counter

ATO I

1 de dezembro, 2006


A chama crepitante das dezessete velas de um irônico cor-de-rosa reflete na cobertura brilhante do bolo de chocolate. Estufo o peito, o enchendo de ar e esperança. Milhares de pedidos me ocorrem, não que algum tenha sido realizado nos meus aniversários anteriores, mas não me custa nada tentar. Assopro com força e ouço um enxame em volta de mim. Todos os meus amigos estão em volta da mesa improvisada com caixotes de cerveja. O Pedro, meu irmão, é de longe o mais feliz deles. Ele agita a todos para reiniciar o famigerado "Parabéns Pra Você" pela décima sexta vez e eu ainda espero que alguém o impeça de concluir seu plano maléfico de cantar todas as dezessete vezes. Como se uma vez só não bastasse.
— Você fez um pedido? — Tati, minha melhor-melhor amiga pergunta animada. Ela segura a câmera digital roxa entre as mãos e registra tudo com atenção.
— Com certeza! — Sem querer, talvez querendo, encaro Guilherme alheio a toda a celebração. Ele conversa com um de seus amigos e parece confortável.
Guilherme é simplesmente o cara dos meus sonhos. Ele é tudo o que eu espero de um namorado e quando ele me olha através da fumaça densa do cigarro que seu amigo fuma, engulo em seco com a possibilidade do meu desejo de aniversário se realizar. Ele parece entender meu olhar esperançoso e o sorriso malicioso que estampa seus lábios me faz duvidar do que estou vendo.
Corto o primeiro pedaço de bolo e sem hesitar, me viro para Pedro e o entrego para ele.
— Marmelada! — grita ao fundo.
— E o que você esperava? Que fosse para você? — O desdém transborda em minhas palavras. é o melhor-melhor amigo do Pedro, quase uma extensão dele. está na minha vida involuntariamente por tanto tempo quanto posso me lembrar.
— Levando em consideração que foi a minha mãe quem fez o bolo... — tem um jeito engraçado de reclamar das coisas, fazendo com que tudo o que o incomoda não se pareça bem como um verdadeiro incômodo.
— Nesse caso... O segundo pedaço é para você... levar para ela. — A pausa foi maldade, eu sei. Mas o brilho que iluminou os olhos dele por um instante foi impagável.
As risadas e toda a zoação que se estendeu por algum tempo me impediu de ouvir sua resposta tão maldosa a altura.
Percebo que não são todos que estão interessados no delicioso e suculento bolo de chocolate. A grande maioria está ali para fazer o que fazem sempre, mas sem a pressão de jurados avaliando cada movimento. A música volta a tocar e vejo todos voltando para a pista de dança improvisada com caixas de papelão desmontadas. Dominada pelos B-boys de cabeça para baixo rodopiando sobre suas toucas e bonés.
Enquanto poso para Tati tirar algumas fotos junto ao meu irmão e o primeiro pedaço de bolo, sinto a urgência de me mover de acordo com a batida que ouço. Pedro percebe a minha inquietação e calmamente suja o dedo com cobertura de bolo e lambuza a ponta de meu nariz com ela. Fecho os olhos e um suspiro assustado escapa por meus lábios. Eu começo a rir e Pedro beija minha testa, mas ri também.
— Essa foto ficou incrível! — Tati celebra encarando a tela da câmera. Pedro alcança um guardanapo e o cola em meu rosto antes de se afastar rindo.

“Do It To It” começa a tocar e eu sorrio sabendo que é minha hora de mostrar o que venho ensaiando em segredo. O som agudo de meus tênis raspando pelo chão acompanha a batida da música. Misturo Popping, Locking e Street Dance à uma confiança recém adquirida que me faz mover livre no centro de uma roda feita por dançarinos de competição, acostumados com muita diversidade e talento.
A aprovação deles significa muito. Venho assistindo aos ensaios do grupo por anos, é a vez deles me assistirem. A energia causada pela vibração que recebo deles é quase insuportável de conter, a única forma plausível de devolver tamanha emoção, é dar o meu melhor.
Encerro a pequena coreografia com uma pose típica de B-Girl e sou ovacionada por meus amigos. Quando a dança acaba, toda a minha segurança se esvai e eu busco por Pedro para esconder meu rosto em seu peito. E ele está logo atrás de mim.
— O que foi isso?! — Ele grita em meu ouvido, mas eu o perdoo. Ele está exultante e energizado por minha dança e eu fico feliz por deixá-lo orgulhoso.
"You Rock My World" substitui a música anterior. Uma competição de passos de Michael Jackson se inicia e eu me afasto para pegar algum ar. São Paulo é engraçada no final do ano. Chove o tempo todo, mas algo impede o ar de ficar fresco. Me encosto no muro que separa o quintal da casa ao lado, sinto o concreto molhar minha calça e me afasto rapidamente. Acabo esbarrando em algo e paro de mexer antes que aconteça alguma tragédia.
— Cuidado, menina! — Ouço a risada e reconheço, é .
— Você quer me soltar, por favor? — Mexo os ombros e sinto suas mãos ficarem mais frouxas, até me soltar de vez.
— Festa legal. — diz animado e eu assinto sem muito interesse, vejo Gui se aproximando e ele traz consigo dois copos cheios de uma bebida de cor turva. Não transparente ou âmbar, turva.
— Não fiquei surpreso por te ver dançando hoje. Sempre soube que tinha uma dançarina dentro de você. — Guilherme me entrega o copo e eu hesito antes de beber. Nem tenho certeza se quero.
— Eu fiquei! Você viu como ela esbarrou em mim agora há pouco? O que aconteceu com o seu senso de espaço? — começa a tagarelar e eu o encaro mortificada com a quebra de clima.
— Acho que ouvi o Pedro te chamando, . — Digo forçando um sorriso, ele olha por cima de mim e ergue uma sobrancelha.
— Certeza? Eu não ouvi nada. — Ele volta a me encarar e eu olho para Guilherme, em busca de apoio.
— Eu ouvi. Acho que ele está na cozinha. — Gui pisca um dos olhos em minha direção.
olha de Guilherme para mim e franze a testa de um jeito engraçado. Seu olhar se intensifica quando Guilherme o encara de volta. É como telepatia e a conversa não parece nada boa.
— Valeu. — Digo quando se afasta, um pouco hesitante.
— Confesso que te vi ensaiando a coreografia uns dias atrás. — Gui volta a conversa de onde paramos e eu gosto de como ele é direto. Seus olhos são curiosos e estudam cada reação minha. Sucumbindo a pressão de ter que ser perfeita nos próximos cinco minutos de conversa, bebo um gole da tal bebida e eu odeio imediatamente. Meu cérebro se recusa a permitir meu processo de deglutição de funcionar, e a coisa fica ali parada em minha língua. — Vai com calma, gata. — Gui diz sedutor e eu engulo com dificuldade, mas é bom poder fingir que é por ser álcool e não por ter um gosto horrível.
— Eu não gosto muito de beber, mas obrigada. Pela bebida e pelo elogio de antes. — Devolvo o copo para ele e vejo que a atitude o surpreende positivamente.
Parece que a rejeição de meu corpo à bebida me faz superaquecer. Isso ou o olhar nada discreto de Guilherme para meu pescoço e o decote de minha blusa quando coloco os cabelos para o lado, a fim de amenizar o calor.
— Dezessete anos? Só isso? — Ele morde o canto do lábio inferior e eu me perco no gesto por um instante. Guilherme é gato demais para deixar um momento assim passar despercebido. Ele é forte, alto, tatuado e tem piercing na língua, com o qual ele brinca de um jeito muito convidativo.
— Você é só dois anos mais velho. — Cruzo os braços na frente do corpo e ele sorri surpreso.
— Não parece tanto quando você fala desse jeito. — Meneio com a cabeça e decido me apoiar a este pensamento como se não restasse nada mais sólido. — O que você pediu? — Sorrio sem jeito e pela primeira vez em anos, Gui está realmente me vendo.
— Você. — Digo sem pensar, mas é tarde demais para consertar. Guilherme ri baixo, do mesmo jeito que costumava rir quando eu insistia para jogarmos uno e ele declinava sem cerimônia.
— Não brinca comigo, . — Ele diz atencioso, quase como se estivesse me aconselhando a não prosseguir. Seu aviso só me faz querer continuar explorando seus limites. Desvio os olhos dos dele e encaro seus lábios.
— Como quiser... — Volto para onde a dança está acontecendo e puxo Tati pela mão para dançar comigo. Ela recusa de começo, mas eu garanto que não vou me empolgar, assim, ela decide se juntar a mim.
Ficamos movendo nossos quadris de um lado para o outro. É o único passo que Tati conhece e faz bem. Há uma pequena variação com um estalar de dedos ocasional e duas reboladas para um lado só, então, ela faz para o outro lado e voltamos ao começo.
— Ai, meu Deus! — Tati me puxa pelo braço e interrompe um movimento. — O Gui está te comendo com os olhos. Tipo, tirando a sua roupa e te possuindo aqui mesmo! — Tati diz um pouco alto e gesticula de forma expansiva. Busco suas mãos com as minhas e tento mantê-la longe de furar o chão com seus pulinhos alegres.
— Ei! Calma! Isso é constrangedor. — Digo baixo e ela assente concordando envergonhada.
— Desculpa, . Mas é verdade... Eu estou surtando! — Ela olha para ele por sobre meu ombro e sorri abertamente.
— Se você continuar fazendo isso, encarar de longe é só o que ele vai fazer. Tem como relaxar? — Peço um pouco mais séria e ela respira fundo com os olhos fechados.
— Acho que preciso beber alguma coisa. — Tati sorri satisfeita e me deixa sozinha para se servir na cozinha.
Volto a dançar e numa meia volta, dou de cara com Guilherme bem atrás de mim. Ele sustenta aquele sorriso e eu sinto meus joelhos cederem.
— Posso dançar com você? — Guilherme faz o tipo galanteador. Cheio de sorrisos e olhares sedutores, até a postura dele exala uma sensualidade sem igual. Eu já vi o Guilherme em ação com outras garotas antes, esse charme todo é natural.
Guilherme respira pesado entre uma risada quase nervosa quando junto meu corpo ao dele em resposta. Não demora até que ele encontre e siga o ritmo de meus quadris sob suas mãos.
Dançamos tão perto que consigo sentir sua respiração calma bater em meu rosto. Guilherme me olha cheio de interesse. Seus dedos tocam meu braço de leve, deslizando até as palmas de minhas mãos. Guilherme entrelaça os dedos nos meus e gira meu corpo, se mantendo próximo. Ele toma as rédeas da dança e me guia pela cintura, meu corpo segue suas ordens e seu toque me arrepia.
Alguém apaga as luzes.
A música lenta e sensual toma meus ouvidos, mas Guilherme toca minhas costelas com dedos frios e eu não consigo pensar em mais nada além da vontade que ele cumpra a ameaça de subir mais seus toques. Ele suspira pesado em meu ouvido ao sentir o tecido de meu sutiã, um beijo abafado pelos meus cabelos me faz prender a respiração e Guilherme gira meu corpo de novo, me deixando de frente para ele. Está escuro, mas seus olhos brilham em minha direção e eu sei que ele vai me beijar.
A luz ter apagado não foi algo calculado e ela logo volta a funcionar. Guilherme se afasta de mim e eu fico sem entender o porquê. Até ouvir a voz com um resquício de riso de .
— Quer dizer que você vai entrar para o grupo? — O que sobrou de sorriso nos lábios de some conforme ele analisa a cena. Guilherme coça a nuca, admirando o horizonte enquanto eu ajeito minha blusa para baixo. Ele olha em volta e eu temo que ele conte ao meu irmão sobre o que viu.
— Só se o Pedro implorar. — Digo divertida, tentando aliviar a tensão. Fingir que nada aconteceu é sempre a melhor saída para situações constrangedoras. — Tento entrar para este grupo desde que eu tinha dez anos. — contorce o rosto em um biquinho e estica o braço para alcançar minha bochecha com os dedos prontos para beliscar.
— E isso foi tipo... Ontem? — pergunta cheio de ironia e eu rolo os olhos.
— Não sei sobre implorar, mas seria loucura se o Pedro não te colocasse no grupo. Estamos precisando de novas distrações nos ensaios. — Guilherme diz cheio de malícia e eu não sei como reagir. — Digo, meninas no grupo.
— Claro. Você já ficou com todas elas mesmo. — ataca e Guilherme o encara impaciente.
— Quer sair daqui? — Ele se vira para mim e eu abro a boca para responder, mas sou interrompida.
— Quer tirar a aniversariante da própria festa? — Pedro se aproxima e Guilherme se afasta completamente.
— Pois é... Eu... Tenho um presente para ela. — Guilherme pisca um dos olhos e eu sinto minhas bochechas esquentarem.
— Pode ser depois? Não é todo dia que minha irmãzinha faz dezessete anos. — Pedro me abraça pelos ombros, ficando entre mim e Guilherme. — Quero comemorar com ela, pode ser? — Gui assente e eu sou puxada de volta para o centro da roda de dança por Pedro.
— O povo clama! — Pedro grita mais alto que a música. — E eles querem que você entre para o Funkz. Mas a última palavra é minha. — O círculo fica maior e estar bem no centro dele tão despreparada me deixa apavorada. — Eu te desafio pela sua vaga. — Os integrantes do grupo de dança me cercam e a música para. Eles começam a bater os pés no chão em um ritmo conhecido. Eles gritam o lema do grupo e Leah se aproxima com uma moeda entre os dedos.
— O desafio de hoje é em família... — Ela diz, agitando as pessoas em volta. — Valendo a vaga permanente no Funkz, o que você escolhe, irmãzinha? — Ela se aproxima e eu sinto o costumeiro frio na barriga. A beleza avassaladora da mulher me intimida.
— Coroa. — Digo categórica e ela ergue as sobrancelhas, gostando de minha resposta.
— Será que temos uma novata querendo roubar a sua coroa, meu rei? — Ela vai até Pedro e ele dá de ombros. A troca de olhares entre os dois é intensa e eu quase me distraio com a ideia de eles estarem ficando. Ela é muita areia para o caminhãozinho do Pedro. — De qualquer forma, a princesa deve se provar esta noite. — Leah diz sedutora e joga a moeda para o alto. A moeda cai na palma da mão dela e Leah aponta para Pedro.
A música que começa é quase uma homenagem. Desde que "Run It!" do Chris Brown foi lançada há alguns meses, Pedro e eu temos ficado até tarde nos divertindo com a batida em modo livre. Ele sorri para mim e sabe que as batidas graves estão gravadas em meu corpo, ele sabe que vou explorá-las e por isso, escolhe por guiar seus passos alternando a batida mais aguda e o ritmo cantado. Misturando Street Dance com ginástica olímpica, Pedro ostenta força e destreza nas manobras com o corpo tanto no chão, quanto no ar. Sua flexibilidade e controle corporal são um dos pontos fortes do Funkz. Pedro faz saltar e cair de costas no chão algo fácil e seguro de se fazer, terminando com uma boa pose debochada e pronto para integrar um novo passo da dança.
Ele toma seu tempo até o fim do primeiro refrão, misturando estilos e aproveitando para se aproximar de mim e tentar me desestabilizar com a zombaria nem tão inocente das competições. Mas sei como seu jogo funciona, não estou intimidada. Ele está confiante, mas não tem ideia do que o aguarda.
Me afasto dele e parece que estou indo embora, quando na verdade estou garantindo espaço o suficiente para tomar impulso. Respiro fundo e ainda de costas, dou um perfeito mortal para trás grupado. Meus pés batem no chão junto com a batida e eu não perco tempo. Seguindo os graves da música, coloco meu Popping em jogo e encaro meu irmão nos olhos. Ele desvia e se abaixa, assoprando e abanando meus tênis. Insinuando que todo o trabalho nos meus pés pode incendiar o lugar. Me divirto muito e numa transição suave e proposital, antes do refrão, me afasto um pouco dele e seguro uma das pernas no ar, soltando meu corpo no chão, num espacate completamente debochado e poderoso.
Me sinto competindo de verdade, a energia das pessoas em volta é única e eu sinto que agradei a grande maioria. Os gritos em aprovação e a completa desistência do decoro me dão certeza de que a vaga é minha. Mas é como Pedro disse, a última palavra é dele.
Sinto mãos me erguendo do chão com facilidade e me viro esperando ver Guilherme, mas sorri pequeno, me guiando até Pedro, que encara o chão pensativo sobre seu veredito. Após muita consideração, Pedro levanta os olhos para os coreógrafos do Funkz e eles são como o conselho do grupo. Leah estala os dedos em volta de mim e Otávio assente veemente.
— Bem-vinda ao grupo, maninha! — Pedro me abraça e eu grito animada, o abraçando de volta.
Destiny's Child começa a tocar e "Soldier" é o tipo de música que leva todos para a pista de dança. Com ou sem movimentos preparados.
Guilherme continua me encarando de longe, mas quero mesmo aproveitar ao máximo esse momento com Pedro e com a minha mais nova família. Porque o Funkz é composto por pessoas bem diferentes, mas todas se encontraram por um motivo em comum: a paixão por dançar. A liberdade adquirida ao mover o corpo, o protesto e a declaração de amor da alma que se transmite de forma plácida ou agressiva. Ou os dois. Ser quem é de verdade na companhia de outros buscando o mesmo objetivo é algo poderoso e eu deixo esse poder me mostrar uma saída para tudo o que me prende.

Este é o melhor aniversário que tive na última década. Cada minuto da celebração que começou ontem assim que o relógio anunciou a chegada da meia-noite foi aproveitado ao máximo. Pedro se certificou de que mesmo sendo tudo muito simples, seria especial. E eu não poderia estar mais grata.
Leah nos dá carona na kombi do pai, que é feirante. Os bancos são feitos de caixotes de legumes e nos certificamos de sermos cuidadosos com eles. Em agradecimento, beijo a bochecha de Leah e a desejo boa noite.
— Eu não ganho um? — pede contrariado e eu o encaro decidindo quão cansada estou para respondê-lo de má vontade. — Feliz aniversário, ! — Ele grita e recebe uma bronca de Pedro. A vizinhança não merece acordar só porque eu nasci.
É madrugada, mas minha mãe ainda assiste televisão na sala quando entro em casa. Deixo a porta aberta e é isso o que a distrai do filme.
— A porta... — Ela diz em sua conhecida monotonia. Ela possui dois timbres para falar comigo e esse é o mais amigável deles.
— Eu sei, o Pedro já está vindo. — Me demoro na entrada do corredor. Sei que o dia já acabou, mas não consigo conter a teimosa esperança de que ela se lembre.
— Você sabe se ele já comeu alguma coisa? Não o vi o dia inteiro. — Os olhos dela passeiam pela tela com interesse, sendo rápidos o suficiente para ler as legendas e acompanhar a cena de romance entre os atores.
— Comemos todo tipo de coisa. Era... Uma festa de aniversário. — Ajeito a mochila pesada nos ombros. Camisetas, pelúcias e pequenas lembranças de meus amigos brigam por espaço dentro dela com minhas outras coisas.
— Ah, que bom... Boa noite, então. — Ela diz desinteressada e eu respondo também sem vontade. Não sei nem se chego a terminar a frase cortês.
Entro no quarto e afasto a cortina que divide o cômodo em dois ambientes. O lado de Pedro e o meu. O ar flui, entrando pela janela. Tiro as roupas suadas e as coloco no cesto de roupas sujas. Me enrolo na toalha e amarro os cabelos para o alto, indo limpar meus tênis antes de tomar banho.
Sempre que um aniversário termina, recebo a visita da curiosidade arrebatadora. Me pergunto se meu pai se lembrou, se tentou ligar. Se está vivo, ao menos. A vontade infantil, agora adormecida, de que ele irrompa a porta e... Sei lá, só fique aqui com a gente.
Ajeito meus presentes na prateleira sobre a cama e me pego sorrindo orgulhosa por fazer parte do Funkz. É como um pequeno universo acontecendo dentro do mundo real. Algo tão raro e puro. No meio de tanta mágoa, me sinto orgulhosa por finalmente fazer parte oficialmente de algo seguro assim.
Pedro entra no quarto bocejando. Ele bagunça meu cabelo e se senta em minha cama.
— Ela lembrou? — Pergunta baixinho. Ele tira os tênis e os coloca na fileira embaixo da cama com os outros.
— Nossas mães são diferentes. A sua perguntou se você comeu hoje, a minha esqueceu do meu aniversário. — Ele ri com pesar e eu o acompanho.
— Quer que eu vá lembrá-la? — A determinação nos olhos de Pedro me faz crer que um aceno de cabeça seria o suficiente para que ele fosse até a sala e a obrigasse a me dar os parabéns por suportar a vida pelos últimos dezessete anos. Ele já fez antes, quando eu me importava mais com esse tipo de coisa.
— A essa altura, até se ela tivesse se lembrado, não é do feitio dela admitir qualquer falha. — Dou de ombros e tento não demonstrar que estou decepcionada. Sei que Pedro se preocupa com as constantes brigas entre mim e ela. Por esse motivo, eu desisti de me defender, mas, não há nada que seja capaz de fazê-la parar de me atacar.
— Você se divertiu hoje? — Ele pergunta enquanto tira a camiseta. Assinto veemente e ele sorri. — Então, é só o que importa. — Sorrio também e recebo uma camiseta pesada de suor no rosto.
— Você é nojento! — Protesto jogando a camiseta de volta, da qual ele desvia com maestria.
— Nojento foi ver você toda derretida pelo Gui. — Sua risada me deixa envergonhada. — É sério, , você consegue coisa melhor. O Gui é um bom amigo, mas é meio babaca com mulher. — Pedro diz pensativo.
— Ele falou alguma coisa sobre mim? — Pergunto nervosa e ele rola os olhos.
— Não, né?! Até se dissesse, eu não te diria. Acho que você não deveria ter esse tipo de amizade com ele, você só vai se magoar. — Ele avisa e eu sorrio. Pedro não faz o tipo ciumento, mas seu cuidado me faz sentir segura.
— Vejo que você se opõe... — Sou sarcástica e ele cerra os olhos em minha direção.
— Não é isso, confio em você e sei que você sabe o que faz. Só estou te avisando, se realmente quiser ir adiante com isso, saiba que o Gui é podre e ele pega qualquer coisa que se mexa. Acho que você merece mais do que o Gui tem para te oferecer.
— Eu vou levar isso em consideração. — Garanto e meu irmão suspira pesado, mas acaba por suavizar as expressões facial e corporal para uma mais relaxada. — Vem cá... Me conte o que está havendo entre você e a Leah? — Meu sorriso é malicioso e Pedro corar me deu a resposta que ele negou verbalmente.
— Assunto particular. — Ele toca a ponta de meu nariz com o dedo e eu reclamo.
— Obrigada por me deixar entrar para o Funkz. É muito importante para mim. — Pedro meneia a cabeça.
— Tem um tempo que decidimos deixar você entrar. Eu escolhi te recrutar só hoje porque não achei um presente melhor. — Ele confessa com uma expressão quase infantil.
— Obrigada, mesmo. Te amo. — Digo entre um sorriso animado. Pedro me olha orgulhoso e assente.
— Não me decepcione. — Ele diz sério e aponta o indicador em riste. Assinto rapidamente e ele relaxa, voltando a sorrir. Me distraio com a felicidade de estar no Funkz e Pedro acaba por roubar a minha vez e me faz esperar para tomar banho.

No dia seguinte, acordo sentindo um pouco a falta do sentimento mágico que me cerca em aniversários e no Natal. Mas sei que é temporário, o Natal se aproxima e eu tenho a oportunidade de experimentar esse sabor de esperança novamente. Por outro lado, recebo a realidade com maturidade. Reconheço que não teria condições psicológicas de manter as esperanças acessas todos os dias. Eu não suportaria a ansiedade pelos bilhares de coisas que podem ou não acontecer. Por experiência própria, prefiro deixar que a vida me surpreenda. Como ontem com o meu desejo de aniversário. A piada cósmica é estar perto de realizar um pedido, mas ao invés disso, realizar um sonho. A sensação agridoce de gratidão me deixa confusa, mas feliz.
Gui saiu da festa mais cedo, mas deixou claro que me devia um presente. Ontem, eu acreditei em suas palavras e esperei sonhar com ele. Hoje, na luz da realidade, eu sei como é fácil para Guilherme esquecer que eu existo, então, como com tudo, eu me obrigo a guardar as expectativas numa caixa bem pequena e escondê-la em minha mente, onde eu não possa ver.
Encaro no reflexo do espelho o caimento da camiseta preta do uniforme da lanchonete em que trabalho. Há pouco tempo, a rotina de ir para a escola e depois trabalhar a tarde inteira me deixava exausta. Agora, com o fim das aulas, sinto falta da rotina monótona, branca e azul do colégio. Não por uma questão de moda, mas, espero não usar a camiseta preta tanto tempo quanto usei a branca. A ideia é não estagnar aqui. Eu gosto da lanchonete, das outras pessoas que trabalham lá e do seu Valter, o dono. Mas não quero fazer isso para sempre. Não que eu saiba exatamente o que quero fazer, só sei que não quero sentir o cheiro de gordura no meu cabelo no final dos dias, até o fim dos tempos.
Ao final do turno na lanchonete, saio com tanta pressa e um sorriso que é possível ver até de costas. Subo no ônibus e meu destino é o primeiro ensaio como participante oficial do Funkz.
— Seis, sete, oito... — Pedro dita diante da parede de espelhos. Todos atrás dele se preparam para recomeçar a rotina. O ensaio sério, árduo e totalmente revigorante me faz sentir perdida, mas estou animada por estar aqui.
As luzes brancas no teto baixo fazem com que o tempo lá fora não importe. Não sei se ainda é dia ou noite ou que horas são precisamente. Tudo o que consigo pensar é no quanto estou atrasada com as coreografias. A dificuldade não me incomoda, nem o fato de Pedro não me dar moleza por ser irmã dele, afinal, todos ali são também. O maior incômodo que tenho agora, é a sensação latente de saber que não sou boa o suficiente.
Uma competição se aproxima.
Pedro, como um bom líder, carrega a responsabilidade de manter a equipe unida e focada em cada etapa do processo até a vitória. O interessante é que ele não é presunçoso sobre isso. Ele nem cita a vitória em si, menciona as etapas como rodadas e conta a final como uma delas. A segurança de quem visualizou algo e lutou dia e noite para trazer essa visão para a realidade.
Sinto orgulho do quanto as pessoas o respeitam. As mais de vinte pessoas, algumas delas mais velhas do que ele, o admiram e sua palavra é lei. Ele não faz nada sozinho, claro, Leah e Otavio são seus braços direito e esquerdo, ajudando sempre a criar as performances e prover o que o grupo precisasse.
Me distraio com o pensamento e atraio a atenção de Leah com um erro no passo. Ela faz um gesto como se me dissesse para continuar e não me preocupar com isso, mas marco o passo que errei para me concentrar nele depois.
Após duas horas de ensaio sem pausas, estou ofegante e envergonhada por respirar tão audivelmente.
— Quer beber uma água, ? — Otávio passa por trás de mim e eu nego, mas nem consigo me mexer direito com a falta de ar.
— Acho que sim. — Digo envergonhada e ele sorri, apontando as garrafas de água no fundo da sala.
Apoio as mãos nos joelhos e faço meu melhor para recuperar o fôlego.
— Não está aguentando o tranco, princesa? — Escuto a voz de Guilherme e imediatamente ajeito a postura.
— Não me chama assim, eu não gosto. — Tento não parecer feliz demais só por ele estar falando comigo.
— Mas você é mesmo uma princesa. Gentil, certinha, intocável. — Ele conta nos dedos distraído, e então ele olha para mim.
Eu estou completamente suada, descabelada e ainda estou arfando. Guilherme me encara enquanto brinca com o piercing em sua língua e eu me pergunto qual é a diferença que o aparato faz no beijo.
— Intocável? Que besteira, estou bem aqui... Pode me tocar! — Estou nervosa e o riso envergonhado escapa por meus lábios assim que termino a frase.
— Bom saber. — Guilherme se aproxima e se certifica de que todos estejam ocupados. Ele se inclina e me rouba um beijo estalado.
O sorriso em seu rosto é convencido e eu não consigo decidir se odeio ou adoro esse sorriso.
— Esse menino vai ser minha ruína... — Penso alto demais enquanto observo Guilherme andar por entre as pessoas e voltar ao ensaio.
Ouço as conversas em volta de mim, mas estou cansada demais para me mexer e sair do caminho delas. Pedro se abaixa perto de minha cabeça e me olha engraçado enquanto eu abro os olhos e o vejo de cabeça para baixo.
— Foi bem hoje, maninha. O cansaço vai ser compensado, prometo. — Ele toca a ponta de meu nariz e eu assinto em resposta. — Eu vou... Sair com a Leah. — Ignoro meu coração batendo em meus ouvidos e me sento de frente para ele. — Sem comentários. Quer que eu te consiga uma carona para casa? — Resumo todas as perguntas e piadas de cunho duvidoso num sorriso malicioso.
— Não, tudo bem. Vou passar na casa da Tati depois. — Ele assente devagar e levanta os olhos para a mulher distraída conversando com alguém. Pedro tem as bochechas coradas e ri de um jeito adorável quando percebe que eu sei. — Está nervoso? Não fica, não. Você é um gato e ela seria louca se não gostasse de você. — Pedro franze a testa e me olha engraçado.
— Eu sei disso! — Diz como se fosse óbvio. Pedro se levanta e estende as mãos, eu as pego e ele me ergue no ar. — Cuidado no caminho de volta! — Ele avisa sério e eu assinto, concordando. Ele não precisa se preocupar comigo enquanto está com a deusa da Leah.
Cumprimento os poucos que ainda sobram na sala de ensaio e espero até estar sozinha para me levantar e começar a limpeza.
As regras do grupo são claras. Falamos muito sobre dedicação, saúde, união, pontualidade. Mas tem algo crucial que precisa ser feito e é tarefa dos novatos: limpar a sala de ensaio. Um galpão abandonado foi doado à igreja do Padre João, um religioso dedicado à comunidade que acredita na ideia do Funkz e concede o local para os ensaios. Nada mais justo do que manter a estrutura em perfeito estado como retribuição.
Já de pé, tiro o moletom pesado e ajeito os peitos no top apertado. Faço uma nota mental para não usar mais esse top para ensaiar.

Com os espelhos limpos, varro a poeira do chão e estou prestes a passar um pano úmido quando ouço sons de chaves bem atrás de mim.
— Ainda por aqui, princesa? — Guilherme guarda as chaves no bolso da calça de moletom larga.
— Trabalho de novata... — Chacoalho o pano em sua direção e ele sorri.
— Ainda bem que entrei no grupo antes de criarem essas regras idiotas. — Não gosto do timbre desdenhoso em sua voz e escolho não olhar diretamente para ele.
— Não é tão ruim assim. É um espaço coletivo e as pessoas respeitam isso. Limpar um pouco de poeira não é nada. — Dou de ombros e me abaixo até o balde com água.
— Você é boa nisso. — Ele diz malicioso e eu me viro com os olhos cerrados.
— Está falando da limpeza? — Pergunto incrédula.
— Também. Mas estava falando sobre me convencer da importância da tarefa. — Volto ao pano e o molho, torço com força e sinto bem o tecido gasto contra as palmas de minhas mãos. Qualquer coisa para ignorar o fato de que estou sozinha em uma sala fechada com Guilherme.
— É só pensar no quão caro seria o aluguel de um lugar assim. Nós não podemos pagar por isso. — Guilherme se afasta quando eu passo o pano perto dos pés dele.
— Eu não te deixaria fazer isso se fosse o líder. — Ele observa enquanto esfrego o chão. — Daria trabalhos menos agressivos para suas mãos. — Meu lado infantil quer rir e esconder o rosto, mas o lado mais maduro encara Guilherme nos olhos e umedece os lábios devagar.
Guilherme bagunça os cabelos e faz parecer que o que está prestes a acontecer é simplesmente inevitável. Suas mãos se encaixam perfeitamente em minha cintura e ele me puxa devagar em sua direção. Ouço a madeira do rodo cair no chão, mas não consigo me importar. O beijo é exatamente como eu tenho sonhado por todo esse tempo. Suave, lento, envolvente. O melhor beijo de toda a minha vida.
O abraço pelos ombros e sorrio no meio do beijo com o contato do material do piercing com a minha língua. É gelado e inesperado. Eu gosto.
Suas mãos firmes em minha cintura me mantêm com os pés no chão, mas me sinto flutuar. Um suspiro surpreso escapa por meus lábios quando Guilherme desliza suas mãos de minha cintura e as espalma em cheio em minha bunda.
Guilherme é bom nisso. Bom demais. A maestria de seu toque me diz duas coisas: ele tem experiência na coisa e essa experiência vem do ato de praticar. Então, eu fico com medo. Com medo de não ser boa o suficiente por ser virgem e não conseguir pensar muito em sexo com meu irmão dormindo ao lado no quarto.
Minhas mãos tremem, mas Guilherme entrelaça seus dedos nos meus e me leva até o escritório no fundo da sala, ao lado do banheiro.
Parece que ele pensou em tudo. Mais cedo, fizemos uma pequena faxina no escritório, liberando espaço sobre o sofá esquecido embaixo das doações de roupas que restaram do último inverno. Nos sentamos no sofá e ele parece o lugar perfeito para continuar o que começamos na sala ao lado.
Guilherme beija meu pescoço e acaricia minhas coxas enquanto se lança sobre mim. Engulo em seco quando ele aperta meu peito, as mãos dele são fortes e tudo o que ele faz ameaça deixar marcas no dia seguinte.
Seus beijos se concentram em meus seios e barriga e ele está prestes a tirar meu short quando seguro seus pulsos com a respiração entrecortada.
— Eu não... Ainda... Eu... não... — Balanço a cabeça de um lado para o outro e Guilherme sorri.
— Eu sei. — Ele deita seu corpo sobre o meu e me beija de novo. Não sei se sou convencida pelo beijo, se o peso de seu corpo forte me impede de respirar fundo e pensar melhor sobre isso. Não sei nem se minha opinião importava de fato, Guilherme tira meu short mesmo assim. Geme rouco em frustração em meu ouvido enquanto se masturba e se prepara. O som de tudo acontecendo sobre mim me deixa extasiada por um instante. — Vai ser devagarinho. — Ele diz baixo e se encaixa entre minhas pernas. Eu tento fechá-las, num movimento natural, mas é tarde e ele nem tira as calças completamente para me penetrar. Eu me assusto com a dor aguda e a sensação de estar sendo invadida por algo incapaz de caber em mim. Guilherme parece se perder em meus gemidos doloridos e começa a estocar forte e mais rápido, quebrando a própria palavra.
— Espera, espera... — Tento me mexer para ficar mais confortável, a madeira do sofá machuca minhas costas e não estou sentindo o tão famoso tesão após a dor da primeira vez. Só sinto a dor mesmo.
— Não vou gozar dentro, prometo. — Guilherme beija meu pescoço e não parece entender que eu não estou exatamente gostando. E então, me lembro que estamos fazendo isso sem proteção e eu me sinto completamente idiota por isso.
Em certo ponto, reparo que o Gui nem olha para mim. Ele se concentra nos próprios movimentos e geme rouco quando não está dizendo palavras desconexas de baixo calão. Enquanto meu corpo chacoalha, meus olhos enchem de lágrimas e eu não sei o que fazer com o sentimento amargo que cresce dentro de mim.
Guilherme espalma a mão em meu peito esquerdo e o aperta com muita força. Não é gostoso e excitante. Nenhum relato de primeiras vezes que ouvi foi tão doloroso e eu me pego pensando em uma forma de florear um pouco a experiência quando for contar a Tati como aconteceu. E então, me pego pensando também em quantos desses relatos são reais e quantos deles são floreados.
Ele geme mais alto e parece aliviado. Só então, ele abre os olhos e sorri para mim. Ele ignora ou não vê as lágrimas escorrendo em minhas têmporas e se levanta rápido, procurando por algo para limpar o sofá. Sinto algo molhado em minha barriga e é viscoso ao toque.
Me sento no sofá e minha pressão arterial cai nos pés, meu estômago embrulha e eu sinto o ar faltar em meus pulmões. Minhas coxas estão sujas de sangue e no sofá, uma mancha considerável me encara de volta com julgamento.
— Ah não... Não, não, não! — Visto minhas roupas e corro para fora da sala, busco o pano que usei para limpar o chão e volto para o sofá. Meus olhos estão marejados e eu não sei por que exatamente estou chorando de novo. Eu detesto chorar e raramente faço isso. Por que me sinto tão vulnerável?
— O que foi? — Guilherme pergunta em sua calma indiferente.
— Eu... Sangrei. — Explico constrangida e ele ri baixo. Se aproxima e beija meu ombro, me puxando pela cintura e encaixando seu corpo no meu. De início eu hesito, mas deixo que ele se encaixe. Esperando algum conforto.
— Eu nunca tirei a virgindade de alguém antes. As meninas costumam ser todas bastante experientes. — Ele diz casual e eu sinto uma lágrima escorrer por meu rosto. Disfarço para secá-la e me viro para ele.
— Eu fiz algo errado? — Pergunto preocupada e ele ri baixo de novo, acariciando minha bochecha.
— Foi exatamente como eu imaginei. — Guilherme me beija e eu ignoro as borboletas no estômago e as dores no corpo por onde as mãos dele passaram.
Guilherme tira uma camiseta suja da própria mochila e a molha com água de uma garrafa quase vazia. Ele se abaixa e limpa o sangue em minhas coxas. O sorriso em seus lábios não é exatamente acolhedor, ele parece bastante orgulhoso de seu feito e o momento quase não é sobre mim.
Ele termina de se vestir. Eu termino de limpar o chão.
— Quer que eu te leve em casa? — Guilherme pergunta já passando pela porta.
— Claro. Só preciso guardar isso. — Digo esperançosa. Junto o pano, a vassoura e o rodo ao balde e os levo para o banheiro.
— Vou esperar no carro. — Mal ouço a sua voz. Paro um instante para jogar água no rosto e ajeitar o cabelo. A sensação de estar passando por uma experiência extracorpórea de tão aleatória e surreal me toma por um tempo e eu preciso respirar fundo antes de sair do banheiro e atravessar o galpão para pegar minha mochila.
Estou quase terminando quando ouço a porta abrir de novo. Me viro e forço um sorriso, pronta para ir embora, quando vejo parado diante de mim.
— Ah... É você. — Digo num suspiro, voltando a ficar com uma expressão um pouco assustada por estar digerindo cada vez mais o que acabou de acontecer. ergue uma das sobrancelhas, suspeito de que algo esteja errado.
— Estava esperando quem? — pergunta divertido e eu rolo os olhos. — O que ainda está fazendo aqui? — Ele volta a perguntar, desconfiado desta vez. Eu aponto para o chão reluzente de limpo.
— E você? — Pergunto também, mas menos interessada na resposta.
— Esqueci a minha mochila. — Ele aponta para ela e atravessa a sala de ensaio para pegá-la. — Quer companhia para voltar para casa? — Ele ajeita uma das alças no ombro.
— Não, valeu. O Gui vai me levar. — Não consigo evitar um sorriso ao chamá-lo pelo apelido e assente devagar.
— Ele já está vindo? Está ficando meio tarde para esperar aqui sozinha. — diz genuíno e saber que não é mais uma de suas piadas me faz franzir a testa.
— Ele não está lá fora me esperando? — Pergunto magoada e balança a cabeça de um lado para o outro. O encaro atordoada.
— Vamos lá, eu te levo. — Ele diz amigável e eu não tenho escolha a não ser aceitar.
— De bicicleta? — Pergunto com certo desdém e ele rola os olhos.
— Não. Com este tapete voador. — Ele finge mexer na mochila e me mostra o dedo do meio. — Nunca subestime o poder da minha bike. — Ele diz convencido e eu rio, o acompanhando para o lado de fora.
No caminho de volta para casa, leva a bicicleta a pé e andamos lado a lado. Não é como se tivéssemos muito o que conversar, de todos os amigos do meu irmão, é o que tem menos coisas em comum comigo. Mesmo em todos esses anos, nunca houve exatamente uma amizade entre nós. Por isso foi tão estranho quando ele começou a falar sobre Guilherme e eu.
— Eu vejo como ele olha para você. Eu até entendo, mas sei lá. Ele não é o cara certo para você. — diz sério e parece um pouco desconcertado com o assunto.
— O que você entende? — Pergunto buscando seus olhos e ele ri baixo.
— Você é linda, . É compreensível sentir... coisas. Mas você é irmã do Pedro. Digo, onde está o respeito?! — Sua respiração fica ruidosa e eu não sei se fico lisonjeada com o elogio ou enojada pelo mesmo motivo. Não que seja feio, muito pelo contrário. A pele morena e cachos negros bagunçados acompanham um corpo inacreditável. Se não fosse a personalidade irritante de , certamente eu o olharia com outros olhos.
— Isso é meio machista, não acha? — Sinto as bochechas corarem por ter dito algo assim em voz alta. meneia a cabeça e franze o nariz.
— É verdade. Você provavelmente sabe o que é melhor para você. — Espero a piada que não vem. ouviu minha crítica e absorveu meu ponto de vista, se pondo a pensar. Tirando Pedro e Tati, não são muitas pessoas que fazem isso na minha vida.
O encaro por um tempo e tento fazer uma lista mental de prós e contras em confiar algo tão íntimo a alguém com quem não tenho tanta intimidade assim. Quero saber o que pode ter feito Guilherme ir embora sem nem se despedir depois de termos transado. Quero saber se foi algo que eu fiz e talvez deva mudar.
— Você está bem? — pergunta e seu olhar preocupado encontra o meu.
— Sim. — Minto descaradamente. Decido que devo manter tais dúvidas em um lugar onde eu possa refletir sobre elas antes de obter opiniões alheias. Talvez eu até já saiba a resposta, mas ainda assim, não estou pronta para ouvir uma verdade dessas. — Você também é bem bonito, . — Ele cerra os olhos em minha direção e estala a língua dentro da boca.
— É o que dizem nas ruas... — Ele ergue as sobrancelhas e me faz rir.
Ao chegarmos em casa, sinto que me distraiu o suficiente para me deixar menos triste, mas agora, em frente ao portão de casa, é a primeira vez que sinto que ele poderia ficar um pouco mais. Não é como se o que me aguardasse dentro de casa fosse me deixar muito melhor.
— Está entregue. — Ele diz sorridente e eu seguro o guidão de sua bicicleta. parece entender e a solta na minha mão. Ele se senta na calçada e me vê dar voltas em frente de casa.
— Você já tem que ir? — Pergunto tentando empinar a dianteira da bicicleta, sem sucesso.
— Tenho que trabalhar amanhã, mas meu eu de agora não deve se preocupar com isso. — Ele dá de ombros e eu rio. Está tarde e o movimento de carros é quase nulo. Freio em cima de seus pés e ele me olha divertido.
— Como você consegue? — Encaro sua expressão ficando confusa e trato de me explicar. — Você é sempre tão calmo e despreocupado. Como o futuro não assusta você? — Pergunto com o rosto apoiado nas mãos. apoia o pé no pneu dianteiro e parece achar minha pergunta engraçada.
— Quem disse que não assusta? Mas se eu parar para sentir medo, eu nunca mais volto a me mexer. Acontece que eu amo dançar, é importante para mim continuar a me mover. Um dia depois do outro. — Ele explica e eu ainda não estou satisfeita.
— Mas... como? Como você pode simplesmente se contentar com isso? — toma algum tempo lendo minha expressão indignada.
— Não me contento. — Ele dá de ombros de novo. — Mas o futuro é algo que não tenho controle algum. Não faz sentido me matar seguindo planos que podem ser frustrados por qualquer coisa fora do planejado. Prefiro ir descobrindo aos poucos. — O que muitos veem como falta de ambição, eu vejo como algo a se almejar. de repente parece tão mais inteligente.
— Meio que invejo isso em você. Não saber o que me espera me deixa acordada à noite. Não ter como magicamente resolver tudo me destrói. Cada dia um pouco mais. — Digo rindo, tentando aliviar o peso de minha própria sentença. Mas me encara com algo parecido com empatia, respeito.
— Percebe que as pessoas que vem de onde viemos estão se preocupando com isso cada vez mais cedo? — Ele aponta e eu suspiro pesado.
— Eu tenho que acreditar que isso é uma boa coisa. Talvez a nossa geração seja responsável por criar uma melhor e a consciência disso tem nascido mais cedo. — Agora sou eu quem dá de ombros e eu desvio o olhar a tempo de ver um sorriso satisfeito nos lábios de .
— Vendo por esse lado, talvez não seja tão ruim assim ter um caminho para seguir. É possível se preparar para tudo que pode dar errado? — Ele se levanta do chão e eu reflito sobre sua pergunta.
— Bem... Existe estudo de estatísticas, mas parece algo que pode te enlouquecer. Não sei o que é pior, não saber o que pode dar errado ou saber exatamente o que pode sair mal. — A gargalhada de me contagia.
— Você é muito doida por controle. Meu Deus! — Ele critica divertido e é engraçado como eu não me ofendo.
— Você é o louco aqui, abrindo mão assim da certeza das coisas. — Ele continua rindo.
Dou mais algumas voltas e vejo bocejar disfarçadamente. É hora de livrá-lo do trabalho de me fazer companhia e eu entrego a ele a sua bicicleta.
— Obrigada por... Você sabe. — Digo sem jeito e ele assente.
— É o dia de sorte da minha bike, a primeira vez dela com uma garota tão bonita. — O jogo de palavras me lembra o que eu surpreendentemente havia esquecido. volta a ficar preocupado. — Desculpa, não queria ofender. — Ele diz rápido e eu forço um sorriso.
— Não. Não é isso... Na verdade, não é nada. — Balanço a cabeça rápido e ele tomba a dele para o lado. — Boa noite, . — Fico na ponta dos dedos dos pés e beijo sua bochecha. Sinto seu rosto se iluminar com um sorriso sob meus lábios e me afasto com uma sensação gostosa brigando por espaço com tantas outras emoções negativas e confusas.

— VOCÊ FEZ O QUÊ?! — Tati grita e eu me desespero.
— Pelo amor de Deus, fala baixo! — Peço tentando fazer com que minha amiga expansiva não conte a todos na lanchonete que eu havia transado pela primeira vez na noite passada.
— Eu... Não sei o que dizer. Foi bom? — Ela faz uma expressão curiosa e preocupada. Não sei mentir para a Tati.
— Não sei. — Ela dá uma mordida em seu lanche e pensa um pouco.
— Doeu? — Assinto e ela volta a mastigar. — Mas depois, ficou bom? — Tati é virgem. Super virgem. Aos dezessete anos ela não havia sequer beijado alguém. É claro que ela não é a pessoa ideal para conversar sobre o assunto, mas é minha única opção segura.
— Eu não sei. Foi bem... Agitado. Nada como nos relatos românticos e cheio de detalhes que costumamos ouvir. Ele me beijou, tirou meu short, aconteceu e acabou. — Tati está decepcionada e eu também. Malditas expectativas.
— Eu achei que ele fosse ser mais... Sensual. O Gui exala essa energia de deus do sexo. — Tati bebe seu suco de morango e eu assinto.
— Eu também. — Admito um pouco desapontada. Ainda sinto o corpo um pouco dolorido, o sangramento parou ontem mesmo e eu não acordei me sentindo nem um pouco diferente. Mas essa parte eu não conto a ela.
— E agora? — Tati volta a perguntar e eu dou de ombros. — Como assim?
— Não nos falamos desde ontem. Ele disse que me levaria para casa, mas sumiu. — Tati abre a boca e eu detesto ver que ela está com pena de mim. Eu preferia mil vezes que ela tirasse sarro da situação.
— Que filho-da-puta! — Ela diz comedida e eu rio. — Ele deve ter uma boa razão para te deixar lá sozinha. — Tati resmunga indignada.
— Eu não estava sozinha. O esqueceu a mochila e acabou me acompanhando até em casa. — Tati muda de expressão e volta a me olhar com malícia transbordando de seus olhos. é só mais um alvo de suas muitas paixões platônicas no grupo de dança.
— O ... Ai... — Seu tom de voz fica mole e eu rio.
— Ele é bem inteligente, conversamos sobre futuro e ansiedade. Na verdade, ele é bem tranquilo quanto a isso. Posso aprender uma coisa ou outra com ele, afinal... — Digo divertida e ela morde o lábio inferior.
— Gostoso e inteligente. Não aguento isso. — Tati bate na mesa de palma aberta e mesmo chamando atenção de outros clientes, ela me faz rir.
— Ele é amigo do meu irmão, Tati. — Gosto de lembrá-la e ela cerra os olhos em minha direção.
— O Gui também! Mas isso não te impediu noite passada, sua safada! — Ela brinca e eu a repreendo com os olhos. Posso estar no comando, mas ainda é meu local de trabalho.
Como se soubesse que seu nome está sendo conjurado, Guilherme entra na lanchonete com parte do grupo de dança. Eles me cumprimentam e fazem seus pedidos, enquanto Guilherme prefere desviar de meus olhares e convence um de seus amigos a fazer o pedido por ele.
Me sinto suja e é difícil me manter minimamente profissional. Desisto de obter sua atenção e volto para Tati, que assiste tudo com interesse.
— Que filho-da-puta. — Ela repete antes de dar mais uma mordida em seu lanche e eu concordo.
Quando eles vão embora, Guilherme fica para trás e sorri para mim. E eu ainda não sei se odeio ou adoro aquele sorriso.

Mais tarde, Tati me acompanha até o ensaio e promete a Pedro que não vai atrapalhar. Ele concorda que ela fique, desde que tente se soltar e acompanhar a coreografia como conseguisse. E como seu pedido é uma ordem, Tati tratou de se divertir enquanto errava cada passo da coreografia.
Ao final do ensaio, ela me ajudou a limpar tudo e nós estávamos de saída quando Guilherme me puxou para um beijo assim que saí pela porta. Me afasto dele o suficiente para encará-lo e detesto me sentir tão fraca em seus braços.
— Ah, agora lembrou que eu existo. — Digo magoada e ele ri.
— Não fica brava comigo, foi para o seu próprio bem. — Ele explica e eu resolvo dar a ele uma chance de se explicar melhor. — Quero proteger isso. Ninguém pode saber que estamos juntos. Se alguém do grupo descobre, eles vão contar para o seu irmão. Não quero ter que me afastar de você. — Ele diz baixo, o nariz roçando contra o meu. Um carinho tão gostoso em minha cintura. Quando dei por mim, estava me ajeitando em seu colo e ignorando perguntas importantes como: o que o meu irmão tem a ver com ficarmos juntos?
— Tudo bem. Podemos deixar em segredo. — Vou contra toda e cada célula em meu corpo que me diz que isso não é nem de longe o que eu queria e me contento com a surpresa do destino em finalmente fazer com que Guilherme me note.
— Quer ir para casa? — Ele pergunta, os dedos colocam uma mecha solta de cabelo atrás de minha orelha e me olha com carinho. Assinto e somente pelo pigarro inconveniente de Tati é que me lembro que ela também está ali.
— Podemos levar a Tati primeiro? — Quero ser discreta, mas não vou deixar minha amiga sozinha.
— Hmmm. Eu tinha outra ideia em mente. Podemos deixar para outro dia, então? — Demoro algum tempo para processar o que acabo de ouvir e assinto de repente, sentindo que minha demora em responder começa a entendiá-lo.
Guilherme me beija rapidamente antes de acenar para Tati e entrar no carro da mãe, arrancando com certa velocidade.
— Que babaca. Nós moramos na mesma rua, ele não poderia esperar cinco minutos antes de começar a sessão de amassos? — Tati reclama e com razão. Ela rola os olhos e depois me encara como se nem precisasse me dizer mais nada.
— Vamos? — Apresso, mas não quero realmente voltar para casa. Tati acaba por balançar a cabeça em um concordar discordando e entrelaça o braço no meu.
Caminhamos pela calçada em um silêncio gostoso. O jantar é preparado em todas as casas que passamos em frente. Uma verdadeira sinfonia de panelas de pressão.
Minha cabeça está conturbada com perguntas sem respostas.
Não consigo lidar com o som de estilhaços da expectativa que criei sobre como seria finalmente estar com o Gui se despedaçando. Tudo parece normal para ele, corriqueiro demais para ser notado e eu me coloco de novo na posição de alguém completamente invisível.
Eu nem deveria estar surpresa. Não é como se alguma coisa em minha vida saísse de acordo com o esperado.

Pedro não está em casa quando chego. Ele é como um filtro humano para as energias negativas na casa.
Entro e minha mãe está assistindo à última novela do dia. Ela boceja e não ouve quando eu a cumprimento. Sem esperança de resposta, vou até o quarto para deixar minhas coisas antes de jantar. Estou faminta e pelo cheiro de queijo na casa, temos pizza no cardápio de hoje.
— Ninguém mais fala comigo nesta casa? Já não basta vocês passarem o dia inteiro longe daqui? — A voz usualmente monótona dá espaço para uma mais alta e aguda, magoada.
— Eu te dei boa noite, mãe. Mas você não ouviu. — Digo comedida, tentando evitar uma briga.
— Você poderia se esforçar em falar mais alto. — Suspiro cansada e ela leva o gesto como uma afronta. — Pode, pelo menos, olhar para mim quando eu falar com você? — Faço o que ela diz e a encaro com certa indiferença. É melhor do que deixá-la ver o quanto me entristece.
— Como foi o seu dia? — Pergunto e ela rola os olhos.
— Não me venha com sua ironia. Não sou suas amiguinhas, você me deve respeito! — Ela exige e eu não consigo evitar rir. — !
— Mãe! — A chamo também, como se fosse óbvio. — Respeito é uma via de mão dupla. Não posso respeitar alguém que me trata como lixo por capricho. Eu sou a sua filha, não sua inimiga! — Deixo claro uma parte de minhas chateações e agora quem ri é ela.
— Eu sabia que você seria minha inimiga pelo jeito que seu pai te olhou quando você nasceu. Ficou óbvio que ele escolheria você. — Ela diz amarga e eu engulo em seco.
— E você se certificou de que nós duas ficássemos sem ele. — Digo sem pensar e só volto a perceber o que está acontecendo quando ela acerta meu rosto com um tapa estalado no rosto.
— Nunca mais diga que ele foi embora por minha causa. Você não sabe nada da vida. — Ela diz colérica e mesmo que o lado esquerdo de meu rosto arda, eu não desvio de seu olhar frio. Ela cede antes de mim e sai da cozinha com lágrimas nos olhos. Quando minha mãe bate a porta de seu quarto, me deixo escorregar para o chão. É difícil respirar e tudo em mim dói.
No dia seguinte, tudo está igual. Trabalho, ensaio, trocas furtivas de olhares com Gui sem que ninguém perceba e material de limpeza no fim do dia.
Estou distraída com a conversa que tive com minha mãe na noite passada. O canto inferior direito de meu lábio dói com um corte do tapa e eu já perdi dois ônibus pensando nisso.
— Oi, princesa. — Ouço a voz abafada pela música de batida forte tocando alto dentro do carro. — Entra aí. — Guilherme abre a porta do carro e eu encaro as outras pessoas que divide o espaço esperando por um transporte coletivo. Suspiro derrotada e entro.
— Já disse para não me chamar de princesa. — Digo séria e ele assente ignorando minhas palavras completamente. Guilherme me beija estalado e arranca com o carro na costumeira e desnecessária velocidade de sempre.
— Senti saudade. — Ele diz sem me olhar e eu sorrio pequeno. No meio de tantas pedras sendo jogadas contra mim, o mínimo de apreço demonstrado por ele parece como uma pétala de rosa.
— Sério? — Detesto quão carente minha voz soa. Guilherme ri nasalado e afirma num rápido som de garganta.
— Pode dormir fora? — Ele me olha malicioso.
— Não. Só talvez na casa da Tati. — Digo sem pensar e ele me olha incisivo, abro a boca em entendimento. — Você quer dizer... Com você? — Ele assente e me olha esperançoso agora. — Pode ser. — Digo certa de que talvez ninguém note minha ausência se eu voltar para casa cedo o suficiente.
— Você não vai se arrepender. — Ele diz baixo, dirigindo ainda mais rápido para sua casa.
— A sua mãe sabe que estou indo? — Pergunto sem jeito, não quero parecer medrosa. Mas a mãe do Gui é tão assustadora quanto um acidente de carro e do jeito que as coisas vão, um ou outro estará presente no meu futuro próximo.
— Para de ser criança... É broxante falar da minha mãe assim, do nada. — Não tenho certeza se ele está chateado ou irritado com minha pergunta.
— Não quero ser mal educada, só isso. — Digo mais baixo e ele rola os olhos.
— Ela não está em casa hoje. Melhor assim? — Assinto e tento evitar aborrecê-lo mais. Não quero que ele mude de ideia.
Chegamos em sua casa e Guilherme parece um furacão atravessando a sala. Os tênis espalhados, as meias jogadas de qualquer jeito. Ele passou pelo portal na parte da frente da casa e se tornou uma criança bagunceira.
— Quer tomar banho? — Ele oferece enquanto se refresca com água na cozinha.
— Acho que sim. — Me sinto desconfortável na casa dele. As paredes cobertas de quadros da mãe dele em tamanhos questionáveis parecem deixar o ambiente menor, quase como se a mulher corpulenta estivesse sobre mim com os olhos azuis gelados encarando a minha alma de perto.
— Pode ir. Eu levo uma toalha para você, só vou comer algo. — Me afasto ainda um pouco confusa. Nunca estive na casa, mas vou abrindo um pouco as portas no corredor até encontrar o banheiro.
Sei bem por que Guilherme me ofereceu um banho. Ele não é tão misterioso assim.
Nunca tive sorte com meus namorados. Não foram tantos, mas três foram o suficiente para me fazer acreditar que todo cara com quem eu me relacionar vai querer algo em troca. O primeiro gostava de minhas anotações, o segundo gostava de pegar na minha bunda o tempo inteiro e, bem, o terceiro é o Gui e eu nem sei direito se somos namorado e namorada.
De qualquer forma, me convenço de que também saio ganhando alguma coisa nessa jogada, já que sinto diversas coisas por Gui desde que comecei a me interessar por rapazes.
Os olhos sedentos de Guilherme encontram meu corpo um pouco molhado do banho e suas mãos me puxam para sua cama. Dessa vez, sinto que estou pronta para o que me aguarda. É quase como sentir um déjà vu sob suas carícias. Primeiro o pescoço, depois os seios. Um pouco na cintura, mas volta para os seios e estacionam lá por um tempo.
Enquanto beija meu pescoço e maxilar, Guilherme escorre os dedos por minha barriga, os esbarrando em minha intimidade. No caminho para a entrada de minha vagina, ele esbarra os dedos em meu clitóris e eu detesto que tenha sido somente um acidente no percurso. Ele introduz dois dos dedos, os movendo circularmente. Apesar de não sentir o que deveria estar sentindo, me excito com como ele está excitado por me tocar desse jeito. Guilherme remore sua mão e se senta no colchão. As pernas em volta de mim e o short abaixado. O pênis à mostra pulsa e eu olho dele para os olhos de Guilherme, sem saber exatamente o que fazer agora.
— Eu fiz em você. Agora é sua vez. — Ele ajeita o corpo em antecipação. Envolvo minha mão esquerda em seu pênis e não sei quanto de força devo fazer. Guilherme não esconde a insatisfação pela demora e eu trato de mover o pulso, para cima e para baixo. Seu gemido me mostra que estou em um bom caminho e eu aumento a velocidade. — Calma, calma! Vai devagar... — Ele ri sem jeito e eu gosto de como ele parece vulnerável sob meu toque. — Agora com a boca. — Ele parece empolgado, mas eu encaro minha mão e volto a olhar para ele.
— Eu nunca fiz isso antes. — Confesso mais baixo, envergonhada.
— Nossa, mas você era virgem mesmo. Achei que pelo menos tivesse feito um boquete ou outro. Você não tinha um namorado uns anos atrás? — A indiferença em sua voz me faz sentir estranha. Não que eu quisesse que ele fosse ciumento com meus relacionamentos do passado, mas citá-lo assim tão banalmente enquanto estou com a mão no lugar onde ela está, parece até errado.
— Sim. Mas nunca fizemos nada além de nos beijar. — Me sinto ridícula por ter que explicar algo assim. Começo a me ofender por sua presunção sobre mim e desisto de resistir. Me inclino e envolvo a boca, sentindo meus lábios encostarem em meus dedos, criando um limite.
Impaciente e arfante, Guilherme segura minha cabeça com as duas mãos e guia o movimento que ele acha apropriado. Ele aumenta e diminui a velocidade conforme lhe dá mais prazer e em certo ponto, eu sou somente um acessório de masturbação. Encaro os puxadores da cômoda subindo e descendo e me concentro nisso até que ele termine. Sinto o gosto amargo em minha língua e é tão estranho que não consigo ter tempo de me afastar dele antes de cuspir seu gozo em sua perna.
— Caralho, ! Que nojo! Você poderia ter avisado! — Ele grita irritado de novo e eu me encolho engolindo o restante impregnado em minha língua.
Guilherme continua xingando após voltar do banheiro e eu ainda encaro os puxadores da cômoda, agora parados, em choque.
— Foi gostoso. Só não cospe mais em mim. — Ele acaricia meu rosto e eu o encaro por um instante. Não quero passar a noite, mas quando ele volta a deitar na cama e liga o videogame sobre a cômoda, sei que ele não me levará a lugar algum.
— Você pode avisar quando for... — Digo um pouco relutante, não queria voltar a falar sobre o assunto.
— Quando eu for gozar nessa sua boquinha gostosa? — Ele ri malicioso e eu engulo em seco, assentindo. — Eu aviso, sim, princesa. — Ele se inclina e me beija estalado antes de voltar a atenção para o jogo de luta.
As horas passam e é início de madrugada. Estou exausta e com fome, meu estômago ronca e Gui parece se lembrar de que jantou sem mim mais cedo.
— Quer comer pizza? — Ele pergunta sem me olhar. Eu não poderia estar mais enjoada de pizza.
— Não, obrigada. — Digo sonolenta e ele dá uma pausa no jogo, me encarando divertido.
— Já sei o que vai te dar fome. — Ele se levanta, encosta a porta do quarto e abre bem a janela. Gui corre até o banheiro e leva algum tempo até voltar de lá com um baseado e um isqueiro azul em mãos.
— Ah, eu não fumo. — Me sento na cama e dou espaço para ele fazer o mesmo.
— Não? — Suas sobrancelhas formam ondas sobre os olhos confusos. Balanço a cabeça de um lado para o outro e ele sorri. — Não bebe, não fuma. Você é mesmo toda perfeitinha.
— Não acho isso. Quem fuma ou bebe só tem os pulmões ou fígado piores que os meus. — Rio sozinha e percebo que Gui está distraído acendendo o baseado. Ele dá um trago forte e se vira para mim, soltando a fumaça densa contra meu rosto. Eu começo a tossir e abanar meu rosto, ele ri.
— Para de ser careta. Só um tapinha, aqui. — Ele vira o cigarro enrolado em minha direção e eu recuso com um sorriso. Ele dá de ombros e dá outro trago. Dessa vez, quando ele solta a fumaça perto de meu rosto, um pouco entra por entre meus lábios e eu solto a fumaça de volta, o fazendo rir antes de me beijar.
Namorar Guilherme tem ficado cada vez mais fácil. Tenho conseguido controlar seus instintos e nas muitas vezes que escapamos para ficarmos juntos, nós só nos beijamos.
Tentar conhecê-lo melhor é uma péssima ideia, desde que Guilherme é burro como uma porta e não entende nenhuma de minhas piadas e referências. Ele esquiva e toda e cada pergunta mais pessoal que faço, se irritando com elas de forma radical.
Todo o tempo que passamos juntos consiste em nos beijarmos até os lábios adormecerem e formigarem. Não há conversa, conexão. Só a mais pura atração física.

Com o fim de mais um ensaio, me sinto mais forte e resistente. Comemoro discretamente meu sétimo dia consecutivo de ensaio e me sinto orgulhosa.
— Pessoal, temos um recado! — Otavio junta as mãos em volta da boca para se fazer ser ouvido entre a multidão tagarela.
— Tivemos umas mudanças na coreografia da competição. — Pedro começa, mas dá a palavra para Leah. A troca de olhares entre eles é intensa e eu adoro ver como as coisas vão entre eles.
— Vamos tentar algo mais íntimo, mais coladinho no colega. Mas com muito respeito, não vão se animando muito! — Ela repreende os gritinhos animados demais. — O som é “My Boo” do meu marido Usher e da minha esposa Alicia Keys. Nós vamos dar uma mexidinha nela, mas pensem nela acelerada duas vezes. — Leah explica.
— A música é uma escolha pessoal? — pergunta, a mão ironicamente erguida no ar.
— Cala a boca. — Pedro diz baixo.
— E como você pode ser casada com duas pessoas de sexos diferentes? — Ele volta a perguntar só para incomodar e todos riem.
— Meu pobre amigo hétero de mente fechada. — Leah acaricia sua bochecha e ele sorri sem jeito. É unânime, a mulher é uma beldade para todos que têm a sorte de estar em sua presença.
Leah toca a música e nos relembra para pensar nela acelerada. Não é surpresa quando a demonstração da coreografia é com Pedro e piadas à parte, a coreografia ficou bem elaborada. Uma mistura de parceria com uma paixão recém redescoberta. É divertida, refrescante.
A troca entre eles é genuína, dá para ver o quanto eles se gostam e o quanto essa jornada junto é significativa para ambos. A piada de pode ter sido abafada rapidamente, mas me deu ideias sobre a escolha da tal música. Eles se conhecem desde crianças, mas namoraram outras pessoas antes de se encontrarem de novo e fundarem o Funkz. Desde então, Pedro tem reduzido bastante seu rodízio de namoradas.
Tomada pela lufada de ar apaixonado, procuro por Gui no meio da multidão e me decepciono por perceber que ele faltara ao segundo ensaio na semana. Sua falta de concentração nesse momento crítico é ultrajante. Estamos prestes a competir e todos são necessários.
— Fizemos o sorteio agora a pouco e não quero ouvir nenhuma reclamação. As duplas foram escolhidas por altura. Uma certa simetria é necessária. — Pedro explica com propriedade, mas eu me descolo da cena até ouvir meu nome, seguido do de .
Ele me encara com o cenho franzido, tenta disfarçar quando nossos olhos se encontram e eu sinto uma certa segurança por ter sido escolhida junto com ele. É uma segurança que me surpreende de primeira, mas acabo me acostumando com ela.
— Quero pedir por mais um pouco da abençoada paciência de vocês para que possamos alinhar a coreografia e agregar essa parte com o restante da performance a partir de amanhã. — Leah pede e mesmo estando cansados, damos continuidade ao ensaio, o estendo por mais duas horas.
Eu sei que uma certa técnica me aguardava junto com uma dificuldade maior das coreografias com as eu estou acostumada. Mas ao ver todos indo embora satisfeitos e tranquilos com o trabalho feito, eu me desespero.
Vejo conversando com Ariane, uma bailarina de berço revoltada que usa o hip-hop para irritar os pais, mas é absolutamente boa nisso.
— Ei. — Digo quando me aproximo. se vira em minha direção e nem percebe quando Ariane o encara com uma expressão engraçada de quem se ofendeu por perder sua atenção. — Parece que eu sou horrível nesse negócio de dança. Sorte minha que você é meu parceiro. — sorri sem jeito.
— Eu vi você apanhando feio da coreografia. O que posso fazer por você? — Suspiro aliviada, quase quero abraçá-lo.
— Pode ficar até mais tarde comigo repassando a coreografia em dupla? — Sorrio abertamente, juntando as mãos abaixo do queixo e piscando os olhos.
— O que eu ganho com isso? — Ele cruza os braços em frente ao corpo, a camisa de mangas longas cai bem nele e o pano leve faz os músculos dos braços saltarem um pouco.
— Além de uma parceira preparada para a competição que está chegando em breve? — Pergunto e ele assente, os braços ainda cruzados. Os olhos cobertos pela aba do boné branco. — Uma refeição na lanchonete, por minha conta. — meneia com a cabeça. — Por favor?
— Você tinha me conquistado na piscadinha de olhos, mas eu aceito um hamburguer de graça. — Ele sorri e eu suspiro aliviada, de novo.
Nem esperamos que todos fossem embora. Paramos em um canto e nos concentramos em encontrar qual a minha maior dificuldade e dissolvê-la.
Não percebo chegar o momento quando somos somente eu e ele na sala de ensaio.
Durante o ensaio, percebo que tem um pouco de dificuldade em se soltar quando a coreografia o faz se aproximar muito de mim. Das primeiras vezes, achei que teríamos uma conexão maior se eu o olhasse nos olhos, mas isso parece ter sido má ideia. Ele costuma ser muito preciso em seus passos cheios de leveza, mas quando seus olhos encontram os meus, ele congela e perde o tempo para o próximo passo.
A coreografia é até simples, rolamos o corpo na direção um do outro e ele deve apoiar a mão em minha cintura, me virar de frente e passar por trás de mim num deslizar de pés. Mas toda vez que passamos do rolamento, sua mão se prende em minha cintura, seu corpo esbarra demais no meu quando ele faz a passada por trás ou simplesmente, o passo não sai.
— Estou fazendo alguma coisa errada? — Pergunto frustrada depois que ele pausa a música. Eu já perdi as contas de quantas vezes voltamos do mesmo lugar na coreografia.
— Não. Sou eu. Não estou conseguindo me concentrar. — Ele chacoalha os ombros, dá uns pulinhos. parece bastante agitado e eu começo a me culpar por isso.
— É culpa minha? — Minha voz sai mais baixa, quase magoada. me olha com a cabeça inclinada e morde o lábio inferior, segurando um sorriso entre os dentes.
— Não... — Ele diz finalmente, mas não parece que essa era sua primeira resposta. — Você é incrível, . Eu que não estou conseguindo lidar com... Umas coisas aí. — diz evasivo.
— Quer tentar sozinho um pouco? Tem uma parte que está me dando um pouco de trabalho, posso aperfeiçoar ela enquanto você aperfeiçoa a sua. — Sugiro e ele assente rapidamente.
Tento não encarar muito, mas sem mim, ele parece conseguir numa boa fazer toda a rotina. Se eu não sou o problema, eu não sei o que é.
Em certo ponto, estamos fazendo a coreografia toda ao mesmo tempo, mas distantes um do outro. Cada um em um canto da sala, para ser mais precisa. São os espelhos que juntam nossas performances e não consigo evitar de buscar seus olhos pelo reflexo, tão concentrados e cheios de paixão.
— Ei, quer tentar a sério agora? — Provoco e cerra os olhos em minha direção.
— Agora! — Ele coloca a música do início e se posiciona ao meu lado.
ajeita o boné e toda uma persona toma conta dele. Ele vai dar tudo de si, eu sinto. Cabe a mim fazer o mesmo.
Começamos em sincronia. Os passos afiados seguindo a batida aguda regente se misturando na fumaça misteriosa e sensual do ritmo da música. E então, a parte que estava nos impedindo de prosseguir chega e há faíscas saindo de seus olhos. me olha por baixo do boné e seu toque é firme em minha cintura, ele brinca com os toques de piano na música e seus dedos tocam as teclas imaginárias em minhas costelas enquanto ele desliza os pés para um lado, enquanto eu rebolo para o outro.
É tão natural e fácil com ele. Um problema aparece e nem que seja por despeito, quer resolver. Quando acabamos a rotina, corro até ele e o abraço pelos ombros.
— Obrigada! — O agradecimento é genuíno. Com a competição se aproximando, me senti atrasada e não quero ser um problema para o grupo a ponto de não poder me apresentar por ainda não estar pronta. Ter como dupla é como ter alguém do conselho me dando aulas particulares. Ele é tão bom quanto eles e tem uma paciência infinita comigo.
— Que isso, não precisa me agradecer. Eu provavelmente estou atrasando você com meus... Problemas. — Ele substitui a palavra e isso fica oficialmente chato para mim.
— Por que você nunca diz o que você está pensando na hora? Sempre é a segunda coisa. — Cruzo os braços na frente do corpo e enche o peito de ar, tomando algum tempo para pensar numa resposta melhor, como eu imaginei que faria. Ao perceber o que está fazendo, ri e tira o boné da cabeça, bagunça os cabelos e o coloca de volta.
— Você... É estranho conversar com você. Até pouco tempo, você era só a irmãzinha do Pedro. Toda fofinha e engraçada. Agora você é praticamente uma mulher. É inteligente de um jeito sutil e interessante pra caralho. Não posso dizer tudo o que penso, você vai me achar um grande idiota. — agarra as mangas da blusa com as pontas dos dedos e parece bastante desconcertado.
— Eu já te acho um grande idiota. Não há nada que me surpreenda. — Digo divertida e continuo o encarando.
— Bom saber que meus esforços foram em vão. — Ele diz irônico e eu rio baixo.
— Você é um tipo bom de idiota. — Encosto em seu peitoral, puxo um pouco o tecido entre os dedos.
— Existe isso? — Ele ergue uma das sobrancelhas.
— Sim. Existem vários tipos de idiotas. O seu tipo é um dos poucos bons. — Falo devagar, notando nossa proximidade. desiste de resistir e encara meus lábios enquanto umedece os dele. Eu engulo em seco, com o coração palpitando. Parece até que ele esteve adormecido até então, acordando só agora e se sacudindo em meu peito. — Você pode me dizer a primeira coisa. Sempre. — volta a me encarar e o jeito como me sinto sob aquele olhar é simplesmente viciante. É como ser vista como uma diva pop, uma professora fascinante, uma líder, alguém importante de verdade. É avassalador e eu estremeço com a ciência do que está acontecendo.
Me afasto. Completamente. Ajeito o rabo de cavalo e odeio estar cercada por espelhos, minha reação desarranjada a um olhar de distância, sendo refletida diversas vezes. As partindo em milhares de universos paralelos onde vivo a mesma situação milhares de vezes de novo.
— E aí, princesa. Já acabou o ensaio? — Guilherme entra no estúdio distraído com as chaves do carro.
— Ótimo... — diz irônico e balança a cabeça de um lado para o outro, num suspiro irritado.
— Tem algo para me dizer? — Gui pergunta olhando de para mim.
— Na verdade, sim. Qual é a sua faltando ao ensaio? O que houve? — O tom de voz de demonstra um cansaço, que demonstra que essa conversa não é nova.
— Você é o xerife do Funkz agora? Eu estive ocupado com umas paradas. — Guilherme dá de ombros e a falta de remorso estampada em sua expressão irritada por ter que se explicar me magoa bastante.
— Mas estamos prestes a competir, Gui. Temos que ensaiar todos juntos. — Me aproximo dele e Guilherme me encara do jeito oposto ao jeito que me olha. Me diminuindo e me fazendo sentir deslocada.
— Você chegou agora, garota. Não fica muito confortável só porque você é irmã do chefe. — Rolo os olhos e vou até minha mochila, vestindo o moletom com uma força desnecessária. É como se eu tivesse que me punir por ter que passar por isso.
— Tem uma semana que a frequenta os ensaios e ela demonstra mais dedicação e lealdade ao projeto que você jamais pode ser capaz de ter, mesmo fundando o Funkz. Você nem é bom. Nunca entendi de verdade porque você entrou. — ri com escárnio e eu desconheço esse lado maldoso. Por mais que ele esteja falando a verdade, existem jeitos melhores de dizer esse tipo de coisa.
— Você observa demais, . Devia arranjar uma vida para você e deixar a minha em paz. — Guilherme ameaça, se aproximando.
— Eu sou mesmo um observador. Sei de coisas que você não quer que sejam expostas. — Guilherme me lança um breve olhar e eu franzo a testa, confusa.
— Já te disse para arranjar uma vida, não me faça te mostrar como. — Ele empurra pelo peito e eu pego a mochila rápido, ficando entre os dois. Fico também com a decisão entre ir com Guilherme, ou ficar com .
— Obrigada, . Nos vemos amanhã. — assente devagar. Ele vê quando entrelaço meus dedos nos de Guilherme, que ri com escárnio. Com alguma dificuldade, desvio os olhos de e finjo um sorriso para meu namorado, que murcha assim que passamos pela porta do galpão e ele solta minha mão de um jeito brusco, machucando um pouco meu pulso.
Gui abre a porta do carro e entra nele, ele dá a partida antes mesmo de eu entrar no carro e é constrangedor quando ele dá ré enquanto eu ainda não entrei direito e a porta fecha com o solavanco, prendendo a minha perna. A dor é aguda, imensa. No susto, não emito som algum. Coloco a perna para dentro do carro e passo o cinto pelo corpo.
— Dá para fechar a porta do carro direito? — Ele pede com grosseria e eu bato a porta com força exacerbada. Ele me repreende com um olhar e eu o encaro de volta, num jogo silencioso de quem encara por mais tempo com mais ódio.
— Qual o seu problema? — Pergunto com a voz trêmula pela dor.
— Como assim? — Ele perde o jogo rolando os olhos e os desviando para a rua, arrancando com o carro.
— Faltando no ensaio, cheio de segredos... O que está acontecendo? — Guilherme se irrita com o som da minha voz em um curto período, mas dessa vez, eu não pretendo me calar.
— Não é da sua conta. — A resposta parece mais como um bordão. É a resposta para a maioria das minhas perguntas e eu estou cansada.
— É da minha conta! Eu sou sua... — A palavra entala em minha garganta e ele ri nasalado.
— Você acha que é minha namorada agora? — Ele me lança um rápido olhar, mas é o suficiente para me fazer querer abrir a porta e pular do carro com ele ainda em movimento.
— Para o carro. — Digo e começa a ficar difícil respirar.
— O que? Não! — Ele diz e volta a rir.
— Para a porra do carro agora ou eu vou sair dele de qualquer jeito. — Encaro Guilherme enquanto tiro o cinto. Ele suspira e encosta, parando o carro abruptamente. Meu corpo bate de volta no banco passageiro e imediatamente eu começo a chorar pela falta de ar, pelo susto, pela dor na perna e no pulso.
— O que foi? — Guilherme pergunta assustado e eu não consigo falar. Só ajeito a mochila nos ombros e saio do carro, deixando a porta aberta. — ! ! — Guilherme grita, mas eu ignoro e começo a andar mais rápido. Ouço o pneu cantando próximo a mim e paro com o carro atravessado na calçada na minha frente. — , desculpa!
Guilherme corre até mim. Ele me abraça pelos ombros e eu ainda estou chorando. Seu abraço não me conforta nem um pouco, seu corpo parece uma pedra contra o meu e eu tento me apegar à lembrança recente de estar com e todo o amor caloroso e acolhedor que ele emana.
— Vem, deixa eu te levar para casa. — Guilherme beija meus lábios, mesmo que eu ainda esteja arfando. Me afasto e ele me puxa pelo pulso, eu cedo pela dor e ele me coloca de volta no carro.
Quando chegamos na casa dele, ainda não me conformei completamente que não iria para casa. Mas estava tão exausta que não consegui protestar contra o destino para onde estava sendo levada.
Tomei banho, deitei na cama e dormi.
Acordei com o corpo balançando. Minhas pernas abertas em volta de Guilherme e seu corpo pesado sobre o meu. Absorto e embriagado pelo próprio desejo, Gui demora para perceber que estou acordada e o encarando assustada.
— Finalmente. — Ele beija meu pescoço e sai de dentro de mim como se nada tivesse acontecido. — Vem cá, agora vou te punir por ficar toda assanhadinha com aquele imbecil. — Guilherme vira meu corpo e ergue meu quadril. Suas estocadas são violentas e nada prazerosas. É mesmo como se ele estivesse me punindo.
Estou gemendo alto e ele coloca um travesseiro sobre minha cabeça, evitando que eu acorde a mãe dormindo no quarto ao lado.
— Para! — Digo empurrando o travesseiro e erguendo o corpo, me afastando dele.
— O que foi? Você está muito estranha hoje! — Ele grita frustrado e eu me encolho na cama, processando o que aconteceu e odiando cada pedaço da análise.
— Você me odeia? — Pergunto após um longo silêncio.
— Não, . Você é... Difícil, mas eu não te odeio. — Ele diz impaciente.
— Como assim, difícil? — Ele bufa estressado e veste a cueca de volta, constatando que nada mais vai acontecer.
— Faz perguntas demais, por exemplo. E é toda delicada, eu não sei lidar com sentimentos. — Ele confessa e pela primeira vez, eu vejo Guilherme vulnerável de verdade.
— Com os meus ou com os seus? — Me ajeito na cama e ele rola os olhos.
— É disso que estou falando... — Sustento o olhar e ele desiste. — Com os seus principalmente. Mas gosto de você, . Amo transar com você, seu corpo. — Ele se joga sobre mim de novo, beijando meu pescoço e tentando me distrair do que acabou de dizer. Ou não dizer.
— Então, é isso o que sou? Alguém com quem transar. — Guilherme sorri e não parece perceber o quanto constatar isso me magoa.
— Eu adoro que você seja inteligente assim. — Ele volta a ficar duro, pega meu pulso dolorido e esfrega minha mão em seu pênis, me fazendo senti-lo.
Essa foi a primeira vez que Guilherme olhou para mim enquanto transávamos, me beijou com calma e não deixou nenhuma marca nova em meu corpo. A primeira vez que foi bom de verdade. Mas por alguma razão, essa também foi a primeira vez que eu não estava distraída com a mobília ou o craquelado na tinta do teto. Eu tinha alguém em mente, e, definitivamente, não era o Gui.

Encaro o palco redondo e envolto de pessoas animadas antes de entrarmos. Estou nervosa. É diferente ser uma daquelas pessoas disposta a perder a voz de tanto gritar a favor do Funkz. Agora eu sou uma parte do que faz as pessoas gritarem e a pressão é imensa. Assisto cada um de meus amigos tocar com a mão direita no palco antes de pisarem nele e mesmo não sendo supersticiosa, repito o gesto e ao pisar no palco, é como se meu corpo fosse energizado por um choque de adrenalina.
O grupo oponente é novo e posso ver pela postura deles que o nervosismo pode ser um grande problema durante a competição. Os líderes tiram cara ou coroa para decidirem quem começa primeiro e mesmo ganhando, Pedro escolhe que o grupo rival se apresente primeiro. Ao se afastarem, Pedro passa o dedo polegar pela garganta. Sempre achei esses gestos tão agressivos, mas em competição, tudo é válido desde que não passe de um charme para atiçar o público.
O remix de músicas Hip-Hop começa a tocar e a coreografia deles é organizada, mas a falta de sincronia faz os integrantes da parte de trás do grupo se desestabilizarem e perderem o tempo dos saltos mortais e a finalização da primeira etapa deles foi um tanto descuidada.
É nossa vez.
Leah e Ariane colocam correntes grossas em volta dos pescoços de nossos integrantes mais fortes, fazendo alusão a segurar cachorros incontroláveis. Os B-Boys tomam o centro da pista e juntam alguns passos de Breakdance a saltos altos e bem finalizados. O grupo se divide em dois e a parte de trás vai para a frente e é onde estou. Tento me lembrar de Pedro me aconselhando a seguir a coreografia, mas adicionar elementos de minha personalidade. Sigo seu conselho e aposto em caras e bocas enquanto fazemos a coreografia no chão. Apoio o peso de meu corpo nas mãos, trocando os pés e girando o corpo. Me surpreendo com minha própria resistência.
A sensação de estar ali é indescritível e quando acabo a rotina apoiando os calcanhares no chão, impulsionando o corpo e deslizando para trás, sou erguida no ar por Pedro, que comemora o sucesso inegável da primeira etapa.
No intervalo, Gui me puxa pela cintura e nos esconde atrás de caixas de som desligadas.
— Você está muito gostosa toda confiante desse jeito. — Ele beija meu pescoço e eu rio sem jeito.
— Eu pareço confiante? — Pergunto entre seus lábios e ele assente devagar.
— Muito gostosa. — Ele aperta meus quadris com as mãos espalmadas neles.
— Obrigada. — Digo sem jeito e ele ri de um jeito adorável.
— Dorme na minha casa hoje? — Ele pergunta distraído pela trança em meu cabelo. De repente, Guilherme anda todo carinhoso e atenção demais me deixa desconfiada.
— Só se nós ganharmos. — Digo baixo e deixo que meus lábios esbarrem nos dele de propósito.
— Nem que eu tenha que subornar alguém! — Ele diz agitado e eu tento conter uma gargalhada.
— Temos que voltar. Alguém vai notar nossa falta. — Digo mesmo não acreditando em nenhuma de minhas palavras.
— Só mais um pouco. — Ele nem insiste muito e eu concordo, deixando que ele me beije um pouco mais.
Voltamos a tempo de ouvir as últimas palavras encorajadoras de Pedro. Ele desvia do grupo maior e olha diretamente para Guilherme, que evita a todo custo a bronca muda de meu irmão.
Pelo bem de todos, me afasto de Gui e decido assistir o grupo que se apresenta agora. Eles são bons. Sincronizados, ousados, modernos e perigosos. Muito perigosos. As garotas do grupo optam para sensualidade e rebolam por todo o palco, deixando pouco para a imaginação e deixando absolutamente todos os caras em volta prestando atenção na apresentação por causa delas. E elas são mesmo incríveis. A combinação de movimentos é muito mais elaborada do que somente rebolar, devo ser sincera. Elas sustentam o corpo nos calcanhares e com um controle corporal absurdo, mexem os quadris de acordo com a batida da música. Troco um olhar com Leah e ela está com aquela cara de quem não sabe bem o que fazer com as mãos e se sente desengonçada. A expressão que eu costumo fazer quando ela está por perto.
Estou apavorada. Se Leah está intimidada, o que será de mim?
Elas encerram com Vogging e os rapazes se organizam em uma fileira, entrando em cena. O remix fica mais eletrônico e as batidas mais lentas e graves. Eles ondulam os corpos e a ilusão visual distrai da verdadeira atração. Eles têm um robô. Não um de verdade, mas um homem com controle absoluto de seu corpo, movendo cada pedaço milimetricamente, uma parte de cada vez. O público geral, incluindo outros grupos aplaudem a apresentação com bastante vigor.
Todo o grupo se junta para uma coreografia de Breakdance e terminam tomando todo o espaço do grupo oponente. Declarando a vitória sem nem votação, não foi preciso.
— É só mais um grupo. Estamos prontos, só precisamos nos concentrar e nos divertir. — Pedro diz antes de subirmos no palco de novo.
— Eu vou me divertir quando ganhar... — Guilherme diz me lançando um olhar malicioso e todos vibram, achando que ele está sendo menos literal do que isso.
— Não importa o que acontecer, estaremos juntos. Isso é o que realmente vale a pena. — Pedro olha de mim para Guilherme e parece fazer as contas em sua cabeça. — Vamos lá, caralho! Quem somos? — Ele agita, chamando o lema do grupo.
— Funkz! — Todos dizem em uníssono.
— Quem somos?
— Funkz!
Nesta etapa, temos um tempo menor para nos apresentarmos. Tudo acontece rápido e as decisões são tomadas de acordo com os acontecimentos no palco. As rotinas são numeradas para melhor comunicação e o comportamento de todos é o de uma verdadeira força-tarefa.
Tive uma semana de ensaios particulares com . O estranhamento foi se dissipando conforme nos divertíamos juntos e agora que estamos prestes a apresentar nossa versão de “My Boo”, sinto as faíscas voltarem. A entrega no palco exige paixão, verdade, química. Não sei se consigo transmitir tudo isso sem sentir de verdade, começo a me perder na realidade da coisa toda.
— Está pronta? — cochicha em meu ouvido, dou de ombros e o sorrio sem jeito.
— Você foi um bom professor. — Busco por alguma certeza e ele ergue uma das sobrancelhas.
Nos posicionamos no palco, somos o terceiro casal da segunda fila. Estamos quase no centro da apresentação. Solto o ar devagar dos pulmões, adquirindo um olhar feroz e competitivo.
Não me surpreende que os segundos passem tão depressa. é tão divertido, mas profissional ao mesmo tempo, ele desperta o melhor de mim só sendo a melhor versão dele e esse tipo de coisa é novo para mim.
No final da rotina, estamos de frente um para o outro. As respirações ruidosas e intensas, cansadas e entregues à tensão do momento se misturam e ele sorri abertamente. Sua mão ainda pousa em minha cintura e o toque é gentil, mas firme. Saímos devagar do palco, sem nos afastarmos muito.
Enquanto os juízes deliberam sobre o veredito, tenho a vontade de agradecer pela confiança, mas sua mãe sumiu de minha cintura e ele, sumiu do meu lado. Tento procurá-lo com os olhos, mas a decisão dos jurados eleva os ânimos entre as equipes. Nós acabamos de pegar o último lugar para a próxima etapa da competição que acontece em algumas semanas, em Osasco. Mais quatro equipes se classificaram e é esperado que os grupos tragam toda a artilharia para este próximo momento.
No meio da confusão célebre, mudo meu foco para encontrar Guilherme e o vejo cumprimentar discretamente o líder do grupo rival mais forte. Eles acenam com a cabeça e um sorriso malicioso surge nos lábios do homem desconhecido.

— Isso está delicioso, amor... Você está realmente melhorando nisso. — Guilherme segura minha cabeça contra seu pênis e eu me engasgo com ele praticamente em minha garganta. Me desvencilho de seu toque e tento controlar o refluxo.
— Você disse que não faria mais isso! — Reclamo, secando as lágrimas dos cantos de meus olhos. Odeio essa sensação de enjoo. Ele sabe disso.
— Desculpa! — Ele diz, mas começa a rir. — Você fica tão linda assim, com os cílios molhadinhos. — Ele se aproxima e beija minhas bochechas.
— Está dizendo que gosta de me ver chorar? — Pergunto confusa e ele franze o cenho.
— Claro que não. Eu gosto quando se engasga. Faz meu pau parecer maior. — Ele ergue as sobrancelhas e eu me forço a sorrir.
— Não faz mais. Se não... Eu não faço mais. — Ele rola os olhos, mas acaba por concordar antes de puxar minhas pernas e enroscá-las em volta de si.
Na manhã seguinte, todo o meu corpo está dolorido. Dessa vez, não só pelo sexo violento, mas por causa do campeonato também. Todo o estresse acumulado, os ensaios pesados e a pressão para uma apresentação perfeita parece o coquetel perfeito para me derrubar. Abro os olhos ainda sonolenta e vejo Guilherme se masturbando. Os olhos fixos na tela da televisão, onde consigo ver o universo da parte de dentro de uma moça.
— Bom... Dia? — Abro os olhos com dificuldade, enrolo o lençol envolta de meu corpo e me sento na cama. A mulher geme na televisão, cercada de homens se masturbando também, provavelmente aguardando sua vez.
— Bom dia... Eu tenho uma coisa para você! — Ele diz sorridente. Como se eu não tivesse acabado de vê-lo assistindo pornografia.
Ele entra no quarto de novo. Nas mãos, uma sacola com o que parece ser um remédio e um copo com água. Guilherme parece estar acordado há horas.
— Toma isso. — Ele me entrega e eu o encaro ainda muito confusa. Com tudo.
— O que é isso? — Leio a caixa e o nome do medicamento não me parece nem um pouco familiar.
— Nós temos que começar a usar camisinha, eu não consegui me controlar ontem e gozei dentro umas... Três vezes. — Ele diz como se não fosse nada.
— Mas você disse que tirou todas as vezes... — Me encolho na cama e não sei se devo tomar o tal remédio. — Para que serve?
— Para matar meus soldadinhos antes que eles cheguem até a terra prometida. — Seu humor barato não me faz rir e ele percebe com certo incômodo que eu não estou na mesma página que ele.
— E é seguro? — Pergunto ainda encarando o remédio em minha mão.
— Claro que é. Todas as minhas... Amigas tomaram. E deu tudo certo. — O encaro novamente e ele me incentiva com um sorriso.
— E o que... Você estava fazendo antes? — Guilherme rola os olhos de novo e está impaciente.
— Me aquecendo para quando você acordasse... — Ele finge um sorriso e me beija na bochecha.
— Eu não sou suficiente? — Detesto o tom carente e desolado em que minha voz se situa.
— Claro que é. É só que... Eu queria e você estava dormindo. Você preferia que eu te acordasse para transar? — Ele pergunta e eu não sei bem o que responder, afinal, é a privacidade dele. Mesmo que ele tenha escolhido fazer na minha frente.
Guilherme se cansa na metade de minha leitura da bula do tal remédio. Ele liga o videogame e se distrai rapidamente atirando em pessoas aleatórias nas ruas do famoso jogo. De todas as contraindicações e possíveis efeitos colaterais, engravidar do Gui não soa como uma melhor saída para o problema. Então, eu tomo as duas pílulas.
Saio da casa do Gui me sentindo esquisita. Detesto tomar remédio, até quando conheço seus efeitos. Na maioria das vezes, prefiro que meu corpo faça o trabalho de cuidar das enfermidades que me acometem. Em silêncio e demonstrando força, como tem que ser feito.
Me sinto estúpida por ser Gui a pessoa que me diz o quanto estou sendo ignorante e descuidada ao praticar tanto sexo sem proteção. É idiotice confiar em alguém como o Gui para qualquer coisa, quanto mais algo como não ejacular dentro de mim. Ele é experiente, metade do bairro já dormiu com ele. A outra metade é homem. Só que, em algum momento enquanto estamos juntos, eu só me desligo e me desconecto do momento.
Estou presente com um gemido ou outro, estou presente quando ele termina e eu preciso limpar minhas coxas ou barriga. Mas não completamente. Minha mente é tomada pelos mais banais pensamentos, me levando para longe de toda ação acontecendo em meu corpo.

Ainda é cedo, não quero desperdiçar uma folga com a possibilidade de encontrar minha mãe em casa. Com o início do meu dia de folga arruinado, decido ver a melhor pessoa que conheço: Tati.
— Não sei se aquele elogio para a pele serve para gente jovem também, mas menina, você está brilhando! Acho que vou começar a transar também para ficar bonita assim. — Tati não poupa palavras ao me cumprimentar.
— Isso é suor. — Digo fora do tom alegre e ela muda de postura.
— Está correndo de quem? — Ela olha por cima de meus ombros e me deixa entrar, fechando a porta atrás de mim e se joga no sofá. Tati passa a maior parte do tempo sozinha em casa. Os pais trabalham o dia inteiro para sustentar a Tati e as irmãs gêmeas que estão na faculdade cursando medicina em Santa Catarina. Existe uma grande pressão para Tati se tornar algum tipo de médica e o que resta para ela é estudar.
— De mim mesma? — Ela me encara de um jeito estranho, mas acabamos rindo.
— Como estão as coisas? — Tati é a única para quem não consigo mentir sobre esse assunto.
— Minha mãe me bateu. — Digo rindo de nervoso e ela suspira em uma tristeza já conhecida. — Acho que eu mereci. Disse que ela afastou meu pai depois de ela dizer que eu sou sua inimiga desde o dia um, porque ele me escolheu. Ou alguma loucura parecida. — Dou de ombros.
— Sinto muito, . — Tati diz sincera.
— Tudo bem... Acho que foi pior para ela do que foi para mim. — Tati ergue as sobrancelhas e quase sorri.
— Você é uma pessoa boa, . Merece ser feliz. — Ela volta a dizer e eu meneio a cabeça. Não quero discordar ou ela me dará uma lição imensa sobre amor-próprio ou qualquer loucura parecida.
— Você não entendeu. Eu espero que tenha sido pior para ela do que foi para mim. — Volto a rir e Tati se segura, mas acaba rindo também.
— Ainda te acho uma boa pessoa. — Ela diz ainda rindo. Gosto da risada da Tati porque diante de uma vida tão corrida e considerada adulta, ela é o único elo com minha vida antiga. Minha infância.
A casa da Tati sempre foi um refúgio para momentos difíceis e fico feliz por saber que isso não mudou com os anos. Ainda poder contar com a amizade dela é uma das poucas coisas boas em minha vida. Tem sido por anos e espero que continue sendo pelos próximos que vierem.
— Eu te amo, Tati. Já te disse isso alguma vez? — Digo um pouco emocionada. Pode ser uma alteração hormonal causada pelo maldito remédio.
— Não com as palavras propriamente ditas, mas você nunca precisou dizer. — Ela alcança minha mão com a sua.
— Então, não preciso dizer nunca mais? — Chacoalho sua mão com as minhas e ela ri de um jeito infantil.
— Eu não disse que não gostei de ouvir. Também te amo, amiga. Seja lá pelo que estiver passando, estarei aqui sempre. — Tati estala a língua na boca e pisca um dos olhos.
Fazemos o almoço e é comida o suficiente para o jantar também. Tati diz que seus pais adoram minhas visitas, pois, de algum jeito, Tati consegue manter os estudos e a casa em perfeita organização e sempre termina com algo delicioso para comer. Me sinto um pouco mal por não conseguir replicar a mesma harmonia em casa. Minha mãe compra comida congelada e comemos isso quando a pizzaria da esquina não está aberta. Talvez se tivéssemos ingredientes em casa, eu pudesse fazer uma refeição completa. Mas não é como se eu me esforçasse para fazer as compras da casa também.
Saio da casa da Tati e busco por minha melhor companheira: música. Coloco os fones de ouvido e ligo o mp3.
Minha casa fica há alguns metros da casa de Tati. O tempo exato de uma música de três minutos e meio. Escolho bem e “My Boo” começa tocar. Ando de acordo com a batida da música e sinto o ritmo me tomar. É fim de tarde e as poucas pessoas que passam na rua estão preocupadas demais com suas próprias vidas para estranhar alguém dançando seu caminho para casa.
Paro antes de atravessar e deixo um carro passar. Ouço a sua buzina e faço uma continência ainda sem perder o ritmo.
Estou quase em casa quando ouço o som conhecido de pneu raspando na areia. Olho para o lado e vejo fazendo manobras em sua bicicleta. Tiro um dos lados dos fones e o observo por algum tempo.
é bom em tudo o que faz. Vejo como ele sorri para o perigo ao girar todo o corpo da bicicleta apoiando somente no eixo frontal. A camiseta da bicicletaria em que ele trabalha está apoiada em seu ombro e eu me perco por um instante nos músculos bem definidos de sua barriga e peitoral. Os braços fortes fazem esforço e as veias aparentes são extremamente atraentes.
volta a se sentar no banco da bicicleta e engole em seco quando percebe que estou parada encarando seu corpo descaradamente.
— E aí?! — Ele pergunta e ri sem jeito, mas porque ele está flexionando os músculos enquanto pedala até mim?
— E aí... — Finjo que nada aconteceu e olho fixamente para seu rosto, apesar da tentação, eu me saio bem em não olhar mais para seu torso.
— O Pedro está? — Ele pergunta e eu sinto que essa não era sua pergunta primária.
— Não sei, acabo de chegar. — Digo brincando com o fone entre os dedos.
— Certo... — apoia um dos pés no chão e me encara como se fosse dizer algo, mas ele não diz.
— Quer entrar? — Estranho a mim mesma com a pergunta e ele ri nasalado antes de descer da bicicleta e a colocar do lado de dentro do portão.
Destranco a porta e dou de cara com Pedro seminu, deitado sobre uma Leah sem camiseta no sofá. Fecho a porta e encaro com uma expressão assustada e divertida ao mesmo tempo.
— O Pedro está pegando a Leah! — Cochicho, mas a empolgação só faz minha voz soar rouca, na mesma altura normal. gargalha e me puxa gentilmente pelo pulso para longe da porta. Ele pega sua bicicleta e volta a fazer manobras em frente de casa. Eu me sento na calçada e não consigo esconder minha felicidade. Leah é o tipo de cunhada que toda garota sonha para si. Linda, inteligente, descolada e um amor de pessoa. Apesar de me intimidar por sua beleza estonteante de pele dourada e olhos esverdeados dignos de uma verdadeira deusa, Leah sempre me tratou como uma irmã mais nova, assim como todos os amigos do meu irmão.
— Parece que todos estão se ajeitando. É impressão minha ou só eu continuo solteiro? — Ele diz compenetrado em uma manobra. Ele estica o corpo e ergue a bicicleta no ar, caindo com elegância, pronto para pedalar para trás. Tudo isso com um sorrisinho convencido que o deixa bastante interessante.
— O que te faz pensar que eu não estou solteira? — Ele vira a cabeça rápido demais e é tarde para explicar que minha pergunta é só isso, uma pergunta e não uma sugestão. sorri enviesado e parece gostar da ideia.
— Por mais que pareça tentador... Eu sei de você e do Guilherme. — Ele diz o nome do Gui e franze o nariz de um jeito engraçado.
— Como você sabe? — Ele cerra os olhos e pedala até mim com as mãos na cintura, me fazendo rir ainda mais.
— Todo mundo sabe, bobinha. — Ele diz como se fosse óbvio e minha expressão decepcionada o pega de surpresa.
— O Pedro sabe? — Pergunto receosa e ele dá de ombros.
— Eu soube pelo Otávio, se ele já sabe... — Assinto devagar.
— Como será que descobriram? — Odeio a ingenuidade em minha voz tão trêmula. A resposta é tão óbvia.
— Não é grande coisa. Você é inteligente, seu irmão confia em você. A melhor saída é conversar com ele, até por uma questão de segurança. Afinal, você ainda é menor de idade. É importante que alguém saiba onde você está em um eventual momento de emergência. — Bato os calcanhares um no outro.
— Desde quando você é maduro assim? — Digo divertida e tomba cabeça para trás numa risada gostosa.
— Eu sempre fui maduro. — Ele responde um tanto convencido e eu rolo os olhos.
— De jeito nenhum. Toda vez que penso em você, me lembro da sua imagem aos quatorze anos com batatas fritas enfiadas nas narinas. — Digo categórica e ele bate a mão na própria testa.
— Eu... não faço mais isso. Não na frente de outras pessoas. — O adendo me faz rir até a barriga doer.
— Voltando ao assunto... Acho que isso é sexy. Você ser todo bobo, mas habilidoso e cheio de destreza em outras coisas. Tipo com a bike e a dança. — Digo desinibida e gosto de conseguir dizer o que penso sem travar.
— Você está flertando comigo? — cobre a parte de cima do corpo com o braço e me olha falsamente ofendido.
— Não! Não... — Risos nervosos escapam por meus lábios e o pior, está ouvindo o som constrangedor que estou produzindo. — Não. Só estou dizendo que alguém vai aparecer logo, porque você é um bom partido. Ou algo assim... — Desvio de seu olhar completamente abismado e sorrio me sentindo charmosa. É um sentimento diferente de me sentir gostosa por exemplo, é tão óbvio e está logo ali. Peito, bunda, coxas... Agora deixar alguém corado e sem palavras por somente expressar uma observação rápida sobre ele, me faz sentir poderosa. E eu precisava disso.
— Valeu, ... Espero que dê tudo certo com o Gui e o Pedro. Você sabe, coragem. — Ele sorri amarelo e eu assinto por educação. Tudo parece tão mais simples com , a conversa flui e eu sempre estou rindo.
— Coragem é meu nome do meio. — Mordo o interior da boca, descreditando minhas próprias palavras.
— Qual é... É o Pedro... — Ele franze a testa e eu continuo em dúvida sobre me abrir com ele.
— Não é bem o Pedro que me deixa apreensiva. É que... — Encaro diante de mim. Ele já vestiu a camiseta, mas continua bastante atraente, os cabelos bagunçados de um jeito convidativo. Mas aquele é o . O que está havendo? — Certo. Acho que se eu te contar o que está acontecendo isso pode mudar e eu tenho a sensação de que você também não quer que isso mude. — Gesticulo bastante entre mim e ele, falando bem devagar para que entenda. ergue uma das sobrancelhas, mas acaba concordando.
— Só me diz uma coisa. — Ele diz sério. — Você está segura? — tem os olhos preocupados. Genuinamente preocupados. Detesto que ele se preocupe, mas gosto também.
— Sim. — Minto. Me sinto insegura como nunca. Ainda estou digerindo um remédio que não tenho certeza se obtive todas as informações que deveria ter antes de tomar. — Não se preocupe, estou bem. — A mentira dói e toda a força vinda do poder da sedução desaba e eu desvio dos olhos dele, com os meus cheios de lágrimas.
Por sorte, Pedro abre a porta de casa e deixa que Leah passe primeiro. Eles sorriem e os lábios inchados os denunciam há quilômetros de distância.
— Oi, gente. — Leah diz com elegância e eu respondo com um aceno de cabeça. Tento manter minha empolgação acerca do assunto comedida. Pedro passa por mim e cumprimenta com o toque de mãos de sempre.
— Lavou essa mão, seu safado? — diz baixo, mas eu ouço e não consigo evitar a gargalhada. Pedro me encara sério e eu corro para dentro de casa.
Ainda rindo, me lembro que não me despedi de e vou até a janela. É como se ele estivesse procurando por mim e quando me vê, ele sorri abertamente. Aceno para ele e ele responde rapidamente com um aceno de cabeça. volta a falar com Pedro, o sorriso frouxo em seus lábios se reproduz nos meus e eu gosto de sentir essas borboletas no estômago. O bater de suas asas parece mais brando, gracioso. Gentil com meu estômago frágil.
O dia na lanchonete é tranquilo. Salvo o almoço, que enche de trabalhadores das empresas da região, durante o meio do mês é bastante parado. Ainda mais em dezembro. As pessoas estão economizando para as ceias de Natal e ano novo, para as roupas novas de ficar no sofá, presentes. Faz alguns anos que nada disso me anima muito. Mas gosto das festas do Funkz, um jeito de Pedro completar o vazio que nossa mãe causou nessa época do ano para nós.
Aproveito a falta de movimento para ouvir música. Julia e André estão em algum lugar se beijando e garanto que eles não vão se importar com algo para abafar seus sons. Meus colegas de trabalho passam a maior parte do tempo em algum tipo de esconderijo secreto e eu fico grata por não saber onde fica. Só é complicado fazer o trabalho de três pessoas. Na ausência do seu Valter, o André cuida de tudo e já que a decisão é dele, ele decide jogar a responsabilidade para cima de mim. Não que seja difícil, é até monótono. Retirar pedido, levar pedido, cobrar, limpar a mesa, repete. Sem movimento, não há mesmo muito o que fazer.
De repente, a tia Simone entra na lanchonete. Ela é a mãe do e o sorriso dela ao me ver atrás do balcão é imenso.
— Que bom te ver, finalmente! — Ela se senta no balcão perto de mim. — Está trabalhando aqui há bastante tempo?
— É sempre bom te ver também, tia. Obrigada pelo bolo de aniversário! — Me lembro que quase estapeei Tati pelo último pedaço. — Desde o final do ano passado, o seu Valter precisava de ajuda. — Explico um pouco cabisbaixa e ela me olha com orgulho.
— É bom, assim você aprende a dar valor ao seu dinheirinho. — Ela junta os dedos, os esfregando. Sorrio vendo a mulher de meia idade esbanjando boa forma e uma energia contagiante.
Ela faz seu pedido e eu o levo para a cozinha, me afasto somente para limpar uma mesa que acaba de ficar vazia. Quando volto, Simone sustenta um sorriso malicioso.
— O estava falando de você outro dia. Todo corado e sem jeito quando perguntei se vocês estão namorando. — Encaro a mulher com os olhos arregalados e ela gargalha.
— Que isso, tia... — Desvio o olhar do seu, tão curioso e atento à minha reação.
— E aí, vocês estão juntos ou não? — Sou salva pela campainha da cozinha e eu suspiro aliviada, me afastando para pegar seu pedido.
— Aqui está. — Coloco o prato com o pastel quentinho diante dela e ela bate palmas alegres.
— Vai me deixar sem resposta também, não é?! — Ela abana o pastel e me olha com certa decepção.
— Olha, tia... O é incrível. Mas... É que... Meio que tem outra pessoa. — Ela abre a boca e cai em entendimento.
— E ele te faz sentir bem? — Abro a boca para responder, prestes a dizer uma mentira. Mas ela não sai. Simplesmente não consigo mentir pra ela e me sinto estranha por isso.
— Não sei exatamente o que é se sentir bem com alguém. Ele é meu primeiro namorado mais velho e tem muita coisa que ele está me ensinando. — Dou de ombros, meio satisfeita com a resposta. Mas ela parece preocupada.
— Eu namorei muitos homens mais velhos na vida. De todos eles, eu tirei um pedaço do conhecimento dele e carreguei comigo. Nenhum deles era exatamente bom, mas alguns tinham lá suas qualidades e habilidades úteis. Com um, aprendi a trocar a resistência do chuveiro, trocar um espelho de tomada e perdi o medo de trocar lâmpadas, ele era eletricista. Com outro, aprendi a fazer uma feijoada light que é de comer de joelhos, ele é cozinheiro em um restaurante de hotel na capital. Um cretino, mas me fazia rir como ninguém. E teve outro. Esse deixou algumas marcas intensas em mim. — A voz da Simone vacila. Ela desvia os olhos para o pastel e observa a fumaça envolvente saindo dele. — Ele me ensinou a desviar de socos, a endurecer o abdômen para receber bem um chute. Me ensinou que a polícia nunca vem quando é a mulher quem liga e não os vizinhos incomodados com o barulho. Foi bom aprender tudo isso na época, pode acreditar, eu gritava como uma maluca. “Fogo! Fogo!” pedir socorro nunca funcionou, então, eu comecei a improvisar. E então, eu conheci o pai do . Um vigarista sonhador, ele passou a perna em mim para me levar para cama. Mas foi o amor da minha vida. Ele me ensinou que só é possível amar o outro se você se amar primeiro, sei que parece bobagem e talvez você não tenha como pensar nisso agora. Só quero que saiba que há coisas que a gente pode evitar. Quem disse que tudo na vida a gente precisa aprender do pior jeito? — Ela sorri, morde o meio do pastel e se delicia com cada centímetro de queijo sendo puxado.
Eu estou em completo choque.
Há manchas roxas por todo eu braço. Minha perna ainda dói desde o acidente com a porta e é a primeira vez em semanas que eu não sustento a expressão que passa despercebida por todos em volta.
Engulo em seco.
— Se precisar conversar sobre qualquer coisa, você sabe onde moro. Vou adorar fazer um bolinho pra você. — Assinto, ainda completamente fascinada com a coragem, doçura e leveza com a qual ela fala sobre todos os eventos passados. Suas cicatrizes são nítidas pra mim, mas sua força e superação cobrem todas elas como as melhores maquiagens jamais poderiam. Essa é a face de alguém que superou algo muito ruim e eu nunca admirei tanto uma mulher como eu admiro a Simone.
— Eu vou, sim. — Digo com a voz trêmula. Ela é gentil e sábia. Ela tem noção de que me atingiu em cheio em um lugar sensível, mas não quer me expor ao limite. Eu me sinto segura com isso.
— Eu sonhei com pastel de pizza a semana inteira. Falei: quer saber? Eu vou comer um pastel de pizza, porque só se vive uma vez e hoje eu estou cansada de frango e salada. — Ela ri sozinha e eu sorrio.
— É meu preferido também. — Confesso e rio vendo que ela se suja com a gordura líquida que escorre do pastel. Ofereço a ela alguns guardanapos e me lembro que nunca paguei a refeição para , mas decido que é transferível e recuso o dinheiro de Simone quando ela se vê satisfeita.
— Então, eu vou colocar na caixinha de Natal. Assim, todos ficam felizes. — Ela se aproxima e é a primeira a colocar dinheiro ali.
— Você é um anjo, tia. — Ela sorri e tomba a cabeça de um jeito muito parecido com . Sorrio de volta e sinto a energia renovada com a presença dela.
— Você é um também. Merece muito amor. — Ela cantarola divertida. — Não se esqueça do meu convite. Encontre tempo entre o trabalho e esses ensaios malucos de vocês para me visitar. — Ela pisca um dos olhos e eu assinto.
Espero mesmo visitá-la em breve. Seu astral é contagiante e eu lembro de tê-la sempre por perto enquanto crescia. Mas graças à minha mãe, as visitas ficaram cada vez mais escassas nos últimos anos. Ninguém consegue conversar com ela, exceto Pedro. Mas até ele tem dificuldade em compreender onde foi que o coração dela endureceu tanto. Na partida de nosso pai ou quando a ficha de que ele nunca voltaria caiu. O que parece acontecer toda manhã quando ela acorda e percebe que ele não está lá.

Numa saída da lanchonete para respirar algo diferente de cheiro de gordura, vejo Tati caminhando sorridente na calçada oposta. Aceno para ela e ela atravessa a rua correndo.
— Que alegria toda é essa? — Pergunto maliciosa e ela rola os olhos, soltando o ar por entre os lábios, os fazendo tremer em puro desdém.
— Você falando assim, até parece que acontece alguma coisa na minha vida. — Resmunga amarga, o que é engraçado. — Estava falando com o Felipe, filho do jornaleiro. Ele também fez o ENEM e está tão ansioso quanto eu para checar as notas. — Ela diz sem muita emoção.
— Faltam dois meses. Como está conseguindo dormir? — Pergunto travessa, para provocá-la.
— Melhor do que você que usa as noites para... Nem me faça falar em voz alta. Estou verde de inveja! — Tati cruza os braços na frente do corpo e entorta os lábios em descontentamento.
— Não tenha inveja da minha vida, amiga. Acredite. — Apoio uma das mãos em seu ombro e ela suspira. — Então... O Felipe, é?
— Pois é... Ele ficou sabendo dessa nova Lan-House perto da casa dele e me avisou. Foi um sacrifício fazê-lo falar comigo, mas enfim. Acho que somos amigos agora. — Suas bochechas começam a corar devagarinho. Decido não tirar sarro da situação para não assustar a Tati. Felipe é inteligente, educado e bem tranquilo. Se for para acontecer, que eles se entendam.
— Eu não tenho muitas esperanças com a minha nota. — Mudo de assunto e ela ergue uma das sobrancelhas.
— Por quê? — Tati me olha como se eu tivesse duas cabeças.
— Porque meu cérebro se parece um caroço de feijão fradinho. — Digo pensativa, mas acabo rindo e Tati também não consegue se conter.
— Isso não é nem de longe uma verdade. — Ela garante enquanto ainda ri.
— Eu não lembro de ter lido metade das perguntas, Tati. Os dias de prova mais tortuosos da minha vida. — Sinto minha nuca arrepiar só de me lembrar do dia anterior ao primeiro dia de prova. Minha mãe recebeu uma notícia ruim no trabalho e eu era a única por perto para amortecer sua ira.
— Eu li que o que importa são as respostas e elas se entranham no seu subconsciente. Talvez você tenha gabaritado a prova por osmose. — Sua positividade é contagiante, mas eu sei bem que estou longe de ter gabaritado a prova.
— Saberemos em dois meses. — Dou de ombros e ela sorri.
— Já sabe o que vai fazer com a nota? — Pergunta esperançosa. Ninguém nunca me incentivou a estudar tanto quanto Tati.
— Se for suficiente, posso tentar jornalismo ou rádio e tv. Ainda não sei. — Dou de ombros e encaro meus tênis. É difícil expressar para Tati que tenho dúvidas sobre meu potencial. Ela é incrível e com certeza me dará uma palestra sobre como eu devo acreditar em mim e sobre o quanto me acha genial. Mas ouvir tudo isso quando existe um bloqueio interno te impedindo de acreditar que seja remotamente verdade é tão doloroso quanto continuar na dúvida.
— Você escreve muito bem. Seria uma jornalista incrível. — Para poupar o tempo e energia de minha melhor—melhor amiga, eu sorrio e aceno com a cabeça concordando só por fora.
Tati continua seu caminho para casa e eu trabalho até o sol se pôr. Pego minha mochila e tiro orgulhosamente meu avental após um longo e monótono dia de trabalho.
Coloco meus fones de ouvido e caminho feliz até o ponto de ônibus. Nada me anima mais do que ir aos ensaios. O cheiro de desodorante e o zumbido das conversas paralelas parecem um sonho.
Cumprimento meus colegas e a sensação de ser bem-vinda é indescritível.
Tiro a calça jeans e desenrolo o short de lycra. Encaro minhas pernas e vejo mais manchas roxas espalhas por ela. Uma maior na região da panturrilha. Procuro no fundo da bolsa por alguns adesivos de anti-inflamatório e colo por toda a extensão. Decido vestir o moletom para esconder os hematomas dos braços e se alguém perguntar, estou treinando pole dance em um porão de supermercado, liderada por uma solteira do bairro que não deve ser exposta.
Enquanto me aqueço, passo os olhos pelos integrantes do grupo. Não consigo evitar procurar por Guilherme no meio da multidão e só então, com a preocupação de uma namorada abrindo caminho entre meus órgãos para se estabelecer, percebo como Guilherme se atrasa para os ensaios. Até antes de eu fazer parte do grupo, já era sabido que pontualidade não era um de seus fortes. Mas nunca me perturbei para saber onde ele estaria, já que é um dos únicos do grupo que tem acesso a um carro. Todos os outros vêm de muito longe e usam ônibus e até metrô para chegar em Guarulhos a tempo.
A falta de lealdade de Gui com o grupo me deixa dividida. Não parece certo ele se atrasar tanto. Estamos nos preparando para um campeonato importante, o dinheiro do prêmio pode ajudar o grupo a conseguir melhores equipamentos de som para fazermos nossos próprios remixes. Parece egoísta não estar aqui.
No meio do ensaio, Guilherme tenta se enfiar entre as últimas fileiras. Mas todos meio que ignoram o incômodo pelo atraso dele. Ele alcança meus olhos e me lança um beijo no ar. Me viro para frente e suspiro pesado. esbarra em meu ombro e eu sorrio, ele ficou o ensaio inteiro ao meu lado e acabou sendo bem divertido. Seu ritmo mexe com o meu e acabamos por ter estilos parecidos de passadas. Vez ou outra, olhei para o espelho diante de mim só para observar suas expressões compenetradas e todo o charme que ele exala dançando. Desviei toda e cada vez que seu olhar capturou o meu pelo reflexo do espelho e tentei a todo custo me manter focada. Mas me confunde. Talvez ter dado uma chance para realmente conhecê-lo não tenha sido tão má ideia assim.
No final do ensaio, cumprimento todos com um aceno cansado e vejo que eles riem da minha falta de resistência, mas ainda vou chegar lá.
— Oi, princesa. — Guilherme se aproxima enquanto ainda tento recuperar o fôlego.
— Oi. — Digo sem jeito. Gui olha em volta e nota que Pedro está distraído em uma conversa com Otavio. Ele se aproxima e rouba mais um beijo de meus lábios.
— O que é isso? — Reclamo me afastando dele. — Você diz que não quer que meu irmão saiba, mas fica me beijando quando ele não está vendo. Quantos anos você tem, doze? — Não meço o volume de minha voz e Guilherme me encara com uma sobrancelha erguida.
— Qual é o seu problema? — Ele devolve a pergunta e eu cerro meus olhos em sua direção.
— E aí, cara. O que houve hoje? — Pedro interrompe minha linha de raciocínio e eu vejo quando Guilherme muda sua postura com a presença dele.
— Minha mãe. Precisou que eu ajudasse com uma coisa. — Ele desvia o olhar, encara os próprios tênis e suspira como se quisesse que o assunto tivesse acabado.
— Nós precisamos de todos focados, cara. Podia ter avisado, pelo menos. — Pedro diz razoável e Guilherme assente desinteressado.
— Foi mal. — Diz sem vontade e Pedro crispa os lábios antes de me lançar um olhar cheio de significados.
— Pedro! — O chamo antes que ele se afaste. — Você já vai para casa?
— Preciso revisar a coreografia com o Otavio. Mas pode ir, te vejo em casa. — Ele pisca um dos olhos e eu assinto.
— Então, quer carona? — Guilherme diz malicioso e eu concordo. Antes de sairmos da sala de ensaio, procuro com os olhos e aceno para ele, que acena de volta com a cabeça. Isso tem ficado muito comum entre nós. Eu gosto.
No carro, percebo que Guilherme não está nos levando para sua casa como de costume. Estamos indo ao bairro vizinho.
— Toma. — Ele tira umas notas da carteira e me entrega.
— Para que isso? — Estendo minha mão sem muita vontade e Guilherme rola os olhos. Aparentemente explicar qualquer coisa ou ter uma conversa normal é cansativo demais para ele.
— As camisinhas. Precisamos mesmo usar, você me faz esquecer até meu nome! — Ele gargalha e eu tiro o cinto de segurança. Me sinto estranha comprando camisinhas, há pouco tempo deixei de lado a neura para comprar absorventes no supermercado. Mas camisinhas...
Guardo o dinheiro de Guilherme no bolso e pago os pacotes com meu próprio dinheiro, parece certo desse jeito. Ao voltar para o carro, Guilherme esconde o celular no bolso e me encara com a maior cara de culpado.
— Como é ter um celular? — Pergunto casual, não tenho interesse real na resposta, mas quero que ele saiba que não sou uma completa idiota.
— É legal. Você pode ligar para qualquer pessoa, de qualquer lugar. Pode enviar mensagens também. — Ele diz distraído, voltando a dirigir.
— Legal. — Repito sem emoção.
— Se você for boazinha, talvez possa ganhar um de Natal. — Ele provoca e eu assinto. Guilherme não trabalha, a mãe tem uma loja de variedades com franquias em dois bairros. Ela faz o suficiente para sustentá-lo e manter seu negócio funcionando. Não parece certo aceitar um presente caro assim da mãe dele. Nós nos conhecemos no corredor de madrugada e ela não parecia nem um pouco feliz com minha existência na casa dela.
— E se eu for bem malvada? — O desafio com uma sobrancelha erguida, jogo a sacola com os pacotes de camisinha no banco de trás e Guilherme sorri enviesado.

O Gui é inteligente. O tipo de cara que lê e busca ter a sua própria opinião irredutível sobre a maioria das coisas. Gosto de aprender com ele e já me vi reproduzindo algumas de suas falas com meus colegas de trabalho e acabando por me sentir super intelectual. O problema é que Gui é também o tipo de cara que sem nenhuma cerimônia, faz com que minhas reações bem-humoradas e propositalmente mais rasas sobre qualquer que seja o assunto se pareçam com burrice. Nessas repreensões dele já fui chamada de moralista, comunista, reacionista... Eu só não sei como ser tudo isso é possível. Eu detesto política, não me meto na vida alheia, gostaria de ter sido adotada e na verdade, vir de uma família riquíssima e se tem algo que eu nunca faço, é reagir. E eu bem que deveria. Guilherme diz coisas duras e nem percebe por não se relacionar com o fato de que, para começo de conversa, eu nem quero ouvir seus monólogos na maior parte do tempo. Nós mal conversamos, mas às vezes, parece que ele sempre tem assunto para expor pensamentos profundos sobre eles.
Tenho vontade de dizer que suas opiniões são duras e que se alguns fatos são tão incômodos assim, que ele deveria fazer algo para mudar o cenário. Mas eu não digo nada. Sorrio e tento engolir o gosto amargo do constrangimento por ter acabado de ser chamada de ignorante pelas entrelinhas.
"Isso parece preocupação de comunista de fórum na internet".
Eu só estava dizendo que a conduta da Seleção Brasileira de ostentação e falta de comprometimento os levou a perder o apoio de boa parte dos brasileiros e com isso, a derrota contra qualquer que seja a Seleção Europeia que tenha eliminado a equipe da última copa, foi obra divina. A falta da energia através do reconhecimento do público brasileiro supostamente faria mais diferença do que chutar a bola no gol.
Eu nem gosto de futebol, mas há alguns dias, estava compenetrada na televisão de tubo em seu quarto. Comi coxinha e tomei cerveja sentada em seu colo vestindo somente uma camiseta amarela, vibrando com cada passe bem-feito, cada roubada de bola.
E nada disso faz exatamente muita diferença para ele.
Gui vai para a sala jogar um pouco de videogame, a televisão do quarto não sobreviveu à fúria da derrota. Fico sentada em sua cama e o cheiro de sua maconha me deixa enjoada, mas não reclamo. É bom para os músculos ou coisa assim. Quando ele joga a fumaça em meu rosto e me beija devagar, parece que sou transportada para outra dimensão. Mas detesto ter que esconder minhas roupas quando volto para casa. Se minha mãe souber que estou fumando maconha por tabela, ela me mata.
Me levanto, ajeito a cama e dobro os cobertores. Está chovendo muito lá fora e começo a me preocupar com a volta para casa.
Está ficando tarde e a mãe de Gui não gosta nem um pouco que eu passe muito tempo na casa deles. Entendo a preocupação dela, a filha mais velha da dona Meire teve a primeira filha na minha idade. E sendo avó de duas lindas meninas, não é como se ela estivesse super ansiosa para aumentar a família. Me visto e alcanço minha mochila pendurada no cabideiro ao lado da porta. Pego a sacola em que comprei as camisinhas e retiro o pacote ainda fechado de dentro dela, deixo sobre a cama e procuro pelas camisinhas já usadas pelo chão do quarto. É meu maior pesadelo esquecê-las ali, mas Gui não se importa de jogá-las pelo quarto no calor do momento.
Guardo as camisinhas novas na gaveta da cômoda e decido que é hora de ir.
— Então... — Digo baixo, a panela de pressão chiando na cozinha pode parar a qualquer momento e seria bom sair sem ter que me despedir. A dona Meire não gosta muito de mim e detesto ver sua expressão enojada enquanto ela fala comigo sem muita vontade. — Estou indo embora. — Ajeito a mochila no ombro e demora algum tempo até que Gui consiga parar o jogo para olhar para mim.
— O quê? — Rio sem jeito, não é possível que ele não tenha me ouvido.
— Estou indo embora. — Repito um pouco mais alto.
— Ah, está bem. — Guilherme não vê quando o encaro com a testa franzida.
— Certo... — Vejo que o que quer que ele esteja jogando é mais importante do que eu neste momento. Suspiro pesado e saio da casa me sentindo mal.
Tenho dinheiro para pegar um ônibus, um guarda-chuva na bolsa. Mas um lado destrutivo e dramático em mim, prefere andar na chuva. Reflito sobre um tempo em que Gui e eu mal nos olhávamos, ele por não ver alteração alguma na Terra com a minha existência e eu, por não conseguir olhá-lo sem ficar corada nas bochechas. Me odeio por pensar nisso, mas agora, gostaria de poder voltar no tempo e dizer para aquela menina boba e romântica, que ela está construindo uma imagem de alguém que está se mostrando ser exatamente quem é. Gui não me faz sentir especial porque não sou especial para ele.
Estamos juntos há quase um mês e ele ainda me vê como alguém inferior e sem importância.
O que fica claro dois dias depois, quando volto para a casa dele e percebo que o pacote fechado de camisinhas estava aberto quando ele pegou uma para usarmos.
— Espera... — Me sento na cama e busco alguma distância entre meu corpo e o dele. — Por que o pacote de camisinhas está aberto? — Sinto o ar se tornar pesado e meu corpo começa a congelar de dentro para fora.
— Não sei. — Guilherme dá de ombros e tenta alcançar meu pescoço com um beijo.
— Não, Gui... 'Tô falando sério. Eu deixei esse pacote fechado na sua gaveta, por que está aberto agora? — Assisto todas as nuances de uma mentira sendo fabricada enquanto ele olha fundo nos meus olhos. É inacreditável.
— Eu enchi de ar para minha sobrinha brincar. — Ele dá de ombros de novo. Minha pergunta o incomoda e Guilherme parece ofendido.
— Não acredito nisso! — O empurro pelo peito e me levanto da cama, buscando pelas minhas roupas.
— Você vai embora? — Sua calma me assusta. Visto a calça e antes mesmo de abotoar e subir o zíper, já enfiei meus pés em meus tênis.
— O que você acha?! — Estou rindo de nervosismo, mas estou sentindo que vou chorar em breve.
— Que você é louca. — Estou prestes a passar pela porta quando escuto sua risada infantil. — Você acha que eu sou seu namorado ou coisa assim, mas eu não sou exclusivo de ninguém. Você é só a mina que escolheu não ver isso por mais tempo. — Guilherme faz seu ponto parecer óbvio. E realmente é.
— Tem razão, Gui... Eu viajei e fantasiei que você pudesse ser um homem muito melhor do que você realmente é. — Seu sorriso enviesado murcha e eu sei que fiz uma rachadura pequena em sua armadura reluzente.
— Esse não é um problema meu. — Ele diz indiferente e a frieza em seu olhar me deixa com o estômago embrulhado.
No caminho para a porta da casa, a dona Meire interdita meu caminho com seu corpo curvilíneo de alguém que se importa muito em não envelhecer nunca.
— Contei para sua mãe que você vive enfurnada no quarto do meu filho. — Ela ergue uma sobrancelha e eu respiro fundo, evitando ser mal educada com a mulher.
— Não precisava se incomodar, dona Meire. Eu terminei com o Guilherme. — Tento passar por ela e ela me bloqueia de novo.
— Tal mãe, tal filha. Vocês não conseguem mesmo manter um homem, não é?! — Ela diz ácida e eu olho em volta. A dona Meire mora sozinha com o Guilherme. A filha se casou com alguém que poderia amar também suas duas filhas e todas foram morar no interior.
— Imagino que a senhora tenha muitas dicas para dividir conosco. — Respondo a altura e ela cerra os olhos.
— Saia já da minha casa. — A voz entredentes deveria soar intimadora, mas eu rio.
— Estou tentando. — Indico o caminho com a mão e ela finalmente me deixa passar.
Saio da casa sem olhar para trás. Não carrego nenhuma lembrança exatamente boa do lugar, mas não estou surpresa.
Uma desilusão auto infligida dói menos quando sabemos exatamente o que estamos fazendo?
Ouço risadas no alto da ladeira por onde passei há pouco. , Pedro e Vinícius estão descendo a ladeira de bicicleta e seus gritos e risadas fazem os cachorros latirem alto.
Subo na calçada e espero no fim da ladeira. Pedro é o primeiro a chegar e derrapa o pneu traseiro da bicicleta em minha direção, fazendo um pouco de terra subir.
— Está perdida? — Pergunta animado. Meus olhos estão marejados e eu me esforço para não olhar diretamente para meu irmão.
— Não. Estava indo para casa. — Vejo e Vinícius empinarem suas bicicletas um pouco mais adiante enquanto conversamos e eu quase admiro a disposição para trabalharem, ensaiarem e ainda terem algum tempo para revisitar velhos hábitos.
— Quer uma carona? — Pedro aponta o banco da bicicleta com a cabeça.
— Isso funcionava quando eu era pequena e magricela. — Apoio a mão no guidão da bicicleta e ele gargalha alto.
— Você fala como se fosse gorda. — Pedro retruca e eu sinto que posso rir um pouco.
— Eu nunca disse isso. Só não queria dizer que minha gostosura toda vai te impedir de pedalar de forma segura. Não estou a fim de perder um dente. — Pedro assente a contragosto e apoia o pé no pedal, pronto para voltar a pedalar. Eu o acompanho a pé, ouvindo a conversa entre ele e seus amigos. fica mais para trás, por consequência, ele pedala ao meu lado e seu silêncio é bem-vindo.
— Toma. — diz de repente e eu paro de andar. Quando me viro para ele, está segurando a própria bicicleta por um lado só do guidão e eu o encaro confusa. — Parece que você teve um dia ruim. — Ele dá de ombros e sorri de canto.
— E como andar de bicicleta vai me ajudar? — Cruzo os braços na frente do corpo e ele ri. A risada de é contagiante.
— Confia em mim... — Ele caminha até mim e praticamente coloca minha mão sobre o guidão.
Não estou com muita vontade de fazer esforço, mas o esforço de em me fazer sentir minimamente bem reduz a vontade de ser grossa com ele e pedir para que me deixe em paz.
Dou algumas voltas ao redor dele e sinto a marcha pesada da bicicleta dificultar minhas pedaladas. ri e para na minha frente, segurando o guidão com as duas mãos e ajeitando a marcha para uma menos pesada.
— Valeu... — Digo sem jeito e assente, se afastando. Pedalo um pouco mais e vejo que meu irmão e seu outro amigo estão muito distantes de nós. — Quer continuar com eles? — Pergunto ao me aproximar dele de novo. balança a cabeça veemente e encara a ladeira diante de nós.
— Quer descer a ladeira? — Seus olhos brilham com a pergunta.
— Se eu quero quebrar uma perna? Não, obrigada. — Ele ri também e eu paro ao seu lado. Apoiando o peso do corpo numa perna só.
— Desde quando você é medrosa assim? — me desafia e eu rolo os olhos, descendo da bicicleta e começando a subir a ladeira com ele ao meu lado.
— Se eu morrer, eu venho te assombrar. — Aviso e ouço um som de garganta em concordância.
— Tente manter a bicicleta reta. Não pedale, não freie bruscamente e... Aproveite a viagem. — se aproxima e toca minha cintura de leve enquanto diz as palavras perto demais de meu ouvido.
— Ok... — Digo encarando a extensão da ladeira. Quando me sinto pronta, encaro e ele assente, me encorajando.
Enquanto seguro firme no guidão da bicicleta, deixo que a gravidade faça seu trabalho. Sinto meus cabelos esvoaçarem para trás e o frio na barriga é substituído por uma curta sensação de estar voando. Por um momento, eu esqueço que o futuro me perturba, que o presente me perturba e que o passado me entristece.
É delicioso.
Quando chego ao final da ladeira, aperto os freios e rio aliviada. Olho para cima e está no alto da ladeira, pulando de alegria por eu ter chegado inteira. Desço da bike e começo a subir de novo, preciso de mais dessa sensação.
Ele insiste que voltemos para casa na mesma formação, ele a pé e eu de bicicleta. Ele anda em silêncio com as mãos nos bolsos da calça. Acho que ele é gentil o suficiente para perceber que não estou tendo um dia bom, mas mais ainda por não perguntar o porquê, acho que é de família ser tão gentil com o outro. Seu silêncio é acolhedor e de alguma forma, me distrai de meus próprios problemas tentar adivinhar o que o deixa com a expressão tão séria e pensativa.
— Ei. — Balanço meu corpo de um lado para o outro enquanto pedalo. se vira para mim e continua andando de costas. — Uma música que defina seus sentimentos agora. Valendo! — O desafio e para de andar. Ele fecha os olhos e eu dou a volta, fazendo círculos em volta dele.
— “Always” Blink-182. — gira no lugar, os olhos agora abertos, estão fixos nos meus.
— Punk-Rock... — não para de me surpreender e agora eu nem consigo disfarçar.
— Eu gosto de muitos estilos de música. Qualquer coisa que me faça sentir aquela parada que te faz querer se mexer, se apaixonar, dançar. — percebe que se deixou levar pela própria resposta e me encara com os olhos cerrados. — E a sua?
— “Partido Alto” do Chico Buarque, mas na voz da Cássia Eller. Ela consegue transmitir bem minha revolta. — Não consigo não rir de sua expressão completamente chocada.
— Samba? — Ele sorri tão abertamente que me pego perdida e acabo por quase atropelá-lo.
— A Cássia modifica o arranjo, o samba está presente, mas de um jeito completamente diferente. Minhas raízes musicais brasileiras começam na Elis, e então, Cássia... Pitty. — começa a murmurar o arranjo da música e se dá a liberdade de arriscar sambar um pouco.
— Consigo fazer dez saltos seguidos, mover o pé na batida de qualquer música. Mas sou uma lástima no samba. — Ele lamenta e eu desço da bicicleta.
— Finalmente algo que você não faz bem? Agora sim eu estou surpresa.
— Acho que você está falando muito e mostrando pouco o que você sabe, senhorita passista. — Minha gargalhada soa engraçada e ri também. Coloco sua bicicleta encostada na calçada e paro diante dele.
— Não é para tanto... Espera... — Imagino um ritmo em minha cabeça e sambo um pouco para conseguir encontrar uma forma de explicar algo que parece tão natural para mim. — Certo... Primeiro, vamos tentar devagar. Um passo e volta, um pé de cada vez. É importante diminuir o espaço entre os pés e você consegue isso mexendo o quadril assim. — Me aproximo e coloco minhas mãos dos lados de seu corpo, o movendo como quero que ele se mova. Mas sem saber exatamente como pôr em palavras. estala a língua dentro da boca e eu reparo em como ele é alto. Me afasto só um pouco e mostro os movimentos mais rapidamente. Ele tenta acompanhar, mas desiste e então, eu decido me exibir. Como as passistas no sambódromo no carnaval, abaixo o corpo em um rebolado confiante, salto e volto a sambar enquanto giro. me olha tão intensamente, paro de dançar e sustento o olhar até sentir que não estou respirando.
— Você é... Claro que... Você... Seria boa nesse tipo... De coisa. — solta um pigarro e desvia o olhar. Vai até a bicicleta e começa a pedalar para longe de mim. Mas depois volta. — Sobre isso que você diz que não quer que acabe... O que é... Isso? — repete meu gesto do outro dia. O fato de ele parecer absolutamente sexy pedalando sem as mãos tenta me distrair de sua pergunta.
— Nós... Somos amigos. Não é? — Entro em pânico e ele franze a testa. Dá mais uma volta pensativo. Suspiro triste por sentir a sensação de que toda essa facilidade está terminando.
— Você está certa. Nós somos amigos. — Ele repete e é nítido seu esforço para manter o sorriso de boca fechada.
Tenho vontade de dizer a ele que terminei tudo com o Gui e que se ele talvez pudesse me dar um pouco mais de tempo até que eu coloque as coisas no lugar, nossa amizade poderia se tornar algo maior. Mas não digo nada. Não parece certo arriscar ter alguém tão bom por perto só por um sentimento confuso e malformado. Na dúvida, é melhor tê-lo por perto como uma espécie de refúgio. Por mais egoísta que isso pareça.

Chego em casa e Pedro já está sentado na mesa, o prato com macarrão instantâneo comido pela metade me faz dar graças aos céus por não estar com fome.
— Com tanta preparação para a competição, sinto que não temos mais tempo para conversar. Senta aqui, maninha... Me conte as novidades. — Pedro diz bem-humorado e eu faço o que ele diz. Puxo uma cadeira com cuidado para evitar fazer muito barulho e acabar acordando minha mãe.
— Tudo bem... Acho. — Franzo o nariz e ele balança a cabeça.
— Tem uns dias que sei que você não está bem. Desculpe por não ter arrumado tempo para conversarmos antes. — Ele diz envergonhado.
— Não se preocupe. Talvez o atraso tenha sido até melhor. — Ele ouve minhas palavras com uma expressão temerosa.
— O que houve?
— Bom, você já pode dizer que me avisou. Guilherme é mesmo um babaca. — Suspiro com pesar e ele inclina um pouco a cabeça para o lado.
— Mas você está bem? — E ali, sob o olhar preocupado de meu irmão, eu desabo sem conseguir esconder por muito tempo. Meus ombros chacoalham com o choro baixo e não demora até eu sentir seu abraço em volta de mim. Pedro me abraça forte e eu acabo saindo da cadeira e sou amparada por ele. De joelhos no chão, somos crianças de novo. Seu carinho vem me protegendo da totalidade de toda maldade que acontece em nossas vidas. Sua força e diligência me tornam mais dura, mais preparada para o que vier. Não faço ideia do que teria sido de mim se ele não estivesse por perto por todos esses anos, absorvendo a outra parte do impacto das ações dos adultos em volta.
— Desculpa... Eu devo parecer ridícula, chorando por homem..., mas não é só isso... É... tudo. — Volto a chorar e ele seca meu rosto.
— Eu sei. É difícil para mim também. Tão difícil que preciso passar todo o meu tempo ocupado para não perder a cabeça. — Ele confessa baixinho e seus olhos estão marejados também. — Desculpa por te deixar sozinha aqui. Mas quero mudar isso. Se eu me tornar produtor, poderemos nos mudar e morarmos juntos em algum estúdio. Nós já comemos como emergentes mesmo, não vai mudar muita coisa. — Ele diz baixo e eu rio.
— Eu adoraria continuar comendo como uma emergente com você em algum lugar diferente daqui. — Digo entre uma fungada e outra.
— Tenha um pouco de paciência. Prometo que vou te tirar dessa casa e tudo isso vai ficar no passado. — Assinto e Pedro volta a me abraçar. — Só não suja minha camiseta de catarro, por favor... — Ele pede rindo baixo e eu o empurro de leve.


ATO II

O fim de semana chega e com ele, o aniversário de alguém. Pedro insiste que eu vá à festa pela terceira vez.
O cheiro amadeirado de seu perfume impregna todo o quarto e eu o encaro caminhar de um lado a outro um pouco desinteressada enquanto Pedro termina sua arrumação. Engana-se quem pensa que são todos os homens que preferem ser desleixados, alguns deles gostam de cuidar da própria aparência até demais. Pedro é um desses. A mistura de cheiros que emana dele é inexplicavelmente harmoniosa, mas algo em mim faz com que o cheiro me irrite bastante. O cheiro e as sobrancelhas erguidas em uma insistência teimosa de meu irmão para me convencer a sair de casa.
— Não tenho exatamente motivos para comemorar. — Digo mau humorada e um pouco cansada também. Pedro ri.
— Que vida chata. Desde quando é preciso ter um motivo para comemorar? — Ele apoia as mãos na cintura, me encarando com os olhos apertados pela expressão descrente.
— Eu preciso de motivos para fazer qualquer coisa. Não sou como você, tão leve que o vento te carrega pelos lugares mais incríveis. — Ajeito o quadrinho que estou lendo sobre o colchão, me virando para procurar por meu irmão. Seu silêncio me intriga e ao vê-lo parado, com a mesma expressão de antes, eu rio.
— Poético. Patético. — Pedro imita uma balança com as mãos e eu rolo os olhos. — Se livrar do traste do Guilherme me parece um excelente motivo para passar dias comemorando. — Dá de ombros, rindo do próprio comentário venenoso. Pedro vai calmamente até o meu lado do guarda-roupas e tira de lá um vestido que eu adoro, mas não uso muito. Ele é apertado, superfeminino e valoriza as curvas que eu não tinha até pouco tempo.
— Tem razão. — Digo pensativa. — E se ele estiver lá? — Aceito o vestido e olho dele para meu irmão.
— Ele vai te ver se divertindo, linda nesse vestido e sem pensar nele nem por um segundo. Ou pelo menos tentando não pensar nele. — Pedro faz uma careta, mas depois balança a cabeça. — Quer que eu faça algo?
— Você não pode obrigá-lo a ser uma pessoa melhor. — Eu rio, mas isso é meio triste.
— Não. Mas fico feliz que você tenha conseguido entender que merece mais do que o Gui. É uma pena você ter se machucado para aprender uma lição, mas a vida é assim mesmo. — Pedro ri nasalado, acaricia o alto de minha cabeça, mas o carinho se transforma rapidamente em uma tentativa de destruir minha escova recém feita.
— Esse é um jeito mais condescendente de dizer “eu te avisei”? — Pergunto tentando escapar de suas mãos ágeis.
— Mais ou menos. — Ele ri mais forte. — Então, o que vai ser? — Ele balança meus braços, agitando meu corpo e me tirando literalmente de minha zona de conforto.
— Certo. Mas só estou indo porque você implorou. — Rolo os olhos ao ver sua dança de comemoração.
— Estamos esperando o , então, se vista rápido! — Pedro bate palmas ritmadas e sai do quarto, me dando alguma privacidade.
Estou terminando de me vestir quando ouço as risadas do lado de fora e inclino o corpo na janela para espiar e Pedro conversando. Começo a gostar da ideia de ir a tal festa.
está lindo usando calças mais justas e um boné branco combinando com os tênis. Pedro diz alguma coisa que não consigo ouvir e eu vejo a sincronia nos jeitos deles rirem. Primeiro o corpo se inclina para trás, depois eles vão de encontro um com o outro. Gosto de ver como eles são leais um ao outro, admiro sua amizade e reconheço o sentimento por sentir o mesmo com a Tati.
Ajeito o cabelo, me certifico de que os cadarços estão bem presos nos tênis e me convenço a deixar a sensação de que passei máscara de cílios demais no reflexo do espelho do banheiro. Me sinto insegura, fico abaixando o vestido toda hora, mesmo que ele tenha estrutura e tamanho para ficar fixo na altura do meio de minhas coxas.
se distrai da conversa com meu irmão e acontece um daqueles momentos que eu quase nunca percebo acontecer. Mas quando percebo, é como se eu pudesse atualizar as informações que tenho sobre mim mesma. encara a rua, entretido com a conversa. Ele me olha de relance, pisca prolongadamente e depois volta a me olhar com um meio sorriso surpreso e tão genuíno que me deixa com as pernas moles.
— Nossa! — Escapa pelos lábios trêmulos dele e eu rio sem jeito.
— Como assim, mano?! — Pedro esbarra a mão em seu peito, o obrigando a parar de olhar para mim.
Todos rimos em níveis diferentes de constrangimento e decidimos iniciar a caminhada até um ponto de ônibus.

Para ser uma festa não é necessária muita coisa: bebida para quem é de beber, música para quem é de dançar e claro, a presença numerosa do Funkz. É engraçado conhecer a maioria das pessoas na festa, menos a dona dela.
Para ser sincera, estudei alguns anos no mesmo colégio que a aniversariante, mas nós nunca trocamos duas palavras. É um pouco constrangedor quando ela atende a porta e lança os braços em volta de mim.
— Que bom que vocês vieram! Fiquem à vontade. — Ela diz rápido. Parece mesmo um discurso decorado, que ela repetiu várias vezes ao abrir a porta esta noite. De alguma forma, é melhor assim. Se a Ingrid, aniversariante da noite, prestasse um pouco mais de atenção em mim, veria que estou com cara de enterro. Gostaria de estar em qualquer outro lugar onde eu não corresse o risco de encontrar com o Guilherme.
— Eu vou procurar a Leah, você vai ficar bem? — Pedro pergunta alto em meu ouvido e eu dou de ombros. Ele tomba a cabeça para o lado e eu detesto o olhar de pena que ele me lança.
— Pode ir. Eu vou ficar aqui com o . — Entrelaço meu braço no do rapaz ao lado e ele assente, sem nem saber do que se trata. Meu irmão para mais uma vez para me olhar antes de sair. — Vai, eu vou ficar bem. Vá beijar a deusa da Leah por nós. Certo, ? — Cutuco suas costelas e ele olha de mim para Pedro.
— Ela é quem está dizendo... — Ele aponta para mim com o indicador e Pedro se afasta ainda rindo. — Você ‘tá doida de dizer que quero beijar a namorada do seu irmão? — se vira em minha direção e eu rio de seu desespero.
— Ele sabe que é brincadeira. Mas pode dizer a verdade, a Leah é uma divindade. — Ergo as sobrancelhas e ele franze as dele.
— É sim... Ela é linda. — diz devagar e continua me olhando do jeito que me faz sentir as gentis borboletas no estômago. Mas devo me manter longe de problemas.
— Vamos dançar! — Puxo pelo braço e logo estamos na pista.
Não há nada que cure melhor minhas feridas do que música alta e pouca luz. Os móveis da sala foram afastados e há bastante espaço para dançar no meio dela. E é exatamente para onde estou levando .
— Espera... — Ele desvencilha de meu toque em seu braço. Sorri abertamente e eu sigo seu olhar até onde Ariane está acenando para ele. — Vai na frente, eu já vou. — Assinto e observo ele se afastar. beija a bochecha de Ariane e mantém seu corpo perto demais do dela. Agora odeio a música alta, pois, por causa dela, precisa falar em seu ouvido e eu sinto o estômago revirar de curiosidade para saber o que ele disse que a fez rir tanto. A mão dele pousa em sua cintura, Ariane está quase se inclinando para trás de tanto estufar o peito coberto pelo decote na blusa de pano leve. Os olhos dele passeiam pelo colo da mulher e eu odeio aquele olhar tão desejoso. Ele não me olha assim.
A cena toda me deixa sentindo esquisita. As palmas de minhas mãos suam e meu rosto esquenta de um jeito inexplicável.
— Cuidado para não explodir... — Ouço a brincadeira com pouca interpretação disponível em meu cérebro doente de ciúmes.
— Não enche, Otávio! — Me afasto ouvindo sua risada e respiro fundo, buscando equilíbrio para a cabeça e para o coração.
O que está acontecendo comigo?
Atravesso a sala e encontro um banco solitário e ele parece convidativo. Me sento e observo as pessoas se dividirem em vários pequenos conjuntos. Todos parecem confortáveis em suas próprias vidas, exercendo bem seus papéis e seguindo em frente, mesmo com as dificuldades. Sinto que sou a única fracassando em tudo. Nem ficar sozinha em uma festa cheia de gente eu consigo.
Decido parar de sentir pena de mim mesma antes que comece a chorar. Essa tem sido uma semana particularmente sensível para mim e eu quero evitar qualquer tipo de exposição desnecessária.
Os primeiros acordes daquela música da dupla de rappers franceses, Tragédie, começa a tocar e todos entram em um modo nostálgico bastante animado. Talvez essa tenha sido a única música deles que tenha sido sucesso mundialmente e eu nunca sou capaz de me lembrar do nome dela.
Me divirto vendo alguns se arriscarem no francês, além do "Hey Oh" do refrão. Rio um pouco mais, porque me lembro que o nome da música é exatamente esse, "Hey Oh". É tão óbvio que passa despercebido.
— Oi, . — Anderson, um dos B-Boys mais quietos do Funkz se aproxima com um sorriso curioso nos lábios.
— E aí... — Ajeito a barra do vestido para baixo, numa tentativa de cobrir mais as coxas. Mas meu gesto só chama mais a atenção de Anderson para o lugar.
— Quer dançar? — Ele esfrega as mãos nos lados da calça larga e me encara esperançoso. Tomo algum tempo para pensar e sei que não vou perder nada dançando um pouco com ele. Anderson é bonitinho e do jeito dele, sempre foi legal comigo.
Ele olha para os lados antes de tocar minha cintura com as pontas dos dedos, se certificando de que ninguém nos veja. Estou cansada de viver escondendo minhas interações com pessoas do sexo oposto. Sei bem que toda essa discrição não é proteção ou minimamente cuidado, pelo menos não comigo. É só mais uma forma de controlarem quem eu sou, com quem ando, de quem gosto. Me diminuindo a um mísero segredo no processo.
Encosto o corpo no de Anderson, olhando fundo em seus olhos enquanto rebolo ao som de "I Know What You Want". Deslizo as mãos por seu torso e as subo até seus ombros, entrelaçando os dedos em seus cabelos curtos. Ele parece um pouco perdido e sua risada nervosa e consistente é uma verdadeira quebra de clima. Ele não sabe bem onde colocar as mãos, como encontrar meu ritmo. O típico dançarino solo.
Distraída com a batida grave da música, balanço o corpo de um lado para o outro. Sinto o toque de Anderson em meu quadril e cintura, mas não sinto meu corpo vibrar sob seu toque. Não sinto vontade nem de terminar a música dançando com ele, para falar a verdade.
Parece errado perder essa melodia envolvente com alguém que não sabe o que está fazendo. Involuntariamente — talvez —, na tentativa de encontrar o que faz meu coração acelerar, procuro entre a pequena multidão se apertando na sala de estar. Quando o encontro, encostado na parede e ostentando uma garrafa de vidro de Coca-Cola, ele ainda conversa com Ariane. Ela tão apaixonada e concentrada em seu próprio assunto nem percebe que ele claramente parece entediado. Todo o entusiasmo que me fez sentir a tontura dos ciúmes desapareceu, deixando somente um sorriso forçado e educado de um ouvinte desatento. Seus olhos encontram os meus e ele rola os dele de forma dramática, me fazendo rir. estreita os olhos e inclina a cabeça para o lado para ver quem está comigo. Ao reconhecer Anderson com o corpo colado ao meu, muda de expressão várias vezes. Primeiro, ele parece confuso, depois, um pouco surpreso demais. Mas acaba por se divertir com o fato de que minha falta de química com Anderson é vista de longe.
Tento disfarçar o quanto fico feliz quando o vejo interromper gentilmente Ariane, se despedir dela com alguma desculpa e deixa-la aos suspiros enquanto vem em minha direção. Anderson puxa um pouco mais minha cintura, se fazendo ser notado de novo e eu penso em uma forma de dispensá-lo também. Não sei se consigo ser tão gentil quando , mas posso tentar.
— Escuta, Anderson... — Tento me virar em sua direção de novo, achando mais humano olhá-lo nos olhos enquanto digo algo mais brando que a verdade. — Não quero mais dançar. — Com você, eu deveria ter dito. Provavelmente interromperia o processo de criação da ideia que o B-Boy tem logo em seguida.
Anderson inclina o corpo para frente e fecha os olhos. O abraço em minha cintura se intensifica e eu me sinto empurrada e puxada ao mesmo tempo. Assisto a cabeça dele se aproximar um pouco sem reação, mas ao perceber o que está acontecendo, o empurro pelo peito.
— Ei! O que é isso? Onde pensa que vai com esses lábios? — Anderson se inclina novamente e eu me inclino também, na direção contrária.
— Te beijar... Não é assim que funciona? — O B-Boy franze a testa, uma genuína confusão se apossa de seus olhos verdes. — Você não... Quer? — Parece mesmo um choque para ele que eu não esteja interessada em todo o seu sex appeal.
Rio de puro nervosismo, mas isso parece enfurecer o rapaz que me solta com certa grosseria, chegando a me empurrar.
— O que foi que eu fiz que te deu a ideia de que eu queria te beijar? — Me arrisco a perguntar. Estou chocada demais para medir minha curiosidade.
— Porque me disseram que você é fácil! — Anderson rola os olhos, parece bastante chateado. É nítido para mim que para ele, essa conversa toda foi só um contratempo no caminho para seu objetivo para a noite. Não é como se ele tivesse acabado de me ofender, não é como se ele tivesse dito isso alto o suficiente para fazer as outras pessoas me olharem de um jeito que diz mais do que se elas tivessem a coragem de dizer alguma coisa.
— Como é que é? — Eu ouvi bem o que ele disse. Não tenho certeza do que quero ouvir dele agora. Talvez o som estampido de pólvora estourando com seu mágico sumiço.
— Esquece! — Anderson diz grosso e me dá as costas.
— 'Cê 'tá bem, ? — pergunta se aproximando e eu sinto tanta vergonha. Temo que ele tenha escutado a conversa com o idiota do B-Boy e pense a mesma coisa de mim. Balanço a cabeça de um lado para o outro e ando rápido até a cozinha, sei que estou sendo seguida, mas não me importo em impedir que venha atrás de mim. Parte de mim quer mesmo que ele fique por perto.
— O que acontece com vocês homens? Por que param de crescer aos doze anos? — Resmungo, procurando por alguma coisa em que socar ou quebrar. Encontro um pano de prato encardido sobre a pia e o jogo no chão com força. O ato não me traz nenhum conforto e ri nasalado.
— Acho que tem a ver com os hormônios. Uma vez que descobrimos que vocês não são tão nojentas e asquerosas como pensamos, é difícil não ser um completo babaca quando chega a hora de expressar isso. — meneia com a cabeça, analisando a própria frase.
— Então, ser babaca é justificável por ter um momentâneo e conveniente congelamento no funcionamento do cérebro? — O desafio com os braços cruzados na frente do corpo. ri nervoso.
— De jeito nenhum! Mas é um espectro, . Todos somos babacas em níveis diferentes. — encara as próprias mãos, reflexivo.
— Eu só atraio caras que ultrapassam o método de medição de babaquice. — Chuto o pano no chão e de novo, nenhum conforto.
— Isso é verdade. — Levanto os olhos em sua direção e ele crispa os lábios antes de voltara a falar. — Mas não acho que seja sua culpa, vai ver seu babacômetro está quebrado. Você merece mais do que esses caras ultra babacas, . Alguém que veja algo mais além do quanto você é linda. — Minha primeira reação é sorrir. A segunda, é discordar mentalmente de cada palavra que ele disse.
— É culpa minha. Eu devo facilitar para eles me tratarem como um buraco negro de suas necessidades, quando necessário. Depois sou esquecida e substituída por uma supernova mais interessante. Deixada na escuridão solitária de minha existência destrutiva. — Suspiro pesado e reparo que dividi demais, malditos quadrinhos e suas emoções à flor da pele. me olha de testa franzida, boca meio aberta e posso ver seu rosto se reconfigurar em um enorme sinal de interrogação.
— De onde eu vejo, você tem duas opções de como prosseguir: deixar que a sua vida seja guiada por coisas que te acontecem, ou, tomar as rédeas da situação. Você é inteligente demais para se deixar levar por esses caras fracassados. Eu sei que tudo parece difícil agora, é porque tudo está começando a acontecer e esse choque entre uma vida e outra é bastante assustador. — divide sua sabedoria com um toque de dúvida. Talvez seja o jeito que estou o encarando. Tamanha raiva contida. guarda as mãos nos bolsos da calça. — Mas se tem alguém que pode mudar o próprio destino, esse alguém é você.
— Por que acha isso? — rola os olhos, numa falsa impaciência.
— Eu não acho, eu sei disso. Você pode não saber exatamente o que quer fazer, mas quando descobrir, eu sei que será a melhor. Agora, vamos dançar, porque o Anderson não sabe aproveitar tudo o que você tem para oferecer. — estende a mão e eu nem hesito em alcançá-la.
— E você sabe? — Pergunto com uma sobrancelha erguida, o desafiando. puxa ar para os pulmões e tomba a cabeça para o lado.
— Você sabe que sim. — O tom convencido faz meu corpo acender numa empolgação diferente. me mantém sorrindo enquanto me guia pelo meio das pessoas. Seu toque é gentil, mas preciso. Ele guia a dança e percebo que não precisamos estar exatamente nos tocando para que haja aquela conexão que tanto procuro.
Começo a me sentir mais próxima de me sentir bem quando sinto a atmosfera do ambiente mudar drástica e rapidamente. A risada esganiçada de Guilherme assombra meus pesadelos e eu a reconheceria mesmo misturado a milhares de sons. O som irritante desperta o pior em mim.
Guilherme está conversando com Ingrid, a aniversariante. Ele a abraça pelo pescoço, dizendo besteiras em seu ouvido, suas mãos estão onde não posso ver. Eu já sabia que o veria com alguém eventualmente, mas não estava necessariamente pronta para vê-lo com alguém hoje. Ingrid morde os lábios e os olhos rolam tanto que parecem querer saltar de suas cavidades.
Conheço bem a sensação.
Em um certo ponto das duas últimas semanas, pude perceber que o Gui tem um padrão. É como se o rapaz tivesse bolado uma fórmula onde o corpo feminino é dividido em blocos e ele tem pequenos combos de movimentos ensaiados que funcionam, mas não têm paixão e a empolgação da descoberta. Quando seus toques ficaram previsíveis, até os amassos ficaram monótonos para mim.
O pequeno show no canto da sala me deixa enojada e eu roubo o copo da primeira pessoa que passa na minha frente.
— Ei! — Escuto o rapaz protestar, mas ele abana o ar e volta para a cozinha em busca de um novo copo.
O gosto dessa bebida é ainda pior que a última que bebi em meu aniversário. Parece muito que estou bebendo produtos de limpeza misturados a álcool. Engulo rápido e sinto que o gole pode voltar a qualquer momento. Me viro para e empurro o copo em sua direção. Ele o pega e cutuca a pessoa mais bêbada próxima a ele, entregando o copo.
— Você não bebe? — Pergunto surpresa. nega com a cabeça e eu lembro de vê-lo correr de cueca na rua há uns meses. Fruto da perda de uma aposta com Pedro. Ninguém sóbrio faz esse tipo de coisa sem ser completamente louco. Uma risada com o pensamento escapa por meus lábios e ela chama a atenção de .
— Meu corpo é um templo. Tenho que ficar alerta. — Ele explica e eu assinto devagar.
— Alerta para o quê? — Insisto e para um tempo para analisar a pergunta.
— Não sei. Não gosto de não estar no controle dos meus sentidos. — Ele volta a explicar e eu abro um sorriso maior.
— Ah, olha o controlador aparecendo aí.
— É o meu corpo, eu gosto de poder controlar meu corpo. — Ele passa as mãos por seu torso e eu acompanho os movimentos com o olhar.
— Entendo perfeitamente. — sorri confuso e eu umedeço meus lábios, sentindo o gosto amargo da bebida. Uma coragem súbita me toma de surpresa e eu me aproximo de , os lábios quase se encontram e ele afasta a cabeça para trás.
Droga, estou sendo babaca nível Anderson.
... — Ele me chama e eu adoro meu apelido em sua voz.
— Não tem ninguém olhando. — Insisto e franze a testa.
— Esse não é o problema... Se for para te beijar, prefiro que não seja para fazer ciúmes pro Gui... — Ele apoia suas mãos em minha cintura e deixa um carinho gostoso ali, eu sinto meu corpo inteiro esquentar. De repente, todo o calor se concentra em meu rosto e eu sinto uma vontade imensa de chorar.
— Desculpa... — Minha voz sai num mero murmúrio e eu me desvencilho do toque de , saindo atordoada por entre as pessoas que dançam a “Check on It”.
Antes de chegar até a porta, esbarro em alguém e prendo a respiração ao ver Guilherme com um resquício de sorriso que some quando ele olha para mim.
! — Ele diz, uma falsa animação escorrendo nos cantos de seus lábios manchados do batom cor-de-rosa de Ingrid.
— Guilherme... — Digo seu nome com um gosto amargo na boca e não pela bebida que ingeri há pouco. Mas por não sentir nada além de remorso por cada segundo gasto com ele. É uma raiva quase descabida.
— Você está bonita hoje. Quer dar uma volta de carro? — Ele oferece, balançando orgulhoso as chaves do carro da mãe. Me preocupo com Ingrid. Os braços da menina claramente bêbada, agarrada em seu pescoço dependendo dele para se manter de pé, me deixa aflita.
— Eu só quero que fique longe de mim. — Digo tentando passar por ele, mas ele empurra a menina e antes que eu possa ir até ela para ajudá-la a se levantar, Guilherme envolve as mãos em meus braços e aperta com força.
— Quem você pensa que é, ? — Ele diz entredentes, os olhos intensos, apertados de uma curiosidade irada. — Sempre querendo me dar lição de moral... Que chata. — É oficial. Eu odeio seu sorriso convencido.
— Me solta! — Tento me desvencilhar de seu toque e ele o aperta ainda mais. — Você está me machucando, imbecil! — Cuspo as palavras alto demais e as pessoas em volta começam a encará-lo com desprezo. Aparentemente nesta parte da festa, as pessoas não toleram grosseria.
— Você é minha, . Não importa o que aconteça. Eu e você, naquele sofá... É para sempre. Você não quer que ninguém saiba, não é? Seu irmão iria ficar tão envergonhado. — Ele me solta e coloca uma mecha de cabelo atrás de minha orelha.
— Você é um covarde! — Eu o empurro pelo peito, imersa em uma raiva acumulada que me sufoca e o único jeito de não me afogar nesse sentimento tão sombrio, é cuspindo-a em Guilherme.
— Covarde? Eu não acho que seja covardia me aproveitar de uma situação tão... Fácil. — Duas vezes em uma noite são vezes demais para ser diminuída pela minha sexualidade por homens que foram rejeitados por mim. Encaro o meio dos olhos de Guilherme e sinto meu corpo inteiro vibrar em puro ódio.
A palma de minha mão esquenta, esfria e eu sinto sua barba por fazer pinicar em milhares de pequenos lugares entre meus dedos e na palma. O som estalado me faz arregalar os olhos assustada. Removo minha mão rapidamente e vejo Guilherme se aproximar com os punhos em riste. Ele diz alguma coisa, mas é como estar dentro d'água. Meu corpo é erguido no ar. Como um manequim, estou paralisada pela descrença no que acabo de fazer.
Me sinto um monstro perigosamente instável. A confusão se intensifica ao meu redor. Os pequenos conjuntos de pessoas rapidamente se tornam dois grupos bem definidos, prontos para briga.
Mal sinto meus pés encostarem no chão, mas sei que estou sendo levada para fora da casa.
O ar da noite é um alívio e só então eu vejo quem impediu que eu levasse um bom soco no meio da cara. Não é surpresa nenhuma ver com os olhos arregalados em minha direção.
— Você está bem? Se machucou? — Ele pergunta preocupado.
— Não e não. — Ele suspira pesado. Levo minhas mãos a cabeça, processando tudo e me sentindo pior a cada segundo.
— O que foi aquilo? — parece um pouco decepcionado e eu desvio o olhar. Estou decepcionada também.
— Cadê o Pedro? — Pergunto preocupada que meu irmão tenha visto a cena e esteja trocando socos com Guilherme a essa altura.
— Não sei. Fiquei assustado e só queria te tirar de lá. — apoia as mãos nos joelhos e eu me sento na calçada. — Você deu um tapa no Gui? — Assinto devagar. Minha mão ainda está formigando. — Pareceu um tiro... — Ele diz rindo de leve. Acho que usa humor como válvula de escape para momentos assim. Mesmo não merecendo a leveza de sua gentileza, sou grata por isso.
E como quando se encara um furacão e ele parece parado, na verdade ele está indo na sua direção; a confusão parece se aproximar de nós de novo. Ouço a gritaria ficar maior e maior, me levanto sentindo o corpo rígido demais para tremer.
— Calma, cara! — Otávio diz brando, como sempre. Ele mantém a palma da mão no peito de Pedro e o impede que ele volte para dentro da casa.
A festa foi arruinada.
— O Gui exauriu minha paciência! Eu o quero fora do Funkz. — Pedro diz resoluto e o dano dos meus atos ficam cada vez maiores.
— Desculpa, Pedro. Desculpa! — Corro até ele, o abraçando pela cintura. — É que ele disse umas coisas e eu... Não sei o que me deu. Eu nunca quis nada disso... — Pedro respira fundo e me abraça de volta.
— Para de se desculpar. Se você precisou se defender, é porque te atacaram primeiro. — Ele acaricia meus cabelos e eu tento me apoiar em suas palavras. — Mas lembre-se que eu existo da próxima vez que for se vingar de um namorado. — Pedro bagunça meus cabelos, ri. Mas suas mãos tremem e eu sei que ele está bravo em níveis quase mitológicos.
— Ninguém vai dizer nada sobre o “exaurir” do Pedro? — pergunta nos fazendo rir.
— Não tenha vergonha, . Pode admitir que não sabe o que significa. — Otávio brinca e Pedro ri ainda mais.
— Eu sei o que significa... — se explica, mas é imediatamente ignorado.
— Eu levo vocês para casa. — Otávio diz agitando as chaves do Palio 99 preto cintilante da empresa de transportes da tia.
— Eu posso pegar um ônibus. Não quero estragar a festa para mais ninguém. — Digo envergonhada e Pedro nega veemente.
— De jeito nenhum! Essa festa está chata mesmo. — Pedro se vira para o amigo, ficando sério de repente. — Desculpa, cara. Mas quão bêbado você está? — Otávio se ofende de imediato.
— Que absurdo! Eu não ofereceria carona se não tivesse condições de dirigir. — Pedro não parece ter muita certeza, mas acaba se desculpando com o amigo. De novo.
— Posso ir também? Preciso dormir. — diz bocejando.
— Não são nem meia noite. — Otávio diz impaciente.
— E daí? — resmunga e é engraçado que ele seja o mais novo entre os meninos. Ele é tratado mais ou menos como eu sou tratada por ele. Sempre sendo zoada.
— Certo, vamos então. O leite que a sua mãe esquentou já deve estar esfriando. — Otávio diz ácido.
— Não ouse falar da minha mãe nesse tom sexual! — Pedro me abraça pelos ombros com um braço só.
— Tudo bem? — Pergunta daquele jeito brincalhão, fico sem saída além de assentir, mas me sinto péssima por dentro.
Ao entrar no carro, percebo que toda a atenção do dono é inteiramente dedicada à parte exterior do veículo. O interior parece um projeto pela metade de uma customização esquecida há muito tempo. A parte de trás, onde normalmente existe uma espécie de bandeja separando o espaço do porta-malas e os assentos traseiros, é somente um porta-malas gigante e enferrujado, com algumas caixas caídas no canto.
O cinto de segurança é meio solto, mas por alguma razão, é difícil passá-lo pelo corpo. Quando ouço o clique, temo que nunca mais possa abrir o cinto novamente.
me assiste divertido. Sem muita dificuldade, ele passa o cinto pelo próprio corpo, arqueando as sobrancelhas num gesto quase infantil.
— Você está bem? — Ele pergunta de novo e eu assinto, mentindo de novo. Mas não estou de todo bem. Quando começa a chover forte, uma parte narcisista às avessas acredita que é culpa minha. Tudo é culpa minha.
A conversa entre os meninos e a música alta me deixam alheia ao momento. Com a cabeça encostada no banco, encaro a rodovia molhada. É sábado de madrugada, a maioria dos carros que deixam a rodovia Dutra completamente parada durante a semana estão guardados em suas garagens nesse momento.
“Ain’t No Way” do Chris Brown explode nos alto falantes pouco preparados para tal som. Otávio dirige rápido demais e eu começo a sentir um frio na barriga por ver toda a cidade em volta como um borrão amarelado, iluminada pela luz precária dos postes que ainda restam ao longo da rodovia.
— Precisamos falar com a Leah, mas ela ouviu bem o que o Gui falou. Acho que ela concorda com sua decisão. — Otávio diminui o som e a velocidade. Abre o vidro da janela só o suficiente para que seu braço passe para fora e com a mão, ele empurra a água do para-brisa. ri de como o estado do carro é precário e eu fico preocupada com a segurança de Otávio durante a semana, enquanto trabalha atravessando a cidade entregando mercadorias.
— Podemos deixar o e a em casa e voltar para buscar a Leah. — Otávio sugere distraído e Pedro concorda.
— Ela ficou com a Ingrid, o mané do Guilherme acertou a menina com uma cotovelada na cabeça. — Pedro comenta e se vira um pouco para me enxergar.
Cantarolo a melodia da música, tentando me manter no momento e não me deixar afundar em uma culpa confusa e grande demais para lidar. Ele me sorri abertamente e eu fico aliviada por ele não ter se machucado por minha causa.
Estamos próximos da entrada que nos leva para o bairro onde moramos, Otávio faz uma curva fechada e damos de cara com um caminhão saindo do grande posto de gasolina de nome japonês, ponto de referência para todo Guarulhense.
90Km por hora não parece muita coisa para quem dirige rápido o tempo todo. Mas um fenômeno ocorre quando o seu corpo absorve o impacto de uma parada brusca á 90km por hora. A lei da inércia diz que um objeto tende a permanecer em seu estado de equilíbrio a menos que uma força atue sobre ele. No impacto da dianteira do carro com a lateral do caminhão, meu corpo é lançado para frente na mesma velocidade que o carro estava antes. O cinto de segurança impede que eu continue a me mover e todo o impacto é absorvido pelo meu ombro esquerdo. O material áspero do cinto de segurança corta meu pescoço, ouço um estalo em meu ombro e a dor é lancinante.
A volta é ainda pior. A traseira do carro bate no chão, me lançando para trás. O ar escapa de meus pulmões conforme minhas costas batem no assento novamente.
Por um instante tudo dói e então, passa.

! ! — Pedro diz com a voz fraca, ele tosse muito e tem dificuldade para respirar. Quando abro os olhos, a chuva parece cair em câmera lenta. Sinto cheiro de fumaça e todo o meu corpo dói.
Entro em um modo de checagem. As pernas primeiro, depois as mãos. Meu braço esquerdo dói quando tento levantá-lo e então, um grito agudo de dor some em minha garganta. É confuso. Eu quero gritar, mas tento respirar fundo em vez disso.
, preciso que diga alguma coisa! Consegue se mexer? — Minha respiração está descontrolada e estou hiperventilando. É como ir acordando lentamente de um pesadelo muito real. — Por favor, por favor. Nós temos que sair daqui o carro está pegando fogo e vai explodir, maninha. Por favor, fala comigo! — Pedro chora e aperta minha mão.
Sinto seu toque e é tão real. A urgência em seus olhos é tão intensa que todo o meu corpo congela ao ver quão séria é a nossa realidade.
— O que aconteceu? — Gaguejo atordoada. Pedro me ajuda a me sentar.
Ele se mexe muito rápido e some de meu campo de visão toda hora. Ele se abaixa diante de mim e com um gemido sofrido, Pedro me ajuda a levantar e anda aos tropeços comigo até o mais longe possível da colisão.
está caído mais afastado na calçada. As mãos ensanguentadas e trêmulas na cabeça e o pé descalço batendo sem parar no chão me dão a certeza de que ele está vivo, pelo menos.
, olha para mim. — Pedro se abaixa mais uma vez e se certifica de que estou ouvindo o que ele diz segurando meu rosto para si. — Preciso ajudar o Otávio, ele ainda está preso no carro. É perigoso, então preciso que você fique aqui. Pode ser? — Seguro sua mão com força, ela está escorregadia por estar molhada pela chuva e um pouco ensanguentada também. Pedro tomba a cabeça para o lado, me olhando do jeito irmão mais velho dele.
— Não, vai não. Se é perigoso, vamos pedir ajuda! — Peço chorosa e ele sorri. Se aproxima de novo e encosta a testa na minha. Pedro respira fundo e expira um gemido, seguido de uma tosse.
— Mantém o acordado até eu voltar. Ele machucou a cabeça e está todo confuso e romântico. — Ele olha de um jeito estranho para o amigo antes de beijar minha testa e se afasta o mais rápido que pode.
... — Me aproximo dele, mas ele não diz nada. Seu corpo inteiro treme e eu não sei se devo chacoalhá-lo, não quero piorar suas lesões. Um corte na testa pulsa ensanguentado e eu me preocupo com o fato de ele não estar falando.
— Como isso aconteceu? — pergunta baixo, ele parece desolado. Parece loucura, mas respiro aliviada quando ouço sua voz.
— Eu não... — Volto a olhar o carro, agora tomado pelas chamas. Não consigo ver nada além do fogo crescendo e me desespero por não ver Pedro carregando Otávio para longe de tudo aquilo. — ... , você está vendo Pedro? — Chacoalho e ele levanta a cabeça, apertando os olhos para tentar enxergar adiante.
O motorista do caminhão sai aos tropeços do meio da fumaça densa, meu coração pula uma batida. Eu ouço sirenes e me distraio com o alívio momentâneo que sinto ao ver que a ajuda chegou.
— Vocês têm que sair daqui! É um caminhão de combustível vazio. É uma bomba prestes a explodir! — O homem barrigudo de bigode grosso e cabelos grisalhos grita com a força que ainda lhe resta. O peito vermelho pela queimadura recente parece bastante machucado e ele cambaleia para o mais longe que pode. — Eu tentei ajudar o menino, mas...
Tudo acontece rápido demais. Diferente dos filmes, onde as explosões de carros são gloriosas e fecham triunfantemente um arco; na realidade, é um estrondo imenso seguido de um vazio maior ainda. E então as chamas tomam conta de tudo o que se pode ver.
Levanto meu corpo com dificuldade, as forças naturais da física lutando para me manterem no chão.
— Não, não, não... Pedro! — Me levanto sentindo uma dor imensurável no braço. Tento correr até o fogo, chamando por meu irmão. Sou segurada pelo paramédico e não importa quanta força eu faça ou o quanto eu grite, ele não me solta. — , por favor... Acha o Pedro! — Peço em prantos e está atônito. As chamas refletem em seus olhos cheios de lágrimas e sua desesperança me faz ceder.
Não há mais nada a ser feito.
O Pedro morreu.

Durante toda a Missa de Sétimo Dia me pego pensando em como Pedro teria odiado tudo isso. As flores, o choro, o silêncio.
O monólogo do padre João soa particularmente mais magoado que o de costume. É nítido que a morte precoce e sem explicações de um jovem como Pedro o abalaria, mas o padre adorava o Pedro. Ver um homem de fé engolindo o choro por dividir conosco a revolta silenciosa da perda é comovente. Nem mesmo as respostas sagradas acalentam seu coração.
Quando ele finalmente desaba ao citar a tradução livre da música preferida do Pedro, não consigo assistir. Encaro o gesso grosso em meu braço e tento prestar atenção somente na dor física que sinto, adormecendo meus sentidos emocionais.
“Eu amo o meu irmão, mas nós não vamos a lugar algum,
A menos que compartilhemos uns com os outros.
Nós temos que começar a fazer mudanças,
Aprender a nos vermos como irmãos ao invés de dois estranhos.
E é assim que deve ser”.
— Se Pedro acreditou nisso sua vida inteira, em especial nos últimos momentos dela. Por que nós deveríamos desistir? Pedro estendeu sua mão aos amigos até o último segundo. E isso é muito mais do que nós fazemos no dia a dia. O Pedro voltou para casa, mas nos deixou uma lição para a vida toda. Não se esqueçam disso. — O olhar do padre recai sobre minha mãe que chora copiosamente no colo da tia Vanessa, ela ainda não chorou. Eu, por outro lado, comprimo com muito esforço um sorriso satisfeito por ouvir o padre João citar Tupac na missa.
— Só você, Pedro... — Suspiro sentindo que só consigo evitar sorrir porque me lembro que estou ali porque há uma semana, no ponto vazio diante do púlpito do padre João, estava o caixão fechado com o que sobrou do meu irmão mais velho.
Pedro teve os pulmões perfurados no impacto, todas as costelas quebradas. Ouvi os cirurgiões cochichando que mesmo se ele tivesse sido salvo a tempo, ele não teria chance.
Pedro ajudou a sair do carro, me tirou de lá ainda desacordada e fez de tudo para salvar o Otávio também. As hipóteses são de que quando ele voltou para salvar o Otávio, se engasgou com o próprio sangue e desmaiou por ter uma baixa de adrenalina e sentiu toda a dor de uma só vez.
É ótimo assistir às séries médicas e ver na ficção as suposições e opiniões dos médicos atendentes. Mas quando é com você, com a sua família, tudo muda. A suposta empatia na realidade tem um distanciamento tão grande. O julgamento escondido por trás da pena pela minha mãe que ainda iria descobrir o que houve. Eles encontraram álcool em meu sangue, no de Otávio também. Então, a presunção por ter tudo desvendado preenche o espaço entre mim e eles. Mas eles não sabem o que aconteceu.
Eles não citam que meu irmão foi um herói e que ele salvou a minha vida.
Penso nos ferimentos dele e acho completamente ridículo que eu só tenha quebrado o braço e me arranhado um pouco, enquanto ele explodiu de dentro para fora.
Otavio foi cremado, o que soa irônico já que 90% de seu corpo já havia sido consumido parcialmente pelo fogo. Os pais dele apareceram em solidariedade, mas eles olham para mim e começam a chorar. Eu sei por quê. Minha mãe tem feito o mesmo desde que soube. Ela estava comigo no quarto de hospital e eles tinham acabado de consertar meu braço em uma cirurgia com incisões em dois lugares. Uma no ombro, outra no cotovelo. Eles não conseguiram explicar bem o porquê, mas se desculparam pelas futuras cicatrizes. Mas temo que eles tiveram de quebrar mais meu braço para recolocá-lo no lugar. Pelo menos, eu me sinto assim.
Acho que eu estava atordoada demais para protestar, mas até agora, cicatrizes parecem um preço pequeno a se pagar diante de tanta destruição.
Ameaço me levantar, preciso sair daqui e chorar em algum lugar longe dos olhares de todos do bairro.
— Não. Se. Atreva. — Minha mãe crava as unhas no meu braço e eu me sento de novo. — Se eu tenho que passar por isso de novo, você também tem! — Ela diz entredentes e eu assinto devagar. Encaro os sapatos do padre como se pudesse criar um universo alternativo a partir daquele par de sapatos sociais pretos bem lustrados.
Um choro contido de lágrimas grossas me toma de assalto e parece que seu exorcismo será lento e doloroso.
O sermão termina, as pessoas fazem uma fila para nos cumprimentar e o choro não para. Eu sei que meu corpo está presente e as pessoas apertam a mão saudável, que eu deixo estendida por ainda sentir a dor aguda de outro beliscão de minha mãe umas duas famílias antes dessa.
Não vejo nada, mas encaro o torso das pessoas que vão passando diante de mim. Cada uma delas, com sua anatomia única, me relembrando quanta dor Pedro sentiu antes de apagar e morrer queimado.
Vejo ternos e vestidos de diferentes tecidos na mesma cor, preto. Pisco prolongadamente, tentando fazer com que eu pare de chorar tão miseravelmente diante de todo o bairro. “Já faz uma semana”, “Ela não chorou tanto assim no enterro”. É porque eu estava completamente dopada com os remédios, no dia seguinte à uma cirurgia.
É triste como não estou surpresa com a crueldade de algumas pessoas durante momentos de crise.
Com os olhos mais abertos e menos nublados pela tristeza que não parece ter fim, vejo o amarelo destoar de todo o resto. “Funkz” está escrito em letras garrafais em uma estampa chamativa laranja e vermelha. Levanto meus olhos e sorri triste. Ele afasta minha mão e me abraça com cuidado. Sua cabeça ainda está enfaixada e seus cortes são ainda mais profundos que os meus. O impacto maior foi do lado onde e Pedro se sentaram.
Se eu pudesse voltar no tempo...
— Você não precisa fazer isso. — Ele diz, a voz embargada é abafada pelo abraço em meus ombros. se afasta ainda me abraçando e eu olho de soslaio para minha mãe, que cumprimenta as pessoas que não vão esperar para me cumprimentar também, dando continuidade à fila. — Foda-se! Você fez o que tinha que fazer. — cochicha e ele xingar na igreja depois de ouvirmos Tupac é simplesmente fora de todos os padrões.
não me deixa responder. Em minha hesitação, ele entrelaça os dedos nos meus e me guia para fora da igreja. Saímos correndo de lá. O mais rápido que duas pessoas feridas em um acidente de carro pode correr.

— Que saco! Que dia sacal! — Reclamo sentindo uma coceira irritante por baixo do gesso. Estou cansada também, não durmo há dias. Mas quero permanecer me mexendo, não sei bem para onde. Sigo e sua determinação, subindo e descendo ladeiras para o mais longe possível da igreja.
— Seria horrível da minha parte admitir que estou me corroendo de curiosidade para saber o que está acontecendo na final nesse exato momento? — morde o interior da boca. É a primeira vez que o vejo sob a luz do dia depois do acidente. Ele também parece abatido. Muito mais que somente fisicamente.
— Pedro ficaria uma fera se eu não estivesse preocupada. — Uma risada escapa de seus lábios, ele concorda. — Temos quatro membros a menos, me pergunto como a Leah está lidando com o grupo sendo líder. — Ando mais devagar, sentindo um pouco de tontura. para sob a sombra de uma árvore na esquina da rua da escola.
— Você esteve certa esse tempo todo. A Leah é mesmo um ser divino. Ela conseguiu convencer o grupo todo a ir competir, por eles. Por nós. — volta a sorrir, mas nenhum sorriso dele parece o mesmo depois de tudo o que aconteceu.
— Gostaria de ter ido a algum dos últimos ensaios. Sei que as coisas estão difíceis para ela. Queria ter ajudado. — Digo cansada. Me sento na calçada e encaro o céu azul, livre de nuvens. O sol brilha forte e esse era o tipo de dia preferido de Pedro. Quente, bonito, cheio de possibilidades.
Me incomodo por estar incomodada com o calor, quase ouço a voz impaciente de Pedro me mandando tomar vergonha na cara e agradecer enquanto ainda temos camada de ozônio para nos proteger da luz solar direta.
Eu sinto tanto a falta dele.
— Você também, . Deve estar sendo difícil para você também. Tenho certeza de que a Leah entende. — Ele garante e eu evito seu olhar. Me vejo muito nele agora. Nós somos os que ficaram. Não o bom líder e seu braço direito, mas nós dois. Sei que tem sofrido com os ataques silenciosos também. Não sei dizer o quanto sou grata por ele ter me resgatado do escrutínio na igreja.
— Estou feliz que esteja aqui. — Venho querendo ouvir essas palavras nos últimos dias, mas dizê-las para e vê-lo se emocionar por ouvi-las me dá tanta satisfação quanto ao contrário. Eu me emociono também, desvio os olhos dos dele já marejados, pois, não quero mais chorar. Nem de alívio por estarmos vivos.
— Sinto muito por tudo o que você perdeu. — A voz embargada é sincera e sua honestidade me faz desabar.
E eu perdi mesmo muito. Talvez tudo.
Continuamos a andar e percebo que estamos perto de casa. Suspiro exausta só de pensar em entrar na casa. Tudo parece estar fora do lugar. Não só figurativamente, mas no literal. Tudo está sujo, quebrado, jogado no chão por uma mãe em desesperada dor.
Eu tenho passado as noites no sofá, em claro. Ouço sua crise diária assim que anoitece, checando de vez em quando para saber se ela ainda está viva, apesar de não ser bem-vinda no quarto. Ela não me deixa entrar mais lá há cinco dias.
Gostaria de poder me agarrar a ideia simplista de que posso sentir a presença de Pedro no lugar, mas, não se parece nem remotamente com o que um dia chamamos de lar.
— Quer ir para casa? Descansar um pouco? — me pergunta quando passamos na entrada da rua. É involuntário quando começo a tremer e minha respiração fica ruidosa.
— Não. — Digo rápido, tentando não demonstrar o quanto estou mal com a ideia. Ter fugido da igreja pode desencadear uma reação muito ruim em minha mãe e eu não quero ouvi-la gritando mais uma vez o quanto ela gostaria que tivesse sido eu a enterrada no cemitério do centro da cidade.
— Então, fica lá em casa? Minha mãe viajou e você pode ficar no quarto dela, se quiser. — Não leva um segundo inteiro para que eu aceite sua oferta de abrigo. Por causa do braço quebrado, estou afastada da lanchonete e ficar em casa parece impossível. Não há como se curar quando se vive o mesmo dia todos os dias.

Com a mão na maçaneta da porta eu travo. Tento me preparar para o que vou encontrar ali dentro, enquanto faço uma lista mental de coisas que preciso pegar. Entro no quarto e o cheiro do perfume de Pedro predomina o ambiente. Vejo o frasco quebrado no chão, ao lado de sua cômoda.
Sinto o corpo inteiro tremer ao passar pela sua cama. O lençol verde oliva me encara de volta, oferecendo memórias de longas conversas de madrugadas insones. Todos os sonhos malucos que Pedro me contava logo cedo pela manhã, com medo de esquecer as aventuras que vivia inconsciente. As batalhas de melhores videoclipes, os campeonatos de passos de dança malucos. Ele vencia tudo, claro, mas deixava tão divertido só poder participar de sua vida.
Tenho a amarga sensação de que esta é a última vez que estarei neste quarto. Procuro absorver cada detalhe da organização que ele fazia semanalmente. Os pôsteres de suas bandas preferidas colados na parede, os livros empilhados sobre uma cadeira de bar amarela. Os bonés encaixados uns nos outros na prateleira sobre a cama. As fotos dos campeonatos de judô quando criança e das competições de dança na adolescência, até mais recentemente. No canto da prateleira, um urso polar segura um porta-retrato com uma foto dele e de Leah. Eles sorriem, olhando um para o outro.
Eu nem imagino como seja perder um amor.
Passo os olhos pelos tênis alinhados embaixo da cama e vejo a caixa corroída por baratas, ele guardava suas revistas de mulheres nuas ali. Eu nunca contei pra ele que sabia disso. Um quase riso é interrompido pelo som das chaves do lado de fora da casa. Respiro fundo e me mexo rápido. Pego algumas roupas limpas, calcinhas e meias. Coloco tudo dentro da mochila, junto com alguns itens críticos e uns livros.
A porta da sala se abre.
Abro o guarda-roupas e procuro com os olhos por entre os vários moletons de Pedro, aquele que ele usou em minha festa de aniversário. Não sei exatamente por que, mas quero esse. Pego minha carteira e meus olhos se demoram no banquinho que uso como mesa de cabeceira. Tati havia revelado as fotos de meu aniversário há alguns dias e eu as deixei ali, para guardar em um álbum depois. A primeira foto da pilha é a que ela tirou de mim e Pedro, sujos de bolo e rindo um do outro. Machuca ter que dobrar a foto para que ela caiba na carteira, mas quero ter esta foto para me lembrar dele sempre desse jeito, tentando me fazendo rir e feliz por conseguir sempre.
— Quem te deixou entrar aqui? — Minha mãe pergunta embriagada pela tristeza. Seus olhos fixos no frasco de perfume quebrado com culpa.
— Eu precisava de roupas limpas, mãe. Mas já estou saindo, vou ficar na casa do durante o fim de semana. — Eu sei que ela não se importa, mas quero mostrar a ela que eu sim.
— Como um rato. Abandonando um barco que afunda lentamente. Previsível, . — Ela ri nasalado.
— O que estamos fazendo não é saudável. Não dormimos, não comemos. O Pedro iria odiar que continuássemos assim. — Sou interrompida pelo estalo da mão pesada que faz meu rosto virar muito rápido. Me inclino para frente, sentindo o estômago girar e se contorcer, mas não há nada o que pôr para fora. Eu não como há dias.
— Você não tem o direito de dizer o nome dele! Ele era meu filho, meu! — Ela grita com o dedo em riste, apontando para meu rosto.
Ela parece tão perdida.
— O Pedro era meu irmão! O único que cuidou de mim durante todos esses anos, então, eu o perdi também! Deixe que tenhamos pelo menos isso em comum. — Eu quero gritar e fazer com que ela me escute claramente, mas só consigo resmungar e murmurar. O que a irrita profundamente.
— Eu queria poder voltar no tempo, impedir que ele saísse. É tudo culpa sua, ! Se você não estivesse tão deprimida o tempo inteiro, ele não teria que te levar para festa alguma! Ele deveria ter se salvado! Por que ele não se salvou? — Os joelhos dela cedem, ela bagunça os próprios cabelos em uma busca dolorosa por respostas. Sua dor me desespera e eu tento ir até ela.
— Me deixe te ajudar... — Me inclino e ofereço meu braço sadio para que ela se apoie. Minha mãe empurra o braço e me olha com tamanho desprezo. — Mãe, por favor... — Tento me aproximar para um abraço e ela me empurra.
— Sai daqui! Eu não quero ter que olhar para você, . — Ela se levanta do chão, ajeitando a saia preta. — Eu prefiro não ter filho nenhum a ter você.
— Você não pode estar falando sério. — Rio nervosa, buscando algum sinal de mudança de ideia em seus olhos. Mas ela está irredutível.
Minha mãe não diz mais nada. Mas deixa seu recado bem claro. Ela dá a volta em mim e se deita na cama de Pedro, cobre o rosto com o travesseiro e emite um som animalesco e desolado. Se parece com um grito sofrido. Parece que é o único jeito de ela expressar o quanto está despedaçada.
Eu sei que minha mãe precisa de ajuda. Sei que não deveria estar indo embora agora, mesmo que ela tenha me dito para fazer isso. A maior parte de mim não quer deixá-la sozinha com tanta dor, mas a partezinha de mim que não vai aceitar ter sido salva à toa me empurra porta a fora.
Já distante da casa, observo a fachada descascada, pintada de amarelo. As janelas de um branco acinzentado estão fechadas. A casa parece triste com suas plantas murchas crescendo pelas paredes e a árvore torta na calçada que invade o quintal.
No fundo da memória, é como ouvir os gritos empolgados, as gargalhadas de piadas idiotas. Nossos choros, nossas promessas e segredos. Nossa amizade, nossa irmandade. Ouço Pedro me dizendo que me tiraria dali de qualquer forma. E de um jeito ou de outro, ele cumpriu sua promessa.
Olho uma última vez para o fim da rua. Uma última vez sentindo a esperança vazia de que alguém vá chegar e consertar tudo. Ninguém vem.
toca meu ombro e tira de lá a mochila pesada. De um jeito tímido, abraça meus ombros e espera paciente e em silêncio até que eu esteja pronta para então, seguir em frente.

A casa da mãe do é extremamente organizada. Toda superfície tem um paninho tricotado por alguém dedicado e perfeccionista. Não há um grão de poeira sequer até onde meus olhos podem ver. O cheiro refrescante de limpeza é como um abraço cítrico. Gosto de como o vento flui dentro da casa pelas janelas abertas, gosto do amarelo claro nas paredes da sala e estar aqui depois de crescida me mostra como o lugar ficou parado no tempo. A TV pequena de botões enormes no canto da sala não funciona, mas lembra mais ou menos a sensação de estar na casa de uma avó. Não que eu tenha experimentado conviver com minhas avós, as duas morreram antes que eu nascesse. Mas é um bom toque vintage no lugar, junto com as almofadas coloridas de babados.
Encaro as toalhas bem dobradas no guarda-roupas do quarto de Simone e tento decidir qual será a tonalidade de roxo com a qual vou me secar após o banho. Simone vai passar o fim de semana no litoral com o namorado novo. avisou a mãe que me receberia pelo fim de semana, pela conversa ao telefone que ouvi pela metade, ela ficou feliz por ele ter tomado a atitude de me acolher. No enterro, não me lembro de muita coisa, mas lembro de Simone me dizendo que eu poderia contar com ela para qualquer coisa e apesar de sentir que estou abusando de sua hospitalidade, me sinto verdadeiramente bem aqui.
Colada na geladeira, uma folha de caderno rasgada ao meio tem uma lista de telefones úteis e um recado carinhoso da mãe para , dizendo que ela volta logo e que o ama muito.
— Ah, não! Eu pretendia tirar isso daqui antes de você ler... — estala a língua na boca e anda apressado até a geladeira, retira o imã que prende a folha e quase amassa o papel.
— Não faz isso! É fofo. — Digo o impedindo de destruir o recado. — Talvez você seja um bom filho para ela te amar tanto. — Dou de ombros e ele suspira pesado. Coloca o recado de volta na porta da geladeira e encara o papel por um tempo, relendo o recado.
— Acho que posso dizer que sou mesmo um bom filho. — Ele diz convencido e eu sorrio de verdade pela primeira vez em dias.
— A sua mãe te ama... — Brinco cantarolando e ele cora.
— Você é impossível! Eu ia dizer que a sua não, mas é muito cedo para brincar com isso... — Ele diz envergonhado e se surpreende quando eu continuo rindo.
— Você é horrível! — O empurro pelo peito e ele ri de leve.
Após o banho, esquenta um pouco de comida do microondas e comemos em silêncio, sentados no sofá. Na televisão com o volume no mínimo, algum filme desinteressante ilumina a sala. Cada garfada da comida caseira parece iniciar um processo de cura muito profundo e emocionada por ver tanta dedicação em volta de mim, volto a chorar baixinho.
Detesto estar chorando de novo, ainda mais quando o único som audível são meus gemidos contidos de uma dor imensa. tira o prato de meu colo e o coloca na mesa de centro. Ele esfrega as mãos no short, incerto sobre o que fazer. De repente, ele se senta de novo. Mais perto dessa vez. Ele estica o braço e entrelaça os dedos nos meus, juntando nossas mãos. Eu aperto forte, deitando a cabeça em seu ombro.
— O que eu faço agora? — Pergunto aos prantos.
— Agora? Nada. Você não precisa fazer absolutamente nada. — Ele ajeita melhor minha cabeça em seu ombro, afagando meu cabelo de forma carinhosa.
Se eu não tivesse me sentindo tão vazia por dentro, esse seria o momento em que eu me apaixonaria por . Pela pessoa linda que ele é em tantos níveis. Encaro nossas mãos unidas e fecho os olhos, desejando que o tempo passe mais depressa. Quero ir para um lugar onde essa dor seja menor, ou pelo menos, controlável. Não quero esquecer Pedro nunca, mas quero esquecer que ele morreu como morreu. Quero acreditar que seu ato de bondade o eternizou para sempre, mas só faz uma semana e meu choro já incomoda quem não chegou a conhecê-lo de verdade.
Estou quase dormindo ouvindo o som do coração de bater forte, quando ouço um vozerio e então, alguém grita seu nome lá fora.
— Cacete! — xinga baixo e faz seu melhor para não me acordar, mas eu já estou desperta. — Acho que é o pessoal do Funkz. — Ele respira fundo, temeroso. Eu me sinto assim também.
Nos encaramos por um tempo e sei que ele também está pensando que eles podem ter perdido, não seria exatamente uma surpresa. Todos ainda estão abalados demais com o que aconteceu. Antes do terceiro grito, grita de volta pela janela, avisando que já está indo.
Enquanto ele destranca o portão, sinto os olhos dos integrantes do Funkz que eram mais próximos de Pedro sobre mim. Ninguém ali esperava me ver tão cedo e eu supero o choque deles com minha presença com um sorriso triste.
Leah, Vinícius, Amália, Jorge e Diego sustentam expressões desoladas e não é necessário pôr o resultado em palavras.
— Não achei que tivesse companhia. — Vinicius diz com a voz rouca. O rosto de nariz vermelho denuncia que ele chorou até pouco tempo.
— Não que seja necessário que você diga muita coisa, mas a tem o direito de ouvir tudo o que tem a dizer. Ela faz parte do Funkz também. — me defende e eu obrigo meu corpo a desistir de se afastar da conversa.
— Desculpa, . — Vinicius diz sem jeito e eu assinto rápido.
Percebo que Leah não me olha diretamente e eu sei que não é pelo motivo comum. Ela vira o rosto e esconde as lágrimas que escapam por seus olhos, as secando com as costas da mão. Leah ainda usa a fantasia da performance, um moletom por cima e um nariz vermelho que combinam com os olhos inchados.
Me aproximo devagar, usando o braço sadio para abraçá-la de lado. Leah se esforça para sustentar um sorriso amigável, mas o resquício do cheiro dele exala do moletom que estou vestindo e então, Leah desaba.
É horrível.
O choro dela é profundo e sentido. Leah tenta se controlar, mas isso só faz com que seu choro se intensifique e faça seu corpo tremer.
Ignoro a tipoia e ajeito meu braço engessado sobre seus ombros, a abraçando mais forte.
— Desculpa, . Eu não queria chorar assim. Não tem nada a ver, ele era seu irmão e... É só que... — As palavras dela são engolidas pela onda pesada de um choro desamparado.
— Ele era incrível. Você o amava. Eu sei e ele sabia disso também. — Garanto olhando fundo em seus olhos. Vejo a lágrima grossa passear pelo rosto da mulher que meu irmão amava e dói vê-la sofrendo tanto.
— Ainda amo. Vai ser difícil superar um sentimento que tive por mais da metade da vida. — Leah funga e fecha os olhos, me abraçando um pouco mais.
— O Pedro teria odiado o que aconteceu hoje. — Jorge diz pensativo. Nem morto meu irmão tem paz.
— Pedro adorava competir, talvez gostasse mais de perder do que de ganhar. Ele achava mais divertido desse jeito. — Sinto que preciso dizer algo que os conforte. Não foi fácil fazer o que eles fizeram hoje. — Ele costumava dizer que ganhar nos deixa convencidos e sem o que melhorar. A verdadeira lição vem da competição, não do troféu. — Digo me lembrando de sua energia contagiante, a sede por conhecer e saber mais. Não era à toa que Pedro era bom em tudo, tudo o divertia.
— Continuar competindo é a verdadeira vitória. — Leah diz uma frase recorrente de Pedro e eu sorrio, concordando.
— Eu acredito nisso também, . De coração. Mas nós não só perdemos hoje, nós fomos traídos! — Jorge devolve irritado.
— Como assim? — Pergunto confusa.
— Olhe em volta, . — Vinicius abre os braços. — Esta é a nova formação do Funkz! — Não consigo evitar de contar. Éramos quase vinte, agora somos sete.
— Como assim, mano?! Você só pode estar brincando... — diz rindo nervoso.
— O Gui virou a casaca! Ele está no Monsters agora e a maioria foi com ele. — Diego explica e cospe no chão, tamanho desprezo.
O choque de mais uma perda cria raízes apertadas em volta de mim.
— Ele levou a maioria dos B-Boys, as meninas do Voguing... Quem não quis entrar para o Monsters só saiu do Funkz. A... Ausência do Pedro e do Otávio foi demais para eles suportarem. — Leah adiciona e me ajuda a colocar o braço de volta na tipoia.
— Não acredito nisso... — diz indignado. — Como eles puderam?
— Onde ele está? — Pergunto com a voz sombria e Vinícius olha para mim com pesar.
— Eu também estou puto, ..., mas confusão agora não vai ajudar em nada. — Ele diz sabendo exatamente a quem me refiro.
— Onde ele está? — Repito mais alto e ele xinga antes de suspirar e desistir de me impedir.
— Eles devem estar comemorando em algum lugar. — Diego se pronuncia. A voz baixa acompanha o olhar perdido. As mãos no bolso do moletom e a postura completamente deprimida. Ele levanta os olhos em minha direção e há tanta tristeza ali. Tudo é tão triste. Me desespera o fato de saber que Pedro realmente odiaria tudo isso.
— Eu sei onde. — A convicção me liberta das raízes e eu mexo os meus pés em direção ao quintal da casa de . Estou prestes a subir na bicicleta quando sua mão envolve a minha no guidão.
— Onde você pensa que vai? — Pergunta alarmado.
— Pedalar até encontrar esse desgraçado! — Tento puxar minha mão, mas me impede.
— Com uma mão só? — Sua voz sai engraçada, mas não consigo rir. Estou com tanta raiva que estou considerando arrancar a porcaria do gesso e usar o braço como ele está. Curado ou não.
— Você consegue sem nenhuma. — Explico e cerra os olhos.
— Só porque ando de bicicleta desde os quatro anos de idade. — Ele põe a mão livre na cintura e franze a testa. — Vai me deixar te levar lá ou eu preciso mesmo pedir? — Pergunta impaciente e eu me afasto da bicicleta.
— Achei que fosse me impedir. — Respondo petulante e ele ri abafado.
— Eu não sou louco. — Comenta baixo e eu sorrio satisfeita. Quando se senta no banco da bicicleta, ele inclina o corpo para trás e eu hesito, olhando o torso bem definido do rapaz.
— Você vai me derrubar. — Dou um passo para trás e ele estala a língua na boca, solta a mão na própria coxa e suspira cansado.
— Só vem aqui e se senta de lado. — Hesito, mas acabo fazendo o que ele diz. — Agora, encosta o corpo no meu. — Rolo os olhos e me mexo mais para perto dele. respira fundo e pega minha mão com a sua, ele a apoia no guidão e a aperta um pouco. — Segura aqui e deixa os pés longe do aro e dos raios. — Sua voz macia soa baixa próxima ao meu ouvido. Ele apoia o queixo em meu ombro rapidamente, só para conseguir ver o suficiente do quintal para fazer a manobra e nos tirar de lá.
— Então, qual é o plano? — pergunta enquanto nos leva pelos caminhos sem ladeiras.
— Os pais da Ingrid disseram que iam viajar durante o fim de semana. Se o Guilherme ainda estiver ficando com ela, pode ser que ele a tenha convencido de fazer a festa lá. — Digo mais alto, minha voz sai estranha porque estou mesmo com medo de cair a qualquer momento.
— Como você sabe disso? — O estranhamento dele me faz rir de leve.
— Eu os ouvi conversando sobre isso na missa. Foi um pouco antes do padre João citar Tupac. Acho que eles estavam entediados... — Comento observando o movimento fraco nas ruas. É tarde, eu sei. Mas não faz muito tempo, eu me lembro de ter todo tipo de festa em todo lugar. O bairro era mais animado antes. Ou talvez eu visse assim por sempre estar perto de Pedro e ele ser o tipo de pessoa que transforma qualquer ambiente em algo vibrante, alegre.
— Você percebeu que o padre tentou recitar numa levada mais cheia de molejo? Eu quase comecei um beat boxing para acompanhar. — Minha gargalhada o desequilibra um pouco, mas apoia o pé no chão a tempo e ri também.
— Meu Deus! Eu achei que nunca iria poder comentar isso com ninguém! — me segura pela cintura e ainda ri um pouco quando volta a pedalar. Com uma só mão.

É possível ouvir a música de longe e conforme nos aproximamos da casa de Ingrid, parece pedalar mais devagar.
— O que você vai fazer, ? — Ele volta a perguntar e está preocupado.
— Só preciso saber por quê. — Digo amarga e assente sem fazer mais perguntas.
Desço da bicicleta e recebo olhares dos que estão ali fora. Eu não conheço direito essa gente, mas eles devem ter visto minha foto com Pedro nos jornais pela última semana. Sou uma celebridade no bairro pelos motivos errados.
— O Guilherme está aqui? — Pergunto para a primeira pessoa cujo rosto me parece ligeiramente familiar.
— Acho que ele subiu. — Diz com a voz enrolada. Seu olhar de espanto me incomoda e como se não bastasse me fazer sentir como um fantasma, a menina volta a dizer. — Eu achei que você tivesse morrido! — Eu sei que ela não está rindo porque meu irmão morreu. Mas sim de sua própria estupidez alcoolizada. Encaro a menina por um tempo e decido ignorar sua existência, afinal, tenho um objetivo em mente. Acho que vão precisar se esforçar para me magoar, esse tipo de situação parece piada.
Subo as escadas decidida a encarar Guilherme nos olhos e tirar qualquer tempo que ele tenha para formular uma mentira.
— Espera, espera... — me impede de girar a maçaneta da primeira porta que encontro.
— Você tem que parar de fazer isso! — Digo irritada e rola os olhos, umedece os lábios em um misto de impaciência com busca por serenidade.
— Eu paro se você parar de agir como se estivesse sozinha. — Ele diz baixo e eu solto um grunhido incomodado.
— Eu estou sozinha, ! A única pessoa que se importava comigo, morreu. — Digo como se fosse óbvio e ele assente devagar.
— Certo... Faça o que quiser. Eu só vou ficar aqui para o caso de você precisar. — Ele se afasta e eu não gosto disso. Prefiro que ele esteja perto.
O ranger da porta do lado oposto do corredor chama minha atenção. Guilherme abre a porta do que parece ser o quarto de Ingrid. Ele está só de cueca e me encara com o sorriso enviesado ensaiado de sempre.
! — Sua falsa animação me faz rolar os olhos. — Que bom que não machucou tanto esse seu rostinho. — Sua voz me enoja e sua presença faz meu sangue borbulhar. Tento escolher bem as palavras, quero mesmo que ele me diga por que traiu o Funkz. — O que você quer? Ficou tristinha e bateu saudade? — Meu corpo vibra de ódio com sua insinuação. As palavras parecem obsoletas, inúteis. Guilherme é a pior pessoa que conheço e me perco nesse pensamento, voltando a ver tudo nublado por conta de uma raiva enorme se apossando de mim, mas diferente da última vez, quando lhe acertei no rosto com um tapa estalado, eu vejo claramente.
Não estamos muito distantes um do outro, mas tenho espaço o suficiente para pegar impulso com o corpo e depositar muita força no punho fechado que acerta o meio da cara de idiota do Guilherme.
Ele cambaleia para dentro do quarto e eu o sigo, sentindo uma faísca alegre por vê-lo sangrar. Me aproximo mais e o puxo pelo ombro, o acertando no meio das pernas com o joelho. Guilherme geme em vários tons de voz diferentes enquanto derrete até o chão, se contorcendo de dor.
— Você é desprezível! — Me inclino e depois me abaixo diante dele. Meu braço está latejando, mas estou sedenta pela vingança de gosto doce. — Não tem um pingo de lealdade em você, Guilherme. Tudo o que você fizer vai ser medíocre e completamente irrelevante, assim como você. — Encaro Guilherme nos olhos. Sinto pena da menina que um dia achou que amava esse grande desperdício de oxigênio.
Me levanto devagar, Guilherme tem dificuldade em se levantar também e eu observo cada movimento, adorando vê-lo derrotado.
— De onde veio tanta coragem? Você não tinha toda essa coragem quando estava gemendo como uma verdadeira putinha, enquanto estava sendo traída o tempo inteiro! — É engraçado vê-lo tentar me magoar depois de tudo o que aconteceu. Eu quase rio de sua tentativa, mas percebo quão baixo ele está sendo e resolvo descer ao seu nível.
Eu não tenho mesmo mais nada a perder.
— Tipo assim? — Imito os sons eróticos que costumavam deixar Guilherme fora de si, o rosto paralisado numa expressão monótona bastante parecida com a que eu costumava usar também. Olho fundo nos seus olhos quando vejo a decepção, a vergonha. — É fácil fazer por um minuto inteiro, que é quase tudo o que você consegue aguentar. — O rosto de Guilherme fica branco, mas depois começa a se avermelhar.
Ele se levanta e está vindo em minha direção. Eu nem pisco.
— Mano, mano! — interfere e o empurra pelos ombros. — Eu nem quero começar a zoar a disfunção erétil precoce. Mas se você não deixar essa parada quieta, eu vou ter que contar pra geral que você apanhou de uma menina. E ela só tem um braço saudável. — Guilherme parece espumar de raiva e seus olhos escuros pela ira pairam sobre mim. — É sério... Eu vou contar para todo mundo mesmo! — não consegue se manter sério, mas segura Guilherme com força enquanto ri. — Me espera lá fora, ? — Pergunta casual e eu concordo no mesmo tom. Antes de sair, troco um olhar cúmplice com Ingrid, que assistiu a tudo boquiaberta, segurando o lençol contra o corpo.
Ao descer as escadas, sinto meu corpo mais leve. Não quero sentir alívio, tudo ainda está uma merda. Mas tomo alguns segundos antes da dor em meu punho para comemorar essa pequena vitória pessoal.
Consigo ouvir a risada escandalosa de Pedro ouvindo a história, o jeito como ele se jogaria e se expandiria quando algo realmente o surpreendia comicamente. E depois de rir e repassar cada detalhe da humilhação que fiz Guilherme passar, ele me diria que não é assim que as coisas se resolvem. Que eu deveria ter controlado minha raiva e simplesmente ter deixado passar.
Pedro e eu sempre fomos tão bons juntos exatamente por sermos diferentes. Eu não vou sair por aí batendo em Deus e o mundo, mas sei com cada fibra com que sou feita, que Guilherme mereceu e trilhou seu caminho com destreza até o momento em que alguém desceria a mão nele. O destino só arranjou que fosse eu.
Não demora até que volte apressado para a calçada, onde deixamos a sua bicicleta. Ele prende um riso e se senta no banco, esperando que eu complete nossa formação. Ele não diz nada e faz o caminho mais longo de volta para sua casa.
Meu corpo inteiro está quente e eu demoro um tempo para me acalmar. Nem percebo que estou praticamente apoiada em , talvez dificultando que ele pedale tranquilamente. Mas estou cansada, nem um pouco satisfeita com a tal vingança e com um futuro inteiro para resolver em pouco tempo nas mãos.
Quando chegamos, tem um bilhete colado com chiclete mascado do lado de dentro do portão. É um bilhete de Leah e com uma letra cursiva bonita, ela diz que passou os melhores anos de sua vida no Funkz, ao lado de verdadeiros amigos. Ela diz que o Funkz começou como uma ideia maluca do Pedro e os amigos mais próximos tomaram a ideia como um sonho em comum, e que fazia sentido que esse sonho descansasse com ele. Ela se despede e assina o bilhete, junto a Diego, Vinicius, Jorge e Amália.
— Não adiantou de nada. — Digo magoada. me devolve o bilhete após reler em silêncio e me sinto tão perdida que rasgo o bilhete ao meio. Vendo as duas partes caírem no chão, percebo que acabo de perder mais uma família e tudo parece injusto demais, triste demais. Sem esperança demais.
— Que merda! — grunhe frustrado.
Assisto guardar a bicicleta no quintal, trancando o portão e nos guiando para dentro da casa escura.
Procuro encontrar uma forma de compreender o cenário atual da minha vida. É desolador, mas de alguma forma, é também empolgante que eu tenha que refazer minha vida inteira. Sei que Pedro adoraria a possibilidade de recomeçar do zero e eu tento me agarrar às lições de vida que ele me deixou. Seu modo positivo de pensar e energia imbatíveis ainda vivem e pulsam dentro de mim e é minha obrigação continuar. Ele me deu a chance de continuar.
— Música que define seus sentimentos agora? — diz no escuro silencioso da noite. Sua voz é como um sussurro rouco e eu sinto um sorriso morrer em algum lugar entre minha alma e a superfície.
— “Déjà Vu”, Pitty. Pedro conseguiu o álbum baixado da internet com um amigo e foi o último que ouvimos juntos. Eu desabei quando ouvi essa música. E ele estava lá. Só esperou a música acabar para me dizer que sentia muito por eu me sentir assim. E que alguma coisa um dia faria isso tudo parar de doer tanto. E ele tinha razão. Perde-lo desse jeito dói mais que qualquer coisa que eu tenha passado antes. — Um riso nervoso e curto, muito curto escapa de meus lábios e suspira. O peito dele sobe e desce com pesar. Acho que talvez essa seja a coisa mais dolorosa para ele também.
— Vou ouvir mais essa banda. — diz o que resta. Não há nada a dizer e eu quase corro para abraçá-lo por não dizer que sente muito ou só ficar me olhando com pena. está ocupado demais remoendo e lidando com a própria dor para se incomodar com a minha. Por isso estar perto dele é tão importante agora.
— E quanto a sua? — Continuo o jogo e ele ergue as sobrancelhas pensativo.
— Não sei se quero dizer agora que a sua parece ser algo tão íntimo e...
— Triste? — Interrompo e assente. — Fala logo!
— “Senhor do Tempo”. É coincidência, mas ouvi muito essa música com o Pedro numa época em que nós... É... — espreme os olhos nas pálpebras, tamanho esforço para buscar as palavras.

— Não acredito! Você sabe de algum podre do meu irmão que eu ainda não saiba? — Um lampejo de entusiasmo passa por mim e eu me inclino em tamanha curiosidade.
— Eu sou uma pessoa saudável agora. Mas há alguns anos, eu não era assim. Fumava e tal... E andava de skate também. — Ele franze a testa e isso parece um mundo muito distante do atual.
— Eu lembro disso. — A lembrança da tentativa frustrada de alisar o cabelo não sai da minha memória. Lembrar da franja caída sobre os olhos me faz valorizar ada cachinho em sua cabeça.
— Enfim... Pedro e eu fumávamos na pista de skate e ouvíamos Charlie Brown Jr. o tempo inteiro. Tempos mais simples, acho. — Ele dá de ombros.
— Quem diria... — Não estou exatamente surpresa. Vindo de onde viemos, estar exposto a drogas sendo menor idade é corriqueiro e muitos começam uma vida triste assim. É bom saber que há poucos que seguem o caminho alternativo. Felicidade não é garantida, mas pelo menos, há um pouco mais de controle sobre o que acontece. — Preencha esse silêncio com alguma música antes que eu comece a cantar. — Dou uma fungada que faz rir baixo.
— Agora estou tentado a ouvir sua voz. — Ele devolve bem-humorado. está sentado na janela. Por teimosia, ele não quis refazer o curativo na cabeça, mas seus cabelos de cachos grossos e abertos impedem que qualquer cicatriz apareça.
— Você fala muito sobre tentação... Qual é a sua, ? — O encaro com uma sobrancelha erguida, um desafio que analisa bem antes de aceitar.
— A minha? — Ele umedece os lábios antes de rir de um jeito quase inocente. Sei que ele está tomando tempo para formular uma boa resposta, mas quero saber o que ele está pensando agora. — Acho que não tenho uma. Sou só um cara... E você é... Você. — Diz sem jeito e eu reparo que ele brinca com o nó da pulseira fina que usa no pulso desde que me lembro.
— E o que isso significa? — Sem o moletom, a blusa de alças finas realça meus seios e eu me inclino para frente, o gesso faz um pouco de pressão e os deixa mais cheios, apetitosos. puxa o ar entre os dentes e meneia com a cabeça. Um sorriso extremamente sedutor surge em seus lábios. Nos olhos dele, um brilho intenso me faz sentir deliciosa.
— Tenho me feito a mesma pergunta. Mas acho que tem a ver com você ter sido uma menininha muito chata, que se tornou uma mulher fascinante. De qualquer forma, chama a atenção. — Ele ri, sem jeito.
— Fascinante, é? Nunca me disseram isso antes. — Confesso num sussurro e ele franze a testa em descontentamento.
— E é por isso que eu odeio o Guilherme! Se eu tivesse a chance que ele teve... — Seus olhos se perdem na rua vazia e mal iluminada.
— Pode parar de frisar o quanto eu perdi tempo escolhendo errado? — A exaustão e a insônia dão as mãos para a loucura e eu estou flertando com . Um flerte enlutado, mas um flerte. E para a minha surpresa, ele corresponde.
— Ainda dá para mudar de ideia... — Ele sugere e eu sorrio. É tentador demais.
— E então... Aquela música ainda vai rolar? — Minha voz soa trêmula, vacilante. percebe a mudança drástica de assunto e parece gostar de ter me desestabilizado um pouco.
— O que quer ouvir? — Pergunta descendo o corpo do parapeito da janela. O acompanho com os olhos até o aparelho de som. Ele tem alguns CDs e eu estive bisbilhotando mais cedo.
— Blink-182. — Ele ergue as sobrancelhas, surpreso. — Esse não... O da capa branca, rosa e azul. — Digo sem jeito. ri baixinho e liga o aparelho, indicando que aquele é o CD engasgado ali dentro.
— É o meu preferido. Tenho escutado muito esse álbum ultimamente. — Ele comenta distraído com o botão redondo de volume. Ele deixa o som ambiente e “Feeling This” começa a tocar. Eu conheço todas as músicas da banda que tem clipe, essa é uma de minhas preferidas.
fala inglês fluente, dois cursos durante a adolescência e a imersão na cultura Hip-Hop americana me dão a certeza de que ele sabe do que a letra traduzida se trata. Eu sei por que fica desconfortável com meu olhar fixo e eu desvio, me levantando. Deito atravessada em sua cama, a cabeça ficando para fora do colchão. Sei que estou sendo observada, mexo as pernas devagar e o tecido mole do short se enrola, deixando mais pele à mostra. Brinco com as pontas do cabelo arrastando no chão e respiro fundo. Fecho os olhos e absorvo a música agressiva, mas romântica.
A história contada na música se passa numa noite de lembranças. Um amor de verão cuja chama continua acesa se manifesta e um encontro sensual e necessitado acontece. A guitarra eterniza o sentimento jovial de um amor de verão, a bateria insiste na urgência desse contato. A letra dita exatamente o que acontece e é impossível não se imaginar em tal situação.
O peso de se deitando ao meu lado me balança de leve. Abro os olhos relutante, minha imaginação precária estava quase me fazendo fabricar a sensação dos lábios de contra os meus. Me viro com dificuldade. Odeio como o gesso me deixa desengonçada e a dor no braço me faz gemer no menor movimento. Isso chama a atenção de e eu rolo os olhos sem que ele veja.
— Já posso perguntar se aquilo que você comentou sobre o Gui é verdade? — se vira para mim também, apoia a cabeça no antebraço e me encara curioso.
— Ah, eu sei que é horrível fazer isso..., mas é sim. Eu não tinha com o que comparar, então fiz uma pesquisa por minha conta. — Meu riso travesso denuncia exatamente a fonte de meu conhecimento.
— Que safadinha! — Ele diz entre risos. — Mas nada daquilo é real, você sabe. Não é? — Dou de ombros e ele rola os olhos.
— Achei que vocês garotos fossem todos guiados por pornografia. — ri de um jeito engraçado.
— Só os que não sabem o que estão fazendo. É divertido de olhar, mas é bom lembrar que de verdade é diferente. — Ele explica um pouco sem jeito.
— Diferente como? — Minha pergunta é genuína. O que acho que aprendi é complicado, acrobático e sempre tem que ter um espaço para uma câmera captar cada momento. O que é diferente do que li nas histórias, cheias de analogias fálicas e romance. O que eu tive foi desastroso, solitário. Eu estava sempre distraída com a mobília, e, quando as coisas começavam a ficar boas, acabava com o Guilherme me fazendo sentir descartável. Não posso deixar de imaginar como seria transar com o .
... — cobre o rosto com as mãos, mas ri entre elas.
— Não estou pedindo para me mostrar... Só para me dizer como é. O que você faz. — Ele bagunça os cabelos e parece considerar bastante o meu pedido.
— Está tarde, . Você deveria dormir um pouco, foi um dia cheio. — Ele diz sério, mas seus olhos estão perdidos em meu rosto.
— Não consigo dormir. — Confesso mais baixo, quase como um segredo.
— Nem eu. O que a gente faz? — Não demora e um sorriso malicioso toma meus lábios. — Caralho... — diz num sussurro, ele parece estar em bastante dificuldade.
— O que foi? — Me aproximo um pouco mais dele, só para provocá-lo. Meu braço dói, eu gemo.
— Cuidado! — Ele dá espaço para não deitar sobre meu braço engessado. O movimento me faz ficar embaixo dele, as pernas entrelaçadas, os rostos próximos. Não consigo evitar sorrir de um jeito travesso. — Eu sou um cara muito, mas muito legal, . Você está deixando difícil continuar sendo esse cara legal. — Ele admite e eu mexo meu quadril sobre o dele como resposta. fecha os olhos com força e esconde o rosto em um dos braços.
— Você pode ser um cara ainda mais legal. — Acaricio sua perna com os dedos do pé. Respiro pesado em antecipação. observa meu peito subir e descer. É mesmo uma batalha mental e eu detesto e adoro na mesma medida deixá-lo assim.
— Não posso... — Ele diz com pesar e demora para voltar a me olhar.
— Por quê? — Protesto frustrada. se afasta com dificuldade, tateando pela cama em busca do travesseiro para cobrir o volume bastante visível em seu short de pano mole.
— Só... Não posso. — Suspiro languidamente. Estou com vergonha e bastante frustrada.
— Tudo bem. Me desculpa. — Digo baixo e o constrangimento é nítido. balança a cabeça de um lado para o outro, os olhos fechados com certa força e tamanho controle mental sendo testado.
Passamos por “I Miss You” em um meio silêncio. canta o refrão baixinho e eu gosto de como ele enuncia as palavras, fazendo-as parecer mais claras. Gosto também da voz dele. Despretensiosa para ultrapassar o volume do aparelho de som, mas harmoniosa o suficiente para me fazer querer ouvi-lo pelo resto da noite. Sei que não devo — por causa da ereção; a razão oculta de ele não poder me beijar e tudo o mais —, mas me aproximo um pouco mais dele. Apoio minha cabeça em seu peito e ele me olha carinhoso. Um sorriso enviesado que faz seu nariz se franzir me dá a liberdade para me esticar um pouco mais e beijar sua bochecha.
— Obrigada por tudo, . — Por mais frustrada que eu esteja, não posso deixar de reconhecer a rocha que ele tem sido, mesmo antes de tudo desabar de verdade.
Começa “Always” e eu tento me manter acordada, afaga meus cabelos e fecha os olhos num suspiro pesado.
Eu não dormi por uma semana inteira. Mas no quarto de , com a luz fraca das luzes dos postes na rua invadindo o cômodo pela janela, deitada atravessada na cama dele e ouvindo seu coração bater rápido, eu adormeço num sono profundo, calmo e necessário.

É quase meio-dia quando me sento na cama com a respiração pesada, o corpo suado e a cabeça fora do lugar após um pesadelo vívido, intenso. A explosão. O momento em que sinto metade de mim queimar entre as chamas revivido nos mínimos detalhes. Ouço risadas fora do quarto e aproveito a privacidade para chorar em silêncio.
Vivo meu inferno até dormindo.
A tortura não tem fim.
É difícil me levantar da cama, mesmo após a decisão definitiva. Quando me levanto, estico os lençóis com dificuldade por estar usando somente um dos braços. Faço pequenas pausas para secar as lágrimas com as costas da mesma mão. Respiro fundo e repito o processo até que não haja evidências de minha estadia. Parece um pecado macular um lar tão limpo e organizado, sou muito séria quanto a isso. Não quero insultar a mulher que conta animada sobre o fim de semana na praia com o namorado para o filho, na sala ao lado.
Olho pela janela e o sol refletindo na calçada faz meus olhos se fecharam involuntários, sensíveis à luz. Estranho estar tão calor lá fora e eu estar morrendo de frio. Estico o braço, que começa a doer com o esforço duplo, pegando o moletom de Pedro. Quando o coloco em meu corpo, o braço quebrado por dentro do tecido grosso dói muito, sinto que posso desmaiar a qualquer momento. A dor é tamanha que consigo ver pequenos pontos coloridos flutuantes e eu sei bem que eles não são reais, apesar de intrigantes.
Me lembro que estou há alguns dias sem seguir a medicação indicada após a cirurgia.
A receita que o hospital me deu só cobriu os três primeiros dias, tecnicamente, minha mãe deveria ter comprado mais. Eu tentei comprar sozinha, mas o Dr. Nelson me disse que precisava da autorização dela para me vender. Fiquei irritada por tantas razões, mas duas foram as campeãs em me deixar possessa: o Dr. Nelson não é médico, é farmacêutico. Me sinto ridícula o chamando assim, como se fosse seu primeiro nome. E segundo, eu tenho dinheiro suficiente para pagar pelos remédios sozinha. Não fez o menor sentido para mim, ter de estar acompanhada de um responsável maior de idade, quando eu sou responsável por mim mesma agora.
Deixo a raiva ficar maior que a dor só o suficiente para que eu consiga sair do quarto. Ao sair do quarto, preciso encontrar outra emoção em que me apoiar, não quero ser grossa com minha anfitriã. Então, escolho observar em silêncio mãe e filho interagirem.
Eu gosto de como fala com ela, tão respeitoso e cuidadoso. Diferente de quando fala com os amigos, quase não se compreende o que ele diz entre as gírias e os palavrões elaborados. A Simone tem essa personalidade brilhante, então com ele não é diferente.
Ela conta que ficaram em um quarto bonito, à beira-mar. Que o Ricardo, esse é o nome do felizardo, é sensível, inteligente, engraçado. E conta um pouco tímida, que quando caiu a primeira noite, eles foram românticos sob as estrelas. Um código de mãe para sexo. A expressão de migrando entre nauseado e compreensivo me faz rir de leve, então, sou descoberta.
— Bom dia, flor do dia! Dormiu bem? — Simone pergunta animada. Sua voz soa um pouco alta demais e eu tento sorrir em resposta. Percebo que há uma faixa avermelhada indo de bochecha a bochecha e uma marquinha fina de biquini escapa pela gola aberta da camisa branca de botões dela.
— Oi, tia. Dormi, sim. — Minha cara está horrível, eu sei. Nem precisa ter me conhecido em meus melhores momentos para saber que não estou visivelmente bem. Mas a tia Simone me conhece. Seu sorriso murcha e ela volta a me olhar como me olhava quando eu era pequena. Ela sempre gostou de me afastar um pouco dos meninos para brincarmos com suas bonecas. Dizia que não era bom que meninas passassem tanto tempo com os garotos mais velhos. "Eles são porcos!" ela costumava dizer. Antes eu entendia literalmente, pois, os meninos realmente eram sujos. Mas a tia Simone queria que eu tivesse contato com minha feminilidade, que conversasse sobre assuntos apropriados e ouvisse conversas sobre assuntos apropriados. E eu gostava muito quando ela fazia isso por mim.
— Você está tão pálida, . Está se sentindo bem? — Ela se aproxima, a mão estendida alcança minha testa e depois meu pescoço. Aguardo o diagnóstico. — Essa menina está com febre, ! — Ela reclama como se fosse culpa dele. Isso me faz rir, mas paro quando vejo se sentar mais ereto no sofá, preocupado também.
— Deve ser o braço quebrado, tia. Está doendo um pouco. — Tento minimizar a situação, mas ela só fica mais preocupada.
— Deixa eu ver. Quer ir ao médico? Eu te levo agora. — Ela se afasta olhando em volta, provavelmente procurando a própria bolsa. Suas mensagens são confusas e eu fico encarando-a até que ela decida qual será o próximo passo.
— Talvez eu possa tomar alguma coisa para a dor? — Sugiro um pouco sem jeito, detesto preocupá-la desse jeito. — Eu tomo o que a senhora tiver. — Digo rápido, tentando tirar um pouco do peso da minha confissão.
— Senhora está no céu. — Ela corrige convicta, talvez, pela milésima vez nessa vida. — Vocês devem estar tomando a mesma coisa. Se o tivesse se lembrado de tomar os remédios dele, certamente ele teria dividido com você. Mas ele não lembrou, estou errada, ?! — Simone apoia as mãos nos quadris, olhando decepcionada para o filho, que desvia o olhar e os fixa na almofada amarela de franjas em seu colo.
— Eu esqueci mesmo, mãe. Desculpa. — Ele diz sem jeito após ser encarado por bastante tempo em um silêncio ensurdecedor.
— O que ainda está fazendo parado aí? Vá buscar o remédio para a , antes que ela desmaie. — Simone diz autoritária e se levanta imediatamente.
Simone me guia para a sala e me ajuda a sentar no sofá. Confesso que todo esse cuidado é viciante e estou tentando não aproveitar muito, afinal, não posso me acostumar.
— Desculpa incomodar, tia. — Sorrio em agradecimento quando ela tira o moletom e apoia o meu braço em uma de suas almofadas coloridas, essa é azul. Como o céu.
Simone morde o interior da boca e me olha com pena.
— Cuidar de você não é incômodo nenhum. — Diz baixinho, a voz mansa e maternal.
— Prometo que vou dar um jeito de encontrar um lugar para ficar. — Imagino que seja essa a sua preocupação no momento. É a semana que antecede o Natal, os parentes virão e ela não deve se preocupar com mais um ocupando espaço.
— Não diga besteira! Você deve ficar o quanto precisar, . Eu gosto muito de você, do seu irmão. Até da sua mãe, apesar de ela ser... Difícil. — Ela ri nervosa. Eu aprecio que ela não tenha dito algo ruim sobre minha mãe. A Simone nunca foi muito de falar mal dela, mesmo com bastante repertório para fazer isso. Pelo contrário, a tia Simone gastou sua energia ajudando a mim e ao Pedro também. Como pôde. Um jantar, um conselho, um elogio, uma bronca. Sempre de bom humor e de coração aberto para nós.
— Obrigada, tia. — Esse agradecimento é sincero e sei que ela percebe isso. Simone e eu trocamos um olhar cúmplice e eu me sinto protegida.
volta da cozinha segurando um copo com água em uma mão e o comprimido na outra.
— Você já tomou o seu? — Simone pergunta, os olhos curiosos sobre o filho. O jeito como ela olha para ele é simplesmente devoto. Já vi esse olhar antes, entre a minha mãe e o Pedro. Acho que é assim que uma mãe deve olhar para um filho amado.
assente devagar e reclama quando ela se levanta e o beija estalado na testa, o lugar onde ele foi machucado há uma semana.
— Mãe! — Ela diz envergonhado, mas acaba sorrindo. Eu sorrio também, o amor deles é contagiante.
O comprimido é grande e machuca minha garganta, mas espero que ele faça algum efeito logo. Preciso sair. Preciso ver a Tati. Meu silêncio é respeitado e compreendido aqui, mas me sinto ocupar espaço demais em qualquer lugar em que me sento.
também fica me encarando como se quisesse dizer algo, mas a última coisa que preciso agora é ficar sozinha com ele e discutir sobre a noite anterior. Eu preciso discutir a noite anterior, mas não com ele.
— Tia, eu vou até a casa da Tati. Precisa que eu traga algo da rua? — Pergunto tentando parecer útil, mas ela sorri enquanto nega com a cabeça.
Passaram quarenta minutos desde que tomei o remédio, não me sinto exatamente bem, mas caminhar pode ajudar a acelerar o processo.
— Ei, quer que eu te leve de bike? — pergunta. Ele se levanta do sofá e me encara esperançoso. Mordo o lábio inferior, odiando ter que negar, porque algo está acontecendo comigo e eu sinto a urgência de ficar perto dele. Mas não posso agora. Preciso de espaço, tempo e da opinião da Tati.
— Não, tudo bem. — franze a testa e eu sorrio sem jeito, saindo da casa com certa pressa.
De todas as coisas que abandonei, meu mp3 é do que mais sinto falta. Ele estava carregando na bancada da cozinha quando sai de casa transtornada. Queria ter me lembrado de pegá-lo. Talvez agora o caminho até a casa de Tati não fosse tão vazio, cheio de insegurança. É início de tarde e tem muita gente na rua. Comerciantes fumando cigarros nas calçadas, conversando entre si. Cumprimento alguns deles, colegas de escola e antigos vizinhos. Com o moletom, as pessoas não veem os cortes ou o braço engessado. É fácil para que elas esqueçam momentaneamente o que houve, mas quando elas se lembram, os sorrisos murcham e as expressões são todas muito parecidas. "Pobre menina, o irmão dela morreu".

Eu não tive tempo ou saúde para conversar direito com a Tati desde o dia do enterro. Os pais dela foram os responsáveis por assinar minha alta no hospital e com tudo o que estava acontecendo, não nos vemos por quase uma semana inteira. Após me receber e chorar ao meu lado — velando minha jovem e trágica trajetória de vida até aqui —, Tati escuta atenta sobre os acontecimentos dos últimos dias.
Tati é do tipo de pessoa que precisa que toda história seja contada em uma linha de sucessão de eventos correta antes de formar sua sempre perspicaz opinião sobre o assunto. Então, eu conto a ela o que houve quando me tirou às pressas da igreja, conto sobre a briga com minha mãe, que culminou em minha expulsão de casa. Conto também sobre meu crime de agressão e finalmente, sobre o fim do Funkz. E como se não tivesse dividido informações o suficiente, eu escolho bem as palavras para descrever a rejeição mais compreensível de toda minha vida.
— Caralho, que dia! — Tati quase nunca xinga alto, mas sua expressão de olhos arregalados e suspiro pesado fazem jus ao uso do palavrão. — Certo... Sobre o : eu teria pulado em cima dele. — Tati diz sucinta e eu me engasgo com uma risada inesperada.
— É sério que é por onde você quer começar? — Tati ri também, dando de ombros. — Eu já tinha cometido crimes demais para uma noite. Mas passei bastante tempo cogitando a ideia. — Tati assente compreensiva.
— Depende. Em um crime sem testemunhas, ninguém acreditaria que o Gui apanhou de uma maneta baixinha como você. — Não sei exatamente se estou aliviada ou ofendida.
— Duas testemunhas. A Ingrid e o . — Corrijo e ela rola os olhos, impaciente. — De qualquer forma, agressão é agressão e eu não devia ter feito isso. — Me arrependo de ter permitido que Guilherme pudesse me desestabilizar tanto. Esse tipo de poder nas mãos erradas é uma receita para o desastre. Eu só precisei passar por um para entender isso.
— Eu queria tanto ter visto! — Tati resmunga e eu volto a rir de leve.
— Não valeu a pena, Tati. Enquanto eu me vingava daquele imbecil, o que restou do Funkz se desfazia. — Solto o ar dos pulmões devagar. O arrependimento amargo de saber que não havia nada mais a se fazer pelo Funkz. Tudo foi em vão.
— Você parece bastante decepcionada. É claro que você tem motivos para isso, mas, estou curiosa para saber o que está te incomodando agora. — Tati desdobra as pernas, as estica e depois volta para a mesma posição de lotus.
— Não estou decepcionada com o , se é o que quer saber. — Tati se apoia em uma expressão forçadamente casual e eu quase rio. — Eu fiquei um pouco frustrada, mas estou feliz que ele tenha sido o mais racional no momento. — Explico escolhendo bem as palavras, não quero parecer ingrata. Eu concordo que a bagunça seria bem pior pela manhã se tivéssemos ficado ontem.
— Feliz?
— Não! Ah... Se analisarmos isso direito, ele preencheu um pouco o vazio que eu sinto. Ele estava lá, foi meu amigo. — Tati solta uma risada debochada de fundo de garganta. Curta e cruel. Ditando o tom do que ela diria em seguida.
— Só que você queria que ele te preenchesse com o pau. — Tati parece cuspir as palavras na mesa de centro do vidro da casa dos pais dela. Cubro a boca com a mão, encarando Tati com horror nos olhos. — O que foi, ? Por acaso eu estou mentindo?
— Não. — Ela coloca as mãos para o ar, como se estivesse se rendendo. — Você não precisava dizer assim também. — Sinto minhas bochechas quentes e não é mais a febre. A risada infantil de Tati é quase um insulto após ouvir ela dizendo tais profanidades.
— Então, você está apaixonada pelo ou algo assim? — Tati se distrai com as pontas dos cabelos, mas sei que ela não pergunta nada em vão.
— Não confio nos meus sentimentos. Eu achei que amava o Guilherme, mas, é óbvio que amei uma ideia do que ele poderia ser. — Tati confirma com um assentir veemente que incomoda mais do que um "eu te avisei!"
— O não é o Gui. Eu sei que muita coisa aconteceu com você no último mês e que você precisa de um tempo para encontrar o seu rumo. Mas eles são pessoas diferentes e você vai sentir coisas diferentes pelo , principalmente porque ele não te dá opção além de se apaixonar por ele, sendo todo fofo e incrível. — Tati ri de um jeito estranho, a voz passando pela puberdade chega a vacilar. — Só não descarte a opção só por ficar com medo de sentir algo diferente.
— Tati, o disse claramente que não quer ficar comigo. — Enuncio bem as palavras, obrigando minha amiga a perceber a grande brecha em sua teoria.
— Não pode. — Ela corrige.
— Qual a diferença?
— Você que me diz!
— ARGH! — Um resmungo longo, aflito e necessário escapa por minha garganta. Tati morde o interior da boca e me olha curiosa.
— E agora? — Tati pergunta, ela sorri triste e eu não quero ser grossa com ela.
— Eu tenho tanta coisa para colocar em ordem. Preciso encontrar um lugar para ficar, tem a faculdade... Eu preciso me curar. — Aponto para o braço e fico irritada por ele estar quebrado, depois, me sinto horrível por não estar grata por ser só um braço quebrado. Tati me vê passando por tudo isso com um olhar acolhedor no rosto.
— Você pode ficar aqui. — Tati diz, como se fosse óbvio.
— Dá na mesma. Eu ainda vou incomodar desnecessariamente famílias prestes a comemorar as festas de fim de ano. — Tati balança a cabeça.
— Você dá mais valor para essas datas do que nós, acredite. Nossos Natais são como uma pequena bolha capitalista e gulosa, onde passamos dois dias de cada feriado comendo, bebendo, dormindo e deixando o outro em paz. Nem as gêmeas vêm mais. — Tati dá de ombros e eu não entendo como ela pode dizer tão facilmente que eles não ligam para o Natal. Analisando profundamente, me ocorre que os pais da Tati são bons para ela o ano todo. Eles não precisam de uma data marcada no calendário para serem amorosos e estarem lá por ela, quando ela precisa. Eu quase sorrio. — E você tem que sair da casa dele, morar com seu namorado antes de ele ser de fato seu namorado, dá má sorte. Eu li em algum lugar. — Tati lê cerca de vinte livros por ano, todos os anos desde que a conheço. Livros grossos e de conteúdo sério como psicologia e biografias de cientistas famosos. Mas ela também consome toda e cada revista supostamente feita para meninas de nossa idade. É uma bela colisão de planetas completamente opostos. Fascinante.
— O não é, nem vai ser meu namorado. — Não gosto de como minha voz sai desdenhosa. Eu não sei nada sobre ter um bom namorado, mas imagino que seja mais ou menos o que oferece normalmente. Com algo a mais, cujo mistério não me dá escolha além de teorizar sobre.
— E... É... Grande? — Tati se inclina para frente em tamanha antecipação. Os olhos grandes vidrados em mim me dão a descrição exata do que ela está pensando.
— Não direi nada sobre isso. — Digo devagar, mas ao mesmo tempo, assinto veemente. Não posso mentir para minha melhor-melhor amiga. O que senti pressionado contra minha coxa ontem me faz perder o ar somente com a lembrança.
— Estou te dizendo, eu teria agarrado o pobre coitado e nada me tiraria de cima dele! — Tati ri como uma colegial, o que é apropriado porque nós somos mesmo adolescentes. Tati é a definição de uma colegial cheia de restrições, com ainda mais desejos reprimidos.
Seus olhos viajam sobre o tapete de sisal no chão da sala enquanto eu tento lidar com a pontada de ciúmes que sinto por ver Tati imaginar coisas nada ortodoxas.

Na cozinha, Tati segue minhas coordenadas para fazer um bolo de cenoura. Enquanto o bolo assa, Tati se concentra em terminar a calda de chocolate que irá por cima do bolo depois.
Tento disfarçar, mas minha cabeça dói por pensar tanto no que fazer a partir de agora. Tati diz que sua mãe ficaria feliz de me receber por quanto tempo eu precisasse, mas a sensação de ser um estorvo é sufocante.
Refaço contas mentalmente, tentando encaixar o aluguel de um espaço pequeno onde eu possa dormir, pelo menos. Apesar de ser um bom salário para alguém menor de idade, a lanchonete não me paga o suficiente para que eu consiga arcar com o custo de um aluguel, água, luz. O dinheiro que tenho guardado me daria um mês de garantia, mas não é o suficiente. Precisa ser algo definitivo.
A tia Regina chega do trabalho e mesmo cansada, abraça a filha meio de lado, bisbilhotando a panela de calda quente de chocolate.
— Como está se sentindo, ? — Ela pergunta com o sorriso pequeno, os olhos amorosos de sempre.
— Agora estou bem. — Sorrio de volta e ela assente devagar.
— Você vai dormir aqui esta noite? — Regina tira os sapatos e massageia os pés ali na cozinha mesmo. Tomo um tempo para responder, observando a mulher tirar a camada de trabalhadora e deixar à mostra a de dona de casa. Enquanto fala comigo, os olhos dela passeiam pela cozinha e eu sei que ela pode me ouvir e considerar o que tenho a dizer, mas sua mente trabalha à dez passos adiante, talvez pensando no que fazer para o jantar. Admiro isso nas mães de meus amigos, em mulheres no geral. O que motiva cada uma delas a ultrapassar seus obstáculos pela manhã e passar todos os dias de suas vidas sendo absolutamente incríveis até quando as coisas não saem exatamente bem? Espero me tornar algo parecido em breve, pelo meu próprio bem.
— Não sei, tia. Estou com dificuldades para planejar muito adiante dos próximos dez minutos. — Confesso com um riso sem jeito e ela volta a assentir.
— Como está a sua mãe? — A pergunta sai inofensiva dos lábios da tia Regina, mas chegam em mim como um soco bem dado no estômago.
— Espero que esteja bem. — Digo mais baixo, trocando um olhar cúmplice com Tati, tentando lhe dizer telepaticamente que estou desconfortável e que sua intromissão seria bem-vinda agora.
— Mãe, a tia Vânia expulsou a de casa! — Tati diz e depois checa minha reação. Não era nem de longe o que eu pedi para ela dizer.
— COMO É QUE É? — A tia Regina fecha a porta da geladeira com força. Ela olha para mim também e eu não sei bem o que dizer. Fico encarando a mesa, esperando a digestão da notícia.
— Não era pra eu falar? — Tati cochicha, mas sua mãe está há cinco passos dela. Eu balanço a cabeça de um lado para o outro e Tati espreme a expressão facial num molde culpado. — Desculpa.
— Está tudo bem, Tati. — Digo após um suspiro longo. — Tia, eu vou ficar bem. Só preciso de um plano. — Tento garantir e ela rola os olhos.
— Você tem dezessete anos, esse não é o tipo de plano que você deveria estar fazendo. — A tia Regina parece realmente chateada com tudo isso. Me sinto culpada por deixa-la assim, tão preocupada.
— E agora, mãe? — Tati transfere a pergunta que me fez mais cedo para a mãe. Regina pensa por um momento, mas anda apressada até a bolsa. Ela tira de lá uma agenda laranja de folhas gastas, um maço de Marlboro azul e um isqueiro branco, se senta na poltrona ao lado do telefone e disca ferozmente os números, com o cigarro recém aceso entre os dentes.
— Vanessa? A sua irmã ficou louca de vez. — Tia Regina abana a mão no ar quando nos vê paradas no batente da porta da cozinha, nos espantando dali. Tati dá um passo para o lado e me encara confusa.
Regina, Simone, Vanessa e minha mãe, Vânia, costumavam ser amigas na adolescência. Não há tempo suficiente na Terra para contar todas as histórias delas juntas, mas é possível resumir de forma simplista e dizer que elas desbravaram a pequena Guarulhos da época, em sentidos múltiplos.
Há dez anos, minha tia Vanessa e minha mãe tiveram uma briga horrível. O motivo? Só as duas sabem, talvez a Regina ou a Simone. Mas eu não vou perguntar, tenho problemas demais por conta própria para cavar e remexer o passado alheio. Essa briga entre minha mãe e a minha tia teve uma breve pausa, por causa do acidente e da morte do Pedro. Mas nem o luto fez com que a minha tia relevasse o tratamento frio que minha mãe adquiriu para com o resto do mundo.
Não é exatamente estranho ouvir as duas falarem coisas verdadeiras e horríveis sobre a minha mãe. Mas é quando o assunto muda que eu fico ansiosa de verdade. Regina e tia Vanessa começam a planejar.
Assisto Tati comer bolo de cenoura com o estômago virando. Parte de mim está aliviada por ter adultos lidando com meus problemas, mas tem uma parte grande que está temerosa por fazer parte dos planos que eu me mude para a capital para morar com a tia Vanessa e o marido dela.
— A sua tia parece disposta a pagar a sua faculdade. — Tati cochicha. Não gosto que gastem dinheiro comigo.
— Ainda tem a nota do ENEM. — Digo como escudo e ela meneia a cabeça.
— Eu acho que você foi bem. — Ela apoia a mão em meu braço e eu assinto rapidamente. Estou nervosa. Não conseguir me mexer direito, as dores, as preocupações aumentando começam a me sufocar. Eu preciso de ar. Preciso tirar esse moletom, porque está calor e abafado.
Escorrego da cadeira e passo pela sala rapidamente, abro a porta da casa e respiro fundo. Mas parece não parecer fazer diferença, é como se meus pulmões expulsassem o ar assim que eu o inspiro.
Tento me acalmar. Tento me colocar no momento agora. Mas não consigo ter o controle total de minha mente. Não conseguir respirar me deixa revoltada, isso me faz pensar em como Pedro se sentiu enquanto estava morrendo sozinho naquela noite chuvosa. Por pior que eu me sinta, ele sentiu pior. Ele sofreu muito mais.
Estou cansada de sentir tanta raiva por ele ter morrido. Estou cansada de me sentir tão perdida. Estou cansada de estar aqui e ele não. Cansada dessa vida cheia de sofrimento mascarada por tarefas atrás de tarefas.
— Talvez seja bom, sabe? Mudar de cenário. — Tati se senta ao meu lado na escada de entrada de sua casa. Ela encara o céu alaranjado, pois, o pôr-do-sol nunca dura o suficiente, segundo ela.
— Você deve ter razão, como sempre. — Seco as bochechas com força demais, sinto os pequenos riscos deixados pelo tecido grosso da manga do moletom serem acariciados por novas lágrimas. Preciso começar a cuidar melhor de mim. — Não tem mais nada para mim aqui mesmo.
— Ei! Não fala assim, . Eu ainda estou aqui e... — Tati desvia seus olhos dos meus e sorri convencida. faz uma manobra de bicicleta na frente do portão, distraído com sua própria habilidade. — Acho que nem preciso dizer mais nada. — Tati sacode as sobrancelhas para cima e para baixo, me fazendo rir.
— Você é muito brega! — Digo mais alto.
— Oi. — apoia o pé no chão, parecendo absolutamente estiloso daquele jeito. As calças mais justas realmente lhe caem bem e nem ouço o som de minha voz quando me perco olhando pra ele. — Está na hora das drogas! — diz e balança uma sacola.
— Lícitas, prescritas por um médico! — Tati adiciona mais alto, no caso de a mãe ter escutado a gracinha de .
— Oi... — Digo sem jeito, abrindo o portão e indo até o fim da calçada.
— Minha mãe me pediu para comprar isso no caso de você dormir aqui. — pedala até mim. — Você está bem? — Ele franze a testa, me olhando direito quando chega mais perto. Dou de ombros e ele inclina a cabeça para o lado, preocupado.
— Sua mãe é uma santa. — Pego a sacola e vejo os remédios ali. Sinto um alívio momentâneo pela sorte que tenho por conhecer pessoas tão boas, com mães tão generosas.
— Eu fui à farmácia. O que isso faz de mim? — pergunta incomodado. Ouço a risada de Tati e percebo que ela está assistindo a tudo descaradamente.
— Um menino de entrega muito bonzinho. — Arrisco brincar e cerra os olhos, balança a cabeça devagar, mas acaba sorrindo.
— Ingrata! — Ele acusa, mas não tem maldade nenhuma em sua voz. Pelo contrário, um sorriso incrível e hipnotizante. Diferente dos outros que eu já conheço.
— Obrigada, . — Digo sem jeito e não consigo evitar um suspiro frustrado quando finalmente consigo desviar os olhos dos dele.
— Sem problemas. — Ele dá de ombros. — Então... Você vai dormir aqui mesmo? — Percebo que a pergunta o incomoda, talvez não tenha saído como ele planejava. Mas eu gosto da urgência em uma ligeira alteração na entonação de voz dele.
— Não! Ela não tem roupa aqui. — Tati me interrompe. Minhas bochechas estão esquentando e eu engulo as palavras que se entalam em minha garganta com sua intromissão destoante.
— Eu posso trazer as suas coisas, se você quiser. — Ele oferece um tanto contido, sua proatividade mascara uma leve decepção.
— Não precisa. Amanhã ela vem. — Tati diz de novo e eu me viro para encará-la.
— Tati, pode pegar um pedaço de bolo para tia Simone? — Ela assente veemente e me dá uma piscadela antes de encostar o portão. — Tudo bem mesmo eu dormir lá de novo? — Me viro na direção de novamente.
— Claro! Eu só sugiro que você se deite verticalmente na cama, para um aproveitamento maior do colchão. — Ele diz sério, mas ri quando eu o acerto no braço.
— Você podia ter me acordado, deve ter sido horrível dormir desse jeito. — Resmungo e ele balança a cabeça.
— Eu não tive coragem. Você fica muito bonitinha dormindo. — Ele se distrai com o freio entre os dedos e eu vejo que ele também está todo sem graça.
— Por que ficou me vendo dormir? — ri e analisa minha pergunta. — Entendo que pareça um pouco bizarro. Mas você estava deitada em cima do meu braço, é quase um direito meu, como travesseiro humano, poder te ver dormindo por um minuto, dois ou dez. — Ele se defende e eu simplesmente adoro sua coerência. Faz todo o sentido.
me mantém sob seu olhar, um sorriso mais contido descansa em seus lábios entre os dentes. E bem ali, sentado no banco da bike, a imagem do namorado perfeito.
é como um refúgio.
Ainda não sei descrever como me sinto quando ele me olha desse jeito. É como uma mistura bem balanceada entre medo e segurança. O que sinto é estimulante quando estou perto dele. Até em momentos arrebatadores, se ele estava por perto, eu me senti menos sozinha. me deixa ser eu mesma. me incentiva a ser eu mesma.
Os sentimentos estranhos de que Tati falou mais cedo me cercam, me deixando apavorada. E então, parece que eles estão dentro de mim, bloqueando o ar, o sangue de correr por minhas veias. Um sentimento assustadoramente sólido, novo.
— Não posso confiar nos meus sentimentos. — Penso alto demais e inclina um pouco a cabeça, um quase imperceptível gesto de confusão. É genial como eu acoberto tamanho vazamento de pensamentos. — Sobre... O gesso. Eu estou louca para arrancar o meu braço disso, tipo... agora. — Ouço meu coração batendo nos ouvidos. É intensa a necessidade de sair correndo.
— São só seis semanas, . Você consegue. — Ele me apoia e eu me odeio por mentir para ele. Mas é melhor que a alternativa. Não sei se tenho maturidade o suficiente para encarar uma segunda rejeição, por mais gentil que ela possa vir a ser.
— Eu só queria ter controle sobre alguma coisa. — Rio baixo e assente devagar. Tati sai da casa com um pote e alguns generosos pedaços de bolo. agradece um pouco sem jeito, mas já se prepara para ir embora.
— Você devia ir com ele. — Tati diz e parece se divertir com suas interferências. — Não que eu esteja te expulsando, mas está ficando tarde. Uma boa companhia não faria mal. — Tati é muitas coisas, menos sutil.
— Obrigado, Tati. — aceita o pote e Tati sorri abertamente para ele.
— Então... Até amanhã. — Vou até ela a abraçando pelo pescoço. — Quer parar com isso? Já é constrangedor o suficiente. — Cochicho em seu ouvido e sinto seu corpo tremer numa risada quase maléfica.
— Certo. Até amanhã, . — A encaro descrente, ela deliberadamente ignora minhas palavras.
Com um resquício de sua alegria pelo trabalho de cupido, Tati fecha o portão e saltita escada acima.
— Sua amiga é esquisita. Gosto dela. — comenta e eu sorrio. Gosto que ele goste da Tati, que ele a veja. Ela é uma pessoa incrível mesmo. — Quer subir? — Ele se inclina para trás e eu observo seu torso tão convidativo pela camiseta branca fina.
— Não. Estou... Com vontade de andar. — Desvio o olhar do corpo dele e tento não tropeçar nos próprios pés.
Voltamos em um confortável silêncio. Há coisas a serem ditas, como o meu destino em breve e toda a situação da noite passada. Mas tenho medo de falar primeiro e tudo ficar real demais. Odeio despedidas e sinto que me despedir dele será ainda pior.
Ao chegarmos na casa dele, faz um sinal para não fazer barulho. Sua mãe já está dormindo, mesmo que sejam só oito da noite. Ela trabalha cuidando de umas crianças ricas na capital. É um bom dinheiro e com o único filho já crescido, ela passa boa parte do tempo lá.
— Eu posso dormir no chão, ou no sofá. — Digo um pouco agitada por vê-lo pegar dois cobertores e um travesseiro extra no guarda-roupa.
— De jeito nenhum! A menos que queira dormir sozinha, aí eu posso dormir no chão ou no sofá. — Ele explica distraído com o desenrolar do cobertor sobre a cama. — E aí?
— A sua mãe não vai achar estranho se dormirmos no mesmo quarto? — Pergunto incomodada com o cabelo molhado após lavá-lo no banho. Não consigo secar direito com um braço só.
— Ela acha que eu te vejo como uma irmã mais nova. — A ideia toma forma em minha cabeça e começa a fazer sentido.
— E você me vê assim? — Não custa nada confirmar. franze a testa e balança a cabeça veemente, negando. A pergunta se parece até como uma ofensa para ele e eu não consigo não sorrir.
— O que decidiu? — Ele pergunta um tanto impaciente, mas vejo que ele também quer sorrir.
— Não quero dormir sozinha. — E é verdade. O calor de seu corpo me faz sentir segura e o cheiro de sua pele é um potente calmante. tenta contornar o sorriso que transborda de seus olhos e lábios e concorda baixinho.
Dormimos juntos naquela noite, um do lado do outro.
Eu me mudei para a casa da Tati no dia seguinte.

Tati tinha razão sobre os costumes pouco tradicionais da família para com as festividades de final de ano. No Natal houve uma ceia grande o suficiente para alimentar um batalhão, mas só a família mais próxima de Tati se reuniu em volta da mesa às 19:23 do dia 24. Sem a tradição de esperar até a meia noite. Eu gostei disso. Acho tortura montar uma mesa cheia de comidas deliciosas e impedir que qualquer um se aproxime antes da hora. Alessandra e Alicia, irmãs da Tati, vieram para passar o dia com os pais e conferir os presentes caros. Mas foram embora no dia de Natal, com viagem para a praia confirmada com amigos da faculdade.
Agora, o cheiro de fumaça de churrasco invade toda a casa, apesar dos esforços de Sérgio, pai da Tati, o interior da casa parece o final de uma balada de reggae.
A tia Regina já está alterada com uma única taça de vinho que ela carregou para todo o lado enquanto cozinhava os acompanhamentos para o churrasco. Tati e eu ajudamos como pudemos, mas o casal prefere as crianças longe da cozinha.
A noite, os sons de bombinhas e fogos adiantados assusta menos por termos passado o dia todo sobressaltando a cada estalo na rua. As risadas, música alta e clima de confraternização deveria ser intoxicante, contagioso. Mas só me deixa triste. Me lembra que entro em um novo ano com uma vida nova tão solitária.
Eu senti muito a falta do Pedro hoje. Ano-Novo era o tipo de festa preferida dele, exatamente por essa camada de esperança que vem com o passar das horas no dia 31 de dezembro. Ele costumava me dizer para me agarrar a essa sensação única de fim de ano. Para absorver a oportunidade de ter um vislumbre do futuro, uma amostra de como tudo pode ser. Eu queria que ele estivesse aqui agora para me lembrar de olhar para o futuro sem medo. Só lembrar de sua voz me dizendo isso não suporta a carga enorme de desesperança que sinto desde que ele se foi.
Na passagem de ano, estou sozinha. A família de Tati saiu para a rua, cumprimentando os vizinhos e amigos. Consigo vê-los de onde estou, sentada no telhado da casa, morrendo de medo de escorregar das telhas onduladas.
Daqui de cima eu vejo todo o bairro. Não consigo evitar olhar para um pouco mais acima na rua, buscando pela minha casa. A essa altura, estaríamos brindando com refrigerante e pelo minuto em que se demora para se passar de um ano para outro, minha mãe me abraçaria e logo depois, Pedro e eu a sufocaríamos com um grande, longo e constrangedor abraço coletivo. Durante aquele minuto, a ausência do meu pai não importaria para nós. Durante aquele minuto inteiro, nós seríamos uma família.
Lembrar disso dói tanto.
Sinto falta da minha mãe também. Saudade de alguns minutos sob seu toque sem nenhuma maldade, sem nenhum ressentimento.
Sinto ainda mais falta de Pedro. É insuportável conceber a ideia de que nunca mais vou ouvi-lo rindo de alguma coisa, nunca mais vou vê-lo dançar. Nunca terei a oportunidade de ouvir a música que ele queria fazer e isso dói. Dói como perdê-lo outra vez.

É uma terça-feira chuvosa. As poças se enchem gota a gota, até que se transborde na avenida esburacada. O céu acinzentado com suas nuvens carregadas por toda a extensão me dá certeza de que a chuva não vai passar logo em breve. Faz algumas horas desde que atendemos o último cliente e o seu Valter considera fechar a lanchonete um pouco mais cedo, afinal, ninguém virá comer pastel nesse temporal. Mas a maioria dos empregados da lanchonete mora longe, então, até mesmo depois de dispensados pelo dia, muitos deles permanecem no estabelecimento para evitar a chuva torrencial.
Na TV, um desastre arquitetônico deixa os paulistas em alerta em toda região metropolitana. Um desmoronamento ocorreu em um canteiro de obras na linha de metrô e acabou ocasionando a abertura de uma cratera de 80 metros no meio da cidade, no horário de pico. Ainda não é certo, pois, as buscas ainda estão acontecendo, mas, o número de mortos nessa tragédia horrível é de três pessoas até o momento.
O trecho da entrevista com o bombeiro dizendo que buscam por sobreviventes repete pela terceira vez, uma forma de manter o assunto em alta. É lamentável que a mídia precise perpetuar falsas esperanças, quando é claro que todas aquelas pessoas morreram soterradas.
Imagine estar andando na calçada tranquilamente e o chão se abrir embaixo de seus pés? Certamente tenho que parar de usar essa expressão para problemas cotidianos, o literal disso não é nem um pouco bonito.
Decido que o clima chocado, silencioso e enlutado não pode ser pior do que me molhar um pouquinho. Me despeço dos demais e encaro a chuva, achando reconfortante o fato de não me importar tanto com as gotas grossas molhando meu rosto.
Pego o guarda-chuva azul escuro na mochila e caminho até um ponto de ônibus com cobertura. Demora até que eu encontre um que já não esteja lotado com pessoas que tiveram a mesma ideia. O som contínuo das gotas batendo contra o tecido do guarda-chuva é acolhedor, contrasta com o jazz que ouço baixinho nos fones de ouvido.
Na companhia da chuva e do jazz, caminho até a metade do caminho sem nem perceber.
O vento sopra mais forte e eu seguro o guarda-chuva com um pouco mais de força também. Meu braço recém desengessado lateja, porque doeu o dia inteiro e eu não quis parar de usá-lo para ajudar a reorganizar a despensa, carregando caixas de mantimentos pesados de um lado para o outro.
O seu Valter me viu massagear as cicatrizes e disse que um dia eu iria gostar do "poder" de prever a mudança do tempo. Após ultrapassar o intuito de me despedir por insubordinação pela expressão descrente com a qual eu desdenhei de seu comentário, ele me explicou que as dores acontecem porque quando vai chover, a pressão atmosférica sofre algumas variações. Como nosso corpo é feito majoritariamente de água, somos mais sensíveis a essas variações de pressão na atmosfera. Os ossos quebrados e colados de volta são como pequenas falhas nessa espécie de passagem de carga de energia e por isso dói tanto.
Sorrio por ter aprendido algo novo.
Fico frustrada porque isso nunca vai ter fim.
As cicatrizes, ainda rosadas, vão sumir com o tempo e ficarão mais discretas. Mas a sensação de que meu braço nunca mais será o mesmo me deixa triste. Outra memória para não esquecer nunca daquela noite.
Passaram dois meses desde o acidente. Salvas as cicatrizes da cirurgia, uma que sobe uns seis centímetros em meu cotovelo esquerdo e outra um pouco menor mais acima, em meu ombro; as cicatrizes dos cortes sumiram com o passar das semanas. Talvez penetrando minha pele, ultrapassando meus músculos e encontrando seu caminho até minha alma. O que é bom, assim as pessoas não me olham mais como se eu fosse quebrar.
Elas esqueceram e é melhor assim.
— 5 dias! Não acredito que só faltam 5 dias! — Tati chega a pular de tanta empolgação. Ela coloca de volta a tampa da caneta vermelha de glitter que ela usou para riscar mais um dia no calendário.
— Isso tudo é pressa de ter o seu quarto de volta? — Tati abre a boca ofendida, mas balança rápido a cabeça, dizendo que não.
— Eu nunca fiquei tão feliz por ter uma colega de quarto, querida. — Tati alcança minha mão com a sua. A empolgação dela faz o toque parecer elétrico. — Só estou muito ansiosa para saber a sua nota, até mais do que a minha. — Seguro sua mão e a faço se sentar diante de mim. Tati respira fundo e me agradece num sorriso.
— É porque você sabe que fez aquela prova como um ninja. — Olho orgulhosa para minha melhor-melhor amiga. Tem sido mesmo muito legal dividir o quarto com uma garota, para variar. — Eu sei que você acredita muito em mim, mas me sinto pressionada. Não quero te decepcionar se as coisas não saírem como esperamos. — Suspiro um pouco chateada. Não gosto de criar expectativas e Tati deixa impossível ter sucesso em não ter esperança alguma.
— Não importa o que aconteça. Vai ficar tudo bem. — Tati diz e eu assinto, só para acabar com o assunto. Eu adoraria não ser impermeável para o otimismo inabalável da Tati.
— Quer fazer alguma coisa? — Pergunto entediada. E porque não quero perpetuar a conversa.
— Já olhou pela janela? — Tati tem razão, ainda está chovendo bastante lá fora.
— Estou entediada. — Digo rindo surpresa, como se fosse uma nova descoberta. Eu não costumo ficar entediada. Sempre há alguma coisa a fazer. Sempre houve.
— Quer jogar baralho? A gente pode ver um filme... — Tati sugere e eu rolo os olhos. Ela não pode me oferecer o que eu quero.
— Sinto falta do Gui. — Tati refaz o próprio rosto em puro desgosto. — Não dele em si, mas daqueles segundos em que a coisa ficava realmente boa. — Me perco em escassas memórias, mas me desvio para as caixas de momentos imaginados em minha cabeça. está em todas elas.
— Você precisa transar. — Tati deduz e eu assinto com pesar. — Com você mesma.
— O que?
— Masturbação. — Tati diz como se fosse óbvio. Mas Tati é virgem, o que ela sabe sobre prazer?
— Não posso fazer isso! — Parece que Tati me pediu para esfaquear um bebê. Parece tão impensável que me sinto mais virgem que ela. Não sei me colocar nesta conversa e minhas bochechas esquentam muito.
— Você precisa conhecer seu corpo. Saber do que gosta ou não. Entender como tudo funciona por aí. — Ela gesticula em minha direção e eu rolo os olhos. — É sério. É um clichê, eu sei, mas tem que ser lembrado. Você não teve boas experiências com namorados e todo o seu sexo foi conturbado. Você merece algo bom de verdade, se sentir incrível e super gostosa. E tem que gozar, amiga. — Me envergonho por achar que tinha alguma experiência por já ter transado, mas minha melhor-melhor amiga virgem, é a grande experiente aqui.
Tati não é mais uma criança. Nenhum de nós somos.
— Eu estou absorvendo esse fato, juro. Mas, podemos, por favor... — Tati ri e concorda. Acabamos decidindo por ver um filme de comédia, no qual não consigo parar para realmente prestar atenção. Estou mesmo cogitando transar... Comigo mesma.
Mais tarde, Tati dorme no sofá e eu ainda estou acordada. E ainda mais entediada.
Vou para o quarto de Tati e me deito no colchão macio ao lado da cama dela. Entro embaixo do cobertor e encaro o teto buscando por instruções. É um aparelho bastante intuitivo, eu sei. Mas me sinto estranha. Meu coração bate rápido, estou um pouco trêmula e sinto uma espécie de ansiedade deixar minha pele quente e sensível ao mero encostar de uma perna na outra. Quando sinto qualquer tipo de ansiedade, penso nos momentos que passei com . Nos ensaios, andando de bicicleta pela rua, ou sequer uma mera conversa boba. Mas acho que há alguma coisa no contexto desta ansiedade que me faz voltar às caixas de memórias que eu criei com ele para suportar a saudade nas últimas semanas.
Tudo o que costumo imaginar é puro, singelo. Parece mais um conto vitoriano, cheio de trocas intensas de olhares, toques furtivos de ponta dedos. Uma admiração mútua, distante e dolorosa, mas ardente e hipnótica. Apaixonante.
Mas houve uma vez em que meu irmão recebeu os amigos em casa e aconteceu algo que agora meus sentimentos confusos por me fazem produzir uma memória diferente do ocorrido.
É uma tarde como qualquer outra. Os meninos jogam videogame na sala e está frio lá fora. Eu saio do quarto pela primeira vez no dia para pegar água e passo na frente da televisão. Ouço os protestos, mas não os dele. Ouço passos também, mais próximos da cozinha. Ele entra. Minhas meias estão desniveladas nas canelas, a camiseta que uso é grande, mas seu pano é fino. Com o frio, meus mamilos intumescem e seu olhar incendeia meu peito.
“Vi sua silhueta na TV.”
Eu rio.
“Contra a luz da TV?”
Ele ri.
“É... Acho que fiquei um pouco atordoado.”
me beija sem fazer som algum. É molhado e quente, tem gosto de bala de morango e refrigerante de limão. Suas mãos grandes e ágeis viajam por meu corpo. Nos lugares certos, com firmeza. Me fazendo suspirar.
As pontas dos dedos entram por baixo da camiseta como ladrões na calada da noite, imperceptíveis, obstinados.
Não podemos fazer barulho.
Alguém pode vir a qualquer momento.
A camiseta está no chão agora. Minha perna sobre seu ombro e seus joelhos no chão.
Seu dedo me invade, sua boca me devora e ele escreve seu nome em cada parte de meu corpo eletrizado sob seu toque estimulante, preciso.
Ele aperta minha coxa, passeia os dedos por meu torso em chamas e agarra meu peito com delicada firmeza. Uma destreza que somente o mais profundo desejo concede.
Agarro seus cachos entre meus dedos e por um instante, eu sou todo o universo. Explodindo e nascendo. Pequena e gigante.

Minha respiração descompassada escapa pelos dedos tampando minha boca. Engulo o gemido longo e satisfeito que ameaça escapar por meus lábios. Estou arrepiada e ensandecida com a sensação. Por um momento, o meu próprio toque sobre minha pele parece novo.
Me eu me sinto ridícula por sequer pensar em sentir falta do Gui. Até uma representação imaginária de é mais generosa que ele. Por outro lado, uma imaginação poderosa como essa me faz pensar que eu preciso necessariamente de mais alguém para transar. Por outro lado, nesse triângulo reflexivo, todo o mistério que colocou sobre seu sexo e minha poderosa imaginação, só me deram mais vontade de saber do que se trata.
Não sei exatamente o que sinto por , mas sei, definitivamente, que o quero sobre mim de novo.

— Está pronta? — Tati congela a mão sobre o mouse.
— Sim, por favor. — Ela faz uma desnecessária e tortuosa contagem regressiva antes de abrirmos a tela com as notas no portal de educação do governo.
É surpreendentemente uma boa pontuação.
Por um momento, fico feliz por ter mais opções de cursos. Mas também fico triste, porque a saída da nota, significa que o ano letivo começa em breve e eu não vou mais estudar aqui.
— Preciso ir... — Me levanto da cadeira e sinto minhas mãos tremendo.
— Aonde você vai? Ainda tem mais uma hora de uso! — Saio da Lan-House com Tati me gritando.
Preciso encontrar . Preciso contar a ele o que vai acontecer.

— Oi, Beto. — O cinquentão de aparência sisuda me encara por trás dos óculos fundo de garrafa.
? — Ele pergunta confuso. Faz alguns anos desde que ele me viu pela última vez. — Oh, filha. Sinto muito por tudo, viu? — Ele vem mancando até mim, mesmo que eu proteste e tente impedi-lo de se mexer sem necessidade. Beto me abraça com cuidado, pois as mãos estão sujas de graxa.
— Eu sei. — Digo ainda sem jeito. Nunca vou me acostumar com isso.
— No que essa humilde bicicletaria pode te ajudar hoje? — Ele oferece afetuoso e eu sorrio.
— Na verdade, estou procurando o . Ele veio trabalhar hoje? — Beto sorri malicioso e volta a se sentar na cadeira de madeira no alto da calçada em rampa.
— Sim. Deve estar voltando do almoço, sabe como ele é. Sempre pedalando pelo caminho mais longo. — Dá de ombros e eu assinto devagar. Olho para as duas pontas da avenida e volto a encarar o grisalho, que continua me estudando. Agora ele percebe a cicatriz rosada em meu braço e contorce o rosto em uma dor imaginária.
— Tudo bem se eu esperar por ele? — Minha ansiedade desponta em minha voz e ele assente um pouco preocupado.
Ouço o som de um caminhão se aproximando e imediatamente me sinto perturbada. Subo na calçada e fico próxima o suficiente da entrada da oficina de bicicletas. O chão sujo de graxa não me incomoda, é até familiar. Pedro estava sempre com as mãos sujas de graxa por mexer na bicicleta. Ela nunca estava perfeita e sempre precisava de ajustes.
O caminhão não é de nem de longe tão grande quanto o do acidente. Quando ele passa pela oficina, suspiro aliviada e espero que não tenha deixado transparecer tanta chateação por causa de um veículo.
— Olha ele lá. — Beto aponta para o fim da rua e eu acompanho seu olhar. pedala mais devagar, mais próximo da calçada.
Quando ele se aproxima, está pálido e atordoado. Duvido que ele tenha me visto.
— O que foi, menino? — Beto pergunta bem-humorado.
— Nada... Desculpa o atraso, Beto. Precisei esperar o caminhão... Passar. Oi. — Não quero parecer convencida, mas sua inquietação parece diminuir um pouco quando finalmente me vê. Se eu não tivesse chorado todas as minhas lágrimas no último mês, eu choraria por agora. Eu compreendo o medo em seus olhos. Quero abraçá-lo com força agora que não tem mais um gesso me impedindo de fazer isso.
— Oi. — Faz semanas que não o vejo. Desde que me mudei não tivemos nenhuma desculpa para nos encontrarmos e eu fiquei triste por ele não ter tentado mais.
— Você está bem? — Ele pergunta preocupado.
— Sim. Não... Sim. Podemos conversar? — olha de mim para Beto, que ri rouco e balança a cabeça de um lado a outro.
— Vinte minutos. — Beto diz só para que as coisas não fiquem bagunçadas muito rápido, mas sabemos que ele não se importa de verdade.
— Vem cá. — entrelaça seus dedos nos meus e me leva até a bike. Há uma praça há uma quadra e ele pedala comigo até lá.
Acho que não sou a única a gostar da proximidade. Agora sem o gesso, seguro no guidão com as duas mãos. Os braços esbarrando nos dele de leve é um toque gentil, mas eletrizante.
O céu está azul e as nuvens brancas em contraste de cor e distância com o verde das folhas das árvores faz da curta viagem uma muito mais significativa, é como perceber uma memória sendo criada. Enquanto encaro a imensidão sobre nós, apoia o rosto na curva de meu pescoço e acaricia meu braço esquerdo. Os dedos são gentis sobre a cicatriz e eu consigo sentir seu rosto sorrir.
— Finalmente sem o gesso. — diz baixo, parece orgulhoso por minha recuperação.
— Eles tiveram que enfaixar o outro braço para me impedir de tirar o gesso antes do tempo. — tem a gargalhada mais contagiante que conheço. Eu adoro que ele entenda minhas piadas e ironias.
Eu não sei o que vai ser de mim longe dele.
— Como estão as coisas? — Assisto deixar a bicicleta no chão com cuidado. Me sento no banco de concreto e espero que ele faça o mesmo. Agora sou eu quem escolhe as palavras, decidindo dizer só as segundas ideias que me vêm à mente.
— Acho que eu tenho um padrasto agora. — Ele explica divertido e eu gosto da postura dele em apoiar a mãe a se apaixonar de novo.
— Como ele é? — Pergunto animada.
— Legal. Barulhento, mas legal. Acho ele engraçado, é fanático por futebol e é do tipo que grita com a TV por causa disso. Mas é gente boa. — se senta ao meu lado no banco. Veste um short cargo preto e eu adoro os tênis verdes que ele está usando. Quando reparo na camiseta que ele está vestindo, desvio os olhos rapidamente. É mesma camiseta que ele está usando em minhas recorrentes visitas à caixa de memórias criadas. Por um instante, me sinto mal por pensar nele desse jeito. Mas não consigo evitar, é nele que penso quando quero me sentir completa.
— Que bom que vocês se dão bem. Sua mãe merece alguém legal. — Digo encarando meus próprios tênis gastos.
— É... — suspira e passa uma das pernas para o outro lado do banco, ficando de frente para mim. — E aí, o que aconteceu? — Me apoio em um dos braços para escolher melhor por onde começar.
— Minha nota no ENEM saiu. — Dou de ombros, o resto da notícia é ruim demais para ficar feliz só com essa parte.
— Boa? — Ele se anima e eu detesto presumir que ele vá ficar tão triste quanto eu com a minha partida.
— O suficiente para cursar jornalismo, publicidade e propaganda, odontologia, filosofia... — Conto as opções de tudo o que já pensei em cursar nos dedos, sem muito ânimo.
— Mas você não quer cursar nada disso. — Ele conclui e eu assinto. — O que você quer fazer?
— Quero fazer música. Talvez produção musical. — Um lampejo passa por seus olhos e ele reconhece o desejo.
— E qual o problema? — se aproxima e eu o encaro ainda me decidindo se devo ou não contar. Mas só ir embora sem dizer nada parece pior.
— A minha tia quer me ajudar a me formar. Só que para isso, eu tenho que ir morar com ela. — sabe bem da história da tia Vanessa. Casou jovem, se divorciou. Casou-se de novo com um homem envolvido na política e foi embora para nunca mais voltar.
— Que... Bom. — Ele sorri fraco.
— É? — Encaro seus olhos de tão perto. desvia, bagunça os cabelos e volta a me olhar. Dessa vez o sorriso é mais forte, decidido.
— Definitivamente. Esta cidade está morta. Você precisa ver outras coisas, conhecer gente nova. — Eu não sei se não se importa ou se ele está fingindo muito bem que não se importa. As duas opções me deixam igualmente frustrada.
— Acho que sim. — Volto a encarar meus tênis e sinto aquela sensação de fim de filme. Você sabe que tudo está prestes a ser resolvido e logo todos serão felizes para sempre na imagem congelada da última cena antes dos créditos subirem.
— Só não vá se esquecer de mim. — Ele cutuca minhas costelas e eu sorrio triste.
— Nem se eu quisesse. — Comento baixo, mas sei que ele ouviu. O silêncio que se senta conosco no espaço vazio do banco é ensurdecedor. inspira e solta o ar com força. Os olhos perdidos pela rua esburacada, encontram os meus e eu não sei se consigo me despedir dele. Não completamente.
— Preciso voltar para o trabalho. Quer uma carona? — Ele oferece, a voz divertida me faz sorrir pequeno.
— Não, tudo bem. — Ele assente, mas parece um pouco decepcionado enquanto levanta a bicicleta da grama.
— Quando você vai? — tenta soar casual. Mas com o bagunçar de cabelos, o coçar na bochecha e depois o apertar no ombro, exatamente nesta ordem, eu soube que ele estava bastante nervoso com a resposta.
— Na segunda-feira. — Hoje é sábado. meneia a cabeça e parece fazer contas consigo mesmo.
— Posso te ver amanhã à noite? — Pergunta se ajeitando no banco, ele morde o canto do lábio inferior e eu sei que não tenho coragem para negar nada para aqueles olhos.
— Claro. — Um riso nervoso escapa de meus lábios e ele sorri daquele jeito fofo que faz seu nariz se franzir e os olhos ficarem pequenininhos.
— Até amanhã, . — Ele aperta a buzina da bicicleta e desce o pequeno morro gramado segurando a roda dianteira no ar.
— Que exibido... — Vejo que ele ri da própria proeza e refaz o caminho até o trabalho.
No dia seguinte, estou tão nervosa que não consigo comer, respirar fundo ou sequer falar direito. Tati já sabe de tudo e vibra uma ansiedade pelas atualizações depois do encontro.
— Queria poder dançar! — Um resmungo sofrido escapa por meus pensamentos.
— Não sei por que você parou, você é ótima. — Tati diz despretensiosa.
— Eu não posso dançar sem o Pedro, não faz sentido. — Sei que minha voz soa grosseira, mas parece tão óbvio para mim.
— Você quem sabe. — Dá de ombros e liga a televisão na MTV. Ela assiste a alguns clipes e eu me lembro de uma época em que isso me animaria. Mas ver Chris Brown perseguindo uma minissaia enquanto dança pela milésima vez não funciona mais.
O sol se põe e eu tomo um longo banho. Visto a roupa mais feminina que tenho agora, um vestido de saia rodada e alças finas. Seu padrão quadriculado em pequenas seções de laranja e branco ressalta minha pele e eu deixo os cabelos soltos.
O céu se segura num tom claro que azul. A rua pacata é silenciosa o suficiente para ouvir o programa dominical com um pequeno atraso no áudio entre uma casa ou outra. Me sento na escada e observo o céu mudar de tom. Pequenas estrelas começam a brilhar bem tímidas no alto e eu me distraio com elas por algum tempo.
O elenco da novela que estreará amanhã à noite come pizza com o apresentador enfadonho de piadas duvidosas. Me lembro que minha greve de fome foi péssima ideia.
Os pais da Tati leem minha mente e pedem uma pizza que não demora quase nada para chegar. Sem perder tempo, coloco um pedaço em um prato e volto para a escada esperançosa, mas não ouço o som das rodas da bike cantando pela rua empoeirada.
O apresentador reage de forma forçada e repetitiva a vídeos americanos de bebês e idosos caindo. Acidentes em casamentos e peripécias que deram errado. Vez ou outra ele comanda que a produção repasse a mesma suposta pegadinha para seu bel prazer. O entretenimento da família brasileira aos domingos. O clima de dia acabando, de planos sendo feitos, de volta à rotina. O apresentador se despede das famílias brasileiras por mais uma semana.
Eu ainda estou sentada sozinha na escada.
Vou até o portão e tentando não fazer muito barulho, eu o abro e saio para fora. Ando até o meio da rua e olho de um lado e do outro. Exceto pelos sons das televisões ligadas e dos cachorros briguentos ao longe, tudo parece morto, abandonado.
Eu me canso de esperar.
Minha mão encosta no material gelado do portão e então, eu ouço. O som característico de uma bicicleta se movendo bem rápido.
Fico na calçada, os braços cruzados na frente do corpo, como se rejeitasse seu atraso firmemente. Só que no fundo, estou feliz por vê-lo.
— Desculpa. — Ele desce da bicicleta e se atrapalha com ela. — Eu tinha um plano. Um bom plano. — Ele diz arrastado, pouco coeso. Nem um pouco parecido com o que aprendi a me acostumar e gostar tanto.
— Você está bêbado. — Meus ombros murcham. Mordo o interior do lábio inferior com força, tentando me distrair da raiva instantânea que estou sentindo dele com um pouco de dor.
— Sim. No início, foi por uma boa razão. Mas depois eu só perdi o controle mesmo. — Ele ri sozinho e anda devagar em minha direção. Apoia as mãos em minha cintura e sorri para o vestido. — Você está bonita. Você é bonita. Não, linda. O tempo todo. — Ele se atrapalha e eu quase sorrio, se não fosse pelo cheiro forte de bebida exalando dele.
— O que aconteceu com o papo de que seu corpo é um templo? — Não consigo esconder minha chateação e é a primeira vez que a percebe.
— Tempos desesperados. Nunca beba para evitar contar um segredo, ele só fica maior e maior. — diz baixo.
— Que segredo? — Busco seus olhos, mas ele parece uma bolha de sabão agora. Disperso e frágil.
— Eu não posso contar! — Ele diz mais alto, indignado com sua própria condição.
— Por que não? — Imito seu tom e ele se afasta. Esconde o rosto e grunhe.
— Não posso. — Dá de ombros e eu me revolto para valer. Vou até ele e o empurro pelo peito.
— Idiota! Você não podia era ter me deixado plantada aqui esperando por você enquanto você enche a cara! Isso é ridículo! — Ele cambaleia para trás e franze a testa em confusão.
— Eu já pedi desculpa!
— Mas quer saber? Eu não aceito. É um desrespeito comigo você chegar nesse estado e ainda achar que está tudo bem. — Cruzo os braços na frente do corpo e ele ri com escárnio.
— Quer dizer que o Gui podia te tratar como um lixo o tempo todo e te trair o tempo todo, mas seu me atraso um pouco, eu sou o idiota? — analisa a própria frase e se arrepende dela. Mas é tarde.
— Eu era uma pessoa diferente. Mas algo não mudou em mim, eu ainda espero o melhor das pessoas e sempre acabo me decepcionando.
— Eu precisava de coragem! Você é irmã do meu melhor amigo morto. Isso é confuso para mim! — Ele admite, transtornado.
— Coragem para quê, ? — Pergunto num tom desistente, chateado.
Toda e cada pequena coisa em que coloquei alguma expectativa saiu completamente fora do esperado. Não sei bem como lidar com mais essa decepção.
Quando me beija de um jeito desajeitado, o cheiro da bebida me deixa tonta. É decepcionante e o fato de ele ter destruído essa pequena fantasia de que nosso primeiro beijo seria mágico, porque, bem, parece um príncipe encantado, me deixa furiosa.
— Não! Assim não. — Eu me afasto e ele suspira com pesar. — Está tudo errado! Eu quero o sóbrio. O que não pensa que eu sou uma idiota por ter sido mesmo uma idiota. — Limpo o resquício do beijo com as costas da mão, indignada por estar impregnada com o cheiro alcoólico.
— Merda! — se afasta e continua xingando baixo. — Me desculpa, .
— É uma pena que ele não possa voltar a tempo. — Giro nos calcanhares e odeio o gracioso giro da saia do vestido. Tão dramático e ridículo.
Eu me sinto ridícula.
Enquanto tranco o portão e subo as escadas a passos pesados, decido que é mesmo uma boa hora para abraçar oportunidades e abrir meus horizontes.
Tudo aqui me lembra o que foi perdido. Um passado cheio de sonhos e uma comunidade unida trilhando juntos um caminho por um amanhã melhor para todos, ou só por um agora cheio de dança, alegria e união.
Pedro queria tanto me tirar daqui e parece errado macular sua promessa solene me deixando paralisar pelo medo do novo.
Ao trancar a porta decidida a não mudar de ideia, um riso revoltado e surpreso no melhor sentido possível escapa por meus lábios antes de lágrimas escaparem por meus olhos. me ensinou uma última coisa, como me defender de algo que acho ser completamente injusto. E isso foi milhares de vezes mais poderoso do que um primeiro beijo mágico.


ATO III

Quando era criança, fiquei muito doente por um período muito longo. Me lembro de ter pesadelos vívidos e alucinações assombradas até quando achava estar acordada.
Um desses pesadelos de tirar o fôlego tem me feito companhia nas últimas noites. Venho analisando cada aspecto desses sonhos ruins de maneira bastante desprendida de julgamentos, mas acaba sempre sendo a culpa de alguém.
O pesadelo começa e termina no mesmo cenário: uma cozinha de azulejos pretos e brancos, alternados de forma de eu caiba inteira em cada azulejo. Preto e branco. Os armários são altos, escuros e todas as portas estão escancaradas. Consigo ouvir o ranger das dobradiças com o vento que entra da janela, assim como a luz frágil da lua. Está sempre à noite, a luz está sempre apagada e eu — uma versão ainda menor de mim — me escondo nas sombras dos armários. Prendo a respiração em meus pulmões pequenos e abro bem os olhos marejados. Agora escuto além do ranger das dobradiças do armário, o tilintar de saltos altos ficando cada vez mais próximos. São passos rápidos, decididos, raivosos.
Ao acordar, tanto criança quanto quase adulta, ainda sinto o vazio da concepção do que tudo isso pode significar no mais obscuro de minha psique.
A parte injusta que me deixa sempre tão triste e impotente, é a culpa que tem um endereço, eu só não o conheço. A época em que fiquei tão doente foi logo após meu pai nos deixar. Não consigo me recordar com muita certeza, mas acho que foi também na mesma época que minha mãe começou a não esconder o quanto me odiava.
Na manhã do último domingo tive uma espécie de reunião com o padre João. Após a missa, apareci na praça em frente à igreja e ele repetiu o sermão para mim. Falava muito sobre perdão e como ele quase nunca vem de quem realmente nos machucou. Algo a ver com a misericórdia de Deus ser tão imensa que devemos buscar Dele este perdão. Mesmo que Ele não tenha exatamente interferido nas ações daquela pessoa em específico.
— O perdão funciona de dentro para fora, — disse sábio, calmo e pensativo.
— E se não houver mais nada dentro de mim? Por onde esse perdão se inicia?
— Às vezes, , o perdão é a única coisa que resta.
Não consegui dizer ao padre João que tenho certeza de que nunca serei capaz de perdoar alguém que não aparece no enterro do próprio filho. Alguém para quem recomeçar completamente é tão simples, mesmo estando no meio de algo grande.
É madrugada de terça-feira. Encaro o teto fixamente, tentando pescar alguma boa memória. Algo que me faça parar de pensar que toda a minha vida tem sido uma jornada cheia de medo e incertezas.
Quero me lembrar de Pedro.
Toda bronca ficava mais branda, toda surra acabava com um risinho inoportuno, como um arco-íris após uma chuva forte. Todo coração partido teve conserto e ele estava lá, me obrigando a seguir em frente nem que fosse à base de ameaça.
Ainda não consigo acessar as boas memórias. Estou sempre com tanta raiva por causa do motivo pelo qual tenho que recorrer à meras memórias quando na verdade nunca precisei tanto no conforto da segurança do abraço de meu irmão mais velho.
Tudo é tão injusto. Se eu pudesse somente voltar àquela noite e implorar que todos ficássemos em casa nos ocupando com qualquer coisa além de ir até à festa.
Com uma trilha de lágrimas nas têmporas e um planeta sobre o peito, decido me sentar. Respirar fundo é inútil e só me resta me distrair com minha atual realidade. É como usar o veneno para curar a doença.
Encaro o escuro do quarto e me pergunto quanto tempo ainda falta até que eu me acostume com o lugar. As paredes pintadas de branco, intercaladas com um papel de parede florido em cor-de-rosa claro. Os móveis bonitos, de aparência pesada e antiga me fazem sentir deslocada, perdida. Todas as minhas coisas cabem em um quadrado pequeno no chão bonito de madeira escura e eu tento não ocupar muito espaço na cama de casal cheia de almofadas em tons diferentes de cor-de-rosa. Eu nunca tive tanto espaço e almofadas disponíveis assim antes.
Ao lado da janela enorme, uma escrivaninha também branca exibe um computador que parece ter sido colocado há pouco tempo ali. Ele sequer fora instalado e eu não faço a menor ideia de como fazer isso. Talvez seja um bom projeto para depois.
Na manhã seguinte, a claridade do sol entrando pelas janelas do apartamento me convida a sair do quarto. Ao chegar na sala, a parede de vidro me faz engolir em seco e a vista de uma São Paulo nublada, mas pacífica, me distrai por alguns segundos.
Já passam das nove da manhã e vejo pessoas correndo nas calçadas, com ou sem seus cachorros bem-educados de pelo branquinho ou dourado como um raio de sol de coleira. Parece outro mundo. Penso que há duas horas de distância, os peões do chão de fábrica já estão trabalhando há horas, a fumaça das empresas já está densa no céu e os comerciantes já tiveram todo tipo de encrenca com os moradores de rua que ocupam as calçadas durante o dia, porque é perigoso demais dormir nas ruas à noite.
Olho em volta e o apartamento parece me encarar de volta, julgando minha camiseta de gola gasta e o short masculino que ficou pequeno demais para meu irmão, mas confortável para mim. Os olhos das pessoas sem expressão nos quadros pendurados nas paredes me repetem a mesma pergunta que me faço desde que cheguei: O que estou fazendo aqui?
É um apartamento enorme, mas minha tia usou o termo "confortável" dez vezes desde que foi me buscar na estação de metrô ontem de manhã. Dez vezes, eu contei. O que é irônico, pois, sei que minha mãe e minha tia não cresceram com muito luxo. Filhas de pais semianalfabetos, que batalhavam no almoço para garantir o jantar, às vezes, literalmente, cresceram dividindo um quarto em uma casa pequena e apertada. Elas fizeram o que a maioria das mulheres da época, terminaram o ensino médio e se casaram logo em seguida. A tia Vanessa duas vezes, a segunda sendo a mais lucrativa das tentativas, lhe deu esse toque mais chique e delicado para as coisas. A mulher que bebe suco de laranja na taça hoje, costumava beber vinho barato direto do gargalo da garrafa de plástico nas festas de bairro em um passado não tão remoto assim.
Tudo parece intocável, pronto para ser fotografado por revistas de arquitetura e design de interiores. Me sinto malvestida e estou só indo tomar o café da manhã na sacada do apartamento.
— Bom dia! — Minha tia parece bastante à vontade com toda a mordomia. A mesa posta parece prestes a alimentar uma família inteira, mas somos só nós duas. — O Arnaldo volta a tempo de almoçarmos juntos, podemos ir aonde você quiser — diz animada, colocando um guardanapo de tecido sobre o colo. Eu só vi alguém fazendo isso em filmes. Não repito o gesto, mas ela não parece se importar.
Arnaldo é o marido da tia Vanessa. Ele trabalha com política, mas não tenho certeza se as pessoas votaram nele ou se só aconteceu. Ele vive indo e voltando de Brasília, cheio de conexões e amizades importantes. Dá para ver pela rigidez dos sorrisos nas fotos espalhadas pelos porta-retratos na sala que o homem não faz nada sem pensar no que pode obter em retorno. Tem mais fotos dele com outros homens engravatados do que com a tia Vanessa.
— Eu não conheço muito bem as redondezas. — Rio nervosa, não quero parecer grossa. Minha tia bate a palma da mão na própria testa e encara a mesa por um tempo antes de voltar a falar.
— Nós vamos descobrir juntas, então. — Ela pisca um dos olhos.
— Você não conhece o bairro? — Pergunto após engolir um pedaço de pão de queijo.
— Não — diz casual, mesmo que more aqui há quase dez anos agora.
— O que você gosta de fazer? — Pergunto inocente, mas parece que minha tia se surpreende muito com a pergunta.
— Ninguém me faz essa pergunta há muito tempo... Bom, eu gosto de ir ao cinema. Tem um na República, parece aqueles americanos que não têm um shopping em volta dele. Você compra o bilhete e entra numa espécie de túnel e então, está na sala de cinema. Eu costumava ir lá o tempo todo... — A lembrança parece magoá-la e eu me arrependo de ter tocado no assunto.
— Você deve ter uma rotina atarefada. Talvez a gente possa encontrar tempo para ir em uma sessão em algum momento? — Sugiro e ela sorri de boca fechada.
— Pode ser. Eu ia adorar. — Penso que saber quando alguém rejeita uma ideia profundamente é um superpoder inútil. Fico ali olhando pra ela sem saber muito bem o que dizer.
Arnaldo alugou este apartamento para que pudesse manter o caso extraconjugal com a tia Vanessa longe da última esposa. Com o divórcio, é sabido que ele perdeu boa parte de seu dinheiro, então, eles optaram por viver sua vida de recém-casados eternamente em um hotel. A tia Vanessa diz que é ótimo, apesar de ter renunciado à privacidade, a limpeza e boa localização compensam. Eu não poderia discordar mais. Não conheço muito bem o conceito de privacidade, mas não teria problema em limpar meu próprio espaço e passar mais tempo me deslocando para os lugares se isso me garantisse algum sossego.
Somos obrigadas a sair do apartamento para que a equipe de limpeza faça seu trabalho e esse é um excelente exemplo de como tudo isso é estranho para mim.
A tia Vanessa troca de roupa e agarra um tapete de espuma cor-de-rosa, me pede companhia para a academia, mas digo que não quero fazer esforço com o braço recém-curado. Tem a fisioterapia para isso.
Decido me trocar também e andar pelas instalações do hotel, coloco o enfadonho vestido laranja e prendo o cabelo no alto da cabeça. Há uma pequena rede de restaurantes, a academia, sala de jogos, duas de reuniões, uma brinquedoteca e a piscina. Passo algum tempo olhando pela janela da brinquedoteca, vendo as mesas de artesanato abandonadas e reprimo um protesto ao ler a placa informando o horário de funcionamento, as letras garrafais dizendo que o espaço é reservado somente às crianças de até 12 anos. Eu adoraria fazer velas aromáticas na oficininha de mesas e cadeiras pequenas. Seria uma boa variação ser maior do que os móveis pelo menos uma vez.
— Quantos anos você tem? — Estou na área da piscina quando ouço a voz masculina alarmada e abalada pela puberdade atrás de mim.
— O quê?! — Pergunto confusa, me virando com cuidado para não cair na piscina.
— Essa espinha no seu queixo me diz que você está passando por uma puberdade conturbada. Vem comigo! — O rapaz não é tão mais alto que eu. É magro, usa aparelho nos dentes e tem os olhos verdes impacientes enquanto me puxa pelo pulso.
— Me solta! Eu nem te conheço. — Liberto meu braço de sua custódia e ele respira fundo, com os olhos fechados.
— Lucca — diz simplesmente.
— Onde está me levando, Lucas? — Cruzo os braços na frente do corpo e ele nega com a cabeça.
— Lucas não, Lucca. Sem S porque eu sou único. — Ele pisca um dos olhos e volta me puxar.
— Espera, espera! Onde está me levando? — Tento inclinar o corpo na direção contrária, mas ele é surpreendentemente mais forte que eu.
— Você só precisa saber que será recompensada. Eu ficar te devendo uma pode mudar sua vida um dia. — Lucca para de andar no meio do pátio envolto em vegetação bem cuidada, mais um espaço que eu não conhecia. Alguns meninos conversam mais afastados e nossa movimentação chama a atenção deles.
— Desculpa, mas você não parece exatamente confiável. — O encaro um pouco incomodada com a agitação dele.
— Eu sei, é loucura, mas, confia em mim. — Ele se aproxima, pega meu rosto com as mãos e me beija.
— Aí sim, Lucca!
— Quanto será que ele pagou para ela fazer isso? — Um deles pergunta e todos eles caem em uma gargalhada maldosa que me incomoda muito.
Quando Lucca se afasta, estou prestes a xingá-lo de todos os nomes que me vêm à cabeça.
— Esse beijo salvou minha vida. — Ele volta a andar para dentro do prédio e vai tranquilo até o elevador.
— Você quer explicar que porra foi essa? — Vou até ele transtornada e Lucca mantém um sorriso convencido nos lábios.
— Eu te beijei e agora um grupo de brutamontes vai me deixar em paz e eu posso voltar ao que realmente interessa. — Ele explica calmo e eu entro no elevador com ele.
— Você poderia ter pedido antes!
— Teria me deixado te beijar se tivesse explicado a minha situação?
— Claro que não.
— Então, desse jeito, nós dois ganhamos. — Sua calma me faz sentir em um seriado de TV dos piores possíveis.
— Você é gay ou algo assim? É por isso que eles estão no seu pé? — Lucca franze o cenho e me olha como se eu tivesse dez cabeças.
— E faz alguma diferença? Se eu fosse, eles teriam aval para me perseguirem? — Ele pergunta de um jeito tão óbvio que não tenho resposta, quer dizer, eu tenho, mas acho que Lucca já sabe. — O fato é, eles vão me deixar em paz agora e eu te devo uma por isso. Sinta-se livre para cobrar quando quiser. 515 — diz categórico. Parece ocupado demais para me dar mais satisfações sobre seu gesto abrupto.
, 615 — digo derrotada, de alguma forma, parece que Lucca ficar me devendo uma não é má ideia.
— Político e esposa gostosa desinformada. Eles te adotaram por acaso? — Lucca não tem filtro nenhum e eu não consigo decidir se ele é rude de propósito ou se sofre de alguma condição médica.
— Minha tia Vanessa não é burra — digo ofendida e ele prende um riso.
— Então, ela não é a única — diz maldoso e sorri de boca fechada quando o elevador para e as portas se abrem — 515. Não esquece. — Lucca aponta os indicadores em minha direção de um jeito meio bobo a tempo da porta do elevador se fechar e me fazer rir da sucessão de fatos que acabaram de ocorrer.
Lucca me deve um favor e eu pretendo cobrar.
No corredor, fico confusa quanto ao lado do corredor onde fica o apartamento. Acabo por descobrir que são só dois por andar. 615. 620. É um hotel estranho.
Ao voltar para o apartamento, sinto o cheiro cítrico de limpeza se misturar a fumaça de cigarro. Entro na sala cautelosa. Arnaldo — um muito mais velho do que aparentam as fotos nos porta-retratos— é quem fuma sentado no sofá. Ele não está sozinho, um rapaz mais jovem, com cara de preocupado faz anotações de pé, ao lado da porta de vidro da sacada. Nenhum sinal da tia Vanessa.
— Você deve ser a sobrinha. — A voz soa rouca e cansada. Os cabelos grisalhos me surpreendem mesmo. Ele tem o ar de quem precisa se esforçar para parecer gentil. Não costumo confiar em gente assim.
. . — Tento sorrir, amenizar minhas ressalvas sobre o homem parado diante de mim. Mas seu olhar curioso me faz sentir desconfortável, pequena. Chamo a atenção do rapaz mais jovem também. Ele ri nasalado, voltando a anotar o quer que tenha se passado em sua mente.
— Achei que você fosse uma... Criança. — Um dos olhos de Arnaldo se comprime como um espasmo que rejeita a escolha de suas palavras. Seus olhos percorrem meu corpo e eu sinto um arrepio na nuca, assim como um desconforto permanente no estômago. — Está gostando do quarto? Da cama? Eu mesmo a escolhi. — Ele sorri, os dentes amarelos aparecem e a barriga protuberante treme com a risada que vem a seguir. O rapaz olha para Arnaldo e confirma minhas suspeitas. Não gosto nada da expressão no rosto dele, como quem já ouviu uma conversa parecida e sabe bem onde ela vai dar.
— Tudo é muito bom. Obrigada pela hospitalidade, senhor. — Friso bem o "senhor" quero que ele saiba que o vejo como um homem velho o suficiente para ser meu avô.
— Achei que você teria sotaque — diz surpreso e eu franzo a testa confusa. Eu tenho o mesmo sotaque de paulista que ele, os Rs bem pronunciados no meio e fins das palavras e fala rápida, porque não suportamos a ideia de perder tempo nem falando. — Você sabe, vindo do interior...
— Guarulhos não é interior — digo rápido, como se devesse defender minha cidade berço desse esnobe.
— Calma, calma... É só que lá é cheio de... Mato. — Ele dá de ombros, o rapaz ri. Faz parte do trabalho, aparentemente. O som sai vazio de emoção, mas toma a sala.
— Não é interior. — Repito mais baixo, me sentindo meio envergonhada, só não sei bem por quê.
— Já está com saudades de casa? — Arnaldo bate as cinzas do cigarro no cinzeiro de vidro. Os olhos não demoram a se voltarem para mim.
— Não. — Minto. Bem, na verdade, é uma meia verdade. Não é bem de casa que estou com saudade.
— Que bom. Logo você vai se sentir mais independente. Ser aqui, a mulher que você já aparenta ser. — Com "aqui", Arnaldo quer dizer na cabeça. Não gosto do jeito que ele me olha. Não gosto do jeito como ele me vê e muito menos como que me sinto. Suja, descartável, à venda.
Nunca entendi muito bem o poder que algumas pessoas têm em me deixar bastante intimidada. Algumas pela aparência arrebatadora, outras pela inteligência incontestável e uma pequena, mas, considerável parcela, são de pessoas cuja postura cheia de soberania é capaz de triturar a minha, me deixando sem saber como reagir às experiências comuns do dia a dia. É como sentir uma força imensurável me empurrar para baixo, não como a gravidade que mantém meus pés no chão, é mais como se empurrada mesmo, amassada para o chão.
Estou prestes a entrar no corredor e ouço a voz dele mais uma vez, mais alta agora. "Espero que isso seja tão bom para você, quanto será para mim". Tranco a porta. O arrepio não vai embora. Meu corpo se comprime com a possibilidade, estou enjoada.
Estou com medo de sucumbir ao que meu corpo me diz em sussurros engasgados.
A tia Vanessa se arruma inteira. É nítido que a manhã se exercitando, seguida de um almoço no que ela chamou de família a deixou empolgada. Nós vamos ao seu restaurante preferido e assim como sua animação é palpável, o restante de nós não está exatamente na mesma página que ela.
Estou perdida no caminho de ruas tão arborizadas e calmas, entretida com pensamentos bobos que presumem de forma sarcástica o que as poucas senhoras de meia idade fazem nas avenidas de vitrines de gostos duvidosos no meio da semana, à tarde. Mas ao olhar para o lado e ouvir a tia Vanessa dizendo para o motorista que gostaria de passar em uma daquelas lojas mais tarde, compreendi imediatamente. Não pude deixar de sentir quão solitária deve ser a vida dessas esposas. Arnaldo rola os olhos ou suspira cansado toda vez que a tia Vanessa abre a boca. Ela não parece perceber, mas é bastante constrangedor estar no mesmo carro que eles.
Rafael, o assistente de Arnaldo, não parece se importar com a falta de carinho do marido com a esposa, talvez esteja tão acostumado que este seja o tratamento corriqueiro entre eles que toda essa frieza tenha o deixado dormente.
Nos sentamos próximos à janela. O ambiente é pouco iluminado, dando alguma privacidade para os clientes sentados em mesas tão distantes umas das outras que era possível dançar entre elas sem incomodar o serviço. Os garçons, todos homens, sempre tão solícitos e sérios, mas com um sorriso cordial (e falso) sempre engatilhado.
Olhando em volta, o restaurante não parece ser do tipo que sócios de empresas levam seus clientes para um almoço de negócios. Não parece o tipo de lugar em que se leva a família para uma refeição tranquila. Parece o lugar aonde se vai para esconder um encontro com um detetive que tem provas de que seu marido está te traindo ou o lugar onde um marido leva a amante.
A tia Vanessa parece se sentir em casa, chamando os garçons pelo nome e fazendo nossos pedidos com o vasto conhecimento do cardápio disponível, ela presume o que cada um vai gostar mais e o garçom anota com um sorriso tão forçado que sua mandíbula parece estar dolorida. Ela se esforça tanto.
— Você sabe que detesto essas comidas cheias de frescuras. Por que não fomos à churrascaria como combinamos? — Arnaldo resmunga sem disfarçar. A tia Vanessa tenta responder, mas ele a interrompe, voltando a falar com um tom monótono e ligeiramente agressivo. — Esses talheres estão sujos. — Ele levanta o garfo somente para jogá-lo sobre a mesa, encorpando seu argumento.
— Nós podemos pedir novos — diz a mulher, com a voz vacilante e os olhos mais abertos, alertas.
— Tanto faz... Se eu pudesse, pelo menos, fumar aqui. — Ele volta a alfinetar.
— Você pode, só não é bem-visto. — Tia Vanessa diz magoada.
— Certo, eu tenho coisas a fazer. Vamos termina logo com isso.
É um tanto revoltante assistir à tia Vanessa tentar contornar às reclamações de Arnaldo com boas soluções. Ele rejeita a todas elas e insiste em se manter emburrado.
Vendo tudo isso, entendo que devo tentar alegrar a tia Vanessa de alguma forma. Faço perguntas sobre o restaurante e sobre tudo o que ela já comeu aqui, a distraindo um pouco da carranca irreversível de Arnaldo. Ela volta a se empolgar enquanto fala sobre as sobremesas e eu sorrio, ouvindo tudo com atenção.
Rafael, que se senta ao meu lado, não deixa passar batido o que eu fiz pela tia Vanessa. Troca comigo um olhar rápido de cumplicidade e é quase como ouvir um "obrigado" por interceder na situação sufocante.
Os pratos principais chegam e é só nesse momento que posso descansar meus ouvidos das milhares de anotações mentais que a tia Vanessa tinha para dividir com alguém disposto a ouvir. Ela pediu ravioli ao molho sugo para mim e tudo parece muito interessante de se experimentar.
Acho que posso dizer por todos que foi fácil ignorar Arnaldo reclamando do ponto do filé com fritas que minha tia pediu para ele, enquanto comíamos em um silêncio quase confortável.
Foi na hora da tão esperada sobremesa que as coisas ficaram bastante esquisitas. Enquanto terminava o pudim de tapioca, senti a pressão para que o almoço de boas-vindas se encerrasse logo. Cada um sentado em volta da mesa de madeira escura tinha algum lugar para ir.
Nunca detestei o fato de comer tão devagar tanto quanto agora. Vez ou outra Arnaldo olha para mim, um sorrisinho desponta seus lábios. Sempre que ele olha para mim, eu olho para a tia Vanessa. Ela sorri orgulhosa por eu finalmente ter feito uma refeição completa desde que cheguei aqui.
Arnaldo continua investindo nos olhares furtivos quando a tia Vanessa está distraída demais para perceber meu desconforto.
Decido que já comi demais e pouso o pequeno pote de cerâmica sobre a mesa. Ainda tem mais uma colherada de pudim o fundo dele, mas decido que é elegante não comer tudo, já que ninguém limpou os pratos enquanto comiam.
Estou prestes a me declarar oficialmente satisfeita quando Arnaldo solta um suspiro longo e audível. Ele encena uma dor no tornozelo e se inclina mais sobre a mesa, por baixo dela, sua mão sobe tão alto em minha coxa que a barra da toalha de mesa não esconde seus atos. Arnaldo solta um gemido baixo, ainda encenando a dor.
Tudo acontece rápido, muito rápido. Acho que metade de minha alma se afasta da mesa conforme a ameaça se estabelece. Eu fico ali, parada. De olhos arregalados encarando a mão de pele áspera, gelada e grudenta de Arnaldo sobre minha coxa.
— De novo esse tornozelo? Acho que posso encontrar um ortopedista para você. — Tia Vanessa se aproxima, acariciando seu pescoço e o olhando com carinho.
— Faça isso... — Arnaldo diz ríspido, sem um pingo de gratidão.
Penso em virar a mesa, gritar para todos os clientes do restaurante o que está acontecendo e sair correndo dali. Mas então, vejo os olhos esperançosos da tia Vanessa. Não tive muito tempo para confirmar, mas notei que há um brilho diferente quando Arnaldo está perto, ele a deixa acesa, viva. Por pior que ele seja, Arnaldo é marido dela e eu não posso destruir essa admiração no olhar dela quando o vê.
Tento mexer a perna e me soltar de seu toque indesejado, sem sucesso. Tento afastar a cadeira, mas perco a paciência e acabo por chutar o braço de Arnaldo, que geme mais alto e estabiliza a mesa com a outra mão, evitando que ela balance demais e derrube o restante do café nas xícaras sobre a mesa.
Ele me encara surpreso, um pouco ultrajado porque eu o encaro de volta, deixando claro que ele passou dos limites.
Rafael olha de mim para Arnaldo, que massageia o cotovelo onde o acertei com um chute e parece fazer juntar as peças por si só.
— Senhor, temos uma reunião em meia hora — diz rápido após um pigarro — Só lembrei agora, desculpe.
— Assim não dá, Rafael! Se for para ter que lembrar dos meus compromissos eu mesmo, me avise, assim posso encontrar outro assistente. Alguém que queira trabalhar, que esteja preparado. Não alguém que esteja dormindo no ponto — diz o homem, cheio de ironia.
— Desculpe, senhor. — Ele encara minhas mãos trêmulas, meu vestido levantado em uma das coxas.
Arnaldo se levanta, beija a bochecha da tia Vanessa, depois olha diretamente para mim e pousa o indicador sobre os lábios, se afastando da mesa.
É só quando ele sai do restaurante que eu volto a respirar.
— Tudo bem, ? — Tia Vanessa pergunta sorrindo e eu engulo a angústia entalada em minha garganta, torcendo para as lágrimas não se acumularem tanto para não transbordarem. — Está com saudade de casa? Quer ligar para os seus amigos? Posso te arranjar um celular. — Assinto rápido e forço um sorriso, é melhor que ela pense que estou triste por estar com saudade de casa, não por ter acabado de ser apalpada pelo marido dela.
No dia seguinte, tia Vanessa me leva para comprar roupas novas, material escolar para a faculdade e um celular. Deixo que ela escolha tudo, não estou interessada em gostar de gastar o dinheiro do Arnaldo. O homem me causou mais uma noite mal dormida, cheia de pesadelos.
— Agora. Você pode ligar pra Tati... Ou para o . — Ela sorri maliciosa. — Naquele dia na igreja, fiquei olhando vocês fugindo de mãos dadas e achei que alguma coisa fosse acontecer. Aconteceu? — Ela pergunta animada.
— É complicado... — Não consigo não sorrir, me lembrar desse dia olhando por essa perspectiva me deixa grata pelo que ele fez, mais uma vez. — é incrível e eu senti muitas coisas. Mas nada aconteceu. — Confesso achando graça em sua animação.
— Ele é tão lindo. Com os cachinhos e os olhos sorridentes. Ele foi direto em você na igreja, estava ansioso na fila e respirou fundo antes de ir falar com você. Muito fofo. — Tia Vanessa parece a Tati falando e isso me deixa com mais saudades de minha melhor-melhor amiga.
— Ele é... Especial. — Fico sem graça analisando melhor as novas informações. é mesmo um fofo. Até demais para seu próprio bem. E o meu. Mas não quero soar ingrata, seu senso protetor impediu que eu saísse muito mais machucada do mês de dezembro. Tipo, fisicamente falando, por exemplo. Duas vezes.
— Você sabe que pode receber visitas, não é? — Tia Vanessa diz distraída com a sessão de vestidos de festa.
— Posso? — Ela assente. — Não sei se devo. Acho que não ajudaria com a transição para essa vida nova. — Abro os braços cheios de sacolas para a loja vazia no meio da tarde em um dia de semana. Acredito que os preços nas etiquetas de somente uma das araras cobrem os custos de vida de uma família inteira de forma bastante confortável. Não consigo evitar ficar comparando os estilos de vida. Os gastos da tia Vanessa me deixam ansiosa e o dinheiro nem é meu. Mas a soma diária em coisas bonitas, mas supérfluas me deixa um tanto quanto constrangida e eu sei que não vou me acostumar com tudo isso nunca.
— Eu entendo, mas você não precisa deixar as pessoas especiais para trás. Vai por mim, as pessoas que te conheceram e que gostaram de você antes de você de ter dinheiro, são as que mais se dedicaram para realmente te conhecer — diz distraída com uma blusa verde de seda, mas algo nela me faz sentir pena da tia Vanessa. Ela é jovem, alegre, antenada nos assuntos do momento, mas ao mesmo tempo, tão triste e solitária, alheia à vida real. E eu entendo o porquê disso agora. Ter se casado com um monstro sugador de qualquer mísera alegria lhe corroeu aos poucos, deixando somente uma carcaça dedicada a agradar alguém que simplesmente não pode ser agradado por estar morto por dentro.
— Você tem razão. — Ela sorri pequeno, não deve ouvir isso com frequência. — Mas ainda não sei. Acho que preciso me adaptar primeiro. — Dou de ombros, me permitindo pensar na possibilidade.
— A decisão é sua, mas eu iria adorar que pudesse se sentir em casa. Trazer seus amigos, decorar o quarto do seu gosto. Essas coisas. — A tia Vanessa se empolga com as próprias expectativas. Fazer essas coisas comigo têm dado vida a ela. Encontro um dilema do tamanho de um prédio, cheio de andares de complexidades onde percebo que devo superar o constrangimento e deixar que ela faça isso por mim. Me pergunto em que momento o dinheiro deixa de ser sujo quando ele é gasto em nome da felicidade de alguém. É parcial quando boas pessoas gastam esse dinheiro ou no fundo, não importa o destino e sim a origem daquele dinheiro?
Encaro as sacolas cheias de roupas da moda, a caixa reluzente do celular novo em folha e me sinto tão deslocada.
Minha tia levanta um vestido azul cumprido de tecido esvoaçante e alças finas e delicadas.
— Olha isso! — O suspiro glamuroso, pecador da luxúria se faz presente na loja vazia e ela dança com o vestido em puro deleite. Mesmo dividida, aceito que desde que ela esteja feliz, dançarei conforme essa música horrível e desritmada.

— Então... Qual é a sua história? — Lucca passa as mãos pelos cabelos, tirando o excesso de água da piscina. Está quente e ele apareceu na porta do apartamento de short e óculos escuros, me intimando a descer para a piscina com ele. Assisto ele nadar enquanto molho os pés, não me sinto segura para ficar de biquíni e nadar com ele.
— Não tenho uma história. — Dou de ombros, mexendo as pernas e chacoalhando um pouco a água.
— Todo mundo tem uma história. — Lucca diz categórico, içando o corpo para fora da piscina. Ele se senta mais perto de mim e fica me encarando até que eu suspire derrotada.
— Abandono, maus tratos, tragédia, namorado ruim... Ligue os pontos. — Lucca sorri sem mostrar os dentes.
— Você é interessante. Essa cicatriz tem a ver com a tragédia? — Ele aponta para meu braço esquerdo. A cicatriz afogada em protetor solar.
— É uma delas. — Desvio do olhar curioso dele. — E a sua história, qual é?
— Ah, essa é fácil. Filho único do divórcio, meus pais brigam pelo meu amor e a munição usada são os presentes, viagens, passes livres de encrencas. Mas mesmo travando uma briga judicial por mim, eles não parecem estar muito interessados em quem eu sou. — Ele diz sem muito interesse. — Sou um menino rico com o mundo aos meus pés. Nos dias em que não estou surtando por causa disso, estou agindo como um imbecil pelo mesmo motivo. — Lucca volta a rir e procura validação em meus olhos.
— Pelo menos você sabe que é um imbecil. — Ele ri e eu o acompanho. Começo a gostar de Lucca, ele é deliberadamente autêntico. Consciente de seu privilégio, vítima do próprio ninho. Ele tem tudo, mas não possui nada concreto. Eu quase consigo me relacionar com ele, mas esse quase é importante. É a ponte entre nós. Sei que Lucca também não me compreende por completo e acho que esse é o combustível para essa amizade improvável.
— Estive me perguntando por que você age desse jeito. Acho que agora entendo melhor porque você finge não ser bonita — diz despretensioso, talvez pela primeira vez desde que o conheci.
— Como é que é? — Cerro os olhos, bastante incomodada.
— Sua postura, esse seu cabelo sem definição ou brilho. Essas roupas, sei lá. Sua linguagem corporal diz "não ouse olhar para mim!" — Ele imita uma voz rouca e fina, irritante. Nada parecida com a minha. Rolo os olhos, entendo por fim, que Lucca estava me elogiando. Do jeito deturpado dele.
— Acho que é exatamente essa mensagem que quero passar mesmo. — É ele quem cerra os olhos agora.
— Por quê? Você é a garota mais gostosa que já vi pessoalmente e dá pra ver isso mesmo por baixo dessas roupas largas que você usa tanto. — Os olhos de Lucca passeiam por meu corpo e eu me afasto dele sem cerimônia.
— Quer parar com isso? O que tem de errado com minhas roupas? — Puxo a barra da camiseta para baixo, irritada com a atenção.
— Nada. Mas você as usa para se esconder e não deveria. Você é linda, devia ficar confortável com isso. — Dá de ombros e encara a piscina, a água azul agitada por causa dos nossos pés se movendo.
— Acho que não quero mais ser vista como bonita. Não até os homens aprenderem a apreciar isso de forma saudável e consentida. — Sorrio sem mostrar os dentes, sem jeito por falar disso com um homem que acabou de me chamar de gostosa.
— Desculpa. Não tinha percebido antes. Faz sentido. Namorado ruim... — Ele diz reflexivo e eu não quero mais conversar sobre isso.
— Você falou sobre sua família, mas não sobre você. Por que estavam te perseguindo antes? — Lucca ergue uma das sobrancelhas, sorri nasalado e volta a me encarar.
— É que eu nunca sou uma coisa só o tempo todo. Gosto de estar sempre mudando e as pessoas ainda não estão prontas para isso. — Lucca volta a se jogar na piscina. Alguns assuntos são mesmo mais difíceis que outros, até para alguém sem filtro.
— Você acha que é evasivo esporadicamente, um jeito misterioso de mascarar seus sentimentos e pensamentos. Por que você faz isso? — Junto as mãos sobre as coxas, parando de chacoalhar água em sua direção. Lucca boia de barriga para cima e reflete em minha pergunta.
— Já te disse que você me surpreende por não ser uma completa caipira? — Ele devolve ácido.
— Não disse?! Do que tem tanto medo, Lucca? De que alguém possa realmente vir a gostar de você pelo que você é? — Insisto e ele espalma a água de baixo para cima, molhando meu short e me fazendo rir.
— Vou processar aquela sua tia indecente por trazer você do meio do mato para me confrontar. — Lucca esquiva, mas acaba por rir de si mesmo.
— Ah, meu Deus. Guarulhos não é interior! Não é culpa nossa se preferimos manter a vegetação original do lugar a desmatar tudo para construir prédios sobre prédios. É uma cidade gigante, em constante crescimento. Nós temos um aeroporto, nossa produção é vasta e a indústria está sempre de olho em Guarulhos. Não seja esnobe! — Fico irritada e isso parece entreter Lucca.
— Se a cidade não tem estação de metrô, então, é interior pra mim. — Ele diz categórico e eu rolo os olhos, acabando por rir enquanto chuto água em sua direção.
Lucca continua nadando, mas eu recolho os pés da água antes que a pele de meus dedos enrugue demais.
— Então, esse de quem tanto fala. É o seu namorado? — Lucca come uma salada de frutas enquanto toma sol despreocupado.
— Não, não... é... Hmmm... — Lucca inclina a cabeça para o lado, parece curioso. — Ele era amigo do meu irmão.
— Só isso? Tem mais nessa história, você só não está me contando.
— Certo! — Desisto de resistir. — Eu estava namorando um cara completamente babaca e acabei criando uma amizade maior com o ao mesmo tempo que ia me apaixonando por ele. Ele é um bom amigo e acho que confundi as coisas. De qualquer forma, não deu certo. — Dou de ombros, roubando um morango de seu potinho de acrílico.
— Você ainda gosta dele?
— Não importa. Eu moro aqui e ele lá.
— Viu? Por isso um metrô, em uma cidade grande faz diferença. — Lucca aponta ácido, eu rolo os olhos de novo.
— Não vou fazer com que ele saia da casa dele pra vir me ver — digo impaciente.
— São só duas horas de distância, se ele não puder fazer esse esforço, não te merece.
— Não é só isso... Antes de vir para cá, ele me beijou. Mas estava bêbado e eu fiquei furiosa com ele. Acho que isso pode ter acabado com minhas chances. — Confesso sem jeito e Lucca sorri. — Qual a graça?
— Ele gosta de você também. A ponto de ter que se embriagar para poder ter coragem. Acho romântico. — Lucca me deixa confusa. Ele não tem medo de expressar seu lado feminino, sempre dando opiniões pertinentes. Mas também é bastante masculino, as vezes um pouco agressivo até.
— Não acho romântico. Enquanto eu esperava, me senti pouco importante. Quando ele chegou, não consegui acreditar que eu poderia manter uma conversa tão intensa com alguém exalando cheiro de bebida. Por que ele não conseguiu ir me ver sem a coragem líquida? — A pergunta sai sem que eu queira. Sei que Lucca não pode me dar uma boa resposta, ele nem conhece o .
— Não seria romântico se ele tivesse um motivo muito profundo para não poder te amar? Tipo, uma promessa para o seu falecido irmão ou algo assim.... — Lucca diz sonhador. Me pego pensando naquela noite de novo, o coração aperta, mas procuro por alguma pista que possa responder minha pergunta. Nada. Revisitar a lembrança só me faz sentir dor.
— E você, Lucca. Namorada? Namorado? — Ele gargalha e eu não entendo por que ele ri tanto.
— Sempre solteiro, nunca sozinho. — Ele pisca um dos olhos.
— Quero saber pelo que se interessa. — Insisto e ele suspira.
— Eu tenho tesão por gente. Inteligente, talentosa, inspiradora. Preciso aprender algo com alguém antes de me apaixonar. Seja homem, mulher... Não importa. Desde que eu esteja diante de um deus do conhecimento, eu ficarei excitado. — Lucca diz honesto e eu rio.
— Parece justo.
— E é. Gente inteligente dá tesão porque está sempre em busca de mais conhecimento. Tem um carinha que está se formando e eu adoro ficar olhando pra ele enquanto ele estuda medicina. A minha anatomia está na ponta da língua dele. — Minhas bochechas coram com a malícia de Lucca. De repente, ele parece mais confortável para dividir mais sobre si e eu gosto.
— E você tem tesão em mim? — Pergunto divertida.
— Você é o projeto de caridade mais lindo que já vi, . Mas você se preocupa demais, não evolui por causa disso. Se preocupa com a sua mãe e os seus amigos que ficaram na floresta. — Ele ri de minha repreensão silenciosa. — Meu ponto é, você se importa muito com todo mundo, menos com você. Isso te faz burra, eu não te foderia nem se falasse latim de trás para frente. — Lucca ri de minha expressão ofendida e eu analiso bem suas palavras. Ofensas de lado, Lucca tem razão. Mas sinto que autocuidado é um passo grande para minhas pernas curtas.
Estou tentando.

É o último domingo antes das aulas começarem e está quente como se caminhássemos sob os poros ardentes do próprio sol. O vento parece ter mudado de direção e não faz questão alguma de querer passar por entre as árvores altas plantadas nas calçadas. Faz calor há tanto tempo, que uma rápida olhada no calendário me deixa ainda mais desanimada, estamos no meio do verão e essa sensação de estar em uma caixa de vapor ambulante não vai passar pelas próximas semanas. Não vejo a hora da chegada do outono. É a estação mais bonita e equilibrada do ano.
A Tia Vanessa entra no quarto com aquele sorriso de quem está prestes a aprontar uma. É quase impossível não replicar a expressão travessa em seu rosto.
— O que acha de tomar um sorvetinho no parque? — Pergunta casual. Pondero sobre o convite e penso que é mesmo uma boa hora para sorvete, já que almoçamos há pouco.
— Acho que estou pronta para um sorvetinho no parque. — Ela sorri mais abertamente e eu me levanto, decidindo por sair vestindo o short jeans e a camiseta de time de basquete mesmo.
— Vai ser ótimo! A melhor chance de você conhecer o Arnaldo melhor. — Meu sorriso murcha de acordo com a sucessão de suas palavras.
— O Arnaldo vai também? — Não consigo evitar soar receosa.
— Eu o convenci de mudar aquela primeira impressão de pessoa rígida. Ele vai te mostrar que é bastante versátil. — Ela pisca um dos olhos, alheia a minha imediata falta de vontade de sair com eles. Não consigo dizer a ela que já conheci um dos lados versáteis de Arnaldo e a segunda impressão foi ainda pior que a primeira. O homem é um escroto.
— E aí? Estão prontas? — É engraçado ver alguém mentindo. Fingir ser alguém que não é quando já se mostrou a verdadeira face, é assustadoramente fascinante.
Ele abre a porta do saguão para a tia Vanessa, tocando suas costas com as pontas dos dedos enquanto a guia pelo caminho até o carro. Cumprimenta os seguranças com um aceno de cabeça impessoal e abre a porta do carro para ela. Rafael repete o gesto para mim e eu o agradeço com um sorriso de boca fechada.
Engulo em seco ao entrar no carro com eles. Me sento do lado direito e fixo o cinto de segurança. Eles conversam sobre um "lugarzinho ali na zona sul" que tem o melhor sorvete que eles já experimentaram. Mas eles não chamam sorvete de sorvete, é gelato.
Em minha vasta ignorância, sinto uma imensa decepção esperando uma massa de gelo sem gosto. Mas experimentando, é a mesma coisa. Chamar sorvete de gelato no Brasil é só mais um jeito para ricos excluírem as outras pessoas de certas experiências.
Não consigo explicar como é difícil e constrangedor experimentar o sorvete sem que o olhar malicioso de Arnaldo me encontre furtivamente. Tamanho interesse. O homem tem quase sessenta anos, pelo amor de Deus! Não é aceitável, mas seria explicado se ele tivesse pelo menos cinquenta a menos. Em algum ponto, sinto uma profunda agonia na tomada de decisão entre me afastar deles em um lugar desconhecido e jogar o sorvete fora alegando dor de estômago. O que não é totalmente mentira. Arnaldo me deixa enjoada com o simples respirar.
O valor de um quilo de carne foi pago na casquinha que derrete em minha mão, não posso simplesmente me desfazer dela. Decido caminhar enquanto minha tia tagarela sobre a arquitetura antiga de algum prédio das redondezas.
Caminho um pouco e parte de mim se sente como uma criança contente por conseguir finalmente comer seu doce. E como uma ironia bacana do destino, ao virar a esquina dou de cara com um parque cheio de brinquedos coloridos de madeira recém pintada. O que mais me surpreende é como estão inteiros.
Em Guarulhos, existe uma maldição para parques assim, nada se mantém inteiro por muito tempo. Minha teoria é de que muita gente perdida passa por eles à noite, e, como todo parque é amaldiçoado, ninguém teve muito acesso a estruturas de lazer construídas pelo governo na infância. Logo, a matemática é bem simples: um adulto chapado de qualquer coisa que seja, mais um balanço dando sopa, é igual à um acidente inocente e sem culpados.
Me distraio com uma menininha muito ruiva escorregar feliz na estrutura de madeira cor-de-rosa. Ouço uma risada conhecida e meu coração dispara.
É a Simone.
Não acredito na minha sorte ao ver a cabeleira cacheada acomodada em um coque para o alto. Meu coração acelera e no caminho até ela, lido com as lágrimas de felicidade se acumulando em meus olhos.
Simone está na companhia de outras babás, todas uniformizadas em branco dos pés à cabeça. Hesito um pouco, pensando que talvez possa encrencá-la ao me aproximar, tirando sua atenção das crianças. Mas a tia Simone se vira preocupada, seguindo os olhares curiosos das outras babás.
! — A Simone tem um tom de voz animado, aconchegante. De risada forte e presença pronunciada. Quando ela abre os braços e vem até mim com cara de quem está prestes a me dar uma bronca, eu rio nervosa, mas a abraço apertado.
— Meu Deus! Como é bom ver você! — Digo abafado, mas estou aliviada como receber uma lufada de ar fresco.
— Até parece... Foi embora sem se despedir. — Ela sustenta uma expressão magoada por pouco tempo, mas não consegue não demonstrar o quanto está feliz por me ver e é bom demais ser querida assim por alguém tão bom quanto ela.
— Despedidas costumam ser trágicas para mim, tia. Quero manter nossa relação sempre assim, na possibilidade de um novo olá. — Ela reflete em minhas palavras por um tempo, e então sorri.
— E o que está fazendo por aqui? — Pergunta curiosa, olhando por cima de meus ombros, mas volta a me fitar quando não vê ninguém além de mim ali.
— Eu vim com a tia Vanessa... Ela está em uma sorveteria com o marido. — Explico rápido, incomodada. Não quero que Simone conheça o Arnaldo. Não quero que ele sugue toda a luz que ela emana também.
— E eles te tratam bem? — Ela acaricia minha bochecha, provavelmente notando que estou um pouco abatida, mas de todas as vezes em que ela me viu assim, essa é sem dúvidas a melhor. Pegar sol tem ajudado bastante e eu tenho passado boa parte dos meus dias fazendo isso na companhia de Lucca.
— Sim. Minha tia é incrível — digo a única verdade que conheço. A Simone não é boba, ela capta minha insegurança e assente devagar.
— E o marido dela? — Pergunta sem rodeios. Respiro fundo e evito olhar diretamente para ela, fico vendo as crianças brincando no parque.
— É melhor quando ele não está. — Essa é outra verdade sólida como uma tijolada na cabeça. É assim que fantasio o fim da vida de Arnaldo ultimamente. É involuntário. Mas às vezes, deixo o pensamento marinar em minha mente por mais tempo que o saudável e me sinto mal por desejar que alguém perca a vida tendo sofrido tanto com a perda há pouco tempo.
— Eu quero um telefone que eu possa ligar e saber de você — diz categórica. Obedeço a sua ordem e imediatamente, tiro o celular do bolso. O único número salvo é o do próprio celular, ainda não estou pronta para decorá-lo.
Dou meu número de telefone a ela e então, ela me apresenta às amigas. Madalena, Cida, Maria. Todas elas mães preocupadas de adolescentes, compadecidas de minha história e me tratando como se me conhecessem há anos. Após o primeiro momento de estranhamento, me acostumo com elas em volta de mim. Falando umas sobre as outras e me aconselhando sobre milhares de coisas, me preparando para a próxima etapa da vida e tentando me manter no caminho certo. Focar nos estudos, comer e dormir direito, me manter longe das drogas e das bebidas e se possível, dos garotos também.
— O meu não é assim! — Simone defende ferozmente o filho. Cida comentou sobre um amigo do filho que se envolveu com uma garota comprometida e foi encontrado dias depois do hospital, completamente desfigurado. — Ainda bem que ele está procurando alguém especial — diz e olha direto para mim.
— Duvido que um menino bonito como ele não dê umas escapadas do objetivo de vez em quando. — Madalena diz maliciosa, olhando para mim também.
— O que está rolando entre vocês, ? — A tia Simone tem seus quase quarenta anos bem vividos, ouvi-la falando gírias me tira do sério e eu rio.
é um excelente amigo, tia. Você o criou bem. — Me limito a dizer e ela ergue uma sobrancelha. Espero que ela tome minha resposta como válida e mude de assunto.
— Eu acho que vocês ficam lindos juntos. — Ela comenta casual e as amigas concordam de imediato. Sinto minhas bochechas esquentarem e balanço a cabeça num riso contido. Eu concordo também, mas não quero ficar pensando nisso.
— Acho que preciso ir — digo sem jeito e a tia Simone ri alto.
— Vou te ligar para colocarmos o papo em dia. — Ela volta a me abraçar. — O vai ficar superfeliz quando souber que eu te vi. Ele anda meio chateado ultimamente. — Ela dá de ombros e eu me sinto um pouco culpada. Talvez eu tenha exagerado e se pudesse voltar no tempo, deixaria sóbrio à base de café com ajuda de um funil direto na garganta.
— Espero poder fazer aquela visita em breve. Você ainda me deve um bolo. — Brinco tentando desviar o assunto. Ela sorri e assente.
— Fica com Deus, meu amor. — Simone beija minha testa e ajeita meu cabelo para trás. Me despeço de suas amigas e me afasto sorridente.
Estou grata pela surpresa que o universo me enviou, ver a tia Simone é como ar fresco depois de muito tempo sem conseguir respirar em uma atmosfera estranha.
É tão bom.
Mas dura pouco. Ao virar a esquina de volta para a sorveteria, vejo Rafael espumando pela boca à minha procura.
— Onde você estava? — Rafael pergunta irritado.
— No parque virando a esquina — digo devagar tentando continuar andando até o carro.
— Escuta aqui! — Rafael me pega pelos braços, sacode um pouco meu corpo e aperta os nós dos dedos, me mantendo em alerta e de olhos arregalados. — Esse trabalho já é difícil o suficiente sem distrações de minissaia. Fica na sua, ou ele vai dar um jeito de se livrar de você! — O hálito mentolado de Rafael bate em meu rosto e eu o encaro sem piscar. Ser pega desse jeito infelizmente é comum para mim. Minha mãe costumava fazer o tempo todo enquanto eu ainda não era maior do que ela. Em seus olhos, eu via a ira se formar em labaredas que a consumiam lentamente. Nos olhos de Rafael, não vejo raiva ou o ódio com o qual me acostumei. Eu vejo medo. Rafael está com medo. E vendo isso, não posso deixar de tirar vantagem de seu medo para me proteger. Gente assustada pode ser ainda mais perigosa do que as cegas de ódio.
— Já terminou? — Mexo os braços e me desvencilho de seu toque. — Nunca mais encoste em mim de novo. — Aviso entredentes enquanto me afasto e espero que ele tenha ouvido. Estou cansada de mãos alheias sobre mim e é hora de fazer algo a respeito.

Mais tarde, estou memorizando o mapa de casa para a faculdade quando escuto o zumbido irritante do celular tocando. O número é desconhecido e eu atendo despreocupada.
— Alô?
?
?
— Sim. — Arregalo os olhos e prendo a respiração. Não estava esperando por isso. Ouço sua respiração e pisco várias vezes, me forçando a dizer alguma coisa, mas nada sai por meus lábios. — Minha mãe comentou que te viu hoje. Você tem telefone agora. — Ele diz as frases uma depois da outra, como se recapitulasse os fatos.
— E você está me ligando. — Entro na brincadeira e me derreto ao ouvir sua risada abafada.
— É. Estou te ligando agora. — está nervoso, dá para perceber. Ele tem a respiração pesada, a voz um pouco trêmula.
— É minha primeira ligação. Sem contar a da moça do plano mensal, mas... Você entendeu. — Bato a mão na testa, decepcionada com a informação que escapa sem que eu pense muito nela, depois me arrependo, pensando que o barulho pode ter sido ouvido do outro lado da linha.
— Estou honrado em ser o primeiro a te ligar. Com exceção da moça da operadora. — Ele ri baixinho e eu rio também. É bom ouvir sua voz.
— Estou honrada por ter ligado. — Toda essa formalidade tenta cobrir o assunto que sei que nós dois temos em mente. Mas não serei eu a primeira a trazer à tona a enxurrada de pedidos de desculpas.
— Você está bem? — Ele pergunta e eu respiro fundo.
— Bem como posso estar. E você? — Eu pergunto e ele respira fundo.
— Estou bem como posso estar. — Ele repete minha resposta e quase posso vê-lo erguer as sobrancelhas como quem diz “e agora?”.
— Posso te fazer uma pergunta sobre aquela noite? Não aquela... Aquela outra... A do acidente. — hesita, mas acaba concordando com um som de garganta curto. — Você se lembra do que conversou com o Pedro enquanto ele te tirava do carro? — Pergunto ouvindo meu coração bater nos ouvidos. não diz nada e por um momento, penso que a ligação caiu. — ?
— Lembro em partes. — Ele diz devagar e eu respeito. É mesmo uma lembrança amarga demais para visitar, mesmo que seja por um bom motivo. — Eu disse algumas coisas por estar em choque e ele foi bastante compreensível comigo. O melhor amigo que já tive. — Ele solta uma risada curta, reflexiva.
— Que tipo de coisas? — Insisto tomada pela curiosidade despertada por uma memória minha.
“O está todo romântico”
— Promete que se eu te disser nada vai mudar? — Ele pede e eu mordo o lábio inferior em antecipação. Preciso entender o que estou prometendo.
— Não posso prometer isso. Parece o tipo de coisa que altera as coisas, sim. Do contrário, você teria dito simplesmente. — ri e eu fico nervosa.
— Doida por controle... — Ele comenta para si e eu sorrio. — Certo, faz sentido. — Ele bufa frustrado e estala a língua na boca. Estou quase explodindo enquanto espero. — Eu gosto de você, . Faz algum tempo. No acidente, eu te vi desacordada e achei que você tivesse... Eu comecei a repetir que tinha perdido minha chance com você e depois de rir de mim, o Pedro disse que gostava da ideia, mas que era melhor eu esperar um pouco... Você sabe, por causa do Gui. — dá uma pausa. — Agora, pensando em retrocesso, seu irmão foi mesmo um herói. Me lembro de quando o carro começou a pegar fogo e ele não se desesperou, continuou super centrado, me dando conselhos amorosos. — ri e eu sorrio, imaginando a cena desconsiderando seu desfecho.
— Ele disse para você cuidar de mim, não foi? — Pergunto sentindo meus ombros murcharem em compreensão.
— Não posso garantir que vou fazer isso se estiver sob a possibilidade de te magoar. Você sabe, eu não sou perfeito, . — Quero discordar e lhe dar uma lista de argumentos comprovando como ele é exatamente perfeito para mim.
— Gosto de você também. — Imaginei que quando finalmente esse momento chegasse, ele seria mais doce. Expectativas, expectativas...
— Eu sei. Exatamente por isso que eu quero me desculpar por ter aparecido bêbado no outro dia. Eu achei que ficar em um estado inconsequente me ajudaria a seguir meu coração, mas só acentuou o que eu queria esquecer. — respira fundo. Eu fecho os olhos e me imagino em seu quarto de novo, ouvindo Blink-182 de madrugada, deitados atravessados em sua cama. O vento entra pela janela e penetra o momento imaginado como uma brisa leve que move a cortina e dá o tom de movimento enquanto estamos parados no tempo. Só eu e ele.
— Desculpe ter batido o portão na sua cara. Não sei por que fiquei tão brava.
— Não diminua seus motivos. O que eu fiz foi horrível. Você merece mais. — Não consigo não sorrir. Ele tem razão. Eu tive motivos para ficar revoltada. Não é todo dia que uma fantasia tão delicada é destruída diante de meus olhos.
— Então... E agora? — Deito na cama encarando o teto. ri baixo e o som arrepia minhas coxas. Prendo o lábio inferior entre os dentes, não sei se sou capaz de lidar com a empolgação e expectativa por sua resposta.
— Acho que a chance de termos uma amizade verdadeira está descartada. Não posso ser seu amigo se fico pensando em te beijar o tempo todo. — Ele confessa de um jeito divertido.
Há algum tempo não recebo a sutil visita das borboletas em meu estômago, eu as recebo com toda sua gentileza de muito bom grado.
— É uma tarefa difícil, digo por experiência própria. — Ele ri convencido e é o melhor som ouvi na semana inteira.
— É bom não estar sozinho nessa empreitada.
Rimos juntos e o silêncio se acomoda na linha. Mas não é ruim, por um instante parece que estamos dividindo o mesmo espaço. Eu daria qualquer coisa para estar com agora.
?
— Hm?
— E agora?
— Ah, não! Eu perguntei primeiro. — gargalha e é como se pudesse vê-lo bagunçar os próprios cabelos em um leve desespero.
— Eu quero você. — A urgência transborda dos furinhos do alto-falante no celular, invade meu quarto e me sufoca em desejo.
— Querer do tipo... Duas horas de viagem? — Me atrevo a perguntar, ri e eu me sinto um pouco ridícula. Mas Lucca tem um ponto, se esse pequeno esforço for o suficiente para nos afastar, ele não vale meu tempo.
— A ansiosa é você. Acha que consegue me esperar por duas horas? — Deixo o telefone sobre o peito. Cubro o rosto com as mãos e sinto meus olhos se encherem de lágrimas, meu peito se enche de uma emoção urgente, esganiçada que só um grito agudo poderia traduzir. Mas respiro fundo, engulo um pouco de saliva na tentativa de fazer minha garganta ficar menos seca para dizer a primeira resposta espertinha que consigo formular.
— Eu posso fazer esse sacrifício. — Mantenho a voz casual com muito esforço.
— Na verdade, cinco dias e 12 horas. O seu sábado acaba de ser sequestrado. — diz e eu mordo o lábio inferior em empolgação.
— Isso está mesmo acontecendo? — Me sento de novo na cama. Me sinto, bem... Me sinto como uma adolescente deve se sentir quando tem um encontro. É tão fácil e alegre. A ansiedade não parece um bloco de gelo em meu estômago, é mais branda, banal. Penso no que vou vestir e não em formas de me entreter enquanto sou ignorada. É tão discrepante. Mas ao mesmo tempo não estou surpresa, é com que estou falando. Tudo com ele é fácil.
— Estava me fazendo a mesma pergunta. É com a mesmo que estou falando? Porque não acredito que a , a mina dos meus sonhos, aceitou sair comigo no próximo sábado. — diz devagar, do jeito envolvente que ele sabe que me prende. Rio sem jeito e ele aprecia o som.
— Faz quanto tempo mesmo? — Deixo minha curiosidade transpassar minha súbita timidez.
— Eu te mostro no sábado. — Estou sentada, mesmo assim, sinto minhas pernas ficarem moles.
— Estou tentando não levantar expectativas aqui, menino. Me ajuda. — Confesso após um suspiro e acha graça.
— Eu sei. Estou adorando te imaginar com fumaça saindo dos ouvidos de tanto maquinar probabilidades. — Ele ri de um jeito infantil e eu o acompanho. — Mas não quero que se distraia demais, sei que começa as aulas essa semana. Se concentre e pense que será recompensada no sábado. — Resmungo chorosa.
— Não está ajudando...
— Agora é com você. Você pode escolher deixar isso te consumir ou aproveitar essa curiosidade quando ela puder ser explorada. — Eu nem sei mais do que exatamente ele está falando, nem se está fazendo de propósito. Mas neste exato momento, decido escalar o homem da próxima vez que o vir e não o soltar nunca mais.
— Vou tentar a segunda opção. — concorda com um som de garganta lento e malicioso.
— Boa noite, .
— Boa noite, .

Meu primeiro dia na faculdade não é muito diferente do que já experienciei na escola. O ambiente tem cheiro de papel e ideias frescas.
Dou uma boa olhada em meus companheiros de curso e tento adivinhar quais sairão do curso antes do fim, com quais terei alguma afinidade. Uma garota estilosa franze a testa ao me ver encarando por tempo demais. Estou prestes a me sentar na cadeira mais próxima e deixar que minha vergonha me diminua a minha insignificância. Ela se aproxima e deixa a mochila pesada ao meu lado, na cadeira vazia. Seu Black Power tingido de um bonito tom de ruivo quase chama tanta atenção quanto seus olhos grandes e escuros em curiosidade, adornados de um forte lápis de olho e uma sobra preta propositalmente marcada em quadrado. Ela tem um piercing estilo Marilyn Monroe e outro na sobrancelha, usa brilho labial com glitter e dependendo da posição em que sua cabeça se move, seus lábios adotam um leve tom de azul que é diferente e muito bonito. O tipo de maquiagem que eu tentaria se tivesse a coragem e paciência para aprender a me maquiar.
— Você está naquele grupo de dança! — A voz infantil destoa do estilo potente que ela segura com tanta maestria. Meus olhos se perdem na camiseta legal que ela usa. A estampa colorida de anime enche meus olhos e eu assinto, ainda um pouco sem jeito. — Tauany. Mas prefiro que me chamem de Tau.
. — Não confio na sensação de gelo se quebrando. Por alguma razão, me sinto intimidada por mulheres que se expressam de forma tão livre. Com seus cabelos naturais, estilos de roupas bem pronunciados e fantásticos. A admiração que sinto por elas se transforma em um medo irracional e na minha cabeça, não faz sentido algum que ela esteja falando comigo com tanto entusiasmo.
— Você dança muito — diz se distraindo com o computador à sua frente.
— Hmmm... Você estava competindo também? — Pergunto um tanto retraída, certamente eu me lembraria desse visual se já tivesse visto Tau em algum lugar.
— Estava lá pelo rolê. Mas nunca mais volto, Guarulhos é longe! — Rio de seu jeito tão... de propósito. Tauany parece ser do tipo que se entedia com tudo que não seja o que ela realmente goste de fazer. Sua postura relaxada, olhar perdido e sonolento denunciam que ela preferia estar em qualquer outro lugar. Mas ainda assim, ela não parece exatamente desanimada. Uma verdadeira incógnita.
— É longe mesmo. — Concordo sem jeito e ela volta a me olhar com curiosidade.
— Você vai se tornar a produtora da equipe? — Seus olhos grandes me encurralam e eu não sei bem o que responder. Não sei por que estou fazendo o curso técnico de produção musical se não existe mais um grupo para quem produzir.
— O grupo não existe mais. — Digo rápido, percebendo a presença do professor estranhamente jovem para o cargo. — Você dança? — Pergunto mais baixo e ela meneia com a cabeça.
— Não como você e o seu grupo, competindo e tal. Pressão me deixa de mau humor. — Tauany dá de ombros e eu concordo rindo.
— Bom dia, pessoal. Quem aqui quer fazer sucesso e muito dinheiro com música? — O homem alto, vestido de blazer azul escuro e calças pretas justas, dá um tempo para que a sala se decida sobre o que responder. Ele sorri educado e se vira para escrever seu nome na lousa, ocupando mais da metade do espaço.
Alexandre Rodrigues.
— Um Grammy Latino não seria ruim. — Um dos caras que se sentam no fundo diz com sarcasmo e o professor o encara por um tempo. Em um meneio de cabeça e uma rápida expressão convencida, o professor pede que o rapaz se retire da sala. Sem mais, nem menos.
— Ai, me diz que ele não vai ser um daqueles professores super esforçados que vai achar um aluno para incentivar de um jeito agressivo, mas amoroso? — Tau pede baixinho como se fizesse uma prece e eu prendo uma risada. Não quero chamar a atenção do professor estranhamente sério. Escolhemos nos sentar no meio da quarta fileira de carteiras disponíveis e não é como se tivesse uma multidão sentada nas fileiras em frente.
Assisto o rapaz sair contrariado da sala achando que é algum tipo de piada, mas a porta se fecha e o professor está pronto para continuar a aula sem ele.
— Vocês devem querer fazer boa música. Prêmios, dinheiro e regalias são míseras consequências de trabalho árduo e dedicado. Você não precisa de faculdade para se dedicar a alguma coisa, se você acha que esse é o caminho mais fácil, peço que se retire e faça companhia ao Senhor-Grammy-Latino lá fora. — Engulo em seco, pois, o professor Alexandre parece olhar através de mim. Tento desviar o contato visual encarando a tela do monitor à minha frente, mas ele é sério e intenso demais para ignorar. — Este é somente um portal de início para o conhecimento. Vocês vão aprender a ouvir música antes de qualquer coisa. Depois, se tiverem sorte, vão tentar arduamente encontrar um ritmo que faça sua alma dançar. — Ele demora seu olhar sobre mim e eu chego a ficar incomodada com a intensidade pesando o momento.
Na primeira aula, o susto por ver fórmulas matemáticas e assuntos de física são substituídos por uma curiosidade que se parece como uma coceira do lado de dentro da barriga. Estudamos áudio e acústica, a forma como o som entra em nossos ouvidos e se propaga pelo corpo. O assunto se estende à psicologia e eu fico confusa, mas gosto de saber como as coisas funcionam. Palavras como Córtex auditivo e Sistema límbico complicam a compreensão para um fato que conheço muito bem por experimentar por toda a vida. Música faz bem para a saúde. Algo relacionado à memória e emoções ligadas às músicas fazem nosso cérebro gerar dopamina. O maior exemplo disso são as canções de ninar, um registro de que estamos ligados à calmaria da música desde muito pequenos. Letras assustadoras à parte, certas melodias são mesmo inesquecíveis e é nelas que nos baseamos na primeira aula.
Depois entramos em teoria musical. As partituras parecem se embaralhar e eu detesto a dificuldade que tenho, quando todos parecem familiarizados com o assunto. Eu toco violão há alguns anos, mas nunca me atentei a tecnicalidade da coisa, só imitava os sons que ouvia até que saíssem exatamente como na gravação.
Eu gosto de montar acordes, fico feliz por finalmente saber como começar a colocar as melodias que imagino em ordem.
“A música expressa o que não pode ser dito em palavras, mas não pode permanecer em silêncio” disse Victor Hugo, um romancista francês. E ele está coberto de razão. A música ultrapassa os anos, sendo um veículo de comunicação que transcende a necessidade de compreensão linguística.
Aprender sobre ritmo, melodia e harmonia na quarta-feira com o tempo mais ameno é quase um presente. Com a ajuda de um teclado, a teoria fica mais gostosa de praticar.
Tau é minha dupla e eu gosto do timbre de voz dela. Grave, sensual. Ela canta uma versão lenta e dramática de Believe, da Cher. Eu encontro o tempo e a acompanho no teclado. Só de brincadeira, enquanto nada acontece na aula.
É uma experiência ouvi-la cantar. A emoção transmitida em sua voz é nítida, mas seus olhos expressam uma compreensão ainda maior de tais sentimentos.
Ao terminar, Tauany seca a lágrima solitária com o indicador e tenta sorrir.
— Você tem uma voz linda, Tau — digo deixando o teclado de lado.
— Eu sei. — Ela diz ainda emocionada e eu rio baixinho.
— Imagino que a letra da música signifique algo para você. — Arrisco e ela suspira, deixando os ombros largados após soltar o ar com força.
— Mais do que eu gostaria.
— Acho que entendo. — Dou de ombros, acho que entendo.
— É que eu acabei de terminar um namoro bem conturbado. A fila andou, mas sinto que não estou pronta para me dedicar de novo a alguém que não seja eu. — O piercing de Tau se mexe quando ela crispa os lábios, incomodada com o que acabou de dizer.
— Fico pensando se sou capaz de dar algo mais substancial, mesmo depois de ter o meu melhor desprezado. — Tau estala a língua na boca e cruza os braços na frente do corpo.
— Duvido que garotos se sintam assim. — Ela lamenta, encarando o teto em sua expressão comumente usada, a de tédio absoluto.
— Eu não sei o que garotos sentem no geral. Certamente não é a mesma coisa que sentimos. — Me deixo levar pelo pensamento, afinal, eu não entendo como eles podem escolher caminhos tão alternativos para lidar com os seus sentimentos.
— É porque eles estão constantemente sentindo pelo pau. — Tauany ri de si mesma e eu mordo o interior da boca, refletindo.
— Eu não acho que todos eles façam isso o tempo todo. Quer dizer, quero acreditar nisso, pelo menos.
— Duvido.
— Digamos que eu tenha algum embasamento para dizer que pelo menos um deles não pensa com o pau diretamente, pelo menos não quando é importante. — Não consigo não sorrir ao lembrar de minha gentil, polida e quase imperceptível tentativa de me aproveitar de .
— Case-se com ele. — Tauany diz absoluta e eu abro a boca para responder, mas nada sai.
— Gostei da versão que vocês fizeram de uma música tão potente e de melodia tão agitada. A delicadeza me deixou arrepiado. — O professor diz orgulhoso, mas quase não dá para perceber. Tauany encara as costas largas do homem conforme ele se afasta e morde o lábio inferior com certa malícia.
— Será que ele é casado? — Ela pergunta baixinho e eu rolo os olhos.
— Você não tem problemas o suficiente? — Devolvo a pergunta e ela mordisca a unha longa enquanto ri.
Na sexta-feira, o professor introduz o uso de softwares de produção, alguns nomes de programas são conhecidos, já que Pedro falava o tempo inteiro sobre isso. Gosto de ter uma lembrança boa dele e ela continuar assim, boa.
O professor Alexandre fala sobre o Pro Tools M Powered 7. O que ele gostava mais por ser completo. Perfeito para gravação, edição e mixagem. Anoto o nome correto no canto da folha do caderno, para começar a me familiarizar com ele e o computador chique e intocado em meu quarto o quanto antes.
Ver tudo isso de forma analítica me ajuda a compreender por que música é tão importante para mim. Há algo de muito profundo em construir algo tão inofensivo, mas poderoso em uma escala inquantificável. Poder tocar o coração e a alma de pessoas ao redor do mundo através de uma canção, parece um feitiço. A junção de sons em uma certa ordem derruba barreiras entre nações e preenche o vazio entre elas. Dá voz a quem não sabe como protestar seus sentimentos. E tem espaço para todo mundo.
Na tarde da sexta-feira, com o dever de estudar sobre programas e sistemas digitais de áudio e gravação, sei exatamente por que quero continuar o curso.
Eu quero fazer boa música.
— E aí, festinha mais tarde? — Tauany se debruça sobre a mesa e eu puxo o meu caderno de anotações de sua mão.
— Não posso. Tenho compromisso amanhã. — Não consigo evitar de sorrir com a ideia de estar há horas de distância de ver . A saudade é imensa e eu não vejo a hora de estar com ele.
— Vai transar, não é? — Ela sorri maliciosa e eu rolo os olhos.
— Não é nada disso... Eu acho. — Digo um pouco incerta. Ela ergue as sobrancelhas de um jeito bem cafona.
— Te vejo na segunda, de qualquer forma. — Ela me joga um beijo no ar. — Use camisinha! — Tauany diz mais alto antes de sair da sala, me deixando completamente constrangida. O professor Alexandre ouve e ri baixinho.
— Ela não está de todo errada... — Ele comenta ao perceber meu olhar sobre ele.
— É... — digo ainda sem jeito. Pego minha mochila e espero até que seja educado sair da sala. Somos os únicos ali.
, espera.
. — Corrijo enquanto me viro de novo em sua direção.
, notei que algumas das canções que ouvimos hoje na percepção musical te deixaram um pouco agitada. Está tudo bem? — Ele pergunta de braços cruzados, me olhando com interesse.
— Sim. É que eu já conheço bem algumas delas. — Tento contornar a verdade, quando sei exatamente do que ele se refere. Pedro e eu crescemos ouvindo Michael Jackson, ouvir de novo sem ele, fazendo o curso que ele queria fazer parece errado.
— Essa é a sua chance de ouvir essas músicas por outra perspectiva. Tem algo te incomodando, além das minhas escolhas curriculares? — Ele ri divertido e eu o acompanho um pouco constrangida.
— Só estou tentando me adaptar à muitas coisas ao mesmo tempo. — Dou de ombros e ele assente devagar.
— Estou aqui se precisar conversar. — Sorrio de boca fechada e espero que ele se dê por convencido. O professor me analisa mais um pouco e se afasta. — Bom fim de semana, . Fique segura. — Ele diz protetor e eu assinto, deixando a sala.

Ao voltar para o apartamento, vejo a tia Vanessa encarando a janela com o olhar perdido. Eu deixo a mochila ao lado do sofá e me sento nele, abanando o rosto suado com uma das mãos.
— Está quente hoje — diz monótona, eu não sabia que ela tinha notado minha presença, minha tia mantém os olhos fixos do lado de fora do prédio e eu temo o que se passe na cabeça dela agora.
— Está ocupada hoje? — Minha pergunta não a diverte como sua risada sugere, parece mais uma ofensa.
— Não. O que tem em mente? — Ela se vira para mim e eu percebo a vermelhidão em seu nariz. Forço um sorriso, mas logo ele se torna verdadeiro, porque tive uma ideia.
— E se fôssemos para a piscina? Nunca tem ninguém lá, mesmo com esse calor infernal. — Brinco tentando deixar a situação menos tensa. Tia Vanessa dá de ombros e volta a encarar a janela.
— O seu amigo não está disponível hoje? — Ela pergunta baixo, um pouco magoada, e, eu me pergunto se é minha culpa. Estou sempre tão focada em não ficar muito no caminho de ninguém, que acabo esquecendo que a tia Vanessa não é alguém que quer ser deixada de lado.
— Ele já deve estar por lá — digo divertida e ela volta a me olhar.
— Talvez um pouquinho. — Tia Vanessa junta o indicador e o polegar, formando a quantidade de tempo que está me cedendo para sua diversão.
Nos trocamos e em pouco tempo, estamos na piscina do hotel. Como esperado, ninguém está lá. Até mesmo Lucca estendeu a sunga mais cedo hoje. É perfeito para passarmos algum tempo sozinhas, mas juntas, fazendo algo divertido.
Fico sentada à beira da piscina como costumo fazer, somente molhando os pés. Tia Vanessa é boa nadadora e passa bastante tempo embaixo d'água. Aproveito o tempo em que ela emerge e boia de olhos fechados para observá-la, notando as semelhanças dela com a minha mãe. Os quadris largos e pernas fortes, os braços longos e ombros largos. Bastante atlética apesar da idade e do notável sedentarismo solitário. O rosto é mais alegre, mas só porque esconde melhor toda a dúvida e dor.
Tia Vanessa joga um pouco de água em minhas pernas e o sorriso que ilumina seu rosto é muito parecido com o que eu me lembrava. Tão tranquilo, divertido.
— Tira essa camiseta, . Vem dar um mergulho, a água está ótima. — Ela usa minhas pernas para se apoiar e molha os cabelos, jogando-os para trás.
— Não sei, não... — Coço a cabeça, incomodada.
— Você não sabe nadar? Eu te ensino. — Ela insiste, jogando mais água em mim.
— É que... — Olho em volta e suspiro pesado. Tia Vanessa cerra os olhos.
— Não tem ninguém aqui. Mesmo se tivesse, eles não têm direito de ficarem te secando — diz categórica e eu sorrio pequeno.
— Eu sei. Mas eles fazem mesmo assim. — Sinto o tecido da barra da camiseta entre os dedos e me sinto estranha por nem pensar em tirar a camiseta, mesmo usando biquíni por baixo do short e da camiseta.
— Imagine um mundo onde todas as garotas se escondam atrás de tecidos grossos por causa da imaturidade dos homens. — Ela rola os olhos, balança a cabeça. Mas parece lidar com o peso da própria frase. — Em alguns países isso acontece com o viés religioso, em outros, a sexualidade da mulher é cortada pela raiz antes mesmo de existir alguma conexão da vida daquela mulher com a própria sexualidade. — A tia Vanessa vai ficando cada vez menos alegre com seu argumento e eu não sei bem onde ela quer chegar.
— Então, quer dizer que não temos saída? Ou somos vistas como objetos sexuais ambulantes ou somos vistas como propriedade de alguém, marginalizadas e condicionadas a pertencer a este mundo com o único objetivo de agradar? — Pergunto um pouco irritada, um pouco inquieta. Muito revoltada.
— É uma pergunta difícil com uma resposta bem simples, . Não. Deve existir um terceiro caminho, de igualdade e respeito entre as pessoas. Não é a roupa que você usa que define o tamanho da sua segurança. As mulheres usam burcas no Irã, você acha que eles não têm crimes de estupro por lá? O mundo é um lugar horrível, querida. Eu sei disso há tempo demais. O que quero que você saiba, é que você deve se opor à essa sensação que te diminui. Se quer usar suas camisetas largas porque gosta, estou aqui para te apoiar, pois, são lindas camisetas. Mas não quero que as use para se esconder. Assim eles ganham e não podemos deixar que eles ganhem. — Os olhos da tia Vanessa brilham de um jeito diferente. Ela suspira e parece encher o peito não só de ar, mas de orgulho também.
— Ainda não acho que seja transgressor dar o que eles querem. — Dou de ombros, derrotada. A tia Vanessa suspira profundamente.
— Tem razão. Mas nesse caso isolado, somos só nós duas aqui. É só um biquíni em um dia de sol na piscina. — Ela se afasta, nadando de costas. — A sua gaiola abre por dentro, .
É mesmo motivador ouvir suas palavras e quando me dou por mim, estou dentro da piscina aproveitando o sol em meus ombros e colo.
De biquíni.
Tia Vanessa pede um coquetel laranja para um funcionário do hotel e o drinque não demora a chegar em suas mãos. Enquanto mato a saudade de nadar na piscina, a tia Vanessa mata a sede, tomando sol.
Fico curiosa para perguntar coisas à tia Vanessa. Coisas sobre seu casamento. Mas não tenho coragem, tudo parece íntimo demais para perguntar do nada, com o intuito de descobrir se ela tem ciência do monstro que ele é além do que mostra diariamente para ela. Eu quero tanto saber o que ela viu nele, se ainda o ama. A resposta automática que a sociedade incutiu me vem à cabeça, mas não é suficiente. Não quero pensar que a tia Vanessa é simplesmente uma aproveitadora que trocou sua felicidade para viver em uma torre de marfim sozinha.
— Às vezes, tenho vontade de deixar tudo para trás e seguir o meu sonho. — Tia Vanessa apoia o copo sobre a mesa, ao lado dos outros dois. — Dizer para o Arnaldo enfiar aquele celular dele onde não bate sol e deixar esse desgraçado apodrecer na cadeia por tudo o que ele me fez. — Ela estala os dedos e aponta para o copo vazio, o funcionário prontamente se aproxima com sua bandeja e leva os copos já vazios, trazendo um cheio em seguida. Fico um pouco assustada com a assertividade de seu pensamento, tão alinhado com minhas perguntas mudas.
— E qual seria esse sonho? — Decido manter a conversa sobre ela, já que parece que a tia Vanessa precisa desabafar.
Ela suspira, os olhos se enchem de lágrimas.
— Eu quero ser mãe, . — Ela confessa e eu inclino a cabeça para o lado, confusa. — Há dez anos, descobri que tenho uma condição médica chamada endometriose. Basicamente, o que deveria sair na menstruação se acumula lá dentro e por causa disso, não posso ter filhos. — Ela explica casual, abanando a mãos livre, mas claramente é um assunto delicado.
— Não existe um tratamento? — Pergunto cautelosa, não quero que ela fique pior do que já está.
— Sim. Mas o Arnaldo não gosta de nada que dê trabalho, então, desistimos. Ele já tem um filho. O Rafael parece um funcionário, mas é filho dele. Então, não precisamos de nenhum outro. — Ela diz e as palavras não parecem ser dela, mas sim de Arnaldo. Alcanço sua mão com a minha e ela sorri triste. Os olhos marejados transbordam e ela aperta o toque entre nossas mãos.
— Você deveria seguir o seu sonho. Tenho certeza de que seria uma mãe maravilhosa. — Fico emocionada também. Não sei exatamente o que ela está sentindo, mas sei como é querer ter uma mãe e alguma coisa ficar no meu caminho.
— Você acha mesmo? — Ela volta a me olhar mais empolgada e eu assinto veemente. Ela ri e as bochechas coradas ficam protuberantes. Gosto quando ela sorri assim.
— Espera... Dez anos? Foi esse o motivo da sua briga com a minha mãe? — Pergunto distraída por minha curiosidade sufocante. Tia Vanessa franze a testa, um pouco desconcertada.
— Você ainda lembra disso? — Ela desvia o olhar, dando um gole em seu drinque laranja, que se assemelha bastante com o pôr-do-sol que vemos à beira da piscina.
— Bem, se a sua tia preferida para de te visitar, você se pergunta o porquê — digo como quem não quer nada e ela morde o interior da boca.
— Desculpa, . Eu deveria ter sido mais presente, independente de quem a sua mãe tenha se tornado. Foi sim esse o motivo de termos parado de nos falar. Eu não suportava o jeito como ela te tratava e ela não suportava a falta que o seu pai fazia. — A voz dela vacila quando se refere a ele.
— Ela ainda sente a falta dele. — Completo com um sorriso triste.
— E você? — A encaro por um tempo antes de dar de ombros.
— Sinto falta do Pedro. — Ela assente e sorri, mas não um sorriso triste como temos compartilhado, um sorriso de verdade. Daqueles que só o Pedro pode causar.
— Você sempre foi minha preferida, não posso negar. Mas o Pedro foi um menino especial demais em nossas vidas. Me lembro de te colocar no colo dele assim que chegamos da maternidade e ele queria cuidar de você o tempo todo. Não tinha nem braços o suficiente para te segurar, mas ele fazia questão. — Ela gargalha com a memória e eu sinto uma fisgada no peito. Não é uma sensação exatamente ruim, mas também não é boa. É a saudade que sinto do meu irmão misturado com algo a mais. Uma espécie de certeza de que esse amor nunca morre. Uma certeza de que mesmo sem os braços físicos, Pedro sempre me segurará em seus braços feitos de sonhos, amor e música.
A tia Vanessa afasta os sentimentos ruins com mais um drinque e quando anoitece, subimos para o apartamento aos risos.
Quando abro a porta, minha tia tropeça para dentro de casa e ri abafado com a mão cobrindo a boca.
— SHHH! — Ela coloca o dedo indicador sobre os lábios e volta a rir.
Ajeito meu ombro embaixo do braço dela, apoiando seu corpo com o meu. Ao chegar na sala, Arnaldo levanta os olhos da revista de investimentos e os lança para nós.
— Passamos a tarde na piscina. — Tia Vanessa diz esperançosa, o marido volta a folhear a revista sobre o colo. — Pelo menos alguém quer passar algum tempo comigo. — Ela comenta magoada e ele suspira incomodado.
— A questão não é querer, Vanessa. É conseguir aguentar ficar perto de você. — Ele ironiza. O sorriso maldoso que faz seu queixo tremelicar me tira do sério e eu não consigo esconder.
— Você é ridículo!
— E você é patética. Que grande casal nós formamos. — Arnaldo fecha a revista e a apoia no assento do sofá ao seu lado. Ele se levanta devagar, serve um gole de uma bebida de cor âmbar e chacoalha o copo na frente do nariz.
— É só isso? Vamos, não seja tímido! A está acostumada com gente grossa. Não é mesmo, ? — Ela sorri para mim e eu meneio com a cabeça.
— É verdade? Você está acostumada com gente... grossa? — A malícia que escorre dos cantos de seus lábios me faz rolar os olhos, em puro desgosto.
— Me deixa em paz. — Respondo rápido, mas ele sorri em interesse.
— Você não tem noção do quanto eu venho pensando em te deixar tranquila, em paz. — Ele se aproxima, coloca uma mecha do meu cabelo ainda úmido atrás de minha orelha e eu o encaro com raiva nos olhos. Mas isso não parece intimidá-lo. A esposa abraçada comigo não parece intimidá-lo.
— Você é desprezível, Arnaldo. Se acha que terá alguma coisa comigo, mude de ideia. Não vai acontecer. — Tia Vanessa diz confusa. Eu adorei passar a tarde com ela, me certificando de que ela se divertisse. Mas eu preferia que a tia Vanessa estivesse um pouco menos alterada agora. Assim, ela perceberia que a investida cheia de segundas intensões foi para mim, não para ela. E bem no fundo, queria mesmo que ela fizesse algo para que essas investidas parassem.
— Eu consigo o que eu quero, Vanessa. Você sabe disso. — Me sinto enjoada. Ele fala com ela, mas seus olhos estão presos nos meus.
Incomodada com a ameaça iminente, empurro a tia Vanessa até o quarto dela. Mesmo protestando, ela não se opõe a se afastar de Arnaldo. Ela o xinga baixo, em volume de voz e nível de linguagem.
Estou assustada, enojada e com medo de Arnaldo. Mas ver a tia Vanessa o respondendo de volta e se impondo enche meu peito de alegria. Ela perde aquela pose toda de madame da Zona Sul e me lembra a mulher que saiu de Guarulhos. Você sai da Zona Leste, mas a Zona Leste nunca sai de você.
Deixo minha tia deitada em sua cama e fecho a porta devagar. Vou apressada até meu quarto e quando entro nele, trancando a porta atrás de mim. Respiro fundo e analiso o fim da noite com cuidado. Eu sei que devo confiar em minha intuição, que me diz que Arnaldo não presta. Mas sou justa e preciso ter certeza dos fatos antes de tomar alguma precaução.
Analiso e analiso. Procuro por interpretações alternativas de tudo o que Arnaldo já me disse e o enjoo constante com a menor atenção a um pensamento em que ele esteja me dá a certeza de que preciso. Os pesadelos que venho tendo com sua mão asquerosa sobre mim já é prova o suficiente, sem espaço interpretações alternativas. O homem é definitivamente um escroto sem escrúpulos. Só preciso descobrir o quanto antes de fazer alguma coisa. Não quero colocar a tia Vanessa em perigo, mas alguma coisa precisa ser feita.
No banho, além da sensação conhecida de estar flutuando por ter estado debaixo d’água por tanto tempo, sinto também uma tensão enorme no corpo. De todos os motivos plausíveis que tenho para me preocupar ou ter um pouco mais de atenção, decido me concentrar em algo que não é nem de longe um problema.
Decido me dar o direito de ficar nervosa por meu primeiro encontro com .
Junto todo o material necessário para escovar o cabelo e voltar a me sentir mais como eu mesma. Desde o acidente, meu cabelo não vê uma chapinha e os cachos tomaram forma nas últimas semanas. Mas mantive as mechas presas em um coque alto, sem muita ideia do que fazer com elas.
Faz algum tempo que não me reconheço de cabelo cacheado, talvez por não ter dado chance alguma para os cachos se libertarem, sempre escovando e alisando. Me deparo com a curiosidade de me descobrir dessa forma.
Afasto o material para alisar e procuro por cremes e óleos na prateleira do banheiro. Nada que encontro é exatamente o necessário para finalizar o cabelo com maestria, mas serve para me dar uma ideia de quem posso ser a partir de agora.
Liso, as pontas de meu cabelo chegam até o fim das costas. Cacheado, o cumprimento fica pela metade e eu enfrento o primeiro problema: meu cabelo é cortado para se usar liso. E então, nasce um dilema, cortar ou não cortar?
Decisões difíceis a parte, decido então o que vestir. Encaro minhas roupas novas e sinto que nada daquilo me representa. Me arrependo por ter deixado a tia Vanessa escolher todas as minhas roupas, porque agora, só o que tenho são calças justas demais e blusas de alças finas.
Escolho a calça preta e decido gastar o tecido na parte do joelho com a ajuda de uma tesoura aberta. Quando vejo que o buraco no tecido ficou do meu gosto, procuro por minha única camiseta inteira. Branca com a estampa de Jimi Hendrix durante sua passagem de som no Monterey Pop Festival, na Califórnia, em 1967. Um baseado repousa tranquilo por entre seus lábios, os olhos fixos na câmera mostram uma concentração e ligeira empolgação quase que premonitórias para o que viria a seguir: um dos melhores shows de sua carreira. Ficou perfeita com a calça justa e os tênis puídos de sempre. Mesmo velhos, eles não perdem seu charme.
Com a ajuda de outra camiseta e uma das blusas de seda que minha insistiu que eu tivesse, ajeito meus cabelos em um pequeno casulo para cima.
É difícil deixar o peso do coração para fora da cama. Eu consegui dormir, mas com as preocupações da vida acordada me perseguindo através dos sonhos.

27 de fevereiro, 2007


Encaro meu reflexo no espelho com calma e atenção, reparo que não faço isso há algum tempo. O encontro é surpreendente. O caimento das roupas em um corpo tenso e mais magro me dá impressão de que encolhi um pouco mais. O cabelo — que por permissão divina acordou pouco amassado e precisando de poucos reparos — faz uma moldura diferente em meu rosto. A cor e o brilho da junção dos produtos capilares ressaltam as voltas dos cachos cheios e abertos, o rosto mais sério e olhos menos brilhantes e deslumbrados. É uma aura misteriosa, desinteressada para os problemas mundanos como o comentário na sétima série, que me fez alisar o cabelo religiosamente desde então. É diferente, mas é a visão de alguém que passou por coisas demais e de alguma forma sobreviveu a tudo aquilo. A mulher que me encara de volta pelo reflexo do espelho merece algum crédito por ter nos guiado até aqui.
Me sinto bem e ao contrário do que imaginei, a ansiedade para ver não me deixa enjoada, não faz meu estômago doer. É uma ansiedade quase gostosa, uma saudade imensa que estou prestes a matar com um longo e forte abraço.
Sei que está cedo, mas quero garantir que ele não tenha que esperar por mim, já que ele fará o caminho maior até aqui. Nós vamos ao Parque Ibirapuera que fica há poucos minutos de ônibus do prédio onde moro, mas não me atrevi ir até lá sem ele. Parece o lugar perfeito para receber e toda sua energia leve e tranquila. Longe de tudo o que é triste e confuso.
Saio do quarto evitando fazer muito barulho. A tia Vanessa saiu cedo por ser responsável pela organização da segunda despedida de solteira de uma de suas poucas amigas, e, algo me diz que a briga de ontem se estendeu pela madrugada também. Talvez os gritos e palavreado de baixo calão tenham deixado essa impressão.
Entendo os motivos dela de ter saído sem se despedir, se ela estivesse em casa, eu provavelmente faria o mesmo agora. Nenhuma de nós quer chamar a atenção do Arnaldo. Ela certamente teve mais sucesso que eu nessa empreitada, eu dou de cara com ele assim que abro a porta do apartamento. Ele está todo suado e vestindo uma camiseta regata. É muito dele para ver logo cedo.
— Vai sair? — Ele pergunta sisudo.
— Sim. — Respondo no mesmo tom.
— Cuidado, mocinha... Já está colocando as garras para fora? — Encaro Arnaldo de olhos cerrados, um pouco impaciente para lidar com ele.
— Respeito é uma mão de via dupla. — Detesto repetir uma das frases de minha mãe, mas acho que pela primeira vez ela se acomoda melhor na situação. Arnaldo rola os olhos e se afasta, me dando espaço para sair.
— Volta que horas? — Eu seguro um riso debochado que certamente me deixaria encrencada e me viro para Arnaldo, dando de ombros.
— Quando a tia Vanessa volta? — Devolvo a pergunta e ele ergue uma sobrancelha, intrigado.
— Não sei. Amanhã à noite, talvez. — Ele volta a me olhar interessado. — Teremos o dia inteiro para nós amanhã. — Arnaldo sorri, mas não consigo ficar olhando para ele por muito tempo. Não há sequer uma célula amigável no corpo do homem.
Antes de descer com o elevador e sair para a rua em busca de um ponto de ônibus, paro no andar de baixo e bato na porta do apartamento 515.
Uma mulher alta, magra e muito loura abre a porta com uma mão, enquanto ajeita o brinco na orelha com a outra. Aposto que é a mãe do Lucca. Os olhos são idênticos, de um verde hipnotizante. Ela sorri como alguém que sabe que é inteligente e super charmosa. Eu imediatamente adoro tudo o que vejo. A mulher realmente parece uma deusa de armadura assinada por designers italianos.
— Oi... — Digo um pouco mole, sentindo coisas atravessadas pela mãe de meu amigo.
— Você deve ser a . — Ela tem a voz macia, fala como quem tem pressa. Objetiva, mas impecavelmente educada.
— Sim. Bom dia. Desculpe incomodar, senhora. O Lucca já acordou? — Pergunto sem jeito, sentindo calor nas bochechas.
— Não é preciso muito para saber que meu filho é um preguiçoso, não é? — Ela ri sozinha enquanto ajeita as alças finas do vestido no espelho ao lado da porta. — Entre. Pode acordá-lo, se não estiver com pressa. — Agradeço com um sorriso e olho em volta. O apartamento é uma cópia do andar de cima, mas é mais bem decorado, devo dizer. O gosto requintado de quem já é acostumado com bastante dinheiro. A mobília tem cara de que viu a história ser feita, herança de geração para geração, mas, sem parecer datado.
Não demoro me apegando aos detalhes, preciso cobrar um favor e vou direto à fonte. Lucca dorme de cueca em uma cama grande demais para ele. O quarto parece ter saído de um set de filmagem. Tudo é muito legal, perfeito e supostamente masculino. Exceto pela pilha de álbuns dos Back Street Boys protegidos por uma caixa de acrílico transparente com glitter.
— Lucca. — Evito olhar diretamente para ele, pois, a bexiga cheia de Lucca pressiona sua próstata e quando ele se vira ainda sonolento, tenho um vislumbre de sua ereção matinal. Não consigo conter a risada infantil que escapa de minha garganta e Lucca acorda assustado.
— O que diabos está fazendo aqui? — Ela pergunta rouco e descabelado.
— Você me deve um favor. — Sorrio sarcástica e ele solta o corpo na cama, bufando em frustração.
— O que você quer? — Resmunga incomodado e eu empurro sua perna, me sentando na ponta da cama imensa.
— Não sei bem. — Ele ri em escárnio. — É sério. Acho que é mais um conselho, sei lá. — Meu desespero chama a atenção de Lucca e ele volta se sentar ereto na cama.
— O que está acontecendo? — Ele pergunta interessado. As mãos ajeitam o cabelo e limpam os olhos enquanto eu escolho bem o que direi. Estou prestes a acusar alguém poderoso de fazer algo muito sério.
— O marido da minha tia tem agido de forma suspeita e eu me sinto desconfortável perto dele — digo expressando bem minha angústia.
— Nossa... Demorou, hein? — Ele diz sem emoção, me fazendo sentir patética.
— Você ouviu o que eu disse? — Lucca respira fundo, abre as cortinas do quarto. Ele se espreguiça e toma todo o tempo do mundo para abrir uma caixa entulhada embaixo de sua cama. Estou prestes a ir embora quando Lucca solta a caixa ao meu lado.
— Preciso da sua ajuda — diz sorridente.
— Com o que? — Suspiro. — Lucca, eu vim te cobrar um favor, não coletar mais crédito. — Explico irritada e ele ri inocente.
— Certo, serei breve. — Ele me ignora completamente e parece que estou falando sozinha. — Seu tio é meu alvo de investigação há anos. Odeio o sujeito homofóbico, malvestido. Eu vou derrubar o desgraçado com ou sem a sua ajuda, mas gostaria de ter uma parceira comigo. — Desvio o olhar do esperançoso de Lucca e abro a tampa da caixa. Vejo papéis de várias cores e tamanhos, documentos e infinitas linhas com mais sequências de números do que posso contar.
— Eu tenho tantas perguntas. — Volto a olhar meu amigo que sustenta o olhar com um sorriso convencido, um olhar maníaco.
— Não temos tempo. Você veio me pedir um favor, o que é? — Ele me apressa e eu me sinto perdida.
— Eu nem me lembro mais... — Lucca gargalha. — Certo, certo. A minha tia vai ficar fora até amanhã à noite e nem morta eu fico sozinha com ele — digo tudo de uma vez e Lucca fica pensativo.
— Dorme aqui — diz simplesmente, como se não fosse um problema.
— Não. E a sua mãe? — Pergunto achando a ideia maluca.
— Ela vai para a mesma festa. Podemos ficar aqui e bolar nosso plano maligno. — Ele junta as mãos abaixo do queixo e parece uma criança empolgada.
— Talvez usemos esse tempo para você me explicar o que é tudo isso. — Aponto para a caixa e ele rola os olhos.
— Em três horas você pega tudo. — Abana a mão no ar.
— Três horas? Lucca, eu ainda tenho que estudar. — Me levanto também.
— Você é inteligente, talvez consiga em menos. — Ele pisca um dos olhos.
— Eu estou falando da faculdade.
— Ah, esqueça a faculdade! — Lucca me sacode pelos ombros de leve e eu rio baixinho.
— Falou o menino rico. — Ele ri também e me dá uma boa olhada.
— Você está bonita. Vai encontrar o ? — Pergunta malicioso.
— O que denunciou? Eu ter penteado o cabelo pela primeira vez na semana ou o perfume? — Lucca segura uma risada.
— O conjunto de tudo. Mas sua camiseta não ter nenhum furo nela foi o maior indicador.
— Valeu... Por ter dito aquilo na piscina aquele dia. Acho que me ajudou. — Não gosto de reforçar o comportamento agressivo de Lucca com relação ao meu corpo, mas sua honestidade e a conversa com a tia Vanessa me abriram os olhos para que eu pudesse me enxergar e tentar me colocar numa posição como um igual nesse mundo. Ninguém fará isso por mim.
— Não me agradeça ainda. Sonhei que eu te fodia enquanto você falava latim de trás para frente. — Lucca diz todo confiante e eu rio.
— Eu vi o seu material em todo seu vigor... Não faria nem cócegas. — Dou tapinhas em seu ombro enquanto saio do quarto e rio quando Lucca grunhe frustrado.
Quando saio do quarto, a mãe do Lucca já saiu. Deixando o rastro de um perfume gostoso.

Cumprimento o porteiro na saída. Ele mora em Guarulhos também, mas em uma parte mais afastada do centro cidade, ele passa três horas trocando de ônibus e metrô para chegar até aqui. O Reginaldo tem três filhos e o mais velho deles também entrou para a faculdade essa semana. Ele tem estado todo feliz nos últimos dias. Seu sorriso vai de orelha a orelha. Seu orgulho é algo bonito de se ver. Me pergunto se minha mãe ou meu pai teriam metade do orgulho que ele está sentindo por saberem que sou a primeira da família a cursar o ensino superior. O pensamento insiste, mas não permito ficar triste pela resposta automática que obtenho por anos de uma experiência da mais pura indiferença.
Eu deveria encontrar na estação Paraíso em pouco mais de uma hora, mas me permito sentir alguma ansiedade e não custa nada me adiantar um pouco. Está um dia bonito, de céu azul e nuvens falhadas — minhas preferidas. Subo no ônibus, me sento no fundo. O percurso não é muito longo, mas é uma boa vista até lá. Uma que acalma meu coração e parece alinhar minha alma e meu corpo depois de duas semanas intensas de mudança e adaptação.
Chego na estação, mas não entro como as outras pessoas que me acompanhavam no ônibus. Espero na saída. Minhas mãos suam nos bolsos da calça, minha boca está seca e a garganta arranha com o menor movimento. Meus pés parecem pisar fofo no chão e de repente, a espera é mais longa do que acho que posso suportar.
Demora um pouco mais de quarenta minutos quando vejo outro fluxo significativo de pessoas saindo da estação. Meu coração aperta disparado no peito.
Não sei se é o cabelo já seco e volumoso ou o fato de eu estar meio que escondida atrás de um orelhão verde. Mas não percebe quando passa na minha frente. Tão concentrado e aparentemente nervoso.
Ele checa as horas no visor do celular recém comprado. Ele me enviou uma mensagem há alguns dias do próprio número, dizendo que havia comprado um só para falar comigo e eu me senti a garota mais importante do mundo. Com ele ali, parado e esperando por mim volto a me sentir segura aos poucos. Me permitindo esquecer tudo o que me incomoda por algumas horas e aproveitar cada segundo dessa alegria magnética que emana dele para mim, como imã.
— Olá, senhor. Gostaria de comprar uma revista para me ajudar na formatura? — Cutuco suas costelas e ele ri de um jeito gostoso e contagiante.
— Você só está na faculdade há uma semana. Já está pensando na selvageria da formatura? — se vira sorridente e eu quero parar esse instante só um pouco. Não há nada igual à sensação de estar sob os olhos de alguém que realmente te enxerga após algum tempo sem te ver. abre os braços e eu me lanço sobre ele sem cerimônia.
— Ai, meu Deus! Senti tanto a sua falta! — Eu me arrepio inteira com o seu toque. Em poucos segundos, sinto cada uma de minhas cicatrizes serem cuidadas e cercadas de um curativo do mais puro amor.
— Saudade é um eufemismo tão esdrúxulo perto do que eu senti. — Seus braços me cercam, seu rosto está enterrado em meus cachos e eu quero ficar assim com ele para sempre.
— Quantas palavras difíceis — digo me afastando um pouco mais, encarando seu rosto de perto. Seus olhos normalmente tão escuros, ficam claros e cheios de detalhes sob a luz do sol. E de perto assim, não tem como não pensar no beijo desajeitado que ele me deu há semanas. Eu quero de novo. Mas dessa vez, tem que ser do jeito certo.
— É que eu ‘tô nervoso. — Ele ri da própria situação e eu percebo que estamos abraçados por bastante tempo agora. — Gostei do seu cabelo assim. — Ele olha em volta do meu rosto, um sorriso encantado em seus lábios capta minha atenção. — Os cachos combinam com a sua personalidade divertida, complicada e fascinante.
— Eu sou complicada? — Franzo a testa, me afastando um pouco mais.
— É sério que você só ouviu essa parte? — Ele me desafia com a sobrancelha erguida e eu respiro fundo.
— Não. Eu ouvi que você me acha linda de cabelo cacheado — digo convencida e ele sorri.
— De qualquer jeito, vale acrescentar. — morde o lábio inferior e eu solto meu abraço de seus ombros. Apoiando as mãos em seu peito.
— Sendo assim, obrigada. Eu aceito ser linda e complicada.
— E é. Muito das duas coisas. — percebe que quero voltar a me mexer e desfaz os nós dos dedos em minhas costas.
Decidimos então por iniciar a caminhada até uma das entradas do parque. Andamos em silêncio, lado a lado. Quando seguro sua mão, arregala um pouco os olhos em surpresa. Mesmo gelada pelo nervosismo, o toque é acolhedor. Me faz sentir quente por dentro, segura. Os dedos trêmulos dele ficam mais confiantes conforme damos alguns passos, até entrarmos no parque, seu toque é firme e não parece ter intenção alguma de soltar. Eu gosto disso.
Olho de soslaio para e ele faz o mesmo. Parecemos duas crianças decidindo namorar no parquinho. Segurar as mãos é um compromisso muito sério, exige muita concentração.
Há exposições, atividades grupais acontecendo por todo lado, aluguel de bicicletas disponível e outras atrações interessantíssimas para participar, mas tudo o que eu quero é me sentar sob a sombra de uma árvore bonita e ouvir falar sobre qualquer coisa que seja. E é exatamente o que pretende fazer também.
escolhe uma árvore grossa, alta e de galhos cheios. Ele se abaixa em um dos joelhos e começa a afastar alguns galhos menores e pedras, estendendo um lençol azul tirado de dentro da mochila, assim como alguns potes com lanches diversos.
Protegida dos insetos e das folhas caídas, me sento sob o lençol e inclino a cabeça para trás, buscando por frestas entre as folhas, por onde a luz do sol passa tímida, mas chega a bater de leve em meu rosto. Vejo quando o vento bate no alto da árvore e o feixe de luz se esvai.
— Eu precisei convencer minha mãe a não vir. Ela adora esse tipo de passeio. — Ele balança a cabeça, rindo.
— A sua mãe deixa tudo mais divertido, aposto que seria legal se ela estivesse aqui. — Me sento de pernas cruzadas.
— Eu também. Mas talvez outro dia, quero você só para mim hoje. — Ele explica com calma, distraído com as coisas dentro de sua mochila. — Espero que esteja com fome.
Fico olhando se ocupar com a disposição dos potes de lanche sobre o lençol, evitando olhar diretamente para mim.
— Você está bem? — Pergunto me sentindo tímida também. A carga de um primeiro encontro definitivamente não some se você está saindo com um amigo, talvez ela só se intensifique ainda mais pelo medo de decepcionar alguém querido.
— Sim, sim. E você? — Diz após um suspiro longo demais para imprimir verdade.
— Começando a achar que você descobriu que essa é uma péssima ideia — digo preocupada e apoia a mão no joelho, olhando para o chão.
— Não é nada disso, me desculpa. Eu estou mesmo nervoso. Não me lembro de ter me sentido assim antes. — Ele confessa e eu acho adorável, apesar de desnecessário, não me lembro de causar isso em alguém antes. — Não me entenda mal, eu não tenho a pretensão de que aconteça nada. Eu já estou feliz só por poder te ver. É que... — Ele me olha de novo. Não sei o que fazer com as mãos. — Não posso deixar de pensar no que o seu irmão me pediu.
— Bem, tecnicamente, ele te pediu para esperar um tempo até que eu superasse o... meu último relacionamento. Você fez isso. — morde o lábio inferior, um sorriso luta para se libertar de seus dentes e eu adoro o jeito como ele me olha agora. Não é bem como se ele estivesse considerando a opção, mas, como se soubesse exatamente o que quer. Toda essa certeza é avassaladora.
— Mesmo que isso seja verdade e que você tenha mesmo superado, não quero nunca te magoar. Por qualquer motivo que seja — diz resoluto.
— Certo — me aproximo, ele tem razão, precaução nunca é demais. — Então, podemos ir devagar e você pode ser extra cuidadoso comigo. — Apoio o peso do corpo nas mãos, o rosto próximo do dele. sorri, se aproxima também.
Um cachorro desses enormes e de pelo macio como nuvens se solta da coleira, correndo desgovernado pela trilha à nossa frente. Ao vê-lo, o cachorro vai diretamente na direção de , pulando e latindo animado. tenta acalmá-lo, esquivando de sua língua feroz. A rabo do cachorro sacode tanto que até eu preciso me afastar um pouco para escapar do ricocheteio.
Os donos do cachorro se aproximam aos risos, resgatam o cachorro de nome pouco original, Billy, mas faz todo sentido. Ele tem mesmo a energia que o nome sugere. Enquanto se certificam de que o cachorro está bem preso, o homem mais velho o agradece pela paciência e nem parece perceber, distraído com o cachorro que se despedia dele.
— Você acaba de ser nomeado Embaixador da Alegria — digo quase indignada com a cena surreal que acabo de assistir, gargalha alto.
— Como assim? Estou puto por ele ter nos interrompido — diz ainda rindo. E ele tem razão. Também estou brava com o cachorro porque agora estou longe demais dele e não consigo parar de pensar que seria estranho refazer o caminho e soltar um "onde estávamos?".
Com a quebra de clima para beijos, voltamos ao que fazemos de melhor: conversar. Conto para sobre as aventuras da semana, evitando tudo que me tiraria desse estado de paz inigualável. Digo que estou assustada, mas de um jeito bom sobre o curso e que gosto do professor Alexandre. Contei sobre a Tauany e sobre o Lucca, o que deixou claramente em dúvida sobre gostar ou não de meu amigo sem-vergonha. Mas espero promover um encontro entre eles em breve, tenho certeza de que eles vão se dar bem uma vez que se conhecerem.
está animado com a mudança do padrasto para a casa deles. Ele me conta que teve uma conversa séria com Ricardo sobre o futuro da mãe.
— Você precisava ver, ele ficou todo suado e gaguejando. Mas foi bom saber das intenções dele. — tenta parecer sério, mas um sorrisinho escapa nos cantos de sua boca.
— Você acha que eles vão se casar? — Minha empolgação faz cerrar os olhos, encarando uma folha antes de se abaixar para pegá-la e brincar com ela.
Com o dia bonito nos incentivando a explorar, convenço a mudar o lençol e as outras coisas para mais perto do lago. Mesmo que outras pessoas tenham tido a mesma ideia, encontramos um cantinho perto da borda e nos instalamos ali.
— Acho que sim. Seria legal se eles se casassem. Ele faz bem para dona Simone, no fim do dia, é só o que importa para mim. — se deita sobre o lençol e eu faço o mesmo, encarando o céu ao seu lado.
— Eu adoro a sua mãe. Ela merece tudo de melhor, sempre. — Viro a cabeça em sua direção, escondendo os olhos do sol com uma das mãos. aperta os dele, mas logo desiste e ergue o tronco, pegando um guarda-chuva na mochila. abre o guarda-chuva e o coloca inclinado, com o cabo entre nós.
— Você sempre foi assim tão eficiente? — Pergunto genuinamente feliz por ver a surpresa em seus olhos.
— Acho que sim — diz sem jeito e volta a se deitar. Virado para mim, ele me encara curioso e eu devolvo o olhar, feliz também por não ter que falar o que sinto. Acho que ele sabe.
Ficamos assim por um tempo, absorvendo a presença um do outro. Parece que só isso já basta para nós dois. Por enquanto.
— Encontrei a Leah no supermercado outro dia. Quer dizer, eu a vi se escondendo de mim de longe. — Ele explica quando vê minha expressão confusa.
— Como assim ela se escondeu de você? — Pergunto e dá de ombros.
— Eu também sentiria vergonha por me despedir com um bilhete compartilhado — diz ácido e eu rio.
— Eu não a culpo, na verdade, acho que foi melhor assim. Não consigo me imaginar me despedindo dela. — Respiro fundo, afastando maus pensamentos. se aproxima e estica o braço, para que eu possa apoiar a cabeça. Eu o faço, com muito gosto. Me atrevo a apoiar a mão em sua cintura. Os dedos vacilantes brincando com o tecido de sua camiseta.
— Se depender de mim, você não vai mais precisar se despedir de ninguém. — beija minha testa. É uma promessa séria. Sei que ele não pode cumpri-la, porque ninguém pode deter a morte. Mas fico feliz que ele esteja disposto a tentar.
— Teria algum outro motivo para a Leah te evitar? — Pergunto distraída e ele dá de ombros.
— Ela parecia diferente. Mais... Hmmm... Como eu posso...
— Meu Deus, ... Só diga de uma vez! — Incentivo aos risos e ele suspira.
— Acima do peso — diz rápido e eu não sei como reagir. — Não que eu repare tanto assim nos corpos de minhas amigas, mas conheço a Leah há anos e ela sempre foi musculosa e cuidadosa com isso. Eu não diria nada a ela por ter engordado, isso é normal. — Ele fica nervoso de novo e eu rio respeitosamente.
— Não precisa ficar agitado, . — Ele rola os olhos enquanto eu rio. — Eu não vou te julgar como você faz com os corpos das suas amigas. — Insisto e ele ri também.
— Eu não diria nada se ela não tivesse agido estranho. Seria um detalhe distante dentro de tantas outras coisas que eu teria para conversar com ela no momento. Tipo o preço do arroz... Absurdo. — Eu não consigo parar de rir, mas no fundo de minha mente, uma ideia começa a ser criada e a partir do momento que ela surge em rascunho, já faz muito sentido e eu decido não pensar demais nisso agora.
Quando a temperatura fica mais branda, ajudo a guardar os itens do piquenique e caminhamos de mãos dadas até o estande de aluguel de bicicletas.
Fazemos a trilha lado a lado, sem pressa, só experienciando a natureza em volta. me mostra alguns truques com a bicicleta, mas eu me atenho ao que sei: pedalar, segurando firme nos guidões.
Ele parece livre enquanto pedala. Exala uma paixão inigualável e eu percebo que me atraio por isso em mais do que qualquer outra coisa. A dedicação com a qual ele faz tudo me ensina tanto sobre ele. Mas ainda tenho curiosidade. Preciso saber do que é feita essa lealdade, de onde vem tanta confiança em si mesmo. O que move e faz dele o que ele é?
Quando devolvemos as bicicletas, ainda nos resta algumas horas de luz natural. entrelaça os dedos nos meus e nos guia de volta para a estação de metrô.
— Aonde nós vamos? — Pergunto perdida entre as estações no painel do vagão. me segura pela cintura, se certificando para que eu não caia com o solavanco do metrô.
— Minha mãe costumava me levar em um parque de diversões em Itaquera quando eu era criança. Quero ver se ainda continua divertido. — Ele sorri infantil e eu o abraço num impulso involuntário, ativado por toda sua fofura.
Trocamos de linha duas vezes, da azul para a amarela, depois pegamos um ônibus para a estação Dom Bosco. De lá, caminhamos até o parque de diversões que parece ter saído de um filme. As luzes coloridas começam a destacar em contraste com o céu escurecendo aos poucos. Pagamos por nossas entradas e sem soltar minha mão, nos leva até a roda gigante. Antes de entrar em uma das cabines, cochicha algo no ouvido do operador do brinquedo, que assente um pouco sem animação, até ver a nota plastificada de dez reais.
Damos uma volta inteira, depois subimos de novo, mais devagar. Nossa cabine é a sortuda, que para lá no alto por algum tempo.
Observo o pôr-do-sol distante no horizonte, as luzes do parque ficam mais fortes, piscando psicodélicas. Os gritos infantis de pura empolgação são ouvidos ao longe. E tudo parece tão perfeito e tranquilo.
Alguém perdeu um balão redondo e azul, a corda faz cócegas quando encosta em meu braço, chamando minha atenção. Eu empurro o balão mais para o alto e me divirto quando ele se afasta, voando para o céu.
me olha daquele jeito de novo, cheio de certeza. Sinto tudo ficar um pouco mais lento conforme ele se aproxima. Até o bater das asas gentis das borboletas em meu estômago parece acontecer em câmera lenta.
Seus lábios tocam os meus devagar, cuidadosamente. Seus dedos tocam meu maxilar e devagarinho, encontram o caminho até meu pescoço, puxando um pouco mais meu rosto para si, aprofundando o beijo. Minha língua encosta na sua por acidente de primeira, mas depois procura pela dele obstinada, em quase desespero. O toque é gentil, envolvente. O beijo é quente, preciso, delicioso. Digno de um primeiro beijo de cinema.
Não consigo não sorrir. Tudo dentro de mim está tão agitado e vibrando. Parece que enxergo mais cores agora. Juro que nunca vi verdes, vermelhos, amarelos e azuis tão brilhantes em toda a minha vida.
tem a respiração ruidosa, os olhos abrem devagar e ele ainda me segura pelo rosto. Olhar tão profundamente assim em seus olhos me deixa com um pouco de medo, mas não o medo de que me acostumei a sentir a vida toda. É uma sensação nova, avassaladora. Eu faria qualquer coisa por ele e isso me deixa apavorada.
Gostar tanto assim de alguém não era algo que eu acreditava que fosse acontecer tão cedo, mas se aconteceu, preciso proteger isso a qualquer custo.
— Então, eu valho tudo isso? — Pergunto um pouco rouca, franze a testa. — Burlar uma promessa feita para o seu melhor amigo morto? — Explico e então, vejo passar por todos os estágios do entendimento, segurando uma risada, pois, o assunto é sério.
— Com certeza... Fora que... Seu irmão faria o mesmo, em menos tempo, provavelmente. — Concordo veemente e acabamos rindo. Gosto de saber que temos a bênção de Pedro. Certamente, ele adoraria tirar sarro de nós dois juntos.
Ao descer da roda gigante, sugere que eu escolha o próximo brinquedo. Encaro o estande de carrinho bate-bate e decido que o espaço de meu brinquedo preferido está vago oficialmente. Me viro para e o encaro um pouco perdida.
— O que foi? — se preocupa e eu me aproximo dele para outro beijo. Agora de pé, seus braços me abraçam pela cintura e eu o abraço pelos ombros. Pode parecer besteira e até um clichê datado, mas juro que quando fico na ponta dos dedos para alcançar melhor os lábios de , sinto uma das pernas dobrar daquele jeito bobo, mas tão importante que o plano se abre para mostrar melhor o momento em que a mulher se entrega nos braços do homem amado nem que seja por mais um minuto antes de tudo mudar para sempre. Para o bem ou para o mal.
— Posso te conseguir um bichinho de pelúcia — digo me afastando somente o suficiente para esfregar a ponta do meu nariz no dele. Os olhos de brilham e ele me solta de repente.
— Só depois de eu te conseguir um bichinho de pelúcia. — Ele corre até o estande de tiro ao alvo e se concentra.
O objetivo é estourar todos os cinco balões coloridos dispostos numa ripa de madeira pintada de vermelho em trinta segundos. acerta três e erra duas em vinte e dois segundos. O moço responsável pelo estande comemora e entrega a ele um bicho de pelúcia médio. encara a baleia mal costurada com desdém.
É minha vez.
Surpreendendo a mim, a e ao moço do estande, e acerto as cinco na metade do tempo que levou em sua tentativa. Eu aponto orgulhosa para o coala gigante no alto no estande. O moço tem algum trabalho para pegá-lo e retira o plástico empoeirado antes de me oferecer o bicho de pelúcia, mas eu recuso, então ele o entrega para , que pega de bom grado.
— Como vou voltar para casa segurando isso? — pergunta no meio do caminho para o carrinho de algodão doce.
— Eu não tinha pensado nisso. — Rio imaginando pegando ônibus com um coala imenso no colo. Me pergunto se o fariam pagar uma passagem extra pelo amiguinho espaçoso.
— Hmmm. — investiga, olhando em volta. Ao longe, uma menininha de rosto vermelho chora sofrida por qualquer motivo que seja. Ele vai até ela, a cumprimenta. Se vira para a mulher desconfiada ao lado da menina e conversa com ela. Em certo momento, ele aponta para mim e eu chego a acenar para elas. No fim, entrega o coala que é quase o dobro do tamanho da menina e ela pula de alegria, deixando o brinquedo escapar de seus braços curtos.
se afasta delas acenando e se vira para mim com o sorriso mais lindo que já vi em seu rosto. Quando ele se aproxima de mim, passa o braço por sobre meu ombro e continuamos nosso caminho até o carrinho de algodão doce. Como se não tivéssemos doçura o suficiente.
Beijar é meu mais novo passatempo preferido. Se não fosse a necessidade latente de ar, certamente o beijaria pelo resto da vida. Ele beija tão bem. Sabe como e onde me tocar, com a firmeza certa. Sabe o jeito de me manter presa no momento, completamente envolvida por ele.
— Já tem que ir embora? — pergunta com uma expressão triste. Olho as horas no visor do celular pela terceira vez, mas não por estar com pressa para voltar para casa, e sim, por estar apreensiva por saber que terei de voltar para casa em algum momento.
Balanço a cabeça rápido, negando. Ele volta a entrelaçar nossos dedos. É diferente de hoje cedo. Ele não treme mais, eu não suo mais. Parece certo.
— O que quer fazer agora? — Pergunto animada.
— Não sei. Você está com fome? — Balanço a cabeça de novo, dizendo que não. — Tem algum brinquedo que queira ir? — Olho em volta e toda a movimentação dos brinquedos não me deixa muito empolgada, volto a olhar para ele e nego novamente. — Podemos ficar sem fazer nada também. — ri e eu assinto.
— Pode ser. — Me viro de costas para ele, então, apoia o queixo em meu ombro. As mãos se cruzam sobre minha barriga e eu me distraio brincando com a pulseira em seu pulso. — Qual é a dessa pulseira? — Giro um pouco o corpo e a cabeça para encará-lo. parece não saber do que eu falo, mas se lembra.
— Às vezes esqueço que ela está aí... Era do meu pai, ele me deu — diz rápido, uma explicação curta e plausível, sem espaço para perguntas sem ser as mais pessoais e eu não quero forçar seus limites.
— É bonita — digo olhando de volta para a pulseira de couro trançado. É fina, discreta. Sua existência deixa uma marca de sol no pulso de e eu não me lembro de tê-lo visto sem ela.
— Eu não acho. — Ele ri. Agora seus dedos brincam com os meus.
— Então, por que usar? — Pergunto sem pensar e ele ri.
— Não sei... Gosto dela mesmo que seja feia. — afasta um pouco meus cachos com o rosto. Acho que ele viu a cicatriz em minha clavícula espreitando pela gola da camiseta, já que seu toque se afrouxou um pouco em minha cintura. Meu corpo fica tenso e eu prendo a respiração. Mas me surpreende com um cuidadoso beijo sobre o início da cicatriz, voltando a me ajeitar melhor contra seu corpo. Me abraçando mais forte.
— Isso diz muito sobre você. — Comento distraída com o esforço que faço para não sorrir tanto.
— Que eu tenho mal gosto? — Pergunta divertido.
— Talvez. Mas também diz que você tem um bom coração. A pulseira não é bonita para você, mas representa algo importante. É por isso que você a usa, não é? — assente rápido.
— Acho que foi a última coisa que ele me deu. Aliás, nós a fizemos juntos. Acho que fez sentido que ele me deixasse ficar com ela. — Sorrio enquanto estudo seu rosto tão tranquilo, mesmo magoado. O pai do , assim como o meu, foi embora quando ele era muito novo. É difícil superar esse tipo de coisa, mas é uma prova de que é possível, sob as circunstâncias certas.
— Você é muito especial — digo baixinho, como um segredo. ri e beija minha bochecha.
— E você é maravilhosa. — A voz de vacila e ele respira fundo, descendo seus olhos por meu torso com certa malícia. É interessante porque estou usando camiseta larga, calça jeans, tênis. Mas sob seus olhos, me sinto como um diamante lapidado. Um tesouro inteiro. Mas não só pelo que ele vê marcado no tecido da camiseta, mas pelo oculto entre camadas e camadas de dor, tristeza e perda. Chego a me emocionar pensando no dia em que finalmente eu poderia me olhar com um olhar parecido como o dele agora. O que ele vê parece ser mágico, eu só não consigo ver ainda.
Talvez possa me ajudar.
Quando fica tarde o suficiente para começar a se preocupar com a minha segurança na volta para casa, começamos a planejar o que fazer. Ele está mais perto de casa do que eu, não acho justo que ele tenha que voltar após o fazer o caminho oposto para me acompanhar até a metade do caminho. Mas insiste e é obstinado e teimoso. Usando de artimanhas românticas como beijos no rosto inteiro para evitar que eu termine meus bons argumentos para convencê-lo a me deixar seguir sozinha.
— Mas... Eu... Sei... O ca...minho. — Sou interrompida por beijos divertidos.
— Eu sei que você sabe. Mas será que eu poderia te acompanhar para que eu possa dormir em paz com minha consciência esta noite? — finge uma impaciência que só o deixa mais interessante. Eu concordo. Fico preocupada, pois, percebo que quando as discussões chegarem, eu sempre serei a primeira a ceder para esses olhos. Mas algo me diz que ceder valerá a pena com ele.
— Nesse caso, eu deixo — digo séria e cerra os olhos, todo um ar de deboche o cerca.
— Você deixa? — Ele repete e eu assinto. — Controladora... — Ele cantarola e eu rolo os olhos. — Vem cá... — Paramos no meio da passarela da entrada da esquerda da estação de trem Dom Bosco. me beija apaixonado. Uma fina chuva molha nossos rostos e nos afastamos só o suficiente para trocar um olhar cúmplice. Entrelaço os dedos nos de e me preparo para correr.
— Então... — respira fundo. Minha cabeça apoiada em seu peito sobe e desce com o movimento. — Acho que podemos fazer aquilo que você disse mais cedo.
— Sobre ir devagar? — Ele assente, eu imito o gesto. — Isso significa que você vai ficar com outras pessoas? — Pergunto com medo de parecer um pouco desesperada, mas preciso me certificar. estava dando bola para Ariane há alguns meses, não posso arriscar me envolver com alguém que não queira nada sério. De novo.
A risada de me pega de surpresa. Primeiro me deixa confusa e um pouco constrangida, mas depois eu entendo por que ele achou minha pergunta tão cômica.
— Eu só quero ficar com você, . Acho que estou viciado na sorte que é poder te beijar. — Ele confessa deixando um beijo em minha mão que antes pousava sobre sua barriga definida.
— Então, você é tipo o meu namorado agora? Eu sei que soa infantil, mas... — Suspiro derrotada e crispa os lábios, suas bochechas estão coradas.
— Você quer eu seja... Não. Você quer... que eu...
fica desconcertado e sou eu quem ri agora.
— Se eu quero ser sua namorada? — Ele ergue uma sobrancelha, interessado. — Quero sim — digo rápido, casual. Como se não estivesse pegando fogo por dentro.
— Então... Sim... Sou tipo o seu namorado agora. — meneia com a cabeça, encosta as costas no banco do trem e sorri pequeno, contido e satisfeito. Não demora até ele me puxar pela cintura, beijando o topo de minha cabeça quando o abraço pela cintura.
Nos despedimos no Tatuapé. O ponto que marca exatamente o meio do caminho para nós dois. Confesso que vê-lo partir no trem que faz o caminho de volta para a estação Dom Bosco deixou uma sensação agridoce. prometeu que nos veríamos sempre que eu quisesse e pudesse. Compreensivo como só ele, considerou meus estudos antes de mim e se certificou de anotar o endereço da faculdade caso eu quisesse me encontrar com ele por lá. Os arredores do campus é um lugar bem animado, mais frequentados que o próprio campus, inclusive.
No caminho de volta, aviso a Lucca para me esperar acordado. Ele me envia uma mensagem com uma foto de um pijama revelador.
“Para você” diz a mensagem que segue a da foto. Não acredito que gastei dados para baixar tal conteúdo. Me abstenho de digitar uma longa mensagem de três partes xingando Lucca, deixando para fazê-lo quando chegar em casa.

— E ele beija bem? — Lucca pergunta animado. Ele usa um robe de seda em um vermelho muito brilhante. Lucca está sentado na mesa da sacada, não na cadeira disposta logo ao lado, na própria mesa. Ele fuma um cigarro fino, longo e preto. O cheiro de canela na fumaça me deixa um pouco enjoada, mas está calor e fazer companhia para Lucca não é exatamente uma coisa horrível.
— Bem demais. — Lucca ergue uma das sobrancelhas, um som satisfeito de fundo de garganta me faz rir e eu sinto meu rosto esquentar.
— Certo, chega desse papo meloso. Por mais que eu goste de te ver mais para cima, não sou obrigado a ficar aturando essa sua cara de boba apaixonada. — Lucca diz desinteressado de repente.
— E que cara é essa? — Me arrisco a perguntar. Lucca rola os olhos e imita um sorriso abobado e olhos exageradamente piscantes. — Tenho certeza de que não fiz essa cara em toda a minha vida. — Digo certa e Lucca entorta os lábios, um tanto contrariado.
— Tem razão. Sua vida é ferrada demais para que você possa desfrutar de uma paixão tão displicentemente. — Lucca reflete. — Então, quer ouvir meu plano?
Voltamos para seu quarto e lá, ele puxa a tampa da caixa, revelando os documentos de novo. Lucca me mostra cópias de extratos bancários, impressos de trocas de e-mails com conteúdo bastante duvidoso e uma série de outros documentos que supostamente provam as falcatruas de Arnaldo em seu cargo político, desviando dinheiro público para múltiplas contas.
Analiso com atenção a pesquisa de dois anos de Lucca, tentando compreender tudo o que vejo com a ajuda da explicação empolgada dele.
— Ele rouba dinheiro público, não é novidade no país. — Digo o óbvio e Lucca rola os olhos.
— Eu sei! — Diz exasperado. — Mas é um começo. Ninguém me daria ouvidos se eu o denunciasse pelo porco homofóbico que ele é. Agora se eu descobrir seus podres financeiros, alguém vai me dar alguma atenção.
— Homofóbico? — Franzo a testa. O termo é novo para mim, assim como tudo o que sai da boca de Lucca.
— Tanto a aprender e tão pouco tempo para te ensinar. — Ele se distrai em seus pensamentos. Lucca sai do quarto e volta com um caderno em mãos. — Vai me ajudar a colocar o seu tio na cadeia ou não? — Pergunta impaciente e eu não tenho escolha a não ser aceitar.
— Ele não é meu tio. — Corrijo incomodada. A menor relação com ele me deixa enjoada. — O que eu preciso fazer?
— Precisamos descobrir algo mais... Picante. Você acha que consegue invadir o computador dele ou algo assim? — Lucca abre o caderno, busca por alguma anotação específica.
— Não, Lucca. Se ele não está usando o computador, o Rafael está. Não posso fazer isso — digo categórica. Quero muito ajudar Lucca a fazer justiça, mas não posso colocar a tia Vanessa em risco.
— O Rafael é meio que um aliado. — O pigarro após a frase de Lucca chama minha atenção. Ele fica todo ruborizado nas bochechas e evita olhar diretamente para mim.
— Rafael? O próprio filho dele? — Minha confusão deixa Lucca impaciente.
— Pois é. Parece que se você é um merda, até seus filhos tentarão passar a perna em você. Mas a motivação dele é dinheiro, então, não sei quão confiável ele é. — Lucca sorri quando encontra a anotação no caderno, virando a folha em questão em minha direção.
— O que é isso? — Pergunto vendo a lista de nomes e supostos pagamentos feitos nos últimos dez meses.
— Todo mundo que colaborou. — Ele se senta ao meu lado, a ponta do indicador corre pela folha de papel enquanto ele diz quem é quem.
Lucca teve ajuda de sete camareiras do hotel, do porteiro, de Rafael e de alguém descrito somente como “ELA”.
— Isso é muito dinheiro, Lucca. Onde você arranjou tudo isso? — Me viro para ele, que dá de ombros.
— Eu sou rico, — diz com pesar e eu quase rio.
— Eles estão seguros? — Pergunto temendo pela resposta. O caderno parece pesar bem mais agora. Cada nome escrito ali corre tanto perigo que eu mal consigo respirar.
— Não, ninguém está. Por isso temos que agir rápido. — Lucca suspira, deitando o torso no colchão.
— Você tem o Rafael do seu lado, por que ainda não tem o necessário? — Solto o caderno sobre a caixa aberta. As folhas se agitam.
— Não confio nele. Não sei se o que ele me deu é verdadeiro, por isso preciso que você cheque algo no computador do Arnaldo. — Lucca me olha esperançoso e eu solto o ar do peito com força.
— O que eu preciso fazer? — Pergunto irritada e ele sorri abertamente.
— No computador dele tem uma pasta chamada “Negócios”, preciso dos arquivos dessa pasta. — Lucca vai até a mesa de cabeceira e tira de dentro da gaveta um pen drive roxo. Ele entrega para mim e volta a se sentar ao meu lado. — Você só precisa copiar tudo e passar para cá. Não olhe nada, não vale a pena. — Lucca é excêntrico, estranho, divertido e sua falta de filtro é uma das qualidades mais genuínas dele. Me acostumei a vê-lo sempre despreocupado, tranquilo na piscina. O Lucca diante de mim está tremendo, engolindo o medo junto com a saliva. Seus olhos tão expressivos me pedem por ajuda e se o que eu tenho que fazer para deixá-lo mais aliviado é copiar alguns arquivos de um computador, é isso o que eu farei.
— O que tem nessa pasta, Lucca? — O encaro séria e ele desvia o olhar.
— Espero que só arquivos de transações financeiras e informações bancárias — diz triste e começa a guardar os papéis com cuidado.
— Eu faço — digo firme e ele sorri pequeno.
— Acho que você é a pessoa mais honesta a quem devo favores. — Lucca não parece orgulhoso disso.
— Não é um favor. Arnaldo é um monstro, ele merece se dar mal por tudo o que fez. — Penso em sua mão no alto de minha coxa, suas palavras ambíguas e cheias de má intenção. Meu corpo chega a vibrar de raiva e nojo.
— Ele merece apodrecer na cadeia.
A angústia de Lucca me deixa acordada a noite inteira, fico pensando no que Arnaldo poderia ter feito a ele. Como o ser humano desprezível que Arnaldo é, só consigo imaginar o pior.
Me certifico de que Lucca esteja dormindo antes de abrir a janela do quarto e me debruçar no parapeito dela. O vento bagunça meus cabelos, mas não coloca meus pensamentos no lugar. Penso em como tudo isso afetará a tia Vanessa. Eu sei que ela não está feliz, mas tem algo no jeito como ela olha para o Arnaldo que me deixa intrigada. Não sei dizer se o que há entre eles é amor ou dependência, afeto ou posse. Mas há algo entre eles. Algo forte o suficiente para fazer a tia Vanessa ficar, mesmo infeliz.
Na terça-feira, a tia Vanessa vai me buscar na faculdade com o pretexto de estar pelas redondezas. Mas ao entrar no carro, a expressão culpada do motorista denuncia que a manhã dela não foi somente uma manhã gloriosa de compras.
— Comprei essa blusinha para você. Eu sei que você ainda não quer usar alcinha por causa da cicatriz, mas comprei no caso de você mudar de ideia. — Ela se distrai com as sacolas, mostrando tudo o que comprou.
— Eu gosto da cor, tia. Azul combina comigo. — Tento animá-la um pouco, mas não tem jeito.
— Você pode deixar o cabelo de lado, se quiser esconder a cicatriz. Mas acho que elas te deixam com um ar mais perigoso, vivido. Ninguém vai mexer com você quando virem as cicatrizes. — Ela sorri e acena para o garçom do restaurante. Ele vem até ela com um copo cheio da mesma bebida que ela pediu antes.
— Tia? — Assisto ela beber, sem nem fazer careta, metade do líquido no copo. — Não quero ser intrometida, mas... Você está bem? — Afasto um pouco o meu prato, juntando as mãos sobre a mesa.
— Estou triste, . Quase o tempo todo. — Ela confessa honesta e eu não estava preparada para tanta honestidade.
— Por causa do Arnaldo? — Me arrisco perguntar e ela fecha os olhos com pesar.
— Não, não. Arnaldo é maravilhoso. Eu estou só triste com a vida. Vai passar. — Ela abana a mão no ar, encerrando o assunto.
— Desculpe por ser má companhia. Vou tentar ficar mais em casa, com você. — Me sinto verdadeiramente culpada. Eu me distraio na faculdade ou com Lucca, mas ela está sempre no epicentro de tudo o que é ruim.
— Não se preocupe comigo. Você é jovem, tem toda uma vida pela frente. Não tem que ficar trancada em casa com a sua tia desocupada. — Ela ri, mas não gosto do tom que ela usa para falar de si mesma.
— Eu faço questão. Até porque, preciso aprender a mexer no computador e eu já te vi escrevendo naquilo. Parece uma metralhadora descontrolada. — Ela ri mais forte e eu a acompanho.
— Será um prazer. — Ela diz comedida.
Um prato de nhoque, uma salada e mais dois drinques depois, voltamos para casa.
— E o encontro com o ? — Tia Vanessa pergunta casual, mas o brilho malicioso em seus olhos me faz rir tímida.
— Nós fizemos um piquenique na beira do lago, depois ele me levou até um parque de diversões e me beijou no alto da roda-gigante. — Suspiro com a menor lembrança do último sábado. A sensação gostosa de relacionamento novo me pega de surpresa e eu gosto demais de como me sinto quando penso nele.
— Que saco! Vocês são mesmo muito fofos — diz rindo — Será que o não tem um irmão mais velho a quem eu possa me apresentar?
— Sinto muito, tia. A Simone quebrou o molde. — Tia Vanessa gargalha.
— O amor na sua idade é tão mais empolgante — diz voltando a suspirar.
— Se você achar incerteza empolgante... — digo distraída também.
— Incerteza?
— É... Não sobre , mas, sobre mim. Não sei se consigo ser tão boa para ele quanto ele é para mim. — Confesso e me sinto estranha por dividir tantos sentimentos assim com ela.
— Isso pode não ser uma coisa tão ruim. Acho que os relacionamentos são melhores quando o homem ama a mulher só um pouquinho a mais do que ela o ama. — Tia Vanessa volta a me encarar divertida.
— Por quê? — Ela sorri com minha genuína ignorância acerca do assunto.
— Não tenho certeza, mas acho que o amor feminino é magnânimo, curativo. Se um homem consegue transmitir isso sem querer nada em troca, esse é um bom homem. Ele merece todo o seu amor, desde que ele te ame mais. — Ela pisca um dos olhos e eu sorrio. Acho o papo todo sexista e um pouco antiquado, mas não vou dizer isso a ela. Amor tem que ser equilibrado. Ninguém merece ser amado menos do que ama, seja homem ou mulher.
— Eu quero mesmo ser boa para ele como ele é bom para mim. — Digo baixo, mas firme.
— Tudo bem, mas não se esforce tanto. Na sua idade, as coisas no amor devem ser fáceis como contar até três. — Ela ri e eu a encaro de testa franzida, o que a faz rir ainda mais.
Essa semana tem sido calma, gostosa de viver. Arnaldo está em Brasília por cinco dias seguidos e é simplesmente discrepante a diferença no ambiente com a sua ausência. Os cheiros de colônia e cigarros não invadem grosseiramente meu olfato e poder andar dentro do apartamento sem me sentir sendo observada o tempo todo é bastante gratificante. Até a tia Vanessa se sente melhor. Na quarta-feira, fomos ao cinema.
Uma discussão beira à seriedade quando temos que decidir quais dos filmes em cartaz assistiremos. Na segunda quinzena de março estreou “Ponte para Terabítia”, o tipo de filme de aventura que eu adoro. Já a tia Vanessa, tinha a última chance de assistir "Letra e Música", já que o filme sairia de cartaz no dia seguinte e ela tem um abismo pelo Hugh Grant. Na dúvida, assistimos aos dois filmes, em uma sessão dupla e com direito a pipoca. Duas vezes.
Na sexta-feira, eu sou um dos poucos alunos presentes na sala. Talvez a única acordada e disposta a participar da aula que está acontecendo diante de nós. Com a sala praticamente vazia, o professor Alexandre altera a aula e nos deixa livres experimentando o software disponibilizado pela faculdade. Estou em uma fase mais roqueira e me divirto com os sons pré-gravados de instrumentos. Emendando um solo de guitarra no outro, deixando a música propositalmente provocativa e longa. Nada será salvo, então, me sinto livre para ouvir minha arte nos fones de ouvido abafados sem ser julgada pelos meus colegas.
Sinto a falta de Tauany durante o dia. Sua ausência faz o dia com um período a menos parecer mais longo, maçante. Sinto falta de seus comentários aleatórios sobre seus mais profundos pensamentos, sempre me deixando pensativa sobre como seu cérebro funciona.
No ônibus de volta para o apartamento, me sinto culpada por estar tão ansiosa. É como se parte de mim estivesse se preparando para a chegada de Arnaldo de Brasília. Deixando tudo de bom que aconteceu nessa semana tranquila e leve no modo de espera, suspensas no ar esperando o momento para ser apreciadas. Mas o momento parece nunca chegar e as coisas vão sendo sobrepostas na pilha do depois.
Tento me distrair com música, ando ouvindo muito Charlie Brown Jr. ultimamente, as letras românticas me fazendo entender um pouco mais sobre como pode ser o amor na visão de um homem bastante conturbado, mas apaixonado na mesma medida. Tento me concentrar em um livro, mas não consigo passar da mesma página. Os pensamentos se embaralham com as palavras escritas na folha de cor macia para os olhos e eu me perco no infinito de pensamentos ansiosos e nervosos.
Não consigo parar de pensar em como entrarei no escritório de Arnaldo para copiar os malditos arquivos se o homem parece estar conectado com a estrutura do apartamento, sempre espreitando pelas paredes, aparecendo onde não é bem-vindo.
Guardo o livro na mochila e pego o celular no bolso da frente dela, releio a última mensagem de me dizendo que mal pode esperar para nos encontrarmos de novo, daqui há duas semanas, no sábado, quando ele voltar de uma viagem com a mãe e o padrasto.
Tem sido o nosso lance. Ligações às oito e meia, mensagens de boa noite e encontros aos sábados.
Estar com é como se o tempo parasse ou passasse mais devagar para que cada minuto que passamos trocando ideias sobre música, filmes, programas de TV e todo o resto durasse só um pouquinho mais. Quando estou com ele, me sinto protegida de tudo de ruim que aconteceu ou tem acontecido. É como ser blindada por algumas horas de todo o azar, restando somente a sorte de termos encontrado um ao outro.
Fecho os olhos, respiro fundo. O ônibus se movimenta e a música continua tocando em meus ouvidos. Aos poucos, sinto como se essa bendita expectativa por ver em breve sobrepusesse todo o resto. Não completamente, não o suficiente para me fazer sentir segura como sinto quando estou com ele, mas o suficiente para me fazer suportar até lá.
Tenho medo de me apoiar tanto assim em . Mas não posso controlar a calmaria que é tão bem-vinda em momentos em que é tão difícil encarar qualquer coisa.
“Você é bom para mim até quando não está por perto, obrigada.”
Enviar a mensagem me faz sentir uma satisfação sem igual. Aprendi que não é presunção alguma esperar que coisas assim o façam sorrir. é o tipo de cara que aprecia esse tipo de aviso de vez em quando e eu acho justo recompensar uma companhia que me faz sentir tão especial com a mais pura verdade.
Quando chego no apartamento, está vazio. Eu encaro as últimas horas desse sossego como um presente, um motivo para esperar por outra semana parecida em breve. Mas é um esperar calmo, sem pressa ou uma necessidade caótica tomando meu peito a ponto de me fazer querer pular da janela. Eu quase consigo ficar orgulhosa pela maturidade envolta nesse pensamento tão cheio de certeza e acomodando minha cabeça livre de metade dos pensamentos que povoam minha mente, tiro uma longa e tranquila soneca.

Lucca ficou chateado porque Arnaldo levou seu computador com ele na viagem e eu não pude invadir seus arquivos para lhe entregar uma cópia. A frustração foi tanta, que ele preferiu não falar comigo por um tempo para não descontar toda essa chateação em mim. Achei sensato da parte dele em reconhecer seus instintos e querer me manter longe de uma versão dele que poderia me magoar, levando em consideração que ele não costuma ser exatamente agradável no resto do tempo. Mesmo assim, mais tarde naquela noite, levo pizza de calabresa para ele. Fria e com cebola extra, como ele gosta.
— Se você queria ocupar minha boca para tolerar a minha presença, eu tenho ideias menos calóricas de fazer isso. — Lucca diz debochado e eu não escondo a expressão enojada por seu comentário.
— Eu achei que depois de ter um namorado você pararia com essa... coisa que você faz. — Me sento em sua cama, os pés descalços cruzados sobre um bicho de pelúcia surrado.
— Ainda não conheci seu namorado. Vai depender do quanto eu irei respeitá-lo. — Ele explica, a boca cheia de pizza.
— E quanto a mim? Você não me respeita o suficiente para não ficar encarando os meus peitos? — Estalo o dedo acima de sua cabeça, incomodada com o olhar vidrado no decote da blusa azul que a tia Vanessa me comprou há alguns dias e eu não tive coragem de usar, até agora, porque todas as minhas camisetas estão para lavar. Mas decido não a usar mais.
— São belos peitos. — Ele sorri e presa em seu aparelho nos dentes, um pedaço de cebola e massa disputam espaço entre os dentes dele e a armação de metal. Não consigo leva-lo a sério o suficiente para me ofender com toda a objetificação.
Maldito complexo da amizade com gente mais estranha que você.
— Me respeita, idiota! — Empurro seu ombro e ele se desculpa enquanto ri. Rolo os olhos e suspiro entediada.
— O que você veio fazer aqui? Além de me alimentar, claro — diz o rapaz, dramático. Noto as olheiras profundas de Lucca e começo a pensar que não seja exatamente só drama que ele esteja fazendo, mas que tudo isso esteja o afetando fisicamente de forma bastante agressiva.
— Vim te avisar que o Arnaldo volta amanhã. — Sorrio de boca fechada, agora é Lucca quem rola os olhos.
— Disso eu já sei. O Rafa me contou quando nos falamos ao telefone. — Ele dá de ombros e sorri.
— “Rafa”? — Não consigo imaginar Lucca e Rafael juntos. Rafael é tão bruto e desagradável quanto o pai.
— Não enche... — A voz de Lucca soa melodiosa e é óbvio que eu não vou deixar passar.
— Vocês dois estão... Espera! Você disse que não confia nele, como pode... — Minha insistência acaba se virando contra mim, o tamanho do nó que a expressão maliciosa de Lucca dá em minha mente é grande demais para suportar sem deixar o queixo cair. — Estou chocada!
— Não fique... Como é de se imaginar, o sexo é ótimo e toda aquela marra some na palma da minha mão. — Lucca faz um gesto bastante gráfico de como a palma de sua mão controla os ânimos de Rafael.
— Estou chocada. — Repito, menos chocada, mas ainda chocada.
— Ele me contou que o pai dele te tocou... — Ele emudece de repente, eu não queria que ninguém soubesse disso. É vergonhoso.
— Rafael é um imbecil. O pai dele também — digo desgostosa e Lucca cutuca os dentes enquanto me vê processar tudo.
— Desculpe pelo beijo. Foi idiota e desesperado. Salvou minha vida, mas eu não tinha o direito. — Ele diz sério e nem parece o Lucca de sempre. Consigo ver que ele genuinamente se arrepende de nosso primeiro contato brusco.
— Está tudo bem agora. Mas você correu o risco de apanhar tanto... — Ele ri sem jeito e eu o acompanho. — Está tudo bem. — É difícil dizer isso e acreditar em minhas próprias palavras. Tudo ainda está tão incerto e eu sinto tanto medo o tempo todo. Como poderia estar bem se ainda penso em minha mãe sozinha na casa que parece encolher e entortar em tristeza? Como poderia estar bem se sinto falta todos os dias de uma vida que eu nunca vou reaver? Aceitar que a vida nunca mais será completa me desespera um pouco, em contrapartida, nunca estive em um lugar na vida onde era possível sentir a cura acontecer. Aos poucos, lentamente, com algumas pausas e interrupções, mas ainda assim, estou me curando. Seguindo em frente. Acho que isso deixaria o Pedro feliz, então, mesmo diante de um problema imenso, estou confiante. Mesmo que tenha que desenvolver toda essa coragem e diligência vivendo sob o mesmo teto de um monstro, em constante ameaça, eu continuo acreditando que posso passar por isso também.
— Desculpa mesmo. Não quero mais ser um fator que te faz achar que não merece espaço para ser quem você é. Juro que só vou te beijar se você implorar muito. — Lucca quebra a tensão do momento, mas está bastante constrangido. É mesmo desconcertante encarar a verdade do outro quando se está do lado oposto da situação.
— Enfim... — Suspiro longa e audivelmente. — Acho que consigo usar a madrugada para invadir o computador do Arnaldo. Você conseguiu a senha com o “Rafa”? — Não poupo esforços para esticar as aspas até muito próximo de seu rosto e ele esquiva, rindo todo bobo.
— Vou anotar para você. — Ele levanta e empurra minhas mãos, vai até a mesa de cabeceira e anota em um pedaço de papel qualquer os quatorze dígitos entre números, letras e caracteres especiais. Dobro bem o pedaço já pequeno de papel e guardo no fundo do bolso da frente da calça jeans. Aquele que foi criado somente para caber segredos mesmo.
— Tem mais alguma coisa que eu possa fazer enquanto estiver lá? — Pergunto apreensiva, ainda não sei exatamente quais serão as coisas que encontrarei no computador de Arnaldo, muito menos as consequências de entregá-las à Lucca.
— Não olhe o histórico do computador de um homem. Nunca. — Ele diz sombrio e eu assinto devagar, eu já não tinha a menor pretensão de perder tempo com isso.
— Algo mais? — Não consigo não rir, a perturbação na mente de Lucca transborda em seus olhos e ele parece atordoado.
— Qualquer coisa que pareça suspeita — diz devagar e eu o abraço pelos ombros.
— Você é muito corajoso, Lucca. O que está fazendo é sério e grande. Está pronto para isso? — Pergunto mais baixo, tentando não o assustar mais.
— Nasci pronto para isso, gata. — E o Lucca de confiança inabalável aparece por trás das olheiras e do cansaço. Um sorriso de metal enviesado adorna seus lábios e eu o deixo antes que ele diga alguma coisa que me faça querer bater nele.

Já em meu quarto, encaro o caricato relógio despertador amarelo na mesa de cabeceira, sorrio ouvindo o toque baixinho do celular. São oito e meia. é pontual e essa é uma de suas melhores qualidades como namorado.
— Oi, minha linda! — Um suspiro romântico escapa de meu peito apaixonado assim que ouço sua voz.
— Estou com saudade! — Jogo o corpo na cama, minha voz sai resmungona e ri do outro lado da linha.
— Eu sei. Também estou com saudade. — Volto a sorrir, tentando imaginar o que ele está fazendo agora além de falar comigo ao telefone. sempre está fazendo mais de uma coisa ao mesmo tempo. — Sinto muito por não poder escapar dessa viagem. Minha mãe quer muito que o Ricardo conheça a minha avó. E precisa ser logo, porque não tem ninguém ficando mais jovem e saudável por aqui. — Divido a risada com ele, ouvindo o protesto de Simone ao fundo da ligação. A porta do que eu imagino ser de seu quarto se fecha e ele expira de um jeito engraçado. Um barulho fofo acontece e eu imediatamente sei que está deitado na cama, os pés descalços cruzados e um deles balança devagar de um lado para o outro. Ele apoia sua cabeça no antebraço do braço livre e encara o teto. Mesmo que só na minha imaginação, oriunda de muitos minutos em completa perplexidade observando como é sutilmente fantástico, o homem se parece exatamente como realmente é, um desvio de tudo o que eu conheço sobre atração e desejo. Uma forma nova de paixão explode dentro de mim a cada vez que o vejo, é avassalador, sufocante, delicioso. Mesmo que seja só uma mera reprodução dele, criada em minha cabeça.
— A sua avó deve ser um amor. — Me lembro de dizer, após chacoalhar a cabeça para tirar fisicamente os pensamentos intensos que comecei a ter.
— Tem certeza de que não pode vir com a gente? — Ele pergunta e posso ver nitidamente a mordida rápida no lábio inferior que dá sempre que me faz uma pergunta que ele julga desconfortável. Eu odeio dizer não a ele, é essa a parte desconfortável para mim.
— Eu adoraria ir, mas não posso. Tenho uns mil trabalhos para entregar semana que vem. — Tento não parecer decepcionada demais. A avó do mora no interior do Paraná, uma cidade pequena e provavelmente cheia de outros parentes dele. Eu nunca saí de Guarulhos direito, sair do estado poderia ser uma boa aventura, ainda mais com ao meu lado. Mas tenho mesmo trabalhos para entregar. Não mil deles, mas quase isso. E todos eles são entregues em forma de apresentações, o que me deixa extra ansiosa.
Se só não bastasse duvidar de meu progresso no curso, ainda tenho que apresentar minhas dúvidas publicamente.
— Então, terei de me esforçar para aproveitar noites estreladas e o clima pacato do interior sem você. — Ele não parece decepcionado, pelo menos não a ponto de me fazer sentir mal. É estranho esperar sempre reações tão negativas das pessoas e sempre me surpreender com um olhar diferente da situação. Um que quase sempre me faz sentir precipitada por criar expectativas ruins sobre ele. Nunca foi tão bom estar errada.
— Noites estreladas, é? Você tem muitas primas da sua idade? — A pergunta sai divertida, mas tem um fundo de uma curiosidade genuína por trás dela. ri de leve.
— Tenho. Mas como você disse, elas são minhas primas. E... Bem, eu tenho uma namorada linda, engraçada, inteligente, brava pra caramba e forte como um touro. Acho que minhas noites terão companhia só das estrelas mesmo. — Uma risada infantil e envergonhada escapa por meus lábios.
— Eu não sou brava! — Digo ainda rindo.
— É brava, sim. E debochada, que medo de você, baixinha! — argumenta e eu rio ainda mais. — Eu amo sua risada, sabia?
Paro de rir instantaneamente. Estamos juntos há um pouco mais de um mês. Nos encontramos duas vezes desde então e nos falamos por telefone todos os dias, às oito e meia. Não dissemos a palavra com “A” ainda. Ouvir assim, tão do nada me deixa aflita, mesmo que ele tenha dito só que ama me ouvir rir.
— Eu... Rio... às vezes — digo desconcertada e sem pensar direito. ri sem jeito também, parece perceber que metade de meu cérebro congelou ao assimilar uma única palavra.
— Vamos com calma, certo? O que eu disse significa só o que eu disse. E eu amo mesmo te ouvir rir. Gosto quando está feliz porque é quando você tem uma risada meio esganiçada que é bem fofa. E tem a risada mais escandalosa quando alguma coisa é mesmo muito engraçada, e eu adoro porque é inevitável não sorrir junto, porque sua risada é contagiante. Tem também um risinho convencido que eu precisei superar, porque era muito para o meu coração. — suspira e eu rio. — Esse mesmo! É um dos seus melhores risos. Mas amo ouvir sua risada principalmente porque te ouvir chorar machuca muito. — diz devagar, como se explicasse a uma criança a melhor forma de se acalmar diante de algo assustador. É carinhoso, sincero. Entendo que tem mais a ver com ele gostar de me ver feliz, não com sentimentos românticos necessariamente. Mas como se sentir desse jeito por alguém sem que sentimentos românticos estejam relacionados? Eu sei que os meus só crescem.
— Eu vou tentar ser menos esquisita daqui em diante. Prometo. — Digo com pesar e ri, me deixando confusa.
— Não se atreva! — Rolo os olhos, mas é bom demais ser compreendida e acolhida dessa maneira.
— Só um pouquinho menos, talvez? — Insisto, mas no fundo, só quero ouvi-lo dizer que não mais uma vez. E não falha.
— Não. Você é perfeita do jeito que é — diz sério, urgente.
É tarde, mas ainda conversamos. está ouvindo música e chove bastante em Guarulhos. Fecho meus olhos e nos meios silêncios posso me imaginar lá com ele. Acolhida em seu abraço e envolta de música. insiste em desligar, para me deixar descansar, pois, já passa de meia noite. Mas eu sinto tanto a falta dele que o convenço a ficar na ligação até que eu durma.
Inspirado por minha mais nova banda favorita, ouve seus antigos discos do Charlie Brown Jr. e “Uma criança com seu olhar” enche meus ouvidos. Mesmo de longe e através de uma ligação, a música me dá a sensação de estar dentro de uma onda. Uma paz instransponível se acomoda ao meu lado na cama e eu adormeço em um lugar, com a alma, mente e coração em outro.

Passo o sábado inteiro me sentindo tensa, alarmada. As horas passam devagar de um jeito sufocante. Tão lentamente que acredito ter olhado para o relógio três vezes na última meia hora e nada ter mudado muito. Sinto que estou adiantada no tempo, me movendo mais rápido que o próprio.
Fico evitando a tia Vanessa a todo custo. Digo que estou atolada em trabalhos da faculdade, o que me dá a desculpa perfeita para ficar trancada no quarto, mas quando ela entra para se certificar de que tudo está bem, não consigo me comunicar com a casualidade que ensaio tanto. Minha tia percebe minha agitação e se magoa com ela. É nítido que ela esteja chateada, porque quando diz que vai sair durante a tarde, tia Vanessa nem espera que eu me despeça.
Odeio ter que tratá-la assim, despistando a mulher calorosa, que não tem medido esforços para me acolher. Mas não tenho escolha. Preciso manter seu futuro em segredo e mesmo que isso me dilacere diversas vezes, é para um bem maior. Não saber as consequências que aguardarão por ela me faz repensar a ideia toda. Mas fico dividida por me lembrar do olhar amedrontado de Lucca, me lembro de meu próprio medo constante e engolindo em seco, decido que esta é a melhor saída.
Só me resta torcer para que ela consiga ver que há uma alternativa para tanta solidão. Uma solução melhor do que a que ronda sua mente e a força a se manter em um casamento infeliz por falta de escolha.
O despertador ameaça fazer barulho às quatro em ponto. Estive acordada os últimos dez minutos pensando no que estou prestes a fazer. Não sei onde estou me metendo, não sei o que vai ser da tia Vanessa se Arnaldo vier mesmo a ser preso.
Deslizo da cama com um mau pressentimento pesando no peito. Descubro as pernas e o vento gelado da noite é como um pedido para que eu volte para a cama. Mas eu sigo ignorando cada pedaço de mim que me diz para desistir. Mesmo que minhas mãos tremam, de medo e de frio.
Arnaldo é rígido, confia que toda sua autoridade é respeitada quando na verdade, nós todos só temos medo dele, evitando chateá-lo para não sofrer as consequências. Fui treinada para sobreviver assim, não era diferente com minha mãe. A diferença é que ela é só alguém machucado agindo como um animal indefeso, Arnaldo é um monstro imprevisível.
Ele guarda o computador junto com a maleta no escritório, mas não tranca a porta nunca. Atravesso o corredor e a sala como um camundongo no meio da noite. Procurando as sombras dos móveis para me esgueirar até o outro lado do apartamento sem ser vista. Estão todos dormindo, mas não posso arriscar.
Paro diante da porta do escritório e por um instante, ela parece maior do que realmente é. Meu coração bate tão forte que posso senti-lo pulsar em meus ouvidos. Minhas mãos suam e eu empurro a porta com as pontas dos dedos.
Não sei bem o que esperar do escritório de Arnaldo, já que nunca olhei para o interior do cômodo. A parte infantil em mim esperava uma cadeira assustadora, uma escrivaninha adornada de caveiras e metais pesados na decoração, uma parede de jarros com soluções preservando cabeças dentro ou qualquer coisa assustadora do tipo. Mas é um cômodo bastante simples comparado ao restante do apartamento. A escrivaninha é de madeira escura, a cadeira é de escritório normal. Não há prateleiras com jarros e partes de pessoas, mas um pequeno arquivo no canto da sala, ao lado de uma planta meio murcha. Sobre o tampo da escrivaninha, o computador pousa inanimado, ao lado de um abajur pequeno.
Fecho a porta com cuidado. Tiro do bolso da calça o pen drive roxo de Lucca e o pedaço de papel com a senha do computador. O papel está amassado por ter sido dobrado e desdobrado por diversas vezes em minha tentativa de memorizá-la. Mas agora, diante da tela aberta do computador, não consigo me lembrar de nada.
Acendo o abajur de luz amarelada e tudo fica muito sinistro. Me sinto suja por estar tocando em algo que Arnaldo também tocou. Não sei o que vou encontrar, o que eu imagino me assombra o suficiente para me deixar com um incômodo permanente no estômago.
Digito a senha devagar, tentando não fazer barulho. A tela se apaga, depois acende e eu vejo todos os ícones desorganizados diante da bandeira rubra de algum time de futebol. São muitos arquivos de diferentes segmentos e eu não sei bem o que procurar, além da pasta de nome "Negócios".
Insiro o pen-drive e faço a busca pela pasta. Eu a encontro e começo a copiar os arquivos de um lugar para outro.
Me sentindo assombrada pelo cômodo, envio uma mensagem para Lucca, avisando que seu plano está em ação. Na esperança de que ele me responda e me distraia da sensação de ter as paredes observando meus movimentos, me certifico de que o volume do celular esteja no mínimo, para evitar ser pega.
Eu sempre enxerguei o conceito de privacidade com muito entusiasmo. Sempre sonhei com o dia em que poderia me trocar no aconchego do quarto ao invés de fazer isso no banheiro de azulejos frios após o banho. Fantasiava com a ideia de que ao fechar uma porta, todo um mundo é blindado dentro de uma bolha cheia de você e sua personalidade. Com o passar dos dias, fui tentando deixar o quarto que a tia Vanessa me deu o mais parecido comigo possível. Bastante cor-de-rosa se foi no processo e ela me definiu como uma decoradora minimalista. E por um tempo, comecei a gostar da ideia de ter um quarto só meu e me apoiei nessa ideia para começar a me sentir segura lá dentro.
Invadir a privacidade de alguém dessa maneira parece errado mesmo quando a intenção é boa. Me faz sentir traindo alguns valores que eu não reconhecia como muito importantes para mim até então. Por outro lado, eu quero saber por que Lucca quer se vingar de Arnaldo. Eu quero saber exatamente o que o motiva e eu obtenho essa resposta rápido demais.
Não tenho coragem de abrir os vídeos e fotos, então aumento o tamanho dos ícones, para tentar montar um caso em minha cabeça.
Tudo o que eu vejo é tão pior do que eu imaginei, é tudo tão íntimo e bem catalogado com legendas absurdas. São tantos arquivos que em certo ponto, a imagem íntima congelada no tempo para sempre nem interessa mais. Eu procuro pelas datas, procurando por alguma linha temporal naquela barbaridade toda. Até encontrar um vídeo com uma data recente.
Reconheço o quarto que é parcialmente filmado. Reconheço a silhueta borrada refletida no espelho de corpo inteiro que encontrei em um brechó naquela mesma semana no centro da cidade.
Aquela no vídeo sou eu. É um vídeo meu que eu não fazia a menor ideia que existia.
Com a mão trêmula, clico com certa força na tecla Enter. O vídeo se abre e enche a tela inteira.
Tudo começa com a porta do quarto ainda fechada. Ouço o som do chuveiro cessar e a porta de entrada do quarto é aberta minimamente, o suficiente para que seja possível filmar o reflexo no espelho que aponta diretamente para a saída do banheiro, o lado esquerdo de minha cama e eu. Uma confusão acontece com o zoom, a imagem fica desfocada, mas logo se estabiliza. A imagem fecha em meu rosto, tão preocupado e aflito após um dia cheio. O plano vai abrindo de novo, me mostrando de toalha, cabelo molhado, cabeça cheia.
Me vejo ali, vivendo a minha vida após um dia que eu julguei ser normal e é tão angustiante a vontade que tenho de proteger aquela menina do monstro atrás da porta, segurando a câmera. Quando ela, ou pior, quando eu tiro a toalha do corpo para vestir o pijama e dar continuidade aos estudos daquele dia, eu paro de olhar. Não consigo invadir a privacidade dela muito mais do que já fora invadida.
A filmagem volta a ficar tremida, um gemido chama a minha atenção de volta para o vídeo e eu sinto meu coração se contrair, doer, se quebrar em pedaços.
No plano da filmagem, eu apareço no fundo. Como um objeto observado de forma secundária e sem importância. Com bastante foco e orgulho, o filme termina com Arnaldo mostrando sua mão suja de sêmen escorrendo por entre os dedos. Eu sei que é ele, pois, uma cicatriz se estende de seu pulso até o meio de sua mão, oriunda de um acidente com arame farpado de quando ele era criança.
No último frame, estou sorrindo e me levantando da cama. Eram oito e meia e eu não via a hora de falar com e me desligar do mundo após uma discussão com o Arnaldo meio que por causa dele. Arnaldo avisou que não o queria no apartamento.
Entre várias pequenas ofensas que ele distribuiu junto com o discurso desnecessário sobre respeitar sua masculinidade, entendo melhor algumas outras coisas que ele disse naquele dia que me fazem pensar que ele me vê, assim como a tia Vanessa, como sua propriedade.
O choque é imenso.
Sinto que vou vomitar, mas não consigo. Sei que tenho um trabalho a fazer e canalizo todo esse ódio para o meu foco, pegando todo arquivo que vejo de toda pasta que abro.
Uma notificação de alerta aparece na tela, informando que o pen drive não suporta todos os arquivos da pasta e eu tenho uma ideia tão grande que pesa em meu cérebro.

— Alô? — Lucca atende irritado após quatro tentativas, a voz rouca de sono.
— Como você consegue dormir enquanto eu estou fazendo isso? Abra a porta, agora! — Tento cochichar, mas minha voz soa como um grito baixo.
— Quer acordar o prédio? O que está fazendo aqui? — Lucca diz ainda no telefone, mas já abriu a porta. Ele estuda minha expressão assustada de olhos arregalados e marejados. — Ah não, ... Eu te disse para não abrir nada. — Lucca parece preocupado. Eu estendo as mãos, entregando a ele o computador inteiro.
— Seu pen-drive é pequeno — digo um pouco aérea e Lucca ri, provavelmente encontrando um tom dúbio malicioso em minha fala. — Você sabia?
— Sobre o quê?
— Sobre o meu vídeo. — A expressão de Lucca murcha, morre como uma flor exposta ao fogo. Ele nem precisa responder, é uma surpresa para ele também. — Você tem que acabar com ele! — Lucca abre espaço e eu entro em seu apartamento. Nós vamos até o quarto dele e ao fechar a porta, nós começamos a investigação de verdade.
Lucca escreve os nomes de todos que colaboraram antes numa lousa branca média que ele tirou de debaixo do colchão. Na frente de seus nomes, os crimes cometidos por Arnaldo. Racismo, suborno, assédio, intimidação, calúnia, estupro. Isso só citando o que já sabemos graças aos depoimentos dos informantes de Lucca. Depois, ele escreve o próprio nome e o meu. Na frente do nome dele, Lucca escreve: agressão, homofobia, assédio. Ele repete o mesmo na frente do meu, trocando homofobia por ameaça. Encaramos a razão por estarmos fazendo tudo aquilo diante de nós e é doloroso demais ver quantas pessoas foram machucadas por Arnaldo.
Eu pensei que viria para cá justamente para seguir a vida e sair da lista de vítimas de alguma coisa. Mas ali estava, o último nome de uma lista longa demais de vítimas de um homem inescrupuloso. Ao contrário do que achei que sentiria, estou motivada. Não há tempo para sentir pena de mim mesma agora, Arnaldo tem que ser preso.
Lucca assiste aos vídeos. Um por um, segundo por segundo. Ele faz anotações com os olhos cheios de lágrimas e eu me ofereço para assumir a tarefa, mas ele recusa minha ajuda.
— Podemos dizer que sofrer no seu lugar agora é algum tipo de reparação histórica. — Lucca diz e soluça. Secando o próprio rosto com a gola da camiseta.
Organizamos todo o necessário para uma denúncia. Impressos, arquivos digitais. Tudo em um envelope grande que forma um dossiê parecido com aqueles que vemos nos filmes de policiais.
O sol já nasceu lá fora e Lucca me encara amedrontado. Ele segura o pacote com as duas mãos e respira fundo.
— E agora? — Ouso perguntar, já que parece que Lucca não tinha imaginado chegar tão longe.
— Minha madrinha é jornalista do SPAgora. Acho que vou dar meu presente de Natal mais cedo esse ano — diz surpreso com a possibilidade e eu fico insegura.
— Lucca...
— Não! Não diga nada que vá me fazer sentir estúpido. Estou literalmente segurando nas minhas mãos o trabalho de dois anos da minha vida. — Suspiro buscando por alguma calma, já que sinto que vou precisar acalmar o Lucca também.
— Nós podemos falar com ela no almoço, que tal descansar um pouco agora? — Tento afastar a lousa sobre o colchão e Lucca se mostra bastante incomodado.
— Entende que eu posso nunca mais me dedicar assim a alguma coisa na minha vida? — Ele ri sem emoção e eu não tenho certeza se posso ajudá-lo.
— Certo, me escuta. Você é bom nisso e todo esse seu ceticismo e falta de filtro te fariam um excelente jornalista. O mundo está cheio de pilantras como o Arnaldo e se conseguirmos fazer isso, é só o começo de uma avalanche. Tem noção disso? — O pego pelos ombros e encaro fundo seus olhos verdes e perdidos. — O trabalho ainda não acabou.
— Ou eu poderia ser detetive. Eu viveria em um estúdio apertado sobre uma pastelaria e resolveria casos de traição o resto da vida. Eu comeria pastel, fotografaria infidelidade e seria pago para isso. — Seu sorriso psicótico é bem mais reconfortante que o desolado e eu o ajudo a se sentar na cama, arranjando algum espaço para mim também. O arquivo pesa e eu o deixo sobre a cadeira da mesa do computador, assim como o computador de Arnaldo.
Lucca se distrai com possibilidades de carreiras para o futuro e eu fico com ele para me certificar de que ele durma pelo menos um pouco. O vejo devagar sobre a vida nas sombras sendo um detetive de sucesso nas ruas escuras de céu pouco estrelado de São Paulo. Eu rio, comento um detalhe ou outro para fazê-lo rir, mas estou inquieta. O mau pressentimento não se dissipou conforme entendi melhor o tipo de criminoso que Arnaldo se tornou com o passar dos anos, pelo contrário, minha insegurança e medo só aumentaram exponencialmente. Conforme eu vi o quanto ele é perigoso passei a temê-lo muito mais. A possibilidade de fazê-lo me odiar por ter ajudado Lucca a colocá-lo na cadeia me deixa em pânico.
Em algum momento, Lucca percebe que terminou mesmo aquele trabalho no qual dedicou boa parte de sua adolescência. Acho que a pressão que ele mesmo impôs sobre si não diminuiu também. Ele começa a chorar. Um choro sofrido, contido e tão profundo que ele chega a se engasgar com a própria emoção.
Procuro entender a decepção de terminar um caminho. É um pouco clichê quando dizem para aproveitarmos a viagem, porque é no processo que se encontra a beleza. Só é clichê porque é absolutamente verdade. Terminar algo dá um pouquinho menos de satisfação do que ultrapassar um obstáculo no seu caminho no percurso para o final. Acho que entendo Pedro também. É mais legal continuar competindo.
Encosto a cabeça na cabeceira da cama, sentada ao lado de Lucca. Ele chora até pegar no sono e eu nunca direi a ele que ouvi seu gemido sofrido e que o vi em seu momento mais vulnerável.
Enquanto ele chora, eu não consigo mais derramar uma lágrima sequer por essa situação toda. Fico encarando o dossiê, como se o vigiasse. Só me resta esperar por justiça.
Pelo que li no relatório de Lucca, outros não tiveram a mesma “sorte” que eu de não saber que estavam sendo gravados. Fico pensando pelo que Lucca passou durante todos esses anos em silêncio, se alimentando do desejo de vingança.
As coisas que Arnaldo fez a Lucca são indescritíveis, suas ações vis têm um quê de crueldade muito grande e sinto repulsa por todo adulto que esteve por perto e não fez nada para impedir. Como algo assim acontece sem que ninguém veja? Como as consequências desses atos são tão imperceptíveis, até para os que supostamente deveriam protegê-lo desse e todo tipo de coisa?

(...)


? — Ouço a voz de Lucca e estando ainda sonolenta, a voz dele soa risonha, divertida. Eu sorrio antes de abrir os olhos que parecem estar cheios de areia, tamanho o cansaço. Até que eu acordo e o vejo aos prantos. — Sumiu! — Lucca está jogado no chão, a cadeira vazia caída ao seu lado.
— O que sumiu, Lucca? — Pergunto atordoada, piscando os olhos e entrando em desespero também.
— Tudo! Sumiu tudo!


Continua...



Avançar Capítulos | Página Inicial


Nota da autora: Sem nota.



OLÁ! DEIXE O SEU MELHOR COMENTÁRIO BEM AQUI.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


comments powered by Disqus