da rua principal. Mas o que me chamou atenção não foram as buzinas ou as respostas malcriadas dos motoristas estressados. E sim uma figura parada no final da grande calçada, de braços cruzados.
E com um sorriso lindo no rosto.
Larguei tudo no chão e corri. Bolsa, caderno, qualquer coisa que pudesse atrasar mais aquela distância. Ouvi Noelle gritando algo, mas não fazia questão de entender.
Seus braços envolveram minha cintura, enquanto minhas mãos tremiam em seu pescoço.
— Não acredito que você está aqui.
Logan me afastou, passando suas mãos pelo meu rosto. Seus olhos verdes me observando com a maior calma existente.
— Como eu senti a sua falta.
Colamos nossos lábios e então tudo pareceu tão fácil.
— Acho que você deixou isso cair no chão — me assustei com a voz de Noelle, que parecia sem graça.
Ri para a menina, pegando minhas coisas, ainda trêmula. Balancei a cabeça, falando em francês.
— Noelle, esse é o Logan.
O menino sorriu, fazendo a garota corar. Logan arriscou um francês:
— O namorado dela — e então fez uma careta, voltando ao inglês. — É assim que se fala em francês?
Eu sorria tanto que minhas bochechas doíam.
— É sim.
Foi o suficiente para minha colega de classe acenar e sumir.
Meus olhos ainda não acreditavam naquilo.
— Por quanto tempo?
— Arrumei quinze dias.
— Veio sozinho?
Logan riu, logo olhando para trás. Bree estava encostada em um táxi.
— Trouxe uma bagagem extra.
Ainda era bom lembrar de Logan, mesmo com todos os problemas que existiram nos últimos meses — e talvez, anos. Mas a energia que o celeiro insistia em emanar em meu corpo fazia com que aqueles pensamentos destrutivos fossem embora.
Enquanto as meninas continuavam a falar sobre relacionamentos e romance, eu observava de longe. Ele estava em seu bolo de feno, o mais distante, novamente dividindo um cigarro suspeito com o melhor amigo, Mason.
Eu não conseguia tirar meus olhos dele.
Era incrível ver o seu jeito despojado, sua informalidade e o jeito como ele bagunçava o cabelo já despenteado.
Mesmo sendo muito difícil de admitir até para minha mente, não era completamente o meu tipo de garoto. Era diferente de Logan ou de qualquer outro que eu já tinha me relacionado, mas aquela arrogância natural me atraía de alguma forma. E isso fazia com que eu me esquecesse completamente do escape que tinha apostado, Kyle.
se levantou do seu bolo de feno, falando alguma coisa com Mason. Nossos olhos se encontraram, finalmente, e eu já não sabia o que Mila e Ella tagarelavam ao meu lado. Eu sei que era horrível ignorar minha mais nova amiga, mas a bebida que eu já tinha ingerido me deixava mais descontraída, o que levava meu corpo a ficar desinibido.
Sério. Eu tinha que adquirir uma resistência ao álcool o quanto antes.
Ele se aproximou de nós trazendo duas garrafas coloridas em mãos. Eu poderia jurar que Mila tinha o mesmo olhar apavorado que o meu. Ella pareceu se lembrar de seu copo vazio e correu até a mesa das bebidas ilícitas.
Eu já sabia que Mila não era chegada em bebidas alcóolicas e o grupo secreto do celeiro parecia respeitar isso muito bem. Mas como eu tinha vindo da cidade grande, achava que eu era obrigada a experimentar tudo o que eles tinham naquele celeiro velho.
— Tenho duas garrafas aqui que você pode amar ou odiar — e terminou com um sorriso cínico. — Está pronta?
Fiz uma careta.
— Posso saber o que é primeiro?
— A careta é para depois da bebida, cidade grande.
Revirei os olhos enquanto Mila parecia se divertir com aquela cena. Sortuda era ela que não ia precisar experimentar aquilo.
— Tudo bem. Vamos lá.
Antes de me entregar um copo, me olhou engraçado.
— Respira fundo porque é a nossa quarta e quinta tentativas.
Mila trocou sua expressão de divertida para confusa.
— O que vocês estão aprontando?
Revirei os olhos novamente, finalmente pegando o copo com um dos líquidos questionáveis das mãos de .
— Ele cismou que a gente precisa encontrar uma bebida que seja do meu gosto.
O garoto do mercado deu um gole na própria garrafa com conteúdo amarelo.
— Precisamos fazer esse teste, você nunca curtiu nada na cidade grande.
Mila deu uma risadinha enquanto eu simplesmente dava um tapa no ombro dele.
— Deixa de ser ridículo — e bebi o conteúdo amarelo de uma vez só. Tinha um gosto terrível e amargo. Minha careta foi instantânea. — Que coisa horrível!
se divertia.
— Bom, vamos excluir essa — e me entregou outro copo, agora de cor transparente. — Estou torcendo por esse aqui, porque é um dos meus preferidos.
Eu não sabia se acreditava nele ou simplesmente saía correndo dali, para não ter que beber mais nada com gosto de morte.
Peguei o copo de suas mãos, com uma pequena dose. Só o cheiro já arrepiava os pelos dos meus braços. Tomei de uma vez também, segurando a careta no final ao máximo.
Uma tentativa bastante frustrada.
riu junto com Mila.
— Tem gosto de quê?
Dei uma tossida forte, secando os olhos em seguida.
— Parece que industrializaram o gosto de morte.
Ele franziu o cenho.
— Está dizendo que meu gosto é de merda?
Mila só dava risadas, provavelmente adorando aquela cena esquisita entre nós dois.
— Só estou dizendo que não é nem um pouco o meu gosto.
deu de ombros.
— Experiências quatro e cinco falharam então — e deu meia volta em direção ao seu bolo de feno, onde Mason ainda fumava alguma coisa. — Me aguarde!
Mais uma vez me vi do lado de fora do grande celeiro velho, com todos os meus novos amigos se aprontando para ir embora. A ideia de todos pedalando suas bicicletas por aí cheios de álcool no sangue (com exceção de Mila) me dava vontade de sorrir ainda mais.
era um filho da puta, mas estava certo. Eu nunca tinha feito nada parecido com aquilo.
Ele tirou sua bicicleta verde da cerca, me olhando com cautela.
— Sei que não devo me meter na sua vida, mas preciso te dizer isso.
Franzi o cenho no mesmo momento.
— Vai reclamar sobre algo que fiz?
— Você está de amizade com aquele menino de Stow-on-the-Wold? — tive de segurar o riso. O que quer que fosse eu iria tirar proveito da situação. — Eu não gosto dele, . É má influência.
Foi impossível não gargalhar. Kyle má influência? Uma jaqueta de couro fazia isso na região?
— Vocês fumam maconha em um celeiro abandonado.
— Isso te influencia mal?
— E plantam nos fundos, eu vi.
Ele parecia pensar em uma resposta para aquilo.
— Não vou discutir isso com você.
— Quer mais exemplos de má influência?
— Pelo menos eu não finjo ser outra pessoa. Só deixo de fazer na frente de quem não interessa.
— Isso é por ele parecer rebelde?
deu de ombros.
— Eu sou rebelde onde posso, no celeiro.
— Ele deve ser assim o tempo todo — provoquei.
— Não sou porque não posso perder a minha bolsa.
A declaração do menino me fez ficar sem palavras por alguns segundos. A família dele não era rica como as demais?
Balancei a cabeça, me recompondo.
— Não somos amigos. E não sei o que ele quer comigo.
subiu na bicicleta, me olhando torto.
— Eu sei o que ele quer com você.
Dei um tapa em seu ombro.
— Vamos, me leve para casa sem cair.
— Não antes da minha outra pergunta.
Meu corpo gelou. Os olhos de brilhavam naquele breu. Ele suspirou, chegando mais próximo do meu rosto.
— Aconteceu alguma coisa lá dentro?
Meu coração deu um salto. Ele tinha reparado que eu estava o medindo o tempo inteiro?
— O que quer dizer?
— Achei que em um momento você ficou um pouco esquisita comigo e com o pessoal.
Tentei manter o tom equilibrado em minha voz.
— Besteira sua.
cerrou os olhos como se não acreditasse naquilo.
— Sem julgamentos no celeiro, lembra?
Respirei fundo. Eu queria questionar ele novamente sobre o porquê de ter me chamado para o grupo secreto, porque queria muito uma resposta além do “você não combina com Cotswold”. Mas sabia que aquilo poderia trazer a hostilidade de volta às nossas conversas.
A verdade era que eu queria tanto ter novos amigos (e tinha adorado ouvir Mila me chamar assim) que me sentia extremamente confusa. Principalmente pelo fato de acreditar que eu não ficaria na vila de Bourton-on-the-Water por muito tempo.
Todos no celeiro pareciam divertidos, bem resolvidos com suas vontades e amizades e eu não conseguia tirar da minha cabeça como seria doloroso me apegar tanto naquelas pessoas e depois ir embora de repente, como sempre.
— Você não entende. Tudo pra mim passa rápido demais. Já me mudei treze vezes.
nem se abalou.
— O que isso te impede de sair com novos amigos?
— Posso ir embora semana que vem, caso meu pai fique enjoado dessa experiência. Não quero…
— Não quer o quê? — eu não conseguia terminar minha frase. — Não quer ter novas pessoas na sua vida? Ou não gostou do pessoal e só percebeu hoje?
— Eu adorei todos. Eu só não quero…
Ele me interrompeu:
— Se machucar?
— Acho que você entende um pouco, então.
— A vila pode não ser grande coisa, , mas todos que te apresentei são amigos de verdade. E isso vale muito.
— Você e Mason são inseparáveis, não é?
— Eu me sinto muito feliz em dizer que sim, somos. Acho que nada no mundo acaba com a amizade que temos.
Naquele momento eu entendi o que sentia e o que queria que eu me deixasse sentir também. Tinha conquistado muitos amigos durante a vida, mas nada com aquele brilho no olhar dele ao falar sobre o melhor amigo de infância.
E então, na frente daquele celeiro velho e sujo, eu fiz um dos meus maiores avanços para “ser uma pessoa melhor” em Bourton-on-the-Water. Eu me dei por vencida.
— Legal. Qual o seu conselho para mim?
me olhou engraçado.
— O mais simples e clichê de todos: viva sua vida. Aceite os novos amigos, a nova casa e tudo mais. Só curte, aproveita o interior, porque certamente será a sua primeira e última vez em um lugar assim. Você não precisa de um motivo para tudo o que for fazer.
— Vou precisar usar uma blusa do mercado escrita “RIO WINDRUSH PASSA AQUI”?
Ele riu.
— Você não é da cidade grande, sabe de tudo e já viveu de tudo? O interior vai ser nada pra você.
Eu ia levar aquilo como compromisso pessoal.
Depois de anotar mil coisas durante a aula de matemática, minha mão já doía. Particularmente naquela manhã parecia que o professor tinha tomado café demais, o que fazia a gente ter que correr mais do que o costume para acompanhar. Eu ainda tinha dificuldade de entender 100% o que os locais falavam com aquele sotaque super concentrado, imaginem só teoremas de matemática.
Quando o sinal tocou, meu coração suspirou de alívio.
Eu precisava comer algo e também precisava fazer mil perguntas que não saiam da minha cabeça.
— Mila — ganhei sua atenção, fazendo minha amiga fechar seu caderno. — Queria te perguntar uma coisa. Sobre ontem.
Ela concordou, talvez já adivinhando o que eu queria pedir.
— É sobre a família de Mason?
Neguei com gestos.
— Na verdade... É sobre a família de .
Ela levantou as sobrancelhas, em surpresa.
— ?
— Sim. Você poderia me contar mais coisas? — ela olhou em volta do pátio. — Ele foi o único que não falou nada demais e achei que o pessoal ficou meio apreensivo. Pode ser coisa da minha cabeça também. É coisa da minha cabeça?
Mila fez um careta.
— Não é coisa da sua cabeça.
— E você pode me contar? Se não for algo que prejudique sua amizade, claro.
Minha amiga concordou, logo se preparando para uma longa história.
— Isso fica entre nós?
— Amigas são para isso.
Ela sorriu abertamente, mas logo murchou seu sorriso.
— A história da família é triste, . Mas até prefiro que você já saiba, e ainda mais por algum de nós, porque daqui a pouco você pode ouvir algo na vila — ela se ajeitou no banco, se aproximando mais de mim, com a voz baixa. Eu tentava me manter alerta para o caso de alguém estar muito próximo de nós ou até mesmo de aparecer por ali. Mesmo que eu nunca o visse pela escola. — Quando o tinha onze anos, eu acho, a mãe dele foi embora.
— Para onde?
— Ninguém sabe. Annabelle era bem novinha e Rory ficou completamente devastado. A família era rica, com um império de lojas por todo o condado de Gloucestershire. Rory abriu loja por loja, foi tudo mérito dele e de seu trabalho. Quando Elena foi embora, da noite para o dia, Rory enlouqueceu. Gastou todo o seu dinheiro com detetives particulares, com viagens de busca e tudo mais. Ele estava realmente convencido de que havia acontecido alguma coisa com sua esposa.
Prendi a respiração.
— E aconteceu?
— nunca fala sobre isso, só sei o geral e o que consegui arrancar de Mason. Mas o fato é que Elena mandou uma carta semanas depois, porque ficou sabendo que o marido a procurava como se tivesse acontecido um crime, sequestro ou coisa parecida.
— Uma carta de despedida?
Minha nova amiga confirmou.
— E pedindo para que ele não a procurasse. Que aquela não era sua vida, que sentia muito... Essas coisas.
Eu não conseguia fechar a boca.
— Estou chocada.
— O que aconteceu foi o seguinte: Rory gastou todas as economias da família. Suas lojas foram à falência e ele teve dificuldades até mesmo de sustentar e Annabelle. A única coisa que sobrou foi o mercado perto da ponte, porque os moradores de Bourton-on-the-Water arremataram as dívidas e entregaram de presente para ele.
— Os não possuem família em outros distritos?
Mila fez um gesto com as mãos.
— Essa é uma parte complicada também. Elena é de Chippin Campden, outro distrito do nosso condado. A família dela é grande e poderia ter ajudado, mas eles e Rory nunca se deram bem. É quase o que acontece comigo e com a família de Mason... A família de Elena é muito rica, produtores em escala para a Inglaterra e outros países da Europa, então não ficaram muito felizes quando a filha resolveu se casar com um zé ninguém de Bourton-on-the-Water. Rory começou do zero, seus pais morreram cedo.
Eu estava chocada com toda aquela história. parecia tão tranquilo, tão sem segredos.
— Eu nem sei o que comentar, Mila. Agora entendo porque ele não quis falar nada.
— Mas é bom você saber o básico que todos sabem, para não ser pega de surpresa.
— Você tem razão, obrigada por me contar.
— Tem outra coisa importante também. Esse período em que Rory não aceitou perder Elena durou mais ou menos um ano. É por isso que não se formou com Mason, no ano passado.
— Ele perdeu um ano de escola para ajudar o pai — sussurrei, ainda mais chocada.
Mila concordou, sua expressão triste.
— É por isso que ele faz poucas matérias com o quarto ano. Montaram uma grade especial para que ele pudesse se formar sem perder mais um ano.
— E a mãe nunca apareceu?
Mila negou com a cabeça.
— Até hoje ninguém sabe onde Elena está.
A conversa que tive com Mila no intervalo ficou em minha cabeça durante todas as aulas da manhã. Quando o sinal tocou novamente, avisando o fim das aulas normais, corri para conseguir chegar do outro lado da escola, no bloco onde teríamos a atividade extracurricular de Culinária Doméstica.
Não sabia que ideia era aquela de colocar uma aula de comida em pleno horário de almoço, mas esperava ter uma surpresa bem agradável ao chegar no local. Comida de graça e já prontinha, quem sabe.
Entrei com pressa na sala, apenas dando um singelo ‘boa tarde’ ao professor encostado na bancada principal. Joguei meus materiais no único lugar vago, mais para o fim da sala, e por lá fiquei.
Para a minha infelicidade não tínhamos comida pronta, mas havia um lanche suspeito para cada um. O desafio do dia seria fazer uma receita de muffin de banana com calda de chocolate e por alguns minutos eu esqueci o tamanho da fome que sentia. Seria divertido aprender algo realmente novo e prazeroso de se fazer.
Eu estava tão concentrada em fazer aquele muffin esquisito dar certo que nem tinha reparado quem estava a três bancadas de mim, mais ao lado direito. Era impossível não reconhecer aqueles meio cachos rebeldes na cabeça dele.
.
Ele parecia igualmente concentrado em sua receita, mas tudo indicava que ele estava bem mais avançado - e também bem mais prático do que eu. Eu era realmente um desastre na cozinha e tinha decidido que não iria competir em nada naquela atividade extra.
Como eu tinha decidido não comer o lanche suspeito da aula extracurricular de Culinária Doméstica, minha opção foi procurar algo nas cantinas da The Cotswold School, já que teria a oficina de Artes no próximo horário.
Ao lembrar que nada ali me agradava, resolvi que a melhor ideia possível seria andar pela vila. Algum café seria melhor.
Já no centro da vila, um pouco distante do quarteirão enorme da escola, namorei algumas vitrines e cardápios enquanto meu estômago dava pulos. Pelo vidro da loja vi aquela cabeleira que já reconhecia de longe e mal contive as palavras em minha boca.
Naquela hora pouco me importou o nosso grupo secreto.
— Seu muffin ficou bom?
parou de andar, me olhando surpreso.
— ! — e então coçou a nuca. — Pensei que nem tinha me visto. Sua bancada era uma zona.
Revirei os olhos.
— Eu sou nova nessa coisa de cozinha.
Ele riu com vontade.
— Sorte nossa que o professor parou de colocar todas as receitas prontas para experimentação — e passou as mãos nos cabelos. — Sou novo demais para morrer de intoxicação.
Bati em seu ombro.
— Deixa de ser ridículo. Ficou… Comível.
gargalhou.
— Se quiser te dou umas dicas. Faço essa atividade há um tempo.
Chegamos onde eu queria: saber por que ele fazia aquela aula de cozinha. Tudo bem que tem gente que ama essas coisas, mas realmente não era o perfil de .
— Posso perguntar por que você faz essa aula?
Ele deu de ombros.
— Eu não sabia cozinhar. Me ajudou bastante em casa.
Aquela afirmação tão naturalmente falada me atingiu um pouco. Pela história que Mila tinha me contado provavelmente precisou ajudar seu pai também nas tarefas de casa, como cozinhar para sua irmã mais nova.
Aquilo doía meu coração. Eu queria falar que sentia muito, mas ele ainda não sabia que eu estava por dentro de toda a história triste de sua família.
A única coisa que fiz foi concordar.
— Entendi. Se a próxima receita ficar pior, te peço ajuda.
Ele piscou seu olho azul-claro.
— Te vejo mais tarde?
E sem ao menos receber minha resposta, continuou seu caminho para longe, provavelmente indo ao mercado decadente da sua família.
Chegando ao grupo de Artes descobri que, como o Halloween estava um pouco próximo, o pessoal iria fazer coisas relacionadas a data comemorativa. Um dos meninos que fazia trio comigo, um baixinho engraçado, organizava alguns materiais roxo e preto, e eu já estava triste por ter que participar daquilo.
Eu não gostava nada de fantasias ou Dia das Bruxas.
Só dos doces, claro.
Mas como eu tinha colocado em minha cabeça que iria participar ativamente dos grupos de atividades extracurriculares que tinha me inscrito, iria aceitar aquela tortura por algumas semanas.
— Legal. Onde posso encontrar essas coisas para fazer junto com vocês? — eu ainda observava aquela bagunça roxa. — Posso incluir uns detalhes laranjas e eu sei costurar. Dá para fazer alguns acessórios legais para a escola.
O menino parecia concordar, achando incrível o fato de que alguém ali sabia usar uma linha e agulha.
— Eu achei naquele mercado pequeno, perto da ponte de pedras menorzinha. — fazia sentido que as pessoas só achassem coisas diferentes onde trabalhava, já que lá eles realmente vendiam de tudo. Era isso ou duas longas horas até Londres. — É da família daquele menino que namorava Zara. Sabe quem é?
A real sorte da minha vida era não ter grandes reações no susto por nada, porque com certeza minha expressão era a mais chocada possível. e Zara? Balancei levemente a cabeça, tentando dar meu melhor sorriso.
— Sei qual é! Eles realmente vendem de tudo por lá. Coisas para o Halloween não iam ficar de fora.
Andei a passos largos até o final do corredor a procura de uma pessoa. Por sorte consegui pegar Mila saindo de sua monitoria de ‘Direitos Humanos’, provavelmente indo para casa. E por sorte eu tinha escutado no dia anterior o seu papo sobre hoje ter aquela atividade que tanto parecia chata para mim.
Corri a sua direção, parando ao seu lado em segundos.
Minha amiga me olhou sem entender.
— O que aconteceu, ?
Meu coração ainda batia forte com a nova informação que eu tinha da vila.
— Preciso conversar com você — Mila franziu o cenho, preocupada. — Você tem um tempo agora?
Ela me pegou pelo braço e vi que estávamos indo em direção ao pátio principal, onde passávamos nosso intervalo. Sentamos em uma das mesas de pedra mais afastadas, próximo ao início do jardim. Joguei minhas coisas na mesa, enquanto Mila sentava calmamente, sem destruir seu material ou qualquer coisa perfeita que deveria ter dentro da sua bolsa rosa chiclete limpinha.
As palavras mal ficavam em minha boca.
— Primeiro, eu preciso que você entenda que isso que vou perguntar não é por ciúmes ou nada parecido, tudo bem?
Mila pareceu ainda mais confusa e preocupada.
— Está me assustando, . Você fez alguma coisa?
Foi a minha vez de franzir o cenho. Minha reputação de louca da cidade grande era tanto assim? Abanei o ar e ela entendeu que não era nada daquilo.
— Não. Preciso que você me conte sobre uma coisa. De .
Suas sobrancelhas se levantaram.
— Ainda tem alguma dúvida sobre a família dele?
— Ele e Zara foram namorados?
Mila me olhou por alguns instantes sem piscar.
— Sim, mas tem anos isso.
Eu não sabia porque aquilo me chateava tanto, mas sabia que não era por ciúmes, como já tinha dito a Mila.
— Como? Quer dizer, ela não é a pessoa mais simpática do mundo.
— Tem bastante tempo isso. Ela era… Diferente.
Era impossível reprimir minha expressão. Um misto de surpresa, decepção e confusão. Eu realmente não estava com ciúmes, apenas não conseguia entender como uma pessoa igual Zara tinha conseguido alguém como .
Simplesmente não combinava.
— Não consigo entender, Mila.
— Eu não vou mentir para você. Ele fazia qualquer coisa por ela — Mila soltou um pequeno suspiro, talvez relembrando as coisas loucas que já tenha feito por Zara. — Digo, qualquer coisa mesmo. Ele era completamente cego por Zara.
— Isso não me pareceu muito saudável.
— Ele sempre teve o pé no chão, mas ela conseguia qualquer coisa.
— Do ?
Mila reprimiu uma risada.
— Ele é difícil mesmo, então eu acho que ela merecia uma medalha.
— Por quanto tempo?
Minha amiga pareceu pensar.
— Acho que o namoro deles durou uns dois anos, mas eles eram amigos de infância.
Não consegui reprimir a careta novamente.
— E ela era diferente como?
— Não sei te explicar, , mas Zara mudou do nada. Ela era como nós… Queria mais do que Cotswold, só que algo mudou a cabeça dela. Hoje eles nem se olham.
Finalmente em casa, jogada em minha cama, consegui respirar fundo por tudo o que tinha passado nos últimos dias.
Pensava no celeiro, em meu começo de amizade com Mila, em . Em namorando Zara… E nas maldades que a menina já tinha feito comigo.
Meu celular tocou um barulho esquisito e por algum motivo muito louco do destino, era por causa de uma notificação de nova postagem de minha melhor amiga de Nova Iorque, Bree.
Quando abri a tela se preencheu com uma foto divertida dela com pessoas que eu não conhecia e, ao seu lado direito, Logan. Todos pareciam felizes, completos e bem com seus supostos novos amigos.
Eu não era uma garota de sentir ciúmes, mas ver aquela foto tinha pesado o meu coração.
Minhas mãos tremiam como nunca e meu coração parecia gelar no peito.
— Você está sendo egoísta.
Sua expressão era cínica.
— Tem certeza que eu sou o egoísta dessa relação?
Abri a boca, sem reação. Foi o suficiente para ouvir uma nova provocação.
— Eu não vou te esperar para sempre, .
Aquilo me atingiu pior do que deveria. Minha voz tremia pela raiva.
— Quando foi que eu pedi para você me esperar?
Logan continuava com a cara cínica que tanto me tirava do sério.
— Achava que fosse um consentimento, já que sua família é complicada.
— Eu sei o que acontece toda vez que a gente se separa. E Bree nem precisa me contar.
Sua voz perdeu a força de antes.
— Você sabe que não significa nada.
— E você continua se envolvendo com todas as garotas possíveis de Nova Iorque. Com amigas, colegas, conhecidas… Parece que só faz porque sabe que vai chegar aos meus ouvidos.
— Eu não faço essas coisas para te atingir.
— Então porque quando eu me relaciono com outra pessoa você joga as coisas na minha cara?
Logan revirou os olhos, me deixando ainda mais impaciente.
— É diferente, . Eu sinto muito porque eu gosto de você!
— Essa é uma maneira muito estranha de gostar, sabia?
— Você tem algo mais para dizer ou posso ir embora?
Aquela briga, aos olhos de algumas pessoas, poderia não parecer tão séria. Mas para nós era. E muito. Logan tinha ido me visitar em Paris e tudo estava indo bem, até que as fofocas chegassem aos meus ouvidos.
Era muito fácil declarar seu amor por mim do outro lado do oceano e varrer toda a cidade, se relacionando com o maior número de garotas possíveis.
Desde que nos separamos em Nova Iorque era muito complicado manter a exclusividade que os namorados tinham, mas todas as suas palavras de carinho e amor me diziam que estávamos sim eu um relacionamento sério, mesmo de longe. O problema era que apenas eu sofria com isso, sozinha, negando qualquer pessoa que quisesse se aproximar de mim - ou até mesmo apenas querer descobrir um pouco mais sobre mim. Tudo pelo receio de pensar em como ele se sentiria.
Diferente de Logan, que não perdia uma oportunidade.
— Vamos nos mudar para a Inglaterra.
Seu olhar pareceu ainda mais transtornado.
— O quê?
— Tenho mais duas semanas na França.
— Realmente, … — ele riu com escárnio. — Não dá para entender! Não dá para entender como você faz isso com a sua própria vida, como você faz com a minha!
— Não te culpo por não entender.
Sua expressão ficou cínica novamente.
— Você já tem um lugar para chamar de lar: Nova Iorque.
— Pode ir embora.
— Você que decide.
— Para mim, acabou.
Seus olhos verdes me olharam vazios antes de partir para o outro lado da rua, onde entrou em um táxi qualquer.
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Doía admitir, mas estava certo.
Não podia deixar minha vida passar por medo do que aconteceria no dia seguinte.
Quando estávamos saindo da França (e com a briga homérica que tive com Logan) tinha decidido que iria fazer mais por mim. Minha cabeça tinha mudado desde que ouvi de minha colega, Noelle, que eu era a única que deixava de viver a minha vida, já que meus amigos de Nova Iorque pareciam viver muito bem entre si e com a distância presente entre nós. E que no final de tudo eu que sobrava, triste, vazia e sozinha.
Infelizmente foi uma promessa que durou até o meu primeiro passo em Cotswold, pela revolta, melancolia, solidão e por estar completamente inconformada com tudo. Com meus pais, com a escolha deles que eu era obrigada a seguir e com toda a arrogância do meu ex-namorado em nossa última conversa.
Se o grupo secreto do celeiro tinha despertado essa motivação em mim novamente, eu ia tentar segui-la (pelo menos por um tempo).
Eu tinha decidido que não ia imitar o passado. Iria escolher ter amigos.
Eu abraçaria o interior e teria um futuro completamente diferente.
Capítulo 6 - Loucuras
“A pior das loucuras é, sem dúvida, pretender ser sensato num mundo de doidos.” (Erasmo)
Minha mente trabalhava sem parar.
Eu pensava em coisas que fizessem com que o interior fosse um período mais próximo e real, para que eu não surtasse sem o meu grupo secreto do celeiro abandonado. Ter amigos me deixava nas nuvens, mas eu ainda tinha que pensar na minha sobrevivência pela vila.
Olhando aquelas paredes brancas demais, minha cama de madeira recém polida, os armários… Me foquei na imagem do espelho de corpo todo no canto da direita do quarto. Só a minha roupa vermelha tinha destaque.
Com esse pensamento desci as escadas de madeira antiga correndo, entrando no escritório de papai sem ao menos bater antes (ato que só era permitido em casos de real emergência). Meu pai deu um pulo de sua cadeira. O tablet em suas mãos fez um giro no ar, mas, para a minha sorte, ele conseguiu pegar de volta.
Sem enrolar, para que a minha bronca não fosse maior do que a prevista, as palavras já saíam da minha boca:
— Vamos pintar a casa!
Meu pai franziu o cenho após se recuperar do susto desnecessário.
— Me desculpe, o quê?
Levantei os braços, tentando passar toda a animação repentina que meu corpo sentia. Eu tinha certeza que aquilo deixaria meu pai feliz.
— Nossa casa nova precisa de cores! Vamos pintar tudo!
Ele piscou algumas vezes, finalmente entendendo a minha urgência. Se eu aceitava deixar a casa com “a minha cara”, isso já significava que eu tinha aceitado a mudança.
Foi impossível medir o sorriso que abriu em seu rosto.
Bingo.
— Claro! — e se levantou da grande cadeira antiga — Vamos comprar tintas agora mesmo.
Não era o melhor programa para se fazer em um final de semana, mas, visto que eu não tinha amigos que podia ver durante o dia, passar as próximas horas pintando com papai estava de bom tamanho. Éramos uma boa dupla. Quem dera Arthur ainda estivesse com a gente.
Mas ele logo se sentou novamente.
— Onde vamos conseguir tintas por aqui?
Eu tinha a resposta na ponta da língua.
— Naquele mercado que vende de tudo, com certeza.
Papai pareceu pensar.
— O que eu comprei aquele avental divertido para usar no churrasco… — e estava de pé novamente — Vamos.
Assim que entramos no mercado da região, avistei arrumando uma das enormes prateleiras de madeira. No balcão, um homem mais velho e incrivelmente parecido com ele sorria abertamente para nós.
Depois de dizer um bom e alto “boa tarde”, meu pai foi direto ao mais velho, estendendo a mão direita.
— Luiz Fernando.
O outro fez o mesmo gesto, mantendo o grande sorriso nos lábios. De perto, ainda mais parecido com .
— Rory .
Porque era o pai dele.
Aquilo fez com que a cena se congelasse para mim por alguns segundos. Rory tinha os cabelos bagunçados, como os de , mas seus olhos eram de um castanho escuro que pareciam quase pretos. Provavelmente o olhar azul claro vinha da parte da mãe e eu não sabia se gostava, visto a história que Mila havia me contado alguns dias atrás.
Olhei para o lado e me encarava com uma expressão curiosa. Talvez ele tenha achado que eu vim para brigar e tinha trago reforços.
Aquele pensamento fez com que eu desse um leve risada sozinha. Meu humor estava realmente ótimo.
Rory tirou minha atenção daqueles olhos.
— Ah! Vocês são a família de Paris. Que ótimo finalmente conhecê-los.
Meu pai sorriu com gosto.
— Sim, isso mesmo. Chegamos há algumas semanas. Uma pena vocês não terem ido ao nosso primeiro churrasco do interior.
Então tinha sido convidado!
Rory fez uma expressão que eu julguei como triste.
— Infelizmente naquele dia minha filha mais nova não estava se sentindo muito bem.
Um grande peso (que eu nem sabia que carregava) saiu das minhas costas. Pelo menos ele não tinha deixado de ir ao nosso churrasco cafona por minha causa.
— Vamos ter outras oportunidades. — assim que papai falou, pareceu finalmente se lembrar de mim, que me mantive o tempo todo ao seu lado. se postou ao lado do pai, ainda me olhando com curiosidade — Essa aqui é , minha mais nova.
me olhou intenso no mesmo momento em que seu pai tratava de apresentá-lo.
— , meu mais velho.
Os dois riram como se tivessem feito uma grande piada. Papai cumprimentou com um aperto de mãos, enquanto fiz nada mais que um aceno de cabeça. Eu realmente ainda não sabia como o grupo secreto conseguia viver assim.
Rory continuou.
— No que posso ajudá-los hoje?
Olhei de canto para meu recém amigo do celeiro.
— O que vocês têm de tinta para paredes?
entendeu como uma aceitação do interior também, e eu, particularmente, achei o fato incrível.
Não que eu fosse admitir isso em voz alta algum dia de minha vida.
Não mesmo.
— Infelizmente não temos muitas variações de cores, já que a maioria das diferentes são feitas em uma máquina especial. — sua voz parecia mais rouca e mais carregada no sotaque caipira do interior, e aquilo só me deixou ainda mais animada — Se você quiser algo muito fora do comum, escolha no catálogo e eu trago de Londres em dois dias.
A ideia de ir a Londres fez meu corpo se arrepiar. Será que ele aceitaria me levar junto?
Rory concordou com o filho.
— Dá para trazer em dois dias.
Eu sinceramente queria começar a pintar as paredes no mesmo dia, mas nada mudaria do “branco demais” para o “palha” disponível nas prateleiras do fundo do mercado.
Meu pai estava animado.
— Ótimo! Quantas latas vocês conseguiriam?
Aquele brilho no olhar já era comum para mim. Ele ia aprontar e mamãe ia sofrer em breve.
Meus olhos já começavam a pesar. Eu tentava manter minha cabeça apoiada em minhas mãos, mas até essa tarefa parecia difícil demais de executar.
Tudo isso por conta de Literatura Inglesa.
Mila me cutucou.
— Você disfarça muito mal.
Franzi o cenho.
— Ninguém precisa disfarçar nessa aula. A cultura de vocês é chata.
Ela piscou lentamente tentando ignorar meus comentários.
— Depois te passo minhas anotações.
Aquilo era bom. Além de ter novos amigos, eu tinha uma amiga que se importava de passar anotações de matérias chatas para mim.
Isso sim era um grande avanço.
Dei uma risada com vontade. Mila tirou sua atenção do caderno novamente, me olhando esquisito.
— Chatice te faz sorrir?
Sacudi a cabeça.
— Não. Obrigada pela ajuda.
Depois de conhecer o pessoal da escola e do celeiro, eu tinha decidido que pelo menos uma amizade eu não ia me importar de manter fora do círculo secreto. Eu precisava de alguém comigo, assim como cada um tinha. Toda Bourton-on-the-Water sabia da amizade de Noah com Riley. Ella fazia o tipo que brincava com todo mundo, mesmo sendo zoada por seus veteranos. Hayden tinha um grupo de amizade que eu não conhecia e Bronwen ficava com a tribo dos góticos de roupas cinza (sem contar com os debates no grupo de Línguas).
falava com todo mundo, mas, como eu o via pouco pela The Cotswold School, não fazia ideia se ele tinha um grupinho, além de Mason (que não estudava mais). Já não sendo o grupo dos afetados, como de Dominic, estava de bom tamanho.
Logo, eu tinha a liberdade de grudar em alguém, visto que não tinha feito grande avanço com a galera normal da escola. Conversava, brincava e até cheguei a lanchar com algumas meninas da aula de Geometria (que compartilhavam do mesmo horror pela matéria), mas nada demais.
O que eu queria mesmo era Mila perto de mim.
E isso seria a execução do meu plano para não surtar pela vila.
Assim que a tortura de Literatura acabou, fomos andando para o grande pátio branco. Eu ainda achava que eles enceravam demais os corredores e podia jurar que pelo menos um adolescente por dia escorregava ali. Mila falava algumas coisas sobre como eu devia dar mais valor à Literatura Inglesa, mas, sinceramente, eu não me interessava. Por dois grandes motivos: eu não queria e, bom, era muito provável que até o final do ano eu estivesse indo estudar a literatura chata de algum outro lugar.
Isso fazia com que eu me sentisse menos culpada dormindo nas aulas eletivas para a faculdade.
— , você está me escutando?
— Hm, claro. Você quer ir comprar seu lanche?
Ela revirou os olhos e eu ri. Parecia uma boneca de porcelana tentando ficar chateada.
— Não, . Perguntei se está rolando algo entre você e .
Parei de andar no mesmo momento.
— Quando chegamos nesse assunto?
Mila me puxou de lado para continuarmos andando até uma mesa branca, limpa, brilhosa e vaga.
— Eu já te disse que você não sabe disfarçar.
Eu realmente era péssima com mentiras.
Sentei no grande banco, jogando minhas coisas na mesa com desleixo.
— Pensei que você estava falando sobre literatura e como Rudyard Kipling foi muito importante para a Inglaterra. Aliás, esse é um ótimo assunto. Quer discutir sobre isso?
Seus olhos escuros me olhavam com tédio.
— Você é uma pessoa difícil, não é?
Era a segunda pessoa em Cotswold que me dizia aquilo. E assim como a frase “você não combina com Cotswold”: eu gostei.
De verdade.
— Tudo bem, o que você quer saber?
Ela se ajeitou no banco com delicadeza, logo tirando algo da mochila. Parecia ser um sanduíche e, na hora, meu estômago roncou. Suas palavras saíram naturalmente.
— Quero saber se você e estão se engraçando.
Tive de rir.
— É gíria caipira isso?
Mila tentou parecer aborrecida de novo.
— Se você acha que eu vou desistir, pode desistir você!
Com a cabeça pendendo para a direita e aquele olhar curioso, Mila me lembrava muito a minha grande amiga de Nova Iorque, Bree. Tirando o fato de que Bree já teria me dado uma chave de braço para que eu confessasse qualquer coisa que ela achasse que estivesse acontecendo, Mila era bem parecida na determinação por informações novas.
Resolvi me dar por vencida ou passaria o intervalo todo com fome e fugindo.
— Não está acontecendo algo entre nós.
Quando minha amiga ia abrir a boca para fazer mais perguntas, o garoto rebelde da jaqueta de couro, Kyle, apoiou suas mãos em nossa mesa. Olhei em seus olhos no mesmo momento, que logo passaram para Mila.
Ele sorria.
— Mila Hughes. Tudo bem?
Mila acenou.
— Tudo certo, Kyle. Como vai Stow-on-the-Wold?
Ele deu de ombros, colocando as mãos nos bolsos da calça cinza cafona.
— Os negócios continuam os mesmos. Mande lembranças ao seu pai.
Minha amiga concordou, prestando atenção no seu lanche.
— Pode deixar.
O rebelde virou sua atenção a mim.
— Posso falar com você depois das aulas?
Os pelos dos meus braços se arrepiaram.
— Não pode ser agora?
Ele comprimiu os olhos.
— Não. Quero falar só com você. — quando Mila ia se levantar, Kyle a parou com uma das mãos — Não, por favor. — e me olhou novamente — Depois. OK?
Fiz o máximo para agir natural, sentindo um frio na barriga.
— Tudo bem.
Kyle acenou com a cabeça, indo se sentar com seus dois amigos, Leon e Alene, que me cumprimentaram de longe. Eu ainda estava fugindo de Alene e sua tentativa de me levar para o time de futebol feminino.
Mila me olhava estranho e eu vi que era melhor começar a me explicar antes de mais questionamentos.
— O que foi? Eu não faço ideia do porquê ele vir falar comigo!
Talvez eu fizesse, sim, mas não queria entrar naquele detalhe.
Kyle também fazia parte do plano “Sobrevivendo em Cotswold”. Só não sabia se queria continuar com essa parte ou não.
— Quero refazer minha pergunta. — eu já esperava por aquilo — Está rolando algo entre você e Kyle?
Ri pelo nariz.
— Claro que não.
— Por que não?
— Eu posso ser difícil, mas você é insistente.
Mila abanou o ar.
— Só quero saber mais coisas sobre você. Não somos amigas agora?
Aquilo apertou o meu coração de uma forma inexplicável. Eu já estava me acostumando em ter novos amigos, mas com Mila eu queria uma amizade de verdade. Coisa que eu não tinha há anos.
— É claro que somos amigas. Estou falando a verdade. Não rola nada com ou Kyle.
Pareceu o suficiente para ela.
— Que pena! Queria ouvir você falando meninices.
— Isso é outra gíria caipira?
Um guardanapo amassado voou em minha direção.
— Fica quieta, garota da cidade grande.
O restante do dia correu bem e eu me sentia particularmente bem animada com a decisão de que Mila seria a minha amiga por todos os cantos da vila. Pelo seu interesse em mim, mal cheguei a pensar que ela poderia ser contrária a esse plano pessoal.
Sobrevivi com a maior dignidade possível às aulas dos últimos períodos e logo parti para o pátio principal, à procura do rebelde da vila. Sem avistar Kyle no meio dos diversos alunos indo em direção às suas casas e vilas vizinhas, decidi marchar até a saída da escola e esperar um pouco.
Eu ainda estava nervosa e quando saí pelo grande portão, avistei Kyle na esquina, encostado em um muro baixo de pedras. Ele era lindo e era fácil reconhecê-lo, já que se destacava com a jaqueta preta de couro brilhante.
Respirei fundo, andando em sua direção. Eu não estava procurando problemas, mas também não queria deixar qualquer oportunidade passar. Era o que eu queria, certo?
Parecia loucura, mas eu tinha realmente decidido levar o conselho da grosseria em pessoa, , pra valer.
Assim que cheguei a seu lado, Kyle me olhou estranho.
— Pensei que não tinha o último horário.
— Nem eu sabia que tinha isso. — ele pareceu pensar — O que quer comigo?
— Por que está na defensiva hoje?
Eu não sabia porque realmente estava na defensiva, mas talvez fosse a ansiedade depois de tomar uma grande decisão como ‘viver minha vida louca do interior’.
— Desculpe, não quis falar desse jeito.
Kyle deu de ombros.
— Tem algum plano para esse final de semana?
Encostei ao seu lado no muro de pedras.
— Ainda não sei. Meu pai continua em Londres.
Papai tinha ido para Londres horas depois do meu episódio de ‘vamos pintar a casa’ e iria ficar mais alguns dias por lá. Então fora o grupo secreto do celeiro (que Kyle nunca saberia por mim), eu realmente não tinha outros grandes planos.
Ele me olhou engraçado.
— Vocês estão aqui por causa da família Ward?
Foi a minha vez de olhar estranho para ele. Seus olhos azul escuro não tinham expressão.
O que ele queria dizer com aquilo?
Franzi o cenho.
— Eu não entendi.
Seu riso tomou conta do nosso silêncio.
— Deixa pra lá.
Quando eu estava pronta para me desgrudar do muro de pedras e ir embora, o garoto rebelde me puxou de leve pelo braço e seu sorriso cínico se juntou aos meus lábios. Não tive muita reação, mas consegui fugir um pouco dando um passo para o lado direito.
Ele me puxou de volta, deixando nossos lábios a milímetros novamente.
— Eu gosto de você. Quero te conhecer melhor, .
Era bem difícil manter a sanidade, afinal, mesmo eu o achando um pouco prepotente e tendo a implicância de , Kyle era um cara muito atraente. Ele era o que eu podia chamar de “meu tipo”. Sua jaqueta de couro e o jeito rebelde só melhorava todo o conjunto.
E se o lema para a minha curta estadia no interior era aproveitar tudo, dar uma chance para as coisas acontecerem, eu devia correr riscos.
Não é?
Com a minha falta de reação negativa, seus lábios colaram nos meus novamente. Meu corpo relaxou ao sentir suas mãos em minha cintura. Após alguns segundos, ele aprofundou o beijo, tendo minha permissão. Eu não sei bem o que senti naquele momento, mas não era o que eu esperava. O beijo não parecia normal ou eu realmente não estava afim.
O que era um total balde de água fria para a ‘nova’ do interior.
Assim que nos separamos, um sorriso brotou nos lábios de Kyle.
— Acho que isso é um “sim” para nos conhecermos melhor.
Me afastei de seu corpo, lembrando só ali que estávamos a poucos metros da escola. Provavelmente a fofoca do dia seguinte seria: “garota de Paris se agarra com o rebelde da escola”.
E só de pensar naquilo eu ficava cansada.
— Eu preciso ir. — sua expressão não se modificou — A gente se vê mais tarde, ok?
— Mais tarde? Onde?
Eu ri de sua expressão confusa.
— É um jeito de falar. — e abanei o ar, dando passos para longe dele — A gente se fala.
Com a cabeça a mil e andando a passos largos para o mais distante possível da The Cotswold School, meu celular vibrou loucamente dentro de minha bolsa.
Peguei o aparelho sem muito expectativa e encontrei diversas mensagens do mesmo remetente. Bree.
* Bree Anderson: Aconteceu alguma coisa?
* Bree Anderson: Não sei porque, mas acho que você ficou chateada com as fotos que postamos…
* Bree Anderson: E eu sinceramente acho tudo isso uma grande besteira, . Sua, dele e até minha também.
* Bree Anderson: Eu sinto muito a sua falta, então, por favor, responde logo.
* Bree Anderson: E responde ele também, porque eu não aguento mais ouvir dos dois lados sem poder ajudar.
Mal tinha anoitecido e eu já me sentia atrasada.
Desci a pequena rua apressada, avistando encostado no muro de pedra, com sua fiel bicicleta verde ao lado. Era uma cena muito parecida com a de mais cedo, com Kyle. Mas com parecia melhor. Seu jeito despreocupado, olhando as pessoas mais a frente na margem do rio Windrush, fazia as coisas parecerem mais... Certas.
Sacudi a cabeça tentando me livrar daquele pensamento.
Eu finalmente tinha amigos, bons amigos, e não podia arriscar isso me envolvendo com . Não aguentaria ficar sem aquelas pessoas por qualquer briga idiota (que provavelmente aconteceria em algum momento). A galera do celeiro teria preferência a , isso não era segredo.
Parei ao seu lado, observando suas roupas. Ele tinha se superado, vestindo calças pretas, um tênis descolado da moda e camisa branca de botões.
— Era para irmos mais arrumados hoje?
Ele me olhou de lado, finalmente percebendo minha presença. Depois olhou em seu relógio, o que me fez revirar os olhos. Eu estava atrasada cinco minutos, já que ainda não tinha me acostumado com aquela coisa caipira de saber quando o sol se põe.
— Às vezes preciso dar uma desculpa a Annabelle. — ele passou as mãos pela camisa bem passada — Hoje foi um encontro.
Franzi o cenho, sentindo minha pele arrepiar por motivo algum.
— Um encontro? Você mentiu sobre alguém da vila?
deu de ombros.
— Quem disse que precisa ser da vila?
Se aquilo era uma indireta, eu preferi não prolongar.
— Pode me deixar no celeiro antes do seu encontro então? — ele revirou os olhos — Você pediu por isso!
— Vamos logo, antes que você estrague a minha noite.
Tudo e todos no celeiro pareciam bem e animados.
Eu conversava com Mila e Mason quando Hayden me abraçou de lado, passando as mãos em meus cabelos.
— Você arrasou ontem!
Eu realmente tinha arrasado. Em nossa atividade extracurricular de Línguas o assunto de debate da vez era desigualdade feminina no mundo, estudos e negócios. No começo tinha achado um assunto pesado para um bando de adolescentes ricos comentarem, mas aos poucos fui percebendo que a galera que estava por ali parecia saber do que estava falando. E, como eu tinha sido escolhida para representar o meu país de origem, o Brasil, tinha quase subido na mesa para falar sobre as coisas que sabia do lugar.
Eu não voltava lá desde muito pequena, mas ainda sim me interessava pela língua, pela cultura e, principalmente, por tudo de louco e absurdo que acontecia nos Estados.
O abracei de volta e aquilo deu uma energia que meu corpo precisava. Não tinha reparado que não abraçava alguém (amigos) em alguns meses.
— Eu acho que Bronwen não gostou quando eu bati boca com a Alemanha.
O menino super alto deu uma gargalhada.
— Você está brincando? Eles precisavam desse tapa!
Aproveitei aquele momento e soltei as palavras que estavam entaladas em minha garganta desde o puxão de orelha que tinha recebido de . Falei mais alto para que os demais prestassem atenção.
— Eu queria pedir desculpas por ser grossa ou qualquer coisa do tipo naquela outra noite. Eu tenho é sorte de poder estar aqui com vocês hoje.
— Relaxa, . — Hayden sorria — Por você ser rabugenta assim te trouxe para nós!
Ella abriu a porta do celeiro de supetão, logo correndo até onde todos estavam próximos. Suas mechas agora estavam azuis.
— Novidades, galera!
Sua fala foi o suficiente para que todos parassem tudo o que estava sendo feito (nada) e prestassem atenção na menina de cabelos coloridos. Noah rapidamente se empolgou, talvez já adivinhando o que vinha a seguir.
— Boas ou muito boas?
Ella olhou de lado para ele, soltando um sorriso incrível.
— Ótimas! — aquilo extasiou todo mundo e então percebi que só eu não entendia muito bem o que estava acontecendo — A família Ward ficará fora hoje e amanhã para alguma coisa bem chata em Cirencester. Algo sobre reunião dos chefes de polícia de Cotswolds.
A vibração dentro do celeiro foi incrível. Se eu tivesse chegado naquele momento, acreditaria facilmente que todos haviam ganhado na loteria.
Permaneci parada no meu lugar com uma grande expressão de dúvida no rosto.
— Alguém pode me explicar porque isso é tão bom?
Mason levantou do grande bloco de feno, trazendo Mila junto.
— , o pai de Zara, Louis, é chefe da polícia de Bourton-on-the-Water. Com ele fora, não tem patrulha.
Mila piscou para mim.
— Ou seja, podemos fazer o que quisermos enquanto ele estiver fora.
Hayden surgiu novamente ao meu lado, mas agora com diversas garrafas vazias.
— Então, o que faremos nessa noite de liberdade?
sorria como nunca, falando animadamente com Riley e Bronwen, que parecia realmente feliz.
— Que tal começar pelo de sempre? Tradição, galera.
Noah ainda parecia animado demais, já desabotoando sua calça jeans marrom — Banho no rio!
Em questão de segundos me vi sozinha dentro do celeiro sujo. Todos corriam em direção à estrada de terra, indo pra não sei onde. parecia ser o único a sentir minha falta na caminhada, visto que colocou sua cabeça para dentro do celeiro novamente.
— Sabe, é para você acompanhar o grupo.
Ri sem graça de sua expressão.
— É sério sobre tomar banho no rio?
Ele fez um gesto, meneando com a cabeça.
— Desde quando eu digo algo e não faço?
Independente de quantos sentidos aquela frase podia ter, foi o suficiente para meus pés se moverem até a saída do celeiro. sorria satisfeito, como se suas poucas palavras tivessem surtido o efeito que ele queria.
Eu não ia confessar nada sobre isso.
Andamos alguns minutos na estrada de terra mal iluminada, em meio a uma cantoria desafinada de Noah, Ella e Hayden. Todos pareciam realmente animados com a tal noite sem patrulha, visto que até Bronwen batia palmas no ritmo da música esquisita que nossos amigos cantavam.
Mason fazia Mila dar alguns rodopios, acompanhando a música. Riley andava a meu lado, assobiando.
— Espero que a água esteja menos gelada!
O olhei de lado.
— Essa bosta de rio caipira é gelado, não é?
O menino sorriu, ajeitando os grandes óculos no rosto.
— Sim, o rio caipira é bem gelado.
Revirei os olhos, parando de andar. Logo senti duas mãos me empurrando de leve pelas costas. .
— Sem chances, anda logo.
Antes que eu pudesse reclamar mais, ouvi gritos animados dos meus novos amigos. Tínhamos chegado a uma parte onde o rio Windrush se abria como um grande lago, totalmente fora da parte residencial ou comercial da vila. Noah já estava sem sua calça marrom desde que saíra do celeiro, mas também fazia questão de ficar sem a blusa laranja.
Meus pés travaram no chão com aquela cena. Tomar banho no rio ao anoitecer já não era o melhor programa que eu tinha em mente, mas eu realmente precisava fazer isso sem roupa?
Me sentia novamente em um filme americano.
— Vai ficar aí parada? — me observava com um sorriso nos lábios, reparando na minha reação chocada enquanto todo mundo corria animadamente para a beirada do rio.
— Vocês vão realmente fazer isso?
Ele revirou os olhos, logo sorrindo ao ver Hayden e Noah pularem no Windrush de barriga. Aquilo não era proibido?
— , se permite.
— Não começa a me encher, .
começou a andar para mais perto do rio, deixando seus sapatos quase na beirada. Se eu não o seguisse, ficaria lá sozinha na escuridão.
— Você é a dona da verdade, a garota da cidade grande, a sabe-tudo. Qual é o problema em pular de roupa no rio proibido?
— Começo por onde? — sua expressão continuou cínica, talvez igualmente a minha.
— Se quiser tirar a roupa, fique a vontade. — e me jogou um sorriso sacana, enquanto se livrava de sua própria blusa. Eu sequer tive uma reação mal educada para aquilo. Ele estava falando sério sobre tirar nossas roupas?
Em questão de segundos, estava apenas de roupa íntima. Seu abdômen e ombros eram definidos demais para alguém de Cotswold, e aquilo me deixou sem ar. Eu precisava criar um plano para resistir a tudo aquilo.
Sério.
Foi então que eu percebi que não era provocação alguma da parte dele (bom, talvez um pouco), já que todos tinham feito a mesma coisa. Até mesmo as meninas, que agora estavam apenas de calcinha e sutiã. Um destaque bem grande para Ella, que tinha a lingerie vermelha de corações brancos mais chamativa.
Ele deu passos largos até a beirada, logo pulando dentro do rio. Parte da galera já se divertia lá dentro, o que parecia mais convidativo a maluquice. Qual era o meu problema? Um grupo de amigos querendo se divertir enquanto o chefe de polícia está fora e eu simplesmente não parava de ser a garota chata.
me chamou atenção do rio, emergindo perto da beirada.
— . — seus olhos claros me fitavam intensamente. As grossas gotas de água passeavam pelo seu rosto — Se permite, vai.
Aquilo foi o suficiente para que eu colocasse as mãos na barra dos meus shorts, logo os retirando. O sorriso de se alargou e eu simplesmente não pude dizer se foi por causa da minha decisão ou da pouca roupa. Segundos depois, sem pensar muito, eu já havia feito o mesmo com a minha blusa. Olhei com o canto dos olhos para o meu próprio corpo, tentando verificar se a lingerie que eu tinha escolhido era ridícula ou aceitável. Por ainda sorrir, decidi que estava na casa do aceitável.
Andei até a beirada e então todos vibraram pela minha decisão.
De repente uma onda de vergonha bateu em mim. Eu estava de roupas íntimas no meio do nada, com várias pessoas, principalmente garotos adolescentes e atraentes. O que eu tinha na cabeça?
Eu sinceramente ainda acreditava na teoria sobre abstinência de poluição urbana.
Os meninos começaram a assoviar, gritando para que eu entrasse logo. Hayden chegou à beira, do outro lado, ainda me incentivando.
— Quer que eu vá aí te jogar, ?
Apontei meu dedo para ele.
— Fica no seu lugar, Hayden! — percebi que seu corpo estava todo coberto, e Hayden é simplesmente o mais alto de todos — Isso ai é muito fundo?
Ele riu alto.
— Pula logo que é mais fácil.
Olhei para quase aos meus pés, que ainda me fitava com um sorriso no rosto.
— Faz a sua primeira maluquice com a gente, .
E foi então que eu finalmente me permiti. Me joguei no rio como os malucos dos meus novos amigos haviam feito. Não me importava o fato de estar quase pelada e muito menos o possível resfriado que iria pegar depois. Nada daquilo importava, apenas importava o momento que estava vivendo ali.
Assim que emergi, veio a minha direção, me jogando um pouco de água.
— Pronto, ela está batizada galera!
Por mais fria que a água estivesse, aquela sensação era maravilhosa. Todo mundo rindo, mergulhando no rio como se não houvesse nada de ruim no mundo. Aquele sentimento de felicidade me bateu em cheio e pela primeira vez eu não coloquei o motivo do meu sorriso involuntário em algo idiota, como, por exemplo, a água estar gelada demais para me fazer coisas sem querer. Nada disso.
se aproximou mais, pegando em minha mão e me puxando para mais perto do pessoal.
— Você sabe nadar? — ele perguntou assim que percebeu minha dificuldade em se locomover dentro do rio cheio. Minha expressão foi o suficiente — Um dia tiro um tempo para te ensinar. Agora, vem cá. — e então, em um simples movimento, eu estava agarrada às suas largas costas. A sensação de ter seu corpo colado em mim dentro d’água era incrível e indescritível. Suspirei alto sem querer, e então pude ver um sorrisinho convencido em seus lábios.
Chegamos mais perto da galera. Noah e Riley disputavam algo, enquanto Ella e Bronwen tentavam pará-los. Mason soltou uma risada ao ver nós dois nos aproximando.
— Já cansou, ?
deu um soco fraco no ombro do amigo, que continuou rindo.
— Para, cara, ela não sabe nadar.
Dei um tapa em seu ombro.
— Para de explanar isso!
Ele se fingiu de ofendido, me fazendo rir.
— Quer que eu te largue aqui mesmo? Não vou te buscar no fundo.
Mila sorria como nunca, fazendo alguns gestos para mim enquanto os dois meninos conversavam sobre o que fazer durante a noite. Os gestos eram claramente sobre , que se mantinha ocupado em uma conversa com Mason. Eu simplesmente sussurrei um “pare com isso” bem silencioso, mas que não convenceu a minha nova amiga.
Muito provavelmente a ideia de que algo estava rolando entre e eu tinha voltado em cheio em sua cabeça.
me balançou em suas costas, ganhando minha atenção novamente — Vamos dar uma festa no celeiro quando chegarmos.
Depois de congelar um pouco no rio Windrush, nós pegamos todas as nossas roupas e as vestimos de qualquer jeito. Pelo menos eu fiz isso, já que não achava nem um pouco agradável a ideia de , Mason e os outros meninos me observando de lingerie molhada por aí. Nada atraente.
Voltamos pelo mesmo caminho, com destino de ir até o celeiro buscar as bicicletas para providenciar os mantimentos para a tal festa. De acordo com Noah e Hayden, nós precisávamos de bebidas, alguma comida e voltar na vila para avisar aos nossos responsáveis que os compromissos que cada um inventou iria demorar mais.
Quando eu ia questionar sobre todo mundo simplesmente ligar para os pais, percebi que na região do celeiro, por ser mais afastada da área residencial, não tinha sinal telefônico.
Eu reprimi o sorriso ao pensar que mal me lembrava do meu celular.
— Vamos ficar molhados a noite inteira? — eu não queria ser a pessoa que reclamava, mas não era a noite mais quente de Bourton-on-the-Water.
deu de ombros, me empurrando levemente para que eu andasse mais rápido. O resto do pessoal já estava bem à frente na pequena rua.
— Sem paradas em casa.
— Tudo bem.
Ele me olhou, sorrindo.
— Tem uma camisa minha lá no celeiro. Pode ficar com ela.
Mais à frente os meninos continuavam a discussão sobre dar a festa perfeita, coisa que só podia acontecer sem patrulha. Noah falava com animação.
— Festa! Festa! Precisamos ir correndo para a vila.
— Eu sei, idiota. Estou falando sobre o que vamos levar. — Hayden empurrou o menor, que fez uma cara nada amigável.
— O que você acha, imbecil? — Noah esperou uma resposta mal educada, que não aconteceu — Depósito dos Harrison!
Depois de formarmos duplas, fomos em direção ao centro de Bourton-on-the-Water. Largamos as bicicletas em um canto mal iluminado próximo à ponte de pedra, já que Mason disse ser mais seguro ir andando até o depósito. Seria nossa primeira parada para a produção da festa.
Enquanto andávamos, Ella, Riley e Hayden faziam a brincadeira “desafio ou desafio” contra nossa vontade. Eles só falavam besteira e desafios malucos.
Hayden falava baixo, olhando para todos os lados como um fugitivo procurado.
— Noah, eu te desafio a deixar sua meia suja na caixa de correio dos Hindley.
O mais novo riu com vontade.
— Perdeu a oportunidade de pedir algo melhor, porque até minha cueca eu deixaria lá.
Noah correu até uma grande casa de pedras escuras. Segundos depois, voltou só com uma meia nos pés. Os meninos deram risada, comentando o quanto ele podia ser maluco.
Cutuquei Mila.
— De quem era a casa?
Ela riu, envergonhada.
— Dominic.
Assim que avistamos o depósito de bebidas dos Harrison, demos a volta para, ao que me parecia na hora, entrar pelos fundos.
— Bronwen e Riley, fiquem de guarda aqui fora. — Mason dava ordens a todos, que concordavam de prontidão.
— O resto de nós entra e pega as coisas. Nós temos uns cinco minutos até o alarme disparar.
Meu coração foi na boca.
— Alarme? Essa coisa tem alarme?
Mason revirou os olhos claros.
— Não é só porque essa vila é ridiculamente pequena que você tem que deixar a segurança de lado.
— Não falo mais nada.
Bronwen me olhou de cima a baixo.
— Está na minha vez de desafiar? — todos concordaram — Então eu desafio a princesa da cidade grande a arrombar o cadeado.
Tentei ao máximo não parecer chocada. revirou os olhos, se preparando para quebrar o cadeado.
— Deixa de ser chata, Bronwen. O alarme pode disparar agora.
Eu o parei antes que fosse tarde demais.
— Não! Eu faço.
Todos me olharam animados. Noah bateu palmas.
— Isso aí! Representa a cidade grande, estamos precisando de emoção.
Era oficial. Eu tinha invadido a primeira propriedade privada da minha vida.
E tinha violado o cadeado com minhas próprias mãos e um grampo de cabelo laranja fluorescente com formato de borboleta (acessórios de Ella).
Pela familiaridade com que todos andavam pelo pequeno depósito, eles deviam fazer isso muitas vezes no ano. Ou no mês. O lugar era pequeno, mas rodeado de caixas de papelão marrom, algumas lacradas e outras recém-abertas. Algumas prateleiras e estantes estavam lotadas de garrafas, copos de vidro e pequenos frascos que eu não me senti interessada em saber o conteúdo deles. Eles analisavam as caixas já abertas, vendo o conteúdo de cada uma. Mason fez um assobio assim que achou algo interessante. Em suas mãos, duas garrafas lacradas. De vodca.
Foi o suficiente para a minha chatice dar as caras.
— Vocês vão roubar?
Todos me olharam como se eu fosse um alienígena.
— Claro que não. — deu de ombros — Vamos pegar e deixar o dinheiro no caixa. Sempre fazemos isso.
Entrar escondido, arrombar o lugar e depois pagar? Se essa moda em Nova Iorque pega...
— Por que vocês não vêm comprar?
— Quem trabalha aqui é o Lewis, do grupo de Dominic. — Mila sussurrava. Aquilo me fez ficar aflita pelos outros, que gritavam por todo canto da loja — Isso aqui é do pai dele, mas nenhum dos dois é bom de conta.
Ainda havia um ponto de interrogação em minha cara, o que foi o suficiente para Hayden segurar em meus ombros, me observando como se eu fosse uma criança analfabeta.
— Por que nós somos menores de idade e todo mundo viu a gente crescer nessa cidade?
— Vocês são malucos.
Ella já segurava duas garrafas de vidro colorido nas pequenas mãos.
— Garota da cidade grande, você aprende ainda.
Com as devidas garrafas de álcool, alguns pacotes de salgadinhos e todas as famílias cientes do pequeno atraso que seus filhos teriam nas atividades, voltamos para o celeiro à toda velocidade em nossas bicicletas. Minha roupa molhada fazia todos os pelo de meu corpo se arrepiarem em contraste com o vento geladinho que nos atingia na estrada de terra quase abandonada.
pedalava mais rápido que o normal e parecia que ele e Mason estavam apostando corrida, em meio as gargalhadas dos demais. A graça era que da mesma forma que me levava, Mason fazia o mesmo com Mila.
Minha nova amiga sorria o tempo todo e aquilo era uma delícia de ver. Como em tão pouco tempo uma pessoa já pode ter tanto significado na minha vida ridícula no interior?
Entramos correndo no celeiro e um suspiro geral foi ouvido dentro do recinto. Não era nenhuma surpresa que todos estivessem quase congelado depois da aventura no Windrush.
Enquanto as meninas colocam os salgadinhos na mesa improvisada de feno, os demais buscavam copos e outras coisas necessárias para encher a cara nos próximos minutos.
— Como prometido, aqui está.
Quando virei, segurava uma camisa de botões xadrez e vermelha enorme, mas que provavelmente dava direitinho nele.
Agarrei aquela roupa com vontade, já que meus músculos todos insistiam em continuar tremendo.
Ele riu com a minha urgência e por um segundo eu hesitei. Hesitei porque não queria interpretar mal aquele gesto e muito menos queria me iludir com qualquer coisa relacionada ao garoto do mercado.
Sério, um plano para resistir a qualquer coisa de deveria ser criado o quanto antes.
Uma música começou a tocar no celeiro. Só depois fiquei sabendo que era The Walker, do Fitz and the Trantums. Tinha tudo a ver com a energia do local e, enquanto a música tocava, meus novos amigos retiravam coisas de trás dos grandes bolos de feno.
Eram objetos de decoração.
Para festas.
Todos dançavam, amarrando coisas pelas madeiras, jogando pisca-piscas novos nos fenos, enchendo grandes balões para decorar a tal festa.
Meu corpo parou todo. Eu só conseguia observar aquela cena com brilho nos olhos. Eu realmente me sentia em um filme americano, onde tudo era possível e só existiam bons amigos, boa música e felicidade.
Zero preocupação e tristeza.
Até dançava enquanto jogava bandeirinhas coloridas pelas estacas mais altas do celeiro.
Mila apareceu à minha frente, me entregando vários objetos coloridos e brilhosos. Eu sorri abertamente para ela, entendendo que devia entrar na brincadeira.
Eu espalhava meus objetos da melhor maneira possível, sentindo aquela energia incrível. O último que sobrou em minhas mãos era parecido com as bandeirinhas que colocava no alto. Olhei para cima, procurando espaço para a minha decoração. Dei um pulinho para alcançar, aproveitando que todos poderiam achar que era parte da minha dança. Até que chegou a minha frente, me pegando pelas pernas, fazendo com que eu ficasse na altura ideal para jogar as bandeirinhas na madeira mais alta.
Eu sorria com tanta vontade que minhas bochechas estranhavam.
Quando pendurei o último adereço, , que acompanhava meus movimentos, me desceu, fazendo com que nossos corpos ficassem colados, frente a frente.
Só depois eu pensei em como aquela cena parecia uma cópia bem bizarra de Dirty Dancing.
Seu sorriso era lindo e quando nossos rostos ficaram na mesma altura, com ele ainda me segurando, olhei dentro dos seus olhos azuis.
Servia como uma espécie de agradecimento. Por tudo, por todos e, principalmente, por ele ter me dado a oportunidade de viver aquilo.
Eu não havia bebido ainda, mas o sentimentalismo estava à flor da pele.
Sacudi a cabeça assim que ele me colocou com os pés no chão, ainda próximo — Pensei que ia ser uma festa.
— Mas é uma festa. — ele soltou minha cintura — Você nunca fez isso também?
— Deixa de ser babaca. É que só tem a gente.
Dei um passo para trás, tentando respirar sem a dificuldade da aproximação repentina.
— E quem mais a gente convidaria no mesmo nível de maluquice? Você já completa o time.
Então, com palavras simples assim, era oficial. Eu me sentia parte de alguma coisa mais do que nunca.
As próximas horas dentro do celeiro foram regadas com bebidas, água mineral (para Mila), salgadinhos baratos e música. Tudo isso acompanhado de muita gargalhada, danças esquisitas e revelações após a ingestão de vodca e derivados.
A quantidade de álcool em meu sangue já começava a afetar meus movimentos. A sensação era maravilhosa. Era maravilhoso poder fazer coisas sem se preocupar com o mundo lá fora. Eu entendia como eles o poder que aquele celeiro tinha em nossas vidas, ele nos trazia uma liberdade limitada em Cotswold, mas que parecia infinita.
Mila entrelaçou seu braço no meu, me puxando para perto de Ella, que ainda sacudia suas mechas azuis.
— Você tem que ensinar os passos de dança da cidade grande, .
Gargalhei.
— Nem tudo na cidade grande é diferente, Mila.
Minha nova amiga fez uma careta, que logo se abriu em um grande sorriso.
— Fico feliz que você já esteja pensando assim da gente.
Quando eu ia responder com carinho (e já enrolando um pouco a língua), Bronwen apareceu do nada em nossa rodinha de meninas, e aquilo parecia o suficiente para que eu abrisse a minha boca.
— Bronwen! — a menina me olhou de lado, desconfiada — Qual é o seu problema comigo?
As meninas ficaram em silêncio, como se fosse um grande erro eu questionar a princesa punk de Cotswold (apelido dado por Noah).
A garota me analisou.
— Não gosto do seu tipo.
Dei de ombros, achando graça do meu comentário antes mesmo de fazê-lo.
— Tudo bem, você também não faz meu tipo!
Ella deu uma risadinha, sendo acompanhada por Mila. Bronwen revirou os olhos.
— Você é um problema. Não quero que machuque meus amigos.
Franzi o cenho. Então eu era um problema?
Seu olhar contornou o celeiro, parando em . Não consegui manter as palavras em minha boca.
— Você quer dizer ?
Ela voltou seu olhar para mim.
— Eu já percebi como você olha para ele, não quero que o machuque.
E então eu ri.
— Como assim? Somos amigos, não tem nada demais.
Era a segunda pessoa que me perguntava se eu tinha algo com . Estava tão na cara que eu o achava lindo demais?
Ela revirou os olhos novamente.
— Só guarda isso, ok? Não vou pegar no seu pé, é só você não machucar meus amigos.
Eu poderia colocar a culpa na bebida ou na água gelada do rio Windrush que ainda me causava arrepios, mas já tinha perdido a conta de quantas vezes tinha cheirado a camisa de flanela velha de .
Me sentia como uma adolescente de quinze anos.
Mas, diferente dos filmes de adolescentes bobos americanos, , que devia ser o cara principal da minha história (vida), não me dava total atenção durante nossa festinha. Ele se dividia entre as piadas sem graça de Noah e a companhia constante de Mason, seu melhor amigo. Eu ganhava uns sorrisos que, claramente pela quantidade de álcool que eu havia ingerido, me deixavam boba.
Completamente diferente de qualquer coisa que eu tinha sentido com o rebelde da jaqueta de couro, Kyle.
Mila me olhava de lado após Bronwen fazer sua saída dramática de nossa roda, prontinha para soltar alguma pergunta constrangedora. Provavelmente a que ela tinha guardado muito bem quando eu estava colada às costas de — seminua — no rio Windrush.
Antes que ela conseguisse dizer algo, apareceu ao seu lado, dando um beijo em sua cabeça. Mila olhou desconfiada, mas logo caminhou para a mesa de salgadinhos, onde Mason devorava algo sem perdão.
Eu realmente iria sofrer com perguntas em breve.
permaneceu parado à minha frente, logo tomando um grande gole de algo que tinha o conteúdo transparente. E então entregou seu próprio copo para mim. Tomei um gole grande de uma só vez. Ele levantou uma sobrancelha, que logo se tornou em um sorriso quando eu fiz careta após engolir aquilo.
Ainda estávamos à procura da bebida aceitável. Sem sucesso.
— Gostei da sua roupa. — ele me analisou de cima a baixo. Sua camisa de flanela xadrez me aquecia, assim como seus olhos azul-claros. Mas ainda parecia como um vestido curtinho em meu corpo, o que me deixava sem graça e desinibida ao mesmo tempo — Veio da cidade grande?
Meu riso foi espontâneo.
— Você gostou? Acho que é de alguma loja caipira do interior.
Ele riu, revirando os olhos.
— Para de fingir que não está adorando isso.
Será que ele tinha me visto cheirando a camisa?
— O quê?
E me fitou, divertido.
— Usar minha camisa caipira quentinha enquanto todos congelam. — seu sorriso cresceu — O que mais seria?
Antes que ele escapasse novamente, o puxei pela camisa. Sua expressão era uma mistura entre surpresa e diversão.
— Você acha que eu sou um problema?
sorriu abertamente.
— Ainda não.
De repente a música aumentou bruscamente e pude ouvir um grito. De felicidade, tinha certeza. Aquilo fez com que meu corpo sorrisse involuntariamente. Ella estava no meio do celeiro, dançando como se nada mais no mundo existisse. Se eu tivesse de escolher uma pessoa para personalidade do ano, essa seria Ella Bennett.
Não foi difícil distinguir que a música que agora explodia no dock station era Lisztomania, do Phoenix.
Mason e Mila dançavam juntos, fazendo coreografias que eu nunca havia visto na vida. Minha amiga tentava não ter o seu pé esmagado enquanto Mason parecia nem ligar para o seu jeito todo desengonçado. Na parte da direita, Hayden e Noah faziam movimentos loucos. Riley, o mais tímido do grupo, dançava animadamente junto com Ella. E até mesmo Bronwen, que dizia que músicas felizes assim são para garotinhas, dançava como se não houvesse amanhã.
E . A grosseria em pessoa dançava no meio daquele celeiro. E ele parecia verdadeiramente feliz.
Foi ali, em meio àquele celeiro bagunçado e uma música contagiante, que eu percebi que a felicidade é uma coisa que nos atinge do nada. Às vezes sorrimos sem ao menos termos motivos. Naquele dia eu tinha mil motivos, mas preferi não pensar em nenhum deles, só sorrir.
Ella balançava seus cabelos no ritmo da música doida e animada. A menina levantou os braços, jogando a cabeça para trás.
— Gente, eu amo vocês!
Todos gritaram e bateram palmas e tudo o que fiz foi sorrir ainda mais.
Meu maxilar provavelmente acordaria dormente no dia seguinte. E eu não me importava nem um pouco com aquilo.
Com aquela frase tão simples — e que tinha tanto significado ––, me permiti dançar no ritmo da música, com os olhos fechados. Pensando com calma (e com o efeito do álcool), eu mal conseguia entender como tinha parado ali, e muito menos como tinha conseguido a afeição da para ser convidada para o grupo secreto que ele tinha criado há anos atrás com seu melhor amigo.
Realmente ainda não tinha engolido a história do “você não combina com Cotswold”. Eu ainda precisava de um motivo, como para tudo em minha vida.
Dançando ali, sozinha e sem vergonha, usando uma camisa muito maior do que o normal para meu corpo, eu me permiti jogar todo aquele medo fora e aproveitar. Quando abri meus olhos, eles se encontraram com os azuis-claros de . Ele parecia gostar do que via, muito provavelmente porque eu tinha deixado a minha chatice de lado.
Eu também estava feliz com aquilo.
De verdade.
Ele piscou um de seus olhos para mim, logo se virando para Mason, que ria do jeito que seu irmão mais novo e Noah dançavam.
E com aquele gesto tão simples foi impossível não pensar como seria me apaixonar por aquele garoto.
Para minha surpresa, correu à minha direção, me puxando pela mão para a dança esquisita que eles faziam. Ele parou por alguns segundos, esperando que eu entendesse o que deveria fazer. Quando percebi já estávamos rodando como em uma dança dos anos 70, com as mãos puxando de um lado para o outro.
Aquele era um lado que ele provavelmente não deixava que todos vissem com frequência. A felicidade genuína mesmo.
Seus olhos azuis brilhavam de encontro com os meus. O sorriso estampado em seu rosto era o suficiente para fazer meu coração dar um pulo.
— Por que você não é sempre assim?
Eu quis rir, mas repliquei.
— Por que você não é sempre assim?
E então eu gargalhei. Muito. Era o suficiente para nós dois. Era até mesmo suficiente para aquele momento rodeado de amigos incríveis. Pela primeira vez eu senti que poderia ficar em um lugar, de verdade, para sempre. Não me importava se aquilo ali era o fim do mundo, se não tinha metrô ou outros grandes transportes coletivos de massa. Não me importava nem mesmo se eu não pudesse encontrar uma loja de conveniência vinte e quatro horas em cada esquina.
abriu a boca para falar algo, mas então a fechou, logo deixando seu sorriso amostra novamente.
Senti nossos corpos sendo colados e aquilo só aumentava o calor que meu corpo emanava. Seus lábios colaram no meu ouvido.
— Noah tem razão. — quando eu ia questionar, ele completou — Você é linda.
Aquilo deveria paralisar o meu corpo, normalmente, mas a sensação maravilhosa não deixou que isso acontecesse. Quando seu corpo se descolou de mim, puxando minha mão para mais um rodopio junto a música, eu apenas fiz o que já tinha feito durante a noite inteira.
Eu sorri.
O resto do pessoal já andava com suas bicicletas pela estrada de terra do celeiro, indo em direção a vila. Eu esperava ficar um pouco mais sóbrio, enquanto ajeitava algumas coisas em sua mochila velha.
— Agora que você está devidamente batizada, tenho algo para te dar.
Cruzei os braços no mesmo momento e logo senti uma tontura por todo o álcool ingerido mais cedo. Não estava arrependida, mas fazia o máximo de esforço para não esquecer qualquer coisa daquela noite. E nem vomitar também.
— Um presente? Se for, eu digo já que adoro presentes!
fez uma careta e depois abanou o ar.
— Encare como quiser. — e colocou finalmente a mochila nas costas — Agora que somos amigos, você pode me chamar como os mais próximos fazem. — e sorriu abertamente — .
Eu me lembrava de como Annabelle, a irmã mais nova dele, tinha o chamado. E pensava sempre como seria divertido um dia poder chamá-lo assim, de uma forma tão íntima. Algumas doses depois e um banho gelado de lingerie no rio Windrush tinham conseguido aquele feito: eu poderia chamá-lo de .
E gostava muito daquilo.
Repeti suas palavras, gostando do som.
— , né?
Ele sorria.
— Sim. Mas não gasta muito meu apelido fofo, tudo bem?
Tive de sorrir junto.
— Vi Annabelle te chamando assim aquele dia.
O sorriso lindo continuou em seus lábios.
— Você também pode usá-lo agora. Quando fizer um esforço para ser carinhosa ou for me dizer algo sério.
Eu estava nas nuvens. Por seu sorriso e pela quantidade de bebida ingerida, claro.
— E você, tem algum apelido fofo?
Dei de ombros, tentando lembrar se eu tinha um apelido. Ou se eu já tinha recebido algum apelido alguma vez. Provavelmente não.
— Não que eu me lembre. Sempre foi só .
Ele fez um gesto com a cabeç.
— Tudo bem, agora você tem: cidade grande.
Tive de rir.
— Não é um apelido muito bom.
— Pelo que significa para nós aqui é sim.
Aquilo foi o suficiente para que eu aceitasse meu (muito provável) primeiro apelido. Se eu tinha a cidade grande dentro de mim em todo momento, realmente parecia uma boa ideia ser chamada assim pelos meus novos amigos.
Me olhei no espelho, já pronta com o uniforme cinza claro da The Cotswold School. Eu não havia feito mais grandes mudanças nas peças, mas tinha conseguido deixá-las um pouco menos curtas do que na minha primeira tentativa. Olhando o reflexo, eu gostava do que via. As maçãs de meu rosto pareciam um pouco mais coradas que o normal e eu me questionei quando tinha conseguido pegar sol naquela cidade onde só se vinha nuvens cinzas.
E aí uma ideia muito louca se formou em minha cabeça: seria isso um sintoma de felicidade? As pessoas sempre diziam estar com mais cores saudáveis no rosto quando experimentam esse sentimento.
Pensar naquilo deixou meu coração ainda mais quente.
A última noite no celeiro com meus novos amigos tinha deixado a certeza de que eu realmente não estava sozinha naquele lugar. Eu tinha algo para pertencer, de verdade, e novos bons amigos para contar — provavelmente em qualquer situação. Pensar em Mila e, principalmente, , fazia meu corpo se sentir relaxado, calmo e feliz. Feliz mesmo.
Peguei minha bolsa do cabideiro e desci as escadas com pulinhos, já avistando mamãe na mesa de café da manhã. Assim que meus pés tocaram o chão de madeira da sala, a cabeça de papai apareceu no final do corredor, na porta entreaberta de seu escritório.
— , venha aqui, por favor.
Entrar no escritório era sempre depois de um convite, pois ele odiava surpresas em seu local de trabalho. Provavelmente eu ainda ganharia uma bronca daquelas pela loucura de entrar naquele lugar de supetão, apenas para falar da minha ideia de pintar a casa inteira.
Depois da animação, papai sempre voltava ao estágio normal, sereno, mas isso nunca me livrava das broncas.
Adentrei o escritório, ainda com minha bolsa pesada de livros no ombros.
— Precisa de algo, pai?
Meu pai pegou seu querido tablet de última geração.
— Quero te mostrar uma coisa antes de voltar para Londres.
Me aproximei dele, que colocou a tela do aparelho em minha direção. Papai passava algumas fotos de um apartamento grande e decorado, em vários ângulos. Os móveis dispostos tinham uma decoração moderna e industrial que, particularmente, faziam bem o meu gosto.
Olhei todas as fotos atentamente, sem entender o que ele estava querendo me mostrar na real.
— É bonito. Onde fica?
— Londres.
Minha primeira reação foi franzir o cenho. Mas a segunda foi abrir a boca em meio choque.
Visto a minha falta de palavras, ele continuou.
— Fica no centro, mas em um local menos barulhento. É a cobertura. — e pegou o tablet de volta, colocando em sua grande mesa de madeira escura — Gostou?
Eu mal tinha palavras.
Depois de tudo o que tinha acontecido na última semana, com me convidando para participar do grupo secreto do celeiro e todas as coisas que tinha vivido lá dentro, amigos novos e uma nova perspectiva de Bourton-on-the-Water, tinha me esquecido completamente do fervoroso pedido (em lágrimas, vale relembrar) que tinha feito aos meus pais.
E, como papai costumava manter suas promessas, lá estava a solução para o meu problema. Um novo apartamento. Em Londres.
Respirei fundo para não gaguejar. Era isso que eu queria, não era?
— É ótimo.
Ele sorriu.
— Que bom que gostou. Agora só precisamos escolher uma escola para você terminar o ensino médio.
Era realmente isso que você queria, ?
Sim. Mas não o que a quer agora, algumas semanas depois.
Eu tinha vivido o inferno em Cotswold, principalmente na The Cotswold School. Cheguei na vila depois do início das aulas, fui ignorada por 95% da população da escola e tinha boatos pesados correndo aos quatro cantos sobre mim. Eu podia ter suportado um pouco mais de exclusão, mas o peso das invenções — principalmente sobre eu praticar roubos nas escolas –– era demais.
Mas, depois de algumas semanas, eu não pensava mais em ir embora. Eu queria ficar. Ficar com meus novos amigos. Aproveitar mais por ter alguém incrível como Mila ao meu lado.
Aproveitar ao máximo o sorriso, bebidas, provocações e danças de .
— Pai, eu agradeço muito esse esforço que você está fazendo.
Ele concordou, pegando novamente o tablet para procurar alguma coisa na internet.
— Podemos ver a escola quando você chegar e…
— Eu acho melhor ficarmos por aqui.
Meu pai franziu o cenho no mesmo momento, sem entender.
— Pensei que você estivesse triste aqui na vila.
— Eu estava.
Papai se apoiou na grande mesa de carvalho, suspirando e me olhando com carinho. Ele já estava bem acostumado com a minha rebeldia de adolescente, mas mudar de opinião sobre a vila parecia difícil de entender e explicar.
Ele pendeu a cabeça para o lado.
— Depois que você decidiu que seria uma boa ideia pintar toda a casa, confesso que pensei que você estava mudando de ideia.
Tive de sorrir.
— Ficou um pouco na cara, não é?
Ele balançou a cabeça, sorrindo também.
— Posso perguntar por quê?
Eu pensei novamente em tudo o que me fez mudar de ideia sobre Cotswold. A verdade era que eu via um grande potencial em todas as pessoas daquele grupo secreto e eu realmente me sentia parte daquilo. E eu não me sentia dentro de algo desde que tinha saído de Nova Iorque.
O olhei com meu melhor sorriso.
— Acho que eu só precisava de mais alguns dias, pai. — e aquilo apareceu suficiente para ele, que me arrastou para fora do escritório em direção à mesa já posta de café da manhã, com mamãe esperando — Obrigada.
Capítulo 7 - Ações
“Imagine uma nova história para sua vida e acredite nela.” (Paulo Coelho)
Aquela foto feliz demais ainda preenchia toda a tela do meu celular.
Eu não me sentia triste, mas também não conseguia me sentir feliz olhando aquilo. A última mensagem de Bree ainda estava guardada ali, já que eu não fiz sequer questão de abrir. “Estou esperando sua resposta. Está realmente triste com a gente?”. Não queria responder aquilo. Pelo menos não naquele momento.
Os dias passavam mais tranquilos e devagar em Bourton-on-the-Water, e isso estava me dando mais tempo para pensar sobre as coisas. Eu queria pensar sobre meus novos amigos, sobre minha nova casa… Sobre meus antigos amigos, que eu ainda guardava muito bem no coração. E, principalmente, sobre a minha mais nova conquista pessoal. Eu realmente iria aceitar o interior.
A pintura da casa era apenas um início de todo um longo processo que eu conseguia sentir que seria muito doloroso, mas também podia sentir que tinha algo bom em tudo isso. E meus novos amigos seriam o suporte que eu precisava para morar na roça e estar feliz com isso. Esse era o melhor plano “Sobrevivendo em Cotswolds”.
Depois da última noite no celeiro eu não conseguia parar de criar expectativas sobre as demais noites que ainda teria naquele lugar velho, sujo e encantador. Ainda era estranho sentir felicidade no meio de um lugar que eu não gostava, mas eu precisava me permitir sentir qualquer coisa além de desconfiança, insegurança, tristeza e solidão. A décima terceira casa nova seria diferente.
A décima terceira casa nova precisava ser diferente.
Deixei o celular de lado, tendo a visão do espelho de corpo todo no canto do meu quarto. Estava pronta para mais um dia dentro da The Cotswold School, mesmo que isso significasse andar no meio dos filhos ricos, mimados e de bom humor excessivo pelas salas e corredores brancos demais. Dei o último nó na gravata cafona do uniforme quando, com o canto do olho, eu o vi. O meu lindo e renegado casaco “azul demais” para a escola. Abri um sorriso involuntário no mesmo momento. Se eu iria aceitar o interior, não deixaria que nada de Cotswolds me diminuísse ou que não me permitisse ser quem eu era ou quem eu gostaria de ser.
Eu estava segura com o meu novo grupo secreto.
Ainda era esquisito sentir bom humor depois de tanto tempo.
O caminho da nossa casa até a The Cotswold School era bonito, calmo e com muito verde. As diversas lojas e cafeterias tomavam as calçadas com mesas de ferro e cadeiras com estampas com muitos desenhos. Era interessante de assistir as poucas pessoas da vila tomando um café da manhã colonial. Provavelmente era o tal famoso clotted cream que papai não parava de tagarelar sobre no dia em que chegamos a Bourton-on-the-Water.
Para lembrar algo esquisito que meu pai falava eu estava realmente de bom humor. Tanto que parei em uma daquelas cafonices a caminho da escola, escolhendo o maior e mais bonito croissant recheado. Aquele cheiro de manteiga quentinha me deu uma nostalgia enorme sobre as ruas sujas e super lotadas de Paris. Dei uma mordida com toda a vontade do mundo e o gole no café quentinho era igual ser abraçada pelo calor momentâneo da bebida no inverno gélido de Chicago. Aquelas lembranças e comparações me deixavam ainda melhor, já que eu sempre tentava (mesmo em meio ao caos das mudanças) levar algo de bom do lugar em que fiquei por um tempo. Era a minha caixa de recordações de sentimentos e sensações únicas.
Em Paris eu tinha os croissants, em Chicago o melhor café que já bebi (era uma criança com gostos esquisitos), em Amsterdam as melhores caminhadas pelas ruas abarrotadas, em São Paulo a melhor receptividade… Isso me levava a pensar o que eu levaria de Bourton-on-the-Water. Com o sentido super positivo que eu estava, tudo me levava a crer que seria diversão, bebidas baratas e amigos.
Esse pensamento foi tão feliz que adentrei os portões da The Cotswold School com um belo sorriso no rosto, mal me importando com o que poderiam pensar. Cumprimentei algumas pessoas, até mesmo aquelas que pareciam cochichar sobre mim com os seus grupinhos. Tive até mesmo a audácia de perguntar para um grupo de três meninas do segundo ano se elas precisavam de algo meu e o olhar assustado delas me fez sorrir ainda mais. Se as pessoas pensavam que eu vendia coisas ilegais, eu ia tentar pelo menos tirar sarro disso tudo para rir sozinha e com os meus amigos renegados.
Estava realmente decidida que seria a da cidade grande e que não deixaria o interior, de jeito algum, diminuir o que eu sentia ou que queria sentir.
Meu objetivo ganhou um novo gás quando avistei Zara passando por um dos corredores limpos demais, durante o meu caminho até o meu armário pessoal. A rainha do feno me olhava atravessado pela terceira vez na semana. E ainda era quarta-feira. Pelo menos hoje eu tinha dado motivos. A única coisa que fiz foi passar as mãos no meu casaco ilegal, enquanto a mesma me olhava com uma cara nada boa.
Diferente das garotas que eu conhecia na cidade grande, Zara era naturalmente bonita. Seus cabelos loiros demais eram de nascença, assim como seus cachos e corpo de estrutura mediana. Nem muito alta, nem muito baixa. O essencial. Eu nem mesmo podia chamá-la de nomes horríveis (mesmo achando isso desnecessário e terrível para a comunidade feminina). Zara era do tipo de garota que poderia ser a rainha dos homens do pedaço, mas, para a minha má sorte, parecia que ela só tinha problema com garotas novas na vila.
Só de lembrar que ela e foram namorados… Meu estômago se revirava.
Da sua panela de garotos populares, o único que esbanjava um sorriso sempre que passava por mim era Dominic, que estava ao seu lado, provavelmente indo para uma aula avançada chatíssima. Eu não estava muito certa se devia retribuir aqueles dentes brancos demais (perfeitos, como qualquer coisa idiota de Cotswold) ou se acertava algo em sua cabeça, como um aviso para me deixar em paz.
A promessa dele de me levar para ‘conhecer a região’ ainda me dava arrepios. Só a ideia de possivelmente me envolver com alguém da região (como Dominic) dava calafrios em minha pele.
Eu estava tão nas nuvens com os meus novos amigos que tinha me esquecido de um ponto. Kyle. Me questionava se ele ainda estava dentro do meu plano de sobrevivência ao interior e, se não estava, como eu ia fazer para que ele soubesse disso o quanto antes.
Assim que se aproximou por completo, o menino da jaqueta de couro me deu um longo beijo na bochecha. Mesmo não tendo sentido grande coisa em nosso beijo na frente da escola no outro dia, não pude deixar de me sentir sem graça pela demonstração de carinho no meio do corredor branco demais.
— Bom dia. Como que você está?
Tive de acompanhar o seu sorriso maroto — Bem, Kyle. E você?
O menino deu de ombros — Pode soar bem horrível e caipira, mas melhor agora que te encontrei.
Realmente era uma benção divina não corar por nada.
— Deixa de ser bobo.
Ele se encostou na pilastra de mármore, me analisando — Quais são os seus planos para o intervalo?
Ajeitei a mochila em meu ombro, tentando pensar o que Kyle tinha em mente. Será que o rebelde me achava rebelde também e queria matar aula para pintar muros com frases de ódio ao interior e Cotswolds? Ou para se agarrar por aí, quem sabe…
Balancei a cabeça de leve — Nada além de lanchar com Mila. Por quê?
Ele descolou da pilastra, dando alguns passos para trás.
— Vou te sequestrar de Mila. Tenho algo para te convidar.
Franzi o cenho e estava pronta para replicar, mas Kyle já estava longe, após dar uma piscada de olho. OK. Eu precisava urgente repensar o meu plano ruim. Kyle ainda era uma opção para fugir da palhaçada cafona que era o interior?
Assim que abri o armário notei um papel meio amassado por cima dos meus livros. Os armários da escola tinham aquelas frestas em que era possível jogar algo para dentro, e por um segundo eu sorri olhando aquilo, pensando com a minha ingenuidade que era alguma coisa de alguém do celeiro.
Ao abrir o bilhete, me deparei com uma mensagem escrita à mão: “Volte para o buraco de onde veio, delinquente.”.
Respirei fundo e olhei ao meu redor, mas tudo estava perfeitamente normal. Parecia um episódio ruim de Gossip Girl, mas não encontrei alguém me observando ou rindo ou pronto para me jogar alguma coisa nojenta. Aquilo seria o suficiente para destruir o meu plano de sobrevivência e o meu bom humor matinal? Fechei o armário com leveza, ainda mais determinada a uma coisa. Se a The Cotswold School me julgava como louca, bandida e imoral, era o que eles iam ter.
Hoje seria o primeiro dia que iria ao celeiro depois da nossa festinha exclusiva. Não sabia o que esperar, já que não tinha trocado mais que duas palavras com o pessoal nos últimos dias, com exceção de Mila, que faz algumas aulas insuportáveis comigo. Pelo menos eu tinha minha nova amiga para extravasar.
Adentrei a sala de Literatura Inglesa, já me arrependendo por isso. Às vezes parecia que só tinha aquela matéria em minha prancheta arrumadíssima de horários. Sentei na cadeira já determinada como minha e cumprimentei minha amiga, que escrevia algo em seu caderno rosa pink.
Mila me olhou de lado, segurando um riso.
— Acho que alguém acordou com vontade de provocar hoje. Não é o seu casaco proibido?
Sim. Estava revoltada e bastava Mila perceber para que eu ficasse satisfeita. A última noite do celeiro tinha mexido comigo, ou eu podia realmente afirmar (de novo, eu sei!) que era a falta de poluição urbana. Sério. Abstinência de poluentes pode causar sérios danos.
Estava cansada de olhares maldosos de uma garota que eu nem me importava. Bem cansada de toda a escola tentar me julgar de qualquer forma, visto os boatos desnecessários que rodavam por aí sobre mim. E agora aquele bilhetinho... Minha conclusão foi: se eu não me importava, não me curvaria à soberania louca que Zara e os demais achavam que tinham dentro daquela escola ridícula. Eu ainda tinha o ar superior da cidade grande.
Passei as mãos em meu sobretudo ‘azul demais’, antes de tirá-lo.
— Estou esperando que alguém venha me dizer algo.
Mila soltou uma risadinha — Você não existe, cidade grande.
Dei de ombros, lembrando novamente do bilhete que tinham deixado para mim. Eu não queria compartilhar coisas tristes com Mila, mas aquilo eu sentia que deveria, já que ela fazia parte do meu plano de sobrevivência naquela escola e na região.
Cutuquei o seu braço, logo deixando o pequeno papel em sua mesa. Mila franziu o cenho, mas logo depois sua expressão se iluminou. Eu não pude deixar de rir sozinha ao imaginar que Mila pensava que agora eu era a garota que trocava bilhetinhos divertidos na sala.
Assim que ela abriu e leu, sua expressão se transformou em uma careta.
— Eu preciso te ensinar a passar bilhetes durante a aula?
Sacudi a cabeça — Deixaram dentro do meu armário.
A careta se dissipou e agora Mila parecia realmente triste.
— Eu sinto muito, .
— O que importa é o que vocês pensam de mim, principalmente você.
Ela sorriu com leveza — Nós acreditamos em você. Eu acredito.
— Não tem medo de falarem de você por estar perto de mim?
Minha nova amiga deu o sorriso mais sincero que eu tinha recebido em meses.
— , conta comigo. Para enfrentar isso ou qualquer outro problema.
Os primeiros tempos antes do intervalo se arrastavam.
Era nessas horas, principalmente entre aulas chatas e muito chatas, que a minha mente viajava demais. Eu precisava pensar em um jeito de responder aquele bilhete sem graça; precisava tentar me concentrar nas mil palavras por segundo que saíam da boca do professor, visto que seu primeiro teste do semestre se aproximava… Mas as únicas coisas que rodeavam minha cabeça eram as mensagens sem resposta de Bree e , que, à minha direita, parecia realmente entediado ao praticamente mastigar um lápis preto. Sua expressão parecia séria, mas dava para perceber que estava absorto em outra coisa.
Provavelmente as plantas novas do celeiro, whisky barato ou o que iria fazer na próxima aula de Culinária Doméstica.
Era difícil ver aquela cena (e também não lembrar dos nossos últimos momentos juntos no celeiro) e não pensar em de um jeito diferente. Eu não sabia ainda se queria me envolver emocionalmente com ele - e nem sabia se ele mesmo queria isso, mas só a ideia me deixava um pouco sem ar. Não me sentia apavorada com aqueles pensamentos e nem pela sensação de achar ele lindo toda vez que via o seu sorriso sincero. Na verdade eu me apavorava de outra maneira. Tinha cravado na cabeça que não podia botar a perder os amigos que finalmente tinha feito depois de Nova Iorque. era muito inconstante e tinha um jeito direto por natureza - que eu só tinha percebido depois de realmente conhecê-lo -, e talvez fosse isso que me deixasse tão intrigada, e não a beleza do seu rosto ou o sorriso que ele dava sempre depois de uma grosseria por nada.
Tinha que ser isso. Eu realmente não podia perder a oportunidade de ter amigos novamente.
Mas era completamente frustrante tentar deixar de lado todas as emoções da noite sem patrulha. O jeito como sorria, como me olhava. Seus olhos claros demais colados aos meus, sua boca tão próxima da minha. Tudo isso mesmo sabendo que boa parte de seu bom humor era efeito da bebida em excesso.... Eu ainda não sabia se tinha sido sonho ou realidade, mas acreditava ter ouvido as palavras ‘você é linda’ saírem de sua boca. Só sabia que não conseguia me lembrar do último dia que tinha me sentido daquele jeito, tão viva e cheia de energia.
E, depois de , eu pensava no rebelde da jaqueta de couro. Kyle. Não tinha trocado muitas palavras com o menino, mas ainda existia aquela atração inexplicável. Talvez pelo ar misterioso que não tinha.
Para uma garota que raramente tinha amigos viver um triângulo amoroso (pelo menos em minha cabeça) seria demais. Em um aspecto bom, acredito eu.
Quando o sinal do intervalo tocou, meu corpo relaxou no mesmo momento. Eu e Mila saímos juntas da sala em direção aos nossos armários. Minha cabeça ainda estava a mil por conta do bilhete sacana que tinha recebido. Não conseguia parar de pensar em quem poderia ser e, principalmente, como que eu poderia revidar da melhor forma.
Minha amiga fez um sinal de que ia para a esquerda.
— Uma pena nossos armários serem tão distantes.
— Vou só colocar os livros e te encontro na parte de fora, tudo bem?
Ela ia concordar, mas um grupinho de garotas interrompeu nossa conversa para fazer um comentário que eu julguei como maldoso.
— É essa menina que está ocupando Kyle?
As palavras vieram de uma garota de longos cabelos pretos que eu nunca tinha visto na The Cotswold School. Mas reconheci Alene ao seu lado, com uma expressão indescritível. Será que ela já sabia que eu não tinha aparecido no teste do time de futebol?
Tudo foi tão rápido que eu nem tive tempo de responder.
Olhei para Mila sem entender nada — Quem é aquela menina?
— Uma caloura do segundo ano. — e então sua expressão se suavizou — Achei que não estava rolando algo entre você e Kyle.
— Mila…
Ela levantou uma das sobrancelhas — Quando nos encontrarmos lá fora, quero saber de tudo.
Minha amiga foi andando casualmente pelo corredor, cumprimentando algumas pessoas no caminho. Respirei fundo. Era meio que esperado que todos soubessem o que houve entre Kyle e eu, já que o nosso beijo tinha rolado praticamente nos portões de entrada da escola.
Aquilo tinha me lembrado que o menino iria me procurar na hora do intervalo… Ainda não estava certa de minha decisão, mas sabia, bem lá no fundo, que não queria dar mais assunto para os fofoqueiros de plantão da vila. Eu queria e tinha conseguido a atenção do rebelde da escola, mas aquilo agora parecia muito fútil até para mim.
Quando meus olhos avistaram Kyle dobrando o corredor em que estava, meu corpo soube involuntariamente o que fazer.
Não era a melhor opção para a minha reputação já muito manchada na The Cotswold School, mas em questão de segundos eu corria direto para o corredor anexo aos armários brancos demais, em uma tentativa talvez inútil de me esconder. Sim, um pouco patético e de adolescente da roça, eu sei.
Tudo bem. Talvez muito patético e 100% adolescente da roça…
Meu coração batia forte e eu rezava para santos que nem sabia que existiam, para que Kyle passasse sem me ver ou simplesmente entrasse em alguma sala antes daquele corredor. Ele tinha dito que queria me ‘sequestrar’ no intervalo e eu realmente não queria pagar para ver. Como que um bilhete maldoso tinha feito eu me esquecer daquilo?
Não era uma competição entre garotos (até porque eu nem sabia se me imaginava do jeito que eu imaginava o rostinho bonito dele perto do meu) e muito menos uma briga interna por ego. Eu só não tinha uma resposta para Kyle, para qualquer que fosse a pergunta. O interior era muito diferente e esquisito, eu tinha que estar preparada. E, bem, naquele momento o meu preparo era abaixo de zero.
No corredor anexo (também encerado demais, vale ressaltar) eu me mantinha escorada em uma parede perpendicular aos armários principais da área. Era tão bem escondido e tinha uma visão tão boa do todo que eu imaginei que o arquiteto daquele corredor tinha passado maus bocados no ensino médio e queria ajudar alguém. Alguém como eu.
Os adolescentes andavam por todos os lados e, mesmo escorava na parede, eu tentava me manter serena e despojada, porque senão seria o novo problema/fofoca, tudo isso em menos de dois minutos.
Pelo feixe da conexão entre os corredores, vi Kyle passar direto. Foi a hora de expirar fundo, sentindo meu pulmão quase ir embora junto.
Andei a passos largos até o próximo bloco da escola, em sentido contrário ao menino da jaqueta de couro. Todos os blocos tinham a mesma estrutura: tudo branco demais, brilhoso demais e com muitos alunos. Ainda me perguntava como uma região com pouco mais de oitenta mil habitantes tinha tantos adolescentes.
Quando achei um corredor vazio, suspirei alto, encostando em um armário que parecia recém pintado. Era realmente uma ideia péssima correr de Kyle, mas era a melhor que eu tinha no momento. Minha cabeça estava a mil e meu coração seguia o compasso.
Meu Deus, o que o interior estava fazendo comigo?
Três meninas conversavam mais à frente, tão alto que era impossível não tentar participar da conversa.
— Eu não sei, acho que daria uma chance.
Uma segunda menina completou — Pode ser, Megan. Nós nem a conhecemos. Sempre vale duvidar da primeira impressão, não é?
Eu não sabia porque, mas queria continuar ouvindo aquela conversa até então despretensiosa.
A terceira finalmente deu a sua opinião — Eu acho que é bom para nós, meninas. Principalmente se ela lutar contra. — e pareceu bufar — Vocês lembram no ano passado quando a Sadie ficou com o Leon? Foi insuportável. Inventaram de tudo nessa vida e não tivemos como revidar.
Cheguei mais próximo da divisão dos corredores, agora conseguindo olhar o grupinho. As três meninas aparentavam dezesseis anos, no máximo. Suas roupas cinzas e cafonas eram bem passadas e todas tinham os cabelos bem penteados e loiros. Clássico das meninas ricas da região.
Uma voz que já tinha falado voltou a comentar.
— Hm, concordo. Será que ela vai fazer algo?
Eu não queria me gabar por boatos ridículos, mas sentia no fundo do meu ser que aquele papo era sobre…
— Se a garota nova de Paris não der uma lição aqui, não temos muita chance.
… Mim.
Aquilo era novo. Eu podia ser um símbolo de rebeldia (no bom sentido) para as garotas da região? Não consegui pensar muito naquilo, pois um grupo de garotos altos demais adentrou o corredor dando risadas.
— Ele é uma menina no corpo de um atleta. Infelizmente.
Um garoto super descabelado respondeu — Quem?
O primeiro continuou — Nosso melhor zagueiro, que não conseguia tirar os olhos dos demais colegas.
O corredor explodiu em uma gargalhada. Uma nova voz preencheu as risadinhas. O menino era o mais alto e vestia uma jaqueta cinza e azul, com o mesmo símbolo cafona do nosso suéter de inverno.
— Parem de falar dele. Hayden não tem culpa de ser otário assim. É de nascença.
Não precisou explicar muito para que eu soubesse de qual Hayden eles estavam falando mal. Hayden, meu novo amigo do celeiro secreto. Era bem óbvio, visto que o menino que eu conhecia com o mesmo nome também era uma estrela do futebol (mesmo que por algum motivo estranho preferisse debates agora).
Descolei da parede em que tentava me esconder, aproveitando novas risadas para aparecer na frente do grupo. Encostei meu ombro direito nos armários, usando-os de apoio. Um dos meninos reparou em mim, cutucando os demais, fazendo todos se virarem a minha direção.
Cinco pares de olhos, agora ferozes, me mediam sem parar. O primeiro a dar um sorriso mais convidativo fez o mesmo movimento que eu, a centímetros de mim.
— , a menina linda de Paris. Precisando de alguma atenção do time?
O menino que falava mal de Hayden tinha os cabelos castanho dourados, com fios arrumadinhos demais em sua cabeça. Só de relembrar suas palavras meu sangue ferveu. Só de lembrar as meninas falando “será que ela vai fazer algo?” meu sangue ferveu ainda mais!
Tentei dar o meu melhor sorriso — Qual é o seu nome?
O jogador pareceu um pouco surpreso, e os demais escondiam risinhos. Provavelmente eu deveria saber o nome de todos os garotos do time de futebol que pouco me importava.
Suas sobrancelhas grossas se uniram em frustração, mas o sorriso grande em sua boca tentava disfarçar.
— Kieran Cooper. Capitão do time de futebol da The Cotswold School. — e deu uma breve pausa na inflamada apresentação pessoal — Mas essa última parte você já deve saber.
Sorri de lado, o que fez Kieran se sentir um pouco mais.
— Desculpe, não sabia.
As risadas explodiram nos demais amigos do capitão de futebol. Ele pareceu um pouco desconcertado, mas tentava não demonstrar.
— Isso é um bom motivo para passarmos um tempo juntos, não acha? Te contar sobre o time, sobre mim… E você me contar o que esse rostinho lindo veio fazer em Bourton-on-the-Water.
Me estiquei um pouco mais, ficando ainda mais próxima do rosto de Kieran. Seus olhos tinham um brilho sacana, de quem realmente acredita que pode flertar com todo mundo e se dar bem sempre. Algumas pessoas já passavam cochichando, e provavelmente eu seria a nova fofoca daqui a cinco minutos.
Será que eu conseguiria bater o recorde de mais fofocas por dia dentro daquela escola? Minha repentina sede por vingança sobre os boatos cruéis me fez acreditar que aquele era um recorde que eu queria atingir.
O menino engoliu em seco quando mordi o lábio inferior.
— Você é um fofo, Kieran, mas não saio com caipiras.
Foi o suficiente para o restante do time retomar a zoação, o que fez a expressão de Kieran virar gelo.
— O que quer então? Esse time não usa drogas.
Mantive minha aproximação. Aquele grupo de meninas tinha me dado a força que eu precisava. Meu casaco ‘azul demais’ me dava força. A falta de poluição me dava forças! A partir daquele momento a cidade grande ia revidar.
— Continue falando mal das pessoas nessa escola que eu mudo essa verdade do time rapidinho.
Kieran manteve a postura — Alene está louca de querer alguém como você em nossas atividades esportivas. — e deu um sorriso cínico — Vou fazer questão de que fique de fora nos próximos testes.
— Por mim, ótimo.
Voltei à minha fuga um pouco desconcertada. A última coisa que precisava no momento era comprar briga com algum clã daquele lugar. Mesmo com a rebeldia dominando meu corpo e mente naquela manhã.
Quando abri a porta do bloco de Humanas, vi que o caminho estava seguro. Me encontrava próximo ao pátio fechado de refeições, mas estar no lugar mais óbvio do intervalo parecia ser a coisa mais inteligente a se fazer. Tinha visto isso em algum filme… Até que um dedinho cutucou o meu ombro. Eu já estava pronta para dar uma bela desculpa esfarrapada. Havia corrido tanto de Kyle pela escola que me esqueci de outra pessoa que estaria querendo muitas respostas que eu ainda não tinha. Mila.
Seu olhar parecia entediado, mas eu jurava ver um pequeno sorriso crescendo no canto de seus lábios. Parecia ser o dia de tirar sarro da menina da cidade grande.
— Você vai contar ou eu vou precisar fazer algo?
A única coisa que consegui fazer foi suspirar. Eu já estava me escondendo o intervalo quase inteiro, tinha que dar o braço a torcer em algum momento. E, se isso tinha que acontecer, que fosse com Mila.
— Kyle me beijou.
Em segundos o olhar da menina passou de entediado para super animado.
— Ai, meu Deus! Isso é incrível!
Não consegui reprimir uma careta — Você acha mesmo?
Mila colocou as mãos no peito — Sim, . Que lindo! Como foi?
— Mila, não foi nada demais… Não tem nada de lindo nisso.
Sua expressão ficou confusa — Como assim?
— Como assim o quê?
— Beijos são sempre especiais!
Eu já sabia que Mila tinha um comportamento de princesa recatada, mas naquele momento eu percebi o que poderia ser o conservadorismo que era super presente na vila de Bourton-on-the-Water.
Meu corpo paralisou ao entender aquela frase que tinha saído de minha mais nova amiga. E o pânico tomou conta de mim. Será que todos na região teriam o mesmo pensamento sobre beijos? Eu estaria completamente ferrada.
Pela minha falta de resposta, Mila continuou.
— Está pensando no beijo?
Sacudi a cabeça, dando passos para trás — Eu… Eu preciso fazer uma coisa agora. — quando ela ia questionar porque eu estava fugindo do nosso lanche do intervalo, eu já estava longe — Te vejo mais tarde!
Assim que fiz o contorno do bloco, eu o vi novamente. Kyle estava parado na entrada principal, com as suas mãos na jaqueta de couro brilhante. Estava cansada, estressada e meu cabelo começava a sentir aquele pique de adrenalina. Minha cabeça latejava. Corri ainda mais quando o menino pareceu me ver passando entre as alas, pois jurei ouvir um “!”, que foi completamente ignorado.
Eu sabia que aquilo tudo era uma vergonha, mas realmente não estava pronta para o que quer que fosse. Preferia fugir do que me arrepender.
A passos muito largos entrei em outro bloco, um bem distante da minha próxima aula de Geometria. Respirei fundo ao ver que estava novamente sozinha, visto que, por ser fim do intervalo, praticamente todos estavam ou terminando seus lanches ou fazendo coisa melhor do que estar em um dos corredores das salas de aula.
Me permiti encostar em uma das paredes, fechando os olhos que logo foram bem abertos ao escutar passos a minha direção.
— , bom te encontrar.
Era Dominic. Sua calma e passos arrastados me fazia respirar fundo novamente. Tudo bem, ele parecia ser educado e tudo mais, mas eu não podia perder tempo com aquele papo de ‘vamos conhecer o interior comigo’ naquele momento. Precisava e queria muito sair da vista de Kyle.
Tentei meu melhor ânimo — Oi, Dominic. Como está?
Seus dentes brancos demais me recepcionaram em um grande sorriso.
— Muito melhor agora.
Clássica. Péssima, mas clássica — Do que precisa de mim?
— Estava pensando… Quando vai sentar com a gente novamente no intervalo? — e sorriu um pouco mais — Percebi que está de amizade com Mila Hughes. Ela é super bem vinda ao nosso grupo.
Tive de me esforçar para não fazer uma careta. Continuava com o mesmo pensamento de quando me convidou para o grupo secreto. Eu não queria e nem precisava fazer parte de um grupo como o de Dominic. Ainda estava incomodada pelo jeito que trataram Ella naquele dia.
Quando eu estava pronta para falar algumas verdades para ele, vi Kyle adentrar o corredor em que estávamos. Meu coração foi a mil novamente. Corri para a direita, puxando Dominic comigo. Pela camisa bem passada.
Grande erro. O sorriso do menino se alargou.
— Tudo bem, podemos ficar reservados.
Eu olhava para o fundo do corredor, onde Kyle coçava a cabeça, confuso, ainda segurando a camisa de Dominic. Era um dia bem fácil para os meus inimigos da The Cotswold School.
Assim que percebi a besteira que tinha feito, o soltei. Dominic mantinha um sorriso que julguei como malicioso e aquilo foi o suficiente…
— , eu ia te convidar para sair. Mas vi que não consegue esperar por isso…
Dei um longo passo para trás, agora mal me importando se Kyle poderia nos ver. Qual era o problema de Bourton-on-the-Water? As pessoas tinham essa liberdade louca de beijar as outras do nada, sem permissão, ou beijos eram “sempre especiais”?
Pela minha falta de reação, o menino continuou.
— Me falaram que você era fácil, coisa da cidade grande, mas não imaginei que fosse tão fácil assim.
Ah, sim. Aquele era o momento em que eu marcaria um novo capítulo na minha difícil história dentro de Cotswolds. A frase “me falaram que você era fácil” fez com que tudo passasse em câmera lenta. Quando pisquei, minha mão fechada já tinha acertado em cheio o nariz de Dominic.
Aquele boato eu ia fazer questão de espalhar.
Ele levou a mão ao rosto e eu já podia ver o sangue escorrendo.
— Sua delinquente! Você ficou maluca?
Eu tinha adrenalina no corpo, me sentia basicamente empoderada pelas meninas do corredor e estava rebelde. Mas eu não era esse tipo de garota. Gostava de me defender e sabia como fazer isso, mas sempre sem partir para a questão física. Não gostava de problemas… Minhas mãos começaram a tremer e somente dei um passo para trás.
— Isso não vai ficar assim, .
Precisava sumir dali o mais rápido possível, mas as suas palavras voltaram a minha mente como um choque. “Volte para o buraco de onde veio, delinquente”.
— Você… — ele ainda me olhava incrédulo — Por que colocou aquilo no meu armário?
Dominic parecia desnorteado, tanto pelo soco surpresa quanto pelo meu questionamento.
— Eu não deixei nada para você e nem deixarei, sua esquisita! — e me empurrou de leve — Saia da minha frente!
Se não tinha sido Dominic, aquela era uma coincidência bem incrível. Eu ainda ia descobrir a verdade sobre o bilhete, mas a partir daquele momento minha fuga precisava ser bem séria. Teria que me esforçar para chegar até o portão de saída sem ser pega por Kyle ou pelo inspetor da diretoria, que com certeza iria querer boas satisfações sobre o meu golpe no rosto perfeitinho de um dos alunos mais populares da escola.
Corri pelos blocos tentando achar uma saída para contornar a escola pelo lado de fora, no pátio aberto. O sinal tocou e eu podia ouvir algumas pessoas se movimentando próximas a mim, então mantive meu passo apressado. Deslizei no final do corredor principal, encontrando mais uma seleção de armários de alunos. O espaço já estava vazio a não ser pela inspeção, que buscava os atrasados.
Com certeza Dominic já teria chegado à diretoria e todos estariam com a ordem de me levar até lá para dar algumas explicações sobre o nariz do garoto.
Quando ouvi um barulho surdo, não pensei duas vezes e me joguei no chão. Eu já estava completamente perdida, então já não pensava mais antes de agir. Engatinhei até o final do bloco, olhando pelas frestas das pilastras a fim de saber onde o inspetor poderia estar. Minha adrenalina era tão alta que só me dei conta da cena vergonhosa quando bati em algo. E algo, infelizmente, era alguém. O tempo pareceu congelar enquanto meus olhos subiam até identificar quem era o dono daquele tênis que precisava ver água.
.
Sua expressão era indecifrável e seus olhos claros demais tinham um brilho diferente. Ele parecia estar guardando ou tirando algo do seu armário, que estranhamente tinha o nome de Mason rabiscado ao lado do seu.
Permaneci sem reação e sem dignidade alguma, mantendo aquele contato visual humilhante. O cara era um fantasma na escola e eu tinha que esbarrar exatamente nele?
me olhou com uma expressão de descrença antes de fechar o seu armário.
— Você é doida.
E saiu andando como se nada tivesse acontecido.
Ali eu acordei. Que papel ridículo era aquele? Eu estava engatinhando pelo corredor limpíssimo da The Cotswold School, como se estivesse em um filme cafona de adolescentes. Limpei as mãos e marchei até meu armário, sem pressa alguma. Estava apenas esperando a diretoria chegar junto com Dominic.
Quando a porta do meu armário se abriu, um bilhetinho cor de laranja encontrou o chão. Abaixei para pegá-lo e foi o suficiente para me arrepender. Era uma manchete recortada de um jornal local, que dizia “ter mais de um parceiro sexual por vez pode ser um problema psicológico sério”, acompanhado de algo escrito a mão: “Achei a sua cara, vadia”.
O limite era esse, certo? Eu já estava na pior mesmo…
Bati a porta do armário com toda a força que encontrei em meu corpo, o que resultou em um barulho estrondoso pelo corredor. Levantei o bilhete laranja com a mão direita, rindo em seguida. Se a região inventava que eu era uma inconstante e cheia de maldade, talvez fosse o melhor momento para incorporar aquele personagem.
Gargalhei antes de começar o meu surto.
— É só isso que vocês caipiras têm?
Pronto, a atenção dos alunos que não estavam dentro de suas salas era minha. O público era pequeno, mas podia jurar ter visto algumas pessoas sacando os seus celulares para filmar. Se eu ia virar meme de WhatsApp ou grupos de Facebook, pouco me importava. Lembrava da conversa das três meninas no bloco de Ciências e já agia novamente sem nem pensar.
— Desde quando beijar um garoto é motivo para ser a piranha da escola? — rasguei o post it de forma bem dramática. Obrigada, séries adolescentes americanas — Cheguei agora e já falam que fiquei com um, dois, três da região. Quem são vocês para se meter nisso? Eu faço o que eu quiser. Coitados de todos aqui que querem fazer tudo o que inventam e não conseguem por medo. — levantei as mãos, tremendo um pouco pelo momento — Todas as meninas dessa escola podem fazer o que quiser. Vocês são livres. Não deixem esses otários engomadinhos e caipiras tomarem conta das suas vidas!
Andei a passos largos pelo corredor, pisando forte na direção de uma menina que me olhava com cara de reprovação. Foi o suficiente para que ela desse vários passos para trás.
— E não, eu não fiz nada com Kieran ou Dominic ou com qualquer outro perdedor da região. — arrumei meu cabelo, aumentando o drama da cena — Pela última vez: eu, , não me envolvo com caipiras.
Assim que me viu passando direto pela sala de aula, Mila andou apressada.
— Você está bem?
Tive que me controlar para responder sem dar uma patada daquelas.
— Sim, obrigada.
Minha nova amiga fez uma careta — Falaram que você estava gritando no corredor, saí da sala para ver o que tinha acontecido…
Revirei os olhos. É claro que já estavam ‘falando’ por aí. Eu esperava que estivessem compartilhando a versão completa do meu surto.
— Deixaram outro bilhete no meu armário. E aí eu surtei.
Mila parecia realmente chateada e só aquilo me fez bem. Alguém ali dentro se importava comigo.
— , eu realmente sinto muito. No que posso tentar te ajudar?
Dei de ombros — Gritar foi bom. Estou bem.
Minha amiga chegou mais perto de mim, agora cochichando — Quer fazer uma noite da reclamação?
Achei graça do seu tom. Era fofo demais, o que combinava muito com a menina à minha frente.
— Estou realmente bem. Cansada, mas bem.
— Se precisar…
— Eu sei, Mila. E te agradeço muito por isso. Agora, preciso ir enfrentar a diretoria.
Antes que ela pudesse abrir a boca para mais questionamentos, corri até a sala da diretoria, pronta para ser suspensa ou até mesmo expulsa da The Cotswold School. Disso eu sabia que não poderia fugir.
Já na diretoria, vi Dominic entrar na sala principal, portando um grande pedaço de papel manchado de vermelho dentro do nariz. A cena era engraçada e seria uma boa história para daqui alguns anos, mas eu começava a sentir aquela adrenalina ir embora e o peso da responsabilidade chegar. Eu realmente não era esse tipo de garota.
Sentada em uma das cadeiras de espera, analisava os meus sapatos com obsessão. Estava envergonhada e não tinha ideia de qual desculpa eu daria para não ser suspensa ou até mesmo expulsa da escola.
A porta que dava para o corredor dos alunos se abriu e um par de tênis andou até a bancada da secretária. Um par de tênis muito sujo, diferente dos arrumadinhos demais dos outros alunos.
Um frio correu na minha espinha. . De novo.
Assim que nossos olhos se encontraram o seu cenho franziu. olhou à sua volta, constatando que não tinha ninguém na sala de espera da diretoria.
— O que aconteceu?
Era bom e estranho falar com ele dentro daquela escola.
Poupei palavras — Dei um soco em Dominic.
Quando ele ia reagir, a porta se abriu novamente, revelando a então secretária do turno. Ela foi até a bancada e a contornou, sentando-se na pequena cadeira. Uma placa dourada demais expunha o seu nome. ‘Srta. Pasternak’. A mulher abaixou o rosto para se ajustar na cadeira e foi o suficiente para soltar um silencioso e surpreso “O quê?” para a minha direção.
Então nem todo mundo já tinha ouvido o meu novo feito.
Srta. Pasternak reparou em sem esboçar uma reação.
— Sr. , caso tenha vindo tentar livrar a sua amiga, já digo que não será possível.
nem alterou a sua expressão — Não somos amigos.
Eu sabia que o esquema do celeiro era sério e real, mas não podia deixar de sentir aquela facada.
A mulher então abriu um sorriso — Do que precisa, querido?
— Vim trazer a sua encomenda.
Srta. Pasternak de repente era um misto de surpresa e tristeza — Rory ficou de me trazer no fim do expediente.
levantou as sobrancelhas e eu entendi que ele queria reagir apropriadamente aquilo, mas se conteve.
— Infelizmente ele precisou ir a Cirencester. Um imprevisto com uma outra encomenda. — e colocou um pacote embalado em cima do balcão — Para que a senhorita não fique sem receber hoje, ele me pediu. Algum problema?
Sua expressão se fechou um pouco, talvez percebendo que estava dando bandeira demais.
— Claro que não, querido. Como está Annabelle?
— Bem, obrigado por perguntar.
— Te devo algo?
negou — Não. Meu pai falou que no final do mês você acerta com ele.
Após a conversa esquisita com a secretária, deu meia volta com os calcanhares, mas, antes de sair da sala, fez um pequeno gesto para o celular que agora estava em uma de suas mãos. Abri minha bolsa pegando o meu e já podia ver o visor brilhando com uma nova mensagem.
* : Acho que essa mulher tem algo com o meu pai…
* : Por que socou o Dominic??
* : Longa história… E sim, acho que ela tem ou quer ter.
Na sala do diretor ouvi tudo sem nem ao menos abrir a boca.
O velho senhor palestrou sobre ser uma ação completamente fora dos padrões da renomada escola e que era necessário, além de uma severa detenção, um pedido de desculpas para meu colega ferido pelo soco. Sem questionar um segundo, meus lábios soltaram um desanimado “Me desculpe, Dominic. Não é certo agir assim. Espero que possa me perdoar”. Essa humilhação era mil vezes melhor do que a expulsão.
Por fim, tinha ganhado duas semanas de “severa detenção” e sinceramente não conseguia entender por que não tinha sido ao menos suspensa. Me sentia até mesmo irada por não ter sido, visto que o diretor não tinha aplicado a punição em mim por conta de, nas palavras dele, eu possuir “boas recomendações” de outras renomadas escolas e que meu pai “era ocupado com coisas importantes e não precisava se aborrecer com aquilo”.
Meus pais não precisariam ir até lá, apenas assinar a minha detenção. Aquilo me deixou intrigada, mas não iria questionar e piorar a minha situação.
Saindo na recepção, Srta. Pasternak conversava animadamente com a última pessoa que eu queria ver. Zara.
A menina fingiu animação — ! Preciso falar com você.
— Pode ser amanhã? Estou atrasada.
Eu não estava, só precisava ir embora daquele lugar o quanto antes.
— É coisa rápida. — não fiz questão de responder — Só quero te avisar que a sua detenção é comigo. — e sorriu educadamente, voltando sua atenção para a secretária da direção — Não tolero atrasos e agressões. Te vejo amanhã.
O placar x Cotswolds estava em um novo empate.
Tinha gastado tanta energia no bilhete escroto e fugindo de Kyle que não havia sobrado nada para fazer o mais importante: pensar. Bourton-on-the-Water era uma vila miseravelmente pequena, então era óbvio que fugir apenas na escola não seria o necessário. Mesmo que Kyle morasse na vila ao lado, Stow-on-the-Wold, era praticamente impossível não esbarrar com ele no caminho de casa. Eu estava exausta, me sentindo com zero dignidade e com uma adrenalina fora do comum depois da minha grande cena.
E, para nenhuma surpresa da minha pessoa, assim que cortei o quarteirão, pronta para passar pela ponte de pedra que divide o Rio Windrush em frente ao mercado da família de , eu o vi. Kyle estava encostado no batente da ponte, como se fizesse uma emboscada bem bolada para que eu não pudesse fugir mais.
Assim que me avistou, um sorriso lindo contornou os seus lábios e eu suspirei alto. O que quer que fosse que ele queria comigo eu não estava preparada para dizer “sim” e muito menos “não”.
Será que se eu me jogasse no rio ficaria bem claro que eu não queria conversar com ele naquele momento?
— Oi, . — assenti para o menino, também com um sorriso no rosto. Ele andou até sair da pequena ponte e eu acompanhei.
— Desculpe por mais cedo, acho que nos desencontramos.
O garoto rebelde riu pelo nariz e no fundo eu senti que ele sabia que aquilo era uma mentira.
— Sem problemas. Você tem tempo agora?
Dei de ombros, me sentando em um dos bancos de pedra na margem do rio.
— Tenho sim, cancelaram minhas atividades extracurriculares de hoje.
“Cancelaram”, no caso, eu fugi para não remoer ainda mais a cena horrível com Dominic.
Ele levantou as sobrancelhas, como se estivesse surpreso — O que escolheu para fazer?
Comentei enquanto observava Kyle sentar no banco. Em vez de se pôr ao meu lado, ele pôs as duas pernas por fora do banco, ficando de frente para mim.
— Escolhi algumas em que pudesse fazer algum estrago naquela escola.
Ele riu com vontade — Gosto desse seu espírito da cidade grande. Isso faz falta por aqui.
Por que mesmo eu estava fugindo dele mais cedo? Kyle era lindo, bom de papo e estava claramente interessado em minhas coisas. Com a nossa proximidade, o mesmo conseguiu colocar uma mecha do meu cabelo atrás de minha orelha esquerda. Aquilo foi fofo e cafona ao mesmo tempo.
Ah, sim, era por isso. Eu ainda não sabia se queria ter algo com Kyle. O meu plano de sobrevivência em Cotswolds era para não passar o meu tempo livre sozinha e ter com quem compartilhar aquela experiência horrorosa de se morar no interior. Mas Kyle… Eu gostava do seu interesse, gostava dos seus olhos, gostava do seu estilo. Só que algo não parecia 100% certo.
Eu não precisava de um namorado. Ou qualquer drama parecido com um.
Com o canto dos olhos vi uma movimentação na fachada do mercado de . Era o próprio entrando na loja... Ele não parecia ter me visto, mas, quando meu corpo entendeu que era o menino, meus pelos do braço se arrepiaram. Será que era por isso que Kyle não fazia mais sentido como passatempo?
— Só queria saber como você está, se já está adaptada. — aquilo era uma surpresa. Ele então continuou — Queria ter mais tempo para te ajudar com tudo isso aqui, mas estou tendo que ajudar meus pais com uma obra em nossa casa.
— Sem problemas. As coisas estão melhorando.
Ele não estava muito convencido e pareceu pensar por alguns segundos, finalmente voltando a falar.
— Vai ter um evento beneficente no final de semana. As famílias de Cotswolds sempre participam e a minha é uma delas. — ele mexeu os ombros, com uma expressão que aparentava estar sem graça. Isso mesmo com o sorriso ainda cínico no rosto — Meu convite é saber se você quer ir nessa coisa ridícula comigo.
Bom, tinha chegado a fatídica hora. E então eu percebi que estava corretíssima de fugir de Kyle.
Ele continuou — Todo mundo vai. Acho difícil seus pais ficarem de fora.
Tentei buscar a melhor resposta — Eu não estou sabendo disso.
Eu queria terminar com “essa cafonice”, mas me contive. O plano de aceitar o interior estava me dominando. E tudo isso inclua não tratar os locais com falta de educação, mesmo que às vezes o instinto da cidade grande gritasse. Tipo um soco surpresa, por exemplo.
— Confere com eles e me fala então. Vou aguardar ansioso.
Só consegui concordar e, depois de alguns minutos jogando conversa fora, finalmente corri para o lugar mais seguro da vila: minha casa.
Assim que entrei em casa notei as malas deixadas perto da porta de entrada. Meu pai finalmente tinha voltado de Londres, depois de alguns longos dias. Mamãe era sempre uma ótima companhia e fazíamos várias coisas juntas, mas nós duas sentíamos falta de Luiz Fernando, meu pai. Era sempre uma festa quando ele voltava para casa depois de qualquer período fora.
Depois de arrumar várias desculpas sobre eu não poder ir com ele a Londres desta vez, papai trouxe mais um de seus infinitos presentes de viagens - sejam elas de longa ou curta duração. E desta vez ele tinha superado todas as minhas expectativas. São ações como essa que não me permitem me separar deles. Não no momento.
— Você não fez isso, pai! — eu podia estar um pouco elétrica da minha rebeldia na escola ou até mesmo com resquícios de álcool no sangue da última noite no celeiro, mas dava para sentir a mais pura felicidade em minhas palavras. Em minha frente, sentado como se fosse um brinquedo novo, estava ele: meu cachorro.
Corri até o seu encontro, abraçando-o com vontade.
— Você é lindo! — o cachorro parecia gostar da minha afobação, começando a se mexer sem parar entre meus braços — Ele é perfeito!
Meu pai sorria como se tivesse ganhado mais um badge especial no Angry Birds.
— Que bom que gostou, minha querida. — ele se abaixou à nossa altura, acariciando a cabeça do meu novo cachorro — É um filhotinho ainda. Veio com nome na coleira.
O cachorro tinha um pêlo caramelo enorme e sua língua para fora fazia com que ele sorrisse o tempo todo. Era uma raça indefinida, e por ele não ser nada de padrão me deixava ainda mais feliz. Ele era diferente da vila, assim como eu. Levantei sua coleira vermelha e me questionei se a escolha da cor não seria invenção do meu pai.
— Astra. — li as letras em voz alta — Não é um nome feminino?
Meu pai deu de ombros enquanto o cachorro dava voltas por nós dois.
— Acho que ele gosta.
Segurei em seu focinho, sendo lambida várias vezes — Astra. — o cachorro se mexia feliz — Acho que gosto também.
Sem pensar duas vezes, coloquei a guia no cachorro e o levei para dar uma volta pela vila. Com sua coleira vermelha, Astra olhava para tudo e todos. E eu fazia o máximo de esforço para conter aquele cachorro e toda a sua animação com Bourton-on-the-Water. Provavelmente era a primeira vez que alguém naquela vila via um ser vivo empolgado com tudo.
Quando atravessamos algumas ruas de pedras chegando ao “centro comercial”, avistei . Ele estava na fachada do mercado ‘vende tudo’ de sua família, varrendo a entrada. Cumprimentou alguém que entrava e seu sorriso lindo me distraiu por um segundo, o que foi o suficiente para que Astra ganhasse a batalha de puxões que tínhamos travado. Em um piscar de olhos o meu novo cachorro se soltou da coleira, desatando a correr livremente pela vila.
Astra corria animadamente por toda a grama que beirava o Rio Windrush, fazendo graça com quem estivesse no caminho. Eu corria atrás, como a louca que veio da cidade grande para aterrorizar a vila de quatro mil habitantes com seu cachorro filhote. Já podia ouvir risadas de algumas pessoas pelo caminho, provavelmente achando aquilo a cena mais engraçada de seu mês pacato em Cotswold.
— Astra! — era uma tentativa falha e inútil, mas vai que ele já tinha aprendido o seu nome? — Astra, para!
O cachorro nem fez questão de me olhar. E foi assim que eu me tornei a sensação da vila em pouco tempo de moradia. Boatos sacanas e um cachorro rebelde.
Astra continuou correndo até chegar próximo da margem do rio Windrush. Parei a poucos metros de distância, já imaginando o que se passava naquela cabeça de filhote. O cachorro levantou o rabinho, ficando apoiado nas patas da frente e eu já sabia o que estava por vir. Antes mesmo que eu pudesse gritar o cachorro pulou com tudo no rio, arrancando novas gargalhadas de quem acompanhava a minha saga (sem ajudar em nenhum segundo, vale ressaltar).
Corri até a margem do rio enquanto o cachorro nadava feliz de um lado para o outro.
Astra não sabia o seu nome, mas já sabia nadar. Eu tinha que me lembrar disso no próximo passeio.
Resmunguei em voz alta — Você escolheu logo o rio proibido para estreia? — consegui alcançar um galho caído no chão, o que conquistou (finalmente) a atenção do cachorro — Você quer? Vem até aqui!
O cachorro nadou até a margem novamente, parecendo feliz com o novo presente imundo que ganharia.
E tudo aconteceu rápido demais.
Assim que puxei Astra pela coleira, pareceu uma nova brincadeira para ele, o que me fez cair com tudo dentro do Rio Windrush. Eu, Astra, coleira e galho velho nojento. Foi um péssimo dia para usar blusa branca…
Quando consegui arrastar o cachorro para fora do rio, um patrulheiro do chefe de polícia chegou correndo até nós.
— O que aconteceu? Vocês não podem nadar aqui!
Respirei fundo, puxando Astra junto comigo — Parece mesmo que eu estava querendo nadar?
O patrulheiro me olhou esquisito, mas eu podia jurar que ele estava segurando uma risada.
— Vocês caíram?
— Eu caí. — Astra se balançou todo, molhando o oficial — Ele se jogou.
Alguns curiosos ainda olhavam a nossa cena e minha única solução foi segurar ainda mais o cachorro e retirar os tênis encharcados. Andaria para casa cortando toda a via principal da vila sem sapatos, completamente ensopada e sem dignidade. Igualzinho engatinhar ridiculamente pela The Cotswold School. Por sorte tinham poucos turistas na região, senão com certeza aquela cena estava fadada a ser um meme bem bizarro.
Cotswolds tinha ganhado mais um ponto no meu placar pessoal.
Assim que botei os pés em casa, mamãe me olhou assustada do balcão da cozinha.
— O que aconteceu com você?
Pelo seu tom de voz, meu pai apareceu em um segundo.
— , o que houve?
Coloquei os tênis encharcados no chão, passando as mãos no cabelo em seguida.
— Astra pulou no rio. — meu pai soltou uma gargalhada — E me puxou junto quando tentava pegar ele.
Minha mãe segurava o riso, tentando parecer séria.
— Onde está o cachorro?
— Se esfregando em tudo no quintal. — mas sua expressão logo se fechou — Eu sei, vamos tomar um banho.
Meu pai ainda dava risadas — Esse cachorro sabe se divertir.
— É proibido nadar no rio, pai. — ele concordou, tentando parecer sério igual mamãe — Por sorte o patrulheiro achou graça também.
Enquanto subia as escadas até o banheiro, tive de rir com os questionamentos de meu pai.
— Eu não entendo por que não podemos pular no rio.
Nem eu entendia, mas não iria confrontar o chefe de polícia. Pelo menos não sozinha.
Saí do banho já me preparando para tomar outro junto com a bagunça que Astra provavelmente faria no quintal. Chequei meu celular e três mensagens gritavam na tela principal.
* Bree Anderson: vai me responder quando??
* : Gostei do show no rio e também do cachorro. Quero conhecer.
* : Te pego hoje ao anoitecer, no mesmo lugar.
* : Anoitece às OITO.
Revirei os olhos, mas ainda com um sorriso no rosto.
era insuportável com seu horário caipira.
Desci as escadas de dois em dois, pensando na melhor desculpa para passar boa parte da noite fora e sem comunicação. Mamãe estava na ilha da cozinha grande demais, fazendo algo que eu não consegui decifrar com o cachorro incrivelmente seco dormindo aos seus pés. O interior realmente tinha mexido com os meus pais…
— Mãe, que história é essa de baile beneficente no final de semana?
A pelagem de Astra estava meio verde, provavelmente da grama. Queria apertá-lo, mas tive medo de despertar o caos. O semblante de mamãe se iluminou.
— Ah, eu ia esperar até o jantar para falarmos!
Foi o suficiente para que meu corpo se jogasse no banco.
— Vocês só podem estar brincando comigo.
Minha mãe mal se afetou. Na verdade, acho que seu sorriso se alargou ainda mais. O problema só podia ser o ar puro demais do interior, não tinha outra explicação.
— Não estou brincando com ninguém. — e deu uma pausa que eu considerei como dramática — Cotswolds dá um baile anual, beneficente, para ajudar as família carentes. Nossa presença é importante, acabamos de chegar.
Revirei os olhos, logo sendo repreendia — E eu preciso ir, por acaso?
— Claro. Já até te arrumei um par.
Demorei alguns segundos para reagir apropriadamente.
— Quê?
Mamãe colocou algo no forno e bateu palmas, virando-se novamente para mim. O rabinho de Astra se mexeu, mas ele parecia cansado demais do banho no rio para participar.
— Vão ser os melhores brownies que você já comeu na vida. — minha expressão entediada foi o suficiente para que ela continuasse com o assunto anterior — , é importante para o seu pai.
Ah, sim, a cartada mestre iria ser usada cedo na décima terceira mudança. Fechei os olhos tentando manter a sanidade. Mamãe continuou seu discurso.
— É uma festa, você vai se divertir.
— E eu preciso de um par desde quando?
Ela deu de ombros, iniciando talvez uma nova receita para o jantar.
— É costume da região. Precisamos nos enturmar, não acha?
Não, eu não achava. Mas sabia que era pior discutir com qualquer um deles. Toda vez que via o brasão de Cotswolds em nossa casa eu tinha vontade de vomitar.
— Quem é o meu par nessa cafonice?
Mamãe se iluminou novamente — Lembra daquela família do churrasco, os Hunt? É o filho mais velho dele, tão bonito! — meu coração acelerou — Mason.
Aquilo só podia ser brincadeira. Eu tinha um encontro às cegas com Mason, o namorado da minha nova amiga da região?
— Eu sou obrigada?
A mais velha parou tudo o que estava fazendo para me encarar. Eu sempre era difícil no início das mudanças e, mesmo que já tivesse admitido a papai que estava aceitando o interior e a décima terceira mudança, eles ainda estavam cautelosos. Adolescente era uma coisa horrível mesmo.
— , você não é obrigada a nada. — e suspirou, me olhando nos olhos — Não quero ninguém ao meu lado com cara de poucos amigos. Mas como já disse: é importante para o seu pai.
Ameaça em nível dois.
— Tudo bem. — foi a minha vez de suspirar — Preciso contar uma coisa que aconteceu na escola hoje.
Minha mãe levantou os olhos até os meus — Problemas?
— Estou em detenção por duas semanas. — quando ela já ia começar a reclamar, a interrompi — Desculpe. Não está certo, mas eu discuti com um menino que estava sendo maldoso comigo.
A expressão de mamãe suavizou. ‘Discutir’ poderia ser sinônimo de ‘soquei’, não é? Eu ia deixar esse detalhe passar, para o meu bem.
— Gosto do seu espírito, minha filha, mas, por favor, evite problemas na escola. — concordei de prontidão — É o seu último ano, não seria bom mudarmos você de escola novamente.
Nisso eu tinha que concordar.
— Pode deixar, mãe. Não vai acontecer novamente.
— Preciso ir até a escola? Ou seu pai?
O frio na espinha estava de volta — Não é necessário. Só assinar um papel que recebi da diretoria.
— Tudo bem, vou confiar em você.
— Obrigada. — e me levantei da bancada em um pulo, incrivelmente mais leve por ter contado o episódio com Dominic (mesmo que faltando informações) para minha mãe — Preciso ficar fora hoje à noite, vou ver uns amigos.
Ela mal pareceu se importar, mas eu sabia que estava feliz por eu conseguir pronunciar a palavras ‘amigos’.
— Volte cedo.
— Combinado.
Ella correu em minha direção assim que pisei dentro do celeiro. Suas mechas coloridas estavam presas em uma trança.
— O que aconteceu naquela escola? É verdade que você deu um soco em Dominic?
Bom, não era o assunto que eu queria debater no celeiro hoje, mas eu já esperava por aquilo. Não consegui reprimir a minha careta.
— Eu sou assunto na escola?
A menina balançou as mãos — Cidade grande, você sempre vai ser assunto na escola.
— Isso não me deixa feliz, Ella.
A menina nem se importou — Quero saber de tudo, por favor.
E então eu percebi que todos no celeiro estavam esperando um discurso meu sobre o “surto no corredor” dessa semana. Até mesmo parecia curioso, já sentado em seu bolo de feno cativo.
Respirei fundo antes de começar a falar/me defender.
— Dei uma surtada quando vi gente fofocando de mim na minha frente. Mas antes disso, sim, dei um soco em Dominic. Ele foi desrespeitoso comigo. — e dei de ombros — Duas semanas de detenção, até agora não entendi como não fui suspensa.
Noah suspirou. O boné do dia tinha a escrita ‘BRONX’ em dourado.
— , você é tão…
— Cala a boca.
Olhei para no mesmo momento em que jogou algo no menino. Ele levantou as sobrancelhas.
— Você já era doida assim ou foi a gente que já te estragou?
Seu sorriso era cínico, o que me fez revirar os olhos.
— Eu não sou doida. Essa gente só precisa parar de me perturbar.
Mila me olhava com carinho — É para isso que você tem o celeiro, . Não quer mesmo fazer a noite da reclamação?
Foi a vez de Bronwen revirar os olhos — Ou podemos falar sobre algo que realmente importa.
O silêncio no celeiro foi instantâneo. Eu sabia que ainda não tinha ganhado a afeição de Bronwen, e sabia que ela “estava de olho em mim”, mas aquele comentário pareceu bem maldoso até mesmo para ela. Todos mantiveram uma expressão esquisita até que a menina deu de ombros e saiu reclamando em direção à nossa empoeirada mesa de bebidas ruins e baratas.
Noah levantou as mãos e apontou para a ruiva, como se fizesse um sinal para indicar que a menina era completamente doida.
— Enfim, se a linda da quiser fazer uma noite da reclamação, estou com bastante assunto.
Mason bagunçou o cabelo do menor, que tentou revidar sem muito sucesso. Mason era praticamente o dobro do seu tamanho.
— Você, Noah, vai ficar na patrulha hoje.
O mais novo abriu a boca. Seu boné grande demais caía de lado.
— Como é que é?
Foi a vez de — Vai logo, Noah.
— Vocês perceberam que eu estava protegendo a , não é?
nem alterou o tom — Vou precisar te colocar lá à força?
O mais novo sustentou o olhar bravo, que se dissipou depois de alguns segundos.
— Isso não está certo! Riley, vem. Vai sobrar para você também.
Franzi o cenho para e Mason — Não achei muito certo também. Querem fazer a noite do mau humor? Eu tenho munição para isso.
Mason revirou os olhos claros e aquilo foi claramente um cópia muito boa de seu melhor amigo. Talvez eles tenham aprendido juntos.
— Noah está em débito com a gente. Tem feito muita merda.
Eu já tinha os meus problemas e sinceramente não queria saber as ‘merdas’ que Noah estava fazendo por aí. Aquela frase de Mason foi o suficiente para que eu deixasse o papo. Mila surgiu do meu lado, pegando em minha mão.
— Vamos conversar só nós duas? Não liga para a Bronwen.
Após conversar com Mila sobre os acontecimentos chatos da vila e receber algumas provocações de Noah, corri para o outro lado do celeiro e me sentei no bolo de feno onde Hayden e Ella jogavam cartas.
O mais alto me chamou a atenção.
— Quer jogar, novata?
Neguei com a cabeça — Não, só preciso ficar um pouco longe do Noah. Tá demais hoje.
Os dois riram ainda prestando atenção nas cartas. Ella, que estava ao meu lado, deu um sorrisinho vitorioso para o amigo. E só então eu reparei que estava a alguns passos atrás de Hayden, onde podia ver todas as suas cartas e fazia gestos silenciosos para Ella vencer. A menina colocou tudo o que tinha na mesa improvisada.
— Eu aposto tudo. Vai encarar?
Hayden coçou a cabeça, mas o seu blefe era claramente destruído pelo sorriso convencido.
— Vamos nessa, baixinha.
Assim que Ella mostrou as cartas, seu sorriso murchou.
— Como que você faz isso?
Eles davam novas cartas enquanto eu ainda observava. Hayden parecia concentrado na contagem enquanto Ella buscava bebidas para os dois.
— E o time de futebol masculino? Já te acharam?
Sua pergunta me surpreendeu pelo tom baixo, coisa que ele nunca usava.
Tive de achar graça — Pelo jeito todos já sabem do meu encontrinho com o bando em um dos corredores.
Hayden sorriu — Alguns são legais, alguns ruins estragam os bons.
Falei sem pensar duas vezes — Aquele Kieran é um babaca.
Sua expressão nem se alterou. Talvez ele achasse o mesmo.
— Falou alguma coisa sem noção para você?
Dei de ombros, vendo Ella e com copos extras nas mãos. Tinha realmente medo de provar aquilo, principalmente vindo dele.
Continuei — Ele estava tirando sarro com os demais e eu respondi que não saio com caipiras.
Ella fez uma careta — Estão falando de quem? Foi por isso o soco em Dominic?
— Não. Falei de Kieran. O capitão do time de futebol.
Respondi de prontidão, vendo Hayden abaixar os olhos para as cartas novamente. sentou ao meu lado com o cenho franzido. Será que eles tinham algum problema com esse garoto? Além do fato de ele ser um babaca, claro. Parecendo quebrar o clima esquisito que ficou e ninguém entendeu, brindou com o meu copo. Dei um pequeno gole, já me arrependendo imediatamente. Não era a pior bebida que já tinha experimentado, mas ainda era ruim e amarga.
Seus olhos encontraram os meus.
— Ninguém de Bourton-on-the-Water chega aos seus pés, cidade grande?
Tudo bem, aquilo era uma provocação, certo? Pelo riso cínico que ele mantinha e pela quantidade de álcool que já estava em meu corpo, eu tinha entendido que, sim, era uma bela de uma provocação. Sério, onde estava o plano para resistir a esse garoto? Precisava de ideias urgente!
Sorri de lado — Não só em Bourton-on-the-Water.
Ele revirou os olhos, mas não parecia bravo — Aceitar o interior é deixar essa soberba de lado também, sabia?
Tive de rir com vontade — Por que você está caindo nas minhas pilhas hoje?
demorou alguns segundos para responder — De novo: você é doida. Vou pegar uma bebida.
— Você já tem uma.
E estava de volta o sorriso mais debochado do mundo.
— Então só vou sair daqui e conversar com outras pessoas mesmo.
E ele realmente conversou como tudo mundo, menos comigo.
Aquilo me lembrava os nossos primeiros encontros e como soltavamos farpas por tudo que é lado. Desde o primeiro dia no celeiro eu já tinha visto de uma forma diferente, como uma pessoa para ter próximo. Não queria e nem iria voltar a ser mal educada com ele. Não queria perder o início daquela amizade por besteira. Mas sentia que ele gostava das nossas briguinhas sem sentido…
Assim que Mila ficou sozinha na mesa improvisada de salgadinhos, aproveitei o raro momento em que Mason se separava de minha amiga.
— Você vai no baile cafona do final de semana?
Mila se virou a minha direção, juntando as mãos com uma expressão que parecia ter saído de um filme de princesas da Disney.
— Ah, ! Você também vai?
Seu look rosa chiclete fazia um contraste com sua pele escura, e eu achava tudo ainda mais fofo com aquelas palavras e reações.
— Ai, Mila. Sinceramente…
— Ah! Como eu pude me esquecer disso, ? Estou com meu vestido há meses no armário só esperando por esse dia. É lindo demais! Você precisa ver.
Fingi animação — É rosa?
Minha amiga pareceu surpresa — Como você sabe?
Tive de rir — Está brincando, né? Você só usa rosa!
Ignorei toda a idealização de princesa de Mila, já que precisava de mais informações daquela bizarrice do interior. Qual seria o limite para Cotswold em parecer um seriado americano de adolescentes? Na cidade grande isso com certeza não ia acontecer.
Quando Mila ia continuar a divagar sobre o baile, chamei sua atenção.
— Mila, foco aqui. Eu preciso usar um vestido longo e dançar valsa com alguém?
A menina respirou fundo, talvez tentando controlar os próximos gritinhos felizes que daria.
— Sim. E sim.
Revirei os olhos no mesmo momento — Qual é? Isso é um seriado americano?
Mila abaixou meus braços, que eu nem tinha percebido levantar durante minha reclamação.
— , é tradição em Cotswold. Todas as vilas vão. Como não temos meninas debutantes o suficiente todos os anos, pela pequena quantidade de pessoas, eles fazem esse baile de caridade anual. — e suspirou, deixando a emoção a levar novamente — Nos vestimos de princesa, dançamos com o nosso par. É incrível, você vai amar!
Minha expressão não era de quem amaria aquela novela forçada.
— Eu não vou amar nada.
— Deixa de ser chata. As famílias escolhem o seu par, é divertido.
Bufei alto — Essa parte eu tenho conhecimento… Isso só pode ser brincadeira. Tenho que arrumar uma boa desculpa aos meus pais.
Seu rosto ficou levemente triste — Poxa, seria ótimo ter você por lá.
— Quem é o seu par?
E ficou ainda mais triste — Um menino do quarto ano…
Uma luz surgiu em minha mente — Você nunca foi com o Mason nessa palhaçada, não é?
Minha amiga negou com a cabeça — Você ainda não entendeu como o conservadorismo aqui é preconceituoso?
Precisei medir as minhas palavras — Eu já entendi que existe muito machismo e sexismo, mas isso sinceramente ainda me espanta, Mila.
Foi a vez dela de dar de ombros — Tento lutar contra, mas…
Fingi pensar por algum momento, de forma bem dramática.
— O que acha de ir com ele esse ano?
Primeiro sua expressão era confusa, mas em alguns segundos sua boca abriu em um ‘o’.
— É você?
Entendia bem o que ela tinha dito. Eu era a “felizarda” que iria com Mason Hunt ao baile anual bizarro.
— Infelizmente sim.
Mila se aproximou de mim como se estivessemos contando um segredo de estado.
— O que você tem em mente?
Depois de muita bebida e de tramar todas com Mila, meu horário de ir embora estava bem próximo. Cutuquei , que pareceu entender de prontidão. Por sorte todos os nossos amigos estavam cansados a ponto de irem embora e aquilo me deu um certo alívio. Eu ainda tinha o espírito da cidade grande. Não podia ser a primeira a ir embora da noite de bebidas.
Ele me olhou engraçado.
— Te levo agora se me responder uma coisa. — concordei sem hesitar — Foi bom dar um soco em Dominic? Não quero nem saber o que ele te disse.
Ri pelo nariz — Melhor do que você possa imaginar.
Mason passava por nós dando um longo ‘tchau’ e o puxei pelo braço antes que fosse embora. Nem ele nem entenderam.
Eu tinha que ser rápida.
— Eu e você no baile cafona. Está sabendo?
Mason coçou a nuca, exatamente como . Será que eles tinham algo diferente entre si além de cor de cabelo e olhos?
Suas palavras saíram tranquilas — Meu pai deve ter interesse no seu. Por isso caímos juntos.
Meu plano com Mila parecia mais vivo ainda — Vou mudar isso, me aguarde.
cumprimentou a todos e fiz o mesmo, vendo todo o nosso grupo de amigos se dissipar na estrada velha demais - e com o mínimo de iluminação.
Andamos poucos metros e um barulho esquisito pareceu sair da bicicleta verde de . O garoto deu um resmungo alto e parou de andar no mesmo momento, colocando os pés no chão para nos equilibrar.
Saltei do quadro da bicicleta, sem entender nada. Examinei sua expressão confusa, que ainda olhava o que estava errado em nosso meio de transporte caipira.
Ele suspirou — Acho que a corrente soltou.
Com o pouco que eu tinha andado de bicicleta na minha infância e vida, sabia que aquilo não era grande coisa se você soubesse colocar de volta.
— O que vamos fazer? Tem como consertar?
— Não. — e deu de ombros, tranquilo até demais — Está muito escuro aqui, posso cortar meu dedo.
Fiz uma careta, ainda olhando para a corrente da bicicleta.
— E estamos longe da vila?
Ainda não sabia a distância que a estrada de terra que dava no celeiro tinha para o centro de Bourton-on-the-Water. deu de ombros novamente, ajeitando a mochila em suas costas.
— Quer apostar uma corrida?
Não queria correr depois de ter bebido tanto e muito menos ver correr e me deixar para trás naquela escuridão toda. Mas aquilo me fez entender que, sim, estávamos longe. Meu corpo murchou no mesmo momento. Tudo o que eu queria era tomar um banho quentinho e deitar na minha cama, até que o mundo parasse de rodar. Eu realmente tinha que me acostumar com bebidas diferentes o mais rápido possível ou teria sérios problemas com esses encontros secretos.
Suspirei alto. Eu não queria brigar com ele e realmente queria muito chegar em casa. Então seguimos a única opção que existia no momento: andar até o centro da vila.
Andamos pela estrada de terra, lado a lado, em silêncio. carregava a bicicleta com as mãos, que pela corrente solta fazia um barulho irritante. E do nada ele para, abre a mochila e tira uma garrafa transparente com um líquido verde demais dentro. Franzi o cenho no mesmo momento.
— Você vai beber mais?
Ele me olhou de soslaio, logo dando um gole direto na garrafa.
— Com ou sem bebida vamos chegar lá no mesmo horário.
Eu duvidava bastante disso, mas deixei passar a provocação que eu tinha na ponta da língua. Estava cansada para brigar e ele parecia estar de muito bom humor (e eu adorava vê-lo assim).
— Tudo bem. Não podemos ligar para alguém?
riu, sacudindo a garrafa — Desde quando nossos telefones pegam aqui na estrada?
Continuamos andando em silêncio, enquanto dava pequenos goles naquele frasco esquisito. O caminho ainda parecia muito longo, já que eu ainda não avistava alguma luz além dos postes velhos e capengas da estradinha de terra.
— Que gosto tem isso?
— Quer provar?
Nós ainda estávamos na saga de procurar alguma bebida que eu não fizesse careta depois de engolir e, como não tinha outra opção naquela estrada abandonada, eu iria seguir os passos de . Beber mais não ia mudar nada. Talvez só diminuísse a minha percepção de tempo e eu assim poderia piscar e acordar em casa, como nos filmes adolescentes.
Se eu já estava na merda, o que seria uma bebida de possível gosto duvidoso?
— Quero, mesmo já me arrependendo disso.
parou de andar e eu fiz o mesmo. Ele virou de frente para mim, talvez já achando graça da cara feia que eu faria depois de tomar aquele líquido realmente duvidoso.
Assim como Astra caindo no rio, tudo aconteceu muito rápido.
deu um gole na garrafa e, em vez de compartilhar ela comigo, colou os seus lábios nos meus.
Aquele gesto pareceu durar muitos minutos. Seus lábios junto aos meus tinha uma sensação que era difícil de explicar. Era quente, doce, frio, azedo e amargo ao mesmo tempo. Nossos lábios permaneceram apenas encostados, como um selinho, enquanto sua mão da garrafa verde tentava me apertar a cintura. Minha reação não existiu e meus olhos permaneceram abertos pelo susto. Os de se mantinham fechados e aquela serenidade fez meu peito transbordar um calor gostoso.
Ele deu um passo para trás e só então eu percebi que não tinha conseguido respirar por todo aquele momento. Um sorriso lindo se formou em seu rosto.
— Tem gosto bom, não é?
Ainda em choque, meus olhos fizeram o contorno de todo o seu rosto. soltou uma risada, provavelmente se deliciando pela minha falta de reação.
Seria mais uma coisa que ele jogaria na minha cara sobre eu não ter curtido tanto a cidade grande assim?
Seu sorriso cresceu e tudo o que eu tinha bebido naquela noite falou mais alto. Mais alto que a indecisão, que o medo, a insegurança ou o pavor de perder todos os amigos que tinha ganhado em poucos dias.
Puxei sua camisa pela gola e nossos lábios estavam colados de novo. Mas agora para um beijo de verdade. Eu precisava sentir aquilo e precisava que fosse ali, naquela estrada esquisita. Só eu e ele. largou a bicicleta de lado e o barulho que ela fez ao cair no chão não pareceu incomodar. Suas mãos agarraram minha cintura e eu já arfava pelo nosso contato. Nosso beijo tinha sintonia, tinha gosto. Minhas mãos envolveram sua nuca e eu sentia seu corpo me puxando para perto cada vez mais.
Quando não havia mais fôlego suas mãos envolveram meu rosto, de forma delicada. Perdi a conta dos segundos em que nossas bocas ficaram apenas coladas, só procurando um contato, sem reação. Nossas respirações batiam no rosto um do outro, em um compasso esquisito. Meus lábios queimavam e minha cabeça girava não só pelo abuso de álcool da noite. Meu coração batia tão forte que eu senti vergonha de ele poder estar ouvindo o barulho. Mesmo gostando daquele momento, com um arrepio em toda a minha pele, eu ainda estava sem reação.
Tinha pensado em várias coisas sobre , sobre o seu jeito e sobre como seria tê-lo de uma forma mais emocional. Mas pensamentos nunca superam ações. E sentir sua boca na minha era algo que eu não tinha me preparado, principalmente para essa noite.
Mantive meus olhos fechados quando senti que ele afastou sua boca. Ouvi novamente a sua risada, porém mais baixa e simpática. Abri os olhos para encontrar aquele mar azul-claro e um sorriso de lado inesquecível. levantou as sobrancelhas, e eu já sabia que faria graça.
— Acho que descobri seu gosto para bebidas.
Continuei mergulhada em seus olhos claros — O que era?
Ele riu um pouco mais, ainda com uma das mãos em meu rosto.
— Licor de menta.
Eu queria rir daquilo, mas um turbilhão de coisas passava em minha cabeça. Minhas palavras saíram sem ao menos pensar.
— Por que me beijou?
Ele me olhou engraçado, se distanciando um pouco.
— Posso fazer a mesma pergunta?
Ajeitei meus cabelos, também dando um passo para trás. Ainda estava com medo de que ele pudesse ouvir o som louco que meu coração fazia.
— Você disse que não precisa de motivos para nada.
deu de ombros — E você deveria fazer o mesmo.
— Por quê?
Seu olhar divertido se perdeu — Te beijei porque eu quis. Achei que…
Eu ia fazer algo inédito, já que Cotswold já vinha mudando minha vida.
— Tudo bem.
— Fácil assim?
Eu ainda me sentia anestesiada pelo momento surpresa — Eu falei para você que tudo na minha vida passa rápido demais.
— Eu me lembro. E eu disse para você aproveitar as coisas que acontecem. — e coçou a nuca, ainda segurando a garrafa de licor de menta — Você deveria querer lembrar apenas do que é mais importante.
fez uma careta e eu pude sentir um grande esforço dele para não soltar alguma grosseria.
Repeti o meu mantra do interior — Tudo bem.
Ele não pareceu muito convencido, mas foi o suficiente para que resgatasse sua bicicleta caída no chão de terra.
Quando íamos começar a andar novamente, naquele clima esquisito pós primeiro beijo, soltou.
— Se você precisa de um motivo… — olhei para seu rosto no mesmo momento. Ele sorriu de lado e eu já me preparei para levar um tapa na cara com suas próximas palavras — Vale para ver que talvez nem em tudo a cidade grande é melhor que o interior.
Se era uma provocação eu não tinha entendido — Não entendi.
Ele olhou para frente, andando com a bicicleta ao seu lado.
— Vi Kyle te beijando na escola.
Faltou ar em meus pulmões novamente — Ele que me beijou…
balançou a cabeça — Tudo bem.
O ‘tudo bem’ dele parecia como o meu e eu não soube o que responder mais.
Meu pulso, batimentos cardíacos e qualquer outra coisa em meu corpo ainda estavam desgovernados. Eu sentia um calor inexplicável, no peito e nas bochechas. Na verdade, eu todas as partes do meu corpo. Ainda sentia meu lábio formigar pelo contato e inesperadamente me vi procurando por mais.
Antes que o puxasse novamente para perto, parei de andar bruscamente. Minha mente trabalhava sem nem pensar.
— Tenho outra pergunta.
parecia estar pronto para jogar alguma pedra em mim.
— Quer provar da garrafa agora?
Ignorei completamente. Eu tinha que aproveitar esse momento com ele, principalmente para arrancar respostas de perguntas que eu teria ao acordar amanhã, sóbria.
— Você só fez isso porque me viu com Kyle?
Ele fez uma careta, parando de andar também.
— Está perguntando se eu te beijei porque fiquei com ciúmes daquele otário?
O “aquele otário” já entregava ciúmes, mas eu não ia estragar o nosso clima.
Ainda queria respostas.
— Sim… Ou me convidou para o celeiro por isso?
— Não. Eu realmente te beijei agora porque quis. — ele disse como se fosse a coisa mais simples da sua noite.
Nos olhamos pelo que pareceu minutos, até que abriu a boca novamente, e eu pude ver que estava sem graça.
— Vem, vamos embora. — ele guardou a garrafa esquisita na mochila, trazendo a bicicleta para si — Prometi ver um filme chato com a Annabelle antes de dormir.
parou na esquina da minha casa, como sempre. Encarei a rua mal iluminada. Meus pais provavelmente me esperavam para dormir. Olhei para ele, sem saber o que fazer a seguir. Era para dizer o “tchau”, o simbólico “te vejo mais tarde” ou a gente ia se beijar de novo? Não sabia como me despedir dele. Um beijo na bochecha, beijo de novela, um aperto de mão…?
Bom, na falta de saber o que fazer, eu fazia besteiras.
— Qual filme você combinou de ver?
A expressão dele se manteve intacta — Algo de princesa.
— Hm… Bom. Mas sem deixar de pensar que nada daquilo é realidade.
Ele pareceu concordar. Minha boca não conseguia se manter calada.
— E a faculdade, tudo certo?
comprimia um sorriso nos lábios e eu me sentia mais ridícula a cada palavra que dizia. E, talvez percebendo minha indecisão do que fazer e como se despedir depois de tudo o que tinha acontecido, ele suspirou alto, com seus olhos claros em mim.
— Vem cá.
O olhei com cautela. Dei um passo a sua direção, sorrindo. Fui puxada pela nuca e logo nossos lábios estavam colados novamente.
Ao nos separamos, seu olhar era o mais tranquilo que já vira. Ele mantinha aquele sorriso lindo no rosto, mas ainda parecia pronto para me dar uma patada.
Suas palavras saíram naturalmente.
— Vou a Londres neste final de semana.
— Compras?
Ele deu de ombros — Pegar umas coisas com o meu pai, inclusive as últimas latas de tinta para vocês.
Aquilo sim era uma notícia boa. Nos últimos dias o pai de , Rory, tinha conseguido algumas cores para nós, com extrema rapidez. Mas, como a casa nova era desnecessariamente grande, ainda faltavam duas latas para pintar o restante dos cômodos que ainda estavam no branco total.
— Ótima notícia. Vou avisar meu pai.
Ele coçou a nuca, afastando sua mão de meu rosto — Você quer ir?
A ideia de ir a Londres ainda era tentadora, principalmente quando eu tinha decidido ficar no interior. Tive que me controlar para não gaguejar.
— Ir a Londres?
afirmou — Sim. Já que você não conhece mesmo.
Não sabia explicar o que estava sentindo e muito menos como aquelas palavras saíram com tanta confiança da minha boca. Não conhecia a cidade grande mais próxima daquela roça e, para a minha surpresa pessoal… Eu não queria conhecer.
— Não, obrigada.
— Não quer conhecer Londres? A cidade grande mais próxima aqui da roça?
Foi a minha vez de deixar para lá — Não quero conhecer Londres agora.
se deu por vencido, provavelmente sem paciência para insistir (coisa que eu duvidava que ele faria) ou me questionar.
— Tudo bem. A gente se vê mais tarde, certo?
Ainda intoxicada com a proximidade, mal consegui responder.
— Certo.
Seus olhos claros demais foram a última coisa que vi antes de receber seus lábios coladinhos nos meus novamente.
Deitada em minha cama, olhando para o teto, milhões de coisas pairavam em minha mente. Kyle, o baile esquisito, a ajuda que eu daria a Mila, o soco dado em Dominic, o álcool que estragaria meu fígado em alguns anos e aquele beijo que tinha roubado de mim e que eu, claramente, tinha devolvido com uma vontade que nem sabia que tinha.
Eu não queria, mas me sentia nas nuvens. Como em tão pouco tempo eu podia me sentir animada daquele jeito?
Respirei fundo, tentando dispersar ao máximo aquela animação. As imagens do soco, das meninas no corredor, dos bilhetes sacanas… Tudo voltou como um tapa. Eu tinha os meus amigos, tinha me beijando “porque quis”. Tudo estava certo, só faltava o novo posicionamento pessoal que eu tinha decidido erguer.
No dia seguinte sabia que iria ouvir bastante de meu pai sobre a detenção, mas depois de um dia tão louco, mal me importava. Realmente não queria e nem seria a garota problema da região, mas, se tinha algumas meninas se escorando na minha loucura para se libertar um pouco, eu ia extravasar o que via acontecer na cidade grande.
Peguei o celular e abri nas últimas mensagens de Bree, respondendo sem pensar duas vezes.
* : Não estou chateada. Sinto falta de vocês.
* : Principalmente de você.
* : Hoje soquei um menino na escola, pode considerar isso em sua homenagem.
Sorri sincero ao reler aquelas palavras. Que dia louco…
Mas, se eu já era cotada como a louca da região, tudo bem, o papel seria meu.
Com e os demais tudo daria certo.
Capítulo 8 - Dúvidas
“Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar.” (William Shakespeare)
Na cadeira que estava sentada no fundo da sala, eu tinha uma visão completa de quantas e quais pessoas estavam sofrendo ali junto comigo. Nunca tinha feito algo passível a detenção na escola e aquela era uma das muitas experiências doidas que o interior iria me proporcionar.
Vasculhei o cômodo com os olhos. Adolescentes de todas as idades pareciam entediados em suas cadeiras, prontos para correr quando o sinal tocasse. Uma pena que ainda faltavam quase duas horas para que sentissem o doce gosto da liberdade novamente.
Eu estava tranquila, mesmo que me sentisse completamente envergonhada de fazer parte daquele grupo. Precisava controlar meus sentimentos, que aparentemente estavam enlouquecidos desde que cheguei em Bourton-on-the-Water. Não podia ser esse tipo de garota que nunca fui… Não era um problema e não queria ser. Esse seria o meu novo mantra, além do “tudo bem”.
À direita do quadro branco estava Zara Ward, chefe da comissão estudantil de direitos humanos e, bem, minha orientadora na escola e na detenção. Ao lado dela, minha amiga, Mila, que também fazia parte da comissão. Tomando a frente estava a psicóloga da The Cotswold School, Silver Williams.
Naquele dia a punição era para um grupo bem especial da escola, sobre agressão. Física, verbal ou psicológica. Ouvimos uma longa palestra de Silver, que eu, particularmente, julguei como interessante depois de alguns minutos. Pelo menos no meio de todo aquele bullying ainda existia alguém correndo contra a maré.
Após quarenta e cinco minutos, Silver perguntava um a um o motivo de estar ali, qual agressão havia feito e como se sentia após o acontecimento. Achava completamente constrangedor, mas os alunos pareciam estar acostumados com esse tipo de abordagem da mulher.
Antes eu pudesse ouvir a explicação de uma menina ruiva do segundo ano, um bilhetinho foi colocado em minha mesa. No mesmo momento em que vi aquele minúsculo papel colorido, meu corpo congelou. Seria ironia demais receber mais um daqueles no meio de uma palestra sobre agressão verbal e psicológica?
Peguei o papel, já respirando fundo ao abrir. Para a minha surpresa, o que estava escrito me fez ficar confusa. “Eu sou Time . Conta comigo”. Olhei para o lado esquerdo e encontrei os olhos escuros de uma menina que, acredito eu, fazia algumas matérias comigo. Ela piscou, como se culpasse pelo bilhete. Sentada à sua frente, uma menina de cabelo curtinho sorriu ao gesticular um “Eu também” sem som.
Mal tive tempo para reagir ao ouvir Silver chamar pelo meu nome.
— ?
Ainda estava atônita pelo bilhete. O que aquilo significava?
Escondi o papel com as mãos, como se aquilo pudesse me dar forças. Silver ainda me olhava esquisito, não muito diferente da expressão que Zara tinha no rosto.
— Estou aqui porque dei um soco em um aluno.
A sala foi tomada por um silêncio excessivo. Silver deu alguns passos à minha direção, ficando no meio dos alunos.
Meus olhos focaram em um dos meninos mais novos, nas cadeiras da frente da sala, que tinham se virado para ouvir os meus motivos de estar ali. Seus cabelos escuros estavam marcados e grudados na cabeça, como se tivesse usado um boné por muitas horas. O que Noah estava fazendo ali? A julgar por seus olhos, entendi que ele sabia muito bem porque eu estava ali, mas também sabia que eu faria muitas perguntas no próximo celeiro.
— E como você se sente sobre isso?
Eu ia falar a verdade — Envergonhada.
A expressão de Zara tornou-se confusa por alguns segundos e aquilo me deixou ainda mais nervosa. Silver acenou com a cabeça, seu semblante extremamente calmo.
— Entendo. É uma boa reação, . — e colocou os braços entrelaçados no peito — O que te fez agir assim com esse aluno?
Ia ser sincera novamente — Dominic disse que eu sou fácil.
Noah olhava diretamente para mim, talvez finalmente entendendo o que tinha rolado no episódio ‘ Delinquente versus Dominic Hindley’.
— Fácil como? — Silver pareceu entender de primeira, mas ainda queria provocar mais respostas.
— Fácil de ficar, beijar, transar, fazer qualquer coisa. Achei um desrespeito, ele não me conhece. E, mesmo se conhecesse, não tem o direito de falar isso.
A psicóloga fez um gesto com a cabeça — Eu concordo com você, , foi uma falta de respeito. Mas a sua atitude não fica menos negativa por isso.
— Eu concordo com você.
Silver se virou para Zara, sua expressão ainda calma demais.
— Por que Dominic não está aqui conosco?
A menina loira franziu o cenho — Porque foi ele quem levou um soco.
— Sim, depois de agredir verbalmente uma aluna. Você não averiguou os dois lados?
Meus lábios se curvaram em um sorriso de forma involuntária. Alguém finalmente estava me defendendo dentro daquela escola! Zara passou as mãos no uniforme, atitude que julguei como uma forma de controlar o seu nervosismo. Ela cochichou algo para Silver e foi o suficiente para que a menina do bilhete, sentada ao meu lado, falasse em voz alta.
— Acho que ele não está aqui porque é homem.
E então a sala da detenção virou uma confusão tão grande que eu me permiti sorrir ainda mais. Mila me repreendia com o olhar, mas eu não conseguia. Aquilo era uma vitória, não era?
A mulher mais velha pedia silêncio, mas aquela frase de impacto da menina do bilhete ainda parecia gritar na sala, levando o restante das garotas presentes à loucura.
Um assobio alto ecoou por todos os cantos.
— Silêncio! Isso aqui ainda é uma detenção para todos. Alguém quer ganhar mais duas semanas no histórico?
Meu sorriso murchou na hora, o que pareceu um grande alívio para Mila. Silver continuou.
— Em minha gestão isso não vai acontecer. Dominic precisa estar aqui no próximo encontro.
Sem nem pensar duas vezes, levantei a mão — Não é necessário.
Seus olhos se comprimiam — É necessário, .
— Não quero estar na mesma sala que ele.
Algumas meninas voltavam a falar em forma de apoio. Silver respirou fundo, pedindo silêncio novamente. Seus olhos pareciam me julgar por algo, mas também pareciam entender o meu pedido. Eu achava sim que Dominic era um babaca e que precisava sofrer alguma punição do mesmo jeito que eu estava sofrendo, mas não o queria ali, naquela mesma sala, por duas semanas. Não sabia do que ele seria capaz para revidar, queria distância máxima do menino ou de qualquer outro amigo dele.
Ela se virou para Zara — Quero que ele receba uma notificação para que os pais assinem. Na próxima, se houver uma próxima, eu mesma lido com isso.
Os ânimos se acalmaram quando chegou a vez de Noah contar o porquê de estar ali perdendo sua tarde livre.
— Colei chicletes na cadeira de uns garotos da minha classe. Eles tiveram que ficar com a bunda suja por dois períodos inteiros.
Todo mundo parecia prender o riso. Silver respirava fundo novamente. Noah não era o tipo de menino que implicava com outras pessoas e aquilo me deixou desconfortável. No último celeiro e Mason tinham falado que ele andava “fazendo muita merda”. Chicletes na carteira de prováveis valentões não me parecia um grande motivo para estar em débito com os dois.
Após a sessão psicólogo em conjunto, Silver nos deixou nas mãos de Zara e Mila, que tinham a função de nos passar alguma tarefa sobre o que tinha sido ensinado naquela tarde. Me sentia feliz por ter realmente prestado atenção em suas palavras, então poderia fazer rápido o que quer que fosse e ficar livre daquela escola. Já me sentia sufocada e cada vez mais precisava de um longo abraço do meu novo cachorro.
Para a continuação da minha sorte, a tarefa era escrever uma redação com o tema de agressão. Com uma caneta em mãos, já preenchia a folha em branco com algumas palavras até que Zara chamou minha atenção.
— Com exceção de , que fez uma agressão gravíssima. — franzi o cenho sem entender. Parecia uma pegadinha… — , sua redação precisa ter mil palavras.
Abri a boca no mesmo momento — É brincadeira isso?
Pela expressão cínica de Zara, não, não era brincadeira. Mila, ao seu lado, parecia não entender onde a menina queria chegar com aquilo.
— É brincadeira agredir alguém com um soco no rosto?
Quando ia responder, a menina ao meu lado, do bilhete fofo, me cutucou. Entendi que não era a hora de criar uma nova confusão.
Não estava de má vontade para escrever aquela redação ridícula, mas, ao ver que todos já tinham cumprido suas tarefas do dia e ido embora, minha cabeça fervilhou. Só restava eu, Zara e Mila na sala da detenção.
Os olhos de minha amiga se encontraram com os meus. Sua expressão era triste, como se me pedisse desculpas por algo que nem havia feito ainda. Entendi por completo quando Mila abriu a boca.
— Preciso ir, Zara.
A loira concordou — Pode ir, Mila. Eu cuido disso.
Pisquei para minha amiga, como um sinal para dizer “Está tudo bem”. Não sabia se ela tinha entendido, mas mais tarde ligaria para ela.
Assim que Mila fechou a porta, larguei a caneta na mesa de forma dramática, conquistando a atenção de Zara. De repente tudo pareceu mais interessante: o teto branquinho, minhas unhas a fazer, a cadeira à minha frente que tinha a frase “Kieran é um gostoso” gravada a caneta vermelha.
Senti uma vontade imensa de riscar o “gostoso” e colocar “otário”, mas me contive.
— Você não está levando isso a sério.
A voz de Zara preencheu a sala. Seu olhar era cansado e claramente de saco cheio de tudo aquilo, mas eu não ia dar o braço a torcer. Ela tinha começado.
— Estou. — e deu de ombros — Só preciso procurar mais palavras na minha cabeça. Você por acaso tem um dicionário por aí?
Ela pareceu se controlar para não revirar os olhos.
— Falei sério, . Só sai da sala quando acabar.
— Você precisa ficar, não é?
Eu sabia que sim, ela precisava ficar me supervisionando, mas queria que ela mesma ficasse brava com essa lembrança.
Sua expressão era terrivelmente entediada.
— Isso fica no seu registro. Acho que a melhor opção é terminar logo.
— No meu registro? — fiz a melhor cara surpresa que consegui, que se dissipou ao ver Zara confirmar — Não estou nem aí.
— É importante para passar na faculdade. — e deu de ombros, abrindo uma revista e folheando, como se não estivesse com vontade de responder às minhas provocações no momento.
Voltei a escrever, tentando me concentrar ao máximo para que pudesse terminar aquilo o quanto antes. Mas o fato de estar sozinha com Zara deixava minha mente a mil. Era a minha oportunidade para tirar a limpo o jeito esquisito como ela me olhava e procurar respostas para todo aquele ranço que ela projetava em mim.
— Eu fiz algo com você?
Sua expressão se tornou surpresa, mas durou segundos. Logo ela já voltava ao seu estado normal: blasé.
— Escreva sua redação, .
Deixei a caneta na mesa novamente — Só queria entender. Por que disse que não tenho lugar aqui?
— Você deve ter interpretado errado.
Tive de rir — Tem certeza, Zara? E olha que eu minto mal… Essa foi demais.
Eu ainda tinha muitas dúvidas sobre o que Zara queria comigo. Achava que ela implicava comigo, mas era isso mesmo ou ela era simplesmente muito dura com todo mundo?
Seus ombros relaxaram, como se a pose de princesa durona se esvaísse.
— Você não me parece boa influência para a vila.
— Por que existem boatos que eu roubo coisas, não é?
Ela deu de ombros — É muito esquisito a sua família vir morar aqui em Bourton-on-the-Water. — franzi o cenho, o que a fez continuar — Não disse que o seu pai tem um emprego importante em Londres?
— Ele tem.
— E o que está fazendo no interior então?
Respondi com sinceridade — Eu não faço ideia. Sou uma garota normal com um pai importante. Só sigo regras.
Tinha voltado a atenção para o papel e tentava ao máximo forçar meus pensamentos a traduzir em palavras escritas tudo o que eu achava errado sobre o tema, mas as palavras daquela menina não saíam da minha cabeça.
Suspirei alto sem aguentar mais.
— Essa palhaçada aqui pode prejudicar minha aplicação em Oxford?
Zara parecia satisfeita pela primeira vez naquela tarde.
— Provavelmente.
Ótimo. Se alguma faculdade já teria essa redação como histórico meu, faria da melhor forma possível.
Assim que me vi livre de Zara, corri até o final do corredor da saída. Nem queria saber de guardar minhas coisas no armário ou verificar como o debate de Línguas estava rolando naquele exato momento. Precisava sair da The Cotswold School antes que surtasse de novo.
Um grupinho de meninas estava aglomerado no portão de saída e, ao passar por elas, uma gritou “Time ”, sorrindo. Devolvi o sorriso sem nem ao menos entender ainda o que aquilo significava, mas, lá no fundo, sentia que podia ser o começo de algo bom. Estava conseguindo fazer alguma mudança boa dentro daquele lugar horrível, então estava feliz mesmo com as consequências. Era a primeira vez que tinha apoio dentro da escola e não iria deixar isso de lado.
Tinha vivido alguns dias da tortura chamada detenção.
Zara continuava me pedindo coisas extrapoladas ao resto da turma, porque, em suas palavras, “minha infração era gravíssima”. Eu ainda me sentia envergonhada pelo soco em Dominic, mas não arrependida.
Será que meu histórico manchado da The Cotswold School seria mesmo um problema para entrar em Oxford ou também mesmo na... Universidade de Nova Iorque? Sacudi a cabeça tentando me livrar daquele pensamento. Não era o momento para sofrer por aquilo.
O grande dia do baile beneficente tinha chegado e mamãe estava nas nuvens. Assim que entrei no seu quarto, reparei em uma dezena de vestidos diferentes espalhados pela cama, cômoda e poltrona. Alguém estava realmente animada.
Me joguei no tapete felpudo, sendo acompanhada por Astra, que tinha me seguido pela casa toda. Era uma manhã super cedo de sábado, mas eu não conseguia dormir mais.
Mamãe reparou em nossa cena enquanto o cachorro tentava furtivamente comer um pedacinho de vestido na ponta da cama. Puxei seu focinho antes que fosse tarde demais.
— O que vocês querem? — mamãe se olhava no espelho provando os vestidos por cima do corpo, sem nem ao menos os vestir — Qual você prefere?
Pisquei algumas vezes — O vermelho.
Ela sorriu — Mas é claro que é o vermelho.
Era a minha cor preferida, fazer o quê.
— Mãe, acho que não me sinto bem. — virei de barriga para cima e o cachorro me acompanhou, talvez achando que era uma nova brincadeira — Meu cabelo está péssimo, não me sinto bem para sair. — minha mãe mal se afetou com minhas palavras, ainda provando os vestidos. Bufei alto — Estou de detenção na escola, não devia me divertir.
Minha mãe riu — Se você não quer ir, isso deveria ser a sua detenção.
— Mãe!
Levantei do chão, sentando na ponta da cama. Mamãe era do mesmo tamanho que eu e seus cabelos curtos a faziam parecer muito mais jovem do que realmente era. Sua expressão era feliz e eu não queria estragar aquilo, mas também não queria ir ao baile. Já tinha me desdobrado para negar educadamente o convite de Kyle (com uma mensagem de texto fofa) e existia o plano de colocar Mila e Mason juntos que precisava dar certo.
Foi pensando nisso que chamei sua atenção novamente, de forma séria. Iria contar a verdade e torcer para que funcionasse.
— Tenho uma amiga aqui que gosto bastante. — minha mãe se virou, interessada, deixando um dos vestidos na poltrona próxima — Ela adora esse baile e qualquer outra cafonice da região. — revirei os olhos pensando em Mila com um lindo vestido bufante e rosa — E o par que vocês me arranjaram é namorado dela.
A expressão de mamãe era completamente surpresa.
— Eu perguntei se ele tinha uma namorada.
Estava focada na verdade — Ninguém sabe que eles são namorados. É um segredo…
Suas sobrancelhas se uniram — Como assim, minha filha?
Contei brevemente a história de Mila e Mason. Diferente dos adolescentes comuns, eu tinha uma ligação incrível com os meus pais. Contava tudo, me expressava, reclamava, pedia e buscava ajuda. Não tinha vergonha de sair com eles, muito pelo contrário, até preferia. Minha mãe era uma das pessoas que eu mais confiava na vida, sabia que o segredo estava seguro.
Quando contei do meu plano, um sorriso enorme preencheu seus lábios.
— E o par da sua amiga? Como fica?
O plano era perfeito. O par de Mila odiava aquilo e também queria uma desculpa para não ir. Ele iria fingir uma gripe forte e estava tudo certo.
Mamãe concordou ao ouvir minha explicação, parecendo pensar em mil coisas. Eu sabia qual seria o próximo questionamento.
— E qual é a sua desculpa para deixar o menino sem par?
Dei de ombros — Estou de detenção, lembra? É a minha carta especial “meus pais não deixaram”.
Com certeza a família de Mason correria para longe da nossa ao saber que eu tinha socado o nariz perfeitinho de Dominic.
Enquanto mamãe escolhia os sapatos e acessórios que mais combinavam com o seu vestido (o vermelho, aliás), conversávamos sobre os meus novos amigos e alguns pontos da escola. Tinha falado mais sobre Mila e como gostaria que ela fosse em nossa casa para que meus pais a conhecessem. Falei das atividades extras que fazia na escola e como tinha aprendido a fazer muffin de banana ou debater com adolescentes ricos sobre a pobreza no mundo.
Minha mãe parecia realmente interessada e aquilo só fazia com que eu falasse ainda mais. Até que, com a língua soltinha, toquei várias vezes no único nome que me dava um calor só de pronunciar.
Ela arqueou os ombros — E esse que tanto fala?
Falei da maneira mais casual possível — Ele é filho do dono do mercado.
O sorrisinho em seus lábios indicava que ela tinha achado aquilo bem suspeito, mas sobre isso eu não falaria. Por enquanto…
Ainda tinha a lembrança do beijo de em meus lábios e aquilo me deixava louca. Sentia como se fosse uma lembrança gostosa, era difícil enxergar aquilo como realidade ainda. Balancei a cabeça para afastar aqueles mil pensamentos, meu coração já acelerado.
— Vai ser a mulher mais linda, mãe. — ela me olhava com carinho — Posso contar com você?
Suas mãos alcançaram as minhas — No próximo quero você conosco.
Pisquei meu olho direito — Obrigada, vou avisar Mason.
* : Tudo certo, plano correndo perfeitamente! Boa sorte.
Saí do quarto já digitando no celular. Astra correu ao meu lado, quase tropeçando em suas patinhas. Assim que desci as escadas de madeira, meu pai me recebeu com um sorriso caloroso nos lábios. Ele estava no meio da sala semi bagunçada com fios e muitos cabos brancos. Parecia que havia feito uma descoberta incrível, pois eu podia sentir o alívio ao segurar um de seus muitos dispositivos eletrônicos sobre o peito.
— Tenho novidades! — e ele virou a grande tela do tablet em minha direção. Ignorando o fundo de tela do Angry Birds, percebi o sinal completo no canto superior. A internet fazia parte de nossa vida novamente — Temos internet!
Meu celular vibrou em minhas mãos antes mesmo de papai conseguir me entregar a senha do wi-fi.
* Mason Hunt: Dando início à parte dois! ;)
Confesso que não senti os sintomas de abstinência que eu pensava o tempo todo antes de vir para Cotswolds, pois mal senti falta da conexão com o mundo inteiro. Mas ter internet em casa novamente significava que eu finalmente poderia rever, ler e escrever os meus e-mails. Parece até um pouco antiquado, já que vivemos na era de Facebook, Messenger e Whatsapp, mas eu ainda era fã das mensagens longas. Na verdade, eu até mesmo usava o sistema de cartas por correio mesmo, mas isso apenas com meu irmão mais velho, Arthur. Já tinha internet no celular, mas era muito limitado. Deixava apenas para mensagens rápidas, como as que trocava com Mila e .
Corri novamente escadas acima, encontrando meu notebook na escrivaninha do quarto. Conectei a internet já com o coração batendo forte, e indo direto para a minha querida conta de e-mail. Mesmo com a internet precária do celular (achava que nem 3G pegava naquele chip), tinha evitado ao máximo abrir os e-mails, pois sabia bem o que me esperava.
Observei três com o mesmo remetente. Logan. E mais dez de minha grande amiga de Nova Iorque, Bree. Todos de muitas semanas atrás, provavelmente quando cheguei à vila.
Parece covarde, mas preferi abrir os de Bree primeiro, para deixar a dor maior por último. Sabia que não era nada ruim, já que tínhamos conversado por mensagens nas últimas semanas. De dez, nove mensagens eram perguntando, em capslock excessivo, onde eu havia me enfiado. Eu havia comunicado que iria para Cotswolds, mas acho que, como eu, Bree não conseguiu compreender o quão diferente as coisas eram nessa parte da Inglaterra. Mas o primeiro e-mail me chamou atenção. Não era apenas perguntando se eu estava viva.
De: Bree Anderson
! Como você está?
A seu pedido, estou escrevendo um e-mail só (e as palavras com todos os caracteres necessários!) porque sei o quanto você gosta de cartas longas. Como não faço ideia do seu novo endereço, vamos por meio eletrônico mesmo.
Acho que você já chegou à Inglaterra. Como é o nome do lugar mesmo da vez? Só lembro de você dizer algo sobre Cotswolds pelo telefone, é isso mesmo? Enfim, espero que esteja tudo bem e que você faça muitos amigos como aqui em Nova Iorque, mas não vá esperando que todos sejam tão legais quanto eu ou o pessoal, porque você sabe que é impossível. Posso adicionar risadas nas cartas bem escritas? Se você me permite: hahahaha. (Quando a risada for muito boa eu peço permissão pro capslock!)
Aqui na cidade as coisas estão bem. Último ano começando e já aquela bagunça total. A única coisa que a escola sabe dizer é sobre a tão esperada formatura. A galera também está muito bem. Encontrei seu irmão em nossa lanchonete preferida (aquela do milk-shake sensacional que nos engordou três quilos) e ele parecia muito feliz com uma menina ruiva. Senti uma pontinha de ciúmes, acontece.
Bom, então é isso. Espero notícias suas assim que possível! Seu celular continua fora de área, então espero um contato por aqui mesmo. E, ah, responde o Logan, por favor. Acho que ele pode ter um colapso nervoso a qualquer momento pelo seu sumiço. E eu não aguentaria perder outro amigo.
Eu sei que sempre digo isso, mas foi ótimo poder te ver na França. Já sinto saudades. Quando vou poder me aproveitar de hospedagem gratuita na Inglaterra?
Fica bem, estou aqui sempre, mesmo que seja do outro lado do oceano.
Te amo,
(Sua melhor amiga para sempre) Bree.
Em todo aquele e-mail lindo, a única coisa que realmente me afetou foi “responde o Logan, por favor”. Toda vez que eu recebia algum contato dele era a mesma reação. Coração na boca, mãos suando e um desespero ridículo por não poder fazer nada. Exatamente por estar, como Bree mesma disse, a um oceano de distância.
Era exatamente aquilo que tinha evitado desde que chegara em Bourton-on-the-Water. Sabia que Logan não iria mandar mensagens comuns e nem ligar, pois ele estava devidamente bloqueado em meu celular após o nosso término em Paris. Mas também sabia muito bem que minha caixa de e-mails estaria preenchida com o nome dele.
Depois de enrolar quase meia hora indo buscar coisas que não existiam na geladeira, resolvi me sentar novamente em frente a grande tela e encarar a realidade. Eu precisava ver o que ele havia escrito e, mais importante de tudo, precisava respondê-lo.
De: Logan Hills
,
Estou aqui dentro dessa sala de aula idiota, apenas pensando no que você deve estar fazendo aí pela Inglaterra. Quando fiquei sabendo da sua nova mudança, mal soube como me comportar. Me desculpe por isso, se puder.
As coisas por aqui vão bem. As garotas loucas não param de falar na formatura que está longe demais para que eu me preocupe. Afinal, como você sempre dizia, roupas para homens são bem mais fáceis, já que vamos vestidos iguais! Sinto falta do seu humor estranho. Quando chegar mais próximo, espero poder te convidar formalmente para ser meu par.
Te visitar na França foi um mix de sentimentos. Espero que seja bem-vindo na Inglaterra, porque não gostaria de ter que me controlar para não pegar o primeiro voo para aí quando me desse mais vontade do que sempre.
Me responde assim que puder, preciso saber se está tudo bem em sua nova casa. Nem seu irmão recebe notícias há semanas. Se o seu silêncio é porque eu reagi mal, eu sinto muito. Só preciso das suas palavras novamente.
Ainda espero pelo dia em que você possa voltar para o país que realmente foi a sua casa. Precisamos conversar.
Com amor,
Logan
Ainda tinha boas lembranças com Logan, mas, na França, tinha decidido que era a hora de seguir em frente. Não era um relacionamento saudável e muito menos com futuro, só muito sofrimento do meu lado.
Estar longe da cidade grande e fora da minha zona de conforto já fazia com que meus olhos se abrissem um pouco. Não entendia mais o que sentia pelo menino, só sentia que precisava seguir com a minha vida. Me libertar mais, assim como estava conseguindo fazer na vila de Bourton-on-the-Water. O fantasma desse relacionamento não podia assombrar qualquer coisa que eu pudesse ter na vila, inclusive com .
Minhas mãos tremiam até demais com todas aquelas palavras. Respirei fundo, fechando o computador às pressas.
Após o almoço e de assistir alguns filmes velhos demais na TV, lá iam meus pais perfeitamente vestidos para o evento anual de caridade da região bucólica de Cotswolds. Já achava Bourton-on-the-Water muito perfeita, mas aquele evento era demais, tanto que parecia até mesmo falso e muito estranho. Meus pais obviamente não pensavam o mesmo, mas aquela sensação esquisita não saía da minha cabeça.
Com eles fora, alcancei a coleira de Astra, preparando o cachorro para um passeio. Não era uma surpresa, mas a vila parecia completamente vazia. Astra cheirava todas as construções de pedra, plantas e terra pelo nosso caminho.
Na região do “centro comercial”, tinha apenas um estabelecimento aberto. Tive de rir sozinha. estava ali, simplesmente varrendo a entrada do mercado. Era uma imagem linda e esquisita ao mesmo tempo. Bourton-on-the-Water estava vazia e ele de plantão na loja?
Me aproximei reparando nele, que estava completamente absorto em sua tarefa. A lembrança do beijo me fez arrepiar novamente.
— Sabe que todos da vila estão naquele baile estranho, né?
Ele me olhou com os olhos comprimidos, talvez pela claridade de sol momentânea da Inglaterra. Seus lábios contornaram um sorriso, ainda varrendo as pedras do chão escuro.
— Estou entediado.
Olhei novamente em volta — Acho que só sobrou nós dois aqui. — meu cachorro latiu para uma folha — E Astra.
riu, fazendo um carinho na cabeça do cachorro.
— Parece suficiente para mim.
Me sentei no degrau da calçada, sendo acompanhada por Astra. deu de ombros, deixando a vassoura de lado e sentando-se ao meu lado. O cachorro, nada bobo, deitou aos seus pés.
Respirei fundo o ar nada poluído de Veneza da Inglaterra.
— Por que não foi? — o olhei de soslaio. Já esperava um pouco que não fosse ao baile, mas queria respostas — Também de saco cheia dessa coisa perfeita?
— O baile é para arrecadar fundos para os mais necessitados. — concordei, esperando-o continuar. Incrivelmente seu sotaque caipira parecia ainda mais carregado — Faço parte disso. O que eu teria para doar?
Franzi o cenho, um pouco incomodada com a sua resposta. Sabia que tinha bolsa na escola e que seu pai tinha perdido grandes lojas, mas ainda era esquisito ouvir aquilo dele.
Seria errado enchê-lo de beijos para que seu dia ficasse melhor? Sorri sozinha, afastando aquele pensamento.
— Se te serve de consolo, esses bailes nem são grande coisa assim.
— Annabelle e meu pai foram.
Tentei não parecer surpresa — Minha mãe escolheu o melhor vestido do armário.
Ele riu — Annabelle gosta dessas coisas. E meu pai vai por pressão dos Ward.
Fiz um barulho com a boca, observando alguns passarinhos bebendo água no rio Windrush.
— Você não ia a Londres?
Ele balançou os cabelos com uma das mãos. Estavam ainda mais desgrenhados que sempre. Seria errado achar isso ainda mais bonito?
Eu precisava de ajuda.
— Só amanhã. Preciso do meu pai para buscar tudo.
Novamente soltei aquele barulho esquisito com a boca. Os passarinhos agora estavam brigando por um pedaço de pão velho.
— Bourton-on-the-Water inteira está fora da vila, então?
Ele imitou meu barulho — Isso.
— Posso saber o que você faz aqui varrendo a calçada?
Ele finalmente me olhou nos olhos — Já te disse: tédio. O que você está fazendo pelo centro da vila?
— Astra é a minha desculpa. — dei de ombros — Sua vez, mas agora tenta um pouco mais.
Ele revirou os olhos claros, mas não parecia aborrecido. Pelo contrário.
— Não sou uma pessoa que gosta de ficar em casa.
— Todo mundo gosta de ficar em casa.
Foi a vez dele dar de ombros — Eu não.
Ficamos naquele clima confortável por algum tempo, até que Astra latiu para os passarinhos do rio. Aquilo fez acordar.
— Não vou mais fingir que tem turista por aqui. Só estou gastando luz... — e coçou a nuca — Quer ir fazer algo? — e logo franziu a testa — Meu pai levou a caminhonete, então temos que reduzir para algo em Bourton-on-the-Water.
Tive de rir — Parece bom para mim.
Ele comprimiu os olhos, se levantando da calçada.
— Está sendo sarcástica, cidade grande?
— De verdade, não.
Ele relaxou, passando as mãos na calça jeans que vestia. Me pediu alguns minutos para fechar o mercado. Enquanto o esperava, me permiti analisar novamente a vila, que estava realmente vazia. Era esquisito e ao mesmo tempo relaxante não ver ninguém andando pelas ruas, mini pontes ou qualquer outro lugar. O gramado verde próximo ao rio Windrush parecia ainda mais brilhante e tinha algumas flores coloridas caídas das muitas árvores. Os passarinhos ainda tomavam água e se banhavam no rio, piando sem parar uma sinfonia esquisita e agradável.
Eu odiava ter que confessar que estava começando a gostar de verdade daquele lugar. Eu podia andar a noite, sozinha, sem preocupações. Podia até mesmo me perder sem medo. E toda essa segurança com o combo de uma natureza perfeita e preservada, há apenas duas horas de uma das mais importantes cidades do mundo, Londres.
Ainda me sentia nervosa por ter decidido não conhecer Londres. Mas sorria ao pensar em meus motivos.
Tirei o celular do bolso, que vibrava loucamente. Franzi o cenho ao entender o que estava acontecendo com aquele aparelho. Tinham me incluído em um grupo de mensagens.
* Noah Singh: O que é isso?
* Hayden King: Achei mais fácil usar um pouco de tecnologia e deixar todos juntos.
* Ella Bennett: Ai, gente! Isso é demais!!!
* Noah Singh: está todo mundo aqui?
* Hayden King: sim, por quê?
* Noah Singh: eu tenho o celular da , então? Que dia ótimo!
Um grupo do celeiro. Sorri ao mandar minha resposta.
* : Eu adorei. E @Noah, não me ligue, por favor.
fechou a porta do mercado com uma grande chave, logo vindo à nossa direção. Ele tinha deixado o avental cinza de lado e agora vestia uma jaqueta jeans aberta.
— O que quer fazer? — e deu de ombros — Andar de bicicleta, ir para o celeiro…
Ver a vila vazia ainda me tocava — Ou podemos ficar aqui mesmo.
Ele sentou novamente ao meu lado — Para quem odeia esse lugar…
— Aceitando o interior de braços abertos, lembra?
Conversamos sobre amenidades como se nos conhecêssemos há anos. E aquilo era tão bom… Ainda estava nervosa pelo último encontro que tivemos e todos aqueles beijos regados a bebidas baratas.
falava sobre algo com certa animação e eu me dava a liberdade de contornar todo o seu rosto com os meus olhos. Seus cabelos estavam bagunçados como sempre, com aqueles quase cachinhos nas pontas. era um garoto normal de dezoito anos, mas, aos meus olhos, ele era incrível.
Eu me sentia tão bem, com tão bom humor, que nem mesmo tinha vergonha de o analisar tão de perto. Era a primeira vez que conseguia ficar ao seu lado, tranquila, sem mais ninguém.
Assim como tinha decidido aproveitar o interior e viver sem precisar de “por quês”, tinha decidido que precisava aproveitar estar tão próximo dele, sem distrações ou dúvidas.
— O que foi? — ele sorria, mas parecia um pouco constrangido pelos meus olhares.
— Seus olhos. — arqueou as sobrancelhas — São azuis demais.
“Azuis demais” de uma forma muito positiva, não como Zara teimava em falar do meu casaco.
— Hm… — ele parecia não saber como reagir aquilo. Comprimiu os olhos claros, me olhando de lado — Seu cabelo… É loiro demais.
— Você sabe que não é meu. É tintura. Isso aí seu é natural.
— Tanto faz, é bonito de qualquer jeito.
E então eu gargalhei. Ele sorriu junto, mas ainda tinha um grande ponto de interrogação na cara.
— O que tem nessa vila hoje? Você e eu de bom humor.
— Não preciso ter bom humor para falar que você é bonita, .
Eu estava pronta para falar do nosso beijo e confirmar que não tinha sido um truque da minha cabeça, quando meu celular voltou a vibrar demais, e percebendo que o de fazia o mesmo já respondi sua possível dúvida.
— É o grupo que Hayden fez.
* Ella Bennett: como que está o baile??
* Noah Singh: uma bela bosta.
* Riley Hunt: uma bela bosta x2
* Bronwen Wilkinson-Johnson: como que sai desse grupo?
* Noah Singh: @, se liga nesse link aqui.
Era um link com destino ao Facebook. Antes que pudesse clicar, mais uma mensagem.
* Noah Singh: Eu sou 100% Time !!!!
Aquilo era exatamente o que a menina na detenção tinha falado para mim. lia as mensagens em seu celular, provavelmente sem entender nada como eu.
* : O que é isso?
* Noah Singh: O grupo de Facebook ou o nosso grupo do celeiro?
Vi revirar os olhos antes de responder.
* : Isso de Time .
* Noah Singh: Tá rodeando a donzela até no nosso grupo, ?
* Riley Hunt: é um grupo no Facebook para a .
me olhou com o cenho franzido. Meu coração acelerou de um jeito louco.
— Ai meu Deus.
Cliquei no link e apareceu em minha tela o início de um grupo fechado de Facebook, com o título sendo exatamente “Time - The Cotswold School”. Minhas mãos tremiam. abaixou o meu telefone, fazendo com que eu o olhasse.
— O que está acontecendo?
— Eu não faço ideia.
* : mais explicações, Noah. Estão falando mal dela nisso?
* Ella Bennett: é um grupo de apoio! agora tem seguidores na escola.
* Noah Singh: são adoradores da linda, maravilhosa, , meu querido amigo .
— Bom, você tem um grupo na internet. Será que já tem memes?
Minha expressão não estava nada boa, o que fez deixar de lado aquele sorrisinho cínico de segundos atrás. Ele fez um gesto como se pedisse uma explicação para aquela bizarrice de grupo de Facebook.
— Implicam comigo na escola. Me mandaram bilhetinhos na última semana.
— Bilhetes?
Concordei, continuando — No dia da confusão com Dominic, deixaram dois bilhetes no meu armário. Um deles dizia para que eu voltasse para o lugar de onde vim, outro tinha uma notícia de jornal com um papel escrito à mão. A notícia era algo sobre pessoas que possuem mais de um parceiro sexual são consideradas com problemas psicológicos. — ele parecia surpreso — No bilhete me chamavam de vadia, alguma coisa assim, não me lembro muito.
Eu não queria confessar a que lembrava exatamente cada palavra que tinham escrito naqueles papéis, para não parecer tão abalada quanto tinha ficado. Sua expressão era indecifrável e incrivelmente seus olhos ficaram um pouco mais escuros.
— Vai fazer algo sobre isso?
Não tinha contado a ninguém ainda sobre o meu plano de revidar e parecia a melhor pessoa para ouvir em primeira mão.
— Gostaria de revidar. — ele fez um gesto com a cabeça — Você acha que eu consigo?
— Você é forte. — suas palavras saíram com tanta normalidade que eu consegui acreditar naquilo.
Eu era forte?
Depois do fatídico episódio com Dominic na escola e agora sabendo que existia um grupo de apoio na internet…. Me sentia confusa e estranhamente confiante. Como nunca tinha me sentido antes. Aquilo era uma prova para mim de que as minhas ações poderiam sim fazer alguma diferença naquele lugar maldoso, e também me apontavam que eu não estava sozinha.
— Me sinto confusa. Forte e com medo ao mesmo tempo. Nunca passei por isso.
— Mais uma experiência que só o interior te proporcionou.
Sorri ao lembrar que já tinha pensado sobre isso. riu com vontade ao perceber minha cara.
Ele continuou, um pouco mais sério.
— Se me permite, tenho um conselho para você. — e revirou os olhos antes de continuar — Já fui o centro das atenções das fofocas e boatos quando era mais novo, então você pode acreditar em minhas palavras. — se a vila pegava pesado comigo, que mal tinha chegado, imaginava que já pudesse ter passado por coisas parecidas. Só não conseguia ter a certeza se foi por causa do abandono de sua mãe ou pelo término de namoro com Zara Ward — Mantenha a cabeça erguida, se agarre aos seus amigos e sempre pense antes de fazer qualquer coisa.
Aquilo era novo e interessante. Sua voz preencheu minha mente novamente.
— Nós dois sabemos que você não vai ficar para sempre aqui na vila. — de repente um gosto amargo atingiu minha boca. Eu sabia, sim, mas era difícil pensar naquilo, principalmente (e finalmente) me sentindo confortável e bem naquele lugar antiquado e bonito — Mas as pessoas aqui são influentes. Têm alguns que não podemos mexer.
O gosto amargo se intensificava.
— Você acha errado o que fiz com Dominic?
— Acho, . — e então fez uma careta — Mas acho que você também está certa em revidar. Não sei o que ele te fez, mas…
O interrompi — Disse que eu era fácil.
Ele riu daquele jeito debochado, talvez tentando amenizar a nossa conversa.
— Você, fácil? , você é a pessoa mais difícil que já conheci em dezoito anos. — ele continuou rindo, mas logo abanou o ar — Eu entendi, fique tranquila. Você fez certo em revidar, mas pense antes de fazer algo grande contra.
Me assustava que alguma besteira que eu fizesse em Cotswolds pudesse me prejudicar fora dali, principalmente na cidade grande. Ainda não sabia o que queria fazer de faculdade e nem onde estaríamos no próximo ano, mas não me sentia bem só de imaginar um fantasma como aquele me acompanhando.
Minha expressão provavelmente era bem apavorada, pois pegou em minha bochecha, fazendo um carinho.
— Você está bem? — sua voz saiu um pouco mais rouca que o normal.
Suspirei com seu toque, a lembrança dos nossos beijos voltando com tudo.
— Nunca tinha sofrido bullying na vida, então parece um pouco irreal ainda. — seus olhos estavam grudados nos meus — Mas eu tenho meus novos amigos, tenho o celeiro secreto. Tenho Astra, meus pais e essa linda vila de quatro mil habitantes. — consegui arrancar um mini sorriso de sua dura expressão — E tenho seu sotaque caipira demais. Estou bem.
Foi a vez dele de suspirar, como se tivesse muitas coisas para falar, mas preferiu ficar em silêncio. Infelizmente era um problema que não seria resolvido do dia para a noite, mas que, com a força que eu estava ganhando, conseguiria fazer passar.
Sem pensar muito as palavras já saíam da minha boca.
— Não se importa mesmo de ser visto comigo aqui na vila?
Era a mesma pergunta que tinha feito para Mila na escola, se ela não se importava de estar próxima à garota problema da região. olhou ao redor e depois encontrou meus olhos. Seu sotaque parecia ainda mais carregado naquela tarde.
— Não estou nem aí. — e sorriu de com o canto da boca — Mesmo se estivesse tudo lotado.
Foi impossível não sorrir junto. E foi impossível também conter a vontade que tomava o meu corpo desde que tinha o visto varrer aquela calçada.
— Legal.
Puxei delicadamente pela camisa, aproximando nossos rostos. O sorriso que ele deu foi o suficiente para que nossas bocas se colassem novamente, em um beijo gostoso. Eu fazia aquilo com vontade e com pouco pudor, o que deixava meu coração batendo forte. Seus lábios incrivelmente tinham a mesma mistura de sabores como naquela noite e eu não pude deixar de sorrir em meio ao nosso beijo.
Quando nos separamos, aquele molde lindo ainda estava em seu rosto e eu me sentia ainda mais a vontade com ele.
— Se eu soubesse que você não se importa também, tinha feito isso bem antes. — meu sorriso se alargou. esticou as pernas por cima de Astra — O que eu vou dizer pode fazer com que você queira me bater, mas… — ele esperou alguns segundos por uma reação minha. Tentei controlar o riso — Já te acho parte da vila.
Eu entendia suas palavras tortas. Até mesmo para mim já parecia meses e meses de Cotswolds. Era esquisito, mas me sentia parte daquele lugar bizarro.
Ia manter o clima bom entre nós.
— Mesmo sem saber muita coisa sobre mim?
Ele deu de ombros — Quer se apresentar de novo, cidade grande?
— Muito obrigada. — fiz um gesto exagerado — Então, sobre mim. — e então uma pausa dramática — Meu nome é , tenho dezessete anos…
Ele me cortou — Muito engraçado.
— ...Meus olhos são da cor…
— Coisas não tão óbvias, implicante. — e aquele sorriso debochado dos nossos primeiros encontros estava de volta.
Sorri ao pensar que “implicante” era melhor que “delinquente”.
Fui interrompida novamente — Treze casas diferentes, né?
— Sim. — não era o melhor assunto que eu tinha sobre mim, mas entendia a curiosidade de sempre — Tenho duas cidadanias. — parecia surpreso — Americana e brasileira, que foi onde nasci.
— Brasileira? Legal. Como que fala o seu nome em português?
Achei graça de sua pergunta, mas pronunciei “” com um sotaque diferente. Ele parecia impressionado.
— Seu nome também tem um sotaque diferente no Brasil. Tem muitos “” por lá.
— É mesmo? Fala pra mim.
Pronunciei o seu nome da forma como faria dentro do Brasil. fez uma careta engraçada.
— Vamos manter o sotaque inglês, por favor.
Tive de rir — O que mais quer saber?
Ele levantou os ombros — Não sei, o que quer contar?
Eu podia ter várias coisas novas e não tão interessantes para falar com , mas a verdade era que a única coisa que eu queria era aproveitar aquele momento de paz com ele. Aproveitar sua proximidade, seus olhos colados nos meus…
Parecendo entender, sorriu.
— Vem cá.
Ele era além de um plano de escape. Era companhia, amizade. Não queria e nem precisava de um namorado, já que tínhamos data de validade naquela vida. era um extra bom e eu estava decidida em deixar tudo aquilo rolar.
Depois de muitas conversas bobas e beijos com sabor de tudo, o sol já tinha ido embora quando recebi a mensagem de Mila.
* Mila Hughes: Todos ficaram chocados. Foi lindo! Obrigada, . Foi o melhor dia da minha vida!!
Não tinha dúvidas alguma que aquilo era o que eu precisava (além do beijo de ) para ter o melhor dia em meses.