Prólogo
2 de julho de 2003, 14:35 - Winchester, IL - A famigerada bronca
rolou os olhos mais uma vez e ganhou um tapa na cabeça.
— Não revire os olhos, moleque! Eu te criei melhor que isso — sua mãe, Linda, reclamou.
Ele fez uma careta, irritado.
— Você também me disse que devo aceitar um não quando receber um. Então por que aquela garota não pode fazer o mesmo?
— Ela gosta de você. Não esqueça o que eu sempre te disse, . Seja gentil e respeitoso com as mulheres e não as magoe propositalmente.
— Mas não foi de propósito, mãe! — ele retrucou, indignado com a bronca. — Eu só disse que não tenho interesse e ela começou a chorar.
Linda estreitou os olhos, desconfiada.
— Tem certeza?
— Absoluta — garantiu ele, sem nem hesitar, olhando no fundo de seus olhos, azuis estupidamente claros e frios como os que ele havia herdado dela.
Sua mãe respirou fundo e pareceu se acalmar um pouco.
— Só tome cuidado, filho. Tem homens por aí que são insensíveis e cruéis com as palavras. Só não quero que você seja um deles — ela justificou, olhando pela janela que dava uma visão da casa vizinha.
Era ali que sua melhor amiga morava com o marido e o filho caçula. O mais velho, , era o melhor amigo de e os dois basicamente conviviam juntos desde que ainda usavam fraldas. Tinham só três meses de diferença um do outro. No entanto, à medida que foi crescendo, e o pai pararam de se dar bem e fazia cerca de três anos que ele havia ido morar na casa do avô, que ficava a dois quarteirões dali.
Winchester era uma cidade minúscula onde todos se conheciam e meio que não era segredo de ninguém como o pai de tratava mal a esposa. Era um homem completamente imprevisível e até alguns anos antes ele tentava disfarçar quando alguém ouvia, mas até isso parecia ter sido deixado de lado, especialmente quando o filho saiu de casa.
suspirou e assentiu para a mãe, que veio até ele e o envolveu em um abraço carinhoso.
— Não vou me tornar um escroto que nem aquele cara, mãe. Além disso, tenho o papai como exemplo. Nunca vi ele te tratar mal.
— Até porque se ele fizesse isso eu o expulsava de casa — ela resmungou, fazendo-o rir.
No entanto, ambos sabiam que aquela brincadeira tinha um fundo de verdade. Diferente da casa vizinha, na deles era sua mãe quem mandava. Linda não deixava ninguém pisar nela, mas também era um poço de gentileza.
tinha certeza de que seu pai estava mais do que satisfeito em deixar que ela mandasse nele. Tinham casado cedo, logo após se formarem na escola, e dois anos depois, ele nasceu. Eram só os três ali e embora já tivessem perto de completar vinte anos juntos, nunca tinha conhecido nenhum casal tão apaixonado quanto seus pais.
Eles tinham o tipo de amor, amizade e companheirismo que ele almejava ter um dia, em um futuro distante provavelmente. Tinha só dezesseis anos e havia muito que ele queria fazer na vida antes de querer casar com alguém.
A primeira delas era sair daquela cidadezinha.
27 de janeiro de 2005, 17:36 - Winchester, IL - Uma semana antes do baile de formatura
— Não acredito que você fez isso, ! Você é um idiota escroto! — Ela o empurrou com força, fazendo-o dar um passo para trás.
Estavam no gramado da escola e era fim de tarde, com poucas pessoas ali, mas que estavam bem curiosas pela súbita discussão.
— É só um baile idiota, Stacy — ele falou com calma.
— Não é um baile idiota. É a nossa formatura! Achei que íamos juntos. Estávamos indo bem e... Podíamos concorrer ao rei e à rainha do baile.
respirou fundo e lutou para não revirar os olhos.
— Eu nunca disse que iria ao baile. Sinto muito se te passei essa impressão. Mas eu não vou nem estar aqui.
— E o que tem de tão importante que não pode ir?
— Eu vou embora em uma semana, Stacy. Bem, e eu vamos.
— Embora? — Ela arregalou seus grandes olhos castanhos em surpresa. — Pra onde?
— e eu conseguimos um emprego em Chicago. Além disso, queremos formar uma banda e não vamos conseguir nada ficando presos nessa cidade minúscula.
Ela abriu a boca em choque.
— E você não pensou em me contar? — A voz dela falhou e imediatamente um par de lágrimas escorreu. — Nós estávamos juntos!
— Estávamos? Olha... Sinto muito, Stacy. Mas eu nunca te pedi pra ser minha namorada nem nada.
— Como assim? A gente até transou.
— É. Três vezes. Sendo que a última vez foi em setembro — ele lembrou. — A gente nem ficou mais depois. Não sei de onde você tirou isso.
— Mas... A gente sempre andou junto e... Eu achei que era porque você não gostava de ter muito toque físico.
— E eu achei que éramos só amigos. Ficar algumas vezes não quer dizer namorar e você sabe disso.
Ele não entendia que tipo de lógica era aquela. Tinha certeza de que não havia demonstrado nenhum interesse em ter um relacionamento desde o período em que se envolveram, em julho do ano anterior.
Foi com Stacy que perdeu a virgindade, aos dezessete anos. Não estava bem nos planos acontecer durante aquele encontro que alguns caras da escola sugeriram que acontecesse, mas ele tinha bebido um pouco, o que o deixou bem mais relaxado que o normal, embora não estivesse bêbado.
Uma coisa levou a outra e sua primeira vez aconteceu no banco de trás do carro de Stacy. Foi desajeitado, rápido e... honestamente, ele não tinha gostado muito. No entanto, , que tinha um pouco mais de experiência que ele, garantiu que era normal na primeira vez.
Stacy era um ano mais velha e mais experiente também, mas tinha reprovado um ano e os dois acabaram na mesma turma da escola. Foi ela quem o conduziu da primeira e da segunda vez, quando quis dar mais uma chance ao sexo. Ela o ensinou como agradar uma garota e foi até divertido arrancar suspiros e gemidos baixos de seus lábios antes de se fundirem mais uma vez. Foi melhor, durou mais e os dois chegaram lá juntos, o que animou a querer um pouco mais.
No entanto, quando acabou, ele se sentiu vazio. Era um alívio momentâneo e embora tivesse sido bom, ele colocou na cabeça que era porque não estava acostumado ou, talvez, porque era apenas um lance físico.
Ele mudou de ideia duas semanas depois, quando ele e Stacy transaram pela terceira e última vez. Como na segunda, foi bom e deixou os dois satisfeitos, mas aquela coisa física não era bem algo que ele queria a longo prazo, a não ser que gostasse da pessoa.
O problema era que ele não sentia absolutamente nada por Stacy.
Fazia quatro meses desde então e os dois andavam na mesma rodinha de colegas na escola e se davam bem como amigos. Não tinham conversado mais a respeito nem tomado iniciativa de fazer aquilo de novo, mas Stacy era uma presença constante ao lado dele, ainda que não fossem tão próximos.
— Todo mundo meio que achava que a gente namorava. Achei que tivesse implícito. Você nunca foi de demonstrar sentimentos, mas achei que tivesse só sendo tímido…
— Hm... Eu não sou tímido, Stacy. Você sabe que eu falo o que penso. O que tivemos foi legal, mas... Foi só isso. Não tenho sentimentos por você.
Ele falou isso com uma voz suave, tentando se manter o mais gentil possível, mas mesmo assim…
Pá! Um tapa forte estalou em seu rosto, um instante depois.
a encarou meio atordoado e franziu o cenho.
— Que porra você acha que tá fazendo? — ele rosnou, irritado.
Seus olhos de repente eram como um par de blocos de gelo enquanto a encarava. Ele podia sentir toda a gentileza se esvaindo de seu corpo ao mesmo tempo em que o sangue fervia de indignação.
Ninguém havia batido nele antes, nem mesmo seus pais. E os petelecos que ganhava de sua mãe não contavam.
Quem aquela garota pensava que era para se achar no direito de bater nele?
— Você mereceu — foi o que ela respondeu, em seguida, se achando a dona da razão.
— Por que eu disse que não tenho interesse em você? Isso é justificativa pra me bater? Eu não te tratei mal, Stacy. Não sou um daqueles idiotas que você namorou, mas acho que pra você não faz diferença.
O olhar dela vacilou por um instante e ele viu seu lábio inferior tremer.
— , eu…
— Vê se me esquece — ele a interrompeu, dando um passo para frente até ficar bem próximo dela. — E aprende a receber um não, porra.
não se importou em ser gentil daquela vez, mesmo que ganhasse uma bronca da sua mãe uma vez que ele contasse sobre aquilo.
Tinha aprendido bem cedo que era melhor contar tudo antes que ela ficasse sabendo por outras pessoas e era algo que funcionava bem entre ele e os pais. Mas sua gentileza também tinha limites e ele não ia deixar aquela garota tratá-lo como quisesse só por causa de um ego ferido.
Enquanto caminhava para longe dos olhares curiosos, com a bochecha esquerda ainda ardendo, agradeceu aos céus por aquela ser sua última semana em Winchester.
Sabia que o futuro era incerto e que ele e teriam muito trabalho pela frente morando longe de casa, mas estavam preparados.
Em uma semana, estariam livres daquele buraco e se tudo desse certo, não precisariam mais voltar a não ser para fazer visitas.
rolou os olhos mais uma vez e ganhou um tapa na cabeça.
— Não revire os olhos, moleque! Eu te criei melhor que isso — sua mãe, Linda, reclamou.
Ele fez uma careta, irritado.
— Você também me disse que devo aceitar um não quando receber um. Então por que aquela garota não pode fazer o mesmo?
— Ela gosta de você. Não esqueça o que eu sempre te disse, . Seja gentil e respeitoso com as mulheres e não as magoe propositalmente.
— Mas não foi de propósito, mãe! — ele retrucou, indignado com a bronca. — Eu só disse que não tenho interesse e ela começou a chorar.
Linda estreitou os olhos, desconfiada.
— Tem certeza?
— Absoluta — garantiu ele, sem nem hesitar, olhando no fundo de seus olhos, azuis estupidamente claros e frios como os que ele havia herdado dela.
Sua mãe respirou fundo e pareceu se acalmar um pouco.
— Só tome cuidado, filho. Tem homens por aí que são insensíveis e cruéis com as palavras. Só não quero que você seja um deles — ela justificou, olhando pela janela que dava uma visão da casa vizinha.
Era ali que sua melhor amiga morava com o marido e o filho caçula. O mais velho, , era o melhor amigo de e os dois basicamente conviviam juntos desde que ainda usavam fraldas. Tinham só três meses de diferença um do outro. No entanto, à medida que foi crescendo, e o pai pararam de se dar bem e fazia cerca de três anos que ele havia ido morar na casa do avô, que ficava a dois quarteirões dali.
Winchester era uma cidade minúscula onde todos se conheciam e meio que não era segredo de ninguém como o pai de tratava mal a esposa. Era um homem completamente imprevisível e até alguns anos antes ele tentava disfarçar quando alguém ouvia, mas até isso parecia ter sido deixado de lado, especialmente quando o filho saiu de casa.
suspirou e assentiu para a mãe, que veio até ele e o envolveu em um abraço carinhoso.
— Não vou me tornar um escroto que nem aquele cara, mãe. Além disso, tenho o papai como exemplo. Nunca vi ele te tratar mal.
— Até porque se ele fizesse isso eu o expulsava de casa — ela resmungou, fazendo-o rir.
No entanto, ambos sabiam que aquela brincadeira tinha um fundo de verdade. Diferente da casa vizinha, na deles era sua mãe quem mandava. Linda não deixava ninguém pisar nela, mas também era um poço de gentileza.
tinha certeza de que seu pai estava mais do que satisfeito em deixar que ela mandasse nele. Tinham casado cedo, logo após se formarem na escola, e dois anos depois, ele nasceu. Eram só os três ali e embora já tivessem perto de completar vinte anos juntos, nunca tinha conhecido nenhum casal tão apaixonado quanto seus pais.
Eles tinham o tipo de amor, amizade e companheirismo que ele almejava ter um dia, em um futuro distante provavelmente. Tinha só dezesseis anos e havia muito que ele queria fazer na vida antes de querer casar com alguém.
A primeira delas era sair daquela cidadezinha.
27 de janeiro de 2005, 17:36 - Winchester, IL - Uma semana antes do baile de formatura
— Não acredito que você fez isso, ! Você é um idiota escroto! — Ela o empurrou com força, fazendo-o dar um passo para trás.
Estavam no gramado da escola e era fim de tarde, com poucas pessoas ali, mas que estavam bem curiosas pela súbita discussão.
— É só um baile idiota, Stacy — ele falou com calma.
— Não é um baile idiota. É a nossa formatura! Achei que íamos juntos. Estávamos indo bem e... Podíamos concorrer ao rei e à rainha do baile.
respirou fundo e lutou para não revirar os olhos.
— Eu nunca disse que iria ao baile. Sinto muito se te passei essa impressão. Mas eu não vou nem estar aqui.
— E o que tem de tão importante que não pode ir?
— Eu vou embora em uma semana, Stacy. Bem, e eu vamos.
— Embora? — Ela arregalou seus grandes olhos castanhos em surpresa. — Pra onde?
— e eu conseguimos um emprego em Chicago. Além disso, queremos formar uma banda e não vamos conseguir nada ficando presos nessa cidade minúscula.
Ela abriu a boca em choque.
— E você não pensou em me contar? — A voz dela falhou e imediatamente um par de lágrimas escorreu. — Nós estávamos juntos!
— Estávamos? Olha... Sinto muito, Stacy. Mas eu nunca te pedi pra ser minha namorada nem nada.
— Como assim? A gente até transou.
— É. Três vezes. Sendo que a última vez foi em setembro — ele lembrou. — A gente nem ficou mais depois. Não sei de onde você tirou isso.
— Mas... A gente sempre andou junto e... Eu achei que era porque você não gostava de ter muito toque físico.
— E eu achei que éramos só amigos. Ficar algumas vezes não quer dizer namorar e você sabe disso.
Ele não entendia que tipo de lógica era aquela. Tinha certeza de que não havia demonstrado nenhum interesse em ter um relacionamento desde o período em que se envolveram, em julho do ano anterior.
Foi com Stacy que perdeu a virgindade, aos dezessete anos. Não estava bem nos planos acontecer durante aquele encontro que alguns caras da escola sugeriram que acontecesse, mas ele tinha bebido um pouco, o que o deixou bem mais relaxado que o normal, embora não estivesse bêbado.
Uma coisa levou a outra e sua primeira vez aconteceu no banco de trás do carro de Stacy. Foi desajeitado, rápido e... honestamente, ele não tinha gostado muito. No entanto, , que tinha um pouco mais de experiência que ele, garantiu que era normal na primeira vez.
Stacy era um ano mais velha e mais experiente também, mas tinha reprovado um ano e os dois acabaram na mesma turma da escola. Foi ela quem o conduziu da primeira e da segunda vez, quando quis dar mais uma chance ao sexo. Ela o ensinou como agradar uma garota e foi até divertido arrancar suspiros e gemidos baixos de seus lábios antes de se fundirem mais uma vez. Foi melhor, durou mais e os dois chegaram lá juntos, o que animou a querer um pouco mais.
No entanto, quando acabou, ele se sentiu vazio. Era um alívio momentâneo e embora tivesse sido bom, ele colocou na cabeça que era porque não estava acostumado ou, talvez, porque era apenas um lance físico.
Ele mudou de ideia duas semanas depois, quando ele e Stacy transaram pela terceira e última vez. Como na segunda, foi bom e deixou os dois satisfeitos, mas aquela coisa física não era bem algo que ele queria a longo prazo, a não ser que gostasse da pessoa.
O problema era que ele não sentia absolutamente nada por Stacy.
Fazia quatro meses desde então e os dois andavam na mesma rodinha de colegas na escola e se davam bem como amigos. Não tinham conversado mais a respeito nem tomado iniciativa de fazer aquilo de novo, mas Stacy era uma presença constante ao lado dele, ainda que não fossem tão próximos.
— Todo mundo meio que achava que a gente namorava. Achei que tivesse implícito. Você nunca foi de demonstrar sentimentos, mas achei que tivesse só sendo tímido…
— Hm... Eu não sou tímido, Stacy. Você sabe que eu falo o que penso. O que tivemos foi legal, mas... Foi só isso. Não tenho sentimentos por você.
Ele falou isso com uma voz suave, tentando se manter o mais gentil possível, mas mesmo assim…
Pá! Um tapa forte estalou em seu rosto, um instante depois.
a encarou meio atordoado e franziu o cenho.
— Que porra você acha que tá fazendo? — ele rosnou, irritado.
Seus olhos de repente eram como um par de blocos de gelo enquanto a encarava. Ele podia sentir toda a gentileza se esvaindo de seu corpo ao mesmo tempo em que o sangue fervia de indignação.
Ninguém havia batido nele antes, nem mesmo seus pais. E os petelecos que ganhava de sua mãe não contavam.
Quem aquela garota pensava que era para se achar no direito de bater nele?
— Você mereceu — foi o que ela respondeu, em seguida, se achando a dona da razão.
— Por que eu disse que não tenho interesse em você? Isso é justificativa pra me bater? Eu não te tratei mal, Stacy. Não sou um daqueles idiotas que você namorou, mas acho que pra você não faz diferença.
O olhar dela vacilou por um instante e ele viu seu lábio inferior tremer.
— , eu…
— Vê se me esquece — ele a interrompeu, dando um passo para frente até ficar bem próximo dela. — E aprende a receber um não, porra.
não se importou em ser gentil daquela vez, mesmo que ganhasse uma bronca da sua mãe uma vez que ele contasse sobre aquilo.
Tinha aprendido bem cedo que era melhor contar tudo antes que ela ficasse sabendo por outras pessoas e era algo que funcionava bem entre ele e os pais. Mas sua gentileza também tinha limites e ele não ia deixar aquela garota tratá-lo como quisesse só por causa de um ego ferido.
Enquanto caminhava para longe dos olhares curiosos, com a bochecha esquerda ainda ardendo, agradeceu aos céus por aquela ser sua última semana em Winchester.
Sabia que o futuro era incerto e que ele e teriam muito trabalho pela frente morando longe de casa, mas estavam preparados.
Em uma semana, estariam livres daquele buraco e se tudo desse certo, não precisariam mais voltar a não ser para fazer visitas.
Capítulo 1
14 de agosto de 2017, 16:32 - Apartamento de Hero, Nova York, NY
— Que vaca! — xingou assim que terminou de ler o artigo que tinha acabado de mostrar. — vai ficar puto quando chegar e souber disso. Não acredito que ela fez isso.
— Pois é...
Nem ele, com certeza.
definitivamente não tinha sorte com mulheres que não fossem parentes ou amigas. A prova disso era que Hannah Smith, a sua até então ficante e com quem ele tinha terminado há cerca de um mês, havia tido a brilhante ideia de vender uma notícia sobre eles para um tabloide duvidoso em troca de algum dinheiro.
A questão era que a notícia era completamente mentirosa. A manchete grande ainda brilhava na tela de seu celular:
"Ex de afirma que ele teria provocado um aborto após rejeitar gravidez"
Logo abaixo, havia um texto enorme contando como havia terminado o relacionamento após Hannah contar sobre a gravidez, deixando claro que não queria mais nem ela, nem a criança e, por conta do choque, ela acabou tendo um aborto espontâneo uma semana depois. A pilantra tinha até mesmo conseguido um maldito teste de gravidez positivo para colocar na notícia.
— Você tem que processar ela — comentou, batucando um dedo no balcão da cozinha. — Isso é mentira, né? Esse lance da gravidez? Porque te conhecendo, você já teria contado pra mim ou . Você conta tudo pra gente.
Quase tudo, ele pensou. Mas aquele tipo de coisa? Com certeza.
— Óbvio que é. Ela nunca disse que tava grávida e eu sempre usei proteção nas vezes em que estivemos juntos. Até onde sei, o período dela foi umas duas semanas antes de eu terminar nosso caso, mas essa doida tá por aí agindo como se fosse minha namorada em primeiro lugar.
— Eu bem que falei pra você que eu não ia com a cara dela.
a encarou, inexpressivo.
— Sem ofensas, , mas você não vai com a cara de um monte de gente e mal faz amigos.
— Ei, eu fiz uma amiga nova. A Lexi, lembra?
— A Lexi é sua agente, ela praticamente nem conta.
— E a irmã dela, a Cami? — Ela estreitou os olhos. — A gente até saiu umas vezes, nós três.
— .
— Tá bom, eu admito. — Ela suspirou. — Não sou muito aberta a novas amizades, mas eu não ter ido com a cara da Hannah não tem nada a ver com isso. Mas só pra você saber, eu tirei a prova de que ela era maldosa há uns dois meses.
Aquilo era novidade.
— Quando? — Ele quis saber.
— Sabe aquela vez que vim deixar ratatouille pra você? Você tava no banho e eu esbarrei nela. A desgraçada me acusou de querer você e ao mesmo tempo.
— Como é?! — arregalou os olhos, chocado.
— Eu tive essa mesma reação. Quase voei em cima dela, mas pensei que se causasse uma cena ia fazer parecer que ela tinha razão. — Ela deu de ombros. — Então eu só sorri e falei que inveja causava rugas, depois fui embora.
— E por que você não disse isso antes?
— Sei lá, você parecia feliz com ela, e eu não queria atrapalhar isso. Mal te vi saindo com alguém em anos e você nunca assumiu um relacionamento público. Se é que já assumiu algum.
respirou fundo e esfregou o queixo, sentindo a barba por fazer.
— Eu não gostava dela assim. A Hannah era divertida e o sexo era bom, mas... Eu nunca consegui ficar com ninguém a longo prazo porque não consigo desenvolver sentimentos românticos.
— Como assim, não consegue? — riu, incrédula. — Você é uma das pessoas mais carinhosas que eu conheço, .
— Não na minha vida amorosa, aparentemente. Hannah começou a dar sinais de que queria levar o relacionamento adiante, ser mais do que só uma ficante. Mas foi ela quem sugeriu uma amizade com benefícios desde o início, com um papo de que não queria se prender a ninguém.
— E se foi um plano? Você disse que a viu em eventos algumas vezes, né?
— Sim, até que ela veio até mim, a gente flertou e... Bem, o resto você sabe. Mas durou só dois meses. Bem mais do que eu esperava, se quer saber.
— Vou começar a fazer uma triagem de pretendentes — A amiga disse, determinada. — Elas vão ter que passar por mim antes se quiserem se envolver com você.
riu pelo nariz e passou um braço pelo pescoço dela, a puxando para perto. Em seguida, depositou um beijo em sua têmpora.
— Sim, senhora. Acho bom mesmo, porque pelo visto parece que meu senso de julgamento é falho quando se trata da minha vida amorosa. Além de eu ter um talento nato em ferir o ego das mulheres com quem me envolvo, mesmo sem ter a intenção.
— Tipo a Stacy? — perguntou com um sorriso e revirou os olhos, se afastando dela.
— A Stacy não era de guardar rancor por muito tempo. Ela era mais do tipo falar e não fazer. A Hannah ficou quieta antes de soltar a bomba. Mas... — Ele franziu o cenho. — Porra, ? Um aborto? Isso é sério. Ela tinha que ser tão baixa?
Pela primeira vez naquela manhã, a ficha finalmente começou a cair, assim como a máscara de tranquilidade de . Será que ela não tinha noção de como uma mentira daquelas poderia impactar na imagem e na carreira dele? Seu telefone não tinha parado de vibrar desde a publicação daquele artigo e uma rápida olhada nas notificações foi o suficiente para ele saber que centenas de pessoas estavam enchendo suas redes sociais de xingamentos.
Henry já tinha ligado uma vez, informando que já estava tomando providências e tudo até então tinha passado como se fosse um sonho ruim. passou bons minutos esperando acordar a qualquer momento daquele absurdo, porque era isso o que aquilo era.
Ele rejeitar um filho? Provocar um aborto? Ele não tinha nem sido rude com Hannah quando terminou com ela. Até trocaram um abraço amigável no fim da conversa, mas lá estava ela, o esfaqueando pelas costas com uma mentira daquelas apenas para ganhar dinheiro.
suspirou e foi até ele, passando os braços ao redor de sua cintura, o envolvendo em um abraço.
— Eu sinto muito, . Essa acusação é grave demais e ainda acho que você tem que processar ela por isso. É o seu nome que tá em jogo, então me promete que não vai deixar essa idiota sair ilesa.
— Prometo sim. Mas antes quero conversar com ela na presença do meu advogado. Eu também tenho uma carta na manga que talvez faça ela desistir.
***
15 de agosto de 2017, 04:53 - Mansão , Nova York, NY
Ela estava cansada.
Terrivelmente cansada.
Não havia um músculo em seu corpo que não estivesse doendo e tinha certeza de que ensaiar toda a rotina de dança de uma vez só no dia anterior tinha contribuído para isso.
respirou fundo, sentindo um peso no peito enquanto puxava o ar. Em seguida, pegou um dos frascos de medicamentos, tirou uma cápsula e a colocou na boca, engolindo no seco. Sacudiu o frasco de um lado para o outro e conseguiu contar mais onze cápsulas restantes. Não ia dar nem para passar o resto daquele mês, pelo visto.
Uma grande merda, como sempre.
Fechou os olhos e soltou o ar devagar, tentando não chorar.
Não havia tempo para chorar, de todo modo. Era quase cinco da manhã e ela tinha que se aprontar para mais um dia de trabalho, embora mal tivesse dormido quatro horas durante a noite passada.
Além disso, seu medicamento não iria se comprar sozinho.
E custava malditos seiscentos dólares que ela tinha que ganhar nos próximos dez dias. Porque de jeito nenhum ela ia mexer em suas suadas economias e atrasar ainda mais o tempo de estadia naquele lugar.
Então, em um último momento de autopiedade, encarou o teto do quarto que era apenas grande o suficiente para caber uma cama e uma arara de roupas que ela podia apenas esticar o braço e alcançar. O cubículo era um pouco maior que o armário embaixo da escada onde Harry Potter tinha dormido e umas quatro vezes menor do que o quarto que ela costumava ocupar antes, naquela mesma casa.
Até os funcionários que viviam lá tinham cômodos maiores, com condições melhores, mas tudo o que deram a foi um antigo armário de vassouras. Um quartinho da bagunça que havia sido esvaziado assim que seu pai faleceu, um ano antes.
Havia sido um mal súbito. Uma parada cardíaca repentina, decorrente do mesmo problema de saúde que ela tinha herdado dele.
Em um momento, tinha um teto, plano de saúde e tempo suficiente para ensaiar e estudar dança enquanto trabalhava como garçonete em um emprego de meio período; então no próximo, menos de uma semana depois do funeral de Peter , ela descobriu que teria que pagar aluguel no lugar que tinha sido seu lar nos últimos anos.
Porque seu pai não havia nem mesmo colocado seu nome no testamento. Ele tinha uma mansão, dezenas de funcionários e uma empresa de sucesso no ramo de construção, mas não havia deixado nem uma mísera moeda para ela, como se não fosse nada, como se ela nem mesmo tivesse morado com ele por três anos antes de sua morte.
E eles nem mesmo tinham um relacionamento ruim. Não chegava a ser perfeito também, mas havia carinho entre eles e nunca tinha se sentido rejeitada até então. Foi para os Estados Unidos para fazer faculdade e tentar formar uma carreira ali no ramo da dança, e seu pai a tinha apoiado desde o início, garantindo que pagaria sua faculdade. E por mais que não precisasse trabalhar enquanto estava debaixo de sua asa, ela resolveu fazer mesmo assim.
Ai dela se não tivesse feito isso. Provavelmente estaria na rua àquela altura. Depois da leitura do testamento, sua madrasta, Sandra, exigiu pagamento pela sua hospedagem na mansão como se ela fosse uma estranha. Como se precisasse daquele dinheiro, quando ela e seus dois filhos — que nem mesmo tinham parentesco de sangue com seu pai — tinham herdado tudo.
havia se transformado em uma pária da noite para o dia e perdido quase todas as suas economias quando, de repente, foi excluída do plano de saúde familiar e teve que arcar com os custos exorbitantes de seus medicamentos.
Além disso, ainda havia a faculdade. Faltava dois anos para terminar o curso, mas tinha trancado porque seria impossível lidar com os custos sozinha. Ao menos não quando ela tinha uma irmã mais nova no Brasil, a quem tinha prometido ajudar a pagar a faculdade, e não fazia ideia de que aquela era sua nova realidade.
Ninguém da sua família, aliás.
Maia havia ficado bastante irritada quando anunciou que iria morar com o pai, em busca de seus sonhos. Acusou a irmã mais velha — meia-irmã, como ela sempre gostava de enfatizar — de abandoná-la com a avó materna das duas, para ir morar com o pai rico.
Mas aquele tipo de comportamento mesquinho e invejoso não era nenhuma novidade para . Maia nunca conheceu o pai, que abandonou a mãe delas quando ela ainda era um bebê, e saber que tinha uma boa relação com o dela só tornava tudo pior.
As duas mal se falaram nos últimos quatro anos. Suas conversas eram sempre resumidas a diálogos de menos de dez minutos, uma vez a cada quinze dias ou às vezes nem isso. Maia sequer agradeceu, nem mesmo uma vez, pelo dinheiro que mandava todo mês. Ambas sabiam que ela não tinha nenhuma obrigação legal de fazer isso, mas Maia agia como se lhe devesse algo, por ter ido embora sem ela. Por tê-la abandonado, assim como o pai e a mãe, que havia falecido alguns anos antes.
tinha que respirar fundo toda vez que ia falar com ela. Haviam discutido algumas vezes nos últimos anos, mas no último, depois da morte de Peter e de ter que colocar seus sonhos em segundo, terceiro plano para trabalhar dia e noite e arcar com os custos de seus medicamentos, mal teve energia para aquilo. Qualquer reclamação de Maia entrava por um ouvido e saía pelo outro, por mais que às vezes ela tivesse que se segurar para não falar algo ruim movida pela frustração causada pelas suas péssimas condições financeiras e situação de saúde precária.
vivia com um medo constante de passar mal e morrer, assim como tinha acontecido com o pai. Mas além disso, ainda havia o medo de passar mal e ter que arcar com custos hospitalares altíssimos que ela sabia que não teria como pagar.
O governo provavelmente deportaria alguém nessa situação, mas ela tinha cidadania americana desde que nasceu e, para todos os efeitos, era como qualquer um deles, mesmo tendo passado a maior parte da vida no Brasil, após o divórcio dos pais.
Suspirando mais uma vez, ela se arrastou pela cama, tentando ignorar cada músculo dolorido e pegou algumas peças de roupa, antes de sair do quarto até um dos banheiros dos funcionários que tinha certeza de que estava vazio àquela hora, considerando que todos se levantavam perto das seis horas, quando ela já estava de saída.
Meia hora mais tarde, passou na cozinha e roubou uma banana e um pacote de biscoitos do armário para comer no caminho até o trabalho.
Sandra era arrogante e idiota demais para se dar conta de qualquer comida faltando, assim como Charlie e Claire Taylor, seus dois filhos igualmente idiotas.
Às vezes, só queria cair na cama à noite um pouco mais cedo, mas passava mais tempo na rua só para evitar esbarrar com qualquer um dos três.
Funcionava, na maioria das vezes. Especialmente quando ela usava apenas os percursos de entrada e saída dos funcionários, com exceção do jardim. Às vezes, ela esbarrava em Charlie e seu carro caríssimo de última geração quando voltava para casa, enquanto ele saía para alguma festa, mas noventa por cento das vezes, ele a ignorava.
De todo modo, qualquer falta de interação com aquela família não fazia diferença para . Nunca haviam sido próximos e assim que seu pai faleceu, ela se deu conta de que todos os sorrisos e gentilezas eram pura falsidade para agradar Peter.
Mal via a hora de sair dali e ter seu próprio cantinho. Mas manter sua saúde em ordem e ainda bancar Maia era meio caro e não a permitia juntar dinheiro quanto seria possível se tudo o que ganhasse fosse direcionado com ela mesma. Isso sem contar com as moradias extremamente caras de Nova York.
Então ela tinha que aguentar mais um pouco. Talvez só mais uns seis meses até encontrar um lugar razoável e coragem para sair dali também. Querendo ou não, aquela casa era tudo o que conhecia e não tinha nenhum amigo ou amiga próxima que pudesse lhe dar apoio moral para enfrentar o mundo.
Era por ela mesma.
E um novo dia estava apenas começando.
— Que vaca! — xingou assim que terminou de ler o artigo que tinha acabado de mostrar. — vai ficar puto quando chegar e souber disso. Não acredito que ela fez isso.
— Pois é...
Nem ele, com certeza.
definitivamente não tinha sorte com mulheres que não fossem parentes ou amigas. A prova disso era que Hannah Smith, a sua até então ficante e com quem ele tinha terminado há cerca de um mês, havia tido a brilhante ideia de vender uma notícia sobre eles para um tabloide duvidoso em troca de algum dinheiro.
A questão era que a notícia era completamente mentirosa. A manchete grande ainda brilhava na tela de seu celular:
"Ex de afirma que ele teria provocado um aborto após rejeitar gravidez"
Logo abaixo, havia um texto enorme contando como havia terminado o relacionamento após Hannah contar sobre a gravidez, deixando claro que não queria mais nem ela, nem a criança e, por conta do choque, ela acabou tendo um aborto espontâneo uma semana depois. A pilantra tinha até mesmo conseguido um maldito teste de gravidez positivo para colocar na notícia.
— Você tem que processar ela — comentou, batucando um dedo no balcão da cozinha. — Isso é mentira, né? Esse lance da gravidez? Porque te conhecendo, você já teria contado pra mim ou . Você conta tudo pra gente.
Quase tudo, ele pensou. Mas aquele tipo de coisa? Com certeza.
— Óbvio que é. Ela nunca disse que tava grávida e eu sempre usei proteção nas vezes em que estivemos juntos. Até onde sei, o período dela foi umas duas semanas antes de eu terminar nosso caso, mas essa doida tá por aí agindo como se fosse minha namorada em primeiro lugar.
— Eu bem que falei pra você que eu não ia com a cara dela.
a encarou, inexpressivo.
— Sem ofensas, , mas você não vai com a cara de um monte de gente e mal faz amigos.
— Ei, eu fiz uma amiga nova. A Lexi, lembra?
— A Lexi é sua agente, ela praticamente nem conta.
— E a irmã dela, a Cami? — Ela estreitou os olhos. — A gente até saiu umas vezes, nós três.
— .
— Tá bom, eu admito. — Ela suspirou. — Não sou muito aberta a novas amizades, mas eu não ter ido com a cara da Hannah não tem nada a ver com isso. Mas só pra você saber, eu tirei a prova de que ela era maldosa há uns dois meses.
Aquilo era novidade.
— Quando? — Ele quis saber.
— Sabe aquela vez que vim deixar ratatouille pra você? Você tava no banho e eu esbarrei nela. A desgraçada me acusou de querer você e ao mesmo tempo.
— Como é?! — arregalou os olhos, chocado.
— Eu tive essa mesma reação. Quase voei em cima dela, mas pensei que se causasse uma cena ia fazer parecer que ela tinha razão. — Ela deu de ombros. — Então eu só sorri e falei que inveja causava rugas, depois fui embora.
— E por que você não disse isso antes?
— Sei lá, você parecia feliz com ela, e eu não queria atrapalhar isso. Mal te vi saindo com alguém em anos e você nunca assumiu um relacionamento público. Se é que já assumiu algum.
respirou fundo e esfregou o queixo, sentindo a barba por fazer.
— Eu não gostava dela assim. A Hannah era divertida e o sexo era bom, mas... Eu nunca consegui ficar com ninguém a longo prazo porque não consigo desenvolver sentimentos românticos.
— Como assim, não consegue? — riu, incrédula. — Você é uma das pessoas mais carinhosas que eu conheço, .
— Não na minha vida amorosa, aparentemente. Hannah começou a dar sinais de que queria levar o relacionamento adiante, ser mais do que só uma ficante. Mas foi ela quem sugeriu uma amizade com benefícios desde o início, com um papo de que não queria se prender a ninguém.
— E se foi um plano? Você disse que a viu em eventos algumas vezes, né?
— Sim, até que ela veio até mim, a gente flertou e... Bem, o resto você sabe. Mas durou só dois meses. Bem mais do que eu esperava, se quer saber.
— Vou começar a fazer uma triagem de pretendentes — A amiga disse, determinada. — Elas vão ter que passar por mim antes se quiserem se envolver com você.
riu pelo nariz e passou um braço pelo pescoço dela, a puxando para perto. Em seguida, depositou um beijo em sua têmpora.
— Sim, senhora. Acho bom mesmo, porque pelo visto parece que meu senso de julgamento é falho quando se trata da minha vida amorosa. Além de eu ter um talento nato em ferir o ego das mulheres com quem me envolvo, mesmo sem ter a intenção.
— Tipo a Stacy? — perguntou com um sorriso e revirou os olhos, se afastando dela.
— A Stacy não era de guardar rancor por muito tempo. Ela era mais do tipo falar e não fazer. A Hannah ficou quieta antes de soltar a bomba. Mas... — Ele franziu o cenho. — Porra, ? Um aborto? Isso é sério. Ela tinha que ser tão baixa?
Pela primeira vez naquela manhã, a ficha finalmente começou a cair, assim como a máscara de tranquilidade de . Será que ela não tinha noção de como uma mentira daquelas poderia impactar na imagem e na carreira dele? Seu telefone não tinha parado de vibrar desde a publicação daquele artigo e uma rápida olhada nas notificações foi o suficiente para ele saber que centenas de pessoas estavam enchendo suas redes sociais de xingamentos.
Henry já tinha ligado uma vez, informando que já estava tomando providências e tudo até então tinha passado como se fosse um sonho ruim. passou bons minutos esperando acordar a qualquer momento daquele absurdo, porque era isso o que aquilo era.
Ele rejeitar um filho? Provocar um aborto? Ele não tinha nem sido rude com Hannah quando terminou com ela. Até trocaram um abraço amigável no fim da conversa, mas lá estava ela, o esfaqueando pelas costas com uma mentira daquelas apenas para ganhar dinheiro.
suspirou e foi até ele, passando os braços ao redor de sua cintura, o envolvendo em um abraço.
— Eu sinto muito, . Essa acusação é grave demais e ainda acho que você tem que processar ela por isso. É o seu nome que tá em jogo, então me promete que não vai deixar essa idiota sair ilesa.
— Prometo sim. Mas antes quero conversar com ela na presença do meu advogado. Eu também tenho uma carta na manga que talvez faça ela desistir.
15 de agosto de 2017, 04:53 - Mansão , Nova York, NY
Ela estava cansada.
Terrivelmente cansada.
Não havia um músculo em seu corpo que não estivesse doendo e tinha certeza de que ensaiar toda a rotina de dança de uma vez só no dia anterior tinha contribuído para isso.
respirou fundo, sentindo um peso no peito enquanto puxava o ar. Em seguida, pegou um dos frascos de medicamentos, tirou uma cápsula e a colocou na boca, engolindo no seco. Sacudiu o frasco de um lado para o outro e conseguiu contar mais onze cápsulas restantes. Não ia dar nem para passar o resto daquele mês, pelo visto.
Uma grande merda, como sempre.
Fechou os olhos e soltou o ar devagar, tentando não chorar.
Não havia tempo para chorar, de todo modo. Era quase cinco da manhã e ela tinha que se aprontar para mais um dia de trabalho, embora mal tivesse dormido quatro horas durante a noite passada.
Além disso, seu medicamento não iria se comprar sozinho.
E custava malditos seiscentos dólares que ela tinha que ganhar nos próximos dez dias. Porque de jeito nenhum ela ia mexer em suas suadas economias e atrasar ainda mais o tempo de estadia naquele lugar.
Então, em um último momento de autopiedade, encarou o teto do quarto que era apenas grande o suficiente para caber uma cama e uma arara de roupas que ela podia apenas esticar o braço e alcançar. O cubículo era um pouco maior que o armário embaixo da escada onde Harry Potter tinha dormido e umas quatro vezes menor do que o quarto que ela costumava ocupar antes, naquela mesma casa.
Até os funcionários que viviam lá tinham cômodos maiores, com condições melhores, mas tudo o que deram a foi um antigo armário de vassouras. Um quartinho da bagunça que havia sido esvaziado assim que seu pai faleceu, um ano antes.
Havia sido um mal súbito. Uma parada cardíaca repentina, decorrente do mesmo problema de saúde que ela tinha herdado dele.
Em um momento, tinha um teto, plano de saúde e tempo suficiente para ensaiar e estudar dança enquanto trabalhava como garçonete em um emprego de meio período; então no próximo, menos de uma semana depois do funeral de Peter , ela descobriu que teria que pagar aluguel no lugar que tinha sido seu lar nos últimos anos.
Porque seu pai não havia nem mesmo colocado seu nome no testamento. Ele tinha uma mansão, dezenas de funcionários e uma empresa de sucesso no ramo de construção, mas não havia deixado nem uma mísera moeda para ela, como se não fosse nada, como se ela nem mesmo tivesse morado com ele por três anos antes de sua morte.
E eles nem mesmo tinham um relacionamento ruim. Não chegava a ser perfeito também, mas havia carinho entre eles e nunca tinha se sentido rejeitada até então. Foi para os Estados Unidos para fazer faculdade e tentar formar uma carreira ali no ramo da dança, e seu pai a tinha apoiado desde o início, garantindo que pagaria sua faculdade. E por mais que não precisasse trabalhar enquanto estava debaixo de sua asa, ela resolveu fazer mesmo assim.
Ai dela se não tivesse feito isso. Provavelmente estaria na rua àquela altura. Depois da leitura do testamento, sua madrasta, Sandra, exigiu pagamento pela sua hospedagem na mansão como se ela fosse uma estranha. Como se precisasse daquele dinheiro, quando ela e seus dois filhos — que nem mesmo tinham parentesco de sangue com seu pai — tinham herdado tudo.
havia se transformado em uma pária da noite para o dia e perdido quase todas as suas economias quando, de repente, foi excluída do plano de saúde familiar e teve que arcar com os custos exorbitantes de seus medicamentos.
Além disso, ainda havia a faculdade. Faltava dois anos para terminar o curso, mas tinha trancado porque seria impossível lidar com os custos sozinha. Ao menos não quando ela tinha uma irmã mais nova no Brasil, a quem tinha prometido ajudar a pagar a faculdade, e não fazia ideia de que aquela era sua nova realidade.
Ninguém da sua família, aliás.
Maia havia ficado bastante irritada quando anunciou que iria morar com o pai, em busca de seus sonhos. Acusou a irmã mais velha — meia-irmã, como ela sempre gostava de enfatizar — de abandoná-la com a avó materna das duas, para ir morar com o pai rico.
Mas aquele tipo de comportamento mesquinho e invejoso não era nenhuma novidade para . Maia nunca conheceu o pai, que abandonou a mãe delas quando ela ainda era um bebê, e saber que tinha uma boa relação com o dela só tornava tudo pior.
As duas mal se falaram nos últimos quatro anos. Suas conversas eram sempre resumidas a diálogos de menos de dez minutos, uma vez a cada quinze dias ou às vezes nem isso. Maia sequer agradeceu, nem mesmo uma vez, pelo dinheiro que mandava todo mês. Ambas sabiam que ela não tinha nenhuma obrigação legal de fazer isso, mas Maia agia como se lhe devesse algo, por ter ido embora sem ela. Por tê-la abandonado, assim como o pai e a mãe, que havia falecido alguns anos antes.
tinha que respirar fundo toda vez que ia falar com ela. Haviam discutido algumas vezes nos últimos anos, mas no último, depois da morte de Peter e de ter que colocar seus sonhos em segundo, terceiro plano para trabalhar dia e noite e arcar com os custos de seus medicamentos, mal teve energia para aquilo. Qualquer reclamação de Maia entrava por um ouvido e saía pelo outro, por mais que às vezes ela tivesse que se segurar para não falar algo ruim movida pela frustração causada pelas suas péssimas condições financeiras e situação de saúde precária.
vivia com um medo constante de passar mal e morrer, assim como tinha acontecido com o pai. Mas além disso, ainda havia o medo de passar mal e ter que arcar com custos hospitalares altíssimos que ela sabia que não teria como pagar.
O governo provavelmente deportaria alguém nessa situação, mas ela tinha cidadania americana desde que nasceu e, para todos os efeitos, era como qualquer um deles, mesmo tendo passado a maior parte da vida no Brasil, após o divórcio dos pais.
Suspirando mais uma vez, ela se arrastou pela cama, tentando ignorar cada músculo dolorido e pegou algumas peças de roupa, antes de sair do quarto até um dos banheiros dos funcionários que tinha certeza de que estava vazio àquela hora, considerando que todos se levantavam perto das seis horas, quando ela já estava de saída.
Meia hora mais tarde, passou na cozinha e roubou uma banana e um pacote de biscoitos do armário para comer no caminho até o trabalho.
Sandra era arrogante e idiota demais para se dar conta de qualquer comida faltando, assim como Charlie e Claire Taylor, seus dois filhos igualmente idiotas.
Às vezes, só queria cair na cama à noite um pouco mais cedo, mas passava mais tempo na rua só para evitar esbarrar com qualquer um dos três.
Funcionava, na maioria das vezes. Especialmente quando ela usava apenas os percursos de entrada e saída dos funcionários, com exceção do jardim. Às vezes, ela esbarrava em Charlie e seu carro caríssimo de última geração quando voltava para casa, enquanto ele saía para alguma festa, mas noventa por cento das vezes, ele a ignorava.
De todo modo, qualquer falta de interação com aquela família não fazia diferença para . Nunca haviam sido próximos e assim que seu pai faleceu, ela se deu conta de que todos os sorrisos e gentilezas eram pura falsidade para agradar Peter.
Mal via a hora de sair dali e ter seu próprio cantinho. Mas manter sua saúde em ordem e ainda bancar Maia era meio caro e não a permitia juntar dinheiro quanto seria possível se tudo o que ganhasse fosse direcionado com ela mesma. Isso sem contar com as moradias extremamente caras de Nova York.
Então ela tinha que aguentar mais um pouco. Talvez só mais uns seis meses até encontrar um lugar razoável e coragem para sair dali também. Querendo ou não, aquela casa era tudo o que conhecia e não tinha nenhum amigo ou amiga próxima que pudesse lhe dar apoio moral para enfrentar o mundo.
Era por ela mesma.
E um novo dia estava apenas começando.
Capítulo 2
19 de agosto de 2017 - Escritório de Advocacia Greenville, Nova York, NY
"No último domingo foi relatado pela Srta. Hannah Smith que o Sr. , meu cliente, teria a rejeitado após a mesma contar sobre uma suposta gravidez que teve um triste fim após o término do relacionamento dos dois.
O Sr. e a Srta. Smith terminaram seu relacionamento — cujo não havia qualquer tipo de compromisso — há pouco mais de um mês, em bons termos e com um sorriso no rosto.
O que ela relata sobre ter sido maltratada e rejeitada são argumentos irreais e não havia qualquer possibilidade de uma gravidez em que meu cliente seria o pai.
Infelizmente, a Srta. Smith resolveu expressar seu descontentamento com o fim do relacionamento um mês mais tarde, através de uma mentira mesquinha, cabulosa e completamente irresponsável, acusando meu cliente de ser culpado por algo que nunca aconteceu. O Sr. em nenhum momento expressou ser o tipo de pessoa que ela relata, e nunca esteve envolvido em escândalos pessoais em mais de uma década de carreira.
Temos provas concretas que podem facilmente refutar tais argumentos irreais, mas para preservar a privacidade das duas partes, isso será tratado em particular.
Nota por Derick Greenville, advogado representante de ."
encarou Hannah de braços cruzados por um instante, em silêncio. Derick, seu advogado, estava ao seu lado, ambos sentados no sofá de seu escritório, com Hannah em frente a eles.
— Você só pode ser muito sem noção pra me acusar de uma coisa dessas. — Era a primeira vez que ele falava com ela desde o término. A primeira vez que a via também.
Algumas horas depois que soube do artigo mentiroso que tinha sido publicado, entrou em contato com Derick, que sugeriu que ele não tentasse entrar em contato com ela sozinho. Durante a semana inteira ele evitou sair de casa e até mesmo entrar nas redes sociais, cheias de pessoas o bombardeando com xingamentos, o acusando de ser misógino e irresponsável, além de outras coisas, como se ele não fosse uma figura pública há mais de dez anos, conhecido por ser exatamente o contrário do tipo de pessoa que Hannah o tinha acusado de ser.
Era inacreditável.
— Eu estava com raiva. — Ela deu de ombros. — Além disso, você não pode provar que era mentira.
— Não posso? — arqueou uma sobrancelha. — Pelo visto, você não me conhece direito, Hannah. Posso fazer muita coisa por você, assim como você fez comigo.
Ela riu, irônica, não parecendo nem um pouco preocupada.
— Tipo o quê? A gente mal saía em público. Até onde sei, você podia mesmo ser um manipulador idiota.
— Pelo menos eu não te mantive em banho maria enquanto saía com outra pessoa. — Ele sorriu, vendo a expressão dela vacilar.
— Como assim? — Hannah quis saber.
então encarou Derick e ele empurrou uma pasta de arquivos que estava em cima da mesa de centro até ela.
Hannah abriu e arregalou os olhos.
Ele sabia exatamente o que ela estava vendo. Bem ali, na primeira página, havia uma sequência de fotos datadas de duas semanas antes do término. Nelas, Hannah estava abraçada e aos beijos com outro homem em um passeio no Central Park.
— Eu não terminei com você sem motivo, sabe. Você era divertida, Hannah.
— Nós não tínhamos compromisso. Não pode me culpar por-
— Mas tínhamos um acordo de sermos exclusivos pelo tempo que durasse. Não menti quando disse que não tinha sentimentos por você. Não fiquei com o ego ferido nem magoado por descobrir que você tava saindo com outro cara enquanto tava comigo. Se você quis sair com ele, foi porque nosso acordo não tava mais te deixando feliz. Não posso te culpar por isso. Mas posso te culpar por não me dizer e ficar com nós dois, como se nada tivesse acontecendo.
— Quando você descobriu? — ela perguntou e ele a viu engolir em seco.
— Umas duas semanas antes de terminar com você. Eu tava esperando pra ver se você ia me contar, mas como não aconteceu, resolvi tomar a iniciativa — ele contou. — Mas preferi fingir não saber pra evitar uma discussão. Foi um término amigável, e eu supus que você tivesse ficado aliviada.
— Você não me queria como sua namorada. Arranjei alguém que quis, mas...
— Mas você preferiu me trair a ser honesta. E ainda falar um monte de merda sem se importar com como isso ia me afetar. — Ele concluiu. — Eu fui muito paciente, Hannah. Mas não aceito esse tipo de coisa de jeito nenhum, então porque você não termina de ver os arquivos?
Hannah apertou os lábios em uma linha fina e passou as próximas páginas, seu olhar paralisando quando leu as palavras que estavam ali.
— O que é isso?
— A prova que você disse que eu não conseguiria. Não subestime minha inteligência, por favor. Não sou só um rostinho bonito com quem você transava às vezes.
Derick pigarreou ao seu lado.
— Como você pode ver, srta. Smith, temos provas contra suas mentiras. No entanto, para evitar levar isso para a corte, o Sr. prefere fazer um acordo.
— Que tipo de acordo? — Hannah perguntou, encarando , mas ele permaneceu em silêncio, a encarando com seus olhos azuis frios e quase transparentes.
— Você deve se retratar publicamente, assumindo que o que relatou no artigo é mentira, e assinar um acordo de confidencialidade sobre o que acabou de ver — Derick explicou. — Em troca, meu cliente vai deixar esse assunto de lado e não te processar. Desde já adianto que caso aceite o acordo e o quebre depois, darei início a um processo imediatamente.
Hannah franziu o cenho, mas por fim assentiu.
— Tudo bem, onde eu tenho que assinar?
conteve um sorriso de escárnio assim que ouviu.
— Eu devia ter ouvido a quando ela disse que não gostava de você. E você ainda a acusou de ter um caso comigo enquanto namora meu melhor amigo. — Ele riu, sem humor.
Hannah terminou de assinar e empurrou o documento de volta para Derick.
— Você passou mais tempo com ela do que comigo. Você até saía com ela.
— Ela é minha melhor amiga. Não há quaisquer sentimentos românticos entre nós, assim como não havia entre a gente, Hannah. Além disso, eu nunca trairia o cara que cresceu comigo como se fosse meu irmão.
— Eu gostava de você, . Fiquei com ciúmes.
— Devia gostar mesmo, já que sempre te tratei bem e nada como o que você disse no artigo — ele comentou, se inclinando para assinar os documentos também. — Espero que isso sirva de lição pra você refletir e parar de ser mesquinha por causa da porra de um ego ferido. Você não tava apaixonada por mim, Hannah. E a partir de agora, somos desconhecidos. Não quero ver ou ouvir nada de você falando de mim depois da sua retratação.
Hannah suspirou, soltando o ar de uma vez.
— , eu... Sinto muito.
— Você tem quarenta e oito horas pra consertar a merda que fez — ele disse, a encarando uma última vez, antes de se levantar e deixar a sala sem olhar para trás.
***
19 de agosto de 2017, mesmo dia, algumas horas mais tarde - Apartamento de , Nova York, NY
encarou a tela do celular por um instante e respirou fundo, antes de retornar a ligação perdida, já se preparando para levar uma bronca. Vinha evitando a mãe há dias e ela já estava ameaçando caçá-lo se ele não respondesse nas próximas vinte e quatro horas.
Linda continuava a mesma de sempre e provavelmente era a única mulher que o assustava. Então sabendo que postergar aquela conversa só pioraria as coisas, ele decidiu fazer a ligação de uma vez.
Dois toques depois, ouviu a tão familiar voz.
— ! Eu já estava prestes a arrombar o seu apartamento! Quem mandou você evitar as minhas ligações? E que história é essa na internet? Quem é aquela tal de Hannah Smith?!
— Mãe, aquele artigo não tem nenhuma verdade. Eu mandei mensagem te dizendo, não atendi antes porque eu queria resolver logo isso antes da gente conversar — ele começou. — A Hannah era uma ficante. A gente saiu por uns três meses até eu descobrir que ela tava vendo outro cara.
— Ela te traiu?! Ah, meu amor, sinto muito — ela murmurou do outro lado, o tom de voz um pouco mais suave.
— Não sinta. Eu não tinha sentimentos por ela, era só... Bem, você sabe. Ela demonstrou interesse em algo mais, só que nunca dei bola — ele explicou. — Pensei que ela tava infeliz com nossa... Amizade. Até esperei ela me contar sobre o outro cara, só que isso não aconteceu. Eu nem disse pra ela que eu sabia quando a gente terminou e-
A campainha tocou, o interrompendo no meio da frase.
— Só um instante, mãe. É a campainha. — Ele rapidamente se dirigiu até a porta e quando a abriu, encontrou uma garota de cabelo escuro que o encarou como se estivesse vendo um fantasma. Os olhos dele rapidamente pousaram no crachá ao redor do pescoço dela. — Oi, pode entrar. — Ele abriu espaço para ela e fez sinal para que esperasse um minuto.
— Então, mãe. Ela tava de boa quando a gente terminou, a gente até se abraçou depois. Daí agora ela me vem com essa mentira sem noção um mês depois. — Ele se afastou por um momento, para terminar a conversa.
Ainda parada à porta, a garota checou a hora no celular e olhou ao redor do apartamento grande e chique que aquele cara tinha.
Aquele era o terceiro lar que visitava naquele dia. Não parecia muito sujo, mas sabia por experiência própria que não devia se animar até ver a cozinha. Geralmente era a pior parte de se limpar e a mais negligenciada, chegando a ser um certo choque cultural para ela que cresceu acostumada a viver em um lugar limpo, especialmente a cozinha.
Sua avó brasileira nunca deixava sujeira acumular no fogão, que dirá do forno, como era costume de muitos cidadãos daquele país. Ela perdeu a conta de quantas vezes teve que raspar crostas grossas de sujeira preta e restos de comida que não fazia ideia nem de quando estava ali.
Da primeira vez, quase vomitou de nojo. Passou a usar máscaras desde então, além das luvas grossas de borracha que já eram habituais para manipular os produtos fortes de limpeza que a ajudavam.
Felizmente, nem todas as casas eram assim. Algumas davam menos trabalho e ela não precisava ficar por quase uma hora presa na frente de um fogão sujo, só que a maioria das pessoas que contratavam aquele tipo de serviço não fazia isso com tanta frequência. nunca esteve na mesma residência por mais de duas vezes, mas a agência também a mandava para locais aleatórios na maioria delas.
Não foi diferente daquela vez, mas ela estava habituada a visitar lares de famílias bem tradicionais, não apartamentos chiques.
Quando desceu do ônibus e chegou ao endereço indicado, teve que ligar para sua chefe, Rose, para confirmar se não havia algum engano.
— O lugar é esse mesmo — ela confirmou. — O cliente pediu sigilo, inclusive. Esqueci de avisar. Também solicitou limpeza duas vezes por semana.
— Duas vezes por semana? — perguntou, surpresa.
— Resolvi mandar você porque ele foi bem específico sobre isso e como queria alguém que trabalhasse bem. Você é uma das nossas melhores garotas, . Vou te manter nessa casa se o cliente gostar do seu trabalho. Ele disse que pagaria a mais pela exclusividade, e sei que você precisa do dinheiro. É uma ótima oportunidade.
sentiu os olhos arderem quando ouviu. Depois da família e dos funcionários de seu pai, havia poucas pessoas que sabiam de sua dificuldade em conseguir pagar os medicamentos cardíacos. Uma delas era Rose. As outras, suas chefes da cafeteria que ainda trabalhava alguns dias por semana, e do clube onde dançava, fora algumas outras colegas dançarinas.
Querendo ou não, precisava avisar nos trabalhos sobre sua condição de saúde, apenas para o caso de acontecer alguma coisa. Não tinha nenhum contato de emergência depois que o pai se foi e a dança, além dos trabalhos físicos, às vezes exigiam um pouco mais de energia dela do que costumava ser com outras pessoas.
O certo era moderar tudo, mas mesmo assim, ela ainda trabalhava de domingo a domingo, com raras exceções que faltava quando não estava se sentindo bem.
— Muito obrigada, Rose. Vou garantir que ele goste.
— Ótimo, menina. Boa sorte.
A questão era que ninguém tinha contado a que o dono daquele apartamento era , a celebridade. Ela não o conhecia até alguns dias atrás, no domingo, quando ouviu as meninas no clube comentando sobre um tal escândalo que estava envolvido.
Uma ex o acusou de abandoná-la grávida e que o choque da rejeição dela e da criança teria ocasionado um aborto espontâneo pouco depois. Isso além do relato de como ele a tinha tratado mal e coisas do tipo. se compadeceu por ela e odiou o cara no mesmo instante.
Era um pouco sensível com isso, porque o pai de Maia abandonou sua mãe e a filha ainda bebê, e isso resultou numa jovem traumatizada pelo abandono. Ao menos naquela situação não teria nenhuma criança inocente sofrendo por consequência da babaquice do pai que se recusava a assumir sua responsabilidade.
Quando abriu a porta, ela piscou, surpresa. Por uma parte, porque era ele; e outra, porque ele era ainda mais bonito pessoalmente.
De um jeito quase inacreditável.
Tipo o homem mais lindo do mundo e ela nem estava sendo irônica. nem sabia que pessoas bonitas assim existiam mesmo. A foto que ela viu não fazia justiça a ele nem mesmo um pouquinho, porque pessoalmente era ainda melhor.
O cara a chamou para entrar e então teve que se policiar para lembrar que aquele homem lindo era um babaca.
Só que um babaca que poderia render dinheiro extra a ela, então isso não era da sua conta. Àquela altura, poderia limpar a casa do diabo e do papa ao mesmo tempo, se aquilo pudesse garantir que ela tivesse dinheiro suficiente para ela se manter saudável e um pouquinho menos cansada.
Depois de uma olhada rápida no apartamento, observou andar de um lado para o outro ainda falando ao telefone, como se ela nem estivesse ali.
— Não tem possibilidade nenhuma daquela gravidez ter existido e ela ainda jogou na minha cara que eu não podia provar que ela tava mentindo.
Eita, ele tava fofocando com a mãe sobre o escândalo. E era mentira mesmo? Talvez ele só estivesse tentando enganar a própria mãe para ficar do lado dele. Tinha visto Charlie fazer isso com Sandra diversas vezes.
pressionou os lábios, fingindo não ouvir a conversa, mas era praticamente impossível não prestar atenção.
— Sim, mãe. Já resolvi isso, não vou processar ela e nós fizemos um acordo pra ela assumir o erro. Ela tem quarenta e oito horas ou vamos nos ver no tribunal. Ela aceitou porque viu as provas... É, eu sei. Vou usar a agora como filtro. — Ele riu, de repente. — Eu tenho que ir agora. Tudo bem. Também te amo.
E então ele finalmente desligou.
checou a hora no celular outra vez e notou que cinco minutos tinham se passado.
veio até ela um momento depois.
— Olá, boa tarde. Você deve ser a moça da limpeza. Desculpa por te fazer esperar — ele disse gentilmente, estendendo uma mão para ela. — Eu sou , seja bem-vinda.
Bem-vinda? Aquilo era novo. A maioria das casas que tinha frequentado estavam vazias ou com donos prestes a sair que mal olhavam na cara dela enquanto cuspiam ordens. Parte daquilo era provavelmente por sua descendência latina, ela tinha certeza. Por mais que tivesse pele clara igualzinha a deles, bastava um olhar para seu corpo um pouquinho mais curvilíneo e ouvir seu sotaque que a encaravam de cima a baixo como se fosse uma anomalia.
Xenofóbicos filhos da puta.
Felizmente, passou apenas uma vez pela casa da maioria deles.
Só que ninguém, absolutamente ninguém, tinha se dado ao trabalho de cumprimentá-la com educação antes. Mas aquele cara sim.
encarou a mão estendida dele por um segundo antes de apertá-la e ver a própria desaparecer sob a dele. sorriu, tranquilo, e por um momento ela se perdeu no céu que eram seus olhos azuis.
— — ela se apresentou. — Boa tarde, Sr. . E obrigada.
— Apenas , por favor. Vamos, vou te mostrar minha casa.
— Sim, claro.
Ela o acompanhou de cômodo a cômodo, franzindo o cenho um pouco mais a cada minuto que passava. O apartamento era enorme, mas... Não estava sujo. Ao menos não o sujo que ela estava acostumada e que fazia pessoas contratarem serviços de limpeza.
Quando chegaram à cozinha, ele abriu o forno e...
— Tá um pouco sujo porque eu andei fazendo biscoitos e deixei cair um pouco de massa, mas...
se abaixou ao lado dele para ver e sorriu amarelo.
— Claro.
Só tinha um tiquinho de sujeira. Aquilo era uma pegadinha, por acaso?
— Vou te mostrar agora a despensa onde fica os produtos de limpeza.
Em seguida, a levou para uma portinha escondida ao lado da geladeira. Quando a abriu, quase arregalou os olhos e, naquele momento, finalmente entendeu.
Bem ali, de forma super organizada, continha uma série de produtos de limpeza para basicamente todos os tipos de coisas, além de esfregões, panos de chão, luvas, máscaras e um aspirador de pó portátil.
Era o paraíso das funcionárias de limpeza e só podia significar uma coisa:
era um maníaco por limpeza.
— Acho que aqui deve ter tudo o que eu preciso. Obrigada.
— Eu gosto de ter a casa sempre limpa, mas não ando com muito tempo pra fazer isso e tenho que trabalhar. Eu sei que parece muita coisa, mas... — Ele encolheu os ombros, de repente parecendo meio sem jeito. — Eu juro que não sou um maníaco por limpeza. Só gosto de arrumação.
Ah, não, claro que não é, querido. De jeito nenhum.
— Claro. — sorriu, simpática. — Você prefere que eu comece pela cozinha?
— Sim, sim. Pode ser. Eu vou ficar no quarto enquanto isso, mas... se você preferir ficar sozinha, posso ir pro apartamento do meu amigo e ficar lá até você terminar.
— Ah, não, não precisa. — sacudiu as mãos, negando. — A casa é sua, então por mim, tudo bem.
— Tem certeza? Não quero atrapalhar nem nada.
— Não vai, eu prometo. — Ela sorriu, achando fofa aquela preocupação.
— Certo, então eu vou ficar no quarto e saio depois, quando você for limpar lá. Qualquer coisa, é só chamar.
— Tudo bem. Vou começar agora — ela avisou, enquanto ele se afastava e se virou para a despensa, finalmente respirando aliviada.
O que tinha sido aquilo?
"No último domingo foi relatado pela Srta. Hannah Smith que o Sr. , meu cliente, teria a rejeitado após a mesma contar sobre uma suposta gravidez que teve um triste fim após o término do relacionamento dos dois.
O Sr. e a Srta. Smith terminaram seu relacionamento — cujo não havia qualquer tipo de compromisso — há pouco mais de um mês, em bons termos e com um sorriso no rosto.
O que ela relata sobre ter sido maltratada e rejeitada são argumentos irreais e não havia qualquer possibilidade de uma gravidez em que meu cliente seria o pai.
Infelizmente, a Srta. Smith resolveu expressar seu descontentamento com o fim do relacionamento um mês mais tarde, através de uma mentira mesquinha, cabulosa e completamente irresponsável, acusando meu cliente de ser culpado por algo que nunca aconteceu. O Sr. em nenhum momento expressou ser o tipo de pessoa que ela relata, e nunca esteve envolvido em escândalos pessoais em mais de uma década de carreira.
Temos provas concretas que podem facilmente refutar tais argumentos irreais, mas para preservar a privacidade das duas partes, isso será tratado em particular.
Nota por Derick Greenville, advogado representante de ."
encarou Hannah de braços cruzados por um instante, em silêncio. Derick, seu advogado, estava ao seu lado, ambos sentados no sofá de seu escritório, com Hannah em frente a eles.
— Você só pode ser muito sem noção pra me acusar de uma coisa dessas. — Era a primeira vez que ele falava com ela desde o término. A primeira vez que a via também.
Algumas horas depois que soube do artigo mentiroso que tinha sido publicado, entrou em contato com Derick, que sugeriu que ele não tentasse entrar em contato com ela sozinho. Durante a semana inteira ele evitou sair de casa e até mesmo entrar nas redes sociais, cheias de pessoas o bombardeando com xingamentos, o acusando de ser misógino e irresponsável, além de outras coisas, como se ele não fosse uma figura pública há mais de dez anos, conhecido por ser exatamente o contrário do tipo de pessoa que Hannah o tinha acusado de ser.
Era inacreditável.
— Eu estava com raiva. — Ela deu de ombros. — Além disso, você não pode provar que era mentira.
— Não posso? — arqueou uma sobrancelha. — Pelo visto, você não me conhece direito, Hannah. Posso fazer muita coisa por você, assim como você fez comigo.
Ela riu, irônica, não parecendo nem um pouco preocupada.
— Tipo o quê? A gente mal saía em público. Até onde sei, você podia mesmo ser um manipulador idiota.
— Pelo menos eu não te mantive em banho maria enquanto saía com outra pessoa. — Ele sorriu, vendo a expressão dela vacilar.
— Como assim? — Hannah quis saber.
então encarou Derick e ele empurrou uma pasta de arquivos que estava em cima da mesa de centro até ela.
Hannah abriu e arregalou os olhos.
Ele sabia exatamente o que ela estava vendo. Bem ali, na primeira página, havia uma sequência de fotos datadas de duas semanas antes do término. Nelas, Hannah estava abraçada e aos beijos com outro homem em um passeio no Central Park.
— Eu não terminei com você sem motivo, sabe. Você era divertida, Hannah.
— Nós não tínhamos compromisso. Não pode me culpar por-
— Mas tínhamos um acordo de sermos exclusivos pelo tempo que durasse. Não menti quando disse que não tinha sentimentos por você. Não fiquei com o ego ferido nem magoado por descobrir que você tava saindo com outro cara enquanto tava comigo. Se você quis sair com ele, foi porque nosso acordo não tava mais te deixando feliz. Não posso te culpar por isso. Mas posso te culpar por não me dizer e ficar com nós dois, como se nada tivesse acontecendo.
— Quando você descobriu? — ela perguntou e ele a viu engolir em seco.
— Umas duas semanas antes de terminar com você. Eu tava esperando pra ver se você ia me contar, mas como não aconteceu, resolvi tomar a iniciativa — ele contou. — Mas preferi fingir não saber pra evitar uma discussão. Foi um término amigável, e eu supus que você tivesse ficado aliviada.
— Você não me queria como sua namorada. Arranjei alguém que quis, mas...
— Mas você preferiu me trair a ser honesta. E ainda falar um monte de merda sem se importar com como isso ia me afetar. — Ele concluiu. — Eu fui muito paciente, Hannah. Mas não aceito esse tipo de coisa de jeito nenhum, então porque você não termina de ver os arquivos?
Hannah apertou os lábios em uma linha fina e passou as próximas páginas, seu olhar paralisando quando leu as palavras que estavam ali.
— O que é isso?
— A prova que você disse que eu não conseguiria. Não subestime minha inteligência, por favor. Não sou só um rostinho bonito com quem você transava às vezes.
Derick pigarreou ao seu lado.
— Como você pode ver, srta. Smith, temos provas contra suas mentiras. No entanto, para evitar levar isso para a corte, o Sr. prefere fazer um acordo.
— Que tipo de acordo? — Hannah perguntou, encarando , mas ele permaneceu em silêncio, a encarando com seus olhos azuis frios e quase transparentes.
— Você deve se retratar publicamente, assumindo que o que relatou no artigo é mentira, e assinar um acordo de confidencialidade sobre o que acabou de ver — Derick explicou. — Em troca, meu cliente vai deixar esse assunto de lado e não te processar. Desde já adianto que caso aceite o acordo e o quebre depois, darei início a um processo imediatamente.
Hannah franziu o cenho, mas por fim assentiu.
— Tudo bem, onde eu tenho que assinar?
conteve um sorriso de escárnio assim que ouviu.
— Eu devia ter ouvido a quando ela disse que não gostava de você. E você ainda a acusou de ter um caso comigo enquanto namora meu melhor amigo. — Ele riu, sem humor.
Hannah terminou de assinar e empurrou o documento de volta para Derick.
— Você passou mais tempo com ela do que comigo. Você até saía com ela.
— Ela é minha melhor amiga. Não há quaisquer sentimentos românticos entre nós, assim como não havia entre a gente, Hannah. Além disso, eu nunca trairia o cara que cresceu comigo como se fosse meu irmão.
— Eu gostava de você, . Fiquei com ciúmes.
— Devia gostar mesmo, já que sempre te tratei bem e nada como o que você disse no artigo — ele comentou, se inclinando para assinar os documentos também. — Espero que isso sirva de lição pra você refletir e parar de ser mesquinha por causa da porra de um ego ferido. Você não tava apaixonada por mim, Hannah. E a partir de agora, somos desconhecidos. Não quero ver ou ouvir nada de você falando de mim depois da sua retratação.
Hannah suspirou, soltando o ar de uma vez.
— , eu... Sinto muito.
— Você tem quarenta e oito horas pra consertar a merda que fez — ele disse, a encarando uma última vez, antes de se levantar e deixar a sala sem olhar para trás.
19 de agosto de 2017, mesmo dia, algumas horas mais tarde - Apartamento de , Nova York, NY
encarou a tela do celular por um instante e respirou fundo, antes de retornar a ligação perdida, já se preparando para levar uma bronca. Vinha evitando a mãe há dias e ela já estava ameaçando caçá-lo se ele não respondesse nas próximas vinte e quatro horas.
Linda continuava a mesma de sempre e provavelmente era a única mulher que o assustava. Então sabendo que postergar aquela conversa só pioraria as coisas, ele decidiu fazer a ligação de uma vez.
Dois toques depois, ouviu a tão familiar voz.
— ! Eu já estava prestes a arrombar o seu apartamento! Quem mandou você evitar as minhas ligações? E que história é essa na internet? Quem é aquela tal de Hannah Smith?!
— Mãe, aquele artigo não tem nenhuma verdade. Eu mandei mensagem te dizendo, não atendi antes porque eu queria resolver logo isso antes da gente conversar — ele começou. — A Hannah era uma ficante. A gente saiu por uns três meses até eu descobrir que ela tava vendo outro cara.
— Ela te traiu?! Ah, meu amor, sinto muito — ela murmurou do outro lado, o tom de voz um pouco mais suave.
— Não sinta. Eu não tinha sentimentos por ela, era só... Bem, você sabe. Ela demonstrou interesse em algo mais, só que nunca dei bola — ele explicou. — Pensei que ela tava infeliz com nossa... Amizade. Até esperei ela me contar sobre o outro cara, só que isso não aconteceu. Eu nem disse pra ela que eu sabia quando a gente terminou e-
A campainha tocou, o interrompendo no meio da frase.
— Só um instante, mãe. É a campainha. — Ele rapidamente se dirigiu até a porta e quando a abriu, encontrou uma garota de cabelo escuro que o encarou como se estivesse vendo um fantasma. Os olhos dele rapidamente pousaram no crachá ao redor do pescoço dela. — Oi, pode entrar. — Ele abriu espaço para ela e fez sinal para que esperasse um minuto.
— Então, mãe. Ela tava de boa quando a gente terminou, a gente até se abraçou depois. Daí agora ela me vem com essa mentira sem noção um mês depois. — Ele se afastou por um momento, para terminar a conversa.
Ainda parada à porta, a garota checou a hora no celular e olhou ao redor do apartamento grande e chique que aquele cara tinha.
Aquele era o terceiro lar que visitava naquele dia. Não parecia muito sujo, mas sabia por experiência própria que não devia se animar até ver a cozinha. Geralmente era a pior parte de se limpar e a mais negligenciada, chegando a ser um certo choque cultural para ela que cresceu acostumada a viver em um lugar limpo, especialmente a cozinha.
Sua avó brasileira nunca deixava sujeira acumular no fogão, que dirá do forno, como era costume de muitos cidadãos daquele país. Ela perdeu a conta de quantas vezes teve que raspar crostas grossas de sujeira preta e restos de comida que não fazia ideia nem de quando estava ali.
Da primeira vez, quase vomitou de nojo. Passou a usar máscaras desde então, além das luvas grossas de borracha que já eram habituais para manipular os produtos fortes de limpeza que a ajudavam.
Felizmente, nem todas as casas eram assim. Algumas davam menos trabalho e ela não precisava ficar por quase uma hora presa na frente de um fogão sujo, só que a maioria das pessoas que contratavam aquele tipo de serviço não fazia isso com tanta frequência. nunca esteve na mesma residência por mais de duas vezes, mas a agência também a mandava para locais aleatórios na maioria delas.
Não foi diferente daquela vez, mas ela estava habituada a visitar lares de famílias bem tradicionais, não apartamentos chiques.
Quando desceu do ônibus e chegou ao endereço indicado, teve que ligar para sua chefe, Rose, para confirmar se não havia algum engano.
— O lugar é esse mesmo — ela confirmou. — O cliente pediu sigilo, inclusive. Esqueci de avisar. Também solicitou limpeza duas vezes por semana.
— Duas vezes por semana? — perguntou, surpresa.
— Resolvi mandar você porque ele foi bem específico sobre isso e como queria alguém que trabalhasse bem. Você é uma das nossas melhores garotas, . Vou te manter nessa casa se o cliente gostar do seu trabalho. Ele disse que pagaria a mais pela exclusividade, e sei que você precisa do dinheiro. É uma ótima oportunidade.
sentiu os olhos arderem quando ouviu. Depois da família e dos funcionários de seu pai, havia poucas pessoas que sabiam de sua dificuldade em conseguir pagar os medicamentos cardíacos. Uma delas era Rose. As outras, suas chefes da cafeteria que ainda trabalhava alguns dias por semana, e do clube onde dançava, fora algumas outras colegas dançarinas.
Querendo ou não, precisava avisar nos trabalhos sobre sua condição de saúde, apenas para o caso de acontecer alguma coisa. Não tinha nenhum contato de emergência depois que o pai se foi e a dança, além dos trabalhos físicos, às vezes exigiam um pouco mais de energia dela do que costumava ser com outras pessoas.
O certo era moderar tudo, mas mesmo assim, ela ainda trabalhava de domingo a domingo, com raras exceções que faltava quando não estava se sentindo bem.
— Muito obrigada, Rose. Vou garantir que ele goste.
— Ótimo, menina. Boa sorte.
A questão era que ninguém tinha contado a que o dono daquele apartamento era , a celebridade. Ela não o conhecia até alguns dias atrás, no domingo, quando ouviu as meninas no clube comentando sobre um tal escândalo que estava envolvido.
Uma ex o acusou de abandoná-la grávida e que o choque da rejeição dela e da criança teria ocasionado um aborto espontâneo pouco depois. Isso além do relato de como ele a tinha tratado mal e coisas do tipo. se compadeceu por ela e odiou o cara no mesmo instante.
Era um pouco sensível com isso, porque o pai de Maia abandonou sua mãe e a filha ainda bebê, e isso resultou numa jovem traumatizada pelo abandono. Ao menos naquela situação não teria nenhuma criança inocente sofrendo por consequência da babaquice do pai que se recusava a assumir sua responsabilidade.
Quando abriu a porta, ela piscou, surpresa. Por uma parte, porque era ele; e outra, porque ele era ainda mais bonito pessoalmente.
De um jeito quase inacreditável.
Tipo o homem mais lindo do mundo e ela nem estava sendo irônica. nem sabia que pessoas bonitas assim existiam mesmo. A foto que ela viu não fazia justiça a ele nem mesmo um pouquinho, porque pessoalmente era ainda melhor.
O cara a chamou para entrar e então teve que se policiar para lembrar que aquele homem lindo era um babaca.
Só que um babaca que poderia render dinheiro extra a ela, então isso não era da sua conta. Àquela altura, poderia limpar a casa do diabo e do papa ao mesmo tempo, se aquilo pudesse garantir que ela tivesse dinheiro suficiente para ela se manter saudável e um pouquinho menos cansada.
Depois de uma olhada rápida no apartamento, observou andar de um lado para o outro ainda falando ao telefone, como se ela nem estivesse ali.
— Não tem possibilidade nenhuma daquela gravidez ter existido e ela ainda jogou na minha cara que eu não podia provar que ela tava mentindo.
Eita, ele tava fofocando com a mãe sobre o escândalo. E era mentira mesmo? Talvez ele só estivesse tentando enganar a própria mãe para ficar do lado dele. Tinha visto Charlie fazer isso com Sandra diversas vezes.
pressionou os lábios, fingindo não ouvir a conversa, mas era praticamente impossível não prestar atenção.
— Sim, mãe. Já resolvi isso, não vou processar ela e nós fizemos um acordo pra ela assumir o erro. Ela tem quarenta e oito horas ou vamos nos ver no tribunal. Ela aceitou porque viu as provas... É, eu sei. Vou usar a agora como filtro. — Ele riu, de repente. — Eu tenho que ir agora. Tudo bem. Também te amo.
E então ele finalmente desligou.
checou a hora no celular outra vez e notou que cinco minutos tinham se passado.
veio até ela um momento depois.
— Olá, boa tarde. Você deve ser a moça da limpeza. Desculpa por te fazer esperar — ele disse gentilmente, estendendo uma mão para ela. — Eu sou , seja bem-vinda.
Bem-vinda? Aquilo era novo. A maioria das casas que tinha frequentado estavam vazias ou com donos prestes a sair que mal olhavam na cara dela enquanto cuspiam ordens. Parte daquilo era provavelmente por sua descendência latina, ela tinha certeza. Por mais que tivesse pele clara igualzinha a deles, bastava um olhar para seu corpo um pouquinho mais curvilíneo e ouvir seu sotaque que a encaravam de cima a baixo como se fosse uma anomalia.
Xenofóbicos filhos da puta.
Felizmente, passou apenas uma vez pela casa da maioria deles.
Só que ninguém, absolutamente ninguém, tinha se dado ao trabalho de cumprimentá-la com educação antes. Mas aquele cara sim.
encarou a mão estendida dele por um segundo antes de apertá-la e ver a própria desaparecer sob a dele. sorriu, tranquilo, e por um momento ela se perdeu no céu que eram seus olhos azuis.
— — ela se apresentou. — Boa tarde, Sr. . E obrigada.
— Apenas , por favor. Vamos, vou te mostrar minha casa.
— Sim, claro.
Ela o acompanhou de cômodo a cômodo, franzindo o cenho um pouco mais a cada minuto que passava. O apartamento era enorme, mas... Não estava sujo. Ao menos não o sujo que ela estava acostumada e que fazia pessoas contratarem serviços de limpeza.
Quando chegaram à cozinha, ele abriu o forno e...
— Tá um pouco sujo porque eu andei fazendo biscoitos e deixei cair um pouco de massa, mas...
se abaixou ao lado dele para ver e sorriu amarelo.
— Claro.
Só tinha um tiquinho de sujeira. Aquilo era uma pegadinha, por acaso?
— Vou te mostrar agora a despensa onde fica os produtos de limpeza.
Em seguida, a levou para uma portinha escondida ao lado da geladeira. Quando a abriu, quase arregalou os olhos e, naquele momento, finalmente entendeu.
Bem ali, de forma super organizada, continha uma série de produtos de limpeza para basicamente todos os tipos de coisas, além de esfregões, panos de chão, luvas, máscaras e um aspirador de pó portátil.
Era o paraíso das funcionárias de limpeza e só podia significar uma coisa:
era um maníaco por limpeza.
— Acho que aqui deve ter tudo o que eu preciso. Obrigada.
— Eu gosto de ter a casa sempre limpa, mas não ando com muito tempo pra fazer isso e tenho que trabalhar. Eu sei que parece muita coisa, mas... — Ele encolheu os ombros, de repente parecendo meio sem jeito. — Eu juro que não sou um maníaco por limpeza. Só gosto de arrumação.
Ah, não, claro que não é, querido. De jeito nenhum.
— Claro. — sorriu, simpática. — Você prefere que eu comece pela cozinha?
— Sim, sim. Pode ser. Eu vou ficar no quarto enquanto isso, mas... se você preferir ficar sozinha, posso ir pro apartamento do meu amigo e ficar lá até você terminar.
— Ah, não, não precisa. — sacudiu as mãos, negando. — A casa é sua, então por mim, tudo bem.
— Tem certeza? Não quero atrapalhar nem nada.
— Não vai, eu prometo. — Ela sorriu, achando fofa aquela preocupação.
— Certo, então eu vou ficar no quarto e saio depois, quando você for limpar lá. Qualquer coisa, é só chamar.
— Tudo bem. Vou começar agora — ela avisou, enquanto ele se afastava e se virou para a despensa, finalmente respirando aliviada.
O que tinha sido aquilo?
Capítulo 3
Pela primeira vez naquela semana, mesmo no meio de um trabalho cansativo, se sentiu feliz.
E então com medo, pensando que era bom demais para ser verdade, mas disse a si mesma para evitar pensamentos negativos.
Talvez o universo finalmente estivesse lhe dando uma chance de respirar um pouco, porque a casa de era apenas o melhor lugar que ela já tinha trabalhado. Mesmo sendo enorme, a pouca sujeira que tinha para limpar não dava muito trabalho. Até mesmo o fogão e o forno sujo tinham levado apenas dez minutos para limpar.
Em certo momento, sua mente voou enquanto cantarolava baixinho a melodia de uma música e ela fantasiou como seria continuar trabalhando ali; ou se todas as casas que frequentasse tivessem donos com o mesmo cuidado e zelo que tinha com a dele.
não estava ficando nem mesmo ofegante, o que era um alívio para seu coração doente. Trabalhar de domingo a domingo em três empregos diferentes e levar a rotina cansativa que ela tinha, sem um descanso adequado, era inevitavelmente contraindicado para pessoas portadoras de Cardiomiopatia Hipertrófica, ou simplesmente HCM, como ela preferia chamar.
Ao menos naquele dia não precisaria tomar uma dose a mais de remédio para lidar com sintomas decorrentes do cansaço e estresse do trabalho, como tinha feito na noite anterior.
Isso também era contraindicado, é claro. Pacientes não deveriam ajustar doses por conta própria, mas ela tinha visto o Dr. Diego Martinez fazer isso um punhado de vezes nos três anos em que foi acompanhada por ele.
Inclusive, ele foi o responsável pela disopiramida em seu tratamento. No Brasil, levava uma vida mais tranquila e pacata. Mas ao chegar nos Estados Unidos e iniciar a faculdade de dança, seu ritmo aumentou consideravelmente e ela deixou de responder ao tratamento com medicamentos mais comuns. Agora, usava uma associação de disopiramida e propranolol para evitar o descontrole de seus sintomas. O propranolol era barato, ainda que algumas vezes mais caro do que o que ela comprava no Brasil, mas a disopiramida era o problema.
tentou usar uma versão genérica, bem mais barata que a versão de marca recomendada pelo Dr. Martinez, mas alguma coisa deu errado, não funcionava como deveria e ela sentia alguns sintomas estranhos.
No início, achou que pudesse ser questão de adaptação, mesmo sendo o mesmo medicamento, mas quando isso claramente não aconteceu, em uma pesquisa rápida na internet, ela descobriu que poderia ter alguma intolerância aos excipientes ou outro componente presente naquela versão.
Então, com tristeza pelo rombo financeiro, voltou a tomar a versão de marca, que também tinha efeitos colaterais que a atingiam vez ou outra, mas nada muito preocupante.
Pessoas como ela deveriam ter acompanhamento médico regular, mas já tinham se passado sete meses desde a última vez que vira o Dr. Martinez. Em uma cidade cara como Nova York, não ter plano de saúde era completamente desmotivador.
No Brasil, pelo menos poderia ter consultas gratuitas, graças ao sistema de saúde do país. Mas embora sentisse falta desse tipo de acessibilidade, voltar a morar em uma cidadezinha pacata do interior do nordeste não era uma opção.
Antes de sair do país, trabalhava como recepcionista em um laboratório de exames e ganhava muito pouco.
Mesmo agora, tendo que trabalhar horrores, ela conseguia dar um jeito de se manter e ainda enviar dinheiro para a avó e a irmã. Ainda que pudesse parecer pouco para alguém que ganhava em dólar, para quem morava no Brasil o dólar valia o triplo ou mais, dependendo da cotação do dia.
Querendo ou não, ela tinha que seguir firme. E sua primeira meta seria sair do armário de vassouras em que vivia na casa do pai. Mesmo que fosse morar em uma quitinete minúscula, ainda seria melhor do que aguentar piadinhas de sua madrasta e filhos riquinhos e mimados.
estava juntando dinheiro para comprar paz; depois lidaria com sua saúde. Infelizmente, ainda havia um longo caminho pela frente.
Assim que terminou de limpar a cozinha e a sala de estar, seguiu para os banheiros e então para os quartos, resolvendo deixar a suíte de por último. Passou por um escritório que não parecia ser muito frequentado, dois quartos de hóspedes e um outro menor e vazio, com uma janela grande que fornecia uma boa iluminação e uma vista para a rua e os diversos prédios de Nova York. O sol já estava se pondo e ela se distraiu um pouquinho observando o céu alaranjado antes de voltar a limpar.
Aquele quarto tinha um tamanho ótimo para dançar. Ela até conseguia imaginar uma das paredes repleta de espelhos enquanto a luz natural entrava pelo janelão. Talvez um dia pudesse sonhar com um quarto extra daqueles. Por ora, ainda podia usar a sala de ensaios do clube no fim do expediente ou entre um emprego e outro.
Naquela noite, ela teria um expediente na cafeteria das sete às dez e então seguiria para o clube burlesco que a tinha aceitado dois meses depois da morte de seu pai. Uma antiga colega da faculdade trabalhava lá e foi por ela que ficou sabendo de uma vaga disponível.
Por mais que nunca tivesse pensado naquele tipo de emprego antes, não tinha problema nenhum em interpretar uma dançarina sexy no palco. Especialmente quando todas usavam máscaras — uma medida de cautela de sua chefe, depois de uma das garotas terem sido assediadas por um cliente.
No fim, era apenas dança, mas ela estava feliz por não ser obrigada a tirar a roupa se não quisesse, provavelmente uma das vantagens de se ter uma mulher no comando. Também era ali que conseguia dinheiro de forma mais rápida. Gastava o que ganhava ali com sua saúde e quando sobrava, depositava em sua pequena poupança.
Quando terminou de aspirar o quarto, usou um pano úmido no chão e um produto de limpeza super cheiroso que tinha encontrado na despensa. Tinha usado ele na casa toda. Era um produto um pouco mais caro e concentrado, que as pessoas costumavam usar com cautela, mas para não devia passar de uns trocadinhos. Só que visto a variedade de produtos estocados que ele tinha, meio que ficava na cara que ele gostava de um ambiente cheiroso.
Na sala, havia um difusor de ambiente seco, que ela trocou por um novo que encontrou em estoque.
Era quase como se estivesse brincando de casinha.
A parte boa era que não precisaria ter tanta pressa de chegar na cafeteria e provavelmente daria tempo de comer algo com calma no caminho. Nem ficava muito longe dali, de qualquer forma. Talvez uns cinco minutos de caminhada, segundo o GPS.
Quando finalizou tudo, se dirigiu ao quarto de e deu umas batidinhas na porta. Ele apareceu um momento depois, com o cabelo úmido indicando um banho recém-tomado, mas completamente vestido. O cheiro de sabonete e perfume invadiu suas narinas de uma vez só e, por um momento, ela percebeu que tinha se esquecido como ele era grande e bonito. E babaca, até onde ela sabia, embora aquela conversa acidentalmente ouvida mais cedo a tivesse deixado um pouquinho em dúvida.
nunca foi do tipo de pessoa que julgava alguém com base em fofocas. E tecnicamente, não deveria fazer isso com ele também, certo? Ainda mais se ele quisesse contratá-la para ficar indo limpar a casa toda semana. Não é como se ela o conhecesse, de qualquer forma.
A vida pessoal dele não era de sua conta, mas ganhar dinheiro sim.
Não podia se dar ao luxo de rejeitar um trabalho só porque o cliente rejeitou uma namorada que aparentemente nem estava grávida, segundo o que ele contou para a mãe.
Desde que a tratasse com respeito ou apenas nem falasse com ela, como a maioria dos clientes fazia, podia ser Lúcifer na terra que ela não estava nem aí.
— Oi, eu terminei de limpar a casa, só falta a suíte.
— Claro. Pode ficar à vontade — ele disse. — Eu abri as cortinas pra entrar um pouco de luz também. Ah, e não precisa limpar o banheiro, eu fiz isso enquanto tomava banho.
— Ah, certo...
— Vou estar na cozinha, se precisar de algo é só chamar. — Ele sorriu com educação e assentiu.
— Obrigada.
desapareceu um segundo depois e quinze minutos foi tudo o que ela precisou para finalizar o quarto. A cama já estava arrumada e não havia roupas, sapatos nem nada do tipo espalhados. Ele tinha um closet grande e bem organizado e com uma espiadinha no banheiro, ela viu um cesto de roupa suja.
E uma banheira de hidromassagem.
Caramba, bem que ela queria experimentar uma daquelas um dia. Talvez fizesse milagres em seus músculos tensos e cansados.
Esticou os braços para cima e ficou na ponta dos pés, sentindo o corpo todo dar uma leve alongada. Então bocejou, sentindo o cansaço do dia começar a bater, e juntou as coisas que tinha usado, antes de seguir para a cozinha.
Era sexta-feira e ela não estaria em casa até pelo menos duas da manhã. Felizmente, só voltaria a trabalhar na cafeteria durante a tarde do sábado antes de voltar para o clube, então tentaria dormir mais um pouco. E de preferência, fingir que nem estava em casa, apenas para o caso de alguém resolver incomodá-la.
estava em frente à bancada, preparando sanduíches e havia uma jarra de suco de laranja perto dele.
— Terminei — ela anunciou, chamando a atenção dele.
— Ótimo, você tá com um tempinho? Senta um pouco. — Ele apontou para o banquinho em frente a ele.
franziu o cenho, mas se sentou mesmo assim. No instante seguinte, empurrou um dos sanduíches para ela.
— Ah, eu... Não precisava fazer isso pra mim, Sr. — ela comentou, meio sem jeito.
— — ele corrigiu.
— Isso. . Não precisava fazer isso — ela repetiu.
— Eu sei, desculpe. É uma mania — ele contou, enquanto enchia um copo de suco para ela. — Sempre cozinhei pros meus amigos e gosto de alimentar as pessoas ao meu redor. Não é nada pessoal, mas você parecia cansada e achei que um lanche talvez pudesse ajudar a recuperar as energias. Por favor, coma. Acredito que não tenha nada que possa dar alergia, é só um sanduíche de frango desfiado com salada. Você não é vegetariana, né? Eu devia ter perguntado.
— Não, não sou. — riu baixinho, e então deu uma mordida no sanduíche, engoliu e tomou um gole de suco. — Parece ótimo, obrigada.
— Que bom que gostou. — Ele sorriu e se sentou, se servindo com um copo de suco.
Os dois comeram em silêncio durante cerca de dez minutos, trocando sorrisos educados vez ou outra. Quando acabaram, pegou sua bolsa e a acompanhou até a porta.
— Eu gostei muito do seu trabalho, — ele disse, antes dela sair. — Solicitei os serviços duas vezes por semana, espero que possa vir mais vezes. Não tenho muito costume de receber funcionários diferentes a cada vez, mas a pessoa que vinha antes se aposentou.
— Minha chefe disse que se tudo estivesse bem pra você, então ela continuaria me mandando — ela respondeu no automático, ainda processando as palavras dele.
Como não falou nada sobre a limpeza enquanto comiam, ela achou que fosse ficar por isso mesmo, mas... Era isso mesmo, produção?
Ela seria contratada? Ter duas limpezas fixas por semana, na mesma casa?
— Tem outra coisa — ele acrescentou, interrompendo seus pensamentos. — Meu amigo mora no apartamento de cima e disse que gostaria de contratar alguém também. Ele odeia ter gente estranha entrando no apartamento dele, mas disse que eu podia escolher alguém pra limpar nossas casas.
— No andar... De cima? Quantas vezes por semana?
— Duas também. Você pode vir no mesmo dia. Acho que uma tarde deve ser suficiente pra você conseguir trabalhar nos dois apartamentos. Se você topar, eu posso falar com sua chefe hoje mesmo quando for enviar o feedback.
Duas casas! Caramba, quanto tempo dela aquilo pouparia? Quatro limpezas por semana no mesmo endereço. E eles pagavam melhor. Talvez pudesse fazer menos limpezas, talvez duas por dia ao invés de três, e ainda sobraria um pouquinho de tempo que ela poderia usar para ensaiar as rotinas de dança do clube.
— Por mim, tudo bem. Muito obrigada, senh-digo, . — Ela sorriu, radiante.
devolveu o sorriso.
— Obrigado você também. Minha casa tá muito limpa e cheirosa. Até semana que vem, .
— Até! — Ela acenou para ele antes de dar as costas. Quando ouviu a porta se fechar, fez uma dancinha da vitória extremamente dramática e caiu de joelhos no chão com as duas mãos entrelaçadas, agradecendo baixinho ao universo por aquele pequeno alívio.
Então se levantou e entrou no elevador, sentindo os olhos arderem de emoção. Um par de lágrimas escapou deles, mas o sorriso de não se desfez.
Seu coração estava cheio de felicidade e gratidão com a expectativa de ter um pouquinho mais de descanso.
Mal podia esperar pelas próximas vezes.
Ela seria a Rainha da Limpeza!
Conquistaria e o amigo dele pelas narinas, deixando suas casas super cheirosas e limpinhas!
Se aquele cara era o mal encarnado como a ex dele fez parecer na matéria, então com certeza tinha uma coisa com pessoas com desvio de caráter — e não somente personagens fictícios.
Enquanto o elevador descia, ela agradeceu baixinho mais uma vez e orou para que aquela oportunidade pudesse durar por um bom tempo.
E então com medo, pensando que era bom demais para ser verdade, mas disse a si mesma para evitar pensamentos negativos.
Talvez o universo finalmente estivesse lhe dando uma chance de respirar um pouco, porque a casa de era apenas o melhor lugar que ela já tinha trabalhado. Mesmo sendo enorme, a pouca sujeira que tinha para limpar não dava muito trabalho. Até mesmo o fogão e o forno sujo tinham levado apenas dez minutos para limpar.
Em certo momento, sua mente voou enquanto cantarolava baixinho a melodia de uma música e ela fantasiou como seria continuar trabalhando ali; ou se todas as casas que frequentasse tivessem donos com o mesmo cuidado e zelo que tinha com a dele.
não estava ficando nem mesmo ofegante, o que era um alívio para seu coração doente. Trabalhar de domingo a domingo em três empregos diferentes e levar a rotina cansativa que ela tinha, sem um descanso adequado, era inevitavelmente contraindicado para pessoas portadoras de Cardiomiopatia Hipertrófica, ou simplesmente HCM, como ela preferia chamar.
Ao menos naquele dia não precisaria tomar uma dose a mais de remédio para lidar com sintomas decorrentes do cansaço e estresse do trabalho, como tinha feito na noite anterior.
Isso também era contraindicado, é claro. Pacientes não deveriam ajustar doses por conta própria, mas ela tinha visto o Dr. Diego Martinez fazer isso um punhado de vezes nos três anos em que foi acompanhada por ele.
Inclusive, ele foi o responsável pela disopiramida em seu tratamento. No Brasil, levava uma vida mais tranquila e pacata. Mas ao chegar nos Estados Unidos e iniciar a faculdade de dança, seu ritmo aumentou consideravelmente e ela deixou de responder ao tratamento com medicamentos mais comuns. Agora, usava uma associação de disopiramida e propranolol para evitar o descontrole de seus sintomas. O propranolol era barato, ainda que algumas vezes mais caro do que o que ela comprava no Brasil, mas a disopiramida era o problema.
tentou usar uma versão genérica, bem mais barata que a versão de marca recomendada pelo Dr. Martinez, mas alguma coisa deu errado, não funcionava como deveria e ela sentia alguns sintomas estranhos.
No início, achou que pudesse ser questão de adaptação, mesmo sendo o mesmo medicamento, mas quando isso claramente não aconteceu, em uma pesquisa rápida na internet, ela descobriu que poderia ter alguma intolerância aos excipientes ou outro componente presente naquela versão.
Então, com tristeza pelo rombo financeiro, voltou a tomar a versão de marca, que também tinha efeitos colaterais que a atingiam vez ou outra, mas nada muito preocupante.
Pessoas como ela deveriam ter acompanhamento médico regular, mas já tinham se passado sete meses desde a última vez que vira o Dr. Martinez. Em uma cidade cara como Nova York, não ter plano de saúde era completamente desmotivador.
No Brasil, pelo menos poderia ter consultas gratuitas, graças ao sistema de saúde do país. Mas embora sentisse falta desse tipo de acessibilidade, voltar a morar em uma cidadezinha pacata do interior do nordeste não era uma opção.
Antes de sair do país, trabalhava como recepcionista em um laboratório de exames e ganhava muito pouco.
Mesmo agora, tendo que trabalhar horrores, ela conseguia dar um jeito de se manter e ainda enviar dinheiro para a avó e a irmã. Ainda que pudesse parecer pouco para alguém que ganhava em dólar, para quem morava no Brasil o dólar valia o triplo ou mais, dependendo da cotação do dia.
Querendo ou não, ela tinha que seguir firme. E sua primeira meta seria sair do armário de vassouras em que vivia na casa do pai. Mesmo que fosse morar em uma quitinete minúscula, ainda seria melhor do que aguentar piadinhas de sua madrasta e filhos riquinhos e mimados.
estava juntando dinheiro para comprar paz; depois lidaria com sua saúde. Infelizmente, ainda havia um longo caminho pela frente.
Assim que terminou de limpar a cozinha e a sala de estar, seguiu para os banheiros e então para os quartos, resolvendo deixar a suíte de por último. Passou por um escritório que não parecia ser muito frequentado, dois quartos de hóspedes e um outro menor e vazio, com uma janela grande que fornecia uma boa iluminação e uma vista para a rua e os diversos prédios de Nova York. O sol já estava se pondo e ela se distraiu um pouquinho observando o céu alaranjado antes de voltar a limpar.
Aquele quarto tinha um tamanho ótimo para dançar. Ela até conseguia imaginar uma das paredes repleta de espelhos enquanto a luz natural entrava pelo janelão. Talvez um dia pudesse sonhar com um quarto extra daqueles. Por ora, ainda podia usar a sala de ensaios do clube no fim do expediente ou entre um emprego e outro.
Naquela noite, ela teria um expediente na cafeteria das sete às dez e então seguiria para o clube burlesco que a tinha aceitado dois meses depois da morte de seu pai. Uma antiga colega da faculdade trabalhava lá e foi por ela que ficou sabendo de uma vaga disponível.
Por mais que nunca tivesse pensado naquele tipo de emprego antes, não tinha problema nenhum em interpretar uma dançarina sexy no palco. Especialmente quando todas usavam máscaras — uma medida de cautela de sua chefe, depois de uma das garotas terem sido assediadas por um cliente.
No fim, era apenas dança, mas ela estava feliz por não ser obrigada a tirar a roupa se não quisesse, provavelmente uma das vantagens de se ter uma mulher no comando. Também era ali que conseguia dinheiro de forma mais rápida. Gastava o que ganhava ali com sua saúde e quando sobrava, depositava em sua pequena poupança.
Quando terminou de aspirar o quarto, usou um pano úmido no chão e um produto de limpeza super cheiroso que tinha encontrado na despensa. Tinha usado ele na casa toda. Era um produto um pouco mais caro e concentrado, que as pessoas costumavam usar com cautela, mas para não devia passar de uns trocadinhos. Só que visto a variedade de produtos estocados que ele tinha, meio que ficava na cara que ele gostava de um ambiente cheiroso.
Na sala, havia um difusor de ambiente seco, que ela trocou por um novo que encontrou em estoque.
Era quase como se estivesse brincando de casinha.
A parte boa era que não precisaria ter tanta pressa de chegar na cafeteria e provavelmente daria tempo de comer algo com calma no caminho. Nem ficava muito longe dali, de qualquer forma. Talvez uns cinco minutos de caminhada, segundo o GPS.
Quando finalizou tudo, se dirigiu ao quarto de e deu umas batidinhas na porta. Ele apareceu um momento depois, com o cabelo úmido indicando um banho recém-tomado, mas completamente vestido. O cheiro de sabonete e perfume invadiu suas narinas de uma vez só e, por um momento, ela percebeu que tinha se esquecido como ele era grande e bonito. E babaca, até onde ela sabia, embora aquela conversa acidentalmente ouvida mais cedo a tivesse deixado um pouquinho em dúvida.
nunca foi do tipo de pessoa que julgava alguém com base em fofocas. E tecnicamente, não deveria fazer isso com ele também, certo? Ainda mais se ele quisesse contratá-la para ficar indo limpar a casa toda semana. Não é como se ela o conhecesse, de qualquer forma.
A vida pessoal dele não era de sua conta, mas ganhar dinheiro sim.
Não podia se dar ao luxo de rejeitar um trabalho só porque o cliente rejeitou uma namorada que aparentemente nem estava grávida, segundo o que ele contou para a mãe.
Desde que a tratasse com respeito ou apenas nem falasse com ela, como a maioria dos clientes fazia, podia ser Lúcifer na terra que ela não estava nem aí.
— Oi, eu terminei de limpar a casa, só falta a suíte.
— Claro. Pode ficar à vontade — ele disse. — Eu abri as cortinas pra entrar um pouco de luz também. Ah, e não precisa limpar o banheiro, eu fiz isso enquanto tomava banho.
— Ah, certo...
— Vou estar na cozinha, se precisar de algo é só chamar. — Ele sorriu com educação e assentiu.
— Obrigada.
desapareceu um segundo depois e quinze minutos foi tudo o que ela precisou para finalizar o quarto. A cama já estava arrumada e não havia roupas, sapatos nem nada do tipo espalhados. Ele tinha um closet grande e bem organizado e com uma espiadinha no banheiro, ela viu um cesto de roupa suja.
E uma banheira de hidromassagem.
Caramba, bem que ela queria experimentar uma daquelas um dia. Talvez fizesse milagres em seus músculos tensos e cansados.
Esticou os braços para cima e ficou na ponta dos pés, sentindo o corpo todo dar uma leve alongada. Então bocejou, sentindo o cansaço do dia começar a bater, e juntou as coisas que tinha usado, antes de seguir para a cozinha.
Era sexta-feira e ela não estaria em casa até pelo menos duas da manhã. Felizmente, só voltaria a trabalhar na cafeteria durante a tarde do sábado antes de voltar para o clube, então tentaria dormir mais um pouco. E de preferência, fingir que nem estava em casa, apenas para o caso de alguém resolver incomodá-la.
estava em frente à bancada, preparando sanduíches e havia uma jarra de suco de laranja perto dele.
— Terminei — ela anunciou, chamando a atenção dele.
— Ótimo, você tá com um tempinho? Senta um pouco. — Ele apontou para o banquinho em frente a ele.
franziu o cenho, mas se sentou mesmo assim. No instante seguinte, empurrou um dos sanduíches para ela.
— Ah, eu... Não precisava fazer isso pra mim, Sr. — ela comentou, meio sem jeito.
— — ele corrigiu.
— Isso. . Não precisava fazer isso — ela repetiu.
— Eu sei, desculpe. É uma mania — ele contou, enquanto enchia um copo de suco para ela. — Sempre cozinhei pros meus amigos e gosto de alimentar as pessoas ao meu redor. Não é nada pessoal, mas você parecia cansada e achei que um lanche talvez pudesse ajudar a recuperar as energias. Por favor, coma. Acredito que não tenha nada que possa dar alergia, é só um sanduíche de frango desfiado com salada. Você não é vegetariana, né? Eu devia ter perguntado.
— Não, não sou. — riu baixinho, e então deu uma mordida no sanduíche, engoliu e tomou um gole de suco. — Parece ótimo, obrigada.
— Que bom que gostou. — Ele sorriu e se sentou, se servindo com um copo de suco.
Os dois comeram em silêncio durante cerca de dez minutos, trocando sorrisos educados vez ou outra. Quando acabaram, pegou sua bolsa e a acompanhou até a porta.
— Eu gostei muito do seu trabalho, — ele disse, antes dela sair. — Solicitei os serviços duas vezes por semana, espero que possa vir mais vezes. Não tenho muito costume de receber funcionários diferentes a cada vez, mas a pessoa que vinha antes se aposentou.
— Minha chefe disse que se tudo estivesse bem pra você, então ela continuaria me mandando — ela respondeu no automático, ainda processando as palavras dele.
Como não falou nada sobre a limpeza enquanto comiam, ela achou que fosse ficar por isso mesmo, mas... Era isso mesmo, produção?
Ela seria contratada? Ter duas limpezas fixas por semana, na mesma casa?
— Tem outra coisa — ele acrescentou, interrompendo seus pensamentos. — Meu amigo mora no apartamento de cima e disse que gostaria de contratar alguém também. Ele odeia ter gente estranha entrando no apartamento dele, mas disse que eu podia escolher alguém pra limpar nossas casas.
— No andar... De cima? Quantas vezes por semana?
— Duas também. Você pode vir no mesmo dia. Acho que uma tarde deve ser suficiente pra você conseguir trabalhar nos dois apartamentos. Se você topar, eu posso falar com sua chefe hoje mesmo quando for enviar o feedback.
Duas casas! Caramba, quanto tempo dela aquilo pouparia? Quatro limpezas por semana no mesmo endereço. E eles pagavam melhor. Talvez pudesse fazer menos limpezas, talvez duas por dia ao invés de três, e ainda sobraria um pouquinho de tempo que ela poderia usar para ensaiar as rotinas de dança do clube.
— Por mim, tudo bem. Muito obrigada, senh-digo, . — Ela sorriu, radiante.
devolveu o sorriso.
— Obrigado você também. Minha casa tá muito limpa e cheirosa. Até semana que vem, .
— Até! — Ela acenou para ele antes de dar as costas. Quando ouviu a porta se fechar, fez uma dancinha da vitória extremamente dramática e caiu de joelhos no chão com as duas mãos entrelaçadas, agradecendo baixinho ao universo por aquele pequeno alívio.
Então se levantou e entrou no elevador, sentindo os olhos arderem de emoção. Um par de lágrimas escapou deles, mas o sorriso de não se desfez.
Seu coração estava cheio de felicidade e gratidão com a expectativa de ter um pouquinho mais de descanso.
Mal podia esperar pelas próximas vezes.
Ela seria a Rainha da Limpeza!
Conquistaria e o amigo dele pelas narinas, deixando suas casas super cheirosas e limpinhas!
Se aquele cara era o mal encarnado como a ex dele fez parecer na matéria, então com certeza tinha uma coisa com pessoas com desvio de caráter — e não somente personagens fictícios.
Enquanto o elevador descia, ela agradeceu baixinho mais uma vez e orou para que aquela oportunidade pudesse durar por um bom tempo.
Capítulo 4
— Oi, idiota arrogante, insensível e destruidor de corações de mulheres inocentes — cumprimentou com um sorriso no rosto, assim que o viu.
— Cara, é sério que você tá brincando com isso? — Mason perguntou, dando-lhe um tapa no ombro. — Repetindo o que aquela vaca disse?
— Você tá chamando uma mulher de vaca? Na frente da ?! — apontou para a mulher sentada no sofá, entre as pernas de Hero. Tinham se reunido no apartamento dele para uma noite de jogos. — Não era você que falava que ela era até legal?
— Sim, até eu descobrir que ela andava traindo ele. E a Kate deu permissão pra gente chamar a Hannah assim em particular.
— É verdade — Kate confirmou. — Aquela nojentinha insinuou que eu estava com e ao mesmo tempo.
— Quê? — a encarou em choque. — Quando?
— Faz um tempo. — Ela deu de ombros.
— Você sabia? — Ele se dirigiu ao amigo, sentado atrás dela.
— Sim, mas decidimos não contar pra porque... Enfim.
— Podiam ter contado, sabe... — falou pela primeira vez desde que os amigos chegaram. Estava de braços cruzados, encostado em uma mesa. — Todo mundo sabia que a gente não namorava.
— Mas vocês eram fixos. Isso é quase um namoro — rebateu.
— Não se não tiver sentimentos envolvidos. Não é como se eu fosse chorar pelos cantos porque aquela pilantra me traiu.
— Nem deveria mesmo — Mason concordou, se jogando em uma das poltronas.
fez o mesmo no espaço vazio ao lado de Kate e Adrian.
— Mas afinal, como você conseguiu reverter a situação? Mostrou a ela que sabia e ameaçou divulgar?
— Algo assim.
Hannah havia confessado a mentira naquela manhã de domingo, ao revelar que nunca esteve grávida e que só disse aquilo por ter ficado chateada com o fim do relacionamento, mesmo terminando em bons termos, retirando também tudo o que disse sobre tê-la tratado mal.
— As pessoas estão começando a gostar de você outra vez — Adrian comentou, enquanto olhava para a tela no celular.
— Mas algumas ainda acham que eu tô manipulando ela pra sair por cima.
— Que hilário. — deu uma risadinha. — Logo você, que nunca nem se envolveu em escândalos. Você e são os queridinhos dos fãs por isso.
— Pois é, só que as pessoas estão começando a tomar o lado da mulher nesses tipos de relatos, já que noventa por cento das vezes elas estão certas e são subjugadas por todo mundo, mesmo sendo vítimas.
— E essa mentira só serve pra reforçar a desconfiança do público — Adrian acrescentou. — Enquanto isso, tem um monte de mulher sofrendo com relacionamentos abusivos de verdade.
— Hannah foi uma sem noção — Mason disse. — Tipo, essa história toda nem faz sentido. Por que rejeitaria uma criança quando ele foi o único de nós que sempre disse que queria ter uma família um dia?
— Porque ofereceram cem mil dólares pra ela fazer isso — respondeu. — Eu nem tava esperando uma merda dessas depois de como a gente terminou.
— É bom que toda mulher que for entrar na vida do agora vai ter que passar por mim, que fui a única que desconfiou que ela não prestava — Kate disse.
— Se quiser, eu ajudo. — se ofereceu. — Eu leio muitas fanfics, você sabe.
— Você nem percebeu nada na Hannah, idiota — Mason lembrou. — Como pretende ajudar nisso?
— Com nossa rainha Kate, é óbvio. Ela é mulher, escritora e tem um ótimo senso crítico. Não tem ninguém melhor pra me treinar.
— Nossa, seu puxa-saco. — Adrian riu, divertido. — Aproveita e beija os pés dela também...
— Para com isso! — Kate beliscou a coxa dele. — Você tá só com ciúmes porque alguém aprecia o meu bom senso. Aqui, , pode beijar a minha mão. — E a estendeu para ele.
Mason e riram alto quando o mais novo se inclinou para beijá-la.
— Puxa-saco idiota, filhinho da mamãe... — Hero resmungou. A suposta mãe, no caso, era Kate, que basicamente mandava em todo mundo.
A diferença era que era o único que aceitava sem questionar.
— Por falar em senso crítico, eu consegui uma moça nova pra limpar nossos apartamentos — anunciou. — O nome dela é . Eu pedi pra ela vir duas vezes por semana, como a Sra. Thompson fazia.
— Se você pediu é porque aprovou o trabalho dela — Hero deduziu.
— Ela trabalha muito bem. É jovem, deve estar na casa dos vinte ainda. E acho que ela é estrangeira, pelo sotaque.
— Jovem, é? — Kate arqueou uma sobrancelha. — Qual foi a reação dela quando te conheceu?
— Normal, eu acho. — Ele deu de ombros. — Ela não parecia saber quem eu sou.
— Interessante... Vou puxar papo com ela na semana que vem, então.
— Tá, só tenta não assustar a garota, ela me pareceu meio tímida.
— É claro que sim, olha só pra você. Não a culpo por isso.
— O que tem eu?
— Sério? — Todos perguntaram ao mesmo tempo.
— Você parece que saiu direto de um anime, cara! — disse.
— Não seja sonso, — Mason debochou. — Você sabe que é o mais bonito de nós, e o mais alto também.
— Não é todo mundo que tem quase um e noventa de altura e é cheio de músculos — Kate acrescentou.
revirou os olhos, mas não discutiu mais. Ele sabia que sua aparência afetava as pessoas, especialmente os fãs, mas... Ele era bem mais que um rostinho bonito e achava que era isso que os conquistava.
Ao menos, ele preferia pensar que sim.
— Então, a gente vai começar ou não? — perguntou Hero.
No mesmo instante, a campainha tocou.
— Deve ser a pizza — Kate disse, já se levantando para atender.
Pelo visto, os jogos teriam que esperar mais um pouco.
***
22 de agosto de 2017, 05:13 - Mansão - Nova York, NY
O telefone tocou com mais um dos vários alarmes que tinha programado para as segundas-feiras e ela suspirou, enquanto forçava o próprio corpo a se sentar na cama.
Seus olhos ainda estavam pesados de sono, mas não havia mais tempo para dormir.
Ela odiava as segundas-feiras.
E o motivo era porque nunca conseguia dormir direito no domingo e acordar descansada na manhã seguinte.
Bem, teoricamente já não era mais domingo quando finalmente voltava do clube e finalmente dormia. Nunca chegava antes da meia-noite. Na melhor das hipóteses, podia chegar antes das duas da manhã, caso o movimento no clube estivesse baixo.
Não tinha sido o caso daquela vez, no entanto. Então, exatamente três horas depois que tinha ido dormir, teve que levantar para mais um dia.
Sentiu a cabeça pesar e os olhos doerem enquanto tentava abri-los, e não hesitou em tomar um analgésico antes de ir tomar banho.
Meia hora mais tarde, já um pouco mais alerta, passou um batom rosado para tentar disfarçar o cansaço, juntou suas coisas, e foi em direção à cozinha em busca de qualquer coisa para comer.
Infelizmente, para seu azar, não estava sozinha. Charlie estava tomando um copo grande de água e a notou de imediato. Usava um terno sem gravata e a camisa social branca estava amassada e com alguns botões abertos. Provavelmente tinha acabado de voltar de uma festa e ainda estava meio bêbado.
deu meia volta para ir embora, mas mal deu três passos quando sentiu uma mão envolver seu pulso.
— Por que a pressa, ? Não vai nem me cumprimentar? — Ele deu uma risadinha. — Moramos na mesma casa e eu nunca te vejo.
puxou o braço, se soltando dele.
— Não enche — ela disse e tentou passar por ele, mas então Charlie colocou as mãos em seus ombros e a segurou contra a parede.
— Você tá trabalhando demais, . Isso não é bom pro seu coração — ele murmurou com diversão, como se aquilo fosse algo engraçado. — Mas eu posso te ajudar se quiser. Você só precisa fazer algo em troca. — Ele segurou sua mão direita, a levando até o seu cinto.
não pensou duas vezes antes de empurrá-lo. No próximo instante, Charlie riu, encostado na parede oposta enquanto ela o encarava, ofegante.
— O que foi? Eu fiz seu coração acelerar? — ele debochou. — Tomara que você esteja tomando os remédios direitinho então.
— Isso não tem graça, Charlie. — Ela o encarou, irritada. — Fique longe de mim.
— Beleza. — Ele levantou as mãos em rendição. — Continue tentando se matar então. Vamos ver até quando esse seu coração defeituoso aguenta. Mas caso mude de ideia, sabe onde me encontrar. — E piscou para ela, finalmente se afastando.
Não era a primeira vez que dava em cima dela nos últimos quatro anos, mas desde que seu pai havia morrido, as investidas de Charlie alcançaram novo nível que fazia revirar os olhos e tentar evitá-lo ao mesmo tempo.
Havia dado certo nos últimos dois dias, mas ela não esperava encontrá-lo na cozinha, já que sempre saía antes ou depois que ele já havia chegado.
Tinha dado azar naquele dia. E esperava que aquele pequeno encontro não contaminasse o resto dele.
Respirando fundo, ela desistiu de comer e se dirigiu até a saída, incapaz de ficar mais um minuto que fosse ali.
***
Às nove da manhã, chegou à segunda e última casa que ela limparia naquele dia.
Era de um cara alto chamado John e ela já tinha estado ali outras duas vezes, o que era ok. Mas considerando a quantidade de funcionários da agência, voltar uma terceira vez no mesmo endereço era certamente uma rara coincidência.
Ela apertou a campainha e esperou, até que uma garota loira mais ou menos da idade dela apareceu.
— Quem é você? — Ela franziu o cenho, assim que viu e a encarou com desconfiança.
— Oi, eu sou do serviço de limpeza. — Ela levantou o crachá para mostrar a identificação. — O John está?
— Estou sim! — ele gritou de dentro, aparecendo um segundo depois e sorriu para ela. — Oi, , entra.
— Com licença. — Ela passou pela garota, que ainda a media de cima a baixo.
— Você ainda lembra onde fica tudo, né? Hoje só precisa arrumar aqui embaixo. Eu fiz uma comemoração ontem com uns amigos e tá meio bagunçado ainda, embora eu tenha juntado o lixo.
— Tudo bem, eu te aviso quando terminar.
— Qualquer coisa é só dar um grito. A gente vai ficar lá em cima — ele avisou, puxando a garota desconfiada pela mão.
Ela conhecia aquele olhar. Uma namorada ciumenta que não suportava ver o namorado falando com outra, mesmo que fosse só uma funcionária.
assentiu, tentando se manter o mais impassível possível e se virou para a cozinha, assim que John e a garota saíram de vista.
Ele era ex-vizinho de sua chefe e trabalhou na agência durante a faculdade, tendo saído pouco depois de começar. Eles mal tinham se falado na agência e o viu apenas algumas vezes, mas aparentemente ainda lembrava seu nome quando a contratou pela primeira vez, três meses antes.
Fazia cerca de um mês desde a última vez que esteve ali. John era um cara legal, mas aquela era a primeira vez que o encontrava em casa. E diante do cumprimento mais cedo, Rose provavelmente havia comentado que era ela quem iria naquele dia.
Felizmente, a casa era pequena. Porém, assim que encarou a louça suja, o balcão e o fogão, quis choramingar baixinho e respirou fundo antes de colocar as luvas de borracha e meter as mãos na obra.
Ia levar o resto da manhã inteira, e só metade do tempo seria ali.
Quase três horas depois, ela estava sentada, respirando com dificuldade e terminando de guardar as coisas quando John apareceu.
— Caramba, ficou ótimo. — Ele sorriu. — A Rose sempre fala bem de você.
— Que bom que gostou. — Ela forçou um sorriso de volta, colocou a bolsa no ombro e se levantou de uma vez.
O mundo girou e sentiu seu equilíbrio falhar e a cabeça doer.
— Eita, você tá bem? — John colocou uma mão em seu ombro.
piscou algumas vezes, sentindo as mãos suarem frio. Ela estava gelada, com o coração acelerado e a visão embaçada.
— Sim, foi só uma tontura. Acho que levantei rápido demais. — Ela se endireitou, ainda sem enxergar direito e tentou dar um passo para sair dali.
Então, de repente, bateu o nariz em algo e no próximo instante, John a sacudiu pelos ombros.
— , tá tudo bem? Você acabou de desmaiar em cima de mim.
— Eu... Sinto muito. — O olhar dela caiu para uma mancha de batom rosa na gola da camisa dele. — Sujei sua camisa, desculpa.
John puxou o tecido branco para ver melhor e balançou a cabeça.
— Não foi nada. Não se preocupe com isso.
— Eu já vou, então. Desculpe mais uma vez.
— Tem certeza que não-
— O que tá acontecendo aqui? — A garota loira reapareceu e estreitou os olhos diante da proximidade deles.
deu um passo para trás, subitamente desconfortável.
— Nada, a tava-
— De saída — o interrompeu e se apressou em sair dali.
— Espera aí. Isso é batom na sua camisa, John? — A garota perguntou, os olhos desviando para . — Você tava dando em cima dele?
— Não, eu... — tentou explicar, mas o golpe veio antes que ela pudesse prever.
O lado esquerdo de seu rosto ardeu e o mundo girou outra vez. Ela cambaleou um passo para trás com a mão no rosto e sentiu o estômago revirar de náusea. Quando tinha sido a última vez que ela havia comido mesmo?
Ah, é. Foi antes de ir para o clube. Fazia umas doze horas.
Seu ouvido zumbiu e sua visão piscou com estrelas enquanto ela ouvia vozes falando ao fundo.
Não, não falando. Gritando.
Um instante depois, ela conseguiu enxergar melhor e foi como se o volume de um fone de ouvido tivesse sido aumentado após ser subitamente abaixado.
John estava furioso.
— Que porra, Hannah?! Para de ser maluca! A menina tava passando mal antes de você chegar, e você vai e bate nela sem saber de nada!
— Vai se foder, John! Eu não admito que você me traia, ainda mais com uma estrangeira que nem fala direito.
— Não fale assim dela, porra! , eu sinto muito. — John se aproximou. — Me deixa te levar embora.
— Ah, mas nem pensar! — A garota, Hannah, protestou.
— Não enche, porra! Não tá vendo que ela não tá bem?
— Não precisa. Eu posso ir sozinha — se apressou em dizer. — Acho que minha pressão caiu por um momento, mas já tá tudo bem.
— Tem certeza? — Ele a encarou, preocupado.
— Sim, sim. — Ela só precisava sair dali, droga. Queria comer em algum lugar, tomar seus remédios e se sentar um pouco, antes de ir para a cafeteria.
— Tudo bem. Me desculpa por isso, . Eu sinto muito mesmo.
assentiu, sentindo os olhos arderem e a garganta fechar, mas não disse mais nada. Antes de ir, encarou a tal Hannah nos olhos e passou direto para a saída.
A vontade que tinha era de puxar aquela porra de cabelo falso e devolver o tapa duas vezes no rostinho daquela mocreia. De que buraco John havia tirado aquela garota? O que dava direto pro inferno?
Que merda de dia.
Quando atravessou a porta, as lágrimas rolaram pelo seu rosto e desejou que ele arrumasse alguém melhor, só para que aquela maluca o perdesse. E que os pneus do carro dela furassem, um por um, no meio de uma estrada deserta. E que logo depois ela sentisse dor de barriga e não tivesse nenhum banheiro por perto.
Ela continuou a montar cenários assim na cabeça até chegar a um café a duas quadras da casa de John. Pegou na maçaneta para abrir a porta no mesmo instante em que alguém a puxou de uma vez, e ela tropeçou, esbarrando na pessoa.
Olhou rápido para o tecido de uma camiseta preta, já pensando em outra possível mancha de batom, mas felizmente não havia nenhuma.
Foi apenas um segundo desde essa percepção até o momento em que ela levantou a cabeça, já se desculpando, e então arregalou os olhos ao ver em quem havia esbarrado. Aquela manhã estava para lá de movimentada porque, puta merda, agora era seu novo cliente que estava bem ali.
não queria nem imaginar como seria o resto do dia. Por ela, podia acabar ali mesmo.
— Cara, é sério que você tá brincando com isso? — Mason perguntou, dando-lhe um tapa no ombro. — Repetindo o que aquela vaca disse?
— Você tá chamando uma mulher de vaca? Na frente da ?! — apontou para a mulher sentada no sofá, entre as pernas de Hero. Tinham se reunido no apartamento dele para uma noite de jogos. — Não era você que falava que ela era até legal?
— Sim, até eu descobrir que ela andava traindo ele. E a Kate deu permissão pra gente chamar a Hannah assim em particular.
— É verdade — Kate confirmou. — Aquela nojentinha insinuou que eu estava com e ao mesmo tempo.
— Quê? — a encarou em choque. — Quando?
— Faz um tempo. — Ela deu de ombros.
— Você sabia? — Ele se dirigiu ao amigo, sentado atrás dela.
— Sim, mas decidimos não contar pra porque... Enfim.
— Podiam ter contado, sabe... — falou pela primeira vez desde que os amigos chegaram. Estava de braços cruzados, encostado em uma mesa. — Todo mundo sabia que a gente não namorava.
— Mas vocês eram fixos. Isso é quase um namoro — rebateu.
— Não se não tiver sentimentos envolvidos. Não é como se eu fosse chorar pelos cantos porque aquela pilantra me traiu.
— Nem deveria mesmo — Mason concordou, se jogando em uma das poltronas.
fez o mesmo no espaço vazio ao lado de Kate e Adrian.
— Mas afinal, como você conseguiu reverter a situação? Mostrou a ela que sabia e ameaçou divulgar?
— Algo assim.
Hannah havia confessado a mentira naquela manhã de domingo, ao revelar que nunca esteve grávida e que só disse aquilo por ter ficado chateada com o fim do relacionamento, mesmo terminando em bons termos, retirando também tudo o que disse sobre tê-la tratado mal.
— As pessoas estão começando a gostar de você outra vez — Adrian comentou, enquanto olhava para a tela no celular.
— Mas algumas ainda acham que eu tô manipulando ela pra sair por cima.
— Que hilário. — deu uma risadinha. — Logo você, que nunca nem se envolveu em escândalos. Você e são os queridinhos dos fãs por isso.
— Pois é, só que as pessoas estão começando a tomar o lado da mulher nesses tipos de relatos, já que noventa por cento das vezes elas estão certas e são subjugadas por todo mundo, mesmo sendo vítimas.
— E essa mentira só serve pra reforçar a desconfiança do público — Adrian acrescentou. — Enquanto isso, tem um monte de mulher sofrendo com relacionamentos abusivos de verdade.
— Hannah foi uma sem noção — Mason disse. — Tipo, essa história toda nem faz sentido. Por que rejeitaria uma criança quando ele foi o único de nós que sempre disse que queria ter uma família um dia?
— Porque ofereceram cem mil dólares pra ela fazer isso — respondeu. — Eu nem tava esperando uma merda dessas depois de como a gente terminou.
— É bom que toda mulher que for entrar na vida do agora vai ter que passar por mim, que fui a única que desconfiou que ela não prestava — Kate disse.
— Se quiser, eu ajudo. — se ofereceu. — Eu leio muitas fanfics, você sabe.
— Você nem percebeu nada na Hannah, idiota — Mason lembrou. — Como pretende ajudar nisso?
— Com nossa rainha Kate, é óbvio. Ela é mulher, escritora e tem um ótimo senso crítico. Não tem ninguém melhor pra me treinar.
— Nossa, seu puxa-saco. — Adrian riu, divertido. — Aproveita e beija os pés dela também...
— Para com isso! — Kate beliscou a coxa dele. — Você tá só com ciúmes porque alguém aprecia o meu bom senso. Aqui, , pode beijar a minha mão. — E a estendeu para ele.
Mason e riram alto quando o mais novo se inclinou para beijá-la.
— Puxa-saco idiota, filhinho da mamãe... — Hero resmungou. A suposta mãe, no caso, era Kate, que basicamente mandava em todo mundo.
A diferença era que era o único que aceitava sem questionar.
— Por falar em senso crítico, eu consegui uma moça nova pra limpar nossos apartamentos — anunciou. — O nome dela é . Eu pedi pra ela vir duas vezes por semana, como a Sra. Thompson fazia.
— Se você pediu é porque aprovou o trabalho dela — Hero deduziu.
— Ela trabalha muito bem. É jovem, deve estar na casa dos vinte ainda. E acho que ela é estrangeira, pelo sotaque.
— Jovem, é? — Kate arqueou uma sobrancelha. — Qual foi a reação dela quando te conheceu?
— Normal, eu acho. — Ele deu de ombros. — Ela não parecia saber quem eu sou.
— Interessante... Vou puxar papo com ela na semana que vem, então.
— Tá, só tenta não assustar a garota, ela me pareceu meio tímida.
— É claro que sim, olha só pra você. Não a culpo por isso.
— O que tem eu?
— Sério? — Todos perguntaram ao mesmo tempo.
— Você parece que saiu direto de um anime, cara! — disse.
— Não seja sonso, — Mason debochou. — Você sabe que é o mais bonito de nós, e o mais alto também.
— Não é todo mundo que tem quase um e noventa de altura e é cheio de músculos — Kate acrescentou.
revirou os olhos, mas não discutiu mais. Ele sabia que sua aparência afetava as pessoas, especialmente os fãs, mas... Ele era bem mais que um rostinho bonito e achava que era isso que os conquistava.
Ao menos, ele preferia pensar que sim.
— Então, a gente vai começar ou não? — perguntou Hero.
No mesmo instante, a campainha tocou.
— Deve ser a pizza — Kate disse, já se levantando para atender.
Pelo visto, os jogos teriam que esperar mais um pouco.
22 de agosto de 2017, 05:13 - Mansão - Nova York, NY
O telefone tocou com mais um dos vários alarmes que tinha programado para as segundas-feiras e ela suspirou, enquanto forçava o próprio corpo a se sentar na cama.
Seus olhos ainda estavam pesados de sono, mas não havia mais tempo para dormir.
Ela odiava as segundas-feiras.
E o motivo era porque nunca conseguia dormir direito no domingo e acordar descansada na manhã seguinte.
Bem, teoricamente já não era mais domingo quando finalmente voltava do clube e finalmente dormia. Nunca chegava antes da meia-noite. Na melhor das hipóteses, podia chegar antes das duas da manhã, caso o movimento no clube estivesse baixo.
Não tinha sido o caso daquela vez, no entanto. Então, exatamente três horas depois que tinha ido dormir, teve que levantar para mais um dia.
Sentiu a cabeça pesar e os olhos doerem enquanto tentava abri-los, e não hesitou em tomar um analgésico antes de ir tomar banho.
Meia hora mais tarde, já um pouco mais alerta, passou um batom rosado para tentar disfarçar o cansaço, juntou suas coisas, e foi em direção à cozinha em busca de qualquer coisa para comer.
Infelizmente, para seu azar, não estava sozinha. Charlie estava tomando um copo grande de água e a notou de imediato. Usava um terno sem gravata e a camisa social branca estava amassada e com alguns botões abertos. Provavelmente tinha acabado de voltar de uma festa e ainda estava meio bêbado.
deu meia volta para ir embora, mas mal deu três passos quando sentiu uma mão envolver seu pulso.
— Por que a pressa, ? Não vai nem me cumprimentar? — Ele deu uma risadinha. — Moramos na mesma casa e eu nunca te vejo.
puxou o braço, se soltando dele.
— Não enche — ela disse e tentou passar por ele, mas então Charlie colocou as mãos em seus ombros e a segurou contra a parede.
— Você tá trabalhando demais, . Isso não é bom pro seu coração — ele murmurou com diversão, como se aquilo fosse algo engraçado. — Mas eu posso te ajudar se quiser. Você só precisa fazer algo em troca. — Ele segurou sua mão direita, a levando até o seu cinto.
não pensou duas vezes antes de empurrá-lo. No próximo instante, Charlie riu, encostado na parede oposta enquanto ela o encarava, ofegante.
— O que foi? Eu fiz seu coração acelerar? — ele debochou. — Tomara que você esteja tomando os remédios direitinho então.
— Isso não tem graça, Charlie. — Ela o encarou, irritada. — Fique longe de mim.
— Beleza. — Ele levantou as mãos em rendição. — Continue tentando se matar então. Vamos ver até quando esse seu coração defeituoso aguenta. Mas caso mude de ideia, sabe onde me encontrar. — E piscou para ela, finalmente se afastando.
Não era a primeira vez que dava em cima dela nos últimos quatro anos, mas desde que seu pai havia morrido, as investidas de Charlie alcançaram novo nível que fazia revirar os olhos e tentar evitá-lo ao mesmo tempo.
Havia dado certo nos últimos dois dias, mas ela não esperava encontrá-lo na cozinha, já que sempre saía antes ou depois que ele já havia chegado.
Tinha dado azar naquele dia. E esperava que aquele pequeno encontro não contaminasse o resto dele.
Respirando fundo, ela desistiu de comer e se dirigiu até a saída, incapaz de ficar mais um minuto que fosse ali.
Às nove da manhã, chegou à segunda e última casa que ela limparia naquele dia.
Era de um cara alto chamado John e ela já tinha estado ali outras duas vezes, o que era ok. Mas considerando a quantidade de funcionários da agência, voltar uma terceira vez no mesmo endereço era certamente uma rara coincidência.
Ela apertou a campainha e esperou, até que uma garota loira mais ou menos da idade dela apareceu.
— Quem é você? — Ela franziu o cenho, assim que viu e a encarou com desconfiança.
— Oi, eu sou do serviço de limpeza. — Ela levantou o crachá para mostrar a identificação. — O John está?
— Estou sim! — ele gritou de dentro, aparecendo um segundo depois e sorriu para ela. — Oi, , entra.
— Com licença. — Ela passou pela garota, que ainda a media de cima a baixo.
— Você ainda lembra onde fica tudo, né? Hoje só precisa arrumar aqui embaixo. Eu fiz uma comemoração ontem com uns amigos e tá meio bagunçado ainda, embora eu tenha juntado o lixo.
— Tudo bem, eu te aviso quando terminar.
— Qualquer coisa é só dar um grito. A gente vai ficar lá em cima — ele avisou, puxando a garota desconfiada pela mão.
Ela conhecia aquele olhar. Uma namorada ciumenta que não suportava ver o namorado falando com outra, mesmo que fosse só uma funcionária.
assentiu, tentando se manter o mais impassível possível e se virou para a cozinha, assim que John e a garota saíram de vista.
Ele era ex-vizinho de sua chefe e trabalhou na agência durante a faculdade, tendo saído pouco depois de começar. Eles mal tinham se falado na agência e o viu apenas algumas vezes, mas aparentemente ainda lembrava seu nome quando a contratou pela primeira vez, três meses antes.
Fazia cerca de um mês desde a última vez que esteve ali. John era um cara legal, mas aquela era a primeira vez que o encontrava em casa. E diante do cumprimento mais cedo, Rose provavelmente havia comentado que era ela quem iria naquele dia.
Felizmente, a casa era pequena. Porém, assim que encarou a louça suja, o balcão e o fogão, quis choramingar baixinho e respirou fundo antes de colocar as luvas de borracha e meter as mãos na obra.
Ia levar o resto da manhã inteira, e só metade do tempo seria ali.
Quase três horas depois, ela estava sentada, respirando com dificuldade e terminando de guardar as coisas quando John apareceu.
— Caramba, ficou ótimo. — Ele sorriu. — A Rose sempre fala bem de você.
— Que bom que gostou. — Ela forçou um sorriso de volta, colocou a bolsa no ombro e se levantou de uma vez.
O mundo girou e sentiu seu equilíbrio falhar e a cabeça doer.
— Eita, você tá bem? — John colocou uma mão em seu ombro.
piscou algumas vezes, sentindo as mãos suarem frio. Ela estava gelada, com o coração acelerado e a visão embaçada.
— Sim, foi só uma tontura. Acho que levantei rápido demais. — Ela se endireitou, ainda sem enxergar direito e tentou dar um passo para sair dali.
Então, de repente, bateu o nariz em algo e no próximo instante, John a sacudiu pelos ombros.
— , tá tudo bem? Você acabou de desmaiar em cima de mim.
— Eu... Sinto muito. — O olhar dela caiu para uma mancha de batom rosa na gola da camisa dele. — Sujei sua camisa, desculpa.
John puxou o tecido branco para ver melhor e balançou a cabeça.
— Não foi nada. Não se preocupe com isso.
— Eu já vou, então. Desculpe mais uma vez.
— Tem certeza que não-
— O que tá acontecendo aqui? — A garota loira reapareceu e estreitou os olhos diante da proximidade deles.
deu um passo para trás, subitamente desconfortável.
— Nada, a tava-
— De saída — o interrompeu e se apressou em sair dali.
— Espera aí. Isso é batom na sua camisa, John? — A garota perguntou, os olhos desviando para . — Você tava dando em cima dele?
— Não, eu... — tentou explicar, mas o golpe veio antes que ela pudesse prever.
O lado esquerdo de seu rosto ardeu e o mundo girou outra vez. Ela cambaleou um passo para trás com a mão no rosto e sentiu o estômago revirar de náusea. Quando tinha sido a última vez que ela havia comido mesmo?
Ah, é. Foi antes de ir para o clube. Fazia umas doze horas.
Seu ouvido zumbiu e sua visão piscou com estrelas enquanto ela ouvia vozes falando ao fundo.
Não, não falando. Gritando.
Um instante depois, ela conseguiu enxergar melhor e foi como se o volume de um fone de ouvido tivesse sido aumentado após ser subitamente abaixado.
John estava furioso.
— Que porra, Hannah?! Para de ser maluca! A menina tava passando mal antes de você chegar, e você vai e bate nela sem saber de nada!
— Vai se foder, John! Eu não admito que você me traia, ainda mais com uma estrangeira que nem fala direito.
— Não fale assim dela, porra! , eu sinto muito. — John se aproximou. — Me deixa te levar embora.
— Ah, mas nem pensar! — A garota, Hannah, protestou.
— Não enche, porra! Não tá vendo que ela não tá bem?
— Não precisa. Eu posso ir sozinha — se apressou em dizer. — Acho que minha pressão caiu por um momento, mas já tá tudo bem.
— Tem certeza? — Ele a encarou, preocupado.
— Sim, sim. — Ela só precisava sair dali, droga. Queria comer em algum lugar, tomar seus remédios e se sentar um pouco, antes de ir para a cafeteria.
— Tudo bem. Me desculpa por isso, . Eu sinto muito mesmo.
assentiu, sentindo os olhos arderem e a garganta fechar, mas não disse mais nada. Antes de ir, encarou a tal Hannah nos olhos e passou direto para a saída.
A vontade que tinha era de puxar aquela porra de cabelo falso e devolver o tapa duas vezes no rostinho daquela mocreia. De que buraco John havia tirado aquela garota? O que dava direto pro inferno?
Que merda de dia.
Quando atravessou a porta, as lágrimas rolaram pelo seu rosto e desejou que ele arrumasse alguém melhor, só para que aquela maluca o perdesse. E que os pneus do carro dela furassem, um por um, no meio de uma estrada deserta. E que logo depois ela sentisse dor de barriga e não tivesse nenhum banheiro por perto.
Ela continuou a montar cenários assim na cabeça até chegar a um café a duas quadras da casa de John. Pegou na maçaneta para abrir a porta no mesmo instante em que alguém a puxou de uma vez, e ela tropeçou, esbarrando na pessoa.
Olhou rápido para o tecido de uma camiseta preta, já pensando em outra possível mancha de batom, mas felizmente não havia nenhuma.
Foi apenas um segundo desde essa percepção até o momento em que ela levantou a cabeça, já se desculpando, e então arregalou os olhos ao ver em quem havia esbarrado. Aquela manhã estava para lá de movimentada porque, puta merda, agora era seu novo cliente que estava bem ali.
não queria nem imaginar como seria o resto do dia. Por ela, podia acabar ali mesmo.
Capítulo 5
— ! — a cumprimentou com um sorriso que se desfez um segundo depois, quando ele franziu o cenho. — O que é isso no seu rosto?
A voz dele era baixa e intimidante.
— Nada… Foi bom ver você, mas eu tenho que-
— Você tá pálida. Tá sentindo alguma coisa?
— Sim, fome. Eu acho que é hipoglicemia. Com licença... — Ela se afastou dele, com pressa, indo direto ao balcão. Uma olhada rápida e escolheu um pedaço de torta de chocolate e um sanduíche natural de frango.
Uma refeição completa seria melhor, mas ela não tinha tempo de esperar. Não queria desmaiar de novo e... Ah, os remédios!
— Coloca uma água com gás também, por favor — acrescentou ao pedido.
Quando retirou o cartão da carteira para pagar, uma mão com um cartão black passou na sua frente e fez isso por ela.
— Deixa comigo. — sorriu.
— Ei, eu ia pagar! Você ainda tá aqui?
— Eu sei que sim, mas deixa comigo. E sim, eu tô. Você não parece muito bem.
O que aquele cara estava fazendo?
franziu o cenho, um pouco incomodada, mas estava sem energia para discutir. a ajudou a pegar o pedido e os dois se sentaram em uma mesa afastada.
Não havia muita gente ali e a cafeteria era bem pequena, mas sempre procurava se distanciar das pessoas quando ia comer. Estava sempre sozinha e, às vezes, tinha a impressão de que alguém a estava observando.
Sem dizer nada, ela mordeu o sanduíche e mastigou o mais rápido que pôde. Deu mais duas mordidas rápidas e mal sentiu o gosto antes de engolir.
Pegou a garrafa de água e fez força para abrir, em vão. Pensou em usar um guardanapo para ajudar, mas antes que tentasse, a tomou de sua mão e abriu em um segundo.
Até então ele apenas a tinha observado em silêncio o tempo todo.
— Obrigada. — Ela sorriu de lábios fechados por um segundo, antes de se virar para a bolsa e procurar os medicamentos.
Seu coração ainda estava acelerado e ela teria que esperar ao menos uns vinte minutos até começar a fazer efeito. Seria o tempo que levaria para terminar de comer, mas ainda tinha cerca de uma hora e meia até o início de seu turno na cafeteria.
— Você é hipertensa? — Ele apontou para o frasco de propranolol. — Meu pai toma esse.
— Não, eu... Sou cardiopata. — Ela sentiu o rosto esquentar ao dizer. Não que fosse um segredo, já que teria que saber de toda forma, considerando que passaria a frequentar sua casa semanalmente.
— Ah, e é sério? — indagou ele, curioso.
— Sim e não. Muita gente faz tratamento com medicamentos mais comuns e baratos, mas algumas podem parar de responder e ter que usar algo mais forte. — Ela apontou para o frasco de disopiramida.
— E desde quando você tem esse problema? Desculpa perguntar.
— Tudo bem, você ia ter que saber de todo jeito já que é basicamente meu novo chefe. — Ela deu de ombros. — É uma doença genética, meu pai também tinha.
— Sinto muito. Foi por causa disso que você tava passando mal?
— Eu tive um imprevisto hoje de manhã e não tive tempo de comer, também atrasei o horário da medicação, então... Acho que foi uma junção.
assentiu, sério, como se estivesse realmente interessado na informação.
— Você parece cansada — ele comentou, vendo ela abocanhar mais o sanduíche. — A manhã foi cheia?
— Mais ou menos. Não dormi direito — respondeu, após engolir, encolhendo os ombros. Pelo visto, o batom não estava ajudando muito a esconder seu cansaço naquele dia.
— Eu falei com meu amigo e tá tudo certo. Ele também tem que saber da sua doença, né?
— Infelizmente. — Ela sorriu, sem humor.
fez uma careta.
— Desculpa se tô parecendo insensível ou se te ofendi com as perguntas, não foi minha intenção.
— Ah, não. De forma alguma. Você quer um pouco de torta? — Ela ofereceu.
— Não, obrigado. Eu acabei de comer.
— Entendi. Enfim, vocês saberem da minha condição é só uma medida de precaução para... Caso algo aconteça. Eu não costumo passar mal desde que eu me cuide e tome os medicamentos na hora certa.
— Qual o nome da sua condição? A namorada do , seu outro chefe, é enfermeira. Com certeza, ela vai perguntar e reclamar caso eu não saiba responder.
deu uma risadinha.
— Cardiomiopatia Hipertrófica. Mas você vai lembrar desse nome até ver ela?
— Ah, mas é pra isso que serve o bloco de notas. — Ele levantou o celular e digitou rapidamente. — Mas você ainda não falou o que houve com seu rosto.
O sorriso dela se desfez.
— Olha, tá vermelho bem aqui — Ele esticou o braço e tocou sua bochecha esquerda. se encolheu quando sentiu o toque arder e ele se afastou imediatamente. — Caramba, eu te machuquei?
— Não, é que ficou ardendo. Tá tudo bem.
se recostou na cadeira e franziu o cenho outra vez.
— Quem fez isso com você, ? — ele perguntou baixinho, com a voz rouca e grave, ao mesmo tempo gentil, mas ainda assim intimidante.
— Foi um mal-entendido. A namorada do meu último cliente achou que eu estivesse dando em cima dele porque viu uma mancha do meu batom na gola da camisa dele. — Ela contou. piscou duas vezes. — Eu sei, parece suspeito. Mas eu... Fiquei tonta e desmaiei nele por um instante, daí a mancha.
— E ela nem perguntou nada?
— Ela me bateu antes que eu pudesse explicar.
— Que doida.
— Pois é... Acho que desmaiei porque minha pressão caiu. — E ela ainda desejava que uma dor de barriga atingisse a mocreia.
— Você tem que se alimentar direitinho.
Contra outra, Sherlock, ela pensou sem humor, mas sorriu simpática. não tinha culpa do dia de merda que ela estava tendo. Na verdade, parecia ter melhorado um pouquinho mais nos últimos minutos, depois que o encontrou.
— Eu pensei em ir na terça e na sexta arrumar sua casa e a do seu amigo. Você acha que funciona?
— Sim, a gente mal sai de casa. A não mora com , mas passa muito tempo lá, só que ele também passa muito tempo na casa dela, então provavelmente vai ter dias que você não vai ver os dois. Ou talvez só um deles, não dá muito pra prever.
— Ah, sim... Vocês têm uma banda, né?
— Sim, Cave Panthers. Faz um tempinho.
— Ah, eu não conhecia, desculpa. Eu ouço muito R&B e pop, às vezes hip hop.
— Tudo bem. — Ele sorriu, uma covinha aparecendo. Estava ali antes? Como ela não tinha notado? — Hero vai gostar de saber disso.
— Hero?
— É o nome de palco do . Nós somos os vocalistas. E tem mais dois integrantes, e .
— Ah, sim. — assentiu, continuando a comer. Depois do sanduíche e algumas garfadas da torta, já se sentia bem melhor.
continuou a descrever cada um dos membros por mais alguns minutos e ela apenas ouviu em silêncio, grata por ele estar conduzindo a conversa... Ou monólogo.
Seus olhos brilharam de diversão quando ele parou de falar de repente.
— Eu tô te entediando, né? Desculpa, falei sem parar.
— Na verdade, obrigada. Fez parecer como se eu tivesse ouvindo um podcast.
— Ah... — riu, meio sem graça, passando a mão pelo pescoço.
— Então, o que alguém como você tá fazendo num café minúsculo desses?
— Eu tava resolvendo uns assuntos aqui perto e fiquei com fome. Não tenho exigência com lugares. e eu temos o costume de sair pra conhecer novos. E ela é escritora, então acaba tirando algo disso também.
— A mesma que namora ?
— Sim, ela é minha melhor amiga. E é como meu irmão, então ela é praticamente minha cunhada.
— Que legal.
não se lembrava de ter conhecido cunhados que saíam sozinhos no Brasil. Na verdade, isso era um motivo de desconfiança. Ela mesma não sabia como reagiria se um namorado resolvesse sair com sua irmã, supondo que ela também fosse melhor amiga dele.
Se Maia fosse amiga de qualquer cara com quem estivesse saindo, então simplesmente desistiria do cara. Não porque era uma pessoa ciumenta, mas se fosse bem honesta... Não conseguia confiar na irmã.
Não depois dos últimos quatro anos em que Maia se transformou em alguém que ela mal conhecia. Do jeito como agia, não duvidava que ela tentasse seduzir o cara só para ter algo dela. Por mais triste que isso fosse. Ela não devia pensar esse tipo de coisa da irmã mais nova, mas não conseguia evitar.
De todo modo, não era como se tivesse namorado. Pouco tempo antes de trancar a faculdade, saiu com um cara chamado Josh, um veterano. Ele era gentil, cavalheiro e tinha um sorriso adorável. Também era filho de pais divorciados e morava com a mãe. Sua família era coreana, mas ele havia nascido em Los Angeles e se mudado para Nova York com a mãe quando era adolescente.
Não chegaram a embarcar num relacionamento, mas perdeu a virgindade com ele. Josh a fez se sentir segura assim.
No entanto, depois de sair da faculdade, eles perderam contato. trocou de número devido a um problema e a única pessoa com quem ainda tinha contato era Lua, a colega que falou sobre o clube. Não eram tão próximas assim, mas vez ou outra dividiam a sala de ensaio depois do expediente.
— Você quer carona pra casa ou, sei lá, pra onde tiver indo? — ofereceu, assim que ela terminou de comer.
— Não precisa fazer isso. Você já pagou pela minha comida, que também não precisava — ela enfatizou.
— Desculpa. Você ficou muito incomodada?
o encarou nos olhos e respirou fundo.
— Não é isso, só... não é algo com que eu esteja acostumada. E a gente nem se conhece direito. Você não tem por que fazer isso.
— Você é minha funcionária agora. Vamos nos ver com frequência. Finja que eu tô só sendo um bom chefe.
— É que é estranho.
— Por quê? Você não costuma conversar com seus clientes?
— Na verdade, não — ela admitiu. — Normalmente, as casas ficam vazias, mas quando os encontro, a maioria nem olha duas vezes pra mim. Acho que me julgam pela minha descendência.
— E de onde você é?
— Tecnicamente daqui. Mas passei a maior parte da vida no Brasil antes de vir pra cá. Eu morava com meu pai, mas ele faleceu há um ano.
— Sinto muito por isso. E por você sofrer preconceito dessa gente tosca. Mas fica tranquila com relação a gente. E com meus amigos também. Ninguém tem preconceito com nacionalidade nem nada. Na verdade, o é japonês. Tecnicamente. Ele nasceu em Chicago, mas os pais não.
— Ah... Ele deve saber como é, então. — Ela sorriu sem graça.
— Mas e aí? Vai mesmo recusar a carona? Eu tô com o resto do dia livre e sem nada pra fazer, então não me importo.
Será que ela deveria aceitar? Que mal faria, afinal? Ele só estava sendo simpático. E gentil, o que a fazia lembrar um pouco de Josh. Só que era bem mais alto e mais bonito, o que a intimidava um pouco.
Mas uma carona não era nada demais. Ela devia só aceitar pequenas gentilezas, em vez de sair questionando tudo.
— Tudo bem. Você pode me levar pro meu outro trabalho? É uma cafeteria a algumas quadras de onde você mora.
— Claro, vamos lá. — Ele sorriu, e mais uma vez a covinha apareceu.
Em seguida, se levantou e o acompanhou, sorrindo também.
Sim, aquele dia realmente tinha melhorado um pouco depois dele.
A voz dele era baixa e intimidante.
— Nada… Foi bom ver você, mas eu tenho que-
— Você tá pálida. Tá sentindo alguma coisa?
— Sim, fome. Eu acho que é hipoglicemia. Com licença... — Ela se afastou dele, com pressa, indo direto ao balcão. Uma olhada rápida e escolheu um pedaço de torta de chocolate e um sanduíche natural de frango.
Uma refeição completa seria melhor, mas ela não tinha tempo de esperar. Não queria desmaiar de novo e... Ah, os remédios!
— Coloca uma água com gás também, por favor — acrescentou ao pedido.
Quando retirou o cartão da carteira para pagar, uma mão com um cartão black passou na sua frente e fez isso por ela.
— Deixa comigo. — sorriu.
— Ei, eu ia pagar! Você ainda tá aqui?
— Eu sei que sim, mas deixa comigo. E sim, eu tô. Você não parece muito bem.
O que aquele cara estava fazendo?
franziu o cenho, um pouco incomodada, mas estava sem energia para discutir. a ajudou a pegar o pedido e os dois se sentaram em uma mesa afastada.
Não havia muita gente ali e a cafeteria era bem pequena, mas sempre procurava se distanciar das pessoas quando ia comer. Estava sempre sozinha e, às vezes, tinha a impressão de que alguém a estava observando.
Sem dizer nada, ela mordeu o sanduíche e mastigou o mais rápido que pôde. Deu mais duas mordidas rápidas e mal sentiu o gosto antes de engolir.
Pegou a garrafa de água e fez força para abrir, em vão. Pensou em usar um guardanapo para ajudar, mas antes que tentasse, a tomou de sua mão e abriu em um segundo.
Até então ele apenas a tinha observado em silêncio o tempo todo.
— Obrigada. — Ela sorriu de lábios fechados por um segundo, antes de se virar para a bolsa e procurar os medicamentos.
Seu coração ainda estava acelerado e ela teria que esperar ao menos uns vinte minutos até começar a fazer efeito. Seria o tempo que levaria para terminar de comer, mas ainda tinha cerca de uma hora e meia até o início de seu turno na cafeteria.
— Você é hipertensa? — Ele apontou para o frasco de propranolol. — Meu pai toma esse.
— Não, eu... Sou cardiopata. — Ela sentiu o rosto esquentar ao dizer. Não que fosse um segredo, já que teria que saber de toda forma, considerando que passaria a frequentar sua casa semanalmente.
— Ah, e é sério? — indagou ele, curioso.
— Sim e não. Muita gente faz tratamento com medicamentos mais comuns e baratos, mas algumas podem parar de responder e ter que usar algo mais forte. — Ela apontou para o frasco de disopiramida.
— E desde quando você tem esse problema? Desculpa perguntar.
— Tudo bem, você ia ter que saber de todo jeito já que é basicamente meu novo chefe. — Ela deu de ombros. — É uma doença genética, meu pai também tinha.
— Sinto muito. Foi por causa disso que você tava passando mal?
— Eu tive um imprevisto hoje de manhã e não tive tempo de comer, também atrasei o horário da medicação, então... Acho que foi uma junção.
assentiu, sério, como se estivesse realmente interessado na informação.
— Você parece cansada — ele comentou, vendo ela abocanhar mais o sanduíche. — A manhã foi cheia?
— Mais ou menos. Não dormi direito — respondeu, após engolir, encolhendo os ombros. Pelo visto, o batom não estava ajudando muito a esconder seu cansaço naquele dia.
— Eu falei com meu amigo e tá tudo certo. Ele também tem que saber da sua doença, né?
— Infelizmente. — Ela sorriu, sem humor.
fez uma careta.
— Desculpa se tô parecendo insensível ou se te ofendi com as perguntas, não foi minha intenção.
— Ah, não. De forma alguma. Você quer um pouco de torta? — Ela ofereceu.
— Não, obrigado. Eu acabei de comer.
— Entendi. Enfim, vocês saberem da minha condição é só uma medida de precaução para... Caso algo aconteça. Eu não costumo passar mal desde que eu me cuide e tome os medicamentos na hora certa.
— Qual o nome da sua condição? A namorada do , seu outro chefe, é enfermeira. Com certeza, ela vai perguntar e reclamar caso eu não saiba responder.
deu uma risadinha.
— Cardiomiopatia Hipertrófica. Mas você vai lembrar desse nome até ver ela?
— Ah, mas é pra isso que serve o bloco de notas. — Ele levantou o celular e digitou rapidamente. — Mas você ainda não falou o que houve com seu rosto.
O sorriso dela se desfez.
— Olha, tá vermelho bem aqui — Ele esticou o braço e tocou sua bochecha esquerda. se encolheu quando sentiu o toque arder e ele se afastou imediatamente. — Caramba, eu te machuquei?
— Não, é que ficou ardendo. Tá tudo bem.
se recostou na cadeira e franziu o cenho outra vez.
— Quem fez isso com você, ? — ele perguntou baixinho, com a voz rouca e grave, ao mesmo tempo gentil, mas ainda assim intimidante.
— Foi um mal-entendido. A namorada do meu último cliente achou que eu estivesse dando em cima dele porque viu uma mancha do meu batom na gola da camisa dele. — Ela contou. piscou duas vezes. — Eu sei, parece suspeito. Mas eu... Fiquei tonta e desmaiei nele por um instante, daí a mancha.
— E ela nem perguntou nada?
— Ela me bateu antes que eu pudesse explicar.
— Que doida.
— Pois é... Acho que desmaiei porque minha pressão caiu. — E ela ainda desejava que uma dor de barriga atingisse a mocreia.
— Você tem que se alimentar direitinho.
Contra outra, Sherlock, ela pensou sem humor, mas sorriu simpática. não tinha culpa do dia de merda que ela estava tendo. Na verdade, parecia ter melhorado um pouquinho mais nos últimos minutos, depois que o encontrou.
— Eu pensei em ir na terça e na sexta arrumar sua casa e a do seu amigo. Você acha que funciona?
— Sim, a gente mal sai de casa. A não mora com , mas passa muito tempo lá, só que ele também passa muito tempo na casa dela, então provavelmente vai ter dias que você não vai ver os dois. Ou talvez só um deles, não dá muito pra prever.
— Ah, sim... Vocês têm uma banda, né?
— Sim, Cave Panthers. Faz um tempinho.
— Ah, eu não conhecia, desculpa. Eu ouço muito R&B e pop, às vezes hip hop.
— Tudo bem. — Ele sorriu, uma covinha aparecendo. Estava ali antes? Como ela não tinha notado? — Hero vai gostar de saber disso.
— Hero?
— É o nome de palco do . Nós somos os vocalistas. E tem mais dois integrantes, e .
— Ah, sim. — assentiu, continuando a comer. Depois do sanduíche e algumas garfadas da torta, já se sentia bem melhor.
continuou a descrever cada um dos membros por mais alguns minutos e ela apenas ouviu em silêncio, grata por ele estar conduzindo a conversa... Ou monólogo.
Seus olhos brilharam de diversão quando ele parou de falar de repente.
— Eu tô te entediando, né? Desculpa, falei sem parar.
— Na verdade, obrigada. Fez parecer como se eu tivesse ouvindo um podcast.
— Ah... — riu, meio sem graça, passando a mão pelo pescoço.
— Então, o que alguém como você tá fazendo num café minúsculo desses?
— Eu tava resolvendo uns assuntos aqui perto e fiquei com fome. Não tenho exigência com lugares. e eu temos o costume de sair pra conhecer novos. E ela é escritora, então acaba tirando algo disso também.
— A mesma que namora ?
— Sim, ela é minha melhor amiga. E é como meu irmão, então ela é praticamente minha cunhada.
— Que legal.
não se lembrava de ter conhecido cunhados que saíam sozinhos no Brasil. Na verdade, isso era um motivo de desconfiança. Ela mesma não sabia como reagiria se um namorado resolvesse sair com sua irmã, supondo que ela também fosse melhor amiga dele.
Se Maia fosse amiga de qualquer cara com quem estivesse saindo, então simplesmente desistiria do cara. Não porque era uma pessoa ciumenta, mas se fosse bem honesta... Não conseguia confiar na irmã.
Não depois dos últimos quatro anos em que Maia se transformou em alguém que ela mal conhecia. Do jeito como agia, não duvidava que ela tentasse seduzir o cara só para ter algo dela. Por mais triste que isso fosse. Ela não devia pensar esse tipo de coisa da irmã mais nova, mas não conseguia evitar.
De todo modo, não era como se tivesse namorado. Pouco tempo antes de trancar a faculdade, saiu com um cara chamado Josh, um veterano. Ele era gentil, cavalheiro e tinha um sorriso adorável. Também era filho de pais divorciados e morava com a mãe. Sua família era coreana, mas ele havia nascido em Los Angeles e se mudado para Nova York com a mãe quando era adolescente.
Não chegaram a embarcar num relacionamento, mas perdeu a virgindade com ele. Josh a fez se sentir segura assim.
No entanto, depois de sair da faculdade, eles perderam contato. trocou de número devido a um problema e a única pessoa com quem ainda tinha contato era Lua, a colega que falou sobre o clube. Não eram tão próximas assim, mas vez ou outra dividiam a sala de ensaio depois do expediente.
— Você quer carona pra casa ou, sei lá, pra onde tiver indo? — ofereceu, assim que ela terminou de comer.
— Não precisa fazer isso. Você já pagou pela minha comida, que também não precisava — ela enfatizou.
— Desculpa. Você ficou muito incomodada?
o encarou nos olhos e respirou fundo.
— Não é isso, só... não é algo com que eu esteja acostumada. E a gente nem se conhece direito. Você não tem por que fazer isso.
— Você é minha funcionária agora. Vamos nos ver com frequência. Finja que eu tô só sendo um bom chefe.
— É que é estranho.
— Por quê? Você não costuma conversar com seus clientes?
— Na verdade, não — ela admitiu. — Normalmente, as casas ficam vazias, mas quando os encontro, a maioria nem olha duas vezes pra mim. Acho que me julgam pela minha descendência.
— E de onde você é?
— Tecnicamente daqui. Mas passei a maior parte da vida no Brasil antes de vir pra cá. Eu morava com meu pai, mas ele faleceu há um ano.
— Sinto muito por isso. E por você sofrer preconceito dessa gente tosca. Mas fica tranquila com relação a gente. E com meus amigos também. Ninguém tem preconceito com nacionalidade nem nada. Na verdade, o é japonês. Tecnicamente. Ele nasceu em Chicago, mas os pais não.
— Ah... Ele deve saber como é, então. — Ela sorriu sem graça.
— Mas e aí? Vai mesmo recusar a carona? Eu tô com o resto do dia livre e sem nada pra fazer, então não me importo.
Será que ela deveria aceitar? Que mal faria, afinal? Ele só estava sendo simpático. E gentil, o que a fazia lembrar um pouco de Josh. Só que era bem mais alto e mais bonito, o que a intimidava um pouco.
Mas uma carona não era nada demais. Ela devia só aceitar pequenas gentilezas, em vez de sair questionando tudo.
— Tudo bem. Você pode me levar pro meu outro trabalho? É uma cafeteria a algumas quadras de onde você mora.
— Claro, vamos lá. — Ele sorriu, e mais uma vez a covinha apareceu.
Em seguida, se levantou e o acompanhou, sorrindo também.
Sim, aquele dia realmente tinha melhorado um pouco depois dele.
Capítulo 6
23 de agosto de 2017, 13:27 - Apartamento de Hero - Nova York, NY
tocou a campainha e ajustou a bolsa no ombro enquanto esperava. Um minuto depois, a porta foi aberta e um homem alto, sem camisa, apareceu.
A primeira coisa que notou foram os braços cobertos de tatuagens florais, entre outras. Havia algumas pegando parte de seu torso também, além de pequenas cicatrizes.
— Oi, você deve ser . — Ele sorriu para ela e uma sombra de uma covinha apareceu. Era um pouco mais baixo que e ao invés de olhos azuis e cabelo preto, Hero tinha o cabelo marrom em um tom de chocolate e olhos verdes profundos.
— Isso mesmo. — Ela sorriu de volta.
— Entra. — Ele abriu espaço para ela passar e não pode ignorar seu torso definido. Caramba, aquele cara era lindo demais. Parecia que tinha saído da capa de uma revista.
Será que todos os amigos de eram assim?
Sua mandíbula era marcada e seu nariz reto, sem contar o sorriso adorável.
Assim que entrou, se deparou com um apartamento praticamente igual ao de : bem amplo e aberto, com cômodos nos mesmos lugares. Na cozinha, uma mulher de cabelo castanho com mechas rosa-claro fazia algo e levantou a cabeça assim que a encarou.
— Oi! , né? falou sobre você. — Ela sorriu, simpática. — Bem-vinda. Eu sou .
Bem-vinda. Era a segunda vez que alguém falava aquilo para ela. sentiu seu coração se aquecer um pouquinho. Também achou familiar, mas então se lembrou do que disse assim que deixou ela na cafeteria, na tarde anterior. era cliente ali. Então era possível que as duas tivessem se esbarrado alguma vez, embora não tivesse o costume de prestar atenção em muitos rostos, ainda mais quando o local estava sempre lotado.
— Boa tarde. Também ouvi falar sobre você.
— E eu sou . Ou Hero, como preferir chamar. — O homem estendeu uma mão para ela apertar. — Mas nada de me chamar de senhor. Eu só tenho trinta anos.
sorriu, achando graça.
— Tudo bem. , então. É um prazer conhecer vocês. Por onde posso começar a trabalhar?
— Eu vou te mostrar o apartamento. — disse, se aproximando, e a guiou através dos cômodos em pouco tempo. Era como o apartamento de , mas o quarto que no dele estava vazio, ali tinha sido transformado em um pequeno estúdio de música. — Hero vai ficar no estúdio trabalhando, então não precisa limpar lá. E eu vou ficar no escritório.
— Entendi. — disse, e um instante depois, Hero passou por elas, entrando no cômodo para trabalhar.
Voltaram para a cozinha um momento depois.
— Os produtos de limpeza ficam ali. — Ela apontou para uma portinha idêntica à de .
— Igual ao apartamento de .
— Pois é. é bem organizado, e os dois moraram juntos por muito tempo. Foi ele quem arrumou as coisas aqui também. sofreu um acidente no ano passado e ele ficou por conta dos mantimentos — ela explicou. — Acho que tem produtos de limpeza até o final do ano. Ele é meio maníaco por limpeza, mas não admite.
deu uma risadinha.
— Ah, ele me disse que só gosta de arrumação.
— Que nada. Aposto que ele tem TOC. E ele limpa a casa por hobby, ou quando precisa pensar sobre algo. Mas quem limpa a casa pra pensar? Eu comprei um robô pra fazer isso por mim. Limpar, sabe. O troço limpa minha casa melhor do que eu.
— Deve ser bem prático.
— Sim. Mas os homens daqui não curtem muita tecnologia. Levei meses pra convencer a instalar uma assistente virtual em casa — ela contou. — Mas é bom, né? Mais trabalho pra você. — Ela sorriu.
— Sim. Deixa comigo. Posso ser o robozinho de limpeza de vocês.
riu, divertida.
— Isso aí. Me chama se precisar de qualquer coisa. Ah, os copos ficam ali e tem água na geladeira se você quiser. — Ela apontou para a bancada. — me contou da sua condição, então acho bom você se manter hidratada.
— Obrigada.
— Vou voltar pro trabalho agora. Até depois.
Assim como o apartamento de , não havia tanto o que fazer. Tinha um pouco mais de pó nos móveis, mas o chão estava ok. Mesmo assim, ela saiu aspirando tudo para ter certeza de que não deixaria nada passar batido.
Em seguida, usou um pano úmido no chão de porcelanato e terminou tudo cerca de duas horas depois.
— Ficou ótimo. Que cheiro bom — comentou, olhando ao redor. — tava certo sobre você.
— É verdade — concordou com um sorriso.
— Obrigada. — sorriu de volta, orgulhosa de si mesma.
Era bom ter alguém elogiando seu trabalho, mesmo que fosse algo bem simples.
— Você volta na sexta, né? e eu vamos viajar com a mãe dele, mas vai estar em casa e tem a senha da porta, então você pode pedir pra ele abrir pra você.
— Entendi. — Ela assentiu. — Vou descer agora pra limpar o apartamento dele.
— Beleza, até semana que vem, — se despediu e a acompanhou até a porta.
Ela pegou o elevador e, um instante depois, tocou na campainha de .
Ele estava usando uma camisa regata soltinha e short preto naquele dia. Assim como Hero, seus braços eram cobertos de tatuagens e ambos eram uma montanha de músculos.
— Oi, — ele a cumprimentou com um sorriso. — Entra.
— Boa tarde.
— Deu tudo certo lá em cima com e ?
— Sim, seus amigos são bem gentis.
— Que ótimo. Vou ficar no quarto enquanto você trabalha, tá? Você já sabe onde fica tudo, então qualquer coisa é só chamar. Fica à vontade. — E então, ele se virou e desapareceu pelo corredor.
Daquele jeito, ele a fazia se sentir como uma visita e não uma funcionária que estava ali para limpar sua casa.
riu e balançou a cabeça antes de ir até a despensa de produtos e enfim começar a trabalhar. A casa de estava menos suja que da última vez, mas isso era meio óbvio já que não fazia nem uma semana que estivera ali. No entanto, maníaco por limpeza ou não, parecia ser bem tranquilo.
Diferente do apartamento de Hero, repleto de tons escuros e sofisticados, o de seguia tons de areia e marrom que faziam o lugar parecer mais caseiro e aconchegante. Talvez tivesse sido decorado por uma mulher.
Assim como da última vez, ela arrumou todos os cômodos da casa e deixou a suíte dele por último. Daquela vez, ela também limpou o banheiro, que levou apenas alguns minutos, e admirou a banheira de hidromassagem mais uma vez, rindo de si mesma por isso.
Não conseguia nem imaginar quanto custava uma daquelas. Devia ser bom ter dinheiro.
Quando o pai era vivo, vivia em um quarto legal e se alimentava melhor, mas nunca foi o tipo de pessoa que gastava dinheiro. Havia ganhado um cartão de crédito que gastava apenas com transporte, comida e coisas básicas, nada diferente do que fazia com o dinheiro que ele sempre havia enviado quando estava no Brasil.
Por mais que tivessem passado mais de uma década sem se verem pessoalmente, mantiveram contato constante, ao menos uma vez por semana.
Peter era um cara legal. Era um pai legal. E presente, da forma como conseguia ser. A perda dele foi um choque para . Mesmo longe da irmã e da avó, ela estava feliz morando ali e por ter uma relação próxima com o pai.
Até não ter mais.
Foi como se o chão tivesse escapado de seus pés e ela estivesse em queda livre. A única preocupação que tinha antes era estudar e trabalhar na cafeteria para ganhar dinheiro e enviar para a irmã e avó. Além disso, tinha consultas rotineiras com o Dr. Martinez e sua saúde ia muito bem. Até que, de repente, tudo isso desapareceu.
ainda não entendia por que não estava entre os herdeiros do pai, não quando ela era sua única filha biológica. Mas foi isso que descobriu quando o advogado leu o testamento.
Agora vivia na casa que costumava ser dele há um ano, pagando um pequeno aluguel. Se bem que viver era uma palavra equivocada, já que basicamente só usava o lugar para dormir e tomar banho.
Todo dia, rezava por uma mudança que a permitisse sair de lá. E se tudo desse certo, deixaria aquele lugar para trás também, junto com as três pessoas odiosas que moravam lá.
***
Eram quase cinco e meia da tarde quando terminou tudo. Quando chegou à sala, notou um cheiro delicioso se misturando aos de produtos de limpeza e viu o exato momento em que se abaixou para pegar algo no forno.
— Oi, eu terminei tudo — ela avisou, se aproximando da bancada.
— Ótimo, chegou na hora certa. — Ele sorriu e indicou a forma repleta de biscoitos de chocolate. — Ainda tão quentes, mas eu fiz pra gente comer.
— Você fez enquanto eu limpava seu quarto?
— Na verdade, assei. Eu tinha massa congelada. Costumo fazer porções maiores e guardar pra não ter que fazer tudo do zero sempre. Senta aí. — Ele indicou o banco.
— Vou descansar só um pouquinho — ela disse, meio sem graça.
— Você ainda trabalha hoje? — Ele perguntou, de costas, enquanto abria a geladeira.
— Sim, na cafeteria. Mas meu turno só começa às sete.
— Ah, tem tempo então. O que vai fazer até lá? — Ele colocou uma caixa de leite em cima da bancada. — Leite? Eu tenho suco também, se você quiser.
— Você não precisa fazer isso.
— Achei que a gente já tinha concordado que é uma mania minha. Não é nada pessoal, . — Ele a encarou e então inclinou a cabeça para o lado. — Posso te chamar assim?
Claro que pode. E se você usar esse tom de voz e expressão pra me pedir pra rolar e dar a pata tal qual um cachorro, eu faço sem problemas.
Ela só podia estar maluca.
Mas não era cega.
— Pode sim. — Ela sorriu de lábios fechados, enquanto ele enchia dois copos de leite.
De repente, lembrou da tal notícia da ex-namorada. Pelo visto, ela tinha admitido ter mentido, mas algumas pessoas ainda estavam duvidando de . Será que ainda duvidariam se o vissem agindo daquela forma? certamente já tinha deixado a possibilidade dele ser um monstro de lado.
A menos que ele estivesse tentando alimentar ela para que engordasse e ele pudesse atirá-la em um caldeirão depois. Mas obviamente a ideia era bem bizarra e ela não estava presa no conto de João e Maria.
— Você não respondeu minha pergunta — ele comentou, pegando um biscoito com um lenço e entregando a ela.
— O quê? — franziu o cenho, sem se lembrar.
— O que vai fazer antes de ir pro café?
— Ah, eu... Acho que vou só procurar um lugar pra jantar e fazer hora. — Ela deu de ombros, dando uma mordida no biscoito.
imaginou que devia morar longe de casa.
— E aí, gostou do biscoito?
— Tá uma delícia, parece o do Subway.
— Pois é, eu tentei reproduzir a receita deles. Que bom que gostou. — Ele sorriu e começou a comer também. — Sabe, quando e eu trabalhávamos como garçons em Chicago, nosso apartamento ficava bem pertinho. A gente sempre podia descansar em casa e voltar.
— Devia ser legal. Eu bem que queria, mas só volto pra casa no fim do dia.
— Você trabalha sempre na cafeteria?
— Normalmente à noite, de terça a sexta. Na segunda eu tenho um turno durante a tarde e no sábado também. Os funcionários normalmente fazem rodízio no domingo, mas ninguém nunca quer trabalhar nesse dia, então todo mundo me pergunta se eu aceito o turno e... Bem, eu aceito.
— Parece cansativo.
— Pois é, mas eu já tô acostumada. — Ela deu de ombros e pegou o copo de leite para dar um gole.
— Fica aqui então — ofereceu, de repente. engasgou e tossiu. — Eita, tá tudo bem? — Ele pegou um lenço e entregou a ela.
— O que foi que você disse? — Ela o encarou.
— Você pode ficar aqui se quiser. Pra passar o tempo. Pode até tirar uma soneca no sofá ou sei lá, tomar banho. Eu não me importo.
— Não posso ficar aqui — ela falou rapidamente.
— Por que não?
— Porque... Eu sou uma estranha. Você não devia me oferecer isso.
— A minha antiga funcionária ficava aqui o tempo todo, quando precisava esperar o filho vir buscar ela. Confie em mim, eu não me importo.
— Mas... É a sua casa. Sua privacidade. Como assim não se importa de ter uma estranha aqui?
— Mas você não é estranha. Sua chefe me falou bem de você quando fui dar o feedback da última vez. Depois a gente se encontrou ontem e... Não sei. Se quiser posso te deixar sozinha e ficar no quarto também.
— Minha nossa... Eu... Você é sempre tão relaxado assim?
— Isso é um insulto? — Ele riu, quando ela arregalou os olhos. — Relaxa, . Você pode não me conhecer, mas meu corpo tá estampado em todo canto. Especialmente nas últimas semanas — acrescentou, sem graça. — Você tá segura aqui.
— Segura?
— É. Não tenho nenhuma namorada maluca que vai aparecer do nada e bater em você. E sendo sincero, depois do que você me contou ontem acho que fico mais tranquilo com você aqui, pro caso de você passar mal na rua sozinha.
— Não é sua responsabilidade. — Ela engoliu em seco. Por que ele estava fazendo aquilo?
— Pois é, mas que tal você fingir que minha casa ainda tá suja? — ele sugeriu. — Faz de conta que ainda tá arrumando ela, se isso te deixar melhor.
— Eu... — Não sei o que dizer.
E não sabia mesmo. No fim, não disse nada. A única pessoa que tinha demonstrado preocupação com ela no último ano foram suas chefes. E não daquela forma.
— Seu rosto tá melhor? Não tá mais vermelho.
— Ah... Sim.
— Você tomou sua medicação? Comeu direitinho? Não teve nenhum episódio de hipoglicemia ou desmaio hoje, né? Porque você não pode se negligenciar assim... Tá descansando direito? Dormindo bem?
Ele a bombardeou com perguntas, falando tão rápido que por um instante teve que pensar nas palavras para entender. Não adiantava nem um pouco ser fluente em inglês quando o cara à sua frente estava falando tão rápido quanto um rapper.
— Mais devagar, por favor.
— Ah, desculpa. Até que parte você entendeu?
— Tudo. Mas não vou lembrar de responder nada se você continuar nesse ritmo.
riu, divertido.
— Entendi. Mas tá tudo bem?
— Sim. Ontem tive a noite livre, então voltei pra casa depois do jantar e pude dormir mais cedo. Tá tudo bem agora.
— Ótimo. E você vai ficar?
— Eu...
— Pode usar o banheiro de hóspedes se quiser tomar banho. O sofá também é bem grande e confortável como você já viu, e perfeito pra deitar um pouco.
— ... Tem certeza? Isso não te incomoda mesmo? — ela perguntou baixinho, tentada a aceitar.
— Claro que não, . Relaxa. — O olhar dele suavizou, assim como a voz. — Por mim, tudo bem se pra você estiver também. Então... O que me diz?
Seria possível dizer não olhando naquele par de olhos azuis?
— Eu... Aceito, então — ela respondeu, tímida. — Obrigada.
— Ótimo! Sabe, eu precisava mesmo de alguém aqui — ele disse e se levantou, colocando a louça suja na pia. Então continuou a falar bem rápido. — Pensei em pedir comida coreana hoje, mas as porções deles são enormes e eu tô de dieta. Que bom que tenho alguém pra me acompanhar agora. Vou ficar no quarto e esperar o delivery. Você sabe onde fica o banheiro e... Bem, o resto das coisas. Até já.
E desapareceu, antes que ela pudesse protestar.
piscou algumas vezes, tentando assimilar as palavras e... Espera, ele ia comprar o jantar?
tocou a campainha e ajustou a bolsa no ombro enquanto esperava. Um minuto depois, a porta foi aberta e um homem alto, sem camisa, apareceu.
A primeira coisa que notou foram os braços cobertos de tatuagens florais, entre outras. Havia algumas pegando parte de seu torso também, além de pequenas cicatrizes.
— Oi, você deve ser . — Ele sorriu para ela e uma sombra de uma covinha apareceu. Era um pouco mais baixo que e ao invés de olhos azuis e cabelo preto, Hero tinha o cabelo marrom em um tom de chocolate e olhos verdes profundos.
— Isso mesmo. — Ela sorriu de volta.
— Entra. — Ele abriu espaço para ela passar e não pode ignorar seu torso definido. Caramba, aquele cara era lindo demais. Parecia que tinha saído da capa de uma revista.
Será que todos os amigos de eram assim?
Sua mandíbula era marcada e seu nariz reto, sem contar o sorriso adorável.
Assim que entrou, se deparou com um apartamento praticamente igual ao de : bem amplo e aberto, com cômodos nos mesmos lugares. Na cozinha, uma mulher de cabelo castanho com mechas rosa-claro fazia algo e levantou a cabeça assim que a encarou.
— Oi! , né? falou sobre você. — Ela sorriu, simpática. — Bem-vinda. Eu sou .
Bem-vinda. Era a segunda vez que alguém falava aquilo para ela. sentiu seu coração se aquecer um pouquinho. Também achou familiar, mas então se lembrou do que disse assim que deixou ela na cafeteria, na tarde anterior. era cliente ali. Então era possível que as duas tivessem se esbarrado alguma vez, embora não tivesse o costume de prestar atenção em muitos rostos, ainda mais quando o local estava sempre lotado.
— Boa tarde. Também ouvi falar sobre você.
— E eu sou . Ou Hero, como preferir chamar. — O homem estendeu uma mão para ela apertar. — Mas nada de me chamar de senhor. Eu só tenho trinta anos.
sorriu, achando graça.
— Tudo bem. , então. É um prazer conhecer vocês. Por onde posso começar a trabalhar?
— Eu vou te mostrar o apartamento. — disse, se aproximando, e a guiou através dos cômodos em pouco tempo. Era como o apartamento de , mas o quarto que no dele estava vazio, ali tinha sido transformado em um pequeno estúdio de música. — Hero vai ficar no estúdio trabalhando, então não precisa limpar lá. E eu vou ficar no escritório.
— Entendi. — disse, e um instante depois, Hero passou por elas, entrando no cômodo para trabalhar.
Voltaram para a cozinha um momento depois.
— Os produtos de limpeza ficam ali. — Ela apontou para uma portinha idêntica à de .
— Igual ao apartamento de .
— Pois é. é bem organizado, e os dois moraram juntos por muito tempo. Foi ele quem arrumou as coisas aqui também. sofreu um acidente no ano passado e ele ficou por conta dos mantimentos — ela explicou. — Acho que tem produtos de limpeza até o final do ano. Ele é meio maníaco por limpeza, mas não admite.
deu uma risadinha.
— Ah, ele me disse que só gosta de arrumação.
— Que nada. Aposto que ele tem TOC. E ele limpa a casa por hobby, ou quando precisa pensar sobre algo. Mas quem limpa a casa pra pensar? Eu comprei um robô pra fazer isso por mim. Limpar, sabe. O troço limpa minha casa melhor do que eu.
— Deve ser bem prático.
— Sim. Mas os homens daqui não curtem muita tecnologia. Levei meses pra convencer a instalar uma assistente virtual em casa — ela contou. — Mas é bom, né? Mais trabalho pra você. — Ela sorriu.
— Sim. Deixa comigo. Posso ser o robozinho de limpeza de vocês.
riu, divertida.
— Isso aí. Me chama se precisar de qualquer coisa. Ah, os copos ficam ali e tem água na geladeira se você quiser. — Ela apontou para a bancada. — me contou da sua condição, então acho bom você se manter hidratada.
— Obrigada.
— Vou voltar pro trabalho agora. Até depois.
Assim como o apartamento de , não havia tanto o que fazer. Tinha um pouco mais de pó nos móveis, mas o chão estava ok. Mesmo assim, ela saiu aspirando tudo para ter certeza de que não deixaria nada passar batido.
Em seguida, usou um pano úmido no chão de porcelanato e terminou tudo cerca de duas horas depois.
— Ficou ótimo. Que cheiro bom — comentou, olhando ao redor. — tava certo sobre você.
— É verdade — concordou com um sorriso.
— Obrigada. — sorriu de volta, orgulhosa de si mesma.
Era bom ter alguém elogiando seu trabalho, mesmo que fosse algo bem simples.
— Você volta na sexta, né? e eu vamos viajar com a mãe dele, mas vai estar em casa e tem a senha da porta, então você pode pedir pra ele abrir pra você.
— Entendi. — Ela assentiu. — Vou descer agora pra limpar o apartamento dele.
— Beleza, até semana que vem, — se despediu e a acompanhou até a porta.
Ela pegou o elevador e, um instante depois, tocou na campainha de .
Ele estava usando uma camisa regata soltinha e short preto naquele dia. Assim como Hero, seus braços eram cobertos de tatuagens e ambos eram uma montanha de músculos.
— Oi, — ele a cumprimentou com um sorriso. — Entra.
— Boa tarde.
— Deu tudo certo lá em cima com e ?
— Sim, seus amigos são bem gentis.
— Que ótimo. Vou ficar no quarto enquanto você trabalha, tá? Você já sabe onde fica tudo, então qualquer coisa é só chamar. Fica à vontade. — E então, ele se virou e desapareceu pelo corredor.
Daquele jeito, ele a fazia se sentir como uma visita e não uma funcionária que estava ali para limpar sua casa.
riu e balançou a cabeça antes de ir até a despensa de produtos e enfim começar a trabalhar. A casa de estava menos suja que da última vez, mas isso era meio óbvio já que não fazia nem uma semana que estivera ali. No entanto, maníaco por limpeza ou não, parecia ser bem tranquilo.
Diferente do apartamento de Hero, repleto de tons escuros e sofisticados, o de seguia tons de areia e marrom que faziam o lugar parecer mais caseiro e aconchegante. Talvez tivesse sido decorado por uma mulher.
Assim como da última vez, ela arrumou todos os cômodos da casa e deixou a suíte dele por último. Daquela vez, ela também limpou o banheiro, que levou apenas alguns minutos, e admirou a banheira de hidromassagem mais uma vez, rindo de si mesma por isso.
Não conseguia nem imaginar quanto custava uma daquelas. Devia ser bom ter dinheiro.
Quando o pai era vivo, vivia em um quarto legal e se alimentava melhor, mas nunca foi o tipo de pessoa que gastava dinheiro. Havia ganhado um cartão de crédito que gastava apenas com transporte, comida e coisas básicas, nada diferente do que fazia com o dinheiro que ele sempre havia enviado quando estava no Brasil.
Por mais que tivessem passado mais de uma década sem se verem pessoalmente, mantiveram contato constante, ao menos uma vez por semana.
Peter era um cara legal. Era um pai legal. E presente, da forma como conseguia ser. A perda dele foi um choque para . Mesmo longe da irmã e da avó, ela estava feliz morando ali e por ter uma relação próxima com o pai.
Até não ter mais.
Foi como se o chão tivesse escapado de seus pés e ela estivesse em queda livre. A única preocupação que tinha antes era estudar e trabalhar na cafeteria para ganhar dinheiro e enviar para a irmã e avó. Além disso, tinha consultas rotineiras com o Dr. Martinez e sua saúde ia muito bem. Até que, de repente, tudo isso desapareceu.
ainda não entendia por que não estava entre os herdeiros do pai, não quando ela era sua única filha biológica. Mas foi isso que descobriu quando o advogado leu o testamento.
Agora vivia na casa que costumava ser dele há um ano, pagando um pequeno aluguel. Se bem que viver era uma palavra equivocada, já que basicamente só usava o lugar para dormir e tomar banho.
Todo dia, rezava por uma mudança que a permitisse sair de lá. E se tudo desse certo, deixaria aquele lugar para trás também, junto com as três pessoas odiosas que moravam lá.
Eram quase cinco e meia da tarde quando terminou tudo. Quando chegou à sala, notou um cheiro delicioso se misturando aos de produtos de limpeza e viu o exato momento em que se abaixou para pegar algo no forno.
— Oi, eu terminei tudo — ela avisou, se aproximando da bancada.
— Ótimo, chegou na hora certa. — Ele sorriu e indicou a forma repleta de biscoitos de chocolate. — Ainda tão quentes, mas eu fiz pra gente comer.
— Você fez enquanto eu limpava seu quarto?
— Na verdade, assei. Eu tinha massa congelada. Costumo fazer porções maiores e guardar pra não ter que fazer tudo do zero sempre. Senta aí. — Ele indicou o banco.
— Vou descansar só um pouquinho — ela disse, meio sem graça.
— Você ainda trabalha hoje? — Ele perguntou, de costas, enquanto abria a geladeira.
— Sim, na cafeteria. Mas meu turno só começa às sete.
— Ah, tem tempo então. O que vai fazer até lá? — Ele colocou uma caixa de leite em cima da bancada. — Leite? Eu tenho suco também, se você quiser.
— Você não precisa fazer isso.
— Achei que a gente já tinha concordado que é uma mania minha. Não é nada pessoal, . — Ele a encarou e então inclinou a cabeça para o lado. — Posso te chamar assim?
Claro que pode. E se você usar esse tom de voz e expressão pra me pedir pra rolar e dar a pata tal qual um cachorro, eu faço sem problemas.
Ela só podia estar maluca.
Mas não era cega.
— Pode sim. — Ela sorriu de lábios fechados, enquanto ele enchia dois copos de leite.
De repente, lembrou da tal notícia da ex-namorada. Pelo visto, ela tinha admitido ter mentido, mas algumas pessoas ainda estavam duvidando de . Será que ainda duvidariam se o vissem agindo daquela forma? certamente já tinha deixado a possibilidade dele ser um monstro de lado.
A menos que ele estivesse tentando alimentar ela para que engordasse e ele pudesse atirá-la em um caldeirão depois. Mas obviamente a ideia era bem bizarra e ela não estava presa no conto de João e Maria.
— Você não respondeu minha pergunta — ele comentou, pegando um biscoito com um lenço e entregando a ela.
— O quê? — franziu o cenho, sem se lembrar.
— O que vai fazer antes de ir pro café?
— Ah, eu... Acho que vou só procurar um lugar pra jantar e fazer hora. — Ela deu de ombros, dando uma mordida no biscoito.
imaginou que devia morar longe de casa.
— E aí, gostou do biscoito?
— Tá uma delícia, parece o do Subway.
— Pois é, eu tentei reproduzir a receita deles. Que bom que gostou. — Ele sorriu e começou a comer também. — Sabe, quando e eu trabalhávamos como garçons em Chicago, nosso apartamento ficava bem pertinho. A gente sempre podia descansar em casa e voltar.
— Devia ser legal. Eu bem que queria, mas só volto pra casa no fim do dia.
— Você trabalha sempre na cafeteria?
— Normalmente à noite, de terça a sexta. Na segunda eu tenho um turno durante a tarde e no sábado também. Os funcionários normalmente fazem rodízio no domingo, mas ninguém nunca quer trabalhar nesse dia, então todo mundo me pergunta se eu aceito o turno e... Bem, eu aceito.
— Parece cansativo.
— Pois é, mas eu já tô acostumada. — Ela deu de ombros e pegou o copo de leite para dar um gole.
— Fica aqui então — ofereceu, de repente. engasgou e tossiu. — Eita, tá tudo bem? — Ele pegou um lenço e entregou a ela.
— O que foi que você disse? — Ela o encarou.
— Você pode ficar aqui se quiser. Pra passar o tempo. Pode até tirar uma soneca no sofá ou sei lá, tomar banho. Eu não me importo.
— Não posso ficar aqui — ela falou rapidamente.
— Por que não?
— Porque... Eu sou uma estranha. Você não devia me oferecer isso.
— A minha antiga funcionária ficava aqui o tempo todo, quando precisava esperar o filho vir buscar ela. Confie em mim, eu não me importo.
— Mas... É a sua casa. Sua privacidade. Como assim não se importa de ter uma estranha aqui?
— Mas você não é estranha. Sua chefe me falou bem de você quando fui dar o feedback da última vez. Depois a gente se encontrou ontem e... Não sei. Se quiser posso te deixar sozinha e ficar no quarto também.
— Minha nossa... Eu... Você é sempre tão relaxado assim?
— Isso é um insulto? — Ele riu, quando ela arregalou os olhos. — Relaxa, . Você pode não me conhecer, mas meu corpo tá estampado em todo canto. Especialmente nas últimas semanas — acrescentou, sem graça. — Você tá segura aqui.
— Segura?
— É. Não tenho nenhuma namorada maluca que vai aparecer do nada e bater em você. E sendo sincero, depois do que você me contou ontem acho que fico mais tranquilo com você aqui, pro caso de você passar mal na rua sozinha.
— Não é sua responsabilidade. — Ela engoliu em seco. Por que ele estava fazendo aquilo?
— Pois é, mas que tal você fingir que minha casa ainda tá suja? — ele sugeriu. — Faz de conta que ainda tá arrumando ela, se isso te deixar melhor.
— Eu... — Não sei o que dizer.
E não sabia mesmo. No fim, não disse nada. A única pessoa que tinha demonstrado preocupação com ela no último ano foram suas chefes. E não daquela forma.
— Seu rosto tá melhor? Não tá mais vermelho.
— Ah... Sim.
— Você tomou sua medicação? Comeu direitinho? Não teve nenhum episódio de hipoglicemia ou desmaio hoje, né? Porque você não pode se negligenciar assim... Tá descansando direito? Dormindo bem?
Ele a bombardeou com perguntas, falando tão rápido que por um instante teve que pensar nas palavras para entender. Não adiantava nem um pouco ser fluente em inglês quando o cara à sua frente estava falando tão rápido quanto um rapper.
— Mais devagar, por favor.
— Ah, desculpa. Até que parte você entendeu?
— Tudo. Mas não vou lembrar de responder nada se você continuar nesse ritmo.
riu, divertido.
— Entendi. Mas tá tudo bem?
— Sim. Ontem tive a noite livre, então voltei pra casa depois do jantar e pude dormir mais cedo. Tá tudo bem agora.
— Ótimo. E você vai ficar?
— Eu...
— Pode usar o banheiro de hóspedes se quiser tomar banho. O sofá também é bem grande e confortável como você já viu, e perfeito pra deitar um pouco.
— ... Tem certeza? Isso não te incomoda mesmo? — ela perguntou baixinho, tentada a aceitar.
— Claro que não, . Relaxa. — O olhar dele suavizou, assim como a voz. — Por mim, tudo bem se pra você estiver também. Então... O que me diz?
Seria possível dizer não olhando naquele par de olhos azuis?
— Eu... Aceito, então — ela respondeu, tímida. — Obrigada.
— Ótimo! Sabe, eu precisava mesmo de alguém aqui — ele disse e se levantou, colocando a louça suja na pia. Então continuou a falar bem rápido. — Pensei em pedir comida coreana hoje, mas as porções deles são enormes e eu tô de dieta. Que bom que tenho alguém pra me acompanhar agora. Vou ficar no quarto e esperar o delivery. Você sabe onde fica o banheiro e... Bem, o resto das coisas. Até já.
E desapareceu, antes que ela pudesse protestar.
piscou algumas vezes, tentando assimilar as palavras e... Espera, ele ia comprar o jantar?
Capítulo 7
Como prometido, River sumiu.
Mas ainda levou cerca de dois minutos para criar coragem e ir até o banheiro.
— Seja grata, . Você tá louca por um banho. Tem mais é que aproveitar a oportunidade mesmo — ela murmurou consigo mesma, em português.
Só precisava de dez minutos.
E de qualquer forma, por precaução, sempre andava com uma muda de roupas e produtos de higiene íntima na bolsa, após um perrengue alguns meses antes. Uma torneira com defeito que espirrou água para todos os lados ao ser aberta, inclusive nela.
No inverno.
Por mais que estivesse com um casaco pesado naquele dia, não ajudou muito com as roupas molhadas. passou o resto do dia batendo o queixo de frio e ainda pegou um resfriado horrível. Então de jeito nenhum deixaria algo assim se repetir, não se pudesse evitar.
Quando terminou o banho, voltou para a sala. A porta do quarto de River ainda estava fechada e o apartamento estava em silêncio.
Ainda meio acanhada, mas aliviada por ele tê-la deixado sozinha, foi até o sofá e se sentou no estofado macio e aconchegante. Era tão confortável que ela sentiu como se estivesse sendo abraçada. Sua boca se abriu em um bocejo; estava bem menos cansada do que no dia anterior, mas ainda assim sentiu os olhos inchados de sono.
E o pior: não podia nem tomar um energético sem sentir que seu coração ia pular para fora a qualquer momento.
Assim, ela aproveitou a deixa e deitou a cabeça no encosto, fechando os olhos por um momento. A cafeteria ficava a cinco minutos de caminhada da casa de River, então ainda tinha tempo de sobra.
Ia ficar paradinha ali só um pouquinho, uns cinco minutos.
Só para descansar os olhos.
Quase meia hora depois, acordou sobressaltada, percebendo que estava toda encolhida no sofá, com um cobertor em cima dela.
Quando aquilo tinha ido parar ali? Ela não se lembrava de ter nenhuma manta no sofá. E por que estava sem sapatos?
— Você acordou. — Ela ouviu a voz de River e virou a cabeça, o encontrando na cozinha. Ele tinha a sombra de um sorriso no rosto, mas seu olhar estava concentrado em outra coisa. Foi então que ela notou um cheiro estupidamente bom vindo dali, fazendo sua boca salivar.
— Eu não tinha intenção de dormir, desculpa — alegou, envergonhada, como se tivesse sido pega fazendo algo errado.
— Relaxa, eu disse que você podia tirar uma soneca. — River sorriu, continuando a organizar a bancada com a comida.
Uns dez minutos depois que ouviu passando pelo corredor pela segunda vez, ele abriu a porta do quarto devagar e saiu para espiar. Por um instante, não a viu em lugar nenhum e achou que talvez tivesse ido embora, mas então se deparou com sua figura toda encolhida no sofá.
O móvel era grande e largo, tão confortável quanto uma cama. estava deitada de lado, em posição fetal, com as costas viradas para o encosto. Havia olheiras escuras abaixo de seus olhos e ela tinha prendido o cabelo em um rabo de cavalo alto que deixava todo o seu rosto à mostra. Os fios eram longos e escuros, um tom de marrom um pouco mais profundo que os de , contrastando com sua pele clara, levemente bronzeada.
parecia pequena naquele sofá grande demais e era meio fofo, ele pensou, com um sorriso. Ela e deviam ter por volta da mesma altura; não eram baixinhas, mas também não chegavam a ser altas.
De repente, ela se mexeu durante o sono e River foi tirado de seus pensamentos, dando-se conta de que estava parado ali há alguns instantes, apenas a observando.
Se ela acordasse e te visse assim, ia sair correndo, seu esquisitão.
se mexeu outra vez e se encolheu mais, então, sem pensar muito, ele buscou uma manta e a cobriu com cuidado. Em seguida, removeu o par de tênis que ela usava para acomodá-la melhor. A comida tinha acabado de chegar quando ela acordou.
— Mesmo assim, sinto muito. Você é meu chefe — se desculpou mais uma vez.
Por que ela estava tão preocupada com aquilo quando ele a tinha convidado?
— Agora você é minha convidada, que vai me ajudar a acabar com essa comida que acabou de chegar. — Ele gesticulou para os recipientes descartáveis.
enfiou os pés rapidamente nos tênis e caminhou até ele, abrindo a boca de surpresa quando viu a quantidade de comida.
— Por que você pediu isso tudo?
— Aí que tá. Eu não pedi. Essas são as menores porções do restaurante — ele explicou. E era verdade, sempre sobrava comida quando ele comia sozinho. — Não sei se você gosta de comida apimentada, então pedi o molho separado só por precaução.
— Ah, sim... Entendi.
River não tinha certeza se ela havia acreditado ou não, mas deixou para lá.
Os dois se sentaram e então começaram a comer em um silêncio confortável.
— Você se sente melhor? — ele perguntou, após uns cinco minutos. — Depois de tirar um cochilo — ele acrescentou, quando a viu franzir o cenho, confusa.
— Ah, sim. — desviou o olhar, sentindo o rosto esquentar. — Meus olhos agradecem.
— Deve ser difícil trabalhar em dois empregos.
— Três — ela corrigiu, com uma risadinha. — Mas o último é legal.
— Três? Você tem três empregos? — Ele a encarou, incrédulo. — Por que tudo isso?
— Eu preciso me manter. — Ela deu de ombros. — Também pago a faculdade da minha irmã, no Brasil. E a minha doença...
— O que tem ela?
— Eu não tenho plano de saúde, então preciso economizar por precaução. Por conta das medicações e pro caso de... — A voz dela morreu.
— De acontecer alguma coisa, como você disse antes?
— Sim. Mas se quer saber, nunca houve nada sério até agora, então tá tudo bem. — Ela sorriu de lábios fechados. — Além disso, também tô juntando dinheiro pra alugar um apartamento e sair da casa do meu pai. Ou melhor, da minha madrasta. Mas o terceiro emprego é legal. E é só nos fins de semana.
— Ah... E o que você faz?
— Eu danço.
— O quê? — River a encarou, imóvel. — Você... Dança?
— Não me olhe assim. — riu, divertida. — Eu não sou uma stripper.
— Ah... Certo. E onde você dança, exatamente? — ele perguntou, curioso, enquanto enfiava uma colher de arroz na boca.
— Num clube burlesco.
River engasgou com arroz e tossiu, sentindo os olhos arderem.
estendeu um lenço para ele.
— Um clube burlesco? E como isso é diferente?
— É diferente porque eu não preciso necessariamente tirar a roupa — ela explicou. — E nós fazemos cabelo e maquiagem. Todo mundo fica num estilo vintage, é muito legal. Eu fazia faculdade de dança antes, mas tive que trancar depois que meu pai morreu, pra poder trabalhar.
— Entendi. — Ele assentiu. — Você faz muitas coisas. Não é cansativo? Tipo, você pode fazer isso?
— Não deveria. Mas não tenho escolha. — Ela deu de ombros.
— Sinto muito.
— Não sinta. Tá tudo bem. Se não fosse minha doença... — Ela respirou fundo e sorriu sem graça.
River resolveu mudar de assunto.
— E sua irmã? Ela não veio com você pros Estados Unidos?
— Não, ela é minha meia-irmã, na verdade. Nós não nos damos muito bem. Ela se ressente de mim por ter vindo morar com meu pai, então a gente mal se fala.
— E você envia dinheiro pra ela mesmo assim? — ele perguntou. deu de ombros, como se não se importasse. — Quantos anos ela tem?
— Vinte e dois.
— E você é a única trabalhando?
— Ela precisa estudar. E eu prometi que ia pagar a faculdade dela.
— Tá, e a família do seu pai? Por que você quer sair de lá?
— Porque... — Sou tratada como uma intrusa. Assediada e maltratada. Obrigada a pagar pra dormir num armário de vassouras e ainda ter que agradecer, como se fosse um maldito favor. — Quero ter meu próprio cantinho.
E foi tudo o que ela disse.
Voltaram a comer em silêncio e quando terminaram, ainda havia comida sobrando. tinha dez minutos e se despediu de River, que a acompanhou até a porta.
— Até sexta, . Bom trabalho e boa noite. Descanse.
sorriu de lábios fechados e assentiu, antes de se virar até o elevador. Viu River fechar a porta e desviou o olhar para a tela do elevador. Alguém estava subindo até aquele andar.
Ela ajustou a bolsa no ombro e, quase no mesmo instante, as portas do elevador abriram, revelando um cara asiático alto, de cabelo preto e piercings nas orelhas, que por pouco não esbarrou nela.
— Opa! Desculpa, eu não te vi. — Ele sorriu, sem graça.
— Sem problema. — Ela sorriu de volta. — Boa noite. — E entrou no cubículo.
— Boa noite... — Ele respondeu, observando as portas fecharem.
Um minuto depois, digitou a senha da porta de River e entrou.
— Caaara! Acabei de ver uma gata no elevador!
River encarou , confuso, mas nem um pouco surpreso pela aparição repentina do amigo. Ele tinha dessas.
— Quem? E o que você tá fazendo aqui?
— Isso é comida coreana? Eu nem jantei ainda. — Ele apontou para os recipientes que River estava se preparando para guardar e desistiu.
— É sim, as porções são enormes e acabou sobrando. Fica à vontade.
foi até a bancada e não perdeu tempo em pegar um par de hashis e começar a comer.
— Então, uma garota de rabo de cavalo, pele clara. Acho que é estrangeira.
— Ah, deve ser a então — River deduziu.
— ? Quem é ? Você conhece aquela gata?
— , eu contratei ela pra limpar minha casa. Nós jantamos juntos e ela acabou de sair.
— Quê?! Você tava num encontro então?
River revirou os olhos.
— Não foi um encontro, idiota. Ela tinha tempo livre antes de ir pro outro trabalho e eu a convenci a ficar um pouco e descansar. A tem uma doença cardíaca e... Por que eu tô falando disso com você? — ele perguntou quando notou que tinha parado de comer e agora o encarava com o queixo apoiado nas duas mãos, completamente atento.
— Parece o plot de uma boa fanfic. Mas e aí? Ela também não tem família e tentou recusar a proposta?
— Sim, mas como você- Ah, ! Para de fanficar, porra!
— Ei, eu não tenho culpa de ter um hobby que estimula a minha imaginação! Da última vez que eu soube, sua faxineira era uma senhora idosa e não uma gata daquelas.
— Para de chamar ela de gata, idiota. O nome dela é .
— Ui, alguém tá com ciuminho? — provocou, voltando a comer, e River teve que respirar fundo para não dar um soco nele.
— O que você veio fazer aqui, afinal? Além de me perturbar, é claro.
Ainda mastigando, pegou o celular e procurou por algo antes de entregar a River, que arregalou os olhos assim que viu a manchete com seu nome.
"River tem problemas de apego? Ex-affair afirma que o vocalista da Cave Panthers nunca demonstrou interesse em ter um relacionamento sério"
— Aquela maluca deu outra entrevista. Ela admitiu a mentira, mas em compensação falou isso aí, que você nunca quis ter um relacionamento sério. Também disse que seguiu em frente com um cara chamado John. Enfim, uma bela bosta, mas agora as pessoas não tiram seu nome da boca.
— Que inferno... — River resmungou, enquanto rolava a página do artigo. — Isso saiu hoje à tarde?
— Sim, eu te mandei mensagem, mas você nem leu.
— Deixei o celular carregando no quarto — River respondeu em meio a uma careta.
E então respirou fundo, tentando manter a paciência. Porque a maluca com quem tinha se envolvido tinha acabado de lhe dar uma nova dor de cabeça quando ele achava que estava tudo resolvido.
E o pior: nada do que ela disse era mentira.
***
26 de agosto de 2017, 00:58 - Veil of Secrets - Nova York, NY
As luzes coloridas do clube piscaram enquanto a música tocava alto, preenchendo o ambiente enquanto as dançarinas distraíam os clientes majoritariamente do sexo masculino.
No Veil of Secrets, clube burlesco em que trabalhava, ela era Cindy Lee. Todas as dançarinas eram incentivadas a criarem um alter ego para ajudá-las a se soltarem na dança e manter a verdadeira identidade em segredo.
Cindy Lee era loira, de cabelo curto em um tom platinado. tinha escolhido aquele corte inspirado na personagem de Christina Aguilera em Burlesque. E o nome... Era uma piada de humor negro que fizera consigo mesma após ficar órfã, ainda morando com uma madrasta que finalmente havia mostrado as garras e seus dois filhos cruéis.
Tommy, o responsável pelo figurino, gostou tanto da ideia que a maioria das roupas que dava para vestir eram em tons de azul.
Naquela noite, ela usava um espartilho de cetim azul-celeste com luvas, minissaia rendada e meias brancas. Os sapatos eram de um estilo boneca, ótimos para dançar, no mesmo tom de azul do espartilho.
se sentia uma boneca sexy e achava que aquela era a melhor parte em trabalhar ali. Podia simplesmente fingir que era outra pessoa enquanto dançava e provocava os clientes que lhe davam gorjetas que eram presas em partes dos figurinos, assim como todas as dançarinas faziam.
Ninguém tinha permissão de tocá-las, no entanto. E os seguranças de Suzy, sua chefe, garantiam que qualquer tentativa de assédio fosse interrompida antes mesmo de se concretizar.
Como ex-dançarina com anos de carreira, Suzy era extremamente exigente não só com a dança, mas com os clientes. Certos limites não podiam ser ultrapassados, portanto, regras haviam sido estabelecidas.
sabia pouca coisa sobre a dança burlesca antes de chegar ali, mas havia aprendido muito no último ano não só com a chefe, mas também com as colegas de trabalho.
O Veil of Secrets tinha dançarinas incríveis, algumas que até mesmo costumavam ser líderes de torcida na escola, com várias habilidades de ginástica. não tinha nenhuma especialidade, mas era boa em aprender rápido, improvisar e interpretar músicas.
Naquele momento, "Gimme! Gimme! Gimme! (A Man After Midnight)" de ABBA tocava alto enquanto dançarinas no palco interpretavam a música de forma sexy, alegre e exagerada. Normalmente, elas eram divididas entre dois ou três grupos para revezar o palco, ao mesmo tempo em que as que não estavam lá dançavam entre as mesas do público presente.
Era o que estava fazendo naquele momento, sacudindo sensualmente um leque rendado enquanto se movia fazendo a coreografia, uma das muitas que tinha aprendido antes ou depois do expediente devido à falta de tempo para ensaiar. Todas eram sempre decididas com antecedência e Suzy sempre enviava vídeos dos ensaios para que as garotas pudessem treinar sozinhas depois.
passava a semana assistindo esses vídeos nos intervalos de um trabalho e outro, geralmente quando estava em um ônibus ou no metrô.
Felizmente, de algum jeito funcionava.
Entre as mesas, no entanto, as dançarinas tinham maior liberdade para improvisar. O espaço era pequeno e a coreografia mais elaborada era reservada para o palco.
dançou entre as mesas, sorrindo por trás da máscara prateada que cobria metade de seu rosto. Seus olhos estavam esfumados com sombra azul e marrom, realçando o castanho deles. Além disso, um delineado gatinho e um par cílios postiços no canto externo lhe davam um olhar cheio de charme.
Ali ela não era , e sim Cindy Lee enquanto dançava.
E assim como as outras meninas, Cindy dublava as músicas enquanto sorria e se movimentava ao ritmo dela.
Chegou à mesa de um homem charmoso que devia ter idade para ser seu pai e ele sorriu, balançando uma nota de cem dólares para ela. Ele lembrava um pouco o ator que havia feito Sportacus em LazyTown e tinha um charme magnético. Cindy sorriu e balançou o leque, mexendo os quadris de um lado para o outro, antes de colocar o pé em cima da coxa dele.
O homem deu uma risadinha e enfiou a nota na meia dela, antes de segurar sua mão e depositar um beijo no dorso. Sem ultrapassar limites.
Ele devia ser bem rico para dar uma gorjeta daquelas. Ou inconsequente.
Mas a julgar pelas roupas caras, devia ser a primeira opção. Cindy sorriu e dançou mais um pouco até passar para outras mesas. Estava tudo bem, até uma mão boba ir parar na bunda dela.
Sempre tinha um engraçadinho que gostava de ir contra as regras, mas ela não se abalou. Afastou a mão dele com um sorriso enquanto lançava um olhar para Jesse, um dos seguranças. Cada um deles era responsável por ficar de olho em pelo menos três meninas, só para o caso de algum cliente resolver passar do limite.
E as outras duas estavam no palco.
Jesse arqueou uma sobrancelha para ela, lançando um olhar de águia para o homem que a tinha tocado e estava a meio caminho de tentar de novo. Cindy bateu levemente com o leque em sua mão e ele riu, levantando as mãos em rendição antes de mostrar uma nota de vinte dólares. Ela sorriu e abriu o leque, estendendo-o como uma bandeja para que ele colocasse o dinheiro ali.
A próxima mesa a que chegou, no entanto, a fez vacilar por um instante ao ver um rosto conhecido. Charlie estava sentado ali, a observando com interesse. manteve distância, dançando de costas para ele na maior parte do tempo, antes de se virar com o leque cobrindo parte do rosto. Em seguida, o removeu e começou a se abanar, enquanto dublava:
"Is there a man out there, someone to hear my prayer?"
Era o último refrão e Charlie estava sacudindo uma nota de cinquenta dólares. se aproximou com o leque estendido, mas ele ignorou e enfiou a nota no decote do espartilho. Ela segurou um sorriso no rosto e deu as costas novamente, se afastando enquanto a música se encerrava.
As luzes começaram a piscar dramaticamente, um novo som ecoando das caixas de som.
Ela e mais cinco dançarinas correram para o palco ao som dos primeiros toques de "Voulez-Vous" e quando a primeira linha foi cantada, as seis já estavam a postos, cada uma em uma posição que era trocada dramaticamente no ritmo da música.
Elas pareciam um arco-íris em tons pasteis, cada uma com uma cor diferente, além de cabelo e maquiagem.
Quando o instrumental da música continuou sem as vozes, elas andaram pelo palco com movimentos exagerados, cheios de humor e sensualidade. sorriu atrás de sua skin de Cindy Lee, sentindo o corpo inteiro arrepiar enquanto se deixava levar pela dança.
Izzy, a dançarina vestida de rosa, ocupava o centro do palco e da coreografia naquele número. Era uma veterana de trinta e cinco anos, especialista em dança burlesca e acrobacias, extremamente competente e encantadora, além de ser a coreógrafa principal junto com Suzy. também havia aprendido muito com ela e a tinha como uma inspiração. Era uma honra dançar no mesmo palco daquela mulher.
Quando a música acabou, tudo ficou escuro e as dançarinas saíram do palco, com exceção de Izzy.
Era a hora do seu solo de dança.
As músicas de ABBA haviam sido escolhidas para as apresentações do mês de agosto e aquele era o último final de semana. Em breve, estariam em setembro com números cover do filme Burlesque, que mal podia esperar.
Suzy era uma amante de musicais e, no último ano, e as outras dançarinas já tinham interpretado músicas de vários, mas em meio a isso, também havia alguns números com músicas pop atuais.
As luzes começaram a piscar e correu para um cantinho afastado dos clientes, ansiosa para ver o solo de Izzy.
"Does Your Mother Know?" começou a tocar e as luzes pararam de piscar, um único holofote a acompanhando para lá e para cá no palco. Izzy dançou com plumas e aos poucos foi removendo peças de roupas de forma ousada e brincalhona, mas sem realmente ficar nua. Ela jogou um sutiã para uma mulher de uma das mesas da frente, que o agarrou e o girou em meio a uma gargalhada.
O público riu e se divertiu com a energia daquele lugar.
Pelo canto do olho, notou Jesse se aproximando.
— Ela é incrível, não é? — ele comentou, com admiração.
— Muito. — sorriu, ainda encarando o palco.
— Você já tá livre ou vai ensaiar depois do expediente?
— Nah, vou pra casa mais cedo. Amanhã é sábado, então vou chegar cedo pra ensaiar as novas coreografias. Tô só esperando o solo acabar pra ir me trocar.
E tão logo ela falou, a música se encerrou. Izzy estava com o corpo coberto de plumas e se virou de costas, remexendo os quadris uma última vez, antes das luzes se apagarem. e Jesse riram juntos e ela se despediu dele antes de voltar para o camarim. Um último grupo apresentaria mais algumas músicas, mas ela estava livre.
No camarim, juntou as gorjetas que havia ganhado e enfiado no espartilho antes de subir ao palco. Em seguida, tomou um banho rápido e se livrou da maquiagem.
Então, se despediu de Tommy e de algumas meninas, e enfim foi embora.
***
Do outro lado da cidade, um corpo grande e musculoso rolava pela cama.
River encarou o teto, sem sono nenhum, e suspirou, desistindo de dormir.
Normalmente, quando estava assim e nada parecia ajudá-lo a dormir, procurava algo para fazer, tipo limpar alguma coisa. Mas já tinha feito aquilo mais cedo, ele lembrou com tristeza.
Ela parecia um pouco menos cansada naquele dia, ele notou. Limpou o apartamento de Hero antes de ir para o dele e, assim como na terça, tinha acabado bem antes do expediente na cafeteria começar. River a convenceu mais uma vez a descansar ali mesmo, mas por pouco.
Naquele dia tiveram que negociar. queria comprar o jantar, mas não funcionou. De jeito nenhum ele a deixaria pagar por algo. Não porque ela não pudesse nem nada, mas... Se ele podia fazer isso por ela, então por que não?
Não era como se River tivesse com o que gastar, de qualquer forma. Depois de onze anos de carreira, ele tinha chegado a um ponto que poderia se aposentar a qualquer momento e viver confortavelmente pelo resto da vida.
Não tinha irmãos e seus parentes mais próximos eram seus pais. River os sustentava há muito tempo e já tinha anos que os dois viviam em um apartamento no Queens. Além dele e dos pais, parte de seu dinheiro era destinado a doações mensais a instituições de caridade.
E mesmo assim, ele ainda tinha mais dinheiro do que conseguia gastar.
trabalhava duro de domingo a domingo e era uma boa garota. Um pouco tímida, mas divertida, uma vez que conseguia se soltar um pouquinho.
Ele não queria que ela desperdiçasse um dinheiro suado com ele. E à medida que conversavam, River sentia um estranho impulso de querer cuidar dela aumentar cada vez mais.
Nem fazia muito sentido, já que mal a conhecia. Mas a última vez que sentiu algo do tipo foi com , que era sua melhor amiga. E além dela, sua mãe. River adorava mimar sua mãe e enviava um buquê de flores com um bilhete de admirador secreto toda semana. Tanto ela quanto seu pai sabiam que vinha dele, mas já fazia anos que a brincadeira continuava.
De todo modo, entendia as reservas de , afinal, mal o conhecia. No entanto, depois de uma pequena discussão sobre quem pagaria o jantar, River resolveu tentar uma nova abordagem: cozinhar.
Então os dois acabaram na cozinha fazendo macarrão juntos. sugeriu adicionar frango e fez um molho rosé delicioso. Ficou tão bom, que River ignorou a dieta e repetiu duas vezes, o que arrancou algumas risadas dela.
Ele perguntou um pouco mais sobre o clube em que ela dançava e viu seu rosto se iluminar com um sorriso ao contar os detalhes das apresentações. Era notável a paixão que ela tinha pela dança, e ele havia ficado um pouquinho curioso em ver aquele lado dela.
Suspirando mais uma vez, ainda encarando o teto, ele pegou o celular debaixo de um travesseiro e olhou a hora.
Duas da manhã. Será que ela já chegou em casa?
Sem pensar muito, ele acessou o aplicativo de mensagens e procurou o contato dela. Não faria mal enviar uma mensagem, né?
Só para garantir que estava tudo bem. Afinal, era tarde. E tinham trocado números de contato mais cedo, de qualquer forma. Uma mensagem não faria mal a ninguém, certo?
Pensando nisso, ele começou a digitar.
Mas ainda levou cerca de dois minutos para criar coragem e ir até o banheiro.
— Seja grata, . Você tá louca por um banho. Tem mais é que aproveitar a oportunidade mesmo — ela murmurou consigo mesma, em português.
Só precisava de dez minutos.
E de qualquer forma, por precaução, sempre andava com uma muda de roupas e produtos de higiene íntima na bolsa, após um perrengue alguns meses antes. Uma torneira com defeito que espirrou água para todos os lados ao ser aberta, inclusive nela.
No inverno.
Por mais que estivesse com um casaco pesado naquele dia, não ajudou muito com as roupas molhadas. passou o resto do dia batendo o queixo de frio e ainda pegou um resfriado horrível. Então de jeito nenhum deixaria algo assim se repetir, não se pudesse evitar.
Quando terminou o banho, voltou para a sala. A porta do quarto de River ainda estava fechada e o apartamento estava em silêncio.
Ainda meio acanhada, mas aliviada por ele tê-la deixado sozinha, foi até o sofá e se sentou no estofado macio e aconchegante. Era tão confortável que ela sentiu como se estivesse sendo abraçada. Sua boca se abriu em um bocejo; estava bem menos cansada do que no dia anterior, mas ainda assim sentiu os olhos inchados de sono.
E o pior: não podia nem tomar um energético sem sentir que seu coração ia pular para fora a qualquer momento.
Assim, ela aproveitou a deixa e deitou a cabeça no encosto, fechando os olhos por um momento. A cafeteria ficava a cinco minutos de caminhada da casa de River, então ainda tinha tempo de sobra.
Ia ficar paradinha ali só um pouquinho, uns cinco minutos.
Só para descansar os olhos.
Quase meia hora depois, acordou sobressaltada, percebendo que estava toda encolhida no sofá, com um cobertor em cima dela.
Quando aquilo tinha ido parar ali? Ela não se lembrava de ter nenhuma manta no sofá. E por que estava sem sapatos?
— Você acordou. — Ela ouviu a voz de River e virou a cabeça, o encontrando na cozinha. Ele tinha a sombra de um sorriso no rosto, mas seu olhar estava concentrado em outra coisa. Foi então que ela notou um cheiro estupidamente bom vindo dali, fazendo sua boca salivar.
— Eu não tinha intenção de dormir, desculpa — alegou, envergonhada, como se tivesse sido pega fazendo algo errado.
— Relaxa, eu disse que você podia tirar uma soneca. — River sorriu, continuando a organizar a bancada com a comida.
Uns dez minutos depois que ouviu passando pelo corredor pela segunda vez, ele abriu a porta do quarto devagar e saiu para espiar. Por um instante, não a viu em lugar nenhum e achou que talvez tivesse ido embora, mas então se deparou com sua figura toda encolhida no sofá.
O móvel era grande e largo, tão confortável quanto uma cama. estava deitada de lado, em posição fetal, com as costas viradas para o encosto. Havia olheiras escuras abaixo de seus olhos e ela tinha prendido o cabelo em um rabo de cavalo alto que deixava todo o seu rosto à mostra. Os fios eram longos e escuros, um tom de marrom um pouco mais profundo que os de , contrastando com sua pele clara, levemente bronzeada.
parecia pequena naquele sofá grande demais e era meio fofo, ele pensou, com um sorriso. Ela e deviam ter por volta da mesma altura; não eram baixinhas, mas também não chegavam a ser altas.
De repente, ela se mexeu durante o sono e River foi tirado de seus pensamentos, dando-se conta de que estava parado ali há alguns instantes, apenas a observando.
Se ela acordasse e te visse assim, ia sair correndo, seu esquisitão.
se mexeu outra vez e se encolheu mais, então, sem pensar muito, ele buscou uma manta e a cobriu com cuidado. Em seguida, removeu o par de tênis que ela usava para acomodá-la melhor. A comida tinha acabado de chegar quando ela acordou.
— Mesmo assim, sinto muito. Você é meu chefe — se desculpou mais uma vez.
Por que ela estava tão preocupada com aquilo quando ele a tinha convidado?
— Agora você é minha convidada, que vai me ajudar a acabar com essa comida que acabou de chegar. — Ele gesticulou para os recipientes descartáveis.
enfiou os pés rapidamente nos tênis e caminhou até ele, abrindo a boca de surpresa quando viu a quantidade de comida.
— Por que você pediu isso tudo?
— Aí que tá. Eu não pedi. Essas são as menores porções do restaurante — ele explicou. E era verdade, sempre sobrava comida quando ele comia sozinho. — Não sei se você gosta de comida apimentada, então pedi o molho separado só por precaução.
— Ah, sim... Entendi.
River não tinha certeza se ela havia acreditado ou não, mas deixou para lá.
Os dois se sentaram e então começaram a comer em um silêncio confortável.
— Você se sente melhor? — ele perguntou, após uns cinco minutos. — Depois de tirar um cochilo — ele acrescentou, quando a viu franzir o cenho, confusa.
— Ah, sim. — desviou o olhar, sentindo o rosto esquentar. — Meus olhos agradecem.
— Deve ser difícil trabalhar em dois empregos.
— Três — ela corrigiu, com uma risadinha. — Mas o último é legal.
— Três? Você tem três empregos? — Ele a encarou, incrédulo. — Por que tudo isso?
— Eu preciso me manter. — Ela deu de ombros. — Também pago a faculdade da minha irmã, no Brasil. E a minha doença...
— O que tem ela?
— Eu não tenho plano de saúde, então preciso economizar por precaução. Por conta das medicações e pro caso de... — A voz dela morreu.
— De acontecer alguma coisa, como você disse antes?
— Sim. Mas se quer saber, nunca houve nada sério até agora, então tá tudo bem. — Ela sorriu de lábios fechados. — Além disso, também tô juntando dinheiro pra alugar um apartamento e sair da casa do meu pai. Ou melhor, da minha madrasta. Mas o terceiro emprego é legal. E é só nos fins de semana.
— Ah... E o que você faz?
— Eu danço.
— O quê? — River a encarou, imóvel. — Você... Dança?
— Não me olhe assim. — riu, divertida. — Eu não sou uma stripper.
— Ah... Certo. E onde você dança, exatamente? — ele perguntou, curioso, enquanto enfiava uma colher de arroz na boca.
— Num clube burlesco.
River engasgou com arroz e tossiu, sentindo os olhos arderem.
estendeu um lenço para ele.
— Um clube burlesco? E como isso é diferente?
— É diferente porque eu não preciso necessariamente tirar a roupa — ela explicou. — E nós fazemos cabelo e maquiagem. Todo mundo fica num estilo vintage, é muito legal. Eu fazia faculdade de dança antes, mas tive que trancar depois que meu pai morreu, pra poder trabalhar.
— Entendi. — Ele assentiu. — Você faz muitas coisas. Não é cansativo? Tipo, você pode fazer isso?
— Não deveria. Mas não tenho escolha. — Ela deu de ombros.
— Sinto muito.
— Não sinta. Tá tudo bem. Se não fosse minha doença... — Ela respirou fundo e sorriu sem graça.
River resolveu mudar de assunto.
— E sua irmã? Ela não veio com você pros Estados Unidos?
— Não, ela é minha meia-irmã, na verdade. Nós não nos damos muito bem. Ela se ressente de mim por ter vindo morar com meu pai, então a gente mal se fala.
— E você envia dinheiro pra ela mesmo assim? — ele perguntou. deu de ombros, como se não se importasse. — Quantos anos ela tem?
— Vinte e dois.
— E você é a única trabalhando?
— Ela precisa estudar. E eu prometi que ia pagar a faculdade dela.
— Tá, e a família do seu pai? Por que você quer sair de lá?
— Porque... — Sou tratada como uma intrusa. Assediada e maltratada. Obrigada a pagar pra dormir num armário de vassouras e ainda ter que agradecer, como se fosse um maldito favor. — Quero ter meu próprio cantinho.
E foi tudo o que ela disse.
Voltaram a comer em silêncio e quando terminaram, ainda havia comida sobrando. tinha dez minutos e se despediu de River, que a acompanhou até a porta.
— Até sexta, . Bom trabalho e boa noite. Descanse.
sorriu de lábios fechados e assentiu, antes de se virar até o elevador. Viu River fechar a porta e desviou o olhar para a tela do elevador. Alguém estava subindo até aquele andar.
Ela ajustou a bolsa no ombro e, quase no mesmo instante, as portas do elevador abriram, revelando um cara asiático alto, de cabelo preto e piercings nas orelhas, que por pouco não esbarrou nela.
— Opa! Desculpa, eu não te vi. — Ele sorriu, sem graça.
— Sem problema. — Ela sorriu de volta. — Boa noite. — E entrou no cubículo.
— Boa noite... — Ele respondeu, observando as portas fecharem.
Um minuto depois, digitou a senha da porta de River e entrou.
— Caaara! Acabei de ver uma gata no elevador!
River encarou , confuso, mas nem um pouco surpreso pela aparição repentina do amigo. Ele tinha dessas.
— Quem? E o que você tá fazendo aqui?
— Isso é comida coreana? Eu nem jantei ainda. — Ele apontou para os recipientes que River estava se preparando para guardar e desistiu.
— É sim, as porções são enormes e acabou sobrando. Fica à vontade.
foi até a bancada e não perdeu tempo em pegar um par de hashis e começar a comer.
— Então, uma garota de rabo de cavalo, pele clara. Acho que é estrangeira.
— Ah, deve ser a então — River deduziu.
— ? Quem é ? Você conhece aquela gata?
— , eu contratei ela pra limpar minha casa. Nós jantamos juntos e ela acabou de sair.
— Quê?! Você tava num encontro então?
River revirou os olhos.
— Não foi um encontro, idiota. Ela tinha tempo livre antes de ir pro outro trabalho e eu a convenci a ficar um pouco e descansar. A tem uma doença cardíaca e... Por que eu tô falando disso com você? — ele perguntou quando notou que tinha parado de comer e agora o encarava com o queixo apoiado nas duas mãos, completamente atento.
— Parece o plot de uma boa fanfic. Mas e aí? Ela também não tem família e tentou recusar a proposta?
— Sim, mas como você- Ah, ! Para de fanficar, porra!
— Ei, eu não tenho culpa de ter um hobby que estimula a minha imaginação! Da última vez que eu soube, sua faxineira era uma senhora idosa e não uma gata daquelas.
— Para de chamar ela de gata, idiota. O nome dela é .
— Ui, alguém tá com ciuminho? — provocou, voltando a comer, e River teve que respirar fundo para não dar um soco nele.
— O que você veio fazer aqui, afinal? Além de me perturbar, é claro.
Ainda mastigando, pegou o celular e procurou por algo antes de entregar a River, que arregalou os olhos assim que viu a manchete com seu nome.
"River tem problemas de apego? Ex-affair afirma que o vocalista da Cave Panthers nunca demonstrou interesse em ter um relacionamento sério"
— Aquela maluca deu outra entrevista. Ela admitiu a mentira, mas em compensação falou isso aí, que você nunca quis ter um relacionamento sério. Também disse que seguiu em frente com um cara chamado John. Enfim, uma bela bosta, mas agora as pessoas não tiram seu nome da boca.
— Que inferno... — River resmungou, enquanto rolava a página do artigo. — Isso saiu hoje à tarde?
— Sim, eu te mandei mensagem, mas você nem leu.
— Deixei o celular carregando no quarto — River respondeu em meio a uma careta.
E então respirou fundo, tentando manter a paciência. Porque a maluca com quem tinha se envolvido tinha acabado de lhe dar uma nova dor de cabeça quando ele achava que estava tudo resolvido.
E o pior: nada do que ela disse era mentira.
26 de agosto de 2017, 00:58 - Veil of Secrets - Nova York, NY
As luzes coloridas do clube piscaram enquanto a música tocava alto, preenchendo o ambiente enquanto as dançarinas distraíam os clientes majoritariamente do sexo masculino.
No Veil of Secrets, clube burlesco em que trabalhava, ela era Cindy Lee. Todas as dançarinas eram incentivadas a criarem um alter ego para ajudá-las a se soltarem na dança e manter a verdadeira identidade em segredo.
Cindy Lee era loira, de cabelo curto em um tom platinado. tinha escolhido aquele corte inspirado na personagem de Christina Aguilera em Burlesque. E o nome... Era uma piada de humor negro que fizera consigo mesma após ficar órfã, ainda morando com uma madrasta que finalmente havia mostrado as garras e seus dois filhos cruéis.
Tommy, o responsável pelo figurino, gostou tanto da ideia que a maioria das roupas que dava para vestir eram em tons de azul.
Naquela noite, ela usava um espartilho de cetim azul-celeste com luvas, minissaia rendada e meias brancas. Os sapatos eram de um estilo boneca, ótimos para dançar, no mesmo tom de azul do espartilho.
se sentia uma boneca sexy e achava que aquela era a melhor parte em trabalhar ali. Podia simplesmente fingir que era outra pessoa enquanto dançava e provocava os clientes que lhe davam gorjetas que eram presas em partes dos figurinos, assim como todas as dançarinas faziam.
Ninguém tinha permissão de tocá-las, no entanto. E os seguranças de Suzy, sua chefe, garantiam que qualquer tentativa de assédio fosse interrompida antes mesmo de se concretizar.
Como ex-dançarina com anos de carreira, Suzy era extremamente exigente não só com a dança, mas com os clientes. Certos limites não podiam ser ultrapassados, portanto, regras haviam sido estabelecidas.
sabia pouca coisa sobre a dança burlesca antes de chegar ali, mas havia aprendido muito no último ano não só com a chefe, mas também com as colegas de trabalho.
O Veil of Secrets tinha dançarinas incríveis, algumas que até mesmo costumavam ser líderes de torcida na escola, com várias habilidades de ginástica. não tinha nenhuma especialidade, mas era boa em aprender rápido, improvisar e interpretar músicas.
Naquele momento, "Gimme! Gimme! Gimme! (A Man After Midnight)" de ABBA tocava alto enquanto dançarinas no palco interpretavam a música de forma sexy, alegre e exagerada. Normalmente, elas eram divididas entre dois ou três grupos para revezar o palco, ao mesmo tempo em que as que não estavam lá dançavam entre as mesas do público presente.
Era o que estava fazendo naquele momento, sacudindo sensualmente um leque rendado enquanto se movia fazendo a coreografia, uma das muitas que tinha aprendido antes ou depois do expediente devido à falta de tempo para ensaiar. Todas eram sempre decididas com antecedência e Suzy sempre enviava vídeos dos ensaios para que as garotas pudessem treinar sozinhas depois.
passava a semana assistindo esses vídeos nos intervalos de um trabalho e outro, geralmente quando estava em um ônibus ou no metrô.
Felizmente, de algum jeito funcionava.
Entre as mesas, no entanto, as dançarinas tinham maior liberdade para improvisar. O espaço era pequeno e a coreografia mais elaborada era reservada para o palco.
dançou entre as mesas, sorrindo por trás da máscara prateada que cobria metade de seu rosto. Seus olhos estavam esfumados com sombra azul e marrom, realçando o castanho deles. Além disso, um delineado gatinho e um par cílios postiços no canto externo lhe davam um olhar cheio de charme.
Ali ela não era , e sim Cindy Lee enquanto dançava.
E assim como as outras meninas, Cindy dublava as músicas enquanto sorria e se movimentava ao ritmo dela.
Chegou à mesa de um homem charmoso que devia ter idade para ser seu pai e ele sorriu, balançando uma nota de cem dólares para ela. Ele lembrava um pouco o ator que havia feito Sportacus em LazyTown e tinha um charme magnético. Cindy sorriu e balançou o leque, mexendo os quadris de um lado para o outro, antes de colocar o pé em cima da coxa dele.
O homem deu uma risadinha e enfiou a nota na meia dela, antes de segurar sua mão e depositar um beijo no dorso. Sem ultrapassar limites.
Ele devia ser bem rico para dar uma gorjeta daquelas. Ou inconsequente.
Mas a julgar pelas roupas caras, devia ser a primeira opção. Cindy sorriu e dançou mais um pouco até passar para outras mesas. Estava tudo bem, até uma mão boba ir parar na bunda dela.
Sempre tinha um engraçadinho que gostava de ir contra as regras, mas ela não se abalou. Afastou a mão dele com um sorriso enquanto lançava um olhar para Jesse, um dos seguranças. Cada um deles era responsável por ficar de olho em pelo menos três meninas, só para o caso de algum cliente resolver passar do limite.
E as outras duas estavam no palco.
Jesse arqueou uma sobrancelha para ela, lançando um olhar de águia para o homem que a tinha tocado e estava a meio caminho de tentar de novo. Cindy bateu levemente com o leque em sua mão e ele riu, levantando as mãos em rendição antes de mostrar uma nota de vinte dólares. Ela sorriu e abriu o leque, estendendo-o como uma bandeja para que ele colocasse o dinheiro ali.
A próxima mesa a que chegou, no entanto, a fez vacilar por um instante ao ver um rosto conhecido. Charlie estava sentado ali, a observando com interesse. manteve distância, dançando de costas para ele na maior parte do tempo, antes de se virar com o leque cobrindo parte do rosto. Em seguida, o removeu e começou a se abanar, enquanto dublava:
"Is there a man out there, someone to hear my prayer?"
Era o último refrão e Charlie estava sacudindo uma nota de cinquenta dólares. se aproximou com o leque estendido, mas ele ignorou e enfiou a nota no decote do espartilho. Ela segurou um sorriso no rosto e deu as costas novamente, se afastando enquanto a música se encerrava.
As luzes começaram a piscar dramaticamente, um novo som ecoando das caixas de som.
Ela e mais cinco dançarinas correram para o palco ao som dos primeiros toques de "Voulez-Vous" e quando a primeira linha foi cantada, as seis já estavam a postos, cada uma em uma posição que era trocada dramaticamente no ritmo da música.
Elas pareciam um arco-íris em tons pasteis, cada uma com uma cor diferente, além de cabelo e maquiagem.
Quando o instrumental da música continuou sem as vozes, elas andaram pelo palco com movimentos exagerados, cheios de humor e sensualidade. sorriu atrás de sua skin de Cindy Lee, sentindo o corpo inteiro arrepiar enquanto se deixava levar pela dança.
Izzy, a dançarina vestida de rosa, ocupava o centro do palco e da coreografia naquele número. Era uma veterana de trinta e cinco anos, especialista em dança burlesca e acrobacias, extremamente competente e encantadora, além de ser a coreógrafa principal junto com Suzy. também havia aprendido muito com ela e a tinha como uma inspiração. Era uma honra dançar no mesmo palco daquela mulher.
Quando a música acabou, tudo ficou escuro e as dançarinas saíram do palco, com exceção de Izzy.
Era a hora do seu solo de dança.
As músicas de ABBA haviam sido escolhidas para as apresentações do mês de agosto e aquele era o último final de semana. Em breve, estariam em setembro com números cover do filme Burlesque, que mal podia esperar.
Suzy era uma amante de musicais e, no último ano, e as outras dançarinas já tinham interpretado músicas de vários, mas em meio a isso, também havia alguns números com músicas pop atuais.
As luzes começaram a piscar e correu para um cantinho afastado dos clientes, ansiosa para ver o solo de Izzy.
"Does Your Mother Know?" começou a tocar e as luzes pararam de piscar, um único holofote a acompanhando para lá e para cá no palco. Izzy dançou com plumas e aos poucos foi removendo peças de roupas de forma ousada e brincalhona, mas sem realmente ficar nua. Ela jogou um sutiã para uma mulher de uma das mesas da frente, que o agarrou e o girou em meio a uma gargalhada.
O público riu e se divertiu com a energia daquele lugar.
Pelo canto do olho, notou Jesse se aproximando.
— Ela é incrível, não é? — ele comentou, com admiração.
— Muito. — sorriu, ainda encarando o palco.
— Você já tá livre ou vai ensaiar depois do expediente?
— Nah, vou pra casa mais cedo. Amanhã é sábado, então vou chegar cedo pra ensaiar as novas coreografias. Tô só esperando o solo acabar pra ir me trocar.
E tão logo ela falou, a música se encerrou. Izzy estava com o corpo coberto de plumas e se virou de costas, remexendo os quadris uma última vez, antes das luzes se apagarem. e Jesse riram juntos e ela se despediu dele antes de voltar para o camarim. Um último grupo apresentaria mais algumas músicas, mas ela estava livre.
No camarim, juntou as gorjetas que havia ganhado e enfiado no espartilho antes de subir ao palco. Em seguida, tomou um banho rápido e se livrou da maquiagem.
Então, se despediu de Tommy e de algumas meninas, e enfim foi embora.
Do outro lado da cidade, um corpo grande e musculoso rolava pela cama.
River encarou o teto, sem sono nenhum, e suspirou, desistindo de dormir.
Normalmente, quando estava assim e nada parecia ajudá-lo a dormir, procurava algo para fazer, tipo limpar alguma coisa. Mas já tinha feito aquilo mais cedo, ele lembrou com tristeza.
Ela parecia um pouco menos cansada naquele dia, ele notou. Limpou o apartamento de Hero antes de ir para o dele e, assim como na terça, tinha acabado bem antes do expediente na cafeteria começar. River a convenceu mais uma vez a descansar ali mesmo, mas por pouco.
Naquele dia tiveram que negociar. queria comprar o jantar, mas não funcionou. De jeito nenhum ele a deixaria pagar por algo. Não porque ela não pudesse nem nada, mas... Se ele podia fazer isso por ela, então por que não?
Não era como se River tivesse com o que gastar, de qualquer forma. Depois de onze anos de carreira, ele tinha chegado a um ponto que poderia se aposentar a qualquer momento e viver confortavelmente pelo resto da vida.
Não tinha irmãos e seus parentes mais próximos eram seus pais. River os sustentava há muito tempo e já tinha anos que os dois viviam em um apartamento no Queens. Além dele e dos pais, parte de seu dinheiro era destinado a doações mensais a instituições de caridade.
E mesmo assim, ele ainda tinha mais dinheiro do que conseguia gastar.
trabalhava duro de domingo a domingo e era uma boa garota. Um pouco tímida, mas divertida, uma vez que conseguia se soltar um pouquinho.
Ele não queria que ela desperdiçasse um dinheiro suado com ele. E à medida que conversavam, River sentia um estranho impulso de querer cuidar dela aumentar cada vez mais.
Nem fazia muito sentido, já que mal a conhecia. Mas a última vez que sentiu algo do tipo foi com , que era sua melhor amiga. E além dela, sua mãe. River adorava mimar sua mãe e enviava um buquê de flores com um bilhete de admirador secreto toda semana. Tanto ela quanto seu pai sabiam que vinha dele, mas já fazia anos que a brincadeira continuava.
De todo modo, entendia as reservas de , afinal, mal o conhecia. No entanto, depois de uma pequena discussão sobre quem pagaria o jantar, River resolveu tentar uma nova abordagem: cozinhar.
Então os dois acabaram na cozinha fazendo macarrão juntos. sugeriu adicionar frango e fez um molho rosé delicioso. Ficou tão bom, que River ignorou a dieta e repetiu duas vezes, o que arrancou algumas risadas dela.
Ele perguntou um pouco mais sobre o clube em que ela dançava e viu seu rosto se iluminar com um sorriso ao contar os detalhes das apresentações. Era notável a paixão que ela tinha pela dança, e ele havia ficado um pouquinho curioso em ver aquele lado dela.
Suspirando mais uma vez, ainda encarando o teto, ele pegou o celular debaixo de um travesseiro e olhou a hora.
Duas da manhã. Será que ela já chegou em casa?
Sem pensar muito, ele acessou o aplicativo de mensagens e procurou o contato dela. Não faria mal enviar uma mensagem, né?
Só para garantir que estava tudo bem. Afinal, era tarde. E tinham trocado números de contato mais cedo, de qualquer forma. Uma mensagem não faria mal a ninguém, certo?
Pensando nisso, ele começou a digitar.
Capítulo 8
River: Oi... Você já chegou em casa?
encarou a tela do celular por alguns segundos, um pouco surpresa, antes de responder.
: Quase lá. Por que você ainda tá acordado?
O táxi virou a esquina do quarteirão no momento em que ela enviou. A mansão estava a cerca de cem metros e enfiou a mão na bolsa para pegar o dinheiro e pagar a corrida. Tinha acabado de passar pelos portões quando o celular vibrou novamente.
River: Tô com insônia. E aí olhei a hora e quis mandar mensagem pra saber se tava tudo bem porque é tarde pra você voltar sozinha.
Ela parou de andar e digitou uma resposta.
: Tá tudo bem. Na verdade, hoje foi incrível. Acabei de entrar em casa.
Ele começou a digitar novamente, mas tirou os olhos da tela quando viu um carro se aproximando. Os portões abriram novamente e o primeiro instinto dela foi se esconder na escuridão do jardim enquanto observava o carro de Charlie entrar. Era sexta-feira à noite, por que ele estava em casa tão cedo?
E ele voltou dirigindo? tinha quase certeza de que havia visto um copo de uísque pela metade na mesa em que ele estava no clube. Ela ainda estava tentando processar o fato de tê-lo visto lá.
Justo lá, de todos os lugares.
Assim que o carro entrou na garagem, correu sem pensar duas vezes, se esgueirando no escuro até chegar à entrada que os funcionários costumavam usar. Passou pela cozinha um momento depois e percorreu o corredor que dava até o pequeno armário de vassouras onde costumava dormir. Tentou ao máximo não fazer barulho e quando alcançou a porta, a destrancou rapidamente, no mesmo instante em que ouviu passos à distância. Entrou e se trancou, caindo sentada na cama.
Seu coração estava acelerado depois da pequena corrida e o nervosismo que ela nem sabia porque estava lá, e ela respirou fundo algumas vezes. Os passos ecoaram pelo corredor e foram se aproximando mais. inconscientemente prendeu a respiração e comemorou silenciosamente por não ter acendido a luz.
Ela notou uma luz fraca pela brecha da porta no chão, que ficou ali por segundos que pareceram minutos, até que enfim se afastou. Passos ecoaram novamente, dessa vez se distanciando.
soltou a respiração lentamente e, quando pegou o celular, suas mãos tremiam. Por que Charlie estava parado em frente a sua porta? Ele tinha feito aquilo mais vezes? Que tipo de comportamento bizarro era aquele?
Ela não fazia ideia do porque tinha se escondido e corrido no escuro para não chamar atenção, mas naquele instante percebeu que havia sido instinto.
Precisava sair daquele lugar o quanto antes, ela constatou, enquanto abria o aplicativo de mensagens mais uma vez.
River: Vou te deixar dormir então. Você deve estar cansada.
Cansada? Com certeza. Com sono? De jeito nenhum. Não depois da corrida e do comportamento duvidoso de Charlie. Ainda bem que ela ao menos tinha tomado banho antes de voltar para casa. O plano era cair na cama assim que chegasse, mas agora estava completamente alerta.
: Tô cansada, mas sem sono. Acho que foi a apresentação de hoje. Minha colega deu um show que me deixou eufórica.
Não era totalmente mentira.
River: Posso te fazer companhia se você quiser. Até o sono chegar. Não tenho nada pra fazer mesmo...
sorriu para a tela. Sempre que sugeria fazer algo por ela, River dava uma desculpa para justificar. Depois das primeiras vezes que ela o questionou, ele passou a se adiantar, como se já esperasse pela relutância dela.
No entanto, naquela noite não estava nem um pouco inclinada a negar. Na verdade, se sentia grata por ele ter oferecido aquilo naquele momento. Era bom ter alguém com quem falar. Especialmente depois de um susto. estava se sentindo insegura naquela casa, mesmo sabendo que a porta ao seu lado estava trancada.
Não ouviu mais nenhum som nem notou nenhuma luz depois que Charlie foi embora, mas mesmo assim ficou com receio de acender a luz.
: Por mim, tudo bem.
Ela digitou a mensagem rapidamente e enviou. Enquanto esperava uma resposta, trocou de roupa no escuro, usando apenas a luz da tela do celular para enxergar. Em seguida, caiu na cama e se aconchegou sob os lençóis.
Uma nova notificação chegou.
River: Que tal um jogo? Cada um faz uma pergunta e os dois respondem.
: Tá bom. Qual a sua cor favorita? A minha é azul-celeste.
Coincidentemente, da cor dos olhos dele.
River: Azul e preto. O azul não importa muito. Qual a sua comida favorita? A minha é panqueca de carne moída.
: Panqueca também, mas de frango com molho rosé. Qual a sua música favorita?
River: Não tenho nenhuma e você?
: Difícil escolher, mas tenho um carinho especial por "Half Moon" de Aidan Callahan.
River: A agente da é mega fã desse cara. Pessoalmente, também gosto muito da discografia dele, mas nunca o conheci. Você tem algum hobby?
: A dança conta como um?
River: Nem pensar, faz parte da sua profissão.
: Nesse caso... Não. Mas eu costumava ver doramas coreanos quando tinha tempo e uma TV.
Tão logo enviou a mensagem, uma resposta chegou e se arrependeu de ter comentado aquilo.
River: Sua família não tem TV em casa?
: Tem, mas é complicado...
River: O que é complicado?
Merda, o que ela devia responder? Quase podia ver ele franzindo o cenho ao fazer aquela pergunta.
: Eu passo o dia fora, não tenho tempo. Então é como se não tivesse TV...
River: Você tá tentando dar uma desculpa?
Sim, estou. Você pode fingir cair nela? Ela pensou e digitou rapidamente, já no intuito de apagar, mas quando foi fazer isso, tocou no botão de enviar sem querer.
— Merda! Não acredito nisso! — ela xingou baixinho, os olhos arregalados para a tela do celular.
Tentou apagar a mensagem, mas River já tinha lido.
River: Tá acontecendo alguma coisa?
: Nada. Eu só não sou muito próxima da esposa do meu pai, nem dos filhos dela. Mas tá tudo bem.
River: É por isso que você quer sair de casa?
Não havia sentido em negar, então apenas admitiu.
: É... Em breve farei isso. Talvez no próximo mês ou em outubro. Preciso encontrar um lugar.
River: Quer ajuda? Posso dar uma pesquisada pra você.
: Não precisa, tá tudo bem. Acho que vou tentar dormir agora.
River: Tá bem. Boa noite, . Descanse bem e tenha bons sonhos.
: Você também, River. Obrigada por me fazer companhia.
River: Disponha.
bloqueou o celular e o colocou embaixo do travesseiro, antes de se virar em uma posição confortável e fechar os olhos.
Ainda não estava com sono, mas sim, tentaria dormir. Alguns minutos depois, sentiu o corpo relaxar e a consciência se esvair aos poucos.
Naquela noite ela sonhou com macarrão, biscoitos, uma risada com covinhas e um par de olhos azuis a encarando enquanto dançava para ele.
***
Tem alguma coisa errada, River pensou assim que largou o celular.
E continuou olhando para o teto enquanto repassava a conversa com na cabeça. Ela tinha acabado de ser evasiva sobre a família e River passou anos testemunhando problemas familiares de seus amigos para conhecer alguns sinais.
Não sabia em que tipo de casa morava, nem quem era o pai dela, mas... Se ele tinha dinheiro suficiente para pagar a faculdade dela, então devia ter um trabalho bom, talvez um negócio promissor.
As faculdades não eram nem um pouco baratas e pelo que contou, suas mensalidades não vinham de uma poupança. E mesmo que tivesse que se manter e enviar dinheiro para a irmã... Ela tinha mesmo que fazer aquilo de domingo a domingo, sem folgas?
E o problema de coração que ela tinha?
Como era mesmo o nome? Cardio... Alguma coisa.
River pegou o celular novamente e se virou de barriga para baixo. Procurou a anotação que tinha feito alguns dias antes, e então copiou e colou no navegador.
Cardiomiopatia Hipertrófica.
Era esse o nome.
River mergulhou em sites médicos e antes que pudesse se dar conta, uma hora já havia passado.
Quanto mais ele lia, mais aflito ficava.
Como tinha dito, os casos variavam de pessoa para pessoa e nem todas respondiam aos mesmos tratamentos. Mas uma das recomendações que ele mais viu era a respeito de descanso e sono de qualidade, o que significava que a rotina pesada que ela tinha era altamente contraindicada, pois poderia ocasionar em aumento de sintomas e, consequentemente, aumento de medicações ou, pior, complicações como síncopes, angina, AVC... Mau súbito.
sabia de tudo aquilo e mesmo assim forçava a si mesma a trabalhar tanto? Ela estava arriscando a própria vida, e o que ganhava em troca?
Uma irmã que mal falava com ela?
Cansaço o tempo todo? Poucas horas de sono?
Por que ela era tão relapsa com a própria saúde?
River respirou fundo, incomodado. Odiava injustiças. E não era nada justo que se esforçasse tanto por pessoas que nem sequer demonstravam gratidão.
O irmão de , Colin, também era assim e todo mundo sabia a opinião de River quando o amigo decidiu pagar a faculdade dele, disfarçando o feito através de uma gorda mesada para a mãe. Mas ninguém deu bola. Não quando ele era o único da banda que não tinha irmãos. O único cujos pais o apoiaram totalmente em perseguir uma carreira na música.
Contudo, com apoio emocional ou não, os quatro tiveram que ralar para conseguir o que agora tinham. Mesmo depois da fama, o trabalho não se tornava mais fácil. O retorno financeiro era absurdamente bom, é claro, disso eles não podiam reclamar. Mas viagens constantes, centenas de apresentações, reuniões, entrevistas, campanhas publicitárias... Tudo isso levava tempo e energia.
Eles apenas tinham sorte de que a rotina puxada não precisava ser constante. E, mesmo assim, em diversas ocasiões houve um ou dois deles que precisaram repor nutrientes através de soros devido ao estresse do trabalho constante. Felizmente, tinham um ao outro, além de diversas pessoas na equipe para ajudar e providenciar o que fosse necessário.
Mas quem tinha?
River não conseguia imaginar o que era estar sozinho em um país diferente, com uma doença cardíaca que podia fazer seu coração pifar a qualquer momento, sem nenhum parente por perto para ajudar. E ele tinha quase certeza de que a madrasta e os filhos não eram uma opção.
Com a mente ainda um pouco agitada e cheia de informações e sentindo os olhos arderem devido a tela do celular, River o colocou de lado mais uma vez e se virou para tentar dormir.
Felizmente, seu corpo foi vencido pelo cansaço e, alguns minutos depois, o sono finalmente chegou, e ele se deixou levar pela escuridão.
encarou a tela do celular por alguns segundos, um pouco surpresa, antes de responder.
: Quase lá. Por que você ainda tá acordado?
O táxi virou a esquina do quarteirão no momento em que ela enviou. A mansão estava a cerca de cem metros e enfiou a mão na bolsa para pegar o dinheiro e pagar a corrida. Tinha acabado de passar pelos portões quando o celular vibrou novamente.
River: Tô com insônia. E aí olhei a hora e quis mandar mensagem pra saber se tava tudo bem porque é tarde pra você voltar sozinha.
Ela parou de andar e digitou uma resposta.
: Tá tudo bem. Na verdade, hoje foi incrível. Acabei de entrar em casa.
Ele começou a digitar novamente, mas tirou os olhos da tela quando viu um carro se aproximando. Os portões abriram novamente e o primeiro instinto dela foi se esconder na escuridão do jardim enquanto observava o carro de Charlie entrar. Era sexta-feira à noite, por que ele estava em casa tão cedo?
E ele voltou dirigindo? tinha quase certeza de que havia visto um copo de uísque pela metade na mesa em que ele estava no clube. Ela ainda estava tentando processar o fato de tê-lo visto lá.
Justo lá, de todos os lugares.
Assim que o carro entrou na garagem, correu sem pensar duas vezes, se esgueirando no escuro até chegar à entrada que os funcionários costumavam usar. Passou pela cozinha um momento depois e percorreu o corredor que dava até o pequeno armário de vassouras onde costumava dormir. Tentou ao máximo não fazer barulho e quando alcançou a porta, a destrancou rapidamente, no mesmo instante em que ouviu passos à distância. Entrou e se trancou, caindo sentada na cama.
Seu coração estava acelerado depois da pequena corrida e o nervosismo que ela nem sabia porque estava lá, e ela respirou fundo algumas vezes. Os passos ecoaram pelo corredor e foram se aproximando mais. inconscientemente prendeu a respiração e comemorou silenciosamente por não ter acendido a luz.
Ela notou uma luz fraca pela brecha da porta no chão, que ficou ali por segundos que pareceram minutos, até que enfim se afastou. Passos ecoaram novamente, dessa vez se distanciando.
soltou a respiração lentamente e, quando pegou o celular, suas mãos tremiam. Por que Charlie estava parado em frente a sua porta? Ele tinha feito aquilo mais vezes? Que tipo de comportamento bizarro era aquele?
Ela não fazia ideia do porque tinha se escondido e corrido no escuro para não chamar atenção, mas naquele instante percebeu que havia sido instinto.
Precisava sair daquele lugar o quanto antes, ela constatou, enquanto abria o aplicativo de mensagens mais uma vez.
River: Vou te deixar dormir então. Você deve estar cansada.
Cansada? Com certeza. Com sono? De jeito nenhum. Não depois da corrida e do comportamento duvidoso de Charlie. Ainda bem que ela ao menos tinha tomado banho antes de voltar para casa. O plano era cair na cama assim que chegasse, mas agora estava completamente alerta.
: Tô cansada, mas sem sono. Acho que foi a apresentação de hoje. Minha colega deu um show que me deixou eufórica.
Não era totalmente mentira.
River: Posso te fazer companhia se você quiser. Até o sono chegar. Não tenho nada pra fazer mesmo...
sorriu para a tela. Sempre que sugeria fazer algo por ela, River dava uma desculpa para justificar. Depois das primeiras vezes que ela o questionou, ele passou a se adiantar, como se já esperasse pela relutância dela.
No entanto, naquela noite não estava nem um pouco inclinada a negar. Na verdade, se sentia grata por ele ter oferecido aquilo naquele momento. Era bom ter alguém com quem falar. Especialmente depois de um susto. estava se sentindo insegura naquela casa, mesmo sabendo que a porta ao seu lado estava trancada.
Não ouviu mais nenhum som nem notou nenhuma luz depois que Charlie foi embora, mas mesmo assim ficou com receio de acender a luz.
: Por mim, tudo bem.
Ela digitou a mensagem rapidamente e enviou. Enquanto esperava uma resposta, trocou de roupa no escuro, usando apenas a luz da tela do celular para enxergar. Em seguida, caiu na cama e se aconchegou sob os lençóis.
Uma nova notificação chegou.
River: Que tal um jogo? Cada um faz uma pergunta e os dois respondem.
: Tá bom. Qual a sua cor favorita? A minha é azul-celeste.
Coincidentemente, da cor dos olhos dele.
River: Azul e preto. O azul não importa muito. Qual a sua comida favorita? A minha é panqueca de carne moída.
: Panqueca também, mas de frango com molho rosé. Qual a sua música favorita?
River: Não tenho nenhuma e você?
: Difícil escolher, mas tenho um carinho especial por "Half Moon" de Aidan Callahan.
River: A agente da é mega fã desse cara. Pessoalmente, também gosto muito da discografia dele, mas nunca o conheci. Você tem algum hobby?
: A dança conta como um?
River: Nem pensar, faz parte da sua profissão.
: Nesse caso... Não. Mas eu costumava ver doramas coreanos quando tinha tempo e uma TV.
Tão logo enviou a mensagem, uma resposta chegou e se arrependeu de ter comentado aquilo.
River: Sua família não tem TV em casa?
: Tem, mas é complicado...
River: O que é complicado?
Merda, o que ela devia responder? Quase podia ver ele franzindo o cenho ao fazer aquela pergunta.
: Eu passo o dia fora, não tenho tempo. Então é como se não tivesse TV...
River: Você tá tentando dar uma desculpa?
Sim, estou. Você pode fingir cair nela? Ela pensou e digitou rapidamente, já no intuito de apagar, mas quando foi fazer isso, tocou no botão de enviar sem querer.
— Merda! Não acredito nisso! — ela xingou baixinho, os olhos arregalados para a tela do celular.
Tentou apagar a mensagem, mas River já tinha lido.
River: Tá acontecendo alguma coisa?
: Nada. Eu só não sou muito próxima da esposa do meu pai, nem dos filhos dela. Mas tá tudo bem.
River: É por isso que você quer sair de casa?
Não havia sentido em negar, então apenas admitiu.
: É... Em breve farei isso. Talvez no próximo mês ou em outubro. Preciso encontrar um lugar.
River: Quer ajuda? Posso dar uma pesquisada pra você.
: Não precisa, tá tudo bem. Acho que vou tentar dormir agora.
River: Tá bem. Boa noite, . Descanse bem e tenha bons sonhos.
: Você também, River. Obrigada por me fazer companhia.
River: Disponha.
bloqueou o celular e o colocou embaixo do travesseiro, antes de se virar em uma posição confortável e fechar os olhos.
Ainda não estava com sono, mas sim, tentaria dormir. Alguns minutos depois, sentiu o corpo relaxar e a consciência se esvair aos poucos.
Naquela noite ela sonhou com macarrão, biscoitos, uma risada com covinhas e um par de olhos azuis a encarando enquanto dançava para ele.
Tem alguma coisa errada, River pensou assim que largou o celular.
E continuou olhando para o teto enquanto repassava a conversa com na cabeça. Ela tinha acabado de ser evasiva sobre a família e River passou anos testemunhando problemas familiares de seus amigos para conhecer alguns sinais.
Não sabia em que tipo de casa morava, nem quem era o pai dela, mas... Se ele tinha dinheiro suficiente para pagar a faculdade dela, então devia ter um trabalho bom, talvez um negócio promissor.
As faculdades não eram nem um pouco baratas e pelo que contou, suas mensalidades não vinham de uma poupança. E mesmo que tivesse que se manter e enviar dinheiro para a irmã... Ela tinha mesmo que fazer aquilo de domingo a domingo, sem folgas?
E o problema de coração que ela tinha?
Como era mesmo o nome? Cardio... Alguma coisa.
River pegou o celular novamente e se virou de barriga para baixo. Procurou a anotação que tinha feito alguns dias antes, e então copiou e colou no navegador.
Cardiomiopatia Hipertrófica.
Era esse o nome.
River mergulhou em sites médicos e antes que pudesse se dar conta, uma hora já havia passado.
Quanto mais ele lia, mais aflito ficava.
Como tinha dito, os casos variavam de pessoa para pessoa e nem todas respondiam aos mesmos tratamentos. Mas uma das recomendações que ele mais viu era a respeito de descanso e sono de qualidade, o que significava que a rotina pesada que ela tinha era altamente contraindicada, pois poderia ocasionar em aumento de sintomas e, consequentemente, aumento de medicações ou, pior, complicações como síncopes, angina, AVC... Mau súbito.
sabia de tudo aquilo e mesmo assim forçava a si mesma a trabalhar tanto? Ela estava arriscando a própria vida, e o que ganhava em troca?
Uma irmã que mal falava com ela?
Cansaço o tempo todo? Poucas horas de sono?
Por que ela era tão relapsa com a própria saúde?
River respirou fundo, incomodado. Odiava injustiças. E não era nada justo que se esforçasse tanto por pessoas que nem sequer demonstravam gratidão.
O irmão de , Colin, também era assim e todo mundo sabia a opinião de River quando o amigo decidiu pagar a faculdade dele, disfarçando o feito através de uma gorda mesada para a mãe. Mas ninguém deu bola. Não quando ele era o único da banda que não tinha irmãos. O único cujos pais o apoiaram totalmente em perseguir uma carreira na música.
Contudo, com apoio emocional ou não, os quatro tiveram que ralar para conseguir o que agora tinham. Mesmo depois da fama, o trabalho não se tornava mais fácil. O retorno financeiro era absurdamente bom, é claro, disso eles não podiam reclamar. Mas viagens constantes, centenas de apresentações, reuniões, entrevistas, campanhas publicitárias... Tudo isso levava tempo e energia.
Eles apenas tinham sorte de que a rotina puxada não precisava ser constante. E, mesmo assim, em diversas ocasiões houve um ou dois deles que precisaram repor nutrientes através de soros devido ao estresse do trabalho constante. Felizmente, tinham um ao outro, além de diversas pessoas na equipe para ajudar e providenciar o que fosse necessário.
Mas quem tinha?
River não conseguia imaginar o que era estar sozinho em um país diferente, com uma doença cardíaca que podia fazer seu coração pifar a qualquer momento, sem nenhum parente por perto para ajudar. E ele tinha quase certeza de que a madrasta e os filhos não eram uma opção.
Com a mente ainda um pouco agitada e cheia de informações e sentindo os olhos arderem devido a tela do celular, River o colocou de lado mais uma vez e se virou para tentar dormir.
Felizmente, seu corpo foi vencido pelo cansaço e, alguns minutos depois, o sono finalmente chegou, e ele se deixou levar pela escuridão.
Capítulo 9
12 de setembro de 2017 - Apartamento de Hero, Nova York, NY
— Você viu? — Hero perguntou, balançando o celular para , assim que ele entrou no estúdio. — Saiu outro artigo especulando sobre sua verdadeira personalidade.
revirou os olhos.
— Quanto tempo essa merda vai durar? Já faz o quê? Duas, três semanas? Não entendo esses jornalistas intrometidos. Eles não têm mais nada pra falar?
— Talvez tenham. Mas dificilmente é mais interessante do que um bonitão do rock, solteiro e conhecido por sua personalidade brilhante sendo supostamente uma farsa. — riu.
se jogou na cadeira ao lado dele e pegou o violão, começando a dedilhar uma melodia aleatoriamente.
— Eu gostava mais quando você era o bad boy da banda. Isso aí não combina comigo.
— Eu parei de ser o bad boy depois que assumi meu relacionamento com a .
— Com a Garota K, você quer dizer — corrigiu. — No fundo, todo mundo meio que esperava que ela fosse real e que vocês tivessem um final feliz.
— Pois é, e as pessoas nem falam mais de mim.
— Errado. Ainda falam, você só deu outro assunto pra elas.
— Você devia fazer isso também, sabe? — Hero sugeriu. — Dar outro assunto.
— Ah, é? Quer que arrume uma namorada também? — o encarou com ironia por um instante, ainda concentrado no violão.
— Não seria má ideia. — O amigo deu de ombros e os dedos de congelaram, a melodia sendo subitamente silenciada.
— Tá falando sério?
— É claro. Imagina só, você foi o único de nós que nunca assumiu nenhum relacionamento sério com ninguém. Isso ia ser uma coisona, sabe? " finalmente apaixonado?" — Hero afastou as mãos, como se estivesse visualizando uma manchete.
— Não tô saindo com ninguém, cara. Faz dois meses desde a Hannah, e não sinto vontade de conhecer ninguém.
— Que mentira, você sente sim — O amigo acusou, e então se inclinou para a frente, como se estivesse prestes a contar um segredo. — Você não parou de falar da desde que conheceu ela, seu idiota.
arregalou os olhos por milésimo de segundo diante da menção da garota que naquele momento estava em algum lugar do lado de fora daquele estúdio, arrumando o apartamento de .
— E daí? — Ele voltou a dedilhar o violão, fazendo pouco caso. — Eu só converso com ela, a gente não tá flertando nem nada. É algo totalmente inocente. E ela é legal.
— Ela atraiu sua atenção.
— Mas não desse jeito que você tá pensando. Não tenho interesse romântico ou sexual por ela.
— Tem certeza? — arqueou uma sobrancelha, um sorrisinho despontando no canto dos lábios.
— O que porra você quer dizer com isso? É claro que tenho!
— Quer dizer que você vê ela que nem a ?
— é minha melhor amiga.
— E a ? Você vê ela como uma amiga também?
— Talvez, não sei. A é só... Trabalhadora, gentil e... Alguém sozinha, eu acho. Me faz ter vontade de cuidar dela, ou pelo menos de fazer companhia. Nem que seja por mensagem. Mas isso eu faria pela também.
— Exatamente. Não faz nem um mês que você conheceu essa garota, . Isso não é normal pra você e todo mundo já notou.
— Quer dizer que não posso mais fazer amizade com uma mulher? — Ele perguntou, irônico.
— Quer dizer que você não sai fazendo amizade por aí com qualquer pessoa — Hero explicou. — Você não se abre fácil nem mantém troca de mensagens com funcionários. Dividir uma refeição? Normal, você adora empurrar comida nos outros. Mas esse instinto de cuidado, que vai além disso? Amigo, sinto te informar, mas todo mundo acha que você tá atraído por aquela garota.
suspirou, levemente frustrado.
— Mesmo que eu tivesse, e não tô, não significa nada. A nem tem tempo pra se envolver com ninguém, porque ela vive...
— Trabalhando de domingo a domingo. Sim, sim... — completou, meio entediado. — Você já repetiu isso algumas vezes, sabe? Mas já que a atrai ao menos seu interesse como amigo, por que não tenta fazer um acordo com ela?
— Que tipo de acordo? — o encarou com desconfiança.
— Pede pra ela te ajudar e, em troca, dê algo que ela queira. Você pode contratar ela ou algo assim.
— Tá sugerindo que ela seja minha namorada falsa? Acha mesmo que ela ia concordar com isso?
— Depende do que você tiver oferecendo. — deu de ombros. — Mas se eu fosse você, começaria com o principal. Tipo uma coisa essencial que você sabe que ela dificilmente rejeitaria, e nem tô falando de dinheiro.
encarou o amigo por alguns segundos em silêncio, enquanto três palavrinhas piscavam em sua mente.
— Plano de saúde?
Hero sorriu, como se ele tivesse acabado de acertar uma charada.
— Um plano de saúde com tudo incluso. Com valor suficiente pra uns dez anos. Em troca, ela fingiria ser sua namorada por um ano.
— Por que um ano?
— Porque você nunca passou mais de três meses com alguém, então um ano seria inédito. Tempo suficiente pras pessoas concluírem que você não é um idiota sem coração. Melhor algo a longo prazo, já que as pessoas provavelmente não vão acreditar que vai durar. Vão achar que a é só mais uma.
respirou fundo, ponderando a sugestão por alguns instantes.
— Acho que... Você tem razão — ele admitiu, fazendo o amigo sorrir novamente. — Talvez ela trabalhe menos assim.
— Pois é. E você tem dinheiro de sobra. Pode aplacar esse instinto de herói que você tem ao mesmo tempo que limpa sua imagem. O que mais você acha que poderia oferecer?
— Hm… Tem uma coisa. Lembra que eu disse que ela fazia faculdade? Acho que ela ia querer terminar.
— Você pode incluir o valor da faculdade no que for pagar a ela, então. E um salário mensal que cubra o que ela já ganha. Acho que isso é bom o suficiente.
se recostou na cadeira, pensativo.
— Ela poderia morar no meu quarto de hóspedes também.
Hero riu, divertido.
— Tá vendo? Daqui a pouco você vai estar planejando um casamento — ele brincou, desviando rapidamente de um chute de . — Ei, eu tô brincando. Mas de verdade, acho mesmo que pode dar certo. E a é bonita, vocês ficariam bem juntos.
— Tá, tá. Vamos terminar essa música então. A gente tá aqui há horas e ainda não saiu quase nada.
— Ei, saiu sim — Hero retrucou. — Duas músicas da minha parte, então fale por você. Tá achando pouco? Arrume uma namorada que te inspire também.
Em um ato infantil, fez uma careta e chutou a cadeira do amigo com o pé, fazendo ele deslizar pela sala até chegar à parede.
Hero riu alto, completamente divertido com a situação.
— Mal posso esperar pra ver você apaixonadinho.
rolou os olhos.
Como se isso fosse mesmo acontecer.
***
12 de setembro de 2017 - Apartamento de , Nova York, NY
Quatro horas depois, se sentou em frente a para jantar com ela. Mais uma vez, os dois cozinharam juntos, e o cardápio da noite era carne com molho de batata e queijo.
Tinham adquirido o hábito de dividir refeições toda terça e sexta, quando aparecia para limpar a casa.
Ela também tinha parado de tentar recusar banho e um pouquinho de descanso antes de ir para a cafeteria nesses dias, o que o tranquilizava um pouco.
Não tinham mais tocado no assunto família desde a conversa de madrugada que tiveram, mas conversavam por mensagens todos os dias. havia ficado um pouquinho mais aberta e menos tímida após os primeiros dias, então a conversa andava fluindo bem.
Ele gostava de jogar papo fora com ela e geralmente faziam aquilo quando ela estava se locomovendo de um lugar para outro, ou durante as refeições.
Àquela altura, ele já sabia praticamente sobre todos os turnos de trabalho dela, assim como o motivo, naquela tarde de terça-feira, dela aparentar estar tão cansada.
Na segunda-feira, trabalhava o dia todo e ele sabia por experiência própria que nem sempre era possível descansar o suficiente em apenas um dia. Quando estavam em turnês, sempre tinha energéticos por perto, mas não era uma opção para . Energéticos, excesso de cafeína... Essas coisas podiam causar arritmias no coração dela e exigir um esforço maior de seu corpo.
Ele havia pesquisado mais um pouco sobre a doença dela, e o ajudou a entender algumas coisas, além de confirmar o que ele já tinha notado: a rotina que ela levava era péssima e resultava em uma má qualidade de vida.
Também havia passado as últimas horas pensando no que Hero havia dito, sobre o tal acordo para que ela o ajudasse a limpar sua imagem.
Sendo honesto, achava um saco ter sua índole em dúvida na visão do público, mas lá no fundo não se importava tanto assim. Ele se conhecia e sabia muito bem que tipo de pessoa era. Sua consciência estava tranquila.
E daí se as pessoas pensassem que ele fugia de relacionamentos?
A verdade era que não fugia. Só não tinha encontrado a pessoa certa ainda, alguém que despertasse o seu lado mais estúpido e bobão, assim como era com seus pais até hoje.
Alguém que enchesse seu coração de paz e harmonia, mas que ao mesmo tempo o deixasse ansioso às vezes e soubesse exatamente como mexer com seus nervos também. Os pais dele tinham um relacionamento bonito, tranquilo e despreocupado.
Até mesmo os pais de eram assim, mesmo que estivessem juntos há apenas um ano. Darcy e Richard haviam tido um caso que resultou em gravidez, mas ela acabou se casando com outro homem. Foi um casamento infeliz, que se estendeu por mais tempo do que deveria. Trinta anos depois, ela reencontrou o verdadeiro pai de seu filho e... pelo visto, ainda havia muita química entre os dois. Agora, Hero tinha um relacionamento saudável com o pai biológico e era feliz.
conseguiu encontrar Richard Keller em um momento crucial.
Era um alívio que os dois se dessem bem, considerando o passado de seu amigo com o pai adotivo, que o havia rejeitado quando ainda era menino.
Seu sobrenome, no entanto, continuava o mesmo — afinal, era o mesmo de seu avô, que o havia criado após a rejeição, sem se importar que não tivesse qualquer parentesco de sangue com ele.
não podia ficar mais feliz pelo melhor amigo. Agora, ele tinha os pais por perto e de volta.
E e eram completamente insuportáveis.
As duas faces de uma mesma moeda.
Farinha do mesmo saco.
E trabalhavam incrivelmente bem juntos, considerando que as histórias dela haviam rendido boas músicas compostas por ele, o que deixou os fãs de ambos bastante felizes.
queria algo assim também. Ser insuportável com alguém. Ser tão doce a ponto de provocar náuseas em seus amigos.
Mas às vezes ele achava que devia ser arromântico ou algo assim. Por mais que algumas mulheres chamassem sua atenção, fossem divertidas e bonitas... Nunca passou de algo físico. Muito menos uma necessidade.
Sexo era bom, mas não era uma prioridade para ele. Ao menos, não quando não estava emocionalmente envolvido. Por mais que ele sempre tentasse deixar de lado, a sensação de vazio que sentia quando tudo acabava continuava lá, e não tinha certeza se isso mudaria algum dia.
— Essa comida tá uma delícia — elogiou, antes de tomar um gole de suco.
sorriu e se inclinou um pouquinho para frente.
— Como se diz “delícia” em português?
deu uma risadinha e falou para ele, que tentou repetir algumas vezes até a pronúncia ficar clara.
De vez em quando, ele perguntava algo para ela, que se divertia ensinando. Ele tinha aprendido algumas coisas em português quando a Cave Panthers visitou o Brasil alguns anos antes, mas, sem prática, acabou esquecendo tudo.
— As pessoas acham que espanhol e português são parecidos, mas não tem nada a ver — ela comentou. — Eu, por exemplo, nunca aprendi nada de espanhol.
— Vocês não tinham nas escolas do Brasil?
— Só inglês, e era bem básico. Apenas uma minoria fala. Minha irmã, por exemplo, nunca aprendeu.
— E você? Seu pai te ensinou?
Ela assentiu com um sorriso.
— Ele ia me visitar duas vezes por ano, mas a gente se falava por telefone. Quando inventaram ligação por vídeo, passamos a fazer também.
— Ele parece ter sido um cara legal.
— Ele tentou ser presente dentro do possível. — Ela deu de ombros.
— O que ele fazia? — ele perguntou, enquanto terminava de comer.
— Ele tinha uma empresa no ramo de construção. Agora, o filho da minha madrasta toma de conta, algo assim. Acho que é um dos diretores.
— Uma empresa? Qual o nome?
— Contruções . Bem óbvio. — Ela abriu um sorriso, mas ele não chegou aos olhos, ambos enfeitados por um par de olheiras de cansaço.
— Entendi. — Ele assentiu, bebendo o resto de suco do copo enquanto a observava silenciosamente. — ... Eu queria te perguntar uma coisa.
— O quê? — Ela o encarou, com um toque de curiosidade nos olhos castanhos. abriu a boca para falar, mas nada saiu. — ? O que você quer perguntar?
— Ah, eu... — Ele piscou duas vezes e então desistiu. Talvez fosse cedo demais para propor um acordo. — Qual é mesmo o nome do clube burlesco onde você trabalha? Tô pensando em visitar qualquer dia desses. Sabe... Pra procurar inspiração em coisas novas, já que e eu estamos compondo.
— Ah, sim. O nome é Veil of Secrets. Este mês a gente tá apresentando covers pop e alguns do filme Burlesque. Acho que você vai gostar.
— Vou levar umas gorjetas pra você e as outras dançarinas.
— Que generoso. Mas será que você vai me reconhecer? — ela brincou. — Eu uso peruca e máscara.
— Vamos testar. Você disse que é loira e usa roupas azuis.
— Pois é, mas não sou a única...
— Isso é mais que suficiente.
— Você vai me avisar quando for?
— De jeito nenhum — garantiu ele. — Quero pegar você de surpresa.
deu uma risadinha e ele sorriu de lábios fechados, satisfeito por fazê-la rir.
Não que isso significasse algo.
De jeito nenhum.
— Você viu? — Hero perguntou, balançando o celular para , assim que ele entrou no estúdio. — Saiu outro artigo especulando sobre sua verdadeira personalidade.
revirou os olhos.
— Quanto tempo essa merda vai durar? Já faz o quê? Duas, três semanas? Não entendo esses jornalistas intrometidos. Eles não têm mais nada pra falar?
— Talvez tenham. Mas dificilmente é mais interessante do que um bonitão do rock, solteiro e conhecido por sua personalidade brilhante sendo supostamente uma farsa. — riu.
se jogou na cadeira ao lado dele e pegou o violão, começando a dedilhar uma melodia aleatoriamente.
— Eu gostava mais quando você era o bad boy da banda. Isso aí não combina comigo.
— Eu parei de ser o bad boy depois que assumi meu relacionamento com a .
— Com a Garota K, você quer dizer — corrigiu. — No fundo, todo mundo meio que esperava que ela fosse real e que vocês tivessem um final feliz.
— Pois é, e as pessoas nem falam mais de mim.
— Errado. Ainda falam, você só deu outro assunto pra elas.
— Você devia fazer isso também, sabe? — Hero sugeriu. — Dar outro assunto.
— Ah, é? Quer que arrume uma namorada também? — o encarou com ironia por um instante, ainda concentrado no violão.
— Não seria má ideia. — O amigo deu de ombros e os dedos de congelaram, a melodia sendo subitamente silenciada.
— Tá falando sério?
— É claro. Imagina só, você foi o único de nós que nunca assumiu nenhum relacionamento sério com ninguém. Isso ia ser uma coisona, sabe? " finalmente apaixonado?" — Hero afastou as mãos, como se estivesse visualizando uma manchete.
— Não tô saindo com ninguém, cara. Faz dois meses desde a Hannah, e não sinto vontade de conhecer ninguém.
— Que mentira, você sente sim — O amigo acusou, e então se inclinou para a frente, como se estivesse prestes a contar um segredo. — Você não parou de falar da desde que conheceu ela, seu idiota.
arregalou os olhos por milésimo de segundo diante da menção da garota que naquele momento estava em algum lugar do lado de fora daquele estúdio, arrumando o apartamento de .
— E daí? — Ele voltou a dedilhar o violão, fazendo pouco caso. — Eu só converso com ela, a gente não tá flertando nem nada. É algo totalmente inocente. E ela é legal.
— Ela atraiu sua atenção.
— Mas não desse jeito que você tá pensando. Não tenho interesse romântico ou sexual por ela.
— Tem certeza? — arqueou uma sobrancelha, um sorrisinho despontando no canto dos lábios.
— O que porra você quer dizer com isso? É claro que tenho!
— Quer dizer que você vê ela que nem a ?
— é minha melhor amiga.
— E a ? Você vê ela como uma amiga também?
— Talvez, não sei. A é só... Trabalhadora, gentil e... Alguém sozinha, eu acho. Me faz ter vontade de cuidar dela, ou pelo menos de fazer companhia. Nem que seja por mensagem. Mas isso eu faria pela também.
— Exatamente. Não faz nem um mês que você conheceu essa garota, . Isso não é normal pra você e todo mundo já notou.
— Quer dizer que não posso mais fazer amizade com uma mulher? — Ele perguntou, irônico.
— Quer dizer que você não sai fazendo amizade por aí com qualquer pessoa — Hero explicou. — Você não se abre fácil nem mantém troca de mensagens com funcionários. Dividir uma refeição? Normal, você adora empurrar comida nos outros. Mas esse instinto de cuidado, que vai além disso? Amigo, sinto te informar, mas todo mundo acha que você tá atraído por aquela garota.
suspirou, levemente frustrado.
— Mesmo que eu tivesse, e não tô, não significa nada. A nem tem tempo pra se envolver com ninguém, porque ela vive...
— Trabalhando de domingo a domingo. Sim, sim... — completou, meio entediado. — Você já repetiu isso algumas vezes, sabe? Mas já que a atrai ao menos seu interesse como amigo, por que não tenta fazer um acordo com ela?
— Que tipo de acordo? — o encarou com desconfiança.
— Pede pra ela te ajudar e, em troca, dê algo que ela queira. Você pode contratar ela ou algo assim.
— Tá sugerindo que ela seja minha namorada falsa? Acha mesmo que ela ia concordar com isso?
— Depende do que você tiver oferecendo. — deu de ombros. — Mas se eu fosse você, começaria com o principal. Tipo uma coisa essencial que você sabe que ela dificilmente rejeitaria, e nem tô falando de dinheiro.
encarou o amigo por alguns segundos em silêncio, enquanto três palavrinhas piscavam em sua mente.
— Plano de saúde?
Hero sorriu, como se ele tivesse acabado de acertar uma charada.
— Um plano de saúde com tudo incluso. Com valor suficiente pra uns dez anos. Em troca, ela fingiria ser sua namorada por um ano.
— Por que um ano?
— Porque você nunca passou mais de três meses com alguém, então um ano seria inédito. Tempo suficiente pras pessoas concluírem que você não é um idiota sem coração. Melhor algo a longo prazo, já que as pessoas provavelmente não vão acreditar que vai durar. Vão achar que a é só mais uma.
respirou fundo, ponderando a sugestão por alguns instantes.
— Acho que... Você tem razão — ele admitiu, fazendo o amigo sorrir novamente. — Talvez ela trabalhe menos assim.
— Pois é. E você tem dinheiro de sobra. Pode aplacar esse instinto de herói que você tem ao mesmo tempo que limpa sua imagem. O que mais você acha que poderia oferecer?
— Hm… Tem uma coisa. Lembra que eu disse que ela fazia faculdade? Acho que ela ia querer terminar.
— Você pode incluir o valor da faculdade no que for pagar a ela, então. E um salário mensal que cubra o que ela já ganha. Acho que isso é bom o suficiente.
se recostou na cadeira, pensativo.
— Ela poderia morar no meu quarto de hóspedes também.
Hero riu, divertido.
— Tá vendo? Daqui a pouco você vai estar planejando um casamento — ele brincou, desviando rapidamente de um chute de . — Ei, eu tô brincando. Mas de verdade, acho mesmo que pode dar certo. E a é bonita, vocês ficariam bem juntos.
— Tá, tá. Vamos terminar essa música então. A gente tá aqui há horas e ainda não saiu quase nada.
— Ei, saiu sim — Hero retrucou. — Duas músicas da minha parte, então fale por você. Tá achando pouco? Arrume uma namorada que te inspire também.
Em um ato infantil, fez uma careta e chutou a cadeira do amigo com o pé, fazendo ele deslizar pela sala até chegar à parede.
Hero riu alto, completamente divertido com a situação.
— Mal posso esperar pra ver você apaixonadinho.
rolou os olhos.
Como se isso fosse mesmo acontecer.
12 de setembro de 2017 - Apartamento de , Nova York, NY
Quatro horas depois, se sentou em frente a para jantar com ela. Mais uma vez, os dois cozinharam juntos, e o cardápio da noite era carne com molho de batata e queijo.
Tinham adquirido o hábito de dividir refeições toda terça e sexta, quando aparecia para limpar a casa.
Ela também tinha parado de tentar recusar banho e um pouquinho de descanso antes de ir para a cafeteria nesses dias, o que o tranquilizava um pouco.
Não tinham mais tocado no assunto família desde a conversa de madrugada que tiveram, mas conversavam por mensagens todos os dias. havia ficado um pouquinho mais aberta e menos tímida após os primeiros dias, então a conversa andava fluindo bem.
Ele gostava de jogar papo fora com ela e geralmente faziam aquilo quando ela estava se locomovendo de um lugar para outro, ou durante as refeições.
Àquela altura, ele já sabia praticamente sobre todos os turnos de trabalho dela, assim como o motivo, naquela tarde de terça-feira, dela aparentar estar tão cansada.
Na segunda-feira, trabalhava o dia todo e ele sabia por experiência própria que nem sempre era possível descansar o suficiente em apenas um dia. Quando estavam em turnês, sempre tinha energéticos por perto, mas não era uma opção para . Energéticos, excesso de cafeína... Essas coisas podiam causar arritmias no coração dela e exigir um esforço maior de seu corpo.
Ele havia pesquisado mais um pouco sobre a doença dela, e o ajudou a entender algumas coisas, além de confirmar o que ele já tinha notado: a rotina que ela levava era péssima e resultava em uma má qualidade de vida.
Também havia passado as últimas horas pensando no que Hero havia dito, sobre o tal acordo para que ela o ajudasse a limpar sua imagem.
Sendo honesto, achava um saco ter sua índole em dúvida na visão do público, mas lá no fundo não se importava tanto assim. Ele se conhecia e sabia muito bem que tipo de pessoa era. Sua consciência estava tranquila.
E daí se as pessoas pensassem que ele fugia de relacionamentos?
A verdade era que não fugia. Só não tinha encontrado a pessoa certa ainda, alguém que despertasse o seu lado mais estúpido e bobão, assim como era com seus pais até hoje.
Alguém que enchesse seu coração de paz e harmonia, mas que ao mesmo tempo o deixasse ansioso às vezes e soubesse exatamente como mexer com seus nervos também. Os pais dele tinham um relacionamento bonito, tranquilo e despreocupado.
Até mesmo os pais de eram assim, mesmo que estivessem juntos há apenas um ano. Darcy e Richard haviam tido um caso que resultou em gravidez, mas ela acabou se casando com outro homem. Foi um casamento infeliz, que se estendeu por mais tempo do que deveria. Trinta anos depois, ela reencontrou o verdadeiro pai de seu filho e... pelo visto, ainda havia muita química entre os dois. Agora, Hero tinha um relacionamento saudável com o pai biológico e era feliz.
conseguiu encontrar Richard Keller em um momento crucial.
Era um alívio que os dois se dessem bem, considerando o passado de seu amigo com o pai adotivo, que o havia rejeitado quando ainda era menino.
Seu sobrenome, no entanto, continuava o mesmo — afinal, era o mesmo de seu avô, que o havia criado após a rejeição, sem se importar que não tivesse qualquer parentesco de sangue com ele.
não podia ficar mais feliz pelo melhor amigo. Agora, ele tinha os pais por perto e de volta.
E e eram completamente insuportáveis.
As duas faces de uma mesma moeda.
Farinha do mesmo saco.
E trabalhavam incrivelmente bem juntos, considerando que as histórias dela haviam rendido boas músicas compostas por ele, o que deixou os fãs de ambos bastante felizes.
queria algo assim também. Ser insuportável com alguém. Ser tão doce a ponto de provocar náuseas em seus amigos.
Mas às vezes ele achava que devia ser arromântico ou algo assim. Por mais que algumas mulheres chamassem sua atenção, fossem divertidas e bonitas... Nunca passou de algo físico. Muito menos uma necessidade.
Sexo era bom, mas não era uma prioridade para ele. Ao menos, não quando não estava emocionalmente envolvido. Por mais que ele sempre tentasse deixar de lado, a sensação de vazio que sentia quando tudo acabava continuava lá, e não tinha certeza se isso mudaria algum dia.
— Essa comida tá uma delícia — elogiou, antes de tomar um gole de suco.
sorriu e se inclinou um pouquinho para frente.
— Como se diz “delícia” em português?
deu uma risadinha e falou para ele, que tentou repetir algumas vezes até a pronúncia ficar clara.
De vez em quando, ele perguntava algo para ela, que se divertia ensinando. Ele tinha aprendido algumas coisas em português quando a Cave Panthers visitou o Brasil alguns anos antes, mas, sem prática, acabou esquecendo tudo.
— As pessoas acham que espanhol e português são parecidos, mas não tem nada a ver — ela comentou. — Eu, por exemplo, nunca aprendi nada de espanhol.
— Vocês não tinham nas escolas do Brasil?
— Só inglês, e era bem básico. Apenas uma minoria fala. Minha irmã, por exemplo, nunca aprendeu.
— E você? Seu pai te ensinou?
Ela assentiu com um sorriso.
— Ele ia me visitar duas vezes por ano, mas a gente se falava por telefone. Quando inventaram ligação por vídeo, passamos a fazer também.
— Ele parece ter sido um cara legal.
— Ele tentou ser presente dentro do possível. — Ela deu de ombros.
— O que ele fazia? — ele perguntou, enquanto terminava de comer.
— Ele tinha uma empresa no ramo de construção. Agora, o filho da minha madrasta toma de conta, algo assim. Acho que é um dos diretores.
— Uma empresa? Qual o nome?
— Contruções . Bem óbvio. — Ela abriu um sorriso, mas ele não chegou aos olhos, ambos enfeitados por um par de olheiras de cansaço.
— Entendi. — Ele assentiu, bebendo o resto de suco do copo enquanto a observava silenciosamente. — ... Eu queria te perguntar uma coisa.
— O quê? — Ela o encarou, com um toque de curiosidade nos olhos castanhos. abriu a boca para falar, mas nada saiu. — ? O que você quer perguntar?
— Ah, eu... — Ele piscou duas vezes e então desistiu. Talvez fosse cedo demais para propor um acordo. — Qual é mesmo o nome do clube burlesco onde você trabalha? Tô pensando em visitar qualquer dia desses. Sabe... Pra procurar inspiração em coisas novas, já que e eu estamos compondo.
— Ah, sim. O nome é Veil of Secrets. Este mês a gente tá apresentando covers pop e alguns do filme Burlesque. Acho que você vai gostar.
— Vou levar umas gorjetas pra você e as outras dançarinas.
— Que generoso. Mas será que você vai me reconhecer? — ela brincou. — Eu uso peruca e máscara.
— Vamos testar. Você disse que é loira e usa roupas azuis.
— Pois é, mas não sou a única...
— Isso é mais que suficiente.
— Você vai me avisar quando for?
— De jeito nenhum — garantiu ele. — Quero pegar você de surpresa.
deu uma risadinha e ele sorriu de lábios fechados, satisfeito por fazê-la rir.
Não que isso significasse algo.
De jeito nenhum.
Capítulo 10
22 de setembro de 2017 - Apartamento de , Nova York, NY
mexeu na comida, olhando de soslaio enquanto digitava algo no celular.
Teve que se controlar para não perguntar se ele ainda pretendia visitar o clube ou não. Mas também não sabia porque queria que ele fosse, já que não era nada de mais.
Nada de mais, uma ova, uma vozinha falou em sua mente.
Ela continuou a comer em silêncio e, quando terminou, colocou a louça suja na máquina, se preparando para se despedir dele. Em seguida, se virou e encarou as costas largas de por dois segundos, antes dele se levantar com o resto da louça.
sempre tinha que olhar para cima para falar com ele, não porque fosse baixa, mas porque ele era alto demais.
Àquela altura, já tinha revirado a internet à procura de informações sobre e gostou muito do que viu, com exceção dos artigos maliciosos que ainda saíam sobre ele desde que havia terminado o que quer que tivesse com aquela tal de Hannah. nem sabia quem ela era, mas só o nome já lhe dava vontade de vomitar. A primeira e última Hannah que havia conhecido era a namorada psicótica de John.
E agora, depois de um mês convivendo com duas vezes por semana, mesmo que por um tempo curto, não conseguia imaginar ele como um babaca que odiava compromisso, como a ex dele tinha dado a entender.
Isso sem contar as mensagens de texto.
Ela não tinha ideia do porquê, mas passava o dia enviando mensagens para ela, sempre se certificando de que ela tinha se alimentado e de como estava indo o trabalho. Ao mesmo tempo, ele contava coisas aleatórias de seu dia, a maior parte envolvendo algum integrante da banda ou .
Ela tinha visto a namorada de apenas duas ou três vezes, quando foi limpar o apartamento dele, já que ela não morava lá e tinha bastante trabalho fora de casa, como uma autora renomada. era bem o tipo de mulher a quem esperava que desse atenção, mesmo que fosse apenas amizade: bonita, bem-sucedida e com um bom senso de humor. Nada como ela, uma simples faxineira.
não queria menosprezar a si mesma, mas não via nenhum futuro melhor desde que descobriu ter sido deserdada pelo pai — isso, se é que algum dia havia estado no testamento de Peter . De todo modo, tudo o que fazia era trabalhar. Não se lembrava nem da última vez que tinha saído para se divertir. Seu corpo fraco, frequentemente marcado por dores musculares causadas pelo trabalho ou pela dança, a deixava desmotivada até para as coisas mais simples. Felizmente, havia pequenos momentos no clube, quando se deixava levar por Cindy Lee, em que se sentia livre e feliz, como se fosse outra pessoa.
E havia sentido um pouquinho desses sentimentos também nos pequenos momentos compartilhados com aquele homem gigante, de quase dois metros de altura.
— Você já vai? — ele perguntou, enquanto se inclinava para abrir a lava-louças.
— Sim... Pro café e então pro clube — respondeu, como se ele já não soubesse.
assentiu e, cinco minutos depois, ela estava dentro do elevador, sozinha, a caminho do próximo turno de trabalho.
Naquela noite, ele também não apareceu.
sentiu uma pontinha de decepção, mas repreendeu a si mesma silenciosamente por se sentir assim. Talvez ele tivesse dito aquilo da boca para fora, só isso, como quando dois amigos falam um para o outro sobre marcar um encontro e ninguém nunca marca. De todo modo, uma parte meio boba dela queria que ele conhecesse aquele lado dela também, como dançarina, a profissão que havia escolhido seguir por pura paixão.
Quando chegou no Veil of Secrets, imaginava que seria um trabalho temporário, mas agora, depois de um ano ali, já não sabia mais se queria abrir mão daquilo um dia. Era o único momento da semana em que ela podia fingir ser alguém divertida, despreocupada com a vida. Isso sem contar nas boas gorjetas.
Mas então, a partir do momento em que retirava a peruca, voltava a ser a mesma mulher pobre, sozinha e doente de sempre. Pelo menos não tivera nenhuma intercorrência naquele lugar. Até mesmo Charlie não havia voltado mais ali, o que era um alívio. Ela não tinha certeza de que ele continuaria não a reconhecendo se a visse mais vezes.
Então que frequentasse outros lugares, de preferência algum bem longe dali.
***
O dia seguinte passou tão rápido que quando percebeu, seu turno na cafeteria já tinha acabado. A tarde foi cheia, como era normal nos finais de semana, mas havia mais gente dessa vez, então ela se manteve em pé o tempo todo enquanto atendia os clientes nas mesas.
Quando chegou no clube para ensaiar para aquela noite, teve que ficar dez minutos sentada no chão, fazendo exercícios de alongamento nas pernas e respirando fundo várias vezes. No caminho até lá, comprou um sanduíche do Subway e o comeu em dez minutos, feliz por finalmente colocar algo no estômago, já que durante a tarde não teve tempo nem de beber água.
Tirou até uma foto bonita do sanduíche ao lado de um copo de Sprite e enviou para . A primeira vez que ele perguntou se ela já estava comendo, mentiu e, como se tivesse detectado a inverdade nas palavras dela, ele pediu uma foto. Vergonhosamente, ela teve que admitir que não tivera tempo de comer e ganhou uma bela bronca.
Ele pareceu tão incomodado em saber que ela havia pulado uma refeição que, meia hora mais tarde, enquanto ela estava na cafeteria, um delivery de comida chegou, com mimos suficientes para toda a equipe. Seu rosto queimou de vergonha quando explicou que um amigo havia mandado sem falar para ela, e seus colegas se divertiram falando sobre ele talvez querer ser mais que um amigo. Obviamente, não deu bola para essa parte. Mas em compensação, nunca mais mentiu para e passou a sempre enviar provas de suas refeições.
Devidamente alimentada e tendo certeza de que não teria uma hipoglicemia, se alongou por mais alguns minutos, até Izzy e as outras dançarinas se organizarem na sala de ensaio. Duas horas mais tarde, todas partiram para o banho, mas Izzy pediu para falar com a sós.
Curiosa, assentiu, ainda secando o suor do corpo com uma toalhinha, e esperou até ela falar.
— Quero que você assuma o terceiro número no meu lugar hoje — a mais velha anunciou, fazendo a boca dela cair em choque.
— O quê? — Ela piscou, surpresa. — Você quer que eu seja o centro?
— Isso aí.
— Por quê?
— Torci meu tornozelo ontem e essa coreografia tá me machucando. Vou fazer só o solo hoje, que não exige muito. A Lia vai me substituir no próximo número já que você vai estar nas mesas.
— Mas... Por que eu?
— Porque você é boa, é óbvio. E acho que a Cindy Lee vai combinar com a música. — Ela sorriu. — Mas não fique surpresa, . Você devia dar um pouco mais de crédito em si mesma. Não é fácil ter a rotina que você tem e ainda dar cento e dez por cento na dança.
sentiu os olhos arderem por um momento.
— Eu... Obrigada pela oportunidade, Izzy. Não vou decepcionar.
— Eu sei que não. Agora vamos, a gente tem que se arrumar.
***
retocou o batom vermelho e encarou seu reflexo como Cindy Lee uma última vez, antes de colocar máscara prateada que cobria metade de seu rosto.
Diferente dos vários tons de azuis habituais que estava acostumada a vestir, aquela roupa tinha um tom mais escuro, como um azul-petróleo com efeito metálico, misturado a dezenas de pérolas brancas e renda preta, as meias e os sapatos da mesma cor. Nunca tinha usado aquele modelo antes, mas Tommy ficou mais do que feliz em oferecer ele quando soube que Cindy Lee ocuparia o centro do palco naquela noite.
— Vamos lá, meninas! Tá na hora. — Suzy apareceu na porta do camarim.
Um minuto depois, e mais outras quatro dançarinas se esconderam atrás da cortina do palco, cada uma com uma cadeira, esperando o momento em que as luzes apagariam para se posicionarem para a coreografia. Quando isso aconteceu e as luzes começaram a piscar na transição da música, elas já estavam prontas.
Cindy Lee estava sentada de costas para o público e, quando o som de "Express" começou, ela e as garotas passaram uma perna por cima da cadeira e começaram a estalar os dedos, seguindo a batida da música. Uma luz ofuscante foi jogada em seu rosto e, por um momento, ela não conseguiu enxergar o público.
Então, a voz de Christina Aguilera soou, e a coreografia seguiu enquanto Cindy dublava a música que já sabia de cor.
“E-X-P-R-E-S-S… love, sex, ladies no regrets…”
Ela apoiou uma perna na cadeira e levantou a cabeça para encarar o público e interpretar a música. Tinham mantido a coreografia original do filme e mesclado com alguns elementos originais.
"Been holding back for quite some time, and finally the moment's right..."
se deixou levar como Cindy enquanto executava os movimentos cuidadosamente ensaiados.
"I love to make the people stare..."
Naquele momento, a luz estava mais fraca e ela já conseguia ver os rostos das pessoas. E levou apenas um segundo para ver Charlie na plateia, em uma mesa da frente.
"They know I got that certain savoir-faire..."
sentiu seu coração errar uma batida, mas não se deixou abalar. Ali ela era Cindy, e tinha uma apresentação para concluir. Ela se abaixou, apoiando as mãos na cadeira, e sacudiu os quadris, enquanto encarava a plateia.
"Fasten up, can you imagine what would happen if I let you close enough to touch?"
Seu olhar percorreu o público mais um pouco e, por um instante, se esqueceu da presença de Charlie. Isso porque Cindy Lee tinha acabado de avistar ao lado de uma mesa perto do bar: em pé, de braços cruzados e um sorrisinho no rosto.
"Step into the fantasy, you'll never leave, baby, that's guaranteed..."
fez uma breve continência com dois dedos, cumprimentando-a de longe, e um sorriso cruzou os lábios de . Ele finalmente havia ido visitá-la e, pelo visto, já a reconhecera.
subiu na cadeira para terminar o refrão da música. Um momento depois, desceu e caminhou de um lado para o outro, enquanto as meninas se livravam das cadeiras, deixando o palco livre. Em seguida, todas se juntaram ao redor dela, permanecendo ali até o fim da música.
"Can you feel me, can you feel it? It's burlesque..."
As cinco formaram uma linha, uma ao lado da outra e sorriu, encontrando o olhar de na plateia. Uma salva de palmas soou e ela o viu assobiar, o que a fez rir.
As luzes se apagaram, e todas saíram do palco, comemorando com o fim de mais um número bem-sucedido e, pela primeira vez, com ela no centro. Não havia muito tempo para ficar ali, no entanto, então, um minuto depois, todas já estavam a postos, prontas para se mover entre as mesas.
fez uma nota mental de se manter longe de Charlie.
Ironicamente, a próxima música era "" de Bishop Briggs. Diferente de seu habitual leque de renda do mês anterior, dessa vez ela tinha um chicote rígido nas mãos. A maioria das mesas ao redor estava composta por mulheres, e sorriu, confortável em dançar para elas, enquanto brincava com o chicote. As mulheres riram e a incentivaram, depositando algumas gorjetas em seu decote. agradeceu com um sorriso e uma pequena reverência e, um momento depois, começou a se aproximar da mesa de .
Ele estava sentado, a encarando com atenção, e seus olhos estavam escuros naquela iluminação. sorriu e se posicionou para dançar em frente a ele.
"Don't you say, don't you say... Don't say, don't you say..."
Ela levantou o chicote e percorreu o próprio corpo com ele, começando pelo pescoço, passando pelo decote do espartilho até chegar à cintura. Em seguida, deu dois passos à frente e apontou o chicote para , que sorriu, levemente surpreso enquanto ela dublava a música, como se quisesse cantar para ele.
"One breath, it'll just break it... So shut your mouth and run me like a river..."
o encarou por trás de seu alter ego sem nenhuma vergonha. Normalmente, via pessoas desconhecidas todos os finais de semana, mas lá estava ela, agindo como uma devassa em frente ao seu chefe.
E pior, quando ele sabia que era ela.
Mas não se importou, porque ali podia deixar a música consumi-la.
E aquela, especificamente, gritava o nome dele.
passou o chicote pelo ombro de e desceu para o peito, apenas um segundo antes do refrão começar a tocar.
"Shut your mouth, baby, stand and deliver..."
Ela apoiou uma perna na coxa dele e praticamente fez uma dança individual. Não era contra às regras, e geralmente ela mantinha distância.
Mas com ele era diferente.
"Holy hands, will them make me a sinner? Like a river, like a river..."
se sentia diferente. Talvez fosse o olhar quente que a percorreu de cima a baixo antes de se fixar em seu rosto.
"Shut your mouth and run me like a river..."
mordeu o lábio inferior, tentando em vão conter um sorriso e, no momento seguinte, enganchou uma nota enrolada de cem dólares na meia dela.
Cindy Lee se afastou e soprou um beijo para ele, que riu, antes de vê-la se mover para a próxima mesa. Uma hora mais tarde, descobriu que a nota de cem dólares não era apenas uma, mas três.
Que tipo de pessoa dava uma gorjeta de trezentos dólares? Aquilo era metade do valor de seu medicamento, não que ele soubesse disso.
riu, incrédula, e guardou o dinheiro.
Tinha acabado de tomar um banho e estava pronta para ir embora, quando seu celular vibrou com uma mensagem.
: Tô te esperando do lado de fora, vou levar você pra casa, Cindy Lee.
Outro sorriso apareceu nos lábios dela.
: Chego em um minuto.
Em seguida, pegou a bolsa e se despediu rapidamente dos colegas enquanto seguia em direção à porta dos fundos.
Mal saiu quando sentiu alguém puxar seu braço.
A primeira coisa que notou foi o cheiro forte de uísque. A segunda, um sorriso maldoso que ela conhecia muito bem.
— Então era você mesmo. A dançarina de azul — ele afirmou, puxando-a para mais perto, e sentiu o sangue se esvair de seu rosto.
— Charlie... Me solta — ela pediu, tentando manter a calma, mas ele a ignorou.
— Se eu te der uma gorjeta gorda, você dança daquele jeito só pra mim, ?
— Me larga, seu idiota! — Ela tentou se soltar, em vão.
— Quem era aquele cara pra quem você dançou feito uma vagabunda? — Ele quis saber. — Tá se vendendo pra ele? Eu bem que fiquei imaginando quanto tempo levaria até você começar a se prostituir...
puxou o braço com força, mas o aperto dele continuou firme. Seu coração disparou de nervosismo, ciente de que não havia ninguém por perto. A porta dos fundos ficava distante da entrada. Ela podia tentar gritar, mas sua garganta estava entalada de medo.
Seus olhos arderam e sua respiração falhou.
— Por favor, alguém...
Charlie riu, parecendo se divertir.
— Quem você acha que vai ouvir você uma hora dessas? Melhor parar de se fazer de difícil e vir comigo.
— Não, sai de perto de mim! Me solta ou eu-
Charlie a puxou para um beijo forçado e se desesperou, lutando para se livrar dele. Chutou e bateu o quanto pôde, até que então... Ele não estava mais lá.
— Eu acho que ela disse não pra você, seu imbecil — rosnou, parado em frente a ela, de forma protetora.
— Quem é você? Nós estamos tendo uma conversa, não se mete! — Charlie tentou passar por ele, mas o impediu com um empurrão.
— Fique longe. Segurança! — gritou, em seguida.
— ... — o chamou, sentindo o lábio tremer.
Ele se virou no instante em que as primeiras lágrimas caíram de seus olhos. Um segundo depois, estava com os braços ao redor dela.
— Shh... Vai ficar tudo bem, . Eu prometo.
Mas será que ia mesmo? agarrou a camisa dele com força.
Então, sem conseguir se conter, ela soluçou contra seu peito e caiu em prantos.
mexeu na comida, olhando de soslaio enquanto digitava algo no celular.
Teve que se controlar para não perguntar se ele ainda pretendia visitar o clube ou não. Mas também não sabia porque queria que ele fosse, já que não era nada de mais.
Nada de mais, uma ova, uma vozinha falou em sua mente.
Ela continuou a comer em silêncio e, quando terminou, colocou a louça suja na máquina, se preparando para se despedir dele. Em seguida, se virou e encarou as costas largas de por dois segundos, antes dele se levantar com o resto da louça.
sempre tinha que olhar para cima para falar com ele, não porque fosse baixa, mas porque ele era alto demais.
Àquela altura, já tinha revirado a internet à procura de informações sobre e gostou muito do que viu, com exceção dos artigos maliciosos que ainda saíam sobre ele desde que havia terminado o que quer que tivesse com aquela tal de Hannah. nem sabia quem ela era, mas só o nome já lhe dava vontade de vomitar. A primeira e última Hannah que havia conhecido era a namorada psicótica de John.
E agora, depois de um mês convivendo com duas vezes por semana, mesmo que por um tempo curto, não conseguia imaginar ele como um babaca que odiava compromisso, como a ex dele tinha dado a entender.
Isso sem contar as mensagens de texto.
Ela não tinha ideia do porquê, mas passava o dia enviando mensagens para ela, sempre se certificando de que ela tinha se alimentado e de como estava indo o trabalho. Ao mesmo tempo, ele contava coisas aleatórias de seu dia, a maior parte envolvendo algum integrante da banda ou .
Ela tinha visto a namorada de apenas duas ou três vezes, quando foi limpar o apartamento dele, já que ela não morava lá e tinha bastante trabalho fora de casa, como uma autora renomada. era bem o tipo de mulher a quem esperava que desse atenção, mesmo que fosse apenas amizade: bonita, bem-sucedida e com um bom senso de humor. Nada como ela, uma simples faxineira.
não queria menosprezar a si mesma, mas não via nenhum futuro melhor desde que descobriu ter sido deserdada pelo pai — isso, se é que algum dia havia estado no testamento de Peter . De todo modo, tudo o que fazia era trabalhar. Não se lembrava nem da última vez que tinha saído para se divertir. Seu corpo fraco, frequentemente marcado por dores musculares causadas pelo trabalho ou pela dança, a deixava desmotivada até para as coisas mais simples. Felizmente, havia pequenos momentos no clube, quando se deixava levar por Cindy Lee, em que se sentia livre e feliz, como se fosse outra pessoa.
E havia sentido um pouquinho desses sentimentos também nos pequenos momentos compartilhados com aquele homem gigante, de quase dois metros de altura.
— Você já vai? — ele perguntou, enquanto se inclinava para abrir a lava-louças.
— Sim... Pro café e então pro clube — respondeu, como se ele já não soubesse.
assentiu e, cinco minutos depois, ela estava dentro do elevador, sozinha, a caminho do próximo turno de trabalho.
Naquela noite, ele também não apareceu.
sentiu uma pontinha de decepção, mas repreendeu a si mesma silenciosamente por se sentir assim. Talvez ele tivesse dito aquilo da boca para fora, só isso, como quando dois amigos falam um para o outro sobre marcar um encontro e ninguém nunca marca. De todo modo, uma parte meio boba dela queria que ele conhecesse aquele lado dela também, como dançarina, a profissão que havia escolhido seguir por pura paixão.
Quando chegou no Veil of Secrets, imaginava que seria um trabalho temporário, mas agora, depois de um ano ali, já não sabia mais se queria abrir mão daquilo um dia. Era o único momento da semana em que ela podia fingir ser alguém divertida, despreocupada com a vida. Isso sem contar nas boas gorjetas.
Mas então, a partir do momento em que retirava a peruca, voltava a ser a mesma mulher pobre, sozinha e doente de sempre. Pelo menos não tivera nenhuma intercorrência naquele lugar. Até mesmo Charlie não havia voltado mais ali, o que era um alívio. Ela não tinha certeza de que ele continuaria não a reconhecendo se a visse mais vezes.
Então que frequentasse outros lugares, de preferência algum bem longe dali.
O dia seguinte passou tão rápido que quando percebeu, seu turno na cafeteria já tinha acabado. A tarde foi cheia, como era normal nos finais de semana, mas havia mais gente dessa vez, então ela se manteve em pé o tempo todo enquanto atendia os clientes nas mesas.
Quando chegou no clube para ensaiar para aquela noite, teve que ficar dez minutos sentada no chão, fazendo exercícios de alongamento nas pernas e respirando fundo várias vezes. No caminho até lá, comprou um sanduíche do Subway e o comeu em dez minutos, feliz por finalmente colocar algo no estômago, já que durante a tarde não teve tempo nem de beber água.
Tirou até uma foto bonita do sanduíche ao lado de um copo de Sprite e enviou para . A primeira vez que ele perguntou se ela já estava comendo, mentiu e, como se tivesse detectado a inverdade nas palavras dela, ele pediu uma foto. Vergonhosamente, ela teve que admitir que não tivera tempo de comer e ganhou uma bela bronca.
Ele pareceu tão incomodado em saber que ela havia pulado uma refeição que, meia hora mais tarde, enquanto ela estava na cafeteria, um delivery de comida chegou, com mimos suficientes para toda a equipe. Seu rosto queimou de vergonha quando explicou que um amigo havia mandado sem falar para ela, e seus colegas se divertiram falando sobre ele talvez querer ser mais que um amigo. Obviamente, não deu bola para essa parte. Mas em compensação, nunca mais mentiu para e passou a sempre enviar provas de suas refeições.
Devidamente alimentada e tendo certeza de que não teria uma hipoglicemia, se alongou por mais alguns minutos, até Izzy e as outras dançarinas se organizarem na sala de ensaio. Duas horas mais tarde, todas partiram para o banho, mas Izzy pediu para falar com a sós.
Curiosa, assentiu, ainda secando o suor do corpo com uma toalhinha, e esperou até ela falar.
— Quero que você assuma o terceiro número no meu lugar hoje — a mais velha anunciou, fazendo a boca dela cair em choque.
— O quê? — Ela piscou, surpresa. — Você quer que eu seja o centro?
— Isso aí.
— Por quê?
— Torci meu tornozelo ontem e essa coreografia tá me machucando. Vou fazer só o solo hoje, que não exige muito. A Lia vai me substituir no próximo número já que você vai estar nas mesas.
— Mas... Por que eu?
— Porque você é boa, é óbvio. E acho que a Cindy Lee vai combinar com a música. — Ela sorriu. — Mas não fique surpresa, . Você devia dar um pouco mais de crédito em si mesma. Não é fácil ter a rotina que você tem e ainda dar cento e dez por cento na dança.
sentiu os olhos arderem por um momento.
— Eu... Obrigada pela oportunidade, Izzy. Não vou decepcionar.
— Eu sei que não. Agora vamos, a gente tem que se arrumar.
retocou o batom vermelho e encarou seu reflexo como Cindy Lee uma última vez, antes de colocar máscara prateada que cobria metade de seu rosto.
Diferente dos vários tons de azuis habituais que estava acostumada a vestir, aquela roupa tinha um tom mais escuro, como um azul-petróleo com efeito metálico, misturado a dezenas de pérolas brancas e renda preta, as meias e os sapatos da mesma cor. Nunca tinha usado aquele modelo antes, mas Tommy ficou mais do que feliz em oferecer ele quando soube que Cindy Lee ocuparia o centro do palco naquela noite.
— Vamos lá, meninas! Tá na hora. — Suzy apareceu na porta do camarim.
Um minuto depois, e mais outras quatro dançarinas se esconderam atrás da cortina do palco, cada uma com uma cadeira, esperando o momento em que as luzes apagariam para se posicionarem para a coreografia. Quando isso aconteceu e as luzes começaram a piscar na transição da música, elas já estavam prontas.
Cindy Lee estava sentada de costas para o público e, quando o som de "Express" começou, ela e as garotas passaram uma perna por cima da cadeira e começaram a estalar os dedos, seguindo a batida da música. Uma luz ofuscante foi jogada em seu rosto e, por um momento, ela não conseguiu enxergar o público.
Então, a voz de Christina Aguilera soou, e a coreografia seguiu enquanto Cindy dublava a música que já sabia de cor.
“E-X-P-R-E-S-S… love, sex, ladies no regrets…”
Ela apoiou uma perna na cadeira e levantou a cabeça para encarar o público e interpretar a música. Tinham mantido a coreografia original do filme e mesclado com alguns elementos originais.
"Been holding back for quite some time, and finally the moment's right..."
se deixou levar como Cindy enquanto executava os movimentos cuidadosamente ensaiados.
"I love to make the people stare..."
Naquele momento, a luz estava mais fraca e ela já conseguia ver os rostos das pessoas. E levou apenas um segundo para ver Charlie na plateia, em uma mesa da frente.
"They know I got that certain savoir-faire..."
sentiu seu coração errar uma batida, mas não se deixou abalar. Ali ela era Cindy, e tinha uma apresentação para concluir. Ela se abaixou, apoiando as mãos na cadeira, e sacudiu os quadris, enquanto encarava a plateia.
"Fasten up, can you imagine what would happen if I let you close enough to touch?"
Seu olhar percorreu o público mais um pouco e, por um instante, se esqueceu da presença de Charlie. Isso porque Cindy Lee tinha acabado de avistar ao lado de uma mesa perto do bar: em pé, de braços cruzados e um sorrisinho no rosto.
"Step into the fantasy, you'll never leave, baby, that's guaranteed..."
fez uma breve continência com dois dedos, cumprimentando-a de longe, e um sorriso cruzou os lábios de . Ele finalmente havia ido visitá-la e, pelo visto, já a reconhecera.
subiu na cadeira para terminar o refrão da música. Um momento depois, desceu e caminhou de um lado para o outro, enquanto as meninas se livravam das cadeiras, deixando o palco livre. Em seguida, todas se juntaram ao redor dela, permanecendo ali até o fim da música.
"Can you feel me, can you feel it? It's burlesque..."
As cinco formaram uma linha, uma ao lado da outra e sorriu, encontrando o olhar de na plateia. Uma salva de palmas soou e ela o viu assobiar, o que a fez rir.
As luzes se apagaram, e todas saíram do palco, comemorando com o fim de mais um número bem-sucedido e, pela primeira vez, com ela no centro. Não havia muito tempo para ficar ali, no entanto, então, um minuto depois, todas já estavam a postos, prontas para se mover entre as mesas.
fez uma nota mental de se manter longe de Charlie.
Ironicamente, a próxima música era "" de Bishop Briggs. Diferente de seu habitual leque de renda do mês anterior, dessa vez ela tinha um chicote rígido nas mãos. A maioria das mesas ao redor estava composta por mulheres, e sorriu, confortável em dançar para elas, enquanto brincava com o chicote. As mulheres riram e a incentivaram, depositando algumas gorjetas em seu decote. agradeceu com um sorriso e uma pequena reverência e, um momento depois, começou a se aproximar da mesa de .
Ele estava sentado, a encarando com atenção, e seus olhos estavam escuros naquela iluminação. sorriu e se posicionou para dançar em frente a ele.
"Don't you say, don't you say... Don't say, don't you say..."
Ela levantou o chicote e percorreu o próprio corpo com ele, começando pelo pescoço, passando pelo decote do espartilho até chegar à cintura. Em seguida, deu dois passos à frente e apontou o chicote para , que sorriu, levemente surpreso enquanto ela dublava a música, como se quisesse cantar para ele.
"One breath, it'll just break it... So shut your mouth and run me like a river..."
o encarou por trás de seu alter ego sem nenhuma vergonha. Normalmente, via pessoas desconhecidas todos os finais de semana, mas lá estava ela, agindo como uma devassa em frente ao seu chefe.
E pior, quando ele sabia que era ela.
Mas não se importou, porque ali podia deixar a música consumi-la.
E aquela, especificamente, gritava o nome dele.
passou o chicote pelo ombro de e desceu para o peito, apenas um segundo antes do refrão começar a tocar.
"Shut your mouth, baby, stand and deliver..."
Ela apoiou uma perna na coxa dele e praticamente fez uma dança individual. Não era contra às regras, e geralmente ela mantinha distância.
Mas com ele era diferente.
"Holy hands, will them make me a sinner? Like a river, like a river..."
se sentia diferente. Talvez fosse o olhar quente que a percorreu de cima a baixo antes de se fixar em seu rosto.
"Shut your mouth and run me like a river..."
mordeu o lábio inferior, tentando em vão conter um sorriso e, no momento seguinte, enganchou uma nota enrolada de cem dólares na meia dela.
Cindy Lee se afastou e soprou um beijo para ele, que riu, antes de vê-la se mover para a próxima mesa. Uma hora mais tarde, descobriu que a nota de cem dólares não era apenas uma, mas três.
Que tipo de pessoa dava uma gorjeta de trezentos dólares? Aquilo era metade do valor de seu medicamento, não que ele soubesse disso.
riu, incrédula, e guardou o dinheiro.
Tinha acabado de tomar um banho e estava pronta para ir embora, quando seu celular vibrou com uma mensagem.
: Tô te esperando do lado de fora, vou levar você pra casa, Cindy Lee.
Outro sorriso apareceu nos lábios dela.
: Chego em um minuto.
Em seguida, pegou a bolsa e se despediu rapidamente dos colegas enquanto seguia em direção à porta dos fundos.
Mal saiu quando sentiu alguém puxar seu braço.
A primeira coisa que notou foi o cheiro forte de uísque. A segunda, um sorriso maldoso que ela conhecia muito bem.
— Então era você mesmo. A dançarina de azul — ele afirmou, puxando-a para mais perto, e sentiu o sangue se esvair de seu rosto.
— Charlie... Me solta — ela pediu, tentando manter a calma, mas ele a ignorou.
— Se eu te der uma gorjeta gorda, você dança daquele jeito só pra mim, ?
— Me larga, seu idiota! — Ela tentou se soltar, em vão.
— Quem era aquele cara pra quem você dançou feito uma vagabunda? — Ele quis saber. — Tá se vendendo pra ele? Eu bem que fiquei imaginando quanto tempo levaria até você começar a se prostituir...
puxou o braço com força, mas o aperto dele continuou firme. Seu coração disparou de nervosismo, ciente de que não havia ninguém por perto. A porta dos fundos ficava distante da entrada. Ela podia tentar gritar, mas sua garganta estava entalada de medo.
Seus olhos arderam e sua respiração falhou.
— Por favor, alguém...
Charlie riu, parecendo se divertir.
— Quem você acha que vai ouvir você uma hora dessas? Melhor parar de se fazer de difícil e vir comigo.
— Não, sai de perto de mim! Me solta ou eu-
Charlie a puxou para um beijo forçado e se desesperou, lutando para se livrar dele. Chutou e bateu o quanto pôde, até que então... Ele não estava mais lá.
— Eu acho que ela disse não pra você, seu imbecil — rosnou, parado em frente a ela, de forma protetora.
— Quem é você? Nós estamos tendo uma conversa, não se mete! — Charlie tentou passar por ele, mas o impediu com um empurrão.
— Fique longe. Segurança! — gritou, em seguida.
— ... — o chamou, sentindo o lábio tremer.
Ele se virou no instante em que as primeiras lágrimas caíram de seus olhos. Um segundo depois, estava com os braços ao redor dela.
— Shh... Vai ficar tudo bem, . Eu prometo.
Mas será que ia mesmo? agarrou a camisa dele com força.
Então, sem conseguir se conter, ela soluçou contra seu peito e caiu em prantos.
Capítulo 11
parou o carro no sinal vermelho e olhou de soslaio para , que até então estava com os braços ao redor de si mesma, quietinha no banco de carona, enquanto lágrimas silenciosas ainda corriam em seu rosto.
Um minuto depois que ele gritou por um segurança, dois funcionários do clube apareceram e ele explicou rapidamente o que tinha acontecido, enquanto arrastava até o carro.
Aquele era o primeiro sinal de trânsito em que paravam.
— Vou te levar pra minha casa, — ele anunciou. — Tudo bem?
Ela assentiu sem olhar para ele, passando a mão no rosto para secar as lágrimas.
cerrou a mandíbula e apertou as duas mãos no volante até os nós de seus dedos ficarem brancos. Teve que se controlar para não pular no idiota que a assediou e enchê-lo de porrada. Como ele se atrevia a dizer aquelas coisas sobre ela e ainda beijá-la à força?
Com certeza, não devia ter o mínimo de noção sobre o quanto aquela mulher trabalhava, e ainda menosprezar a profissão dela daquele jeito...
estava tão incrível dançando que ficou sem fôlego algumas vezes enquanto a assistia. Seu peito se encheu de orgulho ao ver a felicidade que a dominava ao fazer as coreografias. E quando dançou em frente a ele, para ele... desejou que ela nunca parasse de fazer aquilo.
Não enquanto fosse algo que ela genuinamente amasse.
Como ele, com a música.
Dançando, parecia outra pessoa; confiante, sensual e nada tímida. E ele tinha certeza de que ela nunca teria dançado daquele jeito para ele sem se esconder atrás de Cindy Lee. Ele a reconheceu assim que ela colocou os pés no palco. Mesmo de máscara, o sorriso dela, os olhos... Talvez ele tenha notado esses pequenos detalhes após as últimas semanas de convivência.
Caso contrário, provavelmente não teria olhado duas vezes para nenhuma daquelas dançarinas. Todas pareciam lindas no palco, com o figurino impecável, assim como cabelo e maquiagem. podia sentir a arte e paixão emanando delas através do profissionalismo e trabalho em equipe.
Ele propositalmente evitou ir ao clube algumas vezes e não falou mais sobre aquilo com . Queria mesmo pegá-la de surpresa e dar-lhe uma gorjeta generosa por seu trabalho duro.
E porque ela merecia.
Era uma pena que a noite tivesse terminado mal para ela, por culpa daquele traste que a incomodou.
O sinal abriu e ele voltou a dirigir em silêncio até chegar ao estacionamento de seu prédio. Então conduziu até o elevador e, dois minutos depois, estavam em sua sala de estar.
— Vou pegar uma roupa confortável pra você dormir — ele declarou, antes de desaparecer pelo corredor, voltando um momento depois, com uma camiseta branca, um short e um moletom preto. — Vai ficar grande, mas acho que deve servir.
— Obrigada... — Ela pegou as roupas e as depositou no sofá, antes de se virar novamente para ele, parecendo envergonhada. — Eu sinto muito.
— Pelo que você tá se desculpando?
— Eu te incomodei com isso, qualquer pessoa teria recusado sua proposta, mas eu... — O lábio inferior dela tremeu.
Instintivamente, a abraçou mais uma vez.
— De jeito nenhum, . Por favor, não pense que você me incomoda. Não sei quem é aquele cara, mas... Fiquei com medo dele te seguir ou algo assim, então eu quis te trazer pra cá.
respirou fundo uma vez.
— Era o Charlie, o enteado do meu pai — ela revelou baixinho, se afastando dele.
— Como é?! — ele se irritou de repente, a pegando de surpresa. Então abaixou o tom de voz. — Tá me dizendo que você mora debaixo do mesmo teto que aquele imbecil asqueroso?
— Essa é uma ótima forma de descrever ele e, sim, eu moro. Infelizmente.
— Então que bom que eu te trouxe pra cá. Não acredito que ele falou aquelas merdas sobre você.
— Você... Ouviu? — Ela levantou os olhos inchados para encará-lo.
O glamour de Cindy Lee havia ido embora e agora só restava a imagem de uma garota cansada e envergonhada. era bonita mesmo sem maquiagem, mas seu semblante tristonho e, na maioria das vezes sem energia, fazia o coração dele se apertar.
— Ouvi. E mesmo que você tivesse se prostituindo, isso não era da conta dele. O idiota te tratou como se você não tivesse poder de escolha. Isso sem contar que ele menosprezou seu trabalho. Aposto que ele não tem ideia sobre o quão difícil é trabalhar no meio artístico.
— Não tem mesmo. Ele nunca nem precisou batalhar por um emprego. — Ela suspirou. — Mesmo assim, sinto muito por você ter que presenciar aquilo. Mas obrigada por me ajudar. Tentei gritar, mas...
— Tudo bem, . Fico feliz por ter sido útil. Mas... Aquele cara fez isso outras vezes?
fez uma careta com a pergunta, mas resolveu responder mesmo assim. Não fazia sentido esconder.
— Ele me encurralou uma vez e insinuou que me pagaria pra fazer... Coisas pra ele. — Ela encolheu os ombros. semicerrou os olhos. — Eu dei um fora nele e depois disso ele me deixou em paz. Eu tava acostumada a ouvir piadinhas maldosas, mas aquela foi a primeira vez que ele me abordou assim. E teve uma vez... Na noite em que você me mandou mensagem pela primeira vez, ele...
— Ele te encurralou de novo?
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Mas naquela noite, ele foi até o meu quarto e ficou um tempo parado em frente à porta. Eu cheguei um pouco antes dele e a luz tava apagada, acho que ele achou que eu tava dormindo ou sei lá. Achei bizarro, mas...
— Você devia ter me contado.
— Eu nem te conhecia direito. Por que eu ia contar esse tipo de coisa? Te encher com meus problemas?
— Porque eu... Me importo com você. — fechou as mãos em punho, de repente, se sentindo nervoso.
o encarou com cinismo.
— Você mal me conhece, .
— E daí? Quando conheceu , eles só passaram cinco dias juntos. E mesmo assim, a gente ainda procurou por ela, mesmo meio que sabendo que ela não queria ser encontrada.
— Ah, a Garota , que deixou vocês famosos? O que isso tem a ver?
— Não demorou muito pra gente começar a se importar com ela naquela época, mesmo antes da fama. E você tá aqui na minha casa toda semana.
— Isso não quer dizer nada — tentou desconversar. — A foi uma exceção. Ela e ... Se envolveram romanticamente. Era outro cenário, outra época. Eu pesquisei sobre vocês.
— Por que você acha tão difícil alguém se importar com você, ?
— Porque... — Ela desviou o olhar, sentiu os olhos arderem novamente. Sua visão embaçou. — Não tô acostumada. Isso que você faz... De me deixar ficar aqui nos dias que venho só pra eu poder descansar um pouco... Levei um tempo pra me habituar e aceitar. Você sempre foi tão legal e eu não fiz nada pra merecer isso... — Ela soluçou e cobriu o rosto, secando as lágrimas com as duas mãos.
— Olha... Honestamente, eu não tenho pena de você. Eu te admiro e acho você muito forte só em conseguir se levantar todo dia pra trabalhar — disse, se segurando para não abraçá-la outra vez. — Mas dói em mim, por algum motivo, saber que você não tem escolha e... Eu quero te dar uma escolha, .
— Como assim?
— Você tem que sair de casa o quanto antes. Não dá pra ficar mais lá com aquele cara te importunando.
— Eu não posso, não tenho um lugar ainda. Pesquisei umas quitinetes online, mas não tive tempo de visitar. Preciso aguentar mais um pouco.
— Não precisa não — ele retrucou. — Tem uma coisa que venho querendo conversar com você desde a semana passada, mas... Não tive coragem ainda.
— Que… tipo de coisa?
balançou a cabeça, como se quisesse afastar os pensamentos.
— Agora não, tá tarde. Você tá de cabeça cheia e precisa descansar. Amanhã a gente conversa.
— Tá… — respondeu, mesmo curiosa, sabendo que ele tinha razão.
— Você tá com fome? Quer comer ou beber alguma coisa?
— Não, obrigada. Acho que vou só dormir mesmo. — Ela pegou as roupas no sofá.
— Toma pelo menos um pouco de água. Eu vou pro meu quarto, fica à vontade. Você já sabe onde tem tudo e o quarto de hóspedes é todo seu.
— Obrigada.
— Disponha. Boa noite, .
— Boa noite, .
E então, ele a deixou sozinha.
respirou fundo, bebeu um copo de água e então foi até o quarto.
Se despiu rapidamente, substituindo as próprias roupas pelas dele e se deitou bem no meio da cama enorme, orando para que o dia seguinte fosse melhor.
***
Na manhã seguinte à madrugada que terminou em um péssimo desfecho, planejou acordar mais cedo para fazer café da manhã como forma de agradecimento a , mas assim que colocou os pés no corredor, sentiu cheiro de café fresco no ar e descobriu que ele tivera a mesma ideia.
Era apenas oito da manhã e eles tinham se recolhido há cerca de cinco horas.
— Bom dia — o cumprimentou timidamente.
, que estava de costas, se virou com uma frigideira nas mãos e sorriu, mostrando uma covinha, quando notou que ela ainda usava suas roupas. Era fofo e engraçado ao mesmo tempo como as peças pareciam grandes nela.
— Bom dia. Conseguiu dormir? — ele perguntou, depositando uma pequena pilha de ovos mexidos em um prato.
— Sim, e você? — O olhar dela recaiu para uma sacola de pães e sua boca salivou.
— Eu também. Senta, vamos comer. — Ele apontou para o banquinho que ela sempre usava e imediatamente obedeceu. — Comprei pão. Lembrei que você disse outro dia que costumava comer no café da manhã.
Fazia um bom tempo que não comia pão no café da manhã, muito menos uma refeição reforçada naquele horário. Normalmente acordava tão cedo que não tinha estômago para comer, mas se forçava a enfiar alguma fruta goela abaixo para não ter hipoglicemia enquanto trabalhava.
— Sim... — Ela pegou um pão ainda morno, o abriu com uma faca e recheou com ovos mexidos.
fez sua própria versão, adicionando bacon também e serviu os dois com uma caneca de café com leite.
quase gemeu quando deu a primeira mordida. Pão com ovo, quem diria. Tão simples, mas tão bom. Instantaneamente lembrou de sua avó que sempre fazia uma vitamina de banana para acompanhar quando ela ainda morava no Brasil.
Eles comeram em um silêncio confortável e ainda tinham a caneca de café com leite pela metade quando resolveu falar.
— Sobre o que eu disse que queria falar com você... Eu tenho uma proposta de emprego pra te fazer.
— Emprego? — Ela o encarou com interesse.
— É, desses com vários benefícios. E você não vai precisar se matar de trabalhar.
Vários benefícios em um emprego nos Estados Unidos? Sem trabalhar muito?
o encarou, cética.
— Sério? Aqui, nesse país?
— Ei, não me olha assim. E é óbvio que é sério, afinal, eu seria o contratante.
Ela piscou, confusa.
— E você quer me contratar pra quê?
— Pra... Me fazer companhia? — ele disse, meio sem jeito.
— Companhia?
— sugeriu uma coisa e você é a única pessoa que conseguimos pensar que pudesse ajudar. Como você deve saber, minha imagem não anda lá essas coisas e toda semana sai um artigo com rumores idiotas sobre minha personalidade e vida pessoal. Então, ele... Sugeriu rebater isso.
— E onde eu me encaixo nisso? — ela quis saber, genuinamente curiosa.
— Então… Se tornando minha namorada de mentira.
— Como é?! — quase gritou. — Que ideia maluca é essa?
— As pessoas acham que eu não consigo ter relacionamentos, então você me ajudaria nisso. É de mentira, . Prometo não te tocar a menos que a gente esteja em público. Só quero tapear esses idiotas que insistem em falar de mim e... Dar algo diferente pra eles falarem e ver se as pessoas me esquecem.
— Te esquecer? Acha mesmo possível alguém conseguir fazer isso? — ela perguntou sem pensar, e então sentiu o rosto esquentar quando percebeu como aquela frase tinha soado. — Quer dizer, você é uma celebridade...
— Sim, mas acho que ajudaria a rebater essas fofocas. Não tenho problema em manter relacionamentos, . Não fujo deles. Eu só... Não consigo manter interesse. Meus pais tem uma relação incrível até hoje e cresci querendo algo assim também, mas... — Ele desviou o olhar dela, envergonhado e passou a mão no pescoço. — Nunca me apaixonei por ninguém.
— Cara, você literalmente escreve músicas sobre amor.
— Eu sei. Mas é como se o músico fosse tipo a Cindy Lee dançarina — ele tentou explicar. — A gente só precisa expressar os sentimentos que queremos passar, mas não necessariamente sentir eles.
— Tá dizendo que você atua no palco? Nos holofotes?
— Não, só na hora de escrever. No palco, eu sou eu mesmo. — Ele deixou escapar uma risadinha. — Inclusive, sinto falta. Faz anos que não fazemos turnê. Temos planos pra fazer uma depois do álbum novo, mas não tem nada certo ainda...
— E você quer que eu te ajude a tapear esse povo? Incluindo seus fãs?
— É uma mentira com intuito de trazer benefícios pra nós dois. Um monte de gente faz isso — ele disse, mesmo sem ter um pingo de certeza.
— E o que eu ganharia com isso?
— Bem... Além de não trabalhar muito, é claro, eu te daria um plano de saúde por dez anos, além de uma mesada e um valor extra específico suficiente pra você conseguir terminar a faculdade. Quanto a moradia... O quarto de hóspedes seria todo seu.
O coração de errou uma batida.
— Por quanto tempo seria?
— Um ano — respondeu ele. — Faríamos um contrato e além de nós, só meus amigos próximos e meu advogado saberiam. Podemos negociar os benefícios, caso você queira algo mais.
— Mais? — praticamente sussurrou, em choque. Então se recuperou e surtou. — Você enlouqueceu?! Que tipo de proposta idiota é essa? E mais? Tá doido? Eu não sonharia nem com metade disso, mas você tá falando de jogar dinheiro fora como se fosse só uns trocados.
pressionou os lábios para não rir.
— Não tô jogando dinheiro fora, tô investindo. Em você.
— Eu... Por quê?! — Ela apoiou as duas mãos na bancada, o encarando incrédula.
— Porque eu gosto de você. E me importo com você. Gosto da sua amizade também e meu coração se aperta por você ter que batalhar tanto. E eu queria poder ajudar, mas sei que você nunca aceitaria isso sem poder me oferecer algo em troca, então... Seja minha namorada, .
Ela o encarou, atônita, sentindo o coração disparar no peito. Será que aquele idiota sabia como aquele pedindo estava soando? Era um relacionamento de mentira, mas seus ouvidos ouviram aquilo e seu cérebro interpretou de forma errada. Como quando ela lia um livro de romance.
Mas deveria recusar? O que era uma mentirinha perto de todos aqueles benefícios que ele estava oferecendo? Seria burra se recusasse. Era como se o universo tivesse colocado aquele homem em sua vida para dar a oportunidade para ela colocar a própria vida de volta aos eixos.
Não trabalhar de domingo a domingo. Parar de fazer faxinas... Não, ela teria que fazer ao menos ali, e na casa de também, já que ele deu aquela ideia maluca. Se sentiria melhor assim.
Além disso, permaneceria na cafeteria, como sempre, e no clube, simplesmente porque gostava.
E então... Terminaria a faculdade.
Mas a cereja do bolo era: plano de saúde. Por uma década inteirinha.
Ela não podia competir com aquilo. Não quando já tinha negligenciado a própria saúde por quase um ano, mesmo sabendo que precisava de acompanhamento constante para seu coração.
Seu coração... Que parecia prestes a sair pela boca naquele momento.
— Eu... — ofegou, com uma leve falta de ar, e então viu arregalar os olhos. Sua visão ficou um pouco turva e a boca secou.
— Meu Deus, você tá passando mal? — Ele se colocou ao lado dela um segundo depois. — Você precisa de um remédio? Me fala o que posso fazer.
Remédio. Sim.
Agora tudo fazia sentido. Ela não tinha tomado nenhum dos dois porque planejava fazer aquilo após o café da manhã.
— Na minha mochila... — conseguiu dizer e no mesmo instante ele desapareceu. Levou apenas alguns segundos para voltar com os dois potes de medicamentos e ofereceu um comprimido de cada para ela, que tomou com a ajuda do café.
— Me fala se precisar de mais alguma coisa — ele exigiu, meio afobado, enquanto esfregava as costas dela como forma de apoio. sentiu os olhos se encherem d'água com a pequena gentileza, lembrando que era algo que sua mãe costumava fazer quando era criança.
Ela o encarou e se virou no banquinho, passando os braços ao redor da cintura dele.
— Eu aceito. Mesmo achando que você tá oferecendo bem mais do que mereço. Obrigada, .
a apertou com força em seus braços, devolvendo o abraço.
— Ah, ... Você merece mais.
***
— Você tá me dizendo... Que quer continuar limpando nossa casa mesmo ganhando isso? — a encarou, incrédulo.
— Isso aí. — cruzou os braços, se recostando no estofado do sofá em que os dois estavam sentados.
Alguns minutos depois do café da manhã, quando se recuperou do pequeno pane em seu coração, ela demandou que os dois negociassem tudo de uma vez, garantindo que tinha algumas condições.
— E você quer continuar trabalhando fora?
— Sim.
— Por quê? Você vai ter dinheiro e tempo suficiente pra não precisar disso.
— Eu posso pegar menos turnos por semana no café e gosto do clube. Mas dispenso todas as possibilidades de sofrer xenofobia de algum cidadão preconceituoso. Ou de apanhar de uma namorada psicótica porque desmaiei no homem dela — ela explicou. — Além disso, me sinto mais confortável limpando a casa de vocês e não exige muito esforço que nem as outras. Se eu parasse, vocês teriam que contratar outra pessoa e não tem necessidade disso. Faz parte do mínimo que posso fazer.
— Você já vai ser exposta pro mundo todo, . Não precisa disso.
— Mas eu quero — ela insistiu e juntou as mãos. — Por favor, . Prometo ser a melhor única namorada de mentirinha que você já teve.
piscou, encarando aqueles grandes olhos castanhos por alguns segundos. Ela parecia o gato do Shrek.
— Tá. — A palavra escapou de sua boca, como se seus lábios tivessem vida própria.
abriu um sorriso de orelha a orelha e bateu uma palma da mão contra a outra uma única vez.
— Ótimo, estamos resolvidos então. Vou te acompanhar onde você quiser ir.
— Espera, tem uma coisa — ele lembrou.
— O quê?
— Você vai me colocar como contato de emergência. E eu vou te acompanhar nas consultas médicas.
— Por quê? — Ela franziu o cenho. — Eu sempre fui sozinha.
— Porque eu quero saber de tudo.
— Mas...
— Shh! — Ele cobriu a boca dela com a mão. — Você é meu investimento, lembra?
estreitou os olhos, desconfiada, e afastou a mão dele.
— Você vai usar essa desculpa agora?
— Sempre que eu puder. — Ele sorriu.
— Tá, eu vou deixar você me acompanhar nas consultas.
— E ser seu contato de emergência — ele acrescentou.
— Isso também.
— Ótimo. Agora a gente precisa ir na sua casa pra pegar suas coisas.
— Mas já? — Ela o encarou, surpresa. — A gente nem assinou um contrato ainda.
— Isso vem depois. Você é minha amiga e não quero que fique nem mais um dia naquela casa, seja onde for. Posso contratar um serviço de mudança se for necessário e...
— Não precisa, eu não tenho muita coisa. Acho que cabe tudo em uma mala.
— Ótimo. Então vamos. Você só tem tempo agora de manhã.
— Tá...
***
olhou ao redor do grande jardim, surpreso.
— Ei, . Por acaso, esqueceu de falar que seu pai era rico? — brincou ele, observando a grande mansão.
Tinham acabado de entrar e a acompanhava até uma entrada nos fundos da casa. Ele imaginou que talvez fosse para não chamar atenção de nenhum parente problemático.
— Ele era, não eu.
Um minuto depois, os dois se depararam com uma cozinha grande e chique e cumprimentou uma mulher baixinha, que devia ter seus cinquenta e poucos anos, vestida com um uniforme de empregada.
— , querida. Senti sua falta, bati na sua porta mas ninguém respondeu.
— Eu... Fiquei na casa de um amigo — ela respondeu baixinho e apontou para .
A mulher o encarou de baixo para cima, levantando a cabeça completamente até chegar ao rosto dele.
— Amigo, é? — Ela sorriu. — Que amigão você tem. Olá, eu sou Lucy. — Ela estendeu uma mão para ela.
— , prazer em conhecê-la.
— Eu vim pegar minhas coisas, Lucy. Vou sair daqui.
O sorriso da mulher se desfez, mas então ela assentiu, parecendo compreender.
— Finalmente?
— Pois é. — encolheu os ombros.
— A Sra. Sandra e a Srta. Claire estão na piscina. Só elas estão em casa hoje — ela avisou. — Você precisa de ajuda?
— Não, não se preocupe. Vou pegar tudo rapidinho e vou embora.
— Tudo bem.
Em seguida, levou até um corredor no térreo da mansão. Parecia uma área completamente separada das outras.
— Seu quarto fica no térreo? — ele perguntou enquanto caminhavam até pararem em uma porta no meio do corredor.
enfiou a chave nela e a destrancou, mas não a abriu de imediato.
— Então... Sobre isso. Aqui é a área dos funcionários. Meu antigo quarto, que meu pai me deu, fica lá em cima.
Ele a encarou com desconfiança.
— E por que você não vive lá, ?
— Porque aconteceu assim desde que meu pai morreu. Não herdei nada, acho que já falei sobre isso pra você. E a esposa dele exigiu que eu pagasse aluguel pra continuar aqui e me ofereceu esse... Quarto.
Ela colocou a mão na maçaneta e segurou.
— Por que você tá hesitando? — Ele franziu o cenho e colocou a mão em cima da dela.
— Porque eu, hm...
— Para de enrolar e abre logo isso, . Não me importo se tiver bagunçado, se for por isso.
sorriu amarelo e quase riu na hora. Como se eu tivesse espaço pra fazer bagunça...
Sem olhar para , ela empurrou a porta e começou a contar silenciosamente: um, dois...
— Que porra é essa, ?!
Um minuto depois que ele gritou por um segurança, dois funcionários do clube apareceram e ele explicou rapidamente o que tinha acontecido, enquanto arrastava até o carro.
Aquele era o primeiro sinal de trânsito em que paravam.
— Vou te levar pra minha casa, — ele anunciou. — Tudo bem?
Ela assentiu sem olhar para ele, passando a mão no rosto para secar as lágrimas.
cerrou a mandíbula e apertou as duas mãos no volante até os nós de seus dedos ficarem brancos. Teve que se controlar para não pular no idiota que a assediou e enchê-lo de porrada. Como ele se atrevia a dizer aquelas coisas sobre ela e ainda beijá-la à força?
Com certeza, não devia ter o mínimo de noção sobre o quanto aquela mulher trabalhava, e ainda menosprezar a profissão dela daquele jeito...
estava tão incrível dançando que ficou sem fôlego algumas vezes enquanto a assistia. Seu peito se encheu de orgulho ao ver a felicidade que a dominava ao fazer as coreografias. E quando dançou em frente a ele, para ele... desejou que ela nunca parasse de fazer aquilo.
Não enquanto fosse algo que ela genuinamente amasse.
Como ele, com a música.
Dançando, parecia outra pessoa; confiante, sensual e nada tímida. E ele tinha certeza de que ela nunca teria dançado daquele jeito para ele sem se esconder atrás de Cindy Lee. Ele a reconheceu assim que ela colocou os pés no palco. Mesmo de máscara, o sorriso dela, os olhos... Talvez ele tenha notado esses pequenos detalhes após as últimas semanas de convivência.
Caso contrário, provavelmente não teria olhado duas vezes para nenhuma daquelas dançarinas. Todas pareciam lindas no palco, com o figurino impecável, assim como cabelo e maquiagem. podia sentir a arte e paixão emanando delas através do profissionalismo e trabalho em equipe.
Ele propositalmente evitou ir ao clube algumas vezes e não falou mais sobre aquilo com . Queria mesmo pegá-la de surpresa e dar-lhe uma gorjeta generosa por seu trabalho duro.
E porque ela merecia.
Era uma pena que a noite tivesse terminado mal para ela, por culpa daquele traste que a incomodou.
O sinal abriu e ele voltou a dirigir em silêncio até chegar ao estacionamento de seu prédio. Então conduziu até o elevador e, dois minutos depois, estavam em sua sala de estar.
— Vou pegar uma roupa confortável pra você dormir — ele declarou, antes de desaparecer pelo corredor, voltando um momento depois, com uma camiseta branca, um short e um moletom preto. — Vai ficar grande, mas acho que deve servir.
— Obrigada... — Ela pegou as roupas e as depositou no sofá, antes de se virar novamente para ele, parecendo envergonhada. — Eu sinto muito.
— Pelo que você tá se desculpando?
— Eu te incomodei com isso, qualquer pessoa teria recusado sua proposta, mas eu... — O lábio inferior dela tremeu.
Instintivamente, a abraçou mais uma vez.
— De jeito nenhum, . Por favor, não pense que você me incomoda. Não sei quem é aquele cara, mas... Fiquei com medo dele te seguir ou algo assim, então eu quis te trazer pra cá.
respirou fundo uma vez.
— Era o Charlie, o enteado do meu pai — ela revelou baixinho, se afastando dele.
— Como é?! — ele se irritou de repente, a pegando de surpresa. Então abaixou o tom de voz. — Tá me dizendo que você mora debaixo do mesmo teto que aquele imbecil asqueroso?
— Essa é uma ótima forma de descrever ele e, sim, eu moro. Infelizmente.
— Então que bom que eu te trouxe pra cá. Não acredito que ele falou aquelas merdas sobre você.
— Você... Ouviu? — Ela levantou os olhos inchados para encará-lo.
O glamour de Cindy Lee havia ido embora e agora só restava a imagem de uma garota cansada e envergonhada. era bonita mesmo sem maquiagem, mas seu semblante tristonho e, na maioria das vezes sem energia, fazia o coração dele se apertar.
— Ouvi. E mesmo que você tivesse se prostituindo, isso não era da conta dele. O idiota te tratou como se você não tivesse poder de escolha. Isso sem contar que ele menosprezou seu trabalho. Aposto que ele não tem ideia sobre o quão difícil é trabalhar no meio artístico.
— Não tem mesmo. Ele nunca nem precisou batalhar por um emprego. — Ela suspirou. — Mesmo assim, sinto muito por você ter que presenciar aquilo. Mas obrigada por me ajudar. Tentei gritar, mas...
— Tudo bem, . Fico feliz por ter sido útil. Mas... Aquele cara fez isso outras vezes?
fez uma careta com a pergunta, mas resolveu responder mesmo assim. Não fazia sentido esconder.
— Ele me encurralou uma vez e insinuou que me pagaria pra fazer... Coisas pra ele. — Ela encolheu os ombros. semicerrou os olhos. — Eu dei um fora nele e depois disso ele me deixou em paz. Eu tava acostumada a ouvir piadinhas maldosas, mas aquela foi a primeira vez que ele me abordou assim. E teve uma vez... Na noite em que você me mandou mensagem pela primeira vez, ele...
— Ele te encurralou de novo?
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Mas naquela noite, ele foi até o meu quarto e ficou um tempo parado em frente à porta. Eu cheguei um pouco antes dele e a luz tava apagada, acho que ele achou que eu tava dormindo ou sei lá. Achei bizarro, mas...
— Você devia ter me contado.
— Eu nem te conhecia direito. Por que eu ia contar esse tipo de coisa? Te encher com meus problemas?
— Porque eu... Me importo com você. — fechou as mãos em punho, de repente, se sentindo nervoso.
o encarou com cinismo.
— Você mal me conhece, .
— E daí? Quando conheceu , eles só passaram cinco dias juntos. E mesmo assim, a gente ainda procurou por ela, mesmo meio que sabendo que ela não queria ser encontrada.
— Ah, a Garota , que deixou vocês famosos? O que isso tem a ver?
— Não demorou muito pra gente começar a se importar com ela naquela época, mesmo antes da fama. E você tá aqui na minha casa toda semana.
— Isso não quer dizer nada — tentou desconversar. — A foi uma exceção. Ela e ... Se envolveram romanticamente. Era outro cenário, outra época. Eu pesquisei sobre vocês.
— Por que você acha tão difícil alguém se importar com você, ?
— Porque... — Ela desviou o olhar, sentiu os olhos arderem novamente. Sua visão embaçou. — Não tô acostumada. Isso que você faz... De me deixar ficar aqui nos dias que venho só pra eu poder descansar um pouco... Levei um tempo pra me habituar e aceitar. Você sempre foi tão legal e eu não fiz nada pra merecer isso... — Ela soluçou e cobriu o rosto, secando as lágrimas com as duas mãos.
— Olha... Honestamente, eu não tenho pena de você. Eu te admiro e acho você muito forte só em conseguir se levantar todo dia pra trabalhar — disse, se segurando para não abraçá-la outra vez. — Mas dói em mim, por algum motivo, saber que você não tem escolha e... Eu quero te dar uma escolha, .
— Como assim?
— Você tem que sair de casa o quanto antes. Não dá pra ficar mais lá com aquele cara te importunando.
— Eu não posso, não tenho um lugar ainda. Pesquisei umas quitinetes online, mas não tive tempo de visitar. Preciso aguentar mais um pouco.
— Não precisa não — ele retrucou. — Tem uma coisa que venho querendo conversar com você desde a semana passada, mas... Não tive coragem ainda.
— Que… tipo de coisa?
balançou a cabeça, como se quisesse afastar os pensamentos.
— Agora não, tá tarde. Você tá de cabeça cheia e precisa descansar. Amanhã a gente conversa.
— Tá… — respondeu, mesmo curiosa, sabendo que ele tinha razão.
— Você tá com fome? Quer comer ou beber alguma coisa?
— Não, obrigada. Acho que vou só dormir mesmo. — Ela pegou as roupas no sofá.
— Toma pelo menos um pouco de água. Eu vou pro meu quarto, fica à vontade. Você já sabe onde tem tudo e o quarto de hóspedes é todo seu.
— Obrigada.
— Disponha. Boa noite, .
— Boa noite, .
E então, ele a deixou sozinha.
respirou fundo, bebeu um copo de água e então foi até o quarto.
Se despiu rapidamente, substituindo as próprias roupas pelas dele e se deitou bem no meio da cama enorme, orando para que o dia seguinte fosse melhor.
Na manhã seguinte à madrugada que terminou em um péssimo desfecho, planejou acordar mais cedo para fazer café da manhã como forma de agradecimento a , mas assim que colocou os pés no corredor, sentiu cheiro de café fresco no ar e descobriu que ele tivera a mesma ideia.
Era apenas oito da manhã e eles tinham se recolhido há cerca de cinco horas.
— Bom dia — o cumprimentou timidamente.
, que estava de costas, se virou com uma frigideira nas mãos e sorriu, mostrando uma covinha, quando notou que ela ainda usava suas roupas. Era fofo e engraçado ao mesmo tempo como as peças pareciam grandes nela.
— Bom dia. Conseguiu dormir? — ele perguntou, depositando uma pequena pilha de ovos mexidos em um prato.
— Sim, e você? — O olhar dela recaiu para uma sacola de pães e sua boca salivou.
— Eu também. Senta, vamos comer. — Ele apontou para o banquinho que ela sempre usava e imediatamente obedeceu. — Comprei pão. Lembrei que você disse outro dia que costumava comer no café da manhã.
Fazia um bom tempo que não comia pão no café da manhã, muito menos uma refeição reforçada naquele horário. Normalmente acordava tão cedo que não tinha estômago para comer, mas se forçava a enfiar alguma fruta goela abaixo para não ter hipoglicemia enquanto trabalhava.
— Sim... — Ela pegou um pão ainda morno, o abriu com uma faca e recheou com ovos mexidos.
fez sua própria versão, adicionando bacon também e serviu os dois com uma caneca de café com leite.
quase gemeu quando deu a primeira mordida. Pão com ovo, quem diria. Tão simples, mas tão bom. Instantaneamente lembrou de sua avó que sempre fazia uma vitamina de banana para acompanhar quando ela ainda morava no Brasil.
Eles comeram em um silêncio confortável e ainda tinham a caneca de café com leite pela metade quando resolveu falar.
— Sobre o que eu disse que queria falar com você... Eu tenho uma proposta de emprego pra te fazer.
— Emprego? — Ela o encarou com interesse.
— É, desses com vários benefícios. E você não vai precisar se matar de trabalhar.
Vários benefícios em um emprego nos Estados Unidos? Sem trabalhar muito?
o encarou, cética.
— Sério? Aqui, nesse país?
— Ei, não me olha assim. E é óbvio que é sério, afinal, eu seria o contratante.
Ela piscou, confusa.
— E você quer me contratar pra quê?
— Pra... Me fazer companhia? — ele disse, meio sem jeito.
— Companhia?
— sugeriu uma coisa e você é a única pessoa que conseguimos pensar que pudesse ajudar. Como você deve saber, minha imagem não anda lá essas coisas e toda semana sai um artigo com rumores idiotas sobre minha personalidade e vida pessoal. Então, ele... Sugeriu rebater isso.
— E onde eu me encaixo nisso? — ela quis saber, genuinamente curiosa.
— Então… Se tornando minha namorada de mentira.
— Como é?! — quase gritou. — Que ideia maluca é essa?
— As pessoas acham que eu não consigo ter relacionamentos, então você me ajudaria nisso. É de mentira, . Prometo não te tocar a menos que a gente esteja em público. Só quero tapear esses idiotas que insistem em falar de mim e... Dar algo diferente pra eles falarem e ver se as pessoas me esquecem.
— Te esquecer? Acha mesmo possível alguém conseguir fazer isso? — ela perguntou sem pensar, e então sentiu o rosto esquentar quando percebeu como aquela frase tinha soado. — Quer dizer, você é uma celebridade...
— Sim, mas acho que ajudaria a rebater essas fofocas. Não tenho problema em manter relacionamentos, . Não fujo deles. Eu só... Não consigo manter interesse. Meus pais tem uma relação incrível até hoje e cresci querendo algo assim também, mas... — Ele desviou o olhar dela, envergonhado e passou a mão no pescoço. — Nunca me apaixonei por ninguém.
— Cara, você literalmente escreve músicas sobre amor.
— Eu sei. Mas é como se o músico fosse tipo a Cindy Lee dançarina — ele tentou explicar. — A gente só precisa expressar os sentimentos que queremos passar, mas não necessariamente sentir eles.
— Tá dizendo que você atua no palco? Nos holofotes?
— Não, só na hora de escrever. No palco, eu sou eu mesmo. — Ele deixou escapar uma risadinha. — Inclusive, sinto falta. Faz anos que não fazemos turnê. Temos planos pra fazer uma depois do álbum novo, mas não tem nada certo ainda...
— E você quer que eu te ajude a tapear esse povo? Incluindo seus fãs?
— É uma mentira com intuito de trazer benefícios pra nós dois. Um monte de gente faz isso — ele disse, mesmo sem ter um pingo de certeza.
— E o que eu ganharia com isso?
— Bem... Além de não trabalhar muito, é claro, eu te daria um plano de saúde por dez anos, além de uma mesada e um valor extra específico suficiente pra você conseguir terminar a faculdade. Quanto a moradia... O quarto de hóspedes seria todo seu.
O coração de errou uma batida.
— Por quanto tempo seria?
— Um ano — respondeu ele. — Faríamos um contrato e além de nós, só meus amigos próximos e meu advogado saberiam. Podemos negociar os benefícios, caso você queira algo mais.
— Mais? — praticamente sussurrou, em choque. Então se recuperou e surtou. — Você enlouqueceu?! Que tipo de proposta idiota é essa? E mais? Tá doido? Eu não sonharia nem com metade disso, mas você tá falando de jogar dinheiro fora como se fosse só uns trocados.
pressionou os lábios para não rir.
— Não tô jogando dinheiro fora, tô investindo. Em você.
— Eu... Por quê?! — Ela apoiou as duas mãos na bancada, o encarando incrédula.
— Porque eu gosto de você. E me importo com você. Gosto da sua amizade também e meu coração se aperta por você ter que batalhar tanto. E eu queria poder ajudar, mas sei que você nunca aceitaria isso sem poder me oferecer algo em troca, então... Seja minha namorada, .
Ela o encarou, atônita, sentindo o coração disparar no peito. Será que aquele idiota sabia como aquele pedindo estava soando? Era um relacionamento de mentira, mas seus ouvidos ouviram aquilo e seu cérebro interpretou de forma errada. Como quando ela lia um livro de romance.
Mas deveria recusar? O que era uma mentirinha perto de todos aqueles benefícios que ele estava oferecendo? Seria burra se recusasse. Era como se o universo tivesse colocado aquele homem em sua vida para dar a oportunidade para ela colocar a própria vida de volta aos eixos.
Não trabalhar de domingo a domingo. Parar de fazer faxinas... Não, ela teria que fazer ao menos ali, e na casa de também, já que ele deu aquela ideia maluca. Se sentiria melhor assim.
Além disso, permaneceria na cafeteria, como sempre, e no clube, simplesmente porque gostava.
E então... Terminaria a faculdade.
Mas a cereja do bolo era: plano de saúde. Por uma década inteirinha.
Ela não podia competir com aquilo. Não quando já tinha negligenciado a própria saúde por quase um ano, mesmo sabendo que precisava de acompanhamento constante para seu coração.
Seu coração... Que parecia prestes a sair pela boca naquele momento.
— Eu... — ofegou, com uma leve falta de ar, e então viu arregalar os olhos. Sua visão ficou um pouco turva e a boca secou.
— Meu Deus, você tá passando mal? — Ele se colocou ao lado dela um segundo depois. — Você precisa de um remédio? Me fala o que posso fazer.
Remédio. Sim.
Agora tudo fazia sentido. Ela não tinha tomado nenhum dos dois porque planejava fazer aquilo após o café da manhã.
— Na minha mochila... — conseguiu dizer e no mesmo instante ele desapareceu. Levou apenas alguns segundos para voltar com os dois potes de medicamentos e ofereceu um comprimido de cada para ela, que tomou com a ajuda do café.
— Me fala se precisar de mais alguma coisa — ele exigiu, meio afobado, enquanto esfregava as costas dela como forma de apoio. sentiu os olhos se encherem d'água com a pequena gentileza, lembrando que era algo que sua mãe costumava fazer quando era criança.
Ela o encarou e se virou no banquinho, passando os braços ao redor da cintura dele.
— Eu aceito. Mesmo achando que você tá oferecendo bem mais do que mereço. Obrigada, .
a apertou com força em seus braços, devolvendo o abraço.
— Ah, ... Você merece mais.
— Você tá me dizendo... Que quer continuar limpando nossa casa mesmo ganhando isso? — a encarou, incrédulo.
— Isso aí. — cruzou os braços, se recostando no estofado do sofá em que os dois estavam sentados.
Alguns minutos depois do café da manhã, quando se recuperou do pequeno pane em seu coração, ela demandou que os dois negociassem tudo de uma vez, garantindo que tinha algumas condições.
— E você quer continuar trabalhando fora?
— Sim.
— Por quê? Você vai ter dinheiro e tempo suficiente pra não precisar disso.
— Eu posso pegar menos turnos por semana no café e gosto do clube. Mas dispenso todas as possibilidades de sofrer xenofobia de algum cidadão preconceituoso. Ou de apanhar de uma namorada psicótica porque desmaiei no homem dela — ela explicou. — Além disso, me sinto mais confortável limpando a casa de vocês e não exige muito esforço que nem as outras. Se eu parasse, vocês teriam que contratar outra pessoa e não tem necessidade disso. Faz parte do mínimo que posso fazer.
— Você já vai ser exposta pro mundo todo, . Não precisa disso.
— Mas eu quero — ela insistiu e juntou as mãos. — Por favor, . Prometo ser a melhor única namorada de mentirinha que você já teve.
piscou, encarando aqueles grandes olhos castanhos por alguns segundos. Ela parecia o gato do Shrek.
— Tá. — A palavra escapou de sua boca, como se seus lábios tivessem vida própria.
abriu um sorriso de orelha a orelha e bateu uma palma da mão contra a outra uma única vez.
— Ótimo, estamos resolvidos então. Vou te acompanhar onde você quiser ir.
— Espera, tem uma coisa — ele lembrou.
— O quê?
— Você vai me colocar como contato de emergência. E eu vou te acompanhar nas consultas médicas.
— Por quê? — Ela franziu o cenho. — Eu sempre fui sozinha.
— Porque eu quero saber de tudo.
— Mas...
— Shh! — Ele cobriu a boca dela com a mão. — Você é meu investimento, lembra?
estreitou os olhos, desconfiada, e afastou a mão dele.
— Você vai usar essa desculpa agora?
— Sempre que eu puder. — Ele sorriu.
— Tá, eu vou deixar você me acompanhar nas consultas.
— E ser seu contato de emergência — ele acrescentou.
— Isso também.
— Ótimo. Agora a gente precisa ir na sua casa pra pegar suas coisas.
— Mas já? — Ela o encarou, surpresa. — A gente nem assinou um contrato ainda.
— Isso vem depois. Você é minha amiga e não quero que fique nem mais um dia naquela casa, seja onde for. Posso contratar um serviço de mudança se for necessário e...
— Não precisa, eu não tenho muita coisa. Acho que cabe tudo em uma mala.
— Ótimo. Então vamos. Você só tem tempo agora de manhã.
— Tá...
olhou ao redor do grande jardim, surpreso.
— Ei, . Por acaso, esqueceu de falar que seu pai era rico? — brincou ele, observando a grande mansão.
Tinham acabado de entrar e a acompanhava até uma entrada nos fundos da casa. Ele imaginou que talvez fosse para não chamar atenção de nenhum parente problemático.
— Ele era, não eu.
Um minuto depois, os dois se depararam com uma cozinha grande e chique e cumprimentou uma mulher baixinha, que devia ter seus cinquenta e poucos anos, vestida com um uniforme de empregada.
— , querida. Senti sua falta, bati na sua porta mas ninguém respondeu.
— Eu... Fiquei na casa de um amigo — ela respondeu baixinho e apontou para .
A mulher o encarou de baixo para cima, levantando a cabeça completamente até chegar ao rosto dele.
— Amigo, é? — Ela sorriu. — Que amigão você tem. Olá, eu sou Lucy. — Ela estendeu uma mão para ela.
— , prazer em conhecê-la.
— Eu vim pegar minhas coisas, Lucy. Vou sair daqui.
O sorriso da mulher se desfez, mas então ela assentiu, parecendo compreender.
— Finalmente?
— Pois é. — encolheu os ombros.
— A Sra. Sandra e a Srta. Claire estão na piscina. Só elas estão em casa hoje — ela avisou. — Você precisa de ajuda?
— Não, não se preocupe. Vou pegar tudo rapidinho e vou embora.
— Tudo bem.
Em seguida, levou até um corredor no térreo da mansão. Parecia uma área completamente separada das outras.
— Seu quarto fica no térreo? — ele perguntou enquanto caminhavam até pararem em uma porta no meio do corredor.
enfiou a chave nela e a destrancou, mas não a abriu de imediato.
— Então... Sobre isso. Aqui é a área dos funcionários. Meu antigo quarto, que meu pai me deu, fica lá em cima.
Ele a encarou com desconfiança.
— E por que você não vive lá, ?
— Porque aconteceu assim desde que meu pai morreu. Não herdei nada, acho que já falei sobre isso pra você. E a esposa dele exigiu que eu pagasse aluguel pra continuar aqui e me ofereceu esse... Quarto.
Ela colocou a mão na maçaneta e segurou.
— Por que você tá hesitando? — Ele franziu o cenho e colocou a mão em cima da dela.
— Porque eu, hm...
— Para de enrolar e abre logo isso, . Não me importo se tiver bagunçado, se for por isso.
sorriu amarelo e quase riu na hora. Como se eu tivesse espaço pra fazer bagunça...
Sem olhar para , ela empurrou a porta e começou a contar silenciosamente: um, dois...
— Que porra é essa, ?!
Capítulo 12
encarou o pequeno cubículo em choque. Como ela era filha do dono daquela casa e morava naquele espacinho de nada?
— Então... Esse é o meu quarto — respondeu, sem graça.
— Você mora na porra de uma caixa de fósforos? E ainda paga aluguel por isso? Esse povo só pode estar de brincadeira...
— Olha pelo lado bom, agora não vou mais precisar morar aqui. — Ela deu um soquinho no braço dele, abrindo um sorrisinho. — Além disso, eu só usava esse quartinho pra dormir mesmo, já que passava o dia fora...
Mas estava irritado demais para ter qualquer reação que não incluísse ficar de cara fechada.
— Essa merda não tem graça, . Eu não sei nem se cabe eu e você aqui dentro.
— Claro que cabe, entra e senta na cama. — Ela o empurrou para dentro, o fazendo cair sentado no colchão. — Agora encolhe os pés.
riu sem humor, mas obedeceu. entrou no quarto e fechou a porta atrás de si, mas ele não deixou de notar que, aberta, ela só não esbarrava na cama por uma questão de uns dez centímetros.
Era inacreditável.
— Eu acho que consigo tocar as duas paredes se eu abrir os braços — ele comentou, irônico. — Mas olha só, agora eu sei que você não tem claustrofobia.
— Só aconteceu assim, tá? — ela falou baixinho, parecendo envergonhada. — Eu te contei. Não tenho mais parentes aqui ou a quem recorrer. Achei melhor ficar onde morei por anos do que me aventurar sozinha em um lugar que não conheço.
suspirou e segurou uma de suas mãos.
— Não te culpo por isso, . Mas a família do seu pai claramente tava tornando sua vida pior.
— Que bom que te conheci, então. Você e sua proposta irrecusável — ela brincou.
— Que bom mesmo. — Ele ainda estava sério. — Agora não vou precisar me preocupar com isso.
sentiu o rosto esquentar e soltou a mão dele, dando as costas no momento seguinte.
a observou se abaixar e puxar uma mala grande debaixo da cama. Ao lado dela, havia uma arara com vários cabides e uma pequena cômoda estreita. Atrás da porta, uma mini sapateira com dois pares de tênis, um chinelo e uma bota de inverno.
colocou a mala em cima da cama e a abriu.
— Vou começar a organizar, rapidinho eu termino.
— Isso é tudo que você tem?
— Atualmente, sim. Eu vendi livros e alguns sapatos e roupas que eu não usava muito — ela explicou, enquanto enfiava uma sacola de roupas íntimas no cantinho da mala. — Fiquei só com o essencial do dia a dia, porque eu não tinha onde colocar o resto. Além disso, foi um dinheiro bem-vindo na época. Usei pra pagar uma consulta depois que meu plano de saúde foi cancelado.
assentiu em compreensão.
— Você tem uma sacola que eu possa usar pra colocar os sapatos?
— Tenho sim, um instante. — Ela se abaixou e abriu uma gaveta da cômoda, tirando algumas sacolas plásticas de dentro. — Aqui.
— Obrigado. — Ele se inclinou para pegar par por par e os enfiou nas sacolas, colocando em um cantinho da mala.
não tinha muitas roupas, então havia espaço suficiente. Em cerca de quinze minutos, ela dobrou tudo e as organizou na mala. Por último, tirou o que parecia ser uma garrafa do final da primeira gaveta da cômoda e a colocou em um local protegido entre as roupas. se inclinou para ver o que era e notou que havia uma espécie de boneco dentro.
— O que é isso? — Ele apontou para a garrafa, curioso.
— Esse é o Benny. — Ela pegou a garrafa e mostrou para ele. — Eu ganhei da Suzy há um tempinho.
— Isso é um duende? — Ele bateu no vidro com o dedo.
deu um tapa em sua mão.
— Não bata na garrafa. Ele não gosta.
— Não gosta? — sorriu, confuso.
— Ele é um duende na garrafa, e acho que ainda não quis sair dela. Mas eu também não ia querer se fosse pra viver nesse quartinho...
— ... Do que você tá falando? O que esse troço significa?
— Ele é um guardião — foi tudo o que ela respondeu, antes de começar a falar com o boneco. — Benny, esse é o . Nós vamos morar na casa dele agora. Quando chegar lá, eu te apresento. É bem grande, então acho que você vai gostar.
— , você tá bem? — a encarou como se de repente ela estivesse com alguns parafusos a menos. — Por que tá falando com um boneco?
— Não é um simples boneco — ela retrucou. — Mas não dá pra explicar agora. Temos que ir embora. — Ela colocou a garrafa de volta na mala e a fechou, levantando-a com dificuldade.
— Deixa que eu pego, sua maluca. Você não pode se esforçar — ele a repreendeu com um olhar severo.
abriu a porta e saiu primeiro, seguida de . Então trancou o quartinho e tirou algo do bolso para entregar a ele.
Era uma máscara preta.
— Coloca isso. Não quero que alguém te reconheça.
— Por quê? Tá com vergonha? — Ele brincou, um sorriso levantando seus lábios.
— Você chama atenção demais, mesmo pra quem não te conhece. Os seguranças ficaram olhando o tempo todo.
— Vai ver eles me acharam bonito. — Ele piscou, colocando a máscara rapidamente, e então pegou a mala. — Pronta?
assentiu e os dois foram até a cozinha, onde ela entregou a chave para Lucy.
— Já vai, menina?
— Sim, tô com um pouquinho de pressa. Diga aos outros que sinto muito por não me despedir antes.
— Boa sorte. E trate de se manter saudável. — A mulher a abraçou carinhosamente.
— Vou sim. — sorriu. — Obrigada por tudo, Lucy.
— Por nada, menina. Tente não se matar de trabalhar.
— Ah, pode deixar que eu vou garantir que isso não aconteça — se intrometeu, fazendo Lucy rir.
— Acho bom mesmo.
rolou os olhos e o cutucou nas costelas, o fazendo rir.
— Vamos logo. — Ela o empurrou para que se movesse.
Então ouviu uma voz bastante conhecida atrás de si:
— Vamos pra onde? — Claire quis saber, entrando na cozinha.
se virou para encarar sua figura feminina com seu corpo perfeito em um biquíni cor de rosa. A pele, no entanto, laranja feito ferrugem.
Ela nunca iria entender aquela moda estadunidense.
Como ela não respondeu, Claire se aproximou e perguntou mais uma vez.
— Você tá finalmente indo embora? — Ela sorriu, encarando a mala grande que segurava, não dando muita atenção a ele.
Instantaneamente, sentiu alívio por tê-lo feito colocar a máscara antes de deixarem o quarto. Claire provavelmente achava que ele era só um cara comum que a estava ajudando com a mudança.
Embora não houvesse nada além daquela mala, todos naquela casa eram cientes das limitações de .
— Sim, finalmente. — sorriu, com falsa simpatia. — Se me der licença…
Ela tentou dar as costas, mas Claire a segurou pelo pulso.
— Espera aí, não vai nem se despedir da gente, né? — perguntou, com um sorriso maldoso. — Mãe!
Um momento depois, Sandra apareceu na cozinha vestida em um robe por cima de um biquíni preto. Estava falando ao telefone, mas desligou quando notou a agitação.
— O que está acontecendo? — Sua voz era firme e fria.
Que merda é essa? semicerrou os olhos. Vão fazer um interrogatório agora?
— Estou me mudando pra outro lugar — disse de uma vez.
— Desde quando? — Sandra quis saber.
— Ouvi dizer que ela tá trabalhando em um... Bar ou algo assim — Claire afirmou. — Qual era a palavra mesmo? Ah, é. Um cabaré. Deve pagar bem, pelo visto.
respirou fundo, tentando manter a paciência.
— Pois é. Obrigada por tudo. Agora se me dão licença...
— E esse homem, quem é? — Sandra cravou o olhar em , que a encarou de volta com seus olhos glaciais.
— Ele é-
— Namorado da . — Ele tomou sua frente e estendeu uma mão, a cumprimentando rapidamente. — Agora se nos dão licença... Não temos tempo pra jogar conversa fora. Vamos, . — E a puxou pela mão, mas antes de atravessarem a porta, ele encarou as duas mulheres mais uma vez. — Aproveitem bem a lata de sardinha que vocês ofereceram a ela como quarto. Dá um ótimo armário de vassouras.
E então eles foram embora.
Dez minutos mais tarde, no carro, reclamou:
— Não precisava ter falado assim com elas. Vão pensar que fui ingrata.
bufou uma risada sem humor.
— Você não tem é porque ser grata. Aquela bruxa da sua meia-irmã tentou te humilhar usando seu emprego. Que palhaça!
— Ela não sabe de nada. Provavelmente caiu em alguma conversa de Charlie.
— Pois é, dois ignorantes! Três, provavelmente — ele comentou, irritado. — Nunca deixe ninguém tentar passar por cima de você assim, . Elas não são melhores que você só porque são ricas.
— Eu sei, mas eu te falei... Antes eu não tinha escolha.
— Então que bom que agora você tem. E fale com sua chefe no clube pra colocar aquele pervertido nojento na lista negra. Não, melhor... Eu vou te buscar pra te levar pra casa.
— ... Não precisa. Eu posso ir sozinha. E por que você tá tão irritado? — Ela colocou a mão por cima da dele, que agarrava o freio de mão com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos.
No entanto, o aperto relaxou assim que ele sentiu o toque suave. Em seguida, ele diminuiu a velocidade e parou o carro em um sinal vermelho.
a encarou com tanta intensidade que se sentiu exposta. E estava, de certa forma. Eles mal se conheciam e ela já tinha revelado algumas das partes mais escuras de sua vida, coisas que nem mesmo sua avó e irmã sabiam. E ele estava ali, disposto a defendê-la com unhas e dentes.
soltou o freio e agarrou a mão dela, entrelaçando os dedos.
— Já te falei que odeio injustiças e gente descarada? — perguntou. — De agora em diante, vou te ajudar a reconstruir sua vida, . Vamos mostrar pra aquela gente nojenta que você merece muito mais do que ser tratada como uma párea dentro da própria casa, que deveria ser sua, por acaso.
respirou fundo, sentindo o coração errar uma batida, e apertou a mão dele em gratidão enquanto assentia com a cabeça, os olhos se enchendo novamente.
Uma lágrima escapou e ele se inclinou para secar com a mão livre.
— Agora somos nós dois contra o mundo — ele murmurou, olhando-a nos olhos. Seus olhos caíram até os lábios dela, o inferior tremendo e, sem pensar, ele pressionou o polegar por um segundo. Apenas... Pra fazê-lo parar.
— ... — murmurou, o coração martelando no peito. O que estava acontecendo? Aquilo tinha que parar antes que ela começasse a passar mal. Tinha que...
Bip! Bip!
Seus pensamentos foram interrompidos pelos sons de buzinas dos carros atrás deles. se afastou de uma vez, como se tivesse sido flagrado fazendo o que não devia e, um segundo depois, eles estavam na estrada novamente.
O resto do caminho seguiu em silêncio, cada um perdido em pensamentos sobre o que tinha acabado de acontecer.
— Então... Esse é o meu quarto — respondeu, sem graça.
— Você mora na porra de uma caixa de fósforos? E ainda paga aluguel por isso? Esse povo só pode estar de brincadeira...
— Olha pelo lado bom, agora não vou mais precisar morar aqui. — Ela deu um soquinho no braço dele, abrindo um sorrisinho. — Além disso, eu só usava esse quartinho pra dormir mesmo, já que passava o dia fora...
Mas estava irritado demais para ter qualquer reação que não incluísse ficar de cara fechada.
— Essa merda não tem graça, . Eu não sei nem se cabe eu e você aqui dentro.
— Claro que cabe, entra e senta na cama. — Ela o empurrou para dentro, o fazendo cair sentado no colchão. — Agora encolhe os pés.
riu sem humor, mas obedeceu. entrou no quarto e fechou a porta atrás de si, mas ele não deixou de notar que, aberta, ela só não esbarrava na cama por uma questão de uns dez centímetros.
Era inacreditável.
— Eu acho que consigo tocar as duas paredes se eu abrir os braços — ele comentou, irônico. — Mas olha só, agora eu sei que você não tem claustrofobia.
— Só aconteceu assim, tá? — ela falou baixinho, parecendo envergonhada. — Eu te contei. Não tenho mais parentes aqui ou a quem recorrer. Achei melhor ficar onde morei por anos do que me aventurar sozinha em um lugar que não conheço.
suspirou e segurou uma de suas mãos.
— Não te culpo por isso, . Mas a família do seu pai claramente tava tornando sua vida pior.
— Que bom que te conheci, então. Você e sua proposta irrecusável — ela brincou.
— Que bom mesmo. — Ele ainda estava sério. — Agora não vou precisar me preocupar com isso.
sentiu o rosto esquentar e soltou a mão dele, dando as costas no momento seguinte.
a observou se abaixar e puxar uma mala grande debaixo da cama. Ao lado dela, havia uma arara com vários cabides e uma pequena cômoda estreita. Atrás da porta, uma mini sapateira com dois pares de tênis, um chinelo e uma bota de inverno.
colocou a mala em cima da cama e a abriu.
— Vou começar a organizar, rapidinho eu termino.
— Isso é tudo que você tem?
— Atualmente, sim. Eu vendi livros e alguns sapatos e roupas que eu não usava muito — ela explicou, enquanto enfiava uma sacola de roupas íntimas no cantinho da mala. — Fiquei só com o essencial do dia a dia, porque eu não tinha onde colocar o resto. Além disso, foi um dinheiro bem-vindo na época. Usei pra pagar uma consulta depois que meu plano de saúde foi cancelado.
assentiu em compreensão.
— Você tem uma sacola que eu possa usar pra colocar os sapatos?
— Tenho sim, um instante. — Ela se abaixou e abriu uma gaveta da cômoda, tirando algumas sacolas plásticas de dentro. — Aqui.
— Obrigado. — Ele se inclinou para pegar par por par e os enfiou nas sacolas, colocando em um cantinho da mala.
não tinha muitas roupas, então havia espaço suficiente. Em cerca de quinze minutos, ela dobrou tudo e as organizou na mala. Por último, tirou o que parecia ser uma garrafa do final da primeira gaveta da cômoda e a colocou em um local protegido entre as roupas. se inclinou para ver o que era e notou que havia uma espécie de boneco dentro.
— O que é isso? — Ele apontou para a garrafa, curioso.
— Esse é o Benny. — Ela pegou a garrafa e mostrou para ele. — Eu ganhei da Suzy há um tempinho.
— Isso é um duende? — Ele bateu no vidro com o dedo.
deu um tapa em sua mão.
— Não bata na garrafa. Ele não gosta.
— Não gosta? — sorriu, confuso.
— Ele é um duende na garrafa, e acho que ainda não quis sair dela. Mas eu também não ia querer se fosse pra viver nesse quartinho...
— ... Do que você tá falando? O que esse troço significa?
— Ele é um guardião — foi tudo o que ela respondeu, antes de começar a falar com o boneco. — Benny, esse é o . Nós vamos morar na casa dele agora. Quando chegar lá, eu te apresento. É bem grande, então acho que você vai gostar.
— , você tá bem? — a encarou como se de repente ela estivesse com alguns parafusos a menos. — Por que tá falando com um boneco?
— Não é um simples boneco — ela retrucou. — Mas não dá pra explicar agora. Temos que ir embora. — Ela colocou a garrafa de volta na mala e a fechou, levantando-a com dificuldade.
— Deixa que eu pego, sua maluca. Você não pode se esforçar — ele a repreendeu com um olhar severo.
abriu a porta e saiu primeiro, seguida de . Então trancou o quartinho e tirou algo do bolso para entregar a ele.
Era uma máscara preta.
— Coloca isso. Não quero que alguém te reconheça.
— Por quê? Tá com vergonha? — Ele brincou, um sorriso levantando seus lábios.
— Você chama atenção demais, mesmo pra quem não te conhece. Os seguranças ficaram olhando o tempo todo.
— Vai ver eles me acharam bonito. — Ele piscou, colocando a máscara rapidamente, e então pegou a mala. — Pronta?
assentiu e os dois foram até a cozinha, onde ela entregou a chave para Lucy.
— Já vai, menina?
— Sim, tô com um pouquinho de pressa. Diga aos outros que sinto muito por não me despedir antes.
— Boa sorte. E trate de se manter saudável. — A mulher a abraçou carinhosamente.
— Vou sim. — sorriu. — Obrigada por tudo, Lucy.
— Por nada, menina. Tente não se matar de trabalhar.
— Ah, pode deixar que eu vou garantir que isso não aconteça — se intrometeu, fazendo Lucy rir.
— Acho bom mesmo.
rolou os olhos e o cutucou nas costelas, o fazendo rir.
— Vamos logo. — Ela o empurrou para que se movesse.
Então ouviu uma voz bastante conhecida atrás de si:
— Vamos pra onde? — Claire quis saber, entrando na cozinha.
se virou para encarar sua figura feminina com seu corpo perfeito em um biquíni cor de rosa. A pele, no entanto, laranja feito ferrugem.
Ela nunca iria entender aquela moda estadunidense.
Como ela não respondeu, Claire se aproximou e perguntou mais uma vez.
— Você tá finalmente indo embora? — Ela sorriu, encarando a mala grande que segurava, não dando muita atenção a ele.
Instantaneamente, sentiu alívio por tê-lo feito colocar a máscara antes de deixarem o quarto. Claire provavelmente achava que ele era só um cara comum que a estava ajudando com a mudança.
Embora não houvesse nada além daquela mala, todos naquela casa eram cientes das limitações de .
— Sim, finalmente. — sorriu, com falsa simpatia. — Se me der licença…
Ela tentou dar as costas, mas Claire a segurou pelo pulso.
— Espera aí, não vai nem se despedir da gente, né? — perguntou, com um sorriso maldoso. — Mãe!
Um momento depois, Sandra apareceu na cozinha vestida em um robe por cima de um biquíni preto. Estava falando ao telefone, mas desligou quando notou a agitação.
— O que está acontecendo? — Sua voz era firme e fria.
Que merda é essa? semicerrou os olhos. Vão fazer um interrogatório agora?
— Estou me mudando pra outro lugar — disse de uma vez.
— Desde quando? — Sandra quis saber.
— Ouvi dizer que ela tá trabalhando em um... Bar ou algo assim — Claire afirmou. — Qual era a palavra mesmo? Ah, é. Um cabaré. Deve pagar bem, pelo visto.
respirou fundo, tentando manter a paciência.
— Pois é. Obrigada por tudo. Agora se me dão licença...
— E esse homem, quem é? — Sandra cravou o olhar em , que a encarou de volta com seus olhos glaciais.
— Ele é-
— Namorado da . — Ele tomou sua frente e estendeu uma mão, a cumprimentando rapidamente. — Agora se nos dão licença... Não temos tempo pra jogar conversa fora. Vamos, . — E a puxou pela mão, mas antes de atravessarem a porta, ele encarou as duas mulheres mais uma vez. — Aproveitem bem a lata de sardinha que vocês ofereceram a ela como quarto. Dá um ótimo armário de vassouras.
E então eles foram embora.
Dez minutos mais tarde, no carro, reclamou:
— Não precisava ter falado assim com elas. Vão pensar que fui ingrata.
bufou uma risada sem humor.
— Você não tem é porque ser grata. Aquela bruxa da sua meia-irmã tentou te humilhar usando seu emprego. Que palhaça!
— Ela não sabe de nada. Provavelmente caiu em alguma conversa de Charlie.
— Pois é, dois ignorantes! Três, provavelmente — ele comentou, irritado. — Nunca deixe ninguém tentar passar por cima de você assim, . Elas não são melhores que você só porque são ricas.
— Eu sei, mas eu te falei... Antes eu não tinha escolha.
— Então que bom que agora você tem. E fale com sua chefe no clube pra colocar aquele pervertido nojento na lista negra. Não, melhor... Eu vou te buscar pra te levar pra casa.
— ... Não precisa. Eu posso ir sozinha. E por que você tá tão irritado? — Ela colocou a mão por cima da dele, que agarrava o freio de mão com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos.
No entanto, o aperto relaxou assim que ele sentiu o toque suave. Em seguida, ele diminuiu a velocidade e parou o carro em um sinal vermelho.
a encarou com tanta intensidade que se sentiu exposta. E estava, de certa forma. Eles mal se conheciam e ela já tinha revelado algumas das partes mais escuras de sua vida, coisas que nem mesmo sua avó e irmã sabiam. E ele estava ali, disposto a defendê-la com unhas e dentes.
soltou o freio e agarrou a mão dela, entrelaçando os dedos.
— Já te falei que odeio injustiças e gente descarada? — perguntou. — De agora em diante, vou te ajudar a reconstruir sua vida, . Vamos mostrar pra aquela gente nojenta que você merece muito mais do que ser tratada como uma párea dentro da própria casa, que deveria ser sua, por acaso.
respirou fundo, sentindo o coração errar uma batida, e apertou a mão dele em gratidão enquanto assentia com a cabeça, os olhos se enchendo novamente.
Uma lágrima escapou e ele se inclinou para secar com a mão livre.
— Agora somos nós dois contra o mundo — ele murmurou, olhando-a nos olhos. Seus olhos caíram até os lábios dela, o inferior tremendo e, sem pensar, ele pressionou o polegar por um segundo. Apenas... Pra fazê-lo parar.
— ... — murmurou, o coração martelando no peito. O que estava acontecendo? Aquilo tinha que parar antes que ela começasse a passar mal. Tinha que...
Bip! Bip!
Seus pensamentos foram interrompidos pelos sons de buzinas dos carros atrás deles. se afastou de uma vez, como se tivesse sido flagrado fazendo o que não devia e, um segundo depois, eles estavam na estrada novamente.
O resto do caminho seguiu em silêncio, cada um perdido em pensamentos sobre o que tinha acabado de acontecer.
Continua...
Nota da autora: Finalmenteeeeee esse bendito acordo xD O coitado do Riv surtando com cada coisa que descobria HAHAHA. O que você acha que vem por aí? Deixe aqui um comentário sobre o que você achou da att! Ou comenta um emoji pra eu saber que você tá lendo <3 Até a próxima att! XxAlly
PS. Se você chegou aqui, provavelmente leu HERO ou caiu de paraquedas. De toda forma, seja bem-vinda <3 Essa história está totalmente escrita e apenas sendo postada semanalmente.
Confira também Depois da Meia-Noite, um romance contemporâneo com elementos de fantasia que também tô postando, as atts saem no mesmo dia que as de River! Dá uma olhadinha nela também! É o meu xodózinho ♥
Para mais informações sobre mim ou meus outros livros em e-book já publicados, visite meu Instagram (@aquelally) ou meu grupo de leitores no WhatsApp pelos links nos ícones abaixo. Podem interagir comigo, tá? xD Também tem o link de uma playlist de River!
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