Finalizada em: 02/02/2021

Capítulo Único

1985 foi o ano em que eu mudei para Hill City, na Dakota do Sul. E, bem, se dizem que Portugal é o cu da Europa, então Hill City com certeza é o cu da América.
Essa história até que começa aí, mas eu não sou bem o protagonista dela. A pessoa a quem eu quero chegar se chama .
Em 1985, tinha dezesseis anos, era uma das primeiras da turma, dona de um sorriso encantador, bem sincera, do tipo meiga, um pouco atrapalhada, e gosto de dizer que, se as águas de um rio marcassem algum rastro, com certeza seria esse o formato dos fios do cabelo dela. Muito parecido com os da Farrah Fawcett e tão bonitos quanto.
Eu lembro de como ela costumava dizer que eu era um poetista safado que ganhava as pessoas com as palavras, e que ela jamais cairia na minha conversa fiada. O que posso fazer, sou músico, e combinar palavras que encantem e convençam é a minha especialidade. Porém, na época, eu não sabia que isso podia acabar tão mal. Que comecemos pelo final.

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3 de setembro de 1986

No dia 3 de setembro de 1986, eu entrei na sala do Sr. Harmon com um peso maior do que eu gostaria. E não estou falando de gordura, era um peso maior no coração mesmo. A Hill City High School era uma escola mediana, com professores medianos e alunos medianos. Todo mundo ali só esperava a faculdade ou alguma oportunidade maior para ir embora da cidade, porque você só teria uma vida em Hill City caso quisesse comprar lotes de terra com a prefeitura ou entrasse para a política. A cidade era tão pequena que desanimava, não estava no espírito dos jovens permanecer ali, ainda mais sabendo que a vida estava toda lá fora.
Mas tinha uma pessoa ali, naquela escola, na minha sala de aula, que era uma das únicas que não compartilhava desse desejo como único objetivo, porque preferia que o futuro a surpreendesse. Ela costumava sentar na minha frente.
Contudo, naquele dia, não entrou na sala no primeiro toque e não entrou no segundo toque também. Eu poderia abrir um buraco naquela porta de tanto que a fitei esperando por aquele momento que não aconteceu. Depois de quase três meses, o que eu mais queria era vê-la de novo.
— Se está esperando pela , nem perca o seu tempo. - Inez, que estava sentada ao meu lado, cuspiu todo o seu veneno na minha direção. A maior fofoqueira da escola, quiçá da cidade, mas estaria sendo injusto se dissesse que a Inez era o principal motivo da não estar mais falando comigo. - Ela mudou de sala.
Eu queria poder listar todos os motivos e suposições que fizeram tomar aquela decisão, mas não precisava, porque pensava que o único motivo era eu. Ela me odiava tanto que não suportava nem ficar no mesmo espaço que eu por algumas horas. Suponho que foi o jeito que encontrou de me avisar isso e que sou merecedor de todo o sofrimento que aquilo causaria. E acredite, eu estava sofrendo. Tão triste quanto quando quebrei o mini-boom box que o meu tio tinha me dado aos 12 anos. Felizmente, mais tarde, ele me presenteou com um walkman da Sony, mas aquele tipo de dor não podia ser substituída com um aparelho eletrônico novo.
Como se não bastasse, Inez se voltou para mim novamente com mais notícias ruins.
— Ah, esse recado é para você.
Ela me passou um papel pequeno, dobrado. Quando o abri, percebi que era de .

Diga ao que vou perdoá-lo... DAQUI UNS DEZ ANOS.
- .

No final, posso dizer que o dia foi horrível. Quatro aulas de cinquenta minutos de tédio total, seguidas de uma pausa de cinquenta minutos para o almoço e depois mais três aulas de cinquenta minutos de mais tédio total. Se acrescentar o desprezo de , completo a lista. A única hora que a vi, foi na hora do almoço, quando ela sentou com os amigos dela em uma mesa bem longe da que eu estava com os meus.
Mas ir embora foi pior, porque percebi que seria a primeira vez que iria embora sozinho desde que a conheci.
Só tinha três jeitos de fazer o trajeto da sua casa até a escola:
1) você tem um carro e carteira de motorista;
2) de ônibus escolar;
3) andando;
Eu e morávamos no mesmo bairro e a casa dela era caminho para a minha, ficava apenas a três quadras da escola, por isso nós usávamos a terceira opção. Eu não ia bem caminhando, ia de skate. As BMX eram o grande sucesso, era a bicicleta que todos queriam, mas sempre achei as pranchas de quatro rodas muito mais atrativas.
No quinto ano, eu levei um soco no estômago do meu coleguinha de classe chamado Ginter Turner. Aquele soco me tirou o ar, e por um momento, foi como se eu não pudesse respirar. Passar em frente da casa de naquele dia foi como levar um soco do Ginter de novo.
Poucos momentos marcam tanto a vida de uma criança quanto o dia que ele apanha pela primeira vez, que ele leva o primeiro fora ou que ele finalmente conquista sua primeira garota, e quando a perde também.
Lembrei de todas as vezes que passamos juntos por essa mesma rua. De todas as vezes que voltamos para casa juntos. Eu no skate, e ela do meu lado acompanhando, contando todas as suas histórias, como a vez que viajou até Boston com a família, foi até Massachusset Avenue só para comprar uma fita do Phil Collins, e quando chegou lá, descobriu que todas estavam esgotadas.

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Guardo aquele bilhete até hoje, nunca consegui jogar fora porque para mim ele representava esperança.
Outra coisa que guardei foi aquele skate. Andei com esse skate por quase uma década, até ter que comprar outro porque o velho partiu ao meio quando tentei um 900¹ em 1988. Nesse dia, lembrei das palavras da minha mãe me dizendo que nada dura para sempre.
Mas aproveitei tudo que tinha para aproveitar. Foi por causa desse skate que fiz meus primeiros amigos, Jonny e Collin, assim que cheguei em Hill City, e por causa dele que passei as idades de 12 a 25 anos arruinando minhas juntas. Também foi por causa dele que conheci .
No início, eu costumava andar com ele nos corredores, porque vamos combinar, era bem mais rápido e prático do que caminhar. Naquele primeiro mês de aula, levei advertências o suficiente para nunca mais andar de skate nos corredores da escola, mas em uma delas, aconteceu algo especial.
Andar de skate num corredor levemente movimentado não é uma boa ideia, leve isso para sua vida. A não ser que seja uma boa ideia, mas você não saiba disso ainda.

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14 de outubro de 1985

Das manobras de skate, a que eu mais gostava de fazer era o Kickflip², e tentei executá-lo em um dos corredores da escola naquele dia. Até hoje não entendo bem o que aconteceu, talvez não tenha calculado o espaço livre direito que tinha, gosto de pensar que foi o destino que jogou ali de repente na minha frente.
Meu ‘skate’ voou tão longe que não fazia ideia em qual cabeça ele devia ter parado. Coloquei a mão na testa, torcendo para aquilo não me render uma suspensão enquanto ela tentava se levantar. Ela apoiou as mãos no chão, mas olhou bem para mim antes de se reerguer, admirei seu rosto angelical, seus cabelos caindo no meu peito, seus olhos meio assustados, ao mesmo tempo que cheios de fúria. Acredito que o transe durou alguns segundos, antes de nós nos separarmos rápido e ela arrumar a barra do cardigã branco que usava. — Meu trabalho! – Exclamou, observando todas as folhas espalhadas pelo chão.
— Meu ‘skate’! – Falei, olhando ao redor e o encontrando próximo à escada. O peguei junto de algumas folhas antes que alguém conseguisse pisar em cima.
— Olha só o que você fez! Não sabe que aqui não é lugar de andar de ‘skate’? Você tá pensando que é quem? Tony Hawk? – Disse, ainda inconformada, e meus olhos brilharam como um farol na costa ao ouvir o último nome. Tony Hawk, o cara que tem a minha idade e já é uma fera no ‘skate’ profissional.
— Conhece o Tony Hawk?
— Conheço. Por que a surpresa? - Ela respondeu, ainda ríspida, juntando as folhas. Fala sério, olhando tudo isso de papel, me perguntei o quanto essa garota escreveu pelo tamanho desse trabalho.
— É que ele não é bem uma celebridade. - Tentei explicar. - Quer dizer, entre os skatistas sim, mas não aos leigos.
— Tenho um irmão mais velho que é fissurado nele. - Ela parou na minha frente, segurando firme o caderno e todos os papéis juntos, certamente fora de ordem.
— Entendi. - Respondi, mas seu rosto não mudou. - Olha, sinto muito... - Apertei os olhos e consegui enxergar o seu nome entre uma das folhas que peguei do chão. - , por te atropelar com o meu skate.
— Tanto faz. - Revirou os olhos e pegou os papéis da minha mão, antes de me dar as costas e seguir seu caminho pelo corredor. Decidi ir atrás.
— Sou o .
— Por que ainda está falando comigo? - Ela me olhou pelo canto do olho enquanto caminhávamos lado a lado, ela balançando todas as pulseiras que tinha nos pulsos. Sério, tinha mais pulseiras e colares do que a Cyndi Lauper.
— Por que não falaria? Acho que somos da mesma turma.
— É que... Você não anda com aquele pessoal da Inez? A Shelby, Stefen, Mandy... Sabe? Essa gente aí. - Entramos na sala, sentou em uma das cadeiras da fileira do meio e decidi sentar atrás dela.
— Sim, mas qual o problema?
— É que esse colégio possui meio que uma hierarquia, não percebeu? Ninguém se mistura.
— Eu não ligo para essas coisas, gosto de ser amigo de todo mundo. Além disso, Shelby é a minha prima, então...
— Prima? Não sabia que ela tinha parentes nessa escola, e você não é daqui.
— Somos primos de terceiro grau, nunca fomos muito próximos, a minha família mudou para cá tem poucos meses.
Ela sorriu como se tivesse entendido bem, e virou para frente quando o professor chegou para começar a aula. Fiquei contente por saber que não me odiaria eternamente por aquele acidente, refutando o argumento da minha mãe de que mulheres podiam guardar rancor até o fim dos tempos.


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odiava o meu skate, mas tivemos momentos bons.

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14 de outubro de 1985

— Vamos, é a única coisa que posso fazer por você. Vai ser um passeio legal. - abaixou a cabeça e olhou para o meu skate como se fosse um objeto alienígena. Assim que a aula terminou naquele mesmo dia, decidi que queria compensá-la pelo atropelamento.
— Se você não me matar, com certeza. - Apesar da resposta mergulhada em ironia, ela subiu no shape³, que estava bem firme no chão pelo meu pé. Eu sorri, satisfeito, vendo que consegui convencê-la.
— Tenta manter os pés juntos, beleza? — Concordou, e eu continuei atrás dela. Pousei as mãos gentilmente na sua cintura e fez um movimento tão brusco para se livrar do meu toque que, se eu não estivesse com o regular⁴ ainda no chão, o skate escorregaria para frente, e teríamos caído os dois.
— O que pensa que está fazendo? - Tentou virar o rosto o máximo que conseguiu para conseguir olhar para mim.
— Quer mesmo que eu não te segure? - Ela olhou para os nossos pés e para o asfalto quente, depois para mim, pensando no que responderia, e decidiu ceder. Pousei as duas mãos na sua cintura e finalmente comecei a remar com o pé esquerdo para ter impulso, eu era destro, logo, impossível ter uma base goofy⁵. Era tranquilo andar com ela, era leve como uma pluma, e apesar de estar um pouco nervosa, ela não se mexia ou tremia.
— Curtindo o passeio? – Perguntei, aproximando a boca do seu ouvido, diria que um passo separava nossos corpos e julgava que era o máximo que eu poderia me aproximar.
— Se com curtir você quer dizer fixando os olhos em todos os possíveis obstáculos aos quais você pode bater e nos matar, sim. - Comecei a rir e desviei de um Opala cinza estacionado. Andar na rua era bem melhor do que andar na calçada cheia de buracos e grama.
— Abre os braços, curte um pouco. - tinha os braços cruzados bem colados ao corpo, e quando disse isso, só serviu para ela se abraçar mais.
— Nem ferrando, na verdade, estou pensando seriamente em descer disso e continuar o caminho a pé, então tente me distrair do modo menos libertino que você conseguir. - Ela disse de modo tão decidido que quase freei sem querer, um perfeito aviso de que eu não deveria descer mais as minhas mãos do que aquilo.
— Como é?
— Isso que você ouviu, não sou idiota, . - Apesar do temor, eu sabia de alguma forma que teria ficado de frente para mim para falar aquelas coisas, com o skate ainda em movimento. Ela era a garota mais esperta que eu já havia conhecido. - Vocês garotos são todos iguais, só querem saber de sexo. Não vou me surpreender se tiver algum ato impudico, mas já te aviso que não estou aqui para isso. - Ela fez uma pausa, e quando pensei que não ia dizer mais nada, ela continuou. - E teria coragem de quebrar esse skate na sua cabeça se fosse preciso.
Era impossível não rir. podia ser quieta e um pouco tímida, mas tinha mais atitude que Patti Smith quando cantou em rede nacional que Jesus morreu pelos pecados de alguém, não pelos dela.
— Também não estou aqui para isso.
— Ah, conta outra.
— To falando sério, gostei de conversar com você.
não disse mais nada, e queria ter podido decifrar seus olhos. Ela não decidiu descer do meu skate, mas ainda a sentia como se estivesse prestes a ter um piripaque.
— O que você vai fazer quando chegar em casa?

— O que foi? Queria que eu te distraísse, é exatamente o que estou fazendo. - Respondi, tomando impulso para remar novamente, tentando não colocar tanta pressão nos dedos das mãos, mas era tão bom segurá-la, acredito que jamais ia esquecer da sensação. Ela suspirou, mas consegui enxergar um sorrisinho no canto da boca.
— Bom, meu pai colocou uma pequena televisão no meu quarto, basicamente eu me aninho na cama o dia todo e assisto Mary Lou Retton fazendo ginástica ou os clipes da Bonnie Tyler e Cyndi Lauper na MTV.
— Você não gosta de sair?
— Ah, gosto, a Ajok e a Miranda vivem me arrastando pra Nordstrom no Bellevue Square Mall.
— Quem são?
— Minhas amigas.
— Por que elas te levam lá? — Perguntei e fez um movimento com as mãos para eu virar à direita. Percebi que dali aprenderia o caminho para casa dela e que o nosso curto passeio estava acabando.
— Porque, de acordo com elas, é onde costuma-se encontrar caras bonitos. - Ela disse e logo em seguida soltou uma risada, como se aquilo não fosse tão importante para ela. - A minha casa é aquela ali.
Apontou para a última casa no final da rua, apertei os olhos, mas consegui enxergar e nos mantive na mesma direção até lá.
A casa dela era como um chalé de contos de fada. A mais simples da rua, mas a mais confortável e aconchegante. Tinham duas colunas de pedra, sendo uma delas a chaminé do que poderia ser uma lareira, uma janela hexagonal era centralizada no telhado e tinha em destaque uma cortina lilás, que balançava com o vento. Imaginei que aquele deveria ser o quarto dela. Parei o skate devagar ao lado da calçada e mantive o pé direito nele, para que pudesse descer sem escorregar. Assim que ela saiu, bati o pé no tail⁶, meu skate subiu na mesma hora e eu agarrei o nose⁷, o mantendo no chão. Ela deu um sorriso, olhando para mim enquanto arrumava as alças da mochila nos ombros.
— Eu te garanto que dá pra fazer muito mais coisa no Bellevue além de ir na Nordstrom atrás de caras bonitos. - Dei uma piscadela e não deixei que ela falasse mais nada, queria que tivéssemos muito assunto no dia seguinte. - A gente se vê amanhã, .
Sorri de volta, soltando o nose e remando para pegar impulso, gostando de saber que eu morava duas ruas depois da dela.
Naquele momento, enquanto fazia o caminho de volta, imaginei como deveria ser passar os dias frios enrolado com num cobertor de frente para aquela lareira ou comendo um sanduíche de salame numa noite de verão, com o ventilador ligado no quarto dela porque lá fora estaria fazendo 35° graus.


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Eu me lembro de andar no meu skate enquanto ela caminhava do meu lado, falando e falando como se eu fosse a única pessoa no mundo que pudesse ouvi-la. Ela me falava dos seus sonhos, das suas inspirações. De como ela gostava de ir todo sábado na 7-Eleven comprar chocolate, de pegar escondido os vinis do Prince da sua mãe para escutar “Uptown Girl” de madrugada, de sair toda sexta à noite para encontrar os amigos e procurar cassetes de filmes nas locadoras para alugar, depois de tomar iogurte congelado na sorveteria da esquina se não tivesse dinheiro para ir ao cinema.
Sua matéria preferida era literatura inglesa, amava a Jane Austen, o Charles Dickens e Virginia Woolf. Ela escrevia poesia nos seus diários e gostava de fazer palavra cruzada. achava que os Beach Boys eram muito melhor do que os Beatles, que a rivalidade deles nunca foi com os Stones, e numa dessas conversas sobre americanos x ingleses descobri que ela ouvia além de diva pop, gostava do David Bowie, do The Bangles, do Dire Straits e “Home Sweet Home” do Mötley Crüe era a sua música favorita, mas lamentava não ter um walkman para sair por aí escutando sempre que quisesse. No dia seguinte a isso, eu gravei algumas músicas que ela citou em uma fita e levei o meu com o fone extra para que nós pudéssemos ouvir juntos enquanto voltávamos para casa.
Demorou muito até que finalmente chamasse para sair. No nosso primeiro encontro, fomos ao cinema assistir De Volta Para O Futuro porque ela dizia amar o Michael J. Fox, mas no nosso primeiro beijo em cima da roda gigante do Atlas - um parque de diversão que estava passando pela cidade -, ela me confessou que me achava mais bonito que ele. Foi dali em diante que além de uma amiga, eu ganhei uma companheira.
Eu não perdia uma oportunidade de conhecer melhor a galera dela. Ajok e Miranda foram as primeiras, elas eram parecidas em quase tudo, mas tinham sua própria personalidade. Depois veio o Eddie, o locutor da rádio da escola e o seu irmão Peter, que comandava o clube de xadrez. Nós lanchávamos juntos uma vez na semana na Orange Julius, porque eles tinham promoção de hambúrguer toda quarta. Eu e vivíamos indo no Bellevue Square Mall para visitar Miranda depois dela ter conseguido um emprego numa loja de departamentos lá dentro, comprávamos ‘milkshake’ de pistache na Frederick and Nelson, e usávamos a nossa linda face sem-vergonha para entrar na AT&T Store e fazer uma ou três ligações gratuitas. Já as noites de sábado eram nossas, dirigíamos até a Skoochie's, uma lendária discoteca adolescente muito popular entre os Wavers e Goths, gays e garotas que adoravam dançar Wham!, UK, The Cure, Depeche Mode, Ministry, X, Madonna, como eram os amigos de .
Já com os meus amigos, não foi muito fácil, se recusava a sair com eles, com exceção de Jonny e Collin, que faziam parte da minha banda. dizia que era difícil conversar com Shelby, que ela tentou muito, mas o jeito da minha prima não a agradava de maneira alguma e que ela não tinha intenção alguma de entrar para a rede de fofocas da Inez que nem sempre eram verídicas.
E tinha o Stefen, que namorava Mandy, mas me contara que antes disso eles eram amigos, se conheciam desde criança. Não se falavam direito há algum tempo porque, de acordo com ela, Stefen mudou muito, mas ele nunca escondeu que sentia algo mais por ela, mesmo namorando outras garotas.

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18 de dezembro de 1985

— Ei, , aqui!
Consegui ouvir o grito de Shelby do outro lado do refeitório, ela estava de pé, acenando com um braço. Eu e tínhamos acabado de pagar pelo nosso almoço e estávamos procurando um lugar para sentar juntos dessa vez. Normalmente eu sentava na minha mesa e ela com os amigos dela, mas estávamos namorando e eu queria oficializar aquilo. Olhei para ela como quem perguntasse se estava tudo bem e ela encolheu os ombros como resposta. Andamos até lá, e se não estivéssemos usando as mãos para segurar as bandejas, teria segurado a mão dela.
Inez e Mandy estavam uma ao lado da outra, fuxicando como sempre, Stefen estava na ponta, descascando um pedaço de madeira com um canivete e Shelby olhava para o assento vago e segurou a minha bandeja, a pousando na mesa antes que eu pudesse falar algo.
— Guardei esse lugar para você, priminho! - Ela disse, ignorando completamente a presença de ali.
— Valeu, Shelby, mas é que eu queria sentar do lado da . - Respondi, abraçando a minha namorada pelos ombros. Eu sabia que ela deveria estar um pouco desconfortável. A pouca vivência que tive na Hill City High School me ensinou porque os grupos de lá não se misturavam.
— Ah, claro. - Seu sorriso desmanchou. - A .
Ela sentou em outra cadeira, ficando ao lado de Inez, sentou primeiro e eu logo em seguida ao seu lado. Inez e Mandy finalmente pareceram sair do seu próprio mundinho para prestar atenção em nós.
— E aí, Shelby, tudo certo para festa de ano novo? - Inez perguntou, segurando com os dentes o canudo de uma lata de Coca-Cola.
— Claro. Você pode ir, , os amigos do são nossos amigos. - Respondeu ela, abraçando Inez pelos ombros.
— Ela é minha namorada, Shelby, eu falei para vocês. - Fechei a cara, não gostando nada do jeito que aquelas duas falavam, com imenso ditério e falsa simpatia.
— Ah, claro, e a sua namorada não sabe falar não, ? - Zombou Inez, e as três riram, enquanto Stefen continuava a observar e descascar aquele pedaço de pau.
— Eu sei falar muito bem, obrigada! - Respondeu , cruzando os braços em cima da mesa, afastando a bandeja.
— Dá para ver que sabe.
— Shelby. – Resmunguei, irritado, pois horas antes elas tinham me prometido que seriam legais. Nessas horas que eu sentia a falta que o Collin e o Jonny faziam quando decidiam cabular aula. - Dá para parar?
— Me desculpa, tá? ‘Tô tentando ser legal.
— Isso é o seu legal? - Ouvi sussurrar ao meu lado.
— E para provar isso, você pode levar os seus amigos para nossa festa. - Shelby jogou os cabelos para trás, olhando fixamente para ao meu lado e começou a contar cada um dos nomes nos dedos. - Ajok, Miranda, e aquele… Como é mesmo o nome dele, meninas?
— Eddie. - Respondeu Mandy.
— Ah, o Eddie. - Disse Inez. - Vocês já foram namorados, né?
— Não! - Exclamou . - Eddie e eu sempre fomos só amigos.
— É, você e o Stefen também era bem amigos, né? - Alfinetou Mandy com um sorriso venenoso. Na verdade, as três juntas ali pareciam verdadeiras górgonas, fazendo valer a regra de que quando alguém ‘invade’ o seu território, você está liberado para atacar.
assentiu, meio sem graça, e Stefen levantou os olhos, dando um sorriso de lado. Nunca pensei que fosse ter problemas com Stefen, até aquele momento. Ele se inclinou na mesa, chegando a segurar sua mão.
— Só não fomos mais porque ela não quis. A não ser que mude de ideia. - Stefen deu uma piscadela na direção dela e eu consegui sentir a tensão dela quando afastou a mão dele dali e se levantou. Eu nunca fui um cara de brigas, mas naquele momento, senti muita vontade de socar o rosto dele ali.
— Olha, agradeço muito o convite de vocês imerso nessa falsa generosidade, mas vou ter que recusá-lo, infelizmente. - disse firme, e de verdade, adorei o modo como foi sincera. - Vou passar as festas de final de ano com os meus pais, acredito que vai ser bem mais divertido. A gente se vê depois, . - Ela se inclinou e beijou a minha bochecha direita.
Os quatro pares de olhos seguiram enquanto ela saia em direção da mesa dos amigos dela, talvez não tivesse ficado tão de boa quanto demostrou, mas eu ainda fazia questão de demonstrar o meu descontentamento.
— Porra, galera, precisava? – Perguntei, me levantando. Com aquele clima era impossível comer ali.
— Ah, qual é, , a gente tava só brincando. - Falou Shelby.
— Foi só uma provacaçãozinha, não faz mal. - Falou Inez e os quatro soltaram risadinhas.
— Dispenso. - Foi o que eu disse antes de ir atrás de .


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Percebi que se eu sempre ficasse do lado dela, aquelas coisas não a abalariam tanto.
E cada vez mais eu ia entrando no mundo de e ela no meu.
O final de 1985 foi difícil para ela. A mãe largou o emprego de anos, o pai não viu a ruptura com bons olhos, eles brigavam quase todos os dias, o irmão mais velho foi levado para o caminho das piadas de baixo nível regados a álcool, drogas e tabaco, o resto da família, todos uns idiotas hipócritas, percebi que se não fosse por mim e pelos seus poucos amigos, estaria sozinha nesta porra de vida. Mas foi próximo no verão de 1986 que tudo pareceu desabar, não só para família dela, mas entre a gente também.
Era a noite do baile, um dia antes de iniciar as férias de verão, numa noite quente do começo de junho. Tínhamos um plano para passar o verão juntos num acampamento de férias que eu sempre quis ir, eu nem imaginava que naquela noite nossos planos seriam jogados numa privada com direito a três descargas.

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7 de junho de 1986

Eu nunca gostei de bailes, sempre achei a maior amolação e perda de tempo. Odiava usar terno ou roupa social e bailes escolares eram péssimos porque:
1) raramente tocava música boa;
2) a comida é mais ou menos e o ponche é péssimo;
3) os temas são sempre bregas;
4) não sei dançar;
5) e odeio multidões.
Só de pensar em ficar no meio de toda aquela gente, minha claustrofobia atacava. Sempre tive crises de asma, era recorrente internações em hospitais. Certa vez eu vomitei toda uma ala do hospital. Parecia um rio jorrando naquele chão limpinho. A asma parecia que iria me levar qualquer dia. Sempre com meus pais lindos tudo voltava ao normal com uma nebulização de duas, três ou quatro horas. Pais são mesmo demais. Os ataques pararam há quase três anos, mas podia sentir eles voltarem só de me imaginar no meio daquela multidão sem poder me movimentar.
No entanto, depois de muito reclamar, decidi fazer aquele esforço para . Diferente de mim, e como todo o colégio, ela amava aquela morgação, e como namorado dela, eu me senti na obrigação de ser o seu par. Ela conseguiu me convencer depois de tanto dizer que a gente nunca sabe quando vai ser o nosso último baile e que eles são capazes de marcar a nossa vida. Que era para aquela noite ser perfeita.
Quando cheguei na casa dela às 6 da tarde e bati na sua porta, eu estava ansioso, não para o baile, mas para vê-la de qualquer jeito porque sabia que ia estar bonita até se decidisse usar um vestido todo rasgado. Mas quando abriu a porta naquela noite, eu não a encontrei feliz, ela estava arrumada para uma noite de festa, mas nos seus olhos, a pior maquiagem de todas: lágrimas.
— Nossa você tá... Chorando?
passou as costas da mão no rosto para enxugar as lágrimas e agarrou a minha mão, começando a me puxar para longe da casa enquanto eu carregava o skate pelo eixo. Ela sempre foi linda, mas tinha que dizer que choro não combinava nem um pouco com o seu vestido verde cintilante de tule bordado.
...
— Anda logo, , ou não vamos conseguir tirar fotos. - Fungou.
— Espera um pouco. O que aconteceu?
— Meus pais... Eles estão se separando e dessa vez é para valer, e para piorar, Gary saiu de casa e não quer voltar. Papai pediu que eu saísse de casa para não ter que ficar vendo a briga dos dois enquanto eles vão atrás do meu irmão pra convencê-lo a voltar para casa. - não sabia o que fazia, se andava, se falava ou se chorava mais, me coloquei na sua frente e segurei seus braços gentilmente. Ela grudou o rosto no meu peito enquanto soluçava.
— Sinto muito. – Disse, a abraçando. - Sei que está sendo difícil, mas não fica assim, por favor, você me disse que essa seria a sua noite perfeita, eu te garanto que vai passar.
— Não vai não! - Ela teimou, balançando a cabeça. Eu segurei seu rosto para que olhasse para mim.
— Vai, , você precisa dar tempo às coisas. A minha mãe diz que nada dura para sempre, e a regra também vale para as coisas ruins. Quando voltarmos do acampamento, você vai ver, as coisas já vão ter melhorado.
— O quê? - Ela piscou algumas vezes, soltando as minhas mãos do seu rosto. — , eu não vou.
— Como assim?
— Não posso largar tudo aqui para ir nesse acampamento com você enquanto a minha família desaba!
— O quê? Mas… - A minha voz vacilou com o choque. - A gente tá falando disso há meses.
— Não, você tá falando disso há meses!
— Pensei que fosse o que você queria também.
— Não. Eu só quero um pouco de paz agora, será que dá para parar de falar disso? - olhou para o céu, segurando a cabeça com os dedos imersos nos fios do cabelo.
— Só estou tentando te ajudar! - Rebati com um pouco mais de grosseria do que eu realmente queria.
— Não tá ajudando, e eu não quero ir. Pensei que você seria um pouco mais compreensivo.
— Você não foi quando eu disse que não queria ir para o baile. – Disse, ríspido, lhe dando as costas.
— Quer saber? Eu não ‘tô te obrigando a nada.
Eu fiquei parado, ouvindo os saltos dela baterem no asfalto de concreto enquanto ela se afastava no caminho até a escola. Sem saber que, não ir atrás dela ali, foi uma das piores decisões que já tomei.


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Shelby tinha um ar catastrófico, sensual e infeliz.
Ela era uma prima distante, e antes de me mudar para a cidade dela, eu só tinha a visto umas três vezes na vida. Começamos a nos falar no primeiro dia de aula, ela me apresentou aos amigos dela, e além do Collin e do Jonny que conheci na pista de skate, fiquei amigo deles também. Ela dizia que éramos amigos, mas quando estava com ela, sempre sentia que ela queria mais do que isso de mim. Eu a achava uma pessoa legal, uma boa amiga que sabia me ouvir quando não estava sendo inconveniente. Shelby tinha muitos defeitos, mas todo mundo tinha que aprender a viver com os próprios demônios. Com ela, não era diferente.
Eu nunca correspondi suas investidas, era tapado demais pela para perceber.
Bem, nunca até aquele dia, o dia que começou a dar tudo errado.

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7 de junho de 1986

Festa ou baile eram as minhas duas únicas opções naquela noite e nenhuma delas parecia ser boa. Fiquei um bom tempo naquela piscina pública, vazia e abandonada que a gente usava como rampa, até perceber que nenhuma das minhas opções eram boas, mas só uma delas tinha algo que valia a pena.
Eu remei com o skate o caminho inteiro até a escola, pensando em quão idiota fui por brigar por um motivo tão bobo, e não podia tirar a razão de , eu estava mesmo sendo um idiota e deixando o egoísmo falar mais alto. As quatro quadras pareceram ser as mais longas pelas quais já andei com aquelas rodas, segurando o terno atrás das costas porque não era possível usar uma coisa tão quente nesse calor.
Respirei fundo quando enfim cheguei à calçada do colégio, dava para escutar a música e ver as luzes que vinham do ginásio. Estava tocando música ruim claro, como eu já previa, mas isso só me fez perceber que eu enfrentaria todas as músicas ruins do mundo por causa dela. Eu e estávamos juntos, mas não só por um encaixe de mãos, peles, bocas e quase genitálias - a gente ainda não tinha chegado lá -, mas por uma fantasia. Estávamos ligados de um jeito que eu nunca entendi, nunca gostei de não entender as coisas, mas quando se tratava da era a melhor coisa que poderia ter me acontecido.
Tirei o ingresso amassado do bolso para poder entrar no baile. Sem coragem para enfrentar aquela multidão, subi os degraus da arquibancada, até o último no canto do ginásio, onde ninguém pudesse me encontrar. E foi ali que eu vi. estava sentada sozinha numa cadeira ao lado da mesa de comida segurando um copo e acompanhando a batida da música com o pé, até que começou a tocar “Home Sweet Home”, a sua música preferida. Uma única alma começou a andar na sua direção. Stefen não precisou se esforçar muito para que ela aceitasse dançar com ele, ele devia ter na cabeça o mesmo pensamento que eu, que era muito injusto que todos ali se divertissem e ela tivesse que ficar ali sentada tendo que aproveitar a própria companhia.
Peguei me skate e sai de lá porque não faria diferença ficar. Desabrochando a gravata borboleta com uma mão, só tentando esquecer que Vince Neil cantava just when the things went right, It doesn't mean they were always wrong⁸ enquanto eu via dançando com Stefen. Pensei seriamente em ir até à festa da Shelby, lá eu poderia beber álcool comprado pelos amigos de faculdade dela e esquecer um pouco daquele dia. Ela dizia que desde que comecei a namorar não saia mais tanto com eles, que estava ficando de ‘fora da galera’. Mas decidi voltar para casa, pelo mesmo caminho de paralelepípedos quebrados da calçada de sempre.
A rua estava meio deserta, iluminada pela lua e pelos postes de luz amarela, quando os faróis de um carro vindo atrás de mim iluminaram o caminho em minha frente. Eu virei o rosto, reconhecendo o automóvel que estacionou ao meu lado. Shelby com certeza era uma invenção das minhas piores intenções e ela parecia sentir quando deveria aparecer.
. - Ela chamou logo após abrir o vidro, eu encarei seus olhos solidários.
— O que aconteceu com a sua festa?
— Estava chata, não tem graça sem você. - Shelby deu de ombros, nos encaramos por alguns segundos até eu voltar a andar, mas ela me seguiu com o carro devagar. Parei de novo, tentando entender o que ela queria.
Eu não perguntei porque parecia algo idiota demais para se dizer e ela se esticou para abrir a porta do passageiro. - , entre, vamos dar uma volta de carro.
Aquele seria um belo momento para Holly Johnson aparecer na minha frente e dizer “Relax, DON’T DO IT”⁹, quem sabe me fizesse cair na real e evitasse o inevitável. Eu apoiei os braços no vidro aberto e suspirei. Olhei para Shelby por um tempo. Ela deu um sorriso sugestivo quando desgrudei da janela e abri a porta do carro, deixando nas mãos dela, o nosso destino.


-x-

No dia seguinte àquela noite com Shelby, eu não conseguia parar de pensar no que aconteceu. Ficava repassando tudo na minha cabeça, como se fossem falas de uma peça teatral. E quanto mais eu pensava, menos eu sabia o que fazer. Eu e Shelby acabamos passando o verão inteiro juntos, nos víamos todos os dias.
Eu ia constantemente na casa dela assistir TV, Shelby era uma das poucas pessoas que eu conhecia que tinha TV a cabo, ou seja, que funcionavam mais do que três canais. Os vídeos do New Edition com o Bobby Brown que passavam na MTV eram os nossos favoritos. Nós comíamos pipoca e doces que comprávamos no mercado do final da rua dela e ligávamos para algum número 0800 para pedir catálogos de coisas que ela queria comprar, já que vivíamos folheando jornais e revistas que a mãe dela trazia do trabalho.
Ela às vezes ia à pista comigo, Collin e Jonny, para ficar me vendo andar de skate. Uma vez eu tentei ensiná-la a pelo menos ficar de pé no shape, foi engraçado porque ela caiu em cima de mim pelo menos umas três vezes. Ela gostava de me usar como fotógrafo improvisado, Shelby tinha uma câmera da Sony, uma Mavica, que produzia imagem de qualidade duvidosa e, para piorar, em preto e branco. Ela queria ser modelo, e posar para fotos eram o seu prazer.
Eram dias legais, até esses dias começarem a virar noites e as noites começarem a virar dias de novo, e eu perceber que Shelby, apesar de implicar bastante com , gostava de mim de verdade. Constantemente, eu subia na árvore do lado do quarto dela e pulava a janela para que nós pudéssemos dormir juntos sem que os seus pais soubessem, era bom, mas apreensivo, porque enquanto meu corpo se divertia, a minha cabeça estava em apuros. Eu dormia ao lado dela, mas pensava em o verão inteiro porque era com ela que eu me sentia num clima de bem-estar romântico e não com a Shelby. Mas àquela altura, eu não sabia direito o que queria ou o que estava fazendo.
chegou a me ligar algumas vezes, mas ignorei todas as elas porque não suportava conviver com ela sabendo o que fiz. Quando o verão terminou, aquela coisa que eu e Shelby tínhamos foi se esvaindo, pelo menos para mim, porque a culpa corroía o meu peito. Inez viera na minha casa especialmente para me contar que disse tudo que aconteceu entre mim e Shelby para sem querer. Eu apenas a mandei embora, sabendo que de ‘sem querer’ ela não tinha nada. Depois que ela trocou de turma, a gente mal se via na escola e muito menos fora dela. Ela fugia de mim nos corredores e os amigos dela viravam as costas para mim sem que eu nem sequer pensasse em lhes dirigir a palavra.
Ela fazia aniversário no final de setembro. E depois de muito tentar, descobri que ela faria uma pequena festa na sua casa, apenas para os amigos mais íntimos. Seria um dia frio no inferno antes que fizesse uma festa e convidasse o colégio inteiro como Shelby fazia, e eu podia apostar que o meu nome não estava na lista de convidados. Todo dia eu fantasiava na minha cabeça o que poderia acontecer se eu aparecesse lá. Se ela ia me receber, me querer, confiar em mim de novo se eu falasse que foi só um lance de verão? Ou me xingaria de todos os nomes possíveis e bateria a porta na minha cara. Até que cansei de devanear e sai de casa como se aquela fosse a minha única missão na Terra.

-x-

26 de setembro de 1986

Fiquei um bom tempo na minha cama encarando o teto do meu quarto e escutando o álbum mais espetacular de todos os tempos, The Dark Side of the Moon do Pink Floyd, umas sete vezes antes de decidir ter uma gota de coragem para sair da cama. Vesti uma blusa de flanela velha e peguei o meu capacete. Eu nunca usava aquele capacete. Minha mãe tinha comprado para mim depois de eu ter quebrado o braço quando cai da rampa de skate ao tentar fazer uma manobra há três anos.
Peguei carona com os últimos raios de sol da tarde até a casa de . Era o primeiro dia mais frio do ano de um outono melancólico. O cheiro da rua era tão triste ou talvez as minhas emoções que estivessem sobressaltadas.
As luzes do térreo estavam todas acessas e da calçada era possível ouvir a música do Depeche Mode que estava tocando. Era de alguma rádio, sabia disso porque não tinha um toca-fitas. Eu teria dado um para ela. Sua casa estava diferente, não tinha carro na garagem e a grama não estava mais tão bem cuidada.
Através das cortinas dava para ver silhuetas e olhando para elas, caminhei até a varanda da casa de , imaginando qual daquelas sombras deveria ser a dela. Encarei a campainha por uns dez ou quinze minutos, e juro que se tivesse um daqueles saquinhos pardos de farmácia, eu respiraria dentro dele. Quando finalmente a toquei, percebi uma movimentação na cortina das janelas, e de repente a música parou e só a voz do DJ da rádio era possível ouvir. Esperei mais um pouco, mas ninguém atendeu ao meu chamado. Sei que deveria entender aquilo como uma clara resposta para ir embora, mas não podia.
! - Chamei e bati na madeira de carvalho-branco. - , estou aqui na sua porta e sei que você não quer falar comigo, mas eu precisava vir aqui te dizer isso ou o meu cérebro iria explodir. - Fiz uma pausa, engolindo em seco e tentando fazer jus à música do The Cure que diz que garotos não choram, pensando em uma construção frásica que a fizesse pelo menos me ouvir, nem que fosse através daquela porta. - Sabe, eu planejei isso por semanas, fiquei pensando no que te dizer e porque não disse antes, eu acho que a minha ficha só foi cair agora. Você pode dizer que sou um completo babaca e que mereço esse esplêndido patamar de sofrimento e desgosto, mas eu precisava vir buscar o último resquício de afeição que um dia você teve por mim e te pedir para me perdoar. Tenho certeza de que a pior coisa que já fiz na vida, foi o que fiz com você. Sei também que tive todas as chances de fazer isso, mas não consegui. Algo travou dentro de mim, talvez tenha sido medo, covardia ou vergonha, eu não sei. Não sabia direito o que eu queria antes, mas a única coisa que eu queria agora é fazer as pazes com você.
Encostei a testa na porta e tudo que tinha entre o lado de dentro e o de fora era o silêncio estarrecedor, e fiquei ali algum tempo.
— Só tenho dezessete anos, eu não sei de nada mesmo, mas sei que sinto sua falta e cada célula minha é atingida por essa saudade.
Disse a última frase mais baixo, imaginando que ela estivesse colada do outro lado da porta como eu.
Quando ouvi o barulho da fechadura, eu desencostei, abriu a porta. Existia um pintor italiano chamado Carlott, ele definiu a beleza dizendo ser o somatório de todas as partes a trabalharem em conjunto, de tal forma que nada necessite ser acrescentado, retirado ou alterado. Ele tinha definido assim, mas se eu pudesse usar outra palavra para definir “beleza”, usaria o nome de .
Eu estava recomposto, me sentindo pronto para fazer as pazes. Nossos olhares se encontraram, sabíamos da presença do outro, não tinha como fingir que aquilo não estava acontecendo, e tínhamos duas opções: ir ao encontro do outro ou dar as costas.
Não me atrevi a dizer mais nada, era a vez dela. Era certo que a turma lá dentro iria notar. Talvez até estivessem me apontando e gargalhando baixinho.
— Que bom que você veio, eu precisava te dizer uma coisa também. - Seu rosto sério desfaleceu, seus olhos se estreitaram e neles consegui ver toda a sua amargura. - Vai se fuder, !
Ela disse com a sisudez de um agente do FBI antes de bater a porta na minha cara, tão forte que fez o som ecoar do chão. Fiquei um tempo ali ainda, encarando a sua entrada, porque com certeza aquilo doeu mais que um tapa.
Fui para casa cabisbaixo, tentando aceitar as consequências dos meus atos. Eu me sentia como aqueles caras que morrem soterrados de frio após planejarem por anos escalar o Everest, ou aqueles fãs que esperam décadas sua banda predileta desembarcar na cidade e aí não conseguem ingresso. Eu cai três vezes do skate até decidir continuar o caminho até em casa a pé, minha cabeça estava protegida pelo capacete, já o coração, deveria ter derretido e escorrido dentro de algum bueiro daquela calçada.


-x-

Nunca tirei a razão dela, mas acredito que ela poderia me perdoar se eu fosse outra pessoa, um alguém legal, paciente e carinhoso; e não essa criatura distante, inquieta, descompromissada com esse dom natural de cagar com tudo sempre.
Eu aprendi muito naquele ano. A ser menos egoísta e mais responsável. Aceitar as coisas como elas estavam sendo e que nem tudo dependia só de mim. Não fui no meu baile de formatura e assim como quase todo mundo daquela escola, fiz planos para sair de Hill City assim que me formasse. Eu, Jonny e Collin queríamos ser músicos, meter o pé na estrada e ir atrás da vida que aquela cidade nunca nos daria. Queríamos nos perder no mal caminho e ser reconhecidos pela nossa música, e até que conseguimos. Longos foram os dias em que pulávamos de cidade em cidade com a nossa van atrás de oportunidades e cartas cheias de preocupação vindas das nossas mães. Agora, 8 anos depois e prestes a gravar nosso primeiro disco, posso dizer que conseguimos. Era o que eu queria, mas ainda não era tudo.
Dizem que a gente nunca esquece um grande amor, e com toda certeza eu nunca consegui me esquecer de .
Fui obrigado a ver enquanto ela me superava depois daquele dia, éramos da mesma escola, mas parecia que eu não existia mais na sua órbita. Escrevi umas trezentas músicas para ela e nunca perdi as esperanças de que um dia ela escutasse pelo menos uma e que talvez me perdoasse. Aquela traição foi como rasgar os ouvidos toda vez que ela dizia que me amava.
queria escrever, fosse o que fosse, ser redatora em alguma revista, ela preferia jornais, do menor ao mais famoso, mas estava disposta a ser mais resiliente e abraçar as oportunidades que a vida oferecesse. E a vida lhe abriu portas antes mesmo de se formar, ela conseguiu uma bolsa em alguma renomada Universidade da Ivy League e foi uma das primeiras a sair da cidade. A internet hoje era novidade e antes era impossível conseguir qualquer informação a respeito de , porque quem falava com ela, não gostava de mim, mas eu nunca desisti.
Agora, estava sentado na poltrona de couro preto, segurando uma garrafa de José Cuervo, porque quando eu ficava tenso, eu fumava para não beber e bebia para não fumar. No auge dos 20 e poucos anos é que a gente desenvolvia ou já devia ter começado alguns vícios, os meus nunca haviam sido esses. Eu gostava de escrever letras e acordes, imaginado que ela deveria estar fazendo, como estaria a sua vida, acreditava que incrível. Collin dizia que estava obcecado e que obsessão não era nem um pouco saudável, como se ele fosse um psiquiatra formado em Harvard, só que ele não sabia o que falar. Não é monomania pedir uma segunda chance a um amor que jamais esqueci.
Chovia lá fora e era uma fria noite na cidade de Nova York. Estávamos na metade da década de 90 e até mesmo a cidade, que parecia estar explodindo o tempo todo, tinha seus momentos de calmaria. Estava na sala de espera da gravadora que havíamos acabado de assinar um contrato, quando o sininho da porta tocou e Jonny finalmente voltou, quase todo molhado com um papel dobrado em mãos.
— Conseguiu? - Levantei depressa, deixando cair a garrafa, com mais esperança do que sobrou na caixa de Pandora. Jonny sorriu, satisfeito.
— Claro que eu consegui. - Ele me entregou o papel dobrado, e eu o olhei como se fosse uma barra de ouro. - Vê se não estraga tudo dessa vez.
Ele socou o meu úmero.
— Ela tá lá?
— O Sr. Weltsch garantiu que sim.
Ele piscou para mim e se jogou na poltrona que eu estava. O Sr. Weltsch era um detetive, amigo antigo da família do Jonny, mas para mim ele estava mais para um deus do Monte Olimpo. O endereço indicava Flatbush, no centro do Brooklyn não muito perto daqui, e acho que poderia achar facilmente com o mapa da cidade que compramos na loja de souvenirs. Dirigi, tomando bastante cuidado, porque tudo que não queria agora era ser roubado, diferente de Hill City, em Nova York o crime crescia tanto quanto os usuários de crack.
Agora, olhando para essa selva de prédios, era a última vez que podia sonhar com o que aconteceria quando ela visse o meu rosto novamente após tanto tempo. Quando cheguei na rua, desacelerei, olhando cada porta, procurando o número indicado e estacionando quando o encontrei. Era uma porta laranja, e o corrimão das escadas que levava até ela, era rodeado por flores coloridas. As paredes eram cor de salmão e havia várias plantas nas janelas. Sai do carro e abri o guarda-chuva porque chovia, caia tanta água que já podia sentir os meus sapatos encharcados. Toquei a campainha e não demorou para ela aparecer. abriu a porta e se antes estava sorrindo de alguma piada, não sorria mais quando me viu. Eu vi espanto nos seus olhos, mas também algo bom, parecido com saudade.
Ela estava diferente. O cabelo estava enrolado numa espécie de bandana lilás, bem cool e europeia, o rosto mais pálido, as sobrancelhas mais escuras e delineadas, o quadril mais cheinho, vestia um vestido longo e um casaquinho curto de marca boa.
— Oi. - Disse, rouco, e saquei um pedaço velho de papel do meu bolso. Aquele mesmo bilhete que a Inez tinha me entregado. Eu abri e o devolvi para ela, ela leu e voltou a me olhar como se não pudesse acreditar. - Eu sei que ainda não se passaram dez anos, mas eu tinha que tentar.
— Oi. - Ela respondeu com um quase sorriso, e um júbilo alfinetou o meu peito, porque percebi que algo dentro dela não permitiu que se esquecesse de mim. Percebi isso enquanto nos olhávamos por tanto tempo, analisando, admirando, nos perguntando o que nos levou àquele exato lugar e a repetir aquela cena. Eu a repetiria um milhão de vezes se necessário. Mas algo que nunca mudou foi a sua postura, decidida, porém, tímida.
Dessa vez ela não me recebeu, nem me amou, muito menos me beijou na frente de todos os seus amigos idiotas, como se um beijo pudesse remendar as suas asas despedaçadas, mas também não me xingou e nem bateu a porta na minha cara como da última vez. Nós conversamos como bons amigos de anos e rimos de novo de travessuras que fizemos. Ela me mostrou suas novas bandas favoritas entre vinis e CD’s enquanto apreciávamos uma garrafa de Château Lafleur. Dividimos curtas histórias da vida, ela estava trabalhando como staff interno no Times, não pagava muito e não era seu principal objetivo, mas estava satisfeita com a vida que tinha por enquanto. Eu falei da minha banda, dos shows, da gravadora e fui embora apenas levando a promessa dela de que veria algum show nosso se tivesse a oportunidade.
Uma coisa que odeio nessa cidade são os semáforos. Há um em cada esquina.
Dirigi uma quadra de distância da casa de , parei de frente para um semáforo onde a luz vermelha piscava sem parar, e fiquei ali algum tempo vendo os limpadores correrem no para-brisa pensando que aquilo foi tudo. Não foi a noite que eu queria, mas era a noite que eu precisava. Liguei o rádio e o INXS começou a cantar, sua voz se misturando à dos trovões, e estava quase indo embora quando olhei para o lado, para a janela do banco do passageiro. estava ali, ofegante, enquanto a chuva lhe molhava da cabeça aos pés, parada, usando o mesmo cardigã que usou no dia que nos conhecemos. Ela não disse nada, apenas abriu a porta do meu carro, entrou e me beijou enquanto a chuva batia no capô do carro posicionado em frente daquele semáforo quebrado.
— Você sabe que sinto sua falta.

-x-


¹: manobra consiste em rotacionar o skate duas vezes “e meia” no ar após um salto;
²: manobra envolve um pulo enquanto você gira o skate ao longo do eixo;
³: a prancha do skate;
⁴: base para andar: o pé esquerdo fica na frente do pé direito, que impulsiona o skate;
⁵: base para andar: o pé direito fica na frente do pé esquerdo, que impulsiona o skate;
⁶: parte de trás do shape;
⁷: parte da frente do shape;
⁸: “quando as coisas começaram a ir bem, não significa que elas tenham sido sempre erradas”;
⁹: referência à música “Relax”, da banda Frankie Goes to Hollywood, que significa “Relaxe, não faça isso!”.



Fim!



Nota da autora: Adoro a tradução dessa música e quis aproveitá-la para escrever algo diferente do que estava acostumada com romances colegiais. A verdade é que eu queria fazer uma verdadeira viagem aos anos 80, porque, na minha opinião, foram anos incríveis, então, por favor, me diz aí se você gostou, ia ficar muito feliz com o feedback!!

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Nota da beta: Eu AMEI essa viagem aos anos 80, de verdade! Amei cada detalhe, ficou incríveeeeeel! Amei esse casal, amei os personagens, foi tudo muito maravilhoso 💙

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