Finalizada em: 04/04/2021

#1 Like handprints in wet cement, she touched me, it's permanent

Sentado há horas com o celular na mão, percebi que ela trocou de número lá pela segunda ou terceira tentativa de ligação em que uma voz eletrônica informa que este número não existe ou deve estar fora da área de cobertura.
Ainda conseguia senti-la muito presente na casa, nas minhas coisas, no ar que preenchia todo o ambiente. A última vez que eu estivera ali por tanto tempo havia sido na companhia dela. Era só fechar os olhos por alguns segundos que conseguia sentir suas mãos no meu corpo, seus cabelos por entre meus dedos, seus lábios no meu pescoço…
Pra você que está chegando agora e não está entendendo do que exatamente estou falando: , 31 anos, estatura mediana, cabelos escuros na altura dos ombros, olhos desafiadores que, ao mesmo tempo que repreendiam comportamentos inapropriados, te incentivavam a continuar. Minha insônia e meus colapsos no último ano tinham nome, sobrenome, endereço e renda fixa.
Conheci há pouco mais de dois anos em uma festa. Lembro-me de ter sido uma das poucas ocasiões em que cheguei cedo e não bebi tudo o que tinha direito no início da festa. Era uma house party promovida pela minha gravadora para que amigos, fãs e alguns executivos ligados a gravadoras, além da imprensa ouvissem pela primeira vez o álbum que eu iria lançar dentro de dois meses. Vi-a pela primeira vez conversando com uma mulher próxima ao bar. Rindo de qualquer coisa e bebendo uma cerveja, mesmo com a iluminação baixa do ambiente, era muito bonita.
Algumas horas depois, quando voltou ao meu campo de visão, estava acompanhada de um homem. Pela sua expressão facial, desejava que aquela conversa acabasse tão logo quanto fosse possível. Todavia, só percebi que precisava de ajuda e que talvez eu devesse fazer algo quando a vi se esquivar de uma tentativa de beijo, seguida de um braço envolvendo sua cintura ao mesmo tempo que ela tentava se afastar.
― Tá tudo bem por aqui? ― falei ao me aproximar dos dois. O homem era bem mais baixo que eu, o que fazia com que tivesse que olhar para cima para me encarar.
― Tá, sim. ― o homem respondeu rapidamente, ainda agarrado a ela. A mulher estava encolhida e aparentava assustada.
― Eu acho melhor você soltar ela. ― insisti.
― Cara, você não tem nada melhor pra fazer? ― respondeu soando irritado. ― Vai procurar uma garota pra você.
― Você está agarrando a minha garota.
― Ela não me disse que namorava. ― seu olhar passou de mim para ela, demonstrando raiva.
― Talvez ela não devesse precisar dizer que namora pra não ser agarrada por um cara estranho.
― Vadia! ― chiou entre dentes, empurrando-a contra meu peito.
Segurei-a pelos ombros para que não se desequilibrasse, desviei dela e empurrei o homem com força, fazendo-o cair de costas no chão. Ao nosso redor, algumas pessoas pararam para olhar o que acontecia, outras só seguiram curtindo a festa como se aquilo fosse algo de menor importância.
Agachei-me perto dele, apoiando os antebraços sobre os joelhos.
― Se eu te ver perto dela de novo, você vai se arrepender de ter olhos. ― alertei-o, levantando-me e aproximando-me da mulher novamente. ― Você tá bem? ― ainda um tanto assustada, assentiu.
― Você pode ficar por perto mais um tempo? Só para o caso de ele… ― não completou a frase.
― Claro, claro. Quer beber algo, ir pra rua…? ― sugeri.
― Acho que preciso de um ar. ― concordei com um aceno de cabeça seguindo-a rumo a porta que dava para o quintal dos fundos da casa.
Lembrei que tinha guardado o baseado que havia bolado mais cedo para uma ocasião especial que julguei que iria acontecer mais tarde ainda naquela noite. Tateando meus bolsos atrás do estojo de metal onde costumava guardá-los, achei que aquele era o momento perfeito.
― Qual seu nome? ― perguntou, sentando-se no gramado.
Assim que encontrei o que procurava, sentei-me ao seu lado.
. ― acendi o cigarro, dando a primeira tragada. ― E o seu?
. ― encarou-me com as sobrancelhas franzidas. ― Espera. Então você é o cara que tá lançando o álbum?
― Em carne e osso. ― dei uma segunda tragada no baseado, oferecendo a ela. A mulher olhou para o cigarro em minha mãos, olhou para o meu rosto, riu e acabou aceitando, dando uma tragada curta, devolvendo-me o fumo em seguida. ― Você é uma forasteira?
― Quê? ― riu.
― Se você não sabia que o dono da festa sou eu, significa que não sabe muito bem o que está fazendo aqui, né?
― Ah, sim. Uma amiga minha faz parte do seu fã-clube. Era pra ela vir com o namorado, mas eles terminaram semana passada, então… ops. ― rimos. ― Em minha defesa, concordei em vir porque até gosto de algumas músicas. Não me pergunte nomes, ouvi na casa da minha amiga e gostei. ― ri.
, a mulher que não sabe o que ouve… interessante. ― coloquei o cigarro entre os lábios, aspirando a fumaça.
Em silêncio, ofereci novamente a ela, que aceitou e passamos os instantes seguintes daquele jeito: sentados um ao lado do outros, dividindo um baseado calados, vez ou outra, trocando olhares e rindo.
― Acho que eu deveria ir pra casa. Essa noite parece ter sido mais longa do que deveria. ― passou a mão pelo rosto, pondo uma mecha de cabelo atrás da orelha.
― Tem certeza? Quer dizer, o cara é um idiota, mas você não deveria deixar ele estragar a sua noite. Você saiu pra se divertir. ― apaguei a bituca do baseado na grama. ― Eu tô dando essa festa porque gosto quando as pessoas se divertem e vou me sentir muito mal de saber que você não se divertiu. Vamos. ― levantei-me, estendendo a mão para ajudá-la a fazer o mesmo. ― Se ele ainda estiver lá dentro, vou pôr ele pra fora e te ajudo a procurar sua amiga. ― com um meio sorriso, segurou minha mão e se levantou, seguindo-me para dentro da casa.
A festa continuava rolando. Já estava quase na hora de colocar o álbum para rodar. Procurei por um dos seguranças na porta para questionar sobre o paradeiro do homem que perturbara . Percebendo que havia a possibilidade de o cara começar uma comoção por não ter podido continuar a assediá-la em paz, os seguranças o colocaram para fora antes que eu o fizesse. Agradeci pelo bom trabalho e voltei para perto da mulher.
― Encontrou sua amiga? ― perguntei, fazendo sinal para o barman me dar uma garrafa de cerveja. Peguei a garrafa das mãos do cara e dei um gole.
― Nã… ah, ali está ela. ― apontou para além de mim com um sorriso.
Olhei para onde ela apontava e não pude evitar sorrir.
― Gina? ― abracei-a sem acreditar que era dela que falava.
! ― retribuiu contente.
― Espera! Vocês se conhecem? ― franziu o cenho.
― Eu quem deveria fazer essa pergunta. ― Gina rebateu rindo.
― Gina e eu nos conhecemos há uns bons seis ou sete anos.
― Mas… como? ― continuava sem entender.
― Fui em muitos shows desde antes de ele ter nome. Nos encontramos em um meet & greet e, depois disso, sempre nos encontramos em shows e coisas do tipo. Sem contar que sempre recebo os convites pra ouvir em primeira mão todos os álbuns. ― se gabou.
― Eu faço música, Gina gosta da minha música, então, não temos por que não nos falarmos e mantermos contato sempre que possível, certo?
― Ok… ― respondeu com um sorriso que parecia um pouco debochado.
― Você vai cantar como da última vez? ― os olhos de Gina brilhavam de excitação com a ideia.
― Dessa vez, não. Tô tratando algumas coisas com a fonoaudióloga antes da tour, então, hoje vai ser só o álbum pronto mesmo.
― Um pouco triste, mas espero que fique tudo bem. ― deu um meio sorriso, pondo a mão no meu ombro.
Quando o momento de ouvir as músicas novas chegou, quase todos ficaram em silêncio ao longo da primeira. O que não perdurou na segunda. E a verdade era que eu adorava aquela atmosfera em que, já nos primeiros 30 segundos de música, a maioria decidia se tinha gostado ou não, começava a dançar e a conversar animadamente com quem quer que estivesse por perto sobre suas impressões a respeito da letra e da melodia.
A festa ainda não tinha acabado quando Gina e decidiram ir para casa. Era por volta das duas da manhã quando eu insisti e chamei um táxi para que ambas chegassem em casa mais rápido e em segurança. Antes de embarcarem no veículo, estendi para Gina um pedacinho de papel.
― O que é isso? ― indagou, desdobrando-o.
― Me manda uma mensagem quando chegarem em casa pra eu saber que vocês estão bem.
― Você tá dando o seu número de telefone? ― franziu as sobrancelhas. ― Tem certeza de que quer fazer isso? ― brincou.
― Tenho consciência dos riscos e desejo continuar esta operação. ― rimos.
― Ok. Aviso, sim. Mas tem algum motivo especial? ― lançou um olhar sugestivo para mim. já havia entrado no veículo e aguardava pela amiga.
― Acho que não cabe a mim te falar. ― pus a mão em seu ombro.
Gina assentiu e eu me inclinei para que meu rosto ficasse da altura da janela do carro.
― Foi um prazer, .
― Digo o mesmo, . ― deu um leve aceno de cabeça e eu sorri.
Gina entrou no carro e eu fechei a porta para ela. Continuei olhando na direção que o veículo seguiu até vê-lo dobrar a esquina e sumir do meu campo de visão.
Ainda me lembro da sensação de tranquilidade que se espalhou por todo o meu corpo quando recebi uma notificação de mensagem de um número estranho e, ao ler, descobri que era Gina me avisando que ambas estavam não tão sãs, mas salvas em sua casa.
Depois daquela noite, passado quase uma semana, uma nova notificação de um número desconhecido apareceu. Na terceira mensagem, descobri que se tratava de agradecendo pelo que fiz na noite da festa. Aquela foi só a primeira das conversas que tivemos nos dias que se seguiram.
Minha agenda estava lotada naquele mês. Campanhas publicitárias, entrevistas, ensaios fotográficos, porém, se havia algo que eu sempre arranjava um tempo, era para responder as mensagens de . Mesmo sendo extremamente séria na maior parte do tempo e eu sendo o completo oposto dela, nossas conversas fluíam muito naturalmente.
Não demorou até que apenas conversar por mensagem não fosse mais o suficiente para nós dois. Começamos a marcar refeições juntos quando nossas pausas de trabalho coincidiam, cinema e piqueniques no parque estavam se tornando algo comum em nossa rotina de encontros. Inclusive, foi em uma dessas ocasiões que, sob o crepúsculo, com as estrelas começando a enfeitar o céu e uma brisa gélida fazendo os fios de seus cabelos ficarem presos em seus cílios e boca, que coloquei as mãos em seu pescoço quente e a vi sorrir bem de perto.
Seus olhos estavam tão escuros quanto nos outros dias, porém permaneciam intensos e brilhantes. Tudo nela me transmitia calor. Seu sorriso, a forma como tirava os fios de cabelos esvoaçantes do rosto e os prendia atrás das orelhas, como apoiava o rosto nas mãos para me olhar enquanto eu falava ou o jeito quase imperceptível que seus ombros se moviam durante sua respiração.
Lembro-me de ver seus olhos se demorando em meus lábios e depois voltarem aos meus. Suas pupilas se dilatando como luas crescentes enquanto suas mãos subiam pelo meu pescoço, parando bem perto das minhas orelhas.
Quando sua boca quente tocou a minha, senti como se nenhuma das minhas preocupações fosse importante ou verdadeiramente significasse algo naquele momento. As coisas se encaminharam de forma tão natural entre nós que, ao mesmo tempo em que poderia afirmar com veemência que aquele não foi o momento mais esperado em nossa relação, toda as vezes que sentia sua língua tocar diferentes partes da minha boca, parecia que eu estava à beira de ter uma ereção tal qual um garoto de 14 anos beijando pela primeira vez a menina por quem é a apaixonado há meses.
Selando nossos lábios em meio a um sorriso, segurando o rosto um do outro nas mãos, continuamos nos encarando durante algum tempo até termos vontade de nos levantar, guardar nossas coisas dentro da cesta de palha que havíamos trazido e voltar para casa.


#2 I’m callin' you ‘girlfried’, what the fuck?

Quase dois meses depois, passei praticamente as minhas três últimas semanas na cidade na casa de . Tínhamos uma rotina bem estabelecida para aproveitarmos cada instante que tínhamos juntos antes de eu sair em turnê pelo próximo ano inteiro.
As únicas pessoas que sabiam sobre nós eram Gina e algumas poucas pessoas que trabalhavam em minha equipe pessoal, pois eram elas que organizavam minhas agendas de compromisso de forma que sobrassem pausas e respiros para que e eu pudéssemos nos ver ao longo do dia e para que eu pudesse dormir o máximo de dias possível na casa dela sem que ninguém soubesse.
Em nosso último dia juntos, insisti a ela para me deixar acompanhá-la em suas compras no mercado. Hesitante, ela acabou concordando. Para não correr o risco de ser reconhecido, de sermos fotografados ou o que quer que fosse, decidimos ir a um supermercado um pouco mais distante de sua casa.
Enquanto escolhíamos qual dos amaciantes cheirava melhor, senti uma mão tocar meu braço.
? ― por sorte, era Joe, um velho companheiro de escola. ― O que faz por essas bandas? ― me cumprimentou.
Sem saber muito o que responder, olhei para , cujas expressões faciais estavam congeladas, como se prendesse a respiração.
― Ah, eu… fazendo compras. Esta é . ― a mulher sorriu ao apertar a mão de meu amigo. ― Minha namorada. ― rapidamente, seu rosto se virou para mim com uma feição assustada. ― ri, sendo acompanhado por Joe.
― Acho que alguém não sabia disso também. ― apontou na direção dela com o queixo. ― Preciso ir. Nos vemos por aí. ― fez uma continência com dois dedos, caminhando para um dos caixas.
. ― me chamou com uma voz mais séria que o normal quando tentei fingir que nada estava acontecendo. Olhei-a sabendo o que viria a seguir. ― Sua namorada, hã? ― cruzou os braços sobre a haste do carrinho de compras, as sobrancelhas arqueadas em um tom de deboche.
― Você preferia que eu dissesse que você é uma amiga? Porque, sinceramente, eu não sinto que somos amigos.
― A questão não é essa. É só que você… quero dizer, a gente não conversou sobre isso, entende? ― sua expressão antes rígida, agora, começava a relaxar.
― Desculpe. Não quero que soe como se eu estivesse tentando forçar algo. ― aproximei-me dela, ajeitando uma mecha de seu cabelo que caía sobre seu rosto. ― Só também não gosto que a gente continue sem saber o que tá rolando mesmo.
― E você quer que eu seja sua namorada? ― seus olhos eram suaves e sugestivos. Um sorriso se formava no canto dos seus lábios.
― Por favor. ― sorri, mordendo o lábio inferior e pondo a mão em seu rosto.
Esticando-se para diminuir nossa diferença de altura, selou nossos lábios.
― Pois agora você tem uma namorada.


#3 I can't stay forever, let's play pretend and treat this night like it'll happen again

Deitada sobre meu ombro, o corpo quente de estava bem próximo do meu, o que me permitia sentir o cheiro de flores que emanava dos seus cabelos, entranhando-se em minhas narinas, fazendo com que meu cérebro gravasse aquele aroma como a fragância de lar que eu esperava encontrar quando voltasse. Enrolando uma mecha de seu cabelo com o indicador, queria guardar a sensação de seu corpo em contato com o meu como dedos em cimento fresco.
― Você tem mesmo que ir? ― perguntou, manhosa em um tom de voz que mais parecia um miado.
― Tenho. Não posso cancelar a turnê.
― Quando você volta? ― apoiou o queixo sobre meu ombro, me encarando.
― Um ano. Talvez um e meio. Depende se vamos conseguir negociar mais algumas datas pro ano que vem. ― meio desajeitado, consegui olhar seu rosto enquanto continuava a falar. ― Quando vão ser suas férias?
― Em três meses.
― Se você quiser, pode passar esse tempo na estrada comigo.
― Só se você prometer que eu vou conseguir tomar banho todos os dias. ― ri.
― Sim, você vai conseguir. ― beijei o alto da sua cabeça.
― Queria que essa noite não acabasse nunca. ― agarrou-se à minha cintura.
― Vamos fingir só hoje que essa noite não vai acabar e que amanhã vai ser igual hoje, ok? ― ela assentiu, dando um beijo no meu pescoço, voltando a deitar no meu ombro.
E, como se o universo tivesse ouvido as nossas preces silenciosas, na manhã seguinte, uma chuva torrencial tomava conta da cidade. O centro estava praticamente embaixo d’água e vários voos, inclusive o meu, haviam sido cancelados. Apesar de a previsão do tempo informar que até o início da noite a chuva já teria cessado, não era isso que aparentava do lado de fora da janela.
estava sorridente desde que acordara e era óbvio que tinha a ver com o fato de que, agora, eu não tinha previsão para ir embora de sua casa. No fim das contas, no fundo, eu também estava aliviado de poder adiar minha partida em um dia que fosse. Um dia a mais sentindo seu cheiro, podendo vê-la sorrir e fingindo que o mundo lá fora não existe. Era tudo o que precisávamos.
A lembrança da minha relutância interna em deixá-la ainda estava bem viva na minha cabeça. Seus olhos brilhavam com as lágrimas que se formavam, mas que ela não deixaria rolar pelo seu rosto enquanto eu estivesse ali. Seus braços me apertaram uma última vez na porta de sua casa e, com uma de suas mãos, acenou para mim até que eu desaparecesse de seu campo de visão. Aquela foi a última vez que a vi. Um olhar triste e os ombros encolhidos.
Quase um ano depois, era essa visão que vinha à minha mente toda vez que eu pensava em .
Com o celular na mão, esperava que não fosse tarde demais para consertar as coisas…


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