Parte III — The Catcher In the Rye
Capítulo 31 — This is how I disappear
And if you could talk to me, tell me if it's so that all the good girls go to heaven...
A casa amanheceu vazia. era a única, deitada em seu quarto. Abraçava seus joelhos.
Não havia ninguém lá além de múltiplas imagens de ela mesma.
Espelhos. Eles nascem quando você menos precisa deles.
O maior monstro que pode lhe fazer ter medo vive em você.
Não negue. Você está vivendo o lado escuro da lua.
Você é seu escudo e a espada.
Você segura a arma, e também puxa o gatilho.
Seu próprio tiro pela culatra.
Principalmente, é assim que você desaparece.
Você morre quando quem a ama a esquece. A morte física é um fato, e a morte sentimental é a verdadeira dor.
Tudo seria melhor se você pudesse apenas dormir.
As roupas. São mais importantes do que parece.
Sempre as mesmas.
A dor de uma perda pode ser facilmente substituída pela revolta.
Elas se misturam.
A manhã em Longview costuma aparecer cinzenta, mas, naquele dia, estava clara. A chuva fora tão forte que limpara tudo.
Um novo dia, um novo trabalho.
Onze da manhã.
— ? Bom dia! Amanheceu bem?
— ! Bom dia. Sim, a manhã começou ótima. Está tudo bem? O que houve?
— Te conto mais tarde. Falou com Marla sobre o motivo de ter sido detido?
— Você não vai acreditar, porque eu mesmo não acreditei. O zelador do nosso prédio foi até a delegacia e disse que estava fazendo a limpeza geral da lixeira, e encontrou algo que tinha ficado no latão, porque não estava em um saco, então, foi para o fundo: uma faca com sangue seco. Isso é considerado prova do crime, se o exame der positivo. O resultado deve sair hoje à tarde. Como eu tinha meu álibi com você e com , acho que era a única alternativa.
— Mas...?
— Mas isso foi prova plantada! — estava completamente descrente, como sua voz deixava óbvio — Marla disse que ele deixou a faca nas coisas da festa e se livrou dela aqui, mas que pessoa, em sã consciência, que tenha acabado de cometer um assassinato, jogaria a arma em sua própria lixeira e banhada com o sangue da vítima?
— Deixe-me adivinhar: Marla não comprou sua ideia.
— Lógico que não. Arma do crime é arma do crime. Se o resultado der positivo e não dermos um jeito de tirar de lá até amanhã, ele vai estar bem fodido.
— E a faca encontrada no lixo da delegacia?
— Consideraram essa uma pista implantada. Dada a arma como encontrada, não procuraríamos por outra. Aquela estava limpa porque não foi usada. Entupiram aquilo com luminol: nada. Na minha opinião, as duas foram implantadas.
— Vamos dar um jeito, já tenho uma ideia do que fazer. Mas, antes, queria lhe perguntar algo.
Olhava, ao seu lado, a caderneta de . Os espelhos tinham textos e mais textos, palavras soltas, mas pareciam vazios.
Não havia nada realmente escrito. Nada que ela pudesse ler. Nada além do clássico 2531613532363-92.
— Pode falar.
— Você falou uma vez sobre quem estava na festa de Halloween. Eu estava pensando nisso. Pode me responder uma coisa?
— Posso tentar... — a voz de era vaga, como se ele estivesse ocupado e prestando pouca atenção na ligação.
— Tinha alguma criança por lá?
Ele fez uma pausa.
— Uma criança? Acho que tinha sim. Tinha um menininho, gordinho. Devia ter uns cinco, seis anos.
— O nome dele era Georgie?
— Não sei. Acho que ele era filho daquela policial... Qual é mesmo o nome dela?
— Dayse?
— Sim, acho que sim. Por quê?
Passou as mãos pelos cabelos.
2531613532363-92
, .
.
?
— Já está na delegacia?
— Estou, .
— Dayse já chegou?
— Sim... Estou com um mau pressentimento.
— Ok, já estou indo aí. Quer almoçar no centro?
— Me encontre no Norton’s. Meio dia. Eu te amo.
— Sim, te vejo lá. Também te amo.
Desligou o telefone. Olhou para a cama.
Vazia.
O espelho.
Vazio.
Dizer ‘eu te amo’ parecia errado. Não a quem era dita a frase, mas sim a situação.
não morrera. também não. Eles só estavam um tempo fora, só estariam o dia inteiro trabalhando. Não poderiam estar mortos. Não, em hipótese alguma.
Não mais um. Não outras pessoas que amava.
Conferiu o relógio. Tomou um banho rápido e saiu apressada, vestindo calças compridas jeans e uma blusa de mangas compridas creme. Tinha também um casaco verde e um cachecol marrom.
Olhou-se no espelho e viu algo.
Ramona.
O Iluminado.
A pior parte era que, conforme acontecera com , não se lembrava de ter feito aquilo. De ter ameaçado .
Tinha Ramona como ídola. E, quando ela fora embora de sua casa, percebeu que tinha ganhado uma inimiga.
O Norton’s era um restaurante com estilo de lanchonete dos anos 50. Muito popular entre os jovens de Longview, mas, na hora do almoço, costumava ter adultos, que eram bem mais silenciosos. Quando chegou no espaço, tirou seu casaco e empurrou-o até o canto do banco da mesa que escolheu.
Uma mesa relativamente grande, com dois bancos que ficavam frente a frente. Olhou no relógio, e se atrasara dez minutos.
Olhou para a televisão. Nada além do que costumavam passar: tragédias, tragédias e tragédias. E um guia de viagens para o próximo feriado.
A mídia sobrevive das tragédias. Ele sabia disso, que sua carreira lucrava das mortes e dos escândalos. Não houve nada grave essa semana? Então, falemos mais dos acidentes de semana passada. Mas vamos colocar uma pesquisa bem-humorada para quebrar o clima de enterro.
A beleza da mídia.
O sino da lanchonete soou. Quando olhou para a porta de vidro, entrava no lugar, procurando por ele, seus olhos viajando. Quando o encontrou, encaminhou-se com um pequeno sorriso até ele, dando um leve beijo em seus lábios antes de se sentar.
— E sua amiga?
.
.
— Está bem. Podemos falar disso mais tarde?
Ele comprimiu os lábios, enquanto uma garçonete loira e sorridente caminhava até a mesa.
— Desejam algo para beber? — ela perguntou, servindo-lhes o cardápio.
— Vou pedir quando o almoço vier, obrigada — disse, gentil — ?
— O mesmo — quando a moça ia se retirar, a chamou — Ah, e pode trazer mais dois pratos e dois pares de talheres? Obrigada!
A moça assentiu e se foi. franziu o cenho.
— Teremos companhia?
comprimiu os lábios, e arqueou as sobrancelhas.
— Espero que não se importe. Estou fora da minha sala de trabalho, tive que improvisar.
Nesse momento, o sino soou novamente. Uma mulher, morena, entrou no lugar com seu filho, um menininho de seis anos, gordinho e rosa. não soube o que falar: permaneceu boquiaberto por alguns segundos.
— Você não fez isso...
— Chamá-los para a minha casa não seria a melhor ideia. Achei que em um lugar público fosse melhor.
— Por quê? Para Dayse não perder o controle ao ver você interrogando o filho dela de seis anos?
— Não. Para eu mesma não perder o controle.
Dayse chegou sorrindo na mesa de , vendo-a de frente para a porta. Quando reconheceu , o sorriso ficou amarelo e seu rosto tomou um tom envergonhado de vermelho.
— Espero não estar atrapalhando nada...
O menino tinha cabelos muito negros, e olhos bem azuis. Parecia mais gordinho nas fotos, mas era, inegavelmente, a criatura mais fofa que já pisou na Terra.
— Sem problemas, Dayse. Fui eu quem lhe convidou. E você deve ser o Georgie — cumprimentou-o, usando seu melhor sorriso, e erguendo a palma de sua mão. O menino bateu, rindo.
— Você também é da polícia? Tem muita moça na polícia?
— Somos muitas, Georgie. E sua mãe é uma ótima policial.
— Ela pega muito homem mau?
trocou um olhar cúmplice com Dayse.
— Muitos. E me ajuda também.
Georgie deu uma olhada para , que também estendeu a palma de sua mão para o menino. Bateu também.
— Seu namorado também é da polícia?
e trocaram um breve olhar.
— Não, não sou da polícia — respondeu — Mas escrevo sobre casos de polícia, sobre todos os homens maus sendo presos.
— Você prende os homens maus?
— Hum... — olhou para Dayse, que escondia tanto o riso quanto ele — Não, mas eu mostro para todo mundo que eles estão presos.
— Deve ser chato.
Todos riram.
— É meio chato sim. Mas você conhece o Sherlock Holmes?
— Conheço sim! Você é que nem o Watson? — perguntou Georgie, sentando-se no banco ao lado de . Dayse ocupou o lugar ao lado de .
— É, mais ou menos...
— Nossa, moço — Georgie comentou — Por que você tem um trabalho tão chato, num trabalho tão legal?
Riram novamente, quando a garçonete se aproximou e todos fizeram seus pedidos. Durante a refeição, houve algumas piadas, conversas ordinárias, até que Georgie pediu para sua mãe se poderia ir tentar pegar um bicho de pelúcia na máquina do restaurante.
— Eu vou com ele, Dayse. Sem problemas — disse, se levantando ao mesmo tempo que o menino. A policial e tinham engatado uma longa conversa acerca dos livros de Agatha Christie, e não queria atrapalhar. Georgie foi, com uma nota de um dólar, saltitante, até a máquina, com atrás. Era um pouco longe da mesa onde eles estavam, uma máquina com uma garra controlada pelo jogador para pegar um bichinho de pelúcia.
— Você é bom nisso?
— Sou sim, eu sempre pego um bicho grandão quando vou num parque ‘pra brincar — Georgie respondeu, colocando a nota de um dólar na máquina.
— Georgie, eu não o vi no dia da festa de Halloween na delegacia?
— Não lembro — ele respondeu, parecendo mais concentrado no jogo do que na pergunta de — Acho que não vi você. De que você ‘tava?
— Eu usava um vestido branco, e sapatos prateados.
— Não lembro... Eu fui de Super-Homem. Ele é o melhor super-herói do mundo.
não ia engatar uma discussão com um menino de seis anos sobre como o Batman era o melhor super-herói do mundo, então, manteve o foco.
— Tinha muita fantasia boa por lá. Mas tinham umas bem estranhas, não tinham, Georgie?
A garra descia, mirando em um dinossauro verde.
— Ah, tinham sim. Tinha gente que usava fantasia com mancha vermelha, que nem de sangue.
— Você viu alguém com uma roupa que tinha sangue? Algum homem, de repente? Com uma fantasia estranha?
A garra tentou pegar o dinossauro, mas não conseguiu. Voltou ao seu posto inicial, e o menino fez um bico triste, derrotado.
— Tinha gente com roupa assim. Um homem, acho. Vamos voltar ‘pra mesa?
deu uma olhada para a máquina, e pegou em seu bolso uma nota de um dólar. Colocou na máquina, e posicionou-se para começar a jogar.
— Você se lembra bem dessa pessoa? Onde você a viu?
— Ele estava andando por aí, e estava bebendo alguma coisa.
— Usava um casaco?
— Não, não era um casaco.
Sua teoria do casaco para ocultar o sangue caiu por terra, mas ainda tinha uma outra, tão boa quando.
A garra começou a se mover.
— Eu subi as escadas para o último andar, e fui procurar o tesouro atrás de você e dos seus amigos. Mas fui para outra sala. Me escondi atrás da porta, e vi-o descer correndo as escadas e ir ‘pro banheiro. E ele ‘tava com a blusa suja.
parecia concentrada no jogo.
Interrogar uma criança era a coisa mais confiável de seu trabalho. Crianças não costumam enxergar o que há de errado, quando são tão novas. Então, dizem exatamente o que viram.
Sem fantasias.
— As luzes apagadas?
— Sim. Ele trancou a porta de onde vocês estavam, e depois foi mexer na janelinha na parede, em cima das escadas. Em uns interruptores.
A caixa de energia. Perto do terraço.
No último andar da delegacia, havia uma porta que levava a dois lances de escada, até o terraço. Tal porta permanecera fechada durante a festa, no momento da brincadeira, indicando que não havia nada a ser procurado por lá. A caixa de energia ficava entre esses lances.
— Ele acendia e apagava, e não te viu?
— Eu me escondi, mas conseguia ver. Ele acho que estava preocupado demais ‘pra me ver ali. Ele apagou as luzes, brincando de piscar, e subiu de novo, depois que alguém gritou e ele deixou tudo no escuro de novo.
— O terraço não estava fechado?
— Estava com a porta fechada, mas não tinham trancado. O corredor estava vazio, acho, quando eu o vi lá.
O assassino abriu a porta para o terraço.
Tinha um encontro marcado com a vítima.
Eles se conheciam.
Uma oportunidade. Colegas.
O assassino marcara o encontro, ou a vítima? Isso importa?
— Então, ninguém deveria ter visto essa pessoa por lá?
Georgie não falou nada, temendo que tivesse dito algo que não devesse.
— Não sei. Mamãe não vai gostar de saber que estou falando disso. Quando ela disse que uma coisa ruim aconteceu, achei melhor não falar ‘pra ninguém o que eu vi.
Georgie viu o assassino.
A garra segurou o dinossauro de pelúcia.
— E depois?
— Eu fui embora. Fiquei com medo. Desci logo.
O dinossauro desceu por um tubo transparente, e Georgie abaixou-se para pegá-lo.
— Vai contar isso ‘pra minha mãe?
— Sobre o que você me contou?
— Não. Que foi você quem pegou o dinossauro.
sorriu.
— Não. Se você não quiser, não conto.
Georgie abraçou o dinossauro, enquanto erguia o canto do lábio.
Uma criança é o par de olhos mais inocentes que você poderá encontrar, se ela não for corrompida pelo mundo que a cerca.
O mundo é um lugar terrível, mas só depois que você completar uns doze anos.
— Quando eu crescer, quero ser da polícia que nem você.
— Acho que você consegue pensar em algo melhor.
e Georgie voltaram para a mesa, e e Dayse ainda tentavam decidir o melhor livro da Agatha Christie.
— Fui humilhado por um menino de seis anos. Nunca passei por isso.
riu, enquanto os dois andavam na rua. O frio ainda era forte, e o Natal estava cada vez mais próximo.
— Mas o Georgie é um garoto esperto.
— Vocês passaram tempo demais na máquina. Algo me diz que não foi tentando pegar o dinossauro.
Ela comprimiu os lábios, enquanto ele colocava a mão em sua cintura, abraçando-a de lado.
— Uma criança? Tem certeza?
— Se ele estiver falando a verdade, já é quase caso encerrado.
— Do Halloween?
— Do próprio.
— E aposto que você não quer falar do assunto.
— Você me conhece de verdade.
riu. Ambos pararam, no fim da rua.
— Nesse caso, acho que você volta para casa. Te vejo amanhã? Ou mais tarde?
— Quem sabe?
Ficou na ponta dos pés para dar um leve beijo nos lábios de . Quando ele virou de costas, ela sentiu seu coração apertar.
Como naquele mesmo dia, quando se conheceram. Ele se foi, e ela indo para .
Só que não havia mais . Não é saudável se prender a uma memória tão ruim.
Acorde.
, há coisas que eu tenho feito que você jamais deveria saber.
Se não for agir cedo, sabe que não vai agir. Não há ‘antes tarde do que nunca’. Porque sempre será nunca.
Substituir uma memória por um fato era o saudável, mas forçar seu coração a esquecer era difícil demais.
— ! — chamou, e o jornalista olhou para trás. hesitou, mas alguns segundos depois, completou — Você quer passar lá em casa? Para um café.
Café. Pois sim.
Na casa de , havia vários espelhos nas paredes. Tinham coisas escritas, palavras soltas que ele não conseguia compreender.
Muitas coisas, que só faziam sentido na mente de .
Um campo minado, talvez um labirinto. Ou uma lagoa tão clara que você desconfia do óbvio.
O iluminado.
A iluminada.
sentia-se escoltado para uma sala em que inúmeras armas eram apontadas em sua direção. Na noite em que tivera problemas, pareceu um escorregão.
Já tinha lido sobre aquilo antes. Pessoas com doenças de personalidade, que confundem quem realmente são sob circunstâncias.
era o alarme.
— Seu método de trabalho?
— Meu mais novo método de trabalho — ela corrigiu, referindo-se aos espelhos.
Eu quero te ajudar, mas isso parece perigoso demais para mim.
Quero ficar aqui, mas não sei se devo.
Só poderá haver um, .
— Sabe que, não importa o que você descubra, eles não vão lhe ouvir.
— Precisam. Se eu estiver certa.
serviu o café para . Ele aceitou, bebendo alguns goles.
Estão assistindo.
A paranoia é a semente da epidemia.
— Não vai me dizer ainda?
— Por enquanto, não. Mas queria lhe dizer outra coisa.
— Sim?
sentou-se à mesa, com à sua frente.
— O que aconteceu antes de ontem... O Iluminado.
— O que tem?
— Eu não me lembro disso.
franziu o cenho, em susto. Não falara nada sobre o assunto porque não queria, de modo algum, forçá-la. Mas, de fato, tivera medo nas últimas ocasiões.
Ela parecia estar bem, entretanto.
— Como assim não se lembra?
— Eu não sei, simplesmente não me lembro.
— Isso já aconteceu antes?
— Sim. Fui ver algumas vezes e nem sempre me lembro do que fiz lá.
— Como assim? As coisas apenas se apagam?
— Algo em mim se anula nesse momento.
— Será que é um momento em que você está agindo como sua amiga Ramona? Pode ser um tipo crescente de distúrbio de personalidade. Precisamos consultar um médico, .
Ela passou as mãos pela caneca. Trabalhar com cadáveres e assassinatos pode fazer muito mal à sua mente.
Quais são as coisas que te prendem à sanidade?
— Onde você viu Ramona pela última vez?
riu. Olhava para a caneca com o olhar entristecido.
— No inferno, talvez.
— , eu vou te ajudar. Não precisa ficar assim. Vou marcar um médico para você. Amanhã de manhã vamos ao hospital, e podemos ter certeza do que aconteceu. Mas precisa me dizer onde Ramona está. Ela pode ser perigosa.
— Ela não é.
— ...
virou os olhos.
— Não sei onde ela está. Ela foi embora. Mas logo deve voltar... Ela não tem onde ficar.
— Me deixe sabendo quando isso acontecer.
— , isso não é tudo — ergueu o olhar, como se o interrompesse — Eu nunca me preocupei muito em relação ao Joe. À festa em que Joe me... Joe me...
— Sei qual a festa em questão.
— Eu nunca tratei isso como todos tratam. Porque também não lembro.
O rosto de se contorcia cada vez mais em uma careta de quem não entendia nada.
— Eu não lembro dessa noite, porque, até onde me lembro, entrei naquele quarto dopada, mas acordada. Eu sabia o que fazia.
Parou por um instante.
— Não fui estuprada por Joe Durden. Eu queria aquilo. Mas não parecia.
não respondeu. Não sabia se estava certa.
— Vou marcar um médico para você. Se quiser, posso ir para casa.
— Não. Quero que você fique.
Os espelhos a cortavam, imóveis, porque, quando tudo se equilibra, falta pouco para ruir.
— Se as coisas se apagam, há algo muito errado.
— Se você falar com sua amiga Ramona é como uma válvula de escape, pode ser que, quando ela não está por perto, essas coisas pioram. Você se sentiu ameaçada quando foi para minha casa.
— Eu quase o matei, — ela arrastou a cadeira para trás, ficando de pé e se distanciando, como se aquilo fosse protegê-lo — Não finja que está tudo bem.
— Te deixar sozinha seria pior, — ele disse, levantando-se também — Você está preocupada demais com seus casos, muitas coisas aconteceram. Se sua amiga se foi, sua única companhia. Sua cabeça não está boa.
— Não me trate como se eu fosse louca — ela falou, arfando, baixo.
— Lógico que não. Assumo que pensei em ligar para autoridades, ontem de manhã. Mas você realmente pareceu fora de si, arrependida. Percebi que te deixar sozinha poderia ser perigoso. E, além do mais, se você voltar para o Manson...
Ela começou a fungar.
.
.
Ramona.
— O que faremos?
— Você não teve problemas desde aquela noite. Ontem, tudo ficou bem. Vamos a um médico amanhã, e depois pensaremos no que fazer.
correu contra , abraçando-o. Como costumava abraçar : o rosto contra seu peito, abraçando-o como se ele fosse uma gigante almofada.
— Não me deixe sozinha, por favor. Se eu não estiver bem, não sei o que posso fazer se ficar sozinha.
Ele abraçou-a em retorno. Não substituiria , jamais.
Mas, na falta do irmão que nunca pôde chamar de seu, precisava de alguém.
E se Ramona foi embora, era porque não precisava mais dela.
— Eu não vou a lugar algum, .
Fique. Eu preciso de você.
Assinando seu atestado de óbito, naquele momento.
Sou um fantasma, eu não posso mais te ferir.
O sutil toque de acariciava sua pele, e estava deitada em seu ombro, na cama de seu quarto.
— Não queria colocá-lo nisso tudo.
Ele sorriu reconfortante.
— Se estou aqui até agora, não vou sair.
A luz do banheiro estava acesa, na suíte. O vapor d’água fervente tomava conta do quarto, quando virou o rosto para ele.
— Passe a noite aqui.
Era impossível dizer que não hesitou. Sim, ele temia o que poderia acontecer, porque era humano. Mas não queria ter que deixá-la.
É triste ver a pessoa que você ama se destruir, cair aos pedaços, bem na sua frente, e você não poder fazer nada.
beijou sua testa, acariciando a nuca de .
— Vou estar lhe esperando.
se levantou e foi para o banheiro. Fechou a porta, no momento em que deitou-se na cama e olhou para o teto.
Queria poder dizer que não, mas estava com medo.
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O banheiro estava cheio de vapor, quando terminou o banho e encarou sua face no espelho. Ela sumiu pouco depois, novamente.
Sem ou .
É assim que eu desapareço.
A culpa lhe consome porque você fingiu que não a viu.
Poderei ver todos eles no paraíso?
Não se engane.
As portas não se abrirão para mim.
Estava contra as portas.
Secou o corpo, e envolveu-se na toalha, quando voltou para o quarto.
continuava deitado na cama. Ela ajeitou o cabelo, colocando-o para o lado. Deu um pequeno sorriso.
É bom saber que você ainda está aqui.
Caminhou até a cama, deitando ao lado de .
— Hey — ela chamou. Parecendo estar prestanto atenção no teto, ele olhou para ela.
— Vai querer dormir agora?
não usava sua camisa, e nem parecia fazer menção de se levantar.
Nem precisava.
— De jeito nenhum — disse, com um sorriso lascivo.
Inclinou o rosto para perto de , beijando-o lentamente. Ele abraçou seu corpo coberto, puxando-a levemente, e fazendo-a subir em seu colo. envolveu-o com suas pernas, e pouco depois, despiu-o e vestiu-o.
Dê-me o show. Estou pagando.
As coxas fortes e nuas de se asseguraram no quadril de , afundando-se nele, e imediatamente, fazendo-o murmurar a sílaba que ela amava ouvir. Seu corpo continuava úmido, contra a pele seca de . As unhas de arranhavam o tronco de , cada vez que ela sentia ele adentrando-a.
Cada movimento era como alcançar voo.
O rosto de deitado no travesseiro, esperando por ela, de olhos fechados e mandíbula caída.
Uma sala sem teto.
Quer ver o quanto eu posso afundar?
Os seios de seguiam seu movimento, enquanto ela estava sentada no colo de , no controle.
O controle, sempre será o controle.
Arranhando-o, liberando a besta.
segurou o quadril de , fazendo-a dançar ao seu ritmo.
Quer ver o quanto eu posso afundar?
Provando a verdade, o controle.
Ela está no controle.
Faça o show.
Você fez coisas de que nunca irá se orgulhar.
Deitando-se no colo de , suas costas acompanhando o movimento lento de seu corpo, contínuo.
Suas asas sobem, seu lado negro cresce.
O lado escuro da lua.
Os ossos de pareciam se desprender, quando ela tomava velocidade e profundidade.
Se está me ouvindo, diga-me se é verdade que todas as garotas boas vão para o paraíso.
Você sabe que não.
Você sabe.
Por fim, ambos alcançam o cume ao mesmo tempo.
Tão longe, tão perto.
A viva entre os mortos.
Além de todo universo.
Quando caiu ao lado de , não tinha fôlego. Precisava de café. De muito café.
Abriu a gaveta do criado mudo e pegou as roupas íntimas que deixava ali. Ficou de pé, rapidamente, vestiu-as e pegou o longo roupão azul-claro e transparente.
— Vai aonde? — ele perguntou, com a voz mole.
— Vou descer rápido. Só... Preciso beber alguma coisa.
— Ok — ele disse, girando e se acomodando na cama — Saiba que não vou mexer um músculo até você voltar.
— Vai me admirar que você estiver acordado até lá.
riu, e pareceu mesmo que ele caiu no sono em seguida.
As luzes se apagaram, devido à forte chuva que continuava tomando a cidade de Longview. desceu as escadas devagar, indo até a cozinha. Pegou um copo, encheu de água e colocou na cafeteira. Pôs o café e esperou.
O que tinha acabado de fazer?
Ignorou completamente a morte de seu melhor amigo, e seu ex-noivo. Agiu como se nada tivesse acontecido.
Olhou para cima, suspirando. Fechou os olhos com força, quando as lágrimas começaram a escorrer.
Era perigosa. Tentara matar , deixara-o com medo.
Não tinha dado a ou a a devida atenção que mereciam.
Perdeu todos. nem sequer trocava palavras com ela.
É comum odiar o final de uma história, quando você não soube escrever o meio.
A chuva caía cada vez mais forte, e chorava.
‘Você é grotesca.’
Os nós de seus dedos ficavam esbranquiçados, quando agarrou-se à mesa.
‘Isso é o melhor que pode me dizer?!’
Um ventre vazio.
‘A dor não ajuda. A dor é guardada, engolida e engasgada.’
Não se culpe, as coisas não são sua culpa.
‘Queime-se aprendendo a controlar o fogo.’
O risco sempre existe. Não fique parada esperando o muro se abaixar, para que você possa passar.
‘A raiva liberta. A raiva trabalha ao seu lado. A raiva é cuspida na cara do seu inimigo.’
Você sabe que perdeu o tiro de largada.
Você sabe.
Ramona era a única coisa que se prendia à , mas desprendeu-se dela.
E agora, você está sozinha.
— , por que você teve que ir, e me deixar sozinha?
Apertou os olhos com força.
— Por que você me deixou, ?
O café ficou pronto.
Podia ver vindo pela porta, com . Podia vê-los dizendo que tudo ficaria bem.
Era um sonho de outro alguém.
Sem base.
Pegou o café, e começou a bebê-lo. Queimava seus lábios, sua língua e sua garganta.
A detonação.
Podia ver Ramona chegando. Podia vê-la.
O melhor de tudo, seu ápice, algo que nunca alcançaria.
O anjo.
.
Joseph Durden, o anjo que subira do inferno.
O inferno é o lugar onde você não tem controle de si.
Naquele instante, era o inferno.
Pegou a caneca vazia e bateu com a porcelana contra a pia, dando um grito agudo quando ela se estilhaçou.
Largou o que restara da louça e passou as mãos freneticamente pelos cabelos.
Eles não vão voltar. Eles estão mortos.
Podia ouvir a voz de Ramona.
Eu sou a loucura.
Venham todos assistir ao show, venham todos.
Ela está louca.
— ! — gritou, do andar de cima.
Encorajo seus sorrisos, espero que você não chore.
O jornalista desceu as escadas correndo, quase tropeçando. Encontrou sentada no chão da cozinha, abraçando seus joelhos.
A voz de Ramona estava ali. insistia, em si mesma, que Ramona não tinha deixado-a.
Eu sou o explosivo, eu sou o detonador, eu sou o inferno.
Eram palavras de Ramona.
Acima de tudo, queria que Ramona voltasse, e dissesse que está tudo bem.
Era uma mulher melhor com Ramona por perto.
— — disse, tentando levantá-la do chão.
Um trovão soou, e abraçou mais ainda suas pernas.
— Eles se foram, . Pode dizer. Não finja que está tudo bem, você sabe que eles se foram — ela murmurou, com a voz carregada.
Seus cabelos estavam bagunçados, quando ela passou uma mão por eles, arranhando seu couro, e chorando mais forte ainda.
Sem você, é assim que eu desapareço.
— Quem se foi, ? — ele perguntou, tentando tirar os cabelos de seu rosto.
Ela ergueu o olhar.
— e . Eles se foram, . Eles se foram para sempre.
A respiração de se tornava mais alta, ajoelhado no chão, próximo de .
Sou um fantasma, não posso mais te ferir.
— ...
— Pode dizer. Pode falar a verdade, pode falar que eles morreram e que nunca mais vão voltar.
Meu mundo está vazio.
— , eu sei que eles... Que eles se foram.
Ela abaixou o rosto. A voz de era chorosa, porque ele percebeu onde estavam.
— Por favor, só me diga por que está fazendo isso agora. Eles se foram há muito tempo, .
ergueu sua face por um momento. Não conseguia fechar a boca, que tremia. As lágrimas não tinham cessado, mas sua mente entrara em curto.
Há muito tempo?
— O quê?
— ... morreu faz semanas. Não sabemos seu assassino. E também. Você sabe disso, . Você sabe que eles já estão mortos. Não usamos os nomes deles nos casos, para não a lembrar disos o tempo todo. Mas essa é a verdade.
Quer ver o quanto eu posso afundar?
Um oceano cada vez mais profundo.
Ver as estrelas do fundo do poço te faz achar que está tudo bem, mas quando se vê o céu claro de tão longe...
— Como assim? Eles morreram ontem. Eles estavam aqui até pouco tempo.
— Onde, ?
— Aqui... — fungou — Em casa... Na nossa casa. Na casa deles. Até semana passada...
— ...
quase começou a chorar.
Não, não é verdade. Isso não está acontecendo.
Não quero ser quem vai lhe contar a verdade, .
O transe.
A ilusão de um paraíso.
Dessa vez, não conseguia conter todas as lágrimas, deixando algumas escaparem:
— Eles estão mortos há semanas.
— Não... Não é possível... Eles estavam...
Ela parou por um momento. Ficou de pé, com imóvel, apenas olhando para ela.
— Não, não é verdade. Eles estavam aqui, eles andaram nesse chão até semana passada!
— Não, ... — soluçava, balançando a cabeça.
— Não minta para mim! — ela gritou, com as mãos tremendo. Mal enxergava com as lágrimas, enquanto corria até a sala. Pegou porta-retratos dela com e , e lançou-os contra os espelhos.
Cada peça sua, destroçada.
— !
Não queria mais aquilo. Queria acordar daquele sonho ruim.
Acorde.
Acorde.
Espelhos quebrados.
agarrou-a pelos braços.
— , pare!
Deja-vu.
Ela ajoelhou-se no chão, com as mãos nos olhos. abraçou-a, com as lágrimas pingando de seu queixo. afundou o rosto no ombro de .
— Salve-me, por favor — ela murmurou — As luzes claras parecem sempre cegas para mim.
Ele foi a única coisa que restou.
Desejou, com todas suas forças, que ele não a deixasse.
Por favor, não desista de mim.
As fotos no chão. e .
Agora, eram mesmo só uma lembrança.
Posso vê-lo deitado perto de mim, com palavras que pensei que nunca diria. Acordada, e sem medo. Adormecida ou morta. ¹
Após meia hora naquela exata posição, perguntou se queria subir, e ela fez que não. Sendo assim, ambos ficaram deitados no sofá. Ele a abraçou, e quando ela caiu no sono, ambos se deitaram, ela sobre seu corpo.
A manhã raiou logo. Eram nove horas quando soou a campainha.
se levantou, depois de apertar seus olhos inchados, e conseguir ficar de pé.
Teve que tomar cuidado, porque os cacos dos espelhos quebrados estavam espalhados. Ainda tinham espelhos na sala, mas pelo menos três se foram.
Foi em direção à porta, respirando fundo. Tinha recebido a caixinha azul, na noite anterior. Agora receberia a chave que a abriria?
Zoe?
Desejou que fosse Ramona.
Quando abriu a porta, não havia ninguém lá. Seu coração murchou, achando que fosse apenas um tipo de pegadinha. O que havia no chão, entretanto, a deixou mais segura:
Um embrulho surrado de alguma camisa velha, branca — que agora estava cinza —, e um bilhete dobrado.
— Quem era? — perguntou.
olhou para fora, e viu um rastro de alguém cruzando a esquina. Alguém loira, jovem, com longos cabelos trançados.
Uma jovem Durden.
sentou-se no chão, e abriu o embrulho. Ali, havia uma pistola e um canivete vermelho.
— Não sei quem era.
Esse tipo de coisa era melhor não ficar sabendo.
O bilhete dizia: ‘está comigo, boneca de papel?’
Zoe.
Esteja comigo de verdade.
¹ — versos da canção Famous Last Words, de My Chemical Romance
And now you wanna see how far down I can sink?
A casa amanheceu vazia. era a única, deitada em seu quarto. Abraçava seus joelhos.
Não havia ninguém lá além de múltiplas imagens de ela mesma.
Espelhos. Eles nascem quando você menos precisa deles.
O maior monstro que pode lhe fazer ter medo vive em você.
Não negue. Você está vivendo o lado escuro da lua.
Você é seu escudo e a espada.
Você segura a arma, e também puxa o gatilho.
Seu próprio tiro pela culatra.
Principalmente, é assim que você desaparece.
Você morre quando quem a ama a esquece. A morte física é um fato, e a morte sentimental é a verdadeira dor.
Tudo seria melhor se você pudesse apenas dormir.
As roupas. São mais importantes do que parece.
Sempre as mesmas.
A dor de uma perda pode ser facilmente substituída pela revolta.
Elas se misturam.
A manhã em Longview costuma aparecer cinzenta, mas, naquele dia, estava clara. A chuva fora tão forte que limpara tudo.
Um novo dia, um novo trabalho.
Onze da manhã.
— ? Bom dia! Amanheceu bem?
— ! Bom dia. Sim, a manhã começou ótima. Está tudo bem? O que houve?
— Te conto mais tarde. Falou com Marla sobre o motivo de ter sido detido?
— Você não vai acreditar, porque eu mesmo não acreditei. O zelador do nosso prédio foi até a delegacia e disse que estava fazendo a limpeza geral da lixeira, e encontrou algo que tinha ficado no latão, porque não estava em um saco, então, foi para o fundo: uma faca com sangue seco. Isso é considerado prova do crime, se o exame der positivo. O resultado deve sair hoje à tarde. Como eu tinha meu álibi com você e com , acho que era a única alternativa.
— Mas...?
— Mas isso foi prova plantada! — estava completamente descrente, como sua voz deixava óbvio — Marla disse que ele deixou a faca nas coisas da festa e se livrou dela aqui, mas que pessoa, em sã consciência, que tenha acabado de cometer um assassinato, jogaria a arma em sua própria lixeira e banhada com o sangue da vítima?
— Deixe-me adivinhar: Marla não comprou sua ideia.
— Lógico que não. Arma do crime é arma do crime. Se o resultado der positivo e não dermos um jeito de tirar de lá até amanhã, ele vai estar bem fodido.
— E a faca encontrada no lixo da delegacia?
— Consideraram essa uma pista implantada. Dada a arma como encontrada, não procuraríamos por outra. Aquela estava limpa porque não foi usada. Entupiram aquilo com luminol: nada. Na minha opinião, as duas foram implantadas.
— Vamos dar um jeito, já tenho uma ideia do que fazer. Mas, antes, queria lhe perguntar algo.
Olhava, ao seu lado, a caderneta de . Os espelhos tinham textos e mais textos, palavras soltas, mas pareciam vazios.
Não havia nada realmente escrito. Nada que ela pudesse ler. Nada além do clássico 2531613532363-92.
— Pode falar.
— Você falou uma vez sobre quem estava na festa de Halloween. Eu estava pensando nisso. Pode me responder uma coisa?
— Posso tentar... — a voz de era vaga, como se ele estivesse ocupado e prestando pouca atenção na ligação.
— Tinha alguma criança por lá?
Ele fez uma pausa.
— Uma criança? Acho que tinha sim. Tinha um menininho, gordinho. Devia ter uns cinco, seis anos.
— O nome dele era Georgie?
— Não sei. Acho que ele era filho daquela policial... Qual é mesmo o nome dela?
— Dayse?
— Sim, acho que sim. Por quê?
Passou as mãos pelos cabelos.
2531613532363-92
, .
.
?
— Já está na delegacia?
— Estou, .
— Dayse já chegou?
— Sim... Estou com um mau pressentimento.
— Ok, já estou indo aí. Quer almoçar no centro?
— Me encontre no Norton’s. Meio dia. Eu te amo.
— Sim, te vejo lá. Também te amo.
Desligou o telefone. Olhou para a cama.
Vazia.
O espelho.
Vazio.
Dizer ‘eu te amo’ parecia errado. Não a quem era dita a frase, mas sim a situação.
não morrera. também não. Eles só estavam um tempo fora, só estariam o dia inteiro trabalhando. Não poderiam estar mortos. Não, em hipótese alguma.
Não mais um. Não outras pessoas que amava.
Conferiu o relógio. Tomou um banho rápido e saiu apressada, vestindo calças compridas jeans e uma blusa de mangas compridas creme. Tinha também um casaco verde e um cachecol marrom.
Olhou-se no espelho e viu algo.
Ramona.
O Iluminado.
A pior parte era que, conforme acontecera com , não se lembrava de ter feito aquilo. De ter ameaçado .
Tinha Ramona como ídola. E, quando ela fora embora de sua casa, percebeu que tinha ganhado uma inimiga.
O Norton’s era um restaurante com estilo de lanchonete dos anos 50. Muito popular entre os jovens de Longview, mas, na hora do almoço, costumava ter adultos, que eram bem mais silenciosos. Quando chegou no espaço, tirou seu casaco e empurrou-o até o canto do banco da mesa que escolheu.
Uma mesa relativamente grande, com dois bancos que ficavam frente a frente. Olhou no relógio, e se atrasara dez minutos.
Olhou para a televisão. Nada além do que costumavam passar: tragédias, tragédias e tragédias. E um guia de viagens para o próximo feriado.
A mídia sobrevive das tragédias. Ele sabia disso, que sua carreira lucrava das mortes e dos escândalos. Não houve nada grave essa semana? Então, falemos mais dos acidentes de semana passada. Mas vamos colocar uma pesquisa bem-humorada para quebrar o clima de enterro.
A beleza da mídia.
O sino da lanchonete soou. Quando olhou para a porta de vidro, entrava no lugar, procurando por ele, seus olhos viajando. Quando o encontrou, encaminhou-se com um pequeno sorriso até ele, dando um leve beijo em seus lábios antes de se sentar.
— E sua amiga?
.
.
— Está bem. Podemos falar disso mais tarde?
Ele comprimiu os lábios, enquanto uma garçonete loira e sorridente caminhava até a mesa.
— Desejam algo para beber? — ela perguntou, servindo-lhes o cardápio.
— Vou pedir quando o almoço vier, obrigada — disse, gentil — ?
— O mesmo — quando a moça ia se retirar, a chamou — Ah, e pode trazer mais dois pratos e dois pares de talheres? Obrigada!
A moça assentiu e se foi. franziu o cenho.
— Teremos companhia?
comprimiu os lábios, e arqueou as sobrancelhas.
— Espero que não se importe. Estou fora da minha sala de trabalho, tive que improvisar.
Nesse momento, o sino soou novamente. Uma mulher, morena, entrou no lugar com seu filho, um menininho de seis anos, gordinho e rosa. não soube o que falar: permaneceu boquiaberto por alguns segundos.
— Você não fez isso...
— Chamá-los para a minha casa não seria a melhor ideia. Achei que em um lugar público fosse melhor.
— Por quê? Para Dayse não perder o controle ao ver você interrogando o filho dela de seis anos?
— Não. Para eu mesma não perder o controle.
Dayse chegou sorrindo na mesa de , vendo-a de frente para a porta. Quando reconheceu , o sorriso ficou amarelo e seu rosto tomou um tom envergonhado de vermelho.
— Espero não estar atrapalhando nada...
O menino tinha cabelos muito negros, e olhos bem azuis. Parecia mais gordinho nas fotos, mas era, inegavelmente, a criatura mais fofa que já pisou na Terra.
— Sem problemas, Dayse. Fui eu quem lhe convidou. E você deve ser o Georgie — cumprimentou-o, usando seu melhor sorriso, e erguendo a palma de sua mão. O menino bateu, rindo.
— Você também é da polícia? Tem muita moça na polícia?
— Somos muitas, Georgie. E sua mãe é uma ótima policial.
— Ela pega muito homem mau?
trocou um olhar cúmplice com Dayse.
— Muitos. E me ajuda também.
Georgie deu uma olhada para , que também estendeu a palma de sua mão para o menino. Bateu também.
— Seu namorado também é da polícia?
e trocaram um breve olhar.
— Não, não sou da polícia — respondeu — Mas escrevo sobre casos de polícia, sobre todos os homens maus sendo presos.
— Você prende os homens maus?
— Hum... — olhou para Dayse, que escondia tanto o riso quanto ele — Não, mas eu mostro para todo mundo que eles estão presos.
— Deve ser chato.
Todos riram.
— É meio chato sim. Mas você conhece o Sherlock Holmes?
— Conheço sim! Você é que nem o Watson? — perguntou Georgie, sentando-se no banco ao lado de . Dayse ocupou o lugar ao lado de .
— É, mais ou menos...
— Nossa, moço — Georgie comentou — Por que você tem um trabalho tão chato, num trabalho tão legal?
Riram novamente, quando a garçonete se aproximou e todos fizeram seus pedidos. Durante a refeição, houve algumas piadas, conversas ordinárias, até que Georgie pediu para sua mãe se poderia ir tentar pegar um bicho de pelúcia na máquina do restaurante.
— Eu vou com ele, Dayse. Sem problemas — disse, se levantando ao mesmo tempo que o menino. A policial e tinham engatado uma longa conversa acerca dos livros de Agatha Christie, e não queria atrapalhar. Georgie foi, com uma nota de um dólar, saltitante, até a máquina, com atrás. Era um pouco longe da mesa onde eles estavam, uma máquina com uma garra controlada pelo jogador para pegar um bichinho de pelúcia.
— Você é bom nisso?
— Sou sim, eu sempre pego um bicho grandão quando vou num parque ‘pra brincar — Georgie respondeu, colocando a nota de um dólar na máquina.
— Georgie, eu não o vi no dia da festa de Halloween na delegacia?
— Não lembro — ele respondeu, parecendo mais concentrado no jogo do que na pergunta de — Acho que não vi você. De que você ‘tava?
— Eu usava um vestido branco, e sapatos prateados.
— Não lembro... Eu fui de Super-Homem. Ele é o melhor super-herói do mundo.
não ia engatar uma discussão com um menino de seis anos sobre como o Batman era o melhor super-herói do mundo, então, manteve o foco.
— Tinha muita fantasia boa por lá. Mas tinham umas bem estranhas, não tinham, Georgie?
A garra descia, mirando em um dinossauro verde.
— Ah, tinham sim. Tinha gente que usava fantasia com mancha vermelha, que nem de sangue.
— Você viu alguém com uma roupa que tinha sangue? Algum homem, de repente? Com uma fantasia estranha?
A garra tentou pegar o dinossauro, mas não conseguiu. Voltou ao seu posto inicial, e o menino fez um bico triste, derrotado.
— Tinha gente com roupa assim. Um homem, acho. Vamos voltar ‘pra mesa?
deu uma olhada para a máquina, e pegou em seu bolso uma nota de um dólar. Colocou na máquina, e posicionou-se para começar a jogar.
— Você se lembra bem dessa pessoa? Onde você a viu?
— Ele estava andando por aí, e estava bebendo alguma coisa.
— Usava um casaco?
— Não, não era um casaco.
Sua teoria do casaco para ocultar o sangue caiu por terra, mas ainda tinha uma outra, tão boa quando.
A garra começou a se mover.
— Eu subi as escadas para o último andar, e fui procurar o tesouro atrás de você e dos seus amigos. Mas fui para outra sala. Me escondi atrás da porta, e vi-o descer correndo as escadas e ir ‘pro banheiro. E ele ‘tava com a blusa suja.
parecia concentrada no jogo.
Interrogar uma criança era a coisa mais confiável de seu trabalho. Crianças não costumam enxergar o que há de errado, quando são tão novas. Então, dizem exatamente o que viram.
Sem fantasias.
— As luzes apagadas?
— Sim. Ele trancou a porta de onde vocês estavam, e depois foi mexer na janelinha na parede, em cima das escadas. Em uns interruptores.
A caixa de energia. Perto do terraço.
No último andar da delegacia, havia uma porta que levava a dois lances de escada, até o terraço. Tal porta permanecera fechada durante a festa, no momento da brincadeira, indicando que não havia nada a ser procurado por lá. A caixa de energia ficava entre esses lances.
— Ele acendia e apagava, e não te viu?
— Eu me escondi, mas conseguia ver. Ele acho que estava preocupado demais ‘pra me ver ali. Ele apagou as luzes, brincando de piscar, e subiu de novo, depois que alguém gritou e ele deixou tudo no escuro de novo.
— O terraço não estava fechado?
— Estava com a porta fechada, mas não tinham trancado. O corredor estava vazio, acho, quando eu o vi lá.
O assassino abriu a porta para o terraço.
Tinha um encontro marcado com a vítima.
Eles se conheciam.
Uma oportunidade. Colegas.
O assassino marcara o encontro, ou a vítima? Isso importa?
— Então, ninguém deveria ter visto essa pessoa por lá?
Georgie não falou nada, temendo que tivesse dito algo que não devesse.
— Não sei. Mamãe não vai gostar de saber que estou falando disso. Quando ela disse que uma coisa ruim aconteceu, achei melhor não falar ‘pra ninguém o que eu vi.
Georgie viu o assassino.
A garra segurou o dinossauro de pelúcia.
— E depois?
— Eu fui embora. Fiquei com medo. Desci logo.
O dinossauro desceu por um tubo transparente, e Georgie abaixou-se para pegá-lo.
— Vai contar isso ‘pra minha mãe?
— Sobre o que você me contou?
— Não. Que foi você quem pegou o dinossauro.
sorriu.
— Não. Se você não quiser, não conto.
Georgie abraçou o dinossauro, enquanto erguia o canto do lábio.
Uma criança é o par de olhos mais inocentes que você poderá encontrar, se ela não for corrompida pelo mundo que a cerca.
O mundo é um lugar terrível, mas só depois que você completar uns doze anos.
— Quando eu crescer, quero ser da polícia que nem você.
— Acho que você consegue pensar em algo melhor.
e Georgie voltaram para a mesa, e e Dayse ainda tentavam decidir o melhor livro da Agatha Christie.
— Fui humilhado por um menino de seis anos. Nunca passei por isso.
riu, enquanto os dois andavam na rua. O frio ainda era forte, e o Natal estava cada vez mais próximo.
— Mas o Georgie é um garoto esperto.
— Vocês passaram tempo demais na máquina. Algo me diz que não foi tentando pegar o dinossauro.
Ela comprimiu os lábios, enquanto ele colocava a mão em sua cintura, abraçando-a de lado.
— Uma criança? Tem certeza?
— Se ele estiver falando a verdade, já é quase caso encerrado.
— Do Halloween?
— Do próprio.
— E aposto que você não quer falar do assunto.
— Você me conhece de verdade.
riu. Ambos pararam, no fim da rua.
— Nesse caso, acho que você volta para casa. Te vejo amanhã? Ou mais tarde?
— Quem sabe?
Ficou na ponta dos pés para dar um leve beijo nos lábios de . Quando ele virou de costas, ela sentiu seu coração apertar.
Como naquele mesmo dia, quando se conheceram. Ele se foi, e ela indo para .
Só que não havia mais . Não é saudável se prender a uma memória tão ruim.
Acorde.
, há coisas que eu tenho feito que você jamais deveria saber.
Se não for agir cedo, sabe que não vai agir. Não há ‘antes tarde do que nunca’. Porque sempre será nunca.
Substituir uma memória por um fato era o saudável, mas forçar seu coração a esquecer era difícil demais.
— ! — chamou, e o jornalista olhou para trás. hesitou, mas alguns segundos depois, completou — Você quer passar lá em casa? Para um café.
Café. Pois sim.
Na casa de , havia vários espelhos nas paredes. Tinham coisas escritas, palavras soltas que ele não conseguia compreender.
Muitas coisas, que só faziam sentido na mente de .
Um campo minado, talvez um labirinto. Ou uma lagoa tão clara que você desconfia do óbvio.
O iluminado.
A iluminada.
sentia-se escoltado para uma sala em que inúmeras armas eram apontadas em sua direção. Na noite em que tivera problemas, pareceu um escorregão.
Já tinha lido sobre aquilo antes. Pessoas com doenças de personalidade, que confundem quem realmente são sob circunstâncias.
era o alarme.
— Seu método de trabalho?
— Meu mais novo método de trabalho — ela corrigiu, referindo-se aos espelhos.
Eu quero te ajudar, mas isso parece perigoso demais para mim.
Quero ficar aqui, mas não sei se devo.
Só poderá haver um, .
— Sabe que, não importa o que você descubra, eles não vão lhe ouvir.
— Precisam. Se eu estiver certa.
serviu o café para . Ele aceitou, bebendo alguns goles.
Estão assistindo.
A paranoia é a semente da epidemia.
— Não vai me dizer ainda?
— Por enquanto, não. Mas queria lhe dizer outra coisa.
— Sim?
sentou-se à mesa, com à sua frente.
— O que aconteceu antes de ontem... O Iluminado.
— O que tem?
— Eu não me lembro disso.
franziu o cenho, em susto. Não falara nada sobre o assunto porque não queria, de modo algum, forçá-la. Mas, de fato, tivera medo nas últimas ocasiões.
Ela parecia estar bem, entretanto.
— Como assim não se lembra?
— Eu não sei, simplesmente não me lembro.
— Isso já aconteceu antes?
— Sim. Fui ver algumas vezes e nem sempre me lembro do que fiz lá.
— Como assim? As coisas apenas se apagam?
— Algo em mim se anula nesse momento.
— Será que é um momento em que você está agindo como sua amiga Ramona? Pode ser um tipo crescente de distúrbio de personalidade. Precisamos consultar um médico, .
Ela passou as mãos pela caneca. Trabalhar com cadáveres e assassinatos pode fazer muito mal à sua mente.
Quais são as coisas que te prendem à sanidade?
— Onde você viu Ramona pela última vez?
riu. Olhava para a caneca com o olhar entristecido.
— No inferno, talvez.
— , eu vou te ajudar. Não precisa ficar assim. Vou marcar um médico para você. Amanhã de manhã vamos ao hospital, e podemos ter certeza do que aconteceu. Mas precisa me dizer onde Ramona está. Ela pode ser perigosa.
— Ela não é.
— ...
virou os olhos.
— Não sei onde ela está. Ela foi embora. Mas logo deve voltar... Ela não tem onde ficar.
— Me deixe sabendo quando isso acontecer.
— , isso não é tudo — ergueu o olhar, como se o interrompesse — Eu nunca me preocupei muito em relação ao Joe. À festa em que Joe me... Joe me...
— Sei qual a festa em questão.
— Eu nunca tratei isso como todos tratam. Porque também não lembro.
O rosto de se contorcia cada vez mais em uma careta de quem não entendia nada.
— Eu não lembro dessa noite, porque, até onde me lembro, entrei naquele quarto dopada, mas acordada. Eu sabia o que fazia.
Parou por um instante.
— Não fui estuprada por Joe Durden. Eu queria aquilo. Mas não parecia.
não respondeu. Não sabia se estava certa.
— Vou marcar um médico para você. Se quiser, posso ir para casa.
— Não. Quero que você fique.
Os espelhos a cortavam, imóveis, porque, quando tudo se equilibra, falta pouco para ruir.
— Se as coisas se apagam, há algo muito errado.
— Se você falar com sua amiga Ramona é como uma válvula de escape, pode ser que, quando ela não está por perto, essas coisas pioram. Você se sentiu ameaçada quando foi para minha casa.
— Eu quase o matei, — ela arrastou a cadeira para trás, ficando de pé e se distanciando, como se aquilo fosse protegê-lo — Não finja que está tudo bem.
— Te deixar sozinha seria pior, — ele disse, levantando-se também — Você está preocupada demais com seus casos, muitas coisas aconteceram. Se sua amiga se foi, sua única companhia. Sua cabeça não está boa.
— Não me trate como se eu fosse louca — ela falou, arfando, baixo.
— Lógico que não. Assumo que pensei em ligar para autoridades, ontem de manhã. Mas você realmente pareceu fora de si, arrependida. Percebi que te deixar sozinha poderia ser perigoso. E, além do mais, se você voltar para o Manson...
Ela começou a fungar.
.
.
Ramona.
— O que faremos?
— Você não teve problemas desde aquela noite. Ontem, tudo ficou bem. Vamos a um médico amanhã, e depois pensaremos no que fazer.
correu contra , abraçando-o. Como costumava abraçar : o rosto contra seu peito, abraçando-o como se ele fosse uma gigante almofada.
— Não me deixe sozinha, por favor. Se eu não estiver bem, não sei o que posso fazer se ficar sozinha.
Ele abraçou-a em retorno. Não substituiria , jamais.
Mas, na falta do irmão que nunca pôde chamar de seu, precisava de alguém.
E se Ramona foi embora, era porque não precisava mais dela.
— Eu não vou a lugar algum, .
Fique. Eu preciso de você.
Assinando seu atestado de óbito, naquele momento.
Sou um fantasma, eu não posso mais te ferir.
O sutil toque de acariciava sua pele, e estava deitada em seu ombro, na cama de seu quarto.
— Não queria colocá-lo nisso tudo.
Ele sorriu reconfortante.
— Se estou aqui até agora, não vou sair.
A luz do banheiro estava acesa, na suíte. O vapor d’água fervente tomava conta do quarto, quando virou o rosto para ele.
— Passe a noite aqui.
Era impossível dizer que não hesitou. Sim, ele temia o que poderia acontecer, porque era humano. Mas não queria ter que deixá-la.
É triste ver a pessoa que você ama se destruir, cair aos pedaços, bem na sua frente, e você não poder fazer nada.
beijou sua testa, acariciando a nuca de .
— Vou estar lhe esperando.
se levantou e foi para o banheiro. Fechou a porta, no momento em que deitou-se na cama e olhou para o teto.
Queria poder dizer que não, mas estava com medo.
2531613532363-92
O banheiro estava cheio de vapor, quando terminou o banho e encarou sua face no espelho. Ela sumiu pouco depois, novamente.
Sem ou .
É assim que eu desapareço.
A culpa lhe consome porque você fingiu que não a viu.
Poderei ver todos eles no paraíso?
Não se engane.
As portas não se abrirão para mim.
Estava contra as portas.
Secou o corpo, e envolveu-se na toalha, quando voltou para o quarto.
continuava deitado na cama. Ela ajeitou o cabelo, colocando-o para o lado. Deu um pequeno sorriso.
É bom saber que você ainda está aqui.
Caminhou até a cama, deitando ao lado de .
— Hey — ela chamou. Parecendo estar prestanto atenção no teto, ele olhou para ela.
— Vai querer dormir agora?
não usava sua camisa, e nem parecia fazer menção de se levantar.
Nem precisava.
— De jeito nenhum — disse, com um sorriso lascivo.
Inclinou o rosto para perto de , beijando-o lentamente. Ele abraçou seu corpo coberto, puxando-a levemente, e fazendo-a subir em seu colo. envolveu-o com suas pernas, e pouco depois, despiu-o e vestiu-o.
Dê-me o show. Estou pagando.
As coxas fortes e nuas de se asseguraram no quadril de , afundando-se nele, e imediatamente, fazendo-o murmurar a sílaba que ela amava ouvir. Seu corpo continuava úmido, contra a pele seca de . As unhas de arranhavam o tronco de , cada vez que ela sentia ele adentrando-a.
Cada movimento era como alcançar voo.
O rosto de deitado no travesseiro, esperando por ela, de olhos fechados e mandíbula caída.
Uma sala sem teto.
Quer ver o quanto eu posso afundar?
Os seios de seguiam seu movimento, enquanto ela estava sentada no colo de , no controle.
O controle, sempre será o controle.
Arranhando-o, liberando a besta.
segurou o quadril de , fazendo-a dançar ao seu ritmo.
Quer ver o quanto eu posso afundar?
Provando a verdade, o controle.
Ela está no controle.
Faça o show.
Você fez coisas de que nunca irá se orgulhar.
Deitando-se no colo de , suas costas acompanhando o movimento lento de seu corpo, contínuo.
Suas asas sobem, seu lado negro cresce.
O lado escuro da lua.
Os ossos de pareciam se desprender, quando ela tomava velocidade e profundidade.
Se está me ouvindo, diga-me se é verdade que todas as garotas boas vão para o paraíso.
Você sabe que não.
Você sabe.
Por fim, ambos alcançam o cume ao mesmo tempo.
Tão longe, tão perto.
A viva entre os mortos.
Além de todo universo.
Quando caiu ao lado de , não tinha fôlego. Precisava de café. De muito café.
Abriu a gaveta do criado mudo e pegou as roupas íntimas que deixava ali. Ficou de pé, rapidamente, vestiu-as e pegou o longo roupão azul-claro e transparente.
— Vai aonde? — ele perguntou, com a voz mole.
— Vou descer rápido. Só... Preciso beber alguma coisa.
— Ok — ele disse, girando e se acomodando na cama — Saiba que não vou mexer um músculo até você voltar.
— Vai me admirar que você estiver acordado até lá.
riu, e pareceu mesmo que ele caiu no sono em seguida.
As luzes se apagaram, devido à forte chuva que continuava tomando a cidade de Longview. desceu as escadas devagar, indo até a cozinha. Pegou um copo, encheu de água e colocou na cafeteira. Pôs o café e esperou.
O que tinha acabado de fazer?
Ignorou completamente a morte de seu melhor amigo, e seu ex-noivo. Agiu como se nada tivesse acontecido.
Olhou para cima, suspirando. Fechou os olhos com força, quando as lágrimas começaram a escorrer.
Era perigosa. Tentara matar , deixara-o com medo.
Não tinha dado a ou a a devida atenção que mereciam.
Perdeu todos. nem sequer trocava palavras com ela.
É comum odiar o final de uma história, quando você não soube escrever o meio.
A chuva caía cada vez mais forte, e chorava.
‘Você é grotesca.’
Os nós de seus dedos ficavam esbranquiçados, quando agarrou-se à mesa.
‘Isso é o melhor que pode me dizer?!’
Um ventre vazio.
‘A dor não ajuda. A dor é guardada, engolida e engasgada.’
Não se culpe, as coisas não são sua culpa.
‘Queime-se aprendendo a controlar o fogo.’
O risco sempre existe. Não fique parada esperando o muro se abaixar, para que você possa passar.
‘A raiva liberta. A raiva trabalha ao seu lado. A raiva é cuspida na cara do seu inimigo.’
Você sabe que perdeu o tiro de largada.
Você sabe.
Ramona era a única coisa que se prendia à , mas desprendeu-se dela.
E agora, você está sozinha.
— , por que você teve que ir, e me deixar sozinha?
Apertou os olhos com força.
— Por que você me deixou, ?
O café ficou pronto.
Podia ver vindo pela porta, com . Podia vê-los dizendo que tudo ficaria bem.
Era um sonho de outro alguém.
Sem base.
Pegou o café, e começou a bebê-lo. Queimava seus lábios, sua língua e sua garganta.
A detonação.
Podia ver Ramona chegando. Podia vê-la.
O melhor de tudo, seu ápice, algo que nunca alcançaria.
O anjo.
.
Joseph Durden, o anjo que subira do inferno.
O inferno é o lugar onde você não tem controle de si.
Naquele instante, era o inferno.
Pegou a caneca vazia e bateu com a porcelana contra a pia, dando um grito agudo quando ela se estilhaçou.
Largou o que restara da louça e passou as mãos freneticamente pelos cabelos.
Eles não vão voltar. Eles estão mortos.
Podia ouvir a voz de Ramona.
Eu sou a loucura.
Venham todos assistir ao show, venham todos.
Ela está louca.
— ! — gritou, do andar de cima.
Encorajo seus sorrisos, espero que você não chore.
O jornalista desceu as escadas correndo, quase tropeçando. Encontrou sentada no chão da cozinha, abraçando seus joelhos.
A voz de Ramona estava ali. insistia, em si mesma, que Ramona não tinha deixado-a.
Eu sou o explosivo, eu sou o detonador, eu sou o inferno.
Eram palavras de Ramona.
Acima de tudo, queria que Ramona voltasse, e dissesse que está tudo bem.
Era uma mulher melhor com Ramona por perto.
— — disse, tentando levantá-la do chão.
Um trovão soou, e abraçou mais ainda suas pernas.
— Eles se foram, . Pode dizer. Não finja que está tudo bem, você sabe que eles se foram — ela murmurou, com a voz carregada.
Seus cabelos estavam bagunçados, quando ela passou uma mão por eles, arranhando seu couro, e chorando mais forte ainda.
Sem você, é assim que eu desapareço.
— Quem se foi, ? — ele perguntou, tentando tirar os cabelos de seu rosto.
Ela ergueu o olhar.
— e . Eles se foram, . Eles se foram para sempre.
A respiração de se tornava mais alta, ajoelhado no chão, próximo de .
Sou um fantasma, não posso mais te ferir.
— ...
— Pode dizer. Pode falar a verdade, pode falar que eles morreram e que nunca mais vão voltar.
Meu mundo está vazio.
— , eu sei que eles... Que eles se foram.
Ela abaixou o rosto. A voz de era chorosa, porque ele percebeu onde estavam.
— Por favor, só me diga por que está fazendo isso agora. Eles se foram há muito tempo, .
ergueu sua face por um momento. Não conseguia fechar a boca, que tremia. As lágrimas não tinham cessado, mas sua mente entrara em curto.
Há muito tempo?
— O quê?
— ... morreu faz semanas. Não sabemos seu assassino. E também. Você sabe disso, . Você sabe que eles já estão mortos. Não usamos os nomes deles nos casos, para não a lembrar disos o tempo todo. Mas essa é a verdade.
Quer ver o quanto eu posso afundar?
Um oceano cada vez mais profundo.
Ver as estrelas do fundo do poço te faz achar que está tudo bem, mas quando se vê o céu claro de tão longe...
— Como assim? Eles morreram ontem. Eles estavam aqui até pouco tempo.
— Onde, ?
— Aqui... — fungou — Em casa... Na nossa casa. Na casa deles. Até semana passada...
— ...
quase começou a chorar.
Não, não é verdade. Isso não está acontecendo.
Não quero ser quem vai lhe contar a verdade, .
O transe.
A ilusão de um paraíso.
Dessa vez, não conseguia conter todas as lágrimas, deixando algumas escaparem:
— Eles estão mortos há semanas.
— Não... Não é possível... Eles estavam...
Ela parou por um momento. Ficou de pé, com imóvel, apenas olhando para ela.
— Não, não é verdade. Eles estavam aqui, eles andaram nesse chão até semana passada!
— Não, ... — soluçava, balançando a cabeça.
— Não minta para mim! — ela gritou, com as mãos tremendo. Mal enxergava com as lágrimas, enquanto corria até a sala. Pegou porta-retratos dela com e , e lançou-os contra os espelhos.
Cada peça sua, destroçada.
— !
Não queria mais aquilo. Queria acordar daquele sonho ruim.
Acorde.
Acorde.
Espelhos quebrados.
agarrou-a pelos braços.
— , pare!
Deja-vu.
Ela ajoelhou-se no chão, com as mãos nos olhos. abraçou-a, com as lágrimas pingando de seu queixo. afundou o rosto no ombro de .
— Salve-me, por favor — ela murmurou — As luzes claras parecem sempre cegas para mim.
Ele foi a única coisa que restou.
Desejou, com todas suas forças, que ele não a deixasse.
Por favor, não desista de mim.
As fotos no chão. e .
Agora, eram mesmo só uma lembrança.
Posso vê-lo deitado perto de mim, com palavras que pensei que nunca diria. Acordada, e sem medo. Adormecida ou morta. ¹
Após meia hora naquela exata posição, perguntou se queria subir, e ela fez que não. Sendo assim, ambos ficaram deitados no sofá. Ele a abraçou, e quando ela caiu no sono, ambos se deitaram, ela sobre seu corpo.
A manhã raiou logo. Eram nove horas quando soou a campainha.
se levantou, depois de apertar seus olhos inchados, e conseguir ficar de pé.
Teve que tomar cuidado, porque os cacos dos espelhos quebrados estavam espalhados. Ainda tinham espelhos na sala, mas pelo menos três se foram.
Foi em direção à porta, respirando fundo. Tinha recebido a caixinha azul, na noite anterior. Agora receberia a chave que a abriria?
Zoe?
Desejou que fosse Ramona.
Quando abriu a porta, não havia ninguém lá. Seu coração murchou, achando que fosse apenas um tipo de pegadinha. O que havia no chão, entretanto, a deixou mais segura:
Um embrulho surrado de alguma camisa velha, branca — que agora estava cinza —, e um bilhete dobrado.
— Quem era? — perguntou.
olhou para fora, e viu um rastro de alguém cruzando a esquina. Alguém loira, jovem, com longos cabelos trançados.
Uma jovem Durden.
sentou-se no chão, e abriu o embrulho. Ali, havia uma pistola e um canivete vermelho.
— Não sei quem era.
Esse tipo de coisa era melhor não ficar sabendo.
O bilhete dizia: ‘está comigo, boneca de papel?’
Zoe.
Esteja comigo de verdade.
¹ — versos da canção Famous Last Words, de My Chemical Romance
And now you wanna see how far down I can sink?
Capítulo 32 — When the levee breaks
If it keeps on raining, levee is going to break…
O médico que arrumara era um homem de meia-idade, com pouca boa vontade de atender dois jovens adultos antes do almoço. estava sentada na cadeira, segurando a mão de por debaixo da mesa.
— Qual seria o problema?
Ela tossiu com força nesse momento. Os cigarros de Ramona.
— Minha... — ia começar, quando o médico, que tinha cabelos pretos sedosos, o rosto liso e um olhar sarcástico a nível Tony Stark, ergueu uma mão em protesto.
— Ela que tem problemas?
e se olharam, e o jornalista assentiu.
— Sim, ela...
— Então quero que ela diga o que está acontecendo.
apertou mais forte a mão de , mas tomou a voz:
— Doutor... Eu soube recentemente que amigos próximos morreram.
— Prossiga — ele pediu, com o rosto solene.
— A questão é que eles já estavam mortos tempos antes de eu saber. E, enquanto eu não sabia de sua morte, eu mesma os via pela minha casa.
Há alguém na minha cabeça que não sou eu.
O médico franziu o cenho.
— Eles interagiam com você?
— Comigo e com uma amiga minha.
— Temos duas opções... Ou você é médium, ou tinha alucinações. Eles continuam aparecendo para você?
Ela fez que não, tossindo mais uma vez.
— Como sou cético, fico com a segunda opção. Por favor, senhorita...? — o médico ficou de pé, indicando a maca para .
— .
Ela sentou-se na maca, com se levantando e ficando próximo, de braços cruzados. Foi difícil conseguir um psiquiatra tão em cima da hora, mas os contatos de conseguiram dar um jeitinho.
— E quanto tempo você acha que duraram essas alucinações?
— Mais de um mês — respondeu.
— Se importa de eu perguntar o seu trabalho, senhorita ? — o médico perguntou, pegando uma lanterna. Tinha um tipo de pressa estranha, que parecia curiosidade.
— Sou detetive da delegacia de Longview.
Ele ergueu as sobrancelhas em surpresa.
— Faça ‘ah’.
mal o obedeceu, e o médico indicou a luz da lanterna diretamente para sua garganta.
— Ponha a língua para fora. A senhorita fuma?
— Eo bão — tentou responder.
— Ok — ele apagou a lanterna, e indicou com as mãos para que ela se levantasse — Agora fique de costas e abaixe sua blusa atrás, para eu ouvir seu pulmão.
franziu o cenho.
— Desculpem. Não costumam encaixar enfermos interessantes. Vocês quebraram minha expectativa.
— Você costuma ouvir os pulmões de uma pessoa que tem alucinações?
— Não. Mas se sua namorada não fuma...
— Sou fumante passiva — corrigiu, enquanto o médico examinava seus pulmões por alguns segundos.
Depois de instantes de silêncio, ele disse, tirando o estetoscópio do ouvido:
— Ter leves alucinações com pessoas que morreram é comum. Canso de receber senhoras que dizem que ouvir as chaves de seu marido no corredor, no horário em que ele costumava chegar em casa, antes de morrer. Isso é um efeito cerebral ligado ao costume e à memória longa. Mas ver os mortos é algo um pouco mais extremo.
— Isso deve nos tranquilizar? — perguntou, sentando na cadeira novamente. preferiu continuar de pé.
— Não a partir do momento em que você interagia com eles, e adicionava uma amiga viva na conversa. Eles tinham um costume comum? Algo que sempre faziam? Nas suas visões.
As roupas.
— Eles usavam sempre as mesmas cores, os mesmos pares de roupas. Cada um com uma cor.
— Sua mente — ele fez gestos para representar o cérebro, como se ele fosse uma massa de bolo imaginária nas mãos do médico — Se prendeu às últimas imagens deles, então, os representava do mesmo jeito. Mas você é mesmo fumante passiva?
— Sou sim, doutor.
— Isso é estranho, porque você tem pulmões de quem fuma três maços por dia.
e ergueram as sobrancelhas em surpresa.
— Andou tomando algum medicamento?
— Meu médico, um amigo íntimo meu, me dava remédios para um problema que tenho de humor.
— Tem eles aí? — o médico cruzou os braços e deixou as costas caírem na cadeira.
— Não, acabei com eles há um tempo.
— Podem ter um efeito colateral. Indico que deva parar de tomá-los. Se voltar mais aqui, podemos acompanhar melhor suas alucinações. Vou indicar exames para você fazer, mas, infelizmente, não há muito a ser feito assim tão cedo.
Ele pegou um papel de médico, como diria , leigo de medicina, e rabiscou coisas que ele nunca entenderia sozinho. Deu o papel ao jornalista, que assentiu como se tivesse entendido cada palavra, entretanto.
— Voltem assim que puderem. No seu trabalho, senhorita , são comuns alguns distúrbios e nível delicado de saúde mental. Precisaremos de mais consultas para ter certeza.
se levantou, apertando a mão do médico, agradecendo. Quando ela e saíram do consultório, o médico tocou o ombro de , fazendo-o voltar por um momento.
— Fique de olho na sua namorada, senhor. Ela disse ter alucinações com mortos e uma amiga. O senhor conhece essa amiga?
— Não, doutor.
As sobrancelhas erguidas em sinal de aviso e conselho do médico falaram por si mesma.
Após o almoço, e voltaram para a Singer Street. Ela sentia-se como se estivesse em quarentena, ou em observação. Mas ficava grata por isso.
Não queria ficar sozinha.
Subiu as escadas para o quarto dos espelhos, e deixou lá embaixo. Ele estava entretido demais no código de para pensar em outra coisa. Se ele estivesse interessado em decifrar o código, que fosse.
Precisava trabalhar.
Coisas demais em sua cabeça, vamos ao que é fixo.
Estava sentada no chão, as pernas abertas e as costas envergadas para frente. O olhar estava cansado.
Precisava dormir.
Pegou uma caneta, que estava quase falhando a essa altura.
Começou a escrever, quando parou.
Pare, pense por um instante. Isso esteve o tempo todo em sua mente. Desde sempre, isso esteve oculto...
Você só não queria enxergar.
‘ morreu faz semanas. Não sabemos seu assassino. E também.’
‘Você sabe disso, . Você sabe que eles já estão mortos.’
Não, só podia ser brincadeira.
Só podia ser uma pegadinha colossal.
Sua mente brincando mais uma vez.
‘Não usamos os nomes deles nos casos, para não a lembrar disso o tempo todo. Mas essa é a verdade.’
Casos. Casos sem nome.
‘Eles estão mortos há semanas.’
Semanas.
Todas as paredes.
Não.
Uma pessoa magra, que não era da delegacia. Que não tinha o porte nem o treinamento policial.
Um suicida que decerto não queria morrer.
Na casa de seus amigos.
Abaixou o rosto, chorando baixinho. Sussurrava o choro, com vergonha.
afirmara ao médico o tempo que as alucinações apareciam. Isso significava que eles morreram há um mês.
Um mês antes, os casos...
morrera no Halloween.
‘Não venha para cá.’
caíra do terraço, foi assassinado quando estava um andar abaixo dele.
O suicida.
O sonho, era o suicida.
Ele era o suicida.
se matou... ou não.
Eles eram seus casos.
procurava o assassino deles. O assassino de seu melhor amigo e de seu ex-noivo.
Sua mente fazendo brincadeiras com ela. Todos quiseram poupá-la de imagens.
Ramona não quis que fosse ver os corpos no necrotério.
Ramona.
Ácido.
Olhou para o espelho. Tinha as lágrimas marcadas.
Todos os nomes, as teorias, para isso.
Chegava a ser engraçado.
De repente, tudo virou de cabeça para baixo, quando tudo parecia estar bem.
foi o detonador.
, que estava no andar de baixo. Que disse que a amava, mas tinha medo dela.
Não seja idiota. Ele tem medo de você. Tem medo do que sua mente criou, tem medo do que você fez e esqueceu. Você o ameaçou. Ele está lutando contra seus instintos humanos, estando aqui.
Se ele prezasse mesmo por sua vida, você sabe que ele já teria partido.
Tudo que se aproxima de você morre.
Coisas começam a dar errado quando você descobre algo sobre você que não deveria saber, então mantenha a boca calada. Finja que não sabe de nada.
Finja que está tudo bem.
— Está trabalhando? — a voz baixa de perguntou, da porta. Ela olhou-o por cima do ombro. Sua voz soara como se ele falasse com uma pessoa louca, perigosa, que ele temesse.
olhou para os vidros, repletos de nada.
— Temos aqui dois assassinos. Isso é claro como a água. Um, o maior, possivelmente sabe da existência do segundo, e o controla. Usa-o ao seu favor.
As palavras saíram com tamanha naturalidade que não acreditou. Cruzou os braços e usou a maior técnica do mundo para inspirar alguém:
— Acha que consegue dar um perfil de cada um? Duvido.
ergueu o canto do lábio. Olhou para cima, para o tipo do espelho, para cada letra, cada número, cada desenho.
— O que mais matou é certamente o mais inteligente. É metódico. Quando fez sua chacina com Joe Durden, e com o no Halloween, não teve muito tempo ao seu dispor. Pouco tempo, pouca oportunidade. Mas soube aproveitar. Livrou-se da arma do crime em todos os casos, desfez-se do corpo. A morte do , então, foi mais metódica ainda. Aquele, sim, sabia o que estava vindo. O assassino do , de , do e de Joe era experiente. O outro, não. Quando matou Samantha Fox, tinha muito tempo trabalhando ao seu lado: o tempo foi seu aliado. O tempo poderia livrá-lo da culpa. Esse era uma pessoa raivosa com sorte e um pouco de inteligência. Mas não tinha um pingo de método. Muito provavelmente, nosso primeiro assassino, este sim, um mestre, soube ou percebeu que Samantha corria perigo por outro homicida.
— E o ajudou a planejar a morte?
— Não a planejar, talvez. Mas provavelmente lhe forneceu a arma, a chance e lhe deu dicas.
— Por que faria isso?
Ela suspirou.
— Isso iria livrá-lo da culpa. Cronologicamente, quando a morte de Sam aconteceu, o nosso matador favorito só tinha uma vítima. É provável que tivesse alguma das outras planejadas, mas vamos focar nisso. Se soubesse da provável existência de outro assassino, o ajudaria. Porque caso isso fosse investigado à risca, nunca pensariam em dois assassinos distintos... Pensariam em apenas um que cometeu um deslize. E esse um seria uma pessoa pouco experiente. E sobre quem a culpa cairia?
se aproximou de , com as mais nos bolsos, olhando para as anotações.
— Acho que entendi seu ponto. O melhor assassino controlaria o outro.
— Exato. E os dois, certamente, se conheciam. Não muito bem. Não eram melhores amigos. Nem o pior dos serial killers trairia um parceiro. Pesquise sobre as duplas de assassinos que quiser: a taxa de traição entre eles é baixíssima. Em interesses comuns, assassinos sociopatas não têm a tendência em trair reciprocamente. É comum até que eles saibam o suficiente para incriminar um ao outro, em caso de traição. Eles não eram muito próximos, mas próximos a ponto de um saber do interesse do outro. Provável que fossem colegas de trabalho. E também, que nosso melhor assassino tenha entrado em contato com o outro por método indireto: uma ligação sem identificação. Um bilhete, uma nota.
— Acha que o assassino de Samantha não sabia quem o estava instruindo?
— Acho sim. Isso o aterrorizaria. Imagine: você com um interesse desumano, que alguém já percebeu que você tem. Você não se esforçaria ao máximo para manter isso restrito? Por isso nosso pior assassino o obedeceu: prezava por seu anonimato.
— E você suspeitava disso tudo?
— Não — respondeu, como algo lógico — Criei cinco teorias. Essa foi a melhor.
sorriu.
— Por que acha isso?
— As outras eram muito furadas. Essa segue mais à risca o perfil de um sociopata.
— Whoa.
— Nada nesse mundo me impulsiona mais que um "duvido".
Se achava que já sabia sobre e , ela deixaria as coisas assim.
Finja que está tudo bem.
— Acho que já sei o assassino de Samantha.
— Brilhante. E eu acho que já sei como decodificar a mensagem de . Quer trocar informações?
e estavam de pé, de braços cruzados, olhando um espelho da sala, como se este fosse uma obra de arte secular. Este espelho em especial tinha o código de escrito repetidas vezes, de cores diferentes de caneta, por todo ele.
2531613532363-92.
— não tinha tempo. Precisava de um código fácil de criar, difícil de decodificar, mas nem tão difícil de se reconhecer.
— Sim — confirmou.
— Afinal, você precisava decodificá-lo — ele virou o rosto para .
— Sim... — ela virou o rosto para .
colocou as mãos na cintura.
— Um código assim foi feito às pressas, mas em um jeito fácil de decifrar. Seu ambiente dava a dica, sua vida. Algo na própria , algo relacionado à sua essência.
Fez uma pausa.
Endereços? Identificações? Documentos?
Não. Não.
Não!
Acorde. É mais fácil do que parece.
Você já sabe o que está escrito.
— Se você fosse criar um código, como ele seria?
Eu só preciso dormir.
— Eu tentaria fazer um tipo de método chave, algo do estilo "se A significa G, então B significa H".
— Mas não tinha como lhe deixar um método chave. Então...
enxergou porque foi fácil demais.
Você se confunde por si só.
Não deveria estar aqui, .
Você perdeu o tiro da largada.
— Eu já o tenho — completou, abaixando o rosto e encarando o vazio.
Lute contra isso.
Você está no controle.
— Sim... E tinha esse método decorado. Ela já o sabia de cor. Se não é algum tipo de brincadeira interna entre vocês...
Quer ver o quanto eu posso afundar?
Quer ver o quanto eu posso lhe afundar?
— Não é brincadeira. Já pensei nisso.
— Então, , você já sabe o que é.
É lógico.
Como isso não passara pela sua cabeça?
Você sabe que perdeu o tiro de largada. Ainda mais, sabe que isso não é para você.
O que está fazendo aqui mesmo?
Sua medrosa de merda.
— , você é brilhante — ela disse, fechando os olhos. Deu as costas para ele e subiu as escadas, à procura de algum livro.
— Isso não tenho certeza, mas eu era uma criança deslocada dos amigos medíocres, e que lia muito Sherlock Holmes.
Ele riu, quando voltou com um papel nas mãos. tinha um em cada parte de seu material de trabalho. O que não faltavam na casa eram...
— Tabela periódica. era química. Como não pensei nisso?
Ele deu de ombros.
— Você pensava em coisas absurdas demais. Fugiu das mais simples.
— Modesto — apagou um pedaço dos códigos com uma flanela jogada no chão, já suja de tinta de caneta.
— Esqueceu que eu sou "tipo" o doutor Watson?
— E eu sou o Holmes — murmurou.
O sinal de menos no código não era uma subtração. Era o corte de uma letra.
Demorou alguns minutos para decodificar. Os dígitos de organização elementar estavam desorganizados. Então, um 2 pode ser um elemento, e um 22 é um completamente diferente.
2531613532363-92.
2. Hélio. He.
53. Iodo. I.
16. Enxofre. S.
13. Alumínio. Al.
53. Iodo. I.
23. Vanádio. V.
63. Európio. Eu.
Tirando o 92, urânio. U.
O jornalista e a detetive pararam por um instante, não sabendo se ficavam felizes ou aterrorizados pela mensagem.
A coisa mais óbvia de todas, mas era necessário um morto contar, para todos acreditarem.
He is alive.
— Eu sabia.
engoliu em seco pela afirmação baixa de .
— O Joe... — falou, baixo, sem tirar os olhos da frase — Ele gostava de fazer um ‘três’ com as mãos, com o polegar, o indicador e o do meio levantados. Era uma mania. Coisa dele. Era uma coisa do Joe.
Ela comprimiu os lábios.
— E esse filho da puta está vivo.
Tyler estava pronto. O carro chegava aos fundos do hospital, onde não havia alarde.
Tinham dado um sedativo a ele. Estava tão grogue que enxergava tudo em cores vibrantes.
Dois homens os levaram pelos ombros. Não precisavam fazer esforço, Tyler estava fraco e não queria lutar.
Desceram pelo elevador, e caminharam até a saída dos fundos. Todos olhavam, todos sabiam quem ele era.
Outro , outro insano.
Outro assassino?
Ele subiu na ambulância e sentou-se no banco, acompanhado por três enfermeiros. Os dois que o deixaram se despediram, mas Tyler não respondeu.
Olhava para o chão com o olhar morto.
A porta da ambulância se fechou, e ela arrancou para poder ir para o Manson.
Mais um.
— Delegada — chamou um policial, batendo na porta.
Julie ergueu o olhar sério.
— Pois não? — perguntou com a voz mansa.
— Temos duas pessoas aqui. Estão querendo falar com a senhora sobre a inocência de um detento.
— Que pessoas e que detento? — Julie perguntou com pouco interesse.
— , e .
Julie parou. com ? Já deveria esperar. Só não imaginava que o novato fosse ser tão burro.
— Fale que podem vir.
O policial assentiu. Logo depois, e surgiram, ambos com o semblante de advogados formados em Harvard.
Patético.
— Andaram vendo CSI o suficiente para tentar inocentar seu amigo? — ela perguntou com pouco interesse.
— Queria entrar com um pedido de soltura para o — pediu, com toda educação que tinha na alma, sentando-se na frente de Julie com .
— Sim... Em que condições ele seria inocente?
— A faca usada no crime foi encontrada no lixo do prédio de ?
— Positivo... — a delegada falou, querendo rir.
continuou séria. Ela estava mesmo determinada.
— E quando foi o crime? Há muito ou pouco tempo?
— Há muito...
— A faca surgiu há pouco tempo no lixo. Mas estamos falando de um esfaqueamento e de um crime durante uma festa. As roupas do assassino ficaram sujas, com certeza. E por que o nosso assassino em questão jogaria "fora" — ela fez as aspas rindo — Sua arma do crime banhada de sangue, mas não as roupas? Estas nunca foram achadas. Por que correr o risco de se livrar de um e não do outro, e. ainda por cima, jogando a arma em um lugar tão lógico?
— Mas... nossas regras...
— Conheço as regras. Sei que vocês precisam prender alguém se têm as provas. Mas vamos lembrar que, da última vez, vocês erraram por pouco.
Ela piscou um olho enquanto olhava para Julie com o canto dos lábios erguido. não falou nada, mas tentava disfarçar o riso.
— também foi culpado pela morte de .
— Até então, pode ter sido qualquer um. Nenhuma prova incrimina mais ele, eu, ou até você. Falta de provas, um motivo básico de soltura.
— O que quer então, ? — a delegada se irritava cada vez mais.
— Solte por uma semana.
— Uma semana? E como vai ficar o caso por uma semana?
— Eu vou encontrar o assassino de vocês.
— Qual deles?
— Todos.
e Julie olharam para surpresos.
— Eu trago os assassinos para vocês, e façam o que quiser com eles. Solte que farei isso. Se eu não encontrar, pode prendê-lo de novo, se bem quiser.
— , não sou autorizada a...
— Você é a delegada — cortou — É autorizada a tudo. Não me venha com essa desculpa malfeita.
Julie chegou o corpo para trás na cadeira, bufando.
— Vou soltá-lo agora. Esperem lá fora e podem levá-lo para casa.
Todos se levantaram. Na porta, Julie murmurou.
— Sete dias, .
A detetive riu baixo.
— Posso fazer em seis, se quiser. Falei sete para poder descansar.
— Pare de ser tão egocêntrica.
— Por quê, se você sabe que é verdade?
tinha deixado na casa dele e de . O psicólogo caiu na cama e dormiu instantaneamente. Deixando-o lá, foi para a casa de , como ela pediu para ele fazer.
Sem que soubesse.
disse a para não dizer sobre eles a . Porque o psicólogo não aprovava os dois juntos. Como não estava se importando com informações desse tipo ultimamente, mas não queria se estressar, pediu para não contar.
Tinha deixado muitas coisas nos espelhos. Não queria se perder em nada. Mas usou um, que tinha poucas anotações, para algo especial.
A caderneta de .
esperava achar informações sobre o caso de Samantha, de , ... Até tinha. Mas a maioria era outra coisa.
Ramona. Ramona e .
tinha uma certeza. E queria passá-la para .
Não queria encarar a verdade, mas todos já sabiam.
Sua única opção era manter isso o mais sigiloso possível, entre os que já sabiam.
Porque, aparentemente, o primeiro a saber foi morto e teve um suicídio simulado.
Olhou para tudo, para a mensagem de . Estava sentada no sofá quando chegou, admirando a descoberta dos dois.
He is alive.
Ele está vivo.
sabia. Aquilo tudo era coisa dele. Ele era a mente maior por trás de .
Ele era seu assassino.
Joseph Durden assassinara .
Murmurou, com os olhos fixos no espelho, assim que chegou:
— Se Joe estiver vivo de verdade, eu mesma vou matar esse filho da mãe.
Don’t it make you feel bad when you’re trying to find your way home, and you don’t know which way to go?
O médico que arrumara era um homem de meia-idade, com pouca boa vontade de atender dois jovens adultos antes do almoço. estava sentada na cadeira, segurando a mão de por debaixo da mesa.
— Qual seria o problema?
Ela tossiu com força nesse momento. Os cigarros de Ramona.
— Minha... — ia começar, quando o médico, que tinha cabelos pretos sedosos, o rosto liso e um olhar sarcástico a nível Tony Stark, ergueu uma mão em protesto.
— Ela que tem problemas?
e se olharam, e o jornalista assentiu.
— Sim, ela...
— Então quero que ela diga o que está acontecendo.
apertou mais forte a mão de , mas tomou a voz:
— Doutor... Eu soube recentemente que amigos próximos morreram.
— Prossiga — ele pediu, com o rosto solene.
— A questão é que eles já estavam mortos tempos antes de eu saber. E, enquanto eu não sabia de sua morte, eu mesma os via pela minha casa.
Há alguém na minha cabeça que não sou eu.
O médico franziu o cenho.
— Eles interagiam com você?
— Comigo e com uma amiga minha.
— Temos duas opções... Ou você é médium, ou tinha alucinações. Eles continuam aparecendo para você?
Ela fez que não, tossindo mais uma vez.
— Como sou cético, fico com a segunda opção. Por favor, senhorita...? — o médico ficou de pé, indicando a maca para .
— .
Ela sentou-se na maca, com se levantando e ficando próximo, de braços cruzados. Foi difícil conseguir um psiquiatra tão em cima da hora, mas os contatos de conseguiram dar um jeitinho.
— E quanto tempo você acha que duraram essas alucinações?
— Mais de um mês — respondeu.
— Se importa de eu perguntar o seu trabalho, senhorita ? — o médico perguntou, pegando uma lanterna. Tinha um tipo de pressa estranha, que parecia curiosidade.
— Sou detetive da delegacia de Longview.
Ele ergueu as sobrancelhas em surpresa.
— Faça ‘ah’.
mal o obedeceu, e o médico indicou a luz da lanterna diretamente para sua garganta.
— Ponha a língua para fora. A senhorita fuma?
— Eo bão — tentou responder.
— Ok — ele apagou a lanterna, e indicou com as mãos para que ela se levantasse — Agora fique de costas e abaixe sua blusa atrás, para eu ouvir seu pulmão.
franziu o cenho.
— Desculpem. Não costumam encaixar enfermos interessantes. Vocês quebraram minha expectativa.
— Você costuma ouvir os pulmões de uma pessoa que tem alucinações?
— Não. Mas se sua namorada não fuma...
— Sou fumante passiva — corrigiu, enquanto o médico examinava seus pulmões por alguns segundos.
Depois de instantes de silêncio, ele disse, tirando o estetoscópio do ouvido:
— Ter leves alucinações com pessoas que morreram é comum. Canso de receber senhoras que dizem que ouvir as chaves de seu marido no corredor, no horário em que ele costumava chegar em casa, antes de morrer. Isso é um efeito cerebral ligado ao costume e à memória longa. Mas ver os mortos é algo um pouco mais extremo.
— Isso deve nos tranquilizar? — perguntou, sentando na cadeira novamente. preferiu continuar de pé.
— Não a partir do momento em que você interagia com eles, e adicionava uma amiga viva na conversa. Eles tinham um costume comum? Algo que sempre faziam? Nas suas visões.
As roupas.
— Eles usavam sempre as mesmas cores, os mesmos pares de roupas. Cada um com uma cor.
— Sua mente — ele fez gestos para representar o cérebro, como se ele fosse uma massa de bolo imaginária nas mãos do médico — Se prendeu às últimas imagens deles, então, os representava do mesmo jeito. Mas você é mesmo fumante passiva?
— Sou sim, doutor.
— Isso é estranho, porque você tem pulmões de quem fuma três maços por dia.
e ergueram as sobrancelhas em surpresa.
— Andou tomando algum medicamento?
— Meu médico, um amigo íntimo meu, me dava remédios para um problema que tenho de humor.
— Tem eles aí? — o médico cruzou os braços e deixou as costas caírem na cadeira.
— Não, acabei com eles há um tempo.
— Podem ter um efeito colateral. Indico que deva parar de tomá-los. Se voltar mais aqui, podemos acompanhar melhor suas alucinações. Vou indicar exames para você fazer, mas, infelizmente, não há muito a ser feito assim tão cedo.
Ele pegou um papel de médico, como diria , leigo de medicina, e rabiscou coisas que ele nunca entenderia sozinho. Deu o papel ao jornalista, que assentiu como se tivesse entendido cada palavra, entretanto.
— Voltem assim que puderem. No seu trabalho, senhorita , são comuns alguns distúrbios e nível delicado de saúde mental. Precisaremos de mais consultas para ter certeza.
se levantou, apertando a mão do médico, agradecendo. Quando ela e saíram do consultório, o médico tocou o ombro de , fazendo-o voltar por um momento.
— Fique de olho na sua namorada, senhor. Ela disse ter alucinações com mortos e uma amiga. O senhor conhece essa amiga?
— Não, doutor.
As sobrancelhas erguidas em sinal de aviso e conselho do médico falaram por si mesma.
Após o almoço, e voltaram para a Singer Street. Ela sentia-se como se estivesse em quarentena, ou em observação. Mas ficava grata por isso.
Não queria ficar sozinha.
Subiu as escadas para o quarto dos espelhos, e deixou lá embaixo. Ele estava entretido demais no código de para pensar em outra coisa. Se ele estivesse interessado em decifrar o código, que fosse.
Precisava trabalhar.
Coisas demais em sua cabeça, vamos ao que é fixo.
Estava sentada no chão, as pernas abertas e as costas envergadas para frente. O olhar estava cansado.
Precisava dormir.
Pegou uma caneta, que estava quase falhando a essa altura.
Começou a escrever, quando parou.
Pare, pense por um instante. Isso esteve o tempo todo em sua mente. Desde sempre, isso esteve oculto...
Você só não queria enxergar.
‘ morreu faz semanas. Não sabemos seu assassino. E também.’
‘Você sabe disso, . Você sabe que eles já estão mortos.’
Não, só podia ser brincadeira.
Só podia ser uma pegadinha colossal.
Sua mente brincando mais uma vez.
‘Não usamos os nomes deles nos casos, para não a lembrar disso o tempo todo. Mas essa é a verdade.’
Casos. Casos sem nome.
‘Eles estão mortos há semanas.’
Semanas.
Todas as paredes.
Não.
Uma pessoa magra, que não era da delegacia. Que não tinha o porte nem o treinamento policial.
Um suicida que decerto não queria morrer.
Na casa de seus amigos.
Abaixou o rosto, chorando baixinho. Sussurrava o choro, com vergonha.
afirmara ao médico o tempo que as alucinações apareciam. Isso significava que eles morreram há um mês.
Um mês antes, os casos...
morrera no Halloween.
‘Não venha para cá.’
caíra do terraço, foi assassinado quando estava um andar abaixo dele.
O suicida.
O sonho, era o suicida.
Ele era o suicida.
se matou... ou não.
Eles eram seus casos.
procurava o assassino deles. O assassino de seu melhor amigo e de seu ex-noivo.
Sua mente fazendo brincadeiras com ela. Todos quiseram poupá-la de imagens.
Ramona não quis que fosse ver os corpos no necrotério.
Ramona.
Ácido.
Olhou para o espelho. Tinha as lágrimas marcadas.
Todos os nomes, as teorias, para isso.
Chegava a ser engraçado.
De repente, tudo virou de cabeça para baixo, quando tudo parecia estar bem.
foi o detonador.
, que estava no andar de baixo. Que disse que a amava, mas tinha medo dela.
Não seja idiota. Ele tem medo de você. Tem medo do que sua mente criou, tem medo do que você fez e esqueceu. Você o ameaçou. Ele está lutando contra seus instintos humanos, estando aqui.
Se ele prezasse mesmo por sua vida, você sabe que ele já teria partido.
Tudo que se aproxima de você morre.
Coisas começam a dar errado quando você descobre algo sobre você que não deveria saber, então mantenha a boca calada. Finja que não sabe de nada.
Finja que está tudo bem.
— Está trabalhando? — a voz baixa de perguntou, da porta. Ela olhou-o por cima do ombro. Sua voz soara como se ele falasse com uma pessoa louca, perigosa, que ele temesse.
olhou para os vidros, repletos de nada.
— Temos aqui dois assassinos. Isso é claro como a água. Um, o maior, possivelmente sabe da existência do segundo, e o controla. Usa-o ao seu favor.
As palavras saíram com tamanha naturalidade que não acreditou. Cruzou os braços e usou a maior técnica do mundo para inspirar alguém:
— Acha que consegue dar um perfil de cada um? Duvido.
ergueu o canto do lábio. Olhou para cima, para o tipo do espelho, para cada letra, cada número, cada desenho.
— O que mais matou é certamente o mais inteligente. É metódico. Quando fez sua chacina com Joe Durden, e com o no Halloween, não teve muito tempo ao seu dispor. Pouco tempo, pouca oportunidade. Mas soube aproveitar. Livrou-se da arma do crime em todos os casos, desfez-se do corpo. A morte do , então, foi mais metódica ainda. Aquele, sim, sabia o que estava vindo. O assassino do , de , do e de Joe era experiente. O outro, não. Quando matou Samantha Fox, tinha muito tempo trabalhando ao seu lado: o tempo foi seu aliado. O tempo poderia livrá-lo da culpa. Esse era uma pessoa raivosa com sorte e um pouco de inteligência. Mas não tinha um pingo de método. Muito provavelmente, nosso primeiro assassino, este sim, um mestre, soube ou percebeu que Samantha corria perigo por outro homicida.
— E o ajudou a planejar a morte?
— Não a planejar, talvez. Mas provavelmente lhe forneceu a arma, a chance e lhe deu dicas.
— Por que faria isso?
Ela suspirou.
— Isso iria livrá-lo da culpa. Cronologicamente, quando a morte de Sam aconteceu, o nosso matador favorito só tinha uma vítima. É provável que tivesse alguma das outras planejadas, mas vamos focar nisso. Se soubesse da provável existência de outro assassino, o ajudaria. Porque caso isso fosse investigado à risca, nunca pensariam em dois assassinos distintos... Pensariam em apenas um que cometeu um deslize. E esse um seria uma pessoa pouco experiente. E sobre quem a culpa cairia?
se aproximou de , com as mais nos bolsos, olhando para as anotações.
— Acho que entendi seu ponto. O melhor assassino controlaria o outro.
— Exato. E os dois, certamente, se conheciam. Não muito bem. Não eram melhores amigos. Nem o pior dos serial killers trairia um parceiro. Pesquise sobre as duplas de assassinos que quiser: a taxa de traição entre eles é baixíssima. Em interesses comuns, assassinos sociopatas não têm a tendência em trair reciprocamente. É comum até que eles saibam o suficiente para incriminar um ao outro, em caso de traição. Eles não eram muito próximos, mas próximos a ponto de um saber do interesse do outro. Provável que fossem colegas de trabalho. E também, que nosso melhor assassino tenha entrado em contato com o outro por método indireto: uma ligação sem identificação. Um bilhete, uma nota.
— Acha que o assassino de Samantha não sabia quem o estava instruindo?
— Acho sim. Isso o aterrorizaria. Imagine: você com um interesse desumano, que alguém já percebeu que você tem. Você não se esforçaria ao máximo para manter isso restrito? Por isso nosso pior assassino o obedeceu: prezava por seu anonimato.
— E você suspeitava disso tudo?
— Não — respondeu, como algo lógico — Criei cinco teorias. Essa foi a melhor.
sorriu.
— Por que acha isso?
— As outras eram muito furadas. Essa segue mais à risca o perfil de um sociopata.
— Whoa.
— Nada nesse mundo me impulsiona mais que um "duvido".
Se achava que já sabia sobre e , ela deixaria as coisas assim.
Finja que está tudo bem.
— Acho que já sei o assassino de Samantha.
— Brilhante. E eu acho que já sei como decodificar a mensagem de . Quer trocar informações?
e estavam de pé, de braços cruzados, olhando um espelho da sala, como se este fosse uma obra de arte secular. Este espelho em especial tinha o código de escrito repetidas vezes, de cores diferentes de caneta, por todo ele.
2531613532363-92.
— não tinha tempo. Precisava de um código fácil de criar, difícil de decodificar, mas nem tão difícil de se reconhecer.
— Sim — confirmou.
— Afinal, você precisava decodificá-lo — ele virou o rosto para .
— Sim... — ela virou o rosto para .
colocou as mãos na cintura.
— Um código assim foi feito às pressas, mas em um jeito fácil de decifrar. Seu ambiente dava a dica, sua vida. Algo na própria , algo relacionado à sua essência.
Fez uma pausa.
Endereços? Identificações? Documentos?
Não. Não.
Não!
Acorde. É mais fácil do que parece.
Você já sabe o que está escrito.
— Se você fosse criar um código, como ele seria?
Eu só preciso dormir.
— Eu tentaria fazer um tipo de método chave, algo do estilo "se A significa G, então B significa H".
— Mas não tinha como lhe deixar um método chave. Então...
enxergou porque foi fácil demais.
Você se confunde por si só.
Não deveria estar aqui, .
Você perdeu o tiro da largada.
— Eu já o tenho — completou, abaixando o rosto e encarando o vazio.
Lute contra isso.
Você está no controle.
— Sim... E tinha esse método decorado. Ela já o sabia de cor. Se não é algum tipo de brincadeira interna entre vocês...
Quer ver o quanto eu posso afundar?
Quer ver o quanto eu posso lhe afundar?
— Não é brincadeira. Já pensei nisso.
— Então, , você já sabe o que é.
É lógico.
Como isso não passara pela sua cabeça?
Você sabe que perdeu o tiro de largada. Ainda mais, sabe que isso não é para você.
O que está fazendo aqui mesmo?
Sua medrosa de merda.
— , você é brilhante — ela disse, fechando os olhos. Deu as costas para ele e subiu as escadas, à procura de algum livro.
— Isso não tenho certeza, mas eu era uma criança deslocada dos amigos medíocres, e que lia muito Sherlock Holmes.
Ele riu, quando voltou com um papel nas mãos. tinha um em cada parte de seu material de trabalho. O que não faltavam na casa eram...
— Tabela periódica. era química. Como não pensei nisso?
Ele deu de ombros.
— Você pensava em coisas absurdas demais. Fugiu das mais simples.
— Modesto — apagou um pedaço dos códigos com uma flanela jogada no chão, já suja de tinta de caneta.
— Esqueceu que eu sou "tipo" o doutor Watson?
— E eu sou o Holmes — murmurou.
O sinal de menos no código não era uma subtração. Era o corte de uma letra.
Demorou alguns minutos para decodificar. Os dígitos de organização elementar estavam desorganizados. Então, um 2 pode ser um elemento, e um 22 é um completamente diferente.
2531613532363-92.
2. Hélio. He.
53. Iodo. I.
16. Enxofre. S.
13. Alumínio. Al.
53. Iodo. I.
23. Vanádio. V.
63. Európio. Eu.
Tirando o 92, urânio. U.
O jornalista e a detetive pararam por um instante, não sabendo se ficavam felizes ou aterrorizados pela mensagem.
A coisa mais óbvia de todas, mas era necessário um morto contar, para todos acreditarem.
He is alive.
— Eu sabia.
engoliu em seco pela afirmação baixa de .
— O Joe... — falou, baixo, sem tirar os olhos da frase — Ele gostava de fazer um ‘três’ com as mãos, com o polegar, o indicador e o do meio levantados. Era uma mania. Coisa dele. Era uma coisa do Joe.
Ela comprimiu os lábios.
— E esse filho da puta está vivo.
Tyler estava pronto. O carro chegava aos fundos do hospital, onde não havia alarde.
Tinham dado um sedativo a ele. Estava tão grogue que enxergava tudo em cores vibrantes.
Dois homens os levaram pelos ombros. Não precisavam fazer esforço, Tyler estava fraco e não queria lutar.
Desceram pelo elevador, e caminharam até a saída dos fundos. Todos olhavam, todos sabiam quem ele era.
Outro , outro insano.
Outro assassino?
Ele subiu na ambulância e sentou-se no banco, acompanhado por três enfermeiros. Os dois que o deixaram se despediram, mas Tyler não respondeu.
Olhava para o chão com o olhar morto.
A porta da ambulância se fechou, e ela arrancou para poder ir para o Manson.
Mais um.
— Delegada — chamou um policial, batendo na porta.
Julie ergueu o olhar sério.
— Pois não? — perguntou com a voz mansa.
— Temos duas pessoas aqui. Estão querendo falar com a senhora sobre a inocência de um detento.
— Que pessoas e que detento? — Julie perguntou com pouco interesse.
— , e .
Julie parou. com ? Já deveria esperar. Só não imaginava que o novato fosse ser tão burro.
— Fale que podem vir.
O policial assentiu. Logo depois, e surgiram, ambos com o semblante de advogados formados em Harvard.
Patético.
— Andaram vendo CSI o suficiente para tentar inocentar seu amigo? — ela perguntou com pouco interesse.
— Queria entrar com um pedido de soltura para o — pediu, com toda educação que tinha na alma, sentando-se na frente de Julie com .
— Sim... Em que condições ele seria inocente?
— A faca usada no crime foi encontrada no lixo do prédio de ?
— Positivo... — a delegada falou, querendo rir.
continuou séria. Ela estava mesmo determinada.
— E quando foi o crime? Há muito ou pouco tempo?
— Há muito...
— A faca surgiu há pouco tempo no lixo. Mas estamos falando de um esfaqueamento e de um crime durante uma festa. As roupas do assassino ficaram sujas, com certeza. E por que o nosso assassino em questão jogaria "fora" — ela fez as aspas rindo — Sua arma do crime banhada de sangue, mas não as roupas? Estas nunca foram achadas. Por que correr o risco de se livrar de um e não do outro, e. ainda por cima, jogando a arma em um lugar tão lógico?
— Mas... nossas regras...
— Conheço as regras. Sei que vocês precisam prender alguém se têm as provas. Mas vamos lembrar que, da última vez, vocês erraram por pouco.
Ela piscou um olho enquanto olhava para Julie com o canto dos lábios erguido. não falou nada, mas tentava disfarçar o riso.
— também foi culpado pela morte de .
— Até então, pode ter sido qualquer um. Nenhuma prova incrimina mais ele, eu, ou até você. Falta de provas, um motivo básico de soltura.
— O que quer então, ? — a delegada se irritava cada vez mais.
— Solte por uma semana.
— Uma semana? E como vai ficar o caso por uma semana?
— Eu vou encontrar o assassino de vocês.
— Qual deles?
— Todos.
e Julie olharam para surpresos.
— Eu trago os assassinos para vocês, e façam o que quiser com eles. Solte que farei isso. Se eu não encontrar, pode prendê-lo de novo, se bem quiser.
— , não sou autorizada a...
— Você é a delegada — cortou — É autorizada a tudo. Não me venha com essa desculpa malfeita.
Julie chegou o corpo para trás na cadeira, bufando.
— Vou soltá-lo agora. Esperem lá fora e podem levá-lo para casa.
Todos se levantaram. Na porta, Julie murmurou.
— Sete dias, .
A detetive riu baixo.
— Posso fazer em seis, se quiser. Falei sete para poder descansar.
— Pare de ser tão egocêntrica.
— Por quê, se você sabe que é verdade?
tinha deixado na casa dele e de . O psicólogo caiu na cama e dormiu instantaneamente. Deixando-o lá, foi para a casa de , como ela pediu para ele fazer.
Sem que soubesse.
disse a para não dizer sobre eles a . Porque o psicólogo não aprovava os dois juntos. Como não estava se importando com informações desse tipo ultimamente, mas não queria se estressar, pediu para não contar.
Tinha deixado muitas coisas nos espelhos. Não queria se perder em nada. Mas usou um, que tinha poucas anotações, para algo especial.
A caderneta de .
esperava achar informações sobre o caso de Samantha, de , ... Até tinha. Mas a maioria era outra coisa.
Ramona. Ramona e .
tinha uma certeza. E queria passá-la para .
Não queria encarar a verdade, mas todos já sabiam.
Sua única opção era manter isso o mais sigiloso possível, entre os que já sabiam.
Porque, aparentemente, o primeiro a saber foi morto e teve um suicídio simulado.
Olhou para tudo, para a mensagem de . Estava sentada no sofá quando chegou, admirando a descoberta dos dois.
He is alive.
Ele está vivo.
sabia. Aquilo tudo era coisa dele. Ele era a mente maior por trás de .
Ele era seu assassino.
Joseph Durden assassinara .
Murmurou, com os olhos fixos no espelho, assim que chegou:
— Se Joe estiver vivo de verdade, eu mesma vou matar esse filho da mãe.
Don’t it make you feel bad when you’re trying to find your way home, and you don’t know which way to go?
Capítulo 33 — Sleep
The hardest part is letting go of your dreams...
Para Sigmund Freud, o alterego seria uma personalidade criada pelo indivíduo, como uma duplicata de si próprio. O alterego representaria um personagem criado por alguém, o qual receberia certas características dessa pessoa, quase como se criasse uma pessoa nova.
Tal pessoa pode ser considerada um amigo, parente ou um confidente.
Para a psicologia, trata-se de um outro ‘eu’ inconsciente que se revela através de múltiplas ou uma única identidade. Seria uma face secreta, um ângulo desconhecido da personalidade. O lado mais fundo da mente, enquanto o ego é a fração mais rasa.
Alguns escritores fazem uso de alteregos em suas obras, que seriam personagens que o representam na história contada.
Outro sentido para alterego é a existência de um amigo tão próximo, íntimo e leal que é como se vocês não pudessem se afastar. Nessa situação, há tamanha confiança cega que você verá a si mesmo refletido nesta pessoa.
‘Alter’ significa ‘outro’. ‘Ego’ significa ‘eu’. Ou seja, em essência, um alterego é um outro você.
Eu estou deitada, estou deitada em minha cama, mas não posso me mover. Eu sinto isso vindo, eu posso ver chegando, não consigo contê-la. Quero me mover para fazer ir embora, mas não consigo, nenhum lugar parece seguro. Estou em minha cama, mas não parece seguro e não posso me mover. Está vindo, é forte demais e não consigo contê-la...
– – ele falou, surgindo na porta do quarto dos espelhos – Vou pegar algo para comer. Quer que eu peça o que para você?
Aqui não é seguro e não quero ferir mais ninguém com isso.
– Não vou querer nada, . Obrigada. Vai sair agora?
Ele assentiu. foi até a porta e passou por , descendo as escadas e deixando-o para trás. Quando chegou à porta da casa, segurou a maçaneta e olhou para ele.
desceu devagar, fazendo o mesmo trajeto que ela. abriu a porta para ele, que andou até sair.
– Acha melhor que eu volte mais tarde?
Ela engoliu em seco. Achar melhor, ela não achava. Para fazer o que precisava fazer, ele precisava partir por um bom tempo.
Mas queria-o por perto.
As coisas pareciam menos destinadas a ruir quando estava por perto.
– Não – ela molhou os lábios e olhou para baixo, enquanto murmurava sua resposta. assentiu, decepcionado com a resposta.
Adivinhe, outro ‘fim de jogo’.
Mas antes de que ele pudesse ir embora, segurou seu ombro, virando-o para si. Ficou rapidamente na ponta dos pés, beijando os lábios de de leve. Acariciava sua nuca e parecia prestes a chorar.
Tinha um gosto horrível, aquele beijo. sentiu como se nunca mais fosse vê-la novamente.
– Eu te amo. De verdade. Nunca acredite no contrário. Ok? – ela disse, terminando o beijo, em um sussurro. Suas unhas arranhavam de leve a blusa de , como que querendo mantê-lo ali.
– Eu também te amo. Muito.
– Nunca acredite no contrário – ela repetiu.
assentiu, levantando o queixo de para dar um leve beijo de novo.
Ele se foi, e, assim que a porta foi fechada, apoiou as costas na madeira. Passou as costas da mão pelo rosto.
Pode vir. Somos só eu e você agora.
respirou fundo, deixando a coluna ereta, quando virou as costas para a porta, abrindo-a e apoiando o ombro na madeira. Uma jovem mulher, loira, de olhos bem azuis, maquiagem preta espessa. Vestia uma blusa branca, com babados, e uma jaqueta de couro. O cachecol era cinza, usava jeans azuis que deixavam seu corpo perfeito. Acendeu um cigarro que já estava em sua boca, e ergueu o canto do lábio.
, por outro lado, tinha olheiras e os cabelos com frizz. As roupas estavam largas, e ela estava exausta.
Exatamente como queria ser.
Ramona virou os olhos, sem sair do lugar.
– Já estava na hora de ele se mandar, . Eu já estava sentindo sua falta.
deu espaço e a loira entrou na casa. Quando a porta foi fechada, não havia mais o que fazer.
Apenas conversar.
A loira sentou-se no sofá, tragando. Soprou a fumaça para cima, criando uma nuvem cor de rosa em cima deu seus cabelos loiros.
Não acredite. Não é real.
– Pare com isso – pediu, indo até onde ela estava, e sentando-se do outro lado – Meu pulmão está ficando uma merda por sua causa.
– A culpa é sua e você sabe.
engoliu em seco.
Dormir. Você só precisa dormir.
– Só apague.
Ramona apagou o cigarro na parede, desperdiçando um cigarro praticamente inteiro.
– Você me fez gastar um.
– Por que esperou ir embora para vir até mim?
Ramona riu, sentando-se acomodada no sofá.
– Porque eu não consigo vir com pessoas por perto.
Eu estava por perto com e por um motivo.
Não ouça-a. Você não a vê mexendo os lábios, e isso a deixa cada vez pior.
Só termine isso e vá dormir.
– Mas você feriu . Você queimou seu rosto, o fez ficar quase desfigurado.
– Não, meu anjo – Ramona falou, calma – Quem fez isso foi você.
As reações. As reações, quando se feriu.
Tão transparente, .
– Você foi uma ótima atriz com e – comentou.
Frente a frente.
Um espelho, muitos espelhos.
Todos vazios, porque não há ninguém ali.
Tudo que sempre quis ser.
– Eu tinha que ser.
– Por que escondeu isso de mim por tanto tempo?
– Porque era melhor para você. Quando eles morreram, você não viu os corpos. Era como se ainda estivessem aqui, como se a qualquer momento pudessem entrar por aquela porta.
Ramona apontou para a direção da saída da casa.
– Poderiam, ainda. Se você não soubesse de tudo.
– E por que eles morreram naquele momento? Naquela noite?
– Porque você não precisava mais deles.
tapou a boca.
Resista, é só um espelho.
– Eu preciso deles mais do que nunca.
– Merda, só ouço merda.
passou as mãos pelos cabelos.
– Por isso você surge do nada. Sempre surgiu. Sempre some de repente, ninguém a encontra.
Ramona sorriu.
– Bingo. Aquela história de detetive colou mesmo?
ergueu o olhar, fuzilando Ramona. A loira sorriu.
– Quer dizer, não deixou de ser verdade. Eu sou uma detetive. Só não sou particular.
– Você sempre gostou mais de me confundir do que de deixar tudo mais claro.
– Eu? Tem certeza?
Dormir. Você só precisa dormir.
E peça a peça, posso entrar em seus sonhos.
Porque são meus sonhos.
– Eu sempre deixei tudo claro, mas você nunca quis enxergar que somos uma única alma.
Está deitada, está deitada em sua cama e não pode se mover.
– Você precisa aceitar isso – Ramona disse, se ajoelhando e ficando a uma mesa de distância de – Por mais que você seja o cisne branco, por quem todos torcem, eu sou o cisne negro, que todos amam.
Resista.
Resista.
É apenas o lado escuro da lua.
Há alguém na minha cabeça que não sou eu.
– Não quero mais te ver, Ramona. Quero que suma. Quero que vá embora para sempre.
fechou os olhos com força. A pistola que Zoe pegara estava aos seus pés.
Quando os abriu novamente, a loira estava na mesma posição de antes.
– Não sou como um sonho ruim, . Você não pode simplesmente fechar os olhos, desejar acordar e fugir para o quarto dos seus pais, esperando que eu suma. Eu não sou um pesadelo, eu sou seu sonho.
Inclinou o corpo para frente.
– Olhe só para mim. Você me fez, você queria ser assim.
– Cale a boca! – gritou, segurando a pistola com firmeza e a apontando para o meio da testa de Ramona.
A loira não reagiu.
– Por Deus, fale de uma vez, Ramona – tinha a voz chorosa – Fale de uma vez, sem rodeios. Diga com todas as letras o que ou quem você é.
Os olhos azuis a fitavam.
– Pare só um instante. Pare e veja o quão ridículo isso está soando. Você não pode se livrar de mim.
Todos os espelhos, para onde olhasse, tinham a mesma imagem, de diferentes ângulos.
Coisas ruins que ela mesma armara ali, montara, achando que fariam seu bem.
Seu maior vilão é você mesmo, e quem você não pode tomar seu próprio controle.
– Eu sou você, do seu melhor jeito.
tinha a arma apontada para sua têmpora direita.
Quais são as coisas que te prendem à sanidade?
Ramona? Ramona lhe prende à sanidade?
Ou prende Ramona à sanidade?
– Você não pode fugir de sua própria mente, criança.
deixou a arma cair no chão, e esperou.
Pode falar. Pode dizer tudo. Estou pronta.
– Eu surgi há muito tempo, . Você sempre precisou de companheiros, de pessoas que confiasse e com quem pudesse contar. Você sempre precisou de alguém como eu.
Os sonhos caem aos seus pés em cacos de vidro. Você se fere sempre quando os pisoteia, porque não pode vê-los ali.
– Toda vez que você ficava sozinha, toda noite que você chorava sozinha em seu quarto, eu começava a nascer.
Como uma fênix.
– Uma menininha, não uma heroína. Uma garotinha que tinha medo do escuro, que precisava de uma mãe, e que era apaixonada por seu melhor amigo. Uma menina que precisava de uma amiga.
E depois disso tudo, estamos aqui, sozinhas.
– Eu era o que você queria ser. Uma mulher linda, que, por onde passa, atrai olhares. Bem-sucedida. Uma mulher corajosa, que faz e diz o que quer.
– Eu me tornei essa mulher.
Ramona sorriu.
– Não, você ainda quer se tornar. Sua própria heroína.
Fizeram uma pausa.
– Todos querem mudar o mundo, mas ninguém quer ser o primeiro a tentar. Eu sou o seu lado mais corajoso. De início, só uma idealização.
– Até o dia do estupro – completou.
– Se quiser chamar assim... Você quis aquilo. Você foi àquela festa para aquilo, mas não quis naquele momento. E essa foi a explosão. Eu poderia sair. Naquele momento, eu era quem vivia aquilo. Eu sentia, eu enxergava o que Joe estava fazendo. Eu o sentia me penetrando, me rasgando e me ferindo. E eu não fiquei nem um pouco feliz.
– Você quebrou o braço dele.
– Não, anjo – Ramona falou, sorrindo e apontando para ela – Você quebrou o braço dele.
– Como isso aconteceu?
A loira bufou. Começou a enrolar cachos de seu cabelo.
– Eu tinha me encontrado com ele no quintal do Palácio, onde ficavam as coisas de jardinagem. Ele achou que poderia fazer algo conosco de novo, mas, como você estava dormindo, eu tomei o controle.
– E o que fez?
– Bati com uma pá na cabeça dele, e, depois, martelei seu osso até ouvir quebrar. Tinha colocado um pano na boca daquele bastardo. Ele ia sentir o que sentimos. Não iria gritar, e ia sentir uma dor comparável a sua alma se partindo.
colocou a mão na boca.
– Eu fiz questão de mostrar que não era você. Não queria consequências piores. Depois, você mesma começou a se trilhar, conhecendo o , o , a . Sumi por uns tempos, nessa época. Quando você entrou na polícia, e uma garotinha pequena e indefesa não era mais cabível, comecei a voltar. De um gatinho, eu deveria te transformar em um leão.
A serpente vigilante.
Ramona é a Serpente Vigilante.
– Você quer tomar a vida de tudo e todos. Você está só cabendo. Está na linha, em cima do muro. Eu sou seu lado mais verdadeiro.
– O que mais você fez, Ramona?
– Joe sabia de nós duas. Sabia que somos duas pessoas dividindo um corpo. James e Jacqueline também sabiam. E você sabe o que aconteceu depois.
Eu sou um subproduto de Ramona.
Todos querem Ramona. Ela é o meu maior lado.
– Quando voltamos do Manson, eu estava pronta para vir. Em você mesma, eu já vinha. Era cada segundo de irritação, descontentamento e, principalmente, ódio. Quando Tyler chegou, você não conseguiu ver o que eu vi: ele é um peso.
– Você ajudou no sequestro de Tyler.
Por isso ele não confia mais em mim.
Ele nos viu.
– Somos diferentes, . Dividimos nosso cérebro, somos vizinhos que nunca se encontram. Quando Jackie e James quiseram sua vingança, eles quase conseguiram: matar Tyler e fazer morrer. Porque Ramona é mais importante para eles. Eu fui com Jacqueline até os Hotéis Tate, enquanto você dormia dentro de mim. Eu consegui a prova que nos inocentaria, eu consegui a chave para sua soltura das algemas, quando Jackie não viu.
– Você nos salvou.
– Claro. James era um idiota, foi fácil pegar as chaves dele. Quando Jacqueline me prendeu sem que eu protestasse, você logo apareceu de novo, para a parte mais sem graça do seu cérebro. Mas, teoricamente, eu quem tinha as chaves. Fiz o teatro para você achar que as dei.
– Quando você atacou Jacqueline no restaurante, quando você me salvou...
– Eu te salvei. Eu ataquei, mas seu corpo foi nosso material comum.
– Tudo que aconteceu no sequestro foi planejado?
– Claro que não, imbecil. Eles iam matar Tyler, e queriam que eu tomasse seu lugar de vez. Mas não deu certo, porque eu tinha ideias mais ambiciosas. Seus amigos nos ajudaram, verdade, mas praticamente tudo que aconteceu foi planejado por nós.
– Não chame isso de nós, Ramona.
– Tudo ocorreu bem, depois. Mas você juntou naquele jornalista de merda, e cada vez que você se aproximava dele, precisava menos de mim, de e de . Por isso ficamos distantes entre o período do sequestro e o que aconteceu com ele e sua amiguinha.
– Você teve algo a ver com isso? e ?
– Aquilo me fortaleceu muito. A mim e ao que restara de e . Sua raiva, tristeza e dependência de um verdadeiro companheiro.
– Você me mandou ir para a casa do . Por que não gostava de , mas não tinha problema?
– Porque o é um babaca. Você continuou e continuaria precisando de nós, com o . Ele era só uma fachada, , e você sabe disso, só não quer admitir. Ele era uma pseudofelicidade, um pseudomomento.
Seu semblante ficou sério.
– era para valer. tinha tudo para ser uma ameaça para mim, e . Por isso não queremos vocês.
– E ? também está morta?
– Não, essa não. Ela partiu porque tinha medo de você.
– De você, Ramona.
– De você. Ela não sabia diferenciar. Ela sabe que existem duas, só não sabe diferenciá-las.
– Mais alguém sabe?
– E quando fez a merda, eu me irritei de novo. Como em Joe Durden. Nos vingamos dele. Ele sabe sobre nós, e teme. Não diz a ninguém, e se disse, tal pessoa também nos teme.
Sorriu.
– Fazemos as pessoas terem medo, . O quão ótimo isso é?
– É horrível, Ramona. É terrível demais.
– Mais merda – Ramona virou os olhos, levantando e indo para o canto da sala, andando enquanto continuava a falar – Pessoas com medo não ameaçam. Elas nos admiram, não querem se aproximar de nós.
– Isso é horrível – retrucou , indo até Ramona, devagar.
– Pare de se negar! – a loira deu um tapa no rosto de – Pare de nos negar. Eu sou seu melhor lado, e você sabe disso. Eu poderia matar o , e você sabe disso. Você foi real com ele, e ele foi um babaca. Não queria que você se ferisse como ele a feriu, eu só não queria aquele jornalista.
Ramona riu, molhando os lábios em seguida.
– Nunca deixe as pessoas conhecerem seu lado feio, .
Eu sou meu lado feio.
Você é meu lado mais belo.
Meu lado inexistente.
Meu lado ideal.
– Quando ficamos aqui, nós quatro, tudo era mais fácil. Tudo ficou melhor.
– E você e ?
– Uma maneira patética que você encontrou de se livrar da culpa por foder o . Depois que eu dei o troco naquele filho da puta, eu o assustei até o osso. Ele ouviu nossa voz, mas sabia que não era você. Ele sabia que havia outra pessoa lá.
podia se lembrar. A seringa, o beijo, os cortes, o ácido.
– Mas, como a diferença entre a genialidade e a burrice é que a genialidade tem limite, o jornalista volta à tona. E te deixa confusa. Você passa a me temer, a me ver novamente como uma ameaça. E eu precisei dar um jeito nisso.
– Você está me assustando, Ramona.
– Eu era uma ameaça para você, de início, porque você temia esse lado. Todos temem. Todos têm medo do desconhecido, do que podem fazer quando perdem o controle. Ninguém quer deixar seu verdadeiro ‘eu’ agir. Criam uma válvula de escape, um jeito de me fazer fluir. Nem sempre conseguem, às vezes consigo escapar. E hoje, você precisa de mim. Porque percebeu que eu sou mesmo a melhor parte de você.
– Pare.
– Eu percebi que não precisava de você como você precisava de mim. Eu era maior que você. Eu criei , eu fui a Serpente Vigilante e tudo que ela carrega.
– Ramona, por favor.
tapou os ouvidos, mas a voz não vinha de lá.
– Naquela noite, eu vim de verdade. Para que ele te visse como nós somos. Eu queria matá-lo, mas não o mataria. Porque a intenção era assustá-lo.
– não me deixaria – murmurou, abaixando-se, e abraçando seus próprios joelhos.
– Aquele cara é um insistente da porra, irritante para cacete. Precisei da cartada final.
Apertou os olhos.
– Você... Você matou e .
– Nós matamos. Eu lhe dei a notícia porque isso iria começar a te confundir. Você sem entender como nunca soube, querer entender tudo, quando percebeu que eles estavam no Halloween e no suicida. Isso abriu minha janela.
Voltou para , se ajoelhando na frente dela, no chão.
– Você devia ter matado o . Não devia ter mantido ele aqui. Esse território é nosso. Deveria ter matado-o, você sabia o que fazer. Sabia o que deveria ter feito.
– Ramona, por favor...
– E pouco a pouco – a loira segurou os cabelos de , levantando sua cabeça. As lágrimas fracas corriam pelo rosto da detetive – Posso entrar em seus sonhos. Afinal, ... Quais são as coisas que te prendem à sanidade?
Você.
– Eu sou maior do que você. Estou tomando seu lugar aos poucos. Mais um tempo, e você sabe que não vai resistir.
Acariciou o rosto de .
– Eu vou ser toda você, e eu serei a verdadeira . Com a ajuda de nossos amiguinhos, eu serei maior do que você jamais foi. Porque você é uma questão de tempo. Eu serei a eternidade.
engoliu em seco, porque sabia que era verdade.
– Eu farei você morrer, e cuidarei bem do que você deixou. Porque eu sou melhor do que você – piscou um olho – Nunca acredite no contrário.
fechou os olhos com força. Reuniu toda sua coragem, tudo que não era de Ramona, e murmurou:
– Eu estava aqui no começo.
– Bem, então vamos ver quem vai estar aqui no final.
Ramona segurou o rosto de , apertando suas bochechas.
– Eu tirei você da escuridão comigo, , e se eu vou voltar para lá, você vai também.
Os espelhos.
A enorme tatuagem em suas costas.
As asas de um anjo falso, que escalou sem caminho desde o inferno.
e Ramona não eram a mesma pessoa. Eram o mesmo corpo.
Ramona era algo maior. Que não conseguia controlar.
A cada segundo, ela diminuía, e Ramona crescia. E ela deixava espaço para isso.
Você não pode fugir de sua própria mente, criança.
Levante-se. Livre-se dos espelhos. Quebre tudo que lhe aflige.
– Cale a boca, Ramona – murmurou, ficando de pé, com os dentes trincados.
Eu sou seu lado mais verdadeiro.
O cisne negro.
Uma sempre estará trancafiada na escuridão.
– Cale a boca.
Ninguém está lhe ouvindo. Você sabe que a casa está vazia, então por que insiste?
Sabe que está ficando louca.
Outro porta-retratos voou contra um espelho, estilhaçando-o.
Ele está vivo.
Joe Durden sabe de Ramona.
Ele está por trás disso? Com ela?
Não seja ridícula.
Quebre o que lhe aflige.
A raiva. A raiva liberta. A raiva trabalha ao seu lado. A raiva é cuspida na cara do seu inimigo.
Outro espelho estilhaçado.
Transforme a dor em raiva, e estarei cada vez maior para você.
Porque você me permitiu crescer.
Grotesca.
– Cale a boca!
A mesa de centro vira-se, e tudo em cima dela cai no chão, quebra-se. A mesa faz um estrondo ao bater no solo.
A pistola.
Não pode me matar.
segurou a pistola, apontou-a para os espelhos no teto, e atirou.
Uma chuva de cristais se fez no centro da sala.
Ainda não é o suficiente.
Suba as escadas e faça o trabalho completo.
Por todos os quartos, espelhos quebrados.
E no quarto maior, tudo se apaga, e o nome de Ramona está escrito milhares de vezes.
Tudo se perde, e se diminui, em um microuniverso. Mas o lado escuro da lua?
Ele se expande eternamente, em um belo Big Bang.
No meio da noite, estava deitada no centro do quarto. Dormia.
Ramona acordou. Ficou de pé, e foi andando calmamente, até o andar de baixo.
Poucos móveis e objetos restaram de pé. Tudo estava espalhado pelo chão, como se um tornado varresse a casa por inteiro.
Ramona desceu as escadas, enrolando seu cabelo e prendendo-o em um coque. Foi até o aparelho de som, um dos únicos que provavelmente ainda funcionava.
Escolheu um disco e uma música, e começou.
Seus quadris dançavam lentos, seus braços acompanhando o ritmo. Seus pés delicados pareciam flutuar sobre os cacos de vidro espalhados no chão, massageando sua pele em uma doce sensação de perda.
flui, e vai embora aos poucos.
A cada passo seu, suas roupas voam pela sala. Primeiro, a blusa larga, que é lançada contra as escadas. Ramona ri infantilmente, enquanto desfaz-se também das calças moletom.
parecia ter melhorado de gosto depois de Ramona apareceu, mas talvez não.
E café? Bebia litros de café.
Toda vez que Ramona vinha, era mais um balde de cafeína quase pura.
Aquele corpo, a tatuagem, não eram de , mas estavam nela.
Ramona pegou o telefone, e discou o número da polícia. As mensagens enviadas para o celular de vinham de um número bloqueado e irrastreável, mandadas por ela mesma. O mesmo celular foi usado para fazer a ligação.
Com a música alta no fundo, e mais sua voz modificada para outro tom e saindo mais nasalada, Ramona seria mais dificilmente identificada ainda.
– Delegacia de Longview – disse um policial.
– Gostaria de reportar um depoimento sobre uma mulher potencialmente perigosa.
– Ela cometeu algum crime?
– Não sei, senhor, mas ela pode cometer.
– Quem seria a mulher, senhora?
Ramona sorriu.
– .
Cada vez mais próxima de um fim, o mundo de Ramona girava, enquanto o de explodia.
Eram seis da manhã quando o telefone tocou, fixo. tinha acordado, e, no andar debaixo, tocava algo no aparelho de som.
Não se importou em tentar lembrar quando colocara aquela música, e sim em atender. Desceu as escadas correndo, e desconfortável, pois caíra no sono apenas com suas roupas íntimas.
– Alô? – perguntou, arfando.
– – falou – Tem alguém aí?
Aquela pergunta tinha muitos sentidos, mas preferiu encurtar:
– Não. Só eu. Por quê? Está soando preocupado.
– Estou. Tem duas viaturas indo para sua casa, na velocidade da luz. Receberam uma ligação falando que você enlouqueceu e que tentou matar alguém, ou algo assim. Vai sair daqui a pouco, assim que reunirem todos os policiais.
– O que você acha que devo fazer?
Ele ficou alguns segundos em silêncio, provavelmente, disfarçando de quem estivesse por perto.
– Vá para a casa de alguém. Não vá para a minha, ou do . Marla está responsável pela procura e devem chegar aqui em quinze minutos. Como está a casa?
Um caos.
– Vou sair em cinco. Te ligo quando ficar tudo bem. Não me procure.
Ele ficou em silêncio novamente, e, dessa vez, não parecia disfarçar.
– Fique bem.
Desligaram. encarou o telefone por cinco segundos antes de discar um número. Esperou alguém atender, e, quando finalmente o fizeram, ela foi direta:
– Sua proposta de ajuda ainda está de pé?
– ! – gritou Marla – , somos nós. Abra a porta.
Não houve resposta. Havia seis policiais, contando com Marla, ali, todos armados e com coletes à prova de balas.
– – ela repetiu, com a arma firme na mão, na frente de todos – Se não abrir, seremos obrigados a arrombar.
Ela olhou para outros policiais, comprimindo os lábios. Um deles fez sinal para que ela fosse em frente.
Marla olhou para a madeira e deu um chute, fazendo-a balançar. Deu outro, que a fez enfraquecer, mas não ceder. No terceiro, a porta foi contra o chão, e seis policiais invadiram a casa de .
Havia vidro espalhado pelo chão, papéis, pequenos objetos...
– – gritou Marla.
Um policial subiu as escadas, e outro foi até a cozinha.
– Está vazio, Bronx. Ela não está aqui.
– Vamos continuar as buscas – Marla disse, colocando as mãos na cintura – Dois vão até a casa do , dois para o , um para a Julie. Vamos procurar, ela é perigosa e pode estar armada.
– Positivo, Marla. Qualquer novidade, deixaremos você sabendo.
– É bom que o façam.
Saíram da casa, deixando tudo para trás. Colocaram na entrada a fita amarela, com os conhecidos dizeres ‘não ultrapasse’. Marla entrou em seu carro.
continuou no hospital.
Passaram o resto da manhã procurando por . Depois do almoço, ficaram na delegacia, procurando por ela, sem sucesso.
Era noite quando todos voltaram para suas casas. Marla foi, sozinha, até seu apartamento, subindo as escadas apertadas, até chegar em seu andar, e girar a chave na fechadura.
– Boa noite.
– Boa noite. E muito obrigada.
estava sentada em seu chão, sobre o tapete, agachada e bebericando uma caneca de café.
So shut you eyes, kiss me goodbye, and sleep...
Para Sigmund Freud, o alterego seria uma personalidade criada pelo indivíduo, como uma duplicata de si próprio. O alterego representaria um personagem criado por alguém, o qual receberia certas características dessa pessoa, quase como se criasse uma pessoa nova.
Tal pessoa pode ser considerada um amigo, parente ou um confidente.
Para a psicologia, trata-se de um outro ‘eu’ inconsciente que se revela através de múltiplas ou uma única identidade. Seria uma face secreta, um ângulo desconhecido da personalidade. O lado mais fundo da mente, enquanto o ego é a fração mais rasa.
Alguns escritores fazem uso de alteregos em suas obras, que seriam personagens que o representam na história contada.
Outro sentido para alterego é a existência de um amigo tão próximo, íntimo e leal que é como se vocês não pudessem se afastar. Nessa situação, há tamanha confiança cega que você verá a si mesmo refletido nesta pessoa.
‘Alter’ significa ‘outro’. ‘Ego’ significa ‘eu’. Ou seja, em essência, um alterego é um outro você.
Eu estou deitada, estou deitada em minha cama, mas não posso me mover. Eu sinto isso vindo, eu posso ver chegando, não consigo contê-la. Quero me mover para fazer ir embora, mas não consigo, nenhum lugar parece seguro. Estou em minha cama, mas não parece seguro e não posso me mover. Está vindo, é forte demais e não consigo contê-la...
– – ele falou, surgindo na porta do quarto dos espelhos – Vou pegar algo para comer. Quer que eu peça o que para você?
Aqui não é seguro e não quero ferir mais ninguém com isso.
– Não vou querer nada, . Obrigada. Vai sair agora?
Ele assentiu. foi até a porta e passou por , descendo as escadas e deixando-o para trás. Quando chegou à porta da casa, segurou a maçaneta e olhou para ele.
desceu devagar, fazendo o mesmo trajeto que ela. abriu a porta para ele, que andou até sair.
– Acha melhor que eu volte mais tarde?
Ela engoliu em seco. Achar melhor, ela não achava. Para fazer o que precisava fazer, ele precisava partir por um bom tempo.
Mas queria-o por perto.
As coisas pareciam menos destinadas a ruir quando estava por perto.
– Não – ela molhou os lábios e olhou para baixo, enquanto murmurava sua resposta. assentiu, decepcionado com a resposta.
Adivinhe, outro ‘fim de jogo’.
Mas antes de que ele pudesse ir embora, segurou seu ombro, virando-o para si. Ficou rapidamente na ponta dos pés, beijando os lábios de de leve. Acariciava sua nuca e parecia prestes a chorar.
Tinha um gosto horrível, aquele beijo. sentiu como se nunca mais fosse vê-la novamente.
– Eu te amo. De verdade. Nunca acredite no contrário. Ok? – ela disse, terminando o beijo, em um sussurro. Suas unhas arranhavam de leve a blusa de , como que querendo mantê-lo ali.
– Eu também te amo. Muito.
– Nunca acredite no contrário – ela repetiu.
assentiu, levantando o queixo de para dar um leve beijo de novo.
Ele se foi, e, assim que a porta foi fechada, apoiou as costas na madeira. Passou as costas da mão pelo rosto.
Pode vir. Somos só eu e você agora.
respirou fundo, deixando a coluna ereta, quando virou as costas para a porta, abrindo-a e apoiando o ombro na madeira. Uma jovem mulher, loira, de olhos bem azuis, maquiagem preta espessa. Vestia uma blusa branca, com babados, e uma jaqueta de couro. O cachecol era cinza, usava jeans azuis que deixavam seu corpo perfeito. Acendeu um cigarro que já estava em sua boca, e ergueu o canto do lábio.
, por outro lado, tinha olheiras e os cabelos com frizz. As roupas estavam largas, e ela estava exausta.
Exatamente como queria ser.
Ramona virou os olhos, sem sair do lugar.
– Já estava na hora de ele se mandar, . Eu já estava sentindo sua falta.
deu espaço e a loira entrou na casa. Quando a porta foi fechada, não havia mais o que fazer.
Apenas conversar.
A loira sentou-se no sofá, tragando. Soprou a fumaça para cima, criando uma nuvem cor de rosa em cima deu seus cabelos loiros.
Não acredite. Não é real.
– Pare com isso – pediu, indo até onde ela estava, e sentando-se do outro lado – Meu pulmão está ficando uma merda por sua causa.
– A culpa é sua e você sabe.
engoliu em seco.
Dormir. Você só precisa dormir.
– Só apague.
Ramona apagou o cigarro na parede, desperdiçando um cigarro praticamente inteiro.
– Você me fez gastar um.
– Por que esperou ir embora para vir até mim?
Ramona riu, sentando-se acomodada no sofá.
– Porque eu não consigo vir com pessoas por perto.
Eu estava por perto com e por um motivo.
Não ouça-a. Você não a vê mexendo os lábios, e isso a deixa cada vez pior.
Só termine isso e vá dormir.
– Mas você feriu . Você queimou seu rosto, o fez ficar quase desfigurado.
– Não, meu anjo – Ramona falou, calma – Quem fez isso foi você.
As reações. As reações, quando se feriu.
Tão transparente, .
– Você foi uma ótima atriz com e – comentou.
Frente a frente.
Um espelho, muitos espelhos.
Todos vazios, porque não há ninguém ali.
Tudo que sempre quis ser.
– Eu tinha que ser.
– Por que escondeu isso de mim por tanto tempo?
– Porque era melhor para você. Quando eles morreram, você não viu os corpos. Era como se ainda estivessem aqui, como se a qualquer momento pudessem entrar por aquela porta.
Ramona apontou para a direção da saída da casa.
– Poderiam, ainda. Se você não soubesse de tudo.
– E por que eles morreram naquele momento? Naquela noite?
– Porque você não precisava mais deles.
tapou a boca.
Resista, é só um espelho.
– Eu preciso deles mais do que nunca.
– Merda, só ouço merda.
passou as mãos pelos cabelos.
– Por isso você surge do nada. Sempre surgiu. Sempre some de repente, ninguém a encontra.
Ramona sorriu.
– Bingo. Aquela história de detetive colou mesmo?
ergueu o olhar, fuzilando Ramona. A loira sorriu.
– Quer dizer, não deixou de ser verdade. Eu sou uma detetive. Só não sou particular.
– Você sempre gostou mais de me confundir do que de deixar tudo mais claro.
– Eu? Tem certeza?
Dormir. Você só precisa dormir.
E peça a peça, posso entrar em seus sonhos.
Porque são meus sonhos.
– Eu sempre deixei tudo claro, mas você nunca quis enxergar que somos uma única alma.
Está deitada, está deitada em sua cama e não pode se mover.
– Você precisa aceitar isso – Ramona disse, se ajoelhando e ficando a uma mesa de distância de – Por mais que você seja o cisne branco, por quem todos torcem, eu sou o cisne negro, que todos amam.
Resista.
Resista.
É apenas o lado escuro da lua.
Há alguém na minha cabeça que não sou eu.
– Não quero mais te ver, Ramona. Quero que suma. Quero que vá embora para sempre.
fechou os olhos com força. A pistola que Zoe pegara estava aos seus pés.
Quando os abriu novamente, a loira estava na mesma posição de antes.
– Não sou como um sonho ruim, . Você não pode simplesmente fechar os olhos, desejar acordar e fugir para o quarto dos seus pais, esperando que eu suma. Eu não sou um pesadelo, eu sou seu sonho.
Inclinou o corpo para frente.
– Olhe só para mim. Você me fez, você queria ser assim.
– Cale a boca! – gritou, segurando a pistola com firmeza e a apontando para o meio da testa de Ramona.
A loira não reagiu.
– Por Deus, fale de uma vez, Ramona – tinha a voz chorosa – Fale de uma vez, sem rodeios. Diga com todas as letras o que ou quem você é.
Os olhos azuis a fitavam.
– Pare só um instante. Pare e veja o quão ridículo isso está soando. Você não pode se livrar de mim.
Todos os espelhos, para onde olhasse, tinham a mesma imagem, de diferentes ângulos.
Coisas ruins que ela mesma armara ali, montara, achando que fariam seu bem.
Seu maior vilão é você mesmo, e quem você não pode tomar seu próprio controle.
– Eu sou você, do seu melhor jeito.
tinha a arma apontada para sua têmpora direita.
Quais são as coisas que te prendem à sanidade?
Ramona? Ramona lhe prende à sanidade?
Ou prende Ramona à sanidade?
– Você não pode fugir de sua própria mente, criança.
deixou a arma cair no chão, e esperou.
Pode falar. Pode dizer tudo. Estou pronta.
– Eu surgi há muito tempo, . Você sempre precisou de companheiros, de pessoas que confiasse e com quem pudesse contar. Você sempre precisou de alguém como eu.
Os sonhos caem aos seus pés em cacos de vidro. Você se fere sempre quando os pisoteia, porque não pode vê-los ali.
– Toda vez que você ficava sozinha, toda noite que você chorava sozinha em seu quarto, eu começava a nascer.
Como uma fênix.
– Uma menininha, não uma heroína. Uma garotinha que tinha medo do escuro, que precisava de uma mãe, e que era apaixonada por seu melhor amigo. Uma menina que precisava de uma amiga.
E depois disso tudo, estamos aqui, sozinhas.
– Eu era o que você queria ser. Uma mulher linda, que, por onde passa, atrai olhares. Bem-sucedida. Uma mulher corajosa, que faz e diz o que quer.
– Eu me tornei essa mulher.
Ramona sorriu.
– Não, você ainda quer se tornar. Sua própria heroína.
Fizeram uma pausa.
– Todos querem mudar o mundo, mas ninguém quer ser o primeiro a tentar. Eu sou o seu lado mais corajoso. De início, só uma idealização.
– Até o dia do estupro – completou.
– Se quiser chamar assim... Você quis aquilo. Você foi àquela festa para aquilo, mas não quis naquele momento. E essa foi a explosão. Eu poderia sair. Naquele momento, eu era quem vivia aquilo. Eu sentia, eu enxergava o que Joe estava fazendo. Eu o sentia me penetrando, me rasgando e me ferindo. E eu não fiquei nem um pouco feliz.
– Você quebrou o braço dele.
– Não, anjo – Ramona falou, sorrindo e apontando para ela – Você quebrou o braço dele.
– Como isso aconteceu?
A loira bufou. Começou a enrolar cachos de seu cabelo.
– Eu tinha me encontrado com ele no quintal do Palácio, onde ficavam as coisas de jardinagem. Ele achou que poderia fazer algo conosco de novo, mas, como você estava dormindo, eu tomei o controle.
– E o que fez?
– Bati com uma pá na cabeça dele, e, depois, martelei seu osso até ouvir quebrar. Tinha colocado um pano na boca daquele bastardo. Ele ia sentir o que sentimos. Não iria gritar, e ia sentir uma dor comparável a sua alma se partindo.
colocou a mão na boca.
– Eu fiz questão de mostrar que não era você. Não queria consequências piores. Depois, você mesma começou a se trilhar, conhecendo o , o , a . Sumi por uns tempos, nessa época. Quando você entrou na polícia, e uma garotinha pequena e indefesa não era mais cabível, comecei a voltar. De um gatinho, eu deveria te transformar em um leão.
A serpente vigilante.
Ramona é a Serpente Vigilante.
– Você quer tomar a vida de tudo e todos. Você está só cabendo. Está na linha, em cima do muro. Eu sou seu lado mais verdadeiro.
– O que mais você fez, Ramona?
– Joe sabia de nós duas. Sabia que somos duas pessoas dividindo um corpo. James e Jacqueline também sabiam. E você sabe o que aconteceu depois.
Eu sou um subproduto de Ramona.
Todos querem Ramona. Ela é o meu maior lado.
– Quando voltamos do Manson, eu estava pronta para vir. Em você mesma, eu já vinha. Era cada segundo de irritação, descontentamento e, principalmente, ódio. Quando Tyler chegou, você não conseguiu ver o que eu vi: ele é um peso.
– Você ajudou no sequestro de Tyler.
Por isso ele não confia mais em mim.
Ele nos viu.
– Somos diferentes, . Dividimos nosso cérebro, somos vizinhos que nunca se encontram. Quando Jackie e James quiseram sua vingança, eles quase conseguiram: matar Tyler e fazer morrer. Porque Ramona é mais importante para eles. Eu fui com Jacqueline até os Hotéis Tate, enquanto você dormia dentro de mim. Eu consegui a prova que nos inocentaria, eu consegui a chave para sua soltura das algemas, quando Jackie não viu.
– Você nos salvou.
– Claro. James era um idiota, foi fácil pegar as chaves dele. Quando Jacqueline me prendeu sem que eu protestasse, você logo apareceu de novo, para a parte mais sem graça do seu cérebro. Mas, teoricamente, eu quem tinha as chaves. Fiz o teatro para você achar que as dei.
– Quando você atacou Jacqueline no restaurante, quando você me salvou...
– Eu te salvei. Eu ataquei, mas seu corpo foi nosso material comum.
– Tudo que aconteceu no sequestro foi planejado?
– Claro que não, imbecil. Eles iam matar Tyler, e queriam que eu tomasse seu lugar de vez. Mas não deu certo, porque eu tinha ideias mais ambiciosas. Seus amigos nos ajudaram, verdade, mas praticamente tudo que aconteceu foi planejado por nós.
– Não chame isso de nós, Ramona.
– Tudo ocorreu bem, depois. Mas você juntou naquele jornalista de merda, e cada vez que você se aproximava dele, precisava menos de mim, de e de . Por isso ficamos distantes entre o período do sequestro e o que aconteceu com ele e sua amiguinha.
– Você teve algo a ver com isso? e ?
– Aquilo me fortaleceu muito. A mim e ao que restara de e . Sua raiva, tristeza e dependência de um verdadeiro companheiro.
– Você me mandou ir para a casa do . Por que não gostava de , mas não tinha problema?
– Porque o é um babaca. Você continuou e continuaria precisando de nós, com o . Ele era só uma fachada, , e você sabe disso, só não quer admitir. Ele era uma pseudofelicidade, um pseudomomento.
Seu semblante ficou sério.
– era para valer. tinha tudo para ser uma ameaça para mim, e . Por isso não queremos vocês.
– E ? também está morta?
– Não, essa não. Ela partiu porque tinha medo de você.
– De você, Ramona.
– De você. Ela não sabia diferenciar. Ela sabe que existem duas, só não sabe diferenciá-las.
– Mais alguém sabe?
– E quando fez a merda, eu me irritei de novo. Como em Joe Durden. Nos vingamos dele. Ele sabe sobre nós, e teme. Não diz a ninguém, e se disse, tal pessoa também nos teme.
Sorriu.
– Fazemos as pessoas terem medo, . O quão ótimo isso é?
– É horrível, Ramona. É terrível demais.
– Mais merda – Ramona virou os olhos, levantando e indo para o canto da sala, andando enquanto continuava a falar – Pessoas com medo não ameaçam. Elas nos admiram, não querem se aproximar de nós.
– Isso é horrível – retrucou , indo até Ramona, devagar.
– Pare de se negar! – a loira deu um tapa no rosto de – Pare de nos negar. Eu sou seu melhor lado, e você sabe disso. Eu poderia matar o , e você sabe disso. Você foi real com ele, e ele foi um babaca. Não queria que você se ferisse como ele a feriu, eu só não queria aquele jornalista.
Ramona riu, molhando os lábios em seguida.
– Nunca deixe as pessoas conhecerem seu lado feio, .
Eu sou meu lado feio.
Você é meu lado mais belo.
Meu lado inexistente.
Meu lado ideal.
– Quando ficamos aqui, nós quatro, tudo era mais fácil. Tudo ficou melhor.
– E você e ?
– Uma maneira patética que você encontrou de se livrar da culpa por foder o . Depois que eu dei o troco naquele filho da puta, eu o assustei até o osso. Ele ouviu nossa voz, mas sabia que não era você. Ele sabia que havia outra pessoa lá.
podia se lembrar. A seringa, o beijo, os cortes, o ácido.
– Mas, como a diferença entre a genialidade e a burrice é que a genialidade tem limite, o jornalista volta à tona. E te deixa confusa. Você passa a me temer, a me ver novamente como uma ameaça. E eu precisei dar um jeito nisso.
– Você está me assustando, Ramona.
– Eu era uma ameaça para você, de início, porque você temia esse lado. Todos temem. Todos têm medo do desconhecido, do que podem fazer quando perdem o controle. Ninguém quer deixar seu verdadeiro ‘eu’ agir. Criam uma válvula de escape, um jeito de me fazer fluir. Nem sempre conseguem, às vezes consigo escapar. E hoje, você precisa de mim. Porque percebeu que eu sou mesmo a melhor parte de você.
– Pare.
– Eu percebi que não precisava de você como você precisava de mim. Eu era maior que você. Eu criei , eu fui a Serpente Vigilante e tudo que ela carrega.
– Ramona, por favor.
tapou os ouvidos, mas a voz não vinha de lá.
– Naquela noite, eu vim de verdade. Para que ele te visse como nós somos. Eu queria matá-lo, mas não o mataria. Porque a intenção era assustá-lo.
– não me deixaria – murmurou, abaixando-se, e abraçando seus próprios joelhos.
– Aquele cara é um insistente da porra, irritante para cacete. Precisei da cartada final.
Apertou os olhos.
– Você... Você matou e .
– Nós matamos. Eu lhe dei a notícia porque isso iria começar a te confundir. Você sem entender como nunca soube, querer entender tudo, quando percebeu que eles estavam no Halloween e no suicida. Isso abriu minha janela.
Voltou para , se ajoelhando na frente dela, no chão.
– Você devia ter matado o . Não devia ter mantido ele aqui. Esse território é nosso. Deveria ter matado-o, você sabia o que fazer. Sabia o que deveria ter feito.
– Ramona, por favor...
– E pouco a pouco – a loira segurou os cabelos de , levantando sua cabeça. As lágrimas fracas corriam pelo rosto da detetive – Posso entrar em seus sonhos. Afinal, ... Quais são as coisas que te prendem à sanidade?
Você.
– Eu sou maior do que você. Estou tomando seu lugar aos poucos. Mais um tempo, e você sabe que não vai resistir.
Acariciou o rosto de .
– Eu vou ser toda você, e eu serei a verdadeira . Com a ajuda de nossos amiguinhos, eu serei maior do que você jamais foi. Porque você é uma questão de tempo. Eu serei a eternidade.
engoliu em seco, porque sabia que era verdade.
– Eu farei você morrer, e cuidarei bem do que você deixou. Porque eu sou melhor do que você – piscou um olho – Nunca acredite no contrário.
fechou os olhos com força. Reuniu toda sua coragem, tudo que não era de Ramona, e murmurou:
– Eu estava aqui no começo.
– Bem, então vamos ver quem vai estar aqui no final.
Ramona segurou o rosto de , apertando suas bochechas.
– Eu tirei você da escuridão comigo, , e se eu vou voltar para lá, você vai também.
Os espelhos.
A enorme tatuagem em suas costas.
As asas de um anjo falso, que escalou sem caminho desde o inferno.
e Ramona não eram a mesma pessoa. Eram o mesmo corpo.
Ramona era algo maior. Que não conseguia controlar.
A cada segundo, ela diminuía, e Ramona crescia. E ela deixava espaço para isso.
Você não pode fugir de sua própria mente, criança.
Levante-se. Livre-se dos espelhos. Quebre tudo que lhe aflige.
– Cale a boca, Ramona – murmurou, ficando de pé, com os dentes trincados.
Eu sou seu lado mais verdadeiro.
O cisne negro.
Uma sempre estará trancafiada na escuridão.
– Cale a boca.
Ninguém está lhe ouvindo. Você sabe que a casa está vazia, então por que insiste?
Sabe que está ficando louca.
Outro porta-retratos voou contra um espelho, estilhaçando-o.
Ele está vivo.
Joe Durden sabe de Ramona.
Ele está por trás disso? Com ela?
Não seja ridícula.
Quebre o que lhe aflige.
A raiva. A raiva liberta. A raiva trabalha ao seu lado. A raiva é cuspida na cara do seu inimigo.
Outro espelho estilhaçado.
Transforme a dor em raiva, e estarei cada vez maior para você.
Porque você me permitiu crescer.
Grotesca.
– Cale a boca!
A mesa de centro vira-se, e tudo em cima dela cai no chão, quebra-se. A mesa faz um estrondo ao bater no solo.
A pistola.
Não pode me matar.
segurou a pistola, apontou-a para os espelhos no teto, e atirou.
Uma chuva de cristais se fez no centro da sala.
Ainda não é o suficiente.
Suba as escadas e faça o trabalho completo.
Por todos os quartos, espelhos quebrados.
E no quarto maior, tudo se apaga, e o nome de Ramona está escrito milhares de vezes.
Tudo se perde, e se diminui, em um microuniverso. Mas o lado escuro da lua?
Ele se expande eternamente, em um belo Big Bang.
No meio da noite, estava deitada no centro do quarto. Dormia.
Ramona acordou. Ficou de pé, e foi andando calmamente, até o andar de baixo.
Poucos móveis e objetos restaram de pé. Tudo estava espalhado pelo chão, como se um tornado varresse a casa por inteiro.
Ramona desceu as escadas, enrolando seu cabelo e prendendo-o em um coque. Foi até o aparelho de som, um dos únicos que provavelmente ainda funcionava.
Escolheu um disco e uma música, e começou.
Seus quadris dançavam lentos, seus braços acompanhando o ritmo. Seus pés delicados pareciam flutuar sobre os cacos de vidro espalhados no chão, massageando sua pele em uma doce sensação de perda.
flui, e vai embora aos poucos.
A cada passo seu, suas roupas voam pela sala. Primeiro, a blusa larga, que é lançada contra as escadas. Ramona ri infantilmente, enquanto desfaz-se também das calças moletom.
parecia ter melhorado de gosto depois de Ramona apareceu, mas talvez não.
E café? Bebia litros de café.
Toda vez que Ramona vinha, era mais um balde de cafeína quase pura.
Aquele corpo, a tatuagem, não eram de , mas estavam nela.
Ramona pegou o telefone, e discou o número da polícia. As mensagens enviadas para o celular de vinham de um número bloqueado e irrastreável, mandadas por ela mesma. O mesmo celular foi usado para fazer a ligação.
Com a música alta no fundo, e mais sua voz modificada para outro tom e saindo mais nasalada, Ramona seria mais dificilmente identificada ainda.
– Delegacia de Longview – disse um policial.
– Gostaria de reportar um depoimento sobre uma mulher potencialmente perigosa.
– Ela cometeu algum crime?
– Não sei, senhor, mas ela pode cometer.
– Quem seria a mulher, senhora?
Ramona sorriu.
– .
Cada vez mais próxima de um fim, o mundo de Ramona girava, enquanto o de explodia.
Eram seis da manhã quando o telefone tocou, fixo. tinha acordado, e, no andar debaixo, tocava algo no aparelho de som.
Não se importou em tentar lembrar quando colocara aquela música, e sim em atender. Desceu as escadas correndo, e desconfortável, pois caíra no sono apenas com suas roupas íntimas.
– Alô? – perguntou, arfando.
– – falou – Tem alguém aí?
Aquela pergunta tinha muitos sentidos, mas preferiu encurtar:
– Não. Só eu. Por quê? Está soando preocupado.
– Estou. Tem duas viaturas indo para sua casa, na velocidade da luz. Receberam uma ligação falando que você enlouqueceu e que tentou matar alguém, ou algo assim. Vai sair daqui a pouco, assim que reunirem todos os policiais.
– O que você acha que devo fazer?
Ele ficou alguns segundos em silêncio, provavelmente, disfarçando de quem estivesse por perto.
– Vá para a casa de alguém. Não vá para a minha, ou do . Marla está responsável pela procura e devem chegar aqui em quinze minutos. Como está a casa?
Um caos.
– Vou sair em cinco. Te ligo quando ficar tudo bem. Não me procure.
Ele ficou em silêncio novamente, e, dessa vez, não parecia disfarçar.
– Fique bem.
Desligaram. encarou o telefone por cinco segundos antes de discar um número. Esperou alguém atender, e, quando finalmente o fizeram, ela foi direta:
– Sua proposta de ajuda ainda está de pé?
– ! – gritou Marla – , somos nós. Abra a porta.
Não houve resposta. Havia seis policiais, contando com Marla, ali, todos armados e com coletes à prova de balas.
– – ela repetiu, com a arma firme na mão, na frente de todos – Se não abrir, seremos obrigados a arrombar.
Ela olhou para outros policiais, comprimindo os lábios. Um deles fez sinal para que ela fosse em frente.
Marla olhou para a madeira e deu um chute, fazendo-a balançar. Deu outro, que a fez enfraquecer, mas não ceder. No terceiro, a porta foi contra o chão, e seis policiais invadiram a casa de .
Havia vidro espalhado pelo chão, papéis, pequenos objetos...
– – gritou Marla.
Um policial subiu as escadas, e outro foi até a cozinha.
– Está vazio, Bronx. Ela não está aqui.
– Vamos continuar as buscas – Marla disse, colocando as mãos na cintura – Dois vão até a casa do , dois para o , um para a Julie. Vamos procurar, ela é perigosa e pode estar armada.
– Positivo, Marla. Qualquer novidade, deixaremos você sabendo.
– É bom que o façam.
Saíram da casa, deixando tudo para trás. Colocaram na entrada a fita amarela, com os conhecidos dizeres ‘não ultrapasse’. Marla entrou em seu carro.
continuou no hospital.
Passaram o resto da manhã procurando por . Depois do almoço, ficaram na delegacia, procurando por ela, sem sucesso.
Era noite quando todos voltaram para suas casas. Marla foi, sozinha, até seu apartamento, subindo as escadas apertadas, até chegar em seu andar, e girar a chave na fechadura.
– Boa noite.
– Boa noite. E muito obrigada.
estava sentada em seu chão, sobre o tapete, agachada e bebericando uma caneca de café.
So shut you eyes, kiss me goodbye, and sleep...
Capítulo 34 — I don’t love you
But baby when they knock you down and out, it’s where you oughta stay…
— Preciso dizer que nunca imaginaria que você viria até mim para te ajudar.
deu um sorriso fraco. A ruiva fechou a porta, indo na direção dela cansada, e com passos curtos.
De fato, tudo estava vazio.
— Eu entendo perfeitamente. Soube que você estava na cabeça da operação para me procurar.
— E como soube que poderia confiar em mim?
bebeu mais do café, quando Marla sentou no sofá ao seu lado.
— queria se encontrar comigo. Ele me chamou para o hospital, e eu o vi...
— Você viu seu rosto.
Desviando o olhar, assentiu.
— Ele me deu a caderneta dele, onde ele anota sobre os casos. Quase não tinha nada sobre Samantha, e . Tinha muito mais sobre Ramona.
Um leve silêncio tomou conta do espaço. A falta de reação de Marla já foi sua resposta.
— Você sabe quem é Ramona? — perguntou .
Marla mordeu o lábio.
— soube, e contou a Julie. Quando ele morreu, ela chamou a mim e ao para falar que, talvez, ele tivesse sido morto por causa disso. Ou foi forçado a se matar.
— Ele não se matou. Tenho certeza, e você também, de que ele foi assassinado.
— O que você acha que aconteceu?
— O assassino precisou de um jeito de trancar em algum lugar com escapamento de gás. Trancá-lo na própria garagem exigiria muita intimidade dos dois, e muito planejamento. E nosso assassino prefere trabalhar com agilidade.
fez uma pausa, bebendo o café.
— Acho que podem ter deixado-o desacordado. Duvido bastante que tinha corrido o risco de usar algo de longa duração, como um medicamento injetável. O furo da agulha deixaria uma marca.
— Então sufocá-lo também foi sua primeira opção.
ergueu o olhar para Marla, que devolveu um pequeno sorriso e um olhar cúmplice.
— Nós já suspeitávamos disso, . Há muito tempo. A corda no pescoço dele, usada para simular o suicídio, esconderia facilmente marcas de uma corda menor, usada previamente para deixá-lo inconsciente.
— Prenderam-no em um lugar com gás escapando, e depois simularam a forca.
Marla comprimiu os lábios, mordendo o inferior.
— Não queríamos que você visse o corpo. Sempre estivemos um passo à sua frente, na verdade. Mais ou menos.
— Você sabia que Ramona era uma manifestação minha.
— Eu nunca reparei isso. Mas depois que morreu e tinha contado isso para Julie, ela temeu que Ramona pudesse fazer algo contra nós, manifestada em você. Ela nos avisou.
— Agradeço por ninguém ter me avisado — falou com ironia.
— Tente compreender, ... Não fizemos isso para lhe prejudicar. Ramona sabe mais do que todos nós juntos, e lhe controlava quando precisava. Se tivéssemos contado, ela poderia tentar dar cabo de nós, e você dificilmente acreditaria.
Marla fez uma pausa e prosseguiu, sentando ao lado de , no chão:
— Estamos querendo te ajudar. De verdade.
— Por isso deixou no final da caderneta a anotação.
— Que anotação?
pegou o caderno no bolso do moletom. Abriu-o em uma página que tinha a ponta dobrada, na qual não havia nada escrito, além de uma única nota no meio e de letras maiúsculas:
"Se precisar de ajuda, fale com Marla."
A ruiva sorriu, com o mesmo ar cúmplice.
— Eu e você não nos dávamos porque uma não entendia a outra. Eu me irritava com o fato de você ter ascendido tão rápido, enquanto eu custei para tomar meu lugar, e ter reconhecimento pelo meu trabalho.
— Eu me irritava porque você não fazia questão nenhuma de ser gentil comigo.
— Quando fiquei com o caso Durden, aquilo me levou a algum lugar. Juro que não era nada pessoal. Para mim e , foi torturante ter que prender uma colega de trabalho. Por isso tentamos colocar você em uma clínica, não em uma prisão. Não tínhamos provas o suficiente para te culpar, ou álibis o suficiente para te inocentar. Acredite: já foi complicado te levar ao Manson. A pressão da imprensa era grande demais, queriam alguém atrás das grades.
— Quando voltei, queria pular no seu pescoço e do .
Marla deu uma risada.
— Eu entendo completamente. Teria reagido pior do que você. Mas quando vi que você precisava de nós, quando morreu, percebi que aquilo era ridículo. Toda a minha raiva, toda a situação. Você não sabia o que estava acontecendo, todos agiam pelas suas costas, inclusive eu. E achei isso a coisa mais babaca que poderíamos fazer. Queremos te ajudar, mas é algo delicado demais. Estamos te ajudando e lutando contra você... — Marla olhou para o chão por alguns instantes, até voltar seu olhar para — Por isso, precisamos saber o que Ramona fazia com você.
Rapidamente, explicou a história de Ramona. Cortando, é claro, a cena com Joe na festa, mas explicando bem o episódio do jantar na casa de . Não ocultou a amnésia e o fato de continuar vendo e , mesmo depois da morte de ambos.
— Preciso falar com . Você sabe como ela está? Ela sabe de algo?
Marla pegou o café da mão de , colocando-o longe desta. Caso a informação não agradasse, não precisaria catar porcelana do chão mais tarde.
— está bem. Ela está longe de você porque viu e indo, e temeu ser a próxima.
— Ela tem medo de mim. Não sabe a diferença entre mim e Ramona.
— , claro que ela sabe — Marla segurou pelos ombros — Ela só não sabe se poderia se defender quando Ramona surgisse.
— Marla, isso quer dizer que posso ter assassinado e ?
A ruiva não respondeu.
— Eu dormi a tarde inteira no dia da morte de . E se eu a matei, além de ter queimado o rosto de ? Não lembro de nada. Marla, e se eu assassinei ?
As lágrimas começavam a surgir nos olhos de . Instintivamente, Marla abraçou-a.
— Eu nunca ofereci a você ajuda. Quero que me perdoe pelo caso Durden. Eu vou ajudá-la para o que precisar, nem que isso custe meu emprego, .
— O que está fazendo? — estranhou a reação de Marla.
— Você não escalou ninguém. Você é a melhor porque é boa de verdade. Eu que subi às suas custas, e agora quero que me perdoe. Vou te ajudar porque você precisa da ajuda de todos nós. Porque todos viramos as costas para você em algum momento, e agora, quando mais precisa de nós, quero que saiba que estou aqui.
Marla não tinha deixado de abraçá-la, e devolveu o abraço. Depois de alguns instantes, Marla as separou, ficando de pé.
— Quer alguma coisa? Precisa de algo?
— Ramona é algo pequeno de uma coisa maior, Marla. Tem algo bem pior de onde ela vem, e acredito que eu já saiba o que é.
— Não queríamos que você olhasse os cadáveres, mas também não acreditávamos que Ramona a convenceria de que eles ainda estavam vivos. Quando você falava dos casos, com tanta naturalidade, mas sem nunca comentar o nome dos mortos, não imaginávamos que...
— Que horas são? — Marla comprimiu os lábios.
— Sete horas.
— Tente ligar para o pessoal. e . E sabe onde minha mãe está?
— Depois daquela briga de vocês, ela foi para um hospital. Mas já a soltaram, pouco depois da agressão. Ligaram para a delegacia, eu disse que você estava bem. Ela está sob observação, mas em casa.
— Ótimo. Fale com ela também.
— É uma reunião?
— Quase isso. Vocês precisam saber exatamente o que eu estou pensando sobre tudo isso.
— Por quê?
— Porque Ramona sabe também. E não podemos ficar nem uma pista atrás dela.
Faltava pouco para todos chegarem à casa de Marla. A ruiva foi para a cozinha, enquanto ficara na sala.
Todos juntos, em um mesmo espaço.
Todas as batidas, todas as explosões.
Pequenos universos em constante expansão e colisão.
Enfim, a paz.
Já tinha sentido tanta paz e tanto caos, que só conseguia diferenciar um quando este acabava para dar lugar ao outro.
Renascendo das cinzas.
O celular de tocou. Olhou para o número, para ter certeza de que estava tocando. Todas as mensagens de Ramona vinham de um número desconhecido, provavelmente da própria por outro celular, e nenhuma ligação recebida por ou tinha sido registrada como última chamada.
Ramona?
Sua aura estava ali. Sempre esteve.
O que fica para trás, quando uma fênix renasce?
— Alô? — perguntou .
— Srta. ? — uma voz masculina doce estava do outro lado da linha — Aqui é do hospital.
— Pois não. O que desejam?
— Queremos informar, Srta. , que seu irmão, Tyler, não se encontra mais na ala psiquiátrica.
Engoliu em seco.
Tyler fugiu?
— E onde ele está?
— Ele foi mandado para o instituto Manson mais cedo, Srta. . Nossos médicos concordaram que Tyler apresentou mau comportamento.
— Mas ele estava apresentando bom comportamento...
Sua afirmação soara como um questionamento.
— Senhorita, tivemos situações desconfortáveis com o Sr. . A senhorita mesma presenciou uma delas, quando Tyler deferiu golpes em você. Precisamos de enfermeiros para que o segurassem.
O homem fez uma pausa, durante a qual ponderou o que ele acabara de falar.
— A outra foi recente. Ele confrontou uma enfermeira depois de apresentar sinais de alucinações. Disse que viu um enfermeiro na ala psiquiátrica, essa que não colocamos homens para servir refeições ou aplicar remédios, apenas para segurar pacientes menos dóceis. Ele agiu com agressividade depois disso.
Puta que pariu.
Mais um no Manson. Mais um louco.
Mais um .
viu seu futuro. Voltaria ao Manson, afinal.
Eu nunca deveria ter saído de lá.
— Mas ele apresentou um documento antes de ir, senhorita. Queremos passá-lo a você.
— Um documento? De que natureza?
— Um testamento. Não sei o que isso pode significar. Passamos aos responsáveis no instituto Manson sobre isso, e eles terão atenção redobrada com seu irmão. Ele nunca tentou suicídio aqui ou algo assim.
franziu o cenho. Um testamento? Depois de tudo aquilo, Tyler tinha feito um testamento?
Pare por um momento.
Pense.
Enxergue através do muro.
Um testamento. Alucinações.
— Não posso ir até aí. Mas vocês têm meus contatos. Podem me mandar uma cópia do testamento por email?
— Sim, senhorita. Minhas condolências pelo acontecido. Seu irmão parecia um bom rapaz.
— Ele puxou à irmã.
Meia hora depois, todos estavam ali. A Sra. estava sentada no sofá de Marla. Fumava um cigarro, com os cabelos com frizz e uma maquiagem mal colocada. estava de pé, perto do sofá e ao lado de Marla, que estava sentada na poltrona. Ouviram uma batida na porta, que a dona do apartamento foi atender.
Ver um homem tão bonito como naquele estado causava, no mínimo, choque. Estava bem, em casa, sob cuidados de uma enfermeira, liberado do trabalho.
E destruído.
A pele morta que ainda permanecia lá.
Um rosto tão lindo, parcialmente desfeito. Sua boca chegava a estar torta.
— Estávamos esperando por você.
assentiu, entrando no apartamento com a licença de Marla. A surpresa quando ele apareceu na sala foi suficiente. Ninguém sabia o que falar. Perguntar como ele estava dava a impressão de que a resposta seria ‘nada bem’. O silêncio era como se eles assistissem uma criatura de um show de horrores.
— Por que estamos aqui? — ele perguntou, colocando as mãos nos bolsos e ficando de pé perto da poltrona onde Marla novamente se sentou.
— Porque já sei quem é Ramona.
Ele se surpreendeu levemente.
— Queria que me perdoasse, — disse, com poucas lágrimas começando a se formar, e ela não aguentava mais chorar tanto — Sei que não posso fazer isso, fazer por merecer, mas queria que soubesse que sinto muito, que eu... Eu nunca faria aquilo.
— Algo em você fez, — a voz dele falou, baixa, como se tivesse vergonha — Algo em você queria fazer.
— Algo muito ruim em mim. Algo que não quero que volte nunca mais. Porque vocês sabem quem eu sou, e eu não. Queria que colocássemos tudo na mesa agora. Ramona é uma persona que criei para me libertar, para colocar meu ódio, minha arrogância e um pouco de minha maldade. Quero me livrar dela. Quero que falemos tudo agora.
— Tipo o quê, ? — perguntou Marla.
— Eu soube que Joe Durden está vivo.
Todos se olharam. A mãe de , que era a única que não parecia saber o que estava sendo falado, prestou atenção nesse momento.
— tinha me deixado um anel codificado, que eu e deciframos. Ela afirmou que Joe estava vivo.
— Como é possível? Fizemos séries de testes de DNA. Não é possível.
— provavelmente conseguiu a alteração desses testes. Aquele DNA é de Joe. Se isso for verdade, se a última mensagem que se preocupou em passar é esta, já sabemos algumas coisas.
— Joe provavelmente a matou — Marla a exclamou, como se acabasse de perceber tal coisa — Ela soube que ele estava vivo, e ele quis manter sigilo.
— E como ela pode não ter reconhecido-o? — perguntou — O rosto dele deve estar em cada jornaleiro desse país.
— Joe tinha um pouco de sua herança — Marla parecia pensar alto — Ele tratou de armar uma morte, de cuidar desse dinheiro para mudar seu rosto.
— E por que ele estaria fazendo isso? — perguntou — Por que simularia a própria morte, por que teria todo esse cuidado?
— Alguém o ajudou. pode ter sido parte de algo, mas sei que alguém o ajudou bem de perto — falou, olhando para cada um da sala.
Todos se olharam, como se procurassem o culpado.
— Eu. Eu o ajudei.
A voz era da própria . Todos a olharam sem compreender, menos Marla.
— Ramona. Ramona o ajudava!
— Eu já sabia dele. Algo em mim já sabia, e Ramona também. Ramona foi meu lado que o teve, e que os Durden conheceram. Ramona sabe quem é Joe. Ramona está do lado dele. Ela quer acabar comigo.
— E você não consegue acessar essas informações? — perguntou sua mãe.
— Não. Mas falar com Zoe me trouxe algumas coisas: ela é uma Durden, e, portanto, merece um pouco da herança. E a herança da família está congelada. O advogado dos Durden me disse que Jacqueline, James e o Joe não tinham grandes quantias no testamento, porque não sabiam lidar com o dinheiro, segundo os próprios pais. Justin era o único. E quando ele faleceu, sua parte foi dividida entre os outros. O dinheiro estava dividido com os filhos e o afilhado de Johnny, muito mais ao afilhado. Se Joe está vivo, e matando, acredito que seja por causa da herança. Ele a quer e fez tudo isso, desde a simulação de sua morte, para consegui-la.
— Quem é o afilhado? — perguntou .
— Quem era. . Ele sempre foi amigo da família, e tinha um pouco da herança garantida.
— Se Joe está vivo e quer a herança que ele nunca ganharia...
— Matar daria a parte dele mais dividida ainda entre os Durden que sobraram.
— Mas Jackie está morta e James está preso — lembrou Marla.
— O que deixa a herança com... Zoe? — chutou .
— Não.
A voz baixa e fraca da Sra. foi ouvida pela primeira vez. Era rouca.
— Johnny dividiu entre todos seus filhos, Johanna também. Quando eles morreram, vi brigas pela herança em todos os lugares. Essas brigas só cresciam, Justin morreu, Joe morreu... Eu não quis colocar mais problema e mais perigo para ele.
Ele.
— Joe sabe — falou, julgando sua mãe por trás das palavras — Joe sabe que tem mais um irmão.
Todos olharam para a mãe de . A própria detetive prosseguiu:
— Não me surpreendi quando percebi que Tyler poderia ser um deles... O advogado Durden, que era Samantha, mas acabou sendo o Sr. Robinson, falou que estudaram muito a questão do ‘para todos os meus filhos, Durden ou não’, escrito por Johnny. Achavam que era uma metáfora sobre o , que o tratava como um filho, mas a suspeita de um filho fora do casamento era grande. Joe achou que um de nós, um , era Durden, e que merecia a herança. Ele não sabia qual. E preferiu arriscar. Fez Tyler ser dado como louco, e isso.
tirou do bolso um papel dobrado. Era uma folha impressa do testamento de Tyler, assinado por ele, que garantia todos seus bens à irmã.
— Se algo acontecesse a Tyler, tudo iria para mim. Se Tyler ficar no Manson, ou não quiser seu dinheiro, fico com tudo. Fico com boa parte do dinheiro.
— E o que Joe fará em relação a isso? — perguntou — O que ele fará com você?
— Não comigo. Mas Ramona quer crescer cada vez mais, como está crescendo, e tomar conta. Ela quer o controle de mim. E, se ela estiver ajudando mesmo o Joe, é assim que ambos ficarão com a tudo.
— Por isso você e Zoe estavam tão próximas — exclamou — Ambas se ajudavam. Mas, , como Joe poderia saber qual é, na verdade, um Durden?
— Quando fui trabalhar no Palácio da Cerejeira — explicou a Sra. —, era pequena demais, e Tyler não tinha nascido. A matemática é óbvia.
— Isso coloca mais suspeitas de Joe como assassino de quem, no total? — perguntou Marla, já um pouco perdida.
— Joe e Ramona podem ter agido juntos — respondeu — Ele matou por causa da herança. Se descobriu de Ramona, ele também deu cabo nele antes que ele pudesse contar a muita gente.
— Mas contou — falou — Julie soube pouco antes de ele morrer, e contou a mim e a Marla.
— também sabe — Marla completou, subitamente — Ela viajou para se proteger. Sabia de Ramona.
— Ele também matou , já que ela sabia quem ele era e tentou contar isso a todos. E Samantha — falou .
— Não foi Joe quem matou Samantha — corrigiu — Sam foi alguém que o ajudava, uma mulher que tratava de leis. Ela entendia sobre a herança. Mas fez algo de errado: ficou grávida.
— Dele? — perguntou Marla.
— Certamente que não. Ele era infértil, lembram? Além do mais, o bebê de Samantha era de um homem comprometido, que deu cabo nela com covardia. Um homem filho da puta, que não quis assumir a criança. Um homem que trabalhava num ambiente onde um assassinato é incabível, mas tem contato direto com elementos químicos. Acima de tudo, um homem que não tinha coragem. Um homem que precisou de ajuda... Da ajuda de Joe, indireta, por telefone ou encontros em lugares escuros. Um homem que, no menor escorregão, coisa que era provável, levaria a culpa por todos os assassinatos, como vocês devem ter pensado. Acharam que era um único assassino todo o tempo.
— Que homem era esse?
— Para eu xingá-lo assim, acredito que tenha sido meu ex-noivo.
Ela olhou pra cima.
— Obrigada, Tyler, pela dica — olhou para eles novamente — Quando Tyler chegou em minha casa, ele disse para tomar cuidado e que todos já estavam sabendo. era amigo de Samantha, e encaixa no perfil do assassino. Isso ficou na minha cabeça.
— Matar fez de Joe um assassino fantasma — concluiu — Estaríamos procurando um assassino que já está morto, já que estávamos na pista de um único, que nos levaria só ao de Samantha.
Ficaram em silêncio.
— Retiro o que disse, . Não estamos sempre um passo à sua frente.
ergueu um canto do lábio.
— O que faremos agora? Esperamos o Durden matar alguém, ou dar um deslize? — perguntou.
— Não. Precisamos achar Joe. Rápido. E vocês precisam se cuidar. Agora que estamos sabendo de tudo, Joe e Ramona podem querer agir.
— Você fica aqui, — Marla disse, se levantando — Vamos lhe esconder, e não vou deixar ninguém falar com você.
— Me deixe sozinha. Ramona aparece quando estou sozinha, mas não quero que vocês corram riscos. Me tranque em algum lugar.
Ramona é inteligente demais para aparecer. Todos sabem de você, agora. Quer mesmo mostrar que está aqui?
Sua medrosa de merda, Ramona.
Sua medrosa de merda.
— Vão para suas casas. E tomem cuidado.
— Falta algo — falou a mãe de .
Todos olharam para ela.
— Tyler é meu filho com Johnny, e tem direito à herança por isso. Mas você, , não.
— Por que não? Tyler é meu irmão. Se ele ganha algo, mesmo se ele não tivesse feito o testamento, eu ganho algo por ser sua irmã... Não?
— Não, .
Sua voz foi tão firme que a garota quis pular em seu pescoço.
— Podem nos dar licença? — perguntou a mãe de , olhando para os outros. , Marla e foram para a cozinha.
Ficaram em silêncio. Segundos depois, ouviram um grito, de , um xingamento. Logo em seguida, a mãe dela saiu do apartamento marchando, e fechou a porta sem falar mais nada.
Quando eles voltaram para a sala, olhava fixamente para a porta.
Ramona estava em seus olhos. Todo o ódio, a raiva por toda sua vida ter sido da maneira mais desagradável que poderia viver.
— Quer falar sobre isso? — perguntou .
— Não. Eu vou para o quarto.
— Sua mãe... — Marla falou, tentando ir até e tocar seu ombro.
A desviou bruscamente.
— Toque em mim que eu faço seus ossos virarem farinha.
Tudo cresce novamente, de uma hora para outra, e é difícil de controlar.
É seu maior instinto, e você não consegue conter.
Eu não te amo. Se você caiu, é porque deveria continuar no chão.
‘Você não é de ninguém. Durden, .’
A terra de ninguém, o lado escuro da lua.
‘Eu só não quero mais meu nome nisso.’
‘É sobre o meu pescoço que estamos falando aqui. E dele eu cuido. Vou te falar a verdade. Porque não quero mais ficar nisso, vou encerrar minha parte.’
— Que se foda. Nunca foi minha mãe, não ia ser agora que viria a ser.
Levantou-se e passou por entre eles para ir até o quarto de hóspedes. Ninguém fez qualquer objeção. A casa ficou silenciosa por muitos segundos, até que o oficial, o jornalista e a detetive se sentaram no sofá.
— Vai deixá-la trancada no quarto? — perguntou .
Marla fez que não.
— Aquele quarto tem péssimo sinal de celular, e não tem telefone fixo. Posso ficar na sala, e ouvirei, durante a noite, se ela acordar.
Deixar como se estivesse em quarentena era doentio. Era desumano e frio demais.
Mas o que tem que ser feito, tem que ser feito, não, Marla?
— É horrível vê-la assim. Mas não sei outro jeito de ajudar.
— Eu sei — falou — Diga a ela como está sua amiga, .
Marla olhou-o de relance.
— Não finja que não sabe onde ela está, Marla — ele falou, manso, seu tom de voz expressando uma porcentagem de seu medo por toda situação — Todos percebemos que você sabe onde ela está.
Marla mordeu o lábio.
— Se eu não disse a ninguém até agora, é porque não posso, . me fez prometer que só levaria a ela quando fosse seguro.
— E quando seria isso?
— Talvez, amanhã.
franziu o cenho.
— Tem certeza? Amanhã? Mesmo estando nessa situação, com Ramona?
— Amanhã posso levá-la para visitar . Ela falará tudo. De uma vez, ou Ramona desaparecerá para sempre, ou o fará.
Quando os dois homens iam embora, e Marla os encaminhava para porta, confirmou:
— Então Tyler é o foco da preocupação?
— Sim. Ele está no Manson, mas é bom ficarmos de olho. Cuido de até amanhã, não se preocupem.
parou, sendo o último a ir na direção da saída.
— Quero falar com ela antes de irmos.
e Marla se olharam, ele com os olhos apontados para baixo, em constrangimento.
— Eu também — falou.
A detetive ruiva nada fez. Não tinha o que responder, e nem diria o que achava sobre isso. Não diria que tentar manter uma relação com naquele momento era perigoso. Não diria que ela precisava de espaço, porque não deveriam cruzar a linha.
Não disse nada, porque sabia que não ia adiantar.
Sem responder, foi até o quarto de hóspedes, com ao seu encalço. Abriu a porta e viu sentada na cama, com as pernas esticadas, olhando para a parede.
Um quarto vazio, em meses de uma casa assombrada.
— — falou, entrando no quarto. veio atrás, entrou e fechou a porta.
Ela ergueu o olhar para eles, passando a mão pelos cabelos, colocando-os para trás.
Tem alguém na minha cabeça que não sou eu.
— Sei que vocês já me viram melhor — ela comentou, com um sorriso amarelo.
— Um pouco — concordou , sentando no fim da cama. preferiu ficar de pé.
Nenhum dos dois ficou à vontade para dizer qualquer outra coisa. Ambos se olharam, enquanto esperava pelo que quer que eles viessem a falar.
— Não precisam ter medo. Eu não mordo — ela falou, baixo e serena — Quer dizer, mais ou menos.
e deram um sorriso pequeno.
— Já estão indo?
— Sim. Amanhã vai ser um dia cheio — respondeu — Nosso herói de guerra estará de volta em breve.
— Sério, ? Que ótimo!
— Sou como você, . Se fico doente e longe do trabalho, aí sim fico doente.
Ela sorriu.
— Cuidaremos de tudo para você não ficar sem saber de nada — enfatizou, segurando a mão de e apertando-a, enquanto a moça o olhava com os olhos cansados — Cada detalhe vai ser sabido por você antes sequer que ele seja oficial. Pode confiar em Marla.
— Estamos todos querendo te ajudar, .
— Obrigada. E ...
Ele foi até o lado da cama, sentando atrás de .
— Me desculpe. Me desculpe mesmo. Você sabe que eu jamais teria feito isso. E faria qualquer coisa para tirar de mim o que fez.
passou o polegar pelo rosto da moça, tirando uma lágrima que iria escorrer. Segurou a mão de , massageando suas costas e dando um pequeno sorriso. Tudo isso sobre um grave olhar de .
— Eu também queria pedir desculpas, . Queria me desculpar pelo que fiz com você — falou — Porque aquilo trouxe um pouco mais de Ramona para fora, de certo modo.
Ela sorriu, em retribuição. O oficial continuou, olhando para o jornalista, dessa vez:
— E , também queria pedir desculpas por todos nossos atritos. Aquilo era ridículo, e estávamos colocando problemas onde não tínhamos. Quando deveríamos estar prestando mais atenção no que realmente importava.
Com uma leve menção com os olhos, soube que ele se referia a ela.
— Sei que você se arrepende daquela nossa briga. E queria que me desculpasse por aquilo, de verdade, cara. Fui um idiota.
e olhavam para , esperando alguma resposta. passou os olhos por ambos, murmurando preguiçosamente, e balançando a cabeça:
— Nah. Você foi um idiota mesmo. Eu podia ter te metido a porrada. Só não meti porque não quis.
O tom que dissera tais palavras era tão afetado que não poderia ser levado a sério. Todos riram, antes que pudesse continuar:
— Somos amigos, . Eu e fomos uma coisa idiota, do início ao fim. Só uma coisa boa que tinha data para acabar.
— E, bem, vamos olhar pelo lado bom — falou, olhando para — Tecnicamente, quando dormimos juntos, você estava em um mènage. E você, , transou com duas garotas diferentes em um espaço de quase um dia.
Os dois homens riram nessa hora. Era bom ver que não via tudo com pessimismo. Aquilo realmente ajudaria, diante de uma situação daquelas.
Pelo menos, por ora.
— Ligamos amanhã para saber como está. A qualquer problema, é só nos ligar também — lembrou , dando um beijo na testa de .
Ela assentiu, se despedindo dos dois, enquanto ambos saiam porta afora.
Enfim a sós, não?
Raios só acertam lugares altos. Apenas os expostos.
Você é como um raio? Ou gostaria de ser?
Sabe que há uma diferença entre esses verbos.
Eu sou seu lado mais verdadeiro.
Quando abro os olhos, cada vez que abro os olhos, temo que mais alguém tome meu lugar.
Mais alguém acabe sendo eu.
Há alguém dentro de você. Algo que você esconde, mantém só para si. Um pequeno monstro em uma gaiola, um animal que só você poderia domar.
Se todos os animais do mundo escapassem, aí sim viveríamos no caos.
e saíram da casa de Marla. Do lado de fora, o oficial apoiou o ombro em um poste, pegando algo em um bolso, enquanto o jornalista observava. Estava meio tarde para ficar na rua esperando algo acontecer, tipo um assalto.
— Quer um cigarro? — perguntou , estendendo um exemplar deste.
— Não fumo, obrigado.
— Não acha uma boa hora de começar? — colocou o cigarro na boca, acendendo-o enquanto tinha dentes segurando.
Ponderando a questão por um momento, acabou soltando:
— Me dê logo uma merda dessas.
riu, estendendo um cigarro para , e acendendo-o para ele já na boca do jornalista. protegeu a chama do isqueiro com as mãos, baforando a primeira tragada com alívio.
— Ninguém fuma até que precise mesmo — comentou.
segurou o cigarro com dois dedos, soltando a fumaça, quase se engasgando. Passou a mão na testa, enquanto tragava como se estivesse em um filme de máfia.
— Isso é estranho demais para mim. É como se eu estivesse em um filme de Hollywood, sem nenhuma garantia se meu personagem vai sair bem ou não no final.
riu.
— Não tinha nada disso escrito nas letras miúdas do contrato que você assinou, tinha?
tragou novamente, agora sem engasgar.
Ninguém fuma até que precise mesmo.
— Eu nunca lidei com a morte — começou, quase como se estivesse pensando em voz alta, sozinho — Antes de vir para cá, eu escrevia os obituários. Eu via a morte se multiplicar a cada dia que passava. Quando vim para uma delegacia, quis observar o trabalho de detetives de perto, mas nunca imaginei que vocês dessem de cara com tantos cadáveres ao mesmo tempo. Eles se multiplicam como eu escrevia nos jornais. Isso é horrível. É como se a morte brutal que temos aqui fosse algo comum.
Ele fez outra pausa, como se estivesse sem ar. Talvez estivesse, de fato.
— Eu tenho horror do que vejo aqui. Uma pessoa próxima, uma colega de trabalho morrendo. Isso me assusta.
— Não é sempre assim. É o caso de um em um milhão, este. Policiais que têm doenças psicológicas não são algo raro, entretanto.
olhou para , de lado. O oficial tragou novamente, continuando:
— Você acha que nós somos sãos? Pessoas do bem? Nós andamos armados, cara. Se a lei assim cobrir, podemos até atirar em civis. O medo não pode ser da arma, tem que ser de quem a segura. E nós, absolutamente, somos os detentores do medo.
Ambos pareciam falar sozinhos. E, impressionantemente, ambos conseguiam falar um com o outro, desse modo.
— Já falei sobre minha família, ? — perguntou , já no meio do cigarro.
O jornalista fez que não com a cabeça.
— Meus pais são um advogado e uma empresária. Meus tios são, praticamente todos, isso ou médicos. Eu mesmo quase fiz medicina.
— E por que acabou virando policial? — perguntou . Em sua própria família, a maioria eram professores e pessoas de empregos mais modestos.
— Médicos trabalham com instrumentos mortais todos os dias. Podem matar uma pessoa na mesa de cirurgia, se acabarem falhando alguns milímetros. Empresários fazem dinheiro de outras pessoas, investem dinheiro e podem arruinar famílias inteiras, se bem quiserem. Advogados conseguem quase sempre adaptar a lei, se assim ela for agir ao seu favor. São todas pessoas direitas. Pessoas da saúde, da economia e da justiça.
O cigarro estava no fim. deu a última tragada.
— Escolhi uma profissão para defender as pessoas, de verdade. Meu trabalho é combater pessoas como essas que compõem a linhagem . Meu trabalho é ser o verdadeiro protetor. E não o que minha família acha que é. Eu combato a injustiça mais clara, descarada. A mais discreta foge aos meus olhos, e é feita por pessoas que são sangue do meu sangue.
Jogou o fim do cigarro no chão, pisoteando-o para apagá-lo.
— A violência está em todo lugar. Nós apenas fingimos que estamos protegidos sempre. E que o que consideramos certo é a verdade absoluta, quando só a aceitamos porque é melhor assim.
Depois de e terem ido embora, Marla arrumou a cama para . agradeceu novamente pela ajuda, mas via nos olhos verdes de Marla que ela tinha algo a dizer.
— Se precisar de algo, é só chamar. Vou estar na sala.
Quando se deitou, antes de apagar as luzes, a chamou novamente, antes de Marla fechar a porta. A ruiva voltou, acendendo a luz.
— Sim?
— Pergunte o que quer saber, Marla — falou, com os cantos dos lábios erguidos.
A ruiva comprimiu os lábios.
— Eu só queria entender como você chegou tão longe, sendo que não sabia de quase nada. Como você descobriu tudo praticamente sozinha, com você mesma trabalhando contra você.
sorriu. Ajeitou o cobertor, falando:
— Marla, o segredo do sucesso não é trabalhar duro. É trabalhar inteligente.
A ruiva ponderou a resposta e apagou as luzes, fechando a porta com um ruído baixo.
So fix your eyes and get up… You better get up, while you can.
— Preciso dizer que nunca imaginaria que você viria até mim para te ajudar.
deu um sorriso fraco. A ruiva fechou a porta, indo na direção dela cansada, e com passos curtos.
De fato, tudo estava vazio.
— Eu entendo perfeitamente. Soube que você estava na cabeça da operação para me procurar.
— E como soube que poderia confiar em mim?
bebeu mais do café, quando Marla sentou no sofá ao seu lado.
— queria se encontrar comigo. Ele me chamou para o hospital, e eu o vi...
— Você viu seu rosto.
Desviando o olhar, assentiu.
— Ele me deu a caderneta dele, onde ele anota sobre os casos. Quase não tinha nada sobre Samantha, e . Tinha muito mais sobre Ramona.
Um leve silêncio tomou conta do espaço. A falta de reação de Marla já foi sua resposta.
— Você sabe quem é Ramona? — perguntou .
Marla mordeu o lábio.
— soube, e contou a Julie. Quando ele morreu, ela chamou a mim e ao para falar que, talvez, ele tivesse sido morto por causa disso. Ou foi forçado a se matar.
— Ele não se matou. Tenho certeza, e você também, de que ele foi assassinado.
— O que você acha que aconteceu?
— O assassino precisou de um jeito de trancar em algum lugar com escapamento de gás. Trancá-lo na própria garagem exigiria muita intimidade dos dois, e muito planejamento. E nosso assassino prefere trabalhar com agilidade.
fez uma pausa, bebendo o café.
— Acho que podem ter deixado-o desacordado. Duvido bastante que tinha corrido o risco de usar algo de longa duração, como um medicamento injetável. O furo da agulha deixaria uma marca.
— Então sufocá-lo também foi sua primeira opção.
ergueu o olhar para Marla, que devolveu um pequeno sorriso e um olhar cúmplice.
— Nós já suspeitávamos disso, . Há muito tempo. A corda no pescoço dele, usada para simular o suicídio, esconderia facilmente marcas de uma corda menor, usada previamente para deixá-lo inconsciente.
— Prenderam-no em um lugar com gás escapando, e depois simularam a forca.
Marla comprimiu os lábios, mordendo o inferior.
— Não queríamos que você visse o corpo. Sempre estivemos um passo à sua frente, na verdade. Mais ou menos.
— Você sabia que Ramona era uma manifestação minha.
— Eu nunca reparei isso. Mas depois que morreu e tinha contado isso para Julie, ela temeu que Ramona pudesse fazer algo contra nós, manifestada em você. Ela nos avisou.
— Agradeço por ninguém ter me avisado — falou com ironia.
— Tente compreender, ... Não fizemos isso para lhe prejudicar. Ramona sabe mais do que todos nós juntos, e lhe controlava quando precisava. Se tivéssemos contado, ela poderia tentar dar cabo de nós, e você dificilmente acreditaria.
Marla fez uma pausa e prosseguiu, sentando ao lado de , no chão:
— Estamos querendo te ajudar. De verdade.
— Por isso deixou no final da caderneta a anotação.
— Que anotação?
pegou o caderno no bolso do moletom. Abriu-o em uma página que tinha a ponta dobrada, na qual não havia nada escrito, além de uma única nota no meio e de letras maiúsculas:
"Se precisar de ajuda, fale com Marla."
A ruiva sorriu, com o mesmo ar cúmplice.
— Eu e você não nos dávamos porque uma não entendia a outra. Eu me irritava com o fato de você ter ascendido tão rápido, enquanto eu custei para tomar meu lugar, e ter reconhecimento pelo meu trabalho.
— Eu me irritava porque você não fazia questão nenhuma de ser gentil comigo.
— Quando fiquei com o caso Durden, aquilo me levou a algum lugar. Juro que não era nada pessoal. Para mim e , foi torturante ter que prender uma colega de trabalho. Por isso tentamos colocar você em uma clínica, não em uma prisão. Não tínhamos provas o suficiente para te culpar, ou álibis o suficiente para te inocentar. Acredite: já foi complicado te levar ao Manson. A pressão da imprensa era grande demais, queriam alguém atrás das grades.
— Quando voltei, queria pular no seu pescoço e do .
Marla deu uma risada.
— Eu entendo completamente. Teria reagido pior do que você. Mas quando vi que você precisava de nós, quando morreu, percebi que aquilo era ridículo. Toda a minha raiva, toda a situação. Você não sabia o que estava acontecendo, todos agiam pelas suas costas, inclusive eu. E achei isso a coisa mais babaca que poderíamos fazer. Queremos te ajudar, mas é algo delicado demais. Estamos te ajudando e lutando contra você... — Marla olhou para o chão por alguns instantes, até voltar seu olhar para — Por isso, precisamos saber o que Ramona fazia com você.
Rapidamente, explicou a história de Ramona. Cortando, é claro, a cena com Joe na festa, mas explicando bem o episódio do jantar na casa de . Não ocultou a amnésia e o fato de continuar vendo e , mesmo depois da morte de ambos.
— Preciso falar com . Você sabe como ela está? Ela sabe de algo?
Marla pegou o café da mão de , colocando-o longe desta. Caso a informação não agradasse, não precisaria catar porcelana do chão mais tarde.
— está bem. Ela está longe de você porque viu e indo, e temeu ser a próxima.
— Ela tem medo de mim. Não sabe a diferença entre mim e Ramona.
— , claro que ela sabe — Marla segurou pelos ombros — Ela só não sabe se poderia se defender quando Ramona surgisse.
— Marla, isso quer dizer que posso ter assassinado e ?
A ruiva não respondeu.
— Eu dormi a tarde inteira no dia da morte de . E se eu a matei, além de ter queimado o rosto de ? Não lembro de nada. Marla, e se eu assassinei ?
As lágrimas começavam a surgir nos olhos de . Instintivamente, Marla abraçou-a.
— Eu nunca ofereci a você ajuda. Quero que me perdoe pelo caso Durden. Eu vou ajudá-la para o que precisar, nem que isso custe meu emprego, .
— O que está fazendo? — estranhou a reação de Marla.
— Você não escalou ninguém. Você é a melhor porque é boa de verdade. Eu que subi às suas custas, e agora quero que me perdoe. Vou te ajudar porque você precisa da ajuda de todos nós. Porque todos viramos as costas para você em algum momento, e agora, quando mais precisa de nós, quero que saiba que estou aqui.
Marla não tinha deixado de abraçá-la, e devolveu o abraço. Depois de alguns instantes, Marla as separou, ficando de pé.
— Quer alguma coisa? Precisa de algo?
— Ramona é algo pequeno de uma coisa maior, Marla. Tem algo bem pior de onde ela vem, e acredito que eu já saiba o que é.
— Não queríamos que você olhasse os cadáveres, mas também não acreditávamos que Ramona a convenceria de que eles ainda estavam vivos. Quando você falava dos casos, com tanta naturalidade, mas sem nunca comentar o nome dos mortos, não imaginávamos que...
— Que horas são? — Marla comprimiu os lábios.
— Sete horas.
— Tente ligar para o pessoal. e . E sabe onde minha mãe está?
— Depois daquela briga de vocês, ela foi para um hospital. Mas já a soltaram, pouco depois da agressão. Ligaram para a delegacia, eu disse que você estava bem. Ela está sob observação, mas em casa.
— Ótimo. Fale com ela também.
— É uma reunião?
— Quase isso. Vocês precisam saber exatamente o que eu estou pensando sobre tudo isso.
— Por quê?
— Porque Ramona sabe também. E não podemos ficar nem uma pista atrás dela.
Faltava pouco para todos chegarem à casa de Marla. A ruiva foi para a cozinha, enquanto ficara na sala.
Todos juntos, em um mesmo espaço.
Todas as batidas, todas as explosões.
Pequenos universos em constante expansão e colisão.
Enfim, a paz.
Já tinha sentido tanta paz e tanto caos, que só conseguia diferenciar um quando este acabava para dar lugar ao outro.
Renascendo das cinzas.
O celular de tocou. Olhou para o número, para ter certeza de que estava tocando. Todas as mensagens de Ramona vinham de um número desconhecido, provavelmente da própria por outro celular, e nenhuma ligação recebida por ou tinha sido registrada como última chamada.
Ramona?
Sua aura estava ali. Sempre esteve.
O que fica para trás, quando uma fênix renasce?
— Alô? — perguntou .
— Srta. ? — uma voz masculina doce estava do outro lado da linha — Aqui é do hospital.
— Pois não. O que desejam?
— Queremos informar, Srta. , que seu irmão, Tyler, não se encontra mais na ala psiquiátrica.
Engoliu em seco.
Tyler fugiu?
— E onde ele está?
— Ele foi mandado para o instituto Manson mais cedo, Srta. . Nossos médicos concordaram que Tyler apresentou mau comportamento.
— Mas ele estava apresentando bom comportamento...
Sua afirmação soara como um questionamento.
— Senhorita, tivemos situações desconfortáveis com o Sr. . A senhorita mesma presenciou uma delas, quando Tyler deferiu golpes em você. Precisamos de enfermeiros para que o segurassem.
O homem fez uma pausa, durante a qual ponderou o que ele acabara de falar.
— A outra foi recente. Ele confrontou uma enfermeira depois de apresentar sinais de alucinações. Disse que viu um enfermeiro na ala psiquiátrica, essa que não colocamos homens para servir refeições ou aplicar remédios, apenas para segurar pacientes menos dóceis. Ele agiu com agressividade depois disso.
Puta que pariu.
Mais um no Manson. Mais um louco.
Mais um .
viu seu futuro. Voltaria ao Manson, afinal.
Eu nunca deveria ter saído de lá.
— Mas ele apresentou um documento antes de ir, senhorita. Queremos passá-lo a você.
— Um documento? De que natureza?
— Um testamento. Não sei o que isso pode significar. Passamos aos responsáveis no instituto Manson sobre isso, e eles terão atenção redobrada com seu irmão. Ele nunca tentou suicídio aqui ou algo assim.
franziu o cenho. Um testamento? Depois de tudo aquilo, Tyler tinha feito um testamento?
Pare por um momento.
Pense.
Enxergue através do muro.
Um testamento. Alucinações.
— Não posso ir até aí. Mas vocês têm meus contatos. Podem me mandar uma cópia do testamento por email?
— Sim, senhorita. Minhas condolências pelo acontecido. Seu irmão parecia um bom rapaz.
— Ele puxou à irmã.
Meia hora depois, todos estavam ali. A Sra. estava sentada no sofá de Marla. Fumava um cigarro, com os cabelos com frizz e uma maquiagem mal colocada. estava de pé, perto do sofá e ao lado de Marla, que estava sentada na poltrona. Ouviram uma batida na porta, que a dona do apartamento foi atender.
Ver um homem tão bonito como naquele estado causava, no mínimo, choque. Estava bem, em casa, sob cuidados de uma enfermeira, liberado do trabalho.
E destruído.
A pele morta que ainda permanecia lá.
Um rosto tão lindo, parcialmente desfeito. Sua boca chegava a estar torta.
— Estávamos esperando por você.
assentiu, entrando no apartamento com a licença de Marla. A surpresa quando ele apareceu na sala foi suficiente. Ninguém sabia o que falar. Perguntar como ele estava dava a impressão de que a resposta seria ‘nada bem’. O silêncio era como se eles assistissem uma criatura de um show de horrores.
— Por que estamos aqui? — ele perguntou, colocando as mãos nos bolsos e ficando de pé perto da poltrona onde Marla novamente se sentou.
— Porque já sei quem é Ramona.
Ele se surpreendeu levemente.
— Queria que me perdoasse, — disse, com poucas lágrimas começando a se formar, e ela não aguentava mais chorar tanto — Sei que não posso fazer isso, fazer por merecer, mas queria que soubesse que sinto muito, que eu... Eu nunca faria aquilo.
— Algo em você fez, — a voz dele falou, baixa, como se tivesse vergonha — Algo em você queria fazer.
— Algo muito ruim em mim. Algo que não quero que volte nunca mais. Porque vocês sabem quem eu sou, e eu não. Queria que colocássemos tudo na mesa agora. Ramona é uma persona que criei para me libertar, para colocar meu ódio, minha arrogância e um pouco de minha maldade. Quero me livrar dela. Quero que falemos tudo agora.
— Tipo o quê, ? — perguntou Marla.
— Eu soube que Joe Durden está vivo.
Todos se olharam. A mãe de , que era a única que não parecia saber o que estava sendo falado, prestou atenção nesse momento.
— tinha me deixado um anel codificado, que eu e deciframos. Ela afirmou que Joe estava vivo.
— Como é possível? Fizemos séries de testes de DNA. Não é possível.
— provavelmente conseguiu a alteração desses testes. Aquele DNA é de Joe. Se isso for verdade, se a última mensagem que se preocupou em passar é esta, já sabemos algumas coisas.
— Joe provavelmente a matou — Marla a exclamou, como se acabasse de perceber tal coisa — Ela soube que ele estava vivo, e ele quis manter sigilo.
— E como ela pode não ter reconhecido-o? — perguntou — O rosto dele deve estar em cada jornaleiro desse país.
— Joe tinha um pouco de sua herança — Marla parecia pensar alto — Ele tratou de armar uma morte, de cuidar desse dinheiro para mudar seu rosto.
— E por que ele estaria fazendo isso? — perguntou — Por que simularia a própria morte, por que teria todo esse cuidado?
— Alguém o ajudou. pode ter sido parte de algo, mas sei que alguém o ajudou bem de perto — falou, olhando para cada um da sala.
Todos se olharam, como se procurassem o culpado.
— Eu. Eu o ajudei.
A voz era da própria . Todos a olharam sem compreender, menos Marla.
— Ramona. Ramona o ajudava!
— Eu já sabia dele. Algo em mim já sabia, e Ramona também. Ramona foi meu lado que o teve, e que os Durden conheceram. Ramona sabe quem é Joe. Ramona está do lado dele. Ela quer acabar comigo.
— E você não consegue acessar essas informações? — perguntou sua mãe.
— Não. Mas falar com Zoe me trouxe algumas coisas: ela é uma Durden, e, portanto, merece um pouco da herança. E a herança da família está congelada. O advogado dos Durden me disse que Jacqueline, James e o Joe não tinham grandes quantias no testamento, porque não sabiam lidar com o dinheiro, segundo os próprios pais. Justin era o único. E quando ele faleceu, sua parte foi dividida entre os outros. O dinheiro estava dividido com os filhos e o afilhado de Johnny, muito mais ao afilhado. Se Joe está vivo, e matando, acredito que seja por causa da herança. Ele a quer e fez tudo isso, desde a simulação de sua morte, para consegui-la.
— Quem é o afilhado? — perguntou .
— Quem era. . Ele sempre foi amigo da família, e tinha um pouco da herança garantida.
— Se Joe está vivo e quer a herança que ele nunca ganharia...
— Matar daria a parte dele mais dividida ainda entre os Durden que sobraram.
— Mas Jackie está morta e James está preso — lembrou Marla.
— O que deixa a herança com... Zoe? — chutou .
— Não.
A voz baixa e fraca da Sra. foi ouvida pela primeira vez. Era rouca.
— Johnny dividiu entre todos seus filhos, Johanna também. Quando eles morreram, vi brigas pela herança em todos os lugares. Essas brigas só cresciam, Justin morreu, Joe morreu... Eu não quis colocar mais problema e mais perigo para ele.
Ele.
— Joe sabe — falou, julgando sua mãe por trás das palavras — Joe sabe que tem mais um irmão.
Todos olharam para a mãe de . A própria detetive prosseguiu:
— Não me surpreendi quando percebi que Tyler poderia ser um deles... O advogado Durden, que era Samantha, mas acabou sendo o Sr. Robinson, falou que estudaram muito a questão do ‘para todos os meus filhos, Durden ou não’, escrito por Johnny. Achavam que era uma metáfora sobre o , que o tratava como um filho, mas a suspeita de um filho fora do casamento era grande. Joe achou que um de nós, um , era Durden, e que merecia a herança. Ele não sabia qual. E preferiu arriscar. Fez Tyler ser dado como louco, e isso.
tirou do bolso um papel dobrado. Era uma folha impressa do testamento de Tyler, assinado por ele, que garantia todos seus bens à irmã.
— Se algo acontecesse a Tyler, tudo iria para mim. Se Tyler ficar no Manson, ou não quiser seu dinheiro, fico com tudo. Fico com boa parte do dinheiro.
— E o que Joe fará em relação a isso? — perguntou — O que ele fará com você?
— Não comigo. Mas Ramona quer crescer cada vez mais, como está crescendo, e tomar conta. Ela quer o controle de mim. E, se ela estiver ajudando mesmo o Joe, é assim que ambos ficarão com a tudo.
— Por isso você e Zoe estavam tão próximas — exclamou — Ambas se ajudavam. Mas, , como Joe poderia saber qual é, na verdade, um Durden?
— Quando fui trabalhar no Palácio da Cerejeira — explicou a Sra. —, era pequena demais, e Tyler não tinha nascido. A matemática é óbvia.
— Isso coloca mais suspeitas de Joe como assassino de quem, no total? — perguntou Marla, já um pouco perdida.
— Joe e Ramona podem ter agido juntos — respondeu — Ele matou por causa da herança. Se descobriu de Ramona, ele também deu cabo nele antes que ele pudesse contar a muita gente.
— Mas contou — falou — Julie soube pouco antes de ele morrer, e contou a mim e a Marla.
— também sabe — Marla completou, subitamente — Ela viajou para se proteger. Sabia de Ramona.
— Ele também matou , já que ela sabia quem ele era e tentou contar isso a todos. E Samantha — falou .
— Não foi Joe quem matou Samantha — corrigiu — Sam foi alguém que o ajudava, uma mulher que tratava de leis. Ela entendia sobre a herança. Mas fez algo de errado: ficou grávida.
— Dele? — perguntou Marla.
— Certamente que não. Ele era infértil, lembram? Além do mais, o bebê de Samantha era de um homem comprometido, que deu cabo nela com covardia. Um homem filho da puta, que não quis assumir a criança. Um homem que trabalhava num ambiente onde um assassinato é incabível, mas tem contato direto com elementos químicos. Acima de tudo, um homem que não tinha coragem. Um homem que precisou de ajuda... Da ajuda de Joe, indireta, por telefone ou encontros em lugares escuros. Um homem que, no menor escorregão, coisa que era provável, levaria a culpa por todos os assassinatos, como vocês devem ter pensado. Acharam que era um único assassino todo o tempo.
— Que homem era esse?
— Para eu xingá-lo assim, acredito que tenha sido meu ex-noivo.
Ela olhou pra cima.
— Obrigada, Tyler, pela dica — olhou para eles novamente — Quando Tyler chegou em minha casa, ele disse para tomar cuidado e que todos já estavam sabendo. era amigo de Samantha, e encaixa no perfil do assassino. Isso ficou na minha cabeça.
— Matar fez de Joe um assassino fantasma — concluiu — Estaríamos procurando um assassino que já está morto, já que estávamos na pista de um único, que nos levaria só ao de Samantha.
Ficaram em silêncio.
— Retiro o que disse, . Não estamos sempre um passo à sua frente.
ergueu um canto do lábio.
— O que faremos agora? Esperamos o Durden matar alguém, ou dar um deslize? — perguntou.
— Não. Precisamos achar Joe. Rápido. E vocês precisam se cuidar. Agora que estamos sabendo de tudo, Joe e Ramona podem querer agir.
— Você fica aqui, — Marla disse, se levantando — Vamos lhe esconder, e não vou deixar ninguém falar com você.
— Me deixe sozinha. Ramona aparece quando estou sozinha, mas não quero que vocês corram riscos. Me tranque em algum lugar.
Ramona é inteligente demais para aparecer. Todos sabem de você, agora. Quer mesmo mostrar que está aqui?
Sua medrosa de merda, Ramona.
Sua medrosa de merda.
— Vão para suas casas. E tomem cuidado.
— Falta algo — falou a mãe de .
Todos olharam para ela.
— Tyler é meu filho com Johnny, e tem direito à herança por isso. Mas você, , não.
— Por que não? Tyler é meu irmão. Se ele ganha algo, mesmo se ele não tivesse feito o testamento, eu ganho algo por ser sua irmã... Não?
— Não, .
Sua voz foi tão firme que a garota quis pular em seu pescoço.
— Podem nos dar licença? — perguntou a mãe de , olhando para os outros. , Marla e foram para a cozinha.
Ficaram em silêncio. Segundos depois, ouviram um grito, de , um xingamento. Logo em seguida, a mãe dela saiu do apartamento marchando, e fechou a porta sem falar mais nada.
Quando eles voltaram para a sala, olhava fixamente para a porta.
Ramona estava em seus olhos. Todo o ódio, a raiva por toda sua vida ter sido da maneira mais desagradável que poderia viver.
— Quer falar sobre isso? — perguntou .
— Não. Eu vou para o quarto.
— Sua mãe... — Marla falou, tentando ir até e tocar seu ombro.
A desviou bruscamente.
— Toque em mim que eu faço seus ossos virarem farinha.
Tudo cresce novamente, de uma hora para outra, e é difícil de controlar.
É seu maior instinto, e você não consegue conter.
Eu não te amo. Se você caiu, é porque deveria continuar no chão.
‘Você não é de ninguém. Durden, .’
A terra de ninguém, o lado escuro da lua.
‘Eu só não quero mais meu nome nisso.’
‘É sobre o meu pescoço que estamos falando aqui. E dele eu cuido. Vou te falar a verdade. Porque não quero mais ficar nisso, vou encerrar minha parte.’
— Que se foda. Nunca foi minha mãe, não ia ser agora que viria a ser.
Levantou-se e passou por entre eles para ir até o quarto de hóspedes. Ninguém fez qualquer objeção. A casa ficou silenciosa por muitos segundos, até que o oficial, o jornalista e a detetive se sentaram no sofá.
— Vai deixá-la trancada no quarto? — perguntou .
Marla fez que não.
— Aquele quarto tem péssimo sinal de celular, e não tem telefone fixo. Posso ficar na sala, e ouvirei, durante a noite, se ela acordar.
Deixar como se estivesse em quarentena era doentio. Era desumano e frio demais.
Mas o que tem que ser feito, tem que ser feito, não, Marla?
— É horrível vê-la assim. Mas não sei outro jeito de ajudar.
— Eu sei — falou — Diga a ela como está sua amiga, .
Marla olhou-o de relance.
— Não finja que não sabe onde ela está, Marla — ele falou, manso, seu tom de voz expressando uma porcentagem de seu medo por toda situação — Todos percebemos que você sabe onde ela está.
Marla mordeu o lábio.
— Se eu não disse a ninguém até agora, é porque não posso, . me fez prometer que só levaria a ela quando fosse seguro.
— E quando seria isso?
— Talvez, amanhã.
franziu o cenho.
— Tem certeza? Amanhã? Mesmo estando nessa situação, com Ramona?
— Amanhã posso levá-la para visitar . Ela falará tudo. De uma vez, ou Ramona desaparecerá para sempre, ou o fará.
Quando os dois homens iam embora, e Marla os encaminhava para porta, confirmou:
— Então Tyler é o foco da preocupação?
— Sim. Ele está no Manson, mas é bom ficarmos de olho. Cuido de até amanhã, não se preocupem.
parou, sendo o último a ir na direção da saída.
— Quero falar com ela antes de irmos.
e Marla se olharam, ele com os olhos apontados para baixo, em constrangimento.
— Eu também — falou.
A detetive ruiva nada fez. Não tinha o que responder, e nem diria o que achava sobre isso. Não diria que tentar manter uma relação com naquele momento era perigoso. Não diria que ela precisava de espaço, porque não deveriam cruzar a linha.
Não disse nada, porque sabia que não ia adiantar.
Sem responder, foi até o quarto de hóspedes, com ao seu encalço. Abriu a porta e viu sentada na cama, com as pernas esticadas, olhando para a parede.
Um quarto vazio, em meses de uma casa assombrada.
— — falou, entrando no quarto. veio atrás, entrou e fechou a porta.
Ela ergueu o olhar para eles, passando a mão pelos cabelos, colocando-os para trás.
Tem alguém na minha cabeça que não sou eu.
— Sei que vocês já me viram melhor — ela comentou, com um sorriso amarelo.
— Um pouco — concordou , sentando no fim da cama. preferiu ficar de pé.
Nenhum dos dois ficou à vontade para dizer qualquer outra coisa. Ambos se olharam, enquanto esperava pelo que quer que eles viessem a falar.
— Não precisam ter medo. Eu não mordo — ela falou, baixo e serena — Quer dizer, mais ou menos.
e deram um sorriso pequeno.
— Já estão indo?
— Sim. Amanhã vai ser um dia cheio — respondeu — Nosso herói de guerra estará de volta em breve.
— Sério, ? Que ótimo!
— Sou como você, . Se fico doente e longe do trabalho, aí sim fico doente.
Ela sorriu.
— Cuidaremos de tudo para você não ficar sem saber de nada — enfatizou, segurando a mão de e apertando-a, enquanto a moça o olhava com os olhos cansados — Cada detalhe vai ser sabido por você antes sequer que ele seja oficial. Pode confiar em Marla.
— Estamos todos querendo te ajudar, .
— Obrigada. E ...
Ele foi até o lado da cama, sentando atrás de .
— Me desculpe. Me desculpe mesmo. Você sabe que eu jamais teria feito isso. E faria qualquer coisa para tirar de mim o que fez.
passou o polegar pelo rosto da moça, tirando uma lágrima que iria escorrer. Segurou a mão de , massageando suas costas e dando um pequeno sorriso. Tudo isso sobre um grave olhar de .
— Eu também queria pedir desculpas, . Queria me desculpar pelo que fiz com você — falou — Porque aquilo trouxe um pouco mais de Ramona para fora, de certo modo.
Ela sorriu, em retribuição. O oficial continuou, olhando para o jornalista, dessa vez:
— E , também queria pedir desculpas por todos nossos atritos. Aquilo era ridículo, e estávamos colocando problemas onde não tínhamos. Quando deveríamos estar prestando mais atenção no que realmente importava.
Com uma leve menção com os olhos, soube que ele se referia a ela.
— Sei que você se arrepende daquela nossa briga. E queria que me desculpasse por aquilo, de verdade, cara. Fui um idiota.
e olhavam para , esperando alguma resposta. passou os olhos por ambos, murmurando preguiçosamente, e balançando a cabeça:
— Nah. Você foi um idiota mesmo. Eu podia ter te metido a porrada. Só não meti porque não quis.
O tom que dissera tais palavras era tão afetado que não poderia ser levado a sério. Todos riram, antes que pudesse continuar:
— Somos amigos, . Eu e fomos uma coisa idiota, do início ao fim. Só uma coisa boa que tinha data para acabar.
— E, bem, vamos olhar pelo lado bom — falou, olhando para — Tecnicamente, quando dormimos juntos, você estava em um mènage. E você, , transou com duas garotas diferentes em um espaço de quase um dia.
Os dois homens riram nessa hora. Era bom ver que não via tudo com pessimismo. Aquilo realmente ajudaria, diante de uma situação daquelas.
Pelo menos, por ora.
— Ligamos amanhã para saber como está. A qualquer problema, é só nos ligar também — lembrou , dando um beijo na testa de .
Ela assentiu, se despedindo dos dois, enquanto ambos saiam porta afora.
Enfim a sós, não?
Raios só acertam lugares altos. Apenas os expostos.
Você é como um raio? Ou gostaria de ser?
Sabe que há uma diferença entre esses verbos.
Eu sou seu lado mais verdadeiro.
Quando abro os olhos, cada vez que abro os olhos, temo que mais alguém tome meu lugar.
Mais alguém acabe sendo eu.
Há alguém dentro de você. Algo que você esconde, mantém só para si. Um pequeno monstro em uma gaiola, um animal que só você poderia domar.
Se todos os animais do mundo escapassem, aí sim viveríamos no caos.
e saíram da casa de Marla. Do lado de fora, o oficial apoiou o ombro em um poste, pegando algo em um bolso, enquanto o jornalista observava. Estava meio tarde para ficar na rua esperando algo acontecer, tipo um assalto.
— Quer um cigarro? — perguntou , estendendo um exemplar deste.
— Não fumo, obrigado.
— Não acha uma boa hora de começar? — colocou o cigarro na boca, acendendo-o enquanto tinha dentes segurando.
Ponderando a questão por um momento, acabou soltando:
— Me dê logo uma merda dessas.
riu, estendendo um cigarro para , e acendendo-o para ele já na boca do jornalista. protegeu a chama do isqueiro com as mãos, baforando a primeira tragada com alívio.
— Ninguém fuma até que precise mesmo — comentou.
segurou o cigarro com dois dedos, soltando a fumaça, quase se engasgando. Passou a mão na testa, enquanto tragava como se estivesse em um filme de máfia.
— Isso é estranho demais para mim. É como se eu estivesse em um filme de Hollywood, sem nenhuma garantia se meu personagem vai sair bem ou não no final.
riu.
— Não tinha nada disso escrito nas letras miúdas do contrato que você assinou, tinha?
tragou novamente, agora sem engasgar.
Ninguém fuma até que precise mesmo.
— Eu nunca lidei com a morte — começou, quase como se estivesse pensando em voz alta, sozinho — Antes de vir para cá, eu escrevia os obituários. Eu via a morte se multiplicar a cada dia que passava. Quando vim para uma delegacia, quis observar o trabalho de detetives de perto, mas nunca imaginei que vocês dessem de cara com tantos cadáveres ao mesmo tempo. Eles se multiplicam como eu escrevia nos jornais. Isso é horrível. É como se a morte brutal que temos aqui fosse algo comum.
Ele fez outra pausa, como se estivesse sem ar. Talvez estivesse, de fato.
— Eu tenho horror do que vejo aqui. Uma pessoa próxima, uma colega de trabalho morrendo. Isso me assusta.
— Não é sempre assim. É o caso de um em um milhão, este. Policiais que têm doenças psicológicas não são algo raro, entretanto.
olhou para , de lado. O oficial tragou novamente, continuando:
— Você acha que nós somos sãos? Pessoas do bem? Nós andamos armados, cara. Se a lei assim cobrir, podemos até atirar em civis. O medo não pode ser da arma, tem que ser de quem a segura. E nós, absolutamente, somos os detentores do medo.
Ambos pareciam falar sozinhos. E, impressionantemente, ambos conseguiam falar um com o outro, desse modo.
— Já falei sobre minha família, ? — perguntou , já no meio do cigarro.
O jornalista fez que não com a cabeça.
— Meus pais são um advogado e uma empresária. Meus tios são, praticamente todos, isso ou médicos. Eu mesmo quase fiz medicina.
— E por que acabou virando policial? — perguntou . Em sua própria família, a maioria eram professores e pessoas de empregos mais modestos.
— Médicos trabalham com instrumentos mortais todos os dias. Podem matar uma pessoa na mesa de cirurgia, se acabarem falhando alguns milímetros. Empresários fazem dinheiro de outras pessoas, investem dinheiro e podem arruinar famílias inteiras, se bem quiserem. Advogados conseguem quase sempre adaptar a lei, se assim ela for agir ao seu favor. São todas pessoas direitas. Pessoas da saúde, da economia e da justiça.
O cigarro estava no fim. deu a última tragada.
— Escolhi uma profissão para defender as pessoas, de verdade. Meu trabalho é combater pessoas como essas que compõem a linhagem . Meu trabalho é ser o verdadeiro protetor. E não o que minha família acha que é. Eu combato a injustiça mais clara, descarada. A mais discreta foge aos meus olhos, e é feita por pessoas que são sangue do meu sangue.
Jogou o fim do cigarro no chão, pisoteando-o para apagá-lo.
— A violência está em todo lugar. Nós apenas fingimos que estamos protegidos sempre. E que o que consideramos certo é a verdade absoluta, quando só a aceitamos porque é melhor assim.
Depois de e terem ido embora, Marla arrumou a cama para . agradeceu novamente pela ajuda, mas via nos olhos verdes de Marla que ela tinha algo a dizer.
— Se precisar de algo, é só chamar. Vou estar na sala.
Quando se deitou, antes de apagar as luzes, a chamou novamente, antes de Marla fechar a porta. A ruiva voltou, acendendo a luz.
— Sim?
— Pergunte o que quer saber, Marla — falou, com os cantos dos lábios erguidos.
A ruiva comprimiu os lábios.
— Eu só queria entender como você chegou tão longe, sendo que não sabia de quase nada. Como você descobriu tudo praticamente sozinha, com você mesma trabalhando contra você.
sorriu. Ajeitou o cobertor, falando:
— Marla, o segredo do sucesso não é trabalhar duro. É trabalhar inteligente.
A ruiva ponderou a resposta e apagou as luzes, fechando a porta com um ruído baixo.
So fix your eyes and get up… You better get up, while you can.
Capítulo 35 — Cancer
Now turn away, ‘cause I’m awful just to see…
Quando a manhã raiou novamente, bateu na porta do quarto de Marla assim que o sol se mostrou presente.
— Marla, acorde — disse ela, batendo conta a madeira com os nós dos dedos — O sol já nasceu, Marla, precisamos sair.
— — a ruiva disse, num bocejo, abrindo a porta. Seus cabelos estavam com nós, e sua cara parecia um pão — Achei que não me acordar fosse uma condição para que você pudesse ficar aqui.
— Desculpe, eu fiquei ansiosa e não consegui dormir bem. Acordava a cada meia hora.
— Credo — Marla fez o sinal da cruz. riu, seguindo-a para a cozinha.
Dentro de si, ficou feliz por conseguir conhecer essa característica de Marla. Gostava de dormir.
Gostava bastante, pelo jeito.
— E está disposta, pelo menos? — perguntou Marla.
Ligou a cafeteira e separou duas canecas em cima da mesa. O apartamento de Marla era modesto, mas muito organizado e delicado. As paredes eram de tons claros, os móveis, de aparência vitoriana, e louças eram brancas, com talheres prateados simples de cabo preto. Uma mulher extremamente comum, que vivia sozinha.
— Não vou querer café, obrigada. Acho que andei tomando café demais, ultimamente.
— Quer um suco? Torradas?
— Torradas seria perfeito, Marla. Obrigada.
Pouco depois, ambas estavam sentadas à pequena mesa redonda e verde-água, comendo duas torradas e bebericando alguma coisa.
— Viu algo na madrugada? — perguntou a ruiva.
— Não. E não dei muito tempo a ela.
— Acha que pode ficar um tempo livre? De Ramona.
mordeu a torrada.
— Não. Ela deve ter pensado em algo, deve ter algo planejado.
Marla ergueu as sobrancelhas, olhando para baixo.
— O que foi?
— Para mim, é estranho demais você ter uma segunda personalidade. Não sei, nunca vi isso, parece coisa de filme. Ainda mais uma que quer te substituir, e que tem memórias distintas das suas.
levantou, indo até a pia e colocando seus talheres e louça ali.
— Não é como se Ramona quisesse me substituir. Ramona sou eu. Ela é um lado meu que não controlo, um lado meu que é tão forte, que eu personifiquei.
Abriu a torneira.
— Não se importe com isso, ...
Ignorando-a, a detetive começou a lavar sua louça.
— Vamos ver hoje — Marla anunciou.
olhou-a por cima do ombro, mas logo voltou para a pia.
— Quando?
— Assim que você terminar isso.
— E onde ela está?
Marla fez uma pausa, o que causou uma margem de falta de confiança em . Talvez, a localização dita a seguir fosse uma mentira, se caso essa mentira fosse mais agradável do que a verdade em si.
— Ela está em um hotel.
— Sabe por que ela contatou você, quando quis se manter informada sobre mim? E por que ela se afastou?
— Tudo em seu tempo, . Você não vai deixar de saber uma única linha dessa história. Mas pode te explicar isso melhor do que eu.
— Não sei se vou confiar nela depois de tudo. Depois de ela ter me deixado para trás por tanto tempo, só observando de longe.
— Garanto que ela lhe dará um belo motivo para ter feito isso.
Entraram no carro de Marla. A ruiva no volante, se acomodando. sentou no carona, respirando fundo.
Estava indo ver . Marla, uma mulher que a odiava até pouco tempo, sabia o paradeiro de sua melhor amiga, e a própria não.
. A melhor amiga que há tempos não ligava para ela. Que foi embora sem dizer aonde ia, e sem se despedir.
Não perdoaria , a não ser que ela tivesse uma bela desculpa para ir. Percebeu que tinha ido pouco após a morte de , e provavelmente, temia por . Mas por que continuara longe? Por que não dava notícias?
E, ainda mais, por que precisava da ajuda de Marla? O que era tão preocupante assim?
A ruiva também respirou fundo. Pegou, na bolsa, uma caixa de remédios.
— Meu tio é esquizofrênico. Ele tem os mesmos sintomas que você. São os remédios que ele usa, que eu tenho prescrição para adquirir. Sempre tenho alguns em casa, para o caso de ele precisar.
Colocou a caixa no colo de .
— Você não precisa tomar se não quiser. Eu, pessoalmente, acharia perigoso você tomar remédios indicados por alguém que não fosse um médico. Mas, por ora, acho que não seria uma má ideia.
comprimiu os lábios, hesitando. Segurou a caixa, lendo os efeitos colaterais.
— Você precisa tomar esses remédios, .
colocou a caixa de volta no colo e murmurou:
— Eu não posso, Marla. Um efeito colateral deles é a amnésia. Que tipo de detetive tem amnésia?
— Mas...
— Não. Não posso ter amnésia.
— Se um psiquiatra te indicar um remédio que tenha efeitos colaterais assim, você vai fazer o quê?
— Não vou tomar.
— ...
— O que faço é mais importante do que isso. Preciso controlar minha mente, aprender a não enlouquecer. Mas de modo algum vou sacrificar meu trabalho por causa disso.
Marla guardou a caixa e deu a partida no carro. Em silêncio, seguiram até o hospital de Longview.
Marla entrou no estacionamento. A única vaga ficava bem longe do hospital, mas não havia outra opção. As duas saíram do carro, e, em silêncio, seguiram para a entrada do hospital.
A ala em que estavam causou surpresa em . Marla disse à recepcionista os nomes de ambas, colocando em um adesivo. A ruiva estendeu à o adesivo do nome dela.
Quando entraram no elevador, só estavam as duas.
— Como está se sentindo? — perguntou Marla.
— Confusa — murmurou .
O elevador começou a subir, e parou no andar imediatamente superior.
— Vai piorar daqui a pouco.
O quarto 237 ficava no fim do corredor. e Marla andaram com passos curtos até a porta verde clara, que tinha o nome de em um pedaço de papel acima da maçaneta.
A ruiva fez menção para abri-la, mas parou segundos antes. Disse, com a voz de quem queria acalmar , para que ela não quisesse avançar no pescoço de assim que a visse:
— Ela não sabe que você está vindo vê-la.
— Ela não vai acabar se assustando comigo?
— Não acho que vá. Ela não sabe que você está vindo hoje, mas sabe que eu iria trazê-la cedo ou tarde.
— E ela vai gostar de me ver?
Marla não soube responder precisamente. Em vez disso, abriu a porta, murmurando:
— Pergunte isso a ela.
estava no canto do quarto, de pé. Estava de costas para a porta. Usava uma camisola azul clara, e os cabelos estavam presos em um coque. Ao ouvir o som da porta, virou-se para ela.
— Achei que talvez vocês pudessem vir. Entrem — ela falou, com o rosto de surpresa sendo substituído lentamente por um sorriso que tentava ser convidativo.
As detetives entraram e fecharam a porta.
O universo não ia além daquelas quatro mulheres.
E já parecia cheio demais.
— , esta é a Dorothy — falou, andando para perto de , que permanecia estática na entrada do quarto.
Tirando uma toalha que segurava a bebê e tapava parte de seu rosto, mostrou a face de sua filha. Era um bebê inegavelmente lindo. O rosto bem redondo, não tão rechonchudo, não tão magro. Os lábios estavam semiabertos, e os olhinhos estavam fechados. Seus cabelos ralos eram loiros, tão claros que eram quase invisíveis em sua pele rosada. A respiração da pequena Dorothy era impossível de ser ouvida, tão baixa quanto o canto dos anjos.
— Ela é um anjo — foi o que conseguiu dizer. Colocou as mãos na frente da boca e apertou forte os olhos.
Pela primeira vez em muito tempo, estava chorando de felicidade.
— Eu descobri que estava grávida quando você ainda estava no Manson. Eu e ficamos tão felizes, mas achamos melhor não contar isso para muitas pessoas. Ele estava ocupado com o trabalho, e eu precisava começar a ver minha situação para tirar licença. Foi quando veio com a notícia.
Marla estava sentava numa poltrona. Já sabia toda aquela história, então era quem precisava prestar atenção.
estava sentada na cama, em total silêncio. Marla nunca tinha visto a detetive daquele modo. Estava apenas determinada a ouvir, não a falar.
Quase um milagre, em sua opinião pessoal.
estava sentada na cabeceira da cama. Tinha Dorothy em seus braços, que dormia. A pequena já parecia ter um sono pesado, pois não era necessário diminuir o volume de suas vozes para que não a acordassem.
— já tinha reparado no seu comportamento. Vocês vinham discutindo, e, com frequência, você esquecia disso. No dia seguinte, era como se tivesse apagado esses episódios. Quando você foi para o Manson, ele conseguia os seus exames de rotina. Tinha autorização médica e legal para tal. Estudou você por um tempo, estudou as coisas pelas quais você passou. Essa foi a conclusão dele.
— Eu sou um perigo a vocês e à Dorothy.
— Não. Você não. Sua segunda personalidade. Sua esquizofrenia nunca foi detectada. nos explicou que não existem estudos tão aprofundados assim sobre ela. Qualquer pessoa pode ter, a qualquer momento. Não sabíamos o que fazer, ainda mais depois que você saiu.
olhou para a filha, acariciando o rosto da pequena.
— Não sabíamos como reagir a isso. sabia o que estava acontecendo, por alto. Sabia que não era só a nossa . Tinha mais alguém aí, alguém que não conhecíamos. Ele disse que achava melhor não falarmos com você sobre a gravidez, ou sobre qualquer novidade a não ser nosso noivado. Ainda assim, tínhamos que ter delicadeza sobre tudo. Tratar você como sempre tratamos. Íamos aprender com o tempo a maneira mais correta de falar com você. Mas logo que você chegou, teve a festa...
Dorothy murmurou letras soltas, acordando. ninou-a um pouco, e ela logo caiu no sono novamente. Os olhos de começavam a marejar.
— Eu não soube na hora o que aconteceu. Quando aconteceu, ligaram para mim e para para avisar. Disseram que você ficou desacordada. Que precisava de descanso. Assim que você chegou em casa, o assunto morreu e fomos todos para a cama.
Fez uma pausa.
— Depois do incêndio, soube o que estava acontecendo. Era ela, quem quer que ela fosse. Precisávamos nos proteger o mais rápido possível. Ficamos eu e ele na casa dos amigos, até que algo também alcançou .
O suicida. O traidor.
Que sabia demais.
— Eu soube que precisava partir. Precisava ir embora, pelo bem de Dorothy. Eu estava com cinco meses, mais ou menos, na época. Não tinha barriga praticamente nenhuma; isso é raro de acontecer, mas acontece. Eu sabia o que Dorothy representa para os Durden. Eu sei que, sendo um dos que herdeiros, sua morte daria sua parcela a um dos outros. Joe, Justin e Jacqueline se foram. Só sobrará James. E ele perdeu o direito à herança, quando se envolveu no seu sequestro e de Tyler. Assim, toda a quantia recai sobre o descendente direto de um dos herdeiros.
A pequena Dorothy.
Mal tem uma semana de vida, e já sente como é o mundo aqui fora.
sabia que provavelmente não tinha conhecimento das "novidades", então adiantou:
— Tyler é filho de Johnny. Tyler é um Durden. Ele está seguro no Manson, agora. Mas talvez não por muito tempo.
Seguro no Manson.
— Tyler está no Manson? — perguntou , franzindo o cenho e olhando para Marla.
— Eu não sabia de nada até pouco tempo atrás — a ruiva se defendeu.
— Ele foi há pouco tempo. Lá, estará seguro. Mas foi obrigado, não sei como, a fazer um testamento que confere a mim todos seus bens e, portanto, sua herança.
— Mas...?
— Mas me disse algo antes de morrer. Ela disse que Joe está vivo. E se ele está, sei que está trabalhando com a minha segunda... — se interrompeu, mordendo o lábio — Com Ramona. Não sei aonde eles querem chegar, mas Ramona quer tudo. Ela quer se sobrepor a mim.
— O que devo fazer?
— Manter Dorothy o mais longe possível disso tudo.
abaixou os olhos para a menina.
— me traía com Samantha. Ele a matou. era um assassino. Ele era uma pessoa ruim... Uma pessoa ruim como eu sou.
olhou de lado para Marla.
— Você não é uma pessoa ruim, . Você tem momentos ruins que não são culpa sua. tornou-se uma pessoa ruim, se ele a traiu e se matou alguém. Mas estamos todos sendo pessoas ruins nessa história. Ninguém vai sair impune.
— Você sai impune.
negou com a cabeça, olhando para a filha com o canto do lábio erguido.
— Eu não. Eu fugi da minha melhor amiga quando ela mais precisava de mim. Eu fui uma medrosa, uma egoísta, covarde. Mas tive tempo de me redimir.
— Como você chegou a Marla?
Ambas olharam para a ruiva. Ela começou:
— Precisamos dar o nome aos bois. Quando soube de Ramona, que na época não tinha nome, precisou avisar a quem era próximo. Ele contou isso a e . Então, Julie foi até ele, e ele contou a ela também. Quando você tinha dito, , que Ramona tinha incendiado sua casa, e não achamos a mulher que você descreveu em lugar algum das redondezas, foi só somar um e um. Nós sabíamos quem era Ramona. Depois que morreu, precisou partir. Na época, vocês se falavam de vez em quando. Mas depois do sequestro, alguém da delegacia precisava contatar você de algum modo. Alguém que soubesse. Ou eu, ou Julie ou .
— E vocês tiraram no palitinho e, vejam só, hoje em dia são unha e carne? — perguntou . Seu tom era um pouco sarcástico, porque, bem, era .
— Na verdade, você estava com uma situação complicada com , naquela época — respondeu Marla — Não tinha como ajudar . Aliás, se houvesse algum problema, chegar a por seria fácil. Mas por mim? Quem imaginaria que eu estava estreitando relações de confiança com a melhor amiga de uma "inimiga minha"?
ergueu as sobrancelhas, fazendo um bico em sinal de concordância.
— Acho que você tem um ponto.
suspirou de repente. Murmurou, acariciando a cabeça da filha:
— Coisas demais para pouco tempo. A herança está nas mãos de Tyler?
— Sim, e de Dorothy. Joe sabe sobre Tyler, mas não acho que saiba sobre ela.
Fez uma pausa longa.
— Você não devia ter dito isso a mim, .
— Não devia?
— Não. Ramona agora sabe de Dorothy. Joe pode saber de Dorothy.
— Você não faria isso. Você pode se controlar, e eu sei disso. Eu a conheço, .
— Você me conhece, mas não conhece Ramona — afirmou, ficando de pé e com o volume da voz sutilmente mais elevado — Ela é calculista. Ela tem estratégia. Não é como se ela tivesse tudo planejado: ela parece adaptar tudo ao plano. Se algo foge, ela dá um jeito de consertar. De adaptar aos fins dela.
Os fins se adaptam aos meios, ou os meios se adaptam aos fins?
— Sabe por que ela é assim? — perguntou, enquanto continuava inquieta, andando pelo quarto com passos largos — Porque ela é você.
— Ela não sou eu, . Ela é como eu gostaria de ser.
— Ela é você. E você pode ter controle sobre ela.
— Eu não posso, .
— Eu confio em você.
— Não acho que devesse.
O tom de não fora grosseiro, mas sim, de alarme.
— suspeitava que Joe estivesse vivo. Ele comentou comigo. Estava trabalhando nisso. Por isso, precisei ir embora.
— Pelo seu próprio bem.
— Pelo bem da minha filha.
e Marla se olharam.
— Ramona está sabendo de tudo, agora. É uma faca de dois gumes. Ou ela sabe de tudo, ou eu não sei de nada.
Dorothy nasceu no pior momento possível.
— Preciso beber um copo d'água.
Ou de café.
pediu licença e saiu do quarto.
Estava na saleta da ala da maternidade. Tinha um copo d'água na mão, e o bebericava enquanto fazia hora.
Não podia voltar para aquele quarto. Suas mãos suavam, úmidas de agonia. Podia sentir suas veias pulsando contra sua pele, movimentando-a como não queria fazer. Precisava fazer aquilo.
Não queria, mas precisava.
Já podia sentir os impulsos.
Dorothy nasceu no pior momento possível.
Mordiscava o plástico.
Ela é só um bebê.
Ela não faz ideia de como está o mundo aqui fora.
Volte, Dorothy.
Seria melhor se você nem tivesse nascido.
Não podia voltar. Não podia.
Resista.
Serviu-se de café. Achou que isso poderia ajudá-la a melhorar... Afinal, não ajudava sempre?
Um capítulo errado no meio da história.
Dorothy, você não é bem-vinda em Oz.
Você sabe o que precisa fazer.
Ela é só um bebê. Prematuro, deverá ficar mais tempo no hospital, provavelmente.
Bebês ficam doentes o tempo todo.
Saia daqui.
O conteúdo do copo estava quente. Sua língua chegara a queimar quando o café caiu em sua boca como uma cascata.
Apenas saia.
Ela é só um bebê.
Quem você quer enganar? Ela e Tyler têm direito a toda fortuna, todos os bens dos Durden.
Seu irmão, que não é seu irmão de verdade.
Ele passou tudo a você.
Só você e um bebê.
Afinal, ela é só um bebê.
Isso é... demais. É além de tudo.
Só saia daqui. Não quero você aqui.
Ela não tem nada a ver com isso.
Exatamente.
Ela não tem nada a ver com isso.
Feche os olhos, deixe que eu comande. Ninguém vai saber, você sabe disso.
‘Você não devia ter dito isso a mim, ’. Adorei isso.
Vá embora.
Você não quer que eu vá. Sou a melhor você. Eu sempre estive aqui.
Aqueles momentos inexplicáveis. Que você fazia algo por impulso, e, depois, não sabia entender por que o fez.
Sou seu impulso.
Você nem sequer tinha remorso por suas ações impulsivas.
Não vou ferir Dorothy. Ela é um bebê. Ela é filha dos meus melhores amigos.
Se está morto, você tem uma parcela de culpa.
Se está morto, você também tem.
Diga meu nome. Diga quem ainda está aqui.
Diga quem está falando por você, pensando por você, quem tem seu toque e seu corpo.
Diga quem está comandando a música que você apenas dança.
Ramona. Por favor, vá embora.
, eu estou só começando.
.
.
— ! — chamou a voz de Marla.
abriu os olhos, apertando o copo de plástico como um reflexo.
Só um impulso.
Virou de costas. Havia famílias na sala, todas comemorando. Afinal, a vida está começando para dezenas de pequenos seres humanos daquele hospital.
Ninguém ali era como Dorothy. Ninguém era a peça fundamental de um assassinato, de vários, até.
E se...
— Preciso que você veja algo.
olhou no fundo dos olhos verdes de Marla. Os olhos verde folha da detetive, que agora estavam de uma cor aberta.
— Está tudo bem? — perguntou Marla, franzindo o cenho. colocou a mão na ponte do nariz, fechando os olhos com força.
— Uma dor de cabeça. Preciso ir para casa.
— Eu te levo.
— Não, Marla. Eu vou sozinha. O que houve?
A ruiva colocou a mão no bolso. Pareceu hesitar por um momento.
Tyler tinha lhe dado isso com um objetivo: que isso não caísse nas mãos de .
Por outro lado, Marla sabia que aquilo deveria ficar nas mãos dela.
Tirou uma chave embrulhada em papel higiênico, uma pequena chave pintada de azul.
Os olhos de brilharam. Lembrou-se da caixa que tinha em casa, a caixa de Zoe. Talvez, de Joe. O que importava era que agora sabia que ela tinha alguma utilidade.
— Quero que fique com isso — Marla entregou a chave ainda com papel em volta. ia segurar o metal, mas a ruiva puxou-a instintivamente. Completou: — Só uma sugestão: não segure a chave sem algum papel...
não entendeu bem o que ela queria dizer com aquilo, mas acabou obedecendo. Pegou a chave com o papel, e observou-a.
— O que ela abre? — preferiu fingir que não entendia o objetivo daquilo.
— Não sei. Mas Tyler a pegou. Não sei bem onde, ou como. Foi enquanto James e Jacqueline o pegaram. Estava com Tyler, e ele me deu. Acho que você deve saber o que fazer com ela.
Perfeitamente.
— Não sei. Desculpe.
— Quer que eu a deixe em casa?
Marla se aproximou, mas recuou, quase como se tivesse sido ameaçada.
— Não. Estou bem. Vou sozinha. Fique com , ela precisa de companhia.
Bronx franziu o cenho.
— Você está fugindo?
não respondeu.
— Só preciso de um tempo. Um tempo para pensar. Está tudo bem.
Marla se afastou, dando um passo para trás. Seu rosto se contorcia em ares de desgosto, aversão, ou até mesmo nojo.
— Faça o que é certo, não o que é fácil, !
Agora via Ramona. Via que Ramona era uma mulher forte, decidida, a parte mais estável de .
Aquela menina covarde à sua frente era a verdadeira . Aquela menina inferior, que foge.
Ou isso era o que achou que Marla estivesse pensando.
Ramona é tão melhor.
Agora entendia Joe Durden. Era compreensível.
A admirável, a exemplar, que todos queriam ser e ansiavam para conhecer... Era Ramona.
Todos me preferem a você.
— Só preciso ficar um tempo em paz.
— Tem certeza?
— Absoluta. Estou bem. Vou para casa.
— Me avise quando chegar.
assentiu.
— Diga a que ela fez bem em se afastar.
— Você sabe que é mentira.
— E você sabe que estou certa.
Marla queria assentir. Em vez disso, apenas se despediu de e foi para o quarto.
pegou seu celular, enquanto descia de elevador. Tinha recebido uma mensagem de .
‘Tudo bem? Como está? Você não mandou notícias...’
Ergueu o canto do lábio brevemente.
‘Estou ótima.’
Chamou um táxi. Assim que entrou no veículo, disse ao motorista o endereço, e conferiu o celular.
Nenhuma chamada, nenhuma mensagem.
Estava indo para casa.
O trajeto foi feito em total silêncio. Quando o táxi parou, ela entregou o dinheiro e saiu do carro.
— Cuidado, moça. A polícia andou vindo bastante aqui.
Havia uma série de faixas amarelas na porta. Formavam linhas cruzadas, proibindo a entrada de qualquer um.
Ah, a Singer Street, em seu mais puro estado.
Ela não respondeu. Quando o táxi se foi, passou a mão pelas faixas, rasgando-as ou descolando-as, como se estivesse tirando teias de aranha de seu caminho. Colocou a chave na fechadura e girou.
A casa tinha um cheiro agradável de pólvora, cano de descarga e gato molhado.
Pequenas placas com números, de provas, estavam em todo lugar.
Podia imaginar os outros policiais ali. Todos aqueles bostas.
"Esse sangue nesse espelho. Será que é de ?"
Faça um teste de DNA, gênio. Da Madonna eu duvido que seja.
"E as digitais? Os cacos estão cheios delas. Vamos levar para a perícia?"
Não. Isso deve ser coisa dos ETs. Quem sabe?
"E onde está ?"
Estou em casa.
Passou com cuidado em cima dos cacos, como uma bailarina. Usava calças compridas pretas, uma blusa de mangas compridas branca e um agasalho preto. Pisava perto dos cacos, mas não os tocava.
Peças quebradas caídas, mas estava distante delas.
Uma das relíquias que sobraram.
Se Tyler tinha conseguido aquela chave com os Durden, de qualquer jeito que tenha sido, a caixa também devia servir.
Zoe? Ou Joe Durden.
Mantenha a calma.
Sim. Ficar ansiosa vai ser pior.
Sabe-se lá as coisas que poderiam acontecer, não?
A caixa estava no fundo falso de uma gaveta no móvel da sala. Quando chegou ao móvel, pensou o que poderia ter ali.
Um pequeno cubo azul, que cabia na palma de sua mão.
De repente, foi atingida pelo pânico de serem explosivos.
Não seja idiota. Você é policial. Sabe reconhecer um dispositivo suspeito de explosão.
Nossa, . E você ainda se diz policial.
A chave não era como se servisse para alguma porta. As nervuras no cabo eram finas e pareciam, de fato, nervos.
Olhou para ela, enquanto sentava-se no chão, onde não havia tantos cacos. A caixa estava na palma de sua mão.
Colocou a chave no único espaço disponível para ela e girou-a.
Quando ouviu o clique, deixou a caixa cair em susto.
Silêncio.
Respirou fundo, assustada. Virou a caixa para cima, pois ela caíra de lado.
Ela não fez nada além de soltar uma única e baixa nota.
Nada aconteceu.
Absolutamente nada.
Colocou a chave novamente, e, dessa vez, deu duas voltas completas na fechadura.
As notas vieram mais cedo, e conseguiu reconhecer qual era a canção, dessa vez.
Abriu a tampa. Uma pequena bailarina saltou de uma plataforma. Na parte interna da tampa, tinha um pequeno espelho oval.
Ela girava, e era só isso.
Moon river, wider than a mile, I'm crossing you in style, someday...
Era uma melodia rápida, enquanto a pequena bailarina dançava na plataforma formando um símbolo do infinito.
Oh dream maker, you heartbreaker, wherever you're going, I'm going your way...
O espelho oval estava um pouco torto, caído para um lado. pegou-o para ajeitar, quando ele se soltou.
Na tampa, onde ele ficava, estava um pequeno desenho à caneta. Um sorriso.
Two drifters off to see the world, there's such a lot of world to see...
Olhou a parte de trás do espelho. Era branca, com um desenho de caneta preta.
We're after the same rainbow's end... Waiting in a bend...
Uma laranja, uma pequena laranja e uma frase.
My huckleberry friend, moon river and me...
"Você já fez isso antes."
Tão estranha quanto uma laranja mecânica.
A canção parou. A bailarina, já estática, pausou seu caminho.
"Wherever you're going, I'm going your way..."
Onde quer que você vá, eu sigo o seu caminho.
Que tal um esconde-esconde?
Pegou o celular. Mandou para Marla uma mensagem, dizendo que estava em casa. E, em seguida, procurou em seus contatos o número que precisava.
Se Joe Durden queria fazer uma caça ao tesouro, estava pronta para começar.
Começando pela procura de uma laranja mecânica.
— Alô? — perguntou a voz masculina do outro lado da linha.
— ? Como está?
— ! Faz tempo que não tenho notícias suas. andou fazendo muito mistério esses dias. Estou bem, e você?
— Ótima. , preciso falar com você. É bem importante.
— Aconteceu alguma coisa, ?
Ela molhou os lábios.
— Sua fantasia de Laranja Mecânica. Preciso vê-la.
— , aquilo era improvisado. Não tem nada demais nela. O que aconteceu?
Bufou. Fim da linha? Não era possível.
Joe deve ter deixado algo para . Algo em , com . A pista não podia ser tão vazia assim.
Ela já tinha feito aquilo antes.
— Ok, mas tem algo que você queira me dizer? Ou me mostrar.
— , você está sóbria? Porque não consigo entender aonde você quer chegar com isso.
— Só responda.
Ele pareceu pensar um pouco. Suspirou, falando, por fim:
— Ah, eu recebi uma encomenda recentemente. Estava no seu nome. Não abri, e nem o . Eu ia te mostrar quando você viesse aqui. Não achei que fosse importante. Por que essa curiosidade toda?
— Você está em casa?
— Ainda não, mas posso arrumar um tempo na hora do almoço... ?
— Estou indo aí.
Qualquer coisa no mundo parecia mais interessante do que a delegacia de Longview naquele dia. Era de manhã, ainda. E o tempo estava cada vez mais lento.
, abra os olhos. Não pode dormir agora.
Havia poucas pessoas na delegacia. estava em sua sala, em silêncio. Anotava algo em um bloco, seus pensamentos aleatórios sobre tudo aquilo. Um jeito de organizar as coisas.
Joe Durden estava vivo, e, decerto, tudo que tinha acontecido tinha algo a ver com ele.
Mas onde ele estava? Como podia ver tudo, de tão perto, com tantos detalhes?
Onde está esse fantasma?
— — chamou , na porta.
ergueu os olhos. Ainda era horrível ver o rosto de .
Era seu amigo, de certo modo. Ajudou-o quando ele chegou.
E agora, não podia fazer nada. Todos estavam trabalhando em favor de , mas o rosto de era a maior lembrança de que, caso algo desse errado, todos pagariam o preço.
A cicatriz de Jacqueline Durden ainda estava lá, para lembrá-lo daquilo. Branca, pulsando.
Sempre haverá um Durden na pele de cada um.
— Tenho alguns vídeos aqui. Arquivos pessoais. Quer dar uma olhada?
— Que arquivos? — perguntou, clicando a caneta.
— Coisas do caso de Joe. De repente, olhando algum detalhe de algum vídeo possa nos dar uma luz. Quer ver?
— Honestamente, ...
tentou sorrir. O resultado não fora o mais belo, mas, de certo modo, soou gracioso.
Um oficial menos ameaçador.
— Foi uma ordem educada, não uma pergunta.
Entrou na sala com uma caixa cheia de fitas.
— Deus. Não vejo um VHS desde que tinha uns dez anos.
— Vai ver muitos hoje, pelos 15 anos que ficou sem ver nenhum.
levantou e se ajoelhou na frente da caixa, no chão. Eram muitas fitas. Dificilmente poderia vê-las em tão pouco tempo.
Rezou para que Joe tivesse dado uma pista bem rápida e óbvia.
— Vai me acompanhar nas honras? — perguntou o jornalista, pegando a caixa com uma voz cansada.
fez que não e deu passagem para , para que ele fosse para a sala de projeções.
— Não posso. Julie me requisitou para uma coisa no caso de . Vou te dar cobertura, mas não posso ver os vídeos.
— Nossa, você deveria querer tanto ver esses vídeos. Fico com peso na consciência em ter que ver tudo sozinho — disse , com a voz carregada de sarcasmo.
riu.
— Bem, claro que não estou triste com isso. Mas Julie me solicitou com o caso da . Acho que temos uma boa prova, agora. Uma denúncia anônima.
empurrou com o pé a porta da sala de projeções.
— Me deixe sabendo dos detalhes. Vou estar tão ansioso com esses filmes do Durden que mal posso esperar por novidades de outros casos.
Quando o jornalista entrou na sala, fechou a porta.
— Boa sorte com isso.
Pronto. Sozinhos, enfim.
olhou para a caixa. Estava organizada por data, desde os vídeos mais antigos até os últimos. A maior frequência de vídeos eram os de quando Joe tinha 5 até uns 13 anos.
Agora somos eu e você, Durden. Vamos poder nos conhecer melhor.
Pegou a fita mais antiga. Provavelmente, quando ela terminasse, ele pularia para uma de quando Joe tinha 10 anos. Mas, para começar, queria um menino.
Não um homem, não assassino, não um doente insano.
Só um menino doente. Um menino ruim.
A semente do mal.
Colocou o vídeo no aparelho e se sentou. Apagou as luzes.
Só eu e você, Durden. Vamos ver o quanto vou querer te socar, quando souber onde você está.
A gravação começou.
Por que sinto como se já te conhecesse há tanto tempo, seu filho da puta?
Era um vídeo caseiro. Joe foi o primeiro a aparecer: um menino de cabelos loiros finos, como fios de ouro. Seus olhos, apesar de estarem embaçados na gravação tão antiga, eram visivelmente de um verde intenso.
Ele acena para a câmera. Seu sorriso é encantador.
Só um menino ruim.
— Joey, dê um olá! — diz uma voz feminina atrás da câmera.
apoiou o queixo em uma mão. Aquela era Johanna.
De uma maneira quase surpreendente, os Durden pareciam uma família normal.
Joe está em um grande quintal, com flores no fim do terreno, e uma casa na árvore atrás de si. Ele aponta para a casa, e vira o rosto para ela.
— Ali é onde eu e moramos. A gente ainda tem que morar com meus pais porque a gente é criança.
Ele olha para a câmera novamente. É quase um aviso a .
— Mas quando a gente crescer, a gente vai casar.
Seu filho da puta.
Agora, uma menininha aparece na tela. se ajeitou na cadeira. É uma criança, mas conseguiu reconhecer quem é.
Ela e Joe se abraçam. Ele a segura pelo pescoço, enquanto o abraça forte no tronco.
— Diga por que fizemos essa casa na árvore, — instrui Johnny.
A menina tenta desajeitadamente pôr seus cabelos de um jeito, mas só consegue deixá-los embaraçados. E, de um jeito pouco surpreendente, isso só consegue ser encantador.
— Fizemos essa casa pra mim e pro Joe, mas nossos irmãos também vão poder brincar nela.
Joe concorda.
— Quantos irmãos você tem, ? — Johnny pergunta novamente. Johanna tinha saído de trás da câmera, indo para perto de seu filho, abraçando ele e .
Ela ergue um único dedo, falando:
— Um só! O nome dele é Tyler. Ele é bebê ainda.
A câmera viaja até outro lado do quintal, mostrando um neném dormindo harmoniosamente em um berço.
Aquele era Tyler?
Quem diria, ele já ficou sem fazer nenhuma merda. Surpreendente.
— E você, Joe?
Ele pensa um pouco. Então, levanta três dedos.
Engraçado. Já tinha visto aquilo em algum lugar.
Ei, . Pense um pouco.
— Tenho três. Os nomes deles são James, Jackie e Justin.
— E o Tyler? — pergunta Johanna — Você sempre diz que ele também é seu irmão.
— Ele é meu irmão de mentirinha. Mas é muito bebê. Vai ser meu irmão quando crescer.
Joey já sabia que Tyler era seu irmão. Mais ou menos.
Conferiu o relógio. Estava cedo. Tinha bastante tempo.
Era quase hora do almoço quando e se encontraram na esquina da rua onde ele e moravam. Ela estava com um pequeno espelho na mão.
Cheirava sutilmente a cigarro.
— ? — ele perguntou.
Ela olhou-o com o canto dos olhos. Ele tinha o cenho franzido.
— Quanto tempo — ela comentou em resposta.
Não era .
Ela deu um sorriso e foi até ele.
preferiu não discutir. Apenas apontou para o prédio com a cabeça, e pegou as chaves no bolso.
— Recebi isso faz uns dias. Tinha seu nome. Mas como as coisas estavam meio feias, eu e preferimos deixar isso quieto.
Abriu a porta do prédio. Subiram as escadas em silêncio.
parou em frente à porta por um momento.
— O que foi? — ela perguntou, dando a volta nele.
A maçaneta estava destruída. A madeira estava quebrada, em alguns pontos. E a porta estava aberta.
e se olharam antes de ele empurrar a porta devagar. A sala da casa estava do avesso. As almofadas do sofá viradas, a mesa de centro arrastada, cadeiras fora do lugar.
Sem sinais de qualquer tipo de luta.
— Fui assaltado.
— Falta alguma coisa, ? Dinheiro, algum objeto de valor? — perguntou , sentada em uma cadeira. Não mexeram em nada que estava desorganizado.
É essa a ordem policial, não? Não tocar em uma cena suspeita.
andava pela sala em círculos. Precisava, mais de qualquer coisa no mundo, de um cigarro.
— Não. Nem uma única nota. Nada que possa ser vendido por um preço bom. Parece que entraram aqui só 'pra virar isso de cabeça para baixo, e foram embora.
Ele passou a mão pelo rosto, parando.
— Preciso te dar a encomenda.
— , foque no que houve. Tem certeza de que está tudo aqui?
Só pegue a porra da encomenda de uma vez.
— Tudo de importante sim. Mas talvez eu esteja esquecendo de algo. Vou procurar melhor daqui a pouco. Por ora, vamos resolver seu problema.
Ele foi correndo até o quarto. ouviu o armário sendo aberto, e ele reapareceu com uma caixa de papelão parda, pequena.
— Vou ligar para a polícia, para falar do que houve. Enquanto isso, você dá uma olhada nessa caixa.
Ela puxou a fita adesiva que protegia o lacre. discava o número da delegacia, quando ela abriu o papelão.
— Boa tarde. Eu gostaria de delatar uma invasão de privacidade.
Eram cerejas. Várias cerejas. E um papel.
"Essa é minha surpresa para você. Tem alguma surpresa para mim?"
O Palácio da Cerejeira. O mausoléu Durden.
A surpresa de Joe.
Joe entrou na casa de e .
— O endereço é a Waiter Street. Sim, vocês já devem ter algo desse endereço nos registros. Meu nome também deve estar por aí.
Joe está me esperando no Palácio há um tempo.
E é tão feio deixar os outros esperando.
— , eu...
— Shh — ele pôs o indicador na frente dos lábios. ficou calada, e ele respondeu com murmúrios a chamada ao telefone.
Desligou de repente.
— O que foi isso? — ela perguntou.
— Não sei — o tom e as feições de transmitiam susto — Começaram a fazer perguntas demais. Sobre o arrombamento.
Fez uma pausa.
— Senti como se já soubessem que fomos assaltados. Como se isso fosse tudo que eles quisessem ouvir.
e o psicólogo sustentaram o olhar um do outro por um bom tempo. Nenhum dos dois parecia saber o que falar.
— Pode me fazer um favor, ? — finalmente disse.
Ele assentiu com a cabeça.
— Claro. Qualquer coisa. Quero resolver tudo o quanto antes.
— Pode me deixar no Palácio da Cerejeira?
Julie estava sentada atrás de sua mesa, brincando com uma caneta, batendo ela na mesa e girando-a por entre seus dedos. entrou na sala, em total silêncio.
Podia ouvir o som do silêncio, se assim quisesse.
Tinha, em cima da mesa, em um plástico, um grupo de coisas. E isso não poderia deixá-la mais preocupada.
— Me chamou? — perguntou , fechando a porta e indo até a cadeira.
— Eu te avisei que tínhamos recebido uma denúncia anônima, certo?
Ele assentiu, sentando-se. O tom de Julie era preocupante.
— E acabo de saber de onde tiraram essas provas.
olhou para a sacola plástica. Tinham alguns objetos sujos ali dentro, apenas aguardando um belo exame da divisão de homicídios. Entre as coisas, estavam:
Uma lâmina nova, ensanguentada, de corte rente. Prateada, não deve ter sido difícil de ser comprada. Era de uso comum. Uma arma premeditada, mas não minuciosamente adquirida.
Uma seringa vazia. A ampola estava pressionada até o fim. A agulha tinha sido descartada, porém, seria fácil identificar vestígios do que quer que tivesse ali.
Fios bem finos de seda branca, provavelmente vindos de um vestido feminino.
Fios de cabelos loiros. Não muitos, mas suficientes para juntar as peças.
— Encontraram isso tudo junto. No mesmo lugar.
Kit assassinato da . Garanta já o seu!
— Simplesmente deixaram isso por aqui? — perguntou . Não conseguia acreditar.
Era assim? Procuraram como loucos pelas armas do crime, e elas pipocam desse jeito, do nada?
— Foi um telefonema anônimo. Não quis dizer de onde veio. Só dizia que tinha encontrado pistas do caso de . Não disse onde.
— E está tudo aqui?
A delegada deu de ombros. Não havia mais nada a ser dito.
— Parece que sim. A única coisa que duvido que esteja aqui é o DNA do assassino. Mas não precisamos de exames, acho eu. Acabei de receber uma ligação que fez o trabalho de nosso vingador.
franziu o cenho.
— Vingador?
— É a única coisa que consigo imaginar. Uma pessoa sabe onde estão todas as provas. Quando as consegue, as deixa aqui, sem dizer onde pegou, nem como ou quem ela é. Ela só quer fazer o que não conseguimos fazer.
— Não tem lógica. Se essa pessoa queria alguém preso, o verdadeiro assassino de , sem erros... Não iria deixar as provas aqui, sem dizer de onde elas vieram.
— Tem razão. Ele esperou o assassino se acusar.
— E quando ele vai se acusar?
— acabou de ligar. Relatou uma invasão, não um assalto. A casa dele e de foi arrombada. Não roubaram nada.
— Não deu falta de nada?
— Nadinha. Reviraram a casa, mas não levaram nada.
Meu deus.
Faça isso parar.
Faça isso acabar.
— Não poderiam roubar algo que não sabia que tinha, oficial .
— Você quer dizer que...
As provas estavam na casa deles. Alguém entrou na casa, procurou-as e as entregou à polícia.
Alguém que achava que um deles era o assassino, e descobriu. Não foi difícil.
Foi só colher as provas. Procurar, procurar e procurar... Uma hora, ia aparecer.
— ou matou ?
Julie fez que não.
— me ligou falando da invasão. Não sei se ele seria tão idiota. Ele comentou que até tiraram a madeira de algumas gavetas do armário dele.
Um fundo falso.
Puta que pariu, .
Por favor, não fale que foi você.
— Ele está sozinho — Julie falou, abrindo a gaveta e tirando dali um par de algemas — Quero que o pegue sob ordem de segurança. Vamos fazer os exames, mas ele não sai da delegacia.
engoliu em seco.
— Julie, com todo respeito, acho precipitado manter preso sem antes...
— Se tem mesmo um mínimo de respeito por mim e por seu trabalho, oficial — ela fechou a gaveta, colocando as duas mãos em cima da mesa, com os dedos entrelaçados e o olhar vazio —, sugiro que siga minhas ordens. Estamos falando do assassinato de uma de nossas internas. Estamos falando de uma colega de trabalho que foi brutalmente assassinada. E eu, honestamente, não compreenderia por que a hesitação em prender um suspeito, já que as provas estão bem na sua frente. Tem algo que você queira me contar, oficial ?
não respondeu. Ficou de pé e foi até a porta, segurando as algemas.
— E o nome dele não é . É . Espero que faça o que estou mandando. Você é um dos meus melhores policiais, e não quero ser obrigada a repensar isso.
Quanto para mais distante do centro de Longview o carro se encaminhava, mais o estômago de se contorcia. estava no volante do carro, pois aquele era o dia dele de ficar com o veículo.
Tinha esquecido de avisar a Marla que tinha chegado. Ah, que maravilha.
Pegou o celular e discou o celular da detetive. Levou o aparelho ao ouvido e esperou.
— Marla, já estou em casa. Tinha esquecido de ligar.
— Ah, oi, . Sem problemas. Vou ficar um tempo por aqui, almoçar para fazer companhia para . Tenho comida na geladeira.
— Tudo bem, vou preparar alguma coisa. Mais tarde nos falamos?
— Vou manter o celular por perto. Me ligue se tiver qualquer problema, ok?
soltou um murmúrio em resposta e desligou. parou o carro em frente ao portão da propriedade.
Um grande portão de ferro, descascando. Parecia um artigo de museu. A mansão, na parte de dentro do gramado alto, era rosa. Havia uma grande cerejeira no quintal.
parou o carro e ficou observando o lugar. Parecia que tinham esquecido o Palácio da Cerejeira ali, para que alguém desse um jeito nele. Mas ninguém apareceu.
Até agora, ninguém tinha aparecido para cuidar do Palácio da Cerejeira.
estava de volta ao lar.
Seus dias de glória estão de volta.
— Quer que eu espere? — ele perguntou, acordando do transe. Todo aquele lugar era capaz de causar uma péssima sensação nostálgica.
Você fica preso ao que nem sabe que aconteceu.
— Não. Pode ir. Dou um jeito de ir embora depois. Obrigada, .
Soltou o cinto, e pegou suas coisas.
Tinha uma pistola na lateral do corpo. O coldre estava folgado.
— Fale comigo se tiver algum problema, .
Ela assentiu. Tinha a caixa de papelão embrulhada em sua bolsa. Pegou uma cereja da caixa e, caminhando em direção ao Palácio, comeu-a.
O carro de se foi no momento que empurrou o portão. Ele não cedeu: abriu-se de uma vez, em um baixo rangido.
Joe, estou voltando para casa.
O vídeo acabou em uma tela preta, de repente, típica de uma gravação caseira. encostou as costas na cadeira.
Sentiu-se em um avião que acabara de pousar, depois de uma pesada tempestade.
Então, era por aquilo que tinha todo um rebuliço acerca do nome "Durden". Eles eram a família perfeita. Um homem gentil, sorridente, casado com uma mulher linda, cuidadosa. Tinham tido quatro belos filhos. Sua criada tivera dois, e eles ofereceram estudos e uma ótima criação aos dois.
Então, o homem e a mulher morreram, e a história de terror começou.
Joe era só uma criança. Ele só nasceu entre péssimas pessoas. Mas não era uma pessoa ruim.
Foi corrompido.
James era uma pessoa ruim. Jacqueline era uma pessoa ruim.
Justin e Joe eram ótimas pessoas. Eram garotos realmente bondosos.
Joe. O pequeno Joey.
Espera.
Observou bem os trejeitos de Joe. Todos os gestos, o jeito de falar, a maneira de andar. Ele era uma criança, e é válido pensar que esses tipos de coisa mudam com o tempo.
Mas manias não mudam. E Joey tinha uma mania que perpetuou por vinte anos.
Uma mania discreta.
Não.
Não, não, não, não, não, não, não.
Sabia quem era Joseph William Durden.
A porta foi aberta de repente.
— ... — disse , baixo.
desligou a TV imediatamente. Nem sequer tinha conseguido assimilar as informações.
Via as coisas de um jeito mais simples, sem distrações. Talvez isso fizesse parte de seu ofício, ou fosse apenas algo de sua personalidade.
Muitos detetives procuram as provas. Não trabalham com as que têm.
— , acho que já sei. Acho que sabemos quem é ele.
não respondeu. ficou de pé, com as mãos agitadas, fazendo gestos. Parecia inquieto demais, como se, depois de alcançar seu objetivo, não soubesse o que fazer com isso.
Bem, talvez fosse exatamente isso.
— Não vamos conseguir nenhum mandato sem provas. Não vai adiantar nada dar a prova que encontrei. Está nos vídeos, e é algo que...
Aquele filho da puta do Joe!
— É algo que mais ninguém poderia saber.
— , não temos como lhe dar um mandato de busca — respondeu inexpressivo.
franziu o cenho, se achando ofendido pela observação do oficial.
— Mas, , temos uma prova. Não vai ser difícil. Só precisamos...
ia tocar a maçaneta, mas segurou seu pulso antes, impedindo-o.
— Que merda você está fazendo, ?
suspirou.
— Julie tem provas que podem e vão te incriminar. Ela sabe que você está aqui e quer que o mantenhamos em ordem restrita.
Detido? De novo?
— O que aconteceu? De onde ela tirou essa merda?
A ofensa de novo. Dessa vez, em um tom mais agressivo.
— , não temos um plano. Se você sair daqui, ela não o deixará sair da delegacia. E também não vai deixar você aqui para sempre. É fim do jogo.
— Mas eu já descobri quem é o Joe!
— E o que isso vai mudar? Não temos provas! — falou, tão alto quanto — Estamos em uma rua sem saída. Se você ficar, é preso. Se sair, também. Ninguém vai te ouvir, .
— Então o que devemos fazer? — quase gritou em retorno.
Ambos sustentaram um olhar preocupado, mas disfarçado de irritado.
suspirou. Precisou pensar rápido (bem rápido), e percebeu na melhor opção.
Estendeu os punhos.
— Vou te contar o que descobri, como descobri e você tem que descobrir mais. Achar provas, saber onde ele está e o que está fazendo. Pense em um plano.
— , e se eu não...
agitou os próprios punhos.
— Foi uma ordem educada, não uma pergunta.
suspirou. Fechou as algemas nos pulsos de e apertou.
— Espero que saiba o que está fazendo. Antes, me fale tudo que sabe.
Sem pensar duas vezes, contou exatamente tudo que sabia. Porque, dessa vez, ele realmente sabia.
Marla conferiu o celular. Dorothy estava dormindo, e descansava na cama.
Olhou o número que tinha ligado-a. tinha ligado tarde, como se tivesse ficado ocupada antes de ligar.
Franziu a testa ao olhar as últimas chamadas recebidas.
Isso não é um telefone fixo.
Digitou o número de sua própria casa. Levou o telefone ao ouvido.
Um toque. Dois toques. Três toques.
Uma ligação. Duas ligações. Três ligações.
Sem sinal dela.
Tinha ligado de seu próprio celular.
Marla ligou para imediatamente. Quando ele finalmente atendeu, ela não fez rodeios:
— não está em casa. Não faço ideia de onde ela possa estar.
‘Cause the hardest part of this is leaving you…
Quando a manhã raiou novamente, bateu na porta do quarto de Marla assim que o sol se mostrou presente.
— Marla, acorde — disse ela, batendo conta a madeira com os nós dos dedos — O sol já nasceu, Marla, precisamos sair.
— — a ruiva disse, num bocejo, abrindo a porta. Seus cabelos estavam com nós, e sua cara parecia um pão — Achei que não me acordar fosse uma condição para que você pudesse ficar aqui.
— Desculpe, eu fiquei ansiosa e não consegui dormir bem. Acordava a cada meia hora.
— Credo — Marla fez o sinal da cruz. riu, seguindo-a para a cozinha.
Dentro de si, ficou feliz por conseguir conhecer essa característica de Marla. Gostava de dormir.
Gostava bastante, pelo jeito.
— E está disposta, pelo menos? — perguntou Marla.
Ligou a cafeteira e separou duas canecas em cima da mesa. O apartamento de Marla era modesto, mas muito organizado e delicado. As paredes eram de tons claros, os móveis, de aparência vitoriana, e louças eram brancas, com talheres prateados simples de cabo preto. Uma mulher extremamente comum, que vivia sozinha.
— Não vou querer café, obrigada. Acho que andei tomando café demais, ultimamente.
— Quer um suco? Torradas?
— Torradas seria perfeito, Marla. Obrigada.
Pouco depois, ambas estavam sentadas à pequena mesa redonda e verde-água, comendo duas torradas e bebericando alguma coisa.
— Viu algo na madrugada? — perguntou a ruiva.
— Não. E não dei muito tempo a ela.
— Acha que pode ficar um tempo livre? De Ramona.
mordeu a torrada.
— Não. Ela deve ter pensado em algo, deve ter algo planejado.
Marla ergueu as sobrancelhas, olhando para baixo.
— O que foi?
— Para mim, é estranho demais você ter uma segunda personalidade. Não sei, nunca vi isso, parece coisa de filme. Ainda mais uma que quer te substituir, e que tem memórias distintas das suas.
levantou, indo até a pia e colocando seus talheres e louça ali.
— Não é como se Ramona quisesse me substituir. Ramona sou eu. Ela é um lado meu que não controlo, um lado meu que é tão forte, que eu personifiquei.
Abriu a torneira.
— Não se importe com isso, ...
Ignorando-a, a detetive começou a lavar sua louça.
— Vamos ver hoje — Marla anunciou.
olhou-a por cima do ombro, mas logo voltou para a pia.
— Quando?
— Assim que você terminar isso.
— E onde ela está?
Marla fez uma pausa, o que causou uma margem de falta de confiança em . Talvez, a localização dita a seguir fosse uma mentira, se caso essa mentira fosse mais agradável do que a verdade em si.
— Ela está em um hotel.
— Sabe por que ela contatou você, quando quis se manter informada sobre mim? E por que ela se afastou?
— Tudo em seu tempo, . Você não vai deixar de saber uma única linha dessa história. Mas pode te explicar isso melhor do que eu.
— Não sei se vou confiar nela depois de tudo. Depois de ela ter me deixado para trás por tanto tempo, só observando de longe.
— Garanto que ela lhe dará um belo motivo para ter feito isso.
Entraram no carro de Marla. A ruiva no volante, se acomodando. sentou no carona, respirando fundo.
Estava indo ver . Marla, uma mulher que a odiava até pouco tempo, sabia o paradeiro de sua melhor amiga, e a própria não.
. A melhor amiga que há tempos não ligava para ela. Que foi embora sem dizer aonde ia, e sem se despedir.
Não perdoaria , a não ser que ela tivesse uma bela desculpa para ir. Percebeu que tinha ido pouco após a morte de , e provavelmente, temia por . Mas por que continuara longe? Por que não dava notícias?
E, ainda mais, por que precisava da ajuda de Marla? O que era tão preocupante assim?
A ruiva também respirou fundo. Pegou, na bolsa, uma caixa de remédios.
— Meu tio é esquizofrênico. Ele tem os mesmos sintomas que você. São os remédios que ele usa, que eu tenho prescrição para adquirir. Sempre tenho alguns em casa, para o caso de ele precisar.
Colocou a caixa no colo de .
— Você não precisa tomar se não quiser. Eu, pessoalmente, acharia perigoso você tomar remédios indicados por alguém que não fosse um médico. Mas, por ora, acho que não seria uma má ideia.
comprimiu os lábios, hesitando. Segurou a caixa, lendo os efeitos colaterais.
— Você precisa tomar esses remédios, .
colocou a caixa de volta no colo e murmurou:
— Eu não posso, Marla. Um efeito colateral deles é a amnésia. Que tipo de detetive tem amnésia?
— Mas...
— Não. Não posso ter amnésia.
— Se um psiquiatra te indicar um remédio que tenha efeitos colaterais assim, você vai fazer o quê?
— Não vou tomar.
— ...
— O que faço é mais importante do que isso. Preciso controlar minha mente, aprender a não enlouquecer. Mas de modo algum vou sacrificar meu trabalho por causa disso.
Marla guardou a caixa e deu a partida no carro. Em silêncio, seguiram até o hospital de Longview.
Marla entrou no estacionamento. A única vaga ficava bem longe do hospital, mas não havia outra opção. As duas saíram do carro, e, em silêncio, seguiram para a entrada do hospital.
A ala em que estavam causou surpresa em . Marla disse à recepcionista os nomes de ambas, colocando em um adesivo. A ruiva estendeu à o adesivo do nome dela.
Quando entraram no elevador, só estavam as duas.
— Como está se sentindo? — perguntou Marla.
— Confusa — murmurou .
O elevador começou a subir, e parou no andar imediatamente superior.
— Vai piorar daqui a pouco.
O quarto 237 ficava no fim do corredor. e Marla andaram com passos curtos até a porta verde clara, que tinha o nome de em um pedaço de papel acima da maçaneta.
A ruiva fez menção para abri-la, mas parou segundos antes. Disse, com a voz de quem queria acalmar , para que ela não quisesse avançar no pescoço de assim que a visse:
— Ela não sabe que você está vindo vê-la.
— Ela não vai acabar se assustando comigo?
— Não acho que vá. Ela não sabe que você está vindo hoje, mas sabe que eu iria trazê-la cedo ou tarde.
— E ela vai gostar de me ver?
Marla não soube responder precisamente. Em vez disso, abriu a porta, murmurando:
— Pergunte isso a ela.
estava no canto do quarto, de pé. Estava de costas para a porta. Usava uma camisola azul clara, e os cabelos estavam presos em um coque. Ao ouvir o som da porta, virou-se para ela.
— Achei que talvez vocês pudessem vir. Entrem — ela falou, com o rosto de surpresa sendo substituído lentamente por um sorriso que tentava ser convidativo.
As detetives entraram e fecharam a porta.
O universo não ia além daquelas quatro mulheres.
E já parecia cheio demais.
— , esta é a Dorothy — falou, andando para perto de , que permanecia estática na entrada do quarto.
Tirando uma toalha que segurava a bebê e tapava parte de seu rosto, mostrou a face de sua filha. Era um bebê inegavelmente lindo. O rosto bem redondo, não tão rechonchudo, não tão magro. Os lábios estavam semiabertos, e os olhinhos estavam fechados. Seus cabelos ralos eram loiros, tão claros que eram quase invisíveis em sua pele rosada. A respiração da pequena Dorothy era impossível de ser ouvida, tão baixa quanto o canto dos anjos.
— Ela é um anjo — foi o que conseguiu dizer. Colocou as mãos na frente da boca e apertou forte os olhos.
Pela primeira vez em muito tempo, estava chorando de felicidade.
— Eu descobri que estava grávida quando você ainda estava no Manson. Eu e ficamos tão felizes, mas achamos melhor não contar isso para muitas pessoas. Ele estava ocupado com o trabalho, e eu precisava começar a ver minha situação para tirar licença. Foi quando veio com a notícia.
Marla estava sentava numa poltrona. Já sabia toda aquela história, então era quem precisava prestar atenção.
estava sentada na cama, em total silêncio. Marla nunca tinha visto a detetive daquele modo. Estava apenas determinada a ouvir, não a falar.
Quase um milagre, em sua opinião pessoal.
estava sentada na cabeceira da cama. Tinha Dorothy em seus braços, que dormia. A pequena já parecia ter um sono pesado, pois não era necessário diminuir o volume de suas vozes para que não a acordassem.
— já tinha reparado no seu comportamento. Vocês vinham discutindo, e, com frequência, você esquecia disso. No dia seguinte, era como se tivesse apagado esses episódios. Quando você foi para o Manson, ele conseguia os seus exames de rotina. Tinha autorização médica e legal para tal. Estudou você por um tempo, estudou as coisas pelas quais você passou. Essa foi a conclusão dele.
— Eu sou um perigo a vocês e à Dorothy.
— Não. Você não. Sua segunda personalidade. Sua esquizofrenia nunca foi detectada. nos explicou que não existem estudos tão aprofundados assim sobre ela. Qualquer pessoa pode ter, a qualquer momento. Não sabíamos o que fazer, ainda mais depois que você saiu.
olhou para a filha, acariciando o rosto da pequena.
— Não sabíamos como reagir a isso. sabia o que estava acontecendo, por alto. Sabia que não era só a nossa . Tinha mais alguém aí, alguém que não conhecíamos. Ele disse que achava melhor não falarmos com você sobre a gravidez, ou sobre qualquer novidade a não ser nosso noivado. Ainda assim, tínhamos que ter delicadeza sobre tudo. Tratar você como sempre tratamos. Íamos aprender com o tempo a maneira mais correta de falar com você. Mas logo que você chegou, teve a festa...
Dorothy murmurou letras soltas, acordando. ninou-a um pouco, e ela logo caiu no sono novamente. Os olhos de começavam a marejar.
— Eu não soube na hora o que aconteceu. Quando aconteceu, ligaram para mim e para para avisar. Disseram que você ficou desacordada. Que precisava de descanso. Assim que você chegou em casa, o assunto morreu e fomos todos para a cama.
Fez uma pausa.
— Depois do incêndio, soube o que estava acontecendo. Era ela, quem quer que ela fosse. Precisávamos nos proteger o mais rápido possível. Ficamos eu e ele na casa dos amigos, até que algo também alcançou .
O suicida. O traidor.
Que sabia demais.
— Eu soube que precisava partir. Precisava ir embora, pelo bem de Dorothy. Eu estava com cinco meses, mais ou menos, na época. Não tinha barriga praticamente nenhuma; isso é raro de acontecer, mas acontece. Eu sabia o que Dorothy representa para os Durden. Eu sei que, sendo um dos que herdeiros, sua morte daria sua parcela a um dos outros. Joe, Justin e Jacqueline se foram. Só sobrará James. E ele perdeu o direito à herança, quando se envolveu no seu sequestro e de Tyler. Assim, toda a quantia recai sobre o descendente direto de um dos herdeiros.
A pequena Dorothy.
Mal tem uma semana de vida, e já sente como é o mundo aqui fora.
sabia que provavelmente não tinha conhecimento das "novidades", então adiantou:
— Tyler é filho de Johnny. Tyler é um Durden. Ele está seguro no Manson, agora. Mas talvez não por muito tempo.
Seguro no Manson.
— Tyler está no Manson? — perguntou , franzindo o cenho e olhando para Marla.
— Eu não sabia de nada até pouco tempo atrás — a ruiva se defendeu.
— Ele foi há pouco tempo. Lá, estará seguro. Mas foi obrigado, não sei como, a fazer um testamento que confere a mim todos seus bens e, portanto, sua herança.
— Mas...?
— Mas me disse algo antes de morrer. Ela disse que Joe está vivo. E se ele está, sei que está trabalhando com a minha segunda... — se interrompeu, mordendo o lábio — Com Ramona. Não sei aonde eles querem chegar, mas Ramona quer tudo. Ela quer se sobrepor a mim.
— O que devo fazer?
— Manter Dorothy o mais longe possível disso tudo.
abaixou os olhos para a menina.
— me traía com Samantha. Ele a matou. era um assassino. Ele era uma pessoa ruim... Uma pessoa ruim como eu sou.
olhou de lado para Marla.
— Você não é uma pessoa ruim, . Você tem momentos ruins que não são culpa sua. tornou-se uma pessoa ruim, se ele a traiu e se matou alguém. Mas estamos todos sendo pessoas ruins nessa história. Ninguém vai sair impune.
— Você sai impune.
negou com a cabeça, olhando para a filha com o canto do lábio erguido.
— Eu não. Eu fugi da minha melhor amiga quando ela mais precisava de mim. Eu fui uma medrosa, uma egoísta, covarde. Mas tive tempo de me redimir.
— Como você chegou a Marla?
Ambas olharam para a ruiva. Ela começou:
— Precisamos dar o nome aos bois. Quando soube de Ramona, que na época não tinha nome, precisou avisar a quem era próximo. Ele contou isso a e . Então, Julie foi até ele, e ele contou a ela também. Quando você tinha dito, , que Ramona tinha incendiado sua casa, e não achamos a mulher que você descreveu em lugar algum das redondezas, foi só somar um e um. Nós sabíamos quem era Ramona. Depois que morreu, precisou partir. Na época, vocês se falavam de vez em quando. Mas depois do sequestro, alguém da delegacia precisava contatar você de algum modo. Alguém que soubesse. Ou eu, ou Julie ou .
— E vocês tiraram no palitinho e, vejam só, hoje em dia são unha e carne? — perguntou . Seu tom era um pouco sarcástico, porque, bem, era .
— Na verdade, você estava com uma situação complicada com , naquela época — respondeu Marla — Não tinha como ajudar . Aliás, se houvesse algum problema, chegar a por seria fácil. Mas por mim? Quem imaginaria que eu estava estreitando relações de confiança com a melhor amiga de uma "inimiga minha"?
ergueu as sobrancelhas, fazendo um bico em sinal de concordância.
— Acho que você tem um ponto.
suspirou de repente. Murmurou, acariciando a cabeça da filha:
— Coisas demais para pouco tempo. A herança está nas mãos de Tyler?
— Sim, e de Dorothy. Joe sabe sobre Tyler, mas não acho que saiba sobre ela.
Fez uma pausa longa.
— Você não devia ter dito isso a mim, .
— Não devia?
— Não. Ramona agora sabe de Dorothy. Joe pode saber de Dorothy.
— Você não faria isso. Você pode se controlar, e eu sei disso. Eu a conheço, .
— Você me conhece, mas não conhece Ramona — afirmou, ficando de pé e com o volume da voz sutilmente mais elevado — Ela é calculista. Ela tem estratégia. Não é como se ela tivesse tudo planejado: ela parece adaptar tudo ao plano. Se algo foge, ela dá um jeito de consertar. De adaptar aos fins dela.
Os fins se adaptam aos meios, ou os meios se adaptam aos fins?
— Sabe por que ela é assim? — perguntou, enquanto continuava inquieta, andando pelo quarto com passos largos — Porque ela é você.
— Ela não sou eu, . Ela é como eu gostaria de ser.
— Ela é você. E você pode ter controle sobre ela.
— Eu não posso, .
— Eu confio em você.
— Não acho que devesse.
O tom de não fora grosseiro, mas sim, de alarme.
— suspeitava que Joe estivesse vivo. Ele comentou comigo. Estava trabalhando nisso. Por isso, precisei ir embora.
— Pelo seu próprio bem.
— Pelo bem da minha filha.
e Marla se olharam.
— Ramona está sabendo de tudo, agora. É uma faca de dois gumes. Ou ela sabe de tudo, ou eu não sei de nada.
Dorothy nasceu no pior momento possível.
— Preciso beber um copo d'água.
Ou de café.
pediu licença e saiu do quarto.
Estava na saleta da ala da maternidade. Tinha um copo d'água na mão, e o bebericava enquanto fazia hora.
Não podia voltar para aquele quarto. Suas mãos suavam, úmidas de agonia. Podia sentir suas veias pulsando contra sua pele, movimentando-a como não queria fazer. Precisava fazer aquilo.
Não queria, mas precisava.
Já podia sentir os impulsos.
Dorothy nasceu no pior momento possível.
Mordiscava o plástico.
Ela é só um bebê.
Ela não faz ideia de como está o mundo aqui fora.
Volte, Dorothy.
Seria melhor se você nem tivesse nascido.
Não podia voltar. Não podia.
Resista.
Serviu-se de café. Achou que isso poderia ajudá-la a melhorar... Afinal, não ajudava sempre?
Um capítulo errado no meio da história.
Dorothy, você não é bem-vinda em Oz.
Você sabe o que precisa fazer.
Ela é só um bebê. Prematuro, deverá ficar mais tempo no hospital, provavelmente.
Bebês ficam doentes o tempo todo.
Saia daqui.
O conteúdo do copo estava quente. Sua língua chegara a queimar quando o café caiu em sua boca como uma cascata.
Apenas saia.
Ela é só um bebê.
Quem você quer enganar? Ela e Tyler têm direito a toda fortuna, todos os bens dos Durden.
Seu irmão, que não é seu irmão de verdade.
Ele passou tudo a você.
Só você e um bebê.
Afinal, ela é só um bebê.
Isso é... demais. É além de tudo.
Só saia daqui. Não quero você aqui.
Ela não tem nada a ver com isso.
Exatamente.
Ela não tem nada a ver com isso.
Feche os olhos, deixe que eu comande. Ninguém vai saber, você sabe disso.
‘Você não devia ter dito isso a mim, ’. Adorei isso.
Vá embora.
Você não quer que eu vá. Sou a melhor você. Eu sempre estive aqui.
Aqueles momentos inexplicáveis. Que você fazia algo por impulso, e, depois, não sabia entender por que o fez.
Sou seu impulso.
Você nem sequer tinha remorso por suas ações impulsivas.
Não vou ferir Dorothy. Ela é um bebê. Ela é filha dos meus melhores amigos.
Se está morto, você tem uma parcela de culpa.
Se está morto, você também tem.
Diga meu nome. Diga quem ainda está aqui.
Diga quem está falando por você, pensando por você, quem tem seu toque e seu corpo.
Diga quem está comandando a música que você apenas dança.
Ramona. Por favor, vá embora.
, eu estou só começando.
.
.
— ! — chamou a voz de Marla.
abriu os olhos, apertando o copo de plástico como um reflexo.
Só um impulso.
Virou de costas. Havia famílias na sala, todas comemorando. Afinal, a vida está começando para dezenas de pequenos seres humanos daquele hospital.
Ninguém ali era como Dorothy. Ninguém era a peça fundamental de um assassinato, de vários, até.
E se...
— Preciso que você veja algo.
olhou no fundo dos olhos verdes de Marla. Os olhos verde folha da detetive, que agora estavam de uma cor aberta.
— Está tudo bem? — perguntou Marla, franzindo o cenho. colocou a mão na ponte do nariz, fechando os olhos com força.
— Uma dor de cabeça. Preciso ir para casa.
— Eu te levo.
— Não, Marla. Eu vou sozinha. O que houve?
A ruiva colocou a mão no bolso. Pareceu hesitar por um momento.
Tyler tinha lhe dado isso com um objetivo: que isso não caísse nas mãos de .
Por outro lado, Marla sabia que aquilo deveria ficar nas mãos dela.
Tirou uma chave embrulhada em papel higiênico, uma pequena chave pintada de azul.
Os olhos de brilharam. Lembrou-se da caixa que tinha em casa, a caixa de Zoe. Talvez, de Joe. O que importava era que agora sabia que ela tinha alguma utilidade.
— Quero que fique com isso — Marla entregou a chave ainda com papel em volta. ia segurar o metal, mas a ruiva puxou-a instintivamente. Completou: — Só uma sugestão: não segure a chave sem algum papel...
não entendeu bem o que ela queria dizer com aquilo, mas acabou obedecendo. Pegou a chave com o papel, e observou-a.
— O que ela abre? — preferiu fingir que não entendia o objetivo daquilo.
— Não sei. Mas Tyler a pegou. Não sei bem onde, ou como. Foi enquanto James e Jacqueline o pegaram. Estava com Tyler, e ele me deu. Acho que você deve saber o que fazer com ela.
Perfeitamente.
— Não sei. Desculpe.
— Quer que eu a deixe em casa?
Marla se aproximou, mas recuou, quase como se tivesse sido ameaçada.
— Não. Estou bem. Vou sozinha. Fique com , ela precisa de companhia.
Bronx franziu o cenho.
— Você está fugindo?
não respondeu.
— Só preciso de um tempo. Um tempo para pensar. Está tudo bem.
Marla se afastou, dando um passo para trás. Seu rosto se contorcia em ares de desgosto, aversão, ou até mesmo nojo.
— Faça o que é certo, não o que é fácil, !
Agora via Ramona. Via que Ramona era uma mulher forte, decidida, a parte mais estável de .
Aquela menina covarde à sua frente era a verdadeira . Aquela menina inferior, que foge.
Ou isso era o que achou que Marla estivesse pensando.
Ramona é tão melhor.
Agora entendia Joe Durden. Era compreensível.
A admirável, a exemplar, que todos queriam ser e ansiavam para conhecer... Era Ramona.
Todos me preferem a você.
— Só preciso ficar um tempo em paz.
— Tem certeza?
— Absoluta. Estou bem. Vou para casa.
— Me avise quando chegar.
assentiu.
— Diga a que ela fez bem em se afastar.
— Você sabe que é mentira.
— E você sabe que estou certa.
Marla queria assentir. Em vez disso, apenas se despediu de e foi para o quarto.
pegou seu celular, enquanto descia de elevador. Tinha recebido uma mensagem de .
‘Tudo bem? Como está? Você não mandou notícias...’
Ergueu o canto do lábio brevemente.
‘Estou ótima.’
Chamou um táxi. Assim que entrou no veículo, disse ao motorista o endereço, e conferiu o celular.
Nenhuma chamada, nenhuma mensagem.
Estava indo para casa.
O trajeto foi feito em total silêncio. Quando o táxi parou, ela entregou o dinheiro e saiu do carro.
— Cuidado, moça. A polícia andou vindo bastante aqui.
Havia uma série de faixas amarelas na porta. Formavam linhas cruzadas, proibindo a entrada de qualquer um.
Ah, a Singer Street, em seu mais puro estado.
Ela não respondeu. Quando o táxi se foi, passou a mão pelas faixas, rasgando-as ou descolando-as, como se estivesse tirando teias de aranha de seu caminho. Colocou a chave na fechadura e girou.
A casa tinha um cheiro agradável de pólvora, cano de descarga e gato molhado.
Pequenas placas com números, de provas, estavam em todo lugar.
Podia imaginar os outros policiais ali. Todos aqueles bostas.
"Esse sangue nesse espelho. Será que é de ?"
Faça um teste de DNA, gênio. Da Madonna eu duvido que seja.
"E as digitais? Os cacos estão cheios delas. Vamos levar para a perícia?"
Não. Isso deve ser coisa dos ETs. Quem sabe?
"E onde está ?"
Estou em casa.
Passou com cuidado em cima dos cacos, como uma bailarina. Usava calças compridas pretas, uma blusa de mangas compridas branca e um agasalho preto. Pisava perto dos cacos, mas não os tocava.
Peças quebradas caídas, mas estava distante delas.
Uma das relíquias que sobraram.
Se Tyler tinha conseguido aquela chave com os Durden, de qualquer jeito que tenha sido, a caixa também devia servir.
Zoe? Ou Joe Durden.
Mantenha a calma.
Sim. Ficar ansiosa vai ser pior.
Sabe-se lá as coisas que poderiam acontecer, não?
A caixa estava no fundo falso de uma gaveta no móvel da sala. Quando chegou ao móvel, pensou o que poderia ter ali.
Um pequeno cubo azul, que cabia na palma de sua mão.
De repente, foi atingida pelo pânico de serem explosivos.
Não seja idiota. Você é policial. Sabe reconhecer um dispositivo suspeito de explosão.
Nossa, . E você ainda se diz policial.
A chave não era como se servisse para alguma porta. As nervuras no cabo eram finas e pareciam, de fato, nervos.
Olhou para ela, enquanto sentava-se no chão, onde não havia tantos cacos. A caixa estava na palma de sua mão.
Colocou a chave no único espaço disponível para ela e girou-a.
Quando ouviu o clique, deixou a caixa cair em susto.
Silêncio.
Respirou fundo, assustada. Virou a caixa para cima, pois ela caíra de lado.
Ela não fez nada além de soltar uma única e baixa nota.
Nada aconteceu.
Absolutamente nada.
Colocou a chave novamente, e, dessa vez, deu duas voltas completas na fechadura.
As notas vieram mais cedo, e conseguiu reconhecer qual era a canção, dessa vez.
Abriu a tampa. Uma pequena bailarina saltou de uma plataforma. Na parte interna da tampa, tinha um pequeno espelho oval.
Ela girava, e era só isso.
Moon river, wider than a mile, I'm crossing you in style, someday...
Era uma melodia rápida, enquanto a pequena bailarina dançava na plataforma formando um símbolo do infinito.
Oh dream maker, you heartbreaker, wherever you're going, I'm going your way...
O espelho oval estava um pouco torto, caído para um lado. pegou-o para ajeitar, quando ele se soltou.
Na tampa, onde ele ficava, estava um pequeno desenho à caneta. Um sorriso.
Two drifters off to see the world, there's such a lot of world to see...
Olhou a parte de trás do espelho. Era branca, com um desenho de caneta preta.
We're after the same rainbow's end... Waiting in a bend...
Uma laranja, uma pequena laranja e uma frase.
My huckleberry friend, moon river and me...
"Você já fez isso antes."
Tão estranha quanto uma laranja mecânica.
A canção parou. A bailarina, já estática, pausou seu caminho.
"Wherever you're going, I'm going your way..."
Onde quer que você vá, eu sigo o seu caminho.
Que tal um esconde-esconde?
Pegou o celular. Mandou para Marla uma mensagem, dizendo que estava em casa. E, em seguida, procurou em seus contatos o número que precisava.
Se Joe Durden queria fazer uma caça ao tesouro, estava pronta para começar.
Começando pela procura de uma laranja mecânica.
— Alô? — perguntou a voz masculina do outro lado da linha.
— ? Como está?
— ! Faz tempo que não tenho notícias suas. andou fazendo muito mistério esses dias. Estou bem, e você?
— Ótima. , preciso falar com você. É bem importante.
— Aconteceu alguma coisa, ?
Ela molhou os lábios.
— Sua fantasia de Laranja Mecânica. Preciso vê-la.
— , aquilo era improvisado. Não tem nada demais nela. O que aconteceu?
Bufou. Fim da linha? Não era possível.
Joe deve ter deixado algo para . Algo em , com . A pista não podia ser tão vazia assim.
Ela já tinha feito aquilo antes.
— Ok, mas tem algo que você queira me dizer? Ou me mostrar.
— , você está sóbria? Porque não consigo entender aonde você quer chegar com isso.
— Só responda.
Ele pareceu pensar um pouco. Suspirou, falando, por fim:
— Ah, eu recebi uma encomenda recentemente. Estava no seu nome. Não abri, e nem o . Eu ia te mostrar quando você viesse aqui. Não achei que fosse importante. Por que essa curiosidade toda?
— Você está em casa?
— Ainda não, mas posso arrumar um tempo na hora do almoço... ?
— Estou indo aí.
Qualquer coisa no mundo parecia mais interessante do que a delegacia de Longview naquele dia. Era de manhã, ainda. E o tempo estava cada vez mais lento.
, abra os olhos. Não pode dormir agora.
Havia poucas pessoas na delegacia. estava em sua sala, em silêncio. Anotava algo em um bloco, seus pensamentos aleatórios sobre tudo aquilo. Um jeito de organizar as coisas.
Joe Durden estava vivo, e, decerto, tudo que tinha acontecido tinha algo a ver com ele.
Mas onde ele estava? Como podia ver tudo, de tão perto, com tantos detalhes?
Onde está esse fantasma?
— — chamou , na porta.
ergueu os olhos. Ainda era horrível ver o rosto de .
Era seu amigo, de certo modo. Ajudou-o quando ele chegou.
E agora, não podia fazer nada. Todos estavam trabalhando em favor de , mas o rosto de era a maior lembrança de que, caso algo desse errado, todos pagariam o preço.
A cicatriz de Jacqueline Durden ainda estava lá, para lembrá-lo daquilo. Branca, pulsando.
Sempre haverá um Durden na pele de cada um.
— Tenho alguns vídeos aqui. Arquivos pessoais. Quer dar uma olhada?
— Que arquivos? — perguntou, clicando a caneta.
— Coisas do caso de Joe. De repente, olhando algum detalhe de algum vídeo possa nos dar uma luz. Quer ver?
— Honestamente, ...
tentou sorrir. O resultado não fora o mais belo, mas, de certo modo, soou gracioso.
Um oficial menos ameaçador.
— Foi uma ordem educada, não uma pergunta.
Entrou na sala com uma caixa cheia de fitas.
— Deus. Não vejo um VHS desde que tinha uns dez anos.
— Vai ver muitos hoje, pelos 15 anos que ficou sem ver nenhum.
levantou e se ajoelhou na frente da caixa, no chão. Eram muitas fitas. Dificilmente poderia vê-las em tão pouco tempo.
Rezou para que Joe tivesse dado uma pista bem rápida e óbvia.
— Vai me acompanhar nas honras? — perguntou o jornalista, pegando a caixa com uma voz cansada.
fez que não e deu passagem para , para que ele fosse para a sala de projeções.
— Não posso. Julie me requisitou para uma coisa no caso de . Vou te dar cobertura, mas não posso ver os vídeos.
— Nossa, você deveria querer tanto ver esses vídeos. Fico com peso na consciência em ter que ver tudo sozinho — disse , com a voz carregada de sarcasmo.
riu.
— Bem, claro que não estou triste com isso. Mas Julie me solicitou com o caso da . Acho que temos uma boa prova, agora. Uma denúncia anônima.
empurrou com o pé a porta da sala de projeções.
— Me deixe sabendo dos detalhes. Vou estar tão ansioso com esses filmes do Durden que mal posso esperar por novidades de outros casos.
Quando o jornalista entrou na sala, fechou a porta.
— Boa sorte com isso.
Pronto. Sozinhos, enfim.
olhou para a caixa. Estava organizada por data, desde os vídeos mais antigos até os últimos. A maior frequência de vídeos eram os de quando Joe tinha 5 até uns 13 anos.
Agora somos eu e você, Durden. Vamos poder nos conhecer melhor.
Pegou a fita mais antiga. Provavelmente, quando ela terminasse, ele pularia para uma de quando Joe tinha 10 anos. Mas, para começar, queria um menino.
Não um homem, não assassino, não um doente insano.
Só um menino doente. Um menino ruim.
A semente do mal.
Colocou o vídeo no aparelho e se sentou. Apagou as luzes.
Só eu e você, Durden. Vamos ver o quanto vou querer te socar, quando souber onde você está.
A gravação começou.
Por que sinto como se já te conhecesse há tanto tempo, seu filho da puta?
Era um vídeo caseiro. Joe foi o primeiro a aparecer: um menino de cabelos loiros finos, como fios de ouro. Seus olhos, apesar de estarem embaçados na gravação tão antiga, eram visivelmente de um verde intenso.
Ele acena para a câmera. Seu sorriso é encantador.
Só um menino ruim.
— Joey, dê um olá! — diz uma voz feminina atrás da câmera.
apoiou o queixo em uma mão. Aquela era Johanna.
De uma maneira quase surpreendente, os Durden pareciam uma família normal.
Joe está em um grande quintal, com flores no fim do terreno, e uma casa na árvore atrás de si. Ele aponta para a casa, e vira o rosto para ela.
— Ali é onde eu e moramos. A gente ainda tem que morar com meus pais porque a gente é criança.
Ele olha para a câmera novamente. É quase um aviso a .
— Mas quando a gente crescer, a gente vai casar.
Seu filho da puta.
Agora, uma menininha aparece na tela. se ajeitou na cadeira. É uma criança, mas conseguiu reconhecer quem é.
Ela e Joe se abraçam. Ele a segura pelo pescoço, enquanto o abraça forte no tronco.
— Diga por que fizemos essa casa na árvore, — instrui Johnny.
A menina tenta desajeitadamente pôr seus cabelos de um jeito, mas só consegue deixá-los embaraçados. E, de um jeito pouco surpreendente, isso só consegue ser encantador.
— Fizemos essa casa pra mim e pro Joe, mas nossos irmãos também vão poder brincar nela.
Joe concorda.
— Quantos irmãos você tem, ? — Johnny pergunta novamente. Johanna tinha saído de trás da câmera, indo para perto de seu filho, abraçando ele e .
Ela ergue um único dedo, falando:
— Um só! O nome dele é Tyler. Ele é bebê ainda.
A câmera viaja até outro lado do quintal, mostrando um neném dormindo harmoniosamente em um berço.
Aquele era Tyler?
Quem diria, ele já ficou sem fazer nenhuma merda. Surpreendente.
— E você, Joe?
Ele pensa um pouco. Então, levanta três dedos.
Engraçado. Já tinha visto aquilo em algum lugar.
Ei, . Pense um pouco.
— Tenho três. Os nomes deles são James, Jackie e Justin.
— E o Tyler? — pergunta Johanna — Você sempre diz que ele também é seu irmão.
— Ele é meu irmão de mentirinha. Mas é muito bebê. Vai ser meu irmão quando crescer.
Joey já sabia que Tyler era seu irmão. Mais ou menos.
Conferiu o relógio. Estava cedo. Tinha bastante tempo.
Era quase hora do almoço quando e se encontraram na esquina da rua onde ele e moravam. Ela estava com um pequeno espelho na mão.
Cheirava sutilmente a cigarro.
— ? — ele perguntou.
Ela olhou-o com o canto dos olhos. Ele tinha o cenho franzido.
— Quanto tempo — ela comentou em resposta.
Não era .
Ela deu um sorriso e foi até ele.
preferiu não discutir. Apenas apontou para o prédio com a cabeça, e pegou as chaves no bolso.
— Recebi isso faz uns dias. Tinha seu nome. Mas como as coisas estavam meio feias, eu e preferimos deixar isso quieto.
Abriu a porta do prédio. Subiram as escadas em silêncio.
parou em frente à porta por um momento.
— O que foi? — ela perguntou, dando a volta nele.
A maçaneta estava destruída. A madeira estava quebrada, em alguns pontos. E a porta estava aberta.
e se olharam antes de ele empurrar a porta devagar. A sala da casa estava do avesso. As almofadas do sofá viradas, a mesa de centro arrastada, cadeiras fora do lugar.
Sem sinais de qualquer tipo de luta.
— Fui assaltado.
— Falta alguma coisa, ? Dinheiro, algum objeto de valor? — perguntou , sentada em uma cadeira. Não mexeram em nada que estava desorganizado.
É essa a ordem policial, não? Não tocar em uma cena suspeita.
andava pela sala em círculos. Precisava, mais de qualquer coisa no mundo, de um cigarro.
— Não. Nem uma única nota. Nada que possa ser vendido por um preço bom. Parece que entraram aqui só 'pra virar isso de cabeça para baixo, e foram embora.
Ele passou a mão pelo rosto, parando.
— Preciso te dar a encomenda.
— , foque no que houve. Tem certeza de que está tudo aqui?
Só pegue a porra da encomenda de uma vez.
— Tudo de importante sim. Mas talvez eu esteja esquecendo de algo. Vou procurar melhor daqui a pouco. Por ora, vamos resolver seu problema.
Ele foi correndo até o quarto. ouviu o armário sendo aberto, e ele reapareceu com uma caixa de papelão parda, pequena.
— Vou ligar para a polícia, para falar do que houve. Enquanto isso, você dá uma olhada nessa caixa.
Ela puxou a fita adesiva que protegia o lacre. discava o número da delegacia, quando ela abriu o papelão.
— Boa tarde. Eu gostaria de delatar uma invasão de privacidade.
Eram cerejas. Várias cerejas. E um papel.
"Essa é minha surpresa para você. Tem alguma surpresa para mim?"
O Palácio da Cerejeira. O mausoléu Durden.
A surpresa de Joe.
Joe entrou na casa de e .
— O endereço é a Waiter Street. Sim, vocês já devem ter algo desse endereço nos registros. Meu nome também deve estar por aí.
Joe está me esperando no Palácio há um tempo.
E é tão feio deixar os outros esperando.
— , eu...
— Shh — ele pôs o indicador na frente dos lábios. ficou calada, e ele respondeu com murmúrios a chamada ao telefone.
Desligou de repente.
— O que foi isso? — ela perguntou.
— Não sei — o tom e as feições de transmitiam susto — Começaram a fazer perguntas demais. Sobre o arrombamento.
Fez uma pausa.
— Senti como se já soubessem que fomos assaltados. Como se isso fosse tudo que eles quisessem ouvir.
e o psicólogo sustentaram o olhar um do outro por um bom tempo. Nenhum dos dois parecia saber o que falar.
— Pode me fazer um favor, ? — finalmente disse.
Ele assentiu com a cabeça.
— Claro. Qualquer coisa. Quero resolver tudo o quanto antes.
— Pode me deixar no Palácio da Cerejeira?
Julie estava sentada atrás de sua mesa, brincando com uma caneta, batendo ela na mesa e girando-a por entre seus dedos. entrou na sala, em total silêncio.
Podia ouvir o som do silêncio, se assim quisesse.
Tinha, em cima da mesa, em um plástico, um grupo de coisas. E isso não poderia deixá-la mais preocupada.
— Me chamou? — perguntou , fechando a porta e indo até a cadeira.
— Eu te avisei que tínhamos recebido uma denúncia anônima, certo?
Ele assentiu, sentando-se. O tom de Julie era preocupante.
— E acabo de saber de onde tiraram essas provas.
olhou para a sacola plástica. Tinham alguns objetos sujos ali dentro, apenas aguardando um belo exame da divisão de homicídios. Entre as coisas, estavam:
Uma lâmina nova, ensanguentada, de corte rente. Prateada, não deve ter sido difícil de ser comprada. Era de uso comum. Uma arma premeditada, mas não minuciosamente adquirida.
Uma seringa vazia. A ampola estava pressionada até o fim. A agulha tinha sido descartada, porém, seria fácil identificar vestígios do que quer que tivesse ali.
Fios bem finos de seda branca, provavelmente vindos de um vestido feminino.
Fios de cabelos loiros. Não muitos, mas suficientes para juntar as peças.
— Encontraram isso tudo junto. No mesmo lugar.
Kit assassinato da . Garanta já o seu!
— Simplesmente deixaram isso por aqui? — perguntou . Não conseguia acreditar.
Era assim? Procuraram como loucos pelas armas do crime, e elas pipocam desse jeito, do nada?
— Foi um telefonema anônimo. Não quis dizer de onde veio. Só dizia que tinha encontrado pistas do caso de . Não disse onde.
— E está tudo aqui?
A delegada deu de ombros. Não havia mais nada a ser dito.
— Parece que sim. A única coisa que duvido que esteja aqui é o DNA do assassino. Mas não precisamos de exames, acho eu. Acabei de receber uma ligação que fez o trabalho de nosso vingador.
franziu o cenho.
— Vingador?
— É a única coisa que consigo imaginar. Uma pessoa sabe onde estão todas as provas. Quando as consegue, as deixa aqui, sem dizer onde pegou, nem como ou quem ela é. Ela só quer fazer o que não conseguimos fazer.
— Não tem lógica. Se essa pessoa queria alguém preso, o verdadeiro assassino de , sem erros... Não iria deixar as provas aqui, sem dizer de onde elas vieram.
— Tem razão. Ele esperou o assassino se acusar.
— E quando ele vai se acusar?
— acabou de ligar. Relatou uma invasão, não um assalto. A casa dele e de foi arrombada. Não roubaram nada.
— Não deu falta de nada?
— Nadinha. Reviraram a casa, mas não levaram nada.
Meu deus.
Faça isso parar.
Faça isso acabar.
— Não poderiam roubar algo que não sabia que tinha, oficial .
— Você quer dizer que...
As provas estavam na casa deles. Alguém entrou na casa, procurou-as e as entregou à polícia.
Alguém que achava que um deles era o assassino, e descobriu. Não foi difícil.
Foi só colher as provas. Procurar, procurar e procurar... Uma hora, ia aparecer.
— ou matou ?
Julie fez que não.
— me ligou falando da invasão. Não sei se ele seria tão idiota. Ele comentou que até tiraram a madeira de algumas gavetas do armário dele.
Um fundo falso.
Puta que pariu, .
Por favor, não fale que foi você.
— Ele está sozinho — Julie falou, abrindo a gaveta e tirando dali um par de algemas — Quero que o pegue sob ordem de segurança. Vamos fazer os exames, mas ele não sai da delegacia.
engoliu em seco.
— Julie, com todo respeito, acho precipitado manter preso sem antes...
— Se tem mesmo um mínimo de respeito por mim e por seu trabalho, oficial — ela fechou a gaveta, colocando as duas mãos em cima da mesa, com os dedos entrelaçados e o olhar vazio —, sugiro que siga minhas ordens. Estamos falando do assassinato de uma de nossas internas. Estamos falando de uma colega de trabalho que foi brutalmente assassinada. E eu, honestamente, não compreenderia por que a hesitação em prender um suspeito, já que as provas estão bem na sua frente. Tem algo que você queira me contar, oficial ?
não respondeu. Ficou de pé e foi até a porta, segurando as algemas.
— E o nome dele não é . É . Espero que faça o que estou mandando. Você é um dos meus melhores policiais, e não quero ser obrigada a repensar isso.
Quanto para mais distante do centro de Longview o carro se encaminhava, mais o estômago de se contorcia. estava no volante do carro, pois aquele era o dia dele de ficar com o veículo.
Tinha esquecido de avisar a Marla que tinha chegado. Ah, que maravilha.
Pegou o celular e discou o celular da detetive. Levou o aparelho ao ouvido e esperou.
— Marla, já estou em casa. Tinha esquecido de ligar.
— Ah, oi, . Sem problemas. Vou ficar um tempo por aqui, almoçar para fazer companhia para . Tenho comida na geladeira.
— Tudo bem, vou preparar alguma coisa. Mais tarde nos falamos?
— Vou manter o celular por perto. Me ligue se tiver qualquer problema, ok?
soltou um murmúrio em resposta e desligou. parou o carro em frente ao portão da propriedade.
Um grande portão de ferro, descascando. Parecia um artigo de museu. A mansão, na parte de dentro do gramado alto, era rosa. Havia uma grande cerejeira no quintal.
parou o carro e ficou observando o lugar. Parecia que tinham esquecido o Palácio da Cerejeira ali, para que alguém desse um jeito nele. Mas ninguém apareceu.
Até agora, ninguém tinha aparecido para cuidar do Palácio da Cerejeira.
estava de volta ao lar.
Seus dias de glória estão de volta.
— Quer que eu espere? — ele perguntou, acordando do transe. Todo aquele lugar era capaz de causar uma péssima sensação nostálgica.
Você fica preso ao que nem sabe que aconteceu.
— Não. Pode ir. Dou um jeito de ir embora depois. Obrigada, .
Soltou o cinto, e pegou suas coisas.
Tinha uma pistola na lateral do corpo. O coldre estava folgado.
— Fale comigo se tiver algum problema, .
Ela assentiu. Tinha a caixa de papelão embrulhada em sua bolsa. Pegou uma cereja da caixa e, caminhando em direção ao Palácio, comeu-a.
O carro de se foi no momento que empurrou o portão. Ele não cedeu: abriu-se de uma vez, em um baixo rangido.
Joe, estou voltando para casa.
O vídeo acabou em uma tela preta, de repente, típica de uma gravação caseira. encostou as costas na cadeira.
Sentiu-se em um avião que acabara de pousar, depois de uma pesada tempestade.
Então, era por aquilo que tinha todo um rebuliço acerca do nome "Durden". Eles eram a família perfeita. Um homem gentil, sorridente, casado com uma mulher linda, cuidadosa. Tinham tido quatro belos filhos. Sua criada tivera dois, e eles ofereceram estudos e uma ótima criação aos dois.
Então, o homem e a mulher morreram, e a história de terror começou.
Joe era só uma criança. Ele só nasceu entre péssimas pessoas. Mas não era uma pessoa ruim.
Foi corrompido.
James era uma pessoa ruim. Jacqueline era uma pessoa ruim.
Justin e Joe eram ótimas pessoas. Eram garotos realmente bondosos.
Joe. O pequeno Joey.
Espera.
Observou bem os trejeitos de Joe. Todos os gestos, o jeito de falar, a maneira de andar. Ele era uma criança, e é válido pensar que esses tipos de coisa mudam com o tempo.
Mas manias não mudam. E Joey tinha uma mania que perpetuou por vinte anos.
Uma mania discreta.
Não.
Não, não, não, não, não, não, não.
Sabia quem era Joseph William Durden.
A porta foi aberta de repente.
— ... — disse , baixo.
desligou a TV imediatamente. Nem sequer tinha conseguido assimilar as informações.
Via as coisas de um jeito mais simples, sem distrações. Talvez isso fizesse parte de seu ofício, ou fosse apenas algo de sua personalidade.
Muitos detetives procuram as provas. Não trabalham com as que têm.
— , acho que já sei. Acho que sabemos quem é ele.
não respondeu. ficou de pé, com as mãos agitadas, fazendo gestos. Parecia inquieto demais, como se, depois de alcançar seu objetivo, não soubesse o que fazer com isso.
Bem, talvez fosse exatamente isso.
— Não vamos conseguir nenhum mandato sem provas. Não vai adiantar nada dar a prova que encontrei. Está nos vídeos, e é algo que...
Aquele filho da puta do Joe!
— É algo que mais ninguém poderia saber.
— , não temos como lhe dar um mandato de busca — respondeu inexpressivo.
franziu o cenho, se achando ofendido pela observação do oficial.
— Mas, , temos uma prova. Não vai ser difícil. Só precisamos...
ia tocar a maçaneta, mas segurou seu pulso antes, impedindo-o.
— Que merda você está fazendo, ?
suspirou.
— Julie tem provas que podem e vão te incriminar. Ela sabe que você está aqui e quer que o mantenhamos em ordem restrita.
Detido? De novo?
— O que aconteceu? De onde ela tirou essa merda?
A ofensa de novo. Dessa vez, em um tom mais agressivo.
— , não temos um plano. Se você sair daqui, ela não o deixará sair da delegacia. E também não vai deixar você aqui para sempre. É fim do jogo.
— Mas eu já descobri quem é o Joe!
— E o que isso vai mudar? Não temos provas! — falou, tão alto quanto — Estamos em uma rua sem saída. Se você ficar, é preso. Se sair, também. Ninguém vai te ouvir, .
— Então o que devemos fazer? — quase gritou em retorno.
Ambos sustentaram um olhar preocupado, mas disfarçado de irritado.
suspirou. Precisou pensar rápido (bem rápido), e percebeu na melhor opção.
Estendeu os punhos.
— Vou te contar o que descobri, como descobri e você tem que descobrir mais. Achar provas, saber onde ele está e o que está fazendo. Pense em um plano.
— , e se eu não...
agitou os próprios punhos.
— Foi uma ordem educada, não uma pergunta.
suspirou. Fechou as algemas nos pulsos de e apertou.
— Espero que saiba o que está fazendo. Antes, me fale tudo que sabe.
Sem pensar duas vezes, contou exatamente tudo que sabia. Porque, dessa vez, ele realmente sabia.
Marla conferiu o celular. Dorothy estava dormindo, e descansava na cama.
Olhou o número que tinha ligado-a. tinha ligado tarde, como se tivesse ficado ocupada antes de ligar.
Franziu a testa ao olhar as últimas chamadas recebidas.
Isso não é um telefone fixo.
Digitou o número de sua própria casa. Levou o telefone ao ouvido.
Um toque. Dois toques. Três toques.
Uma ligação. Duas ligações. Três ligações.
Sem sinal dela.
Tinha ligado de seu próprio celular.
Marla ligou para imediatamente. Quando ele finalmente atendeu, ela não fez rodeios:
— não está em casa. Não faço ideia de onde ela possa estar.
‘Cause the hardest part of this is leaving you…
Capítulo 36 — Welcome to the black parade
And though your dead and gone, believe me, your memory will carry on…
A mansão dos Durden tinha sido um presente do sogro de Johnny. Quando ele e Johanna se casaram, o pai dela comprara o terreno e a casa.
Johnny sempre soube de algumas histórias de terror acerca do lugar.
A casa foi construída no começo do século XX. Na época da construção, um grupo de três crianças, filhos do dono da casa, estavam brincando com o filho de um empregado: um menino negro, mudo e surdo. Vivendo em uma sociedade extremamente racista, as crianças não tinham dó em debochar do menininho.
Tinham empurrado ele da escada, uma vez. Ele tinha a marca dos arranhões da queda. Marcara metade de sua face. Brincadeira de criança.
Foi durante a época da construção, o primeiro acidente. Estavam colocando concreto para construir um porão. As crianças foram brincar de esconde-esconde, e chamaram o filho do empregado para os acompanhar.
O menino se escondeu no espaço cavado que seria o porão. Não fez um ruído sequer. Continuou, deitado no chão, disposto a vencer. A construção continuava, e o menino continuava escondido.
Por dias.
As crianças não sabiam onde ele estava, ou o que teria acontecido. Chamá-lo não adiantaria: surdo, ele não ouviria, e, mudo, muito menos responderia.
Foi quando a construção acabou que descobriram onde ele estava. O dono da casa desceu até o porão e acendeu as luzes. Andando pelo concreto, tropeçou em um pequeno desnível.
Havia uma minúscula, quase imperceptível, saliência no chão.
A ponta de um nariz tão negra quanto ébano.
O pai não contou nada a ninguém. O pequeno filho do empregado continuou dado como desaparecido.
Poucos dias depois, as crianças começaram a se queixar de barulhos à noite. Era um som bem baixo, parecendo que vinha da ponta da orelha de cada um.
"Shhh".
Sempre que alguém descia no porão, essa pessoa costumava levar um tombo e cair da escada. O filho mais velho dos donos da casa caiu certa vez. Ralou o rosto, ficando com metade do rosto ferido.
Marcara metade de sua face.
Brincadeira de criança.
O menininho negro continuaria ali. Sempre que alguém andava Nas escadas da casa, era comum um tropeço.
Shhh. Não conte onde estou.
Ainda estou brincando de esconde-esconde. Dessa vez, vou ganhar.
Porque ninguém nunca vai saber onde estou.
Anos depois, durante a segunda grande guerra, a casa foi vendida a um casal de idosos, que tinham uma bela e jovem filha. Homens a cortejavam, mas a moça não se interessava por ninguém.
Seus pais se preocupavam. Um dia, um homem extremamente rico e da idade da jovem foi até a cidade, e os senhores logo trataram de conseguir um encontro de sua filha com ele. O homem se encantou imediatamente com ela. Pouco depois, pediu-a em casamento.
Não querendo fazer desfeita aos pais, ela aceitou.
Pouco depois da cerimônia, os pais da jovem faleceram de repente. A moça e seu marido passaram a morar no Palácio da Cerejeira sozinhos. Ela começou a ter crises de vômito, e ele mal passava o tempo em casa.
Tendo os mesmos sintomas que seus pais haviam tido pouco antes de morrer, a moça parou gradativamente de comer, enquanto o marido estava perto. Ele ordenava aos empregados que não deixassem sua esposa sair do Palácio, mas uma única empregada permitia saídas escondidas, em uma porta dos fundos.
Entristecida e solitária, a única companhia da moça era da empregada.
Foi quando descobriu que estava grávida.
Quando o marido voltou, ele se enfureceu. Um bebê? Inaceitável!
Trancou-a em um quarto, já admirado por ela ter continuado viva. Deixou-a com livros e professores de música, para que ela ficasse entretida.
A moça ficou trancada por meses. Apenas sua amiga, a empregada, a alimentava. As refeições entregues pelos outros criados eram aceitas e escondidas, e jogadas no lixo mais tarde, quando sua fiel criada lhe servia uma comida de verdade.
Quando a moça entrou em trabalho de parto, seu marido estava em casa. A empregada, única mulher da casa além da dona, também era parteira e realizou este ofício naquela noite. A moça sofrera uma grave hemorragia e deveria ficar em repouso, juntamente com a criança.
Quando deixou o quarto, não soube mais o que aconteceu. Não soube que o marido entrou no quarto e violentou sua esposa fisicamente, fazendo-a sangrar até a última gota. Não soube que ele também ferira o bebê, estrangulando-o enquanto ele chorava.
Os corpos foram encontrados no dia seguinte. A moça tinha ficado deitada na cama, em total silêncio, serena. Apenas usava uma camisola branca, que estava vermelha, de todo sangue que não era mais dela.
Ela não precisava mais dele.
O bebê falecera em lágrimas. Estava úmido, ainda, mas, diferente de sua mãe, morrera em agonia.
Nada aconteceu ao marido. Hemorragias e partos mal feitos aconteciam todos os dias. Ele continuou com a casa e, pouco depois, casara-se novamente.
Sua nova esposa, porém, queixava-se de cochichos ouvidos no meio da noite. Por vezes, acordava na madrugada, com a sensação de ser observada. Sentia, na ponta de seus dedos, como se tivesse um líquido viscoso em sua mão.
Entretanto, nada era pior do que o choro de bebê, bem baixo, e a cantiga de uma mãe, em um idioma incompreensível, para acalmá-lo. À noite, de madrugada, podiam ouvir uma criança chorar em desespero, tão distante que parecia em outro país.
Mas a voz de uma jovem mãe, que deveria eternamente acalmar seu filho, cantando baixo, era perceptível como se estivesse no quarto ao lado.
A última coisa que acontecera no Palácio da Cerejeira foi há poucos anos. Um homem, um jovem empresário herdeiro de uma rede de hotéis, casara-se com uma atriz conhecida por todo o país. Era um casal moço, cheio de vitalidade, que logo tomou manchetes de revistas por toda região, não se limitando apenas as de fofoca; as de economia também falavam (e muito) sobre o casal.
Johnny e Johanna.
JJ Durden.
Eles sempre moraram no Palácio da Cerejeira. Primeiro, logo depois do casamento, James chegou. Um menino saudável, muito bonito, herdeiro dos belos olhos verdes dos Durden. Claramente, entretanto, desequilibrado. O excesso de mimos e toda a facilidade nunca fizeram bem ao menino. Quando Jacqueline chegou, poucos anos depois, isso só piorou.
A menina, por outro lado, era como um anjo. Por mais que James tivesse eventuais ataques de violência, Jackie o acalmava e o mantinha ocupado. Ambos brincavam juntos, estudavam juntos e, com frequência, faziam jogos com os pais de caça ao tesouro.
Johnny e Johanna ficaram preocupados quando esperavam o terceiro filho, temendo que isso pudesse comprometer a harmonia da família. Quando Justin chegou, eles perceberam que não tinham o que reclamar.
Estavam como a família perfeita.
A diferença entre Justin e Joseph foi curta. Os quatro filhos raramente brigavam, e devido à pequena diferença entre as idades, costumavam andar sempre juntos. Justin era quase como a versão feminina de Jacqueline, e Joe não ficava muito atrás.
Até que os chegaram.
Uma mulher, procurando emprego, com uma menininha no fim de sua saia.
Por favor, Sr. Durden. Por favor.
Preciso sustentar minha filha, por favor.
Faço o que o senhor quiser.
Ela mudou-se para a casa e começou a trabalhar como empregada, ficando também com o posto de governanta. Alguns meses depois de sua chegada, descobriu que estava grávida.
Tanto a pequena quanto o recém-nascido Tyler foram aceitos pela família Durden como se fossem mais irmãos. Quer dizer, menos para Joe. O caçula de olhos verdes não ficava longe da menina e dizia que, um dia, se casaria com ela. Para os Durden, era clara a relação forte entre e Joey. E isso não se perdeu com o tempo: quando ficaram jovens, continuavam sempre juntos.
Mas as coisas não eram mais as mesmas.
James não conseguia passar uma hora de seu dia sem estar bebendo. Sempre um pouco. Ele dizia não ser um alcoólatra: viciados não sabem quando largar. E James? Ele sabia perfeitamente que, se quisesse parar, ele conseguiria. O caso era que nunca queria.
Jacqueline tentara seguir a carreira da mãe. Ao contrário de Johanna, que era firme em seu emprego, Jackie não teve a mesma sorte. Mesmo sendo uma Durden, não alcançara o sucesso de Johanna. Em parte, devido à sua notória falta de talento. Mas o vício crescente em drogas não contribuiu. E, bem, como era de praxe, Joe seguiu-a. Como sempre.
Johanna e Johnny não viveram o suficiente para ver a queda de seus filhos.
Justin foi o único que não seguiu a sina de seus irmãos, mas foi o primeiro a sofrer do câncer dos Durden. Foi o estopim da guerra entre os e os Durden.
Justin se foi cedo, mas ficara na memória de todos. E Tyler foi o herdeiro de sua ruína.
Joe foi pouco depois, mas seu fantasma fixou-se na alma de . Ele foi e sempre seria sua melhor parte.
Sua melhor doença.
Um grupo de viciados, de seres autodestrutivos.
Demônios que conseguiram voar alto o suficiente para se fazerem de anjos.
Agora, meses depois, Joe Durden estava no Palácio da Cerejeira. Ele estava ali novamente, em pele e osso, em unhas e garras. Escondera por meses seus olhos verdes, escondera Joseph William Durden. Sob a proteção de um ingênuo jornalista, e observando tudo.
Controle. Tudo se resume e sempre se resumirá a controle.
O ar entra em seus pulmões, e ele respira em triunfo. Está vivo novamente.
A cada passo, está mais firme.
Não é um fantasma.
Sou apenas um fantasma, não posso mais feri-la.
Arfa, pois está vivo. Tinha passado meses negando sua própria vida, assumindo um papel que não era dele. Um papel ridículo, diga-se de passagem. Mas quem suspeitaria?
Atuou por três meses. Deixou sua verdadeira realidade enterrada no fundo do lado escuro da lua.
Joe e Ramona eram tão perfeitos quanto ele e .
Os Durden estão vivos. Todos. Johnny, Johanna, James, Jacqueline, Justin e Joe.
Todos estão presos no Palácio da Cerejeira. Todos ainda querem o que era deles por direito.
Cada moeda, cada centavo, encravado na alma de cada uma daquelas crianças.
Um tumor.
Um câncer.
Finalmente tomando o órgão. Finalmente podendo aparecer.
Voltando à vida.
Joe Durden nunca morreu. Não importa o que aconteça.
Joe Durden vive em todos. Como Ramona.
Ramona Durden.
E ele não está nem um pouco feliz.
O Palácio estava vazio. Não havia um único suspiro, uma única respiração, a não ser a da própria . Os móveis tinham permanecido intactos, mas todos os vestígios de vida já tinham partido. Nenhuma louça de cristal, nenhuma das amadas porcelanas de Johanna. A cristaleira, entretanto, ficara no mesmo lugar que sempre esteve. A sala de entrada ainda tinha a mesma mesa, as mesmas cadeiras e o mesmo sofá. O mesmo lustre, de gotas transparentes, e a escada que se dividia na parede, indo para o corredor direito e esquerdo do segundo andar.
Tradicional, mas sem parecer brega.
Podia ouvir sua própria voz, se quisesse. A pequena e o pequeno Tyler, correndo de Joe enquanto brincavam de pega-pega. James com um livro nas mãos, Jacqueline observando atenciosamente o trabalho de sua mãe no jardim, ajudando-a por vezes.
Tudo ainda estava ali.
Até Joe Durden estava ali.
Os passos dele eram silenciosos. Deveriam ser: por todo aquele tempo, ninguém tivera uma única pista de que Joe Durden ainda estava ali.
ajoelhou-se, diante das escadas. Seus joelhos atingiram o chão de madeira com um baque, e ela encolheu os ombros. Seus cabelos caíam pelo contorno de seu rosto, enquanto um homem ia ao seu encontro, por suas costas.
Não levava uma arma. Na verdade, tinha as mãos nos bolsos.
Não iam brigar. Não como da última vez que tinham se visto.
Iam apenas matar as saudades.
— É bonito, não? Acho que ainda tem algo de nós aqui.
olhou para trás com um movimento lento com a cabeça. Ele admirava a escada, como ela.
Então, era ele ali.
— Sabia que você não ia me deixar sozinha.
— Eu nunca a deixei, — ele respondeu. Olhou para ela assim que terminara a frase, com um pequeno sorriso.
Os cabelos, os olhos, o rosto e o sorriso. Era Joe, desde sempre.
— Sabia que você não ia embora sem se despedir, .
riu. completou:
— É bom poder te ver de novo, Joey.
Agora podemos acabar o que não fui capaz de fazer há três meses.
E se eu for presa de novo, não me arrependo.
— Digo o mesmo, minha boneca de papel.
Marla mexia inquieta no celular. Não fazia a mais plena ideia de onde pudesse estar, e não podia ajudar.
Segundo ele próprio, estava cuidando de um assunto tão sério quanto aquele, na delegacia.
Dorothy fora de novo para a incubadora no tempo que Marla tinha usado para tentar achar . Ela tinha desligado o próprio celular, tirando a bateria, impossibilitando o rastreamento por satélite.
talvez estivesse bem. Talvez fosse só um susto.
O problema era Ramona.
— O que aconteceu? Você está branca — disse , levantando da cama.
Marla colocou a mão nos bolsos do jeans, no que tinha o molho de chaves do carro.
Preciso sair daqui.
tocou o ombro de Marla, e a ruiva ergueu o rosto para observá-la.
— Preciso sair.
— Onde está ? — perguntou a jovem, com um sutil instinto maternal em sua voz.
De todas as perguntas do mundo, ela precisou fazer justamente aquela.
— Não sei.
recuou. Sua voz veio cheia de preocupação, e transbordando de revolta por tamanho descuido:
— Como assim "não sei"?
— Ela deveria ter ido para casa, mas não foi.
— Lógico que ela não foi. Como vocês esperaram que ela tivesse ido?
— A culpa não é minha, .
pegou as chaves na mão de Marla.
— Ela estava aqui há algumas horas. Você a deixou escapar, Marla, e ela estava aqui há algumas horas!
Foi em direção à porta, deixando a detetive para trás. Marla levantou-se correndo para acompanhar , que não parecia nem um pouco disposta a conversar.
— , já está resolvendo isso — ela tentou acalmá-la enquanto ambas iam pela escada de incêndio até o térreo. Não queriam sequer esperar o elevador.
— Como quando ele resolveu o outro problema, e ficou com aquela cara? — retrucou, agressiva. Descia os degraus correndo — Não confio mais no trabalho de vocês como policiais. Eu nunca devia ter saído de perto de .
No térreo, passou pela recepção e foi em direção ao estacionamento.
— ...
não ouviu. Foi decidida em direção ao carro, que estava distante no estacionamento. Estava um pouco frio naquele momento, e o único veículo longe era o de Marla.
Não havia ninguém no estacionamento além delas. O carro ficara lá, deixado, desde o começo da manhã.
Um momento.
tinha a chave em mãos, e destravou o carro de longe. Ia a passos largos, correndo.
Mas ei, por que a pressa?
Podemos ficar aqui por muito mais tempo.
Um carro vazio, deixado no meio de um estacionamento.
Uma chance perfeita.
— !
abriu a porta e sentou-se no lugar do motorista.
Nem sempre é o único alvo.
— ! — gritou Marla, correndo.
Não houve tempo.
Boom.
girou a chave na ignição e boom.
Marla foi jogada para trás, batendo as costas no asfalto, sentindo o calor intenso da explosão.
não teve tempo.
A chave foi girada e boom.
O carro foi pelos ares, e ninguém se feriu além do motorista. O corpo de ficou metade para fora do veículo, já sem porta e laranja, consumido em chamas. Seus cabelos estavam na frente de seu rosto, e Marla agradeceu por não estar conseguindo ver o estado de seu corpo.
Mais um.
Dorothy é uma filha de ninguém.
Curiosos e seguranças do hospital foram ver o que estava acontecendo. Tinham ouvido o barulho da explosão, e ficaram preocupados.
Mas não tinham feridos. Só o motorista.
Apenas o motorista.
Uma jovem mãe, com o corpo virado para o lado, as mãos caindo para fora do carro e os cabelos na frente do rosto.
Morte instantânea.
Boom.
Marla fechou forte os olhos. Vários pensamentos correram por sua mente. fizera o carro explodir? Ou Ramona? Joe Durden? Mas a pergunta que fora a primeira, a mais pertinente, e que a fazia sentir mais culpada não era nenhuma dessas.
Isso era para mim, ou para ?
estava de pé atrás de . Não se movera muito desde que entrou. Ela continuara sentada no chão, de joelhos. E ele esperou.
— Desde quando você sabia de Ramona? — ela perguntou.
deu de ombros. Deu a volta em e foi até as escadas com as mãos nos bolsos, sentando em um degrau. Assim que o fez, uma madeira podre rangeu, mas não reagiu.
— Desde quando você quebrou meu braço. A gente tinha uns quinze anos.
comprimiu os lábios. pegou no bolso uma caixa de cigarros e colocou um na boca, procurando o isqueiro, sem sucesso.
— Você tem? — perguntou, apontando para o cigarro.
sabia que sim.
Pôs a mão no bolso do jeans e pegou um isqueiro.
"It's only after we've lost everything that we're free to do anything."
Apoiou-se em seus joelhos, ficando mais perto de . Ele inclinou-se para frente, com o cigarro nos lábios. Olhava fixamente para o lugar mais profundo nos olhos de .
Lá no fundo, estava enterrado Joe Durden.
— O que você fez, Joey?
Ele tragou e voltou o corpo para trás. tinha o rosto contorcido como se quisesse chorar.
— O que aconteceu há três meses? — ela perguntou.
não podia fumar. Não gostava e não podia. Mas olhar para aquele cigarro era a coisa mais tentadora do mundo.
Estamos todos revivendo velhos vícios aqui.
— Você foi me encontrar no Tate.
— Eu fui.
— E nós brigamos.
— Por horas.
riu.
— Por meia hora.
Não. Por favor, não.
— Ramona não custou a aparecer. Passei horas falando com ela. Todo aquele tempo.
— Você e ela já tinham tudo planejado.
Não era uma pergunta. sabia.
Ele não precisava explicar nada. Ela simplesmente sabia.
— Sim. Faz meses. Desde Justin, eu queria satisfações. E quando eu tentava te encontrar, você era consumida pela raiva. E isso liberava Ramona.
— Eu não falava com você quase nunca, desde que Justin morreu.
— Não que você lembre, boneca de papel.
Ele tragou de novo.
— Naquela noite, eu e Ramona repassamos tudo. E brincamos um pouco também — sorriu ao dizer isso — Você não imagina como era para mim ter você no quarto ao lado, mas trepando com aquele jornalista, quando já tivemos algumas das melhores fodas da sua vida.
engoliu em seco.
— Eu e você? Nós nunca...
colocou a mão no peito, fazendo uma expressão de dor.
— Não fale isso. Vai ferir meu orgulho — com uma risada pequena, ele completou — Já transamos várias vezes, . Algumas um pouco depois da morte de Justin, e uma boa e longa transa no dia que eu sumi. Você mesma disse que foi uma foda de despedida.
Agora está em uma zona de perdão.
Eu o traí tanto quanto ele me traiu.
— Naquela noite, tínhamos a ideia toda. Eu sabia o que Ramona faria. Ela crescia cada vez mais em você, e o que era para ser inicialmente traços da sua personalidade, se tornou uma personalidade nova. Eu estudei isso um bocado, há algum tempo. Foi você que me fez estudar isso, . Você e Ramona.
— Então você realmente é psicólogo.
balançou a cabeça com decepção.
— Ferindo meu orgulho novamente. Não acredito vim aqui para você me ofender assim.
— Você me conhece há semanas... — a afirmativa de soou como uma reflexão.
— Te conheço há anos, . Só fiquei alguns meses fora.
— Três.
— Três — ele confirmou, erguendo o polegar, o indicador e o dedo do meio — Estudei psicologia, mas você não soube disso. Não nos falávamos quando me formei. Quando precisei sumir, comecei a exercer, porque precisava de dinheiro. Aluguei e dividi apartamento com um jornalista da cidade, que acabou sendo chamado para trabalhar na delegacia.
— não tem nada a ver com isso — fez outra conclusão que soara como questionamento.
— Inicialmente, não. Eu tinha que conseguir dividir apartamento com alguém, enquanto tinha algum dinheiro sobrando.
— Você estava cada vez mais próximo de mim.
— Eu via nos olhos dele como ele estava encantado. Via como ele gostava de você. Então, de última hora, tive a ideia de que você precisava sair de casa. E nossa única opção era o incêndio.
— Você pôs fogo na minha casa.
— Você pôs fogo na sua casa. E não custou a propor a você que fosse para nossa casa. Eu poderia te ver cada vez mais de perto.
— E ...
— era uma piranha.
mordeu o lábio.
— Ela não era isso — a frase não tinha uma única firmeza. parecia ansiosa para saber o resto, como uma criança diante da melhor história para dormir.
— Ela era. Ela era uma puta, foi fácil levá-la para minha casa. Mais um jeito de ficar próximo a você.
Joey, você sempre foi tão próximo de mim...
— Continuamos por mais tempo, mas completamente com fodas esportivas. Não éramos nada sério. Mas eu sabia que queria mesmo era o . Eu percebi que ela estava apaixonadinha por ele desde o instante que ele pisou naquela delegacia.
engoliu em seco.
— Cada um queria uma metade: quanto mais próximo de você ele ficava, menos Ramona aparecia. Ela só vinha quando você tinha raiva, quando você precisava dela. E não fazia você precisar.
Completa.
— Logicamente não dava a mínima para . Ela tinha sido uma filha da puta, e, do jeito que eu o conheço, sabia que ele não ia querer saber dela. Mas a vagabunda não gostou de não ter ganhado o prêmio dela, e da humilhação na delegacia, que eu planejei. Eu a persuadi a adulterar o resultado do exame do cadáver supostamente meu, e ela adulterou. Quando ficou puta por causa daquilo do , ameaçou contar sobre esses exames e sobre mim.
— Ela sabia que você era você?
— De início, não. Mas eu fiquei em pânico quando ela descobriu sozinha que o corpo não era "do Joe". Conversamos a respeito: eu daria meu jeito sobre a situação com , se ela mantivesse o bico calado e me fizesse esse favor com os exames.
— se deixou chantagear por algo tão pequeno?
— Não era só o caso do . Coisas que ela dizia de você, o próprio vídeo que vazou na delegacia. E eu tinha material bem pior. Não era vantagem, para mim, acabar com aquela piranha tão cedo. Eu precisei dela um pouco mais. Quando ela passou a me atrapalhar, tive que ser impulsivo.
Deus.
matou .
Eu o tirei da prisão há menos de uma semana.
Ele quem matou .
— E ?
— Um trouxa. Ele e Samantha estavam juntos desde a época do seu julgamento. Ela estava louca por ele, e acho que por isso ela queria que você fosse afastada. Então, engravidou de propósito. Mas o cara não queria...
— E você descobriu como ele precisava se livrar dela.
— Eu sabia disso pela própria Sam.
— Ele precisava de ajuda, e você o ajudou à distância — ela completou.
— também sabia de Ramona. Foi matar dois coelhos com uma cajadada só. Depois que o idiota ia amarelar por causa da Samantha, depois que ele viu o número de furos do plano dele... Ia se entregar. E eu ia junto. Precisei dar um jeito, mas não como eu acabei fazendo com . Com , fui mais... meticuloso.
— Você fez isso sozinho?
deu de ombros, tragando e erguendo as sobrancelhas.
— De início, Samantha me ajudava. Depois do se meter, tive que procurar outra parceira, além da própria Ramona. veio a calhar.
Soltou a fumaça para o alto.
— Desde quando você soube de mim? — ele perguntou.
— Desde que entrei aqui.
Ele riu.
— Você já foi melhor, .
Ela fungou, a pistola estava no coldre, mas ainda não quis tocá-la.
— Você e as pílulas. Ramona aparecia mais quando eu tomava aquele remédio. Eu tive alucinações com e . Demorei a lembrar que psicólogos não podem receitar remédios.
— Bingo — ele foi cético, tragando mais uma vez.
— Você estava em todos os lugares. No Halloween, na cena do crime de , em . Você chegou a ser preso pela morte dela. A faca foi encontrada no seu prédio.
— E você me soltou, meu anjo. Foi perfeito para tirar o meu da reta.
— Você podia estar sendo julgado pelo assassinato da .
Ele inclinou-se para frente, sussurrando:
— Mas você me protegeu disso, não foi, minha boneca de papel?
— Como teve garantias de mim e do Tyler no sequestro da Jacqueline?
— Eu não era o único Durden a saber de Ramona. Você não ia morrer naquela noite, definitivamente. Talvez Tyler fosse, mas você não. Eles queriam Ramona assim como eu quero. Ramona já conseguia tomar controle do seu corpo, se assim ela quisesse. E se Tyler tivesse morrido, aí sim você perderia para o ódio. Então, Ramona ganharia. De certo modo, esse teria sido o plano perfeito para ela. O caso é que ela preferia trabalhar comigo. Então, avacalhou os planos de Jackie e de James. A explosão no final não foi culpa nossa.
— Você foi responsável pela morte da sua irmã, Joe.
Ele ficou sério. Arfou por um momento, apagando o cigarro na madeira da escada, apertando fortemente o a butuca.
— Eu não matei minha irmã. Ela se matou. A culpa não foi minha.
— Jacqueline se matou, e você permitiu isso.
— Eu não tive nada a ver com a morte dela.
— Você podia ter evitado a morte dela.
desviou instintivamente. jogara a caixa de cigarros contra ela, fazendo alguns cigarros caírem e se espalharem pelo chão.
— Justin morreu por minha causa. Não a Jackie. Justin era uma pessoa boa, Justin estava protegendo o filho da puta do seu irmão quando ele morreu porque o esqueceram lá.
— Do seu irmão.
Dessa vez, foi quem sorriu, enquanto permaneceu sério.
— Se eu soubesse disso antes, teria matado aquele filho da mãe com minhas próprias mãos na vez que explodi uma garrafa na cabeça dele. Mas descobri pouco depois, na época do sequestro. Não me foi de todo ruim. Ele foi para um hospício e não me atrapalhou.
— Você era o enfermeiro que Tyler viu. O enfermeiro que o fez ir para o Manson. Você quis tirá-lo da lista de herdeiros, torná-lo inválido para receber a herança.
— E consegui — retrucou com um sorriso glorioso — Ele fez o testamento, afinal. Assinou, está lá a letra dele.
— A herança quase toda dos Durden está comigo. Com exceção de algumas partes.
deu de ombros.
— também tinha um pedaço dessa herança, que acabou ficando dividida para quem sobrou. Nesse caso, além de Tyler e de James... Só temos você, meu amor.
Dorothy.
Dorothy.
Dorothy.
Ele... Ele não...
Ele não sabe de Zoe.
tentou permanecer indiferente quando tinha dito aquilo. Talvez, ele estivesse mentindo. Talvez soubesse de Zoe e de Dorothy.
Talvez.
Pisando em gelo fino.
Está ficando frio de novo.
— E você sabe por que fiz Tyler fazer o testamento — completa, com um pequeno sorriso.
Ela realmente sabia. Por mais que isso não a agradasse.
Ela já sabia de tudo, há meses.
— Ramona é sua melhor parte, e, se pudéssemos, todos trocaríamos você por ela, e você sabe disso. Eu mesmo presenciei isso. Tive medo, em nossas sessões. Por mais que ela soubesse de mim, ela agia na defensiva por você.
Você sabe disso.
— Ramona é incontrolável — disse — Você não poderia prever quando ela vem, e quando não vem.
— Ela sempre vem. Vem quando precisa, e, mais ainda, quando você precisa.
preferiu não dizer nada. Comumente, torceria para que Ramona aparecesse.
Salve-me.
— Eu não quero feri-la, meu amor — continuou, inclinando o corpo para frente, acariciando a bochecha de — Você vai se sair bem, de qualquer maneira. Você tem toda a herança. Se me ajudar, não seremos só eu e você. Teremos tudo isso. Você sabe que tem saída. Finja Ramona, e me ajude.
Sou só uma menininha, não sou uma heroína.
— Deixe-a entrar, .
Apenas me colocaram aqui.
— Sou eu. Sou o seu Joe aqui. E quero que você a deixe entrar.
Ela ergueu os olhos. Suas mãos tinham as veias saltadas, agarrando em suas próprias coxas por cima dos jeans.
— Eu não sou Ramona, — ela abriu os olhos, fixando o olhar nas pupilas de seu interlocutor — Eu não sou Ramona.
Ele parou a mão no queixo de . Ergueu-o, fazendo-a levantar a cabeça.
— Eu não sou , boneca de papel. Meu nome é Joseph. O seu Joey, e você sempre soube disso.
Sempre.
Sempre.
— Sou Joe Durden, e você é Ramona e sabe disso. Você sempre foi Ramona.
Sempre.
Sempre.
Você sabe disso.
— Desde seus primeiros casos, desde quando quebrou meu braço, desde sempre. Sempre houve a Ramona em você, ela sempre esteve aí. Só precisava de chances para sair.
Deixe-a sair.
— Ramona sempre foi sua melhor parte. Ramona é você, . Não é como se ela tomasse seu lugar. Ela é você.
Eu sou Ramona.
Ou Ramona sou eu?
— Não há lado escuro da lua, realmente. Na verdade, ela é toda escura.
Meu nome é e eu sou a melhor detetive do estado.
Meu nome é .
Ramona.
Ramona.
Deixe-a entrar.
Seu nome é Ramona e você é a melhor detetive do estado.
Seu nome é Ramona e você mora dentro de .
— Você precisa de mim. Sem mim, não há aonde você chegar. Você está morto.
Ele ergueu o canto do lábio. Tirou a mão do rosto de , acariciando sua pele superficialmente.
— Você ainda não vê, meu amor? Não importa o que aconteça. Já está tudo ao meu favor.
Zoe e Dorothy.
Mantenha a calma. Não a deixe entrar.
Ele não sabe de Zoe e de Dorothy.
— Com Jackie, com , eu soube lidar. Eu não adapto pessoas aos meus planos, eu adapto meus planos às pessoas. Quando Zoe apareceu, eu fiquei preocupado. Mas ela é só uma pirralha. Soube lidar com ela rápido.
Merda.
Ela apertou forte os olhos, apertando as palmas das mãos contra as pálpebras molhadas.
Sentia o cano da pistola arranhar sua pele, no coldre. Ela a chamava.
— , eu não quero isso. Me deixe em paz, eu não quero isso.
— Você é como eu, — ele disse, saindo da escada e se ajoelhando no chão, na frente dela. Segurou o rosto da moça com certa delicadeza, forçando-a a não abaixar a cabeça.
— Não sou você, .
Joe.
Tranque a porta.
Fique dentro da cela, e perca a chave.
— Você é como eu. Ninguém acreditava em seu potencial. Você escondeu-se na sombra por tempo demais. E há alguém dentro de você que é sua melhor pessoa.
— Cale a boca — ela disse, baixo, colocando as mãos nos olhos e tentando abaixar o rosto. forçou-a a manter o rosto virado para ele, puxando seu rosto agora com brutalidade.
Olhe para mim. Olhe em meus olhos.
— Vamos lá, . Somos muito parecidos. Sua mãe não te amava, você é só uma menininha precisando de atenção e cuidado.
Deixe-me ir.
Não a deixe entrar.
— ... Por favor... — sua voz soava como um pedido de misericórdia.
A voz de permaneceu firme.
?
não estava morto.
— Mas eu sei o que me faz fraco. Você não faz ideia do que te faz fraca. Ah, não, melhor: você não pode controlar o que te faz fraca.
não poderia estar morto, pois ele nunca esteve vivo.
— Não somos parecidos, Joe.
— Bem, estamos no meio do caminho. Você é quase igual a mim.
Me acorde.
Me acorde.
Acorde.
Ele soltou o rosto de . Ela caiu sentada para trás, produzindo um baque na madeira, audível por todo terreno vazio e silencioso. Chorava, com as mãos no rosto.
— Quando eu era criança — começou, com a voz mansa novamente —, meu pai me levou para o centro. Tinha uma banda tocando no 4 de julho. Estávamos todos lá, Durden e . Meu pai estava comigo para ver a banda. Depois, fomos tomar um sorvete, só eu e ele. Ele conversou comigo sobre a responsabilidade de ser um Durden. Ele me disse como eu precisava cuidar do que era meu.
Fez uma pausa. O olhar de tornou-se vago ao vazio.
— Eu ainda vejo aquilo como um aviso. Ele sabia do que vinha. Foi meu pai. Foi ele que me ensinou que eu deveria correr mais rápido que os outros, que eu deveria ter planos para coisas que sequer aconteceram. Eu vi em seus olhos, naquele dia. Pouco antes do acidente, eu vi seu rosto me encarando. E ele era meu pai me ensinando a ser um homem. Às vezes, acho que ele ainda está me olhando. Está zelando por mim.
Mais uma pausa. Era como se ele tivesse voltado para aquele dia.
— Eu vi seu rosto depois — o olhar de estava perdido — Eu vi seu rosto quando ele morreu. Quando tivemos que reconhecer os corpos. Eu vi seu rosto arrebentado, riscado de sangue e de carne viva.
Silêncio.
Vazio.
A banda continuava a tocar.
— Ele não era meu pai. Mas eu o via depois. Eu o via todas as noites, eu ainda o vejo. Toda noite, antes de dormir, ele me assombra. Ele diz que estou morto. Talvez eu esteja.
Mais uma pausa.
— Meu pai diz que estou morto. Ele me chama para que eu vá com ele, e me pergunta o que estou fazendo aqui. Estou morto. Ele quer que eu vá com ele, e isso sempre me assombra.
— Você não está falando sério — murmurou em meio a um pigarro, passando as mãos no rosto — Você matou pessoas. Você feriu pessoas. Você não é mais um homem, .
— Eu vi homens, — ele retrucou, como se corrigisse uma criança que falara algo errado — Eu vi homens e mulheres em seu estado mais primitivo. Por isso estou aqui. Eu sinto as pessoas, eu sinto a vida como você jamais pôde ou poderá sentir.
ponderou aquilo por alguns segundos.
— não era um assassino. era um covarde. Eu vi a morte chegar, apenas deixou-a vir.
— Como assim?
— Há duas maneiras de sentir a vida, de verdade. Só dois jeitos de sentir a vida. E eu tive a oportunidade de aproveitar os dois.
aproximou o rosto de . Ela permaneceu imóvel, estática. Ele levou o rosto do ombro dela, se aproximando da orelha de , tocando seus lábios secos na pele da moça.
— A primeira é sentir a morte. Eu senti a morte quando, há meses, incendiei o cadáver do meu irmão para fingir que ele era meu. Eu vi a minha morte, eu senti que Joe Durden estava morto naquele momento. Acho que por isso assumi meu papel com tanta confiança. Eu estava morto. Mas a segunda é interpretar a morte. É assumir.
Desceu as mãos pelos ombros de , passando por seu braço, perto de seus seios, até chegar em seu quadril.
Tocou a pistola.
O coldre não arranhava mais.
— Em seus últimos momentos, pessoas expõem o que eles realmente são. Cada demônio, cada anjo. Sem máscaras, faces falsas. Sem emoções fingidas. Elas sempre colocam tudo para fora.
Ele segurou forte a pistola, e o corpo de tornou-se rígido.
— Eu vi a morte de e de . Eu assisti a lenta morte de . E nunca me senti tão vivo. Era como se eu sugasse as vidas deles e as adicionasse à minha. Era viver mais um pouco.
A pistola estava firme na mão dele.
— Matar alguém faz você se sentir vivo como nunca conseguirá se sentir sozinho. Você vê a vida de alguém nas suas mãos. Você vê o sangue correr.
A mão de soltou a arma, fazendo relaxar.
— Eu vejo seres humanos em suas formas puras e verdadeiras. Todas as coisas ruins de cada um. Todos temos faces diferentes quando sabemos que vamos morrer.
limpou a garganta. Começou a falar à medida em que afastava a mão do coldre, e a boca de sua orelha:
— Na verdade, no final, somos todos os mesmos. Somos todos crianças, pedindo por perdão, e implorando por nossas mães. Somos todos os mesmos seres implorando por piedade e pela salvação.
Apoiou-se em um pé e conseguiu ficar de pé rapidamente, armando-se com agilidade. Segurando a pistola com nervosismo, com as duas mãos, não reagiu.
— Em algum ponto, sim, acho que somos iguais, Joe.
levantou as mãos em rendição e desânimo.
— Você deve estar brincando se acha que chegamos até aqui para você me dar um tiro na cabeça e resolver tudo. Onde está seu senso de suspense e diversão?
— Cale a boca, Joe — ela tremia — Você se escondeu por meses, debaixo do meu nariz. Eu chorei na sua morte. Fui julgada e culpada por ela. Eu sentia sua falta. E você fodeu a minha vida desde o começo.
Quem segura a arma retém o poder.
"Você vê a vida de alguém nas suas mãos. Você vê o sangue correr."
— E eu mal posso esperar para enfiar uma bala na sua cabeça.
estava claramente nervoso. Mas respirou fundo.
— Você já me matou antes, não foi? Você já me matou, . Você sabe como é.
— Eu te mataria de novo. Você se matou, Joe.
— E eu voltei por você.
A arma foi destravada.
— Você nunca vai me deixar ir, . Minha boneca de papel.
As mãos de tremiam.
— Acordada. E sem medo.
E nada.
Nada.
Nada.
Nada.
não atirou. não se moveu. Ficaram estáticos.
Nada aconteceu.
— Eu sabia que você não ia conseguir.
ficou de pé. A arma ainda estava apontada para ele, mas, dessa vez, sem medo.
O lustre se moveu. Os cristais bateram levemente uns com os outros, em um tom fantasmagórico.
— Porque você tem razão. Você não é Ramona.
não conseguia se mover. andava para trás, de volta para a escada.
— Você ainda não é Ramona.
O lustre caiu imediatamente do teto, no instante em que puxou um pedaço de pano preso na pilastra da escada. tentou desviar, mas não conseguira ser rápida o suficiente. Foi atingida pelos cristais, fazendo seu corpo cair sobre seus joelhos. As pequenas gotas no lustre a cortaram, e o ferro bateu fortemente contra seu corpo.
No chão, ela ainda não conseguia se mover. Sua cabeça doía, e, por experiência própria, sabia que iria desmaiar.
— Não se preocupe, . Vou prosseguir.
Então, em um rosto inconscientemente tranquilo e sereno, ela fechou os olhos e viu Johnny Durden a chamando.
A banda naquele 4 de julho nunca parou. Continuou tocando, porque era assim até hoje.
A banda ao fundo não cessou. Ficava cada vez mais baixa, quase inaudível, mas nunca parava.
Eternamente, prosseguindo.
I'm just a man, I'm not a hero. Just a boy who had to sing this song.
A mansão dos Durden tinha sido um presente do sogro de Johnny. Quando ele e Johanna se casaram, o pai dela comprara o terreno e a casa.
Johnny sempre soube de algumas histórias de terror acerca do lugar.
A casa foi construída no começo do século XX. Na época da construção, um grupo de três crianças, filhos do dono da casa, estavam brincando com o filho de um empregado: um menino negro, mudo e surdo. Vivendo em uma sociedade extremamente racista, as crianças não tinham dó em debochar do menininho.
Tinham empurrado ele da escada, uma vez. Ele tinha a marca dos arranhões da queda. Marcara metade de sua face. Brincadeira de criança.
Foi durante a época da construção, o primeiro acidente. Estavam colocando concreto para construir um porão. As crianças foram brincar de esconde-esconde, e chamaram o filho do empregado para os acompanhar.
O menino se escondeu no espaço cavado que seria o porão. Não fez um ruído sequer. Continuou, deitado no chão, disposto a vencer. A construção continuava, e o menino continuava escondido.
Por dias.
As crianças não sabiam onde ele estava, ou o que teria acontecido. Chamá-lo não adiantaria: surdo, ele não ouviria, e, mudo, muito menos responderia.
Foi quando a construção acabou que descobriram onde ele estava. O dono da casa desceu até o porão e acendeu as luzes. Andando pelo concreto, tropeçou em um pequeno desnível.
Havia uma minúscula, quase imperceptível, saliência no chão.
A ponta de um nariz tão negra quanto ébano.
O pai não contou nada a ninguém. O pequeno filho do empregado continuou dado como desaparecido.
Poucos dias depois, as crianças começaram a se queixar de barulhos à noite. Era um som bem baixo, parecendo que vinha da ponta da orelha de cada um.
"Shhh".
Sempre que alguém descia no porão, essa pessoa costumava levar um tombo e cair da escada. O filho mais velho dos donos da casa caiu certa vez. Ralou o rosto, ficando com metade do rosto ferido.
Marcara metade de sua face.
Brincadeira de criança.
O menininho negro continuaria ali. Sempre que alguém andava Nas escadas da casa, era comum um tropeço.
Shhh. Não conte onde estou.
Ainda estou brincando de esconde-esconde. Dessa vez, vou ganhar.
Porque ninguém nunca vai saber onde estou.
Anos depois, durante a segunda grande guerra, a casa foi vendida a um casal de idosos, que tinham uma bela e jovem filha. Homens a cortejavam, mas a moça não se interessava por ninguém.
Seus pais se preocupavam. Um dia, um homem extremamente rico e da idade da jovem foi até a cidade, e os senhores logo trataram de conseguir um encontro de sua filha com ele. O homem se encantou imediatamente com ela. Pouco depois, pediu-a em casamento.
Não querendo fazer desfeita aos pais, ela aceitou.
Pouco depois da cerimônia, os pais da jovem faleceram de repente. A moça e seu marido passaram a morar no Palácio da Cerejeira sozinhos. Ela começou a ter crises de vômito, e ele mal passava o tempo em casa.
Tendo os mesmos sintomas que seus pais haviam tido pouco antes de morrer, a moça parou gradativamente de comer, enquanto o marido estava perto. Ele ordenava aos empregados que não deixassem sua esposa sair do Palácio, mas uma única empregada permitia saídas escondidas, em uma porta dos fundos.
Entristecida e solitária, a única companhia da moça era da empregada.
Foi quando descobriu que estava grávida.
Quando o marido voltou, ele se enfureceu. Um bebê? Inaceitável!
Trancou-a em um quarto, já admirado por ela ter continuado viva. Deixou-a com livros e professores de música, para que ela ficasse entretida.
A moça ficou trancada por meses. Apenas sua amiga, a empregada, a alimentava. As refeições entregues pelos outros criados eram aceitas e escondidas, e jogadas no lixo mais tarde, quando sua fiel criada lhe servia uma comida de verdade.
Quando a moça entrou em trabalho de parto, seu marido estava em casa. A empregada, única mulher da casa além da dona, também era parteira e realizou este ofício naquela noite. A moça sofrera uma grave hemorragia e deveria ficar em repouso, juntamente com a criança.
Quando deixou o quarto, não soube mais o que aconteceu. Não soube que o marido entrou no quarto e violentou sua esposa fisicamente, fazendo-a sangrar até a última gota. Não soube que ele também ferira o bebê, estrangulando-o enquanto ele chorava.
Os corpos foram encontrados no dia seguinte. A moça tinha ficado deitada na cama, em total silêncio, serena. Apenas usava uma camisola branca, que estava vermelha, de todo sangue que não era mais dela.
Ela não precisava mais dele.
O bebê falecera em lágrimas. Estava úmido, ainda, mas, diferente de sua mãe, morrera em agonia.
Nada aconteceu ao marido. Hemorragias e partos mal feitos aconteciam todos os dias. Ele continuou com a casa e, pouco depois, casara-se novamente.
Sua nova esposa, porém, queixava-se de cochichos ouvidos no meio da noite. Por vezes, acordava na madrugada, com a sensação de ser observada. Sentia, na ponta de seus dedos, como se tivesse um líquido viscoso em sua mão.
Entretanto, nada era pior do que o choro de bebê, bem baixo, e a cantiga de uma mãe, em um idioma incompreensível, para acalmá-lo. À noite, de madrugada, podiam ouvir uma criança chorar em desespero, tão distante que parecia em outro país.
Mas a voz de uma jovem mãe, que deveria eternamente acalmar seu filho, cantando baixo, era perceptível como se estivesse no quarto ao lado.
A última coisa que acontecera no Palácio da Cerejeira foi há poucos anos. Um homem, um jovem empresário herdeiro de uma rede de hotéis, casara-se com uma atriz conhecida por todo o país. Era um casal moço, cheio de vitalidade, que logo tomou manchetes de revistas por toda região, não se limitando apenas as de fofoca; as de economia também falavam (e muito) sobre o casal.
Johnny e Johanna.
JJ Durden.
Eles sempre moraram no Palácio da Cerejeira. Primeiro, logo depois do casamento, James chegou. Um menino saudável, muito bonito, herdeiro dos belos olhos verdes dos Durden. Claramente, entretanto, desequilibrado. O excesso de mimos e toda a facilidade nunca fizeram bem ao menino. Quando Jacqueline chegou, poucos anos depois, isso só piorou.
A menina, por outro lado, era como um anjo. Por mais que James tivesse eventuais ataques de violência, Jackie o acalmava e o mantinha ocupado. Ambos brincavam juntos, estudavam juntos e, com frequência, faziam jogos com os pais de caça ao tesouro.
Johnny e Johanna ficaram preocupados quando esperavam o terceiro filho, temendo que isso pudesse comprometer a harmonia da família. Quando Justin chegou, eles perceberam que não tinham o que reclamar.
Estavam como a família perfeita.
A diferença entre Justin e Joseph foi curta. Os quatro filhos raramente brigavam, e devido à pequena diferença entre as idades, costumavam andar sempre juntos. Justin era quase como a versão feminina de Jacqueline, e Joe não ficava muito atrás.
Até que os chegaram.
Uma mulher, procurando emprego, com uma menininha no fim de sua saia.
Por favor, Sr. Durden. Por favor.
Preciso sustentar minha filha, por favor.
Faço o que o senhor quiser.
Ela mudou-se para a casa e começou a trabalhar como empregada, ficando também com o posto de governanta. Alguns meses depois de sua chegada, descobriu que estava grávida.
Tanto a pequena quanto o recém-nascido Tyler foram aceitos pela família Durden como se fossem mais irmãos. Quer dizer, menos para Joe. O caçula de olhos verdes não ficava longe da menina e dizia que, um dia, se casaria com ela. Para os Durden, era clara a relação forte entre e Joey. E isso não se perdeu com o tempo: quando ficaram jovens, continuavam sempre juntos.
Mas as coisas não eram mais as mesmas.
James não conseguia passar uma hora de seu dia sem estar bebendo. Sempre um pouco. Ele dizia não ser um alcoólatra: viciados não sabem quando largar. E James? Ele sabia perfeitamente que, se quisesse parar, ele conseguiria. O caso era que nunca queria.
Jacqueline tentara seguir a carreira da mãe. Ao contrário de Johanna, que era firme em seu emprego, Jackie não teve a mesma sorte. Mesmo sendo uma Durden, não alcançara o sucesso de Johanna. Em parte, devido à sua notória falta de talento. Mas o vício crescente em drogas não contribuiu. E, bem, como era de praxe, Joe seguiu-a. Como sempre.
Johanna e Johnny não viveram o suficiente para ver a queda de seus filhos.
Justin foi o único que não seguiu a sina de seus irmãos, mas foi o primeiro a sofrer do câncer dos Durden. Foi o estopim da guerra entre os e os Durden.
Justin se foi cedo, mas ficara na memória de todos. E Tyler foi o herdeiro de sua ruína.
Joe foi pouco depois, mas seu fantasma fixou-se na alma de . Ele foi e sempre seria sua melhor parte.
Sua melhor doença.
Um grupo de viciados, de seres autodestrutivos.
Demônios que conseguiram voar alto o suficiente para se fazerem de anjos.
Agora, meses depois, Joe Durden estava no Palácio da Cerejeira. Ele estava ali novamente, em pele e osso, em unhas e garras. Escondera por meses seus olhos verdes, escondera Joseph William Durden. Sob a proteção de um ingênuo jornalista, e observando tudo.
Controle. Tudo se resume e sempre se resumirá a controle.
O ar entra em seus pulmões, e ele respira em triunfo. Está vivo novamente.
A cada passo, está mais firme.
Não é um fantasma.
Sou apenas um fantasma, não posso mais feri-la.
Arfa, pois está vivo. Tinha passado meses negando sua própria vida, assumindo um papel que não era dele. Um papel ridículo, diga-se de passagem. Mas quem suspeitaria?
Atuou por três meses. Deixou sua verdadeira realidade enterrada no fundo do lado escuro da lua.
Joe e Ramona eram tão perfeitos quanto ele e .
Os Durden estão vivos. Todos. Johnny, Johanna, James, Jacqueline, Justin e Joe.
Todos estão presos no Palácio da Cerejeira. Todos ainda querem o que era deles por direito.
Cada moeda, cada centavo, encravado na alma de cada uma daquelas crianças.
Um tumor.
Um câncer.
Finalmente tomando o órgão. Finalmente podendo aparecer.
Voltando à vida.
Joe Durden nunca morreu. Não importa o que aconteça.
Joe Durden vive em todos. Como Ramona.
Ramona Durden.
E ele não está nem um pouco feliz.
O Palácio estava vazio. Não havia um único suspiro, uma única respiração, a não ser a da própria . Os móveis tinham permanecido intactos, mas todos os vestígios de vida já tinham partido. Nenhuma louça de cristal, nenhuma das amadas porcelanas de Johanna. A cristaleira, entretanto, ficara no mesmo lugar que sempre esteve. A sala de entrada ainda tinha a mesma mesa, as mesmas cadeiras e o mesmo sofá. O mesmo lustre, de gotas transparentes, e a escada que se dividia na parede, indo para o corredor direito e esquerdo do segundo andar.
Tradicional, mas sem parecer brega.
Podia ouvir sua própria voz, se quisesse. A pequena e o pequeno Tyler, correndo de Joe enquanto brincavam de pega-pega. James com um livro nas mãos, Jacqueline observando atenciosamente o trabalho de sua mãe no jardim, ajudando-a por vezes.
Tudo ainda estava ali.
Até Joe Durden estava ali.
Os passos dele eram silenciosos. Deveriam ser: por todo aquele tempo, ninguém tivera uma única pista de que Joe Durden ainda estava ali.
ajoelhou-se, diante das escadas. Seus joelhos atingiram o chão de madeira com um baque, e ela encolheu os ombros. Seus cabelos caíam pelo contorno de seu rosto, enquanto um homem ia ao seu encontro, por suas costas.
Não levava uma arma. Na verdade, tinha as mãos nos bolsos.
Não iam brigar. Não como da última vez que tinham se visto.
Iam apenas matar as saudades.
— É bonito, não? Acho que ainda tem algo de nós aqui.
olhou para trás com um movimento lento com a cabeça. Ele admirava a escada, como ela.
Então, era ele ali.
— Sabia que você não ia me deixar sozinha.
— Eu nunca a deixei, — ele respondeu. Olhou para ela assim que terminara a frase, com um pequeno sorriso.
Os cabelos, os olhos, o rosto e o sorriso. Era Joe, desde sempre.
— Sabia que você não ia embora sem se despedir, .
riu. completou:
— É bom poder te ver de novo, Joey.
Agora podemos acabar o que não fui capaz de fazer há três meses.
E se eu for presa de novo, não me arrependo.
— Digo o mesmo, minha boneca de papel.
Marla mexia inquieta no celular. Não fazia a mais plena ideia de onde pudesse estar, e não podia ajudar.
Segundo ele próprio, estava cuidando de um assunto tão sério quanto aquele, na delegacia.
Dorothy fora de novo para a incubadora no tempo que Marla tinha usado para tentar achar . Ela tinha desligado o próprio celular, tirando a bateria, impossibilitando o rastreamento por satélite.
talvez estivesse bem. Talvez fosse só um susto.
O problema era Ramona.
— O que aconteceu? Você está branca — disse , levantando da cama.
Marla colocou a mão nos bolsos do jeans, no que tinha o molho de chaves do carro.
Preciso sair daqui.
tocou o ombro de Marla, e a ruiva ergueu o rosto para observá-la.
— Preciso sair.
— Onde está ? — perguntou a jovem, com um sutil instinto maternal em sua voz.
De todas as perguntas do mundo, ela precisou fazer justamente aquela.
— Não sei.
recuou. Sua voz veio cheia de preocupação, e transbordando de revolta por tamanho descuido:
— Como assim "não sei"?
— Ela deveria ter ido para casa, mas não foi.
— Lógico que ela não foi. Como vocês esperaram que ela tivesse ido?
— A culpa não é minha, .
pegou as chaves na mão de Marla.
— Ela estava aqui há algumas horas. Você a deixou escapar, Marla, e ela estava aqui há algumas horas!
Foi em direção à porta, deixando a detetive para trás. Marla levantou-se correndo para acompanhar , que não parecia nem um pouco disposta a conversar.
— , já está resolvendo isso — ela tentou acalmá-la enquanto ambas iam pela escada de incêndio até o térreo. Não queriam sequer esperar o elevador.
— Como quando ele resolveu o outro problema, e ficou com aquela cara? — retrucou, agressiva. Descia os degraus correndo — Não confio mais no trabalho de vocês como policiais. Eu nunca devia ter saído de perto de .
No térreo, passou pela recepção e foi em direção ao estacionamento.
— ...
não ouviu. Foi decidida em direção ao carro, que estava distante no estacionamento. Estava um pouco frio naquele momento, e o único veículo longe era o de Marla.
Não havia ninguém no estacionamento além delas. O carro ficara lá, deixado, desde o começo da manhã.
Um momento.
tinha a chave em mãos, e destravou o carro de longe. Ia a passos largos, correndo.
Mas ei, por que a pressa?
Podemos ficar aqui por muito mais tempo.
Um carro vazio, deixado no meio de um estacionamento.
Uma chance perfeita.
— !
abriu a porta e sentou-se no lugar do motorista.
Nem sempre é o único alvo.
— ! — gritou Marla, correndo.
Não houve tempo.
Boom.
girou a chave na ignição e boom.
Marla foi jogada para trás, batendo as costas no asfalto, sentindo o calor intenso da explosão.
não teve tempo.
A chave foi girada e boom.
O carro foi pelos ares, e ninguém se feriu além do motorista. O corpo de ficou metade para fora do veículo, já sem porta e laranja, consumido em chamas. Seus cabelos estavam na frente de seu rosto, e Marla agradeceu por não estar conseguindo ver o estado de seu corpo.
Mais um.
Dorothy é uma filha de ninguém.
Curiosos e seguranças do hospital foram ver o que estava acontecendo. Tinham ouvido o barulho da explosão, e ficaram preocupados.
Mas não tinham feridos. Só o motorista.
Apenas o motorista.
Uma jovem mãe, com o corpo virado para o lado, as mãos caindo para fora do carro e os cabelos na frente do rosto.
Morte instantânea.
Boom.
Marla fechou forte os olhos. Vários pensamentos correram por sua mente. fizera o carro explodir? Ou Ramona? Joe Durden? Mas a pergunta que fora a primeira, a mais pertinente, e que a fazia sentir mais culpada não era nenhuma dessas.
Isso era para mim, ou para ?
estava de pé atrás de . Não se movera muito desde que entrou. Ela continuara sentada no chão, de joelhos. E ele esperou.
— Desde quando você sabia de Ramona? — ela perguntou.
deu de ombros. Deu a volta em e foi até as escadas com as mãos nos bolsos, sentando em um degrau. Assim que o fez, uma madeira podre rangeu, mas não reagiu.
— Desde quando você quebrou meu braço. A gente tinha uns quinze anos.
comprimiu os lábios. pegou no bolso uma caixa de cigarros e colocou um na boca, procurando o isqueiro, sem sucesso.
— Você tem? — perguntou, apontando para o cigarro.
sabia que sim.
Pôs a mão no bolso do jeans e pegou um isqueiro.
"It's only after we've lost everything that we're free to do anything."
Apoiou-se em seus joelhos, ficando mais perto de . Ele inclinou-se para frente, com o cigarro nos lábios. Olhava fixamente para o lugar mais profundo nos olhos de .
Lá no fundo, estava enterrado Joe Durden.
— O que você fez, Joey?
Ele tragou e voltou o corpo para trás. tinha o rosto contorcido como se quisesse chorar.
— O que aconteceu há três meses? — ela perguntou.
não podia fumar. Não gostava e não podia. Mas olhar para aquele cigarro era a coisa mais tentadora do mundo.
Estamos todos revivendo velhos vícios aqui.
— Você foi me encontrar no Tate.
— Eu fui.
— E nós brigamos.
— Por horas.
riu.
— Por meia hora.
Não. Por favor, não.
— Ramona não custou a aparecer. Passei horas falando com ela. Todo aquele tempo.
— Você e ela já tinham tudo planejado.
Não era uma pergunta. sabia.
Ele não precisava explicar nada. Ela simplesmente sabia.
— Sim. Faz meses. Desde Justin, eu queria satisfações. E quando eu tentava te encontrar, você era consumida pela raiva. E isso liberava Ramona.
— Eu não falava com você quase nunca, desde que Justin morreu.
— Não que você lembre, boneca de papel.
Ele tragou de novo.
— Naquela noite, eu e Ramona repassamos tudo. E brincamos um pouco também — sorriu ao dizer isso — Você não imagina como era para mim ter você no quarto ao lado, mas trepando com aquele jornalista, quando já tivemos algumas das melhores fodas da sua vida.
engoliu em seco.
— Eu e você? Nós nunca...
colocou a mão no peito, fazendo uma expressão de dor.
— Não fale isso. Vai ferir meu orgulho — com uma risada pequena, ele completou — Já transamos várias vezes, . Algumas um pouco depois da morte de Justin, e uma boa e longa transa no dia que eu sumi. Você mesma disse que foi uma foda de despedida.
Agora está em uma zona de perdão.
Eu o traí tanto quanto ele me traiu.
— Naquela noite, tínhamos a ideia toda. Eu sabia o que Ramona faria. Ela crescia cada vez mais em você, e o que era para ser inicialmente traços da sua personalidade, se tornou uma personalidade nova. Eu estudei isso um bocado, há algum tempo. Foi você que me fez estudar isso, . Você e Ramona.
— Então você realmente é psicólogo.
balançou a cabeça com decepção.
— Ferindo meu orgulho novamente. Não acredito vim aqui para você me ofender assim.
— Você me conhece há semanas... — a afirmativa de soou como uma reflexão.
— Te conheço há anos, . Só fiquei alguns meses fora.
— Três.
— Três — ele confirmou, erguendo o polegar, o indicador e o dedo do meio — Estudei psicologia, mas você não soube disso. Não nos falávamos quando me formei. Quando precisei sumir, comecei a exercer, porque precisava de dinheiro. Aluguei e dividi apartamento com um jornalista da cidade, que acabou sendo chamado para trabalhar na delegacia.
— não tem nada a ver com isso — fez outra conclusão que soara como questionamento.
— Inicialmente, não. Eu tinha que conseguir dividir apartamento com alguém, enquanto tinha algum dinheiro sobrando.
— Você estava cada vez mais próximo de mim.
— Eu via nos olhos dele como ele estava encantado. Via como ele gostava de você. Então, de última hora, tive a ideia de que você precisava sair de casa. E nossa única opção era o incêndio.
— Você pôs fogo na minha casa.
— Você pôs fogo na sua casa. E não custou a propor a você que fosse para nossa casa. Eu poderia te ver cada vez mais de perto.
— E ...
— era uma piranha.
mordeu o lábio.
— Ela não era isso — a frase não tinha uma única firmeza. parecia ansiosa para saber o resto, como uma criança diante da melhor história para dormir.
— Ela era. Ela era uma puta, foi fácil levá-la para minha casa. Mais um jeito de ficar próximo a você.
Joey, você sempre foi tão próximo de mim...
— Continuamos por mais tempo, mas completamente com fodas esportivas. Não éramos nada sério. Mas eu sabia que queria mesmo era o . Eu percebi que ela estava apaixonadinha por ele desde o instante que ele pisou naquela delegacia.
engoliu em seco.
— Cada um queria uma metade: quanto mais próximo de você ele ficava, menos Ramona aparecia. Ela só vinha quando você tinha raiva, quando você precisava dela. E não fazia você precisar.
Completa.
— Logicamente não dava a mínima para . Ela tinha sido uma filha da puta, e, do jeito que eu o conheço, sabia que ele não ia querer saber dela. Mas a vagabunda não gostou de não ter ganhado o prêmio dela, e da humilhação na delegacia, que eu planejei. Eu a persuadi a adulterar o resultado do exame do cadáver supostamente meu, e ela adulterou. Quando ficou puta por causa daquilo do , ameaçou contar sobre esses exames e sobre mim.
— Ela sabia que você era você?
— De início, não. Mas eu fiquei em pânico quando ela descobriu sozinha que o corpo não era "do Joe". Conversamos a respeito: eu daria meu jeito sobre a situação com , se ela mantivesse o bico calado e me fizesse esse favor com os exames.
— se deixou chantagear por algo tão pequeno?
— Não era só o caso do . Coisas que ela dizia de você, o próprio vídeo que vazou na delegacia. E eu tinha material bem pior. Não era vantagem, para mim, acabar com aquela piranha tão cedo. Eu precisei dela um pouco mais. Quando ela passou a me atrapalhar, tive que ser impulsivo.
Deus.
matou .
Eu o tirei da prisão há menos de uma semana.
Ele quem matou .
— E ?
— Um trouxa. Ele e Samantha estavam juntos desde a época do seu julgamento. Ela estava louca por ele, e acho que por isso ela queria que você fosse afastada. Então, engravidou de propósito. Mas o cara não queria...
— E você descobriu como ele precisava se livrar dela.
— Eu sabia disso pela própria Sam.
— Ele precisava de ajuda, e você o ajudou à distância — ela completou.
— também sabia de Ramona. Foi matar dois coelhos com uma cajadada só. Depois que o idiota ia amarelar por causa da Samantha, depois que ele viu o número de furos do plano dele... Ia se entregar. E eu ia junto. Precisei dar um jeito, mas não como eu acabei fazendo com . Com , fui mais... meticuloso.
— Você fez isso sozinho?
deu de ombros, tragando e erguendo as sobrancelhas.
— De início, Samantha me ajudava. Depois do se meter, tive que procurar outra parceira, além da própria Ramona. veio a calhar.
Soltou a fumaça para o alto.
— Desde quando você soube de mim? — ele perguntou.
— Desde que entrei aqui.
Ele riu.
— Você já foi melhor, .
Ela fungou, a pistola estava no coldre, mas ainda não quis tocá-la.
— Você e as pílulas. Ramona aparecia mais quando eu tomava aquele remédio. Eu tive alucinações com e . Demorei a lembrar que psicólogos não podem receitar remédios.
— Bingo — ele foi cético, tragando mais uma vez.
— Você estava em todos os lugares. No Halloween, na cena do crime de , em . Você chegou a ser preso pela morte dela. A faca foi encontrada no seu prédio.
— E você me soltou, meu anjo. Foi perfeito para tirar o meu da reta.
— Você podia estar sendo julgado pelo assassinato da .
Ele inclinou-se para frente, sussurrando:
— Mas você me protegeu disso, não foi, minha boneca de papel?
— Como teve garantias de mim e do Tyler no sequestro da Jacqueline?
— Eu não era o único Durden a saber de Ramona. Você não ia morrer naquela noite, definitivamente. Talvez Tyler fosse, mas você não. Eles queriam Ramona assim como eu quero. Ramona já conseguia tomar controle do seu corpo, se assim ela quisesse. E se Tyler tivesse morrido, aí sim você perderia para o ódio. Então, Ramona ganharia. De certo modo, esse teria sido o plano perfeito para ela. O caso é que ela preferia trabalhar comigo. Então, avacalhou os planos de Jackie e de James. A explosão no final não foi culpa nossa.
— Você foi responsável pela morte da sua irmã, Joe.
Ele ficou sério. Arfou por um momento, apagando o cigarro na madeira da escada, apertando fortemente o a butuca.
— Eu não matei minha irmã. Ela se matou. A culpa não foi minha.
— Jacqueline se matou, e você permitiu isso.
— Eu não tive nada a ver com a morte dela.
— Você podia ter evitado a morte dela.
desviou instintivamente. jogara a caixa de cigarros contra ela, fazendo alguns cigarros caírem e se espalharem pelo chão.
— Justin morreu por minha causa. Não a Jackie. Justin era uma pessoa boa, Justin estava protegendo o filho da puta do seu irmão quando ele morreu porque o esqueceram lá.
— Do seu irmão.
Dessa vez, foi quem sorriu, enquanto permaneceu sério.
— Se eu soubesse disso antes, teria matado aquele filho da mãe com minhas próprias mãos na vez que explodi uma garrafa na cabeça dele. Mas descobri pouco depois, na época do sequestro. Não me foi de todo ruim. Ele foi para um hospício e não me atrapalhou.
— Você era o enfermeiro que Tyler viu. O enfermeiro que o fez ir para o Manson. Você quis tirá-lo da lista de herdeiros, torná-lo inválido para receber a herança.
— E consegui — retrucou com um sorriso glorioso — Ele fez o testamento, afinal. Assinou, está lá a letra dele.
— A herança quase toda dos Durden está comigo. Com exceção de algumas partes.
deu de ombros.
— também tinha um pedaço dessa herança, que acabou ficando dividida para quem sobrou. Nesse caso, além de Tyler e de James... Só temos você, meu amor.
Dorothy.
Dorothy.
Dorothy.
Ele... Ele não...
Ele não sabe de Zoe.
tentou permanecer indiferente quando tinha dito aquilo. Talvez, ele estivesse mentindo. Talvez soubesse de Zoe e de Dorothy.
Talvez.
Pisando em gelo fino.
Está ficando frio de novo.
— E você sabe por que fiz Tyler fazer o testamento — completa, com um pequeno sorriso.
Ela realmente sabia. Por mais que isso não a agradasse.
Ela já sabia de tudo, há meses.
— Ramona é sua melhor parte, e, se pudéssemos, todos trocaríamos você por ela, e você sabe disso. Eu mesmo presenciei isso. Tive medo, em nossas sessões. Por mais que ela soubesse de mim, ela agia na defensiva por você.
Você sabe disso.
— Ramona é incontrolável — disse — Você não poderia prever quando ela vem, e quando não vem.
— Ela sempre vem. Vem quando precisa, e, mais ainda, quando você precisa.
preferiu não dizer nada. Comumente, torceria para que Ramona aparecesse.
Salve-me.
— Eu não quero feri-la, meu amor — continuou, inclinando o corpo para frente, acariciando a bochecha de — Você vai se sair bem, de qualquer maneira. Você tem toda a herança. Se me ajudar, não seremos só eu e você. Teremos tudo isso. Você sabe que tem saída. Finja Ramona, e me ajude.
Sou só uma menininha, não sou uma heroína.
— Deixe-a entrar, .
Apenas me colocaram aqui.
— Sou eu. Sou o seu Joe aqui. E quero que você a deixe entrar.
Ela ergueu os olhos. Suas mãos tinham as veias saltadas, agarrando em suas próprias coxas por cima dos jeans.
— Eu não sou Ramona, — ela abriu os olhos, fixando o olhar nas pupilas de seu interlocutor — Eu não sou Ramona.
Ele parou a mão no queixo de . Ergueu-o, fazendo-a levantar a cabeça.
— Eu não sou , boneca de papel. Meu nome é Joseph. O seu Joey, e você sempre soube disso.
Sempre.
Sempre.
— Sou Joe Durden, e você é Ramona e sabe disso. Você sempre foi Ramona.
Sempre.
Sempre.
Você sabe disso.
— Desde seus primeiros casos, desde quando quebrou meu braço, desde sempre. Sempre houve a Ramona em você, ela sempre esteve aí. Só precisava de chances para sair.
Deixe-a sair.
— Ramona sempre foi sua melhor parte. Ramona é você, . Não é como se ela tomasse seu lugar. Ela é você.
Eu sou Ramona.
Ou Ramona sou eu?
— Não há lado escuro da lua, realmente. Na verdade, ela é toda escura.
Meu nome é e eu sou a melhor detetive do estado.
Meu nome é .
Ramona.
Ramona.
Deixe-a entrar.
Seu nome é Ramona e você é a melhor detetive do estado.
Seu nome é Ramona e você mora dentro de .
— Você precisa de mim. Sem mim, não há aonde você chegar. Você está morto.
Ele ergueu o canto do lábio. Tirou a mão do rosto de , acariciando sua pele superficialmente.
— Você ainda não vê, meu amor? Não importa o que aconteça. Já está tudo ao meu favor.
Zoe e Dorothy.
Mantenha a calma. Não a deixe entrar.
Ele não sabe de Zoe e de Dorothy.
— Com Jackie, com , eu soube lidar. Eu não adapto pessoas aos meus planos, eu adapto meus planos às pessoas. Quando Zoe apareceu, eu fiquei preocupado. Mas ela é só uma pirralha. Soube lidar com ela rápido.
Merda.
Ela apertou forte os olhos, apertando as palmas das mãos contra as pálpebras molhadas.
Sentia o cano da pistola arranhar sua pele, no coldre. Ela a chamava.
— , eu não quero isso. Me deixe em paz, eu não quero isso.
— Você é como eu, — ele disse, saindo da escada e se ajoelhando no chão, na frente dela. Segurou o rosto da moça com certa delicadeza, forçando-a a não abaixar a cabeça.
— Não sou você, .
Joe.
Tranque a porta.
Fique dentro da cela, e perca a chave.
— Você é como eu. Ninguém acreditava em seu potencial. Você escondeu-se na sombra por tempo demais. E há alguém dentro de você que é sua melhor pessoa.
— Cale a boca — ela disse, baixo, colocando as mãos nos olhos e tentando abaixar o rosto. forçou-a a manter o rosto virado para ele, puxando seu rosto agora com brutalidade.
Olhe para mim. Olhe em meus olhos.
— Vamos lá, . Somos muito parecidos. Sua mãe não te amava, você é só uma menininha precisando de atenção e cuidado.
Deixe-me ir.
Não a deixe entrar.
— ... Por favor... — sua voz soava como um pedido de misericórdia.
A voz de permaneceu firme.
?
não estava morto.
— Mas eu sei o que me faz fraco. Você não faz ideia do que te faz fraca. Ah, não, melhor: você não pode controlar o que te faz fraca.
não poderia estar morto, pois ele nunca esteve vivo.
— Não somos parecidos, Joe.
— Bem, estamos no meio do caminho. Você é quase igual a mim.
Me acorde.
Me acorde.
Acorde.
Ele soltou o rosto de . Ela caiu sentada para trás, produzindo um baque na madeira, audível por todo terreno vazio e silencioso. Chorava, com as mãos no rosto.
— Quando eu era criança — começou, com a voz mansa novamente —, meu pai me levou para o centro. Tinha uma banda tocando no 4 de julho. Estávamos todos lá, Durden e . Meu pai estava comigo para ver a banda. Depois, fomos tomar um sorvete, só eu e ele. Ele conversou comigo sobre a responsabilidade de ser um Durden. Ele me disse como eu precisava cuidar do que era meu.
Fez uma pausa. O olhar de tornou-se vago ao vazio.
— Eu ainda vejo aquilo como um aviso. Ele sabia do que vinha. Foi meu pai. Foi ele que me ensinou que eu deveria correr mais rápido que os outros, que eu deveria ter planos para coisas que sequer aconteceram. Eu vi em seus olhos, naquele dia. Pouco antes do acidente, eu vi seu rosto me encarando. E ele era meu pai me ensinando a ser um homem. Às vezes, acho que ele ainda está me olhando. Está zelando por mim.
Mais uma pausa. Era como se ele tivesse voltado para aquele dia.
— Eu vi seu rosto depois — o olhar de estava perdido — Eu vi seu rosto quando ele morreu. Quando tivemos que reconhecer os corpos. Eu vi seu rosto arrebentado, riscado de sangue e de carne viva.
Silêncio.
Vazio.
A banda continuava a tocar.
— Ele não era meu pai. Mas eu o via depois. Eu o via todas as noites, eu ainda o vejo. Toda noite, antes de dormir, ele me assombra. Ele diz que estou morto. Talvez eu esteja.
Mais uma pausa.
— Meu pai diz que estou morto. Ele me chama para que eu vá com ele, e me pergunta o que estou fazendo aqui. Estou morto. Ele quer que eu vá com ele, e isso sempre me assombra.
— Você não está falando sério — murmurou em meio a um pigarro, passando as mãos no rosto — Você matou pessoas. Você feriu pessoas. Você não é mais um homem, .
— Eu vi homens, — ele retrucou, como se corrigisse uma criança que falara algo errado — Eu vi homens e mulheres em seu estado mais primitivo. Por isso estou aqui. Eu sinto as pessoas, eu sinto a vida como você jamais pôde ou poderá sentir.
ponderou aquilo por alguns segundos.
— não era um assassino. era um covarde. Eu vi a morte chegar, apenas deixou-a vir.
— Como assim?
— Há duas maneiras de sentir a vida, de verdade. Só dois jeitos de sentir a vida. E eu tive a oportunidade de aproveitar os dois.
aproximou o rosto de . Ela permaneceu imóvel, estática. Ele levou o rosto do ombro dela, se aproximando da orelha de , tocando seus lábios secos na pele da moça.
— A primeira é sentir a morte. Eu senti a morte quando, há meses, incendiei o cadáver do meu irmão para fingir que ele era meu. Eu vi a minha morte, eu senti que Joe Durden estava morto naquele momento. Acho que por isso assumi meu papel com tanta confiança. Eu estava morto. Mas a segunda é interpretar a morte. É assumir.
Desceu as mãos pelos ombros de , passando por seu braço, perto de seus seios, até chegar em seu quadril.
Tocou a pistola.
O coldre não arranhava mais.
— Em seus últimos momentos, pessoas expõem o que eles realmente são. Cada demônio, cada anjo. Sem máscaras, faces falsas. Sem emoções fingidas. Elas sempre colocam tudo para fora.
Ele segurou forte a pistola, e o corpo de tornou-se rígido.
— Eu vi a morte de e de . Eu assisti a lenta morte de . E nunca me senti tão vivo. Era como se eu sugasse as vidas deles e as adicionasse à minha. Era viver mais um pouco.
A pistola estava firme na mão dele.
— Matar alguém faz você se sentir vivo como nunca conseguirá se sentir sozinho. Você vê a vida de alguém nas suas mãos. Você vê o sangue correr.
A mão de soltou a arma, fazendo relaxar.
— Eu vejo seres humanos em suas formas puras e verdadeiras. Todas as coisas ruins de cada um. Todos temos faces diferentes quando sabemos que vamos morrer.
limpou a garganta. Começou a falar à medida em que afastava a mão do coldre, e a boca de sua orelha:
— Na verdade, no final, somos todos os mesmos. Somos todos crianças, pedindo por perdão, e implorando por nossas mães. Somos todos os mesmos seres implorando por piedade e pela salvação.
Apoiou-se em um pé e conseguiu ficar de pé rapidamente, armando-se com agilidade. Segurando a pistola com nervosismo, com as duas mãos, não reagiu.
— Em algum ponto, sim, acho que somos iguais, Joe.
levantou as mãos em rendição e desânimo.
— Você deve estar brincando se acha que chegamos até aqui para você me dar um tiro na cabeça e resolver tudo. Onde está seu senso de suspense e diversão?
— Cale a boca, Joe — ela tremia — Você se escondeu por meses, debaixo do meu nariz. Eu chorei na sua morte. Fui julgada e culpada por ela. Eu sentia sua falta. E você fodeu a minha vida desde o começo.
Quem segura a arma retém o poder.
"Você vê a vida de alguém nas suas mãos. Você vê o sangue correr."
— E eu mal posso esperar para enfiar uma bala na sua cabeça.
estava claramente nervoso. Mas respirou fundo.
— Você já me matou antes, não foi? Você já me matou, . Você sabe como é.
— Eu te mataria de novo. Você se matou, Joe.
— E eu voltei por você.
A arma foi destravada.
— Você nunca vai me deixar ir, . Minha boneca de papel.
As mãos de tremiam.
— Acordada. E sem medo.
E nada.
Nada.
Nada.
Nada.
não atirou. não se moveu. Ficaram estáticos.
Nada aconteceu.
— Eu sabia que você não ia conseguir.
ficou de pé. A arma ainda estava apontada para ele, mas, dessa vez, sem medo.
O lustre se moveu. Os cristais bateram levemente uns com os outros, em um tom fantasmagórico.
— Porque você tem razão. Você não é Ramona.
não conseguia se mover. andava para trás, de volta para a escada.
— Você ainda não é Ramona.
O lustre caiu imediatamente do teto, no instante em que puxou um pedaço de pano preso na pilastra da escada. tentou desviar, mas não conseguira ser rápida o suficiente. Foi atingida pelos cristais, fazendo seu corpo cair sobre seus joelhos. As pequenas gotas no lustre a cortaram, e o ferro bateu fortemente contra seu corpo.
No chão, ela ainda não conseguia se mover. Sua cabeça doía, e, por experiência própria, sabia que iria desmaiar.
— Não se preocupe, . Vou prosseguir.
Então, em um rosto inconscientemente tranquilo e sereno, ela fechou os olhos e viu Johnny Durden a chamando.
A banda naquele 4 de julho nunca parou. Continuou tocando, porque era assim até hoje.
A banda ao fundo não cessou. Ficava cada vez mais baixa, quase inaudível, mas nunca parava.
Eternamente, prosseguindo.
I'm just a man, I'm not a hero. Just a boy who had to sing this song.
Capítulo 37 — Famous last words
These bright lights are always blinded to me...
Vou prosseguir.
Quando abriu os olhos, imaginava que fosse olhar um teto escuro, de madeira, de algum sótão de algum lugar abandonado em Longview. Talvez, esperasse não conseguir ver nada além de um quarto pouco iluminado e sons estranhos.
Mas não foi nada disso que estava ali. Quando abriu os olhos, não viu nada disso.
Ela viu um quarto branco.
Estava deitada em uma cama macia, de lençóis azuis, quente. À sua volta, tinha prateleiras brancas com lembrancinhas e cartões de "fique boa logo". No sofá ao lado da cama, tinha um punhado de jornais. A janela iluminava o quarto, fazendo as paredes azuis claras refletirem um tom otimista e tranquilo ao quarto.
Déjà-vu.
Vou prosseguir.
A televisão estava ligada. Ela apertou os olhos e se ajeitou na cama, tentando enxergar a data no canto da imagem do telejornal.
Era dia 29 de outubro.
Mas que porra...
Ouviu um som vindo da porta, ao seu lado esquerdo. Virou a cabeça bruscamente para essa direção. Havia um homem ali, que usava um jaleco branco e estava sentado numa poltrona.
.
.
.
— O que estou fazendo aqui? Onde estamos? — perguntou imediatamente, encolhendo-se para se afastar dele.
ergueu as mãos. Não parecia mais Joe Durden.
Ele fez com as mãos sinais para que se acalmasse. Seus olhos brilhavam e ele tinha os cantos dos lábios erguidos, com um pequeno sorriso.
Não era mais Joe. De repente, voltara a ser . O psicólogo, o melhor amigo de .
Só .
Vou prosseguir.
— Acalme-se, . Você passou o dia inteiro dormindo.
— Não me chame de , Joe.
comprimiu os lábios em decepção.
— Novamente me chamando de Joe, ?
Ela franziu o cenho.
— O seu nome é Joe. Seu nome é Joseph William Durden e você estava morto. Eu te matei — fez uma pausa, girando os olhos e corrigindo — Supostamente.
fez que não com a cabeça, com a expressão de decepção cada vez maior.
— Meu nome é . Paulson, e eu sou seu psiquiatra.
— Você é Joe Durden! — falou mais alto, em um tom agressivo, ignorando completamente o que ele tinha dito.
não reagiu. Ele apenas tocou a cama de , nos lençóis.
— Meu nome é Paulson. E Joe Durden está morto há três meses.
— Não. Ele não está morto — fez menção de se levantar, mas a interrompeu indo para o lado da cama — Você é Joe Durden, você queimou o corpo do seu irmão para fingir que era o seu. Eu sou inocente. Eu não matei ninguém!
segurou o braço de . Parecia realmente entristecido pela reação da detetive. A fez permanecer sentada com certa brutalidade ao segurá-la, mas tentou não machucá-la.
— , fique aqui. Precisamos conversar.
— Não. Já conversamos no Palácio da Cerejeira. Você é Joe Durden e está querendo me confundir.
fez que não.
— Não sei do que está falando. Não sei que lugar é "Palácio da Cerejeira", não sou Joe Durden e você está no Instituto Manson.
— E meu trabalho? E meus casos? Eu assumi trabalhos quando saí!
— , você nunca saiu do Manson.
Prossiga.
estava encolhida na cama, abraçando os próprios joelhos. Usava um pijama azul de hospital, e olhava para com o canto do olho.
O médico estava sentado na poltrona, olhando-a com pesar. Teria trabalho para explicar tudo a ela.
— Não estamos em outubro. Já é dezembro. Quase Natal — ela murmurou.
— Não, . Estamos em outubro. Amanhã é Halloween.
— Eu estava solta no Halloween. Eu fui à festa da delegacia. Você assassinou no Halloween.
Ele fez que não.
— Você sempre diz isso. Sempre fala que eu o matei. Que eu o matei e seu noivo.
— Você os matou!
— Não. Eu não os matei. Você sempre diz isso como uma defesa sua.
apoiou os cotovelos nos próprios joelhos. Não podia usufruir de nada além da própria paciência, pois seria uma longa conversa.
— Você coloca a culpa em mim por tudo que diz ter acontecido. Porque sou seu principal médico.
— Eu não preciso de médico.
— Você está no Manson pelo assassinato de Joe Durden, . Mas é esquizofrênica. Por isso precisa de mim.
mordeu o lábio.
— Eu não sou uma doente.
— Não é. Mas está. Por isso veio para o Manson. Já sabiam da sua condição. Quando Joe Durden foi assassinado, você sempre foi vista como principal suspeita. Então, para que você não fosse presa... Te trouxeram para cá. Para você se tratar.
não soube responder. Olhou os jornais no sofá.
Todos tinham fotos de Joe Durden. Fotos de .
— Você compra todos os dias jornais com o dia do seu julgamento. Todo dia que você fica aqui é o mesmo dia se repetindo.
— Eu fui embora no dia 29 de outubro. e vieram me buscar.
franziu o cenho.
— Quem?
— e .
Ele ainda não compreendia.
— era seu parceiro no trabalho. Ele julgou seu caso.
— Ele veio me soltar!
— , você sempre diz isso. Gostaria que ele tivesse vindo, para se perdoar. Mas ele nunca veio.
fez que não.
— E , então? Se eu estou inventando tudo porque quero me livrar da culpa, se tudo que aconteceu não passou de desejos da minha cabeça, onde está ?
pegou um jornal na pilha, quase que de má vontade, e estendeu-o para .
— Ele está aqui. Você fala dele todos os dias. Ele é um jornalista.
Logo embaixo da matéria de Joe e , vinha o nome do jornalista que a escreveu.
.
Não pode ser verdade. Ele quer me confundir.
— Você não conhece esse jornalista. Mas criou um tipo estranho de obsessão por ele. Porque ele acompanhou todo seu caso.
— Ele é seu colega de quarto.
— Você diz que ele é meu colega de quarto — corrigiu — Mas sou casado e moro com minha esposa.
— Ah, deixe-me adivinhar — encheu a própria voz com sarcasmo e ironia — E o nome de sua esposa é Ramona? Não, espera! Marla, acertei?
murchava cada vez mais. Seu trabalho de três meses não tinha levado a lugar algum.
ainda era uma mulher doente.
— Minha esposa se chama Helena. Não conheço esse homem, esse jornalista. Mas você sempre fala dele. Durante uma época, dizia que era apaixonada por ele.
engoliu em seco.
— Eu sou apaixonada por ele. Eu o amo. Você sabe disso, . Sabe que eu o amo e você quis nos separar porque, quando estou com ele, ameaço seus planos, porque ele inibe Ramona!
— Ele não a conhece, .
Foi o máximo que respondeu.
E não precisava dizer mais nada.
Ela comprimiu os lábios.
— E Marla? Julie?
— Do jeito que sempre estiveram. Todos colocaram você aqui porque você é esquizofrênica. O Manson é uma clínica para pessoas que tem saúde delicada. E você diz que te colocaram aqui porque não podia ser presa, mas não tinham lugar melhor para te colocar...
— Mas foi exatamente isso.
— Não — falou, ficando de pé e indo até a cama — , você tem um grave transtorno de personalidade. Diz que tem uma melhor amiga. A ouve e, às vezes, assume a personalidade dela.
— Eu não sou doente.
— Você a vê e ninguém mais a vê? Você vê pessoas que ninguém é capaz de enxergar?
O tom de fora impaciente. não respondeu.
— Você é esquizofrênica. Sofreu um trauma com sua família quando era nova.
— Johnny e Johanna Durden morreram em um acidente de avião — a voz de já tinha um pouco de dúvida.
— De fato. Justin faleceu há algum tempo, seu irmão fora julgado pelo caso, mas ficou livre. E Joe foi assassinado há três meses, mas ainda não sabemos seu assassino. Potencialmente, foi você.
— Eu não matei Joe Durden.
— Talvez, você não. Mas sua personalidade.
— Ramona não o matou. Ramona o ama.
engoliu em seco.
— , não vou falar disso por muito tempo. Já conversamos sobre isso. Você não tem uma melhor amiga. Sua amiga é , e ela nunca veio até o Manson para te ver. Você toma remédios para não ter mais os sintomas, mas ainda tem algumas alucinações. Você conta histórias todos os dias para mim, diz que eu fiz isso ou aquilo... E sobre Ramona.
— Ramona é minha personalidade.
— Ramona é você, .
— Eu sei que é. Ela é uma personagem que criei. Meu melhor lado. Como eu gostaria de ser. O lado escuro da lua.
— ... Ela realmente é você.
torceu o rosto em indignação.
— Não. Você não vai me convencer. Não me venha com psicologia reversa! Eu vi "Ilha do Medo"!
— , esse é o seu nome. Seu nome é Ramona . Ramona é você.
— Meu nome do meio é "Anne"!
segurou com força o braço de , virando a pulseira roxa em seu pulso.
Ramona .
— Você a nomeou com seu próprio nome.
não compreendia.
Não podia ser mentira.
Era tudo real! Era tudo verdade!
— e estão vivos?
comprimiu os lábios.
— Não, . Você sabe que não. Eles sofreram um acidente de carro.
Exatamente como...
— . está bem?
colocou o indicador e o polegar na ponte do nariz, fechando os olhos.
— é a enfermeira que entrega seus remédios. Você diz que ela é sua amiga e que trabalhava na delegacia. Que ela era a moça da química, das reações.
— E meu irmão? E Tyler?
— Não sabemos. Tentamos contatá-lo, mas não o encontramos.
Exatamente como ele estava pouco antes de eu voltar.
— E Samantha Fox?
— A advogada? Está bem, como sempre esteve. Você diz que ela está morta. Diz que sabe o assassino dela, e como ele a matou.
— E... E Jacqueline e James Durden?
deu de ombros.
— Bem. Como sempre estiveram.
negava com a cabeça.
— Não. Não é possível.
apontava para a televisão.
— Hoje é dia 29. Você, já há algum tempo, diz que seu dia é diferente. Diz o que fez, que o oficial e um jornalista vieram buscá-la. Criou uma história. Mas ontem você extrapolou com isso...
O Palácio da Cerejeira.
Não pode ser mentira. Simplesmente não pode.
Tudo isso é real.
Eu ainda sou a melhor detetive desse lugar.
— Ontem você disse a mim que estávamos em um tal de Palácio. Disse que discutimos e que sou Joe Durden. Diz que eu sou seu psicólogo e não sou, ao mesmo tempo — o tom de era remetente à confusão.
— Onde estive ontem? — perguntou , contrariada.
— Você esteve aqui. No seu quarto. Estudando cada linha do caso Durden, cada margem de cada último caso da cidade. Você leu sobre um cara que se jogou de uma sacada, sobre um que se matou enforcado e se convenceu de que seus amigos morreram assim.
Não é mentira.
Isso não pode ser mentira.
Meu nome é . Tenho transtorno de personalidade e sou a melhor detetive desse país, e não sou louca.
Não sou louca.
— Não há lado escuro da lua, realmente, . Na verdade, ela é toda escura.
O gelo se quebra.
— Ontem você ultrapassou os limites, — disse , com a voz mansa novamente — Você disse que eu queria matá-la. Tentou me machucar, e quase quebrou a luminária do seu quarto. Quando a encontramos, fizemos você desmaiar. Você caiu no sono. Mas ficava repetindo...
— "Vou prosseguir" — ela repetiu, olhando para baixo, em uma reflexão.
— Exatamente. Falei com outros psiquiatras. Todos concordam que você deve ir para a ala afastada no Manson. Seu caso é absurdamente delicado, não apenas porque você é uma personalidade nacional, mas como seu caso de transtorno é especial. Você criou uma história, uma pessoa, mudou personagens.
— O que você quer fazer comigo?
passou as mãos pelos cabelos, bufando. Pior parte de ser médico.
— Queremos transferi-la. Sem alarde. Para a Ala Fria.
— Ala Fria?
— É uma outra parte da instituição. Lá, você terá mais segurança. Mais tratamento. E vamos cuidar melhor de você. Você nunca mais vai inventar essas histórias, vamos cuidar bem de você, . Mas preciso saber se podemos fazer isso.
Ela engoliu em seco.
— — ele tocou seu ombro, fazendo uma pausa —, podemos prosseguir?
Ela mordeu o lábio.
Tudo se desfez em uma fumaça turva, de repente. Todas as certezas, as provas, as histórias, as versões.
Tudo se acabou. Porque nada nunca começou.
Era tudo um sonho de outro alguém.
Uma história que outra pessoa contou.
Era outra mente, outra personagem.
olhou para . Assentiu com a cabeça, tocando a mão dele e torcendo seus dedos nos dele.
Olhou bem para seus olhos.
— Se assim for melhor. Deixe só que eu pegue minhas coisas. Estarei pronta em menos de cinco minutos.
Olá, Manson. A Serpente Vigilante está saindo do jogo.
I see you lying next to me, with words I thought I'd never speak. Awake, and unafraid. Asleep or dead.
Vou prosseguir.
Quando abriu os olhos, imaginava que fosse olhar um teto escuro, de madeira, de algum sótão de algum lugar abandonado em Longview. Talvez, esperasse não conseguir ver nada além de um quarto pouco iluminado e sons estranhos.
Mas não foi nada disso que estava ali. Quando abriu os olhos, não viu nada disso.
Ela viu um quarto branco.
Estava deitada em uma cama macia, de lençóis azuis, quente. À sua volta, tinha prateleiras brancas com lembrancinhas e cartões de "fique boa logo". No sofá ao lado da cama, tinha um punhado de jornais. A janela iluminava o quarto, fazendo as paredes azuis claras refletirem um tom otimista e tranquilo ao quarto.
Déjà-vu.
Vou prosseguir.
A televisão estava ligada. Ela apertou os olhos e se ajeitou na cama, tentando enxergar a data no canto da imagem do telejornal.
Era dia 29 de outubro.
Mas que porra...
Ouviu um som vindo da porta, ao seu lado esquerdo. Virou a cabeça bruscamente para essa direção. Havia um homem ali, que usava um jaleco branco e estava sentado numa poltrona.
.
.
.
— O que estou fazendo aqui? Onde estamos? — perguntou imediatamente, encolhendo-se para se afastar dele.
ergueu as mãos. Não parecia mais Joe Durden.
Ele fez com as mãos sinais para que se acalmasse. Seus olhos brilhavam e ele tinha os cantos dos lábios erguidos, com um pequeno sorriso.
Não era mais Joe. De repente, voltara a ser . O psicólogo, o melhor amigo de .
Só .
Vou prosseguir.
— Acalme-se, . Você passou o dia inteiro dormindo.
— Não me chame de , Joe.
comprimiu os lábios em decepção.
— Novamente me chamando de Joe, ?
Ela franziu o cenho.
— O seu nome é Joe. Seu nome é Joseph William Durden e você estava morto. Eu te matei — fez uma pausa, girando os olhos e corrigindo — Supostamente.
fez que não com a cabeça, com a expressão de decepção cada vez maior.
— Meu nome é . Paulson, e eu sou seu psiquiatra.
— Você é Joe Durden! — falou mais alto, em um tom agressivo, ignorando completamente o que ele tinha dito.
não reagiu. Ele apenas tocou a cama de , nos lençóis.
— Meu nome é Paulson. E Joe Durden está morto há três meses.
— Não. Ele não está morto — fez menção de se levantar, mas a interrompeu indo para o lado da cama — Você é Joe Durden, você queimou o corpo do seu irmão para fingir que era o seu. Eu sou inocente. Eu não matei ninguém!
segurou o braço de . Parecia realmente entristecido pela reação da detetive. A fez permanecer sentada com certa brutalidade ao segurá-la, mas tentou não machucá-la.
— , fique aqui. Precisamos conversar.
— Não. Já conversamos no Palácio da Cerejeira. Você é Joe Durden e está querendo me confundir.
fez que não.
— Não sei do que está falando. Não sei que lugar é "Palácio da Cerejeira", não sou Joe Durden e você está no Instituto Manson.
— E meu trabalho? E meus casos? Eu assumi trabalhos quando saí!
— , você nunca saiu do Manson.
Prossiga.
estava encolhida na cama, abraçando os próprios joelhos. Usava um pijama azul de hospital, e olhava para com o canto do olho.
O médico estava sentado na poltrona, olhando-a com pesar. Teria trabalho para explicar tudo a ela.
— Não estamos em outubro. Já é dezembro. Quase Natal — ela murmurou.
— Não, . Estamos em outubro. Amanhã é Halloween.
— Eu estava solta no Halloween. Eu fui à festa da delegacia. Você assassinou no Halloween.
Ele fez que não.
— Você sempre diz isso. Sempre fala que eu o matei. Que eu o matei e seu noivo.
— Você os matou!
— Não. Eu não os matei. Você sempre diz isso como uma defesa sua.
apoiou os cotovelos nos próprios joelhos. Não podia usufruir de nada além da própria paciência, pois seria uma longa conversa.
— Você coloca a culpa em mim por tudo que diz ter acontecido. Porque sou seu principal médico.
— Eu não preciso de médico.
— Você está no Manson pelo assassinato de Joe Durden, . Mas é esquizofrênica. Por isso precisa de mim.
mordeu o lábio.
— Eu não sou uma doente.
— Não é. Mas está. Por isso veio para o Manson. Já sabiam da sua condição. Quando Joe Durden foi assassinado, você sempre foi vista como principal suspeita. Então, para que você não fosse presa... Te trouxeram para cá. Para você se tratar.
não soube responder. Olhou os jornais no sofá.
Todos tinham fotos de Joe Durden. Fotos de .
— Você compra todos os dias jornais com o dia do seu julgamento. Todo dia que você fica aqui é o mesmo dia se repetindo.
— Eu fui embora no dia 29 de outubro. e vieram me buscar.
franziu o cenho.
— Quem?
— e .
Ele ainda não compreendia.
— era seu parceiro no trabalho. Ele julgou seu caso.
— Ele veio me soltar!
— , você sempre diz isso. Gostaria que ele tivesse vindo, para se perdoar. Mas ele nunca veio.
fez que não.
— E , então? Se eu estou inventando tudo porque quero me livrar da culpa, se tudo que aconteceu não passou de desejos da minha cabeça, onde está ?
pegou um jornal na pilha, quase que de má vontade, e estendeu-o para .
— Ele está aqui. Você fala dele todos os dias. Ele é um jornalista.
Logo embaixo da matéria de Joe e , vinha o nome do jornalista que a escreveu.
.
Não pode ser verdade. Ele quer me confundir.
— Você não conhece esse jornalista. Mas criou um tipo estranho de obsessão por ele. Porque ele acompanhou todo seu caso.
— Ele é seu colega de quarto.
— Você diz que ele é meu colega de quarto — corrigiu — Mas sou casado e moro com minha esposa.
— Ah, deixe-me adivinhar — encheu a própria voz com sarcasmo e ironia — E o nome de sua esposa é Ramona? Não, espera! Marla, acertei?
murchava cada vez mais. Seu trabalho de três meses não tinha levado a lugar algum.
ainda era uma mulher doente.
— Minha esposa se chama Helena. Não conheço esse homem, esse jornalista. Mas você sempre fala dele. Durante uma época, dizia que era apaixonada por ele.
engoliu em seco.
— Eu sou apaixonada por ele. Eu o amo. Você sabe disso, . Sabe que eu o amo e você quis nos separar porque, quando estou com ele, ameaço seus planos, porque ele inibe Ramona!
— Ele não a conhece, .
Foi o máximo que respondeu.
E não precisava dizer mais nada.
Ela comprimiu os lábios.
— E Marla? Julie?
— Do jeito que sempre estiveram. Todos colocaram você aqui porque você é esquizofrênica. O Manson é uma clínica para pessoas que tem saúde delicada. E você diz que te colocaram aqui porque não podia ser presa, mas não tinham lugar melhor para te colocar...
— Mas foi exatamente isso.
— Não — falou, ficando de pé e indo até a cama — , você tem um grave transtorno de personalidade. Diz que tem uma melhor amiga. A ouve e, às vezes, assume a personalidade dela.
— Eu não sou doente.
— Você a vê e ninguém mais a vê? Você vê pessoas que ninguém é capaz de enxergar?
O tom de fora impaciente. não respondeu.
— Você é esquizofrênica. Sofreu um trauma com sua família quando era nova.
— Johnny e Johanna Durden morreram em um acidente de avião — a voz de já tinha um pouco de dúvida.
— De fato. Justin faleceu há algum tempo, seu irmão fora julgado pelo caso, mas ficou livre. E Joe foi assassinado há três meses, mas ainda não sabemos seu assassino. Potencialmente, foi você.
— Eu não matei Joe Durden.
— Talvez, você não. Mas sua personalidade.
— Ramona não o matou. Ramona o ama.
engoliu em seco.
— , não vou falar disso por muito tempo. Já conversamos sobre isso. Você não tem uma melhor amiga. Sua amiga é , e ela nunca veio até o Manson para te ver. Você toma remédios para não ter mais os sintomas, mas ainda tem algumas alucinações. Você conta histórias todos os dias para mim, diz que eu fiz isso ou aquilo... E sobre Ramona.
— Ramona é minha personalidade.
— Ramona é você, .
— Eu sei que é. Ela é uma personagem que criei. Meu melhor lado. Como eu gostaria de ser. O lado escuro da lua.
— ... Ela realmente é você.
torceu o rosto em indignação.
— Não. Você não vai me convencer. Não me venha com psicologia reversa! Eu vi "Ilha do Medo"!
— , esse é o seu nome. Seu nome é Ramona . Ramona é você.
— Meu nome do meio é "Anne"!
segurou com força o braço de , virando a pulseira roxa em seu pulso.
Ramona .
— Você a nomeou com seu próprio nome.
não compreendia.
Não podia ser mentira.
Era tudo real! Era tudo verdade!
— e estão vivos?
comprimiu os lábios.
— Não, . Você sabe que não. Eles sofreram um acidente de carro.
Exatamente como...
— . está bem?
colocou o indicador e o polegar na ponte do nariz, fechando os olhos.
— é a enfermeira que entrega seus remédios. Você diz que ela é sua amiga e que trabalhava na delegacia. Que ela era a moça da química, das reações.
— E meu irmão? E Tyler?
— Não sabemos. Tentamos contatá-lo, mas não o encontramos.
Exatamente como ele estava pouco antes de eu voltar.
— E Samantha Fox?
— A advogada? Está bem, como sempre esteve. Você diz que ela está morta. Diz que sabe o assassino dela, e como ele a matou.
— E... E Jacqueline e James Durden?
deu de ombros.
— Bem. Como sempre estiveram.
negava com a cabeça.
— Não. Não é possível.
apontava para a televisão.
— Hoje é dia 29. Você, já há algum tempo, diz que seu dia é diferente. Diz o que fez, que o oficial e um jornalista vieram buscá-la. Criou uma história. Mas ontem você extrapolou com isso...
O Palácio da Cerejeira.
Não pode ser mentira. Simplesmente não pode.
Tudo isso é real.
Eu ainda sou a melhor detetive desse lugar.
— Ontem você disse a mim que estávamos em um tal de Palácio. Disse que discutimos e que sou Joe Durden. Diz que eu sou seu psicólogo e não sou, ao mesmo tempo — o tom de era remetente à confusão.
— Onde estive ontem? — perguntou , contrariada.
— Você esteve aqui. No seu quarto. Estudando cada linha do caso Durden, cada margem de cada último caso da cidade. Você leu sobre um cara que se jogou de uma sacada, sobre um que se matou enforcado e se convenceu de que seus amigos morreram assim.
Não é mentira.
Isso não pode ser mentira.
Meu nome é . Tenho transtorno de personalidade e sou a melhor detetive desse país, e não sou louca.
Não sou louca.
— Não há lado escuro da lua, realmente, . Na verdade, ela é toda escura.
O gelo se quebra.
— Ontem você ultrapassou os limites, — disse , com a voz mansa novamente — Você disse que eu queria matá-la. Tentou me machucar, e quase quebrou a luminária do seu quarto. Quando a encontramos, fizemos você desmaiar. Você caiu no sono. Mas ficava repetindo...
— "Vou prosseguir" — ela repetiu, olhando para baixo, em uma reflexão.
— Exatamente. Falei com outros psiquiatras. Todos concordam que você deve ir para a ala afastada no Manson. Seu caso é absurdamente delicado, não apenas porque você é uma personalidade nacional, mas como seu caso de transtorno é especial. Você criou uma história, uma pessoa, mudou personagens.
— O que você quer fazer comigo?
passou as mãos pelos cabelos, bufando. Pior parte de ser médico.
— Queremos transferi-la. Sem alarde. Para a Ala Fria.
— Ala Fria?
— É uma outra parte da instituição. Lá, você terá mais segurança. Mais tratamento. E vamos cuidar melhor de você. Você nunca mais vai inventar essas histórias, vamos cuidar bem de você, . Mas preciso saber se podemos fazer isso.
Ela engoliu em seco.
— — ele tocou seu ombro, fazendo uma pausa —, podemos prosseguir?
Ela mordeu o lábio.
Tudo se desfez em uma fumaça turva, de repente. Todas as certezas, as provas, as histórias, as versões.
Tudo se acabou. Porque nada nunca começou.
Era tudo um sonho de outro alguém.
Uma história que outra pessoa contou.
Era outra mente, outra personagem.
olhou para . Assentiu com a cabeça, tocando a mão dele e torcendo seus dedos nos dele.
Olhou bem para seus olhos.
— Se assim for melhor. Deixe só que eu pegue minhas coisas. Estarei pronta em menos de cinco minutos.
Olá, Manson. A Serpente Vigilante está saindo do jogo.
I see you lying next to me, with words I thought I'd never speak. Awake, and unafraid. Asleep or dead.