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Homecoming XI — Stark’s Gala Delirium:

— Você tem um rosto muito bonito.
Esboço um sorriso envergonhado para a maquiadora, ainda incerta de como navegar pelos elogios que pareceram se acumular esta noite. O primeiro veio da cabeleireira para a qual Pepper me arrastou junto plenas oito da manhã de uma quinta-feira (resultando em uma falta na escola) e ela passou boa parte da manhã cuidando de nós duas com as portas do salão de luxo fechadas. Então outra mulher arrancou minhas cutículas e lixou minhas unhas até adquirirem uma forma bonita. Esmaltes e puxões de cabelos depois, teve algo que veio em uma caixa de veludo sendo preso em meu cabelo, este que não posso tocar — segundo uma Pepper com máscara de argila no rosto — até o final da noite.
— Obrigada — sussurro com a boca seca pelo pó que voa no ar. — A senhora...
— Gatinha, não se preocupa, tá? — Ela riu, passando um pincel macio por meu rosto. — Sem batom vermelho, olho escuro e pele pesada igual sua madrinha pediu. — Concordo com tanto cuidado quanto teria se houvesse uma adaga em meu pescoço. — Quem seria doido a fazer isso com esse rostinho? Agora vamos só escolher um batom e você vai estar mais linda ainda, ok? Que cor prefere? Sua madrinha selecionou estes dois para você. — A moça cujo nome eu não sei aponta para duas substâncias pastosas em uma pequena placa de metal. Uma é mais rosada e a outra mais parecida como meu tom de pele. — Essa aqui é ótima, meu amor. É da Bobbi Brown. — Ela aponta para a rosada. Assinto, confiando em quem essa Bobbi seja. — Ótima escolha!
O termo empregado permanece comigo enquanto ela termina de passar o batom. O combinado era que Pepper seria minha madrinha e eu seria sua afilhada que não via há dez anos, o tempo em que estava namorando Tony. Potts segurou minha mão ao arrancarem cada pelo de meu rosto e pernas com cera quente e nós pedimos almoço ainda no salão, comendo enquanto faziam nossas unhas dos pés. Quando a maquiadora está satisfeita com o serviço, guarda seus materiais em uma maleta enorme e me entrega refis do pó e do batom em um saquinho, garantindo que irei precisar deles. Ela se vai após uma despedida e lamentar mais uma vez que não poderia fotografar sua obra de arte por pedido de Pepper.
Pego meu celular sobre a cama e digito uma mensagem para Peter.

Peter Parker
online

Como está o serviço comunitário?

Legal. Estava falando com um garotinho.

Já servimos jantar para eles e agora vamos assistir um filme.

Se o MIT recusar um gênio que abdica o sábado para ficar com órfãos... Nem sei.

Queria que você estivesse aqui. Ia ser mais divertido.



Um toque em minha porta me faz guardar o celular.
Após permitir a entrada de quem fosse, um sorriso enorme surge em minha face quando Tony escancara a porta do dormitório para que eu o veja pronto para sua magnifica festa. O terno azul escuro combina com o resto das peças, menos o proposital tênis branco que chama mais atenção. Seu cabelo está bem penteado, porém sem gel algum e ele usa os mesmos óculos de HUD de sempre. Ainda sentada em minha cama, bato palmas quando o herói dá uma voltinha balançando os quadris, tocando o terno e balançando os pulsos como atores costumam fazer em tapetes vermelhos. Stark me dá um sorrisão.
— Eu sei: “não parece a pirralha que estava afundando em um jeans enorme no início do ano”. — Encolho os ombros, ainda nem tendo me visto no espelho. Não vejo Tony desde a noite anterior, então ele também deve estar surpreso com minha aparência. — Você está ótimo, Tones.
— E você ainda não está pronta! — O herói aponta para o vestido no cabide.
É a minha vez de olhar para a roupa que foi escolhida para mim, essa pendurada na porta do closet. É um vestido delicado, simples e elegante, alcançando metade de minha panturrilha. Ainda que seja com um corte e design moderno; com mangas assimétricas e um decote modesto, é uma peça bonita e formal, a correta para ser usada em uma ocasião como esta. Embaixo do vestido, saltos brancos descansam dentro da caixa pálida do Jimmy Choo. A preocupação que Pepper teve em escolher algo com que eu me sentisse confortável é gentil, mas ainda tenho minhas dúvidas quanto a participar da festa. Posso sentir conforme o Complexo se enche, sons de carros atravessando toda a propriedade até onde estamos. A celebração será no prédio onde ficam os laboratórios dos ex-associados, há alguns minutos de distância a pé.
— Pensei que tinha gostado do vestido, . — Tony encosta a porta, apoiando-se perto dela para olhar um pouco melhor para o que devo usar. Sua preocupação com meu conforto em usar a roupa é evidente. — Por mais que a Pepper vá gritar comigo, se quiser usar um dos outros vestidos que tem, ou até outra roupa, acho que podemos arranjar.
— Não, não é isso! Eu amei o vestido, Tony. É lindo e, de novo, obrigada por o comprar! — Estou quase esfregando minha bochecha quando lembro das camadas de maquiagem que não posso borrar. — Mas, na verdade, são os saltos que estão me preocupando. Nunca andei em um desses, acredita? — Aperto a boca e mordo a língua, imaginando o quão tolo meu problema soa em cima da hora e como devia ter os comunicado de antemão. — Imagina só cair no meio da festa? Acho que fingiria desmaio para diminuir a vergonha.
Ele dá um sorriso conhecedor e aperta os olhos.
— Então você está preocupada com os sapatos e não com as pessoas que vão estar lá? — A pergunta é perigosa e eu abaixo o rosto, ciente que um breve olhar pode me entregar. Tony se aproxima e puxa a cadeira da escrivaninha para sentar-se, ajustando o terno bem alinhado enquanto o faz. — Sei que é intimidante, mas lembra o que a psicóloga falou? , você precisa dar um passo de cada vez para a recuperação. — Assinto envergonhada por ele ter notado minha apreensão. A ansiedade tem se tornado pior nestes últimos dias e não parece que a conversa com Peter ontem surtiu muito efeito, mesmo que só de pensar nela meu peito se aqueça. — Se não quiser ir, pode ficar. É como eu te disse, monstrinha: ainda vai ter muitas festas pela frente.
— Eu só... — Respiro fundo, pois ele é o meu melhor e mais seguro confidente em todo o mundo. É Tony quem passou pelos mesmo problemas que eu e duvido que alguém pudesse me entender melhor. — Tony, a gente pode conversar amanhã? — Questiono e o herói olha em meus olhos por um instante antes de concordar e apertar minha mão, certo de que não há coisa alguma nela que possa lhe ferir. Como se essas mesmas mãos não contivessem mais poder que uma bomba atômica e houvessem sido edificadas pela HYDRA para provocar o caos. Ele as toca com zelo; há muito não se importando com o poder que contêm. — É uma coisa bem séria e eu queria contar para você.
— Quando chegar da escola, eu vou te esperar no laboratório — Stark promete seguro de nossos planos e eu concordo com a cabeça. — E obrigado, , por dividir o que for que está perturbando essa cabecinha. — Um sorriso me escapa quando cutuca minha testa e finge assoprar o pó do dedo. — É um saco, eu sei, mas é bom falar. Esse negócio de terapia vale cada centavo, mesmo que não goste. Sei que eu não gosto, mas é necessário esse esforço. — Concordo de novo e ele se levanta. — Finge que eu te dei um beijo na testa, ok? Certeza de que o seu cabelo está com cheiro de laquê — provoca com um tapinha em meu braço. — Fica longe de fogo hoje à noite. De cabeça quente já me basta a Pepper.
Assim que Tony me deixa sozinha para trocar de roupa ou não, eu seguro meu celular contra o peito, pois quero ligar para Peter e lhe dizer que não me sinto pronta para ir a uma festa e pedir que nunca mais me deixe concordar com algo assim, mas não posso. Ele deve estar assistindo filmes com as criancinhas do serviço comunitário e eu já deveria estar pronta para ir. Também não quero que pareça que estou apenas lhe mandando mensagens desnecessárias com o intuito de falar com ele. Deixo o aparelho na cama e pego o vestido, decidida a lhe mandar uma mensagem apenas no final da noite se algo merecedor acontecer.
Quando a peça macia está disposta sobre meu corpo, faço uma nota mental de agradecer à Pepper pela escolha do tecido não tão pesado porém aquecido. Não tenho joias, então não me preocupo muito em combinações. Entro no closet logo depois, digitando a senha do pequeno arsenal que Tony me disponibilizou, este que não tenho usado desde minha viagem para Washington onde armas foram inúteis. Ainda assim, apanho um canivete militar e o enfio no bolso do vestido junto a meu celular, dando uma pequena pausa no trajeto para a sala de estar quando o aparelho vibra. Com o coração ansioso, aguardo pelo nome de Peter, mas é apenas o grupo dos alunos do Sr. Walsh. Alguém está mandando dicas de redações, algo já alertado por MJ que aconteceria. Ele gosta de rir do exagero deles.
Disso e dos suspensórios de espiga de milho do professor.

*

Dentre os cientistas que posso reconhecer, Norman Osborn e sua equipe são uma bandeira vermelha que me faz atravessar um mar de pessoas apenas para me distanciar. Sua nota de repúdio ao ocorrido com Wanda Maximoff e o Rei de Wakanda ainda está fresca em minha mente, especialmente nas passagens onde condena aprimorados — e o que considera "mutantes" — como sendo um pecado e uma ameaça para a sociedade. Ele está bebendo champanhe e rindo com alguns repórteres que zanzam pela celebração com blocos de notas e iPads, uma mulher ruiva e alta com o braço entrelaçado no dele e a mão livre tocando os fios dourados desbotados na nuca dele. O desgosto de Tony por ele está fresco em minha cabeça e eu opto por manter total distância do homem e sua esposa.
Imagino que deveria ter levado em consideração o que Pepper mencionou sobre os sócios de Tony serem poderosos. Se considerar por baixo, estou certa de que metade da festa poderia superar o PIB de um pequeno país europeu. Também cruzo com alguns outros cientistas, especialmente um que me deixa deveras curiosa e me faz gastar mais tempo olhando. Reed Richards, o cientista cujos livros me ajudaram a entender as maiores questões genéticas da humanidade, está bebendo champanhe ao conversar abertamente com outros homens de terno. Resisto a vontade de mandar uma mensagem no grupo onde estou com Peter e Ned, afinal, Richards é o cientista favorito de Ned e ele ficaria feliz com uma foto.
Rodeado por mulheres estonteantes em vestidos em tons carmins como cerejas; reconheço o Rei T’Challa enquanto conversa com Tony. Desvio os olhos no instante que uma mulher olha fixo para mim, também conversando com Stark mesmo que os olhos estejam cravados em meu rosto. Seu rosto sério e tão bem estruturado como o de uma estátua de mármore e ela parece tão severa e rígida como uma. Um garçom passa por mim e me oferece algo, a música ambiente me desconcentrando o suficiente para que eu aceite a bebida em uma taça. A seguro na ponta dos dedos quando um cheiro forte invade meu nariz ao tentar beber um pouco. Uma mão morna e delicada pousa em meu braço e unhas vermelhas removem a taça, a substituindo por outra já bebericada. Me viro para Pepper, essa que não gasta segundo algum antes de engolir o líquido dourado de vez.
Vermelho lhe cai muito bem e ela está radiante.
— Se você continuasse encarando o Reed desse jeito, iria criar um buraco na cabeça dele — sussurra pra mim quando tento beber da nova taça e percebo ser um suco de laranja com hortelã. Entorto os lábios com uma animação ingênua florescendo, pois é a primeira vez que estou rodeada de pessoas assim. — Se quiser, pode pedir ao Tony que ele consiga um autógrafo. — Potts sorri para mim ao me incitar ao caminhar pelo fluxo da elite erudita de New York, homens e mulheres que pertencem ao mais alto escalão da cidade e do mundo não se importando com a forma que meus pés estão tremendo no salto.
— Não acha que o Tones ficaria com ciúmes se eu quisesse uma lembrança de outro cientista bilionário? — A possibilidade me dá vontade de sorrir.
— É, ia ficar mesmo! — Pepper ri ao contornarmos um grupo de mulheres impecáveis com vestidos longos de cetim. Todas parecem saídas de revistas de moda como seus penteados alinhados e lábios vermelhos. Ela toca em meu rosto para afastar um fio fora do lugar quando paramos em uma mesa onde chefs preparavam entradas com cheiro magnifico. — Está gostando da festa? — Usando o guardanapo, me entrega um rolinho de espinafre e cogumelos como eu havia pedido ontem e prova um risoto em uma colher branca de porcelana.
— Estou sim, Pepps — concordo com a mão sobre a boca ao mastigar. Não tive tempo de terminar meu suco antes que outra taça fosse oferecida por um garçom. — E tem mais pessoas famosas aqui do que eu possivelmente vou ver juntas outra vez na minha vida — suspiro enquanto Pepper também pega outro champanhe.
— Tony me disse que quer conversar sobre algo importante, . — Engulo o pedaço de cogumelo em minha boca com dificuldade. — É sobre o que aconteceu essa semana?
— Coisas da Srta. Hall. — É mais uma mentira e devido a ela não vejo a hora de ir para a aula amanhã e contar a verdade para Peter. Minha ansiedade vem se tornando mais debilitante e é difícil esconder que os pesadelos têm me deixado exausta tanto física quanto emocionalmente. — É sobre algumas coisas que quero mudar na terapia. Me desculpa, acho que deveria ter te falado também.
Ela balança a cabeça.
— Não, meu amor. Está tudo bem — Potts me garante, a mão esfregando minha costa com cuidado para me confortar. — O Tony tem um relacionamento melhor com a Hall e pode te ajudar mais nesse assunto — Pepper suspira e dá um tapinha onde minha pele está desnuda próximo a minhas omoplatas. — Talvez até a convença de aceitar os remédios.
Os remédios psiquiátricos são um assunto recorrente quando falamos sobre a terapia e é Pepper quem sempre insiste mais neles, Tony já entendendo minhas preferências dois anos atrás quando lancei um vidro de setralina na parede de meu quarto na ala médica. Havíamos voltado de Sokovia e enterrado o corpo de Pietro Maximoff horas antes de minha crise piorar e eu precisar ser sedada a força. Estourei algumas coisas e quebrei outras quando as emoções saíram dos eixos, lâmpadas não suportando minha tensão ao se espatifarem em cacos igual a paredes de vidro que estouraram quando gritei para que Natasha Romanoff me deixasse sozinha. Mas, mesmo conhecendo meu histórico, Pepper insiste que a medicação pode ser a melhor opção se aliada à terapia.
— É. Pode ser. — Não a olho, mas assinto, certa de que não irei os aceitar.
“Srta. Potts!” Nós viramos ao mesmo tempo quando uma mulher se aproxima de onde estamos e quase sinto minhas pernas ainda mais bambas. A Dra. Darcy Lewis está sorrindo ao dar um breve abraço em Pepper e eu a reconheço das suas fotos no site da Universidade Culver e dos arquivos de Tony. Ela havia auxiliado Thor assim que ele chegou à Terra, junto à Dra. Jane Foster (outra mulher cujas pesquisas são incríveis e explicam muito sobre o transporte usado por Thor). Eu já havia a visto com o Dr. Selvig nos laboratórios, mas por sempre estar de passagem e nunca poder ser vista por eles, não tive a chance de estar tão perto dela vez alguma. A cientista estica a mão para apertar a minha e assim o faço, sorrindo como uma tola por poder a conhecer. Pepper me mantém por perto enquanto conversa com Lewis, ambas mencionando Tony algumas vezes e lamentando o fim de muitos contratos.
— Ah, deixe-me te apresentar a minha menina! — Pepper ri e coloca as mãos em meus ombros, deveras orgulhosa enquanto meu peito esquenta ao se referir a mim como "sua". — Essa aqui é a . Ela estuda em Midtown Tech, sabia?
Os olhos escuros bem maquiados de Darcy se apertam quando ela sorri.
— Sério? — Concordo com a cabeça, certa de que estou rubra. — Eu era louca por aquela escola! A Fuentes ainda é professora de física? Costumava deixar a pobre mulher louca... — Posso ver como seu rosto de ilumina ao relembrar os seus dias de aluna. Dentre todos os ex-alunos de Midtown, Darcy é uma de minhas favoritas. Não que eu vá dizer isso a Bruce Banner algum dia se o revir. — As turmas de A.P dela eram absurdas de complicadas, mas ainda devem ser ótimas. Muito preparatórias. — Desta vez, está garantindo isso a Pepper, que parece interessada no tema e nas habilidades da Srta. Fuentes. — A escola em si é muito preparatória, claro. Muitos alunos em universidades de prestigiadas.
— A é uma excelente aluna, Dra. Lewis. — Sinto quando um rubor trepida por minhas orelhas pelo elogios e Darcy assente, me dando uma boa olhada. — Ela tem auxiliado o Tony nos laboratórios como aprendiz há alguns anos e tem se saído muito bem. É uma menina extraordinária. — A Dra. Lewis sorri para mim, parecendo surpresa e claro que está admirada. Que tipo de adolescente seria permitida em um laboratório como o de Stark? No mínimo deve imaginar que um pai ou uma mãe riquíssimos pagaram para que Tony me desse uma chance. — Aliás, você soube do acidente do Coronel Rhodes? — Não sei para onde Pepper está indo com este novo assunto, mas permaneço ao seu lado e com boa postura. Não quero que passe vergonha por eu não saber como me portar corretamente em eventos como esse.
— Sim. — A cientista balançou a cabeça ao lembrar-se de Rhodey, sua aura surgindo para mim em um tom de azul celeste, lembrando-me que a toquei sem luvas e demonstrando, ademais, o pesar pelo acidente que deixou Rhodey tetraplégico. Me impeço de entrar em sua cabeça agora, mantendo a distância de suas emoções para que elas não influenciem as minhas. — Dentre tantas coisas que aconteceram no último ano, essa foi a que mais me chocou. Estava trabalhando no MIT na época do acidente e foi uma comoção enorme. Ele e o Stark são ex-alunos muito queridos — Darcy suspira com os lábios apertados, realmente chateada com o que tinha acontecido. Então há uma mudança em seu temperamento, um tom alaranjado domando sua aura. — Mas o Coronel Rhodes já está andando, não é? Alguns meses atrás ele estava fazendo a escolta do Presidente.
Pepper esfrega meu braço, puxando-me para a lateral de seu corpo.
— Sim, ele já está. — Minha face cai quando percebo o intuito de Pepper ao trazer Rhodey à tona para a conversa. Abaixo a cabeça para não flagrar a reação de Darcy quando Potts finalizar sua introdução. — A criou os protótipos para o exoesqueleto dele. Ela e o Tony se juntaram com... Conhece a Dra. Cho da Columbia? A geneticista? — Não sei se Darcy confirma, pois estou muito centrada em meus saltos. — Exato. Ela participou da parte cirúrgica do processo.
— Como? Laceração extrema da medula é um quadro irreversível. Era um quadro irreversível, claro. A MIT está louca para entrevistar o Stark sobre o tratamento. Como fizeram aquilo? — A Dra. Lewis indaga e eu finalmente tenho coragem de lhe olhar. Ela está me contemplando com a testa enrugada para entender melhor, demonstrando sua curiosidade ao ignorar um garçom com bebidas e melhorando sua postura. — Eu vi todos os pareceres médicos do Coronel Rhodes e as membranas de repouso dele estavam obsoletas Lembro que testaram muitos canais logo após o acidente e nenhuma voltagem teve êxito.
Pepper dá um tapinha em minhas nádegas, incitando-me a responder.
— Nós... Nós fizemos um... Um... — Estalo os dedos a fim chamar atenção para o som e não para a maneira que gaguejo como uma idiota que não sabe falar em público. O velho Walsh iria rir se me visse agora falhando em falar algo tão simples e falhando tão miseravelmente, a possibilidade de isso se repetir amanhã sendo perigosa. — Nós criamos uma interface cérebro-computador. — Respiro fundo quando consigo, enfim, lhe descrever o ponto chave de meus planos para Rhodes. — As informações são transferidas por sinapses elétricas com acoplamento iônico. Diminui o retardo sináptico que é comum em pacientes que sofrem paraplegia.
— Sinapses elétricas? — Darcy examina, os lábios rubros entreabertos. — Como no músculo cardíaco? Como controlaram as excedências? No momento que começassem a aplicar essas ondas, os nervos iam perder o controle.
— Eles perderiam, mas adaptamos as bainhas para controlar isso. Os estímulos têm pulso controlado e também foram muitos testes antes de algum funcionar. Quase todo o verão de testes, para ser sincera. A rede se ativa com contração rápida por estimulação elétrica na medula — explico-lhe, trazendo as mãos para frente de meu corpo. — O exoesqueleto tem conexões sensoriais e corresponde às atividades cerebrais. Então, mesmo que a condução de movimentos seja muito rápida, o exoesqueleto controla as excedências. — A Dra. Darcy me olha como se surgisse uma segunda cabeça em meu ombro. — Como já disse, foram muitos testes e todo o trabalho duro foi do Stark e da Doutora Cho. Eu apenas criei o protótipo e dei a ideia.
— Quantos anos você tem?
Potts aperta meu braço, orgulhosa de como estou me saindo:
— Dezesseis!

*


Deixei a festa após o encontro com a Dra. Lewis, atravessando o mar de convidados até encontrar a saída do salão. Fui engolida pelos sons do bosque enorme próximo ao Complexo quando cheguei à sacada logo atrás de uma cortina pálida que separa ambas as partes da reunião. Não estou tão fora da festa, mas a varanda vazia do quinto andar se torna mais acolhedora do que bilionários e cientistas e, apesar da proximidade, reconheço estar longe o suficiente do núcleo para que mais ninguém possa me ver. Caminho mais um pouco pelo enorme espaço até que minhas mãos pousem no parapeito gelado, a neve dando uma folga graças a com um toldo e os aquecedores de ambiente ainda ligados do lado de fora. Não sei como Tony conseguiu aquecer este lugar, mas estou agradecida.
O bolinho de espinafre parece querer sair quando encosto a cabeça nas mãos, curvada para respirar melhor e poder me apoiar. Tem uma dor afiada cercando minha nuca e quero rir por me sentir tão estúpida. Me ergo após um tempo, ainda não acreditando que a inquietação tem conseguido tomar conta de mim ainda quando estava no mesmo evento que heróis pessoais como Darcy Lewis, Reed Richards e Erik Selvig. Não consigo deixar de imaginar como Ned, Peter e MJ reagiriam em meu lugar; satisfeitos e felizes enquanto sinto-me prestes a chorar. Como pude falhar ao explicar à Dra. Lewis sobre o tratamento que eu propus? Gaguejando como uma idiota quando deveria me sentir orgulhosa pelo êxito. Mal posso conceber o nível de embaraço que Pepper sentiu por isso.
— Você está bem?
Toco meu rosto para garantir que lágrima alguma me escapou no auto martírio e ergo a cabeça na direção do som que me desperta. A voz é jovem, logo me permitindo descartar a possibilidade de Tony ter me seguido até aqui e deixado seus convidados curiosos. Tem algumas lanternas de papel penduradas e só com elas consigo encontrar o rapaz há alguns metros de mim, suas mãos dentro dos bolsos. O primeiro choque é ao atentar-me para seu rosto e as formas angulares simétricas deste, talvez a pessoa mais bonita que eu tenha visto esta noite. Ele veste um terno preto com camisa branca e gravata escura, a elegância despojada do paletó aberto revelando sua pouca idade. O garoto parece uma personificação de qualquer ator da Netflix, porém muito mais refinado e elegante. Ponho as mãos atrás da costa, apertando a ponta de meus dedos ao concordar enquanto ele se aproxima.
— Sim. — Engulo em seco para minha voz não sair tão dura. — Obrigada.
Quando está mais perto, ainda mantendo uma distância segura entre nós, suas maçãs do rosto rosáceas se iluminam pela luz e eu as culpo pelo vento frio que faz meu vestido tremular. Meu primeiro anseio é de fugir para a festa, porém a ideia de encontrar Pepper e ela querer gabar-se de mim para outra pessoa é mais enjoativo que permanecer aqui com um estranho. E nesta segunda situação, o canivete em meu bolso é útil. O rapaz respira fundo e assente com a cabeça, encostando os lábios na costa da mão antes de cruzar os braços e virar-se para as cortinas. Arrisco tirar meu celular do bolso quando me acalmo.
Quero ligar para Peter mais que qualquer outra coisa.
— Stark, não é? — O loiro suspira e eu o observo enquanto corre o dedão pelo lado do cinto de couro, sua mandíbula apertada ao olhar através do véu. A forma que fala o sobrenome de Tony não é mordaz ou com irritação por ter vindo, mas quase devaneadora. Um montante de possibilidades transborda em minha imaginação. Repórter, um sócio infiltrado (mesmo sendo jovem demais) e muitos outros. Molho meus lábios, lutando contra a resistência do batom. — Fazia anos que eu não vinha a uma festa dele. Especialmente essas mais calmas. — O adjetivo usado faz cócegas em minha língua. Calma. Setenta pessoas é uma festa calma. — Ou melhor, faz anos que ele não dá festas como essa. — Engulo a informação que está enlaçada em sua voz, o sotaque parecido ao meu chamando atenção.
Solto a língua que mordi e lhe olho de onde estou embaixo de uma lanterna.
— Acho que a vida como um herói bilionário não é tão fácil como Bruce Wayne faz parecer. — Minha resposta para ele é no mesmo nível de conforto que eu gostaria ter usado com a Dra. Lewis, agindo como um tentativa bem-sucedida. Ele me olha, a sobrancelha quase erguida antes de um sorriso pequeno se formar e este não é como eu esperava. Não é um sorrisão relaxado como vejo os meninos exibirem nos corredores da escola. É quase tímido.
Volto minha atenção para a festa através do tecido fino, com garçons de terno branco navegando pelos pequenos grupos de conversa e trocando taças em velocidade alarmante, não as deixando vazias por muito tempo. E eu posso ver Tony de onde estou, sorrindo para alguém e olhando por cima do ombro para Pepper em outro grupo. Me sinto sorrir ao perceber como estão conectados mesmo divididos, a mão de Tony segurando firmemente as pontas dos dedos de Potts. Atrás deles estão várias mesas para os convidados e eu evito pensar onde irei me sentar.
— De onde é? — O estranho me indaga depois de um tempo calado, olhando para mim de onde está e a luz amarelada acima dele destaca as sardas salpicadas em seu rosto, seu cabelo assume um tom de mel. — Seu sotaque é muito forte.
Me recordo com afeto de quando Peter me fez a mesma pergunta.
— East London — respondo ao apertar o celular em minha mão.
— Windsor — me informa com educação.
Ergo a sobrancelha.
— Escola militar? — Windsor é muito conhecida por tais escolas.
— Eton.
Tento não deixar meu queixo cair enquanto está me olhando, deveras admirada pelo desembolsar de cinquenta mil libras anuais de sua família apenas para garantir uma educação elitista e de qualidade mundialmente conhecida. O mundo conhece a Eton College sobretudo por ter sido a escola onde quase todos os homens da monarquia britânica haviam estudado. Eton é sinônimo de privilégio há séculos e o rapaz não me espanta quando o ligo aos clichês. As bochechas rosadas e o cabelo dourado são clássicos da elite britânica e é como uma lâmpada acendendo em minha mente quando, o conectando a tanto dinheiro e a aparência, consigo lhe ligar a apenas uma pessoa em toda a festa de Tony. E é obvio que, de todos os convidados queridos¸ eu acabasse na varanda com este.
— É filho de Norman Osborn, não é?
A coincidência que parece tão possível me faz suspirar ao observar a noite.
— E você é a aluna encantadora da turma de AP Bio do professor Walsh. — Osborn aponta. Estou o olhando agora, o espanto de ser reconhecida em um ambiente como este é como uma pancada na cabeça. Não processo o galanteio, mas sim Walsh, pois o estranho conhece o meu professor de biologia. Enfio as mãos nos bolsos do vestido e curvo os dedos no canivete. O rapaz sorri para mim e inclina o rosto para baixo, tomando impulso no parapeito. Ele não parece surpreso ou cauteloso a cada detalhe de minha figura, então risco a possibilidade de tentar me assassinar. — Também estudo em Midtown Tech — explica-se sem dar muita importância. Até envergonhado, se possível. — A divisão de tecnologia é mais interessante e supre as falhas de Eton.
Troco um olhar rápido entre ele e a festa diante de nós. Tenho noção que posso gritar e Tony irá aparecer para esganá-lo, mas também sei que posso arruinar toda minha personagem em Midtown se ele não estiver mentindo. Engulo em seco e concordo com a cabeça, tentando decidir qual seria a melhor forma de agir. Me atento a maneira que pode ter me visto tão próxima de Pepper e tudo me deixa ansiosa e eu nunca quis tanto que Peter estivesse aqui.
— Certo, eu deveria ter me apresentado direito e não agir como um tratante. — O sorriso que se abre no rosto dele não é nada menos que embaraçado e quero muito entender o pretexto disso e se não passa de uma mentira. O rapaz esfrega acima dos olhos ao respirar fundo. — Imaginei que soaria misterioso e interessante, porém estou vendo que você está a um passo de gritar pelos seguranças e eu não quero ser escoltado para fora pelo Homem de Ferro. — Ele me olha de novo e tira a mão direita do bolso. — Perdão. Me chamo Harry.
Ignoro sua destra estendida em minha direção.
— Mil perdões, mas isso não faz sentido —sSuspiro pesadamente, sentindo uma pontada de pânico na forma que minha pele formiga. Talvez esteja falando a verdade, mas com um estranho me encontrando aqui e estudando comigo, o disfarce que uso pode cair por terra. Tenho a possibilidade e inventar que meus pais ricos eram acionistas da Stark Industries e eu monto a nova teia de mentiras em minha cabeça. — Como estuda em Midtown sem que o reconheçam? — Os lábios rosados do tal Harry se comprimem e ele puxa a mão de volta ao perceber que não irei cumprimentá-lo. — A Oscorp é uma gigante farmacêutica e laboratorial, é óbvio que todos o reconheceriam por “ser filho” de Norman Osborn.
— Você parece gostar muito de estar certa. — É a resposta dele, esfregando as mãos pelo frio. Franzo o cenho, buscando entender o que quer dizer quando me olha com tanta tranquilidade. — Quando é quem aponta uma informação, está certa do que diz. Quando eu faço o mesmo, estou sendo desonesto? — Meus lábios se partem com sua rápida percepção e ele volta a se escorar no parapeito. — Para respondê-la propriamente: apenas o diretor Stuart sabe quem sou pois foi ele quem coordenou minha transferência. — Pequenos detalhes como o nome do diretor podem ser encontrados na internet e sua confiança não me engana. — Entrei na semana seguinte ao Homecoming para participar apenas a partir do quarto trimestre. Só a reconheci porque tinha a visto na aula do Walsh na quarta-feira. — O nervosismo escapole por sua voz. — Me desculpe de novo pelo susto.
— Por que está me contando isso? — Dou uma risada sem humor.
Ele pareceu seduzido pela pergunta, um sorriso fácil lhe escapando.
— Pois está escondida também. — Deu de ombros sem importar-se e como se este fosse um assunto comum em sua vida. E talvez seja. “Filho de Norman Osborn” soa tão elitista e intenso como “filho do Presidente” soaria. Soa como “filha de Tony Stark”. — Se reagiu desse jeito por alguém a reconhecer em uma festa como essa, é porque tem algo para esconder. Seja uma família célebre, herança ou um pai que trabalha como garçom e conseguiu um convite para você. — Meu ego me faz concordar e ele estende a mão na minha direção assim que o faço, como se um assentir significasse que acredito. — E eu não tenho muito a perder. Ninguém iria confiar nesse absurdo que estou dizendo se não estivesse inserido em outro maior ou igual. — Dá de ombros. — Mas também porque era uma forma de puxar assunto com você. — Estreito os olhos em sua direção, tomando nota de como não me olha ao falar. — Não a melhor forma, porém única que passou pela minha cabeça no momento.
O adjetivo “encantadora” usado posteriormente retorna para mim.
— Foi muito gentil se importando se eu estava bem, Harry. — Preciso sair daqui e assim o faço, tentando pisar com segurança em meus sapatos novos. De onde estou, posso ver Tony olhando ao redor e algo me deixa feliz de imaginar que está procurando por mim. Entre ansiedade e muito desejo de fugir do tal Osborn, dou um passo na direção da festa. — Obrigada, outra vez.
Meus dedos estão encostados na cortina quando o ouço de novo:
— Até amanhã!
Me viro em sua direção, meu vestido ondulando pela rapidez do movimento que deve ter lhe demonstrado meu desconcerto e desconfiança. E Harry está me fitando, o cabelo louro escuro afastado de seu rosto com perfeição mesmo com o vento que tenta bagunçá-lo. Os olhos são vítreos agora que estou mais longe e não sei de qual cor eles são, mas sei que tem um círculo avermelhado no interior de suas pálpebras, revelando o frio que sente e mesmo assim preferiu ficar do lado de fora. Seus lábios se entortam quando ele tenta sorrir e por um segundo é Peter Parker quem sorri para mim com os sua boca fina. Enxoto tal comparação para longe.
— Ainda não acredito em você — indico ao apertar o véu branco.
Mas ele está certo. Amanhã tenho aula com o senhor Walsh.
— Acredita no broche de espiga de milho que o Walsh tem no colete? — Osborn ou Faux-Osborn questiona, encolhendo a postura de forma que o terno se moveu junto a ele. E de onde estou, é obvio que ele está mordendo a parte de dentro do lábio pela forma que a mandíbula se move mesmo quando está calado.
MJ também tinha me alertado sobre o broche estúpido do velho Walsh.
— Até amanhã, Harry.

*


Na foto que brotou em minha galeria, Peter está segurando uma garotinha em seu colo. “Essa é a Alisson e ela disse que vai se casar comigo quando crescer!” Mordo meus lábios para segurar o sorriso, o que é uma missão impossível. Aconchego-me melhor no sofá confortável no corredor dos laboratórios, puxando uma manta sobre minhas pernas enquanto observo a foto melhor. Toco na tela do celular como se pudesse encostar em Peter e no seu cabelo, esse ainda molhado da guerra de balões que teve com as crianças do orfanato. É algo que faz de três em três meses desde que era pequeno, participando em um programa que May organiza e ela me convidou para o próximo. Não sei se tenho tanta habilidade com crianças, mas seria um ótima experiência.
A imagem da menininha abre meus horizontes para Osborn e eu não hesito em buscar fotos de Norman Osborn e seu filho, mas todas as que surgem no Google são antigas demais e a criança junto ao cientista e sua esposa (as duas que já apareceram fora a que vi hoje) ainda é muito pequena. Seleciono uma onde o garotinho está sorrindo, vestindo um uniforme escolar com shorts azuis escuros e meias brancas. Aproximando o rosto risonho do menino, posso ver as mesmas sardas salpicadas em seu nariz e abaixo dos olhos. Olhos esses que brilham como o oceano ao revelar o delicado tom de azul cristalino. Nariz e lábios estão claros na foto, assim como o rubor que percebi mais cedo. E é impossível que ele não seja o mesmo rapaz que falava comigo na varanda.
— Droga. — Sussurro ao esfregar os olhos quando o celular vibra.

Pepper <3
visto por último hoje às 20:04

O jantar vai ser servido em seis minutos! Onde você está?

A coloquei na mesa 4 junto a mais pessoas da sua idade. Se divirta!



Quando ouço passos vindo em minha direção já é tarde demais e tem uma mulher alta há alguns metros de mim. A reconheço como uma das seguranças do Rei T’Challa pelo tom escuro de sua pele e o brilho invejável da melanina. Ela, diferente das outras mulheres que o acompanham, não usa perucas ou penteados elaborados, mantendo a cabeça raspada. Tento lembrar se já a vi alguma vez e sei, de imediato, que era ela ao me encarar mais cedo. Com seu vestido vermelho vivo, ela parece mais confortável que devia ao caminhar confiantemente por uma área do Complexo onde não devia estar. Este é o centro de convivência e está fora das zonas permitidas para os convidados.
É a minha casa.
— Acredito que a senhora não devia estar aqui; o jantar já será servido.
Comento com calma ao me pôr de pé e deixar meu celular no sofá junto a manta. A mulher não vacila em seu passo, caminhando até mim devagar e confiante, a mão que antes estava nas suas costas surgindo na lateral de seu corpo quando pressiona alguma coisa em sua palma. Antes que algo aconteça, ergo um véu entre nós, meus poderes agindo mais rápido que eu sequer podia esperar e sem esforço algum e tão fortes como os de Visão fizeram quando imaginou estar em perigo. A as ondas de magia fluem por minhas veias como descargas elétricas em água, o breve mover de meus braços e dedos incitando um zunido pelo curto espaço que dividíamos, como se desencadeasse a força de todo um temporal apenas para impedir que ela me alcançasse.
Mãos erguidas com elegância para manter a integridade do escudo, eu suspiro:
— Eu vou repetir mais uma vez, pois sou muito educada: não devia estar aqui. — Como se a noite não pudesse piorar após a sacada, tem uma mulher segurando uma lança afiada e um sorriso miúdo nos seus lábios fartos e rubros me demonstra que não tem muito medo de mim, apenas um leve alarme por minha rápida reação à sua abordagem. — Sei fazer truques bem melhores que só formar uma lança, mas gostaria muito de não precisar usá-los. — Abaixo as mãos, ainda sustentando a projeção entre nós. Respiro fundo, esperando que ela não seja uma louca sadista que sorri antes de tentar me matar. — O que deseja?
— a mulher pronuncia meu nome com um sotaque wakandiano tão leve que seu inglês é praticamente perfeito. Meu peito está pesado quando respiro, recordando-me de meu encontro com o Rei T’Challa na Alemanha e como há uma possibilidade ter me flagrado com Bucky Barnes. O embate que se tornou uma confissão de inocência ressurge como memórias perfeitas e agudas marcadas em meu cérebro. Talvez essa seja a forma de Wakanda me considerar uma inimiga do Estado assim como consideram Bucky e tudo o que consigo pensar é no que Tony dirá ao saber o que fiz. — Me chamo Okoye. — Não preciso de muita concentração para manter o escudo, o que parece chamar sua atenção enquanto o analisa com a cabeça inclinada para o lado. — Sou a General das Dora Milaje, a guarda real de Wakanda, e tenho um recado para você.
Minimizando a lança de com um toque mínimo, a tal General Okoye segura um envelope pequeno entre os dedos enfeitados com anéis de ouro. A guerreira o vira para mim e eu vejo a bela e desenhada caligrafia onde Petal está escrito no papel vermelho sangue com uma tinta branca e o ar some de meus pulmões. O apelido que Natasha Romanoff me deu quando decidiu me comparar a uma rosa está escrito com a sua letra, mas não me confio que ela não tenha sido forçada pelo Rei de Wakanda para que fizesse isso. Natasha auxiliou Steve Rogers na sua fuga com Barnes, então logicamente é uma inimiga do reino. Meu sangue ferve e eu engulo a vontade de rosnar, derrubar o véu e avançar contra a mulher. A mera ideia de Natasha estar ferida me faz ver vermelho e pele queimar em fúria.
— Onde? — Demando com a voz firme ao me aproximar do campo de energia sem nunca o desfazer. Neste ponto, minhas unhas estão cravadas nas palmas, os punhos que aperto com extrema força concentrando toda a tensão de minha ira em forma de magia. — O que fez com a Natasha? — Rosno entredentes, mandíbula apertada para suprimir as reações que me contenho de exprimir. A mulher segura uma resposta quando tenho certeza de que meus olhos estão faiscando. — E o que deseja comigo ao vir aqui? — O medo do que pode ter feito com Natasha gera a raiva, a ira quente que me faz querer ferir a General, corrompendo meus sentidos. Minha preocupação se transfere não só para Romanoff, mas para os civis no andar de cima caso algo fuja de meu controle.
— Wakanda — a mulher me garante, sem intimidar-se e ponderando meus poderes enquanto toda minha atenção estava na caligrafia familiar no envelope. Seguindo seus olhos treinados, percebo como me confundi e meus poderes não mantém mais o mesmo tom azul cristalino de sempre. Não mais azul ciano, as projeções se tornaram um índigo vibrante. Aproveito sua distração e dou um passo para frente, atraindo sua atenção quando percebe minha aproximação e ela me olha, postura ríspida como se preparando-se. Semicerro os olhos, aguardando por uma resposta decente. — A Agente Romanoff está segura. — Sua expressão séria me promete e eu me permito confiar por um segundo. Okoye parece verdadeira. — Todos estão, incluindo você, . — Sustento seu olhar enquanto lança o envelope no sofá ao perceber que não irei me aproximar. — Gostaria de contar mais, porém, como já me disse: o jantar será servido.

*


Quando retorno para a festa escoltada por Okoye, Pepper me olha com os olhos verdes bem arregalados e boca apertada, desnorteada por minha fuga. Já Tony está conversando com algumas pessoas em sua mesa e só aperta a boca ao me ver, ambos descontentes com a escapada sem aviso prévio e que resultou em um atraso. Busco pela mesa quatro, que é há alguns metros da qual eles se sentam, e acho meu nome impresso em um cartão sobre o prato. B. está escrito com uma fonte tão bela que eu quero arrancar o envelope em meu bolso e devorar a carta que estava ali. Eu respiro um ar quente, lutando para conter a irritação que senti com a visita da General wakandiana.
Toco na mesa recoberta por linho branco antes de me sentar na cadeira macia, percebendo como há um arranjo de rosas brancas e cremes para cada par de cadeiras, reunidas em vasos lindos de cristal. Os convidados ainda se arranjam nas cadeiras, encontrando seus lugares e eu observo como Pepper estava certa e quantos jovens se sentam em minha mesa. Há gêmeas asiáticas estonteantes sentadas diante de mim, seus rostos pequenos e delicados somados a vestidos que devem ter saído direto de uma revista de moda, mais bonitos que os de bonecas. A ironia de jantar com pessoas desse porte é enorme, afinal, não teria essa chance se não fosse por Tony e ele acredita ser direito meu dividir esse mesmo espaço.
Ao meu lado, oh, ao meu lado quem se senta é Harry Osborn. E eu sei que não há mais como fugir disso quando um cartão preto tem seu nome escrito no prato diante dele. Puxo os braços para bem perto de mim, pois, mesmo que ele use roupas de manga longa, ainda tenho certas restrições em lhe tocar. O rapaz tem uma postura perfeita assim como todos na mesa e eu tento imitá-los, percebendo como minha perna está tremendo para extravasar minha ansiedade e a super estimulação de ter canalizado tanto poder há pouquíssimo tempo, a raiva sendo um combustível poderoso e difícil de se extinguir. Estou olhando para a parte de trás da cabeça de Tony quando um cartão é empurrado na direção de meu prato. Não consigo segurar um rubor envergonhado enquanto Osborn usa o indicador para movê-lo.
— Me perdoe pelo que disse mais cedo. — A desculpa é soprada, pois não quero que mais ninguém me ouça. Ainda estou encolhida em minha cadeira e coloco as mãos no colo, lembrando-me das regras de etiqueta que li hoje pela manhã. — Não foi minha intenção soar tão rude.
Imagino que ele não me responde, pois Tony se põe de pé, pronto para dirigir um discurso para seus ex-parceiros de negócios. De onde o olho, mal posso ver seu sorriso enquanto apoia uma mão na cadeira e outra no ombro de Pepps.
— Bem-vindos, mais uma vez, à minha festa de despedida. Ou melhor ainda, à festa de vocês! — Alguns homens imponentes riem, porém outros não esboçam emoção, o necessário para que eu entenda o quanto este passo de Tony foi arriscado e o que isso significa para esses indivíduos. Em pouco menos de oitenta anos, a Stark Industries acumulou um patrimônio de 92 bilhões de dólares apenas para Tony, o que me faz entender o desânimo de muitos aqui. Molho meus lábios ao olhá-lo. — Espero que aproveitem o jantar e a festa, assim como aproveitaram suas últimas décadas como investidores estimados da Stark Industries. Esta empresa, como sabem, é muito próxima do que entendo como família. Cresci nesses corredores e aprendi tudo o que sei ao lado do meu pai. Neste mesmo espírito, quero me despedir de todos como forma de dar a mesma oportunidade à minha família. Então, por favor, entretenham-se e aproveitem o resto da noite.
Aplausos educados seguem o fim de sua fala até resumirem-se a burburinhos quando um número absurdo de garçons começa a se mover por entre as mesas, dois para cada convidado, imagino. Volto a olhar para a mesa no momento em que Osborn se inclina em minha direção, tão perto que posso reconhecer o cheiro de seu perfume, a fragrância quente e aveludada dançando entre nós.
— Aceito as desculpas se me disser o seu nome — murmura para mim com um sorriso mínimo, fingindo ir salvar o seu cartão.
Então, percebo que não me ocorreu a possibilidade de ele não saber meu nome. Ou minha relação com Tony. Estou indo abrir a boca para lhe responder meio atravessado quando um garçom serve minha entrada e preenche minha taça com água. Logo preenche outra taça com suco em uma sincronização perfeita, como se treinado especificamente para isso. A entrada é uma salada fria apetitosa com molhos decorando o prato gigantes e ostras que não parecem nem um pouco apetitosas, mas sei precisar comer. Harry começa a comer como todos na mesa e eu tento não ficar para trás, surpresa pelo sabor bom e inesperado da ostra que me forço a mastigar um pouco antes de engolir. Parece gelatina com o que imagino ser gosto de água do mar. Limpo o paladar com um gole de água e ergo a sobrancelha ao perceber que o rapaz ainda aguarda pacientemente por minha resposta.
— Não é como se já não estivesse lido meu nome no cartão, Osborn. — Devolvo a taça para seu lugar e retorno a comer quando seus ombros se movem, revelando a risada que mal posso ouvir. Sei estar ruborizando quando tenho dificuldade em pegar uma folha de rúcula no garfo e não sei se estou usando o correto, pois tem menos disponíveis do que no vídeo que assisti mais cedo. Olho para Harry, que come com elegância e sem curvar-se sobre o prato. — Como nunca o vi? — Sussurro em sua direção e ele aperta as sobrancelhas ao garantir que me ouve bem. — Já faze semanas desde o Homecoming e o início do novo trimestre. É impossível que eu nunca tenha ouvido falar de você. Ou que seja sensato entrar no último trimestre do segundo ano.
— Tenho um sobrenome falso, senhorita B — o louro me responde e volta a mastigar com a boca fechada, até mesmo maneando a cabeça para uma jovem loira que se demora a tomar uma taça de água próximo às gêmeas. Ela ondula as sobrancelhas para ele e eu desvio o olhar. Ela usa um vestido verde escuro com um decote fundo. — Minhas classes são todas avançadas e ainda não tenho um calendário de aulas definitivo, então tenho faltado por não horários em certos dias.
Esfrego a língua no topo da boca.
— Então temos biologia juntos — suspiro baixo. — O que mais?
— Literatura europeia, química avançada e espanhol. Até o momento.
Quatro classes juntos, eu conto. O mínimo que posso fazer é descobrir como reconheceu meu rosto em um ambiente como este. E, mesmo que seja uma boa margem — estar em todas as turmas avançadas — não aceito que tenha gravado o rosto de todos os seus colegas de turma. Nos servem o prato principal com um timming exato assim que removem o antigo. Meus olhos pousam na lagosta e na ficha que é depositada ao lado de meu prato, informando que foi escalfada na manteiga com cogumelos e acompanha creme de batatas selvagens com alho-poró. O cheiro enche minha boca de saliva, assim como o azeite de trufas que um homem despeja sobre a comida. As gêmeas na minha frente cochicham em uma língua que identifico como sendo coreano, as entonações e terminações semelhantes às usadas pela Doutora Cho ao falar com seus assistentes.
— Essas são Krystal e Yuri Seo. — Não viro a cabeça de imediato, apenas ouvindo a informação dada por Osborn sobre as meninas. Devagar, o olho ainda sem virar totalmente e observo quando limpa o canto dos lábios com o guardanapo de pano. Ele parece confortável demais para um adolescente em um ambiente assim até que eu lembre quem realmente é. O rapaz ao meu lado é o herdeiro da Oscorp e este é o seu ambiente. — Herdeiras da Celltrion na Coréia. Onze.
— Onze? — Celltrion é a Oscorp coreana, uma empresa enorme e recente. — A Celltrion dona da Herzuma?
Harry começa a mover seus talheres e tira um pedaço da lagosta.
— Onze bilhões. — Ah. Ah. Onze significa onze bilhões. De repente, estou tonta ao imaginar tanto dinheiro. As gêmeas não se atentam que falamos sobre elas e estão jantando assim como eu deveria estar. Coloco uma quantidade razoável de purê no garfo e um pedaço da lagosta. Ao mastigar, percebo que todos também conversam entre si e não somos os únicos. — E sim, as da Herzuma. É um anticorpo muito bom, preciso dizer. — Não me surpreendo por conhecer medicamentos, imaginando que seu pai deve ter lhe educado bem cedo nos assuntos importantes para a empresa deles. — Insistiram em indicar a HER2-Positivo, porém os efeitos que causa no coração e no sistema imune...
— E não funciona tão bem — comento ao beber do suco que colocaram em minha taça e Osborn concorda, passando a língua pelo lábio inferior para capturar resquícios da manteiga e o mordisca antes de retornar para seu prato. — Eu li sobre isso faz um tempo, mas sei que esse anticorpo só compra tempo no caso de metástase. Funciona melhor no início do tratamento e é um absurdo de caro.
Finalizo o meu prato ainda insatisfeita, certa que irei me esgueirar para a cozinha no meio da noite, pois as porções são minúsculas e umas torradas com geleia vão cair muito bem. Quando terminamos com a refeição principal, imagino já ser quase oito ou nove da noite. Os garçons bem treinados tiram meu prato e os talheres que não irei mais usar, apenas esquecendo a ficha explicando o cardápio. Antes que eu pudesse apontar para ela, Harry faz o favor de o entregar para o homem. A forma que segura o pedacinho de papel me lembra a usada pela general do Rei T'Challa e o envelope de Natasha parece fritar minha perna. Percebo também a atenção que Osborn demonstra e como lembrou-se de cada turma que fazemos juntos.
— Por que prestou tanta atenção em mim? — O olho apesar da minha timidez, verdadeiramente curiosa do que pode ter lhe interessado ao ponto de sentir necessidade de puxar assunto durante nossos minutos sozinhos na varanda. A memória das dicas de May Parker sobre flertes é clara e eu quero o entender melhor. — Não deve ser só pelo Senhor Walsh, mesmo que seja uma boa aula. — Minha boca se aperta quando percebo a cor de seus olhos. São azuis límpidos, com falhas esverdeadas. Desvio a atenção antes que ele perceba que estou o observando tão de perto.
— Não sei exatamente — Harry assumiu cuidadoso enquanto aguardávamos pelas sobremesas em meio às risadas na mesa de trás, dúzias sem fim de pessoas gargalhando porque alguém havia falado algo engraçado ou pois seria conveniente para os negócios. A boca do rapaz está se curvando nos cantos, como se relutasse para segurar um sorriso enquanto suas bochechas ficam rubras e seu nariz também. A sardas quase somem e ele não se importa em me olhar, talvez lutando com o próprio acanhamento. — Eu a vi sorrindo uma vez para uma aluna que está comigo em Economias Emergentes e nunca mais a esqueci. Por isso me lembro da turmas que fazemos juntos mesmo que não a veja sorrir em nenhuma delas quando está sozinha. — Como uma tola, eu solto um "Ah", pois as dicas de May somem igual toda a cor em meu rosto deve fazer. — Tem um sorriso muito bonito, senhorita B. Memorável seria um adjetivo correto.
As sobremesas são dezesseis bolinhas com diferentes texturas, todas vermelhas e muitas devem ter sido congelados, pois estão derretendo um pouco e há “suor” no prato também frio. Algumas parecem envoltas de açúcar derretido, outras se assemelham a sorvetes e muitas são cerejas prontas para o consumo. Todo meu corpo volta a esquentar com o elogio do estranho e eu faço o favor de escolher um musse congelado e colocar na boca de imediato em uma tentativa de me esfriar, satisfeita por ele derreter em minha boca e não haver motivos para que eu lhe agradeça, como May me ensinou ontem. A sobremesa é maravilhosa e eu quero agradecer Pepper por ter a escolhido, principalmente por ser a primeira vez que comerei cerejas.
E talvez, só talvez, a agradecer pela escolha de assentos.
— Então quer dizer que — engulo o musse e evito olhar para Osborn, focada nas variedades em meu prato — se eu for para a aula amanhã, você estará lá e vou poder dispensar a possibilidade de ser um stalker, Osborn? — Observo pelo reflexo do porta-guardanapos prata quando coloca uma colherada de creme na boca, parecendo insatisfeito com o sabor quando o nariz se franze com leveza.
Ele coça a garganta com um som rouco antes de engolir a sobremesa.
— Espere, de onde estamos nos olhando? — Questiona e logo suas sobrancelhas se curvam ao encontrar meus olhos refletidos na prata bem polida, um sorriso pequeno agraciando o seu rosto. Sustento seu olhar com coragem antes de trazer a fruta fresca para minha boca. O gosto é diferente de pirulitos e balas. — E sim, senhorita B. Irá me encontrar na sala do Walsh, no quinto período, com meu trabalho sobre anomalias cromossômicas. — Ele balança a cabeça quando pega um pedaço de algo semelhante a um bolinho. — Tópico interessantíssimo. — Indica com os lábios puxados para baixo. A Oscorp é conhecida por estudos genéticos muito focados no câncer e é cômico. — Qual foi o seu tema?
— Mecanismos de replicação de DNA. — O trabalho está finalizado e já foi enviado para Walsh hoje à tarde, porém não é a parte mais complicada. Desde que percebeu minha inclinação para áreas cientificas, Tony me disponibilizou muitos livros e assinaturas de revistas e jornais acadêmicos, portanto o trabalho em si não é pior. Minha preocupação é a apresentação oral que devo fazer para toda uma turma de nerds que têm um prazer imenso em corrigir as pessoas. — Sabe se o Walsh avalia os trabalhos considerando a apresentação?
Harry limpa os lábios ao se satisfazer com a sobremesa.
— Midtown Tech é uma escola cheia de adolescente introvertidos e tímidos — ele justifica e eu assinto, de certa forma convencida que não pode ser tão ruim. — Portanto, é óbvio que o professor mais severo de toda a instituição deve avaliar toda a apresentação oral mais que a pesquisa em si. — Cubro a boca com um guardanapo quando começo a segurar uma risada. Viro-me para o olhar de maneira culposa, disposta a reclamar pela resposta ambígua, mas Osborn, está com os olhos em mim, sorrindo com seu conjunto perfeito de dentes brancos. — Vai se sair bem e se não sair, pode sorrir — propõe e dá de ombros. — Funcionou comigo.

*


?
Ouço o chamado Pepper quando alcanço o corredor dos dormitórios após o fim da festa, o vestido erguido acima de meus joelhos para que eu pudesse olhar para onde pisava ao subir as escadas. Ela surge logo atrás de mim, os fios recém tingidos de loiro balançando atrás de sua cabeça enquanto também erguia o vestido rubro para que não caísse. Eu esperava que ela ainda estivesse com Tony no prédio principal com os convidados que ainda não se foram, mas me sinto um pouco mais confortável em ir para a cama sabendo que um deles está aqui nos alojamentos. Potts coloca a mão no peito ao respirar fundo após o “exercício” e eu lhe dou um sorriso, trocando o peso entre uma perna e outra, pois o bilhete de Nat está bem seguro em meus dedos e eu quero o ler o mais rápido possível.
— Meu bem, o que achou da festa? — Questiona ao se mover para o pequeno sofá no corredor e abaixar-se para retirar os saltos também vermelhos. — A comida estava boa?
— Estava ótima, Pepper — assinto ao me apoiar na parede e a imitar. Se alguém tão elegante como ela não vê problema em livrar-se dos sapatos, eu também não devo ver. — Foi a minha primeira vez comendo cerejas. E lagosta. Porém achei a lagosta muito parecida com camarões — informo e consigo desafivelar o primeiro salto, amaldiçoando Jimmy Cho e quem mais tenha ajudado a criar isso. — Mas adorei. — A olho ao saltitar um pouco para remover o segundo lado, rindo de seu alarme quando estica as mãos para me impedir de cair no caso de qualquer desequilíbrio. Arranco o sapato com um bufar e afasto o cabelo de meu rosto. — Obrigada por me deixarem ir.
— Não sei se disse antes, mas esse vestido ficou magnífico em você, — Pepper elogia, apoiando o rosto nas mãos. — E quanto ao “convite”, não se preocupe. Agora tem entrada liberada em qualquer evento que o Tony faça. Já está na hora, não é? — Dá de ombros com um sorriso belíssimo para mim. Contudo, há certo desconcerto nele, em toda a sua figura e postura. Ainda assim, eu assinto. Ela deve ter visto a mulher que falou comigo mais cedo e eu aperto o bilhete com mais força dentro do bolso. — Hum... , eu tenho que te perguntar uma coisa.
Concordo com a cabeça, lhe dando mais confiança.
— O que achou do Harry? — Pepper indaga com real interesse, curvando-se em minha direção e com as mãos nos joelhos, um sorriso obviamente sendo impedido de se formar. Meus lábios se abrem em surpresa, esperando por outro tópico e logo uma risada embaraçada me escapa. Ou melhor, um ronquinho quase sem som pois é de alívio e também de constrangimento. Lhe contei hoje sobre o rapaz do restaurante e a reação dela foi a mesma. — Vi que vocês conversaram durante o jantar e depois do nosso encontro com a Dra. Lewis e, ah!
Ela bate as palmas e seus olhos caem, boca franzida.
— Me desculpe por aquilo com a Lewis, mas... — Pepper suspira. — Não sei, é que... Às vezes, eu me sinto tão orgulhosa e lembro de algumas coisas que você faz e nunca posso me vangloriar por elas. — Balanço a cabeça, não precisando de suas desculpas, pois sou eu quem deveria pedir por perdão. Potts sorri para mim, as mãos no colo, demonstrando seu pesar pelo que fez. — Deveria ter conversado contigo antes de já ir pedindo que falasse todas aquelas coisas para ela. Sei que a Darcy é uma das cientistas que você mais gosta e que você ficaria embaraçada de qualquer forma. — Eu me sento do seu lado no sofá, relembrando quantas vezes fiz isso com Nat e como parece ter sido em outra vida. — Mil perdões, .
— Não tem problema — garanto e toco sua mão acima da sua aliança de noivado com Tony e ela segura meus dedos, cobrindo-os com sua destra. — É muito bom que você se sinta orgulhosa de mim, sério. — Não tenho coragem de olhá-la, mesmo sabendo que sua atenção está em mim, portanto me foco nas veias de suas mãos. — E eu preciso disso, sabe? Antes tinha tanta gente aqui e agora somos só nós três e o Happy. Foi legal conversar com a Dra. Darcy. — Ela acaricia minha pele ao perceber que não estou chateada pelo que aconteceu e sim muito agradecida por se importar o suficiente para querer me apresentar ao mundo. Então engulo em seco ao perceber a tensão palpável para o fim de minha resposta e dou de ombros. — O Harry também foi muito gentil.
Pepper balança nossas mãos, um sorrisão em seu rosto.
— Estou feliz que você está bem. — Beija nossas palmas e volta a esfregá-las. — E também estou feliz porque esta foi a primeira vez que eu te vi rindo com um rapaz. Não sei se isso é recorrente na escola, mas foi algo muito interessante de se ver, entende? — Concordo mesmo sentindo um calor crepitar por meu peito. Pepper nunca me viu sorrindo para rapaz algum, nem Peter ou Ned. Ela nunca os conheceu. — Sei que se sentaram juntos, pois foi a madrasta dele, a Emily, que comentou comigo sobre ele querer ficar longe de alguma menina e você era a melhor opção para sentar-se perto dele. Fiz a troca por baixo dos panos.
— O Tony não faz a mínima ideia disso, faz? — Confidenciei baixinho.
Ela franze o nariz e balança a cabeça.
— Tony tem os problemas dele com o pai do Harry, mas é algo muito além do que deve interessar você, meu bem. Coisas antigas e “amores” do passado que ultrapassam as questões dos negócios entre eles — explica com cuidado, me olhando. Quero lhe questionar de onde conhece a madrasta de Osborn, mas me impeço, ainda muito presa à ideia de Tony ter um passado amoroso onde Norman Osborn pode estar envolvido. — , o Harry é um bom rapaz e você fez muito bem em conversar com ele hoje, mesmo que eu sinta que estou te vendo dar seus primeiros passos. É loucura, claro! Não sei se um dia poderei vê-la com outros olhos, mas você ainda é uma criança pequena para mim. — Pepper ri e eu lhe acompanho, compreendendo seu interesse em Osborn e em nossas interações. — É confuso.
— Sabia que ele estuda em Midtown? — Os olhos dela se arregalam com a informação e eu assinto para lhe confirmar. — Estudamos biologia juntos, pelo visto. Na turma avançada. — Pepper concorda com a cabeça e se senta melhor no sofá, atenta. — Nunca o vi na escola, mas parece ser aluno novo.
— Como eu disse, ele é um bom menino — me garante com sinceridade, mesmo ciente que a relação de Tony com o pai dele seja turbulenta. — A Emily o criou como um filho, . Ela era a babá do Harry e sempre que o Norman tinha reuniões com o Tony, era quem levava o garotinho para a Torre Stark. Não pude falar com ele hoje, mas tenho memórias muito boas. — Aperta minha mão para enfatizar seu ponto. — Espero que vocês possam ser bons amigos. — Seu sorriso verdadeiro me faz sorrir também e Pepper passa meu cabelo para trás de minha orelha, encolhendo os ombros e com um brilho belo nos olhos. — Bom, eu vou te deixar dormir porque tem aula amanhã.
Ela apanha seus sapatos e levanta-se.
— Obrigada, Pepper — agradeço quando está subindo as escadas.
— Por quê? — A mulher me olha confusa, agarrando-se ao corrimão.
— Por se orgulhar de mim — esclareço com as bochechas quentes.
Pepper beija os dedos e os balança para mim com um sorriso antes de sumir.


Homecoming XII — Stuck With Me

(Sete meses desde a queda dos Vingadores).

“Espero conhecer em breve a pessoa especial que mencionou na mensagem, petal”

Estou relendo o bilhete de Natasha pela nona vez, tentando encontrar alguma mensagem criptografada nela, até mesmo apelando para o óbvio que é tentar montar uma palavra com a primeira letra de cada uma escrita, mas não há nada que possa arrancar do simples bilhete. Sei que é dela, de Nat, pois sou boa em reconhecer caligrafias e há manchas na ponta das palavras, puxando a tinta para a direita, pois ela é canhota. Escondi o envelope atrás da cabeceira em meu quarto, mas não consegui me livrar da carta principal. A mantive em meu bolso durante todas as aulas e não consegui deixar de a ler de novo durante o intervalo, muito focada em como Natasha conseguiu ver o que eu tenho enviado para sua linha telefônica antiga.
A noite de ontem foi exaustiva, não apenas pelo nó em meu cabelo, mas pela conversa que tive com Pepper a respeito de Osborn. Sobre a amizade que iria a agradar e sobre ele saber quem sou. Hoje pela manhã, enquanto estávamos vindo para o centro, pois ela teria de ir para a Stark Tower, Potts me garantiu que eu não precisaria ficar tão encolhida quanto fiquei ontem durante o jantar, pois o rapaz, assim como os sócios mais influentes de Tony, haviam recebido os chips para conter meus poderes. Não lhe questionei muito, mas sei que eles foram protegidos após a fuga de Wanda e dos outros, decisão alimentada pelas opiniões de Norman. Dobro o bilhete e o enfio no meu bolso, apagando Maximoff e Visão de minha mente por enquanto, eles também tendo consumido minha sanidade e energia nos últimos dias.
! — Conserto a expressão quando ouço a voz de Michelle, virando em sua direção para vê-la acenar para Betty ao sair da sala de história americana.
Dou um tchauzinho para a loira enquanto espero MJ me alcançar.
— Como foi ontem? — ela questiona ao se aproximar, afastando alguns cachos do rosto com a ponta da caneta que ainda segura. — Desculpa por não responder, mas quinta-feira é dia de jogos em família. Na próxima você vem?
— Tudo bem, não se preocupa. E claro, vou sim! — a conforto quando chegamos ao meu armário, o montante de materiais extras em minha mochila já a deixando estufada. — Foi ótimo. Você sabe, não é? — Ela se apoia em uma porta fechada para me ouvir, abraçando seu livro enorme de história. — Um monte de gente comentando o quanto eu cresci e perguntando dos namorados.
Sei que as mentiras estão saindo de controle, tanto as que conto a ela quanto as que conto para todas as outras pessoas em minha vida, porém reconheço que estas são necessárias. Então, neste ponto, os clássicos da televisão ajudam a entender como uma “reunião de família” deveria funcionar. Reconheço que não faria mal lhe contar sobre meus pais serem convidados para a despedida de Tony Stark, mas não encontro coragem em mim para fazê-lo e apenas ampliar minha história. Michelle é inteligente e tem uma boa memória — lembretes que devo manter em mente para não cair em uma armadilha e esquecer-me de algo. Portanto, lhe convenci que seria um jantar com amigos da família e alguns parentes que não via há anos, motivo que usei para recusar seu convite.
— Pelo menos não insistiram em questionar as suas decisões de faculdade.
Eu a olho com simpatia, entendendo o quer dizer com isso.
— A sua mãe ainda acha longe? — questiono ao enfiar minha pasta de resumos no armário e puxo um cardigã ao ouvir o diretor anunciar nos alto-falantes que a temperatura caiu nas últimas horas.
— Ela insiste que a Columbia é a melhor escolha... — Michelle suspira e encosta a cabeça na parede, olhos fechados por um momento. — Meu pai se abstém e parece que eu sou a única que quer o melhor para minha carreira.
Pego seu livro e o coloco em minha mochila, certa de que a sua está cheia.
— Harvard é a melhor escolha. — Lhe apoio e ela vira o rosto para mim com um pequeno sorriso agradecido, esfregando as mãos antes de as enfiar no bolso do casaco. — Direito é em Harvard. Não Columbia — garanto, vestindo o cardigã com a mochila no chão. O tecido me aquece de imediato. — Você sabe que tem o meu apoio completo, não sabe? — Seu temperamento se acalma, mesmo que amargo e eu imediatamente sei o que lhe aflige. Nem tanto por sua expressão, mas por meus poderes que transcrevem suas preocupações para mim. — É o seu futuro e nós duas sabemos que você pode, sim, pegar uma bolsa. Eles não vão precisar sustentar seus estudos, MJ.
— Para de ler a minha mente, — ela resmunga com os olhos fechados. Fecho meu armário com um sorriso, apoiada nele para lhe olhar. — Já falou com os seus pais, por acaso? Ou decidiu o curso que quer?
É a minha vez de respirar fundo.
— Não. — Eu cruzo os braços, encarando meus tênis brancos e a barra do vestido longo, o poá no tecido escuro combinando com os sapatos. Faculdade ainda é um conceito muito abstrato para mim mesmo após um semestre no ensino-médio. — Ciências... Alguma faculdade, não sei.
Michelle ri baixinho, achando graça de minha imaturidade no assunto.
— São tantos cursos que envolvem ciências, ! — ela relembra e eu suspiro, observando os alunos que cruzam os corredores quando o sinal do intervalo toca enfim. — Tantas faculdades boas...
— Posso ir para Harvard com você? — proponho e me satisfaço com seu sorriso. — Ou para onde você for, MJ. Não quero ficar sozinha. — A cutuco com o cotovelo. — Nem quando for enfrentar os onze graus lá fora para ir comprar um chá no carrinho... — Volto a lhe cutucar com um beicinho.
Sua risada é uma resposta concreta:
— Nem pensar, Black! — MJ ralha, mesmo que eu já soubesse que se negaria a tal. Uma semana atrás ficamos esperando a temperatura subir um grau apenas para atravessarmos o campo de futebol para irmos à biblioteca. Michelle odeia o frio. — Onde está o seu bichinho de estimação? Aposto que ele enfrentava esse clima só com samba-canção e meias se você pedisse.
Fecho os olhos, segurando o sorriso que insiste em tentar se formar, pois MJ é impossível e eu a venero. Desde o acontecido em Washington, ela adotou a ideia de Peter estar sempre me mimando, seja com atos simples como puxar a cadeira para mim até se oferecer para me “acompanhar” para casa, quando na verdade apenas me deixa na outra quadra onde Happy sempre me espera com o carro. E se tornou complicado ocultar dela o quanto seus atos de serviço são bem-vindos e como eles conseguem me desmontar com facilidade.
— Aula de Cálculo B/C com o Ned — respondo após me lembrar. Peter está passando por um momento complicado no ano escolar após se dedicar tanto a ser o Homem-Aranha, tendo de recuperar o tempo perdido com um montante de aulas e provas que podem alterar suas médias. — Acho que já deve estar saindo e, não se preocupe, eu já tinha pedido que ele me levasse porque você se recusa a virar picolé comigo.
— Verdade. — Ela dá um ronquinho. — Sou uma péssima amiga por não querer fazer cosplay de Capitão América com você — provoca e se impulsiona para frente, guardando a caneta do bolso e olhando para o final do corredor, possivelmente em busca dos dois. Ned costuma acompanhá-la para a turma de economia depois do almoço, então estão sempre juntos nas sextas-feiras. Coloco as mãos no bolso do vestido quando os olhos de MJ se apertam para olhar adiante, cabeça pendendo para o lado. “Quem, em nome de Finnick Odair, é esse?” Ergo o rosto para lhe olhar, sua dúvida pessoal me alcançando. “Nossa...” Jones balança a cabeça. — Olha, o Parker está vindo e a cara está péssima.
De imediato, sinto minhas sobrancelhas se apertarem.
— Ah, não... — sussurro, certa de que, mesmo com todo o barulho, Peter poderia me ouvir devido à sua audição perfeita.
— O Brown deve ter feito picadinho dele — MJ lamenta com uma careta.
Me contenho e não me viro para o olhar, desinteressada em ver o desânimo que deve marcar o seu rosto, apenas fechando as mãos em punho dentro do casaco. Com quatro trabalhos atrasados e médias baixas em algumas provas, era óbvio que o Sr. Brown não pegaria leve com Peter, afinal ele foi, sim, displicente com os estudos, porém... Certa parte de mim esperava que ele não fosse tão duro. Eu respiro fundo e tento buscar respostas nos olhos vacilantes de MJ, alterando o foco diversas vezes conforme mais alunos e professores enchem o corredor. Meu coração aperta com a possibilidade de Peter falhar em uma prova novamente, incerta do que isso significaria para ele. Dou uma olhada em algumas alunas que se viram para nós, olhando para onde estamos.
— Não... — minha amiga arqueja. — Não pode ser.
As íris de Michelle crescem quando eu a olho, mas logo alguém toca em meu ombro e eu tento alterar minha expressão o máximo que consigo para que Peter não reconheça o desapontamento que cruzou minha mente com possível veredito do nosso professor de cálculo. Quando me viro com minha melhor falsa tranquilidade, os dedos que seguravam o bilhete de Natasha não hesitam em esmagar o papel, um pulsar nervoso de meu coração acompanhando a reação exagerada quando — em vez de meu amigo quase retido — é Harry Osborn quem está atrás de mim; os olhos safira analisando meu rosto rapidamente para discernir se realmente sou eu e logo os seus lábios rosados se repuxam em um sorriso delicado.
— Oi, . — Osborn suspirou, atenção cravada em mim antes de acenar com a cabeça para quem imagino ser Michelle. — Olá, como vai?
Abro os lábios, pois meu nariz não parece conseguir lidar com a tarefa que é manter minha respiração regular, rosto erguido para, assim como ele, ter certeza de que estou falando com a pessoa certa. Contudo, não há dúvidas disso, não com as belíssimas sardas que adornam seu rosto ou o rubor em suas bochechas, essas que reconheço da noite anterior. Ainda incrédula que ele falava a verdade ontem, corro meus olhos por sua figura um pouco afastada para não invadir meu espaço pessoal, analisando a camiseta comum azul que destaca seus olhos em conjunto com um casaco, jeans e tênis, nada fazendo jus ao herdeiro bilionário que jantou ao meu lado menos de vinte e quatro horas atrás. Harry parece tão mundano que não julgo o fato de muitos não terem lhe reconhecido como alguém digno de muita atenção além de sua aparência. Só agora entendo a comparação de Michelle entre ele e Finnick Odair.
— Harry? — sussurro, incerta se posso usar este nome em público. Logo, seu conjunto de dentes perfeitos reluz entre os lábios e ele assente com a cabeça. — Oi.... — É a minha vez de cumprimentar antes de, ainda trêmula e surpresa, me virar para Michelle e receber um olhar abismado de Jones. Engulo em seco e molho os lábios. — MJ, esse é o Harry — apresento em uma tentativa de não precisar olhá-lo e evitar que perceba o rubor que deve manchar minhas orelhas quentes. — Ele é um amigo da família. — Toco no braço dela e MJ acena para ele, esforçando-se para dar um sorrisinho.
— É um prazer. — Harry parece certo de que seus sorrisos são inofensivos, pois ele dá mais um para ela, logo retornando sua atenção para mim. — Eu vim pedir o seu número. Me esqueci de pedir ontem — ele se explica, curvando um pouco os ombros para frente e pendendo a cabeça para se aproximar, as mãos nos bolsos. — Tentei falar com a sua madrinha, mas precisei sair antes do fim da festa.
— Madrinha? — indago mais baixo que antes e Osborn aperta a boca.
O loiro dá um passo em minha direção e eu estou estagnada entre ele e MJ.
— Tia Virginia — esclarece com paciência.
Pepper!
Assinto algumas vezes ao recordar-me do termo que foi empregado por maquiadores e cabeleireiros ontem e também deve ter sido usado por Pepper para me apresentar à madrasta de Harry ao mudar nossos lugares na mesa. E é claro que ele a chamaria de “Tia Virginia” ou até “Tia Pepper”, pois a conhecia desde que era uma criança. Em um segundo, estou a par de tudo o que conversei com Pepper ontem e reconheço que, sim, eu fugi da mesa assim que o jantar terminou, sem lhe dar chances de pedir por meu número ou algo do tipo. Só percebo que estou muda há algum tempo quando a caneta de Michelle cutuca minha coluna e eu aperto os olhos para evitar dar um pulo com o susto.
— Claro, a tia Virginia. — Concordo com a cabeça, não deixando de lhe lançar um olhar afiado e talvez agradecido por não mencionar o apelido bem conhecido dela perante MJ. Engulo em seco outra vez, questionando-me o motivo de não ter ido comprar o maldito chá antes e ficar como uma tola agora. Harry ergue a sobrancelha para mim, pacientemente me esperando lhe responder. — Hum... — Aperto os lábios e aponto para os fones de ouvido pendurados em sua camiseta. — Meu número está no grupo da turma do Walsh. B., como já sabe.
Osborn fecha os olhos e franze o nariz enquanto Michelle me dá outra canetada.
— Outra coisa que esqueci. — Pela primeira vez, eu o ouço rir e o som é tão elegante e jovem que puxo os lábios entre os dentes, sustentando o seu olhar. — E, por falar no Walsh, também queria te perguntar algumas coisas sobre a sua apresentação — Harry comenta, encostando o ombro no armário ao lado do meu e eu tento ir para trás outra vez, apenas para ser cutucada por MJ. — Não consegui me concentrar muito quando mencionou sobre reparos de pareamentos incorretos.
Um som alto e metálico ecoa pelo corredor, mas eu não sei de onde.
— A apresentação estava ruim ou a minha didática é o problema? — questiono.
Ele molha os lábios com a ponta da língua.
— Ambas foram ótimas, tenho de admitir — Harry me garante, íris cravadas na minhas. — Mas, como eu disse ontem, o seu sorriso é um fator distrativo bem relevante. — Desvio os olhos quando Michelle assobia surpresa em minhas costas, eu acabo por tocar minha pálpebra, sentindo certo calor emanar de minhas maçãs do rosto com o elogio e é impossível impedir um sorriso de se formar, mesmo que seja mínimo. — Esse exato sorriso é o culpado da minha distração. — Pelo seu tom, tenho certeza de que ele está fazendo o mesmo. Balanço a cabeça, o coração acelerado com toda atenção que recebo.
Abro os olhos quando MJ segura em meus ombros.
— Vou ser bem legal com você, Harry — Michelle inicia, apertando meus braços enquanto sustento um rubor morno, certa de que ela irá me livrar disso e me arrastar para o refeitório. MJ sempre foi muito protetora e isto é ótimo. — Que tal a te explicar sobre mal pareamento de fitas enquanto vão buscar um chá? Está muito frio lá fora. — Viro-me para ela, mas seus dedos ossudos estão corrigindo minha direção e eu torno a olhar para Harry, o canto de sua boca inclinado para baixo ao ponderar a possibilidade. — Ela gosta de chá de hortelã, chá verde e de camomila. — Jones dá um tapinha em meu braço antes de se afastar e eu a observo desesperada, descrente que vai deixar que alguém se aproxime tão fácil assim. — Parker, Leeds, quem vai comprar um suco para mim?
Um estalo de seus dedos atrai minha atenção para os dois rapazes a menos de cinco metros de nós — do outro lado do corredor lotado, ambos deveras atentos em minha conversa com Osborn, expressões confusas adornando seus rostos. Ned mantém os lábios afastados em um “o” perfeito, abraçando seu livro de cálculo ao dividir a atenção entre mim e Harry, confuso com a situação na qual fui abandonada por MJ. Já Peter, está tão desolado como imaginei que estaria após uma conversa severa com o professor Brown, uma ruga marcada entre suas sobrancelhas e a boca apertada em uma linha fina. A expressão é nova demais. Ele divide-se entre olhar para Harry e então para mim, impassível, e eu sei o que está acontecendo. Lhe dou um sorriso de boca fechada, garantindo-lhe que estou confortável em ficar sozinha com o estranho, logo fazendo Parker bufar de maneira contida antes de assentir com a cabeça apenas uma vez com rigidez, dando um empurrãozinho em Ned para que seu amigo ande com ele e MJ para o refeitório.
Quando estão longe o suficiente, retorno minha atenção para Osborn.
— Chá? — ele oferece e eu coloco a mochila no ombro.
Me viro na direção da saída ao concordar.


*


— De certa forma, sinto que preciso me desculpar pela maneira que agi ontem.
Admito, enquanto descemos a escadaria após deixarmos o prédio principal de Midtown, o aquecimento confortável muito esquecido e logo sou envolvida por uma corrente fria que ondula a barra de meu vestido enquanto calço um par de luvas. Felizmente, Pepper havia comprado calças leggings com forro de lã para mim, garantindo que só assim eu poderia usar vestidos durante o inverno mesmo com minha tolerância ao frio sendo alta. Adiante, onde havia grama verdíssima, a neve recobre toda a superfície a qual entra em contato, o aspecto cinzento de Nova Iorque tornando-se realidade com a estação congelada.
Osborn caminha ao meu lado com calma, também não parecendo tão afetado pelas temperaturas baixas. Ele usa um par de luvas azuis escuras, elas camufladas pelo casaco deveras semelhante aos que alunos comuns costumam usar no dia a dia, não sendo tão especial como eu esperaria que as suas roupas fossem. O rapaz deixa a palma estendida para mim, mas eu não seguro nela, certa de que posso descer um lance de escadas sem sua ajuda devido ao solado de meus tênis. Devagar e calmos, atravessamos um mar de alunos que lotam a entrada, todos agasalhados e comentando sobre provas finais que serão em três meses.
— Tudo bem — Harry descarta minha preocupação, ar quente ascendendo ao falar. Sua gentileza é notável e eu entendo o apoio que Pepper deu para nossa amizade. — Não liga para isso — dispensa outra vez. — Pessoas como nós, que têm segredos e uma vida diferente da convencional, costumam agir desta forma. — Não o olho, atenta para onde piso para evitar escorregar. — É estranho viver essa vida dupla e alguém entrar nela ou descobrir sobre. Estamos acostumados a manter sigilo e é assustador que alguém veja por trás das cortinas. — Sua voz está distante e eu me pergunto se essa é a primeira vez que precisa dar este discurso para alguém novo. Ou se um relacionamento com Pepper é suficiente para que confie em mim com este segredo.
— Essa vida-dupla, como colocou, só começou agora para mim e por isso a minha reação exagerada na varanda — explico-me, levando sua generosidade em conta. Osborn se demonstrou muito educado ontem e eu sei que reagi mal e até o ignorei durante a aula de Walsh, evitando lhe olhar mesmo quando era ele que se apresentava. — Antes do ensino-médio, eu estudava em casa e era tudo mais fácil. — As memórias de minha educação primária no Complexo são mornas, afinal eu podia estudar de pijamas e com uma manta sobre os ombros. Natasha cortava frutas para mim e Tony dava passadinhas na sala para ver como tudo estava indo. Toco minha orelha ao sentir frio, relembrando-me com carinho da bronca de Peter para que eu usasse um gorro e de como o anonimato era confortável. — As pessoas o conheciam em Eton?
Harry emite um som semelhante a um respirar e um riso misturados.
— Não. — Ele olha ao redor e eu considero que esta seja a sua primeira vez neste lado da escola por ser um aluno novo em Midtown. Não o observo muito, ainda lidando com o nervosismo de estarmos a sós outra vez. — Mas conforme eu fui fazendo parte de mais times esportivos, saíam fotos minhas no site da escola e muita gente descobriu — revela com a mesma voz calma de quando me disse sobre as gêmeas da Herzuma que se sentaram à nossa mesa. Tomo nota de que ele fala muito baixo sobre assuntos assim e sou grata por sua discrição. — Antes de tudo vazar para o resto do mundo, meus pais fizeram um acordo de confidencialidade com a mídia. Não saem mais fotos minhas em lugar algum. — Assinto para garantir que o entendo enquanto ultrapassamos algumas mesas que não serão usadas tão cedo. — É uma boa ideia para você — Harry indica.
Me recordo de meu incidente confundindo alunos com soldados ao ver o bosque.
— Para ser sincera, acho que fugir de câmeras ou atenção é mais cômodo. — Dou de ombros, certa de que se Tony considerasse que isso é seguro, já teria o feito para mim. Confio nele com minha vida. — Não sei se tem alguma foto minha na internet. — Estou quase sorrindo quando vejo uns alunos correndo pelo campo de futebol congelado, a educação física tendo sido transferida para o ginásio há alguns meses. — Vai fazer parte do nosso time? Midtown é a melhor da cidade em lacrosse.
O loiro caminha mais devagar para olhar as arquibancadas congeladas.
— Nunca joguei lacrosse — me informa com as maçãs do rosto rosadas e nós voltamos a caminhar em busca do carrinho de bebidas que muda de lugar toda semana. — Jogava polo. — Osborn balança a cabeça e dedilha o cabelo para afastar flocos de neve dele. — Por falar nisso, preciso de um par de luvas novas. Mas, de volta ao lacrosse, parece um esporte interessante.
Não controlo a risada baixinha que me escapa ao lhe ouvir.
— Então é esse tipo de rico, Osborn? — questiono para que só ele ouça. — É ali.
Um amontoado de alunos se reúne próximo a fonte onde o carrinho está.
— Não creio ser o único — ele alfineta ao nos aproximarmos. — Não é seu padrinho que tem uma fortuna de 88 bilhões de dólares? — Entorto os lábios, segurando meu celular firmemente quando ele vibra no bolso do cardigã.
— Incorreto — eu argumento ao sentir cheiro de chocolate quente e café fresco. Midtown conhece muito bem o gosto de seus alunos e sua necessidade por cafeína no final do ano letivo. Menos a necessidade de alguns em pagar tudo no cartão. Estalo a língua com irritação ao perceber meu erro. — Stark tem 92 bilhões. Eu tenho dois dólares no bolso e não vou poder comprar um chá, pois o carrinho não aceita cartão de débito — lamento com os olhos apertados. MJ me mataria se eu a fizesse enfrentar essa caminhada por nada. — Droga — praguejo aborrecida.
— Vem, eu pago para você — ele se oferece. Quase salto quando a palma de Harry toca minhas costas para que prossigamos. — Tenho um ticket de desconto. Imagino ser um agrado para os alunos novos. — Mesmo com o humor óbvio em sua voz ao me oferecer tal “comodidade” após compararmos fortunas, eu adiciono:
— Ainda bem... — assobio sarcástica. — Você nunca poderia pagar um chá sem um...
Ao retornarmos para o prédio principal, decido ver a mensagem que recebi.

Peter Parker
visto por último hoje às 13:18

Não esqueci o que falamos na quarta-feira, .

Biblioteca em quinze minutos?



*


— E ele comentou ter visto alguma coisa?
Nego com a cabeça, encostando a ponta de meus dedos curiosos contra o vidro gelado da janela. Os times esportivos não têm praticado já faz um certo tempo, provavelmente desde quando a neve começou a cair como pedrinhas de gelo sem forma até se tornarem os grandes flocos que se acumulam na arquibancada. Tal coisa me faz questionar como Peter conseguiu me ver cruzando o campo na direção da biblioteca e acenou para mim da mesma janela que toco agora. Eu optei por lhe contar tudo o que aconteceu, não poupando nada. Contei sobre a veracidade absurda de meus pesadelos e o pânico de ver Visão ir embora, me deixando lidar com eles sozinha mesmo quando sabe virem da Joia da Mente. No fim de tudo, minhas mãos estavam formigando e eu as espalmei nas coxas, tentando as ocultar mesmo que quisesse que Peter as segurasse.
— Não, mas ele não precisou contar, Peter. — Suspiro, encostando a cabeça contra a janela, me confortando com o frescor do vidro. — Após entrar em contato com o Cetro do Loki, eu adquiri todos os poderes que a joia podia me oferecer. Então, o Thor criou o Visão com a Joia da Mente — esclareço, com os olhos fechados. — Por isso estou conectada a ele. À Wanda também, mas é pouquíssimo, pois ela passou menos tempo com o Cetro que eu. — As memórias de Sokovia tem gosto metálico de sangue e azedo de vômito. — Eu consigo me conectar com o Visão, pois temos a mesma origem e ele a mantém aqui. — Toco a testa.
— E se você está sentindo isso... — Aperto meus lábios, o olhando enfim. Peter exala preocupação, mas não posso me arrepender agora. — Ele também está e com mais intensidade. — Confirmo ao perceber que sua mente funciona como a minha. — Você não acha que devia falar com o senhor Stark? Precisa buscar o motivo disso e se desfazer o mais rápido possível, . A confirmação sobre os presságios é tudo o que precisava — Peter garante, com os olhos vagando por meu rosto. — A Joia da Mente é um dos artefatos mais poderosos do universo, certo? Então eu só consigo relacionar os seus pesadelos e inquietude a ela. — Suspiro com pesar. — , você precisa falar com o Tony logo.
— Vou fazer isso hoje, Pete. — Não sei como falar com Tony sem alarde, sobretudo agora que Visão fugiu para viver o seu amor proibido com Wanda. Sim, a história é romântica, mas podia esperar mais e até que tudo houvesse se resolvido antes de partirem. — Só queria saber da sua opinião primeiro — admito embaraçada, me pondo de pé ao seu lado. — Queria saber se não era um delírio meu. Obrigada por não pensar que estou louca.
Ele não reage com a brincadeira.
— O senhor Stark jamais pensaria que isso é loucura, . Nem eu — Peter repreende, abaixando o rosto para me olhar e entro em choque quando toca em meu ombro. Ponho minha mão sobre a sua para senti-lo melhor, sentindo suas veias na palma de minha destra. — Não te deixaria noites a fio acordada se fosse algo ignorável. Se o Visão não parece bem, está claro que precisam tomar uma providência. E sei que o Tony acredita em você.
Dou de ombros, ainda segurando seus dedos.
— Quem mais vai acreditar além dele? — questiono-lhe com um suspirar pesado. — Peter, tem pessoas que veem a Wanda como uma esquizofrênica que não consegue controlar as emoções porque não compreendem como a joia a afeta — repito o que já vi e li centenas de vezes. Norman Osborn é a prova viva de tais opiniões. Toco minha costela após uma pontada desconfortável que se tornou recente nos últimos dias. Volto a me sentar perto da janela e relaxo a postura, apertando a boca. — Não imagino alguém acreditando que uma adolescente está sonhando com algo tão arrasador. Então vão caçar os meus exames onde os psiquiatras provam meu terror noturno e fim de jogo. — “Espera, . Você está sentindo alguma dor?” Sinto-me uma tola por lhe contar tanto e ele só ter se atentado em como pressiono a mão na lateral de meu corpo. — Eu estou bem — garanto-lhe, cobrindo o desconforto com um sorriso.
Logo, Peter se encolhe para poder sentar-se ao meu lado e passa o braço por meu ombro, me trazendo em sua direção. Eu aspiro o cheiro do aromatizador no canto da janela para distrair-me de seu toque. Não costumamos fazer esse tipo de coisa na escola, mas o fato de estarmos escondidos atrás de algumas estantes parece ser o suficiente para lhe dar a confiança de demonstrar afeto em público. Assim me permito tentar relaxar, apoiando grande parte do peso de meu corpo nele e sentindo sua mão segurar meu braço com firmeza para me manter junto.
O que sinto é uma dor mental e física, ambas debilitantes e intensas. Fecho os olhos de novo quando sinto Peter se afastar um pouco e a lateral de nossos corpos deixa de se tocar, então ouço o barulho de sua garrafa se abrindo e o olho para beber a água que me oferece. A engulo com força enquanto segura-a em minha boca para me forçar a beber mais antes de guardá-la. Peter me segura de novo e eu toco a sua mão, sentindo quando lágrimas se formam pelo alívio em lhe dizer a verdade.
— Você não é como a Wanda. E nem ela é má ou esquizofrênica — Peter garante sério, sem parecer falar nada disso apenas para me consolar, uma irritação óbvia em sua voz tanto pela comparação quanto pelo termo. Porém, ambos sabemos que é a mais pura verdade, principalmente quando me lembro da dor que fiz ela, Sam e Bucky passarem no aeroporto. — Se fosse, teria deixado os nossos amigos morrerem em Washington. Ou teria feito coisas muito piores, .
Afasto o rosto do ombro de Peter.
— Eu machuquei todos na Alemanha — afirmo, certa do que fiz quando as lágrimas de realização pinicam meus olhos. Encaro as minhas mãos; a pele cada vez mais fina e com terrível fragilidade que mostra o mapeamento das veias e a forma dos ossos. — Estava com medo e me senti traída por irem embora. Então tentei os machucar. — Eu respiro fundo quando Peter toca meu cabelo assim que meus ombros começam a tremer. — Acho que usei muita força e o Bucky deve ter sentido dores horríveis por minha culpa, Pete. Ele... Ele não merecia.
— Você ficou com medo e perdeu o controle — Parker repete e eu mordo o lábio para suprimir um lamentar dolorido. — Ficou assustada e não sabia como agir. Isso não significa que queria machucá-lo por simples maldade, entendeu? Não significa que você é uma pessoa má. Pelo menos, eu sei que não é porque alguém me mostrou a diferença entre sentir medo e fazer algo ruim de propósito. — A sua voz é dura e sei que fui eu quem lhe disse isso, porém é muito difícil acreditar agora. — Os seus poderes são, sim, fortes demais e alguém pode realmente se ferir, mas não notou ainda que é sempre quem sofre mais por eles? Pela ação deles e pelo seu medo? — Assinto quando seu dedão acaricia meu cabelo. — , não chora — pede com carinho e eu amasso sua camisa de novo.
— Eu quis lutar naquele dia, Peter. — Fungo ao recordar-me do que senti após Wanda me atingir pela primeira vez. — E vi todos os meus piores medos cruzarem a minha mente quando a Wanda quis, do mesmo jeito que o Bucky viu os dele por culpa minha. E quando, quando eu machuquei o Sam também, eu me senti tão forte! — lamento com raiva. — Também quis lutar com o Clint, entende? De verdade e sem moleza alguma, porque deveria provar que conseguia ser forte. — Enxugo minhas bochechas quando as lágrimas caem. — Você não vê? O Tony me chamar para os Vingadores não é certo e por isso eu pulei para fora.
Soluço quando os lábios quentes de Peter se pressionam à minha testa, suas mãos segurando minhas bochechas úmidas e logo ele está puxando-me contra seu corpo como se me escondesse da dor. Empunho sua camisa, pois preciso me sentir presa em algo, mas ele não se importa de novo, apenas me trazendo para perto de maneira que estamos apoiados no peitoril da janela e ele pode me segurar com mais cuidado, a mão escorregando para minhas costas enquanto eu respiro em seu peito. Quero entender por que fui a escolhida para carregar esse mártir, o motivo de Rumlow me escolher naquele dia, entender por que isso tudo aconteceu e o simples motivo da mulher que deu à luz a mim não ter abortado a gravidez. Quero entender desde o início, o como fui a escolhida para isso.
Talvez assim se torne mais fácil suportar tudo que vai acontecer.
, aquele foi um erro e sinto muito que tenha acontecido, mas você vai precisar engolir a dor. E eu não vou deixar que se foque nisso agora, porque não faz sentido nenhum. — Peter insistiu, lábios ainda no topo de minha cabeça e logo dando lugar à sua bochecha, falando um pouco mais alto para que eu possa ouvi-lo com mais clareza. — Aquilo já passou e não vai acontecer de novo. Você não precisa mais ter medo de ficar sozinha. — Concordo devagar, mas não sei se tenho bem-estar mental suficiente para fazer o que pede. Me concentro na maneira que sinto o pulsar de sua jugular em meu ouvido, ou o toque de seus dedos em meus cabelos ou como o seu braço parecer ser do tamanho correto para envolver minha forma com precisão. Sei que posso contar com ele em cada passo e isso me espanta. — Prometo que não vai mais ficar só.


*


Espero até que a porta do elevador se abra, mãos escondidas atrás das costas e abaixo da mochila enquanto aperto a ponta de cada um de meus dedos gelados. Conto todos eles como a Sra. Hall ensinou, dizendo que era uma das formas mais normais de acalmar minha ansiedade e mais fácil de disfarçar quando em público. Cinco dedos em cada mão. Dez no total. É o suficiente para que eu não pare o elevador e, em vez de ir até a área de convivência, apenas suba direto para os dormitórios. Mas, bem, não é a única coisa que me impede de dar para trás. O outro motivo se move impacientemente do meu lado como uma criança no primeiro dia de aula. Peter Parker permaneceu ao meu lado durante resto do dia em Midtown, desde as poucas aulas que tivemos juntos até os horários livres quando se ofereceu para me fazer companhia no laboratório de química quando MJ saiu para comprar uma vitamina.
Ele nem sequer piscou quando pedi que me acompanhasse na conversa com Tony. Diferente dos últimos dias, Happy tinha um assunto de Stark para resolver e não poderia me buscar na escola e tivemos de optar por meus poderes para vir até o Complexo. Peter precisou de um pouco de tempo para conseguir se convencer de que pegar um ônibus até o local não faria sentido algum e simplesmente suspirou alto e dramático antes de segurar minha mão e dizer que estava pronto para “aparatar”. Agora, suas mãos estão enfiadas no bolso do jeans e os seus olhos curiosos escaneiam tudo ao nosso redor com admiração.
O rapaz me olha ansioso ao sermos alertados de que chegamos ao nosso andar.
— Vem, Pete. O Tony deve estar almoçando.
Seguro seu braço quando saio da caixa de metal que me dá arrepios, respirando fundo o cheiro de pinhos proveniente da decoração de Natal. A sala inteira está com luzes acesas e a televisão ao lado do elevador está baixinha, o jornal da tarde soando distante. É estranho para mim trazer alguém para o Complexo, principalmente sem ter entrado em contato com Tony e Pepper antes, mas percebo que não é isso o que me deixa nervosa.
— Tones? — chamo em voz alta, lançando minha mochila sobre o sofá. — Cheguei!
Tenho certeza de que a grande causa das minhas bochechas e orelhas vermelhas é a prova de intimidade oculta que é ter Peter dentro de meu refúgio mesmo que eu já houvesse estado em sua casa várias vezes antes. Minha “toca”, como Sam Wilson costumava chamar o local. Contudo, não me importo que ele adentre este pequeno pedaço de minha vida, mesmo que me exponha demais e eu sinta um choque com sua presença tão nova e que, mesmo assim, não me incomoda pela invasão. É impossível que Peter possa me incomodar.
— F.R.I.D.A.Y? Onde está o Tony?
Quando olho para Parker, ele ainda está no mesmo lugar, segurando a mochila e arrebatado. Imagino que a cena seja hilária para qualquer um, mas para mim não é. Principalmente quando vejo um pouco da antiga na forma que ele não consegue engolir a magnificência do lar, algo que nem entendo como consegui me acostumar com o passar dos anos. Um sorriso compreensivo me escapa quando nossos olhos se encontram e eu sei que Peter tem noção que eu jamais riria de seu fascínio e do fato de não estar nem um pouco acostumado com locais assim. Eu também não estava antes de tudo e tive um grupo bem gentil para me ajudar na transição de celas pútridas para uma vida de luxo.
— É, eu sei — murmuro compreensiva, encolhendo meus ombros ao dar mais uma olhada na decoração que não se assemelha nem um pouco com a de seu apartamento no Queens. É difícil decidir se isso me é agradável. — Uma hora você se acostuma, confia em mim — prometo ao tirar a mochila pesada de entre seus dedos quando o mais alto parece despertar após minha garantia com um tom rosado tomando conta de seu rosto, assim como o meu fez quando fui até sua casa pela primeira vez e tudo parecia novo demais. O paralelo me faz sorrir. Peter pisca ao concordar com a cabeça. — Sinceramente? Eu ainda acho a sua casa um pouco mais aconchegante.
Isso parece acalmá-lo e logo a voz de F.R.I.D.A.Y soa:
Srta. Black, o Sr. Stark está no laboratório e mandou o Sr. Parker limpar a baba.
Uma risada me escapa quando me viro na direção de Peter e ele está secando a lateral dos lábios com a manga do casaco como havia sido instruído pela Inteligência Artificial e está ficando ainda mais vermelho. A cena amável se fixa em minha cabeça enquanto o guio até as escadas após cruzarmos a sala de estar e ele comentar baixinho como o cômodo é maior que seu prédio e eu apenas balanço a cabeça, um pouco preocupada com a magnificência lhe incomodar, mas logo que questiona sobre F.R.I.D.A.Y e afirma que nem sequer havia percebido a presença de alguma câmera na sala e sua voz está sonhadora de novo, percebo que foi apenas o choque inicial. Ainda é um pouco estranho lhe ter aqui comigo, mas ignoro o sentimento ao adentrarmos o corredor dos laboratórios dos Vingadores no andar inferior.
— Esses são os laboratórios que o Tony falou naquele dia? — Peter indaga interessado.
Estou digitando a senha quando Stark responde o outro herói:
— Só Vingadores ganham laboratórios, Sr. Parker — ele relembra. — É a regra.
Tony está se movendo ainda devagar dentro do enorme laboratório, lançando o paletó preto sobre um banquinho ao lado de Dum-e (que logo se ocupa com dobrá-lo e colocar em um cesto com as roupas que alguém sempre guarda depois). O laboratório recebeu uma repaginada merecida após minha última visita há alguns dias; mais algumas mesas móveis foram adicionadas, a coleção de armaduras exposta por trás de painéis de vidro blindado e algumas outras coisas chamam a minha atenção, como a máquina de impressão 3D, outros robôs semelhantes a Dum-e e telas enorme de display. Bom, talvez seja hora de Tony pedir que eu não babe em seu piso.
— Você tem novos Dum-e’s? — questiono. — Tony, isso é desumano.
Provoco, quando esbarro em Peter ao dar um passo para trás e tentar ter uma visão melhor do teto com luzes frias e os novos projetores. Parker segura meus braços para me manter equilibrada e também olha tudo mil vezes mais surpreso que eu. Stark dá um meio sorriso em resposta à minha pena do robô enquanto subimos as escadinhas até o segundo nível para alcançá-lo, sentindo minhas mãos formigarem para poder tocar em algo e até mesmo montar qualquer coisa para inaugurar o novo playground. Peter segue próximo a mim ainda em silêncio, mas com um sorriso tão verdadeiro em seu rosto que me faz sorrir também.
— Por que reformou o laboratório?
— Porque eu decidi que deveria fazer algo quanto aos seus sonhos e as agouras do Visão enquanto ainda temos tempo de reagir — Tony responde ao me olhar. — Mas eu quero ouvir de você o que está acontecendo.
A resposta me espanta ao ponto que sinto o sangue sumir de meu rosto, pois pensei que jamais saberia sobre o que fiz quanto a fuga de Visão e nossa pequena conversa na escada. Engulo a seco, tentando organizar meus pensamentos e inventar alguma desculpa boa o suficiente para explicar-lhe por que não saí correndo e gritando que o Android iria fugir ou tentei impedi-lo. Contudo, Tony já está apoiado contra uma mesa, adornado com o colete do terno e uma camisa branca por baixo deste, os braços cruzados e expressão conhecedora que me diz que conversaremos sobre isso depois. A sós. O herói mais velho aponta para dois banquinhos diante de si com um suspiro, onde eu me sento de forma relutante e Peter imita minha ação. Estou tensa, pois finalmente não tenho outra opção a ser não contar a verdade.
— Tá bom. — Suspiro quando a atenção dos dois se dirige a mim. Tenho certeza de que se lhes contar tudo, estarei apenas apressando o processo, mas preciso fazê-lo. — Lembra quando a Maria Hill descobriu exatamente o que os meus poderes significavam? O que a Joia da Mente tinha feito comigo e o Thor, admirado, me chamou de “oráculo”? — A memória da face incrédula do deus nórdico me traz certa calma. — Na mitologia grega e em Asgard, oráculos são seres que transmitem profecias. Guerra, nascimento, morte e tudo no meio disso. E talvez, só talvez, ele estivesse certo. — Os olhos de Tony estão atentos, transmitindo tanto compreensão como apreensão e queimam minha pele. Não ouso olhar para Peter, envergonhada com a natureza de meus poderes. — Eu tenho sonhado, quase todos os dias, com isso. A mesma coisa que aconteceu naquela noite que você e a Pepper me ajudaram.
Tony aperta a ponte do nariz.
— Eu pensei que aquilo só houvesse acontecido uma vez, .
— Ela está tendo flashes. — Disparo um olhar horrorizado na direção de Peter Parker, este que se pronuncia pela primeira vez desde que a presença de Tony surgiu. Peter tenciona os ombros ao me olhar, a face leve, pois sabe que eu jamais diria a Tony toda a verdade com medo das consequências, mas também por saber que de alguma forma está certo. Posso ver com o canto de meus olhos quando Tony puxa um banquinho para si, pedindo que o rapaz continue. — Às vezes para no meio da aula e fica contando os dedos da mão. — A voz de Peter se perde. — Ela me contou sobre terror noturno e dores no corpo. Eu já tinha percebido antes, mas hoje foi na costela e normalmente é dor de cabeça. A não deve estar percebendo, mas está tendo uns arrepios e está mais distante que o normal.
— O arrepio eu já tinha percebido. — Tony assente. — Obrigado por lembrar.
Abaixo a cabeça ao lhe ouvir.
— Na noite da sua crise, , você estava tão febril que pensei que iria desmaiar a qualquer momento e por isso eu joguei água em você, tentando te manter acordada. Parecia que estava pegando fogo e eu podia jurar que estava fervendo. — Meus olhos se estreitam, pois sequer me lembro de conseguir respirar naquela noite, então confirmar ou não soa impossível. — Disse também que estava em chamas. E estava virando cinzas. — Esfrego meus olhos quando as memórias do sonho horrível retornam e respiro fundo, o ar não parecendo preencher todo meu pulmão. Não sabia que havia conseguido dizer aquilo tudo. Ou que meu corpo estava quase em chamas. — Eu pensei que fosse só o pânico falando, então o Visão disse estar sentindo algo e te fez piorar drasticamente. — Corro a língua por meus lábios e Tony me olha, receoso. — O que você viu?
— Uma chacina? — É uma pergunta, pois não sei se posso classificar tudo o que minha mente tem me mostrado como “morte”, pois parece muito pior. — Muito sangue. — Recordo-me devagar, com a língua pesada e as palavras bárbaras emboladas. Engulo a seco e molhos os lábios, abaixando a cabeça, pois não suporto os olhares preocupados dos dois. — Parecia ser uma guerra com um exército estranho, desconhecido e certamente não-humano. Definitivamente não-humano, mas tinham humanos, alguns, lutando contra eles. Foi pior que Sokovia, Tony. — Máquinas e robôs não estavam presentes em meus pesadelos, apenas pessoas que desconheço e a relva de uma clareira enorme. E talvez percebo que Ultron não foi o pior inimigo que pude ter. — Pior que os Chitauri ou qualquer coisa que alguém já viu.
Aperto a cintura até que minha costela grita por alívio.
— Eu... Senti uma pressão enorme no peito e um calor... — dou ênfase na última descrição, mas ainda não é o suficiente para expressar o que senti. Foi como um inferno me incendiando. Fico de pé, pois minha mente inquieta pede que eu o faça, cobrando que não demonstre estar amedrontada e que ainda sou eu. Minha visão ondula, mas caminho com segurança e afasto o cabelo de meu rosto. — Um ardor como se estivesse em um forno. — Um arrepio atravessa-me quando recordo de como parecia haver metal líquido em minhas veias e não sangue. Lembro também como escorreu por meus dedos no primeiro pesadelo. — Eu não tive mais forças para lutar, mas com todo o cansaço que sentia, tenho certeza de que já estava fazendo isso há um bom tempo. — Molho os lábios com a ponta da língua, verificando se não estão fervendo em febre, o que tem se tornado normal e destruído meu estoque contrabandeado de remédios. — Parecia que estava sendo queimada viva, Tony — confesso com a voz apertada e engulo a seco, pois é agonizante. — Ardendo, queimando e com a pele fritando antes de virar cinzas.
O cenário é o suficiente para que o silêncio recaia e seja quase ensurdecedor no laboratório. Ainda assim, mantenho o rosto erguido para demonstrar que estou com meus sentimentos equilibrados e no mínimo sob controle, reconhecendo que não posso mais chorar por isso — ao menos não quando Tony está aqui e preciso provar que aguento o dever e as consequências que acompanham meus poderes. Não posso mais agir como uma criança, pois prometi ser parte do time mesmo sem uma apresentação formal ao público uma semana atrás, e preciso fazer minha parte em segurar as pontas com ele agora que os outros se foram. Todavia, não olho para Tony ou Peter, pois não vou suportar a piedade que sei sentirem por mim. A pena que acompanha aqueles que conhecem um tanto de meu passado — e, agora, possível futuro — é insuportável.
— Se isso tudo for acontecer. — Stark estende a mão para chamar nossa atenção, respirando fundo. — Se estiver certa e uma ameaça como essa surgir, vocês dois precisam estar preparados. Ninguém vai morrer, pelo menos nenhum de vocês dois vai, enquanto eu estiver aqui. — A voz de Tony é severa e a afirmação me faz precisar apoiar em uma estação de trabalho. Peter também está de pé agora, o olhar duro e a mandíbula firme ao ouvir atentamente. A mudança na atmosfera me surpreende, mas eu sei que não será o pior que passarei em um bom tempo. — Precisam aprender a trabalhar juntos daqui em diante, lutar juntos e contra outra ameaça em comum. — Tony permanece diante de nós, ciente de seu dever em tentar moldar-nos a tempo de o pior acontecer. — São bons, eu sei, mas só isso não ajuda em nada e precisam de treinamento. — Me seguro para não correr para os braços de Tony quando afasta os lábios ao respirar. — , quanto tempo acha que temos?
— Eu não sei — respondo perdida. Não posso estipular um cronômetro em minha cabeça mesmo que precise, mas reconheço que meus sonhos podem ser pistas satisfatórias para conseguir uma previsão. Posso suportá-los por mais um tempo até que adentre uma condição catatônica se necessário e possa os alertar de antemão. — Se os sonhos são só advertências, então talvez... Talvez eu possa nos arranjar mais tempo, não?
— Nem pensar, . — Stark suspira alto, desabotoando seu colete. — Eu te proíbo de sequer pensar nisso. Não vai ficar negociando com a sua mente sobre algo que não temos certeza. Não vale a pena e é arriscado. — Fecho os olhos, agora que sei muito bem o motivo de sua testa ter se franzido após ouvir minha opinião. Eu também teria receio de arriscar alguém em algo assim, mas não consigo pensar em outra alternativa. E mesmo que me machuque, gostaria que ambos Visão e Wanda estivessem aqui para conseguirem me ajudar a explicar-lhes quanta vantagem isso seria. — Eu vi como ficou depois do primeiro sonho ou o que seja. , você não tem autorização para reagir, está entendendo? — O olhar de Tony parece horrorizado. — Eu não vou ter como te trazer de volta!
Franzo o cenho, mesmo reconhecendo sua preocupação com minha segurança.
— Mas eu posso tentar! Posso... Posso tentar os puxar pra mim e impedir que algo horrível aconteça, Tony! Eu posso atrasá-lo e nos dar mais tempo para entender como podemos reagir! — Me recuso a obedecer ainda que entenda o receio dele. Não sei se conseguiria dormir a noite se algum deles estivesse em meu lugar, entretanto não sei mais o que pode ser benéfico para nós a este ponto. — Na escola nós aprendemos sobre a história do Oráculo de Delfos da cultura grega, Tony. Pítia era a profetiza de Apolo, que podia entrar nas profecias e entendê-las para ajudar os heróis. Teseu e Jasão foram ajudados. — Toco meu peito. — Eu posso tentar!
Parker respirou tão fundo que pensei que ficaria sem ar e Stark desfez a gravata com certa força. Oh, certo. Agora eu sou a louca. A resiliência dos dois em aceitar a ajuda é revoltante. Tenho medo do tempo estar se esvaindo pelas pontas de nossos dedos enquanto os dois simplesmente não conseguem aceitar que tenho algo de útil para disponibilizar. Me sento sobre a mesa com irritação, a real probabilidade de uma guerra ser travada ainda deixando as minhas pernas bambas e eu não confio nelas, ainda mais agora. Recuso-me em ser vista frágil e amedrontada quando tenho algo valioso para oferecer.
— Escuta, , não tem como você controlar isso. — Peter aperta a boca e morde a parte interna das bochechas para se conter, mandíbula contraída antes me olhar. Ele não parece acovardado como imaginei que estaria depois de tudo o que me ouviu dizer, mas sim aflito. — Nós não estamos em Harry Potter e você não pode controlar o vilão na sua cabeça. Não é assim que isso funciona e ele, ou sei lá, pode reagir e te machucar. Machucar ainda mais que machucou. É perigoso! — Aponta a mão para mim e é a primeira vez que o vejo tão irritado. Nunca imaginei que Peter estaria tão aborrecido por eu o oferecer ajuda. — Por favor, tenta entender isso! — Balanço a cabeça, cruzando meus braços acima do peito em desafio e ele não reage. — , você sequer se lembra que o Oráculo de Delfos entrava em uma espécie de transe e vivia por séculos em um coma? Isso é loucura! — Suas sobrancelhas estão apertadas.
O assovio alto de Tony nos faz parar antes mesmo que eu responda Peter, surpresa por usar meu nome completo pela primeira vez em muito tempo.
— Eu preciso saber se vocês entendem o que estão fazendo. — Tony contorna sua mesa principal, o rosto em um misto de inquietação e culpabilidade adiantada, mesmo que seja quem menos quer acreditar. — Vocês estão entendendo que se algo acontecer, não vão poder dar para trás, certo? Que vão ter outras sete bilhões de pessoas contando conosco para verem o Sol raiar outro dia. — Meu corpo esquenta de forma repentina, até minha pele arder como um sinal de alerta. — Isso não é um roubo a carro ou uma bomba surpresa em uma missão. — Ele nos olha separadamente. — Se for pior que Nova Iorque ou Sokovia, é uma guerra real e longa, e vai ter suas fatalidades inoportunas. — A imagem de Pietro Maximoff surge em minha mente e eu sinto em meu coração o que Tony quer dizer com isso. — Quero saber se estão ou não dispostos a se arriscarem. — Peter me olha por alguns segundos antes de abaixar a cabeça, braços cruzados em seguida. — Se não, posso dar um jeito de mantê-los seguros. Mas se aceitarem, preciso que estejam cientes dos riscos.
— Não há outra opção. — Parker engole em seco e eu assinto. — Estamos dentro.


*


— Esse é o andar dos dormitórios.
Após precisar atender uma ligação inesperada, Tony nos liberou do laboratório para que eu pudesse apresentar o Complexo a Peter e tentássemos engolir todas as informações que ele havia nos dado ao confirmarmos nossa lealdade à causa e comprometimento com nossos deveres. Stark prometeu que conversaria com May Parker para garantir que seu sobrinho passasse fins de semana conosco para sermos treinados por ele. Também avisou que entraria em contato com velhos amigos que podiam nos ajudar no treinamento e auxiliar com nosso condicionamento físico, tentando aprimorar nossas habilidades o melhor possível enquanto pode. E, repentinamente, o frio não é mais um grande problema e sim o calor que me domina enquanto decido apresentar os dormitórios primeiro apenas para livrar-me de minhas luvas.
Peter permanece quieto ao me seguir escadas acima, mãos nos bolsos e a camisa de flanela azul destacando-se nas paredes cinzas do local. Lhe dou passagem ao chegarmos ao andar onde passo grande parte do dia, respirando fundo, pois toda a conversa com Tony faz uma dor se espalhar acima de meu olho. Peter observa o corredor largo com atenção, divergindo-se entre as portas fechadas e a minha que está entreaberta no centro da parede esquerda. Troco o peso de uma perna para a outra ao decidir o que falar.
— Esse com a luz ligada é o meu. — Indico e ele assente, parecendo ainda indeciso se pode olhar ou não. Aproveito que está de costas pra mim e dou um pequeno sorriso que só a timidez de Parker consegue me arrancar num momento assim. — O Tony falou que você ficaria entre mim e o Visão, mas, além do Visão ter ido embora, o quarto dele foi demolido no verão. — Aponto para onde a porta estaria. — A Pepper insistiu que aumentassem o meu quarto, então eu peguei o que seria o seu e o dele — justifico, com um sorrisinho sem graça ao passar por Peter. — E você tem mais três opções: o último era o do Sam, o do meio era o do Sargento Barnes e o no início do corredor era do Rogers. — Mostro cada um. — No outro corredor, quem ficava eram a Agente Romanoff e a Wanda por ser a ala feminina, mas como... — Balanço a cabeça ao me sentar no braço do sofá e Peter assente, entendendo o que quero dizer. — Me transferiram para cá e fecharam os outros.
— Sou eu quem vai escolher? — Ele me olha surpreso pela informação.
Concordo com a cabeça. Em outro momento, nós lhe designaríamos um livre, mas como não tem tido muita concorrência ou outros moradores, será escolha dele. Observo enquanto Peter enfia as mãos nos bolsos de trás dos jeans e dá uma bela olhada ao redor, caminhando um pouco de um lado para o outro. Ele, por fim, aponta para a porta diante da minha, ação que faz meu estômago formar um redemoinho. Sei que as paredes do Complexo são reforçadas, mas sei também que Peter tem uma audição extremamente apurada e afiada para os menores ruídos, então há uma terrível sensação em meu âmago ao considerar que, no caso de uma crise ou terror noturno, ele poderá me ouvir.
Engulo o sentimento para repensá-lo depois e assinto, levantando-me.
— Boa escolha, Parker. — Toco no painel que substitui uma maçaneta, digitando o código geral de FRIDAY. — Sua primeira interação pela manhã vai ser comigo e o meu pijama do Homem de Ferro. — A inteligência artificial requisita por uma senha e eu dou passagem para o herói. — Escolhe uma senha de doze dígitos que vai ser o seu código para o Complexo. Só entra no seu quarto quem tiver ela e você só pode pegar comida no refeitório do primeiro andar se tiver uma. Quando quiser se trancar em um cômodo por motivo de segurança, usa essa senha. — Viro para olhar meu quarto enquanto digita no painel. — Só vai conseguir entrar quem estiver um nível acima; e no momento, o Tony é o único. Tem um cartão magnético no apoio perto da cama e ele serve como sua senha para acessar o elevador.
— É o aniversário e o nome da minha mãe — Peter me diz sem preocupar-se muito e eu ouço quando FRIDAY confirma a senha. — Fica M01A03R1970Y.
— Você confia demais em mim, Peter Parker. — O olho alarmada, incrédula que confia o suficiente em mim para oferecer uma informação de segurança. Ele balança a cabeça e cadastra todos as digitais que também funcionam como uma senha de ativação para itens de menor perigo. — Sabe que eu posso muito bem te trancar no seu quarto agora que tenho a senha, não sabe? — provoco e me sento no sofá com um pouco de cansaço.
Tive um dia longo e muito emotivo para não estar cansada e precisar de um minuto de descanso. Um minuto para compreender que Peter não se importa em esconder coisa alguma de mim.
— Já ouvi isso antes... — ele murmura, enquanto finaliza seu cadastro. Dou um sorriso ao lembrar-me que é verdade e isso aconteceu quase dois meses atrás e ele estava doente. — E não é culpa minha que é inofensiva, . — Parker dá de ombros ao se sentar comigo, segundos após a tranca do quarto soar.
Entreabro meus lábios antes de cair em uma risada com a acusação.
— Ah, ok! — Peter assente com sarcasmo, esticando as pernas para o corredor e me dando um empurrãozinho com o cotovelo. — Você é, sem sombra de dúvidas, assustadora. E deve ser muito mais assustadora pela manhã com o pijama do Homem de Ferro. — Ele ergue as mãos em defesa, encostando a cabeça na parede com um sorrisinho bobo no rosto. Chuto o seu pé, decidida a lhe perturbar apenas para ocupar o mesmo espaço que ele no piso, pois talvez seja mais fácil que aceitar a ideia de Peter não se preocupar com minhas habilidades ou as partes ruins delas. — Posso te perguntar uma coisa? — questiona ao empurrar meu tênis com o seu calcanhar, parecendo meu objetivo. Sei que seu rosto está virado para mim, então continuo olhando para nossos pés ao assentir, mesmo imaginando o que tem em mente.
— O nome dele é Harry — conto após um suspiro, mãos em meu colo. O som de Peter deixando o ar escapar, abrindo e fechando a boca ao gaguejar é divertido de qualquer forma, ainda que conversar sobre Harry seja estranho. Abaixo a cabeça para esconder o sorriso que se abre em meu rosto por seu comum desconcerto e toco sua mão que está entre nós, ainda não o olhando. — Ele estava na festa do Tony e acha que eu sou a afilhada da Pepper. Por isso falou comigo hoje e... É um saco, Peter. — É a minha vez de encostar a cabeça na parede, incerta de como posso sustentar mais essa mentira. — Ficar inventando tantas histórias é exaustivo e eu estou sempre inquieta com medo que descubram. Seja ele ou a MJ. — Respiro fundo, fechando os olhos. — O pior é que precisar fazer isso só demonstra que a minha história, a verdadeira, é terrível. — Dou uma risada sem humor, mordendo a ponta de meus lábios. — É chato ter que sempre criar uma pessoa nova toda vez que conhecer alguém.
Balanço a cabeça, ciente de que, pelo menos para uma pessoa, eu não preciso mentir tanto — observação ainda mais óbvia quando os dedos de Peter se curvam devagar para acomodar os meus entre eles, segurando-os com força e carinho. Retribuo o aperto e escorrego um pouco no sofá para encostar a cabeça em seu ombro por um instante, agradecida por me entender e dar tempo para decidir quando e como lhe contar sobre meu passado. Mesmo após meses, Peter nunca me forçou a lhe dar informação alguma e foi mais paciente que mereço. Entendo que jamais poderei agradecer por sua gentileza e amizade. Ele respira em meu cabelo como fez hoje mais cedo, a testa encostada em minha cabeça. Mantenho os olhos fechados por mais um tempo, até que sinto um pinicar conhecido neles e me afasto rapidamente, desviando de seu toque e soltando a sua mão ao me levantar.
? — Peter chama e também se põe de pé, a face explicitando o quanto minha reação foi estranha antes que se transforme em outra expressão, essa capaz de demonstrar que minha emoções estão claras em meu rosto. Eu respiro fundo quando ele também o faz, postura e ombros baixos com pena ao notar que estou fugindo de meus sentimentos. — ? — sua voz se quebra, o tom triste ao chamar por meu apelido especial. Ele segura meus braços e eu espalmo as mãos em seu peito, respirando devagar pela boca a fim de diminuir o nó em minha garganta. Sem abraços. Sem pensar demais e sem autopiedade. — Ei, não... — Parker sussurra, afagando meus braços.
— Eu. — Suspiro e dou um tapinha em seu peito, evitando lhe olhar e apenas focando na estampa de pizza vitruviana em sua camisa branca. — Eu decidi que não vou mais chorar, então... — Cutuco o centro da pizza, pressionando o dedo no seu esterno. — Você não vai me fazer chorar, Peter Parker.
Em uma tentativa de me recompor, dou outro tapinha em seu braço para que me solte e Peter o faz, deixando o ar escapar por seu nariz como uma risada baixa e talvez forçada. Apesar de tudo, eu estou decidida a me manter o mais emocionalmente estável possível enquanto não resolvermos todo o problema de meus sonhos.
— Onde está o seu celular? — questiono em uma tentativa de mudar de assunto. — Vou colocar a senha do wi-fi e te cadastrar na rede — explico e Peter puxa o aparelho com a tela rachada (lê-se: destroçada) de seu bolso e me entrega após desbloqueá-lo, mantendo uma expressão descontente com minha escapada enquanto o faz. A ignoro em função de começar a digitar o código, somente percebendo o quão tarde já é. — Quer ir arranjar alguma coisa para comer antes do Happy te levar pra casa?
— Claro — o herói concorda, observando com atenção enquanto programo o seu celular no wi-fi. — Ah, preciso do cartão para o elevador?
— Sim, tinha esquecido! — exclamo e aponto para o quarto. — Está na cômoda.
Peter se vai logo antes de uma notificação surgir no topo da tela.

Gwen - Espanhol
visto por último hoje às 16:28

Te vejo na biblioteca segunda-feira!



Homecoming XIII — A Stark Contrast

— Agora, incorpore os ovos com gentileza na massa — eu leio.
— Ou o quê? — Michelle franze o nariz. — Vou arruinar esse desastre?
Jogo o celular no balcão após terminar de ler as instruções, revirando os olhos e limpando as manchas de chocolate que grudaram em minhas unhas, afinal tenho devorado as gotas de Hershey’s desde que começamos a preparar os ingredientes para o bolo. Michelle decidiu que fazer uma sobremesa sem a mínima experiência assando algo era uma boa diversão para nossa festa do pijama e eu não posso negar que é sim divertido, uma experiência nova e boa de ser dividida com ela. Meu pijama do Hulk está salpicado com farinha e a sua regata azul tem manchas de quando o cacau em pó voou para todo o lado assim que ela abriu o pacote. Deixamos uma playlist do HM Surf no aleatório assim que chegamos à cozinha e tem música ambiente ressoando pelo cômodo enquanto apanhamos de um autodenominado “bolo simples de chocolate”.
Seus pais viajaram para uma convecção de — é adorável de pensar — porcelanato, então MJ me convidou para lhe fazer companhia já que seu irmãozinho também havia ido com eles. Após uma promessa de bom comportamento para Tony, este ainda traumatizado pela última vez que vim para a casa de Michelle sem pedir, consegui que me autorizasse. Pela manhã, Happy virá me buscar, pois temos alguns assuntos a serem tratado em razão do que ocorrerá em breve durante os meus treinamentos com Peter. Afasto essa questão, decidida a me concentrar no momento com MJ e em como ela morde a língua ao incorporar toda a massa para o bolo. Ainda temos que fazer o recheio e a cobertura, mas julgando pela bagunça na cozinha, não sei se vamos ter condições.
— Não é um desastre... — defendo, ao me sentar na pia e MJ vira-se para mim.
— Ok, não é um desastre. — Ela dá de ombros e volta a misturar tudo. — É uma bomba — corrige-se com mal humor e logo seus olhos se acendem quando me imita, sentando-se no balcão de seu apartamento com as pernas balançando. “Não é possível que a não vá responder se eu perguntar. Somos amigas há meses e talvez já estejamos nessa fase em que podemos ser sinceras uma com a outra.” Me atento para seus pensamentos e a linha de raciocínio que faz meu coração bater alegremente. Desde cedo, Michelle tem estado inquieta, porém não ousou fazer a pergunta que tanto quis. — E por falar em bomba, o que foi aquilo ontem com o tal do Harry?
Ah, agora sim posso entender o que tem lhe importunado desde que cheguei.
— Sou eu quem devia estar te perguntando isso! — acuso ao recordar-me que foi ela a, literalmente, me oferecer para ficar sozinha com Osborn e ir comprarmos café durante o intervalo. MJ entorta os lábios em um sorriso ladino e me olha com uma expressão óbvia. “É divertido a ver tão na defensiva. Conheço seu olhar acusatório e o rubor de todas as vezes que a provoco quanto a Peter, mas estou cada vez mais ciente de que esse Harry está conquistando sua atenção.” — MJ, você me vendeu para o garoto em um estalar de dedos!
A menina empurra um cacho para trás da orelha e volta a bater a massa.
— Não parecia tão vendida enquanto sorria feito uma boba para ele — julga com um olho fechado, fingindo concentrar-se para recordar o que deve ter visto. — Ou quando ele colocou a mão nas suas costas. — Ergo as sobrancelhas ao conectar os pontos de suas notas. — Ou quando estavam voltando e ele segurou o seu braço para que não escorregasse no gelo.
Em sua mente, ela recorda-se das cenas com precisão admirável. Michelle, sem ter intenção alguma, me mostra a lembrança de um dia atrás, pela vista que imagino ser do laboratório de biologia. Me vejo através de seus olhos atentos, a barra de meu vestido dançando na brisa fria de inverno e Harry ao meu lado, segurando o copo de isopor que mantinha seu café, pois essa era sua quebra de estereótipo. MJ se lembrou do frio que sentiu ao tocar a janela de vidro e tal sensação esfriou minha destra. Então senti um calor em minhas bochechas quando me vi sorrindo para Harry Osborn, sem fingir e até com certa dificuldade para segurar a expressão. Então, o cenário se altera como a passagem de tempo em um filme bem-produzido, e eu estou subindo as escadas de volta para a escola com ele ao meu lado, o ângulo de observação de MJ se alterando o suficiente para que flagrasse quando Osborn tomou meu cotovelo e esperou que eu estivesse alguns degraus acima para que me acompanhasse e pudesse impedir um escorregão dolorido. Assim que a memória se finalizou e eu me vi através de seus olhos da mesma forma que estou agora, saí de sua cabeça, apertando os dentes.
— Você me seguiu com o Harry, mas não podia ir comprar um café comigo? — Estou mais que ultrajada, afinal ela se negou a ir quando Osborn estava fora de cena e decidiu que seria uma boa ideia nos seguir logo depois. “Pesquisa de campo, querida ”. Me impeço de reclamar de sua tal pesquisa ao lembrar que é seu monólogo interno e não sua voz externa quem provoca-me. Então, logo me questiono se não havia ido com Peter e Ned para o refeitório ontem. — Depois vamos falar do quão desapontada estou por me largar com um estranho, mas primeiro quero entender por que diabos fez aquilo. — Pego um punhado de gotas de chocolate e derramo na boca, mantendo minha expressão de confusão.
— Primeiro: estava muito frio e não pode me culpar se só romance adolescente consegue me aquecer o suficiente para enfrentar a neve — responde com calma, um dedo erguido para pontuar suas desculpas esfarrapadas. A palavra usada para descrever o que havia acontecido é absurda, mas me contenho, decidida a ouvir até onde ela vai com isso. — E segundo: eu estava testando as águas. — MJ dá de ombros, despachando o assunto mesmo sabendo que quer dizer muito mais. Aprecio sua gentileza em esperar que eu pergunte com tédio que águas seriam essas. Minha amiga dá de ombros de novo, balançando as pernas com falsa inocência. — Ah, eu só quis ver até onde o Parker iria antes de bancar o ciumento e jogar um sapato na cabeça do Belvoir.
Respiro fundo e fecho os olhos, mantendo a calma. Belvoir. O “sobrenome” de Harry.
— E olha que ele me surpreendeu, hein? — Michelle continua sem demonstrar muita emoção, mesmo que sua aura cintile em um alaranjado divertido e eu a leia, ciente de que lhe requer muito esforço para não sorrir. — Aguentou uns quinze minutos antes de mandar uma mensagem e marcar um encontro com você na biblioteca só para te afastar do loirinho. — O seu sorriso não consegue ser contido por muito tempo e ela dá uma risadinha ao me olhar. É a minha vez de pensar bem no que aconteceu e entender se, durante todo o dia, Peter podia ter escolhido um horário diferente para conversarmos. Então entendo que a sua mensagem pode ter sido uma forma de garantir que eu não estaria com Harry por ainda não o conhecer e essa ser sua forma de me proteger. — E lá vai você com essa carinha de tonta criar um cenário completamente diferente do que aconteceu...
— MJ! — reclamo ao voltar minha atenção para ela.
Minha amiga ri, balançando a cabeça, pois, para ela, eu sou uma diversão.
— Vai dizer que ele não estava te olhando como uma águia o resto do dia só por “não ter muitos horários preenchidos”. — A tal desculpa lhe é tão cômica que MJ finge secar uma lágrima apenas de provocação. — Isso, segundo o garoto que está pertinho de reprovar. , o Parker estava de olho para ver se o cara não aparecia de novo.
— E se ele aparecesse? — É a minha vez de perguntar.
— Certeza de que o Peter ia ficar com aquela carinha de cachorrinho pidão igual todas as vezes que quer sua atenção. — Jones aponta a espátula para mim, suas inúmeras analogias para Peter ser um cão ainda parecem vir de uma fonte infinita. Eu balanço a cabeça e lhe lembro da massa que tem que ser mexida por seis minutos sem parar. Ela revira os olhos e volta ao trabalho. Logo me olha por entre os cílios e eu sei que vem mais pela frente. — Do mesmo jeito que você ficava quando ele comentava sobre a Toomes. — Quando abro a boca para me defender, MJ continua: — A única pessoa que não notava isso era o tapado do Parker, — ela me corta, fingindo tédio. — O jeito que você foi abraçar ele em Washington? — Estou tentando formular uma desculpa e ela volta a bater o bolo. — Não entendo como a Liz teve coragem de ir ao baile com ele depois de ver aquilo.
— MJ — chamo, ao esfregar os olhos, incerta de como arranjar uma desculpa.
— Só estou dizendo, , é que acho que uma competição amigável pode dar o empurrãozinho necessário para vocês dois criarem coragem de aceitar sentirem alguma coisa um pelo outro. — Ela está rindo agora quando a olho horrorizada. A minha primeira inclinação é rir e assim o faço, pois Michelle deve ter perdido a cabeça. — Está rindo por quê? — Aponta para mim com a garrafa de kombucha que bebericava e eu balanço a cabeça devido à sua habilidade de criar teorias assim. — Ah, , por favor...
A imito e pego uma latinha de refrigerante, a minha segunda desde que cheguei.
— Michelle, o Peter não sente nada por mim, por favor... — Reviro os olhos, pois é ridículo a um ponto onde chega a ser um pouco incômodo. Sinto quando ela fica alerta e aponto a lata para MJ. — Não, isso não foi a minha forma súbita de confirmar sentir algo além de amizade por ele, pois mais esperto que fosse dizer algo desse jeito. — Ela visivelmente se irrita por eu a impedir de gozar da minha cara outra vez. Molho os lábios e cruzo os braços, respirando fundo. — Talvez eu tenha sentido um certo incômodo quando o via com a Liz, mas garanto que não era nesse âmbito. O Peter sempre foi gentil e cuidadoso comigo, então eu podia sim estar enciumada, mas não por propriamente gostar dele, mas pela ideia de perder a atenção que ele me dava.
Michelle me olha quase com pena.
— Está tentando se convencer disso há quanto tempo? — Mordo a língua e cerro os olhos para ela, o que a faz sorrir conhecedora. — Mas, ok. Não me deve explicações nenhuma, porém precisa saber que cara nenhum trata uma garota com o mesmo cuidado que o Peter te trata, mesmo que seja a melhor amiga dele. Amigos não olham um pro outro do jeito que vocês se olham e se você quiser permanecer se enganando quanto a isso, recomendo que se atente. — O timer em seu celular alerta que os seis minutos da massa já passaram e MJ o desativa. — E tem mais, você não me disse nada sobre a competição amigável.
Lhe entrego a forma untada com manteiga e cacau em pó, deixando que ela despeje a massa de bolo antes de pegar o saquinho de gotas de chocolate e ir salpicar algumas para que derretessem.
— Que competição?
MJ joga alguns pedaços de chocolate na boca e dá um peteleco em minha testa.
— O Harry parece estar colocando o time dele para jogo e isso é ótimo, já que não acredita que o Parker está a fim de você. — Me impeço de fazer uma careta ao colocarmos a forma no forno escaldante e a porta bate com muita força. Nós pulamos com o som, olhamos uma para a outra e caímos na gargalhada ao lembrarmos que não temos a mínima habilidade culinária. Bebendo mais um pouco do chá fermentado, MJ se senta na ilha em posição de lotus e dá de ombros. — E vamos admitir que o garoto é convencionalmente atrativo, não é? — Imagino Harry Osborn e não posso deixar de assentir. — E como você não tem a mínima experiência com um homem que não seja literário...
— Ei! — reprovo e jogo uma gotinha nela e minha amiga a assopra antes de comer. — Você também não tem experiência nenhuma com rapazes, MJ! — Ela dá de ombros.
— Não consegue imaginar ele como Jem Carstairs? — nego de imediato.
Havia conhecido a série de Peças Infernais quando Natasha Romanoff me levou para uma livraria e eu achei a capa do primeiro livro adorável com suas adagas, asas e engrenagens douradas em um fundo vermelho. Lembro de ter tocado no livro e traçado as asas por um instante antes de irmos embora e logo ele surgiu em meu quarto um dia depois.
— Imagino o Jem mais delicado que o Harry — informo, com um meio sorriso. — E o Jem nem sequer é loiro, mas consigo ver como está tentando comparar os dois. — Vejo Jem Carstairs frágil em minha imaginação; extremamente pálido e doente, porém perfeito. Cabelo prateado e olhos cinza cristalinos pela droga. Muito diferente da beleza formal de Osborn. — É assim que quer me convencer? Comparando um completo estranho com o Jem? — MJ dá de ombros. — Isso é baixo, Michelle.
— Verdade, nunca mais irei proferir o nome do Jem em vão. Mil perdões. — Ela ergue as mãos para o céu e eu dou risada. A trilogia é uma das coisas que temos em comum e que não tenho com Peter, portanto parece ser um segredo dentro de nosso mundinho normal e eu a adoro. — Mas e aí, vai dar um chance pro Harry?
Corro a língua por meu dedo onde tem chocolate: — Que chance, Jones?
— Conversa com o menino e não dá outro fora do tipo “meu número está no grupo da turma” — ela imita minha voz como de uma criancinha. — Fala com o garoto porque ele parece legal e genuíno, e você sabe que eu não digo isso sobre qualquer um. — Concordo, ciente de que sua aprovação é muito. — Vai que eu estou errada, o que muito dificilmente aconteceria, e o Parker não sente nada mesmo? Ou você não quer nada com ele? Nunca se sabe. — Michelle dá de ombros. — No mínimo você vai conseguir um novo amigo e o Peter uma pulga atrás da orelha.


*

(Sete meses desde a queda dos Vingadores)


— Hoje, aprenderão como atirar, carregar e os básicos de como manejar uma arma. Amanhã, , irá treinar com os hologramas do Stark. E, Parker, vai continuar o treinamento que começou pela manhã. — Maria Hill entrega uma pistola travada sem me olhar e faz o mesmo com Peter, mesmo que pelo canto de meu olho eu possa ver como ele mal segura na arma, receoso em dispará-la. Quero lhe falar sobre a trava de segurança, mas não o faço, imaginando que Hill odiaria ser interrompida. — Estou trabalhando com tempo regrado com os dois, portanto preciso que prestem atenção e se dediquem.
Tony Stark aplicou-se na escolha de instrutores que conseguissem fazer valer os momentos livres que possuímos quando não estamos na escola ou em seu laboratório. O acordo com May Parker garantiu a seu sobrinho alguns fins de semana no Complexo dos Vingadores, onde será diretamente treinado por Tony e toda uma equipe, mesmo que ela não faça ideia de que treinamento fosse e o motivo da pressa. Não foi nenhuma surpresa para mim descobrir que os treinos planejados por Stark desejem que estejamos em perfeitas condições físicas e dispostos — mas ainda contava com mais algumas horas de descanso antes que a correria começasse em plena manhã de sábado.
Peter mandou uma mensagem enquanto eu desfazia minha mochila, informando que Happy estava em sua sala de estar e que iriam para o Complexo. Não tive o tempo que imaginei que teria antes de precisar começarmos a sermos treinados, mas percebi que Tony estava verdadeiramente empenhado em nos preparar para qualquer coisa quando tomei nota das roupas novas em minha cama. Havia um traje desconhecido, mas que não hesitei em vestir. Após entrar em Midtown, não havia tido a chance de me exercitar como antes, portanto entendi o motivo do novo par de calças e camisa. Após calçar os tênis e lidar com meu cabelo, segui para a arena com curtas quatro horas de sono.
Encontrei com Parker na arena, dentro do enorme ginásio repleto de diversas armas e sequências com obstáculos conhecidos. A arena de tiro foi a menos frequentada desde que cheguei ao Complexo dos Vingadores há quase um ano, os outros membros da equipe preferindo combate corpo a corpo no tatame duas salas de distância. Ofereci um sorriso para Peter quando sua expressão preocupada se amenizou com minha presença. Ele também não parecia ter tido uma noite de sono muito melhor que a minha, bolsas arroxeadas abaixo de seus olhos e fios desgrenhados apenas reforçando a possibilidade de que havia passado a noite em patrulha. Foi estranho — muito mais que ter sua presença em um local tão secreto — o ver com roupas diferentes das quais estou acostumada; sem suéter ou jeans enorme para esconder os músculos de herói, apenas calças pretas e uma camiseta cuja numeração correta a torna distrativa.
— Quero ter uma ideia do que podem fazer antes de os ensinar o que precisam. — Hill mantém os fios perfeitamente penteados em um rabo de cavalo com as mãos atrás das costas. Após a permissão dela, assistentes se aproximam com duas malas enormes e as põem nas mesas de metal diante de nós. Me afasto quando um quase encosta em mim. — Tentem não atirar um no outro, por favor.
Doze alvos surgem no fundo da arena.
— O primeiro estágio é com alvos parados. — Hill gesticula para os alvos atrás de si. — As pistolas estão carregadas e travadas, portanto, as destravem. Ambas possuem doze balas. — Olho para a arma em minha mão, uma M9 da Guerra do Iraque. Ela parece ameaçadora, como se ferisse alguém apenas por a segurar e acredito que Peter se sente da mesma forma, mesmo que eu saiba como a usar propriamente. Deslizo minha mão nela antes de engatilhá-la, o som verberando pela recinto. Posso ouvir quando Peter repete meu movimento, com o objeto direcionado para o chão. — Sem tanta tremedeira, Parker — a agente sibila e eu a olho a tempo de ver o sorrisinho que esconde. — O segundo estágio é com os hologramas do Stark; eles os preparou para vocês. Aviso que irão tentar avançar e se esquivar, portanto precisam dominar alvos estáticos. Depois aprenderão a recarregar e montar essa mesma arma. Se chama M9 e é a pistola padrão do exército. — Hill dá alguns passos para trás e coloca protetores de ouvido. — Me impressionem e ganharão os seus.
A proposta é doce, pois entendo que meus ouvidos não estão mais acostumados ao estrondo de disparos tão próximos. Tento afastar as memórias que fazem minha cabeça latejar e contorno a mesa no mesmo instante que Peter o faz, esbarrando em meu ombro. Pepper morreria se me visse segurando uma arma, porém não tenho mais escolha. Encaro a parede na qual estão pendurados os alvos: placas quadradas de compensado, seis para cada um de nós, com três círculos vermelhos no centro. Separo os pés e uso a destra para atirar, a outra mão sem uso é pressionada em minhas costas. O estampido do disparo é tão alto que ecoa em meu ouvido. Estico o pescoço para ver o alvo quando abaixo o metal quente, ciente de que a bala perfurou o círculo central na cabeça do alvo.
...
Ignoro Peter e sua inocente descrença, percebendo que ele ainda mantinha as mãos firmes em sua pistola, os pés espaçados e postura desconfortável com a situação. Ele parece admirado com minha facilidade em atingir o objetivo tão rápido e eu não engajo em um diálogo, antebraço queimando pelo impacto do tiro. Impassível, repito a ação mais vezes, ouvindo os tiros do rapaz em intervalos mais longos ao se adaptar à arma e tentar não desviar os olhos para longe quando Hill chama seu nome por demonstrar medo. Finalizo meus alvos antes dele, desviando da cabeça e dedicando os outros seis tiros na direção do quadrante do coração. Verifico o estojo vazio e volto para a posição antiga, tentando amenizar o incômodo acima de meus olhos quando Peter termina. Sua mira é perfeita, contudo o timming é falho.
— Parker, tenho certeza de que nunca pegou em uma arma antes, por isso sei que vai precisar treinar mais quando puder e se esforçar o dobro. Não temos tempo para esperar que perca o medo — Maria cobra exigente e Peter respira fundo, os músculos em suas costas se expandindo. Desvio os olhos quando meu ouvido é atacado por um zumbido agudo e tremido. — Black, quer elogios? — Balanço a cabeça, focada no som irritante. — Bom trabalho.
Os instrutores de combate armado também ficavam impressionados com o equilíbrio que consegui manter após os experimentos com o Cetro de Loki, então imagino que os poderes sejam o motivo da mira incrível de Peter e, mesmo que queira dizer algo sobre a Agente Hill ser tão severa, não confio em minha voz. Os instrutores em Sokovia abismavam-se com a intensidade de meus disparos, com a rapidez com que recarregava minhas armas sem tirar os olhos dos alvos e como podia fazer isso enquanto corria em meio metro de neve fresca. A lembrança é cruel, mas a dispenso ao recordar que foi Tony quem me quis nesta aula para que acompanhasse Peter e que ele não tivesse de passar por isso sozinho. Infelizmente, não sei como fazer companhia sem garantir-lhe de que já fiz isso antes.
A Agente Hill é excelente, mesmo sendo tão rígida. Pacientemente, ela ensina Peter como mirar sem precisar colocar a arma bem na frente do rosto e arriscar que o coice retorne em seu nariz, mesmo que pareça ser difícil para ele manter-se imóvel durante todo o processo. Hill também coloca o pé entre minhas pernas e empurra meu pé mais para longe, garantindo que minha posição seja a considerada correta. Quando os hologramas são acionados no final da tarde e eu estou dentro de um cubo de vidro blindado com duas pistolas, já conto com certa audiência dos outros instrutores.
Eu não preciso afastar as memórias que me arrastam para o passado, tão intrínsecas em meu cérebro que nem todo o exercício consegue me desprender delas, que também se agarram em meus calcanhares como armadilhas para urso que se cravam em minha pele. Os hologramas de Tony são homens grandes e rápidos com coletes e capacetes, mas sei como atirar em suas cabeças sem impedimento, logo abaixo do queixo de um enquanto Peter ainda avalia o terreno e determina o que fazer ao me observar. Então, atinjo a perna de um outro bem no joelho, depois no espaço entre o ombro e o pescoço do que avança pela esquerda e tenta lançar uma faca holográfica em mim. Depois na área descoberta no quadril do holograma que se projeta em minha direção apenas para se desmaterializar do meu lado.
Cada disparo e eco camuflado pelos protetores soa como os tiros que disparei aos doze anos contra homens de verdade em Sokovia. Inimigos de Estado que se esgoelavam no âmago do arvoredo congelado por misericórdia perante alvejamento eminente. Recordo da sensação de ter meus pés afundados na neve suja, mãos desprotegidas e feridas pelo gelo que causava queimaduras, o metal da pistola colado às minhas palmas e nariz ardendo pelo frio até que as lágrimas em meu rosto secassem e repuxassem a pele. E por um minuto, enquanto atiro na coxa de um dos soldados duas vezes até que seus pixels sumam, os pesadelos não são mais meu único problema e eu quero vomitar ao reconhecer que minha ansiedade formula um odor inexistente de pólvora misturada com o ácido do inverno europeu. Estou desperta, com olhos bem abertos e mãos quentes pelos disparos secos. Há uma certa sensação de poder em controlar algo que pode causar tanta destruição, ou em controlar qualquer coisa, na realidade.
— Sua vez, Parker.
Quando Peter entra no stand e as luzes se apagam para que os hologramas se evidenciem, peço para Maria Hill por um minuto e ela me concede, inabalável e sem importar-se com minha ausência após ver que consigo me virar bem sozinha. Avanço pela arena até desembocar no banheiro e vomitar no sanitário, oscilando em busca de ar em meio a jatos azedos que contraem meu corpo de forma impetuosa, garantindo-me que sentirei seus efeitos amanhã. Limpo a boca com papéis-toalha para que Peter não sinta o cheiro ruim em mim e volto para onde estava, arrepios me perseguindo por toda a sessão prolongada de Peter sempre que pressionava o gatilho. Me sinto suja e não o olho, boca fechada ao encarar o chão e salivar a fim de limpar o sabor de bile em minha língua. Assim que ele termina e entrega as armas para um instrutor, Hill nos libera, não antes de pedir que eu permaneça para conversarmos.
— Execução infalível.
Aperto os lábios em agradecimento, pois não quero que sinta meu hálito deplorável, mãos espalmadas na mesa ao notar o olhar preocupado que Peter direciona a mim antes de deixar o ginásio. Meu estômago está revirando em uma sensação quente, vazia e acetosa, de forma que aceito imediatamente a garrafa de água que ela me oferece ao notar meu desconforto. Hill olha para longe enquanto esvazio o recipiente e coloco a mão sobre meu ouvido que apita. A luz branca da arena me incomoda muito mais que a luz natural do nascer do Sol que vi com Michelle horas atrás, mas não reclamo, pois já tive sessões bem piores com a tortura branca da Hydra. A água foi o suficiente para empurrar o gosto de bile de volta e eu uso a barra da camisa para secar o suor frio em meu rosto, que molha meu cabelo e deixa a pele de meus braços pegajosa e suja.
Resisto à tentação de me esfregar por completo e chorar pela sujeira e odor que irei sentir ao trocar de roupa no fim do dia e tomar banho. É nojento. Sujo, sujo, sujo. De maneira que é complicado explicar para Pepper minha mania com banho que voltou após os pesadelos horrendos.
— Tenta lembrar de usar ambas as mãos para segurar a arma quando possível. E que colocar as pernas uma ao lado da outra ainda é a melhor forma de poupar a sua resistência e manter a integridade do seu corpo, . — A ouço à contragosto, mas sei que não fala por mal ou tenta desmerecer meu trabalho e o real motivo está claro em seu rosto. Ela realmente se preocupa com meus resultados e me questiono o que Tony lhe disse. — Não precisa atirar de forma tão bruta ou sem preocupação com seus músculos só para ir bem. Está usando uma arma e não o contrário. Ela não faz parte de seu corpo e ainda pode se proteger dela. — Hill molha os lábios com a língua. — Não tem missão nenhuma para cumprir ou castigo para evitar.
Desde que começou a trabalhar para os Vingadores após a queda da SHIELD, um ano antes que eu viesse me unir a eles, Maria Hill sempre esteve aqui e sempre foi a mão direita de Steve Rogers, mesmo que toda sua lealdade fosse direcionada a Nick Fury, este que tem estado em contato constante com Tony e ela. Há alguns meses, a vi caminhando pelo Complexo com uma das mulheres do recursos humanos para ser entrevistada para o cargo de secretária de Pepper e chefe interina de segurança. Ela conseguiu a posição mesmo tendo um currículo inferior ou com zero experiência se comparada às outras candidatas. Então, o seu cargo, como todos já parecem ter notado, ultrapassa essa fachada pelo simples fato de ter confiança suficiente de Tony para poder olhar em meu rosto.
A Agente Hill se encosta na mesa de metal onde algumas pistolas se encontram, um número enorme de glocks, duas pistolas M9 e M11. Estas são as armas mais usadas pelo Exército Americano, mas sua mão para sobre uma pistola Marakov, a que evitei tocar durante todo o treino — a arma que ricocheteava em minha face e até partiu meu nariz quando eu tinha onze anos e herdou uma falsa execução que me deixou em desespero por semanas. O metal que reveste o cabo queimou minhas mãos habituadas com o frio congelante e, mesmo assim, foi ela quem usei para atingir um alvo vivo pela primeira vez. E mais sete vezes até que aprendesse que ou um inimigo seria fuzilado, ou eu seria. Hill trava a arma e me olha por trás dos cílios negros, os olhos azuis vivos.
— Fui treinada com esta arma — ela me conta, segurando-a com cuidado, a mão livre em frente ao cano alongado, onde a pólvora queima. Me retenho em tirar as luvas pela metade quando curva os lábios em um sorriso abatido. — Seversk, Septuagésimo Nono Batalhão.
A palavra inicial é estrangeira, mas não é nova em meu vocabulário e no mapa cravado em minha cabeça após anos de aulas de história e geografia, onde minha memória fotográfica era uma promessa de mapeamento humano para a Hydra. Em Sokovia, fui educada desde os seis anos sobre a história e geografia europeia, precisamente a alemã e de suas áreas que foram “adquiridas” durante o expansionismo nazista — nome que aprendi após ser educada por professores que não cultuavam os horrores da Segunda Guerra. Aprendi que Seversk produzia plutônio para armas nucleares e era uma cidade fantasma para o resto do mundo, porém as suas instalações militares ainda estavam ativas e serviam à Hydra, treinando soldados e guardando prisioneiros. Hill aperta a barra da mesa ao balançar a cabeça.
— Fury me achou em 2004. Criou uma identidade nova e me enfiou na Marinha. — Um suspiro que não sabia estar segurando ecoa pelo ginásio e Maria sorri um pouco, largando o revolver atrás de si e me olhando com a expressão vazia de quem já viu coisas parecidas com as que vejo ao segurar uma arma. — O resto você sabe: SHIELD e Vingadores. É um bom currículo — explica sem pressa. — “Seu corpo e mente pertencem à Hydra” Ainda usavam essa frase na sua época, soldat? — O termo ecoa com pesar e eu a evito olhar após decifrar o motivo de não ela ter sotaque ao pronunciá-lo. Maria Hill é uma criança da Hydra e foi criada para servir a pátria e defender seus interesses, porém hoje é uma desertora. — Escreveram isso no teto do meu quarto quando era pequena e depois no dormitório do batalhão. — Mantenho o rosto baixo, lhe dando a privacidade de lembrar-se sem minha atenção. — Era a primeira coisa que via ao acordar e a última que via ao ir dormir — Hill recorda-se. Após uma pausa, ela indaga: — Diziam isso a você?
Ela cruza a sala depois que assinto, caminhando até a porta antes de parar.
— Seja gentil consigo mesma — me pede. — Pertence somente a si, não a eles.
Preciso de alguns segundos para respirar fundo quando a Agente Hill me deixa, afinal meu coração está acelerado e eu estou tonta com a descoberta, palmas ainda trêmulas com espanto e olhos lacrimejando pelo susto. Não consigo acreditar ou formular uma motivação para Tony ter lhe contado sobre a Hydra, então opto por acreditar que minha capacidade de tiro foi o que me dedurou. Nos treinamentos antes do fim da Iniciativa Vingadores, acontecia a mesma coisa e os olhares espantados dos instrutores não eram ignorados. Eram necessários quase seis minutos completos de luta não interrupta até que, nos treinos privados de combate não armado, eu pedisse para recobrar o ar. Haviam, constantemente, oficiais escorados nos cantos da sala e alguns deitados no tatame ao meu redor quando me sentava para descansar. O treinador ainda me olhava como se eu houvesse parado um trem com as mãos ao me ajudar a ficar de pé.
Estamina nunca foi um problema e sim um dos motivos pelos quais os oficiais da Hydra adoravam me forçar a lutar com outros prisioneiros quando o dia deles estava parado e apontavam armas para minha cabeça quando demorava para finalizar um adversário para lhes oferecer a chance de contra-atacar. Com um suspiro trêmulo, enfio a Marakov dentro da mala em que estava antes, esfregando minhas mãos contra o tecido de minha calça para limpar o rastro. Talvez, por mais doloroso que seja admitir, ainda exista um pouco do horror da organização não só em minha cabeça, mas em meu corpo. Sam e Rhodey mencionavam algumas vezes sobre a forma que eu me movia, devagar e com passos quase felinos quando tentava conseguir algo ou quase como um veículo de transporte de tropas quando havia um dever a ser cumprido. Já Natasha, adicionava com orgulho que tinha as potentes passadas e pernas de bailarina enquanto Tony ria que trotava um pouco enquanto corria, claro que antes de ser corrigido por Steve.
Mas entendo a dificuldade de compreenderem as sequelas que carrego.
— F.R.I.D.A.Y. Luzes e monitores, por favor.
Caminho para fora do ginásio e fecho a porta pesada, surpresa quando Peter ergue a cabeça ao me ouvir e pisca algumas vezes para afastar o suor dos olhos quando me aproximo. Ele está sentado na escada e escorado na parede, coluna curvada e cabeça baixa enquanto a transpiração escorre de seu cabelo para o pescoço, este reluzindo com a umidade. Não imagino que minha imagem esteja muito melhor que a sua e reconheço que é a primeira vez que me vê tão desgastada após uma atividade física, afinal sempre falto as aulas de educação física ou fico sentada na arquibancada com MJ. Ainda assim, me sento do seu lado, evitando tocá-lo e respirando fundo, pois meus ombros estão doloridos e há uma dor no centro de minha coluna.
— Cansou, Homem-Aranha? — questiono em um sussurro exausto, apoiando o rosto nos joelhos para o olhar, meu próprio suor deixando meus braços e rosto úmidos e nojentos.
Me olhando, Peter bufa ao massagear os punhos com esparadrapos.
— Já consigo mover os dedos direito — ele murmura. — Então está melhorando.
Sou obrigada a concordar, mordendo o interior da boca. Os treinadores de Tony estão se dedicando em incrementar e treinar a sua musculatura, portanto, enfiaram Peter por quase quatro horas em um ringue de MMA até que seus dedos estivessem em carne viva ao almoçarmos uma salada sem gosto e frango grelhado. Enquanto ele espancava um pobre instrutor e seus assistentes, fui treinada dois quilômetros bosque adentro para aprender a englobar granadas e minas terrestres ativas em campos de proteção que realmente funcionassem. Peter me empurra com o ombro devagar, cuidadoso para não usar força alguma.
— Você foi muito bem com os hologramas — ele elogia. — Com tudo, na verdade.
— Obrigada. Você também foi — agradeço o que tento entender como um elogio ao massagear meus cotovelos, estes já desabituados ao ricochete de armas de fogo. Bucky costumava me ensinar a lutar com facas, evitando a todo custo me armar com pistolas.
Me sinto sorrir quando Peter encosta a cabeça em meu ombro, descendo um degrau apenas para conseguir ficar mais confortável. Pela primeira vez, ele se apoia em mim verdadeiramente, colocando certo peso, e eu julgo ser um sinal de sua exaustão. Peter irá passar o seu primeiro fim de semana no Complexo, como acertado com May, aproveitando que o recesso de Natal se aproxima e fomos agraciados com mais tempo livre que poderemos gastar com treinamento. Engulo em seco, minha sede aguardando um pouco quando Parker segura meu braço e se apoia melhor em mim, o som de sua respiração se acalmando sendo uma garantia de que ele descansa um pouco. Toco seus dedos enfaixados com cuidado.
— Estou morrendo de fome, você não está? Com seu metabolismo acelerado e tal? — questiono baixinho, considerando que talvez ele esteja, além de cansado, sonolento. Lhe sinto assentir devagar, respirando fundo. — Pepper disse para compramos pizza se estivermos com fome e que eles vão voltar depois do jantar.
— O refeitório deve estar fechado — Peter lamenta, esfregando os dedos em um hábito nervoso. Parker e seu esfregar de dedos e eu e minha contagem, tentando ter certeza de que ainda não estou morrendo — uma dupla e tanto. Molho os lábios ao sorrir. — E eu não trouxe dinheiro nenhum. — Sua resposta me faz rir apesar do cansaço e apoio-me em seu joelho ao me por de pé.
— Você não vai comer no refeitório, Parker — informo, ao esticar os braços e ouvir meu cotovelo estalar enfim, fazendo o mesmo com meus dedos da mão antes de prosseguir. — Nós vamos ligar para uma pizzaria e pedir, no mínimo, duas pizzas — explico risonha e estico a mão para o rapaz, mesmo que sinta uma pontinha de vergonha ao perceber que, enquanto estou acostumada a comprar comida e outras coisas no cartão de Tony, Peter precisa se preocupar se a sua mesada irá cobrir um lanche fora de casa. Afastando o cabelo dos olhos e expondo as bochechas rosadas devido ao embaraço compreensível, ele segura minha mão, mesmo que não use de minha ajuda para se pôr de pé. Quando Peter não demonstra interesse em desfazer o toque, eu começo a subir as escadas. — E o refeitório é de graça. Qualquer um pode entrar e comer o quanto quiser.
Foram muitas as vezes que vi moradores de rua aproveitando de toda a comida que o refeitório pode oferecer e até mesmo receberam vasilhas para levar mais um pouco ao irem embora. O “filantropo” na marca registrada de Tony não é mentira ou uma forma de desviar atenção para seus outros gastos, pois tudo o que tem feito esses anos esteve em prol de ajudar aqueles que precisassem dele, mesmo com os sacrifícios que pudessem seguir seus atos de bondade. Na Torre dos Vingadores, havia um andar livre e Tony tornou seu objetivo pessoal torná-lo um espaço público para todos os jovens na cidade: wi-fi grátis, mesas de estudo, livros paradidáticos e escolares, computadores e um refeitório com prateleiras sempre cheias. Me questiono se Peter, algum dia, chegou a ir lá depois de meu resgate. Imaginar que já estivemos tão perto sem nem nos conhecermos como agora, é quase loucura.
Quando chegamos à ponta das escadas, encontro as luzes do Complexo acesas, mesmo que sejamos os únicos na instalação após a partida de Maria Hill e os oficiais. A incoerência me deixa desconfiada e, ao dar um passo para trás e esbarrar em Peter, ele curva as sobrancelhas em uma expressão igualmente compreensiva pela incoerência. Suas mãos enfaixadas estão em meus braços, e, com passos silenciosos, ele se move para subir primeiro. Nós chegamos ao topo da escada devagar e logo adentramos a curva da área de convivência.
— Tampinha? — um timbre conhecido convoca, ecoando da cozinha.
O Coronel Rhodes está atrás da ilha e tira um pedaço de seu sanduíche, não parecendo se surpreender com minha presença tanto quanto me assustei com a sua. Levo a mão para o peito, sobressaltada pelo susto que nos deu por não pedir que F.R.I.D.A.Y me informasse sobre a sua visita repentina, mas me encontro aliviada quando analiso a sua aparência. Diferente dos primeiros meses após o seu acidente, ele parece mais forte do que antes; as bochechas sem o velho e doente espaço vazio abaixo delas e os olhos também não tão fundos e sem cor. Rhodes parece — finalmente — estar seguindo o plano nutricional que lhe foi recomendado por sua fisioterapeuta e especialistas da saúde que trabalham em seu caso. Processo algum de cura é fácil, mas, para esses do lado de fora, é gratificante observar tal evolução. Tal pensamento maduro, de alguma forma, me faz compreender a insistência de Tony com minha terapia e Pepper com os medicamentos.
— Boa noite, Coronel. — Lhe ofereço um sorriso como cumprimento ao me aproximar, o vendo largar o sanduíche em um prato e logo me abraçar apesar de minha aparência desorganizada, afagando minhas costas e rindo um pouco de minha voz tremida. — Avisou ao pessoal que viria, Rhodey? — Me afasto por fim, colocando as mãos nos bolsos da calça e olhando ao redor por onde havia deixado meu celular ao almoçar. — Tony e Pepper foram jantar com um senador no centro. — Lamento, certa de que não sabiam de seus planos de nos visitar. — Só chegarão mais tarde.
Percebo então que a atenção do militar está em Peter, este parado na escadaria.
— Devo me preocupar que o Tony tenha criado um robô muito convincente para te fazer companhia? — Rhodes questiona com humor e acena com o queixo para Peter. Eu lhe dou um tapinha no ombro, balançando a cabeça e indico que Peter pode se aproximar sem problemas.
— Se lembra do Homem-Aranha, Rhodey? — indago com um pequeno sorriso, esta sendo a primeira vez que apresento alguém para um dos heróis. — Esse é o Peter e ele estuda em Midtown comigo. Pete, esse é o Coronel Rhodes, já se conhecem. — Dou um sorriso para Peter, tentando amenizar seu possível desconforto. — Ele é o...
— Máquina de Combate! — Parker exclama maravilhado. — É um p-prazer, senhor!
Sua animação me faz sorrir e o encoraja o suficiente para que se aproxime, ansioso para conhecer um dos heróis favoritos. Viro-me de costas para os dois em busca do número da pizzaria e o encontro abaixo de um imã, junto a alguns avisos que Pepper havia deixado na porta da geladeira. Um post-it com o logo da Stark Industries lê: “Esta geladeira é para comida e comida apenas! Sem computadores superaquecidos, vibrânio derretido ou robôs com psicológico instável!” Encontro meu celular sobre o balcão e começo a digitar o pedido, certa de que Peter irá querer Sprite e não outro refrigerante.
— Ah, o garoto do aeroporto que assistiu Star Wars! — Rhodes declarou de bom-humor, ainda que houvesse um tremor embolado em sua voz. Considero que seja por ter tirado um pedaço muito grande do lanche e estar tentando não se engasgar. Conheço tal coisa após anos de insegurança alimentar na Hydra e o desejo de comer tudo extremamente rápido antes que a comida se vá. Ele limpa as mãos no pano de prato e dá um passo adiante, saindo de trás da ilha para apertar a mão estendida de Peter. Me atento no risco da atenção de Peter sequer cair para o exoesqueleto nas pernas do Coronel, mas é inútil, pois seu sorriso está tão largo e ele está tão rubro que duvido que sequer se preocupe com a deficiência do outro herói. — Como vai, rapaz?
— Muito bem, obrigado — Peter assegurou com firmeza. — E o senhor?
Deixo meu celular sobre a pia quando Rhodey suspira em frustração.
— Dando um passo de cada vez, por mais irônico que isso possa soar.
Me aproximo da ilha ao perceber como Rhodey a usa como forma de apoio, um dos pés não tocando o chão como devia. A preocupação que sinto é fria, a possibilidade de um comportamento inadequado de minha criação se tornando uma preocupação e um embaraço. Porém, após uma análise mais severa, não encontro problema evidente na estrutura. Sou a responsável e a pessoa que deu a ideia do tratamento, então é preocupante que tenha algum erro no exoesqueleto. Considero pedir um exame para F.R.I.D.A.Y, mas estou ciente de que Rhodes talvez não se sinta confortável para fazê-lo com a presença de Peter e, de certa forma, posso entender seu resguardo.
, tem como você ver a questão do meu joelho esquerdo? — O pedido é inesperado, mesmo assim consinto e puxo um dos bancos altos para que se sente. — A armadura está encrencando as vezes e foi como você disse nos mês passado para a Cho, acho que vai precisar criar uma nova pra se adaptar com o meu progresso. — O ouço com atenção, relembrando-me de como havíamos dito tal coisa em sua última consulta. Conforme Rhodes progredir, precisarei criar exoesqueletos e adaptar ainda mais a sua armadura. De certa forma, é bom saber que estamos seguindo o caminho correto e há um real progresso. — Sempre que eu tento ir mais rápido, essa placa aqui atrás emperra.
Minha expressão se altera de preocupação para compreensão.
— Acredito que se não corresse, a placa não precisaria impedir que exagerasse — justifico e me afasto, ciente de que é este o problema. Cruzo os braços sobre o peito com minha melhor cara de irritação, mesmo que esteja inclinada para entender a sua pressa. Contudo, eu não posso ser cúmplice de sua displicência, em especial por ainda estar no início dos testes com o protótipo e precisar ir devagar. — Rhodes, todos avisamos que deveria pegar leve. Não levantar peso e nem correr. Se continuar ultrapassando os limites que o protótipo te oferece, ele vai continuar emperrando na horas mais inoportunas — lhe explico, verdadeiramente preocupada com a possibilidade dos seus movimentos bruscos terem sido os causadores do desconforto. — A doutora Lewis comentou durante a festa do Tony que você tem feito escoltas presidenciais. — O Coronel me olha e torna para um Peter com os olhos brilhantes. Isso antes de rir.
— Eu não consigo, perdão — o herói se desculpa ao esfregar a testa, tirando outra mordida de seu sanduíche ainda pela metade. Ele limpa o canto da boca com um guardanapo antes de me olhar de novo. — , entendo que você tem um intelecto absurdo, mas não consigo te levar a sério. Levar sermão de uma adolescente é demais até pra alguém que é amigo do Tony.
Lanço um pedaço de alface em Peter quando ele ri.
— A tal adolescente conseguiu fazer o que meio mundo não conseguiu. O colocou de pé, Coronel. — Pisco várias vezes, apresentando meu ponto. Peter ainda está rindo um pouco quando eu pego outra folha de alface e ele cobre a boca no mesmo instante. “Tá bom!” O homem mais velho anuncia com as mãos erguidas após mastigar. “Você tá certa, tampinha.” — É claro que eu estou. Mas, não vou colocar mais o dedo na ferida porque quero que faça algo na quarta-feira. — Ele concorda e sua confiança é reconfortante. Me sento em um banco ao seu lado antes de apontar um para que Peter também se sente.
Tenho total conhecimento do extenso e doloroso processo de recuperação que passou quando os primeiros enxertos foram inseridos, mas espero que considere como os seus avanços foram algo que muitos jamais imaginariam que aconteceria. Os olhos calorosos de Peter em minha direção são um incentivo a mais para prosseguir.
— A Dra. Cross, da Columbia, me convidou para dar uma olhada em uma pesquisa que encontrou de uma universidade na China. Ela mandou o e-mail ontem à noite e eu só o vi hoje pela manhã — conto com calma. — É sobre o implante de microelétrodos na lombar. Disse que pode te ajudar a recuperar os movimentos mais básicos, claro que contando com fisioterapia intensiva, suporte de peso e o pilates que sei que se recusa a fazer — relembro outra vez, igual faço sempre que Pepper me conta sobre a aversão dele à atividade. — Mas, acima de tudo, a possibilidade de recuperação que esse tratamento te oferece se somada aos chips é revolucionária. — Respiro fundo para dar ênfase à minha ideia. — Rhodes, é possível que recupere as funções que ainda não conseguimos em todos esses meses.
— Claro que podemos ir ver isso. — Sua resposta é revigorante e eu concordo veemente com a cabeça, entusiasmada. Sei que Rhodes não quer ter falsas esperanças e entendo que, mesmo depois deste resultado, é necessário termos cuidado e resguardo com seu tratamento. Temperança. — Podemos ir na segunda-feira? Preciso ir para Washington na terça-feira e só volto em alguns meses.
— A Cho está em Seoul há dias, não sei se vai voltar a tempo.
— Mas você está aqui, . — Ele se põe de pé e retira o seu prato da ilha, o colocando na pia quando o garanto que lavarei a louça após o jantar chegar. Peter me olha com a sobrancelha erguida e só me atento a ele neste momento, meu rosto quente, pois a confiança que Rhodes me oferece é preocupante. — Vamos na segunda. Se você não estiver confiante que pode decidir sozinha, nós esperamos pela Cho, beleza? — Assinto ansiosa quando dá um tapinha em meu ombro e aperta o de Peter ao deixar a cozinha. — Não morram enquanto eu estiver de babá ou a Pepper vai terminar de me deixar paraplégico!


*


As pizzas chegaram em tempo recorde e nós as comemos no mesmo entusiasmo de todas as refeições que dividimos; lutando com afinco pelo molho de alho e o ketchup. Terminamos com quatro potes de molhos vazios e uma pilha de sachês que dividimos. Agora estou com o estômago estufado e tomando cuidado para não esbarrar nas caixas de papelão ou nas latinhas de refrigerante que flutuam ao nosso redor. O super metabolismo é uma dádiva e uma maldição ao mesmo tempo, pois após termos finalizado três pizzas, estou farta com toda a comida e sei que, para queimar todas as calorias consumidas, terei de dar no mínimo quarenta voltas em torno do Complexo. Não que eu me importe com a maneira que minha barriga incha e como não consigo ver minhas costelas.
Após sentir fome por tanto tempo na HYDRA, toda comida é bem-vinda. Foi um choque saber que qualquer alimento que desejasse estaria disponível enquanto estivesse sob a tutela de Tony. A quantidade de novos sabores que experimentei em meus primeiros meses na Torre dos Vingadores foi absurda. Frutas, legumes, temperos e coisas demais que jamais haviam tocado minha boca. Tony e Natasha jamais me deixaram faltar nada, certos em não permitir que eu pulasse refeição nenhuma por saberem que a insegurança alimentar é uma realidade comum em pessoas que passaram por traumas semelhantes, especialmente se as porções eram controladas como em meu caso, resultando em obesidade e outros transtornos de saúde a longo prazo. Algumas vezes ouvi Natasha comentar sobre isso sobre mim e Bucky, e nós fingíamos não ouvir e continuávamos a estufar-nos de comida, aterrorizados em não a termos mais.
Peter reflete o meu estado, sua cabeça sobre uma caixa vazia e os braços cobrindo os olhos da luz dos postes que adornam o local, mais fortes por estarmos tão alto. A iluminação complementa o tom caucásio de sua pele e os músculos em seus braços estão mais evidentes que na noite do baile, o peito forte constringido pela camisa. Mesmo após um dia inteiro, ainda não me acostumo com seu modo de vestir novo. O impacto dos tiros de hoje vibrando por seus braços e agitando a musculatura, o corpo que parece tão franzino por baixo das camadas de roupas, agora reluzindo em contraste com o tom escuro da nova camisa. Os fios sempre penteados se emaranham na sua nuca, cachos delicados lutando contra a resistência do suor.
— O Coronel Rhodes está certo, — Peter murmura. — Concordo com ele.
Me ergo um pouco, percebendo que já estou lhe observando há algum tempo e como isso pode ser desagradável para Peter. Uso meus antebraços ao levantar-me, os músculos repuxando graças às dores dos exercícios e à pouca prática antes de hoje. Faze meses que não treino corretamente e meu corpo tomou consciência disso. Estico o pescoço e me encolho com o estalar nada polido de alguns ossos e o repuxar de músculos dormentes, me forçando a sentar mesmo assim.
— Sobre o quê? — questiono com a voz apertada, massageando minha nuca.
Ele faz um pouco esforço para sentar-se também, joelhos dobrados e braços ao redor destes, coluna curvada como sempre. Desvio meu olhos, dando uma longa olhada para o bosque que circunda o Complexo. A vista é privilegiada e estonteante, em especial agora que estamos sentados no topo do heliporto da organização, o vento gelado cortando meu rosto. Tem um casaco enorme me cobrindo, mas Peter não se importou em usar um, apenas puxando o cobertor que estava sobre suas pernas e o jogando sobre os ombros. Ele ri baixo pela minha falta de atenção, rosto relaxado e descansando uma mão no chão. Parece estar quase confortável, apoiando o corpo sobre a outra palma.
— Sobre você — responde, juntando as latinhas para ficarem juntas. Logo, sei que quero guardar esse momento; dois adolescentes com poderes extraordinários, capazes de causar estragos imensuráveis e que devoraram quatro pizzas tamanho família e cinco latas de refrigerante. Eu o olho, minha mão contra o rosto para esquentá-lo. — Sobre você ir longe. — Sua voz é suave e fiel. Me faz feliz. — Eu não sabia sobre o que fez por ele, — Peter confessa, então os olhos quentes buscam os meus, uma risada chiando em sua garganta. Soa como uma respiração nervosa. — Foi esse o “estágio” que perdeu naquela tarde? — Logo sei o que realmente deseja saber. — Quando me ajudou no início do semestre, era isso o que estava fazendo?
Concordo com a cabeça, puxando meu próprio cobertor para o queixo.
, você criou aquele exoesqueleto? — Embora não pareça ter falado de maneira surpresa, suspeito dele de qualquer forma. Repito o antigo gesto e ouço quando Peter arfa, chamando minha atenção para o sorriso que tem no rosto. É o sorriso que abre os seus lábios um pouco, mostrando um pouco dos dentes e que surge mesmo sem que ele pareça perceber. — E-eu sempre soube que é inteligente; extremamente inteligente. — O elogio faz minha face formigar e orelhas também, possivelmente ocultadas por meu cabelo após um vento leve que faz uma latinha de refrigerante rolar para longe e ele não parece mais se interessar nela. — Mas aquilo? É... Inumano. — Parker move os lábios, som algum saindo, seus olhos desviando de mim e observando o mundo ao nosso redor. — É esperançoso, . — Peter sorri, ainda extasiado. — Ele está andando, ! — É a minha vez de sorrir quando gesticula para o prédio residencial do Complexo, onde Rhodes estaria. — Você tem ideia do que fez?
— O Tony me ajudou com tudo, Pete — lhe digo, mas não parece ser tão importante assim quando Peter me olha, expressão leve e o canto dos lábios se erguendo de maneira quase incerta, mas não por escárnio. Não como se eu estivesse com sangue manchando minhas mãos ou em meio a uma crise e ele sentisse nojo. Talvez, só talvez, da mesma maneira que eu o vejo, como, se por alguns segundos, seja impossível acreditar que existe e que tenho sorte de estar ao seu lado. Da mesma maneira que me pego o olhando às vezes, algo que não consigo pôr em palavras. Adoração, quem sabe, mas duvido que essa palavra compreenda tudo. — Eu tive as ideias, mas o Tony entrou com o dinheiro e os materiais. A doutora Cho conseguiu cirurgiões que aceitassem e avaliassem os protótipos.
— Mas é o seu protótipo! — Peter insiste, estendendo a mão. — O senhor Stark estava presente, mas não seria a mesma coisa se você não estivesse lá. — A sua paixão pelo assunto me faz sorrir também, mesmo com minha face em chamas. — , se colocar isso em uma inscrição para a faculdade, não há dúvidas que será escolhida. É magnífico e um marco para a ciência! — Minha risada ecoa no telhado e preciso cobrir meus olhos para fugir de Peter. Conheço o meu valor e que fiz algo bom, o que médicos do mundo todo se demoraram a fazer, talvez por falta de recursos ou oportunidades. Todas as ideias e os estudos já estavam disponíveis, eu apenas os uni em um e consegui desenvolver algo coerente. Não é para tanto. — Tudo bem, sei que não sabe lidar com elogios e o peso de ser genial, mas... — Nossas risadas se misturam no ar frio. — Mas é incrível, . O que fez é incrível e não tem timidez alguma que vai mudar isso.
— Também é ótimo em robótica, Peter — elogio para desviar o assunto.
— Mas nunca fiz alguém andar — ele me corrige. — Posso ser bom, mas não sou como você e nós dois sabemos disso. Mesmo que finja não ligar, sabe que o que fez é gigante, . — Seus olhos escuros estão buscando os meus, insistindo que eu acredite nele e no que considera verdade. — É absurdo e é... — Peter balança a cabeça, rosto radiante e cachos balançando. Tão humano e tão Peter que não reconheço o saltar de meu coração ao vê-lo orgulhoso de algo que fiz. — Você! — Estou ardendo em brasa quando toca meu ombro acima do casaco, justificando todos os elogios em mim. Minha efêmera existência se tornando digna de uma palavra que descreve seu maravilhar. — É sua criação e é mais que “só um protótipo”. Isso só prova o quão inexplicável você é.
Puxo o lábio entre os dentes, buscando uma utilidade para minha boca, pois não há comida para enchê-la e me impedir de parecer uma tola por não ter respostas para ele. Estou muito mexida por sua opinião e orgulhosa por lhe agradar, mesmo sem que minha ajuda a Rhodey tenha sido inclinada a ideia de receber elogios.
— Eu te odeio — sussurro baixinho, esfregando meus olhos e ouço quando Peter ri novamente, conhecendo a única maneira que tenho para suportar algo assim. — Não pode dizer esse tipo de coisa — reclamo com a voz apertada, joelhos dobrados e logo encostando minha testa neles para fugir de o olhar. — O Rhodes merecia andar de novo, não fiz aquilo para ser vista assim.
— Ele merecia andar e você merece os elogios que acompanham o que fez — Parker retruca com sua voz gentil jamais me empurrando para onde não consigo acompanhar, nunca pedindo mais compreensão que posso oferecer. — É por isso que a senhorita Potts se gabou de você para a doutora Lewis, . Não é algo que se pode saber e não querer gritar para os quatro ventos, mesmo que não esteja vendo o quão extraordinário é. — Molho os lábios e o encaro, suportando todo o afeto estampado no seu rosto, uma expressão que me faz querer sorrir apesar da vergonha de ser o centro do diálogo. — Não está vendo isso, mas nós estamos e é certo sentir esse orgulho todo. Principalmente quando direcionado a você.
Abaixo os olhos para minhas mãos, relembrando como Tony as tocou na festa.
— Lembra a noite do Baile de Boas-Vindas? — questiono sem o olhar, atenta em como as árvores se mexem no bosque, fugindo da neve que cai tão fina que não posso percebê-la, mas sei estar aqui. — Quando te disse que me senti inútil por você acreditar ser ninguém sem aquele uniforme? — Peter se mantém em silêncio, mas considero que se recorda do que aconteceu. — Acredito ser difícil nos vermos com os olhos alheios, Pete. Da mesma maneira que te vejo como um... Um herói, além de muitas coisas; mesmo que você tenha dificuldade de se ver da mesma forma. — Cutuco um canto sobressaltado de minha unha, não arriscando falar demais sobre como estou tão perto de o colocar em um pedestal. — Talvez seja grande coisa, mas é difícil acreditar. Se pudesse escolher um de nós para ficar em um pedestal, eu o escolheria.
— Eu tenho certeza de que não me vê da mesma forma que eu te vejo e é por isso que me acha digno desse tal pedestal. — Balança a cabeça, parecendo uma criança teimosa e eu quero sorrir e lhe empurrar. — E sim, é grande coisa, sim.
— Então me diz — peço com o nariz empinado, teimosa como ele. Deito-me no chão gelado, encolhida e com o cobertor até o queixo, puxando a lata que havia rolado para longe e a usando como travesseiro. — Me diz como me vê, Parker. — Cubro os olhos com meus braços. — Aí decidimos qual de nós está viajando mais, mesmo já sabendo ser você.
Ouço sua palma tocar o chão, demonstrando que ele mudou de posição. Espero por um instante, aguardando sua resposta com a respiração gelada e pesada, o pesar tendo se instalado em meu peito desde que Maria Hill me contou a verdade sobre ela. Molho meus lábios, estes já secos pelo clima gélido quando o som de Pete coçando a garganta me alcança, parecendo ser necessário para ele recuperar a voz e atenção.
— Te vejo como uma titã, . — Aperto os lábios quando pronuncia meu nome completo, não o apelido ou o termo especial que me foi dado por ele. — É diferente; poderosa e inalcançável. — Há algo em sua voz, um sentimento que só pude encontrar em seus olhos antes e agora parece amplificado pela escuridão de minhas pálpebras. O timbre de Peter é natural e mais denso, quase palpável, substituindo o tom que costuma usar, garantindo-me que é minha expressão coberta que lhe dá liberdade para demonstrá-lo. — Os seus poderes são dádivas que tem uma magnitude que eu não consigo compreender, mas, ainda assim, tenho essa vontade de te esconder quando alguém te olha por muito tempo ou sequer se aproxima. Com tudo o que sei, tenho esse medo de que te vejam e façam algo para te mudar e te ferir.
Não movo músculo algum, absorvendo cada palavra.
— Me preocupo em como é boa com as armas que a Hill usou, como é habilidosa em combate e como consegue absorver o poder de uma mina terrestre sem se machucar, mas minha maior preocupação, nessas últimas horas, nas últimas vinte e quatro, são os seus pesadelos. — Peter pausa, recobrando o ar que rasgou seu peito durante toda a longa sentença. — Não quero te perder pra eles ou que se machuque onde não posso te ajudar. Por isso o Tony não quer que vá tão longe de nós e se perca na sua cabeça — justifica sua inquietação de ontem. — Pode ser uma titã, uma deidade, ou até um oráculo; porém continua sendo a minha e não quero correr o risco de te perder.
Engulo em seco quando a palavra “minha” lhe escapa com facilidade. Me indago quantas vezes ela já foi utilizada por alguém para se referir a mim. MJ e Ned me chamariam de sua amiga, Tony se refere a mim como sua filha, sou a querida de May Parker e o amor de Pepper. Porém, nenhum termo que já aplicado tem a mesma força estampada no termo possessivo que Peter usa para me definir, ou a intimidade latente em referir-se a mim como “sua ”, descartando meu nome e apenas aplicando à pessoa que conhece. . A parte de mim que cuidou de seus ferimentos, que o defendeu de Tony e que toma chá em sua casa. E eu gosto dessa parte. Prefiro ela à parte que ele conheceu em Berlim e a que está mais presente em suas memórias recentes segurando uma pistola. Eu a escolheria, se pudesse. Escolheria a boa que não é ameaça alguma.
— Seria bem engraçado se, depois disso tudo, você tiver caído no sono bem no meio do meu discurso. — Parker ri nervoso, o som sendo responsável por me arrastar para a realidade em que lhe deixei falando sozinho ao decidir que temo cada parte de mim que não é dele. Cada aspecto meu que não pertence a Peter não parece seguro. O ar que enche meus pulmões é gelado e faz meu nariz arder, porém não consigo deixar de respirar fundo após lhe ouvir, ciente de que uma brincadeira havia se tornado uma confissão de seus medos. Medos estes que envolvem minha segurança.
— Eu estou tentando pensar em como responder e não consigo — confesso, os olhos ainda fechados, pois é difícil lhe olhar. Ouço quando respira aliviado e o movimento de caixas ao deitar-se, um sopro me indicando isso quando chega ao chão. — É estranho que me veja como algo grandioso e depois me diga que tem esse ímpeto de me esconder por medo que me machuque — divago, tendo de recapitular tudo o que disse. Abaixo os braços, abrindo os olhos para as nuvens escuras acima de nós, estrelas ocultadas pela iluminação artificial. É difícil evitar me virar para Peter, mas quero finalizar o raciocínio e lhe ver tão... — Queria ser como você e conseguir colocar pelo menos um terço do que sinto em palavras, mas é complicado — explico-me. Memórias de meu pesadelo com meu corpo ardendo em chamas retornam e eu recordo o esforço necessário para conseguir aguentar aqueles segundos enquanto Natasha chamava por mim. — Você não vai me perder e eu não vou permitir que isso aconteça sem luta.
— É a luta que me preocupa — Peter sussurra quando torno para ele, o ar que deixa sua boca ascendendo para o céu devido ao clima. Seus braços estão sobre o peito, cruzados para se proteger de algo invisível. — Essa luta que vê é a minha maior preocupação. O sangue que diz ter visto é tudo o que eu consigo pensar naquela arena com a Hill e essas armas. Meu motivo de estar lá é esse, ; tentar impedir que o sangue seja da May, seu, do Ned... — Ele respira fundo, tão fundo que ouço o ar que lhe escapa.
— Se pudesse, eu apagaria essa preocupação, Pete — juro. Este é um dos poucos momentos em que odeio o chip em seu pescoço e rejeito a forma que me controla tão fácil. — Se pudesse te sentir, prometo que arrancaria esse medo de você. Iria esconder cada memória o mais distante que posso e tentaria fazer o mesmo com o Tony. — Afasto o cabelo do rosto, buscando utilidade para as minhas mãos. — Eu não posso vê-los direito com o chip. Não consigo entender e não é como as coisas funcionam com quem eu posso sentir — lhe conto. — Basta um toque e sei cada detalhe necessário para conhecer alguém. Seus medos estampados em cada pensamento que têm e, se quiser o suficiente, posso passar uma borracha sobre eles. E queria poder fazer isso com vocês. — Em minha mente, vejo Tony e suas mil expressões que personificam a irritabilidade e os seus temores, todos escondidos por uma camada de ironia que seria um véu finíssimo se eu pudesse o ver direito. — Detesto ser o foco da preocupação de vocês.
Peter se vira para mim por um instante e eu lhe observo por baixo de meus cílios com atenção. Enquanto as íris de Harry são azuis cristalinas como um lago no verão, as de Peter são escuras. Ricas em escuridão e sei que podia me perder nelas, seguindo a ideia de que se olhar por muito tempo para um precipício, o precipício olha de volta.
— Quero proteger vocês e faria qualquer coisa para garantir que estão seguros, . Até aguentar saber sobre isso parece pouco se comparado — ele garante, recusando o favor que eu faria se tivesse chances. — Não quero mais perder ninguém. — A confissão me entristece quando me recordo da história que contou assim que nos conhecemos de verdade; sobre seus pais que morreram quando tinha quatro ou cinco anos e sobre seu tio que havia falecido em um assalto. No verão em que Peter havia conhecido Ned. E reconheço que ele tem mais perdas do que parece. Peter é órfão de pais e isso me machuca. — Só preciso de tempo para me acostumar — Parker consola-me, sorrindo pouquíssimo. — É difícil porque sei como pode acabar.
— Nós vamos ficar bem. — Agarro o seu pulso (quente quando comparado com minha pele), deslizando os dedos por ele até que possa segurar sua mão, que se abre para mim sem pensar. Gosto que segure minha mão, a textura de sua palma e como seu indicador fica acima de uma cicatriz que tenho desde que era pequena. — Eu sei que vamos. — Estou mentindo e por isso não lhe olho, certa de que poderá identificar a mentira em minha face. — E vamos mudar de assunto, por favor. — É um pedido real, pois não quero pensar no motivo que o fez vir ao Complexo em primeiro lugar, decidida a fantasiar que é apenas uma noite do pijama como a que tive com MJ. — Fala sobre outra coisa. Qualquer coisa.
— Até sobre o Flash?
Lhe dou um sorriso.
— É menos deprimente que a nossa vida.
— Nossa vida não é tão ruim. — Peter ri e eu lhe acompanho, apertando os dedos. — Te contei sobre a turma de cálculo? — Faço que não com a cabeça. Quero ouvir sobre como foi tudo com o professor, mas sabia que me diria apenas quando se sentisse confortável, então não lhe questionei mais cedo. — Bom, o Brown não vai me matar, mas também não vai me ajudar tanto quanto eu esperava. — Me deito sobre o braço, de lado, para lhe dar toda minha atenção e ele vira a cabeça para mim, exausto como eu esperei. — Tenho até o final do trimestre para corrigir minhas notas e refazer as três provas que perdi. Elas só vão ser corrigidas se eu marcar acima de noventa e oito em todos os testes normais do trimestre. — Mordo a língua, imaginando quanto trabalho isso não vai lhe dar. — Então, enquanto todo mundo vai fazer três provas pelos próximos meses, eu vou fazer seis e tenho que tirar mais de noventa e sete nas que vou repor.
— Você vai conseguir — o conforto. — São notas altas, mas nada fora do normal para você, Peter. Se não der, eu posso convencer o professor Brown a te aprovar com honras, de qualquer forma. — A perspectiva lhe faz sorrir, balançando a cabeça.
— Quanto à macroeconomia, tenho que fazer dois seminários atrasados e um relatório para entregar até o final do ano escolar, o que é ótimo. — Parker respira fundo e eu seguro uma risada, já tendo o ouvido comentar o quão desnecessária a matéria é para engenharia e como só atrapalha sua grade de matérias. — O Ned disse que vai me ajudar com isso, então estamos indo bem até agora. — Ao lembrar que MJ também cursa a matéria, faço uma nota mental de pedir que empreste seus resumos para Peter. — Já espanhol, vou ter duas provas orais e três dissertações para escrever na frente do Gutierrez e elas são com temas... — Não presto atenção no adjetivo que usa, o nome que surgiu em seu celular ontem retornando para mim em meio à sua frase. “Gwen — Espanhol” que lhe encontrará na biblioteca na segunda-feira.
Decido testar as águas, juntando os lábios ao fingir analisar a punição.
— Não parece muito justo. — Franzo as sobrancelhas. — Não deveria ter alguém para te ajudar com isso? Representante da classe ou algo do tipo? — questiono, interessada em quem “Gwen” seria e por que nunca ouvi seu nome na escola e nem o ouvi na mente de alunos ou professores em meu círculo. Costumo saber de tudo antes de todos e sua ausência em minhas memórias é estranha. — É algo complicado de fazer em outra língua e especialmente com tema surpresa.
— Eu perguntei a mesma coisa para o Gutierrez e, me desculpa se devia ter te perguntado antes, disse que você é muito boa em espanhol e podia me ajudar. — Entreabro os lábios, sentindo-me tola. Claro que eu poderia ter lhe ajudado. — Porém ele disse que aulas extras só são autorizadas se forem com alunos avançados e ele me arranjou algumas aulas de reforço com uma aluna. Gwen. — Minha mente desperta, em alerta por mais informações sobre a estranha que vi em seu celular. Me sinto mal por bisbilhotar com as migalhas que tenho, mas quero conhecer a nova adição em seu círculo de convivência. — O Ned a conhece da aula de história dele e disse que ela já morou em um monte de países. Tenho uma extra com ela na segunda.
— Não precisava perguntar, Peter — dispenso sua desculpa e tento encontrar a aluna em minhas memórias, até no que vi pelos olhos de Ned, mas nada é útil. — E faz sentido as regras do Gutierrez. — Entorto os lábios, demonstrando que também não me agrado. — Mas, pensando pelo lado positivo, você vai ter a ajuda de alguém que já viveu na Espanha, possivelmente, ou em outros países que falam espanhol. Não tem coisa melhor que isso.
Peter aperta as sobrancelhas e me olha, sorrindo.
— Quantas línguas você fala? — ele questiona, ignorando o assunto antigo.
— Algumas. — Dou de ombros. — Por quê?
O rapaz balança a cabeça.
— Porque sei que fala espanhol e francês. — Assinto. — E deve falar italiano, porque te vi lendo o sumário de Decamerão da May. E tenho certeza de que, quando o Marcus Kim fala em coreano no corredor com a namorada, você entende algo porque fica sempre com os olhos arregalados. — Me ergo, apoiada no antebraço por ter sigo flagrada ouvindo a conversa alheia. — E você está sempre atenta quando o Ned faz sotaque alemão imitando o Brad Pitt em Bastardos Inglórios, então só aí temos... — Ele conta nos dedos que não seguram os meus, sorrindo e satisfeito pelo que constata. — Cinco idiomas!
— Se você ouvisse toda a fofoca que a Natalia Kang fala, também ia ficar com os olhos arregalados — esclareço e Peter faz exatamente o que digo e me imita, também se apoiando no antebraço. — Sério, é um absurdo o quanto eles sabem sobre a vida das pessoas e só é mais absurdo o quanto você fica me vigiando.
— Não é culpa minha que fica animada com qualquer fofoca. — Parker ri alto e eu desfiro um tapa em seu braço, lhe acompanhando na gargalhada, pois sei ser uma falha de caráter, mas não é muito mais que ouvir os pensamentos de meus colegas de classe e estou bem com isso. — Nós somos pessoas más por ouvirmos a conversa alheia? — ele indaga, sorrindo largo. — Eu com a audição boa e você lendo a mente deles?
Finjo pensar outra vez.
— É reparação pela nossa vida deprimente — culpo e Peter dá de ombros.
— E então, o que é o Flash Thompson?
Me deito de novo, ainda segurando sua mão e sem planejar soltá-la.
— O universo nos garantindo que ainda pode piorar.


Homecoming XIV — We Both Made Promisses

(Oito meses desde a queda dos Vingadores)

É o sotaque escocês de FRIDAY que me desperta, chamando meu nome no escuro do quarto. Com as pálpebras pesadas e um incômodo nas costas, me esforço para virar na cama, peito para cima e ardor nos olhos. Tem uma luz vermelha piscando em seu ponto acima de minha porta, mas não é o alarme referente a uma falha de segurança, ainda mais evidente pela porta do quarto não ter sido reforçada por uma placa de dois centímetros de vibrânio. Tateio a mesa de cabeceira e encontro o botão que acende as luzes auxiliares enquanto tento me manter acordada.
— Pode falar, FRIDAY — murmuro com a voz apertada devido ao sono.
“Segundo as regras estipuladas pelo Sr. Stark, em sua ausência no Complexo, qualquer problema relacionado à saúde e segurança dos residentes deve ser relatado para a você”.
— É? — questiono, engolindo minha saliva.
“Sim, senhorita. Desta forma, venho relatar um quadro identificado no senhor Peter Parker, de número de identificação 9182. Não foi captado sinal detectável de anomalia cardíaca ou atividade cerebral incomum, contudo, meu diagnóstico é que ele sofreu um forte ataque de ansiedade".
Chuto os cobertores quando o diagnóstico preocupante de FRIDAY é processado em meu cérebro sonolento e nublado, os movimentos tomando mais força e pressa conforme me certifico de que realmente a ouvi direito. Peter é a única coisa em minha mente enquanto deslizo da cama macia, sua saúde e segurança se tornando minha prioridade quando abro a porta e o ar frio do Complexo arrepia-me. Do outro lado do corredor, a sua porta está aberta e me aproximo devagar apenas para encontrar a cama vazia e os lençóis dispersos, alguns até mesmo no chão. Me apoio no vão, aguardando que meus poderes também despertem e garantam que ele não está lá.
— FRIDAY? — chamo baixinho, conforme avanço pelo corredor, certa de que Peter pode ter descido para a cozinha e estar bebendo água. Isso até lembrar que ele não abriria a geladeira sem pedir e é impossível que esteja lá. — Onde ele está?
“O senhor Parker está na Arena 2, ”. A interface informa e logo acelero meus passos, decidida a não me teletransportar para a academia, ciente do risco de lhe assustar. “Um exame médico atualizado informa que sua oxigenação está caindo enquanto falamos”. O novo parecer faz meus pés tocarem um solado de metal, substituindo a escadaria pelo corredor do Centro de Treinamento, o medo de Peter precisar de ajuda sendo o principal condutor de minha magia que age institivamente ao ponto que tropeço quando meu ritmo se altera na falta das escadas. Toco a parede para recuperar o equilíbrio, os sons que ecoam da arena indicada por FRIDAY alertando-me que — como Bucky Barnes e Steve Rogers — Peter decidiu que socar um saco de areia até criar rombos nele é uma boa ideia quando não consegue dormir.
Isto era corriqueiro quando todos moravam aqui. Eu acordaria com gritos estrangulados de Bucky ou com Steve sofrendo tanto em silêncio que sua melancolia ultrapassava as barreiras do chip e me encontrava em meu quarto. Então eles se levantariam e viriam para a Arena 2 a fim de destruir os sacos de areia, afinal, não podiam alcançar aqueles que lhes causaram dores antigas. Natasha os seguia para se certificar de que estariam bem e eu sei o que fazer mesmo que meu coração esteja acelerado por ser Peter no lugar deles. Quando recobro o ar e os grunhidos de Peter se estancam, decido entrar. Considero que também tenha tido medo de dormirmos próximos um do outro, imaginando que tenha se preocupado que eu lhe ouvisse e só assim reconheço que, com tão pouca idade, já passamos por bastante coisa.
Ergo as mãos para abrir as portas pesadas sem encostar nelas e fazer muito barulho, uma névoa de plasma azul-violeta as empurrando. As luzes brancas estão acesas e eu o encontro no centro do ginásio, de costas para mim; tocando o saco de areia bambo e o alinhando antes de desferir um soco, o eco garantindo-me que suas mãos estão nuas e ele não usa proteção alguma. As correntes se balançam com a força que Peter aplica e sua estrutura corporal também reage ao estímulo, os músculos desnudos em seu ombros e costas reverberando pelo choque. Identifico o suor que escorre por sua pele também como consequência da crise de ansiedade, além de um resultado do exercício. Ele está pálido e suando pencas. Os socos e golpes se tornam mais repetitivos e brutos, ao ponto que temo me aproximar, ciente que assustá-lo pode piorar a situação. Então ouço seu respirar apertado, provando que FRIDAY estava certa e sua oxigenação está baixa apesar de seus grunhidos e a força dos golpes estar aumentando mais do que o normal. E eu salto quando Peter arranca o saco de areia das correntes presas no teto, um pedaço de concreto ainda preso nelas e então o lança com extrema força na parede no final da arena.
A ação foi rápida demais para que pudesse impedi-lo e o saco se partiu em dois com um estrondo ao atingir a parede que também rachou, os pequenos tijolos brancos caindo em pedaços. Deixo o ar escapar devagar quando Peter curva a coluna, uma mão ensanguentada no quadril, acima da calça cinza de moletom, e uma em seu rosto, possivelmente afastando o suor dos olhos. Ele está ofegante e preciso de um esforço imenso para não correr em sua direção.
— Desculpa — ele guincha rouco, a voz cansada e embargada. — Desculpa, , eu...
— Eu conserto — lhe impeço de continuar a desculpar-se e atravesso o ginásio, mantendo uma distância segura mesmo que ele tenha reconhecido minha presença apesar de meu silêncio. Entendo que, após uma crise, contato físico pode ser uma benção ou uma maldição e, sem saber como Peter se sente com isso, considero ser melhor me manter afastada. — Não é o primeiro super-humano que racha uma parede aqui, Pete.
O apelido lhe faz trincar os músculos dos ombros e eu percebo que pode ter sido uma má escolha. Quando alcanço a parede de tijolinhos, um pulso tensionado atravessa-me e o tom violeta escapa de meus dedos com facilidade, o material se moldando de acordo com cada mínimo mover meu, obediente à força de meus poderes que o restaura para a condição anterior. A rachadura é grande e funda de forma que posso ver um pouco da outra arena e me indago que, se fosse sua intenção inicial, Peter conseguiria fazer o saco de pancadas atravessar a parede. Guardo o questionamento para outro momento e corro o dedo pela pedra fechada, onde a rachadura é inexistente para quem a visse.
Agora, reconheço o momento ideal de reparar outra coisa.
Ignorando a figura estática de Parker, apanho o kit de primeiros socorros no armário que era de Steve. Ele mantinha suas ataduras nele e eu sei ter itens suficientes para cuidar de meu amigo e os seus ferimentos causados por um já conhecido ímpeto de se machucar para acordar ou sentir algo além de temor. Estou caminhando descalça até ele e desvio dos pingos de sangue vívido no tatame azul, esticando a mão para demonstrar que quero tocá-lo.
— Está tudo bem se eu tocar em você? — questiono devagar, seguindo o mesmo roteiro que Natasha sempre usava para guiar-se quando eu era a pessoa frágil no cômodo. Os olhos de Peter estão nublados, sinalizando que, em algum momento, houve lágrimas neles. A ideia me entristece. — Só quero limpar os seus dedos, Peter — asseguro, mantendo o rosto erguido para não encarar seu peito nu e lustroso de suor. — Quer que eu faça isso? — pergunto outra vez, percebendo como morde o interior da bochecha para se impedir de reagir de outra maneira ou falar algo. Devagar e aparentemente temeroso, ele assente. Repito seu gesto e levo minha palma para seu rosto, meu coração doendo pela maneira que seus cílios tremulam quando fecha os olhos e os dentes batem. — Ok — concordo de novo bem baixinho, não querendo o estimular mais que o necessário. Olho ao redor em busca de uma cadeira, mas não encontro. — Certo. Vamos nos sentar aqui no chão, ok?
Minha voz está mais calma e pacífica que jamais ouvi, soando tanto como a de Nat quanto como a de Pepper, mantendo toda a atenção em Peter e sua necessidade de ser cuidado nesse momento. Devagar, ele se senta no chão, as costas na parede perto de um aparelho para levantar peso, suor marcando a tinta cinzenta com um tom mais escuro quando se encosta e as mãos permanecem côncavas em seu colo ao tentar não se apoiar nelas. Abro o kit de Steve, encontrando um vidro de soro, que deve estar fora da validade, água oxigenada, gazes, uma pomada e bandagens. Alinho tudo ao me sentar diante de Peter, evitando lhe olhar para que não fique desconfortável.
— Desculpa, , eu... — ele inicia, não termina, mas não lhe cobro um final.
— Não liga — descarto o pedido de desculpas outra vez e estendo minha mão para que coloque a sua sobre ela. Ao fazê-lo, reconheço o tremor e os espasmos de seus dedos, causados pela dor e os músculos que finalmente tentam relaxar, mas encontram desafio na dor. — Está tudo bem. — Balanço a cabeça e o olho nos olhos. — Posso? — Peter assente após engolir em seco, a mandíbula bem apertada ao se preparar para o desconforto. Encosto a gaze embebida em água oxigenada nos seus dedos e ele não faz questão de afastá-los, apenas silvando com o ardor. Jamais faria isso se não fosse necessário, mas o risco de umas infecção é grande. — Esses sacos estão velhos. Sujos — justifico, tentando o distrair. Peter assente, respirando fundo e inflando as bochechas. O seguro assim por mais um instante antes de remover a gaze. — Não devia ter se machucado e continuado socando-os. É pedir por uma bactéria.
Tento não fechar os olhos ao ver o estrago de sua mão. Está em carne viva.
— Eu queria sentir — Peter confessa devagar, com os dentes apertados — alguma coisa — ele descarta a motivação de imediato, balançando a cabeça e alguns pingos de suor escorrem até seu queixo. Eu assinto, entendendo o que quer dizer, pois reconheço já ter estado em sua posição. Considero também que tenha sido um episódio de terror noturno que lhe acordou, pois tenho certeza de que ele dormia, afinal, lhe ouvi roncar baixinho quando fui beber água antes de dormir.
— Te entendo. — Mordo o canto do lábio. Seus dedos estão feridos como ontem, mas saber que é o responsável por isso é pior. — Queria ter certeza de que não estava mais dormindo? — indago para confirmar minhas suspeitas e ele emite um som que confirma a motivação. — Ainda assim, é perigoso — lhe lembro, mesmo ciente de que Peter não precisa ouvir isso, mas não quero que faça isso outra vez. O ver ferido é inquietante. — Associar medo à violência é errado e pode se tornar viciante — murmuro, ao limpar o sangue que escorreu para suas unhas curtas, meio roídas apesar de sua tentativa de mudança de hábito ser óbvia.
Peter concorda com meu pedido respirando fundo e eu tento olhá-lo com gentileza, mesmo quando encosta a cabeça na parede para não ter de me ver e abre os lábios rosados para respirar melhor. Tem suor escorrendo por seu pescoço e eu me preocupo que esteja febril, ainda que saiba não ter relação com a ansiedade. Parker molha os lábios e pende a cabeça para o lado, olhando para qualquer lugar além de mim.
— Sonhei com você queimando em Washington. — Paro de esfregar as pontas de seus dedos quando ele confessa com amargor e um breve embargo na voz. Não sei o que lhe dizer, um turvar denso inibindo meu raciocínio, pois me recuso a crer ser a responsável pelas escoriações em suas mãos e a sua instabilidade psicológica. Peter aperta os dentes, a mandíbula evidenciando-se. — Eu cheguei tarde demais dessa vez... — continua devagar e eu cubro seus dedos, não querendo olhar os ferimentos enquanto fala o pesadelo que lhe acordou no meio da noite de forma tão brusca. — E te ouvi gritando. — Ele engole em seco, molhando os lábios de novo. Suas narinas inflam quando Peter respira e eu sei que está controlando suas emoções igual tenho tentado fazer nos últimos dias. Por um momento, quero senti-lo como disse querer no heliporto, desejando ver o que ele viu e poder fazê-lo esquecer-se disso.
— Peter, como assim? — indago chocada, segurando sua mão. — Não...
— Foi horrível, — ele murmura, olhando para onde nossas mãos se tocam e curvando seu indicador para segurar meus dedos da melhor forma que pode. — E foi tão... — Sua respiração trava. — Só sabia que estava tentando te alcançar, mas não consegui. Só queria te alcançar, mas não consegui, e você não parava de gritar e, e... — Sua voz está trêmula enquanto dispara os detalhes de seu pesadelo, seus olhos lacrimejando e reluzindo com as luzes da Arena. Estou em pânico quando os lábios de Peter tremulam, dando sinais de que ele está revivendo tudo outra vez. — Você parecia estar... Soava sentir tanta dor e estava tão quente e eu acho que, acho que desde que falou aquilo ontem sobre... — Peter leva a mão que não cuidei até seu rosto, um rastro de sangue manchando sua bochecha e queixo. Solto a gaze de imediato. — Sobre os seus pesadelos e estar em chamas, acho que...
— Ficou no seu subconsciente, imagino — completo e me aproximo ainda mais, apoiada em seus joelhos e sentada sobre meus calcanhares. Tem uma pontada afiada em meu peito ao reconhecer ser a responsável por sua crise, muito mais responsável que imaginei poder ter sido antes. A realização me deixa confusa ao considerar que não fui só eu que sofri com meus sonhos e o horror deles pode estar sendo transmitido para Peter e Tony apenas por se importarem comigo. O sentimento de monstruosidade que sinto é pungente, mais afiado ainda ao reconhecer o momento de aflição que Peter teve de passar apenas para se livrar do pesadelo. — Me desculpa, não imaginei que...
— Eu tentei entrar no seu quarto — Peter informa com um grunhido nervoso e suor escorrendo, pomo de adão em evidência quando encosta a cabeça na parede, segurando o cabelo úmido para que não caísse sobre os olhos fechados. — Te chamei, mas acho que estava dormindo e eu não sabia a sua senha. — Suas palavras se embolam, pois imagino que sua língua está pesada devido aos resquícios da crise informada por FRIDAY. — E não quis quebrar a porta do Tony. — Seu peito sobre e desce de maneira errática enquanto respira e tenta rir apesar de assemelhar-se à forma que fico durante minhas crises, com o peito pesado e ar rarefeito. Considero o susto que teria se Peter houvesse arrombado a porta para garantir que eu estava bem. — E pensei ser outro sonho e vim para cá porque...
— Porque queria sentir alguma coisa. Eu sei — interrompo sua explicação e não consigo me conter, empurrando o kit de primeiros-socorros para longe antes de me mover mais na direção do espaço entre suas pernas afastadas e envolver meus braços ao seu redor, não me importando com a restrição que tinha antes e certa de que ele precisa disso tanto quanto eu. Como esperado, Peter está quente e eu considero que seja apenas pela tensão e o exercício, mas não ouso soltá-lo, ao menos não depois que ele me envolve e pressiona meu peito contra o seu em um tranco que reflete seu desejo por toque e o de ter alguma certeza de que estou aqui. — Eu sei, Pete — sussurro, ao elevar os abraços para o redor de seu pescoço, segurando-o próximo a mim enquanto me acomodo melhor em seu colo, ignorando como a posição é íntima e apenas desejando lhe acalmar e acalmar sua respiração. — Mas já passou e você precisa respirar, ok?
É como a noite do baile outra vez, mas sem Volture o ferindo e sendo ele a me consolar após imaginar o pior. Agora sou eu que devo estar no controle e tentar lhe acalmar do susto, sentindo-o inclinar-se para a frente e enterrar o rosto úmido entre minha garganta e ombro. Tento regular o subir e descer de meu peito, esperando que, inconscientemente, Peter faça o mesmo enquanto afago sua nuca. Este é o toque mais próximo que já tivemos, o mais íntimo e físico de todos, mas esse detalhe logo me escapa ao lhe segurar, meus próprios olhos lacrimejando ao imaginar a dor que lhe causei. Parker finca as unhas em minha cintura ao me abraçar, respirando contra minha camisa e segurando-me com força, igual eu fazia com Natasha quando era ela a me consolar.
— Peter? — chamo, quando solto um braço e toco em seu ombro, apertando o músculo rígido, pois ele está muito concentrado em me manter perto. A forma que arrasta o nariz em meu ombro garante que pode me ouvir e eu afago os fios de sua nuca, não me importando com o suor. — Vamos fazer uma coisa, ok? — Seu concordar é mudo e me coloco de joelhos, ficando mais alta que ele e com seu rosto na altura de meu peito, mesmo que Peter não pareça nem cogitar a possibilidade de me soltar. Lutando contra o embaraço, eu beijo sua testa e seguro sua face, a encostando no espaço acima do vale de meus seios e lhe permitindo ouvir meus batimentos cardíacos mais regulares que os seus. — Sei que é estranho — inicio, quando o seu toque em minha cintura se afrouxa —, porém eu quero que tente ouvir o meu coração, pode ser? — Movo os dedos para acariciar atrás de suas orelhas, os dedões fazendo o mesmo em sua mandíbula. — E tenta se concentrar no ritmo, tá bom?
Ainda estou trêmula pela coragem necessária ao lhe ofertar isso, mas todo o medo da rejeição se esvai assim que Peter volta a me apertar e o ar quente que expira serpenteia pelo tecido de minha camiseta, provando que ele concorda com a ideia e está demonstrando real esforço. Lhe recompenso com mais carinho em seu cabelo, lembrando o quanto gostou quando fiz isso após seu banho na noite do baile, comentando como fazia anos que alguém não o secava. Encosto o queixo no topo de sua cabeça, sentindo como Peter me segura com afinco, um singelo tremor em suas palmas. Há uma dor física em meu âmago e preciso de esforço para manter as lágrimas em meus olhos sob controle assim como meus batimentos, preocupada que uma mudança no ritmo interfira no que estou fazendo ao imitar o que Natasha fez comigo uma vez. É difícil aceitar que tudo o que aconteceu nas últimas horas foi devido a um sonho relacionado a mim, em especial pelo esforço que faço para não os preocupar com meu bem-estar.
Após algum tempo, os ombros de Peter não estão se movendo em um ritmo tão exagerado e ele demonstra estar mais calmo, mesmo agarrando minha camisa em seu punho igual fiz ontem com ele na biblioteca. Ontem ou sexta-feira, não importa. Enquanto ele não dormir de novo, meu relógio não vai correr normal. Quero que fique calmo e bem, essa é a minha nova meta para a noite. A antiga era não ter pesadelos devido ao que aconteceu no treinamento, mas Peter se torna minha prioridade. Não sei quantos minutos correm até que minhas coxas estejam tremendo por estar de joelhos, mas devem ser mais de quinze e sei que Peter ainda está acordado pela forma que as pontas de seus dedos, esses que seguram minha roupa, se movem, tentando acariciar minhas costas.
— Pete, preciso cuidar das suas mãos. — Afago a sua nuca de novo.
Isso o desperta e tenho certeza de que, se pudesse, ele me esmagaria contra si.
— Não. — Sua voz é uma ínfima memória de como soou no telhado. Vulnerável. Outra mão aperta minha camisa, impedindo que eu tentasse sair se quisesse. Meu coração se parte. — Fica — Peter pede abafado, mas não com o mesmo tom de quem segurava o choro antes, meu método parecendo ter lhe ajudado a se acalmar um pouco, mesmo que reaja assim com meu pedido. — Por favor, fica. — Estou zonza de imaginar seu sangue em minha roupa, a dor que está sentindo e o seu pavor de me ver ir. — Por favor, , não vai embora. — Peter respira devagar e contido quando sussurra meu apelido, engolindo em seco. — Não — implora e eu tenho dificuldade em discernir se ele está acordado. — Fica. — Só agora posso perceber a profundidade de seu pedido.
Assinto de imediato, não ousando lhe contrariar, ciente de que seu pedido supera esse momento e minha tentativa de cuidar de seus ferimentos, apoiando-se no que pode ter visto em seu pesadelo e os sinais de que meus sonhos me mostram. Peter temer meu fim é bem pior do que eu pude imaginar.
— Tudo bem — sussurro aversa ao meu raciocínio precipitado. — Vou ficar mais um pouco.
Concordo com a cabeça outra vez, apenas sentando-me em seu colo para que minhas pernas tenham alguma folga após o dia cansativo. As mãos de Peter estão tremendo em minha cintura e caem para meus quadris ao se inclinar de novo sobre mim, buscando algum apoio. Eu lhe impeço de colocar a cabeça em meu ombro, segurando seu rosto que já não está tão suado agora que ele repousou e a arena tem esfriado. Os olhos de Parker se abrem devagar, um pouco avermelhados, mas não demonstrando tanto medo como fez antes. O ver tão frágil é doloroso.
— Ei, está tudo bem! — lhe garanto, acariciando suas bochechas com meus dedos. Ele assente com esforço, os lábios apertados para controlar a suas reações. — Eu estou aqui. Você me salvou, lembra? — Reconheço que estou tremendo, mas culpo o nervosismo, ainda focada em lhe estabilizar mesmo quando me olha tão expressivo. — Lembra o que disse mais cedo? Que ia me proteger? — Ele repete o movimento. — Você vai me proteger igual fez em Washington e eu vou te proteger, ok? Sempre vamos estar lá um pelo outro, não é? — Neste ponto, não sei qual de nós precisa desta confirmação. Toco em seu cabelo, assentando os cachos que tanto gosto. — Eu estou aqui com você, Pete.
Fecho meus olhos quando reconheço também estar sem fôlego, precisando estar bem para que ele também fique. Hoje, sentindo tanta tristeza em vê-lo machucado, posso entender o que fiz Tony e Pepper passarem com minha crise e o que Nat também passou comigo quando estava aqui, meu amor por todos duplicando. Afasto os lábios para respirar melhor quanto sinto a testa de Peter encostada na minha, o ar quente que exala sendo o que respiro e vice-versa, focada no que fazemos e em como ele está próximo, nariz roçando minha bochecha ao respirarmos e tentarmos manter o controle de nossas emoções. Então, há um toque. Um roçar delicado de uma superfície molhada em meus lábios quando aspiro fundo.
Relaxo contra Peter, sendo a minha vez de me deitar sobre ele e colocar a cabeça em seu ombro, abraçando sua cintura quando faz o mesmo comigo e pousa uma palma aberta no meio de minhas costas, transferindo calor. A outra mão de Peter encontra minha nuca, engolindo em seco outra vez e encostando o nariz em meu cabelo. Tenho um montante gigantesco de indagações, mas todas de esvaem em um estalo quando sinto o pulsar de sua jugular em minha testa e ergo a palma para que descanse acima de seu coração, contando os batimentos regulares através de sua pele morna. Fecho os olhos e encosto os lábios em seu ombro ao sussurrar a promessa que não tenho outra opção a não ser cumprir:
— Nós vamos ficar bem.


*


Desta vez, é um alarme alto que me acorda.
Ainda com o peso da sonolência, abro os olhos apenas para ser recompensada com um close-up da pele de Peter Parker com um filtro vermelho sobre ela. Recordando-me do que aconteceu ontem, meu primeiro instinto é garantir que ele não se importa com o som e constato isso com facilidade quando seu roncar soa em meu ouvido direito. De certa forma, é reconfortante saber que ele permanece disperso em seus sonhos, estes não sendo tão ruins quanto antes, pois Peter descansa em paz, ainda me segurando com todo o afeto que alguém poderia ter enquanto dorme. E ainda que um alarme chato ecoe na arena, negligencio a ideia de precisar me mover ou deixar seu aconchego morno. Me movo devagar ao sentir um repuxar desconfortável em meu cabelo, lentamente escorregando minha cabeça para o outro lado, a fim de buscar a origem do som.
Peter grunhe baixinho, o peito vibrando contra o meu e relembrando-me o quão próximos estamos e como isso é estranho por ser a primeira vez. Engulo em seco, entendendo que já nos abraçamos diversas vezes e eu já encontrei conforto nele outras mil, porém permanece diferente ao lembrar que — em um momento de agonia e tanta fragilidade — ele me aceitou do seu lado e encontrou paz em minha presença. É novo e bom, assim como tê-lo em meu lar. Suspiro fundo quando um ardor conhecido e tímido toma conta de minha face, trafega para todo o meu corpo e me leva a fechar os olhos para diminuir o estímulo. Adormeci nos seus braços e isso é assustador. Meses atrás, passei a noite inteira acordada na casa de MJ, mas, com Peter, nem sequer me recordo de ter caído no sono muito depois dele.
“Os bonitinhos vão acordar com o alarme ou eu preciso acionar os sprinklers e dar um banho nos dois?” Mordo os lábios no instante em que a voz de Tony ecoa na arena, em alto e bom som, ao ponto que me movo mesmo sem querer fazê-lo. Dedos quentes se curvam em meu bíceps e, com uma respiração irregular, sei que acordei Peter com meus movimentos nem um pouco condizentes com meu treinamento nos últimos dez anos. Sou falha quando a missão é acordar pela manhã nos braços de meu melhor amigo e é quase engraçado. Então um dígito desliza por meu braço com cuidado, testando as águas antes de um suspiro cansado deixar os lábios de Peter — reverberando por mim antes que eu feche os meus olhos com força, sem nem pensar bem ao me forçar a fingir dormir para prolongar o momento e fugir da ira de Tony. “Parker, eu acho bom controlar as mãos se não quiser perdê-las!”
Os braços de Parker se apertam mais ao redor de mim devido ao susto.
— Estamos acordados, Tony! — aviso, me afastando o quanto Peter permite, tentando não gritar em seu ouvido. Um momento se passa até que as luzes voltem à coloração normal. Peter se move devagar e sinto a sua respiração deixar o estado regular onde sei que já despertou de vez, movendo as pernas devagar para esticar os músculos um pouco, logo enterrando a cabeça em meu pescoço com um adorável “Humpf”. — Pelo menos estamos agora! — volto a dizer, implorando que não ligue os sprinklers em pleno inverno, mesmo ciente de que ele jamais faria isso conosco.
“Ótimo!” o herói ruge para nós e eu posso ouvir a risada de Pepper, garantindo que ainda estão juntos no quarto dos dois. E que, claramente, ela está se divertindo com o horror do noivo. “Estou descendo para a arena em cinco minutos e se não houver uma distância de, no mínimo, meio metro entre vocês, eu...” Sua voz fica mais distante até que ele esteja em silêncio e isso faça com que a mulher ria mais no fundo da mensagem. Neste ponto, sinto quando Peter apoia o rosto em meu ombro, soltando uma riso mudo, algo que soa como um ronquinho baixo. “É a primeira vez do Tony ameaçando alguém que não pode explodir com o propulsor, então sejam compreensivos.” Pepper pede, assumindo o controle da situação por ele. “E bom dia.”.
Sei que ambos não estão mais nos olhando quando o alerta de desativação de FRIDAY ressoa pelo espaço enorme, garantindo que eles desligaram qualquer aparelho que usassem no outro cômodo. De imediato, aperto os olhos com força, certa de que há um rubor em meu rosto e talvez no de Peter, então recolho meus braços que estavam ao redor de sua cintura, trazendo para meu colo sem tirar a cabeça de seu ombro, pois a posição é confortável. Ainda assim, os seus braços permanecem me segurando, sem falha apesar de tanto tempo desta forma e tento regularizar meus batimentos cardíacos quando me puxa mais para seu peito, o aconchego da manhã nos afogando mesmo com as ameaças inofensivas de Tony.
— Dia — murmuro, na falta de alguma outra coisa para falar e recusando-me a erguer a coluna e lidar com os ossos estalando pela posição desvantajosa em que dormi. E, ademais, tem a questão gritante que é olhar em seu rosto após ter dormido em seu colo enquanto está sem camisa.
— Dia, . — A voz dele é como eu esperava para uma manhã que segue uma noite conturbada; grave e áspera. Mas há um pouco de Peter nela, precisamente quando sussurra meu apelido. — D-Desculpa por, por ontem... — Sei que estava praticando o que falar assim que lhe ouço, o pedido enlaçado com a sua insegurança e, sem esperar por uma continuação que não preciso ouvir, balanço a cabeça, lhe cortando. — N-não, eu preciso me desculpar, — Peter continua mesmo assim e eu sinto quando engole em seco. — E-eu não devia ter feito...
— Devia — corrijo. — Você me diria isso, não diria? — indago, me afastando ainda sem coragem de olhar em seu rosto, agora concentrada em minhas mãos e na contagem de meus dedos. Cinco em cada mão, dez no total. — Se fosse eu a ter o pesadelo, você me diria que devia, sim, ter tentado te acordar e iria me confortar, Peter. Não iria? — Minha mente está vibrando. Fervendo e borbulhando com preocupações. Desde seu pesadelo até Tony que não irá se esquecer tão cedo da cena que protagonizamos, até que o foco retorne para Peter e como seu emocional está abalado após a crise que teve. É bem devagar que Parker assente, bochecha se arrastando pela cortina de meu cabelo ao confirmar que ele diria exatamente a mesma coisa. — Então não considere, nem por um segundo, que eu não faria o mesmo por você.
— É difícil — ele sussurra e consigo unir coragem suficiente para lhe olhar. Peter está esgotado, isso é óbvio, mas ainda há uma delicadeza em sua expressão. Os olhos continuam um pouco irritados, agora sombreados com um tom rosáceo. Os lábios apertados voltam a reiterar seu ponto que conheço bem; provando o quanto é difícil e até (incorretamente) vergonhoso se recuperar de uma crise. — Sempre que... — Peter respira devagar, a mão que apoiava a parte baixa de minha coluna voltando a segurar em minha camisa, só uma pontinha. Só um pouco para recordar-lhe que está desperto e não preso em um pesadelo. — Sempre que você me vê assim... É difícil.
— Eu sei — lhe asseguro, evitando olhar para seu corpo. Decido, então, focar em seu rosto e em como Peter assemelha-se a um herói derrotado, mesmo que eu não o veja dessa forma. — É chato sair de uma crise. Mas eu não ligo. — Dou um suspiro cansado, tentando me acostumar com a ideia de sermos tão frágeis um com o outro. — Somos nós dois, então acho que temos de nos acostumar com isso. — O vejo assentir de novo, desviando a atenção de meus olhos, mesmo que esteja com as mãos em mim. A ideia me faz sorrir um pouco. — Você sabe, pelo bem da nossa vida deprimente. — Quando Peter me olha com um sorriso mínimo, mas verdadeiro, não ligo mais se Tony ligar os sprinklers em nós.


*

(Manhã de Natal — Complexo dos Vingadores)


— Acha que eles vão ficar juntos?
Estico a mão para a caixa de donuts no colo de Tony, tateando os doces até encontrar um com os confeitos de açúcar ainda intactos. Dou de ombros antes de tirar uma mordida, a energia do açúcar nem sendo mais tão alta agora que estou na oitava porção. Meus pés estão prostrados sobre a mesa de centro ao lado dos copos de papel com resquícios de chocolate quente. Dou uma boa olhada para o casal na tela da televisão, estes que brigam avidamente pela melhor árvore de Natal para suas famílias. Torço o nariz ao me atentar outra vez para os sinais de que este será outro filme clichê: ele é pai solteiro de uma garotinha muito animada com o Natal e a mãe da mulher está louca para que ela se case.
— A mãe da Kate está louca para arranjar um genro. — Concordo com a cabeça, deitando-me no canto do sofá quando a garotinha corre para abraçar a perna do pai. Quem diria em milhares de anos que o grande Tony Stark estaria tão entretido com um filme de sua época menos favorita do ano. Estou para mencionar isso quando continua: — E vencer o Concurso de Torta de Nozes. — Stark revira os olhos, pois é o terceiro filme desde as oito da manhã em que as pessoas perdem a cabeça por concurso de tortas, árvores ou meias decoradas. — Realmente existe gente assim?
— Será? — A pergunta não é importante e nós não estamos debatendo o fim do mundo, mesmo assim tenho interesse e conversar com Tony sobre algo tão bobo aquece meu coração. A pergunta me lembra da mensagem que Michelle me mandou ontem após Peter ir para casa. — A MJ me disse que a avó dela está participando de um concurso de gemada natalina e a mãe de um com os melhores ornamentos de mesa. — A informação arranca uma risada do mais velho que tem um donut no caminho da boca e assopra todo o açúcar branquinho para sua camiseta preta. Estou sorrindo também. — É verdade! Ela me disse que lá eles levam isso muito a sério! Ganham faixas e tudo.
— MJ... — ele pondera o apelido. — Não é a garota com quem você foi para uma festa no início das aulas? — Tony se acomoda com mais conforto no sofá. Confirmo com um joinha ao me erguer para tentar encontrar uma xícara com ainda alguma coisa dentro. — Você não fala muito dos seus amigos da escola, então fica difícil diferenciar e saber com quem você conversa — Stark informa. — Bom, eu tenho a ficha de todos e a ficha criminal dos pais, mas não é a mesma coisa. — Meu sorriso é miúdo, pois tento segurá-lo mesmo sem estar surpresa por Tony ser tão precavido em relação à minha segurança.
Pego outro donut e tiro uma mordida.
— Você conhece todos os meus amigos, Tony — afirmo sem humor, tendo total certeza de que ele também tem, no mínimo, a ficha de todas as pessoas em minhas aulas e olhos dentro da escola para me vigiarem. Entendo que deveria me incomodar um pouco com isso, porém não o faço. Sinto os olhos dele no meu rosto e, ainda que não lhe olhe, estou certa de que sorri um pouco. — Tem o Peter, a MJ e o Ned — enumero, sorrindo por poder contar o número de amigos que tenho nos dedos da mão. E ainda tenho espaços vazios, então, por um momento, considero contar Harry Osborn na conta, mas ao recordar-me da rixa de Tony com seu pai, fico em silêncio. — Às vezes eu converso com a Betty ou a Fatima, que estão no Decatlo. Mas... — Balanço a cabeça. — Não sou tão sociável como você deveria ser na sua época da escola.
Tony põe a mão sobre meu joelho, cutucando a mancha de chocolate quente no pijama.
— Eu era sociável, mas a babaquice e a irresponsabilidade costumam estar inclusas no combo, então fico feliz que não tenha esse traço ruim dos Stark. — Ergo o rosto para lhe olhar, seus dedos dançando na estampa roxa da calça com desenhos do Hulk. Os pijamas com padronagem dos Vingadores são o meu maior orgulho e Tony também parece gostar muito deles, mesmo que quando visto o de Steve a sua expressão seja diferente da atual em que olha o seu amigo. — As pessoas “gostavam” de mim porque eu dava festas enormes, com bebida para menores de idade e música alta quando meus pais estavam viajando. — O toque em minha perna some e Tony volta a encarar o filme. Kate está fazendo amizade com a filha do estranho enquanto me entristeço aqui. — Pelo que te ouço falar, seus amigos parecem ser gente boa e gostarem de você de verdade. — Assinto satisfeita por aprovar minhas amizades. — Eu mesmo demorei um bom tempo para encontrar alguém decente que não estava nem aí para o meu dinheiro.
Ouvi-lo falar com carinho dos seus amigos que tanto gosto me faz feliz.
— Mas não conta para eles, se não os idiotas vão ficar se achando.
— Eles já se acham, sabia? — adiciono com um pequeno sorriso.
Entendo o motivo de suas farras e grandiosas festas durante toda sua vida. É algo que requer muita compaixão para perceber e um amargor toma conta de minha boca mesmo que o doce açucarado derreta em minha língua. Sei bem que essa é a parte do ano em que costuma se sentir mais solitário e como falar dos seus amigos que não estão aqui deve lhe incomodar. Conheço a história sobre seus pais terem morrido no dia dezesseis de Dezembro e como tudo desmoronou em seus ombros do dia para a noite: Stark Industries e tudo o que se ligava a ela, desde escândalos e a responsabilidade absurda. O Natal se tornando, a partir daquele acidente, um mártir. Então ele cedeu ao alcoolismo por uns anos, às drogas as quais se recusa falar e o resto da história que todos conhecem bem — farra e mulheres. E eu me recuso a pensar onde e em quais condições Tony estaria agora se Rhodey, Happy e Pepper não estivessem ao seu lado no processo.
— Mantenha os seus amigos perto, . — Ele toca em meu cabelo disposto em uma trança que Pepper fez ontem enquanto assistíamos ao filme antigo do Grinch. Seguro na mão de Tony, sentindo o calor se transmitir pelas pontas de meus dedos. Mesmo com o cabelo bagunçado e barba por fazer, ele mantem veracidade em sua voz ao me contar como se manteve são nos últimos vinte anos. — Eles vão manter os seus pés no chão, acredite em mim. — O seu sorriso é uma garantia. — E se mantenha rodeada de bons conselheiros e de pessoas que querem o seu bem. Mesmo que não entenda e eles te irritem.
— Você não me irrita, Tones — garanti com falsa tristeza e dou risada quando me atinge com uma almofada macia, balançando o queixo e o bigode graças a brincadeira. — Obrigada. — Abraço a almofada, o olhando. — Por tudo. Conselhos e o resto das coisas que tem feito por mim.
— Não tem de que, monstrinha. — Stark afaga minha perna de novo. As esparsas rugas em seu rosto se afincam, mais profundas quando sorri para mim — as na testa, as nos cantos de seus olhos expressivos e as de sorriso. Tony parece tão caseiro e incomum que é difícil reconhecer quem realmente é quando o olho em momentos assim. Uma calça larga escura, camiseta verde e um cardigã azul escuro. Estas são as roupas escolhidas pelo bilionário para passar o Natal em família. — É época de ser caridoso com os necessitados — ele provoca e não evito rir.
Natal em família. Foi assim que Pepper definiu a ocasião quando me acordou pela manhã. Havia torradas, waffles, ovos e bacon prontos na mesa de café, assim como uma quantidade exagerada de chocolate quente que ainda não terminamos de tomar até agora. Nós tomamos café conversando e planejando o dia como havíamos feito ontem durante a ceia de Natal, rindo de memórias antigas que Rhodes resgatava e histórias da juventude de Tony que deixavam Potts com o cabelo em pé, assim como me deixaram envergonhada ao contarem para Rhodes sobre meu "acidente" com Peter uma semana atrás.
Após a partida dele, horas depois de acordarmos na Arena, decidimos que Peter viria passar três dias na próxima vez, a fim de compensar o fim de semana perdido com o Natal. O evento na Arena parece ter fortalecido nosso relacionamento mais que antes, ao ponto que é difícil recordar-me de um dia na escola onde ele não me acompanhou para todas as aulas e que não estava me esperando na porta da sala assim que elas acabavam. Considero que tenha sido sua forma de me agradecer, mas não posso contar isso para MJ, pois ela permanece com suas brincadeiras, agora substituindo "cão" por "segurança particular" sempre que pode. De qualquer forma, faço uma nota mental de mandar uma mensagem para ela, Ned e Peter, desejando boas festas para todos.
— Me esperaram para os presentes ou já abriram tudo? — Pepper questiona, ao descer as escadas com uma caixa bem embalada em mãos, o pijama de seda permanecendo com um botão abotoado errado na barra, mas ela não liga. Está radiante com o cabelo preso e óculos de leitura, descalça e sorrindo, pois “É Natal!”., já pegou os seus presentes?
Mordo o interior da bochecha e assinto, mantendo os olhos no espaço livre sobre a mesa de centro para conseguir me concentrar. Então as duas caixas se formam com um reluzir violeta na ponta do móvel quando desejo que o façam, assim como Wanda tinha habilidade de fazer. Molho os lábios ao me recordar de suas habilidades de criar matéria apenas desejando rapidamente e como é irritante que precise me concentrar para conseguir obter o mesmo nível que ela. Pego ambos os presentes e avalio o peso deles, tentando garantir que nenhum está vazio e eu transportei os itens para uma outra dimensão.
— Pegou... — Tony murmura baixinho e assombrado ao encarar os presentes em meus braços e me olhando como se eu houvesse acabado de criar uma segunda cabeça no momento que eles surgiram. Não uma cabeça, exatamente, apenas a quebra de algumas dezenas de leis naturais. Me surpreendo que tenha visto quando aconteceu, mas não digo nada e ponho o meu melhor sorriso de inocente no rosto assim que Pepper para diante de nós. — Vou pegar os meus!
Quando todos estamos com os devidos presentes, Pepper nos faz ir para o tapete felpudo, mesmo que Tony finja estar emburrado com a ideia. Coloco uma almofada em meu colo enquanto Potts abaixa a televisão, esfregando suas palmas em animação para abrir alguns presentes e dar os seus para nós. Sinto certa vergonha em aceitá-los, mas tento me satisfazer em ter comprado alguns para eles, mesmo tendo sido com o dinheiro de Tony e não contar como algo verdadeiro. Eu engulo em seco quando ficamos todos em silêncio, nos olhando ao esperarmos que alguém tome iniciativa.
— Posso começar? — questiono em um surto de coragem que os surpreende. Quando ambos assentem, sorrindo e parecendo interessados com o que carrego nas caixinhas, respiro fundo. — O seu é esse aqui, Pep. — Lhe entrego a caixa azul marinho sem a olhar muito. — Lembro que, no dia da festa, você me disse que não tinha nenhuma joia de ouro, então usei minha mesada para comprar algumas. — As palavras e o presente soam piores quando saem de minha boca. Inúteis e tolos. Pepper poderia comprar milhares de joias de ouro e não há nada especial nesse presente. — Não é muita coisa, mas...
Potts ergue a pulseira delicada da caixa de veludo, seu rosto tornando-se leve e os olhos brilhando ao analisar a joia. É simples e extremamente delicada, com duas voltas e rubis, que escolhi para — de alguma forma — significarem Tony e eu. Então ela corre o dedo pela corrente e os brincos que ainda estão na parte acolchoada da caixa, tão mínimos e formais quanto a primeira joia. Era o conjunto mais adorável e Pepper que pude achar na internet, mesmo sendo de uma marca famosa que não me atentei, mas fez Happy arregalar os olhos quando pedi que buscasse na loja física.
— Meu bem, é lindo! — O sorriso da mulher é largo e verdadeiro, arrancando um peso enorme de meu peito quando se aproxima e deixa um selar em minha bochecha, afagando meu braço ao mostrar o presente para Tony. — Você tem muito bom gosto, . Olhe só...
— Parece com o da sua mãe, não parece? — Stark questiona e Pepper aperta os olhos para as joias. — O que ela usou quando foi te visitar na Torre em 2012. Antes da chegar — ele continua, agora me olhando. — Como viu isso?
— Vi em uma foto da Pepper e comecei a procurar na internet — os conto com um pequeno sorriso. — Como não achei, procurei a May e ela me disse de onde era.
— Sim. Era da minha avó e depois foi da minha mãe... — Pepper me olha antes de beijar minha testa de novo, acariciando meu rosto. Ela está emocionada e é óbvio pela forma como aperta os lábios e entorta as sobrancelhas. — Eu não lembrava, mas elas tinham brincos iguais. Muito delicados. Iguais esse, querida. — Potts engole em seco e eu lhe dou um sorriso, satisfeita por ter lhe agradado. — Obrigada.
— Tá, tá... — Tony revira os olhos e recebe um beliscão no braço. — Auch! Você belisca igual a doida da sua mãe, Virginia! — ele reclama, antes de me olhar. — Espero que o meu presente tenha o mesmo valor emocional. — Lhe estendo a caixa. — Emocional pode não ter, mas tem outro valor econômico. — O observo atentamente enquanto remove o cordão preado de dentro da caixa, o relicário do tamanho de uma moeda e cabendo na palma de sua mão. — Quando foi que eu disse que não tinha joia de prata?
— Nunca disse, mas já me disse que não tem um coração. — Dou de ombros, me apoiando no encosto do sofá ao olhá-lo correr o dedo pela peça lisa. É minimalista e pode ficar bem escondido por dentro das roupas caso não queira usá-lo aparente para todos. — Essa é a minha forma de garantir que vai sempre ter ele no lugar certo — indico e me aproximo para tocar no pequeno botão ao lado do disco que abre a parte de cima.
Um holograma azul surge do relicário e Pepper se aproxima para vê-lo quando se transforma em uma fotografia. Somos nós três; abraçados no laboratório antigo de Tony no início do semestre, após meu primeiro dia de aula, enquanto conversamos sobre meu destino após a queda dos Vingadores. O exato momento em que a palavra “família” foi usada pelos dois para descrever nosso pequeno clã de três, o principal apoio que tenho em minha vida e que sei também ser fundamental para Tony após a traição de Steve. Quando busco os olhos de Tony, eles estão radiantes e ele também está sorrindo, o brilho do holograma reluzindo no brilhante de seus olhos e dentes branquíssimos.
— Tem uma dedicatória no lado de trás — conto. — Só não lê em voz al...
“Prova que Tony Stark tem um lar”. Ele lê mesmo assim e fecha os olhos quando Pepper me abraça por trás. Observo atenta enquanto Tony coloca o relicário no pescoço após fechar o holograma e não ouso dar para trás quando estica os braços silenciosamente para mim, aguardando por um abraço que lhe dou com o coração aberto, sorrindo largo quando beija minha têmpora como se habituou a fazer. Stark esfrega minhas costas e toca meu cabelo ao salpicar mais beijos em agradecimento por não reconhecer palavras desnecessárias após tudo o que fez por mim. Quando já estamos nos abraçando há muito tempo e um ardor se espalha por meu nariz, alertando que lágrimas estão a caminho, eu me afasto para que Pepper me entregue meu presente vindo dos dois. É uma caixa quadrada, azul escura e de madeira, meus olhos logo saltando para a insígnia nesta. Harry Winston. A marca da pulseira que Tony disse estar sendo preparada para mim com uma nova armadura.
— É o bracelete? — Ele concorda ao se lembrar ter me dito isso.
Removo um laço pálido de seda e deixo tudo organizado no meu colo antes de abri-la. Uma pulseira descansa na almofada de veludo, o ouro brilhando para mim e preciso de um tempo para finalmente perceber que ela é minha. Molho meus lábios ao pegá-la, tão semelhante a um bracelete por não ser um círculo completo e deve descansar no meio de meu antebraço. Evito o desejo de a colocar de imediato, sentindo-me envergonhada de fazê-lo. Deslizo o meu dedo pelo ouro macio, pela longa fênix que divide as duas bandas da pulseira, as asas alongadas e bico se sobressaltando. É divina.
— Sua armadura nova — é Potts quem informa, mesmo que tenha certa apreensão em sua voz. — Não que eu queira, que nós queiramos que precise a usar. — Devagar, Tony assente também. — Mas tem certas coisas que não podemos controlar e a sua segurança incondicional é uma delas.
— Quando precisar, vai estar segura. E se precisar, vai poder se defender. — Não os olho. — Não é o melhor presente de todos, mas ainda é uma tentativa, entende?
— De me proteger — continuo ao assentir. — Obrigada. — Ergo a manga de meu pijama, as ilustrações do Hulk se enrugando quando dobradas para colocar o bracelete em meu braço. — Oh — sussurro quando o material se ajusta para acomodar-se melhor, uma sequência das asas da fênix surgindo para caber perfeitamente em mim.
“Olá!” Abro os lábios quando o som ecoa pela sala. O som que escapa de meu bracelete. “Aguarde análise de biometria e retina”. Não me movo quando Tony ergue meu pulso e as placas voltam a se mover, uma luz azulada escapando de um orifício e analisando meu rosto. “Análise completa. É um prazer, ! Eu sou ELENA, seu Sistema de Defesa e Segurança Aprimorada”.
— Tony... — Arregalo os olhos para ele.
— ELENA, querida, diz para a qual a sua utilidade — Stark pede e Pepper sorri um pouco.
“Eu sou responsável pelo controle da armadura Fênix 19, podendo, a partir dela, comandar todo o sistema de defesa, segurança e tática responsável pelo controle da rede global de satélites da Stark Industries. Meu design tem como objetivo principal auxiliá-la em seus deveres como Fênix”.
— Olha só os olhinhos dela... — Pepper sussurra para o noivo. — Parece criança com um brinquedo novo... — “Também sou responsável por manter a sua saúde intacta e avaliá-la diariamente para garantir excelência. Acabei de perceber que apresenta uma deficiência de vitamina D, já comprovada em exames laboratoriais”. Ergo os olhos para o casal, ambos me olhando incrédulos. — ... — “Devo programar um lembrete para banhos de sol?” Dou dois toques no bracelete, tentando desligá-la.
— Tchau, ELENA! — saúdo. — Foi um prazer! — Quando a Inteligência Artificial hiberna, ergo o rosto para Tony e Pepper com um sorriso amarelo. — Feliz Natal!


*


Pepper me entrega uma pílula gelatinosa assim que chega à sala, segurando um copo de água na outra mão. Abaixo o livro, mordendo a ponta de meu lábio, pois estava chegando à melhor parte, mas reconheço que ela não vai se esquecer do diagnóstico de ELENA. Coloco a cápsula na boca e bebo um gole de água antes de afastar as pernas do sofá, abrindo espaço para que se sente comigo se quiser, Simplesmente Acontece na televisão. Ela afaga minha panturrilha ao se sentar e colocar as pernas sobre a mesa de centro.
— Você toma mais uma na semana que vem — informa com gentileza, abaixando um pouco o volume. — Depois do almoço ou depois do jantar. E vai voltar a fazer as corridas pela manhã para pegar um pouco de sol.
— Ok... — Balanço a cabeça. — Mas tem que ser de manhã?
— Sim. O sol está mais fraco e não vai ser ruim para a sua pele — ela explica-se com gentileza e tento encontrar um espaço em minha rotina para manter as mesmas quatro horas de sono e uma hora de corrida. Talvez, quando Peter estiver aqui, possa se juntar a mim para o exercício. A possibilidade me anima. — Onde está o Tony?
Fecho o livro, marcando a página com a ponta de meu dedo.
— Laboratório — chuto o óbvio. — Estava falando com o Rhodey faz pouco tempo. Ouvi comentarem algo sobre o aerodeslizador do Presidente e falhas na turbina auxiliar. — Ela ondula as sobrancelhas para mim, irônica com a menção do chefe de Estado. — E eu fiquei aqui lendo... — Viro a capa do livro para ela. — Princesa Mecânica.
— Quantas vezes já leu esse livro? — Pepper questiona com bom-humor.
— Oito. — Aperto os lábios. — Mas ele é ótimo. E tem essa cena de Natal e... — Toco meu peito. — No final, a personagem principal consegue ficar com o James e o William. Claro que em momentos muito diferentes, mas consegue. — Me sento de forma mais confortável. — Os dois são perfeitos cavalheiros e é claro que ela teria toda essa dificuldade em escolher um. Não que tenha sido sorte a doença do Jem, claro que não, mas ela conseguiu dois finais felizes.
— Vou deixar que você perceba sozinha o que acabou de dizer. — A loura massageia os braços. — De qualquer forma, vou aproveitar que o Stark está lá embaixo e perguntar. — Pepper cutuca minha perna e eu a olho, segurando o livro contra meu peito. — Sobre como está indo com o Harry na escola.
A pergunta não me surpreende, mas a justificativa pela ausência de Tony é incômoda.
— Está tudo bem — assinto, umedecendo meus lábios. — Nós conversamos na sexta-feira passada e algumas vezes durante a semana. Não foi muito, é claro, só durante o laboratório de biologia. — Faço questão de lhe guiar por todos os encontros que tive com Harry Osborn durante a semana. — Ele é bem inteligente, Pep.
— Bom, isso é verdade. — Ela dá de ombros, virando o rosto para a televisão, tentando ocultar seu sorriso. — Harry tem motivos para ser inteligente assim e é bom saber que estão no mesmo nível. A mãe dele era uma cientista extraordinária, assim como o Norman é. — Dedilho a capa de Princesa Mecânica, sobre as engrenagens e as páginas com laterais douradas. — Eu quis saber sobre como estão lidando com o que aconteceu na festa. Sobre se conhecerem de outro lugar e se verem diariamente.
— Estamos lidando bem. — Desvio os olhos quando me olha. — Ele foi muito educado quando pedi desculpas por não ter reagido bem em nosso primeiro encontro. — Pepper concorda devagar. — E, ah, eu queria perguntar algo para você... — Ela me olha de imediato, como se aguardasse ansiosa por qualquer informação que remetesse Osborn. — Na sexta-feira passada, nós fomos tomar café juntos para conversarmos melhor sobre o que aconteceu na festa. — Percebo como Potts tenta esconder o interesse latente, mas um breve dilatar de suas pupilas a entrega. — E eu tinha me esquecido de pegar algum dinheiro depois de comprar o presente de vocês, então não tive como pagar o meu café. O Harry pagou e... — Aperto os lábios, recordando-me do incômodo em aceitar algo de alguém que não conheço. — Queria falar com você sobre como repassar esse dinheiro para ele de uma maneira educada. — O rosto de Pepper relaxa de maneira nítida. — Se fosse a MJ ou o Peter, não teria muito problema, pois já paguei algumas coisas para eles, mas o Harry... Eu mal o conheço e não parece muito ético ignorar a dívida.
— Quanto ele pagou nesse café, meu amor? — Seu sorriso é gentil assim como seu tom. — Dois, três dólares? — confirmo. — Ah, , meu bem... Você olhou a carteira dele? Como estava? Com cédulas organizadas em ordem e sem amassados? — Com uma dose de embaraço, repito o gesto antigo. — , essa provavelmente foi a primeira vez, em dezessete anos, que o Harry tocou em tão pouco dinheiro — explica-me. — Você devolver esse “troco” para ele seria deselegante.
— Mas eu não quero ficar devendo nada para ele! — defendo meu desejo, os olhos apertados.
Pepper balança a cabeça com paciência.
, pessoas como o Harry, o Tony e ricos em geral, não pagam favores com dinheiro. Se ele foi gentil e educado o suficiente para pagar um café, você deveria dar outra coisa em troca. Uma nota de agradecimento seria bobo e dinheiro até pode ofender ele, agora um gesto... — Ela toca os lábios ao pensar, franzindo as sobrancelhas. — Lembro que um amigo antigo do Tony emprestou um avião para uma missão do Rhodes e o Tony mandou uma lembrança para retribuir... Uma garrafa de vinho caríssima, porém o que não seria nada adequado ao Harry.
— Ele precisa de luvas novas de polo — me recordo o que mencionou ao conversarmos.
Ela bate as mãos.
— Ótimo! Você pode comprar um par de luvas para ele, mas precisam ser boas. — Assinto devagar, concordando com a ideia de lhe presentear com algo. — Se estiver interessada em algo mais profundo que a amizade dele, pode até pedir que costurem a sua inicial nela. É bem romântico... — Sinto meus olhos se arregalarem. — Ah, por favor, ! — Potts ri abertamente igual Michelle havia feito há alguns dias e gosto de imaginar que, seja o que estiver fazendo, Tony está tão emburrado como MJ descreveu Peter quando conheceu Harry. — O Harry é um rapaz lindo e você seria uma boba de não aproveitar. O que está a impedindo?
Me ajusto no sofá, desviando meus olhos para a televisão. Sua pergunta é justa e eu imaginei que viria em algum ponto, tanto de Pepper quanto de Michelle. Mas, acima de tudo, já imaginei a resposta e motivação para me impedir de tal coisa — impedir mais uma pessoa de entrar em minha vida e atrapalhar o equilíbrio que tanto lutei para conseguir. É como química. Em uma solução, se a concentração de um determinado elemento aumenta, o outro deve diminuir. E me preocupo que tal redução seja em um âmbito vital como minha família. Não quero perder instante algum com eles devido aos caprichos e demandas de outra pessoa. E, acima de qualquer outro ponto chave, reconheço que simplesmente não estou pronta para embarcar em um relacionamento. Quero amar alguém, é claro. Tal conclusão me faz apertar o livro conta meu peito. Desejo sentir algo como a conexão absurda que sei que Pepper divide com Tony e reconhecer um amor de tal magnitude sendo direcionado a mim, mas não posso fazer isso agora, não neste momento de insegurança que vivemos e neste estado psicológico que se mantém acorrentado a mim apesar de minha fuga do cativeiro há dois anos e meio. Reconheço que, se entrar de cabeça em uma paixão neste ponto, tão imatura e incerta, posso acabar magoando outra pessoa e não vou suportar ferir alguém. Ainda estou tentando juntar todos as peças dispersas que a Hydra deixou em minha mente e me recuso a colocar o coração de alguém na linha por meus fúteis desejos românticos.
— Não dá. — A olho, ciente de que Pepper mantinha sua atenção em mim este tempo todo. Ela entorta a boca, demonstrando que a resposta não a satisfaz assim como imaginei. — Não ainda, Pep — reformulo minha justificativa. — Foram tantas coisas que aconteceram em sequência nos últimos meses que não consigo pensar nisso como uma prioridade e sei estar correta em não pensar assim. Vai atrapalhar muito, Pep. — Me apoio nas costas do sofá. — Minha prioridade, hoje e enquanto tudo estiver de ponta a cabeça, é você e o Tony. Manter a nossa família segura. O resto pode ser arranjado depois.
— Você tem dezesseis anos, . — Potts segura em meu braço com cuidado. Encosto a cabeça no sofá, a olhando para que entenda que isso também faz parte de minha decisão. Sou jovem e ainda imatura. — Não tem que se responsabilizar pela nossa segurança, não é dessa forma que deve funcionar. Nós somos os responsáveis por você. Você é a nossa prioridade e não o contrário. — Sua expressão é séria ao me contrariar. — Ainda é uma menina. Não pode aguentar todo esse peso. Não pode empurrar a sua vida com a barriga e esquecer que ainda é uma adolescente e está nos melhores anos possíveis em priorizar namoros, festas e gordura trans! — Só assim, com o mover de sua cabeça, percebo os brincos cintilando em suas orelhas enquanto ri. — Viver não é apenas lutar para sobreviver. Também existe uma felicidade absurda intrínseca em cada instante que você não contabiliza como “importante”. E merece essa felicidade mais que ninguém, querida.
Deixo o livro sobre a mesa de centro sofá e me encaixo em seus braços receptivos, estes com o aconchego que nem mesmo o melhor cobertor do mundo teria. Pepper afaga minhas costas e dá tapinhas em minhas nádegas, rindo baixinho o tempo todo.
— Ah, meu bem... — Seus dedos acariciam meu cabelo bem-disposto em uma trança. — Você ainda é jovem, não pode focar em assuntos assim e se esquecer de viver. — Aperto a boca quando remove alguns fios de meu rosto e os coloca atrás de minha orelha com um leve puxar. — E está tudo bem se não souber como se sente em relação a namoros e se ainda não sabe o que quer. Tudo bem se cometer erros e partir alguns corações, incluindo o seu na busca da pessoa certa, mesmo se, no fundo, souber e não tiver coragem de agir. — Pepper pressiona dois dedos acima de meu peito, um olhar conhecedor adornando seu rosto. — Essa é a sua vida, o seu coração e o seu corpo. Você pensa demais e isso não é um problema, pois entende sobre o mundo mais que muita gente por conseguir conhecer as pessoas sem véu algum impedindo. — Os dois dedos agora tocam minha têmpora. — Mas lembra que as vezes pensar e saber tanto pode arruinar coisas incríveis antes delas acontecerem. Fantasiando e duvidando, nós arruinamos momentos que seriam maravilhosos. E você é tão jovem, ... Deixa o tempo seguir o seu curso, ok?
Enterro o rosto em seu pescoço com cheiro de flor de figo e assinto.
— Ok, Pep.
Um som raro ecoa pelo andar principal do Complexo e me força a afastar-me de Pepper por um instante, rosto virado na direção da porta após a campainha soar. Seu perfume exala com mais intensidade quando ela me imita e eu me afasto ao perceber que se apronta para atendê-la. Do outro lado da porta, um dos oficiais da patrulha segura algo colorido na frente do rosto e Pepper assina o despache antes de fechar a porta atrás de si devagar, possivelmente para que Tony não a ouça no seu laboratório. Me apoio nas costas do sofá quando ela se vira para mim, o enorme buquê de rosas vermelhas e brancas cobrindo seu busto e eu dou um sorriso, surpresa com o presente de Tony. É um buquê belíssimo, com rosas grandes, papel de seda, pequenos viscos vermelhos e gipsofilias.
— E você achando que o urso polar de pelúcia gigante era seu único presente... — provoco com um sorriso torto, apoiando o queixo em minha mão ao observá-la lutar com as flores. Pepper ri sem acreditar no exagero do namorado e arranca um cartão pálido do papel de seda, sua expressão se afincando para ler o que está escrito. — Esses são mosquitinhos? — Gipsofilias, ou “mosquitinho” como Pepper já me corrigiu uma vez, e margaridas são as minhas flores favoritas e preciso me segurar para não pedir um pequeno galho.
Com um vibrar, desprendo minha atenção dela para a mensagem que surge em meu celular.

Harry Osborn
online

Você sabia que não tem viscos em New York? Na verdade, eles são muito raros na América.



— São sim, meu bem... — Pepper sussurra, esfregando o cartão entre os dedos de forma pensativa.

Harry Osborn
online

Você sabia que não tem viscos em New York? Na verdade, eles são muito raros na América.

Devo considerar isso um “Feliz Natal”?

Na verdade, deve sim.

Imaginei que isso a faria me responder com algo além de duas palavras.

Feliz Natal, senhorita Black!

Feliz Natal, Harry.

Se divertindo em Paris?

De certa forma... Emily adora a França, então tornou-se uma tradição e não pude estar em New York para a troca de presentes.

Seus amigos irão entender.

O fuso-horário é terrível, então vou deixá-lo dormir.

Boa noite, Osborn.

Boa noite, sweetness.



— O Harry desejou um Feliz Natal, puxando papo com um fato desnecessário sobre viscos — conto para Pepper, sem a olhar devido ao calor em minha face, o apelido usado por ele na última mensagem sendo um pouco demais. Não o suficiente para me deixar desconfortável, mas o necessário para que eu ruborize apesar de uma tentativa de não sorrir. Além de MJ, Ned e Peter, Harry foi o único a me desejar boas-festas. É doce. — Você parece pensativa — comento, ao olhá-la, as flores já em um vaso de vidro enquanto caminha de volta para o sofá com elas. Os olhos Pepper estão impassíveis, mas os lábios repuxam para os cantos com um mínimo ar de satisfação. — Aconteceu alguma coisa? Sei que é alérgica a dentes-de-leão, mas não que era a rosas.
— Na verdade, aconteceu algo. — Ela assente ao sentar-se no sofá, o cheiro floral dançando no ar. — As flores são para você. — Meus olhos recaem para a tela bloqueada do celular e, atônita, recebo o vaso de flores que ela deposita em meus braços, sorrindo minimamente ao segurar o cartão creme para que possa ver que meu nome está escrito nele. Molho meus lábios e Pepper toca meu cabelo com carinho. — Diga ao Harry que agradecemos pelas flores. — Assinto devagar, ainda mantendo o rosto longe das pétalas vermelhas. — Viscos são incrivelmente difíceis de se achar.


*


— Fifth Avenue em plena quarta-feira à tarde — Happy assobia ao meu lado enquanto atravessamos as ruas movimentadas da cidade que nunca dorme. — Qual o motivo?
Há uma movimentação absurda em New York pós-ano novo e é confuso ver tantos rostos em um espaço tão pequeno. Estou acostumada em vê-los por trás da janela do carro, portanto, ao vivo ainda é estrangeiro. Ainda assim, Hogan fez questão de me confortar e lembrar que estamos em baixa temporada e são poucos os turistas que se aventuram nos oito graus da “Big Apple”. Ou até moradores que encontram coragem de fazer compras em tal clima.
— Tenho uns presentes de Natal que esqueci de comprar e quero eles antes de voltar para a escola amanhã — explico e, preocupada em nos perdermos na multidão, entrelaço o braço com o do segurança. — Vai ser bem rápido, Happy. Juro. — Apanho meu celular de dentro da bolsa que Pepper fez questão de colocar em meu ombro antes de sairmos; ela para a Torre Stark (não mais a chamamos de Torre dos Vingadores) e eu para as compras atrasadas. — São apenas três presentes e não vou me demorar.
— O seu pai não já comprou o do...
— Já, mas este presente é meu — lhe lembro e encosto a cabeça em seu ombro. Happy ri. — É um suéter que grita o nome do Peter e eu preciso dele. — “Grita o nome dele?” O maior questiona. — Sim. É azul bebê e eu espero encontrar um azul escuro também. O Peter tem um monte de suéteres e, como é inverno, quero que ele tenha um bom. — Viro a cabeça quando passamos por um local que vende crepes de chocolate. Já havia visto a sobremesa em um programa de culinária, mas nunca cheguei a provar um de verdade. — E tem o lenço do Ned que eu quero comprar.
— O da sua amiga já está no Complexo — ele me informa quando avisto a loja desejada ao longe. — E o outro do seu amigo. Nerd. — “Ned” lhe corrijo, sorrindo. — Quando terminarmos aqui, você quer ir à livraria? — Concordo de novo e aponto para nosso destino. — Compra o presente da tia do menino e eu vou comprar o seu presente de Natal.
— Não precisa me dar presente nenhum, Happy. — O olho com os lábios franzidos. — Sério.
Ele balança a cabeça para dispensar tal pensamento e segura meu antebraço ao continuarmos caminhando e repetindo, pela terceira vez, que devo me segurar nele para não cair no gelo. Quando alcançamos a loja desejada, há um movimento conhecido em meu estômago, seguido de uma cólica nervosa usual. Abaixo meus olhos e afasto um pouco da neve aparente em meu casaco de alfaiataria, um dos presentes que Tony havia comprado para mim, dizendo ser parecido com o que um personagem rico de Harry Potter usaria, o que já estava de bom tamanho para sua filha. Encaro uma das janelas de display, mármore negro e manequins brancos com poses esculpidas me olhando de volta de dentro da loja. Happy estende o cartão black de Tony para mim e eu respiro fundo ao apanhá-lo. Devia ter feito como os presentes de minha família e pedir que ele os buscasse, não inventar de comprá-los eu mesma.
— Qualquer coisa, você me dá um toque — Hogan relembra, ao ajustar meu cabelo para trás e apertar a parte de cima de meu casaco para proteger-me do frio. — Se precisar de conselhos de moda, liga pra Pepper que ela te ajudar. — Concordo com a cabeça e molho meus lábios secos devido ao clima gélido. — Vou estar no carro quando terminar, então me liga que eu te busco aqui na porta. E não inventa de carregar sacola nenhuma.
Estou prestes a abrir meus lábios quando um homem com um terno preto surge das portas giratórias douradas, um sorriso largo estampando seu rosto. Me viro para Happy a tempo de ele apontar para o celular em minha mão ao atravessar a avenida.
— Madame... — O segurança segura a porta para mim, normalmente fechada para manter o ar quente dentro da loja em comparação ao lado de fora da cidade. Seu olhar é educado e ele parece ser alguns anos mais velho que Tony, já apresentando entradas e fios grisalhos. — Imagino que tem hora marcada, certo?
Concordo com a cabeça e, com uma coragem que tiro da memória de meu Natal perfeito com Tony e Pepper, adentro a loja que cheira a cedro e um perfume caríssimo que Pepper costuma usar. O espaço é luxuoso e gigantesco, mas indubitavelmente quieta, um mero murmurinho de conversas educadas e baixas se mistura com a música que adorna o ambiente. Além disso, o local é estático se comparado com o que estou acostumada, certamente vindo de uma outra realidade que grita o nome de Tony e de Harry Osborn. Como fui instruída por Pepper, não coloco as mãos nos bolsos e mantenho o rosto erguido, controlando minha expressão.
É um complexo de muitíssimos níveis; araras elegantes de roupas brilhantes e itens de inverno, em sua maioria pretos e brancos, a iluminação dourada transitando para prata quando as roupas coloridas surgem mais adiante. É verdadeiramente intimidador. No meio da loja, caixas de vidro e balcões com atendentes belíssimos atendem mulheres que se assemelham às que vi na festa de despedida há algumas semanas, estas que tocam em joias de prata como se fossem os itens mais delicados do mundo e, ao mesmo tempo, apresentassem um enorme potencial de descarte. Prendo a respiração quando um ímpeto de fugir me assola.
A loja está mais movimentada do que pude esperar para um local com itens tão absurdos e com etiquetas de grandes estilistas. No nível do mezanino, tem um restaurante rodeado por displays de joias em um anexo com a Cartier que divide o quarteirão. Ouço passos apesar da música baixa e sei que alguém se move até mim, portanto, faço questão de colocar os ombros para trás, mantendo minha postura correta a tempo do som soar ainda mais alto e uma mulher surgir em meu campo de visão. Ela é morena e veste um conjunto delicado cinza que se difere dos outros funcionários, os fios presos em um penteado elegante no topo de sua cabeça.
— Senhorita Black, estou certa? Sou Rachel e serei sua assistente de hoje. É um prazer imenso a auxiliar em suas compras. — Seu sorriso é gigantesco, mas não parece tão falso como esperei.
— O prazer é meu, Rachel. — Lhe ofereço um breve sorriso, apertando o celular em minha mão. — E obrigada. — Ela também sorri e gesticula para que eu a acompanhe para uma certa seção da luxuosa loja. O corredor pelo qual seguimos desemboca em um elevador com portas douradas.
— Selecionei uma sala VIP para a senhorita e todos os itens que requisitou já estão no seu aguardo assim como a costureira para eventuais alterações. — Quando as portas do elevador se abrem, nós embarcamos nele, respirar ainda sendo difícil por estar sozinha em um ambiente tão estranho. — E, como requisitou, separei as catorze araras das novas coleções de inverno e algumas novas joias vindas de Singapura. — O sorriso da assistente de compras é enorme e eu considero que se origine do mero pensamento de quanto meu atendimento lhe renderá. Então as "araras requisitadas" chamam minha atenção. “Perdão, mas não me lembro de pedir por mais itens” a corrijo baixo. Quando as portas se abrem, Rachel torna para mim com um sorriso. — Sou a atual assistente de compras da madame Potts. — Curvo as sobrancelhas e então os lábios, entendendo que Pepper teve algum envolvimento com isso. — E quando ela me informou que sua afilhada iria ser minha cliente, não pude deixar de separar itens das novas coleções, claro que com a autorização dela.
— Imagino que não precisou de muito convencimento...
Rachel ri baixo.
— A madame Potts já havia selecionado as suas marcas favoritas previamente, assumo. — Imaginar Pepper pesquisando as novidades da moda apenas para me agradar traz um sorriso para meu rosto e calma para meu coração ansioso. — Vestidos ANOUKI, Balmain e alguns de festa da Marchesa Notte. As bolsas favoritas da madame Potts são Prada e Alexander McQueen, então selecionei algumas para você. Como ela mencionou que gosta muito de jeans, escolhi alguns da Andrea Bogosian.
O falatório de Rachel continuou por todas as horas que passamos na sala VIP escolhida por ela, entre drinks virgens que me ofereciam e outras mulheres que me apresentavam diversas roupas que combinariam com minhas principais escolhas. Minutos após escolher dois pares de sapatos, uma mensagem de Pepper surgiu na tela de meu celular, garantindo que podia comprar quantos quisesse de cada item. E, embora houvesse oferecido tantas roupas, não me senti à vontade para me aproveitar de toda sua generosidade sem antes lhe ligar.
— Tentaram me fazer experimentar um vestido de vinte e quatro mil dólares, Pepper... — eu sussurro para ela quando as ajudantes de Rachel se dispersam em busca de mais botas semelhantes às que calço. — E por que não me disse que essas roupas que estou usando são de marca?
— Boa tarde para você também. — Fecho os olhos quando a ouço rir e não consigo segurar o sorriso. — O casaco é Givenchy, a carteira Tory Burch e as botas são clássicos da Prada. — Mordo meu lábio, já reconhecendo os nomes e os cifrões. — E, quanto ao vestido, é o rosa clarinho lindo da Marchesa Notte? — Faço um som tímido ao concordar, observando o vestido com brilhos dourados que está em um manequim com brincos e colares para acompanhá-lo. — Fico feliz que tenha chegado a tempo. Pedi que trouxessem ele de Hong Kong junto a um preto e um longo azul com aplicações florais. São lindos e você precisa deles.
— Ah, claro, para as reuniões do Decatlo... — Balanço a cabeça. — Eu preciso de jeans e camisetas.
— Para a vida, precisa de roupas formais — Potts corrige. — Para a escola, pode continuar comprando roupas no shopping e roubando blusas minhas e camisas do Tony. — “São macias” me defendo. — E, quanto ao presente dos meninos? — Suspiro ao recordar-me que nem sequer olhei os itens deles. — Eu estava olhando o suéter que quer comprar para o Peter e acho que deveria comprar mais dois parecidos. Um presente triplo. — É necessário muito pouco para imaginar o quão ruborizado e tímido ele ficará ao ver os presentes. E, de imediato, concordo com sua ideia, assentindo mesmo que não possa me ver. — Se a Rachel oferecer lingerie, aceite algumas, pois você precisa de mais...
— Tchau, Pepper.


*


— O Nick ficará com as suas sacolas enquanto precisar, senhorita — Rachel garante, ao voltarmos para a área principal da loja e ela ergue dois dedos para que as outras funcionárias e suas clientes se dispensem pelo piso, educadamente abrindo espaço para que passemos sem muito aperto. De certa forma, é reconfortante não precisar me preocupar em encostar em alguém, mas os olhares que me seguem ainda são demais. — Sessão masculina e esportes, certo?
Assinto antes de, apesar de todo o espaço livre, uma mulher encostar em mim e seu drink quase me alcançar. O alarme de Rachel é óbvio e seu rosto assume uma coloração rubra, os olhos ferozes para a atendente que acompanhava a mulher.
— Margaret, por favor, chame alguém para limpar esta bagunça. — A bagunça é um mínimo pingo de champanhe no chão e a mulher de olhos verdíssimos ignora toda a comoção e volta a beber. — Senhorita Black, mil perdões por isso. — A assistente privativa coloca a mão em meu braço e eu dispenso suas desculpas, não tão afetada pelo acidente quanto ela esperava. — Por favor, me siga.
Black? Seguro o ímpeto de virar a cabeça quando ouço meu nome através de uma voz distinta. Para estar com Rachel e ser tão bem cuidada, dever ser alguém. Acompanho Rachel na transição para o setor masculino, os pensamentos da mulher ainda me seguindo apesar da distância. É algo novo e eu tento manter a calma enquanto Rachel pede que alguns funcionários busquem os itens que requisitei e ficaram no andar VIP. VIP? Tentando desvendar as motivações por trás do “tom” de desdém dela, decidi olhar o mundo através de seus olhos e, em um piscar, havia um véu sobre minha visão, contemplando tudo o que ela vê ainda que eu me mova atrás da assistente. Vejo a taça de líquido dourado em suas mãos e mais pessoas voltando para seus lugares antigos após minha passagem.
Margaret, quem é aquela com Rachel? — Através de sua visão, posso ver a sombra de minha capa quando viro o corredor agora e os outros olhares curiosos que me seguem. Quem imagino ser Margaret é uma mulher branca e loira, com aparência azeda. Ela não usa o mesmo conjunto de Rachel, o seu sendo cinza claro. — A última pessoa que a vi atendendo foi a esposa daquele Xeique do Golfo Pérsico.
Mademoiselle Black, do Brooklyn — a loira respondeu, puxando caixas aveludadas cobertas pelas mais belas joias para a mulher curiosa. — Riquíssima. Gastou duzentos e noventa mil dólares só em bolsas na última hora.
Quando me engasgo com uma gota de saliva, Rachel já se perdeu no novo piso e estou só.
Ah, ouvi que os portuários do Brooklyn estão ficando muito ricos nos últimos anos. — Pude ver seu sorriso de escárnio refletido no espelho em que a mulher se olha. — New York está cada dia mais decadente com os new rich. — Ela balança sua taça. — 1O mundo dos casacos em liquidação quase acaba por uma gota de champagne.
A família da mademoiselle Black, segundo Rachel, é rica há várias gerações. Não são americanos e, sim, italianos. Industrialistas — Margaret corrigiu com educação. — Ela selecionou um vestido de trinta e oito mil da Madame Grès sem nem mesmo experimentar. — Uma outra mulher surge ao lado da curiosa e ergue um brinco de diamantes no instante que me sento em um sofá para me concentrar tanto em suas palavras, quanto nesta nova habilidade que surge.
Como vestiria com aqueles ombros? — Ambas riem. — Até um homem ficaria mais elegante em Grès.
Quando passos se aproximam, eu desvio a atenção das mulheres e seus comentários maldosos, tentando concentrar-me nas opções que algumas assistentes apresentam em bandejas de veludo. Eu as ouço, mas as palavras sábias sobre os itens me escapam conforme uma nova onda de riso nos alcança, vindo da área principal. Ergo a mão para pedir por um instante de silêncio ao olhar os itens dispostos para mim, repuxando o lábio entre os dentes até tocar uma luva que me agrada e parece encaixar-se com o que desejo. Apago as mulheres desagradáveis de minha mente e tomo a luva de couro em minhas mãos, sentindo o tecido macio na parte de cima e áspero embaixo, antideslizante para permitir um aperto mais seguro nas rédeas.
— Moncler Grenoble, você disse, certo? — indago baixo, irritada pela maneira que a maldade alheia me afeta. Corrijo minha postura ao cruzar as pernas, tentando diminuir minha forma. Devagar, Rachel assente e uma segunda assistente me mostra uma outra bandeja com mais opções de cores. Imagino que seja a mesma marca, mas por não conhecer nada disso, apenas finjo interesse. — Li que cordões de ajuste são melhores. — Deslizo o dedo pela tira de couro e engulo em seco, desejando a presença de Pepper mais que tudo. — Poliamida, viscose e elastano... — Analiso o tecido na luz do abajur atrás de mim. Imagino que forro seja de poliamida e poliéster, mas é o exterior que importa nesse caso.
— Exato, senhorita Black. — A assistente assente com gentileza. — Tem um ótimo olho para material.
— Obrigada, Rachel — concordo e mordo a língua. — Quero estas luvas no tamanho médio. Pretas. São para presente. — A devolvo para a bandeja e agradeço a outra funcionária. — Os suéteres separados por minha madrinha também estão inclusos, por favor, mas juntos.
— Excelente escolha. — Ela se ergue e digita algo em um iPad que nos acompanhou por todo o dia. — Oferecemos serviços de bordados e personalização de itens esportivos, se for de seu interesse.
Mesmo tão concentrada nos eventos dos últimos minutos, reconheço como a oferta da mulher se assemelha com a de Pepper há alguns dias e eu preciso de um instante para decidir-me. Em espelho ao ataque gratuito que sofri apenas por receber um tratamento diferenciado, me embaraço em negar qualquer coisa. Pepper ficaria imensamente desapontada ao saber sobre o que aconteceu e eu me recuso que isso arruine minha excelente semana de Natal, então decido prosseguir com seu conselho, mesmo que incerta do que isso possa significar para Harry Osborn. Ou o quão irritado Tony ficaria. Assinto outra vez.
— Alguma palavra ou nome em específico? — Balanço a cabeça, respirando fundo e digito a minha inicial no espaço disponível no teclado. Se não me consideram o suficiente para estar em tal local, espero que considerem um pedaço de mim acompanhando Osborn em seus jogos. — Temos várias opções de material, também.
— Fio de ouro. — Me encosto no sofá macio. A “ordem” soa errada em minha boca. — Sei que quanto mais fino, mais refinado, mas quero algo que não incomode. — A ouço digitar cada palavra que digo e a atenção é bem-vinda após o que ouvi por pura curiosidade minha. Enfio a mão na bolsa escura e removo o cartão de crédito, decidindo que apenas me levantarei daqui na hora de sair desta loja. Rachel o recebe com ambas as mãos e me pede por alguns minutos antes de voltar com todas minhas compras. — Obrigada.
Quando ela se vai, abro meus lábios e fecho os olhos, respirando fundo. Estou nervosa, é óbvio. Não é todo o dia que alguém se refere a mim desta forma mal-educada e o tratamento gentil vindo de todos com quem convivo pode ter me deixado sensível. Logo reconheço que posso estar exagerando e talvez falar coisas assim seja normal para pessoas que frequentam espaços como esse e é irritante que me afete de tal forma. Não parece justo, e não é, mas não há muito o que posso fazer para concertar tal perspectiva.
— Se vai a acalmar de alguma forma — alguém toca meu ombro —, os Brighton perderam a fortuna para portuários do Brooklyn há algumas décadas. — Permaneço parada, ouvindo a voz da moça que sussurra atrás de mim apoiando-se no outro encosto do sofá. Viro o rosto para a jovem do outro lado do móvel, seu sorriso astuto marcado com um batom vermelho rubi e a piscadela que me oferece evidente quando abaixa um pouco os óculos escuros. Ela tem uma face belíssima e parece seminua de onde a olho, a alça do vestido finíssima dando a impressão errada. — E são velhas amargas cujos maridos estão trepando com as assistentes. — O seu sotaque é forte e logo sei ser estrangeira. A loira coloca os óculos novamente, dando de ombros. — Não podem ver uma garota bonita que sentem a ameaça de longe.
— Black. — Engolindo em seco, lhe estendo minha destra. — É um prazer.
Sua mão é pequena em comparação à minha, mas o seu sorriso fica bem maior em compensação.
— Stacy.


Homecoming XV

– Só não diga para o Tony. – Peço baixo, observando o lado de fora da janela. Happy grunhiu com óbvio desgosto para meu pedido, parecendo pronto para frear o carro e dar a volta para Fifth Ave e atropelar as mulheres mal-educadas. – Não fique assim... – Peço ao lhe olhar, forçando um beicinho que uso apenas quando extremamente necessário. Ele fez mais uma careta, irritadiço e sem interesse em me dar atenção ao dirigir. – Apenas contei por que nós somos amigos, Happy. – Exponho a verdade. Não posso contar isso para outra pessoa além dele e Peter, mas Happy não entendendo o momento em que vivemos torna mais fácil expor minhas fragilidades.
– Isso é golpe baixo. – Ele reclama, balançando a cabeça.
– É, não é? – Dou um meio sorriso e um tapinha em seu braço, o cinto do carro me impedindo de mover-me muito. Foi a mais nova compra de Tony: o carro mais seguro do ano. O mais simples frear nos prende nos assentos e a lataria se destrói completamente no caso de um acidente, absorvendo o choque e não afetando os passageiros. – Desculpa, mas fazer o que se sou a sua pirralha favorita? – Dou de ombros e posso lhe ver sorrir pelo canto dos olhos. Normalmente, Happy não me deixa andar no banco da frente devido a “regras”, mas apenas por olhar minha expressão mais cedo, ele não hesitou em abrir a porta do passageiro. – Eu liguei para a Pepper sobre o preço das roupas, mas ela não se importou muito. Achou que foi pouco, até... – Esfrego meus olhos cansados, tentando mudar de assunto.
Happy pressiona a buzina com força, prolongando o som.
– Mas, pensa bem: o Tony é rico – Ele continua como se não fosse nada, embarcando na Ponte do Brooklyn para comprarmos o presente de May e eu tentar convencê-lo que não preciso de um. – Você gastar meio milhão com roupas não é grande coisa. – Fecho meus olhos de novo, tentando não pensar no absurdo que gastei esta manhã. É vergonhoso chegar a pensar em Peter e May, Michelle e Ned e em suas famílias que fariam coisas maravilhosas com esse dinheiro todo. Me sinto enjoada pelo amontoado de sacolas no banco de trás. Um som abafado passa por nós e, pelo teto solar, identifico o helicóptero que atravessa o céu. Hogan se move no banco, olhando para cima também. – O que está havendo? – Questiona confuso. – É o terceiro em...
– Cinco minutos. – Completo sua frase, erguendo a sobrancelha. – Pode ser algum acidente no Brooklyn. – Dou de ombros, voltando a me acomodar no banco, mas ainda mantendo meus olhos no retrovisor em busca de sinais de que mais motoristas também perceberam a coincidência. – ELENA? – Chamo e Happy me olha estranho até que meu bracelete reluza e uma tela holográfica surja, brilhando no carro. O ouço estalar a língua para a invenção do amigo e não evito sorrir um pouco.
Sim, .
– Tem alguma coisa acontecendo no Brooklyn? – Indago ao analisar o leitor HUD, em busca de mais informações úteis. Na verdade, aconteceu há alguns minutos. Foi uma explosão na zona portuária. Não reajo quando a ouço e Happy respira fundo, balançando a cabeça pelo acontecido. – ELENA, manda alguns drones para lá e avisa o Tony. – Peço e ela me confirma.
Na tela, surgem diversos vídeos e imagens da cena que antecedeu a explosão. Primeiro, a fumaça pálida acinzentada em um armazém próximo a baía. Então, em uma fração mínima de segundos, a explosão se espalha pelo céu em um cogumelo em chamas, erguendo uma nuvem gigantesca que cobre todo o raio do porto. O Departamento de Segurança e Defesa ainda não estipulou uma causa para a explosão. Ainda não temos notícias de sobreviventes imediatos, mas o Brooklyn Hospital Center é o centro de referência para os feridos e tem catorze ambulâncias a caminho. Quer que eu acione os Satélites Stark para descobrir se há risco de intoxicação por radiação? Confirmo quase sem voz. Em um vídeo em especial, a câmera se desestabiliza e cai da mão de quem a segurava em uma sacada, a nuvem química cobrindo a lente antes mesmo que atingisse o chão, entregando a proximidade da pessoa com o porto.
– Acho que o corpo de bombeiros não vai fazer muita diferença, não agora... – Sussurro preocupada até perceber que posso ser de alguma ajuda. Engulo em seco e suspiro com pesar. – Me leva pra lá. – Peço para Happy, o olhando de onde estou. O assento é privilegiado para ver a veia em sua testa quase estourando e os olhos arregalados para mim. – Por favor! – Imploro com as sobrancelhas apertadas. – Eu posso ajudar! – Justifico o pedido, não entendendo sua aversão.
– Você não vai para o Brooklyn! – Happy exclama, claramente nervoso e passa a marcha do carro, voltando a buzinar em óbvio desespero para tirar-nos da linha de fogo. – Ninguém vai e nós vamos voltar para Manhattan até ser seguro de novo. – O cinto de segurança aperta meu colo e ombros contra o banco quando ele atravessa a faixa, abrindo o vidro e colocando a mão para fora. – Isso! Nós vamos pra Manhattan onde é seguro! – Uma pausa chama minha atenção. – Onde estão os carros dessa faixa? – Ele reclama ajustando o retrovisor e assim se forma um sentimento apertado em meu peito, incerto quanto a racionalidade em fugirmos. – Santo Deus, engarrafamento plenas duas da tarde é pirraça!
– Happy? – O cutuco com o braço, tocando na janela embaçada pelas temperaturas baixas. Só tomo nota da movimentação desconhecida pelos retrovisores quando um grupo de pessoas passa correndo perto ao meio fio no parapeito da ponte, gritos os seguindo e alguns até mesmo batendo nos vidros de outros carros para chamar atenção. É como a cena de um filme e eu preciso de alguns segundos para recordar-me que não estou na plateia e que faremos parte dos figurantes que morrem nos primeiros minutos se não sairmos daqui. – Isso não é bom sinal...
– Não é mesmo, é péssimo! – Ele respira fundo, voltando a buzinar para que os carros adiante se movam, mas é inútil e estamos cada vez mais rodeados de pessoas correndo em meio a tráfego estático de Nova Iorque no horário do rush. Em um ímpeto de coragem, lanço um pulso que saca o teto-solar do carro e removo o cinto de segurança ao tentar me pôr de pé no banco de couro. – O mundo está acabando e você está tirando o cinto, ? – Happy rosna horrorizado quando apoio meu pé em seu acento para conseguir me projetar para cima, a brisa gelada e os gritos me alcançando quando coloco a cabeça para fora. – Regras de trânsito são regras por um motivo, menina!
Do lado de fora, o engarrafamento é pior e as buzinas são ensurdecedoras, não para avançarmos e prosseguirmos para o fim da ponte, mas para simplesmente sairmos do caminho. E eu preciso de uma fração de segundos para que o medo inerente das pessoas ali me alcance, um nervosismo estranho conseguindo transparecer quando algumas pessoas começam a descer de seus carros, pais e mães desesperados segurando nas mãos dos filhos ao correrem pelo trânsito parado.
– ELENA? – Chamo ao erguer meu pulso e subir no teto do carro apesar dos gritos de Happy para que eu volte para dentro. Me ponho de pé, analisando a movimentação aflita dos civis na ponte, principalmente na direção dos que correm de volta para Manhattan e esbarram nos que vem do Brooklyn. Como posso ajudar? Os satélites estão averiguando a situação. – A ponte corre algum risco? – Questiono quando Happy desliga o carro, percebendo que estamos presos. – Por que o desespero? – Recomendo que olhe na direção do Brooklyn, .
Os cabos que mantém a ponte suspensa, os fortíssimos cabos de aço que sustentam a estrutura e mantém seu equilíbrio, estão soltos na placa central da ponte. O aço partido ao meio e atrofiado se curva para dentro, não resistindo a tensão. Acima da ponte estão os helicópteros que vimos mais cedo, voando baixo para capturar imagens melhores. Um caminhão desgovernado derrapou no gelo e o choque partiu os cabos que suspendem a ponte. Sua integridade está em 72%. Ouço ELENA com atenção, mas outro barulho mais alto me desperta e eu viro para trás a tempo de ver uma moto da NYPD cortando o engarrafamento mais rápido que o considerado seguro, isso antes de avançar contra nosso carro e, com um baque espalhafatoso, levar o retrovisor consigo em toda a sua pressa para chegar no acidente principal.
– Mas oque? – Hogan gritou de dentro do carro. – ? – Ele me chama e dou dois tapinhas no teto para garantir que estou bem e que vi o incidente. Com o coração acelerado, me ajoelho para conseguir o olhar pelo teto-solar. – Já pra dentro! – Happy ordena, vermelho e nervoso. – , entra nesse carro a...
Há uma sensação inicial de impacto seguida pôr uma explosão que ressoa em meu ouvido direto como tiro de rifle ao lado de minha cabeça, ecoando no revestimento de meu cérebro e nas raízes de meus dentes. Forte e duro como um golpe bruto em meu rosto. Happy. É nele em que penso ao voar pelos ares, caindo no capô de um carro que estava na outra via quando a força da explosão quase me lança direto no absurdamente congelante Rio East. Há uma dor lancinante logo acima da parte de trás de meu joelho e estou certa de que o calor escorrendo por minha perna – após alguns segundos da desorientação proporcionada pelo escurecer em minhas pálpebras – é meu sangue jorrando. Alguma coisa também atingiu minhas costas, mas não parece ter penetrado a pele suficiente para rasgar e eu consigo sacudir a dor para longe quando escorrego pelo capô para o chão.
O impacto com o asfalto duro me deixa sem ar e o pavimento ondula abaixo de mim à medida que consigo me pôr de pé, segurando-me no carro vazio. Não consigo escutar o barulho das pessoas que passam gritando por mim ou da mulher que cai e quase é pisoteada. Não consigo escutar nada no momento, a detonação que atingiu o carro tendo danificado minha audição. Chamas e uma densa fumaça preta dos destroços obscurecem minha visão, mas, ao descender para o chão, eu pressiono o indicador no bracelete em meu pulso. Somente após isso, permito que meus olhos se fechem por um instante, conforme a pulseira parece se esticar e agarrar-se em meu braço e todo meu corpo, o som metálico do encaixe em minha cabeça sendo a única deixa que aceito para respirar fundo e abrir os olhos.
É um prazer finalmente conhecê-la, !
O painel HUD de Elena é belíssimo, eu preciso admitir.
– O sentimento é mútuo. – Lhe garanto com a voz rouca, ainda tonta. – O Happy? Onde ele está? – Meus pés deixam o chão e logo estou há alguns metros acima da ponte, o procurando entre os destroços que voaram até nós através das lentes táticas da máscara. O ar volta calmamente para meus pulmões quando respiro, o uniforme filtrando a fumaça ácida que cobre o ar. Atrás da SUV, . Atravesso a via em pleno movimento de civis, estes que erguem os olhos para mim, mas ainda parecem cientes que devem sair da ponte o mais rápido possível e não gastam todo seu tempo comigo. – Happy? – O chamo quando volto para o chão e contorno o capotado, encontrando-o deitado no chão com a cabeça apoiada no parapeito da ponte. – Tudo bem?
Pela monitoração leviana de ELENA, tenho certeza de que seus ferimentos são superficiais, mas não deixo de o questionar. Tem um caco de vidro ensanguentado em seu braço e sei ser do retrovisor quebrado, mas não consigo formular uma causa para o sangramento em seu queixo ou o corte na bochecha. Além disso, ele parece bem. Com as mãos sobre a barriga e os olhos bem alarmados, Happy respira fundo ao me olhar de cima a baixo antes de esfregar o peito sujo com fuligem.
– Eu mereço um aumento – É sua única resposta quando lhe ajudo a ficar de pé, apoiando sua costa e o guiando para longe da fumaça. – Vinte por cento. No mínimo! – Considero essa a sua forma de lidar com o susto e possível trauma, ainda incerta de como saiu do carro tão rápido, mas ciente que ele tem seus próprios truques na manga após tantos anos. Deixo que se apoie em mim enquanto avançamos na direção da multidão, essa que tenta voltar para o inicio da ponte. – Qual o plano? – Happy indaga engasgado ao desviarmos de algumas pessoas que parecem mais atordoadas comigo do que com a possibilidade da ponte se desfazer abaixo de seus pés.
– Não temos um plano – O informo ainda sem ar apesar da vergonha. Após a afirmação uma sequência surge no painel de minha máscara sem demora, intitulada como “rotas de escape” por ELENA. Em primeiro lugar, o plano da IA é evacuar todos os civis e controlar os danos já feitos. “Não temos um plano?” Happy grita em puro horror. – Você nem me queria aqui em primeiro lugar! – Retruco quando ele se apoia em uma caminhonete, o terno coberto com cinzas da explosão e úmido de seu suor.
Se precisa de ajuda na evacuação, recomendo alertarmos a Legião de Ferro.
– Chama eles, por favor – Peço com um dedo pressionando o ponto em meu ouvido. – Happy, eu preciso te tirar daqui, vamos! – Seguro em seu braço outra vez, pronta para lhe arrastar se não quiser me ouvir.
– Eles não vão conseguir atravessar a tempo com todos esses carros – O segurança aponta por cima do ombro para as pessoas que se amontoam em buracos minúsculos entre os carros vazios em uma tentativa de chegarem em um local seguro. – São sessenta minutos para cruzar a ponte e não sei se temos esse tempo todo – “Trinta minutos.” O corrijo quando ELENA alerta a eminente chegada da Legião de Ferro. “Estamos no meio da ponte, portanto são trinta minutos.” – Não vai dar tempo, Einstein! – Ele revira os olhos apesar da exaustão que imagino ter acompanhado a explosão sendo tão perto de nós.
Estico meu pescoço na direção das pessoas apenas para constatar que ele está certo. Não há como os tirar daqui antes que a sustentação da ponte falhe. ELENA me alertou sobre 72%, mas acredito que já perdemos essa integridade após poucos segundos. E ainda tem mais pessoas no lado do Brooklyn que precisam ser evacuadas e ainda não acessei a situação do outro lado.
– Vou limpar a área – Aviso ao me afastar. Happy cerra os olhos sem me entender. – Afastar os carros para as laterais e abrir um corredor pra que consigam chegar mais rápido – Ele concorda ao entender meu ponto. Após sua confirmação, ascendo metros acima do nível da ponte. – ELENA, leva o Happy pro Complexo.
O grito de Happy ao ser içado pela primeira leva da Legião de Ferro é quase cômico, principalmente sua reação quando uma armadura o segura por baixo dos braços ao mergulhar para a ponte antes de ascender aos céus com o segurança ainda esperneando. Percebo que analisar a situação de cima auxilia a planejar o que fazer assim como ELENA faz por meio dos satélites de Tony. Ela se demonstra mais útil que jamais pude esperar e me ajuda a compreender como agir mesmo sem ter sido diretamente requisitado por mim. Ela seleciona, com cores distintas, os carros que precisam sair do caminho conforme atravessamos a multidão, voando sobre eles antes de pousar em uma área livre para iniciar a movimentação dos carros que ainda impedem a circulação.
– Todos os carros estão vazios? – Todos. A maioria está ligado, mas vazio. – Sem luvas, por favor.
O despertar de meus poderes é como fogo se alastrando por minhas veias, viscoso e inflamável ao misturar-se com o sangue. Reconheço a sensação estrangeira quando comparada aos antigos pulsos de energia, porém não tenho tempo para o ponderar antes de lampejos violetas – violetas e não azuis – surgirem nas superfícies de minhas palmas. Há um ardor sobre a pele e um repuxar em meu estômago quando fortaleço a intensidade, faíscas se tornando gêmulas maciças cuja tensão superficial resiste mesmo a força de meus dedos. Concentrando-me no alvo principal do plano, uno ambos os lampejos em uma esfera rígida e a lanço contra o espaço que desejo abrir nas vias. Em seguida, o afastar de minhas palmas aparta os carros e dezenas deles são forçados contra o parapeito, pneus rangendo e estourando ao se pressionarem contra o meio-fio, forçando um corredor que facilite a passagem da multidão.
A Legião está no aguardo de instruções para os civis.
– Diga que precisam evacuar a ponte para sua segurança – Peço ao erguer os outros carros atrás de mim onde a maioria das pessoas ainda esperam por alguma autorização para prosseguirem. Minha voz ainda está trêmula e temo que mais alguém tenha a ouvido. – Mantenha isso em repeat e identifique preferências, ELENA – Sussurro, percebendo que não tenho mais como desistir disto, não quando uma centena de pessoas se espremem para me ver apesar da atual situação. Engulo em seco ao equilibrar os carros acima dos que formam o corredor, garantindo que no caso de queda, irão na direção do rio. – Ajude os idosos, grávidas e pessoas com deficiência na travessia e garanta que todos cheguem a Manhattan em menos de dez minutos. Carregue-os se preciso.
– Quem é você? – Uma senhora grita com a voz esganiçada, agarrando sua bolsa e sendo mantida de pé com a ajuda de dois homens. – Chega de mutantes e robôs em Nova Iorque! – Ela ruge desta vez, um homem a impedindo de vir em minha direção e mantendo uma expressão apologista pela opinião alheia. – Essa cidade não é de vocês, suas aberrações!
– Com licença – Molho os meus lábios ao avançar na direção da multidão, observando como são eles a abrirem passagem para mim e tento ignorar a exaltação da senhora por meio segundo antes que a imagem da mulher de mais cedo retorne para mim e é a minha vez de suprimir a minha irritação. – E se a senhora realmente quer saber – Me viro para aqueles que ainda não entenderam a deixa igual a idosa exasperada. – Eu sou a aberração que abriu uma passagem livre para que chegue a tempo em terra firme – Gesticulo para aqueles que já superaram a surpresa e fizeram o certo. – Agora, se quiser esperar a ponte ceder e morrer congelada no East, pode continuar na “sua cidade” para sempre.
Sem aguardar por respostas mal-educadas outra vez, acelero meus passos até estar correndo na direção norte da ponte, Identifiquei um caminhão-baú carregando cilindros de oxigênio tombado no 1Km. O corpo de bombeiros já foi alertado, mas todas as unidades foram redirecionadas para o armazém da explosão no porto. Um incêndio pode ser contido, mas o estrago que um explosivo em uma instalação tão instável é capaz de fazer pode ser irreparável. Subitamente, eles aparecem no céu, dois quarteirões à frente, talvez uns cem metros acima de nós. Vinte e quatro armaduras da Legião de Ferro numa formação em V. Não há tempo para mais discussões e percebo o quão certo Tony estava ao me armar com controle da Legião.
Voo na direção indicada por ELENA, a força de propulsão da armadura auxiliando-me de maneira que consigo alcançar o ponto indicado em mínimo tempo. Olhando de cima, toda a situação é terrivelmente semelhante à Sokovia: fogo se alastrando após severos acidentes de carro, a maioria sendo engavetamentos que geram derramamentos de gasolina em áreas próximas a amontoados de pessoas e policiais despreparados para tomarem nota do perigo que correm. A onda seguinte de armaduras está surgindo no céu cinza quando volto para o chão com um baque ao aterrissar no capô de um carro, meu joelho direito gritando pelo choque.
– O que pensa que está fazendo? – Um oficial ruge comigo no momento que acha correto erguer uma arma em minha direção e assustar os civis que rodeiam as quatro viaturas na zona norte da ponte. Reviro os olhos mesmo que não possa me ver, descendo do carro e ignorando os outros que também apontam as terríveis armas disponíveis para mim, sem saber sobre a blindagem em meu uniforme. – Esta é uma área de influência da NYPD, afaste-se dos civis imediatamente!
Com o indicador na frente de meu rosto, sinalizo para que fique em silêncio e afasto a arma.
– Sua área de influência também é a zona sul há meio quilômetro daqui onde cem pessoas estão tentando atravessar de volta para o distrito de origem há alguns minutos. – Informo ao afastar a pistolinha de um deles, este cujo chapéu está banhado de suor. – A Legião de Ferro está focada em evacuar eles e eu preciso que me ajudem a tirar essas pessoas daqui antes que o caminhão de oxigênio ali – Aponto com o dedão para o gigante estirado há pouquíssimos metros de nós. – comece a vazar gás e cause uma explosão junto com toda a gasolina em que estão pisando. – A realização que atravessa o rosto dos policiais e do amontoado de civis na área é óbvia. O líquido no chão podendo, sem problemas, ser confundido com gelo derretido. – Agora, se quiserem atirar em mim, somando a pólvora, a gasolina e o óbvio gás no ar da explosão no porto...
– O que podemos fazer? – É um homem que questiona, o sotaque latino carregado enquanto ele desabotoa o terno bem passado e enfia o celular no bolso da calça social.
– Esses caras estão nos prendendo aqui há uns quinze minutos, mas esqueceram que a via do Brooklyn ainda está aberta – Um taxista reclama. Sua mão se ergue ao gesticular para os policiais, a irritação mais que óbvia na baforada que dá em seguida. – Como esperam que saiamos daqui quando todo o fluxo do distrito está vindo? – Ele esfrega a nuca. O homem de negócios ainda está me encarando quando dá um passo para trás e esbarra no taxista que deixa o cigarro escondido entre seus dedos escapulir em uma poça de gasolina.
Meu grito de alerta soa antes da detonação. Estiro os braços em uma tentativa de absorver o impacto da explosão que ameaça cravar minhas costelas nos pulmões devido à tremenda pressão. A segunda explosão divide o ar, fomentada pela primeira no que se torna um círculo de fogo e faz meus ouvidos retinirem. Há uma dor real, semelhante ao que imagino ser sentida ao enfiar as mãos em óleo quente; borbulhando e fritando-me conforme onda após onda de energia é consumida por mim, a atração permitindo que fissuras se abram e eu tenha êxito em conter parte da explosão que outrora iria matar todos ao meu redor e apenas os lança para longe com extrema brutalidade. Parte da explosão, minha mente grita em desespero. Parte. Uma mínima parte, ela se corrige sem parar quando atinjo o chão à medida que os carros e cilindros de oxigênio vão estourando um após o outro. É apavorante ficar presa no olho do furacão conforme o mundo se desfaz um cilindro por vez.
Ouço quando ELENA alerta sobre a zona de perigo e meu joelho, também sobre o desabamento eminente, mas isso passa despercebido quando um rosto com olhos bem arregalados surge em meu campo de visão. Um rosto pequenino e perfeito apesar da deformidade pela fumaça e o vidro trincado da janela de um carro próximo demais da linha de fogo. Lacrimejo de dor quando meu joelho reage à tentativa de correr, mas o puxo apesar de tudo quando um quarto cilindro de oxigênio estoura e lanço um campo de contenção ainda que frágil sobre ele pois não posso arriscar tanta energia. Minha perna parece pesar uma tonelada quando chego no carro e saco a porta aberta, o choro desesperado da criança na cadeirinha me encontrando apesar da cadeia de estouros. Uma mulher grita enquanto arranco o pequeno embrulho da cadeira e ao virar-me para correr, eu a encontro sendo impedida de avançar por um policial e ela berra em desespero quando sua atenção recai na criatura em meus braços um segundo antes de seu carro explodir.
Sem poder utilizar as mãos que seguram a criança, apenas fecho os olhos quando o vidro estoura e a gasolina no tanque entra em combustão, agarrando o bebê contra meu peito e a envolvendo como um escudo a fim de poupar a sua vida da melhor forma que posso enquanto mais explosões são desencadeadas e lançam alguns carros metros acima. Sinto o calor as chamas me atingem eu consigo as ver pelo canto de meus olhos, mas não as sinto em específico. Eu as vejo me submergindo, mas não há ardor ou calor insano que devia seguir o contato. Há apenas uma óbvia pressão em minhas costas que me faz curvar-me ainda mais sobre a criança. Logo, não há mais fogo algum e a mãe do bebê avança até mim, removendo a criança de meus braços, seu rosto ensanguentado e úmido pelas lágrimas que o temor deve ter feito. Há um rasgo enorme em sua bochecha e ele jorra sangue, mas ela não parece reagir.
Mas antes mesmo que dê um passo para trás, encontro a falha no chão – uma rachadura com proporções que aumentam em compasso com as batidas aceleradas de meu coração. “Possível colisão detectada no local! Afaste-se imediatamente da área de perigo!” Quando os gritos dos sobreviventes ensanguentados da explosão soam, tomo voo, pairando acima da névoa de fumaça para encontrar o motivo da colisão, essa que apenas servirá para ampliar o risco do desabamento eminente. Logo, consigo detectar o motivo da ruína, xingando-me por não dar atenção para o que o estúpido taxista disse sobre o fluxo do Brooklyn e engulo em seco. Carros e mais carros avançam pela ponte em alta velocidade, seguido em nossa direção.
– ELENA, ative todos os airbags possíveis e freie todos os carros elétricos – Comando ao mancar na direção deles, ouvindo o arrastar de pneus e algumas colisões, os motoristas exasperados ao desviar uns dos outros ao perderem velocidade abruptamente. Consigo respirar quando os carros, um a um, tem seus motores estancados e pneus freados, pequenos acidentes de menor valor acontecendo, mas salvando os passageiros de um destino bem pior.
O ardor em meus olhos é imediato ao caminhar, a gratidão por impedir um desfecho horrendo me forçando a respirar fundo em um movimento trêmulo. Estou ficando sem ar e, por um momento, acredito que ficaremos bem. Por um mísero instante, consigo sentir a esperança de ter um final minimamente satisfatório para essa inferno que culmina ao meu redor. Então, vejo a caminhonete acima do limite de velocidade – rasgando o transitar de feridos que se amontoam na ponte. Ela desliza pela pista congelado em meio aos feridos, passando pelos destroços dos carros que se acidentaram em suas freadas, a trajetória fixa no desastre atrás de mim, onde mais vítimas das explosões iniciais se acumulam. As pessoas vindas do Brooklyn estão gritando fora de seus carros, correndo freneticamente de um lado para o outro em uma tentativa de ajudar e remover aqueles que ainda estão no caminho da caminhonete desgovernada. Formo um véu de energia, minha mente focada na imagem dos cabos que resistem com afinco em manter a ponte de pé, decidida que uma vida não vale uma tragédia maior com todos que não foram escoltados para fora.
Porém, a mulher aterrorizada no banco do motorista me olha através do para-brisa coberto de gelo e encara meus olhos apavorados por trás da máscara que oculta meu horror. Então, em uma demonstração heroica de coragem que me faz gritar seu nome o mais alto que consigo, ela gira o volante e colide com as barreiras reforçadas e se lança no Rio East. É como um soco na boca do estômago e minhas pernas quase falham, o ar me escapando quando sou atingida pela realização do que realmente aconteceu e da valorosa vida que está em jogo logo abaixo de mim. Com um tremor generalizado, avanço pela pista, apoiando as mão no parapeito antes de lançar-me cem metros em queda livre na direção das águas congelantes.
Há um lago no Complexo e eu costumava visitá-lo durante minhas corridas, sempre molhando rosto, mãos e pés antes de voltar para a instalação principal, mas o East não é como ele. As ondas brutas me prendem abaixo da superfície e a água gelada infiltra-se no uniforme e piora minha prévia situação de tremor enquanto luto por ar, um novo gadget sendo ativado na máscara e a preenchendo de oxigênio para que eu não mais tente submergir em meio ao choque das ondas causadas pelo acidente. Encho meus pulmões de ar, o pânico firmando-se conforme nado até o local onde a traseira do carro se afunda.
– ELENA! – Grito com a água salgada respingando em minha boca após tirar a máscara que parecia prestes a me sufocar com o fomentar de minha crise de pânico. – Convoque todos da ala hospitalar do Complexo – Quando uma onda me atinge no rosto, a IA confirma meu pedido e eu mergulho.
As bolhas de ar tornam minha visão tão turva como lágrimas a tornariam, arriscando meu único sentido que pode ajudar-me a acha-la. Navegando mais afundo apesar do empuxo, consigo acompanhar o descender da caminhonete com a única lufada de ar que engoli, lutando contra a correnteza que tenta me erguer. Cerro os dentes quando encontro a janela fechada, meus dedos espalmados no vidro manchado com sangue, igual a água que rapidamente se infiltrou no espaço. Seu rosto está coberto com um véu de sangue e cabelo castanho, semelhante a um fantasma. E preciso reunir uma força mental e psicológica de mesma intensidade para deferir uma cotovelada dura no vidro, suficiente apenas para ferir-me ainda mais. Quero recorrer a um pulso de energia, mas a ideia de machucá-la me apavora e estou no mais perfeito pânico ao voltar a seguir o carro que permanece afundando apesar de meus esforços. Reconheço algo duro entre meus dedos e considero que a ferramenta que surge entre meu anelar é vinda de ELENA e quero chorar ao socá-la contra o vidro. Com a pressão da água, a mera rachadura trinca a janela o suficiente para que um segundo toque a estraçalhe.
Estou ficando sem ar, mas me recuso a submergir sem levá-la comigo, invadindo a caminhonete pela janela. Com os fios macios se assemelhando a cordas em minha garganta, eu me curvo sobre a motorista e solto seu cinto de segurança, o corpo desacordado ascendendo do assento de imediato. Com o peito queimando pela falta de oxigênio, enfio as mãos por baixo dos braços dela e bato as pernas para arrancá-la de dentro do carro. A gravidade faz seu papel e me ajuda, puxando a carcaça destruída para baixo enquanto luto para que alcancemos a superfície. Pressiono sua costa contra meu peito e uso o braço livre para tentar nadar, sufocando mais e mais a cada segundo que passa. O oxigênio gelado ao submergir é pior que antes.
– May! – Com a voz rasgada pela exaustão e sal na boca, consigo chamar seu nome. Não tenho capacidade de distinguir minhas lágrimas da água e não me importo mais, a arrastando para a margem do Rio East comigo. Por sorte estamos perto e May escapou das rochas que podiam lhe ferir na queda. – May, por favor – Soluço seu nome de forma esganiçada, meu corpo tremendo quando a trago até meu colo o ferimento em sua testa jorrando sangue como uma cachoeira, mas toda minha preocupação está em sua pele branca como giz e que se acinzenta conforme a iluminação na margem torna-se escassa tanto pelo clima feio da cidade quanto pelo amontoar de plantas e a sombra da ponte que nos esconde daqueles que podem servir de ajuda. – Por favor, não faça isso – Minhas mãos tremem ao segurar sua cabeça acima da superfície, a inconsciência fazendo com que pese demais para mim. – Você não pode ir, por favor, por favor, aguente!
Quando finalmente alcanço a margem do rio, May Parker está gelada como um cadáver em meus braços ao apoiar-me em uma pedra que machuca minha coluna já ferida. Estou chorando para ela como uma criança pequena que ralou o joelho; fungando e soluçando ao chamar seu nome por ajuda quando ela mesma já está distante onde não posso a alcançar. Com minha testa pressionada na sua e reunindo todas as forças que ainda tenho ao abraçá-la, peço aos céus que o mínimo calor de meu corpo consiga mantê-la viva. Então, fecho os olhos e espero. Espero, espero e espero. Parece uma eternidade até que eu quase perca o equilíbrio e caia para trás, a luz dourada que trespassava pelas copas das árvores acima de nós então se tornam um brilho branco e cegante em minhas pálpebras quando abro os olhos.
Com uma descarga de adrenalina bem-vinda, consigo berrar por ajuda no corredor da ala hospitalar, meu grito reverberando pelas paredes alvas enquanto tento me por de pé com May em meu colo. Busco um instante de calma ao apertar as pérolas em sua nuca, o mesmo colar colorido que usava quando nos conhecemos.
– Por favor, ajuda! – Estou chorando e gritando de novo ao vacilar, finalmente tendo condições físicas de avançar até as portas vermelhas enquanto a carrego comigo, todas minhas energias tendo sido drenadas pelo teletransporte que me trouxe para o Complexo. Mas May está fria e eu estou em pânico. – Por favor! – Quatro pessoas me encontram do outro lado das portas e eu me permito chorar quando reconheço alguns rostos. Tico e Teco, os seguranças que me vigiavam antes do início das aulas surgem na enfermaria, empurrando macas acompanhados de médicos que conheci anos atrás quando fui resgatada.
– Tem o histórico? – Alguém questiona alto e me faz estremecer.
– Ela tem trinta e oito anos – Informo quando duas enfermeiras de feições asiáticas se aproximam e com a ajuda dos homens, tiram May de mim, meus braços logo parecendo pesar uma tonelada em sua ausência. – Bateu da ponte e se afogou no Rio East – De imediato, coloco as mãos em minha cabeça, lágrimas quentes aquecendo minha face. Está tão frio aqui. – Ela está congelando, por favor, está muito frio! – Cubro a boca, lábios tremendo e saliva se acumulando devido ao choro.
May parece um fantasma quando a colocam na maca, semelhante a um peso morto. Meus dedos ainda estavam agarrados ao seu colar com tanta força que, quando ela foi levada, a corrente estourou e as pérolas alaranjadas saltaram em contado com o chão branquíssimo, rolando entre os pés dos enfermeiros. Mais médicos – com suas roupas azuis escuras e esterilizadas, máscaras e luvas, todos prontos para atendê-la – entram em ação. May está imóvel na mesa prateada e eu agarro sua mão enquanto uma mulher luta com um oxímetro, trazendo-a para minha testa ao implorar que ela aguente firme. Resisto a vontade de empurrar o médico que inicia a massagem cardíaca, a água escorrendo de sua boca roxa me apavorando enquanto tubos e fios são introduzidos em sua pele que logo é ocultada por um cobertor isolante.
– Por favor, ela tem um sobrinho – Toco seu rosto que se tornou uma pedra de gelo, toda a cor exilada pela baixa temperatura. Uma médica assente, mas não parece me ouvir, muito ocupada em indicar dosagens de um medicamento enquanto avançamos pelo corredor para a sala de cirurgia. Meus pés se embolam em fios e eu tropeço, mas não a solto, segurando firme em May como se pudesse perdê-la se deixasse de a tocar. – Ela é a única família dele, por favor, não a percam – Outro médico confirma que me ouve, olhando no fundo de meus olhos ao assentir e repetir a palavra “sobrinho” para mim. Me sinto uma tola desesperada, mas isso não importa enquanto não tornar bem claro que não podem deixá-la partir. – O nome dele é Peter e ele não tem mais ninguém – Peter. As lágrimas embaçam meus olhos quando bipes se iniciam, uma máquina monitorando seus batimentos ou a ausência deles. Uma porta me atinge conforme atravessamos toda a ala hospitalar. – Ele não tem mais ninguém, por favor – Tropeço uma segunda vez e, desta vez vou ao chão.
Sangue quente escorre por meu rosto, mas a dor não me afeta, ao menos, não quando vejo que prosseguem com a maca sem mim. Apavorada com a ideia de deixar May sozinha e ferida, eu piso no líquido e corro até ela, mas sou agarrada em ambos os braços e rendida. Começo a gritar para que me soltem, mas Maria Hill me segura pelos ombros quando rosno uma segunda vez e me empurra para longe até que eu desista de resistir e caia de joelhos em seus pés devido à exaustão. Quando a falta de resistência é perceptível para os seguranças, logo após uma confirmação de Hill, eles soltam meus braços que seguravam previamente atrás de minha costa. Hill toca minha coluna ao se abaixar até meu nível, massageando minha costa enquanto tento respirar em meio às lágrimas de desespero que não consigo mais interromper, estas escorrendo livremente por meu rosto e se amalgamando com o sangue que mancha minha visão.
Peter é a única coisa em minha mente enquanto me lamento com a testa pressionada no chão. Ao mesmo tempo que quero envolvê-lo em meus braços, tenho horror em lhe ver e precisar contar sobre a situação de May. Não poderei compreender a dor que sentirá caso os médicos exaustem todas as tentativas de salvá-la, e, portanto, não poderei roubar sua tristeza para mim e salvar seu coração já calejado por tantas perdas. Seus pais, o tio e agora a possibilidade de perder May... Peter não merece tanta agonia e todos sabemos, portanto, talvez a injustiça de toda a situação seja a maior causadora de minha fúria e angústia.
? – Maria chama por mim, tocando em meu cabelo e tentando erguer minha face. – , você está ferida e precisamos cuidar de você. – Agarro seu pulso ao esforçar-me para levantar a cabeça. – Ela ficará bem, não há o que se preocupar. – Sua voz é calma apesar de minha desesperança e me questiono se a HYDRA a treinou para suportar a tensão. Porém, a última afirmação me faz balançar a cabeça e cuspir o sangue em minha boca em uma tentativa de riso. A saliva tem sabor metálico e borbulha em meus lábios como em um animal. – Vai sim. Ela vai ficar bem e você não vai estar aqui por ela se passar mal por perda de sangue ou hipotermia. – Fecho os olhos e volto a me segurar em Hill quando apoia meus cotovelos e me faz ficar de pé da melhor forma que posso, minha perna esquerda falhando. – Chame todos os enfermeiros e médicos livres agora. Esta é a afilhada de Pepper Potts.
Estou tonta e com a cabeça girando quando me colocam em uma cadeira de rodas. Abaixo o rosto e apoio em minhas palmas para poder me manter consciente, forçando o ar para dentro e para fora na respiração sanfona que a psicóloga ensinou enquanto me levam para uma enfermaria vazia. Peter retorna como minha nova prioridade e sei que precisarei estar firme quando o vir, decidindo controlar-me mesmo quando meu joelho grita ao me carregarem para transferir até a maca. A dor é tanto que preciso prender um gemido dolorido quando pressionam uma gaze em minha testa, agarrando a espuma do colchão com força, voltando a chorar pela agonia e o frio que faz meus dentes baterem. Mordo os lábios até que doa mais que a gaze estancando o sangramento principal, tentando ignorar a pior dor o suficiente para não mais fugir das enfermeiras. Todo corpo se enrijece quando uma picada funda em minha testa garante que me anestesiaram e eu arfo, rasgando o colchão com as unhas para suprimir o desejo de pular na garganta da médica que abre um kit de sutura ao meu lado. Fecho os olhos quando a primeira perfuração em minha testa faz mais sangue escorrer e cobrir meus cílios até que eu só consiga ver o líquido vermelho.
E, pela primeira vez em anos, o sangue e a dor são distrações bem-vindas.


*


– O Agente Cooper está contabilizando os danos que ocorreram na ponte. – Um oficial da Iniciativa Vingadores informa Maria Hill, ela que está de prontidão na porta do quarto em que me deixaram para descansar do acidente. – Felizmente, até o momento, não houve vítimas fatais.
Viro o rosto para a parede, a boa notícia não sendo o suficiente para aliviar meu coração pesado ou impedir que minha cabeça ameace estourar pela dor. Fecho a mão em punho quando sinto, apesar da anestesia em minha testa, o pulsar do ferimento após encostar a cabeça no travesseiro e uma dor de enxaqueca acima de meu olho. Logo após recusar-me a ser medicada por via endovenosa, fui instruída a me manter em repouso, o que se tornou mais fácil após a chegada de Pepper e Happy, ambos tomando as rédeas da situação de May e seu tratamento. Obviamente, foi necessária séria insistência para que Pepper concordasse que estou suficientemente bem e que era May a precisar de mais cuidados, minhas palavras sendo sustentadas pela Agente Hill e outros membros da equipe hospitalar ao informá-la da situação grave de May Parker. De onde eu estou, posso ouvi-la conversar com Happy sobre algo relacionado a ela e, pelo que entendi, seu coração já parou pela terceira vez.
Happy me visitou vinte minutos atrás, tirou o cabelo grudado em minha orelha suja de sangue e comentou sobre o carro estar sendo movido para o Complexo até o final do dia, mas nada sobre May e me aterroriza a ideia de estarem escondendo algo de mim. Imaginar um fim fatídico ao ser mantida no escuro é horripilante e eu me esforço para sentar-me, meio mundo de enfermeiras vindo auxiliar o mero mover de meus braços. Utilizo todo o apoio que é disponibilizado e, ainda assim, trinco os dentes ao pisar no chão, a dor aguda em meu joelho ainda latente. Considero pedir que seja examinado, mas não tenho interesse em ser acamada outra vez e apenas o ignoro ao deixar a enfermaria, o cobertor quente também ficando para trás. Há uma leve ondulação onde piso, o baque da primeira explosão na ponte sendo a responsável pela dor de cabeça insistente, porém não sendo capaz de me manter parada por muito tempo. Quando chego no meio do longo corredor até a recepção da área hospitalar, ouço a voz de Pepper e Happy, mais altas e claras ao comentarem que Tony está a caminho na companhia de Peter.
Ouvir seu nome me deixa angustiada e encosto a cabeça na curva do corredor, mirando os dois.
– O Tony contou sobre a May? – Minha voz está áspera, mas ambos a reconhecem e me olham. Pepper se põe de pé imediatamente, vindo em minha direção e envolvendo um braço em minha cintura, no caso de eu precisar de apoio. – Oi. – Sussurro, encostando o rosto em sua bochecha quando acaricia meu cabelo, o afastando para trás de minha orelha. Os olhos de Pepper estão avermelhados, como se indicasse que houveram lágrimas neles e eu não me encolho quando beija minha bochecha. Agora, olho para Happy. – Ele contou ao Peter?
– Contou, meu bem – Pepper confirma e esfrega minha costa, guiando-me para que eu me sente em uma poltrona apesar das roupas ainda molhadas que também me recusei a tirar, preocupada de May partir enquanto estava em meu closet. Me sento com um som úmido e ela pede por mais um cobertor quente para mim. – E um termômetro! – A enfermeira assente ao zarpar atrás do que ela pediu. Potts retorna sua atenção para mim e encosta a costa da mão em meu pescoço. – Acho que ainda está fria demais – Ela balança a cabeça e afinco mais minha expressão, preocupada sobre como Tony contou a Peter sobre sua tia. – Sim, o Tony contou ao Peter sobre a May. Disse que o Peter está muito frágil com a notícia, então nem contou sobre a ponte, sim o afogamento.
– É minha culpa, não é? – Meus olhos pinicam com lágrimas, mas eu as impeço de cair, mantendo a expressão séria e implorando pela sinceridade dos dois. Happy ri sem humor e balança a cabeça, então Pepper acaricia meu rosto marcado de sangue após dar um tapinha no braço dele quando pediu licença para conferir mais notícias do acidente com Hill. – Não, por favor, Pepper – Toco a mão dela, a afastando e não querendo que me toque quando estou tão suja.
– Pirralha, nós acabamos de ouvir que ninguém morreu. Você salvou todas aquelas pessoas e vem choramingar por não ter freado o carro da May? – Ergo os olhos para Rhodes que se senta ao meu lado, segurando um copo de água para mim. Ele aperta os lábios, entendendo o meu ponto apesar de tudo. – Pulou de uma ponte para um rio com temperatura máxima de sete graus, salvou ela de um afogamento, a trouxe para um centro hospitalar de altíssima qualidade e acha que é sua culpa? – Rhodey balança a cabeça, desdenhando e colocando o copo em minhas mãos. – O Prefeito deveria estar beijando os seus pés.
Quando vozes conhecidas ressoam pelo corredor, o copo de papel cai de minhas mãos.
Minhas memórias de Washington são nubladas pela radiação que corria por minhas veias deste o instante que impedi a explosão da Pedra Chitauri – o previamente límpido caleidoscópio com as lembranças nítidas de cada momento de minha vida sendo corrompidas pela tentativa de meu corpo em reagir ao invasor. Mas, apesar de tão turvas e distorcidas, ainda me recordo de quando vi Peter pela primeira vez após ele salvar a minha vida. E, lembro, acima disso, de como a distância mínima entre nós parecia imensurável ainda que, agora, ela pareça ter sido triplicada – fortalecida por uma muralha de receio, angústia e culpa. Pela primeira vez, não quero correr até ele, apenas desejando me manter petrificada e esperar para ter certeza de que não me ressente pelo que fiz e verdadeiramente me quer por perto após um evento tão traumático para nós dois.
Meu pai está ao seu lado, a mão em sua costa enquanto cruzam o corredor em passos apressados e algumas vezes vacilantes quando Tony fala algo para ele, seu rosto sério e apreensivo. E, neste momento, não sei para qual deles quero correr primeiro, indecisa entre dois de meus três pontos seguros. Então meu pai me olha, removendo o óculos que usa a todo instante e respirando fundo ao trocar um breve olhar com Peter. E quando os olhos lacrimosos dele me encontram, o ar escapa de mim e sinto que irei sufocar, evitando me mover apesar do curvar trêmulo de meus lábios em razão do medo. Medo de perder May e Peter ao mesmo tempo. Não processo a passagem dos segundos, atenção presa em Peter e como ele deixa Tony e avança os trinta metros entre nós, o franzido sisudo em sua testa, a camiseta de flanela ondulando e o casaco cuja manga está mais escura, parecendo úmida.
!
Nem mesmo o choque de nossos corpos é o suficiente – a dor não compensando os longos instantes que esperei antecipando sua reação ao me ver, o baque dos ossos de nossas costelas nada perto ao que preciso para sentir que estou segura outra vez. Ainda assim, o sentimento é arrebatador, o local onde a ponta de meus dedos se encontram em sua coluna parecendo determinado para mim. E sinto que posso desmaiar de tão agradecida que estou em encontrar descanso em seus braços. A ponta de meus pés não mais tocam o chão e minhas lágrimas cascateiam desesperadas ao ser erguida, a força que Peter aplica em me erguer do chão revelando-me que ele ainda está resistindo à notícia de May e me agarro em seu casaco, absorvendo o instante que temos antes do mundo desmoronar outra vez e a realidade nos esmagar.
– Me desculpa – Meu soluço é estrangulado e feio, encolhido em seu ombro quando pousa a mão em minha nuca, segurando-me contra si como um naufrago seguraria em sua boia salva-vidas. Peter está morno e seu calor é familiar. – Por favor, eu tentei – Imploro mais uma vez, descansando em seu corpo sólido e resistente, peito esmagado contra o seu. Agarro-me em suas roupas, enfio o rosto em sua camisa que cheira ao sabonete caseiro de May e me esforço para entender que vou precisar soltá-lo a qualquer momento. – Juro que tentei – Meus pés alcançam o chão e quero me desfazer nas lágrimas que não cessam, apavorada com sua reação a meus pedidos de desculpa.
– Merda, – O seu fungar contra meu ouvido é como uma lâmina sendo cravada em meu peito. Quando sua boca treme e os dentes batem em uma tentativa de conter suas emoções, entendo estar de pé de novo. Toda sua força se foi e eu preciso impedir que a realidade o sufoque. – Eu sei – Suas mãos escorregam para minha cintura e eu resisto ao desejo de jamais soltá-lo, encolhendo meus ombros até que me afastar o suficiente para respirar, buscando seus olhos apesar de entender como vê-lo sofrer irá destruir a estabilidade que devo fingir ainda ter. Peter abdica o toque em mim para encostar a costa da mão no nariz, finalmente olhando-me enquanto inúmeras lágrimas deixam os seus olhos. É tão doloroso que não sei se suportarei o ver com tanta dor. Não mais consigo distinguir o líquido em meu pescoço, suor e choro escorrendo por minha garganta. – Ela... – Peter balança a cabeça, evitando finalizar a questão que iniciou. Ele arfa e se agarra no osso de meu quadril, o uniforme justo o suficiente para não ter sobra de tecidos.
Reconheço a sua dúvida e imediatamente agito a cabeça em negação.
– Não! – Repito o gesto, tocando seu rosto e guiando sua atenção para meus olhos a fim de garantir que falo a verdade e que ele pode reconhecer minha sinceridade. – Ela está viva, Pete! – Não sei por quanto tempo isso será uma verdade pois, até o momento, o estado de May não tem mudado. Enquanto afago sua bochecha com meu dedão ainda sujo de sangue seco, sua boca se aperta, os lábios tremendo e reluzindo com a saliva que o lubrifica. Seu alívio é mínimo, pois deve entender que não temos outra opção além de aguardar por outro parecer dos médicos e eu tomo sua mão na minha, certa de não o soltar enquanto puder. – E-eu estava em observação, mas... – Respiro fundo e disparo um olhar angustiado na direção de Tony quando toca meu ombro, finalmente nos alcançando. As emoções renascem mais fortes quando ele me olha e deixo Peter para abraçá-lo com a mesma intensidade que fiz com Pepper assim que ela chegou.
– Céus, minha filha... – Tony sussurra, esfregando minha costa e afagando meu cabelo, a respiração acelerada me preocupando devido ao seu coração.
O termo que usa para me designar é um sedativo apropriado para o momento e eu me encolho contra ele, buscando evitar o choro que não tenho mais direito agora que Peter chegou. Estou tentando cheirar seu perfume, procurando conforto olfativo nele quando me afasta, ambas as mãos em meu rosto, uma segurando a bochecha e a outra afastando o cabelo. Tony me analisa como faria com um sistema defeituoso, buscando alguma falha externa para culpar o estrago interno.
– O que aconteceu? Está machucada? – Balanço a cabeça, transferindo a mesma garantia para Peter ao apertar sua mão antes de soltá-la quando Pepper chama seu nome. Ouço os saltos dela no chão quando se aproxima e foco a atenção em Tony. – Certeza? , não minta! – Assinto novamente, repetindo o roteiro que fiz com Pepper apesar das pontadas em minha coxa e o calor que emana dela. – Cho convocou uma cirurgiã do Metro-Central, a Christine Palmer. Já está verificando os danos que o acidente pode ter causado na May. É a melhor neuro atuante em Nova Iorque. – As engrenagens em minha cabeça voltam a funcionar como antes, me auxiliado a compreender que estamos em uma situação deveras delicada. – A batida, o afogamento... – Concordo de novo quando também assente ao perceber que o compreendi, ambos cientes do que o acidente pode ter causado.
– A Cho só vai vir na quarta-feira...
– Cho está vindo da Coréia mais cedo e chega em sete horas. Mandei um Quinjet para ela. Vai trazer o Berço Regenerador e dar um jeito em vocês duas. – Stark indica o ferimento em minha testa que está coberto por uma camada de gaze e esparadrapos. Não vejo a hora de removê-los quando estiver sozinha. Observo enquanto segura meu pulso e averigua a situação de meu bracelete, este que se adaptou a meu uniforme e tornou-se parte dele, estudando o mini painel HUD com dados sobre minha saúde. – Frequência está baixa e a temperatura também. Sei que não está medicada porque não tem nenhuma enfermeira com braço quebrado. – Engulo em seco pelo sarcasmo, ele já conhecendo muito bem a minha aversão a agulhas e recusa em ser medicada assim. Happy está guiando Peter para uma cadeira quando tento vê-lo e Pepper some com algumas enfermeiras. – Liguei para Evangeline Cross, cancelei a visita do Rhodes e ela está vindo para cá. May está com duas costelas quebradas e a clavícula também.
– Quando a tirei do carro... – Não recordo algo incorreto em seu tórax. – Fui eu?
– Não foi você, foi o acidente. – Tony garante me olhando. – Não tem nem força para isso. Calma!
Ele pressiona um beijo prolongado em minha testa como uma garantia de minha inocência no episódio. Estou segurando a manga de sua camisa social perto de seu pulso quando me incita a me aproximar de Peter, este que está com o rosto entre as mãos em sua cadeira. Pepper está do seu lado, afagando a costa dele e segurando seu ombro, prometendo a Peter que tudo acabará bem e estarão em sua casa em breve. Apesar de toda situação, consigo formar um pequeno espaço em mim para sentir certa satisfação ao vê-los tão próximos e Pepper agindo com tanto carinho para com Peter. Apesar de ele ter estado conosco no fim de semana, não chegaram a realmente se encontrar, a agenda lotada dela e de Tony impedindo que se conhecessem. Ao me aproximar dos dois, apoio os antebraços nos ombros de Peter e encosto minha cabeça no topo da sua, seu cabelo ainda meio úmido pelo que imagino ser neve derretida. Ele segura-se na curva de meus cotovelos ao coçar a garganta após o tapinha na costa vindo de Tony.
– Uniforme legal – Suspiro pelo elogio nervoso, agradecendo bem baixinho. – O que acont... – A possível dúvida foi interrompida quando Peter virou a cabeça e o som das portas duplas batendo também me alcançou com certa demora. Me afasto para que se ponha de pé e, ao notar que ouvimos algo, Pepper nos imitou e Tony também se afastou. Parker se adianta para olhar a médica que faz a curva do corredor e meu coração vacila ao vê-la. “Boas notícias?” É Tony quem indaga, a feição tensa, uma mão na costa de Peter e a outra segurando a de Pepper. – M-me chamo Peter, sou o sobrinho da May – A voz do rapaz falha ao dizer o nome da tia e eu me aproximo, preocupada que, ao contrário das expectativas de Tony, as notícias não sejam tão boas. – Como e-ela está?
Diferente do que eu esperava, a médica que imagino ser Christine Palmer aparenta ser mais nova até mesmo que Pepper agora que a posso ver melhor e sem May sangrando em meu colo. Ainda nervosa, segurar o pulso de Peter e o toque é negado por ele de imediato. Antes mesmo de processar o choque de sua reação ríspida, ele apanha minha mão e entrelaça nossos dedos com afinco. O pijama cirúrgico da cirurgiã está impecável e decido considerar um sinal positivo, mesmo sabendo que deveria estar usando seu EPI antes disso. Ainda estou grudenta de água do rio e sangue, o que me faz indagar se May está da mesma forma.
– Peter? – Ele assente, sem questionar-se como Palmer descobriu seu nome. Troco um olhar conhecedor com a médica, apesar de sua preocupação ser visível. – Sou a doutora Palmer, é um prazer. – Tenho o bom-senso de não cortar as introduções e pedir que se adiante para May e seu estado, mordendo minha língua. Ela olha para Tony e Pepper, também para Rhodes que se aproxima com um copo de café e acena com o queixo para Peter, possivelmente pedindo permissão para nos informar sobre a May. Pepper lhe sussurra uma liberação. – A senhora Parker está com um quadro bastante delicado. – Palmer informa, suas sobrancelhas apertadas. – Chegou rebaixada, o que foi o primeiro quadro a tentarmos reverter. Até o momento ainda não foi possível e estamos mantendo as compressões. – A continuidade de compressões desde a última vez que a vi é um alerta e luto para não tirar conclusões precipitadas. – Também está hipotérmica e estamos tentando tratar com uma lavagem peritoneal com fluidos quentes. É um método amplamente utilizado em alpinistas e outros esportistas que entram em choque após baixas temperaturas.
Peter assente devagar e esfrega o dedão contra a costa de minha mão, o digito frio pelo nervosismo.
– Descobrimos que ela tem Síndrome de Wolff-Parkinson-White, o que justifica a sensibilidade a baixas temperaturas mesmo com tão pouco tempo submersa. Está na faixa etária exata e a reação lenta é parte do diagnóstico. A doença causa episódios de batimentos extremamente acelerados e baixa recuperação após paradas. – A informação é nova, jamais sendo mencionada para mim por Peter. A síndrome é uma doença congênita que já foi ensinada pelo professor Walsh e a explicação justifica a ausência de uma resposta do coração de May após as paradas e o prosseguimento do RCP. – Então, devido à assistolia, iremos tentar uma toracotomia de emergência caso não consigamos a manter por mais de vinte minutos.
– Não... – Peter respira fundo, o ar que exala sendo estremecido assim como suas mãos. – Vocês – Ele suspira, cobrindo um dos olhos e erguendo a cabeça. Imagino que faria o mesmo se as luzes acima de nós não estivessem turvando minha visão e piorando os sintomas de pânico que o parecer médico causa. – Não tem conseguido a manter? Ela não está respondendo ao estímulos? A May está... Como ela está? – Palmer troca outro olhar com meus pais e eu imagino que minha expressão não seja amigável ao tentar repreendê-la para se expressar melhor. "Senhor Parker, sua tia está apresentando assistolia e..." – Não foi isso o que perguntei! – Silvo de dor quando Peter ruge com a neurologista, dando um passo em sua direção e apertando meus dedos com certa força, o propósito de ser entendido e ter uma resposta definitiva estampado em seu rosto pálido. O choque de vê-lo agir tão grosseiramente com qualquer pessoa me faz dar para trás e uso o aperto em sua palma para puxá-lo também, agarrando a manga de seu casaco. É como estar na Baia de novo, no topo do prédio após o acidente na barca e o deja-vu me deixa tonta, exceto que seu problema não é com Tony, e sim com a médica que luta para manter May viva. – O que perguntei foi se...
– Sobre o estado da sua tia, eu sei, mas...
Tony também tocou o peito de Peter e puxou nossos braços, afastando-nos de Palmer.
Mas – Stark inicia, tomando nosso lugar e fazendo minha cabeça latejar pelo movimento rápido, o número absurdo de informação formando gotas de suor frio em meu rosto e braços. – a May é uma mulher de hábitos saudáveis, certo? – Ela assente após um instante, seguindo as indicações de Tony, o rosto duro ao cobrar uma confirmação que sustente sua garantia. – E descobriram o motivo da demora na recuperação e sabem como corrigi-lo, o coração dela vai recomeçar a bater. – Dessa vez, Stark nos olha e Peter me solta, virando as costas para nós e caminhando para longe com uma mão esfregando a nuca e a outra em seu quadril. Olho para Pepper em busca de respostas e ela balança a cabeça, lamentando o que imagino ser nossas mãos atadas. Além de esperar, não há nada que possamos fazer e a impossibilidade gera desesperança. Potts indica com a cabeça a direção que Peter seguiu e tomo isso como um convite para ir até ele. Voltando a olhar meu pai uma última vez, é ele que vai para cima de Palmer agora que Peter não pode. – Antes das seis da noite, você não para a RCP. – A voz dele é severa. – Eu estou sendo claro?
Dou algumas voltas pela enfermaria até achar Peter apoiado no corrimão de uma parede, ombros bem erguidos e com os músculos tensos enquanto tenta regularizar a respiração. Ergo meus olhos para o teto com fileiras de madeira pálida, tentando equilibrar-me de pé quando uma pontada afiada no interior de minha coxa rouba meu ar, o rápido ato de morder meu lábio sendo o que me impede de gemer pela dor pungitiva. A perna protesta quando a toco acima das duas camadas de tecido – minha roupa e o uniforme – uma bolsa de sangue já tendo se formado. Me recordo de minha queda após a primeira explosão na ponte, decidindo por considerar que seja o mesmo sangue de antes, porém com o ferimento mais inflamado após tudo o que fiz. Mantenho a decisão de ignorá-lo, apoiando-me no mesmo corrimão que Peter para ir em sua direção, dentes fincados em meu lábio inferior a fim de conter qualquer som.
– Estou tentando lembrar – Peter sussurra com a voz embargada e acelero meu passo, mancando e com os olhos lacrimosos pela enxurrada de dores, tanto física quanto mental ao ouvi-lo. – Mas não consigo lembrar, sei que devia, que está em algum lugar – Ele leva a mão para o rosto, secando o nariz e a bochecha de maneira brusca, creio que o suficiente para deixar sua pele vermelha e explicar a manga de seu casaco estar molhada. – Não consigo! – Peter desce um soco contra o metal do corrimão, o material terrivelmente resistente curvando-se diante da bruta demonstração de força e irritação. Ele leva as mãos para a cabeça em um ato exausto, exalando a mais pura inquietude que já o vi enfrentar. Peter aperta os lábios com força, descontando sua fúria neles e em seu cabelo, enfurecido por não mais lembrar de algo enquanto aperta os fios com força. – Sístole, diástole e assistolia... Não lembro mais qual é qual! – A irritação é substituída por uma risada molhada e mentirosa. – A May deve estar morrendo e eu estou aqui tentando lembrar da aula de biologia do início do ano, o que é simplesmente... – Ele suspira apoiando as mãos na parede, cabeça baixa e balançando de um lado para o outro. – Ótimo. E vai, com certeza, ajudar a minha tia.
– Peter...
Abro os lábios para lhe responder, caracterizar a condição de May e tentar lhe acalmar de alguma forma, porém, não me atrevo. Então, lutando contra a dor latente e pontiaguda que sinto, consigo me colocar atrás dele, prender meus braços ao seu redor e enterrar meu rosto úmido de suor no espaço confortável entre suas omoplatas. Encaixo meus dedos em seus opostos de cada mão e os descanso em seu estômago, abraçando-o da melhor maneira que posso e creio ser mais fácil para ele. Fecho os olhos aliviada quando sua mão quente alcança as minhas e as cobre, apertando-as sem as machucar como fez antes; possibilidade há muito esquecida quando fortifica meu toque, desejando sentir-me mais próxima. Respiro fundo, o mero ato parecendo mais difícil de repente e piorando minha tontura.
– Assistolia é baixa frequência de contrações cardíacas involuntárias. O músculo cardíaco parou. – Medindo sua força outra vez, Peter aperta minhas mãos, caixa toráxica expandindo e vibrando ao revelar a possibilidade de estar perto de chorar. Aperto meus dentes, flexionando e abrindo meus dedos para acariciar seu estômago e apertando meus braços em seu entorno, a informação que lhe ofereço soando com uma sentença horrível. – O coração da May deveria estar parado por si só, mas estão a mantendo viva usando a RCP. Ela havia tido duas paradas antes de você chegar e agora... – Quando Peter soluça e o som ecoa pelo corredor vazio, tornando-se mil vezes pior, meu mundo se abala em escala monumental – me cobrando para ajudá-lo quando nem mesmo sei como fazê-lo. Seus ombros tremem e ele leva o braço para traz, apoiando a parte inferior de minha coluna. – Agora eles estão tentando manter ela aqui! – Agarro sua camisa, pontuando a ideia principal dos médicos. – A toracotomia é um acesso ao coração dela e eles vão tentar a reanimar assim! E vão conseguir!
– E se não conseguirem? E se... – Peter respira fundo e encosta a testa na parede. – E se ela morrer?
– Ela não vai!
A força de minha voz quando somada a dor de cabeça prévia tem o mesmo efeito que uma coronhada, me deixando atordoada e zonza. Minha cabeça lateja outra vez, pulsando dolorida com tipo de enxaqueca que estanca todo o raciocínio, sutilmente os substituindo por alarmes vermelhos barulhentos e escurecendo minha visão. Quando dou um passo para trás e solto Peter ao sentir meus batimentos acelerados, a ansiedade e nervosismo prévio culminam-se e reviram meu estômago. Caminho como se minhas pernas não mais me pertencessem, a esquerda tornando cada passo um martírio que me dilacera de dentro para fora. Agora, tudo dói. Sinto como se houvesse uma lâmina perfurando-me, radiando dor tão intensa que estraçalha meu cérebro, torcendo meu raciocínio e se tornando meu único foco. Apalpo o bracelete para recolher o uniforme que visto em uma luta para diminuir o aperto em meu peito e, ao em vez disso, observo calada enquanto o chão que piso é tingindo de vermelho.
O sangue não jorrou em um fluxo contínuo, mas no compasso de meu coração. Primeiro escorreu por minha perna, nítido e consistente, escoando por entre meus dedos ao tocar a fenda enorme através de minha calça, um caco de vidro cravado minha carne e colorido com meu sangue. O ele esquenta minhas mãos frias, o fluido viscoso mais quente que minha pele. E no instante em que Peter se vira para mim, meus joelhos vacilam, a perda ilógica de sangue corrompendo meus movimentos e resistência ao fluir com determinação doentia, como se a intenção principal fosse bombeá-lo para fora de meu corpo. Sinto quando Peter me toma em seus braços antes da queda, erguendo minhas pernas e carregando-me antes de atingir o chão. Apesar disso – e de seus clamores por ajuda tão altos e estrangulados – reconheço o momento no qual meu estômago afunda, entranhas sendo substituídas por um buraco negro enquanto o ferimento pavoroso em minha perna pulsa, golfando sangue ao ponto que a náusea se torna insuportável, navegando de meu abdômen para minha cabeça até o mundo escurecer.
Apesar de momentaneamente cega e irresponsiva pela perda de sangue, eu estou um pouco consciente e é horrível. É como o afogamento simulado da HYDRA, meu cérebro irresponsivo deteriorando minha tentativa de manter-me consciente enquanto posso e as tentativas de reconhecer que não estou sendo torturada. Porém, meus ouvidos entupidos e as vozes camufladas me fazem sentir submersa, o desespero se instalando ao não conseguir tocar a pele formigante de meu rosto para ter certeza de que não há toalha nenhuma ou água sendo despejada sobre mim. O atordoamento é doente e frio como mergulhar outra vez no East, causando um pânico que não reconheço jamais ter sentido. Lembro de Peter chorando e então do sangue, mas vejo Brock em meio a escuridão. Recordo-me de Rumlow pressionando minha faringe para piorar a sensação de afogamento e não poder me debater é como estar algemada de novo, mas mil vezes pior e mais incapacitante ainda.
Então, a escuridão toma conta quando, em meus delírios, sou apagada pelo mero eco fantasma de Brock. O frio e a sensação sufocante, a respiração pesada de Peter, tudo desaparece e o silêncio é ensurdecedor, um reluzir rubro se intensificando ao meu redor. A pressão em meu peito cresceu e me fez engasgar, oscilando por ar abaixo de luzes extremamente vermelhas – que desapareceram tão rápido como surgiram.
O redemoinho se desfez e abri meus olhos para o corredor vazio da enfermaria.
Estou de joelhos sobre meu sangue, com os dedos enterrados no líquido e arfando em busca de oxigênio. Considero me deitar no chão, rolar para ficar com o peito para cima, mas opto por tentar sanar meu problema inicial, as lágrimas mornas escorrendo por meu rosto em desespero ao me convencer que o que faço é necessário. Mas, quando toco o ferimento em minha perna, não dói. E é mais assustador ainda. Confusa e aflita, viro a panturrilha para buscar a fenda terrível, mas ela não está mais ali. Minhas roupas não foram afetadas pelo caco de vidro, a costura impecável garantindo-me que jamais houve machucado algum. A situação é tão atordoante que quero chorar ao esforçar-me para me colocar de pé, lábios tremendo e visão turva pelas lágrimas amedrontadas.
Me apoio nas palmas para levantar-me e me preparo para cair quando piso no sangue, no entanto, isso não acontece. Meus pés têm aderência o suficiente apesar do líquido e quando o avalio uma segunda vez, é como um holograma. Tentar afastá-lo tem o mesmo efeito de tocar uma projeção no laboratório de Tony e preciso de um instante para ponderar que não estou em minha realidade costumeira, meus poderes criando truques em minha mente como costuma substituir momentos reais por visões sangrentas há algum tempo. Há um repuxar em meu estômago ao conseguir me acostumar com a possibilidade, como um fio preso em meu umbigo tentando puxá-lo para dentro como um buraco negro em meu âmago. Também considero o rastro de sangue no corredor como uma evidência que estou presa em outra dimensão, em uma ilusão vívida e preocupante.
– Merda – Sussurro e cubro os ouvidos, tentando manter meu pânico em níveis negociáveis. – Não, não, não! – Levanto a cabeça e encaro as luzes enfileiradas no teto, recusando a ideia de me mover e apenas implorando para qualquer ser superior que me leve de volta. – Por favor... – No momento que Pepper surge no final do corredor, preciso conter-me para não gritar seu nome. Ela se encosta na parede, agarrada ao corrimão e encosta o queixo no peito antes de suas lágrimas começarem a cair e ela emitir um som mínimo, logo cobrindo a boca para impedir que ressoe pelo curto espaço entre nós. – Pepper? – A chamo com a voz embargada, aguardando que me olhe. Não sei quanto tempo espero antes de perceber que não fui ouvida, mas considero que Hill também ignorar minha presença é o necessário para compreender o que está acontecendo. – Pepper? – Eu imploro uma segunda vez. Mais alto e mais clara na pronúncia. Mas ela não reage, apenas desvia do copo de água que lhe é oferecido por Maria Hill.
Ser ignorada gera uma dor real ao tornar-me invisível e muda, o medo irracional devorando-me.
– Virgínia, ela vai ficar bem – Hill promete para ela, a mesma intensidade usada para me garantir que May sairia com vida da sala de cirurgia. Corro na direção das duas, desviando dos rastros de sangue no chão que não me afetam, desesperada para olhar Pepper e estar em seus braços. Ela está chorando audivelmente agora, balançando a cabeça desesperançosa e sem tentar controlar-se mais. – Nós...
– Como não viram? – Pepper cobra em alto e bom som, a voz quebrada e frágil ao cobrar por uma explicação quando me coloco entre as duas, soluçando ao perceber que, como o sangue, ela se tornou uma mera projeção. Como vento que não posso tocar. – Como não viram? – Sua face está rubra ao lançar o copo de água no chão, este rolando e manchando-se do líquido vermelho. – Um maldito rompimento daquela extensão! – Hill dá um passo para trás e, se não estivesse tão perto de começar a chorar no nível de descontrole completo, talvez tentasse impedir o avanço decidido de Pepper até ela.
– Sabe que a não se deixa ser examinada – Hill justifica a falha e busco a face de Pepper outra vez, seus olhos verdes cintilando com as lágrimas que se acumulam, logo escapulindo ao piscar. – A conhece bem e ela estava em pânico! Como podíamos fazer algo?
– Fazendo! – Pepper ruge contra Maria, o dedo diretamente apontado contra seu rosto pálido pela reação de Potts, as sardas da mais velha de amagando com o rubor vibrante em sua face. – Ela é uma menina! Não toma decisões desse porte sozinha! – Virgínia se recolheu, erguendo os ombros e mordendo os lábios com força suficiente para remover um pouco de seu batom com os dentes brancos. – Devia ter visto... Devia a ter avaliado, devia... – Ela vira as costas, imitando a posição antes assumida por Peter ao encarar a parede e dar as costas para a origem de seus problemas. Através de meus olhos lacrimosos e alarmados, vejo Maria Hill abaixar a cabeça ao assumir uma culpa que é unicamente minha. – Saia. – É uma ordem que Hill cumpre de imediato, mãos atrás da costa ao se afastar.
Como fiz antes, me arrisco a tocá-la assim como fiz com Peter, tentando gerar certo conforto, mas a tentativa é falha quando as pontas de meus dedos nunca a alcançam. Semelhante a um mero holograma, vejo minha mão se afundar em seu ombro, sem nunca gerar algum contato físico. O pânico que se assenta em meu peito é violento, levantando questionamentos sobre sequer existir alguma possibilidade de contornar essa situação sem ter Peter para despertar-me de minha ilusão como costuma fazer quando está por perto. Porém isso é maior, mais real apesar de nada palpável. Apesar de não conseguir confortar Pepper de forma alguma e toda sua frágil estrutura óssea tremer quando ondas de choro avançam sobre ela, uma após a outra sem nunca lhe dar um instante de trégua enquanto cresce mais angustiada e inconsolável. Ela chora contida, com uma mão firmemente pressionada em seu peito e a outra a apoiando no corrimão, sua solidão me levando a questionar onde Tony poderia estar neste momento.
E me dói imaginar que esteja ainda pior que ela, ao ponto que não se atreve aparecer.
– Meu Deus... – Ela lamentou-se, engasgando-se com o choro apertado. Pepper vira o rosto para onde considero ter sido levada e eu sigo seus olhos irritados, percebendo que o ato de esfregar seu peito é uma tentativa de acalmar-se perante a situação. Erguendo os dedos finos e trêmulos, ela sente o pequeno diamante do brinco em sua orelha, meu presente de Natal que tem usado diariamente e parte meu coração. Pepper toca seu coração de novo e cai em prantos ao curvar-se contra o corrimão de metal, respirando desregulada e em um desespero talvez mais forte que Peter demonstrou ao ouvir sobre May. E é talvez a pior coisa, muito pior que o medo que sinto e mais debilitante que a dor prévia em minha perna, mais devastador que a tremenda agonia antiga.
Vê-la chorar por mim é brutal.
– Não, por favor não... – É tortuoso tentar abraçá-la e perder o equilíbrio por não encontrar apoio. Quando meus braços retorno por não acharem apoio ao redor de Pepper, eles de fecham em meu tronco e aplico mais força ao me afastar, o soluço alto e esganiçado rompendo meus lábios. Mesmo assim, não sou ouvida e seu prantear continua. – Mãe? – Clamo alto, voz massacrada pelo choro sem fim e que esmaga meu peito e torna a mera tarefa de respirar impossível. Quero a abraçar e ouvir sua voz, porém não há mais essa possibilidade. Sou um fantasma implorando por uma resposta. Cubro a boca ao soluçar uma segunda vez, começando a tremer apavorada. – Mae! – Um novo som, parte choro, parte grito escapa de mim, dando voz ao desespero. Pepper ainda não deixou de chorar sem olhar em minha direção. Envolvo os braços em meu próprio corpo para aliviar a dor enquanto ondas após ondas de soluços abalam meu corpo. Sei estar descontrolada e talvez em meio a uma crise, mas é impossível manter a calma e tenho certeza de que ela iria me entender. – Olha pra mim, eu estou aqui! – Minha garganta se aperta pela pressão da súplica. – Por favor! – O esforço de conter as lágrimas faz minha garganta latejar até eu ficar novamente arfando. – Mamãe! – Estou histérica e sei que jamais serei ouvida enquanto não me livrar deste pesadelo.
Obrigo-me a virar as costas para ela, sem buscar por apoio em local nenhum pois tenho medo de cair outra vez e tornar-me mais desequilibrada e patética que estou. Nos corredores, há pouca movimentação, mas ouço vozes e as identifico como sendo de Happy e Rhodey, graves e mínimas ao falarem baixo. Quando uma enfermeira deixa o mesmo quarto de observação onde me recordo estar antes, arrisco me aproximar, a ausência de um entra e sai constante diminuído minhas já baixas esperanças. Vi o ferimento, vi minha carne exposta e o sangue e me recuso a acreditar que o Complexo estaria uma calmaria. Estou trêmula demais para investigar e considero que acalmar-me é minha prioridade. Talvez seja a única forma de voltar. Tento lembrar tudo o que se a respeito de meus pesadelos, de como eles definem seu fim e não tenho voz de fala. Como a aflição é sempre presente. E da forma que demoram a acabar. Porém dessa vez é diferente, muito pior. Eu me forço a respirar lenta e profundamente, com a certeza quase absoluta de que a calmaria servirá. Apesar do nervosismo, a letargia começa a aparecer e o repuxar em meu estômago é pior e mais intenso. Me esforço para considerar isso um bom sinal.
– Posso pedir que alguém fique com ela? – Viro o rosto na direção da porta quando a voz de meu pai me alcança. Ele está rouco e sem cantoria na voz, a mantendo monótona. Atravesso o vão do quarto como uma bala, freando em meu caminho antes de esbarrar no médico que está de costas para a porta, sentado em um banco e curvado. – Não quero que acorde sozinha. – Tony está parado no pé da maca, o rosto baixo e os óculos de sol cobrindo sua expressão.
Infelizmente não é a sua presença que me choca e sim meu corpo imóvel.
Meu cabelo está erguido para fora da cama improvisada, a bem moldada curvatura destruída pela água do East. Fora o pequeno detalhe, consigo enxergar uma beleza serena em minha aparência. Uma tranquilidade que poucas vezes flagrei no espelho; boca e sobrancelhas relaxadas sem o trincar de minha mandíbula, um reflexo ansioso responsável por muitas enxaquecas. Pareço tão tranquila que me surpreendo – como uma boneca com blush aplicado nas bochechas redondas. Porém, quanto mais tranquilidade minha aparência demonstra, mais assombrada me sinto. Encontro conforto na exalação suave e no mover de meu peito enquanto o médico organiza seus materiais, regulando a máquina de transfusão presa a meu braço direito. O sangue morno que deveria estar me dando vida, não parece fazer tanto efeito. Pareço uma estátua de cera contra os lençóis pálidos, mantendo a aparência de um cadáver recente com ainda um pouco de sangue em mim.
– Claro. Ela irá acordar em breve, senhor Stark. – O médico garante, olhando para Tony, este que afaga minha perna com o dedão, impassivo. – Se ficar de repouso durante os próximos dias, com esse metabolismo, poderá voltar às atividades normais em menos de uma semana.
– O problema é o repouso. – Stark ergueu a sobrancelha. Ele curva-se e beija meu joelho sobre o lençol branco. – Aposto que vai estar de pé até o final do dia. – Posso lhe ver sorrindo e, por um momento, esqueço-me de estar presa em outra realidade, muito satisfeita por conseguir fazê-lo sorrir apesar de tudo. O médico se levanta e anota algo em meu prontuário ao lado da cama. – Obrigado, Maslow. – Ele assente antes de caminhar para fora do quarto, encostando a porta fosca de vidro atrás de si. Em silêncio, Tony cruza o quarto para aproximar-se de meu rosto e eu lhe acompanho, mordendo meu lábio inferior quando me olha com tanto carinho apesar de tudo o que lhe fiz passar. Com cuidado, ergue meu cabelo e o coloca sobre meus ombros, apertando sua boca pela umidade neles. Ele passa o indicador por minhas sobrancelhas e prende o esparadrapo corretamente em minha testa, afastando um pouco de cabelo que havia se grudado nele durante o processo. – A armadura precisa ser intuitiva – Sussurra para si mesmo, verificando meus sinais vitais em um painel atrás da maca. Fecho meus olhos ao perceber a culpa que deposita sobre si mesmo. – Se estivesse com ela, não teria se ferido. Não teria nos matado de susto. – Encolho os ombros quando Tony se inclina de novo e beija minha têmpora. – Sabe que eu tenho problemas no coração, certo? – Emito um som entre uma risada e um choramingar, porém meu corpo não reage. – Amo você, Monstrinha.
Quando Tony me deixa, não ouso segui-lo, certa de que vai em busca de Pepper e não suportarei olhá-la aos prantos outra vez. Não tenho tempo para entrar em pânico novamente, deixar que me perca em uma reação histérica como mereço após o terrível dia, pois a porta se abre outra vez e ao virar-me para ela, me surpreendo com a presença de Peter. Primeiro, pois sei ser sido ele a me levar até os outros, ensanguentada e desacordada. E segundo, pois minha memória perfeita não permite que eu me esqueça de ter lhe abandonado em um momento em que se encontrava tão frágil. Contudo, a sua aparência é o que rouba minha atenção, as roupas cobertas de sangue seco e oxidado, assumindo um tom vinho amarronzado ao manchar sua camisa e jeans, o casaco tendo sido descartado em algum momento. Seu cabelo está úmido e a camisa tem manchas de água, o que imagino ter sido sua tentativa de lavar o rosto para livrar-se de um pouco da ansiedade.
Contudo, os olhos de Peter o entregam; vermelhos e um pouco inchados, ao ponto que não sei quanto tempo se passou desde meu desmaio. Ele aperta a boca, infla as bochechas e esfrega as mãos na calça, provavelmente as secando. Também odeio que Tony tenha substituído o papel toalha de todo o Complexo por aquele vento quente que não seca a mão. Me sinto uma tola quando Peter olha para o painel de onde estou lhe vendo, olhando através de mim para os dados sobre minha saúde. Seria estupidez esperar que me visse, mas ainda tinha esperanças. Permaneço onde estou, sem mover músculo algum tanto em meus estado de ilusão quanto no corpo imóvel há um bom tempo. Parker me olha por um instante, respirando devagar apesar de fazê-lo com força, a tentativa de controlar suas emoções bem aparente. Ele permanece de pé ao se controlar, os olhos embaçados mantendo o foco no painel.
Então percebo que Peter regula o seu exalar e inspirar com o meu, igual fizemos na Arena.
– Pete? – O chamo com a voz trêmula, apenas para ser ignorada quando fecha os olhos, apoiando-se na costa de uma cadeira de metal. Molho os lábios e toco meu peito, não ser ouvida nem mesmo por ele sendo uma prova mais concreta de quão distante estou de nossa realidade. Me sinto aborta em um universo paralelo e a solidão, apesar de sua presença, é terrível. – Peter? – Outra vez, eu lhe cobro por uma resposta, porém nem seu cílios se movem. – Droga. – Esfrego meus lábios ao virar-me para longe dele, tentando lembrar-me de qualquer leitura útil, qualquer habilidade que aprendi nos últimos dias que possa tirar-me daqui.
Toco minha nuca para enxugar o suor frio, não mais suportando a terrível situação.
– Ei, você – O tom de Peter é baixíssimo, indicando que talvez não tenha condições ou interesse em eleva-lo enquanto estiver aqui. Ouço o arrastar afiado da cadeira e esfrego meus braços com o sobressalto dos arrepios, o som metálico sendo um dos que mais odeio. Ainda assim, encontro conforto nas duas palavrinhas ditas por Peter e viro meu rosto para o olhar, minha respiração trêmula pelo choro que não cessou foi completamente. Ele senta-se na cadeira barulhenta e, antes de tomar minha mão na sua, se contém ao encostar no acesso dos medicamentos. Aperto a boca para não reclamar sobre ser medicada, cobrindo meu pulso ao afagá-lo. Peter encosta-se mais na maca, ficando na ponta de seu assento para conseguir alcançar meu rosto e remover a mecha de cabelo que havia escorregado para ele após Tony sair. E, apesar de não sentir seu toque, entendo o acelerar de meu coração, mesmo não constando no painel. – Pensei que também ia te perder.
– Como se fosse possível você se livrar de mim. – Caminho pelo quarto para me aproximar dele outra vez e só assim perceber que Peter toca o esparadrapo em minha testa e tenta limpar a gota de sangue seco abaixo dele. Suas sobrancelhas estão apertadas. – Sei que não está me ouvindo e nem vai saber disso depois, mas eu juro que tentei de tudo para não machucar ninguém na...
– Está bem, não está? – Peter questiona baixo, o canto da boca tremendo quando a mão acomoda minha bochecha, o dedão acima da olheira horrível. Ele engole em seco e se aproxima mais, nariz frisado. – É só respirar... – Olha para o painel e então para mim, meu peito e aproxima um dedo de minhas narinas para sentir o ar que exalo. Quando sua primeira lágrima cai, Peter não liga para enxugá-la e é péssimo não poder fazer isso por ele. – Consegue abrir os olhos? – Balança a cabeça devagar, desacreditado da possibilidade. Sua mão junta-se a outra que segura minha face e Peter se põe de pé ao lado da maca, respirando com pesar. – Precisa voltar, ... Por favor – Houve um agonizante longo minuto onde nada aconteceu e Peter segurou a respiração. Então colocou sua outra mão embaixo de meu pescoço, levantando-me só um pouquinho do travesseiro. – Já está tudo bem agora... A dor já passou, você está bem, já pode acordar...
Sustentei o máximo que pude as lágrimas que ameaçavam escapar. Então entendo que não era somente Pepper que Tony talvez fosse procurar após me deixar e sim Peter, quem já podia estar em uma situação ainda pior. E Tony estaria certo em fazê-lo. Peter também pode realmente ter pensado que me perderia e entendo o quanto isso teria sido demais se fosse ele no meu lugar. Considerar perdê-lo é macabro.
, eu não posso ficar sem você agora, por favor – Peter apoiou minha cabeça em seu braço, de pé e com suas lágrimas pingando em minha face petrificada pela perda de sangue e os possíveis sedativos. – A anestesia parou a dor, já pode voltar para mim – Estou chorando junto a ele quando acaricia minha face com os nós dos dedos tremendo. Ele repete o toque algumas vezes, olhando-me com a mesma intensidade que Tony fez mais cedo, analisando minha face com toda atenção possível. – Eu sinto muito que esteja com tanta dor – Peter arfa nervoso e toca abaixo do minúsculo ferimento da minha bochecha. É só um arranhão, mas lhe causa tanta dor que não sei como ignorar seus pedidos e me odiar por não conseguir retornar. – Mas te ver assim é pior, , é muito pior. Eu preciso de você.
Devagar como quem desativa uma bomba, ele me deita novamente e apoia-se em meu travesseiro, acariciando meu cabelo de aparência desgrenhada e úmido. Não sou uma visão que justifique seu cuidado, mas Peter permanece imóvel e com uma mão em meu ombro ao dividir a atenção entre mim e o monitor cardíaco. Quero dizer que pode tocar meu peito para sentir meu coração, apelar para meu pulso ou outra forma, porém não ouso tentar interrompê-lo mesmo que não vá ouvir.
– Você é tão importante para mim – Peter molha os lábios e enxuga as lágrimas com brusquidão. Ainda não voltou para meu rosto, focado no monitor que lhe garante o quão estável estou. – É a última pessoa que quero perder, , então não faça mais isso comigo – Sua boca tremula ao dar um sorriso quase inexistente de tão rápido que é. – Vive dizendo que eu salvei a sua vida, mas foi quem salvou a minha. Se eu acordo e durmo pensando em você, foi você quem me salvou. – Mordo os lábios com força, absorvendo o peso de suas palavras, o monitor não medindo o acelerar de meu coração como devia. Quando Peter me olha, em meu terrível estado de dormência, quero correr até ele e garantir que também é meu primeiro pensamento no amanhecer e último desejo noturno. As suas lágrimas retornam, mais encorpadas e numerosas, assim como as minhas. Ele respira um pouco, tentando as secar com mais gentileza. – Ontem, antes disso tudo, eu estava vendo esse filme e pensei... Pensei em você. Na mesma hora, eu pensei em você. – Parker funga contra a manga no ombro, engolindo em seco e exalando o ar com calma. – Tem algumas coisas que eu vejo e penso “Ah, a ia gostar disso” – Sua risada é úmida e a minha também, trêmula e verdadeira. Ele toca em meu cabelo. – E as vezes fico me perguntado se...
– Eu sei – Sussurro, buscando seus olhos tão concentrados em mim. Me aproximo da maca para tentar alcançá-lo mesmo sendo em vão. – Eu penso em você também. – Não conseguir encostar o rosto em seu ombro é uma tortura. – Sempre está na minha cabeça e espero que permaneça por...
– Escuta bem, tá? – Ele segura minha bochecha, certo tremor em sua palma. – Nós somos amigos e eu sou grato por isso, . – Peter respira ansioso enquanto meu coração vacila. – Essa é só uma promessa de que, se um dia precisar de mim, se um dia me quiser aqui – Sua hesitação me deixa tensa. – eu moverei céu e terra por você. É isso. – Peter assente rapidamente, finalizando seu raciocínio e o avaliando em seu método completamente ansioso e imperativo. – Sem cobranças e sem expectativas. Não é uma declaração exagerada como merece ou uma tentativa de te forçar a acreditar no que digo. – Desvio os olhos quando afaga minha maçã do rosto. – Se pensa diferente, está completamente errada. – Prendo um riso tolo. – Quero te manter na minha vida o quanto puder, seremos eu e você até quando decidir que não me quer mais.
– Droga – Levo as mãos para meu cabelo, furiosa por não ser vista ou ouvida e não poder lhe dizer o que sinto. – Por favor – Olho para o teto branco acima de nós. O nó em meu estômago se aperta violentamente quando o faço. – Por favor, me deixa voltar!
Estou destruída demais para o olhar enquanto sussurra:
– Eu te amo. E por favor, não se esqueça disso.


Homecoming XVI

Afasto o rosto da mão de Pepper quando a porta do quarto se abre.
Um médico entra primeiro, folheando um fichário. Logo após ele, Tony também entra junto a Peter e algumas enfermeiras que dialogam com Rhodey e Happy. Tenho meia consciência de reconhecer que não é permitida a aglomeração, mas que funcionário algum em sã consciência impediria a visita. Minha visão é obstruída por uma enfermeira que checa os níveis no painel atrás de mim e passa todos os dados para um iPad. Não ouso abrir a boca em meio ao silêncio desconfortável, perdida enquanto Pepper acaricia meu cabelo ainda gelado, todos os eventos não permitindo que secasse como deveria. Potts sussurrou minutos atrás que faria um chá para me aquecer e prevenir um resfriado, ainda assim continuei calada enquanto buscava calor em sua palma macia.
Estar ao seu lado e sentir seu toque após tudo o que vi é uma dádiva.
Evito pensar no que fiz para minha mente estar desperta enquanto meu corpo dormia, em como fiz e como meu retorno foi um golpe de sorte. Decido me educar sobre o assunto assim que tiver tempo fora da ala hospitalar, certa de que, o que tenha sido, foi o despertar de uma habilidade recém-adquirida como a que ocorreu na loja hoje. Respiro fundo assim que a enfermeira finaliza seu trabalho e se despede do médico que ainda está concentrado em meu histórico hospitalar, tentando controlar sua possível curiosidade e a expressão conforme lê mais e mais. O sentimento de embaraço me faz limpar a garganta quando Tony e Peter chegam perto da maca, aguardando o veredito do médico que me olha após ouvir-me pigarrear.
— O senhor pode me falar o que aconteceu? — Não desvio os olhos dele, evitando os outros.
— Posso sim, senhorita. — Leio seu nome no pijama cirúrgico quando ele se aproxima e o reconheço de imediato. É Alexander Cross, irmão da médica que efetuaria os novos exames em Rhodes ainda esta semana. E, diferente dela, Alexander é um cardiologista. O momento necessário para ele fechar o fichário é o mesmo para que eu identifique o problema. — No corpo humano — Resisto o intuito urgente de revirar meus olhos. — a veia femoral é um vaso que...
— Acompanha a artéria femoral, com início no canal de Hunter e é a segunda maior do corpo. Não preciso de uma aula de anatomia. — O interrompo apesar da rouquidão em minha voz. Rhodes ri atrás do médico, indicando que ele está satisfeito com meu ato, mesmo que Pepper aperte minha orelha devagar. — Sei também que costuma ser confundida com a artéria femoral e quero saber qual das duas foi rompida e como foi que isso aconteceu.
Cross me olhou por um instante.
— Helen estava certa; é uma peça se estiver irritada. — “Não faz ideia” Tony murmurou ao assentir e mantive minha atenção no médico, ignorando o herói até compreender como vim parar aqui. — De qualquer forma, você perfurou a veia femoral esquerda com um caco de vidro. — Continua a explicação com rispidez. — Ele media dez centímetros e não devia ter perfurado tão fundo, mas como você caminhou e fez esforço, a perfuração se agravou. — Um suspiro exausto alcança meus ouvidos e tenho certeza de que foi Peter. Já Tony, este coloca as mãos nos quadris, pronto para me dar um sermão assim que puder. Mesmo assim, não o olho no rosto e mantenho meus olhos baixos e distantes dele. — Você perdeu muito sangue antes de desmaiar, por bastante tempo até que não aguentasse mais e a pressão caísse. — Assinto devagar, ciente que qualquer movimento mais forte fará minha cabeça doer. — Removemos o corpo-estranho e controlamos o sangramento.
— Em quanto tempo voltarei a andar? — Questiono incerta, tocando o lençol pesado sobre minha perna e checando se realmente houve dano algum pois não lembro de caco de vidro algum. Caí sobre um para-brisa de vidro temperado, então não faz sentido que o vidro deste tenha me ferido. Mesmo assim, decido aceitar o parecer médico. — Com o Berço, em quantas horas voltarei a andar?
O homem não parece surpreso pela pergunta, como se já a aguardasse. Então ele a processa, só assim demonstrando uma reação de incerteza, o mover de suas sobrancelhas quase metódico.
— É uma pergunta complicada, senhorita. — Cross suspira e toca o fichário. — Um paciente normal levaria semanas para uma recuperação total, mas, pelo seu histórico, sei que se cura rápido. E, se usar o Berço, tenho certeza de que estará completamente recuperada em questão de horas.
Estou abrindo a boca novamente quando Pepper pousa a mão em meu ombro, pedindo silêncio.
— É negligência parental impedir que ela use o Berço da Cho e fique de cama por algumas semanas até tomar vergonha na cara e não esconder mais os ferimentos? — Tony questiona com um tom monótono, o esgotamento notário em sua voz e no esfregar dos olhos por baixo dos óculos. — Ou por causar um episódio cardíaco na família? — Alexander Cross sorri um pouco e eu fecho os olhos para disfarçar meu embaraço pela pergunta alheia. — Podemos ser processados por isso? — Assinto devagar, certa de que não fala verdade. — , você não tem advogado, então fique quietinha!
— Nós iremos decidir juntos o que fazer sobre o tratamento da , doutor. — Pepper pressiona um beijo rápido em minha testa e afaga meu ombro, a frisar na palavra “juntos” garantindo que está olhando para o noivo. — E acredito que a já poderá ir para o quarto dela enquanto esperamos a chegada da Cho, não é?
Cross assentiu com um sorriso apertado e avisou que em breve mandaria alguma enfermeira para remover meu acesso, pedindo licença antes de deixar o quarto. Segundos depois, é em um tom de riso e de alivio que Happy e Rhodes avisam que irão tomar um café e me visitarão depois que minha orelha estiver esfriado. Tony os agradece por terem ficado esse tempo todo e Pepper faz o mesmo, sem nunca sair do meu lado. Me mantenho quieta e volto encostar a cabeça no travesseiro quando a porta encosta outra vez, a anestesia já passando ao ponto que sinto um leve incomodo onde antes havia uma dor terrível. Estou levantando a mão devagar para cobrir os olhos pela luz brilhante do quarto ao ouvir o suspiro pesado de Tony e Pepper acaricia meu cabelo outra vez, me preparando para seu discurso.
— Você desativou a ELENA. — Friso os lábios e encolho os ombros ainda que seu tom seja calmo. — Não sei como fez esta proeza, mas você desativou uma rede de segurança, uma inteligência artificial minha e sem computador algum, eu imagino. — Abro os olhos para ele, ciente que não poderei fugir por muito tempo. Tony está apoiado na ponta da maca, a expressão ainda mais séria do que estava quando o vi pela última vez em minha projeção astral. — E não piscou e imagino que nem mesmo se sentiu culpada pela sua estupidez enquanto eu analisava o seu bracelete e procurava por sinais de algum ferimento seu. — Suas sobrancelhas apertam. — Me fez de idiota e ainda me fez assistir enquanto você praticamente se matava para não afetar mais ninguém. Bom, o seu tiro saiu pela culatra, .
— Se bem que não vai ser a primeira vez que isso vai acontecer. — Tony vira-se para Pepper e sinto quando ela dá de ombros e a vejo balançando a cabeça para Stark. — Acabou de doar sangue para ela, Tony. Então, mais do que nunca, os genes ardilosos e dissimulados dos Stark estão na . — “Nós dois somos compatíveis?” Indago confusa e Peter, ainda de costas para nós, assente. Engulo em seco, recordando-me do que disse enquanto pensava que eu não podia ouvi-lo e como deve estar furioso em compensação. Tony revirou os olhos, atraindo minha atenção para longe de Peter. — É apenas a verdade, querido. Não seja hipócrita e a culpe por ser igual a você. Para ser o mais sincera possível, sou a única pessoa capaz de puxar a orelha da sem ser uma farsante.
, eu conferi os seus sinais vitais na pulseira como um idiota! — Ele retorna para mim, olhos arregalados em aflição. Tony não tenta esconder o quão exaurido e afetado está, seja isso pela transfusão ou com tudo o que lhe fiz passar antes dela. Sua transparência agrava minha vergonha pelas péssimas decisões que tomei. — Eu não sei se fico desapontado ou orgulhoso, mas por Deus, ... — O mais velho esfrega a barba, boca vacilando para manter-se imparcial. É como o acidente em Washington outra vez, quando ficou dividido entre rugir sobre o quão estupida e irresponsável fui e sobre o quão orgulhoso havia ficado. Mas, desta vez, há um pesar profundo em sua voz e sei que isto não passa de uma mentira. Realmente o desapontei e não sei como irei reparar o elo de confiança que rompi com meus atos. — Espero que entenda, ou não pois não me importo — Stark engole em seco e desvia os olhos de mim. É como um tapa na cara e desejo sumir. — Que isto foi um ponto decisivo no quanto eu confio em você. — Pepper suspira, mas não ousa o interromper. — Não tem o direito de arriscar a sua vida assim, . — Aperto meus lábios. — Eu estou extremamente desapontado, especialmente depois de tudo o que aconteceu. — Quando ele me olha, seu amargor é gritante. — Já esperava muito mais de você.
Afasto meus lábios, mas não é para respondê-lo e sim conseguir respirar.
— Parker, você quer dar um puxão de orelha, também? — Abaixo os olhos, incerta se posso aguentar olhá-lo após o que lhe fiz passar e ter o deixado ainda mais angustiado após o que aconteceu com May. Pepper não hesita em segurar minha mão e não quero pensar o que faria em sua ausência pois, apesar do horror que a forcei a passar, ela não se demonstra rancorosa e me conforta sem hesitar. — Vou liberar porque é um jeito de compensar o susto que a nos deu hoje. — Então Tony torna a me olhar, ciente que uma repreensão vinda de Peter faria seria tão dolorosa quanto uma vinda dele.
Me acomodo melhor na cama assim que Peter vira-se para mim, meu sangue ainda manchando as suas roupas e os braços cruzados ao respirar fundo. De repente, a pontada a agulha em minha mão não é mais tão incomoda como o anel rubro ao redor de seus olhos ao me olhar com um nível de desgosto e irritação que eu não sabia poder caber nele. E reconhecer que sou culpada faz meu estômago se contorcer em uma mescla de emoções incertas como culpa, consternação e receio. E — ainda mais doente ainda — de saudade do momento em que sua única preocupação era tentar me despertar, agarrado a mim como se jamais pudesse me soltar até ter certeza de que eu voltaria. A linha de sua garganta se move ao engolir em seco e desviar a atenção de mim para meu pai, a tensão em sua postura conforme todos os músculos corpo se enrijecem em resposta à sua ira. E então, ao em vez do calor deixar meu corpo em apreensão, parece se alastrar rapidamente desde o ferimento em minha coxa até aquecer meu estômago, peito e garganta. Peter está furioso e há uma satisfação patológica em ser a responsável pelo despertar de tal temperamento em sua aura outrora tão pacífica, tornando-se um lembrete de sua humanidade.
— Pensei que tínhamos um acordo. — Peter queixou-se friamente. — Desde o Toomes e a arena.
— Nós dois ainda temos um acordo. — Confirmo devagar e engulo em seco, entendendo que Peter não se interessa em ouvir-me ou compreender minhas desculpas. Prometemos que cuidaríamos um do outro e lhe roubei a chance de cumprir sua parte do compromisso, assim como o fiz passar por um momento terrivelmente ingrato logo após o acidente de May. — Mas eu tinha confiança no que estava fazendo e não havia como prever o dano em minha perna. — Justifico minha falta e a sua testa se enruga, Tony virando-se em sua direção e erguendo a palma da mão para que Peter se desse o trabalho de ouvir-me. — E se te dissesse que estava machucada, não teria mais ninguém que pudesse te dar apoio, Peter. — Seu bíceps se tensiona e as veias em seu braço se sobressaltam quando Peter esfrega o rosto impacientemente, apertando a boca enquanto Pepper se põe de pé.
— Dois litros e meio. — Parker insistiu ao me olhar, ainda impassível.
— Perdão? — Minha voz é um sussurro falho.
— Perdeu dois litros e meio de sangue em uma tentativa de me dar apoio, ? — Peter exige uma resposta tão firme como sua expressão e eu apenas desvio os olhos para os rastros de sangue pincelados em sua garganta e queixo. Estou formulando uma segunda justificativa mais afiada para desculpar minha omissão, mas a aproximação de Tony até ele me distrai. Sua cabeça está baixa enquanto murmura algo para Peter, que desvia os olhos de mim de imediato. O peito do mais novo se expande quando respira profundamente, retornando a sua atenção para mim com a mandíbula e dentes aparentemente apertados. — Sim, senhor Stark. — Parker suspira, virando o rosto para Tony. Contudo, não há humor algum em seu rosto como em todas as vezes que ele e seu herói de infância conversam, as prévias expressões de fascínio são substituídas por uma frieza estrangeira em sua face.
— Tony — É a voz de Pepper que rompe o silêncio entre nós, estancando uma segunda fala do noivo. — Os deixe conversar. — Seguro sua mão com tanta força que temo a ferir, porém ela retribui o aperto com confiança e me olha por um instante, garantindo-me que está tudo sob seu controle. — Nós dois sabemos o quão importante essas conversas são, então... — Devagar e com cuidado, ela desfaz nosso toque e eu a deixo ir. Pepper cruza o quarto para segurar o braço de Stark, o incitando na direção da porta e trocando um breve olhar com Peter. O seu apoio à repressão vinda de Parker é uma traição e preciso conter minha vontade de expressar-me sobre isso, ciente que não devo piorar toda a situação, mesmo sendo claro que ela está satisfeita e Tony também está, afinal reconhecem o poder que Peter tem em relação a mim. — , assim que for liberada, avise com a ELENA que eu vou a esperar em casa. — Concordo com a cabeça e os observo deixar o quarto em silêncio.
Em momento algum eles olham para trás, afincando ainda mais a punição muda.
Quando olho para Peter, ele está de costas para mim, esfregando os fios em sua nuca e respirando fundo o suficiente para sua camisa esticar-se. Assim que a porta bate e Tony e Pepper se vão, eu consigo o entender melhor. Compreendo que não está aborrecido ou meramente desapontado por não saber de meu ferimento, mas Peter está magoado e ferido pela falta de confiança nele que meu segredo demonstrou. Molho os lábios ao tentar sentar-me na cama, evitando sentir os pontos em minha coxa se repuxarem pelo movimento ou até mesmo fazer algum barulho. Ao reverter a situação, reconheço que estaria me segurando para não perder a paciência se ele fizesse o mesmo que fiz, certa de que ficaria tão furiosa como Peter está. É a primeiríssima vez que o vejo dessa forma e que ele age com tanta frieza comigo, evitando olhar-me e mantendo-se apático mesmo na presença de outras pessoas, mas sei que não tenho o direito de julgar suas ações. Ainda não sei sobre May e talvez nem mesmo ele saiba, então retribuir sua inquietação e apreensão com o mesmo grau de impaciência pode feri-lo e eu me recuso a fazer isso uma segunda vez.
Não quero ser mais uma na lista de dores de Peter.
— Pete, me desculpa. — Minha voz é um chiado tolo ao falar somente em sua presença. Sem Tony e Pepper, consigo finalmente respirar e não preciso controlar minhas emoções a todo custo para não os preocupar, podendo ser sincera e sensível ao falar com ele. Peter respira fundo e exala o ar devagar, o som alto me alcançando na maca mesmo ele estando distante. — Não quis que ficasse sozinho como fiquei quando o Volture machucou você. — Explico-me outra vez, esperando que o repetir de minha verdade o convença que seu bem-estar é tão ou mais importante para mim que minha saúde, indiferente para como reagirá devido a sinceridade. — Eu estava com tanto medo naquela noite e não queria que sentisse a mesma coisa, principalmente sendo a May. Entendo que fui egoísta, mas não consegui te deixar depois de te ver daquela forma. — Engulo o nó que se forma em minha garganta, decidida a não chorar perto dele outra vez. — Ver alguém que ama ferido é terrível, Peter. E eu não quis que passasse por isso sozinho, por isso escondi o machucado.
— Então, ao em vez de me deixar passar por isso sozinho uma vez, achou melhor que eu também te visse ferida? — Peter me olha agora, ainda inalterado, porém com a sua mágoa estampada nos olhos. Engulo em seco, dedos curvados contra o lençol que me cobre devido à incerteza se ele realmente quer uma resposta minha, a insinuação intrínseca em sua pergunta certamente não podendo ajudar com o tremor em minha voz. — , você estava banhada de sangue — Peter gesticula para mim, a mão estendida e rosto franzido. — Por sorte não escorregou, bateu a cabeça no chão e morreu nos meus pés naquele corredor! — Agarro-me ainda mais no lençol. — Você viu o Cross? Como ele estava calmo? — Parker pende a cabeça devagar, quase amedrontador. — Bom, ele não estava assim quando precisou cortar a sua calça pra tentar acessar um corte enorme que fez o favor de esconder de nós — Sua voz está se elevando como nunca o ouvi e suas bochechas estão mais avermelhadas ao prosseguir. — A Pepper entrou em desespero ao te ver e o Tony também — Afasto meus lábios, consciente de tudo o que os fiz passar por egoísmo. — Você não tem noção do que passamos ao te ver daquela forma, ... — Ele molha os lábios e suspira. — O pior é que você não parece nem mesmo se importar com isso.
— Pete... — Clamo por um instante para respondê-lo.
— Não! — Peter brandiu com a voz áspera, falando tão alto e diferente de como tratou-me quando estava desacordada que meus ombros se erguem e nariz franze com o volume dele. Parecendo conscientizar-se de como pode ter soado, Parker leva as mãos para a cabeça como fez no corredor coberto com meu sangue, segurando seu cabelo em punhos. Mordo o lábio para não pedir que mantenha a calma, ainda não habituada a esta sua face assustada ou como posso acalmá-lo. — , eu não quero... — Sua voz perde força e Peter respira fundo. — Não quero que me chame de "Pete" agora. — Ele gagueja sem ar, abrindo os olhos irritados pela lágrimas e buscando o meu rosto. Assinto devagar enquanto esfrega a boca rosada, tentando acalmar-se da melhor maneira que consegue no que reconheço ser o início de uma crise. — Eu só quero, eu só preciso que entenda que podia ter morrido nos meus braços mais cedo — Seus olhos reluzem na luz do quarto quando as lágrimas formam um véu lustroso sobre eles, meu coração pesando por ser a responsável delas. — Por negligência sua, eu podia ter de adicionar mais uma pessoa na minha lista de perdas.
Emiti um som de concordância, sem confiar em minha voz. O barulho soa terrivelmente estúpido no silêncio do quarto e tenho um ímpeto voraz e indeciso de me retrair ou correr até Peter.
— Não pensei nas consequências. Fui tola ao ignorar meu machucado e você está certo em se irritar da mesma forma que o Tony e a Pepper estão certos. Os três pagaram por um erro egoísta meu e eu os devo desculpas. — Não mais tento me justificar para ele, ciente que Peter está correto em irritar-se pelo que fiz. Sei que eu não suportaria um susto como o que lhe dei. — Mas eu estava cansada, Peter, com dor e preocupada se conseguiriam trazer a May de volta ou se as pessoas que estavam comigo na ponte haviam conseguido sair a tempo e como iria contar para você sobre o acidente. — Seco bruscamente as lágrimas que só agora percebo estarem caindo e esfrego meu rosto com a brusquidão que Peter havia feito com o seu. Meu nariz está escorrendo e uso a costa da mão para contê-lo, evitando olhar para ele e precisar suportar a sua consternação. — Eu só quis estar com você, arriscando o que fosse e não acho que foi tão mal assim. — A lágrimas retornam mais volumosas. — Estava com medo e quis ficar do seu lado — A agulha em minha mão incomoda quando seco o rosto ao sussurrar a única justificativa que consigo. — Me desculpe.
— Está certa. Foi tola e nos machucou por não pensar bem no que fazia. — Peter concordou mesmo que eu apenas quisesse ser confortada por ele. É insuportável saber que está certo e que não tenha pena como sei que teria em outra circunstância. Ele está verdadeiramente irritado. — Você não aceita que está errada, — Ao olhá-lo através do véu de lágrimas, Peter está apoiado na maca como Tony estava antes, os olhos focados em minha expressão. Ele respira fundo e abaixa a cabeça, como se não mais suportasse me olhar. Por um momento, considero se não devia ter permanecido desacordada. — Acredita que é o epítome de sabedoria e acha que sabe mais que todo mundo, não é? — Seus dedos ansiosos batucam o metal. — Mas, adivinha? Não sabe. — Mordo o interior de minha bochecha, ignorando meu choro para tentar suportar o “fato” que tenta enfiar minha goela abaixo. Ele não sabe o que fala e não é sua culpa. Peter não compreende que muitas vezes não há como ponderar cada ato e que nem sempre fui ofertada tal possibilidade. — Não pode tomar decisões difíceis por ninguém. Isso não é prova de maturidade como você deve achar ser.
— E-eu não acho ser prova de maturidade! — Minha voz falha com o argumento. — Não é isso, Peter!
— Acha! — Parker corre os dedos pelo cabelo, frisando as sobrancelhas. — Quando toma decisões como essa, você só prova que se acha superior a todos que querem te proteger! Que pensa ser mais madura que aqueles que querem o melhor para você! — Seu esforço para convencer-me que estou errada é irritante, em especial quando sei não ser o caso. — Quando arrisca a sua vida assim, está desdenhando de tudo o que importa pra estar presente para os outros! — Meu riso de escárnio é baixo ao perceber que Peter é a última pessoa com propriedade para tratar de sacrifício próprio como algo incorreto. — É irresponsável!
Mesmo após esquecer-me da agulha em minha mão, não hesito em secar minhas lágrimas.
— Isso o lembra alguém? — Lato para ele. — A imprudência e o sacrifício próprio? O lembra alguém?
— Sim! — O rapaz zombou de volta, forçando um sorriso tão falso como o que lhe direcionei após a pergunta sarcástica. Somos iguais, apesar de ser difícil para ele entender isso enquanto envolto pela raiva. — Mas eu aprendi! — Peter pressiona o indicador contra o peito. — Aprendi que se fizer algo assim novamente, não serei o único a sofrer as consequências e tenho me contido. Não acha que sinto meu coração na mão ao lembrar do acidente no Ferry? De Washington? — Seus olhos se afincam em minha direção, sobrancelhas baixas. Sua mágoa é nítida. — Você não consegue notar quantas pessoas vai levar consigo quando faz coisas assim até que veja o que pode ter perdido e é isso o que falta para que entenda o nosso lado — Esfrego a língua no céu da boca, encarando a janela ao lado da cama que está salpicada com flocos de neve. — Ainda não entendeu que a sua vida é mais valiosa do que qualquer outra coisa, .
O ar que deixo escapar é trêmulo.
— Eu sei — Encosto a cabeça no travesseiro, ainda incerta. — Você me disse. — Engulo em seco, sem certeza alguma se devo ou não seguir adiante. — Eu sou muito importante e a última pessoa que quer perder. — Recordo o que disse quando pensou que teria a confidência de minha inconsciência. — E também me recuso a perdê-lo, Peter. Seja o deixando lidar sozinho com tanta angústia quanto a causada pelo acidente da May quanto por algo pior. Então entenda que fiz o que considerei ser certo. Fim. — Minha voz está embargada enquanto a neve derrete no vidro. — Não vou mais pedir desculpas pois sei que me ouviu quando o fiz antes. Porém não ouviu quando eu disse que não é possível que se livre de mim, então considere minha recuperação uma prova que você dificilmente vai me perder. — Peter respira fundo, voltando a apoiar-se na maca. — Prometeu que moveria céus e terra por mim, então faça isso e passe por cima da raiva que causei e fique aqui comigo. — Sua cabeça está baixa quando lhe olho. Há uma movimentação na porta, mas Peter é meu foco. — Ainda o quero na minha vida; agora mais que nunca, então fique. Pode fingir indiferença ou o que quiser, mas sei que está aliviado da mesma forma que eu estaria se fosse você no meu lugar.
Autorizo a entrada da enfermeira e Peter mantém-se irresponsivo.
A mulher remove todos os itens plugados em meu braço e a dor conhecida ainda é incômoda. Já estou sob controle de minhas emoções quando pede que Peter vá para banheiro enquanto retira os eletrodos de meu peito, então apenas ouço o som da porta batendo, gerando-me certo conforto ao saber que ele não optou por ir embora e que iremos conversar. A mulher usa soro gelado para remover a cola, o ato mais dolorido pois devem ter lutado contra meu suor para plugarem eles em mim. As instruções sobre minha perna ainda serão incertas até Cho chegar, então a enfermeira apenas me recomenda evitar estresse desnecessário no ferimento, assim como o uso de calças pelos próximos dias até total recuperação.
— O senhor Stark pediu que avisasse assim que fosse liberada, senhorita — A enfermeira indica ao ajudar-me a descer da maca, apoiando todo meu peso em na perna boa. — Devo pedir por uma cadeira de rodas? — Balanço a cabeça de imediato.
Ela espera que eu termine de abotoar a blusa para sair, levando uma bandeja de metal com mais amostras de meu sangue. A roupa que usei para fazer as compras de Natal parece extremamente usada apesar ter sido minha primeira vez a vestindo, com manchas de sangue seco e da água suja do East colorindo-a. A calça de alfaiataria está com um rasgo imenso acima de meu joelho, como os jeans que algumas alunas de Midtown usam. Toco o curativo receio, acessando o nível de dor que um encostar pode provocar. Mesmo com a anestesia perdendo efeito, ainda não há um incomodo muito grande quando decido pisar no chão com a perna ferida, curiosa para saber se conseguirei me sustentar um pouco com ela assim. Na cômoda ao lado da maca, vejo que Pepper separou meu celular e joias em uma pilha.
— Já terminei, Peter.
Coloco os pequenos brincos de diamante em minha orelha pois não quero perdê-los em meus bolsos e não sei onde teriam parado se não fosse pelo capricho de Potts. Ainda estou apoiada na lateral da maca quando Parker deixa o banheiro, fechando a porta atrás de si e vindo até mim. Ele faz a gentileza de apoiar-se há alguns centímetros de distância, mantendo-se em silêncio enquanto coloco o segundo brinco. Quando pego meu celular, encontro uma série de mensagens perdidas: de Tony sobre a explosão portuária, Happy questionando-me sobre um crepe de chocolate e se ainda tenho aversão a bananas, então as de Peter sobre aulas extras de espanhol e um terrível papel de presente. Abaixo de suas mensagens, o nome de Harry Osborn relata que me mandou algo, mas não tenho vontade de a ler agora.
— Como sabe o que eu falei? — Peter quebra o silêncio com a dúvida que imagino estar rondando sua mente, mantendo os braços cruzados ao virar-se para mim. E eu o olho por um instante antes de balançar a cabeça, o cansaço me impedindo de fazer mais pois, como ele, desconheço como o fiz. Parker pisca devagar, mantendo os olhos fechados. — , você apagou antes de entrarmos na enfermaria — Meus lábios se curvam devagar e Peter me olha assim que abre os olhos, confuso e singelamente entretido. — O que?
— Não está mais tão bravo se me chamou de . — Meu sorriso aumenta um pouco mais quando ele dá um riso raso sem muito humor, contudo parecendo mais calmo. — Me chama de quando está irritado comigo. quando está tudo bem. E ... — Franzo as sobrancelhas. — Ainda não entendo “”. — Respiro fundo, tentando não engasgar após os resquícios do choro. Detesto quando nem mesmo respirar se torna fácil após um momento assim. — Não sei o que foi aquilo. — Assumo sem graça pois é estranho não entender algo que foi tão natural ainda que não tenha pedido por tanta clareza durante meu momento de inconsciência. É uma habilidade nova e sufocante. — Ouvi e vi a Pepper da mesma forma que fiz com você e até tentei que me ouvissem, mas parecia um fantasma. Cheguei a gritar pela Pep, mas ela também não me ouviu. — Peter esfrega os olhos ao ouvir sobre Pepper.
Recordar-me da agonia dela é angustiante e sei que precisamos conversar sobre o que aconteceu.
— E a May? — Indago com os ombros curvados após agarrar-me outra vez no lençol da cama, decidida a mudar de assunto para algo que realmente me importe agora. Não sei quanto tempo ainda posso ficar de pé, mas me recuso a ir embora agora que estamos quase travando um diálogo decente após estourarmos um com o outro. — Como ela está? — A dúvida é como um banho de água fria e estou apertando ainda mais o lençol em busca de algum conforto. Por um momento, tenho um instante de lucidez, onde a morte dela parece mais provável que qualquer outra coisa e me arrependo de perguntar. Isso até Peter mover a cabeça devagar.
— Ela está em um coma induzido. — Sua voz não falha, então sei que não ousa mentir para mim como fiz com ele. — Fizeram a toracotomia e funcionou. — O seu alivio é intenso e também consigo respirar outra vez. — A previsão é que ela acorde em doze horas, mas pode demorar mais... — Peter balança a cabeça e, após um bom tempo, flagro um sorriso mínimo vindo dele. — Tony e Pepper brigaram com tanta gente hoje à tarde pela May... — A sua risada faz meu coração saltar satisfeito e ele leva a mão para a nuca, embaraçado e com o mesmo sorriso tímido de todos os dias. — E em tantas línguas... — Viro o rosto para ele, minha testa encostada em seu braço ao lhe acompanhar na risada contida e quase sem humor algum pois não é motivo de felicidade, mas devemos buscar alivio cômico nas pequenas coisas. Imaginar os dois lutando com unhas e dentes para garantir o melhor para May me deixa aliviada apesar das circunstâncias. — ? — Emito um som baixo ao ouvi-lo me chamar depois de um longo silêncio. — Obrigado o que fez pela May.
Os dedos mornos de Peter encontram os meus sob a maca e então, um por um, dedicam-se a os remover de onde estão fincados no lençol. Encosto meu nariz em seu braço enquanto o processo continua ao mergulharmos em um silêncio mais confortável até nossos dedos se entrelaçarem. Minha mão está tremendo quando a levo até seu ombro e o abraço, acomodando minha face em sua garganta e somente conseguindo respirar outra vez quando me toma em seu braço livre, esse que se curva em minha cintura com força suficiente para remover meus pés do chão. Estremeço quando Peter pressiona os lábios minha testa por um longo período, mas não me movo de maneira alguma, apenas desejando absorver o toque que até mesmo curva os meus dedos dos pés.
— Estava tão gelada antes — Sua voz está cerrada e ele bate os dentes ao desviar-se e encostar o queixo em meu ombro, buscando descanso que sou grata em poder lhe oferecer em consciência. — Agora está mais quente. — Empunho sua camiseta com força, ainda detestando que tenha me visto tão frágil e que esta acabe se tornando a única imagem que tem de mim. “Foi o East. Estava frio” Justifico-me, mesmo ciente que foi a perda de sangue. Peter balança a cabeça e respira profundamente contra mim até que todo meu corpo se arrepie, a mão tornando-se mais rígida na minha. — Não faça mais isso. — Não é uma ordem dura, mas sim um pedido onde a esperança é a chave. Assinto rápido, o segurando com mais força. — Promete?
Aperto ainda mais sua mão ao reconhecer que não há sacrifício algum que eu não faça por ele.

*


Pepper está no closet quando saio do banheiro, já tendo removido a SecondSkin do ferimento e o recoberto com as ataduras que tinha na gaveta debaixo da pia. A primeira mudança que identifico em meu quarto é a iluminação, as luzes um pouco mais baixas e com um tom amarelo quente. É aconchegante e sei que ela fez de propósito. Também há um cheiro bom no ar, possivelmente dos óleos antiestresse que comprou há algum tempo e ela não achou momento melhor para usá-los.
— Você precisa de mais pijamas que não sejam com calças — Ela informa esgotada ao surgir, um conjunto de seda cor de rosa em sua mão livre enquanto digita algo no telefone. A cor é semelhante ao robe creme que uso, mas nem perto de ser tão quente. — Não sei se esse aqui vai caber, meu bem — Quando se aproxima ainda mais, entendo sua preocupação. É o mesmo pijama que usei em minha primeira semana na Torre dos Vingadores depois de Ultron. Reconheço ele pois sei que meu suor frio no meio da noite o fazia grudar em meu peito e dava a impressão de estar sufocando.
— Também não sei se vai caber... — Toco o tecido macio e testo o espaço na coxa do short. Potts estala a língua e eu a imito. — Meu braço deve caber, mas a perna... — Lamento. — Isso chega a ser bom, não é? — Questiono quando minha perna lateja por estar de pé há muito tempo durante o banho. Durante ele, foi preciso um pouco de insistência para que Pepper entendesse que eu não possuía interesse algum em entrar em uma banheira, mesmo que fosse água quente.
— Não é bom, é ótimo. — Ela toca meu queixo antes de deixar o pijama pequeno demais em minha escrivaninha junto a seu celular. — Chegou tão frágil aqui que é ótimo que esteja ganhando peso. — Assinto em concordância ao soltar meu cabelo da toalha, o cheiro limpo dos fios nada comparado a como imagino ter estado mais cedo. — Vamos fazer o seguinte: eu vou pegar algum pijama meu e vemos se cabe em você, ok? — Concordo outra vez, satisfeita por ajudar-me a não precisar pensar muito no que farei em seguida, minha mente exausta deveras agradecida. — Se não der, você vai ter de usar uma camisola. — Balanço a cabeça e Pepper bufa ao sair do quarto. — Comprei tantas lindas, ! — Controlo minha vontade de rir. — E dê um jeito nesse corte, mocinha!
Estou considerando o que fazer com o corte em minha testa quando meu celular vibra.

MJ
visto por último hoje às 21:22

A explosão no porto foi causada por nitrato de amônio confiscado!

Podíamos fazer o artigo de química sobre detonações não ideais,

Me diz o que acha quando puder!



Me pego sorrindo por uns instante, satisfeita com a ideia atual, até recordar-me do acidente no Porto do Brooklyn. Enquanto estava na enfermaria, ouvi sobre o número enorme de feridos e os hospitais cheios. Saio de minha conversa com MJ após confirmar que irei ler sobre o assunto e busco mais notícias sobre a explosão, horrorizada com as informações que consigo achar. Até o momento, são cem mortos e quatro mil feridos. Leio o máximo de informações possíveis sobre a nuvem escura enorme que está cobrindo o Brooklyn e as casas a dez quilômetros de distância que foram danificadas. E ouço o prefeito em sua conferência de imprensa no conforto de sua casa comentando sobre as perdas econômicas imensuráveis e, só após um questionamento, acessar as vítimas do acidente e o auxílio que seria oferecido para os hospitais que as recebiam. Abaixo da notícia, constam informações sobre os hospitais próximos do local do acidentes onde há falta de insumos e respiradores para os afetados pela radiação e que sobreviveram ao fogo e a fumaça. Logo, jornalistas também comentam sobre riscos de blackouts em Nova Iorque devido ao danos na ponte.
Assim que #PHOENIX surge em uma postagem, jogo meu celular na cômoda.
— Monstrinha? — Tony bate na porta. — Está decente? — Confirmo após limpar a garganta, ainda de olho no celular bloqueado como se a notícia que consta minha outra identidade pudesse pular para fora e esfregar em minha cara que a cidade pode parar por minha culpa. — A Pepper está se vestindo, mas mandou esse pijama pra você. — Ele entra no quarto com a mesma roupa que usava mais cedo, agora com o paletó preto e sapatos sociais.
— Valeu. — Estou me levantando para apanhar a roupa quando Tony faz uma careta e se aproxima para me impedir. — Eu posso andar, sabia? — Ele revira os olhos sem paciência, parando para se atentar às pequenas mudanças em meu quarto. Stark respira fundo e entorta o nariz com o cheiro dos óleos. Na luz amarelada, ele parece mais jovem, as rugas menos marcadas ainda que os poucos fios brancos em sua barba se assemelhem a fios de ouro. No entanto, a sua possível saída com Pepper ainda me incomoda. — Para onde vão?
Tony me olha outra vez e solta um ar que não percebi que estava segurando.
— Vou pessoalmente falar com alguns amigos sobre o que aconteceu na ponte e no porto. — Tony caminha até mim e entrega-me o pijama azul escuro, sentando-se na ponta da cama comigo. Seu perfume amadeirado é mais confortável que os óleos de Pepper e eu chego mais perto dele até me encostar em seu ombro. — Ver se tem alguma coisa que possa fazer nos hospitais e realocar quem morava perto do porto. — Ele passa o braço por meu ombro, esfregando meu braço acima do roupão e apoiando a cabeça sobre a minha. É só quando uma luz reluz em meu rosto, que noto o relicário que lhe dei de presente. Ele está aparente por cima da camisa e logo sou preenchida com orgulho ao vê-lo. — Também vou falar com a companhia de energia para oferecer minha ajuda.
— Vão pensar que o navio era seu. — Aviso rancorosa. É uma possibilidade que me enfurece pois é óbvio que tentarão ver sua bondade como compensação por um erro que não cometeu. Repórteres tornarão um ato tão generoso em algo sujo e sem valor. —Eles dirão que está comprando o silêncio das vítimas. — Tony afaga meu braço outra vez enquanto aliso a barra do pijama. Pensar que está saindo de casa tão tarde apenas para ser visto com maus olhos eleva meu descontentamento. Não suporto o olhar amargo que dirigem a ele.
— Irão arranjar uma forma de me envolver nisso de qualquer forma. — Stark garante com calma, sem demonstrar o mínimo de desgosto que devia com a possibilidade. — Seja pelo Howard ter sido um dos industrialistas a incitarem a construção do porto, por minha falta de interesse em ajudar se não fizer nada quando posso, pelo Acordo de Sokovia que teria sido rompido quando convocou a Legião de Ferro... — A última opção me deixa tensa e Tony solta um riso baixinho, puxando-me mais contra si para um abraço lateral. — Fez um ótimo trabalho na ponte, . — Agarro sua mão em meu braço e assinto ao agradecê-lo. — Estou muito orgulhoso. — Meu coração vibra com suas palavras de apoio e aperto seus dedos com mais força. — Mas sabe que nem sempre vai ser assim, não é? — Eu não o respondo, ciente do que me quer fazer entender. — Não vai sempre poder salvar todo mundo — Apesar da dura realidade, sei que fala por meu bem. — O louco do cigarro na ponte é a prova.
— Sei que não. — Respondo convicta apesar da dor que a realização causa. O taxista está em estado crítico pelo que ouvi e li, então não sei se aguentará até o amanhecer com quase todo o seu corpo queimado na explosão que ele causou. — Mas eu vou continuar tentando enquanto puder.
— Eu sei que vai. — Tony encosta o nariz em meu cabelo, seu sorriso nítido. — É minha filha, então é obvio que vai ser teimosa e cabeça dura. — Dou uma risada com a comparação. — E agora mesmo que vai ser. — Ele toca na veia saltada em minha mão direita. — Não que já não fosse antes, mas agora acho que vai piorar.
— Já que tocamos no assunto, obrigada pela doação. — Agradeço o presente mais inusitado vindo dele. — E me desculpa pela Legião de Ferro, não sabia que eles estavam inclusos nos acordos e por isso os convoquei. — Tony dispensa o pedido de desculpa ao soltar-me e se ajoelhar diante de mim, tomando ambas minhas mãos entre as suas e as beijando com o mesmo carinho que fez na noite de meu terror noturno onde ele e Pepper permaneceram ao meu lado até que eu adormecesse novamente. — E juro que não sabia o que fazer e por isso os chamei — Continuo a me desculpar, agora preocupada em como essas consequências irão persegui-lo. Uma quebra nos Acordos de Sokovia pode ser punida diante da Organizações das Nações Unidas.
— Freia o trenzinho da culpa, . — Tony ergue a mão, pedindo por meu silêncio. — Em primeiro lugar, a Legião de Ferro não está nos acordos. Ela é sua. Você nunca os assinou, então eles não te limitam como fazem ao resto de nós. — O termo que utiliza para designar o resto da equipe me surpreende tanto como a posse da Legião de Ferro, mas me faço concordar. — O aerodeslizador que está no galpão 28 também é seu. Assim como duas das quatro frotas de Quinjets e tudo o que pode imaginar ser propriedade intelectual da Stark Industries. — Minha boca está seca e não sei como responder-lhe. — , não há ninguém nesse mundo que comande a Inciativa Vingadores mais que eu, mas em breve, será você — Stark aperta minhas mãos para reforçar as promessas e os “presentes”. Busco por um sinal em seus olhos que me garanta que isso é bom e que, em breve, a responsabilidade não pesará tanto em mim como pesa nele. Então, meus olhos recaem para o relicário em seu peito e sei que, em sua companhia, a transição será lenta e segura. Me esforço para assentir e Tony sorri carinhosamente para mim. Há tanta satisfação em seu rosto que quero sorrir apesar de minha apreensão. — O que fez hoje só prova que está preparada.
— Precisamos conversar sobre isso... — Sussurro em meio a tanta apreensão.
— Precisamos e vamos — Tony garante outra vez, sério e verdadeiro. — Prometo. — Concordo outra vez. Não há pessoa em que eu confie mais que ele, portanto sei que fará isso no momento ideal. Falar com Tony sempre remove um peso enorme de meus ombros, seja medo ou culpa. — Agora você precisa descansar. — Respiro fundo e assinto, não confiando em minha voz. — Já tomou os remédios que o Cross passou? — Pepper adentra o quarto com um copo de água e o vidro de pílulas no mesmo instante, seu sorriso adornado pelo batom vermelho nada além de perverso pela ironia. — Boa sorte, Monstrinha. — Tony dá um tapinha gentil em minha panturrilha ao se levantar. Ele para por um instante para olhar a noiva em seu vestido de inverno, o suficiente para que ela dê um giro que me faz sorrir. — E você está muito bonita, CEO Potts.
Pepper dá de ombros fingindo não se importar com o elogio mesmo sorrindo de orelha a orelha.
— Dois desse agora e mais um de madrugada se sentir dor. — Pepper indica, sacodindo o vidrinho. — Não vamos demorar mais que algumas horas, porém, se sentir alguma coisa, quero que me ligue e vá para a enfermaria — Ela continua enquanto engulo um medicamento de cada vez, lutando para não me engasgar por serem gigantescos. — Se acontecer alguma coisa...
— Ligo para vocês e me arrasto para a enfermaria com a minha perna ensanguentada. — Finalizo.
— Muito engraçado — Ela desdenha sem humor, deixando o copo sobre a cabeceira. Tony a imita, forçando expressões caricatas dela enquanto Pepper está distraída. — A porta fica aberta, ok? — Potts aponta para o corredor. — Porque se o Peter não subir até as onze, quero que ligue pra ele e finja estar passando mal. Mais um susto não vai matar.
— Já que tocamos no assunto — Recordo com um suspiro exausto. — Gostaria de saber o motivo de terem me deixado sozinha com o Peter. Ele me deu um tremendo sermão. — É a minha vez de reclamar pois, assim como MJ fez com Harry há algumas semanas, Pepper e Tony me deixaram sozinha com Peter de propósito. — Onde foi parar o discurso de me protegerem? Me abandonaram com um adolescente furioso.
— Bom, a bronca do Peter foi bem-merecida e nem mesmo você pode negar isso, . — Potts virou para o noivo e ele assentiu sem tirar a razão dela ou fazer piada da situação. Ambos parecem aprovar a repreensão de Peter. — E nós ainda iremos conversar sobre o que fez hoje. Seja na ponte ou escondendo o seu machucado. Precisa entender a diferença entre o certo e o que pensa ser. — Me deito na cama com um pouco de dor na coluna e desconfortável pela falta de um travesseiro, mas sem discordar dos dois. Sou inteligente o suficiente para saber que, no fim, Tony e Pepper acabariam brigando comigo da mesma forma que Peter o fez. — Se não quiser pensar em si mesma, pense no quão preocupados todos nós ficamos. — Ergo um joinha para ela, cobrindo os olhos com os braços em seguida. Ela não sabe que os vi e não precisa saber, então me mantenho em silêncio. — Mas o menino... — A voz de Pepper fica mais baixa e ela suspira. — O Peter entrou em desespero e você precisa pensar bastante no que o fez passar. Ele quase avançou no médio que te socorreu.
Tony soltou um suspiro pesado e emitiu um som de concordância.
— Acho que ficou com medo de te machucarem ainda mais. Faz sentido, de alguma forma. — Ergo o braço para ter certeza de que não é uma tentativa de aumentarem minha culpa, mas Tony e Pepper estão sérios e suas expressões são verdadeira e cumplices no sentimento, mesmo sem se olharem. Engulo em seco ainda incrédula que Peter pudesse ter feito tal coisa com o doutor Cross. Stark me olha por um momento e coça a barba, parecendo pensar bem antes de me contar o resto. — O garoto ficou sentado no chão enquanto faziam os seus curativos — Me apoio no cotovelo para olhar Pepper e ela confirma devagar, apertando a boca. — Eles sabiam que não podiam perder tempo o tirando de lá, então só pediram que não fizesse barulho. — Stark esfrega os olhos com os lábios tortos em preocupação. — Então pensa bem antes de fazer algo assim de novo, Monstrinha. — Não movo um dedo quando se aproxima e dá um beijo em minha testa, seguido de Pepper que carimba seu batom vermelho em minha bochecha ao se despedir.
Assim que os dois se vão me esforço a ficar de pé e estendo a mão na direção da porta, a trancando. É com extrema dificuldade que visto a parte inferior do pijama, as pernas tremendo e a ideia de desistir e dormir seminua parecendo mais e mais convidativa. Depois de algum tempo, consigo me vestir e arrastar-me para a parte de cima da cama, encostando-me em meus travesseiros para finalmente respirar aliviada. Sinto dor nas costas e na cabeça, então pego alguns medicamentos na mesa de cabeceira e bebo água da moringa que Pepper encheu, agradecida por ela ter tomado cuidado de fazê-la sabendo que eu não teria como. Também me foco em conjurar meu notebook até que ele se materialize sobre a cama, o enorme adesivo de Midtown em sua capa reluzindo na luz quente.
Desde o Natal, o truque tem ficado mais fácil onde o transporte de objetos é semelhante ao que faço comigo durante o teletransporte. Coisas pequenas e que cabem em minha mão normalmente estão quentes ao toque ao surgirem, mas objetos que não entram em contato comigo ficam em sua temperatura normal. Considero tentar repetir a habilidade com objetos maiores, é claro, mas não sei em qual extensão o movimentar deles pelas barreiras do espaço e da realidade podem ser perigosas. Afasto o pensamento ao abrir o notebook e iniciar uma série de pesquisas, certa de que a projeção astral que efetuei mais cedo não pode ser um evento singular.
— F.R.I.D.A.Y, o Thor deixou alguns livros na Terra antes de voltar para Asgard, certo? — Questiono em voz alta após encontrar textos sobre o aspectos aa alma humana sob o ponto de vista nórdico, sendo estes o Hügr (“pensamento”, a percepção sensorial e analítica), a Münr (“memória”, o depósito da identidade) e o Óðr (“inspiração”, a consciência elevada, analisada em artigo próprio). — Depois de Sokovia? Ele voltou duas vezes e deixou algo com o Tony em alguns baús...
— Sim, . — A IA confirma em seguida. — Estão todos no cofre central da Torre dos Vingadores.
— Torre Stark. — A corrijo, buscando mais informações e traduções para os termos, navegando em meio a diversos livros e artigos acadêmicos que podem servir de alguma ajuda. — Como posso acessar o cofre? — Com Pepper indo constantemente para a Torre, acredito que terei chances de encontrar algo interessante nos livros. — E algum deles possui algo relacionado a... — Suspiro por referir-me de tal forma a meus poderes. — Magia?
— Alguns títulos incluem doutrinas, runas e grimórios. Muitos são coletâneas, porém não foram propriamente catalogados. — A inteligência artificial informa e tento ignorar como este seria um ótimo momento para achar um livro com os dizeres “Este livro pertence ao Príncipe Mestiço”. — Se está em dúvida, devo relembrar quem possui acesso irrestrito ao Cofre Central? Após análise de voz, biométrica e retina.
— É uma informação útil. Obrigada, FRIDAY. — Esfrego minha nuca ao encontrar mais informações sobre as tais projeções astrais. Em um fórum, um homem responde a dúvida de uma mulher apenas com uma localização. — Que misterioso... — Reviro os olhos ao ativar o sistema de proteção da rede, abaixando a luz da tela antes de clicar e acabar sendo surpreendida por um jump scare. Para minha surpresa, é no site legítimo do Google, indicando um galpão no Himalaia. A localização é estranha e preciso de um momento para decifrá-la. — F.R.I.D.A.Y, já ouviu falar em Kamar-Taj?
— Não tenho dados sobre isso, . — Ela estranha. — Possui outro nome ou referência?
— Não. — É uma localidade estranha e não parece ser muito movimentada. É apenas uma feira de rua, sem coisa alguma que indique algo relacionado a espiritualidade. Certamente, os satélites de Tony também não foram capaz de encontrar mais informações. — Nada relaciona o nome a templos antigos no Himalaia? Mosteiros, talvez? Qualquer coisa nesse gênero? — Entendo que não deveria investir tanto em algo que pode ser uma simples brincadeira, mas vale a pena pesquisar e algo me faz querer confiar no homem estranho. — É no Tibet, em Kathmandu — Tento pronunciar o nome da melhor forma que posso. — Surgiu quando pesquisei sobre projeções astrais.
— Sem resultados. — F.R.I.D.A.Y lamenta. — Devo agendar uma visita à Torre Stark? Para buscar as obras?
— Não. — Considero como isso levantaria suspeitas de Pepper e, considerando que ela desconhece meus pesadelos e as previsões oriundas deles, prefiro manter-me o mais segura possível e não permitir que ela descubra a verdade. — Só mande um alerta pro meu celular no dia que a Pepper voltar para o escritório. — Acompanha-la não irá erguer tantas suspeitas quanto simplesmente pedir para visitar a Torre. — Dê preferência para dias em que ela estiver com a agenda lotada, por favor. — A AI confirma o pedido e eu empurro o computador para fora de meu colo, incerta de como lidar com a nova onda de poderes que surgiram no último ano.
Teletransporte foi o primeiro — em uma tarde qualquer onde não mais caminhava por meu quarto e sim pela sala do Complexo. Os enjoos pararam em dias, a tempo de ir para Washington. Então houveram as mudanças na tonalidades de meus poderes, saindo de um azul ciano para um violeta vibrante enquanto ameaçava a guerreira de Wakanda na noite da festa de Tony. Logo após, os pesadelos e os presságios tomaram conta de minhas noites. E agora, posso conjurar objetos ao léu. De certa forma, estou satisfeita por tantas habilidades que terão uso se minhas predições se tornarem realidade, mas sua rápida chegada ainda é preocupante. Me indago se a Pedra da Mente não tem se tornado mais atenta para o que vejo e está me agraciando com tudo isso, de onde quer que ela esteja. Thor deixou a Terra em busca das outras Joias do Infinito, a Joia da Mente sendo a quarta delas. Lembro de suas palavras enquanto explicava suas motivações para Tony e Steve.
Alguém está desenvolvendo um jogo complexo e nos transformou em peões. — Há uma diferença absurda em nossas vozes, mas recordo-me claramente de sua preocupação em razão das Joias surgirem uma após a outra com tão pouco espaço de tempo. Me tornar peça de um jogo parece válido, já que, o mesmo tempo que minhas visões podem ser uteis, também podem me confundir. — Mente... — Sussurro baixinho, tentando identificar quais outras joias também serão reunidas. — Mente, corpo, objeto... — É o jogo de semelhantes mais tolo do mundo, mas permaneço nele. — Espaço. Se há espaço, há tempo. — Eu suspiro, desejando que o próprio Deus do Trovão pudesse sanar minhas dúvidas. — Mente, Espaço e Tempo... — Os grimórios argardianos devem conter mais informações sobre as Joias do Infinito e preciso me conter para não me transportar para a Torre Stark. Não há chances de encarar o mestre do complexo jogo com um escopo amigável, logo que tanto poder na mão de uma única entidade é perigoso, mas, com o ciclo das seis joias incompleto... Não é perigoso o suficiente. Visão é meu primeiro pensamento e a Joia da Mente é o meu foco.
Quem estiver coletando as Joias do Infinito virá à Terra em busca de Visão.
Antes que a ansiedade me devore viva, confio-me em Thor e seus conhecimentos milenares sobre o espaço e as Joias do Infinito, rogando a qualquer divindade acima que ele tenha obtido sucesso na busca por elas e a mantido em segurança. Encosto a cabeça na cabeceira com um suspiro cansado, tantas questões em minha cabeça que analgésico não parece fazer muito efeito. Além das joias, penso em May Parker e sua recuperação e como será difícil com as costelas quebradas e possíveis danos e reais cicatrizes do acidente. Não sei se ela irá se arriscar a dirigir outra vez ou ao menos nadar. Tento não imaginar como sua autoestima será afetada pela cicatriz resultante da toracotomia, confiante que Cho poderá usar o Berço nela, é claro, mas não enquanto May não se recuperar totalmente do choque. São tantas variáveis fico cansada.
Quando meu celular vibra, considero ser Pepper, mas há certo alívio em estar errada.

Harry Osborn
online

, como você está? Ainda não respondeu e acabei de ouvir sobre os acidentes na cidade.

Estava próximo de algum deles?

Estou bem, Harry. Obrigada.

Estava no acidente da ponte, mas já estou em casa. Não se preocupe, ok?

Está ferida?

Estou bem, eu prometo.

Estava voltando para o Complexo quando aconteceu, nós fomos escoltados para fora pela Legião de Ferro e já está tudo bem. Obrigada por se preocupar.

Ser afilhada de Tony Stark certamente tem as suas vantagens.

Eu espero que esteja bem. Deve ter sido um susto tremendo.

Foi sim. Só estou feliz por ter acabado. E o Tony ter mandado um exército para me tirar de lá :)



Pondero a pergunta que digito em seguida, mas não consigo esquecer-me de toda sua gentileza com as flores no Natal e como demonstra estar preocupado. Então, pressiono em enviar.

Harry Osborn
online

Quando irá voltar para Nova Iorque?

Estarei aí pela manhã.

Peça para o seu padrinho levá-la para fazer uma TC. Creio que bateu a cabeça.

Ou realmente está com saudade de mim?



Mordo os lábios para conter o riso revoltado.

Harry Osborn
online

Faça uma boa viagem, Harry.



Deixo o celular na cômoda e abro a porta com um aceno, desejando ver quando Peter vier para seu quarto e meu sorriso não vacilando momento algum ao imaginar Harry Osborn. É estúpido e mundano se for comparado com meus últimos pensamentos. Um rapaz e o fim do mundo são tópicos distintos e não há como negar, mas ainda assim, é satisfatório — o clássico prazer pela atenção, o mesmo que li em alguns livros. Com isso em mente e meu peito aquecido, tento me enfiar debaixo do cobertor macio, evitando mover a perna ferida e gemer pela dor do movimento. Estou me erguendo um pouco para levantar-me e conseguir puxar o cobertor, a dor em minha costa me impedindo de fazer muito esforço sendo incapacitante e irritante. Aperto os dentes ao tentar outra vez, ciente que não posso forçar minha perna, mas também quero cobrir-me. Quando estou quase desistindo, ouço o som de passos no corredor e paro de me mover, atentando-me para o peso e o som, tentando identificar quem seria. Estou ofegante quando Peter surge na porta de meu quarto, as mãos nos bolsos do jeans e um olhar preocupado se formando ao me ver.
, o que aconteceu? — Sua preocupação é evidente na forma que ele aperta as sobrancelhas bagunçadas, empurrando um pouco a porta para poder entrar. — Está sentindo dor? — Antes que eu possa lhe responder, Peter cruza meu quarto com passadas largas e decididas até minha cama, a sua figura parecendo maior pela iluminação baixa.
— Não — Balanço a cabeça, um riso breve e embaraçado escapando-me devido a sua preocupação. Enquanto me maravilhava com uma mensagem de Harry, Parker avança para me ajudar com o mesmo senso de dever de um soldado. — Não, eu só queria me levantar e puxar o cobertor. — Sinto-me uma idiota ao explicar minha intenção quando ele segura meu braço com cuidado, fechando os olhos em alivio. Logo, o sentimento de estupidez é substituído por irritação. Claro que iria lhe preocupar depois de hoje agora que Peter formou uma imagem frágil minha. — Pode me ajudar? — Questiono com o rosto quente. Realmente está frio e, após o East, não quero nada mais que um calor confortável. Pouso a mão em seu antebraço, acima de um rastro de sangue e percebo que precisa de um banho e um bom descanso.
— Claro — Parker assente e responde baixo, respeitando a vibe do quarto. Faço uma nota mental para agradecer Pepper por isso. Com calma, Peter segura abaixo de meu braço, me ajuda a pousar a perna boa no chão e depois a ferida. — Está legal? — Confirmo que sim, apoiada em seu braço e na cômoda. Ele me olha rapidamente, a mão na parte inferior de minha costa para maior apoio e então puxa o cobertor onde eu estava sentada. — Não se apoia na perna machucada — Peter avisa. — Só em mim. — Seguro-me nele com mais afinco, cuidadosa para não cravar as unhas em sua pele, mas ainda me apoiando enquanto completamente escorada nele. O observo puxar o cobertor de onde estava preso abaixo do colchão, sem fazer esforço algum. Então ele abre-o para mim. — Prontinho. — Estou quase dando um passo para a cama quando Peter segura minha costa e dobra os joelhos. — Se segura.
Aperto a boca quando me carrega sem dificuldade alguma antes de deitar-me novamente.
— Às vezes esqueço que é tão forte — Murmuro ao me acomodar melhor, rosto virado para o outro lado da cama ao trocar os travesseiros, certa de que minha face está em rubra ainda que eu esteja satisfeita por não ter gritado quando me carregou. — Obrigada. — Ele dá de ombros quando lhe olho e cobre minhas pernas com o cobertor, ato que me impede de evitar uma careta apesar do embaraço delicado por seus atos atenciosos. — Eu não sou uma criança. — Reclamo ao me erguer melhor na cama, tentando olhá-lo.
— Não é? — Parker provoca com um bom-humor inesperado e eu cerro os olhos para ele quando se abaixa para ficar em minha altura, braço apoiado na cômoda. — Agiu como uma hoje cedo.
— Já pedi desculpas. Esgotei o meu estoque de culpa por hoje. — Retruco com um sorriso. O ver tão calmo após tudo o que aconteceu é recompensador, porém sei que deve estar exausto. — Tem que descansar, Peter. — Lhe lembro e ele concorda, apoiando a mão em minha cama e colocando a testa sobre ela. Em piloto automático, meus dedos estão em seu cabelo e eu o afago. Em outro momento, me incomodaria com suor acumulado ou outra coisa, mas Peter não me incomoda de forma alguma. — Está pior que na noite do baile — Me inclino para cochichar em seu ouvido e seus ombros vibram ao rir baixinho. Mesmo com a dor nas costas, o seu sorriso vale o esforço. — Não está fedendo, mas está quase lá, Homem-Aranha.
— Agende uma desculpa para mim amanhã quando renovar o seu estoque, então — Faço um som de concordância, sorrindo para ele mesmo que não esteja me olhando e Peter solta um suspiro pesado ao apoiar o rosto no queixo para me olhar, tão cansado que me preocupo se oito horas de sono serão o suficiente. Apesar de tudo, ele está adorável com suas sardas rosadas. — Não sei se vou conseguir dormir. E sim — Ele ergue o indicador para enfatizar o que diz. — Eu estou fedendo. Sorte sua que não notou. — Nós damos risadas comportadas, um senso nostálgico em meu peito.
Acaricio os fios ondulados perto de sua orelha ao ponderar uma resposta.
— Não precisa dormir, só deve se deitar. — Explico-lhe e Peter assente devagar. Oh, como se você não fosse cair no sono se eu fizesse mais cafuné, Parker... — Pode vir ficar aqui comigo, não pode? — Estou envergonhada em pedir, mas ele não parece se importar com isso, apenas buscando meus olhos por um instante antes de assentir. Molho os lábios, essa sendo a minha vez de suspirar. — Também não estou muito animada para dormir — Lamento com um frisar de lábios. Não confio muito em minha cabeça após um dia tão movimentado. — E não quero ficar sozinha.
— Deixe-me pensar... — Peter aperta os olhos e frisa o nariz, fingindo ponderar meu pedido, um pequeno sorriso quase oculto pela iluminação baixa. — Posso ficar sim. — Ele assente em seguida e segura minha mão que estava em seu cabelo, pressionando os lábios mornos em meu pulso antes de levantar-se. Dou um aperto em seus dedos devido ao ato inesperado e o deixo ir. — Vou tomar um banho e volto, ok? — Peter está diferente; mais palpável e considero ser o acidente de May que o deixou mais sério. Mesmo assim, assinto veemente e ele me oferece um último sorriso antes de deixar meu quarto.

*


“Através deste conceito chegamos na hamingja. Embora a tradução mais comum ao termo seja “sorte”, os povos germânicos associavam o conceito muito mais com força pessoal e resultado de ações do que com o acaso. Muitas vezes, é visto como o resultante da união entre a hamr e a fylgja e retratada em livros como um campo ou cinturão áurico ao retor do indivíduo, sendo apontado que é frequentemente trabalhada em ritualística.”
— Que cara é essa? — Ergo a cabeça para Peter quando retorna para mim, ainda correndo os dedos pelo cabelo úmido enquanto adentra o quarto. Salvo a página que lia em uma aba separada e lhe dou atenção, abandonando o texto. — Está fazendo aquela cara de quando temos aula de filosofia.
— Filosofia é uma ciência inexata e muito igual a essa. — Indico a tela do notebook, cansada das informações inúteis de sites da internet. Os livros asgardianos serão de mais ajuda, porém não consigo conter minha curiosidade sobre as projeções astrais. — Estou procurando sobre o que fiz enquanto estava desacordada, mas é cada coisa patética que o Google recomenda...
Quando lhe olho, Peter está entretido com uma das prateleiras acima de minha escrivaninha, onde meus livros de ficção estão guardados. Suas mãos estão nas costas e o queixo erguido para ler os títulos, concentrado no que faz. Ele está tão absorto que me dá tempo de prestar atenção em sua figura, o que faço sempre que tenho a oportunidade. No entanto, percebo que não só seu temperamento está diferente e mais rígido, mas a sua postura também e considero que o choque de ver May em um estado tão crítico teve consequências diretas e já esperadas nele. Agora Peter parece maior de forma que não consigo explicar. Encolho meus ombros e me inclino de forma a enxergar melhor o que faz e quais livros lhe chamam atenção.
— Nunca li esses — Sua voz ainda está baixa, como se sua garganta relaxasse e não se esforçasse mais para manter o tom jovem de sempre. Ele aponta para a fileira de Harry Potter onde está a minha edição de colecionador.
— Você nunca leu Harry Potter? — Estou genuinamente surpresa. De fato, não me lembro de ver Peter com outro livro que não fosse acadêmico, mas ainda assim é surpreendente. — Imaginei ser obrigatório para todo jovem americano. — Peter entorta a cabeça para ler as lombadas.
— Eu lia Senhor dos Anéis. Era o favorito da minha mãe e ela tem uma coleção. — Imaginá-lo lendo livros queridos por sua mãe me deixa feliz. — Tinha uma coleção. — Parker se volta para mim e contenho meus lábios, impedindo que transpareçam meu lamento pelo tempo verbal escolhido por ele. — Perdemos quando nos mudamos pro nosso terceiro apartamento, então acho que nunca mais vou ver aqueles livros.
De imediato, quero escavar cada canto deste mundo pela coleção de Mary Parker.
— Pode pegar Pedra Filosofal emprestado, se quiser — Dou de ombros quando se aproxima da cama até estirar-se na horizontal, perto de meus pés. — Também tenho Jogos Vorazes em algum lugar. É uma cópia glorificada de Battle Royale, mas pode gostar. — Me apoio nos braços para o olhar e Peter vira a cabeça para me ver. Apesar do cansaço, um banho lhe fez bem e sua face parece mais relaxada. Um raciocínio me ocorre e lhe dou um sorriso. — Peeta é apenas uma forma diferente de escrever Peter, não é? — Tento buscar outras semelhanças com os nomes diferente do universo literário para nos distrair pois sei que irá pensar em May em breve após mencionar a mudança para seu apartamento atual e não quero que se entristeça.
— É como você pronuncia o meu nome — Ele comenta com um meio sorriso e eu ensaio seu nome em silêncio, testando a maneira que minha boca se move ao pronunciar ambos “Peter” e “Peeta”. Peter está sorrindo conhecedor para mim quando assinto e ambos rimos da coincidência. — É fofo. Principalmente quando está chateada comigo. — O rapaz dirige os olhos para o teto, seus dentes brilhando como pérolas ao mordiscar o lábio inferior para conter um sorriso após eu lhe direcionar uma careta. — Tem essa mania de cerrar os olhos quando está brava. — Ergue dois dedos e os aproxima como imagina que eu faço. — É intimidador para quem está de fora.
— Pareceu super intimidado na enfermaria... — Cutuco seu braço com meu pé.
Peter ri, balançando a cabeça e cobrindo os olhos com o braço como fez no telhado antes do Natal.
— Não me intimidei porque estava certo, . — Explica-se com confiança e firmeza. Meu instinto principal é me encostar nele de imediato e abraçá-lo. Peter parece quente e sólido de onde o vejo e meu desejo é primal e bárbaro. — Nem os seu olhar feroz ia me convencer do contrário. — Desta vez, defiro um chute levíssimo nele, o fazendo rir. — Sabe quando fica realmente está intimidadora? Quando fala algo durante a aula. — Inclino-me mais para ouvi-lo, desejando compreender melhor. — Sempre fala com tanta confiança e frieza que duvido até mesmo que um professor se atreveria a discordar. — Encolho os ombros quando me olha e considero a imagem que tem de mim. É uma farsa, é claro. É um ideal de superioridade intelectual que adoto para não deixar que a timidez me domine em sala, mas parece funcionar bem se o engana. — Então fica com essa cara que está agora. — Nossos olhares se cruzam e Peter sorri minimamente. — Parece que vira outra pessoa ao parar desse jeito, pensando no que for. — Ele engole em seco, apoiando-se nos cotovelos. Tento não alterar minha expressão ao reconhecer que até mesmo pensar nas habilidades provenientes da HYDRA podem mudar minha aura. — Longe demais para que alguém te alcance.
— Às vezes, quando eu penso em algumas coisas, não percebo que fico assim.
— Está pensando no motivo de agir assim? — Molho os lábios e assinto, olhando para minhas mãos. — De precisar agir assim? — Cruzo os dedos e repito o gesto. É insuportável que Peter me conheça tão bem e ainda assim eu não possa lhe contar sobre meu passado. Não sei se suportaria a rejeição. — Sei que já disse antes, mas vou repetir — Não me movo quando toca em meu joelho que não foi ferido, mesmo assim demonstrando todo o cuidado do mundo. — Quando quiser me dizer o que aconteceu com você quando era pequena e “aquele cara ruim” te adotou, como está tentando superar isso e como conseguiu os seus poderes; eu vou estar aqui para ouvir.
— Eu sei que vai e esse é o problema. — O maior está me olhando com carinho quando o respondo. — Não sei se quero que saiba. Não sei se quero que qualquer outra pessoa saiba. — Cubro a sua mão. — Quando alguém descobre, parece que isso anula qualquer outra coisa que eu já tenha feito na vida. Apaga todas as ideias que tinham sobre mim e eu viro um projeto de caridade. Como virei pro Tony, para Nat, pro Steve... A minha personalidade some e eu sou como um animalzinho que precisa de abrigo.
A face de Peter se fecha e sei que falei bobagem.
, te considerar frágil é a última possibilidade que surge na minha cabeça quando nós entramos nesse assunto. — Seguro seus dedos e concordo devagar com a cabeça. É difícil saber quando Peter mente, principalmente quando está assim. — Já considerei que tenha passado por coisas terríveis e talvez não seja nem a metade do que realmente aconteceu, então eu sei que para ter aguentado tanto, não é fraca.
— Sabe que não sou uma deidade, não é? — A pergunta é feita em meio a uma risada, mas ainda assim aperta meu coração. — Entende que precisei fazer coisas ruins há um tempo para conseguir estar aqui hoje. Não é tolo, Peter. Sabe disso. — Não acredito que estou me expondo dessa maneira, mas é difícil demais me habituar com o cuidado que todos tem por mim. Não é normal. Não pode ser normal. No entanto, ele ainda está aqui. Sua mão ainda está abaixo da minha e Peter não demonstra interesse em partir. — Você sabe o que falam sobre sobreviventes nos filmes — Parker se senta e eu não solto pois quero concluir meu raciocínio sem ser interrompida por ele. — Dizem que não pode confiar neles sem saber o que fizeram para sobreviver. É a regra de todo filme de suspense. — Meu sorriso é amargo. — E como você não se importa com isso? — Mordo a parte interior de minha bochecha, tentando me impedir de prosseguir. — Como não liga?
Parker me observa com cuidado, a boca fechada e dedos se entrelaçando nos meus.
— Por quê saltou em um rio congelado para salvar a minha tia há algumas horas — Desvio os olhos dele e acabo rindo. Certo, eu nunca lhe dei motivos para não confiar em mim. — Por quê fica muito irritada quando eu faço aquele molho de pimenta para pizza e não coloco o suficiente para nós dois no copinho e você tem que atravessar toda a cafeteria para buscar mais. — Ele dá ênfase em “toda”, com um sorriso desligado e relaxado. — Por quê sempre que alguma coisa vai pegar fogo em alguma aula, você me avisa ao ler a mente do professor por saber que não gosto de fogo. E faz o mesmo com a Michelle e o Ned quando temos de dissecar algo.
— Não liga porque não te dei motivos para se importar. — O corrijo, observando a veia saltada em sua mão quando afaga a minha com o dedão. Peter emite um som de discordância e eu ergo meu indicador para pedir por um momento de fala. — Sabia que, na primeira vez que acordei na Torre dos Vingadores, eu quebrei o braço de uma enfermeira? — Vidro quebrado surge em minha mente. — Que lancei um médico em uma janela de vidro e enfiei uma seringa no peito de outro? — Quando o olho, Peter dá de ombro. Minha irritação é imediata. — Oh, por favor... — Estou rindo da loucura. — Não pode achar isso o epitome da sanidade, Parker.
— Não acho. — Ele balança a cabeça e alivia minha consciência, apesar de ser um ato dolorido. — Não é normal machucar uma equipe médica dessa forma, mas eu prefiro olhar para o episódio não como um ato isolado. Ver o que teria te levado a isso é uma forma de entender. — Apoio minha cabeça com a mão livre, interessada em quando irá concluir que não sou a santa que gosta de imaginar. — Disse que foi a primeira vez que acordou na Torre, certo? Então não conhecia aquelas pessoas, não devia nem saber onde estava e tinha alguém com uma seringa tentando colocar alguma droga em você. Talvez eu não reagisse da mesma forma, mas também teria medo. E não é justo medir a sua sanidade ou periculosidade em um momento de medo, . Me perdoe, mas é um argumento estúpido e sei que pode fazer melhor que isso.
— Me chamou de estúpida, Parker? — Provoco com humor. Sei que não o farei mudar de ideia e há um conforto extremo em saber que Peter sempre irá buscar um lado positivo em mim, mas não quero lhe contar a verdade. Não posso suportar que saiba sobre todos os alvejamentos, os ossos quebrados e embates que protagonizei enquanto estava na HYDRA.
Considerando todas as possibilidades, prefiro que me veja assim.
— Você sabe muito bem que não — O seu sorriso é singelo e bom. Tudo em Peter é bom e inocente e eu quero que ele fique assim. Ele analisa o peso de minha mão e respira devagar. O silêncio me faz temer que esteja pensando em May. — Cortou a mão? — O corte que ele encontra é miúdo e é como um arranhão. Pode ter sido na queda após a explosão, explosão essa que não encontro motivo agora que penso nos acontecimentos. — Vem, vamos deitar. — Peter chama e eu assinto, lutando para entender o motivo do ato que fez o carro capotar e podia ter ferido Happy.
Fecho os olhos quando encosto a cabeça no travesseiro, logo após abrir o cobertor para Peter e ele encaixar-se abaixo dele. Estamos de mãos dadas durante todo o processo, lado a lado e com o metal frio de seu relógio contra meu braço, contudo ainda mantenho meu foco na detonação na ponte. Me recordo da sensação de colisão que senti enquanto estava no teto do carro, como se houvessem lançado algo contra nós e só depois houve a explosão. Soou como um tiro de espingarda, mas sei que não poderia ser isso. Pensando melhor, soava como um tiro de carabina e sei que não há como um tiro de arma de pressão assim conseguir criar tanto caos. Sei que fomos atingidos por um lançador, mas não uma bazuca, pois estaríamos mortos se fosse. Não posso evitar pensar em Happy e como ele conseguiu escapar do carro, certa de que também foi checado por ferimentos assim que chegou no Complexo.
Ao pensar bem, o corte em minha perna também não faz sentido. Caí sobre um para-brisas, então como ele se partiu? Para-brisas são formados por duas lâminas de vidro e uma de plástico, a tecnologia sendo propositalmente criada pra que o vidro não se estilhaçasse em caso de colisões. Há a possibilidade de ser um retrovisor quebrado, mas é impossível achar um caco que medisse os dez centímetros mencionados por Alexander Cross. Repuxo meus lábios entre os dentes, ainda incerta de como tantas coisas aconteceram e como pude produzir tanta adrenalina para não sentir a dor afiada da lâmina de vidro em minha perna sempre que andasse. Na verdade, era uma dor quente e pungente, como um tiro. E já levei tiros o suficiente para conseguir diferenciar bem as dores que causam.
— Vai, me fala logo — Peter suspira e vira o rosto em minha direção, apertando meus dedos para dar ênfase em seu comando. — Você está quieta demais e com a mesma cara que estava naquele dia no telhado. — Há a sombra de um sorriso em sua boca e eu posso identificá-lo apesar da luz baixa. — Aquela cara de “estou pensando em algo superimportante” — Apesar de minha terrível linha de raciocínio, ele me faz sorrir, porém balanço a cabeça para dispensar o assunto. Peter não precisa de mais preocupações e eu me recuso a ser a portadora de más notícias. — Não vai contar?
— Não hoje. — Com certa dificuldade e mantendo minha perna ferida o mais quieta possível, consigo girar meu corpo em sua direção. Suspiro pelo pequeno esforço, todos meus músculos doendo pelo acidente e ossos rangendo. — Outro dia falamos sobre isso, eu prometo. Não é importante. — Minto. Talvez seja um delírio meu causado pelo remédios pesados e Peter pode colaborar devido à sua paranoia após o acidente de May. É com obvia dúvida que ele assente, incerto se quer realmente ocupar-se com isso também. — Agora é você que está com a cara estranha. — Sei que irá mentir e isso é quase confortante. Podemos nos enganar sem peso no coração pois nos conhecemos bem. — No que está pensando, Homem-Aranha?
Peter umedece os lábios e fecha os olhos ao respirar fundo.
— Que você quase me matou hoje. Duas vezes. — Franzo o nariz, ciente que ele está ocultando algo, mas incerta do que é e satisfeita por não saber. Gosto de nossa bolha impenetrável onde o mundo pode estar acabando, mas nunca deixamos que o outro seja atingido mais que o necessário. — Estou pensando na May e que, se não fosse a sua cabeça dura, ela não estaria aqui. — Toco a face de Peter e seus cílios tremulam, porém não se abrem. Estamos face a face, tão perto que o ar que respiro é o que ele exala e assim por diante. — , o Happy disse que subiu no teto do carro — Ele abre os olhos para mim, enormes para explicitar a sua aversão a minha decisão e reviro os meus. — E que mandou ele pendurado em um robô de volta para o Complexo — A risada baixa me deixa feliz apesar de tudo e eu imito. Havia me esquecido disso. Imaginar Happy Hogan gritando e balançando as pernas no caminho para cá é hilário.
— Eu não sabia o que fazer! — Me justifico em meio a risos.
Seu sorriso cabe em minha mão quando a segura mais firmemente em seu rosto. E quando as risadas se esgotam, estou com o nariz pressionado no seu ombro e Peter passa o braço por trás de minha cabeça, apoiando-me apesar do travesseiro. Assim que o instante de felicidade se esvai, me recordo do medo após ser lançada para longe de Happy e como só pôde ser comparado a ver May na caminhonete. Parecendo deduzir a razão de meu silêncio, Peter me puxa para perto e inclina-se sobre mim, ciente da restrição de meus movimentos. Respiro devagar quando meu peito é pressionado contra o seu e luto para retribuir o abraço, não esperando estar tão confortável agora que minha perna está acima da sua para amortecer o contato com a cama. Quando toca meu cabelo, Peter respira fundo e aperta o abraço de forma que sinto as suas costelas abrirem.
— Pensei que ia morrer quando vi May. — Cravo as unhas em suas omoplatas ao se curvar contra mim, quente como brasa ao respirar em minha têmpora. — Você era a única coisa em que eu pensava e não podia deixar nada acontecer com ela. — Aperto os olhos com força. — Estava tão frio e ela estava tão machucada quando a tirei da água — Sussurro. — Mas juro que fui rápida, Pete.
, eu sei disso. — Peter reafirma com firmeza, afastando a face da minha e é a sua vez de segurá-la, forçando-me a lhe olhar. Preciso de muito para não chorar, mas me recuso a fazer isso outra vez. — Sei que fez o melhor que podia e não duvido de você — Garante outra vez, afagando abaixo de meus olhos com o dedão apesar de não haver lágrimas a serem afastadas. — O que aconteça amanhã vai ser mais... — Ele perde as palavras para descrever a situação e engulo em seco. Não há definição adequada. — Eu poderia estar em casa agora e sem notícias sobre onde a May estaria, entende? — Pela primeira vez, não me importo que me trate como uma criança e eu assinto. Sim, poderia ser muito mais agonizante. — Agora sei onde ela está e sei que está sendo muito bem cuidada. Isso é o suficiente no momento, ok? — Concordo outra vez, meu queixo tremendo.
— Não quero que me odeie se algo acontecer à May — Confesso ao segurar seu pulso. Há um aperto sufocante em minha garganta e quero correr até Tony e Pepper, me esconder entre os dois até que a possibilidade seja descreditada por eles. Peter me segura com mais afinco ainda e balança a cabeça, descartando a possibilidade, mesmo sem saber como o luto pode o afetar. — Por favor, Peter, não me odeie — Meus olhos ardem e a pressão em minha garganta é demais.
Recuso seu pedido para olhá-lo, enterrando o rosto no quentinho do ombro de Peter em uma tentativa de controlar minhas emoções. Não consigo imaginar ser tratada com tanta frieza igual aconteceu na enfermaria, sua expressão ora apática ora furiosa quando direcionada a mim. A frieza não combina com ele, muito distante da pessoa que conheço, mas parecendo se adequar quando o pânico e a ansiedade me devoram viva. Tento fazer a respiração sanfona da Dra. Hall para me acalmar, o som me incomodando, cada lufada de ar sendo um chiado e me fazendo sentir patética e envergonhada por ser assim. Mordo os lábios para controlar o ruído e no instante que sinto que o mordiscar irá romper a pele de meu lábio e fazer jorrar sangue, Peter me abraça mais perto e me agarro nele antes das terríveis e amargas lágrimas voltarem.
, você nunca vai deixar de ser amada por mim, não importa o que aconteça — Seus dedos acariciam meu cabelo com cuidado e aperto mais os meus lábios, interrompendo o lacrimejar ao encostar o rosto em sua camisa. A afirmação é quase dolorosa, afiada de culpa e uma fome quase descontrolada por mais dor que substitua a calmaria que ela transmite. E então se torna suave como as ondas que atingiam meus pés na margem do East, suaves e inofensivas quando longe do fundo. — Pode queimar o mundo e me levar junto; mas eu nunca vou te odiar. Eu prometo. — Engulo em seco e tento assentir, apertando seu pulso com mais força quando Peter permite que minha cabeça encontre o travesseiro, a mão agora apenas apoiando minha nuca. Me soltar é um terrível sinal, porém eu tento manter o controle de minhas emoções. — Ainda que nós sejamos péssimos com promessas...
Meu riso é úmido e Peter sorri de volta para mim, afagando minha nuca com as pontas dos dedos. Ainda assim, as lágrimas que segurei acabam caindo e antes que possa desviar o rosto, Peter toca em minha bochecha com os nós dos dedos e o ato me faz rir mais por toda sua tentativa de me manter calma tendo ido pelo buraco. Me esquivo e ele abaixa a mão, a apoiando no travesseiro.
— Me sinto uma idiota chorando o tempo todo — Engulo em seco e o rapaz balança a cabeça.
— Não, não... — Fecho os olhos quando volta a secar as lágrimas, a ponta de seus dedos tocando meu rosto com extrema delicadeza. Após o que vi na Arena há alguns dias, tenho certeza de que é uma prova de seu cuidado comigo, mais do que nunca após tomar ciência do estrago que Peter pode causar. — Não é idiota, não diz isso. — Solto o ar que segurei, sentindo meus lábios tremem com a cautela que tem ao me tocar, diferente dos monstros de meus pesadelos ou os de meu passado. Ele não esmaga minhas maçãs do rosto com a força de sua palma ou promete que irá quebrar todos os meus dedos se eu não aprender a segurar uma arma ou uma faca. — O que sente não é idiota e quem te fez pensar isso é o real idiota. — Sua voz está ríspida, mas não sou o alvo.
— Eu sei disso, mas...
— Sem “mas” — Peter pede quando se afasta, deitando-se corretamente na cama. — Sem “mas”. — Ele envolve um braço ao redor de minha costa e me leva junto para cima dele e com minha perna machucada no espaço entre as suas abaixo das cobertas. Meu umbigo está pressionado em suas costelas, mas nosso ritmo respiratório compassado impede que fique desconfortável. Envolvo um braço ao seu redor e encosto a cabeça no osso pontudo de seu ombro, o segurando com vontade como se pudesse trazê-lo para dentro do peito. — Precisa descansar, . Está cansada e sua cabeça está brincando com você. — O toque em meu cabelo é letal e eu assinto, o segurando com mais força. — Por favor, descansa, ok? — Peter toca em minha bochecha com o queixo, trazendo-me mais para perto, como se fosse possível. A proximidade me deixa tonta. — Vou espantar os sonhos ruins se eles vierem.
O som que emito é baixo devido a proximidade com seu ouvido, mas seu peito também vibra.
— Já ouvi isso — Sussurro de volta. É a mesma promessa que fez meses atrás quando os pesadelos começaram e quando nossa amizade se consolidou mesmo que jamais esperasse que chegasse no nível atual. Apenas hoje, Peter afirmou sua lealdade e amor duas vezes. De repente, percebo o que está me deixando tonta. É ele. Algo em Peter faz com que me sinta prestes a desmaiar. Ou arder em chamas. — Mas você ainda não me ouviu retribuir quando disse que me amava — Ele exala o ar que respirava. Devia ter tanta certeza de que eu ignoraria o fato que ficou imóvel por um instante e o consigo lhe entender. — E que moveria céus e terra por você da mesma maneira.
Li mais livros nos últimos dois anos que em toda a minha vida — então sei como o amor romântico deveria funcionar e como deveria me sentir. No entanto, não consigo ignorar o hesitar incerto de meu coração e o porquê de não ter sido mencionados vez sequer na literatura. Assim como coração, a racionalidade é uma arma punitiva e voraz. Não é fácil fingir não sentir que está aqui apenas por bondade, não por realmente desejar minha presença. Em minha consciência enevoada, entendo que estes são os vestígios semivivos de anos de dor e tratamentos desumanos falando, no entanto é complexo demais discernir a mentira da verdade pois Peter significa muito para mim e é, genuinamente, uma das últimas pessoas que eu quero perder. E pensar no mártir de minhas agouras torna o mero desejo pela verdade em uma necessidade. Preciso que saiba isso antes que o pior aconteça e meus sentimentos caiam junto a mim.
— Não é a melhor declaração do mundo — Sussurro ao fechar os olhos após a realização. — Eu sei. Mas estou dizendo isso agora, no meio de todo essa catástrofe que foi o nosso dia, porque preciso que saiba disso. — Minhas mãos estão frias quando sinto o toque úmido dos lábios de Peter contra minha testa. Prendo a respiração e num golpe inesperado de coragem, ergo o queixo e o angulo em sua direção. O selar que pressiona entre minhas sobrancelhas em seguida é casto, mas temo que meu coração vá explodir. É apenas um leve toque da boca, como vento delicado o suficiente para um choque passar por mim, mas forte o suficiente para espantar-me e o resto do péssimo discurso perder-se em minha língua. Aperto os olhos com mais força quando sinto o ar que exala tremular meus cílios. — Precisa saber que eu o quero — O terceiro beijo é na bochecha e as palavras se perdem em seu toque e no tremer da mão de Peter em minha nuca.
Toco o pulso dele, precisando de controle para não contar meus dedos e garantir que estão ali e eu ainda não estou virando cinzas, incerta de onde um pesadelo se transforma uma ilusão e como posso ser enganada pela confusão. Seguro nele com mais força, acima do relógio que Tony lhe deu de presente alguns dias antes do Natal pois havia “Ganhado dois iguais e o Happy não curte relógios”. Ergo mais o rosto, temerosa que não beije minha face outra vez devido ao toque restritivo, mas logo noto, apesar da expectativa, o movimentar intenso do sangue em suas veias. Deslizo o dedão para sentir o pulsar abaixo de meus dedos tornando-se uma boa distração e força para prosseguir.
— Eu que espero que fique — O ar me escapa devagar quando Peter toma minha bochecha na mão côncava, passando o nariz sobre o meu até alcançar a outra. Ele respira fundo e seu pulso acelera. Há um genuína sensação de poder em o deixar nervoso e eu gosto do que faço. — Aqui. Que fique aqui, ao meu lado, por muitos e muitos anos — Um som novo escapa de minha boca quando seus lábios encontram o osso de minha mandíbula, angulando-o para como o deseja. É o mesmo ruído que emito quando corto a ponta do dedo. Porém muito mais sentimental e cheio. E Peter reage a ele, resvalando a ponta do nariz no mesmo lugar outra vez, peito inflando ao aspirar. — Pra sempre; se pudermos começar aí. — O ato de respirar é facilitado pelo expandir de minha caixa torácica erguendo-se para ele, buscando encurtar o mero espaço já existente entre nossos corações.
Preciso que Peter reconheça que estou falando a verdade.
— Também te quero perto, — Quando os beijos se encerram e Peter sussurra de volta para mim, meu interior arde, pois, afinal, não chegamos ao fim e eu o entendo quando o pressionar dos dedos de Peter em minha nuca se desfaz, assim como o milimétrico distanciar de sua mão direita em meu rosto — e ele hesita. A afirmação não me saciou como o amor literário prometeu que faria. Em vez de me satisfazer, elas têm o efeito oposto e tornam minha necessidade em tê-lo para mim ainda maior. — Aqui, comigo — Como na Arena dias atrás, estamos face a face e Peter respira com nariz encostado no meu, a voz carregada de sentimentalismo. E eu o quero tanto que minha cabeça dói e lábios cansam de esperar. — Até o fim. — Quando levanto o rosto para alcançá-lo, Peter inclina-se até mim.
No momento em que nossos lábios se encontram, decido que o “sempre” não é o suficiente. Peter mantém a delicadeza dos outros beijos com o toque levíssimo como uma pena, porém firme com sua boca suave encostada na minha. Uma sensação semelhante a fogos de artifício cintila em meu peito, colorindo meu interior em espectro intenso e despertando efervescentes e vívidas faíscas. Os lábios de Peter são irresistíveis ao moldarem-se aos meus, a antecipação de finalmente beijá-lo atingindo o ápice em total euforia. Eu o beijo de volta da melhor forma que sei, movendo os lábios minimamente, a devastadora sensação de que isso jamais acontecerá outra vez e que poderia arruiná-la sendo a principal responsável por me fazer mover-me uma segunda vez, encaixando os lábios nos seus como dedos dele ardentes fazem em meu cabelo. Então, beijo Peter com mais fervor, pressionando nossos lábios com sede dele e atordoada de tanto amá-lo.
O desejo tão desesperadamente que poderia morrer — a realização correndo descomedida por minhas veias com o afagar de seu polegar em minha mandíbula onde havia beijado antes e seu exalar eufórico em minha boca rasgando-me com o exagero de emoções. Peter toca-me no queixo e pressiona o peito no meu, o mundo ao nosso redor deixando de existir. Tudo o que sei é sua boca morna contra a minha e arrepios que o deslizar frenesi de seus lábios nos meus extorquem de mim. Os livros estão errados e considero queimar todos os romances em minhas prateleira em um fogo tão quente quanto a língua incerta de Peter em meu lábio inferior; chamas tão poderosas quanto as labaredas de cobiça em meu estômago. Os autores são poetas delirantes ao tentarem escrever sobre amor sem nunca terem o beijado pois desconhecem o anseio que sua delicadeza excita. Peter não rouba meu ar. Ele não o rouba pois é seu. O ar em meus pulmões, o sangue que pulsa frenético em minhas veias, as sinapses em minha mente e todo o meu corpo. Tudo é seu.
O cabelo de Peter é sedoso entre meus dedos e preciso controlar um suspiro ao entreabrir meus lábios e sentir a ponta de sua língua tocá-los para testar as águas e evito me retrair, despreparada para as sensações de meu primeiro beijo. O sentimento de mortificação quando ele separa nossas bocas é terrível, contudo, é rápido após Peter se mover na cama e projetar-se sobre mim e encostar minha coluna no colchão outra vez, a mão em minha mandíbula guiando-me de volta até sua boca. Desta vez é ele quem suspira em obvia satisfação, o nariz firmemente pressionado contra a lateral do meu ao respirar fundo, buscando o mesmo nível de controle que luto para encontrar em mim.
Não mantemos o ritmo anterior neste beijo. Na verdade, apenas estamos com os lábios encostados e mesmo isso é melhor que qualquer coisa que já senti. Então Peter retorna para mim com um filete de sorriso perceptível quando sinto a rigidez de seus dentes contra meu lábio superior. É impossível conter meu sorriso, então faço o mesmo, curvando mus braço em torno de seu pescoço, o trazendo mais para perto. Quando um mísero e insignificante resquício de racionalidade retorna, me sinto perdida da melhor forma possível. Não sei em que pé estamos, mas é bobo, frágil e bom e eu espero com todas as minhas ínfimas esperanças que perdure. Lhe chamo em um murmúrio, apoiando-me sobre meu cotovelo ao afagar sua nuca como sempre quis fazer nessa situação, logo onde os cachos são proeminentes e Peter gosta de ser tocado. Hesitante, Parker incitou o segundo selar preciso, beijando-me uma, duas, três vezes — cada vez com mais urgência e fervor. Retribuo da melhor forma que posso, incerta em como fazê-lo e confortável em ser guiada por ele.
Com uma coragem que desconheço, minha mão escorrega de sua nuca até os ombros firmes e desemboca na lateral para que eu segure seu bíceps quando nossas línguas se tocam, a sensação tão gloriosa que me elevo mais até Peter, desejando que se repita. Ele me compreende e repete o ato, se inclinando sobre mim ao deslizar a língua contra a minha e o choque da sensação foi intenso e tão voraz que senti minhas bochechas aquecerem. Peter murmura meu nome e puxa-me para perto pela cintura. Com os corpos pressionando um no outro e cada vez mais próximos, se torna difícil respirar, mas, ainda assim, não encontro coragem para cessar o beijo.
— Molho os lábios quando Peter se afasta, buscando um último resquício do sabor dele — Seu coração está muito rápido — Encolho os ombros quando pousa a mão em meu peito. Abro os olhos para vê-lo, encontrando os seus fechados e lábios afastados para respirar melhor. Sua boca está rosada pelo ósculo e as maças do rosto estão rubras, igual creio que as minhas devem estar. Levo as mãos para seu pescoço outra vez ao balançar a cabeça. Subitamente estou sonolenta; a ausência de seus lábios me deixando debilitada. — Precisa descansar — Sua voz está infinitamente rouca e o sul de meu ventre desperta. Balanço a cabeça de imediato.
— Não quero descansar — Garanto e guio sua boca até a minha até que ele pareça se esquecer do discurso anterior, segurando meu rosto com ambas as mãos febris e aprofundando o beijo sem hesitar. Agora, ele me beija com uma ardência feroz; mais rápido e com a boca mais firme, encarcerando-me entre si e os travesseiros como um predador com sua presa.
Minhas mãos haviam parado de tremer assim que Peter retribuiu o beijo com tanto afinco, agora desbravando a vastidão de sua costa e redesenhando os músculos tão vívidos há alguns dias na Arena. A aproximação de sua ferocidade ao sugar meu lábio inferior e a lembrança da sua demonstração de força naquela noite me faz suspirar contra ele. Quero explorar mais e descobrir novas rotas para adorar sua pele, então tento me erguer para sentar-me em seu colo como fiz na Arena, mas antes mesmo de erguer meu quadril, Peter pousa a mão espalmada sobre o osso e o pressiona contra o colchão. Estremeço ao relembrar a força oculta dele, mas então Parker afaga a pele exposta de meu estômago com os dedos um pouco ásperos e todo o medo se esvai assim como os seus lábios que se separam dos meus e redirecionam um último selar para meu queixo.
— Ok — Suspiro com rosto e peito quentes pelo sangue que devem estar os colorindo. — Eu estou cansada. — Evito revirar os olhos e Peter beija meu queixo outra vez, encostando nossas testas. Estou tão embaraçada que não consigo abrir os olhos, mas meu sorriso é gigantesco.
— Está sim — Ele ri baixo contra mim, beijando minha bochecha e é como imagino ser o paraíso. — Está muito cansada e podemos nos beijar de novo amanhã — A promessa me enlouquece, mas assinto da mesma forma.
Peter me traz para seus braços quando se deita, meu rosto em seu ombro e uma mão segurando firmemente em sua camiseta, buscando algo para aplacar o desejo que ainda sinto dele e controlar meu coração acelerado. Com os braços envoltos em mim, ele encosta o nariz no topo de minha cabeça e afaga minha costa até que não consigamos mais nos manter acordados.
A promessa de um amanhã é o suficiente por enquanto.


Continua...

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Nota da autora: Sem nota.



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