Finalizada Em: 25/06/2020
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Campidoglio

Quando il vento della notte,
Lascia il posto all'aria chiara,
Molto mondo dorme ancora,
Io sono vivo.
Quando il sole del mattino,
Fruga I tetti piano piano,
Pettinando la città,
Io sono vivo.


Pooh - Io Sono Vivo

Quando o vento da noite
Deixa o lugar com ar limpo
Muitos dormem ainda
Eu estou vivo.
Quando o sol da manhã
Toca os tetos devagarinho
Penteando a cidade
Eu estou vivo


Basilica di Santa Maria in Aracoeli
16 de Maio de 2019
9:52 a.m.


Meu nome é di Laurentis, não tem outro em Roma! Eu não liguei para desmarcar meu ensaio.
— Cara, você está gritando com o padre.
Dois rapazes, sendo um deles muito alterado, eram cobertos de tanto de tatuagens quanto de roupas da melhor haute couture de Roma, sapatos Gucci e ternos de corte italiano tradicional. O que reclamava a plenos pulmões, não usava camisa por baixo do blazer e falava tão alto que a voz ecoava pela basílica. Os dois pares de idosas que acendiam as velas no altar olharam para eles com desconfiança.
— Não tem erro aqui, padre Cherisi, eu marquei meu ensaio hoje às 11 horas. Aqui na igreja, ainda especifiquei que iria usar a nave. — Disse o mais alterado, chamado , após buscar um pouco de ar num suspiro cansado.
O padre, já tão irritado quanto o outro, olhou para o papel que trazia nas mãos e depois para o jovem.
— Eu sei qual é seu nome. Mas acontece que não está aqui. Sinto muito, filho, não tenho como ajudar. Não foi registrado o seu pedido de aluguel!
— Me dê isso. — apanhou o papel — Um casamento às 11. Quem casa numa porra de uma quinta-feira de manhã?!
— Cara, fala baixo as irmãs estão rezando a liturgia das horas... — O amigo segurou o ombro de .
— Eu depositei com antecedência uma grana dos infernos para vocês fazerem isso comigo! Eu só preciso que me liberem um canto para a equipe de fotos que eu contratei.
— Eu também já te falei que não temos como devolver seu dízimo. E agradecemos o bom gosto de depositar antes. E de todo modo o casal que irá unir seu sim à Deus alugou toda a igreja nesse horário.
— Meu dinheiro não é dízimo nenhum! Eu paguei para tirar fotos aí, não ‘tô nem aí para essa cruz e qualquer um que queira casar debaixo dela. — apontou para a cruz que ficava no teto. — Eu te paguei para ter um ensaio de fotos aqui. Hoje. Às 11h. Estamos falando de negócios.
— O aluguel do espaço da basílica é revertido como doação para nossas obras, não há retorno. E o casal tem prioridade. Sinto muito.
, cara, só vamos. Não tem como insistir.
olhou longamente para o nome “ Martaci e Túlio Benevento” na frente do espaço “11 horas” no papel que o padre entregou e o amassou.
— Vocês são uns merdas. Sempre foram. E que esse casamento idiota não dure nem dois segundos. — pisou no papel amassado e deu as costas para o padre.
O amigo pegou o papel do chão, desamassou e pediu desculpas para o padre enquanto o outro já estava do lado de fora.


Campidoglio 2

10:49 a.m.

Martaci estava vestida de noiva no banco de trás de um Alfa Romeo Giulietta modelo dos anos 70 com a capota esticada. O carro era alugado e o motorista não trocou sequer uma palavra com ela.
Na tela do seu celular, discou outra vez para sua mãe, com o código de área do Sri Lanka.
Querida, está me ouvindo agora?
— Mamãe, eu não quero mais.
Houve um ruído de água do outro lado, a ligação chiava muito.
De novo, minha querida? Eu queria muito estar aí, perdoe a mamãe.
— Tudo bem.
olhou para cima. Não queria manchar o rosto de rímel derretido.
Se não quer, não se case!
— Mãe! Não é isso que você tem que me falar...
Estou te falando a verdade, minha querida! Você vem me falando há dias que não quer se casar. Não case!
ficou calada.
O casamento é lindo, tem seus altos e baixos, mas é uma união bonita.
— Mamãe, você se divorciou.
Após 17 anos amando seu pai. Tive meus motivos, mas não deixei de amá-lo. ouvia a mãe e uma lágrima escapou de vez. — Se com ele, que foi um homem incrível, já foi difícil, piccolina, não sei como seria com um homem que eu não amasse.
— Eu amo o Túlio.
Ama mesmo?
— Nos conhecemos há tantos anos. Ele tirou minha virgindade, é claro que eu o amo! — falava como se fosse a coisa mais racional do mundo se casar com o homem com quem transou a primeira vez. — Ele é gentil, respeita minha carreira e será um ótimo pai.
Ele está fazendo o mínimo. O que mais faz além disso?
se calou. O carro rumava para o Monte Capitolino e surgiam aos poucos as colinas da cidadela romana clássica com seus edifícios pardos e laranjas, fontes de mármore esculpido e turistas fotografando tudo o que era possível. Era sua parte favorita da capital, mas no momento ela não se sentiu feliz ao vê-la.
Piccolina, escute seu coração pelo menos uma vez na sua vida.
Antes de responder, olhou para a tela do celular e viu outra ligação. Despediu-se da mãe.
Onde você está? — Era uma voz feminina.
— Estou chegando. — respondeu sem conhecer o tom autoritário.
Não, não e não! Você está fazendo tudo errado! Não é para você chegar agora! É só depois das 11:30! A noiva chegar antes do noivo dá má sorte.
— Ei, motorista, tem como dar mais uma volta antes do destino?
— Não, madame, meu horário está marcado para te buscar 10:30 e deixá-la 11h na porta da basílica da Santa Maria in Aracoeli.
respirou fundo.
— Eu vou chegar agora. Sinto muito. — desligou e viu que a ligação era do número que anotou como “cerimonialista irritada”. — Não é como se eu quisesse que esse casório dê certo. — Disse afinal, para si mesma.
— Chegamos em 5 minutos. — O motorista a fitou pelo retrovisor.
— Assim disse Caronte. — suspirou.
desceu do carro e vários desconhecidos no sopé da escadaria da basílica encararam seu vestido branco justo e a tiara de diamante que optou em usar invés do véu. Entre scusas, buongiornos e recusar o pedido de dois turistas para tirar foto no meio da escada, ela subiu levantando o vestido acima das canelas para não piorar tudo aquilo levando um tombo.
As várias dezenas de degraus a deixaram exausta quando chegou à porta da igreja e ela curvou apoiada nos balaústres para respirar por alguns segundos. Alguém se aproximou rapidamente e a segurou pelo braço enquanto ela ainda amaldiçoava os degraus.
— Você deve estar fora de si! — era a cerimonialista, Simone reconheceu a voz insuportável. — Vai arruinar tudo chegando mais cedo!
Eu vou estragar tudo, não é? — soltou-se de arranco e falou em voz alta. Viu alguns rostos sentados dentro da igreja se virarem para vê-la e saiu do rumo da porta. — Não me trate como uma criança.
Che palle! Você se comporta como uma criança! Arruinando o planejamento da cerimônia! — A mulher a beliscou, torcendo a pele de Simone com força entre as unhas que guinchou de dor.
Do lado da porta, além de alguns turistas, haviam dois rapazes e um deles com uma máquina fotográfica. Eles pararam os flashes e assistiam a cena.
Vaffanculo! Não encoste em mim, stronza! falou alto. A cerimonialista tentou se aproximar de novo como uma harpia.
— Seu noivo não chegou ainda! Não torne isso ainda pior! Não estrague o melhor dia da sua vida, você precisa voltar e se esconder!
— O melhor dia da minha vida? — gritou — Que o diabo o carregue!
Ela recuou alguns passos, se sentindo confusa com tantas pessoas a olhando. De relance, viu seu cunhado e um dos primos do noivo saírem pela porta da igreja. Seu coração batia com muita força e sentia o pescoço tremer de raiva.
— Comporte-se! Não crie cena! — A cerimonialista tentou outra vez segurar o braço de , que a essa altura já estava vermelho e machucado.
— É o dia do meu casamento! Não crie cena você! — Dessa vez repeliu o braço da mulher com um soco de esquerda.
Mas o punho mal alcançou o queixo da cerimonialista, pois ela se desviou do ataque e empurrou , fazendo-a cair no chão e rasgar um pedaço do vestido branco.
— Parem com isso— Um homem se colocou entre as duas, usava um blazer preto e calças de alfaiataria — Você está machucando a moça!
olhou para a mão coberta de tatuagens do homem na sua direção e a segurou. Ele a ajudou a se erguer.
— Você está bem? — A voz dele era irritadiça, mas no fundo protetora. Soltou a mão de e se afastou um pouco, com o olhar perscrutando o rosto dela.
Enquanto a mulher o observava, vendo as tatuagens dele no peito sem camisa pelo que podia ver da abertura do blazer, ele tirou um lenço do bolso do casaco, oferecendo para secar o sangue dos lábios dela. Não estava entendendo nada do que se passava.
A cerimonialista empurrou o homem de lado e voltou a segurar pelos ombros.
— Você precisa se esconder, stronza, o noivo vai chegar! — E sacudiu os ombros da noiva com força.
Leccaculo! avançou no pescoço da mulher e a enforcou.
No meio de uma pantomima de xingamentos e repreendas, o irmão do noivo e um turista idoso separaram as duas com empurrões. O homem tatuado surgiu na cena outra vez se colocou à frente de para a proteger dos tapas da cerimonialista, recebendo-os ele mesmo nas costas.
— Você se feriu, mas está bem?
— Sim. — A voz de era um ruído fraco, ali à sombra de seu estranho salvador. Ainda viu a cerimonialista socar as costas do homem que a protegia e fechou os olhos. Seu corpo tremia.
— Ela é insistente. Vai ficar tudo bem, ela não vai te machucar de novo. — ele se afastou , quando a outra mulher era arrastada para longe deles.
— Me tira daqui. Por favor…
Os dois se encararam e atrás deles, o irmão do noivo agora brigava com toda a equipe cerimonialista a gritos.
— Para onde?
— Para longe. — estava à beira das lágrimas e mal podia discernir os traços do rosto de seu protetor.
Lá no pé da escada, um carro parou e um homem alto saltou com um sorriso no rosto. arfou e imediatamente segurou contra seu peito os dedos tatuados do homem que a protegeu.
— Me tira daqui. Pelo amor de Deus.
— Mas não é o seu casamento?!
— Por favor. — Implorou uma última vez.
— Vem comigo. — O homem segurou a mão de e lhe deu um lenço com cheiro de verbena. A guiou para um corredor que separava a igreja do museu, estreito e quase um labirinto de turistas. No caminho, puxou o amigo que fotografava tudo, pelo colarinho, que os seguiu.
! Martaci! — Foi a última coisa que ela ouviu — Seu marido chegou, volte!
— Eu não vou voltar. — Disse, olhando para as costas do homem que a guiava. — Não mesmo.


Campidoglio 3

I tremble
They're gonna eat me alive
If I stumble
They're gonna eat me alive


Metric - I’m Alive
Estremeço
Eles vão me comer viva
Se eu tropeçar
Eles vão me comer viva


Colonna Traiana

11:10 a.m.

— Cara, chega de correr. Pelo amor de deus, eu sou fumante.
— Eu também, seu imbecil.
— Ótimo, me dá um cigarro. — parou ao lado dos dois homens ofegantes, em igual estado.
Os três pararam numa esquina na via Cesare Battisti e escoraram no muro de uma rua com espaço apenas para bicicletas.
— Obrigada. — respondeu, quando um dos homens lhe deu o cigarro e o outro acendeu. — Por me tirarem de lá.
— Você se machucou. Lá com a mulher e durante o caminho.
ergueu o vestido acima dos joelhos ralados pelo tombo feio há duas quadras atrás. Com o lábio inchado pelo tapa que levou da cerimonialista e os braços feridos de unhas, parecia ter fugido mesmo de uma briga em vez de só um casamento.
— Sou Cris. Este é o .
.
— É, a gente sabe. — Disse , o homem que a ajudou. — Você fodeu o meu negócio hoje. Seu casamento foi marcado no lugar do meu evento fotográfico.
— Pega leve, cara, ela acabou de levar um caldo… — Cris disse, acendendo um cigarro.
— Perdi muita grana por causa do seu casamento. — apontou o dedo para . Ela tragou o cigarro sem encará-lo.
— Te pago o valor que gastou. Para te ressarcir.
O quê? — Os dois disseram em uníssono.
— É, se a culpa é minha eu pago. Eu não quis casar numa merda uma quinta feira, foi meu noivo quem escolheu, era uma promessa pra avó. Adivinhem, só tinha horário quinta às 11 da manhã.
e Cris tragaram sincronizado encarando a mulher.
— Pena. — Cris disse após soltar a fumaça.
— Tínhamos um esquema lá nesse horário. O padre passou a perna na gente e aí fomos tirar foto do lado de fora, dispensamos os fotógrafos e a equipe de maquiagem, aí perdemos ainda mais grana.
— O que vocês fazem? — deixou de encarar o vazio e contemplou os dois.
tinha os olhos estreitos como se estivesse constantemente com fotofobia ou irritado. Cris tinha olhos grandes e escuros por baixo de uma cortina de cabelos encaracolados. Ambos eram os homens mais bem vestidos e tatuados que já viu. Cris tinha duas tatuagens no rosto e tinha mais tatuagens no peito à mostra e na falange dos dedos.
— Somos modelos. Estávamos lá para fazer um book para o fashion week mês que vem. tirou dinheiro do aluguel dele para pagar a igreja — Cris disse e recebeu um olhar congelante de . Ou ele sempre olhava irritado para os outros? — Digo… A grana é curta sabe… Modelo independente é assim mesmo.
— Vou te pagar, . — disse.
— Não é hora de se preocupar com isso.
Tragaram em silêncio. O muro que se encostavam era coberto de cartazes sobre peças de teatro da região e até algumas pichações. Cris estava ao lado de e a frente dela.
— Deixa eu ver de novo. — disse.
— O quê?
— Sua perna.
O quê?! recuou.
— Seu machucado, brunetta.
não gostava do hábito romano e lascivo de ser chamada de “morena”, mas tinha que admitir que vindo da boca bonita de , não se importou. Levantou novamente o vestido acima dos joelhos e o homem se aproximou estreitando ainda mais a vista.
— Você não vai conseguir andar muito mais com o machucado desse jeito.
tateou o próprio corpo.
— Estou sem celular e carteira… Não tenho como pagar uma condução.
— Quer que a gente te leva de volta? Por que você não é daqui, não é? — Cris tinha um tom de voz curioso.
— Não quero voltar. Nunca mais pisarei naquela igreja. E não sou daqui.
— Nápoles? — Cris insistiu.
— Sim. Como adivinhou?
— Ah eu sabia — Cris abriu um belo sorriso — Te falei, , ela é de Nápoles.
— E daí?
— Você é a típica mulher de Nápoles. Arredia e nervosa.
se virou com as mãos na cintura. Clichés não eram com ela.
— Retire o que disse. Você não me conhece.
— Moça — Cris continuou sorrindo. — Você fugiu de um casamento. Você é de Nápoles. — E tragou.
— Corta o papo, imbecil. — censurou. — , onde quer que eu te leve? Seu hotel, talvez?
— Eu moro aqui em Roma. Ou melhor, vou morar… Com meu noivo… — estrava dizer “meu noivo” como se fosse um sabor amargo na boca. — Me mudei há dois meses e vou pegar minha nova casa quando voltar da lua de mel... até lá fico na casa da minha sogra.
Cris e se olharam.
— Não quero voltar. — suspirou. — Não posso aparecer lá. Não tenho a chave. Eles vão me matar. E que se dane lua de mel. Não gosto da França...
— Tudo bem, então para onde quer ir? — apontou para o rasgo na manga do vestido de — Você precisa de sapatos confortáveis. E de uma roupa que não esteja rasgada.
A mulher olhou para cima, para o céu azul e brilhante da manhã de primavera e sentiu as lágrimas se aproximando. Se afastou um pouco e jogou o resto do cigarro no lixo, sentindo o amargor na boca. Ficou alguns minutos contemplando o pequeno beco vazio, com o som dos carros e do movimento a distância, até receber um toque suave no ombro.
— Tome. — surgiu com uma garrafa de água, já tinha outro cigarro na boca.
Sem pensar, tocou a mão do homem sobre seu ombro e virou o rosto levemente, não pegou a água.
… — A voz dela saiu fraca, secou as lágrimas com o mesmo lenço que ganhou mais cedo. — Qual foi a última coisa que você fez por impulso?
Ele apertou o ombro de e se aproximou para falar baixo no ouvido dela.
— Salvei uma noiva em fuga das garras de uma harpia. — E riu baixo.
sorriu e se virou por inteiro, ainda a encarava com os olhos pequenos, mas com uma sombra de sorriso tímido. Ficaram alguns segundos se encarando.
— Vai ficar tudo bem.
— Obrigada por me ajudar.
— Diga, brunetta, para onde quer ir agora? — Ele colocou as mãos no bolso.
— Para qualquer lugar. Só não quero voltar para meu noivo hoje. Não quero… ser quem eu achei que seria hoje quando acordei.
— Não quer ser a signora de alguém?
— Não quero ser de ninguém. Signora ou signorina.
— Então vamos nessa. Estou morrendo de fome — Cris surgiu com uma lata de Coca Cola e abraçou o pescoço de , que fez uma careta.
— Para onde? — aceitou a água e bebeu.
— Eu vou para casa, já liguei pro Dariush e pedi para separar meu falafel. — Cris acendeu outro cigarro. — Vocês não estão com fome?
— Você está com fome toda hora. — resmungou.
— Eu estou com fome. — disse, mesmo sem ter certeza.
— Viu, ela está com fome. Vamos embora. — Cris insistiu.
— Ela não pode andar muito.
— Eu aguento.
Os dois homens a encararam.
— O que foi? Estou assim tão feia? — As sobrancelhas grossas de se arquearam.
— Nunca.
— Você está linda. Nós podemos ir mais devagar agora, que não tem mais ninguém seguindo.
olhou para o seu reflexo no carro mais próximo. Retirou a tiara de diamantes da cabeça e a jogou no chão.
— Opa opa pera aí — Cris arregalou os olhos e tentou apanhar a tiara, mas o salto de já a pisava e desfazia em mil pedaços. — Não…
— Essa merda é falsa. Tudo falso. — apanhou os pedaços e jogou fora, junto o que que sobrava do seu véu. Em seguida arrancou uma das mangas de seda que já estava rasgada e fez um laço para amarrar o cabelo muito armado. Ao fim, olhou para os dois homens que observavam a desconstrução como quem assiste um prédio ser demolido. — Vamos.
— Tenho um tênis na minha casa que pode te servir. Se quiser continuar fugindo a pé por Roma.
— Perfeito. E eu vou te pagar todo o prejuízo.
— Com o quê? Você não tem carteira. Nem celular, nem nada. — ergueu as sobrancelhas.
— Eu trabalho num banco. Posso transferir dinheiro de qualquer lugar.
— Tudo bem.
— Me leve… Ou me esconda, pelo menos essa noite. Não quero voltar para casa.
finalmente converteu a seriedade os lábios grossos num sorriso divertido.
— Como desejar, brunetta. — e ofereceu o braço para o segurar. — Rumo a Trastevere.
— É o meu bairro favorito de Roma! — sorriu.
— O nosso também. — Cris sorriu. — Crescemos lá.
sorriu e apanhou o braço de . Começaram a andar, dessa vez mais calmos, pelo passeio irregular da cidade antiga. Quem os via, poderia acreditar que os três estavam saindo de um ensaio fotográfico. e Cris com seus óculos escuros e roupas elegantes e , com o vestido sujo e rasgado se esforçando para equilibrar a consciência e o corpo no salto de dez centímetros. Não conversaram muito no caminho, mas a mão de amparou a cintura de em várias escadas e declives.
Ela nunca se sentiu tão viva, metade medo e metade euforia. Ouviu as histórias de Cris sobre as aventuras dos dois amigos na noite romana e por alguns metros sobre o chão, se esqueceu de seu noivo e da vida que a esperava naquele mesmo horário. Algum sino tocou e naquele momento, em alguma outra realidade, ela estaria casada.
Em alguma outra realidade, mas não naquela.


Trastevere

Piazza di Santa Maria

11:59 a.m.

Em um ponto do caminho quase caiu feio e decidiu que era melhor andar segurando a cintura da mulher para ampará-la.
Ela não achou ruim.
— Que perfume é esse? — Ela perguntou, quando sentiu o cheiro de mais de perto.
— A princesa de Roma só usa verbena. Pós barba de verbena. Sabonete de verbena. é quase um idoso. — Cris criticou.
— É bom.
— O seu é algo mais chique, não é? — se virou e aproximou o nariz do rosto de . — Colônia francesa. Você é granfina.
— Digamos que tenho bom gosto. — sorriu, sentindo seu estômago retrair com a aproximação de quem já estava próximo.
curvou de novo os lábios num de seus sorrisos raros e estava começando a gostar ainda mais dele. Permaneceram abraçados e caminhando.
Rumando para o bairro que amava, a mulher lembrou-se de como seu noivo a criticou quando disse que queria comprar um apartamento antigo lá, chamando o bairro de antro de depravados e turistas.
— Meu pai já me trouxe numa osteria aqui. Quando eu era criança. Isso tem tantos anos… — sorriu, quando pisaram a primeira vez na piazza da Santa Maria em Trastevere, um grande pátio com uma fonte central, rodeado de prédios com quatro ou três andares, janelas estreitas e longas com tetos antigos da típica cor laranja ocre da região. Cascatas de plantas de folhas pequenas cobriam algumas paredes, surgindo dos parapettos das janelas mais altas ou pela divisa se um sobrado e outro.
A cada canto, havia uma trattoria, pizzeria ou osteria. Também, é claro haviam lojas de pequenos consertos, algumas sorveterias e até uma livraria, mesmo portas minúsculas que vendiam todo tipo de comida. Uma ópera de Bellini saia de alguma janela aberta, brigando com o som de um acordeom do músico de rua mais perto. Havia muito movimento pelo horário de almoço.
— Você se lembra qual? — perguntou, curioso, vendo virar o rosto toda hora para ler o nome das placas conforme adentravam as ruas estreitas.
— Tudo aqui é tão similar. Posso me perder a qualquer momento… Lembro que começava com O…
— Podemos tentar encontrar. — Pararam a caminhada quando viraram uma esquina e viram uma piazza menos movimentada.
— Esse bairro é mesmo lindo. As pessoas, o movimento, a música — sorriu e viu que estava com o rosto virado na direção dela.
— Roma não é Roma sem Trastevere. — sorriu e subiu a mão da cintura para o ombro de . — Os romanos de verdade nascem e morrem aqui, desde sempre.
— Aí, vou nessa, preciso pegar meu falável. Vejo vocês em casa. — Cris fez algum sinal de gangue com os dedos para e em seguida beijou as costas da mão de . — Caríssima bride on the run. — E em seguida deu as costas para eles.
— Noiva em fuga. Que título. — riu baixo.
— Melhor que signora, não?
Ela riu e pensou ter ouvido um certo tom sugestivo de .
— Sim. Antes nunca do que quase.
ergueu as sobrancelhas sobre os óculos escuros.
— Por que escolheu casar, então? — tocou a cintura de com calma, indicando o caminho pelo beco repleto de mesas cheias de pessoas almoçando. O cheiro se misturava entre manjericão fresco, tomates tostados e fumaça de cigarro sempre aceso de . Também era o cheiro das azaleias em flor que surgia das janelas ou dos vasos das mesas na rua.
— Ah, Túlio e sua família moram no mesmo prédio no Tor de Quinto há gerações, eu me mudei para Roma quando fui transferida de agência, aqui vou ter uma carreira nas contas empresariais. É bom, para morar com Túlio precisamos nos casar.
— Por que não aluga um apartamento para você? Está procurando um casamento ou uma imobiliária?
— Esse argumento é infantil.
— Casar para ter um teto… Eu poderia casar com a mãe de Cris, porque ela quem subloca minha casa. — desenhou um sorriso torto como se tivesse imaginando falar isso para o amigo. — O que me impede?
— Se você acha mais fácil…
— Não!
— É lógico que quero casar com Túlio por outros motivos. Ele é gentil e amável...
— Você o ama? — a olhou, parou de caminhar, mas em seguida alcançou o outro, que não parou.
— Óbvio que sim!
— Então por que fugiu?
— Não sei se você viu, mas eu fui agredida. — ergueu o braço ferido — E você está me deixando mal falando desse jeito...
— Você iria ficar mal a vida inteira, se casando apenas para ter onde morar.
parou de caminhar de vez e fitou a parede. olhou para trás.
— Ei, venha cá, não foi a minha intenção. — segurou os dedos de , ainda cabisbaixa. — Não vamos mais falar do seu noivo, ok? Você quer fugir dele por hoje e pediu minha ajuda.
— Você tem razão. Eu não o amo.
— Claro que ama. Vocês vão se casar...
tombou a cabeça, mais por instinto e impulso, assim como tudo o que andou fazendo na última hora e recebeu um abraço de . Estar envolvida nos braços dele e repousar a cabeça em seu peito cheio de desenhos na pele quente à mostra, foi confortável. As pessoas e os carros continuam passando por eles na movimentada travessa que estavam.
— Não sei o que está acontecendo comigo. — A voz de saiu fraca e abafada. a acariciou levemente e retirou os fios de cabelo colados na tez úmida da mulher.
— Vai ficar tudo bem. — Disse outra vez e sentiu bem ao ouvir essa frase.
Eles se encararam, ainda abraçados até alguém trombar neles e xingá-los. riu e secou os olhos, soltando-se do magnético abraço de .
— Eu estou bem. Eu vou ficar bem.
— Eu queria que soubesse que você é uma mulher muito bonita e que se quiser se refugiar da sua vida hoje, pode contar comigo. — a segurou pela mão. — Posso não ser nada parecido com os homens que já encontrou, mas garanto que não se arrependerá de passar o dia comigo. Você me pediu para levá-la embora por um dia, é isto que estou fazendo.
sorriu, já com o batom vermelho que passou para se casar, borrado e sem cor.
— Falo sério, brunetta. Se aventure comigo. Esqueça o homem com quem vai se casar, se é assim que você quer. O esqueça de vez, só por hoje. — a segurou pelo queixo e deu um beijo na bochecha feminina.
, muito enrubescida, o beijou, mas dessa vez nos lábios. Um selinho. Ele ensaiou um sorriso e abriu os olhos, com a expressão muito calma.
— Que tal um almoço, te levo na minha casa e você troca suas roupas e depois procuramos pela trattoria que seu pai a levou um dia? Ou podemos ir a outros pontos de Roma, já que você não conhece tanto daqui.
— Parece perfeito.
— Então este é nosso plano para hoje. Você é uma noiva em fuga e eu sou o pirata que a roubou. Não pretendo devolver por enquanto.
a segurou pela mão e voltaram a andar, dessa vez, ambos sorriam mostrando os dentes.


Trastevere 2

Vicolo della Frustra

12:12 p.m

tinha que assumir para si mesma que seus pés começavam a doer além da conta.
percebeu.
— Estamos chegando, brunetta, prometo.
Poucos prédios depois, viraram numa pequena piazza com uma fonte desativada no centro, alguns ristorantes e crianças correndo. Não se viam pessoas que se destacavam como turistas, falando em outras línguas ou tirando fotos de tudo. Estavam num lado mais tradicional do bairro, com alguns velhos vendo TV nos bares abertos e algumas nonnas batendo tapetes e roupas nas janelas.
— Gosta de comida árabe?
— Com certeza. — ela assentiu, grata por chegarem a algum lugar.
— Ei, Dariush! — cumprimentou um homem de avental que se espremia numa pequena fresta na parede que poderia ser uma sala, com uma placa “Kebab & Falafel”.
Salaam aleikum, ! Sabia que estava chegando, Cristiano passou há poucos minutos. — O homem não parou de montar e embalar o sanduíche e entregou a sacola para um cliente ali perto, já anotando o pedido de outro. ainda tentava entender como um homem só conseguia atender tanta gente. — Olá, bonita! Seja bem-vinda! — E sorriu para .
— Aleikum essalam. Sukran!
— De nada! Gostei de você! — Ele respondeu, dando as costas e continuando a fazer sanduíches.
— Posso pedir para você?
— Não tenho dinheiro aqui para te pagar.
— Dois gyros, Dariush. Um com mostarda extra, de sempre. — deu a ordem e apontou para o único banco e mesa que haviam a frente do pequeno lanche. — Como soube responder ao cumprimento dele?
— Às tardes de quinta tenho um trabalho pro bono com imigrantes no banco. Eu os ajudo a abrir suas contas. — Ao sentar, tirou os sapatos, que eram brancos e agora estavam mais sujos e beges do que nunca. Por baixo da meia fia, seus dedos estavam vermelhos de sangue e cortes pequenos de bolhas que se romperam. — Sei cumprimentá-los e o básico do árabe. Ai!
— Isso está muito feio. — escorou-se na porta do edifício onde estavam no passeio.
— Merda! — xingou e fechou os olhos — Minha meia furou.
— É sério que é essa sua preocupação? — o homem sorriu com o cigarro nos lábios.
— Ela foi cara… Não estava esperando andar tanto hoje. Uso meias mais grossas para este tipo de salto... — ergueu o vestido até o joelho ralado, onde a meia havia rasgado de vez.
observava as pernas a mostra de e se seus olhos estreitos falassem, diria que ele estava esfomeado e não era pelo gyros.
— Sabe, quando você acorda de manhã e escolhe uma roupa, você planeja passar o dia com ela? — enfiou a mão por baixo das camadas de seda e organza do vestido e alcançou a liga da cinta que prendia a meia rasgada. Desatou e puxou o tecido, terminando de rasgá-lo. — Se fosse para rasgar essa meia, eu preferiria que outro jeito. Porco dio...
Ela enrolou a meia rasgada e colocou dentro do sapato. Descalça e com o vestido dobrado no meio das coxas, se lembrou que estava numa praça pública e desceu de volta até os pés.
— Calma, você ainda tem a outra meia. — disse e o encarou. O homem não havia movido um músculo além dos lábios rosados abrindo e fechando para receber seu cigarro. — Ela ainda pode rasgar.
— Não do jeito que eu quero e não vá achando que irá ter qualquer coisa comigo. Ainda uso uma aliança. — E mostrou o dedo anelar.
— Eu sei. É a prova que você tem um teto, não é? Quantos nãos você diz numa frase, brunetta.
Ela suspirou e desviou o olhar. O homem a chamava de novo por brunetta e cada vez mais ela detestava a palavra.
Viu que algumas pessoas no ristorante próximo ainda a olhava, mas não se importou. O sanduíche chegou rápido e foi o melhor que já comeu, coisa que ela ressaltou várias vezes de boca cheia.
— Dariush se mudou para cá há uns anos, eu o ajudei a montar a barraca e agora ele aluga um cômodo, desde o começo sabia que o sanduíche dele era o melhor. — , satisfeito, disse oferecendo um guardanapo para a mulher.
— Eu poderia viver minha vida inteira aqui em Roma. — ela divagou, aceitando um cigarro de digestão e olhando para o pinheiro manso grande como um prédio cuja sombra cobria quase toda praça — E nunca chegaria até aqui sozinha, me sinto no olho do labirinto do minotauro. E esta é a recompensa da aventura.
— Então você viveria cem anos, sem nunca ir a Roma de fato. — apagou o cigarro e juntou o lixo da mesa. — Trastevere não é em Roma. Roma é em Trastevere. Não esqueça.
— Não esquecerei.
se pôs de pé e sentiu as dores dos pés voltarem com força. Antes que fizesse uma careta, se aproximou e ofereceu suas costas.
— Suba, vou terminar de te levar.
— Não precisa.
— Você quer que eu a leve a força?
— Não é preciso,
— Você ia ser levada no colo de todo jeito hoje, então não é como se já não estivesse esperando isso. Suba logo.
Ela riu pelo nariz, porque era verdade.
— Tudo bem! Mas só por um curto período.
Ela apanhou os sapatos e subiu nas costas de . Ele a segurou pelas coxas, por baixo do tecido do vestido e se levantou.
— Confortável?
— Como nunca antes! — riu, aproveitando para abraçar forte o pescoço de e colocar o rosto em seu ombro.
cumprimentava algumas pessoas com a cabeça e também, mesmo sem conhecer ninguém. Alguns idosos os olhavam desconfiados e sussurravam coisas como “jovens irresponsáveis”, mas nenhum dos dois pareciam se importar. A todo momento das mãos de deslizavam pela parte inferior das coxas femininas, tentando ter mais aderência ao peso ou simplesmente porque era bom.
O aroma de verbena emanava das ondas castanhas da nuca masculina fazia querer abrir todos os sentidos para poder absorver por inteiro, assim tão próximo. O tecido do blazer contra seus braços, a sensação rija dos músculos e o suave barulho da respiração dele fazia seu coração acelerar.
Chegaram a frente de um prédio tão antigo quanto outros ao redor, com tinta descascada e paredes manchadas. abriu a porta com um molho de chaves e começou a subir as escadas pichadas.
— Ei, eu desço aqui.
— Shh, eu te levo. — Ele segurou as coxas de com ainda mais força e começou a subir as escadas.
Passaram por dois andares com ruídos de choro de criança, alguém tocando um acordeon desafinado e cheiro de maconha até parar numa porta com a maçaneta muito gasta e a abrir.
— Está em casa, brunetta. — Ele gentilmente parou em frente ao sofá a deixou. Depois alongou as costas e suspirou.
abriu a cortina, revelando uma grande janela para um terraço que mostrava o lindo sol romano e os tetos das casas de Trastevere. O rio Tibre brilhava, a esquerda, distante e diminuto. Lá fora, haviam duas cadeiras, uma mesa e algumas bitucas de cigarro.
A pequena sala era também um quarto, com um guarda roupas de duas portas de estilo antigo ao lado da porta do banheiro e uma divisória na parede que separava a cozinha. Tudo era muito simples e até estoico, sem nenhum traço da personalidade que aparentava ter. Não havia decoração ou roupas fora do lugar, mais parecia um hotel.
tirou o blazer, ficando com o torso nu e revelando por inteiro as inúmeras tatuagens que cobriam seus braços, costas e o peito, com o suor disputando o brilho da tarde com suas correntes de ouro no pescoço e o piercing no nariz. Enquanto ele arrumava alguns copos vazio sobre a mesa, acendia um cigarro e bebia água, entortou a cabeça e estreitou os olhos tentando absorver todos os desenhos.
— Quer um binóculo de ópera para enxergar o espetáculo? — Ele disse, quando secou as mãos em um pano na pia que depois colocou sobre o ombro.
— Quantas tatuagens você tem?
— Por que você não começa a contar? Não é uma bancária?
— Umas cem?
— Não.
—Mais ou menos que cem? — desviou a atenção para o espelho que havia na mesinha de centro e se avaliou. Os seus brilhantes olhos escuros estavam com a maquiagem manchada.
— Não vou dizer, brunetta. Conte.
girou os olhos e se levantou.
— Você mora sozinho?
— Sim.
— É daqui que você tirou dinheiro para seu ensaio que meu casamento estragou. Cristiano comentou sobre o aluguel que você usou para pagar o ensaio...
— Exatamente.
— Me ajude a encontrar um caixa eletrônico com leitura digital para te pagar.
— Ei, brunetta, relaxe um pouco. — tirou uma caixa do armário. — O banheiro é ali, temos água e destilados. Fique à vontade, durma um pouco se quiser. Depois pensamos nisso.
— Não tiro cochilos durante o dia, mas obrigada.
foi até o banheiro e contemplou a caricatura de noiva em fuga que se tinha se tornado: o cabelo negro mais volumoso que nunca contornava seu rosto com sardas e maquiagem derretida. Após lavar o rosto várias vezes, ficou mais confortável vendo seus olhos sem destaque, de um castanho baço abraçados apenas pelos cílios naturais.
Olhou para o vestido rasgado e decidiu terminar o rasgo. Com pouco trabalho, apanhou a navalha sobre a pia e apoiou um pé na privada. Cortou metade da saia, ficando até os joelhos e arrancou a parte de cima, onde apenas o bustiê de renda creme que usaria para seduzir seu então marido, segurava seu torso. Aquela era uma lingerie que empenhou muito dinheiro e ficou satisfeita que lhe serviria como uma ótima opção de top para aquela aventura.
Toda aquela rebeldia era agradável. Sentiu-se adolescente de novo, ouvindo discos e estilizando seus jeans com a porta trancada do quarto. Sorriu para o reflexo natural e radiante no espelho, tentando se lembrar da última vez que se sentiu tão fiel à nada além dos próprios impulsos. De relance, viu a aliança quando penteou os cabelos com os dedos. Lembrou-se de Túlio.
Lembrou e esqueceu, saiu do banheiro antes que o rosto do noivo voltasse à sua consciência e ela se lembrasse que estava em um bairro desconhecido na casa de um desconhecido. Abriu a porta e encontrou um par de tênis surrados na porta.
— Olhei o número do seu sapato, vai servir.
Roupa rasgada, um tênis e a cara lavada. se sentiu mesmo com quinze anos.
— Obrigada. — Ela segurou o tênis e o deixou em um canto, em seguida sentou-se no sofá. a observou com o cigarro na boca consumindo a cinza, já na hora de bater no cinzeiro.
— Melhor agora? — questionou.
— Sim.
— Se me permite — sentou à frente de segurado a caixa com coisas de primeiros socorros — Vamos limpar nos seus ferimentos enquanto isso você repousa os pés aqui. — Apontou para uma pequena bacia com cheiro de verbena. — Verbena é anti-inflamatório. Vai aliviar sua dor.
contemplou o homem mais tatuado e bonito que ela já tinha visto falando sobre cuidar dos pés dela e ficou um certo tempo catatônica.
— Tudo bem?
— Essa é nova… Você está tentando me persuadir? Ou me sequestrar? Sou bancária, mas não tenho tanto dinheiro assim.
revirou os olhos, silencioso, começou a cuidar dos ferimentos de um por um. Primeiro tomou a perna da mulher que estava sem a meia e a guiou para a bacia, em seguida colocou o outro pé em seu colo.
Sem pedir licença, levou as duas mãos sobre o joelho da perna com a meia ⅞ e com gentileza, desatou a liga deslizando o tecido até sair por inteiro. Cada centímetro de pele que tocava de fazia a mulher se aquecer e se remexer no sofá.
— Está tudo bem? — Ele perguntou, segurando o calcanhar dela.
— Sim.
— Então fique quieta. — E colocou o pé dela na bacia. — Pare de se mexer.
— Suas palavras são ríspidas, mas seus gestos são gentis.
Ele a encarou com uma interrogação no rosto.
— Não sou ríspido.
— Não é, mas o que você fala soa ríspido.
Ele apagou o resto do cigarro e apanhou um vidro com cheiro de álcool.
— Vai doer. — e pressionou a gaze contra o maior ralado do joelho esquerdo de , que fez careta. — Mas vai ficar bom.
— Odeio me machucar. — disse, a contragosto.
— Que frase triste. — Ele repetiu o processo em outro joelho. Àquela altura ele estava com as pernas abertas e os joelhos de roçavam na parte interna das coxas masculinas — As pessoas se machucam.
— É, mas não gosto.
— Tudo se fere, tudo precisa ser cuidado. Há dor em todo lugar, mas isso não é ruim. — Agora os dedos de cuidavam da leve escoriação perto do calcanhar esquerdo da mulher, causado pelo atrito do sapato. — Mas isso não nos impede de continuar a aventurar. Você já escalou uma montanha?
— Não!
— Deveria. — a encarou nos olhos. — O braço, sim?
ofereceu o braço ferido pelas unhas da cerimonialista.
— Apoie aqui. — segurou a mão da mulher e a colocou em sua coxa e se curvou.
tentou não olhar para o rosto de tão perto e nem mesmo se lembrou da dor do álcool nos cortes recentes. A verbena disputava as sensações do seu nariz com o cheiro do cigarro.
Após passar os remédios nos ferimentos, segurou os dedos da mulher.
— Foi um belo soco.
— Ela mereceu — fez mais uma das mil caretas quando colocou um band aid no grande corte que ela tinha em duas falanges.
— Mereceu, brunetta. — ele levou os dedos aos lábios e os beijou. — Vai ficar bem agora.
A mulher vacilou a respiração por um segundo e eles se encararam.
— Você também se feriu nos lábios. — apanhou um cotonete, segurou o queixo feminino bem perto do seu e limpou o sangue seco do corte no canto da boca da mulher com água quente. — Realmente uma pena, mas não acho que vai te impedir.
— Impedir? — A mulher não resistia e olhava diretamente para os lábios de , muito inclinada a beijá-lo.
— De me dar um beijo. — Ele piscou com um olho e se afastou com sorriso torto.
— Não me provoque assim. Não vê como isso é difícil?
riu.
— Tão autoritária. — apanhou uma toalha que havia deixado perto e a estendeu no colo. — Tão bonita.
Ele retirou os pés da mulher da pequena bacia e os secou ainda olhando o rosto sério da outra, que acendeu um dos cigarros dele.
— Sou noiva ainda.
— Vocês estão juntos há quanto tempo?
— Há quinze anos.
— Credo — fez o sinal da cruz, o empurrou com o pé.
— Não diga isso!
— Se for para ficar tanto tempo com alguém que seja com o diabo.
— Retire essa blasfêmia! — lhe deu outro coice na barriga com a ponta dos dedos do pé.
— Ora, que católica brava. Você nunca cometeu um adultério?
— Não sou casada ainda. Não tenho como ser adúltera sem um marido.
— Então está solteira?
— Não! — Dessa vez foi dar outro empurrão, mas a segurou com força pelo calcanhar, ela revidou tentando se soltar, mas quando mais força empenhava, mais o sorriso dele abria.
— Você nunca traiu seu maridinho?
— Não e não quero falar disso! — ela se soltou e recolheu os pés para cima do sofá.
— Ei. — buscou o calcanhar esquerdo outra vez e trouxe para seu colo. — Estou apenas querendo provocá-la. Eu quero um beijo seu e a raiva te deixa ainda mais gostosa, me desculpe se não consigo me controlar. Não vou fazer nada se você não que quiser.
— O único beijo meu quem terá vai ser na sua lápide, se continuar assim.
— Antes disso vou te beijar. Na boca e onde eu quiser. — apanhou outro curativo e colocou sobre dois dedos do pé da mulher. Depois, subiu a mão pela panturrilha feminina até as costas do joelho. — O outro pé, brunetta.
o entregou e ele acolheu com igual cuidado. Ao fim do outro curativo, segurou os dois calcanhares e deslizou os dedos subindo e descendo pela panturrilha da mulher.
— Terminei seus curativos. — Continuou acariciando-a. — Pode ir embora se quiser.
Se olharam longamente, até os olhos de cair para o peito de .
Io sono vivo. Eu estou vivo.
— Um lembrete para quando me ver no espelho.
— Por que alguém precisa se lembrar que está vivo?
não parou o carinho gentil, que deixava a pele das pernas de em chamas.
— É para saber que se machucar é prova de estar vivo. Assim como você, que não gosta de se machucar. Talvez porque não gosta de se lembrar que está viva.
Os olhos pequenos masculinos desceram do rosto de para a coxas, os joelhos e os pés dela.
— Dreams. — Ela continuou lendo.
— Quem não os tem?
Diavoli. Essa combina mesmo com você.
— O diabo é terror de toda boa menina católica.
ergueu o pé e empurrou na altura do peito, agora ele poderia ver a parte debaixo do vestido dela.
— Não brinque com isso.
— Eu brinco com tudo. Brinco com o que você quiser. — segurou o calcanhar de e o levantou, colocando em seu ombro, virou o rosto para beijar a panturrilha dela. O outro calcanhar, colocou ao seu lado, abrindo a visão da roupa íntima da mulher.
apagou o cigarro e se recostou no sofá.
Angelo. Isso não é sua cara.
Ele a encarou.
— Olhe para mim, eu pareço com um anjo. — deslizou a mão pela parte de trás do joelho e até onde pôde tocar a coxa da mulher. — O diabo também é um anjo.
— O que quer de mim, ?
— Quero ser o homem para te foder na sua noite de núpcias que não aconteceu. — E beijou outra vez a panturrilha dela para depois descer o pé da mulher e colocar do outro lado do corpo. — Não sei explicar, mas me sinto muito atraído por você.
sorriu.
— Nunca transei com outro homem. — ela, dentro da onda de magnetismo dos gestos de e sua voz levemente rouca, colocou o pé sobre a coxa esquerda de e em seguida, em sua virilha. Seu rosto era um misto de vergonha e desejo, resultando nas bochechas coradas e os lábios umedecidos de tanto mordê-los.
— Você não sabe o que está perdendo, brunetta.
pressionou o pé e viu o homem fechar os olhos e franzir o cenho, um suspiro baixo escapou de sua boca.
— Sou quase uma virgem. — pressionou com mais força, já sentindo a querida rigidez do outro. Estava muito perto de arrancar tudo e principalmente a aliança.
— Virgem sagrada — tirou o pé da mulher de cima de si e se ajoelhou a frente dela. Seus olhos estreitos agora estavam com as pupilas dilatadas e com um doce brilho de devoção. o abraçou pelo pescoço — Me abençõe, então.
encarou outra vez os lábios grossos de antes de se entregar neles. Suas mãos o seguravam e envolviam pela nuca, pescoço e cocuruto, enquanto as dele abraçavam as coxas femininas. O beijo com gosto de cigarro era ainda austero e curioso, quase sedento demais para ser gostoso. Até as línguas se arranjarem e se alinharem, as mãos de já haviam levantado toda saia da mulher e pousou o polegar sobre o sexo dela.
Brunetta… — Sussurrou baixo quando soltou os lábios e a beijou no pescoço e no busto que estava à altura de seu rosto, seus dedos cautelosamente estimulavam o tenro sexo de , ouvindo a respiração feminina acelerar gradualmente. O que era um dedo se tornou mais e tudo ainda sobre o tecido da roupa íntima.
o segurou pelo queixo e beijou outra vez.
— Não pare. — foram as palavras sôfregas que saíram dos lábios femino no meio de outro beijo. Àquela altura, pressionava o tecido pela cavidade e a extensão do sexo. Em um momento, parou de beijá-lo e o abraçou pelo pescoço, na suspensão silenciosa que o orgasmo causa. Após a arfada de que queria ouvir, ele parou o estímulo e a beijou na bochecha, fez carícias suaves na orelha da outra.
Diavolo. — Ela sorriu. — O que está fazendo?
— Bagunça — a encarou, sentindo a umidade da mulher enquanto tirava a calcinha dela.
recostou-se no sofá outra vez e começou a desatar o bustiê, ficando apenas com a saia no meio da cintura. Algo nela a empurrava para o precipício de sensações que o outro causava.
se ergueu, enquanto beijava a barriga e os seios da outra e não demorou muito para despir a calça e vestir-se só com suas tatuagens.
era um homem feito para não usar roupas e só conseguiu pensar nisso quando o viu nu por inteiro a primeira vez recortado pela luz da tarde. Antes de se deitar, ele absorveu a nudez de Simone com os mesmos olhos famintos, buscando por onde começar o banquete.
Diavolo ou angelo? — Questionou, cobrindo lentamente o corpo da mulher com o seu. Segurou o pescoço de e o projetou para trás para poder beijar toda a extensão dele.
— Diabo. Chega de anjos. Não quero nada sacro hoje. — arfou em algum momento.
Não demorou muito para que homem e mulher se atassem como o nó de duas cordas, no jogo intenso de posições em busca do encaixe perfeito. não dava tempo para sentir-se confortável por muito tempo, tanto que ela não sentia a dor dos ferimentos, porque estava ocupada demais em receber em seu corpo e não cessar de mover seu quadril para sentir cada fímbria de tudo aquilo.
Ele, sorria. A face constantemente séria se transformou no delírio entre o sorriso safado e os lábios mordidos pela concentração do sexo. Quando estava virada para ele, queria estar perto de sua boca, beijando-a com paixão ou respirando dentro dela.
Em um momento, já no chão, se colocou acima dele.
— Chegou a hora de contar todas suas tatuagens. — Ele riu quando ouviu e apertou as carnes do quadril feminino que não parava enquanto ela apontou o dedo para as tatuagens do peito e do abdome dele. — Uma, duas, dez.
— Ah, não! — E riram.
Quando o êxtase estava à porta dos dois, não quiseram mais levar o sexo na brincadeira deliciosa de adiar o fim e os sorrisos contorcem-se em palavras sujas e gemidos mais altos, pedidos contínuos e lufadas de ar. abraçou a cabeça de enquanto seu corpo movia as últimos e pesados movimentos e a mulher enfiou as unhas na carne das costas masculinas acrescentando ali uma nova tatuagem.
O apartamento se encheu com dois suspiros longos. estava sentada sobre o colo de encostado no guarda roupa, ambos com os cabelos pregados nas peles úmidas.
— Preciso de novos band aids. — A mulher, ainda em cima sobre o homem, mostrou seus dedos machucados com um sorriso.
— Faço novos curativos. — beijou os dedos, as palmas da mão e o pescoço dela. — Quantas vezes quiser.
Se encararam, numa aura íntima, descabelados e ainda tentando respirar normalmente.
— Me pergunto como é a versão angeli.
— Me dá quinze minutos e dois cigarros que eu te mostro daqui a pouco.
riu e encostou a testa no peito de . Ficaram longos minutos assim.
— Vem brunetta, quero me deitar.
Se levantaram e enquanto despencou na cama, sem se preocupar em vestir, acendeu um cigarro e se apoiou no parapeito da janela, vendo o céu.
— A vista de Roma nunca foi tão bonita. — se virou e encarava-o diretamente na virilha. — Como eu amo essa cidade.
Ele riu.
— Me dá esse cigarro.
— Pega outro.
— Quero o seu.
O homem chegou à beira da cama e ofereceu o cigarro. o apanhou com a boca e ainda olhava para pelos seus atributos.
— Deita.
— Quero ver você me olhar assim mais um tempo.
riu quando soltou a fumaça. Sorrir naquele momento parecia tão fácil. Rir era fácil, por que ela não vivia sorrindo?
se deitou ao lado dela e a olhou.
— Onde aprendeu a cuidar de ferimentos?
— Eu queria ser enfermeiro. Minha mãe me ensinou a cuidar de ferimentos.
— E por que não se tornou um? Você cuidou muito bem de mim.
— Não gosto de obedecer. Trabalhar num hospital seria impossível.
— Ainda pode trabalhar em clínicas menores. — entregou o cigarro e acariciou as ondas do cabelo do outro.
— Eu gosto do meu trabalho. Se não fosse por ele, não teria salvo uma noiva de uma harpia, trago ela para cá e feito amor com ela até deixá-la bamba e arrependida de se casar.
— Como poderia ter me casado sem isso, não é mesmo? — E voltou a olhá-lo pelo que a interessava.
Fumaram o cigarro até o fim, num silêncio agravável e depois se aproximaram. acolheu a cabeça de em seu peito e a acariciou na têmpora até a mulher adormecer.
— Repouse, brunetta. Depois pensamos o que fazer com tudo o que temos.
— Ou o pouco que me restou.
Após outro cigarro que fumou sozinho, adormeceu também e a claridade da janela não o atrapalhou.


Trastevere 3

Vicolo della Frustra

6:40 p.m

despertou sentindo a bochecha colada no lençol do travesseiro com a sua saliva, assumindo para si mesma que devia parar de dormir de boca aberta.
Colocou a mão na testa e respirou fundo antes de abrir os olhos, se situando e se lembrando dos acontecimentos antes da sua prolongada soneca.
— Não durmo durante o dia. — Resmungou para si.
Ela se sentou, trazendo o lençol para cobrir a nudez e viu, pela janela, que estava sentado olhando para a paisagem de um céu escuro e vermelho que encerrava o dia em Trastevere. Suavemente, sorriu e o contemplou.
. — Ela disse, baixo e o homem se virou. Ele usava uma camiseta surrada e calça de moletom preto.
Brunetta. Está com frio? A noite caiu.
— Estou bem. — Ela deixou o lençol no chão e saiu pela porta de vidro, caminhando lentamente até .
— As horas voam.
abriu os braços para recebê-la em um abraço demorado com a cabeça apoiada no topo da barriga dela.
— Por que está tão calada? — Ele murmurou, depois de algum tempo.
— Não pensei em Túlio em nenhum momento.
— Você não precisa pensar no seu marido toda hora. — apoiou o queixo e a olhou de baixo.
— Ele não é meu marido. Não casamos.
— Mesmo quando ele for, seus pensamentos são estão presos nele com um grilhão.
Ela esboçou um sorriso, ainda o acariciava e ele fechou os olhos.
— Tudo parece tão simples para você, não é?
juntou as sobrancelhas e afastou a cabeça.
— Ouço muito isso. Todos me dizem isso. Minha vida não é fácil. Eu trabalho duro para me manter. Passei por muita coisa.
— Não foi isso que eu quis dizer. Nem foi a minha intenção te desmerecer.
Ele se levantou.
— Minha vida é difícil. Viver é difícil. É sobre isso que é viver, é sobre não ser fácil para ninguém. Não importa para quem, nada será fácil.
— O que é difícil para você?
— Tudo, Brunetta. Respirar, caminhar…
— O respirar deve ser porque você é fumante, o caminhar, porque você comeu um sanduíche enorme…
Ele riu pelo nariz.
— Essa conversa não dá para ser com você. Não agora.
— E por que não? — Ela abriu o sorriso e tirou uma mecha do rosto. a olhou até os pés descalços.
— Porque você está pelada. — Ele apanhou um cigarro do maço com a boca — e porque é rica, mora numa área nobre e tem um emprego de renome. Diga-me, brunetta, o que é difícil para você?
— Eu acredito que as coisas só são difíceis porque na maior parte do tempo somos nós quem complicamos.
— No seu casamento você complicou fugindo ou a própria ideia já era difícil antes? — acendeu o cigarro.
o encarou e o sorriso perdeu a leveza dos cantos.
— Não sei o que trouxe até aqui, mas sem dúvida eu quem escolhi dificultar o meu casamento hoje. Sei que já seria difícil o depois.
— Será que você não pegou o caminho mais fácil? O caminho para fora do casamento.
Os olhos de ficaram molhados.
— Não quero falar disso mais. Suas frases estão me sufocando. — Ela virou o rosto e saiu pela porta de vidro.
Brunetta, espere, desculpe mais uma vez.
— Ser irônico e pagando uma de sabichão não é a maneira de me deixar confortável. — atravessou o pequeno apartamento na busca de seu bustiê e a saia.
ficou calado. Achou o bustiê antes e o segurou. se voltou para ele tampando os seios com o antebraço.
— Para onde vai?
— Voltar para a igreja. Posso dizer que fui sequestrada.
a olhou irritado.
— Estou brincando, ok? — puxou da mão dele o bustiê e se virou para vestir. — Vou pegar um táxi para Tor Di Quinto.
Surgiu um silêncio tenso.
— Posso te levar a um lugar? Depois te deixo onde quiser.
Ela terminou de vestir e achou a saia.
— Eu acho que já tivemos o bastante um do outro. Não?
ergueu as sobrancelhas e deu um passo para trás.
— Ah, então era isso afinal de contas. Despedida de solteiro.
— Eu não quis te ofender. — emendou.
— Eu também não quis te ofender, mas não precisa ser tão...
— Você não me ofendeu dizendo a verdade, mas me assusta um pouco. Não sou cercada de pessoas inteligentes e sinceras o tempo todo. — Ela terminou de vestir a saia e se virou para .
— Você é linda.
riu e girou os olhos.
— Agora sim você se parece com os homens que conheço.
— Não me compare.
Eles se encararam. Estavam com uma mesinha de centro entre os dois. Eram olhares confusos, muito similares e com notas de algum remorso.
— Pelo menos me deixe levá-la até Tor Di Quinto.
— E do que vamos?
— Vou levá-la no meu tapete mágico. — tragou uma última vez e apagou o cigarro no cinzeiro na mesinha.
— Me rendo.
contornou a mesa e ficaram próximos de novo. segurou o rosto dele entre as mãos e o encarou em silêncio.
— Me beija, brunetta.
Ela mordeu o lábio e riu, sem se mexer. Se esforçasse mais um pouco, conseguiria enxergar o próprio reflexo nos olhos do outro.
— Me beija, diavolo. Antes que eu vá. Vou ter que ir em algum momento.
— Eu sei.
Carinhosamente os dedos dela se enroscaram nas ondas do cabelo dele e os dois se juntaram em um beijo íntimo, um beijo dos amantes que já sabem o gosto da boca um do outro mas que não se enjoam da sensação.


Piccolo Aventino

Termas di Caracalla

7:51 p.m

Quando cruzou a ponte sobre o rio Tibre e passou pelo Circo Massimo, com os cabelos contra o vento na garupa de uma motocicleta, pensou em seu noivo.

O asfalto com fissuras e gasto da cidade passava rapidamente por seus olhos enquanto se perdia em pensamentos. Em algum lugar de Roma seu futuro marido estaria como louco procurando-a. Ou ele estaria aliviado?
decidiu novamente naquele momento em diante não pensar mais em Túlio e tudo o que ele representava, pensaria apenas em si mesma e na situação que se inseriu. Pensaria em , pensaria no sexo, pensaria em uma noite de folga. Não queria ser banqueira naquele momento, ou noiva. Queria ser .
Abraçou pela cintura e ergueu a cabeça para olhar o céu.
, para onde você queria me levar? — Ela disse, quando ele parou em um sinal.
— Para Caracala.
— As ruínas?
— Eu e você. Confie em mim.
— Já estou nessa de confiar em você há algumas horas.
— Vamos lá.
Conforme se enfiavam entre os carros na hora do rush, onde muitos romanos estavam pegando o trânsito evacuando a área metropolitana para voltar a suas casas após um dia de trabalho, ou aqueles que caminhavam para aproveitar o início da noite no centro, e se aproximavam de uma das ruínas mais famosas da capital italiana. Os banhos de Caracala preservavam paredes altas de tijolos de tom bege esfolados pelo tempo em meio aos pinheiros mansos que permeavam o campo verde que separava as ruínas da antiquíssima casa de banho do trânsito louco romano.
— Está fechado a uma hora dessas.
— Para turistas sim, para um trasteverino, não.
sorriu enquanto tomava um caminho pelo campo verde que se afastava da rua principal. sabia que muitos jovens invadiam muitas ruínas de Roma para fumar um baseado ou beber escondido, mas nunca imaginou que estaria no mesmo lugar que seu primo de dezesseis anos. Assumia para si que estava gostando de toda aquela adrenalina da estrada clandestina. Quase como se estivesse tirando o atraso de algo.
parou a moto perto de uma árvore e eles desceram.
— Eu conseguia saber que estava sorrindo, mesmo de capacete.
— Para onde vamos? —Ela perguntou, rindo.
— Já invadimos um complexo histórico. Daqui em diante, podemos fazer o que a gente quiser. — passou a mão livre nos cabelos, tentando baixá-los sem muito sucesso.
— Já vim aqui quando era criança. — buscou na memória — Mas não me lembro bem.
Brunetta, é a segunda vez que a ouço dizer isso. O quanto de Roma conhece, afinal?
— Meu pai… Ele me trouxe aqui uma vez, quando viemos a Roma um dia. Ele era corretor de seguros… Eu acho que… almoçamos em Trastevere…
esboçou um sorriso calmo vendo o rosto em dúvida de tentando se lembrar de tudo.
— Deus, isso deve ter muito tempo. Não me lembrava desta viagem…
— Seu pai estava no casamento?
— Não, ele morreu há muito tempo. Depois que minha mãe e ele se separaram.
— Eu sinto muito. — tocou o braço de e depois a puxou num abraço e beijou o topo de sua cabeça. Ela sorriu e piscou.
— Parece até que ele quem me trouxe até aqui. Trastevere, Caracala…
— Qual foi o outro lugar que vocês foram?
— Eu não me lembro. Preciso perguntar para minha mãe. Ela deve ter as fotos dessa nossa viagem. Meu pai estava a trabalho e me trouxe porque minha mãe estava doente em casa. Em Nápoles. Vamos passear na capital, piccolina. Ele falava. — deixou uma outra lágrima cair e umedecer o casaco de .
Ficaram em silêncio por um minuto até que ela se soltou, ainda sorrindo.
— Como é bom estar aqui.
sorriu e percebeu que era um riso espontâneo, tanto que os olhos estreitos dele se soltaram como se tivessem mais a vontade. , por um segundo, pareceu menos arisco e introvertido.
— Trastevere é o coração do mundo e Caracalla é a alcova do céu. — apontou para as estrelas. — Vem, vamos olhar de perto.
Ali onde estavam, se aproximavam das ruínas do pátio central, que projetava uma luz amarelada permitindo ver cada um dos tijolos que formavam as paredes. O azul denso do céu contrastava com as paredes que tinham até mais de 5 metros e projetavam como se fossem daquele jeito a vida toda, construídas pela metade sem nunca ter um teto.
— Dá pra imaginar que tudo isso foi feito há mais de mil e oitocentos anos atrás? — sentia o pescoço doer de tanto olhar para cima.
— É estonteante. Sabe, quando eu era criança me perguntava se um dia me enjoaria de ver tantas ruínas em Roma. Hoje percebo que nunca vou me cansar. Olhar para tudo isso, todos os dias, é parte de mim.
— Tulio sempre disse que era um saco morar numa cidade com tanto pedaço de casa destruída. — disse para si. — Que só veio para Roma para ganhar dinheiro.
soltou a mão de .
— Esta é a coisa mais idiota que um italiano poderia dizer.
— Ele é assim. Arrogante. — baixou o olhar para ele. — Vamos dar uma volta?
— Não acredito como uma mulher como você quer se casar com um cara desse. — segurou a mão de de novo.
tombou para o lado dele e lhe deu um soco fraco no ombro.
— Você fala como se quisesse se casar comigo no lugar dele.
— Eu quero. Vamos?
riu.
, quantos anos você tem?
— Por que essa pergunta agora?
— Meu primo mais novo tem 16 anos e ficou de castigo por invadir as ruínas a noite. Meu primo não, é primo de Túlio… — automaticamente desfez o sorriso. Era a segunda vez que citava o noivo e rompia a promessa que fez a si mesma de não pensar nele.
— Tenho 25.
— Você é só um garoto!
— Venha, pare com isso.
— Eu sou dez anos mais velha que você.
— E daí? Te comeria do mesmo jeito se tivesse mais dez.
começou a correr, primeiro lento e depois, mais rápido até soltar a mão de . Ambos gargalhavam enquanto pulavam as cordas de isolamento das ruínas, pisando sobre os pisos de mosaicos intrincados e avermelhados ou pisando nas raízes dos pinheiros mansos.
Os passos dos dois e os xingamentos no meio das risadas causavam um eco prolongado nas paredes dos banhos de Caracala, projetavam sombras dançantes nos restos do edifício. As ruínas voltaram a ter movimento e conversa dentro de suas paredes e agora pareciam ter vida própria.
Chegaram numa área encantoada da construção e pararam. se jogou no chão, respirando cansado e pulou em cima dele.
— Trégua pelo amor de Deus. — Ele custou a dizer, respirando fundo.
— Eu ganhei. — ainda ficou em cima dele.
Ambos riram e ficaram um tempo em silêncio ouvindo suas respirações voltarem ao normal.
— Quantas leis estamos infringindo aqui?
— Várias.
— Como pode saber?
— Não sei. Sou bancária e não advogada.
riu e se virou para agarrar contra si. No silêncio, contemplaram as faces suadas um do outro. O homem arrumou as mechas do cabelo ondulado feminino atrás de sua orelha e se inclinou para beijá-la na bochecha.
— Por favor não vamos falar nada… sobre isso. Quando falamos, eu perco a coragem. — sussurrou. continuou afagando-a e ficou em silêncio.
Ainda respiravam fora do normal, mas naquela posição, conseguia sentir o coração de batendo acelerado perto dela e seu próprio estômago congelar quando o homem levou a mão para sua lombar e deslizar suavemente até os fechos do bustiê.
— Não vou falar. Você sabe o que faz. — A beijou outra vez perto da orelha. enfiou o nariz no pescoço masculino para lhe dar beijos e pequenas lambidas lascivas.
À meia luz amarelada, fizeram amor outra vez. Com as roupas pela metade e o prazer por inteiro unindo os dois corpos com o fervor que só a temporalidade das relações pode prover.
Dessa vez, falavam os nomes aos sussurros. Não teve brunetta ou diavolo, apenas e . Íntimo, mais rápido e com a corrente elétrica da adrenalina de serem pegos a qualquer momento o sexo inflou os dois e os lançou num manancial de torpor que nenhum dos dois esperava. Orgasmos livres, sem pressão do tempo ou medo. Em um momento, segurou a cabeça de contra seu peito e murmurou com os lábios no couro cabeludo dele.
— Não quero que acabe. Não permita acabar.
Mas acabou e chorou por alguns minutos.
— Me desculpe.
Sh… Tudo bem.
— Eu me sinto à vontade quando estamos juntos.
— Fico feliz em poder te proporcionar um momento agradável.
a acariciava enquanto algumas lágrimas ainda umedeciam o peito tatuado do homem. Dava calmos beijos nos cabelos de e a mantinha firme sobre si com a mão esquerda.
—Não consigo fazer isso, .
— O quê?
— O que estamos fazendo, é perigoso para mim. Eu nunca me relacionei com outro homem. Túlio é meu primeiro namorado. Não sei o que é me afastar de quem… gosto.
falava apressada e tremia os ombros, mas não fez nenhum comentário a respeito. Afagou a morena em silêncio.
— Onde você estará amanhã?
— Em Trastevere.
— Eu não sei onde estarei. Preciso fazer as malas e voltar para Nápoles, aceitar um emprego em um banco agrícola de menor porte… morar com minhas tias.
— Você não precisa pensar no futuro.
sentou-se, com os ombros caídos.
— Roma é um sonho. E eu vou acordar.
De repente ouviram um apito. se levantou com pressa e logo em seguida, de repente viram um feixe de luz na direção deles.
— Seja como for, não é agora que você irá acordar. — disse.
— Ai merda!
— Ei, parados aí! — Mal ouviram a voz do segurança, apanharam a jaqueta no chão e um pé do tênis que usava e saíram com pressa.
puxava pela mão e corriam como nunca. Passaram pelos pinheiros e voltaram para a estradinha que cortava o campo verde onde a moto estava. Subiram com rapidez, mal colocando o capacete do jeito certo e foram embora.
Foi só quando pararam em um sinal que percebeu que gargalhava. E riu junto.
— Dá pra acreditar? A gente transou em Caracala. — Ela ria. — Para onde vamos agora?
— Desistiu de voltar para Tor di Quinto?
— Sim. Vamos dançar um pouco!


Monte Testaccio

Via Zabaglia

9:02 p.m
e desceram em um estacionamento, onde ele deixou a moto e caminharam juntos.
Dali onde estavam, sentiam o cheiro do rio Tibre a alguns quarteirões de distância, misturado ao cheiro de carne fresca, damascos torrados e comida de rua que vinha da feira livre que fechava suas barracas. contava a a história da colina que erguia-se ali perto, feita de um acúmulo secular de ânforas de azeite que se condensaram e formam o monte.
— Ainda existem pedaços de ânforas com cheiro de azeite. No verão, é possível sentir o cheiro muito forte.
— Um grande lixão a céu aberto.
— Pense nos trabalhadores. Carregavam nas costas várias ânforas pesadas de azeite para depositar o líquido no barco estacionado no Tibre — apontou para um pedaço do rio que era visível — estavam cansados. Eram obrigados a carregar essas ânforas de barro fáceis de fazer? Que nada. Arremessavam aí e pronto.
riu vendo fazer o trajeto com os dedos.
— Que solução mais romana para os problemas.
Ei, ergueu o indicador — Não ofenda minha origem. — e depois beijou a bochecha de . — Venha, vamos comer algo antes dos drinks. Acho que ainda está aberto...
Passaram no meio dos rastros de uma da feira livre, com as estruturas de metal sustentando as tendas fechadas, alguns restos de comida no chão e poucas pessoas por ali. correu até uma uma barraca com luz acessa e cumprimentou os dois homens que já juntavam os utensílios para partir.
— Que tal uma pizza? — indagou, olhando por cima do ombro.
— Com certeza!
Em poucos minutos, após muita persuasão de para convencer os dois comerciantes esquentar os últimos pedaços de pizza, saíram da feira comendo com os dedos sujos de óleo e orégano dois pedaços de pizza quadrada, um com mussarela tradicional, muito manjericão e molho sugo e a outra uma deliciosa combinação de puntarelle e burrata, temperada com pimenta preta e branca, ambas enroladas em um papel manteiga já engordurado. buscou uma Coca numa máquina ali perto e escoram na moto para comer.
— É uma delícia, não é?
— É fofinha a massa!
— Esse pedaço deve ser de umas 10 horas atrás, mas ainda é uma delícia. Sempre venho aqui comer antes se sair.
— Não gostaria de trazer este assunto, mas… a pizza é boa, mas não é a napolitana.
riu.
— Olha só, você falando mal da minha pizza depois de comê-la inteira! Por que não falou antes?
— Eu estava com fome! — riu e limpou as mãos na barra do vestido já surrado. Um hábito incomum, mas ela estava fora da zona de conforto. Até aquele simples ato despreocupado e distante da sua etiqueta a deixava pensativa.
— Ei, vou pegar outra Coca.
— Por que será que eu sabia que você estaria aqui, hein Di Laurentis? Com a minha lambreta, sem me avisar!
olhou para trás e viu Cris se aproximar com um grupo de outras pessoas. O amigo moreno de abriu um sorriso grande ao cumprimentá-los com abraços fortes e apresentando os amigos.
imediatamente se lembrou que não estava com sua melhor roupa. Havia jogado nos ombros uma jaqueta bomber do time Roma sobre os ombros, usava os tênis de sujos com a terra de Carracala e o cabelo armado de laquê e voltas de moto preso numa trança malfeita.
— Estávamos indo para a boate, vi sua mensagem.
— Já estamos a caminho também, paramos para comer.
Cris riu e abraçou pelo ombro.
— Te cuida, caríssima bride on the run, é a pessoa que mais conhece lugares para fazer uma boa refeição em Roma. As vezes tenho que negar seu convite se quiser manter meu peso. — E passou a mão pelo abdômen liso coberto de tatuagens embaixo da camiseta.
— Cai fora. Encontro vocês lá.
See ya! — Cris saiu rindo abraçado a uma das moças do grupo, cantarolando e bebendo algo direto na garrafa.
— Não me importaria de ganhar uns quilos. Nas últimas semanas me mantive numa dieta ridícula para caber nesse vestido.
— Você fez um bom trabalho.
sorriu calma. colocou um cigarro na boca e a acariciou na bochecha. se virou para beijar a mão dele, agora com cheiro de manjericão.
— Hey, você está limpando a mão em mim? — Ela bateu na mão dele quando percebeu.
— Não! — Ele tentou avançar no rosto dela outra vez e ela desviou, esfregando as mãos na camisa azul que ele usava.
Em algum momento, no meio da risada, suspirou. Tudo com era de uma leveza extrema. Só havia peso quando ela pensava em Túlio.
E como nunca teria uma experiência como aquela, porque Tulio carregava lenços no paletó sempre que iam ao restaurante.
, percebendo a hesitação no semblante de , beijou as mãos dela e se levantou, finalmente acendendo o cigarro que colocou na orelha.
— Vamos, brunetta. Lavamos a mão em uma fonte aqui perto.

Entre o beat envolvente da música, a transpiração dos corpos dançantes e os flashes de luz, e bebiam martinis e vodkas enquanto pulavam e dançavam. Ao entrar na boate, o que foi fácil para por ser um modelo que já fez trabalhos para o estabelecimento, temeu por ter olhares julgando o tênis mal combinando com sua roupa improvisada. Os pensamentos rapidamente se dissiparam quando a envolveu pela cintura e a beijou no meio da pista de dança. A corrente elétrica do ato e a deliciosa atonia que o álcool e a visão prejudicava combinavam a sensação de despertencimento. Ou talvez, um pertencimento a si jamais experimentado com ela. Naquele momento, sentiu que nunca havia sido tão sincera consigo.
Existe pouco a ser falado em uma boate, pouco a ser descrito. Seu interior não muda muito de cidade para cidade. A música e os arrepios na pele de quem a ouve são autoexplicativos, ainda mais quando se dança junto e sorrindo com alguém a quem temos carinho. Em um momento o neon iluminou os cabelos de e o contemplou, depois o puxou para um beijo com gosto de cigarro e vodka quente. No meio de tanta gente, se apertaram um contra o outro e sentiram-se incinerar.
— Se diverte, noiva em fuga?
— Sim, diavolo. Você conseguiu. Me afastou de tudo até eu me encontrar.
— O quê? — ele disse.
colou os lábios na orelha dele e sorriu.
— Obrigada.
Ele a apertou mais contra si, segurando-a na cintura e na nuca e voltou a beijá-la.

Os amigos de Cris e acolheram imediatamente. Saindo da pista de dança, escorados no balcão de bebidas e trocavam cigarros, bebidas e até beijos. Uma mulher a beijou, seguida de um outro homem, de braços muito rijos e com um beijo mais babado que o de . Foi a primeira vez que beijou uma mulher e ao fim, quando a bela loira se afastou, tocou os lábios e sentiu as faces queimando.
— Se divertindo? — sorriu largo, com um cigarro na orelha e uma taça de sex on the beach na mão.
— Sim… oh meu Deus, o que acabei de fazer?
— Beijou a Marisa e o Louis. — Ele abriu o sorriso. — Qual dos dois gostou mais?
sentia-se muito quente e com dificuldade para respirar, ou em outras palavras, estava com tesão.
, desculpa eu beijei duas pessoas na sua frente… Meu Deus!
O romano riu e a segurou.
— Foi bom ou não? Foi você quem quis, certo? Eles são meio atirados mas…
— Me sinto num baile do Calígula…
—Você quer ir? — Ele a segurou pelo rosto.
— Não! — Ela riu. — Foi bom… mas foi estranho… Nunca beijei tantas pessoas….
— O quê, seu marido foi o primeiro homem que beijou?
— Não!
bebeu um martini que alguém lhe deu. Talvez fosse a Marisa, com um toque prolongado na mão dela. Sua visão estava um pouco turva.
— Ele foi o segundo. Beijei pela primeira vez meu colega da quarta série.
ergueu as sobrancelhas, segurando o riso.
— Ah, brunetta, você me fascina. Se isto é um sonho, eu posso assumir que estou apaixonado por você.
Se olharam pela luz esfumaçada azul e vermelho, um olhar longo que, mesmo com a música, poderia durar dois segundos ou uma hora. O mesmo olhar que amantes íntimos compartilham quando estão com um grupo de amigos numa conversa telepática, que ambos se entendem. Naquele diálogo só dos dois, uma coisa ficou muito clara para : também estava apaixonada.
— Acho que você gostou da Marisa… — Ele riu.
— Não, eu gostei de você, . — Ela virou o martini e o abraçou. Beijaram-se no balcão até Cris interrompê-los e mandar os dois pra pista de dança outra vez.
Todo o circuito da conversa no balcão, mais bebidas e pista de dança se repetiu, mas a boca de não encontrou outro rumo senão os lábios cheios de . Até os copos de martini e sex on the beach foram esquecidos, juntos com os cigarros.
Brunetta, se a gente continuar assim não vamos aguentar. Está pensando o mesmo que eu?
— Quero transar a noite inteira com você. — Ela disse e dessa vez ele ouviu.
Não deu dez minutos e já estavam caminhando do lado de fora da boate, que ainda tinha fila, cambaleando não só porque beberam, mas por andar muito abraçados.
— E a lambreta?
— Ah, amanhã eu busco para Cris. Estamos a poucos minutos da minha casa.
— Tudo bem. — sorriu.
Caminharam olhando o céu, rindo de nada em específico e fumando os mesmos cigarros. A noite romana de quinta-feira ainda estava ativa nas primeiras horas da madrugada. Carros passavam pelas ruas do centro histórico metropolitano e várias barracas de comida de rua estavam com clientes.
Passaram por praças, contornando o Tibre e suas margens com calçadas de tijolo batido tradicionais, sentindo a brisa gelada contra as bochechas rosadas. Atravessaram a ponte Sublicio até a Porta Portesse.
Benvenuta a casa. disse e a beijou na testa. Depois da caminhada sentiam-se menos cambaleantes e mais do que nunca tomados por um cansaço crescente.
fechou os olhos longamente e os abriu, contemplando Trastevere noturna. Tão belo quanto de dia, o bairro à noite perdia seu tom alaranjado para um soturno tom de azul do céu e amarelo dos postes tradicionais. Estava tarde e havia silêncio.
— É um bairro de velho. As pessoas dormem cedo. Acordam cedo.
— Ainda assim, esse silêncio é interessante. Nunca é completo.
— Dá para ouvir os sons de Roma inteira aqui. Os carros, o vento nos pinheiros, os ecos de Caracala, a água do Tibre.
— Seu coração é feito disso, não é? Feito de Roma. — Ela tombou a cabeça no ombro masculino e ficou olhando-o contornado pelo céu um pouco avermelhado anunciando chuva.
— Talvez nunca tenha sido descrito de forma tão exata. — Ele esboçou um sorriso.
Viraram uma esquina numa das vias que conseguia reconhecer. Se aproximavam da casa de a cada passo e viram uma luz acesa.
— Dariush aberto a essas horas? Tem algo de estranho. — comentou, ao ver um carro preto parado em frente o pequeno restaurante. Carros raramente chegavam até sua rua, por ser muito estreita e sempre muito movimentada por pedestres.
sentiu um aperto no peito quando viu dois homens de terno sentados na pequena mesa do comerciante árabe, que se encolhia atrás do balcão com medo nítido. Quando um dos homens se virou, o reconheceu de imediato.
— Ora, ora se não é a Martaci. — Disse e os outros se viraram.
parou de caminhar, a abraçou pelo ombro.
, acho melhor você ir.
— Não vou a lugar nenhum, esta é a minha casa.
— São os primos do meu noivo. Não sei como chegaram até aqui.


Trastevere 4

Vicolo della Frustra

02:37 a.m

, que bom revê-lo. —
Quem quebrou o silêncio foi Dariush, ainda encolhido atrás de seu balcão.
— Olá, Dariush. Cavalheiros. — Cumprimentou os homens com o olhar, mas os outros tinham tanto desprezo nos olhos que torciam a cara ao encará-lo.
— Olá, Matteo. Você me achou. Agora pode ir embora.
Matteo, o menor deles e o primo Benevento, sorriu.
— Você volta com a gente.
— Tenho como voltar. A hora que quiser. E não será agora. Muito menos com vocês. — As frases muito pontuadas desafiavam a coragem que o álcool no sangue de a inclinava. Estava em uma zona de total desconforto, pois nunca precisou brigar com ninguém, tirando a cerimonialista algumas horas atrás. — Irei amanhã. Seja lá o que vieram fazer aqui, já podem partir.
— Foi o padre quem deu o endereço desse culattone coberto de rabiscos… Disse que é um modelo que iria tirar fotos. — Matteo gargalhou.
é meu amigo. Tenham respeito!
— Respeito. Uma palavra que você não conhece. Fazer um Benevento passar a vergonha que passou! Você é uma verdadeira stronza.
— Tulio e eu vamos resolver nossas coisas só entre a gente. Não tem nada a ver com vocês. Agora vão embora! — ergueu a voz e não soltava a mão de , calado.
— Nada mais que uma puttana. Não sei o que meu primo viu em você. Magra demais, sem bunda e sem peito.
— Cala a boca, saco di merda!
Muito rapidamente, soltou-se de e deu um soco na boca de Matteo. O homem foi pego pelo susto e não viu o tapa que ela desferiu logo em seguida antes de ser agarrada pelo outro homem e colocada longe de Matteo.
, contudo, arrancou um canivete do bolso e apanhou a cabeça de Matteo com o antebraço e deixou o canivete muito perto da orelha do homem.
— Se ameaçar outra vez, eu te mato. Se afaste!
— Faça o que ele pede.
Um novo homem surgiu na cena. Muito esguio, usando um terno de boa costura com o colarinho afrouxado e olhos inchados. Tinha cabelos escuros lisos. arfou ao vê-lo.
— Tulio. — ela suspirou, quando a soltaram.
— Olá, caríssima. Senti sua falta hoje.
não o olhou por muito tempo, voltou a encarar com a expressão impassível segurando o pescoço do homem com força.
— Pode soltá-lo, . Por favor. Não corro perigo.
obedeceu e deu dois passos para trás. Matteo curvou-se tossindo.
— Temos muito o que conversar. — Tulio completou a distância até . — Por que não vamos embora e nos falamos no carro?
Ela suspirou e olhou para , ainda sem expressar nenhuma reação.
— Eu te encontro amanhã, pode ser? — disse, olhando os olhos escuros do noivo.
— Você sabe o quanto eu te amo? O quanto nosso destino está selado para o dia de hoje?
suspirou outra vez.
— Agora não, Tulio, por favor.
Jurou ter visto nos olhos do noivo algumas lágrimas.
— Eu disse que essa puttana ia dar trabalho!
— Calado, Matteo.
voltou a agarrar Matteo, dessa vez com um mata-leão. Logo o outro homem ali perto agarrou o romano e Matteo tossiu outra vez.
— Não, o que vão fazer com ele? — passou por Tulio sem olhar para trás e tentou alcançar , mas Matteo desferiu-lhe dois socos na boca e um no estômago até chegar e o afastar de cima de .
— Ele não tem nada a ver com isso! Para imediatamente! Pare! — Ela gritou e empurrou Matteo no peito até ele se afastar.
Os homens soltaram , que caiu no chão com a mão na barriga. o tocou.
— Vocês são uns idiotas… pensaram que usar de força iria me levar de volta? Eu os odeio… — gritou com tanta raiva que se levantou em um pulo e deixou as mãos com os punhos fechados pronta para bater em quem fosse necessário.
— Vá embora, .
Quando ela ouviu, não acreditou. Então olhou diretamente para o rosto de quem falou.
— Você não pertence a este lugar. Vá embora. Não volte mais.
cuspiu uma bola de sangue como se fosse o ponto final da frase, a olhou com tristeza e dor, ainda com a mão na barriga. Os homens riram.
— Já chega. — Túlio a chamou — Vamos embora.
Os homens voltaram para o carro quando olhou uma última vez para no chão, sendo amparado por Dariush. Até que ele gritou.
Vá embora!
Ela teve forças para dar as costas. Tirou a jaqueta e o tênis e os jogou no chão. Chorava copiosamente, sem abrir os lábios.

— Você está cheirando mau. — Tulio e ela estavam no banco de trás.
— Eu não quero conversar.
— Você sabe que precisamos nos casar.
— Não serei a esposa que espera, Tulio.
— Não tem problema. Eu a perdoo por ter fugido. Eu a amo. Seremos felizes aqui em Roma, já temos nossa casa...
— Não quero seu perdão. Não tenho nada para ser perdoado.
Ela olhava os carros do lado de fora. Roma que outrora parecia mágica e bonita, agora era cinza. As lágrimas ainda pingavam de suas bochechas para o colo.
Tulio tentou tocar a mão dela, mas a retirou antes que se encostarem.
— Eu prometi para minha avó que nos casaríamos na Basílica Ara Coeli...
— Isso é problema seu.
— Além de adúltera ainda solta blasfêmias! — Disse Matteo no banco da frente e piscou os olhos longamente.
— Suas tias partiram, voltaram para Nápoles. Você pode ficar no quarto delas no Nazionale. Sua mala está no porta malas. — Foi o que Túlio disse e não conversou mais.
Quando desceu na porta do hotel, descalça e com uma única mala, sentiu-se muito só. Tulio ajudou-a a levar a mala até porta do hotel e ficou em sua frente.
— O que fiz de errado, bella?
— Isso não tem a ver com você. Isso...não é o que quero.
— Volte. Ainda é tempo. Podemos nos casar mês que vem, a festa, o bolo…
— Eu prometo que voltamos a conversar, só não hoje. Só não agora.
, pela força do hábito envolveu o noivo em um abraço e ele retribuiu, com o aperto forte e chorou tremendo os ombros.
— Eu a amo tanto. Não seja tão ruim...
— Você vai conhecer outras pessoas, querido.
— O que fiz, diga-me, Mona, o que fiz? — Ele segurou o rosto de com as mãos enquanto chorava. O coração de partiu-se com a imagem do rosto do noivo aos pedaços.
— Já tivemos nosso tempo. Agora, quero o meu. Sozinha… — Ela tirou a aliança de noivado e a entregou. — Eu te amo, meu amor, mas agora apenas como um bom amigo.
— Como pode me amar. Você feriu meu… amigo.
— Matteo e seus homens podem ser um pouco violentos, mas só estão estressados.
— E você ainda os defende!
Tulio apertou a aliança nas mãos, olhou por cima do ombro de e viu os funcionários do hotel assistindo o show pelo outro lado da porta de vidro.
— Prometo te procurar daqui uns dias. Conversamos melhor.
— Você prometeu me amar. Não sei se acredito mais nas suas promessas. — Ele limpou os olhos com as costas da mão e deu alguns passos para trás até olhar mais uma vez antes de entrar no carro e partir.
ficou observando o carro e depois olhou para os pés, doloridos e ainda com os curativos de . Pegou a mala e entrou no Hotel Nazionale Roma, pensando se aquela mala era tudo o que tinha na vida naquele momento.


Montecitorio

Piazza de Monte Citorio

03:45 a.m.

Um banho e uma garrafa de conhaque iniciada não foi o bastante para relaxar nas cobertas de bom algodão na cama.
Rolou por vários minutos até que acendeu a luz e apanhou o celular. Descarregado. Ela arremessou-o contra a poltrona e abriu a mala, tentando encontrar sua bolsa e lá dentro um pedaço de papel.
Seus dedos vacilaram, embriagados até que ela conseguiu discar um número e chamar. Uma voz a atendeu com um inglês com sotaque.
— Chiara Martaci, please. — Ela pediu, ou implorou.
— Senhora Martaci não se encontra no momento.
gritou no telefone e o desligou. Gritou no travesseiro, esmurrou-o com os punhos e a cabeça até adormecer, exausta, só depois de chorar tudo o que sentia.

passou dois dias em Roma, esperando sua mãe retornar a ligação. Não ficou no hotel, mas ficou na praça em frente. Fez suas refeições nos restaurantes da região, que como era sede do parlamento italiano, era muito movimentada por políticos e oficiais de justiça. Ela, com as poucas roupas que tinha na mala, se vestia de forma neutra e corriqueira, como se todo dia fosse feriado.
Foi no sábado à tarde quando sua mãe bateu na porta do quarto onde ela estava hospedada. Após muitos abraços e beijos, respirou duas vezes antes de começar a chorar muito.
— Foi justamente por isso que eu vim, meu amor. Agora estou aqui, ponha tudo para fora.
Chiara Martaci era uma mulher bronzeada e marcada pelo sol por muitos anos de serviço nos trópicos. Médica de campo, quando se divorciou e entrou na faculdade ela se mudou para o sudeste asiático e só voltou à Itália para visitas. amava a pele quente da mãe e sentia tão bem com o contato que era como se ela tivesse trazido o sol para perto.
Foram algumas garrafas de vinho e cigarros dentro do quarto do hotel até que terminou a história. Chiara olhou a filha por cima de seus óculos de lentes azuladas, ajeitou a franja grisalha e disse:
— É a primeira vez que a vejo tomar uma decisão sozinha.
franziu o cenho.
— Querida, é verdade. A vida inteira as pessoas tomaram decisões por você. Eu, seu pai, seu namorado. Você abandonar o altar foi a melhor coisa que poderia ter feito.
— Mamãe…
— Ouça, anjo. Agora é o momento de deixar doer e deixar sentir. Não é hora de vergonha, tenha orgulho da decisão que tomou e da pessoa que se tornou.
Essa conversa durou mais alguns dias. Chiara levou a filha para caminhar na praça do Panteão e até no Coliseu. Não gostava muito de Roma e a todo momento achava algo para reclamar. Mesmo assim, voltou a ficar mais tranquila e uma semana após o ocorrido, aceitou o emprego no banco romano.
— Fiz certo em ficar. — e sua mãe estavam no aeroporto.
— Claro que fez. Ia fazer o que em Nápoles morando com aquelas vacas irmãs do seu pai? — Chiara ajeitava o cabelo da filha. — Aqui vai ter um emprego que sempre sonhou e vai poder passear pela la città più bella del mondo. The most beautiful city of the world.
— Papai quem falava isso.
— Ele falava mesmo. Antes de vir para cá eu visitei suas tias para buscar uma coisa — Chiara abriu a bolsa e tirou de lá uma sacola e a entregou. — Seu pai gostava muito dessa cidade e eu achei as fotos que ele tirou com você quando vieram aqui muitos anos atrás. Ele anotou o nome de cada restaurante, cafeteria e sorveteria atrás.
conferiu as fotos e os lugares. Seus olhos pontilhavam lágrimas.
— Antes de morrer ele queria ter voltado aqui. As vezes me pergunto se eu devia tê-lo ouvido e nos mudado para cá quando você era pequena.
— Obrigada, mãe.
— Não me agradeça. Suas tias estavam iradas com você, se fosse para você ir lá buscar elas iriam te bater.
O aviso que o voo 345 da Air Italia para Nova Delhi com conexão em Istambul foi anunciado.
— Minha hora. Preciso ir.
— Mamãe, como chegou tão rápido? Você não ia conseguir vir para o casamento…
— Tulio me ligou no momento que ele viu que você não estava no altar. Quando ele falou que você tinha desaparecido, eu disse que você não estaria longe e que assim como seu pai, deveria estar em alguma osteria ou… em Trastevere.
— Não acredito. — olhou a foto pousada com o pai no bairro que agora ela sentia um aperto no peito ao se lembrar.
— Eu acho que seu pai não tava feliz com você se casando — Chiara riu e apanhou as malas. — Ele deu um jeito. Te amo, minha querida, é minha hora. Volto no natal, ok! Por favor não surte de novo até lá, não tenho dinheiro para outra passagem.
— Adeus, mamãe. — despediu com um abraço forte e viu a mãe entrar no portão de embarque.
Ficou mais um tempo olhando as fotos com seu pai. Eram do dia que ele veio a Roma a trabalho e a fez perder um dia de aula.
Lá estava ela, com uniforme escolar, sentada ao lado de um homem magro e calvo com um grande sorriso e óculos de aviador. Trastevere, Caracala, Coliseu, Panteão, Vaticano e por último uma foto da pequena com a boca cheia de macarrão em um restaurante com a placa atrás: Otello Pizzeria.
sorriu e voltou para o hotel segurando a foto no peito.

Após a viagem da mãe, compreendeu que não poderia morar para sempre em um Hotel. Se ficaria em Roma, teria que ter um local para chamar de casa.

Benvenuta a casa.
O rosto de surgiu em sua mente e sumiu, como um clarão. Isso foi o bastante para ela compreender que poderia começar a buscar uma casa nova por Trastevere.


Tor di Quinto

Via Bevagna

30 de Agosto de 2019

Passaram-se meses desde o dia que abandonou seu noivo até decidir procurá-lo.
Com passos hesitantes, tomou o caminho de Tor di Quinto sentindo-se menos segura a cada passo.
Se aproximando do quarteirão da rua sem saída onde ficava o prédio que moraria com seu noivo e onde a mãe dele morava, foi detida por dois adolescentes.
— Martaci, eh? O que faz aqui?
Era o primo de Túlio que às vezes invadia Caracala.
— Olá. Túlio está?
— Está com a namorada lá em cima.
ergueu as sobrancelhas.
Namorada.
— Ele namora ela há dois anos. Vão casar quinta que vem.
riu.
— Ok, garoto, avise-o que cheguei, por favor. Ele estava esperando por mim.
— É, estava esperando no altar há meses atrás. —o rapazinho riu e deu as costas, entrando no prédio.
ficou onde estava, sentindo o vento do final da tarde brincar com a barra de suas saias. Não sabia se o garoto estaria brincando, afinal foi ela quem namorou Tulio nos últimos dois anos, ou melhor nos últimos quinze anos. Também não sabia se ele de fato foi atrás de Túlio para anunciá-la, até que o ex noivo surgiu vestido de bermudas e sweater na porta do prédio.
— Mona, o que faz aqui?
suspirou, sentiu uma fraqueza tomar a perna direita, por isso não deu nenhum passo. O homem ficou a sua frente. Parecia tão bonito quanto sempre foi, mais esbelto e ousou a pensar… estava mais radiante, com uma aura leve, talvez? O contrário do homem que a deixou na porta do Hotel Nazionale algumas semanas atrás.
— Eu vim vê-lo. Temos coisas a tratar.
Tulio segurava um envelope carmim e o entregou.
— Eu iria procurá-la também. Acontece que não tenho mais seu endereço. Você ficou em Roma?
Ficou? Não havia porquê usar o verbo no passado.
— Sim. Agora moro aqui. — Não quis mais se justificar. Não conhecia o tom de voz do ex noivo, agora parecendo tão mudado. — Escute, eu gostaria de pedir desculpas. Acabei não conversando da forma que deveria.
— Eu mandei suas roupas e alguns dos seus livros de volta para a casa da sua tia, se foi isso que você veio buscar.
— É isso que você acha que eu quis fazer vindo aqui hoje?
— Não temos mais nada, não é? Não vejo nada mais justo do que mandar suas coisas embora.
Ele tinha um tom irredutível, agora o reconheceu. Era o tom que o noivo usava quando estava determinado e nada o faria mudar de ideia. Ex-noivo.
— Eu agradeço. Não acabei precisando de nada. — Mentira. gastou parte das economias em roupas novas, não que isso fosse ruim — Aliás, já que tudo parece muito resolvido, eu vou embora.
— Escute, eu vou me casar. Vou cumprir a promessa que fiz a vovó.
Túlio não vacilou, mas sentiu algo gelado do estômago, como se tivesse tomado uma sopa vencida.
— Este é o convite. Você já sabe onde será a cerimônia.
— Onde você a conheceu?
Tulio suspirou e olhou para o céu.
— Não é óbvio?
— Seu primo falou que vocês namoram por 2 anos… Algo está errado nessa conta...
Ele ergueu a sobrancelha.
— Não te devo satisfação de nada.
— Túlio, por que você ia se casar comigo se amava outra mulher? — o gelo no estômago agora se tornava uma onda de calor que subiu para o rosto dela. — Por que me traiu?
— Porque… Ora porque… porque eu quis. Estamos juntos há tanto tempo que nos tornamos amigos.
— Você foi o primeiro homem que amei… que dei meu corpo… — estava falando alto e apontou para si…. — E você também, era virgem!
Tulio olhou para os dois lados.
— Antes de me casar eu tinha que provar outra mulher. Não era justo casar com a mesma mulher que perdi a virgindade. Homem nenhum faz isso. — ele falou baixo.
— Eu não acredito que você é assim tão idiota.
— Era para ser apenas uma vez com Claudia. Mas me apaixonei. E vamos nos casar.
— Você me traiu.
— Tome, aqui está o convite do casamento. — Ele levantou o envelope de novo e o tomou com raiva.
— Não me sinto um pingo arrependida de tê-o largado plantado no altar.
viu uma veia saltar na têmpora do homem. Agora ele parecia incomodado.
— Você não me merecia. — àquela altura os olhos de pegavam fogo e saíram lágrimas para tentar acalmá-los, mas ela não deu ao ex-noivo o prazer de vê-la derrotada. Virou as costas e começou a andar pela rua deserta de paralelepípedos disformes de Tor di Quinto.
— Se quiser, não vá!
— Seja feliz, Tulio. — Ela suspirou, virando a esquina e abrindo o envelope e descobrindo que tinha a mesma fonte do convite de casamento dela, o mesmo adesivo com folha de lavanda, o mesmo aroma de alecrim e a mesma fita lilás unindo o papel. Era uma cópia do convite.
Claudia Ragazzi e Túlio Benevento humildemente convidam
O envelope nem tinha o nome de no campo “Endereçado a:”
Ela suspirou, guardou o envelope na bolsa e limpou as lágrimas do rosto.


Nove anos atrás.

, com um óculos quadrado, segurava os ombros trêmulos de um Tulio Benevento muito magrelo.
— Pode chorar, amor. Ela vai melhorar.
O médico saiu de uma pequena sala e os chamou, dizendo que tinham cinco minutos.
Havia uma idosa deitada na cama com alguns aparelhos medindo seus batimentos, parecia muito serena e com os olhos doces. adorava a mama Benevento.
— Mona querida… Tulio, tesoro…
Cada um pegou na mão da senhora.
— Vovó, irei na sua igreja favorita rezar. Em Roma.
— Ah Roma… Tesoro, vocês precisam casar lá. É onde eu vi a Virgem… quando tinha a idade de vocês… É sagrada.
O coração de apertou quando a viu tossir. Ela voltou os olhos para a jovem.
— Você será feliz, querida. — apertou a mão dela — Ajude Túlio a também ser um dia.
— Farei o que posso.
— A Basílica é sagrada. Ouve nossos corações. Tudo o que é verdadeiro aqui, só é verdadeiro se ecoar lá… Vocês precisam estar lá para saber o que é verdade e o que é mentira.
— Nós iremos — Tulio chorava muito e se preocupou. — Vamos casar lá, vovó…
A velha sorriu.
— Eu quero dormir um pouco, tesouro. Agora chame seu pai e suas tias, quero vê-los mais um pouco…


Epílogo

, agora usando um belo vestido de cetim que deixava as costas abertas, entrou na Basílica Ara Coeli como havia prometido a Mama Benevento. Daquela vez seu vestido não era branco, mas verde esmeralda. Sentada no final da nave, distante da família, assistiu o casamento que se deu no início do último sábado de outono. A igreja, enfeitada com alguns ramos de flor - os mesmos que sugeriu usar no casamento que deveria ser seu - enchiam o ar com cheiro de folhas molhadas e margaridas colhidas naquela manhã.
Ela viu Matteo e alguns parentes de Túlio olharem para ela sobre o ombro, mas não se importou muito. Apenas suspirou ao ver Túlio com um olhar educado para ela, quando entrou sozinho no altar. Parecia quase um olhar de gratidão.
Em algum momento, no meio da ladainha empolgada do padre, se distraiu olhando para a igreja e se virou para a entrada. Pensou ter visto um rosto conhecido, emoldurado de cabelos ondulados. Era .
Intrigada, saiu do banco e caminhou com os saltos silenciosos até a entrada. Olhou para todos os lados e jurou ter visto ali.
Ou então aquilo era apenas um joguete da sua memória. Segurou a pequena bolsa de mão e olhou mais uma vez para dentro da igreja, sobre o ombro. Viu Túlio e Claudia de mãos dadas, na hora das juras eternas e naquele momento, sorriu calma.
Não existe maneira melhor de tudo aquilo acabar, senão desse jeito.
Ela segurou a barra do vestido pela segunda vez na vida ao encarar a escada da Basílica e deu um adeus silencioso a Túlio. Rumou a pé para um caminho que já conhecia de cor àquela altura. De Campidoglio para Trastevere.
Durante os dias que se passaram, passou a aceitar convites de suas novas colegas de trabalho para jantares em casa ou até ir ver uma partida do Roma em um bar. Ainda que detestasse ser a solteira nos eventos onde só suas colegas casadas iam, acabava se divertindo e eventualmente conversando com algum homem no evento tão deslocado quanto ela. Ainda era uma boa moça de Nápoles, e assim como todas as moças napolitanas, não tinha muita paciência quando o assunto não rendia e acabava mais afastando candidatos a uma noite de sexo casual.
Voltava para casa sozinha e em seu apartamento pequeno, acabava a noite sempre na companhia de algum músico debaixo de sua janela, algum casal brigando ou mais um dos muitos outros sons de Trastevere. Se havia um lugar em que valeria a pena ser solteira, o lugar sem dúvida era ali onde estava.

II

O casamento de Túlio, a assombrou, não por ver o homem que amou por quinze anos se casando com outra, mas pela memória de ter visto o vulto de . Por muitas vezes, acompanhada de um conhaque, pensava em como um homem fizera mais por seus sentimentos em vinte quatro horas do que outro em quinze anos. Quase sempre concluía que não eram os ditos homens responsáveis pela revolução de sua independência e vontade, mas às próprias decisões.
Pela primeira vez na sua vida, siga seu coração. Era a frase, no tom de voz de sua mãe, que mais ouvia todos os dias.
Em uma segunda feira de manhã e antes de ir para o trabalho, decidiu visitar uma área de Trastevere que há muito tempo não ia.
— Dariush, buongiorno, amigo. Salaam Aleikum.
O homem, que tomava um café sentado à frente de sua lanchonete, sorriu.
Aalaikum Assalaam, minha amiga! Há quanto tempo!
Dariush abriu o sorriso.
Bella como sempre. O que virou de você?
— Estou morando aqui agora, em Trastevere.
— Ahh — o homem sorriu — Culpa de , com certeza. Ele põe caraminholas na cabeça de todos sobre bairro.
Ouvir outra pessoa falando de fez o coração de aquecer. Ultimamente ela tinha achado que ele era uma alucinação e que as poucas horas que passou com ele eram de fato um sonho.
— Falando nele, Dariush, tem o visto? Devo a ele algumas palavras.
— Ah, você não sabe... — Dariush se ergueu. Tinha servido outra xícara e a entregou a que aceitou de bom grado. — se mudou para Milão. Está se esforçando para ser um modelo lá.
Dariush passou pela portinhola e apanhou uma revista. estava na contracapa.
— Ele me mandou isto, junto com um dinheiro para me ajudar. Ele ficou preocupado comigo. — O homem disse orgulhoso. — Saudades do meu amigo. Cristiano se mudou com ele, agora meus amigos estão todos longes.
Havia tristeza no sotaque de Dariush e percebeu, tomando o café delicioso.
— Pois eu virei aqui todo dia que puder, para você não ficar sozinho e para comer um gyros. Inclusive, quero um para levar.
sorriu e se sentou no banco pequeno. Seu semblante calmo não era capaz de ocultar todo o pesar que sentia no peito ao encarar a contracapa com a foto de ao lado de da marca Fendi. Todo aquele tempo sem ver o romano, contentando-se apenas com a doce memória de uma noite aventureira, sentiu falta dele. Encarou a mesma parede onde ele se escorou naquele dia quando comeram um gyros.
E fizeram amor como loucos.
Ao final, pagou com uma gorjeta gentil e deixou o cartão com o amigo, reforçando que ele deveria procurá-la para discutirem um investimento com juros baixíssimos.
Desde aquele dia, como se sua fala tivesse a atraído para mais perto de , passou a vê-lo em anúncios nas principais vias de Roma, na TV e até no celular. Um dia sua mãe a ligou, dizendo que tinha visto um anúncio com o rapaz que se parecia muito com a descrição que fez de em uma viagem a Tokyo para resolver coisas na embaixada.
Assim, ficava difícil superá-lo e se contentou com a sensação de nunca mais o veria. E que era melhor assim.
Passaram-se dois anos de amores de uma noite só, mas nunca tão aventureiros e vívidos quanto , até o dia que ela estava no trabalho e ouviu duas colegas no banheiro comentando sobre um evento que iria reunir modelos famosos. A entrada era restrita, mas como seu banco era um dos patrocinadores, acabou não sendo difícil.
deu a descarga e sorriu para as moças, que antes de falar alguma coisa, saíram de perto.

III

Havia uma passarela e era o dono dela.
se apertava na última fila, onde precisava ficar na ponta dos saltos para poder enxergar um pedaço do rosto de e ela o viu. Foi como se todo o ar do seu peito tivesse saído em uma respiração. Ele existe sim. Ela se inclinou tanto para vê-lo que a mulher da frente deu-lhe uma cotovelada na boca do estômago e ela retrocedeu para se curvar de dor.
Ela tomou várias das doses de champanhe e driblou um homem de meia idade que a cantou até tomar a coragem para fazer o que tinha que fazer. Abriu a carteira para tirar um dos seus cartões de visita e o apertou contra o peito.
— Está é a minha última chance. E a última vez que eu vou te procurar, Diavoli.
Ao final do desfile, quando a plateia se mudou para as áreas comuns onde era servido o buffet e alguns dos modelos menos famosos transitavam entre os convidados da classe fina romana, esgueirou até a área onde era o camarim do desfile.
Ela caminhou pela área onde nitidamente só pessoas autorizadas, tendo dificuldade em andar depressa com o vestido muito justo canelado. Virou a cabeça até encontrar de costas. Ela tinha certeza que era ele, com as tatuagens nas costas que nunca esqueceu. Ele tinha a nuca raspada e os cabelos mais cortados rente e um brinco de ouro. Antes de chamá-lo, ela foi pega pelo braço por um segurança.
— Moça, você não deveria estar aqui, por gentileza se retire.
— Só um minuto, eu preciso entregar isso para o meu cliente.
— Quem é o seu cliente?
.
— Me desculpe?
— É ele. — apontou para as costas distantes de que agora vestia uma camisa de linho com ajuda de duas pessoas e estava longe para ouvi-la.
O segurança olhou de para e riu.
— Tá bom.
— Escute, eu sou a gerente da conta dele no banco Sanpaolo. Por favor, peça para ele entrar em contato imediatamente — entregou o cartão de visita.
— Farei isso. Agora saia. — O segurança não a segurava mais, mas ela não acreditou que aquele cartão iria chegar nas mãos de .
Ela não quis ficar na festa pós desfile e decidiu ir para casa, mas não antes de mais algumas taças de champanhe de graça.

Tomando um chardonnay sozinha, encostada no parapeito da grande janela do seu apartamento em Trastevere, ela saudou .
Te voglio bene assai, ma tanto tanto bene, sai? — Disse para o céu.
Se emocionou olhando as estrelas que teimavam em aparecer no céu castigado da poluição da capital. Em Nápoles não conseguia ver estrelas tão belas.
Deitou na cama aconchegante com o colchão novo que comprou em cima de um suporte de madeira. Colocou a música “Caruso” pela voz de Lucio Dalla para ouvir, adormecendo na metade do CD. Sonhou que estava sentada a beira do mar, sozinha.

IV

Na sexta feira que se sucedeu após a desastrosa noite do desfile, foi trabalhar com dor de cabeça. Entrou na sua sala na sede do banco, tomando uma aspirina e engasgou ao ver um buquê de rosas muito vermelhas sobre a mesa. Olhou para a porta e viu sua secretária e duas estagiárias rindo.
— Gianna, quem mandou isso? Está sem cartão.
— Eu não sei, signorina Martaci. Me pediram apenas para entregar. — E saiu rindo com as outras. se sentiu ofendida com os risos. O que as funcionárias achavam? Que ela não era capaz de ser amada?
Uma das má sortes de trabalhar no banco Intesa Sanpaolo na divisão de contas executivas era que teve que justificar porque se candidatou ao emprego colocando no currículo que era noiva, e na hora de assumir o cargo, colocou que era solteira. Ela explicou a situação sem mais detalhes a equipe de recursos humanos, mas não demorou para que a sede inteira do banco já soubesse do caso.
fingia não se importar, mas sempre que pensava, sentia uma pontada de raiva. Ela trabalhou a manhã toda com o caule das rosas se apertando em cima do seu copo de por canetas. Toda hora, ao assinar um balancete de uma das contas que cuidava, jogava as canetas para um canto da mesa e relanceava os olhos para as rosas e pensava quem poderia ter mandado aquilo.
Pensou em Túlio imediatamente. Ele já tinha feito aquilo em Nápoles, mas o que seu ex-noivo, agora esposo de Claudia estava fazendo mandando flores?
Então, ela descobriu o remetente quando sua assistente entrou nervosa na sala, sem bater e anunciou:
S-s-s-ignorina Martaci...
— Gianna, parece que você viu um fantasma, o que aconteceu?
— Tem um cliente seu aqui.
— Mas hoje é sexta, é meu dia de fechar as contas. Não tinha nada marcado. — se levantou, estranhando a situação, mas nem tanto. Alguns de seus clientes vinham o dia que queriam, sem respeitar muito seus cronogramas. Ela pegou o blazer azul e jogou em cima dos ombros, ajeitou o cinto da calça pantalona e se virou para sua cafeteira.
— Esse parece que tem algo urgente a ser tratado. Mande-o entrar, por favor, vou preparar um ristretto. — Geanna saiu e se encarregou de trocar as capsulas da cafeteira. Quando ouviu a porta se fechar atrás de si, ela se virou e foi o cheiro de verbena que anunciou o visitante.
a encarava com um sorriso divertido de volta.
Brunetta. — Ele retirou o sobretudo caramelo que usava e o colocou sobre o sofá. — Finalmente a encontrei.
— Ele, então ele te deu o cartão...
riu.
— Sim.
— E você me achou. Significa que estava me procurando?
ergueu a sobrancelhas. se encantou com os olhos mel dele outra vez, parecia não ter mudado nada no olhar estreito e nas linhas que formavam seu sorriso escondido.
— Pelo que parece… sim.
, eu sinto muito. Aquele dia…
— Me perdoe, . Eu te mandei embora. — Ele caminhou até a cafeteira e apanhou a xícara que ela segurava para ele. — Eu tinha que vir aqui pedir desculpas.
, os primos de Túlio te fizeram mal, eu sinto muito.
— Ah, não foi nada… — ele tinha um sincero. — Já passou.
— Já são quase dois anos, eu nem me lembrava do que disse. — Mentira. se lembrava perfeitamente das palavras. — São águas passadas. Fico feliz em saber que não… Está com raiva de mim.
— Eu queria dizer que você pertence a Trastevere, há algo seu que pertence àquele lugar. Minha frase aquele dia foi dita porque… Tive medo. Se me bateram, poderiam ter te ferido e eu nunca me perdoaria.
arfou.
— Eu não sabia o que te dizer. Me desculpe ter demorado tanto para tentar te achar.
— Eu acreditei que você tinha se casado com aquele merdinha. — analisou o escritório com o olhar, cortina, mesa, cadeira enquanto retirava o sobretudo e o colocava pendurado no suporte. — Quando vi no jornal que os Benevento alegremente uniram bodas e estavam a caminho da Provença…
— Eu não imagino você vendo esse tipo de jornal.
— Dariush deixa a TV ligada no canal de notícias locais.
— Eu não me casei.
— Eu sei. Eu fui na cerimônia. Precisa ver com meus próprios olhos.
E então ele se virou para ela, com os olhos pequenos estudando cada pedaço de seu rosto.
— Foi um alívio não te ver naquele altar.
curvou os lábios vermelhos de batom num sorriso.
— Eu estava lá. Te vi, mas quando fui atrás, você desapareceu.
— Não era nossa hora ainda. — tomou o café, olhando-a longamente.
— Eu moro em Trastevere agora — Ela tomou a xícara da mão de e a deixou sobre a mesa. — Visito Dariush todos os dias.
— Ele não me disse nada.
— Às vezes não quis se colocar no meio… — tocou as mãos de , ainda receosa. — Que história é essa de você morando em Milão? Você é a pessoa mais romana que conheço.
— Negócios. — Ele apertou a mão dela. — Um homem tem que ter o que comer e Milão é a capital da moda. Inclusive eu vim aqui para abrir uma conta, o que eu tenho que fazer para ter você cuidando do meu dinheiro? Já aviso que é menos do que pensa, preciso de taxas baixas. — ele disse com o tom conspiratório e apertou a mão dela ainda mais. — Você se livrou dos machucados da harpia sem cicatrizes.
segurou o rosto dele e o beijou no canto da boca. Ele a acolheu num abraço forte e íntimo. Ficaram por muito tempo assim, num abraço demorado e silencioso relembrando das fragrâncias em comum. afundou o nariz no pescoço dele e inalou toda aquela verbena que parecia fazer parte da pele dele tanto quanto suas tatuagens.
— Tenho muito o que te contar... Lembrei do nome do restaurante que fui quando era criança. Agora, como lá todas as semanas.
, com o sorriso aberto, falou enquanto beijava as bochechas de :
— Aquele que seu pai a levou? Que você disse aquele dia que nos conhecemos?
— Esse mesmo.
— Bom então, o que estamos esperando? Hoje é sexta. — a soltou e apanhou o café. Com um olhar travesso, abaixou a tela do notebook. Ah, como sentiu saudade daquilo. — Você pode abrir minha conta enquanto almoçamos lá?
Pizzeria Otello. A mesa é pequena, mas consigo levar os contratos para você assinar.
— Ótima puntarelle, carpaccio impecável. Eu pago.
— Nada disso, eu te devo um almoço. Lembra?
a beijou com gosto de café.
Saíram da sala de , com casacos e com o óculos escuros nas mãos. segurava a bolsa dela.
disse a sua assistente e todas as estagiárias que estavam lá perto:
— Geanna, cancele minhas reuniões de hoje à tarde. Não volto depois do almoço.
segurou a mão dela e saíram juntos pelo corredor. jura ter ouvido das moças “você viu que ele estava sujo de batom?”.


V

Como prometeu, apresentou a a Pizzeria Otello (que já a conhecia, mas mesmo assim deixou mostrar o quanto já estava familiarizada com o local) e lá se tornou o lugar preferido dos dois. De férias da temporada, passou os dias com no apartamento em uma travessa onde havia uma sorveteria e uma parede coberta de plantas trepadeiras.
Faziam amor de janela aberta, unindo-se não só aos sons e cheiros de seus próprios corpos, mas em comunhão com toda Trastevere, com toda Roma. Eram espectadores e espetáculo. Umedeciam os lençóis como se brotassem a água do Tibre e abraçavam-se como se seus braços fossem toda extensão das ruínas que envergam a cidade.
Encontravam silêncio nos braços de um e outro, contando suas histórias pela pele.
Compartilhavam um vinho e o prato de pizza de burrata no dia em que, amarrada em um robe de seda usando meias ⅞, mais aberto do que fechado, contemplava encostado na janela nu na janela fumando outra vez.
— Casa comigo, diavoli?
Ele sorriu. Era terceira temporada que ficavam juntos.
— Caso, brunetta. Mas antes precisamos ir a Siena, para você conhecer minha mãe.
— Se for assim precisamos ir para o Sri Lanka para você conhecer a minha.
Ele deixou a cerveja de lado e pulou na cama baixa, no lugar onde tinha acabado de tirar o prato de pizza já prevendo o pulo do amante.
— Ficamos noivos em Siena com minha mãe, nos casamos aqui na Santa Maria in Trastevere e depois uma lua de mel no Sri Lanka. O que acha?
— Parece o plano perfeito. — o abraçou com força até ele lutar para se soltar e depois ser a vez dele de apertá-la com força.
Tudo parecia uma brincadeira gostosa de imaginar. Depois dos eventos que uniram os dois, nunca se imaginou outra vez em um altar.
Até o dia que chegou do trabalho e viu velas espalhadas no chão do seu apartamento. Imediatamente preocupada com o debilitado sistema elétrico da casa, ela ia acender o interruptor quando a chamou, na janela.
Martaci, eu te quero como minha esposa. — ele disse conforme ela se aproximava pelo caminho de velas. entregou uma rosa e ela a cheirou, estava um pouco fria — Case-se comigo.
Di Laurentis. Parece um bom nome. — abriu uma caixinha com um anel com uma pequenina pedra. — Ou Martaci.
— Você não vai fugir, vai?
— Só se for você quem for me raptar.
— Eu faço o que você quiser, desde que seja um pouco mais minha do que já é.
— Não somos nossos, meu amor. Somos de Trastevere. — Ela sorriu, com duas lágrimas umedecendo as bochechas. Lágrimas também surgiram no rosto do outro, de uma emoção sincera — Somos juntos, deste lugar. Quero estar aqui com você, para sempre. Como quero ser para sempre de Trastevere.
— Que assim seja. — Ele a abraçou até erguê-la do chão.

Te voglio bene assai
Ma tanto tanto bene, sai?
È una catena ormai
Che scioglie il sangue dint'e vene sai

Lucio Dalla - Caruso

Te quero muito bem
Mas tanto tanto bem, sabe?
É uma corrente
Que dissolve o sangue dentro das veias.


Fim.



Nota da autora: Montei uma playlist para sua leitura. Ouça aqui enquanto lê.
Aproveite para conhecer minha fic Des Roten Faden e entrar no nosso grupo para ficar por dentro de tudo.



Outras Fanfics:
» Des Roten Faden

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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