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Última atualização: 23/03/2025

Capítulo 1 — So Far Away


“How do I live without the ones I love?
Time still burn the pages of the book is burned
Place and time always on my mind
I have so much to say, but you’re so far away”
— So Far Away, Avenged Sevenfold
.

A morte é uma coisa engraçada.
Um dia você está vivendo o seu sonho e no outro dia... Nada.
Mesmo que a nossa única certeza seja a morte. Mesmo que tudo o que vem antes e depois dela seja a mais pura e irrevogável incerteza. Insistimos em passar todo o nosso escasso e inegociável tempo lutando contra a única coisa da qual não há como fugir. Em vão.
Seria trágico se não fosse cômico.
null não foi capaz de segurar o sorriso, muito menos o som esganiçado que escapou de sua garganta. Não quando olhou para Gus.
Os olhos fechados. O cabelo milimetricamente penteado. O terno branco, perfeitamente limpo e ajustado ao corpo. A superfície acolchoada delimitada por paredes de madeira. A pele desprovida de cor.
Ele estava ridículo.
Ridiculamente morto.
Gus teria achado aquilo hilário.
Pensar nisso só fez null gargalhar ainda mais à medida que o peito arfava e o rosto esquentava perdido na sequência de acontecimentos que se sucederam durante a cerimônia.
Não era necessário muito mais do que isso para criar um escândalo.
null não foi à recepção na casa de Train. Não se deu o trabalho de prestar seus sentimentos à família. Não havia restado nenhum. Muito pelo contrário, após o velório, o cantor foi direto para sua mansão em Beverly Hills, onde sua própria recepção já tomava forma. Viva, como August Train foi um dia.
Naquela festa não havia luto. Não havia lágrimas ou arrependimentos ou até mesmo saudade. Havia apenas a mais pura celebração da vida de Gus. null dedicou a noite a tudo o que fazia August feliz. Não precisou pedir emprestada a camisa do Metallica favorita do amigo. Bebeu as garrafas de vinho mais velhas da adega que estavam guardando para uma ocasião especial. Misturou álcool, maconha, êxtase, cocaína sem se preocupar com a ressaca ou a rebordose do dia seguinte. Fez uma tatuagem à meia luz com um profissional duvidoso com uma maleta de materiais mais duvidosos ainda. Quebrou duas ou três peças da mobília com um taco de baseball no calor do momento. Trocou socos com um desconhecido por motivo nenhum. Comeu uma aspirante à modelo e uma garota de programa sem se importar com o que sua namorada iria pensar. E foi embora antes de a festa acabar.
Tudo bem, talvez tivesse feito um esforço para fazer um escândalo.
Depois disso, não demorou para que as matérias relacionando o cantor à morte do guitarrista estampassem todos os veículos de comunicação. Teria null null influenciado a overdose de Gus Train? Não, claro que não. Eles eram amigos desde sempre, formaram a banda juntos, conquistaram o mundo juntos. Mas por quê null não deu nenhum pronunciamento desde então?
Onde estava null null?
A resposta só apareceu algumas semanas depois, quando o cantor da banda Disclaimer foi encontrado em coma alcoólico em um pub qualquer nos arredores de Milwaukee, com nada além das roupas do corpo, um cartão de crédito ilimitado, cinco pílulas de aspirina, duas gramas de haxixe e um olho roxo. Na verdade, já era uma conquista que ele não estivesse pelado por aí.
null passou duas semanas em recuperação no melhor hospital de Milwaukee fingindo que nada havia acontecido. Não falou nada sobre o tempo em que esteve fora. Não tocou uma única vez no nome de Gus. Se era assim que ele queria, então era assim que seria.
Na manhã em que recebeu alta do hospital, o vocalista da banda Disclaimer precisou esconder o olho roxo atrás de um par de óculos escuros e usar roupas de moletom simples ao se encaminhar à delegacia mais próxima, para não chamar muita atenção. O que não adiantava de muita coisa já que a companhia de Doc nunca poderia passar despercebida, principalmente com os dois guarda-costas à tiracolo. Quando estava na sala do oficial encarregado, sentado ao lado do seu agente, null se limitou a acenar com a cabeça durante a quase uma hora que o policial dedicou a uma reprimenda não tão rigorosa assim sobre as infrações e denúncias que o levaram a ser encontrado quando estava desaparecido. Doc respondeu todas as perguntas em nome do seu cliente e pagou a fiança do vocalista em seu cartão sem se importar com a quantidade de zeros da fatura. null não deu a mínima. Se dependesse dele teria até recusado o pedido de autógrafo do policial, mas o olhar lançado pelo agente foi o suficiente para que cedesse. Poderia usar esse favor como moeda de troca mais tarde.
Logo deixaram a delegacia para trás e tomaram o seu rumo para o Aeroporto de Milwaukee, onde compraram passagens para o primeiro voo disponível com destino à Los Angeles. O cantor agradeceu mentalmente pela personalidade introvertida do agente durante o trajeto de cerca de cinco horas, que poderiam facilmente ser dias. null não queria falar e Doc certamente não queria ouvir. Era fácil lidar com ele. Não eram necessariamente amigos, mas também não deixavam de ser. Doc não perdia o seu tempo se preocupando com o que o vocalista fazia ou deixava de fazer, contanto que null estivesse vivo, fizesse dinheiro e que só se envolvesse em problemas passiveis de solução. Até hoje não havia nada que Doc não pudesse resolver. Nada exceto a morte prematura de Gus.
Em Los Angeles tudo era mais fácil. Estava em casa. Apesar de terem pegado um voo comercial não tiveram problemas, a presença macabra dos guarda-costas era o suficiente para afastar qualquer um que sequer pensasse em se aproximar. A equipe não precisou nem mesmo enfrentar o LAX lotado para reclamar suas bagagens, não tinham nenhuma. O carro forte da gravadora buscou o grupo ainda na pista de aterrisagem, enquanto null apenas aceitou o seu destino, o que quer que ele fosse. As ruas de West Hollywood permaneciam as mesmas. Os mesmos carros barulhentos, a mesma onda de calor subindo pelo asfalto, as mesmas pessoas alheias aos seus arredores. A vida continuava, mesmo que Gus tivesse ficado para trás.
null queria gritar com alguém, queria bater em alguma coisa, queria fazer qualquer coisa para que as pessoas, alguma pessoa, qualquer pessoa, percebesse que tudo tinha mudado. Mas de que adiantaria? Gus estava morto e isso não fazia diferença alguma. Não tinha como voltar disso. August não voltaria. E certamente null também não seria capaz de voltar.
null pensou em como seria dali em diante. Se Tony e Kalil já haviam pensado a respeito. A banda era apenas uma ideia, uma loucura, um delírio, uma das maiores insanidades de Gus. Nem eles mesmos se lembravam bem, mas de alguma forma o guitarrista conseguiu convencer os quatro amigos a transformarem o sonho em realidade. Talvez todos eles estivessem perdidos. A verdade nua e crua era essa. A Disclaimer era August Train e August Train era a Disclaimer. Não havia banda sem ele. Era o fim da Disclaimer. E essa consciência se tornou clara à medida que null reconhecia o trajeto para o escritório. Mesmo que sentisse lá no fundo, que entraria no grande prédio empresarial e o veria lá, as pernas estiradas sobre a mesa da sala de reuniões em meio a uma gargalhada.
null decidiu fingir que era apenas mais um dia. Como qualquer outro.
Fingiu que o mal-estar era culpa de uma noite de bebedeira e não a abstinência da medicação do hospital. Fingiu que as últimas duas semanas nada mais eram do que um borrão causado pela amnésia alcoólica. Fingiu que se preparava mentalmente para mais uma longa sessão de brigas com Leto sobre seu comportamento irresponsável. Fingiu que conversariam sobre o cronograma de desenvolvimento, gravação e divulgação do próximo álbum. Fingiu que daria em cima da nova secretária da gravadora, já que a antiga deveria ter sido demitida após o seu caso com Kalil. Fingiu que dispensaria Doc para pegar carona com Tony para se reunirem na casa de Gus para beber mais um pouco. Fingiu que estava tudo bem como fingia desde que se despediu do seu pai pela última vez. Mas fingir não adiantou nada quando o carro blindado chegou ao prédio espelhado da West Coast Records.
Dezenas de pessoas interditavam o caminho para a garagem do edifício. Fãs. Eles usavam camisas da banda, com o rosto de Gus. Os cartazes que carregavam diziam tudo. Para sempre Gus. Train nós te amamos. Nunca esqueceremos August Train. Luto. Descanse em paz. Gus.
Algo se quebrou dentro de null e ele se perguntou quantas vezes mais seria capaz de quebrar algo que já estava quebrado.
Não conseguiu evitar. Quando as vozes começaram a clamar o seu nome, o vocalista sentiu o seu corpo se encolher. O ar faltou em seus pulmões à medida que uma gota fria de suor escorria pela sua têmpora. Merda. Deveria ficar mais fácil com o tempo.
O breu e o silêncio do estacionamento não foram o suficiente para ajustar os batimentos descompassados de null. Não. Era muito pior. Era mais uma ausência. Mais uma falta. A falta de luz. A falta de som. A falta de Gus. O vocalista nem percebeu quando o carro parou, ou quando os demais passageiros desembarcaram. Não ouviu o que Doc disse quando abriu a sua porta. Apenas viu o agente lhe estender um cigarro e respirou fundo, aceitando com dedos trêmulos e se impulsionando para fora do veículo com um zunido em seus ouvidos. Doc insistia em tentar dizer alguma coisa, mas o vocalista não conseguia ouvir nada além do rugido em sua mente. Sua visão foi ofuscada por uma fração de segundo, quando o reflexo do farol de algum carro que passava por ali refletiu no material metálico do isqueiro que o agente segurava. null estendeu a mão em um pedido silencioso, que foi rapidamente atendido.
Uma chama. Um trago. Um sopro. Um trago, um sopro. null repetiu o gesto algumas vezes, sentindo a pressão baixar e o os pensamentos se reduzirem a um sussurro inconveniente.
— Se sente melhor? — perguntou Doc, olhando-o de soslaio. No escuro, a sua pele negra não denunciava nenhum traço de expressão.
null respondeu com um aceno.
— Melhor se acostumar com a ideia de começar a falar — o agente fez um estalo com a boca — você não vai gostar muito do que vai encontrar lá dentro.
O vocalista deu mais um trago e limpou a garganta.
— A coisa está muito feia?
null fez uma careta ao ouvir o som da própria voz. Estava rouca de uma forma errada. O som arranhou sua garganta e morreu áspera. As palavras não pareciam certas. O vocalista sacudiu a cabeça para afastar o pensamento e olhou para o outro com a sobrancelha arqueada.
— A gravadora quer terminar a turnê — Doc disse simplesmente. Sem cerimônias, como quem tira um curativo de uma só vez.
Não.
— Não é como se você tivesse alguma escolha — o homem deu de ombros — o contrato da banda com a West Coast tem validade para mais dois anos. Até lá vocês pertencem a eles.
Gus está morto, null queria dizer. Mas não ousou pronunciar as palavras em voz alta. Preferiu dar mais um trago no cigarro.
— Mesmo que vocês tivessem escolha. Se vocês escolhessem antecipar o fim do contrato a multa seria tão onerosa que vocês e suas famílias teriam que voltar direto para o buraco de onde saíram em Atlanta.
null bufou em descontentamento. Se Doc queria que falasse, então ele ouviria poucas e boas sobre o que ele achava a respeito disso. Mas antes que pudesse abrir a boca, o agente falou primeiro.
— Sem falar nos Train…
— O que tem eles? — Você sabe… — Doc brincou com um fio solto invisível em seu casaco — A mãe de August está internada há um ano por conta da sua… Condição.
— E o que isso tem a ver?
— Tem a ver que a parte de August do contrato é o que paga aqueles médicos sabichões, a clínica limpinha e os remédios caros da Srª. Train. Que a parte de August é a única coisa que coloca um teto sobre cabeça moribunda daquele marido solitário dela — explicou o agente com uma calma letal, que fez null trincar o maxilar — Você e os outros podem até dar a volta por cima depois disso, vocês estão vivos, já…
— Já entendi — o vocalista disse rápido, antes que o homem pudesse terminar a frase. Sentiu a cabeça começar a doer e respirou fundo. — Merda.
— Sabia que entenderia — Doc deu um sorriso que não chegou aos olhos.
— Eu sei o que você está tentando fazer.
Estava tentando fazê-lo falar.
— O que eu faço de melhor…
Estava tentando fazê-lo enfrentar isso.
— Eu não preciso da sua ajuda — o vocalista resmungou.
— Estou tentando administrar a sua vida — Doc rebateu com uma piscadela — Você deveria tentar qualquer dia desses.
— E tirar o seu ganha-pão?
Os dois quase se permitiram rir.
— Se a gravadora já decidiu terminar a turnê — null fez um estalo com a boca — Qual é a da reunião?
— Eles encontraram alguém para substituí-lo — disse o agente, como quem fala sobre o clima. null precisou morder a língua para não dizer nada. Doc estava conseguindo. — Hoje é a assinatura do contrato.
O vocalista se engasgou com a fumaça quente da ponta do cigarro, desencadeando uma sequência de tosses. Jogou o filtro no chão, impaciente, cuspindo sobre o objeto como se pudesse de alguma forma ofendê-lo, ou simplesmente tirar aquele gosto amargo da boca.
— Merda — praguejou.
null marchou em direção às portas automáticas com uma carranca lhe deformando as feições. É. A coisa não ia ser bonita.
— Vamos acabar logo com isso — disse null ao passar por Doc, o tom irredutível dizia tudo que ele não precisou dizer.
O que estava ruim tinha acabado de piorar.
O trajeto até a reunião foi como o inferno particular de null. As paredes dos largos corredores pareciam se fechar. O elevador era a sua caixa de Pandora. Cada passo era dado com urgência e mesmo assim o tempo parecia passar mais devagar. As vozes que ecoavam no edifício empresarial somadas ao som pulsante dos batimentos cardíacos nos ouvidos faziam o estômago de null se embrulhar. Mas quando avistou a porta de vidro da sala de reuniões o vocalista quase parou, fazendo Doc trombar em suas costas e murmurar um xingamento.
Quando entrou na sala todas as conversas cessaram. O olhar de null foi atraído diretamente para a cadeira vazia no centro da mesa, o furo de uma queimadura de cigarro ainda aparente era uma lembrança melancólica daquela ausência sufocante.
— Eu pedi para tirarem a cadeira — Doc disse baixo para que apenas o vocalista pudesse ouvir.
null permaneceu estático, como se pudesse ver um fantasma diante dos seus olhos.
— Vamos tirar a cadeira de Gus para as próximas reuniões — disse Leto em cumprimento, recebendo o cantor na porta com um sorriso no rosto e batidinhas no ombro.
null respirou fundo e deixou um sorriso debochado ao passar pelo produtor, rumo ao seu assento.
— A cadeira fica.
Não era um pedido.
O vocalista afundou sobre o estofado de sua cadeira e podia jurar que conseguia sentir um cheiro de nicotina exalando do assento ao lado. Aproveitou a privacidade dos óculos escuros para fechar os olhos vagarosamente. Ele estava em todo lugar e ainda sim não estava em lugar nenhum. Quando abriu os olhos encontrou Tony e Kalil à sua frente em seus lugares usuais, suas feições eram um misto de receio e preocupação.
O quê?null disse sem emitir nenhum som, mas antes que os amigos pudessem gesticular qualquer coisa foram interrompidos pelo som de uma única palma.
— Que maravilha que tenha nos concedido a honra da sua companhia hoje, null — começou Leto, sorrindo tão forte que era possível que todos os seus dentes se quebrassem. Estranho. — Aposto que voltou de viagem com tantas notícias para compartilhar quanto nós.
O vocalista sorriu amarelo para as pessoas ali reunidas.
Pela primeira vez, percebeu que a sala estava mais cheia que o normal. Além da banda, do agente e do produtor, havia mais três pessoas engravatadas, duas mulheres e um homem. null quase podia ouvir artigos de lei sendo berrados em sua cara apenas com um olhar. Advogados eram inconfundíveis em qualquer lugar do mundo, com seus ternos cinzentos, pastas sanfonadas e olhar analítico. A sua presença era como uma doença contagiosa, pronta para infectar a banda Disclaimer e destruí-la de dentro para fora. O vocalista sentiu um bolo se formar em sua garganta.
— Estamos aqui hoje com grandes notícias — Leto olhou nos olhos de cada um ao iniciar o que parecia ser um monólogo, fazendo null suspirar. — A perda de Gus, que Deus o tenha, foi uma grande tragédia para os familiares, amigos e fãs.
O vocalista sentiu as mãos fecharem em punhos sob a mesa. Ele não podia estar fazendo isso.
— Achamos que era o fim, mas não poderíamos deixar que o legado de Gus se perdesse junto com ele. August Train era uma inspiração, um homem bom que acreditava que o amor poderia mudar o mundo…
null gargalhou alto.
Era como estar no velório mais uma vez.
— Algum problema, null? — perguntou o produtor, impaciente.
O vocalista limpou uma lágrima que ameaçava escorrer pelo olho direito.
— Você é muito engraçado, Leto, só isso — o sorriso ainda brincava nos lábios do vocalista.
Doc chutou a cadeira do artista em repressão, mas não surtiu efeito algum.
— Gus não é nada disso — null não era capaz de dizer as sentenças no passado e todos na sala repararam nisso. — Ele é um canalha de primeira categoria que age primeiro e conversa depois. Alguma coisa ou alguém sempre acaba quebrado no final.
Leto engoliu em seco quando um silêncio constrangedor dominou o recinto, mas foi logo suprimido por uma risada feminina. Uma das mulheres engravatadas olhava do vocalista para o produtor com um brilho de diversão. Tinha os cabelos presos em um coque baixo apertado até o último fio de cabelo e usava óculos de armação fina que a conferiam um ar de superioridade incontestável. null a odiou no momento em que colocou os olhos nela.
O som de alguém limpando a garganta cortou a sala.
— Ainda bem — ela disse com um sorriso debochado — Estava começando a achar que poderíamos ter problemas.
Leto pareceu suspirar aliviado.
— Como eu ia dizendo… — o produtor retomou o seu discurso — O sonho de Gus e toda a banda Disclaimer não poderia partir com ele. Em honra a tudo o que ele fez e que poderia fazer ainda o sonho deve continuar. E é com imensa gratidão e orgulho que hoje oficializamos a nova configuração da Disclaimer.
null já podia sentir o seu maxilar doer ao trincá-lo com cada vez mais força. Não conseguiu evitar de xingar August mentalmente de todos os palavrões que tinha em seu vocabulário.
Aquilo não poderia estar acontecendo.
Por que ele tinha que simplesmente morrer?
Filho da puta. Cuzão. Imbecíl Pau no cu. Canalha. Vigarista. Desgraçado. Retardado. Corno. Idiota. Energúmeno. Arrombado. Zé buceta. Fodido.
O produtor tomou um longo fôlego antes de dar um sorriso triunfante. Era o fim.
— Dêem as boas-vindas à null null — disse Leto, estendendo o braço para o grupo de engravatados. A mulher que estava rindo a pouco se levantou com um sorriso de canto dos lábios olhando para os demais com toda a sua glória. — A nova guitarrista da Disclaimer.
A nova guitarrista da banda.
A nova guitarrista da banda era uma mulher. Era aquela mulher.
Não.
— Vocês só podem estar de brincadeira — murmurou null encarando a mulher com puro ódio no olhar.
— O que disse, null? — perguntou Leto.
— Eu disse que vocês só podem estar de brincadeira — o vocalista disse. Ele estava puto, o que só alargou o sorriso da mulher quando notou o seu olhar.
— Certo, null, desculpe se esquecemos de consultar com você enquanto passou mais de dois meses completamente entorpecido atravessando todos os quatro cantos da América fugindo das suas responsabilidades — ironizou o produtor.
— Eu sou o líder da banda!
— August era o líder da banda — Leto respondeu rispido. null trincou o maxilar. — Talvez essa função deva ser herdada pela sua sucessora.
Os músculos do vocalista se enrijeceram instantaneamente.
— Eu não estou muito interessada — disse null simplesmente, para ninguém em especial.
Os homens se entreolharam. A tensão no ar era palpável.
– Você não precisa fazer isso, null – disse a mulher de cabelos curtos ao lado dela. – Não faz parte dos termos do contrato.
- Obrigada, Marta – null disse baixo, voltando a sentar-se ao seu lado com um sorriso gentil que nada combinava com suas feições.
Leto pareceu satisfeito com a intervenção da segunda mulher.
null é graduada em Comunicação Social, tem pós-graduação em Trade Marketing, toca violão, guitarra e piano — o produtor decidiu continuar como se nada houvesse acontecido. — Além disso, ela já é reconhecida no mercado fantasma como compositora e já escreveu alguns dos grandes hits que temos no mercado hoje em dia, o que faz dela uma grande aquisição para a banda nesse momento desafiador de transição que vamos enfrentar.
null não deixou de notar null torcendo o nariz em meio a um gesto de cruzar os braços, claramente fingindo prestar atenção. Não se permitiu simpatizar com a sua postura, não enquanto ela era uma das grandes responsáveis pela contaminação do sonho do seu melhor amigo.
— Leto, por favor, os rapazes não estão interessados nessa ladainha — disse Marta. Será que ao menos ela era a advogada daquela aberração? — Vamos ao contrato, sim?
O vocalista quase riu quando Leto não conseguiu conter a careta. O produtor deu um aceno positivo com a cabeça para o homem de gravata ao lado de Marta e ele prontamente entregou a papelada para a mulher.
— Vejamos aqui — murmurou a mulher, fazendo sons ao prosseguir com a leitura. — Vigência de dois anos. Não exclusividade para desenvolvimento de propriedade autoral. Autorização de uso de imagem. Multa em caso de violência física, verbal ou sexual pelos contratados e subcontratados. Remuneração compatível com a do último contratado para a função. Multa por quebra de contrato em 30% da original. 20% dos lucros sobre as produções e merchandising relativos à vigência do contrato. Disponibilidade para jornada de trabalho diversificada e viagens. Plano de saúde. Mediação e arbitragem de conflitos pelo ICC.
null olhou para o teto, entediado.
— O toxicológico? — perguntou null em um sussurro tão baixo que os demais não tiveram certeza do que tinham ouvido.
— Foi retirado — murmurou o homem. null tinha quase certeza que já tinha o visto antes. Devia ser o advogado da West Coast. Willie, Billie, Millie alguma coisa.
— Ficamos felizes — Marta deu um aceno breve. — Se os contratos dos demais não tem essa cláusula, não há motivo para haver nesse.
null deu um sorriso diabólico enquanto a advogada terminava a leitura. null tentou não reparar demais.
— Parece que está tudo aqui — a advogada anunciou aos presentes e se virou para a sua cliente. — null, pode fazer as honras.
Leto deu um largo sorriso ao retirar do bolso interno do casaco uma caneta montblanc cravejada e entregou-a para a guitarrista. null não pareceu se importar com a celeridade do gesto, apenas abriu o objeto e rabiscou todas as páginas do contrato sem nem pensar duas vezes.
Os músicos tiveram dificuldade de acreditar quando o sorriso torto do produtor aumentou ainda mais. Leto se aproximou da mulher, estendendo o braço para um aperto de mãos que foi aceito com prontidão.
— Seja bem-vinda, null null — disse ele, ao segurar a sua mão.
null — corrigiu ela, os olhos brilhando em desafio.
null — repetiu ele.
O sorriso que ela deu causou arrepios sinistros que percorreram todo o corpo do vocalista.
— Doc, meu amigo — Leto se dirigiu ao agente. — Você se importaria de tirar uma foto?
— Sem problemas.
— Vamos, meninos? — o produtor convidou os integrantes da banda.
Um a um, Kalil, Tony e null se levantaram. Mesmo que à contragosto do último. Por último, null. Ela se posicionou entre Leto e o baterista ao mesmo tempo em que o produtor puxou null para ficar do seu outro lado. Doc apontou a câmera do celular e fez uma contagem antes de apertar o botão. Era isso. A primeira foto da nova banda Disclaimer.
O início do fim.
O produtor puxou uma salva de palmas e foi seguido pelos demais em comemoração. Todos, exceto null. O vocalista apenas sustentou um olhar assassino sobre null, que ao notar lançou-lhe um sorriso debochado em resposta.
null ficou à deriva, enquanto os demais engataram em uma conversa sobre os próximos passos. Planejaram uma grande festa de divulgação na próxima semana. O vocalista estava tão aéreo que nem mesmo encontrou sua voz para protestar quando decidiram que a recepção seria em sua casa. Tony e Kalil pareceram já ter conhecido a nova guitarrista antes ao conversarem com a mulher entre uma ideia ou outra, pareciam realmente levar a sua opinião em consideração. Já a opinião de null não valia de nada, não foi provocado a colaborar uma única vez durante todo o andamento da discussão, então não se deu o trabalho de se intrometer. Anthony parecia se divertir com o humor ácido de null, falava mais bobagem que o normal apenas para ver o que ela poderia dizer em resposta. Ainda sim, ele não parecia deixar de ficar surpreso com as palavras ásperas e irônicas que saíam da boca da mulher, deixando-o de olhos arregalados ou sem fôlego em meio ao riso entrecortado. Era insuportável para null. Ao menos Kalil era normal. O baterista de cabelos compridos se mantinha segundo plano como de costume, concordando ou discordando quando achasse pertinente, mas sem se preocupar em dar mais explicações. Tinha permanecido próximo à null desde o momento da foto, olhava-a com atenção enquanto ela falava e vez ou outra fazia comentários sussurrados, mas nada fora do usual. Era um cara quieto, falava baixo, tratava as pessoas bem e não dava trabalho. Não era nada como null e seu pavio curto. Assim, o vocalista permitiu a si mesmo que se perdesse em seus pensamentos autodestrutivos.
Se fosse null à sete palmos do chão e não o melhor amigo, nada seria desse jeito. Gus naquela sala ele estaria empolgado. Não pensaria duas vezes antes de começar a discutir ideias para o próximo álbum. Soltaria alguns palavrões e riria na cara de cada um que o olhasse em reprovação. Talvez até mesmo acenderia um cigarro só para deixar uma nova marca no estofado de couro de sua cadeira. Chamaria todos para emendar as comemorações em sua casa, com direito a bebida e quaisquer outras coisas que os convidados quisessem consumir. Contaria à nova integrante da banda sobre o seu melhor amigo. Falaria dele como se fosse a melhor pessoa que já pisou na Terra, mesmo que fosse exatamente o contrário. Mentiria sobre suas aventuras para que parecessem ainda mais inacreditáveis. Ficaria feliz por dar continuidade ao sonho do amigo que se tornou realidade.
Mas null não era nada como Gus.
Quando se deu conta, o seu olhar vazio estava fixo em uma bunda redonda perfeitamente ajustada à uma calça de alfaiataria. Uma bela bunda. Entretanto, ao perceber a quem pertencia a expressão do vocalista se fechou como um temporal.
null estava à sua frente no elevador, conversando descontraída com Tony. Ao seu lado, Kalil o olhava de esgueira com um sorriso contido nos lábios. null bufou encarando o visor do elevador como se pudesse fazê-lo chegar ao piso da garagem mais rápido.
Aquele espaço era pequeno demais para ser dividido com null null. Não suportava ouvir aquele riso de escárnio reverberar pelo seu corpo. O perfume dela sufocava o ar em seus pulmões. A voz como era como uma maldição em seus ouvidos.
Quando as portas de abriram, null se permitiu respirar fundo. Foi um alívio miserável. Colocou as mãos nos bolsos do moletom e manteve sua distância.
— A conversa está ótima, mas eu preciso ir — anunciou null, sem rodeios, olhando para os demais membros da banda sobre o ombro anguloso do blazer.
Aos poucos, o peso sobre os ombros de null parecia aliviar. Ele quase agradeceu mentalmente por isso.
— Nós costumamos nos reunir na casa de Gus depois das reuniões… — começou Tony sugestivamente.
null apenas arqueou uma sobrancelha.
— Costumávamos — corrigiu Kalil suavemente.
— Acho que agora vamos precisar frequentar a casa de null de agora em diante — ele riu sem jeito, mexendo no cabelo como se fosse capaz de disfarçar o desconforto.
null percebeu que seus sentidos lhe enganaram mais uma vez. De repente, começou a sentir a cabeça latejar. Puxou do bolso traseiro da calça um maço de cigarros que Doc esgueirou para ele durante a reunião e sacou o isqueiro que esqueceu de devolver mais cedo.
Ótimo.
Kalil limpou a garganta para preencher o silencio.
— Você não quer ir? — perguntou Tony, quando o amigo soltou o primeiro trago.
Maravilha.
null olhou para null quando ele pareceu puxar a nicotina com mais força. O vocalista não se deu o trabalho de retribuir o olhar. Não ofereceria nada a ela.
— Quem sabe uma próxima vez? — foi a única resposta dela.
Anthony aceitou com um aceno de cabeça e se despediu dela com um beijo em cada lado do rosto. Ela se aproximou lentamente de Kalil para um abraço rápido, mas foi surpreendida com um beijo cuidadoso na bochecha, parecendo parar por um momento para pensar.
Logo, null percebeu o que viria a seguir. Sentiu o corpo inteiro enrijecer quando a mulher deu alguns passos em sua direção. Colocou o cigarro na boca, como se fosse possível fingir que esse era o motivo da carranca que deformava a sua expressão. Talvez o câncer industrializado fosse o suficiente para espantá-la.
Foi quando se deu conta que não precisaria mesmo oferecer nada a ela. null tomaria tudo o que quisesse.
Só precisou chegar perto o suficiente e estender o braço para tomar o cigarro aceso de seus lábios. null pareceu entretida ao fitar o olhar mortífero do vocalista sobre si, quando levou o objeto à boca e deu dois longos tragos. null sentiu uma das mãos se fechar em um punho no bolso do moletom, no mesmo momento em que a mulher assoprou a fumaça em seu rosto.
— O gato comeu a sua língua? — sussurrou ela, para que apenas ele pudesse ouvir, olhando-o de cima a baixo com um sorriso irônico no rosto.
A guitarrista não esperou uma resposta. Jogou o cigarro pela metade no chão como se não fosse nada e tirou uma chave do sutiã.
null trincou o maxilar quando a mulher desfilou até uma moto que não estava muito longe dali.
— Ei, null — o vocalista jurou nunca ter ouvido a voz de Kalil tão alta.
A mulher olhou para o grupo por cima dos óculos, enquanto subia cavalete da motocicleta.
— O capacete — disse o baterista, como se isso explicasse tudo.
Por algum motivo, aquilo pareceu a coisa mais engraçada do mundo.
null null apenas jogou a cabeça para trás em uma gargalhada genuína e saiu do estacionamento cantado pneu, enquanto os demais ficavam para trás.

Capítulo 2 — How You Remind Me


“And I’ve been wrong, I’ve been down
Been to the bottom of every bottle
These five words in my head
Screaming ‘Are we having fun yet?’”

— How You Remind Me, Nickelback
.

Com o coração na garganta e o suor pingando da testa, null investiu suas últimas estocadas antes de cair deitado na cama.
Margot suspirou em descontentamento ao seu lado, levantando-se e vestindo suas roupas, chamando a atenção do namorado.
— Amor — chamou null, segurando os dedos da mulher e depositando um carinho preguiçoso nas costas de sua mão com o polegar ainda trêmulo. — O que foi?
A modelo bufou ao se desvencilhar suavemente para abotoar o sutiã.
— Nada — ela murmurou, fazendo o homem suspirar fundo.
— E você quer que eu acredite nisso?
A mulher continuou a recolher as peças de roupa e vestir uma de cada vez sob o olhar atento de null que ainda recuperava o fôlego.
— Mar… — o vocalista insistiu mais uma vez, permitindo a sua voz soar manhosa.
Margot revirou os olhos impaciente.
— Não venha com Mar para cima de mim — cortou ela em um tom acusatório, quando já estava completamente vestida. — Primeiro você desaparece por dois meses, com sabe-se lá quem, fazendo sabe-se lá o que. Não atende nenhuma das minhas ligações e nem responde nenhuma das minhas mensagens. Ao menos falou comigo quando você voltou, seu canalha. Eu só estou aqui porque o Doc me convidou para a sua porcaria de anúncio do novo guitarrista da banda. E tudo o que eu recebo é uma rapidinha esfarrapada antes de um ensaio? Não. Nada de Mar. Você sabe muito bem o que foi.
null passou a mão nos fios de cabelo bagunçados em um gesto de impaciência, suspirando ruidosamente.
— Da nova guitarrista — murmurou ele à contragosto.
— Da?
O vocalista confirmou com um aceno sem olhar para ela. Margot não conseguiu conter uma risadinha.
— Uau — ela se recostou no batente da porta com os braços cruzados e uma expressão divertida no rosto — O novo guitarrista é uma mulher?
null não se preocupou em responder, apenas soltou o corpo sobre a cama macia derrotado.
— Você deve estar morrendo por dentro — era possível ouvir o sorriso na voz da mulher.
— Muito obrigado, Margot — resmungou ele entre os lençóis.
A risada dela foi quase tão desagradável quanto o sermão que a antecedeu.
— Bom, acho que vou indo — disse Margot, abrindo a porta do quarto. — Aparentemente o universo decidiu te punir por mim.
O vocalista chamou por ela mais uma vez.
— Você vem?
— Ao anúncio? — perguntou ela com um sorriso debochado. — Não perderia o seu castigo por nada nesse mundo.
Margot não esperou uma resposta, saindo da casa batendo a porta sem olhar para trás.
null ficou ali, deitado olhando para o teto por mais um tempo. Deveria estar realmente fodido. Para até a própria namorada achar que ele merecia esse método de tortura, ele só poderia estar muito na merda.
Depois de um bom tempo, que ainda sim não pareceu o suficiente, o vocalista bebeu uma dose de whisky, tomou uma ducha fria e vestiu uma regata preta com uma calça jeans escura, antes pegar o seu Challenger rumo à casa de Kalil. Decidiram que seria o melhor lugar para ensaiarem dali em diante. Antes de tudo acontecer, tudo era na casa de Gus, ele tinha as melhores bebidas, o estúdio profissional, todos os instrumentos, os melhores videogames. Agora sem ele, seria mais fácil deslocar todo o material para a casa de Kalil do que tentar transportar a bateria em cada ensaio que tivessem.
Em apenas vinte minutos já estava na casa modesta do amigo às margens de Beverly Hills. Kalil não se importava muito com mansões, carros ou marcas de roupa, nunca se importou. Então não foi surpresa para ninguém quando ele se mudou para uma casa simples de dois andares e apenas três quartos nos arredores do bairro das estrelas, mantendo-se naquela região apenas pela segurança necessária quando se é uma pessoa pública. E é claro, pela privacidade. Enquanto as pessoas eram sempre atraídas por Santa Monica ou Hollywood Hills, o baterista encontrou o seu próprio oásis particular, onde não precisava se preocupar com vizinhos ou tráfego, próximo aos parques e reservas naturais da região. O único sinal de poluição no perímetro eram a fumaça dos cigarros de Kalil e o rugir da sua bateria.
null costumava amar os ensaios da banda. Montar setlists. Tentar coisas novas. Beber até não acertarem um acorde ou se esquecerem as letras das músicas. Agora não conseguia nem pensar em fazer isso sem Gus. Muito menos um show.
O vocalista então decidiu adiar o inevitável. Antes de desligar o carro, tomou mais uma dose do cantil que carregava no bolso de trás da calça. Saiu do carro com um suspiro pesado, sem se preocupar em trancar o veículo. Sentou-se preguiçosamente aos pés das escadas de madeira que levavam à varanda e à entrada principal da casa de Kalil, sacando da capa de sua guitarra um maço de cigarros e um isqueiro.
null se perguntou por que a gravadora nem ao menos considerou mantê-lo como guitarrista principal. Poderiam muito bem se virar para seguir com a banda sem um intruso no seu caminho. Sabia que não tinha o dom inato do amigo, não tinha o ouvido musical, mas, mesmo assim, era um bom guitarrista.
null tragou e assoprou a fumaça.
Poderiam fazer isso sozinhos se quisessem. Talvez no fundo esse fosse o problema. null não queria fazer isso. Não sem Gus. Por isso a gravadora tinha decidido que precisariam de uma pessoa nova. Alguém que usasse essa oportunidade para criar o seu nome e fazer acontecer. Os rapazes já tinham tudo. Mesmo que tivessem que continuar o trabalho, o básico era o suficiente para simplesmente terminar o tempo do contrato, juntar as suas coisas e irem embora. Agora, com uma nova pessoa na jogada, o futuro era imprevisível.
null null era um covarde autodestrutivo e agora pagaria o preço por isso.
Foi no meio desse pensamento que ele ouviu o uivo de uma motocicleta ao longe. Aos poucos uma imagem surgiu no horizonte da rodovia, os cabelos presos em um rabo de cavalo chicoteavam o ar, ou talvez fosse o contrário. A motoqueira se aproximou mais rápido do que null poderia se preparar para a sua chegada, sua pequena imagem transformada em uma presença aterrorizante e ensurdecedora em questão de instantes.
null desmontou da motocicleta em um único movimento, soltando os cabelos escuros e refazendo o penteado castigado pelo vento do trajeto. Quando terminou, seu olhar intenso foi instantaneamente atraído pelo de null, que a observava desde o momento em que notou a sua chegada iminente.
null — o homem decidiu engolir o orgulho e arriscar um cumprimento.
null — corrigiu ela, arisca.
Ele deveria ter a chamado de vadia.
null revirou os olhos e se contentou em lançar lhe um sorriso debochado.
— Que seja.
null simplesmente correspondeu a provocação com um sorriso irônico, olhos grandes em um misto de surpresa e desafio. null se viu encarando-a por tempo demais enquanto ela rebolava lentamente em sua direção. Os olhos brilhantes. Os cílios compridos. O rubor nas bochechas. Os lábios entreabertos. Precisou fechar fortemente as pálpebras para se lembrar de quem ela era e o que fazia ali. Quando reabriu os olhos, foi o bastante para que o desprezo cobrisse o seu rosto como uma máscara.
O homem voltou a observá-la, com escárnio dessa vez, ao aventurar-se pelo caminho de ladrilhos. Totalmente diferente do último encontro, dessa vez ela vestia uma camisa dois números maiores do Pearl Jam, uma calça jeans de lavagem clara e coturnos pretos. Cada passo violento era milimetricamente calculado como uma marcha militar. Mas faltava alguma coisa.
null riu sem humor.
— Perdeu os óculos, espertinha?
null deu uma risada sincera ao se aproximar.
— Você não achou mesmo que eu usava óculos, não é?
O vocalista ponderou com um estalo da língua.
— Isso tudo não passa de uma brincadeira pra você? — perguntou ele, a paciência e os bons modos se esvaindo aos poucos.
— Com certeza — ela respondeu. — Estou descobrindo que mexer com você pode ser bem divertido.
null bufou, soltando a nicotina em uma fumaça disforme.
— Estou começando a me perguntar se você realmente sabe tocar alguma coisa.
— Posso aprender a tocar várias coisas se você quiser — provocou ela com um sorriso ladino.
A piada suja. null não conseguiu deixar de se lembrar de Gus. Precisou remexer os ombros para se livrar do desconforto que aquela impressão causou.
Quando ela chegou perto o suficiente, perto demais, a mulher estendeu o braço em frente ao rosto do homem e balançou os dedos esguios. Como se tivesse a educação necessária para pedir o cigarro.
O vocalista deixou escapar uma risada entrecortada pela fumaça em seus pulmões. É claro que ela não pediria verbalmente.
Ele agradeceu mentalmente a postura dela e se permitiu ignorar o gesto.
null abaixou a mão com um sorriso vitorioso, como se esperasse por aquela reação o tempo todo. A mulher apoiou-se contra a pilastra de madeira da varanda e olhou-o de esguelha. Ela soltou um estalo com a boca, apoiando-se contra a pilastra de madeira da varanda e olhando-o de esguelha.
— Está se sentindo mais falante hoje, bonitinho?
null pareceu considerar por um momento se responderia ou não.
— Você vai acabar descobrindo que eu consigo ser muito mais agradável quando as pessoas não se metem onde não são chamadas — respondeu ele em um tom ríspido, sem olhar para ela enquanto ainda fumava.
— Então você vai gostar de saber que foi a West Coast que me procurou e não o contrário — ela ponderou.
— Você ainda está aqui, então não muda nada — null resmungou, o som abafado pelo cigarro em seus lábios.
null riu sem pudor, colocando-se em frente ao vocalista com um sorriso provocante nos lábios.
— Isso vai ser interessante.
null não conseguiu nem reagir quando a mulher tomou o cigarro de seus lábios e marchou para dentro da residência.
O vocalista olhou para o teto, contou até dez mentalmente e com um suspiro seguiu o trajeto da mulher com os dentes trincados. Seguiu o odor de cigarro, do seu cigarro, pelo conhecido caminho da sala simples e minimalista até a porta escondida atrás da cozinha americana, que levava às escadas que davam no porão, onde o som ensurdecedor da bateria de Kalil já dominava o ambiente.
O baterista esmurrava os tambores com a mais nua e crua fúria. Nada como o homem pacato que conhecia. A violência de seu solo era tanta que era como se hipnotizasse os demais para que contemplassem o que poderia ser uma verdade sombria escondida por trás da personalidade calma e tranquila do homem. Ninguém ousou ao menos piscar. null sequer se incomodou com a presença da mulher escorada no corrimão ao seu lado, aceitando de bom grado o trago final de seu próprio cigarro que ela o ofereceu. A figura transtornada e pecaminosa de Kalil atrás da bateria tornava a presença odiosa da tirana em nada além de um mero inconveniente. O cabelo comprido do baterista chicoteava o ar como uma tempestade de verão à medida que gotas de suor começavam a desenhar sua camisa cinza em uma arte abstrata. Os demais não passavam de espectadores até o seu fim repentino, marcado pelo barulho de baquetas caindo no chão e os ruídos de sua respiração ofegante.
Em meio ao silêncio macabro que se sucedeu, o som agudo de um assobio seguido por palmas entusiasmadas de null cortou o ambiente. Logo foi acompanhada por um grito de incentivo de Tony que se juntou ao coro. null não pôde evitar de sorrir verdadeiramente e aplaudir o amigo em admiração.
— Cara — iniciou o baixista, sorridente — é sempre um prazer ver você fazer isso!
— Nada mau! — o vocalista abandonou a inércia com um sorriso sacana nos lábios andando em direção ao sofá no canto da sala e jogando-se sobre ele.
null observava à distância, com um sorriso ladino no rosto.
— Não enche — respondeu Kalil sem dar muita importância, pegando uma toalha que descansava sobre a banqueta e secando o rosto brilhante de suor.
O baixista esperou o amigo se aproximar para dar-lhe dois tapinhas amigáveis no ombro.
— Isso traz memórias, não é? — Tony disse sorridente, analisando o porão do baterista com o olhar.
Ele tinha razão.
Estar ali era como estar novamente na garagem dos Train e sonhar com um sonho impossível.
Os instrumentos espalhados pelo ambiente. O teto baixo. A risada estridente de Tony. O sofá surrado no canto do ambiente para que pudessem matar o tempo. Os incontáveis pares de baquetas de Kalil espalhados pelo cômodo. O cinzeiro cheio de bitucas de cigarro ainda exalando fumaça do último exemplar adicionado à coleção. Era quase como se August pudesse chegar a qualquer momento falando alto para que movessem suas bundas gordas para o palco improvisado. Mas ele nunca mais chegaria.
— Não pra mim — disse null fazendo graça, ao desencostar-se da escada com um sorriso no rosto.
null sentiu sua expressão se fechar quase que instantaneamente.
— Não teria como, Kalil não costuma trazer as mesmas garotas em mais de um ensaio — respondeu ele inevitavelmente grosseiro. Não conseguia evitar. Mas a verdade era que ele nem ao menos tentava.
— É uma coisa boa que isso vai mudar então — ela replicou arisca. Era impressionante como ela sempre tinha uma resposta na ponta da língua.
O vocalista abriu a boca para responder, mas foi logo interrompido por Kalil.
null, por favor.
Um pedido de cessar fogo. Ao menos por hora. Um pedido irrecusável. Principalmente depois daquela performance. Não era apenas uma forma de impressionar uma mulher bonita que estava no ensaio. Não. null sabia que, a sua própria maneira, o baterista sofria tanto quanto ele por conta das circunstâncias atuais. Por esse único motivo, permitiu que as palavras morressem antes que saíssem de sua garganta.
Os amigos pareceram satisfeitos com isso, e se uniram ao vocalista no que poderia ser considerada a sala de estar do porão. Tony deu uma batidinha no ombro do baterista, antes de soltar o seu corpo sobre o puff ao lado do braço do sofá. Kalil jogou a tolha sobre os ombros e sentou-se no chão sem pressa alguma, escorando as costas na parte central da mobília. null soltou a cabeça sobre o encosto acolchoado, como se permitisse o seu corpo relaxar pela primeira vez em muito tempo. Juntos, os homens olharam através da sala como se esperassem por alguma coisa.
O vocalista bufou impaciente.
— Pode vir, bonitinha, não vamos fazer nada que você não queira — provocou ele com uma voz preguiçosa.
null não disse nada. Apenas caminhou em passos lentos até a ponta mais distante do sofá, sentando-se ao chão ao lado de Kalil.
null arqueou uma sobrancelha para o baterista que apenas deu de ombros para o gesto.
— Faltaram quatro shows para terminar a turnê — começou Kalil. — New York, Tampa, Chicago e Venice.
O vocalista se mexeu desconfortável no assento.
— Não conseguimos, tirar New York da programação, cara, sinto muito — Tony se solidarizou.
Era em New York que tocariam no dia em que encontraram o corpo do amigo sem vida em seu quarto de hotel.
— Que merda — ouviram null murmurar e todos pareceram concordar com ela, sem exceção.
— O setlist tem doze músicas, mas você já deve saber disso — o baixista complementou com os olhos cerrados, como se desafiasse a mulher a se intrometer na sua explicação. — Normalmente começamos com Kick Me e terminamos com King For A Day.
null limpou a garganta, chamando a atenção dos outros para si.
— Vamos tirar King For A Day do repertório — decretou ele.
— O quê? — a voz de Tony subiu algumas oitavas.
Até mesmo null parecia descrente.
— Não vou cantar a música de Gus sem ele — disse null, irredutível.
— Você só pode estar ficando louco — o tom da guitarrista era impaciente, os olhos brilhando com algo que parecia ódio, ou até mesmo ressentimento.
O vocalista sustentou o seu olhar por um breve momento, antes de quebrar o contato visual como se não fosse nada. Como se ela não fosse nada.
— Talvez você tenha razão, null — Kalil parecia reflexivo, contemplando o nada. — Afinal a música é um dueto.
null suspirou, afundando no estofado.
— Eu não canto — resmungou Tony.
— Muito menos eu — concluiu o baterista, dando de ombros.
— Eu poderia…
null a encarou com tanta intensidade que a guitarrista até perdeu as palavras.
— Você poderia o quê, null? — sibilou ele, usando pela primeira vez o apelido da mulher, como se fosse uma maldição. — Você poderia roubar o lugar do nosso amigo na banda que ele criou? Ou você poderia cantar a única música que ele escreveu para ele cantar?
null franziu o cenho para o vocalista em uma expressão de mais puro desgosto.
— Você poderia ficar com a guitarra dele também. Ou até mesmo morar na casa dele. Quem sabe ficar com os cachorros dele também? Posso te passar o telefone da prostituta favorita dele se precisar, apesar de eu achar que você não daria conta dela.
A guitarrista se levantou consternada, colocando-se rapidamente em frente a null com o indicador apontado para a sua cara perturbada.
— Quer saber, null? — ela quase cuspiu o nome dele. — Vai se foder. Destruir essa banda, as pessoas ao seu redor e a si mesmo não vão trazer o seu amiguinho viciado de volta. Pensando bem, é bem provável que você seja o responsável por matar o resto da família dele desse jeito se você não se matar primeiro. — o vocalista trincou o maxilar, enquanto a mulher tomou fôlego em uma inspiração violenta — Então, por que você não para de falar merda e usa essa sua boca imunda para fazer a única coisa que você sabe fazer e canta essas palhaçadas que você chama de músicas?
Com isso, null simplesmente deu as costas pegando uma guitarra vermelha que descansava em sua capa ali perto e posicionando-se à esquerda do pedestal onde um microfone descansava. A mulher encarou os três amigos com os olhos em chamas e uma expressão beirando a insanidade.
Kalil foi o primeiro a se levantar, caminhando silenciosamente até a bateria com as mãos nos bolsos, sendo seguido por Tony que pegou um baixo branco que descasava em um suporte à direita. null por sua vez tomou o seu tempo para se levantar, com um sorriso sádico no rosto, se limitando a dar um passo de cada vez aproveitando cada faísca do olhar de null. Sem pressa, colocou-se no centro da formação e puxou o microfone para si.
— O que sabe tocar, bonitinha? — sussurrou ele contra o microfone, olhando à de soslaio. Sua voz reverberou por todo o recinto.
— Tenta a sorte — respondeu ela, ríspida.
null a lançou um sorriso insolente, tentando disfarçar o desapontamento, fazendo alguns gestos para os amigos que logo entenderam o recado.
Kalil fez uma contagem com as baquetas marcando o tempo da música, enquanto o vocalista tomou fôlego dedilhando as primeiras notas da música em sua própria guitarra.
Vozes na minha cabeça outra vez. Preso em uma guerra dentro da minha própria pele. — a voz de null dominou o ambiente — Elas estão me puxando para baixo!
Mas antes que o vocalista pudesse se virar com um sorriso triunfante a melodia da guitarra principal rasgou a primeira estrofe no tempo exato da música. null teve que se esforçar para seguir a música sem se distrair com a presença ao seu lado. null não errava nenhuma única nota e não dava ao vocalista a satisfação de buscar o seu olhar em aprovação. A guitarrista tocava como se fizesse isso durante a vida inteira e talvez fosse isso mesmo. Mesmo que lutasse contra, null se viu diversas vezes observando a mulher de esguelha. Os olhos fechados, os dedos inquietos sobre as cordas do instrumento, a batida ritmada do pé direito.
Só poderia ser sorte. Ela estava em negociação com a gravadora enquanto o vocalista esteve ausente, deve ter estudado a discografia.
Eu não quero viver, tão insensível e congelado, feio e sem esperança. Não quero viver para sempre. Eu só quero viver agora.
Não conseguiu deixar de pensar em Gus. Talvez fosse a perspicácia da guitarrista em reconhecer a melodia. Os reflexos rápidos. A postura. Os lábios que não resistiam a formar a letra da canção mesmo sem emitir som algum.
null null parecia estar ao mesmo tempo tão perto e tão distante. Assim como August Train.
Em meio a um solo de guitarra, null encontrou a oportunidade de virar-se para os amigos com mais um conjunto de orientação para as próximas músicas de codificadas por gestos e expressões. Se null queria testar a sorte, então ela seria testada.
Quando chegaram aos últimos acordes de Voices, Kalil emendou ao ritmo da canção seguinte. O vocalista viu null abrir os olhos em sua visão periférica, quase podia ver as engrenagens do seu cérebro trabalhando para reconhecer a melodia. Estava pronto para cantar vitória, mas foi impedido pelo som da guitarra vermelha que mais uma vez acertou o tempo de entrada. A mulher manteve o olhar perdido enquanto franzia o cenho ao tocar sem muito esforço. Por um momento a sua expressão lembrou tanto a que August costumava fazer.
null sentiu as mãos fecharem em punhos, então puxou o ar violentamente e cantou a sua raiva:
Meus segredos estão queimando um buraco em meu coração e os meus ossos estão com febre — sua voz rouca arranhava a garganta, deixando os seus pulmões em chamas. — Quando isso te corta tão profundo assim é difícil encontrar uma maneira de respirar.
O vocalista estava furioso, cantando em plenos pulmões a canção mais dolorosa que escreveu. Não que existisse outra forma de cantá-la. Era uma canção de ódio, mágoa e agonia. Então por que diabos null a tocava tão tranquilamente?
Por um momento null se sentiu apenas um coadjuvante. Um mero expectador. Sua voz não passava de uma música ambiente, uma trilha sonora para o que acontecia ao seu lado. Sem ao menos querer, a verdadeira performance acontecia ao seu lado. Como se o tempo passasse mais devagar e todo o som exterior fosse abafado. Talvez nada que fizesse fosse o suficiente.
Naquele momento ele era apenas testemunha da mais pura demonstração de talento bruto.
null puxou o cantil entre um verso e outro em um gesto de desespero. Sentindo a visão começando a ficar turva.
O vocalista interrompeu a música no meio com um acorde ruidoso de sua guitarra. O silêncio caiu sobre o porão. null se recusou a olhar para a esquerda.
Eu sento no meu quarto desolado sem luzes, sem música — ele tomou fôlego — APENAS RAIVA. Eu matei a todos. Estou ausente para sempre, mas estou me sentindo melhor.
Para o desgosto de null a guitarra soou no momento exato, sendo imediatamente seguida pela bateria e pelo baixo. O vocalista deixou fúria se espalhar pelo seu corpo junto à dormência relacionada ao álcool enquanto cantava. Aproveitou a oportunidade de merda que ele mesmo havia criado para descontar todo o seu rancor. Sentiu cada nota da guitarra à sua esquerda como uma facada no peito, enquanto a sua voz era um clamor colérico. À medida que o seu rosto esquentava, o ar parecia lhe faltar, mas ele não deu importância. Deixou sua mente se anuviar e o mundo desaparecer, como se transformados pela sua voz, esquecida pelos últimos meses, e pelo sentimento que o acompanharia para sempre. Quando cantou a sua última nota, com o peito arfando e a respiração entrecortada, teve a impressão de que se forçasse mais um pouco nunca mais seria capaz de fazer aquilo novamente.
Mas antes que o silêncio pudesse dominar o ambiente, o porão foi preenchido por uma gargalhada extasiada.
null tentou não revirar os olhos quando tombou seu pescoço para a esquerda, em direção ao som.
— Não vai ser com System of A Down que você vai me derrotar, null — disse null divertidamente, limpando uma lágrima do canto dos olhos.
O homem não expressou nenhuma reação, completamente esgotado pela performance.
A guitarrista tirou a correia do ombro e deixou o instrumento sobre um apoio ali perto, antes de se jogar sobre o sofá com um suspiro satisfeito. Exatamente onde null estava antes. Ela deixou a cabeça pender no ar longe do acolchoado ao mirar o vocalista.
— Tente Guns ‘n Roses da próxima vez — disse ela, dando uma piscadela, como se compartilhasse um segredo — Eu não gosto muito deles.
Tony tossiu alto, voltando para o seu lugar original sem nem ao menos se separar do baixo.
— Como alguém não gosta de Guns?
— Pergunte ao null — Kalil deu de ombros, levantando-se da bateria e sentando-se mais uma vez sobre o carpete preguiçosamente. — Ele não gosta de muitas coisas.
— Isso não vem ao caso — o vocalista resmungou, guardando sua guitarra novamente na capa.
O baterista puxou uma pequena maleta sob o sofá, de onde tirou uma tesoura, seda, papel de piteira e um slicker, concentrando-se no trabalho manual de enrolar um baseado.
null? — insistiu o baixista, dando um tapinha na mão da mulher que pendia para fora do sofá.
— Ahn, sei lá — hesitou ela. — as letras são constrangedoras, a voz do Axl Rose é desagradável, fora que as músicas envelheceram mal demais.
— Fala sério, a voz dele? — Tony estava incrédulo. — Ninguém no mundo faz o que ele fazia.
— Não é à toa que ele ficou sem — comentou null, sem se importar com a mulher ao sentar-se no sofá ao seu lado.
null fez um estalo com a boca.
Guns é rock pra quem finge que gosta de rock.
O vocalista brindou ao comentário, levantando o cantil e dando mais um gole amargo. A mulher o fitou por um momento.
— Seu vocal ao vivo é melhor do que eu esperava — disse ela. Talvez isso fosse um elogio na mente distorcida dela.
— Seu som também não é dos piores — respondeu ele, com o máximo de cordialidade que podia direcionar a ela. O que não era muita.
Como se essa troca de palavras já não fosse inesperada o suficiente, null foi além e sorriu. Sorriu para ele. Um sorriso sincero que o deixou com um vinco no meio das sobrancelhas.
null sentiu um cutucão na perna e quando olhou viu Kalil estendendo-lhe o baseado. Pegou o cigarro enrolado entre os dedos e deu dois tragos generosos, sentindo a pressão baixar instantaneamente.
— Podemos ensaiar a setlist das próximas vezes? — perguntou null a ninguém em especial.
— Essa é a ideia — respondeu o baterista, esticando-se até se deitar sobre o carpete, encarando o teto. — null só não é muito bom com pessoas novas.
O vocalista encarou o amigo, incrédulo.
— Como vamos substituir King For A Day? — perguntou Tony, brincando com as cordas do baixo.
— Podemos fazer um cover diferente em cada show — sugeriu null.
null a ofereceu o baseado com um sorriso ladino nos lábios.
— Gostou do que viu, null?
A guitarrista arqueou uma sobrancelha aproximando-se além do necessário para pegar o cigarro enrolado.
— E se eu tiver gostado? — disse ela, o rosto à poucos centímetros do dele.
— Na verdade, isso é uma ótima ideia — ouviram Kalil dizer.
A guitarrista piscou algumas vezes e retomou a sua posição original, distanciando-se de null e assoprando fumaça para cima.
— É claro que é uma ótima ideia — disse ela com uma risada sem humor. — Se vocês vão decepcionar os fãs privando-os de uma das melhores músicas que vocês já fizeram, o mínimo que podemos fazer é surpreendê-los em cada show.
— Não vamos decepcionar os fãs — null sibilou.
null deu mais dois tragos e passou o baseado para Tony.
— Se você está dizendo…
Ainda no primeiro trago, o baixista teve um acesso de tosses que amenizou o clima com algumas risadas contidas de todos os presentes. null jogou para o amigo uma garrafa de vodka que estava jogada ao seu lado. Tony aceitou a bebida com uma careta no rosto, tomando alguns goles sofridos.
— Deveríamos começar a deixar garrafas d’água por aqui — disse o baixista após recuperar o fôlego, mas ainda com a voz fanha.
— Não seja fraco, de La Rocha! — respondeu Kalil.
— E perder cenas como essa? — null ponderou sorridente. — De jeito nenhum!
O grupo riu como grandes amigos. Até mesmo null.
— Você deveria parar de tentar respirar enquanto traga — o baterista implicou. — São coisas diferentes, você sabe.
— Se você tabacasse menos o baseado, talvez eu não precisasse ficar buscando por ar por conta desse gosto de merda — resmungou Tony.
— E você fuma todas as vezes — argumentou Kalil, olhando-o com um sorriso canalha nos lábios.
— Meninas… — censurou null em um tom divertido.
null deixou um riso frouxo escapar. Deveria ser o álcool.
— Tudo bem — Tony cedeu rapidamente, fazendo os amigos rirem. — Como vamos escolher as músicas?
A guitarrista deu de ombros.
— São quatro shows, quatro músicas, quatro integrantes da banda…
— Nem pensar! — null protestou.
null jogou a cabeça para trás em uma gargalhada.
— Sabe, null, eu tomaria cuidado se eu fosse você...
— E por que eu faria isso? — perguntou ele, impaciente.
— Qualquer hora dessas eu posso acabar gostando — respondeu a mulher com uma piscadela.
O vocalista bufou em resposta.
— Ela tem razão — disse Kalil.
— Eu não estou muito inclinado a discutir fantasias sexuais com vocês — null resmungou.
— Sobre os covers — o baterista complementou.
O vocalista soltou um estalo com a boca.
— Você está mesmo pensando em deixar o de La Rocha e uma desconhecida escolherem alguma coisa?
— Estou.
Tony riu escandalosamente.
— Realmente, vocês estão ficando loucos — disse o baixista, espreguiçando-se.
— Eu entendo que vocês criaram essa personalidade revoltada, introspectiva e problemática pra banda e que isso é a identidade musical de vocês — null argumentou, limpando as unhas deliberadamente. — Mas, quer vocês queiram ou não, as coisas mudaram. Vocês perderam um guitarrista e ganharam outra. O público quer se conectar não só com o que vocês eram, mas com o que nós podemos ser.
null quase rosnou.
— Acho que você não está ajudando muito — sussurrou o baixista para a mulher.
— Não diga — null revirou os olhos, afundando no sofá.
null — a voz de null a chamou.
A guitarrista o encarou com o cenho franzido.
— Pelo seu incomodo — disse ele, e jogou para ela o cantil que carregava com menos da metade do seu conteúdo original.
null encarou o vocalista com desprezo antes de abrir o recipiente e despejar todo o seu conteúdo em sua boca sem expressar uma reação sequer.
Aparentemente ela não iria cair sem lutar.

Capítulo 3 — The Downfall of Us All


“It’s not easy making a name for yourself
Where do you draw the line?
I never thought I’d be in this far”

— The Downfall of Us All, A Day To Remember
.

— Eu ainda não acredito que vocês acharam que seria uma boa ideia fazer o evento de anúncio da nova contratação na minha casa — null disse impaciente contra o telefone.
Uma risadinha divertida soou no aparelho.
Os eventos sempre são na sua casa — rebateu Tony do outro lado da linha. Só pelo tom de voz o vocalista sabia que o amigo estava sorrindo. Aquele traidor.
null suspirou audivelmente.
— Eu não quero ela aqui.
É, não tem muito o que podemos fazer — o baixista fez um estalo com a boca. — já que ela é meio que a atração principal.
O vocalista se jogou sobre a sua cama, sendo engolido pelos lençóis espalhados sobre ela. Anthony pareceu pensar por um momento, já que cantarolava uma melodia aleatória no alto-falante como costumava fazer nessas ocasiões. null bufou, arrancando do amigo uma risadinha.
Achei que já tivesse superado isso — disse Tony, a voz modulada pelo sorriso que com certeza estampava sua face — Estavam até bebendo juntos nos ensaios nas últimas semanas…
— Eu estava bêbado — resmungou null.
Você está sempre bêbado…
— Exatamente.
Por que estamos tendo essa conversa, então? — ponderou o baixista, bem-humorado. — Basta abrir uma daquelas suas garrafas caras e voilà.
— Eu só quero reclamar, se eu quisesse soluções teria ligado para o Kalil.
Meu Deus, não é possível que eu tô parecendo o Kalil! — praguejou Tony em meio a sons desconexos da ligação. O vocalista podia jurar que o amigo estava passando as mãos descontroladamente sobre os cabelos curtos ou até se esfregando sobre a cama ou sofá. — E a sua namorada?
— O que tem ela?
Me diga você, você não tem falado muito dela, e isso é desde antes de New York.
— Não há nada pra falar, já estamos juntos há quase um ano, não existem muitas novidades num relacionamento à essa altura… — null revirou os olhos impaciente.
Por que não reclama com ela?
— Porque ela está adorando essa merda — rebateu ele impaciente. — Ela deve acreditar que null é algum tipo de punição divina ou algo assim.
Não é como se você não estivesse merecendo — pontuou Tony.
— Eu não acredito nessas coisas.
Sorte sua.
null riu sem humor.
Vocês deveriam parar com isso, sabe? — disse Anthony com um suspiro do outro lado da linha.
— Não sei do que você está falando.
De ficarem machucando um ao outro — continuou o baixista. — Vocês têm essa mania, nenhum dos dois faz questão um do outro e quando a mídia começa a cair em cima arranjam a maior confusão por causa do que outras pessoas estão falando.
— A gente não…
E tá tudo bem, cara, vocês não têm nada a ver um com o outro.
— A gente se gosta, Tony…
Não do jeito certo — rebateu o baixista. — Eu sei que você ficou gamado quando eu apresentei vocês e também sei que vocês se sentem sim atraídos um pelo outro, mas você é meu amigo, null, e ela também. Eu e ela temos muito mais a ver que vocês dois.
— O que você quer dizer com isso? — null revirou os olhos, já arrependido de ter iniciado essa ligação. — Não é como se você fosse ficar com ela se nós não estivéssemos juntos.
Não mesmo!
Os amigos riram juntos.
Não é como se eu nunca tivesse dito isso antes — argumentou Anthony.
— Se eu não te ouvi antes, por que estamos falando sobre isso?
Porque nós dois conhecemos uma pessoa recentemente que faz super o seu tipo...
null não acreditou nas palavras que saíram pelo alto-falante, não mesmo. Quando se deu conta já estava em meio a uma crise desenfreada de tosse.
Eu tô falando sério — Tony resmungou quando o amigo pareceu respirar normalmente. — Ela é super maneira, tem um bom gosto musical, engraçada, gata…
— Eu nem reparei…
Você iria gostar dela se desse uma chance — pontuou La Rocha.
— Você sabe que eu não vou comer a null, não sabe? — cortou null impaciente.
Você é quem sabe — o baixista se fez de desentendido. — Ela faz o tipo de Kalil também…
— Espero que ele foda ela até ela desaparecer de minha vida — respondeu null irredutível.
Você não tem jeito.
— Por que você não incomoda o Casablanca? — resmungou o vocalista.
O baixista riu abafado.
Ao menos converse com a Margot — Tony disse suavemente. — Pare de ser um cuzão com a minha amiga.
— Posso pensar sobre isso.
Vou ter que me contentar com isso — La Rocha suspirou — Melhor eu ir, quero chegar antes de você mais tarde.
— Não vai ser muito difícil — null resmungou.
E é por isso que os eventos sempre são na sua casa — finalizou Tony com uma gargalhada, desligando a chamada antes que o amigo tivesse a chance de protestar.
Antes que pudesse se preparar psicologicamente para o que estava por vir, a festa já tomava vida na ampla sala de estar da casa de null. Meia centena de pessoas se reuniam sob o pé direito exagerado da mansão, bem servidos de champanhe e muita conversa afiada. null se demorou apoiado ao batente do andar superior, adiando o inevitável. Vestia uma regata canelada preta ajustada ao corpo que deixava a completude dos seus braços tatuados e definidos à mostra, combinados com uma calça de couro vermelha baggy e uma Dr. Martens nos pés. Analisava as pessoas andando para lá e para cá com o cenho franzido e um copo de whisky entre os dedos cobertos por uma quantidade exagerada de anéis. Reconheceu amigos, familiares, sócios da West Coast, algumas personalidades importantes do cenário do rock americano e uma dúzia agentes de comunicação previamente contratados para cobrir o evento. Seria uma maravilha.
Depois de alguns goles violentos em sua bebida, o vocalista decidiu finalmente erguer a cabeça e enfrentar o seu pesadelo do dia. Em poucos minutos foi encontrado por Doc sob as luzes negras e vermelhas que ambientavam os cômodos, enquanto tentava ferozmente driblar qualquer interação social com um aceno de cabeça e um sorriso forçado.
— Você costumava ser melhor em festas — disse o agente em forma de cumprimento, ao erguer sua taça em um brinde amistoso.
null o olhou com desconfiança.
— Eu costumava ser muitas coisas.
Doc riu sem humor.
— Sabe o que eu acho, null? — perguntou o homem, sua pele negra engolindo os poucos resquícios de luz do ambiente.
— Não, Doc — respondeu o músico em tom de deboche. — Por favor, me conceda mais uma das suas doses de sabedoria.
— Isso tudo… — o agente começou com um sorriso, ao ver o amigo e cliente revirar os olhos. — Não é sobre as coisas que acontecem com você. É sobre o que você faz com isso.
— Eu preferia uma dose — respondeu null espirituoso, antes de bebericar o seu copo.
Anthony que estava por perto não perdeu a oportunidade de se aproximar com todo o seu carisma. O baixista usava uma camisa preta transparente solta no corpo, por dentro de uma calça de cargo com uma diversidade de bolsos e zíperes característicos do street wear. O sorriso nos lábios de La Rocha chamava confusão. Mas quando é que não o fazia?
— Vejo que já começou os trabalhos — disse Tony observando o copo do vocalista com um olhar malicioso.
— É o jeito — null respondeu, dando um tapinha no ombro do amigo como cumprimento.
— Tá com sorte, vai poder aproveitar um pouco antes da sua cara metade aparecer — brincou o baixista, arrancando do amigo um suspiro impaciente.
— Não cante vitória tão cedo, Margot está vindo para cá — alertou Doc indicando a mulher com um aceno de cabeça.
O vocalista revirou os olhos, ignorando os comentários dos outros dois.
— Não era dessa cara metade que eu estava falando — cantarolou Tony, antes de ser empurrado pelo amigo e encerrar o assunto com uma risada escandalosa.
O agente olhou para null com uma sobrancelha arqueada, sem entender claramente a conversa dos músicos. Mas null se limitou a negar com a cabeça, respirando fundo uma única vez antes de caminhar em direção à mulher que já chegava ao seu alcance.
Margot o lançou um sorriso malicioso quando seus olhares se encontraram. Usava um vestido exagerado para a ocasião, longo demais, apertado demais, brilhoso demais. Apenas o tecido preto era capaz de, com muito esforço, transmitir a energia do evento.
null precisou forçar um sorriso. Sabia que ela tinha feito de propósito, ela sempre fazia. A modelo gostava de ser referência de moda nos sites e revistas de fofoca e não perdia uma oportunidade de ostentar designs das maiores e mais caras grifes do ramo.
null depositou uma de suas mãos delicadamente sobre a lombar da mulher quando esta se inclinou espalmando o seu peito para selar os seus lábios em um gesto coreografado. Exatamente como costumavam fazer.
— Achei que teria que subir pra te buscar — disse Margot divertidamente em cumprimento.
null estreitou os olhos desconfiado.
— Você não perderia isso por nada, não é?
A modelo deu uma risadinha, entrelaçando um dos braços com o do namorado e conduzindo-o sutilmente até os amigos que ficaram para trás.
Decidiu fazer um esforço para melhorar o clima com Margot, sabia que estava pisando na bola e levar a melhor do seu temperamento volátil não iria ajudar em nada. Mesmo que às vezes a mulher lhe desse nos nervos.
— Você está bonita…
A modelo soltou uma gargalhada gostosa, fazendo null permitir que seus lábios até se curvassem levemente para cima.
— Você também não está nada mal — disse ela, com uma piscadela. — Qualquer dia desses você poderia falar com a gravadora para chamar a minha estilista para vestir vocês, tenho certeza de que ficariam ainda mais bonitos…
O vocalista engoliu em seco. Não podia responder o não de sempre. Nem mesmo rir para fugir assunto. Muito menos criticar as roupas que nada tinham a ver com os eventos ou a estética da banda. Então apenas murmurou:
— Podemos falar com Leto da próxima vez…
Margot precisou se esforçar para escutar as palavras em meio ao caos do evento, mas quando compreendeu o que foi dito quase não conseguiu conter os pulinhos de felicidade. null pôde finalmente suspirar aliviado.
— Obrigada por trazerem ele pra mim — disse Margot sorridente para os homens que os esperavam.
— Não poderíamos deixar a dama sem o seu vagabundo — brincou Tony.
— Se o universo permitir ele não vai ser vagabundo por muito mais tempo — respondeu a modelo acariciando o braço do vocalista como quem acaricia um animal de estimação.
null bufou.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou o baixista, encarando o amigo como se o desafiasse a responder.
null disse que vai tentar falar com a West Coast sobre chamar a agência para vestir o próximo evento da Disclaimer — explicou Margot ainda vibrando com a expectativa da conquista.
Doc riu entretido.
— Boa sorte em colocar Kalil Casablanca dentro de um terno — brincou o agente com um sorriso irônico no rosto.
— Falando de mim?
Como se convocado pela menção do seu nome, o baterista apareceu atrás deles com as mãos nos bolsos e o mesmo semblante tranquilo de sempre. Mas…
— Belo terno, cara! — elogiou Tony, o rosto vermelho como quem segura uma risada daquelas.
Anthony não estava brincado. Kalil vestia calças de cintura alta de cetim pretas e um blaser oversized condecorado por um padrão de spikes aberto no mesmo estilo que deixava o seu tronco nu e tatuado exposto como se fosse a própria camisa de alfaiataria.
— Que porra… — null não conseguiu nem se expressar.
— Obrigado por trocar comigo, La Rocha — o baterista disse bagunçando os cabelos compridos, completamente sem graça.
— Nós homens nus precisamos nos unir — respondeu Tony com uma piscadinha arrancando uma risada de todos.
null engoliu em seco, travando uma batalha interna entre odiar o amigo por acabar com sua única chance de se livrar da ideia de merda de Margot e apoiá-lo. De um jeito ou de outro, a escolha era óbvia.
— Ficou bem em você, irmão.
— Achei que fosse ser legal, no meio de todo esse clima de mudança e tudo mais — disse o baterista, dando de ombros.
Tudo o que null pôde fazer foi oferecê-lo mais um daqueles sorrisos amarelos. Parecia que estava fazendo muito isso ultimamente.
— Vocês viram a null em algum lugar? — perguntou Kalil para ninguém em especial.
null sentiu o estômago afundar apenas com aquela combinação de letras malditas.
— Ela ainda não chegou — respondeu Doc simplesmente.
— Parece alguém que conhecemos — ironizou Tony, lançando um olhar malicioso para null.
O vocalista apenas o ignorou.
— Eu vou precisar de mais algumas bebidas — resmungou ele, sem se importar em ser ouvido ao arrastar Margot para longe dos amigos em direção ao bar.
null fez um bom uso da hora que se sucedeu, distraído por entre doses diversificadas, um copo whisky sempre cheio, um cigarro constantemente aceso entre os dedos e os beijos inebriantes da namorada.
Estava perdido na língua de Margot quando os ruídos constantes de música e conversas da festa se transformaram em único clamor fervoroso. null soube exatamente o que isso significava. Separou seus lábios dos da mulher em seu colo, juntando suas testas e respirando fundo, ainda de olhos fechados.
Seu maior pesadelo finalmente se tornaria realidade.
Quando conseguiu acalmar a respiração, ele ergueu o olhar para a porta da frente e a viu. Todos os aplausos, gritos e assobios só poderiam ser para ela. A mulher vestia um corset vermelho que valorizava o seu colo e um par de botas de vinil da mesma cor. Suas calças pretas tinham tantos recortes que poderiam facilmente ser consideradas um cinto que segurava o mosaico de tecido e pele. Com os cabelos presos em duas tranças bem apertadas, um delineado grosso e um conjunto de pulseiras e cordões de spike e arame farpado, o seu visual todo indicava problema. Um problema difícil de se livrar.
Diferente do que null já tinha visto antes, null null mais do que nunca parecia estar exatamente onde ela deveria estar. E isso o matou por dentro.
— Merda! — Margot xingou baixinho se ajeitando no colo do namorado. — Ela é gostosa.
null demorou um instante para processar o que ela tinha falado. Não tinha nem ao menos certeza de que estava piscando, hipnotizando pela visão deturpada da mulher que começava a dominar cada centímetro do ambiente em que ocupava. Expansiva. Soberana. Intocável. E terminantemente proibida.
— O que? — perguntou ele perdido, os olhos arregalados ainda presos no mesmo lugar. — Quem?
A mulher em seu colo suspirou audivelmente.
— A guitarrista.
O vocalista desviou o olhar para encarar sua namorada, ainda atônito. Não por muito tempo, é claro. Seu olhar parecia ser inevitavelmente atraído para o outro lado do cômodo, como o de todas as outras pessoas. Todos sob a influência do mesmo feitiço profano.
— É — null murmurou pensativo. — Parece que ela é.
Margot virou-se para ele com a sobrancelha arqueada.
— Por que não disse nada antes? — questionou ela. null não soube dizer se o seu tom era acusatório ou apenas… Curioso?
— Ela não era há alguns dias atrás — respondeu ele com o cenho franzido.
Margot revirou os olhos e colocou-se de pé em um pulo, estendendo a mão para o namorado, abrindo-a e fechando-a algumas vezes em um pedido silencioso.
— Venha me apresentar — disse ela com uma tranquilidade que null não tinha.
— Você vai ter que esperar, gatinha — disse Anthony ao aproximar-se de súbito com uma bebida colorida em mãos. — É hora do show!
Com isso, o baixista espalmou firmemente a nuca do amigo, arrastando-o por entre a multidão na única direção para onde null não queria ir. Na direção dela.
Quando os amigos alcançaram a aglomeração que seguia a guitarrista para dentro da sala de estar, chegaram no mesmo momento em que Leto e Doc a interceptaram o seu caminho para sabe-se lá onde.
— Você está atrasada — ouviram o alerta de Doc quando se aproximaram.
— Desculpe, tive um problema com a correia da moto quando estava saindo — explicou a mulher, sacando um maço de cigarros de algum dos retalhos da sua calça, colocando um na boca e acendendo-o sem cerimônias.
null — disse Leto calmamente, apertando o cenho com os dedos em garra. — Nós mandamos um carro.
A guitarrista soprou a primeira lufada de fumaça em sua direção e lançou ao produtor um sorriso endiabrado.
— Não é agora que eu vou começar a andar de carro — respondeu ela com uma piscadela.
— Certo — Leto respirou fundo. null teve certeza de que ele tentava realinhar os seus chácras, o que quer que isso quisesse dizer. Se fosse qualquer outra pessoa protagonizando aquela cena, ele acharia hilário, mas esse não era o caso. — Vamos puxar o anúncio em dez minutos.
null assentiu, olhando ao redor como se analisasse o evento. Quando seu olhar cruzou com o do vocalista suas sobrancelhas se ergueram em surpresa e arrogância.
— Ora, ora — disse ela com um sorriso predatório, antes de dar mais um trago em seu cigarro. — Veio me dar as boas-vindas?
E tão rápido quanto o feitiço o atingiu, ele se dissipou, deixando null com a sua boa e velha carranca.
— Tente não quebrar nada — foi o que ele disse. Não um cumprimento. Nem uma pergunta cordial. Apenas uma repressão nua e crua.
A guitarrista assoprou a fumaça em sua direção, estreitando os olhos.
— Não posso prometer nada.
Anthony riu, entretido com as provocações entre o casal de amigos que já se tornava rotina aos poucos, mesmo que o vocalista negasse até o túmulo.
— Espero que isso não se aplique a mim — brincou o baixista, mordendo o canudo colorido de seu drink tão colorido quanto. — Você sabe o quanto eu adoro mudar a sua mobília.
null resmungou, pegando o copo das mãos do amigo e dando um gole generoso sem se importar com as gotas que o canudo pendente deixava escorrer pelo seu pescoço desnudo. Tony riu mais uma vez, limpando o amigo com o polegar e lambendo os dedos sujos em seguida.
— Que desperdício…
O vocalista revirou os olhos teatralmente, antes de oferecer-lhe um dos seus sorrisos mais canalhas.
— Já que você gosta tanto de me limpar, você deveria colocar aquela sua fantasia indecente e vir arrumar a sua bagunça e a da sua amiguinha amanhã.
— Se você quer ver minhas pernas, null, sabe que pode pedir — Tony respondeu com uma piscadela, arrancando uma risada tanto do vocalista quanto da guitarrista.
null e null pararam de rir imediatamente quando perceberam. O baixista precisou morder a língua para não fazer um comentário que provavelmente custaria seu drink, ou na pior das hipóteses a roupa impecável na hora do anúncio.
— Não entendo por que eu deveria limpar a sujeira dela — Tony se fez de desentendido, indicando a mulher ao seu lado com a cabeça, ao mesmo tempo em que retomou seu copo. Decidiu, então, arriscar o seu comentário mais sutil. Não conseguia resistir. — Tenho certeza que ela ficaria tão bem naquela roupa quanto eu.
null encarou o amigo desconfiada, sem perceber o olhar colérico do vocalista.
null não precisa ficar nessa casa mais do que o necessário, não é? — pontuou null em um misto de deboche e ironia, seu pescoço pendendo em um ângulo viperino.
— Surpreendentemente, você não poderia estar mais certo — respondeu ela, inclinando-se sobre Tony que estava entre eles e abocanhando o canudo colorido para experimentar a bebida. O olhar dela não poderia ser descrito de outra forma que não sensual. Os olhos fixos em null, a boca em bico ao redor do canudo.
O vocalista piscou uma, duas, três vezes, antes de receber um tapinha nas costas.
— Vocês três — Doc anunciou, alternando o olhar entre a mulher e os dois homens. — Encontrem Kalil e se reúnam atrás do palanque, não temos mais tempo a perder.
null mudou o peso de uma perna para a outra em desconforto, mas concordou com a cabeça, lançando um olhar significativo para os outros dois e seguindo seu rumo para o bar, esperando que os outros o seguissem. Mesmo de costas, o vocalista conseguia sentir a presença latente de null às suas costas. Os olhares que os acompanhavam a cada esbarrar de braços também não ajudavam. Como esperado, encontraram o baterista escorado em uma pilastra, conversando perigosamente próximo à uma ruiva, mas ele não teve nem tempo de protestar ao ser puxado pelo aperto de aço de Tony para o palco improvisado montado na sala principal da casa.
Eram apenas dez minutos, mas pareceram mais serem dez horas. Durante todo esse curto, longo, tempo, null precisou se esforçar mais o que ele achava possível para não olhar à mulher ao seu lado de canto do olho. A fumaça da ponta do cigarro em sua boca suja pairava em sua visão periférica como um convite, uma tentação. Mas null não se permitiria olhá-la. Não se permitiria ser enganado pelos seus sentidos. Não quando isso envolvia null null. Não mesmo.
Ele não foi capaz de resistir.
— Tá olhando o quê? — a voz da guitarrista soou ríspida, mesmo que para um sussurro.
null franziu o cenho, olhando-a de forma estranha. Ela suspirou impaciente.
— Você tá esquisita — disse ele simplesmente.
null cruzou os braços, encarando-o com uma sobrancelha arqueada.
— O que aconteceu com bonitinha? — desdenhou ela, segurando um sorriso.
O vocalista abriu a boca para responder, mas não foi capaz de emitir nenhum som. null deixou uma gargalhada divertida escapar de seus lábios e virou-se para frente, determinada a ignorá-lo, mesmo que ainda tivesse os lábios curvados para cima.
Quando a música cessou e as luzes se apagaram, eles souberam que tinha chegado a hora. O último ato. null não conseguiu decidir se era um alívio ou apenas mais um desespero. Os membros da banda esperaram em um silêncio fúnebre, mas cheio de expectativa. Não havia nada a ser dito. Antes que pudessem se preparar, um conjunto de holofotes se acendeu sobre o palanque no mesmo momento em que Leto colocou-se diante do público bem no centro da estrutura com um microfone em mãos.
— Boa noite!
A plateia reagiu com gritos e assobios entre uma salva de palmas entusiasmada. O som um pouco mais ensurdecedor do que o vocalista esperava, ao sentir a adrenalina da antecipação.
— Obrigado pela atenção! — disse ele. O produtor olhou de esguelha para o grupo que esperava ao fundo do palco improvisado. — Rapazes, por que vocês não sobem aqui?
null não gostou da ideia, mas seguiu Tony e Kalil quando ambos se dirigiram para a estrutura abobada, posicionando-se atrás do porta-voz da gravadora. Era estranho estar diante de tantas pessoas depois de tudo. Sentia-se como um animal de circo, uma aberração. Era claustrofóbico. Os olhos em sua direção pareciam se multiplicar a cada segundo, cheios de expectativa. Prontos para vê-lo perder a cabeça.
Leto os ofereceu um sorriso amigável antes de volta-se novamente para a plateia.
— Sabe — o produtor retomou seu discurso. — Quando Doc me apresentou esses caras, eles eram um grupo de desajustados...
— Nós ainda somos! — Tony gritou divertidamente, arrancando risadas por toda a multidão.
— Isso é verdade — Leto riu bem-humorado. — Mas quando eu conheci esses caras eu nem acreditei que o null aqui era capaz de cantar alguma coisa, ele não abria a boca — o público riu com o comentário, arrancando também algumas risadas contidas da banda. — o que era muito estranho para alguém que estava estudando para ser advogado. Anthony estava fazendo faculdade de enfermagem, era impossível coincidir as agendas. E por algum motivo que até hoje eu não entendo Kalil viajava duas vezes por mês para New York para estudar culinária.
Algumas pessoas gritaram animadas em coro, o som fez o vocalista realmente se questionar se realmente teriam mais pessoas ali. Esse definitivamente não era o som de uma reunião íntima. null sabia mais do que ninguém.
— No meio disso tudo eles encontravam tempo para ter uma banda de garagem e gritar suas frustrações pra quem quisesse ouvir em uma daquelas festas de fraternidade que todos nós sabemos como são.
Leto se virou mais uma vez, trocando com os rapazes um daqueles olhares cúmplices. Mas quando sustentou os olhos do vocalista, null pensou ter visto algo como culpa e pontada de dor. Não podia ser por acaso. O músico precisou engolir em seco para se preparar para o que estava por vir.
— Mas quando eu conheci Gus eu entendi exatamente o que Doc queria me mostrar... Ele era um pé no saco, aparecia na gravadora uma vez por mês só pra tentar agendar uma reunião. Tão insistente que, apesar de ignorarmos todas as suas tentativas, em um desses dias ele conseguiu interceptar Doc no estacionamento. Como ele conseguiu chegar lá sem autorização eu não sei, mas ainda bem que ele conseguiu. Porque no momento em que Doc apareceu na minha sala, sem hora marcada, com aquele cara magrinho, usando uma camisa social que claramente não era dele e com uma guitarra nas costas eu soube que algo grande estava para acontecer. Bastou colocar a correia da guitarra e tocar algumas notas… E eu soube. Doc também sabia. — ele suspirou, como se lembrasse de cada detalhe. — Aquele cara... Ele era a porra de uma estrela do rock da cabeça aos pés.
null fechou os olhos por um breve instante, mudando o peso de uma perna para a outra desconfortavelmente. Sabia que era impossível passar por aquele momento sem falar de Gus. Era inevitável. Ainda assim, saber não tornava aquilo mais fácil.
— Eu acho que falo por todos nós quando digo que não estaríamos aqui hoje se não fosse por ele. — continuou Leto, seu tom de voz cauteloso. — O que aconteceu com Gus é conhecimento público e afetou a todos nós. Apesar de termos soltado algumas notas oficiais, tudo ainda é muito recente e muito difícil de lidar. Decidimos então aproveitar esse momento pra fazer uma homenagem à August, por tudo o que ele foi e ainda é.
Em sua visão periférica, o vocalista notou um telão se erguer às suas costas. O tempo pareceu parar por um momento. Teve a sensação de que todas as pessoas ali presentes houvessem prendido a respiração. Não ousou olhar para trás. Afinal, não precisava. Ele ouviu, e sentiu o ar faltar em seus pulmões instantaneamente.
Mesmo depois de meses o som daquela risada estava para sempre gravado em sua memória.
Alta. Contagiante.
August.
null não foi capaz de controlar suas pernas. Entrou em piloto automático. Quando se deu conta já tinha saído do palco, atravessado o cômodo e saído pela porta da frente. Apenas quando o ar fresco tocou o seu rosto ele se deu conta do que havia acontecido.
A voz de Gus ainda ecoava em sua mente. Dando risada. Chamando o seu nome. Falando bobagens.
Naquele maldito compilado de vídeos.
null definitivamente não estava pronto para isso.
O vocalista precisou se sentar na escadaria de mármore. Tirou o isqueiro, o maço e o celular dos bolsos, sentindo os olhos arderem. Não esperava ouvir aquela voz. Não quando ainda tinha uma mensagem de voz dele em sua caixa postal. Nem mesmo o primeiro trago foi capaz de amenizar o aperto em seu peito. Ou o terceiro. Ou o quinto.
Quase não percebeu quando um grupo de pessoas falando alto passou por ele aos tropeços a caminho da festa. E mais outro. Muito menos quando alguns pares de flashes brilharam em sua direção. Não. Seus olhos estavam vidrados na tela. Encarando o número que jamais seria discado novamente.
Apenas quando já estava fumando o filtro do cigarro, sentiu uma mão tocar-lhe o ombro. Kalil não tinha a melhor das expressões no rosto. null imaginava que não estivesse muito diferente.
— Ainda bem que você me deu um motivo pra sair também — disse o baterista com uma careta. — Aquilo foi uma merda.
null não conseguiu fazer mais do que encará-lo, sem uma única expressão no rosto. Ainda em choque, aceitou o braço estendido do amigo, sem se importar onde largou os restos mortais do cigarro. Deixou que Kalil o conduzisse de volta para a mansão, sentindo a mão sobre seu ombro, ao confiar que a sua presença ali significava que o pior já tinha passado.
Os aplausos da multidão abafaram todo e qualquer pensamento de null no mesmo instante em que atravessaram as portas. A sala parecia ainda mais cheia do que antes. Como se mais e mais pessoas não parassem de chegar. A mão de Kalil em seu ombro era a única coisa que parecia real enquanto abria caminho por entre a multidão. Sentia-se como um espectro, flutuando através dos corpos sem ao menos ser notado. Uma simples memória do amigo que se foi.
Quando olhou para o palco, o produtor já tinha o microfone novamente em mãos, dando sequência ao seu discurso com os olhos distantes. Como se procurasse alguém ao fundo.
— Ele não iria querer que o seu sonho acabasse. É pensando nisso que nós queremos continuar o seu legado e honrar a sua história. Para isso ser possível, nós precisamos encontrar reforços — a voz de Leto reverberou pelas paredes através dos alto-falantes.
O olhar do produtor encontrou o de null com um brilho de reconhecimento. Por um curto momento de silêncio, os dois se encararam em uma conversa silenciosa. O vocalista podia jurar que no fundo, bem no fundo, o brilho não passava de lágrimas que ele lutava para segurar. E apesar de todo o ressentimento, mágoa e revolta envolvidos naquela troca de olhares, havia também compreensão. null sentiu o peito apertar, mas engoliu o orgulho uma última vez antes de assentir para Leto em sinal de aceitação.
O produtor tomou um longo fôlego para proferir a sentença seguinte.
A sentença final.
— É com muito prazer, essa noite, que eu apresento a vocês a nova guitarrista da banda Disclaimer.
Foi quando ela subiu ao palco.
O queixo erguido. O olhar determinado. O belo par de pernas. O maldito sorriso debochado brincando nos lábios.
null pareceu finalmente entender o que Leto disse em seu discurso sobre o amigo alguns minutos antes. Porque, de repente, ele soube. Ali, diante de todas aquelas pessoas, ela parecia a porra de uma estrela do rock.
null null!

Capítulo 4 — Cum on Feel the Noize


“So you think I got an evil mind
I'll tell you honey
I don't know why, I don't know why
So you think my singing's out of time
It makes me money
I don't know why, I don't know why anymore”
— Cum on Feel the Noize, Quiet Riot.

null teve a impressão de que o som do nome dela fosse um feitiço quando se viu sendo instantaneamente atraído para o palco. Porque não poderia ser o rosto dela. Muito menos o corpo. Nem mesmo aquela personalidade. Ali, o nome dela não parecia uma maldição como em todos os outros momentos. A sua presença diabólica pela primeira vez parecia algo pelo qual valia a pena queimar.
null abriu um sorriso sádico no momento em que os seus olhares se cruzaram, fazendo com que todos os pelos do corpo do vocalista se arrepiassem.
— É uma honra poder fazer parte disso — disse ela, quando pegou o microfone que Leto ofereceu entre seus dedos de unhas longas e afiadas, sua voz arrastada e provocante. — Vamos aproveitar essa festa mais baixos que um porão! Obrigada!
Com um sorriso viperino para a multidão, a nova guitarrista da banda Disclaimer simplesmente largou o microfone no chão sem se importar com o eco agudo da microfonia ao deixar o palco sem olhar para trás.
null não tinha mais certeza se estava piscando.
— Você pode até não gostar dela — o vocalista ouviu o amigo dizer atrás de si. — Mas ela tem atitude.
null nem ao menos respondeu. Estava sem palavras. Tudo o que conseguia fazer era encarar o palco agora vazio. Completamente atordoado pela constatação terrível sobre sua mais nova companheira de banda.
Uma estrela do rock. Assim como August era.
null!
Uma voz estridente o despertou do transe.
null precisou piscar algumas vezes antes de se virar e encontrar o semblante impaciente da namorada, que foi logo substituído por preocupação.
— Você está bem? — perguntou Margot, entrelaçando seus braços delicadamente.
— Eu… — null ponderou, coçando a nuca. — Precisava respirar um pouco.
O vocalista ouviu uma risada baixa.
— Pulmões de fumante, Margot, sabe como é, né? — disse Kalil ao seu lado, dando um tapinha amigável no ombro do companheiro de banda.
null não encontrou palavras para agradecer o amigo quando o encarou ainda um pouco atordoado. Talvez estivesse mesmo entorpecido pelo álcool e pelos cigarros. Ao menos torcia que fosse por isso.
O baterista o lançou um olhar cúmplice.
null precisou respirar fundo antes de oferecer um sorriso à namorada.
— Onde paramos, amor?
— Na parte em que você me apresenta à minha nova amiga — respondeu Margot, piscando repetidamente em uma inocência dissimulada.
null bufou.
— Não podemos ficar só nós dois essa noite? — arriscou ele, com um tom preguiçoso que normalmente seria capaz de convencê-la.
Ouviram Kalil engasgar-se ao lado deles. O vocalista não hesitou em dar uma cotovelada no amigo.
— Até parece! — Margot soltou uma risada irônica, brincado com os dedos sobre o braço firme do namorado. — É impossível ficarmos só nós dois nesses eventos e você sabe disso! A qualquer momento Leto vai aparecer querendo falar de trabalho, Doc nunca quer conversar, mais tarde Tony vai passar mal… Seria bom ter outra mulher como companhia de vez em quando…
null revirou os olhos e se poupou de ter que responder alguma coisa, mal esperando que ela terminasse de falar para se colocar em movimento e arrastando-a com ele. Ouviram Kalil rir em seu encalço quando começaram a abrir caminho entre as pessoas. Margot precisou agarrar-se mais firmemente ao braço dele à medida que avançavam por entre a multidão que só parecia aumentar mais e mais.
Cada passo que tentava dar, null sentia-se como um fã em seu próprio show, lutando contra pares e pares de braços e pernas que já começavam a suar aglomerados entre si. O que antes era só uma sensação se tornou um fato incontestável. A festa havia realmente ficado mais cheia e não parecia que iria parar por ali. Quem havia chamado todas aquelas pessoas? A informação que recebeu era que seria uma reunião mais privada apenas para tornar público o anúncio, não aquilo. O que era muito estranho, porque, se as coisas não tivessem mudado tanto do dia para noite, essa confusão poderia ser facilmente obra de Gus. Mas ele nunca mais poderia fazer isso de novo.
Quanto mais avançavam na multidão, mais o vocalista tinha a impressão de que entrava no olho de um furacão. Lutando para chegar ao ponto onde todas as outras pessoas também tentavam chegar. O centro de tudo. A atração principal. Só esse pensamento fazia o estômago de null se revirar. Estava ficando irritado. Sentia o braço de Margot se apertar cada vez mais em volta do seu e não tinha mais certeza se Kalil teria sido capaz de acompanhá-los. As gotas de suor começavam a brotar em sua testa, enquanto o ar ficava cada vez mais denso, de modo que o vocalista precisou recitar um mantra mental para preservar o pouco de paciência que lhe restava. De onde teria saído tanto filho da puta?
Quando estava prestes a estourar com algum idiota que derrubou bebida em seu ombro ou até mesmo lhe deu alguma cotovelada, ele a viu, conversando despreocupadamente com o baixista da banda enquanto andava sem nenhuma dificuldade naquele lugar apertado. Como se todas as outras pessoas ali presentes abrissem caminho para ela movimentar-se livremente e a seguissem como alguma espécie de profeta profano. É claro que null null era certamente o centro de toda e qualquer desgraça.
null soltou um xingamento e apertou mais a namorada contra o seu corpo, abrindo caminho entre as pessoas sem se importar em usar força bruta ou ao menos pedir licença.
Quando chegou perto o suficiente, agarrou a guitarrista pelo pulso, parando-a em um solavanco em meio ao movimento contínuo pela multidão, recebendo como resposta uma cara feia e um empurrão leve que quebrou o contato entre os dois. Ambos se encararam por um momento, como se avaliassem a ameaça que o outro representava.
null — disse ele, seguido de um pigarro. — Essa é Margot.
A companheira de banda estreitou os olhos para ele e depois olhou para a mulher ao seu lado, os olhos brilhando divertidamente. O sorriso que surgiu em seus lábios era quase animalesco.
— Na verdade é null — disse ela à modelo, espirituosamente.
— É um prazer finalmente te conhecer, null — Margot sorriu, estendendo a mão em um cumprimento.
null olhou a mão que a mulher oferecia e jogou a cabeça pra trás em uma gargalhada, antes de puxá-la para um abraço caloroso. O vocalista piscou os olhos desnorteado e não acreditou quando ouviu o som da risada da namorada.
null falou tanto de você — disse a modelo, ao afastar o rosto, mas ainda sim encarar a outra com os braços entrelaçados.
Uma mentira deslavada.
null se engasgou com a própria saliva, fazendo as mulheres o encararem desconfiadas.
— Tenho certeza que sim — null rolou os olhos.
— Porra… — null resmungou.
— Espera — disse a guitarrista com uma cara estranha. — Você é Margot como a modelo da Calvin Klein?
— Em carne e osso — a outra mulher deu um sorriso felino.
— Garota, eu mal te reconheci com toda essa roupa — null exclamou, puxando a modelo para mais um abraço alvoroçado. — Você tem os melhores peitos!
— Obrigada? — Margot deu uma risadinha, abraçando-a se volta. — Eu acho.
Foi quando null viu os olhos de null se arregalarem e o seu rosto se iluminar em um sorriso sincero antes de soltar a modelo. Se o vocalista já não estava entendendo muita coisa, agora ele entendia menos ainda.
— Pete! — exclamou ela, com um sorriso no rosto, atravessando o grupo de amigos e correndo na direção contrária.
— E aí, null? — ouviram alguém gritar sobre o barulho das demais pessoas. — Festa maneira.
Os demais acompanharam a guitarrista com o olhar a tempo de vê-la jogar-se nos braços de um homem misterioso na multidão. Os braços tatuados dele envolveram a cintura da mulher possessivamente em um abraço carinhoso quando ele escondeu o rosto no pescoço dela, parecendo respirar fundo. Quando se afastaram minimamente, conseguiram ver um pouco mais do desconhecido, a cabeça raspada que mal disfarçava os riscos de tatuagens até ali, o cavanhaque desgrenhado e as roupas completamente pretas grandes demais para serem do seu tamanho.
null tinha um namorado?
null franziu o cenho, assistindo à interação inesperada. Viu o homem e a mulher conversarem entusiasmadamente, rirem alto e se tocarem ocasionalmente, como apenas pessoas que se conhecem bem permitem-se tocar um ao outro. O desconhecido passou um braço sobre o ombro da guitarrista e seguiu abraçado com ela, ainda conversando de perto, na direção do grupo que os observava em um silêncio curioso.
Ao se aproximar novamente, null ofereceu aos outros uma expressão simpática que não fazia jus a pessoa que achavam que conheciam.
— Pessoal — disse ela, cantarolando. — Esse é-
— Massacre — o homem disse em cima dela, com um sorriso torto no qual null não confiou nem um pouco.
null deu uma risadinha ao seu lado, como se compartilhassem de uma piada interna da qual ninguém mais tinha conhecimento. O vocalista não gostou nada disso.
— Certo, esse é o Massacre — reelaborou ela, com uma expressão engraçada.
O grupo se entreolhou sem entender.
— Massacre? — perguntou Tony em um sussurro, para ninguém em especial. — Por que isso me parece um nome de…
A guitarrista riu de alguma coisa que o seu acompanhante disse, chamando novamente a atenção de todos quando se voltou para ele.
— Você trouxe o bagulho?
— Você sabe que eu sempre trago, gata — ele deu uma piscadela, acariciando o bolso da frente de seu colete preto. — Espero que não se importe, chamei uns conhecidos pra valer a viagem.
Então era por isso que a festa estava tão cheia?
null fechou as mãos em punhos. Incrédulo que null era sem noção ao ponto de vazar a localização de um evento tão sigiloso para uma pessoa daquelas. Um traficantezinho de meia tigela. Quem dirá de sua residência pessoal. Em poucos instantes, o vocalista já travava uma batalha interna contra o seu temperamento. Nada como mais uma noite tranquila para a banda Disclaimer...
Antes que null pudesse resolver o seu dilema a resposta veio, mas não de sua boca.
— Claro que não, alguém tem que começar essa festa! — a mulher disse, dando palminhas de alegria.
Sem aviso prévio, a null entrelaçou os dedos aos de Margot, puxando-a junto de si com mais um daqueles sorrisos que ela não parava de exibir durante aquela noite. null sentiu seu maxilar trincar quando se viu obrigado a seguir sua ruína de braços dados com a sua garota festa à dentro.
— Vamos, amor, você vai amar o — ouviu a guitarrista dizer com uma risadinha — Massacre.
Amor.
null podia jurar que revirara os olhos a ponto de estes saírem das órbitas.
Patética.
null os levou para a sala de estar principal, parando em frente ao conjunto amplo de sofás persas ocupados por desconhecidos. Bastou apenas um olhar afiado da mais nova guitarrista da banda Disclaimer para que as pessoas ali reunidas se entreolhassem e parecessem decidir conjuntamente aproveitar as suas noites em outro lugar. A mulher virou-se para null e os amigos que a acompanhavam com um sorriso vitorioso.
— Vamos ficar confortáveis? — propôs ela, com uma inocência dissimulada.
A guitarrista não esperou resposta jogando-se na ponta de um dos sofás com um sorriso satisfeito no rosto. null respirou fundo antes de bufar e se antecipar para senta-se ao seu lado em um gesto violento de descontentamento. Enquanto os demais se acomodavam, o vocalista puxou a mulher pelo cotovelo com certa urgência.
— Você trouxe um traficante pra minha casa? — questionou ele em um sussurro incrédulo.
null olhou-o de esguelha com um brilho divertido nos olhos.
— Parecia que vocês precisavam de um — disse ela, dando de ombros.
— Essa é uma festa privada — rebateu o vocalista, trincando o maxilar.
— Feita pra mim! — disse null, com uma piscadela.
— Na minha casa — rosnou ele, intensificando o aperto no braço da mulher.
Ela olhou-o de cima a baixo, com um sorriso vicioso.
— Eu gosto quando deixam marcas — sussurrou null, as palavras escorrendo de seus lábios como um doce veneno.
null soltou-a de súbito, arrancando dela uma risada debochada.
— Fala sério! — a guitarrista disse entre uma risada e outra, enquanto ajeitava-se no sofá — Não é como se o contato de vocês não soubesse onde vocês moram.
null soltou um estalo com a boca, recusando-se a olhar para ela.
— A menos que vocês não façam o próprio corre de vocês… — continuou ela, sugestivamente.
null bufou.
— Meu Deus! — null não conseguiu conter a gargalhada. — Vocês não fazem.
É isso. Ela não ia mais parar.
O vocalista afundou o corpo no sofá à medida que os demais amigos se encaixavam nos espaços livres, balançando seus corpos com o movimento das almofadas.
— Nós não precisamos nos expor… — null sentiu como se tentasse explicar o óbvio a uma criança.
— Ah, mas quebrar a cara de fotógrafos e dirigir embriagado está tudo bem — a guitarrista riu bem-humorada, tirando do bolso de seus retalhos um cigarro e um isqueiro. — Quem é o coitado que tem que fazer isso pra vocês?
null cruzou os braços emburrado, os seus olhos fuzilando a companheira de banda enquanto ela acendia o cigarro e dava os primeiros tragos.
— O roadie — ele resmungou.
— Você não sabe nem o nome dele! — null gargalhou mais uma vez, agora chamando a atenção indesejada dos amigos que observavam a cena sem entender o que estava acontecendo.
— O nome dele é Larry — disse ele entredentes.
— Eu aposto que é — a guitarrista o lançou um sorriso travesso.
null sentiu os dedos finos da namorada tamborilarem em sua perna e só então percebeu que ela tinha sentado ao seu lado. Notou que todos já tinham se acomodado, Kalil e Tony estavam do outro lado de Margot, enquanto o tal do traficante sentou-se sozinho na ponta do outro móvel, perto de null.
Como uma grande família feliz.
— Eu posso emprestar o Massacre pra vocês qualquer dia desses se precisarem — comentou null fazendo pouco caso da situação.
— O que vocês estão cochichando? — perguntou Margot inclinando-se sobre o namorado para olhar entre os dois.
A guitarrista deu a ela um sorriso inocente, que de inocente não tinha nada.
— Nada importante — disse null dando de ombros.
null — o estranho, Massacre, chamou a mulher, mas conseguiu a atenção de todos os demais. — O que vai ser? Hoje temos o verde, índica e sativa, quadrado, bala, pó, lean, key
null franziu o cenho, pensativa.
Amor — disse ela, olhando para Margot. null não pode deixar de bufar. — O que você vai querer?
— Margot não… — o vocalista tentou dizer.
— O que você recomendaria pra uma primeira vez? — perguntou Margot antes que ele pudesse terminar, batendo os cílios longos de forma angelical.
null arregalou os olhos incrédulo, mas não disse nada. A guitarrista revezou o olhar entre os dois como se ponderasse.
— A gente pode dividir uma bala, mas você vai ter que maneirar no álcool e beber muita água — sugeriu ela, ignorando o homem ao seu lado.
— Tem certeza? — null sussurrou ao pé do ouvido da namorada.
Margot sorriu maliciosamente.
— Por que não? — a modelo deu de ombros. — Vocês todos fazem isso e eu estou precisando espairecer.
null remexeu desconfortavelmente no sofá, oferecendo apenas um suspiro ruidoso como resposta.
— Tudo bem, então — null decidiu sorridente.
null inclinou-se em direção à guitarrista, arrancando o sorriso daqueles lábios pecaminosos com uma lufada de ar em seu ouvido.
— Você vai ter que ficar de olho nela — o vocalista murmurou insatisfeito.
A mulher pareceu precisar de alguns instantes para recuperar a postura, mas logo a superioridade já tinha retomado às suas feições diabólicas.
— Eu não pretendia olhar pra nenhum outro lugar — respondeu ela provocativamente.
null bufou, cruzando os braços ao afundar nas almofadas brancas. Inclinou o pescoço por trás do corpo da modelo encontrando o olhar atento e divertido do baterista que assistia tudo de camarote.
— Você topa um papel? — perguntou null ao amigo, dando-se por vencido.
— Achei que nunca fosse perguntar — Kalil respondeu com um sorriso genuíno nos lábios.
Num gesto ensaiado, como o que apenas pessoas que convivem por muito tempo fazem, os dois lançaram um olhar interrogativo para Tony do outro lado do baterista.
— Eu vou com as garotas — disse La Rocha dando de ombros.
null que estava atenta a tudo, antes mesmo que os demais pudessem se manifestar, virou-se para o traficante com um sorriso ladino no rosto.
— Por enquanto vão ser duas balas, dois quadrados e três gramas da Purple Haze e do Banana Kush.
Massacre confirmou com um aceno de cabeça, abrindo o colete que vestia e retirando o pedido dos bolsos internos da peça, entregando os produtos à guitarrista. Se entreolharam por um momento, a mulher com as pequenas mãos cheias da variedade de drogas e Massacre esperando por algo. O homem deu um pigarreou e null deu uma cotovelada nada gentil no vocalista ao seu lado lançando-o um olhar impaciente. null revirou os olhos com a situação e, à contragosto, retirou algumas notas de cem do bolso da calça para entregar ao vendedor.
Massacre sorriu satisfeito.
— Vou estar por aí, me chamem se precisarem de mais alguma coisa.
— Aproveite a festa! — disse a guitarrista em despedida.
null fuzilou a mulher com o olhar, enquanto ela nem parecia notar ser objeto de sua fúria. null entregou-o o ziplock com os papeizinhos coloridos cobertos de LSD, balançando a cabeça no ritmo da música que tocava no ambiente, totalmente alheia a qualquer sinal de descontentamento ao seu redor.
null sentiu um empurrão leve em seu ombro e quando olhou para o lado, encontrou Kalil encarando-o com expectativa. null respirou fundo, abrindo o saquinho de plástico rapidamente e colocando o quadrado na língua, para logo em seguida entregar o objeto para que o baterista fizesse o mesmo. Em poucos instantes o gosto azedo já começava a se espalhar por toda a sua boca.
null inclinou-se sobre o corpo do vocalista para, mais uma vez, dirigir-se à namorada dele com olhos brilhantes. null precisou se concentrar no gosto de merda que sentia para simplesmente não a jogar no chão.
— O que você gosta de beber? — perguntou a guitarrista.
— Margarita — respondeu Margot com uma timidez que ela não tinha.
A interação entre as duas mulheres ficava cada vez mais estranha e null não sabia dizer o porquê.
null — null virou o rosto para ele, encarando-o de perto demais. O vocalista pareceu congelar um momento pela proximidade, enquanto a mulher permanecia como sempre. Inabalável. — Você pode nos fazer o favor?
Nem ao menos notaram que ela o havia chamado pelo apelido.
null piscou algumas vezes e estreitou os olhos para a mulher que estava praticamente em seu colo. Apesar disso, a namorada parecia não dar a mínima para a situação. Logo, a guitarrista o ofereceu um daqueles sorrisos arrogantes que ele tanto odiava, fazendo-o trincar os dentes enquanto não se decidia entre encarar o seu olhar ou a sua boca.
— Leve Kalil com você — continuou ela, indicando o baterista com a cabeça. — Ele não vai ligar de pegar um mojito pra mim, certo, K?
Tony riu alto, sendo rapidamente acompanhado por Margot no momento em que Casablanca levantou-se do sofá acatando o pedido. null manteve o seu olhar mortífero na guitarrista, que precisou pressionar os lábios em linha para evitar rir junto, deixando-a com uma careta divertida no rosto enquanto retomava sua posição inicial para permitir os movimentos do vocalista.
— Vamos, null, você não vai querer comprar essa briga — Kalil anunciou, puxando-o pelo ombro para que se levantasse. null apenas resmungou, mantendo a boca fechada para preservar o amargor da droga em sua língua.
— E duas águas! — ouviram null gritar enquanto se afastavam.
null sentiu as mãos fecharem em punhos instantaneamente.
Mais uma vez cada passo que deram para dentro da multidão foi uma batalha. Tentar atravessar aquele mar de gente era como tentar se movimentar em areia movediça. Quando mais tentavam se mexer mais eles pareciam se afundar entre os corpos conhecidos e desconhecidos. null sentiu a língua começar a ficar dormente e torceu para que o efeito da droga batesse logo sobre o seu corpo. Ansiava por parar de se sentir incomodado com todas aquelas pessoas, mas principalmente com aquela maldita guitarrista.
Quando alcançaram o bar, null e Kalil ignoraram a fila de convidados, esgueirando-se para a entrada dos fundos para abordar os garçons. Pegaram bebidas que estavam sendo preparadas para outras pessoas antes de mais uma vez enfrentarem o tráfego interminável de convidados na festa.
Ao avistar os sofás brancos da sala principal, null foi surpreendido pela cena de sua namorada e sua inimiga conversando alegremente como grandes amigas. Tudo bem, talvez não estivesse tão surpreso assim. Conhecia Margot bem o suficiente para reconhecer a sua habilidade de falar, falar e falar com qualquer pessoa sobre qualquer assunto. Era uma das coisas que mais admirava nela, mas naquele momento foi a coisa que mais odiou. Era claro que null não perderia a oportunidade de atingi-lo de todas as formas possíveis. Que jeito melhor de fazer isso do que usar a sua namorada?
Não importava que Anthony estivesse ali com elas, rindo, gritando, gesticulando. Tudo o que null podia ver eram Margot e null. E ele via tudo vermelho.
Não perca a cabeça. Não perca a cabeça. Não perca a cabeça.
No mesmo instante, como se pudesse ouvir o mantra mental de null, o rosto da guitarrista se virou em sua direção com um sorriso ardiloso.
— Muito obrigada, queridos! — exclamou ela de braços abertos.
null pensou que questão de minutos seria capaz de ver o veneno fluorescente escorrendo no queixo da mulher sob a luz negra.
O vocalista segurou as bebidas em suas mãos com mais força e respirou fundo, determinado a não se deixar vencer por aquela figura satânica em seu sofá. null deu um sorriso amarelo e deixou as bebidas de Margot na mesa de centro, antes de sentar-se ao lado do baixista e o mais longe possível dela.
Mas não o suficiente para deixar de ouvi-la.
— Ok — a voz de null parecia atravessar toda e qualquer matéria para chegar direto em seus ouvidos. — Agora você vai tomar a metade do comprimido com a água sem deixar ele ficar na sua boca, porque o gosto é horrível.
A modelo fez uma careta.
— Se o gosto é horrível porque vocês continuam tomando?
— Você vai ver — null disse com uma piscadela.
Margot não tirou tempo para pensar duas vezes. Pegou a sua metade do comprimido e a sua água, tomando a droga o mais rápido possível para que não perdesse a coragem. Não demorou nem um minuto para que ela soltasse um gemido sôfrego.
— Que gosto de merda!
— Eu avisei! — null gargalhou — Agora toma a sua margarita pra tirar o gosto e quando você começar a sentir o efeito vai ser só água pra você.
— Quanto tempo demora pra bater? — perguntou Margot, curiosa.
— Uma meia hora.
— Nossa!
— Veja pelo lado bom — a guitarrista deu de ombros, indicando null e Kalil com o olhar. — Os dois bobos tem que ficar com o gosto de merda na boca porque não podem engolir e o deles deve demorar cerca de uma hora.
A dupla de amigos mostrou as línguas para a modelo, exibindo os papéis quadrados que já perdiam a sua tonalidade original. Margot deu uma risadinha, cobrindo o rosto com as mãos.
— O que fazemos enquanto isso? — perguntou a modelo, animada.
— Eu gosto de fumar, mas eu diria pra você ir devagar.
— Eu não fumo.
— Posso te ensinar outro dia então — brincou null com uma piscadela.
null bufou impaciente, tomando uma cotovelada do baixista ao seu lado.
— Que ideia maravilhosa — resmungou ele, acariciando o braço onde foi atingido.
O vocalista viu a mulher deitar a cabeça sobre o ombro de Kalil, olhando-o com uma expressão pidona. null vomitaria se isso não fosse desperdiçar a droga em seu sistema digestivo. Por isso, se limitou a apenas grunhir o seu descontentamento.
— Relaxa, cara — sussurrou Tony para que apenas ele pudesse ouvir.
— É fácil pra você falar — respondeu null, seu tom de voz baixo. — Não é a sua namorada que está sendo aliciada debaixo do seu nariz.
Os ombros do baixista se mexeram para cima e para baixo em uma risada contida.
— Você só está se doendo porque ela conseguiu em minutos o que você tem tentado há meses.
O som de algo se quebrando à distância chamou a atenção dos amigos, fazendo null trincar o maxilar com raiva.
— Você trouxe o kit, Kalil? — ouviram null perguntar.
O baterista deu de ombros.
null tem um na dispensa.
— Ele tem um em todo canto da casa, você quis dizer — Margot brincou, arrancando uma risada dos outros dois.
Desde quando Casablanca ria das coisas que a modelo falava?
null fez o possível e o impossível para ignorar o pensamento.
— Pode pegar, por favor, K? — null perguntou com os olhos brilhando.
Quando o baterista se levantou com um sorriso conquistador, null se perguntou se teria algo que a mulher pediria que o amigo pudesse negar.
Com sorte, a dispensa onde o material de tabacaria estava não ficava muito longe dali. Mesmo que o vocalista tivesse omitido o fato de que realmente tinha um kit em todo canto da casa e que o mais próximo estava em uma escrivaninha ali perto. Kalil não foi capaz de demorar o suficiente para perturbar mesmo que minimante a paz de espírito da guitarrista.
Antes que pudessem sequer dar falta, lá estava ele novamente. Com um sorriso no rosto, um estojo preto em mãos e uma caixa grande debaixo do braço, deixando todos os demais com uma cara de interrogação.
null se inclinou para olhar null franzindo as sobrancelhas de uma forma engraçada.
— Talvez eu tenha te subestimado um pouco.
null engoliu em seco, quase engasgando-se com o papel amargo no céu da sua boca.
— Isso não é meu — disse ele.
— Na verdade — Kalil interrompeu com um pigarro. — É um presente. De boas-vidas.
Você tá brincando — disseram null e null ao mesmo tempo. A guitarrista surpresa, enquanto o vocalista parecia inconformado.
Tony riu alto da cena.
— Cala a boca! — reclamou Kalil sem graça, entregando a caixa para a mulher sem mais cerimônias. — Só abre.
A guitarrista deu de ombros, contente, e não esperou mais um minuto sequer antes de abrir a caixa misteriosa, tirando de dentro dela um capacete de motoqueiro com a logo da banda e alguns adesivos que simulavam tatuagens no estilo blackwork. A expressão da mulher era um misto de gratidão e fascínio.
— Fala sério, Kalil! — foi tudo o que ela conseguiu dizer.
— É sério — respondeu ele sem graça. — Eu acho que falo por todo mundo quando digo que não queremos perder outro guitarrista.
— Nem todo mundo — o vocalista resmungou para ninguém em especial.
Anthony não foi discreto em dar um pisão no pé do amigo pelo comentário no mesmo momento em que a gargalhada da guitarrista preencheu o ambiente.
— Obrigada! — disse ela, segurando a mão do baterista, parecendo sincera em suas palavras.
Kalil deu de ombros, sentando-se do outro lado da mulher e abrindo o estojo com acessórios de tabacaria pronto para abandonar o tópico.
— O que está fazendo? — null perguntou, mas o seu tom de voz estava mais para um alerta.
— O que parece que eu estou fazendo? — perguntou o baterista sem olhar para ela, pegando uma cuia e uma tesoura. — Eu vou bolar o baseado.
— Nada disso! — repreendeu a mulher, entregando o capacete para ele e tirando o material de suas mãos e colo. — Hoje é por conta da casa. Hoje nós vamos fumar um null.
Kalil balançou a cabeça sorrindo.
Em poucos minutos, entre risadas e alguns comentários obscenos que null fez questão de ignorar, null bolou o baseado mais bem servido que ele não via em tempos. Como ela conseguiu fazer isso com unhas daquele tamanho ele não sabia. Mas ali estava, o blend perfeito de Purple Haze, Banana Kush e tabaco, pronto para ser degustado por aquele conjunto inusitado de amigos, não tão amigos assim.
Apesar de tudo, null não se deu o luxo de negar o tal do null. Não quando tudo o que ele precisava no momento era um baseado grande e gordo para acelerar e potencializar o efeito da droga que começava a manifestar os seus primeiros sinais em seu corpo.
O primeiro trago já foi capaz de deixar a sua pressão abaixo do porão da casa. No trago seguinte tudo se acalmou ao seu redor, todos os movimentos, todos os sons, todos os sentimentos. Por mais que ele quisesse, null não estava enganada sobre o seu baseado. Uma única unidade foi capaz de deixá-lo chapado como uma porta, se é que isso fazia sentido.
A guitarrista não parou por aí, bolando outro e mais outro enquanto o grupo ainda fumava, conversando amenidades entre si. Ficaram ali até a metade do segundo baseado, mas logo a mulher arrastou Margot e Anthony para a pista de dança, deixando os outros dois para trás nos sofás com uma ponta e outro espécime ainda a fumar.
Não muito tempo depois, null estava entorpecido. Sentia-se como se estivesse fora de seu próprio corpo, assistindo a tudo e a todos como um mero espectador. Bêbado até o último fio de cabelo e chapado em cada célula do seu corpo.
Mesmo assim, o olhar do vocalista o traía de tempos em tempos, encontrando-a na multidão. Mexendo-se nos ritmos mais variados das músicas que ali tocavam. As mãos esguias acariciando o próprio corpo com malícia. O olhar anuviado tão embriagado quanto do dele. A risada diabólica que parecia encontrar o próprio caminho para os seus ouvidos. Em alguns momentos parecia estar assistindo a um filme ou a um clipe de música, toda a ambientação, tudo o que ela fazia, parecia ser coreografado para a captura perfeita. Em outros ele podia ver a sua pele brilhante pelo suor, escorrendo e derretendo até formar uma poça disforme no chão da sala. Às vezes ele pensava vê-la pulsar, crescendo entre as outras pessoas como uma gigante. Independente da forma, lá estava ela em todos os lugares.
null não soube dizer quanto tempo se passou. Em algum momento se viu encarando o produtor de pé à sua frente com um sorriso satisfeito no rosto.
— Crianças! — disse ele, contente demais para estar sóbrio como de costume. — Vejo que estão se dando bem.
— Melhor impossível — null ironizou, mas sua voz já não tinha mais tanta acidez como horas antes.
Leto deu uma risada espirituosa, sentando-se ao lado do vocalista. null pensou estar em um colchão d’água pela forma que sentiu o seu corpo ondular com o movimento do sofá.
— Você é justamente a pessoa com quem eu queria falar, null — Leto deu um tapinha no ombro do vocalista, mas a sensação era de que a sua mão tivesse ficado por lá.
null franziu o cenho, confuso.
null me contou sobre a sua ideia brilhante.
null se engasgou, desencadeando uma tosse, e quando olhou para sua mão viu que segurava um baseado. Estava fumando? Ele não soube dizer. Acabou por sacodir a cabeça na esperança de que isso clareasse os seus pensamentos e passou o beck para o baterista que estava deitado ao seu lado, olhando para o teto.
— Pode me lembrar de qual ideia foi essa? — perguntou null com um vinco entre as sobrancelhas.
Leto riu como se a confusão do músico fosse a coisa mais divertida de todas. Como se não fosse um dos motivos da maioria das brigas entre eles.
— Sobre os covers escolhidos por cada integrante para substituir King For a Day nos shows restantes — explicou ele com um sorriso torto.
null jurou que tinha arqueado as sobrancelhas em surpresa. Mas não tinha certeza, não conseguiu sentir a sensação que normalmente tinha quando o fazia.
— Ah, claro, essa ideia — disse o vocalista sem jeito.
— Fico feliz que estão começando a se ajeitar — o produtor disse com sinceridade. — Sei o que isso significa pra você e o quanto é difícil passar por tudo isso. Obrigado pelo esforço!
— Não se preocupe com isso, Leto — null se viu falando, antes que pudesse se impedir. Merda. — Nós vamos dar um jeito.
— Tenho certeza de que vamos — o homem levantou-se com um sorriso.
— Um passo de cada vez — null sorriu amarelo, amaldiçoando-se mentalmente.
Por que tinha dito aquelas coisas? Boca estúpida.
Por que tinha deixado que o produtor acreditasse na mentira da guitarrista? Mulher estúpida.
Por que não conseguia se controlar? Estúpido. Estúpido. Estúpido.
Quando se deu conta, mais uma vez naquela noite, null já estava em movimento. Andando com facilidade entre os corpos suados e espremidos entre si, imperturbável pela simples magia das drogas. Costurou por entre as pessoas mais rápido do que se estivesse realmente tentando chegar a algum lugar e não no automático como realmente estava. Como se soubesse exatamente onde procurar, encontrou-a escorada no bar conversando com o traficante enquanto observava Margot dançar ali perto.
null não respirou fundo. Não contou até dez. Não se preparou mentalmente. Apenas andou em sua direção puxando-a pelo braço sem pedir licença.
— Você disse a Leto que eu dei a ideia de fazermos um cover escolhido por cada membro da banda para substituir King For A Day nos shows? — ele foi direto.
— Foi uma excelente ideia, null, nem acredito que você pensou em algo assim! — disse ela alegremente, apertando as bochechas do vocalista como se ele fosse uma criança.
— A ideia foi sua null — cortou ele, arrancando as mãos dela de seu rosto com um movimento brusco. — Por que fez isso?
A guitarrista olhou-o de cima a baixo com um sorriso diabólico.
— Porque agora você não tem como dizer não — respondeu ela com uma expressão insolente no rosto.
null bagunçou os cabelos, exasperado.
— Você é inacreditável!
A mulher riu, balançando o corpo no ritmo da música que começou a tocar.
— Você vai superar eventualmente... — disse ela, fazendo pouco caso.
O vocalista encarou-a com fúria. Os olhos cerrados. O maxilar trincado. Os dedos fechados em punhos já começavam a doer. Em um piscar de olhos o rosto da mulher começou a perder forma diante dos seus olhos, tornando-se apenas um borrão desconexo.
— Merda — murmurou ele, fechando os olhos com força.
Pensou ter ouvido null dizer alguma coisa, mas não soube dizer o que era. De repente começou a se sentir distante...
— Não, não, nada disso — ele sentiu mãos esquias ampararem os seus braços. — Nada de bad por aqui.
— Eu não tô na bad, eu só... — null não sabia para onde olhar, todo movimento parecia lento demais, pesado demais. — Você encheu a porra da minha casa de desconhecidos que estão cortando a minha vibe. Aparece em todos os lugares pra sugar a merda da minha onda. Você não cansa de ser uma pedra no caralho do meu sapato?
— Na verdade não — respondeu ela, ainda sustentando o corpo dele, algo na voz dela dizia ao vocalista que a mulher sorria. — Mas pra você não dizer que eu sou de tudo ruim, vou quebrar um galho pra você!
null não entendeu o que ela quis dizer com isso, mas permitiu-se ser conduzido de volta para o bar, vendo a guitarrista trocar algumas palavras com Massacre que ele não se deu o trabalho de prestar atenção.
No minuto seguinte, o vocalista estava com uma nota de cem enrolada entre os dedos, encarando duas carreiras de um pó branco sobre a bancada. Olhou para cima e encontrou o olhar divertido de null, estudando-o. Olhou para baixo e quase conseguiu ouvir a cocaína chamando o seu nome.
null suspirou.
— Foda-se.
Em um único movimento inclinou o corpo sobre a bancada, usando o dinheiro como um canudo para inalar toda a droga de uma das fileiras pelo nariz em uma única inalação. Ouviu o coração bater em seus ouvidos acelerado. Viu as cores ficarem mais vibrantes. Sentiu a adrenalina percorrer por todo o seu corpo. E permitiu que um sorriso frouxo iluminasse o seu rosto instantaneamente, sem se importar com os olhos odiosos que tanto o observavam.
O vocalista procurou null novamente com o olhar, encontrando-a a tempo de vê-la tomar o dinheiro de sua mão e repetir o seu gesto, cheirando o pó com uma expressão maliciosa no rosto. O prazer rapidamente dominou o corpo dela em uma onda de relaxamento que se manifestou visivelmente em todos os músculos do seu corpo, da mais simples ruga de expressão à tensão latente que constantemente deixava a postura da mulher ereta a todo momento. A euforia estampada em seu rosto para quem ousasse ver. Quando ela sorriu, sustentando o seu olhar, null teve certeza que o diabo tinha decidido lhe fazer uma visita.

Capítulo 5 — The Show Must Go On


“Whatever happens, I'll leave it all to chance
Another heartache, another failed romance, on and on
Does anybody know what we are living for?”
— The Show Must Go On, Queen
.

A turnê mal tinha recomeçado e null se sentia cansado como nunca.
Poderia dizer que se sentia mentalmente cansado por conta do estresse emocional que era enfrentar essa nova realidade sem o melhor amigo. Por estar pela primeira vez na cidade onde ele partiu para sempre. Mas esse não era o único motivo.
Não.
Estava exausto desde a festa de anúncio de null null como nova guitarrista da Disclaimer. Desde que a nova integrante da banda, com ajuda do seu amiguinho traficante, fez o favor de vazar o endereço da sua casa para fãs, mídia e quem mais quisesse saber.
Fazia dias que meia dúzia de fãs acampavam em frente aos portões de sua mansão em Beverly Hills disputando espaço com o dobro de paparazzis, jornalistas de revistas e programas de fofoca e uma ou duas emissoras de televisão. Todos sedentos pela primeira manifestação do vocalista da banda Disclaimer sobre a overdose do ex-guitarrista e a nova contratação.
Não que null não tivesse aproveitado a festa. Ele aproveitou. Mesmo com seus altos e baixos. Nada que ele não tivesse se acostumado com seus anos de experiência no show business. Mas não é como se ele fosse se permitir acostumar-se com as desventuras em série de null null. Ainda que a tentativa da mulher de se redimir tenha sido bem-sucedida até demais, deixando os seus olhos endiabrados como a última memória daquela noite antes de acordar no sofá no dia seguinte com uma rebordose daquelas.
A sensação de lixo já durava alguns dias agora, como no dia do enterro há alguns meses, graças à quantidade de drogas lícitas e ilícitas que foram misturadas em seu sistema naquela noite. A vontade de null era de xingar todos à sua volta e mais uma vez desaparecer do mapa, apenas para ter um pouquinho de paz. Mas, aparentemente, paz era a última coisa que teria se isso dependesse do fantasma de seu melhor amigo e da guitarrista do diabo. Guitarrista essa que não tinha calado a porcaria da boca desde que entraram no avião particular rumo à New York.
Insuportável.
null se remexeu uma, duas vezes em sua poltrona ao lado de Kalil, que o observava com sua tranquilidade mais que inconveniente.
— Será que ela não consegue parar por meia hora pra eu poder ter o mínimo de descanso? — o vocalista resmungou, de olhos fechados, seu rosto completamente franzido pelo esforço. Seus braços cruzados, ainda encolhido em sua poltrona, como se pudesse preservar o seu estado de repouso.
O silêncio do baterista dizia que ele estava guardando algum comentário que de nada ajudaria na situação. null bufou.
— Vocês dois aí atrás! — null falou mais alto, ainda em sua poltrona. — Que tal falar um pouco mais baixo?
As gargalhadas que vieram do fundo do avião de pequeno porte não foram a resposta que o vocalista esperava ouvir.
— Só existe um volume para o rock, bonitinho! — ouviu a null gritar de volta. Sua voz tão odiosa quanto a própria pessoa em si.
— E é alto! — a voz estridente de Tony completou.
Mais um conjunto de risadas escandalosas se sucedeu, misturada a alguns sons de palmas. null torcia para que eles não tivessem criado algum tipo de cumprimento secreto para situações como essa, em que a guitarrista e o baixista decidissem infernizar a vida de alguém. Seu pavio curto não duraria muito tempo desse jeito.
null gemeu em descontentamento, afundando ainda mais no assento.
— Se você não deixasse ela entrar na sua mente com qualquer coisinha você não estaria tendo esse problema — a voz baixa de Kalil soou divertida, em provocação.
— Você fala como se ela não fizesse de tudo pra testar a minha paciência — o vocalista murmurou emburrado.
— De forma alguma — o baterista soltou uma risada breve. — Ela é assim mesmo.
O vocalista bufou impaciente.
— Ela deveria abaixar a bola e se adaptar — rebateu null, encarando o amigo com descontentamento em seus olhos. — Não o contrário.
— Acho que estamos todos tentando fazer isso — respondeu o cabeludo, a sua expressão serena de sempre. — À sua própria maneira.
null estreitou os olhos, incrédulo.
— Então, por que eu sou o único que não dorme há dias porque a bonitinha decidiu vazar o meu endereço pessoal para fãs, paparazzi e todo o resto do mundo?
O baterista deu de ombros.
— Você pode ficar na minha casa por um tempo, sabe — Kalil sugeriu.
— Os gemidos das suas prostitutas não são o que eu chamaria de paz e silêncio — rebateu o vocalista, determinado a reclamar do que quer que fosse.
O amigo riu bem-humorado.
— Elas não são sempre prostitutas.
— Se você não vai entrar em um relacionamento com nenhuma delas, eu não estou muito interessado em saber.
null sentiu o assento tremer com a risada silenciosa do amigo ao seu lado. Permitiu que o conforto da sua companhia acalmasse sua mente turbulenta por um momento.
— Sabe, antigamente era bem mais barulhento, com você, Gus e Tony — disse Kalil com um sorriso debochado. — Está até calmo sem a sua voz ali.
null bufou, encolhendo-se novamente no assento, os braços entrelaçados como se pudesse segurar a si mesmo de fazer justiça com as próprias mãos.
— Queria ser Gus agora pra não ter que aguentar essa bosta toda — resmungou o vocalista, sem olhar para o amigo.
Kalil suspirou audivelmente.
— Como você está se sentindo? — a voz do baterista soou ainda mais baixo do que de costume.
— Como merda — null respondeu, tentando imitar o tom. — Mas você já sabe disso.
— Não é porque eu sei que você não precise dizer — Kalil ponderou com um estalo da boca. — Todo mundo precisa falar com alguém de vez em quando.
O vocalista riu sem humor.
— Ah, é? — provocou ele com um estalo. — E você tem falado com quem, senhor extrovertido?
Kalil sorriu para ele, aquele sorriso de quem estava prestes a falar bobagem.
— Com as prostitutas.
null ficou estático por um instante, mas logo quebrou em uma gargalhada, sendo imediatamente acompanhado pelo amigo.
— Mas sério — o baterista se interrompeu, buscando ar, ainda com um sorriso no rosto. — Eu estou fazendo acompanhamento com uma psicóloga.
null murmurou um som desconexo, fazendo pouco caso.
— Como vamos fazer esse show? — perguntou o amigo, cuidadosamente.
— Você quer dizer como eu vou me comportar nesse show? — retrucou null, estreitando os olhos para o de cabelos compridos.
— Colocando em palavras de filho da puta, sim, exatamente isso — concluiu Kalil, dando de ombros.
null olhou para frente, sem enxergar nenhum ponto em específico, e suspirou.
— Eu não sei.
O baterista acenou em uma concordância silenciosa.
— E pensar que ele saberia exatamente o que fazer…
— Eu não gostaria de falar dele agora — o murmúrio de null era quase uma súplica.
Eu não estou pronto.
— É o primeiro show — disse Kalil. — As pessoas esperam que você fale alguma coisa.
— Eu não vou falar merda nenhuma — protestou o vocalista, pressionando os lábios em uma linha.
Casablanca pareceu pensar por um tempo.
— Vai ser uma merda estar em New York depois de tudo — desabafou ele.
— Eu odeio essa cidade.
— Eu também.
— Poderiam destruir esse lugar inteiro, como acontece em todo filme de ação — null resmungou, arrancando um sorriso do amigo.
— Seria irado — o baterista concordou divertido.
— Eu até voltaria mais vezes nesse caso — null se viu dizendo, a boca quase se curvando para cima.
— Nada como um cenário apocalíptico para curar um homem — brincou Kalil, dando um soquinho no braço do amigo.
null acabou deixando um sorrisinho escapar apesar de tudo.
— Você terminou Fallout? — perguntou o vocalista, olhando de esgueira para o amigo.
O baterista deu de ombros.
— Ainda estou de luto pelo final de The Last of Us — explicou ele.
— Dando um tempo no Fortnite? — null perguntou com uma expressão travessa.
Kalil sorriu diabolicamente.
— Você sabe, formar caráter de crianças através de jogos online é a minha missão — disse ele com uma piscadela.
— Nós devíamos jogar o Fortnite Festival qualquer dia desses — null deu de ombros.
— Você é louco de pensar que eu vou usar meu tempo de descanso com um jogo de banda — disse Kalil.
null riu.
— Música é a minha missão, sabe — explicou ele com uma piscadinha.
Então Kalil Casablanca riu, dando uma batidinha no ombro do amigo. null se permitiu sentir o mais próximo de felicidade que sentira em algum tempo. Não chegava a ser a felicidade em si, mas era algo no caminho. E isso já era alguma coisa. O baterista era assim mesmo, uma daquelas pessoas que te fazem se sentir um pouco menos só no mundo. Não era atoa que ele era o melhor entre os demais.
A viagem seguiu tranquila. Kalil tinha um dom de contagiar as pessoas ao seu redor com a sua calma, null tinha que admitir. Assim, o restante do trajeto se passou sem maiores estresses, enquanto a dupla de amigos conversava amenidades.
Quando chegaram ao John F. Kennedy já passava da metade da tarde. Toda a equipe se encaminhou para o hotel, o mais longe possível da Times Square — uma exigência dos membros originais do grupo —, para deixar sua bagagem antes de se encaminharem para o local do show. Foram designados aos seus quartos, pegaram uma muda de roupas e logo partiram para a selva de pedra. Nada prontos para encarar de frente todos os seus demônios.
No Madison Square Garden, a banda já era esperada por centenas de fãs ainda nas ruas e mais centenas e centenas de fãs dentro do estádio que garantiam os melhores lugares para assistir ao show. Atravessar o mar de pessoas para alcançar a entrada dos fundos do local foi uma brincadeira de criança. Uma que null não soube brincar. A consciência terrível da expectativa dos fãs, dos gritos de apoio e luto, da ausência irreversível de Gus, tudo era como uma sequência de golpes ininterruptos. Ainda sim, era apenas um ensaio. O show de horrores de verdade só aconteceria quando pisassem no palco de uma vez por todas. Com a sua nova guitarrista.
Apesar de tudo, null fez um bom trabalho em resistir aos diversos estímulos que poderiam derrubá-lo. Um bom trabalho. Só lhe custou um conjunto de ferimentos na parte interna das bochechas, alguns arranhões nos pulsos, todas as unhas da mão esquerda e suas respectivas cutículas. Nada de mais. Ao menos conseguiu se distrair dos fãs, de suas camisas estampadas, de seus cartazes chamativos e de suas lágrimas desenfreadas. Mal podia esperar para descobrir o que a performance que estava por vir iria lhe custar. Seria um longo dia.
O vocalista não soube dizer quanto tempo se passou para que conseguissem chegar aos bastidores do evento, mas teve a impressão de ter sido até rápido, ou talvez ele estivesse concentrado demais em sua automutilação. Não importava. Quando se deu conta já estava lá dentro, andando com o restante da banda até a imagem sorridente de Margot que os aguardava para recepcioná-los com todos os seus dentes mais do que brancos. null estava tão atordoado com a experiência extracorpórea que se tornou o contato com os fãs para ele, que nem percebeu quando todos foram recebidos pela namorada dele com pulinhos animados e beijinhos na bochecha. Inclusive null.
Margot guiou o grupo pelos bastidores até o camarim da banda de braços dados com Anthony e null entre sussurros e risadas. null não conseguiu nem se dar o trabalho de se importar. Estava preocupado demais com o fantasma de Gus andando entre o grupo pelos corredores. Deveria estar ficando louco. Só podia estar louco. Mas lá estava ele.
August Train não tinha mudado. Os cachos bagunçados, o olhar astuto, o sorriso torto, a camisa de banda. Gus andava ao lado de Kalil com as mãos nos bolsos, rindo ocasionalmente de alguma bobeira que Tony dizia mais à frente. Ninguém parecia notar. Como uma assombração. Gus estava exatamente como null lembrava de ter o visto pela última vez naquele mesmo maldito lugar.
null estava no sofá do camarim quando se pegou sem saber se aquilo mais parecia um sonho ou um pesadelo. Todos já estavam prontos àquela altura, esparramados pelo cômodo enquanto jogavam conversa fora, apenas aguardando a hora do show, onde já podiam ouvir os gritos do público tão ansioso quanto eles. null usava um conjunto de jaqueta e calças pretas de sarja com estampa artesanal de caveiras em branco e um tênis off white. Tony vestia calças xadrez vermelhas em uma combinação nada usual com um casaco de pelo em animal print e botas de cowboy. Kalil, bem, era Kalil, trajado de preto da cabeça aos pés. Todos, exceto pelo vocalista, alheios à presença macabra de Gus que os observava do sofá ao lado de null com um sorriso no rosto.
null! — null ouviu uma voz feminina o chamar.
O vocalista virou o rosto esperando encontrar a namorada, mas dando de cara com null e seus olhos atentos pintados de vermelho. A mulher usava um body de renda preto, uma saia plissada da mesma cor com uma cinta-liga e um mocassim. Ela acenou para null com a cabeça, jogando para ele um maço de cigarros. null pegou a caixinha, olhando para o objeto sem entender.
— Parecia que você precisava de um cigarro — explicou ela, jogando-se ao lado do vocalista no sofá onde antes a imagem do melhor amigo morto o assombrava.
null piscou algumas vezes atordoado.
— Você tá com uma cara de merda — completou a mulher.
null riu sem humor, pegando um cigarro e colocando entre os lábios. A mulher acendeu um isqueiro em frente ao rosto dele. O vocalista a olhou desconfiado, mas se aproximou para tragar o tabaco junto à chama, assoprando fumaça logo em seguida.
— Nada de drogas hoje?
— Se você se comportar...
— Nada de drogas hoje, então — concluiu ele, dando de ombros.
null riu como se fosse normal ela rir de algo que ele dizia. null estreitou os olhos.
— Eu queria te perguntar uma coisa… — disse ela, divertidamente.
— Quer um conselho? — o vocalista franziu o cenho e puxou mais um trago. — Não pergunte.
A mulher deu um de seus sorrisos felinos.
— Vou manter isso em mente pra próxima vez — disse ela com uma piscadela. — Você não é um guitarrista ruim, sabe…
— Onde você quer chegar com isso? — null perguntou sem cerimônias.
— Eu queria saber se você tocaria a guitarra principal do cover em Chicago.
— Esse não é o show da sua música? — considerou ele.
— Esse mesmo.
null deu de ombros, sem dar muita importância.
— Eu achei que o propósito disso tudo fosse se exibir um pouco — comentou ele, concentrado em bater a guimba do cigarro em um cinzeiro ali perto.
— Eu também acho — concordou ela, espreguiçando-se.
— Qual vai ser a música? — perguntou o vocalista.
— Vou te mandar a partitura — respondeu ela, tirando o celular do bolso e rapidamente digitando sobre a tela.
Um momento depois o telefone do próprio vocalista apitou. Ao desbloquear a tela ele encontrou uma mensagem de texto com o arquivo da partitura ao qual ela se referia. null fez questão de não salvar o número de null em sua lista de contatos, não pretendia buscar o número da mulher nem agora, nem nunca. Apenas acessou a mensagem e abriu o documento, fazendo uma análise rápida da música e do trabalho que a mulher queria que ele fizesse.
— Essa música acabou de ser lançada — null murmurou. — Você espera mesmo que eu cante e toque uma música nova em um mês?
— Na verdade — a guitarrista fez um estalo com a boca, oferecendo a ele um sorriso amarelo. — Você só precisa cantar o primeiro verso.
null franziu o cenho, mas logo chegou à conclusão implícita nas palavras dela. O homem deixou a sua expressão facial se suavizar ao oferecer à mulher um sorriso debochado.
— Você não vai cantar, null.
null abriu os lábios em um sorriso sádico que deixou o vocalista alarmado.
— Eu já falei com Leto e ele achou uma ótima ideia.
null bufou. Era claro que ela tinha falado com a West Coast antes.
— Então, é isso? — ele debochou. — Toda vez que você achar que não vai conseguir fazer algo de acordo com a banda, você vai atrás do Leto como se ele fosse o seu pai pra resolver pra você.
A guitarrista deu uma risadinha.
— Kalil e Tony concordaram.
— É claro que concordaram — null revirou os olhos, impaciente.
Ouviram uma batidinha na porta do camarim e um rapaz que deveria ter acabado de completar os seus vinte anos colocou a cabeça para dentro.
— Disclaimer, dez minutos! — disse ele, saindo do ambiente logo em seguida.
— Mas eu falo sério quando digo que você não é um mau guitarrista — disse ela se levantando. null pensou se aquilo era o mais perto que a mulher conseguia chegar de um elogio quando se tratava dele. Não que ele fosse fazer muito diferente no lugar dela. — Imagino que não tenha gostado de saber que um estranho substituiria seu amigo, enquanto você é mais do que capaz de tocar. Achei que seria uma boa oportunidade pra você se exibir também.
null a encarou por um tempo como se pensasse no que ela tinha acabado de dizer. Ela não estava errada, e a mera consciência disso fazia o estômago do vocalista revirar. Não conseguia nem imaginar a possibilidade de dar o braço a torcer. Ainda não.
— Eu vou pensar a respeito — ele disse por fim.
null pareceu satisfeita com a meia resposta. A mulher abriu um sorriso vitorioso e girou nos calcanhares pronta para sair do camarim e encarar o seu primeiro show. Foi quando null viu a marca de batom vermelha em sua bochecha. Uma marcar que ele conhecia muito bem.
Margot.
null se levantou do sofá e respirou fundo, deixando-se ser levado pelo abraço de aço de Anthony que parecia achar que o vocalista era um animal assustado que fugiria a qualquer momento se não o segurasse com força o suficiente. null fez o possível para não praguejar a medida que sua expressão se fechava na boa e velha carranca ao ser arrastado pelos corredores até a coxia.
Quando chegaram à boca do palco, os quatro membros da banda Disclaimer se reuniram em um silêncio sepulcral, ouvindo religiosamente o som de centenas de fãs reunidos na arena. null, Anthony, Kalil e null olharam entre si como se esperassem por algo. A guitarrista lançou um olhar para null e limpou a garganta, tirando-o de sua inércia da única forma que conseguia fazer, pela fúria. O vocalista sentiu o rosto esquentar ao fitar a marca no rosto da mulher.
— Vamos fazer isso — disse ele.
Foi o suficiente para iluminar o rosto dos amigos, que se cumprimentaram amistosamente antes de rumar para o palco completamente apagado. A guitarrista olhou para trás uma última vez, encontrando o olhar raivoso de null. Ela sorriu como se aquilo não fosse nada e deu uma piscadela para ele antes de correr para o palco escuro.
De repente tudo estava acontecendo rápido demais. O público gritou quando pareceu perceber os movimentos sobre o palanque e null fez de tudo para ignorar a ausência latente de Gus naquele momento. Ouviu o som da guitarra se conectando ao amplificador. Ouviu as baquetas de Kalil. Ouviu o público gritar. E, enfim, as primeiras notas tocadas pelo diabo.
null não teve tempo para raiva ou para luto.
Não tinha mais volta. O show tinha que continuar.
Vamos suspender o júri — começou null, mantendo a cabeça baixa ao entrar devagar no palco ainda apagado sob os gritos dos fãs. — Seu tolo julgador doente. Vou enterrá-lo a seis pés de profundidade. Estou cansado das suas regras.
O vocalista se posicionou em frente a Kalil, entre Tony e null, no exato momento em que os holofotes se acenderam sobre eles.
Foda-se você e a sua opinião. Como você pôde ser tão cego? Tudo o que vai, volta no tempo certo.
null parou de cantar com um sorriso falso nos lábios e apontou o microfone para o público.
— Você não sabe merda. Você não sabe merda sobre mim — a plateia cantou em uníssono. — Você não sabe merda, merda, merda.
Não sabe porra nenhuma sobre mim! — o vocalista gritou em plenos pulmões.
null sentiu tudo de uma vez. A energia do público. A adrenalina da performance. A ira do queimando em seu peito. Tudo o que o vocalista podia ver era vermelho, como a marca dos lábios da namorada no rosto da mulher ao seu lado, mesmo que ele não olhasse naquela direção uma única vez. Sua apresentação não passava da expressão da mais pura raiva que sentia naquele momento.
Continue me subestimando, eu sou mais do que você jamais será. Corte-me profundamente, mas eu não vou sangrar. Vai me chutar, chutar, chutar quando eu estiver pra baixo.
null aproveitou a primeira canção para extravasar todo o turbilhão de sentimentos que borbulhava sob sua pele desde a última vez em que esteve naquela droga de cidade. Descontou todo o rancor interminável que parecia aumentar a cada dia que se passava. A garganta arranhava com a sua voz rouca em uma espécie de violência sadomasoquista. E quando a música terminou não restou nada além de um imenso vazio existencial. O vocalista sentia-se como uma casca, oca. Como o corpo sem vida do seu melhor amigo à seis pés de profundidade.
O silêncio da banda se prolongou à medida em que o vocalista encarava a cidade que tomou a vida de August no fundo dos olhos. O tempo pareceu passar em câmera lenta, enquanto o som estridente da plateia não passava de um ruído abafado em seus ouvidos. Não sabia mais se a respiração acelerada era por conta do esforço físico da performance ou um ataque de pânico prestes a acontecer. null estava simplesmente anestesiado.
— E aí, New York? — a voz animada de null reverberou pelo estádio, inflamando ainda mais o público.
Instantaneamente, o vocalista virou o rosto na sua direção no mesmo momento em que a mulher o encarou com uma sobrancelha arqueada em desafio. Os gritos da plateia foram o suficiente para que null sentisse o seu temperamento se agitar em questão de segundos, enquanto fuzilava a nova companheira de banda com o olhar. Quando notou o sorriso de canto ameaçar surgir nos lábios da mulher ele percebeu que era exatamente isso que ela queria. Porque ela sabia que era capaz de despertar nele uma raiva animalesca. E talvez sentir raiva fosse melhor do que sentir coisa alguma. Mas null não soube se isso era algo ao qual ele deveria agradecer. Ela não agradeceria em seu lugar.
null levou o microfone à altura da boca e limpou a garganta.
— Já faz um tempo, não é? — disse ele, em um tom de provocação que beirava a diversão e o cinismo. — Vamos quebrar essa cidade, porra!
Nem o som ensurdecedor dos fãs foi capaz de impedi-lo de ouvir a risada de null ao seu lado, antes que começassem os primeiros acordes da próxima música.
O restante do show se passou como um borrão para null. De tempos em tempos ele se permitia ser provocado pela guitarrista para não perder o tranco. Pela primeira vez, ele entendeu por que tinha sido ela a pessoa escolhida para substituir Gus, principalmente naquele momento. Não que o vocalista tivesse mudado de ideia sobre ela em algum momento, ele não tinha. Mas ela de fato parecia saber o que fazer naquela situação, mesmo que null jamais fosse admitir. Então ele decidiu se deixar levar pelo show. Não interagiu com o público mais do que necessário. Não se pronunciou sobre o falecimento de Train. Muito menos sobre a chegada de null. Não foi um show ruim, foi apenas um show. Quando finalmente terminaram de tocar Seven Nation Army, o cover escolhido por Tony para encerrar a noite, finalmente permitiu-se sentir novamente a exaustão que o acompanhava desde a festa do anúncio em sua casa.
Quando se deu conta, já estavam há um bom tempo na after party. null já estava devidamente embriagado, tendo se ancorado à uma garrafa de vodka desde o momento em que pisou para fora do palco naquela noite. Já fazia algum tempo que Margot tinha deixado a festa com null null à tiracolo. Ele nem ao menos tinha se dado o trabalho de se importar dessa vez. Estava completamente esgotado física e emocionalmente para prestar atenção em qualquer coisa àquela altura. As pernas doíam desde a pontas dos dedos até os joelhos, enquanto a única coisa que o mantinha de pé era a vontade de beber o suficiente para se esquecer de tudo aquilo que o atormentava. Os olhos estavam pesados como sacos de areia o arrastavam para baixo. null já tinha mais certeza se respondia as pessoas que tentavam falar com ele, ou se ao menos gesticulava. Estava tão derrotado pelo próprio corpo que logo ele soube não aguentaria o suficiente para conseguir apagar a sua mente turbulenta, quando quebrou a terceira garrafa de bebida alcoólica em suas mãos fazendo os dedos sangrarem. Ele não sentiu nenhuma dor. Como poderia? Não quando o que mais doía de verdade estava dentro dele.
Após algumas boas garrafas de água e uma ligação nada contente de Doc, o vocalista se viu forçado a retornar ao hotel acompanhado de um guarda-costas. null não viu o trajeto. Ou a recepção do hotel. Ou o elevador. Só se deu conta novamente de sua própria existência quando cambaleava sozinho sobre o carpete marrom do corredor que dava em seu quarto. Ouviu a risada de Margot ao longe e sentiu-se um pouco mais desperto. Pelo menos ela havia voltado para o hotel também e não teria que passar aquela noite em sua própria companhia.
O vocalista aproximou-se da porta de seu quarto com um suspiro, encontrando o cartão do hotel no bolso de trás de suas calças. Girou a maçaneta com cuidado para não assustar a namorada quando entrasse, sabia como ela odiava surpresas e não estava no clima para discussões naquela noite. Mas, aparentemente, ele era o único que pensava assim, porque quando colocou o corpo para dentro do quarto cuidadosamente, não acreditou na cena que viu diante de seus olhos.
Margot de olhos fechados. Nua. As pernas dobradas e afastadas uma da outra, enquanto sua respiração pesada ecoava entre das quatro paredes. De costas para ele, uma pessoa, que ele reconheceria em qualquer lugar, tinha seu rosto enterrado no meio das pernas dela. Só podia ser ela. null null.
— Vocês estão de brincadeira com a minha cara — null se ouviu dizer.
null! — Margot se afastou da outra mulher com um pulo, fechando as suas pernas instintivamente.
null, como já era de se esperar, virou-se para o vocalista lentamente, com os lábios entre os dentes. Seu rosto completamente manchado pelo batom da modelo. null a odiou ainda mais por isso. Precisou respirar fundo algumas vezes para controlar o temperamento e evitar que fizesse alguma besteira.
null, saia daqui antes que eu estrague essa sua cara bonita e consequentemente o resto da turnê — o vocalista murmurou com os punhos cerrados.
A mulher arqueou uma sobrancelha em resposta.
Por favor.
null não soube dizer se foram as palavras, ou a sua voz que falhou ao dizê-las. Mas aquilo foi o suficiente para fazer com que a guitarrista levantasse da cama. Claro, não sem antes dar uma risadinha debochada ao passar por ele limpando o rosto da umidade da sua namorada e atravessar porta com uma expressão simplesmente maliciosa.
Bastou a mulher deixar o recinto para que o vocalista se visse contando até dez mentalmente. O que não adiantou de muita coisa.
— Porra! — null xingou alto e quando se deu conta já tinha golpeado a porta do banheiro.
Imediatamente Margot gritou com o susto, mas null não iria se desculpar, não dessa vez.
— Que merda vocês estavam pensando?
— Eu não…
— É claro que não.
null não conseguia se controlar, andava de um lado para o outro no quarto do hotel, com as mãos enterradas em seus cabelos bagunçados e uma expressão perturbada.
— Será que você pode vestir a porcaria da roupa? — pediu ele, mas não havia gentileza alguma em seu tom de voz.
O vocalista ouviu a namorada suspirar antes de se levantar da cama bagunçada e começar a recolher suas peças de roupa espalhadas pelo quarto entre tropeços. null tentou não olhar muito enquanto a mulher fazia isso. Não suportava encarar o seu corpo desnudo e completamente violado transitando diante dos seus olhos. Muito menos quando o seu clássico batom vermelho borrava o seu rosto no mesmo tom em que tinha deixado o da guitarrista antes que ele as pegasse no flagra.
Quando a modelo perdeu o equilíbrio pelo que parecia a terceira vez em sequência, null bufou.
— E ainda por cima está bêbada igual uma adolescente.
— Eu estou perfeitamente bem — Margot fungou ao vestir a sua última peça.
— Tão bem que fez uma merda dessas…
— Você fala como se não tivesse feito pior nos últimos dois meses — a mulher o acusou, seu olhar um misto de vergonha e mágoa.
— Não na sua frente, não no seu quarto, pelo amor de Deus, Margot!
— Mas na capa de todas as revistas e noticiários, tem razão, bem melhor.
— Eu perdi a cabeça, qual a sua desculpa?
— Eu não tenho uma desculpa, eu fiz isso.
— Caralho, Mar! — null esbravejou.
— Pare de xingar! — Margot gritou de volta.
— Desde quando você gosta de mulher? — perguntou null, mesmo que ele não quisesse saber a resposta.
— Eu não gosto — a velocidade que a modelo se pronunciou não ajudou em nada.
— Então que porcaria foi essa?
— Eu não sei, eu estava solitária...
— Você não pode conversar comigo sobre isso?
— Ah, claro! Como você conversa comigo sobre August?
null sentiu o coração parar antes mesmo que ela terminasse a sentença.
— Gus morreu — o lábio inferior dele tremeu ao dizer, sua voz não passava de um fio. — Meu melhor amigo morreu.
Quando se deu conta, null já podia sentir as primeiras lágrimas molharem suas bochechas, uma de cada vez. Em questão de segundos o que poderia ser considerado uma garoa logo se tornou uma tempestade à medida que o vocalista mal conseguia tomar fôlego. No silêncio súbito do quarto, os únicos sons audíveis passaram a ser os seus soluços.
null não soube dizer quanto tempo se passou, quando de repente sentiu os braços finos de Margot o envolverem em um abraço. Ele não tinha nem forças para lutar contra o gesto. Já estava se debulhando em lágrimas curvado sobre o corpo esguio da namorada enquanto esta afagava seus cabelos bagunçados cuidadosamente.
— Ele morreu — choramingou ele copiosamente.
null sentiu que poderia se sufocar a qualquer momento por conta das vias aéreas entupidas.
— Eu sei — respondeu Margot em um sussurro sôfrego.
— Eu não pude me despedir.
— Eu sinto muito, null — murmurou ela.
Então null não estava mais chorando sozinho. Ele conseguiu sentir o corpo da namorada trêmulo em seus braços ao mesmo tempo que ouviu o peito dela chiar. Apesar disso, null sentiu-se mais só do que nunca. Ali estavam eles, juntos, finalmente compartilhando aquela dor e aquele luto, mas nada parecia se encaixar. null tentou ignorar o incomodo latente. Fez tudo o que pode para não dar ouvidos àquela voz em sua cabeça. Mas nada seria capaz de arrancá-lo de sua própria mente.
Com a cabeça doendo e o peito arfando, ele fez o possível para recompor. Seu nariz estava completamente obstruído, os olhos ardiam e ele tinha certeza de que estava com uma cara daquelas.
O vocalista encontrou dentro de si uma força de vontade que não possuía ao afastar seu corpo do dela.
— Você está certa — null sussurrou após mais uma fungada.
— Sobre o que? — perguntou Margot ainda com a voz chorosa, enxugando o rosto timidamente.
null limpou a garganta antes de continuar.
— Não ter desculpas. Não deveríamos ter desculpas — explicou ele, sua voz mais firme dessa vez.
— Nós fizemos merda — concordou ela, seu tom de voz baixo.
— Nós deveríamos parar.
— Não sei se é possível parar de fazer merda de uma hora pra outra, mas você tem razão, deveríamos tentar mais.
— Não foi isso o que eu quis dizer.
Margot olhou pra ele com o cenho franzido, esperando uma explicação com seus olhos vermelhos e brilhantes pelas lágrimas.
— Nós — ele apontou entre eles. — Deveríamos parar.
null... — A gente não pode ficar fazendo isso.
A modelo olhou para ele como se aquele conjunto de palavras fosse o mais absurdo que ela já tivesse ouvido em toda a sua vida.
— Você não está pensando direito — disse ela.
— Eu não sei, Mar — null suspirou, levando uma mão à cabeça. — Está tudo tão errado...
— Até mesmo nós?
— Eu não...
— Até mesmo eu?
— Margot... — null murmurou. — Eu acho melhor você ir embora...
— Você tá de cabeça quente — disse ela.
— É claro que eu tô! — rebateu ele. — O que mais você esperava?
— Eu não esperava...
— Eu sei. Eu só... — ele se interrompeu no meio da frase. — Eu não gosto de ser essa cara, tá bem? Eu só... Preciso de um tempo pra pensar.
O quarto ficou em silêncio, mas o som da respiração pesada dos dois ainda era audível como o mais sutil dos vendavais.
— Tudo bem, eu posso lidar com isso.
— Tudo bem — concordou ele.
Eles se encararam por um momento que foi longe de ser o suficiente. null mal conseguia olhar para a namorada e ela percebeu isso.
— Só — Margot disse em meio a um suspiro. — Não faça nenhuma besteira.
null não tinha uma resposta para isso, então não respondeu nada.
Mesmo que ele se recusasse a olhar para ela, Margot se aproximou como quem se aproxima de um animal perigoso. Ou seria um animal ferido? A mulher depositou uma de suas mãos na bochecha do vocalista delicadamente, forçando-o a encará-la nos olhos quando ela o lançou o sorriso mais triste do mundo. Por fim, ela se inclinou sobre ele, depositando um beijo casto em seus lábios salgados pelas lágrimas de antes.
— Me avise — disse ela ao se afastar dele. — Quando estiver pronto.
null apenas assentiu, fitando o chão sem expressão.
Ele ouviu quando ela saiu do quarto. O som da porta se fechando ecoou por todas as paredes do cômodo, enquanto ele ficou ali completamente atordoado por tudo o que tinha acontecido.
Não soube dizer precisamente quanto tempo havia se passado quando ele se levantou e apagou as luzes. Ainda um pouco desorientado, null se recolheu para a cama com um cigarro e um isqueiro em mãos e se permitiu fumar até que sua pressão caísse e o levasse ao sono. Com sorte teria dormido com a chama ainda acesa por entre as pontas dos dedos. Com sorte o objeto seria responsável por dar início a um incêndio que o levaria com todos aqueles sentimentos com os quais ele não queria lidar. Com sorte encontraria Gus.
Em meio a um sono conturbado, null reviveu repetidamente o seu maior pesadelo. A perda. A traição. A solidão. Apesar de tudo, mesmo inconscientemente, ele não conseguiu entender o porquê, justamente a expressão maliciosa de null tinha ficado gravada em sua mente.

Capítulo 6 — One More Light


“Who cares if one more light goes out
In a sky of a million stars? It flickers, flickers
Who cares when someone time runs out
If a moment is all we are? Or quicker, quicker”
— One More Light, Linkin Park
.

null! — a voz de null soou pelos corredores dos bastidores.
null abaixou a cabeça e enterrou as mãos nos bolsos em punhos, apressando o passo. Pensou em fazer uma oração mental para que ela não o alcançasse, mas logo desistiu, nunca atenderiam as preces de alguém que não acreditava em nada mesmo.
O som de passos mais apressados reverberou por entre as paredes, fazendo o vocalista praguejar. Não demorou muito para que sentisse uma mão firme agarrar o seu ombro.
null — a mulher disse, recuperando o fôlego.
Ele girou nos calcanhares, encarando-a com a sua melhor expressão de desdém.
null — disse ele, sem emoção.
A mulher, pela primeira vez desde que se conheceram, pareceu desconfortável, mudando o peso do corpo de um pé para o outro, enquanto encarava o vocalista com um olhar agitado.
— Nós deveríamos conversar — null disse, sua voz mais baixa do que ele estava acostumado a ouvir.
null deu de ombros.
— Ainda não me decidi sobre o seu cover, se é isso que quer saber.
— Obrigada pela atualização — a guitarrista respondeu com uma careta estranha. — Mas não é sobre isso que eu quero falar, você sabe.
O vocalista bufou, dando as costas.
— Eu não estou a fim, null — disse ele, retomando o seu caminho para lugar nenhum.
Infelizmente, a mulher o acompanhou pelo corredor.
— Nós deveríamos conversar sobre o que aconteceu com Mar — continuou ela.
null trincou o maxilar.
— Eu não tenho nada pra falar com você que não seja sobre música — disse ele, irredutível. — Principalmente sobre Margot.
— Você não pode fugir dos problemas pra sempre, sabe — respondeu a mulher, debochada.
null parou de andar imediatamente, fazendo com que a guitarrista fosse de encontro com as suas costas com força por conta da parada repentina. Ela murmurou um xingamento, colocando a mão no nariz que provavelmente estava dolorido.
— Os meus problemas com Margot eu resolvo com ela — null disse pausadamente, olhando para a mulher com raiva.
null revirou os olhos impaciente.
— E quanto aos seus problemas comigo?
null riu ironicamente.
— Você sabe como resolver nossos problemas, bonitinha.
A guitarrista bufou com a resposta, sustentando o seu olhar, mas ele apenas sorriu esperando o seu próximo movimento. Aparentemente não havia nenhum, porque a mulher apenas se empertigou e deu as costas, saindo para a outra direção batendo os pés insatisfeita. Finalmente.
Já fazia alguns dias desde o primeiro show. Não que null estivesse contando. Mas fazia uns bons dias que ele estava evitando a guitarrista. E as ligações insistentes de Margot. Ele não estava fugindo, longe disso. Ele só queria esquecer aquela porcaria toda, mas lá estava ela, rindo, gritando, o provocando. null null fazia tudo piorar, dia após dia. E ele estava exausto de lidar com aquilo.
null não estava mais chateado com a situação. Estava apenas... triste. Estava triste pela morte de Gus. Triste como nunca. Por ser um idiota, por ser corno, por perder o controle, por sentir tanto. Em meio a isso tudo, ela estava em todos os lugares. Nos ensaios da banda, na sala de reuniões da West Coast, nas noites de bebedeira na casa de Kalil. Na cama com sua namorada todas as vezes que fechava os olhos e no lugar de seu melhor amigo todas as vezes que os abria.
Já era provavelmente a quinta vez que null tentava cercá-lo para discutir o assunto e o vocalista a despistava, já estava ficando sem estratégias para evitar aquele confronto. Não que null não quisesse brigar com ela. Céus, como ele gostaria de xingar até a última geração da família dela e quebrar algo, talvez os dois juntos. Mas havia aquela porcaria de cláusula de contrato que o impedia de fazer qualquer uma dessas coisas. Então decidiu simplesmente se afastar para não à mercê dos seus próprios impulsos.
Sabia por Tony que as duas ainda estavam se falando. Mesmo que não quisesse saber de nenhuma delas. Por null, ambas poderiam desaparecer do mapa que ele nem iria se importar. Talvez até agradecesse a algum deus hipócrita ou espírito da natureza pelo favor. Quem queria enganar? Se converteria imediatamente se esse fosse o caso.
null só queria não ser ele mesmo por um tempo. Deixar tudo para trás. Se perder em alguma imensidão infinita, em algum lugar que ninguém lembrasse o seu nome, o que tinha feito, o que queria fazer consigo mesmo, com os outros. Faria qualquer coisa para tirar todos os sentimentos de dentro do seu peito.
Evitou o camarim até que fosse obrigado pela produção a se aprontar para a apresentação da noite. Foi buscado na área de fumantes que ninguém usava de fato por Kalil, que parecia ser a única pessoa que null ouvia nos últimos tempos. O vocalista adentrou o recinto cabisbaixo na esperança de que evitar os olhares dos demais impedisse que fosse forçado a qualquer interação social. Vestiu uma regata preta e jeans de lavagem escura exageradamente rasgados no mais profundo silêncio antes de se sentar no sofá para calçar as botas de plataforma. Silêncio esse que foi logo interrompido pelo som de um celular tocando.
null quase pulou com o grito de Anthony quando este encontrou o aparelho e já atendeu a ligação no alto-falante.
— Fala, linda, você está no viva-voz — disse o baixista em cumprimento, enquanto null tentava prestar atenção em qualquer outra coisa.
No momento em que a voz da pessoa do outro lado da linha soou, null teve que fazer um esforço para conter a careta.
Coloca na TMZ, estão falando da null — a voz de Margot soou alarmante da saída de som do celular.
— Espero que apenas coisas boas — disse a guitarrista, jogando-se no sofá ao lado de Tony para participar da conversa.
null não conseguiu conter o revirar de olhos.
Você não vai gostar disso — a voz da modelo soou do outro lado da linha seguido por um estalo de descontentamento.
Enquanto isso, Kalil já tinha providenciado o controle para a grande televisão que tinham no camarim e já estava zapeando pelos canais até chegar àquele que estavam procurando.
A tela foi tomada por uma sequência de imagens amadoras gravadas no show da banda em New York, em seguida dando espaço à imagem de uma mulher em frente ao Madison Square Garden. Quase que diretamente saída de um dorama, a jornalista era definitivamente asiática, ou bem próxima disso. A pele de porcelana e os longos cabelos escuros davam a ela um ar de falsa inocência que nada combinava com a chamada do quadro escrita na parte inferior do monitor.
Estreia desastrosa da nova guitarrista da Disclaimer decepciona fãs e críticos.
null não pôde deixar de sorrir.
— Tá de sacanagem — null murmurou com os olhos vidrados na televisão.
— Valeu, Margot — Anthony limpou a garganta antes de continuar. — Falo com você de novo depois do show.
E encerrou a ligação a tempo de ouvir as primeiras palavras da repórter.
Confira em primeira mão como foi a estreia da nova guitarrista da banda Disclaimer em New York. Ou devemos dizer Gus de calcinha? A musicista latina, null null, deixou a desejar em sua primeira performance parecendo estar mais preocupada em imitar os trejeitos do falecido guitarrista August Train acima de qualquer coisa.
— Você é latina? — perguntou Tony, estupidamente.
— Sério? — null questionou inconformada.
— Você não tinha me contado… — o baixista resmungou descontente.
— Eu não acredito que é nisso que você está pensando agora — protestou a mulher.
— Você pensou que null vinha de onde? — rebateu Kalil segurando o riso.
Anthony pareceu pensar por um momento.
— Canadá?
O baterista deixou escapar uma risada frouxa e null quase se permitiu sorrir com a situação.
— Calem a boca! — censurou a guitarrista.
Quem pareceu não ter gostado nada disso também foi o vocalista null null, que nem ao menos olhava em direção à nova integrante e parecia claramente perturbado com as atitudes debochadas da mulher. Fontes afirmam que os companheiros de banda não se deram muito bem e passam mais tempo trocando farpas no dia a dia do que qualquer outra coisa, o que ficou evidente na decadência da sua performance de retomada da turnê.
— Quanta baboseira — reclamou a null com os braços cruzados e uma expressão nada boa deformando suas feições.
— Eles me parecem bem-informados — murmurou null para ninguém em especial, recebendo um olhar mortífero da mulher em resposta.
Na tela, a imagem da mulher foi substituída por filmagens da fachada do hotel em que a banda ficou hospedada em Wall Street.
Funcionários do hotel onde a banda esteve hospedada em New York ainda alegaram que na noite do show, a nova guitarrista retornou ao estabelecimento acompanhada de ninguém mais ninguém menos que Margot Woelffel, modelo, embaixadora da Calvin Klein e namorada do vocalista da banda. O que ninguém esperava é que imagens da câmera de segurança dos elevadores do local, flagraram as duas mulheres aos beijos antes de chegarem ao quarto.
Então os pesadelos de null novamente se tornaram realidade diante de seus olhos. Dessa vez as imagens do estabelecimento foram sucedidas pela gravação da câmera do elevador. O vocalista até quis fechar os olhos, mas era impossível não olhar atentamente para a cena.
— Bem-informados até demais — o baterista murmurou.
Não diganull e null sussurraram ao mesmo tempo, com os olhos tão vidrados na tela da televisão que nem ao menos se permitiram sentir repulsa pela coincidência da fala.
Na tela podiam ver as duas mulheres entrarem no cubículo um pouco desequilibradas por conta do excesso de bebida parecendo rirem de si mesmas. null escorou-se em uma das paredes do elevador, sendo acompanhada pela modelo enquanto pareciam envolvidas em alguma conversa mais séria do que as outras que o vocalista já tinha presenciado. Não demorou muito para que Margot deixasse seu corpo escorregar pela parede em direção à guitarrista, selando os seus lábios. null sentiu um aperto no peito de imediato ao ver a iniciativa partir da namorada, tão natural e intencional. Pouco tempo após a surpresa, viram null levar suas mãos à nuca da outra mulher e aprofundar o beijo. As mãos exploratórias, os sorrisos indiscretos, a fome nua e crua no ato. null quase podia sentir seus olhos sangrarem com a visão.
Hóspedes do hotel ainda alegam que foram acordados por barulhos de coisas se quebrando no momento em que o vocalista flagrou a traição e que a discussão entre null e Woelffel teria durado cerca de duas horas entre gritos e choros abafados. Seria o fim do relacionamento dos dois?
Mas antes que a jornalista pudesse prosseguir com as suas especulações, Kalil desligou o monitor parecendo farto do caos e discórdia disseminados por aquela cobertura televisiva da intimidade do grupo.
Merda — disseram null e null em uníssono mais uma vez. Aparentemente ambos estavam mais atentos aos seus arredores porque imediatamente fuzilaram um ao outro com o olhar por conta disso.
— Isso é o que eu chamo de escândalo — comentou Kalil com um suspiro.
— O que é uma turnê sem um bom espetáculo, não é mesmo? — brincou Tony divertidamente, recebendo olhares um conjunto de olhares assassinos dos demais. — Muito cedo?
— Muito — concordou null com a cara fechada.
— Até demais — completou null à contragosto.
O baixista deu de ombros com um de seus sorrisos inabaláveis.
— Quem é a vadia? — perguntou null para ninguém em especial.
— Que vadia? — Tony se fez de desentendido, arrancando um riso frouxo do baterista.
A guitarrista revirou os olhos impaciente.
— A repórter? — perguntou Kalil, recebendo um aceno positivo da mulher.
O baterista deu de ombros, fazendo-a bufar.
— Jennie Mizu — Tony decidiu colaborar — ela é nova na TMZ e tá fazendo carreira expondo alguns podres bem podres de Hollywood.
— E põe podre nisso — comentou Kalil.
— Ela é podre — resmungou a null.
— E estupidamente bonita — null se viu falando no automático, chamando a atenção de todos ao seu redor.
— Parece ser o seu tipo — null sorriu irônica na direção dele.
Atento, Tony lançou um olhar cheio de significados para o vocalista que ele fez questão de ignorar.
Aquela conversa de novo não.
— Andam dizendo por aí que ela tem dormido com as pessoas por informações privilegiadas — o baixista deu de ombros, milagrosamente decidindo não incomodar mais o amigo em prol de uma boa e velha fofoca. O vocalista chegou a agradecer mentalmente por isso.
null fez uma careta, parecendo não gostar nada daquela informação.
— Parece o seu tipo — null decidiu dar o troco, olhando para a guitarrista desafiadoramente.
Mas antes que a guitarrista pudesse oferecer uma de suas respostas espertinhas, três batidas soaram na porta do camarim. Larry, o jovem roadie de cabelos raspados e uniforme da produção adentrou o recinto com um sorriso envergonhado, chamando a atenção do grupo.
— Desculpem interromper — disse ele, limpando a garganta. — null, vamos precisar trocar o seu fone, parece que alguns sensores de retorno estão falhando.
— Sem problemas — disse ela, colocando-se de pé em um pulo para ir até o rapaz com um sorriso no rosto.
Em alguns minutos o rapaz fez a troca de aparelho da guitarrista, ajudando-a prender a caixinha e os fios junto ao conjunto de couro preto que a mulher usava naquela noite. Não demorou muito para que o tempo passasse, null andava tão absorto em seus pensamentos ultimamente que os dias mais pareciam um compilado de cenas cuidadosamente editadas para fazê-lo perder a cabeça. Quando se deu conta, já estava no automático. Nem ao menos fez questão de prestar atenção nas conversas que se sucederam, no caminho para o palco ou nas três primeiras músicas que tocou. Cada mínimo ato parecia exigir cinco vezes mais esforço.
null se viu no palco sob os holofotes com o microfone em mãos e se sentiu perdido. Olhou para o lado em busca de alguma luz, algum conforto, algum amigo. Mas deu de cara com a guitarrista observando-o com uma feição curiosa. Ele suspirou, voltando a sua atenção para o público novamente. Aquelas centenas de pequenas lanternas brilhantes apontadas em sua direção e deixou seus ombros caírem curvados.
— Boa noite, Tampa, como vocês estão? — disse ele para a multidão. Até a sua voz parecia abatida.
A plateia gritou calorosamente em resposta, arrancando do vocalista um sorriso triste. Ele inspecionou o estádio com seu olhar cansado, mas não encontrou o que estava procurando. null distribuiu alguns acenos e andou calmamente até a frente do palco para sentar-se com cuidado na beira da estrutura.
— Kalil e eu estávamos conversando um dia desses. Quando estávamos a caminho de New York — disse null, seu tom de voz baixo amplificado pelas caixas de som. — E ele disse que eu deveria tentar falar com alguém sobre essas coisas. Vocês sabem o quê.
Por algum motivo o público pareceu dominado pelo mesmo luto que null, completamente silenciados por um sentimento compartilhado.
— Então eu pensei que talvez eu devesse falar com vocês — ele respirou fundo. — Não parece certo falar disso com mais ninguém, sabe.
null sentiu a garganta queimar e olhou para o céu estrelado para evitar que as lágrimas começassem a se formar em seus olhos.
— Acontece que- — a voz do vocalista falhou no meio da frase, fazendo com que ele precisasse limpar a garganta para continuar. — eu não sei como fazer isso.
O silêncio da plateia era tão diferente da sua mente barulhenta. Ele não sabia dizer se era um diferente bom ou ruim.
— Eu sinto falta daquele filho da puta pra caralho.
De repente o vocalista ouviu um som diferente da sua voz, ao longe, em meio a multidão. Que se repetiu por algumas vezes, só. Então o som começou a ecoar de alguns pontos diferentes, espalhados por entre os corpos, um a um juntando-se em um coro. Aplausos. O público deu início a uma salva de palmas. Como se demonstrassem que estavam ali com ele. Como se tentassem dizer a ele que o entendiam. Que ele não estava sozinho.
null sentiu uma lágrima solitária escorrer pela sua bochecha até que ela encontrasse seus lábios com o gosto salgado da dor e do afeto. Uma marca que ele fez questão de não apagar.
— Nós nos conhecíamos desde a quarta série, quando ele me atropelou de bicicleta no primeiro dia de aula e nós dois fingimos que tínhamos brigado para justificar os braços engessados. A gente acabou ganhando como lição duas semanas de detenção e um mês de trabalho comunitário depois da nossa recuperação. — o vocalista deu uma risada triste antes de continuar. — No primeiro colegial nós ganhamos o show de talentos da escola depois de ele me ouvir cantando no banho e praticamente me obrigar a me apresentar com ele e seu violão de segunda mão. Depois disso ele me ensinou a tocar, por acaso um cara da casa vizinha tocava bateria e de repente ele tinha decidido que iriamos formar uma banda. Foi assim que ele encontrou um outro cara no Youtube que de acordo com ele não era ruim no baixo e morava a quarenta minutos de nós.
null parou por um momento, o olhar perdido na multidão, e ele teve certeza de que o amigo estava em cada uma daquelas pessoas ali presentes. Mas ele ainda não sabia como se sentir em relação a isso. A única coisa que passava em sua mente era o mais nu e cru arrependimento. Das coisas não ditas, de tudo o que não conseguiu fazer. Um nó se formou em sua garganta à medida que parecia cada vez mais difícil de continuar.
— Ele era a pessoa mais teimosa que eu já conheci e eu nunca tive a oportunidade de agradecer a ele por isso — a voz de null se embargou ao dizer. — Se não fosse por ele, nós não estaríamos aqui hoje.
Nada que ele dissesse jamais seria o suficiente.
E null passaria o resto de sua vida tentando compensar esse fato.
— Gus, se é que você está aí em algum lugar, essa é pra você!
null olhou para trás, para onde August deveria estar e encontrou a nova guitarrista com uma expressão estranha. O vocalista deu um suspiro cansado antes de acenar a cabeça para a mulher, que respondeu ao gesto tocando os primeiros acordes da próxima canção.
Imediatamente se lembrou de quando escreveram aquela música. Quando August escreveu aquela música. A mãe do ex-guitarrista havia acabado de ser diagnosticada com aquela doença ingrata e as coisas começaram a ir de mal a pior. Train não aceitou muito bem a situação e acabou se envolvendo em diversos escândalos. Brigas de bar, direção sob o efeito de entorpecentes, jogos de azar. Foi somente quando o amigo começou a faltar shows esgotados que os demais conseguiram fazer com que ele abrisse o jogo. Todos ficaram arrasados. Mas não podiam deixar que Gus destruísse a si mesmo por conta daquilo. Foi quando null propôs que escrevessem a canção.
Depois de tudo, a música nunca fez tanto sentido quanto agora.
Eu não estou bem e não está tudo certonull cantou, as palavras partindo o seu coração como nunca. — Você não vai procurar no lago e me levar para casa de novo?
null deixou as lágrimas escorrerem livres pelo seu rosto.
Quem vai me consertar agora? Mergulhar quando eu estiver lá embaixo? Me salve de mim mesmo. Não. Me. Deixe. Afogar.
A emoção do público quando a música chegou ao fim não era nada comparada a emoção estampada no rosto do vocalista. null nunca se sentiu tão exposto. Talvez Kalil estivesse certo, talvez ele devesse mesmo conversar com alguém, mas isso teria que bastar por hora.
Encerraram a apresentação com o cover escolhido por Kalil, Run to the Hills, e uma sensação de dever cumprido. O show daquela noite foi definitivamente melhor do que em New York. O que não significava que ele fosse mais fácil. Na verdade, parecia cada vez mais difícil. A ausência de August parecia cada vez mais permanente e a consciência disso era um novo conceito de dor, com a qual null não tinha certeza se seria capaz de se acostumar. Estar no palco com null, que o provocava com o mesmo ímpeto de desafio, que não sabia ficar parada, que fazia aquelas piadas sujas e que falava tão alto era como uma brincadeira de mal gosto. Porque tudo o que ela fazia lembrava o melhor amigo e conviver com isso tinha se tornado um grande desafio na sua vida.
null estava a caminho do camarim, após a performance, quando a mulher se colocou em seu caminho com olhos curiosos e um sorriso de canto para ele.
— Ei, bonitinho — disse ela. Por algum motivo o apelido não parecia carregar o tom de ironia de sempre.
O vocalista se permitiu baixar a guarda por um momento. Mesmo que a visão dela lhe causasse dor física.
— Fala — disse ele meio sem jeito.
null parecia igualmente desconfortável com a situação, trocando o peso de um pé para o outro em um gesto repetitivo.
— Maneiro o que você fez lá em cima hoje — disse ela, sem olhá-lo diretamente nos olhos.
null definitivamente não estava entendendo.
— O show? — perguntou ele, sua testa franzida em confusão. — Eu não fiz nada de mais. Você também estava lá...
A guitarrista revirou os olhos impacientemente. Mas por algum motivo, null pensou ter visto o rosto da mulher ruborizar sob as camadas de maquiagem pesada.
— Eu não quis dizer isso.
null coçou a cabeça, sem saber o que dizer a seguir.
— O que você falou antes de Drown — explicou ela, parando por um momento para encontrar as palavras certas. — Foi bem… Decente.
null tentou ignorar a sensação estranha de ter uma conversa minimamente civilizada com a mulher dando de ombros. Por que ela estava sendo legal com ele? Ele não conseguia entender, mesmo com muito esforço. E subitamente a sua consciência começou a pesar mil toneladas por todos os desentendimentos até então.
— A gente pode conversar mais tarde, se você ainda quiser.
Ela se empertigou imediatamente, encarando-o desconfiadamente com uma sobrancelha arqueada.
— Eu não vou te pedir desculpas, se é isso que você tá pensando.
O vocalista achou graça da situação. Então fez a última coisa que qualquer um esperasse que ele poderia fazer a seguir.
null soltou uma gargalhada.
— Eu jamais esperaria isso — disse ele, lançando uma piscadela para a mulher antes de retomar o seu caminho ao passar por ela, deixando-a para trás com uma cara de interrogação.

Capítulo 7 — I Miss You


“We can live like Jack and Sally, if we want
Where you can always find me
And we'll have Halloween on Christmas
And, in the night, we'll wish this never ends
We'll wish this never ends”
— I Miss You, blink-182
.

Mais do que nunca, null odiava o Halloween.
Halloween era o feriado favorito de Gus. Mesmo que tivesse conseguido se livrar da responsabilidade de ser anfitrião da festa desse ano. Ainda haveria festa. Porque, afinal, Halloween também era o feriado favorito de Tony.
Ao menos null havia tido a melhor ideia dela desde que entrara para a banda, sugerindo uma festa à fantasia na qual todos mantivessem suas ocultas a todo tempo. Não que null fosse admitir isso em voz alta. Mas era um alívio saber que poderia simplesmente curtir uma noitada sem a presença constante do espírito obsessor que a mulher tinha se tornado na sua vida. Ou de qualquer pessoa que esperasse alguma coisa dele. Ou o tratasse como algo quebrado, sem conserto. No geral, era um alívio poder passar uma noite sem ser null null.
Esse foi o único motivo que compeliu o vocalista da banda Disclaimer a passar mais de doze horas sob os cuidados de uma equipe de efeitos especiais da Universal Studios para a sua caracterização. A roupa não era o problema, estava pronta há algumas semanas, costurada pelos melhores designers de figurino que o dinheiro podia pagar. Não, o grande elefante na sala era sem sombra de dúvidas a maquiagem. Foi preciso uma equipe de três maquiadores, duas cabeleireiras e uma figurinista para montar o look final, em meio a diversas queixas de null, algumas reprimendas da própria equipe e risadas generalizadas. Era um milagre que tivesse conseguido ficar pronto a tempo.
Tudo valeu a pena quando null olhou-se no espelho antes de sair de casa e viu nada mais nada menos do que o Grinch olhando-o de volta.
Talvez não odiasse tanto o Halloween assim quanto ele fazia questão de expressar.
null aproveitou o anonimato para chegar na festa do baixista depois da comoção inicial, quando todos já estariam loucos o suficiente para não prestarem atenção demais nele. Pela primeira vez em anos se sentiu apenas um cara normal em uma fantasia de Halloween. Claro que algumas pessoas ficaram olhando, até porque não é todos os dias que você dá de cara com o Grinch, enquanto a maioria das pessoas decidiria por um clássico dos filmes de terror. Mas não era sobre quem ele era e sim o que ele era. Havia algo perturbadoramente libertador nisso.
Ao chegar ao endereço, o vocalista não precisou se preocupar em com nada nem ninguém. Tudo bem, talvez tenha se preocupado um pouco com a gigantesca porta vermelha de Sobrenatural que o encarava de volta, como se o desafiasse a encarar aquela noite de horrores. Não era uma surpresa para null. O baixista não brincava em serviço.
Entrou na gigantesca mansão de Anthony no mais confortável silêncio, acompanhado de seu saco de presentes vermelho. O primeiro ambiente estava completamente decorado como a casa de O Chamado, tendo toda a sua mobília substituída por móveis que faziam alusão ao cenário do famoso filme de terror, calculadamente coloridas para parecer que todo o ambiente estava sob o filtro de cores frias característicos da película. A única diferença era a televisão, idêntica à da obra, mas de tamanho consideravelmente maior que servia como painel de fotografia para os convidados.
Não demorou muito para que null encontrasse o baterista da banda, que apesar das instruções de ocultar sua identidade durante todo o evento, era o único cara da indústria da música que insistia em reciclar ano após ano a sua fantasia de Michael Myers apenas para deixar livre os seus longos fios de cabelo. null riu consigo mesmo ao passar pelo amigo fingindo não o reconhecer. Aparentemente a identidade de Kalil só ficaria oculta para a guitarrista já que todos os demais já haviam o visto naquela fantasia antes.
null rapidamente se encaminhou para a cozinha de Tony em busca de algo forte para refrescar o seu paladar. E para a sua surpresa o cômodo estava uma bagunça. Decorado como a sala de jantar de Perl com uma mesa montada para refeição completamente apodrecida e dummies dos corpos em decomposição de seus pais sentados ao redor. O vocalista não conseguiu ignorar a náusea na boca do estômago apenas de encarar o cenário. Tony tinha definitivamente passado dos limites dessa vez.
null tentou não olhar muito para os objetos cenográficos, completamente desgostoso e se dirigiu ao freezer ali perto apenas para encontrar uma cabeça decapitada e xingar mentalmente todas as gerações do amigo. Decidiu punir Tony e seus convidados por aquela maldita situação e não se importou em pegar uma garrafa inteira de rum Zacapa para guardar em seu saco de presentes junto de uma Coca-Cola e um licor de limão. Teria que sobreviver de Cuba Libre apenas para não ter que visitar aquele cômodo novamente.
O vocalista fez questão de sair da cozinha o mais rápido o possível, andando sem rumo para se estabelecer em qualquer lugar que fosse o mais longe possível daquela imundice. Quando se deu conta já tinha alcançado a área externa da casa, que mais parecia um ambiente importado diretamente dos tempos da inquisição, completamente em preto e branco. null se apoiou em uma pedra cenográfica de boca aberta, se perguntando como Anthony se deu o trabalho de replantar árvores caducifólias ou até mesmo cobrir o seu gramado perfeito com folhas secas na mais diversa tonalidade de cinza. Montou o seu primeiro copo da noite ali, de cenho franzido, buscando em sua memória de onde viria a referência para aquele cenário.
— Ei, Grinch — ouviu alguém chamar enquanto ele se servia.
null olhou para cima, sem entender por que alguém tinha decidido perturbar a sua paz, dando de cara com um Pennywise para lá de cabeçudo.
— Sim? — respondeu ele, desconfiado.
— Pode dividir comigo a sua bebida? — perguntou o palhaço se aproximando com um sorriso macabro.
— Não gostou da cozinha? — perguntou ele divertidamente.
Pennywise riu, mas havia algum nervosismo no som que saía de sua boca dentuça.
— Não queria ter que voltar lá tão cedo.
null sorriu para ele, um sorriso duro pela quantidade de massa de maquiagem artística que mumificava o seu rosto, e acenou com a cabeça para que o outro erguesse o copo em sua direção. Decidiu montar a quem quer que fosse um copo bem servido com um equilíbrio perfeitamente fatal de álcool e sabor, pronto para investir nessa primeira interação para o que prometia ser uma noite das boas. Quando recolheu o seu loot para guardar novamente no saco vermelho, retirou de lá um porta-comprimidos com um sorriso malicioso.
— Aceita uma bala, cara? — null ofereceu ao estranho a caixinha e olhou para ele com um brilho no olhar.
— Só se você aceitar um cigarro — disse Pennywise sorridente.
null riu e ambos trocaram uma pílula e um varejo do cigarro como uma criança que troca figurinhas na escola.
— Parece que eu escolhi o cara certo — disse o palhaço depois de tomar um gole de sua bebida juntamente do comprimido e oferecendo um isqueiro ao vocalista em seguida.
— Você também não me parece nada mal — null respondeu simpático, acendendo o cigarro e devolvendo o objeto.
Ambos aproveitaram um momento de cumplicidade, fumando lado a lado em um silêncio agradável.
— Me diga, Grinch — disse Pennywise depois de alguns tragos tranquilos. — Você não está no feriado errado?
null riu com a pergunta, dando mais um trago antes de responder.
— Eu sou um grande fã de blink-182 — disse ele, observando a figura macabra ao seu lado de esguelha. — Esse foi o meu jeito de viver o Halloween no Natal, só que ao contrário.
— Eu não estava esperando por isso — disse o palhaço sorridente.
— Estamos num Halloween de banda afinal de contas — brincou ele, assoprando a fumaça para o céu.
Pennywise riu uma risada digna de vilão que fez até os pelos da nuca do vocalista se arrepiarem.
— Acho que eu não reconheceria nenhum dos membros da Disclaimer, hoje mesmo se estivesse de frente para ele — disse o palhaço dando um trago em seu próprio cigarro.
— Exceto Kalil — comentou null, com um sorriso de canto, antes de dar um gole em sua bebida.
— Estão falando por aí que ele emprestou a fantasia de Michael Meyers para outra pessoa esse ano fingir que é ele — disse Pennywise com um sorriso travesso. — Ele pode ser qualquer um.
null gargalhou com a teoria da conspiração que parecia estar se espalhando pela festa.
— Eu duvido muito — disse ele, tentando recuperar o fôlego.
Pennywise pareceu pensar a respeito, mas também acabou caindo na gargalhada.
— Afinal, em que cenário nós estamos? — null decidiu finalmente fazer a pergunta que estava martelando em sua cabeça.
O palhaço deu de ombros, apontando para um grupo que estava sentado próximo a uma das árvores secas.
— Minha garota disse que é a floresta de As Bruxas de Blair.
— Terror de mulher? — o vocalista brincou.
— Com certeza — concordou o estranho com uma risada culpada.
Os dois ficaram por ali, conversando amenidades. Falavam sobre todo e nenhum assunto em meio a risadas e encontros com todo tipo de personalidade da indústria que apareciam para filar um cigarro ou até mesmo reclamar sobre a decoração da cozinha. Vez ou outra falavam das fantasias e das pessoas por trás delas, tentando inutilmente adivinhar quem poderia estar por baixo das camadas de tecido e maquiagem. As fantasias eram como uma pequena janela por onde podiam espiar os gostos e aspirações de quem às vestiam. Todos pareciam abraçar a oportunidade de ser algo além deles mesmos e ainda sim se mostrar através do enigma do Halloween.
Depois de algum tempo, um amigo de Pennywise que estava vestido de Doutor Facilier apareceu chamando o de Noah, mas null fingiu não perceber. Esse amigo disse que ouviu falar que uma mulher vestida de diabinha estava limpando todos os convidados nas cartas no andar de baixo e perguntou à dupla de recém conhecidos se eles queriam tentar a sorte. null obviamente aceitou. Até porque quem não gostava de um bom desafio? Principalmente quando isso provavelmente envolvia um belo par de pernas e chifres de diabo.
O vocalista acompanhou então a dupla de amigos pela festa lotada até o porão da casa de Tony, que estava decorada como a espaçonave de Alien, com direito a uma mesa profissional de pôquer com um corpo de astronauta morto do qual um alienígena saía de um ferimento especialmente grotesco em sua barriga. O ambiente era preenchido pelo som de uma melodia etérea que só poderia ter sido escolhido a dedo pelo baixista da banda para aquele ambiente em particular. Na mesa estavam sentados o Monstro Elizasue, Beettlejuice, Lord Voldemort, Freddy Krueger e ninguém mais ninguém menos do que Lilith. Aparentemente não era uma diaba qualquer, mas a Rainha das Succubi. null precisou piscar algumas vezes para ter certeza de que seus olhos não estavam o enganando.
— Também vieram implorar por suas almas, rapazes? — disse a mulher quando percebeu a presença de novas presas, fazendo com que um calafrio excitante atravessasse todo o corpo do músico.
null pensou ter reconhecido a voz da mulher de algum lugar, mas talvez fosse apenas os seus hormônios tentando tirar o seu juízo pela excitação incontrolável de ver a chefona mais macabra e sedutora de todos os jogos da atualidade diante dos seus olhos. O vocalista estava prestes a se colocar de joelhos e permitir que aquela mulher lhe enganasse o quanto quisesse apenas pelo prazer sadomasoquista de estar em sua presença.
null fez tudo ao seu alcance para se recuperar do choque o mais rápido possível apenas para que não se humilhasse diante daquele pedaço de mal caminho.
— Eu não me importaria nem um pouco de implorar qualquer coisa a você.
Ao invés de se sentir ofendida com a insinuação, a demônia jogou a cabeça para trás em uma gargalhada maléfica que null ouviria a noite inteira se pudesse.
— Ah, Grinch, você é um galanteador! — ela respondeu com uma voz afetada e um sorriso malicioso. — Venham, juntem-se a nós.
Como um bando de plebeus enfeitiçados, os três homens fizeram exatamente o que ela queria.
null se acomodou ao lado do dealer, na intenção de resistir aos encantos da mulher e quando se deu conta teve certeza de que tinha encontrado Anthony. Primeiro porque ele conhecia o amigo o suficiente para saber que ele não deixaria qualquer idiota dar as cartas em uma jogatina sob o seu próprio teto. Segundo porque quem mais naquela festa se vestiria como o Diabo de Tenacious D? O vocalista acabou agradecendo mentalmente por ter se sentado ao seu lado, caso contrário seria rapidamente desmascarado por uma mera troca de olhares. Consequentemente, tinha se sentado exatamente de frente para a mulher dos seus sonhos mais sombrios e mais belos pesadelos.
null, Pennywise e Doutor Facilier então trocaram duzentos dólares cada por fichas de pôquer e logo deram início uma nova rodada de apostas. Rapidamente o dealer embaralhou as cartas do baralho com a maestria de um profissional e distribuiu duas cartas alternadamente para todos. null encarou a sua mão agradecendo mentalmente pela quantidade de camadas em sua maquiagem que o impediam de demonstrar a sua reação decepcionada ao encarar a sua mão. Um sete de espadas e um três de paus. Não havia chance alguma de vencer a mulher que aparentemente tinha limpado os bolsos de todos os outros convidados da festa com uma mão dessas. null desistiu logo na primeira jogada, aproveitando para assistir a rodada e sentir o clima da mesa para as próximas.
Lilith era boa de jogo. Blefava e provocava como ninguém. Acabou ganhando a rodada apenas no psicólogo, fazendo com que todos os demais jogadores desistissem. No final as cartas da mesa foram dois setes, um três, um quatro e um nove. A mulher fez questão de exibir sua mão, que continha apenas uma trinca de sete. null teria feito um Full House se não tivesse amarelado logo no começo.
O vocalista bufou inconformado, mas logo se recompôs ao receber a mão da segunda rodada. Uma dupla de ás. Não tinha como perder essa.
null começou apostando alto, duas fichas de vinte, que foram cobertas por Lord Voldemort, Freddy Krueger, Doutor Facilier e Lilith. Quando o dealer queimou a primeira carta e abriu a segunda para mesa o vocalista sentiu a adrenalina percorrer por todo o seu corpo. Um ás. Já tinha uma trinca. Esse seria o jogo mais fácil de sua vida.
Imediatamente o vocalista aumentou a sua aposta com uma ficha de cinquenta. Uma jogada ousada, para assustar os demais jogadores, mas não tinha como dar errado. Aquela rodada já estava ganha. Apenas Freddy Krueger e Lilith cobriram a aposta daquela vez e null já podia imaginar o peso do dinheiro em sua sacola de presentes quando voltasse para casa ao fim daquela noite.
A rodada continuou entre blefes e muita conversa fiada, mas null não voltou a aumentar as apostas. Tentou deixar os adversários mais confortáveis para que quando fizesse a aposta final eles fossem definitivamente derrotados, sem chance de misericórdia.
Quando chegaram à última jogada, Lilith estava estranhamente quieta, enquanto na mesa estavam abertos um ás, dois dois e um três e um quatro. null observou os adversários atentamente antes de levar suas mãos verdes e peludas para o seu conjunto de fichas e empurrar todas para o centro da mesa com um sorriso presunçoso. All in. Lord Voldemort e Freddy Krueguer desistiram na hora. Enquanto Lilith pareceu parar para pensar por um momento, antes de encarar null com olhos inquisidores que poderiam facilmente ver através da sua alma e oferecer ao homem um sorriso diretamente do quinto dos infernos. O vocalista engoliu em seco, vendo a mulher colocar todas as suas fichas para jogo, o que era muito mais do que os míseros duzentos dólares de null àquela altura, tendo em vista a sequência de vitórias que o incentivaram a ir até lá desafiá-la.
Com o aval do dealer, o vocalista mostrou as suas cartas arrancando suspiros dos demais jogadores na mesa, que murmuraram algumas palavras de alívio por não enfrentarem aquele embate. null encarou Lilith, que olhava para as cartas dele com espanto, e sentiu o orgulho da vitória se manifestar sobre seu espírito quase que imediatamente. Mas quando a mulher levantou o olhar para ele, não havia derrota alguma naqueles olhos completamente negros. Um ás e um cinco. Straight.
Vitória para Lilith.
Derrota para null.
O vocalista fechou as mãos em punhos instintivamente ao vê-la se debruçar sobre as fichas e arrastá-las em sua direção com um sorriso no rosto. Maldita mulher demônio.
Lilith se recostou relaxadamente em sua cadeira e tirou de uma de suas asas um charuto extravagante. A mulher fez questão de ignorar os protestos inconformados dos demais jogadores ao pegar um isqueiro que estava jogado sobre a mesa e acender o objeto formando uma densa nuvem de fumaça amadeirada.
— Sinceramente? — disse ela, colocando os seus olhos pecaminosos sobre o vocalista novamente. — Eu achei que demoraria um pouco mais pra limpar os seus bolsos.
null cerrou o maxilar com a provocação, absorto em um misto de fúria e excitação pelo jogo e pela criatura à sua frente.
— Quem disse que os meus bolsos estão limpos? — rebateu ele com um sorriso sacana, abrindo o seu saco vermelho e colocando sobre a mesa mais duzentos dólares.
Lilith abriu um sorriso exageradamente branco de orelha a orelha e ele não conseguiu saber se a odiou ou amou por isso.
Quatro rodadas depois, Lilith cometeu a proeza de eliminar Monstro Elizasue, Freddy Krueger e Doutor Facilier, que abandonaram a mesa dando os parabéns para a Rainha das Succubi como se ela fosse alguma espécie de falso profeta. null ficava inconformado a cada eliminação, não era possível que a mulher não fosse perder uma rodada sequer.
Na rodada que se sucedeu, com o grupo de jogadores reduzido, null encontrou uma nova chance para fazer o seu nome. Mesmo que ninguém ali soubesse quem ele realmente era.
Com todas as cartas já abertas sobre a mesa, null tinha um Flush de copas em mãos e decidiu mais uma vez fazer a sua jogada final. Era tudo ou nada. All in. Mas Lilith não se deixava abalar facilmente e cobriu a aposta do vocalista sem nem mesmo pensar duas vezes.
— Você não tem como ganhar essa, Lilith — disse ele, mais determinado do que nunca.
A mulher pareceu momentaneamente surpresa por ser chamada por aquele nome, mas rapidamente se recompôs com um sorriso vicioso.
— Ah, Grinch — disse ela com a voz arrastada, em meio a um suspiro provocador que não podia ser nada além de proposital. — De todas as almas que eu manipulei, a sua foi a mais fácil.
Com isso, ela mostrou suas cartas sobre a mesa.
Full House.
Vitória para Lilith.
Derrota para null.
Fim de jogo.
O vocalista sorriu para a mulher, oferecendo-a um aceno de cabeça em sinal de respeito e se levantou para enfim se retirar da mesa.
null retornou para a festa com o peso da derrota sobre seus ombros. Aquela altura as bebidas que tinha sequestrado do freezer já estavam todas secas e precisou novamente encarar a cozinha para pegar um grande copo de whisky para engolir o seu ego ferido.
Algum tempo se passou e null descobriu um novo ambiente no térreo da mansão, o baile de formatura de Carrie, a Estranha, decorado como um ginásio de ensino médio coberto por sangue e com papéis da votação para rainha do baile espalhados por todo o ambiente como que esquecido por ali em meio a uma grande cena de slasher americano. Abatido, o vocalista se estabeleceu em um sofá ao fundo do ambiente pronto para fumar um baseado e esquecer de Lilith de uma vez por todas.
null não sabia dizer há quanto tempo estava ali, afundado no sofá puído e no próprio torpor. A mistura de álcool, êxtase e maconha o envolvia como um véu pesado, deixando-o leve como uma pluma, mas desconectado do mundo ao seu redor. Os sons da festa — risadas abafadas, música alta e conversas atravessadas — pareciam vir de uma outra dimensão. Ele encarava o teto tingido pelas luzes coloridas, até que algo incomum atravessou sua visão periférica.
Um par de grandes asas negras, adornadas por garras afiadas, desceu lentamente sobre ele como uma cortina. null piscou, tentando decifrar se era real ou apenas mais uma alucinação. Antes que pudesse reagir, ela surgiu.
Lilith.
A Rainha das Succubi estava ali, em carne, osso e luxúria. Sua presença era avassaladora, uma força que parecia submeter todo o ambiente. Os cinco chifres que adornavam sua cabeça, curvando-se como uma coroa infernal, exalavam autoridade absoluta. Vestida em couro negro que abraçava cada curva como um segundo pecado, ela parecia tanto uma rainha quanto uma predadora. Os olhos dela, negros como o abismo, pousaram em null, analisando-o, como se sopesasse se ele representava algum tipo de ameaça ou mera distração.
null, por sua vez, estava imerso demais para pensar em qualquer coisa. Tudo o que ele podia ver eram os belos lábios negros, o pescoço delgado e o decote pecaminoso que ela carregava.
O vocalista não conseguia nem ao menos dizer nada para ela, enquanto era observado. Estava simplesmente petrificado pelo impacto mortificante do olhar dela sobre si.
— O Grinch definitivamente era a última pessoa que eu esperava encontrar essa noite — disse ela em cumprimento.
null continuou encarando a mulher estático, sem ter a certeza de que aquela interação era real ou apenas fruto da sua imaginação perversa. Lilith limpou a garganta depois de algum tempo, despertando o homem do seu estado de inércia, fazendo com que ele se empertigasse e se colocasse de pé diante dela.
— Louvada mãe, que honra! — disse ele prontamente, depositando um beijo nas costas de suas mãos.
Ela o olhou com uma expressão surpresa. Deixando que um sorriso tímido escapasse de sua feição irredutível.
— Acho que você é a primeira pessoa que me reconheceu essa noite — disse Lilith com uma risadinha.
null sorriu verdadeiramente, orgulhoso por causar uma boa primeira impressão apesar da sequência de derrotas desastrosas na mesa de pôquer.
A mulher lançou um olhar sugestivo para o sofá onde o vocalista estava sentado, esperando um convite para que se juntasse a ele. Rapidamente null, ainda segurando a mão da mulher, abriu espaço para que ela se acomodasse, e Lilith aceitou com a graça de uma soberana, ajeitando as asas ao se acomodar ao lado dele.
— Tenho que conhecer os presentes de Natal que quero destruir — respondeu ele com uma piscadela. — Vossa majestade fuma?
Ela sorriu um daqueles sorrisos macabros.
— Não tem muitas pessoas no inferno que não fumem — respondeu ela, dando de ombros.
— Que idiotice a minha — null deu um tapa em sua própria testa, arrancando dela uma risada contagiante. — Se importaria de me acompanhar?
— Achei que nunca fosse perguntar — disse ela com uma inocência dissimulada.
O vocalista rapidamente se aprontou para atender os desejos de Lilith, abrindo o saco de presentes vermelho e tirando de lá uma carteira de cigarros embalada para presente com um conjunto de cigarros de maconha já enrolados. A mulher demônio deu uma risada maligna com a cena.
— Como o Grinch bola com esses dedos? — perguntou ela, com uma curiosidade sincera.
null ofereceu a ela um de seus sorrisos sacanas antes de responder.
— Eu não saio contando isso para qualquer um.
Lilith colocou a mão sobre o peito, ostentando uma expressão de indignação fingida.
— Nem para a rainha do submundo? — perguntou ela provocante.
O vocalista a observou sem nenhum escrúpulo, dos chifres à ponta dos pés, como se ponderasse a importância desse fato para prosseguir. Surpreendentemente, Lilith não pareceu incomodada pelo olhar descarado, muito pelo contrário, seus olhos brilhavam em chamas quando ela mordeu o lábio inferior seus dentes excessivamente brancos.
— Realmente, você não é qualquer pessoa — refletiu null. — Podemos fazer um acordo.
— Estou ouvindo — disse ela, entrando na brincadeira.
— Eu te conto o meu segredo e você dropa algum item lendário na próxima run.
A risada de Lilith encheu o espaço, uma mistura de diversão genuína e algo perigosamente sedutor.
— Temos um trato.
A mulher ergueu uma de suas mãos para ele, na espera que ele fechasse com ela um pacto profano, e null a agarrou sem ao menos hesitar. Talvez fosse até o inferno e voltasse por uma mulher dessas se assim ela quisesse. O sorriso que ela ofereceu a ele era capaz de fazer o mais virtuoso dos homens cometer pecados inomináveis.
null suspirou audivelmente antes de acender um beck e assoprar a fumaça para cima.
— Elfos do Papai Noel — disse ele em um tom sério. — Mantenho um ou outro de refém em minha caverna para situações como essa.
null acendeu o cigarro com a precisão de alguém que já tinha repetido aquele ritual inúmeras vezes. Ele deu uma tragada longa antes de entregar o baseado a Lilith. Ela o pegou com uma elegância que parecia contradizer o gesto banal, os dedos adornados com anéis demoníacos brilhando à luz da festa.
— Nunca imaginei que o Grinch fosse generoso — provocou ela, levando o cigarro aos lábios com um sorriso quase imperceptível.
null riu baixo, soltando a fumaça em lentamente entre os dois.
— Só com quem merece.
Lilith deu uma risada abafada, expelindo uma nuvem de fumaça prateada que parecia dançar ao seu redor.
— Generosidade é algo que não vejo muito no inferno — disse ela, inclinando a cabeça para o lado, os olhos fixos em null. — O que mais eu não sei sobre você, Grinch?
— Provavelmente muita coisa. Eu sou cheio de surpresas — respondeu ele, com um sorriso de canto.
A mulher demônio arqueou uma sobrancelha, desafiando-o.
— Surpreenda-me, então.
null fez uma pausa, como se ponderasse o que dizer.
— Talvez você não goste do que eu tenho a oferecer... — a voz dele foi baixa, como se não tivesse realmente a intenção de dizer aquilo. Estava concentrado demais no movimento dos lábios dela para pensar claramente.
Ela não pareceu notar quando ofereceu o cigarro de maconha de volta para ele, observando-o com uma curiosidade afiada.
— Me teste.
null deixou que a chama dançasse por um momento antes de dar outra tragada profunda. O efeito da maconha já começava a tomar conta dele, mas ele não deixou que isso o distraísse.
— O que você quer saber, Lilith? — ele a observou com os olhos um pouco mais nublados agora, tentando disfarçar o desconforto que sentia com a intensidade do olhar dela.
A Rainha das Sucubbi se aproximou um pouco mais, seus anéis reluzindoa, e sua voz se fez mais suave, mas carregada de um tom desafiador.
— Eu gosto de jogos, sabe? — ela disse, a voz baixa e carregada de um significado oculto. — Eu só quero saber até onde você está disposto a ir para manter as coisas interessantes.
Ele riu baixinho, o sorriso nos lábios como uma provocação silenciosa.
— Eu posso entrar no seu jogo, se é isso que você quer — perguntou ele com um sorriso desafiador, como se estivesse testando os limites dela.
Lilith sorriu, o brilho nos olhos ainda presente, e se afastou um pouco, como se tivesse se satisfeita com a resposta dele. Ele, surpreso pela repentina distância entre eles, sentiu uma leve tensão se formar no peito e puxou uma tragada mais profunda para tentar aliviar a sensação.
No entanto, a mulher não tirava os olhos dele, observando cada movimento com uma intensidade quase desconcertante. null engoliu em seco e, com um gesto quase automático, ofereceu o cigarro de para ela mais uma vez, recebendo um sorriso felino da demonia em troca.
— Acontece, querido Grinch, que eu sou uma péssima perdedora — provocou ela, levando o cigarro aos lábios.
null riu baixo, soltando a fumaça que estava segurando em espirais.
— Eu acho que nós vamos ter um problema.
Lilith deu uma risada abafada, expelindo uma nuvem de fumaça prateada que parecia dançar ao seu redor.
— Sorte sua que eu goste tanto de problemas, então — disse ela, inclinando a cabeça para o lado, seu olhar dominado por um brilho proibido.
A mulher riu mais uma vez, sendo imediatamente acompanhada pelo vocalista. Mas antes que ele pudesse dizer mais alguma besteira, apenas para mantê-la lá mesmo que só por mais alguns momentos, Lilith se inclinou sobre ele, a proximidade repentina fazendo o ar ao seu redor parecer mais denso, e null quase implorou para que ela reivindicasse de uma vez por todas.
Os olhos dela estavam fixos nos dele, desafiadores e enigmáticos, como se quisesse ver até onde ele aguentaria aquela tensão crescente. A fumaça do cigarro se entrelaçou entre os dois, criando uma espécie de véu entre o que era dito e o que estava prestes a acontecer.
O vocalista sentiu o calor da presença dela invadir o espaço pessoal de uma maneira inesperada, como se ela tivesse quebrado a barreira invisível que ele sempre mantinha intacta, e, por um momento, o jogo parecia ter mudado de rumo. Ele manteve o olhar firme, mas a respiração acelerada denunciava que ele estava mais afetado do que gostaria de admitir.
Lilith sorriu de maneira quase imperceptível, como se soubesse exatamente o efeito que causava. Ela não se afastou, apenas ficou ali, desafiando-o com o silêncio pesado que pairava entre eles.
Mas antes que ele pudesse fazer qualquer coisa a imagem de Margot passou por sua mente para lembrá-lo de que apesar de toda mágoa e decepção ainda era um homem comprometido. null imediatamente reviveu tudo de uma vez. A visão da namorada se entregando para a sua maior inimiga em seu quarto de hotel New York. A discussão que se sucedeu com Margot entre gritos e lágrimas desesperadas. A exposição do caso na reportagem da TMZ. As filmagens da câmera de segurança do hotel em que Margot tomou a iniciativa. A dor. O luto.
null se afastou da mulher demônio com um nó no estômago, chamando imediatamente a atenção dela.
— O que houve? — Lilith perguntou confusa.
null respirou fundo, sem saber como sair daquela situação sem ser nada além de sincero.
— Eu tenho outra pessoa — disse ele com mais calma do que ele sentia no momento.
Ao contrário do que ele esperava, a mulher não pareceu ofendida, mas sim compreensiva. Lilith deu um sorriso levemente decepcionado ao dar um trago no baseado e devolveu o objeto ao vocalista com uma cara que poderia ser tudo, menos demoníaca.
— Eu deveria ter imaginado — disse ela com tranquilidade. — Alguém que veste uma fantasia de Natal no Halloween raramente estaria solteiro depois de blink-182.
null piscou algumas vezes desconcertado pela comprensão da mulher sobre a referência da sua fantasia.
Lilith se levantou com elegância, colocando-se novamente diante do vocalista com uma postura ereta que nada combinava com o sorriso acolhedor em seu rosto macabro.
— Me desculpe pelo inconveniente — disse ela, inclinando-se sobre ele uma última vez para depositar um beijo no canto dos lábios do vocalista e se afastar um uma risadinha travessa, deixando null para trás com uma sensação estranha na boca do estômago.
Por algum motivo, a festa não pareceu mais muito interessante depois disso.
Ele mal conseguia processar a música que pulsava ao redor, o som agora uma mistura distante de batidas que se fundiam em uma massa irreconhecível. As conversas, antes alegres, eram agora ruídos abafados que ele mal conseguia distinguir. Ele olhou para as pessoas se divertindo, rindo, mas a sensação de estar completamente deslocado tomou conta dele.
Diferente do que costumava fazer, null foi embora não muito tempo depois de se despedir de Lilith. Ligou para o seu motorista particular e partiu sem se despedir de ninguém. Tendo como única companhia a sensação de vazio que a Rainha das Succubi deixou consigo. Talvez fosse um alívio que aquilo não passasse de uma festa à fantasia e que ele nunca descobriria a identidade dela graças a ideia brilhante de null. Tinha ficado tão hipnotizado, diga-se obcecado, pela mulher nos poucos momentos em que desfrutou de sua companhia, que teve medo do que poderia acontecer se ele soubesse quem ela realmente era.
O rosto dela, com seus olhos penetrantes e o sorriso travesso, ainda o atormentavam, uma lembrança vívida que parecia dominar cada espaço em sua mente anuviada. Havia algo em Lilith, algo perigoso, que o atraía. Mas não foi apenas a sua aparência ou a sua personalidade forte. Havia uma força invisível que o puxava para ela, uma aura de mistério e sedução que não saía da cabeça dele. Mesmo agora, sozinho no carro, com a rua vazia e os faróis cortando a escuridão, a sensação de querer mais dela não se dissipava.
null sentiu o cansaço cair sobre o si à medida que o carro embalava o seu corpo entorpecido e aproveitou o trajeto para acessar suas redes sociais, enquanto procurava qualquer coisa que pudesse tirar a mulher de sua mente. Estava rolando o feed do seu Instagram quando deu de cara com uma foto recém-publicada por Anthony.
Ele não poderia ser tão azarado.
Mas lá estava, Anthony, fantasiado de Diabo de Tenacious D, posando lado a lado de Lilith. Sua Lilith.
Na marcação apenas um nome aparecia na tela.
null null.


Capítulo 8 — The Devil in I


“Make amends
Some of us are destined to be outlived
Step inside, see the devil in I
Too many times, we've let it come to this
Step inside, see the devil in I
You'll realize I'm not your devil anymore”
— The Devil in I, Slipknot
.

null não conseguia tirar null de sua cabeça.
Pelo menos desde a festa de Halloween, ele tentava se convencer.
Não quando o beijo roubado no canto de sua boca naquela noite ainda parecia marcado em sua pele todas as vezes que ele colocava os olhos nos lábios dela.
Ele deveria estar ficando louco.
Só poderia estar ficando louco.
Por Deus ou qualquer outra coisa, estava até a tratando bem desde aquele dia, mal conseguia se controlar. Mal conseguia lutar contra aquele impulso. Estava tão obcecado que tinha passado noites em claro apenas estudando a droga da música apenas porque ela tinha pedido. Mesmo que não tivesse contado a ela nada a respeito disso.
Estava simplesmente fodido.
A verdade era que estudar a música do show de Chicago tinha se tornado uma espécie de terapia através dos dias, principalmente depois da confusão que tinha se tornado a sua mente desde que viu aquela maldita foto no Instagram. Já sabia que null era uma mulher interessante, mesmo que se recusasse a todo momento a admitir aquilo até para si mesmo. Então, trabalhar na música parecia ser a única coisa que impedia seus pensamentos de entrarem em colapso a qualquer momento. Principalmente porque, apesar dos últimos acontecimentos, null ainda estava afundado até os joelhos na merda com Margot.
Por algum motivo o vocalista parecia não sentir mais nada em relação a isso, o que era um alívio. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia deixar de se sentir culpado. null e Margot tinham passado por muitas coisas juntos, apesar do relacionamento turbulento, sempre tinham sido bons amigos e a química entre eles sempre foi algo intrínseco na relação dos dois desde antes de se tornarem alguma coisa. Agora, tudo parecia ter se tornado o eco distante de algo que já não fazia mais sentido.
Nos últimos dias, tudo pareceu desaparecer como se nunca tivesse existido. null nem ao menos sentia a falta dela e isso não era alguma coisa da qual ele se orgulhava.
Mesmo assim, a sua mente parecia em um looping infinito em todos os momentos errados desde aquela maldita festa.
null estremeceu ao ser repentinamente envolvido pelo som ensurdecedor da plateia, uma onda de vozes e aplausos que parecia arrancá-lo de um estado de transe. Seus sentidos, antes dispersos, se reajustaram de forma brusca enquanto ele piscava várias vezes, tentando clarear a mente. Ele estava no palco. Em Chicago. O show, o público, a energia vibrante da cidade, dos fãs. Por algum motivo era como se ele estivesse observando outra pessoa vivendo aquele momento.
No centro daquele caos controlado de notas e acordes, estava null. De pé, com a guitarra pendurada no pescoço, a expressão intensa e concentrada, como se tudo ao seu redor tivesse desaparecido e ela estivesse completamente imersa no seu próprio mundo particular.
Mas quando a música chegou ao fim, as últimas notas ecoando no ar, ela lentamente abriu os olhos. Foi aí que seu olhar se encontrou com o de null. Foi um choque direto, como um raio atravessando a distância que os separava.
O tempo pareceu se esticar como uma corda prestes a se romper. null sentiu a tensão no ar, e, sem aviso, o tempo pareceu se estender entre eles em câmera lenta. Cada segundo com o olhar de null fixo no dele parecia se arrastar, prolongado e denso, enquanto a luta interna que ele travava se tornava uma ameaça iminente ao seu autocontrole. Ele tentava manter a compostura, mas tudo ao seu redor parecia conspirar contra ele. A intensidade do olhar dela, desafiador e profundo, mexia com algo dentro dele que ele não queria reconhecer, algo que ele lutava para não deixar transparecer.
Então, a contagem para a próxima música começou. null buscou fôlego, seus olhos ainda fixos na guitarrista.
Eu ouvi batidas na minha porta outro dia. Abri e vi a morte me encarando — ele cantou, a voz firme e profunda, como se cada palavra fosse arrancada de suas entranhas. Com um olhar desafiador, null pareceu analisá-lo como se estivesse tentando entender a súbita mudança na atitude dele em relação a ela. — A sensação de uma perseguição mortal ainda persiste. Onde quer que eu vá eu levo esse caixão, por segurança.
De repente, null deu um passo na direção dele. O movimento foi quase imperceptível, mas carregado de uma irreverência insolente, como se ela estivesse empurrando as fronteiras invisíveis entre os dois. E ela não parou por aí.
Ele não conseguia desviar o olhar. null quis reagir, queria fazer algo, qualquer coisa, mas os seus músculos pareciam estar paralisados, incapazes de se mover um centímetro sequer. Merda. Não havia nada que pudesse fazer para quebrar o contato visual, nada que pudesse fazer para se afastar à medida que ela se aproximava cada vez mais. Ele não pode deixar de se comparar à um animal assustado.
null deu um passo, depois mais outro e outro, a audácia estampada em seus olhos. Cada passo que ela dava fazia o chão tremer sob seus pés, e a cada centímetro que ela avançava, a guitarrista parecia rir da resistência dele, como se soubesse exatamente o efeito que estava exercendo sobre ele.
null tentou se concentrar na música, mas a presença dela, tão próxima, tornava tudo cada vez mais difícil. null parou a centímetros dele, o olhar ainda fixo nele, não precisou dizer uma palavra, o desafio estava lá, claro para quem quisesse ver.
A guitarrista estava tão perto agora que null podia sentir o calor do seu corpo, o cheiro dela, cada detalhe parecia amplificado.
null se inclinou para ele enquanto tocava, os dedos ágeis deslizando pelas cordas da guitarra com precisão, em uma provocação velada. Cada maldita inclinação do seu corpo contra null era uma jogada calculada para mexer com a cabeça dele. Ele sentiu o peso da raiva e da atração conflitantes se chocarem dentro de si de uma só vez.
A guitarrista não estava apenas performando. Não. Ela estava testando seus limites, entrando no território dele de uma forma que o desafiava a reagir.
Incapaz de resistir, null decidiu dar o troco. Em vez de recuar, ele também se inclinou para ela, mais agressivo do que o normal, cantando cada palavra com intensidade, como se estivesse respondendo a uma pergunta que ela sequer fez. Quando ela quase tocou seu rosto enquanto se inclinava, sussurrando as palavras da música, a proximidade se fez insuportável.
— Está com medo? — a voz dela sussurrou em seu ouvido, tão próxima que nem mesmo a música ecoando pelos amplificadores era capaz de abafar.
Imediatamente um calafrio percorreu todo o corpo dele.
Ela estava tão perto que ele podia sentir a sua respiração, tinha a impressão de que poderia sentir as batidas do coração dela caso se esforçasse um pouco. Foi como se o autocontrole de null se partisse instantaneamente.
O vocalista deu um passo a frente, inclinando-se na direção dela e, por um segundo, parecia que o mundo inteiro poderia explodir bem naquele momento.
Ele soube que estava caminhando em direção a um precipício, mas já não tinha como voltar atrás.
Eu perdi a minha maldita mente, isso acontece o tempo todo. Eu não posso acreditar que eu realmente deveria estar aqui — ele cantou com uma força que soava como uma ameaça, mas também como um aviso, como se estivesse se entregando àquela tensão que, por tanto tempo, ele tentava ignorar. — Tentando consumir. A droga em mim é você. E eu estou tão chapado de miséria. Você não consegue ver?
Um lampejo de algo passou pelo rosto da guitarrista e antes que null pudesse ao menos processar, a mulher se inclinou, sem cortar o contato visual, e, em um movimento lento, deslizou a língua ao longo da extensão do antebraço dele, que erguia o microfone.
null congelou por um instante. Ele sentiu a umidade da saliva dela se espalhando pela sua pele, a sensação que ela deixou queimando em seu braço. O impacto daquele gesto desprovido de qualquer inocência reverberando por todo o seu corpo. Ela sabia o que estava fazendo, o efeito que causava nele. O vocalista entrou em estado de alerta, dominado pelo jeito que os lábios dela curvaram em um sorriso imperceptível, a confiança quase cruel nos olhos que o encaravam.
Que porra era aquela?
E foi nesse momento, no final da música, que null fez algo que nem ele mesmo esperava: segurando o microfone, ele se aproximou ainda mais de null. O vocalista estendeu a mão livre e, com uma suavidade que contrastava com a tensão entre eles, tocou o rosto da guitarrista. O toque foi lento, quase possessivo, enquanto ele a observava com os olhos fixos nos dela. Seus dedos roçaram pela pele dela, tocando sua mandíbula e depois subindo até a linha do maxilar, como se estivesse fazendo uma promessa silenciosa — ou talvez uma ameaça.
null não recuou, mas o olhar dela estava carregado de algo que ele não sabia identificar. Ela parecia se divertir com o momento, mas também havia algo mais nos olhos dela, como se ela estivesse esperando pela próxima jogada.
Quando ele terminou de cantar a última linha da música, o silêncio entre eles não passava uma explosão prestes a acontecer.
O toque do vocalista no rosto de null permaneceu por um momento, pele queimando contra pele. Ele não a tirou de perto, não a afastou. Foi como se, naquele breve momento, o tempo tivesse parado. A plateia, o palco, a banda — tudo isso desapareceu por um segundo, e o único espaço que existia era aquele entre eles.
null puxou a mão de volta, com os olhos ainda fixos em null. A última nota da música ecoou no ar, decretando a derrota dele com um eco fúnebre. Quando a guitarrista finalmente se afastou, o movimento foi tão deliberado quanto a aproximação. Ela ainda o olhava, aquele sorriso sutil nos lábios, um lembrete de que ela sabia que tinha vencido, mesmo enquanto retomava seu espaço no palco.
O público explodiu em euforia, o som das palmas e gritos preenchendo o espaço como uma onda avassaladora. A energia da multidão era quase tangível, alimentada pelo espetáculo intenso que acabara de testemunhar. O frenesi da plateia parecia amplificar o que null sentia por dentro, um misto de adrenalina e confusão, enquanto tentava processar a dinâmica silenciosa que havia se desenrolado entre ele e null.
O show havia chegado ao fim, mas o momento mais intenso ainda estava para acontecer: a última música, um cover cuidadosamente escolhido por ela. Era a peça de encerramento, o golpe final.
As luzes do palco pulsaram uma última vez, enquanto o vocalista ainda tentava se recompor.
O silêncio expectante tomou conta da arena como uma onda de expectativa. null, parado sob os holofotes, sentiu o peso do momento antes de erguer os olhos para os outros integrantes da banda. Era isso. Não tinha como voltar agora.
— Obrigado, Chicago! — ele disse contra o microfone, sua respiração ainda ofegante.
O público respondeu com uma explosão de gritos e aplausos, o som reverberando como um canto de guerra. Um leve sorriso cruzou o rosto de null enquanto ele caminhava devagar de um lado para o outro no palco, criando um clima de excitação latente.
— Para a última música dessa noite, vamos precisar ter uma pequena conversa — o vocalista anunciou, parando por um momento para observar a multidão. O público reagiu animado, o burburinho crescendo. — Pra quem não me conhece eu sou o null, eu gosto de cantar no banho e por algum motivo alguém achou que eu deveria fazer isso fora do banheiro
Ele riu divertido, fazendo a plateia se agitar ainda mais.
null coçou a têmpora, momentaneamente envergonhado. Ele apontou com um gesto descontraído para o baterista, que sorriu de forma ampla enquanto girava uma baqueta entre os dedos.
— Lá no fundo, na bateria, temos o Kalil, ele definitivamente tem o melhor cabelo entre todos nós.
Naquele momento algumas mulheres gritaram mais alto entre o público. null não conseguiu conter seu sorriso de divertimento.
Ele alcançou o baixista, enlaçando o pescoço dele com o braço e puxando-o para perto em um gesto que era ao mesmo tempo descontraído e carregado de energia.
— E esse maluco aqui do meu lado é o Tony. Ele gosta de falar merda, então, fazemos o possível para manter ele longe dos microfones.
O amigo, pego de surpresa, arregalou os olhos e fez uma expressão de falsa indignação,
— Canalha! — exclamou Tony, sua voz soando distante pelos amplificadores por conta do alcance dos microfones, arrancando uma risada do público. null deu um leve aperto no amigo, antes de soltá-lo e dar um passo para trás.
O baixista fez uma reverência exagerada, e o público respondeu com risadas e mais aplausos.
— Nós queríamos fazer algo especial pra fechar a turnê — null continuou andando, ajustando o ponto no ouvido com um movimento breve, a voz ganhando um tom mais sério e intencional. — Cada membro da banda nomeou um cover, uma música escolhida a dedo pra fechar as últimas apresentações com chave de ouro.
A reação do público foi imediata, uma mistura de curiosidade e empolgação. null fez uma pausa, deixando o momento se prolongar, antes de continuar, agora mudando o tom.
— E, para isso, precisamos apresentar alguém pra vocês esta noite.
Ele não olhou imediatamente para onde estava a guitarrista. A voz dele soou firme, mas havia algo mais — uma ponta de emoção contida que parecia fazer o público prender a respiração.
Chicago, por favor, façam muito barulho para a nossa nova guitarrista. null null!
O som do nome dela ecoou pelo espaço, e null finalmente virou-se para ela. null piscou, surpresa, o olhar denunciando que o discurso a pegara desprevenida. Mas foi o som do apelido dela — dito pela primeira vez na voz dele — que pareceu ter a deixado momentaneamente sem reação. Ele nunca havia chamado ela assim antes.
Os olhos de null faiscaram ao encontrar os dela, como se reconhecessem que ela havia notado o detalhe. Sem quebrar o contato visual, ele inclinou a cabeça em um gesto sutil, incentivando-a a se adiantar.
null respirou fundo, andando em direção a eles para alcançar o microfone e, com uma energia típica dela, gritou:
Chicago!
A resposta foi imediata. O publico inteiro pareceu rugir com ela.
null lançou um olhar rápido para null, e os dois trocaram um momento breve, mas carregado. Então, ela riu, um som claro e insolente como sempre.
— Caralho, eu não tava esperando por isso! — admitiu, rindo enquanto a multidão aplaudia novamente. — Espero que gostem da música. Eu, pelo menos, estou completamente obcecada por ela.
Com um último sorriso de canto, null ajustou a postura, olhou para a guitarra e acenou com a cabeça, como quem diz que estava pronta. Ao fundo, Kalil iniciou a percussão da bateria com uma batida suave, criando uma atmosfera crescente. No mesmo momento, null se aproximou do pedestal, encaixando o microfone com uma calma carregada de adrenalina.
Suas lâminas são afiadas com precisão — ele cantou, sendo imediatamente ovacionado pelo público com o reconhecimento da canção. — Exibindo seu ponto de vista favorito. Eu sei que você está esperando à distância. Assim como você sempre faz.
null olhou para a guitarrista enquanto ela tocava o arranjo de apoio, e seu olhar encontrou o dela. Como se o apelido dela ainda reverberasse entre eles. Ela o observava com uma certa incredulidade, como se não esperasse que ele tivesse realmente se dado o trabalho de aprender a música que ela pediu. Mesmo que isso fosse parte do trabalho deles.
Já está me sugando, já está me atingindo — a voz de null fluiu suave, perfeitamente alinhado com o ritmo da bateria, enquanto a música começava a ganhar forma e intensidade. — E sei exatamente como isso acaba, eu…
null jogou a guitarra para trás, deixando-a girar ao redor de seu corpo ainda presa à alça. Com um movimento rápido, ela agarrou o microfone dele com firmeza, tomando um fôlego profundo.
Deixei você me cortar só para me ver sangrar — ela cantou em plenos pulmões, o olhar queimando sobre o público. A confiança dela, a presença forte e desafiadora, de repente, null precisou se esforçar para acompanhar a música. — Desisti de quem eu sou por quem você queria que eu fosse. Não sei por que estou esperando pelo que não vou receber, acreditando na promessa da máquina do vazio.
O choque dominou null, a voz da guitarrista atingindo-o como um tiro certeiro, despedaçando sua mente em milhões de pedaços. Ele sempre soube que ela tinha talento, mas aquilo era diferente. A força com que ela cantava não era só impressionante, era avassaladora. Havia uma intensidade crua em sua voz, algo selvagem e ao mesmo tempo preciso parecia arrancar o ar de seus pulmões.
Eles trocaram um olhar inesperado, quase cúmplice. Sem hesitar, ele se inclinou sobre o microfone que dividiam, sua voz se unindo à dela com uma naturalidade surpreendente.
Era como se, por um segundo, a tensão entre eles fosse deixada de lado, substituída por algo mais profundo, mais visceral. Tudo o que restava era a música e seus olhares, fixos um no outro.
À medida que a música avançava, a troca entre eles se intensificava. Cada acorde que ele tocava, cada palavra que ela cantava, parecia envolver a atmosfera com uma euforia contagiante. E, de alguma forma, null não conseguia deixar de ser atraído pela força dela, essa habilidade de dominar o momento, o palco, ele.
A reação do público foi imediata e estrondosa. Quando null e null começaram a cantar juntos, algo mudou no ar. A tensão que antes se concentrava apenas no palco agora se espalhava pela multidão, criando uma conexão eletrizante. O ambiente estava fervilhando de energia, e a plateia parecia respirar no mesmo ritmo da música, como se a aquele momento uma vitória compartilhada.
Quando a última nota da música se desfez no ar, null e null, ainda ofegantes, se encararam no palco, cada um tentando recuperar o fôlego. Nenhum dos dois disse uma palavra. Seus olhares se mantiveram fixos um no outro, desafiadores, mas também carregados de uma estranha compreensão.
Quando os dois finalmente se distanciaram um pouco, o público explodiu em aplausos e gritos, não apenas pela habilidade técnica, mas como se sentissem que aquela performance tinha ido muito além daquilo.
Mas entre null e null, o mundo parecia ter desacelerado, e naquele breve momento, apenas eles existiam. E o vocalista sentiu que ficaria cada vez mais difícil lutar contra aquilo.
Após o show, contagiado pelo sucesso da noite, o after party fervia, como se dominado por uma espécie única de frenesi. Apesar disso, null sentia como se estivesse num ritmo diferente, completamente dominado por uma quietude incomum. O vocalista estava no bar, mexendo em seu copo, tentando absorver tudo o que tinha acontecido. Ele olhava para a multidão, mas seus pensamentos estavam em outro lugar — no olhar de null, na intensidade com que ela o desafiou e na forma como ele reagiu.
Ela, por outro lado, parecia se misturar mais com o ambiente, se deixando levar pela vibração da festa, mas seu olhar, de vez em quando, despretensiosamente se encontrava com o de null. E ele não conseguia deixar de pensar no que aquilo poderia significar.
Na pista de dança, a maioria estava envolvida no momento, se deixando levar pelo ritmo da música, com movimentos rápidos e descontraídos. A combinação de neon, fumaça artificial e risadas preenchia o espaço, como se a própria noite tivesse se distorcido, se fundido com a música e as emoções à flor da pele.
null apareceu no canto de sua visão periférica, cercada por algumas pessoas, mas sempre com o olhar atento, como se estivesse procurando por algo. Quando seus olhares se cruzaram à distância, foi como se o mundo tivesse parado de girar por alguns segundos. Não havia necessidade de palavras. A tensão estava ali, ainda viva, e embora a festa estivesse em seu auge, nada ao redor parecia tão importante quanto aquele momento de silêncio compartilhado.
Ela se aproximou, sem pressa, como se soubesse exatamente onde ele estava, e parou ao seu lado. Não houve um cumprimento, nem um sorriso. Apenas a presença dela, uma provocação silenciosa no ar. null não disse nada, mas sentiu uma inquietação crescendo dentro de si.
Antes que pudessem fazer qualquer coisa a respeito disso, um som familiar invadiu o momento. Tony apareceu, com um sorriso largo e olhos levemente mareados, acompanhado por Kalil, que parecia tão calmo quanto sempre, sua postura serena contrastando com o estado animado do baixista.
Tony deu uma risada alta, jogando os braços ao redor dos ombros dos dois amigos, sem parecer perceber o clima tenso entre eles. A guitarrista olhou para baixo, soltando uma risada baixa, como se achasse graça daquela situação.
— Exatamente quem eu estava procurando! — exclamou o baixista, alto o suficiente para machucar os tímpanos de qualquer pessoa normal.
null fez uma careta instintiva, inclinando a cabeça para trás como se tentasse escapar da intensidade do volume, mas logo cedeu, deixando escapar um sorriso. A energia de Tony, como sempre, era impossível de ignorar.
— Que show! — continuou o baixista, suspirando de forma exagerada enquanto se inclinava para encostar a cabeça na de null, um gesto tão dramático quanto cheio de admiração.
null ergueu as sobrancelhas, o canto da boca se curvando em diversão.
— Você sempre consegue fazer uma entrada — o vocalista disse, lançando um olhar de esguelha para o amigo.
— Antes fosse só a entrada — Kalil brincou do fundo, antes de tomar um gole da long neck que carregava consigo.
Tony revirou os olhos para o amigo, mas logo soltou null e null, mais pelo calor do ambiente e da bebida do que por qualquer outra coisa. Ele começou a se abanar dramaticamente com uma das mãos, a expressão teatral arrancando risos dos outros. Sem pensar duas vezes, pegou o copo da mão de null e deu um longo gole.
— Claro, Tony, não precisava pedir — ironizou o vocalista, erguendo as sobrancelhas com um toque de exasperação fingida.
O baixista soltou uma gargalhada alta sua alegria inconfundível preenchendo o espaço. Sem cerimônia, entregou o copo para null, que virou o restante do conteúdo sem pensar duas vezes.
— Vocês têm ideia do que acabaram de fazer? — Anthony gritou, gesticulando como se estivesse pregando um sermão. A energia dele era tão absurda que arrancou sorrisos de todos os amigos. — Por que caralhos vocês não tinham feito isso antes?
null desviou o olhar por um instante, mudando o peso de uma perna para a outra, claramente desconfortável com o comentário.
— Você fala como se não conhecesse o seu amigo — interveio null, sua voz carregada de provocação e diversão.
Os olhos de null pousaram nela, queimando com algo que não podia ser descrito apenas como irritação.
— Eu acho que foi tudo no momento certo — disse Kalil, diplomático.
— Chato! — Tony cantarolou, jogando a cabeça para trás enquanto ria, deixando o ambiente ainda mais descontraído, apesar das tensões sutis que pairavam ali.
A risada de null foi espontânea, escapando sem que ela percebesse, e o som pareceu contagiar null, que, sem querer, acabou rindo junto.
Kalil, como era de se esperar, aproximou-se de null como sempre. Ele girou a garrafa de cerveja que segurava com uma mão, fazendo o líquido balançar suavemente dentro do vidro. Então, com um gesto casual, estendeu a cerveja para ela, inclinando-se levemente enquanto a olhava de soslaio. Eles trocaram um olhar cúmplice, antes de ela aceitar a oferta e bebericar a garrafa silenciosamente.
— Eu não sabia que você podia cantar daquele jeito — disse Kalil, sua voz baixa quase engolida pelo burburinho da festa ao redor.
null, parado ali perto, não conseguiu deixar de observar a cena.
— Eu só cantei, não foi nada de mais — respondeu null com um riso leve, enquanto colocava uma mecha de cabelo atrás da orelha, como se não soubesse como receber o elogio.
null limpou a garganta, chamando atenção para si de forma um tanto abrupta.
— Eu concordo com Kalil — ele disse, meio sem jeito. — Eu definitivamente não estava esperando por aquilo.
null ergueu uma sobrancelha em sua direção, surpresa com o comentário.
— É mesmo? — perguntou ela, o tom carregado de desconfiança provocativa. — Você não parecia muito impressionado quando estávamos no palco.
O vocalista engoliu em seco, desviando o olhar enquanto mexia no copo vazio em sua mão.
— Não força — resmungou ele, a voz emburrada arrancando uma risada sincera da guitarrista.
Antes que a rodada de provocações pudesse continuar, Tony se debruçou entre os dois, agarrando o rosto de null com as mãos e apertando suas bochechas como se ele fosse uma criança.
— Mal posso acreditar em vocês se dando bem! — exclamou ele, sua voz carregada de exagero e diversão. E, talvez, também um pouco embargada pelo álcool.
null revirou os olhos, afastando as mãos de Tony com um empurrão leve.
— Eu não estou no clima, Tony!
O baixista deu de ombros, absolutamente imune ao mal humor rotineiro do amigo, e anunciou:
— Pois eu estou! Vou voltar pra festa.
Ele se afastou em direção ao tumulto de pessoas e música, deixando Kalil, null e null em um silêncio que parecia estranho depois de todo aquele alvoroço.
— E se a gente fosse dançar? — perguntou null, a voz carregada de uma diversão contida.
Kalil terminou sua cerveja em um só gole, largando o copo vazio no balcão.
— Eu topo.
null começou a se dirigir para a pista de dança, e Kalil a seguiu sem hesitar. Mas, antes de desaparecer no meio da multidão, o baterista parou por um momento, virando-se para olhar para null, que continuava parado no bar, imóvel, observando todos os movimentos deles.
— Você vem? — perguntou Kalil casualmente, mas os olhos atentos de sempre.
null fez uma careta, levantando a mão em um gesto desconexo e pouco convincente.
— Vou precisar de outra bebida.
null observou Kalil e null se afastando, caminhando juntos em direção à pista de dança, as luzes piscando ao redor deles enquanto a música se tornava mais alta e envolvente. Kalil, como sempre, parecia tranquilo, curtindo a festa com a sua característica simplicidade. null, por outro lado, tinha uma postura mais solta agora, mas o jeito como ela andava, a leveza nos movimentos, a forma como parecia se entregar à noite, não passava despercebida por null.
Que porra estava acontecendo com ele?
O show fora algo fora do comum, ele sabia disso. Não era só o público que estava envolvido, não era só o calor da performance. Era a voz dela, aquela surpresa que ele não soube como lidar.
A noite continuava a se desenrolar em sua volta, mas, naquele momento, ele só conseguia pensar nela. No palco, null não tinha sido a mesma de sempre. Ela não estava apenas fazendo seu trabalho. Ela parecia viva, como se estivesse revelando uma parte de si mesma que ninguém havia visto antes. E isso... Foi o que realmente o pegou de surpresa.
null se aproximou do bar, pegou outra bebida e deu um gole longo, sentindo o calor do álcool aquecer o seu interior. Mesmo tentando afastar o turbilhão de pensamentos, ali estava ele, observando Kalil e null na pista de dança.
A guitarrista se movia com naturalidade, como se a música fosse uma extensão dela mesma. Ela ria de algo que Kalil dissera, os olhos brilhando com uma energia que null não via todos os dias.
Ele deu outro gole na bebida, os olhos ainda fixos nos dois. Kalil e null estavam se divertindo, como se compartilhassem de um entendimento mútuo que null não conseguia ignorar.
Por um momento, ele quis se juntar a eles. Mas antes que pudesse se mover, foi subitamente invadido por uma onda avassaladora de luto, traição e raiva, que o atingiram de uma vez, paralisando-o onde estava. null se lembrou repentinamente de August. De Margot.
Abalado, o vocalista virou o copo de uma vez só, sentindo o líquido queimando sua garganta, e sem dizer mais nada, se afastou do bar. Seus olhos percorreram rapidamente o ambiente, mas tudo parecia distante e turvo. Ele precisava sair dali.
O vocalista retornou ao hotel ainda perdido, tentando colocar os pensamentos no lugar, mas tudo parecia em pedaços, como se a cada passo ele estivesse tentando juntar algo que não conseguia mais entender.
August não estava mais ali. null pensou em todo o seu ódio irracional por null, por preencher os espaços que antes pertenciam a ele, por ser tão parecida com ele. E, no entanto, naquele momento, sentia como se nada disso tivesse realmente a ver com ela, apesar de todos os sentimentos conflitantes que ele tinha em relação a isso.
Então havia Margot. Ele se lembrou do corpo de null debruçado sobre o da namorada, a cena em si ainda clara em sua mente, mas agora a sensação não era de revolta. A memória da traição, que antes o havia paralisado com raiva e dor, agora parecia distante, como uma sombra que já não o tocava da mesma maneira. A dor havia dado lugar a uma sensação de desgaste, mas também a uma quietude que ele não sabia se era alívio ou simplesmente algo que já estava se desenvolvendo há algum tempo. E o que aconteceu entre elas, o que ela fez com null, não tinha absolutamente nada a ver com ele. Não. Não era culpa de null. Margot tinha feito a escolha dela e null não estava na posição de julgar. Na verdade, nem queria mais pensar nessa possibilidade.
Merda, null o tempo inteiro não passava de um maldito efeito colateral.
Ele sabia que ainda havia uma coisa a ser feita. Uma conversa que ainda não tinha tido tempo, muito menos iniciativa de ter. null estava cansado de toda aquela desgraça e todo o poder que aquilo tinha sobre ele. Não estava falando de perdão, pelo menos não ainda. Mas ele sabia que uma trégua, mesmo que temporária, poderia ser um começo.
O sol já começava a despontar no horizonte quando null, ainda com a cabeça cheia de pensamentos e a alma mais leve do que se sentira nas últimas semanas, decidiu que não podia mais adiar. Ele se levantou da cama, ainda vestindo as roupas da noite passada, e saiu do quarto.
O corredor do hotel estava quieto, os ecos de risadas e conversas já distantes, abafados pela penumbra da madrugada. O vocalista se esgueirou pelo corredor, em passos lentos, quase como se a própria quietude do amanhecer pedisse por silêncio.
Quando chegou à porta do quarto de null, parou por um momento. Não sabia o que esperar daquela conversa, mas sabia que algo tinha que ser dito, algo tinha que mudar. null deu um suspiro profundo e, com um movimento decidido, tocou a maçaneta da porta. Não estava trancada. Ele entrou devagar, os passos suaves no carpete macio do corredor.
No momento seguinte ele desejou que não o tivesse feito.
A sensação de déjà vu foi como uma droga de uma piada de mal gosto.
null ouviu primeiro as respirações descompassadas, um som sutil que vinha do interior do quarto. Não era um ruído alto, mas havia algo sobre ele que o fez parar na porta, como se a natureza irregular das respirações fosse um aviso mantivesse os seus pés fixos no lugar. Então, distinguiu o som de pele se chocando contra pele, rítmico e constante. Ele quis fechar os olhos, mas seu corpo parecia não responder ao comando.
Quando a porta se abriu por completo, ele viu.
null vestia apenas uma camisa larga que balançava junto ao movimento do seu corpo posicionada de quatro sobre a cama. Atrás dela, completamente nu, o suor brilhando contra a sua pele, estava Kalil, enterrando-se nela como se a sua vida dependesse daquilo. Os dois tão envolvidos um no outro que não perceberam a presença dele de imediato.
null viu a guitarrista jogar a cabeça para trás, os olhos fechados, o prazer estampado em suas feições, e soltar um gemido arrastado. A luxúria do momento fez uma sequência de arrepios se espalhar por toda a extensão do corpo do vocalista. Automaticamente sua boca ficou seca.
Os olhos da guitarrista se abriram lentamente, como se instantaneamente atraídos pelo peso do olhar de null sobre si. Quando os seus olhares se conectaram ele sentiu o peso entre suas pernas.
nullnull sussurrou em meio a um suspiro, fazendo com ele sentisse o seu coração errar uma batida.
Caralho.
O som do nome dele saindo dos lábios pecaminosos dela fez com que todo o seu corpo queimasse em chamas. Ele se viu paralisado por um segundo, uma fração de tempo que parecia durar uma eternidade, e sua mente disparou em várias direções, como se, naquele instante, ele estivesse sendo puxado para um lugar desconhecido.
Foi quando Kalil finalmente notou a presença de null no recinto, parado na porta. Ele desviou o olhar de null e lançou para o amigo um sorriso preguiçoso, como se estivesse completamente alheio à tensão que se espalhou pelo ambiente.
O vocalista se sentiu constrangido, subitamente exposto. Como se ele tivesse sido pego no flagra.
Ele limpou a garganta, suas mãos bagunçando seu cabelo mecanicamente.
— A porta estava aberta — null disse, a voz mais áspera do que ele pretendia.
Um sorriso felino estampou o rosto de null, seus olhos ainda fixos nele.
Apesar da interrupção, Kalil e a guitarrista não pareceram se preocupar em pararem aquilo que estavam fazendo. As estocadas continuaram com um ruído tortuosamente molhado.
null fechou os olhos com força, tentando controlar a sua respiração.
— Eu devo ter esquecido sem querer — a voz de Kalil soou rouca, entrecortada pela sua respiração ofegante.
O vocalista ouviu um gemido suprimido que provavelmente tinha escapado dos lábios da guitarrista sem a sua autorização. O ar pareceu faltar nós pulmões dele.
Porra.
Ele não havia se dado conta de quão tenso ele estava até aquele momento, até que se sentiu completamente sobrecarregado pela situação. Ali estava null dando vida às fantasias que desde o Halloween ele se recusava a alimentar. Só que com o pau de seu amigo se afundando na bunda dela como a droga de um mergulhador.
O jeito que ela se movia, o suor brilhando sobre sua pele, os fios de cabelo fora do lugar, o rubor tingindo o seu rosto. Era demais pra ele.
Ela estava tão gostosa.
null abriu os olhos, decidido a encarar null e Kalil uma última vez, sustentando o olhar anuviado deles com mais firmeza do que sentia realmente. Ele deixou um sorriso sutil escapar de seus lábios, mas a expressão não foi capaz de alcançar seus olhos.
— Eu não sei o que estou fazendo aqui — ele disse, soltando uma risada sem humor.
Kalil ofegou em meio ao ato e as mãos do vocalista se fecharam em punhos instintivamente.
O cheiro de sexo começava a infestar o ambiente, pesado e denso, misturando-se ao odor pungente de álcool, quase palpável pelo calor que crescia no quarto. null respirou fundo, recuando um passo, sua mão ainda segurando a maçaneta como se para manter-se de pé.
null deu uma risadinha que ecoou na mente de null mesmo depois do som acabar.
— Quer se juntar a nós? — perguntou ela, a voz por um fio, o som da mais perversa tentação.
Momentaneamente petrificado, null não respondeu. Seu coração rugindo em seus ouvidos à medida que um calafrio percorria a sua espinha.
O vocalista fechou os olhos mais uma vez, inspirando fundo. Ele encontrou uma força dentro de si que não sabia que existia, uma determinação silenciosa que o impulsionou a dar outro passo para trás, obrigando-se a se afastar daquela cena. Sem dizer uma palavra, ele girou nos calcanhares, movendo-se no automático.
Mas não sem antes ouvir a voz divertida de Kalil:
— Feche a porta quando sair!


Capítulo 9 — Come As You Are


“Come as you are, as you were
As I want you to be
As a friend, as a friend
As an old enemy
— Come As You Are, Nirvana
.

null dirigia seu Challenger em direção à arena, o vento batendo com força nas janelas abertas. A cidade de Los Angeles se estendia diante dele, mas sua mente estava em outro lugar. null e Kalil. Anthony bem que tinha avisado, mas ele não estava preparado para ver com os seus próprios olhos. Ao menos não aquilo. Mesmo dias depois ele se pegava em meio ao pensamento. Como se a situação já não fosse ruim o suficiente, ele ainda estava preso aos ecos daquela visão, o jeito que ela se movia, os sons que escaparam daquela boca suja, o olhar dela sobre o seu, dominado pelo prazer. Desgraça.
Ele balançou a cabeça, tentando se livrar da lembrança, mas era impossível. Como um estalo, a cena surgia de novo: ela ali, olhando-o como se ele fosse a única coisa no mundo. E ele, incapaz de se afastar. Dias depois, ele ainda sentia o peso do que acontecera. Estaria mentindo se dissesse que não tocou a si mesmo, entorpecido por aquela memória, mais de uma vez. Como se já não estivesse lidando com merda o suficiente.
Mas quem se importava? Não era como se isso fosse mudar alguma coisa. Isso não poderia afetá-lo permanentemente. null deu um riso seco, ligando o rádio e desconectando-se um pouco daquela mente que não o deixava em paz. Ele não se importava. Não de verdade.
Quando se deu conta o The KIA Forum já se erguia no horizonte. A arena estava vibrante, uma massa de fãs espalhada por todos os lados, gritando, acenando, com uma energia eletricamente carregada. Ele não precisava ver muito para sentir o calor da excitação. Era o tipo de coisa que ele conhecia bem — o frenesi, o reconhecimento. Apesar da concentração, a organização do evento foi bem-sucedida em administrar a aglomeração para facilitar a passagem do vocalista para o estacionamento privado.
O ar quente da noite o envolveu assim que ele saiu do carro e dava os primeiros passos para alcançar o banco traseiro. As duas capas de guitarra estavam ali, surradas pelo tempo e pelas viagens, cada uma com marcas que contavam histórias de palcos, ensaios e noites intermináveis. Ele suspirou ao puxá-las para fora, sentindo o peso, mas de tudo o que aqueles dois instrumentos significavam.
null olhou ao redor por um instante antes de fechar a porta do carro. O som abafado da multidão em torno da arena o alcançava, um rugido constante que fazia todos os seus pelos se arrepiarem. Era impossível não sentir a energia pulsante daquela noite, mesmo a uma distância segura. Ele ajeitou as capas de guitarra nos ombros e começou a caminhar na direção da entrada privada.
Imediatamente, a euforia dos fãs atingiu seus sentidos, como uma onda. Ele podia ver os cartazes, as luzes das câmeras dos celulares piscando na direção dele, e logo alguns gritos se levantaram, chamando seu nome. Ele sorriu de lado, ajustando as guitarras sobre os ombros, e, sem perder tempo, ergueu a mão, acenando de forma descontraída.
null não precisou dizer nada. O carisma dele fazia todo o trabalho. Ele caminhou até o portão que dava acesso ao estádio, onde o tumulto de fãs já estava em ebulição. O vocalista sentiu a pressão do momento, mas também algo mais — uma estranha mistura de excitação e desconforto. Era como se o palco fosse sua casa, mas as interações com os fãs, aquelas que ele uma vez considerou naturais, agora parecessem tão distantes quanto August, como se não pertencessem mais a esse plano.
Quando ele se aproximou da grade, os gritos aumentaram. O som era ensurdecedor, e, de repente, os olhares ansiosos e os celulares apontados para ele pareciam tão intensos quanto aqueles que o cercaram no fatídico dia do velório. Ele parou por um segundo, sentindo um nó na garganta, mas logo o sorriso apareceu em seu rosto. Por um lado, ele sentia que estava cumprindo uma obrigação, como se fosse uma dança ensaiada — cumprimentar, sorrir, acenar, tirar uma selfie rápida ou outra. Por outro lado, era como se aquela interação e o peso das guitarras em seus ombros fossem a única coisa que o conectassem com a memória do amigo. Por esse motivo ele se rendeu, aproximando-se de um grupo de fãs e posando para uma foto. Mas, enquanto sorria para a câmera, a sensação de que algo estava fora do lugar não o abandonava. Ele via os rostos dos fãs, os olhares de admiração, mas não conseguia deixar de se perguntar até que ponto aquela interação era verdadeira para ele, e até que ponto ele estava apenas encenando.
Não muito tempo depois os seguranças o escoltaram para dentro da arena, através do labirinto de corredores do backstage em direção ao camarim. O som abafado da plateia ecoava ao longe, como um fantasma insistente que se recusava a desaparecer. Cada passo parecia soar mais alto por entre as paredes de pedra, trazendo um peso que ele não conseguia ignorar.
Desde a morte de August, nada parecia mais o mesmo. A ausência do amigo não era apenas física, era um vazio que se arrastava por tudo. Gus não era só um guitarrista incrível, mas a alma rebelde e imprevisível da banda. Ele trazia vida para as músicas, para as turnês, para as noites exaustivas. Agora, sem ele, as coisas pareciam mecânicas, como um relógio velho que funcionava, mas sem o brilho das engrenagens novas.
A contratação de null, por mais talentosa que ela fosse, só tornava tudo mais complicado. Não que ela não fosse boa, muito pelo contrário. Todavia, cada dia que ele se sentia mais inclinado a se adaptar àquela nova realidade era como um corte disforme no coração que ele nem tinha mais certeza se ainda possuía. Aceitar que ela fazia parte da banda era como admitir que Gus realmente não voltaria, que o que eles tinham antes era agora parte de um passado que ele não podia mais tocar.
Quando chegou à porta do camarim, null hesitou. Era quase como um ritual, aquele momento de pausa antes de cruzar a linha entre o tumulto lá fora e o silêncio lá dentro. Girou a maçaneta e entrou.
null se encostou à parede, respirando fundo. O ambiente estava em silêncio, exceto pelo som abafado da multidão do lado de fora. Ele fechou os olhos, tentando se concentrar, mas logo o som de alguém limpando a garganta atraiu a sua atenção. O vocalista abriu os olhos esperando encontrar seus companheiros de banda, mas parou imediatamente ao ver Margot sentada no sofá. Ela o encarava com os braços cruzados e uma expressão resoluta. O ambiente ficou pesado antes que ele se desse conta, e ele sentiu o olhar dela fixo sobre ele, tornando tudo mais claustrofóbico.
— O que está fazendo aqui? — perguntou ele, claramente surpreso.
Sua pergunta, embora direta, soou mais abrupta do que ele pretendia, e o silêncio que se seguiu fez o momento ainda mais desconfortável. A proximidade entre eles parecia estranha, mais do que nunca, especialmente sob o olhar atento e implacável de Margot. Ele não pôde evitar o leve movimento de desconforto ao se antecipar para guardar os instrumentos que carregava em seus devidos suportes, antes de sentar-se ao seu lado no sofá, sentindo a pressão da situação substituir o peso sobre seus ombros.
— Você não atendeu minhas ligações — disse ela, levantando as sobrancelhas. — Então, eu decidi que já tinha esperado tempo o suficiente.
null soltou um suspiro profundo, derrotado, e se acomodou no sofá, passando uma das mãos pelos cabelos, como se tentasse reunir os pensamentos que estavam dispersos em sua mente. Era óbvio que ele não sabia por onde começar, e o tempo que passaram separados parecia uma sombra pairando sobre eles.
— Eu também acho — admitiu ele. — Mas tinha pensado em falar com null primeiro.
Margot piscou algumas vezes, uma expressão de confusão se formando em seu rosto.
— Falar o quê?
null hesitou, os fios de cabelo uma confusão entre seus dedos ansiosos.
— Ah, você sabe — respondeu ele, desviando o olhar para qualquer lugar que não fosse o dela. — O fato de ter uma pessoa da banda envolvida meio que deixou as coisas ainda mais complicadas.
Margot engoliu em seco, e seus ombros relaxaram ligeiramente, apesar da sua expressão ainda estar longe de ser tranquila. Ela observou o vocalista por mais um instante, parecendo reunir coragem para continuar.
— Desculpe — disse ela, com sinceridade.
null deu de ombros, tentando afastar o peso daquela conversa, e forçou um sorriso.
— Não se preocupe com isso — respondeu ele, sua voz mais suave do que antes. — Poderia ter sido com qualquer pessoa.
Margot respirou fundo e, com um movimento suave e quase hesitante, pegou a mão dele. Seus dedos se entrelaçaram com os de null, atraindo sua atenção, e fazendo com que ele finalmente a olhasse nos olhos. O gesto era silencioso, mas intenso, carregado de significado.
— Não, null — ela começou, sua voz baixa, mas firme. Ela lhe ofereceu um sorriso triste, quase melancólico. — Me desculpe pela traição.
null pareceu surpreso por um instante, mas logo ele apertou a mão dela carinhosamente.
— Me desculpe também — disse ele. — Não só pelas traições, mas por tudo que eu te fiz passar desde Gus.
Margot deu um sorriso fraco, tentando segurar as emoções que a envolviam. Ela respirou fundo, sua expressão parecendo mais tranquila do que quando colocaram os olhos um no outro pela primeira vez em tanto tempo.
— Eu enten- — ela começou, mas ele a interrompeu antes que pudesse continuar.
— Não deveria — disse ele, com um tom de arrependimento genuíno. — Eu fui um idiota.
Margot sorriu timidamente, e a tristeza nos seus olhos parecia um pouco mais leve, mas não completamente ausente. Ela o olhou de maneira que ele não pôde ignorar.
— Obrigada — ela murmurou, sua voz quase inaudível.
null fez uma careta, sentindo que as palavras dela estavam carregadas de um peso que ele não sabia como lidar.
— Para com isso — disse ele, sem conseguir esconder o desconforto.
Margot soltou uma risadinha curta, e pela primeira vez em muito tempo, o silêncio entre eles não estava carregado de culpa ou arrependimento, mas sim de uma compreensão silenciosa. Como se ambos soubessem que o passado não podia ser mudado, mas ainda havia espaço para alguma forma de reconciliação.
— E agora? — perguntou ela, sua voz baixa, mas curiosa.
null soltou um suspiro pesado e se recostou no sofá, olhando para o teto por um momento antes de responder.
— Acho que nós deveríamos parar — disse ele, o cansaço perceptível em sua voz.
— É — Margot assentiu devagar, parecendo absorver as palavras. — Eu também.
null a observou com um olhar curioso, tentando detectar qualquer incerteza da parte dela. Mas ela parecia blindada a qualquer um de seus olhares inquisidores.
— Está tudo bem pra você? — ele perguntou, os olhos fixos nela.
A modelo, com uma calma inesperada, passou os dedos suavemente pelas costas da mão dele, que ainda estava entrelaçada à sua.
— Eu andei pensando no que você falou naquele dia — começou ela. — E também conversei com Anthony.
null deu um sorriso irônico e revirou os olhos.
— É claro que você falou com Tony — murmurou ele, como se já soubesse a resposta.
Margot soltou uma risada leve antes de continuar:
— Eu sei que nós nos gostamos e temos algo forte. Mas não é assim que eu quero me relacionar. Eu quero viajar junto, apresentar para a minha família, morar junto...
O vocalista manteve o semblante sério ao encontrar os olhos da mulher.
— E eu não sei se um dia vou fazer esse tipo de coisa — concluiu ele, com um olhar distante.
Margot pareceu refletir por um momento.
— Eu sei que a banda é sua prioridade. E não estou dizendo que não deveria ser...
null suspirou profundamente, sua expressão levemente mais sombria.
— Eu não acho que posso me comprometer a ser melhor, não enquanto não descobrir como lidar com a falta de August — disse ele, com uma sinceridade que parecia pesar sobre ele. — Não seria justo.
Margot apertou a mão dele com mais força, os dedos tão tensos quanto os dele.
— Eu assisti às gravações dos shows na internet — disse ela, hesitante, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado. — Você parece estar melhorando.
null deu um sorriso quase insolente.
— Você me conhece, Mar — disse ele com uma piscadela. — Sabe que eu costumo me colocar em furada pra não pensar em algo que esteja me incomodando.
Margot riu, balançando a cabeça em reprovação.
— De qualquer forma, não quero que você pense que estou fugindo ou te abandonando nessa situação — disse ela, seu tom de voz assertivo como nunca.
— Eu jamais pensaria isso — protestou ele, sem nem ao menos considerar a hipótese.
— O que quero dizer é — ela apertou a mão dele novamente, com firmeza. — que estou aqui para você.
null respirou fundo, sentindo um peso se dissipar de seus ombros.
— E eu pra você — ele respondeu com um sorriso genuíno. — Só não... Não me deixe pegar você transando de novo.
Margot tampou o rosto com as mãos, constrangida, enquanto null soltou uma risada contida.
— Se eu ganhasse uma moeda cada vez que eu pegasse alguém transando, eu teria duas moedas. O que não é muito, mas é surpreendente que aconteceu duas vezes. — brincou o vocalista. Margot gargalhou, e o som arrancou um sorriso verdadeiro dos lábios dele, mas logo se tornou uma careta. — Não acho que é uma coisa com a qual eu me sinta confortável.
O sorriso que a modelo ofereceu não foi nada além de compreensivo.
— Vou manter isso em mente — respondeu ela, divertida, sua voz mais leve e descontraída.
Margot levantou-se e inclinou-se para beijar a bochecha dele com carinho.
— Onde você vai? — perguntou null, com a testa franzida.
Ela deu um sorriso enigmático, os olhos brilhando com um toque de malícia.
— Buscar null — disse a modelo, como se fosse a coisa mais simples do mundo. Talvez fosse, para ela.
null piscou, alarmado.
— O quê? Por quê?
— Você disse que queria conversar com ela — lembrou Margot, como se fosse óbvio.
Ele fez uma careta desconfortável, tentando encontrar uma desculpa.
— Não precisa! Já está quase na hora da apresentação — retrucou ele rápido demais. — E ela deve estar ocupada com Kalil ou algo do tipo.
Margot parou na porta e ergueu uma sobrancelha, avaliando-o.
— Quem você acha que está vigiando o corredor para termos privacidade? — rebateu ela, antes de sair com passos decididos.
null ficou parado, mudo, enquanto a porta se fechava atrás dela. Era oficial: ele não tinha mais saída.
Merda.
O vocalista afundou no sofá, deixando escapar um suspiro pesado enquanto fechava os olhos com força. O som da porta se abrindo e fechando ainda ressoava em seus ouvidos como um decreto final. Sua cabeça parecia um caos, cada pensamento mais confuso do que o outro.
O que ele iria dizer?
A confiança que ele havia reunido nos últimos dias para finalmente resolver tudo aquilo havia evaporado no momento em que a viu naquela desgraça de noite infeliz. A imagem de null, a expressão de prazer no rosto dela, o primeiro gemido sôfrego que escapou daqueles malditos lábios... Qualquer coisa que ele poderia estar pensando instantaneamente deixou de fazer sentido quando cravou seus olhos nela.
null não poderia simplesmente aparecer ali. Não quando aquela memória ainda estava gravada em sua mente como a droga de uma tatuagem. Não importava o quanto ele tentasse se preparar. Nada parecia fazer sentido na cabeça de null. Nada parecia ser capaz de prepará-lo para a presença iminente da guitarrista naquele cubículo sufocante.
null continuava de olhos fechados, lutando para controlar a respiração descompassada, quando o som da porta o alertou novamente. O clique suave das dobradiças foi o suficiente para quebrar o pequeno fio de controle que ele havia conseguido reunir. Sem poder evitar, seu olhar traiçoeiro disparou na direção do barulho, a tempo de vê-la entrando no camarim. Sozinha.
Por um segundo que pareceu uma eternidade, ele ficou paralisado. Apenas a visão dela foi capaz de fazer com que null sentisse o ar faltar em seus pulmões e o chão sumir sob seus pés. Aquilo, por si só, já era aterrorizante.
Nunca antes os dois haviam ficado sozinhos em um mesmo ambiente, muito menos em um espaço tão pequeno. E, mesmo que fosse amplo, qualquer ambiente compartilhado por eles parecia encolher sob o peso da constante batalha de egos que os cercava.
null dominou o ambiente como quem não quer nada, mas não havia uma única coisa sobre ela que passava despercebido. Não por null. Não agora. Ela vestia uma regata machão preta com aberturas exageradas que permitiam a visão perfeita e extremamente gráfica do seu sutiã verde. Por um momento, null se permitiu pensar que verde era a sua cor favorita. Porra. Como se não bastasse, as malditas pernas mal eram cobertas pela minissaia de couro preta combinada a botas de combate da mesma cor, que faziam com que ele não soubesse exatamente para onde olhar.
A casualidade dela era tão ensaiada quanto a postura que ele tentava manter. Ainda assim, o som do coração dele rugindo nos próprios ouvidos o fazia parecer um moleque diante da presença dela.
O barulho da porta se fechando trouxe-o de volta à realidade. null se aproximou sorrateiramente, sua cabeça pendendo para o lado em um ângulo predatório que o fazia querer engolir os seus próprios punhos.
— E aí, null? — disse ela casualmente, como se houvesse alguma intimidade entre eles para esse tom.
Ele quase riu da abordagem, mas manteve a máscara de indiferença ao responder:
null.
null pareceu se divertir com aquilo. Ela sempre se divertia.
Sem hesitar, a guitarrista caminhou até o sofá onde ele estava, atirando-se na extremidade contrária com a naturalidade de quem era dona do lugar. null continuou sentado, rígido, incapaz de relaxar. Tudo nele parecia tenso. De repente o espaço que parecia pequeno antes agora parecia minúsculo.
null olhou para a guitarra verde exposta no fundo do camarim, seu olhar imediatamente atraído pela familiaridade do instrumento. A guitarra de Gus. Era uma guitarra velha, com o acabamento gasto pelo tempo e pelas muitas apresentações, mas ainda assim parecia emanar a cumplicidade que apenas a presença do amigo foi capaz de passar um dia. O verde vibrante de corpo do instrumento parecia quase misterioso sob a luz suave do camarim, e as cordas, um pouco enferrujadas, pareciam prontas para ressoar como um disco preso em uma memória do passado.
Talvez se olhasse para a guitarra por tempo o suficiente pudesse escapar do buraco negro que era null e sua capacidade inescapável de engolir tudo ao seu redor.
— Vocês conseguiram se resolver? — perguntou ela, o tom quase curioso.
A pergunta o atingiu como um estalo, arrancando-o de seus pensamentos, que flutuavam entre o incômodo da presença dela e o desconforto de lembranças recentes. Ele piscou, demorando um segundo a mais para registrar as palavras dela.
— Conseguimos — respondeu ele, breve. Não tinha muito o que acrescentar.
O silêncio que se seguiu foi desconfortável. Era tão estranho estar ali com ela. Sozinho. Conversando. Civilizadamente. Mais estranho ainda desde que ele tinha visto ela e Kalil no meio do ato.
— Sua namorada disse que você queria conversar comigo — null pareceu decidir ir direto ao ponto.
— Margot não é mais minha namorada — o vocalista corrigiu rapidamente, sem saber exatamente por que precisava esclarecer aquilo.
null piscou, parecendo um tanto surpresa.
null, você sabe que o que aconteceu naquele dia não foi nada sério, não sabe? — o tom dela foi quase tão duro quanto ele sentia que poderia ficar se continuasse com aqueles pensamentos estúpidos.
Ele riu, irônico.
— Isso não tem nada a ver com você.
Ela ergueu uma sobrancelha, analisando-o com uma expressão que ele julgou como inconformada.
— Eu sei que eu não estou em posição pra falar isso, mas Margot é uma mulher foda e um erro não apaga isso…
null gargalhou, cortando-a no meio da frase.
— Eu sei, null — disse ele, surpreendentemente à vontade, o apelido escapando de seus lábios sem que ao menos percebesse. — É isso que eu estou tentando dizer. Nós terminamos, mas não foi por conta disso. Está bem?
A expressão que dominou o rosto da guitarrista foi indecifrável.
— Está tudo bem entre vocês? — perguntou ela.
O vocalista assentiu.
— Sim, está.
— E entre nós?
— Sim, null, está tudo bem entre nós.
Ela inclinou-se um pouco, estreitando os olhos como se procurasse algo em sua expressão.
Merda — o murmúrio da mulher foi acompanhado de um sorriso torto.
— O quê?
— Eu estava me divertindo com o seu ódio.
Antes que qualquer um dos dois pudesse se conter, eles riram, juntos, sem se importar com o que aquilo poderia significar, se é que poderia significar alguma coisa. Por um momento, a tensão diminuiu, embora null soubesse que nada entre eles nunca seria leve.
— Eu ainda não gosto de você, se serve de algo — disse ele, olhando-a de lado.
Os olhos de null faiscaram.
— Oh, null, você é um péssimo mentiroso.
null a olhou resignado.
— Por que eu mentiria sobre isso? — perguntou ele, impaciente.
— Já é a segunda vez que você me chama pelo apelido, sabia? — observou ela, mordendo o lábio com um toque de provocação.
O vocalista revirou os olhos, ignorando um súbito frio na boca do estômago.
— Talvez eu tenha parado de me importar com você, já pensou nisso? — devolveu ele, observando-a com sua típica cara de tédio dissimulada.
— Eu adoraria ver você tentar — a resposta dela foi um desafio, carregada daquele tom que ele já conhecia bem.
Ele soltou uma risada breve, sem humor.
— Você não lida bem com decepções não é mesmo?
null arqueou uma sobrancelha, interessada.
— Está pensando em me decepcionar?
O olhar dele encontrou o dela, e por um momento nenhum dos dois disse nada. O silêncio entre os dois foi mais eloquente que qualquer resposta.
— Você não cansa de si mesma? — perguntou ele, mesmo que já soubesse a resposta.
Ela sorriu, o mesmo sorriso felino que o deixava desconcertado.
— Você já cansou?
null suspirou, recostando-se no sofá.
— Já — disse ele, sua voz saiu mais baixa do que ele esperava. Ele hesitou antes de continuar, mas decidiu arriscar. — Nós poderíamos fazer uma trégua.
null pareceu analisá-lo por um momento, e por um segundo ele pensou que ela poderia até aceitar. Mas, então, ela jogou a cabeça para trás e riu, aquele som cheio de malícia.
Nunca — respondeu ela, seu timbre tão provocante quanto a maldita expressão que dominava o seu rosto.
Ele acabou rindo também, derrotado pela situação.
— O que? — perguntou ela, fingindo inocência. — Não era isso que esperava quando foi até o meu quarto em Chicago?
Ele congelou. Não só pela lembrança daquela noite, mas pela forma despreocupada com que ela trouxe o assunto à tona, como quem comenta sobre o clima.
Naquele momento, null teve certeza de que null null seria a causa de sua morte.


Capítulo 10 — The Kill


“Come, break me down
Bury me, bury me
I am finished with you
Look in my eyes
You're killing me, killing me
All I wanted was you”
— The Kill, Thrity Seconds To Mars
.

A porta do camarim se abriu com força, interrompendo bruscamente a estranha conversa civilizada entre null e null, que parecia tomar rumos cada vez mais inesperados.
— Sinto cheiro de problema — anunciou Anthony, cruzando o espaço com sua habitual presença expansiva.
O vocalista, ainda sentado no sofá, se sentiu repentinamente exposto. O olhar que lançou a Tony era quase uma súplica silenciosa pela interrupção completa daquele momento inusitado no qual ele foi encurralado ainda há pouco.
— Parece que não estão se matando — Kalil entrou logo atrás, os dedos presos às alças de sua mochila. Sua postura era relaxada, despreocupada, como se acabasse de sair de um dia no SPA ao invés de estar em meio a uma turnê frenética.
— Parece que não — completou Margot, com um pequeno sorriso brincando nos lábios, ao encostar-se no batente da porta de braços cruzados.
— Contanto que essa noite vocês me entreguem mais um melhor show da minha vida, eu não dou a mínima para o que façam ou deixem de fazer — brincou Anthony, jogando-se no sofá com uma desenvoltura que exalava confiança. Ele pousou as mãos atrás da cabeça, colocando-se estrategicamente entre null e null, como uma barricada humana. Isso era bom.
O vocalista quase beijou o amigo em agradecimento.
— Não posso garantir nada — null piscou de forma teatral.
— Vou fazer o meu melhor — disse null, mas o sorriso zombeteiro da guitarrista deixou claro que ela não deixaria isso passar tão facilmente.
— Ótimo, porque eu farei o meu pior — retrucou ela, com olhos brilhando em provocação, recebendo apenas uma risada contida de null.
Os outros trocaram olhares confusos.
— Um brinde a isso! — exclamou Kalil com um entusiasmo exagerado, como se quisesse evitar que os outros pensassem demais sobre o clima ameno que parecia prevalecer sobre o ambiente como algum tipo de milagre. Ele deu um passo a frente, abrindo a mochila e despejando seu conteúdo na mesa de centro.
Um arsenal de pacotinhos plásticos contendo diversos tipos de drogas se espalhou sobre a superfície tal qual presentes jogados sob uma árvore de Natal. O vocalista sentiu sua boca salivar como se encarasse uma espécie deturpada de banquete. Agora sim.
— Kalil Casablanca! — exclamou Tony, os olhos arregalados em uma mistura de surpresa e animação. — Você não é disso!
— Caralho! — null riu, permitindo que um sorriso malicioso dominasse suas feições. — Se tivesse brownies eu diria que você voltou para escola de gastronomia, meu amigo!
null inclinou-se, pegando um pacote pequeno com um bud verde tão vivo quanto a cor de seu sutiã. Ela o cheirou profundamente antes de lançar um olhar divertido para Kalil. O vocalista desfrutou de um momento de alívio quando nenhum ruído de prazer escapou dela. Não seria capaz de lidar com aquilo mais uma vez.
— Eu não costumo ser facilmente surpreendida, mas você se superou — disse ela, tirando da mochila o kit de tabaco e começando a cerimônia de trabalho manual. — Tem certeza de que você não era o Grinch no Halloween?
null travou por um momento.
Definitivamente aquelas palavras o afetavam.
— Absoluta! — disse Kalil, soltando uma gargalhada espirituosa.
— Que pena! — a guitarrista deu um suspiro dramático.
null ficou imóvel, tentando disfarçar a tensão que atravessou seu corpo como uma corrente elétrica, mas bastou desviar o rosto para o lado para encontrar o olhar afiado de Tony ao seu lado, sempre desconfiado. Já era de se esperar que ele suspeitasse que Des fosse a pessoa por trás da referida fantasia, afinal conheciam um ao outro da cabeça aos pés e passaram boa parte da noite dividindo o mesmo ambiente. Ao menos ele não disse nada.
Porra, até quando aquela hiper consciência sobre ela iria durar?
— O que acham de um null essa noite? — brincou null, com a mesma facilidade de quem sugere um drink.
null balançou a cabeça, tentando afastar aqueles pensamentos que teimavam em não deixá-lo em paz. Ele sabia que, se continuasse a perder a cabeça, não conseguiria se livrar desse caralho de maldição que aquela bruxa tinha colocado sobre ele desde a festa à fantasia. Com um suspiro profundo, inclinou-se para frente e pegou o material das mãos de null num gesto que soou mais como um ato de necessidade do que de cortesia. Ou talvez fosse um impulso incontrolável de se aproximar dela. Seus olhos estavam estreitados pelo conflito, mas ele forçou o corpo a retornar ao seu lugar e focar no que realmente importava naquele momento: ficar louco a ponto de esquecer aquela mulher e a confusão que ela estava fazendo na vida dele.
De repente, Kalil jogou-lhe um slicker e o vocalista pegou o objeto de silicone sem hesitar, feliz pela conspiração do amigo em ocupar a sua mente com outra coisa, qualquer coisa. Ele apenas o olhou rapidamente antes de agradecer com um aceno, o movimento quase automático, como se a ação tivesse sido tão rotineira quanto respirar. Mas dentro dele, uma sensação inquietante persistia, como se o simples gesto não fosse suficiente para apagar a presença do outro lado do sofá que ele inutilmente tentava ignorar.
— Estava pensando em algo mais sofisticado, talvez um null pra encerrar a turnê — propôs null, forçando sua voz a soar descontraída, enquanto pegava os buds que a guitarrista começara a cortar ainda há pouco. Talvez, se fingisse o suficiente, o estado de espírito se tornasse realidade.
Margot gargalhou ao fundo, largando-se em uma poltrona próxima.
— Não me lembro de existir um null — provocou ela, ganhando o gesto universal do dedo do meio de null, que arrancou mais risadas de todos.
— Podemos mudar isso agora — respondeu ele com um sorriso malicioso.
— Por favor, só não coloque o pó no meio da mistura — disse Kalil, sentando-se no chão e mexendo nas sacolas espalhadas pela mesa.
null estreitou os olhos para o amigo com uma expressão de ultraje.
— De jeito nenhum o null vai ser um fristo — o vocalista resmungou.
— Um La Rocha poderia ser um fristo — disse Tony, ou melhor, pensou alto Tony. null pareceu não aprovar a ideia, dando um tapa na cabeça do baixista e arrancando do restante do grupo risadas divertidas.
Trabalhando com precisão, null manipulou os ingredientes com uma atenção quase meticulosa, como se estivesse preparando algo sagrado. Com dedos ágeis e experientes, misturou a maconha com um pouco de tabaco orgânico, o aroma terroso e suave preenchendo o ar à medida que a mistura tomava forma. Depois, adicionou o ice-o-lator, cada fragmento delicadamente espalhado, como se soubesse exatamente a quantidade necessária para equilibrar o sabor e a potência.
O vocalista parecia realizar um ritual quase religioso. Lentamente, ele começou a cobrir metade do baseado com o crumble, distribuindo-o uniformemente, observando cada grão se acomodar de forma perfeita. O som do crumble quebrando e caindo suavemente era quase hipnótico. Quando o toque final chegou, null polvilhou uma camada generosa de kief por cima, a cor dourada do pó contrastando com a base escura do baseado, como se fosse o toque de um mestre artesão.
Quando terminou, ele ergueu o resultado como se fosse um troféu, seus olhos brilhando com uma mistura de satisfação e orgulho. Por um momento, o mundo ao seu redor desapareceu, e tudo o que restava era a perfeição que ele acabara de criar. Era um alívio, mesmo que momentâneo.
null deu uma risadinha.
— Eu sempre soube que você não passava de um mauricinho, null — zombou ela, observando o objeto nas mãos dele com um brilho incomum nos olhos.
— Você fala como se isso fosse algo ruim — provocou o vocalista, exibindo um sorriso lento e confiante.
— Só quando não me beneficia — retrucou ela, piscando de forma descarada.
null revirou os olhos, mas não conseguiu conter o riso, enquanto acendia o baseado e dava um trago generoso, que de imediato abaixou sua pressão em uma onda de prazer.
— Pronto pro seu cover, irmão? — perguntou Kalil, enquanto remexia as coisas sobre a mesa.
— Eu nasci pronto — respondeu null, soltando a fumaça num gesto exagerado.
Anthony riu alto.
— Você está falando demais pra quem vai ter que cantar no tom do Corey Taylor — zombou Anthony, arrancando uma risadinha do baterista que ouvia tudo atentamente.
null lançou um sorriso preguiçoso em direção ao baixista, o canto de sua boca se curvando de forma despretensiosa, como se não houvesse pressa alguma no mundo. Com um movimento suave e quase displicente, o vocalista deixou cair acidentalmente um meteoro de haxixe sobre a barriga exposta do amigo. Tony soltou um gemido de dor abafado instantaneamente, causando uma explosão de risadas entre os amigos ao redor.
— E pensar que no início de tudo você passaria o dia inteiro em silencio só pra preservar a voz — refletiu Kalil com um sorriso enviesado, no mesmo momento em que Anthony pegou o fumo das mãos do vocalista.
— Bons tempos — disse o baixista, com o fôlego preso após puxar dar o primeiro trago. Ele inclinou a cabeça ligeiramente para trás, os olhos semicerrados enquanto observava a fumaça espessa subir em anéis lentos, desaparecendo no teto como se carregasse as memórias das palavras que acabara de dizer.
null não pareceu comovida pela reflexão ao encará-lo com impaciência. A guitarrista bufou, tomando o cigarro das mãos de Tony, arrancando dele um ruído de protesto.
— Isso não é um fumo para brincar — declarou ela, puxando um trago profundo. A fumaça escapou de seus lábios em uma nuvem lenta, envolvendo-a em um halo fugaz antes de desaparecer. — Compre um narguilé para fazer as suas palhaçadas.
— Eu tenho um narguilé — murmurou Anthony, encolhendo os ombros em uma mistura de orgulho ferido e indignação. Sua queixa, entretanto, foi abafada pelas risadas e pelos olhares debochados que recebeu em resposta.
null apenas ignorou o baixista dando mais um trago. A conversa deslizou para provocações leves, risadas ecoando pelo espaço enquanto o grupo divagava sobre o show que se aproximava. Era uma noite de excessos, com bebidas, drogas, muita fumaça e piadas lançadas como dardos amistosos. O grupo ria, mas null sentia o peso invisível do olhar de null, que parecia dissecá-lo, mesmo quando ela se juntava às brincadeiras. Era uma presença intensa, impossível de ignorar.
Duality não é uma música fácil — comentou a guitarrista, inclinando a cabeça levemente para o lado e puxando mais um trago. — Fiquei surpresa com a sua escolha.
— As nossas músicas não são fáceis — replicou ele, dando de ombros preguiçosamente, os primeiros sintomas do THC começando a se manifestar.
— Eu não vou te dar crédito por isso — disse null, com um sorriso desafiador, enquanto soltava a fumaça lentamente, os olhos fixos em null.
— Isso não é uma competição — repreendeu Margot, cruzando os braços e tentando sustentar um olhar severo para os dois. Contudo, o rubor que subia rapidamente por seu rosto a traiu, entregando que, por trás da censura, ela não passava de mais uma cúmplice na brincadeira.
— Fale por você — rebateu null, deixando um sorriso perverso escapar enquanto ajustava sua postura no sofá, como quem se preparava para um embate.
— Ele não teria chance alguma — provocou null, inclinando-se levemente para frente, a voz carregada de ironia.
Os olhares de null e null se encontraram, carregados de tensão e eletricidade ao travarem uma batalha silenciosa que eles conheciam bem. Mas, tão rápido quanto aconteceu, o momento se dissipou, como se nunca tivesse existido. A guitarrista desviou o olhar primeiro, deixando escapar um sorriso enigmático enquanto estendia o baseado na direção de Margot.
— Vai querer, amor? — perguntou null para a modelo, com um sorriso malicioso dançando nos lábios.
Margot fez uma careta, mas pegou o objeto rapidamente, entregando-o para Kalil.
— Hoje não, Satã — disse ela, com um sorrisinho divertido.
null não conseguiu conter a risada que escapou de seus lábios com a analogia. Principalmente porque ele constantemente se referia à guitarrista da mesma forma, mesmo que fosse apenas para si mesmo. Estava ficando chapado.
Kalil colocou o cigarro de maconha entre os lábios e se levantou, um sorriso largo iluminando seu rosto. Com a mesma calma de sempre, o baterista ergueu uma bandeja de metal que até então estava escondida à vista de todos.
— E agora, senhoras e senhores, apresento-lhes a obra-prima da noite! — anunciou teatralmente, revelando quatro fileiras impecavelmente alinhadas de pó branco, brilhando sob as luzes amareladas do camarim.
null deixou escapar um riso curto, inclinando-se para frente com os olhos brilhando de curiosidade. Tony bateu palmas lentamente, como quem aprecia a dedicação por trás do feito, enquanto null lançou um assobio baixo, o sorriso crescendo em seu rosto.
— E não é que o chef voltou com o cardápio completo? — Anthony foi o primeiro a quebrar o silêncio, inclinando-se para frente, os olhos faiscando com um interesse difícil de disfarçar.
Margot, que até então cruzava os braços com uma expressão cética, bufou, mas não conseguiu conter um sorriso discreto.
— E eu achando que você era o mais tranquilo — brincou a modelo.
— Apenas quando tem alguém olhando — disse ele, lançando uma piscadela para a modelo.
null, por outro lado, parecia completamente à vontade, radiante até. Um sorriso torto moldou seus lábios enquanto ela buscava algo em um bolso oculto de sua minissaia. null não se lembrou de já tê-la visto tão... Amigável.
— Tranquilidade não combina com rock, Mar. Você devia saber disso — disse ela, inclinando-se para frente, enrolando uma nota de cinquenta dólares que resgatou do seu esconderijo. — E, honestamente, eu nunca recuso um presente bem apresentado.
A guitarrista nem ao menos hesitou, debruçando-se sobre a bandeja e aspirando o conteúdo de uma fileira inteira pelo nariz com a ajuda da nota enrolada. Anthony ergueu as mãos como se se rendesse, pegando a nota que null o ofereceu logo em seguida e também se inclinando sobre a mesa com um sorriso malicioso.
— Vocês são impossíveis... — null fingiu reprovar a situação, mas logo tomou o lugar do baixista sobre a bandeja.
Quando null levou o pó à sua narina, o ar pareceu se condensar por um momento, como se o tempo tivesse desacelerado para absorver a intensidade do gesto. Ele fechou os olhos por um segundo, o som ao seu redor se tornando distante, e sentiu a substância entrar de uma vez, quente e penetrante. O calor percorreu seus pulmões primeiro, e logo uma sensação efêmera de leveza tomou conta de seu corpo, como se seus músculos estivessem se desfazendo, relaxando em uma calmaria absoluta.
Finalmente.
A primeira onda de euforia se espalhou pelo seu cérebro, um turbilhão de prazer repentino que fez cada um de seus sentidos se aguçar. O som ao seu redor ficou mais nítido, as cores mais vívidas, e uma onda de confiança invadiu seu peito, como se ele fosse capaz de tocar o céu com as mãos. Era como se a realidade se desvanecesse por um segundo e ele pudesse respirar de uma forma nova, mais intensa, mais pura.
null suprimiu um gemido de prazer e exalou lentamente, sentindo a boca seca enquanto uma risada escapava involuntariamente. Havia algo vívido e quase elétrico em cada inalação, um choque imediato que o fazia querer mais. Ele olhou para os outros, seu olhar mais afiado, mais focado, como se estivesse vendo tudo pela primeira vez. A substância parecia dissolver todas as fronteiras, tornando cada sensação mais palpável, cada gesto mais carregado.
O vocalista levantou o canudo com firmeza, observando Kalil com um sorriso travesso. O baterista não perdeu tempo ao aceitar o objeto, oferecendo o baseado para o amigo em troca, antes de repetir o gesto dos demais.
Pouco tempo depois, o som firme de uma batida na porta do camarim interrompeu a atmosfera carregada. O roadie, rápido e direto como sempre, entrou sem esperar resposta. Seu olhar, já acostumado com a cena caótica, não demonstrava surpresa, apenas a urgência que vinha com o trabalho.
— Hora do show, pessoal — Larry anunciou, sua voz cortando o ar, que ainda estava denso da última rodada.
null, que ainda sentia o gosto amargo da ponta do baseado, deu uma última fungada, antes de deixar o fôlego escapar com uma risada baixa. Kalil, ainda com o sorriso no rosto, balançou a cabeça, visivelmente preparado para qualquer coisa. null, que ainda estava se recompondo, deu uma piscadela para null, seu olhar enigmático, como se a noite tivesse apenas começado.
Tony se levantou de um salto, a energia do momento se espalhando por todo o seu corpo como se fosse uma reação instintiva. Com um sorriso largo, ele fez um movimento exagerado, quase como se estivesse se preparando para pular diretamente para o palco. Margot riu do estado dos amigos e se despediu do grupo com um breve olhar e, sem dizer mais nada, se afastou em direção ao camarote.
Antes de deixar o camarim, null parou diante da guitarra verde com uma mistura de reverência e necessidade. Sem palavras, suas mãos encontraram o braço do instrumento, e ele o ergueu com um cuidado quase devoto, como se estivesse carregando uma relíquia.
Com um suspiro, ele colocou a guitarra nos ombros e, ao fazer isso, uma onda de familiaridade o percorreu. Era como se a energia do amigo estivesse ali, com ele, como se a guitarra fosse uma extensão de quem ele era, de quem haviam sido juntos. null sorriu para si mesmo, o peso de tudo aquilo desaparecendo à medida que o calor da música começava a se acender dentro dele.
Era hora do show.
O tempo pareceu se dobrar e desdobrar depois daquilo e antes que pudessem processar qualquer coisa, a banda Disclaimer já estava no palco.
O show começou com uma explosão de energia, o palco iluminado pela excitação da multidão. Quando as luzes se apagaram, um rugido tomou conta da arena. A guitarra de null cortou o silêncio, seguida pelo ritmo firme de Kalil na bateria e a linha pulsante de Tony no baixo. null, com o microfone na mão, se colocou à frente, e a primeira palavra que saiu de sua boca foi quase engolida pela multidão que entoou em uníssono.
Havia uma energia palpável no ar, como se a multidão e os músicos fossem uma única entidade, ligados pelo som e pela vibração da música. As luzes do palco se misturavam com o calor humano da plateia, criando uma atmosfera elétrica que parecia explodir a cada acorde. O frenesi da cocaína amplificava tudo como parte de uma mesma melodia. Mas para null, tudo parecia se concentrar na guitarra verde, nas mãos que a tocavam e na sensação quase mística de sua presença ali, no palco. Era como se August, de alguma forma, ainda estivesse ali, guiando sua performance, ajudando a tirar dele mais do que ele acreditava ser capaz.
null e null, no centro dessa tempestade de som e emoção, se moviam com uma fluidez quase instintiva. Em certos momentos, seus olhares se encontravam, um simples gesto ou sorriso trocado transmitindo mais do que qualquer palavra poderia. Os efeitos das drogas como um idioma através do qual eles podiam finalmente se comunicar.
null, com sua postura desafiadora e a guitarra com a qual parecia se conectar como se fosse uma extensão de seu próprio corpo, mantinha o público em transe. Ela sabia exatamente como manipular o ritmo e a tensão da música, criando momentos em que o silêncio no palco parecia se estender por uma eternidade antes de uma explosão sonora.
null, com seu carisma natural, sentia cada grito da plateia em seus ossos. Ele interagia com o público, levantando os braços, conduzindo-os em um coro coletivo, como se estivesse navegando na energia deles. Mas quando a música atingia os picos mais altos, era null quem, com seus solos intensos e movimentos quase hipnóticos, conseguia capturar toda a atenção de todos. Ele, em resposta, se aproximava, compartilhando o espaço do palco com ela de forma quase predatória, como se a dinâmica entre eles fosse mais do que apenas um espetáculo. Eles pareciam conectados por algo invisível, um entendimento mútuo, onde cada olhar, cada movimento no palco poderia ter um significado mais profundo.
À medida que a apresentação avançava, null sentia uma mistura de emoções intensas. Havia o prazer de estar ali, no palco, fazendo o que amava. A guitarra parecia ser a chave que o conectava ao seu passado, a um lugar onde ele ainda sentia a presença do amigo, como uma aura reconfortante. Também havia a maconha, a cocaína e a adrenalina de dar continuidade ao legado de Gus.
A cada música, a relação entre null e null parecia se aprofundar. Não era só sobre o show, mas sobre algo mais, uma conexão silenciosa que, embora não fosse verbalizada, era clara na maneira como se moviam no palco. Eles competiam entre si, mas de uma maneira que só fazia o show se intensificar, alimentando-se da energia um do outro, como se estivessem em uma constante batalha pelo centro das atenções, mas ao mesmo tempo, se impulsionando a ir mais fundo na performance.
Quando a última música chegou ao fim, o calor do palco e o frenesi do público ainda vibravam no ar. null sabia que estava chegando o momento de apresentar o cover que havia planejado, a música que ele ensaiara por semanas, que seria o ápice de sua performance naquela noite. O seu momento. Mas algo inexplicável aconteceu no instante em que ele olhou para a guitarra verde que descansava em seus ombros.
Ele olhou para a plateia, seus olhos encontrando a massa de pessoas que aguardava ansiosamente pelo que ele tinha preparado. As luzes do palco brilharam mais forte, os gritos se intensificaram. O público dizia uma coisa, uma coisa apenas. O seu nome. null.
Foi então que seus olhos encontraram os de null, que o observava com uma intensidade silenciosa. Havia algo no olhar dela — algo que null julgou estar entre a curiosidade e a compreensão. O vocalista sentiu que, talvez, ela fosse a única ali que realmente entendia o que se passava entre eles no palco. A cada novo encontro, null se via mais e mais rendido.
Sem uma palavra, ele caminhou até ela, cada passo decidido e firme, como se estivesse seguindo um instinto mais do que uma razão. A plateia ainda vibrava, mas ele não pareceu notar, focado apenas na figura à sua frente. null não pensou no rancor, na mágoa ou na provocação. Não pensou em Gus, Margot, Kalil ou sequer na West Coast Records. Quando chegou perto, sem hesitar, o vocalista tirou a guitarra dos ombros e estendeu-a para null, um gesto carregado de significado.
Uma trégua. Como ele havia sugerido ainda há pouco no camarim.
null olhou para a guitarra por um momento, como se avaliasse o peso do gesto, e então, um sorriso felino surgiu em seu rosto. Era um sorriso enigmático, com um toque de desafio, como se soubesse exatamente o que ele queria dizer. Sem hesitar, ela trocou de instrumento com null com uma confiança inabalável.
A guitarra pareceu reluzir como se os todos os astros se alinhassem com aquele acontecimento. A cor do instrumento e das roupas dela combinadas como se tudo aquilo fosse premeditado. Como se tudo aquilo não passasse de... Destino.
O público, que até então estava em um frenesi de aplausos e gritos, entrou em completo êxtase. A troca de guitarras não foi apenas um gesto simples — foi uma declaração. Algo estava acontecendo ali, algo que transcendia a performance. O que parecia uma homenagem íntima e pessoal de null à memória de Train agora se tornava uma união entre dois mundos, uma fusão de almas através da música.
Os gritos aumentaram, o entusiasmo da plateia era palpável. O espetáculo estava atingindo seu ápice, e ninguém ali poderia prever o que viria a seguir. null, com a guitarra de Gus agora em suas mãos, os olhos queimando em chamas, parecia pronta para dominar o mundo em um lampejo de insanidade.
null acenou com a cabeça, um gesto discreto, indicando que ela o seguisse. Lado a lado, eles avançaram em direção ao centro do palco, onde o microfone aguardava. O silêncio tomou conta do ambiente por um segundo, e o olhar de todos os presentes estava fixado neles.
— Que noite incrível, Los Angeles! — ele gritou, sua voz reverberando por toda a arena. Ele olhou de esguelha para a guitarrista que o observava tudo com curiosidade. — Mas vocês já pensaram como seria ser rei por um dia?
O público explodiu em euforia assim que null anunciou a próxima música, o som de seus gritos atravessando a arena como um rugido coletivo. A tensão que ele havia construído com suas palavras se transformou em uma onda de adrenalina, fazendo o ambiente ferver de excitação.
Não haveria cover naquela noite, mas um tributo.
null olhou para null, que tinha uma expressão surpresa estampada no rosto. O vocalista cutucou a mulher com o cotovelo, despertando-a de seu devaneio ao encará-lo de volta com um sorriso vitorioso. A música de August Train. null respirou fundo, sentindo o efeito das drogas e do público tomarem o controle do seu corpo de uma vez por todas.
Quando null começou a tocar os primeiros acordes, a plateia explodiu em uma nova onda de entusiasmo, como se soubessem que o que estava por vir seria algo único. Afinal, aquela era a música mais popular da banda. null, sentiu a energia da plateia crescer a cada segundo, segurando o microfone perto dos lábios, seus olhos varrendo a plateia, observando os rostos, as reações, sentindo o calor coletivo da multidão que aguardava ansiosa pela próxima ação.
Desafie-me a pular da Jersey Bridge. Aposto que você nunca teve uma noite de sexta como esta. Continue assim, continue assim, vamos levantar nossas mãos. Eu dou uma olhada para o céu e só vejo vermelho — ele cantou com brutalidade.
null, com a guitarra verde em mãos, dedilhava como se tivesse ensaiado aquela música até a exaustão, como se aquela não tivesse sido uma mudança de última hora. Seus dedos deslizavam pelas cordas com uma precisão quase sobrenatural, como se cada movimento fosse um reflexo natural de sua alma enfurecida. Tão parecida com a de Gus. A luz do palco se refletia nas suas mãos enquanto ela tocava, criando sombras que dançavam ao ritmo das notas. Seu corpo parecia se mover com a música, os pés firmemente plantados no chão enquanto sua cabeça se balançava violentamente no compasso, os olhos fechados, deixando que o som a guiasse.
Cada nota que ela extraía da guitarra parecia ancorada em uma emoção tão pura que null sentia que a música, ali, não era mais só uma performance, mas uma revelação. Ele estava com ela, mas ao mesmo tempo, observava de fora, como se estivesse acompanhando a jornada de um espírito livre e violento. A forma como null tocava se tornava uma expressão de sua própria essência, e, por mais que fosse parte da música, null sentia que ela compartilhava com ele um segredo que ela jamais poderia dizer em voz alta.
Quando o refrão se aproximou, null sentiu uma onda de adrenalina tomar conta de seu corpo. A energia da música estava crescendo, e ele sabia que aquele era o momento. Ele deu um passo para trás, sentindo a tensão no ar, e então trocou um olhar cúmplice com null. O silêncio entre eles parecia carregado de compreensão, como se ambos soubessem exatamente o que aquilo significava.
null, com um sorriso sutil nos lábios, deu um pequeno aceno com a cabeça e se aproximou do microfone. Seus dedos continuaram a dançar sobre as cordas da guitarra enquanto ela se aproximava, a energia entre eles se intensificando. null ficou alguns segundos observando, quase hipnotizado, a maneira como ela dominava o palco, a confiança em cada passo e o foco absoluto em sua performance.
A ferocidade dela tão encantadora quanto a mais aclamada canção de amor.
E então, com a vibração do momento pulsando entre eles, ela se preparou para cantar, enquanto todo o mundo parecia tremer em expectativa.
Você me disse: Pense sobre isso, bem, eu pensei. Agora eu não quero sentir nada mais — a voz dela dominou a arena pecaminosamente melódica. null sentiu que talvez nunca fosse se acostumar com os efeitos que aquele som tinha sobre ele. — Estou cansada de implorar pelas coisas que eu quero, estou cansada de dormir como um cão no chão.
null, com um sorriso quase desafiador, se entregou ao solo de guitarra que começou a ganhar forma sob seus dedos. Cada nota que ela extraía parecia cortar o ar, cheia de poder e emoção, como se estivesse expressando algo muito além da música. Suas mãos dançavam pelas cordas com uma destreza que só ela possuía, as melodias se tornando cada vez mais complexas e intensas, enquanto a plateia, em transe, acompanhava a evolução do solo com fervor.
O centro da multidão se abriu em um movimento quase coreografado, formando o famoso círculo do moshpit. Em questão de segundos, corpos começaram a se mover em um caos organizado, uma mistura de empurrões, pulos e giros, como partículas energizadas em um acelerador.
Os acordes vibravam, ressoando por cada canto do palco, e o ar parecia eletrificado, como se o tempo tivesse desacelerado e o som se amplificasse com cada movimento do público. Ela se curvou para frente, inclinando-se sobre a guitarra com a mesma intensidade com que se entregava à música, seu rosto refletindo uma expressão de pura concentração e prazer. Cada toque nas cordas parecia guiado por algo interno, algo que a fazia perder-se completamente no momento.
null retomou o microfone com um movimento fluido, sentindo a energia da plateia intensificar-se à medida que ele dava continuidade à canção. A transição entre ele e null parecia perfeita, como um jogo em que os dois se revezavam, um mantendo a chama acesa enquanto o outro tomava fôlego para o próximo passo. Ele respirou fundo, sentindo o peso da guitarra em dela seus ombros, e então mergulhou novamente na música.
Sua voz se uniu aos acordes de null, criando uma harmonia entre os dois que era impossível de ignorar. A canção, com sua intensidade crescente, parecia se transformar em um diálogo entre os dois músicos, enquanto ambos revezavam o microfone, se entregando ao ritmo e à emoção de um momento que só podia existia ali e agora, longe de qualquer conceito de razão ou lucidez. Quando ele cantava, null se destacava com a guitarra, e quando ela tocava, ele fazia sua voz soar ainda mais forte. Eles trocavam os papéis de maneira quase imperceptível, mas a sincronia entre eles era inquestionável.
Eles se olhavam rapidamente, fazendo gestos quase invisíveis, mas que diziam tudo: quando era hora de dar espaço para o outro, quando era hora de deixar a música respirar. E isso só aumentava a intensidade da apresentação.
null sentia o mundo derreter ao seu redor, cada som, luz e cor pulsando como se fosse vivo. O tempo parecia escorrer devagar, enquanto seu corpo oscilava entre leveza e peso, flutuando em uma gravidade que não fazia sentido. Tudo era intenso: os sons reverberavam, as cores se misturavam, e seus pensamentos vinham como flashes profundos ou absurdos, mas incrivelmente claros. Ele estava perdido em um universo interno, onde cada sensação era ampliada e cada instante parecia eterno.
Imagine viver como um rei um dia. Uma única noite sem um fantasma nas paredes. Nós somos as sombras gritando:
Nos leve agora!null rugiu, seu rosto quase colado ao dela.
Nós preferimos morrer do que viver enferrujando no chãonull finalizou dramaticamente.
Merda! — o vocalista entoou em sincronia com o último acorde.
Então, o impensável aconteceu. Com a intensidade da performance ainda latente na arena, null, em um gesto abrupto e carregado de uma aura sombria, retirou a guitarra dos ombros. Ela a segurou pelo cabo com as duas mãos, seus olhos fixos na plateia, e, antes que qualquer um pudesse entender completamente o que estava prestes a acontecer, ela ergueu o instrumento acima de sua cabeça, como se ainda dominada pela música que chegara ao fim.
O silêncio tomou conta por um breve segundo. A plateia ficou em suspense, esperando que ela desse algum sinal do que faria a seguir. Mas o que quer que estivessem esperando, ninguém imaginava que ela faria isso. A guitarra, agora suspensa no ar, parecia tão vulnerável quanto poderosa, como se fosse um símbolo de todo o peso emocional que a performance carregava. A visão de null, com o instrumento acima de sua cabeça, transmitia algo entre o sagrado e o profano, como se ela estivesse prestes a fazer um sacrifício ou uma consagração final à música.
null, parado ao lado do microfone, sentiu uma onda de choque atravessar seu corpo.
Ela não ia fazer isso.


Capítulo 11 — Break


“Tonight, we start the fire
Tonight, we break away
Break away from everybody
Break away from everything
You're killing me, killing me
If you can't stand the way this place is
Take yourself to higher places”
— Break, Three Days Grace
.

Ela fez isso.
Na visão de null, tudo aconteceu em câmera lenta. O momento parecia esticar-se no tempo, cada segundo passando como uma eternidade. Ele viu null, em um movimento tão fluido quanto fatal, retirar a guitarra dos ombros, sua expressão inabalável enquanto os dedos dela seguravam o cabo com firmeza. A guitarra, normalmente um objeto que parecia parte dela, agora estava sendo erguida acima da cabeça como um estandarte, pronta para algo que ele não podia prever.
A plateia, até então em frenesi, se silenciou, como se o tempo tivesse parado também para observar o que estava prestes a acontecer. null viu a guitarra brilhando sob as luzes do palco, a madeira refletindo a luz dourada enquanto ela a levantava cada vez mais alto, como se desafiasse o próprio universo a intervir. O ar parecia denso, como se a energia de todo o show estivesse condensada naquele único momento.
Ele sentiu cada músculo do corpo tensionar, como se estivesse prestes a ser lançado para algum lugar desconhecido. O som ao redor parecia diminuir, a melodia da última música ainda pulsando no fundo, mas distante, enquanto ele focava exclusivamente em null e no movimento dela. Seus olhos a seguiram, absorvendo a cena com uma clareza quase sobre-humana. A expressão no rosto de dela estava irreconhecível, como se ela estivesse sendo guiada por algo além de si mesma. Havia uma força ali, uma energia quase sobrenatural, e null pode sentir sua própria respiração se interromper.
Cada detalhe estava nítido — o brilho da guitarra, a tensão dos músculos da companheira de banda enquanto ela a erguia o objeto, o jeito como seu cabelo se movia suavemente com o gesto. O olhar dela, impassível, fixo na plateia, e o ar ao redor deles que parecia vibrar, tenso e carregado. null não conseguia desviar os olhos, como se sua visão estivesse fixada naquele único ponto, imerso em uma sensação de inevitabilidade. Ele sabia que ela estava prestes a fazer algo impensável, mas o que exatamente, ele ainda não sabia. Ou talvez apenas não quisesse saber.
Como se o tempo, de repente, voltasse a correr normalmente, null viu a guitarra descer ao chão em alta velocidade, o movimento de null congelado por um instante eterno antes que a gravidade tomasse controle. O som do impacto foi brutal, como um trovão rasgando a quietude do momento. A guitarra atingiu o chão com uma violência imensa, o peso do gesto dela refletido na força do impacto. O estrondo foi seguido por um som metálico e de madeira quebrando, uma espécie de fragmentação que parecia ecoar em cada canto do palco. O instrumento se desmontou diante de seus olhos, a guitarra se espalhando em pedaços, as cordas se esticando e se rompendo, a madeira estilhaçando como se a própria essência da música estivesse sendo partida.
null sentiu uma onda de choque passar por seu corpo, como se o chão sob seus pés tivesse sumido, e ele ficasse suspenso no ar por um momento. O som da guitarra destruída ainda ressoava em sua mente, e ele estava tão paralisado pela cena diante dele que levou alguns segundos para processar o que acabara de acontecer. O peso do impacto parecia reverberar dentro dele, como se cada pedaço daquela guitarra estilhaçada estivesse atingindo seu próprio coração.
null quebrou a guitarra.
A guitarra de Gus.
Então, como se o destino decidisse se manifestar naquele exato momento, as luzes do palco se apagaram subitamente, mergulhando tudo em um breu absoluto. A plateia, que antes estava frenética, agora se encontrava em um silêncio tenso, esperando entender o que havia acontecido. A única coisa que restava era o som abafado da respiração coletiva e a vibração no ar que carregava a tensão do ato de null.
Ela quebrou a guitarra.
null, sem hesitar, avançou com passos largos, determinado. Ele não pensou duas vezes. A energia dentro dele havia mudado, seu corpo respondendo a um impulso mais primitivo, mais urgente. Ele foi em direção a null com uma rapidez quase agressiva, arrastando-a sem delicadeza alguma, sem se importar com o que as outras pessoas poderiam pensar. A sensação de necessidade de agir era mais forte que qualquer consideração de cuidado ou tato. Era como se ele precisasse se livrar do peso daquele momento, daquilo que ela havia feito, e não conseguisse mais suportar o caos que pairava no ambiente. Ele a puxou para o backstage com força, seus dedos firmemente em torno do braço dela, sem dar espaço para resistência.
Quando finalmente chegaram aos bastidores, a adrenalina ainda pulsando em suas veias, null, tomado por uma mistura de frustração e raiva, a empurrou com força contra a parede. O impacto fez um som abafado, e null, surpreendida, teve que se apoiar para não perder o equilíbrio. Ele a segurou pelo pescoço com uma das mãos, a pressão de seus dedos firmemente em torno da pele dela, a sensação de fúria e violência tomando conta dele.
— Sua vadia imunda! — ele vociferou.
O gesto foi impulsivo, algo instintivo, como se todo o caos acumulado ao longo da noite, a tensão do show, a destruição da guitarra, e tudo o que havia entre eles tivesse se condensado em uma explosão. A proximidade de null, a forma como ele a segurava, o tornava consciente de cada respiração, de cada movimento dela. Ele não pensou nas consequências, apenas na necessidade de confrontá-la, de gritar com ela, de brigar com ela, de questionar o que estava por trás daquele gesto inesperado. De acabar com ela.
— Você não vai chorar, vai? — ela debochou, um sorriso venenoso brincando em seus lábios.
A visão de null se tornou vermelha.
O vocalista sentia a raiva percorrendo suas veias como veneno, cada batida do coração alimentando uma fúria crescente. Ele a segurava com uma mão firme no pescoço de null, seu corpo vibrando com a necessidade de descarregar tudo o que estava acumulado dentro de si. O ar estava pesado, quase insuportável, e ele não conseguia pensar em mais nada, a não ser nela.
null, apesar da pressão, manteve a expressão desafiadora, como se estivesse esperando por esse momento. Ela não cedeu, não se movia, mas seus olhos estavam ali, fixos, provocantes. Ele podia sentir seu olhar cortante, sentindo-a como uma lâmina, e isso apenas intensificava a raiva que queimava por dentro.
Com um movimento brutal, em um impulso de ódio, null socou a parede ao lado da cabeça dela com toda a força que tinha. O som do impacto foi surdo, o concreto tremendo sob o soco, mas a explosão de dor na sua mão foi a única coisa que o trouxe de volta à realidade. O golpe fez com que ele soltasse um grunhido abafado, mas seus olhos não deixavam os dela.
— Você perdeu a noção? — berrou ele, sua voz tremendo com a raiva contida.
O som que escapou dos lábios da guitarrista foi inesperado. Uma risada curta, entrecortada, quase sufocada pela pressão que null exercia sobre seu pescoço. Não era uma risada de diversão, mas algo mais carregado, mais perturbador. Parecia um reflexo, uma resposta instintiva ao caos do momento.
Ele congelou por um instante, o som reverberando em seus ouvidos como um tapa. Ele a encarou, a respiração pesada, tentando entender o que aquilo significava. O brilho nos olhos dela não era de medo, nem de dor, mas algo muito mais inquietante. Uma mistura de desafio e provocação, como se aquela risada fosse uma arma.
— Você não cansa de ser patético? — null murmurou, sua voz rouca, mas ainda cheia de desdém. Outra risada curta escapou, quase um deboche, enquanto ela inclinava ligeiramente a cabeça, mesmo sob a pressão da mão dele.
Aquelas palavras atingiram null como um golpe. Ele sentiu uma onda de ódio tomar conta de seu corpo, uma raiva pura, sem razão aparente, mas tão avassaladora que ele não conseguia mais controlá-la. O vocalista apertou ainda mais a mão ao redor do pescoço de null, sentindo a tensão da pele dela sob seus dedos, e ao mesmo tempo, sua outra mão se fechou em um punho, os músculos tensionando até doer.
O ódio parecia ter uma vida própria, crescendo e se espalhando rapidamente, dominando todos os seus pensamentos. O que ela havia feito com a guitarra, com a performance, com o momento deles — tudo aquilo se combinava e se transformava em algo muito mais forte do que ele poderia ter previsto. A guitarra destruída, o olhar implacável dela, a forma como ela estava lidando com a situação, tudo isso fazia com que o ódio dele transbordasse. Ele queria gritar, queria destruir algo, mas, naquele momento, a única coisa em que conseguia focar era na pressão do seu punho e da sua mão ao redor do pescoço dela.
A respiração de null estava cada vez mais difícil, mas ela não se mexia. Seus olhos, ainda fixos nele, não estavam nem um pouco intimidada, mas com uma calma perturbadora. null não entendia. Ela parecia quase... Indiferente àquilo. Como se estivesse aguardando o pior, ou talvez até desejando que ele fosse mais longe. O conflito dentro do vocalista só aumentava, como se estivesse dividido entre o impulso de continuar, de extravasar sua raiva, e a sensação de que aquilo já estava ultrapassando qualquer limite razoável.
Mas a ira, agora, era tudo o que ele conseguia sentir. Ele queria que ela provasse da mesma dor que ele, da mesma frustração que ele sentia, e sem pensar, apertou ainda mais a mão ao redor do pescoço dela. Era como se ele quisesse se vingar de algo que nem ele mesmo conseguia entender.
null ergueu o punho mais uma vez, com uma decisão final se formando em sua mente.
Ele faria isso.
Lidaria com as consequências depois.
O som estrangulado que escapou da garganta de null rasgou o ar como uma lâmina, congelando o vocalista por um instante. Seu punho estava erguido, pronto para descer com toda a força contra ela. O suor escorria por suas têmporas, e sua respiração era um misto de raiva e desespero. Mas aquele som, aquela pequena prova de vulnerabilidade, o paralisou.
null fechou os olhos para bloquear a visão dela. Ele não iria dar para trás. Não podia dar para trás.
O vocalista sentiu os nós dos dedos dormentes pela força na qual cerrava o seu punho.
Era agora.
Mas antes que null pudesse fazer qualquer coisa, antes que o ódio que consumia seus pensamentos pudesse se transformar em uma ação definitiva, ele sentiu o peso de dois pares de braços se envolverem ao redor de seu corpo, afastando-o de null com uma força surpreendente. A pressão daquelas mãos, firmes e decididas, foi tão rápida e tão precisa que ele não teve tempo de reagir. Seu corpo foi puxado para trás, para longe dela, como se estivesse sendo arrastado pela força de algo muito maior do que sua própria raiva.
O vocalista tentou resistir, os músculos tensos, seu punho ainda cerrado, mas foi inútil. A força que o afastava de null era implacável. Ele não teve controle sobre o movimento, e antes que pudesse sequer processar o que estava acontecendo, ele já estava longe o suficiente dela para não conseguir alcançá-la novamente. Sua respiração estava irregular, seu peito subindo e descendo com a força da frustração, e seus olhos se fixaram em null, agora distante, seu rosto impassível, mas com algo que parecia quase... Desinteressado, como se tudo aquilo fosse uma brincadeira ou algo irrelevante para ela.
null mal conseguia reconhecer Kalil e Anthony segurando-o como se suas vidas dependessem disso.
— Você está morta, null! — ele gritou, cego pelo ódio.
A gargalhada da guitarrista ecoou por todo o corredor, fazendo o sangue de null borbulhar.
— Você não parece tão ameaçador agora, bonitinho — disse ela, ainda encostada na parede, os olhos fixos nele com uma inocência dissimulada.
Kalil e Tony, sem trocar uma palavra, entraram em movimento simultâneo, suas mãos firmes sobre os ombros e braços de null, e começaram a arrastá-lo para o camarim. A força deles era implacável, como se estivessem lidando com algo muito maior do que ele, um homem que parecia ter perdido qualquer noção do que estava fazendo. O vocalista tentou resistir, mas a pressão dos dois ao seu redor, o movimento coordenado e imprevisto, era suficiente para neutralizar qualquer tentativa de fuga.
O corpo de null parecia flutuar, sem controle, como se ele fosse uma marionete sendo guiada sem sua permissão. A raiva ainda queimava dentro dele, mas agora ela era acompanhada por uma sensação crescente de impotência, como se, por mais que tentasse lutar, não houvesse maneira de escapar da situação que ele mesmo havia criado. Não. Que null havia criado.
Tony abriu a porta do camarim com um gesto brusco, a madeira rangendo enquanto ele a empurrava para o lado. Kalil, com uma força decidida, empurrou null para dentro, a pressão em suas costas tão forte que ele mal teve tempo de se equilibrar. O movimento foi rápido, sem espaço para resistência. O vocalista foi lançado no interior da sala, tropeçando antes de finalmente conseguir se estabilizar, sentindo o impacto do chão contra seus pés.
Antes que ele pudesse reagir, Tony já estava fechando a porta atrás deles com um estalo seco e definitivo, a chave girando na fechadura com um clique ressoante, como se o som fosse o selo de algo que já havia acontecido, algo irreversível. A tensão no ar aumentou ainda mais com o trinco virando, sabendo que ele estava ali, preso, sem a possibilidade imediata de sair.
null virou-se para encarar os dois, seus olhos ainda ardendo de fúria, mas agora com uma sensação crescente de impotência. Kalil e Tony estavam ali, sem um pingo de hesitação, como se tivessem treinado para lidar com ele quando a situação fugisse de controle. Kalil, com sua postura calma, observava o amigo com um olhar sério, quase paternal, enquanto Tony mantinha uma postura mais tensa, seus olhos calculando cada movimento de null. Tudo bem, eles eram mais que treinados se fosse contar com todas as vezes que já tinham tirado ele de alguma confusão.
null não conseguia esconder a frustração que queimava em seu peito. Ele estava preso, fisicamente e emocionalmente, e as palavras simplesmente não vinham. Era como se sua raiva estivesse sendo engolida por um vazio, mas o peso da situação o esmagava. A guitarra destruída, o olhar de null, a plateia ainda gritando ao fundo — tudo se misturava em sua mente como um turbilhão de caos.
Caralho!
O vocalista socou mais uma parede naquela noite. O impacto do punho de null contra a parede reverberou pelo ambiente, mais forte e violento do que antes. O som surdo da batida foi acompanhado pelo estalo seco dos ossos de sua mão, mas ele mal sentiu a dor no calor do momento.
Ao menos aquele era o fim da turnê. Não conseguiria usar aquela mão para tocar nem no seu pau se quisesse.
Kalil, finalmente, rompeu o silêncio. Sua voz, firme e controlada, cortou o ar.
— Você precisa se controlar.
— Me controlar? — null estava beirando a loucura. — Vocês viram o que ela fez?
Tony respirou fundo, sentando-se no sofá e colocando a cabeça entre as mãos.
— Todo mundo viu.
— Ela não vai se safar dessa — null ainda estava agitado.
Kalil se aproximou, colocando a mão sobre o ombro do amigo.
— Ela vai sim.
— Você está louco? — null se desvencilhou do toque do amigo.
— Ela tem uma cláusula no contrato, null — disse o baterista, tentando colocar algum senso na cabeça do amigo. — Você não pode fazer nada.
Sem avisar, null avançou para o canto do camarim, suas mãos fechadas em punhos. Em um acesso de fúria, ele pegou uma das cadeiras próximas e a lançou contra a parede. O som do impacto foi alto, metálico, como se tudo ao seu redor estivesse se quebrando com ele. As farpas da cadeira se espalharam pelo chão, mas null não se importou. Ele sentia uma necessidade quase insana de destruir algo, de liberar a raiva que o consumia.
No impulso seguinte, ele agarrou uma das garrafas de uísque sobre o balcão e a lançou contra a parede. O vidro se estilhaçou em dezenas de pedaços, o líquido âmbar escorrendo como uma ferida aberta pela superfície pintada. A mão dele ainda latejava do impacto anterior contra a parede, mas como se isso não fosse o suficiente, null virou a mesa de centro que estava no meio da sala, jogando-a de lado com um estrondo que fez os poucos objetos sobre ela caírem e se espalharem pelo chão. Mais garrafas caíram, algumas rolando, outras quebrando, espalhando álcool e vidro por toda parte. Ele chutou uma das cadeiras, que ricocheteou contra a parede antes de cair no chão com um barulho surdo.
Kalil, tentando manter a calma, se aproximou com cautela. Ele sabia que não poderia impedir o amigo de se expressar assim, mas também sabia que precisava intervir antes que algo mais grave acontecesse. Sua voz foi firme, mas suave, tentando alcançar null no meio daquele turbilhão emocional.
null, calma... — Kalil estendeu a mão, mas foi interrompido por um outro grito do amigo.
— Não me diga para me acalmar! — o vocalista gritou, encarando Kalil com olhos ferozes, seu corpo tremendo de raiva. — Como eu posso me acalmar, Kalil? Ela destruiu a guitarra! A guitarra dele!
Tony, que estava observando de longe, finalmente deu um passo à frente, tentando trazer alguma razão àquela explosão. Mas mesmo ele sabia que as palavras eram difíceis de encontrar.
null... — a voz dele estava baixa, mas cheia de pesar. — A gente entende o que está sentindo, mas destruir tudo não vai fazer as coisas voltarem. Isso vai só piorar.
— Vocês não estão putos? — a voz de null era carregada de frustração.
— Essas coisas acontecem...
— Não tem nada que possamos fazer.
— Foda-se essa merda! — vociferou o vocalista.
null não olhou para trás. Com os olhos fixos na porta do camarim, ele marchou até lá com passos firmes, como se fosse a única coisa que ele ainda tinha controle. O som dos seus pés batendo contra o piso do camarim ecoou no ar, pesado e vazio. Os dois amigos nem ao menos ousaram protestar, como se vencidos por um animal descontrolado. null destrancou a porta com um movimento brusco e a abriu, sem uma palavra, sem uma explicação.
A porta bateu atrás de si com um estrondo, e null seguiu em frente, ignorando os olhares confusos e preocupados de quem ainda estava por perto. Ele não queria falar, não queria ouvir. Ele não queria nada, além de sair dali.
O som das suas botas batendo contra o piso de ecoava pelo espaço silencioso do corredor, marcando a força com que ele avançava. Cada movimento era rápido, quase agressivo, como se estivesse tentando fugir de algo invisível, mas que o apertava de todos os lados. Sua mente estava em chamas, e ele não conseguia controlar o que sentia.
Ele estava furioso, enraivecido com o que aquela noite tinha se tronado, com a destruição de tudo o que ele considerava importante. E a ira vinha acompanhada de uma sensação de perda esmagadora. Como se algo dentro null, algo que ele nunca soube que precisava tanto, tivesse sido arrancado de sua vida em um único momento.
Quando finalmente chegou ao carro, ele se aproximou com um olhar colérico, como se fosse atacar o veículo, como se o carro fosse o único objetivo daquela raiva incontrolável. null agarrou a maçaneta como se fosse um certo pescoço e entrou no banco do motorista com um movimento brusco, sem nem ao menos olhar para os retrovisores. O banco estava frio, mas ele não sentia. Estava ocupado demais em tentar lidar com o que estava fervendo dentro dele.
Com uma agilidade tensa, ele girou a chave na ignição, e o som do veículo ligando foi um grito mecânico no silêncio da noite. O ronco do motor era uma válvula de escape, mas nada aliviava o peso que null sentia sobre os ombros. Ele respirou fundo, mas foi uma respiração curta, frenética, que só fez aumentar a sensação de sufocamento que ele sentia.
null arrancou com o carro sem olhar para trás. Ele não queria parar, não queria pensar, não queria mais nada além de fugir do vazio que aquela noite deixou. O vocalista apertou o volante com força, as palmas das mãos suadas, os dentes cerrados, enquanto dirigia para um lugar onde nem ele mesmo sabia. Tudo o que ele queria era sair do alcance da raiva que o dominava, mas nem ele sabia o que esperava encontrar lá fora.
Enquanto ele dirigia sem rumo, as estradas à sua frente pareciam se esticar para sempre, como se o tempo e o espaço tivessem parado para acompanhar a turbulência que sentia por dentro. O som do motor, o ruído dos pneus cortando o asfalto, tudo isso se misturava com o turbilhão de pensamentos raivosos que tomava conta de sua mente.
null. A imagem dela, sorrindo com aquele ar desdenhoso, aquela expressão impassível enquanto destruía algo tão importante para ele, ainda queimava em sua mente.
Ele agarrou o volante com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos, como se isso pudesse conter a dor que se espalhava por seu peito. A raiva ardia em seu estômago como fogo descontrolado, subindo pela garganta em ondas sufocantes. Ele não conseguia afastar a sensação de que ela sabia exatamente o que estava fazendo. Era impossível não pensar que aquilo havia sido planejado, um golpe meticulosamente calculado para atingir o ponto mais vulnerável dele.
A imagem da guitarra destruída voltou à sua mente como uma faca girando na ferida. Não era apenas um objeto quebrado, era o fim de uma era, o colapso de uma ponte que ele não poderia mais atravessar. Perder a guitarra era como perder August de novo, e null sabia que não seria capaz de aguentar muito mais daquilo.
null bufou, seus dentes rangendo enquanto girava o volante com brutalidade, como se o ato pudesse de alguma forma dissipar a torrente de emoções dentro dele. O vazio que a perda deixava era insuportável, mas a raiva era ainda mais avassaladora, queimando com a intensidade de um incêndio descontrolado. Ele não sabia como lidar com aquilo, então se agarrou à fúria. Era mais fácil do que encarar o vazio, mais fácil do que admitir que a destruição da guitarra tinha levado consigo algo que ele nem sabia como nomear, algo profundo, algo que parecia ser uma parte essencial de si mesmo.
Ele sentiu o calor da raiva tomar conta de suas mãos, do seu corpo, como se estivesse prestes a explodir, e isso só o deixava mais furioso. O vento batia contra a janela, mas ele não ouvia nada. Apenas o som do objeto se quebrando, de novo e de novo. Cada pedaço partido, cada corda rompida era uma ferida aberta que ele não sabia como cicatrizar.
Enquanto null dirigia, a tensão no ar parecia se multiplicar a cada segundo, mas logo, o painel do carro começou a brilhar com notificações de chamadas recebidas. O símbolo do bluetooth piscou na tela, interrompendo seus pensamentos com um toque agudo e irritante. Ele olhou para o painel sem pensar duas vezes, os números e nomes aparecendo em sequência, como se o universo estivesse insistindo para que ele respondesse a algo, seja lá o que fosse.
Com um resmungo, ele apertou o botão para recusar a primeira ligação, sem nem se dar ao trabalho de olhar o nome. A raiva que ele sentia era imensa, e qualquer coisa que tentasse interromper seus pensamentos só aumentava a frustração. O som da recusa era alto e satisfatório, mas a sequência de chamadas continuava, uma após a outra, como se quisessem se empoleirar em cima de seu ódio crescente.
Ele bufou e apertou novamente o botão, recusando mais uma ligação, sem olhar para o painel. E mais outra e mais outra. Seu pulso estava tenso no volante, seus dedos apertando tão forte que parecia que ele estava tentando esmagar qualquer coisa que aparecesse ali. Mais chamadas entraram, e mais ele recusou, com um impulso irracional de não permitir que ninguém, nem uma simples notificação, o tirasse do caminho que ele estava traçando na sua mente.
A tela piscou novamente, mas null não se importou. Ele não queria saber o que estava acontecendo, não queria ouvir ninguém. A única coisa que ele queria era desligar o mundo, ainda mais agora, com a raiva e a dor em ebulição dentro dele. Mas, conforme as chamadas continuavam a surgir, o incômodo só aumentava, e a irritação em seu peito parecia se expandir, como se ele estivesse sendo bombardeado por distrações sem fim.
Em meio ao enxame de ligações que apareciam no painel, null, em um impulso impensado e automático, apertou o botão errado. Antes que ele percebesse, o som de uma chamada atendida preencheu o carro, e a única voz que ele não queria ouvir soou do outro lado.
null, onde você está? — perguntou null com um tom preocupado. Como se ele fosse acreditar nisso.
Ele respirou fundo, tentando conter a onda de fúria que o consumia. Suas mãos apertaram ainda mais o volante, os nós dos dedos brancos de tensão.
— Você só pode estar de sacanagem — murmurou dele, seu tom carregado de desgosto.
Onde você está, null? — insistiu ela, o tom mais urgente agora, quase ofegante. — Porra!
— Me deixe em paz, null! — respondeu ele, sua voz áspera como uma lixa.
Do outro lado da linha, o silêncio caiu por alguns segundos, interrompido apenas pela respiração dela, que parecia mais pesada agora. Quando ela falou novamente, sua voz era diferente. Menos defensiva, mais crua.
Eu estou na sua casa, quero conversar — ela disse, uma pontada de receio em sua voz.
— Você não percebeu que eu não quero saber de você? — ele deu uma risada colérica.
Eu fiz merda — confessou ela, a voz baixa, quase inaudível.
— Fez merda? — null riu de novo, o som histérico e perturbador até para os próprios ouvidos.
Se você puder me dizer onde você está...
Ele respirou fundo, o peito subindo e descendo de forma visível enquanto a luta interna era travada em sua mente. Seus olhos se desviaram para o painel por um breve momento, como se aquilo fosse uma batalha contra o próprio orgulho. null balançou a cabeça, recobrando a consciência.
— Vai se foder, null! — ele disse entredentes.
Porra, null, será que você pode me escutar? — ela rebateu, mas havia algo na voz dela, uma rachadura na máscara de frieza habitual.
— Sai da droga do meu carro! — berrou ele, mesmo sabendo que ela não estava fisicamente ali, mas não importava. A ira já transbordava, tomando conta de cada palavra, de cada gesto.
null — ela arriscou, mais suave dessa vez, quase em súplica.
O carro se aproximava da curva acentuada, a sinalização do cavalete à sua frente. A visão dele começou a se embaçar, tudo ao redor parecia se arrastar enquanto ele apertava o volante com mais força. A voz dela, continuando a falar, como se fosse uma tentativa desesperada consertar algo que estava quebrado para sempre, misturou-se ao rugido do motor e à batida de seu próprio coração.
null, incapaz de suportar mais uma palavra, fechou os olhos com força. Ele não pensou. Com um impulso irracional, acelerou o carro em direção à curva, sem desviar, sem hesitar. Ele estava completamente fora de si, cegado pela raiva, e o carro se despediu da estrada com um grito de pneus e metal retorcido. A curva acentuada à sua frente não foi um obstáculo, foi o ponto de não retorno.
Quando ele viu o cavalete da rodovia se aproximando rapidamente, o carro se desvencilhou do asfalto e, em um movimento brutal, o impacto fez o veículo virar. O peso de tudo o que estava em sua cabeça, a fúria, o som da voz de null, a memória da guitarra quebrada, tudo isso foi pulverizado pela violência do impacto. O carro foi lançado, girando no ar, seu corpo de metal estilhaçando-se contra a terra, contra o concreto da rodovia.
A sensação foi surreal, o vocalista não teve nem tempo para pensar. O carro girava, rodando como um brinquedo desgovernado, o vidro estilhaçando ao redor dele. O som das colisões, o metal se retorcendo e estalando, o estrondo do motor, tudo misturado ao som ensurdecedor de seus próprios gritos abafados pela confusão.
Quando finalmente o carro parou, virou de cabeça para baixo, ficou ali, sem conseguir se mover imediatamente. O impacto havia sido violento, sua cabeça estava atordoada, sua visão turva. Ele sentia a dor crescente no corpo, o sangue escorrendo da testa e das mãos, mas nada disso parecia importar agora. Sua respiração estava ofegante, o coração batendo pesado no peito, enquanto ele tentava processar o que acabara de acontecer.
O carro estava amassado e quebrado, o painel, o volante, tudo havia sido destruído. A cabine estava fechada e cheia de vidro quebrado, e a confusão era total. Ele estava preso ali, de cabeça para baixo, e o mundo parecia ter parado, como se o tempo tivesse se distorcido junto com sua própria mente. Mas o que mais estava quebrado dentro de null era sua mente, sua conexão com a realidade, o que ele havia se tornado neste momento de desespero. A voz de null ainda martelava em sua cabeça, mas o silêncio era agora a única resposta.
O interior do veículo, capotado e esmagado, foi a última coisa que ele viu antes de a escuridão o envolver, e ele se entregou ao silêncio do que ele mais desejava que fosse o fim.


Capítulo 12 — Die MF Die


“I don't need thing from you!
I'll be sorry when I'll go?
You're so full of shit man just go!
Die motherfucker die motherfucker die!”
— Die MF Die, Dope
.

A morte é uma coisa engraçada.
Um dia você está vivendo o seu sonho e no outro dia... Nada.
Mesmo que a nossa única certeza seja a morte. Mesmo que tudo o que vem antes e depois dela seja a mais pura e irrevogável incerteza. Insistimos em passar todo o nosso escasso e inegociável tempo lutando contra a única coisa da qual não há como fugir. Em vão.
Seria trágico se não fosse cômico.

null se sentia como fumaça de uma blunt. Leve, mas ainda assim denso como um caralho.
Definitivamente não era isso que o vocalista da banda Disclaimer esperava da morte.
Ele podia sentir o sangue do seu corpo indo em direção da cabeça errada à medida que a enxaqueca começava a se tornar incomoda. Ao menos a comunidade evangélica falava mais sobre ereções no inferno do que isso.
null sentia os olhos pesados lutarem contra a gravidade que parecia deixar uma fresta de luz passar pelas pálpebras cansadas. O zumbido insistente em seu ouvido esquerdo parecia se confundir aos poucos com o som do motor dos carros que passavam nas redondezas. Mesmo que o som parecesse cada vez mais alto e mais perto.
null!
Ele pensou ter ouvido chamarem o seu nome, mas fez questão de ignorar. Não queria ser null null no inferno. Não queria ser ninguém, em nenhum lugar.
null definitivamente subestimou a morte.
Porque se soubesse que continuaria ouvindo as pessoas chamando o seu nome insistentemente, talvez tivesse se matado com fones de ouvido.
Morrer era uma merda, não sabia como Gus aguentava isso.
Estava tão cansado.
null! — a voz parecia mais perto agora, mais familiar.
Não.
Mesmo no além, null foi capaz de sentir os dedos finos e firmes pressionando seu pescoço com cuidado à medida que o seu coração, que deveria estar parado, acelerava fora do seu controle. Como um maldito carro desgovernado.
Ele sentiu a mão acariciar o seu rosto com um cuidado incomum, tirando o cabelo molhado que se grudava em sua testa e espalhando pequenas descargas elétricas pelo caminho. O toque por si só já era um desfibrilador, carregando-o de uma energia sobrenatural.
Porra — a pessoa chiou. — Não ouse morrer pra cima de mim, seu desgraçado!
Talvez fosse apenas sua mente pregando uma última peça, mas suas pálpebras tremeram, e ele percebeu que talvez não estivesse tão morto assim.
Merda.
— 911? — a voz parecia um pouco trêmula, diferente de todas as vezes que ele já tinha a ouvido antes. — Meu nome é null. null null. Eu estou na 110, na altura da UCLA, aconteceu um acidente…
O nome dela cortou a bruma que nublava sua mente. Ele abriu os olhos, a claridade cegando-o por um momento. A visão embaçada deu lugar a sombras e formas: cacos de vidro refletindo a luz dos faróis, o painel destruído acima de sua cabeça, e finalmente ela. A silhueta de null estava desenhada pela luz da moto e pela tela do celular, seus ombros subindo e descendo enquanto respirava fundo. O rosto conturbado, mordendo o interior das bochechas, contrastava com as sobrancelhas franzidas em um misto de frustração e perturbação.
— Eu não acho que ele esteja consciente — ela disse respirando fundo, os dedos ainda inquietos sobre o cabelo gosmento dele. — Eu estarei esperando, por favor, sejam rápidos.
Ela disse por favor.
O espírito atormentado de null pareceu se divertir com aquela consciência.
null tentou inspirar, mas o ar falhou. Tossiu violentamente, manchas vermelhas manchando o teto do carro – ou o que restava dele. null largou o celular com um movimento rápido e se inclinou sobre ele novamente. O vocalista sentiu seu peito chiar quando a sua respiração falhou pela proximidade.
— Seu bastardo — murmurou ela aproximando-se mais dele, um sorriso preocupado brincando sobre os seus lábios. O vocalista não poderia ter achado isso mais estranho.
null não conseguia responder, estava tão cansado. Sentiu seus olhos quererem se fechar novamente, suas piscadas cada vez mais demoradas. O peso do corpo parecia arrastá-lo de volta à escuridão, mas ela insistiu:
— Ei — ela chamou, a mão firme acariciando sua bochecha. — Você não pode fechar os olhos.
Não era como se ele estivesse em posição de escolher.
— Eu fiz merda, ok? — null suspirou, os ombros se curvando em uma postura abatida que ele nunca tinha visto antes. — Eu sei que eu sou a última pessoa que você gostaria de ver agora. Mas eu estou aqui e você não pode dormir.
null revirou os olhos, um gesto que custou caro. Sua cabeça latejando como um chute nas bolas. Mais precisamente no ovo esquerdo.
— Eu não sou divertida como o Tony, muito menos tranquila como o Kalil… — disse ela, rindo sem humor algum. — Eu só sou… Uma bagunça. Mas você não pode morrer. Não por causa disso.
Ele mal conseguia processar as palavras, mas não podia deixar de estranhar o modo como ela, geralmente tão irreverente, estava ali. Era como se o mundo inteiro tivesse parado para ela manter aquele equilíbrio. Ele tossiu mais uma vez, o sangue amargo saindo de sua boca, mas ela não se afastou. Ao invés disso, ela parecia ainda mais presente, como se fosse a última pessoa no mundo com o poder de dar a ele algo para se segurar.
— Eu sou uma bagunça — sussurrou ele em um fio de voz, com um sorriso que na visão dela deveria parecer mais uma careta.
Ela soltou uma risada abafada, com uma pontada de tristeza, e se afastou ligeiramente, procurando algo nas sombras. O cheiro do cigarro chegou até ele, denso e pesado, e ele se perguntou, por um segundo, se ela estava ali para salvá-lo ou para acabar com o que ele já tinha começado.
— Não me olha assim — ela murmurou, tentando manter a chama do cigarro acesa com as mãos trêmulas. — Eu sei que eu não deveria fumar aqui, mas eu preciso relaxar um pouco dessa noite de merda. Veja pelo lado bom, se eu explodir nós dois, você pode definitivamente me encontrar do outro lado e tentar quebrar a minha cara.
O fogo da chama iluminava o rosto dela por um breve momento, e ele viu o que ela tentava esconder. A inquietação, o medo disfarçado de aborrecimento. E ainda assim, ali estava ela, lutando para manter o controle. Ele só não conseguia entender o porquê.
Ele fechou os olhos, sentindo a presença dela como um eixo, enquanto o mundo ao redor parecia desmoronar.
— Só pra constar, eu não acho que você seria capaz de me derrotar — continuou ela, a voz distorcida por um trago. — Nós mulheres temos uma conexão única com o diabo. Você sabe, Eva, a maça, menstruação e coisas do tipo. Aposto que eu ficaria cinco vezes mais forte no inferno.
null quis rir também, quis devolver a piada, mas não conseguiu. A gargalhada morreu em sua garganta, mais bem sucedida do que ele em sua tentativa.
— Mas pra você não dizer que eu nunca fiz nada por você, eu te deixaria vencer uma vez ou outra — null disse com uma piscadela e o vocalista sentiu o coração errar uma batida. Deveria ser a morte chamando o seu número. — Nós poderíamos nos matar por toda a eternidade se você quisesse.
Ela estava ali, tão destrutiva quanto o próprio caos, e, por algum motivo, isso parecia cair tão bem nela. Como se fosse a coisa mais natural do mundo vê-la assim, quase uma personificação do diabo, com os olhos iluminados pela chama do cigarro.
null queria gritar, queria afastá-la, mas havia algo nela, algo na maneira como ela se segurava ali, que o fazia querer acreditar que talvez ela fosse a única que o entendesse. Mas essa sensação já tinha o enganado uma vez naquela mesma noite.
null fechou os olhos com força, o máximo que poderia fazer para se distanciar dela, apesar do incomodo que se sucedeu. Isso não impediu que ele ouvisse o riso sem humor que ela deixou escapar.
— Nem todo mundo é sortudo como você, sabia? Se fosse eu no seu lugar, estaria morta como a princesa Diana — disse ela, com uma risada forçada que não soava nada como ela. — Você adoraria isso, não é? Mas eu acho que você sentiria falta de brigar por aí.
null quase riu, mas foi interrompido por mais uma sequência de tosses.
— Não pense que você vai se livrar de mim tão facilmente — ela murmurou com frieza, quase desafiando-o a continuar resistindo.
— Então o que você quer de mim, null?
Ela olhou para ele com uma intensidade que o fez querer recuar se pudesse, mas algo dentro dele se manteve firme, como se estivesse esperando por algo, por uma resposta que só ela poderia dar. null não respondeu de imediato. Ela apenas ficou ali, imóvel por um momento, como se estivesse esperando uma reação dele, mas ele estava cansado demais para dar o que ela queria. O silêncio entre eles se estendeu, denso e desconfortável.
— O que eu quero? — ela deu uma pequena risada, como se estivesse falando de algo trivial. — Eu quero que você pare de me olhar como se eu fosse um enigma que você precisa resolver. Eu não sou.
O som das sirenes cortou o silêncio tenso entre null e null, um alívio inesperado e, ao mesmo tempo, frustrante. O som das ambulâncias e dos carros de bombeiros ficou mais alto, cada segundo mais próximo. null levantou os olhos rapidamente, olhando para a distância, onde as luzes vermelhas e azuis piscavam, refletindo nas sombras.
null, com a mente turva e o corpo exausto, tentou focar no som que se aproximava, mas a pressão da dor em seu peito e a fadiga crescente o faziam lutar para manter os olhos abertos. Ele queria dizer algo, queria continuar aquela conversa irritante com null, mas as palavras escapavam como areia.
Com um movimento rápido, null olhou para o cigarro que estava entre os dedos e o apagou com força, pressionando a ponta contra o concreto. O cheiro do fumo desapareceu quase que instantaneamente, e ela o jogou longe, sem pensar, deixando-o cair na poeira. Quando olhou de volta para o vocalista, lançou para ele mais um de seus sorrisos felinos.
— Não conte pra eles — brincou ela, dando uma piscadela e se levantando para encontrar as autoridades.
null mal parecia perceber. Seus olhos estavam quase fechados, a respiração entrecortada e a dor estampada no rosto. Ele estava lutando contra o sono, mas o peso de seu corpo e a exaustão estavam mais fortes.
Os bombeiros cercaram o veículo destruído, analisando rapidamente o estado dos destroços e a posição de null. Ele estava preso, o corpo parcialmente envolvido pelas ferragens, a cabeça tombada para o lado, os olhos fechados, como se lutasse contra o cansaço que ameaçava vencê-lo.
A equipe começou a agir com precisão. Uma serra elétrica foi acionada, o som agudo cortando o ar enquanto eles trabalhavam para abrir espaço suficiente para retirá-lo. As faíscas saltavam no escuro, iluminando brevemente o rosto suado e sujo dos bombeiros. Cada movimento era meticuloso, qualquer erro poderia agravar o estado de null.
Pedaços de metal foram removidos um a um, as estruturas reforçadas para evitar um colapso enquanto a operação prosseguia. Depois de minutos de tensão, finalmente conseguiram liberar seu corpo. Os bombeiros o puxaram com cuidado, seus gestos firmes e precisos, colocando-o em um local seguro para que os paramédicos assumissem.
Uma maca foi posicionada ao lado, e null foi cuidadosamente colocado sobre ela. Seus movimentos eram mínimos, os olhos semicerrados e a respiração pesada. Os paramédicos o estabilizaram com um colar cervical e faixas ao redor do tronco e das pernas, garantindo que ele não se movesse mais do que o necessário. null, ainda à distância, acompanhava a cena, imóvel e sem expressão.
De repente, uma comoção ao redor captou a atenção de null. Mesmo imobilizado e com os olhos fechados, ele conseguia ouvir fragmentos de vozes exaltadas e passos apressados, mas as palavras pareciam emaranhadas, difíceis de decifrar. Os sons chegavam abafados, como se ele estivesse submerso, e a mistura de dor e exaustão tornava quase impossível entender o que estava acontecendo.
— Ao inferno que eu não posso ir junto — mas é claro que a voz dela seria perfeitamente clara entre as demais. null parecia exaltada e os sons que se seguiram fizeram o vocalista pensar que talvez ela estivesse no meio de uma discussão. — Se vocês me impedirem de entrar nessa ambulância será o meu corpo que vocês vão buscar na volta, e eu garanto a vocês que não estará em condições tão boas quanto o dele.
A confusão parecia se prolongar, as vozes ao redor se tornavam mais altas e urgentes. null sentiu a vibração de passos rápidos pelo chão, um movimento agitado que parecia envolver mais pessoas.
— Vão se foder! — a voz dela parecia mais perto agora. — Não encostem em mim.
null escutou murmúrios próximos, baixos e indecifráveis, como se alguém tentasse evitar ser ouvido. Sua mente, confusa pela dor e pelo cansaço, tentou se concentrar, mas tudo parecia distante, quase irreal. Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, sentiu uma presença ao seu lado, distinta em meio ao caos.
Logo, algo frio e inesperado tocou sua mão. Dedos finos e gelados se entrelaçaram suavemente aos seus, o toque delicado, mas firme, carregado de uma estranha intenção. Ele tentou abrir os olhos, mas a exaustão o mantinha como refém. Ainda assim, aquele contato, embora silencioso, trazia uma certeza: alguém estava ali, com ele, mesmo no meio de toda aquela confusão.
Enquanto a dor e a exaustão o envolviam, null foi tomado por uma névoa de pensamentos desconexos, arrastado por sua mente para os lugares mais inesperados.
Gus. A lembrança de seu sorriso sarcástico, das palavras cortantes e das mãos firmes segurando a guitarra. A sua morte era uma presença constante, como uma sombra que nunca desaparecia, mesmo sob as luzes do palco. null percebeu que aos poucos foi alimentando mais e mais um desejo irrefreável de segui-lo pelo mesmo caminho na imensidão negra.
A morte. A vontade de desistir se infiltrava em null como uma sombra, sutil, mas persistente. Tudo o que perdera, tudo o que lutara para manter, parecia distante, irrelevante. Talvez morrer fosse mais fácil do que enfrentar o vazio que o aguardava caso sobrevivesse. Havia um apelo quase sedutor na ideia de simplesmente parar de lutar, de deixar a escuridão envolvê-lo e silenciar todas as mágoas e arrependimentos que o perseguiam.
A banda. Eles continuavam, mas estavam diferentes, como se tentassem emular algo que não podiam mais ser. As músicas soavam vazias, as discussões eram constantes, e o que antes era paixão agora parecia trabalho.
A guitarra. Era impossível não pensar nela. A peça que Gus deixou para trás, cheia de histórias, de fúria e de vida. Era estranho pensar em algo tão inanimado carregando tanto peso, mas talvez fosse assim que ele processava a dor — através de acordes e melodias que ninguém mais conseguia tocar da mesma forma. E agora, estava perdida para sempre.
Como consequência a imagem dela se formou em sua mente. null. Segurando a guitarra de Gus erguida sobre a sua cabeça, pronta para espatifá-la em milhares de pedaços sem sentido. Como um maldito cavaleiro do apocalipse. Ainda assim, o subconsciente de null parecia achar divertido confundi-lo a respeito dela. O belo par de pernas. A festa à fantasia. Os seus olhares desafiadores. As vezes que tocaram juntos. O amaldiçoado som de prazer que escapou dos seus lábios. A sensação dos seus dedos em seu rosto.
O toque gelado dos dedos entrelaçados aos seus o trouxe de volta por um momento, mas a confusão persistia. Sua mente oscilava entre memórias e pensamentos fragmentados. O que era mais real agora: a dor no corpo ou a dor da perda? Ele não tinha certeza. Só sabia que, em algum lugar, tudo isso precisava fazer sentido, mesmo que ele ainda não conseguisse enxergar o porquê.
null não soube dizer quanto tempo se passou depois disso. O fluxo do tempo parecia escapar de sua compreensão, dissolvendo-se em um estado nebuloso entre a consciência e a inconsciência. Fragmentos de sons e luzes o alcançavam, mas tudo parecia distante, como se ele estivesse submerso em águas profundas.
Em algum momento, entre os lapsos de consciência, null sentiu o corpo acomodado em uma cama dura, com lençóis ásperos que pareciam prender cada movimento. O ambiente era frio, o ar carregava o cheiro estéril de desinfetante, e o silêncio era quase absoluto, quebrado apenas por um bip constante e distante que ele não conseguia localizar. Ele não sabia onde estava, mas o vazio ao seu redor o fazia questionar se ainda estava vivo ou apenas perdido em algum espaço entre a existência e o esquecimento.
Mesmo sem abrir os olhos, ele reconheceu a voz de null — ríspida, pontuada por aquele tom debochado que fazia as palavras parecerem lâminas disfarçadas de casualidade. A outra voz, mais contida, pertencia a Doc, carregada de um cansaço que parecia mais hábito do que exaustão real.
— Estou ciente que a West Coast te pediu para fazer o que fosse possível para emancipar a banda da imagem de Gus — o tom de Doc parecia calculado como sempre. — Mas você não acha que foi longe demais?
A resposta de null veio quase imediatamente, acompanhada de um bufar audível, como se estivesse se segurando para não revirar os olhos.
— Esse é o tipo de coisa que vai entrar para a história — disse ela, a impaciência escorrendo em cada palavra. — Como o show do Red Hot no Woodstock de 99, ou quando o Limp Bizkit fechou a bolsa de valores de Wall Street, ou qualquer outra coisa que o Motley Crue fez.
— Precisava mesmo quebrar a guitarra? — disse Doc com uma calma que só pertencia a ele.
O tom de null foi cortante, mas não tão agressiva quanto null esperava.
— Eu não estava pensando direito.
A pausa que se seguiu era quase palpável, como se Doc estivesse escolhendo a próxima provocação com cuidado. E então veio:
— Talvez você devesse dar um tempo nas drogas.
Essa frase ficou no ar, pesada, como um soco mal-disfarçado. null sentiu algo apertar em seu peito, mas ele não conseguiu distinguir se era por null ou por si mesmo.
A conversa continuou, as vozes oscilando entre acusações e sarcasmos.
— Os outros realmente escutam o que você diz? — provocou a guitarrista, sua voz carregada daquele tom que sempre a fazia parecer no controle, mesmo quando não estava.
— Acho que eu limpei a barra deles mais vezes do que qualquer um possa lembrar — respondeu Doc, e null tinha certeza de que no mundo por trás de suas pálpebras fechadas o agente dava de ombros com um sorriso contido.
— Não me parece grandes coisas — null riu, seca.
— Talvez não agora — Doc parecia sorrir, sua voz levemente mais suave.
null podia sentir que o comentário havia mexido com ela, mesmo que null não deixasse transparecer muito. Ainda assim, sua resposta veio afiada como sempre:
— Você me parece um babaca qualquer.
E então, um pequeno silêncio, quase como uma pausa dramática. Quando Doc falou de novo, sua voz estava mais pesada, com uma firmeza que parecia conter uma história inteira.
— Não fui eu quem nos trouxe até aqui.
null murmurou algo, quase inaudível.
— Ele não fez de propósito — mesmo que baixa, a declaração da guitarrista pegou null de surpresa e ele pode ouvir o bip constante ao seu lado mudar de ritmo.
A resposta de Doc, embora calma, era mais cortante do que qualquer grito.
— Eu não estava falando dele.
null sentiu o peso das palavras reverberar dentro dele. Mesmo sem ver os rostos, ele sabia que o ar ao redor deles havia mudado. Era como se uma linha tivesse sido cruzada, mas ninguém estivesse disposto a recuar.
De olhos fechados, o vocalista absorvia a conversa como se estivesse ouvindo um programa de rádio mal sintonizado. Ele não conseguia enxergar os rostos deles, mas podia imaginar a expressão de null — provavelmente um misto de impaciência e desdém — enquanto Doc mantinha aquele tom calculado e provocador, como alguém que sabe exatamente onde atingir.
A voz dela veio primeiro, abafada, mas inconfundível:
— Não era a minha intenção — murmura null à contragosto. — Não foi tão ruim, ele está vivo e os nossos números subiram na mídia.
— Aparentemente ser uma pessoa de merda tem funcionado pra você — Doc devolveu com uma ironia cortante.
O som do bufar de null foi audível, quase como se ela tivesse se aproximado mais.
— A minha personalidade de merda é o que tem mantido os seus bolsos cheios ultimamente — resmungou ela, como se estivesse cada vez mais cansada daquela conversa.
null podia imaginar a tensão no ar crescendo, quase tangível. Ele sabia que Doc não ia deixar aquilo passar.
— Então, é tudo sobre o dinheiro pra você?
— Pode ser novidade pra você — respondeu ela, sem perder o tom debochado. — Mas algumas pessoas precisam do dinheiro.
Houve uma pausa. Ele ouviu Doc se mexer, talvez no sofá. O barulho parecia distante, mas ainda assim claro o suficiente para se misturar com o constante bip da máquina ao lado.
— Vamos fazer um acordo — Doc disse, como se estivesse ponderando. — Você deixa o garoto em paz e eu coloco os seus problemas na minha lista de afazeres.
— E quanto a ele me deixar em paz? — null pareceu desconfiada.
— O luto está comendo ele vivo — a resposta de Doc veio mais suave, quase como se ele estivesse escolhendo as palavras com cuidado. — Dê um tempo a ele.
A risada de null cortou o ar, alta e sem qualquer traço de compaixão:
— Nada feito! Eu não faço o tipo que leva desaforo para casa. — respondeu ela.
null não precisava abrir os olhos para saber que Doc havia revirado os dele. A resposta seguinte foi carregada de um tom despreocupado.
— Você é quem sabe — o agente com certeza deu de ombros mais uma vez. — Eu tenho bons contatos pra promover aquela sua musiquinha.
Do que eles estavam falando?
— Não fode, D — o tom de null endureceu imediatamente. — Mecha comigo e eu faço três vezes pior com você.
— Mesmo quando é uma coisa boa? — null podia quase ver o sorriso divertido de Doc ao rebater.
— Nesse caso, é dez vezes pior — finalizou ela, ríspida.
O silêncio que veio depois parecia tão pesado quanto as palavras trocadas. null, preso entre a dormência e a consciência, queria se levantar, dizer algo, mas o peso do cansaço e da dor o mantinha ali, imóvel, ouvindo as vozes que flutuavam como ecos de um mundo que ele não conseguia alcançar totalmente.
null passou duas semanas em recuperação no melhor hospital de Los Angeles fingindo que nada havia acontecido. Não falou nada sobre o show ou sobre o acidente. Não tocou uma única vez no nome de null. Se era assim que ele queria, então era assim que seria.
Na manhã em que recebeu alta do hospital, o vocalista da banda Disclaimer precisou esconder o olho roxo atrás de um par de óculos escuros e usar roupas de moletom simples ao se encaminhar à delegacia mais próxima, para não chamar muita atenção. O que não adiantava de muita coisa já que a companhia de Doc nunca poderia passar despercebida, principalmente com os dois guarda-costas à tiracolo. Quando estava na sala do oficial encarregado, sentado ao lado do seu agente, null se limitou a acenar com a cabeça durante a quase uma hora que o policial dedicou a uma reprimenda não tão rigorosa assim sobre as infrações cometidas que causaram o acidente. Doc respondeu todas as perguntas em nome do seu cliente e pagou a fiança do vocalista em seu cartão sem se importar com a quantidade de zeros da fatura. null não deu a mínima. Dessa vez, recusou o pedido de autógrafo do policial, apesar do olhar de censura de Doc. Não estava no clima para favores, não pretendia cobrar nada mais tarde. Se fosse por ele, nem sequer haveria mais tarde.
Logo deixaram a delegacia para trás, o carro forte da gravadora buscou o grupo e null mais uma vez apenas aceitou o seu destino, o que quer que ele fosse. As ruas de West Hollywood permaneciam as mesmas. Os mesmos carros barulhentos, a mesma onda de calor subindo pelo asfalto, as mesmas pessoas alheias aos seus arredores. A vida continuava, mesmo que o seu espírito tivesse ficado para trás.
O silêncio no banco de trás do carro era opressivo, pontuado apenas pelo som do motor e pelo barulho da cidade que parecia viva do outro lado dos vidros de um jeito que o vocalista pensou que jamais poderia ser novamente. Os dois seguranças na frente conversavam em tons baixos, mas suas vozes se perdiam no espaço, distantes demais para serem compreendidas. null estava encostado na janela, o rosto parcialmente escondido pela sombra, enquanto seus olhos seguiam as pessoas que andavam pelas ruas alheias à sua existência insignificante. Doc, ao lado dele, estava visivelmente incomodado, os braços cruzados e o pé balançando no ritmo de sua impaciência.
null sentiu o olhar de Doc sobre si, como se ele esperasse encontrar qualquer sinal de que estivesse disposto a conversar, mas tudo o que ele encontraria seria o silêncio. Mas, aparentemente, Doc não estava disposto a deixar passar. Ele se ajeitou no assento, virando parcialmente o corpo para encarar null, cuja expressão permanecia impassível enquanto ele continuava olhando para fora, como se o mundo lá fora pudesse oferecer algum refúgio da conversa.
— Eu sei que os dias não têm sido fáceis — começou Doc, sua voz calma, mas firme. — Mas vamos dar um tempo de hospitais, sim?
null não reagiu, nem ao menos piscou, mantendo-se imóvel como uma estátua. Doc franziu o cenho, sem se deixar abater.
— Estou falando sério, null — insistiu ele. — Sua mãe me ligou ontem com pedras e paus pra cima de mim...
Isso arrancou uma risada curta e seca de null, que soou mais como uma reação automática do que um verdadeiro sinal de humor. Ele desviou o olhar brevemente, apenas para murmurar:
— Não lembro de ter visto ela no velório.
Doc hesitou por um momento, mas não deixou o comentário de null desviar o foco. Ele soltou um suspiro e continuou, agora com um tom mais suave, mas não menos firme.
— Estão todos preocupados com você — Doc engoliu em seco. — Eu estou preocupado com você.
null finalmente virou o rosto, apenas o suficiente para olhar de canto para Doc. Sua voz saiu baixa, quase um sussurro:
— Eu não estou a fim, Doc.
Doc balançou a cabeça, um misto de frustração e determinação estampado em sua expressão.
— Eu não estou nem aí — disse ele, sem rodeios. — Você está sofrendo, e nós entendemos isso, nós respeitamos isso. Mas August não vai voltar, e nós não vamos deixar você se matar por causa disso.
— Eu não-
null abriu a boca para responder, mas Doc levantou a mão, interrompendo-o antes mesmo que ele pudesse começar.
— Me poupa, null, eu conheço você — O tom de Doc endureceu, sem qualquer espaço para argumentos. — Se você fizer mais uma coisa dessas e tiver o azar de eu encontrar você antes do diabo, pode ter certeza que você vai pra uma casa de reabilitação.
null soltou um longo suspiro e desviou o olhar de novo, o rosto voltando a encarar a janela. Ele bufou, mas não rebateu.
Doc recostou-se no banco, relaxando os ombros, embora sua expressão ainda mostrasse uma preocupação palpável. O silêncio entre eles retornou, pesado como sempre, mas dessa vez havia algo diferente — talvez uma trégua, ainda que frágil.
O carro reduziu a velocidade gradualmente, até parar em frente a uma casa que null não reconhecia. Ele piscou algumas vezes, como se estivesse despertando de um transe, os olhos fixos na fachada simples, mas bem cuidada. As luzes do lado de fora iluminavam uma varanda pequena com um banco de madeira e vasos de plantas alinhados com precisão. Não parecia um lugar ameaçador, mas também não era um lugar familiar.
Ele olhou para Doc, esperando uma explicação, mas o homem já estava abrindo a porta do carro. Antes que pudesse perguntar qualquer coisa, Doc saiu e deu a volta, puxando a porta traseira com força. Sem dizer nada, ele pegou a mochila que estava no banco ao lado de null — os pertences que ele reconhecia como seus — e jogou-a nas costas.
— Vamos, null — disse Doc, a voz firme, mas sem qualquer traço de impaciência. Ele fez um gesto para o vocalista sair.
Quando null entrou na casa, percebeu imediatamente que não era uma casa qualquer. O ambiente exalava personalidade, mas de uma forma refinada e cuidadosamente planejada. As paredes eram pintadas de preto, um contraste ousado que, surpreendentemente, funcionava bem graças à iluminação indireta e aos toques de cor em detalhes estrategicamente posicionados. Quadros com pôsteres de bandas icônicas cobriam as paredes, misturando clássicos do rock com obras contemporâneas.
No centro da sala, sofás de couro preto brilhavam sob a luz suave de abajures modernos, e uma mesa de centro de vidro exibia pilhas de revistas antigas de música, cuidadosamente organizadas. A atenção de null foi imediatamente atraído para a coleção de instrumentos musicais disposta em um canto da sala. Guitarras elétricas, algumas assinadas e expostas como troféus, pendiam de suportes de parede ao lado de baixos e até mesmo de uma bateria compacta perfeitamente montada.
Os olhos de null vagaram pelo espaço enquanto ele tirava o casaco, mais por hábito do que por necessidade. Tudo ali parecia gritar paixão pela música, mas de uma forma que não era apenas decorativa — era autêntica, quase reverente. As prateleiras, repletas de discos de vinil, CDs e fitas cassete, pareciam uma cápsula do tempo de décadas de história musical.
— Bom gosto, não é? — comentou Doc, fechando a porta atrás de si e largando a mochila de null no chão ao lado do sofá. Ele parecia esperar alguma reação, mas o vocalista apenas permaneceu parado no meio da sala, os olhos ainda explorando os detalhes ao redor.
— O que é isso tudo? — null perguntou, mais para si mesmo do que para Doc. Sua voz estava mais carregada de cansaço do que de curiosidade genuína.
Doc sorriu de canto, como se já esperasse essa reação. Ele deu alguns passos em direção ao bar que ficava no canto oposto da sala, onde garrafas de bebidas caras estavam alinhadas em uma prateleira de madeira escura.
— Digamos que alguém decidiu te fazer um favor — Doc respondeu, sem pressa, a voz suave, mas com uma firmeza que o vocalista sabia que não podia ignorar. Ele deu um gole na bebida antes de continuar. — Você pode ficar aqui até encontrarmos um lugar novo pra você longe dos paparazzi que estão acampando na sua casa desde o anúncio de null.
null se manteve quieto por um momento, absorvendo a informação. As palavras flutuavam em sua mente, mas ele ainda estava tentando entender o contexto inteiro. Ele não tinha mais energia para fazer perguntas, mas a desconfiança se enraizava profundamente.
— A ideia de ficar em dívida com alguém não me agrada muito — ele falou, a voz carregada de um desconforto que ele não conseguia esconder.
Doc deu um sorriso discreto, quase imperceptível, e se acomodou em uma poltrona perto do sofá onde o vocalista estava sentado. Ele olhou diretamente para null, como se estivesse prestes a dizer algo importante, mas não com a urgência de quem espera uma resposta imediata.
Ela estava em dívida com você — Doc falou calmamente, com um tom que não deixava espaço para dúvidas. Ele se referia a uma pessoa, mas null sabia de quem ele falava sem precisar de mais explicações.
É claro que null estava envolvida. Ela sempre estava.


Capítulo 13 — Like A Villain


“I know you tried your hardest, I know that you meant it well
But you pushed me to the edge and I slipped and then I fell
I don't know how long I'll be holding on”
— Like A Villain, Bad Omens
.

Ei, bonitinho, sou eu. Espero que tenha cansado de sentir pena de si mesmo, eu sei que eu cansei. Você já deve ter ficado sabendo, eu e os meninos vamos comparecer ao Alternative Press Music Awards essa noite. Eu sei que sou a última pessoa que você gostaria de ver, mas… Seria legal para a banda se você fosse. Eu sei que Leto e Doc já tentaram te convencer, não é como se você fosse me ouvir ao invés deles. A questão é que eu vou te deixar em paz se você aparecer, não se preocupe. Só… Pense sobre o assunto.
null ficou em silêncio, a voz de null ecoando em seus ouvidos mesmo depois de a mensagem de voz ser encerrada. Ele se recostou no sofá, os olhos fixos no teto, perdido em pensamentos. As palavras dela se repetiam, como um eco irritante que ele não conseguia afastar.
A ideia de aparecer naquele evento, de estar ao lado da banda, de enfrentar a multidão e os flashes… Era mais do que ele conseguia processar naquele momento. Mas o que mais o incomodava era a proposta que null fizera. Como se sua presença fosse uma moeda de troca, uma barganha. Ele não sabia se queria isso. Não sabia se queria que ela o deixasse em paz, mas ao mesmo tempo isso o atraía, mesmo que fosse por um breve momento.
E enquanto ele ficava ali, na penumbra de uma casa que não o pertencia, ele se perguntava por quanto tempo mais conseguiria ignorar essas expectativas antes de ter que tomar uma decisão.
null fechou os olhos, sentindo o peso das últimas semanas se confundirem com os ecos das palavras do seu novo terapeuta. Exigência de Doc, é claro. O agente fez questão de contratar um psicólogo para tentar dar um jeito no vocalista e tentar tirá-lo da fossa que ele mesmo havia se enfiado desde o último show da turnê.
Ele havia escutado os conselhos do terapeuta, as palavras sobre deixar para trás as mágoas, sobre tentar, mais uma vez, seguir em frente. Mas a verdade era que ele não sabia como se desapegar de tudo aquilo que o definia, do peso do passado, da dor que ele carregava como se fosse parte de sua identidade. As atitudes de null, a perda de Gus, os momentos de solidão, tudo se entrelaçava em sua mente de uma forma que o tornava incapaz de ver um caminho claro à frente.
O vocalista se sentia como se estivesse preso em um ciclo de frustração e desespero, tentando se convencer de que poderia melhorar, mas sem saber por onde começar. O futuro parecia uma extensão distante e inalcançável, e a cada dia que passava, ele se perguntava se seria capaz de dar um passo em direção a ele, ou se permaneceria estagnado, perdendo-se em um mar de incertezas.
Por mais que quisesse acabar com tudo aquilo de uma vez, se sentia humilhado demais por ter falhado na última tentativa para arriscar de novo. Não estava nem um pouco disposto a encarar a possibilidade de uma reabilitação. Seria demais para ele.
null se sentia dividido, como travasse uma batalha interna. Por um lado, ele entendia o que a guitarrista dizia em sua mensagem de voz, sabia que estava preso a um ciclo de autodepreciação que o consumia mais a cada dia. O cansaço de se sentir tão derrotado, tão preso à dor, pesava uma tonelada. Ele sabia que não podia continuar se alimentando da própria miséria, que isso não o levaria a lugar algum. Ele estava cansado de ser refém da própria dor, de se ver como vítima de circunstâncias fora de seu controle. Mas, ao mesmo tempo, a realidade era mais complicada.
O vocalista sabia que o tempo estava se esgotando, como uma sombra que se alongava sobre ele a cada dia que passava. O contrato com a West Coast ainda estava ativo, e com ele, a pressão silenciosa de uma obrigação que ele não podia ignorar para sempre. Ele sabia que, em algum momento, a gravadora viria atrás dele, cobrando o que era devido. A banda precisava de um novo álbum, precisava de um novo impulso, e null, como sempre, fazia parte dessa engrenagem.
Mesmo que ele estivesse emocionalmente exaurido, preso nas correntes de sua própria mente, ele não poderia se esconder por muito mais tempo. A expectativa de todos – dos colegas de banda, dos executivos, até mesmo do público – estava crescendo, e a ideia de ter que se apresentar, de ter que criar, de ter que ser algo que ele já não sabia se conseguia ser, o assustava profundamente. Mas, por mais que tentasse se afastar da realidade, ele sabia que o tempo estava correndo. A música, o trabalho, a obrigação de ser o null null que todos esperavam que ele fosse, estavam ali, à sua espera, como um fardo que ele não podia simplesmente abandonar.
null mal conseguia lembrar como havia chegado até ali. O receio ainda estava presente, uma sensação constante de ansiedade apertando seu peito, mas, quando se deu conta, estava parado na porta dos fundos da Loan Arena, em Ohio, o lugar que ele temia, mas ao mesmo tempo sabia que não poderia evitar. Ele vestia um blazer de couro preto com tachas discretas, uma camisa de botões semiaberta e uma calça justa encerada, equilibrando elegância e ousadia. Nos pés, botas de couro robustas, e no pescoço, um colar prateado discreto. O cabelo desgrenhado e o olhar sombrio completavam seu ar de lobo fora de lugar.
Ele olhou ao redor, absorvendo o cenário, os rostos familiares dos seguranças e membros da equipe que se moviam com a urgência. A passagem, que Doc havia enviado há alguns dias, não passou de um caralho de um desvio no meio dos seus caminhos incertos. Ele não tinha mais como voltar atrás, não quando as portas estavam tão perto de se abrir novamente. Tudo parecia um borrão, um turbilhão de decisões e consequências que o haviam levado até ali, e, apesar da sensação de estar fora de controle, ele sabia que esse momento era inevitável. Ele não tinha mais direito de se dar ao luxo de se esconder, de se afastar das expectativas.
null respirou fundo, o ar pesado com a tensão de estar ali, mas também com a inevitabilidade de sua presença. Ele atravessou a porta com os passos calculados, tentando não ser notado, mas, ao mesmo tempo, se sentindo estranhamente exposto. O ambiente dentro da Loan Arena era escuro, as luzes baixas criando um clima íntimo e energético ao mesmo tempo.
No palco, o anúncio de um vencedor contrastava com o som abafado das conversas ao fundo. null se virou rapidamente para observar a cena. Um músico indie rock, alguém cuja face não lhe era familiar, subia ao tablado para receber o prêmio de Canção do Ano. A multidão parecia genuinamente animada, aplaudindo o vencedor com entusiasmo, mas null estava distante, sua mente longe, desconectada do momento.
O prêmio, a música, o evento… Tudo parecia nebuloso para ele, como se estivesse em um outro plano. Ele sentia como se estivesse observando tudo de fora, como uma sombra à margem do que estava acontecendo ao seu redor. Ainda assim, o peso do momento estava ali, e ele sabia que não poderia mais se esconder disso. Ali estavam todos os pedaços do mundo que ele havia deixado de lado por um tempo que não parecia o suficiente, mas que, agora, o chamavam de volta, insistente e implacável.
null não prestou atenção ao discurso, seus olhos vagando pela sala de maneira desconexa enquanto a voz do vencedor se perdia em sua mente. Ele estava distante, como se o ambiente não fosse seu, era apenas um espectador de algo que não conseguia ou, na verdade, não queria se envolver de fato. Seus pensamentos se perderam entre a escuridão ao seu redor e as lembranças que, mais uma vez, ameaçaram voltar a assombrá-lo.
Logo, as luzes do palco se apagaram, mergulhando a arena em um momento de breu. A multidão se acalmou, e o som ambiente diminuiu, criando uma tensão que null não soube como ler. Ele se manteve ali, à margem, escorado nas portas corta-fogo, como se fosse parte do cenário, mas sem realmente fazer parte dele. O peso daquilo tudo, a expectativa, as pressões... O mundo ao redor continuava a girar enquanto ele permanecia parado, absorvendo as vibrações do lugar, mas sem se permitir realmente estar presente.
As portas de emergência eram uma presença sólida atrás dele, uma metáfora silenciosa para a fuga que ele já imaginava, mas que sabia que não poderia mais ter. O futuro, o trabalho, as escolhas estavam se aproximando, e ele, ainda que se sentisse pequeno ali, sabia que não poderia se esconder por muito mais tempo.
— Agora é a vez de alguém que está ganhando cada vez mais atenção do público, que já está fazendo barulho e promete marcar o começo de uma carreira incrível — a voz do apresentador ecoou através da arena. — Nós a conhecemos recentemente ao fechar com uma banda que já é bem conhecida por nós, mas foi nas últimas semanas que ela surpreendeu a todos com o lançamento do seu primeiro single. Façam barulho para: null null!
O som da plateia explodiu em aplausos, misturados com gritos de entusiasmo.
O quê?
null ficou ali, imóvel, observando o palco. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Ele não a via há dias, talvez semanas, e a última vez que estiveram juntos havia sido marcada por tanta confusão e mágoa. Mas ali, sob as luzes brilhantes, null estava sendo celebrada, e ele não podia negar que, de algum modo, sentia uma mistura de inveja e algo mais difícil de definir. Ela tinha o mundo aos seus pés, enquanto ele... Bem, ele ainda estava ali, se escondendo sob as sombras.
Logo, o som de uma melodia desconhecida cortou o palco, sua introdução suave preenchendo o ar com uma tensão crescente. null observou, sem saber o que esperar, mas algo no ritmo da música fez seus pensamentos se desviarem por um momento. A batida envolvia a arena de forma hipnótica, e logo a figura de null surgiu no palco, iluminada pelas luzes brilhantes que a iluminavam como uma estrela.
A guitarrista vestia um corset de couro preto justo, com amarras frontais que revelavam vislumbres de pele, combinado com uma minissaia assimétrica e meias arrastão rasgadas, presas por ligas de couro. Nos pés, botas de salto alto e cano longo, adornadas com fivelas metálicas. Seu cabelo caía em ondas selvagens, enquanto a maquiagem intensa — olhos esfumados e batom vermelho escuro — realçava seu olhar perigoso. Ela era o pecado vestido de rebeldia.
null sentiu um nó na garganta.
No fundo do palco, o vocalista viu Kalil tocando bateria, seu corpo se movendo com a precisão de um músico experiente, mas a visão dele foi como uma faca afiada em suas costas. A pontada de desconforto foi instantânea, como se uma onda de traição se espalhasse por todo o seu corpo, um peso crescente no peito que ele não conseguia evitar.
Olhando para o palco, para null dominando cada espaço, cada movimento, ele não pôde deixar de pensar em como aquilo tudo estava sendo roubado dele. A banda, o que ela representava, o que ele pensava que ainda teria... Tudo parecia estar se esvaindo entre os dedos dele, substituído por algo que ele não reconhecia mais. null estava ali, tomando os holofotes, criando uma nova narrativa, e para ele, era como se ela estivesse pegando tudo o que antes pertencera a Gus e, agora, a ele.
A sensação de estar sendo deixado para trás era avassaladora. A presença dela no palco não era só sobre a música ou o espetáculo, mas sobre o controle que ela parecia ter sobre tudo ao seu redor, como se tivesse tomado a dianteira, deslocando null para uma posição onde ele não se reconhecia mais. Ela havia se tornado o centro, o foco, o rosto da banda, e ele… Ele estava ali, esquecido, observando tudo desmoronar.
Cada batida da bateria de Kalil, cada acorde da guitarra, tudo isso parecia ser um lembrete de como ele já não fazia mais parte daquela história. E o pior era que, de alguma forma, ele sabia que não poderia voltar atrás.
Apesar de todo o turbilhão de sentimentos que o invadiam, null não conseguiu evitar o arrepio que percorreu cada centímetro do seu corpo ao ouvir a voz dela.
Era como se aquela voz tivesse o poder de ressoar não só na arena, mas diretamente em sua pele, trazendo à tona uma reação visceral que ele não estava preparado para sentir. A melodia que ela cantava, a força do seu timbre, tudo parecia amplificado naquele momento, e por mais que ele tentasse se proteger dela, o impacto que ela tinha sobre ele era incontestável.
Era um contraste estranho. Ele a odiava, sentia-se pequeno diante toda e qualquer atitude dela, mas ainda assim, sua voz tinha uma força magnética, uma presença inegável que fazia seu corpo reagir contra sua vontade. Ele tentou fechar os olhos, tentou se desligar do som, mas era impossível. A voz dela cortava o espaço, preenchia a arena com uma energia tão intensa que null se viu preso nela, como se, mesmo em seu pior momento, ele fosse incapaz de ignorá-la.
O poder que ela tinha sobre ele o deixava inquieto, confuso, perdido entre um espiral de sentimentos que ele não sabia como lidar.
Eu conheci um garoto igual a você. Ele é uma cobra, assim como você. Tão falso, assim como você. Mas eu posso ver a verdade.
Como se o olhar dela fosse atraído pelo dele, null sentiu o seu fôlego preso na garganta antes que null começasse a cantar o próximo verso. Era como se, no meio de tantas pessoas, ela o tivesse encontrado no fundo da multidão, os olhos dela varrendo a arena até se fixarem nos seus.
E como sempre, tudo ao redor pareceu desaparecer. Ele nunca iria se acostumar com isso. Com aquela conexão silenciosa e quase imperceptível para qualquer um que olhasse de fora. Mas null percebia. E ele sabia que a guitarrista também.
Alma transparente — cantou ela, a voz melódica, diferente de qualquer coisa que ele já tivesse ouvido antes. Até mesmo saído da boca dela. — Eu posso ver através, só pra você saber.
null continuou a cantar, mas a intensidade daquele olhar pairou no ar, como se ela tivesse atravessado a distância entre eles sem mover um músculo. null sentiu seu peito apertar, a respiração mais pesada, a mente turvada por aquela troca silenciosa que, de algum modo, entorpecia todos os seus sentidos. Ela estava ali, dominando o palco, mas, naquele momento, parecia dominar muito além daquilo, mesmo que o vocalista não ousasse reconhecer isso. E ele, por mais que tentasse se afastar, sabia que essa ligação, por mais dolorosa que fosse, nunca o deixaria ir.
null assistiu a toda a performance de null, completamente hipnotizado. Cada movimento dela no palco, cada nota que ela cantava, tinha uma capacidade única de mantê-lo refém que ele não conseguia explicar. A cada acorde, a cada gesto, null se via mais e mais imerso no momento, como se o resto da arena, com suas luzes e todas as pessoas nela presentes, tivesse se desvanecido para dar lugar apenas a ela.
Era impossível desviar o olhar. null estava totalmente no controle, não só da sua música, mas de sua presença. Ela parecia emanar uma intensidade que por mais que tentasse se afastar daquela sensação, ele não conseguia. null sentia o peso de cada olhar que ela lançava em sua direção, a maneira como ela parecia, mesmo de longe, se conectar com ele, como se o palco inteiro fosse um reflexo daquilo que pairava entre os dois.
Quando a última nota soou pela arena, o vocalista pareceu acordar de um transe profundo, como se, por todo o tempo em que a música preencheu o espaço, ele tivesse estado em algum lugar entre o real e a fantasia, imerso em seus próprios pensamentos. O som da última melodia se dissipou foi como um alerta para ele, e, em um movimento quase automático, ele virou as costas para o palco, sentindo suas próprias emoções pesarem sobre ele como uma tonelada. A música, a visão dela, o olhar silencioso que trocaram... Tudo parecia ter sido um sonho distante que agora se desvanecia.
Ele não queria mais estar ali.
A decisão foi tomada sem hesitação. Com um último olhar para o evento, ele se afastou, saindo pelo mesmo caminho por onde entrou, sem fazer alarde, sem dar espaço para mais uma reflexão ou confronto. A pressão no peito, o nó na garganta, tudo parecia aumentar à medida que ele caminhava em direção à saída. Ele não queria mais se perder naquela arena, naquela sensação de impotência e confusão. Ele precisava de distância, de silêncio, de tempo para digerir tudo.
null foi direto para o hotel, a mente ainda vagando entre o que havia acontecido na arena e a confusão de sentimentos que ele não conseguia processar. Chegando ao endereço, trocou algumas mensagens com Doc e pegou o cartão do quarto na recepção. O vocalista cobrou o favor que o agente o devia sem rodeios.
Quando entrou no quarto, ele notou a bagunça. Não era o ambiente luxuoso que ele estava acostumado, mas sim um quarto de hotel desorganizado, como se o caos tivesse tomado conta de tudo. Ele se aproximou da cadeira ao lado da escrivaninha e se sentou, deixando que seus olhos percorressem o espaço de maneira vaga, na esperança de que a postura de paciência dissimulada fosse o suficiente para que uma verdadeira calma o contemplasse.
Então ele esperou. O silêncio do quarto parecia esperar também.
Era a única coisa que fazia sentido naquele momento. Sabia que ela viria, ela teria que aparecer. Ele se recostou na cadeira, os dedos tocando levemente o celular enquanto aguardava, a mente tentando se organizar enquanto seu corpo parecia estático, imerso na antecipação que já dava espaço para a angústia crescente.
Algum tempo depois, null ouviu o apito eletrônico do sensor do cartão, seguido pelo som distinto da maçaneta girando. Ele se endireitou ligeiramente na cadeira, seus olhos fixos na porta enquanto ela se abria. Em uma fração de segundo, o vocalista a viu. Mas ela não estava sozinha.
A guitarrista entrou com um estrondo, prensando um homem desconhecido contra a parede ao lado da entrada. Os dois estavam completamente alheios a qualquer coisa ao redor, os lábios colados, os corpos próximos demais. As mãos dela se moviam com pressa, puxando-o pelo colarinho enquanto ele a segurava pela cintura, as risadas abafadas entre os beijos.
null parecia exalar aquela mistura peculiar de autoconfiança e descaso que sempre a acompanhava, como se soubesse exatamente o efeito que causava ao seu redor e adorasse testar os limites desse poder. As botas dela faziam um leve som contra o chão quando empurrou o homem um pouco mais para dentro do quarto, nunca quebrando o contato entre eles. Era uma cena intensa, carregada de uma energia que fazia o ar parecer mais pesado, e que atingiu null como um soco no estômago.
Ele não disse nada de imediato, mas seu olhar era um misto de frustração e exasperação. null ainda não tinha notado sua presença, ou se tinha, fingia ignorá-lo, focada apenas no momento que ela mesma havia criado. Quando finalmente decidiu que tinha visto o suficiente, null pigarreou, o som ecoando pelo quarto pequeno e finalmente despertando o casal afobado à sua frente.
— Vamos lá, null, nós já estivemos aqui antes — disse ele, a voz cortante. — Dispense o cara, nós vamos conversar.
Ela parou, os lábios ainda próximos dos do homem, e virou-se para encará-lo. Por um instante, ela simplesmente o olhou, a respiração um pouco ofegante e os olhos brilhando com aquele desafio que ele conhecia bem demais. Então, um sorriso lento surgiu em seu rosto. Um sorriso que dizia que ela sabia exatamente o que estava fazendo e adorava provocar.
null suspirou, esfregando o rosto com uma das mãos.
Por favor — repetiu ele, desta vez com mais calma.
null deu uma última risada baixa, como se o momento fosse apenas um jogo para ela, e finalmente se afastou do homem. Com algumas palavras rápidas e um gesto desdenhoso, ela o dispensou sem cerimônia, nem mesmo olhando enquanto ele saía do recinto.
Quando o clique da porta se fechando ecoou, o quarto ficou em um silêncio tenso, apenas os dois restando ali, o ar sufocante pairando pesado entre eles.
— Você parece arrumado demais pra quem estava deprimido em casa — perguntou ela, a voz calma, mas cheia de ironia.
— Me poupe do papo furado, null — rebateu null, seco. — Eu estava lá.
— Eu sei — null deu um de seus sorrisos felinos. — Eu vi você saindo pelos fundos.
— Que merda foi aquela? — disparou ele, sem papas na língua.
— Eu achei legal da sua parte — respondeu a guitarrista, aproximando-se devagar, os olhos atentos sobre ele. — Eu estava torcendo pra você ouvir a minha mensagem e assistir pela televisão ou pelo YouTube. Nunca ia imaginar que você iria se dar o trabalho de vir até aqui. Talvez eu esteja errada sobre você.
Quando ela tentou tocar no braço dele, null foi mais rápido, segurando seu pulso com força.
— Por que Kalil estava tocando com você? — a voz do vocalista estava carregada de raiva, os dentes cerrados.
null inclinou a cabeça levemente, como se ponderasse.
— Ah, isso? — aquele maldito sorriso não deixava o rosto dela. — Eu ia contratar alguém, mas como ele me ajudou com alguns arranjos durante a turnê ele quis tocar.
— Está tentando roubar a minha banda?
— A nossa banda? — null riu, uma gargalhada curta e afiada. — Na verdade não. Veja bem, eu não deixei o Tony tocar.
— Isso não é uma brincadeira, null — ele apertou ainda mais o pulso dela, mas ao perceber a careta de dor em seu rosto, afrouxou o aperto.
— Eu não estou brincando, null.
— Então que porra é essa?
null suspirou, balançando a cabeça.
— Você pode me soltar? — pediu ela. — Está me machucando.
null hesitou, mas soltou o pulso dela.
— Desculpe.
A guitarrista foi até o sofá, sentando-se com aparente calma, mas manteve os olhos nele, como se esperasse o próximo movimento. null permaneceu em pé, rígido, como se o chão estivesse prestes a desabar sob seus pés.
— Eu não sei o quanto você prestou atenção no dia da assinatura do meu contrato — começou ela, a voz controlada, mas ainda assim ele conseguia ouvir o resquício do deboche que ela não era capaz de esconder. — Mas eu tenho liberdade artística de escrever, gravar e lançar composições fora da banda.
— Então você está só nos usando pra fazer carreira solo — null rebateu, o tom cheio de raiva.
null bufou, cruzando os braços.
— Impressionante como você espera o pior de mim em todas as ocasiões — disse ela, mesmo que um sorriso ainda brincasse no canto dos lábios dela.
— Sinto muito se eu ainda não tive a oportunidade de testemunhar o seu melhor.
— Tudo bem, não vamos criar falsas expectativas — a guitarrista riu sem humor. — Não vou dizer que existe um melhor de mim pra esperar, mas eu me garanto no neutro.
— Você é impossível — null balançou a cabeça, frustrado.
— E você está preocupado com a minha permanência na banda — retrucou ela, um sorriso provocador surgindo em seus lábios.
— Estou mais preocupado com você roubando integrantes da banda — ele disparou, a voz baixa, mas carregada de tensão.
null revirou os olhos dramaticamente.
— Uma garota pode sonhar.
null.
— Eu não vou sair da banda, bonitinho, nem roubar nenhum dos seus amigos — ela finalmente o encarou, os olhos brilhando com sinceridade. Ainda assim, null não parecia convencido. — É sério! Eu só quero fazer as minhas músicas do jeito que eu queria que elas fossem.
null deixou escapar um sorriso de canto, carregado de ironia.
— Por que será que eu não acredito em você? — questionou ele, desconfiado.
— Qual é, null? — retrucou null, cruzando os braços. — Eu sei que a gente não se dá bem, isso não é um problema.
— Diga por você.
A guitarrista revirou os olhos, mas manteve o tom calmo.
— Nós somos compositores, você e eu. Você sabe que vez ou outra a gente precisa transformar o que passa na nossa cabeça em alguma coisa.
— É por isso que você é uma porcaria de uma compositora fantasma.
Ela estreitou os olhos, a paciência visivelmente se desgastando.
— Se eu quisesse continuar entregando as minhas músicas de mão beijada para fazerem o que quiserem com elas eu não teria fechado esse caralho de contrato, por Deus!
— E isso deveria me fazer acreditar que você não está planejando destruir a banda?
null riu, mas o som estava longe de ser amistoso.
— Eu sei que você gosta de fingir que não repara em mim e tudo mais — começou ela, com uma risadinha. — Mas sou eu, null, e você está me vigiando desde que me viu naquela sala de reuniões.
Ela se levantou e deu um passo na direção de null, os olhos fixos nos dele, com aquele brilho de desafio de sempre.
— Eu sou preguiçosa, faço o que quero e quando quero, não quero ficar dando satisfações e fujo de responsabilidade sempre que posso. É muito mais fácil dividir todo esse fardo com vocês três.
null hesitou, como se estivesse ponderando as palavras dela. Mas a guitarrista não estava disposta a dar a ele muito tempo para pensar.
— São apenas alguns singles e uns freela, nada demais — ela deu de ombros, tentando parecer despreocupada.
null desviou o olhar, fixando-o em algum ponto indefinido do quarto. Sua mandíbula estava tensa, os braços cruzados, e o silêncio que se seguiu parecia mais pesado do que qualquer discussão.
Ele não respondeu, nem demonstrou qualquer reação às palavras de null, mas a expressão emburrada em seu rosto dizia tudo. Era como se ele estivesse travando uma luta interna entre acreditar nela e manter sua desconfiança.
— Não está se doendo por causa da casa, está? — ela perguntou, o tom de voz suave, mas com um toque de provocação.
— Você não pode simplesmente me dar uma casa e pensar que vai ficar tudo bem — null retrucou, com a voz carregada de frustração.
— Eu não te dei uma casa — respondeu null, levantando as mãos em um gesto de rendição. — Eu te aluguei uma casa.
— Isso não muda nada — ele rebateu, ainda emburrado. — Eu não quero essa merda. Eu quero falar com o proprietário.
null estendeu a mão, pedindo o telefone dele. null, relutante, entregou o aparelho. Ela digitou rapidamente uma sequência de números e o devolveu para ele.
Ele chamou o número, mas logo o celular da guitarrista começou a tocar. Ela atendeu com um sorriso malicioso.
null falando — disse ela, a voz carregada de um humor insolente.
— Chega de brincadeira, null — null pegou o celular das mãos dela e o lançou para o outro lado do cômodo, claramente irritado. — Não estou com saco pra essa merda.
Ela soltou uma risada alta, um som que parecia atravessar cada nervo do vocalista.
— Eu não estou brincado — ela disse, limpando uma lágrima de tanto rir. — A casa é minha.
— Vai se foder — null grunhiu, a raiva crescendo dentro dele.
null apenas riu de novo, e o som da sua risada parecia fazer null querer explodir. Seus punhos estavam cerrados, mas ele não disse mais nada.
— Fica na porra da casa, null — ela disse, se acomodando confortavelmente no sofá. — Você pode reclamar o quanto quiser quando encontrar um lugar novo pra você.
O vocalista bufou, olhando para ela com desdém.
— Eu não vou ficar aceitando a sua caridade — ele respondeu, claramente descontente.
— Não é caridade — null revirou os olhos. — É só um bom jeito de calar a sua boca.
null revirou os olhos, mas permitiu que um sorriso venenoso estampasse seu rosto.
— Existem formas melhores de fazer isso — provocou ele, com um tom debochado.
— Não quando você insiste em empatar a minha foda — retrucou ela, com a mesma insolência. — Sabe, null, você sabe que se quiser participar qualquer dia desses, é só falar.
null arqueou uma sobrancelha, soltando uma risada seca.
— Eu não faço o tipo que divide — respondeu ele, a voz rouca e firme.
— E eu não faço o tipo que se contenta com um só — ela arqueou uma sobrancelha, desafiadora como sempre. Mas, de repente, um vislumbre de divertimento passou pela expressão dela. — O mundo provavelmente entraria em colapso se nos fodêssemos um dia.
Ambos riram, embora houvesse algo de tenso naquele momento.
— O que você foi fazer lá, afinal? — perguntou null, mudando o assunto com naturalidade. — Na premiação.
— Eu não sei — murmurou ele, desviando o olhar. — Acho que cansei um pouco de sentir pena de mim mesmo.
A guitarrista sorriu discretamente, como se lembrasse de ter dito exatamente aquilo na mensagem de voz que deixou para ele.
— Isso é bom.
— É uma boa música, a sua — arriscou ele, após uma pausa.
— Eu não sei se posso lidar com um null sendo gentil — brincou ela, com uma risadinha.
— Eu não estou sendo gentil, estou sendo sincero.
— Espero que não comece a pedir desculpas por tudo — comentou ela, irônica. — Você estragaria toda a nossa relação pra mim.
— Não se preocupe com isso — null retrucou, com um sorriso convencido. — Assim como, você eu posso muito bem ser talentoso e detestável.
null estreitou os olhos para ele.
— Eu nunca disse que você era talentoso.
— Não precisa — rebateu ele, convencido. — Eu já sei que você gosta das minhas músicas e da minha voz.
Por um instante, algo brilhou nos olhos dela, um olhar que parecia enxergá-lo mais do que ele gostaria.
— Nós deveríamos tentar algum dia desses — sussurrou ela, de forma quase casual.
— O quê? — perguntou ele, confuso. — Ser legais um com o outro?
— Não, de jeito nenhum! — disse ela, com um sorriso travesso. — Você é o tipo de homem que precisa ser constantemente colocado no seu lugar e eu sou o tipo de mulher que coloca as pessoas no lugar delas. Nunca haverá paz entre nós.
null soltou uma gargalhada, uma risada genuína e inesperada, que ecoou pelo quarto. Era a primeira vez que ele ria de verdade ao lado dela, sem sarcasmo ou ressentimento, apenas puro divertimento. Por um breve momento, a tensão que sempre pairava entre eles pareceu se dissipar, como se a provocação constante fosse a única linguagem que os dois realmente entendiam.
— Você não fica chata nunca? — perguntou ele, o sorriso ainda brincando em seus lábios.
Se null estranhou aquele comportamento, ela não deixou transparecer, apenas correspondeu o sorriso com algo diferente brilhando em seus olhos que o vocalista não sabia nomear.
— E deixar você se cansar de mim?
Repentinamente alarmado, null sentiu o corpo inteiro ficar tenso com aquela conversa inusitada.
— Nós não vamos transar — decretou ele, cruzando os braços.
— Apenas nos seus sonhos, bonitinho — ela piscou com um sorriso provocador.
— No que você está pensando então?
null viu a guitarrista morder o lábio inferior e precisou desviar o olhar para não ficar encarando o gesto.
— Você não precisa responder agora — ela disse, a voz cautelosa, mas com aquele brilho teimoso nos olhos. — Eu não vou aceitar não como resposta mesmo.
null — ele censurou, já sentindo a dor de cabeça.
— Eu queria que você escrevesse uma música comigo.
null explodiu em risos, um som alto e descontrolado que o fez curvar-se para frente.
— Tony tem toda a razão, você é engraçada — ele disse, enxugando uma lágrima.
— Não é uma brincadeira — ela retrucou séria, cruzando os braços.
O vocalista balançou a cabeça, ainda se recuperando.
— Olha, null, vamos ser realistas — disse ele, depois de recuperar o fôlego. — Você sabe que eu tenho tudo contra você.
— É recíproco — ela devolveu com um sorriso ácido.
— Você pode até ser uma boa compositora, mas eu não quero as suas músicas na minha banda.
— Eu vou fingir que você não disse isso — ela respirou fundo, mantendo o controle. — Eu queria que você fizesse uma música comigo, que fizéssemos um dueto, fora da banda.
null estreitou os olhos, sem acreditar no que ouvia.
— Você ouviu alguma parte do que conversamos desde que chegou aqui?
— As coisas ficaram confusas depois que você começou a dar em cima de mim…
— Você é insuportável — praguejou ele, andando em direção à porta.
— É, eu não achei que você daria conta mesmo — ela deu de ombros, fingindo desdém.
null bufou, exalando toda a frustração que parecia crescer a cada palavra trocada. null, no entanto, permaneceu inabalável, levantando-se do sofá com um movimento preguiçoso e despreocupado, como se todo o embate entre eles fosse apenas mais uma de suas distrações rotineiras. Ela o acompanhou até a porta, sem pressa, observando-o como quem aprecia um espetáculo particularmente interessante.
— Eu estava errado, sentir pena de mim mesmo me parece uma ótima opção agora — resmungou null em descontentamento.
— Fique à vontade — ela disse com um sorriso malicioso. — Me avise quando mudar de ideia, sobre ambas as coisas.
A guitarrista finalizou com uma piscadela ao abrir a porta.
null quis gritar com ela, mas se contentou em dizer:
— Eu não vou.
Ele passou por ela, mas antes que pudesse sair completamente, ela lançou a última cartada:
— De qualquer forma, fico feliz que gostou da música — a voz dela tinha um tom diabólico. — Eu escrevi pra você.
E então, sem dar a ele chance de responder, ela fechou a porta na cara dele, deixando-o no corredor, completamente sem reação.


Capítulo 14 — Death To All But Metal


“Kills those fucking fuckheads who programme MTV
They can suck my ass with all the record companies”
— Death To All But Metal, Steel Panther
.

— De tantas emissoras de televisão, precisava ser a MTV? — null resmungou, deitada sobre a poltrona reclinável do camarim do estúdio com os braços cruzados, enquanto uma maquiadora debruçava-se sobre ela.
— Veja pelo lado bom — disse Tony, no sofá do outro lado do recinto. — Essa é a sua chance de dizer pra eles todos os xingamentos que disse pra mim quando a primeira matéria saiu.
null deu o dedo do meio para ele, arrancando algumas risadas dos amigos.
— Pelo menos não precisamos ir à New York — comentou Kalil. — null provavelmente colocaria aquele lugar fogo abaixo.
A guitarrista riu sem humor.
— Se aquela vagabunda aparecer aqui, eu vou colocar esse lugar fogo abaixo — declarou ela.
A risada de null preencheu todo o cômodo com uma mistura de diversão e provocação. O vocalista fumava despreocupadamente no sofá do camarim, entretido com as espirais de fumaça que dançavam ao seu redor.
— Pensei que você gostava de confusão — disse ele.
— Só com você, bonitinho — ela sorriu debochada.
— Infelizmente pra você, null, ele está fora de limites — disse Doc, enquanto mexia em seu notebook sem sequer levantar o olhar para a guitarrista.
null bufou, impaciente.
— Você não parece estar se divertindo, bonitinha — provocou null, um sorriso de escárnio dançando nos lábios.
Doc lançou um olhar de reprimenda para o vocalista. Ele estava testando a sorte, sabia disso.
— Você ainda não me viu com raiva, null — a mulher respirou fundo, dispensando a maquiadora com um aceno de mãos.
— Já chega, vocês dois — cortou Doc, fechando o notebook com um movimento brusco. — Temos uma entrevista pra fazer, e eu não quero sair daqui com outra manchete ridícula.
— Relaxa, Doc — null retrucou, levantando-se da poltrona e pegando sua jaqueta. — Prometo não matar ele... Hoje.
— E eu prometo que vou sobreviver quando ela tentar — null devolveu, com um sorriso que mais parecia um desafio.
Ela parou na porta, lançando um último olhar para ele.
— Não se depender de mim.
Ele exalou a fumaça do cigarro lentamente, sem desviar o olhar.
— Você pensa muito sobre você mesma, não é?
null bufou e saiu, batendo a porta.
Kalil olhou para Tony e murmurou:
— Certeza que eles eram arqui-inimigos em outra vida.
Doc soltou um suspiro exasperado.
— Ou nessa.
O camarim caiu em um silêncio momentâneo, quebrado apenas pelo som do cigarro de null queimando enquanto ele o apagava no cinzeiro. O sorriso provocador ainda estava em seus lábios.
Doc, que até então permanecia em silêncio enquanto revia alguns e-mails, soltou um suspiro cansado.
— Dá pra, sei lá, tentar não incendiar a banda inteira antes da entrevista?
— Relaxa, Doc — null disse, levantando as mãos em um gesto de rendição. — Eu sei exatamente o que estou fazendo.
— Claro que sabe — Doc respondeu, revirando os olhos. — É por isso que metade das polêmicas que a gente enfrenta começam com o seu nome.
Antes que alguém pudesse responder, a porta se abriu novamente, revelando um assistente de produção com um fone no pescoço e um cronômetro na mão.
— Vocês estão ao vivo em quinze minutos — ele anunciou, olhando de um para o outro como se não tivesse certeza de que todos estariam inteiros até lá.
— Ótimo — null murmurou, levantando-se e ajeitando a jaqueta. — Vamos acabar logo com isso.
— Pra você dar em cima da apresentadora? — Tony brincou, rindo enquanto também se levantava.
Kalil olhou para Doc, sorrindo.
— Aposto que você já tá sentindo saudade dos dias tranquilos, né?
Doc não respondeu, apenas passou a mão no rosto com um suspiro profundo, enquanto os outros saíam do camarim em direção ao palco. Era sempre assim com eles. E, por mais exaustivo que fosse, ele sabia que essa dinâmica explosiva também era o que fazia a banda funcionar. Pelo menos enquanto ninguém fizesse um estrago.
O grupo saiu do camarim em silêncio, mas a tensão ainda pairava no ar. O som de botas pesadas contra o chão ecoava pelos corredores, misturado ao zumbido distante da equipe técnica ajustando os últimos detalhes no estúdio.
null estava na frente, andando com passos firmes e decididos, enquanto null vinha logo atrás, com aquele sorriso provocador ainda estampado no rosto. Kalil e Tony seguiam lado a lado, trocando olhares que deixavam claro que estavam esperando a próxima faísca entre os dois. Doc vinha por último, com o notebook debaixo do braço e a expressão de quem preferia estar em qualquer outro lugar.
Quando chegaram ao estúdio, o assistente que os havia chamado mais cedo gesticulou apressado para que ocupassem seus lugares. O cenário tinha o estilo clássico da MTV, com luzes coloridas, letreiros em neon e sofás de couro desgastados estrategicamente posicionados.
— Certo, pessoal, é bem simples — começou o produtor, segurando uma prancheta. — Vocês sentam ali, respondem às perguntas da apresentadora.
null arqueou uma sobrancelha, deslizando para o sofá com a postura relaxada de quem sabia exatamente como provocar.
— Eu acho que o público merece um pouco de emoção, não acha, null?
Ela parou de ajeitar o cabelo e lançou um olhar afiado na direção dele.
— Não estou no clima, null.
— Eu posso fazer você ficar rapidinho.
Tony sufocou uma risada, enquanto Kalil disfarçou mexendo no celular.
O produtor, claramente nervoso, interveio.
— Tá bom, gente, vamos focar. A apresentadora vai entrar em dois minutos. Todo mundo pronto?
— Sempre — null respondeu, apoiando o braço no encosto do sofá e cruzando as pernas, com a confiança de quem estava prestes a se divertir.
null não respondeu, apenas se acomodou ao lado de Kalil, mantendo distância do vocalista. Uma pena!
Doc suspirou, se inclinando para falar baixo com o grupo.
— Só um lembrete: qualquer coisa que vocês falarem aqui vai estar em toda a internet amanhã. Então, por favor, sejam profissionais.
— Não se preocupe, Doc — null disse com um sorriso cínico. — Não será null a me tirar do sério.
O vocalista quase riu. Não eram aquelas palavras que seriam capazes de tranquilizar o agente e ele sabia disso. Pobre, Doc.
A porta do estúdio se abriu com um ranger discreto, e todos no ambiente automaticamente desviaram o olhar para ver quem era. A apresentadora entrou com passos firmes, seu salto ecoando levemente no piso de madeira. Ela carregava consigo uma aura de profissionalismo impecável, mas seu sorriso tinha algo de descontraído, como se estivesse confortável demais para alguém que era claramente uma recém-chegada ao espaço.
null ergueu o olhar de onde estava, apoiado no encosto do sofá, e observou Jennie entrar. Seu olhar era curioso, mas não demonstrava nada além de um interesse casual.
null, que estava sentada no sofá ao fundo, teve uma reação completamente diferente. O vocalista não pôde deixar de notar o instante exato em que o rosto dela se fechou. A leve curvatura dos lábios que ela sustentava antes desapareceu como se nunca tivesse existido. Seu maxilar ficou tenso, e os dedos, antes relaxados, agora seguravam o aparelho celular com força suficiente para que os nós ficassem brancos.
Por um momento, o ar no estúdio pareceu mudar, ficando mais denso do que antes, carregado de uma tensão silenciosa que apenas null parecia ter percebido. Não era nada como a tensão provocativa à qual eles já estavam acostumados. Ele desviou o olhar de null para a apresentadora, que ainda não notara o impacto de sua entrada. Jennie caminhava até a mesa de som, cumprimentando alguns dos presentes com acenos de cabeça e um sorriso educado.
— Boa tarde, pessoal! — ela cumprimentou, estendendo a mão para cada um deles. — Prontos para conversar um pouquinho?
— Mais do que prontos — null respondeu, com aquele sorriso que não dizia nada e, ao mesmo tempo, insinuava tudo.
null lançou um último olhar na direção dele antes de Jennie se sentar e o assistente sinalizar que estavam ao vivo.
— Sejam bem-vindos a mais um MTV Fresh Out, eu sou Jennie Mizu e estamos hoje com a banda Disclaimer para conversar um pouco sobre o fim da última turnê e os planos para o futuro desse grupo que não para de fazer notícia — começou a apresentadora, olhando diretamente para a câmera com a luz vermelha, antes de se virar para os convidados. — Vamos começar por null null, vocalista e porta-voz da banda.
null sorriu galanteador, seus olhos fixos na apresentadora. Tudo bem, talvez estivessem descendo um pouco para a saia curta dela, mas quem poderia culpá-lo? Ela definitivamente gostava de chamar atenção com aquela saia curta, ou talvez fosse apenas a sua cabeça de baixo lançando pensamentos impróprios devido a falta de atenção que estava recebendo ultimamente.
— Me chame de null, por favor — disse ele com o charme de sempre.
null — repetiu a jornalista, um sorriso descarado surgindo em seus lábios. — Nós e as fãs queremos saber, você ainda está namorando?
null umedeceu os lábios, deixando um sorriso brincar nos lábios enquanto a olhava intensamente. Excelente pergunta, querida Jennie, excelente pergunta.
— Não, Jen, eu estou solteiro — a voz do vocalista carregava a familiar confiança despreocupada.
Jennie lançou um olhar afetado para a câmera, como se estivesse compartilhando uma piada particular com o público.
— Perdoe a curiosidade — disse ela, seus olhos brilhando com um desafio quase imperceptível. — O término teve alguma coisa a ver com as polêmicas que saíram na mídia recentemente envolvendo Margot Woelffel?
— Você quer dizer as que você alimentou? — null se meteu sem hesitar.
Jennie ignorou a guitarrista, voltando sua atenção para null com um sorriso perspicaz que fez null bufar e cruzar os braços, claramente insatisfeita.
— Na verdade, não — respondeu null, bagunçando os cabelos com os dedos. — Nós chegamos à conclusão de que não estávamos mais na mesma página e de que queríamos coisas diferentes.
Jennie arqueou uma sobrancelha, seu sorriso ganhando um tom provocador.
— Com coisas diferentes você quer dizer sexos diferentes?
null riu, desconfortável, fazendo o possível para não desviar o olhar. Não podia prejudicar com Margot diante daquelas perguntas, seja com a resposta errada ou com a falta de uma.
— Ela só pode estar brincando — murmurou a guitarrista, entredentes.
— Eu quero dizer que sinto que não estou pronto para um relacionamento — null explicou, visivelmente sem graça. — Pelo menos não desde o que aconteceu com Gus.
Jennie pousou a mão no joelho de null, seu sorriso assumindo um aspecto acolhedor.
— Deve estar sendo difícil para você — a repórter disse, olhando no fundo dos olhos dele, como se isso fosse algo normal. Então se virou para os demais, como se isso fosse disfarçar alguma coisa. — Para todos vocês meninos.
Pelo canto do olho, null viu null fazer uma careta. Ele respirou fundo, mas Kalil tomou a iniciativa antes que ele pudesse responder.
— Nós estamos aprendendo a lidar com a falta dele aos poucos — disse o baterista, sua voz carregada de honestidade. — Gus vai sempre estar em tudo o que fazemos apesar do que aconteceu.
— Nós pretendemos deixar ele morrendo de inveja quando encontrarmos ele no inferno — acrescentou Tony, com um sorriso sádico que arrancou risadas dos amigos. null, no entanto, permaneceu em silêncio, com a expressão ainda fechada. Aquilo também não era normal.
null lançou um olhar de gratidão aos amigos, mas o alívio durou pouco.
— Isso nos leva a outro assunto, não é mesmo? — Jennie disse, inclinando a cabeça de forma teatral.
— Ah, é? — o vocalista se fez de desentendido.
— E qual seria esse assunto? — Tony entrou na brincadeira, dando um sorriso.
Jennie desviou o olhar para null, que continuava inexpressiva, sua postura rígida. Toda a presença carismática que ela tinha no palco parecia evaporar diante das câmeras. Ou talvez fosse diante de uma certa apresentadora de TV.
— Que vocês precisavam de um novo guitarrista para continuar, todo mundo já sabe, mas ninguém pensava que ele fosse ser uma mulher, certo, null?
— É null, na verdade — corrigiu a guitarrista, sua voz seca, sem um pingo de paciência.
Jennie deu de ombros, olhando para os demais integrantes da banda, claramente esperando uma resposta mais interessante.
— Foi ideia da West Coastnull respondeu à contragosto.
— Grande ideia, eu diria — comentou Tony, sorridente.
— Gus é insubstituível — afirmou Kalil com firmeza. — Então a ideia nunca foi substituir ele. Foi por isso que escolheram a null, que é totalmente diferente, para honrar a memória dele.
O vocalista quase se engasgou com aquela sentença. Totalmente diferente era forçar demais. Principalmente quando null ela era diabolicamente talentosa e se esforçava para ser a droga de um pé no saco na maior parte do tempo, exatamente como alguém que ele conhecia.
— Primeiro, como você disse, ela é uma mulher o que renova completamente a banda contribuindo para o crescimento do gênero no cenário do rock — o baterista continuou. — Segundo, estávamos procurando por alguém que pudesse dar conta dos arranjos insanos do Gus, mas que tivesse um estilo próprio e fosse além da reprodução das músicas. Terceiro, null já tinha uma carreira consolidada enquanto compositora fantasma e fez parte da produção de muitos sucessos da atualidade e é exatamente o que nós precisamos para atravessar esse momento difícil e nos ajudar nos reinventar como banda e continuar o legado de Gus.
null precisou reprimir o impulso de revirar os olhos.
— Que interessante! — Jennie olhou para a guitarrista com escárnio. — Poderia compartilhar com a gente no que trabalhou nos últimos anos?
null deu um sorrisinho nojento para a apresentadora, que fez uma fagulha de curiosidade se acender no peito de null. Oh, as coisas provavelmente ficariam divertidas muito em breve.
— Infelizmente eu trabalho com confidencialidade — respondeu a guitarrista, mas não pareceu nem um pouco sentida como suas palavras expressavam.
— Que pena! — Jennie respondeu, mas seu tom estava carregado de sarcasmo.
Se fosse possível, o ambiente no estúdio teria ficado ainda mais tenso. null percebeu o ar pesar e, por um momento, sentiu-se dividido entre o desconforto e a estranha excitação de assistir tudo de fora. Quem queria enganar? Não seria hipócrita ao pensar que estava aliviado de não fazer parte da confusão que parecia começar a se formar, ele sempre gostou disso. Estava adorando ver null provar do próprio veneno, além de que ver duas mulheres se alfinetando tinha o seu apelo.
Tony, percebendo o clima, limpou a garganta para chamar a atenção para si.
— Como Kalil estava dizendo — o baixista retomou o assunto, como se tivesse a mesma sensação sobre a tensão crescente e quisesse impedir o conflito. — null é completamente diferente de Gus, começando pelo belo par de pernas.
Tony e Kalil riram, mas null imediatamente bateu no braço do baixista em sinal de reprovação.
null toca violão, guitarra e piano, mais do que qualquer um de nós e tem uma visão bizarra de arranjos musicais — continuou Tony. — Ela é mais bonita que todos nós, passa bem menos vergonha e aguenta muito mais porre.
Jennie sorriu maliciosa.
— Que coisa, pelo que ficamos sabendo há quem diga o contrário.
— Só se for você mesma — rebateu a guitarrista, irredutível.
null, não leve para o lado pessoal — Jennie respondeu, claramente fingindo simpatia. — Nós apenas publicamos informações baseadas em fontes confiáveis e cuidadosamente verificadas.
— E de quebra dar pra alguma dessas fontes — null sussurrou em desdém.
null pôde ver Kalil chutar o pé da guitarrista em reprimenda e precisou conter um sorriso satisfeito.
— Eu não gosto de mulher — Jennie sorriu venenosa. — Mas entendo o seu interesse, você mesma já fez algumas vítimas, não é?
null cerrou os punhos com força, os olhos faiscando de raiva.
É, eles não iam conseguir escapar disso.
— Por que não nos conta um pouco sobre o seu envolvimento com Margot Woelffel? — perguntou a apresentadora, sem cerimônias.
— Não há nada para contar — respondeu a guitarrista, entredentes.
— O que aconteceu entre vocês foi antes ou depois do término da modelo com o seu colega de banda? — perguntou Jennie, ignorando a resposta anterior.
— Por que você está fazendo uma pergunta pra qual já sabe a resposta? — rebateu null com uma carranca nem um pouco amigável.
Jennie sorriu, satisfeita.
— Você por acaso pensou em null ou em como ele iria se sentir ou como isso poderia afetar o relacionamento dele?
— Eu não- — null até tentou interferir, mas aparentemente ninguém mais estava interessado em dar atenção para ele.
— Você nunca tomou um porre? — a voz de null subiu algumas oitavas.
— Não de boceta — a apresentadora respondeu com um sorriso.
A guitarrista arqueou uma sobrancelha exibindo um sorriso perturbado.
— Você não sabe o que está perdendo — o olhar de null era colérico.
Jennie começou a rir alto, como se aquilo fosse a coisa mais engraçada do mundo. Tony e Kalil se juntaram a ela, achando graça da situação, mas null e null permaneceram estáticos, as expressões duras. Aquilo não ia dar certo.
— Você é engraçada, null — Jennie disse, limpando uma lágrima.
— Vamos ver o quanto você me acha engraçada com a minha mão nos seus dentes — a guitarrista disparou, baixo e ameaçador.
— Você deveria vê-la discutindo com o null! — Tony deixou escapar, rindo. Talvez estivesse apenas desviar do assunto anterior, mas é claro que essa tentativa em específico também sairia pela culatra.
Por um instante desesperador, null e null trocaram um olhar alarmado, como se um segredo silencioso tivesse sido exposto. Maldito Anthony e sua língua maior do que a boca.
Os olhos de Jennie brilharam, captando a oportunidade de explorar mais um possível escândalo.
— Eles fazem isso com frequência? — perguntou a apresentadora, inclinando-se levemente para frente, como uma predadora se preparando para atacar.
Tony percebeu o tom carregado da pergunta e forçou um sorriso amarelo.
— Sabe como é, né? — o baixista bagunçou os cabelos, tentando parecer despreocupado. — null é hilária.
null sentiu vontade de enterrar o rosto nas mãos, mas se conteve.
— E não é novidade pra ninguém que null adora contrariar os outros — complementou Kalil, como se tentasse aliviar o clima.
Jennie não perdeu tempo, sua expressão se iluminando ainda mais.
— Então, isso não tem nada a ver com os rumores de atritos entre os dois? — disparou ela, sua voz pingando malícia.
O vocalista abriu a boca, pronto para responder, mas null foi mais rápida:
— Nós somos músicos — ela disse com firmeza, cruzando os braços. — Boa parte do processo de criação artística é discordar até as coisas funcionarem.
null se endireitou no sofá e, pela primeira vez, concordou plenamente com ela.
— Não vou mentir — null se empertigou, deixando um sorriso ladino escapar. — Eu gosto de um desafio.
null lançou um olhar de canto para ele, uma mistura de surpresa e cumplicidade, enquanto Jennie parecia insatisfeita por não ter conseguido arrancar uma polêmica maior.
A apresentadora examinou o roteiro da entrevista, seus olhos dançando pelas anotações como se buscasse uma nova brecha para contornar a situação. Ela ajustou a postura, inclinando-se ligeiramente para frente com um sorriso calculado, o brilho oportunista ainda presente em seu olhar.
— A mídia divulgou que, após o último show dessa turnê, você se envolveu em um acidente de carro aqui em Los Angeles. Pode nos contar um pouco sobre o que aconteceu e como foi a sua recuperação?
Por um breve instante, o sorriso de null vacilou, mas ele rapidamente se recompôs, relaxando os ombros e soltando uma risada contida. Já haviam ensaiado para esse momento, mas a pergunta ainda lhe causava um leve desconforto.
— A mídia não deixa escapar nada, né? — comentou ele, tentando amenizar o clima. — Eu estava indo para um after party, achei que tinha visto alguma coisa na pista e perdi o controle do carro. Minha recuperação foi boa, eu tive apenas algumas escoriações, mas acabei ficando de repouso por um tempo por orientação médica.
— Que susto, hein? Ainda bem que não foi alguma coisa mais grave! — Jennie respondeu com entusiasmo, exibindo um sorriso caloroso. — Estávamos todos preocupados, ninguém viu você voltar para casa depois do ocorrido.
null riu, mas o som era nervoso, quase forçado. Ele bagunçou o próprio cabelo, um hábito sempre presente quando tentava desviar a atenção.
— Ah, você sabe como é — começou ele, com um tom despreocupado. — Para evitar qualquer tipo de estresse, eu acabei ficando na casa de um… Amigo. Devo ficar lá por mais um tempo.
— Uma pena para os seus fãs que estão acampando no seu portão desde que voltaram para LA — provocou Jennie, com um sorriso malicioso.
No monitor ao lado deles, começaram a exibir imagens dos fãs reunidos do lado de fora da mansão de null. Cartazes com mensagens de apoio, câmeras e flashes de celulares iluminavam as cenas. O vocalista não conseguiu evitar a sensação de aperto no peito com as gravações.
— Sinto muito, pessoal — disse null, lançando um sorriso amarelo para a câmera. — Eu estou bem, por favor, voltem para casa e cuidem da saúde de vocês!
Jennie inclinou-se levemente para frente, como se prestes a soltar uma bomba. Seus olhos brilhavam com uma mistura de entusiasmo e malícia.
— Falando no acidente — disse ela, seu tom propositalmente inocente. — Ainda bem que um dos seus colegas de bando chegou rápido o bastante para chamar as autoridades, não é, null?
A expressão da guitarrista não era nada simpática.
— Acho que você quis dizer null — corrigiu ela, com a voz firme e um olhar afiado. — Eu estava de moto indo para o mesmo lugar, algumas pessoas não nasceram pra ficar presas no meio de uma lataria, então acabei chegando mais rápido que os outros.
Jennie riu, mas o som era mais debochado do que genuíno.
— Você tem um ponto — concordou a apresentadora, antes de olhar diretamente para uma das câmeras. — A MTV conseguiu acesso exclusivo à ligação de null null para o 911, vamos conferir agora.
O silêncio no estúdio ficou mais pesado por um instante. null se inclinou ligeiramente para frente, os olhos fixos em Jennie com uma intensidade que parecia capaz de cortar o ar. null desviou o olhar, fixando-se em um ponto qualquer do cenário, claramente desconfortável.
O monitor piscou, e então a gravação começou a ser exibida, trazendo de volta memórias que todos ali preferiam deixar para trás.
911? — a voz trêmula de null soou alto demais, para o tom que ela tinha na gravação. — Meu nome é null. null null. Eu estou na 110, na altura da UCLA, aconteceu um acidente… Eu não acho que ele esteja consciente. Eu estarei esperando, por favor, sejam rápidos.
No estúdio, o silêncio era quase tangível. null desviou os olhos do monitor, concentrando-se nas próprias mãos enquanto fingia ajustar um dos anéis em seus dedos. null mantinha os braços cruzados, o maxilar tenso, e o olhar fixo na tela, mas seu rosto permanecia impassível.
Quando a gravação terminou, Jennie voltou sua atenção para a guitarrista, o sorriso dela um tanto afiado para a ocasião.
— Você parece bem nervosa na ligação, null, tem certeza de que nada aconteceu antes do acidente? — a provocação na voz de Jennie era inconfundível, e o sorriso dela sugeria que estava se divertindo.
null, sentado ao lado, lutava para conter a sombra de um sorriso. Apesar do desconforto geral, ver a guitarrista ser colocada contra a parede era quase um espetáculo particular.
null estava comigo, Jen — Anthony interveio com um tom calmo, mas firme. — Quando soubemos do acidente pelo sistema de emergência do carro que nos enviou um S.O.S., ela foi a primeira a chegar por conta do trânsito.
— Obrigada, Tony! — disse Jennie, fingindo inocência. — Esperamos que a guitarrista esteja sempre por perto para nos salvar.
null revirou os olhos sem sequer tentar disfarçar.
A apresentadora sorriu, como se estivesse saboreando cada segundo daquela tensão interminável.
— Ainda sobre o último show, todos nós ficamos um tanto chocados, ninguém esperava que você fosse quebrar a lendária guitarra de August Train — null fechou os olhos por um instante, invocando todas as técnicas de respiração que seu psicólogo havia ensinado. Era uma memória que ele preferia manter enterrada, que ele precisava manter enterrada. Ele sabia que aquilo viria. Mas por que tinha que doer tanto? — No que você estava pensando?
Apesar da batalha interna, o vocalista se forçou a olhar para a colega de banda. Ele também precisava daquela resposta.
Se null pudesse matar apenas com um olhar, ele chegou à conclusão de que a apresentadora estaria perdida.
— Eu só estava tocando, essas coisas acontecem quando a gente se entrega em uma música tão intensa quanto aquela — respondeu ela, as palavras saindo entredentes.
null apertou o maxilar, tentando se conter, mas não conseguia evitar a tensão que se espalhava pelo seu corpo. Estava farto daquele maldito assunto.
— Então não tinha nada a ver com o fardo de viver na sombra de Gus, ex-guitarrista e fundador da banda Disclaimer? — Jennie insistiu, suas palavras cuidadosamente escolhidas para ferir.
null inclinou-se levemente para frente, os olhos queimando de raiva.
— Eu não vivo na sombra de ninguém.
Jennie apenas deu um sorriso frio, claramente satisfeita com a reação.
— E como você explicaria as polêmicas envolvendo a sua personalidade difícil, abuso de substâncias e um número considerável de casos não só com homens, mas mulheres também? — perguntou a apresentadora com uma suavidade calculada, mas seu tom era afiado como uma lâmina.
— Eu diria que não é da sua conta — null manteve a voz firme, mas a raiva transparecia em cada palavra. — Eu sou a porra de uma guitarrista, me pergunte sobre música eu sou toda sua.
Jennie ergueu uma sobrancelha, como se estivesse se preparando para o golpe final.
— O lançamento do seu single próprio e a performance no Alternative Press Music Awards fazem parte da sua estratégia para desvincular a sua imagem do legado de Gus? — perguntou a apresentadora.
Naquele momento, null sentiu a energia mudar.
Quando a apresentadora mencionou o single, o vocalista imediatamente percebeu a rigidez nos ombros de null. Era sutil, quase imperceptível para quem não a conhecesse, mas ele soube que aquele era o ponto de ruptura, mesmo que fosse a primeira vez que ele presenciasse de fato. Ele prendeu a respiração por um segundo e lançou um olhar de lado, avaliando-a. O erguer da sobrancelha foi o aviso final.
— Não fode! — null se levantou de forma abrupta, arrancando o microfone preso em suas roupas e jogando-o no chão. Sem dizer mais nada, saiu do estúdio batendo os pés, o som ecoando pelo ambiente.
O silêncio no estúdio era tão espesso que parecia engolir todo o som. A apresentadora olhou para o chão onde o microfone descansava, confusa e aparentemente sem saber se deveria rir ou se desculpar. null, por outro lado, permaneceu sentado, olhando para a porta por onde a guitarrista havia saído. Ele soltou um longo suspiro, esfregando a têmpora como se pudesse afastar o cansaço acumulado.
Então Kalil, que até aquele momento estava quieto no canto do sofá, inclinou-se levemente para frente, com um sorriso indecifrável nos lábios.
— Não foi tão ruim — murmurou Kalil, quebrando o silêncio no estúdio.
null e Tony trocaram olhares e riram baixinho, suas risadas carregadas de ironia. A tensão se dissipou um pouco, permitindo que a apresentadora, relaxasse. Ela olhou para eles com um sorriso discreto, como se tentasse acalmar os seus próprios ânimos.
— Então, rapazes, como estão os planos para o próximo álbum? — perguntou Jennie, retomando o controle da entrevista com profissionalismo.
Tony, sempre o mais entusiasmado, bateu as mãos com energia.
— Estamos planejando uma viagem! — exclamou o baixista, os olhos brilhando.
— Com a chegada da null, achamos que seria uma boa ideia para nos conectarmos e começar a produzir algo juntos — Kalil assentiu, acrescentando com sua calma característica.
null, que até então parecia querer manter-se à margem, se endireitou na cadeira e decidiu entrar na conversa.
— Nós e Gus nos conhecíamos desde sempre — começou ele, a voz carregando um tom mais sério. — As coisas fluíam porque nós sempre soubemos o que esperar um do outro, nós nos entendíamos musicalmente e passamos por tudo juntos para chegar aonde chegamos.
— Agora com a null todos nós precisamos aprender como trabalhar com alguém novo e como isso vai contar a nossa história a partir de agora — complementou Kalil, lançando um olhar cúmplice para o amigo.
— A banda não é mais a mesma sem Gus — disse null, em um tom mais baixo, quase introspectivo.
— E nós não queremos dizer que isso é bom ou ruim — Tony se intrometeu com um sorrisinho antes que o clima pudesse voltar a pesar.
null suspirou, mas havia uma aceitação em seu olhar.
— A questão é que a banda mudou, todos nós mudamos… Consequentemente as nossas músicas vão mudar também — concluiu o vocalista com um sorriso triste.
— Faz sentido — Jennie assentiu com um sorriso angelical, como se estivesse tentando mostrar empatia. — Trabalhar com um álbum já consolidado e constuir algo novo do zero em meio a todas essas mudanças deve ser algo completamente diferente.
— Com certeza — concordou null. — Mas o apoio que estamos recebendo dos fãs tem sido essencial para que nós possamos continuar a seguir os nossos sonhos e os de Gus também.
A sinceridade em sua voz ecoou no estúdio, e até Jennie pareceu tocada pelo momento. A tensão inicial havia dado lugar a uma conversa genuína, mostrando que, mesmo com todas as mudanças e dificuldades, a banda estava determinada a continuar. Ou ao menos precisava mostrar isso para a imprensa.
Depois disso, a entrevista seguiu com um tom mais ameno. Jennie fez perguntas mais suaves sobre as inspirações para o novo álbum, e os membros da banda responderam com entusiasmo, compartilhando suas ideias sobre a direção musical que pensavam em explorar. As piadas de Tony e as respostas ponderadas de Kalil ajudaram a aliviar o ambiente, enquanto null, embora ainda sério, parecia mais relaxado. A conversa fluiu naturalmente, com a apresentadora guiando a discussão sobre os novos desafios e as mudanças dentro da banda, sem mais interrupções ou desconfortos. Era claro que, apesar de tudo o que havia acontecido, todos estavam tentando se concentrar no futuro, respeitando as memórias de Gus e, ao mesmo tempo, abraçando a nova fase.
Com o fim da entrevista, os rapazes seguiram para o camarim, onde o ambiente estava calmo e com a luz suave que contrastava com o que acabara de acontecer no estúdio. Quando entraram, encontraram null deitada no sofá, de cabeça para baixo, os longos cabelos escuros espalhados pelo chão como uma cortina indomada. Ela estava fumando com uma expressão distante, seus olhos fixos em algum ponto aleatório enquanto o fumo subia lentamente, apenas a combustão do material quebrando o silêncio vez ou outra.
O som da porta se fechando ecoou pelo camarim, cortando o silêncio denso que parecia dominar o ambiente. A guitarrista, que parecia completamente absorvida em seus devaneios, reagiu como se tivesse sido arrancada de um transe. Em um piscar de olhos, ela virou a cabeça para cima.
— Graças à Deus! — exclamou null, com uma expressão de alívio. — Pensei que não fossem terminar nunca.
— O que você está fazendo? — perguntou o baterista, claramente surpreso.
Mas null não deu ouvidos. Em um movimento rápido, ela saltou do sofá e começou a girar as chaves da caminhonete de Kalil entre os dedos despreocupadamente.
— O que acham de uma bebida? — perguntou a guitarrista, com um sorriso que misturava desafio e diversão.
Os rapazes trocaram olhares desconfiados, mas antes que alguém pudesse protestar, a guitarrista completou, como se estivesse oferecendo algo irrecusável:
— Por minha conta.
null, com seu sorriso característico, arqueou uma sobrancelha, captando o tom provocador no convite.
— Por que não, bonitinha? — respondeu ele, a voz suave, mas com um toque de diversão, abrindo espaço para que ela liderasse o caminho.
Em poucos minutos, eles estavam na rodovia. Kalil mantinha a concentração total no volante, com os olhos firmes na estrada, enquanto Anthony brigava com o rádio, ajustando o volume e a estação, claramente irritado com a seleção musical.
null estava mais tranquilo, com a cabeça apoiada na janela, observando o retrovisor com um olhar distante. No vidro, ele podia ver null na carroceria do veículo, sua expressão surpreendentemente serena, os cabelos longos e escuros dançando ao vento, como se nada mais importasse ali. Aquilo definitivamente não era o que ele esperava daquele dia.


Capítulo 15 — All These Things I Hate


“Once more I'll say goodbye to you
Things happen but we don't really know why
If it's supposed to be like this
Why do most of us ignore the chance to miss?”
— All These Things I Hate, Bullet For My Valentine
.

null, Kalil, Tony e null já estavam na quarta rodada de bebidas no The Viper Room, visivelmente embriagados, com as palavras saindo atropeladas e risadas ecoando por todo o ambiente. O barulho das gargalhadas se misturava à música alta, e a animação parecia não ter fim, como se o clima tenso no estúdio de gravação algumas horas antes não passasse de uma lembrança inconveniente. As conversas se atropelavam, trocando histórias engraçadas e piadas internas, e a sensação de que o momento era único fazia com que falassem mais alto e com mais entusiasmo a cada minuto que passava. O clima estava leve e descontraído, como se não houvesse nenhuma barreira entre eles. Apesar de no fundo, eles saberem que aquilo não era verdade.
— Eu juro! — Tony exclamou, sua voz subindo algumas oitavas.
As risadas ecoaram descompassadas, alguém pareceu ter engasgado e o som esganiçado só fazia com que eles se afundassem mais naquele ciclo interminável de falta de fôlego e dor nas bochechas.
— Era tipo o nosso terceiro show, ou algo assim? — Kalil perguntou, limpando uma lágrima que teimava em tentar escapar dos seus olhos.
null revirou os olhos, já sabendo onde aquela conversa iria chegar.
— Não, cara, era o nosso quarto show! — Tony corrigiu com um sorriso largo. — Um maluco da plateia jogou uma garrafa de cerveja em cima do null e, pra variar, ele pegou a garrafa, pulou do palco e desceu até o cara, acertando ele com a garrafa na cara!
null riu, batendo com a mão na mesa como pudesse liberar o humor de seu corpo à força.
— Foi uma briga das boas — Kalil sorriu, como lembrasse vividamente do momento.
— O cara ficou três dias no hospital — Tony comentou, soltando a gargalhada mais forte, como se ainda estivesse em êxtase pelo evento.
— Gus ficou tão puto... — null riu também, lembrando divertidamente da sucessão de eventos que se seguiu depois da agressão.
— Por quê? — null perguntou, com os olhos anuviados e o cenho franzido. — Parece ter sido incrível.
null deu de ombros, ainda sorridente, como se também não entendesse o porquê da reação do amigo na época. Mais um riso frouxo escapou de seus lábios, tudo bem, ele fingia que não entendia.
— Primeiro porque o nosso amigão aqui estourou a mão inteira socando o cara — Kalil explicou, balançando a cabeça em reprovação. — E a mão dele ficou um lixo, parecia um pedaço de carne moída.
Tony deu uma risada alta e escandalosa, fazendo o vocalista sorrir também. Quando null olhou para o lado encontrou o sorriso sádico de null brilhando em sua direção, fazendo com que um frio repentino subisse pelo seu estômago.
Aquilo era tão estranho. Rir com ela não era algo que ele esperasse fazer algum dia, ao menos não tão cedo. Apesar de tudo, ele não conseguia evitar, quanto mais bêbado ficava, mais parecia que não tinha controle sobre o seu próprio corpo e mais ele se sentia à vontade naquela situação.
— Você ficou o quê, umas três semanas sem conseguir tocar? — Tony provocou.
null deu um sorriso amarelo, olhando de relance para a guitarrista, antes de responder.
— Duas e meia — corrigiu ele, inflando o peito com uma espécie de orgulho sadomasoquista. — E o Gus tinha certeza de que eu tinha acabado com as nossas chances de viver da música.
— Acho que ele só não quebrou sua cara porque o outro já fez isso por ele — Kalil brincou antes de tomar um gole de sua cerveja.
null sorriu de canto, com o olhar afiado.
— Não fui eu quem foi parar no hospital — disse ele, levando seu copo de whisky até os lábios.
— Isso porque você é um tremendo de um cabeça dura — o baterista alfinetou, ainda sorrindo.
— Sigo invicto no meu cartel de lutas — null deu uma piscadela.
O grupo quebrou em mais uma sequência de risadas descompassadas, derrubando algumas gotas de bebida sobre a mesa com seus movimentos exagerados. À medida que conseguiram recuperar o fôlego, Tony acendeu um cigarro em meio a um de seus sorrisos travessos, observando os amigos ofegantes através da fumaça que pairava.
— A melhor parte dessa história é que, depois de toda a confusão, passamos três meses sem conseguir fechar um show sequer no King County — continuou o baixista, com uma expressão divertida no rosto.
— Acho que estou perdendo alguma coisa — null murmurou, o cenho franzido.
null olhou para ela, estreitando os olhos, analisando-a um pouco além do necessário. Estava cada vez mais fácil olhar para ela. A vista nem era tão ruim assim...
— Depois de três meses sem conseguir nada, o dono do pub... O mesmo onde rolou a briga, nos ligou — ele explicou, os olhos brilhando.
null fez uma careta, olhando para o vocalista.
— Meio tarde pra reclamar de alguma coisa, não? — ela brincou com um sorriso largo no rosto. null pensou que nunca a tinha visto sorrir daquela maneira antes. Tão... Sincera.
Impulsionado pelo calor da bebida, o vocalista deu um sorriso malicioso na direção dela.
— O cara estava nos procurando há semanas — Kalil revelou, olhando entre os amigos como quem compartilha um segredo.
null e Anthony pareceram entender imediatamente, lembrando-se da melhor parte da história.
— O da briga, no caso — null esclareceu, os olhos ainda fixos na guitarrista.
— Aparentemente o cara achou que apanhar do vocalista de uma banda de rock foi a coisa mais foda que tinha acontecido com ele nos últimos tempos — Tony completou com entusiasmo, dando um trago profundo demais no cigarro. — Estava indignado que não voltamos a tocar lá depois da confusão.
null riu alto, seu sorriso ainda mais espontâneo do que há alguns minutos, se é que isso era possível. O som fez null sentir coisas estranhas que ele não ousou reconhecer.
— Depois disso, começamos a tocar lá uma vez por mês durante um ano — o vocalista disse, orgulhoso, tentando ignorar a sensação que crescia sob sua pele.
— O início de uma carreira de sucesso — Kalil acrescentou, de forma quase épica.
— Eu deveria ter pensado nisso antes... — brincou a guitarrista, os olhos brilhando como se planejasse alguma besteira. Se parar para pensar nessa história, null era uma adição perfeita para o conjunto caótico que eles formavam. August teria gostado dela.
Naquele mesmo momento, uma voz conhecida interrompeu a conversa, chamando a atenção do grupo. Todos pararam por um instante, curiosos, antes de voltarem à animada troca de palavras.
— Veja se não é a banda Disclaimer?
null percebeu imediatamente a mudança na expressão de null. Seu rosto, antes relaxado, se fechou de forma nítida, e uma expressão de irritação tomou conta de seus traços. Ela nem ao menos tentou disfarçar o seu desconforto, os olhos estreitaram-se em uma mistura de desagrado e raiva contida.
— Não sabia que você frequentava lugares como esse, Jennie — Tony disse, com um sorriso irreverente no rosto.
null foi imediatamente atraído pelo som do nome dela, tomado por uma curiosidade crescente. Sem pensar, virou-se rapidamente para trás, seus olhos buscando a fonte da voz.
E lá estava ela, a repórter, a poucos centímetros de distância, gostosa como sempre. O brilho nos olhos dela, mesmo em meio à agitação do bar, se destacava de maneira inconfundível. null sentiu uma leve sensação de surpresa ao vê-la tão próxima, mas não o suficiente para distraí-lo daquele belo par de seios.
Aparentemente a noite estava prestes a melhorar.
— Lugares cheios de homens bonitos? — Jennie respondeu, franzindo o cenho de forma contemplativa, como se estivesse pensando sobre o assunto. — Esse é definitivamente o meu tipo de lugar.
null sentiu um calor se espalhar pelo corpo e não hesitou em lançar para a mulher o seu sorriso mais canalha, ciente do efeito que costumava causar em mulheres como aquela.
— Por que não se junta a nós? — perguntou o vocalista, seu tom de voz cheio de segundas, terceiras e até quartas intenções. — Claro, isso se formos bonitos o suficiente pra você.
Jennie o observou com um olhar curioso, seus olhos percorrendo-o de cima a baixo. null percebeu a tensão no ar se intensificando e, ao fundo, ouviu a guitarrista resmungar algo inteligível. Isso seria definitivamente interessante.
— Cam estava mesmo pedindo para eu apresentá-lo ao Tony — ela disse com um sorriso de canto, dando de ombros como se fizesse pouco caso do convite. Aparentemente ela gostava de jogos.
— Eu não estava! — protestou uma voz atrás da apresentadora, arrancando um sorriso dos demais sentados à mesa. Quer dizer, de todos exceto null.
null então fixou o olhar no rapaz. Ele era alto, com os cabelos ruivos chamando a atenção, e um corpo magro que parecia quase esguio. O rosto era salpicado de sardas, criando um contraste curioso com sua pele clara. Algo naquelas feições lhe parecia vagamente familiar, como uma lembrança distante que insistia em escapar. Seus olhos percorreram o rosto do rapaz mais uma vez, tentando encaixar a imagem, até que finalmente, uma fagulha de reconhecimento brilhou em sua mente.
— Você trabalhou com a Margot — aquilo não foi uma pergunta.
— No editorial da Adidas — Cam confirmou com um sorriso, visivelmente orgulhoso de seu trabalho.
— Aquele em que você ficou morrendo de ciúmes?! — Tony gritou, rindo da situação.
null ficou tenso, sentindo o maxilar trincar de imediato. Maravilha. No entanto, sua reação passou despercebida, engolida pelas risadas que ecoavam ao seu redor. Ao seu lado, null permanecia em silêncio, com o olhar distante e os braços cruzados.
— Senta aqui, cara, quero saber de tudo — Tony fez um gesto para o lugar vazio ao seu lado.
Sem esperar muito, null se levantou pronto para evitar aquele assunto.
— Pode sentar aqui — ele disse para Jennie, apontando para o lugar que ocupava antes. — Eu vou pegar outra cadeira.
null se levantou e foi até o balcão, pegou uma cadeira e a arrastou até o ponto entre null e Jennie. Talvez fosse uma boa ideia servir como amortecedor entre as duas, ou ao menos ficar ao alcance de ouvir uma troca de farpas daquelas. O vocalista sentou-se, tentando parecer despreocupado. O resto da turma seguia imersa na conversa, suas vozes altas e animadas, enquanto ele se acomodava em um silêncio cheio de expectativa. Quem ele queria enganar? Estava ansioso para ver a guitarrista com raiva depois da entrevista de mais cedo. Seria bom ver os papeis se inverterem para variar.
— Uma pena que a Margot esteja em Dubai agora — Tony comentou, com um sorriso zombeteiro.
Coitadinhanull ironizou, revirando os olhos em deboche.
null se permitiu sorrir com a interação afetada entre os dois, que não perdiam uma oportunidade de exagerar no deboche, nas risadas, nas bebidas, bom, em qualquer coisa. Não podia negar, eles formavam uma boa dupla.
— Do que estamos falando? — perguntou o vocalista, sem conter sua animação. De canto de olho ele pode ver a guitarrista franzir o cenho para ele.
Tudo bem, ele estava ficando alterado.
Tony gesticulou, um gesto preguiçoso ou bêbado, como se pedisse para deixar o assunto para lá.
— Não queremos briga hoje, null — o baixista disse embolado.
null apenas revirou os olhos, sem se incomodar de fato.
— Quando a Margot decidir aparecer por aqui, podemos marcar um dia só pra dar boas risadas com as histórias dos dois — Kalil sugeriu, um sorriso brincando em seus lábios.
— Ela vai ficar furiosa — Cam, que estava entre o Tony e o baterista, acrescentou, se divertindo.
— Ninguém disse que ela iria se divertir também — Anthony deu uma piscadela maliciosa, os olhos brilhando com o quem planeja algo perverso.
Jennie, que até então parecia imersa em silêncio, finalmente pareceu despertar, mostrando interesse pelo retorno de null. Seus olhos se fixaram no vocalista, e a expressão que antes era vaga agora se tornou mais atenta, como se algo tivesse chamado sua atenção.
— E aquela viagem que vocês falaram mais cedo? — ela perguntou, inclinando-se para null com interesse genuíno.
— Foi ideia da null — Kalil sorriu, dando uma piscadela para a guitarrista. null se remexeu procurando uma posição mais confortável sem que pudesse evitar.
— Ela nunca teve um road trip em banda — Tony completou, com um sorriso travesso. — Aposto que fez algum pacto com o diabo pra colocar essa ideia na nossa cabeça.
null deu de ombros, sem dar importância para o comentário do amigo.
— Quem precisa de um pacto com o diabo quando se pode ser o próprio demônio? — deliberou a guitarrista, pensativa.
— Você tem um ponto — disse La Rocha, dando uma piscadela para ela antes de tomar um gole da sua bebida.
— O que eu posso fazer se vocês são tão fáceis de manipular? — provocou ela, seu sorriso como uma espécie de doce veneno.
Cameron soltou uma gargalhada alta, olhando para null com um brilho de diversão nos olhos.
— Agora entendo por que a Margot gosta tanto de você.
Quem não gosta da null?null zombou, olhando-a na expectativa de conseguir alguma reação dela.
null, já sem paciência, levantou a mão e mostrou o dedo do meio, um gesto claro de descontentamento. O vocalista deixou um sorriso satisfeito desenhar o seu rosto.
Jennie não parecia tão interessada na guitarrista quanto os outros, enquanto tomava um gole de seu drink colorido sem tirar os olhos de null. Ele não achou isso ruim, não mesmo.
— Para onde vocês vão? — perguntou a repórter com uma voz arrastada.
— Acho que vamos para Nevada, e quem sabe dar uma passada no Arizona... — null deu uma resposta vaga, não é como se ele estivesse muito à par da programação de uma viagem para a qual ele não se importava de verdade.
Jennie inclinou a cabeça, interessada.
— E quando chegam em New York? — ela perguntou, apoiando o rosto sobre a mão sem quebrar o contato visual.
null ouviu a risada áspera de null, uma sonora explosão de desdém que cortou o ambiente e fez um arrepio correr pelo seu corpo.
null só topou a ideia porque não vamos atravessar o país — debochou a guitarrista, seus olhos faiscando em direção à apresentadora.
Jennie ignorou o tom ríspido de null e, com uma expressão curiosa, arqueou uma sobrancelha na direção do vocalista, como se a outra mulher não passasse de um mero inconveniente.
— Qual o problema da costa leste? — ela perguntou divertidamente.
— Eu não... — null hesitou. Droga de New York.
Mas antes que o vocalista pudesse se embolar na resposta, Kalil o interrompeu, sua voz descontraída cortando o silêncio, desviando a atenção sobre ele.
— O aniversário de null está chegando, não queremos prejudicar a festa — comentou o baterista, dando uma piscadela para o amigo. Tudo que null pode fazer foi oferecer um olhar de agradecimento.
— Ah, sim! — os olhos de Jennie brilharam em entusiasmo. — As famosas festas de null null.
O vocalista deu de ombros, como se aquilo não fosse nada de mais. Sabia que suas festas tinham a sua fama, mas não gostava de ficar se exibindo por causa disso. Não fazia isso pela popularidade, para ele era apenas a sua forma de lidar com a confusão que era a sua mente agitada, fazendo uma bagunça daquelas e deixando para alguém limpar depois, preferencialmente Doc.
— Vocês podem aparecer se quiserem — disse ele meio sem jeito, bagunçando os cabelos ao olhar entre Jennie e Cam com um olhar sugestivo.
null, de canto de olho, percebeu null se remexer em desconforto. Sua postura, antes tão segura, agora parecia inquieta, claramente incomodada naquela situação. Ela deveria estar amando aquilo.
— Me mande os detalhes no Instagram quando estiver tudo certo — a apresentadora respondeu com um biquinho que null acabou observando por tempo além do necessário.
— Não se esqueçam de levar um capacete! — Tony disse divertidamente com o seu tom usualmente alto demais.
— Um capacete? — o modelo perguntou ao seu lado, seu cenho franzido em confusão.
— As coisas tendem a sair um pouco do controle nas festas de null — explicou Kalil com um sorriso ladino.
null olhou para o baterista com uma expressão indignada, mas logo o tom de brincadeira apareceu em seu olhar. Ele não pôde evitar um sorriso divertido, dando lugar a um ar de provocação.
— Que absurdo! — dramatizou ele, colocando a mão no peito com exagero, como se a ofensa fosse algo insuportável. Seu tom de voz foi carregado de sarcasmo, e um sorriso malicioso surgiu em seus lábios, quebrando qualquer vestígio de seriedade na cena. — Eu jamais incomodaria meus convidados tentando controlar eles.
O grupo inteiro se entregou à mais uma rodada de risadas descontraídas, exceto null, que manteve o rosto impassível, claramente alheia à diversão dos outros. Enquanto os demais se entregavam à risada, ela permaneceu em silêncio, seus pensamentos parecendo estar em outro lugar. Por uma fração de segundo, null até sentiu falta da risada dela.
— Parece ótimo! — disse Jennie, na hora perfeita para tirar aqueles pensamentos estúpidos da sua cabeça. Queria mesmo era deixar a guitarrista o mais longe possível da sua zona de conforto, quem sabe assim ela aprendesse a se colocar no seu próprio lugar. A repórter umedeceu os lábios, o encarando o vocalista sem um pingo de pudor. — Eu nunca fui muito chegada às regras mesmo.
null, visivelmente impaciente, bufou com força e se levantou abruptamente, a cadeira rangendo ao ser afastada com um movimento rápido. Seu olhar varreu o pub, como se tentasse absorver a atmosfera ao seu redor antes de tomar alguma atitude. Todos imediatamente direcionaram os olhos para ela, o clima leve entre o grupo se transformando com aquele único gesto.
— Kalil, quer dançar? — perguntou ela, seus olhos fixos no baterista. Ela manteve a postura rígida, o cenho franzido, parecia pronta para arranjar algum tipo de problema.
null sentiu uma pontada no estômago, como se um nó tivesse se formado ali, apertando-o de forma desconfortável. Ele se lembrou claramente, talvez até demais, do que aconteceu da última vez que eles dançaram juntos. O calor da lembrança o atingiu com força, trazendo à tona uma mistura de emoções que ele preferia não revisitar. O vocalista engoliu em seco, tentando disfarçar o desconforto que o assombrou.
— Claro! — Kalil respondeu, levantando-se com um sorriso de orelha a orelha.
O baterista se aproximou de null, depositando a sua mão cuidadosamente na lombar dela e juntos eles caminharam em direção à pista de dança, a leveza de seus passos contrastando com a tensão crescente que atingia null na boca do estômago. O vocalista os observou em silêncio, os olhos fixos em Kalil e null, tentando não pensar demais sobre o que aquilo significava ou até mesmo sobre as sensações desagradáveis que se sucederam.
Logo, os dois se misturaram à multidão, suas figuras se aproximando de forma íntima, com seus corpos grudados em uma proximidade desnecessária que parecia desafiar qualquer senso de espaço pessoal. Apesar da dança frenética das demais pessoas que ocupavam a pista de dança, null não conseguia perder eles de vista, ainda que tentasse. Mesmo sem querer, null não conseguia desviar o olhar, observando cada movimento deles, o jeito como pareciam compartilhar de um só ritmo.
— Ela é sempre assim? — ele ouviu Jennie perguntar, sua voz era suave, mas cheia de interesse.
O vocalista suspirou, afastando-se um pouco da mesa para encarar Jennie, enquanto se esforçava para não demonstrar qualquer reação para o que ocorrera antes.
null é uma pessoa difícil — null admitiu, com um sorriso cansado.
— Eu não sou — Jennie retrucou, com uma expressão divertida, como se estivesse apenas brincando. Mas algo nos olhos dela mostrava que não estava. Nem perto disso.
null a observou com mais intensidade, notando o leve rubor em suas bochechas, que contrastava com a confiança que exalava. Seus lábios entreabertos pareciam convidativos, como se estivesse esperando por algo, algo que ele não conseguia identificar, mas que o atraía irresistivelmente. A combinação de sua beleza sutil e a maneira como ela se comportava o fazia se sentir, de alguma forma, fora de controle. Ela era uma mulher hipnotizante, e, por um momento, null se permitiu esquecer de tudo ao seu redor, enquanto encarava a boca dela.
— Você está tentando me causar problemas — null sorriu de forma provocante.
null null fugindo de problemas? — Jennie brincou, sua voz manhosa de um jeito extremamente sensual, seu olhar fixo nele. — Essa é nova.
null deu uma risada baixa, desviando o olhar para se recostar em sua cadeira e tomar um gole da sua bebida.
— Espero que isso não seja um furo no seu próximo programa — ele brincou, passando a língua sobre os lábios para limpar os resquícios do álcool.
Jennie, com um sorriso enigmático, respondeu:
— Eu não sou de sair por aí espalhando fofoca, sabe? — ela falou com a voz suave, mas cheia de uma confiança sutil.
null não pôde deixar de sorrir. Aquele sorriso que ele sabia ser capaz de fazer algumas peças de roupa serem jogadas pelo chão.
— Não me leve a mal, mas eu não confio na imprensa — ele respondeu provocante, tentado a entrar no jogo dela.
— Você não precisa confiar para se divertir um pouco — Jennie sugeriu com um sorriso travesso.
null a olhou com mais intensidade, seus olhos fixos nela de forma calculada, absorvendo cada detalhe. A forma como ela mordia os lábios combinada com seu brilho no olhar fazia o sangue dele se aquecer, despertando nele um desejo difícil de controlar. Mas ele queria brincar um pouco primeiro.
— Eu estou me divertindo — ele afirmou, soltando uma risadinha logo em seguida, sem deixar de encará-la.
null e Jennie se encararam por um momento longo demais. O desejo era quase tangível, pairando no ar com uma intensidade que eles não podiam ignorar, talvez nem quisessem. Os olhares se cruzaram, e algo silencioso passou entre eles, um entendimento compartilhado que tornava o ambiente ao redor quase irrelevante. A tensão cresceu, e cada segundo parecia mais carregado do que o anterior.
— Devemos sair da mesa para deixar os pombinhos? — Tony disse, com um sorriso maroto.
null riu, mexendo no copo de bebida ao inclinar a cabeça para olhar para o amigo de forma preguiçosa.
— Não vai ser necessário, ele já estava me dando um fora — Jennie respondeu com sarcasmo, rindo enquanto trocava um olhar rápido com null.
Cameron, sempre o observador, se juntou ao riso.
— Não foi um fora, a gente só está conversando — null sorriu, tentando desviar o foco da situação.
Jennie levantou uma sobrancelha, seu olhar se tornando mais curioso, como se aquilo estivesse apenas começando.
O grupo continuou a conversa trocando comentários descontraídos sobre a noite, as músicas e as pessoas ao redor. null, com movimentos precisos e quase automáticos, tirou do bolso um pequeno estojo de couro desgastado, de onde retirou seda, filtro e uma pitada generosa de erva.
Enquanto ele bolava o baseado, o papo fluía com uma leveza que apenas o álcool e a música ao fundo poderiam proporcionar. Tony fazia piadas, Cameron soltava risadas ocasionais, e Jennie, apesar de não estar completamente inserida no grupo, acompanhava com um sorriso educado, como alguém que observa um zoológico de personalidades.
null terminou de enrolar o cigarro com um toque final: lambeu a borda da seda, selando-a com cuidado. Ele girou o baseado entre os dedos e, sem hesitar, acendeu-o com o isqueiro prateado que sempre carregava no bolso.
A chama iluminou brevemente seu rosto, destacando o sorriso despreocupado que ele lançou ao grupo. Ele levou o baseado aos lábios e deu uma tragada longa e generosa, soltando a fumaça devagar, como se saboreasse o momento.
— Nada como o primeiro da noite — murmurou o vocalista, com a voz rouca, enquanto observava a espiral de fumaça dançar no ar antes de se dissipar.
— Você fala isso sobre todos os baseados — Anthony não conteve uma risadinha.
— Eu tenho memória curta — null respondeu com um sorriso preguiçoso, arrancando risadas dos demais.
Ele repetiu o gesto, desta vez com mais intensidade, deixando a fumaça encher seus pulmões antes de soltá-la lentamente. Seus olhos semi-cerrados transmitiam uma mistura de relaxamento e introspecção. null bateu a guimba do cigarro em um cinzeiro no centro da mesa antes de estendê-lo para Jennie com um sorriso descontraído.
A repórter olhou para ele, erguendo as sobrancelhas, e depois para o cigarro. A hesitação era quase imperceptível, mas ainda assim estava lá, como se ela avaliasse a situação e pesasse as implicações do gesto.
— Obrigada, mas eu não uso drogas — respondeu a apresentadora, com uma expressão que era uma mistura de gentileza e firmeza.
Por um momento, houve um breve silêncio. null inclinou a cabeça, seus lábios se curvando em um sorriso travesso, enquanto Tony soltava uma gargalhada alta que cortou a tensão momentânea.
— Todo mundo diz isso até conhecer o null — zombou Tony, dando um leve tapa nas costas de null.
Engraçadinho — o vocalista revirou os olhos, mas manteve o sorriso nos lábios.
Jennie apenas riu, balançando a cabeça, enquanto Cameron, sem cerimônias, estendeu a mão e pegou o baseado das mãos de null.
— Mais pra mim então — disse Cameron, tragando o cigarro com a experiência de quem já tinha passado por muitas noites como aquela.
— Ela não sabe o que está perdendo — provocou o baixista, ganhando um dedo do meio como resposta dela.
— Ela não sabe o que é lutar com uma carga horária insana — brincou Cameron, tragando o baseado.
— Eu não tenho culpa se tenho direitos trabalhistas — Jennie rebateu com um sorriso ligeiramente presunçoso.
null, porém, mal ouvia a conversa. Seu olhar estava preso em null e Kalil, que dançavam juntos de forma inquietante, seus corpos praticamente grudados em um movimento sincronizado e sensual. Ele tentava se concentrar no que acontecia ao seu redor, mas sua mente insistia em se atentar ao que estava acontecendo do outro lado do pub. Era só o que faltava.
— Eu diria que o dinheiro compensa — comentou Tony, inspirando a fumaça que o modelo soltava ao seu lado como se fosse alguma espécie de aromatizante.
— Não é como se eu não trabalhasse cobrindo eventos como os que vocês fazem — disse Jennie com naturalidade, mas com um leve tom de deboche que foi capaz de despertar o vocalista por um momento.
null se obrigou a desviar os olhos da cena ao fundo e focar na apresentadora. Ele ergueu uma sobrancelha, desafiador.
— Você não aguentaria um dia no lugar da Ananda Lewis no Woodstock '99 — provocou ele.
Jennie o encarou de volta, os olhos brilhando de determinação.
— Eu adoraria tentar. Ela é uma lenda na MTV — respondeu, sem hesitar.
— Não se fazem mais festivais como antigamente — comentou null com um toque de nostalgia.
— Não posso dizer o mesmo dos músicos — replicou Jennie, mordendo levemente o lábio inferior, um gesto que fez null sentir algo se agitar dentro dele.
Mas antes que pudesse reagir, algo ao fundo voltou a capturar sua atenção. Ele viu null jogando a cabeça para trás em uma gargalhada sonora, enquanto Kalil a puxava pela cintura. O movimento parecia em câmera lenta, e o mundo ao redor de null parou por um instante.
Ele viu null lançar um olhar desafiador para Kalil antes de ele entrelaçar os dedos nos cabelos dela e puxá-la para um beijo ardente e explícito.
null desviou o olhar, atordoado, apenas para se deparar com Jennie o observando com intensidade. Suas bochechas estavam rosadas pelo efeito da bebida, a boca entreaberta como se ela soltasse o ar que vinha segurando, e seus olhos brilhavam com um misto de desejo e expectativa.
O vocalista umedeceu os próprios lábios, tentando focar no presente.
— Você quer sair daqui? — perguntou ele, a voz rouca.
Jennie não respondeu com palavras, apenas assentiu, um sorriso sugestivo surgindo em seus lábios.
Ele entrelaçou seus dedos aos dela, ignorando as despedidas, e a conduziu pelo mar de corpos na pista de dança até alcançarem a saída.
O vento da costa oeste os atingiu assim que estavam do lado de fora, mas null mal o sentiu. Sacou o celular, tocou na tela para pedir um carro, e, ao guardar o aparelho no bolso, notou Jennie observando-o com um sorriso malicioso que o fez esquecer momentaneamente do mundo ao redor.
Por um instante, porém, flashes do sorriso malicioso de null vieram à sua mente. Ele sentiu um aperto no peito, um breve embrulho no estômago. Mas antes que pudesse deixar aquilo afetá-lo de verdade ele fechou os olhos.
Sem pensar duas vezes, null puxou a apresentadora pela mão, ainda entrelaçada à sua, e selou os seus lábios.


Capítulo 16 — Sick Of Everyone


“I've become
Sick of everyone now
And I don't pray to voice of all the problems
And I don't care at all”
— Sick Of Everyone, Sum 41
.

— Eu vou arrancar os olhos puxados daquela japonesa de merda!
null irrompeu pela casa como uma tempestade, os passos firmes e decididos ecoando pelo chão de madeira. Anthony, ainda segurando a porta aberta, apenas a observou passar, sem surpresa alguma. Não era a primeira vez que ela entrava daquele jeito, e com certeza não seria a última.
Afinal, a casa era dela, o fato de outra pessoa estar morando ali ao invés dela parecia não passar de um mero inconveniente.
null, por sua vez, fechou os olhos por um breve segundo, absorvendo a pura satisfação daquele momento. O escândalo matinal de null era música para seus ouvidos. Mesmo que para isso ele tivesse que conviver com a guitarrista ainda mais do que o necessário, graças ao favorzinho dela.
— Quem? — perguntou o baixista, fazendo uma careta engraçada enquanto fechava a porta e seguia atrás dela em direção à sala de estar.
Quem? — null debochou, entredentes. — Jennie Mizu é claro.
null só não revirou os olhos porque estava concentrado demais para isso. Além de que ele se recusava a deixá-la pensar que se importava, coisa que estava longe de ser verdade.
Tony deu uma risadinha.
— Japonesa talvez não seja a palavra certa — comentou Kalil, com a tranquilidade que apenas um baterista experiente teria para fazer duas coisas ao mesmo tempo. Ele estava largado no sofá, os olhos pregados na tela enquanto jogava Cuphead com null no Playstation 5 ao mesmo tempo em que se esforçava para dar atenção à recém-chegada. — Eu ouvi em algum lugar que ela é americana.
O vocalista quase sorriu. Quase.
Ao menos o comentário do amigo contrariando a guitarrista aliada à privação da sua atenção total era alguma coisa. Talvez isso a ajudasse a aprender a não aparecer sem ser convidada.
— Na verdade… — Tony interveio, com um tom de receio dissimulado e tão tipicamente dele. — Ela é coreano-americana.
null se jogou no sofá ao lado de Kalil, os braços cruzados e a expressão azeda.
null sentiu um calor agradável no peito, quase como se estivesse sonhando. Quem diria que viveria para ver o dia em que todos se uniriam contra a adorada null null?
Mesmo que fosse apenas uma brincadeira, ele estava aproveitando cada segundo daquilo.
— Quem liga pra isso? — esbravejou ela. — Eles são todos iguais e eu vou acabar com a raça dela de qualquer jeito.
null não aguentou e explodiu em gargalhadas, acompanhado pelos amigos.
Ah, o som da frustração de null logo pela manhã. Era difícil imaginar um jeito melhor de começar o dia.
— O que Jennie fez pra você dessa vez? — perguntou Tony, o sorrisinho divertido brincando em seus lábios.
— Não me diga que não viram — null revirou os olhos, indignada.
O vocalista soltou uma risada nasal.
— Não sei se você percebeu, bonitinha, mas nós estamos um pouco ocupados — disse null, fazendo um gesto na direção da TV, onde ele e Kalil enfrentavam mais uma rodada de frustração em Cuphead.
null bufou, impaciente.
No instante seguinte, pela visão periférica, null percebeu um objeto vindo em sua direção. Seu reflexo foi rápido, as mãos se fechando ao redor do celular da guitarrista no último segundo.
— Ficou maluca?! — exclamou o vocalista, olhando para ela com incredulidade.
Por pouco não tinha sido atingido na cabeça pelo objeto voador.
Um gemido de frustração de Kalil chamou sua atenção, e quando voltou os olhos para a TV, viu a tela cinza da derrota mais uma vez.
— Fala sério, null — resmungou Kalil, largando o controle no sofá. — Nós estávamos quase conseguindo dessa vez.
null soltou uma risadinha contida, carregada com seu tradicional deboche.
— Não, vocês não estavam — desdenhou ela. — Ela nem tinha começado a teleportar ainda. Depois da mulher das cartas, tem mais dois mini bosses antes do King Dice.
null franziu o cenho.
— Você não pode ter zerado esse jogo.
— Não é tão difícil — null deu de ombros.
— Eu duvido.
— Eu posso fazer de novo, aqui, na sua frente. — ela arqueou uma sobrancelha, desafiadora.
null estreitou os olhos, tentando disfarçar o calor que subiu pelo seu corpo com uma expressão de desconfiança. Não era nada.
Ela não podia estar falando sério. Cuphead era simplesmente um inferno, o tipo de jogo que testava os limites da paciência de qualquer um. Se null tivesse mesmo zerado, ele duvidava que se prestaria ao trabalho de jogar tudo de novo. Mas, se estivesse mentindo, seria maravilhoso vê-la quebrando a cara. Por outro lado, se ela realmente conseguisse, sua pontuação ficaria gravada até que ele conseguisse superá-la, e ele não tinha certeza se tentaria de novo com essa lembrança insistente da mulher o assombrando.
null ficou tanto tempo em silêncio ponderando as possibilidades que nem percebeu quando null se aproximou. Só notou quando ela se inclinou sobre ele, mas sem olhar em seu rosto.
— Esquece — disse ela, a voz dela soou estranhamente baixa, quase decepcionada. Então, num movimento rápido, arrancou o celular das mãos dele e rumou para a cozinha, de cenho franzido.
null a acompanhou com o olhar, sem entender o que tinha acabado de acontecer. O que ela queria, que ele se importasse com os problemas dela?
null! — Tony chamou, acelerando o passo para acompanhá-la. — Nós só estávamos brincando.
— Fale por você — null murmurou, mais para si mesmo, ainda observando null transitar pela cozinha com movimentos impacientes.
Do outro lado, a guitarrista resmungava algo ininteligível enquanto revirava a geladeira, o barulho de garrafas de vidro se chocando ecoando pela casa. null e Kalil trocaram um olhar rápido, como se esperassem que a qualquer momento algo saísse do controle. E saiu — não do jeito que eles esperavam, mas com a intensidade de sempre.
No instante seguinte, null ressurgiu, equilibrando quatro long necks entre os dedos, e voltou para a sala. Sem dizer nada, entregou uma garrafa para cada um, mantendo a carranca fechada e os lábios comprimidos.
Aquilo era… Estranho.
Normalmente, null expressava sua fúria em palavras afiadas e ataques diretos, não em rodadas de cerveja silenciosas.
— Então… — null tentou puxar assunto, testando os limites da paciência dela.
null apenas lhe lançou um olhar gélido, daqueles que encerravam qualquer tentativa de conversa antes mesmo de começar.
— Você ainda não disse o que a Jennie fez — pontuou Kalil, apoiando os cotovelos nos joelhos enquanto analisava a expressão dela.
null soltou um suspiro carregado, do tipo que deixava claro o quanto já estava esgotada antes mesmo da conversa começar. Com um movimento desinteressado, entregou o celular para ele, antes de abrir a garrafa e dar um gole longo na bebida, como se precisasse daquilo para suportar a situação.
Kalil sequer precisou rolar a tela para soltar um baixo:
Merda.
null franziu o cenho.
Tony, por outro lado, bufou e, impaciente, tomou o celular das mãos do baterista.
— Que drama. Me dá isso — disse ele e encarou a tela, o cenho franzindo à medida que seus olhos percorriam o conteúdo.
O silêncio que se seguiu não foi reconfortante.
— Ela realmente está tentando entrar na sua cabeça — murmurou Tony, de repente, com um tom incomumente sério.
null revirou os olhos, exausto daquela enrolação.
— Aparentemente, está conseguindo — ele cruzou os braços.
— Você deve estar amando isso — disparou null, as palavras carregadas de sarcasmo.
— Eu vou, quando descobrir o que isso é — null estendeu a mão, esperando que Tony lhe passasse o celular.
O baixista hesitou por um segundo antes de entregar o aparelho. O gesto foi o suficiente para que o vocalista sentisse um nó na boca do estômago. null pegou e, assim que seus olhos bateram na tela, ele soube que devia ter permanecido no escuro.
É, ele não amou nem um pouco o que descobriu.
Ali estava, em letras garrafais no site do E! Online, mais uma manchete sensacionalista:
“Lance de uma noite? Integrantes da banda Disclaimer, Kalil Casablanca e null null, são flagrados em momento quente em pub de West Hollywood!”
Mas o verdadeiro golpe veio com a imagem que ilustrava a matéria.
No fundo escuro do The Viper Room, null e Kalil estavam em um amasso tão intenso que beirava o pornográfico. A guitarrista tinha as mãos enfiadas debaixo da camisa de Kalil, enquanto ele puxava sua saia curta ainda mais para cima, os corpos colados em um encaixe íntimo demais para parecer apenas uma ficada casual.
E o detalhe que tornava tudo pior? Aquilo tinha acontecido pouco depois de ele mesmo ter deixado o pub acompanhado da apresentadora de TV Jennie Mizu.
null sentiu um gosto amargo subir pela garganta.
Ele piscou, uma, duas vezes, como se pudesse apagar a cena de sua mente. Mas era tarde demais.
Ele soltou um riso curto, seco, tentando mascarar qualquer coisa que estivesse remoendo por dentro.
— Bom trabalho escondendo essa gracinha — o vocalista tentou soar debochado, mas o tom saiu estranho até para ele.
— Não estávamos escondendo nada — disse Kalil, direto, sem hesitação.
— Mas é claro que aquela puta mal-comida tinha que sair espalhando por aí — null bufou, os olhos faiscando irritação.
null se recostou no sofá, os olhos voltando para a manchete, como se pudesse encontrar alguma brecha ali que tornasse aquilo menos… Incômodo.
— Isso vai ser um problema pra vocês dois — disse ele, seu tom forçadamente indiferente.
— Por que seria um problema? — Tony interveio, dando de ombros. — Eu acho ótimo que vocês estejam juntos.
Nós não estamos juntos!null e Kalil responderam em uníssono.
null arqueou uma sobrancelha, cético.
Claro.
— Ainda não vejo o problema nisso — insistiu Tony.
null riu sem humor.
— É porque você não leu os comentários — ela se sentou ao lado do vocalista, debruçando-se sobre ele para deslizar o dedo pela tela do celular e começou a ler, um sorrisinho sarcástico nos lábios. — Quem diria que uma mamada era apenas o precioso para entrar para a banda?
null soltou um assobio baixo.
— Eu devia ter pensado nisso antes.
null se virou para ele num instante, os olhos faiscando.
— Com certeza! — ironizou ela, cruzando os braços, enquanto o seu tom exalava desgosto. — Todo mundo já sabia que ela aproveitou que o null estava fora pra dar uma chave de boceta neles.
null soltou uma risada genuína, mas foi recebido com olhares mortais.
Qual é? — ele limpou uma lágrima de riso. — Esse foi engraçado.
— Isso é ofensivo — resmungou null.
— Tudo que envolve você é ofensivo.
Ela revirou os olhos e abriu a boca para retrucar, mas foi cortada antes.
null! — Kalil a censurou, o tom de advertência evidente.
— Porra, Casablanca! Logo quando a coisa ia ficar boa! — Tony protestou, jogando as mãos para cima.
Cala a boca! — disseram os demais em uníssono.
Tony jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada alta.
— Ah, caras, eu amo vocês! — disse ele, limpando uma lágrima no canto do olho.
null soltou um suspiro pesado, voltando a rolar os comentários da matéria.
— Bem… Ao que parece, o showzinho de vocês no Viper Room não vai prejudicar apenas a reputação da querida null — comentou ele, erguendo os olhos para null. — Não que ela fosse grande coisa pra começo de conversa.
null — Kalil lançou um olhar de aviso.
— O que você quer dizer com isso? — null estreitou os olhos.
null sustentou o olhar dela, um sorriso torto brincando no canto dos lábios.
Escrevam o que eu tô falando, ela vai destruir o som da Disclaimer. Compositora fantasma é o meu piru — o vocalista suspirou, deslizando o dedo pela tela do celular enquanto lia os comentários seguintes. — Essa vadia vai deixar a banda fraca. Muito fácil tocar o que o Gus escreveu antes, difícil é fazer o que ele fazia.
O silêncio que se seguiu foi denso, carregado.
— Eles estão dizendo isso na internet? — Kalil quebrou a quietude, a incredulidade estampada no rosto.
null soltou um suspiro longo, pesado.
— Não é possível… — Tony resmungou, balançando a cabeça. — Tudo isso por causa de um beijo?
— Não é por causa do beijo, cara — null revirou os olhos, largando o celular no sofá como se a notícia já tivesse perdido a graça.
null soltou um riso seco, sem qualquer humor.
— Eles me amam quando não precisam cancelar o show que pagaram por causa do que aconteceu — a guitarrista refletiu, seu olhar se fixando em algum ponto distante, os dedos apertando o vidro da garrafa de cerveja. — Mas me odeiam quando percebem que eu realmente vou ficar.
Kalil franziu o cenho, desconfortável.
— Não é bem assim, null...
— O que? Eu não estou errada — rebateu ela, dando um gole longo na cerveja antes de continuar, sua voz mergulhando em um tom mais sombrio. — Vocês perdem o antigo guitarrista, e eu apareço do nada pra substituir ele. Ninguém sabe de onde eu vim, ninguém me escolheu. Eles só tinham que me aturar por alguns shows, mas aí… Surpresa. Eu não fui embora.
Houve um breve silêncio antes de null dar de ombros, impassível.
— Não posso dizer que não entendo como eles se sentem.
A tensão na sala pareceu aumentar significativamente.
— Você não tá ajudando, cara — Kalil resmungou, sem paciência.
— Eu não estou tentando.
— Mas você não precisa ficar dizendo.
— Deixa ele falar — null cortou, e quando null olhou para ela, viu que seus olhos estavam em chamas.
Ele sorriu de lado.
Ah, sim. Ele adorava ver quando ela começava a ferver.
— Eles têm todo o direito de não confiar nela — o vocalista revirou os olhos, antes de inclinar o corpo contra o sofá, relaxado. — Eu não confio.
null estreitou os olhos, os músculos do rosto se contraindo.
— Você realmente acha que defender a japinha vai te ajudar a comer ela? — A voz dela era puro veneno. — Ela nem está aqui!
null não se abalou. Apenas sorriu, aquele sorriso torto e canalha que fazia questão de exibir quando queria provocar alguém. Sempre que queria provocar ela.
— Ela não vendeu essas fotos.
— Como você poderia saber? — null rebateu no mesmo instante, os punhos cerrados ao lado do corpo.
null inclinou a cabeça levemente, o olhar afiado em um desafio silencioso.
— Porque nós saímos do pub juntos antes disso acontecer.
A reação foi instantânea.
— Você só pode estar de sacanagem com a minha cara! — null praticamente explodiu, o tom de voz cortante.
— Essa vadia é o inimigo.
— Só se for seu inimigo.
null grunhiu de frustração, como se precisasse se controlar para não atirar a garrafa de cerveja na cara dele.
— De todos nós.
null sustentou o olhar dela, sem pressa.
— Ela me pareceu bem amigável na cama.
O silêncio que se seguiu foi mortal.
Kalil e Tony pareceram prender a respiração, o olhar oscilando entre os dois como se estivessem assistindo a um incêndio se alastrar sem nenhuma intenção de apagar as chamas.
Os músculos no maxilar de null se contraíram.
Ela está tentando foder com a imagem da banda.
— Ela pode foder comigo quando quiser.
Aquilo foi a gota d’água.
null se levantou de repente, o sofá oscilando dramaticamente com o movimento brusco. Ela o encarou por um longo instante, o olhar carregado de puro desprezo, a respiração pesada, contida apenas por um fio de autocontrole.
Você é um escroto, null.
E então ela saiu da sala de estar, os passos duros ecoando pela casa.
null apenas sorriu, satisfeito.
Ele adorava quando conseguia irritá-la daquele jeito.
O silêncio durou apenas um instante antes do som inconfundível de um amplificador sendo ligado preencher a casa como um trovão.
null sentiu uma tensão prender seu corpo.
Era a sala de música.
No segundo seguinte, um acorde potente e distorcido rasgou o ar, vibrando pelas paredes da casa e reverberando direto no peito de null.
Não era apenas um toque casual.
Era um ataque.
Uma declaração de guerra.
O som explodiu como um raio, reverberando no peito de todos na sala, e null soube na mesma hora que aquilo não era só um impulso. null não estava apenas descontando a raiva em qualquer melodia desconexa—ela estava dizendo alguma coisa.
E ela estava dizendo muito bem.
A guitarrista não estava apenas tocando—ela estava destruindo o instrumento, arrancando daquelas cordas cada fragmento de frustração que fervilhava dentro dela.
Os dedos de null corriam pelo braço da guitarra como se fossem lâminas afiadas, arrancando uma melodia agressiva, bruta, mas incrivelmente precisa. O tipo de som que fazia a pele arrepiar. Era um solo intenso, carregado de técnica e ódio, cada nota soando como um soco certeiro. O tipo de som que fazia um vocalista pensar: Porra… Isso poderia ser uma música de verdade.
null piscou, como se precisasse de um momento para processar o que estava ouvindo.
Por um instante, ele até esqueceu que estava respirando.
Não era só habilidade.
Era sentimento puro.
Era uma resposta.
Tony soltou um assobio impressionado.
— Caralho…
Kalil apenas balançou a cabeça, um sorriso pequeno e resignado nos lábios.
— Ela tá puta.
E como estava.
O pé dela batia no chão no ritmo da música, os olhos fechados, completamente imersa no que tocava. O corpo se inclinava e se movia junto com os riffs como se fossem uma extensão dela.
Cada nota carregava uma carga emocional avassaladora—raiva, orgulho, desafio.
null odiava admitir, mas…
Porra.
Ela era boa.
Tão boa que, por alguns segundos, ele não soube o que pensar.
Não conseguiu.
Parecia que sentir era tudo o que restava.
O som rugia, preenchendo todos os cantos da casa com pura fúria sonora. Não havia hesitação, não havia erro. A guitarra chorava, urrava, explodia em um solo furioso que null sabia que ele mesmo não conseguiria reproduzir nem fodendo.
E aquilo queimava.
Queimava porque significava que os comentários na matéria estavam errados.
Queimava porque significava que ele estava errado.
null não estava ali só para preencher um espaço vazio.
Ela estava ali para dominar.
E, que se fodessem todos, ela estava conseguindo.
O som cortou abruptamente quando ela deslizou os dedos pelas cordas, encerrando o massacre com um silêncio tão pesado quanto a própria melodia.
null percebeu que estava com as mãos cerradas em punhos.
Respirou fundo e se levantou, andando até a sala de música.
null estava lá, ainda segurando a guitarra, o peito subindo e descendo enquanto recuperava o fôlego. Os cabelos caíam um pouco sobre o rosto, e seus olhos ardiam quando encontraram os dele.
— Você não precisa confiar em mim, só precisa confiar no meu trabalho — disse ela, a voz baixa, mas afiada como uma lâmina.
null abriu a boca, pronto para rebater.
Mas não saiu nada.
Nenhuma palavra.
Porque, pela primeira vez em muito tempo…
Ele não tinha argumento.




Continua...



Nota da autora: Esse capítulo não estava nos planos.
Acontece que quando eu estava scriptando o próximo capítulo pra mandar nessa atualização eu senti falta de alguma coisa. Já que estamos passando pela jornada de redenção da protagonista, ou melhor dizendo humanização da nossa diaba. Tô bem orgulhosa até, consegui escrever esse adicional mais rápido do que eu esperava, e não atrapalhou em nada o nosso cronograma. Modéstia parte eu gostei do resultado. E você achou o que?
No próximo capítulo já começamos a esperada road trip e com ela ficamos cada vez mais próximos do famigerado capítulo que todos estamos esperando desde o começo da história. Quem será que vai ceder primeiro?
Vejo vocês na próxima.
xXx Bleme.




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