Introdução
Na cidade moderna, no meio de um subúrbio brasileiro, havia um pequeno bairro que parecia ter parado no tempo. Esse núcleo era por pequenos comerciantes, trabalhadores, ambulantes e estudantes, ou seja, pessoas normais, gente como a gente. As casas ainda tinham pisos de madeira e paredes com azulejos clássicos, onde as crianças ainda brincavam na rua e a vizinhança parecia ter saído de um núcleo de uma novela das nove. Havia casas com quintais e pátios simples, uma rua de flores e uma história em cada esquina.
Em uma dessas esquinas, habitava a história de um primeiro amor, o de Maria Luiza e Calebe.
Aos oito anos, Maria Luiza de Souza era uma menina que colecionava contradições. Era tímida e falante, educada, mas calada. Quieta, mas travessa. Com seu pai, mansidão. Com sua mãe, impaciência. Com Calebe, curiosidade e desconhecimento. Aos dezoito anos, Maria Luiza agora era apenas Malu e estava aprendendo a equilibrar seu espírito de menina levada com a sempre aparente timidez e o sereno. Agora seu pai era saudade. Sua mãe, era distância. E Calebe, era sua hesitação. Aos vinte e oito, ela não era mais Malu, nem Maria Luiza. Na verdade, ela não sabia muito bem quem era. Às vezes, era Maria, às vezes Luiza, às vezes, ela não queria ser ninguém.
Aos oito anos, Calebe era dela. Aos dezoito, Calebe ainda era dela. Aos vinte e oito, Calebe, mesmo de longe, ainda era dela.
Maria Luiza e Calebe eram namorados, todos sabiam disso até quando eles mesmo não sabiam. No começo, ninguém imaginava que aquilo não seria uma coisa passageira, ninguém imaginava que era algo forte e sincero. Entretanto, entre tantos acasos e tantas histórias, ali pelo meio da vida, todos começaram a compreender que aquele casal era “aquele” casal. Entre tantas falhas, tantas esquinas, entre tanta incerteza, risada e cantadas. Entre tantos planos, acertos, ciúmes. Entre tanto colo, amizade, sacanagem, conquistas, vontade, sexo e perdoes. Entre tantos “entretantos”, Maria Luiza e Calebe caminhavam de mãos dadas pela sua história, lotada de virgulas, travessões, aspas, e nenhum ponto final.
“O amor pode surgir de repente, em qualquer etapa da vida, é o que todos os livros, filmes, novelas, crônicas e poemas nos fazem crer. É a pura verdade. O amor não marca hora, surge quando menos se espera. [...] alguns têm a sorte de encontrar seu grande amor no momento adequado. Outros resistem às pressões sociais e não trocam seu grande amor por outros planos, vivem o que há pra ser vivido, não importa se cedo ou tarde demais. Mas grande parte da população dança conforme a música. Um pequeno amor, surgido entre os 25 e 30 anos, tem tudo para virar um grande amor. Um grande amor, surgido em outras faixas etárias, tem tudo para virar uma fantasia”. Martha Medeiros.
Parte 1 - Um Certo Alguém
“Doce lugar que é eterno no meu coração, que aos poetas traz inspiração pra cantar e escrever”.
Meu Lugar – Arlindo Cruz
Lá em um dos muitos subúrbios brasileiros, existia um bairro chamado Saudade. Não é poesia, é geografia. O nome do bairro surgiu logo após a invasão dos portugueses em território indígena e o bairro pequeno e charmoso logo começou a ter nome de sentimento. Lá em alguma rua paralela do bairro da Saudade, existia uma rua de flores. A rua das flores. Não é poesia, e também não era florida do início ao fim.
O nome se deu por conta do fato da rua abrigar uma pequena passagem completamente florida que havia na esquina. As paredes eram completamente cheias de flores, do início ao fim, de cima para baixo e todo mundo sempre quis saber se aquilo ali era invenção dos vizinhos ou da natureza. Suspeito da natureza, só ela conseguia lidar com tamanha perfeição.
Para ela, sempre parecia ser uma grande aventura caminhar entre os galhos espalhados pelo chão da pequena passagem das Flores para chegar na rua de cima. Olhando de longe, parecia até que o verde das folhas predominava, mas chegando perto, era possível ver que era o contrário. As flores estavam em maior número. Todos os tipos de rosa, todos os tamanhos e algumas até tinham cheiros diferentes. Sabia disso pois perdia tempo demais ali, analisando cada uma. Nos finais de tarde, quando o sol tocava nas paredes, a junção de todas as cores deixava tudo em tons que não existiam em nenhuma paleta de cores. A garotinha, de cabelos cacheados e olhos tão negros quanto um céu sem estrelas, criava um caminho com o dedo indicador entre as flores e observava atentamente a mudança de cores.
Astuta e inteligente demais para seus oito anos de vida, curiosa o suficiente para deixar seus pais de cabelo em pé com tamanha sagacidade.
- Maria Luiza! – A voz estridente fez a menina pular no lugar tamanho o susto e olhar para trás, procurando a dona da voz, que ela conhecia muito bem. – Eu falei pra você ir direto pra casa da Ana!
- Eu tô’ no caminho, mãe! Sabia que é preciso passar por aqui pra chegar naquela casa ali? – Retrucou, cruzando os braços, ainda com a caixa de presente em mãos. As respostas atrevidas da menina faziam o sangue da mãe esquentar em suas veias.
- Você não me provoca, Maria Luiza! – A mulher gritou da janela de sua casa. As madeiras da pequena casa tremiam com os gritos diários de Maria Luiza e sua mãe. Não tinham uma relação ruim, mas a audácia da menor não combinava em nada com o pavio curto da mãe. – Eu jogo minha sandália direto nessa tua boca atrevida!
- Vai chegar nas Olimpíadas desse jeito, mamãe! – Gargalhou, travessa, imaginando a sandália da mãe criando asas no meio do caminho até chegar a ela.
Mas nem a irritação de Andréia resistia à risada graciosa e infantil da menina. Sem aguentar manter a pose de brava, a mulher não aguentou e acabou soltando uma risada meia contida. Detestava quando a menina a desafiava, mas quando aquela risada gostosa surgia, era difícil manter-se irritada.
- Será que dá pra vocês duas pararem de gritar? – O tom de voz risonho mostrava que o homem escutou a pequena discussão entre as duas. João, o pai de Maria Luiza, apareceu na janela também, colocando o braço sob os ombros da esposa. Mesmo sendo um homem calmo e manso, (às vezes até demais), João era o único que conseguia acalmar os nervos das duas. – A vizinhança inteira já escuta vocês gritarem o dia inteiro.
- A sua filha me dá nos nervos, João! – A mulher reclamou, mas sem conseguir esconder o sorriso. Era impossível não notar que as duas tinham gênios fortes, eram iguais e por isso, eram tantos os embates.
- Anda, Malu! Vai logo e avisa a Ana que não vamos demorar. – Informou o pai, apontando para o caminho atrás da menina. – Sua mãe só tá esperando a torta ficar pronta.
- E por que eu não posso ir com vocês? – Replicou, emburrada.
- As crianças já estão todas lá, Malu! – João explicou, pacientemente, segurando um sorriso ao vê-la bufar, cheia de atitude.
Apesar de ser muito comunicativa, esperta e extrovertida, Malu não tinha muitos amigos na rua e pelo que os professores contavam, também não tinha na escola. O pai desconfiava que a menina era avançada demais e a mãe apenas achava que ela era “enjoadinha” demais. Nada explicava o atraso nas amizades da menina. No fundo, eles se preocupavam. Sempre era meio triste ver a garotinha brincar sozinha.
- Malu, vai logo. O sol já tá baixo e você ainda tá aqui, resmungando igual uma velha. – Andréia vociferou. Aborrecida, estirou a língua em direção a mãe e antes que a sandália da sua mãe realmente chegasse até ela, correu pelo caminho florido. – Maria Luiza!
João gargalhou, observando os cachos da menina balançarem conforme ela corria pela rua. A risada de Maria Luiza era completamente espelhada no pai, talvez por isso Andréia nunca conseguia resistir quando a menina ria. Ela era apaixonada pelo sorriso de João.
- Essa sua filha é demais! – O homem riu, acariciando os cabelos da mulher.
- Só minha? Eu não fiz nada sozinha não, João! – Respondeu, acariciando as têmporas. – Essa menina ainda vai me deixar maluca...
A garota correu, gargalhando alto. Sentia uma adrenalina maravilhosa toda vez que enfrentava a mãe. Sabia que sempre acabaria encrencada, mas não perdia oportunidades. Seu riso foi morrendo quando se deu conta que a viela estava chegando ao fim. A entrada de folhas e galhos costumava ser o point preferido das crianças do bairro da Saudade, a tal entrada pela passagem era o caminho mais rápido para chegar na rua de trás, onde acontecia o aniversário de oito anos de Calebe.
Ele era o filho de Ana, sua vizinha da rua de cima e grande amiga de seus pais. A única coisa que separava as ruas em que moravam era a tal da passagem. Ela sentia que conhecia o menino desde sempre, pois não lembrava de ter sido apresentada a ele. Eles brincaram juntos algumas vezes, mas ela nunca tinha trocado palavras com ele que não fossem “tá com você!” e a famigerada “passa a bola”.
O barulho de crianças gritando aumentava a cada passo que Malu dava e ela já se sentia estranha. Não tinha problemas em socializar, mesmo que não soubesse muito bem o que essa palavra significava. Saía-se muito bem na maioria das vezes que precisava lidar com outras crianças, mas as crianças que andavam com Calebe eram demais para ela.
Quando chegou em frente da casa de alvenaria azulada, pensou duas vezes. Olhou para o presente em suas mãos, pensando no que diabos falaria para um menino que ela nem conhecia. Se voltasse para casa, estaria encrencada. Se entrasse, estava perdida. Pulando em uma amarelinha imaginária, chegou em frente à porta de madeira e bateu três vezes. Como ninguém atendeu, resolveu entrar, ninguém iria expulsá-la mesmo.
A sala da casa era familiar a ela, estivera ali algumas vezes com seus pais. Estava lotada de balões verdes, o cheiro de churros contaminando tudo, alguns adultos sentados nos sofás e alguma música infantil saindo do toca-discos. Andou pelo lugar, tentando puxar pela memória em qual dos corredores ficava a cozinha e quando encontrou, viu Ana servindo refrigerante para algumas meninas e foi até ela. A ideia de ter que encontrar as crianças certas para brincar estava deixando-a ansiosa. Ana, assim que reconheceu a cabeleira cacheada, abriu um sorriso e cumprimentou a filha do casal de amigos que ela mais tinha apreço.
- Malu! Cê tá a muito tempo aí? – Perguntou, carinhosamente, tocando em um dos cachinhos da menina.
- Acabei de chegar... – Malu olhou em volta, estranhando a calmaria na cozinha da mulher. – Cadê todo mundo, tia?
- Ah, a festa inteira está no quintal, todo mundo tá lá! – Explicou, limpando as mãos no avental. – E seus pais?
- Estão vindo, me obrigaram a vir logo. – O rolar de olhos da menina fez Ana rir com vontade. Tão pequena e cheia de atitude. Seria ótimo se Malu e Calebe fossem mais próximos. Quer dizer, pensando bem, seria um pesadelo. Ele não era muito diferente de Maria Luiza quando o assunto era atitude.
- Então, aproveita que hoje você tá toda independente e vai brincar lá no quintal com todo mundo. – Guiou a menina pelos ombros até a parte de trás da casa. – Vamos atrás do Calebe.
Quando chegou ao quintal, Maria Luiza suspirou profundamente. Crianças, correndo que nem loucas. Ela enxergou Calebe, ele estava lá. Correndo com uma bola na mão, tão suado que a camisa já estava de outra cor de tão molhada. Ela fez uma careta. Ela queria brincar também, mas já estava se sentindo envergonhada de ter que invadir a “panelinha” de amiguinhos que brincavam todos os dias juntos. Ana não anunciou, mas sentiu todas as crianças parando para observá-las. Seria uma longa noite.
જજજજજજ
Após longas horas de correria, brincadeiras e novidades, Calebe cansou de brincar com os carros novos que tinha ganhado de presente e os largou no meio da sala. Já não havia quase ninguém em sua casa, já passava das onze da noite e o menino, que sempre aproveitava seus aniversários intensamente, já estava com sono e cansado. Foi até o quintal, ver o que faltava para sua mãe ir checar o garoto, descobrir se ele já queria ir dormir.
Não foi surpresa quando chegou lá e encontrou sua mãe e os amigos João e Andréia sentados em volta de uma mesa enquanto riam juntos. Calebe gostava do casal, já tinha se acostumado com a amizade entre eles. Todo aniversário, comemoração ou festa na rua, os três amigos sempre ficavam juntos e sempre eram os últimos a sair. Se envolviam em conversas nostálgicas da época de escola, entre piadas e brincadeiras, principalmente com o jeito mal-humorado de Andréia e o jeito leve e gentil que João e Ana dividiam. A visão dos três sentados na mesa de plástico, tomando uma cerveja e o toca discos do lado era comum. E não só para ele. br>- Eu tô morrendo de sono e eles não param nunca! – A voz irritada veio por trás dele. A menina estava sentada no balanço de pneu que o avô fizera para ele, parecendo estar entediada ao máximo. Balançava as pernas, olhando para seus próprios tênis, em uma tentativa de manter-se acordada.
- Quantas garrafas eles já beberam? – Questionou, virando-se para ela. Ele achou graça da posição largada da menina, combinava com a feição irritada.
- Já é a nona! – Respondeu, contando o número de garrafas de vidro que estavam debaixo da mesa novamente. Calebe fez uma careta. Também estava cansado e com sono, mas não queria ir dormir sozinho. Precisava do aconchego e do “boa noite” da mãe.
– No seu aniversário, eles beberam quinze garrafas. – Comentou, resmungando baixinho.
Maria Luiza fazia aniversário alguns dias antes dele e como foi citado, era uma cena recorrente. Os dois tinham que ficar esperando os pais acabarem suas cervejas para poderem ir para casa, finalmente. Era uma das únicas vezes no ano em que os dois eram obrigados a obter uma comunicação.
- Ah, que droga! – A menina reclamou. Calebe olhou em volta e não havia muito o que fazer.
Sentia-se tímido e acanhado ao lado de Maria Luiza. Ao longo da noite, ele a convidou para o pique esconde, para o pega-pega, ofereceu brigadeiros e ela ainda parecia fora de órbita. Parecia viver em outro mundo, não se encaixava em lugar nenhum. Os amiguinhos da escola importunaram ele a noite inteira, pois todo mundo ficou empolgado ao ver que a menina bonita da rua de baixo tinha ido ao aniversário de Calebe.
- Eu já abri meus presentes, ganhei tanta coisa legal! – Exclamou, empolgado. Até havia esquecido que estava com sono. – O que você me deu mesmo? – Decidiu perguntar algo que ele já sabia a resposta.
- Um livro!
- O Pequeno Príncipe. – Afirmou rápido demais. Malu estranhou, mas preferiu não falar nada. Se ele já sabia, por que havia perguntado? Era o mesmo presente de todos os anos. Ele percebeu a feição da menina e explicou. – Foi o único livro que eu ganhei.
Livros eram a terceira coisa que João – pai de Malu – mais amava no mundo, depois dela e da mãe, é claro. Calebe sabia disso, ganhava livros do homem desde o primeiro aniversário que tinha em sua memória. Não era uma reclamação, ele gostava dos livros. Desde cedo, foi influenciado pela mãe a ter grande apreço pela leitura, talvez o fato de a mulher não ter o ensino fundamental completo tenha impulsionado esse propósito.
Ficaram em silêncio, sem saber o que falar, sem conseguir se olhar. De longe, os mais velhos observavam os dois minuciosamente, sem conseguir conter o sorriso. Tudo no cenário era amável demais. Talvez fosse o álcool, mas eles até conseguiam ver as cores mais acentuadas e tudo mais brilhante. Malu balançava-se no pneu, olhando para o céu. Calebe estava ao seu lado, com os braços para trás, encarando os próprios pés. Olharam-se de soslaio e quando os olhos se encontraram, fugiram, acovardados. A lua cheia no céu deixava tudo mais gracioso, parecendo uma adorável cena de filme.
Calebe não sabia o que falar para a menina. Não a conhecia, a via algumas vezes no ano, brincaram na rua, nas festinhas e só. Ela estudava na escola do bairro, ele estudava no colégio de um outro distrito. Não tinham nada em comum. Então, pensou que deveria tratá-la como lidava com todas as outras crianças de sua idade.
- Você quer brincar? – Ele perguntou, nervoso ao pensar na possibilidade de ser rejeitado. Malu desviou o olhar do céu para encarar o menino. Então, ela sorriu e assentiu, saindo de dentro do pneu.
E foi assim, aos oito anos de idade, que Calebe prestou atenção no sorriso de alguém pela primeira vez.
“Eu não sabia que doía tanto
uma mesa num canto, uma casa e um jardim
[...]
Naquela mesa ‘tá faltando ele
e a saudade dele ‘tá doendo em mim”.
Naquela Mesa – Nelson Gonçalves.
Maria Luiza não lembra do que tinha acontecido após receber a notícia, não lembra da missa de sétimo dia, mas sabia que tinha sido no dia do seu aniversário de dezoito anos. Também não lembra perfeitamente dos meses seguintes. O seu mundo entrou no piloto automático a partir do momento que descobriu que seu pai, seu amoroso e perfeito pai, havia falecido após um trágico acidente de moto na estrada de uma cidade vizinha de Vitória.
João foi o pai dos sonhos de toda menina. Era companheiro, carinhoso e compreensivo. Amava livros, amava poesia e amava mais ainda suas parceiras de vida: Malu e sua mãe, Andréia. Ambas, apesar de não serem tão apegadas uma na outra, eram extremamente apegadas a João e a convivência só era fácil quando ele estava por perto.
Malu gostou da ideia de ir morar em outro lugar quando seu pai foi promovido no emprego para ser gerente de uma nova empresa metalúrgica. Até chegar em Vitória. Nada contra o Espírito Santo, o estado era incrível e a capital melhor ainda. A cidade era linda, o clima era ótimo, o problema... Era ela. Era sempre ela. Maria Luiza simplesmente não se encaixava em lugar nenhum. Se sentia uma estranha em todo lugar que passava, se sentia intrusa em sua própria casa. Os dez anos morando lá foram uma grande confusão para a garota. Ela se esforçou e se esforçou para viver. Fez alguns amigos e tudo mais, mas sentia falta de sua casa, dos estalos na madeira, do seu quarto simples. Se pegou sentindo saudades até de brincar na rua, porém, já não sabia dizer se era saudades de casa ou saudades da infância, agora que já estava crescida.
Pesarosa, olhou em sua volta, tomando coragem para ir até as malas ainda fechadas. Já fazia dias que estava de volta, mas não conseguia se mover. Ela e a mãe resolveram voltar ao bairro da Saudade poucos meses após o acidente que desgraçou suas vidas. Aquela casa era tudo que elas tinham e, apesar de Malu ter crescido ali, era em Vitória que as lembranças com seu pai borbulhavam. Andréia sentia-se da mesma forma, por isso preferiu voltar, pensando que ao menos teria mais conhecidos ao seu lado. Mas a teoria nunca chegou na prática e quase ninguém sabia que elas estavam de volta. Ela sentia que precisavam primeiro acostumar-se com a ideia da ausência de João, para depois pensar em receber visitas.
O toque estridente do celular tirou Malu de sua inércia. Ela teve que correr para atender, devia ser a ligação que ela esperava. Assim que desligou, virou-se, olhando em direção ao corpo largado no sofá. Não se arrependia nenhum pouco de ter se matriculado no cursinho em período integral. Não queria lidar com a própria mãe e sua provável decadência, não queria ter que ser o porto seguro da casa e principalmente, não sabia se iria suportar.
Após o acidente que findou a vida de seu marido, Andréia dormia. O dia inteiro. Acordava para o jantar e voltava a dormir. Assistia um filme e voltava a dormir. Malu não a culpava, queria fazer o mesmo, só não conseguia. Ela era o total contrário da mãe, virava noites e noites acordada. Às vezes, chorava, mas na maioria das vezes, apenas divagava.
Sonhava acordada com uma realidade alternativa, onde sua mãe tinha forças para brigar com ela, onde ela havia passado no vestibular e seu pai não estava morto.
જજજજજજ
- Calebe! Tira esses óculos, garoto! – A menina gritou, rindo. – Eu seguro pra ti!
É claro que o garoto já tinha percebido que exalava flertes e segundas intenções dos poros de Gabi, mas achava melhor não dar muitas esperanças, pois tinha mais interesse em Clara, a melhor amiga dela. Entretanto, ele também não destruiria o coração da menina. Não por gentileza, mas sim para ter uma segunda opção mesmo. Ele não era maldoso, só era um garoto de 18 anos e era assim que a vida funcionava para ele.
- Se eu tirar, não enxergo nada. – Justificou, piscando para Gabi, deixando-a cheia de sorrisos. – Vou acabar chutando essa bola na casa da vó do Tiagão! – Exclamou, ajeitando o objeto no rosto.
- Ué, tá liberado falar da vó? – O rapaz exclamou e correu até Calebe, soltando um soco em seu braço. – Otário, você é otário! – Reclamou, ocasionando risadas entre todos ali.
A pelada no final da tarde das segundas-feiras já era tradição entre os jovens adolescentes do bairro da Saudade. Todos se encontravam na Passagem das Flores assim que o sol começava a se pôr, pois era o horário em que todos já estavam livres de seus afazeres domésticos e estudantis. Os jovens que foram vizinhos a vida toda – os que cresceram brincando de travinha na rua, os que moravam nas ruas que eram divididas apenas pela passagem – se reuniam e era a maior algazarra. Os meninos jogavam futebol e as meninas ficavam sentadas nas calçadas, esperando a sua vez de jogar também (apesar da “vez” quase nunca chegar). Enquanto isso, observavam, lançando seus melhores sorrisos e jogadas de cabelo.
Desde que entraram na adolescência, a pelada da tarde passou a ser o maior ponto de flerte. Sempre acabava surgindo um novo casal após o jogo, sempre rolavam uns beijinhos desprendidos que viravam comentário no outro dia. E não era errado dizer que Calebe era um dos assuntos preferidos das meninas. E dos meninos também.
O rapaz – mesmo sem querer – chamava atenção. Não só por ser inteligente e ter passado no vestibular, mas também por ser gentil, extrovertido e, bem... Era bonito. Após seus dez anos de idade, não demorou muito para que as menininhas começassem a vê-lo com olhos de cobiça. E os meninos, todos queriam ser amigos dele. Por que não? O cara sempre conseguia as melhores arenas para jogar futebol, sempre apresentava as meninas mais bonitas e era confiável, sendo conhecido por ser o fiel escudeiro de todos os seus amigos. Era engraçado, divertido e se dava bem com quase todo mundo. Calebe era popular e todos queriam tê-lo por perto.
Maria Luiza desceu no ponto de ônibus e andou calmamente pela calçada. Já estava assistindo aula no cursinho a duas semanas e ainda estava familiarizando-se com os caminhos novamente, mas passar por aquela passagem – que agora ela via que estava lotada de pessoas – estava fora de seus planos. Não sabia explicar muito bem o porquê de um lugar causar tantos sentimentos nela. Sinceramente? Lembrava de seu pai. Tudo naquele lugar lembrava ele e aquela passagem não ficava de fora, pois ela lembrava com clareza de sentar-se nas calçadas e brincar com as flores caídas no chão enquanto seu pai lia alguma historinha infantil clássica para ela.
Suspirou e pensou quatro vezes antes de seguir caminho. Ela poderia ir direto para casa, mas estava morrendo de vontade de ir falar com a tia Ana. A viu no mercado pela manhã quando ia para a aula, mas não teve coragem de ir falar com ela. Malu passou o dia inteiro pensando na mulher baixinha e em como ela não tinha mudado nada em todos aqueles anos. Continuava jovem e sorridente. Também sentiu uma saudade apertada no seu coração, nem sabia que gostava tanto daquela mulher. Assim como tudo no bairro da Saudade, talvez a tia Ana também despertasse nela a lembrança de seu pai.
Arrumou a bolsa no ombro e segurou com força a sacola com alguns cupcakes que havia comprado na padaria. (Não queria chegar na casa da tia de mãos vazias). Respirou fundo e foi. Seu temor aumentou à medida que se aproximou do aglomerado e notou que eram pessoas da sua idade, esperando pelo próximo alvo de comentários. Poderia dar a volta, apenas para não precisar passar ali, mas ela sabia que não iria. O outro caminho era muito mais longo e perigoso.
- Ué, tem gente nova aqui na rua? – Pablo comentou ao pé do ouvido de Calebe e Lucas, que discutiam acerca de alguma penalidade cometida no jogo. Ambos franziram o rosto, confusos com a afirmação do amigo. O menino apenas apontou com o queixo, para algo atrás deles. De fato, Calebe não conhecia aquele corpo curvilíneo, mas conhecia aqueles cachos. E, estranhamente, conhecia aquele andar.
Calebe esqueceu da existência de Malu até aquele dado momento. A última vez que ouvi falar dela e de sua família foi há nove anos atrás. Lembrava da mãe comentando que a família iria se mudar para o Espírito Santo devido ao emprego de João e lembrava do dia que sua mãe contou a fatalidade que havia acontecido com o tio João, que mesmo morando em outro estado, ainda mandava livros de presente no seu aniversário.
Suas lembranças de infância não eram tão firmes em sua mente, mas não era difícil lembrar do homem formidável que João era. Ele sentiu sua boca se abrir disfarçadamente, não é possível que era ela! A saia jeans curta também não o ajudou muito no discernimento. Calebe se sentiu desconfortável por ela quando os meninos começaram a incomodá-la, soltando assobios e risadas. Também ignorou os comentários das meninas, sendo a maioria maldosos. E ela estava extremamente irritada, pois assim como Calebe, também teve que ouvir dos elogios as críticas.
Ela também lembrava dele. Calebe era uma lembrança muito distante em sua memória, mas vendo-o de perto, ela recordava-se quase perfeitamente do filho de Ana. É claro que ela notou que o menino gordinho de sua infância agora era bonitinho o suficiente para arrancar uns suspiros por aí.
Eles não sabiam o que fazer. Tinham certeza de que um lembrava do outro, mas não sabiam como se cumprimentar, nem se deviam fazê-lo. Cada passo que ela dava, aproximando-se mais dele, causava um desconforto no estômago de cada um. Então, quando ela estava próxima demais, no desespero de não passar despercebido, ele falou:
- Maria Luiza. – Enunciou, simplesmente. Como se estivesse apenas constatando um fato.
“Ufa! Ainda bem”, pensou ela, mas ficou confusa e sem entender muito bem seu alívio ao ser cumprimentada por ele.
- Oi. – Ela não parou de andar para falar com ele, mas ela o respondeu e abriu um sorriso.
Ele podia não conhecer o novo corpo de Malu, nem seus cachos soltos, mas ele conhecia aquele sorriso.
જજજજજજ
“Ela é igualzinha ao João!”, pensou Ana, enquanto observava a menina abrindo as portas da estante da cozinha. De fato, Malu tinha o gênio forte e a desenvoltura da mãe, mas fisicamente, era o pai. A risada, os trejeitos e os olhos pequenos eram inteiramente de João e não demorou muito para Ana sentir-se fragilizada com a súbita saudade do amigo, que a abateu rapidamente.
- E você tá gostando do curso? Você costuma sair esse horário mesmo? – Ana perguntou, curiosa e mordiscando um pedaço do bolinho. Já estava escuro lá fora, preocupava-se com a menina ficar andando por aí sozinha. Ela já era crescida e o bairro não era muito perigoso, havia lugares piores para se viver, mas ainda era uma mulher.
E ser mulher nessa sociedade, nesse país, já é uma luta diária.
- Tô, sim! É integral, entro às oito da manhã e saio de noite todos os dias. – Explicou, pegando duas xícaras e colocando na mesa. Ela mesma resolveu fazer um chocolate quente para tomar com tia Ana. A mulher também havia acabado de chegar e parecia cansada. – É bem puxado, mas pelo menos, me mantém ocupada. – Pareceu amofinada, de repente. O que não passou despercebido pelos olhos maternos e atentos de Ana.
- Como estão as coisas, meu bem? – Perguntou, afavelmente. Malu sabia que ela não estava mais falando sobre o curso.
- Ah, estão... – Malu serviu as duas enquanto pensava em uma palavra para descrever sua situação. Nenhuma parecia servir. Sentou-se na cadeira da mesa de jantar ao lado da mulher.
Seus olhos encheram-se de lágrimas quando notou a expressão triste de Ana. Sabia que a mulher não estava olhando-a com pena, como todo mundo que ela conhecia. Sabia que Ana também estava sofrendo genuinamente.
- Ah, minha linda... – A mulher acariciou o rosto da menina, limpando algumas lágrimas fujonas.
- Ela dorme o dia inteiro, tia. – Contou a menina, tentando conter as lágrimas. Não tinha com quem conversar ou desabafar, fora um alívio poder finalmente falar sobre com alguém que realmente conhecia sua história. – Eu não sei o que fazer. Me assusta, às vezes.
- Malu, eu nunca conheci pessoas que se amassem tanto quanto seus pais. Eu não vou mentir para você e dizer que vai passar logo e tudo vai ficar bem. Mas o que eu puder fazer por você... Me avisa qualquer coisa, ok? – Pediu, tentando sorrir, mas um tanto desanimada.
- Ela falou com você? – Malu quis saber e não foi surpresa quando a mulher negou com a cabeça, tomando um gole de chocolate. – Ela não avisou ninguém que a gente tinha voltado.
- Eu entendo, sabe? Eu faria o mesmo. Não é como se eu quisesse ver ela também... – Confidenciou, parecendo envergonhada.
- Como assim?
- As lembranças, Malu. Lidar com as lembranças é a pior parte. – Explicou, olhando para as próprias mãos. – É difícil até olhar para você. – Ana olhou para a feição confusa da menina. – Você é tão parecida com ele, Malu!
Malu sorriu para a mais velha e pegou-se pensando que talvez a realidade fosse demais para a mãe e entendeu. Talvez quando a mulher acordava e via o rosto de João no rosto de Malu fosse demais para lidar. Ela entendia, também era difícil para se manter na própria realidade.
- Então, me conta! – A mulher limpou o rosto, tentando espantar as lágrimas e feição amuada. – Com quantos anos você tá?
- Dezoito anos. – Malu riu, admirando a vontade da tia de manter uma conversa.
- Ah, é! Você faz aniversário um dia depois do Calebe. – Recordou-se, pensando em todos os aniversários infantis que ela planejava com os amigos, que sempre eram bondosos e a deixavam utilizar as sobras de decoração das festinhas de Malu.
- Eu acabei de ver ele ali na passagem. – Ela comentou, observando as fotos do garoto presas na porta da geladeira e nas paredes da cozinha. Era daquele Calebe ali que ela se lembrava, o menino rechonchudo que corria pela rua, sebento e emporcalhado. Ainda não reconhecia aquele com costas largas e bumbum redondinho que tinha visto a pouco.
- Tava jogando bola, né? – Malu confirmou, assentindo. – Ele passou no vestibular, sabia? Na federal! – Contou, sorrindo verdadeiramente pela primeira vez na conversa.
- Jura, tia? Que ótimo! – Malu exclamou, feliz. Não sabia muitos detalhes, mas sabia que a mulher teve uma vida sofrida. Era ótimo que ela estivesse calando a boca de várias pessoas que a julgaram por ser mãe solteira aos dezesseis anos. – Passou em que?
- Administração. – Sorriu, orgulhosa. – Queria que ele fizesse alguma área da saúde, mas ele disse que não “curte essas paradas de médico”. – Parafraseou o que o filho a explicou diversas vezes.
- Não combina em nada com ele mesmo, tia. – Concordou. – Fico feliz em ver que vocês estão bem. – Comentou, sorrindo. Era isso que ela esperava, de alguma forma. Ver que Ana e Calebe estavam bem significava que o mundo estava bem, então.
- Estamos, querida, estamos bem. Calebe é um menino de ouro. – Sorriu, orgulhosa, lembrando das traquinagens do menino, que eram devidamente recompensadas por seu jeito gentil. – O único trabalho que me dá é com as meninas. Ô menino pra ter pretendente! Já deve ter quebrado o coração das meninas de todo o bairro...
Malu gargalhou, negando com a cabeça. No fundo, ela já conseguia entender muito bem o porquê de Calebe ser o mais admirado do bairro.
- O Calebe era um amor mesmo... – Malu comentou, usando a faca para cortar um pedaço do bolinho que repousava na mesa.
- Eu ainda sou! – A voz grave soou atrás das mulheres, fazendo-as pularem no mesmo lugar.
O pedaço de bolo quase ficou preso na garganta de Malu, fazendo-a engolir com um pouco de dificuldade. Não por conta do susto, mas por saber que o menino estava ali, dirigindo a palavra a ela. Malu se sentiu ridícula, já não era mais tão adolescente assim para se sentir tão nervosa só por estar perto de um cara bonito.
Calebe sorriu de lado e acenou quando a menina o olhou. Jogou as chaves da casa no armário e tirou a camisa do ombro, indo em direção a mãe e depositando um beijo na cabeça da mulher. Vendo aqueles cachos de perto, ele não se arrependia nenhum pouco de ter saído na metade do jogo e de ter sido imensamente zombado pois todo mundo tinha visto a garota bonita entrando na casa dele.
- Filho, você lembra da Malu? – A mulher questionou apontando para a menina ao seu lado. Calebe riu, é claro que ele lembrava.
- Lembro, sim. – Ele assentiu, ainda sorrindo para a menina. Ele quis suspirar de alívio ao ver que, agora olhando de perto, ela ainda estava bonita. – E aí?
- Oi. – Ela repetiu o que havia dito antes, mas sentiu-se muito estúpida, então, completou: - Eu trouxe cupcake.
Ele sentou-se na mesa junto às mulheres, comentando que estava morrendo de fome e aceitaria os bolinhos. Ana se levantou para pegar mais uma xícara e Malu empurrou o prato em direção a ele.
- Tua mãe me contou que você passou no vestibular, parabéns! – Malu contou e parabenizou.
Ele agradeceu e perguntou sobre ela, se já estava na faculdade. Ela contou que estava fazendo cursinho, mas ainda não tinha muita certeza sobre o que queria. Ela perguntou sobre as aulas dele, se já haviam iniciado e ele explicou que não por conta da última greve. Calebe percebeu que a mãe observava os dois, com uma expressão estranha no rosto. Cutucou o ombro de Malu, apontando com a cabeça para mãe para que ela também visse a mulher.
- O que foi, tia? – Malu quis saber.
- Cara, tá dando um bug na minha cabeça, ver vocês dois assim. – Confessou, rindo e esfregando as têmporas.
- Assim como, mulher? – Calebe questionou, zombando.
- Assim, crescidos, falando sobre faculdades, e futuros. – Explicou, gesticulando, exasperada. – A última vez que vi vocês dois juntos, vocês eram menores que essa mesa!
- Não é como se a Maria Luiza tivesse crescido tanto assim, mãe! – Calebe provocou, sorrindo zombeteiro. A garota ergueu as sobrancelhas.
- Ei, tá proibido tirar onda só porque você não é mais gordo. – A garota instigou, apontando para ele com a faca.
- Ah, mas você ainda é bonita, pô. – Afirmou, despretensiosamente. E o pior é nem fora com segundas intenções. Saiu tão naturalmente que ele quase se sentiu envergonhado.
- Ai, não! – Ana exclamou, cobrindo o rosto como se estivesse envergonhada. – Pelo amor de Deus, Calebe, se controla!
Ana sabia que não faltava muito para o filho exalar seu charme. O menino era um galanteador nato. Malu gargalhou ao ver a reação exagerada de Ana. Fazia tempo que ela não ria assim, tão tranquilamente.
- O que eu fiz agora? – Calebe questionou, confuso, mas risonho.
- Sua mãe já me alertou sobre você. – Malu estreitou os olhos para o garoto, mas também riu ao ver a expressão relaxada e risonha dele.
- Qual foi, mãe? – Indignou-se com Ana, questionando-a e entrando na brincadeira. Na verdade, ele desconfiava que não fosse tão brincadeira assim. – Atrapalhando meus esquemas? – Na verdade, ele não estava pensando em Maria Luiza como esquema, apenas não perdia a chance de provocar a mãe.
- Calebe, você... – A mulher pôs as mãos na cintura, encarando-o. – Eu tô de olho em você, garoto!
- Caramba, eu nem fiz nada... – Retrucou, piscando para Malu. Não flertando, apenas brincando com a menina e com a mãe. – Ainda!
- Ainda?! – Indagou, nervosa. Malu apenas balançava a cabeça, rindo do desespero da mulher, que agora batia no menino com um guardanapo. – Calebe!
Queria dizer para tia Ana que ela estava imune e fechada para negócios, que não precisava se preocupar, mas fala sério, quem ela queria enganar? Ela já tivera dificuldades em dizer “não” para o garoto antes, afinal. Em meio às risadas com as brincadeiras dos dois, sentiu seu peito apertar um pouco ao observar as piadas e brincadeiras provocadoras entre Ana e Calebe e pensou na sua mãe.
Antes, elas perdiam horas apenas discutindo e provocando uma à outra. Malu não perdia uma oportunidade de criar um tumulto com a mãe, sabia que no final, sempre acabaria recebendo um afago em seu ombro como sinal de trégua. Atualmente, se provocasse a mulher, acabaria com o rosto marcado pela mão de Andréia.
Já havia acontecido antes.
જજજજજજ
- Eu sempre te chamava pra brincar, Maria Luiza! – Calebe contestou, já meio irritado com a insistência de Malu em dizer que ele não ligava muito para a existência dela na infância.
- Nos teus aniversários, apenas! – Retrucou. – E só por que a gente sempre acabava ficando pra trás...
- Verdade! – Ele riu, as lembranças ficando cada vez mais vividas em sua mente a cada passo que davam. – A gente passava horas esperando eles secarem as garrafas de cerveja e contando tudo no final.
Calebe se arrependeu de abrir a boca no momento em que concluiu a frase. Notou a postura de Malu mudar, ficou mais rígida e o sorriso leve em seu rosto quase sumiu. A lembrança do seu pai era dolorosa e as lembranças felizes, que deveriam acalentar o coração de Malu, deixavam tudo pior. Seu pai era um homem tão bom, ele merecia muito mais lembranças e histórias felizes.
- Desculpa. – Murmurou, arrependido. Ela negou com a cabeça, fazendo um gesto com a mão como se não se importasse, mas Calebe viu nos olhos dela que era o contrário. Decidiu continuar falando, visto que ainda não tinha dado suas condolências. – O tio João era um cara incrível, Malu. Eu sinto muito por tudo o que aconteceu.
Ela suspirou, agradeceu por ele ter sido sensível o suficiente para respeitá-la e não falar mais nada depois. Já passava das nove da noite quando Malu decidiu parar de abusar da hospitalidade e gentileza da família Martins e ir para a própria casa. Passou a noite sentada no sofá da casa de Ana, conversando, atualizando-se e matando a saudade. Jantou com os dois e quando percebeu que o Jornal Nacional já estava no fim, achou melhor ir para casa. Não negou quando Ana ofereceu uma marmita, com o resto do que eles tinham comido, para levar para Andréia. Malu sabia que quando chegasse em casa, a mãe estaria acordando. Porém, recusou várias vezes a companhia de Calebe até sua casa, não era necessário. Mas Ana insistiu várias vezes, já era muito tarde para a garota atravessar a Passagem sozinha.
- Ei, o Pedrinho ainda mora aqui? – Malu apontou para a casa azul à esquerda deles. Lembrava bem do garotinho cabeludo que jogava bola com Calebe e era uma das dezenas de crianças da rua em que eles tinham ido no aniversário.
- Não, foi pra Brasília. Passou em Direito na UNB, acredita? Aquele filho da puta. – Resmungou.
O moleque foi amigo de Calebe até os quinze anos, até que ele roubou sua namorada e tornou-se um babaca. Calebe ainda sentia o sangue ferver quando passava por Priscila, mas não a culpava. Culpava Pedro Paulo, ele era um puta menino mimado. Matava aula o dia inteiro, nunca tirava nota boa nas provas e ainda passou no vestibular com uma alta pontuação.
Para Calebe, só existia uma explicação para o fenômeno Pedro: Ele fraudou o Enem.
- Caramba! – Ela exclamou, surpresa. Aparentemente todo mundo estava em uma universidade, muito bem encaminhado, enquanto ela se sentia estagnada. – Eu lembro de um aniversário, acho que foi dele, que você quebrou o dedo.
- Foi mesmo! – Calebe riu, olhando para o dedo mindinho e procurando a cicatriz. Elevou a mão para mostrar a ela. – Foi no mesmo dia que você roubou meu brinde.
- Eu? – Perguntou, confusa.
- Você tá me devendo um saquinho de brinde do Batman, Maria Luiza. – Avisou-a, falando seriamente.
- Caraca, que rancoroso! – Ela gargalhou, achando engraçado a feição magoada dele.
Eles entraram na passagem das flores e Malu quase soltou um muxoxo de frustração. Geralmente quando chegavam na passagem significava que a casa dela já estava perto. Queria passar um tempo lá fora. Não por estar curtindo desesperadamente a companhia de Calebe, mas sim porque não queria entrar em casa. Tudo era triste lá dentro.
- Só porque eu lembro que você roubou meu saquinho, que tinha uma pipoca, um apito, três pirulitos, dois bombons de iogurte e uma língua-de-sogra, quer dizer que eu sou rancoroso?
- Porra! – Malu, inesperadamente, explodiu em gargalhadas. Sabia que ele não lembrava, mas só de ter inventado tudo aquilo rapidamente e ter falado tudo tão sério, já deixava-a em risadas. Calebe nunca tinha escutado a risada de Maria Luiza, mas não é ridículo dizer que agora ele queria fazê-la rir o tempo inteiro. – Isso faz mal pro coração, hein!
- Meu coração tá muito bem, obrigado. – Enunciou, sarcástico. – Quer dizer, sempre pode melhorar, não é?
Ela rolou os olhos. Calebe era aquele tipo de cara, que mesmo que não quisesse nada, ele daria em cima de você. Mesmo que ele não estivesse, sempre iria parecer que ele estava lançando uma cantada.
- Você é inacreditável. – Malu proferiu, subindo as escadinhas da porta da sua casa e virando para olhá-lo e pegar a marmita das mãos dele. Não sabia o porquê de estar quase fugindo. – Valeu por ter vindo até aqui comigo.
- Um elogio e um agradecimento, estamos evoluindo! – Ele aproximou-se em um passo e ela, por reflexo, subiu mais um degrau. Ele sorriu ladino ao perceber a preocupação da garota em se manter distante dele.
- Calebe. – Ela chamou, não que precisasse já que ele não tirou os olhos dela desde que saíram da casa dele. Ela precisava deixar as coisas em claro. Mas para ela, do que para ele. – Não vai rolar.
- Mas que coisa, eu não fiz nada! – Exclamou, espirituoso. Levantou os braços como se estivesse sendo atacado e sorrindo travesso. Calebe era o famoso cara “vai que cola”. Se der, deu. Se não, que pena, pula para a próxima.
- Não fez nada... ainda? – Perguntou, em um flerte velado.
Não conseguia evitar. Malu gostava de flertar, sentia falta disso. Quando morava em Vitória, ficou com mais caras do que a sociedade achava aceitável, mas não se importava. Ela era muito bem resolvida com suas concepções sociais. Gostava de paquerar, gostava da adrenalina de conhecer alguém e sabia que não havia nada de errado nisso.
- Talvez. – Deu de ombros, respondendo como se não se importasse. – É bem capaz de você fazer antes.
- Fazer o quê? – Replicou, confusa.
- Boa noite, Maria Luiza. – Afastou-se dela, com um sorriso de lado, transbordando malícia. Ela o observou dar as costas a ela e afastar-se, voltando a ir em direção a passagem.
- Calebe! – Chamou, alto. Ele virou para ele, olhando-a suavemente. A maldita camisa ainda pendurada no ombro. – Não vai rolar!
“Quando a esperança de uma noite de amor lhe trouxer vontade para viver mais [...] eu tô’ cansado de sofrer. quero dançar, sentir calor e poder só olhar o universo em torno de você”.
Sorri, Sou Rei – Natiruts.
E não rolou mesmo.
Durante um ano inteiro, a relação de Maria Luiza e Calebe não passava de olhares e sorrisos enviesados. De vez em quando, trocavam uma palavra ou duas. Calebe não sabia dizer se ela não estava interessada ou só estava sendo orgulhosa. Porém, não poupavam nas provocações. Aqueles flertes juvenis, sabe? Alguns velados, como quando ela passava por ele na rua, olhando-o intensamente até que não fosse mais possível virar a cabeça. Outros nem tanto, como quando Calebe fazia todo o time parar o jogo de futebol na rua e abrir caminho só porque Malu estava passando, deixando-a envergonhada e seu coração balançado com a ousadia provocativa do rapaz.
Para o desespero de Calebe, Maria Luiza retomou com fervor o seu antigo posto de “mais bonita da rua”. Ouvia os planos de seus amigos para “chegar” na garota e não podia fazer nada, não iria proibir as pessoas de se aproximarem dela. Primeiro porque era errado, segundo que ninguém lhe obedeceria. Queria brigar com todos, mas poxa, o que ele poderia fazer? Ela matava a todos quando aparecia na rua usando seus vestidinhos apertados no busto e balançava seus quadris por aí com suas saias soltinhas demais ou apertadas demais. E a pior parte é que ela já tinha feito amizade com várias meninas da rua.
Por que isso seria ruim? Na visão de Calebe, uma mulher sozinha é corajosa. Uma mulher com amigas é invencível.
Ele quase se engasgou com a própria saliva quando viu Malu descendo a rua acompanhada de Clara e Gabi, meninas cuja amizade quase chegou ao fim por culpa dele. Temeu muito que elas tivessem compartilhado com Malu as histórias de safadeza dele. Não era um cafajeste, mas era homem, jovem e solteiro. E apesar de sempre ser extremamente claro e sincero com suas conquistas, nem todas entendiam o seu jeito livre.
Foram muitos meses que Calebe passou falando “Ela não é disso”, “ela deve ter namorado”, “cara, desencana!” e muitas outras desculpas que ele conseguia arranjar para os amigos não chegarem nela. Ele nunca escutou um relato sobre ela com alguém e aquilo, de certa forma, o tranquilizava. Porém, sua calmaria chegou ao fim junto com o ano.
Todo final de ano, a vizinhança – que era muito unida – organizava a festa de réveillon na passagem das Flores. Tudo ficava muito bonito, eles quase não enfeitavam nada, pois as paredes floridas já deixavam tudo bonito. As mesas compridas lotadas de comidas, as crianças corriam pelas ruas sem preocupações, a música alta que saia do carro de um dos vizinhos que possuía um ótimo som. A expectativa para o ano que estava quase chegando deixava tudo muito festivo e alegre. Exceto...
- O que é isso no forno, Maria Luiza? – Andréia questionou ao entrar na cozinha e notar que o forno estava aceso e exalava um cheiro doce pela casa.
- Pudim. Eu vou levar pra dar na coleta da comida. – Respondeu, sem desviar o olhar do espelhinho apoiado em um vaso de flores em cima da mesa de jantar. Decidiu se maquiar na cozinha enquanto esperava o doce ficar pronto. Ela sempre perdia o ponto certo de tirar o pudim do forno. Não queria correr esse risco dessa vez. Ao notar o silêncio, ergueu o olhar, encontrando a feição confusa de sua mãe. – A festa de ano novo é hoje, mãe.
- Ah, sim. Não sabia que você ia participar... – Comentou, amargurada. Foi em direção a geladeira e notou que a mesma também estava mais cheia, lotada de comidas e bebidas. Não lembrava de ter feito compras. Logo, um sentimento ruim lhe abateu.
É óbvio que a menina devia ter feito as compras. Olhou ao redor e também notou a casa arrumada, a cozinha bem limpinha, a louça toda lavada. Andréia sentiu-se inútil, quis pedir desculpas à filha, mas a vergonha era tanta, que não conseguiria. Claro que se sentia culpada por suas ações com a filha, mas o orgulho e a vergonha eram grandes demais para que ela voltasse atrás agora.
- Tem problema? – A menina perguntou, insegura ao notar o estranhamento da mulher. – A tia Ana me convidou, então eu pensei...
- Faz o que você quiser, Malu! – Respondeu atravessado, abrindo uma garrafinha de cerveja e dando um gole. Em seguida, olhou para o objeto, estranhando o nome em inglês no vidro verde. – É assim que você gasta o dinheiro da sua pensão? Com essa cerveja cara?
- Não foi caro. – Assegurou, levantando da cadeira e indo tirar o pudim do forno, passando pela mulher. Retirou a fôrma e jogou sobre a pia, tirando a luva e indo recolher seu estojo de maquiagem da mesa. – Além do mais, é ano novo, mãe. E eu não sei você, mas eu cansei de ficar triste. – Foi para o quarto sem olhar para trás. Maria Luiza foi sincera, estava realmente cansada.
Passaram-se dez meses desde o falecimento de João e ela ainda tinha que fazer as compras da casa todo mês, pagar as contas, entre outras coisas. Durante aquele ano inteiro, Malu tentava conciliar tudo isso com seus estudos, mas ainda assim, era difícil. Antes de tudo ocorrer, Maria Luiza nunca tinha feito feijão sozinha, nem sabia como lidar com contracheques. Mas desde que sua mãe se recusou a voltar à vida, ela teve que aprender da forma mais trabalhosa, e tudo isso, sozinha.
જજજજજજ
Calebe, ao contrário do resto da rua, não estava se sentindo nada festivo e alegre. Sentado na sarjeta do outro lado da rua, rodeado por seus amigos, encarava fixamente a porta da casa à sua frente, sem se importar se estava parecendo um maníaco ou não. Já ficou irritado quando descobriu que o babaca do Pedro Paulo – aquele que roubou sua namorada e sua vaga na UNB – iria passar o recesso de final do ano em casa. Quis quebrar o garoto inteiro quando olhou no relógio e percebeu que já fazia vinte minutos que ele e Malu conversavam na porta da casa dela.
Vinte minutos. Quem tem tanto assunto para compartilhar assim?
- Calebe! – Alguém chamou sua atenção, mas ele não ligou, apenas respondeu com um resmungo baixo. – Cê tá afim da Maria Luiza, não é?
- O que? – Saiu do transe quando ouviu o nome de Malu ser citado.
- Tá encarando eles, cara! Seja discreto, pelo menos. – Tiago sugeriu, levantando-se e ficando em frente dele, cobrindo sua visão.
- Meu problema é com ele, Tiago! Malu não tem nada a ver com isso. – Tentou assegurar, mas nem ele mesmo acreditou em suas palavras.
- Tá bom, acredito. – Bufou, totalmente desacreditado. – Então, cê vai ficar tranquilo se eu disser que vi o Luís, aquele cara da academia lá de cima, sabe? Parecendo muito íntimo da Malu.
Calebe levantou, com os olhos semicerrados, encarando a expressão desafiadora de Tiago. Foda-se, ia morder a isca.
- Quão íntimo? – Mordeu os lábios, espiando por trás da cabeça do garoto.
Malu e Pedro Paulo tinham – finalmente – se afastado e agora o garoto estava com a família na mesa e Malu estava sentada em uma cadeira de plástico na rua, conversando com alguma mulher mais velha que morava ao lado.
- Íntimos tipo, ele pegando ela em casa pra sair no sábado passado. – Tiago murmurou, como se estivesse contando um segredo. Parecia uma velha fofoqueira.
- Tá bem informado, hein, moleque! – Calebe brincou, bagunçando os cabelos enrolados do rapaz. – Parece que é você que tá afim dela, não eu.
- Então, cê tá afim mesmo? – Tiago perguntou, gargalhando com o fora que Calebe tinha dado. – Cara, eu tava só te zoando! – Calebe bufou, irritado. Não com Tiago, e sim, com a situação.
Fala sério, nunca tinha trocado mais de algumas palavras com a menina desde a sua volta, não podia estar tão afim dela assim.
- Vou beber alguma coisa! – Avisou, ignorando os deboches de Tiago, que ria sem parar da expressão irritada do amigo.
Foi até a mesa de bebidas, procurando por algo não alcoólico. Sua mãe estava andando por ali e se ela o visse bebendo, reclamaria até o ano seguinte. Não que ela fosse contra, mas não gostava que ele bebesse na frente da vizinhança. Já era um pouco traumatizada com comentários de vizinhos por conta da gravidez precoce, com isso, não gostava de dar assunto para os outros comentarem. Assim que tocou na garrafa de refrigerante, logo uma fila surgiu ao seu lado. Parecia ser tradição. Se servir um copo a uma pessoa, logo terá que servir todo mundo.
Quando achou que tinha terminado de servir todos, sentiu uma mão na sua cintura de um lado e um copo surgindo do outro. Olhou para trás para descobrir quem era o corpo que aquecia suas costas rapidamente.
- Ué, parou de servir? – Malu brincou, balançando o copo na mão. Saiu de trás do rapaz, parando ao seu lado.
- Não, só parei de servir você. – Resmungou, fazendo uma careta. Mesmo negando, pegou o copo da mão dela, enchendo-o com refrigerante. Ela abriu a boca, fingindo estar em choque.
- O que eu te fiz? – Reclamou, pegando o copo já cheio da mão dele.
- Vinte minutos, Maria Luiza! Eu contei exatos vinte minutos que você ficou de papinho com o Pedro Paulo! – Queixou-se, inconformado. Malu não aguentou a sinceridade do garoto e gargalhou, chamando a atenção de algumas pessoas.
Ela havia notado o olhar raivoso que ele estava enquanto encarava a conversa entre ela e o antigo coleguinha. Por isso, quando o viu, finalmente sozinho na mesa de bebidas, não pensou duas vezes em ir até lá. Queria saber se ele daria alguma desculpa ou agiria estranho, mas Calebe era um garoto perspicaz e ela nem precisou trazer o assunto à tona.
- E daí? Fazia tempo que a gente não se via. – Deu de ombros, tentando controlar as risadas. – Eu não sabia que ele estava tão bonito. – Provocou, mordendo a ponta do copo de plástico e esperando a reação de Calebe.
- Ah, Maria Luiza! Só nasceu uma barba nele, e daí? Ele nem é tudo isso. – Protestou, jogando a cabeça para trás e bagunçando os cabelos.
- Só tá falando isso porque você sabe que é incapaz de deixar a barba crescer. Você e seu rostinho de bebê. – Provocou.
- Bebês são lindos mesmo, obrigada! – Gracejou, fazendo uma reverência. – Sério, ele é um babaca.
- De onde surgiu essa raiva? Você e o Pedrinho eram super chegados um no outro! – Indagou, curiosa. Já tinha notado uma certa rivalidade entre os dois. E as meninas já haviam comentado com ela sobre a intolerância entre eles, mas ela não sabia o motivo exato.
- A gente era mesmo. – Confirmou. Seguia andando pela rua e reprimiu um sorriso quando ela entrelaçou o braço no dele para se apoiar e fugir dos empurrões das crianças, que corriam entre as pernas de todos. – Até ele roubar minha primeira namorada.
- É claro que tem mulher envolvida na história! – Revirou os olhos.
- Sim, como em todas as grandes rivalidades. É por isso que você tem que ficar longe dele. Tô falando sério, Malu. Se eu ver vocês dois conversando, vou te tirar da frente dele nem que seja carregada! – Comunicou, divertido, puxando a ponta do cabelo dela. Os cachos de Malu estavam incríveis naquela noite.
- Quem diabos você pensa que é? – Debochou da ameaça sem fundamentos do garoto. – Você não tá fazendo o menor sentido, Calebe!
- Imagina se eu vou deixar ele roubar outra mulher minha, Maria Luiza! – Declarou, despretensiosamente. Malu arregalou os olhos e encarou-o, surpresa com a frase dele. Calebe, realmente, não tinha papas na língua.
- Mulher sua?! – Quase gritou, exasperada.
- Oi, mãe! – Chamou a atenção da mulher que estava distante deles, mas foi a única que achou para fugir da conversa e dos prováveis gritos de Malu. A garota beliscou o braço dele ao entender sua estratégia de fuga.
- Malu, você tá linda! – Ana veio abraçar a garota e tirá-la do lado do filho.
- Valeu, tia! Ainda não tinha te visto por aqui. – Comentou com a mulher, ainda olhando raivosa para Calebe.
- Eu tava na casa da Maria, só que já está quase na hora da virada, aí vim procurar esse garoto aqui. – Ana passou o braço na cintura do menino, que a abraçou de volta e deu um beijo na sua testa. – Você trouxe o pudim? Eu só achei a receit....
Malu já não escutou mais nada. Ao ver o carinho de Calebe com sua mãe, pensou em Andréia. Nunca fora de ter muitos momentos amorosos com mãe, mas em momentos como aquele, queria-a do seu lado, nem que fosse para brigar. Inconscientemente, olhou em direção a sua casa. Tamanha foi sua surpresa ao encontrar a figura da mãe, sentada na escadinha que havia na porta da sua casa, observando a rua com uma expressão neutra. Pediu licença rapidamente, não notando as expressões confusas de Calebe e Ana, que logo entenderam a saída repentina ao verem a direção que a menina seguia.
- Mãe? – Chamou, sem acreditar que a mulher realmente estava ali. Ela estava usando pijama com um casaco preto por cima, mas Malu não ligava. Aquela era apenas a terceira vez que a mulher aparecia na rua desde que vieram de Vitória.
- Não deu pra ficar lá dentro. – Ela afagou o próprio peito, sorrindo de leve. O alívio que foi para Malu notar um esboço de sorriso na mulher após tanto tempo, também foi a dor que sentiu ao constatar o sofrimento na frase da mulher.
Sentadas nos degraus da porta da própria casa, dividindo uma garrafa de cerveja pela primeira vez, elas assistiram a vizinhança em contagem regressiva, os fogos de artifícios estourarem no céu, os champanhes sendo estourados por todos os lados. Os gritos, os risos. E a alegria. Malu tentou segurar as lágrimas de todas as formas possíveis, mas tudo era triste demais. A saudade gritou em seu peito. Ela não queria chorar na frente da mãe, tinha certeza que seria extremamente doloroso para Andréia ver sua filha única chorando. Sabia que tinha que se fingir de forte na frente da mãe, mas antes que pudesse notar, lágrimas espessas já desciam por seu rosto.
“Ah, meu pai! Que saudades de você!”, pensou. Se ele estivesse ali, estaria abraçando as duas mulheres, recitando Carlos Drummond de Andrade.
- Maria Luiza... – Andréia sentiu seu coração dilacerado ao ver a filha com o rosto contorcido, tentando forçar as lágrimas de volta. Seus olhinhos estavam tão vermelhos que pareciam que estavam chorando a dias. Talvez ela estivesse, talvez toda aquela dor e mágoa estivesse ali a um tempo, mas ela não saberia dizer. Não tinha prestado atenção. – Malu?
Puxou a menina para seus braços, acolhendo-a como uma criança. Maria Luiza chorou ainda mais ao receber o colo que, há tempos, não tinha. Andréia se sentiu extremamente mal ao cobrir com seus braços o corpo trêmulo da menina. Estava tão imersa na própria dor que não notou que a filha estava destruída.
Só naquele momento que notou, que sim, era horrível perder o seu grande amor. Entretanto, também era terrível perder o pai. Maria Luiza tinha dezoito anos e havia perdido seu pai.
- Malu, eu sei que dói... – Andréia tentou confortá-la, mas os soluços contidos da menina não a deixaram completar a frase. Doía demais e ninguém, além delas, entenderia. Ela levantou o rosto de Malu, acariciando suas bochechas, tentando afastar as lágrimas pesadas. Era doloroso olhá-la. Ela era a cópia menor e feminina de João. – É um novo ano, minha linda. – Murmurou, entre lágrimas.
- Desculpa, mãe. Eu juro que vou parar! – Ela pressionou as próprias bochechas com as mãos, como se aquilo fosse interromper a avalanche de lágrimas que desciam pelo seu rosto juvenil.
Andréia deu uma risadinha ao notar a tentativa falha da filha. Antes que pudesse falar algo mais, alguém gritou seu nome. Ela respirou fundo, sabia que no momento que pisasse fora de casa, seria reconhecida. E os bons costumes teriam que falar mais alto e ela teria que cumprimentar as pessoas. Levantou a cabeça, procurando por quem a chamava.
Não conseguiu segurar as lágrimas que segurou por tanto tempo quando viu Ana, sua parceira de vida, sua grande amiga, ir até ela. Era um sacrifício, mas também era um alívio. Ela e Malu compartilhavam do mesmo pensamento, sem saber. Ter Ana por perto, significava que o mundo ainda estava lá, do mesmo jeito que antes. Levantou-se da cadeira, não pensando duas vezes em aceitar o abraço apertado da mulher.
Malu continuou ali, porém, não se levantou, apenas abaixou a cabeça. Não queria que ninguém a visse chorando. Limpou o rosto várias vezes, jogou os cachos para um lado, tentou olhar para a luz, apenas para se distrair das teimosas lágrimas. Quando sentiu alguém se agachar em sua frente, não precisou levantar a cabeça para saber quem era.
- Feliz ano novo, Maria Luiza. – Calebe murmurou, envolvendo-a em um aperto quente e confortável. Ele não tentou vê-la de frente, pois sabia que ela estava chorando. Sabia que era orgulhosa o suficiente para que ele não quisesse ver suas lágrimas. Ela tocou os braços dele, agraciada com o carinho do garoto. Surpresa por achar nele o abraço que precisava.
- Feliz ano novo, Calebe. – Virou o rosto, elevando-o e tocando a face do rapaz com os lábios, levemente.
Calebe achou perigoso quando seu corpo inteiro se arrepiou com um toque tão simples e escasso. Foi quando admitiu para si mesmo, pela primeira vez, que estava vergonhosamente afim de Maria Luiza.
જજજજજજ
A Passagem das Flores estava lotada. Já passava das três horas da manhã, mas o subúrbio permanecia animado e agitado. Algum forró antigo estourava nas caixas de som. Não havia reclamação dos vizinhos por conta do barulho já que quase todos estavam presentes na festa. Era uma vizinhança unida, que adorava uma boa festança. Malu observou como várias pessoas dançavam nos espaços livres. Riu alto ao notar que Tiago tentava passar entre dois casais enquanto equilibrava três copos de cerveja na mão. Aos poucos seu sorriso foi diminuindo ao notar que um dos casais, na verdade, era um trio.
Calebe dançava com Gabi e outra garota, simultaneamente. Malu já tinha ido a uma festa universitária com o pessoal da rua e sabia que Calebe era aquele que passava a festa inteira ocupado, sendo importunado por garotas sedentas por seus bons passos de dança. Ela mesma sentira vontade de dançar com ele. Mas fala sério, duas ao mesmo tempo? Ele precisava mesmo esfregar na cara de todo mundo o quão bom ele era?
Desviou o olhar para a frente da sua casa e ficou alegre ao ver que a mãe ainda estava por ali, sentada na escadinha da porta, ao lado de Ana. Dividiam uma garrafa de cerveja e conversavam intensamente. Ela queria sentar-se ao lado delas, ignorar Calebe e aquele sentimento chato que ela estava criando, mas achou melhor procurar outra companhia. Sabia que a mãe e a amiga tinham muito para pôr em dia. Olhou para o lado e encontrou Pedrinho conversando com alguns amigos de Calebe. Resolveu se aproximar, não queria ficar isolada enquanto Calebe estava aproveitando a festa de ano novo plenamente.
Recriminou-se pelo pensamento. Desde quando ela fazia qualquer coisa, visando e se comparando com Calebe? Nem amigos eram. Não tinham justificativas para seu comportamento.
- Ai, tô afim de dançar! – Alanne reclamou, balançando seu corpo no ritmo da música e usando o braço de Malu para girar a si mesma. Tinham se tornado amigas após notarem que sempre desciam na mesma parada de ônibus. Dias depois, descobriram que frequentavam a mesma escola preparatória para o vestibular. – Será que Calebe aguenta mais uma? – Brincou, apontando com a cabeça para o rapaz.
- Ele não dá conta nem de uma! – Pedro Paulo debochou, rolando os olhos. Malu logo detectou a provocação do rapaz, lembrando que Calebe contou que ele havia roubado uma namorada sua.
- Vocês ainda não pararam com essa palhaçada? – Alanne resmungou, jogando seus longos cabelos loiros para trás. Bebeu um pouco da vodca e entregou o resto para Malu, que fez careta, mas bebeu também. – Superem, a garota já tá até namorando outro cara.
- Quem foi a culpada dessa briga entre vocês? – Malu indagou, curiosa. Ambos se importavam demais com a menina para sustentarem aquilo até os dias atuais.
- A Priscila Souza, aquela que tem a moto roxa. – Alanne contou, rolando os olhos. Não era muito fã da garota. Assim como a maioria dos amigos da rua, ela era amiga de Calebe e Pedro Paulo desde sempre. O fato de Priscila ter usado os dois deixava-a irritada.
- Sério? Tanta implicância por aquilo? – Malu riu, em tom de chacota e virou o resto da cerveja na boca. Fez careta ao sentir o gosto da cerveja e da vodca se misturando e ao pensar em Priscila. A menina era bem bonita, mas também sem graça demais.
- Peitos grandes. – Pedro deu de ombros.
- Isso é ridículo! Peitos pequenos e lindos bem aqui, pra provar que isso não existe! – Alanne estufou o peito e puxou Malu para seu lado, entrelaçando o braço na cintura da amiga. Apontou para o decote das duas com a mesma mão, objetificando seu exemplo.
Malu gargalhou, jogando a cabeça para trás. Por isso haviam-se tornado amigas. Amava que a garota, como ela, não tinha medo ou reservas. Amava ser mulher, amava paquerar e flertar tanto quanto ela. As outras garotas julgavam-nas, mas Alanne sempre dizia que elas só queriam ser como elas. Livres e desimpedidas, confortáveis em serem mulheres jovens e solteiras.
- Isso definitivamente é uma bela prova! – Pedrinho riu, engolindo com o olhar o decote generoso das duas. O vestido branco e curto de Malu contrastava com a blusinha tomara que caia amarela de Alanne. E juntas, elas se tornavam uma visão e tanto.
Continuaram conversando, os três jovens jogando charme um para o outro, sem se importar realmente com a paquera. Mas olhando de longe, Calebe tinha certeza que Pedro Paulo estava dando em cima de Malu descaradamente. Com a desculpa de que precisava tomar uma água, Calebe se afastou de suas parceiras de dança. Não sabe o que lhe deu na cabeça de ir na direção de Malu, Alanne e Pedro, porém, ele costumava ser muito impulsivo mesmo.
Entre uma risada e outra, Malu notou que Calebe se aproximava. Estava com o olhar fixo nela, mas estava tranquilo. O sorriso brincalhão aumentava a cada passo que ele dava. Ela franziu a testa, não entendendo muito bem por que ele parecia segurar o riso de alguma forma. Então, lembrou da conversa de algumas horas atrás.
“Se eu ver vocês dois conversando, vou te tirar da frente dele nem que seja carregada!”.
- Não. – Malu avisou, apontando o dedo para Calebe, que riu alto. Ela já havia entendido sua intenção.
- Sim. – Balançou a cabeça em contrapartida. Alanne e Pedro encararam os dois com estranhamento. Eles não sabiam que Malu e Calebe se falavam, nem sequer que eram amigos.
- Calebe! – Deu passos para trás, mordendo os lábios para comprimir uma risada.
- Maria Luiza. – Quando estavam quase próximos, Calebe deu um pequeno impulso, que causou um gritinho em Malu, que saiu correndo em disparada.
Então, eles se transformaram em Calebe e Malu de sete anos de idade de novo. Correram entre as mesas tal qual duas crianças, desviando dos adultos, derrubando cadeiras. Calebe ria, encantado com a risada graciosa de Maria Luiza. Seus cabelos esvoaçavam e seu vestido subia enquanto ela corria. Estava tão bonita que era dolorido e triste para as outras garotas ali presentes, pois para Calebe, ela era a mais bonita dali em disparada.
- Pelo visto, vou ter que furar o olho do Calebe de novo. – Pedro brincou, observando os amigos correrem pelo local, causando confusão e risadas na maioria das pessoas.
- Pelo visto, eu não vou ganhar meu primeiro beijo do ano hoje! – Alanne insinuou, atrevida, cruzando os braços. Pedrinho desviou o olhar para a garota, mordendo os lábios levemente. Malu era linda, mas Alanne Moreira definitivamente era algo mais.
- Você é um perigo, Alanne... – Murmurou, virando a garota de costas e a guiou para um local mais reservado. Não dava para fazer o que ele queria ali, na frente de todo mundo.
As pernas de Malu queimavam, mas ela poderia continuar correndo a noite inteira. Entretanto, as risadas tiravam todo o seu fôlego. Correu até a frente da sua casa, ficando atrás de Ana, usando a mulher como escudo.
- Tia! – Clamou por ajuda, abraçando a mulher por trás. Calebe gargalhou, diminuindo na corrida e indo para o outro lado, puxando Malu pelo braço.
- Ei! Vocês querem me partir no meio? – Ana ralhou, brincalhona, tentando distanciar-se dos dois, que ainda se estapeavam. Calebe tentando segurá-la e Malu tentando fugir.
- Parece que não cresceram! – Andréia reclamou, balançando a cabeça. Mas no fundo, até que estava feliz em ver o sorriso no rosto da filha de novo.
- Aproveitem que já estão correndo e vão pegar aquelas caixas de cerveja que estão lá em casa. – Ana apontou, empurrando os dois para longe. – As daqui estão acabando.
Num deslize, Malu conseguiu desviar dos braços de Calebe, correndo para longe. O menino fez um sinal positivo para a mãe e deu um novo impulso para a corrida. Malu gargalhou ao notar que Calebe estava em uma distância considerável, mas não o suficiente para que ela se entregasse.
- Esses dois... – Andréia comentou, observando os sorrisos abertos dos jovens cansados da correria.
- Não tem mais jeito, ela tá ferrada! – Ana riu com sua própria constatação.
Conhecia o filho e sabia muito bem quando ele se interessava por alguém. Também sabia que era muito difícil ele não conseguir o que queria. Elas observaram os dois correndo entre as pessoas na festa. Logo, desapareceram da passagem, ficando claro que tinham ido para a rua de cima, provavelmente em direção a casa de Ana.
- Há! Você não sabe o que fala. – Andréia gargalhou, erguendo o copo de vidro para a amiga, sugerindo um brinde. Deveriam beber devagar, pois ambas sabiam que as caixas de cerveja iam demorar para chegar. – Quem tá ferrado é ele...
જજજજજજ
- Calebe, minha calcinha tá aparecendo! – Reclamou, se remexendo no ombro do rapaz. Assim que dobraram a esquina, Malu reduziu os passou. Se arrependeu quando sentiu Calebe carregando-a por trás, pendurando-a sob seu ombro, como se ela fosse uma boneca de pano.
- Não tem ninguém pra ver. – Assegurou, virando um pouco o rosto para encarar as pernas da garota.
Malu levantou a cabeça, olhando em volta. Ainda dava para ouvir a música alta que vinha do outro lado, mas aquela rua estava tão vazia que nem parecia que era noite de ano novo. Todos os moradores deveriam estar do outro lado, visto que por lá ainda estava lotado.
- Tem você! – Ela tentou descer, mas quando percebeu que se tentasse fazer isso, iria cair de cara no chão. Então, abraçou o torso do rapaz, apenas tentando se manter inteira. – Minha cabeça vai explodir, Calebe!
- Ninguém mandou você sair correndo. – Abriu a porta da casa, estava escuro demais e ele estava cansado, então tomou um cuidado extra quando andou com Malu até chegar próximo do sofá.
- Você ia me carregar na frente de todo mundo! Imagina só se... – Quando seus pés tocaram no chão, tudo pareceu virar de cabeça para baixo de novo e ela não conseguiu se firmar no lugar, cambaleou no lugar, segurando-se nos braços dele. Calebe segurou na cintura da garota fortemente, tentando mantê-la em pé. – Calebe, seu idiota! Eu tava bebendo!
- Ótimo, agora tenho que te carregar porque tá bêbada! – Calebe gargalhou, achando hilário ela estar muito concentrada em se manter de pé. Ela fechou os olhos e começou a desferir tapas em seu braço. Sentia todo o álcool em seu cérebro, provocando uma lentidão em todo seu sistema. Ele ergueu o corpo dela, deixando-a apoiada no braço do sofá. – Fica quietinha, vou pegar uma água pra você.
Um axé antigo começou a tocar. Causou uma grande nostalgia em todo mundo, logo todos estavam cantando tão alto que ela escutava com clareza, mesmo a metros de distância. Era sua preferida! Lá fora, todos dançavam, com os braços pra cima, cantando alto, inebriados pela boa música e dominados pela nostalgia. Lá dentro, Malu tentava controlar seus quadris, mas o álcool presente em seu corpo e a inusual alegria eram mais fortes. Nem percebeu quando seus olhos se fecharam e ela remexia o corpo no som da percussão marcante da música.
- Eu fui embora, meu amor chorou... – Cantou, baixinho, sem controlar o leve sorriso.
Calebe sentiu o chão embaixo dele estremecer, mas ele duvidava que fosse por culpa da vibração do som e da quantidade de pessoas cantando. Ela não saia do lugar, mas se movia de um jeito incrivelmente suave. Seus ombros balançavam, seus cachos se moviam de um lado para o outro, perfeitamente uniformes. Como estava de costas, não teve como ele não notar seu traseiro se movendo provocante, sem sequer ter noção disso.
Calebe teve a certeza de que Malu veio para ficar, ela seria a culpada de seus próximos suspiros e vontades.
- Yo quero te namorar, amor… – Ela continuava cantando baixo, mas agora batia as mãos contra o sofá no ritmo da música e sorria enquanto cantava.
Ele pigarrou, aproximando-se com o copo de água. Assustada e envergonhada de ter sido pega dançando, virou-se tão rápido que a ponta de seus cabelos bateu em seu rosto. Ele notou que alguns fios ficaram presos em seus lábios, que provavelmente tinham sido umedecidos pela língua da mesma enquanto ela cantava.
- Valeu. – Pegou o copo da mão dele, virando o conteúdo dele rapidamente. Ela estava nervosa. Ele estava próximo, as luzes estavam apagadas, tudo sendo iluminado apenas pela luz do pátio da casa. E bom, estavam sozinhos, pela primeira vez. – Se eu vomitar, você vai limpar.
- A culpa não é minha, eu avisei sobre o Pedro Paulo. – Resmungou, sentando-se no braço do sofá, ao lado dela.
- Eu descobri. – Contou, apoiando o copo ao seu lado. Ele ergueu uma sobrancelha, confuso. Ela resolveu explicar. – A treta entre vocês. E estou decepcionada, fique sabendo.
- Ué, por quê? – Questionou.
- Priscila Souza? Sério? – Julgou, com desprezo. Ele riu, balançando a cabeça.
– Eu acho que você pode fazer melhor.
- É? – Agindo rápido e impulsivamente, virou o corpo, ficando em sua frente e apoiando seus braços no sofá, ao lado dela.
- Se foi por causa dos peitos, saiba que os pequenos também têm seu charme. – Afirmou, sorrindo enviesada.
- Se Pedro falou dos peitos, ele é realmente um idiota. – Balançou a cabeça negativamente.
Estava tão próximo de Malu que podia sentir seu perfume adocicado, o cheiro do seu cabelo, podia ver a pele de seu busto cintilando com uma fina camada de suor devido a breve corrida deles. Ela nunca esteve tão próxima dele assim e já sentia suas pernas bambearem. Calebe não era extremamente musculoso, mas seu corpo definido comprovava que todo o futebol e corridas pela manhã funcionavam bem para ele. E ele tinha aquele aspecto grande de quem já havia sido gordinho, então mesmo que ele estivesse muito magro, ele ainda conseguia manter as pernas grossas e as costas largas.
- Ele não falou nada disso. Na verdade... – Ela mordeu os lábios, provocativa, notando o olhar dele seguir naquela direção. – Ele apenas disse que você não deu conta.
- Mas que grande filho da puta! – Resmungou, mas não se moveu um centímetro. Ele sentiu seu corpo rígido só por estar tão próximo assim de Malu.
- Você precisa me contar o seu lado da história. – Comentou, descendo do braço do sofá.
O corpo dela ficou ainda mais próximo do dele. Toda aquela conversa, o jeito que eles estavam se movendo, os olhares. Eles já sabiam o que aconteceria a seguir. Calebe não estava mais com paciência para manter uma conversa que só tinha um final.
- Malu? – Chamou. Levou sua mão até a nuca da garota e ao invés de puxá-la para perto, ele pressionou o corpo contra o dela, fazendo seu decote se espremer no peitoral dele, causando um suspiro em Malu. – Eu vou te beijar. – Avisou, levemente, como se não quisesse assustá-la.
Ele esperou por tapas e pontapés, esperou pelo orgulho, esperou pela negação, mas Maria Luiza era um poço de imprevisibilidade.
- Beija. – Sussurrou tão fraco, que se não estivessem colados, ele não teria escutado.
- O quê? – Piscou várias vezes, mas não respondeu nada. Continuou olhando fixamente para os lábios dele. – Repete que eu faço.
- Repetir o que? – Retrucou.
- Não se faça de boba.
- Talvez eu seja. – Comunicou, com uma sobrancelha arqueada. Os lábios estavam entreabertos. Passou a língua sob eles, umedecendo-os.
Com a mão invadindo o vestido da garota, ele pousou a mão na pele quente de sua cintura. Ele deslizou os lábios pela bochecha macia, sentindo toda a maciez de sua pele juvenil. Ela suspirou fortemente, em um sinal de impaciência. Sorriu contra a pele dela quando sentiu as mãos dela puxando-o pela camisa, para mais perto.
- Me beija logo, porra! – Esbravejou com os olhos fechados e o cenho franzido.
Em um ato rápido, ele capturou os lábios dela, causando uma explosão de sentimentos em ambos. Estavam tão grudados que sentiam a pulsação forte um do outro. Ergueu-a pela cintura, a sentou no braço do sofá novamente. Inconsciente, ele ficou entre as pernas dela, porém, pensando melhor, ele preferia que não o tivesse feito. A fricção que o tecido da sua bermuda estava causando no fino tecido da calcinha de Malu não estava enlouquecendo apenas a ele. Quando a mão dele percorreu o caminho para o seio esquerdo dela, ele pôde sentir os batimentos acelerados da garota se confundirem com os batimentos dele. E os corações de ambos se confundiram com as batidas do axé que tocava do outro lado da rua.
A música agora tinha o gosto dos lábios de Calebe, tinha a sensação da pele de Malu. A música do Timbalada nunca mais seria a mesma para os dois.
Após passarem uns bons minutos se beijando de forma voraz no sofá da casa de Calebe, Malu saiu dali quase correndo. Quando sentiu uma vontade extrema de subir seu próprio vestido para que as mãos de Calebe tocassem sua pele, ela achou melhor fugir. Pois se sentiu tão entregue, que achava que acabaria fazendo tudo o que ele propusesse.
Enquanto caminhava de volta para a festa animada do outro lado da rua – onde tocava a batida animada e conhecida de axé –, ela tentou controlar as próprias mãos trêmulas para não tocar em seus lábios inchados e tentou muito não arrumar as alças baixas de seu vestido. Malu olhou em volta e quando achou que ninguém estava muito interessado nela, ela encontrou o olhar curioso de Vinicius, um dos meninos que andava com Calebe.
Ela engoliu em seco quando percebeu o olhar sarcástico que ele deu quando olhou para trás da garota e viu Calebe andando em direção a festa novamente, com a caixa de cerveja na mão. Ele não demorou muito a ligar os pontos e riu desacreditado, balançando a cabeça. Sentindo-se envergonhada, ela correu para a mesa de sua mãe e Andréia, que agora riam aliviadas.
- Já? – Andréia questionou quando a garota se sentou ao seu lado. – Achei que demorariam mais.
- Já tínhamos até apostado. – Ana compartilhou, rindo.
- Apostado o quê? – Malu perguntou, ainda se sentindo afetada.
- Quanto tempo vocês demorariam pra voltar de lá. – Andreia contou, rindo também.
- Achei que uma hora dessas você já teria entrado na lista dos corações partidos do Calebe. – Ana revelou.
Malu sabia que a mulher não tinha intenção alguma de magoá-la, mas aquela frase, aquela palavra, despertavam um enorme gatilho nela.
Lá em Vitória, logo quando Malu começou a se interessar por garotos e eles passaram a se interessar por ela também, Malu foi vítima de uma dessas tão ditas listas. Malu não esperava que sua primeira paixonite de adolescência gostasse dela também. E esperava menos ainda quando descobriu que os amiguinhos de escola haviam feito uma lista de meninas bonitas que o garoto em questão deveria ficar. Malu era a quinta da lista.
Foi um baque nela, em sua autoestima e confiança. Foi aos quinze anos que Malu percebeu que nem todos seriam bondosos com ela da forma que ela pensava que eram. Ainda lembrava do jeito que seu pai a consolou enquanto ela chorava frustrada por ter sido enganada por um bando de moleques da escola. Só voltou a se relacionar com alguém novamente aos dezessete anos. E novamente, foi um grande erro.
Malu decidiu que não iria fazer parte de mais nenhuma lista. E naquela noite de ano novo, ela decidiu que não faria parte da lista de corações partidos de Calebe.
“Um amor assim delicado Você pega e despreza Não devia ter despertado”.
Caetano Veloso – Queixa.
Nada parecia funcionar muito bem naqueles dias. Malu tentou resistir ao charme atrevido de Calebe. Ele, por sua vez, tentou resistir aos olhares convidativos da garota. Durante o dia, era como se eles fossem dois estranhos, aqueles mesmos coleguinhas de infância que tinham esquecido da existência um do outro. E durante a noite – quase sempre de madrugada – era como se fossem um casal. Aquele casal que descobriram o sossego nos lábios um do outro na noite de ano novo.
Ele tinha um plano e, inicialmente, era não deixar ela o dominar. Tolice, pois ela sempre o dominava, mesmo que ela não tivesse muita noção do que fazia com ele. Maria Luiza frustrava todas as expectativas que ele já tivera em relação a alguém. Ele achava que após os amassos no ano novo, nada aconteceria. Porém, já estava quase chegando o carnaval e ele ainda se via tentado a mandar mensagem para ela toda noite. E tentou muito se prender a outras, chegando ao ponto de sair beijando geral, mas tudo ia por água abaixo quando seu celular vibrava e na tela surgia uma nova mensagem dela dizendo: Oi, tá por onde?
Malu tinha como plano não se envolver com ninguém, principalmente com Calebe. No momento, seus únicos planos envolviam estudos e o maldito vestibular. E sem falar que ficar com Calebe significava estar em um relacionamento com direito a plateia e interação de todo mundo que se achava no direito de se meter na vida do garoto simplesmente por ele ser... Bom, por ser o Calebe.
Porém, a carne de Maria Luiza era fraca e o coração de Calebe era vagabundo. Então, em uma terça-feira qualquer, se encontraram na parada de ônibus e ele a acompanhou até sua casa. E mesmo que sem querer muito, acabaram se beijando. E naquela quinta, após o futebol da rua, se encontraram na barraca de hot dog e quando a noite caiu, Malu pediu que ele a acompanhasse até a parada de ônibus. E se beijaram de novo.
E aconteceu de novo na quarta, na sexta de manhã, no domingo de tarde, na segunda de noite.
Ninguém sabia o que acontecia entre eles, seus amigos achavam que eles eram colegas de rua ou, até mesmo, apenas vizinhos. No fundo, nem eles sabiam muito bem o que estava acontecendo. Não tinha como negar que eles estavam lotados de sentimentos e ignoravam por motivos diferentes. Ela fugindo “da lista” e ele simplesmente aderiu a forma dela de “ficar”. Era melhor do que não ficar, certo?
- Na moral, Alanne, só você pra me fazer sair de casa hoje. – Malu reclamou ao entrar no local da festa, arrumando seu macaquinho vermelho, curto e de alcinhas, do jeito que ela amava usar.
Um galpão abandonado, que fora transformado em salão de festas, promovia toda sexta-feira, o famoso forró universitário. Maria Luiza não ia muito a essas festas. Mesmo após o momento emocionante e fragilizado protagonizado pelas duas na virada do ano, sua relação com Andréia – sua mãe – não havia mudado muita coisa, só que agora Malu sabia o quão triste e sofrida sua mãe estava, por isso se tornava mais difícil ainda ter uma juventude badalada. Sentia-se culpada e preocupada por deixar a mãe sozinha em casa nos finais de semana.
- Amiga, você só sai daquela casa uma vez por mês. – Reclamou, guardando a carteira de identidade na bolsa e puxando Malu pelo braço até chegar ao bar. – Não custa nada se divertir um pouco! Eu vou até pagar tua cerveja, olha! – Brincou, mostrando algumas notas de dinheiro a amiga.
- Dinheiro não é exatamente o problema...
- Sua mãe tá bem, Malu! Ela disse pra você sair, não foi? – Interrompeu, indagando-a e vendo a amiga assentir levemente. Quando perguntou timidamente para a mãe se estava tudo bem se ela saísse naquele dia, Andréia apenas deu de ombros e a mandou levar a chave de casa, pois não queria acordar de madrugada para abrir a porta para a menina. – Hoje é sexta, amiga. Eu tenho certeza que você vai passar as próximas semanas enfiada em casa, estudando, e só vai sair de novo talvez quando chegar o carnaval. Então, aproveita!
Maria Luiza suspirou e sorriu após ouvir o pequeno discurso de uma Alanne bem convincente. Sentia-se agraciada por ter conquistado essa amizade. Alanne era uma garota muito especial e conhecia Malu o suficiente para saber a hora de insistir e a hora de parar. Ela pegou o copo da mão do vendedor e entregou a Malu. Olhando em volta, com a boa música, o ambiente agradável, animado e um luar invejável, ela pensou: “por que não?” A garota olhou em volta, balançando o corpo no ritmo da música e foi quando seus olhos encontraram um foco que fez sua garganta secar tanto que ela precisou dar uma boa golada no líquido gelado em seu copo.
Precisava ele estar bonito, sorridente e com aquela maldita covinha que quase explodia quando ele ria?
Diferente de Malu, que quase não saia de casa, Calebe era um participante ativo das festas da cidade. Ia quase todas as sextas, sendo aquele o local onde encontrava a maioria das suas “distrações do problema principal”, que era como ele tinha nomeado as garotas que se envolvia para diminuir o peso de Maria Luiza em sua vida. Afinal, tinham ficado poucas vezes e ele já sentia menos vontade em ficar com outras pessoas. Imagine sua decepção e surpresa ao encontrar Maria Luiza encostada em um pilar do local ao lado de Alanne. Ela dançava lentamente ao som de algum novo sertanejo que ele desconhecia, parecendo perdida em pensamentos.
- Sua gata tá aqui. – Vinícius comentou discretamente assim que encontrou Calebe, mas ele já estava sabendo da notícia, tinha visto com seus próprios olhos.
- E quem é minha gata? – Questionou, rindo, tentando disfarçar. A pouca relação dele com Malu ainda era desconhecida por todos, exceto para Vinicius, seu vizinho e um de seus melhores amigos, que tinha visto Malu e Calebe saindo da casa dele no ano novo. Não foi difícil a mente do menino criar toda a história em sua cabeça, partindo direto para a malícia.
- Ah, Calebe! Vai fingir pra mim, cara? Seu parceiro de vida, pô. Não vou te explanar, não! – O rapaz passou o braço pelo pescoço do amigo, rindo, já deixando evidente os traços do álcool em seu sangue.
- E você já tá alterado demais pra quem bebeu apenas quatro cervejas... – Segurou o amigo cambaleante no lugar, rindo da feição abobalhada dele.
- Eu vou no banheiro! – Exclamou, falando alto demais e sem necessidade.
- Quer ajuda? – Ofereceu, mas Vinicius negou.
- Não, tô tranquilo. – Balançou a cabeça e depois, em tom de alerta, murmurou no ouvido de Calebe: – Fica de olho na tua mina porque tá cheio de gente aqui que também tá de olho!
E foi trôpego aos fundos do local, onde se localizavam os banheiros, deixando Calebe rindo desacreditado e com uma breve dor de cabeça. Ele sabia muito bem que Malu despertava a curiosidade de alguns caras que ele conhecia e, às vezes, quando ouvia algum comentário, ele tinha vontade de gritar aos quatro ventos que já tinha tocado aqueles lábios. Entretanto, ele não era mais um menino de 15 anos, não tinha por que se expor e expor Malu daquela forma apenas para descarregar seu ciúme e acariciar seu ego.
- Finalmente, eu pensei que ele nunca ia sair daqui. – Calebe não passou nem quatro minutos sozinho quando ouviu uma voz falando por cima de seu ombro. Virou a cabeça, vendo que uma garota ruiva o olhava, sorrindo maliciosa e o encarando. – Ele é teu namorado?
- Não, bem que ele queria. – Brincou, ficando de frente para ela, para ter uma visão melhor da garota.
- Que bom, posso te atacar sem me sentir culpada mais tarde. – Sorriu de lado com a ousadia da menina.
- Quer dançar? – Perguntou, esticando a mão para ele.
- Ah eu... Eu não danço, eu não sei. – Ela respondeu, negando com a cabeça.
- Vem, eu te ensino. Sou bom nisso e em muitas outras coisas, caso você se interesse. – Sorriu, flertando. Ele teria que se esforçar muito para se distrair da presença de Malu com ela estando tão próxima dele. – É só você me acompanhar.
O azar de Calebe naquela noite foi quando ele girou no local e acabou ficando de frente para Malu, que no outro lado do salão, encarava a cena. Sem expressão, apenas olhava os dois dançando com extrema curiosidade. Calebe engoliu em seco, forçando-se a virar de costas apenas para não ter que lidar com aquele olhar.
No meio da festa, Malu se sentia como uma verdadeira fracassada, bebendo e assistindo Calebe trocar de parceira como ela trocava de copo. Já sentia a cabeça pesada e sua visão começava a ficar turva. Ela até aceitou uns convites para dançar, mas preferia mil vezes encostar no balcão, com sua bebida em mãos e dançava apenas quando curtia realmente a música. Olhou para o lado vendo Alanne dançar agarrada em um cara alto. Ela rolou os olhos, gostava de dançar, mas estava especialmente chata naquela noite. Se isso tinha algo a ver com Calebe, não sabia dizer.
- Amiga! – Chamou, cutucando o ombro da garota.
- Tô ocupada, Malu! – Alanne gritou de volta, tentando manter-se concentrada na conversa com o rapaz a sua frente.
- Eu quero ir embora! – Reclamou, fazendo bico e puxando Alanne, que respirou fundo para não brigar com a amiga ao ver que ela já estava bêbada. Pediu desculpa ao homem que tentava falar com ela e se afastou com Malu.
- Tá muito cedo, Malu. – Puxou o celular, procurando saber da hora.
- Tô entediada. – Resmungou, batendo o pé.
- Vai dançar! – Sugeriu, percorrendo o local com o olhar e avistando os garotos da rua de cima, principalmente seu grande amigo, que ria de alguma palhaçada de Vinicius. – Olha os meninos ali! Vamos lá, o Calebe tá ali também.
- Não! – Malu cobriu os ouvidos e fechou os olhos, como uma criança com medo do escuro. – Não fala o nome desse garoto!
- Do Calebe? – Questionou, obrigando Malu a fazer outra careta e Alanne rir. – Por que? Achei que vocês eram amigos, aquele dia no ano novo...
- Que você sumiu com o Pedro Paulo, sua ridícula? – Exclamou.
- Quando eu voltei, você que tinha sumido! – Retrucou, puxando Malu pela mão em direção aos rapazes em roda.
- Fui dormir, você deu chá de sumiço! – Deu de ombros, envergonhada com a própria cara de pau.
Era mentira, ela não tinha ido dormir. Enquanto Alanne e Pedro Paulo se esgueiravam pelos becos adjacentes, tentando passarem despercebidos até chegarem na casa dele, Maria Luiza ainda estava no sofá de Ana, sentindo as mãos de Calebe passeando por debaixo do seu vestido enquanto trocavam beijos cálidos.
- Oi, lindos! – Alanne cumprimentou, empolgada, jogando-se nos braços de Calebe, abraçando-o fortemente. Malu rolou os olhos, indo cumprimentar os outros rapazes.
- Vocês nem pra avisar que iam aparecer aqui, né? – Tiago reclamou, dando um beijo no rosto de Malu.
- Eu também não sabia que viria. – Resmungou, trocando um abraço rápido com Vinicius. Paralisou quando percebeu que Alanne havia liberado Calebe, o que significava que ela teria que falar com ele.
- Caraca, Alanne! Que poder é esse, hein?! – Vinicius não se conteve e, impulsionado pela coragem do álcool, elogiou toda a beleza de Alanne, que gargalhou com a sinceridade e embriaguez do rapaz.
Malu também riu e disfarçando, resolveu agir espontaneamente, cumprimentou Calebe da mesma forma que falou com os outros rapazes. Ela apenas se esticou, apoiando-se nos ombros dele e beijando seu rosto rapidamente, mas Calebe a desestabilizou quando encaixou as mãos em sua cintura e murmurou em seu ouvido “cê tá linda hoje” e a afastou com a expressão neutra, como se nada tivesse acontecido. Ela rolou os olhos, beliscando a bochecha dele levemente e cortou o contato com ele, afastando-se.
- Amiga, é o nosso momento! – Alanne puxou a amiga pela mão ao ouvir as tradicionais batidas de funk que animaram a festa de vez, deixando todos mais do que empolgados. Malu gargalhou, jogou seus cachos para trás dos ombros, colocou as mãos no joelho e se preparou para dançar e rebolar da melhor forma que sabia.
Após algumas rodadas intensas de dança e muitas risadas patrocinadas por Vinicius – que fez todo o grupo gargalhar ao revelar seus passos de dança divertidos, sendo na maioria das vezes apenas uma imitação zoada do jeito que as meninas dançavam –, a sede bateu e a maioria dos copos estavam vazios. Calebe e Tiago se responsabilizaram por irem ao bar e logo se afastaram. Malu e Alanne se sentaram no guarda corpo de madeira que tomava o local, finalmente descansando após muito tempo dançando e rindo exageradamente.
- A melhor coisa que aconteceu foi a gente ter encontrado esses meninos aqui. Olha isso! – Alanne comemorou e apontou rindo para Vinícius, que conversava com uma garota. Ela ficaria surpresa se a menina caísse no papo dele.
- Sim! Nossa, como são divertidos... – Malu comentou, prendendo os cabelos no alto e abanando o próprio pescoço com as mãos.
- Ei, você percebeu? – Perguntou, chamando a atenção de Malu, que negou com a cabeça. – Eu tenho certeza que o Calebe tá afim de você!
- C-como... Por que cê acha isso? – Malu abriu e fechou a boca várias vezes sem achar o modo certo de perguntar, ficando nervosa sem motivo, já que ela não tinha problemas em contar para Alanne. Sabia que talvez ele não quisesse explanação, mas era sua amiga e iria contar. Ela tinha certeza que algum amigo dele também devia saber que eles andavam se encontrando por aí.
- Amiga, você não viu o jeito que ele tava te olhando. – Contou, mexendo nos longos cabelos loiros.
- Tá, eu preciso contar ou eu vou explodir. – Coçou a testa, incomodada.
- O que foi? – Questionou, confusa. Malu ergueu uma sobrancelha e fez um gesto explicativo com as mãos. – Não tô enten... Você tá pegando o Calebe?!
- Fala baixo, garota! – Reclamou, disparando um tapa no braço da amiga, que abriu a boca em choque com a revelação da amiga. Já tinha visto os dois sendo amigáveis um com o outro, mas pouquíssimas vezes. Ela nunca nem tinha visto eles se falando em dias normais. – Não é pegando, pegando. A gente tá... Ai, não sei explicar.
- Como assim? Desde quando? Como eu só soube disso agora, Maria Luiza? – Indignou-se, cruzando os braços.
- É porque eu não sei se tô ficando mesmo, a gente se beijou uma... – Parou para pensar e continuou. – Duas... Na verdade, três... Bom, talvez, quatro porque teve o dia em que ele foi lá na porta de casa e...
- Amiga, vocês estão ficando real! – Riu, embasbacada com a novidade. – E vocês já...? – Malu negou com a cabeça, mordendo os lábios. – Você e o Calebe, caraca! Como eu não vi isso acontecendo?!
- Eu não sei, Alanne! Eu não entendo nada quando o assunto é o Calebe. – Suspirou, quase frustrada.
- Amiga, cê tá gostando dele? – Indagou, curiosa.
- Eu não sei, Alanne, que saco! – Reclamou e bateu o pé no chão de forma infantil, fazendo a amiga rir. – Não quero e nem posso pensar nisso agora, vou no banheiro. – Alanne gargalhou, vendo sua amiga balançando seu corpo em direção ao banheiro.
Malu e Calebe, quem diria?! Alanne sentiu seu celular vibrar na bolsa e o sacou, sorrindo e mordendo os lábios ao ver o destinatário da direct no Instagram: @pedropaulo29. Na mensagem, ele havia enviado um print de um stories de Vinicius, onde ela aparecia dançando de costas ao lado dos dois rapazes e questionava aquela amizade. Ela gargalhou, preparando-se para respondê-lo.
Pedrinho, lá de Brasília, mexia com o coração da bela Alanne.
જજજજજજ
Calebe fora (novamente) interceptado pela ruiva – que ele descobriu que se chamava Bianca – assim que voltou para deixar as bebidas com as meninas. Estranhou encontrar Alanne sozinha, mas teve sua atenção desviada quando Bianca apareceu novamente ao seu lado. E tudo bem que estava loucamente afim de Malu e estava completamente hipnotizado pelo balançar de seus quadris durante a noite inteira, mas isso não o impediria de dançar e trocar uns beijos com a ruivinha bonita.
Batendo os pés no chão, impaciente, Alanne olhava em volta sem receber nenhuma aproximação de Malu. O banheiro não era tão longe assim, a garota já devia ter voltado. Quando Alanne fez menção de se afastar a procura da amiga, ela notou Calebe abraçando uma garota pela cintura e fez uma careta.
Calebe era solteiro e a menina tinha anos de amizade com ele o suficiente para saber que Calebe amava garotas e dar em cima, conhecer em festa e ficar distribuindo beijos por aí, como um bom galanteador que era. Mas agora que ela tinha sentido um “quê” de hesitação em Malu, sua melhor amiga, ao responder se gostava ou não do menino, ela teria que invocar seus poderes como amiga do novo casal.
- Calebe! – Alanne chamou, sem se importar de estar atrapalhando o suposto caso dele. Ele não pegaria outra enquanto estivesse ficando com sua melhor amiga, não em sua frente.
- Fala! – Suspirou, torcendo a boca, vendo Bianca também estranhar a forma abusada que a menina invadiu o espaço deles.
- Cê viu a Malu? – Todos os instintos dele se acenderam quando ouviu a proferida frase. Se Alanne estava perguntando, é porque não sabia onde ela estava. – Ela disse que tinha ido ao banheiro, mas até agora não voltou.
- Vou lá ver. – Falou, quase interrompendo a fala de Alanne e deixando a ruiva só, sem pensar duas vezes.
Alanne quase riu com a feição chocada da mulher, mas sentiu pena por ela ter sido facilmente trocada e disse: - É a irmã dele.
- Ah, fala pra ele me encontrar no bar. – A garota sugeriu.
- Claro que sim. – Claro que não falaria. Malu e Calebe eram seu novo casal preferido e se fosse possível, deixaria qualquer garota festeira longe deles.
Calebe foi em direção ao banheiro feminino e não precisou andar muito para encontrar Malu. A morena estava encostada atrás de um pilar, mexendo no celular. Quase não era possível reconhecê-la, mas Calebe havia passado tempo suficiente estudando a garota para reconhecer apenas parte da perna esticada da garota. Malu estava com os cabelos presos em um coque, estava com os olhos demonstrando uma leve embriaguez e mexia na ponta da roupa que vestia incessantemente, mexendo com os pensamentos impuros do garoto de dezoito anos.
- Alanne está louca atrás de você. – Chegou por trás, murmurando em seu ouvido e causando um leve pulo de susto em Malu, que não havia notado sua presença até aquele momento. – Você tá bem?
- Só tô tentando chamar um Uber. – Respondeu, suspirando.
- Não vai embora só, não é? – Questionou, balançando a cabeça negativamente.
- Acho que sim. Alanne quer ficar, mas eu tô bem cansada. – Bufou, irritada com o próprio celular que não cooperava em ajudá-la na missão de ir para casa e deixá-la bem longe de Calebe. – Minha internet tá horrível!
- Eu peço pra você. – Avisou, puxando o celular do bolso. – Quero acompanhar a corrida. – Calebe olhou as horas e suspirou, preocupado. Não queria deixá-la sozinha. – É melhor você chamar a Alanne, já tá muito tarde pra você ir só.
- Eu sei me cuidar, Calebe. – Respondeu, desaforada. Estava envergonhada por tratá-lo assim e não sabia o porquê. Ele não havia feito nada de errado. Pelo contrário, Calebe nunca a tratou mal ou lhe faltou com respeito. Ele desviou a atenção do celular, olhando-a quando reconheceu o tom de voz irritado.
- O que eu fiz? – Perguntou, assustado.
- Nada, desculpa. – Sorriu sem graça e esticou a mão, tocando em seu braço, afagando suavemente. – Eu tô meio estranha hoje.
- Só hoje? – Brincou, desviando de uma tapa da menina. – Você é um caso sério de loucura, isso sim.
- Sou, é? – Ele levantou a cabeça, suspirou ao ver o sorriso ladino e provocante dela. Guardou o celular no bolso e pôs as mãos em seu quadril.
- É, sim. Você é um caso sério de loucura, de beleza... - Levantou o dedo indicador e disse cada palavra contornando os lábios dela. Refletiu por um segundo e parou subitamente no seu lábio superior. – Você é um caso sério, Maria Luiza.
Ousava dizer que nunca tinha acontecido de ela ficar completamente hipnotizada e presa no olhar de alguém. Tudo nele a atraia e ela não queria mais se negar a isso.
- Me leva em casa? – Pediu, impulsivamente. Calebe suspirou, quase sentindo-se derrotado, mas assentiu, concordando.
Havia passado a noite inteira com outras, mas, de alguma forma, lá no fundo, ele sabia que iria acabar na casa de número 200. Novamente.
“Você disse que não sabe se não,
mas também não tem certeza que sim.
Quer saber?
quando é assim, deixa vir do coração”.
Se – Djavan
Buraco de minhoca é um conceito da física cuja definição científica eram “túneis” que uniam pontos distantes no espaço, um atalho entre o espaço-tempo do universo. Naquela madrugada de sábado, o quarto de Maria Luiza tornou-se um buraco de minhoca.
Sua cama havia se tornado uma galáxia só deles. Malu era o sol e Calebe era simplesmente um planeta que precisava dela para se aquecer. Era dois corpos celestes, tentando compreender a atração monumental que os unia. A química, a física, a biologia não faziam sentido naquele momento.
Chegaram na frente da casa dela e Calebe se viu como um servo quando, sem ao menos questionar, se deixou levar pela mão da menina pelo caminho já conhecido até o seu quarto. E desde que chegaram, estavam presos em sua própria galáxia. Apesar de a menina estar mais quieta daquela vez, ela estava mais receptiva aos carinhos de Calebe. Aceitou todos os seus beijos, riu de suas investidas divertidas e teve diversas iniciativas ao beijá-lo (costumava ser o contrário).
- Meu celular... – Ela avisou ao ouvir o som familiar de mensagem de texto chegando, empurrando o rosto dele para longe dela. Ele expirou, saindo de cima da garota e se deitando ao seu lado, impaciente.
online
onde c táaaa
em casa
vc me deixou, otária??? 😡😡😡
tá com o calebe? ele sumiu, os garotos estão procurando por ele
- O que foi? – Perguntou ao notar a apreensão da garota encarando a tela do celular.
- Alanne querendo saber onde eu me meti. – Contou, mordendo os lábios, planejando esconder o resto da mensagem.
- E...? – Ergueu a alça do vestido caída no ombro dela.
- Perguntou de você. – Contou, bloqueando o celular e voltando a deitar-se na cama. Ele avaliou o rosto dela, retirando um fio de cabelo teimoso de sua testa e sorriu de lado. – O que eu respondo?
- Você que sabe. – Deu de ombros, abrindo um sorriso relaxado, acariciando o ombro dela.
Esconder ou não, não era necessariamente uma questão para ele. Só queria ficar com ela mais um pouco, curtir o que quer que eles estivessem tendo. Ela mordeu os lábios, pensativa, pegando o celular novamente e abrindo na conversa de Alanne.
online
em casa
vc me deixou, otária??? 😡😡😡
tá com o calebe? ele sumiu, os garotos estão procurando por ele
ele já foi pra casa
eu SEI que não foi a maria luiza hahahahahahaha
mas td bem, vou assumir essa por vc
cuidado vocês dois aí hein 😏
- Ela sabe. – Malu gargalhou, jogando o celular no peito de Calebe, que também riu ao ler a mensagem descrente de Alanne.
- Claro que sabe. Alanne é minha amiga, sabe que eu não ia resistir a uma morena dessas... – Brincou, puxando Malu pelas pernas até conseguir posicioná-la em seu colo.
- Ah, é? – Desdenhou, puxando-o pela gola da camisa e fazendo-o sentar-se. Ele beijou cada centímetro do rosto de Malu, tentando mapear cada pedaço da pele morena com seus lábios. Beijou seu pescoço do jeito que ele já sabia que ela gostava: lento e molhado. Se viu em um impasse, pois como das outras vezes, quando ele chegava próximo aos seus seios, ela o parava. Até aquele momento.
Ela o parou, parecendo apreensiva, o olhava fixamente. Ele sentiu o coração querer fugir do seu peito, pois nunca sabia o que vinha depois de ela o olhar daquele jeito. Malu passou a mão entre os cabelos, parecendo nervosa, porém, decidida. Sem desviar o olhar dele, ela levou as mãos até as costas, procurando o zíper de seu vestido.
- Malu, tá tudo bem se você não quiser... – Tentou intervir ao notar o nervosismo da garota.
- Não é isso. – Respondeu, segurando o vestido já solto no corpo. – Eu acho que nunca fiquei insegura com ninguém antes.
- Eu te deixo insegura? – Questionou, preocupado. Não era o sentimento que queria causar na garota e nem acreditava que tivesse feito algo para tal.
- Não é você... – Ponderou. Pensou antes de continuar, pois o garoto merecia uma explicação do porquê ela sempre o parava antes de aprofundarem as coisas. Respirou fundo antes de pensar em continuar e fechando os olhos para esconder que tinha ficado com vontade de chorar.
- Malu. – Pediu, quase suplicante. Passou a mão pela testa, sentindo seus nervos se alterarem em poucos segundos.
- Pode parecer idiotice, mas...
- Não é idiotice, se você estiver desconfortável, a gente não precisa fazer nada. – Assegurou, suavemente.
- Não, Calebe. Eu quero. – Ela afirmou, passando a mão pelos cabelos da nuca dele. – Posso pedir uma coisa? – Ele assentiu. – Tem problema se eu ficar de blusa?
Calebe estranhou o motivo de tamanha insegurança. Se ela se visse da forma como ele a via, não se sentiria desconfortável ou algo relacionado. Decidiu respeitá-la e não questionou seus motivos.
O tempo inteiro, Calebe fez questão de deixar Malu ciente de que eles poderiam parar a qualquer momento, também não tentou ver debaixo da blusa, apesar de que sua confirmação de que o problema era mais visual veio quando Malu guiou as mãos dele para debaixo da blusa. Ele estava receoso, mas ao contrário do que pensava, foi ela que o deixou confortável o suficiente para ele seguir em frente.
Foi assim que, diferente das outras noites, eles não pararam.
જજજજજજ
- Então tenta não me provocar, que eu prometo não vou complicar... – Malu cantou, filmando a tela da TV enorme na parede do local, fazendo questão de frisar aquela frase em texto e postando direto em seus stories das redes sociais, tendo apenas uma visualização como objetivo.
Desde que Malu, enquanto voltava da aula, viu Calebe cheio de sorrisos para uma garota da vizinhança, ela vinha bloqueando a entrada dele na casa dela, ignorando-o no Whatsapp, deixando o garoto sem entender nada. Ela sabia que não tinha direito algum de cobranças, não tinham nada concreto e sério, mas se Calebe podia ficar distribuindo sorrisos e gracejos pelo bairro, ela também podia.
Foi assim que Malu acabou sentada na mesa de uma lanchonete no bairro com um cara chato, ouvindo um papo chato e comendo um hambúrguer gigantesco, pois alguma coisa boa tinha que sair daquele encontro que ela havia se metido por puro ciúme. Ao invés de fingir que estava interessada no assunto do rapaz ao seu lado, ela estava ocupada demais mandando indiretas na internet.
Com o alvo sendo atingido com sucesso.
- Olha aí, mãe! – Calebe esbravejou, mostrando o celular para a mãe. – Usando a Anitta pra me atacar, vê se pode!?
- O que você fez pra ela, hein garoto? – Ana gargalhou com a expressão indignada do garoto. – Mal começaram e já estão assim.
- Não começamos nada. – Negou, ainda revendo a postagem da menina, tentando descobrir onde ficava aquele lugar. – Cê sabe onde é isso?
Calebe não tinha intenção alguma de contar à mãe dos seus rolos com Maria Luiza, mas foi inevitável quando ela o encontrou chegando em casa às duas da manhã em plena segunda-feira. Ele nunca fora muito reservado mesmo, além disso, queria evitar uma bronca colossal, então acabou comentando que estava na casa de Malu e, mesmo assim, acabou sentado no sofá ouvindo um longo discurso de sua mãe, que implorava para que ele fosse cuidadoso e respeitoso com ela. Diferente das meninas que o filho se envolvia, Ana realmente se importava com Malu e via a menina como parte da família, sem falar no seu receio com Andréia, que quando descobrisse que os dois jovens andavam tendo encontros pela madrugada a fora, ficaria uma fera.
- Deixa eu ver. – Ajeitou os óculos no rosto e afastou o celular para visualizar melhor a tela, já que os anos só pioravam a visão da mais velha. – É naquele Blue Burguer, que fica uns quarteirões daqui. A comida lá é uma delícia!
Foi como se uma lâmpada se acendesse na cabeça de Calebe.
- É? Quer um lanche de lá? – Perguntou inocentemente. Ana semicerrou os olhos, repreendendo-o com o olhar. – O que? Você que disse que é bom. – Deu de ombros, puxando o celular do bolso e indo em direção ao quarto.
digitando...
mano, tá aí?
Fala
🤔
tá afim de ir numa missão ali?
😇
ih lá vem B.O
- Cê já viu a Maria Luiza por aí? Ou Alanne? – Questionou, tentando vasculhar o lugar com os olhos, mas sem perder a discrição.
- Se eu soubesse que a tal missão era pra espionar as meninas, eu cobrava mais do que uma pizza... – Vinícius reclamou, abrindo a latinha de refrigerante e acenando para um dos atendentes do local.
- Eu já disse que vou pagar, fica de boa aí. Cê já viu elas? – Questionou, olhando em volta.
Sentia-se ridículo, fazendo algo totalmente sem noção, mas suas pernas quase o guiavam sozinho quando se tratava de Maria Luiza. Ele nunca tinha feito isso por nenhuma garota, sequer sabia por que tinha ido até lá. Queria encontrá-la? Queria que ela não o visse? Queria realmente espionar? Que diabos estava fazendo ali, afinal? Vinicius também olhou em volta, ajudando o amigo e arregalou os olhos quando encontrou os cachos de Malu.
- Ué, você não disse que ela tava com a Alanne? – Perguntou, apontando com a cabeça para a terceira mesa à esquerda deles.
- Eu achei que estava... – Comentou, descrente. Ele realmente esperava vê-la com Alanne ou alguma amiga sua do cursinho, mas seu queixo quase foi no chão quando viu um cara totalmente desconhecido sentado ao lado da sua garota.
- Bom, já que eu vim até aqui, seria bom uma explicação da tua relação com a Malu, porque eu já não tô entendendo nada. – Vinicius implicou, rindo.
- Não tem relação, ué. – Deu de ombros, tentando desviar o olhar do casal na mesa do outro lado.
- Peraí, você me tirou de casa pra me pagar apenas uma pizza, eu vou ter que pagar minha própria bebida, não tenho a Alanne e ainda tenho que ouvir mentiras suas? A gente é parceiro, mas não abusa! – Calebe gargalhou, passando a mão pelo rosto, a timidez lhe abatendo de repente.
- A gente só ficou, cara. – Resolveu ser justo e contou uma versão nada mais que resumida dos fatos. Vinicius negou com a cabeça, descrente. – Que foi?
- Você pegou a Malu! Máximo respeito, meu capitão. – Fingiu uma reverência, gargalhando. Vinicius já sabia, mas precisava da confirmação. Será que o amigo já sabia que estava louco pela garota? Ou estava negando os fatos, não apenas para o amigo, mas para si mesmo. – E o que tá rolando?
- Nada, ela tem me ignorado, mas eu não sei o que eu fiz de errado. – Contou, frustrado, desviando o olhar para a mesa três.
- Ah, bem-vindo ao mundo dos meros mortais, Calebe! É assim que nós, homens, somos tratados. A solução é pedir desculpas. – Vinicius brincou, olhando no cardápio e escolhendo a pizza mais cara sem dó.
- Eu não sei o que eu fiz, nem se fiz algo errado, não vou pedir nada! – Calebe indignou-se. – Vamo logo acabar com isso, pede sua pizza aí!
Enquanto isso, Maria Luiza batia os pés no chão, impaciente. Agora que já havia comido, já estava indo para o segundo suco de laranja e a terceira porção de batata frita, Malu queria que passasse um tempo socialmente aceitável até que ela pudesse dar uma desculpa para seu acompanhante insuportável e saísse de fininho. Também queria que o alvo de sua indireta falasse com ela. É claro que ela não responderia, mas precisava que ele estivesse ali. Enquanto isso, ela mandava mensagens de teor desesperado para Alanne, sua parceira de crime, que não estava presente.
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agora já?
Amiga, não tem nem 1h HAHAHAHAHA
pede mais um lanche, sei la
😡
Fungou, pesarosa. Seu olfato detectou um cheiro mais do que familiar, fazendo-a fungar novamente, confusa. Até se inclinou um pouco na mesa, tentando identificar se aquele cheiro vinha de André – que babujava algo sobre academia – e ela não havia percebido.
- Que perfume você usa? – Perguntou, interrompendo-o sem discrição alguma.
- Anh, e-eu não sei o nome.
- Engraçado, parece o… – Ela estranhou, murmurando e olhando em volta. Arregalou os olhos ao encontrar o dono do cheiro. Puta merda, ela realmente havia sentido o cheiro de Calebe do outro lado do local?! E o pior: Ele realmente estava ali! – Ér... Ninguém, pode continuar.
- Então, tudo melhorou quando troquei de academia... – Malu desligou-se totalmente do assunto, puxando o celular quase desesperada.
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AMIGA
🚨
vem pra cá!!!
tá doida malu?
claro que não
Calebe tá aqui, não quero que ele pense que tô sozinha com o André 😖
ué, e eu vou ter que ir aí pegar o André por você?
não que seja muito esforço, sabe 😈
alanneeee, por favor!!!😫
ah amiga, tô aqui na casa da Gi
traz ela!
ai malu...vc se mete em cada uma
e ainda me leva junto
eu pago o lanche de vcs 😇
aí sim! HAHAHAHAHA
tamo indo amiga, aguenta aí
- Ei, umas amigas estão vindo aqui, tem problema? – Perguntou, interrompendo o rapaz novamente. Ela sabia que Alanne a ajudaria e mesmo que não conhecesse a garota que estava com ela, sentia-se aliviada.
Receava que Calebe a visse com alguém e perdesse o interesse e a deixasse de lado. Pensando bem, ela havia, sim, agido no impulso, mas não foi para deixá-lo com ciúmes. Pelo contrário, preferia que Calebe nunca soubesse de André. Ela só queria estar com a consciência tranquila de que não estava “sozinha”, já que Calebe também não estava. Não que fosse uma competição, mas ela não ia perder.
- Não, não, tranquilo. Eu só achei que a gente fosse sair depois daqui. – O rapaz completou, fazendo Malu erguer uma sobrancelha. Ele realmente achava que iria conseguir algo mais a sério mesmo que ela tenha passado o encontro inteiro no celular?
- Olha só, eu amo essa música! – Disfarçou, ignorando o comentário, apontando para a tela grande em que passava alguns clipes de música que animavam o ambiente.
André não era de todo ruim. Era um cara bonito e gentil, entretanto, era chato. Seu jeito era chato, sua conversa era chata, suas piadas eram chatas. Ou talvez Malu só achasse isso porque seu interesse real estava na mesa do outro lado do local.
- Eu só quero um resumo, só isso. – Vinicius insistiu.
- Cara, se você não entende minha relação com ela, eu muito menos! – Calebe brincou, mordendo a pizza.
- Mas quando começou?
- Mas que bela fofoqueira que você tá me saindo, hein? – Brincou, rindo de leve. – “Sepá” começou lá em mil novecentos e alguma coisa. Mas no geral, a gente ficou a primeira vez no ano novo e foi ficando e ficando...
- Bom, o carnaval tá aí. Se vocês passaram por ele ainda nesse “ficando e ficando”, tão salvo! – Assegurou.
- Eu quero ficar com ela, mas não sei não, depois de tudo que aconteceu com a Priscila, não sei se quero parar com alguém de novo. – Refletiu.
- Pera, o negócio tá sério assim?! Você já tá comparando com a Pri e pensando em ficar só com ela? Que porra, eu achei que era só um “fica”! – Vinicius riu, feliz. Depois de Priscila, o amigo nunca mais havia se interessado de verdade por alguém e ele ficava contente que esse alguém era Maria Luiza. Ele adorava a garota, mais ainda a amiga dela.
- Não! Eu só... – Calebe parou para pensar e ficou confuso. – Eu tô?
- Ah, agora sim vai ser divertido de assistir! – Vinicius gargalhou, recebendo um chute de Calebe, que estava tentando passar despercebido.
- Bem, como você disse, o carnaval tá vindo aí e logo tudo isso vai passar. – Tentou transparecer segurança, mas nem ele acreditou em si mesmo.
- Ou... – Provocou.
- “Ou” nada, fica quieto e... –
Foi um choque quando os olhares de Malu e Calebe se encontraram acidentalmente e não conseguiram desviar. Malu ergueu uma sobrancelha e fingiu que não tinha o visto ali, acenando de leve como cumprimento. Calebe nem ao menos tentou disfarçar, olhou para o acompanhante da garota bem visivelmente e rolou os olhos, balançando a cabeça. A atitude malcriada e ousada do garoto fez Malu comprimir os lábios, segurando o sorriso. Esse jeito atrevido e desleixado de Calebe mexia com ela e com todas as meninas do bairro.
Calebe pegou o celular que repousava na mesa e procurou pelo stories provocativo que ela havia postado e resolveu responder. De todos os poucos aspectos do envolvimento dele com Malu, o que ele mais gostava era aquela provocação infantil entre os dois. Malu riu ao ler na barra de notificação do celular, que Calebe havia respondido sua publicação e olhou para trás, encontrando Calebe ainda olhando-a. Não ia responder, ia deixar bem visível que estava o ignorando, mas não se conteve.
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Você tá fazendo oq? provocando ou complicando?
nenhum dos dois
apenas jantando
e você?
Decidindo se eu devo esperar pra te carregar daí agora ou depois
se vc me fizer passar vergonha eu vou contar pra tua mãe, Calebe 😡
boa sorte explicando pra ela!
🙂
- Amiga! – Malu desviou a atenção do celular quando ouviu a voz de Alanne e quase suspirou de alívio ao ver a amiga indo em direção a ela.
- Oi!! – Jogou o celular na mesa e se levantou, abraçando-a e sussurrando em seu ouvido: - Finalmente!
O queixo de Malu quase caiu quando virou para cumprimentar a tal amiga de Alanne. Sabia que eram de um bairro pequeno, onde todos se conheciam, mas era muita brincadeira do acaso e do destino que a tal de Gi, amiga de Alanne, era justamente a menina que estava cheia de sorrisos e carinhos com Calebe na semana passada.
- Mano, aquela se sentando na mesa da Malu é a Gi? A que você tava semana passada? – Vinicius questionou, mordendo a pizza assistindo toda a cena como se fosse um bom filme.
- Puta que pariu. – Xingou, enfiando as mãos no cabelo.
- Agora você sabe porque você tem que pedir desculpa! – Vinicius gargalhou da desgraça alheia.
- É muito azar, não é possível! – Calebe resmungou, sem acreditar no seu próprio azar.
Pelo canto de olho, Malu observou a expressão nervosa de Calebe, confirmando o que ela já sabia. Ele estava sim de rolo com aquela menina. Seu lado racional a mandava ficar calma e não enlouquecer, pois ela e Calebe não tinham nada oficial, ficavam poucas vezes, transaram apenas uma vez, mal conversavam. Calebe tinha seus direitos, era solteiro, assim como ela. Porém, seu lado irracional queria gritar, chutar a cadeira, ir até ele e perguntar o que diabos ele havia visto naquela garota.
- Essa é Gisele, minha amiga do curso de maquiagem, lembra? Comentei contigo ontem. – Alanne apresentou, apontando para a garota de cabelos pretos e lisos. Malu concordou, apresentando-se, tentando ser madura e engolindo os ciúmes chato que ela estava sentindo.
- Oi, tudo bem? – A garota cumprimentou e pigarreou ao notar que sua voz saiu estranha e ela falou de modo seco demais. Balançou a cabeça levemente, a garota não tinha feito nada de ruim para ela. Cumprimentou, trocando dois beijinhos com a garota, que foi simpática com ela.
Malu ficou responsável pelas apresentações e acabou se complicando um pouco ao apresentar seu acompanhante. Alanne ria discretamente do embaraço da amiga, sabendo que ela não estava tímida com a presença deles e sim, com a presença devoradora de Calebe.
- Tudo bem? Senta aí, esse aqui é o…
- Calebe! – A garota exclamou, surpresa e apontando para a mesa atrás delas. Malu engoliu em seco, virando a cabeça para Alanne, que assistia confusa a situação. – Olha aí, Alanne, quem tá aqui também! – Gisele riu, inocente sem saber da situação estranha em que estava se metendo e foi até a mesa dos rapazes.
- Amiga, eu não sabia que eles… – Alanne começou a se explicar, mas foi interrompida por sua amiga.
- Tá tudo bem, eu sabia. – Explicou, puxando a garota pela mão e apresentando-a a André. – Senta, amiga, relaxa.
Calebe sentiu seu estômago revirar de ansiedade quando viu que Gisele caminhava até a mesa dele, sorrindo e acenando. Só conseguia pensar que tinha estragado tudo com Malu antes mesmo de começarem algo concreto.
- Oi, Gi! – Vinicius, que também já conhecia a garota, cumprimentou. Ela não percebeu, mas ele estava prestes a explodir em gargalhadas.
Calebe tinha acabado de se enfiar em uma situação saída diretamente dos capítulos juvenis de Malhação. Ele queria rir só de olhar a expressão medrosa de Calebe, que sequer conseguia disfarçar que estava olhando para trás a cada segundo.
Sobre a Gisele. Era uma menina divertida e simpática, era interessante e ele até se interessaria por ela, se não fosse a Maria Luiza. Ele e Gi eram amigos de festa, haviam se conhecido na casa de amigos em comum e na semana passada, acompanhou a menina até a parada de ônibus ao encontrá-la na rua. Conversa vai, conversa vem e Gisele, direta do jeito que era, flertou descaradamente com ele. Calebe até tentou se esquivar de todas as formas, mas acabou cedendo e acabou beijando-a antes do ônibus chegar.
Não foi nada demais, um beijo com o mínimo de carinho possível, podendo ser considerado até um pequeno “toque de lábios”, mas vê-la na mesa ao lado era o maior indício de que Malu sabia o que havia acontecido e por isso vinha ignorando suas mensagens, ligações e até mesmo sua presença.
- Te ver duas vezes na mesma semana, que privilégio! – Ela brincou, dando um beijo no rosto do Calebe.
- Pois é… – Ele riu sem graça, desconversando.
- Cê tava com a Alanne? – Vinicius perguntou, interessado.
- Sim, vocês se conhecem? -- Ela questionou, surpresa.
- Sim, Alanne e Malu são nossas parceiras. – Vini comentou, chutando a perna de Calebe por debaixo da mesa, tentando acordá-lo do transe em que o rapaz havia se enfiado.
- Ah, que legal! São todos amigos, então, vocês querem sentar com a gente?
Um minuto de silêncio desconfortável seguiu a pergunta. Calebe e Vinícius se entreolharam, em seguida, olharam para a mesa à frente. Malu sentindo os olhares em sua direção, também olhou para a mesa. Malu não pensou mais em fingir naturalidade e Calebe percebeu isso ao notar a expressão dura da garota. Desviou o olhar para o babaca ao lado dela, olhou para Alanne que estava assistindo tudo, assim como Vinícius. E Calebe, novamente perdido em sua própria impulsividade, respondeu:
- Queremos.
- Queremos?! – Vinícius espantou-se, erguendo as sobrancelhas.
- Sim, claro. Somos todos amigos, não? – Levantou-se da mesa antes de mudar de ideia, levando consigo as latinhas de refrigerante e a bandeja de pizza.
- Só pode ser sacanagem… – Malu murmurou, negando com a cabeça quando notou os três vindo em sua direção a mesa dela.
- Ai, caralho… – Alanne sussurrou, fingindo olhar o cardápio.
- Gente, como todo mundo se conhece…– Gisele começou a se explicar e foi interrompida.
- Bom, na verdade, eu não conheço todo mundo… – Calebe explicou e olhou para o canto da mesa, encarando o acompanhante de Malu e perguntou de forma rude, sentando-se ao lado de Alanne. – Quem é você?
- Eu? Quem é você? – Óbvio que André notou o tom abusado na voz do rapaz e respondeu de volta.
Malu quase pulou no lugar ao sentir que algumas faíscas provocativas saíram daquela interação. Então resolveu acalmar aquilo, pois André não falaria nada pois apesar de ser direto, era bastante tímido. Mas Calebe era meio doido, como ela mesmo costumava dizer.
- Esse é o André, ele é meu amigo da academia. – Ela explicou, apontando.
- E aí cara? Beleza? Meu mano aqui já tá meio alterado, bebeu umas garrafas, sabe como é... – Vinícius, como um bom escudeiro, se meteu na frente e esticou a mão, cumprimentando o outro, que apenas assentiu.
Era mentira, óbvio. Calebe nunca esteve tão sóbrio, mas Vinícius sabia que aquela não seria a última atitude petulante do amigo, então o álcool seria responsabilizado por tudo que Calebe fizesse ou falasse a partir daquele momento.
- Ah, entendi, só amigos, né?
- Então gente, e o carnaval, hein? - Alanne comentou alto, chamando a atenção de todos, tentando tirar a tensão que havia se instalado na mesa, onde os únicos que não estavam entendendo nada eram André e Gisele.
- Vamos naquele bloco na beira-mar, lá no centro, sabe? Combinamos com algumas pessoas lá da nossa rua. – Vinicius também se empenhou em mudar de assunto e desviar a atenção do olhar gélido de Calebe.
- Sério? Nós também, combinamos agora pouco, não foi? – Gi contou, empolgada, apontando para Alanne, que confirmou de forma sem graça, olhando para Malu.
- Quer dizer, eu acho que vamos, né Malu? O que cê acha? – Alanne perguntou, apertando o braço de Malu.
- Eu acho que… – Inconscientemente, ela e Calebe se entreolharam, sem motivo real, apenas por saber que ambos estavam cheios de dúvidas entre si. – Pode ser, vamos sim, vai ser… divertido.
“Como é gostoso gostar de alguém. Ai, morena, deixa eu gostar de você boêmio sabe beber, boêmio também tem querer”
Quem Sabe, Sabe – Marchinhas Clássicas de Carnaval.
Tão lento quanto o mês de janeiro havia passado, fevereiro estava voando. Mal havia chegado e já era carnaval. A festa, que era tão amada por uns e tão odiada por outros, era a oportunidade perfeita para quem ainda não havia tido coragem de começar o ano. Assim como Malu, que sentia totalmente presa e estagnada no mesmo lugar durante o ano inteiro.
- Eu vou atrás do trio elétrico, vou... – Malu assistiu a animação de Alanne, que dançava pelo seu quarto alegremente, balançando seus cabelos longos de um lado para o outro, enquanto cantava uma das músicas marcantes de carnaval que elas tinham na playlist. – Eu queriaaa que essa fantasia fosse eterna... – Alanne arrumou o biquini rosa no corpo, que contrastava de forma quase perfeita com sua pele negra. – Eu queria qu...Malu! – Ela desviou o olhar para a amiga, que não demonstrava entusiasmo algum. O chamado agudo de Alanne a assustou, fazendo com que ela sujasse o rosto com o delineador.
- Caraca, Alanne! Que susto, porra! – Reclamou e foi em busca de um lenço demaquilante que limpasse o estrago que ela havia feito em seu próprio rosto.
- Você que tá viajando aí. O que foi? Acorda, Malu! Carnaval, praia, cervejinha. Cadê tua empolgação? – Alanne questionou a amiga ao notar seu rosto quase impassível.
- Ficou na vaga da Fuvest que eu não consegui. – Murmurou, tristonha.
Malu tentou levar as coisas de forma leve e tranquila, não precisava acumular mais estresse em si mesma, mas então os resultados dos vestibulares que ela havia prestado começaram a ser divulgados e suas reprovações em cada um deles também. A menina tentou se convencer que não tinha pressa, que tinha apenas dezoito anos, ainda tinha um ano inteiro pela frente.
Ela tentou muito se convencer disso.
- Amiga, você nem queria Fuvest mesmo! Imagina se você ia pra São Paulo a essa altura do campeonato? – Alanne foi fuzilada pelos olhos de Malu e riu. – Tá, eu sei que não é bem por isso.
- Eu só queria passar no vestibular, Alanne. – Confessou, sentindo a tristeza passar a ser irritação.
Malu sentia que de uns tempos para cá, nada dava certo para ela. Tinha entrado em uma maré de azar e não parecia que iria sair tão cedo.
- Eu sei, amiga, eu também não passei, mas... – Alanne até tentou consolá-la, mas logo foi cortada pela amiga.
- Não passou, mas pelo menos tem um emprego. Eu sequer tenho um currículo! – Malu bradou, irritada. Jogou a maquiagem na bolsa e deitou-se em sua cama, suspirando completamente frustrada.
Alanne era uma ótima maquiadora e havia conseguido um emprego em um salão de beleza especializado em peles negras que havia no centro da cidade. Era um ótimo emprego e Alanne estava mais do que feliz por ter conseguido juntar o que gostava de fazer com o que precisava, ou seja, unindo o útil ao agradável. Agora além de trabalhar, ela conseguia pagar seus estudos e ajudar em casa. Enquanto isso, Malu sonhava em conseguir a mesma coisa.
Ela queria que a vida sorrisse para ela com um pouco mais de leveza também.
- Caramba, Malu! Nada que eu fale vai tirar você dessa bad, não é? – A garota negou, emburrada. – Já chega, Maria Luiza! Você tá acabando com meu espírito carnavalesco, eu hein! Levanta essa bunda daí, coloca esse tule, joga um brilho nesse rosto e vamos descer pra praia! – Alanne puxou a mão da melhor amiga, já perdendo a paciência.
Impaciente, Malu levantou-se da cama e puxou a saia vermelha que havia sido escolhida para combinar com o único biquini preto que ela tinha. Ela apenas assentia enquanto Alanne falava sem parar.
- E a gente já combinou de ir com a galera toda, não vem dar pra trás agora...
- Eu sei, eu sei... – Murmurou. Alanne observou a amiga se olhando no espelho de forma tristonha.
- Malu? Jura que vai tentar se divertir hoje? – Alanne insistiu, passando a mão pelos cachos armados da amiga, que sorriu de lado e assentiu, concordando.
Não precisava ser um gênio para perceber o quanto Malu estava tentando entrar nos eixos após a morte de seu pai. Ela sabia que a amiga dava duro á meses para tentar manter sua casa, sua vida e sua sanidade mental. Alanne se sentia impotente ao ver que não tinha muito o que fazer para ajudá-la. Resolveu fazer só o que estava a seu alcance, que era ser uma boa amiga e companheira.
As amigas finalizaram seus preparativos, agora contando com uma Malu mais animada e uma Alanne aliviada em ver a amiga mais receptiva a diversão. Ambas adoravam festa e era a primeira vez que curtiriam um carnaval juntas. Iriam para a beira-mar do outro lado da cidade, que era o ponto de encontro de quase todos os blocos que sairiam pelas ruas das cidades. Era um ponto de diversão garantida, ainda mais com a certeza de que todas os seus amigos estariam reunidos.
Descendo a pequena escada na ponta dos pés e com os tênis em mãos, as meninas analisaram a sala minuciosamente, encontrando Andréia dormindo profundamente no sofá.
- Vai avisar? – Alanne perguntou em um sussurro.
- Se eu acordar ela, vai ser pior. Vem! – Murmurou, puxando-a pela mão e indo em busca da sua pequena felicidade momentânea.
“Quanto tempo tenho pra matar essa saudade? meu bem, o ciúme é pura vaidade [...] sou perecível ao tempo, vivo por um segundo perdoa meu amor, esse nobre vagabundo”.
Nobre Vagabundo – Daniela Mercury
Foi necessária uma viagem de 1h30 de ônibus até o litoral para Calebe ter certeza do que ele já sabia. Aquela terça-feira de carnaval seria um desastre.
Colocar dez jovens de dezoito a vinte anos dentro de um ônibus, a caminho de uma festa na praia, com um isopor lotado de bebidas alcoólicas enquanto o motorista do ônibus tocava os funks mais tocados do momento era uma receita para o desastre. Os ânimos já estavam mais do que exaltados, o grupo já havia feito amizade até com os passageiros dos ônibus que passavam ao lado e havia até se multiplicado. Tinha algumas pessoas ali que ele não conhecia, era o “amigo de um amigo”, o “primo da minha prima”, fazendo com que o grupo de dez amigos se tornassem quase vinte.
Tudo estava uma grande confusão, do jeitinho mais brasileiro possível.
E estava tudo bem, até Calebe notar que tinham uns e outros interessados demais em Malu. Então, ele se irritou. Maria Luiza havia ficado quase uma semana sem falar com ele, lançando indiretas em todas suas redes sociais, claramente incomodada com o que ele tinha feito. Mas agora ela estava fazendo o mesmo ao ficar de conversa com aquele tal de Renan. Ele se deu o direito de ficar chateado. Já havia admitido para si mesmo que gostava de Malu, então podia se dar o prazer de ficar bravo ao vê-la com outro.
Mas é claro, que seu orgulho ferido não o deixaria ir muito longe sem uma bebida na mão e uma mulher na outra. Então, foi o que ele fez, colocou uma cerveja na mão e Gisele em outra e fingiu que estava tudo bem. Fingiu que aquilo ali não era uma guerra fria em que ele havia entrado contra Malu.
- Tá ficando feio... – Alanne cantarolou, fingindo que estava lixando as unhas. Malu não entendeu e Alanne apontou com a cabeça em direção a Calebe e Gisele, que se beijavam encostados em um carro.
- Não adianta, ele não vai me atingir. – Malu assegurou e virou o copo de cerveja quase cheio na boca.
- Tô vendo! – Alanne debochou, rindo ao ver a amiga agindo de forma contrária ao que estava afirmando. – Mas até que o Renan é bonitinho.
- Quem?
- O primo do Tiago, aquele que você tava de papo ali, maluca! – Alanne riu da desatenção da amiga.
- Quer saber? – Ela desviou o olhar do casal detestável e sorriu provocante. –Ele é mesmo.
- Ih, vai dar ruim, não vai? – Alanne supôs, rindo sem parar, o efeito da bebida já contagiando a garota.
- Vai é dar bom, Alanne! – Abraçou a amiga pelo ombro, rindo.
Não demorou para as garotas se verem vivendo o melhor do carnaval brasileiro. No meio do bloco à beira-mar, a chuva resolveu dar as caras, mas nem isso foi capaz de tirar a animação do grupo de jovens da rua da Saudade. Brincaram na areia, dançaram alegremente, curtiram a chuva quando ela chegou e é claro, tomaram umas além da conta.
“Não dá pra esconder o que eu sinto por você. Não dá, não dá, não dá, não dá só sei que o corpo estremece, as pernas desobedecem inconscientemente a gente dança”
Ara Ketu Bom Demais – Ara Ketu
Dançando como se não houvesse amanhã, de braços para cima e balançando seus cachos molhados, Maria Luiza sentia-se viva de novo. Sabia que era um clichê que ela estivesse se sentindo como a única pessoa no mundo no meio de uma multidão, mas foi delicioso viver aquela sensação. Ela sentia como se ela pudesse fazer tudo o que queria fazer, como se tudo fosse possível. Ela sequer se importava que seus cachos estavam molhados, estragando toda a sua finalização. Ela se sentia tão bem, que parecia que havia passado no vestibular. Ou que o garoto que ela gostava havia deixado a outra garota de lado apenas para ficar olhando-a.
Calebe a assistia dançar quase hipnotizado. Malu tinha um jeito de menina/mulher que era algo de outro mundo. Ela chamava atenção onde passava e ele duvida que não houvesse pelo menos uns cinco pares de olhos a encarando naquele momento em que ela dançava de forma sensual e encantadora.
Ela sabia que ele estava a olhando. Era bom ser olhada daquela forma e aquele olhar ela só encontrava nos olhos de Calebe. Sentia seu corpo ser quase levado contra a maré, com todos os outros corpos encostando no seu, quando no fundo, ela só queria estar encostada nele. Já sabia que todo a combinação de álcool + chuva + dança + calor humano estava dando mais do que certo, pois ela se viu indo em direção a Calebe.
Ela sorriu ao ver o olhar confuso e ansioso dela a medida em que ela ia se aproximando. Ele estava a coisa mais fofa vestido apenas com uma saia de tule igual a dela. Com os cabelos molhados, ele estava com glitter espalhado pelo rosto e pelo corpo de forma desproposital. Ele sentiu seu coração bater tão acelerado quanto a bateria que regia o bloco de carnaval que eles acompanhavam.
Ela estava dando o primeiro passo, ele sabia. Ela estava engolindo o orgulho e indo em direção a ele, na frente de todos, sem se importar com nada. Tudo ia ficar bem agora.
Iria. Até que, sem notar a situação em que Calebe estava, Gisele passou o braço pelos ombros do garoto e tentou beijá-lo. Malu travou no lugar, agradeceu aos céus que ainda garoava, assim ele não perceberia seus olhos enchendo-se de lágrimas. Mas ele percebeu.
Maria Luiza se sentiu frustrada e envergonhada. Olhou para os lados, mas ninguém parecia ter prestado atenção, todos estavam dançando e concentrados em suas próprias conquistas carnavalescas. De repente, a multidão que a acolheu minutos atras, pareceu sufocá-la e ela precisou sair de lá imediatamente. Ela se virou e começou a se afastar, sem saber muito bem para onde estava indo.
Calebe afastou Gisele de forma nada sutil enquanto tentava não perder Malu de vista. Ela sair andando sozinha no meio daquela multidão era uma péssima ideia e ele parecia ser o único que havia notado a garota se afastando. Sem pensar muito, ele deixou todos para trás e foi atrás da morena, que andava rápido entre as pessoas.
Ela finalmente conseguiu chegar à calçada, mas o local ainda estava cheio demais, lotado de ambulantes e pessoas tentando fugir da aglomeração na avenida. Pensando agora, foi uma péssima ideia ela ter ido para uma das alamedas adjacentes, onde não havia muita gente. Em compensação, estava lotado de possíveis ameaças. Se arrependeu no mesmo segundo que percebeu um homem alto que começou a seguir ela. Quase paralisou no lugar, mas seus instintos femininos falaram mais alto e ela deu meia-volta, voltando para o início da rua.
Calebe percebeu que havia um homem logo atrás da garota, olhando-a de forma obstinada e não pensou duas vezes em correr até lá. Ela franziu o cenho ao vê-lo correndo em sua direção e se assustou quando ele a abraçou com força sem mais nem menos. Como ele corria e estava agitado, acabou sendo mais um esbarrão do que um abraço.
- Ai! Tá doido, Calebe? – Ela reclamou, mas ele nem escutou. Encarou o homem atras dos dois e engoliu em seco a raiva quando constatou que o homem sequer disfarçou que a estava seguindo e parou no meio caminho e voltou a subir a rua na direção contrária.
- Quem tá doida é você! Como é que você sai sozinha de perto de todo mundo? – Atacou, puxando-a pela cintura em direção a parede. – Tinha um cara atrás de ti, Malu!
- Eu sei, eu vi! – Suspirou, sentindo sua ansiedade e nervosismo se dissipando aos poucos. Queria estar perto dele, mas não tão perto como estava, sentindo as mãos dele em sua cintura.
- Viu, mas e aí? Ia fazer o que? Correr? É carnaval, Malu. É bom, é divertido, mas é extremamente perigoso. – Argumentou, irritado com a irresponsabilidade dela. Podia ver em seus olhos baixos que ela estava mais alcoolizada do que ele, então ele fez uma nota mental de não beber tanto para que pudesse ficar de olho nela.
- Eu só queria... – “Ficar longe de você”. Ela pensou em dizer, mas não queria parecer fraca. – Eu não preciso ficar te dando satisfação, não. – Ela tentou puxar seu braço do aperto dele.
- É, eu já percebi isso. – Murmurou. Era melhor que eles se afastassem e ele a levasse de volta para a companhia dos amigos, porém, apesar de ela estar mais alterada do que ele, não quer dizer que ele não estava também. – Eu também não preciso, apesar de que se você pedir, eu dou.
Malu suspirou, encarando-o. Ela negou com a cabeça, sentia-se farta daquela situação. De repente, percebeu que queria voltar para casa, mas não queria ir sozinha. Assim como já vinha acontecendo a algum tempo, ela percebeu que queria estar com ele, quase sempre. Sentia falta de quando ele não estava por perto. E quando ele estava por perto, era doloroso ver que ele não era dela.
– Tô cansada disso. – Admitiu.
- Do quê?
- Da gente, Calebe.
- A gente não tem nada, Malu. – Garantiu, trêmulo. Longe do amontoado de pessoas, o vento frio que batia em seu corpo gelado da chuva o fazia tremer.
- A gente não tem nada? – Riu com desdém, balançando a cabeça. – Você fala isso pra convencer quem? Pra mim, pra você ou pra Gisele? – Questionou, dura.
- Eu fiquei com ela uma vez, Malu, deixa de ser maluca! E você com aquele moleque estranho? Por favor, né! – Irritou-se.
- Maluca? Tá me tirando pra maluca agora? Na boa, Calebe, vai pra puta que pariu! – Ela xingou e virou de costas, tentando se afastar dele, em vão.
- Ei! Vem cá, não fala assim comigo, não! – Ele a puxou de volta e encurralou no caminho. – Cê tá meio maluca, sim!
- Porra nenhuma! – Ela tentou empurrá-lo e se afastar, mas ele a puxou para perto e entrelaçou os braços na cintura dela.
Ela desistiu de tentar se afastar.
- Não, não! Você falou pra caramba, passou o dia inteiro mandando indiretinha besta, agora você vai escutar. – Enfezou-se, sentindo seu sangue pulsar com a adrenalina e a vontade de falar na cara de Malu tudo o que ele queria já tinha um tempo.
- Escutar o quê, garoto? Não tenho que ficar escutando nada de você, não! – Indignou-se.
- Vai escutar, sim! Se tá tão incomodada com a menina, por que você não me deixa te beijar na frente de todo mundo?
A resposta dela veio em poucos segundos. Era a resposta que ela ficava relembrando quando sentia vontade dele e de ir até a casa dele.
- Porque eu não sou a porra do teu troféu, Calebe! Não sou e nem quero ser! – Bradou, aborrecida. Ele franziu a testa, confuso.
- Eu nunca disse isso, sequer pensei dessa forma! De onde você tirou isso? – Questionou, confuso. Nunca havia a ouvido falar desse jeito.
- Você acha que eu não percebo? O jeito que os meninos te veneram quando você pega essas meninas? Acha que eu não vejo eles lançando esses comentários idiotas quando me veem falar com você? Como eles sempre estão comentando que eu não a única que você não consegue “pegar”? – Calebe engoliu em seco.
Não adiantava negar, era totalmente verdade. Entretanto, não era culpa dele. Os outros que esperavam coisas dele que ele jamais se cobraria. Ele até tentava não colaborar com certos comentários e fazia o possível para não ficar com ninguém na frente de todo mundo pois sabia que isso geraria comentários, mas era inevitável. Era coisa de menino, a maioria dos amigos de Calebe eram uns moleques e ele não era a mãe, nem pai de ninguém para ficar ensinando que comentários deveriam ser feitos ou não.
Ele só não esperava que fosse justamente isso que tanto incomodava Malu.
- Esse é o problema, então? Quer ficar comigo escondido pra ninguém descobrir que você cedeu e caiu por mim? – Ironizou, não gostando nenhum pouco da insegurança boba da garota.
- Ah, Calebe, fala sério! – Ela rolou os olhos em respostas ao seu jeito debochado, sentindo até vontade de rir com a resposta desleixada.
- Maria Luiza. – Ele apertou o rosto dela entre suas duas mãos. - Eu não sei você, mas se você quiser, eu vou no meio da porra dessa avenida agora mesmo e grito que faz um mês que tô beijando a tua boca na frente de todo mundo.
- Aposto que você ia adorar! – Proferiu, sarcástica.
- Te assumir pro Brasil? – Ele riu, fazendo-a morder o lábio para não rir também com o trocadilho idiota. – É claro que eu ia adorar, morena! – Ele apertou seu rosto com apenas uma mão, forçando-a a encará-lo e fazendo com que ela notasse seus olhos e tão próxima que ela sentia o cheiro de álcool emanar dele.
- Você tá bêbado, Calebe. Não fala besteira. – Negou, ansiosa. Na verdade, não foi o jeito rebelde em sua fala que a deixou nervosa, e sim, a sinceridade que ela viu em seus olhos nebulosos.
Ele desceu a mão para o pescoço dela e acariciou sua bochecha com o polegar. Malu fechou os olhos, aproveitando tanto a caricia que recebia. Sentia todas as forças que tinha para afastá-lo indo embora no momento em que ele começou a deixar beijinhos castos no canto de seus lábios.
- Por que você dificulta tanto isso? – Murmurou, empurrando-a levemente em direção a parede de uma casa de pedras que tinha uma pequena coberta escura. – Eu não tenho a menor vergonha de dizer que eu quero você, não tenho orgulho nenhum, Maria Luiza. Se você deixar, se você quiser, eu me ajoelho na frente de todo mundo e imploro por você. – Ela sentia sua respiração no pescoço, enquanto ele sussurrava que era louco por ela.
- Não faz assim, Calebe. – Sussurrou, com a voz fraca. Ela se sentia salivando pelos lábios dele, por ele. Não queria mais se negar a isso, mas ela havia criado tantas barreiras que ela mesma estava tendo dificuldade para quebrá-las. – Você só tá assim porque me viu beijando o... o... Ah, não sei o nome dele. – Malu de ombros, subiu as mãos em seus braços. Ele riu com a desatenção dela, saber que ela sequer se importava com o nome do cara o deixou satisfeito.
- Quer saber? Tô! Tô com raiva, sim. E aí? – Indagou.
- Eu sou solteira, faço o que eu quiser, com quem eu quiser! – Respondeu, calma.
- Então, morena... – Ele se afastou e ajeitou os cabelos dela gentilmente e passou os dedos em seus lábios, sorrindo. – Faz o que quer... comigo! Eu tô aqui. – Ele abriu os braços em sua frente, entregando-se a ela literalmente de braços abertos. – Faz o que você quiser.
Não foi um pedido, foi um ultimato.
Sem pensar muito, ela jogou o corpo contra o dele, beijando-o de forma feroz, do jeito que ela queria desde que viu ele descendo a rua naquele dia. No meio do beijo, ele suspirou aliviado. O que mais queria era se sentir, pelo menos, considerado, se sentir acolhido. E o jeito que ela o beijava, e como ela abraça ele com vontade, deixava claro que ela o queria também.
- Caraca, que raiva de vocês! – Escutaram o brado raivoso vir de alguém atrás dele e se afastaram rapidamente. – Todo mundo preocupado com Malu, preocupado com Calebe e os dois pombinhos estão onde? Na maior trocação de saliva. – Alanne resmungou, jogando uma garrafinha de água nas costas de Calebe, que riu.
- É melhor do que trocação de soco, não é? – Ele brincou.
- Será? – Alanne questionou e puxou Malu pelo braço, afastando-a de Calebe, que estranhou. Malu olhou para trás enquanto descia a ladeira sendo puxada por uma Alanne irritada. Ela gostava de Malu e Calebe, torcia pelo casal, mas não gostava de ver o garoto fazer com a amiga o que fazia com todas, que era ficar com uma ou duas ao mesmo tempo. Calebe negou com a cabeça, sem ter tempo de se explicar. Então, apenas assistiu quando a garota se virou para Calebe e com a língua venenosa, lançou: – Gisele tá atrás de você.
જજજજજજજજજજજજ
Já passava da meia-noite quando o grupo de amigos do bairro da Saudade desceu do ônibus que vinha do litoral. Animados, todos gargalhavam das imitações de Vinicius e comentavam os acontecimentos entre si. Apesar do desencontro de Malu e Calebe, o resto do dia fora extremamente divertido e o grupo já ansiava pelos próximos dias de carnaval.
Aos poucos, o grupo ia se dispersando e logo restou apenas Malu e alguns dos meninos, inclusive Calebe, que moravam na rua de cima. Eles fizeram questão de acompanhá-la até a porta de sua casa. Também não pouparam as brincadeiras e provocações entre si.
- Alô tia, a princesa tá entregue! – Um deles gritou na porta, fazendo Malu rir e mandá-lo falar baixo.
- Quer companhia pra dormir, Malu?
- Prepara o meu lado da cama, viu? Logo tô chegando.
- Vocês são péssimos! – Ela riu, enquanto abria a portinha de madeira. De canto de olho, ela observou Calebe, que apenas assistia com um sorriso de canto que beirava o insuportável para ela. Ela se despediu de cada um, com um abraço e um sorriso, sentindo-se satisfeita com as amizades que ela tinha ali.
- Se quiser que eu volte mais tarde, é só mandar mensagem, morena. – Calebe proferiu alto quando já estava quase no meio da rua.
Todos os meninos riram, achando que aquela era mais uma gracinha de Calebe, mas não perceberam pela troca de olhares dos dois, que o aviso era mais do que sério. Ela negou com a cabeça, novamente rendida pela atitude atrevida do rapaz. Cansada do jeito que estava, ele não a veria pelo resto do carnaval.
Ainda rindo, Malu se abaixou para tirar seus tênis imundos antes de entrar na sala de sua casa. Sabia que era ela que teria que limpar a mistura de lama, cerveja, chuva e lixo que estava impregnada nos calçados. Enquanto desamarrava os cadarços, ouvia sua mãe se aproximar e ergueu a cabeça.
- Oi, mãe. Cheguei. – Avisou e voltou sua atenção para os pés.
- Percebi. – Respondeu, num tom seco. – Você saiu assim?
- Assim como? – Retirou as meias e se levantou.
- De biquini e saia transparente, igual uma vagabunda.
- Sério, mãe? Sério mesmo? – Ignorou o comentário brutal da mulher e se afastou, indo até cozinha.
- Onde você tava? – Questionou, seguindo Malu de braços cruzados.
- Na rua. Carnaval. - Malu respondeu monossilábica e se serviu um copo de água.
Estava com tanta sede, tanto calor. Tudo o que ela queria era tirar o biquini, a fantasia, a maquiagem, tomar um banho de meia hora e dormir. Mas as intenções de Andréia eram outras. Ela estava extremamente irritada de ver a filha chegar em casa de madrugada, com a maquiagem escorrendo pelo rosto, claramente alcoolizada, descalça e... Feliz.
Ficou com raiva de ver sua filha feliz.
- Carnaval. – Bufou. – Quer saber? Some da minha frente agora, Maria Luiza. – Bradou, nervosa.
- Como assim? Pirou, mãe? – Malu franziu o cenho, totalmente confusa com a reação exagerada de sua mãe. Tudo bem que ela não avisou antes de sair, mas já tinha passado dessa fase. Já tinha um tempo que a mulher não pedia satisfação de onde a garota estava.
- Vai embora, Maria Luiza.
- Eu hein. – Ela deu de ombros e deixou seu copo na pia. – Tô indo pro meu quarto, se quiser conversar igual gente. – Provocou.
- Não, você não entendeu. Vai embora da minha casa. – Malu paralisou e ficou encarando a mulher, esperando ela dizer que estava brincado ou algo do tipo. Mas sua mãe não fazia brincadeiras. – Você quer viver sua vida dessa forma, se estragando em festa, bebidas e sabe-se lá o que mais que você faz na rua, você pode ficar à vontade, mas não debaixo do meu teto.
- O teto também é meu. – Malu sentia seu sangue começar a esquentar.
- Nada nessa casa é teu. Tô cansada de ver você agir como uma fedelha mimada que...
- Que o quê? Que paga as contas? Que cozinha, passa e lava porque você tá ocupada vegetando no sofá? – Retrucou, enfezada.
- Como é que é, sua ingrata?! – Ela se aproximou, irada. – Ou você me pede desculpas agora ou vou te fazer engolir cada palavra dessa, sua estúpida!
- Você começa a me atacar do nada e quer que eu fique calada? Mal pisei em casa e você me chamou de vagabunda, faça-me o favor! – Malu tentou seguir em frente, tentou ir direto para o seu quarto e evitar um atrito maior com a mulher que, novamente, tinha seus planos próprios.
- Enquanto morar nessa casa, vai ser uma mulher decente! Não quero mais te ver usando essas porcarias! – Antes que pudesse se defender, Andréia puxou a saia de tule colorida de Malu. Com a força, a saia se rasgou no cós, caindo no chão antes que Malu notasse. – Olha isso, o biquini depravado, mal cobrindo suas partes!
- Ei! – Ela gritou, tentando se afastar a todo custo, mas Andréia a segurava e gritava ofensas a garota – Tá ficando doida?
- Me respeita, porra. Cala a sua boca enquanto eu tô falando. Eu sou sua mãe e... – Agarrou-a pelo braço, sem medir sua força e apertou a pele da garota com força.
- Ah, lembrou que é mãe?
Ela desferiu um tapa em seu braço com força. A raiva que Andréia estava sentindo era perigosa, mas ela não estava conseguindo se controlar. De início, só queria chamar sua atenção, mas a forma como Malu a respondia lhe deixava brava. Nos últimos meses, tudo que Andréia sentia, ela sentia em dobro. Quando estava triste, ficava muito triste. Quando ficava brava, ficava muito brava.
- Eu não suporto ver você falando assim comigo, Maria Luiza! Se o seu pai...
- Se o pai o quê, mãe? – Interrompeu antes de ela concluir. Não queria nem por um segundo que ela usasse o nome de seu pai naquela discussão.
- Se ele estivesse aqui, teria vergonha de te ver assim!
- Mas ele não tá aqui! Sabe por quê? Porque o papai morreu, mãe! Ele morreu!
Malu sentiu sua mãe esbofetear seu rosto, mas sequer se defendeu pois sentiu que havia merecido aquele tapa. Ela só não esperava que receberia mais alguns repetidas vezes. Ataques tão bravos que ela sentia sua pele arder. Lembrou de quando a mãe a batia na infância quando ela fazia alguma traquinagem, mas logo a lembrança a abandonou de forma bruta quando Andréia a empurrou contra a parede. Ela nunca teria feito aquilo com ela quando criança.
- Me solta! – Malu tentou falar de forma feroz, mas sua voz saiu chorosa e nervosa. Nunca havia passado por aquilo.
Não sentia que estava recebendo uma lição de sua própria mãe, sentia que estava apanhando de uma outra mulher e ela não demorou a perceber que eram coisas completamente diferentes.
- Vai embora daqui! – Ela empurrou Malu, que tropeçou nos próprios pés e caiu no chão. – Eu não quero te ver aqui tão cedo! – Para fugir dos ataques, Malu engatinhou rapidamente até a porta de saída da casa. – Vai embora! Vai embora DAQUI! – Malu lançou seu corpo para fora da casa sem pensar duas vezes.
Andréia jogou um quadro contra a porta ao ver a filha sair. Nervosa, ela passou a mão nos cabelos e correu até o banheiro de seu quarto. Enfiou garganta abaixo três comprimidos e se olhou no espelho. Não reconheceu a figura descabelada, pálida, emagrecida e envelhecida que ela viu no espelho. Ainda tremendo de nervoso, Andréia foi até o sofá e pensou que seu marido morreu e ela bateu na sua filha, que era a única família que ela tinha. Andréia chorou copiosamente até cair no sono que o sedativo lhe presentou.
જજજજજજજજજજજજ
Cambaleando, Malu saiu de casa e só levantou quando sentiu que suas pernas não fraquejariam. Maria Luiza nunca havia se sentido tão desprotegida. E não tinha nada a ver com o fato de ela estar apenas de biquini em uma rua vazia no meio da noite. Não queria voltar para dentro, mas estava de biquini, sem celular, sem dinheiro e principalmente, estava sem coragem. Nunca havia apanhado daquela forma. Ela sentia seu rosto pulsando e seu corpo inteiro latejava.
Malu engoliu o choro que queria vir com força e decidiu o que faria. Voltar para casa não era uma opção. Não no momento e, talvez, nem no futuro. Trêmula, ela tocou no próprio lábio e viu uma pequena gota de sangue em seu dedo quando olhou. Estava machucada, mas nem uma ferida em seu rosto ou hematoma em seu corpo doía tanto quanto o seu coração.
Não foi um garoto e sim, sua mãe quem partiu seu coração pela primeira vez.
Se deu o direito de deixar cair algumas lágrimas enquanto correu até a única casa onde ela poderia contar que foi Andreia que havia lhe batido.
Ana estava se preparando para ir para o seu quarto quando ouviu a campainha tocar. Olhou no relógio, preocupada. Calebe havia chegado tinham alguns minutos e o garoto chegou tão cansado que apenas deu um beijo na mãe e informou que iria tomar banho e cair na cama. Receosa, ela olhou pela fresta antes de abrir a porta totalmente e tomou um susto.
- Malu, pelo amor de Deus! – A mulher correu até o portão, tão nervosa que quase não conseguia colocar a chave no cadeado.
- Tia... – Ela choramingou. Não iria conseguir falar. Sua voz foi engolida pelo choro e soluço.
- O que aconteceu, minha filha? Minha nossa! – Desesperou-se quando abriu o portão e percebeu que não estava enganada. A garota realmente estava só de biquini e com machucados em seu rosto e braços. Puxou-a para dentro e abraçou-a rapidamente, levando-a para dentro da residência. – Malu, por favor! O que aconteceu? Fala comigo!
Não queria deixar a mulher ainda mais nervosa, mas não conseguia proferir nenhuma palavra sem soluçar e chorar. Toda a adrenalina da briga havia passado e agora além de sentir seu corpo doer, Malu sentia que não iria parar de chorar tão cedo.
- Malu, calma, respira! Você tá me assustando... Calebe! Vem aqui! Rápido! – A garota chorava desesperadamente e Ana já estava perdendo a força de segurá-la em seu braço. Chamou por Calebe imediatamente.
O rapaz havia acabado de sair do banho quando ouviu a campainha tocar, mas decidiu primeiro colocar um short antes de ver quem era. Correu em pânico quando ouviu sua mãe chamá-lo com a voz nervosa e agitada. Paralisou quando viu Maria Luiza ali. Não é possível, ele havia deixado ela praticamente dentro de casa, o que teria acontecido?
- Malu, o que aconteceu? – Correu até elas e ajudou a segurar a menina, que chorava e sequer sentia suas pernas, não sabia como estava se mantendo em pé. – Mãe?
- Eu não sei, ela chegou chorando e olha só, tá machucada. – Ana apontou para o rosto e as marcas no braço de Malu. Caleb desceu o olhar e quase vomitou de aflição quando notou que ela vestia apenas um biquini.
- Malu, por favor! Alguém...T-tocou em você? – Questionou e não esperou respostas, já ia em direção a porta.
Não sabia o que faria se algo realmente tivesse acontecido, não sabe se ele correria pela rua até chegar à delegacia mais próxima, se bateria de porta em porta, se pularia os muros até achar o culpado. Na verdade, faria de tudo um pouco.
- Não! – Ela segurou o braço dele antes que ele se afastasse. – F-foi a minha m-mãe... – Engoliu o máximo de choro e ar que conseguiu e olhou para Ana, que parecia desolada. – Ela me bateu, tia! Ela me empurrou, arrancou minha roupa, me chutou... – Não conseguiu continuar, apenas caiu em prantos novamente.
- Meu Deus... – Ana murmurou e puxou Malu para seus braços, acolhendo-a em um abraço.
- Puta merda. – Calebe engoliu em seco. Foi a própria mãe que havia feito aquilo. Ele não poderia ir à delegacia, nem pular um muro, nem bater de porta em porta. O que diabos ele poderia fazer?
- Calma, filha. Senta aqui comigo... Eu não acredito que Andréia fez isso. – Confessou, Malu se sentou no sofá, sendo amparada pelos braços de Ana e Calebe, que a acalentava de maneia afetuosa. – O que aconteceu?
- Eu não sei, tia. Eu cheguei em casa e ela já começou a gritar e me chamar de nomes e... Eu juro que não sei, eu apenas rebati os absurdos que ela me falava e ela p-perdeu a cabeça e me a-atacou... – Contou, sentida e passando a mão pelos braços.
- Eu não acredito nisso. – Calebe bufou irritado. – Que filha da puta!
- Calebe. – Ana repreendeu.
- Não, mãe! Olha pra ela! Tá toda machucada, olha o rosto dela! – Apontou para Malu, que abaixou a cabeça, envergonhada.
- Quer saber? Vamos todos nos acalmar. Eu vou... – Ana não conseguiu fingir que não estava meio desorientada em ver a menina daquela forma. Quase não conseguiu formar uma frase pois só conseguia concordar com Calebe e pensar “que filha da puta!”. – Eu vou pegar uma roupa pra você, uma toalha e-e... Um banho, isso! Um banho vai ajudar! – Repetiu mais para si mesma do que para a menina. – Vai nos dar um tempo e...
- Eu não vou voltar pra casa, tia. – Malu informou de forma decisiva. – Ela disse que eu não deveria voltar e eu não vou. Pelo menos, hoje não.
- Não se preocupa, você não voltaria hoje nem se quisesse. – Calebe assegurou, olhando-a e se levantou, saindo do cômodo.
Ana suspirou, preocupada. É claro que não expulsaria a menina, ainda mais naquelas vestimentas. Mas se preocupava com sua amiga Andréia e principalmente com a amizade entre elas. Ana nunca bateu em Calebe, podiam ser contadas nos dedos as vezes em que ela havia levantado a voz para ele de maneira mais incisiva. Então, olhar o rosto machucado de uma menina tão bonita e frágil com Malu deixava Ana enfurecida.
- É claro que não vai, minha linda. Você fica aqui essa noite. – Concordou, pesarosa. – Eu vou organizar umas coisas pra você, ok? Ér... – Ela sentou ao lado de Malu e se inclinou em sua direção. – Você quer dormir no quarto comigo ou...? – Deixou a frase em aberto, apenas acenou com a cabeça em direção ao pequeno quarto de Calebe.
Ana não ia fingir que não sabia o que acontecia entre Malu e Calebe. Nunca precisou se preocupar com segredos, pois seu filho sempre fora muito honesto e sincero com ela. Eles tinham uma relação de cumplicidade de dar inveja em muito filhos que não conseguiam sentir segurança com seus pais. Quando Calebe contou que eles haviam se beijado, ela ficou preocupada com a forma que a menina poderia ser “usada” por Calebe. Mas a alguns dias atras, o garoto comentou que estava se sentindo confuso e corou como um menininho quando Ana perguntou se ele e Malu estavam tendo mais intimidades que o normal.
No fundo, ela ficou feliz e até um pouco aliviada. Malu era uma ótima pessoa e ela sentia que Calebe realmente gostava dela. Sentiu-se aliviada que a garota por quem Calebe possivelmente se apaixonaria era uma que ela conhecia bem e amava. Ana amava Malu, de verdade. Sentia um carinho maternal por ela desde que nascera. E pensar isso, só a deixava mais entristecida ao pensar que a mulher que deu à luz a ela havia deixado uns bons hematomas em sua pele.
- Ah, tia... – Malu envergonhou-se e abaixou a cabeça. Calebe já havia comentado que sua mãe sabia sobre eles, mas se sentiu assustada por isso. Não iria negar, queria dormir no conforto e para ela, essa palavra remetia a ele. – T-tem problema? Eu não quero que a senhora pense... É que eu vou ficar mais...
- Confortável com ele. É, eu sei. – Ela completou, assentindo – Não me incomoda, de maneira alguma. Eu confio em vocês. – Ana acariciou os cabelos úmidos de Malu e sorriu, doce. Calebe voltou a sala com uma toalha grande suas em mãos. Ele entregou a ela, que se cobriu imediatamente, aliviada por não estar mais tão exposta. – Filho, a Malu vai dormir com você, tá? Só... Deixem a porta aberta, por favor. – Pediu, de forma bem-humorada.
- Tudo bem, mãe. Fica tranquila. – Ele tranquilizou, afagando seu ombro.
- Eu vou pegar umas roupas e uns produtos pra você. Talvez uma gaze pra limpar essa boca e eu acho que tenho uma pomada que pode ajudar... – A mulher se levantou e deixou a sala ainda falando, enumerando as coisas que ela traria para Malu. – Você pode tomar banho no banheiro do meu quarto enquanto Calebe arruma o quarto. – Ela assentiu, concordando e acompanhou a mulher, sem olhar para trás. Estava envergonhada de olhar para Calebe, apesar de ter escolhido dormir com ele.
Durante o banho, Maria Luiza se negou a chorar. Quando a água bateu em seus ombros, ela praguejou, incomodada com a sensação. Ela pensou que tinha errado em rebater a mãe de forma tão incisiva e raivosa, pensou ter sido realmente ingrata como sua mãe a chamou, mas no fundo, ela sabia que não havia certo ou errado. Sendo assim, ela se deu o direito de sentir um pouco de raiva da mãe, principalmente quando sentia o corpo arder nos locais doloridos onde sua mãe havia batido.
A garota vestiu o pijama confortável de Ana, mas a mulher era menor que ela, então a roupa acabou ficando justa demais, decidiu colocar a camisa grande de Calebe por cima. Entrou no quarto e encontrou Ana sentada na beirada da cama, olhando para as próprias mãos, parecendo perdida em pensamentos. Malu sentiu-se culpada de tê-la arrastado para aquela confusão, imaginou se a acolhida de Ana custaria a amizade dela com a mãe.
- Tia? – Chamou sua atenção.
- Oi! Já, meu amor? – Levantou-se, assustada por não ter percebido Malu ali. – Eu separei um lençol e deixei lá com o Calebe. Senta aqui, deixa eu dar uma olhada em você. – Pediu, suavemente.
Ainda fragilizada, Malu se sentou na cama e esperou que Ana observasse minuciosamente os hematomas em suas pernas e braços. Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto Ana passava uma pomada aliviante em algumas marcas mais escuras.
- Tia, desculpa ter vindo pra cá, eu não queria envolver você nisso. – Malu enunciou, baixinho.
- Imagina, Malu. Eu jamais deixaria de te acolher aqui. – A mais velha assegurou, sorrindo.
- Eu nem sei como agradecer, de verdade. Eu tô com tanta vergonha, tia... – Admitiu, abaixando a cabeça. – Eu não acredito que isso aconteceu. Eu já apanhei antes, sabe? Mas dessa vez, foi diferente, sei lá. Foi a primeira vez que eu vi raiva nos olhos da minha mãe.
- Sua mãe tá passando por um momento difícil, Malu, mas nada justifica a violência que ela cometeu com você hoje. – Acariciou a cabeça da menina e suspirou, entristecida. Malu era daquelas pessoas que quando feliz, todo mundo se alegrava junto. E quando ela estava triste, era difícil não perceber e ficar triste também. – Já tá tarde, foi um dia cheio, vocês devem estar cansados. Tem certeza que não quer dormir aqui? – Malu assentiu com a cabeça.
- Na verdade, tia... – Ela pensou bem antes de falar. Já estava se sentindo tão exposta, mas não conseguiu manter aquela confissão apenas para si. – Eu só quero chorar mais um pouco e sinceramente, acho que só vou conseguir fazer isso com Calebe do meu lado.
“No vão das coisas que a gente disse,
não cabe mais sermos somente amigos.
E quando eu falo que eu já nem quero a frase fica pelo avesso.
[...]
Toda vez que eu procuro uma saída,
acabo entrando sem querer na tua vida”.
Quem De Nós Dois – Ana Carolina
- Tudo bem mesmo se eu dormir aqui? – Malu questionou enquanto observava Calebe a arrumar o colchão que ele havia colocado no chão, para dar lugar para a menina na cama.
- Claro, Malu. – Respondeu, simplesmente. Ele arrumou os lençóis atentamente e logo se deitou. Notou que a menina ainda estava sentada na beira da cama, olhando para os próprios pés.
Ele suspirou. Odiava ver Maria Luiza retraída daquela forma. Simplesmente não era ela. Os olhos tristes, os cachos desmontados e a feição atordoada deixavam Calebe mais do que irritado, deixava-o triste. Se ele pudesse voltar no tempo, jamais deixaria ela entrar em casa sozinha.
- Malu? – Chamou, fazendo com que ela quase se assustasse com sua voz grave. – Tá tudo bem? – Ela pensou por uns segundos antes de balançar a cabeça negativamente. Ele analisou a situação e se colocou no lugar dela. O que ele iria querer dela se estivesse em uma situação frágil como aquela? – Quer que eu durma aí com você?
Era isso que ele iria querer. O corpo quente dela o aquecendo e afastando toda a dor e tristeza que estivesse nele. Por sorte, era o que ela queria também. Malu assentiu e se deitou na cama, deixando um espaço para ele se deitar ao seu lado.
Calebe deitou-se ao lado dela, passando um braço em volta de seu ombro, receando machucá-la ainda mais. Ela se aconchegou no peito dele, sentindo que os batimentos tranquilos do coração dele era o que a acalmaria.
- Não levanta. – Murmurou, pedindo. Calebe a olhou confuso, não tinha intenção de sair dali. – Depois que eu dormir. Você p-pode não levantar daqui?
- Não vou te deixar sozinha. – Assegurou, firmemente. Ela assentiu e procurou pela mão dele debaixo dos lençóis.
Entrelaçando seus dedos, ela fez mais um pedido:
- Posso chorar mais um pouco? – Não queria incomodá-lo. Sabia o quanto ele devia estar cansado depois de um dia inteiro de carnaval na praia, mas ela sentia que também não conseguiria descansar se não tirasse aquele peso de lágrimas de dentro do seu peito.
- Pode chorar a noite toda se você quiser, Malu. Eu não vou sair do seu lado.
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- Ah, cara! Sério, que puta palhaçada! – Calebe bradou, irritado. – Desliga essa merda, eu não vou mais assistir! Quer saber, deixa aí só pra gente ver a merda que esses caras vão fazer daqui pra frente.
De cara fechada e braços cruzados, Calebe bufava e resmungava enquanto assistia ao jogo de futebol na TV. A única coisa que tirava mais a paciência dele, além de Maria Luiza, era o Fluminense. Ela, por sua vez, se deliciava assistindo as reações espontâneas dele. Malu não imaginou que passaria a Quarta-Feira de Cinzas deitada no sofá enquanto assistia um jogo de futebol do Fluminense com Calebe, mas não desejaria estar em outro lugar.
Os seus amigos estavam todos pelas ruas, celebrando e aproveitando o restinho do carnaval. Malu e Calebe mal conseguiram levantar-se 2da cama. Ela, apesar de dolorida, dormiu muito bem envolta nos braços de Calebe. E ele, dormiu melhor naquela noite – com a perna e os cabelos de Malu por cima dele – do que sozinho nas outras noites. A noite passada fora pesada e intensa, Malu ainda sentia sua cabeça pesar quando pensava muito no que tinha acontecido. Então ela decidiu não pensar muito naquele dia.
- Puta merda, goleiro! Ajuda a gente também, né? – Exclamou, passando a mão pelo cabelo, demonstrando ansiedade. – Olha só, esse cara aí, toda vez faz isso. No jogo passad... o que foi, Maria Luiza? Tá rindo do quê? – A menina gargalhou, jogando a cabeça para trás.
- Você fica uma gracinha quando tá irritado com o Fluminense. – Ela balançou os pés, que repousavam nas pernas dele.
- Malu, eu tô puto da vida e você vem dizer que eu fico uma “gracinha” quando tô com raiva? – Reclamou, puxando os dedos dos pés dela e terminando com uma carícia suave. – Eu esperava que fosse algo tipo “pô, você fica sinistro, fica assustador”.
- Mas fica, ué! Você fica com uma ruguinha aqui perto dos olhos, parece muito de quando você era gordinho... – Ela riu quando ele negou com a cabeça, parecendo envergonhado. – Você era super fofinho, o que foi que aconteceu hein? – Ela brincou, cutucando a cintura dele com o pé.
Era óbvio que era apenas brincadeira da garota. Na verdade, ela não conseguia imaginar como aquele garoto gordinho e birrento havia se tornado tão bonito e educado. E vendo ele ali, de perfil e sem camisa, enquanto massageava os pés dela sem intenção alguma, ela precisava admitir. Calebe era mesmo um cara bonitinho. E droga, ela estava quase admitindo para si mesma que estava afim dele.
- Não vem ficar me zoando só porque você nasceu bonita, cresceu bonita e muito provavelmente vai morrer bonita. – Declarou, risonho e fez Malu rir também.
Aquelas tiradas brincalhonas e provocativas de Calebe deixavam-na completamente arrebatada. Era assim que ele a ganhava e sabia disso. Malu sentou rapidamente e se esticou, encostando os lábios nos dele, depositando alguns selinhos e voltou a se deitar. Ele a olhou, questionando, confuso. Não era uma reclamação, ele apenas ficara surpreso. Sempre ficava quando era ela que iniciava algum tipo de contato mais íntimo. Maria Luiza deu de ombros e voltou a olhar para a televisão, fingindo estar assistindo o péssimo jogo que o Fluminense fazia naquele dia.
– Caramba, morena. Até esqueci o ódio que eu tava sentindo do Flu. – No mesmo instante, algo mais surpreendente que o beijo de Malu aconteceu. O Fluminense fez um gol, levando Calebe aos gritos e Malu as gargalhadas. – Eu não acredito no está diante dos meus olhos, meu Deus! – Ele gritava o nome dos jogadores e batia palmas, entusiasmado.
- Que gritaria é essa, garoto? – Ana entrou na sala, assustada e reclamando. – Daqui a pouco o vizinho vem reclamar.
- Quem, mãe? Aquele flamenguista SECADOR? – Debochou, gritando a última palavra em direção a janela.
- Calebe! – A mulher repreendeu, rindo. – Eu vou até o supermercado e volto logo, pode ser?
- Supermercado, mãe? Hoje? Não tá tudo fechado, não? – Ele estranhou.
- Eu não sei, vou ver qualquer vendinha aberta. Quero comprar alguns materiais pra fazer um bolinho pra gente. Não sobrou nada do almoço e nem temos algo pra lanchar agora. – Ela arrumou a bolsa no ombro e foi até Malu. – Tudo bem, meu amor? Eu vou rapidinho, se comportem vocês dois.
- Não se preocupe, tia. Eu tô com um pouco de sono por conta do analgésico, logo vou tirar um cochilo. – Malu tranquilizou-a. Ana assentiu e caminhou até a porta, voltando para o sofá no mesmo minuto e disparou dois tapas no ombro de Calebe.
- Ai! O que eu fiz? – Reclamou, passando a mão no local.
- Se comportem. – Frisou, o encarando fixamente.
- Relaxa, mãe. A Malu é bonita, mas não ganha da torcida do Fluzão. Olha aí, que coisa mais linda! – Assegurou, apontando para a televisão. Malu e Ana se olharam e reviraram os olhos ao mesmo tempo.
Assim que Ana saiu de casa, Calebe olhou de canto de olho para Malu, que prendeu os lábios em um sorriso e fingiu que não estava vendo a expressão travessa do rapaz.
- O que foi agora, Calebe? – Não resistiu e perguntou.
- Nada, não. Pensando numa teoria aqui. – Ele coçou a cabeça, olhando-a. – Assim que a gente se beijou, o Fluminense fez gol. Mas assim, não tem como a gente comprovar muito bem essa teoria, não é? – Malu negou com a cabeça, descrente em como a lábia dele combinava bem com o sorriso atrevido.
- A não ser que o Fluminense faça outro gol. – Supôs.
- Ou que você me beije de novo.
- Sua mãe disse pra gente se comportar! – Ela apontou para ele com o dedo em riste.
- Mas eu não fiz nada. – Respondeu, contrariado. E proferiu num murmúrio após alguns segundos de silencio: – Só acho muita falta de consideração sua deixar o Fluminense perder esse jogo...
જજજજજજજજજજજજ
Ana sorriu fraco ao ver a foto grudada no armário da sala. Malu sempre fora uma criança com um lindo sorriso e cachos bem formados. E na foto com ela sentada no colo do pai, era possível ver o quanto ela tinha herdado dele fisicamente. Os olhos pequenos e o sorriso simpático. Sentiu-se triste ao pensar que talvez Calebe e ela fossem os únicos que realmente se importassem com Maria Luiza. Mas essa sua suposição caiu por terra quando ela acordou naquela quarta-feira com uma mensagem de texto no seu celular, de um número bem conhecido.
“Ana. Ela está aí?”
Ana se sentiu aliviada ao ver a mensagem e ter a certeza de que Andréia se importava, sim.
- Me dê um bom motivo, por favor! – Ana suplicou, virando-se novamente para Andréia. Ela precisou ficar uns bons minutos batendo na porta até vencer Andréia pelo cansaço. Precisava conversar com ela, precisava entender. – Me dá um bom motivo pra você ter deixado a sua filha...
- Ana. – Andréia tentou interromper, sem sucesso. Ana era uma mulher muito simples e dócil, mas sabia dar uma lição de moral como ninguém. Era paciente e bondosa, mas também sabia ser dura quando se via diante de qualquer injustiça.
- Pra você ter deixado a sua filha sair daqui de biquini, roxa e machucada! No meio da noite! Uma menina, Andréia! – Expressou, ríspida. Andréia passou a mão pelos cabelos frágeis e tão cacheados quanto o de Malu e suspirou profundamente. Merecia todas aquelas palavras duras de Ana, merecia todo o julgamento. Se fosse o contrário, ela também o faria. – O que diabos aconteceu?
- Você quer saber o que aconteceu, Ana? – Murmurou, amarga. – Meu João morreu, Ana. Morreu, levou minha alma junto dele e deixou meu corpo vagando nessa terra maldita. – Respondeu, seca.
- E eu sinto muito por isso, Déia. – Sentou-se ao lado da mulher, chamando-a pelo antigo apelido. – Mas a tua filha não tem nada a ver com isso. – Andréia pegou a carteira de cima da mesa de jantar e retirou um cigarro de dentro.
- Eu sei que não. Surtei, Ana. Surtei, perdi o controle de mim mesma. – Tentou explicar. Esticou a mão, oferecendo o cigarro aceso para a antiga amiga.
- Eu não fumo mais. – Ana contou, mas pegou o cigarro e deu uma longa tragada.
As duas mulheres de meia idade estavam sentadas no sofá, encarando o teto. Ambas com os cabelos embranquecendo, a idade começava a dar as caras na pele delas. Os anos foram duros e difíceis com as duas e apesar de nem sempre concordarem entre si, se respeitavam e, principalmente, se entendiam. Só foram trocar palavras novamente quando o cigarro chegou ao fim.
- Ela não quer voltar e eu não sei se vou deixá-la voltar. – Informou.
- A filha é minha, Ana. – Rebateu, indo em busca de outro cigarro, sentindo a garganta secar e o corpo implorar por mais nicotina quando ouviu a afirmação de Ana.
- E eu estou avisando que não deixo a sua filha voltar pra essa casa. Pelo menos não enquanto você não me garantir que isso nunca mais vai acontecer. – Ana foi categórica no aviso. Não queria meias palavras entre elas, queria ser a mais clara possível. – E se acontecer de novo, eu te prometo que vou ser a primeira a levar a garota numa delegacia e abrir uma ocorrência contra você.
- Você sempre curtiu essa área de defesa e advocacia, né Ana? – Exprimiu, sarcástica.
- Andréia. – Advertiu, sem paciência.
- Eu tomo dois remédios pra dormir toda noite, Ana. Depois de ontem, eu precisei tomar oito comprimidos. E olha só, já estou acordada de novo. – Contou, cabisbaixa. – Nem no dia da morte do João eu precisei de tantos remédios. O que eu tô tentando dizer é que... Estou garantindo que não vou fazer de novo.
- Acredito em você. – Ana afirmou. Não teve dúvidas, Andréia podia ser muita coisa, mas sempre fora uma mulher de palavra.
- Como ela está? – Questionou, curiosa.
- Vai sobreviver. É uma pessoa incrível, está caminhando pra se tornar uma mulher gigante. – Ana expôs, sorrindo orgulhosa. – Meu filho está se apaixonando por ela, caso queira saber. – Andréia sorriu, soltando a fumaça do cigarro com força.
- Calebe sempre foi apaixonado por ela, Ana. – Divulgou, balançando a cabeça. – Bom, eu já o vi escapando pela janela da sala durante a madrugada, caso queira saber. – Elas se entreolharam, cúmplices e riram. – São bonitinhos juntos, não dá pra negar. – Deu de ombros e Ana concordou.
Novamente a sala caiu no silêncio, sendo preenchido apenas pelas tragadas fortes e contínuas de Andréia e os pensamentos inquietantes de Ana. As duas grandes amigas se viram perdidas em seus próprios pensamentos por um tempo antes de Ana olhar no relógio e ver que já havia se passado quase uma hora.
- Eu preciso ir, não contei pra Malu que eu vinha aqui. – Revelou, indo para a porta de saída.
- Não conta ainda, Ana, e-eu... – Suspirou, abaixando a cabeça, sentindo-se completamente envergonhada. – Eu ainda não sei como vou olhar pra ela de novo.
- Não vou contar. Mas não é por você, Déia, é por ela. Não quero ser dura e chutar cachorro morto sendo a dona da verdade, mas a menina chorou a noite inteira. Meu filho contou que ela pediu permissão pra ele pra chorar. Ela não se sente confortável em chorar sem ser autorizada. Isso não é certo, Andréia. Ela é muito jovem pra ter esse tipo de insegurança consigo mesma.
- Eu sei, Ana. Eu sei que preciso colocar a cabeça no lugar. – A mulher esfregou a testa, inquieta. – Acredite quando digo que estou tentando, porque eu estou, Ana. Estou tentando muito ficar sã.
- Eu acredito em você, queria que não fosse tão complicado assim, mas você vai ter que lidar com as consequências de seus próprios atos. – Acenou com a cabeça, indo em direção a saída quando foi parada por Andréia novamente.
- Obrigada, Ana. Por cuidar dela quando eu não consegui. – Os olhos marejados da mulher provocaram lágrimas em Ana também.
- Você e João cuidaram de mim quando essa rua inteira me apedrejava. Tenho dívida com você até o fim, Déia.
- Considere a dívida paga, minha amiga.
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- Totalmente mentira. – Calebe murmurou contra os lábios dela.
- O que? – Ela questionou, totalmente inebriada com o cheiro e o carinho suave que Calebe fazia nela com seus próprios lábios.
- A torcida do fluzão é muito linda, mas perde e muito pra você, minha morena.
Não demorou muito após a saída de Ana que os dois jovens se enrolaram pelo sofá, brincando de abraço, flertando com beijos inocentes, trocando caricias inocente, até não serem mais.
- Calebe, tua mãe... – Ela suspirou, tentando tirar as mãos atrevidas dele de seu quadril.
- Eu sei. – Segurou o rosto dela com as duas mãos e avançou nos seus lábios, desistindo daquela brincadeira boba e a beijou com vontade. Malu o abraçou pelo pescoço e o puxou o suficiente para que ele deitasse por cima dela no sofá. – Não temos muito tempo.
- Não temos nenhum tempo, garoto. – Ela riu, fazendo carinho nas costas nuas dele e tomando seus lábios com fúria e vontade.
Na noite passada, Malu passou a noite chorando e quando cansou, caiu no sono tão rápido quanto Calebe. Apesar de dormirem e acordarem juntos, não sentiram a necessidade do toque íntimo. Até chegarem naquela tarde de quarta-feira chuvosa, quando todo e qualquer toque se tornou inflamável demais para seu próprio bem. Nem a falta de fôlego os afastou totalmente, fazendo com que intercalassem os beijos vorazes com selinhos provocadores.
Foi quando tudo saiu do lugar. Malu, como sempre, guiou a mão de Calebe para debaixo de sua blusa, ansiando pelo toque dele em sua pele. Aquele ato o incomodou profundamente, tanto que não conseguiu continuar. Se afastou, olhando-a curioso.
- O que foi? – Ela estranhou o olhar dele.
- Malu, eu te machuco? – Questionou, preocupado. – Das vezes que a gente... fez algo a mais, eu te fiz algo? – Ela negou com a cabeça, imaginando onde aquilo iria parar. Sabia o que vinha depois daquilo, sabia o que ele iria perguntar, mas não estava pronta para que ele visse aquela sua faceta.
De menina frágil. Não era assim que ela queria que ele a enxergasse.
- A gente precisa parar por aqui. – Ela tentou sair debaixo do corpo dele, mas ele não se moveu um centímetro, ainda olhando-a de maneira minuciosa, tão curioso que parecia estar analisando uma pedra lunar nunca vista antes. – O que foi, Calebe? Para de me olhar assim. – Pediu, envergonhada.
- Te assustei, não é? – Tomou suas próprias conclusões. – Você sabe o que eu ia perguntar.
- Você pergunta demais, Calebe. – Se remexeu debaixo dele, tentando novamente sair do lugar. – Sai de cima de mim.
- E você pergunta de menos. Na verdade, você nunca pergunta nada. – Constatou.
- Do que você tá falando? – Questionou, confusa e assustada.
- Nem sei, Malu. – Suspirou fortemente, arrumando um cacho teimoso que se soltava do coque no cabelo dela. - Só tô divagando, do nada vieram uns pensamentos aqui que não tá dando pra deixar passar. – Foi totalmente sincero, deixando as palavras saírem de sua boca sem passar pelo filtro que ele ativava quando estava com ela.
- Eu acho que preciso ir. – A voz dela estremeceu.
Malu pensou que logo Calebe ia pensar demais e ia se dar conta que talvez, estar com ela, não fosse a melhor escolha que ele faria na vida. Ou talvez ele estivesse pensando em como ia contar para os meninos da rua que ele estava dormindo com ela. Ou talvez... Ou talvez...
Eram muitas dúvidas que planavam sobre a cabeça juvenil dela. E na dele também.
- Pra onde? – Perguntou, sincero. Malu engoliu em seco quando se deu conta do fato de que, pela primeira vez na vida, ela não tinha para onde ir.
Tudo ficou estranho rápido demais.
- Sai de cima, Calebe. – Ela pediu, incomodada com o fato que tinha se dado conta.
- Eu acho que vou começar a gostar de ti mesmo. Tipo, de verdade.
Ela paralisou.
Ficaram em silêncio, cada um tentando lidar com o peso das palavras dele. Calebe não tinha ideia do porquê estava falando aquilo e daquele jeito, mas já tinha se acostumado com o próprio jeito impulsivo, depois seu “eu-futuro’ que lidasse com as atitudes precipitada do seu presente.
Malu pensou que talvez aquilo fosse um sonho. Ela queria muito que Calebe gostasse dela, mas com ele falando aquilo tão abertamente, ela sentiu medo. Sem nem saber do quê.
- Você gosta de mim também, não é? – Perguntou, tentando não parecer tão angustiado com o conhecido silêncio dela.
- Para com isso, me deixa ir, vai. – Murmurou, acanhada.
Ela tentou levantar novamente e ele, em um ato desesperado de fazê-la entender ou falar, prensou seus joelhos em cada lado do quadril dela. Ela até fingiu que queria sair dali, mas não lutou. Não queria deixar de sentir a pele dele na dela, mesmo que aquilo significasse ouvir demais.
- Deixa de ser difícil, Maria Luiza. – Sorriu, enviesado. O jeito arredio da garota o deixava maluco. Às vezes, não do jeito bom. Sabia que ela gostava dele, tinha quase certeza disso. Ele via no olhar dela o quanto ela o admirava. Mas ele sentir não era o suficiente, queria fazê-la falar. – Lembra do aniversário do Vini? Que você me agarrou no quarto da mãe dele porque eu tava olhando pra outra garota?
- Cê sempre tá olhando pra outra! – Reclamou, tentando ignorar o fato de que ela realmente o agarrou no quarto da mãe de Vinicius e muito provavelmente por ela estar com ciúmes.
- Eu sempre tô olhando pra você, isso sim. – Sorriu, implicante. – Às vezes, você me chama de “mô”. É muito bonitinho e nunca gostei disso antes, viu? – Confessou, passando a mão em seu rosto suavemente.
- Larga de ser besta, eu chamo todo mundo assim. – Tentou disfarçar o sorriso bobo que ficou em seu rosto com a confissão dócil do rapaz.
- Eu lembro quando você me deixou entrar no seu quarto pela primeira vez. Foi naquele domingo, lembra? – Ela cerrou os olhos, desconfiada. – Saímos com a turma da rua pra comer hambúrguer e acabamos em uma festa.
- Você tava bêbado. – Comentou, relembrando o quão engraçado e barulhento ele ficava quando estava embriagado.
- Tava mesmo, mas lembro que você não sossegou enquanto eu não entrei no táxi contigo. Você tava toda preocupada, queria até ligar pra minha mãe...
- Por que você tá lembrando dessas coisas? – Ela o empurrou delicadamente, fazendo com que ele se deitasse ao lado dela, jogando a perna e o braço por cima do corpo dela. Malu, novamente, não se mexeu ou reclamou.
- Você veio pra cá. – Sentiu a respiração dela se tornar totalmente irregular quando finalmente comentou o fato. – De todos os lugares, você veio. E preferiu dormir comigo do que ficar sozinha.
Era um terreno perigoso e instável. A noite passada era um assunto mais do que sensível para Malu, ela não queria ter que falar sobre isso tão cedo, mas Calebe estava forçando isso. Ela engoliu em seco e o encarou, quase de maneira tempestuosa.
- Eu não tinha ninguém. – Replicou, agitada.
- Não mesmo? – Ele questionou. Sem ser irônico, apenas curioso.
- Pelo amor de Deus, por que você tá falando essas coisas? – Irritou-se e empurrou os braços dele para longe e levantou-se do sofá. – Eu tenho a Alanne, sim! Mas como vou chegar na casa dela de madrugada e contar que peguei porrada? Com que cara eu contaria pra ela que minha mãe me bateu? – Malu se exaltou.
- Calma, Malu. Só tô tentando fazer você perceber que gosta mais de mim do que você queria gostar. E também tô tentando entender isso melhor... – Confessou, baixinho, para si mesmo. – Você gosta de mim, não é? – Perguntou tão calmo que sequer parecia um questionamento.
- Eu não tô ficando com mais ninguém, Calebe. Diferente de você. Já deixei de fazer alguma coisa pra passar a noite contigo, coisa que você também não fez. Você questiona demais pra quem não tá totalmente certo em relação a gente. – Irritou-se e deixou escapar algumas dúvidas que persistiam em sua cabeça.
Quando estavam juntos, Calebe parecia ser tão louco por Malu que estenderia um tapete para que ela caminhasse pelo bairro. Entretanto, mesmo parecendo tão intenso e apaixonado, Malu ainda escutava algumas histórias de Calebe se envolvendo com mais de uma garota por aí. Ela se restringia toda vez que se incomodava com isso, pois não queria fingir que queria um relacionamento sério naquele momento em sua vida. Mas era Calebe. Era o seu Calebe, aquele abusado que paralisava partidas de futebol só para vê-la passar, é claro que ela se incomodaria.
- E você questiona de menos. – Refutou.
- Eu não vou ficar aqui agora. – Ela explicou lentamente, não queria mais se manter naquela conversa, naquele assunto. O clima leve que estava na sala evaporou de forma drástica com a mudança de assunto. – É melhor eu ir... – Ela se afastou e foi em direção ao quarto.
- O que você sabe sobre mim? Diz uma coisa. Só uma. – Ele levantou, pedindo decidido. Calebe vinha pensando naquele tinham uns dias, mas nunca tinha se permitido levar a frente o pensamento ridículo de que Maria Luiza não o conhecia. – Eu só preciso de uma coisa, Malu. Só uma certeza.
- E se eu disser que não sei? – Perguntou, relutante.
- Eu vou achar que você nunca quis saber algo real sobre mim. E pensando bem, eu acho que é isso mesmo... – Sentou-se novamente, apoiando os braços no joelho, pensativo. Malu irritou-se ao notar que ele agia como ele se ela nem estivesse ali. Reflexivo, perdido em si e em seus próprios pensamentos. – Você nunca perguntou pelo meu pai. – Declarou, absorto em pensamentos.
- Não vem querer fazer essa porra agora, sério! – Exclamou, apontando para ele com o dedo esticado, irritada. Não era hora de Calebe questionar suas ações, sentimentos e atos. – Você não sabe nada de mim, por que diabos eu tenho que me meter na tua vida?
Ele levantou do sofá, passando a mão pelo cabelo de maneira agitada. Acabou falando demais e não organizou suas ideias de maneira satisfatória, acabou causando uma tensão entre os dois que não existia antes. Ele não precisava de um título, não precisava de um papel e caneta, mas precisava da confirmação dela, queria saber se ela gostava dele tanto quanto ele estava descobrindo gostar dela. Queria saber mais dela, não importava como. Perdeu grande parte da vida dela e não conhecia aquela garotinha da vizinha, muito menos a mulher que voltou a morar lá anos depois. Se tivesse que ser por meio de brigas e discussões, então seria.
- Por que você não me deixa te ver sem blusa? – Perguntou o que queria ter perguntado na primeira vez que aconteceu.
- O que aconteceu com seu pai?
O silêncio emergiu como um soco no estômago de cada um, ambos não tinham intenção de fazer aquele tipo de questionamento de forma tão abrupta, mas os meios acabaram levando-os ali. Malu quase abriu a boca para responder à pergunta de Calebe, mas perdeu a coragem quando os olhos dele abandonaram os dela e se focaram na parede. Calebe percebeu que não estava pronto para compartilhar e estava tão inseguro quanto ela, em relação a tudo. Ele engoliu em seco e abaixou a vista, não querendo ver a expressão dura que ela estava. Os dois ouviram um barulho no portão de entrada e não demorou mais que uns segundos para Ana entrar no cômodo com duas sacolas na mão.
- Cheguei! – Exclamou, animada. Porém, seu sorriso foi diminuindo quando ela notou a tensão no lugar e o jeito intenso que Malu e Calebe estavam se encarando. – Eu trouxe uns bolinhos de morango... – Murmurou, entreolhando entre os dois jovens.
- Obrigada, tia, mas posso me deitar no seu quarto? – Pediu, ressentida. – Tô com muita dor nas pernas. – Ana apenas assentiu, estranhando.
A mais velha se virou para o filho, confusa. Não tinha demorado mais que uma hora e as coisas pareciam ter saído do eixo de tal forma que Calebe parecia sério demais e Malu estava trancada no quarto.
- O que aconteceu, Calebe? – Perguntou, preocupada.
- O tio João morreu, mãe. Isso aconteceu.
“Um girassol nos teus cabelos
batom vermelho, girassol.
Morena, flor do desejo,
há teu cheiro em meu lençol”.
Girassol – Alceu Valença
O Dia dos Namorados. Ah! Esse dia. Para os solteiros, uma lástima. Para os casais, alegria. Para os comerciantes, um bom negócio. Em alguns países é São Valetim. Para o Brasil, a data é ligada ao dia seguinte. No dia 13 de junho, se celebra o dia de Santo Antônio, o famoso “santo casamenteiro”. Para Maria Luiza e Calebe, era só mais um dia.
Quando o mês de junho chegou, ele trouxe consigo uma quantidade generosa de comidas juninas, quermesses, quadrilhas divertidas e, o preferido de Malu, maçã do amor. Também trouxe uma boa dose de readaptação para Maria Luiza e Andréia, que voltaram a viver juntas após uma semana do acontecido dramático entre elas.
O início foi difícil e sendo sincera, Malu só voltou a morar com a mãe porque estava cansada de viver com Calebe. Ela acordava e já dava de cara com ele no café da manhã, e mesmo passando o dia fora por conta das aulas integrais no cursinho, voltar para a casa e se sentar ao lado dele para jantar era quase doloroso. Claro que não tanto quanto ter que ir dormir no quarto de Ana toda noite. Foi quando Malu se pegou observando demais a rotina de Calebe, que ela achou que estava apegada demais a ele, então engoliu o orgulho e resolveu conversar com a mãe.
Não fora uma conversa muito esclarecedora. Malu chegou, Andréia se desculpou, Malu aceitou e elas foram tomar café da tarde juntas. Como se nada nunca tivesse acontecido. Elas pensaram que talvez fosse melhor daquela forma, porém, ignorar um fato não vai fazer com que ele deixe de existir. Então, às vezes, Malu se controlava para não responder a mãe de maneira afrontosa e debochada simplesmente porque queria ver se a mãe teria coragem de bater nela de novo. Aí ela se recriminava e se perguntava por que agia daquela forma tão medíocre.
Não dava para negar que Andréia estava tentando. Ela tentava acordar cedo e preparar o café da manhã, tentava preparar um jantar e até tentava arrumar a casa, mas tinham dias que parecia que o seu corpo estava preso por pedras no sofá da sala e ela não conseguia levantar. Paralisada, era como ela se sentia. Malu conseguia reconhecer quando Andréia se esforçava, mas desde que apanhou, ela sentiu que algo morreu dento dela. Um pouco da empatia, carinho e respeito que ela sentia pela mãe, acabou se perdendo em um mar de sentimentos conflitantes, como culpa, pena, medo, repulsa e, principalmente, apatia.
No mesmo dia que saiu da casa de Ana, Malu – sentindo-se muito conclusiva e determinada – achou melhor se resolver com Calebe. De forma imatura e fria. Mandou uma mensagem de texto, que Calebe sentiu muita, muita raiva quando viu.
online
melhor a gente parar...
parar o quê?🤔
não vai responder?
tudo bem, Malu. vamo parar por aqui
Calebe ficou tão amuado que parecia que ele havia terminado um namoro de tempos. Nem quando Priscila o trocou pelo safado do Pedrinho da rua de cima ele se sentiu tão triste. No fundo, ele sabia que Malu estava assustava e não sabia como agir com a dimensão do que ela sentia. Mas, afinal, ele não estava da mesma forma? Foi assim que ele resolveu mudaria de foco. Com o início das suas aulas na faculdade, Calebe ficou meio ausente do mundo social do bairro da Saudade.
Lutou muito para chegar ali e não queria desperdiçar sua chance, mas na real, ele só estava se ocupando com as tantas matérias da faculdade para não perder tanto tempo pensando em Malu e na insistência dela de não querer nada. Foi assim, ansiando por uma boa festa e companhia dos amigos, com quentão, milho e pipoca, que Calebe aceitou o convite para a festa junina que a senhora Fátima – mãe de sua grande amiga Alanne – sempre ofertava em sua casa.
Deitado na cama de Ana, ele assistia a mulher compenetrada em sua atividade. Sentada a frente de uma máquina de costura antiga, Ana se sentiu quase emocionada quando Calebe pediu uma camisa temática junina. Não pensou duas vezes em utilizar os tecidos que ela tinha ali para construir. A mulher amava costurar e criar roupas, ela só não comentou que também recebeu o mesmo pedido de Malu e criou uma roupa para a menina também.
Calebe assistia a mulher trabalhar com olhos de admiração e orgulho. Ele passou a vida inteira assistindo-a fazendo bicos de costureira, ouvir o ruído da máquina de costura era tão familiar e nostálgico para ele quanto brincar de bola na rua. Amava a mãe de forma tão grande que era assustador. Talvez seja por isso que Calebe não tinha medo algum em amar.
- Parece que você tem sete anos de novo... – Ana comentou, sorrindo nostálgica. – Esperando a roupinha da festa da escola ficar pronta. – Ele riu, nem um pouco surpreso com a sincronia de pensamento entre eles.
- Mas dessa vez eu não vou chegar em casa sujo de tanto brincar no chão.
- Não sei o que é mais difícil, tirar aquelas manchas pretas das tuas roupas ou tirar o batom e perfume de mulher que vem agora. – Comentou, implicante. – Por falar em mulher... – Ana tentou, mas logo foi cortada por Calebe.
- Ih, mãe. Vou chegar atrasado, corre com isso, mulher! – A distraiu pois sabia que ela perguntaria algo sobre Malu. Algo que ele não saberia responder.
- Tá bom, tá bom... Vem aqui, veste a camisa. – Ana caminhou até ele e o entregou a camisa, assistindo com um sorriso meigo no rosto a cena.
Toda vez que ela olhava para Calebe, sentia uma inundação de amor cobrir seu peito, o amava tanto que apertava seu coração. Ela sorriu e alisou a camisa, desfazendo os amassados com a mão e aproveitando para fazer um leve carinho no seu filho. Cena quase parecida acontecia na casa de madeira da rua de cima.
Quase.
- Ai! Você me furou. – Malu reclamou.
- Você se mexeu. – Andréia retrucou, com uma agulha presa entre os lábios.
Agachada ao lado de Malu, Andréia tentava retirar uma costura do cós da saia da filha. Quando ela provou da última vez na casa de Ana, a saia quadriculada cabia perfeitamente, mas naquele dia ela ainda não tinha entrado numa situação misteriosa com Calebe, nem tinha começado a estudar para mais um vestibular, logo, sua alimentação ainda estava regular. Malu aumentou uns centímetros na cintura e a saia feita sob medida por Ana, insistiu em não entrar em seu corpo justo no dia da festa.
- Como a Ana errou sua medida? – Andréia estranhou. Ana era uma costureira de mão cheia, a melhor do bairro, não erraria em uma medida e em um modelo tão simples quanto aquele.
- Ela não errou, eu acho que engordei. – Malu se olhou no espelho, preocupada. Precisava voltar para a academia, mas com toda a correria dos seus últimos dias, ela acabou deixando a atividade de lado.
- Não tá grávida não, né Maria Luiza? – A mulher se esticou para analisar a feição de sua filha.
- Claro que não, mãe! Tá maluca? – Malu negou com a cabeça, com vontade de rir. Ela era bastante precavida com sua própria saúde, principalmente nessa área. Apesar de saber que não existe nenhum método 100% contraceptivo, Malu estava tranquila. Só havia transado naqueles tempos com uma pessoa, Calebe e fora só uma vez. – É só estresse com os estudos. – “E com o Calebe”. Ela completou em pensamento.
- Olha lá hein! A Ana te mata e teu pai também. – Voltou sua atenção para a saia.
- Para de falar besteira e olha aí o que tá fazendo. Afinal, cê sabe o que tá fazendo aí, mãe? – Provocou, mexendo um pouco o corpo e fazendo a mais velha resmungar.
- Claro que sei, garota. Te falei que trabalhei com a Ana uns tempos aí...
- Hm, sei. Ei, você vai aparecer lá na festa? – Questionou.
- Não sei, não falo direito com ninguém de lá e, bom... Ana não tem falado muito bem comigo. – Admitiu, envergonhada. Malu mordeu os lábios, sentindo um pouco de vontade de sorrir. Ana a protegia como ninguém. – Mas pode ir, fica tranquila, só leva a chave da porta. – Levantou-se, dando uma última olhada na saia. – Ficou bom?
A garota balançou a cintura em frente ao espelho, vendo a saia rodada esvoaçar sem perigo de cair ou soltar e sorriu. Sentia-se muito bonita aquela noite. A saia combinava com o cropped estilo ciganinha e seus cachos estavam presos em tranças finas, formando um belo penteado. Tudo o que ela queria era dançar forró, comer maçã do amor e, com sorte, não pensaria em Calebe nem um minuto.
- Calebe vem te buscar? – Andréia perguntou, inocentemente. Malu esbravejou e saiu do quarto batendo o pé igual uma criança. A mãe riu, negando com a cabeça. Segundo as poucas fofocas que ela e Ana compartilhavam, as coisas entre os dois não estavam indo muito bem. – Ué, foi só uma pergunta!
“E sem saber direito a hora e o que fazer,
eu não encontro uma palavra só pra te dizer.
Ai, se eu fosse você eu voltava pra mim de novo.
E de uma coisa fique certa, amor
A porta vai estar sempre aberta, amor.
O meu olhar vai dar uma festa, amor, na hora que você chegar”
Espumas ao Vento – Fagner
Todo ano, a mãe de Alanne fazia uma grande festa junina para celebrar o dia de Santo Antônio, cujo a mulher era devota fiel. Naquele ano, o dia 12 havia caído em um sábado de lua cheia e a mulher não pode deixar a oportunidade passar. Celebraria seu santo e honraria a ele à meia-noite, como sempre. Para o resto dos convidados, era apenas uma festança da boa, com comida, dança, música e brincadeiras típicas que todos amavam.
Calebe chegou à casa de Alanne e a casa estava inteiramente decorada com enfeites juninos e coração de papelão vermelho simbolizado o dia dos namorados. Como de costume, cumprimentou todos os vizinhos e até os que ele não conhecia, do jeito que sua mãe sempre lhe ensinou. Brincou com dona Cida, mãe de Alanne, fingiu que tiraria a avó para dançar e bebeu um quentão com o pai da menina. Esse era Calebe, sempre simpático e caloroso, fazendo com que todos sempre o quisessem por perto. Quando chegou no grande quintal da casa de Alanne, que era o local onde a maioria dos seus amigos estavam, ele sorriu alegre ao notar a animação e os comentários enquanto ele se aproximava. Calebe amava ser amado. Sentia-se bem sendo uma pessoa boa e ver que todos gostavam dele e o queriam por perto fazia tudo valer a pena.
O quintal amplo estava enfeitado com bandeirinhas e diversas cores animadas, parcialmente iluminado por uma fogueira no centro do local. E diversas mesas espalhadas pelo local, mas quase ninguém sentado.
- O meu artilheiro saiu da toca, é isso mesmo? – Vinicius ergue os braços, abraçando o amigo.
- Tava com saudades de mim, lindo? – Calebe brincou, abraçando-o de volta.
- Claro! Toda as vezes que eu fiquei bêbado, nem um desses moleques cuidou de mim! – Vinicius reclamou alto com os amigos.
- Quem é tua babá é o Calebe, abusado! A gente não larga tudo pra limpar vômito de marmanjo, não. – Tiago refutou, causando risadas em todos.
- Só você por mim, Calebe. – Vinicius fingiu pesar, negando com a cabeça.
- Só eu por ti mesmo, Vini. – Calebe concordou, rindo. Era bom estar entre amigos, mas no fundo, seus olhos estavam percorrendo o local em busca de uma pessoa só.
Malu tentou não ficar ansiosa e mexer nos cachos, mas não foi eficaz na sua tentativa. Quando Calebe chegou, o local simplesmente mudou. E não era coisa da sua cabeça encantada pelo rapaz. Tudo ficou mais animado, todos começaram a falar mais alto e até a interação entre todos aumentou. Calebe era uma daquelas pessoas que faz o lugar inteiro se iluminar só com o seu sorriso e charme. Em cinco minutos, Calebe conseguiu falar com metade das pessoas ali, conseguiu um par de dança para Tiago, jogou pescaria com as crianças e ainda comeu a elogiada cocada de dona Cida. Cinco minutos e o local inteiro só falava nele. Era como se fosse cargo que ele carregava, não tinha como fugir e isso assustava um pouco Malu. Ela sempre fora reservada e tímida, melhorou bastante suas habilidades sociais depois que morou em Vitória, mas perto de Calebe, ela voltava a ser uma menina de sete anos que sentia suas bochechas queimarem só de ser chamada para brincar de pique.
- O que eu faço? O que eu faço? Não deixa ele vir aqui. – Malu murmurou nervosa, mantendo sua cabeça baixa e falando quase no ouvido de Alanne. – Não deixa ele vir aqui, eu não sei o que vou fazer.
- A casa é minha, é claro que ele vem falar comigo, Malu. – Alanne riu, jogando seus cabelos lisos para trás, como de costume.
- Amiga, por favor!
- Ué, não foi você que mandou aquela mensagem ridícula pra ele? Agora lide com as consequências...
- Caraca, Alanne, que amiga hein! – Malu reclamou, beliscando seu braço.
- Ué, Malu! Você não sabe o que quer e a culpa é minha? – Replicou, confusa.
- Eu sei o que eu quero, o problema é... – Ela encarou a roda onde Calebe passava no momento, vendo como ele movia a festa com apenas seus movimentos. – Tudo isso, sabe?
- O cara é gente boa, amiga. E daí que ele é um pouquinho... popular demais? – Alanne ponderou, mordendo os lábios. É claro que ela sabia o que incomodava Malu, mas não conseguia entender muito bem pois no seu lugar, Alanne adoraria receber toda a atenção que vinha com Calebe.
- E por que você não assume o Pedrinho? – Malu relembrou o assunto mais uma vez.
- Ah, ele mora em Brasília. – Alanne respondeu, vagamente.
- Você namorou por três anos com um cara do sul. O problema é realmente esse? – Duvidou.
- Sim, mas.... Ah, sei lá, relacionamento a distância é difícil e também, sabe aquela música? – Alanne pensou uns minutos antes de continuar: - “Como é que faz quando nenhum dos dois é flor que se cheira? Quando foi sério o que era pra ser brincadeira?”.
- Ai, amiga! – Malu gritou, animada e meio boba, colou a mão no peito, fingindo emoção com a citação da amiga. Mas logo em seguida foi cortada por Alanne, que falou entredentes:
- Ele tá vindo, disfarça.
Num ato de desespero, Malu pegou a maçã do amor que estava nas mãos de Alanne e enfiou um grande pedaço na boca. A manteve calada, mas também grande o suficiente para tirar o ar da garota, que começou a tossir e bater no próprio peito.
- Opa, emocionou? – Calebe falou por trás dela, fazendo-a revirar os olhos e empurrar o ombro dele para longe dela.
- E aí, lindão? Que saudades que eu tava. - Alanne o cumprimentou e se abraçaram. – Tá sumido hein.
- Pois é, faculdade, estudo, provas, pé na bunda, essas coisas... – Calebe provocou, olhando de soslaio para Malu, que ainda mastigando, olhou para o outro lado. Ela estava achando difícil se concentrar com toda a presença e perfume emanando dele.
- Você é demais! – Alanne negou com a cabeça, percebendo a “cutucada” nada discreta de Calebe na morena ao seu lado. Ela olhou para Calebe e logo em seguida para Malu, entrelaçando o olhar entre eles. – Sério que vocês estão combinando?
Eles se entreolharam, percebendo que estavam com roupa com estampas idênticas.
- Minha mãe...
- Uhrum... – Malu concordou com a cabeça rapidamente, ainda tentando exterminar os pedaços de caramelo e maçã da sua boca, mas agradecida de estar realmente impossibilitada de trocar palavras com ele.
- Você guarda um forró pra gente dançar depois, nega? – Passou os braços em volta dos ombros de Alanne, que assentiu animada. Os dois sempre foram ótimos parceiros de dança, principalmente no forró e no xote. – Ei, sabe quem me seguiu no Instagram? Meu grande amigo, Pedro Paulo. Engraçado que foi depois que você postou aquela nossa foto... – Provocou, fingindo estar falando sério.
- Caramba, hoje você tá impossível, cai fora daqui! – Alanne esmurrou o ombro do amigo. – Vini, leva esse encosto daqui! – Gritou chamando a atenção do amigo, causando risos em todos que assistiam a cena cômico de Alanne puxando Calebe pelo cabelo até chegar em Vinicius.
“Tenho tudo nas mãos,
mas não tenho nada.
Então melhor ter nada
e lutar pelo que eu quiser”
Xote dos Milagres – Falamansa
Calebe estava inquieto. Apesar de ter aproveitado a festa em todos os aspectos, ele sentia que algo estava faltando. Comeu, brincou, dançou, até pulou a droga da fogueira, mas ainda não se sentia pronto para ir embora. Já era de madrugada e a lua ainda estava tão forte e imponente no céu que Calebe sentiu que ela estava brigando com ele.
“Vai lá, faz alguma coisa” a lua parecia gritar com ele. E ele? Queria gritar de volta. Encarou Maria Luiza a noite inteira, até mesmo contra sua vontade. Ensaiou várias vezes ir até ela e sempre parava ou era parado no meio do caminho. Olhou para os lados, olhou para os céus, buscou nos olhos de Santo Antônio uma resposta para sua pergunta. Queria engolir o orgulho de ter sido dispensado com uma mensagem meia-boca, queria fazê-la engolir o também orgulho e medo que a puxava para longe dele.
- Cê tá estranho. – Vinicius notou, cutucando a perna do amigo.
- Tô?
- Batendo a perna, olhar distraído igual de doido, se perdeu na conversa... É, eu diria que algo não tá certo aí dentro da tua caixa, mano! – Vini riu, oferecendo uma cerveja para o amigo.
- É só um problema que eu... – Calebe suspirou, fixando o olhar em Malu, que dançava xote de maneira meiga e suave com Gabi e mais duas meninas. – Parece que eu não consigo resolver.
Vinicius seguiu o olhar do amigo de infância e sorriu. É claro que Malu era o problema de Calebe. Aqueles dois conseguiam passar despercebidos por todos que não sabiam que existia algo entre eles. Mas depois que você descobria, não tinha como não ver o quanto eles eram magnéticos e certos um para o outro. Até mesmo Vinicius, que era quase contra o amor romântico, conseguia perceber isso.
- E tem algo que você, meu grande artilheiro, não consegue resolver? – Brincou, bicando a cerveja gelada.
- Pior que tem. Tem sim. – Enquanto proferia a frase, os olhos dele encontraram os olhos pequenos de Maria Luiza, que percebeu que ela era o assunto entre os dois amigos que a encaravam. Ela franziu a testa, sentindo-se envergonhada e balançou a cabeça, cobrindo o rosto com os cachos. Vinicius riu e também negou com a cabeça.
- Parece a porra de uma festa da escola. Cara, vai lá, chama ela pra dançar, beija essa mulher na frente de todo mundo e foda-se. Vocês estão pensando além da conta nesse assunto. Ela tá afim, você tá mais do que afim, o que falta? – Vinicius argumentou. Calebe olhou para o amigo, pensativo. O que faltava?
“Coragem e um sinal”, pensou, ainda relutante.
Precisava de um sinal. Que veio em forma de música. “Escrevi seu nome na areia, o sangue que corre em mim sai da tua veia...”. Começou a tocar o Xote dos Milagres, era o preferido dela. Só podia ser milagre mesmo. Calebe desceu o olhar para as mãos de Tiago, que também estava sentado ao seu lado, e puxou a coragem de suas mãos. Um copo de cachaça pura que estava sendo usada no quentão e estava pela metade.
O sinal e a coragem estavam ali. Agora só faltava ela.
Levantou-se da mesa e foi até a morena, que paralisou vendo ele ir em sua direção. Parecia que ela estava vendo Calebe pela primeira vez na vida. Ele andou em direção a ele, com aquele sorriso, aquela confiança, como se já soubesse que, daquele dia em diante, ela seria dele. E ela parou de se negar a isso naquele exato momento.
- Vem, vamo dançar essa. – Ele esticou a mão em sua direção, com um sorriso ladino e presunçoso. Virou o rosto para a menina, inocentemente.
- Não tô afim. – Ela bebericou a bebida, desviando e trocando olhares com as meninas que estavam ao seu lado. Até queria dançar, mas não queria ter que lidar com os olhares de todo mundo na festa quando ela se levantasse para dançar com Calebe, que ela sabia muito bem que estava sendo alvo de competição até mesmo entre as próprias amigas dela, seria a atração principal.
- Veja só, você é a única que não me dá valor! – Cantou alto, atraindo atenção de quase todas as pessoas para eles dois. Ela gargalhou e se aproximou dele rapidamente, puxando-o pela mão.
- Você é insuportável.
- Não desisto do que eu quero. – Ela respirou fundo, tentando ignorar que a frase foi escutada por alguns que estavam por perto. Ela sabia que não tinha mais jeito, havia se tornado uma das conquistas de Calebe aos olhos de todos na vizinhança.
- E o que diabos você quer, garoto? – Questionou, seriamente, mas não foi respondida. Dois para lá, dois para cá, um giro, ela com as costas grudadas no peito dele, a mão mexendo sua cintura de um lado para o outro. – Tá todo mundo olhando... – O passo fez com que fosse possível de Malu passar um olhar panorâmico em quase todo o quintal, que surpresa! Olhavam quase fixamente para os dois dançarem de maneira tão íntima e bonita.
- Estão orgulhosos que finalmente te tirei pra dançar. – Comentou, rindo. – Porém, não é pecado se eu falar de amor. – Cantou baixinho no ouvido dela.
- Não começa... – Pediu quase suplicante, fechando os olhos.
- É só a música, morena, relaxa. – Deixou um beijou em sua bochecha e com outro giro, a deixou de frente para ele. – Será que esse xote realmente faz milagre acontecer?
- Por quê?
- Tô doido pra te beijar.
Giro.
- Achei que a gente não fazia mais isso.
Dois para lá, dois para cá, as mãos dela nos ombros dele, sua mão esquerda no quadril dela e mão direita rodeando a cabeça dela, acariciando seu cabelo. Malu até chegou a pensar que queria morar naquele cafuné, naquele carinho que ela só encontrou nas mãos dele.
- A gente nunca chegou a decidir nada. – Ele deu de ombros, olhando fixamente para os lábios dela.
- Tá todo mundo olhando. – Repetiu. Sentia-se estúpida, mas era Calebe ali, ela precisava falar a verdade sobre o que estava sentindo. E o que estava sentindo naquele momento era que todos olhavam para eles. – Ninguém sabe da gente.
- E a gente sabe? – Calebe sabia que todos os seus amigos estavam olhando, mas ele não os culpava. A uns meses atrás, ele também não acreditaria que aquele moleque largado e safado estaria dançando um xote agarrado com a menina mais bonita. – Você tá linda demais, Maria Luiza.
- Eu amo teu perfume. – Ela pressionou seu corpo contra o dele, encostando o nariz na linha entre seu pescoço e seu queixo, deixando ali um ‘cheiro’ discreto. Naquele ponto, ela não estava ligando para ninguém. O papa poderia estar os olhando, comendo paçoca e bebendo quentão, mas ela não se soltaria dele. Não enquanto ele a quisesse por perto daquele jeito.
- Só uso quando eu sei que vou te ver.
- Eu sei... – Ela mexeu o nariz no rosto dele, fechando os olhos e apreciando o cheiro tão forte e característico dele. – O pior é que eu sei.
A mão de Calebe, que mexia em seu cabelo, acabou indo em direção aos lábios dela, seu dedo indicador queria brincar com seu lábio inferior, mas foi Malu que brincou com ele quando apertou levemente os dentes em seu dedo e ele sentiu a pontinha de sua língua ali. Puxou seu queixo e a beijou. Sem nem pensar duas vezes. E “puta merda, que beijo gostoso!”, ambos pensaram. Beijo molhadinho, quietinho, beijo inocente, beijo que estava preso no abraço de quem sente saudades.
Eles ouviram alguns gritos de celebração e as reações divididas em frases como “finalmente!” ou um simples “ué, como assim?”. Entre os gritos e vozerio murmurados, os dois conseguiram ouvir os gritos diferenciados de Vinicius e Alanne, que já sabia da história desde o início, e isso os fez rir entre o beijo.
- E não é que um milagre aconteceu? – Ele passou os braços em volta da cintura dela, impedindo-a de sair de perto dele.
- A gente já se beijou outras vezes, não é milagre. – Malu levou as mãos até os cabelos dele, brincando com um fio desgrenhado que estava ali desde que ele era menino.
- O milagre foi tu ter engolido esse teu orgulho aí, maluca. – Cutucou a cintura dela, fazendo-a revirar os olhos.
- Não sei que orgulho. – Implicou, sarcástica.
- Não começa, cê se conhece bem. – Riu, ainda balançando os corpos deles no ritmo do xote que fez um milagre acontecer.
- Quem me conhece é você, mô. – Puxou ele pelo rosto e o beijou de novo, matando a vontade que ela estava de beijá-lo desde que ele entrou naquele quintal. Foi naquela noite dos namorados e de Santo Antônio que Maria Luiza parou de negar e Calebe desistiu de ficar longe.
Mais tarde, ninguém conseguia evitar os olhares em Calebe e Malu, todos curiosos para ver o próximo passo. O que seria aquilo? Só um beijo, só uma “ficada" de festa? Todos estavam ansiosos por uma boa fofoca, essa era a verdade. Tudo que Calebe fazia era interessante de se assistir, tudo que Malu fazia era envolvido em um certo mistério. Não era de se estranhar a curiosidade. Malu até ensaiou ficar meio paralisada após os beijos públicos, mas o jeito feliz e bobo que Calebe a olhava tiraram suas restrições a tudo. Ela se sentia querida e desejada por ele, era nítido que ninguém ali a olhou do jeito que ele a olhava. E dane-se se fosse apenas aquela noite, ela iria aproveitar.
Saindo do banheiro, Malu encontrou Calebe em uma roda de conversa. Sem pensar muito no assunto, ela se aproximou, entregou-o uma garrafa de cerveja e passou o braço em volta da cintura dele. O casal parecia tão habitual, tão natural, que ninguém comentou ou estranhou quando ele beijou os lábios dela rapidamente em agradecimento e voltou a conversar com o grupo.
E desde então, não era difícil ver Maria Luiza e Calebe andando pelas ruas do bairro da Saudade como no poema de Carlos Drummond de Andrade, com “beijos que se beijam”, com “mãos que se conversam e que viajam sem mapa” e muitas outras coisas que ninguém ousava compreender.
“Se eu soubesse o quanto dói a vida, essa dor tão doída não doía assim. Agora resta uma mesa na sala [...] Naquela mesa ‘tá faltando ele e a saudade dele ‘tá doendo em mim”.
Naquela Mesa – Nelson Gonçalves.
27 de julho, o dia em que Calebe nasceu. 28 de julho, o dia em que Maria Luiza nasceu. Porque até nisso eles combinavam. Faziam aniversário juntos e desde sempre ambos tinham lembranças fortes e prazerosas das respectivas datas, lembranças de infância que se misturavam.
Calebe amava seus aniversários desde sempre. Desde pequeno, Ana sempre comemorava o dia, mesmo que fosse em uma segunda-feira, mesmo que não houvesse dinheiro, mesmo que não houvesse clima, mesmo que fossem apenas eles dois. Tendo a mãe que tinha, que transformava o dia em felicidade plena, não tinha como o rapaz não amar seus aniversários. E Malu pensava e se sentia da mesma forma. Até o seu último aniversário, em que ela passou o dia sentada em um banco de igreja, vendo um padre de outra cidade dar um sermão que ela sequer se lembra.
Seu pai morreu uma semana antes de seu aniversário e não tinha como melhorar aquilo. Seu aniversário nunca mais seria a data mais feliz do ano.
A seis dias atrás, Maria Luiza tinha passado um dia inteiro chorando trancada no seu quarto. Naquele um ano de falecimento do homem que ela mais amaria na vida, ela se deu ao direito de apenas chorar e sentir saudades. Achou que fazendo aquilo durante o dia inteiro, ela conseguiria voltar a viver a vida normalmente após aquele dia. Mas a noção da realidade a abateu antes que ela tivesse consciência e se deu conta que estava a um ano vivendo sem a presença física de seu pai. Um ano inteiro que ela não sentia o cheiro de erva cidreira que vinha do hálito dele, sempre impregnado por conta do vicio no chá de tal sabor. Um ano inteiro em que ela não passou as mãos em seus cabelos ralos, não viu seus olhos pequenos e assistiu seu rosto doce se mover com uma delicadeza incomum e, ao mesmo tempo, muito característica de quem veio do sul da Bahia. Malu virou saudade e não parecia que ia voltar tão cedo daquela viagem dolorosa.
“Mas..., mas é meu aniversário...” Ela se recordou com dor e embaraço da frase dolorida que ela proferiu quando o médico informou a ela e sua mãe que João tinha ido a óbito após o acidente. Ela riu sem humor, passando a mão no rosto, tentando limpar as lágrimas inutilmente e negou com a cabeça. Se jogou novamente na cama, apertando as mãos contra o rosto. Desde que acordou, a menina era só lágrimas teimosas. Ficou naquele limbo entre o sono e o despertar o dia inteiro e mal percebeu que já havia anoitecido.
- Malu? Maria Luiza, tá aí? – Andréia bateu na porta do quarto de Malu algumas vezes no dia e não foi recebida. Na última tentativa, ela resolveu entrar. – Ô menina, te chamei o dia inteiro e você aí nessa cama. – Malu rapidamente limpou o rosto com as mãos, mas não se virou.
- Desculpa, eu dormi demais. – Respondeu, pigarreando.
- Demais é apelido, né Maria, já são quase sete da noite! – Andréia adentrou o quarto e abriu a janela. – Achei que você iria pro almoço no Calebe hoje, vi os meninos passando desde cedo. Você não esqueceu do aniversário dele, não né? A Ana até me pediu emprestado aquela forma de pudim que você usa, mas não achei por aqui. Você tem usado esses tempos? – Andréia tagarelava enquanto recolhia algumas roupas do chão.
Malu suspirou, sentindo-se exausta só de ouvir a mãe falar. Sentou-se na cama e apoiou os braços no joelho, soltando os cabelos presos, sentindo o corpo inteiro reclamar por conta das horas passadas na mesma posição. Não tinha esquecido o aniversário de Calebe, só não havia conseguido sair de casa, do quarto. Sentiu-se preocupada pois sequer havia mandado uma mensagem para o rapaz. Andréia ainda falava quando notou Malu sentada, mas paralisou no lugar quando viu o rosto de Malu pelo reflexo do espelho.
As horas seguidas de choro abafado e sonolência deixaram o rosto da garota visivelmente marcado com manchas avermelhadas e inchaço.
- Tá se sentindo bem, Malu? – Questionou, estranhando. Malu apenas negou com a cabeça, sentindo suas lágrimas voltarem aos seus olhos. – O que foi?
Abriu e fechou a boca algumas vezes, tentando criar alguma mentira rápida, mas poxa, estava tão cansada. Com os olhos transbordando lágrimas e com a voz fraquinha, ela respondeu: – Tô com saudades dele, mãe.
Andréia ficou alguns segundos sem reação, sem saber muito bem o que dizer ou o que fazer. Não precisou nem ser citado, Andreia sabia exatamente de quem ela falava. Afinal, o que responder? Ela mesma se perguntava a mesma coisa todos os dias, ela também se sentia perdia e desolada quando pensava nele. Não sabia como agir quando lembrava que a filha também estava ali e sentia. Se sentia envergonhada por não pensar tanto na saúde mental da menina, mas quem ela queria enganar? Mal estava conseguindo se manter de pé.
Andréia resolveu vestir seu papel de mãe. Sentou-se ao lado da filha, acariciou seus cabelos, disse algumas palavras genéricas de conforto, deu opções a garota, ofereceu levá-la até o aniversário, ofereceu-se para inventar uma desculpa caso ela não quisesse ir, mas principalmente, Andréia a deixou chorar. E depois de uns bons minutos chorando nos braços da mãe, Malu decidiu que era hora de reagir.
- É aniversario dele, filha. E não só dele, daqui a pouco é seu aniversário também. – Seria injusto com Calebe e seria injusto com ela mesma. Tendo isso em mente, Malu limpou as lágrimas, tomou um banho restaurador, Andréia a ajudou com o vestido simples de alcinhas já costumeiro da garota e arrumou seus cachos enquanto a garota se maquiava.
Saudosa, Andréia assistia da janela de madeira enquanto sua filha única saindo de casa, lembrando dos aniversários infantis em que Malu seguia por aquele mesmo caminho, indo para a mesma casa, carregando no peito o presente e um sorriso que seriam direcionando para o mesmo menino. A mulher quase conseguia sentir a presença de João ao seu lado, observando Malu e seus cachos se movendo pela rua abaixo, comentando o quanto elas eram parecidas. Assim que Malu desapareceu pela rua das Flores, Andréia soltou uma respiração que parecia estar presa desde que entrara no quarto da menina.
Andréia decidiu que era hora de tirar a sua fantasia de Mãe que havia vestido e voltar a usar uma que estava no armário tinham uns dias. Tomando ansiolíticos e barbitúricos, ela vestiu seu papel de viúva e se sentou no sofá. Com um cigarro na mão e uma foto antiga de Malu e João na outra, ela esperou o sono lhe abater, e como se fosse uma tortura, ela demorou para conseguir enfim dormir e sair da realidade onde o amor de sua vida tinha morrido.
O almoço que Calebe havia oferecido para os amigos mais próximos em comemoração ao seu aniversário acabou se tornando uma festa sem hora para acabar. Ele havia convidado alguns amigos da faculdade, os amigos da rua, alguns primos, alguns amigos da academia, alguns do futebol, alguns amigos da feira (pois é, Calebe fazia amizades até na feira), outros do curso de inglês... Na cabeça dele, “só algumas pessoas”. Entretanto, Ana conhecia aquele garoto a 19 anos e sabia muito que que quando ele dizia poucas pessoas, seriam, no mínimo, umas trinta. Claro que ela até tentou providenciar comida o suficiente, mas o pessoal ali não estava ligando muito para alimentação, visto que cada grupo chegava com ao menos um pacote de bebida alcoólica. Ana tentava até brigar com Calebe, mas acabava rindo. Era típico dele rir, dar de ombros e falar “ué mãe, a culpa não é minha, não”.
A festa no quintal da casa de Ana estava a toda. Por todos os cantos, as pessoas dançavam, bebiam e se divertiam. Até ela já havia se distraído e tomando uma cerveja ou outra enquanto se dividia entre limpar a bagunça e dançar um sertanejo com algum amigo engraçadinho do filho. Mas Ana a todo instante olhava para a porta, atenta. Já era noite e Malu ainda não havia aparecido.
- Mãe! Deixa essa louça aí, mulher. Depois eu lavo, relaxa. – Calebe se aproximou, reclamando e oferecendo uma latinha de cerveja a mulher.
- Filho, deixa eu te perguntar... – Desligou a torneira e secou as mãos. Ana não queria ser intrometida, mas já estava ficando preocupada. Malu e Calebe estavam a semanas agarrados pelos cantos e, de repente, ela não aparece em seu aniversário. Algo estava errado. – Cadê a Malu, hein?
- Ah, acho que ela não vem... – Respondeu, abrindo a latinha e entregando-a.
- Como assim? Por quê? Vocês brigaram de novo? – Estranhou.
- Nãao, a gente tá bem, tá tudo tranquilo. – Ele coçou a cabeça, distraído. Calebe pensou já estar sentindo o efeito da mistura de bebidas, melhor começar a maneirar. – A senhora sabe que essa semana não tem sido fácil pra ela, achei melhor não insistir, dar um espaço pra ela. – Ana ainda mantinha a expressão confusa e questionou com o olhar de novo. – É que fez um ano do tio João, mãe...
É claro, como Ana pôde esquecer disso? Levou as mãos a testa, preocupada. Andréia devia estar uma confusão e se Andréia estava mal, Malu também estaria. Esperava que a mulher não tenha descontado suas frustrações na menina, que devia estar lotada de frustrações dela mesma.
- Poxa, é... eu esqueci. – Ana comentou, tristonha.
- Ela tá mal desde a semana passada e como hoje ela não respondeu nenhuma das minhas mensagens, imaginei que fosse isso também. – Completou, lembrando de Malu ficar subitamente quieta ou então se perder em pensamentos rapidamente. Quando questionada pelo rapaz, ela apenas respondeu que estava pensando no pai.
- Ai, eu sinto tanto por ela, Calebe. Ninguém deveria passar pela perda de um dos pais sendo tão nova e de maneira tão trágica. – Disse, pesarosa. – Ainda mais com a Andréia aprontando com ela de vez em quando.
- Ah, mas elas estão bem. A tia Andréia nem reclama mais quando eu passo a noite por lá, bom, não tanto quanto reclamava. Até porque ela sempre reclama... – Ana cruzou os braços e encarou o filho, que sequer notou que estava falando demais. – O que foi?
- Então quer dizer que você anda passando a noite na casa da Andréia, Calebe? E sem me falar nada? – Confrontou o rapaz, que prendeu o sorriso com os lábios.
- Ih mãe, aquela ali é a dona Natasha te chamando? – Disfarçando, apontou para a vizinha que estava do outro lado do pátio, que definitivamente não estava chamando Ana.
- Calebe, pelo amor de Deus! Você não é maluco de engravidar essa menina, garoto! – Começou a estapear o filho, que gargalhava alegremente e empurrava a mãe de volta para o quintal. – Eu tô falando com você, Calebe.
- Ninguém vai engravidar ninguém, mulher. Mãe, mãe! – Ainda rindo, ele parou em frente a mulher e resolveu provocá-la, como sempre, e piscando, disse: – Ei, confia no pai, pô.
Todos no quintal riram enquanto Ana batia irritada nas costas de Calebe com um guardanapo, que corria e sorria feliz igual um menino de oito anos de novo.
Maria Luiza quase se perdeu em pensamentos quando chegou à frente da casa de Calebe. A casa de alvenaria agora tinha uma desgastada pintura azulada, mas as plantas que ficavam presas no portão estavam sempre formosas e bem tratadas. No chão, não havia mais marcas de amarelinha ou riscos infantis aleatórios, mas também não havia mais a voz de João atras dela, a guiando pelo caminho quando ela reclamava de ter que ir as festinhas de Calebe.
Ela sorriu com a lembrança do última aniversário de Calebe que ela tinha ido. No fundo, ela até sentia um pouco de inveja das festinhas de aniversario dele. Todas as crianças da rua iam as suas festas, sempre rolavam diversas brincadeiras divertidas e era assunto na rua a semana inteira. Malu nunca foi de muito amigos e muitas palavras, sempre tivera o jeito mais reservada, mais “enjoadinha”, como sua própria mãe sempre dissera. Pensando bem, se ela fizesse uma festa de aniversário naquele ano, também não teria muitos amiguinhos para convidar. E pelo número de carros estacionados na calçada e o volume alto da música que emanava da casa, Calebe ainda tinha as melhores festas de aniversário.
Como sempre, o portão estava aberto e Malu foi entrando sem reservas. Nunca havia passado tanto tempo naquele pátio e naquela casa quanto naquele mês, em que ela e Calebe estavam simplesmente aproveitando a presença um do outro sem tantas complicações e questionamentos. Ela adentrou o primeiro cômodo e encontrou Ana, sentada no sofá, com um copo de cerveja na mão e um olhar distante.
- Tia? – Ana, assim que reconheceu a cabeleira cacheada, abriu um sorriso e quase pulou do sofá e indo até a garota.
- Filha! Você veio! – Abraçou a menina afavelmente. – Que bom! Que bom que você veio. – Malu riu, tímida.
- Ah, o Calebe iria me matar, cê sabe. – Brincou, balançando as mãos e foi se sentar no sofá ao seu lado. – E por que você tá sozinha aqui na sala?
- Ah, eu só tô... – Ana olhou em volta, procurando uma desculpa, mas resolveu falar no que estava pensando antes da garota chegar. – Sinceramente? Eu tô tomando uma pelo João, Malu. É isso que eu tô fazendo. – Malu engoliu em seco e lutou muito para segurar as lágrimas que seus olhos criaram em tempo quase recorde. – Sabe que depois de você, da sua mãe e daqueles livros todos, a coisa que ele mais adorava fazer era tomar uma cervejinha gelada enquanto ouvia um bom samba.
- Nelson Rodrigues. – Malu completou quase com um soluço.
- Exatamente! Poxa, ele adorava o Nelson... – Ana relembrou e encostou-se no sofá. – Hoje deu uma saudade danada dele, Malu. – Confessou, baixinho.
- Tia, e-eu... não parei de chorar desde a hora que eu acordei. – Limpou as lágrimas com cuidado antes de caírem e prejudicarem sua maquiagem. – Fala mais dele? Eu quero falar sobre ele, tia, mas a minha mãe... Ela não consegue e eu preciso disso! Preciso falar sobre ele, tia. – Suplicou, angustiada.
Ana assentiu, também segurando suas lágrimas com força. Entendia Andréia, entendia Malu, era uma situação difícil para todos, até mesmo para ela. Mas Malu precisava daquilo, precisava daquele conforto de ouvir alguém falando o quanto seu pai era um homem bom, então foi isso que ela fez. Com um copo de cerveja na mão de cada uma, Ana contou os momentos felizes que ela compartilhou com ele e Andréia.
Contou o quanto eles ajudavam nos aniversários de Calebe, relembrou as famosas brigas de Andréia e João, que segundo ela, eram um casal totalmente diferente e totalmente apaixonado. Falou sobre a adoração de João por livros e como foi ele que ensinou a Calebe suas primeiras palavras. Malu riu mais do que chorou na conversa e isso foi mais do que suficiente para Ana perceber que estava fazendo a coisa certa. Ficaram uns bons minutos naquela conversa que Malu até esqueceu o porquê estava ali.
- Ih tia! O Calebe, esqueci! – Malu se levantou do sofá, agitada e fez Ana rir quando saiu correndo de maneira desastrada em direção ao quintal.
Para Ana, era extremamente nostálgico ver Malu e Calebe juntos. Naquele dia do ano principalmente. Balançando a cabeça e sorrindo melancólica, Ana se serviu mais uma cerveja e foi para o seu quarto. Pegou um cigarro que achou no fundo da gaveta, acendeu e após uma longa tragada, ela começou a rir sozinha.
- João, seu filho da puta. – Murmurou. – Morreu e me deixou aqui com a doida da Déia. – Riu novamente, limpando umas teimosas lágrimas. – Seu velho filho da puta, que saudades de você, meu amigo.
“Nos abraçamos sob o nosso conforto de amar. Se há dores, tudo fica mais fácil, seu rosto silencia e faz parar. [...] Entre tantos anos, entre tantos outros, que sorte a nossa, hein? Entre tantas paixões, esse encontro, nós dois, esse amor Entre tantos séculos, entre tantos outros, que sorte a nossa, hein?”.
Ainda bem – Vanessa da Mata
- Ih tia! O Calebe, esqueci! – Malu se levantou do sofá, agitada e fez Ana rir quando saiu correndo de maneira desastrada em direção ao quintal.
Estava ansiosa pois não queria que Calebe pensasse que ela não iria aparecer, até respondeu suas mensagens avisando que estava indo, mas não chegaram até ele, fazendo-a crer que ele sequer estava com seu celular por perto. Andou (quase correu) até o quintal e esbarrou em algumas pessoas, que cumprimentou rapidamente. O quintal não era tão grande, mas tinha tanta gente que ela estava sentindo dificuldade de achar o seu... amigo? Ela nem sabia mais o que era naquela altura do campeonato.
- Oi, Tiago. Você viu o...? – Ela se aproximou de um de seus conhecidos, mas nem foi preciso resposta.
- Porque tudo que um homem precisa eu tenho em casa! – Cantou, ou melhor, berrou a frase do pagode que tocava na festa. – Olha a primeira-dama aí, galera!
Não, não era Tiago sendo irritante. Era um alcoolizado e alegre Calebe, que gritava em cima de uma cadeira e apontava para Malu, que escondeu o rosto com as mãos enquanto o local inteiro berrava seu nome. Calebe, que sempre estava esperando por ela, viu o exato momento em que ela adentrou o quintal e não conteve sua alegria. Ou talvez fosse o álcool berrando. Ela estava envergonhada, mesmo assim, ria, enquanto corria até ele.
Era exatamente aquele motivo que Malu havia deixado suas inseguranças, tristeza e melancolia em casa. Era por causa daquele bêbado que cantava em cima de uma cadeira de plástica. Foi por causa daquele brilho nos olhos e sorriso de moleque. Foi por ele.
- Idiota. Quer me matar de vergonha? – Reclamou quando chegou até ele, mas não se conteve e pulou no rapaz, que a levantou do chão, cheirando o cabelo cacheado que quase o sufocava de tanto amor.
- Shhh, meu aniversário, Maria Luiza! – Grudou seus lábios enquanto ambos riam.
- Cê tá muito abusado, moleque! – Malu provocou, virando o boné vermelho na cabeça do rapaz. Já havia beijado tanto Calebe na frente de todo mundo que nem sentia mais tanta vergonha, apesar de ainda se incomodar com alguns comentários e olhares.
- Ah, sempre. Vem aqui. – Murmurou e pedindo licença para os amigos ao lado, puxou a menina de volta até a cozinha em busca de um canto mais reservado. – Cê tá bem? – Ela assentiu, acariciando seus cabelos que saiam pelas bordas do boné. – Ei, olha aqui pra mim, você tá bem mesmo? Não quero que você fique aqui por obrigação.
Ela sorriu, sentindo-se extremamente acolhida e desejada por ele. Aproximou-se e passou os braços em volta do pescoço dele, depositando um beijo leve nos lábios dele.
- Eu tava péssima, mas ficaria mil vezes pior se eu não te visse hoje. – Confessou, acariciando os ombros dele. – Feliz aniversário, seu insuportável. – Ficou na ponta dos pés e o beijou com vontade.
- Obrigada. Dorme aqui hoje? – Pediu, manhoso enquanto descia os beijos para o pescoço perfumado de Malu.
- Ah, não sei, Calebe. Tua mãe pode não deixar. – Rebateu, afastando o corpo dele do dela, pois toda aquela movimentação dele estava deixando Malu cheia de ideias e vontades.
- Malu, meu aniversário! Eu posso fazer o que eu quiser! – Insistiu infantilmente, fazendo-a rir.
- Só não esquece que teu aniversario tá chegando no fim e sabe o que acontece depois que teu aniversário acaba? – Ela o puxou para a parede do lado do armário da cozinha, onde ficavam praticamente escondidos. Ele olhava sedento para os lábios bem contornados de Malu, que brincava com o alto controle do cara a sua frente ao brincar com as unhas na barriga dele daquele jeito. – Começa o meu. E no meu aniversário a gente faz só o que eu quero. – Frisou.
- Ah, é? – Ele se afastou um pouco e levou a mão até o rosto dela, acariciando e apreciando a visão dela, como esperou o dia inteiro. – Mas ainda faltam umas horinhas, morena. Ainda tá no meu horário.
- Não tem problema. Mesmo no teu horário, a gente ainda faz só o que eu quero. – Deu de ombros, desafiadora.
- Ih, tá com moral, hein! – Ele zombou e novamente grudou seu corpo no dela, sem saber como esconder sua animação totalmente fora de hora de outro jeito.
- Ah, não tenho moral? – Ele deu de ombros e negou com a cabeça, com um sorriso instigante. – Pois eu acho que tenho. Sabe por quê? Daqui a cinco minutos você vai fazer o que eu quero.
- Todo mundo erra sempre, todo mundo vai errar! – Cantou novamente o refrão de uma música que tocava na casa, fazendo-a rir em como ele sempre conseguia o timing perfeito das músicas.
- Você sempre consegue! – Ela gargalhou, jogando a cabeça para trás.
- Eu sempre consigo! – Riu junto dela e logo em seguida se inclinou para beijá-la e estranhou quando ela se afastou.
- Cinco minutos, Calebe. É só o que eu preciso pra dar teu presente. – Ela sorriu de lado, com a feição mais pura e excitante que ele já havia visto nela.
- Ah, então é isso que vai me fazer ceder o meu horário pra ti e ainda por cima vai provar que você tem moral comigo? – Ele cruzou os braços, sorrindo enviesado. – E o que é esse presente milagroso que vai fazer isso em cinco minutos?
Ele sabia muito bem pelo olhar dela o que era o presente, mas o mundo inteiro de Calebe explodiu de satisfação, deleite e euforia quando Malu proferiu a resposta de maneira séria, sedutora e fascinante: – Eu vou te chupar no banheiro, Calebe. – Ela levantou a mão, balançando os cinco dedos na frente dos olhos nebulosos dele. – Cinco minutos.
જજજજજજજજજજજજ
Muita gente sequer notou que Malu e Calebe haviam sumido, muito menos notaram quando o casal voltou ao quintal como se nada tivesse acontecido, mas não precisaria ser vidente para perceber que o casal estava aos beijos e amassos por algum canto da casa. Ele apareceu sem camisa e ela sem batom, não precisa de mais explicações. Por sorte, a maioria de seus amigos que ainda estavam ali não ligavam nenhum pouco para esse tipo de coisa, eles todos já estavam acostumadas com a intimidade que tinham para não precisarem mais esconder certos comportamentos.
As horas seguintes passaram sem grandes surpresas e emoções. Malu não pensou que conseguiria se divertir naquele dia, mas não ficou surpresa por estar aproveitando. Já no finalzinho da festa, depois que a maioria das pessoas já haviam ido embora, ficaram apenas os amigos mais próximos de Calebe. Todos estavam cantando músicas antigas de maneira divertida, bebendo de maneira moderada, apenas apreciando as amizades especiais que estavam presentes ali.
- Vinicius, já chega, larga essa caixa. – Malu bradou, fingindo estar irritada. – Você só tá colocando sertanejo pra chorar, que porra.
- A culpada? Olha aqui ó. – Apontando para Alanne, Vinicius respondeu com a língua já meio enrolada após a ingestão de muitas bebidas.
- EU? – Alanne gargalhou.
- É claro, você não quer largar aquele osso velho do Pedrinho e não quer ficar comigo. – Apontou, rindo e negando com a cabeça.
-Iiih! – Todos responderam em coro.
- Essa relação só existe na cabeça de vocês, eu hein. – Alanne disfarçou, trocando alguns olhares com Malu, o que não passou despercebido por ninguém.
- Malu, fala aí, hora da verdade. Alanne e Pedrinho, tá rolando ou não? – Vinicius cutucou ainda mais, fazendo Malu rir.
- Eu não sei de nada não, Vini. Mal sei da minha vida. – Respondeu, rindo.
- Sabe sim, maluca, que isso. – Calebe reclamou, balançando sua perna, onde a garota estava sentada.
- Só sei de você, meu amorzinho, claro! – Brincou, beijando a bochecha do rapaz, mas quando virou o rosto de volta para seus amigos, fez uma careta e piscou, brincalhona.
- A patroa dando volta no cara na frente dele, os tempos mudaram mesmo, tsc. – Tiago negou com a cabeça, provocando o casal.
- O dia que você tiver uma dessas pra dar uma volta em ti vai parar de zoar os outros. – Calebe respondeu, rindo.
- Ou um desses. – Alanne tentou, cutucando a cintura o amigo. A verdade é que todos sabiam que Tiago gostava de meninos e meninas, menos o próprio, que viviam em um profundo esquema de negação consigo mesmo.
- Claro que não! – Sua voz aumentou umas três oitavas quando reclamou, fazendo todos rirem.
- Ti, ninguém liga! – Malu, finalmente, falou o que todos viviam querendo dizer ao amigo e nunca falavam. Era a mais pura verdade, ninguém ligava para os gêneros que Tiago se sentia atraído. Gostava das brincadeiras bobas, as sacadas rápidas e do jeito que ele sempre fazia todo mundo estar sempre reunido, mesmo com as dificuldades do dia a dia. Mas ele ainda não estava pronto, então apenas deu de ombros e, como sempre fazia, mudou de assunto:
- No fundo, todo mundo sabe que o Pedro é o maior talarico e a Alanne é destinada a ficar com o fruteiro que libera laranja de graça pra ela. – Tiago insistiu, fazendo todos rirem. – Vou tocar funk nessa merda também. – Disse, fazendo todas as meninas soltarem um gritinho empolgado e saírem de seus lugares.
Após mais duas horas envolvendo muito dança, funk, risadas e brincadeiras inapropriada entre amigos de infância, as pessoas começaram a se despedir. Calebe foi acompanhar os amigos até a porta enquanto Malu organizava a pilha de louças e garrafas que ela encontrava pelo quintal. Calebe passou pelo quarto da mãe, encontrando-a dormindo tranquilamente na poltrona próximo a janela, com um cigarro descansando entre os dedos. Ele sorriu de lado, negando com a cabeça.
A mãe insistia em dizer que não fumava mais, que não sentia falta e que não tinha vontade de voltar, mas de tempos em tempos – principalmente em tempos de grande estresse ou imensa felicidade – ele encontrava Ana exalando cheiro de nicotina e os dedos sujos de cinzas. Ele se aproximou, apagou o cigarro no cinzeiro e acariciou o ombro dela até acordá-la. A mulher ainda tentou levantar-se, insistindo em arrumar a casa, mas Calebe falou que já estava tarde, todos estavam cansadas e era melhor deixar a grande limpeza para o dia seguinte.
- Cadê a Malu?
- Tá na cozinha.
- Olha, normalmente eu reclamaria por ela dormir aqui sem a mãe saber, mas acho que hoje não tem problema. – Calebe franziu a testa, estranhando. – É aniversário dela, né? Ela provavelmente vai chorar por causa do João, e se for assim, que ela ao menos tenha companhia.
- É... – Calebe concordou, guiando a mãe em direção a cama. – Cê sabe que pode confiar na gente, que não precisa se preocupar tanto. A Malu é responsável e eu também.
- É, eu sei, filho. Sei bem que não vai adiantar nada dizer que não deixo. – Sorriu, confidente. – Só tô fazendo meu papel de mãe.
- E faz mais do que bem, dona Ana. – Beijou a testa da mãe, com carinho. – Obrigado por ser a melhor, viu?
- Igualmente, meu amor. – Respondeu, sorrindo, já meio adormecida.
Assim que saiu do quarto da mãe, Calebe passou o olhar rapidamente pela sala, vendo se tudo estava em ordem e seguiu para a cozinha. Encontrou Malu lavando e organizando a louça em suas prateleiras, cantarolando algo diferente do que estava tocando anteriormente. Ele sorriu de lado, confortável. Durante aquele mês, aquela visão acabou se tornando habitual para ele. A abraçou por trás, beijando seu pescoço carinhosamente.
- Chegou, sorriu, beijou, mostrou como se faz, por isso eu quero te falar... – Malu cantarolou, sorrindo ao sentir as mãos dele em sua cintura.
- Tá cantando pra mim? – Gracejou, descendo os beijos pelo seu ombro.
- Vou te falar, mas acho que você já sabe. – Ela continuou, sorrindo abertamente. - Você apaixonou, alucinou, descompassou... – Não continuou, apenas virou de frente para ele e encostou seus lábios rapidamente.
Ele rapidamente se viu embebido pela presença forte e provocante dela, tinha noção o quão linda ela ficava quando ficava na ponta dos pés daquela forma só para abraçá-lo pelo pescoço. Ele sorriu ao ver pelo espelho do fogão que a posição fez o vestido dela subir alguns centímetros. E ele, como um adolescente, não conseguiu se conter e passou as mãos para debaixo do tecido.
- Ei... – Ele a respondeu com um murmuro desleixado. – Se perdeu aí embaixo? – Ela brincou ao sentir a ponta dos dedos dele brincado com a ponta de renda da sua calcinha.
- Não, me perdi aqui em cima. – Rapidamente subiu as mãos e segurou o rosto dela, encarando-a intensamente. Ela suspirou fortemente, já se sentindo entregue a ele e aquela atmosfera que sempre surgia quando eles ficavam sozinhos. Mas estavam sozinhos?
– Cadê a tia? – Perguntou, virando-se novamente e secando as mãos no guardanapo.
- Encontrei a mulher dormindo com um cigarro na mão, vê se pode? – Riu levemente.
- Igualzinha a dona Andréia, faz a mesma coisa. Vamos arrumar aqui? Acho que falta pouca coisa, talvez guardar umas panelas e ver se na geladeira...
- Não, não. – Calebe interrompeu, tirando o pano de suas mãos e a empurrou para fora da cozinha. – Amanhã a gente dá um jeito nas louças, na cadeira, em tudo o que você quiser. Agora eu quero aproveitar mais um pouquinho de você. – Ela sorriu, deixando com que ele a abraçasse por trás e a beijasse até seu quarto.
- Só vou deixar você desobedecer às regras dessa forma porque é seu aniversário. – Informou, entrando no quarto do garoto.
- Saiba, mocinha, que faltam poucos minutos pro meu aniversario acabar. – Pontuou, mexendo nas gavetas de sua cômoda. – Pois é, seus dezenove estão chegando, princesa. – Sorriu.
– Ah, meu Deus, e agora? – Brincou, fingindo um leve desespero. – Quais os planos iniciais, senhor? – Perguntou, cruzando os braços.
– Um banho rápido, trancar a casa e depois disso, você vai se deitar aí do jeitinho que tá agora, vou pegar umas cervejas que restaram pra gente e vou ficar te beijando até eu dormir, pode ser? – Explicou como se estivesse palestrando para um congresso. Ela sorriu, balançando a cabeça, em negação, sem entender como ela havia negado a si mesma o quão bom aquele cara era para ela.
- Pode ser, só se esse banho for um convite pra mim também... – Mordeu os lábios. Ela realmente queria um banho, havia dançado umas poucas e boas com os amigos e sentia sua pele meio grudenta. Só não sabia distinguir o que era o suor causado pela dança e o que era causado pela proximidade de Calebe.
- Engraçado você achar que eu realmente tomaria banho sozinho... – A levantou pela cintura, colocando o corpo dela sobre o seu ombro e indo ao banheiro, causando gargalhadas na garota.
જજજજજજજજજજજજ
Após um banho – que seria rápido – ser demorado, lotado de mãos bobas e brincadeiras nada inocentes, Calebe e Malu fizeram exatamente o que foi planejado. Colocaram roupas confortáveis, se arrumaram na cama em uma posição confortável e tomaram suas cervejas de forma confortável até as 23h59.
- 36, 35... – Calebe estava, literalmente, contando os segundos olhando para o relógio moderno no criado mudo, fazendo com que Malu risse.
- Eu nunca esperei tanto por um aniversario, que maluquice. – Ela ria, mas sentia seu coração totalmente quente e protegido onde estava. Se lhe dissessem no início do dia, que ao final dele, ela estaria se sentindo tão segura e feliz onde estava, ela só acreditaria se dissessem que Calebe estaria com ela. Ali, enrolada numa mistura de braços, lençóis e travesseiros, ela estava perfeitamente bem como a tempos não estivera. Sabia que era perigoso, depositar tanta confiança e responsabilidade em alguém, mas não conseguia evitar. Ele era tudo o que ela sempre quis e nem sabia.
- Igual você. Minha Malu-ca. – Brincou com as palavras enquanto tocava nos seus cachos ainda pouco resistentes.
- Você é bobo. – Frisou. Ela apoiou a garrafa para fora da cama e se inclinou sobre ele, beijando-o levemente.
- Fiquei pior depois que te conheci. – Sussurrou como se estivesse contando m segredo. – 20, 19...
- Para, tá me deixando ansiosa! – Ela riu, empurrando-o pelos ombros e se sentando ao seu lado, com as pernas cruzadas. – E sem necessidade. Absolutamente nada vai mudar depois que o relógio mudar pra meia-noite.
- Vai, sim. á meia-noite, eu vou dizer que tô apaixonado por ti e que acho que te amo. 14, 13, 12...
Maria Luiza paralisou e ficou encarando o rapaz, que analisava o relógio com um sorriso convencido no rosto e muito calmo para quem havia acabado de dizer palavras fortes demais. Ela abriu a boca, mas as palavras não saíram, ela sequer sabia o que falaria. Sentiu seu coração disparar como se tivesse corrido uma maratona, apesar de estar deitada já havia uns bons minutos. Ninguém nunca havia falado aquele tipo de coisa para ela e vice-versa, mas no fundo, ela sabia, teria que ser ele. Calebe seria o dono das suas primeiras vezes.
- 10, 9, 8... – Ele contava em um tom de voz baixo, olhando fixamente para os números mudarem. Estava quase deitado na cama, com apenas a cabeça apoiada na cabeceira. – 7, 6, 5... – Ele olhou de soslaio e sorriu ao ver que ela encarava o relógio com um olhar ansioso e agitado. – 3, 2...
Ele parou de contar e virou-se para ela, encarando-a seriamente. Quando abriu a boca para falar o que ele havia planejado desde a semana passada, foi surpreendido pela mão de Malu cobrindo seus lábios e sua voz quase murmurada: – Tô apaixonada por ti.
- Eu acho que te amo.
Ambos se encaravam com sorrisos tímidos e apaixonados. Não precisavam de mais palavras, não precisavam de explicações, estavam apaixonados e se amando e que delícia de sentimento! Como era bom gostar dele e mostrar isso, como era bom ter aquele sentimento totalmente correspondido por ela. Calebe e Malu jamais esqueceriam aquele momento, onde eles amaram e foram amado de uma das melhores formas possíveis. Nunca esqueceriam aquele olhar e a sensação reconfortante de ter alguém que te olhasse dessa forma. Caramba, com era bom gostar, como era bom amar.
Malu foi para o colo do rapaz, entrelaçando as pernas em sua cintura e o beijou calorosamente, querendo transpassar para ele tudo que estava sentindo em um beijo. Calebe sentou-se com ela ainda em seu colo e apertou sua cintura por baixo da camisa dele que ela vestia tão bem. A garota fechou os olhos com força, mergulhando o rosto no pescoço dele enquanto as mãos dele passavam pelo seu corpo. Se afastou apenas para cobrir o rosto de Calebe com beijos delicados, assistindo a forma como ele sorria de olhos fechados, aproveitando o carinho dele.
Ele a amava. Não sabia a quanto tempo, nem se duraria mais do que aquele mês. Mas naquele momento, naquele minuto, não havia ninguém no mundo que ele amava e queria tanto quanto ela. Foi assim que Malu procurou toda a coragem, desembraço e determinação que tinha em si e colocou as mãos na barra da camisa que usava e começou a puxar para cima.
- Ei. – Calebe chamou, segurando as mãos dela no lugar. Não queria que ela sentisse obrigação de algo só por ele ter dito o que disse.
- Eu não acredito nisso. – Sussurrou, nervosa, fechando os olhos e mordendo os lábios. - Não precisa disso, você sabe que eu não importo. – E não se importava
mesmo, havia acabado de tomar banho com a garota vestindo uma camisa dele e não ligava, só de ver o formato de seus seios através do tecido molhado era o suficiente para ele.
- Não, tá tudo bem. Se não for com você, não vai ser com mais ninguém.
Malu tirou a camisa, sentindo seu interior contrair com uma mistura de medo e ansiedade por nunca ter feito aquilo, e excitação e prazer por estar com seus seios expostos tão próximo ao rosto de Calebe. Ele engoliu em seco, encarando o torso delicado de Maria Luiza de forma ávida e concentrada. Ele não falou mais nada, queria fazer mais do que isso, queria mostrar para a menina que não havia motivos para que ela sentisse tal insegurança. Queria que ela se sentisse tão bonita e especial do jeito que ele a enxergava. Malu não conseguiu olhar seu rosto por muito tempo, pois seus olhos estavam lacrimejados.
Ele percorreu um caminho com seu dedo indicador que ia da sua clavícula, a dobra do seu seio e seguiu até a auréola, ambos observando atentamente a ação. Ambos com os olhos fechados, mergulharam com anseio na sensação indescritível dos lábios dele encostados em seu seio. A cada beijo que ele dava em seus seios, um soluço discreto saia de lábios de Malu. Calebe sentiu pena por Malu não ter ideia do quanto era bonita e sentiu raiva do tal babaca que a fez acreditar nisso. Ao contrário do que foi dito, os seios dela eram maravilhosos. Com a voz fraquinha, Malu pediu para parar, porém ele continuou saboreando seu corpo da forma mais intensa que conseguia. E mesmo pedindo, Malu não o soltou, apenas o puxava mais próximo de si como se fosse possível.
- Você... é... ah, Maria, como você é linda! – Ela não teve tempo para responder ou agir, pois no segundo seguinte, eles voltaram a unir seus lábios e se beijaram de maneira fervorosa.
Beijá-la sempre era algo fora de série, mas beijar Maria Luiza com os seus seios apertados contra o tórax dele, sentir a pele macia dela, era de outro mundo. Logo, o calor se tornou maior do que eles e as peles de ambos pareciam ter rastros de fogo. As batidas dos corações batucavam e dançavam com os sons sôfregos que escapavam de seus lábios, como um perfeito dueto.
Aquele ali era o paraíso infernal e particular de Calebe e Malu.
જજજજજજજજજજજજ
Ele estava confortavelmente desconfortável. Malu estava deitada quase em cima dele por inteiro, estava com a cabeça virada para o outro lado, fazendo com que seus cachos estivessem sufocando-o. E mesmo assim, ele não se mexeu nem por um centímetro desde que acordou naquela manhã. Sabia que logo ela despertaria pois já conhecia suas manias antes de acordar. Se mexia bastante, procurava e se deitava por cima dele e, se não pegasse no sono imediatamente de novo, ela voltaria ao seu lado da cama e desistiria de dormir, levantando-se.
Ele sorriu convencido quando notou ela fazendo cada etapa daquela rotina. Ele sempre acordava antes, então ela apenas beijou seu rosto e levantou-se da cama, indo direto para o banheiro. Ele olhou para a cômoda de seu quarto e foi até lá, lembrando que o presente dela estava guardando na primeira gaveta. Sua intenção era entregar na noite anterior, mas foi surpreendido pelas ações determinadas de Malu.
- Bom dia. – Ela proferiu, suave, quando retornou do banheiro, prendendo seus cabelos em um coque alto. Beijou as costas dele e voltou para a cama, enrolando-se nos cobertores quentinhos e confortáveis. – Tá tudo bem? – Perguntou, receosa, ao ver que ele estava parado em frente a cômoda, sem se mover.
Ele não sabia mito bem como fazer isso. Sabia que era um presente mais do que especial e que ela provavelmente choraria, sentia-se receoso em despertar aquelas lembranças e sentimentos na garota, mas também sabia que não havia melhor presente para dar naquele momento.
- S-sim, é... – Ele virou-se e esticou a mão, estendendo o embrulho pequeno para Malu. – Feliz aniversário.
- Ah, mentira! Você me comprou um presente? – Sentou-se, empolgada, sorrindo e pegando a caixa da mão dele. Ele sorriu de lábios fechados e sentou ao lado dela, respirando fundo. – O que foi? – Ela estranhou a reação dele, olhou em seu rosto e podia jurar que os olhos dele estavam marejados.
Calebe não sabia explicar, mas de repente, se sentiu emotivo e frágil, como quando ganhou aquele mesmo presente á onze anos atrás. Malu abriu a caixa parda simples e sentiu tudo oscilar em volta dela quando viu o livro que estava ali. O Pequeno Príncipe, o mesmo livro que ela havia dado de presente para Calebe em seu aniversário de oito anos. E pelas cores apagadas e pequenos amassados nas bordas, era exatamente o mesmo livro que fora escolhido a dedo por João naquele dia. Antes de fazer qualquer coisa, ela fechou a caixa novamente e entregou de volta a Calebe, que negou com a cabeça e empurrou para ela novamente.
- É seu presente. – Ela justificou, com a voz trêmula.
- Eu tenho... – Ele engoliu em seco, sentindo-se abalado subitamente. Lembrar do tio João sempre era especial para Calebe, mas ele sentia que aquela era a primeira vez que ele se dera conta de que não veria mais o homem. Respirou fundo antes de continuar, sentindo-se embaraçado com a própria emoção. – Esse é seu, eu tenho uma gaveta inteira com livros que ganhei do tio João, Malu.
A voz de Calebe falhou no final da sua frase, isso fez com que os olhos de Malu trasbordassem lágrimas e ela abaixou a cabeça, apoiando a mão na testa, lutando para não se debulhar em lágrimas e encarando a caixinha.
- Eu não consigo abrir... – Lamentou, fungando, já com a voz completamente chorosa.
Abalada, eles mantiveram o contato visual enquanto ele sentou-se em frente a ela e pegou a caixa em suas mãos. Com ternura e carinho, ele limpou as lágrimas grossas que escorriam dos olhos pequenos de Maria Luiza e retirou o livro da caixa e entregou em suas mãos trêmulas, com a primeira página em aberto.
“Para CALEBE, que você não perca seu jeito de criança mesmo quando já for uma pessoa grande. Com amor e carinho, tio João, tia Andréia e Malu”.
Ela soluçou, cobrindo a boca com uma mão enquanto passava a outra pelo papel, sentindo a textura das palavras escritas por João. A tinta da caneta preta ainda estava forte e marcada com força. Ficou uns segundos olhando para as páginas gastas do livro antigo, era possível notar que havia sido lido diversas vezes, mesmo assim, estava bem cuidado. Ela sorriu entre lágrimas, sentindo-se em uma montanha russa emocional, onde suas lágrimas de saudade se misturam com seu sorriso comovido. Calebe observou atentamente a variedade de emoções que continham nos olhos dela e se sentir feliz e orgulhoso por ter escolhido o presente perfeito.
- É o melhor presente que eu já ganhei. – Afirmou, como se estivesse lendo os pensamentos dele.
- Eu também. – Confessou, baixinho, apesar de não saber exatamente se estava falando do livro ou dela. Mas suspeitava, com uma certa desconfiança e leve certeza, que era ela o melhor que ele já havia ganhado.
“Acho que é bobagem a mania de fingir, negando a intenção. Se quando um certo alguém cruzou o teu caminho
e te mudou a direção”.
Um Certo Alguém – Lulu Santos
Parte 2 - Grão de Amor
Deixando seu corpo cair na cama, Calebe olhou para os papéis distribuídos em pilhas sob a mesa no seu quarto, as dezenas de arquivos abertas na tela do computador e podia jurar que ainda escutava o som de digitação dos teclados dos seus colegas ao lado mesmo que já estivesse em casa. Desde que havia conseguido um estágio em um banco por meio de um professor que o adorava, Calebe viu sua vida de estudante universitário desleixado mudar para um aprendiz universitário que mal tinha tempo para ter uma refeição no horário certo.
Ele simplesmente adorava seu trabalho de estagiário, sempre gostou de trabalhar e ser útil, sentir que estava realmente fazendo algo. Ele, por muitas vezes, se viu trabalhando em um domingo à noite sem receber muito bem para isso, mas compensava quando ele ia a algum evento em que os estagiários comuns não costumavam serem convidados. E Calebe não era um estagiário comum. Era esforçado, estudioso e trabalhador, essas qualidades deixavam seus preceptores sempre de olho nele, sempre o instigando a procurar algo a mais, sempre o influenciando e, claro, oferecendo boas oportunidades. Oportunidades essas que Calebe não conseguia negar.
Era um trabalho árduo. Ele trabalhava no setor comercial bancário durante o dia inteiro e pela noite ele se dedicava aos seus estudos na faculdade. Apesar de estar satisfeito com sua rotina e suas pequenas conquistas, Calebe rezava e esperava pelo final de semana. Eram nos sábados e domingos que ele podia dormir, descansar, tomar sua cerveja com seus amigos, de vez em quando até arriscava jogar futebol. E além de tudo isso, ou melhor, principalmente, ele encontrava Maria Luiza.
Após dois anos, ela era uma das únicas constantes em sua vida. Mesmo com todo o trabalho, a rotina, os estudos e atividades, Malu ainda esperava por ele na porta de sua casa nas noites de sexta-feira.
E por falar em Maria Luiza, a garota ainda queria passar no vestibular. Era por isso que, secretamente, ela ainda assistia vídeo aulas e treinava com a resolução de alguns exercícios recentes. Mas para todo mundo, ela dizia que havia desistido. Após um ano de cursinho preparatório, ela sentiu-se frustrada e decidiu não depositar mais tanto tempo e energia apenas em seu estudo e procurou um emprego. Após quase um ano trabalhando em uma loja de bolsas em um shopping da cidade e descobrir que era até boa com vendas, seus dias foram tomados por mais horas trabalhando e menos horas estudando. Logo, Malu largou o curso, vendeu seus livros e agora trabalhava como supervisora de vendas na mesma loja. Mas no fundo, ela ainda queria passar no vestibular.
Não porque tinha vontade de seguir uma vida acadêmica e se envolver em diversos projetos estudantis como Calebe fazia agora, mas sim porque sentia que havia pulado uma etapa. Sentia que se não fizesse uma faculdade, não seria bem-sucedida, era como se estivesse indo contra a maré e estivesse pulando essa etapa. Era como se fosse uma perda de tempo, do jeito que sua mãe insistia em jogar na sua cara. No fundo, Malu sequer sabia que curso ela queria fazer, sentia que não tinha vocação para nada.
- Você ainda tá aqui, garoto? Achei que você já tinha saído. – Ana comentou, estranhando ver a porta do quarto do filho aberta e o encontrando ali.
- Já tô pronto, só tô... tomando coragem. – Respondeu, bocejando e se sentando na cama.
- Cê tá tão bonito! – Ana elogiou, arrumando a gola da camisa social azul que ele usava. Subiu o olhar para o rosto de seu único filho e suspirou pois não havia como negar. Ele estava exausto. – E cansado...?
- Você não faz ideia, mãe. – Ele fechou os olhos, aproveitando o carinho maternal e suave que a mulher fazia em seus cabelos penteados.
- Por que vocês não ficam em casa enquanto descansam? Aposto que a Malu vai entender. – Sugeriu.
- Não, faz uns dois meses que nossa única programação é pedir delivery e assistir série no sofá. Até eu já tô cansado disso, imagina ela. – Riu levemente. – Além disso, eu já comprei os ingressos mesmo.
- Awn, você é um bom namorado. – Ela sorriu e beliscou a bochecha dele, fazendo-o rir.
- Eu sou o melhor namorado. – Gracejou.
- Bom, leva a chave de casa que hoje eu vou dormir cedo, minhas costas estão me matando. – Reclamou, passando a mão na lombar e deixando o cômodo.
Calebe negou com a cabeça. A teimosia de Ana em ainda manter o nível de encomendas de roupas para costura e confecção o deixava irritado. Ele até que ganhava bem para um estagiário e podia muito bem dividir os custos da casa com ela, não eram gastos muito complexos, afinal. Mas ela ainda se negava a diminuir.
Mães sempre seriam mães.
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- Saiu cedo hoje de novo, não é? Desse jeito não vai parar em emprego nenhum. – A voz cortante de Andréia fez com que Malu apertasse a esponja ensaboada contra a louça com mais força a cada palavra. – E você sabe que hoje em dia sem estudo você não consegue nada.
- Eu tenho estudo. – Murmurou entredentes, passando a jogar os talheres de forma tensa e impaciente na pia.
- Um segundo grau, grande coisa! Até eu tenho isso. – Retrucou, ácida. – Parece que a gente perdeu foi tempo e dinheiro em todas aquelas escolas caras que a gente te colocou lá em Vitória.
Malu apertava os talheres na mão com força, se controlando para não responder de forma grosseira e acabar criando uma discussão sem necessidade. Aquilo já fazia parte da sua rotina. Andréia tinha seus momentos de sanidade e agradabilidade, mas 90% do seu tempo, ela usava para criticar, condenar, depreciar e reprovar Maria Luiza e, com o passar do tempo, só piorava. Mesmo que Malu estivesse ali, lavando a louça que ela sequer sujou, limpando a casa, fazendo compras e mantendo suas vidas funcionando, Andréia conseguia maldizer sua filha de várias maneiras.
Ela sequer notava o quanto ela era abusiva, autoritária e inconveniente, e Malu já não sabia dizer o que era Andréia, o que era sua mãe ou o que era o luto. Ela só sabia que era exaustivo ter que lidar com a personalidade bipolar de Andréia.
- Eu vou sair, não volto hoje. – Informou. Jogou os talheres na pia e lavou as mãos, puxando-as de volta aos sentir uma leve ardência. Malu nem notou que apertou tanto a faca que acabou criando um pequeno corte na palma da mão.
- Você não terminou de lavar a louça. – Andréia disse, colocando um cigarro entre os lábios e encarando-a, inflexível.
- Lava você. – Retrucou, firme.
A cólera subiu no corpo de Andréia rapidamente, que foi até a garota e disparou um tapa forte. Se Malu não fosse rápida e tivesse desviado, teria sido acertada no rosto, mas com o desvio, ela apenas sentiu a ponta das unhas em seus lábios. Andréia respirou fundo, segurando-se no lugar para não ir novamente até a filha, apenas cuspiu irritada: – Sua desaforada!
Malu subiu as escadas correndo até seu quarto e bateu a porta, trancando-a com a chave. Respirando ofegante, ela esfregou o rosto com as próprias mãos. Ela tinha vinte e um anos, não deveria mais passar por esse tipo de situação, não era obrigada. Pensou inúmeras vezes em sair de casa, ela até mesmo guardava uma quantia todo mês em uma poupança com essa vontade, um plano que nunca saiu do papel. Toda vez que Malu chegava ao seu limite e procurava outro lugar para viver, ela via seu pai. Conseguia escutar perfeitamente quando João dizia que, apesar de serem opostas, ela e a mãe nunca deveriam abandonar uma à outra e que sempre teriam e deveriam estar lá. Então, ela engolia em seco, respirava fundo e desistia.
Malu olhou no relógio em seu braço e percebeu que estava quase na hora de ficar tudo bem de novo. Ela encontraria Calebe e aí sim, tudo voltaria a ser o que era.
Correu para o banheiro e tomou um banho mais do que completo, fazendo tudo o que tinha direito. Lavou seus cabelos, hidratou a pele recém depilada e estava totalmente confortável com seu corpo naquele momento. Geralmente, os encontros deles era regados a cerveja, comida de rua, música alta e os amigos do bairro da Saudade. Porém, dessa vez, era diferente. Ela não sabe bem o porquê nem como, mas Calebe havia conseguido ingressos para um show de orquestra sinfônica no Teatro Estadual. Ela definitivamente teria que usar uma roupa diferente de shorts jeans e sandálias. E ele teria que deixar a camisa surrada do Fluminense em casa.
Enquanto finalizava seus cachos compridos em frente ao espelho, ela ouviu três batidas na porta. “Que não seja a mãe, que não seja a mãe!” Pensou, preocupada, não queria ter que ouvir mais comentários maldosos da mulher que acabariam com a sua noite antes mesmo de começar. Olhou na direção, hesitante e respondeu: – O-oi...?
- Sou eu. – Ela suspirou aliviada ao ouvir a voz de Calebe e foi até a porta, abrindo em seguida. – Por que você tá tranc...? Caramba. – O olhar dele percorreu o corpo de Malu da cabeça aos pés.
– O que você acha? – Ela perguntou, parando em frente a ele e dando uma volta no lugar. Malu estava deslumbrante, utilizando um macacão azul marinho com frente única, os cachos armados e a maquiagem marcada apenas nos olhos. Calebe sorriu docemente e levou as mãos ao cabelo, bagunçando-os.
- Acho que eu poderia ficar a noite inteira só te olhando e pensando que sou sortudo pra caramba! – Refletiu, tocando a ponta dos cachos perfeitamente moldados de Malu.
- É uma orquestra, Calebe. Um show de orquestra na porra do Teatro Estadual, não quero ir parecendo uma suburbana sem noção. – Explicou, virando de frente para o espelho novamente, procurando algum defeito em seu cabelo ou maquiagem.
- Amor, você é uma suburbana. – Refutou com um tom de obviedade.
- Sim, mas hoje quando a gente chegar lá e se sentar na terceira fileira com os ingressos caríssimos que devem ter custado um salário inteiro meu e nem 5% do seu, não seremos suburbanos. – Aproximou-se, passando a mão pela gola da camisa social que ele usava.
- Eu achei uma ótima ideia dois suburbanos como a gente invadindo o espaço dessa galera grã-fina. – Puxou-a pela cintura, acariciando sua pele a mostra.
- Umm, você fica uma gracinha quando prega a igualdade social. – Ela se aproximou e encostou os lábios no dele suavemente.
- E você vai me sujar de batom, mulher. – Reclamou, mas não afastou seus lábios.
- Você se importa? – Encarou seus olhos, provocativa.
- Eu não me importo nenhum pouco de beijar você, morena. Nunca me importei, nem irei. Sempre será um prazer e uma satisfa... – Ele não concluiu seu gracejo, pois ela grudou os lábios no dele, beijando-o ternamente.
Malu realmente não se importava com sua maquiagem, já que foi ela quem pediu passagem com a língua para beijá-lo da forma que queria desde o início do dia. Ele abraçou o corpo dela, apoiando as mãos em seu traseiro e inclinando-se levemente sobre ela.
- Continua me beijando assim e eu juro que rasgo esses ingressos e a gente fica aqui. – Ele alertou, fazendo-a rir e se afastar, indo retocar sua maquiagem. Tarefa que ela quase não conseguiu completar por conta dos beijos amorosos que Calebe deixava em sua costa a mostra pelo vestido.
- Fala sério.
- Puta merda, hein.
O casal de jovens suburbanos encarava um quadro da Semana de Arte Moderna de, pelo menos, uns 10 metros que estava pendurado na parede do hall principal do Teatro Municipal. O lugar era coberto de mosaicos decorativos revestidos com folhas de ouro por dentro e por fora. Nas paredes e no teto, dezenas de obras de arte e outros elementos decorativos. Era uma visão espetacular, sem dúvidas.
- É do tamanho do meu quarto. – Malu murmurou no ouvido do rapaz, fazendo-o rir.
- É do tamanho das nossas casas juntas. – Completou, exagerando.
Andaram pelo hall, que por si só, já era um passeio completo, pois parecia um museu de arte clássica. Malu sacou o celular da bolsa e tirou foto de algumas decorações em cristal que ela sabia que Ana adoraria ver. Calebe se distraiu com o folheto de apresentação da orquestra até ouvir seu nome sendo chamado de maneira animada.
- Calebe! Meu rapaz, eu não imaginava encontrar você por aqui.
- Seu Lisboa, boa noite! Como vai? – Sorriu, simpático.
Antônio Lisboa era um homem bom, cuja personalidade animadora e simpática não combinava com o posto de chefe. Trajava um terno cinza e um sorriso aberto, cumprimentando as pessoas como se passasse mais tempo ali do que na própria casa. Fora Antônio que deu a primeira oportunidade de estágio para um jovem Calebe, que levava nos braços um currículo fraco e uma indicação de seu professor, que era um dos melhores amigos do bancário.
- Muito bem, meu filho. Então foi por isso que você saiu mais cedo hoje? Você é um apreciador de música clássica? – O rapaz se controlou para não fazer uma careta, apenas negou com a cabeça, ainda sorrindo gentilmente.
- Pra falar a verdade, não sou. Mas ela gosta... – Calebe apontou para Malu a poucos metros, fotografando uma das obras de artes pintadas na parede do local. – E eu só faço o que ela manda. – Gracejou, fazendo o homem rir alto e chamar a atenção de Malu, que se aproximou sorrindo e cumprimentando o homem.
- Olá, boa noite! – Sorriu, amistosa.
- Então você é a moça que coloca esse rapaz no eixo? – Brincou, oferecendo um aperto de mão.
- Ah, eu tento, mas esse papel ainda é da mãe dele. – Respondeu, sorrindo.
- Namorados? – Seu futuro chefe perguntou para a garota, parecendo meio encantado com ela e seu jeito amigável.
- Desde os oito anos de idade, cê acredita? – Expressou, divertida. Calebe riu, mas caiu em si. Estavam juntos a dois anos e ele nunca fez um pedido oficialmente. Simplesmente ficaram juntos e passaram a se apresentar como namorados, a viver como namorados, simples assim.
- Ah, o primeiro amor! – O português sinalizou, sorridente. – Qual seu nome, querida?
- Maria Luiza. – Sorriu e estendeu a mão, simpática.
- Ah, minha filha se chama Maria. Você é uma moça muito bonita, Maria Luiza. – Elogiou, com sinceridade e respeito. – Com todo o respeito, é claro. – Virou-se para Calebe, que negou balançando as mãos.
- E ela é desde os oito anos, o senhor acredita? – Calebe brincou, passando o braço pela cintura de Malu, que sorriu tímida e agradeceu.
- Bom, eu espero que vocês se divirtam, a noite é uma criança e vocês não são mais. Foi um prazer vê-los, meus queridos. – Despediu-se de forma cortês e cativante, deixando Malu e Calebe ainda olhando para os cantos do teatro de maneira encantada.
- Quem é esse?
- Meu chefe, o diretor do meu setor lá no banco. – Calebe respondeu, entrelaçando a mão na dela e indo em direção a entrada.
- Só você mesmo pra vazar do trabalhar cedo, encontrar o chefe na rua e ainda se sair bem com isso. – Malu negou com a cabeça, sorrindo.
Ainda havia algo martelando na mente de Calebe, algo que até então ele não havia percebido e agora estava se amaldiçoando por conta disso. Como ele simplesmente não pediu aquela mulher em namoro? Como ele pôde negligenciá-la dessa forma?
- Quem disse que sou seu namorado? – Decidiu provocá-la enquanto procuravam seus assentos enumerados.
- Eu disse. – Respondeu, simples e confiante.
- E você decidiu sozinha? – Ele prendeu os lábios em um sorriso cínico.
- Sim. – Ela assentiu, sentando-se na cadeira acolchoada, cruzando as pernas e o olhando, furtivamente.
- E se eu não quiser? – Ele cruzou os braços, sentado ao lado dela.
- Devia ter pensado nisso um ano atrás. – Deu de ombros enquanto folheava a programação do show.
- Do jeito que tá, a gente vai casar e eu só vou descobrir no dia. – Zombou, divertido.
- Não, o casamento vai ser diferente. – Refutou de maneira segura e autoconfiante, olhando-o de soslaio.
- Vai? – Ergueu uma sobrancelha.
- Você vai me pedir em casamento.
- Ah, vou? E como você tem tanta certeza? – Sorriu, tentando debochar, mas no fundo estava amando tudo aquilo. Amava como ela tinha tanta certeza do futuro deles juntos. Ela deu de ombros e sem responder, voltou sua atenção para o palco.
As luzes se desligaram e ele notou o exato momento em que uma luz solitária se acendeu no palco e iluminou os olhos castanhos dela, evidenciados pela maquiagem. Calebe pôde jurar que nunca havia visto uma pessoa bonita tão de perto. Os longos cílios, que ele sabia que eram naturais, deixavam seus olhos com um aspecto sonhador enquanto ela ainda encarava o lustre azulado acima deles, refletindo uma cor totalmente diferente que ele ainda não havia visto em seus olhos. E isso era uma surpresa, visto que Calebe era quase um especialista em Maria Luiza.
Malu se sentiu como se fosse uma das obras de artes que lotavam o lugar. Mesmo que estivesse olhando para frente, ela conseguia sentir os olhos dele cintilando em direção a ela. E ela sabia que ninguém nunca havia a admirado tanto quanto naquele momento.
- Vou te contar uma coisa. – Ele se inclinou e murmurou no ouvido dela, fazendo-a se arrepiar e inclinar-se levemente. – Já que você decidiu que vou te pedir em casamento, eu decido uma coisa.
- O que?
- Você vai ter que aceitar. – Informou.
- E se eu não quiser? – Virou o rosto, encarando os olhos dele mesmo no escuro do cômodo, seus narizes quase se encostando devido à proximidade.
- Devia ter pensado nisso quando achou uma boa brincar de pega-pega comigo no meu aniversário de oito anos.
- O que isso tem a ver, garoto? – Sorriu, divertida.
- É que foi naquele dia que eu decidi. – Contou.
- Decidiu que ia me namorar? – O olhou com uma sobrancelha erguida.
- Não, prometi pra mim mesmo que ia casar contigo. Porque falando sério, - A olhou nos olhos, confiante e sincero. – Um dia, eu vou te pedir em casamento, Maria Luiza.
Malu sentiu seu coração bater tão forte que ele podia facilmente confundir com o soar da orquestra iniciando seu show. Era o efeito que Calebe ainda causava nela, mesmo que já estivessem juntos um período duradouro. De alguma forma, bem no fundo do seu coração, ela sabia que Calebe não estava falando aquilo da boca para fora ou fazendo alguma brincadeira boba, ela sabia que ele realmente acreditava que um dia ia pedi-la em casamento. Maria Luiza respirou fundo e disse:
- Um dia, eu vou aceitar, Calebe.
Calebe precisava admitir. A orquestra sinfônica havia dado um show e tanto, havia sido bom até para ele que não entendia nada de música clássica. Ele precisou limpar algumas lágrimas que escorriam pelo rosto de Malu algumas vezes ao longo da apresentação, principalmente após um soprano linda subir ao palco.
Ele não sabia muito bem o porquê, mas estava sentindo Maria Luiza meio instável naquele dia. Não o que ela fosse insensível ou fria, mas ela costumava mascarar seus sentimentos e reações. Fazia isso sem querer, era natural para ela. Talvez todas as vezes que sua mãe gritava para ela “engolir o choro” ou não ser tão “irritante” com todos aqueles sentimentos, tenham sido aos responsáveis por mantê-la dessa forma. Ela não era tagarela, mas definitivamente estava falando menos naquela noite. E várias vezes ele notou como ela estava se perdendo em pensamentos.
Quando deixaram o local, Calebe disse que ela poderia escolher qualquer lugar para jantar. Tinha guardado uma boa parte do seu salário para aquele dia, imaginou que gastaria um pouco acima do limite do seu controle financeiro. Mas Malu novamente o surpreendeu e como a boa periférica que era, ela pediu – e exagerou – alegando que morreria se não comesse um sanduiche de rua beirando a insalubridade. Ele quase agradeceu aos céus por isso.
Após alguns minutos tentando convencer algum taxista a levá-los para o bairro da Saudade, finalmente acharam um que não se importou em andar pelas ruas distantes e desconhecidas depois das onze da noite. No caminho, eles conversaram sobre a apresentação que haviam visto, sobre as pessoas, riram analisando as figuras inusitadas que encontraram pelo caminho. Entretanto, naquela noite estrelada, Malu estava mesmo se sentindo mais emotiva e, até mesmo, frágil. Não sabia dizer se era por conta do cansaço e dúvidas envolvendo seu emprego ou se a culpada era sua mãe e suas brigas intermináveis e palavras cruéis. Mas aquela parte ruim era bem menor em comparação com as partes boas que ela vivia com seu “pseudo-namorado”.
Ela virou o rosto, olhando-o enquanto ele observava a noite através da janela do carro. Sorrindo de lado, ela se deu conta de que se ficasse pensando muito nisso a noite acabaria sendo – novamente – sobre sua mãe e sua capacidade de não ser gentil. E ela não queria aquilo. Malu queria aproveitar a presença e o calor humano que Calebe a proporcionava. Notou que estavam sentados meio afastados e se aproximou, encostado o corpo nele e chamando a atenção de Calebe.
- O que foi? – Ele envolveu-a com um braço e passava carinhosamente a mão pelas costas desnudas dela até que os olhos dela se voltassem para ele.
Ela percorreu o olhar pelo rosto dele, analisando-o quase que minuciosamente. Calebe estava amadurecendo fisicamente, era possível ver. Ele tinha os olhos marrons como chocolate e as bochechas redondinhas, tinha um pequeno sinal próximo ao seu olho direito e uma cicatriz na sobrancelha que só podia ser consequências de alguma travessura infantil. Mas era possível ver que seu rosto estava perdendo algumas características juvenis. Além disso, era possível ver que ele estava acumulando algumas bolsas roxas debaixo dos olhos, indicando o cansaço e todo o sono que ele andava abdicando em troca de suas responsabilidades.
- Você é bonito, né garoto? – Admitiu, tocando o rosto dele com a ponta da sua unha comprida.
- Ué, só veio perceber isso depois de dois anos juntos? – Brincou, beliscando de leve sua pele na altura da costela, fazendo-a sorrir e dar um pulinho no lugar. – O que é isso? Tá dando em cima de mim?
Ela sorriu e não respondeu, apenas deu de ombros e delicadamente, ela apoiou uma mão na coxa dele e voltou a encarar a noite através da janela do carro. De canto de olho, ele olhou para baixo, tendo a excelente visão do decote de Malu e sua mão delicada fazendo carinho na sua perna com a ponta das unhas compridas.
Calebe podia até estar amadurecendo, mas ainda era homem. Não precisou mais do que o carinho distraído em sua perna para acendê-lo por inteiro por dentro. Ele levou a mão até o pescoço de Malu e levantou seu rosto apenas com o dedo indicador. Ela sorriu e fechou os olhos pois sabia que ele iria beijá-la. O beijo já era familiar para os dois, a forma como Calebe sempre sorria entre seus beijos era familiar, a língua dela percorrendo os lábios dele já era familiar.
Ele aprofundou o beijo com calma e vontade, descendo a mão do pescoço dela, tocando toda sua pele, até chegar à coxa. Mordiscando seu lábio inferior, Malu arfou quando sentiu a mão dele seguir para o caminho entre suas pernas e segurou o braço dele, agitada e nervosa com a possível e provável ação dele.
- Amor... – Ela sussurrou contra os lábios dele, repreendendo-o e encarando seus olhos marrons. Ele segurou o olhar no dela alguns segundos, decidindo o que faria em seguida. Olhou para a frente e notou que o motorista não parecia muito interessado neles. Na verdade, o homem sequer parecia estar prestando atenção na rua, parecendo estar com o pensamento longe.
E no fundo, ele não ligava se o cara perceberia ou não. Malu era uma mulher linda e estava extremamente bonita naquela noite. Apenas um beijo dela, um toque não proposital, fazia com que ele perdesse a cabeça. Ela estava tensa e emotiva, ele sabia. Precisava que ela lembrasse que Calebe até podia ser um cara responsável agora, mas não podia matar de uma vez o cara largado e descarado que ele era.
Virou-se para Malu e distribuiu beijos languidos em seus lábios grossos e pescoço. Suspirando contra a boca dele, Malu sufocou um gemido quando sentiu ele tocá-la da melhor forma possível por cima do tecido fino da roupa. Ela até tentou fingir que não estava disposta aquilo, mas estava sentindo um furacão de coisas dentro de si e fora também. Derrotada pelo seu namorado e por si mesma, ela entreabriu as pernas minimamente, deixando que Calebe trabalhasse para fazê-la sentir tudo que ele queria que ela sentisse.
- Eu odeio você. – Ela resmungou, retirando os sapatos e entregando na mão dele. Subir aquela ladeira tortuosa e esburacada de salto alto era tortura.
- Você me ama.
- Não, eu odeio. – Malu reclamava enquanto caminhavam até a barraca do lanche de rua na ladeira próxima ao bairro deles. Quase se enterrou no chão de vergonha e embaraço quando saiu do táxi. Sequer conseguiu olhar e agradecer ao motorista, com medo de que ele percebesse que ela estava com as pernas fracas e a roupa ligeiramente úmida em uma área específica. – Tô morrendo de vergonha.
- Eu falei pra você ficar quietinha. – Ele ria do embaraço da garota, que andava com a mão no rosto, negando com a cabeça, mas também sorria. Como de costume, Calebe estendeu a mão para ela. Malu ia entrelaçar suas mãos, mas lembrou-se do corte em sua mão e parou no meio do caminho, trocou de lado e estendeu a mão boa para ele. Calebe percebeu. – O que foi?
- Nada, essa mão tá meio machucada. – Respondeu, sem dar importância para o fato.
- Como? – Ele perguntou.
- Como o quê?
- Como você se machucou? – Insistiu, tentando pegar a mão esquerda dela, que encolheu o braço, o impedindo.
- Não sei, Calebe, devo ter tocado em algo, sei lá... – Despistou. – Vamos dividir um X? Ou você quer pizza? – Ela apontou para a barraquinha iluminada na calçada.
- Vamo dividir. Quer uma cerveja? – Perguntou, fingindo ter caído na sua resposta relapsa. Ela assentiu, indo sentar-se em uma das mesas de plástico espalhadas pelo local, mas mudou de ideia e apenas se encostou em uma mureta que dividia as ruas pavimentadas e um chão de areia e mato. – João, boa! Manda um X-tudo completo, por favor! – Pediu para o dono do carrinho, que já os conhecia e os cumprimentou assim que viu o casal chegar. – Tem uma cervejinha aí?
- Pra vocês que são da comunidade, tem sim! – O homem rechonchudo riu e pediu para um ajudante servir a cerveja para o casal.
- Obrigada, seu João! – Malu agradeceu. Calebe se sentou ao lado da garota na mureta passando um braço pelo ombro dela, já que a pele dela estava fria por conta do clima frio.
– Vai querer descer no pagode depois?
- Hoje não, amor. Tem problema? Se você quiser ir... – Ela sugeriu.
- Tô cansado, Malu. Pra ser bem sincero, eu só quero deitar um pouco.
- A gente come e depois vamos logo pra casa, aviso pra Alanne que não vamos hoje. – Informou, bebericando o copo de vidro preenchido com uma cerveja bem gelada.
- Ok... Então, desde quando você mente pra mim? – Malu paralisou e o encarou após a pergunta rígida que Calebe lhe fez.
- O que é isso? O que eu fiz?
- Você mentiu sobre esse machucado aí na mão. Eu não sei o que é, mas você claramente mentiu. – Proferiu, curioso.
- Ah, Calebe, não é nada demais. – Ela tentou pegar o copo de cerveja novamente, mas foi impedida por Calebe, que afastou o objeto das mãos dela.
- Então me conta, parece que você tá tentando não me contar. – Exigiu.
- Não estou! – Malu insistiu.
- Então, fala, amor.
Malu respirou fundo antes de abrir a boca para falar. Odiava passar a imagem de indefesa e magoada, não gostava de ter que contar que na frente da sua mãe, ela parecia uma menina de quinze anos que não sabia se defender. Mas não conseguia fingir que nada tinha acontecido, não com Calebe. Ele sempre sabia.
- É o mesmo de sempre. – Suspirou, desviando o olhar, envergonhada. – Minha mãe.
- Foi ela que...? – Perguntou, já começando a sentir seus nervos se alterarem. Calebe já havia notado e expos para a mãe que achava que Andréia estava ficando cada dia mais descontrolada e desequilibrada e Ana, apesar de sempre demonstrar preocupação, não levava a frente suas dúvidas.
- Não! – Ela respondeu rapidamente. – Ela ficou me falando um monte de besteiras hoje enquanto eu lavava a louça, acabei me distraindo e cortei a mão na faca. – Contou, cabisbaixa. – Eu disse, foi besteira, amor.
Calebe passou a mão nos cabelos, irritado. Toda semana – ou até mesmo diariamente – Andréia aprontava alguma com Malu. Era sempre a mesma história. Um dia ela estava bem, tratava todos com igualdade e até mesmo conversava com Malu. No outro dia, parecia outra mulher. Insensível, maldosa, intolerante e indiferente. E por muitas, muitas vezes, ela era violenta. Especialmente com Maria Luiza.
- O que ela falou pra você? – Quis saber, acariciando o ombro dela.
- O mesmo de sempre. Que eu sou burra, irresponsável, que não concluí meus estudos, que meu trabalho é uma merda e tudo aquilo que você já escutou dela tanto quanto eu. – Deu de ombros, aproveitando o carinho sensível dele em seus braços.
- Que merda, amor, eu odeio isso. – Confessou, balançando a cabeça. – Ela não devia se sentir no direito de falar assim com você.
- Ela é minha mãe, ela sabe que tem total direito disso.
- Não, Malu, isso não existe. Mães não deviam ser a causa das suas dores. – Contestou.
- Ela não me machucou, dessa vez. – Assumiu, distante.
- Ela te bateu? – Perguntou com as sobrancelhas arqueadas.
- Bom, ela tentou, mas eu corri. – Malu riu sem humor.
Negando com a cabeça diversas vezes, Calebe bateu a palma da mão na perna com um pouco mais de força que o necessário. Para ele, era inimaginável que alguém quisesse machucar Malu de propósito, mais loucura ainda pensar que essa pessoa era a mãe dela.
- Vem ficar comigo? – Sugeriu. – Pelo menos essa semana. Cê fica lá em casa, minha mãe não vai se importar.
- Não... – Ela negou. – Não precisa, eu dou um jeito. Você sabe que eu consigo resolver as coisas e e-eu...
- Não, Malu. Já chega. Você pega a culpa dela e põe em você e isso não é de hoje. – Lembrou, impaciente.
- Eu não gosto de incomodar, cê sabe.
- Não é incômodo, amor. Olha pra mim. – Puxou o rosto dela, olhando-a nos olhos de maneira inquisitiva. - Vem ficar comigo, deixa eu cuidar de você, tratar você do jeito que você tem que ser tratada. Não suporto te ver passando por aquilo naquela casa, não suporto o jeito que a tia Andréia te trata.
Malu tinha seus olhos cheios de lágrimas ao término do pequeno discurso de Calebe. Ela também estava cansada daquilo, mas não tinha como ir muito longe, não tinha nada que ela pudesse fazer. Se passar uma semana longe era a única coisa que ela poderia fazer, ela faria.
- Só uma semana. – Ela concordou, finalmente. Passou a mão pelos olhos, querendo esconder as lágrimas antes que elas caíssem.
- Só até a gente casar. – Ele gracejou, fazendo-a rir entre lágrimas.
- Você e esse papinho torto de casamento. – Empurrou o rosto dele de brincadeira e entregou o copo para ele.
- Não chama minha jura de amor de papo torto, mulher! – Beliscou sua cintura desnuda, fazendo-a pular no lugar, gargalhando.
Ela saiu da mureta e se posicionando entre as pernas dele, encostou seu corpo no dele e colocando os braços em volta do pescoço dele. Encostou os lábios nos dele gentilmente. Ele acariciava a costa nua dela enquanto a garota disparava beijos suaves pelo rosto dele.
- Eu juro que não sei o que eu faria sem ti agora. – Ela admitiu, murmurando contra os lábios dele. – Caramba, é ridículo o quanto eu sou dependente de ti pra certas coisas? – Questionou. Ele sorriu e colocando seus cachos para trás, acariciou o rosto fino dela com as duas mãos. – E você sequer me pediu em namoro! – Queixou-se, fazendo Calebe rir com gosto.
- Maria Luiza, eu não preciso pedir nada, porque você é minha namorada desde os oito anos de idade. Sempre foi e sempre vai ser minha namorada. – Admitiu, sorrindo apaixonada. – Até se um dia eu tiver outra namorada, você sempre vai ser minha namorada.
Ela cerrou os olhos e grudou o corpo no dele, beijando-o intensamente sem antes brincar, dizendo: - Se safou dessa, moleque.
Maria Luiza despertou assustada com o toque alto do despertador de Calebe, que aparentemente não causava nada nele, pois o rapaz ainda dormia como se o celular dele não estivesse gritando ‘demoníacamente’ na cômoda perto da cama.
Xingando mentalmente, ela esticou o braço e desligou o celular, ficando ainda mais brava por ver que eram 5h da manhã. Ela sabia da rotina árdua de Calebe e sentia orgulho por ele ser um estudante e profissional exemplar. Mas acordar as cinco horas da manhã após uma segunda-feira de “reunião” no novo apartamento de Vinicius era demais.
Malu acabou bebendo mais do que o necessário na noite anterior, ela e Alanne estavam muito empenhadas em beber todas as cervejas da casa. Talvez fosse isso que estivesse fazendo sua cabeça tilintar e informar que ela estava de ressaca. “Ressaca em plena terça-feira, Maria Luiza”, pensou.
- Calebe. – Ela chamou, pela primeira vez, balançando seu ombro levemente. – Amor. – Repetiu quando percebeu que ele sequer havia se mexido. Franziu a testa e massageou suas têmporas doloridas. Maldita cerveja barata! – Amor, acorda. – Chamou pela terceira vez em um tom mais alto, fazendo-o levantar a cabeça rapidamente.
- O que foi? Perdi a hora? – Em rápida ação, ele se levantou e se sentou na cama, procurando pelo seu celular.
- Desliga isso, pelo amor de deus! – Clamou, voltando a enfiar a cabeça debaixo do travesseiro.
- Caraca, que preguiça! – Resmungou.
Calebe esfregou o rosto, tentando espantar o sono e agitação. Constatou que ainda estava dentro do horário, mas estava morto de sono. Sentado a beira da cama, ele olhou para o lado, vendo Malu ressonando suavemente. Sorriu abobalhado ao pensar que ele amava aquela visão, vê-la dormir e acordar ao seu lado eram os pontos altos dos seus dias. Esticou a mão e retirou uma mecha cacheada que passava no meio do rosto bonito de Malu, que abriu os olhos com o contato.
- Bom dia, minha morena. – Emitiu, com a voz rouca. Acariciou o rosto dela enquanto ela esticava os lábios em um bico, jogando um beijo no ar para ele. – Dormiu bem?
- Com você, sempre. – Respondeu, simples e sincera, virando-se de lado e abraçando o travesseiro.
Calebe não conseguiu evitar abaixar o olhar para a barra da camisa masculina que ela usava, que subiu consideravelmente quando ela se moveu. Malu havia chegado tão indisposta e alcoolizada que sequer colocou um pijama, após o banho, ela colocou uma camisa de Calebe e dormiu rapidamente. Ele sorriu de lado, olhando para o traseiro farto de Malu. Pegou seu celular novamente para ver as horas e pensou: “É, dá tempo”.
Ele quase uma risada em si mesmo quando começou a aquecer seu braço e seu pescoço antes de curvar-se e depositar um beijo leve no quadril dela. Calebe assistiu todos os poros e pequenos pelos das pernas de Malu se arrepiarem, analisou atentamente a reação do corpo dela enquanto ele passava os lábios pela sua bunda de maneira suave. Primeiro ela mexeu os pés, depois afastou as pernas e não se demorou a voltar a apertá-las uma na outra.
- Não foi você que acabou de reclamar de preguiça? – Questionou com a voz arrastada, mas estava aproveitando os carinhos nada inocentes tanto quanto ele.
- Com você, nunca. – Justificou, replicando a mesma resposta que ela deu, fazendo-a sorrir.
Malu levou as mãos até os cabelos dele, arranhando-o levemente com as unhas afiada. Quando sentiu a língua quente dele encostar na pele já úmida de sua intimidade, Malu perdeu o resto de compostura que tinha e retirou o lençol que cobria ambos. Sorriu lasciva ao analisar a privilegiada visão que ela tinha da cabeça de seu namorado entre suas pernas às cinco horas da manhã em plena segunda-feira.
Seus olhos fecharam automaticamente e não demorou muito para ela gemer em satisfação e contentamento. Em seguida, Calebe subiu seu corpo e cobriu o dela, beijando-a com destreza. Segurando seu quadril com força, ele subiu a camisa dela e beijando seu pescoço, investiu sob ela com rapidez.
Com os corações disparados e a mente nublada pela sonolência e moleza, eles transaram de uma maneira perfeitamente confortável, cobertos pelos lençóis e travesseiros, disparando caricias e trocando palavras de carinho e proteção.
- Umm, bom dia pra você também. – Malu sussurrou, deitada sob o corpo dele e beijando a clavícula dele. – Achei que você não estivesse disposto.
- Eu também achei, mas dei de cara com isso... – Ele apertou as nádegas dela com força. – Foi melhor do que qualquer energético que eu já tenha tomado. – Riram juntos. – Não tem como minha semana ser ruim após isso. Nada é ruim com você. – Prendeu uma mecha de cabelo atrás da orelha dela, sorrindo.
Levando as mãos ao rosto do rapaz, ela o beijou intensamente, segurando seus lábios entre os dela quando ele tentava quebrar o beijo. Queria beijá-lo com paixão e desejo do jeito que ele fazia com ela, mas aquele beijo estava mais para amor e cuidado. Maria Luiza beijava Calebe com amor e ternura. Sua mente fazia com que a visão do homem e a lembrança dos momentos que estavam juntos ficasse voltando em sua mente. Seja ele dentro dela ou pegando em sua mão enquanto andando na rua, em um ato corriqueiro. Não tinha como negar.
- Posso dizer que te amo? – Murmurou de olhos fechados, embaraçada, sem querer ver a reação dele. – Cê não vai, tipo, sair correndo ou me botar pra fora? – Ele sorriu abertamente.
- Não se você abrir seus olhinhos e falar isso olhando pra mim. – Ele tocou nas pálpebras dela, uma de cada vez, até que ela abrisse os olhos. Encarando-o profundamente, ela hesitou. – Se você quiser eu posso falar primeiro, mas não é novidade pra mim, nem pra ninguém que me conhece que eu sou apaixonado por você e que te amo já tem anos e eu nem sabia.
Era possível amar primeiro e se apaixonar depois? Porque olhando-o ali, de cabelos bagunçados e lábios inchados, encarando seus olhos que pareciam chocolate, Maria Luiza sentia que tinha acabado de se apaixonar por ele, mesmo que já estivesse o amando.
- Eu te amo tem anos e eu nem sabia. – Repetiu, sincera.
O mundo podia explodir e o tempo parar, eles nunca se sentiram nada tão satisfatório na vida quanto aquele momento.
Ele não via nada que não fosse o sorriso perfeito de Malu, que o encantava e o confortava. Ela não via nada que não fosse os olhos que brilhavam intensamente e amava ser o um dos motivos que os olhos dele continuassem brilhando daquela forma. Era como se eles estivessem esperando por aquele momento há bastante tempo, como se fosse a primeira vez de novo.
Após muita enrolação de ambos os lados, Calebe decidiu que agora definitivamente estava atrasado, mesmo que tenha sido por um bom motivo. Ele sugeriu que ela continuasse dormindo, já que só trabalharia pela tarde naquele dia, mas Malu explicou que ela tomaria café da manhã com Ana e iria em sua casa. A proposta de passar a semana lá ainda estava de pé, mas ela quase não tinha troca de roupa, então precisaria ir até lá de qualquer forma.
Maria Luiza tomou café da manhã com Ana e dividiu uma fornada de pão de queijo com ela. Depois se preparou para caminhar de volta para sua casa, recebendo de Ana um beijo carinhoso na testa.
Malu sentia-se quase que com orgulho de si mesma enquanto andava pela Passagem das Flores, pois estava calma e serena. Antes, passar por ali era uma avalanche de emoções, cada flor a fazia lembrar de seu pai, cada cheiro distinto trazia de volta a memória dele brincando com ela na viela, inventando personagens e relendo livros infantis clássicos. Mas agora ela estava ‘reacostumada’ ao local, mesmo que ainda sentisse seu coração gritar quando via alguma flor especifica e recordava alguma história, fala, reação já esquecida pela sua própria mente e pelo tempo.
Agora ela finalmente andava pelas ruas do bairro com a confiança de quem havia sido nascida e criada ali, naquele pedaço de terra que não pertencia a ninguém e, ao mesmo tempo, pertencia ao mundo inteiro.
Entretanto, toda a sua confiança e segurança sumiu quando ela parou em frente a casa de madeira amarelada que foi seu lar por tantos anos. Sua própria casa lhe tirava toda a força que ela acumulou durante a semana que passou na casa de seu namorado. Respirou fundo antes de passar a chave pela porta e adentrar o lugar.
O choque passou pela sua feição em segundos. A casa estava uma verdadeira bagunça. Além do lugar estar inundado em uma escuridão devido as portas e janelas estarem todas fechadas, havia louças sujas espalhadas por todos os móveis da pequena sala, roupas emboladas pelo chão, além do forte odor pungente de comida estragada, lixo e cigarro, muito cigarro. Malu engoliu em seco, sem acreditar que aquela ali era a vida da sua mãe quando ela não estava por perto para manter as aparências, mesmo que tenha sido pouco mais de um final de semana. Malu esfregou o rosto, se preparando para o que iria enfrentar. Juntou seus cabelos em um coque e andou pela própria casa sem reconhecer de fato o local.
- Caramba... – Sussurrou, sozinha, olhando em volta.
Passou a ponta dos dedos pelo sofá empoeirado e isso só a deixou mais preocupada com o que ela encontraria nos outros cômodos. Por algum motivo, ela imediatamente pensou em seu pai, como sempre acontecia nos momentos em que ela sentia que seriam carregados de significância.
Andou rapidamente até a cozinha, chamando pela sua mãe. Malu soltou um arfar de surpresa quando entrou no cômodo e encontrou a mãe sentada em frente a pia, aparentando estar desacordada.
- Meu deus! – Exclamou e correu até a mulher, ajoelhando-se próximo ao corpo desacordado da mulher. – Mãe? – Ela tentou segurar a cabeça da mulher, que estava desconfortavelmente caída de lado. – Mãe, pelo amor de deus! – Chamou novamente, dando leves tapas no rosto de Andréia. – O que eu faço? – Questionou-se sozinha.
Chamaria uma ambulância? Tentaria acordá-la? O que tinha acontecido? Sentia seu coração bater rapidamente, assustada por ver a própria mãe daquela forma tão vulnerável e exposta. Sem obter respostas de Andréia, Malu fez a única coisa que passou pela sua cabeça em um momento como aquele. Pegou um copo de água que estava sob a pia e jogou no rosto da mulher.
- Ai! – Andréia despertou, tossindo e cuspindo o pouco de água que havia ingerido. – Tá maluca, porra? Quer me matar? – Resmungou, tentando levantar e se apoiando no corpo de Malu.
- Não, mas aparentemente você quer! – Malu passou a mão pelo rosto, sentindo sua visão ficar turva.
- O que aconteceu? – Andréia questionou, com a voz fraca, também passando a mão pelo rosto e sem força nas pernas para levantar-se.
Com as mãos no peito, Malu fechou os olhos, sentindo sua respiração cada vez mais ofegante. Tentou se concentrar em respirar, mas estava assustada e não conseguia se conter. Por um minuto, ela pensou que sua mãe estava morta e isso desencadeou nela dezenas de pensamentos e sentimentos contraditórios e um uma provável crise de ansiedade. Se sua mãe estivesse morta, ela seria órfã, seria sozinha, como ela cuidaria de si mesma sozinha? Mas espera, ela já estava fazendo isso? Em poucos segundo, Malu sentiu alívio ao pensar que tinha perdido a mãe, e depois uma culpa terrível, que a consumiu inteiramente.
- O que foi? – Andréia questionou novamente, fragilizada.
- Você a-apagou. – Respondeu, sentindo que já estava chorando.
- Eu só dormi, Maria Luiza. – Emitiu, duramente. Andréia estava com a cabeça para explodir de tanta dor, definitivamente tinha exagerado nos remédios para dormir aquela noite, mas ela se sentiu tão só, que precisou urgentemente dormir.
Malu largou a bolsa no chão e sentou-se, abraçando os joelhos. Tinha ido de 0 a 1000 numa rapidez desnecessária, sentia todos os seus membros tremerem, recebendo uma descarga de adrenalina que ela definitivamente não estava esperando. Sentia sua boca seca e se sentia sufocada como nunca antes.
Esperava do fundo do coração que ela conseguisse levantar e iria para o seu quarto, reuniria suas coisas e iria correndo para os braços de alguém da pequena família Martins, onde ela realmente era bem tratada. Mas antes que ela notasse, as palavras escorregam de seus lábios de maneira murmurada.
- Eu não posso viver assim...
- O que? Fala pra fora se quer que eu responda. – Andréia se levantou do chão com dificuldade, ignorando que sua única filha estava ajoelhada no chão com a cabeça entre as pernas, parecendo desolada.
- Eu disse que não posso viver assim, mãe. – Falou mais alto, endurecendo a voz. – A gente não pode viver assim. – Choramingou.
- Pois eu tô perfeitamente bem vivendo desse jeito, Maria. Me deixa em paz, vai. Eu não aguento mais toda vez essa mesma ladainha! – Andréia começou a aumentar o tom de voz, deixando Malu ainda mais retraída. – Se você não tá satisfeita, pega as suas coisas e some da porra dessa casa. – Advertiu, irritada.
Malu abriu e fechou a boca por alguns segundos, sentindo que aquela proposta era altamente favorável para ela. Pensou por dois segundos, as lágrimas caiam em seu rosto. Novamente, as palavras escaparam de seus lábios em uma pergunta para si mesma: – Eu posso?
Andréia levantou a cabeça, finalmente olhando para a filha, um pouco chocada. Não imaginava que Malu realmente levaria em consideração aquela opção e não sabia como se sentir sobre aquilo.
- Você... você quer? – Malu estava pedindo permissão, é isso? – Você quer ir embora daqui, Maria Luiza?
Queria.
Malu queria sair dali mais do que tudo no mundo. Queria outra casa, um outro lar. Um que fosse só seu, um que não fosse assombrado com lembranças antigas e tristes, que não fosse lotado de ameaças, hostilidade e incertezas. Queria sua paz. Porém, ela olhou em volta e viu a bagunça na casa. Havia louças, garrafas, cinzas e bagunça por todo canto. Olhou para o chão emporcalhado e oleoso, olhou para as paredes empoeiradas e olhou para sua mãe.
Tudo estava uma bagunça, incluindo ela. Seus lábios estavam extremamente ressecados, seus cabelos, que tinham os cachos tão definidos quanto o de Malu, estava completamente distante do ninho de pássaros em sua cabeça.
Queria muito ir embora, mas nunca poderia. Não assim. Não com a casa assim, não com a sua mãe assim e, principalmente, seu pai nunca faria isso. Então, engolindo o choro, o orgulho e suas vontades, ela negou com a cabeça, fingindo que a coisa que menos queria era sair de casa.
Era óbvio que ela estava mentindo, qualquer pessoa notaria. Mas Andréia fingiu que não estava enxergando dessa forma, pois apesar de está desorientada mentalmente, seu coração apertou só de pensar em mais um jeito de perder sua filha. Ela não poderia se deixar abater, se ela caísse, Malu cairia com ela. Ela não se perdoaria. Então, lidou com a situação do melhor jeito que sabia lidar, mesmo que esse fosse o seu pior. Ela fingiu que não ligava.
- Então se levanta daí e deixa de drama.
04 anos juntos.
Sabe quando dizem que em um ano tudo muda? Que uma vida inteira muda em um ano? Maria Luiza não havia experimentado isso. Naqueles quatro anos de relacionamento, ela e Calebe tinham conseguido elevar as expectativas de qualquer solteiro que convivesse com eles. Eram um casal parceiro, eram responsáveis e trabalhadores, companheiros um do outro, eram amigos e tinham um ótimo senso de humor juntos. Eram quatro anos de intimidade, amizade, amor e cerveja gelada.
Naquele período, Malu cortou o cabelo, engordou, emagreceu, quebrou um pé, deu PT, tentou começar uma faculdade online e não deu certo, tentou vender doces e até havia conseguido umas notinhas com isso, mas não era algo que ela almejava além do que o dinheiro na conta. Ela trabalhou como vendedora, operadora de caixa, babá, manicure, secretária, massagista, acompanhante de idosos e recepcionista de um petshop. Muito para uma pessoa que estava beirando seus poucos vinte e cinco anos. Muitos empregos, nenhuma profissão.
Malu sentia que nunca havia realmente se encontrado em algo que ela faria para o resto da vida. Nada parecia certo e ela ainda se sentia como um fracasso quando notava que seu salário sempre era o menor na rodinha de amigos.
Enquanto Malu trocava de emprego a cada semestre, Calebe trocava de posição no banco onde havia começado seu estágio, sempre subindo um degrau. A alguns meses atrás, Calebe finalmente havia se formado na faculdade e com isso, veio a efetivação no emprego. Ele passou de vendedor para agente comercial em uma rapidez quase suspeita, muitos até achavam que ele era filho de algum empresário ou tinha algum contato na empresa.
Calebe havia recebido uma proposta extraordinária, ele estava sendo cotado para a se tornar um supervisor júnior na unidade matriz do banco. Era incrível, de fato. Um menino oriundo de escola pública, recém-formado, com uma chance dessas em mãos. Era realmente espantoso, admirável e inegável. Só havia um porém. A matriz era em Guarulhos, na distante, fria e cinza cidade de São Paulo.
Uma cidade que não tinha passagens floridas, não tinha Ana e não tinha Maria Luiza.
Para Calebe, futuro residente, a cidade não era nada cinza, o frio não o incomodava, mas a distância era sua pior inimiga. Ele não teria problemas com a socialização, Calebe era carismático e educado. Mas ele sentiria falta dos seus amigos de verdade, sentiria falta de Vinicius e suas bobagens, de Tiago, de Renan, de Alanne. Sentiria muitas saudades de sua mãe, apesar de falar com ela sempre, mais de uma vez no dia por diversas vezes. Toda essa comunicação que ele não estava tendo com Malu.
Desde o início das negociações acerca da efetivação de Calebe, ela já sentia que algo iria ficar diferente e ele já a sentia indiferente. É claro que ela se ressentia, ela sentia que era a grande culpada de seu relacionamento estar desastroso e indiferente. Ela estava distante, estava enciumada das oportunidades que ele estava recebendo, mas principalmente, estava com medo. Malu tinha medo de perder seu relacionamento perfeito, aquele que causava inveja em qualquer um que acreditasse um pouco em romances. Tinha medo de não dar certo, de como lidaria com as novas situações e novas dinâmicas entre eles, como suportaria a saudade. Eram muitos receios, que Malu não podia (ou não conseguia?) comentar.
- Você tá me matando. – Ele murmurou, de braços cruzados. O casal estava na cozinha da casa dele, limpando a pequena mesa após um jantar de comemoração para seus amigos mais próximos, oferecido por Ana.
Ana era o orgulho em pessoa naquele dia. Ela nunca imaginou que conseguiria criar uma criança sozinha, então assistir Calebe crescendo na vida de uma maneira invejável a deixava imensamente orgulhosa e profundamente feliz. Mesmo que ela sumisse de casa quase todas as tardes por motivos, até então, ocultos, Ana ainda era mais do que presente na vida de Calebe.
- O que eu fiz agora? – Malu proferiu com a voz baixa, focada em secar os pratos lavados. Estava exausta mentalmente, eles estavam naquela guerra fria desde o início do mês. Ela só conseguia relacionar que aquele recente medo de perda e separação que ela havia adquirido só podia vir da morte precoce de seu pai, que ela nunca havia superado. – Eu literalmente não falei nada.
Malu sabia que ela estava fazendo tudo errado, que estava indo contra seus próprios conselhos de manter uma relação saudável com um bom canal de comunicação, mas algo naquilo estava deixando-a temerosa.
- Exatamente! Eu tô indo embora, vou pra outra cidade e você não falou nada, Maria Luiza! – Esbravejou.
Após uns goles de vinho, ele estava muito próximo de se descontrolar, mas precisava manter em mente que não estavam sozinhos. Ana e Andréia estavam na sala e seus amigos estavam no quintal. Estava um clima ruim em todos os cômodos, mas nada comparada ao clima desagradável e triste na cozinha.
- Olha pra mim, Malu. – Calebe implorou, fazendo-a engolir em seco e abandonar as louças na pia, encarando-o com os olhos lacrimejados. – Amor, eu preciso que fale, eu não aguento mais esse teu silêncio.
- O que você quer que eu fale? – Ela não aguentou a pressão que os olhos castanhos dele faziam nela e abaixou o olhar.
- Sinceramente? Quero que você me peça pra ficar. – Assustada, ela levantou a cabeça, procurando algum vestígio de embriaguez no rosto dele. Ela não achou. – Pede e eu fico. Largo tudo e fico aqui com você, a gente compra um sobrado, vende lanche na rua, eu não sei! Você só precisa falar.
Ele deixaria aquela oportunidade escorrer entre seus dedos se fosse deixá-la mais feliz, ela sabia disso, todo mundo sabia. Malu nunca poderia fazer isso com ele, não poderia fazer isso com Ana. Ela abriu a boca, mas antes que conseguisse responder, Tiago veio acompanhado de alguns rapazes, adentraram o cômodo, informando que estavam de saída. Ela virou de costas e voltou-se para a pia, fingindo que estava lavando a louça apenas para não olhar ninguém.
Calebe desviou a atenção para falar com os amigos e nem percebeu Ana entrando na cozinha. A mulher acenou para os amigos e foi até Malu enquanto Calebe acompanhava os amigos até a saída.
- Deixa essa louça aí, vou pegar o resto da mesa lá do quintal e pode deixar que eu lavo. – Ana informou e Malu não conseguiu responder, parecia que estava com um bolo na garganta. – Malu?
- Tudo bem, tia. – Emitiu, baixinho, ainda sem olhar para a mulher.
- Malu. – Chamou novamente. Malu subiu o olhar e franziu o cenho ao ver a feição pesarosa e sofrida de Ana. – Se você pedir, ele fica. – Ana acariciou o rosto de Maria Luiza, sabendo que quebraria o coração dela naquele instante. – Não pede, Malu.
Dito isso, Ana beijou a bochecha da garota e saiu, indo até o quintal. Malu arfou e fechou os olhos, fazendo com que as lágrimas saltassem de seus orbes. Apoiou os antebraços na pia e abaixou a cabeça. Aquilo era um pesadelo. Estava perdendo seu namorado, definitivamente não pensou que estaria passando por isso e sequer cogitou a ideia de que a felicidade e realização profissional dele seria o motivo de sua infelicidade. Mas é claro que ela nunca o atrapalharia. Seria infeliz para sempre se isso significasse que ele estaria realizado os sonhos dele.
Malu sentia-se desnorteada. Deu três voltas na cozinha até decidir ir até a sala. Andréia estava sentada no sofá, fumava um cigarro e assistia ao filme que estava passando na madrugada daquele sábado. Uma das únicas coisas que não havia mudado naqueles anos tinha sido o relacionamento de Malu com sua mãe.
Ela tinha uma séria desconfiança que a mãe havia desencadeado uma síndrome de bipolaridade e já havia pedido que a mulher procurasse por ajuda profissional, mas nunca foi atendida. Na última vez que citou o assunto, Andréia jogou uma garrafa em Malu, que nunca mais insistiu no assunto.
Andréia olhou para a filha de soslaio e a chamou com a mão para sentar-se ao seu lado. A mulher ofereceu o cigarro aceso para Malu, que franziu a testa. Ela já havia fumado, mas não havia criado o hábito, como sua mãe, que já era viciada. Antes que ela negasse, Andréia contou e justificou: – Eu ouvi.
Ela não especificou o que havia escutado, mas seja qual fosse a pauta, Malu definitivamente estava precisando de um cigarro. Suspirando derrotada, ela pegou o cigarro, tentando tragar uma vez e acabando numa tosse quase interminável. Sem pensar muito e sem se importar se seria enxotada dali, ela se deitou no sofá, com a cabeça apoiada nas pernas de Andréia. Foi uma surpresa que ela tenha recebido cafuné por cinco minutos inteiros.
“Se já perdemos a noção da hora,
se juntos já jogamos tudo fora,
me conta agora como hei de partir.
[...]
Se nós nas travessuras das noites eternas já confundimos tanto as nossas pernas,
diz com que pernas eu devo seguir”.
Eu Te Amo – Chico Buarque
Maria Luiza sempre se questionava se existia certo ou errado em uma situação como aquela. Se questionava se os sacrifícios sempre teriam que ser feitos, mesmo que nem todo mundo estivesse disposto. Ela buscou pela resposta certa que nunca veio. A imagem do semblante confuso e decepcionado de Calebe não saia da cabeça de Maria Luiz, contribuindo para que ela se sentisse a pior pessoa do mundo.
Naquela mesma noite, após a abordagem severa de Calebe, a jovem buscou forças nas palavras de Ana e no inusitado colo de sua mãe para engolir suas palavras de dúvidas e seus pensamentos de incerteza. Malu o abraçou, o beijou e disse que os sonhos dele também eram os dela, que juntos eles podiam fazer qualquer coisa, que ela o amava o suficiente para passar por aquilo.
Ela não estava sendo sincera e Calebe – que se considerava um especialista nela – notou. Ele não sentiu raiva por ela estar claramente mentindo para ele, Calebe sentiu tristeza por saber que ela estava se forçando a dizer o que ele queria escutar. E ela estava se esforçando para sentir aquilo, mesmo que estivesse obviamente contra.
Odiava ver como ela estava engolindo seus sentimentos e reações para apoiá-lo. Ele lacrimejou quando viu o choro moderado dela após fazerem amor pela última vez antes da sua partida. Malu não merecia aquilo, ele a queria junto dele. Pensou em chamá-la para ir junto com ele, mas ele não conseguiria sequer cogitar a ideia de colocá-la numa situação de incerteza, afinal, ele sequer sabia se conseguiria o emprego.
Tudo aquilo era uma tentativa, que se não desse certo, ele voltaria para sua casa sem pensar duas vezes. Era nisso que ele pensava quando estava se punindo além do que o necessário. Foi com esse sentimento melancólico e consternado que ele entrou no ônibus em busca de uma nova vida para si.
Malu e Calebe conversaram bastante. Fizeram acordos importantes para que ambos soubessem lidar com a distância, a privação e certas situações que envolviam a nova logística entre eles. Malu se esforçou muito. Por ela, por Ana e, principalmente, por Calebe. E durantes os três meses que estava fora, ela tentou muito seguir a vida, agora sendo parte de um relacionamento a distância. E eles até que estavam conseguindo um bom resultado.
Mas tudo mudou naquela terça-feira. Pois foi naquela manhã de chuva no final de outubro que Maria Luiza decidiu que ela e Calebe não seriam mais um casal.
Tudo começou quando Ana avisou que iria almoçar na casa de Malu e Andréia. Aquelas almoços e jantares se tornaram quase diários. Malu e Ana tinham receio de que sem Calebe por perto, elas se afastariam uma da outra, então, elas estavam lutando para isso não acontecer. Quando Malu saiu de seu quarto pela primeira vez no dia para organizar um almoço apresentável, ela sentiu ânsia ao pisar na sala.
“Eu não acredito que isso é minha vida agora. Que porra que eu fiz de tão errado?” Malu pensou enquanto recolhia as dezenas de latas de cerveja e bitucas de cigarro em cima do sofá e jogava as dentro de um saco plástico. Ela sentia que sua vida tinha se tornado – ainda mais – lamentável depois que Calebe foi embora.
Sentia-se desamparada e miserável. Sua vida social havia diminuído drasticamente, a pequena loja em que trabalhava declarou falência e ela foi demitida, ela basicamente só conversava de verdade com seu namorado de noite e sem falar na vida sendo filha de Andréia.
- Desde quando você bebe tanto assim? – Malu questionou, irritada.
- N-em foi tanto. – Andréia balbuciou e soluçou uma resposta.
- Mãe, levanta daí e vai tomar um banho. – Sugeriu. – A gente tem visita daqui a pouco.
- Quem?
- A tia Ana.
- Ah, me poupe, Malu. – A mulher quase não conseguia se colocar de pé. – A Ana nem é visita. Eu vou é dormir, me acorda quando a comida estiver pronta.
Muitas vezes, Malu escolhia suas batalhas. Todos os dias ela engolia o sapo de conviver com alguém complicada que nem Andréia e todos os dias, ela engolia em seco tudo o que queria falar e o que gostaria de rebater, pois não valia a pena, nada iria mudar e ela ainda iria se estressar sem necessidade. Mas tudo naquele dia estava propício ao desastre.
- Oi? Virei sua empregada? – Esbravejou, largando o saco de lixo no chão. Ela queria muito se conter, mas estava de TPM, o clima feio e chuvoso a deixou irritada e com saudades de seu namorado. Ela acordou com o pé esquerdo naquele dia, ela tinha o direito. Então, não. Ela não conseguiu se conter.
- Eu fiz comida pra você durante anos e nunca me recusei. – Andréia a encarou com um olhar cortante. – Esse é o seu problema, você fala demais.
- Quer saber? Eu vou avisar a tia Ana que não tem condições hoje. Não assim. – Esfregou a testa e tateou o bolso em busca do celular, mas antes que ela pudesse ligar, a campainha tocou.
- Não perde a oportunidade de me afrontar! – Andréia continuava a praguejar enquanto Malu correu até a porta. Assim que abriu encontrou Ana, enrolada em um pano e segurando uma sombrinha.
- Tia! Veio na chuva? – Malu ajudou a mulher a entrar na casa e não pôde deixar de notar que ela estava meio pálida. – Você tá bem?
- Oi filha, tô sim! Vim correndo pra fugir da chuva e acabei... – Ana parou de falar e puxou uma lufada de ar antes de continuar. A boca dela estava seca e a pele pálida e Malu notou que suas mãos tremiam. – Déia, oi!
- Chegou bem na hora, Aninha! – Andréia tentou levantar-se do sofá, dessa vez, com êxito. – Bem na hora de assistir essa daí que você tanto defende sendo uma moleca ingrata.
- Já chega, mãe. – Malu repreendeu, duramente e virou-se para Ana, levando-a até o sofá cuidadosamente. – Senta aqui, tia. Você chegou cedo, ainda nem organizei nada...
- Eu vim mais cedo porque... – Ana novamente puxou o ar, que parecia nunca vir. Malu franziu o cenho, estranhando.
- É claro que não organizou nada, essa aí acordou tarde. Além de desempregada, agora virou preguiçosa! – Ana praguejou. Malu sentiu seu sangue ferver. Fechou as mãos em punho e virou-se para sua mãe, pronta para entrar naquela batalha.
- Mãe, cala a boca! Você não tá vendo que a tia Ana não tá se sentindo bem? – Exclamou, alto.
- Você tá mandando quem calar a boca, sua fedelha? – Ana gritou de volta.
- Você! Eu tô mandando você calar a boca, sua inconveniente!
- Chega... – Ana ordenou, fracamente, quase um murmúrio.
- Você não é ninguém, sua ingrata. Quem tem que calar a boca é você, que não faz nada...
- Eu não faço nada? – Malu interrompeu, gritando. – Mãe, olha pra essa casa, olha essa imundice, olha pra você! A gente parece que vive no lixo, você tá vivendo igual uma mendiga, cheia de trapo e fedendo a cigarro. Quem é você pra falar de mim? Quem faz essa porra desse almoço todo dia sou eu enquanto você dorme nesse sofá imundo, AH! – Foi interrompida pelo tapa forte em seu rosto.
- Déia! – Ana exclamou. No sofá, Ana olhou assustada para a interação entra as duas. Ela sabia das brigas explosivas entre Malu e sua mãe, mas nunca havia presenciado. Ela levantou a mão, pronta para apartar a situação, mas novamente, ela não sentia o ar entrando em seus pulmões. Quanto mais ela puxava, mais agoniante a situação ficava. Infelizmente, era uma sensação que Ana conhecia bem.
- Você cala essa boca ou... – Andréia berrava enquanto segurava os braços de Malu. Sem intenção, ao tentar se soltar, Malu acabou dando uma cotovelada no rosto da mãe. Completamente cólera e alcoolizada, Andréia levou as mãos rapidamente para o pescoço de Malu. – Ou eu vou fazer você engolir sua língua. – Malu se debatia e tentava empurrar os braços de sua mãe, que apertavam seu pescoço com uma força quase absurda. – Tá calada por quê? Continua falando merda pra mim, continua.
- Andréia, pelo amor de deus! – Unindo todas as suas forças, Ana se levantou do sofá. – L-larga ela...
Não chegou a completar pois ela perdeu a consciência com a mesma potência que ficou de pé. Andréia e Malu olharam assustadas para o corpo desfalecido de Ana. Mãe e filha se olharam assustadas e correram em direção a mulher.
O cheiro reconfortante da chuva predominava o ar e esfriava os corredores abertos do Pronto Atendimento da unidade do bairro da Saudade. No corredor aberto, o vento frio balançava as arvores, que batiam contra a janela. Em um dos bancos de espera espalhados no local, estavam as três mulheres sentadas. Andréia, Ana e Malu, respectivamente. Ana, que chegara desmaiada no lugar, já estava medicada e bem consciente.
Não havia demorado tanto para conseguir atendimento ou ser avaliada pois ali pelo menos 50% dos médicos e enfermeiros já conheciam Ana, já estavam cientes do que fazer em casos como aquele. Ela fazia tratamento ali a alguns anos e ninguém sabia. Até aquele dia.
- Desde quando? – Malu cruzou os braços para se proteger do frio e do baque por conta da notícia.
- Tem uns meses. – Ana respondeu, inexpressiva.
- Qual é o nome mesmo? – A voz bêbada de Andréia questionou.
- Fibrose pulmonar.
- Deixa eu ver se entendi. – Malu levantou e puxou os cabelos, buscando ter clareza das informações. – Você tá em uma fila de transplante e nunca falou pra ninguém? Nem mesmo pro seu filho? – Ana não respondeu, apenas continuou com a cabeça baixa, sentindo-se encurralada. Não esperava que aquele dia chegaria. – Que puta cagada você fez, tia.
- Malu! – Ana repreendeu-a pelo linguajar.
- Ela tá certa, Ana. Você fez merda.
- Disse a mulher que a meia hora atras estava enforcando a própria filha. – Ana empertigou-se com a afirmação de Andréia.
- Mas eu tenho histórico de ser burra, você não. – Rebateu de forma engraçada, quase arrancando um sorriso das duas mulheres ao seu lado.
- Eu fiz por ele, Déia. Ele nunca iria embora daqui se soubesse o que tava acontecendo. – Ana virou-se para Malu. – Você sabe disso, você tem noção do quanto ele trabalhou e quanto ele merece tá onde tá agora. Ele precisa ter uma vida boa e digna pra quando eu não estiver mais aqui. Além do mais, eu devo viver a vida normalmente enquanto espero o pulmão, sou sortuda de não precisar ficar internada em um lugar como esse. Ele estar aqui ou não, no final, não faria diferença pra mim. Mas ele lá, faz toda a diferença.
Malu e Andréia se entreolharam, ainda pensativas e assombradas com as notícias. Ana estava correndo contra o relógio contra uma doença que diminuía drasticamente seu tempo de vida e em busca de um transplante que diminuiria suas chances de 40% para 60%. E Calebe não sabia. O menino que vivia e morria pela sua mãe não sabia de nada.
- Bom, é melhor a gente ir. – Andréia levantou-se.
- Ah, meu deus! O Calebe! – Ana bateu com a mão na testa, parecendo recordar de algo.
- O que tem ele? – Malu perguntou.
- Ele tá vindo!
- Ele o quê? – Malu exasperou-se.
- Por isso que eu fui até a casa de vocês. Ele ia até lá fazer uma surpresa na hora do almoço, eu não devia falar nada, mas...
- Tia, você tem que contar. – Malu interrompeu, preocupada.
- Não!
- Ana... – Andréia tentou, mas foi ignorada.
- Não vou contar, nem ninguém vai. – Apontou, categórica. – Eu não tô pedindo, eu tô implorando! Por tudo que eu já fiz por vocês duas, por toda a consideração que vocês têm por mim. Eu vou falar no tempo certo, só não hoje.
- Eu não vou falar nada. – Andréia se pronunciou. – Eu entendo. Do fundo do meu coração, eu entendo. – A fala sincera de Andréia fez Malu se questionar se alguma vez na vida ela já tinha feito algo assim por ela.
- Malu? – Ana se virou para ela, temerosa.
- Tia, você tá me pedindo pra mentir pro meu namorado. – Insistiu.
- Não, estou pedindo pra você ajudar e dar suporte a uma amiga. – Ana contradisse.
Malu suspirou profundamente, passando a mão na testa. Tudo o que ela menos queria no momento era aquele tipo de responsabilidade, ainda mais sabendo que estava prestes a ficar frente a frente de Calebe. Apesar disso, ela entendia o que Ana estava passando. É claro que não havia comparação, mas ela também havia omitido muitas coisas e seus próprios sentimentos de Calebe em função de ele aproveitar as oportunidades melhor.
- Você não é só minha melhor amiga, também é minha família, tia!
Assim, no corredor de um hospital público, as três entreolharam-se e firmaram um acordo silencioso em prol da decisão de Ana e do bem-estar de Calebe. Aguardaram a confirmação médica de que Ana estava liberada e, após Ana adicionar as duas como seus novos contatos de emergência, seguiram de volta para o bairro da Saudade.
Já estava anoitecendo, a chuva ainda caia lá fora e dentro da casa de alvenaria azul, o cheiro reconfortante de comida caseira estava no ar. As cenas do dia infernizavam Malu, ela sentia que estava com uma sobrecarga emocional terrível, onde tudo que ela queria e precisava fazer no momento, era chorar no canto da sala. Ao invés disso, ela estava sentada paciente e confortavelmente no colo de Calebe na poltrona da sala enquanto ele compartilhava com ela e a mãe as coisas que aprendeu, o que passou e o que conseguiu em São Paulo.
O som das vozes deles chegava de forma abafada aos ouvidos dela, que encarava o nada com uma expressão pensativa e desligada. Andréia ainda estava ali, mas agora ela dormia no sofá, coberta por uma manta de Ana, já que a mulher mal conseguia se manter de pé depois do dia agitado e da bebedeira sem limites.
Malu parecia sentir sua cabeça pesar quase fisicamente por ter tantos pensamentos intrusos. Apesar de estar morrendo de saudades de seu namorado, tudo o que ela mais queria era ficar sozinha e pensar. Se sentir confortável com a ideia de mentir para ele, pensar no quanto seu coração sangrava só de imaginar Ana adoecida e pensar no quanto sua mãe a machucou naquele dia.
- Malu? – Ela despertou de si mesma com o chamado de Calebe. – O que foi? Cê tá bem?
- Tô, sim, amor. Desculpa, tô um pouco cansada. – Respondeu, forçando um sorriso e se levantou. – Vou arrumar a mesa.
- Deixa que eu faço isso, Malu. – Ana sugeriu.
- Não, tia. Fica aí aproveitando o seu filhote. – Brincou, mas precisou engolir em seco quando sentiu um nó na garganta ao falar.
Ela só conseguia pensar que Calebe estava aproveitando sua mãe e passando todo esse tempo ao lado dela, sem saber a real situação, sem saber o que estava acontecendo. Seus olhos marejaram, mas ela virou-se de costas e foi para a cozinha de Ana no mesmo instante.
As cenas de Ana no hospital estavam maltratando a mente de Malu. Ela ficava lembrando da mulher desacordada e de como foi estranho que toda a equipe já soubesse de algo, menos elas, suas acompanhantes.
Tudo a incomodava naquele momento. A leve ardência em seu pescoço a lembrava que ela não tinha qualquer apoio para aquele momento, sua mãe havia se tornado uma mulher bipolar, agressiva, depressiva e provavelmente alcoólatra. Sua sogra – a mulher que mais cuidava dela no mundo – estava sentenciada a uma vida de restrições e hospitais. E para piorar, ela estava escondendo tudo isso do cara que ela amava.
O medo de perder Ana, a repulsa pelo comportamento de sua mãe e seu afastamento de Calebe uniram-se a todas as incertezas que Malu sentia sobre sua própria vida, sobre si mesma e sobre quem ela queria ser. Assim que a garota arrumou os pratos na mesa para o jantar que deveria ter sido almoço, antes de ir à sala avisar que estava tudo pronto, ela foi para o banheiro e chorou.
- Só deus sabe o quanto eu tava sentindo tua falta. – Malu aproveitava os carinhos de Calebe de olhos fechados, se permitindo sentir e desfrutar do jeito que ele a tratava.
Após o jantar, Ana decidiu deitar-se e ficar vigiando Andréia no sofá enquanto Malu e Calebe foram para o quarto dele, desfazer as malas e aproveitar do pouco tempo que teriam sozinhos.
- Você devia ter me avisado que vinha, Calebe. – Murmurou.
- A surpresa ia perder a graça. – Respondeu, beijando seus lábios suaves antes de sentar-se na sua cama.
Malu não estava com muita energia para sexo e Calebe pareceu notar isso, então não forçou a barra, nem tentou nada além dos beijos, que ela recebia de bom grado. Na verdade, Malu parecia meio aérea e desligada, Calebe se perguntava o motivo disso desde que chegou em casa e olhou-a nos olhos.
- Você tá tão quietinha... – Comentou, esperando que ela continuasse falando.
- Desculpa, amor. Você pegou a gente de surpresa, só isso.
- Aconteceu alguma coisa? – Ele insistiu. Malu pensou antes de responder e decidiu contar meia verdade, até porque ele não desistiria ao vê-la tão depreciativa naquela noite.
- Tive uma briga feia com a minha mãe hoje, só isso. – Contou, abraçando seus próprios braços.
- Quão feia? – Ele questionou, pois, sabia que as coisas entre elas saiam dos limites. Malu apenas jogou seu cabelo para trás e mostrou a marca avermelhada em seu pescoço. Ele se levantou rapidamente, indo até ela e tocando em seu rosto, virou levemente para analisar melhor e abriu a boca, chocado. – Caral...
- Não tá tão ruim assim, tá tudo bem. – Ela se afastou antes que ele fizesse uma cena como das outras vezes.
- Amor, sério, isso tá passando dos limites. – Ele coçou a cabeça, reflexivo. – Na verdade, isso só me dá mais certeza do que eu vim fazer aqui. – Malu franziu o cenho, confusa e curiosa. – Eu vou voltar, Malu.
- O que?
- O que? Você vai o quê? – Perguntou, intrigada. – Como assim?
- Vou voltar pra casa. – Os lábios de Malu se abriram de surpresa. Ela não esperava por aquilo. – Tá foda lá, Malu.
- C-como assim? Eu achei que tava tudo certo...
- E tá! A cidade é até legal, eu me dou bem com o pessoal da empresa, mas ando sentindo muita falta daqui, você não tem ideia! Sinto falta de tudo, Malu, do pessoal, da minha mãe e principalmente, especialmente!, de você. – Ele contou e se aproximou, pegando o rosto dela entre as mãos. – É uma tortura ficar sem ver você por lá.
- Amor, só foram três meses, é uma fase de adaptação e... – Tentou, mas foi interrompida.
- Eu tô decidido, Malu. Vou precisar ficar mais uns dias lá, pra resolver a burocracia, mas depois eu volto. Por isso decidi vir, pra contar meus planos pra minha mãe, claro, mas pra te contar que eu acho que a gente tem que fazer isso juntos.
- Isso o que? – Ela já se sentia ofegante.
- Tá mais que claro que não dá mais pra você morar com a sua mãe e eu pensei em... – Ele parou subitamente ao ver o rosto dela contorcido e os olhos cheios de lágrimas. – Malu?
Ela entrou em pânico. Calebe não podia fazer isso, não agora. Ele precisava do emprego, ele precisava do dinheiro e, principalmente, precisaria do plano de saúde empresarial. E Ana precisava vê-lo lá, conseguindo algo maior do que um emprego no bairro. Malu precisava fazer algo, sabia que ele não mudaria de ideia nem por um segundo, a não ser que...
- Você tem que ficar lá. Eu não vou conseguir com você aqui. – Murmurou, afastando-se dele e sentindo seu coração se quebrando aos poucos.
- Conseguir o que? – Franziu o cenho, confuso. Ela virou de costas para ele, fechou os olhos e balançou a cabeça negativamente. Malu não acreditava que estava fazendo aquilo.
- Eu quero terminar, Calebe.
Nunca, em um milhão de anos, ela pensou que estaria dizendo aquelas palavras naquele dia. Era mentira, pura e total mentira. Tudo o que ela menos queria era ficar sem ele.
- Você o que? Tá maluca, Malu? – Enunciou, alarmando, puxando-a pelo braço e fazendo com que ela o encarasse de frente. – Não faz assim, não precisa fazer isso só pelo que eu falei, v-você... o que tá acontecendo? – Calebe se engasgou com as palavras, confuso. Malu estava com a expressão sofrida e perturbada, e agora, chorava.
- Não, eu já vinha pensando nisso tem um tempo... – Malu não conseguia segurar as lágrimas e chorava quase soluçando, sentia seu coração dilacerado.
Era totalmente o contrário. Quanto mais tempo ela passava longe de Calebe, mais ela tinha certeza de que queria ficar com ele sempre. Os dias eram intermináveis e sufocantes sem ele, o tempo parecia não passar e era doloroso. Mas não importava o quanto ela queria ser egoísta, não importava o quanto ela o amava, Ana o amava muito, muito mais. Ana merecia muito mais. Ela merecia ver o filho dando o seu melhor no trabalho, ela merecia receber todo o crédito por ele ser o menino prodígio que tanto se orgulhava. Sempre ela.
- Você tá mentindo. – Calebe murmurou, aturdido.
- Não tô.
- Você tá mentindo! – Gritou, assustando-a. – Eu digo que quero voltar e você termina comigo? Por favor! Que merda você tá fazendo? O que tá acontecendo? – Questionou, alarmado enquanto Malu abaixava a cabeça e chorava.
- Calebe, por favor. – Chorou pela terceira vez no dia, dessa vez tendo como plateia um Calebe totalmente descrente do que estava acontecendo.
- O que? Desculpa, mas eu não consigo entender, não consigo acreditar, Maria Luiza. Se eu não viesse hoje...
- Eu ia ligar mais tarde. – Revelou, ainda de cabeça baixa, trêmula.
- Ai, meu deus...
Calebe começou a andar pelo quarto, nervoso. Não conseguia acreditar, o dia havia começado da melhor maneira possível e agora tudo estava virando um pesadelo. Ele tentava ver algum sinal de confusão no rosto de Malu, mas não conseguia enxergar nada além de tristeza e lástima. Ofegante, ele passou a mão no rosto e tentou pensar racionalmente. Ele a faria mudar de ideia, ela só estava confusa pelo tempo longe, é isso.
- Por que essa decisão tão repentinamente? Você quer terminar comigo por causa da distância? Porque se for, eu acabo com isso. Não saio mais dessa casa, a gente fica junto e...
- Não é isso. – Malu fechou os olhos, respirou fundo e negou com a cabeça. Seria difícil. – Não é a distância, é tudo, é um acúmulo de mágoa, cansaço e... – Ela já não tinha certeza se estava mentindo ou citava tudo o que vinha sentindo nos últimos meses.
- Você só deve tá sentindo saudades, eu entendo, a presença física faz diferença...
Calebe estava com os olhos vermelhos, talvez estivesse segurando a vontade de chorar com muita força, mas ele não se permitiria enquanto não tivesse certeza do que Malu estava fazendo. Calebe, que já estava alarmado, se desesperou quando Malu ergueu o rosto e respondeu, melancólica.
– Tem sido melhor pra mim... sem você. – A boca de Calebe se entreabriu, ele sequer conseguia disfarçar o seu choque com as palavras de Malu. Ela, por sua vez, respirava ofegante, nervosa com os fatos que aconteciam. Ela não havia se preparado para aquilo, estava agindo na impulsividade e, com certeza deveria haver alguma solução melhor. Ela só não conseguia pensar em nada no momento. – Não dificulta as coisas pra mim. – Emitiu num sussurro gélido e fraco.
Calebe puxava seus cabelos e andava de um lado para o outro, ainda descrente do que estava acontecendo. Toda sua confusão foi virando raiva e mágoa, logo, ele se viu gritando.
- Você-cê não quer fazer isso! É RIDÍCULO! – Gritou sem se importar com as lágrimas querendo fugir de seus olhos.
- Amor... – Ela falou, se corrigindo rapidamente por utilizar o apelido habitual entre eles. – Calebe, não piora, já tá sendo tudo tão difícil... – Pediu, pesarosa. – Não tava tudo bem, você sabe disso.
- Porque eu não tava presente, mas agora eu tô, Malu! Agora eu quero e vou ficar! – Insistiu. – Desculpa, mas eu não consigo acreditar em você. Você conheceu alguém? É isso? – Questionou.
- Claro que não, Calebe! – Empertigou-se.
- Então qual é o seu problema?! – Berrou.
- Eu quero que você volte de onde você veio! Quero que você vá pra aquela porra daquela cidade e não volte tão cedo! – Era definitivamente o que ela queria, mas não do jeito que ele estava pensando, não do jeito que ela fez soar.
- É isso? – Calebe carregava um sorriso de escárnio, profundamente magoado. – Eu não sei de onde veio isso, nem porque você tá fazendo isso, mas porra, você vai se arrepender tanto, Maria Luiza!
- Calebe... – Ela iniciou, mas foi interrompido por um Calebe carregado de cólera e rancor em sua voz.
- Quer saber? Eu não vou mais dificultar nada, já ouvi o bastante de ti! – Ele deu as costas a ela e marchando em passos duros e rápidos, abriu a porta do seu quarto. – Vai embora.
Malu não conseguia parar de chorar. Mesmo sabendo que ela era a culpada por aquela situação, ver Calebe expulsá-la de dentro de sua casa era algo extremamente terrível para ela. O casal se encarou por alguns segundos, Calebe não conseguia entender de onde vinham tantas lágrimas e tanta tristeza dos olhos de Malu. Não conseguia entender a decisão tão repentina. Entretanto, o objetivo dela havia sido atingido. Ele não via a hora de ir embora.
Malu correu para fora do quarto rapidamente, sem olhar duas vezes no rosto de Calebe, pois não suportaria, seria demais para ela. Ele bateu a porta com força quando ela passou. Chorando, Malu entrou na sala em busca de sua bolsa e assustou-se ao encontrar sua mãe, antes adormecida, em pé próxima ao sofá, encarando a porta do quarto de Calebe com uma feição espantada, Malu imaginou ser por conta dos gritos. Imediatamente, ela olhou em volta, procurando por Ana.
- Cadê...?
- Tá no quarto. E-ela não ouviu. – Andréia respondeu, estarrecida. – Malu... O que você foi fazer, filha?! – Questionou de forma maternal e compadecida.
Andréia soube que precisava engolir todas os seus caprichos e levar sua filha para casa quando, em um pranto quase desesperado, Malu respondeu: – Eu estraguei tudo, mãe, mas... Ela é minha melhor amiga.
De fato, além de ser família, Ana era a melhor amiga de Malu a tempos e seguiria sendo.
Passaram alguns meses desde o término inexplicável e desolador de Malu e Calebe. Ela quase não recebia notícias dele, pedia que Ana não compartilhasse pois era doloroso demais para ela. Inclusive, quando Ana soube do término, ela mesma quis ligar para Calebe e contar tudo o que havia acontecido, mas Malu a convenceu que aquilo não era culpa dela, que a separação já era algo que passava na mente dela. Malu estava sentindo muita facilidade em mentir para todos. Eles se falaram poucas vezes após o término e uma dessas vezes foi apenas Calebe pedindo confirmação de que ela realmente queria aquilo.
Dezembro chegou e com a época natalina vieram também tempos muito, muito difíceis.
A saúde de Ana estava cada dia mais debilitada. Era triste notar como ela parecia mais franzina, emagrecida e frágil a cada dia que passava. Houve um dia que Malu a encontrou fraca e quase desacordada na porta de sua casa e se desesperou. Naquele dia ficou claro que Ana não podia morar sozinha e desde então Ana passou a viver na casa de Malu e Andréia. Por conta dela, Malu e sua mãe decidiram dar uma longa pausa nos seus problemas de convivência uma com a outra e focaram em ajudar e acolher Ana.
Todo dia que Malu ouvia Ana conversando com Calebe pelo celular, ela sentia uma culpa arrebatadora, por estar inserida naquela mentira absurda. Calebe sequer imaginava o que acontecia com sua mãe e muito menos que agora ela praticamente morava com sua ex-namorada.
- Você parece tá tão cansada, Malu. – Alanne comentou, acariciando os cabelos cacheados de Malu, que repousava a cabeça nas pernas da amiga. – Tá acontecendo alguma coisa? Desde que você e Calebe terminaram eu não te vi mais aproveitando e fazendo algo por você mesma.
Após uma semana cansativa de longas caminhadas pelo centro entregando currículos e ajudando Ana e Andréia a fazerem tudo em casa, Malu chorou de saudades de sua antiga vida, onde ela saia aos finais de semana com seu namorado e seus melhores amigos, curtindo e se divertindo pelas ruas do bairro, sem se importar de estar desempregada ou pensando em formas diferentes que uma pessoa pode morrer. Foi assim que ela decidiu que precisava de um colo amigo e correu para a casa de Alanne, que a recebeu de braços abertos.
- Tá acontecendo de tudo, amiga. – Confidenciou, chorosa. – Eu preciso te contar umas coisas que tenho escondido esses tempos, mas você não pode comentar com ninguém, nem com o Pedrinho. – Pediu, sentando-se.
- Claro, amiga! Você sabe que pode confiar em mim, o que aconteceu?
Malu suspirou profundamente e começou a relatar a saga que estava vivendo desde o início do ano e Alanne escutou atentamente, sentindo-se impotente e preocupada a cada trecho que Malu narrava. Alanne sempre comentava com Pedro – agora seu namorado – que achava injusto o quanto a vida era abusiva com sua melhor amiga. Malu era uma boa pessoa e sempre tentava melhorar, mas o universo parecia adorar colocar a garota em situações complexas e dramáticas.
- Caraca, Malu! Por que você não me contou antes? Eu poderia tá te ajudando desde o início disso tudo! Você mal falou sobre o término direito e agora... Sei lá, amiga. – Alanne mexeu nas tranças nagô que portava e negou com a cabeça. – Isso é injusto, Malu.
- O que?
- Tudo isso. É injusto com você e, principalmente, é injusto com Calebe! – Opinou.
- Eu sei disso, Alanne. Todo dia isso me mata um pouco, sei que fiz merda, sei que eu deveria ter ido em outra direção, mas agora já é tarde e eu não sei como continuar, nem se devo...
- Você tem que conversar com a tia Ana, ela vai pirar se souber que você tá fazendo isso! – Sugeriu, preocupada.
- Nem pensar. A tia tá bem fraca, amiga, chega dar dó. Não preciso encher a cabeça dela com minhas besteiras.
- Mas Malu... – Alanne ia falar, mas parou para refletir e não conseguia mais opinar de maneira assertiva.
- Tá tudo bem, amiga.
- Não tá, Malu, mas não sei nem o que te falar, nem como te ajudar. – Lamentou-se.
- Eu sei como. Empresta seu ombro pra mim eu chorar um pouco e depois prepara aquela pipoca doce que só você sabe fazer? – Alanne riu e abriu os braços, acolhendo um Malu em um abraço que só uma grande amiga conseguiria dar.
Não resolveria seus problemas, nem curaria suas dores, mas seria um alívio e uma recarga de bateria da vida.
Quando chegaram na metade do segundo pote de pipoca doce, o celular de Malu vibrou, avisando que tinha uma mensagem de Andréia, que dizia apenas “a Ana não tá legal”. Malu saiu em disparada para sua casa, quem a via correndo pela rua nem imaginava o que estava acontecendo. Ao chegar em casa, Malu encontrou Andréia apreensiva na sala enquanto observava Ana deitada no sofá, respirando com muita dificuldade. Malu sequer pensou duas vezes, imediatamente, ela informou: - Vamos pro hospital.
Não costumava chover tanto naquela época, mas Malu observou que toda vez que colocava os pés naquele hospital, o mundo parecia cair lá fora.
Assim que chegaram na Emergência, Ana foi colocada imediatamente em uma maca e instalado um cateter nasal de oxigênio. Foi avaliada pelos médicos plantonistas que insistiam em mandá-la de volta para casa, mas Andréia relatou que todos aqueles dias a respiração de Ana diminuía cada vez mais, logo, Malu foi chamada para dar entrada do processo de internação de Ana, sendo classificada como acompanhante e parente mais próxima. “É minha nora”, insistiu Ana.
Enquanto Malu aguardava a liberação de leito, sentou-se ao lado da maca de Ana e ficou acariciando a mão da mulher, extremamente preocupada com os rumos que tomaria dali em diante. br>- Malu? – Chamou baixinho, chamando-a com a mão.
- Oi, tia, tô aqui! Tá sentindo alguma coisa? – Levantou-se, aproximando-se da mulher cuja voz estava debilitada pela falta de respiração.
- Eu não quero morrer sem que ele saiba da verdade. – Enunciou, hesitante e debilitada. – Chama ele.
Malu fechou os olhos, respirando profundamente. É claro que a tarefa de contar toda aquela história trágica e infeliz para Calebe seria dela. Mesmo odiando a ideia, Malu assentiu, com os olhos cheios de lágrimas. Não queria contar para Calebe, não queria que ele viesse e não queria que Ana morresse.
- Já volto. – Informou, beijando a testa da mulher e avisou que chamaria Andréia, que fumava do lado de fora, para ficar em seu lugar. Ana segurou sua mão e questionou algo silenciosamente, que Malu acreditou ser a confirmação de que ela poderia fazer isso. – Tudo por você, tia. – Murmurou, arrancando um sorriso emocionado de Ana.
Malu encarou o céu por alguns segundos, pedindo força e clareza para qualquer divindade que estivesse ciente do quão nervosa e consternada ela estava. Com medo e ansiedade saindo pelos seus poros. Naquela hora a chuva estava mais amena e não tão forte quanto antes, deixando o clima mais brando. Respirou fundo e pegou seu celular, discando o conhecido número sem nem olhar na agenda.
- Alô? – Ela paralisou. – A-alô? – A voz de Calebe vacilou. Ele sabia que era ela, mesmo que tivesse apagado seu número na hora da raiva.
- Calebe?
- Oi, Malu. – Respondeu, hesitante.
- Oi... – Pigarreou, ansiosa. – Desculpa tá te ligando.
- Não, imagina. Só tô... surpreso. – Confessou. – Tem um tempo que a gente não se fala.
- É... – Concordou. Balançando a cabeça rapidamente, ela decidiu ignorar todo aquele sentimento bom que tinha quando ouvia a voz dele. – Então... Eu vou ser direta, tô precisando conversar com você.
- Ér... Tem que ser agora? Tô meio atolado com papel aqui e...
- Tem que ser agora, Calebe. – Afirmou, séria. Fez-se um breve silêncio do outro lado da linha.
- Aconteceu alguma coisa?
- Sim... Quer dizer, não, é que...
- Você não tá grávida, né, maluca? – Brincou, arrancando um sorriso tímido dela.
- Claro que não, Calebe – Respirou fundo e decidiu contar de uma vez a acabar com aquela agonia. – É sobre a tia Ana...
- Aconteceu alguma coisa com a minha mãe? – Perguntou, exasperado.
- Fica tranquilo, tá? A gente tá no hospital, ela passou mal. Ela já tá bem e medicada. Mas parece que vamos precisar internar e estamos aguardando leito. – Contou, rapidamente, mordendo os lábios nervosamente.
- M-mas... Como... O que? – Ele nem sabia por onde começar a perguntar. Já estava em pé, andando de um lado para o outro no pequeno sobrado que ele alugou para ficar. – O que aconteceu?
- Olha só, tem muita coisa que eu preciso te contar, é melhor você dar um jeito de vir pra cá, Calebe. – Foi sincera, sabia que se ficasse de meias palavras iria piorar sua situação.
- Malu. – Calebe insistiu, queria ao menos uma breve explicação do que estava acontecendo longe dele.
- A tia Ana tá doente, Calebe, e isso já vem acontecendo a um tempo.
A linha ficou em silencio durante alguns segundos. De um lado, Maria Luiza apreensiva, do outro, um Calebe completamente apavorado. A ideia de sua mãe adoecida enquanto ele estava longe o aterrorizava, ele temia muito não estar para apoiá-la enquanto estava longe e, de fato, isso acabou acontecendo.
- Por que ninguém me contou? – Questionou, impassível e seco, do jeito que Malu temia que ele ficasse.
Ela olhou pela fresta da porta da enfermaria, observando o rosto abatido de Ana, que tentava sorrir enquanto Andréia falava algo ao pé de seu ouvido e acariciava seus cabelos curtos. Ela sorriu com olhos cheios de lágrimas e decidiu, que mais uma vez, ela aceitaria ser a “malevolente” da história.
- A culpa é toda minha, Calebe.
Maria Luiza não era uma pessoa que se abatia por qualquer coisa. Ela se considerava bastante forte e resiliente. Entretanto, ao se olhar no espelho do banheiro do hospital, ela mal se reconhecia como pessoa. Apesar de toda a situação – que ela mesma havia se colocado – tirar seu sono e sua paz, nada se comparava ao medo e terror que sentia ao pensar que estava perdendo mais uma pessoa em sua vida.
Tudo a preocupava. Além de não saber exatamente como ela iria se sustentar caso algo de ruim acontecesse com Ana, ela não sabia como lidaria com Calebe, nem com Andréia.
Sua mãe provavelmente surtaria de novo e com razão. Perder o marido e sua melhor amiga não era algo fácil de se superar, ainda mais quando você já tem um histórico ruim com perdas e falecimentos. Malu sentiria um baque grande pois tudo aquilo a fazia lembrar de seu pai, e perderia sua tia, a mulher que a acolhia em seus braços amorosos toda vez que ela precisava.
Mas antes de tudo isso, antes de Ana ser tia e amiga, Ana era mãe. Era seu trabalho em tempo integral, ser mãe era sua grande paixão. E o coração de Malu se quebrava só de pensar que, provavelmente, Calebe perderia sua mãe.
Malu rolou os olhos quando sentiu que estava chorando novamente. Já estava exausta disso, “só consigo chorar e fazer merda”, pensou lastimosa. Jogou água no rosto e esfregou bastante, tentando remover qualquer vestígio de sentimento em seu rosto, pois agora, ela precisaria colocar uma máscara impassível, já que iniciaria uma difícil conversa com seu ex-namorado. Saiu do banheiro, angustiada e se sentou no corredor ao lado de sua mãe.
- Eu já vou indo, logo o horário de visita acaba e o Calebe vai querer ficar essa noite. Vai ficar aí? – Andréia informou ao sair do quarto.
Ana já havia sido transferida para um hospital que era referência em trato respiratório e tinha um programa de transplantes e tratamentos excelentes. Um hospital que apenas o plano de saúde do emprego de Calebe conseguiria oferecer. Em um quarto individual com vigilância 24h, Ana estava sendo extremamente bem tratada e esse fato por si só já fazia com que Malu não se arrependesse totalmente de seus atos.
- Só mais um pouco. – Murmurou, abatida.
- Conversa difícil, né? – Malu assentiu, ansiosa. – Bom, te lembra que a última vez que a gente esteve em um hospital foi bem mais difícil do que qualquer conversa que você vá ter agora. Se você passou por aquilo, você consegue hoje também. – Malu refletiu um pouco e caramba, era um conselho totalmente utilizável.
- Obrigada, mãe, que bicho te mordeu? – Não resistiu a brincadeira.
- Não me provoca, garota. – Andréia resmungou, mas acabou sorrindo. – Não demora, vou fazer o jantar. E quando digo fazer...
- Vai pedir pizza, eu sei. – Malu riu, negando com a cabeça. – Se quiser me esperar chegar, eu posso fazer algo.
- Não, você vai chegar chorando um rio inteiro. – Zombou, rindo e logo em seguida, se despediu e saiu.
Apreensiva, Malu ficou mais alguns minutos esperando no corredor. Não quis entrar no quarto novamente pois imaginou que Calebe queria conversar com a mãe a sós. Ele chegou na cidade em uma velocidade recorde, suas malas estavam no quarto, inclusive. Ele sequer foi em casa, foi imediatamente ver sua mãe. Sobressaltou-se quando Calebe abriu a porta do quarto e a chamou com a cabeça. Ela olhou no relógio e percebeu que só teria tempo de se despedir antes de alguma enfermeira aparecer para informar que o horário de visitas estava no fim.
- Minha menina. – Ana chamou, esticando o braço. – Vem aqui me dar um abraço.
- Ih, o que foi? – Malu sorriu divertida, mas aceitou o abraço enfraquecido da mulher.
- Eu dei muito trabalho pra ela, sabia? – Se dirigiu ao seu filho, que apenas assentiu. – Ele tá bravo com a gente, Malu. – Fingiu um sussurro como se estivesse contando um segredo.
- Bom, ele tem razão, né tia? – Murmurou, mas não se prolongou, queria sair logo daquele lugar, que parecia que a sufocava. – Eu tenho que ir, já passei do horário.
- Tá bom, meu amorzinho. Você sabe que eu não tenho como te agradecer por tudo que voc... – Ana começou a falar, mas foi interrompida por Malu.
- Não precisa disso, você sabe. – Malu acariciou o rosto angelical da mulher e sorriu. Ana era uma mulher fora de série, não dava para negar. De uma bondade incrível, ela era a segunda grande referência feminina da infância de Malu. E ultimamente, ela era a maior referência humana dela. – Te cuida, viu. Faz tudo direitinho aí, quero você em casa logo, tia! – Beijou seu rosto carinhosamente.
Ela engoliu em seco ao ouvir Calebe avisar a mãe que sairia por alguns minutos e logo voltaria. Eles caminharam em silêncio até o pátio aberto do hospital, lado a lado. Malu estava quase que desesperada para pular nele e abraçá-lo, mas não tinha como, não com aquele clima.
- Eu conversei com ela. – Ele iniciou quando pararam um de frente para o outro, encarando-se veemente. – Ela me contou basicamente tudo. Mas agora eu preciso saber da verdade e é você que vai me contar. Algo me diz que o nosso término também tem a ver com isso, não é?
Malu soltou uma lufada de ar, como se tivesse corrido uma maratona. Estava com medo e nervosa, mas agora não tinha mais para onde fugir. No fundo, ela estava ansiosa para contar tudo e não ter mais segredos com Calebe.
- N-no dia que você veio, no dia que... – Ela iniciou, meio tremula, sem saber sintetizar muito bem suas palavras.
- Que a gente terminou. – Ela respirou fundo, querendo gritar com ele até que acabasse toda aquela rispidez. – Quer dizer, que você terminou comigo.
- Naquele dia, a tia Ana passou muito mal. Ela foi almoçar em casa e, apesar de já chegar ofegante, acabou piorando quando ela assistiu minha mãe me batendo. Ela desmaiou e quando levamos ela pro hospital, todo mundo parecia saber de tudo o que tava acontecendo. Então, ela contou pra gente da fibrose e que tava na fila de espera dos transplantes...
Malu contou tudo o que tinha acontecido nos últimos meses. Contou que Ana morava com elas, que elas se ajudavam no tratamento e todo o resto. Mas não chegou ao que ele queria ouvir.
- E hoje eu não sei muito bem o que aconteceu, eu tava na Alanne e a minha mãe ligou. E acabamos aqui, o resto cê já sabe... – Ela foi diminuindo o tom de voz, sentindo-se estranhamente intimidada pelo olhar compenetrado dele.
- Quase tudo isso, a minha mãe me contou. Mas sobre a gente, ela diz que não sabe nada e me briga até hoje por conta disso. O que tá me deixando confuso é... – Ele esfregou o rosto com força, tentando organizar as ideias do que queria falar e descobrir. – Você descobre que minha mãe tá doente e termina comigo? Que lógica estúpida é essa, Maria Luiza?
- Eu já tava meio surtada desde o dia que você foi embora porque... Eu não queria que você fosse embora. – Confessou, já se sentindo chorosa.
- E por que você não falou? Eu te dei tantas oportunidades, Malu, tantas! Eu perguntei várias vezes, a gente conversou tanto... – Malu continuou em silêncio, apertava os lábios como se aquilo fosse impedi-la de falar o que tinha acontecido de verdade. Calebe insistiu. – Por que você não me falou?!
- P-porque... – Sob os olhos fixos e intensos de Calebe, Malu decidiu que toda aquela falta de comunicação já tinha ido longe demais e levado a situações definitivamente complicadas. – Porque a tia Ana pediu, Calebe.
Calebe bufou, negando com a cabeça. Ótimo, mais uma coisa que as duas haviam escondido dele. Calebe não conseguia sentir raiva da sua mãe por conta de toda a situação com ela, isso acabava deixando ele sentir tudo o que realmente queria contra Malu.
- Sério, eu nem sei o que pensar sobre.
- Ela sabia que eu não queria que você fosse e sabia que se eu pedisse, você ficaria. – Continuou.
- Eu ficaria. – Confirmou, baixinho.
- Eu sei disso e ela também. Ela me pediu pra te deixar ir e eu deixei. – Admitiu, quase envergonhada. Malu estava preocupada com os rumos que aquela conversa estava tomando e onde ia parar. Só queria ser sincera desde o início e faria isso agora. – Mas aqueles meses todos foram um inferno sem você! Eu ia te pedir pra ir junto ou pra você voltar, qualquer coisa pra te ver de novo, mas aí...
- Aí vocês descobriram. – Deduziu, balanceado com as palavras dela e o jeito sincero que ela estava falando.
- E tudo mudou. – Malu completou. – Já não era mais por mim, por capricho e orgulho meu. No dia que você chegou falando que queria voltar, eu surtei, por tudo o que já tinha acontecido antes de você tá aqui. A tia me pediu pra não contar nada pra você e eu jamais pensei que conseguiria.
- Eu podia tá aqui!
- Ela precisava de você lá. Além da tia Ana tá precisando dessa vitória de te ver bem na vida, ela precisava disso aqui, Calebe! Tratamento de ponta que só um plano de saúde bancário pode oferecer pra quem precisa de um transplante. – Frisou, de forma impactante.
- Tinham outros meios. – Enunciou, irritadiço.
- Mas pra mim, naquele dia, naquele momento, não tinha! Tudo ia dar errado se você ficasse aqui. – As lágrimas começaram a surgir em seus olhos.
- Tinham outros meios! – Repetiu, exclamando alto.
- Se tinha ou não tinha, pouco me importa agora! Você faria o mesmo, faria qualquer coisa que ela pedisse, tudo o que eu fiz foi por ela, Calebe! Mas agora, não faz mais diferença. Se eu tiver que te pedir desculpa por alguma coisa, te peço por esconder que ela tava doente esses meses todos, eu errei nisso. Todos os dias eu me colocava no teu lugar e pensava que era terrível não tá perto da nossa mãe em um momento assim. Mas não peço desculpas por mais nada além disso.
- Nem por terminar comigo? – Ressentiu-se. Malu fechou os olhos, fazendo com que algumas lágrimas caíssem.
- Eu sei que eu fiz a coisa certa, Calebe. – Ela limpou as lágrimas de seu rosto, não queria que ele sentisse pena, apesar de ver que seu choro já havia desarmado ele. – Eu não terminei com você porque eu não te amava, terminei porque te amava o suficiente pra saber que eu precisava prezar pelo que você tem de mais importante na sua vida, que é sua mãe. É por isso que eu não me arrependo, nem peço desculpas.
- Eu... A verdade é que eu não sei o que pensar, Malu. – Desconcertou-se, respirando fundo. Olhou para o céu e percebeu que a chuva já estava passando aos poucos. – É muita... muita informação pra menos de vinte e quatro horas. – Admitiu e se permitiu não pensar em mais nada. – Eu preciso voltar pra lá. – Ela assentiu.
- Se precisarem de algo, pode me ligar. – Informou, baixo e quase envergonhada, acrescentou: – Eu venho amanhã.
Ele apenas assentiu e virou de costas, não suportando olhar o rosto sentido de Malu e não a puxar para si. Já com alguns passos de distância, Malu fez o que queria ter feito desde que viu Calebe surgindo naquele corredor. Ela correu rapidamente até ele, pegou em seu braço, chamando sua atenção.
- E-eu sinto muito, por tudo que tá acontecendo. – Sem pensar muito, ela entrelaçou seus braços em volta da cintura dele, abraçando-o fortemente. Apertou seu rosto contra o torso dele, aproveitando a proximidade para sentir seu cheiro e seu toque quente. Por mais chateado e deprimido que Calebe estivesse, ele precisava admitir, que durante aquela situação toda, ela precisava muito de um abraço de Maria Luiza. Então, ele engoliu seu orgulho e aceitou o abraço que acalmou seu coração em meio a um turbilhão de desastres acontecendo.
O pôr do sol mais bonito do ano deu lugar ao céu mais estrelado e cintilante no dia que Ana deixou o mundo terreno.
A mulher de sorriso doce, de olhar marcante e personalidade potente, conhecida por ser simplesmente boa, Ana foi uma pessoa simples. A combinação de todos os adjetivos mais habituais a tornou uma mulher singular, uma mulher que pode não ter tido a melhor vida ou grandes conquistas, mas nunca foi descrita por terceiros com uma palavra ruim sequer.
Aos poucos a respiração da mulher começou a se ausentar. Calebe parecia que já sabia o que estava acontecendo, então ele se deitou ao seu lado e recitou em seu ouvido sua música preferida de Vinicius de Moraes, reafirmou o seu amor por ela e chorou enquanto tentava memorizar cada detalhe da feição leve, sem dor ou aflição aparente. Assim, após passar o dia inteiro sendo embalada no colo pelo seu único e maior amor, Ana sofreu uma parada cardiorrespiratória.
Malu recebeu a ligação de Calebe com estranheza. Já era noite e ela sabia que ele não ligaria naquele horário por nada. Fechou os olhos e fez uma oração rápida antes de atender. Chamou algumas vezes, mas o silencio na ligação continuava presente. Ela ouvia alguns barulhos no fundo, mas foi a respiração densa de Calebe no outro lado da linha que contou para ela que sua melhor amiga e maior parceira havia a deixado. Ela imediatamente começou a chorar.
Do outro lado da linha, Calebe não conseguia respirar, nem pensar. Só conseguia sentir o seu coração palpitando furiosamente acelerado e ele não sabia dizer se ainda estava de pé. Cada parte do seu corpo parecia rasgar de dentro pra fora. Se ele pudesse arrancar seus olhos, arrancaria. Se pudesse quebrar cada osso de seu corpo, quebraria.
Doeria menos do que ver o corpo de sua mãe desfalecido.
Maria Luiza pensou que nenhuma morte a abalaria desde a morte de seu pai, nada mais a deixaria tão fora de si e tão machucada. Mas a morte de Ana esteve ali para provar que era possível ela sentir dor similar a que sentiu quando seu pai faleceu. Tinha uma semana desde o acontecido e ela ainda chorava todos os dias quando ia dormir. E por falar em dormir, Andréia estava dormindo no sofá praticamente desde o enterro. A mulher vivia como um zumbi, acordava para tomar um copo de água, beliscava algum alimento e dormia por mais quinze horas seguidas.
Malu não conseguia recriminá-la ou ajudá-la, ela queria fazer o mesmo.
Ela não via Calebe desde o enterro. No dia, eles se abraçaram e ficaram de mãos dadas até o final. Ao fim da cerimônia, ele beijou sua testa e se afastou. Ela queria ir atrás, mas, além de saber que ele precisava de um tempo, ela tinha que ajudar sua mãe, que chorava consternada no mesmo lugar, abraçando a si mesma e pedindo que Deus devolvesse sua melhor amiga. Desde então, ele não atendia nem respondia suas menagens.
- Malu? – Ergueu a cabeça, olhando com estranheza para a porta do seu quarto.
- Entra, mãe. – Franziu o cenho ao ver que a Andréia estava realmente acordada durante o dia. – Aconteceu alguma coisa? – Sentou-se, confusa, amarrando seus cabelos em um coque.
- O Vinicius ta aí. – Malu não esperava a visita do amigo.
A verdade é que Vinicius foi o único que soube lidar com Calebe após a morte de sua mãe. Foi o único que conseguiu ser realmente um bom apoio e ombro amigo para Calebe, já que Malu sequer conseguia olhar para o rosto de seu ex-namorado sem cair em prantos. Vini ajudou Calebe na organização de quase tudo, em conjunto com uma tia distante dele. Foi por causa dela que Vinicius decidiu ir até Malu e comunicar o que estava acontecendo.
- Ele sumiu. – Informou, preocupado.
- Como assim, sumiu?
- Ele não atende o celular, não apareceu aqui. A Sônia, tia dele, disse que não sabe mais o que fazer, ela não tem contato nenhum lá pra São Paulo e nem contato com ele. Ela tá perdida. – Malu mordeu uma unha, pensativa e aflita. – Fui na casa dele saber se estavam precisando de algo e ela me implorou por ajuda, mas na real, não sei muito bem o que fazer. – Continuou, cabisbaixo.
- Tá de moto aí? – Vinicius assentiu, confirmando para a pergunta de Malu. – Cê vai me dar uma carona, então. Espera aí, eu já volto.
Andréia franziu o cenho ao ver a filha aparecer na sala minutos depois com uma roupa diferente e uma mochila nas costas. Com alguns papéis em mãos, o celular e a carteira, Malu andou pela sala procurando por algo nas gavetas do armário da sala.
- Vai sair?
- Sim. Tô indo pra São Paulo. – Respondeu, desatenciosa, enquanto contava algumas notas de dinheiro que Andréia sequer sabia que tinha ali.
- Você... Como assim, Malu? Do nada? – Questionou, confusa.
- Tem certeza, Malu? – Vinicius também se mostrou preocupado. – Sozinha?
- Só tenho dinheiro pra uma passagem. Se você tiver como pagar, pode ir comigo. – Respondeu, ainda sem prestar muito atenção em sua volta e nas possíveis barreiras que eles tentariam colocar nela.
Mas seria em vão. Nada a impediria de ir atrás de Calebe.
- Não, Maria Luiza, você não vai. Pô, fazer uma viagem assim sozinha, em cima da hora!
- O Calebe tá precisando de ajuda, mãe. – Interrompeu, guardando tudo dentro da sua mochila.
- Você falou com ele? – Perguntou.
- Não, não falei. É por isso que eu sei que ele tá precisando de mim.
- Malu, vamo esperar um tempo, eu arranjo uma grana pelo menos em uma semana e a gente vai... – Vinicius sugeriu, desanimado.
- Vini, ou você me leva na rodoviária agora ou eu vou de ônibus mesmo. De qualquer forma, eu vou! – Informou, decidida.
- Filha... – Andréia tentou falar, mas ela notou pelo olhar de Malu que nada que ela dissesse faria efeito na ação decisiva da mais nova, então só fez o que podia naquele momento. – Pelo amor de Deus, me liga assim que chegar! Toma cuidado, presta atenção em quem tá perto de você, cuidado com essa mochila! Ai, meu Deus, já tô nervosa só de pensar em você sozinha naquela rodoviária. E ainda tem as paradas pelo caminho...
Antes de sair, Malu fez algo que não fazia a um tempo, ela abraçou sua mãe. Andréia também fez algo que não fazia a algum tempo e beijou a testa da filha e desenhou uma pequena cruz na testa dela, abençoando-a da forma que sua vó fazia com ela.
- Tem certeza disso? – Andréia murmurou em seu ouvido mais uma vez.
- Eu preciso ver ele, mãe. Preciso dele e ele precisa de mim, eu sei disso.
Mais de doze horas de viagem e muitas paradas pelo caminho, Malu finalmente chegou em São Paulo. Era a primeira vez que ela viajava para outro lugar desde que se mudou para Vitória, mas ela sequer conseguiu aproveitar a viagem e apreciar as paisagens pelo caminho. Malu chorou o caminho inteiro, até se forçou a isso, pois não queria chorar quando o visse.
Ela entregou o endereço do local ao taxista e torceu para que não fosse tão longe dali, mas era. Lembrou que eles procuraram juntos por um lugar para Calebe morar e não demorou para achar o endereço nas conversas antigas deles, que ainda estavam arquivadas em seu celular. Ela sabia que ele não havia se mudado desde então, não hesitou em ir direto para o local.
Calebe morava em uma quitinete no cortiço próximo ao local em que trabalhava. O cortiço tinha lá seu charme meio histórico, mas não passava de uma vila pequena com um número de casas maior que o possível por metro quadrado. Para um cara solteiro que passava mais tempo na rua do que em casa, estava de bom tamanho.
Já era noite quando ela finalmente chegou ao seu destino. Malu arrumou a mochila no ombro e foi andando pela pequena vila até chegar à casa de número dezessete. Em cima da casa vermelha, ela reconheceu o lugar que ajudou a escolher, mas que só tinha visto por fotos. Ela ficou meio em dúvida de onde bater, mas antes de se decidir, uma garotinha colocou a cabeça para fora do portão com uma expressão curiosa.
- Ér, oi. O Calebe mora aqui? – Malu perguntou meio ansiosa e intimidada com os olhos expressivamente curiosos da pequena. Ela balançou a cabeça, assentindo e balançando suas duas tranças pequenas.
- Ele mora lá em cima, aqui é minha casa. – Respondeu, ressabiada.
- Ah, sim. É que eu preciso falar com ele, eu posso ir até lá?
- A escada é lá atrás. – Informou, ainda analisando o rosto de Malu. Ela agradeceu e quando estava se afastando para procurar a tal escada, a menina arquejou, surpresa. – Moça! Você é a Malu? – Malu ergueu as sobrancelhas, espantada.
- S-sou sim, você me conhece? – Questionou.
Antes que a garotinha respondesse, uma mulher mais velha apareceu no portão. A garota era uma cópia exata da mulher, obviamente devia ser sua filha.
- Gabi, tá falando com quem? Olá. – A mulher passou um braço protetoramente sob a menina e olhou em dúvida para Malu.
- Oi, boa noite. Desculpa pelo horário, é que eu tô procurando o Calebe. – Informou a mulher, que assentiu sorrindo.
- Mãe, ela é a Malu! – A menina contou, empolgada e a mãe a acompanhou com uma risada.
- Ah, você é a famosa Malu! Você é namorada do Calebe, não é? – A mulher sorriu, simpática.
Mesmo que a resposta para aquela pergunta fosse negativa, Malu não se importou pois gostou muito de saber que ainda era conhecida dessa forma. Então ela apenas assentiu e sorrindo, ela disse: - Sou sim. Ele tá em casa?
- Tá, sim. Quer dizer, já tem uns dias que eu não o vejo, pra falar a verdade, desde que voltou de viagem. A escada é logo aqui ao lado, você pode subir lá. – A mulher comentou, Malu soube então que o rapaz não havia contado do ocorrido para ninguém dali.
- Eu vou até lá, muito obrigada, viu. Mil desculpas pelo incômodo! – Malu agradeceu gentilmente e seguiu seu caminho.
- Imagina, Calebe é um ótimo menino! Fala tanto de você que parece que a gente já até te conhece. – Riu levemente e Malu agradeceu novamente.
Estava aliviada pelo encontro amistoso com as duas loiras terem saciados suas dúvidas sobre Calebe estar em casa ou não. Mas agora que sabia, já ansiava encontrá-lo. Com as pernas trêmulas, ela subiu a escada externa que a levava até Calebe.
Assim que subiu as escadas, Malu deu de cara com a porta entreaberta e estranhou. Tudo bem que não era um local considerado perigoso, mas era melhor não brincar com a sorte. Ela bateu duas vezes na porta e em seguida, introduziu a parte superior de seu corpo para dentro.
A pequena sala estava uma verdadeira bagunça. As garrafas de bebida alcoólica e bitucas de cigarro por toda a parte demonstravam bem com o que Malu iria lidar no momento que entrasse no apartamento. Também havia uma garrafa de vodka pela metade na mesinha de centro, algumas roupas e papéis espalhados pelo chão.
- Eu tava te esperando. – Malu deu um pequeno pulo no lugar, assustada com a voz rouca de Calebe do lado oposto da sala. Com os olhos marejados e feição desorientada, ela o olhou. Ele não se movia, apenas a encarava com uma feição perturbada e atônita, como se estivesse tentando entender o que tinha acontecido. Malu quis chorar, quis muito. Ela sentiu seu coração se quebrar em mil pedaços diferentes, um coração que já estava machucado pelas perdas. Com um nó na garganta, ela se aproximou e não controlou as lagrimas quando o ouviu dizer: – Eu tava te esperando pra poder surtar, pra chorar.
Calebe estava sentado no chão, apoiado no vão do batente que levava a cozinha e de frente para a janela que iluminava o ambiente. Usava uma calça de pijama azul, segurava um copo em mãos e encarava a imensidão de prédios e paredes cinzas a sua frente. Após jogar a mochila no chão e trancar a porta, Malu foi até ele, agachou-se em sua frente, subiu as mãos pelos seus ombros até chegar no rosto e ficou ali, apenas esperando ele reagir. Ele apenas encostou a cabeça na porta, fechando os olhos, apenas aproveitando o carinho que Malu fazia em suas bochechas.
- Eu tô aqui. Eu tô sempre aqui. – Murmurou. Ela lutou contra suas próprias lágrimas quando assistiu as dele caírem de forma gradativa pelo seu rosto entristecido. – Vamos dormir? A gente precisa descansar...
Ela não sabia se ele estava bêbado, mas nem conseguiram chegar até a cama, ele quase não se aguentava de pé. No fundo, Calebe não estava tão embriagado assim, simplesmente não tinha forças de se manter de pé. Deitaram-se no sofá, a cabeça dele repousava no pescoço dela enquanto ela fazia carinho em seus cabelos. O peso dele estava quase todo sob ela, porém, o peso não foi tão doloroso para ela quanto aquela lágrima que ela sentia escorrer pelo pescoço.
A voz rouca dele rompeu o silêncio de maneira cortante.
- Minha mãe morreu, Malu.
- Eu sei. – Ela fechou os olhos, controlando sua própria voz para não falhar. Ele não precisava que ela quebrasse justo agora.
- Eu não sei o que fazer, nem pra onde ir. – Sussurrou, lastimoso.
- A gente vai descobrir, não precisa ser agora. – Garantiu.
- Malu? – Ela respondeu com um murmúrio. Calebe engoliu em seco antes de começar a falar. – O meu pai era um filho da puta. Bateu na minha mãe, traiu ela e teve filho com outra mulher. Uma vez, encontrei ele bêbado em uma rua perto de casa e ele me disse que de todos os filhos que ele tinha, eu era o que ele menos gostava. Eu disse que podia ser inútil, mas não ia morrer só, diferente dele.
Malu escutava atenciosamente. Calebe estava contando sobre o pai após quatro anos de namoro. Ela nem lembrava ou esperava que ainda houvesse alguma entre eles que não sabiam, mas com aquele novo aspecto de Calebe sendo dito, todas as barreiras entre eles estavam sendo quebradas.
- Quase duas semanas depois, ele teve uma parada cardíaca num bar lá da 16 e morreu. Fui no enterro com vontade de rir. Não me arrependi. A última coisa que eu disse pra mãe foi que eu a amava e... isso é o que importa, né? Eu sou uma pessoa ruim por isso? Sou? Por favor...
- Você é a melhor pessoa que eu conheço. Eu não mereço você do meu lado nem por um segundo. Você é tudo, você é tudo...
A cada palavra, beijou um pedaço do seu rosto. Enquanto ele chorava no colo de Malu, abraçando-a com toda sua força, ela só pensava que faria qualquer coisa para nunca mais vê-lo triste assim. Qualquer coisa.
Depois de alguns minutos deitados, Malu arrumou toda a sala e enquanto ela terminava de limpar o lugar, ele a observava, deitado no sofá. Ela perguntou se ele queria comer alguma coisa, ele apenas balançou a cabeça, levantou-se e foi em direção ao quarto. Da sala, ela observou quando ele se deitou na cama e ficou olhando para o teto. Ela aproveitou para trocar de roupa, já que estava bem mais frio na cidade do que ela imaginava.
Malu trancou a casa, fechou as janelas, liguei o abajur e puxou o edredom sobre ele. Deitados de frente um para o outro, Malu sentiu que estava finalmente confortável de novo, mesmo que as circunstâncias fossem terríveis.
- Desculpa ter feito você vir até aqui. – Murmurou, meio apático.
- Você sabe que eu viria, não é? De qualquer jeito, de qualquer lugar, eu viria.
- Eu sei. Por isso que eu deixei a porta aberta, fiquei com medo de você chegar, não me encontrar e ir embora. – Declarou.
Malu não conseguiu evitar um sorriso fraco. Era reconfortante para ela que Calebe soubesse o quanto ela o amava. Depois de uns minutos em silêncio, Malu pensou que ele havia adormecido, mas logo notou que ele apenas estava pensativo.
- Será que... você pode ficar aqui? Pelo menos, por uns dias... não acho que eu vá conseguir fazer muita coisa sozinho. – Confessou.
- Eu não tava planejando ir embora tão cedo. Vou ficar aqui até você me expulsar, tudo bem? – Ele deu uma pseudo risada anasalada e se aproximou, abraçando-a de frente.
- Vamo acabar morando aqui pra sempre. – Brincou, acariciando as costas dela.
Ficaram em silêncio por mais uns minutos. Malu analisava o rosto de Calebe minuciosamente e assistiu o momento exato em que seu olhar distante e perdido se tornou um olhar consternado, penoso e lotado de lágrimas.
- Lembra aquela vez que a tia Andréia te bateu e você foi lá pra casa? Lembra que a gente dormiu junto e você me pediu pra chorar? – Ela assentiu, recordando-se do momento exato. – E-eu posso?
Maria Luiza fez a única coisa que poderia fazer naquele momento. Ela o virou de costas e o abraçou por trás, deixando com que ele se sentisse à vontade para chorar sem estar sendo assistido e, ao mesmo tempo, estivesse recebendo o conforto de estar sendo acolhido nos braços da segunda pessoa que ele mais confiava e amava no mundo.
“Aqui estou, querendo parar o tempo e não desistir
É só sorrir pra mim [...]
Vou recriar o mundo pra gente caber junto, desalinhar o tempo
[...]
Eu só preciso do teu sim e tenho onde erguer meu lar”.
Nosso Nó(s) – Sandy
Maria Luiza morou a vida inteira em uma cidade considerada “quente”. O calor era natural e agradável, os céus quase sempre eram cobertos de nuvens ou de um puro e limpo azul. De alguma forma, São Paulo não estava fazendo bem a ela. Seu corpo era acostumado com um clima tropical, seu cabelo estava diferente e até sua pele estava ressecada. Malu entortou o nariz ao encarar o céu cinza e apertou o casaco de Calebe em volta de seu corpo.
- Que cara é essa? – Dona Rita perguntou a ela, rindo da careta engraçada que Malu fazia toda vez que encontrava algo que desgostava.
Rita era a locadora do lugar onde Calebe morava. Ela residia na casa debaixo da dele, junto com sua filha, Gabi, que era uma menina tímida, mas curiosa demais para conseguir conter sua própria timidez. Rita era quem ajudava Malu durante o dia inteiro que ficava em casa e Gabi era quem a distraia com sua companhia.
- Tá frio, dona Rita, como vocês conseguem? Tô aqui a quase duas semanas e juro que ainda não teve um dia de sol! – Malu reclamou enquanto voltava a varrer a calçada da casa da mais velha, que ria de sua insatisfação com o clima local.
- Ah, se eu disser que se passar mais de um dia com calor e sol eu enlouqueço, você acredita?
Malu riu, negando com a cabeça. Ela sentiu seu celular vibrar em seu bolso e pediu licença para se afastar e falar com a pessoa que estava retornando sua ligação e que, provavelmente, gritaria em seu ouvido.
- Lembrou que eu ainda existo?
- Oi, mãe. – Malu revirou os olhos. Doía um pouco admitir, dado os últimos acontecimentos, mas Malu não sentiu muito a falta de sua mãe naquela semana que esteve morando com Calebe. – Eu liguei a manhã inteira pra você.
Malu cumpriu sua palavra e ficou ao lado de Calebe. Ele insistiu no outro dia que ela voltasse para casa, para suas responsabilidades, mas ela negou, apenas precisaria comprar uns novos pares de calcinhas e casacos e tudo ficaria bem. Ele não insistiu, sabia que não podia – nem queria – ficar sozinho.
- Eu tava dormindo. – Andréia respondeu, bocejando.
- É claro que tava.
- Tudo bem por aí? Olha só, tem umas vizinhas aqui que acham que são minhas amigas e vieram até aqui perguntar de você. Aposto que acham que eu sou irresponsável e doida por ter te deixado ir sozinha pra aí morar com Calebe.
- Desde quando você se importa com o que falam? – Provocou, prendendo um sorriso.
- Desde sempre, Maria Luiza, só finjo que não me atinge porque eu sou desequilibrada. – Malu não conseguiu não rir. Andréia era, definitivamente, um paradoxo. Uma mulher cheia de ambiguidades. – Como tá aí?
- Ah, tá na mesma, até a vizinhança daqui é parecida, o problema é que chove o dia inteiro, mas fui informada que estão no inverno aqui, então... Enfim, tenho organizado um pouco a bagunça que é a casa do Calebe, que não tinha uma divisão sequer entre sala, quarto e banheiro.
- E como ele tá hein Malu? Ele já consegue dormir? – Questionou, lembrando que Malu comentou que o rapaz andava com uma certa dificuldade para dormir.
- Ah, mãe, ele tá se esforçando bastante, eu consigo ver isso. Ele tá voltando a ter vontade de trabalhar aos poucos, eu percebo que ele já tá conseguindo se inteirar de novo das coisas do trabalho. – Comentou, observadora.
- É um bom sinal, né.
- Acho que sim, espero que ele não use disso pra se isolar ou descontar de alguma forma.
- Bom, não dá pra prever e nem prevenir. Cada um reage de uma forma ao luto. – “tipo você que, desde que o pai morreu, dorme 24h seguidas”, Malu pensou em falar, mas preferiu se manter em silencio para não provocar uma briga sem necessidade. – E você, tá bem?
- Tô levando, eu acho...
- Tá precisando de dinheiro?
- Umm, acho que não. – Pensou um pouco, mas não tinha muita despesa durante os dias e nem conseguia, Calebe não a deixava faltar muita coisa. Naquele dia, por exemplo, ela pediu dinheiro para comprar materiais de higiene, mas na verdade, ela foi ao mercado com Rita e Gabi para comprar alguns ingredientes para fazer um jantar diferente. Ela estava cansada de comer fast-food quase toda noite. – Sabia que até entreguei uns currículos? Tem bastante oportunidade aqui, é uma cidade cheia de empresa novas e startups, tudo aqui é muito industrial, é bem legal pra quem quer começar...
- ... – A ligação ficou em silêncio.
- Mãe? – Chamou, olhando para a tela para ter certeza de que a ligação não tinha caído.
- Você tá pensado em algum dia vir embora daí, Maria Luiza? – Perguntou, ríspida.
- Bom, sim, né. Essa casa não é minha, nada aqui é meu.
- Mas achei que o plano era esse. Calebe ia primeiro, construía algo legal e talvez você pudesse ir em seguida... Não era algo assim?
- Sim e não, mas... Isso foi antes, mãe. – Respondeu, incomodada com o rumo que a conversa estava tomando.
- Do quê?
- Da gente terminar.
- Ué e vocês não estão juntos? – Questionou e fez Malu hesitar.
- N-não.
E não estavam mesmo. Malu e Calebe nunca falaram sobre o término, mas também não agiram como um casal naqueles dias. Para todos os vizinhos do cortiço – que Malu foi devidamente apresentada – ela era namorada de Calebe e não foi corrigido quando todos deduziram isso. Eles dormiam na mesma cama, mas só porque não havia outro local para dormir, já que Calebe não tinha um sofá que desse para realmente adormecer.
E tirando o fato de não trocaram afetos ou beijos apaixonados, Malu e Calebe ainda se tratavam do mesmo jeito de sempre. Confortáveis e tranquilos na presença um do outro. Entretanto, Malu ainda sentia um pequeno incômodo pelo fato da não identificação do que eles eram no momento. E ela só percebeu isso quando acidentalmente chamou Calebe de ‘amor’ ao pedir um copo. Ela pediu desculpas, mas Calebe ignorou isso, então ela se viu na necessidade de ignorar também.
Não chegava a ser um grande desconforto, mas Malu não podia negar que havia, sim, uma dúvida em seu coração. Mas não era o momento certo de ela perguntar isso, era até injusto e desagradável que ela pensasse nisso enquanto ele estava passando por uma situação profundamente dolorosa.
- Olha só, Maria, eu não sou a mãe legal e inteligente que te dá conselhos e tu sabe disso. No fundo, eu até queria que você se ferrasse um pouco pra deixar de ser inocente. Mas você tá morando com o cara tem duas semanas, parece pouco, mas se você deixar, sua vida vai ser sugada.
- Não é assim, mãe. – Tentou desconversar.
- Não? Já pensou se você consegue um emprego? Já pensou se ele não quer você aí? Já pensou se você gosta daí e queira ficar? O que ele vai achar disso? – Malu arregalou os olhos com a enxurrada de suposições que Andréia lançou contra ela.
- Caraca, mãe, você só vem falar besteira e neurar minha cabeça, puta merda. – Malu resmungou, chutando algumas pedrinhas para fora da calçada. – Relaxa, que se eu me ferrar, não vou te pedir ajuda, não.
- Nem pode porque não tenho nem como te ajudar, garota. Só tô dizendo que uma semana passa rápido, hoje já é sexta e cê não tem nem previsão de quando volta. Daqui a pouco, são três semanas, logo vira um mês e o resto você já sabe. – Insistiu na ideia. Andréia sabia que Malu era esperta e, provavelmente, saberia o que fazer, mas ela não conseguia se segurar. Apesar de dizer o contrário, Andréia era sim uma mãe que dava conselhos.
- Sei?
- Expulsão, Maria Luiza! O cara vai te dar um pé na bunda e você vem daí com o rabo entre as pernas com um mês da sua vida completamente perdido. – Enunciou, categórica.
- Caralho, mãe. – Não conseguiu controlar o palavrão que escapou de sua boca, mas foi inevitável. Tudo bem que ela já há via pensando em tudo aquilo que Andréia estava citando, mas a irritava o modo bruto e impaciente que a mulher falava, sem se importar se aquilo impactaria Malu de alguma forma. – Acordou com a língua afiada hein, puta que pariu!
- Alguém tem que falar, né... E por falar em dormir, já tá batendo minha hora, falo contigo mais tarde. – Malu olhou no relógio e suspirou profundamente ao ver que ainda não eram nem seis horas da tarde.
- Mãe... pega leve. – Pediu.
- Tá falando do que? – Andréia fingiu desentendimento.
- Cê sabe. – Ela queria muito que sua mãe diminuísse a quantidade de pílulas que tomava em um dia.
- Maria Luiza, se você não tá aqui, não tem ninguém aqui, vou ficar fazendo o que acordada? Ah, me erra, porra. Tchau! – E desligou.
Malu tentou ignorar a culpa que insistia em se instalar em seu peito quando ela havia deixado a mãe sozinha, mas tentava focar no fato de que, se estivesse na cidade, ela estaria da mesma forma. E no fundo, nunca havia se sentido tão confortável e satisfeita e achava triste que isso tivesse a ver com o fato de estar longe de Andréia.
Mesmo longe, a mulher conseguiu mexer com a cabeça de Malu, que agora não conseguia parar de pensar no que vinha ignorando a um bom tempo: sua relação com Calebe. Desde o dia em que eles se encontraram no hospital, quando Malu abriu seu coração e contou tudo que estava acontecendo, ela vinha fingindo que tudo estava normal.
A saúde de Ana era a prioridade deles, então eles nunca conversaram e compartilharem seus sentimentos sobre as atitudes de Malu. Então, Ana faleceu e o tempo que já não estava favorável para conversas complicadas, explicações e ajustes pessoais, se tornou inexistente.
Aquele assuntou causava uma leve ansiedade em Malu pois não sabia o que aconteceria se Calebe não a tivesse perdoado pelos seus atos. A única certeza que Malu tinha é que sentia muitas saudades do seu namorado. Decidiu que, no momento, o melhor a se fazer era ignorar Andréia e suas concepções e previsões maléficas e focar no que já tinha planejado para o dia.
Malu informou para Rita que iria subir para começar a preparar o jantar e até isso causou questionamentos em Malu. Ela disse que iria preparar uma comida caseira pois estava enjoando de tanta e pizza e hambúrguer, mas se questionou se, na verdade, ela estava apenas querendo preparar um jantar para Calebe.
Ela resolveu preparar um suflê de frango com brócolis, era a comida preferida de sua grande amiga, Alanne, que a ajudou via chamada de vídeo. O preparo tomou o resto da tarde inteira de Malu, que realizou cada passo que Alanne descrevia com destreza e dedicação. Aproveitou para tomar um banho enquanto colocou a comida no forno.
Depois que saiu do banho, ela se irritou ao se olhar no espelho. O frio causava alguns danos em seus cabelos cacheados. Além de encherem-se de frizz, ele perdia definição – mesmo que ela tentasse muito definir – e se tornava ondulados. Naquela noite, Malu teve preguiça de fazer a finalização que era acostumada a fazer e decidiu apenas passar o dedo entre suas mechas, desembaraçando e esticando seus cachos em ondas médias.
Perdeu um tempo brincando com seus próprios cabelos que sequer ouviu Calebe chegando em casa. Normalmente, ele costumava chegar quase dez da noite do trabalho. Porém, naquelas semanas, ele vinha chegando algumas horas antes pois, além de não se sentir totalmente disposto para trabalho, ele sempre queria chegar em casa o quanto antes.
- Ah, ainda bem! – Ouviu a voz murmurada e aliviada de Calebe soar atras de si e virou-se. Ele estava na porta do banheiro, olhando-a interessado.
- O que foi? - Por instinto, ela segurou a toalha contra o corpo. Não que tivesse vergonha de Calebe ou de si mesma, mas sabia que seria uma situação constrangedora e embaraçosa se a toalha caísse e ela se visse nua em frente ao seu ex.
- Nada, é que eu chamei e você não respondeu, eu pensei que você...
“Tivesse ido embora”, ele completou apenas em pensamento. Seu olhar inevitavelmente desceu para o copo molhado de Malu, mas ele não queria parecer invasivo e logo desviou o olhar, pigarreando. Como se não bastassem dormirem juntos, agora eles dividiam banhos também? Nem pensar.
- Desculpa, eu tava distraída. – Ela se voltou para o espelho apenas para não encarar mais a figura de Calebe vestido em roupas sociais, cumprindo muito bem o seu papel de homem mais lindo daquele cortiço inteiro. Pegou seus utensílios da cômoda e saiu. – Eu fiz o jantar, vem logo tomar banho.
- Com você? – Gracejou, erguendo uma sobrancelha. Malu rolou os olhos, mas riu. Sentia-se satisfeita e aliviada quando Calebe se sentia confortável o suficiente para fazer piadas com ela.
- Já tô de saída. – Informou e tentou passar pela porta, mas Calebe não se moveu, fazendo com que eles empurrassem um ao outro brevemente. Seus olhares se prenderam por um segundo antes de se afastarem completamente. – Não demora ou eu não te espero pra comer.
- Você que manda, patroa. – Brincou, batendo continência enquanto observava as costas de Malu se movimentando de volta para o quarto que dividiam.
Calebe passou aquela semana sem pensar muito em Malu como ex. No momento, ela era uma grande amiga que estava o ajudando se reerguer na vida e pequenas ações, como limpar sua casa, ajudá-lo a voltar ao trabalho, instigá-lo a se comunicar e não se afundar em tristeza e dor, era o que realmente importava para Calebe.
Entretanto, havia momentos – como quando ela insistia em aparecer de toalha ou, inconscientemente, trocar de roupa na sua frente – que Calebe lembrava que aquela mulher, que dividia cama e fazia suas compras, era sua ex-namorada. Sua estonteante e gostosa ex-namorada.
- Caramba, parece até que você adivinhou. – Malu comentou ao ver algumas garrafinhas de cerveja na geladeira.
- Ah, é sexta-feira, né. E eu achei que se eu não te comprasse com cerveja você ficaria entediada dessa casa. – Brincou enquanto tentava organizar os pratos e talheres na pequena mesa dobrável embutida na parede.
- Que nada, tô amando a quantidade de fofoca nova e da melhor qualidade que tua vizinhança tá me propondo. – Comentou, abrindo duas garrafas e levando para a mesa.
- Cê já deve saber mais do que eu, aposto. – Tomou um gole da cerveja com vontade, desejando que aquele gole matasse toda a sede que ele estava sentindo subitamente ao ver Malu se abaixar para abrir o forno.
- Bom, a maior fofoca daqui é sobre o tal do Iran com aquela enfermeira que mora aqui em frente. – Ela retirou a travessa do forno e levou a mesa. – Se você tá ciente do caso deles, então tá por dentro das fofocas. Inclusive...
- Caraca, tu é muito fofoqueira! – Calebe interrompeu, rindo.
- Ah, não quer saber, não? – Ela jogou o guardanapo longe e se sentou ao lado dele. – Dizem as más línguas, que o menino é filho dele. – Calebe abriu a boca, em choque, causando risadas nela.
- O moleque é branco, Malu! – Comentou, refletindo sobre.
- Coisa que o pai não é.
- Exatamente, caramba! – Calebe exclamou, surpreso.
- Quem é fofoqueira mesmo? – Malu emitiu, sarcástica.
- Ainda é você, que sabia dessa parte da fofoca que eu sequer imaginava. – Malu riu, dando um tapa de leve em seu ombro. – Me conta, da onde saiu isso? Posso servir? – Ele gesticulou, apontando para o suflê.
- Pode. Eu só... – Ela esticou os pratos para que ele pudesse colocar o alimento. Ela pensou em dizer que não queria comer pizza novamente, mas decidiu seu instinto e vontade falaram mais alto e contou a verdade. – Quis fazer pra você.
Calebe, que cortava o suflê em pedaços, ergueu o olhar para ela, procurando qualquer sinal de brincadeira ou ironia, mas não era. Nunca era. Malu não costumava ter meias ou irônicas palavras. Ela sempre era simplesmente honesta. Bom, quase sempre.
- Ahn, obrigada. Que droga, agora se tiver ruim, vou ter que mentir e comer tudo. – Brincou para disfarçar seu abalo e funcionou, pois Malu riu e se concentrou em saborear sua refeição e Calebe decidiu fazer o mesmo.
Comeram em silêncio por um minuto, que foi o tempo que Malu levou para perceber que Calebe a olhava meio curioso. Cada vez que Malu erguia a cabeça e Calebe estava olhando-a, ela questionava também com o olhar e ele apenas negava com a cabeça. Na sexta vez, ela perdeu a paciência e largou o talher no prato.
- O que foi, garoto? - Inqueriu, irritada.
- Quer fazer uma coisa pra mim?
- Já não basta o teu jantar? – Rebateu e ele ficou em silêncio, olhando-a. – Fala!
- Não tira mais nenhum cacho desse cabelo aí, faz favor. – Ergueu um dedo, fazendo um sinal positivo e voltou a comer normalmente.
Malu não conseguiu evitar um sorriso. Calebe ainda a tinha pelos pequenos momentos e pequenas ações, foi assim que ela se apaixonou por ele. Instintivamente, ela levou a mão ao cabelo, olhando de relance para Calebe, que a olhava.
- Não é culpa minha se você se mudou pra uma cidade onde a chuva é um ponto turístico. Na verdade, eu tava pensando em alisar e...
- Tá doida, Malu? Acho que é até pecado um absurdo desse! – Ela gargalhou, negando com a cabeça.
- E aí? Tá gostoso? – Questionou, se deliciando com sua própria iguaria. Ela sabia que estava delicioso e que tinha se superado na cozinha naquele dia.
- Quase tanto quanto você.
Calebe sequer se deu conta das palavras que escapuliram da sua boca e continuou comendo normalmente, até perceber o silêncio de Malu e olhar para cima. Ela estava prendendo os lábios em um sorriso e suas sobrancelhas estavam arqueadas sem esconder sua surpresa. Foi aí que Calebe se deu conta de suas palavras e se engasgou com a comida na boca. Malu não se conteve e começou a gargalhar deliciosamente, jogando a cabeça para trás enquanto Calebe se afogava em vergonha e suflê.
- Meu deus, você deu em cima! – Ela enfatizou, rindo.
- Cala a boca, claro que não! – Negou, mas também riu, negando com a cabeça.
- Que saudades que eu tava disso. – Murmurou, Calebe a olhou, questionando. – Do teu sorriso.
- É, acho que você trouxe meu sorriso de volta.
Após um jantar lotado de sorrisos tímidos e um silêncio reconfortante, Calebe deu a ideia de assistirem a um filme juntos, mas assim que sentiu o calor do corpo de Malu ao recostar-se no sofá ao seu lado, ele se arrependeu amargamente.
Calebe cruzou os braços e se esforçou para prestar atenção no filme ou nos comentários de Maria Luiza. Ele estava a ponto de desistir e simplesmente levantar e se trancar no banheiro, só para ficar longe dela. Porque o que ele mais queria era ficar perto.
Quando Malu começou a ficar em sua casa, ele ainda não sabia como seria sua vida pós Ana, ele ainda estava entrando nos trilhos novamente. E foi justamente Malu a maior responsável por mantê-lo no caminho ou ele facilmente se perderia. Antes de tudo, Malu foi sua melhor amiga. Entretanto, naquele momento, a realidade dos dois o atingiu. Ele estava morando com sua ex e não deixou de se sentir atraído por ela nem por um segundo.
Parou para pensar nas vezes que a assistia limpar a sala concentrada e queria ir até lá beijar sua testa ou quando ela simplesmente conversava com ele e ele queria desesperadamente beijá-la. Como naquele momento.
- Cê não acha bizarro que uma pessoa realmente pensou em fazer esse filme? Um cara simplesmente se sentou na cadeira e escreveu um filme sobre roubo de sonhos e entrar na mente das pessoas, é bizarro! – Malu exclamou, falando sobre o filme com Leonardo DiCaprio que Calebe adorava.
- É, tem muita coisa bizarra mesmo... – Murmurou, bagunçando o cabelo, ainda sem desviar o olhar de seu rosto contemplativo. – Cê não acha que tá calor hoje? Tô sentindo calor, que coisa! – Levantou-se, indo até a janela e abrindo, logo sentiu uma corrente de ar fria que ia contra o que seu corpo estava sentindo.
- Tá maluco? Tá maior frio, fecha isso. – Ela reclamou, abraçando seu próprio corpo. Calebe suspirou e fechou a janela, estava frio mesmo. – O que foi? – Questionou, notando a expressão meio confusa do rapaz.
- O quê?
- Cê tá estranho, nem bebeu tanto assim, cara. – Comentou, franzindo a testa. – Ei, senta aqui, vai. Relaxa, você parece cansado. – Observou. Ele assentiu e sorriu de lado ao ver o cuidado de Maria Luiza com ele.
- Desculpa, eu realmente tô meio cansado. – Sentou novamente e tomou um longo gole de cerveja.
- E você ainda escolhe um filme bem simples. – Ironizou e pegou o controle remoto. – Eu escolho agora.
- Sem filme de princesa, Malu. – Informou, erguendo um dedo.
- Mas...
- Não, a gente assistiu três filmes de princesas na semana passada, eu nem sabia que existia tanta princesa assim! – Reclamou, negando com a cabeça.
- A gente nem chegou na Pequena Sereia, amor. – Lamentou-se e antes que percebesse, estava pedindo desculpas de novo. – Desculpa, é a segunda vez na noite. – Envergonhou-se.
- Tudo bem, hoje eu também lembrei. – Malu levantou uma sobrancelha, encarando a expressão serena enquanto ele a olhava.
- Lembrou o quê? – Ela adorava o jeito calmo que ele ainda a olhava, mesmo que ela não soubesse que o olhava da mesma forma.
- Que você é minha namorada. – Ela semicerrou os olhos, encarando-o com um sorriso reprimido. – Ou era, sei lá, você terminou comigo...
Ela abaixou a cabeça, quase envergonhada. Malu decidiu fingir que os goles de cerveja haviam lhe dado algum tipo de coragem e citou o assunto tão temido por ela.
- A-acho que a gente devia conversar sobre isso, né? – Perguntou, incerta. Calebe apenas assentiu enquanto a olhava. Para piorar a ansiedade de Malu, ele desligou a TV e virou seu corpo quase completamente para ela. – Porra, Calebe... – Suspirou, negando com a cabeça.
- Cê não quer falar sobre? – Questionou.
- Não sei, tudo bem pra você? – Malu também questionou, cautelosa.
- Por que não estaria?
- Porque falar sobre nosso término é falar sobre a tia Ana e eu não sei se quero falar sobre ou se você tá pronto pra ouvir. – Explicou.
- Tem algo que você ainda não me contou? Naquele dia no hospital, cê me contou tudo, certo?
- Sim, contei. Não tem muito o que acrescentar, na verdade. – Ela refletiu por alguns segundos, antes de continuar: – Lembra do dia do teu churrasco de despedida? Naquele dia, foi a primeira vez que a tia Ana falou algo sobre isso pra mim. Eu lembro perfeitamente, ela me abraçou e disse que se eu pedisse, você ficaria na cidade e falou no meu ouvido “não pede, por favor’’. – Malu tocou no canto de seus olhos, tentando não deixar as pequenas lágrimas caírem por seu rosto. – Foi um pesadelo pra mim, até minha mãe sentiu pena de mim nesse dia. E depois você ficou longe, e depois não voltou e aí nós descobrimos a doença e bom, o resto você já sabe.
Calebe também parou para refletir e percebeu que não ainda não tinha parado para pensar no lado de Malu durante tudo aquilo. Todo aquele tempo e ele estava sendo um completo egoísta com a mulher que ele amava.
- Posso te falar uma coisa? Desde que você chegou aqui, você tem sido minha âncora, tem me segurando nesse mundo, Malu, não tenho problema em admitir isso. Mas me peguei pensando que, todas as noites, você me colou no colo pra me consolar e até agora, eu não te perguntei se você tá bem.
Ela fechou os olhos, não conseguiu controlar as lágrimas insistentes. A verdade é que Malu não sabia se estava bem ou não, parecia que ainda não tinha digerido nada do que tinha acontecido e estava vivendo no piloto automático, comportamento parecido com o que ela teve com a morte de seu pai.
- Eu nem sei dizer... – Ela confessou, chorosa. – Acho que ainda não parei pra pensar que... eu não vou mais ver ela em casa. Depois que a gente terminou, a tia Ana praticamente morou comigo. E ela sempre falava o quanto tava orgulhosa de você e sempre me pedia desculpas por ter “me colocado no meio dessa confusão”. Mas eu já te falei, não me arrependo de nada. A tia Ana morreu feliz, Calebe. E eu gosto de pensar que tive uma parcela de responsabilidade por isso também.
Calebe largou a garrafa de cerveja no chão e abraçou Malu imediatamente. Ela se surpreendeu com a ação, mas já devia saber que Calebe não iria decepcioná-la. Foi a primeira que ela estava sendo abraçada e consolada por causa de Ana e não o contrário.
- Você foi a responsável, Malu. Desculpa se eu não te disse antes, mas obrigado por ter cuidado dela. Obrigado por... por tudo! – Ela suspirou, aceitando o abraço e recostando a cabeça em seu ombro. – Tudo o que aconteceu foi muito ruim e muito difícil, mas seria muito, muito!, pior se não fosse por você.
No dia seguinte, Calebe se afundou em documentação e relatórios, utilizando do trabalho para fugir de tudo o que ele estava sentindo desde a noite passada. Mesmo depois de uma conversa honesta com Malu, eles ainda não tinham chegado à conclusão sobre onde estavam. Conversaram sobre mais algumas coisas, mas não falaram sobre seu relacionamento antigo ou o atual.
Calebe não sabia se queria ser um “namorado” novamente, mas então ele lembrava que, no fundo, ele nunca havia deixado de ser namorado de Malu. Mas então ele pensava naqueles meses que passaram separados. Naqueles meses em que sua mãe estava doente e morando com sua ex-namorada e aquilo o incomodava, quase profundamente.
E então ele se via perdido nos olhos de Malu durante seu dia a dia e tudo o que ele sentia ia por água abaixo, o que tornava tudo complicado. O simples fato de vê-la no sofá ou na cozinha quando ele chegava em casa era o suficiente para deixá-lo bem.
Na manhã de sábado, enquanto se arrumava para pegar um turno extra no trabalho, ele quase não conseguiu desejar um bom dia sem beijá-la. Ficou olhando-a como um idiota enquanto ela não entendia nada. Foi assim que ele achou melhor pegar dois dias de turno extra e evitar a presença esmagadora de Maria Luiza.
No domingo, ele acabou sendo liberado pelo seu coordenador logo após o horário de almoço. Em outros dias, ele celebraria o fato como se fosse um gol decisivo do Fluminense em alguma final de campeonato. Porém, naquele dia, ele não queria ir para casa, não queria ver Malu, por mais que admitir isso para si mesmo fosse terrível.
Calebe passou a mão na testa, tentando se livrar do suor. Era um domingo de sol e calor, ele deveria estar contente de poder ir para casa curtir o resto do dia. Deveria. Quando desceu do ônibus e entrou no cortiço em que morava, ele franziu o cenho e sorriu de lado. O dia ensolarado deve ter sido ótimo para os moradores, o local estava agitado, as crianças da vizinhança estavam entretidas correndo e brincando com alguns balões enquanto eram assistidas pelos adultos.
- Domingou, hein, seu Zé! Seu Tadeu, boa tarde! – Brincou, cumprimentando seus vizinhos, acenando.
- Garoto, tira essa beca e vem aproveitar esse solzão! – Tadeu, o senhor de meia idade, marido de Rita, acenou de volta e brincou com as vestimentas sociais que Calebe sempre usava. – Chegando agora?
- É, tava trabalhando, mas fui liberado. – Contou. – O que deram pra essas crianças ficarem elétricas desse jeito? – Perguntou, rindo da gritaria infantil.
- A culpa é da sua namorada, se resolve com ela. – O outro homem também riu. Calebe franziu o cenho com a informação. – Ah! Vai lá ver se tá tudo certo. A coitadinha escorregou na calçada agora a pouco.
Calebe apenas acenou e foi imediatamente para as escadas que levavam a sua pequena quitinete. A porta estava aberta e ele pode ouvir risadas vindo lá de dentro. Quando entrou encontrou Malu sentada no sofá com a perna esquerda esticada sobre as pernas da Dona Rita, que utilizava um pano para limpar a moça.
- Oi, o que aconteceu? – Perguntou, se aproximando e avaliou a perna de Malu. Não estava tão machucada, tinha apenas um pequeno ralado no joelho e sujeira de lama.
- Olha só quem chegou! – A mais velha cumprimentou, animada.
- Oi, cê chegou cedo. – Malu sorriu suave.
- Pois é, fui liberado. O que diabos você fez, mulher? – Brincou, apontando para a perna dela e jogando sua mochila no chão.
- Tua namorada teve a brilhante ideia de dar balão com água pras crianças brincarem e acabou que ela foi a primeira que escorregou na lama. – Rita contou, fazendo o casal rir.
- Ah, dona Rita! Tá calor, é domingo, as crianças adoraram a brincadeira. – Malu relevou.
- Aquela velha chata da Graça que deve ter amado o tanto de água e gritaria na porta dela! – Comentou, venenosa, causando risadas novamente.
- Meu Deus, Maria Luiza, você vai fazer eles expulsarem a gente daqui. – Calebe brincou, negando com a cabeça, sem conseguir não sorrir com a ação de Malu.
- Não te preocupa que nenhuma criança vai deixar isso acontecer! – Riu, levantando-se do sofá. – Bom, agora que você já vai ser bem cuidada, eu vou descer e ver se a Gabi também não ganhou uma raladura no joelho.
- Obrigada, dona Rita! – Agradeceram em conjunto a mulher, que sorriu e saiu do local, fechando a porta.
Calebe se virou e olhou para Malu, que deu um sorriso travesso e nada inocente, que acabou por o fazer rir também: - Você, hein...
- Tá sol, Calebe! Só isso importa. – Enunciou, animada. Ele negou com a cabeça e sentou ao lado dela no sofá, abrindo os primeiro botões da camisa social em que usava.
- Você é pior que criança. – Zombou. – Põe a perna aqui, deixa eu dar uma olhada nesse joelho.
- Ah, tô toda suja! – Ela reclamou, mas ergueu a perna e lhe entregou o pano úmido, apontando para a parte de trás da sua perna. A posição meio inclinada dela fez com que os olhos de Calebe fossem imediatamente sugados para o seu traseiro e o rapaz teve que engolir o seco. Maldito seja o sol, o culpado por fazer Malu usar um short jeans curto e aquele top de alcinhas que deixava toda a pele de seu colo a mostra. – Acho que manchou até meu short, eu fui correndo pra ajudar o filhinho da Carla e acabou que...
Calebe já não ouvia nada do discurso de Malu sobre o que a levou a cair na lama. Ele simplesmente fixou o olhar na parte de trás das coxas torneadas e bronzeadas de Malu e sequer disfarçou. Sendo bem sincero, ele não lembrava a última vez que estivera ali, entre as pernas de sua namorada.
- Ai! O que foi? – Calebe se sobressaltou ao receber um leve chute de Malu.
- Perdeu alguma coisa aí? Cê tá secando minha bunda. – Afirmou com uma sobrancelha erguida.
- Ah! Desculpa, é que... – Ele novamente desceu o olhar e foi interrompida pela mão de Malu empurrando o ombro dele, rindo e ele reclamou. – Ai! O quê que tem? Já te vi na mesma posição tantas vezes e olha que você tava sem roupa. – Deu de ombros e voltou a esfregar o tecido contra a pele de Malu, que ainda ria.
- Enfim, acabei escorregando na lama e caí de bunda na calçada. Inclusive, aproveita que você já ta aí curtindo sua tarefa mais do que o necessário e vê se ficou algum roxo, tô sentindo alguns pontos doloridos demais. – Ela virou o corpo mais um pouco, com um pouco de dificuldade. Também estava com alguns arranhões nas mãos e cotovelos por ter se apoiado no chão.
- Até agora não, s-só se tiver por debaixo do short. – Analisou. Calebe ficou a ponto de tocar a pele dela com os dedos, mas recolheu a mão imediatamente, ainda tendo dificuldades em parar de olhá-la.
Malu notou.
- É melhor eu ir no banheiro. – Não era melhor, ela estava dolorida e não queria passar perto de água tão cedo para evitar ardências. Porém, Malu ainda era mulher. Uma mulher que nunca deixou de ser apaixonada pelo homem que estava ao seu lado. Então, por mais que doesse admitir, ela armou uma grande cilada para Calebe. – Você pode me ajudar?
Ah, não. Não! Alerta vermelho. Malu e Calebe no banheiro. Alerta mais do que vermelho, o olhar provocante de Maria Luiza. Alerta mais vermelho do que o último alerta, o tesão acumulado que Calebe descobriu que estava naquele instante que se imaginou tirando o short de Malu dentro do banheiro.
Ele não respondeu, seu corpo começou a trabalhar sozinho naquele exato momento.
Calebe levantou e a ajudou a levantar do sofá, segurando pelo seu braço, mas Malu reclamou, puxando seu braço para si e fazendo ele notar alguns arranhões ali também. Ele desistiu de tocar seu braço e desceu a mão para a sua cintura, forçando-a a ficar de pé e seguindo da mesma forma até o banheiro. Ela foi pulando em um pé só e isso fez com que ela se desequilibrasse algumas vezes. Não foi intencional, mas ela não reclamou quando ele a segurou muito mais próximo do seu próprio corpo.
- V-você vai tomar banho? – Questionou quando chegaram ao cômodo, gaguejando.
- Acho que não, só quero tirar essa roupa imunda. – Franziu o nariz, tocando no botão do short. – Tô com medo de tomar banho e arder muito.
- Hm, é verdade, vai arder mesmo. Quer que eu...? – Apontou para o jeans.
- Só me ajuda a não tocar com o tecido no joelho ralado, por favor. – O instruiu. Ela sentiu suas mãos trêmulas ao desabotoar sua própria vestimenta. Ela segurou o short quando chegou as suas coxas e olhou para cima, encontrando um Calebe compenetrado, assistindo aos seus movimentos. Mais especificamente, a calcinha vermelha de Malu. – Calebe. – Ela segurou um sorriso ao chamar sua atenção mais uma vez. Ele a olhou, confuso e ela apontou com a cabeça.
- Ah, sim! O joelho. – Ele se situou e ajoelhou-se. Calebe se ajoelhou. Malu suspirou profundamente e foi a vez dela engolir em seco ao assistir aquele homem ajoelhado aos seus pés, trajando roupas sociais e um olhar obstinado. Ele cuidadosamente passou o jeans de modo que não tocasse em seu joelho ralado e só de tirar uma roupa dela o levou a uma avalanche de lembrança nada, nada inocentes. Quando retirou totalmente a parte de baixo, ele olhou rapidamente para o espelho comprido atrás deles na intenção de ver a bunda de Malu de maneira mais satisfatória, mas um pequeno arroxeado prendeu sua atenção. – Vira pra mim? – Pediu, olhando ainda para o espelho.
- Oi?! – Engasgou-se.
- Acho que tem alguns roxinhos aparecendo. – Explicou-se.
- Eu não vou virar de costas pra você. – Malu afirmou, firme e virou a cabeça, olhando o espelho por cima do ombro. Ele sorriu ladino ao vê-la com os olhos cerrados. – Ué, onde?
Ela não viraria? Sem problemas, Calebe tinha a solução. Deu um passo mínimo para frente e levou sua mão em direção a bunda avantajada de Malu. Com o dedo indicador, ele fez um círculo na pele macia dela, indicando o tom arroxeado quase imperceptível. Ele se sentiu satisfeito ao sentir a respiração dela ficar subitamente acelerada e com a proximidade entre eles, toda vez que ela inspirava, ele sentia minimamente seus seios encostando nele.
Calebe sentiu uma gotícula de suor se acumular em seu pescoço e duvidava muito que fosse os 38°C de São Paulo e a camisa social. Para ter certeza disso, ele olhou para baixo, encontrando o tecido de sua calça meio avantajado na parte da frente. Malu virou o rosto para frente novamente e olhou na mesma direção que ele. Ela ergueu uma sobrancelha. Alerta muito, muito vermelho.
Devido a proximidade, quando eles se olharam nos olhos novamente, seus narizes praticamente se encostaram. Malu paralisou. Calebe continuava circulando a ponta do dedo na pele da bunda dela. Ele ia beijá-la, depois de todo aquele tempo, de tanta coisa acumulada e muita história acontecendo. Quando Malu fechou os olhos, ele soube que tinha recebido autorização para seguir em frente e colar os lábios nos dela.
Toda a tensão acabou se transformando em desejo no momento que seus corpos voltaram a se encontrar. Tudo se encaixava, tudo parecia absolutamente certo. Calebe levou a mão direita para a nuca dela e encostou seus lábios nos dela. Sem pensar em consequências, Malu tocou o lábio inferior dele com a sua língua, provocando-o a beijá-la do jeito mais sensual.
Foi, definitivamente, o beijo mais arrebatador e intenso que eles trocaram.
Eles se beijaram de forma terna nos primeiros minutos. Malu o abraçou, tentava sentir a pele dele e relembrar cada aspecto da sua boca e de seu beijo, ela o apertava, sem decidir entre seus braços, seu pescoço ou seu rosto. As mãos dele não deixaram o rosto dela em momento algum. Aos poucos, eles foram testando seus toques entre si, buscando algum tipo de tensão ou reprovação, que nunca apareceu.
O beijo deixou de ser apenas carinhoso e nostálgico quando Calebe desceu suas mãos para o quadril de Malu e encontrou apenas sua pele quente e as tiras de sua calcinha. Então ele lembrou que estava beijando uma Malu apenas de calcinha dentro de um cubículo enquanto ela escorregava as mãos pelas suas costas.
Ambos sentiam a ereção de Calebe aumentando entre suas pernas cada vez que eles se aproximavam ainda mais, como se fosse possível. Malu sentia muita fala dele, do corpo dele e do jeito que ele a tocava. Não sentiu dúvida em colocar suas mãos por dentro da camisa de Calebe, buscando sentir a quentura da pele dele.
- Que saudade de você. Minha Maria, minha maluca, minha namorada, minha mulher... – Ele distribuía beijos cálidos em seus ábios, sua clavícula, seus seios, sua bochecha, seu pescoço.
O coração de Malu explodiu em seu peito, ele sentia sua falta! Nada mais importava. Todo esse tempo Malu pensou que estava lidando com aqueles sentimentos sozinha e ter noção de que ele sentia sua falta também era mais do que perfeito.
Não demorou para eles se livrarem das roupas e, devido a pressa e vontade serem forças maiores, sequer foram para o quarto ao lado. Contra a parede, Calebe apertava o corpo de Malu e tentava muito focar no corpo e na presença arrebatadora dela, mesmo que sua cabeça estivesse totalmente confusa e nublada.
- Fala pra mim, Malu. – Pediu enquanto a penetrava lentamente. – Fala pra mim que sentiu saudade.
- E-eu senti saudades.
- Diz de novo que nunca quis me deixar.
- Eu nunca, ah! Eu nunca quis...
- Fala que vai ficar.
- Eu vou... Ah!
Era 15 de setembro.
Dois meses desde que Andréia ligou para Malu em uma tarde qualquer e perguntou quando ela iria voltar. De vez em sempre, Malu relembrava a abordagem nada gentil de sua mãe e seu discurso voltava a sua mente quase sempre, principalmente naquela semana.
“Uma semana passa rápido, hoje já é sexta e cê não tem nem previsão de quando volta. Daqui a pouco, são três semanas, logo vira um mês...”
Logo virou dois meses que Malu estava morando com Calebe em Guarulhos. Dois meses em que Malu e Calebe se reencontraram, se reconectaram e descobriram um no outro sua fonte de energia e resiliência. Dois meses lotados de carinho e paixão. Dois meses que Malu dormia e acordava sorrindo, nos braços do homem que ela amava.
Entretanto, foram dois meses que Malu estava sem trabalhar e estudar, dois meses em que a vida dela era esperar Calebe voltar do trabalho, dois meses que ela descobriu que odiava ser apenas uma dona de casa e, por mais que doesse na alma de Malu admitir, foram dois meses perdidos, assim como sua mãe havia previsto.
- Ér... Você não tá feliz, é isso? – Calebe questionou, ainda sem entender muito bem aonde ela queria chegar com aquela conversa.
- Não é isso, amor. É só que...
Como ela iria dizer que simplesmente não conseguia mais ficar dentro daquela casa? Todos os dias ela o esperava chegar do trabalho, trocavam meia dúzia de palavras, jantavam o que ela havia preparado, sujavam o que ela havia limpado, transavam, assistiam uma série antes de dormir e, no outro dia, exatamente o mesmo hábito.
- Você quer ir embora? – Calebe perguntou novamente, mas se fosse extremamente honesto, não estava se importando muito com a resposta.
- Quero..., mas com você. – Ela confessou, deixando-o ainda mais confuso.
Desde que ele chegara do trabalho naquela noite, Malu pediu para conversar após o jantar, e depois de muitas reclamações acerca de sua própria rotina, ela tentava explicar o que queria.
- Eu... não tô entendo, Malu.
- Calebe, eu sei que... tudo ainda é muito recente e você ainda tá entrando nos eixos depois do que aconteceu com a tia, mas a gente não tem falado sobre nós, sobre nosso futuro – Ela finalmente colocou em palavras o que vinha sentindo ultimamente.
- N-nosso futuro? – Murmurou, inquieto.
- É, ou você espera que eu fique aqui a vida toda?
- Tá te faltando alguma coisa por acaso? – Instantaneamente ela ficou meio irritada com o tom de voz dele e pensou em responder que não, mas desistiu, pois se negasse continuariam presos naquela casa como se fosse um dia da marmota agradável.
- Tá, Calebe. – Ela levantou uma mão e começou a enumerar. – Autonomia. Um emprego. Uma perspectiva.
- Bom, o emprego não é muito culpa minha. – Ela o encarou tão ferozmente que a voz dele foi diminuindo aos poucos até sumir. – Desculpa, eu não quis...
- Calebe, eu posso muito bem conseguir um emprego aqui ou algo do tipo, mas não me colocar em uma posição de permanência quando a gente nem conversa direito.
- Você tá vendo coisa onde não tem? – Ela soltou uma afirmação interrogativa.
- Oi? – Ela se afastou.
- Malu, o que você quer? Me fala, mas seja clara, eu não tenho como adivinhar. Me diz o que você quer e eu juro que vou fazer o possível pra você ficar feliz.
Ela pensou um pouco antes de responder. Novamente, ela poderia deixar para lá e não falar nada. Ela poderia falar o que a incomodava. Mas olhando Calebe sentado em sua frente, dispostos a ouvi-la e fazer o que fosse preciso por ela, ela decidiu que ia lutar por eles e falou o que ela queria para o futuro.
- Volta comigo. Eu vou, você organiza tudo aqui e volta comigo. Mora na minha casa, a gente se organiza num lugarzinho. Você tem reclamado do emprego, mas acho que se você conversar, talvez consiga uma transferência ou não sei... – Ele ainda a encarava quando ela parou de falar. – Foi você que perguntou o que eu queria!
- E-eu...
Calebe estava, no mínimo, angustiado. Como ele diria para ela que “não”, não queria?
- E eu sei que a gente não tem falado muito sobre nós, eu não sei nem se a gente ainda namora – deu uma risada sem humor e subiu o olhar ainda e encontrou um Calebe sem feição definida, apenas a ouvia. Isso a deixou nervosa, então ela desatou a falar. – Mas que eu quero deixar claro que, por mim, a gente pode esquecer tudo o que aconteceu.
“Não, não pode”, Calebe pensou, mas não falou.
- Eu só que quero ficar do seu lado, quero ser a pessoa que cuida de você. Sinceramente, amor, eu só quero estar com você. Eu quero ficar com você, Calebe. Eu não ligo pro bom, pro ruim, quero você! Quero uma vida, uma casa e até mesmo os cinco filhos que você quer ter. Eu sei que é um péssimo timing, que tudo tá dando errado, você tá inseguro e com toda razão! Mas eu quero insistir em nós, quero fazer dar certo do jeito que sempre deu! Lembra o quanto a gente valia a pena?
Calebe conseguiu desviar o olhar de Malu e observou o calendário em sua parede. Tinham poucos meses do falecimento de sua mãe. Talvez ele conseguisse.
Foi em 15 de setembro que ele decidiu que precisava desesperadamente dar uma chance a uma nova vida. Queria voltar ao seu eixo, queria desesperadamente voltar a si. Ele queria muito, queria quase desesperadamente. Foi naquele 15 de setembro que ela decidiu que voltaria para casa. Foi naquele 15 de setembro que ele olhou em seus olhos e disse que aceitava tudo o que ela estava lhe propondo. Casa, família, amor.
Por ela, ele faria tudo. Por ela, ele voltaria.
Era 15 de fevereiro do ano seguinte. Ele não voltou.
“Me deixe sim, mas só se for pra ir ali e pra voltar.
[...]
Agora as noites são tão longas,
no escuro eu penso em te encontrar.
Me deixe só até a hora de voltar”
Grão de Amor – Arnaldo Antunes
Parte 3 - “Dueto” – Chico Buarque
Diferentes tons de azul e laranja espalhavam-se pelo céu e uma corrente de ar prazerosa invadia o carro. Calebe não costumava andar com as janelas abaixadas, mas naquele dia, ele não resistiu a vontade de desligar o ar-condicionado e sentir a brisa ir de encontro com seu rosto.
Fazia tempo que Calebe não sentia aquela sensação de ter o ar puro o cobrindo com receptividade, já que ele quase nunca saia ao ar livre. O homem costumava dizer que seu apartamento era apenas seu dormitório, o trabalho era sua casa e o seu carro era sua segunda casa, visto que a maior parte do tempo durante seus dias, ficava no escritório.
Pouca coisa tinha acontecido em sua vida naquele ano. Depois da morte de Ana, Calebe se envolveu com o seu próprio trabalho da forma mais prejudicial possível. Muitos o chamavam de sortudo ou bajulador, mas na verdade, ele apenas trabalhava muito. Ele caçava trabalho de forma compulsiva, por vezes causando incômodo até em si mesmo, mas não conseguia evitar. Foi a forma que ele encontrou de não pensar em nada que envolvesse sua própria vida pessoal. Quando ele estava no banco ou no escritório, a única coisa que importava eram números, contas, relatórios, fichas e pastas.
A maioria das pessoas no escritório tinham o rapaz tão novo e tão bem-sucedido como exemplo, principalmente por ele ter sido o único responsável por seu próprio crescimento na empresa. Sua vida financeira e profissional nunca esteve melhor, entretanto sua qualidade de vida pessoal estava deplorável.
Naquela semana, Calebe foi convocado para ser o orientador responsável por uma nova ala no setor bancário na sua cidade natal. Isso provocou todos os sintomas de ansiedade que ele estava acostumado a ter quando citava ou lembrava de algo referente a sua “vida de antes”, que era como ele costumava nomear a vida após a morte de Ana. Tudo só piorou quando Vinícius, seu melhor amigo que ele não via ou falava a dois anos, entrou em contato com ele por e-mail. Uma porra de um e-mail.
Calebe se sentiu um merda ao pensar que seu melhor amigo – ele ainda o considerava dessa forma – sequer tinha seu novo número.
No e-mail, Vini contou que sua casa havia sofrido uma tentativa de arrombamento. Pudera, a casa estava abandonada a dois anos. E que ele estava preocupado com os móveis e objetos pessoais que ainda tinham lá dentro. Ele também falava que normalmente ele falaria com sua tia Sônia, que morava em Fortaleza, mas ele havia perdido o número dela e que encontrar Calebe pela internet era mais fácil. Ele se sentiu um merda duas vezes ao pensar que Vinícius teve que procurá-lo como se ele fosse uma outra pessoa, não o cara que o carregava bêbado pelo bairro afora.
Calebe tinha planos de viajar de carro pelo menos uma vez na vida, então juntou o útil ao agradável. Espontaneamente, se enfiou em seu carro e pegou estrada rumo ao bairro da Saudade. E naquelas doze horas de viagem, o único objeto do pensamento de Calebe foi a única coisa em que ele não havia pensado naqueles dois últimos anos.
Maria Luiza.
Bateu a cabeça contra o banco do carro ao relembrar isso e se esforçou para voltar a prestar atenção na estrada. Mas não funcionou. Para alguns, Calebe era o melhor cara, sempre gentil e responsável. Para Calebe, ele mesmo era um covarde. Ele não sabia quantas vezes já havia lido aquela última mensagem que ele enviou para Maria Luiza antes de bloquear seu número. E todas as vezes, ele sentia todas as sensações que sentiu da primeira vez.
“Malu, minha Malu-ca. Eu te amo. Me desculpa.”
Calebe começou a chorar no momento que dobrou uma esquina e chegou às conhecidas e amadas ruas do bairro da Saudade. Cada canto da cidade era especial para ele, mas ali no seu bairro, no bairro da sua infância, da sua adolescência, era algo maior. Ele olhava em cada casa, comércio, construções inacabadas e sentia que tinha uma história em cada local. Ele conhecia cada lugarzinho dali e chorou ao lembrar Dela.
Ele passou em frente a padaria e lembrou o quanto ela gostava da torta que seu Armando fazia. Passou na farmácia e lembrou que Ana ainda tinha uma conta pendente lá desde que estava grávida dele e nunca pagou. A escola onde ele aprendeu a ler. A pracinha onde ela o ensinou a andar de bicicleta. A passagem florida onde ele viveu os melhores momentos de sua infância, ele não lembrava, mas Ana sempre contava que ele havia aprendido a andar ali. Não demorou muito até ele chegar ao local que ele mais temia: a sua casa.
Estava amanhecendo e o sol ainda estava preguiçoso e escondido. O clima acabou criando-se de maneira nostálgica quando ele estacionou em frente à casa de alvenaria azulada tão significante. Ele respirou fundo algumas vezes, tentando parar de chorar, procurou as chaves que a tempos não usava e desceu do carro.
Ele olhou em volta. A rua ainda estava vazia, era cedo demais para a movimentação típica dali. Assentiu para si mesma e apertou as chaves nas mãos fortemente, tentando sentir uma dor física que o fizesse acreditar que ele realmente estava parado ali, que não era apenas mais um sonho.
O portão da frente estava intacto, segundo Vinícius, a tentativa de arrombamento ocorreu pelo quintal, na porta dos fundos, ou seja, ele entrou sem problemas. Sua mente trabalhava de forma rápida e emocionada.
A forma que sua casa ainda parecia a mesma de antes, como se nada tivesse mudado, o destruiu. Calebe caiu no choro pois assim que entrou, ele pôde jurar que encontraria Ana sentada na antiga máquina de costura, ou na cozinha, ou limpando o quintal. Chorou ainda mais quando lembrou que ele não a veria mais e que aquele sentimento que estava o inundando não era tristeza, nem felicidade, era saudade, em seu estado mais puro e sincero. Ele estava morrendo de saudades da sua mãe.
Calebe chorou, sentido, saudoso e, estranhamente, feliz. Caramba, ele estava feliz de voltar. Ele evitou voltar durante esses anos pois pensou que não suportaria encarar de frente a sua tão amada vida de antes, pensou que morreria se tivesse que lidar com um mundo onde Ana não existia mais. Entretanto, olhando para aquela casa, construída com sonhos e suor de Ana, ele estava feliz. Feliz de ter sido filho dela e satisfeito de estar ali.
Passou alguns minutos sentado no sofá empoeirado antes de tomar coragem de seguir em frente e ir aos outros cômodos da casa. Tudo estava no mesmo lugar desde o dia em que ele foi embora depois do funeral de Ana. A cozinha estava com uma janela quebrada e os armários revirados, o quintal também estava coberto por um matagal alto, mas ele nem olhou para o lado de fora, saiu correndo para o quarto de sua mãe. Preocupou-se, pois, se a cozinha havia sido revirada, os quartos também poderiam ter sido. Eles não tinham nada de valor monetário, mas sentimental, tinham muitas coisas.
Ele suspirou aliviado quando notou a porta trancada e buscou em seu molho de chaves antigo pela que abria o quarto da mãe. Novamente, derrubou-se em lágrimas quando entrou no cômodo. Calebe achava que a última vez que tinha chorado tanto foi justamente no dia do falecimento da mulher.
O homem começou a recordar os dias em que assistia a sua mãe costurar pilhas e pilhas de roupas sem reclamar, lembrou das tardes que brincava com os amiguinhos no quintal, do período de transição entre sua infância e a adolescência feliz que ele teve, algo que nunca poderia reclamar. Novamente, sentiu-se grato.
Após torturar-se e agraciar-se no quarto de Ana com todos seus objetos antigos, ele resolveu ir até o seu antigo quarto. A sensação de nostalgia encobriu seu peito, as lembranças engraçadas e alegres lhe davam sentimentos diferentes do que teve ao entrar no quarto da mãe. Mesmo aquele sendo o lugar que ele cresceu e se descobriu homem – de todas as formas possíveis –, a única imagem que vinha em sua mente era de Maria Luiza.
Sua linda e adorável Malu, sua namorada da vida.
A lembrança o atingiu com força e ele, que evitou pensar nela naquele tempo longe, se viu desesperado para saber como ela estava. Tateou seu bolso, ansiando entrar em contato com Vinicius ou, até mesmo, ir em busca de alguma rede social dela, mas sua intenção foi interrompida pelo toque de seu celular. Ele sequer notou que já tinha quase uma hora que estava vagando pela casa e perdido em pensamentos e já estava atrasado para ir ao escritório do Departamento Pessoal da empresa.
Então, Calebe fez o que já estava acostumado a fazer. Deixou suas emoções e sentimentos guardados em algum lugar no fundo de sua mente e focou inteiramente no que havia ido fazer ali em primeiro lugar: trabalhar.
Depois que Calebe descobriu como era fácil se desligar do mundo real quando estava trabalhando, era um desafio não trabalhar. As demandas aumentavam cada vez mais e mais, até que chegou uma hora em que ele não precisou mais “caçar trabalho”, os compromissos e desafios profissionais simplesmente chegavam até ele e tomavam todo o tempo útil que ele tinha.
O que para um Calebe recém-saído de um término e um luto mal curado era mais do que ótimo.
- Eu vou precisar dos relatórios semanalmente e uma base do conteúdo documental que você utiliza em orientação, apenas para catalogação mesmo. – Seu Lisboa, o antigo chefe regional de Calebe, o que lhe abriu as portas para tudo na empresa, relatou o que precisaria de Calebe naquela quinzena.
- Ok, o que mais? – Questionou, digitando em seu bloco de notas no celular.
- O que mais o que, garoto? – Calebe levantou a cabeça, acanhado. Olhou para o homem à sua frente e depois para a estagiária, que como ele, anotava tudo em uma pequena agenda.
- É só isso que precisa de mim? – Calebe estranhou.
Seu Lisboa deu uma risada estrondosa, típica dele, e se levantou da cadeira, prendendo o seu paletó antes de puxar Calebe pelos ombros, fazendo-o se levantar, hesitante. Das duas tarefas dadas a ele, uma ele já tinha pronta, que era o documento para catalogação. E ele não queria se gabar, mas ele fazia relatórios como quem andava de bicicleta, nunca havia desaprendido e sempre melhorava.
- É por isso que você é o melhor estagiário que eu já tive aqui, menino! Sem ofensas, Rita! – Dirigiu-se a estagiária loira, que apenas sorriu e negou com a cabeça. – Calebe, aproveita que não é tanto trabalho assim pra você e vai matar a saudade dessa cidade linda, rapaz! Vai ver “seus amizades”, encontrar sua família, quanto tempo você não visita aqui? – Lisboa emitiu em um tom de voz que fez seu sotaque português aparecer fortemente.
- Ér, eu não sei dizer. – Mentiu, sorrindo amarelo.
Ele sabia muito bem que tinham mais de 730 dias que ele não pisava ali.
Assim que Lisboa deixou a sala, ele recolocou os óculos escuros, torcendo para que os dois que ali estavam não tivessem notado que seus olhos estavam vermelhos e inchados. O dia havia começado de forma intensa, mas ele só conseguia pensar que sem tanto trabalho para fazer, ele iria ter que voltar para casa e lidar com… tudo o que tinha lá. Suspirou e abaixou a cabeça, abrindo a bolsa a tira cola que portava, buscando por uma barrinha de cereal que sempre ficava por ali.
- Eu não sabia que o senhor morava aqui. – Ouviu a voz da moça comentar.
- Você. – Corrigiu.
- Perdão? – Ainda estava de cabeça baixa, mas pensou ser falta de educação e logo se censurou.
- Você me chamou de senhor. Eu só tenho vinte e quatro anos. – Brincou enquanto abria a embalagem da barra de cereal que, com certeza, não mataria sua fome.
- O que? Como assim? Eu tenho vinte e sou só uma estagiária! – A moça riu, meio surpresa com a informação.
- Bom, eu comecei assim. E não, eu não sou filho de nenhum grandão. – Ele deu uma piscada. Sim, Calebe ainda tinha o dom do carisma e é claro que Rita, a estagiária, já estava olhando para seu futuro novo chefe com olhos de cobiça. – Prazer, Caleb...
- Calebe Martins, a lenda dos estagiários! – Ela se apressou, estendendo a mão para cumprimentá-lo, fazendo-o rir com a alcunha que ele já conhecia. – Meu nome é Rita, a futura lenda dos estagiários.
- Ei, esse é o espírito! – Ele apontou, encorajando-a. – Então Rita, esse prédio é novo e eu meio que não conheço nada aqui. Cheguei de viagem ainda pouco e tô morrendo de fome, tem algum lugar aqui onde eu possa comer alguma coisa? – Perguntou.
- Aqui no edifício não tem, mas logo aqui atrás tem uma padaria ótima, vem aqui, deixa eu te mostrar pela janela. – Chamou, indo em direção a uma janela de vidro que se estendia do piso ao teto e dava uma visão mais do que ampla do que tinha a sua frente.
Nos primeiros segundos, Calebe tentou prestar atenção nas instruções da garota sobre a padaria “meio rosa, meio vermelha, ao lado do prédio branco e azul”, segundo ela mesma. Calebe olhou para baixo e percebeu que o prédio, diferente dos outros que tinham em Guarulhos, não tinha fumódromo no ponto mais alto e sim logo no primeiro andar, que era dois andares abaixo de onde ele estava.
Sem motivo aparente, talvez destino, talvez por instinto, Calebe olhou para baixo e logo após perceber que aquilo era a área de fumantes, ele observou a única fumante ali. E após isso, notou que conhecia aquele rosto, conhecia aqueles lábios que envolviam aquele cigarro. Conheciam aqueles olhos pequenos. Conhecia aquela mão que tirou o cigarro da boca e jogou no chão. Céus, ele conhecia aqueles cachos.
Meu Deus, era sua namorada.
Ignorou os decoros de educação que ele mesmo se recriminou a minutos atrás e saiu andando, deixando a estagiária Rita falando sozinha. Se desculparia depois, quando ele voltasse a ter controle do seu próprio corpo, já que agora suas pernas criaram vida e foram em direção ao corredor fora do escritório bancário e foi ao elevador de serviço.
Ele apertou no botão ao lado da porta cinco vezes seguidas, como se isso fizesse o elevador ser mais rápido. Ele queria que fosse mais rápido? Para quê? Iria falar com ela? Falar o quê? Caramba, Malu ia matá-lo. Ele sentiu vontade ver se as câmeras do prédio estavam funcionando, pois ele tinha certeza de que Malu ia atentar contra a vida dele quando o visse ali.
Em meio a tantos devaneios, sentiu que o mundo parou nos milissegundos que antecederam a abertura da porta do elevador. A primeira coisa que seus olhos encontraram foi o rosto dela. O marcante e ainda mais lindo rosto de Maria Luiza.
Com a feição mais madura, Malu continua bonita e ele arriscava dizer que ela nunca fora tão bela. Seus olhos estavam ressaltados por longas camadas de rímel e seus lábios estavam pálidos, ele sentia o cheiro do cigarro de hortelã sair de dentro do cubículo. Ele sabia que tinha sentido falta dela, mas vê-la parada em sua frente o levou ao lugar que Calebe sabia que não tinha saído ainda.
Então ela, que até então olhava para o painel ao lado, olhou para frente e seus olhos se encontraram. E por um segundo, antes de mudar de feição completamente ao reconhecê-lo, Malu sorriu e Calebe voltou a entender o que era aquela imensidão chamada de mundo.
Nenhum dos dois se moveu, apenas se encaravam. Quando as portas iam fechar, Calebe teve vontade de entrar correndo no elevador, mas ele ainda não era dono de seu corpo e suas pernas não obedeceram a sua vontade. Mas Malu colocou a mão na porta, segurando-a.
Ainda em silêncio, Malu encarou o rosto de Calebe fixamente, com um vinco entre as sobrancelhas e a cabeça levemente inclinada, como se estivesse tentando reconhecê-lo, mas ela sabia quem era. Calebe, ainda aturdido, puxou o ar para tentar dizer uma sílaba ou duas, mas foi impedido pela próxima ação da mulher, que desviou o olhar para o painel de controle e apertou o botão de fechar as portas.
Calebe assistiu os olhos de Malu se transformarem em confusos, raivosos e tristes enquanto as portas se fechavam, separando-os novamente.
- Tá tudo bem? Você saiu correndo. – Ouviu a voz de Rita e encontrou a moça no final do corredor, apoiada na porta olhando-o confusa.
Ele começou a se desculpar, balbuciou alguma mentira e se ofereceu para comprar café para os dois. Qualquer coisa que o tirasse daquele corredor, onde as paredes pareciam ter a cor dos olhos de Malu e se fecharam em volta dele. Não esperou pelo elevador, sentia que ia vomitar se entrasse em um naquele momento, então, saiu correndo pela escada de emergência, buscando liberar toda a adrenalina causada pela visão inesperada do que ele tinha certeza ser a mulher de sua vida.
Tudo parecia flutuar de forma desconexa e intensa desde que Calebe colocou os pés na cidade, entretanto, após contemplar a presença de Malu, ele nunca se sentiu tão imerso e presente. Calebe fez a única coisa que achava plausível para o momento. Mandou uma mensagem para Vinícius, retomando seu posto de melhor amigo e implorando para tomar uma cerveja naquela noite.
Vultos e manchas anormais embaçavam a visão de Maria Luiza à medida em que ela saía do elevador. O caminho até o décimo sexto andar nunca foi tão longo. Ela levou a mão até a própria testa e começou a bater repetidas vezes. Não é possível. Não é possível que ela havia acabado de encontrar Calebe. O puto Calebe.
Ela respirava ofegantemente, como se tivesse corrido desde o fumódromo até ali. Diminuiu seus passos quando chegou ao consultório e viu Carla, a recepcionista, sentada de maneira entediada enquanto cerrava as unhas. “Clichê”, Malu pensou, mas foi o suficiente para levá-la de volta ao cenário real de sua vida.
- E aí? – Malu perguntou, passando a mão nervosamente pela calça do uniforme azul.
- Teca desceu pra fumar, Tatiane tá comendo, tem três pacientes lá dentro e o doutor quer cigarro, mas disse que só ia quando você viesse. – Informou. Carla até que não era ruim, era só uma mulher cansada de seus afazeres e não tinha paciência para lidar com ninguém que não fosse seu namorado de vinte anos. Ela tinha cinquenta e quatro. – E você claramente tava fumando né, eca! – Reclamou, abanando a mão em frente ao seu rosto e puxando uma latinha de odorizante debaixo do balcão e espirrando no ar.
Malu continuou parada na porta, sem se mexer e sem processar bem o que havia acontecido. Queria comentar e falar sobre e, pensando bem, Carla era mesmo sua melhor opção, visto que Teca a odiava, não tinha intimidade com Tatiane e ela duvidava muito que o doutor Zhao iria querer saber sobre seu ex-namorado.
É, Carla serviria.
- Carla, acabei de encontrar meu ex no elevador. – Depois de emitir em voz alta, repetiu algumas vezes em pensamento para se acostumar com a ideia.
- Uh, e aí? Beijou? – Fingiu interesse, mas não desviou o olhar das unhas semicerradas.
- Não.
- E tá assim por quê?
- Ele me... deixou. – Malu não sabia outra forma de explicar. Carla levantou o olhar, finalmente.
- Entendi... Você socou ele?
- Não. – Ela respondeu simplesmente.
Carla a analisou por um segundo e percebeu que não era simplesmente um ex. O ex que a menina Malu – como ela a chamava – havia encontrado deveria ser O ex, que todo mundo tem. Aquele que não deveria ser ex, mas acaba chegando lá por vias duvidosas.
- Fica tranquila, menina Malu, esse prédio é enorme, cê não vai mais ver ele. – Tentou tranquilizá-la ao notar que Malu batia o pé no chão incessantemente.
- Umm, acho difícil. – Carla ergueu uma sobrancelha, confusa. – Ele é meu vizinho. – Explicou.
- Putz... – Carla murmurou, mordendo a ponta da lixa de unha. – Mas você va...
Carla foi interrompida pela porta do consultório médico se abrindo e mostrando um doutor Zhao fazendo um sinal com as mãos chamando por Malu, que prontamente o atendeu, disposta a ignorar o acontecido de minutos atrás.
Dificilmente Malu conseguiria passar o resto do dia sem ficar analisando cada segundo da cena que ocorreu naquele elevador. Até porque ela estava mais do que habituada a isso, já que naqueles dois anos, a ação que Malu mais havia efetuado era pensar. Desde o dia em que ela veio embora de Guarulhos, cheia de esperanças, felicidade, disposta a dividir uma vida com Calebe, Malu parava por horas para refletir, analisar e entender cada palavra, atitude ou ato seu que pudesse justificar o que Calebe havia feito.
Aquele tempo foi um tempo considerável para Maria Luiza, pois foi nesse período, depois de uma semana inteira de muitas lágrimas e pesar – principalmente após a famigerada mensagem de Calebe – que Malu decidiu que não queria mais ser triste, novamente. De tempos em tempos, Malu fazia essa escolha para si mesma.
Para uma vida normal, dois anos haviam se passado sem grandes alterações ou mudanças drásticas. Para Malu, muita coisa estava diferente.
A carreira acadêmica nem sempre é a melhor opção para todo mundo e agora Malu tinha certeza disso. Ela se dava bem na época da escola e até que gostava das aulas no cursinho, mas por conta das brigas e cobranças constantes de sua mãe, levou um tempo até ela admitir para si mesma que não sentia vontade de fazer uma faculdade. Não se via estudando durante quatro ou cinco anos no mesmo curso, para trabalhar na mesma coisa no resto da vida. Passar na faculdade não é uma questão de vida ou morte. E não passar também não foi o fim do mundo.
Desde então, Malu trabalhava como secretária em uma clínica de acupuntura em um prédio comercial no centro da cidade. Ela recebia um bom salário, tinha benefícios de saúde e carteira assinada, mas ainda assim, aceitou trabalhar algumas noites no caixa do bar que sua melhor amiga Alanne tinha construído. Alanne tinha se tornado uma empreendedora de mão cheia, era dona de dois negócios no bairro da Saudade: um salão de beleza especialista em pele negra e cabelos cacheados e crespos em uma área nobre da cidade. E com o sucesso dele, ela conseguiu juntar dinheiro e abriu um pequeno bar no seu antigo bairro. Era aconchegante e barato, garantindo um público não tão grande, mas extremamente fiel.
Assim, Malu não tinha uma profissão, mas tinha um emprego. Não tinha uma carreira, mas recebia dois salários que eram mais do que suficientes para ela se manter e manter sua casa.
Maria Luiza não tinha arrependimentos de quase nada do que havia feito até ali. Até aquele dia, ela nunca tinha se recriminado por ter adquirido o hábito de fumar de sua mãe, Andréia. Mas se não fosse pelo terrível vício, ela não teria descido até o fumódromo. Se não tivesse descido, não teria encontrado Calebe.
E droga, Malu tinha planejado sua vida meticulosamente após o sumiço de Calebe e encontrá-lo no elevador do seu local de trabalho definitivamente não fazia parte dos seus planos.
Após ver Calebe, ela estranhamente sentiu vontade de ir ver a mãe. Pois além de Alanne, ninguém sabia daquela história tão bem quanto Andréia. Então, após o fim do expediente, não sem antes prometer a Carla que contaria novidades caso houvesse alguma, Malu colocou sua bolsa no ombro e foi em direção a parada de ônibus contrária à que costumava ir nesse último ano.
Malu havia saído da casa de seus pais e agora morava em um apartamento de dois cômodos em outro bairro. Basicamente, uma fuga de uma adulta desesperada.
Ela se sentia presa na sua casa de infância. Passou muito tempo naquele lugar e amava a casa mais que tudo, mas o peso que sentia quando estava ali era quase absurdo. O mundo sempre parecia pequeno demais quando ela estava lá, o mundo parecia que jamais pertenceria a ela enquanto ela estivesse ali. Ela sentia que estava tão apertada ali quanto os móveis abastados em sua sala, como se fosse uma das caixas de livro do seu pai que continuava no mesmo lugar mesmo que o homem já tivesse morrido a mais de dez anos. Por isso, foi embora. Não era o melhor lugar do mundo, mas o pequeno apartamento era seu primeiro grito de liberdade.
- Mãe! Cadê você? – Chamou ao entrar na casa, ela ainda tinha as chaves da porta. Mais por precaução do que por carinho.
- Na cozinha. – Andréia respondeu e Malu soltou a respiração. Ela ainda se preocupava em chegar naquela casa algum dia e Andréia simplesmente não responder.
Malu sempre tinha uma sensação diferente quando voltava ali. Porque ao mesmo tempo em que aquela que tinha sido sua casa por quase sua vida inteira não parecia um lar, o seu apartamento que mal tinha um ano completo parecia. Sentia que se passasse muito tempo ali, a menina que era maltratada pelo luto de uma mãe iria voltar. E ela não podia deixar isso acontecer.
- Tá fazendo o quê aqui? – A mulher mais velha perguntou com um cigarro entre os lábios enquanto mexia em algumas panelas.
Ainda era meio inusitado para Malu ver sua mãe acordada a maior parte do tempo. Antes de se mudar definitivamente, Malu confirmou para sua mãe que ela era o único motivo de ela estar saindo de casa. Era mentira, mas durante a briga, Malu não pensou em medir suas palavras. Entretanto, acabou sendo um mal que foi para o bem, pois após uma semana morando sozinha, Andréia pediu a ajuda de Malu para procurar um médico que a ajudasse a resolver seu problema com as dormidas fora de hora e sono provocados por narcóticos.
- Credo, parece até que eu não venho te ver. – Ela tentou olhar nas panelas, mas recebeu um tapa da mãe.
- Anda, Maria Luiza, desembucha. – Andréia ordenou, sem paciência.
- Vim jantar contigo, mãe. – Mentiu, mordendo a ponta da unha.
- Tá sem comida no teu muquifo? – Andréia riu, importunando a mulher, mas verdadeiramente feliz em vê-la.
Malu a visitava sim, especialmente nos finais de semana antes de começar o expediente no bar de Alanne no bairro, porém, Andréia não poderia negar que sentia falta da companhia diária de sua filha, principalmente agora que ela passava mais tempo acordada do que dormindo. Mas ela sabia que já havia perdido sua chance, sua filha já havia partido e estava começando a criar seu novo ninho.
- Caramba, mãe. – Malu reclamou, rolando os olhos.
- Maria Luiza, faz semanas que você não vem, aparece sem avisar e tá com essa cara aí de quem comeu e não gostou, só pode ter coisa. – Analisou, colocando um prato em frente a filha sem que fosse necessário ela pedir.
“Como você pode me conhecer tanto se só dormia a maior parte do tempo que passamos juntas?” Malu pensou, mas nem cogitou falar, seria injusto com Andréia, que vinha se esforçando para lidar com seus vícios.
- Tá fazendo o quê pra jantar aí? – A ignorou, levantando-se para buscar talheres.
Mãe e filha jantaram em um silêncio confortável como vinha sendo nas últimas semanas, de vez em quando comentando alguma amenidade. Malu observou os quadros magnéticos todos confeccionados com horários, nomes e atividades que ficavam na porta da geladeira e sorriu. Era nítido que era a primeira vez que sua mãe estava se esforçando em algo.
- O que é isso? – Apontou para o quadro e sorriu quando viu Andréia parecer envergonhada.
- É meu quadro de tarefas, fiz na... – A mulher pigarreou e abaixou a cabeça, fazendo Malu sorrir divertida. – Terapia.
- Terapia?! Cê tá fazendo terapia? Mãe, que... Caraca, que incrível! – Malu empolgou-se e sua reação deixou Andréia verdadeiramente feliz e agradecida.
- Pois é, o psiquiatra achou melhor que eu começasse, como se fosse um tratamento alternativo, mas não sei...
- Não, mãe, isso é demais! Sério, nunca pensei que você fosse fazer terapia um dia. – Brincou, cutucando o ombro da mulher, que rebateu empurrando o ombro da filha, que voltou a comer, ouvindo-a atentamente.
- Tem sido ok. Tenho sentido que essas tarefas têm me ajudado bastante. – Assegurou.
- Você fala o que lá? Como é? Eu nunca fiz, não sei como funciona – Perguntou, curiosa, apoiando a cabeça na mão.
- Bom, é fora da zona de conforto, com toda certeza. Lá eu falo sobre minha rotina, que era inexistente, falo sobre mim, sobre meus pais, sobre você e como eu arruinei a nossa relação...
Malu se engasgou com a comida por conta da rápida revelação que ela não viu chegar. Tossiu algumas vezes, preocupada em ver uma possível explosão de Andréia, mas a expressão da mulher não mudou e ela continuava a mastigar tranquilamente.
- Vou tá mentindo se eu disser que não. – Malu comentou, honesta.
- Nós duas erramos. De um jeito inconsciente, eu te culpei por coisas que não estavam nem perto de ser culpa sua. Eu nunca deveria ter feito esse papel com você, nunca devia ter deixado esse papel pra você. – Andréia emitiu de forma nervosa. Já vinha um tempo querendo conversar com Malu sobre aquilo, mas nunca surgiu a oportunidade e nem coragem.
- Você estava de luto e não percebeu. – Malu deu de ombros, não dando muita importância. Já tinha pensado naquilo o suficiente para não culpar sua mãe inteiramente pelos seus atos.
- Nunca mais vou ter esse papel na sua vida de novo. – Andréia refletiu com o olhar perdido, mas logo balançou a cabeça. Não gostava de parecer frágil na frente de ninguém, especialmente na frente de Malu.
- Te peço desculpas se não conseguir te tratar da mesma forma, mas é que você se afastou tanto que agora não consigo imaginar você perto de novo. – Malu estava com os olhos marejados, mas com um leve sorriso, como se dissesse que estava tudo bem e Andréia se sentia da mesma forma. – Você é minha mãe e pronto.
- No geral, – Pigarreou, continuando a comentar sobre a terapia. – tem me ajudado bastante. Falo sobre o João o tempo inteiro, sabia? – Malu parou de comer definitivamente e largou os talheres. Totalmente espantada e admirada, ela levou a mão até a boca. Andréia riu com a reação sincera da filha. – É, eu sei que não fazia antes.
- Ai, mãe! – Malu exclamou, emocionada. - Fico feliz. Antes tarde do que nunca, né?
Tudo que Malu passou com Andréia e suas crises bipolares causadas pelo luto sempre teria terrível, violento e doloroso, além de ter deixado marcas em Malu que seriam complicadas de reverter. Porém, nada, absolutamente nada, seria tão doloroso de reviver e pensar quanto a morte de João. Perder seu pai quando ainda era uma adolescente era uma dor que nunca iria se curar.
Mas Andréia e Maria Luiza (mesmo que em tempos diferentes) aprenderam que precisavam seguir em frente. Ambas estavam exaustas de tudo que tinha acontecido. Não queriam mais ter que engolir a amargura e sim aprender a viver com o fato de que ela sempre estaria ali, bem ao lado da saudade.
Malu se perdeu tanto em suas reflexões que não notou que a mãe já estava lavando as louças do jantar. Ela não pensou que fosse ter aquele tipo de conversa naquele dia, mas foi uma surpresa agradável. Esse pensamento a fez lembrar o que realmente a levou até ali.
- Tá, eu vou falar, mas ó, tira a ferradura pra comentar. – Advertiu e mordeu os lábios pensativa antes de continuar. – Eu vi o Calebe hoje.
Andréia imediatamente levantou a cabeça, olhando-a surpresa. Largou a panela na pia, puxou sua carteira de cigarro e se sentou ao lado de Malu, sem desviar o olhar do rosto da filha. Malu sentiu vontade de rir com a reação, mas lembrou do culpado e do porquê, logo voltou a fechar a cara.
- C-Calebe? O teu Calebe? – Malu fechou os olhos, sentida. Fazia muito tempo que não ouvia Calebe ser citado daquela forma, como o seu Calebe. – Onde?
- Lá no trabalho, no elevador. Mas a gente não se falou.
- Ele te viu? – Malu assentiu. – Mas... O que ele tá fazendo aqui?
- E eu lá sei, mãe? A gente não se falou. – Explicou novamente e assentiu ao receber um cigarro oferecido por Andréia. Alguns vícios são difíceis de largar.
- Esse moleque! – Andréia esbravejou. – Será que ele tá aí? Na casa da Ana?
- Não sei se eu quero pensar nisso, mãe. – Deu uma tragada no cigarro. – Na verdade, acho que devo sim pensar, mas não quero! – Lastimou.
Foi assim que Malu lidou com o abandono de Calebe. Ela pensou muito, até que um dia parou de fazer sentido pensar tanto no assunto, então ela simplesmente seguiu em frente. Se Calebe não queria estar com ela, ela também não deveria querer estar com ele. Se Calebe não foi homem o suficiente para ao menos dialogar e apenas mandar uma mensagem de texto, ela também não seria madura. Entretanto, Malu só chegou a esse resultado de independência e amor-próprio depois de ter pedido muito tempo tentando.
Depois de Calebe, foram poucas as vezes que Malu tentou alguma relação novamente. Nas duas que duraram mais do que simples ficadas, ela acabou por se refazer, se explorar e se reencontrar. Foi graças a tentativas de Malu de namorar de novo, que acabou por curá-la um pouco da ferida sangrante que Calebe deixara aberta em seu peito. Em uma dessas relações, ela conheceu Marcos. Que se tornou o responsável por abrir um pouco dessa ferida novamente.
- E você vai falar o quê?
- Como assim?
- Você acha que ele não vai te procurar? Pelo amor de Deus, Maria Luiza! – Andréia rolou os olhos, impaciente.
- Bom, se ele fizer isso, eu vou fazer algo que ele nunca fez, mãe. – Sentindo-se a maior mulher do mundo, Malu sorriu enquanto falava. – Vou ser madura e falar com ele.
- Acho que vou colocar esse evento no meu quadro de tarefas – Andréia murmurou jocosa, causando uma risada verdadeira em Malu pela primeira vez no dia.
- Cê tem muita, muita sorte que eu te amo, cara!
Calebe gargalhou ao ouvir a reclamação divertida de Vinícius, que martelava um pedaço de madeira na janela quebrada da cozinha de Calebe. O rapaz apareceu por lá no finalzinho da tarde daquele dia, após receber uma mensagem meio desesperada de seu melhor amigo. Vinícius era um homem simples, que não guardava mágoas ou antipatias, ele sabia bem que seu melhor amigo ainda era seu melhor amigo.
- Você é um amor, cara. – Brincou, entregando uma latinha de cerveja ao amigo.
- Cê não vai querer capinar esse quintal inteiro, né? Não pira, Calebe. Me paga uns setenta contos pra fazer isso sozinho, no mínimo! – Vini resmungou, dando uma golada na bebida.
- Bom, eu liguei pro Tiago também, mandei uma mensagem, mas ele nem me respondeu. – Calebe contou.
- Além de não falar mais comigo, acho que ele também não fala mais com você. – Vini confidenciou, aparentemente cabisbaixo.
- Como assim? Por quê?
- “Por que?” Cara, cê tem noção do que tu fez com a Malu, né? – Calebe imediatamente envergonhou-se. Era a primeira vez que alguém dizia aquilo para ele tão clara e diretamente.
- Eu sei o porquê de ele não falar mais comigo, eu tava perguntando de você mesmo. – Disfarçou, pigarreando.
- Ah, bom... A gente se desentendeu sobre umas coisas, mas diz aí, qual o próximo passo? – Ele também disfarçou, Calebe notou.
- Eu não sei muito bem. Só queria mesmo dar uma geral aqui, pra pensar melhor. Só vou ficar aqui quinze dias, não sei bem o que fazer, pra falar a verdade.
- A gente podia ir amanhã tomar uma no bar da Alanne. – Sugeriu, voltando a mexer na caixa de ferramentas próximo a porta.
- A Alanne tem um bar? – Calebe perguntou, entusiasmado.
- Sim, é o novo point aqui do bairro. A gente pode dar uma passada lá, isso é, se você puder entrar.
- Minha fama não anda muito boa por aqui, né? – Indagou, lastimoso.
- Não, nenhum pouco. – Vini decretou, sincero. – Principalmente porque só temos um lado da história, o da Malu, que sempre esteve por aqui. – Calebe suspirou, frustrado.
Calebe pensou que a única coisa que ele teria a fazer ao voltar a cidade era seu trabalho e alguns reparos em sua casa, mas pelo visto, havia muito mais que ele precisaria consertar. Suas relações, principalmente. Ele começou a sentir uma pontada de vergonha por suas ações e só agora, após tanto tempo, ele havia ficado receoso e constrangido com as consequências de seus atos. Ele sabia que deveria ter sido mais responsável, mais confiável, sabia tudo o que tinha feito de errado e sabia o que deveria ter feito, mas nunca conseguiu fazer o certo.
Na noite seguinte, Calebe fitava atentamente as ruas da cidade enquanto se encaminhava ao bar de Alanne na garupa da moto de Vinícius, que fez questão de reunir o antigo grupo de amigos do bairro da Saudade. Todos confirmaram presença assim que souberam que Calebe estaria lá.
Enquanto escutava Vini fazer alguns comentários acerca das ruas, Calebe comentou que estava morrendo de saudade dali e nem percebeu, mas logo seu olhar ficou vago quando ele se recordou do motivo que o levou a ficar aquele tempo longe dali. Ele engoliu em seco e balançou a cabeça. A morte de Ana ainda era – e sempre seria – uma dor constante e injusta, mas ele teria que aprender a lidar com momentos como aquele.
Reencontrar seus amigos foi um acalento, ele admitiu. Achou que todos fossem ser mais retraídos como Alanne e Tiago (que ele ainda nem tinha tido contato), mas não aconteceu. Talvez pelos dois serem mais próximos de Malu, eles tivessem mais dificuldades em aceitar a volta de Calebe mais facilmente. Ele não julgava, se fosse o contrário, ele também estaria receoso.
O local era simples, mas bastante organizado. As mesas e cadeiras ficavam inteiramente localizadas na rua e a área fechada – onde ficava a cozinha, caixa, depósito – era escura e quase não se via de fora para dentro. Assim, Calebe sequer viu Malu assim que chegou, então, tudo ocorreu tranquilamente, até ele observar o interior do estabelecimento quando uma fresta da porta ficou entreaberta. Calebe não contava que encontraria Malu atrás do balcão. No caixa, para ser mais exato.
- Ih, acho que esqueci de comentar isso. – Vini emitiu, baixinho, percebendo a expressão confusa de Calebe ao notar Malu ali, usando o uniforme do local.
Com os cabelos presos, maquiagem escura e uma expressão concentrada, Malu estava de cabeça baixa e anotava algo nos cadernos de contabilidade que apenas ela e Alanne tinham acesso. Ela ainda não havia percebido a presença de Calebe.
- Ah, você acha? – Calebe ironizou. – Ela trabalha aqui?
- Sim, desde que abriu. Vai falar com ela? – Perguntou.
- Não sei. Ela não pareceu muito disposta a falar comigo hoje. – Confessou, servindo-se de mais um copo de cerveja.
Era estranho vê-la de novo, até engraçado e, definitivamente, maravilhoso. No elevador, tudo aconteceu tão rápido, ele quase não teve tempo de observá-la. Ali, ele aproveitou que talvez Malu não soubesse que ele estava a observando, e analisou ela atentamente. Ele evitou fantasiar aquele momento, mas agora, vendo-a tão próxima a ele, parece que ele tinha fantasiado a vida inteira com aquilo.
Malu estava com feições mais maduras, mas Calebe estava certo ao constatar que ela nunca esteve tão bonita. Seus cabelos estavam mais longos, mas os cachos ainda eram os mesmos. Ela agora usava óculos de grau que a deixava ainda mais bela e sem falar no corpo magistral.
- É melhor falar hoje do que esperar uma cagada acontecer. – Vini alertou e ele concordou, mas informou que tomaria mais algumas cervejas antes de tomar coragem de ir até lá.
No início da noite, antes mesmo do expediente, Maria Luiza prendeu seus cachos em um coque e decidiu passar uma maquiagem mais escura em volta de seus olhos. Geralmente ela não pesava a mão na maquiagem para trabalhar de noite, mas ela queria estar apresentável naquele dia específico, pois, ela sabia que era questão de tempo até que Calebe aparecesse no Bar.
- E se ele aparecer? – Malu questionou, mordendo a ponta da unha comprida. As amigas conversavam no local antes de abrir o estabelecimento, organizando tudo.
- Eu mato ele, simples. – Alanne respondeu, analisando a própria imagem no espelhinho apoiado no balcão. Desde que contou para Alanne sobre a volta de Calebe, sua melhor amiga vinha ansiando por encontrar o rapaz e dar o merecido “esporro” que ela vinha planejando a anos. – Amiga, isso é...
- O que?
- Péssima ideia. – Alanne completou, calçando os saltos e dando uma volta em frente a Malu. Alanne e Pedrinho haviam terminado seu relacionamento a dois meses e aquela era a primeira noite que Alanne iria um encontro depois de anos de namoro a distância que não deu certo. – Eu preciso fazer isso? – Pegou um copo de cerveja e bebeu um gole.
- Bom, “precisar” não, mas seria ótimo pra você. – Malu respondeu, afetuosa.
- Tem certeza de que não precisa de mim por aqui hoje? – Enrolou, nervosa.
- Absoluta. Quantas vezes eu já não cuidei desse bar sozinha, Alanne? Vai se divertir, você merece! – Incentivou, tomando um gole de sua cerveja antes de se preparar para abrir o estabelecimento. O que poderia dar errado?
Malu olhou no relógio em seu pulso, já sentindo que estava chegando no seu limite. Desde o início da noite, o ar-condicionado de dentro do bar não estava funcionando, forçando-a a deixar a porta entreaberta, como se ficar vendo Calebe pelo vidro fumê não fosse o suficiente. Ela pegou um papel e começou a se abanar, sentindo um calor estressante lhe abater. Além do ar-condicionado, teve problemas com alguns alimentos, dois clientes e agora com a caixa registradora, que simplesmente não queria abrir.
- Malu, preciso de troco na mesa sete!
- E eu, na dois!
- Malu, ‘tamo’ ficando sem gás! – Daniel, um dos rapazes que trabalhava na cozinha do bar se aproximou, exasperado.
A mulher apertou as têmporas, frustrada, pensando seriamente em mandar uma mensagem para Alanne, intimando a amiga a voltar a o trabalho. Irritada, ela começou bater nas teclas da caixa registradora sem se importar muito com força, apenas querendo abrir de qualquer jeito.
- Dani, cê tem troco em dinheiro aí? O caixa não tá abrindo! – Malu pediu, frustrada. – Vou ali pedir gás e já volto. Depois vou lá embaixo abrir o depósito e tentar fumar um cigarro.
- Tá, antes disso, olha aqui pra mim. Inspira, respira... – Brincou, segurando nos ombros dela, fazendo-a rir. – Toda vez que cê fica sozinha isso aqui pega fogo.
- É porque eu sou o fogo em pessoa. – Malu piscou.
- Ó! – Ele apontou um dedo para ela, que beijou a pontinha e se afastou. Malu e Daniel tinham uma amizade afável e atenciosa, onde eles até sentiam atração um pelo outro, mas o carinho entre si era maior do que qualquer coisa.
Do lado de fora, Calebe dirigia seu olhar a todo instante para dentro do local, já ficando constrangido com a quantidade de vezes que era pego no flagra por seus amigos. A primeira vez que viu Malu conversando com aquele cara, ele não ligou. Mas a noite passava e o homem não saia do lado dela. Eles compartilhavam risadas, conversas, olhares e cada vez que Calebe os flagrava em um momento íntimo desses, ele respirava fundo e bebia.
Até chegar um momento da noite – já quase madrugada – que ele admitiu para si mesmo que estava morto de ciúmes de Malu com o cara que ele nem sabia quem era.
Calebe nunca foi de sentir ciúmes de Malu, aquilo foi uma novidade para ele e o rapaz não gostou nenhum pouco da sensação. Talvez ele não estivesse acostumado com a sensação de não a ter mais. De alguma forma, talvez incentivado pelo álcool em seu sangue, ele decidiu que precisava saber quem era aquele que estava recebendo todos os sorrisos e carinhos de sua namorada. Então foi até lá.
Soube que aquela talvez não fosse a melhor opção enquanto andava até o inteiro do local ele sentiu suas pernas bambas e vista turva. Não queria acreditar que havia se embriagado justamente na primeira vez que iria reencontrar Maria Luiza. Entretanto, não tinha mais jeito, fugir não era mais uma opção.
Quando se aproximou, Malu estava de cabeça baixa, mexendo na caixa registrado com força, parecendo irritada. Ela bateu nas teclas com força, tentando abrir de qualquer forma e notou que alguém parou em frente ao caixa, mas não levantou cabeça, concentrada em abrir aquele objeto maldito.
- Um segundo. – Ela informou, apertando na barra azul seguida vezes. Meio embriagado e impaciente, complete nervoso e ansioso por ser notado, Calebe levou a mão ao lado da caixa registradora, dando um tapa com tanta força que imediatamente abriu a gaveta do caixa e fez com que Malu levanta-se a cabeça assustada e ainda mais irritada. – Que porr...
A voz dela foi morrendo aos poucos quando realizou quem era o homem à sua frente.
- Oi, Malu.
Oi. Ele disse “oi”. Malu não conseguia crer no que estava ouvindo.
“Vou ser madura e falar com ele”, ela lembrou do que disse a mãe antes de respirar fundo e dizer: - Oi, Calebe. Quer alguma coisa?
- N-não, eu só... Oi. – Ele gaguejou. Que idiota, por que estava gaguejando? O que foi falar? Por que tinha ido até ali? Ela respirou fundo, se controlando para não rolar os olhos.
- Oi, Calebe. – Respondeu, seca. Ela estreitou os olhos, analisando a feição do homem. Calebe podia estar mais maduro, mas ela ainda sabia bem quando o rapaz estava alcoolizado. – Que tal uma água?
- É uma boa. – Ele sorriu amarelo. Malu acenou para Daniel, ocasionando uma careta em Calebe quando o rapaz se aproximou solícito.
- Calebe?! – Surgiu uma interrogação, de repente.
Ele virou-se, em busca da voz que o chamava e quase sentiu um arrepio percorrer seu corpo ao encontrar o olhar gélido e impassível de sua amiga Alanne Moreira. Ele não foi o único que se sentiu paralisado ao ver a mulher ali, Malu também sentiu seus nervos aflorarem ao constatar que Alanne não estava com uma expressão muito tranquila.
Em uma conversa por telepatia e troca de olhares em poucos segundos, Malu implorou para que a amiga não cometesse nenhuma loucura. Alanne, estreitou os olhos na direção dela, como se estivesse ainda decidindo se aceitaria a persuasão.
- Alanne! – Ele exclamou, sem conter a animação e ansiedade em falar com a melhor amiga. – Que saudade de você, nêga!
- Ah, é? Você lembra de mim? – Proferiu, sarcástica, passando reto por ele. Ele suspirou, frustrado.
Alanne, que largou o encontro romântico medíocre após o cara fazer uma piada sexista e homofóbica, largou a bolsa em cima do balcão e em uma ação surpreende e inesperada, ela ergueu a mão e deu um tapa no rosto de Calebe, como tanta força que o som do estalo reverberou por cima do som ambiente do bar, fazendo até quem estava nas mesas do lado externo ficar abismado.
Sem contar com os gritos empolgados e zombeteiros da mesa dos amigos deles.
- Alanne! – Malu, Calebe e Daniel gritarem em conjunto e ao mesmo tempo.
- Ficou maluca?! – Calebe exclamou, enraivecido, com a mão no rosto quente.
- Você merece, idiota. – Cuspiu, brava. – Agora cala a boca e vem me abraçar, babaca! – Ordenou, puxando-o pela camisa.
A brisa fria na rua de trás do bar arrepiou a pele de Maria Luiza, que observava a madrugada enquanto seus pensamentos se distraíam com a fumaça do seu cigarro. A semana atípica fora cansativa mentalmente para ela. Ver Calebe após o que aconteceu despertou algo nela, Malu começou a enxergar tudo por uma perspectiva diferente e talvez completamente errada.
Ele estava bem? E se ele realmente estava bem, ele só conseguiu isso por não ter ficado com ela? Por que ele estava ali? Ele voltou? De vez? Era só uma visita? E se não fosse só uma visita, ela saberia lidar com isso? Ver Calebe em carne e osso diante dela criaram dúvidas em sua mente que ela tinha se negado a pensar.
Eram muitas dúvidas e Malu não tinha muito tempo para pensar.
- Se serve de consolo, foi um belo tapa. – Dani comentou, risonho enquanto colocava subia em sua moto, preparando-se para ir para casa após mais uma noite de trabalho.
Sua observação foi uma tentativa de amenizar a expressão tediosa e levemente irritada de Malu. Com os dentes cerrados, ela deu uma última tragada no cigarro e olhou com uma expressão afetada: – Não serve. Eu ainda vou ter que sentar naquela mesa e ficar uma boa hora sentada do lado do cara que me deixou.
Alanne decidiu fechar o bar mais cedo, expulsando amigavelmente todos os clientes, exceto a mesa quinze, onde estava seus melhores amigos de infância. Após o incidente envolvendo Calebe, um tapa, um abraço e uma leve gritaria, todos estavam sentados na mesma mesa, conversando, rindo, relembrando histórias e cantando músicas aleatórias. Malu estava usando a desculpa de fechar o bar para ainda não ter se juntado aos amigos.
- Quer ir embora comigo? – Daniel ofereceu e Malu, por muito pouco, não aceitou. Alanne a mataria.
- Não dá, eu ainda tenho que fechar o caixa e fingir que sou madura. – Justificou, abraçando-o.
E foi isso que ela estabeleceu como meta para aquela noite. Após fechar o caixa, prestar as contas e limpar o balcão, ela foi ao banheiro, jogou uma água no rosto sem se importar com a maquiagem escorrida nos olhos e mais uma vez, pensou: “vou ser madura e falar com ele”.
Antes de ir até a mesa, ela enrolou uma pedra de gelo em um pano de limpeza não utilizado.
- Finalmente, saiu da cozinha! – Vini brincou quando ela se aproximou.
- Alguém tem que trabalhar, né? – Provocou.
- Onde cê tava? – Alanne perguntou, mas ela já sabia a resposta, ela só queria que Malu respondesse na frente de todo mundo e Malu, é claro, entendeu a deixa.
- Com o Dani... Fechando... – Respondeu, vagamente e foi em direção a Calebe. Todos ficaram meio tensos. Tentaram disfarçar, mas continuaram olhando, já que todos estavam curiosos e queriam assistir aquela interação. – Toma.
Calebe sorriu de lado ao olhar a pedra de gelo em sua mão e agradeceu. Todos voltaram a respirar, inclusive ela. A única cadeira vaga era ao lado dele, infelizmente.
- Então, deixa eu te situar já que você tava ocupada fechando alguma coisa no Dani. – Tiago, que apareceu no bar depois, brincou. Calebe ficou desconfortável quando todos riram. Ela tinha algo com aquele cara? Por que parecia normal para todo mundo? Eles não eram mais o casal preferido de todos? É claro que não eram... – Lembra que meu aniversário vai cair no sábado que vem, né? Então, meu vizinho me liberou aquela casa no litoral onde a gente passou o réveillon do ano passado, tava pensando aqui...
- Eu trabalho. – Ela avisou de antemão. Calebe pressionou o gelo contra o próprio rosto. Fora uma boa ideia, além de amenizar a ardência, ele sentia que estava melhorando seu porre relâmpago.
- No sábado? – Alguém perguntou.
- Bom, não, mas... – Ela tentou recusar, com medo de Calebe já ter sido convidado.
Logo, todos estavam envolvidos nos planos para o próximo final de semana de uma maneira assustadora. Como um grupo de adolescentes, eles planejaram atos inconsequentes e divertidos para cada segundo do aniversário de Tiago, que ainda não tinha trocado uma palavra com Calebe, até agora.
- Você vai? – Murmurou para Calebe, sem olhá-lo, bebericando sua bebida. Malu, que estava participando ativamente das conversas paralelas na mesa, se atentou para aquela ali, ocorrendo ao seu lado.
- Não sei. Você vai me convidar? – Calebe foi sincero, ainda aplicando o gelo em seu rosto. Alanne tinha uma boa mira e uma mão mais pesada ainda.
Tiago desviou o olhar para Malu, que ergueu uma sobrancelha, confusa e questionou com o olhar. Calebe também olhou para Malu, sem se dar conta que ela estava sentada ao lado dele, próxima a ele.
- O que foi? – Ela questionou.
- Você vai? – Tiago perguntou, fechado.
- Ah, Ti! – Ela suspirou, entendendo a complicação. – Não precisa disso, sério. Tá tudo bem. – Ela fingiu e olhou para Calebe, forçando um sorrisinho. Calebe odiou. Ele conhecia Maria Luiza e todos os seus sorrisos, logo, ele sabia muito bem quando ela estava fingindo um. – Não é, Calebe? – Ela esperou pela reafirmação dele.
- Me diz você. – Rebateu, descrente que ela estava falando abertamente com ele daquela forma. Ela se segurou para não rolar os olhos e sair correndo.
- É claro que tá.
Calebe sentiu vontade de gritar com ela. Queria que ela negasse, que brigasse com ele, que batesse o pé e fizesse o mesmo que Alanne, batesse em sua cara ou algo do tipo. Mas ali estava Malu, sorrindo atenciosa, conversando normalmente, fingindo sorrisos e dizendo que tudo estava bem.
Ele não sabia qual era a pior possibilidade. Ela fingir que estava bem ou realmente estar bem.
Quando Calebe chegou em casa naquela madrugada, ele demorou um tempo para conseguir dormir, mesmo que estivesse profundamente cansado. Andou pela sua casa por uns minutos antes de deitar-se, riu de si mesmo quando desejou que sua mãe virasse um fantasma e aparecesse ali. Ele tinha aprendido a lidar com a saudade até chegar ali, em sua antiga casa. Não conseguia entender, não conseguia deixar de pensar que não teve tempo suficiente com Ana.
Calebe lembrava do dia que ouviu Malu falando sobre não ter mais ao seu lado pessoas que que um dia ela amou profundamente e era um sentimento estarrecedor.
Ele ainda estava digerindo o que tinha acontecido, desde a morte da sua mãe até seu término abrupto com Malu, sua mudança de cidade e afastamento dos amigos. Ele estava se esforçando, estava aprendendo, mesmo que para isso ele tenha que ter cometido erros e naquela noite ficou mais do que claro, que o maior erro que ele cometeu foi com Maria Luiza.
Não gostava de pensar naquilo nos últimos anos, evitava ao máximo refletir sobre, como uma ferida antiga. Mas desde que voltou a cidade, todo dia, antes de dormir, Calebe pensava: “Por que a gente terminou? Por que eu fui embora? Por que ela não ficou? Por que eu não tentei mais? Por que eu não retornei aquela ligação? Por que ela não respondeu? Por que eu não voltei?”.
O burburinho animado e agudo podia ser ouvido de longe e era sorte que não havia casas próximas a que as antigas crianças do bairro da Saudade estavam hospedadas. O dia havia contribuído bastante e desde cedo o sol estava brilhando no céu de uma forma que gritava saúde a plenos pulmões. Tal fato contribui com a euforia que o grupo se encontrava no momento.
O grupo de dez pessoas, incluindo Vinicius, Alanne, Tiago, Malu e Calebe, estavam reunidos na piscina, planejando descer para a praia nas próximas horas. Espalhados no local, eles conversavam animadamente.
- É incrível como eles voltam pros 15 anos de idade quando estão junto. – Alanne queixou-se, causando uma risada em Malu e Carol – Eles não pararam um minuto sequer desde o momento que chegaram aqui, incrível! – Apontou para os caras que brincavam com uma bola de futebol infantilmente na piscina.
- É saudade acumulada, minha nêga linda! – Calebe brincou, abraçando-a por trás e beijando seu rosto.
- Já é saudade até demais, hein lindo. – Avaliou, negando com a cabeça. – Vamo pra praia logo, por favor? Eu quero ver o pôr do sol! – Ela queixou-se, implorando para Calebe tirar os amigos da piscina.
- Amiga, vamo logo e quem não for, que lute! – Carol puxou Malu pelo braço, provocando um pequeno esbarrão entre ela e Calebe.
Era ridículo pensar que aquele foi o primeiro contato físico entre eles após o reencontro, mas foi. Calebe pode sentir o perfume de Malu e arrepiou-se por inteiro quando ela se virou para se desculpar e acabou olhando nos olhos dele. Ridículo, ele se sentia ridículo. O homem passou a noite anterior à viagem revirando-se na cama, ansiando que o dia amanhecesse. Queria ver seus amigos? Sim, claro. Mas não via a hora de ver Maria Luiza. Sentia como nos primeiros dias que a menina voltou de Vitória, quando ele fazia de tudo para vê-la pela rua.
Mesmo que já fosse final de tarde, ainda fazia bastante calor e o sol ainda estava ardente. Já na praia, alguns bebiam, outros estavam tomando banho no mar, outros conversavam na areia e um desses eram a dupla de amigos Vinicius e Calebe.
- Então, o que você fez pro Tiago? – Calebe perguntou, entregando uma lata de cerveja para o amigo, que o encarou, emburrado. – E não vem jogar a culpa em mim, desde que a gente chegou ele tem falado comigo normalmente. – Provocou.
- Por que eu sou o culpado? Não pode ter sido ele? – Vinícius insistiu.
- Pô, Vini! – Calebe riu, rolando os olhos.
- Ele já te falou alguma coisa? – Calebe negou. – Então pergunta pra ele!
- Cês estão parecendo casal recém terminado, que porra! – Calebe reclamou, bebericando. Vini ergueu uma sobrancelha, insinuante.
Calebe demorou alguns segundos para juntar as informações em sua cabeça. Ele olhou para Vinícius, depois para Tiago tomando banho de mar e depois olhou de novo. Espera, quê?
- Peraí, quê? Você e o Tiago? – Questionou, confuso e extremamente surpreso.
- Não.
- Fala sério, vocês dois...? – Calebe estava boquiaberto com a nova informação.
- Bom, aconteceu. – Contou, sem parecer envergonhado. – Eu nunca imaginei que eu poderia fazer algo do tipo. – Admitiu, meio nervoso em confessar para seu melhor amigo as novas relações que ele havia adquirido naquele meio tempo.
- Eu nunca imaginei que você faria algo assim – Calebe também foi sincero.
- Mas aí irmão, vai me tratar diferente agora que você... sabe? – Perguntou, receoso.
- Depende. – Calebe pensou um pouco para responder.
- Depende do quê, porra? – Questionou, irritado. Não imaginava que Calebe poderia ser preconceituoso ou maldoso de alguma forma, especialmente com ele.
- Depende da forma que você tratou o Tiago. – Explicou. Vinicius sentiu-se até envergonhado de pensar que Calebe agiria de outra maneira senão aquela, sempre prezando pelo bem-estar de seus amigos. – Vini, você é meu irmão e tal, mas o Tiago também é um dos nossos. Se você foi escroto com ele, eu vou ficar numa situação delicada com vocês dois. Você tratou ele mal ou algo assim?
- Claro que não. Só não curti tanto quanto ele, mas assim, quem sabe um dia. – Revelou, honesto, dando de ombros.
- Então, tudo bem.
- Tá tranquilo?
- Claro, porra! Por que não estaria? Tá me estranhando? – Calebe foi quem se irritou. Tudo bem que estava afastado, mas Calebe não tinha mudado sua essência. Jamais mudaria seu jeito de tratar seu melhor amigo por algo tão irrelevante para sua amizade.
- Já que estamos sendo sinceros... – Vini começou a falar e, de alguma forma, talvez por impressão ou por conhecer Vinícius a muitos anos, Calebe já sabia o que viria a seguir. – Por que você sumiu, mano? O que aconteceu?
Calebe pensou por algum tempo e antes de contar tudo o que aconteceu honestamente, respondeu de forma sucinta: – Ela me pediu um futuro. E naquele tempo, isso significava ter que aceitar um futuro em que eu não veria mais a minha mãe.
Ao olhar para o céu alaranjado, o sol se despedindo, Calebe começou a se perguntar e refletir sobre os “e se”, admirando a vista maravilhosa. Diante da visão impressionante, era impossível não começar a ficar contemplativo e a acreditar que tudo iria dar certo. De soslaio, utilizando dos óculos escuros para ser pego flagrado, ele olhou para Malu sentada na areia na mesma direção que ele.
Ele se perguntou se a morena também estava sentindo o peito preenchido de uma mescla de felicidade e tristeza difícil de entender. Uma melancolia feliz.
Além de estar cansada do trabalho e da viagem, Malu também estava sentindo o corpo cansado por conta do sol escaldante batendo no seu corpo enquanto ela se bronzeava na piscina com as meninas. Ela queria guardar aquele momento porque a junção da beleza da praia e dos seus amigos fazia a lembrança se tornar mais do que especial.
Entretanto, mesmo com várias pessoas ao meu redor, Malu se sentia sozinha e ao olhar pro lado e observar Calebe, ela teve certeza de que ele se sentia da mesma forma. Ela não se importou em virar a cabeça para olhá-lo e sorriu tristemente para ele quando percebeu que ele a olhou de volta.
Calebe, mesmo nervoso e receoso, se aproximou e se sentou ao lado dela na areia. Inicialmente, eles não falaram nada, apenas ficaram observando o sol se pôr em um silêncio que era confortável, até deixar de ser.
- Oi, Maluca. – Murmurou, olhando para frente.
Ela respirou fundo, sentindo todas as emoções passarem em seu corpo ao ouvi-lo chamá-la pelo antigo apelido.
- Oi. – Respondeu, simplesmente.
- Eu passei na sua casa. – Revelou. Ela o olhou, surpresa.
Na semana que antecedeu a viagem, em um ímpeto de coragem, Calebe realmente parou na casa de Malu quando voltou do trabalho. Deu de cara com Andréia, que abriu a porta e fechou em sua cara. E depois abriu apenas para falar “ela não mora mais aqui” e bateu à porta novamente.
- Eu me mudei. – Contou.
- Sua mãe me contou. Depois de bater à porta na minha cara. – Malu riu sem graça. Ela não sabia disso, teria que ligar para sua mãe e brigar por ela não ter contado e agradecer por não ter deixado ele entrar. – Fiquei feliz que você finalmente conseguiu sair de casa.
- Anh, valeu... Foi difícil, mas deu tudo certo. É bem pequeno, eu só consegui por que um amigo, Daniel, o que trabalha no bar, sabe? Ele me ajudou bastante pra conseguir lá.
- O Daniel do bar, vocês...? – Ele não se conteve e também não se importou com o que ela iria achar. Nunca foi envergonhado na frente dela antes.
- O Dani? Não, não. A gente é só amigo mesmo, ele me ajudou muito com meu ex. – Calebe ergueu uma sobrancelha, confuso. Ela se corrigiu. – Outro ex.
- Outro ex. – Ele repetiu, para si mesmo, pensando alto. Ela não conteve uma pequena risada, sacudindo a cabeça.
- É, Calebe. Depois de você, eu conheci o Marcos, mas não se preocupa, foi um puta de um erro. – Ela confessou, cabisbaixa.
- É? O que aconteceu? Se você quiser conversar... – Sugeriu, sem graça, mas curioso.
Mali respirou fundo, pensando se queria abrir aquela ferida novamente. Não fazia tanto tempo assim, ainda era recente e ela sentia que ainda não havia digerido o que aconteceu da forma certa. Ela pensou em omitir a informação e deixar com que Calebe continuasse sem saber de nada, mas ela queria contar. Não por ele, mas talvez por ela mesma.
- Bom, eu e o Marcos terminamos depois que tivemos uma discussão terrível. – Começou a contar, tentando conter o bolo de angústia que parecia se formar em sua garganta. – E antes de tudo, eu tenho certeza de que eu passei do tom, eu sei que falei coisas horríveis pra ele. Eu não tô dizendo que fui culpada, porque eu sei que não fui! Mas a forma como tudo aconteceu... – Desatou a falar, gesticulando nervosamente, mas logo foi interrompida.
- Maria Luiza. – A encarou, Malu engoliu em seco ao notar sua feição dura e os olhos gélidos. – Ele machucou você?
Malu fechou os olhos, não suportando lidar com todos os sentimentos que vieram até ela. Marcos foi o responsável por fazê-la enxergar muita coisa pós Calebe, mas também por tirar toda a inocência que ela ainda tinha em relação ao mundo. Foi a palma da mão dele colidindo com seu corpo que arrancou um pedaço de sua alma para sempre. Depois daquilo, Malu sentiu que a mulher que ela era morreu mais um pouco.
Assentiu quase imperceptivelmente, tentando controlar as lágrimas que surgiram em seus olhos. Naquele dia, Marcos chorou, pediu perdão de joelhos e ela disse que estava tudo bem, que o perdoava. Mas saiu por aquela porta e nunca mais voltou.
- Ok. – Calebe assentiu para si mesmo, expirando o ar fortemente e encarava o chão. – V-você o denunciou? – Gaguejou, passando a mão nos cabelos nervosamente.
- Não deu. – Murmurou, de cabeça baixa.
- Não deu?! – Repetiu, enfezando-se.
- Calma. – Pediu, consumida por um cansaço que ela sequer sabia que estava ali. O homem apertava as mãos e resmungava baixo. – Eu fiquei com medo! Quando criei coragem, já era um mês depois, e aí, sem flagrante, sem marcas aparentes? O que eles fariam por mim? – Expressou de forma dolorosa.
- Marcas? Ele deixou marcas em você? – Questionou, enfurecido.
- Não...Q-quer dizer, eu não sei, foi só um empurrão meio agressivo. E só aconteceu uma vez e... – Tentou explicar, mas novamente foi interrompida.
- Não interessa, Maria Luzia! Isso é agressão, é violência! É inadmissível que... – Começou a se exaltar, então ela o interrompeu novamente.
- Eu sei! – Exclamou, olhando em volta para ver se alguém estava observando. – Eu sei que fiz merda, sei que errei em não fazer nada, já escutei esse discurso de todo
mundo várias vezes e...
- De todo mundo? – Questionou. Calebe ficou ainda mais enraivecido, só que dessa vez, consigo mesmo.
Todo mundo sabia do que tinha acontecido, o que implicava que havia muita coisa que ele tinha perdido naqueles dias. Revoltou-se com si mesmo. Ele deveria estar lá. Deveria estar ao lado de Vinícius quando ele teve problemas com sua relação afetiva com Tiago, deveria estar por Tiago ao ter problemas com Vinícius, deveria estar em sua casa quando foi invadida, deveria estar lá quando Alanne abriu seu bar e, principalmente, deveria estar lá quando Maria Luiza estava sendo agredida.
- Todos só ficaram sabendo por que, bom... Eles viram. – Calebe balançou a cabeça negativamente, imaginando as marcas que ela lutava para esquecer. – Eu sequer ia contar, eu fiquei com tanta, tanta vergonha. Até hoje eu não acredito que isso aconteceu comigo. – Confessou, amargurada. Ele respirou fundo, tentando se controlar para ter, ao menos, um diálogo sem falar trinta palavrões seguidos. Apoiou os cotovelos nos joelhos enquanto encarava o chão.
- Nada disso é culpa sua, você sabe disso, não é?
- Sei? – Emitiu, sarcástica. Ela abriu a bolsa de praia e procurou um cigarro, toda aquela conversa estava começando a aflorar seus nervos.
- Eu não acredito que isso aconteceu com você. – Indignou-se.
- De novo. – Frisou, tragando.
- De novo. – Ele concordou. Notou os olhos tristes de Malu por trás da fumaça e decidiu mudar de assunto. – E isso? Quando começou? – Ele apontou para o cigarro.
- Depois de você. – Ela acompanhou com certo prazer e divertimento os olhos dele se arregalarem em surpresa. Malu definitivamente tinha ultrapassado uma barreira, mas não se arrependeu. Ela tinha muito o que falar, mesmo que não estivesse disposta a compartilhar de verdade. – Na verdade, foi minha mãe. Começamos a fumar juntas e aí...
Contudo, Calebe não a ouviu, ele só conseguia pensar que se ele se esforçasse o suficiente ele conseguiria passar por aquela conserva e pediria desculpa sem parecer um completo idiota infantil.
- Malu, eu…
- Ah, não! Você não quer conversar agora, né? A gente tava indo tão bem – Ela resmungou, tragando com força. De longe, Alanne trocou um olhar preocupado com a amiga, que apenas piscou, mexendo a cabeça levemente como forma de tranquilizá-la.
- Não dá pra ficar fingindo, Malu. – Afirmou, desanimado. – Não é melhor a gente falar logo sobre e parar de fingir que não tá um puta clima estranho?
- Cê quer falar sobre o que? – Ela perguntou, paciente. Ele pensou um minuto antes de responder.
- Acho que eu só queria primeiro pedir desculpas. Eu precisava desse tempo, Malu. E...
- E achou mais fácil me avisar isso por mensagem? – Ela interrompeu, irônica. Ele suspirou, envergonhado. Ela fechou os olhos e sorriu amarelo. – Desculpa, pode continuar.
- Como eu disse, eu precisava de um tempo e eu não sabia disso ainda. Precisei descobrir da pior forma e sozinho, mas não justifica a forma como eu te tratei. Fui um moleque com você, Malu. Você não merecia aquilo, nada daquilo. Depois de tudo que você fez por mim, pela minha mãe, eu fui ingrato e infantil. Só posso reconhecer isso e te pedir perdão. – Discursou. Ele não planejou falar aquilo, mas o improviso acabou saindo melhor do que se ele tivesse ensaiado. – Depois que a minha mãe morreu, foi muito difícil entender e lidar com o fato de que ainda tinha vida após ela, sabe? Acho que você entende. – Completou, com lágrimas nos olhos.
Malu entendia perfeitamente. Para Calebe, Ana foi aquela que deixou de comer para o alimentar. Cada um sente o luto de um jeito, cada um lida com a dor de forma diferente e Calebe lidou daquela forma. Amava Malu, mas viver sem a mãe ao lado não fazia sentido algum. Ela entendia, passou o mesmo com o pai. Entretanto, não podia evitar sentir-se descartável e deixada de lado.
- Eu entendo. – Emitiu, serena, sem conseguir pensar em nada mais para falar. – Eu sofri muito, Calebe. – Resolveu ser sincera, mesmo que já estivesse decidida que não tinha por que falar mais sobre aquele assunto que ela lutou muito para esquecer. – Eu já tinha decidido que não ia aceitar o que você tava fazendo, mas nada disso muda o fato de que eu te amava e muito. Só isso explicava o quanto eu me submetia até a compensação só pra tá do teu lado.
- Compensação? – Questionou.
- Eu fui teu tapa buraco naquele mês antes de vir embora, eu sei que fui. Você me usou pra não pensar na tia Ana.
- Eu sinto muito, sinto muito. – Pediu novamente, fechando os olhos, reconhecendo suas ações nas palavras duras de Malu. – Fui um puta babaca, prometo que nunca mais vou tratar você dessa forma.
- Não promete, Calebe. – Pediu, fechada. – Se teve algo que eu aprendi foi que promessas são feitas só para serem quebradas mesmo. Se for pra prometer, promete que não vai mais fazer isso, nem comigo, nem com ninguém.
Após isso, ele não soube o que falar e tudo o que veio a sua mente parecia inútil ou ridículo, então preferiu ficar calado, olhando para o mar, onde o sol já quase não aparecia na linha do horizonte.
Seu amor por Maria Luiza era grande demais, ainda era. Não conseguia negar que não deixou de amá-la, nem por um segundo. Só havia deixado seu orgulho e ego serem muito maiores naquele tempo, tinha consciência que havia perdido uma vida com a mulher que ele amava por culpa unicamente sua.
Malu sabia que Calebe ainda a amava. Ela podia sentir pelo jeito que ele a olhava e, no fundo, ela sabia que ninguém a amaria do jeito que ele conseguia amar. E isso não só a assustava, mas também a acalentava.
- Éramos bons juntos, mas queríamos coisas diferentes e tá tudo bem. – Ela analisou, dando de ombros.
- A gente devia ter tentado mais. – Calebe negou com a cabeça e se corrigiu. – Eu devia ter tentado mais.
O último raio de claridade já tinha se despedido há tempos e o grupo de amigos do bairro da Saudade também já não estava em uso pleno de suas faculdades mentais. Todos voltaram para a casa interessados demais no cooler lotado de cervejas e drinks. Regado a brincadeira e música alta, não demorou a ficaram mais animados do que o normal.
- Maria Luiza, eu não quero ser venenosa, nem advogada do diabo aqui, mas a gente tá falando do cara que sumiu por dois anos sem te dar notícia. – Alanne emitiu em uma voz enrolada e desalinhada. – Ele é meu amigo também Malu, mas nessa guerra eu sou mais você, cê sabe. – Malu riu e virou o restante de sua bebida na boca e já foi em busca de mais.
- Alanne, fica em paz, eu sei o que eu tô fazendo. – Esclareceu e, obviamente, mentiu. Ela não tinha ideia do que estava fazendo. Desde o início da noite, estava conversando com Calebe e até tinha trocado brincadeira e piadas com o homem como se não fosse nada. – Apesar de tudo, a gente é amiguinho.
- Uma porra que é, Malu! – Alanne irritou-se, chutando água na amiga. Elas estavam sentadas na borda da piscina e riam das idiotices que os amigos aprontavam. – Dois irresponsáveis, isso que vocês são!
- Quem é irresponsável? – Calebe surgiu do nada, sentada ao lado de Malu e entregando uma lata de cerveja para Alanne.
- Não interessa, fofoqueiro. Você não devia nem tá aqui! Tô irritada com você – Alanne enfezou-se, mas puxou a lata da mão dele e deu uma golada impulsiva.
- Ué, o que eu fiz? – Ele questionou, confuso e surpreso. – Matei alguém? Chutei um gato ou um cachorro?
- Não, você terminou comigo. – Malu respondeu, taxativa.
Calebe abriu e fechou a boca para responder, mas apenas fez uma careta. Desde que voltaram da praia, ele e Malu estavam na maior paz e ele não queria estragar isso, então, começou a se policiar mais vezes em ser cavalheiro. Isso incluía manter o olhar longe do corpo dela. Mesmo que ela usasse um vestido longo, ele era transparente o suficiente para ver o biquíni rosa que ela usava por baixo.
- Quer saber? Vocês que se fodam, eu vou beijar o Vinícius e amanhã fingir que tava bêbada – Alanne informou e se levantou, saindo da piscina determinada.
- Bom saber que o nível de intimidade da galera ainda continua lá em cima e a maturidade lá embaixo. – Calebe brincou, rindo.
- Ah, o nível continua baixíssimo, confia! – Ela também riu.
- Eu senti muita falta disso. – Calebe confessou. – Dessa confusão, gritaria...
- Baixaria! – Malu acrescentou, gargalhando. – Aposto que não tinha isso em São Paulo.
- Até tinha, mas desse jeito não.
- E como estão as coisas por lá? – Perguntou. Malu estava genuinamente curiosa. Sabia pouquíssimo da vida de Calebe atualmente, nunca procurou saber pois ela sabia que ele não queria ser encontrado.
- Pouco mudou desde a última vez que cê foi lá. A Gabi tá enorme, metade do pessoal da empresa que você conheceu foi demitido...
Começou a contar meio por cima sobre as últimas novidades, sempre se controlando o suficiente para não deixar seu corpo lhe trair e se aproximar – ainda mais – do corpo dela. Calebe desviou o olhar do busto dela e focou em seu rosto quando ela puxou o vestido para cima e entrou na piscina. Sua intenção era tirar sua própria atenção dali, mas esqueceu-se que Malu o conhecia, então encontrou o olhar dela totalmente ciente de que ele estava lotado de desejo.
- Ah, e nosso aniversário? – Calebe perguntou. – Tá chegando.
- É, acho que não vou fazer nada. Não tô muito segura financeiramente, se é que você me entende. – Explicou. Malu engoliu em seco, ela estava ficando nervosa porque já estava sentindo que o álcool estava mexendo com o seu raciocínio. De repente, ela estava achando ele muito, muito bonito.
- Ah, mas não precisa de muito, cê sabe. – Ele bebericou um gole da cerveja, antes de pensar duas vezes em continuar. – O último aniversário que eu realmente comemorei foi aquele lá em casa, lembra? A gente fez um churrasco. Eu te dei um livro de presente, o do tio João... – Comentou, relembrando com carinho do passado.
- Foi o meu melhor presente que eu já ganhei. – Ela admitiu, sorrindo.
- É, pra mim também. – Ele olhou de lado e notou o olhar dela parecendo meio triste e decidiu que não precisava disso naquele momento. – Pensando bem, o melhor que já ganhei foi uma chupada no banheiro no nosso aniversário de 19 anos.
- Puta que pariu, você é terrível! Vai me matar de vergonha algum dia. – Ela não conseguiu controlar a risada e acabou soltando uma alta gargalhada.
- Desculpa, mas precisa ser falado. – Brincou. – Nossos aniversários sempre foram outro nível. Eu não lembro bem o que fizemos no ano seguinte.
- Eu lembro... – Malu comentou, subitamente envergonhada. Calebe se virou, encarando-a. – A gente transou o dia inteiro.
Ele lembrou perfeitamente. De cada momento.
- Ahn... Eu acho melhor... – Ele coçou a cabeça, com tanta vontade de beijá-la que já estava desconfortável para si mesmo. – Eu vou pra pensão.
Devido a casa de Tiago não ter quartos suficientes para todos, alguns convidados da festa ficaram hospedados em uma pensão simples no final da rua, mesmo sabendo que pouquíssimos dormiriam aquele final de semana.
- Já? – Ela estranhou a reação súbita dele.
- É melhor. Eu não quero fazer merda com você, Malu. – Falou e levantou-se, sem mais nem menos.
Malu assistiu Calebe se despedir de cada um dos amigos e esperou que ele voltasse, ao menos para se despedir dela, mas ele não voltou. Ela rolou os olhos, confusa com o que tinha acontecido ali. Saiu da piscina, quase irritada e foi em direção ao cooler de bebidas, buscando algo mais forte do que cerveja.
Mais uma vez, mesmo que fosse em uma situação totalmente distante e desigual a do passado, Malu se sentiu abandonada por Calebe.
Já era quase madrugada quando Malu já não tinha muita ciência do que estava fazendo. Depois de desabafar de maneira quase cômica nos braços de Alanne, ela decidiu que precisava ver Calebe e gritar com ele. A maioria de seus amigos já estavam nas últimas, bêbados e cansados, até Alanne estava ocupada com a boca em Vinícius – o que era um choque para Malu –, então foi fácil para a mulher sair de fininho.
Enquanto descia a rua de terra batida, sentindo o cheiro da maresia e o vento bagunçando e secando seus cachos, Malu até pensou em dar meia volta e ficar quieta em seu canto. Mas quando chegou no meio do caminho, ela olhou para trás e viu a rua escura e se deu conta de que tinha saído sozinha de madrugada naquele momento. Irritada consigo mesma pela impulsividade, ela tirou suas sandálias e correu até o casebre.
Lá dentro, novamente, ela repensou suas ações e decidiu ir direto para seu quarto. Malu tomou banho, colocou seu pijama, deitou-se no beliche que dividia com Alanne, fechou os olhos e simplesmente não conseguiu dormir. Revirou-se na cama várias vezes e percebeu que aquela inquietação não passaria enquanto ela não trocasse ao menos duas palavras com Calebe.
Levemente tonta e trôpega, ela caminhou até o quarto onde ela sabia que Calebe estava hospedado e respirou fundo antes de bater na porta.
Calebe não estava totalmente adormecido quando ouviu as batidas, entretanto, quando abriu a porta e viu Malu, trajando apenas um conjunto de pijama preto, ele sentiu seu corpo inteiro adormecer e sua cabeça girar. Em sua mente, a palavra “perigo” pulsava compulsivamente.
- Malu?
- Por que você saiu da piscina e veio embora? – Perguntou, determinada, com a feição impassível. Calebe sequer pensou muito para rebater.
- Porque eu ia te beijar.
Ela engoliu em seco. Ela sabia que aquela era a resposta e achou que estivesse pronta para ouvir aquilo, mas seu coração batia desenfreadamente e suas mãos suavam de tão nervosa que ficou. Ele esperou pela reação dela enquanto analisava seu rosto tão de perto que sentia a respiração profunda de Malu.
Tudo em seu âmago e em sua mente gritavam para Malu sair dali imediatamente, que ela deveria voltar para o seu quarto, se trancar e só sair quando ela não estivesse se sentindo tão atraída por Calebe. E contrariando todos os seus raciocínios e suas convicções, ela sussurrou: – Beija.
A boca de Calebe se abriu levemente e ele foi levado ao dia do primeiro beijo deles, na sala de sua casa na noite de ano novo. Calebe quase conseguia escutar as batidas da música do Timbalada de novo. Ele não pensou duas vezes. Puxou Malu pela cintura e colocou os lábios nos dela.
Foi como voltar a respirar.
Uma mistura de sensações, sentimentos que pareciam afogá-la e que não queriam deixá-la se libertar dos braços dele. Infelizmente, o beijo diminuiu a sua intensidade até parar, as bocas se afastaram, mas apenas o suficiente para que pudessem recuperar o fôlego.
Ele fechou os olhos em resposta aos lábios dela tocando seu pescoço, a envolveu pela cintura com o braço. Não estava achando aquela aproximação nada segura para sua situação, mas caramba! Até aquele presente momento, Calebe não havia percebido o quanto sentia falta da sua “Malu-ca”.
- Por favor. – Ela suplicou em um sussurro. Ele gemeu em lamentação, era uma guerra perdida. Em todos aqueles anos, ele sequer ganhou uma contra ela, o que o fez pensar que dessa vez seria diferente?
Ele a soltou por um instante e deu um passo para trás para encará-la. Não tinha mais volta.
- Não quero te machucar, Malu.
- Eu não sou mais virgem, Calebe. – Ela brincou.
- Não tô falando fisicamente, Malu. – Ele não conseguia para de encarar os lábios vermelhos dela, os inchaços provocados pelo beijo dele.
- Eu sei me cuidar, Calebe. E se você me machucar, não seria a primeira vez, sabe?
- Falando isso não é a melhor forma de me convencer, sabia? – Brincou, envergonhado.
- Quer uma forma melhor? – Ela o empurrou para dentro do quarto, fechando a porta atrás de si. Malu se afastou e lentamente subiu a blusa de alcinha, retirando-a completamente.
Calebe fechou os olhos, sentindo o cheiro do seu cabelo, a textura macia da sua pele que não mudava. A forma intensa que ela o olhava o remeteu diretamente para a primeira vez deles, quando ela sequer conseguia fazer isso. Era muito significativo para Calebe – e para Malu também – que ele tenha sido o primeiro que ela tinha se deixado ver de forma tão pura.
Malu não conseguia raciocinar, os pensamentos evaporaram de sua mente no momento que ele a tocou.
- Que vontade de ter você. – Murmurou, passando os lábios pelo pescoço dele. – Por favor, não me para, me deixa te ter mais uma vez, nem que seja a última. – Fez uma prece mais para o universo do que para ele, mas funcionou. Foi só após se verem deitados na cama, com Calebe prestes a voltar a entrar em Malu após o tempo separados, que ela finalmente teve coragem de dizer: – Eu ainda sou tua.
Não foi preciso qualquer palavra, não tinha o que dizer, pois as emoções transbordaram daquela troca de olhares.
Calebe lembrava perfeitamente da última vez que tinha feito sexo. Foi com Malu, em seu apartamento em São Paulo. Nem ele acreditava que tinha ficado tanto tempo sem sexo, especialmente sexo com Malu. Claro, não negaria que ele tivera seus casos de uma noite, mas nada que chegasse aos “finalmentes”. Tentou se convencer que talvez a abstinência tenha sido o motivo de ter cedido tão rápido, mas quem queria enganar? Ele cederia para Malu sempre e a qualquer hora.
A noite passada parecia uma noite fora da curva e ele nunca pensou que aquilo aconteceria. Mas tudo caiu por terra quando ele acordou e não encontrou Malu ao seu lado. Foi assim que ele começou uma busca pela morena. Ela não estava mais na pensão, nem na casa com Tiago. Ela tinha voltado para a cidade, ele tinha certeza.
Com Vinícius em seu banco carona, ele também voltou à cidade e quase se arrependeu da carona. Vinicius passou a viagem inteira brigando com Calebe, dizendo que ele tinha se precipitado, irritou-se com a impulsividade de ambos e continuou dizendo que aquilo não deveria ter acontecido. Calebe quase concordava, mas toda vez que lembrava da pele de Malu na sua, os beijos cálidos que trocaram, ele não se arrependia nem por um segundo.
Ele nunca cansaria daquilo. Mesmo depois de tantos anos, depois de tantas vezes, ver os quadris de Malu subindo e descendo ainda era seu oásis pessoal.
- É aqui? – Calebe apontou para um prédio residencial de três andares.
- É, ela mora no terceiro. 303. – Vinicius confirmou. – Não faz eu me arrepender de te trazer aqui, por favor.
- Eu só quero conversar, Vinicius. Relaxa! – Assegurou e seguiu direto, planejando voltar durante a noite seguinte, quando saísse do trabalho.
E foi o que ele fez. Calebe voltou ali algumas horas depois e achou que fosse vomitar quando estacionou na frente do prédio. Ele nem sabia se Malu estava ali, mas estava nervoso com o que poderia vir a seguir. Apertou a campainha no número três e soltou o ar ao ouvir a voz de Malu.
- Oi. Quem é?
- Oi, Malu, é o Calebe... – Murmurou, quase perdendo a voz no fim.
A linha ficou muda do outro lado do interruptor por um segundo antes da porta abrir ao ter a entrada liberada. Ele respirou fundo e subiu as escadas com a perna trêmula. Ela já o esperava com a porta aberta, encostada no batente. Vestia um vestido de alças finas azul, curto e estampado, e seus cabelos estavam armados e belos. Linda, Maria Luiza era absolutamente linda.
- Como você me achou? – Ela fez sinal para ele entrar.
Calebe observou o apartamento pequeno, só tinha um cômodo, mas Malu deixou o ambiente separado e minimalista o suficiente para parecer um apartamento de área nobre. Ele sorriu, orgulhoso pela conquista dela.
- Vinícius me contou, espero que não tenha problema. – Contou. – Eu ia perguntar pra tia Andréia, mas ela deixou claro que não quer me ver de novo. – Malu deu um sorriso de lado, tristemente.
Algo estava errado, Calebe sentiu.
- Não tem problema. – Ela falou, mas parecia incomodada e isso deixou Calebe desconfortável. Ele colocou a mão nos bolsos da calça social, arrependido de não ter ido em casa e trocado de roupa. – Quer uma água, alguma coisa? – Ela abriu a geladeira, ficando de costas para ele.
- E-eu... – Hesitou antes de decidir ser direto. – Você sumiu, eu fiquei preocupado.
- Foram só algumas horas, imagina se fossem dois anos?
Calebe ficou em silêncio, totalmente surpreso com a voz ácida e fria de Malu. Ele ensaiou abrir a boca e dizer algo, mas nada saiu. Ao notar o silêncio, Malu fechou a geladeira e virou-se de frente para ele. Ela respirou fundo, umedecendo os lábios.
– Desculpa, eu não queria ser agressiva, mas desde que eu acordei depois que a gente… Eu só conseguia pensar nessa porra desses dois anos, Calebe. – Ela admitiu, decidida.
Era isso. Pelo tom de voz de Maria Luiza, ele sabia que havia chegado a hora da confrontação, o momento em que eles, finalmente, falariam sobre o elefante na sala. Eles falariam sobre os dois anos separados.
- Eu sei, Malu. Pra mim, foi um grande borrão, acredite. – Afirmou, apertando as mãos. – Eu não sei como eu consegui ficar sem você. – Admitiu.
- Mas ficou. Você não falou comigo, não conversou, me mandou uma mensagem pedindo desculpa. E eu até aceito aquilo como uma mensagem de término, mas e depois? E antes? Você me olhou nos olhos e disse que aceitava ficar comigo, voltar pra cá, construir uma vida juntos. Você me garantiu que queria isso! Eu fico pensando, você me mandou voltar primeiro pois você ainda tinha o que resolver em Guarulhos. Tinha mesmo? Ou foi só um jeito que você arranjou de me tirar da sua casa, da sua vida?
- Eu queria ligar. – Calebe confessou em murmúrio triste. – Eu quis muito passar a tarde inteira te ouvindo reclamar dos preços do supermercado ou qualquer que fosse a besteira, eu só queria ouvir tua voz. Mas eu sentia que não tinha mais essa liberdade.
- Essa tarde que você fala são as mesmas que eu passei me perguntado o que eu fiz de tão errado pra você não querer nenhum tipo de contato comigo.
- Não foi você... Eu acho que eu pensei em te procurar depois, mas você não apareceu e, foi um erro, eu sei. Eu não deveria esperar por você, mas... – Ela ergueu a mão, interrompendo-o. Ele engoliu em seco. Ele esperou tanto pela reação de Malu, que agora ele sentia que estava vindo com força total.
– Você não quis contato comigo. Você mudou de número, apagou suas redes e eu poderia ter tentado falar com você, poderia ter invadido tua casa em São Paulo, mas eu pensei “pra quê? Tá tão claro que ele não quer contato comigo” e foi por isso que eu não fui.
- Malu, eu não sei mais o que te falar. O que você espera que eu fale? O que você quer que eu fale? Eu juro que faço qualquer coisa pra você me perdoar. A gente nem precisa ficar junto, mas eu não vou saber viver sabendo que eu te fiz sofrer. – Implorou.
- Eu sinto que eu não sei mais quem é você. – Ela confessou, engolindo o choro, apesar de seus olhos estarem lacrimejantes.
- Eu não mudei tanto assim. – Ele afirmou.
- Mudou, sim. Dois anos é bastante coisa, Calebe. Eu mudei, tudo em nossa volta mudou. – Calebe também se perguntava o que ele havia se tornado. Onde foi parar aquele garoto de coração puro e de jeito brincalhão? Aquele que era o preferido das meninas e o melhor amigo dos meninos? Onde estava o filho da Ana? – Eu não sei se eu consigo fazer isso. – Murmurou para si mesma, abaixando a cabeça.
- Malu. – Chamou, se aproximando, mas ela deu um passo para trás.
- Eu acho melhor você ir, Calebe. Eu não quero mais... falar. – Ela passou a mão nos olhos, limpando a lágrima que escorreu.
- Fala comigo! – Ele insistiu. –Você diz que tudo mudou, então me conta o quê. Eu posso ter mudado, mas você também mudou, Malu. E eu não tô falando do cigarro ou dos seus novos namorados, mas tô falando do seu pessoal, do seu sentimental. – Ela negou com a cabeça, apertando os lábios. Estava prestes a explodir. – Mudar é um processo natural do ser humano. Mesmo que a gente tivesse junto, a gente mudaria.
- Mas a gente não tá junto, Calebe! E a gente não tava junto e eu não sei se vamos ficar um dia! – Exclamou, alto. – Não fala do meu cigarro e dos meus ex como se você soubesse o que isso significa porque você não sabe.
- Então me conta! Eu tô aqui, de peito aberto, querendo resolver as coisas! – Suplicou, abrindo os braços.
- Eu não quero resolver, Calebe! – Malu gritou. – Eu tive que seguir minha vida. Tá difícil de entender? Eu vou desenhar pra ti. Você não foi embora e manteve contato. Você sumiu! Não respondia minhas mensagens, não me ligava. Eu passei semanas querendo subir num ônibus e te procurar pela cidade e perguntar “onde é que você tava?”
- Não faz assim, Malu... – Ele pediu, sentindo seus olhos começaram a lacrimejar.
- Não?! Calebe... Onde. Você. Estava? – Gritou, pausadamente.
- Foi demais pra mim. Tava foda, Malu. – Calebe começou a chorar no momento que viu toda a mágoa e sofrimento na voz e nos olhos de Malu e saber que ele fora o causador era de uma dor dilacerante. Juntar isso com o pensamento do falecimento de Ana fez ele explodir em lágrimas.
- Tava. Tava mesmo. Você foi um covarde, cara. – Ela soluçou, negando com a cabeça.
- Não, você não sabe como é! – Tentou se defender, mas foi atropelado pelas palavras duras e sôfregas de Malu.
- O que eu não sei? Perder um dos pais? Perder a família? Porque eu sei muito bem. Meu pai morreu, a tia Ana morreu e tudo foi pra puta que pariu, mas eu nunca largaria nada nem ninguém por isso. Pelo contrário, quando a tia Ana morreu e você ficou na merda, a primeira coisa que eu fiz foi entrar num ônibus e ir atrás de ti! – Malu chorava copiosamente, mas não parou de falar. – Então me diz o que eu não sei como é, Calebe! Entrar numa universidade? Uma porra de MBA? Eu não sei mesmo. A única coisa que eu sei é que você sumiu, Calebe.
“Eu não tô dizendo que não foi a coisa certa a se fazer, nem que essa não era solução pra você e pro que você tava passando. Eu tô dizendo que você me deixou! Não, você me mandou ir embora! Quer a gente queira ou não, ir embora é foda, Calebe. Dói, e dói muito!”
Malu abaixou a cabeça, as lágrimas e só soluços quase não deixando-a terminar de falar. – E agora que estamos lado a lado de novo, eu só consigo pensar que você é meu destino, Calebe. E tô com raiva disso! Tô com muita raiva de mim por ainda te querer bem, por ainda ter tesão em ti, por ainda te amar!
Calebe foi até ela e, desesperadamente, tirou as mãos dela do próprio rosto e a abraçou. Juntos, eles choraram sobejamente e o chão de Calebe se abriu quando ele ouviu Malu murmurar em seu ouvido: – Por favor, me deixa sozinha.
- Malu... – Chorou, desolado. Ela se desvencilhou dos braços dele e correu até a porta, abrindo-a.
- Se você tem o mínimo de respeito e consideração por mim, eu tô te pedindo pra ir embora agora, por favor!
Calebe foi o responsável pelos últimos meses de sofrimento e agonia de Malu, não queria mais ser o responsável por nenhuma lágrima que saísse dos olhos dela. Ele não poderia ter outra ação, a não ser acatar sua decisão e ir embora.
Assistiu Calebe deixar seu apartamento e logo em seguida, Malu fez algo que nunca fez e sinceramente pensou que nunca faria. Ela correu em busca do celular e fez uma ligação.
- Alô, mãe?
Calebe virou a chave na maçaneta e decidiu que, por enquanto, estava tudo bem, que ele poderia admitir que ainda não estava pronto para lidar com aquilo. Se um dia ele estivesse, seria ótimo. Mas por enquanto, ele estava satisfeito de pelo menos estar ali e conseguir admitir para si mesmo que ele ainda não conseguiria dar alguns passos.
Encarou a porta do antigo quarto de Ana e escondeu a chave em um quadro ao lado. Assentiu para si mesmo. Estava tudo bem, ele poderia admitir que ainda não estava pronto para lidar com o local e nem sabia o que fazer. Por hora, enquanto ele morasse ali, saberia que sempre teria um local para pensar em sua mãe e ainda não estava pronto para se desfazer de todos os objetos e lembranças que tinham ali dentro.
Olhou em volta, satisfeito com as mudanças que ele tinha feito na casa. Desde que decidiu voltar de vez para a cidade, ele sabia que precisaria fazer com que a casa da sua infância se tornasse a sua casa de adulto. Ele comprou um sofá maior, trocou as lajotas da cozinha, arrumou o quintal e organizou o pátio. Era um bom começo.
Olhou no relógio e se deu conta que estaria no banco se não tivesse pedido demissão semanas atrás. Se decepcionou quando entregou a carta de demissão e não obteve nenhuma tentativa de convencimento a ficar por parte de seus superiores. Ninguém tinha oferecido aumentar o salário dele, nem aumentar o cargo. Calebe aprendeu que para a empresa que ele tanto se doou, ele era substituível.
Ele já tinha algumas entrevistas de emprego graças aos bons e poucos amigos que fez por lá, mas todas estavam com datas confirmadas para a próxima semana. Pela primeira vez em bastante tempo, Calebe não tinha o que fazer. Sorriu cômico para si mesmo e decidiu dar voz ao seu adolescente interior e foi andar na rua.
No meio do caminho, ele decidiu que iria na casa de Vinicius e depois tentaria falar com Andréia, que ainda se negava a falar com ele. Calebe precisava resolver as coisas com a mulher. Ela não era a sua maior fã e vice-versa, mas era melhor amiga de Ana, era como se fosse parte da família. Quando entrou na Passagem das Flores, ele cumprimentou alguns vizinhos e seguia seu caminho, até encontrar uma bola de futebol presa em um galho quebrado.
Por dias, Calebe pediu um sinal do universo de que o que ele estava fazendo – deixar São Paulo, seu emprego estável e voltar para casa – era a coisa certa. Talvez o sinal tivesse se atrasado um pouquinho. Ele riu descrente. Sem se importar com a passagem vazia, ele puxou a bola com os pés e começou a brincar.
O sol brilhava imponente e majestoso, mas a brisa amena dava indícios de que aquele fim de tarde seria bonito e refrescante. O céu charmoso fez Malu sorrir sozinha enquanto caminhava até a casa de sua mãe no bairro da Saudade. A parada do ônibus era na esquina da Passagem das Flores, onde Malu amava passear, mas para chegar até lá, ela precisaria passar na frente da casa de Calebe.
Já tinha quase um mês que Vinicius tinha contado a ela que Calebe estava de mudança para sua antiga casa de novo. Um mês em que ela não o via, mas sabia que ele estava por ali. Um mês que ela sentiu vontade bater na porta da casa azul. E passando pela fachada, agora devidamente limpa, essa vontade não diminuía.
Ela sentiu que seus passos foram inconscientemente diminuindo enquanto ela passava por lá e se desesperou. Malu sequer sabia se tinha algo para falar ou se queria falar. Não tinham mais o que conversar, tudo havia sido falado e replicado no dia em que ele visitou seu apartamento.
Balançou a cabeça, como se isso fosse ajudar a limpar sua mente e reorganizar seus pensamentos. Voltou a andar no ritmo normal, finalmente chegando ao início da passagem.
Passar por ali ainda parecia uma grande aventura. Já não havia mais galhos pelo chão, agora o piso de pedra era bastante aparente. E as flores na parede pareciam ter se modificado, alguns com troncos e galhos tão grandes que se curvavam e quase conseguiam formar um teto sobre as pessoas.
Antes mesmo de dar um passo adiante, Malu enxergou Calebe no meio do caminho. Ele teve a sensação de voltar ao passado com a visão dele fazendo embaixadinhas com uma bola desgastada no meio das flores. Ela engoliu em seco, olhou para trás pensando em dar a volta, mas não queria. E não lhe custou muito admitir isso, então ela foi andando, meio nervosa, mas estranhamente segura.
Calebe que estava perdido em seus próprios pensamentos e ações, só levantou a cabeça quando ouviu os passos dela próximos a ele. Malu usava um vestido preto simples e formal, mochila nas costas e os cachos esvoaçantes de uma maneira que parecia até proposital. Calebe sentiu seu coração pular em seu peito.
Eles se encararam, ambos tentando esconder suas emoções e falharam. Malu sorriu de lado enquanto parava em sua frente e Calebe sorriu verdadeiramente.
- Oi. – Ela falou, acenando levemente.
- Oi, Malu. – Felizmente, ele não gaguejou, mas estava nervoso. – Como você tá?
- Tô bem e você?
- Me adaptando. – Ele mexeu com a bola nos pés.
- Ouvi dizer que você voltou. – Comentou.
- É, não dava mais pra ficar longe.
- De casa?
- Quer que eu minta e diga que sim? – Ela engoliu em seco e prendeu os lábios em um sorriso.
Maria Luiza simplesmente não conseguia mais negar. Amava Calebe e toda vez que ele sorria para ela e a tratava como a única mulher no mundo, Malu sentia vontade de dizer o porquê e o quanto o amava.
Após ficar em silêncio por três segundos, fugindo do olhar intenso e acolhedor de Calebe, ela refletiu e decidiu falar o que ela mais sentiu vontade de dizer depois daquela briga terrível.
- Não mente mais pra mim. – Pediu, ressentida. – Nunca mais.
- Nunca mais. – Ele assegurou, assentindo com a cabeça.
O pôr do sol azulado tomou conta dos céus e paredes da Passagem das Flores, deixando o clima aprazível e romântico, o suficiente para amolecer os corações dos dois jovens criados no bairro da Saudade, bairro cujo nome descrevia exatamente o que os dois estavam sentindo.
- E agora? – Ele perguntou, sem entender exatamente quais passos ele poderia dar a seguir.
- Bom, acho que você tem que se entender com a minha mãe. – Ele gargalhou deliciosamente, jogando a cabeça para trás.
Ela continuou a andar a caminho da casa de Andréia e notou que Calebe não a acompanhou. Ela suspirou e esticou a mão em direção a ele. O rapaz voltou a respirar no momento em que pegou a mão de Malu e andou com ela até a sua antiga casa.
Todos os clichês fizeram sentido quando eles andaram de mãos dadas pela famigerada e tão referida Passagem das Flores e foi como se o tempo não tivesse passado. Malu ainda era uma menina andando com seu namorado e Calebe ainda era um moleque de mãos dadas com a menina mais bonita da rua.
Ele até se sentiu culpado de ter tentado manter controle sobre sua vida, insistindo em seguir um caminho longe dali, quando, no fundo, ele sabia bem que ali era seu lugar: No bairro da Saudade, na Passagem das Flores, de mãos dadas com Maria Luiza. Tentar ir para um caminho diferente daquilo era bobagem. Mas ele entendiam bem que foi preciso que ele cometesse severos erros para chegar até ali, entendendo o significado daquilo.
- Tá pensando em quê? – Malu questionou antes de eles dobrarem a rua.
- Sinceramente? – Ela assentiu. – A tia Andréia vai me comer vivo, Malu! Puta que pariu! – Ele desabafou, choramingando e causando uma gargalhada verdadeira em Malu.
Maria Luiza teve a certeza de que havia voltado no tempo quando ela se viu sentada no balanço de pneu que ainda tinha no quintal da casa de Calebe. Ela olhou para o céu e sorriu vendo a lua cheia cintilante no céu. O dia inteiro havia sido lindo, com céus claros e límpidos. Será que tinha algo a ver com o que tinha acontecido naquela tarde?
Depois de saírem da casa de Andréia e uma conversa reveladora e lotada de constrangimento e silêncios pesados, Calebe convidou Malu para ver as modificações que ele havia feito na casa, sem segundas intenções, e ela aceitou, cheia de vontade e saudade de entrar naquela casa novamente.
- Bom, eu preferia que ela tivesse me dado uns tapas, tipo a Alanne. – Calebe confessou enquanto empurrava o balanço.
- É, ela pegou um pouco pesado. – Malu riu, envergonhada. – Mas tudo dentro do esperado quando se trata da minha mãe.
- Mas ela acertou em uma coisa ou outra. A gente precisa conversar, né? – Murmurou, segurando o pneu no lugar e encostou a cabeça no ombro dela.
- Precisa mesmo? A gente já falou tanta coisa... – Ela suspirou e acariciou o cabelo dele próximo dela. – Que bom que você voltou pra casa.
- Você é minha casa, Maria Luiza. – Ela virou o rosto, ficando a centímetros do rosto dele, com seus narizes se encostando e suas respirações se misturando. – Você ainda é meu caso sério. – Ela sorriu e, em seguida, fechou os olhos porque sentiu que eles estavam se enchendo de lágrimas.
- Eu tô com medo. – Admitiu, sussurrando.
- Desculpa, acho que a culpa disso é minha. – Murmurou, sem se afastar.
- Eu fiquei com tanta raiva de mim por ainda gostar tanto de ti, mas também tive medo de não sentir isso nunca mais. Tava começando a achar que eu não conseguia mais sentir isso. Aí você voltou. – Ele deu a volta no brinquedo e em frente a ela, puxando-a pela mão, para que ela ficasse de pé.
Pousando as mãos no rosto dela, Calebe decidiu naquele momento que seria a última e única vez que ele tentaria.
- Eu não quero te forçar, não quero nos forçar. A gente se desgastou, eu ferrei com tudo e você tem todo o direito e razão de me dar as costas agora e a gente nunca mais fala sobre isso. Mas você precisa saber que eu vivi uma vida com você e outra sem você. Sei bem o que é chegar em casa e você não tá, sei o que é acordar e não te ver do meu lado. Eu vi o mundo lá fora e, mesmo assim, não tô interessado em viver uma realidade onde você não tá, Malu.
“A gente não precisa fingir que nada aconteceu. Pelo contrário, a gente não pode esquecer. Tudo isso fez a gente crescer e aprender. Então, se você tem o mínimo de vontade e esperança que for, eu te peço: vamos tentar. A gente nunca deu errado, Malu. De todas as oportunidades que a vida me deu, só a possibilidade de voltar a ter você perto de mim foi a que me deixou mais feliz. Vamo apostar na gente, morena”.
Com o rosto cheio de lágrimas, ela apoiou a mão em cima das mãos dele em seu rosto e fechou os olhos. Encostou os lábios nos dele e o beijou com ferocidade, mas apaixonadamente. Tentando transpirar emoção e confiante de que aquele beijo fosse capaz de transmitir a ele todos os sentimentos que ela queria. Malu quebrou o beijo e encarou os olhos de Calebe e acariciou a bochecha dele com o polegar.
Foi naquele quintal onde tantas vezes ela brincou quando criança, com João, Ana e a lua cheia sendo testemunhas, Malu decidiu dar uma segunda chance para si, para Calebe e para o amor. Era inevitável, ela sabia.
- Não tem outro caminho, não tem outro lugar, nem outra pessoa. Sempre tem que ser você, Calebe.
Calebe não pensou que fosse se emocionar, mas seus olhos lacrimejaram tanto que ele precisou passar a costa das mãos para limpar a vista. Ele soltou a respiração de maneira dramática e jogou a cabeça para trás.
Ele tinha a sensação de que não estava mais sozinho e que finalmente ia conseguir voltar a ser feliz. Calebe estava retornando para casa e não, ele sequer estava falando da casa de alvenaria azulada e sim da sua verdadeira casa: uma mulher de cabelos cacheados e sorriso arrebatador.
Maria Luiza era seu lar, para onde ele retornaria todos os dias.
Naquele instante, Calebe e Maria Luiza se perderem em beijos e pensamentos. Ambos com a mente trabalhando de maneira ávida, já que só por estarem naquele quintal, eles conseguiam assistir o passado e o futuro andando de mãos dadas em sua frente. Dali em diante, eles sabiam que teriam um ao outro. Que viveriam juntos, chorariam juntos e se pertenceriam da maneira que sempre foi.
A vida de Calebe e Malu era canção, composta por várias estrofes e algumas melodias deliciosamente complicadas. Mas no final, como todo bom dueto, eles encontraram o tom.
Fim
Me apaixonei por escrever esses personagens e essas situações muitas vezes influenciada e inspiradas em experiencias minhas, tanto na fase adolescente quanto na fase adulta. Foi uma delícia dar vida e brasilidade a essa história, espero que tenham gostado tanto quanto eu gostei de escrever. Curiosidade: na primeira parte, que acontece uma divisão entre datas festivas, (começando pelo ano novo, carnaval e festa junina) foram escritas em suas respectivas datas.
Vejo vocês logo, beijos! ♥
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Nota da scripter: Ju, que prazer finalizar mais uma história contigo. Que venham muitas ainda! ❤