04. Close Your Eyes

Última atualização: Fanfic finalizada.

Capítulo Único


Esta é uma história curta sobre uma influência real que me levou à descoberta de uma coragem jamais imaginada dentro de mim mesma.


Já voltamos com Catfish! A televisão avisou e peguei o controle remoto, abaixando o volume e levantando do sofá.
- Como foi a pescaria com seu pai? – Inqueri enquanto ia para a cozinha.
- Ah, foi ótimo. O lugar era lindo. – respondeu da sala enquanto eu buscava por um pacote de pipoca de micro-ondas no armário, e ri.
- Ah, era mesmo?
- Sim, tinha... esse monte de árvores e, hum... um rio... bem grande.
Balancei a cabeça ainda rindo e peguei um pacote, o abrindo e colocando dentro do micro-ondas, digitando o tempo necessário.
- Quer beber alguma coisa?
- Não, valeu!
Esperei o tempo acabar e despejei as pipocas em uma tigela de plástico, voltando para a sala e sentando ao lado de .
- Ah, aumenta! – Ele disse de repente, tateando em busca do controle. – É a menina da voz!
Olhei para o comercial da MTV entregando o controle a ele, que aumentou um pouco o volume, que se encontrava quase no zero. O comercial começava com um trecho do cover de Titanium, da Garota da Voz, como era conhecida na internet, e um pedaço do vídeo que havia no Youtube: um piano preto, simples, com um bonequinho do Darth Vader de pé em cima da madeira, e apenas as mãos da garota tocando as teclas. E nada mais. Então aparecia o apresentador, ou repórter, sei lá, anunciando a chamada do programa.
- Tudo que sabemos até agora sobre ela, é que tem a voz de um anjo, que em poucos meses ganhou a admiração e a inscrição de mais de quinhentos mil fãs em seu canal no Youtube. Mas agora está na hora de conhece-la de verdade, sem mais mistérios! O Tune Generation resolveu se juntar com um grupo de fãs da Garota Da Voz e encontrar essa magnífica e talentosa cantora, para que o mundo possa conhece-la de uma vez por todas. É essa sexta, às oito da noite, esperamos por você!
E então o comercial terminava com mais um trecho de Titanium. Dei uma risadinha colocando umas pipocas na boca e olhei para , percebendo sua expressão de concentração ouvindo o trecho da música na TV.
- Uau...
- O quê? – Perguntei, e ele levou a mão ao meu colo procurando pelo balde de pipoca.
- Essa garota é gostosa.
Gargalhei.
- E como você sabe, gênio?
- ... Já te expliquei um milhão de vezes. A voz das pessoas é a aparência delas. E a voz dessa garota é definitivamente gostosa.
O encarei com um sorrisinho de canto enquanto ele enchia a boca de pipoca, e balancei a cabeça.
- Todas as pessoas cegas pensam assim ou só você que é estranho?
virou o rosto para mim, e apesar de não poder me ver, eu tinha certeza que ele sabia que eu estava segurando o riso.
- Eu uso óculos escuros umas dezesseis horas por dia, inclusive em lugares fechados. Estranho? Eu sou completamente normal, .
Ri, o empurrando fraco pelo ombro, e ele riu também, comendo mais pipoca. Voltei a encarar a TV, me concentrando para ouvir. Quando assistia televisão junto com , o volume estava sempre bem baixo, e por isso eu precisava fazer um pouco de esforço para escutar, mas logo acostumava.

Aquele ali era, obviamente, meu melhor amigo, além de ser o cara mais incrível que eu conhecia, sem sombra de dúvidas. Ele era cego desde os dois anos de idade, quando teve câncer e precisou remover as córneas. Foi horrível, é claro, principalmente porque era só um bebê, mas depois daquilo o câncer entrou em remissão, ele nunca mais teve problemas de saúde graves e, como era bem novinho, aprendeu a conviver com a deficiência muito bem. Hoje, era uma coisa normal para todos nós, que convivíamos com ele. Era só mais um detalhe.
O melhor sobre , porém, era seu espírito e seu senso de humor. Ele era definitivamente a cor dos meus dias, por mais irônico que isso soasse. conseguia me fazer rir como ninguém fazia, era o melhor remédio para quase qualquer coisa. Ficamos bem amigos ainda no ginásio, quando alguns alunos zoavam a gente, e acabamos nos juntando e sendo os weirdos do colégio juntos. Acabou sendo a melhor decisão que já tomamos.
- Você acha que vão encontrar ela?
Ri fraquinho mais uma vez.
- Sem chance.
- Por que, senhorita eu-vejo-sempre-o-copo-meio-vazio?
- Eu vejo simplesmente um copo pela metade, e quem é você para falar? Nem vê o copo para começo de assunto. – Retruquei, o fazendo fingir uma cara afetada. – Acho que não vão encontra-la, porque caso contrário já teriam encontrado. Além disso, o que eles planejam fazer? Pedir a ajuda da polícia? Ela tem mais de quinhentos mil assinantes, e nenhum nunca encontrou sequer uma pista!
- É, acho que você tem razão... – Ele fez um bico, pegando mais pipoca da tigela em meu colo. – Mas eu tenho certeza, ela é maravilhosa. Você vai ver. Um dia ela vai aparecer, e nesse dia, todo mundo vai ficar encantado.
Sorri e encostei minha cabeça no ombro de , o dando alguns tapinhas no braço.
- Acho que no final das contas você realmente vê o copo meio cheio, .
Ele sorriu, convencido.
- É, eu sei.

Terminamos de assistir Catfish, uma das séries completamente inúteis da MTV, que era nosso passatempo mais divertido nos fins de semana, e levantei para ir embora assim que vi que era meio tarde.
- Eu te levo até a porta – ele disse, levantando e indo em minha frente até a porta. Dentro de sua casa, sabia de cor o caminho para tudo, sem precisar da guia. Ele abriu a porta para mim e parei na frente dela. – Ei. Já sabe como vai ser na formatura?
- Eu não sei se vou no baile – comentei. – Vai ser uma chatice, como todos os outros. Música ruim, sem comida que preste, só gente idiota. A quem queremos enganar? Todo mundo se odeia, e eu não gosto desse falso clima de amizade do final do ensino médio. No dia seguinte nem vamos lembrar do nome um do outro.
suspirou.
- Obrigado pelo discurso. Mas, e aí, já sabe como vai ser na formatura?
Grunhi e o dei um tapa no braço.
- A gente pode, sei lá, sair e fazer alguma coisa depois da colação!
- Ah, não, ...
- Tipo ir no Joe’s...
- Você não quer fazer isso...
- Tomar um milk-shake...
- Fazemos isso todos os sábados desde o ginásio!
- E ouvir o pessoal quebrar alguns copos de cristal cantando no karaokê! Qual é, , é o melhor programa para um sábado à noite! Além do mais, vou sentir falta de fazer isso com você depois que nossas vidas de adultos começarem – fiz um biquinho.
- Ah, ela está usando seu tom de voz pidão.
Ri.
- Pensa com carinho, vai.
- Só porque você sabe que eu não resisto a esse tom de voz – brincou, me abraçando brevemente. Sorri. – Ok, eu vou pensar.
- Legal! – Beijei seu rosto, me afastando. – Deixa eu ir logo, minha mãe já deve estar saindo.
- Boa noite.
- Boa noite. – Respondi, me afastando de sua casa.

Fiz o caminho para minha casa, na rua de trás, observando o sol sumir no horizonte, com as mãos nos bolsos para esquentá-las, e quando cheguei lá minha mãe tirava o carro da garagem.
- Ei. – Ela parou no final da calçada, abaixando o vidro para mim. – Deixei uma lasanha no forno, cuida para não queimar, pode desligar em dez minutos.
- Ok, bom trabalho. – Me aproximei a deixando beijar meu rosto, e ela sorriu piscando para mim.
- Vou tentar vir um pouco mais cedo.
- Não faça isso, você pode deixar de salvar a vida de alguém.
- Quero passar mais tempo com você.
- Eu estarei dormindo. – Sorri para ela, que me devolveu uma careta e voltou a andar com o carro.
- Cuide-se!
Entrei em casa depois de minha mãe partir, e chaveei a porta. Estava frio e escuro, e eu estava sozinha. Minha mãe era enfermeira do turno da noite do hospital da cidade, e trabalhava muito, muito mesmo para bancar todas as nossas mordomias. Em casa éramos só nós duas, o que significava que eu sempre ficava sozinha durante a noite. Era silencioso, mas era outra coisa com a qual você acostumava.
Olhei a lasanha e subi para o quarto, ligando a luz e fechando a porta. Soltei o celular em cima da cômoda e encarei meu reflexo no espelho, me encarando de volta com aquela cara... com aquela cara.
Passei a mão na cicatriz que riscava o lado direito do meu rosto e suspirei, forçando-me a encarar por mais uns segundos até desviar os olhos. Voltei o olhar ao grande e majestoso piano atrás de mim, um presente que ganhei com muito esforço e muitas horas extras de minha mãe quando fiz quinze anos. Virei de costas e fui até lá, passando a mão pela madeira fria, até tocar o pequeno bonequinho do Darth Vader, fazendo-o balançar sua cabeça incessantemente.
Bem, isso é meio estranho. Sim, eu sou a Garota da Voz.

De início, era para ser só uma brincadeira. Eu sempre amei cantar, sempre amei música em todas as suas formas, e sempre amei tocar o piano. Minha mãe conhecia minha voz, mas apesar de nova, ela mal sabia o que era Facebook e nunca soube que eu gravava vídeos, então não fazia ideia de que aquilo estava acontecendo. Era meio difícil ligar os pontos, na verdade, até porque ela raramente me ouvia cantar, e nunca era com toda aquela vontade que eu cantava quando estava sozinha.
As inscrições no canal, eu não sei como aconteceu. Quando postei meu primeiro vídeo, eu esqueci que aquilo existia por um tempo, e então uma semana depois voltei a entrar no canal e havia cinco mil e quinhentos acessos. Eu mal acreditei. Em questão de meses, à medida que eu ia postando covers semanais, as visualizações e inscrições iam crescendo cada vez mais, e a obsessão das pessoas ao descobrir quem eu era também, quando perceberam que eu me recusava a contar.
Nunca mostrei mais que minhas mãos. Era só olhar para mim e ficava bem óbvio o porquê. Eu via pessoas extremamente bonitas e talentosas se expondo na internet, e recebendo comentários horríveis de pessoas maldosas, sem motivo algum. E eu sabia que se mostrasse meu rosto receberia mais, muito mais daquele ódio, principalmente agora, que as pessoas esperavam por alguém incrível, de acordo com a minha voz. Mas eu não era incrível. Eu era uma pessoa excepcionalmente comum, não fosse a cicatriz que riscava todo o lado direito de meu rosto.

Consegui aquilo aos oito anos, no mesmo acidente de carro que matou meu pai. Era noite, estava nevando e chovendo, e minha mãe estava trabalhando. O carro saiu da estrada e capotou, e um pedaço do vidro da janela cortou minha bochecha na diagonal, desde o canto da boca até o final da maçã do rosto. Foi um corte extremamente fundo, levou dezenas de pontos. Fiz algumas cirurgias, ainda naquele tempo, que amenizaram o estrago da cicatriz, mas não podia ser feito muito mais do que aquilo. Era algo com o que eu precisaria conviver, como uma lembrança daquela noite. Eu estava em choque, mas em momento algum perdi a consciência. Vi meu pai morrer, e com aquela imagem, eu não consegui sentir mais nada ao meu redor. A dor do corte veio apenas no dia seguinte, quando eu já estava mais calma.
Logo meu corpo começou a mudar, e eu precisei conviver não apenas com a perda de meu pai, mas com ter um rosto deformado em meio às crianças normais do colégio. E aquilo tinha toda a oportunidade de ser um inferno... Mas conheci , e de algum modo ele me ajudou a superar. Eu o via, aproveitando o melhor da vida, sempre rindo e fazendo piadas, e parte de mim queria – sempre quis – ser um pouco como ele.
E o que eu mais amava sobre era que ele não podia me ver.

E agora, enfim, eu era a famosa Garota da Voz. Nunca imaginei, em hipótese alguma, receber toda essa atenção. Foi um choque imenso quando ouvi um dos meus covers tocando no rádio pela primeira vez. Logo as pessoas estavam baixando minhas músicas no iTunes, eu estava na TV, e todo mundo conhecia a Garota da Voz, até mesmo na escola.
Eu tomava o máximo de cuidado para não ser pega. Claro que quem não me conhecia nunca nem imaginaria que aquela era eu, eu era definitivamente a última pessoa da lista de todo mundo. Mas era incrivelmente bom com vozes, ele tinha alguma coisa com elas, dizia que para ele a aparência das pessoas eram suas vozes. E incrivelmente aquilo acabou sendo provado verdade, quando descobri que ele era um radar inacreditável para esse tipo de coisa. Ele conseguia distinguir, pelo modo como a pessoa falava e suas entonações, se aquela pessoa estava sendo verdadeira, se era uma pessoa confiável, se era legal ou uma boa companhia. E eu morria de medo de acabar me entregando. Mas até agora ele nem havia desconfiado.
Eu não queria a atenção. De modo algum. Essa era a última coisa que eu queria. Desde que sofrera o acidente, eu não suportava pessoas olhando para o meu rosto. Eu surtava, era horrível. Nem eu conseguia me encarar por muito tempo, imagine então outras pessoas. Por isso eu me sentia tão bem na companhia de , porque eu sabia que ele não podia me ver. Eu conseguia ser eu mesma, sem me preocupar em estar sendo vista, sem me preocupar que ele estivesse olhando para a cicatriz ou tendo pena de mim. Era libertador.

Sentei no banco do piano e comecei a treinar uma última vez a partitura da música que eu gravaria para a próxima semana. Eu gravava basicamente as músicas que eu gostava e estavam em minha playlist e sugestões. Uma semana, eram músicas minhas, na outra, eram as sugestões dos comentários, e por aí vai.
Nessa semana, a música sugerida que escolhi era Best Thing I Never Had, da Beyonce. Era uma música muito pedida, e eu podia fazer dela algo interessante. Eu não era nenhuma Beyonce, mas acho que o que mais gostavam sobre meus covers era como eu colocava meu estilo na música, mudando apenas a quantia necessária para transformá-la em minha, mas ao mesmo tempo sem perder a identidade original.
Depois de treinar ela mais algumas vezes eu coloquei a câmera para gravar, e em poucos minutos havia terminado. Só faltava a edição, e então no outro dia o vídeo estaria postado.

Segunda-feira, a pior invenção do ser humano. Eu estava no primeiro período de aula, que para meu desprazer era álgebra, e para ajudar ainda não havia aparecido. Olhei mais uma vez para a classe vazia ao meu lado, me perguntando o porquê dos seguidos atrasos ultimamente. Provavelmente ele estava tão de saco cheio de ter que vir para a escola quanto eu. Menos de um mês para o último dia de aula das nossas vidas, e eu sentia que podia chorar toda vez que o despertador tocava de manhã.
Voltei a me escorar na parede ao meu lado, puxando mais o capuz do casaco para perto do rosto e fechando os olhos. Eu ouvia vagamente o professor em uma discussão sobre uma questão do dever de casa com uns alunos, e não podia me importar menos.

- Ei, dorminhoca. – Pulei ao sentir uma picada em meu braço e abri os olhos, encontrando sentado ao meu lado me cutucando com a ponta do lápis.
- Ai!
- Eu pude ouvir você ressonando lá da porta da sala. Dá pra ser mais discreta?
Sentei direito na cadeira e passei as mãos nos olhos. A aula continuava como antes de eu pegar no sono, com conversas paralelas e o professor ainda discutindo alguns exercícios com os alunos da frente.
- Eu sou a pessoa mais discreta que você conhece, se pudesse me ver saberia.
Ele soltou o lápis em cima de minha mesa e tirou as luvas pretas de meio dedo que usava, virando para mim. Virei um pouco para ele também sabendo o que ele queria, e tocou as duas mãos em minha cabeça, descendo devagar por meu rosto e meus ombros.
- Você e esse capuz horroroso – ele murmurou, tirando o capuz de minha cabeça e me fazendo resmungar.
Quando uma pessoa cega conhece alguém novo, ela faz o reconhecimento dessa pessoa tocando nela, sentindo seus traços, sua altura, seu cheiro. tinha o costume de fazer isso comigo todos os dias, porque eu era praticamente a única pessoa com quem ele andava na escola, e ele dizia que o ajudava a ter mais noção das coisas ao redor.
- Eu gosto do capuz.
- Eu odeio o capuz – ele disse me fazendo revirar os olhos.
- Se você tivesse a minha cara...
- Quer trocar, ?
- Está de mau humor hoje, senhor? – Ri fraco.
Ele estalou a língua como protesto e desceu os dedos gelados por meu rosto, passando o indicador em cima de minha cicatriz de leve. Fechei os olhos, gostando da sensação. A verdade era que aquela era provavelmente a melhor parte do meu dia. Eu nunca dissera e provavelmente nunca diria, mas gostava tanto... do modo como ele me imaginava.
- Você é linda, . – Ele apertou meu ombro e sorri fraco. – Deixe de ser boba.
- Você não é o melhor parâmetro para dizer o que a sociedade considera bonito.
- E você se importa muito com a sociedade, não é?
Fiquei quieta, sabendo que aquela era uma discussão perdida para quem já a teve trezentas e cinquenta vezes.
- Cara... vou sentir falta disso. – Ele murmurou, ainda com uma mão em meu rosto.
- Como assim? – Perguntei, confusa.
- Ah... – ele deu de ombros, virando para frente e começando a colocar as luvas de novo. – Você sabe... com toda essa vida de adulto começando logo – riu.
- Eu já falei para se aplicar para a universidade da Filadélfia comigo. Não entendo o que está esperando. Você sabe que consegue passar lá facilmente.
Nesse momento o sinal para a próxima aula passou, e deu de ombros se levantando. Ele sempre dava um jeito de fugir daquela conversa, e todas as possibilidades possíveis passavam por minha cabeça. Talvez ele simplesmente quisesse ir para longe, conhecer pessoas novas. Talvez ele só não precisasse mais de mim depois do colégio.
- Vamos, você tem geografia – ele comentou, pegando a mochila com uma mão e a guia com a outra. Suspirei, jogando todas as minhas coisas dentro da mochila e levantando, correndo para o acompanhar.
Enquanto caminhávamos pelo corredor para nossas próximas aulas, uma onda de barulhos de notificações começou a ser ouvida no corredor, por todo mundo que possuía um telefone, e logo todos em volta de nós estavam com seus celulares na mão.
- Irado! Saiu o novo cover da Garota da Voz! – Uma menina disse no final do corredor, e mostrou o celular à amiga.
Olhei em volta, para todos pegando seus celulares, e pegou meu braço.
- Abre o Youtube, quero ver qual música é. – Ele pediu. – Tenho a esperança de ela tocar Oasis ainda antes de... nos formarmos. – Ele riu.
Ri junto, caminhando ao seu lado em silêncio por um momento.
- É uma música da Beyonce. – Comentei, depois de um tempo.
- Quantas visualizações? – Ele se aproximou e xinguei. Eu não sabia quantas tinha, mas saquei meu celular do bolso abrindo a primeira de muitas notificações do Youtube e vendo o número na tela.
- Trezentas e duas. – Comentei. O vídeo fora programado para ser lançado às nove da manhã, e em menos de três minutos já tinha todas aquelas visualizações.
- Uau...
Entramos na sala de história, onde teria sua próxima aula, e ouvi algumas pessoas compartilhando a tela do celular e mostrando o vídeo umas às outras.
- Garanto que ela é feia – uma garota disse, sentada na classe enquanto ouvia a música com uma amiga. – Só assim para não querer aparecer. Quer dizer, todo mundo aqui morre para ter um canal de sucesso, e essa garota não quer dizer quem é? Tenho certeza que é feia.
- Se você pudesse me ver como eu te vejo, Candice, mudaria seu conceito de feiura – comentou ao passar pela garota, e comprimi os lábios em uma risada.
- Bom dia pra você também, weirdo. – Ela disse com desdém, como se fosse um xingamento, e começou a cantar Creep, do Radiohead, bem alto me fazendo rir.
- Se você enxergasse não teria toda essa coragem. – Comentei perto dele, o vendo sentar em uma classe vaga no fundo da sala. Coloquei as mãos nos bolsos. – Bem, vou lá. Tenho um teste hoje.
- , espera. – Ele pediu, dobrando a guia soltando na mesa. – Ahn... quer tomar um milk-shake depois da aula?
Olhei pela janela, para o tempo nublado e chuvoso lá fora.
- Hum... claro. Ótimo.
- Joe’s?
- Lógico – ele riu.
- Ok – disse me afastando. – Até mais tarde.
Fui para minha sala, pensando como sempre no quão idiota eu era quando se tratava de . Já deixara de ser sobre fazer suas vontades porque ele era cego há muito, muito tempo. Era porque ele conseguia qualquer coisa de mim só por... existir. E eu nem me importava.

No final da longa e agonizante aula de segunda-feira, fomos até o Joe’s tomar um milk-shake. O Joe’s era um bar e karaokê durante a noite, mas de dia serviam cafés e outros lanches. Sentamos em uma das mesas e pedi um milk-shake de morango, e de baunilha.
- Preciso te contar uma coisa. – Ele disse, soltando a guia na mesa. – Uma coisa meio chata... Mas que eu já devia ter te contado há um bom tempo. Espero que você não me odeie, porque isso vai ser muito egoísta e malvado da sua parte – ele comprimiu os lábios em um sorriso.
Encarei por um tempo, sem saber o que esperar. Ele fazia piadas com tudo, então não tinha como saber quando era algo sério ou não. Apoiei os cotovelos na mesa.
- Você não é cego? Quantos dedos tem aqui? – Brinquei, o fazendo balançar em cabeça para minha piadinha. – Ok, diga.
Ele ficou em silêncio, e então começou a apertar sua guia com as mãos, a girando, e girando.
- Ok, você está me deixando nervosa. Fala, . – Pedi. Eu tinha quase certeza que era algo sobre a faculdade. Era o único motivo pelo qual ele não queria falar sobre aquilo, estava fugindo do assunto. Ele estava escondendo algo. Devia já ter passado em outra universidade, bem longe de Filadélfia... Eu já esperava pelo pior.
- Ok, lá vai. – Ele riu fraco, soltando a guia. – Eu... tenho câncer, .
Pisquei algumas vezes, quieta. Encarei por um tempo, tentando pegar a piada. Balancei fraco a cabeça, ainda sem entender.
- Não tem graça, .
- Não é uma piada. – Ele disse, calmo.
- Não... para, é sério. Você... – Parei, o encarando. Só podia ser uma piada, ele estava em remissão há dezesseis anos. Eu ainda estava com a boca meio aberta, o encarando, e não sei quantos minutos fiquei assim.
- , fala alguma coisa?
- Diz que é mentira. – Pedi. – Por favor. Não tem graça, . Eu...
- Não estou brincando. – Ele repetiu, agora sério. – Eu tenho câncer. Ele voltou. Há alguns meses.
- Há alguns... – Arfei, levando uma mão à boca. Eu não sabia como reagir, o que dizer. O que pensar. – Washington.
Ele assentiu.
Há uns cinco meses havia feito uma viagem de três semanas a Washington com seus pais, e me disse que era para uma experiência com deficientes visuais para testar uma nova tecnologia na universidade de Washington. Eu não entendia nada sobre aquilo, então não vi naquilo nada suspeito. E desde então as faltas frequentes, as mudanças de assunto...
Então algo me atingiu. Assim, como uma pedra na cabeça. Ele não queria falar sobre a faculdade. Sobre o futuro.
- Meu deus.
- Olha, eu sinto muito por não ter...
- A faculdade.
- Eu ia te contar, mas...
- Você não quer falar sobre a faculdade.
- Eu estou aqui, te dizendo que tenho câncer, e você quer saber da droga da faculdade?! – Reclamou, me fazendo olha-lo. Ele balançou a cabeça. Depois suspirou. – Eu não vou, . – Riu fraco. – Não tem porque começar algo que não posso terminar, certo?
Meu olhar caiu sobre a mesa. Eu não podia acreditar. Aquilo havia de ser uma piada de muito mal gosto.
- Como...?
- Caso raro. – Ele deu de ombros. – Tentamos quimioterapia em Washington, mas não estava ajudando. Então voltei, e três vezes por semana estou tentando uma droga experimental antes das aulas... mas não está ajudando em nada. Hoje fiz última sessão. – Ele suspirou. – Acho que eu só sou... muito sortudo. – Debochou.
- Por que não me contou, ? – Perguntei, a voz fraca, sussurrada. – O que... o que eu vou fazer sem você? – Aquilo saiu mais como uma pergunta a mim mesma.
- Exatamente por isso não te contei. – Ele passou a mão no cabelo. – Você estava falando tanto da faculdade, e de depois, e vidas de adulto... Você tinha tanta certeza de que eu estaria lá com você. – suspirou. – Eu não pude. Simplesmente não pude.
Abaixei a cabeça, enterrando o rosto nas mãos. Deus. O que aconteceria agora?

Como uma espécie de desejo, pediu que eu fosse com ele no baile. Ele queria fazer isso com sua última “memória sólida”, o que era doloroso, quase inacreditável. E como eu poderia dizer não?
Com os dias, e com se recusando a continuar o tratamento, ele foi lentamente piorando. Ele estava certo de que não era isso que queria. O tratamento só o dava alguns meses a mais do que ele teria sem, e ao seu ver, todo o sofrimento nõa valeria a pena. Ele não queria aquele fim para si.
As semanas lentamente se passaram, eu passava o máximo de tempo possível com ele. Sem fazer nada, indo ao Joe’s quando ele estava disposto, ou pedindo uma pizza e assistindo a séries inúteis da MTV a tarde toda... qualquer coisa. Eu também o levava os conteúdos e trabalhos das suas aulas, já que ele não estava mais apto a ir, e cismou com a ideia de passar no ensino médio, mesmo que isso não fazendo mais diferença.
“Vou morrer se não conseguir esse diploma”, era o que ele dizia. não perdia o senso de humor em momento algum, o que acabava de um modo ou de outro ajudando a quem estava ao seu redor a aceitar melhor aquilo tudo.
Estava sendo o período mais difícil de minha vida. Eu sempre estive acostumada com o fato de ter , era como... ter minha mãe. Era algo natural. E parte de mim ainda estava tão furiosa com ele por ter me deixado tão pouco tempo para aproveitá-lo. Mas a outra parte não conseguia culpa-lo por nada, porque a verdade era que eu amava . O modo como eu o amava não importava, eu simplesmente amava. Era forte, e bom. E eu não queria perde-lo.

- Se eu pudesse ter um último desejo seria que ela cantasse minha música preferida – riu fraco, comentando enquanto ouvíamos um dos covers da Garota da Voz. Estávamos em seu quarto, fazendo nada, conversando, ouvindo música, quando sua playlist começou a tocar uma delas.
- Verdade? – Perguntei, o olhando. Eu sabia qual era sua música preferida. Ele a ouvia todos os dias, e dizia que era a única que nunca enjoou e nunca enjoaria de ouvir.
- É. Sabe, acho que saquei a dela. De verdade. – Comentou. – Porque ela não se mostra pro mundo.
O olhei, curiosa.
- Por quê?
- É porque não importa. – Ele deu de ombros. – Eu posso sentir pela voz dela como ama a música, como vive a música. Acho que isso não é sobre ela, é sobre a música, sobre a paixão. Então não importa quem ela seja.
Sorri, balançando a cabeça em concordância. Era exatamente isso. Eu já deixara de me importar com a ideia de aparecer para o mundo, porque não tinha o desejo de que ninguém soubesse quem eu era. Exceto, talvez, ele.
- Coloca aquele do Neon Trees. – pediu, e pesquisei em suas músicas pelo cover de 1983. Era um dos meus preferidos. Coloquei tocar, e ele deitou a cabeça para trás no travesseiro em sua cama ouvindo a música. Enquanto ouvia eu o observava, aproveitando daquela sensação de poder olhá-lo por um tempo. Logo não seria mais possível.
A música terminou e eu continuei o olhando.
- ... eu te amo.
Ele virou a cabeça minimamente para mim.
- Como?
Sabia que ele havia ouvido. E naquele momento eu não me importava com mais nada, além de com que ele soubesse daquilo. Aproximei o rosto do dele, tocando meus lábios nos seus devagar, pressionando-os por um momento. Então voltei a me afastar.
- Só queria que soubesse – sussurrei.
sorriu. Procurou minha mão na cama e eu segurei a dele, apertando firme.
- Agora, isso é tudo que importa pra mim.
Sorri também, me aproximando dele e encostando a cabeça em seu ombro. Eu estava ali para ser o que precisasse que eu fosse. Uma amiga. Uma companheira. Qualquer coisa. Estava cada vez mais perto do fim, e eu faria de tudo para deixa-lo feliz pelo maior tempo que conseguisse.
- . Posso te pedir uma coisa? Como um... presente de despedida?
- Qualquer coisa. – Assenti.
- Liberte-se. – Ele disse. – Pare de se esconder. Ninguém precisa viver assim. E você é linda... Deus, você é tão linda. É a pessoa mais linda que conheço, em todos os quesitos que realmente importam - Ele suspirou. – Por favor... Não tenha medo de se mostrar para o mundo. Eu ficarei tão mais em paz se tiver a certeza de que você vai ser... livre. – Ele me apertou levemente com o braço. – Então... pense nisso. Ok?
- Ok. – Murmurei depois de pensar sobre aquilo. – Eu vou tentar. Prometo.
Ele assentiu, rindo um pouco enquanto me abraçava.

Então o baile chegou. estava muito debilitado, sua mãe não queria deixa-lo ir de jeito nenhum. Então ele ficou nervoso, começou a gritar, chorou. chorou como eu nunca havia visto antes, e nem eu nem ninguém sabíamos o que fazer. Ele disse enquanto chorava que já estava morto de qualquer maneira... e que queria fazer isso para sentir que ainda tinha algum pingo de controle sobre sua vida. No final das contas, sua mãe acabou deixando-o ir, mesmo que muito relutante. Ela confiava em mim, e prometi cuidar dele a todo custo.
Então eu me arrumei e voltei mais tarde em sua casa para ajuda-lo. Ele teria que ir de cadeira de rodas, mas não se importou muito. E mesmo fraco, ainda estava lindo naquele terno. Ele fez questão de colocar um corsage em meu pulso, mesmo que soubesse que eu achava aquilo tudo idiota.

Nós chegamos na escola, e o baile já rolava. Atraímos alguns olhares, é claro, como sempre, mas todos já sabiam o que estava acontecendo com e ele nunca ligou para a atenção, de qualquer forma. Já eu, estava segurando meus nervos dentro de mim da melhor forma possível.
Ficamos em uma mesa mais afastada, e por um tempo só conversamos. A atmosfera até que estava boa, e ele parecia um pouco melhor naquele momento.
- Planejei poder dançar com você nessa noite – ele disse e riu fraco. – Sinto muito.
- Não tem problema. Você sabe que eu não aceitaria de qualquer maneira – disse, rindo, e ele assentiu.
- Disso eu sei bem.
Eu já estava pensando naquele momento há algum tempo. Tinha planejado fazer uma coisa naquela noite, mas até agora não sabia se tinha a coragem necessária para de fato fazê-lo.
- , deixe-me ver você. – Ele pediu, virando para o meu lado, e me aproximei da sua cadeira de rodas, me abaixando em sua frente e me apoiando em seus joelhos. Ele passou as mãos em meus cabelos com calma, sentindo cada cacho e cada onda, e depois desceu para meu rosto, descendo os dedos pelos meus olhos e cílios, bochechas , por minha cicatriz, nariz e boca, até descer pelo queixo. Então acompanhou a curva do meu pescoço até os ombros, e eu tinha os olhos fechados o tempo todo. Meus olhos ardiam, porque eu sentiria tanta falta daquilo... Mas eu jamais choraria em sua frente. Sabia que ver alguém que ele gosta chorar destruía , eu o conhecia como ninguém.
- Você é tão linda... – comentou, sorrindo. – Nunca se esqueça disso, tá legal?
Eu o encarei por um tempo, abaixada em frente a ele. Queria dar-lhe um último presente, e sabia o que precisava fazer. Então eu levantei e me aproximei do seu ouvido.
- Fique bem aqui. E ouça. – Pedi, passando a mão por seu braço e me afastando.
Fui até atrás do palco onde um DJ comandava a playlist que tocava na festa. Meu coração podia pular para fora do meu peito, mas eu precisava terminar aquilo agora. Precisava, por ele. E também por mim.

Não foi difícil conseguir com que o DJ encontrasse um microfone e me emprestasse para fazer um pronunciamento. Então eu subi no palco, e quando a música cessou e o microfone foi ligado, todos os rostos no salão viraram para mim. No meio do silêncio e de todos aqueles olhos me encarando, engoli em seco algumas vezes sem conseguir sequer respirar. Então fechei os olhos e respirei fundo. Você pode, . Você consegue. Você é ela.
Encontrei em nossa mesa, ouvindo com curiosidade, e de algum modo consegui suprimir todo aquele medo dentro de mim e guarda-lo bem fundo, suprimindo toda e qualquer insegurança. Coloquei , a weirdo, a que se escondia, que tinha vergonha e medo de quem era, em segundo plano. E trouxe ao palco a Garota da Voz.
Trouxe o microfone até a boca, e comecei a cantar.
- Hold on... hold on. Don’t be scared... You’ll never change what’s been and gone. May your smile shine on... Don’t be scared...Your destiny may keep you on.
Com a mão que não segurava o microfone eu podia me imaginar tocando as notas no piano. Então a música ganhava vida, assim como a melodia, e entrava em sua parte mais conhecida.
Cause all of the stars have faded away, just try not to worry, you’ll see them someday. Take what you need and be on your way, and stop crying your heart out!
As pessoas se encaravam com espanto, surpresa e todos os tipos de sinônimos a isso, mas quando olhei para , ele apenas... sorria. Continuei cantando a música, sua preferida no mundo, sem conseguir parar de olhá-lo, e quando terminei encarei todos os olhos espantados que me encaravam de volta.
- Eu agradeço por todas as assinaturas online. – Disse para todos. – Por favor... tomem cuidado com como tratam as pessoas ao seu redor.
Entreguei o microfone ao DJ, descendo do palco, e voltei apressadamente à nossa mesa.
- ... Você...
- Eu sempre soube. – Ele encolheu os ombros, sorrindo para mim. – Desde que a ouvi pela primeira vez. Você acha que eu não reconheceria sua voz, em qualquer lugar? – Riu fraco, procurando meu rosto e então encostando sua mão em minha bochecha.
- Mas por que você... Nunca disse nada?
- Porque era você quem precisava fazer isso, . Se mostrar para o mundo, sair da sua casca. – Ele encolheu os ombros. – Era algo que só você podia fazer.
Depois de um momento eu ri, impressionada.
- ... – Ele desceu as mãos por meus braços e segurou minhas mãos. – Não sei se algum dia te disse isso. Mas eu te amo. E obrigado por ter feito da minha vida algo importante. Obrigado por ter me permitido ser alguém para você.
Balancei a cabeça.
- Você é tudo para mim! – Exclamei, levantando e o beijando.
Aquela foi a última noite feliz que passamos, mas de algum modo valeu por todas as que nunca teríamos a chance de ter.

Não é preciso explicar o que aconteceu depois. De histórias assim o mundo já está cheio, afinal. O dia em que morreu, foi quando postei meu último vídeo no canal, cantando uma música original escrita por mim e dando as caras no vídeo. A música, chamada Close Your Eyes, deixava uma mensagem para cada pessoa nesse mundo que ainda não tinha encontrado sua coragem interior, como eu encontrei a minha: So I want you to close your eyes, sing to the world tonight and show them what’s beautiful.
Apaguei o canal depois de um tempo, dando adeus à Garota da Voz, que fora apenas um capítulo de minha vida, mas que não resumia quem eu era. Eu era muitas coisas além de uma simples voz.

Como disse lá no início, essa foi só a breve história de como uma única pessoa conseguiu me fazer descobrir a coragem dentro de mim quando nem eu sabia que era capaz de tê-la. foi minha maior inspiração, para fazer o resto da minha vida valer. E vivi cada dia tendo em mente que estava vivendo por ele, também.


FIM.



Nota da autora: (16/04/2016) Essa não é nem de longe minha melhor oneshot, mas até que não ficou tão ruim. Obrigada a quem ler, comentem o que acharam e fiquem com minhas outras fanfics (são boas, eu juro) xx.



Outras Fanfics:
The A Team
I'll Be Here By Your Side

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