I don't wanna hear you've got a boyfriend
Sometimes you're better off alone
But if you change your mind, you know where I am
But if you change your mind, you know where to find me
Sometimes you're better off alone
But if you change your mind, you know where I am
But if you change your mind, you know where to find me
Capítulo 1 – A casa da árvore e o exército de formiguinhas
— Vai dizer que você, Chevalier, nunca fez isso? — Victoria Evans, a aniversariante e dona da festa, me perguntou num tom irritante e acusatório, balançando o braço cheio de pulseiras de miçanga. — Eu estou fazendo 12 anos hoje e já beijei um garoto. Na boca!
Marie Bee, minha melhor amiga, fez uma careta meio nojo e meio pavor para a confissão da anfitriã e saiu da rodinha para buscar mais refrigerante, batendo com força o solado dos tênis para fazer as luzinhas nele acenderem. Eu deveria simplesmente ter desconversando e ido com ela, mas me sentia encurralada pela abordagem da Victoria e seu grupinho de mocinhas que queriam ser mais velhas do que realmente eram. Eu já era tida como uma espécie de aberração por não ter pai nem mãe, não queria ficar ainda mais fora da curva por ainda não ter dado o meu primeiro beijo.
— Claro que eu já fiz isso. — menti. — Eu já beijei um garoto sim.
— Quem? — Marie retornou com o copo cheio de coca-cola e a cara de pavor ainda mais agravada. — Eu pensei que você gostasse do coreano novato! Eu vi o nome dele no seu diário, você escreveu com glitter e vários coraçõezinhos, está lá bem grande assim: LEE SEOKMIN...— ela desenhou o nome no ar e as luzes no tênis acenderam novamente, dessa vez por causa do pisão que eu dei no pé dela.
Os murmúrios das risadinhas abafadas preencheram o quarto. Vic tinha nos convidado para vê-lo depois da reforma e para provar que não haviam mais bonecas na sua prateleira, já que aquilo era “coisa de criança” e ela não era mais uma. A cama dela também não tinha mais o ursinho de pelúcia em cima ou a roupa da Barbie, agora era coberta por um tecido roxo e várias almofadas coloridas, onde eu pensei seriamente em enfiar a cara, porque minha melhor amiga linguaruda tinha acabado de soletrar o meu maior segredo: eu estava apaixonada por Lee Seokmin.
E ele estava lá embaixo na festa.
— Nós te desafiamos a subir na minha casa da árvore e dar um beijo nele! — Victoria anunciou depois de cochichar com as outras Bratz, como Marie costumava chamar.
— Eu aceito. — inflei o peito, procurando por confiança. — Como eu disse, não é novidade, eu já fiz isso antes.
Mentira. Mais uma das várias que eu costumava contar para me sentir aceita onde quer que fosse, até mesmo num grupo de aspirantes a Meninas Malvadas na sexta série. Marie apertava minha mão e me perguntava se era isso mesmo que eu queria fazer, se não tinha medo de ficar grávida assim. Eu não tinha tanta certeza quanto aparentava, até porque Seokmin era bonitinho demais para eu saber qualquer coisa, e só a lembrança do rosto dele deixou minhas pernas feito geleia quando subi para a casinha da árvore no quintal dos Evans. Passei o brilho labial de morango trêmula, quase arrependida de estar ali. Meu estômago fazia borboletinhas e, sem nem precisar olhar no espelho, sabia que estava corada. A madeira da escada rangeu e a pequena porta da casa abriu, revelando a figura do novato que estava causando o maior alvoroço na escola e no meu coração pré-adolescente. Lá estava ele, com o cabelo úmido de gel e um sorriso largo e fácil.
— Você sabe como é? — ele me perguntou, sem jeito.
— Sei. Assim, ó.
Foi o que eu respondi, mas como eu não sabia, só apertei muito os olhos e fiz um bico. Seokmin encostou na minha boca com força e parecia que tinha um exército de formiguinhas dançando pelo meu corpo inteiro quando ele fez isso.
— Ai! — reclamei quando ele bateu o nariz no meu.
— Eca! Esse negócio escorrega! — Seokmin limpou o brilho da boca e ficou me olhando com uma tremenda cara assustada. — Você é minha namorada agora?
— Não sei. — as borboletas todas bateram as asas de uma vez só. — O que uma namorada faz?
— A namorada do meu irmão senta perto dele quando vai almoçar na nossa casa. — ele espalmou as mãos para cima. — Acho que é só você sentar perto de mim na escola.
— Tá bom.
***
Alguns anos se passaram desde que eu aceitei sentar perto de Lee Seokmin na escola. E foram tantos que ninguém mais sabia quem era Lee Seokmin, os estudantes do West High, agora, só conheciam o famoso jogador de futebol que ele havia se tornado, o artilheiro DK, apelido que o time cunhou quando o escolheram para ser capitão. DK desfilava pela escola com sua jaqueta dobrada até o antebraço (mania que, por alguma razão que eu não entendia, deixava ele 200% mais charmoso) e o brasão de espadas cruzadas do West Warriors na braçadeira. Era apropriado que o símbolo do time fosse algo que remetesse à realeza de um príncipe, porque era exatamente o que ele era. Eu, no entanto, ainda era uma mistura de “a órfã que sobreviveu ao acidente de carro que matou os pais” com “a aluna popular e rica que passava as férias na Europa com o lado italiano da família”. E nenhuma dessas versões da era, de fato, a namorada oficial de DK, porque de tanto sentar perto, ele e eu acabamos desenvolvendo uma sólida amizade no lugar de um romance.
Mas eu estaria mentindo se dissesse que ele não me causava mais as borboletinhas do nosso primeiro beijo. Especialmente porque ele tinha ficado muito mais bonito desde então.
E muito mais alto.
Muito mais encorpado.
Mas muito mais irritante.
Estávamos no período de exames admissionais para a faculdade e o pânico era geral, mas eu me sentia ainda mais perdida que o resto dos alunos por não ter certeza de qual curso escolher. Sabia para que universidade eu queria ir, a Saint Peter, sonho que eu dividia com a Marie Bee desde que conhecemos o campus numa excursão escolar anos atrás, mas ainda tinha dúvidas sobre o que queria estudar lá. Meu avô, Alfred, nutria esperanças de que eu enveredasse pela Administração para cuidar do conglomerado industrial da nossa família, um verdadeiro império de máquinas e fumaça que nunca me despertou muito interesse. Minha melhor amiga, metódica e maníaca por controle, tinha os próximos dez anos da vida dela milimetricamente planejados em post-its com metas espalhadas pelo quarto. E até mesmo Seokmin, astro do esporte, já tinha sua vaga quase garantida para explorar uma paixão que destoava da figura famosinha e descolada que ele era: Química, especificamente as misturas para fármacos. Todo mundo sabia o que fazer: Marie Bee seria doutora em Psicologia, Seokmin faria carreira na Lee Pharm Labs e eu... Eu provavelmente morreria asfixiada num escritório cinza da Chevalier Industries.
Era como se eu não coubesse em lugar nenhum.
Por isso eu, com meus quase 18 anos, tentava estar em todos. Festas, jogos, viagens, qualquer que fosse a social, eu estava lá. Gostava de me cercar de gente e de barulho para me distrair do oco dolorido que pungia no meu peito e não me deixava sequer tomar uma decisão sobre o meu futuro — talvez por eu quase não ter tido um. Talvez por, lá no fundo, eu querer ter interrompido tragicamente a minha existência junto com a do meus pais.
Henry Chevalier, meu pai, era um cara de gostos simples. Até ele conhecer minha mãe, o furacão Cassie. Ela era enérgica, solar, uma fagulha que rapidamente se espalhava por onde quer que passasse. Tudo era dela, e ela ocupou brilhantemente todos os espaços, todos os dias e todo o amor da vida do meu pai. “Maré intensa quebrando numa praia calma”, era assim que meu avô sempre me falava dos dois. O pouco que eu me lembrava dos cinco anos que me deixaram viver perto deles era que papai andava sempre com um livro e mamãe tinha uma fivela linda de madrepérola. Linda feito ela. E que eles eram doces e me abraçavam quente.
— Ei! — fui despertada do meu devaneio com uma voz suave. — O sinal já tocou duas vezes. Mais uma e estaremos com problemas. Vamos? — Seokmin me estendeu o braço exposto.
— Não vou sentar perto de você hoje, Lee. — recusei a gentileza e juntei as folhas no meu fichário, incluindo a resenha que a Senhora Henderson havia pedido para a aula de Literatura. — Suas gracinhas me desconcentram e eu preciso prestar atenção nessa aula.
— E eu preciso disso aqui. — Seokmin puxou meu texto manuscrito. — Eu esqueci de fazer esse dever de casa e a Senhora Henderson é fã das coisas que você escreve. Se eu tirar seu nome e colocar o meu, tenho um A garantido.
— Inferno, Seo! — praguejei no meio do corredor quase vazio. — Me devolve!
— Vem pegar. — ele piscou, galante. Lá vinha o exército de formiguinhas outra vez. Maldito zoológico de Lee Seokmin.
— Quer saber, fica com ele. — dei de ombros e articulei um blefe, pegando um envelope sem nada dentro. Sempre havia desses no meu armário porque eu adorava deixar cartinhas para Marie. — Eu fico com isso aqui.
— E o que que tem aí? — ele empalideceu levemente, curioso.
— Digamos que quando eu estava testando os meus produtos de skin care no seu lindo rosto e você estava bem à vontade no meu roupão rosa eu tenha tirado uma foto sua. Ficou tão boa que eu imprimi e guardei aqui... — balancei a falsa prova antes de guardá-la dentro de um livro.
Seokmin era uma presença constante na minha casa, para desespero do meu avô e, especialmente, da nossa governanta, Dorota. Muitas vezes viramos as noites assistindo filmes e muitas vezes mais fomos pegos não assistindo. A língua de Seo sempre ia parar dentro da minha boca entre uma cena e outra e Dorota ameaçava nos acertar com um balde de água gelada quando os amassos no sofá ficavam arriscados demais. A vigilância dobrou desde que a notícia sobre a minha primeira vez ter rolado com um belo rapaz italiano nas minhas férias anuais em Florença espalhou-se, mas Seo e eu nunca saímos dos beijos. E se só os beijos já eram gostosos daquele jeito, então...
— Você não fez isso. — ele desdenhou, deixando um círculo nos lábios e me chamando à realidade novamente.
— Não fiz? — cutuquei o sinal que ele tinha perto da bochecha.
— Vamos trocar. — ele sugeriu, levantando a folha. — Ao mesmo tempo.
Seokmin juntou o cenho e estendeu meu texto em rendição, enquanto eu lhe entregava meu livro de Matemática com nada mais que equações entre as páginas. Queria ver a cara que ele ia fazer quando achasse o envelope sem conteúdo algum, mas o Inspetor Jones já estava caminhando em nossa direção pronto para nos prescrever uma advertência e nós dois arrancamos para a sala de aula antes que o encurvado senhor nos alcançasse.
Dediquei toda a minha atenção à aula porque era dia de uma das minhas atividades preferidas: a senhora Henderson nos separava em duplas e tínhamos que trocar nossas redações, sugerindo melhorias no texto do colega, algo que ela chamava de revisão em pares. Enquanto a maioria dos alunos aproveitava a ocasião para conversar sobre assuntos que não conjugações verbais e gramática, eu vasculhava a redação da minha dupla, estudando-a, entendendo-a, reescrevendo-a para ficar irretocável. A professora já havia notado minha empolgação e mencionado que eu fazia intervenções muito pertinentes, mas, mesmo compenetrada na minha tarefa, eu tirei um tempo para observar Seokmin perplexo no fundo da sala, revirando o envelope em branco e apoiando o queixo no punho cerrado.
— O que você fez com ele? — Marie Bee apontou Seo por cima do ombro e encostou a carteira dela na minha quando terminou a atividade.
— Contei uma mentirinha para perturbá-lo. — confessei.
— Coitado, . — Marie me repreendeu. — Ele já está todo tristonga com ciúmes do seu Florença lá. Como é mesmo o nome dele?
— Pietro. — respondi depressa. — Pietro Bianchi.
— Pietro... — Marie repetiu, estranhando. — Engraçado, eu podia jurar que você tinha me dito outro nom-
— Eu tenho que ir. — dei um beijo na bochecha de Marie quando o sinal disparou, interrompendo-a. — Te ligo mais tarde, OK?
As demais aulas passaram rapidamente e a última do dia aconteceu em um dos laboratórios, sem a presença de DK e seu time, dispensados para um treino extraordinário por causa do final da temporada. Era a época em que os olheiros da faculdade começavam a passear pelas escolas para ver de perto os jogadores que se destacaram e Seokmin estava na mira de um deles. Ao final do sexto tempo, passei pelo campo e vi que a prática dos West Warriors já tinha acabado, então peguei o túnel entre as arquibancadas e fui decidida até o vestiário.
— Que cheiro de macho! — resmunguei ao entrar, vendando os olhos e ouvindo a algazarra causada por uma presença feminina ali. — Podem parar de gritar, eu não sou nenhum alienígena, OK? Agora me levem até o seu líder.
— ? — reconheci a voz de Seo.
— Ah, você está aí. — tirei as mãos dos olhos e me vi cercada por um time inteiro, peito, perna e hormônio para tudo quanto era lado. Alguns se escondiam atrás das roupas, outros, só de cueca, me mediam de cima a baixo, mas nenhum sequer chegava perto porque Seokmin ameaçava todos com um olhar estreito.
— Circulando, moças! — o capitão DK ordenou aos companheiros e bateu palmas.
Os rapazes foram ficando decentes e saindo um a um, trocando gracinhas e soltando piadas idiotas para as quais eu apenas rolava os olhos. Eu sabia que minha reputação mudaria depois que Victoria Evans — sempre ela — ventilou a história sobre Pietro pelos corredores, mas, mesmo que Seokmin e eu não fôssemos um casal e nos considerássemos apenas “amigos coloridos”, ele não tinha aceitado a minha primeira vez muito bem e trincava o queixo sempre que tocavam no nome do dito italiano na frente dele.
— Você percebeu que esse vestiário é só para meninos, não é? — ele girou os dedos, abrangendo o ambiente, e eu me dei conta de que ele estava pingando do banho e com uma toalha enrolada na cintura. E a toalha descia perigosamente cada vez que ele se mexia.
— Você tem o meu livro. Eu preciso dele. — avisei. Precisava ser rápida ou as entradas dele aparecendo bagunçariam todas as palavras na minha cabeça.
— E você disse que tinha uma foto comprometedora minha. — ele pôs as mãos nos quadris, evidenciando a cintura fina. — E não tinha nada além de um envelope vazio.
— Pois é. Eu menti.
— Seu nariz vai crescer. — ele apertou a pontinha da cartilagem e se aproximou.
— O que você está fazendo? — perguntei quando ele passou o braço forte e definido ao lado da minha cabeça, apoiando-o no armário.
— Estou tentando pegar o seu livro. — o corpo amornado do banho chegou mais perto do meu e eu senti um cheiro gostoso de xampu e sabonete. — Ou não foi por causa dele que você invadiu o vestiário masculino?
— Que outro motivo eu teria? Não gosto de você tanto assim. — tentei fingir indiferença ao peitoral e abdômen musculoso a centímetros de mim.
— Sempre cheia de mentirinhas para mim, Chevalier. — ele sussurrou, ainda me mantendo contra o metal. — Desde o beijo na casa na árvore. — ele abriu um meio sorriso e eu bati outra vez no armário, sem saída.
— Que beijo? — quis me mover, mas já era tarde. — Aquele beijo nunca aconteceu.
— E esse aqui?
Seokmin puxou minha cintura e eu senti o gelado da corrente de prata contra o meu colo me enfraquecer as pernas. Nossos lábios se encostaram minimamente e ele me provocou, raspando pela minha boca enquanto sorria. Ele sorria o tempo todo e aquilo me deixava maluca. Tão maluca quanto a língua dele se enrolando na minha.
— Eu fiquei bem melhor nisso, não foi? — ele murmurou dengoso, partindo o beijo.
— Foi. E eu te odeio. — bufei.
— Você tem que parar de mentir para mim, . — ele me selou. — Um sorriso só e eu quebro você.
O pior de tudo era que ele não estava errado.
***
Cheguei da escola faminta, seguindo o cheiro delicioso que vinha da cozinha. Dory comandava a operação almoço com um rigor quase militar, como ela fazia em todas as refeições. Era bonito o empenho dela em cuidar da nossa casa, que, depois de tanto tempo, era como se fosse dela também. Dorota Williams era a referência mais próxima que eu tinha de mãe, ela e Marie Bee sabiam meus segredos mais íntimos, que, na verdade, nem eram tantos assim. O único segredo que eu tinha no momento era uma ideia fixa de falar com meu avô. Uma ideia que começou a se remexer timidamente no fundo da minha cabeça e foi crescendo, crescendo, até tomar corpo e eu finalmente criar coragem para verbalizar.
— Nonno, me deixa ir pra Florença? — beijei a cabeça grisalha. Meu avô estava com seus quase sessenta muito bem vividos e continuava parecendo um galã europeu.
— Você sempre vai, piccolina. — ele arrumou o guardanapo no colo e me chamou de “pequena” em italiano. Como eu sempre seria aos olhos dele.
— Para ficar 15 dias. — dei a volta e sentei de frente para ele na mesa. — Eu quero ficar mais tempo.
— Quanto tempo? — ele deu a primeira garfada no macarrão ao sugo.
— Um ano.
— ... um ano? Nem pensar.
— Vovô, por favor. — afastei meu prato. — Eu quero estudar italiano.
— Estude aqui. Eu não posso ficar tanto tempo longe de você. — ele negou com a cabeça.
— Então vá me visitar. — arqueei uma sobrancelha. — Aposto que a nonna Antoniella está com saudades.
Meu avô meneou a cabeça outra vez. Ele e minha avó casaram novinhos e vieram para Nova York fazer a vida. E fizeram. Construíram seu negócio, tiveram um filho. Perderam o filho. E se perderam um do outro com isso. A dor rachou o relacionamento dos dois e minha avó não suportou, precisou voltar para a Itália, para junto da família e das raízes. Nonno quis ficar e eu, como não podia querer coisa alguma por ser pequena, fiquei com ele quando ambos optaram pelo divórcio e decidiram que não seria uma boa ideia me levar para um país de língua, costumes e pessoas desconhecidas para mim. Mas eu sentia, de uns tempos para cá, uma estranha vontade de abraçar minha origem italiana.
— E a faculdade, hã? — meu avô procurou por água entre a mesa posta por Dorota.
— Eu vou saber o que fazer quando voltar. — garanti, resoluta. — A resposta está lá, eu sei.
Marie Bee, minha melhor amiga, fez uma careta meio nojo e meio pavor para a confissão da anfitriã e saiu da rodinha para buscar mais refrigerante, batendo com força o solado dos tênis para fazer as luzinhas nele acenderem. Eu deveria simplesmente ter desconversando e ido com ela, mas me sentia encurralada pela abordagem da Victoria e seu grupinho de mocinhas que queriam ser mais velhas do que realmente eram. Eu já era tida como uma espécie de aberração por não ter pai nem mãe, não queria ficar ainda mais fora da curva por ainda não ter dado o meu primeiro beijo.
— Claro que eu já fiz isso. — menti. — Eu já beijei um garoto sim.
— Quem? — Marie retornou com o copo cheio de coca-cola e a cara de pavor ainda mais agravada. — Eu pensei que você gostasse do coreano novato! Eu vi o nome dele no seu diário, você escreveu com glitter e vários coraçõezinhos, está lá bem grande assim: LEE SEOKMIN...— ela desenhou o nome no ar e as luzes no tênis acenderam novamente, dessa vez por causa do pisão que eu dei no pé dela.
Os murmúrios das risadinhas abafadas preencheram o quarto. Vic tinha nos convidado para vê-lo depois da reforma e para provar que não haviam mais bonecas na sua prateleira, já que aquilo era “coisa de criança” e ela não era mais uma. A cama dela também não tinha mais o ursinho de pelúcia em cima ou a roupa da Barbie, agora era coberta por um tecido roxo e várias almofadas coloridas, onde eu pensei seriamente em enfiar a cara, porque minha melhor amiga linguaruda tinha acabado de soletrar o meu maior segredo: eu estava apaixonada por Lee Seokmin.
E ele estava lá embaixo na festa.
— Nós te desafiamos a subir na minha casa da árvore e dar um beijo nele! — Victoria anunciou depois de cochichar com as outras Bratz, como Marie costumava chamar.
— Eu aceito. — inflei o peito, procurando por confiança. — Como eu disse, não é novidade, eu já fiz isso antes.
Mentira. Mais uma das várias que eu costumava contar para me sentir aceita onde quer que fosse, até mesmo num grupo de aspirantes a Meninas Malvadas na sexta série. Marie apertava minha mão e me perguntava se era isso mesmo que eu queria fazer, se não tinha medo de ficar grávida assim. Eu não tinha tanta certeza quanto aparentava, até porque Seokmin era bonitinho demais para eu saber qualquer coisa, e só a lembrança do rosto dele deixou minhas pernas feito geleia quando subi para a casinha da árvore no quintal dos Evans. Passei o brilho labial de morango trêmula, quase arrependida de estar ali. Meu estômago fazia borboletinhas e, sem nem precisar olhar no espelho, sabia que estava corada. A madeira da escada rangeu e a pequena porta da casa abriu, revelando a figura do novato que estava causando o maior alvoroço na escola e no meu coração pré-adolescente. Lá estava ele, com o cabelo úmido de gel e um sorriso largo e fácil.
— Você sabe como é? — ele me perguntou, sem jeito.
— Sei. Assim, ó.
Foi o que eu respondi, mas como eu não sabia, só apertei muito os olhos e fiz um bico. Seokmin encostou na minha boca com força e parecia que tinha um exército de formiguinhas dançando pelo meu corpo inteiro quando ele fez isso.
— Ai! — reclamei quando ele bateu o nariz no meu.
— Eca! Esse negócio escorrega! — Seokmin limpou o brilho da boca e ficou me olhando com uma tremenda cara assustada. — Você é minha namorada agora?
— Não sei. — as borboletas todas bateram as asas de uma vez só. — O que uma namorada faz?
— A namorada do meu irmão senta perto dele quando vai almoçar na nossa casa. — ele espalmou as mãos para cima. — Acho que é só você sentar perto de mim na escola.
— Tá bom.
Alguns anos se passaram desde que eu aceitei sentar perto de Lee Seokmin na escola. E foram tantos que ninguém mais sabia quem era Lee Seokmin, os estudantes do West High, agora, só conheciam o famoso jogador de futebol que ele havia se tornado, o artilheiro DK, apelido que o time cunhou quando o escolheram para ser capitão. DK desfilava pela escola com sua jaqueta dobrada até o antebraço (mania que, por alguma razão que eu não entendia, deixava ele 200% mais charmoso) e o brasão de espadas cruzadas do West Warriors na braçadeira. Era apropriado que o símbolo do time fosse algo que remetesse à realeza de um príncipe, porque era exatamente o que ele era. Eu, no entanto, ainda era uma mistura de “a órfã que sobreviveu ao acidente de carro que matou os pais” com “a aluna popular e rica que passava as férias na Europa com o lado italiano da família”. E nenhuma dessas versões da era, de fato, a namorada oficial de DK, porque de tanto sentar perto, ele e eu acabamos desenvolvendo uma sólida amizade no lugar de um romance.
Mas eu estaria mentindo se dissesse que ele não me causava mais as borboletinhas do nosso primeiro beijo. Especialmente porque ele tinha ficado muito mais bonito desde então.
E muito mais alto.
Muito mais encorpado.
Mas muito mais irritante.
Estávamos no período de exames admissionais para a faculdade e o pânico era geral, mas eu me sentia ainda mais perdida que o resto dos alunos por não ter certeza de qual curso escolher. Sabia para que universidade eu queria ir, a Saint Peter, sonho que eu dividia com a Marie Bee desde que conhecemos o campus numa excursão escolar anos atrás, mas ainda tinha dúvidas sobre o que queria estudar lá. Meu avô, Alfred, nutria esperanças de que eu enveredasse pela Administração para cuidar do conglomerado industrial da nossa família, um verdadeiro império de máquinas e fumaça que nunca me despertou muito interesse. Minha melhor amiga, metódica e maníaca por controle, tinha os próximos dez anos da vida dela milimetricamente planejados em post-its com metas espalhadas pelo quarto. E até mesmo Seokmin, astro do esporte, já tinha sua vaga quase garantida para explorar uma paixão que destoava da figura famosinha e descolada que ele era: Química, especificamente as misturas para fármacos. Todo mundo sabia o que fazer: Marie Bee seria doutora em Psicologia, Seokmin faria carreira na Lee Pharm Labs e eu... Eu provavelmente morreria asfixiada num escritório cinza da Chevalier Industries.
Era como se eu não coubesse em lugar nenhum.
Por isso eu, com meus quase 18 anos, tentava estar em todos. Festas, jogos, viagens, qualquer que fosse a social, eu estava lá. Gostava de me cercar de gente e de barulho para me distrair do oco dolorido que pungia no meu peito e não me deixava sequer tomar uma decisão sobre o meu futuro — talvez por eu quase não ter tido um. Talvez por, lá no fundo, eu querer ter interrompido tragicamente a minha existência junto com a do meus pais.
Henry Chevalier, meu pai, era um cara de gostos simples. Até ele conhecer minha mãe, o furacão Cassie. Ela era enérgica, solar, uma fagulha que rapidamente se espalhava por onde quer que passasse. Tudo era dela, e ela ocupou brilhantemente todos os espaços, todos os dias e todo o amor da vida do meu pai. “Maré intensa quebrando numa praia calma”, era assim que meu avô sempre me falava dos dois. O pouco que eu me lembrava dos cinco anos que me deixaram viver perto deles era que papai andava sempre com um livro e mamãe tinha uma fivela linda de madrepérola. Linda feito ela. E que eles eram doces e me abraçavam quente.
— Ei! — fui despertada do meu devaneio com uma voz suave. — O sinal já tocou duas vezes. Mais uma e estaremos com problemas. Vamos? — Seokmin me estendeu o braço exposto.
— Não vou sentar perto de você hoje, Lee. — recusei a gentileza e juntei as folhas no meu fichário, incluindo a resenha que a Senhora Henderson havia pedido para a aula de Literatura. — Suas gracinhas me desconcentram e eu preciso prestar atenção nessa aula.
— E eu preciso disso aqui. — Seokmin puxou meu texto manuscrito. — Eu esqueci de fazer esse dever de casa e a Senhora Henderson é fã das coisas que você escreve. Se eu tirar seu nome e colocar o meu, tenho um A garantido.
— Inferno, Seo! — praguejei no meio do corredor quase vazio. — Me devolve!
— Vem pegar. — ele piscou, galante. Lá vinha o exército de formiguinhas outra vez. Maldito zoológico de Lee Seokmin.
— Quer saber, fica com ele. — dei de ombros e articulei um blefe, pegando um envelope sem nada dentro. Sempre havia desses no meu armário porque eu adorava deixar cartinhas para Marie. — Eu fico com isso aqui.
— E o que que tem aí? — ele empalideceu levemente, curioso.
— Digamos que quando eu estava testando os meus produtos de skin care no seu lindo rosto e você estava bem à vontade no meu roupão rosa eu tenha tirado uma foto sua. Ficou tão boa que eu imprimi e guardei aqui... — balancei a falsa prova antes de guardá-la dentro de um livro.
Seokmin era uma presença constante na minha casa, para desespero do meu avô e, especialmente, da nossa governanta, Dorota. Muitas vezes viramos as noites assistindo filmes e muitas vezes mais fomos pegos não assistindo. A língua de Seo sempre ia parar dentro da minha boca entre uma cena e outra e Dorota ameaçava nos acertar com um balde de água gelada quando os amassos no sofá ficavam arriscados demais. A vigilância dobrou desde que a notícia sobre a minha primeira vez ter rolado com um belo rapaz italiano nas minhas férias anuais em Florença espalhou-se, mas Seo e eu nunca saímos dos beijos. E se só os beijos já eram gostosos daquele jeito, então...
— Você não fez isso. — ele desdenhou, deixando um círculo nos lábios e me chamando à realidade novamente.
— Não fiz? — cutuquei o sinal que ele tinha perto da bochecha.
— Vamos trocar. — ele sugeriu, levantando a folha. — Ao mesmo tempo.
Seokmin juntou o cenho e estendeu meu texto em rendição, enquanto eu lhe entregava meu livro de Matemática com nada mais que equações entre as páginas. Queria ver a cara que ele ia fazer quando achasse o envelope sem conteúdo algum, mas o Inspetor Jones já estava caminhando em nossa direção pronto para nos prescrever uma advertência e nós dois arrancamos para a sala de aula antes que o encurvado senhor nos alcançasse.
Dediquei toda a minha atenção à aula porque era dia de uma das minhas atividades preferidas: a senhora Henderson nos separava em duplas e tínhamos que trocar nossas redações, sugerindo melhorias no texto do colega, algo que ela chamava de revisão em pares. Enquanto a maioria dos alunos aproveitava a ocasião para conversar sobre assuntos que não conjugações verbais e gramática, eu vasculhava a redação da minha dupla, estudando-a, entendendo-a, reescrevendo-a para ficar irretocável. A professora já havia notado minha empolgação e mencionado que eu fazia intervenções muito pertinentes, mas, mesmo compenetrada na minha tarefa, eu tirei um tempo para observar Seokmin perplexo no fundo da sala, revirando o envelope em branco e apoiando o queixo no punho cerrado.
— O que você fez com ele? — Marie Bee apontou Seo por cima do ombro e encostou a carteira dela na minha quando terminou a atividade.
— Contei uma mentirinha para perturbá-lo. — confessei.
— Coitado, . — Marie me repreendeu. — Ele já está todo tristonga com ciúmes do seu Florença lá. Como é mesmo o nome dele?
— Pietro. — respondi depressa. — Pietro Bianchi.
— Pietro... — Marie repetiu, estranhando. — Engraçado, eu podia jurar que você tinha me dito outro nom-
— Eu tenho que ir. — dei um beijo na bochecha de Marie quando o sinal disparou, interrompendo-a. — Te ligo mais tarde, OK?
As demais aulas passaram rapidamente e a última do dia aconteceu em um dos laboratórios, sem a presença de DK e seu time, dispensados para um treino extraordinário por causa do final da temporada. Era a época em que os olheiros da faculdade começavam a passear pelas escolas para ver de perto os jogadores que se destacaram e Seokmin estava na mira de um deles. Ao final do sexto tempo, passei pelo campo e vi que a prática dos West Warriors já tinha acabado, então peguei o túnel entre as arquibancadas e fui decidida até o vestiário.
— Que cheiro de macho! — resmunguei ao entrar, vendando os olhos e ouvindo a algazarra causada por uma presença feminina ali. — Podem parar de gritar, eu não sou nenhum alienígena, OK? Agora me levem até o seu líder.
— ? — reconheci a voz de Seo.
— Ah, você está aí. — tirei as mãos dos olhos e me vi cercada por um time inteiro, peito, perna e hormônio para tudo quanto era lado. Alguns se escondiam atrás das roupas, outros, só de cueca, me mediam de cima a baixo, mas nenhum sequer chegava perto porque Seokmin ameaçava todos com um olhar estreito.
— Circulando, moças! — o capitão DK ordenou aos companheiros e bateu palmas.
Os rapazes foram ficando decentes e saindo um a um, trocando gracinhas e soltando piadas idiotas para as quais eu apenas rolava os olhos. Eu sabia que minha reputação mudaria depois que Victoria Evans — sempre ela — ventilou a história sobre Pietro pelos corredores, mas, mesmo que Seokmin e eu não fôssemos um casal e nos considerássemos apenas “amigos coloridos”, ele não tinha aceitado a minha primeira vez muito bem e trincava o queixo sempre que tocavam no nome do dito italiano na frente dele.
— Você percebeu que esse vestiário é só para meninos, não é? — ele girou os dedos, abrangendo o ambiente, e eu me dei conta de que ele estava pingando do banho e com uma toalha enrolada na cintura. E a toalha descia perigosamente cada vez que ele se mexia.
— Você tem o meu livro. Eu preciso dele. — avisei. Precisava ser rápida ou as entradas dele aparecendo bagunçariam todas as palavras na minha cabeça.
— E você disse que tinha uma foto comprometedora minha. — ele pôs as mãos nos quadris, evidenciando a cintura fina. — E não tinha nada além de um envelope vazio.
— Pois é. Eu menti.
— Seu nariz vai crescer. — ele apertou a pontinha da cartilagem e se aproximou.
— O que você está fazendo? — perguntei quando ele passou o braço forte e definido ao lado da minha cabeça, apoiando-o no armário.
— Estou tentando pegar o seu livro. — o corpo amornado do banho chegou mais perto do meu e eu senti um cheiro gostoso de xampu e sabonete. — Ou não foi por causa dele que você invadiu o vestiário masculino?
— Que outro motivo eu teria? Não gosto de você tanto assim. — tentei fingir indiferença ao peitoral e abdômen musculoso a centímetros de mim.
— Sempre cheia de mentirinhas para mim, Chevalier. — ele sussurrou, ainda me mantendo contra o metal. — Desde o beijo na casa na árvore. — ele abriu um meio sorriso e eu bati outra vez no armário, sem saída.
— Que beijo? — quis me mover, mas já era tarde. — Aquele beijo nunca aconteceu.
— E esse aqui?
Seokmin puxou minha cintura e eu senti o gelado da corrente de prata contra o meu colo me enfraquecer as pernas. Nossos lábios se encostaram minimamente e ele me provocou, raspando pela minha boca enquanto sorria. Ele sorria o tempo todo e aquilo me deixava maluca. Tão maluca quanto a língua dele se enrolando na minha.
— Eu fiquei bem melhor nisso, não foi? — ele murmurou dengoso, partindo o beijo.
— Foi. E eu te odeio. — bufei.
— Você tem que parar de mentir para mim, . — ele me selou. — Um sorriso só e eu quebro você.
O pior de tudo era que ele não estava errado.
Cheguei da escola faminta, seguindo o cheiro delicioso que vinha da cozinha. Dory comandava a operação almoço com um rigor quase militar, como ela fazia em todas as refeições. Era bonito o empenho dela em cuidar da nossa casa, que, depois de tanto tempo, era como se fosse dela também. Dorota Williams era a referência mais próxima que eu tinha de mãe, ela e Marie Bee sabiam meus segredos mais íntimos, que, na verdade, nem eram tantos assim. O único segredo que eu tinha no momento era uma ideia fixa de falar com meu avô. Uma ideia que começou a se remexer timidamente no fundo da minha cabeça e foi crescendo, crescendo, até tomar corpo e eu finalmente criar coragem para verbalizar.
— Nonno, me deixa ir pra Florença? — beijei a cabeça grisalha. Meu avô estava com seus quase sessenta muito bem vividos e continuava parecendo um galã europeu.
— Você sempre vai, piccolina. — ele arrumou o guardanapo no colo e me chamou de “pequena” em italiano. Como eu sempre seria aos olhos dele.
— Para ficar 15 dias. — dei a volta e sentei de frente para ele na mesa. — Eu quero ficar mais tempo.
— Quanto tempo? — ele deu a primeira garfada no macarrão ao sugo.
— Um ano.
— ... um ano? Nem pensar.
— Vovô, por favor. — afastei meu prato. — Eu quero estudar italiano.
— Estude aqui. Eu não posso ficar tanto tempo longe de você. — ele negou com a cabeça.
— Então vá me visitar. — arqueei uma sobrancelha. — Aposto que a nonna Antoniella está com saudades.
Meu avô meneou a cabeça outra vez. Ele e minha avó casaram novinhos e vieram para Nova York fazer a vida. E fizeram. Construíram seu negócio, tiveram um filho. Perderam o filho. E se perderam um do outro com isso. A dor rachou o relacionamento dos dois e minha avó não suportou, precisou voltar para a Itália, para junto da família e das raízes. Nonno quis ficar e eu, como não podia querer coisa alguma por ser pequena, fiquei com ele quando ambos optaram pelo divórcio e decidiram que não seria uma boa ideia me levar para um país de língua, costumes e pessoas desconhecidas para mim. Mas eu sentia, de uns tempos para cá, uma estranha vontade de abraçar minha origem italiana.
— E a faculdade, hã? — meu avô procurou por água entre a mesa posta por Dorota.
— Eu vou saber o que fazer quando voltar. — garanti, resoluta. — A resposta está lá, eu sei.
Capítulo 2 – A armadilha de veludo e as borboletinhas
Convencer meu avô foi a parte mais fácil. Nonna Antoniella ficou radiante de felicidade quando os dois conversaram por telefone para acertar todos os detalhes e ficou decidido que eu partiria em dois meses, logo após a formatura. A parte difícil viria em breve, quando eu contasse para a minha melhor amiga que o primeiro ano dela na Saint Peter seria sem mim. Me joguei na minha cama, pensando em uma maneira de dar a notícia para Marie Bee sem fazê-la ter um siricutico e achei que deveria escrever uma carta.
É. Era isso. Eu sempre me expressei melhor escrevendo.
Procurei um dos papéis com cheiro que eu guardava na escrivaninha e usei tinta rosa para explicar para a minha destinatária o motivo da minha decisão. Agora eu só precisava de um envelope e, por sorte, havia um dentro do livro de Matemática, resultado da minha pegadinha com Seokmin mais cedo. Apanhei o envelope estranhando a espessura mais grossa e constatando que, ao contrário de como eu o tinha entregado a Seo, ele agora estava preenchido. O conteúdo eram dois convites para o baile de formatura, os tickets timbrados da West High com o tema Noite Inesquecível e, entre eles, um bilhete manuscrito:
“Vá até a janela. Seo.”
Já faziam algumas horas que eu tinha chegado da escola, por isso, inicialmente, não dei muito crédito à mensagem. Meu primeiro pensamento foi ligar para Seokmin e perguntar que espécie de convite para o baile era aquele. E depois dizer não, é claro. Ele teria que fazer muito mais que esconder os tickets em um dos meus livros se quisesse que eu aceitasse. De qualquer forma, caminhei até a janela e afastei as cortinas, sem acreditar na visão que eu tive.
— Finalmente, hein, princesa da torre? — Seokmin agitou os braços. Estava vestido completamente de branco, até os sapatos. — Eu achei que ia ficar aqui fora pra sempre!
— O que raios você está fazendo aí, seu artilheiro maluco? — gritei da janela. — Aliás, que acampamento é esse na porta da minha casa? — reparei que ele estava acompanhado de outros dois garotos do time, também trajados de branco, mas um deles estava de regata e um chapéu.
Questionáveis. Figurinos totalmente questionáveis.
— Eu tô te chamando para o baile em grande estilo! Fique quietinha e aprecie, OK? — Seokmin largou o sorriso, fácil, como sempre, e fez um sinal para um dos bocós abrir a mala do carro dele, que tinha caixas de som enormes no bagageiro.
Reconheci a música assim que ela começou. Aquele primeiro dedilhar do violão era inconfundível e o que veio a seguir era mais ainda:
— Yeah-ah... You are my fire, the one desire... — a voz de Seokmin ecoou pelo jardim na frente da minha janela.
Sorri involuntariamente. Não podia dizer que eu não esperava um convite fofo de Seo, mas eu definitivamente não esperava uma serenata na porta da minha casa com direito a I Want It That Way do Backstreet Boys. Coisa que eu teria achado incrivelmente romântica, não fosse o fato de que ele e os três patetas tinham — ou pensavam que tinham — uma coreografia.
— Tell me why ain’t nothing but a heartache, tell me why- Porra, Bruce! Não foi assim que a gente ensaiou! — Seo estava prestes a socar o amigo quando a ponte recomeçou e ele voltou a “dançar”. — I never wanna hear you say I want it that way...
Eu estava no meio de uma gargalhada quando Dorota entrou no meu quarto e, sem forças, apenas apontei a direção do espetáculo. Apoiei as duas mãos no ombro dela, que julgava silenciosamente a performance, a todo instante interrompida por um passo errado e Seokmin resmungando com seus companheiros de banda. A coisa toda estava uma verdadeira pataquada, mas ainda assim a voz de Seo era linda e conseguia acordar as minhas borboletinhas do estômago.
— No matter the distance, I want you to know... — o vocalista principal cerrou os olhos por causa do sol, focando a vista para onde estávamos. — Dorinha! Você veio ver meu grande final!
A música estava prestes a atingir seu ápice no coro para o último refrão quando Seokmin ajoelhou-se no chão e soltou a nota alta limpa e perfeitamente. Não tive tempo para me impressionar com o agudo emocionante porque ele rasgou a camisa na sequência e começou a fazer body rolls bem na minha grama.
Informação demais.
Dorota apavorou-se e afundou o rosto nas mãos pequenas, repetindo para si: “esse menino não respeita ninguém!”. Abracei-a e decidi acabar com o circo antes que Seokmin ligasse os sprinklers do jardim e fizesse uma dança sensual na chuva.
— Ei! Kevin falsificado! — bradei ainda com Dorota nos meus braços. — O Backstreet Boys tem cinco integrantes, sabia?
— Eu sei, mas eu só consegui dois idiotas. — nu da cintura para cima, Seo apontou os amigos. — Três comigo! Eu sou apenas um idiota querendo levar a garota mais incrível do West High para o baile, Chevalier!
— Eu aceito ir ao baile com você, Idiota Lee. — concordei, completamente derretida pelo sorriso que não se apagava.
— Mas já? — ele rebateu, indignado. — Nós preparamos um show de 1h45min!
— Dispensa esses projetos de AJ e Nick Carter e sobe logo aqui! — convidei. — A Dory faz um lanche pra gente, não é, Dory?
— Manda ele se vestir primeiro! — Dorota implorou, apertando minha cintura.
— Gostou do que viu, Dorotinha? — Seo piscou e continuou rebolando. Ele gostava de flertar com Dorota para infernizá-la e dizia que eu era apenas um pretexto para estar perto dela, o seu verdadeiro amor. — Há quanto tempo você não lava roupa num desses, hein?
Seo livrou-se da camisa partida ao meio e começou a cantarolar o nome de Dorota, exibindo seu tanquinho. Eu e ela, em contrapartida, entramos em desespero tentando avisar ao engraçadinho que meu avô estava saindo para trabalhar e o encarava mortalmente, segurando sua pasta de trabalho na frente do corpo. Num rápido e ágil movimento, no entanto, a pasta pesada foi parar na cabeça de Seokmin.
— Cai fora da minha grama, seu tarado! — meu avô gritou, expulsando os garotos. — Eu vou chamar a segurança pra vocês! Na próxima, eu solto os cachorros, ouviram?
***
Naquela tarde, fui até a casa dos Bee contar para Marie sobre o convite espalhafatoso de Seokmin e, claro, entregar a tal carta. Ela lia, relia, concordava com o papel, discordava logo em seguida, mas não falava nada. Um tempo depois, ela resolveu se manifestar, explodindo em protestos:
— Não! — Marie apertou a carta contra o colchão e começou a andar nervosamente pelo próprio quarto. — Não! Não! Não! — ela repetia batendo o pé.
Sentei na cama e agarrei uma das almofadas, esperando que ela gastasse parte da energia ansiosa naquele sapateado todo. Ela passava as mãos pelos cabelos loiros e ameaçava roer as unhas, ensaiando vários movimentos e não completando nenhum. Por fim, ela caminhou até a mesa de estudos e arrancou um dos post-its do seu memory board.
— Não foi isso o que eu planejei! — ela balançava a nota adesiva na minha cara. — Está aqui, “ir para a Saint Peter com a ”. De caneta! Permanente! Isso não está sujeito a mudanças, !
— Você pode trocar por “fazer novos amigos enquanto a estiver fora”. — sugeri, assistindo o rosto dela mudar de cor. Marie Bee era tão pequena que parecia que só cabia um sentimento de cada vez nela.
— Claro. Porque os nerds geralmente são ótimos em fazer amigos. Onde eu conheceria alguém? Na biblioteca? — ela zombou.
— Amiga... — segurei os ombros dela. — Você vai ficar bem. Você planejou tudo. Eu não tenho nada, Marie Bee. Nenhuma ideia. Se imagine sem os seus post-its e você vai entender por que eu preciso ir.
Marie encarou seus planos na parede e fez uma cara de quem estava recalculando rota. Ela não reagia muito bem quando as coisas não saíam como ela tinha pensado e eu tentava tirá-la um pouco da sua zona de segurança, o que era, no mínimo, irônico, uma vez que o pai dela era dono de uma empresa de segurança privada. Meu avô pedia por um guarda-costas para mim sempre que encontrava o senhor Bee e eu morria de medo que ele cumprisse a promessa que ele repetia quando eu chegava tarde de alguma festa. Minha melhor amiga, por outro lado, morria de medo de se desviar do seu cronograma.
— Você vai estar aqui para o baile? — ela suspirou, vencida. — Eu não quero ir, mas já que você vai ficar tanto tempo fora, nós poderíamos... como é que você diz? — ela limpou a garganta para me imitar e repetir o conselho que eu dava a ela. — Nos divertir.
— Óbvio. Eu não posso perder a chance de te obrigar a usar maquiagem e um vestidão. — respondi e Marie me encarou quando terminou de rolar os olhos.
— ... Você vai voltar, não vai?
Entendi o motivo da pergunta e tentei minha expressão mais serena para tranquilizá-la. Assim como eu, Marie tinha crescido longe da mãe, não por uma fatalidade do destino, mas por uma decisão da própria de ir embora e deixar a família. Uma mãe que foi tirada e outra que escolheu, deliberadamente, partir. Era uma espécie de trauma em comum que nos aproximou a ponto de sermos como irmãs. Marie era “o meu lado bom” da tragédia.
— Claro que eu vou. — assenti, querendo encerrar o assunto. Sabia que ela não ficava muito confortável demonstrando seus sentimentos. — Sabe por quê? You and me got a whole lot of history!
— Doida. — ela me cortou, mas estava rindo. — Anda, vamos pirulitar vendo vídeos de boy groups.
***
A noite do baile chegou rápido e havia um gosto agridoce de despedida. Até o tal azul serenity do meu vestido dava um tom de nostalgia ao evento. O busto era um corset que me fez pensar pela primeira vez que eu tinha uns seios bem bonitos que eu não sabia quando tinham crescido, e as mangas de tule caíam pelos meus ombros, drapeadas tal qual a saia longa e esvoaçante. Eu estava parecendo a Cinderela, exceto pelo fato de que eu não era loira e não planejava perder um salto. Até porque, por baixo de todo aquele pano, meus pés estavam confortavelmente calçados pelo meu Converse preto.
— Dorota! — chamei, agarrando impaciente o comprimento da saia para tentar descer as escadas. — Para de chorar e me ajuda aqui. É só um baile de formatura, não o dia do meu casamento!
— Nem fala nisso, ! Nem fala que só de pensar eu... — Dory começou a soluçar e eu ri da minha “mãevernanta” e sua crise de choro enquanto descia os degraus.
— Leve-a direto para o baile e do baile direto para cá. — ouvi meu avô fazer suas recomendações ao Seokmin de smoking que me esperava lá embaixo. — Nada de beijo, nada de toque. Sem pensar em beijo, sem pensar em toque. Quando estiver com caraminholas na cabeça, lembre-se de que eu sou um excelente atirador por causa da caça esportiva. Estamos entendidos?
Seo não respondeu porque parecia ter esquecido como se falava inglês. Os seus olhos apertados estavam vidrados em mim e eu percebi sua respiração desacertada, talvez por estar todo amarrado no traje de gala e não nas suas confortáveis e reveladoras regatas cavadas. Ou talvez porque eu estivesse mesmo bonita demais, o que, convenhamos, eu estava.
— Pronto para ir ou o velho te assustou? — apoiei o indicador no queixo dele, fazendo-o fechar a boca.
— Eu não prestei atenção em nada do que ele disse. — Seokmin confessou e meu avô arfou, sisudo. — Você está linda demais, .
— Eu sei. Agora vamos buscar a Marie Bee antes que ela desista. — tomei a mão dele e nos forcei a sair da sala, me despedindo de nonno e Dorota.
— Até mais, senhor Chevalier... — Seo cumprimentou, resignando-se. Quando meu avô deu as costas, ele abraçou Dorota por trás e lançou a provocação de costume. — Se você quiser, é só me ligar que eu largo ela e venho correndo, Dorinha.
Seokmin foi estapeado em resposta e ainda estava gargalhando quando entramos no carro. Aquela foi, possivelmente, a noite mais divertida da minha vida. Quando chegamos ao ginásio lindo e decorado do West High, o DJ atendeu a todos os nossos pedidos e foram necessárias duas ou três rodadas de One Direction e Backstreet Boys para obrigar Marie Bee e eu a nos sentarmos num canto do chão da quadra, esbaforidas. A pista de dança foi ficando menos frenética aos poucos e observamos os grupos de amigos serem substituídos pelos casais dançando suas músicas lentas enquanto nos refrescamos com uma bebida. Virei quase de uma vez só um ponche que estava gostoso e doce.
— Senhorita Chevalier... — uma mão se estendeu na minha direção.
Por falar em gostoso e doce...
— Pois não, senhor Lee?
— Me concede essa dança? — ele forçou um grave na voz.
— Credo. — Marie ralhou. — Parem de cafonice e vão logo. — ela me incentivou a aceitar o convite.
Me encaixei no abraço de Seokmin, a altura perfeita dos nossos corpos me permitia deitar a cabeça no seu peito e aspirar o cheiro fresco, especiado e quente dele. Não sabia se um aroma podia ser quente, mas tudo sobre o Seo era. Respirei fundo, tentando acalmar o calor que se formava abaixo da minha barriga, e me concentrei no som da música, interrompido apenas pelos cochichos dos olhos curiosos e invejosos em nós. O capitão do time de futebol tinha, enfim, tirado alguém para dançar e, entre as muitas que desejavam aquele posto, era eu que estava aninhada no pescoço dele.
— ... — a voz derramou feito mel nos meus ouvidos. — O que nós somos?
— Amigos que se beijam? — respondi tão natural quanto aquela nossa relação.
— É o que nós vamos continuar sendo quando você voltar das suas férias?
Meu estômago, que estava queimando a pouco, esfriou em antecipação. Seo não sabia que eu planejava ficar muito mais tempo em Florença dessa vez. Não éramos namorados, não pretendíamos ser, mas isso não impedia que ele fosse uma parte importante da minha vida. Uma parte que, mesmo que fosse só por um ano, era difícil deixar para trás.
— O olheiro da Saint Peter ligou. — ele continuou sussurrando no meu ouvido, sem parar de nos balançar. — Você está dançando com o mais novo calouro da Química.
— Ninguém vai te tratar como calouro, DK. — estreitei o abraço. — Você já vai chegar sendo cobiçado por alguma fraternidade. E por todas as garotas.
— E você, ? — ele procurou meus olhos. — Você já sabe o que fazer?
E então eu me dei conta de que, pela primeira vez em muito tempo, eu sabia sim o que eu queria fazer. Não sobre aquele futuro incerto e assustador diante de mim, não. Eu sabia o que eu queria fazer naquele momento. Mais do que isso, eu sabia com quem eu queria fazer naquele momento.
— A gente pode falar sobre isso em... outro lugar? — pedi, apertando a nuca dele.
— Você quer ir lá fora? — ele pausou a dança. — Está garoando um pouco, mas se eu te der meu paletó...
— Sua casa, Seo. — disparei. — Me leve até a sua casa.
Podia jurar que vi um relance de inocência naqueles olhos sempre tão perigosos para mim. Seokmin hesitou por um instante, parecendo inseguro, uma reação no mínimo controversa para um cara popular de 17 anos que morava praticamente sozinho. A matriz da Lee Pharm Labs ficava na Coreia e os pais de Seo viajavam por longos períodos para fazer a vistoria. Por mais que tivéssemos aquele nosso lance, seria ingenuidade minha acreditar que ele nunca tinha convidado alguma (ou algumas) líder de torcida para conhecer a casa de pais ausentes dele.
— Seu avô me proibiu de te levar em qualquer lugar, lembra? — ele fez um carinho no meu rosto.
— E você ouviu?
— Não. — ele sorriu maliciosamente e os olhos voltaram a arder. — Mas vamos terminar a música, OK? Devolvemos a Marie Bee e vamos. — Seokmin me rodopiou no meu eixo e me beijou a boca quando completei a volta.
***
— Valeu pela carona, Troy Bolton. — Marie bagunçou o cabelo de Seokmin antes de descer do banco de trás dele. — E você... — ela se despediu de mim com um beijo na bochecha e uma gracinha que só eu ouvi. — Não engravide, OK?
Repreendi a ideia com força, lembrando de todas as orientações que Dorota me deu quando eu fiz 14 anos e tivemos “a conversa”. Eu não tinha proteção, mas estava certa de que Seo teria, porque ele andava vaidosamente se gabando de guardar várias na carteira.
A casa dos Lee era imensa, muito moderna e bonita. Era um ótimo lugar para as festas de vitória do time e, quando chegamos, eu não perdi tempo e o arrastei sem resistência direto para o quarto. Já sabia o caminho porque Seo sempre “me guardava” lá quando as coisas saíam do controle e os garotos ficavam mais idiotas que o normal, exagerando na bebida e atirando uns aos outros na piscina. Em todas as manhãs em que eu acordei na cama de Lee Seokmin eu estava perfeitamente segura e com todas as roupas. Embora eu pretendesse manter a segurança (afinal, eu estava com um amigo), eu queria muito eliminar a parte das roupas daquela vez.
— Será que você pode me ajudar? — pedi depois de sentar na poltrona de leitura dele, estendendo o meu pé.
Seokmin ajoelhou-se, já descalço, e apoiou meus pés no colo. Mesmo morando nos EUA desde pequeno, ele tinha o costume de nunca entrar de sapatos em casa — coisa que eu sempre esquecia — e mantinha a cama baixa, quase rente ao chão, com lençóis cor de chumbo, escuros como a parede de cabeceira. Era um quarto de asiático, sem dúvida, a organização era rigorosa e a decoração minimalista incluía taças de campeonatos, medalhas de futebol e, por mais incrível que fosse, certificados de Olimpíadas de Química.
— E então, ... — ele colocou meus tênis na porta do quarto depois de tirá-los de mim e encostou-se no painel à minha frente, ainda de pé. — O que você tem pra me dizer que só pode ser dito aqui?
O ar ficou denso nos meus pulmões e minhas costelas reclamaram, não sei se pelo ar rarefeito ou pelo corset apertado. Tudo ardia, parecia febre.
— Seo... — levantei, caminhando até ele lentamente. — Eu vou demorar um pouco mais lá em Florença.
— Um mês? — ele arriscou, arrumando o pingente do meu colar. Qualquer toque dele fazia meu corpo se arrepiar.
— Um ano. — engoli em seco.
— Um ano, ? — Seokmin deu um passo para trás. — Você vai ficar fora por um ano?
— Eu preciso desse tempo para...
— Ei, eu não estou questionando os seus motivos, quaisquer que sejam! — ele começou a arrancar o paletó de si, jogando-o num canto do quarto. — Mas um ano é muito tempo e com certeza você não decidiu isso do dia para a noite. Por que escolheu me contar só agora?
— Porque...
Eu queria dar alguma explicação, mas meu cérebro não conseguia se concentrar em nada a não ser nos dedos finos de Seokmin desabotoando o punho da camisa e dobrando as mangas. Tinha uma certa raiva nos movimentos e, quando ele terminou de folgar os braços e passou para o colarinho, as veias saltadas no pescoço longo foram o alvo da minha atenção. Aquela curva tinha um cheiro envolvente e o tecido delicado marcava o peitoral todo depois que ele abriu três botões. Era difícil pensar em qualquer coisa que não me enroscar naquele corpo maravilhoso, mas eu precisava, ao menos uma vez, dizer a verdade para Seo.
— Porque eu não sei me despedir de você, Lee Seokmin. — falei, simplesmente. — Porque pensar em ficar longe de você me faz não querer ir!
O rapaz consternado piscou várias vezes, respirando alto. A boca carnuda e perfeitamente delineada contraía-se nervosamente enquanto ele tentava assimilar a informação que eu joguei nele sem preparo algum e eu só tinha vontade de beijá-lo. Beijá-lo sem parar, os quinze dias que me restavam antes de partir. Por fim, ele colocou o cabelo para trás, tirando a franja da testa e murmurou alguma coisa em coreano.
— Fale numa língua que eu entenda, Seo. — franzi o cenho num pedido por tradução.
— Essa é a única língua que você precisa entender.
Passou-se uma fração de segundo. Seokmin me puxou impetuosamente para si e me sugou um beijo desesperado, afoito, e delicioso. Meu penteado soltou pelo atrito gostoso da mão dele nos fios e a outra desceu perigosamente pela curva da minha lombar. Mordi o lábio inferior dele, acariciando as costas largas e sentindo uma marola morna no meu ventre baixo, que virou uma onda violenta quando Seo apertou a minha bunda.
Entrei em curto-circuito. Estávamos sozinhos, as coisas estavam esquentando, tinha uma cama bem ali...
— Seo... — o nome dele fugiu da minha boca, arrastado.
— Desculpa. — ele sussurrou, assustado, e recolheu a mão. — Eu não quis ofender você.
Não tinha ofendido. Aquele era o problema.
— Não é isso. É que eu... — gelei apesar do calor do corpo dele sobre o meu. Eu tinha mais uma confissão a fazer e era melhor que fosse logo, porque em breve ele descobriria de uma forma ou de outra. — Eu nunca fiz isso antes, Seo. Eu não sei como é. Todo mundo pensa que eu já, mas eu nunca...
Seokmin sorriu um tanto aliviado, enterrando o rosto no meu cabelo e pescoço. Me deu um beijo demorado na testa e brincou pela minha tez com o nariz afilado.
— Não se preocupe com isso, . Eu já sabia.
— Sabia como?
— Eu também nunca fiz. — ele balançou a cabeça negativamente e o rosto lindo ganhou um rubor, o sorriso labial enrugando os olhos dele.
Era difícil acreditar, mas, por outro lado, não havia razão para que ele mentisse sobre o assunto. Não era como se ele estivesse tentando me enganar para me levar para a cama, eu já estava sujeita a essa ideia há muito tempo. Ele não precisava me impressionar ou me convencer. Estava na hora. Eu queria.
— Você parece surpresa. — ele me selou.
— É porque eu estou. Você é o DK! O capitão do time! O sonho de metade das garotas do West High! — cutuquei o sinalzinho que o sorriso tímido evidenciou. — Se você nunca fez, por que deixa todo mundo pensar que sim?
— Pelo mesmo motivo que você. Pra ninguém me encher o saco me cobrando uma primeira vez. — ele deu de ombros. — A escola toda acha que eu sou um garanhão e que esse quarto é minha armadilha de veludo, mas a verdade é que as pessoas não sabem nada sobre mim, . — ele pôs a minha mão no peito dele, me deixando sentir o coração acelerado. — Esse compasso todo errado parece o de um cara que já fez isso um monte de vezes? Esse cara aqui, o Lee Seokmin... Esse cara só você tem.
Encarei aquele rosto bonito, contornando todos os traços perfeitos, dignos de um príncipe. A revelação de Seo me deixou mais relaxada e ainda mais certa da minha decisão de me entregar a ele. Urgentemente. Meu útero estava dando piruetas e minhas entranhas já estavam se torcendo, ansiosas por sentir algo que eu ainda não sabia o que era, mas que só ele poderia me dar.
— Eu quero muito você agora, Seo. — anunciei baixinho. — De um jeito que eu nunca quis ninguém antes.
— Eu também. Eu não posso esperar um ano inteiro até você voltar, . — Seokmin colou nossos corpos e desenhou as linhas dos meus lábios. — Não sei ao certo como vamos fazer isso, mas acho que o meu corpo sabe. — ele ajeitou nosso encaixe e eu senti uma coisa dura contra a minha coxa. — E o seu também. Ou não haveria esse calor gostoso emanando de você.
— E então? — perguntei, nervosa. — Nós vamos descobrir juntos?
Seokmin deslizou pela minha cintura e só o toque macio dele por cima do tecido já me fez ter sensações que eram totalmente novas para mim. Não eram mais só as borboletas ou o exército de formiguinhas, era uma necessidade intensa que corria nas minhas veias e pulsava em partes do meu corpo que nunca tinham pulsado até então. Eu estava enfraquecida a ponto de o vestido pesar, mas felizmente Seo achou o zíper lateral no meio de mais um beijo e começou a descê-lo lentamente, me livrando da peça e revelando a minha pele virgem.
— Nós vamos descobrir juntos. — ele prometeu na minha boca.
É. Era isso. Eu sempre me expressei melhor escrevendo.
Procurei um dos papéis com cheiro que eu guardava na escrivaninha e usei tinta rosa para explicar para a minha destinatária o motivo da minha decisão. Agora eu só precisava de um envelope e, por sorte, havia um dentro do livro de Matemática, resultado da minha pegadinha com Seokmin mais cedo. Apanhei o envelope estranhando a espessura mais grossa e constatando que, ao contrário de como eu o tinha entregado a Seo, ele agora estava preenchido. O conteúdo eram dois convites para o baile de formatura, os tickets timbrados da West High com o tema Noite Inesquecível e, entre eles, um bilhete manuscrito:
Já faziam algumas horas que eu tinha chegado da escola, por isso, inicialmente, não dei muito crédito à mensagem. Meu primeiro pensamento foi ligar para Seokmin e perguntar que espécie de convite para o baile era aquele. E depois dizer não, é claro. Ele teria que fazer muito mais que esconder os tickets em um dos meus livros se quisesse que eu aceitasse. De qualquer forma, caminhei até a janela e afastei as cortinas, sem acreditar na visão que eu tive.
— Finalmente, hein, princesa da torre? — Seokmin agitou os braços. Estava vestido completamente de branco, até os sapatos. — Eu achei que ia ficar aqui fora pra sempre!
— O que raios você está fazendo aí, seu artilheiro maluco? — gritei da janela. — Aliás, que acampamento é esse na porta da minha casa? — reparei que ele estava acompanhado de outros dois garotos do time, também trajados de branco, mas um deles estava de regata e um chapéu.
Questionáveis. Figurinos totalmente questionáveis.
— Eu tô te chamando para o baile em grande estilo! Fique quietinha e aprecie, OK? — Seokmin largou o sorriso, fácil, como sempre, e fez um sinal para um dos bocós abrir a mala do carro dele, que tinha caixas de som enormes no bagageiro.
Reconheci a música assim que ela começou. Aquele primeiro dedilhar do violão era inconfundível e o que veio a seguir era mais ainda:
— Yeah-ah... You are my fire, the one desire... — a voz de Seokmin ecoou pelo jardim na frente da minha janela.
Sorri involuntariamente. Não podia dizer que eu não esperava um convite fofo de Seo, mas eu definitivamente não esperava uma serenata na porta da minha casa com direito a I Want It That Way do Backstreet Boys. Coisa que eu teria achado incrivelmente romântica, não fosse o fato de que ele e os três patetas tinham — ou pensavam que tinham — uma coreografia.
— Tell me why ain’t nothing but a heartache, tell me why- Porra, Bruce! Não foi assim que a gente ensaiou! — Seo estava prestes a socar o amigo quando a ponte recomeçou e ele voltou a “dançar”. — I never wanna hear you say I want it that way...
Eu estava no meio de uma gargalhada quando Dorota entrou no meu quarto e, sem forças, apenas apontei a direção do espetáculo. Apoiei as duas mãos no ombro dela, que julgava silenciosamente a performance, a todo instante interrompida por um passo errado e Seokmin resmungando com seus companheiros de banda. A coisa toda estava uma verdadeira pataquada, mas ainda assim a voz de Seo era linda e conseguia acordar as minhas borboletinhas do estômago.
— No matter the distance, I want you to know... — o vocalista principal cerrou os olhos por causa do sol, focando a vista para onde estávamos. — Dorinha! Você veio ver meu grande final!
A música estava prestes a atingir seu ápice no coro para o último refrão quando Seokmin ajoelhou-se no chão e soltou a nota alta limpa e perfeitamente. Não tive tempo para me impressionar com o agudo emocionante porque ele rasgou a camisa na sequência e começou a fazer body rolls bem na minha grama.
Informação demais.
Dorota apavorou-se e afundou o rosto nas mãos pequenas, repetindo para si: “esse menino não respeita ninguém!”. Abracei-a e decidi acabar com o circo antes que Seokmin ligasse os sprinklers do jardim e fizesse uma dança sensual na chuva.
— Ei! Kevin falsificado! — bradei ainda com Dorota nos meus braços. — O Backstreet Boys tem cinco integrantes, sabia?
— Eu sei, mas eu só consegui dois idiotas. — nu da cintura para cima, Seo apontou os amigos. — Três comigo! Eu sou apenas um idiota querendo levar a garota mais incrível do West High para o baile, Chevalier!
— Eu aceito ir ao baile com você, Idiota Lee. — concordei, completamente derretida pelo sorriso que não se apagava.
— Mas já? — ele rebateu, indignado. — Nós preparamos um show de 1h45min!
— Dispensa esses projetos de AJ e Nick Carter e sobe logo aqui! — convidei. — A Dory faz um lanche pra gente, não é, Dory?
— Manda ele se vestir primeiro! — Dorota implorou, apertando minha cintura.
— Gostou do que viu, Dorotinha? — Seo piscou e continuou rebolando. Ele gostava de flertar com Dorota para infernizá-la e dizia que eu era apenas um pretexto para estar perto dela, o seu verdadeiro amor. — Há quanto tempo você não lava roupa num desses, hein?
Seo livrou-se da camisa partida ao meio e começou a cantarolar o nome de Dorota, exibindo seu tanquinho. Eu e ela, em contrapartida, entramos em desespero tentando avisar ao engraçadinho que meu avô estava saindo para trabalhar e o encarava mortalmente, segurando sua pasta de trabalho na frente do corpo. Num rápido e ágil movimento, no entanto, a pasta pesada foi parar na cabeça de Seokmin.
— Cai fora da minha grama, seu tarado! — meu avô gritou, expulsando os garotos. — Eu vou chamar a segurança pra vocês! Na próxima, eu solto os cachorros, ouviram?
Naquela tarde, fui até a casa dos Bee contar para Marie sobre o convite espalhafatoso de Seokmin e, claro, entregar a tal carta. Ela lia, relia, concordava com o papel, discordava logo em seguida, mas não falava nada. Um tempo depois, ela resolveu se manifestar, explodindo em protestos:
— Não! — Marie apertou a carta contra o colchão e começou a andar nervosamente pelo próprio quarto. — Não! Não! Não! — ela repetia batendo o pé.
Sentei na cama e agarrei uma das almofadas, esperando que ela gastasse parte da energia ansiosa naquele sapateado todo. Ela passava as mãos pelos cabelos loiros e ameaçava roer as unhas, ensaiando vários movimentos e não completando nenhum. Por fim, ela caminhou até a mesa de estudos e arrancou um dos post-its do seu memory board.
— Não foi isso o que eu planejei! — ela balançava a nota adesiva na minha cara. — Está aqui, “ir para a Saint Peter com a ”. De caneta! Permanente! Isso não está sujeito a mudanças, !
— Você pode trocar por “fazer novos amigos enquanto a estiver fora”. — sugeri, assistindo o rosto dela mudar de cor. Marie Bee era tão pequena que parecia que só cabia um sentimento de cada vez nela.
— Claro. Porque os nerds geralmente são ótimos em fazer amigos. Onde eu conheceria alguém? Na biblioteca? — ela zombou.
— Amiga... — segurei os ombros dela. — Você vai ficar bem. Você planejou tudo. Eu não tenho nada, Marie Bee. Nenhuma ideia. Se imagine sem os seus post-its e você vai entender por que eu preciso ir.
Marie encarou seus planos na parede e fez uma cara de quem estava recalculando rota. Ela não reagia muito bem quando as coisas não saíam como ela tinha pensado e eu tentava tirá-la um pouco da sua zona de segurança, o que era, no mínimo, irônico, uma vez que o pai dela era dono de uma empresa de segurança privada. Meu avô pedia por um guarda-costas para mim sempre que encontrava o senhor Bee e eu morria de medo que ele cumprisse a promessa que ele repetia quando eu chegava tarde de alguma festa. Minha melhor amiga, por outro lado, morria de medo de se desviar do seu cronograma.
— Você vai estar aqui para o baile? — ela suspirou, vencida. — Eu não quero ir, mas já que você vai ficar tanto tempo fora, nós poderíamos... como é que você diz? — ela limpou a garganta para me imitar e repetir o conselho que eu dava a ela. — Nos divertir.
— Óbvio. Eu não posso perder a chance de te obrigar a usar maquiagem e um vestidão. — respondi e Marie me encarou quando terminou de rolar os olhos.
— ... Você vai voltar, não vai?
Entendi o motivo da pergunta e tentei minha expressão mais serena para tranquilizá-la. Assim como eu, Marie tinha crescido longe da mãe, não por uma fatalidade do destino, mas por uma decisão da própria de ir embora e deixar a família. Uma mãe que foi tirada e outra que escolheu, deliberadamente, partir. Era uma espécie de trauma em comum que nos aproximou a ponto de sermos como irmãs. Marie era “o meu lado bom” da tragédia.
— Claro que eu vou. — assenti, querendo encerrar o assunto. Sabia que ela não ficava muito confortável demonstrando seus sentimentos. — Sabe por quê? You and me got a whole lot of history!
— Doida. — ela me cortou, mas estava rindo. — Anda, vamos pirulitar vendo vídeos de boy groups.
A noite do baile chegou rápido e havia um gosto agridoce de despedida. Até o tal azul serenity do meu vestido dava um tom de nostalgia ao evento. O busto era um corset que me fez pensar pela primeira vez que eu tinha uns seios bem bonitos que eu não sabia quando tinham crescido, e as mangas de tule caíam pelos meus ombros, drapeadas tal qual a saia longa e esvoaçante. Eu estava parecendo a Cinderela, exceto pelo fato de que eu não era loira e não planejava perder um salto. Até porque, por baixo de todo aquele pano, meus pés estavam confortavelmente calçados pelo meu Converse preto.
— Dorota! — chamei, agarrando impaciente o comprimento da saia para tentar descer as escadas. — Para de chorar e me ajuda aqui. É só um baile de formatura, não o dia do meu casamento!
— Nem fala nisso, ! Nem fala que só de pensar eu... — Dory começou a soluçar e eu ri da minha “mãevernanta” e sua crise de choro enquanto descia os degraus.
— Leve-a direto para o baile e do baile direto para cá. — ouvi meu avô fazer suas recomendações ao Seokmin de smoking que me esperava lá embaixo. — Nada de beijo, nada de toque. Sem pensar em beijo, sem pensar em toque. Quando estiver com caraminholas na cabeça, lembre-se de que eu sou um excelente atirador por causa da caça esportiva. Estamos entendidos?
Seo não respondeu porque parecia ter esquecido como se falava inglês. Os seus olhos apertados estavam vidrados em mim e eu percebi sua respiração desacertada, talvez por estar todo amarrado no traje de gala e não nas suas confortáveis e reveladoras regatas cavadas. Ou talvez porque eu estivesse mesmo bonita demais, o que, convenhamos, eu estava.
— Pronto para ir ou o velho te assustou? — apoiei o indicador no queixo dele, fazendo-o fechar a boca.
— Eu não prestei atenção em nada do que ele disse. — Seokmin confessou e meu avô arfou, sisudo. — Você está linda demais, .
— Eu sei. Agora vamos buscar a Marie Bee antes que ela desista. — tomei a mão dele e nos forcei a sair da sala, me despedindo de nonno e Dorota.
— Até mais, senhor Chevalier... — Seo cumprimentou, resignando-se. Quando meu avô deu as costas, ele abraçou Dorota por trás e lançou a provocação de costume. — Se você quiser, é só me ligar que eu largo ela e venho correndo, Dorinha.
Seokmin foi estapeado em resposta e ainda estava gargalhando quando entramos no carro. Aquela foi, possivelmente, a noite mais divertida da minha vida. Quando chegamos ao ginásio lindo e decorado do West High, o DJ atendeu a todos os nossos pedidos e foram necessárias duas ou três rodadas de One Direction e Backstreet Boys para obrigar Marie Bee e eu a nos sentarmos num canto do chão da quadra, esbaforidas. A pista de dança foi ficando menos frenética aos poucos e observamos os grupos de amigos serem substituídos pelos casais dançando suas músicas lentas enquanto nos refrescamos com uma bebida. Virei quase de uma vez só um ponche que estava gostoso e doce.
— Senhorita Chevalier... — uma mão se estendeu na minha direção.
Por falar em gostoso e doce...
— Pois não, senhor Lee?
— Me concede essa dança? — ele forçou um grave na voz.
— Credo. — Marie ralhou. — Parem de cafonice e vão logo. — ela me incentivou a aceitar o convite.
Me encaixei no abraço de Seokmin, a altura perfeita dos nossos corpos me permitia deitar a cabeça no seu peito e aspirar o cheiro fresco, especiado e quente dele. Não sabia se um aroma podia ser quente, mas tudo sobre o Seo era. Respirei fundo, tentando acalmar o calor que se formava abaixo da minha barriga, e me concentrei no som da música, interrompido apenas pelos cochichos dos olhos curiosos e invejosos em nós. O capitão do time de futebol tinha, enfim, tirado alguém para dançar e, entre as muitas que desejavam aquele posto, era eu que estava aninhada no pescoço dele.
— ... — a voz derramou feito mel nos meus ouvidos. — O que nós somos?
— Amigos que se beijam? — respondi tão natural quanto aquela nossa relação.
— É o que nós vamos continuar sendo quando você voltar das suas férias?
Meu estômago, que estava queimando a pouco, esfriou em antecipação. Seo não sabia que eu planejava ficar muito mais tempo em Florença dessa vez. Não éramos namorados, não pretendíamos ser, mas isso não impedia que ele fosse uma parte importante da minha vida. Uma parte que, mesmo que fosse só por um ano, era difícil deixar para trás.
— O olheiro da Saint Peter ligou. — ele continuou sussurrando no meu ouvido, sem parar de nos balançar. — Você está dançando com o mais novo calouro da Química.
— Ninguém vai te tratar como calouro, DK. — estreitei o abraço. — Você já vai chegar sendo cobiçado por alguma fraternidade. E por todas as garotas.
— E você, ? — ele procurou meus olhos. — Você já sabe o que fazer?
E então eu me dei conta de que, pela primeira vez em muito tempo, eu sabia sim o que eu queria fazer. Não sobre aquele futuro incerto e assustador diante de mim, não. Eu sabia o que eu queria fazer naquele momento. Mais do que isso, eu sabia com quem eu queria fazer naquele momento.
— A gente pode falar sobre isso em... outro lugar? — pedi, apertando a nuca dele.
— Você quer ir lá fora? — ele pausou a dança. — Está garoando um pouco, mas se eu te der meu paletó...
— Sua casa, Seo. — disparei. — Me leve até a sua casa.
Podia jurar que vi um relance de inocência naqueles olhos sempre tão perigosos para mim. Seokmin hesitou por um instante, parecendo inseguro, uma reação no mínimo controversa para um cara popular de 17 anos que morava praticamente sozinho. A matriz da Lee Pharm Labs ficava na Coreia e os pais de Seo viajavam por longos períodos para fazer a vistoria. Por mais que tivéssemos aquele nosso lance, seria ingenuidade minha acreditar que ele nunca tinha convidado alguma (ou algumas) líder de torcida para conhecer a casa de pais ausentes dele.
— Seu avô me proibiu de te levar em qualquer lugar, lembra? — ele fez um carinho no meu rosto.
— E você ouviu?
— Não. — ele sorriu maliciosamente e os olhos voltaram a arder. — Mas vamos terminar a música, OK? Devolvemos a Marie Bee e vamos. — Seokmin me rodopiou no meu eixo e me beijou a boca quando completei a volta.
— Valeu pela carona, Troy Bolton. — Marie bagunçou o cabelo de Seokmin antes de descer do banco de trás dele. — E você... — ela se despediu de mim com um beijo na bochecha e uma gracinha que só eu ouvi. — Não engravide, OK?
Repreendi a ideia com força, lembrando de todas as orientações que Dorota me deu quando eu fiz 14 anos e tivemos “a conversa”. Eu não tinha proteção, mas estava certa de que Seo teria, porque ele andava vaidosamente se gabando de guardar várias na carteira.
A casa dos Lee era imensa, muito moderna e bonita. Era um ótimo lugar para as festas de vitória do time e, quando chegamos, eu não perdi tempo e o arrastei sem resistência direto para o quarto. Já sabia o caminho porque Seo sempre “me guardava” lá quando as coisas saíam do controle e os garotos ficavam mais idiotas que o normal, exagerando na bebida e atirando uns aos outros na piscina. Em todas as manhãs em que eu acordei na cama de Lee Seokmin eu estava perfeitamente segura e com todas as roupas. Embora eu pretendesse manter a segurança (afinal, eu estava com um amigo), eu queria muito eliminar a parte das roupas daquela vez.
— Será que você pode me ajudar? — pedi depois de sentar na poltrona de leitura dele, estendendo o meu pé.
Seokmin ajoelhou-se, já descalço, e apoiou meus pés no colo. Mesmo morando nos EUA desde pequeno, ele tinha o costume de nunca entrar de sapatos em casa — coisa que eu sempre esquecia — e mantinha a cama baixa, quase rente ao chão, com lençóis cor de chumbo, escuros como a parede de cabeceira. Era um quarto de asiático, sem dúvida, a organização era rigorosa e a decoração minimalista incluía taças de campeonatos, medalhas de futebol e, por mais incrível que fosse, certificados de Olimpíadas de Química.
— E então, ... — ele colocou meus tênis na porta do quarto depois de tirá-los de mim e encostou-se no painel à minha frente, ainda de pé. — O que você tem pra me dizer que só pode ser dito aqui?
O ar ficou denso nos meus pulmões e minhas costelas reclamaram, não sei se pelo ar rarefeito ou pelo corset apertado. Tudo ardia, parecia febre.
— Seo... — levantei, caminhando até ele lentamente. — Eu vou demorar um pouco mais lá em Florença.
— Um mês? — ele arriscou, arrumando o pingente do meu colar. Qualquer toque dele fazia meu corpo se arrepiar.
— Um ano. — engoli em seco.
— Um ano, ? — Seokmin deu um passo para trás. — Você vai ficar fora por um ano?
— Eu preciso desse tempo para...
— Ei, eu não estou questionando os seus motivos, quaisquer que sejam! — ele começou a arrancar o paletó de si, jogando-o num canto do quarto. — Mas um ano é muito tempo e com certeza você não decidiu isso do dia para a noite. Por que escolheu me contar só agora?
— Porque...
Eu queria dar alguma explicação, mas meu cérebro não conseguia se concentrar em nada a não ser nos dedos finos de Seokmin desabotoando o punho da camisa e dobrando as mangas. Tinha uma certa raiva nos movimentos e, quando ele terminou de folgar os braços e passou para o colarinho, as veias saltadas no pescoço longo foram o alvo da minha atenção. Aquela curva tinha um cheiro envolvente e o tecido delicado marcava o peitoral todo depois que ele abriu três botões. Era difícil pensar em qualquer coisa que não me enroscar naquele corpo maravilhoso, mas eu precisava, ao menos uma vez, dizer a verdade para Seo.
— Porque eu não sei me despedir de você, Lee Seokmin. — falei, simplesmente. — Porque pensar em ficar longe de você me faz não querer ir!
O rapaz consternado piscou várias vezes, respirando alto. A boca carnuda e perfeitamente delineada contraía-se nervosamente enquanto ele tentava assimilar a informação que eu joguei nele sem preparo algum e eu só tinha vontade de beijá-lo. Beijá-lo sem parar, os quinze dias que me restavam antes de partir. Por fim, ele colocou o cabelo para trás, tirando a franja da testa e murmurou alguma coisa em coreano.
— Fale numa língua que eu entenda, Seo. — franzi o cenho num pedido por tradução.
— Essa é a única língua que você precisa entender.
Passou-se uma fração de segundo. Seokmin me puxou impetuosamente para si e me sugou um beijo desesperado, afoito, e delicioso. Meu penteado soltou pelo atrito gostoso da mão dele nos fios e a outra desceu perigosamente pela curva da minha lombar. Mordi o lábio inferior dele, acariciando as costas largas e sentindo uma marola morna no meu ventre baixo, que virou uma onda violenta quando Seo apertou a minha bunda.
Entrei em curto-circuito. Estávamos sozinhos, as coisas estavam esquentando, tinha uma cama bem ali...
— Seo... — o nome dele fugiu da minha boca, arrastado.
— Desculpa. — ele sussurrou, assustado, e recolheu a mão. — Eu não quis ofender você.
Não tinha ofendido. Aquele era o problema.
— Não é isso. É que eu... — gelei apesar do calor do corpo dele sobre o meu. Eu tinha mais uma confissão a fazer e era melhor que fosse logo, porque em breve ele descobriria de uma forma ou de outra. — Eu nunca fiz isso antes, Seo. Eu não sei como é. Todo mundo pensa que eu já, mas eu nunca...
Seokmin sorriu um tanto aliviado, enterrando o rosto no meu cabelo e pescoço. Me deu um beijo demorado na testa e brincou pela minha tez com o nariz afilado.
— Não se preocupe com isso, . Eu já sabia.
— Sabia como?
— Eu também nunca fiz. — ele balançou a cabeça negativamente e o rosto lindo ganhou um rubor, o sorriso labial enrugando os olhos dele.
Era difícil acreditar, mas, por outro lado, não havia razão para que ele mentisse sobre o assunto. Não era como se ele estivesse tentando me enganar para me levar para a cama, eu já estava sujeita a essa ideia há muito tempo. Ele não precisava me impressionar ou me convencer. Estava na hora. Eu queria.
— Você parece surpresa. — ele me selou.
— É porque eu estou. Você é o DK! O capitão do time! O sonho de metade das garotas do West High! — cutuquei o sinalzinho que o sorriso tímido evidenciou. — Se você nunca fez, por que deixa todo mundo pensar que sim?
— Pelo mesmo motivo que você. Pra ninguém me encher o saco me cobrando uma primeira vez. — ele deu de ombros. — A escola toda acha que eu sou um garanhão e que esse quarto é minha armadilha de veludo, mas a verdade é que as pessoas não sabem nada sobre mim, . — ele pôs a minha mão no peito dele, me deixando sentir o coração acelerado. — Esse compasso todo errado parece o de um cara que já fez isso um monte de vezes? Esse cara aqui, o Lee Seokmin... Esse cara só você tem.
Encarei aquele rosto bonito, contornando todos os traços perfeitos, dignos de um príncipe. A revelação de Seo me deixou mais relaxada e ainda mais certa da minha decisão de me entregar a ele. Urgentemente. Meu útero estava dando piruetas e minhas entranhas já estavam se torcendo, ansiosas por sentir algo que eu ainda não sabia o que era, mas que só ele poderia me dar.
— Eu quero muito você agora, Seo. — anunciei baixinho. — De um jeito que eu nunca quis ninguém antes.
— Eu também. Eu não posso esperar um ano inteiro até você voltar, . — Seokmin colou nossos corpos e desenhou as linhas dos meus lábios. — Não sei ao certo como vamos fazer isso, mas acho que o meu corpo sabe. — ele ajeitou nosso encaixe e eu senti uma coisa dura contra a minha coxa. — E o seu também. Ou não haveria esse calor gostoso emanando de você.
— E então? — perguntei, nervosa. — Nós vamos descobrir juntos?
Seokmin deslizou pela minha cintura e só o toque macio dele por cima do tecido já me fez ter sensações que eram totalmente novas para mim. Não eram mais só as borboletas ou o exército de formiguinhas, era uma necessidade intensa que corria nas minhas veias e pulsava em partes do meu corpo que nunca tinham pulsado até então. Eu estava enfraquecida a ponto de o vestido pesar, mas felizmente Seo achou o zíper lateral no meio de mais um beijo e começou a descê-lo lentamente, me livrando da peça e revelando a minha pele virgem.
— Nós vamos descobrir juntos. — ele prometeu na minha boca.
Capítulo 3 – A Divina Comédia
Arrumei o decote mais uma vez. Eu sempre usava aquela blusa, mas ela estava parecendo ousada demais agora. Todas as minhas roupas estavam evidenciando as minhas curvas e eu me sentia diferente desde o dia em que Lee Seokmin esteve dentro de mim. Não, não era um risco de gravidez. Nos protegemos e Dorota me levou ao ginecologista, literalmente, no dia seguinte. Era apenas a minha carne se habituando à carga de prazer até então desconhecida que Seo tinha me feito sentir na noite de formatura — e outras vezes depois nos dias que me restavam em Nova York. Minhas pernas ainda tremiam com a lembrança dele e eu precisava lidar com o desejo de um corpo sexualmente ativo e há quilômetros de distância de quem poderia saciá-lo: eu estava na Itália com cartelas de anticoncepcional e nenhum Seokmin.
Concordamos em manter contato sem a pressão de um namoro à distância, apenas o carinho de dois amigos que se gostavam o suficiente para entender o espaço um do outro. Queria chegar à Itália livre e pensar numa única pessoa: em mim mesma e no que eu faria com a minha vida. Apesar de a ideia de Lee Seokmin conquistando e usufruindo de belíssimas universitárias na Saint Peter me causar um certo ciuminho, eu estava em paz com a minha escolha. Além do mais, Florença era um lugar enorme e, mesmo que não fosse o meu objetivo, eu não recusaria um lindo nativo que porventura aparecesse querendo me dar um pouco de romance europeu.
Estranhei os sotaques nos primeiros dias, a paixão italiana na hora de falar, que na maioria das vezes podia ser confundida com uma briga, ainda me pegava de surpresa, mas, como das outras vezes em que estive lá, passadas duas semanas eu já estava falando praticamente igual. Nonna Antoniella me abordava a todo tempo com alguma massa e até me deixava provar os vinhos, consumidos feito água na casa que foi do meu pai. Já era março, a primavera acordava as flores e o tempo começava a esquentar, marcando a primeira estação das quatro que eu viveria ali. Tinha saudades de tudo, mas Florença também era o meu lar. E, graças à internet, eu não parecia estar tão longe assim.
— Você vai amar a Saint Peter, ! — Marie Bee me avisou do outro lado da tela. — Consegue ver?
— Eu vejo uma bela área arborizada... — descrevi o cenário que Marie me mostrava, girando o celular. — Os prédios são bem bonitos e modernos... Olha só quanta gente! Tem loiro, moreno, alto, baixo... — a câmera dela parou num rosto asiático de cabelos castanhos e bochechas enormes. — E tem até o Thomas, o Trenzinho! — me surpreendi com o foco. — Quem é esse aí?
— Aquele ali? — o assunto enfim percebeu que estava sendo filmado e acenou, meio incerto e com uma cara de paisagem. — Aquele é o meu amigo Boo Seungkwan, ele é fofoqueiro por profissão.
— Jornalista! — o carrancudo rebateu. — Eu sou um futuro jornalista.
Marie se corrigiu, mas reforçou o “fofoqueiro” sem som para mim quando se pôs de volta na câmera frontal. Encerramos a chamada e eu voltei à lição de italiano do dia, que eu fazia sempre no mesmo horário e no meu lugar favorito da casa: o quarto do meu pai. Era simples feito ele, tinha móveis em madeira e muitos, muitos livros numa estante enorme, que ocupava quase uma das paredes por completo. Minha avó não tinha se livrado de absolutamente nada que fora dele, até as cartas que ele trocava com a minha mãe estavam bem guardadas numa caixa e eu lia uma por dia, para que elas durassem a viagem toda.
Distraída, larguei os verbos em latim, a base do idioma, e levantei para explorar o cômodo. Era sempre do mesmo jeito, desde a disposição da mobília até a arrumação dos livros, pelos quais eu era a única pessoa (além de nonna Antoniella) autorizada a passear livremente. Achava que eu já tinha fuçado todos, mas uma capa de couro com detalhes em dourado num exemplar bem grosso me saltou aos olhos e eu o tomei nas mãos pela primeira vez.
— La Divina Commedia. Dante Alighieri. — li título e autor em voz alta.
A próxima coisa que fiz foi sentar na cama e procurar as traduções e o enredo do livro no celular. A Divina Comédia era um cancioneiro de poemas que narravam a jornada de um homem em busca de redenção, atravessando Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada parte tinha 33 cantos, igualmente, e todos rimavam em redondilha maior. Mesmo sem entender, parecia uma música. O texto tinha um ritmo próprio que me encantou imediatamente e, após algumas páginas, ele se revelou um tesouro maior do que eu esperava porque estava todo marcado com a letra do meu pai.
Henry Chevalier rabiscou o livro de cabo a rabo, grifou estrofes inteiras, desenhou pontos de interrogação em palavras desconhecidas e pontos de exclamação em passagens que ele julgou bonitas. Um dos cantos, XVII, tinha uma dúzia deles seguida de um palavrão, e eu assumi que se tratava do seu canto favorito. Aquele livro estava exatamente como meu pai o sentiu, todas as impressões que ele teve, eternizadas ali em palavras e tinta preta. Eu já estava com os olhos marejados quando descobri uma fotografia entre as páginas amareladas, reconhecendo e amando a bela moça ali. Descolei cuidadosamente a foto, revelando o título do poema quando o fiz, e chorei num soluço fundo, sem aviso, duas lágrimas grossas.
Meu pai guardou uma foto da minha mãe no primeiro canto do Paraíso.
— Tudo bem aí, minha piccolina? — minha avó surgiu na porta.
— Nonna, me dá esse livro? — pedi fungando, sem responder à pergunta.
— Tudo o que era do seu pai é seu, . — ela entrou no quarto e sentou-se ao meu lado, pegando gentilmente o livro das minhas mãos. — Por que esse?
— Eu não sei. — encarei os outros livros na estante. — Acho que a capa me chamou.
— Ou seu pai chamou você. — ela arrumou meu cabelo. — Era o livro favorito dele.
— Eu suspeitei. — sorri curto. — Está cheio de anotações de punho.
— Henry tinha essa mania de riscar os livros. Eu sempre brigava com ele por causa disso! — nonna balançou a cabeça, saudosa.
— Eu entendo. Também gosto de riscar os textos dos outros... — murmurei e uma faísca acendeu na minha cabeça.
— Então você precisa ter um só seu. — o olhar da minha avó iluminou-se. — Transformaram a casa de Dante Alighieri num museu aqui em Florença, sabia? Amanhã nós vamos lá para você conhecer onde o poeta preferido do seu pai nasceu. E para comprar uma edição novinha para você riscar o quanto quiser.
— Você não vai brigar comigo?
— Desde que você risque as páginas dos livros e não a si mesma, não vamos ter problemas. — minha avó apertou meu nariz vermelho.
***
Para desespero de nonna Antoniella, nonno Alfred e Dorota, os riscos não ficaram apenas nos livros. De volta a Nova York com meus recém-completados 19 anos, eu trouxe algumas flores nos braços, um coração atrás da orelha, o número do canto do Paraíso nos dedos e várias outras ideias de tatuagens que eu queria fazer. Foi um escarcéu generalizado, mas, passado o susto, Dorota admitiu gostar das flores e meu avô ficou amolecido pela homenagem que eu fiz ao meu pai. Nonno andava todo emotivo desde que eu tinha retornado e ficava me observando com olhos nostálgicos, procurando pela sua piccolina e percebendo, enfim, que ela estava crescida.
— Senta direito, ! — meu avô ralhou quando me viu largada no sofá, devorando o meu exemplar da Divina Comédia. Era um livro difícil, eu não conhecia um monte de palavras, mas a cada vez que eu lia, uma nova camada se revelava, um novo significado surgia e, claro, inúmeras anotações a lápis eram feitas. — Parece que eu estou tendo um deja-vu vendo você agarrada nesse livro.
— E vai me ver agarrada em muitos outros. — sentei, convidando-o para fazer o mesmo. — Eu já sei que curso eu quero fazer, nonno.
— Por que eu tenho a impressão de que não vou gostar? — ele esfregou as têmporas.
— Porque o senhor não vai. — enlacei nossos braços e deitei no ombro dele. — É Literatura.
— Literatura. — ele repetiu. — E como Literatura vai te ajudar na Chevalier Industries?
— Não vai. — apertei a mão dele. — Mas eu não me vejo fazendo outra coisa, Alfred Mattia Chevalier.
— ... — meu avô me encarou. — Já faz tempo que eu não decido mais nada por você e, embora eu não concorde, eu aceito a sua decisão. Até porque, não há muito mais o que eu possa fazer. Você é teimosa feito a sua mãe.
Nonno olhou direto para o retrato dos meus pais no aparador da sala, como se estivesse avisando a ambos que eu era uma dor de cabeça e uma mistura dos dois. Era uma foto muito bonita, do dia do casamento deles, numa paisagem deslumbrante. O mais lindo nela era, no entanto, o modo como eles sorriam um para o outro.
— Eles se amaram muito, não foi? — perguntei, também admirando a foto.
— Sim. — ele apertou meu braço. — Do jeito que você vai amar alguém um dia.
— Um dia. — enfatizei. — Por enquanto, os únicos amores que eu quero ter estão aqui. — sacudi o livro e meu avô me abraçou.
***
Chacoalhei o copo, buscando mais café no fundo e virei as últimas gotas. Por mais que fizesse um belo dia ensolarado naquele início de semestre na Saint Peter, meu corpo ainda pedia por cafeína como deveria ser: muito bem fervida, e não aquela profanação do café gelado que parecia estar na moda ultimamente. Marie tagarelava feito uma maritaca, seguida pelo tal Boo Seungkwan, que a admirava com olhos de um filhotinho faminto enquanto ambos me mostravam as instalações da universidade. Minha melhor amiga, tão assustada pela mudança que eu causei em seus planos, estava uma típica veterana, entrosada e envolvida até o pescoço com os projetos acadêmicos, que pareciam ser a única coisa que lhe interessava.
— Eu já entendi, Marie Bee. — interrompi a falação infinita dela sobre uma das seções da biblioteca. — Você ainda é crente e nerd. Eu já conheci o lugar, agora quero conhecer seus amigos.
— Bem... Tem o Boo. — ela apontou o troca-letras.
— Eu bem que queria ser mais que um amigo... — Seungkwan deixou escapar e não foi ouvido, porque Marie tinha voltado a falar do acervo da Psicologia.
— E é aqui que eu deixo você. — ela me avisou quando terminou o monólogo e chegamos ao campo de futebol. — Você pode assistir ao treino enquanto eu faço a minha monitoria e aí vamos almoçar. Isto é, se os seus planos não mudarem por causa de um certo artilheiro.
— DK? — o aspirante à jornalista com cara de bolacha seguiu o olhar de Marie. — Vocês têm um caso? — ele puxou o celular do bolso, abrindo o bloco de notas. — Pode soletrar Chevalier pra mim?
Fiz uma careta para o interrogatório e minha melhor amiga entendeu que eu queria que ela sumisse com o intrometido dali. Senti logo de cara que eu não ia me dar muito bem com aquele projeto de repórter investigativo e esperava ter que conviver com ele o mínimo possível.
— Vem, Boo. — Marie riu, balançando a cabeça. — Eu te explico o rolo todo no caminho até a biblioteca.
Eu gostava de futebol, mas eu gostava muito mais da vista. Principalmente de um certo sorriso, grande, largo, constante, que se abriu devagarinho quando me viu, ainda mais lindo do que eu me lembrava. Os olhos foram diminuindo enquanto os dentes aumentavam e ele acenou para mim com calma, genuinamente feliz por estar me vendo, mas quase esquecendo que estava em campo. Uma bola no peito o fez lembrar que ainda era o primeiro tempo da partida e ele dominou para seguir o jogo. DK estava bem maior desde a última vez que eu o tinha visto, os braços estavam mais fortes e definidos e as pernas estavam mais torneadas, escapando do calção do uniforme e revelando a faixa preta do short que ele usava por baixo, marcando as coxas grossas. Eu me perdi um pouco pensando que o tanquinho deveria ter virado uma máquina de lavar e que o peitoral deveria estar um espetáculo.
Suspeitas confirmadas quando DK marcou um gol e tirou a camisa em comemoração. Eu sabia que aquilo não era permitido, mesmo que fosse apenas um treino aberto e não um jogo oficial...
Mas eu entendi muito bem o recado.
Os olhinhos apertados me procuravam a todo instante nas arquibancadas e eu conseguia sentir de longe que Seo estava ansioso para que a prática acabasse. Quando o apito do técnico enfim o liberou, eu esperei que ele se banhasse e trocasse de roupa, pensando que o que eu queria mesmo era invadir o vestiário masculino como nos velhos tempos. Resisti ao impulso, não éramos mais adolescentes. Eu era uma mulher adulta e Seo era um homem feito. Muito, mas muito bem feito.
As curvas dele ainda me enganavam e, naquela regata preta e calça de moletom, ficavam ainda mais perigosas. Nunca dava para saber o que havia por baixo das roupas oversized que Seokmin gostava de usar, mas conforme ele se aproximava de mim e o vento grudava a viscose no corpo dele, minha imaginação me sugeria contornos mais tentadores. Ele tinha as costas definidas e a cintura bem fina. A clavícula marcada e o peito bem alto. A barriga trincada e as pernas torneadas. Tudo faltava e sobrava nos lugares certos. Ele era um caminho onde eu me perdia facilmente, mas o desvio mais fatal ali era, sem dúvida, o sorriso.
— Ciao! — cumprimentei. — Sua italiana preferida está de volt-
Estava no meio da frase quando meus pés foram arrancados do chão e Seokmin me girou no ar, apertando a minha cintura. Os braços nus me carregaram com facilidade até embaixo de um dos carvalhos do campus e lá mesmo ele me beijou, deliciosamente, um ano inteiro de saudade antes de dizer qualquer coisa.
— Sempre numa árvore, hein? — ele ofegou, manchado do meu batom.
Inferno. Lee Seokmin sorria com o rosto inteiro. Como era possível ele ser tão lindo? Como ele tinha conseguido ficar ainda mais lindo?
— Seu maluco. — censurei, batendo no braço exposto pela cava profunda. — E se eu estivesse namorando, hein?
— Seu namorado vai me odiar de qualquer jeito, . Eu fui o seu primeiro. — ele fez um carinho na minha bochecha, me analisando, e os olhos cor de âmbar dele passearam pelo meu corpo. — Agora diz que você guardou essa tarde só pra mim, diz.
Marie já havia me mostrado tudo e eu já tinha deixado a minha documentação no departamento de admissões, então não restavam pendências a resolver. Era uma oferta tentadora e eu estava curiosa. Era inegável que Seo ainda mexia comigo e agora que ambos tínhamos mais prática, eu estava louca para descobrir o que mais ele tinha aprendido no tempo em que eu estive fora.
Ah, Seo... Por que eu sou tão fácil pra você?
— Tudo bem. Mas não posso demorar, eu quero descansar um pouco antes das aulas começarem amanhã...
Meus pés perderam o chão outra vez quando Seokmin me pôs sobre os ombros fortes e o trapézio definido, rindo alto enquanto me carregava até o seu carro e, certamente, até a sua casa.
— Eu quero saber todos os detalhes da sua viagem, . — ele disse enquanto eu reclamava por já estar causando uma cena no meu primeiro dia. — Tenta me contar tudo enquanto eu mato a vontade que eu tô de você, tá?
Concordamos em manter contato sem a pressão de um namoro à distância, apenas o carinho de dois amigos que se gostavam o suficiente para entender o espaço um do outro. Queria chegar à Itália livre e pensar numa única pessoa: em mim mesma e no que eu faria com a minha vida. Apesar de a ideia de Lee Seokmin conquistando e usufruindo de belíssimas universitárias na Saint Peter me causar um certo ciuminho, eu estava em paz com a minha escolha. Além do mais, Florença era um lugar enorme e, mesmo que não fosse o meu objetivo, eu não recusaria um lindo nativo que porventura aparecesse querendo me dar um pouco de romance europeu.
Estranhei os sotaques nos primeiros dias, a paixão italiana na hora de falar, que na maioria das vezes podia ser confundida com uma briga, ainda me pegava de surpresa, mas, como das outras vezes em que estive lá, passadas duas semanas eu já estava falando praticamente igual. Nonna Antoniella me abordava a todo tempo com alguma massa e até me deixava provar os vinhos, consumidos feito água na casa que foi do meu pai. Já era março, a primavera acordava as flores e o tempo começava a esquentar, marcando a primeira estação das quatro que eu viveria ali. Tinha saudades de tudo, mas Florença também era o meu lar. E, graças à internet, eu não parecia estar tão longe assim.
— Você vai amar a Saint Peter, ! — Marie Bee me avisou do outro lado da tela. — Consegue ver?
— Eu vejo uma bela área arborizada... — descrevi o cenário que Marie me mostrava, girando o celular. — Os prédios são bem bonitos e modernos... Olha só quanta gente! Tem loiro, moreno, alto, baixo... — a câmera dela parou num rosto asiático de cabelos castanhos e bochechas enormes. — E tem até o Thomas, o Trenzinho! — me surpreendi com o foco. — Quem é esse aí?
— Aquele ali? — o assunto enfim percebeu que estava sendo filmado e acenou, meio incerto e com uma cara de paisagem. — Aquele é o meu amigo Boo Seungkwan, ele é fofoqueiro por profissão.
— Jornalista! — o carrancudo rebateu. — Eu sou um futuro jornalista.
Marie se corrigiu, mas reforçou o “fofoqueiro” sem som para mim quando se pôs de volta na câmera frontal. Encerramos a chamada e eu voltei à lição de italiano do dia, que eu fazia sempre no mesmo horário e no meu lugar favorito da casa: o quarto do meu pai. Era simples feito ele, tinha móveis em madeira e muitos, muitos livros numa estante enorme, que ocupava quase uma das paredes por completo. Minha avó não tinha se livrado de absolutamente nada que fora dele, até as cartas que ele trocava com a minha mãe estavam bem guardadas numa caixa e eu lia uma por dia, para que elas durassem a viagem toda.
Distraída, larguei os verbos em latim, a base do idioma, e levantei para explorar o cômodo. Era sempre do mesmo jeito, desde a disposição da mobília até a arrumação dos livros, pelos quais eu era a única pessoa (além de nonna Antoniella) autorizada a passear livremente. Achava que eu já tinha fuçado todos, mas uma capa de couro com detalhes em dourado num exemplar bem grosso me saltou aos olhos e eu o tomei nas mãos pela primeira vez.
— La Divina Commedia. Dante Alighieri. — li título e autor em voz alta.
A próxima coisa que fiz foi sentar na cama e procurar as traduções e o enredo do livro no celular. A Divina Comédia era um cancioneiro de poemas que narravam a jornada de um homem em busca de redenção, atravessando Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada parte tinha 33 cantos, igualmente, e todos rimavam em redondilha maior. Mesmo sem entender, parecia uma música. O texto tinha um ritmo próprio que me encantou imediatamente e, após algumas páginas, ele se revelou um tesouro maior do que eu esperava porque estava todo marcado com a letra do meu pai.
Henry Chevalier rabiscou o livro de cabo a rabo, grifou estrofes inteiras, desenhou pontos de interrogação em palavras desconhecidas e pontos de exclamação em passagens que ele julgou bonitas. Um dos cantos, XVII, tinha uma dúzia deles seguida de um palavrão, e eu assumi que se tratava do seu canto favorito. Aquele livro estava exatamente como meu pai o sentiu, todas as impressões que ele teve, eternizadas ali em palavras e tinta preta. Eu já estava com os olhos marejados quando descobri uma fotografia entre as páginas amareladas, reconhecendo e amando a bela moça ali. Descolei cuidadosamente a foto, revelando o título do poema quando o fiz, e chorei num soluço fundo, sem aviso, duas lágrimas grossas.
Meu pai guardou uma foto da minha mãe no primeiro canto do Paraíso.
— Tudo bem aí, minha piccolina? — minha avó surgiu na porta.
— Nonna, me dá esse livro? — pedi fungando, sem responder à pergunta.
— Tudo o que era do seu pai é seu, . — ela entrou no quarto e sentou-se ao meu lado, pegando gentilmente o livro das minhas mãos. — Por que esse?
— Eu não sei. — encarei os outros livros na estante. — Acho que a capa me chamou.
— Ou seu pai chamou você. — ela arrumou meu cabelo. — Era o livro favorito dele.
— Eu suspeitei. — sorri curto. — Está cheio de anotações de punho.
— Henry tinha essa mania de riscar os livros. Eu sempre brigava com ele por causa disso! — nonna balançou a cabeça, saudosa.
— Eu entendo. Também gosto de riscar os textos dos outros... — murmurei e uma faísca acendeu na minha cabeça.
— Então você precisa ter um só seu. — o olhar da minha avó iluminou-se. — Transformaram a casa de Dante Alighieri num museu aqui em Florença, sabia? Amanhã nós vamos lá para você conhecer onde o poeta preferido do seu pai nasceu. E para comprar uma edição novinha para você riscar o quanto quiser.
— Você não vai brigar comigo?
— Desde que você risque as páginas dos livros e não a si mesma, não vamos ter problemas. — minha avó apertou meu nariz vermelho.
Para desespero de nonna Antoniella, nonno Alfred e Dorota, os riscos não ficaram apenas nos livros. De volta a Nova York com meus recém-completados 19 anos, eu trouxe algumas flores nos braços, um coração atrás da orelha, o número do canto do Paraíso nos dedos e várias outras ideias de tatuagens que eu queria fazer. Foi um escarcéu generalizado, mas, passado o susto, Dorota admitiu gostar das flores e meu avô ficou amolecido pela homenagem que eu fiz ao meu pai. Nonno andava todo emotivo desde que eu tinha retornado e ficava me observando com olhos nostálgicos, procurando pela sua piccolina e percebendo, enfim, que ela estava crescida.
— Senta direito, ! — meu avô ralhou quando me viu largada no sofá, devorando o meu exemplar da Divina Comédia. Era um livro difícil, eu não conhecia um monte de palavras, mas a cada vez que eu lia, uma nova camada se revelava, um novo significado surgia e, claro, inúmeras anotações a lápis eram feitas. — Parece que eu estou tendo um deja-vu vendo você agarrada nesse livro.
— E vai me ver agarrada em muitos outros. — sentei, convidando-o para fazer o mesmo. — Eu já sei que curso eu quero fazer, nonno.
— Por que eu tenho a impressão de que não vou gostar? — ele esfregou as têmporas.
— Porque o senhor não vai. — enlacei nossos braços e deitei no ombro dele. — É Literatura.
— Literatura. — ele repetiu. — E como Literatura vai te ajudar na Chevalier Industries?
— Não vai. — apertei a mão dele. — Mas eu não me vejo fazendo outra coisa, Alfred Mattia Chevalier.
— ... — meu avô me encarou. — Já faz tempo que eu não decido mais nada por você e, embora eu não concorde, eu aceito a sua decisão. Até porque, não há muito mais o que eu possa fazer. Você é teimosa feito a sua mãe.
Nonno olhou direto para o retrato dos meus pais no aparador da sala, como se estivesse avisando a ambos que eu era uma dor de cabeça e uma mistura dos dois. Era uma foto muito bonita, do dia do casamento deles, numa paisagem deslumbrante. O mais lindo nela era, no entanto, o modo como eles sorriam um para o outro.
— Eles se amaram muito, não foi? — perguntei, também admirando a foto.
— Sim. — ele apertou meu braço. — Do jeito que você vai amar alguém um dia.
— Um dia. — enfatizei. — Por enquanto, os únicos amores que eu quero ter estão aqui. — sacudi o livro e meu avô me abraçou.
Chacoalhei o copo, buscando mais café no fundo e virei as últimas gotas. Por mais que fizesse um belo dia ensolarado naquele início de semestre na Saint Peter, meu corpo ainda pedia por cafeína como deveria ser: muito bem fervida, e não aquela profanação do café gelado que parecia estar na moda ultimamente. Marie tagarelava feito uma maritaca, seguida pelo tal Boo Seungkwan, que a admirava com olhos de um filhotinho faminto enquanto ambos me mostravam as instalações da universidade. Minha melhor amiga, tão assustada pela mudança que eu causei em seus planos, estava uma típica veterana, entrosada e envolvida até o pescoço com os projetos acadêmicos, que pareciam ser a única coisa que lhe interessava.
— Eu já entendi, Marie Bee. — interrompi a falação infinita dela sobre uma das seções da biblioteca. — Você ainda é crente e nerd. Eu já conheci o lugar, agora quero conhecer seus amigos.
— Bem... Tem o Boo. — ela apontou o troca-letras.
— Eu bem que queria ser mais que um amigo... — Seungkwan deixou escapar e não foi ouvido, porque Marie tinha voltado a falar do acervo da Psicologia.
— E é aqui que eu deixo você. — ela me avisou quando terminou o monólogo e chegamos ao campo de futebol. — Você pode assistir ao treino enquanto eu faço a minha monitoria e aí vamos almoçar. Isto é, se os seus planos não mudarem por causa de um certo artilheiro.
— DK? — o aspirante à jornalista com cara de bolacha seguiu o olhar de Marie. — Vocês têm um caso? — ele puxou o celular do bolso, abrindo o bloco de notas. — Pode soletrar Chevalier pra mim?
Fiz uma careta para o interrogatório e minha melhor amiga entendeu que eu queria que ela sumisse com o intrometido dali. Senti logo de cara que eu não ia me dar muito bem com aquele projeto de repórter investigativo e esperava ter que conviver com ele o mínimo possível.
— Vem, Boo. — Marie riu, balançando a cabeça. — Eu te explico o rolo todo no caminho até a biblioteca.
Eu gostava de futebol, mas eu gostava muito mais da vista. Principalmente de um certo sorriso, grande, largo, constante, que se abriu devagarinho quando me viu, ainda mais lindo do que eu me lembrava. Os olhos foram diminuindo enquanto os dentes aumentavam e ele acenou para mim com calma, genuinamente feliz por estar me vendo, mas quase esquecendo que estava em campo. Uma bola no peito o fez lembrar que ainda era o primeiro tempo da partida e ele dominou para seguir o jogo. DK estava bem maior desde a última vez que eu o tinha visto, os braços estavam mais fortes e definidos e as pernas estavam mais torneadas, escapando do calção do uniforme e revelando a faixa preta do short que ele usava por baixo, marcando as coxas grossas. Eu me perdi um pouco pensando que o tanquinho deveria ter virado uma máquina de lavar e que o peitoral deveria estar um espetáculo.
Suspeitas confirmadas quando DK marcou um gol e tirou a camisa em comemoração. Eu sabia que aquilo não era permitido, mesmo que fosse apenas um treino aberto e não um jogo oficial...
Mas eu entendi muito bem o recado.
Os olhinhos apertados me procuravam a todo instante nas arquibancadas e eu conseguia sentir de longe que Seo estava ansioso para que a prática acabasse. Quando o apito do técnico enfim o liberou, eu esperei que ele se banhasse e trocasse de roupa, pensando que o que eu queria mesmo era invadir o vestiário masculino como nos velhos tempos. Resisti ao impulso, não éramos mais adolescentes. Eu era uma mulher adulta e Seo era um homem feito. Muito, mas muito bem feito.
As curvas dele ainda me enganavam e, naquela regata preta e calça de moletom, ficavam ainda mais perigosas. Nunca dava para saber o que havia por baixo das roupas oversized que Seokmin gostava de usar, mas conforme ele se aproximava de mim e o vento grudava a viscose no corpo dele, minha imaginação me sugeria contornos mais tentadores. Ele tinha as costas definidas e a cintura bem fina. A clavícula marcada e o peito bem alto. A barriga trincada e as pernas torneadas. Tudo faltava e sobrava nos lugares certos. Ele era um caminho onde eu me perdia facilmente, mas o desvio mais fatal ali era, sem dúvida, o sorriso.
— Ciao! — cumprimentei. — Sua italiana preferida está de volt-
Estava no meio da frase quando meus pés foram arrancados do chão e Seokmin me girou no ar, apertando a minha cintura. Os braços nus me carregaram com facilidade até embaixo de um dos carvalhos do campus e lá mesmo ele me beijou, deliciosamente, um ano inteiro de saudade antes de dizer qualquer coisa.
— Sempre numa árvore, hein? — ele ofegou, manchado do meu batom.
Inferno. Lee Seokmin sorria com o rosto inteiro. Como era possível ele ser tão lindo? Como ele tinha conseguido ficar ainda mais lindo?
— Seu maluco. — censurei, batendo no braço exposto pela cava profunda. — E se eu estivesse namorando, hein?
— Seu namorado vai me odiar de qualquer jeito, . Eu fui o seu primeiro. — ele fez um carinho na minha bochecha, me analisando, e os olhos cor de âmbar dele passearam pelo meu corpo. — Agora diz que você guardou essa tarde só pra mim, diz.
Marie já havia me mostrado tudo e eu já tinha deixado a minha documentação no departamento de admissões, então não restavam pendências a resolver. Era uma oferta tentadora e eu estava curiosa. Era inegável que Seo ainda mexia comigo e agora que ambos tínhamos mais prática, eu estava louca para descobrir o que mais ele tinha aprendido no tempo em que eu estive fora.
Ah, Seo... Por que eu sou tão fácil pra você?
— Tudo bem. Mas não posso demorar, eu quero descansar um pouco antes das aulas começarem amanhã...
Meus pés perderam o chão outra vez quando Seokmin me pôs sobre os ombros fortes e o trapézio definido, rindo alto enquanto me carregava até o seu carro e, certamente, até a sua casa.
— Eu quero saber todos os detalhes da sua viagem, . — ele disse enquanto eu reclamava por já estar causando uma cena no meu primeiro dia. — Tenta me contar tudo enquanto eu mato a vontade que eu tô de você, tá?
Capítulo 4 – Um amigo que te distrai de vez em quando
Me ajustei logo à rotina universitária e estava conciliando bem os estudos, as atividades extracurriculares e, claro, Seo, que ainda era DK para a maioria das pessoas, até mesmo para as garotas de outros cursos com quem ele se envolvia. Voltamos ao nosso status de “amigos que se beijam” e, como ele havia me confessado anos atrás, ele ainda era o Seokmin apenas para mim. E estava bom assim. Era um arranjo que nos servia e não nos colocava sob o risco de perder o que mais prezamos desde que éramos mais novos: a nossa amizade de longa data.
Foi por isso que aceitei sair com Aidan, o bolsista de doutorado da senhora Le Blanc, a professora de Crítica Literária em quem eu me inspirava e que eu esperava que me acolhesse no seu cobiçado projeto de orientação. Aidan era uma raridade, inteligente, interessante, atraente e hétero, qualidades em falta nos homens da Literatura (os mais lindos eram todos do Direito). Já estava quase pronta quando ouvi a porta entreabrir antes de Dorota anunciar a “visita”, que chegou junto com a voz dela, no mesmo tom de preocupação que costumava acompanhar o nome:
— Seokmin está aqui! — ela disse, quando ele já estava na porta do meu quarto. — Não sei se você está vestida, mas isso nunca fez diferença pra ele mesmo... — Dory apareceu atrás dele tapando os olhos com as mãos, enquanto Seo ria.
— Parece que a não só está vestida, como está de saída. — ele analisou meu vestido preto que ia até a metade da canela, mas tinha dois recortes laterais em compensação.
— Aidan me convidou para falarmos sobre a monitoria. E outras coisas. — avisei sem dar muita importância. — Vamos jantar.
— Eu sei bem o que ele quer jantar... — Seo cruzou os braços sobre o tronco, fazendo o peito ficar maior do que já era.
— Algum problema com isso, Lee? — insinuei.
— Problema nenhum. — ele sorriu, confiante, e cutucou os quadris de Dorota, que ouvia a conversa. — Agora que eu fui friamente dispensado, tem um espacinho pra mim na sua cama, Dorinha? Estou sozinho e cheio de amor para dar.
Dorota estalou três tapas seguidos nas costas enormes de Seokmin, que gargalhava e batia palmas conforme ela se afastava do cômodo, resmungando. O conquistador, por sua vez, ignorou os tabefes e o fato de que eu estava me arrumando para um encontro e ficou à vontade no meu quarto, esperando que a sua presença fosse o suficiente para me atrasar ou me fazer desistir. E só a presença de Lee Seokmin era, de fato, tão marcante que eu cheguei a cogitar dar um bolo no pobre Aidan.
— Usa essa. — Seokmin se adiantou quando me viu pegar um bracelete dourado e me deteve com delicadeza, indicando uma pulseira de ouro branco ao lado da minha primeira escolha. — Fica melhor em você.
— Agora você me ajuda a selecionar joias para sair com outro cara? — perguntei, aceitando a sugestão.
— Não só as joias. — ele encostou-se atrás de mim, subindo as mãos pelas minhas coxas. — O que tem embaixo do vestido? É melhor não ser aquela coisa preta que eu gosto. Aquilo é só pra mim.
Porra. Ele estava tratando meu encontro feito uma piada. Aidan não era sequer uma ameaça a Lee Seokmin e ele sabia.
— Resolvi que não vou usar nada hoje. — falei sugestivamente, me rendendo à carícia. Ele suspirou forte no meu ouvido e a mão foi apressada em conferir o que eu tinha acabado de dizer.
— Mentirosa. — ele sentenciou quando achou a calcinha. — Renda, muito bom.
Cerrei os punhos, tentando me conter dentro de mim mesma. O sussurro de aprovação de Seo e os dedos dele deslizando pelas aberturas na minha cintura me despertaram tremores e meu corpo começou a pedir: por favor, por favor, vamos ficar. Mas eu era orgulhosa demais para deixar que Seokmin soubesse que ele era a minha maior fraqueza.
— O que a sua mão está fazendo debaixo do meu vestido, Seo? — acordei do transe, sacudindo o corpo e afastando-o do dele.
— Muito menos do que ela queria. — ele abriu o sorriso infame e sedutor.
Seokmin ainda estava sorrindo quando me puxou de volta, me virando e me surpreendendo com um demorado beijo na boca que borrou meu batom, embaraçou meu cabelo e me bagunçou toda. Encerrou o beijo com um selar e, por fim, caminhou com tranquilidade até a porta do quarto, me deixando, incrédula, contemplando meu próprio reflexo desarrumado no espelho. O cheiro dele agora estava impregnado na minha roupa amassada e aquele era um beijo no qual eu pensaria por horas a fio.
Canalha.
— Boa sorte no seu encontro. — ele desejou piscando um olho, cínico. — Se você mudar de ideia, sabe onde me encontrar.
***
— Meus artigos estão todos no servidor da universidade. A senhora Le Blanc indica vários como leitura preliminar para quem quer entrar no círculo de alunos extraordinários dela.
Balancei a cabeça e forcei uma expressão interessada. Procurei um ponto para focar a atenção, mas não importava o quanto eu encarasse Aidan e seu belo par de olhos verdes, minha mente fugia para os olhos puxados e o beijo de momentos atrás. Eu queria saber como funcionava o seleto programa de orientação em Crítica Literária, mas já havia se passado uma hora, um risoto, uma garrafa de vinho e Aidan não tinha feito outra coisa que não se vangloriar por ter sido escolhido para o doutorado da senhora Le Blanc. Percebi que aquela chatice não me levaria a lugar algum e, sem me preocupar em dar um motivo razoável, pedi licença e encerrei a noite, me levantando da mesa antes que a sobremesa chegasse.
Embora recusar açúcar não fosse uma atitude típica de Chevalier, já tinha sido doce o suficiente deixar aquele acadêmico convencido plantado numa mesa para dois no Le Pavillon, um dos melhores restaurantes de Nova York. Caminhei pelo saguão até a rua, fiz um sinal para o táxi que vinha se aproximando e me despedi do rapaz alto e confuso atrás de mim, tão consternado quanto há dez minutos, quando eu disse, sem mais explicações, que precisava ir embora. Posso ter sido um tanto rude, mas não havia espaço na minha cabeça para pensar em Aidan, sua falação maçante e seu toque acidental no meu pulso que não me fez sentir coisa alguma. Só havia um toque que fazia a minha pele reagir e era atrás dele que eu estava indo.
— Maldito. Maldito. — praguejei quando bati a porta do carro. — Eu te odeio, Lee Seokmin.
— Para onde, moça? — o taxista me encarou num tom preocupado, me analisando pelo retrovisor.
— Para uma armadilha de veludo. — mostrei para ele a localização da mansão dos Lee. — Uma armadilha de veludo, músculos e sorriso matador. Isso não é justo, sabia? — me agitei no banco. — Não é justo um homem só ter tantos atributos e ainda ser da cor de um caramelo! Eu odeio ele! O senhor ouviu? Eu odeio!
O motorista ficou ainda mais assustado e deu a partida, rindo amarelo. Afundei outra vez no banco, derrotada, e digitei uma mensagem para Seokmin com os dedos em fúria. Os dedos e outras coisas. Meu corpo já estava se eriçando porque sabia que estávamos indo ao parque de diversões.
Me:
Eu mudei de ideia.
Desci do carro deixando para trás o senhor que protestava a quantidade de notas que eu joguei nele, passando e muito do valor da corrida. Atravessei o jardim imenso ouvindo meu coração bater em toda parte e o sangue fervilhar feito lava. Me irritava que fosse tão óbvio para Seo o poder que ele tinha sobre mim, mas ele sabia como ninguém converter essa ira em prazer. A lembrança dele embaixo de mim surgiu feito um clarão na minha mente e eu quase consegui ouvi-lo dizer “É mais gostoso quando você senta com raiva, ” quando digitei a senha da fechadura eletrônica e adentrei a sala direto para o covil daquele lobo em pele de cordeiro.
— 21h? — o desaforado saiu do banheiro da sua suíte enrolado num robe azul-marinho. — Você odiou o cara ou o quê?
— Eu odeio você. — disse, ainda da porta.
— E você veio me odiar aqui no meu quarto? — ele penteou os cabelos molhados com os dedos. — Que atenciosa!
— Eu vim sentar em você, Lee. — senti as bochechas aquecendo. — E você sabia. Por isso que eu te odeio.
— É mesmo? — Seo fez uma falsa cara de indignação e um beicinho tão falso quanto, espalhando-se na cama. — Por que você não vem aqui repetir isso, hein? — ele brincou com o lóbulo da orelha, malino feito uma criança travessa desafiando uma autoridade.
— Eu odeio você. — larguei a bolsa no chão e comecei a andar. — Eu odeio que você nunca pare de sorrir. — o bracelete foi o próximo. — Eu odeio o que esse sorriso faz comigo e eu odeio, Lee Seokmin... — me apoiei numa das paredes para tirar a calcinha por baixo do vestido e atirar na cara dele. — ...que você saiba me foder tão bem.
Sentei no colo dele e recebi uma língua ávida para me avisar que eu era bem-vinda, entrando no céu da minha boca como se fosse a sua casa. O roupão felpudo atritava deliciosamente contra a minha intimidade nua e eu estava urgente por mais pele, mais contato e mais... ele.
— Eu sou viciado em você, Chevalier. — Seo sussurrou, sem interromper o beijo. — E eu quero te provar de um jeito que eu não provei ainda.
Enrosquei as pernas na cintura de Seokmin quando ele se levantou da cama apenas para me acomodar melhor nela, me obrigando a me deitar e se deitando sobre mim. Os lábios inquietos me sugaram, me lamberam e me morderam o pescoço e o decote, a ponto de pular do vestido. Ensaiei me virar para iniciarmos a nossa dança, sabia que Seo gostava de começar por trás, mas, daquela vez, ele encaixou as mãos grandes nos meus quadris e me manteve contra o colchão. Minha barriga trincou quando ele escorregou vagarosamente e ajoelhou-se na beira da cama. Nossos olhos se encontraram enquanto ele umedecia os lábios e a íris faminta dele me fez perceber qual era o plano.
A ideia de ter alguém com a cara enfiada lá me fazia tremer de vergonha. Mesmo os dois caras com quem eu me envolvi quando estive na Itália, que eu poderia chamar de esquemas “fixos”, chegaram a se oferecer para a tarefa, mas eu recusei. Seo, no entanto, sabia como me soltar, como me deixar à vontade, e eu não tive forças para resistir à trilha de beijos que ele começou na minha perna quando desafivelou a minha sandália.
— Faz tanto tempo, . — ele percorria, com paciência, a parte interna das minhas coxas. Um beijo de cada vez, subindo sem pressa o caminho do meu sexo. — Tanto tempo e eu ainda não sei que gosto você tem.
Não sei descrever o que eu senti quando ele, enfim, chegou ao seu destino. Parecia que ele tinha sede de mim, mas embora ele estivesse ali me bebendo, era eu quem estava sendo saciada. Mesmo sem entender a mistura de sensações que aquele beijo úmido me causava, eu cedi ao instinto de me insinuar na boca dele e fui prontamente atendida. A leve ardência da barba nascente me arranhando e a maciez da língua incansável criaram a tensão perfeita e ele me invadiu até eu relaxar satisfeita e lambuzar os lábios alheios com o meu prazer.
Afundei no travesseiro, exausta. Mais uma primeira vez que era dele.
— Precisa de cinco minutos? — ele levantou um pouco mais o meu vestido e me beijou o ventre repetidas vezes.
— Talvez dez. — sorri, sentindo minha carne trêmula bater no rosto de Seo e esperando meu corpo assimilar a deliciosa novidade que era gozar daquele jeito.
Seokmin riu vitorioso e procurou seu lugar ao meu lado, me arrastando pelos lençóis e me encaixando com facilidade na conchinha de dentro, me pressionando contra sua rigidez latente. Gostava do cansaço que ele me dava e me permiti descansar ali, sem me importar com o vestido de alças despencando que não cobria mais quase nada.
— Seo... — chamei baixinho, riscando círculos no braço malhado em volta de mim.
— Hm? — ele respondeu, dengoso por causa do carinho que eu fazia com as pontas das unhas.
— Na noite do baile, você me disse alguma coisa em coreano. O que era?
— Eu pedi pra você ficar. — ele soprou no meu ouvido. — Você vai ficar essa noite?
Me debrucei sobre o corpo sarado, esfregando meus seios descobertos contra o peito dele e minha boca contra a sua. Senti o membro semiacordado se mover abaixo de mim e meu interior latejou novamente.
— ... — ele desgrudou dos meus lábios. — Você vai fic-
— Shhhh. — usei dois dedos para silenciá-lo e desci o beijo pelo tronco esculpido, desfazendo o laço do robe. — É a minha vez de te provar agora.
***
O semestre estava quase no fim, assim como a minha paciência e a minha sanidade mental. Como se não bastassem as provas finais, a viagem entre cursos que eu tinha inventado de organizar e os planos para o aniversário do meu avô, a senhora Le Blanc estava viajando para uma conferência e deixou Aidan, a sua pupila, responsável por avaliar e atribuir os temas dos seminários. Coincidentemente, dado o nosso encontro desastroso, o doutorando escolheu me presentear com o tópico mais difícil e eu estava me desdobrando para acompanhar todas as leituras.
— “Introdução aos modelos retórico-analíticos, investigação sobre a recepção da ciência da literatura empírica...”
Lia em voz alta o plano de aulas enquanto andava até o auditório para a minha próxima aula. Estava atrasada e cortei caminho pelo estacionamento. As frases ficavam borradas conforme eu avançava os passos e, mesmo arriscando um descolamento de retina, eu não tirava os olhos da pilha de papéis nas minhas mãos. Eu estava tão absorta na descrição da disciplina que esqueci de prestar atenção em outros detalhes importantes ao meu redor, por exemplo: quando foi que aquela moça bronzeada com rabo de cavalo alto e coturno agarrou meu braço?
— Pois não? — olhei confusa para a garota que apertava meu pulso com uma mão e segurava a alça da bolsa a tiracolo com a outra.
— Tá vendo aquilo lá? — ela apontou a rua interna da universidade e o tráfego ali. — São carros. Se um deles passar por cima de você, você vira panqueca.
Bati os cílios várias vezes e levei alguns segundos para entender o que eu quase fiz. Eu fui salva por uma desconhecida que estava metida numa calça e numa jaqueta de couro, tal qual o Motoqueiro Fantasma. Ou um dos X-Men, porque parecia mesmo um traje de super-heroína.
— Salvou nossas vidas! — abracei a morena misteriosa sem a menor cerimônia. — Somos eternamente gratos!
— Chevalier é fã de Toy Story? — ela reconheceu a referência que eu parafraseei e fez uma careta para o abraço repentino.
— E como você sabe meu nome? — perguntei e me arrependi. O acidente dos meus pais repercutiu localmente, todo mundo sabia o nome da “criança que sobreviveu”.
— Sabendo. — ela deu de ombros e mexeu na bolsa. — Além disso, você está na primeira página do Saint Peter News de hoje. — ela me entregou o jornal da universidade com uma foto minha na capa.
Rangi os dentes. A matéria estava assinada pelo troca-letras o próprio, Boo Seungkwan, e a foto foi tirada enquanto eu estava na cafeteria, me agachando para amarrar o sapato, com um zoom em alta resolução na serpente que eu tatuei no tornozelo dias atrás. Eu já havia participado do jornal com um depoimento sobre a casa de Dante Alighieri, mas daquela vez minha aparição foi bem mais pessoal e sem vínculos literários.
— Parece que você não gostou muito. — minha salvadora observou, me assistindo ler a notícia. — Se precisar de ajuda para chutar a bunda de alguém, procure por Denise Andrews no prédio da Biologia.
— Denise Andrews? — esqueci a raiva pela publicação por um momento. — Você é a herdeira do New York Aquarium?
— Sim. E assassina de aluguel também.
Arregalei os olhos e perdi a cor.
— É brincadeira. Assassinos não saem por aí dizendo que são. — Denise se explicou e nós duas rimos.
Podia ser precipitado afirmar, mas eu sentia que Denise e eu seríamos grandes amigas. Trocamos telefones e nos despedimos, e eu decidi que precisava fazer mais uma parada antes da aula para acertar contas com um certo jornaleiro. Acatando o conselho da minha mais recente amizade, fui até a praça central do campus sem ler nada, concentrada apenas em chegar lá sem ser atropelada. Avistei o meu alvo sentado numa das mesas de madeira, ao lado de Marie Bee, para quem ele olhava com uma cara estúpida de apaixonado. Bati os pés e me aproximei para confrontá-lo:
— O que é isso? — espalmei o jornal na mesa sem sequer cumprimentar minha melhor amiga ou Seungkwan.
— O que parece? — ele reprimiu o riso. — Vocês da Literatura não sabem ler?
— O que eu estou fazendo no seu folhetim de quinta, seu sopa de letrinhas? — quase gritei, enquanto Marie fechava os olhos e negava com a cabeça.
— Não é um folhetim, é um periódico. — ele fez a distinção com orgulho. — Eu recebo verba da universidade para financiá-lo, ele serve aos interesses da comunidade acadêmica.
— E desde quando a comunidade acadêmica se interessa pelas “Novas tatuagens de Chevalier”? — li o título da matéria, espumando. Digamos que no intervalo de um semestre eu tenha feito mais uma tatuagem, ou seis.
— Eu também não entendo o frenesi, mas as pessoas querem saber. Um jornalista deve se comprometer com a informação, seja ela qual for. — Seungkwan me mediu com desdém e arrematou a afronta. — E eu acho as suas tatuagens feias.
— Por que que você não pega o que você acha e enfia no-
— Uau! — Marie interviu, levantando-se da mesa. — Que animosidade é essa entre as minhas duas pessoas favoritas, hein?
Fuzilei a loira com os olhos. Desde quando aquele cara redonda tinha chegado ao posto de pessoas favoritas da Marie Bee? Tudo bem, eu estive fora por um ano e não tive sossego desde que voltei, era de se esperar que ela se aproximasse mais de outras pessoas, mas tinha que ser logo aquele projeto de redator?
— ! — Marie separou meu nome no meio, como uma mãe repreendendo um filho. — Você não pode impedir que o Seungkwan escreva sobre você. Você assinou o termo de uso de imagem quando participou daquela edição, lembra? — ela pôs a mão na cintura e virou-se para o jornalista em questão. — Boo, você não pode falar assim das tatuagens da . Até porque, você já me confessou que gosta delas. Agora os dois, peçam desculpas e dêem as mãos por cinco minutos!
Seungkwan e eu viramos o rosto ao mesmo tempo, torcendo o nariz, cada qual para um lado.
— Vão ser dez minutos se vocês não pararem de frescura! — ela apontou o dedo em riste.
Suspirei. Marie Bee tinha razão. Aidan estava dificultando a minha vida como vingança pessoal pelo encontro péssimo e eu estava atolada em trabalhos, aquela minha reação exagerada foi apenas eu descontando em Seungkwan uma carga de estresse que não era culpa dele. Hasteei a bandeira branca e estendi a mão primeiro, proclamando a trégua com desgosto:
— Me desculpa. — murmurei.
— Como é? — Boo inclinou-se na minha direção. — Eu não ouvi.
— Marie Beeeee! — apelei para a juíza, esticando o nome dela num tom mimado. Ela apenas olhou para Seungkwan e sorriu. Foi o suficiente para o panguão desmontar.
— OK, OK. Eu aceito as desculpas.
— E? — Marie encorajou.
— E me desculpa também. — ele consentiu e finalmente apertamos as mãos.
Seladas as pazes, eu milagrosamente consegui chegar a tempo para a aula de Teoria da Literatura, durante a qual, achando que meus dias tinham 36 horas e não 24, me inscrevi para mais uma atividade extracurricular. Era bem verdade que eu estava mastigando mais do que eu podia engolir, mas eu não conseguia evitar. Tudo relativo ao meu curso me empolgava e eu me sentia consumida por ele (num bom sentido). Tanto que sequer tive tempo de ver Seokmin: já faziam duas semanas desde a última vez em que eu estive na casa dele e o deixei dormindo feito um anjo depois de uma noite infernal. Eu esperava que Seo já tivesse se acostumado a amanhecer sem mim todas as vezes em que estivemos juntos, mas, quando eu vi o carro dele encostando, o semblante menos iluminado dizia o contrário.
— O capitão do time poderia me dar uma carona? — brinquei, me debruçando sobre a janela do passageiro quando ele me viu e desceu o vidro.
— Então agora você lembra que eu existo? — Seokmin apertou os olhos para mim, mas logo deu lugar ao sorriso.
Entrei no carro e ele dirigiu mais um pouco, até uma área menos movimentada atrás do prédio do núcleo de estudos linguísticos. Estava anoitecendo e não havia muita iluminação nos fundos do complexo, era o lugar ideal para conversar sem ser incomodado ou visto por olhos de jornalistas curiosos. Seo estava em silêncio e um pouco cabisbaixo, postura incomum para ele, que mais parecia um vírus da alegria. Sabia que eu tinha uma parcela de culpa naquilo, eu estava meio que negligenciando todos ao meu redor, mas era só uma questão de remanejar os meus afazeres e aprender a organizar melhor o meu tempo. Era o meu primeiro semestre, faria melhor no próximo, não tinha dúvidas. Além do mais, eu sentia falta dos meus amigos e uma saudade mais especial e dolorida de Seokmin.
— Por que você me obriga a acordar sozinho, hein, ? — ele apoiou as mãos finas no volante quando estacionamos.
— Eu não sei me despedir de você, lembra? — coloquei a bolsa e os livros embaixo do banco.
— Aidan está pegando pesado com você, não é? — ele acompanhou o movimento.
— Ele está me punindo por tê-lo deixado plantado no restaurante para ir atrás de você. Está vendo, Seo? — segurei o rosto dele pelo queixo. — Você é a causa de todos os meus problemas.
— Posso ser a solução deles também.— os olhos vieram parar nas minhas pernas sem sutileza alguma. — Eu sei que você anda ocupada, , mas está difícil ficar sem você. Ainda mais agora que você está mais tatuada. Mais confiante, mais assertiva. Mais gostosa... — ele respirou forte. — Eu sinto sua falta.
— Eu também sinto. — contornei o maxilar marcado dele. — Eu só estava tentando não me perder com distrações. E o seu corpo tem um monte delas, Lee Seokmin. Uma melhor do que a outra.
— Algumas horinhas de dispersão nunca mataram ninguém. — ele desenhou com o indicador na minha coxa, entrando discretamente por baixo da minha saia.
— O que está sugerindo, hã? Uma rapidinha no banco de trás, é isso? — segurei o antebraço dele, sempre à mostra pela jaqueta dobrada.
— Se isso é tudo que você tem pra mim, eu aceito. — ele riu fraco, mas galanteador, como sempre. — Eu estou com saudade, . Me deixa te distrair de vez em quando... — Seo raspou o nariz no meu pescoço e grudou os lábios entreabertos na minha pele, me obrigando a cruzar as pernas.
— Você não está jogando limpo, artilheiro... — mordi o lábio e desviei a vista do discreto volume que já queria se formar ali.
— Eu só estou reconhecendo o campo... — ele mordeu minha orelha. — Você ficou muito tempo longe, preciso te aprender de novo.
— Você está me aprendendo desde que eu cheguei aqui.
— E acertando todas as vezes, admita.
Lancei um olhar por cima do ombro e uma ideia rondava minha cabeça feito um vagalume em volta da luz. O banco de trás do carro. Eu tinha falado como uma brincadeira, mas parecia uma ótima opção para aliviar o meu estresse. Ergui os quadris para tirar a calcinha, esboçando um meio sorriso por aquela conveniência constante: sempre vestia roupas de fácil acesso quando estava com Seokmin. Não que uma calça ou uma peça mais complicada de remover fossem algum obstáculo para ele. Nada era difícil para Seo, ele era fácil desde o sorriso até o carinho nos meus seios por cima da malha fina, especialidade sua que ficava mais deliciosa a cada dia. Segui suavemente o curso do beijo calmo e ardente que iniciamos, deixando meu corpo encontrar o dele para livrá-lo da camisa branca. Cravei as unhas nas costas malhadas e fui arrastada, não sei como, para o colo de Seo e o caminho da minha felicidade no meio das pernas dele.
***
— Você não para de sorrir? — cutuquei a bochecha dele, ofegante, brincando com o sinal.
— Com você em cima de mim? Nem se eu quisesse. — ele aumentou o sorriso.
Olhei ao redor para o couro do estofado e as janelas fumê, embaçadas da nossa respiração. A camisa do Seo estava embolada num canto, uma das minhas sandálias ficou no banco da frente e a outra ficou presa no câmbio da marcha. Procurei pela calcinha e vi o tecido preto e rendado escapando entre os dedos dele, que ainda a seguravam de mão cerrada. Comecei a abotoar a blusa e me preparei pra sair de cima dele, mas ele me deteve segurando a minha cintura.
— Gosto do que temos, . — ele confessou depois de me beijar demorado, acariciando meu rosto.
— Eu também. Eu nunca tinha feito num carro... — sussurrei em resposta, ganhando outro beijo e o sorriso completo. Aquele que apertava os olhos e fazia o rosto inteiro dele sorrir junto.
Seo me estendeu o punho fechado, que eu soquei levemente com o meu:
— É sempre um prazer ser a sua primeira vez, Chevalier.
Foi por isso que aceitei sair com Aidan, o bolsista de doutorado da senhora Le Blanc, a professora de Crítica Literária em quem eu me inspirava e que eu esperava que me acolhesse no seu cobiçado projeto de orientação. Aidan era uma raridade, inteligente, interessante, atraente e hétero, qualidades em falta nos homens da Literatura (os mais lindos eram todos do Direito). Já estava quase pronta quando ouvi a porta entreabrir antes de Dorota anunciar a “visita”, que chegou junto com a voz dela, no mesmo tom de preocupação que costumava acompanhar o nome:
— Seokmin está aqui! — ela disse, quando ele já estava na porta do meu quarto. — Não sei se você está vestida, mas isso nunca fez diferença pra ele mesmo... — Dory apareceu atrás dele tapando os olhos com as mãos, enquanto Seo ria.
— Parece que a não só está vestida, como está de saída. — ele analisou meu vestido preto que ia até a metade da canela, mas tinha dois recortes laterais em compensação.
— Aidan me convidou para falarmos sobre a monitoria. E outras coisas. — avisei sem dar muita importância. — Vamos jantar.
— Eu sei bem o que ele quer jantar... — Seo cruzou os braços sobre o tronco, fazendo o peito ficar maior do que já era.
— Algum problema com isso, Lee? — insinuei.
— Problema nenhum. — ele sorriu, confiante, e cutucou os quadris de Dorota, que ouvia a conversa. — Agora que eu fui friamente dispensado, tem um espacinho pra mim na sua cama, Dorinha? Estou sozinho e cheio de amor para dar.
Dorota estalou três tapas seguidos nas costas enormes de Seokmin, que gargalhava e batia palmas conforme ela se afastava do cômodo, resmungando. O conquistador, por sua vez, ignorou os tabefes e o fato de que eu estava me arrumando para um encontro e ficou à vontade no meu quarto, esperando que a sua presença fosse o suficiente para me atrasar ou me fazer desistir. E só a presença de Lee Seokmin era, de fato, tão marcante que eu cheguei a cogitar dar um bolo no pobre Aidan.
— Usa essa. — Seokmin se adiantou quando me viu pegar um bracelete dourado e me deteve com delicadeza, indicando uma pulseira de ouro branco ao lado da minha primeira escolha. — Fica melhor em você.
— Agora você me ajuda a selecionar joias para sair com outro cara? — perguntei, aceitando a sugestão.
— Não só as joias. — ele encostou-se atrás de mim, subindo as mãos pelas minhas coxas. — O que tem embaixo do vestido? É melhor não ser aquela coisa preta que eu gosto. Aquilo é só pra mim.
Porra. Ele estava tratando meu encontro feito uma piada. Aidan não era sequer uma ameaça a Lee Seokmin e ele sabia.
— Resolvi que não vou usar nada hoje. — falei sugestivamente, me rendendo à carícia. Ele suspirou forte no meu ouvido e a mão foi apressada em conferir o que eu tinha acabado de dizer.
— Mentirosa. — ele sentenciou quando achou a calcinha. — Renda, muito bom.
Cerrei os punhos, tentando me conter dentro de mim mesma. O sussurro de aprovação de Seo e os dedos dele deslizando pelas aberturas na minha cintura me despertaram tremores e meu corpo começou a pedir: por favor, por favor, vamos ficar. Mas eu era orgulhosa demais para deixar que Seokmin soubesse que ele era a minha maior fraqueza.
— O que a sua mão está fazendo debaixo do meu vestido, Seo? — acordei do transe, sacudindo o corpo e afastando-o do dele.
— Muito menos do que ela queria. — ele abriu o sorriso infame e sedutor.
Seokmin ainda estava sorrindo quando me puxou de volta, me virando e me surpreendendo com um demorado beijo na boca que borrou meu batom, embaraçou meu cabelo e me bagunçou toda. Encerrou o beijo com um selar e, por fim, caminhou com tranquilidade até a porta do quarto, me deixando, incrédula, contemplando meu próprio reflexo desarrumado no espelho. O cheiro dele agora estava impregnado na minha roupa amassada e aquele era um beijo no qual eu pensaria por horas a fio.
Canalha.
— Boa sorte no seu encontro. — ele desejou piscando um olho, cínico. — Se você mudar de ideia, sabe onde me encontrar.
— Meus artigos estão todos no servidor da universidade. A senhora Le Blanc indica vários como leitura preliminar para quem quer entrar no círculo de alunos extraordinários dela.
Balancei a cabeça e forcei uma expressão interessada. Procurei um ponto para focar a atenção, mas não importava o quanto eu encarasse Aidan e seu belo par de olhos verdes, minha mente fugia para os olhos puxados e o beijo de momentos atrás. Eu queria saber como funcionava o seleto programa de orientação em Crítica Literária, mas já havia se passado uma hora, um risoto, uma garrafa de vinho e Aidan não tinha feito outra coisa que não se vangloriar por ter sido escolhido para o doutorado da senhora Le Blanc. Percebi que aquela chatice não me levaria a lugar algum e, sem me preocupar em dar um motivo razoável, pedi licença e encerrei a noite, me levantando da mesa antes que a sobremesa chegasse.
Embora recusar açúcar não fosse uma atitude típica de Chevalier, já tinha sido doce o suficiente deixar aquele acadêmico convencido plantado numa mesa para dois no Le Pavillon, um dos melhores restaurantes de Nova York. Caminhei pelo saguão até a rua, fiz um sinal para o táxi que vinha se aproximando e me despedi do rapaz alto e confuso atrás de mim, tão consternado quanto há dez minutos, quando eu disse, sem mais explicações, que precisava ir embora. Posso ter sido um tanto rude, mas não havia espaço na minha cabeça para pensar em Aidan, sua falação maçante e seu toque acidental no meu pulso que não me fez sentir coisa alguma. Só havia um toque que fazia a minha pele reagir e era atrás dele que eu estava indo.
— Maldito. Maldito. — praguejei quando bati a porta do carro. — Eu te odeio, Lee Seokmin.
— Para onde, moça? — o taxista me encarou num tom preocupado, me analisando pelo retrovisor.
— Para uma armadilha de veludo. — mostrei para ele a localização da mansão dos Lee. — Uma armadilha de veludo, músculos e sorriso matador. Isso não é justo, sabia? — me agitei no banco. — Não é justo um homem só ter tantos atributos e ainda ser da cor de um caramelo! Eu odeio ele! O senhor ouviu? Eu odeio!
O motorista ficou ainda mais assustado e deu a partida, rindo amarelo. Afundei outra vez no banco, derrotada, e digitei uma mensagem para Seokmin com os dedos em fúria. Os dedos e outras coisas. Meu corpo já estava se eriçando porque sabia que estávamos indo ao parque de diversões.
Me:
Eu mudei de ideia.
Seo 🔥:
Você sabe onde me encontrar.
Você sabe onde me encontrar.
Desci do carro deixando para trás o senhor que protestava a quantidade de notas que eu joguei nele, passando e muito do valor da corrida. Atravessei o jardim imenso ouvindo meu coração bater em toda parte e o sangue fervilhar feito lava. Me irritava que fosse tão óbvio para Seo o poder que ele tinha sobre mim, mas ele sabia como ninguém converter essa ira em prazer. A lembrança dele embaixo de mim surgiu feito um clarão na minha mente e eu quase consegui ouvi-lo dizer “É mais gostoso quando você senta com raiva, ” quando digitei a senha da fechadura eletrônica e adentrei a sala direto para o covil daquele lobo em pele de cordeiro.
— 21h? — o desaforado saiu do banheiro da sua suíte enrolado num robe azul-marinho. — Você odiou o cara ou o quê?
— Eu odeio você. — disse, ainda da porta.
— E você veio me odiar aqui no meu quarto? — ele penteou os cabelos molhados com os dedos. — Que atenciosa!
— Eu vim sentar em você, Lee. — senti as bochechas aquecendo. — E você sabia. Por isso que eu te odeio.
— É mesmo? — Seo fez uma falsa cara de indignação e um beicinho tão falso quanto, espalhando-se na cama. — Por que você não vem aqui repetir isso, hein? — ele brincou com o lóbulo da orelha, malino feito uma criança travessa desafiando uma autoridade.
— Eu odeio você. — larguei a bolsa no chão e comecei a andar. — Eu odeio que você nunca pare de sorrir. — o bracelete foi o próximo. — Eu odeio o que esse sorriso faz comigo e eu odeio, Lee Seokmin... — me apoiei numa das paredes para tirar a calcinha por baixo do vestido e atirar na cara dele. — ...que você saiba me foder tão bem.
Sentei no colo dele e recebi uma língua ávida para me avisar que eu era bem-vinda, entrando no céu da minha boca como se fosse a sua casa. O roupão felpudo atritava deliciosamente contra a minha intimidade nua e eu estava urgente por mais pele, mais contato e mais... ele.
— Eu sou viciado em você, Chevalier. — Seo sussurrou, sem interromper o beijo. — E eu quero te provar de um jeito que eu não provei ainda.
Enrosquei as pernas na cintura de Seokmin quando ele se levantou da cama apenas para me acomodar melhor nela, me obrigando a me deitar e se deitando sobre mim. Os lábios inquietos me sugaram, me lamberam e me morderam o pescoço e o decote, a ponto de pular do vestido. Ensaiei me virar para iniciarmos a nossa dança, sabia que Seo gostava de começar por trás, mas, daquela vez, ele encaixou as mãos grandes nos meus quadris e me manteve contra o colchão. Minha barriga trincou quando ele escorregou vagarosamente e ajoelhou-se na beira da cama. Nossos olhos se encontraram enquanto ele umedecia os lábios e a íris faminta dele me fez perceber qual era o plano.
A ideia de ter alguém com a cara enfiada lá me fazia tremer de vergonha. Mesmo os dois caras com quem eu me envolvi quando estive na Itália, que eu poderia chamar de esquemas “fixos”, chegaram a se oferecer para a tarefa, mas eu recusei. Seo, no entanto, sabia como me soltar, como me deixar à vontade, e eu não tive forças para resistir à trilha de beijos que ele começou na minha perna quando desafivelou a minha sandália.
— Faz tanto tempo, . — ele percorria, com paciência, a parte interna das minhas coxas. Um beijo de cada vez, subindo sem pressa o caminho do meu sexo. — Tanto tempo e eu ainda não sei que gosto você tem.
Não sei descrever o que eu senti quando ele, enfim, chegou ao seu destino. Parecia que ele tinha sede de mim, mas embora ele estivesse ali me bebendo, era eu quem estava sendo saciada. Mesmo sem entender a mistura de sensações que aquele beijo úmido me causava, eu cedi ao instinto de me insinuar na boca dele e fui prontamente atendida. A leve ardência da barba nascente me arranhando e a maciez da língua incansável criaram a tensão perfeita e ele me invadiu até eu relaxar satisfeita e lambuzar os lábios alheios com o meu prazer.
Afundei no travesseiro, exausta. Mais uma primeira vez que era dele.
— Precisa de cinco minutos? — ele levantou um pouco mais o meu vestido e me beijou o ventre repetidas vezes.
— Talvez dez. — sorri, sentindo minha carne trêmula bater no rosto de Seo e esperando meu corpo assimilar a deliciosa novidade que era gozar daquele jeito.
Seokmin riu vitorioso e procurou seu lugar ao meu lado, me arrastando pelos lençóis e me encaixando com facilidade na conchinha de dentro, me pressionando contra sua rigidez latente. Gostava do cansaço que ele me dava e me permiti descansar ali, sem me importar com o vestido de alças despencando que não cobria mais quase nada.
— Seo... — chamei baixinho, riscando círculos no braço malhado em volta de mim.
— Hm? — ele respondeu, dengoso por causa do carinho que eu fazia com as pontas das unhas.
— Na noite do baile, você me disse alguma coisa em coreano. O que era?
— Eu pedi pra você ficar. — ele soprou no meu ouvido. — Você vai ficar essa noite?
Me debrucei sobre o corpo sarado, esfregando meus seios descobertos contra o peito dele e minha boca contra a sua. Senti o membro semiacordado se mover abaixo de mim e meu interior latejou novamente.
— ... — ele desgrudou dos meus lábios. — Você vai fic-
— Shhhh. — usei dois dedos para silenciá-lo e desci o beijo pelo tronco esculpido, desfazendo o laço do robe. — É a minha vez de te provar agora.
O semestre estava quase no fim, assim como a minha paciência e a minha sanidade mental. Como se não bastassem as provas finais, a viagem entre cursos que eu tinha inventado de organizar e os planos para o aniversário do meu avô, a senhora Le Blanc estava viajando para uma conferência e deixou Aidan, a sua pupila, responsável por avaliar e atribuir os temas dos seminários. Coincidentemente, dado o nosso encontro desastroso, o doutorando escolheu me presentear com o tópico mais difícil e eu estava me desdobrando para acompanhar todas as leituras.
— “Introdução aos modelos retórico-analíticos, investigação sobre a recepção da ciência da literatura empírica...”
Lia em voz alta o plano de aulas enquanto andava até o auditório para a minha próxima aula. Estava atrasada e cortei caminho pelo estacionamento. As frases ficavam borradas conforme eu avançava os passos e, mesmo arriscando um descolamento de retina, eu não tirava os olhos da pilha de papéis nas minhas mãos. Eu estava tão absorta na descrição da disciplina que esqueci de prestar atenção em outros detalhes importantes ao meu redor, por exemplo: quando foi que aquela moça bronzeada com rabo de cavalo alto e coturno agarrou meu braço?
— Pois não? — olhei confusa para a garota que apertava meu pulso com uma mão e segurava a alça da bolsa a tiracolo com a outra.
— Tá vendo aquilo lá? — ela apontou a rua interna da universidade e o tráfego ali. — São carros. Se um deles passar por cima de você, você vira panqueca.
Bati os cílios várias vezes e levei alguns segundos para entender o que eu quase fiz. Eu fui salva por uma desconhecida que estava metida numa calça e numa jaqueta de couro, tal qual o Motoqueiro Fantasma. Ou um dos X-Men, porque parecia mesmo um traje de super-heroína.
— Salvou nossas vidas! — abracei a morena misteriosa sem a menor cerimônia. — Somos eternamente gratos!
— Chevalier é fã de Toy Story? — ela reconheceu a referência que eu parafraseei e fez uma careta para o abraço repentino.
— E como você sabe meu nome? — perguntei e me arrependi. O acidente dos meus pais repercutiu localmente, todo mundo sabia o nome da “criança que sobreviveu”.
— Sabendo. — ela deu de ombros e mexeu na bolsa. — Além disso, você está na primeira página do Saint Peter News de hoje. — ela me entregou o jornal da universidade com uma foto minha na capa.
Rangi os dentes. A matéria estava assinada pelo troca-letras o próprio, Boo Seungkwan, e a foto foi tirada enquanto eu estava na cafeteria, me agachando para amarrar o sapato, com um zoom em alta resolução na serpente que eu tatuei no tornozelo dias atrás. Eu já havia participado do jornal com um depoimento sobre a casa de Dante Alighieri, mas daquela vez minha aparição foi bem mais pessoal e sem vínculos literários.
— Parece que você não gostou muito. — minha salvadora observou, me assistindo ler a notícia. — Se precisar de ajuda para chutar a bunda de alguém, procure por Denise Andrews no prédio da Biologia.
— Denise Andrews? — esqueci a raiva pela publicação por um momento. — Você é a herdeira do New York Aquarium?
— Sim. E assassina de aluguel também.
Arregalei os olhos e perdi a cor.
— É brincadeira. Assassinos não saem por aí dizendo que são. — Denise se explicou e nós duas rimos.
Podia ser precipitado afirmar, mas eu sentia que Denise e eu seríamos grandes amigas. Trocamos telefones e nos despedimos, e eu decidi que precisava fazer mais uma parada antes da aula para acertar contas com um certo jornaleiro. Acatando o conselho da minha mais recente amizade, fui até a praça central do campus sem ler nada, concentrada apenas em chegar lá sem ser atropelada. Avistei o meu alvo sentado numa das mesas de madeira, ao lado de Marie Bee, para quem ele olhava com uma cara estúpida de apaixonado. Bati os pés e me aproximei para confrontá-lo:
— O que é isso? — espalmei o jornal na mesa sem sequer cumprimentar minha melhor amiga ou Seungkwan.
— O que parece? — ele reprimiu o riso. — Vocês da Literatura não sabem ler?
— O que eu estou fazendo no seu folhetim de quinta, seu sopa de letrinhas? — quase gritei, enquanto Marie fechava os olhos e negava com a cabeça.
— Não é um folhetim, é um periódico. — ele fez a distinção com orgulho. — Eu recebo verba da universidade para financiá-lo, ele serve aos interesses da comunidade acadêmica.
— E desde quando a comunidade acadêmica se interessa pelas “Novas tatuagens de Chevalier”? — li o título da matéria, espumando. Digamos que no intervalo de um semestre eu tenha feito mais uma tatuagem, ou seis.
— Eu também não entendo o frenesi, mas as pessoas querem saber. Um jornalista deve se comprometer com a informação, seja ela qual for. — Seungkwan me mediu com desdém e arrematou a afronta. — E eu acho as suas tatuagens feias.
— Por que que você não pega o que você acha e enfia no-
— Uau! — Marie interviu, levantando-se da mesa. — Que animosidade é essa entre as minhas duas pessoas favoritas, hein?
Fuzilei a loira com os olhos. Desde quando aquele cara redonda tinha chegado ao posto de pessoas favoritas da Marie Bee? Tudo bem, eu estive fora por um ano e não tive sossego desde que voltei, era de se esperar que ela se aproximasse mais de outras pessoas, mas tinha que ser logo aquele projeto de redator?
— ! — Marie separou meu nome no meio, como uma mãe repreendendo um filho. — Você não pode impedir que o Seungkwan escreva sobre você. Você assinou o termo de uso de imagem quando participou daquela edição, lembra? — ela pôs a mão na cintura e virou-se para o jornalista em questão. — Boo, você não pode falar assim das tatuagens da . Até porque, você já me confessou que gosta delas. Agora os dois, peçam desculpas e dêem as mãos por cinco minutos!
Seungkwan e eu viramos o rosto ao mesmo tempo, torcendo o nariz, cada qual para um lado.
— Vão ser dez minutos se vocês não pararem de frescura! — ela apontou o dedo em riste.
Suspirei. Marie Bee tinha razão. Aidan estava dificultando a minha vida como vingança pessoal pelo encontro péssimo e eu estava atolada em trabalhos, aquela minha reação exagerada foi apenas eu descontando em Seungkwan uma carga de estresse que não era culpa dele. Hasteei a bandeira branca e estendi a mão primeiro, proclamando a trégua com desgosto:
— Me desculpa. — murmurei.
— Como é? — Boo inclinou-se na minha direção. — Eu não ouvi.
— Marie Beeeee! — apelei para a juíza, esticando o nome dela num tom mimado. Ela apenas olhou para Seungkwan e sorriu. Foi o suficiente para o panguão desmontar.
— OK, OK. Eu aceito as desculpas.
— E? — Marie encorajou.
— E me desculpa também. — ele consentiu e finalmente apertamos as mãos.
Seladas as pazes, eu milagrosamente consegui chegar a tempo para a aula de Teoria da Literatura, durante a qual, achando que meus dias tinham 36 horas e não 24, me inscrevi para mais uma atividade extracurricular. Era bem verdade que eu estava mastigando mais do que eu podia engolir, mas eu não conseguia evitar. Tudo relativo ao meu curso me empolgava e eu me sentia consumida por ele (num bom sentido). Tanto que sequer tive tempo de ver Seokmin: já faziam duas semanas desde a última vez em que eu estive na casa dele e o deixei dormindo feito um anjo depois de uma noite infernal. Eu esperava que Seo já tivesse se acostumado a amanhecer sem mim todas as vezes em que estivemos juntos, mas, quando eu vi o carro dele encostando, o semblante menos iluminado dizia o contrário.
— O capitão do time poderia me dar uma carona? — brinquei, me debruçando sobre a janela do passageiro quando ele me viu e desceu o vidro.
— Então agora você lembra que eu existo? — Seokmin apertou os olhos para mim, mas logo deu lugar ao sorriso.
Entrei no carro e ele dirigiu mais um pouco, até uma área menos movimentada atrás do prédio do núcleo de estudos linguísticos. Estava anoitecendo e não havia muita iluminação nos fundos do complexo, era o lugar ideal para conversar sem ser incomodado ou visto por olhos de jornalistas curiosos. Seo estava em silêncio e um pouco cabisbaixo, postura incomum para ele, que mais parecia um vírus da alegria. Sabia que eu tinha uma parcela de culpa naquilo, eu estava meio que negligenciando todos ao meu redor, mas era só uma questão de remanejar os meus afazeres e aprender a organizar melhor o meu tempo. Era o meu primeiro semestre, faria melhor no próximo, não tinha dúvidas. Além do mais, eu sentia falta dos meus amigos e uma saudade mais especial e dolorida de Seokmin.
— Por que você me obriga a acordar sozinho, hein, ? — ele apoiou as mãos finas no volante quando estacionamos.
— Eu não sei me despedir de você, lembra? — coloquei a bolsa e os livros embaixo do banco.
— Aidan está pegando pesado com você, não é? — ele acompanhou o movimento.
— Ele está me punindo por tê-lo deixado plantado no restaurante para ir atrás de você. Está vendo, Seo? — segurei o rosto dele pelo queixo. — Você é a causa de todos os meus problemas.
— Posso ser a solução deles também.— os olhos vieram parar nas minhas pernas sem sutileza alguma. — Eu sei que você anda ocupada, , mas está difícil ficar sem você. Ainda mais agora que você está mais tatuada. Mais confiante, mais assertiva. Mais gostosa... — ele respirou forte. — Eu sinto sua falta.
— Eu também sinto. — contornei o maxilar marcado dele. — Eu só estava tentando não me perder com distrações. E o seu corpo tem um monte delas, Lee Seokmin. Uma melhor do que a outra.
— Algumas horinhas de dispersão nunca mataram ninguém. — ele desenhou com o indicador na minha coxa, entrando discretamente por baixo da minha saia.
— O que está sugerindo, hã? Uma rapidinha no banco de trás, é isso? — segurei o antebraço dele, sempre à mostra pela jaqueta dobrada.
— Se isso é tudo que você tem pra mim, eu aceito. — ele riu fraco, mas galanteador, como sempre. — Eu estou com saudade, . Me deixa te distrair de vez em quando... — Seo raspou o nariz no meu pescoço e grudou os lábios entreabertos na minha pele, me obrigando a cruzar as pernas.
— Você não está jogando limpo, artilheiro... — mordi o lábio e desviei a vista do discreto volume que já queria se formar ali.
— Eu só estou reconhecendo o campo... — ele mordeu minha orelha. — Você ficou muito tempo longe, preciso te aprender de novo.
— Você está me aprendendo desde que eu cheguei aqui.
— E acertando todas as vezes, admita.
Lancei um olhar por cima do ombro e uma ideia rondava minha cabeça feito um vagalume em volta da luz. O banco de trás do carro. Eu tinha falado como uma brincadeira, mas parecia uma ótima opção para aliviar o meu estresse. Ergui os quadris para tirar a calcinha, esboçando um meio sorriso por aquela conveniência constante: sempre vestia roupas de fácil acesso quando estava com Seokmin. Não que uma calça ou uma peça mais complicada de remover fossem algum obstáculo para ele. Nada era difícil para Seo, ele era fácil desde o sorriso até o carinho nos meus seios por cima da malha fina, especialidade sua que ficava mais deliciosa a cada dia. Segui suavemente o curso do beijo calmo e ardente que iniciamos, deixando meu corpo encontrar o dele para livrá-lo da camisa branca. Cravei as unhas nas costas malhadas e fui arrastada, não sei como, para o colo de Seo e o caminho da minha felicidade no meio das pernas dele.
— Você não para de sorrir? — cutuquei a bochecha dele, ofegante, brincando com o sinal.
— Com você em cima de mim? Nem se eu quisesse. — ele aumentou o sorriso.
Olhei ao redor para o couro do estofado e as janelas fumê, embaçadas da nossa respiração. A camisa do Seo estava embolada num canto, uma das minhas sandálias ficou no banco da frente e a outra ficou presa no câmbio da marcha. Procurei pela calcinha e vi o tecido preto e rendado escapando entre os dedos dele, que ainda a seguravam de mão cerrada. Comecei a abotoar a blusa e me preparei pra sair de cima dele, mas ele me deteve segurando a minha cintura.
— Gosto do que temos, . — ele confessou depois de me beijar demorado, acariciando meu rosto.
— Eu também. Eu nunca tinha feito num carro... — sussurrei em resposta, ganhando outro beijo e o sorriso completo. Aquele que apertava os olhos e fazia o rosto inteiro dele sorrir junto.
Seo me estendeu o punho fechado, que eu soquei levemente com o meu:
— É sempre um prazer ser a sua primeira vez, Chevalier.
FIM.
Nota da autora: Obrigada por ter chegado até aqui! Essa fic faz parte do SVERSO, um universo compartilhado com as autoras Daphne M. e M-Hobi, e antecede os eventos da história principal, Shadow, my Shadow, também disponível aqui no site. Se você tá por fora desse surto, eu te convido a subir nesse trem descarrilado! Um cheiro e até a próxima!
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Nota da beta: Vem cá... Tem como não se apaixonar por esse sorriso e por esse homem?
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