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ATO IV

Pela janela do meu quarto, a chuva lá fora parece violenta, revoltada. Ventos fortes balançam as árvores na rua e ninguém se atreve a sair do aconchego e segurança de suas casas. O movimento de carros é nulo e os parados nas guias das calçadas sofrem os ataques dos pequenos granizos se chocando contra os para-brisas e latarias que estão em seu caminho desgovernado para o chão.
O estado de Lucca quando o deixei em seu quarto há algumas horas era bastante parecido com o da chuva de agora. Perdido, mas obstinado a destruir tudo por onde passar. Revoltado, violento.
Encaro o arranhão em meu braço — proveniente de uma tentativa inútil de impedir que Lucca arremessasse a cadeira do outro lado do quarto —, não arde, não dói. Só me lembra de me preocupar com ele. Eu tentei impedir que ele destruísse boa parte de seu quarto, mas o que eu não consegui salvar teve um destino cruel.
No final, qualquer coisa que se apossou de meu amigo Lucca me pediu para ir embora e não voltar mais. Não parecia seguro para nenhum de nós que eu insistisse em lhe fazer companhia, se entendo bem de descontroles emocionais, a melhor coisa que pude fazer por Lucca foi avisar um adulto que ele precisava de companhia discreta. E eu o fiz, avisando a governanta do hotel que é gente boa e nos dá bolo de chocolate quando estamos na piscina. O nome dela é Gilda e é uma viúva toda engraçadinha, cujas piadas sempre têm um tom malicioso.
Me sinto como um farol solitário. Descansando sozinho em uma ilha distante, cercado de mágoa. Inerte e alerta. Sempre vigiando.
Não consigo calcular quanto estou cansada, mas dormir parece uma ideia absurda. Sinto que há qualquer momento alguém entrará pela porta e acabará com minha existência na justificativa de eu saber demais.
A agonia excruciante deixa impossível respirar fundo ou pensar com clareza. Minha cabeça dói em pontos que eu nem percebia antes, mas agora é como se eu conseguisse sentir uma doma dolorida na parte de trás de minha cabeça. Pulsante e se espalhando com rapidez.
A porta trancada treme com as batidas nada delicadas e eu não tenho vontade de abrir. São três batidas precisas e de mesma tonalidade de urgência. Respiro fundo, estalo o pescoço. Me levanto do colchão e ando de um lado para o outro, angustiada na espera por mais batidas. Mas elas não vêm. Encosto a cabeça na porta e ouço passos ao longe, então arrisco abrir a porta, encontrando somente um embrulho pequeno de papel marrom. A pequena e discreta mancha de gordura denuncia que não é uma bomba, mas sim, algo para comer. De estômago vazio, acordada há horas e tensa como uma vaca prestes a ser abatida, eu me abaixo e agarro o saco que exala cheiro de hambúrguer e fritura.
Dou uma mordida grande demais, sem pensar direito na procedência do que estou comendo ou nas intenções de quem decidiu me alimentar logo agora. Engulo em seco, sentindo a dificuldade na garganta para empurrar o emaranhado para dentro. Encaro as camadas de carne e queijo e decido que não há nenhuma alteração no lanche. Dou uma segunda mordida e algo que me faz pensar melhor e eu desisto.
Na busca de um guardanapo para cuspir o hambúrguer, encontro dois e um deles tem uma caligrafia bonita de caneta preta. Um bilhete de Rafael, pedindo para conversar em particular na próxima ausência de Arnaldo. Releio o bilhete e me pergunto como eu vou saber da agenda pessoal de Arnaldo sendo que quem é o assistente dele é Rafael. Me pergunto como vou responder o bilhete e mesmo descrente, vou até minha mochila e pego o estojo, tirando de lá uma caneta roxa e escrevendo um grande “ok” no verso do bilhete. Amasso e jogo dentro da sacola, me certificando de jogar somente o bilhete lá dentro e amassando tudo para se parecer como lixo. É tudo tão discreto. Me faz sentir em um filme de agentes secretos. Mas não tenho o espírito ou energia necessários para aproveitar a sensação quase infantil de estar fazendo algo escondido.
Ainda com fome, mas agora com sede também, decido sair do quarto e enfrentar a possibilidade de encontrar Arnaldo pelo apartamento. Ouvi seus gritos empolgados com a corrida de Fórmula 1 transmitida pela TV há pouco tempo e sei que ele está em casa e muito bem desperto.
Carrego o lixo comigo e levo discretamente até a cozinha, evitando olhar para os lados.
Eu não sei se Rafael vai revirar o lixo para buscar a resposta no bilhete, mas tenho certeza de que Arnaldo não vai chegar nem perto da cozinha, então, deixo o saco amassado com o bilhete sobre a bancada disposto de forma despretensiosa, como se alguém tivesse esquecido de jogar no lixo apropriadamente.
Dou meia volta e congelo no lugar. Com os olhos desavisados, miro certeira em Arnaldo e o vejo despreocupado sobre o sofá. Ele usa seu pijama de linho, os pés cobertos por uma pantufa horrorosa de estampa animal pousam sobre a mesa de centro e em seu colo, o maldito computador parece reluzir debochado.
A luz azulada da tela ilumina seu rosto, o deixando com um ar tenebroso. As lentes grossas de seus óculos fazem com que no lugar de olhos, Arnaldo tenha um par de faróis esbranquiçados e sem vida.
Ele fica assustador como um vilão dos quadrinhos que eu costumava ler em casa.
— Perdeu alguma coisa? — A pergunta é pertinente e eu quase assinto devagar.
— A tia... Ligou? — Pergunto rápido, agradecendo por poder voltar a funcionar após o choque. Não consigo parar de olhar para o computador e Arnaldo percebe meu interesse.
— Não para mim. — Ele diz desinteressado e volta a encarar a tela, teclando rapidamente.
— Certo... — Minha voz falha e eu chamo sua atenção novamente.
Arnaldo tira o computador de seu colo e eu sigo o objeto com os olhos ainda sem acreditar.
— Quer me dizer alguma coisa? — Arnaldo bufa impaciente, retira os óculos e me encara profundamente. É isso. Ele descobriu que eu sei de tudo e é agora que tudo termina.
— Como consegue dormir à noite? — Estranho minha própria voz. Mas acho que algo dentro de mim se recusa a cair sem lutar. Nem que seja um pouco. — Como consegue viver dia após dia sabendo o mal que você causa nas pessoas?
Arnaldo franze a testa, recolhe os pés da mesa de centro e se senta mais confortável no sofá.
— Você é jovem, . Muito jovem. Talvez um dia você entenda que de vez em quando, um homem precisa fazer o que ele tem que fazer. — Ele explica calmo, quase terno.
— Eu não tive muitos exemplos de bons homens na minha vida. Mas eu sei com cada fibra de que sou feita que você não é um bom homem. É difícil acreditar que qualquer coisa que você faça tenha alguma justificativa plausível. — Arnaldo se surpreende com minha resposta. Solta uma risada debochada e se levanta do sofá. Eu tento me manter forte, mas no instinto, dou um passo para trás.
— Então você tem medo de mim? — Ele pergunta sorridente, parece até orgulhoso por despertar tal sentimento em outro ser humano.
— Eu tenho nojo de você — digo firme, olhando fundo em seus olhos. Tão fundo que vejo quando ele se ofende com minhas palavras. — Mas medo, não. Ou respeito, admiração. Ou qualquer coisa que se sente por alguém poderoso de verdade.
— Você não me acha poderoso?
— Não. — Balanço a cabeça e uma espécie de tranquilidade me faz companhia. — Acho que nunca conheci um homem tão fraco.
— Gosto de como você é terrivelmente honesta. Nem um pouco parecida com sua tia. — Ele se aproxima mais, sorrindo. — Aquela lá não consegue juntar dois mais dois na própria cabeça. — Ele ri com escárnio.
— Eu entendo. Viver por tanto tempo com alguém tão desprezível deve ser mesmo angustiante a ponto de te fazer se desligar para evitar a decepção diária. — Eu rio também, mas não acho graça. Estou tensa, com medo e sozinha enfrentando este monstro. Mas algo dentro ou envolta de mim me inspira a continuar firme.
— Você se acha esperta, não é?! Andando por aqui com aquele viadinho de merda, se achando necessária. Sua festa acaba com uma ligação minha — diz em tom ameaçador. A repulsa age reversa em mim, fazendo com que meu corpo automaticamente se aproxime dele, enfatizando as palavras que diria a seguir.
— Liga. — Incentivo. — Faça o que quiser, Arnaldo. Eu ainda não tenho medo de você.
O volume baixo da TV preenche o silêncio entre nós. Eu não ouso desviar do olhar dele, é um cabo de guerra acirrado e não quero soar convencida, mas sinto que a corda está quase inteira do meu lado.
Olhando Arnaldo tão de perto, começo a perceber que sua ameaça não passa disso. Uma ameaça vazia e sem fundamento de um homem fraco e pervertido. A pose que antes me intimidava vai sumindo conforme eu o enfrento e ele não sabe o que fazer.
Seu poder vem do silêncio pago, da intimidação que é oriunda de uma ideia de que o dinheiro constrói uma barreira impenetrável em volta daquele cujo nome assina os cheques. A violência que sai impune porque, de alguma forma, nós nos vemos como inferiores a ele. E não é culpa nossa. Foi incutido em nosso subconsciente por centenas de anos que homens como Arnaldo sempre estarão no poder e que não cabe a nós causar turbulência, não podemos perturbar o exercer deste tal poder.
Olhando fundo nos olhos de Arnaldo, percebo que ele está desestabilizado, surpreso. É claro que ninguém nunca se defendeu dele antes e esta nova experiência não poderia ser mais negativa para ele. Percebo também que Arnaldo nem imagina o que eu posso saber sobre ele e isso o assusta. Não consigo não sorrir satisfeita ao vê-lo com medo. De mim.
Arnaldo é patético. É simplesmente ridículo que ele tenha saído em pune de todas as atrocidades que cometeu na vida. Desesperado, Arnaldo começa a respirar audivelmente.
Vendo meu sorriso debochado e orgulhoso, sua testa se franze até que os olhos fiquem miúdos. Tamanho o ultraje.
— Some da minha frente! — Arnaldo grita de repente. As narinas infladas e os olhos flamejantes de raiva. Parece até que ele percebeu que eu o compreendi completamente e que falo sério quando digo que não tenho medo dele. Bom, pelo menos agora.
Dou uma última olhada no computador pousando sobre o estofado. Tenho certeza de que Arnaldo nem sonha que o objeto esteve sumido por algumas horas da madrugada. Eu quase sorrio satisfeita com a sensação de estar passos adiante dele e de repente, a esperança que se apagava lentamente, começa a se fortalecer de novo.

Duas semanas se passaram desde aquele domingo triste e chuvoso. Não tive a chance de falar com Lucca sobre minhas esperanças de ter o dossiê mais próximo do que imaginamos e começo a temer que sua ira o tenha colocado contra mim. Ele não atende à porta, ou às minhas ligações e tenho certeza de que está ignorando minhas mensagens.
Essa semana encontrei com Rafael pela manhã, antes da aula. Ele me olhou de um jeito estranho, distante e frio. Não sei dizer se já tivemos a oportunidade de nos falar à sós, de qualquer forma, ele não parece exatamente inclinado a falar comigo sobre assunto algum.
A única coisa que me manteve seguindo em frente nos últimos dias foi uma ideia. Um plano de contingência para proteger a tia Vanessa do que virá a seguir. A ideia consiste em encontrar uma rede de apoio em algum lugar seguro onde ela possa vir a recomeçar a vida e encontrar seu caminho.
É quarta-feira e por alguma razão da qual não me dei o trabalho de perguntar, o último período é cancelado. Então, me pego no metrô, seguindo a linha azul até a estação Armênia e de lá, eu pego um ônibus para o lugar de onde tirarei algumas das respostas de que preciso: Guarulhos.
Minha visita não é de toda surpresa. Tenho conversado por mensagem com a tia Simone há alguns dias, mas tem coisas que não consigo digitar em poucos caracteres e a possibilidade de comer bolo é boa demais para desperdiçar assim.
— Oi, meu amor! — Simone me recebe de braços abertos no portão. Eles acabaram de almoçar, eu sei pelo cheiro gostoso de feijão fresquinho pela casa.
— Oi, tia. Desculpa atrapalhar seu último dia de férias — digo sem jeito, sou guiada por ela até o interior da sala. As almofadas enfadonhas e coloridas saltam aos meus olhos assim que entro no cômodo.
— Para com isso, você me deve essa visita há meses! — Simone abana a mão no ar e eu sorrio.
— Está falando sozinha de novo, mãe? — diz brincalhão e sai do quarto sem a camiseta, ela está pendurada em seu ombro, descansando pacífica. Ele sorri surpreso ao me ver parada no meio de sua sala.
— Oi — digo tímida. Simone fica parada na frente da porta, observando cada movimento nosso.
Meu namoro com avança lentamente, ainda é estranho vê-lo dessa forma e nós certamente não nos comportamos como namorados na frente de sua mãe, que nos olha ansiosa por uma interação menos comedida.
coça o pescoço, bagunça os cabelos. Se aproxima muito hesitante, mas sorri e beija minha bochecha muito rapidamente.
— Só isso? — Simone pergunta perplexa e eu rio, mas rola os olhos.
— Oi, linda. — Ele fala baixinho, mas Simone está assistindo a tudo muito entusiasmada. — Que surpresa boa te ver por aqui agora. — Não nos vemos há duas semanas e apesar de estar morrendo de saudade de beijá-lo e abraçá-lo sem parar, tenho outras prioridades para tratar com mais urgência.
— É bom ver você também, mas não estou aqui para te visitar — digo divertida e ele faz um biquinho adorável.
— Isso mesmo, bobão. Ela veio me ver! — A mãe dele se gaba, o fazendo cerrar os olhos em sua direção. — O que ainda está fazendo aqui? Vai trabalhar, garoto! — Ela volta a ficar séria e ele ri de leve, suspirando frustrado.
— Já estou indo... — Cantarola, sem olhá-la. — Vou te ver mais tarde? — Assinto rapidamente e aproveita a breve distração da mãe para me roubar um beijo estalado.
Quando sai, me sinto meio boba por parte de mim não querer que ele vá embora, mas me sinto sufocada pelo assunto que vim tratar e não aceito passar nem mais um segundo segurando essas informações para mim mesma.
— Tia... — A chamo cautelosa, eu querer contar a ela não significa que eu saiba exatamente como. — Preciso da sua ajuda.
— Está com problemas, ? O que houve? — O modo mãe de Simone entra em alerta e ela chega a arregalar um pouco os olhos em preocupação.
— Bem, não sei ainda dizer o quanto eu estou encrencada. Mas não estou preocupada comigo. — Simone franze a testa e eu temo que ela interprete tudo errado. — Certo, eu preciso que me dê um conselho para que eu possa ajudar alguém importante para mim. Mas não posso te pedir um conselho sem antes explicar a situação. Para explicar a situação, eu devo te pedir que não conte ao nada do que ouvir. Só que te pedir isso parece absurdo porque não quero interferir na relação entre vocês dessa maneira. E...
— Meu Deus, do céu, ! Desembucha de uma vez! — Ela suspira e eu mordo o lábio inferior ainda escolhendo as palavras.
— O Arnaldo, marido da tia Vanessa, é um monstro. Todos nós temos medo dele e graças a alguém muito empenhado e corajoso, talvez nós tenhamos a oportunidade de fazer com que ele seja investigado, talvez até preso. E eu sei o quanto isso irá afetar a tia Vanessa. — Simone deixa a coluna mais ereta, ouvindo com atenção. — Ela vive uma vida miserável ao lado dele, mas por alguma razão, ela nunca vai deixá-lo por conta própria. Eu não conheço ninguém que foi forte o suficiente para sair de uma relação dolorosa assim. Ninguém além de você.
— E você. — Ela sorri, me pegando de surpresa. Eu sorrio também, a afirmação automática vinda de dentro de mim é tão natural e avassaladora que quase me faz desviar do assunto por um instante para me sentir orgulhosa. — Sabe, ... Esse buraco é mais embaixo, o que acha de fazermos um bolinho para adoçar a vida enquanto temos uma conversa mais detalhada sobre o assunto? — Tia Simone sacode as sobrancelhas e mesmo abalada, eu concordo.
Lavamos a louça do almoço, fazemos um bolo de limão molhadinho com uma leve camada de chocolate branco. Cortamos tudo em quadrados e acompanhados de um café fresquinho, colocamos tudo na mesa de centro.
Eu conto tudo a ela. Sobre o dia a dia com a tia Vanessa, sobre minha amizade com Lucca. Conto sobre as investidas de Arnaldo e sobre os vídeos. É difícil descrever algo assim para alguém de fora, mas ao mesmo tempo, parece sensato fazer isso. Dividir essa experiência com alguém responsável não me faz sentir exatamente leve, mas é importante que as pessoas comecem a saber.
Enquanto divido minhas dores com a tia Simone, começo a perceber que me refiro às outras pessoas que foram vítimas de Arnaldo de uma forma extremamente cuidadosa. Evitando expor demais os detalhes mais íntimos da possível experiência mais negativa que essas pessoas já passaram. Enquanto falo, penso nelas com tanto carinho. São pessoas que amo, que vejo todos os dias pelos corredores do hotel. Alguns deles eu não conheço, mas até com eles sinto essa espécie de conexão forte e intransponível. Algo aconteceu conosco. Eu reconheço o privilégio que tive em alguns aspectos dessa experiência, não consigo imaginar o que sentiu a camareira imigrante que foi forçada a fazer coisas indescritíveis enquanto sua expressão de horror era gravada e imortalizada na coleção sádica de um homem muito ruim. Mas sei, sem sombra de dúvidas, que o desejo profundo de que Arnaldo pague pelo que fez une nossas mentes e almas. E eu não posso descansar até que a justiça seja feita.
Tia Simone ouve tudo com uma expressão preocupada, enojada nas partes em que não nos resta nada mais a sentir. Após considerar tudo o que eu digo, ela suspira pesado, entre um gole de café e uma mordida de bolo.
— Concordo sobre não contar nada disso ao . Eu criei meu filho para ser bom, justo e honesto. Ele é tudo isso, e ao contrário do que aquele ânimo todo e sorriso frouxo possam sugerir, o não é exatamente uma pessoa paciente. Não vamos contar a ele, pelo menos não até termos resolvido tudo. — Ela diz “nós” e eu me emociono, porque é claro que ela não iria me deixar sozinha nessa. — Escuta, . Se você tiver a chance de colocar esse canalha atrás das grades, faça isso. Pela sua tia, principalmente. — Simone diz séria, mas algo em sua voz é cheio de esperança e foi exatamente isso que vim buscar. Confesso que achei que não fosse suportar por muito mais tempo sozinha. — A Vanessa vai ficar bem. Não vai ser fácil, às vezes, é necessária uma vila inteira para ajudar alguém a sair de uma situação assim. E desde que ela queira, é exatamente isso que ela terá: uma vila inteira de amigos e boas pessoas dispostas a ajudá-la a dar esse salto. Ela só precisa dar os passos se distanciando, não para desistir, mas para pegar impulso. — Simone sorri com a própria sabedoria. Ela inclina o corpo e estica o braço, pegando minha mão com a sua e me olhando fundo nos olhos. A tia Simone não precisa dizer, eu sei que ela sente muito. Eu também sinto.
— Eu direi isso a ela. — Me sinto um pouco mais aliviada por garantir ajuda para tia Vanessa. Imagino como seria vê-la voltando às suas origens aqui em Guarulhos. Talvez ainda dê tempo de ela encontrar seu caminho e realizar seu sonho.
— Não, não diga nada. Eu quero mostrar a ela. Me passe aquela agenda! — Ela se senta mais confortável, colocando os pés para cima do sofá e eu faço o que ela me pediu. Simone disca os números no telefone fixo e eu tomo um momento para ver uma boa amiga em ação.
Com o coração apertado, lembro de minha própria melhor-melhor amiga e não aguento a ideia de assar um bolo sem dividir com ela.
— Tia... — Simone vira os olhos em minha direção, diminuo o tom de voz. — Posso levar alguns desses pedaços para a Tati e os pais dela?
— Claro! Esse bolo está bom demais para não ser compartilhado. — Ela pisca um dos olhos e eu sorrio. Vou até a cozinha e pego um dos potes. Voltando até a sala, pego uns pedaços de bolo para levar comigo até a casa da Tati. Sinto saudades dela e com a correria do dia a dia, não temos nos falado tanto quanto eu gostaria.
Na saída, a tia Simone abafa o telefone com a mão.
— Ei! — Eu me viro, assustada. — Trate de trazer o meu pote de volta. — A ameaça fica implícita em seu olhar e eu assinto devagar, deixando claro que captei a mensagem.

Andar pelo bairro durante a tarde é nostálgico. Me lembro de passar pelos mesmos lugares em fases diferentes da vida e com a pouca mudança na vista através dos anos, vejo os mesmos detalhes com os mesmos olhos infantis. As pichações descascadas nos muros das empresas, cujos donos ainda se dão ao trabalho de pendurar uma placa pedindo para não o fazerem. Os comércios milenares que dão a cara para o bairro trabalhador, que vive em função das empresas ao redor. As casas recém pintadas por causa do fim do ano, o cheiro de fritura das lanchonetes que vendem salgados duvidosamente deliciosos à R$1, cada. Tudo está igual, mas ainda é como se faltasse um pedaço gigante.
Aperto a campainha da casa de Tati e aguardo ser atendida. Nós nos falamos sempre por telefone, mas ultimamente, as ligações ficaram cada vez mais curtas e nós duas, cada vez mais ocupadas com os cursos e os trajetos até lá. Para a Tati, estudar na capital é ainda mais puxado. Ela leva cerca de uma hora e meia para chegar no campus. Troca de transporte público umas três vezes e ainda deve considerar o usual trânsito na Dutra toda manhã até chegar no metrô e lutar por um espaço no vagão, onde será amassada pelos outros estudantes e trabalhadores sempre atrasados.
— Oi, ! — A tia Regina é quem sai na janela. — Está aberto, entra. — Empurro o portão destrancado e o encosto depois de entrar. Subo as escadas pulando um ou dois degraus e abro a porta da casa.
— Oi, tia! — Digo alegre, olhando em volta. — A Tati não está?
— Nem me faça começar a falar sobre a Tatiane! — Ela rola os olhos e suspira pesado.
— Bom, eu trouxe bolo de limão. — Levanto o pote e ela bate as mãos uma na outra.
— Adoro seu bolo! — Diz animada, correndo até a cozinha para agarrar um garfo pequeno.
— Eu sei, tia. Mas não posso levar o crédito por este aqui, foi a tia Simone quem o fez. Aliás, ela me ensinou tudo o que eu sei sobre assar bolos. — Esclareço como uma orgulhosa pupila. Vejo a tia Regina se lambuzar com um dos pedaços e aguardo ansiosa até que ela diga o que está havendo com a Tati.
— E aí, está gostando da vida nova? — Ela pergunta alegre e eu meneio com a cabeça.
— Ainda me adaptando. — É, pelos últimos meses. Ficando cada vez mais difícil.
— Já se acostumou com os figurões de Brasília? — Seus olhos brilham em curiosidade e eu não quero estragar a visão que ela tem das coisas contando a verdade horrenda.
— Acho que nunca vou me acostumar com essa gente. — Dou de ombros e ela nota minha falta de entusiasmo.
— Eu marquei um encontro com a sua tia há algumas semanas, mas acabei não conseguindo ir. Eu sei que ela é uma mulher ocupada e provavelmente desmarcou vários compromissos para me ver. — Ela solta o garfo sobre a mesinha de centro. — Tive de ir com a Tati para o hospital.
— O que houve? — Pergunto alarmada, Tati tem uma saúde de ferro. Em anos de amizade, não me lembro de vê-la sofrer por uma gripe que seja.
— Aparentemente, crise de ansiedade. Parece que ela não está gostando do curso e com a pressão do pai... — A frase morre, mas eu sei bem o final dela. O pai da Tati é aquele tipo bacana na frente dos amigos, mas rígido quando não tem ninguém por perto. Ele quer a sorte de ter as três filhas formadas em medicina. As gêmeas seguiram seu rumo, uma delas é uma futura pediatra e a outra, segue se especializando para ser uma cirurgiã cardíaca. Então, toda a expectativa ficou sobre a Tati.
— Ela não me contou nada... — digo um pouco decepcionada por ter sido deixada de fora, mas me preocupo mais com a Tati.
— Pois é, eu imaginei... Ela tem faltado às aulas e andando para cima e para baixo com um tal de Felipe. Filho do açougueiro ou do padeiro... Sei lá. — Ela abana a mão no ar e eu rio.
— Do jornaleiro. — Corrijo, sem jeito. — O Felipe é um bom menino, sempre gostou de estudar. Se tem alguém que pode ajudá-la nesse momento de crise acadêmica, é ele. — Tento lhe dar algum conforto, mas a tia Regina dá de ombros, um pouco desacreditada.
— Espero que sim. — Ela diz distraída com a cobertura de outro pedaço de bolo. — E você? Soube que está namorando à distância, como funciona isso? — Ela pergunta de braços cruzados, tentando aliviar a tensão da conversa.
— Ah... — Rio sem jeito, minhas bochechas esquentam. — É legal.
— E vocês já...? — Ela me olha intensamente e eu me engasgo com saliva.
— Não! Não, não.... Devido ao meu... Histórico de namoro, e eu estamos indo devagar. — Acho apropriado explicar a ela as condições de meu namoro, na tentativa de abafar o assunto. Ela suspira aliviada.
— De qualquer jeito, quando estiver pronta... — Ela se levanta e enfia a mão na bolsa. — Tenha sempre uma dessas com você. — A tia Regina vira uma mão cheia de camisinhas na mesa, diante de mim. — Uma mulher prevenida vale por duas. — Ela pisca um dos olhos de novo, me deixando um pouco enjoada.
— Obrigada? — Eu pego uma, para não fazer desfeita.
— Pega mais! Camisinha nunca é demais, querida. — A naturalidade com a qual ela espera que eu faça sexo seguro me deixa encabulada. Minha mãe e eu nunca tivemos a oportunidade de ter uma conversa franca sobre sexo, tudo o que eu sei é graças à Tati e à internet. E alguns relatos muito intensos que a tia Vanessa deixa escapar quando começa a falar com sua taça sobre seus desejos carnais.
— Sobre a Tati... — Eu digo, tentando mudar o foco da conversa. — Vou conversar com ela, descobrir se podemos ajudar. — Digo firme, ela assente sorrindo. — E sobre a tia Vanessa, ela não está chateada por você ter desmarcado. Pelo contrário, ela ficaria feliz em remarcar. Tenho certeza. Ela fala com muito carinho dos antigos amigos, sei que você é uma amiga especial para ela. A tia Simone ficou falando com ela ao telefone, talvez elas tenham marcado algo e talvez você possa ir também. — Ela se ilumina com a ideia e eu me levanto, orgulhosa por fazer essa ponte entre antigas amigas.
— Obrigada, . — Ela se levanta também, me abraçando pelos ombros. — Faça mais visitas, você sabe que é da família.
— Eu sei, tia. Obrigada por isso. — Digo alegre, sentindo a vibração do amor daquela família. — É... não quero ser chata, mas a tia Simone pediu o pote de volta — digo sem jeito, tendo os cabelos ajeitados por ela.
— De jeito nenhum! Esse pote não sai daqui vazio. Da próxima vez que eu fizer uma receita gostosa, eu levo para ela pessoalmente. — Decido não insistir, certamente a tia Simone vai gostar de ideia também.
Me despeço da tia Regina no portão. O sol começa a se pôr no horizonte e o céu fica naquele tom melancólico de azul antes de escurecer. Tomo o caminho mais longo, na esperança de encontrar pedalando de volta para casa.
Sem perceber, caminho sobre a calçada diante de minha antiga casa. Como um imã, meus olhos são puxados para a fachada vazia, descascada e sem vida da casa que costumava ser barulhenta pelas brigas, pelas risadas ou pela música constantes.
Olhando o externo tão destruído da casa, me pergunto qual seria o estado da mulher solitária que vive lá dentro.
No começo, passou a me dar boletins de como ela estava de forma muito sutil e não solicitada. Mas ele sabe que me importo com ela, que quero que ela encontre paz e uma forma de viver a vida que não seja tão amarga. Através desses boletins, descobri que ela voltou a trabalhar. Que vai ao supermercado e que compra toneladas de remédios para alergia. não soube explicar por que, mas eu sei. Ela usa os efeitos antialérgicos do remédio para dormir desde que me entendo por gente. Minha mãe não costuma acreditar muito em ciência ou em médicos no geral, mas seu antialérgico antes de dormir é sagrado, até sem que ela esteja sofrendo de insônia ou, de fato, uma alergia.
Não consigo deixar de lado uma sensação que se emaranha com as restantes. Algo como esperar por uma notícia muito ruim, como se me preparasse para o inevitável.
É angustiante saber com tanta certeza que não há o que ser feito para remediar essa situação. É desanimador esperar que o outro seja o responsável pela mudança, mas não me resta escolha.
A parte que mais machuca é estar certa sobre o motivo mesquinho pelo qual ela me odeia. Passei a vida abrindo feridas para provar a ela que ele não amava nenhum de nós. Talvez não amasse nem a si mesmo. E tudo foi em vão. Desperdiçamos o tempo precioso que tivemos com o único homem que valera a pena em nossas vidas o obrigando a apartar discussões feias sobre os mais banais motivos.
Pedro merecia mais. Todos nós merecíamos, na verdade.
Eu queria tê-la convencido de que o que ficou para trás poderia ser suficiente. Queria que ela entendesse que ela podia ter seguido em frente e que nós dois, como seus filhos, estaríamos ao seu lado a cada passo em qualquer caminho que ela decidisse pôr os pés.
Encaro a casa com uma sensação esquisita no peito. A luz da sala se acende e o sobressalto me faz cair para fora da calçada. Pode ser coisa da minha cabeça, mas sinto uma energia pulsante me dizer que não sou bem-vinda ali.
Não há bolo de limão molhadinho com cobertura de chocolate branco que adoce o gosto amargo de me sentir assim em minha própria casa.
Paro de encarar a casa e com dificuldade, vou me distanciando dela. Sentindo as amarras emocionais puxarem meu coração conforme a casa fica para trás e eu sigo em frente. É como ser dilacerada por dentro de novo e de novo.
A cidade vai se preparando para a noite, cumprimento um ou outro conhecido que me reconhece de cabelo cacheado, provavelmente por me conhecerem desde pequena. As luzes dos postes se acendem uma a uma, as crianças voltam da escola e os adolescentes enrolam o seu caminho para a aula, infestando as esquinas em volta do colégio. Ouço música, risadas, uma zoeira aqui e ali. E é na rua, praticamente invisível e em silêncio no meio da multidão barulhenta é que me sinto verdadeiramente em casa.
Parece até que nunca saí daqui.
Caminho pelo bairro para matar o tempo e aproveito para procurar Tati pelas ruas. O silêncio repleto de sons urbanos e cheios de vida me fazem parar para apreciar. Me sento numa calçada em rampa, na parte mais alta. Estico as pernas e encosto a cabeça no muro atrás de mim.
Tem uma certa nostalgia em ficar sem fazer nada na calçada em um fim de tarde quente. Observo o movimento na rua se intensificar ainda mais conforme o horário de dispensa das empresas começam também. Cumprimento os que acenam de longe, amigos da família ou família de amigos. Eu sinto muita falta da sensação de comunidade que sentia antes, quando fazia parte de algo maior e bom. Quando a vida era boa e eu nem sabia.
A esperança de poder voltar a viver aqui me anima, mas também desbloqueia novas questões como: onde, quando e será que o bairro é grande o suficiente para suportar as desavenças da tia Vanessa, minha mãe e eu morando aqui também?
Ao virar a esquina da rua sem saída em que mora, eu quase sorrio ao ouvir sua risada gostosa. Quase, porque vejo parado sobre sua bicicleta, um pé apoiado no chão, a cabeça baixa e o rosto iluminado por uma luz azulada oriunda de algum dispositivo em que ele aperta freneticamente os botões. Ariane está debruçada no guidão da bike e ela olha para ele de um jeito que eu não gosto nem um pouco.
— Ei... — Me aproximo cautelosa. Pareço estar interrompendo alguma coisa e me sinto um pouco aleatória na cena toda.
— Oi, linda! — para tudo o que está fazendo e beija minha bochecha demoradamente. — Chegou em boa hora, a Ari tem um convite para nós — diz animado, mas Ariane levanta uma sobrancelha quando ele diz “nós”.
— É aniversário da Leah no mês que vem. Pensamos em juntar o grupo como nos velhos tempos. — Ela dá de ombros. — Então, ... Vai aparecer? — Ela destaca o nome dele, deixando claro que o convite não se divide em dois.
— E então, vamos? — se vira para mim, o braço em volta de minha cintura os olhos cansados, mas espertos estudando os meus.
— Não sei... Preciso ver minha agenda — digo baixo, querendo que só ele ouça.
— Agenda? — Ariane ri com escárnio.
— A é super ocupada e organizada, quero ser como ela quando eu crescer. — fica fofo se gabando assim de mim, me pergunto se ele faz o mesmo quando não estou por perto e me sinto especial.
— Claro... — Ariane diz com ironia. — Nesse caso, o me avisa. Nós nos vemos o tempo todo por aqui. — Ela sorri e fala estudando minha reação. Eu só espero não estar fazendo a expressão de pulverizar sua cabeça telepaticamente.
— Eu te aviso, então. — diz, tentando adiantar a conversa para o fim.
— Vou esperar ansiosa. — Ela junta os braços, estufando o peito. — Obrigada pela ajuda com o presente do Jonas, você é demais! — Ariane dá um beijo estalado na bochecha de , o puxando pela gola da camiseta do uniforme. Não posso deixar de notar que ao puxá-lo para si, Ariane está o afastando de mim e eu não gosto muito do que isso simboliza dentro da minha cabeça.
— Espero que ele goste dos jogos. — começa a perceber o clima ficando estranho, porque Ariane me encara risonha e eu devolvo o olhar em uma página um pouco diferente.
— Até mais, ... — diz a garota, com desdém.
— Até, Ari. — O sarcasmo fala mais alto e me encara assustado, enquanto Ariane se afasta e eu ainda a encaro bastante irritada.
— O que foi isso? — pergunta, eu o encaro incrédula.
— Do que está falando? — Minha irritação o acerta e ele se inclina um pouco para trás, o cenho franzido.
— Você foi um pouco grossa com a Ari, linda... Ela estava nos chamando para uma festa e...
— Eu estou aqui, no meio da semana e tenho que ficar parada enquanto você defende outra garota? — Cruzo os braços na frente do corpo e me afasto dele.
— Ei, ei! Espera um pouco. Eu não estou defendendo ninguém. — Ele ri, defendendo a si mesmo.
— Está sim. — Insisto. — Até parece que você não sabe que ela é afim de você, talvez até antes de eu perceber que era afim de você! — Não sei direito se me arrependo de ter colocado luz sobre esse assunto. O fato é que ela está aqui, é linda e excelente dançarina. Eles meio que têm uma química. Dizer isso para ele agora talvez tenha sido um tiro no pé.
ri. Não de forma comedida e educada, ele gargalha de faltar o fôlego. Eu giro em meus calcanhares e continuo andando, em direção à sua casa.
ainda ri quando me fecha com a bicicleta, pedalando em círculos em volta de mim.
— O que foi? Cansou de rir de mim? — Ele balança a cabeça de um lado para o outro.
— Não me entenda mal, mas acho que você está com ciúmes de mim. Eu preciso aproveitar esse momento — diz divertido e eu não acredito no que estou ouvindo.
— Isso não é motivo para se vangloriar. Não gosto de sentir como me sinto agora. — Fico girando no lugar, encarando sua expressão tão tranquila e zombeteira.
— É claro que vou me vangloriar disso, para sempre! — Eu paro de girar, respirando fundo. termina de dar em volta em mim e para de pedalar na minha frente. — Como eu posso dizer isso de forma eficaz sem que te apavore? — Ele encosta o indicador nos lábios, olhando para além do que pode ver. — Já sei! — Arrasta os pés no chão, trazendo a bike para mais perto. Guardo as mãos nos bolsos, assistindo apoiar os cotovelos no guidão da bicicleta, me encarando mais de perto. Engulo em seco quando ele umedece os lábios. — É como se eu tivesse um grau de miopia muito grave, sou quase cego. Vejo todo mundo embaçado, sem nitidez, sem cor, sem contraste. E então, eu vejo você. E é como se criassem óculos perfeitamente adequados para meu grau severo de miopia, eu te vejo nitidamente. Por sua causa eu enxergo cores e há contraste e beleza. Quero guardar cada detalhe de cada contorno seu para quando eu estiver míope de novo, porque, é claro, é uma tecnologia muito avançada e cara. Só pode ser emprestada por alguns tortuosos minutos. Só quando você está presente. — Ele mantém o olhar sereno e o sorriso brincalhão que me desarma.
— Droga, ! — Um grunhido frustrado por não conseguir ficar contrariada com ele por muito tempo o faz voltar a rir. — Nessa história o quase cego é você. As outras garotas ainda podem te ver. A Ari pode te ver. — Uso sua belíssima analogia contra ele e me sinto ridícula assim que o faço.
volta a rir de um jeito escandaloso de novo e agora menos irritada e olhando mais de perto, vejo o quão inconcebível é para ele a ideia de que eu esteja mesmo com ciúmes.
— Certo, vem cá. — Ele levanta o corpo do banco da bicicleta. Me puxa para mais perto, me mantendo firme pela cintura. — Eu odeio me comparar, mas acho que nesse caso é preciso. Eu não sou o Guilherme, não pretendo me envolver em nenhuma encrenca com você e nem tem a ver com promessa nenhuma. Estou aqui, . Quero estar aqui. — Ele me encara até que eu sorria e quando eu o faço, ele me beija.
— Você é insuportavelmente incrível. Aposto que deve ter um caminho de calcinhas por onde você passa — digo pensativa e ergue as sobrancelhas interessado.
— Sério? — Bato em seu ombro com um tapa e ele ri.
— Para com isso... Estou falando sério. — Volto a abraçá-lo e apoia a testa na minha.
— A Ariane é minha amiga, . Só isso. Eu encontrei com ela algumas vezes, mas só porque eu dei alguns jogos antigos para o irmão dela e ele não sabia como jogar. — beija a ponta de meu nariz e eu me contento com o que ele diz, afinal, sua palavra é só o que eu tenho.
— É claro que você seria o cara que ajuda menininhos a terem uma infância divertida. — Digo contrariada e ele ri baixinho.
— Dorme aqui hoje? — Ele faz um carinho gostoso em minha cintura, eu concordo sem nem pensar.
— Espera, e a sua mãe? — Pergunto preocupada.
— Ela vai dormir aqui também. Só que no quarto dela, eu espero. — Ele dá de ombros e eu rio.
— Está impossível conversar sério com você hoje. — Ele assente, parecendo um menino traquina. — Preciso ligar para a tia Vanessa, ver o que ela acha. — Ele assente devagar.
— Enquanto você resolve isso, eu vou tomar um banho e tirar essa camada de graxa do corpo. Quem sabe alguma calcinha não cai no chão? — Ele umedece os lábios com a ponta da língua e por um instante, fico hipnotizada com o gesto pecaminoso. Mas sou acordada rapidamente com as chaves dele voando em minha direção. Abro o portão e guarda a bike em seu devido lugar. cumprimenta a mãe com um beijo na testa e vai tomar banho.
Eu espero a tia Vanessa me atender.
A tia Vanessa concorda rapidamente com a ideia e cai na gargalhada quando eu digo à contragosto que tenho camisinhas o suficiente para uma vida inteira no bolso de trás da calça, graças à tia Regina. Ela reforça alguns conselhos que já me deu antes e a naturalidade com a qual ela lida com o fato de eu estar prestes a transar me deixa nervosa.
— Lembre-se dos seus limites. Se não gostar de algo, diga a ele na hora. — diz a mulher cautelosa e eu concordo com um som de fundo de garganta. — Boa noite, meu amor. Me liga amanhã para me contar como foi. — Estou prestes a concordar de novo e minha consciência me para antes que eu o faça.
— Até amanhã, tia. Boa noite — digo rindo sem jeito e ela desliga a ligação. já saiu do banho e está se trocando no quarto.
É a primeira vez que durmo aqui como namorada dele e não quero que a tia Simone me veja como alguém que não respeita a casa dela.
— Tia? — Bato tímida na porta do quarto dela. O cheiro do creme que ela espalha no corpo é intoxicante, mas gostoso, tem cheiro de amêndoas. Ela levanta os olhos e sorri ao me ver parada diante da porta. — O me pediu para dormir aqui, mas não quero fazer isso se você não concordar. — Ela faz um gesto, me chamando para mais perto. Ricardo chegou do trabalho e está na sala, assistindo TV. Mas corre o boato de que ele tem ouvidos de tuberculoso e escuta qualquer sussurro.
— Eu sei que vocês não são mais crianças. Por mais que eu não queira ficar pensando muito nisso, meu filho é um rapaz muito ajuizado e eu confio nele com todo o meu coração. Confio em você também, para ser esperta e se cuidar como deve ser feito. Se precisar de algo ou tiver alguma dúvida, estarei bem aqui. — Ela sorri e eu assinto devagar, um pouco constrangida por ter pessoas pensando em minha vida sexual espalhadas por toda São Paulo. — Quer tomar um banho? Pega uma toalha... — Ela separa uma toalha e uma camisola que não usava há anos por ficar pequena em seu corpo. Entro no banheiro e enquanto sinto a água quente bater em minha pele, decido não usar uma camisola da mãe do meu namorado para dormir com ele pela primeira vez. Não sei o que vai acontecer, mas de qualquer forma, parece inapropriado vestir algo dela agora.
Envio uma mensagem para e peço por uma camiseta emprestada, que chega rapidamente com uma batida na porta. Me visto, passo o desodorante que encontro no fundo da mochila e encaro meu reflexo no espelho embaçado. A frase batida da tia Regina ressoa no fundo de minha mente, pego a calça e busco no bolso de trás pelas camisinhas. Destaco duas e deixo as outras junto com o desodorante no aconchego do fundo da mochila. Devolvo as duas para o bolso da calça, dobrando a mesma com o bolso virado para cima para fácil acesso, caso necessário.
Quando entro no quarto de , ele está deitado de barriga para cima, distraído com alguma revista especializada em bicicletas. Sem camisa. O jeito como ele se deita faz com que o short fique um tanto repuxado para baixo, deixando à mostra um pouco mais de pele do que estou acostumada a ver. Longe de ser uma reclamação, pois, a vista é deliciosa.
é alto, forte. Proporcionalmente abençoado com músculos presentes, mas nem um pouco agressivos aos olhos. As sobrancelhas bem desenhadas se mexem conforme os olhos correm a página da revista com certa avidez.
— Obrigada pela camiseta. — Digo sem jeito, puxando um pouco o tecido para baixo.
— Elas sempre ficam melhor em você. — Ele me olha por cima da revista e sorri pequeno, encarando minhas pernas descobertas. — Vem cá? — Levanta o cobertor e eu me jogo em sua cama, sendo abraçada e envolvida pelo cobertor ao mesmo tempo. — Está com frio? — Ele pergunta baixinho, a voz sensual me deixando cada vez com menos vontade de pensar e com mais vontade de agir.
— Não exatamente — digo me aconchegando nele, tentando ler algo na página da revista. Mas se livra dela, dando total atenção a mim.
— Você é linda, sabia disso? — Ergo uma sobrancelha, estudando bem seu olhar sobre mim.
— Eu esqueço... — Ele balança a cabeça, se aproximando para um beijo pelo qual estou aguardando o dia inteiro.
Tanta proximidade e curiosidade de ambas as partes fazem com que o beijo se intensifique de um jeito que nem eu, nem esperávamos. A coisa toda evolui rápido e só quando precisamos de ar, é que reparamos que estamos embaralhados um no outro.
— Ahm... Sobre... Sobre o que estava lendo? — Pergunto enquanto ajeito a camiseta para baixo, se ajeita melhor na cama, tirando parte do peso dele sobre mim.
— Quando? — pergunta atordoado. É quase cômica a forma como ele encara as constantes quebras de climas que acontecem conosco. Parece que existe um limite que nós vamos esticando a cada vez que nos vemos.
— Agora há pouco. — Puxo a revista de debaixo de seu travesseiro. se confunde um pouco mais, tamanho é o esforço para sair da atmosfera quente e cheia de desejo que somente um beijo lhe causou.
— Ah, sim — diz ele, ainda um tanto distraído. — Estou fazendo uma pesquisa. Quero convencer o Beto a ampliar a loja. Estou pensando além de consertos em aros e encher pneus. Imagino que a loja tenha potencial para ser um centro de customização de bikes na cidade, só preciso achar a forma de convencê-lo a me deixar ter mais autonomia. — Ele meneia a cabeça, um tanto incerto. Gosto de ver como ele é apaixonado pelos projetos e estou decidida a ajudá-lo como puder.
— O Beto é um homem simples, mas talvez simplicidade demais possa interferir no sucesso da loja. Quer dizer, ele tem aquela pequena oficina desde sempre e nunca mudou muito. Talvez com um pouquinho de insistência, você consiga mudar a cabeça dele. Quem sabe ele já não tenha pensado em algum tipo de mudança, mas faltou incentivo? — Comento distraída com as imagens de bicicletas tunadas na revista que folheia sem atenção.
— Estou contando com isso. — deixa a revista de lado de novo. Ele se deita ao meu lado e fica me olhando de um jeito engraçado.
— O que foi? — Pergunto baixinho, quase em um sussurro.
— Ainda não acredito que você é minha namorada. — Ele confessa no mesmo tom de voz. As bochechas protuberantes por causa de um sorriso lindo ficam ligeiramente rosadas, mas ele me encara com uma coragem enorme.
— Ainda não acredito que sou sua namorada. — Ele ri mais grave e me puxa pela cintura, só um pouquinho. Só porque pode me tocar assim.
Se eu pudesse definir em somente uma palavra toda essa relação com , eu teria de usar a palavra cumplicidade. Ela abrange bem a necessidade mútua de estarmos sempre apoiando um ao outro. Em pequenas e grandes coisas. Um acordo silencioso de que não há a menor pretensão de que esse laço seja quebrado, muito pelo contrário, ele só se estreita e se fortalece.
— Obrigado por ter ficado aqui comigo hoje. — Ele volta a dizer. — Acho que fiquei meio louco de saudade nessa viagem. — Eu gosto do som que a risada dele faz. Tomando o quarto todo. Ele está envergonhado por admitir e eu sinto que deveria recompensá-lo após um dia inteiro de palavras bonitas.
— Não quero ficar sem você. Nunca. — Eu digo achando que as palavras significam algo mais passageiro, como dar um jeito de viajar com ele em uma próxima vez. Mas quando as palavras saem pela minha boca, o peso delas me deixa mais leve. É uma verdade gigante, imensa, atômica. Eu não quero nunca ficar sem ele. Até se as coisas vierem a dar errado.
respira fundo, reflete bem em minhas palavras e reconhece o peso delas para mim. Ele sorri pequeno, lidando com a responsabilidade e beija minha testa de forma casta, calma.
— Estou aqui. — Ele repete o que disse mais cedo. Sem tanta graça, sem tanta pompa por estar convencido com meus ciúmes. Ele diz de verdade.
Adormeço com a mais tranquila das consciências. O sentimento de trabalho cumprido me faz sentir ótima e os braços de um homem completamente apaixonado por mim me esquentam naquela noite fria de abril.

Me sento no fundo do ônibus e xingo baixo ao passar em frente a banca de jornal na avenida principal. Me distraí com uma crise de nostalgia e outra de ciúmes, acabando por esquecer de encontrar a Tati e descobrir o que está havendo.
Me sinto uma péssima amiga e envio uma mensagem para ela, propondo um encontro no sábado, certamente não se importará de ceder algumas horas para minha melhor-melhor amiga já que tivemos esta pequena escapada no meio da semana.
É cedo e eu não espero que ela responda imediatamente. Coloco os fones de ouvido e ouço qualquer coisa que estava tocando antes em minha lista de reprodução, não quero prestar atenção na música, mas também não quero ouvir as conversas aparentemente íntimas que acontecem à minha volta. Duas moças discutem sobre o último encontro de uma delas com um verdadeiro galã às avessas. O jeito extra honesto — e até um pouco grosseiro — com que a amiga número 1 diz para a número 2 seguir em frente e esquecer o bendito me faz pensar em Lucca e em como sinto a falta dele.
Desde que o dossiê sumiu ele se fechou em seu quarto e não saiu nem para tomar sol na piscina. Tentei ir até lá algumas vezes nos últimos dias, mas a mãe dele mente muito bem, mantendo a expressão neutra quando diz que ele não está em casa quando consigo ouvir Back Street Boys vindo da direção do quarto dele.
Com tanta coisa na cabeça, decido não ir para a faculdade hoje. Preciso resolver a situação do dossiê e já que não posso contar com a ajuda de Lucca, terei de agir sozinha. Continuo acreditando que os documentos estão mais próximos do que imagino e me recuso a deixar que as coisas permaneçam como estão.
No elevador, não consigo esquivar da sensação latente de que Rafael tenha algo a ver com o roubo do dossiê. Faz todo o sentido. Ele tem acesso ao quarto do Lucca, provavelmente sabia no que ele estava se metendo. Uma parte de mim quer acreditar que o que quer que Lucca e Rafael tenham, desde um tédio gêmeo para ficarem juntos de vez em quando ou um sentimento real, de qualquer forma, estou convencida de que Rafael pegou o dossiê para proteger o Lucca. Não quero acreditar que Rafael seria capaz de esconder provas que incriminam Arnaldo. Não depois do que eu li na transcrição de Lucca sobre os crimes audiovisuais.

Quando chego no apartamento, entro em modo de alerta. A insegurança e o incômodo que se apossam de mim quando passo pela porta me faz sentir os pelos da nuca arrepiados. Como se um fantasma invisível respirasse no meu pescoço o tempo inteiro enquanto estou no apartamento. Qualquer som, por mínimo que seja, chama a minha atenção. E este é plastificado, como se alguém abrisse um embrulho.
— Você dormiu fora? — Inspiro assustada e congelo meus movimentos. Rafael está sentado na mesa de jantar. Sozinho. Ele dá uma colherada no pote do iogurte, me olhando desconfiado.
— Sim. E você parece não ter dormido em lugar algum. — Tento quebrar o gelo e Rafael rola os olhos cercados por olheiras profundas e impaciência, mas já me acostumei com a segunda.
— Desde quando se preocupa com meu bem-estar? — Ele se desfaz do iogurte pela metade, deixando o pote sobre a mesa de vidro.
— Não é exatamente preocupação. — Rafael ri com escárnio. — Estava só puxando assunto. O que quero saber mesmo é se tem falado com o Lucca. — Ele para de rir, fica desconfortável quando ouve o nome de meu amigo e eu sei que o atingi em algum lugar.
— Não. Mas passei a última noite tentando. — Ele suspira derrotado. Fico confusa, porque esperava que ele demorasse um pouco mais para ceder.
— Ele não quer falar com você? — Tomo a liberdade de ir até ele. Rafael se levanta e com muito cavalheirismo, puxa uma cadeira para mim e em seguida, volta a se sentar.
Nós nos sentamos e ele volta a comer o iogurte. Tudo parece acontecer ao mesmo tempo em que ele trava uma batalha consigo mesmo sobre confiar em mim ou não. Os olhos desconfiados mudam de intensidade conforme ele desiste de resistir e suspira cansado.
— Ele não quer me ver, nem atender minhas ligações. Estou começando a ficar preocupado. — Rafael está odiando isso, eu percebo. Mas ele me olha esperançoso, como se quisesse que eu soubesse de algo que pudesse lhe confortar.
— Aparentemente, ele não quer falar com ninguém agora — digo com pesar. Rafael bufa frustrado, soltando o corpo na cadeira. Toda essa vulnerabilidade não parece encenada. Se ele roubou o dossiê, pode ser que esteja arrependido por causa da reação do Lucca. — Como vocês... Como se conheceram?
— O Lucca é uma força da natureza. Não tem como não o notar. — Ele se perde em pensamentos, um sorriso doce escapa no meio da costumeira carranca de Rafael. — Parece que é rito de passagem beijar o Lucca assim que você se muda para este prédio. — Me surpreendo ao ouvir sua risada. — Sim, eu sei. Mas não me preocupo. Você não faz o tipo do Lucca. — Ele me encara com uma sobrancelha erguida e eu rio também.
— Ele já me disse isso umas duas ou dez vezes. — Adiciono e Rafael se ilumina em um sorriso convencido. Ele gosta mesmo do Lucca.
— Você sabe que o seu pai o machucou no passado, não sabe? — Digo cautelosa, Rafael é como um pássaro e se eu me mover muito bruscamente, ele voa para longe.
— Foi culpa minha. O Lucca precisou de mim e eu tive muito medo para dizer alguma coisa. — É uma memória dolorosa para Rafael. Ele desvia os olhos e encara o céu cinzento lá fora.
— Ele ainda precisa de você. Se você devolver o dossiê e nos ajudar a prendê-lo, pode se sentir livre para ser e estar com quem quiser. — Eu me empolgo. Meu lado romântico incorrigível não aguenta ver um amor cercado de injusta que se anima completamente. Rafael franze a testa em confusão.
— Dossiê? O que o Lucca está fazendo? — Ele parece preocupado e eu sinto como se minha cabeça fosse explodir.
— Não foi você quem roubou o computador e o dossiê do quarto do Lucca? — Pergunto incrédula e ele ri, ainda sem entender nada.
— Que computador?
— Ai, meu Deus! — Cubro o rosto com as mãos. Um riso nervoso, quase desesperado escapa de meu peito. — Eu roubei o computador do Arnaldo e levei para o Lucca copiar todos os arquivos. Nós queríamos provas suficientes para prender o Arnaldo. Se não foi você quem roubou... — digo desesperançosa. Rafael digere as informações com uma expressão que seria engraçada se eu não estivesse apavorada de tão perdida.
— Vocês ficaram loucos? Por que o Lucca não pediu minha ajuda? — Rafael parece irritado e surpreso. Eu não sei dizer quanto de cada, mas sua expressão não me deixa tranquila. Não sei se eu deveria ter dito tudo a ele. Mas algo em sua reação me faz acreditar que Lucca subestimou a lealdade de Rafael.
— Você precisa me ajudar a encontrar esse dossiê. — Rafael se levanta e tenta sair da sala, mas eu vou até ele e o pego pelo braço. — Rafael, por favor. O Lucca pode estar em perigo, todos nós, na verdade. — Olho fundo em seus olhos. Eu não assisti, mas Rafael também aparece em um dos vídeos. — Você sabe dos vídeos, não sabe? — Ele nega com a cabeça e parece enojado só com a ideia. — Seu pai é um monstro, Rafael. Você precisa nos ajudar. — Insisto e solto seu braço, lhe mostrando que a decisão é toda dele.
— Ele não é meu pai, . Eu sou só o espólio de uma aposta perdida. Assim como você e a Vanessa. — Ele dá de ombros, os olhos estão vermelhos e resistentes às lágrimas que se acumulam ao redor deles.
— Ótimo. Isso significa que você não deve nada a ele e que deve nos ajudar a encontrar justiça. — Engulo em seco, assustada com o tamanho da minha sede por vingança e com a praticidade com que a ideia se acomoda em minha cabeça.
— Não fale mais comigo sobre esse assunto. — Rafael diz sério, voltando a se portar como o assistente fiel do monstruoso político.
— Mas...
— Chega, . Isso é perigoso demais — diz o rapaz aflito. — Está na hora de começar a cuidar da sua própria vida. Esqueça isso. — Ele apoia a mão em meu ombro, fazendo alguma pressão sobre a cicatriz. Enquanto eu o ouço dizer algo que me parece inimaginável de ser feito, eu vejo seus olhos discordando veemente de suas próprias palavras. As mensagens confusas me deixam um tanto atônita e Rafael parece satisfeito por me confundir.
Ao sair do apartamento, Rafael estava trêmulo e pálido como se tivesse visto o maldito fantasma do apartamento.

Sozinha na sala grande demais, me sinto pequena e a chama de esperança fica um pouco mais branda dentro de mim. Eu a sinto sumir.
— Não acredito que perdi um dia de aula para voltar à estaca zero. — Chuto o sofá com certa petulância e mostro o dedo do meio para uma foto de Arnaldo que me encara da mesa de apoio.

Depois do almoço, fico animada com a resposta de Tati em formato de ligação. Aperto o botão verde no teclado do celular já sorrindo.
— Que história é essa que você veio aqui em casa e não falou comigo? — Ela me cumprimenta bastante brava e eu não consigo não rir. Sua voz pelo telefone soa adoravelmente infantil e eu sinto a falta dela o suficiente para não me ofender com a grosseria.
— Ninguém mandou ficar de namorinho com o Felipe... — Devolvo no mesmo tom e um silêncio se faz presente na ligação.
— Certo, certo... Primeiro, não estamos namorando. Estamos só... Estudando a anatomia um do outro. Entusiasticamente. — Ela explica com naturalidade. Puxo a cadeira para me sentar, pois, não acredito no que estou ouvindo.
— Não acredito no que estou ouvindo! — Digo perplexa e Tati ri maliciosa.
— Quem diria que o Felipe fosse tão... Apetitoso. — Ela completa orgulhosa.
— Meu Deus... Que... Bom? Foi bom? Você está bem? — Pergunto preocupada. Acho que peguei uma certa aversão à primeiras vezes.
— Tem sido legal, até... — A falta de entusiasmo dela me contando aquilo me deixa um pouco apreensiva. A Tati que conheço estaria pulando de alegria e contando detalhes sórdidos. Essa Tati não parece estar muito interessada em dividir os detalhes sórdidos comigo.
— Ele tem sido respeitoso? — Insisto, mudando o tom chocado na voz, talvez tenha sido isso que a desmotivou. Tati se tornou um mulherão, era uma questão de tempo até que ela estivesse pronta o suficiente para dar esse próximo passo na maturidade. Ela é inteligente e responsável. Não há mesmo com o que se chocar.
— Surpreendentemente o Felipe é tudo, menos respeitoso. E eu adoro. — Ouço sua voz divertida, mas não fico aliviada o suficiente.
— Eu sabia que você iria gostar de uma coisa mais selvagem! — Ela gargalha e eu rio mais de leve.
— E você? Digo... Como estão as coisas com o ? — Ela pergunta, parecendo um pouco distraída.
— Bem — digo rápido, sem conseguir evitar um sorriso ao pensar nele. — Estamos indo devagar, você sabe.
— O é mesmo bonzinho, não é?! Dois meses e nada... Impressionante. — Tati diz descrente.
— O que quer dizer com isso? — Rio sem jeito, não gosto de como a voz dela soa.
— O é gato, meio sonso. Acha que ele é fiel a esse negócio de namoro à distância? — Não respondo. Estou chocada demais para falar. Mas Tati continua. — Sabe, não digo para te deixar insegura nem nada. É só que eu não confiaria tanto que ele não está dando um jeito de se aliviar enquanto você o faz esperar.
Não consigo não pensar em como Ariane se debruçou sobre ele, toda interessante e disponível, morando no mesmo bairro que ele.
Tati me faz pensar se foi a melhor ideia trazer para um relacionamento onde metade dele está se recuperando de muitos traumas.
Eu sei que faria qualquer coisa por ele. Até me afastar, se fosse preciso.
— O é um cara legal, Tati. Sei que ele não me magoaria. — A conversa me desestabiliza tanto que minha voz falha, parecendo que não acredito tanto assim em minhas palavras.
— Só estou sendo realista. Sexo é uma necessidade fisiológica, ficamos loucos sem isso. — Não sei quanto do que Tati diz é sobre mim e . Começo a me preocupar com toda essa amargura e ceticismo dela.
— Realista ou maldosa? Não sei se é uma interferência na ligação, mas está difícil distinguir — digo divertida, tentando amenizar um pouco o quanto estou ofendida por tudo isso. — O que está havendo, Tati?
— Como assim? — Ela não se abala. Está fria e distante de novo.
— Olha, eu sei que a faculdade é difícil. O meu curso é técnico e passa longe da tarefa miraculosa de salvar vidas, mas está me sobrecarregando e embaralhando minha cabeça também. Não consigo imaginar o que é ter uma carreira toda planejada e um relógio correndo em contagem regressiva te pressionando o tempo inteiro. Eu entendo que está sendo difícil. Mas você não pode se fechar dessa forma. — Ouço Tati suspirando desinteressada e o desrespeito dela me magoa profundamente. Nossa relação sempre foi extremamente honesta e sem rodeios para a verdade. Me preocupa muito que ela esteja optando por me afastar agora. — É só... Você tem a oportunidade de fazer algo incrível e tem a inteligência para isso. É horrível te ver agindo assim com a sua mãe, a afastando. Ela está preocupada. — Tento me distanciar do problema. Se não é importante para ela o que eu penso, pelo menos, posso tentar recorrer à pessoa que Tati mais admira: a tia Regina.
— Não, . Minha mãe está preocupada com a distorção da vidinha perfeita dela. Se eu estivesse infeliz e indo às aulas, agindo como se estivesse tudo bem ninguém estaria se descabelando. — Ela diz cética e eu não sei mais como ajudá-la.
— Tem algum outro curso que queira fazer? — Insisto, a risada dela me faz sentir ridícula por tentar. Começo a achar que talvez seja melhor deixar que ela descubra seu caminho sozinha. Ajudar somente quando solicitada.
— Pela primeira vez estou fazendo o que realmente quero fazer, . Absolutamente nada. — Ela parece confortável e eu ouço uma risada masculina ao fundo.
— Parece que está bastante ocupada com isso. — Música começa a tocar e eu nem sei mais se Tati está me ouvindo.
— Estou. — Ela diz um tanto abafado, distraída com alguma coisa que a faz rir.
— Vou estar na cidade no sábado. Vamos nos encontrar? — Sei que ela quer encerrar a ligação e dar continuidade ao que está fazendo — ou deixando de fazer —, mas eu insisto uma última vez.
— Pode ser um encontro duplo? Sempre quis ter um encontro duplo. — Um pedacinho da Tati com a qual estou acostumada me faz sorrir e eu confirmo. Nada como um encontro duplo para espantar pensamentos e problemas complicados demais.

Na sexta à noite, estou tão cansada que mal consigo manter os olhos abertos. Tenho que finalizar um trabalho de composição e preciso passar as partituras para uma folha limpa. Um acidente com café na minha mochila me fez passar a tarde inteira resgatando metade de um caderno arruinado pela cafeína.
Aproveito a revisão do trabalho para lapidar um pouquinho mais, pois, perfeição nunca é demais. Me lembro de uma fala solta em algum documentário que assisti sobre sons inaudíveis nas faixas que acabam fazendo todo sentido para quem sabe o que está procurando quando ouve uma canção. Pequenos fragmentos de genialidade espalhados em regiões que antes ficariam vazias sem aquele toque de piano ou uma gravação malfeita de um microfone caindo no chão. Detalhes invisíveis para os desavisados, mas que me deixou obcecada por encontrar qualquer possibilidade de replicar a premissa em minhas produções embaralhadas no computador.
Mesmo sonolenta, pego o violão sobre a cama e harmonizo o acorde que escrevi para a tarefa com um murmúrio baixinho. Me baseio na voz de Tauany para gravarmos algo no futuro e seu tom é mais baixo que o meu, me fazendo ter dificuldades com a transição de regiões. Eu sei como devo soar, mas minha voz é mais aguda, mais alta. Mezzosoprano, como o professor Alexandre diria. Mas ainda não consigo encontrar uma passagem para usar o Contralto em minha técnica vocal. Mas também como o professor Alexandre diria, eu estou tentando aprender tudo muito antes do tempo.
— Que lindo. Você que escreveu? — Percebo a tia Vanessa parada na porta com um sorriso satisfeito no rosto e uma xícara de chá na mão.
— Sim, estou finalizando um trabalho para a faculdade. — Deixo o violão de lado e ela caminha até mim. Parece interessada e eu fico um pouco sem jeito com a forma como ela me olha.
— Uma melodia muito agradável. Que bom que está se empenhando na escola. — Ela beija minha têmpora.
— Está tudo bem? Não te vi direito essa semana. — Peço intrigada. Ela sorri.
— Sim. Nunca estive melhor — diz misteriosa.
— O que houve?
— Uma mulher não pode ficar feliz sem ser questionada? — Ela apoia a mão livre na cintura, uma sobrancelha erguida, mas um sorriso insistente repuxa os lábios pintados de vermelho.
— Não está mais aqui quem perguntou. — Levanto os braços em desistência. Ela ri mais forte e se senta ao meu lado, na cama.
— E como você está? — Ela faz carinho em meus cabelos, que estão escovados para o encontro duplo de amanhã.
— Não sei muito bem. Ainda estou com a sensação de não poder planejar muito adiante. Sempre esperando que algo ruim aconteça. — Dou de ombros, não é como se coisas ruins tivessem parado de acontecer. — Quer dizer, a Tati está esquisita e o Lucca não fala mais comigo. Então... — Paro de falar quando percebo o quanto a tia Vanessa fica incomodada ao ouvir o nome do Lucca. Quanta polêmica envolta a esse nome eu ainda não sei?
— Quem sabe ele não mudou de ideia. Tenta falar com ele de novo. — Ela diz, forçando uma naturalidade muito esquisita.
— Tia... — Penso em dizer a ela. Contar tudo o que sei sobre seu marido e lhe dizer que alguém em algum lugar tem provas o suficiente para prendê-lo pelo resto da vida. Parte de mim quer que ela se proteja de alguma forma, se prepare para encarar o que vier a seguir. Descobrir esse tipo de coisa sobre alguém que se ama deve destruir o cerne de qualquer pessoa e eu me preocupo com o que acontecerá com alguém tão frágil e dependente desse amor unilateral como ela.
— Tenta falar com ele. — Ela repete se levantando rapidamente. O chá na xícara transborda e cai sobre sua mão. — Deixa eu limpar isso. — Ela sai apressada de meu quarto, me impedindo de continuar falando. Encaro o corredor vazio por algum tempo, me convencendo de que esse jeito escorregadio de tia Vanessa é só mais uma forma de ela se mostrar desconfortável com a vida em si. Mas aquela parte insistente e cheia de esperança começa a duvidar de qualquer um.
Por que eu não posso confiar em ninguém?

Passo boa parte da noite enviando mensagens para Lucca. Agindo estranho ou não, a tia Vanessa tem razão e eu não devo desistir dele ainda.
Conto a ele como foram os últimos dias sem ele. Tudo o que aconteceu de igual e de diferente na semana. Tento descrever o tamanho do choque que me deixou atordoada metade daquele domingo ao ver Arnaldo com o famigerado computador. Conto sobre ter encontrado um violão no brechó que quase não me custou nada. Elaboro os detalhes nesta parte porque espero que se o conteúdo não o enfureça o suficiente para me responder dizendo o quanto odeia que eu gaste dinheiro com o que ele chama de “lojas de mentira”, pelo menos, ele me diga para parar de enviar mensagens. Neste ponto, estou desesperada por sua atenção minimamente. Só preciso saber como ele está.
Não obtendo nenhuma resposta com a história do brechó, decido apelar para o lado promíscuo de Lucca. Conto a ele sobre a terça-feira abençoada pelo abdômen esculpido por anjos do professor Alexandre que apareceu por acidente quando ele mexia no projetor. Conto a ele que quase morri evitando rir de Tauany, que quase desmaiou quando eu mostrei discretamente a cena a ela.
Divido com ele o que Tati disse sobre eu estar fazendo esperar. Acho que de um jeito muito deturpado do destino, Lucca talvez seja a única pessoa que possa compreender por que não me sinto pronta. Talvez até mais do que eu mesma, porque a vontade existe. Eu só não consigo associar meu corpo ao contexto sexual sem desassociar de tudo o que houve. De todas as mãos, olhos, lábios indesejados e sem amor sobre mim.
Conto a ele sobre meu eminente encontro duplo e pondero sobre experimentarmos algo assim juntos. Eu, , Rafa e Lucca. Deixo claro em, pelo menos, três mensagens o quanto estou certa sobre os sentimentos do carrancudo por ele. E me arrisco sugerir que Lucca deixe que ele explique sua versão daquela noite, uma vez que acredito em sua palavra sobre não ter ideia da existência do dossiê contra Arnaldo.
Por fim, estou frustrada e me sentindo inútil para meus amigos. Decido jogar sujo e digo a Lucca que tenho um palpite sobre quem pode ter surrupiado o dossiê. Mas o chantageio a vir buscar a informação pessoalmente amanhã à noite, quando voltar do encontro duplo.

É tarde quando paro de me comunicar unilateralmente com meu amigo. É quase como escrever em um diário, estamos sempre falando com alguém que nunca responde à nossas questões mais profundas. Vejo quantas mensagens enviei e me sinto meio patética por tentar chamar atenção dele dessa forma. Mas não tive escolha, sua mãe não me deixa passar da porta e ele nunca sai do apartamento.
Tento descansar pelo resto da noite. Estou exausta e mesmo que minha mente trabalhe, meu corpo se desliga e só quando é dia há algum tempo, eu acordo.
Estou sozinha no apartamento.
Ainda não me sinto completamente à vontade aqui, mas me familiarizei com algumas partes específicas do lugar. Como a cozinha, a sacada e a sala de TV.
Está sol, mas não tão calor. Então, eu ligo a TV, pego um pedaço generoso de melancia e vou comer na sacada. Fico um tanto desanimada com a interrupção dos desenhos para os apresentadores atenderem ligações de crianças espalhadas pelo país inteiro. As dinâmicas dependem somente de sorte ou escolher a cor cuja mecânica por trás de qual seja o objeto que se mova mais rápido ou afunde ou exploda esteja programado para vencer. A constante decepção com os prêmios da famigerada roleta são secretamente minha parte favorita da dinâmica. É claro que as crianças querem o console do momento, mas ganhar um jogo chato de tabuleiro em rede nacional ao vivo é tão frustrante quanto se decepcionar em privado. Tão secreto quanto o deleite pelo vencedor não estar satisfeito com seu prêmio; é a tentativa em ligar e ouvir a mensagem gravada dizendo que não deu certo dessa vez.
Após um banho de água gelada para me ajudar a despertar, visto um vestido preto, justo e longo. Complemento com uma jaqueta jeans de lavagem clara e tênis brancos. Mesmo que não esteja tão calor, usar o cabelo solto e a jaqueta parece um pouco demais. Então, prendo os cabelos para o alto, na tentativa de manter minhas cicatrizes escondidas. Não conheço Felipe tão bem assim e não quero que todo assunto que conversarmos seja sobre o acidente. É o que acontece quando conheço gente nova vestindo coisas que não cobrem as cicatrizes.
É quase meio-dia quando saio de casa. Escuto uma artista britânica com um timbre mais parecido com o que quero chegar e adoro a melancolia das letras dela. Tenho ouvido o álbum “Back To Black” de Amy Winehouse há algumas semanas e me identifico de alguma forma com sua dor. Suas canções são sobre amor e a vida de alguém muito perturbado pela própria existência, basicamente. Um amor doloroso e fascinante. Como se cada faixa fizesse parte de uma história, contando como tudo aconteceu por trás de um jogo de palavras genial. Ela me fez ver o jazz de outra forma e agora tenho estado nesse estado rítmico. É incrível como me sinto frustrada por cantar alto demais. Fico deslumbrada com seus graves e com tanto sentimento pode ser transmitido nessa região.
Ouço o álbum inteiro duas vezes e exatamente quando a versão demo de “Love Is a Losing Game” termina, eu chego no ponto em que devo descer.

tem um problema para resolver na bicicletaria e me enviou uma mensagem dizendo que iria se atrasar para me encontrar no meio do caminho. Ele sempre insiste em me encontrar na estação de trem do Tatuapé, que marca o meio do caminho entre nós. Respondi a mensagem dizendo que ele não precisava se preocupar, que ele poderia me encontrar na casa da Tati e de lá, decidiremos o que fazer.
Desço do ônibus e caminho até a rua onde morava. Me sinto estranha, como se estivesse sendo observada e não gosto nada da sensação. Tiro os fones e olho em volta, mas todos que estão próximos de mim parecem ocupados com suas próprias vidas, imersos em seus próprios problemas. Ninguém nem olha para mim.
Me aproximo da casa de Tati e não acredito no que meus olhos estão vendo. Tati beija Felipe de forma bastante reveladora. E por reveladora, quero dizer que consigo ver as línguas dos dois travando uma batalha árdua por espaço na boca um do outro. Sei que é grosseiro da minha parte, mas não consigo não encarar os dois enganchados no muro da frente da casa dela com muita estranheza.
Chamo atenção dos dois com um pigarro e Tati se demora a encerrar o beijo. Felipe abre os olhos e me vê ali parada. Eu ainda encaro e vejo quando suas bochechas atingem um tom de vermelho, o que é irônico, já que eles estavam fazendo tudo aquilo em público.
— Oi, gente. — Não me importo em filtrar o tom malicioso. Tati rola os olhos e o empurra, vindo me abraçar.
— E aí, piranha. — Ela diz divertida e eu cerro os olhos, estranhando o cumprimento.
— Oi... Tati — digo confusa.
— E então, seu namorado não vem? — Ela pergunta displicente.
Estou prestes a responder quando vejo pedalando no fim da rua. Eu sorrio sem jeito e ela ergue uma sobrancelha, mas acaba sorrindo também.
— O que vão querer fazer? — Felipe pergunta, após limpar a garganta se fazendo ser notado. Tati dá de ombros.
— O que vocês quiserem — digo tentando ser simpática e ele meneia com a cabeça. O clima não parece muito amigável e parece que está levando uma eternidade para chegar aqui.

— E aí, Felipe. — o cumprimenta primeiro com um toque de mãos. Ele acena para Tati e freia a bicicleta na minha frente. — Oi, linda. — Tento não parecer derretida toda vez que ele me chama assim, mas vê-lo é como beber água com a boca seca. Vou até ele e mato minha sede de seu abraço e aspiro seu perfume como se não tivesse mais ar no mundo.
— Como você está? Deu tudo certo na loja? — O pego pelo rosto, me afastando o suficiente para olhá-lo nos olhos. Ele assente devagar e beija meus lábios rapidamente.
— E você, está bem? — Ele pergunta e estou prestes a responder quando Tati grunhe entediada.
— Nós vamos sair ou o quê? — Pergunta impaciente. Mordo o interior da boca e troco um olhar confuso com . Apesar de incomodada com o comportamento de Tati, estou feliz por vê-la. Estou feliz por estar aqui.
— O que acham de ir lá para casa? Não tem ninguém lá... — Felipe sugere, trocando um sorriso malicioso com Tati.
Assisto Felipe ajudar Tati a se levantar da calçada e eles começam a caminhar de mãos dadas.
— Você está maravilhosa com esse vestido. Mas não está com calor? — pergunta. Não posso ignorar seu olhar demorado na curva de meu quadril, a mordida leve no lábio inferior. O sorriso safado de dentes perfeitos que me deixa maluca.
— Não... Não esse tipo de calor — digo distraída em pensamentos nada ortodoxos e ri nasalado. — Me ignora. Você está lindo também. — O abraço pelos ombros, buscando seus lábios mais uma vez.
— Acha que está bonita demais para subir na bike? — Ele pergunta divertido.
— Nunca. — pega minha mochila assim que eu a tiro dos ombros. Ele apoia uma das alças em um dos ombros e me dá espaço para me sentar no quadro da bicicleta, como nos velhos tempos.

Felipe é um ano e meio mais velho que Tati e eu, assim como . Desconfio até que eles tenham estudado juntos há alguns anos. Os dois se conhecem, mas não têm muito em comum e isso fica claro quando eles se sentam lado a lado no sofá, mas olham para lados opostos da sala.
— Que tédio! Vou buscar uns cobertores. — Tati diz maliciosa e olha sugestivamente para Felipe que cora imediatamente.
— A que filme vamos assistir? — pergunta, um pouco constrangido também.
— Resident Evil. — Felipe se anima e assente devagar, sem muita empolgação. — É o melhor filme de zumbi de todos os tempos.
— Eu prefiro os jogos. — comenta casual e eu gosto de observá-lo interagir com outras pessoas. Sempre tão educado, mas opinativo e corajoso.
— Não diga isso! — Tati fala alto, os braços abarrotados de cobertores finos que não me dão a menor vontade de ficar embaixo.
— Por quê? — Pergunto, me envolvendo na conversa também.
Felipe está de pé de frente à TV, ele troca os cabos do aparelho DVD para o videogame e Tati bate a mão na própria testa.
— Só meia hora, prometo. — Felipe manda um beijo no ar para Tati, que fica toda corada.
olha para mim como se pedisse permissão, mas eu acabo pegando o controle que Felipe oferece para ele.
— Eu sinto que terei uma morte rápida nesse jogo. — Me sento ao seu lado e se empolga.
Enquanto jogo o tutorial, Felipe se senta no outro sofá e Tati desdobra o cobertor fino e vermelho em cima deles. Evito ficar olhando para as formas abstratas marcando o cobertor e concentro minha atenção na mão forte de sobre minha coxa. Pousada ali, com uma propriedade sutil, mas marcante.
Fico encarando a mão dele ali e como se quisesse se apossar da imagem que vejo nitidamente, a lembrança do restaurante escuro fica invadindo minha cabeça. A mão de Arnaldo me faz sentir enojada e eu preciso respirar fundo para me manter na realidade.
mexe seus dedos devagar, como se tamborilasse uma melodia e seu toque parece funcionar. O carinho, a preocupação, o sentimento de alguém que se importa comigo e que nunca me machucaria de propósito. Tudo isso é diferente de ser tocada por alguém que visa somente o próprio prazer no medo dos outros.
Eu preciso ressignificar o toque na coxa. Preciso fazer com que passe de uma invasão para algo parecido com um refúgio, cheio de calmaria.
— Cuidado, amor! — aperta minha coxa, me alertando para o zumbi que se aproxima em sua lentidão pós morte. Ele diz baixinho, divertido e empolgado. Distraído com a cena do zumbi mordendo o braço do meu personagem.
E é isso. Com sua sutileza impecável, muda completamente minha perspectiva, me dando uma sensação melhor para pesar na balança quando as coisas ficarem confusas em minha cabeça.
E eu preciso me lembrar de dizer a ele o quanto adoro sua mão na minha coxa.
Após me desvencilhar do zumbi e atirar em sua testa com a última munição disponível, entrego o controle a . Ele sorri, arranjando um jeito de manter minha mão perto da dele enquanto ele mostra como jogar aquilo. Basicamente, você deve correr e procurar por coisas no cenário.
Enquanto ele joga, tento a todo custo ignorar os sons que Tati e Felipe fazem. É um pouco constrangedor saber que eles nem estão em um relacionamento e não conseguem se desgrudar, até quando acompanhados. E eu aqui, celebrando uma mão na coxa após dois meses de namoro. Então, eu deito minha cabeça no ombro de e ele imediatamente beija minha testa, me fazendo rir. Acho que nosso relacionamento é diferente, no final das contas. Existe paixão e curiosidade, mas também muito respeito e cuidado. Como uma vela resistente, que cria um pequeno ponto iluminando no canto em um quarto muito escuro.
— Ah, não. Não! — solta uma gargalhada gostosa, soltando o controle no sofá. — Morri. — Ele procura por Felipe, percebendo só então que o rapaz não estava exatamente ansioso pela sua vez no videogame.
— Eu sei... — digo constrangida quando me olha em busca de respostas. Ele ri baixinho.
— Boa, Felipe! — Ele brinca, sem vergonha de falar um pouco mais alto.
O rapaz põe a cabeça para fora do cobertor e está completamente descabelado. Nós rimos de sua expressão embriagada.
— Eu passo minha vez. — Felipe diz comedido.
— Eu também! — Tati diz com a voz abafada pelo tecido do cobertor e segura uma risada.
— Ok... — Me inclino sobre e pego o controle. Nos afastamos um pouco do outro sofá, proporcionando alguma privacidade para o casal não—casal.
? — chama após algumas rodadas matando zumbis com poucas balas no pente da arma. — Quer... Ir tomar um ar? — Ele olha de mim para o monte enganchado no outro sofá.
— Absolutamente. — Me levanto antes dele, fazendo questão de abrir a porta fazendo bastante barulho.
encosta a porta e respira fundo, o céu ainda está claro e ele dá uma boa olhada na vista mais alta da sacada do sobrado da família do Felipe. As ruas sinuosas e casas coloridas, empilhadas umas sobre as outras marcam o horizonte. Os olhos de se perdem na vista da favela e o sorriso orgulhoso e satisfeito dele me fazem sentir em casa.
— Tem certeza de que não está com calor? — Ele pergunta se aproximando um tanto hesitante. As pontas de seus dedos me tocam a barriga e logo se acomodam em minha cintura.
— Não é tão ruim. — Admito o fazendo rir. — Só achei que seria um pouco constrangedor deixar à mostra. Queria evitar perguntas. — ergue as sobrancelhas, compreendendo minha situação e sabendo exatamente a que me refiro.
— Não é como se ele estivesse interessado em alguma coisa diferente do fundo da garganta da Tati... — Ele comenta divertido e eu considero tomar um pouco de sol nos braços e no colo. Faz tempo demais. — Eles ficam bonitinhos juntos.
— Não sei, não... A Tati está esquisita com tudo isso.
— Com o quê? — Pergunta paciente.
— Com nada. Deixa para lá. — O abraço pela cintura também, apoiando a cabeça em seu peito. Gostaria de poder dizer a ele que acho que alguma coisa além da pressão do pai e da faculdade está acontecendo com a Tati e ela está descontando isso em sexo desenfreado com Felipe. Mas eu não faria isso, é um assunto pessoal demais. Por mais que eu queira sua opinião sobre isso, ainda acho melhor buscar respostas direto da fonte.
Me preocupa porque Tati é brilhante e parece que ela desistiu do direito de resolver seu problema e está se entregando ao acaso, esperando que algo externo aconteça e mude tudo. Eu não sei o que poderia sair disso que melhoraria a situação nem um pouco.
— Você tentou falar com ela? — pede, apoiando o queixo sobre minha cabeça.
— Não o suficiente. — Confesso e ele ri de leve.
— Se te preocupa tanto, tente mais. Eu posso deixar o Felipe ocupado enquanto isso. — Sugere divertido e eu me afasto para encará-lo nos olhos.
— Ah, é? Como? — Aperto os olhos, desconfiada.
— Eu vi um jogo de futebol lá dentro. Acontece que eu e o Felipe temos uma rixa antiga e imagino que ele não vá resistir a uma revanche. — Não consigo não rir de seu ar misterioso.
— Quem ganhou a última partida? — Pergunto curiosa, fazendo um carinho em seus cabelos.
— Me ofende que você faça essa pergunta. — me olha de um jeito engraçado e eu concordo.
— Está bem, então. O desafie. — Ele assente devagar.
— Não antes disso. — me puxa pelo pescoço, me beijando tão lentamente que sinto as pernas ficarem moles. Ele me sustenta pela base da coluna, a mão que pousa em meu pescoço percorre lentamente o caminho até minha clavícula, onde ele começa a empurrar a jaqueta, descobrindo meu ombro.
Eu deixo que ele tire a jaqueta. Deixo porque seu toque em minha pele é bom demais para recusar, também porque nem percebo seus atos até que ele transfira os beijos de meus lábios para meu pescoço e no ombro esquerdo. A cicatriz agora está mais resistente e a sensibilidade na pele que foi aberta na tentativa de sucesso para salvarem meu braço, agora é até menos estranha. Gemo involuntariamente quando ele aperta minha cintura, aspirando meu perfume. fecha os olhos por um instante, parece ter pensamentos sérios demais destoando o momento em sua cabeça. Ele me afasta gentilmente e volta a me olhar um pouco culpado.
— Desculpa. Me empolguei de novo. — Ele sorri triste, encarando as mãos paradas em minha cintura. Ele respira fundo e remove as mãos dali.
— Não... Não me pede desculpas. Está tudo bem. — Eu tento voltar à mesma posição de antes, tento abraçá-lo de novo. Mas não me abraça de volta e eu me sinto invadir seu espaço.
— Então... — limpa a garganta com um pigarro, bagunça os cabelos. Está desconfortável e eu acabo ficando também. — Como estão as coisas na faculdade?
— Melhorando. Eu decorei o caminho de um banheiro limpo e sabe aquele cara das camisetas engraçadas? — Ele assente. — Desistiu.
— Você conseguiu perguntar onde ele consegue aquelas camisetas? — Ele pergunta esperançoso.
— Me desculpe! É que ele não aparece há semanas, não tive a chance de perguntar. — Me sinto culpada e volta a colocar os braços em volta de mim.
— Tudo bem... Acho que vou ter que fazer minhas próprias camisetas. — Ele diz convicto.
— E você sabe como?
— Sim. Posso te ensinar se estiver disposta a aprender sobre a arte da serigrafia.
— Quantas horas tem o seu dia? — Pergunto quase indignada com quantas coisas ele sabe fazer e ri mais forte, me beijando como resposta.
— Foge comigo? — Ele pede, a voz embaralhada em meus cabelos. Eu entendo errado e me afasto o encarando suspeita.
— Como é que é? — Um riso malicioso se entranha em minha fala e percebe que eu não compreendi exatamente o que ele quis dizer, a confusão fica clara em sua mente, deixando sua expressão bastante maliciosa e deliciosa de se olhar.
— Digo, depois de falar com a Tati. Se não for nada muito sério, podemos ficar sozinhos um pouco? — Ele corrige, umedecendo os lábios com a ponta da língua.
— Você pode me lembrar de que ela é minha melhor-melhor amiga e eu devo fazer isso por ela e não fugir com você agora? — Digo devagar e ele estreita as sobrancelhas.
— “Melhor-melhor amiga”? — Ele pergunta, confuso.
— É. Alguém por quem você iria até o fim do mundo. Mas na ausência de algo desastroso o suficiente para te fazer ir tão longe, você ama essa pessoa como se ela fosse parte de você e quer só o bem dela. — Explico paciente e mantém um sorrisinho nos lábios. Um sorriso daqueles que te faz sentir instantaneamente fofa.
— Acho que entendo.
— Você era o melhor-melhor amigo do Pedro — digo convicta e ele sorri mais abertamente.
— Espero que sim. Ele continua sendo o meu. — Ele diz um pouco triste.
— Ei. Achei que eu fosse sua melhor-melhor amiga — digo tentando mascarar a saudade e a raiva que sinto toda vez que me lembro que Pedro morreu.
— Você não pode. Não posso contar para você algumas coisas que penso e sinto. Só o Pedro pode saber. — Ele diz um pouco envergonhado e eu fico curiosa.
— Você... Tipo... Fala com ele? — Pergunto muito baixo, temo que ele não tenha me ouvido. Não quero soar julgadora, mas acho que a pergunta sai um pouco mais magoada do que eu pretendia. Não que eu ache que obtenha respostas, mas só ter a ideia de tentar desabafar assim me parece inconcebível. Pedro não pode nos ouvir. Ele morreu.
— Não... Não exatamente. É como... Não sei explicar. Acho que pode ser loucura, porque se ele tivesse a chance de voltar de alguma forma e ficar perto de alguém, esse alguém seria você. Mas é como se eu sentisse a presença dele. Na bicicletaria ou quando tenho alguma coisa me incomodando no peito. Eu ouço seus conselhos, reflito sobre as próprias perguntas que ele tinha sobre a vida e é como se ele estivesse aqui. Sempre respondendo uma pergunta com outra ainda mais complexa e terminando por conceber que, às vezes, algumas coisas na vida precisam ser um mistério. — diz tudo com muito cuidado e mais ainda atenção em minha reação.
— Eu nunca consegui sentir a presença dele em lugar algum — digo com um pouco mais de mágoa do que esperava. — Assim como não me sinto em casa em lugar algum. Talvez, exceto quando estou com você. Mas a sensação de que às vezes tudo está bem, pode ser traiçoeira. É como naquele dia em que pegamos Pedro e Leah no sofá. Fico na espera de ele aparecer a qualquer momento e dizer qualquer coisa como o lançamento de algum rap ou bagunçar meu cabelo sem motivo algum. — Suspiro cansada e fecho os olhos, tentando fugir das lágrimas, mas, encontro estampado em minhas pálpebras o sorriso quase premonitório no rosto de meu irmão. A última imagem que tenho dele com vida.
fica me olhando cheio de pena e eu detesto despertar isso nele ou em qualquer pessoa, na verdade. Olhares assim me fazem sentir pequena. Não só figurativamente, mas quando era criança e percebia que todos em volta desaprovavam o jeito como minha mãe me tratava, mas nem a revolta os fazia agir. Essa impotência me faz sentir minúscula, reduzida a nada além de alguém que sofre com as injustiças do destino. Não quero ser vista assim por . Quero que ela me veja forte e que tenha orgulho de mim.
Ele não diz nada. Talvez porque não tenha mesmo nada a ser dito. “Sinto muito” me ofende e ele sabe disso. respira fundo e aperta um pouco mais o abraço em volta de mim, me dando o único conforto que realmente preciso. Sem julgamentos, sem opiniões. Só um abraço livre e apertado, seguro.
— Ainda dói, eu sei disso. — Ele diz baixo, ainda incerto sobre continuar falando. — Não posso prometer que um dia vá parar de doer, mas garanto que em algum momento vai ficar mais fácil reconhecer essa dor. Ela faz parte de você, assim como ele também é. — beija o topo de minha testa e busca meu rosto, para obter alguma reação.
— Eu sinto como se não tivesse tido tempo de processar muito bem essa dor. As coisas foram acontecendo uma atrás da outra e eu não consegui me concentrar o suficiente para perceber pelo que estava sofrendo. — Admito um pouco a contragosto. franze a testa e parece resolver equações matemáticas na cabeça.
— Está falando da sua mãe? — Ele pergunta, muito indeciso sobre seu palpite.
— Claro. Ainda tem a minha mãe. — Encosto a cabeça em seu peito, aspirando seu perfume e tentando organizar as ideias na cabeça.
— Do que mais você estava falando? — volta a perguntar. Encaro o escuro do cinza de sua camiseta em busca de uma boa resposta que não inclua a verdade.
— Você tem razão. Tem algumas coisas que eu precisava contar para o meu irmão mais velho. — Ele assente devagar. Toda a suspeita se transforma em um silencioso acordo entre nós para que não voltemos a falar sobre o assunto que não se deve ser mencionado.
— Droga. Agora queria ser seu melhor-melhor-melhor amigo. — Ele diz em um risinho.
— Não existe melhor-melhor-melhor nada em minha vida. Por enquanto — digo desviando inevitavelmente de seus olhos para seus lábios.
— Bom saber. Estou oficialmente me candidatando para ser seu melhor-melhor-melhor namorado — diz orgulhoso e eu rio.
— Vou consultar a disponibilidade na longa lista. — Suspiro com desdém e estreita os olhos, apertando minha cintura entre as mãos.
— Estou prestes a me consolidar o melhor jogador de Fifa da história da Escola Estadual Amarildo Arantes Gonçalves Andrade. Será que isso pode dar uma ajudinha na minha inscrição? — Ele pede todo sedutor e é difícil manter a pose de indiferente.
— Vamos ver... — Dou de ombros e seu sorriso se alarga um pouco mais. beija meu pescoço, me fazendo arrepiar inteira.
— Eu vou jogar com a minha vida. Você vai ver! — Ele avisa se afastando. — Felipe! — abre a porta, engrossa a voz e fica absurdamente sério. — Larga a Tati e venha resolver um assunto antigo.
Felipe remove o cobertor sobre a cabeça lentamente. Os olhos já cerrados encaram meu namorado e é como se eles voltassem à escola de novo.
— Eu esperei por essa revanche por toda a minha vida. — Felipe diz determinado.
— Eu sempre esqueço que você é um nerd sem amigos. — Tati se revolta, se levantando desgostosa.
Felipe se levanta e ajeita o short. Eu não olhei, mas pela risada infantil de , imagino que o momento da verdade tenha sido interrompido por outra performance que Felipe estava prestes a fazer. Assisto enquanto eles discutem sobre os times e todas as minúcias das regras do jogo. É fantástico como um console pode capturar a alma de um homem momentaneamente. Tudo sobre aquele mundo coordenado por eles é tão sério e exaustivamente discutido. Chega a ser fascinante.

Me distraio um pouco da interação completamente curiosa que vejo acontecer diante de meus olhos, ignorando o entrosamento agressivo, mas, muito cúmplice que não existia há minutos antes. Outra coisa que admiro em alguns homens é sua facilidade em fazer amizades.

Um comentário de Felipe que naquele contexto competitivo soou mais como uma provocação boba, acaba sendo distorcido por minha cabeça ocupada com problemas sérios e perigo eminente. Ele diz algo como sair da prisão para se vingar e eu sinto em meu coração um medo tão sólido que tudo começa a fazer sentido como um estalo. Penso na vingança de Arnaldo.
Em nenhum cenário diante dessa situação delicada, eu pensei em como a justiça realmente funciona no país. Os porta-retratos espalhados pelo apartamento são como lembretes de como ele é influente com as pessoas certas. E talvez até tendo provas concretas de que Arnaldo não merece viver em liberdade, seja isso que acabe acontecendo e a linha de frente de sua ira sempre será a tia Vanessa.
— Quer um babador ou algo assim? — Tati diz divertida, mas para de sorrir quando me vê de olhos marejados. — O que foi? — Ela pergunta baixo, se certificando de que os rapazes continuam sem prestar atenção em mais nada além da tela pequena diante de seus olhos.
— Eu achei que nunca mais fosse sofrer tanto depois de tudo o que houve no ano passado, mas está tudo horrível! — Sussurro enquanto uma lágrima grossa escorre pelo meu rosto. Tati desmonta a pose de inabalável e aponta o caminho da cozinha com o queixo.
— O que está havendo? — Tati, minha melhor-melhor amiga me pergunta e eu simplesmente não sei mentir para ela.
Num volume de voz muito baixo, contando com a proteção e força de toda e qualquer energia regente nesse planeta e fora dele, eu conto tudo a Tati. Desde o primeiro dia no apartamento, todo o medo e insegurança que venho sentindo. Toda noite em claro com a sensação de que alguém me observa à espreita. E consequentemente, sobre o vídeo em que apareço sem saber.
— Nós estávamos tão perto de acabar com tudo isso... mas perdemos tudo. — Começo a encarar a situação de frente e não há chama de esperança que sobreviva ao balde de água fria que é a decepção que sinto.
— Mas e se a Vanessa tem o dossiê? Não acha que ela poderia ajudar? Você é sobrinha dela, , não é possível que ela vá escolher acobertar o marido nojento a proteger você. — Tati está revoltada, a situação toda lhe causa repulsa e ela não mede esforços para demonstrar isso.
— Eu não sei de mais nada. Sinto que estou perdendo tudo o que sobrou — digo melancólica, me encostando na pia. — Acho até que estou perdendo você.
— Eu continuo aqui, . Só achei que você já tivesse problemas o suficiente para lidar com os meus também e acho que estava certa. — Ela dá de ombros, rindo de leve.
— Nunca. Você é minha melhor-melhor amiga. Seus problemas são meus problemas. — Tento dizer com firmeza, mas minha voz sai embargada e ela ri um pouco mais forte.
— Eu estou perdida, . É como se eu caminhasse no percurso de outra pessoa. Sem mapa, sem bússola. Eu sei que meu pai se sacrificou muito para que eu tivesse essa oportunidade, mas eu não quero ser médica, . Como eu digo isso para ele? — Tati parece perturbada com a conversa fantasma. Eu não estou surpresa, não exatamente. Tati sempre seguiu as regras e acreditou que se seguisse os passos das irmãs, poderia encontrar um caminho próprio eventualmente. Acho que ninguém contou que antes de ser médica, Tati buscaria compreender quem ela é primeiro.
— Como você explicaria isso para si mesma? Ele é seu pai, Tati. Foi ele mesmo quem te ensinou a ser autêntica e buscar seu próprio caminho. É problema dele lidar com as expectativas que criou. — O conselho parece fluido para mim, mas não parece algo que a brilhante Tati tenha pensado antes.
— Estou com medo de decepcioná-lo. — A confissão vem de um lugar muito secreto, ela quase não fala comigo agora.
— Não vai, acredita em mim. Seria loucura ter você como filha e se decepcionar por qualquer motivo que seja. — Rio enquanto seco as lágrimas. Tati me abraça de lado.
— Sinto muito, . Você merecia uma vida melhor. — Tati diz com pesar, dividindo minha dor.
— Eu terei, um dia. — Sigo otimista e ela assente, sorrindo. — Sinto muito pela situação com seus pais. Não deve estar sendo fácil para nenhum de vocês. — Tati meneia com a cabeça.
— Nós vamos superar. — Ela diz em um meio sorriso. — Vou tentar falar com ele. Eventualmente. — Tati franze o nariz, me fazendo rir.
— Volte sempre, meu freguês! — comemora com uma gargalhada poderosa, Felipe respira fundo e o desafia novamente, tentando impedir a pequena comemoração. Nos aproximamos da porta da cozinha para vê-los na sala. Tati suspira, chamando minha atenção.
— Acho que quero namorar o Felipe — diz distraída no rapaz lidando com a derrota na sala ao lado.
— O que está rolando entre vocês? — Me viro em sua direção, Tati cora e ri de um jeito infantil.
— Estamos passando tempo juntos. Mas não é nada oficial, eu pedi para não ser. — Ela fala mais baixo. Abre a geladeira e pega uma lata de refrigerante para si. — Mas ele está sempre prestes a me dizer algo, eu sempre interrompo o coitado. — Ela relembra, rindo sozinha.
— Era só para irritar seu pai e você acabou se apaixonando? — Sugiro e ela gargalha.
— Exatamente. — Ela diz após um arroto petulante.
— Vá em frente, Tati. Ele definitivamente gosta de você. Ele cora toda vez que vocês se olham. — Cutuco suas costelas e ela ri convencida.
— Eu sei. Ele me faz sentir tipo uma deusa grega. — Ela se mexe de um jeito sensual que fica engraçado para mim. — Você deveria contar para ele.
— Para o Felipe? — Pergunto confusa e Tati rola os olhos em impaciência.
— Não, tonta. Para o . — Ela nota que disse o nome dele alto demais, voltando a sussurrar depois de perceber o par de olhos sobre nós. — Você confia nele, não é? Talvez ele possa compreender. — O que Tati diz parece fazer algum sentido, mas eu me recuso.
— Não quero que me veja como a vítima de novo, Tati. Não quero que ele tenha mais pena de mim. — Tati morde o interior da boca, pensando em uma alternativa. — Fora que, ele não poderia fazer nada. Isso só o machucaria e quanto menos gente se machucar com essa situação, melhor.
— O que vai fazer, então? — Ela volta a perguntar e eu suspiro, me sentindo perdida.
— Refazer a investigação e prender o Arnaldo sozinha? — Tati meneia com a cabeça. — Eu o odeio. Odeio tudo o que ele representa. Acho que isso está me envenenando. — Comento olhando além do que consigo ver. Fantasiando com os policiais colocando algemas nos pulsos de Arnaldo.
— Eu também. Nunca vi o sujeito, mas sei que ele é asqueroso. — Tati diz solidária. — Não acredito que ele está impedindo a sua única relação boa de evoluir. — A encaro incrédula.
— Você diz como se fosse um problema gigante em nossa relação. Mas não é. Estamos indo devagar e bem. Não é porque não transamos ainda que não estamos evoluindo — digo o óbvio e Tati assente devagar.
— Ainda acho que esse negócio de esperar não deve ser comum para o . — Ela se defende, ainda acreditando em sua própria teoria.
— E eu ainda acho que você não o conheceu o suficiente. — Suspiro pesado, não gosto de divergir com a Tati. Sobre isso então, está me incomodando muito o fato de ela achar que seja igual aos outros caras com quem me envolvi no passado.
— Só estou dizendo que vocês poderiam definir melhor os termos. Você mesma disse que precisam acalmar os ânimos, às vezes. Essa coisa toda de ser proibido só excita mais. — Tati se perde em seus próprios pensamentos.
— Eu não consigo pensar em sexo vivendo sob o mesmo teto que um monstro. Arnaldo me faz sentir suja desde o primeiro minuto, me fez enxergar meu corpo como nada além de um casco que existe só para agradar os olhos dele. — Confesso sentindo as palavras desobstruindo a garganta da minha alma.
— Já ouviu falar sobre terapia? — Tati diz pensativa.
— Sério? Não, Tati. Não tenho tempo para fazer terapia. As pessoas estão correndo perigo. — Explico um tanto chateada.
— Você não tem que salvar ninguém além de você mesma, . — Tati aconselha. Ela sabe que está sendo dura.
— Você sabe que eu nunca consegui fazer isso. — Encosto meu ombro no dela e Tati balança a cabeça, inquieta.
— Talvez seja sua forma de se ajudar, ajudando os outros primeiro. — Tati termina de beber seu refrigerante e arrota mais alto dessa vez, me fazendo rir. — Mas acho que esse altruísmo todo esconde um pedido de socorro que a maioria de nós ignora. Desculpe por isso.
— Nunca mais suma. — Peço ainda melancólica demais.
— Desculpe por isso também. — Tati apoia o braço em meu ombro e após um tempo nos recompondo, voltamos para a sala. Torcendo para os times de nossos respectivos namorados.

Mais tarde, nos despedimos de Tati e Felipe e subimos na bicicleta em um silêncio reconfortante.
carrega minha mochila e quando chegamos no ponto de ônibus, não quero me despedir dele.
— E então, conseguiu um tempinho na sua vida agitada para ir à festa da Leah comigo? — pergunta.
— Ainda não sei. Meu histórico nessas festas não é dos melhores. — Dou de ombros, mas assim que ele deixa sua bike encostada no poste, me jogo em seus braços. — Senti sua falta.
— Sentiu mesmo? — Assinto devagar, ele crispa os lábios, duvidando.
— Tentei me ocupar solucionando crimes, mas só fiquei mais frustrada. — ri, mas eu não poderia estar falando mais sério. Acabo rindo com ele também, porque não me resta muito o que fazer sobre isso.
— Você seria uma excelente super-heroína. — Ele se distrai com o próprio pensamento e eu me distraio com ele. Me perco nos cachos grossos em sua cabeça, nos olhos espertos e brilhantes de . Me perco na leveza de cada movimento dele. Observo quando ele apoia a cabeça para trás, a encostando na estrutura de metal do ponto de ônibus. Ele me olha como se devorasse meus pensamentos e o perigo que corro de ele descobrir tudo o que me aflige me faz desviar de seu olhar acolhedor.
— Enfim, se você quiser ir à festa, eu te apoio totalmente. Entendo que você sinta falta do pessoal do grupo. Mas ainda não estou pronta. — É difícil tomar uma decisão tão firme. Mas só de pensar em estar cercada pelo antigo grupo, que eu considerei minha família mesmo que por pouco tempo, me deixa agitada demais, perdida demais.
Acho que ainda não superei ter sido abandonada por eles também.
— Eu entendo. — beija minha testa e acaricia minha bochecha com seu polegar. — Vai ser uma festa chata sem você. — Ele me rouba uma risada.
— Eu sei. Você consegue passar por isso. — Apoio a mão em seu peito e ele suspira.
— Nós vamos nos ver no próximo sábado? — Ele pergunta empolgado.
— Estou contando os minutos. — sorri envergonhado e me puxa para mais um beijo.
Tenho um caminho longo até em casa, até uma certa pressa para terminar logo e estar em meu quarto em segurança, mas quando o ônibus que vai me levar para a estação de metrô chega, eu fico triste, murcha.
— Te vejo no sábado. — Ele diz mais alto, usando as mãos em volta da boca para se fazer ser ouvido já que eu já estou sentada em um dos últimos bancos do ônibus.
Minha reação tímida arranca alguns sorrisos dos outros passageiros. Sutil, como tudo o que faz, e poderoso como como tudo o que ele me causa, sinto o ônibus ser ligeira e gentilmente atacado por uma fina camada de algo intenso e refrescante. Me despedir dele por mais uma semana parece um castigo, mas não há nada igual a ter a possibilidade de vê-lo de novo.

Ajeito a mochila nos ombros e cumprimento o porteiro com um aceno de cabeça. Estou triste demais para sorrir e ele ocupado demais para ligar.
Quando salto do elevador, brinco com os chaveiros entre os dedos e os passos firmes e insistentes no corredor me deixam um pouco assustada.
, é você? — Lucca pede um tanto alarmado.
— Lucca? — Sorrio levemente aliviada por vê-lo ali.
— O que tem para me dizer? — Ele diz sisudo, inseguro. Mas algo em seu rosto se ilumina e me diz que ele também está feliz por me ver.
— Acho que sei quem roubou nossos arquivos. Mas se eu estiver errada, talvez possamos roubar o computador dele de novo e pegar tudo o que for incriminá-lo. — Me aproximo de Lucca e ele rola os olhos.
— Sua ingenuidade me deixa enjoado — diz ácido e eu quase rio. — A essa altura, quem recuperou o computador dele de nós já sabe o que nós sabemos. É possível que os arquivos nem estejam mais lá. — Me encara pensativo e eu não sei bem onde essa conversa vai dar. — Preciso falar com a sua tia. — Ele diz como se fosse sua última alternativa.
— Você também acha que foi ela? — Pergunto mais baixo, com medo de alguém ouvir nossa conversa através da parede.
— Eu sei que foi ela. — Ele responde sério, me encarando com muita certeza.
— Como?
— Lembra daquilo que você comentou sobre o perfume da minha mãe ter um cheiro de maços de dinheiro e barras de ouro? — Balanço a cabeça, concordando. — Minha mãe nasceu com esse cheiro, vinda de gerações de uma família alemã abastada. Naquela madrugada, enquanto estávamos dormindo, eu senti um cheiro diferente no ar. Não era seu perfume de criança, era outro. Algo doce, pronunciado e barato. Eu não conheço mais ninguém que tenha um gosto tão duvidoso quanto a sua tia. O cheiro de novos ricos é inconfundível.
— Ai, meu Deus, Lucca! — Digo indignada. — Era só dizer que sentiu o perfume dela, precisava mesmo humilhar a mulher desse jeito?
— Precisava! — Ele devolve a indignação. — Estou há duas semanas sem dormir por causa dela. Essa miserável.
— Ei! — Lucca volta a me olhar e suspira frustrado.
— Desculpe, não estou sentindo o meu rosto de tão cansado. — Ele explica, voltando a ficar comedido.
— O que quer falar com a tia Vanessa? — Cruzo os braços na frente do corpo, gostando de ver um vislumbre de animação em Lucca.
— O que você acha? Vou confrontá-la. — Lucca diz impaciente, sua mão vai em direção a maçaneta da porta e eu congelo no lugar.
— Espera, você vai falar com ela agora? E se o Arnaldo estiver em casa? — Pergunto alarmada, Lucca inclina um pouco a cabeça para frente, encarando os próprios pés. Ele está hesitante e parece ter ensaiado o que dizer.
— Nós vamos entrar e independente do que tiver acontecido lá dentro, você vai manter a calma. Ok? Por incrível que pareça, você é a mais sã entre todos nós, eu preciso que você fique calma. — Lucca pede devagar, com uma calma estranha para ele.
Meu corpo se prepara, entra em uma espécie diferente de modo de alerta que ao passar pela porta, todos os pelos de meus braços se arrepiam com as milhares de possibilidades que atravessam minha mente. Na sala, cacos de vidros estão espalhados pelo chão. Procuro entender o que houve e andando um pouco mais, enxergo a cena panorâmica do que restou de uma briga feia. Os cacos de vidro são do cinzeiro de Arnaldo, cinzas e bitucas de cigarro estão espalhadas por todo o tapete, deixando uma mancha acinzentada bem no centro dele. Alguns porta-retratos estão no chão, as fotos descentralizadas parecem pequenos mosaicos, caídas com seus sorrisos engessados.
A porta do escritório está fechada, mas vejo pela fresta embaixo dela um pouco da luz de dentro do cômodo.
— O que aconteceu aqui? — Encaro Lucca e ele dá de ombros, chutando um pedaço de vidro para longe de seus sapatos caros. Sua expressão paralisada sua expressão destoante da cena que ele presencia. Enquanto eu estou horrorizada, Lucca parece entediado.
? — A voz trêmula, amedrontada e vacilante da tia Vanessa soa vinda de meu quarto e eu vou até lá, abrindo a porta com um pouco de pressa demais.
— Tia? O que houve? Você está bem? — Faço uma pergunta sobre a outra, indo até ela, mas, parando de me mexer quando vejo seu rosto machucado, sangrando. O olho direito inchado, o canto oposto da boca com um machucado que não consigo saber a dimensão, pois, sangra muito. Ela tenta esconder o rosto, ajeitando os cabelos, mas é inútil.
Meu coração parece secar dentro do meu peito. O olhar perdido que ela lança entre mim e Lucca é de revoltar a alma.
— Que bom que reatou com seu amigo. — Ela diz após engolir o sangue que não para de sair do machucado em seu lábio inferior. — Eu escorreguei no tapete da sala, fiz uma bagunça.
— Quando você vai parar de mentir para você mesma? Ninguém mais cai na sua ladainha. — Lucca a interrompe ácido e eu o encaro perplexa.
— Lucca!
— Não, ... Ele está certo. — A tia Vanessa tem dificuldade para se levantar do chão, eu amparo seu braço e a ajudo a se sentar sobre o colchão. — Foi o Arnaldo. Eu tentei chantageá-lo com o que vocês estavam investigando sobre ele. — Ela ri sem emoção, se lembrando de momentos antes. — Eu tentei dizer a ele que sabia de tudo, mas que estava disposta a fazer vista grossa se ele deixasse vocês dois em paz. Acho que não sou uma boa negociadora.
— Espera, ele sabe que eu estive investigando? — Lucca pergunta e eu o olho feio, tentando fazer com que ele compreenda que a tia Vanessa só precisa de um minuto para se recuperar.
— Não. Ele acha que contratei um detetive particular. Por isso ele me bateu. — Ela ri de forma amarga e eu sinto meu estômago dar milhares de voltas.
— Temos que ir à polícia. Agora. — Entrelaço meus dedos nos dela, tentando levantá-la novamente. A tia Vanessa se desvencilha, se encolhendo na cama.
— Eu não vou a lugar algum. Ninguém acreditaria em mim. — Ela volta a chorar e eu encaro Lucca de novo, buscando por algum apoio.
— Você disse que o faria. Você disse que estava farta dele e que iria me ajudar. O que aconteceu? — Lucca está transtornado. Ele anda até ela e pega pelos ombros, inquirindo dela por uma resposta.
— Lucca, para com isso! Do que está falando? — Tento tirar ele de cima da tia Vanessa, mas Lucca tem uma força absurda quando está obstinado. — Lucca!
— Eu queria a fora disso! Você não tinha nada que envolvê-la nessa situação. — A tia Vanessa vocifera e eu solto os braços de Lucca, que por sua vez, a solta também.
— Você é “ELA”. — Constato rindo sem graça, me sentindo traída. — Então sabia também que ele estava me filmando enquanto trocava de roupa?
— Não, querida. Eu quis matá-lo quando o vi apreciando sua maldita coleção. — Ela admite. Lucca rola os olhos e se afasta dela, coçando os olhos e massageando o próprio rosto em busca do mínimo de sanidade.
— Não cabe a nós nos vingar dele, tia. Ele tem que ser preso. Nós temos que mostrar o estado do seu rosto para a polícia e deixar que eles façam o trabalho deles. — Eu me aproximo, tentando convencê-la.
— Ninguém acreditaria em mim. — Ela repete firme e eu me perco na desesperança que seus olhos me transmitem.
— É, talvez. Mas já que a sua cara está sangrando, isso pode te dar alguma credibilidade. — Lucca volta a se aproximar dela insano, os olhos verdes dele estão escuros de ódio e eu sei que ele só está direcionando esse ódio para a tia Vanessa agora. Ele não a despreza tanto assim, não pode ser. — É cômodo deixar que outras pessoas sofram só para que você não tenha que tomar uma decisão. É fantástico que você possa esquecer o gosto do sangue na sua língua, desde que haja algo brilhante no seu pulso ou no seu pescoço. É delicioso deixar que a sua vida passe sem que você tenha uma atitude sequer para mudar o curso das coisas. Você é fraca, Vanessa. É patético olhar para você desse jeito e não te ver mover um dedo para mudar a situação. É por causa de gente como você que as autoridades não acreditam nas vítimas de verdade. Enquanto você veste a carapuça de alguém que está protegido graças a todo esse dinheiro, milhares de mulheres morrem caladas todos os dias, sem nem ao menos terem o direito de se levantarem e lutarem a favor de si mesmas e dos filhos. Gente como você me enoja. — Lucca diz tão frio, decidido e revoltado. Ele respira pesado, as narinas inflando e o peito subindo e descendo muito rápido.
— Lucca! Não é culpa dela, o que está dizendo? — Tento empurrá-lo para tirá-lo de cima da tia Vanessa, que chora copiosamente escondendo o rosto entre as mãos.
— Ela destruiu tudo, ... Ela acabou com tudo. — Duas semanas sem dormir e um coração quebrado no peito fazem com que Lucca caia de joelhos diante de mim.
Com a tia Vanessa chorando e o Lucca perdendo a cabeça nos meus pés, sinto que vou desmaiar com tanta pressão vinda de todos os lados.
Só consigo pensar no quão injusta é a discrepância das coisas acontecendo neste momento. Enquanto Lucca e tia Vanessa sofrem desamparados em meu quarto, Arnaldo aproveita um tempo com sua privacidade, trancado na fortaleza de seu escritório.
Eu quero chorar, me juntar aos dois e perder a cabeça também, desistir de tudo. Mas Lucca me pediu para ser forte, eu só não sei como.

— O que eu faço? Pedro, me ajuda... — Me pego repetindo como um mantra.

Não sei o que estou esperando que aconteça quando finalmente me dou a chance de tentar chamar por meu anjo da guarda. Não sei se bem no fundo espero que algo cinematográfico aconteça, como vê-lo em uma redoma iluminada, me oferecendo sua mão para me mostrar de um plano superior como agir e o que fazer para ajudar aqueles que amo. Ou ouvir sua voz soar em meus ouvidos tão claramente quanto ouço o choro dolorido de tia Vanessa. Mas nada disso acontece. Eu não vejo ninguém que possa me ajudar agora, não ouço nada que possa me direcionar a fazer a coisa certa.
O desespero por pedir de coração partido e não obter nenhuma resposta me desmonta, mas não posso desmoronar por completo.

Minha cabeça parece vibrar com as ideias se embaralhando entre si. Olho em volta, buscando por tudo o que está errado para tentar encontrar uma forma de começar a consertar como puder. Tia Vanessa abraça os próprios ombros, fungando com o rosto tão vermelho quanto o sangue manchando sua bonita blusa de seda. Temo por ela, tão quebrada e aparentemente vazia.
Minha única saída é tomar as rédeas da situação.
Passo por Lucca, que soluça num choro sentido e desamparado. Procuro com os olhos marejados pelo emaranhado de chaveiros. Ao encontrar a miniatura de urso marrom que me deu após vários minutos batalhando contra uma dessas máquinas com um gancho para pescar bichos de pelúcia, seguro o objeto, puxando os outros consigo.
Acho que só me resta acreditar na energia que a gente coloca nas coisas. Como esse chaveiro cheio de diligência e amor, que entrou para minha pequena coleção de chaveiros fofos em um dia ensolarado e envolto em uma atmosfera única de cumplicidade e companheirismo. Imagino com muita vontade que o chaveiro está me dando forças para trancar a porta, proporcionando para aqueles dois uma pequena bolha com um enorme botão de pausa no centro.
Sei que assim que essa porta for destrancada, todos os problemas irão se apossar de nós de novo, mas até lá, eu nos manterei seguros.
Me sento sobre a cama e passo uma mão na outra até que elas parem de tremer. Tento organizar minha cabeça, acalmar meu coração. Respirar.
Em certo ponto, Lucca para de chorar e assim como a tia Vanessa, busca por espaço no colchão. É uma noite fria e chove lá fora. Uma chuva fina e persistente, como eu imagino ser a dor deles. Duradoura e incisiva.
Cada um encara um canto do quarto, perdido em pensamentos. Me certifico de que as lágrimas aos poucos estejam se dissipando, sei que preciso de um plano para nos mantermos seguros quando for a hora de furar a bolha. Sei também que vou precisar de ajuda e só posso contar com eles para entender como saímos dessa enrascada.

— Você toca esse violão ou é só um enfeite como toda aquela maquiagem na penteadeira? — Lucca pergunta após um bom tempo de um silêncio maçante e ensurdecedor. Eu quase rio com a pergunta, nem abatido Lucca deixa de ser destemidamente desagradável.
— Eu toco, sim. Idiota. — Respondo a altura e ele ri de leve. Lucca engole em seco e vira a cabeça devagar, encarando a tia Vanessa pela primeira vez com olhos menos coléricos.
Ele parece vê-la como um igual agora. Afinal, a dor da perda, da humilhação, de ter o interior destruído por alguém de intenções vis e pulsações cruéis.
— O que está esperando? — Lucca rola os olhos enquanto eu rio e vou até o violão, encostado na porta do guarda-roupa.
— Que música triste quer me ajudar a cantar? — Ajeito o violão entre as pernas, deslizando a palheta por entre as cordas, a libertando.
— "Somewere only we know". — Lucca sorri, mas não há muita alegria explodindo em seu rosto agora.
— Pode começar e eu encontro seu tom. — Me distraio com o capotraste, o colocando na quinta casa do braço do violão. Lucca me assiste com uma expressão meio convencida.
— Você é boa assim? — Pergunta sisudo, ergo uma sobrancelha como resposta e ele solta um pigarro para aquecer a voz. Erro de principiante, mas deixo essa passar.
Lucca tem um timbre de voz afinado, apesar de não ter aquecido a voz. Só está um pouco enferrujado. Eu gosto da rouquidão em sua voz e da emergência no sentimento que ele coloca na primeira estrofe da música. Chego com a harmonia na segunda voz e ele sorri enquanto canta o refrão. A tia Vanessa ouve num balançar lento, chorando de novo.

Am          Em
Oh simple thing where have you gone
F          G
I'm getting old and I need something to rely on
Am          Em
So tell me when you gonna let me in
F          G
I'm getting tired and I need somewere to begin
F          G
If you have a minute why don't we go
F          G
Talk about it somewhere only we know?
F          G
This could be the end of everything
F          G
So why don't we go
         C
Somewhere only we know?

— Ai, não consigo mais. — Lucca fica emocionado e abana os olhos. Eu sorrio por ter gostado de cantar com Lucca. Por ter trazido música para esse momento tão tenebroso, evitando que a tristeza tome conta por completo.
— Você é muito talentosa, ! — A tia Vanessa diz com a voz rouca, ela seca os olhos com os nós dos dedos indicadores e mindinhos. A maquiagem borrada e todo o sangue saindo de seu nariz e lábios inferiores destoam muito da elegância que, não importa o que Lucca diga, ela tem, sim.
— Obrigada, Tia. E... obrigada, Lucca. Acabou de me ajudar com a lição da faculdade. — Brinco e ele me mostra a língua.
Lentamente, muito lentamente, o clima tenso vai se dissipando, ficando menos pesado. Os nós nas gargantas vão se dissolvendo e as lágrimas se espaçando entre mais minutos. Ouço suspiros ainda magoados e nem a mais bem elaborada película é impenetrável para a preocupação que se instala conosco naquele quarto. Mas estamos juntos. Sofrendo juntos e — eu espero — pensando juntos em uma solução.
No relógio na mesa de cabeceira, são oito e meia. Meu coração aperta, pois, tudo o que eu queria ouvir agora era a voz grave e brincalhona dele. Do jeito suave de falar e ver a vida. Sei que o vi há poucas horas, mas já sinto saudades de .
Oito e trinta e um. Ele não vai ligar e é melhor assim.

A entrega dos trabalhos é feita com uma apresentação. O professor Alexandre nos separa em três grupos e reserva o último período dos dois próximos dias para que as apresentações ocorram sem que nenhuma seja prejudicada pela falta de tempo. Estou nervosa. Nunca me dei muito bem defendendo algo que eu tenha feito com as próprias mãos. Sempre fiquei nervosa demais para apresentar trabalhos escolares que não fossem em grupo. Acho que parte de mim se sente mais segura sendo parte de algo maior. Estar no centro dos holofotes nunca foi algo que almejei, me dou melhor fazendo volume no plano de fundo.
Assisto à apresentação de Tiago, um rapaz calado e mal-humorado que se senta sempre no fundo. Já o vi conversar com a Tauany algumas vezes, eles moram em bairros próximos. Nunca falei com ele diretamente numa conversa. Por isso fico completamente chocada ao ver seu protesto em formato de música.
O piano traz uma doçura melancólica, contrastando com a batida aguda e propositalmente fora de ritmo. Tiago explica que quer incomodar o ouvinte com essa faixa, trazer à tona sensações indesejadas, a fim de nos forçar a lidar com elas. E ele consegue alcançar um lugar bastante incômodo em meus ouvidos. Me sinto bastante desafiada e tirada de minha zona de conforto. Não sei dizer se é a eficácia de sua arte ou somente o pavor de fazer tal apresentação.
— Tiago é gatinho, né?! — Tauany diz pensativa.
— Achei genial o que ele fez com a guitarra. — Adiciono num sussurro de voz, não quero ser rude com Tiago, que ouve seu som com um balançar de cabeça comedido, ritmado.
— Ele dança também, sabia? — Ela ri em puro desespero. — Como se não bastasse ser superlegal, gato, ter bom gosto para música e um estilo maravilhoso.
— Parece que a Tau está apaixonada. — Dou uma pausa, teatralmente reflexiva.
— A Tau não é de se apaixonar... A Tau gosta de dar perdido. — Minha amiga pisca um dos olhos e eu rio discretamente, pois, o professor Alexandre olha diretamente para mim.
— Sua vez, . — Ele diz e eu respiro fundo. Levo o computador até a frente da sala.
Odeio essas pequenas normas, me sentiria melhor se pudesse fazer isso direto do meu lugar de sempre.
O professor parece empolgado, mas me sinto insegura. Sei que o trabalho não está nem perto do que eu gostaria de poder entregar e agora, diante dos olhos e ouvidos curiosos de meu professor e colegas de curso, devo segurar a onda e agir como se estivesse certa do que estou entregando, mas não consigo.
— Antes de dar o play, quero que saibam que eu não considero meu trabalho terminado — digo um tanto ressentida para a classe, mas me viro para o professor, que cruza os braços e respira fundo, aguardando paciente.
— Acha que não teve tempo o suficiente para entregar a tarefa? — Ele pergunta no tom condescendente. Aquele que as pessoas usam quando presumem a nossa vida inteira só de olhar para nossa cara.
— Eu tive tempo o suficiente, não é isso — volto a dizer rápido, temendo passar vergonha. A ansiedade se faz presente e eu decido que falar menos pode significar mais. — É que... Não sei, só não acho que está do jeito que eu queria. — Odeio transparecer tão decepcionada. Assisti a competições de TV o suficiente para saber que você nunca deve apontar as falhas em um trabalho a ser avaliado. As qualidades surpreendentes podem se esconder atrás de tudo o que você aponta de errado.
— Vamos ouvir, então... — Um meio sorriso, quase um gracejo reconfortante aparece rapidamente no rosto dele, sumindo para dar lugar ao olhar crítico de ouvidos alertas.
Ao apertar a tecla de espaço no teclado do computador, quero desaparecer.
A faixa começa com sons de fundo de floresta. Que na verdade foi uma gravação pobre feita com meu celular recém comprado. Fiquei meia hora parada em um pequeno bosque, captando tudo o que acontecia em volta de mim. O que pode ser um grande silêncio vazio e relaxante para a maioria das pessoas, se tornou um fundo mágico com uma ajudinha da edição. Folhas farfalhando ao fundo, ao sabor do vento que caminha por entre as árvores de cascos grossos. Aqueles que não se pode ouvir sem estar completamente em silêncio, à mercê das vontades da natureza. Assoviando um ritmo só seu.
Uma harmonia de vozes começa ao fundo, vindo do lado oposto à floresta mágica, como batizei a faixa. O volume aumentando e tendo o ritmo ditado por um piano também crescente. Alguns elementos de sintetizador dão o formato da canção de exatos um minuto e meio. O som vai crescendo, encorpando. Se tornando maior e mais presente na sala.
Todos os instrumentos usados para a gravação dessa música são digitais e meu medo é que fique genérico demais. Que a falta de um ser humano por trás das teclas e sopros faça uma diferença abismal e que eu tenha submetido a todos naquela sala a um minuto e meio de tédio e falta de personalidade sonora.
Quando acaba, coço os olhos e evito absorver as reações de meus colegas e professor. A avaliação vai acontecer depois, em privado. Mas estou envergonhada demais para olhar para qualquer um ali, ouvindo os risinhos convencidos de quem acha que aquilo é uma competição. E, seguindo sua linha de raciocínio mesquinha, na opinião deles, estou perdendo.
Fecho a tela do computador e volto para o meu assento em silêncio, o professor chama o próximo da lista, mas por sorte, a aula acaba e a minha apresentação fica marcada como a última do dia. Cravo as unhas nas palmas das mãos, contando os segundos para estar sozinha para descontar a frustração em alguma coisa.
— Tchau, ... — Tiago diz após beijar a bochecha de Tauany em uma despedida mais ousada. Eu aceno com a cabeça, observando todo o material precisando ser guardado sobre a mesa. Não tenho a menor vontade de sair da sala em bando junto com meus colegas.
— Tudo bem se eu tentar alcançar o Tiago? Quero perguntar uma coisa a ele. — Tauany diz um tanto agoniada e eu rio baixo.
— Vai lá dar um perdido nele? — Pergunto tentando manter minha cabeça longe do trabalho fracassado que acabo de entregar. Não fico nem um pouco ofendida por Tauany não perceber minha agitação. É uma verdadeira bênção ter novos amigos que não te conhecem tão bem assim.
— Algo assim. — Ela diz rápido, ajeitando a alça da bolsa no ombro.
— Se espera alcançá-lo, você deve correr. Ele fala devagar, mas anda bem rápido — digo rindo, mas paro assim que ela sai da sala apressada e atrapalhada.
Todos saíram rápido, como se suas vidas dependessem disso. Me pego sozinha e me sento na cadeira e sinto meu corpo derreter sobre ela.
— Isso é cansaço ou decepção? — A voz calma e cheia de sabedoria do professor Alexandre me faz xingar mentalmente a mim mesma por não ter olhado para a sala inteira antes de sucumbir.
— Um pouco dos dois — digo sem jeito, sorrindo para aliviar a tensão. Começo a guardar as coisas na mochila, tentando evitar que a conversa se prolongue.
— Quer conversar sobre? — O professor não olha diretamente para mim. Talvez para estabelecer algum nível de confiança, como se faz com os cachorros que foram traumatizados.
— É uma longa história — Um suspiro cansado escapa por meus lábios — Você tem compromisso para o resto da semana? — Ele ri de leve e então, levanta os olhos das folhas diante de si para me encarar. Eu quase acredito que o fiz desistir, mas ele parece decidido a bater um papo.
— Tenho que ensinar a vocês como produzirem música, o resto pode esperar. — O professor brinca, mas não consigo evitar franzir a testa em uma confusão natural. Ele é, definitivamente, um homem bonito e educado o suficiente para lecionar ainda jovem em uma faculdade renomada. Alguém com uma vida, tipo, esposa ou namorada, filhos ou, literalmente qualquer outra ocupação não se dignaria a ouvir uma história tão longa assim. Mesmo que somente nos campos vastos da imaginação de uma analogia, é estranho que ele não tenha nada mais para fazer.
— De qualquer forma, não quero te chatear com os meus problemas. — Ameaço me levantar, mas antes de pegar a bolsa, o encaro de volta. O professor não parece somente curioso com o que tenho a dizer, mas preocupado. É incrível como eu tento tanto não parecer alguém que precisa de preocupação, mas acabo sendo alvo disso para todos que conheço.
— Certo. Então, eu falo. Pode ser? — Volto a me sentar um tanto incomodada. Não quero ultrapassar nenhum limite da minha relação aluna—professor. Tem sido difícil reconhecer as intenções dos outros ultimamente e eu não sei bem onde o professor Alexandre quer chegar com essa conversa toda. — Antes de me formar e fazer o doutorado, eu tive uma banda. Cinco caras, tocando onde nos deixassem tocar à troco de nada, muitas vezes. Nem público. — Ele ri de sua própria miséria. — Nós tínhamos esse baixista que era um gênio. Um rádio ambulante que sabia tocar todo e cada sucesso dos anos 80, em qualquer instrumento. Eu era guitarrista dessa banda. Apesar de ter a atenção das mulheres, os solos mais aclamados e ter uma boa base técnica de tudo o que tocávamos, eu morria de inveja daquele cretino. Ele nunca se distraía com as mulheres, tempo de palco para ele era uma verdadeira chatice, porque, o som de retorno era um lixo e ele mal conseguia ouvir o que estávamos tocando e ele sempre, sempre estava estudando. Eu achei que fosse algum tipo de neura, talvez até uma condição médica. Mas a resposta era e sempre vai ser a mais simples: ele só era apaixonado por música. Alguém com problemas demais na vida, mas apaixonado por algo que o fazia querer levantar todas as manhãs. Teve um dia em que o nosso baixista faltou ao ensaio pela primeira vez desde sempre, os ensaios se acumularam e nós começamos a nos preocupar. Nós não tínhamos celular na época, então, até termos alguma notícia dele, demorou alguns dias. Nós encontramos o Carlos enforcado no quarto que ele alugava nos fundos da casa de uma senhora. Ele havia nos deixado uma carta que mais parecia com um poema. Ler aquilo com o corpo dele balançando ao meu lado me fez perceber que eu enxergava exatamente o que estava errado com ele, mas nunca disse ou fiz nada que o ajudasse de verdade. Acontece, , que vejo o mesmo olhar em você. — Não posso deixar de me assustar pela história que o professor conta. Ainda mais por ele ver semelhança em mim em alguém que pôde tirar a própria vida. — Ouvir sua música hoje me fez relembrar de como eu me sentia perto do meu baixista. Com um pouco de inveja, talvez. — Ele ri rapidamente — Ele era um gênio, você também é. Sua música, assim como a dele, me levou para um lugar denso e emaranhado de tudo o que você pensa ou sente. Não é mesmo a sua melhor entrega, nem se parece com que vejo de potencial em você, mas é você ali. Da forma mais crua e incisiva. Em cada nota, em cada som obscuro e escondido. Não posso deixar que você tenha o mesmo destino de tantos gênios que temos nesta indústria. — O professor me olha assombrado, magoado com o próprio passado. Não sei bem como me sentir. Normalmente, as pessoas não dão nome a sua preocupação dessa maneira. O professor não só deu um nome à sua preocupação, como a contextualizou de uma forma que eu não vou esquecer nunca.
Desde o acidente tem sido difícil me conformar com o fato de que eu tenha saído praticamente ilesa daquela cena horrível. Não consegui contar a ninguém como é difícil continuar aqui depois do que aconteceu e que depois do que eu achei que seria o fundo do poço, só se revelou ser o início de um fim lento, de surpresas desagradáveis empurrando o nível para cada vez mais baixo.
— Eu perdi meu irmão no ano passado. Estávamos juntos com uns amigos em um carro e só dois de nós quatro sobrevivemos. — Respiro fundo, tentando encontrar uma forma de resumir porque parece que posso tirar minha vida a qualquer momento. — Então, eu perdi minha mãe também, de certa forma, e, agora eu moro com a minha tia e o marido dela. Ele é um tipo diferente de monstro desprezível que de alguma forma está controlando minha vida, envenenando cada pequeno espaço do que restou. — Eu rio nervosa, a expressão desolada de meu professor me deixa desconfortável e eu brinco com meus dedos, evitando mais aquele olhar cheio de pena. — Sinto muito pelo seu amigo, de verdade. — Mordo o interior da boca, me sentindo a pessoa que tirou uma carta de poder absoluto no jogo de quem perdeu mais. E essa rodada foi minha.
— Sinto muito por... Tudo. — Ele constata que é mesmo muita coisa e vejo seu lábio inferior tremer, assim como suas narinas e os olhos bem abertos, cheios de lágrimas.
— Eu vou ficar bem. Não tem nada ruim passando pela minha cabeça, se servir de consolo. — Franzo a testa, confusa com o que está acontecendo.
— Eu é quem deveria te confortar, . — Ele diz envergonhado e eu vejo como um belo momento para desenhar limites.
— Não. Está tudo bem. Você é meu professor e estava preocupado com minha saúde mental, se é que isso existe. — Rio sem jeito, ele me acompanha por obrigação social.
— Não queria te assustar. Só quero que saiba que eu estou aqui, se precisar. Não precisamos falar dos seus problemas, mas, se ficarem muito difíceis de suportar, posso ser alguém com quem conversar sobre qualquer outra coisa. — Ele diz calmo, mas a testa franzida numa permanente preocupação começa a me deixar preocupada também.
Eu seria capaz de algo assim? Não. Estou mais para homicida agora. Suicídio não resolveria meus problemas, só criaria outros para as pessoas que já têm grandes problemas para resolver.
— Eu estou bem. Quer dizer, não completamente, mas vou ficar. Acho que só preciso ser mais forte. — Dou de ombros, cansada dessa conversa invasiva.
— Parece cansativo viver assim. Ser obrigada a tornar sua inteligência emocional em um fisiculturista porque sua vida não te dá descanso. — Abro e fecho a boca tantas vezes, milhares de respostas começam a se formar, mas, morrem sem força para discordar de sua constatação.

No ônibus de volta para o prédio, estou enfurecida. As palavras do professor Alexandre reverberam no fundo de minha mente, parecendo que não ouço mais nada além dele me dizendo quão desastrosamente patética é a minha vida. Detesto estar nesse lugar de vítima impotente, parecer fisicamente como alguém que precisa de ajuda. Eu estou bem. Sou eu a responsável agora por manter as pessoas minimamente sãs. Sou eu a única que consegue manter os pés no chão e manter Lucca e a Tia Vanessa de pé também.
Desde aquele sábado despedaçado pela violência, encontramos conforto um no outro. Começando aos poucos a retomar a vida como pudemos, juntando forças para voltar a acreditar.
Eles têm passado bastante tempo juntos, a tia Vanessa e o Lucca. Eles têm tentado resolver o quebra-cabeça com peças faltando. Arnaldo foi para Brasília naquela mesma madrugada e não temos notícias dele desde então, pois, Rafael não fala conosco. Sua covardia me revolta, é claro. É a segunda vez que Lucca precisa dele e ele tira corpo fora da situação.
A cada dia que passa as escoriações no rosto da tia Vanessa vão sumindo, se curando. O hematoma arroxeado vai tomando uma coloração esverdeada no centro e amarelada nas pontas, clareando conforme ela estimula a circulação do sangue com massagens e cremes rejuvenescedores todas as noites.
Ela tem dormido em meu quarto e apesar da aproximação constante, não consigo olhá-la nos olhos há dias. Não desde aquela madrugada, em que tive de ajudá-la a limpar o sangue seco e endurecido que escorria por sua têmpora e se misturava com o sangue no machucado da boca, unindo-se em uma grossa linha descendo por seu pescoço.
Antes disso, Lucca a convenceu a se deixar ser fotografada. Envergonhada e exausta, ela segurou o corpo contra a parede enquanto ele clicava e registrava as imagens em sua câmera digital prateada. O ensaio fotográfico mais doloroso de nossas vidas.
Enquanto Lucca passava as imagens para meu computador, iniciando um novo dossiê contra Arnaldo, puxei a tia Vanessa de canto, para limpar seu rosto. O assunto me engasgava, o pedido se parecendo como um corpo estranho precisando ser eliminado.
— Tia... Ainda podemos denunciar. Temos as fotos, eles vão entender que você precisava do mínimo de dignidade para sair de casa e-
, já disse que não! — Ela repetiu mais firme.
Por mais empenhada que ela esteja em procurar por documentos que provem as ações litigiosas de seu marido, sua falta de vontade de ser o principal motivo por sua captura me deixa confusa, irada.
É difícil para mim aceitar e respeitar sua decisão. Eu nunca admitiria, mas concordo em porções pequenas com o que Lucca disse a ela naquela noite. Não acho que ela seja culpada pela permanência da impunidade de monstros país à fora, mas, se a mudança é um fator que começa de dentro e se espalha pela sua casa, pelo seu bairro, sua comunidade e assim por diante, não seria dela a responsabilidade de denunciar e causar uma — mesmo que pequena — revolução? E quanto a mim? O que aceitar tudo isso faz de mim?
— Não vou levar sua decisão como definitiva — digo chateada — Se quiser mudar de ideia, eu te acompanho. Seja dia ou noite, eu estarei lá com você — lembrei a ela no dia seguinte, sob a luz do dia iluminando todas as nossas feridas.
— "Lá" onde? — Sua pergunta acompanhada de uma expressão desentendida trincou meu coração, só um pouquinho. A tia Vanessa me olha de testa franzida, confusa. Os inchaços, os cortes, a dor parecem estar dormentes e após somente algumas horas, seu mecanismo de defesa tomou conta de seu modus operandi e já iniciou o processo de sempre: trabalhar dobrado para esquecer o que houve.
Ela pode evitar os espelhos para ajudar a esquecer. Eu posso evitar olhar para ela, em busca de consolo por ignorar o que minha consciência me pede para fazer desde então. Mas nada vai apagar completamente o que houve. Esquecer não nos deixa seguros. Abafar os sentimentos não é a melhor saída para a cura. Ainda estamos à mercê das vontades de um monstro inescrupuloso e me desmonta inteira ter de engolir essa ideia azeda.
Eu sugeri sair do apartamento, pegar algumas coisas e começar a pensar em como seria se nós duas começássemos a nos virar por contra própria, mas tia Vanessa recusou firmemente essa alternativa também.

É quinta-feira. Aquela expectativa de fim de semana não é suficiente para me dar ânimo algum. Estou acordada desde às quatro da manhã, nervosa com a apresentação. Se eu soubesse que sairia do jeito que saiu, eu teria dormido tranquila, aceitando o fracasso. Até parece.
— Dia difícil na faculdade? — Lucca pergunta sem me olhar. Ele parece saber quando estou possessa de raiva somente pelo som ruidoso de minha respiração.
— Odeio fazer apresentações — digo desgostosa, me jogando no sofá. Minha cabeça dói e agora eu lido com as consequências da carga de ansiedade que me atingiu de madrugada e só agora deixa meu corpo mole, depois de retesar cada um de meus músculos tortuosamente.
Lucca está no sofá oposto, sentado confortavelmente com os pés sobre a mesa de centro. Ao lado dele, uma verdadeira bagunça de papéis e embalagens de comida se misturam e eu prefiro fechar os olhos a contemplar Lucca de cueca e robe em sua resplandecente inércia.
— Você não costumava competir na rua dançando até o chão? — Ele devolve ácido, levantando os olhos do computador em seu colo só para me ver olhá-lo como se pudesse fazê-lo desaparecer com o poder da mente.
— Não era na rua... Ah, quer saber? Não vou perder tempo com isso. O que você tem para mim hoje? — Forço a musculatura do abdômen, me obrigando a me sentar e tento parecer menos irritada.
— Olha... Nada novo. Mas acho que consegui fazer a Vanessa mudar de ideia sobre a denúncia — diz sorridente, mesmo que o assunto não seja apropriado para sorrir.
— Como assim?
— Bom, ela saiu com umas amigas antigas. Você deve conhecer, elas são pobres — rolo os olhos com o comentário desnecessário e Lucca não parece entender o que disse de errado, dando continuidade ao que dizia antes — Acontece que ela não quis mascarar as escoriações com maquiagem. Ela só vestiu uma roupa e foi. Imagino que querer mostrar as cicatrizes para as pessoas seja um passo em direção à coragem para denunciar.
— Ela não me disse que ia sair com a tia Simone ou a tia Regina — digo pensativa.
— Essa gente toda é parente de vocês? — Lucca voltou. O Lucca esnobe de sempre. Oba.
— Não, Lucca. Mas basicamente elas me criaram e isso é mais importante para mim do que linhagem de sangue — minha voz soa monótona ao ter que explicar o fato a meu amigo. Na verdade, ficar explicando coisas básicas do meu cotidiano à Lucca me faz sentir um alienígena. Não é possível que ele não tenha tido sequer uma relação com outro ser humano que pudesse ser afetuosa e real.
— E aí, arrasou no trabalho? — Lucca deixa o computador de lado. Coça os olhos e estica o corpo.
— Foi tão bom que meu professor acha que vou me matar... — comento distraída com meus próprios pensamentos exaustos e Lucca ri de leve.
— Você é um girassol tristinho mesmo — Lucca comprime os lábios, fazendo um bico para baixo.
— E você poderia estar vestindo um short — estico o braço, censurando suas partes com a mão, ainda de longe.
— Fica tranquila. Não há nada que você não tenha visto antes por aqui. Fora que... nessa família imaginária, eu seria tipo... seu irmão. Não é?! — Lucca ri, ajeitando o robe. A pergunta soa casual, sem maldade. Mas arranca o ar de meus pulmões e para meus batimentos por um segundo inteiro.
— O quê? — eu rio, mas nenhuma parte de mim acha graça — Você acha que pode substituir o Pedro?
— Não, não disse isso. Não é como se nenhuma dessas mulheres substituíssem a sua mãe, por exemplo — Lucca ignora meu olhar fulminante, sem entender o que disse de errado. Como sempre.
— Cala a boca — digo sem olhá-lo. Uma raiva grande demais se apossa de meu coração e eu tento a todo custo não chorar, mas sinto que vou explodir se não o fizer. Fecho os olhos, escondo o rosto entre as mãos e tento me concentrar somente em respirar, mas Lucca precisa continuar falando.
— Que isso, . Eu só estava brinc-
— Vai embora.
— O quê? Não. Espera, me deixa explicar.
— Não! — digo absoluta. Um grito curto e grosso. — Você me trata como lixo desde o dia em que me conheceu. Se acha superior a todas as pessoas que eu amo e ainda quer substituir o lugar do meu irmão? Não! Vai embora — vou até a porta e a deixo escancarada. Lucca respira fundo, fecha o computador e amarra a corda do robe, passando por mim em silêncio. Ele se vira e puxa a maçaneta atrás dele, me deixando sozinha com uma sensação horrível no peito.

Envio a mensagem para avisando que estou no lugar de sempre da estação de trem. Ele responde com enigmáticos parênteses após dois pontos. Ele vem dizendo que planejou um dia inteiro para nós e parece que dessa vez, ele caprichou. Nós sempre seguimos os planos dele, porque eu estou sempre sugerindo que encontremos um lugar limpo o suficiente para deitarmos e passarmos horas a fio sem fazer nada. Mas é hiperativo, ele precisa ter alguma atividade acontecendo e deixá-lo planejar nossos encontros sempre acaba sendo divertido.
Eu só estou tão esgotada emocionalmente que preferia mesmo que nós ficássemos deitados hoje.
Quando me vê, mesmo que de longe, ele sorri e suspira aliviado de um jeito que me faz sentir como alguém que é aguardado dia após dia durante a semana até que o sábado chegue. Para alguém que foi tão maltratada por existir ou sobreviver, isso é avassalador. Mesmo de longe, só com aquele olhar, eu me sinto abraçada.
Ele se aproxima, me beija devagar e com calma, as mãos acariciam minha cintura e ele está tão lindo que é injusto estar vestindo um mísero short e camiseta.
— Oi, linda — ele fala um pouco rouco. Não do jeito sonolento ou sexy quando sussurra. Um rouco de quem tossiu a noite inteira. O corado em suas bochechas morenas não é só por me ver.
— Você está bem? — Pergunto preocupada, tocando seu rosto com as palmas das mãos. rola os olhos, como se já tivesse tido essa discussão antes. Mas não comigo.
— Sim. Só estou resfriado — ele dá de ombros, mas volta a me abraçar pela cintura — Vamos?
me conta que tem um plano em duas partes e que eu vou gostar deles porque estaremos próximos de casa. Bem, próximos da casa dele.
Chegamos às onze em ponto, o movimento nas ruas começa a ficar mais agitado e nas feiras, a gritaria me faz rir e querer sair dali o quanto antes.
me leva para a casa dele, deixamos minha mochila em seu quarto e saímos de novo. Dessa vez, de bike.
— Eu estive conversando com a Tati e ela me disse que você não quer dançar — ele diz pedalando devagar, segurando o guidão com uma mão só, a outra apoia a base de minhas costas em um carinho gostoso que me quase me distrai de suas palavras.
— Por que esteve conversando com minha melhor-melhor amiga? — Olho para cima, encarando seu queixo bem desenhado e ele ignora meu olhar inquisidor.
— Eu estou tentando ser seu melhor-melhor-melhor namorado, esqueceu? Além do mais, a Tati é bem legal — ele apoia a mão na minha coxa e para de pedalar um instante para respirar. É nítido que ele não tem o fôlego necessário agora.
— Falta muito? Acho que quero andar um pouco — inclina a cabeça para o lado, considerando minhas intenções, mas concorda comigo no final — Sobre o que vocês conversam?
— Muitas coisas. Eu tinha umas dúvidas sobre uma parada e ela ajudou bastante — encara minha expressão perplexa com uma divertida no rosto — Nem adianta perguntar. Ela também não vai contar.
— O que é isso? Um complô contra mim agora? — Cruzo os braços na frente do peito. ri e voltamos a andar.
— Se te ajudar a aliviar essa mania de perseguição, não tem exatamente a ver com você — ele diz, me deixando confusa.
— Você não está aliviando nada. Se vocês não falam sobre mim, o que sobra? — começo a andar atrás dele, balança a cabeça de um lado a outro. Sua risada é cortada por uma tosse e eu fico entre sentir pena por ele estar se sentindo mal ou se rio do som esganiçado produzido por sua garganta.
— O que eu estava dizendo era que a Tati mencionou que você não dança desde o... Ano passado. E eu quero te desenferrujar — ele diz rápido, se voltando para mim e estudando minha reação.
— Não é bem não querer... Teve o acidente, a fisioterapia, depois... Para quê? — consigo alcançá-lo e troca de lado com a bicicleta, ficando mais perto de mim.
— Por que era algo que te fazia sentir bem? — ele junta as sobrancelhas, como se fosse óbvio — Por mais honrado que eu esteja de ser alguém em quem você possa confiar o suficiente para poder descansar, quero que tenha outras formas de manter sua sanidade quando eu não estiver por perto — ele explica paciente.
— Essa é uma péssima coisa para se dizer quando você está tossindo como alguém à beira da morte — digo sarcástica e ri, mas começa a tossir também, para dar vida a meu ponto.
— É só um resfriado. Eu não vou a lugar algum — ele reforça e eu o encaro um pouco desanimada — Não me olha assim, eu estou bem. Só não queria adiar meus planos até a semana que vem. Ontem nós fizemos três meses juntos e eu queria comemorar isso — diz envergonhado e eu me sinto a pior pessoa do mundo. Tão desanimada quando tem alguém tão disposto a celebrar a nossa existência juntos.
— Ah não! Eu... Eu deveria ter lembrado — bato a mão na testa com força e reclamo da dor imediatamente. ri, encosta a bicicleta no meio—fio e espalma as mãos em meu rosto, me fazendo olhá-lo.
— Ei... Para com isso. Eu tive ajuda para me lembrar também — o rapaz confessa, franzindo o nariz e me fazendo querer beijá-lo — Minha mãe comentou alguma coisa sobre o tempo em que o Ricardo está morando com a gente e a matemática me atingiu como um soco bem no meio da cara — cutuca minhas bochechas com o indicador. É impossível não sorrir.
— Eu queria ter lembrado — resmungo ainda hesitante em ceder para seu charme.
— Você lembra nos próximos — ele beija a ponta de meu nariz e sorri pequeno, me abraçando pelo pescoço.
— Para onde estamos indo? — Pergunto baixinho e grunhe.
— Por que você odeia tanto surpresas? — pergunta indignado, mas ainda rindo.
— Porque envolve não saber das coisas e eu odeio não saber das coisas! — explico o óbvio e ele inclina a cabeça para o lado.
— ‘Tá... Nós estamos indo para o estúdio de ensaio. Mas antes que você pense em protestar, quero que saiba que o padre João me deixou com a chave e não tem mais ninguém lá — Ele ergue uma das sobrancelhas, como se me desafiasse a discordar de alguma coisa.
— ‘Tá... — repito seu tom petulante e ele cerra os olhos em minha direção. No fundo, gosto de implicar com ele. Suas reações são impagáveis.
Folgada... — resmunga, mas morde o próprio lábio inferior com força, segurando os instintos de me beijar só por me achar irritantemente fofa.
destranca a porta, acende a luz do pequeno galpão e todas as memórias que tive ali me acertam todas de uma vez só. É difícil respirar da porta para dentro, o reflexo no espelho é tão vazio agora, mas antes não tinha espaço o suficiente para quem queria acompanhar os próprios passos enquanto dançavam.
— Tem certeza de que é uma boa ideia? — Pergunto para , ele dá de ombros e é realmente algo que ele não poderia responder. Só eu sei o quanto posso suportar ficar aqui dentro.
— Se quiser ir embora, é só me dizer — segura o estojo de CDs e o passa de uma mão para a outra. Ele me olha esperançoso, mas não quer me pressionar.
— Tudo bem. Eu consigo — sussurro e é como se o som de minha voz ecoasse para dentro de mim.
— O que quer ouvir? — pergunta casual, gosto de como ele estimula minha zona de conforto a ficar maior. Casualmente atento a cada reação minha, os olhos presos em cada passo que dou pelo reflexo no espelho.
— Qualquer coisa além do meu coração batendo nos ouvidos está ótimo — volto ao meu companheiro sarcasmo e dá de ombros, colocando para dentro do aparelho de som o primeiro CD que diz “hip-hop”, escrito de marcador azul com a letra de Pedro.
“Always On Time” preenche o ambiente. A voz macia de Ashanti junto à batida enche meus ouvidos e não perde tempo e começa a se alongar.
— Vamos, mocinha, alongando esse braço — ele ordena e eu rolo os olhos sem que ele veja, mas acabo cedendo.
— O que você quis dizer com me desenferrujar? — Pergunto entre uma profunda respiração enquanto toco a ponta dos dedos do pé com a palma da mão.
— Lembra da coreografia de “Work It”? — Ouço se estalar inteiro e um riso escapa por meus lábios.
— Claro que não.
— Eu te lembro, então — ainda estou me alongando quando se aproxima, apoia a mão na base de minha coluna e empurra só um pouco mais.
— Ai! — Reclamo, o fazendo rir.
— Desculpa — o rapaz diz devagar, parecendo distraído. Quando me levanto, flagro encarando minha bunda descaradamente.
— Posso ajudar? — Pergunto incrédula. Ele assente, os olhos ainda perdidos na curva farta de meus quadris.
— Desculpe, o quê? — Ele finalmente volta a me encarar e aqueles olhos desejosos sobre mim me fazem arfar audivelmente sem perceber.
Na altura do segundo refrão, estamos só aproveitando a música. Relembrando passinhos que fazíamos nas festas. O famoso pisa e arrasta. faz qualquer passo de dança parecer leve e fácil de fazer. Balanço meus quadris de um lado para o outro, me distraindo da realidade e sendo lentamente e pouco a pouco transportada para uma atmosfera cheia de ritmo da qual senti uma falta enorme. Meus pés no chão no ritmo mais agudo da batida, coincidindo com o ritmo cantando.
Parece que essa atmosfera é forte, atrai como imã e ele cola seu corpo no meu sem cerimônias. Ele acompanha meu ritmo, os pés sincronizados. A mão dele no meu quadril, a minha em seu pescoço, o mantendo próximo.
Não sei quando paramos de dançar, não sei nem quando me virei de frente para ele. Encarando seus olhos desejosos sobre mim, me fazendo sentir tão maior do que tudo que me aflige.
Ele me beija devagar, como se não houvesse mais nada que ele pudesse fazer. É tão maravilhoso e refrescante. Estar em seus braços é como meu quarto trancado particular. Meu botão de pausa é seu beijo aniquilador de maus pensamentos. Não percebo também quando me ergue no colo ou quando seus dedos ultrapassam a barra frouxa de meu short largo. Arranho seu pescoço com minhas unhas curtas, ouço seu gemido escapar por nossos lábios ferozes e minhas coxas se arrepiam na hora.
Me afasto dele e o encaro um pouco de cima, devido à altura em que ele me segura. Engulo em seco, encarando seus olhos brilhantes me encarando de volta.
Não dizemos nada, mas sinto minhas bochechas começarem a esquentar e eu faço menção de descer de seu colo. A música que toca é totalmente diferente da sensual que tocava antes e nós rimos, enquanto me devolve em segurança para o chão.
— É... Hmmm... Nós... — gesticulo rápido com as mãos, ainda rindo nervosa.
— É! Isso... Eu vou te ensinar a coreografia de “Work... It” — Escondo meu rosto quente de desespero com uma das mãos, disfarçando com um coçar de sobrancelhas. Estou nervosa, mas também estar, alinha as coisas e nos deixa na mesma página.
Ele se afasta para procurar a música na lista de reprodução, conhecendo bem Pedro, ele colocou essa música em toda e cada lista que já fez. Ao encontrar, sibila o pequeno cabeçalho da música.
“DJ please, pick up your phone I'm on the request line”
corre até sua posição de sempre e perde o tempo da coreografia criada por Pedro. Ele me encara pelo reflexo do espelho e eu aponto o centro do estúdio. Ele inclina a cabeça, hesitante. Eu vou até o aparelho de som e volto a música do começo. Procuro atrás do púlpito antigo pelo controle remoto e quando o encontro, dou uns tapinhas na parte de trás dele, forçando as pilhas a funcionarem.
— Pronto? — Pergunto me posicionando atrás dele, mas um pouco mais para o lado. assente e eu aperto o play.
Logo na primeira amostra, o tímido e hesitante sobre tomar o centro do estúdio se dissolve, dando lugar a um outro cheio de confiança e qualidade em cada movimento. Uma vez que ele inicia a coreografia afiada, mostra com fluidez e até certa facilidade que a coreografia é complexa, mas divertida.
Algumas deixas me fazem acreditar que essa é uma coreografia dupla e pelo que a parte masculina sugere, a interpretação da música é levada literalmente, exalando uma excelência sensual e misteriosa.
Tento me concentrar nas minúcias, separar o que é a personalidade de da coreografia original e encontrar meu próprio ritmo dentro dela. Eu tento. Mas me flagra olhando para ele igual ou talvez mais hipnotizada do que ele há pouco. E ao contrário de mim, ele sabe usar essa atenção de um jeito muito melhor.
não é exibido. É quase irritante como ele pode ser bom em praticamente qualquer coisa que quiser fazer e se diverte horrores se desafiando. Ele sabe exatamente como ele é bom, mas é tão tranquilo sobre isso que me deixa maluca. Ele nunca se gaba, pelo menos não falando sério, mas agora, que ele me encara de volta pelo reflexo do espelho empoeirado do estúdio de ensaio, ele está se deliciando com o fato de eu o achar absoluta e delirantemente gostoso. Tanto que dói. Dói em cada parte de meu corpo que quer ser tocada por aquelas mãos imediatamente.
Os quase dois minutos de performance terminam e se diverte ao final da coreografia. Uma risadinha maliciosa escapa por seus lábios e eu o encaro sorrindo também.
Chega aí! Eu assinto apressada, indo até ele quase que de imediato.

Parte por parte, vai explicando como tenho que me mover, guiando meu corpo bem de perto. Com a música parada, ele faz um beat boxing para me manter no tempo da música.
— O braço assim — ele interrompe os sons com a boca e para atrás de mim, me guiando pelo movimento inteiro. Ele segura meus pulsos, me fazendo fazer um meio círculo devagar com as mãos na frente do corpo. Ele afasta meus pés com o dele e volta sua atenção para o final do movimento, se certificando de que meus punhos estejam alinhados sobre os seios. Ele ajeita meus cotovelos e quando vai mexer no esquerdo, ele tem mais cuidado — Esse movimento dói? — Pergunta preocupado. Eu digo que não e ele segue contando os passos com beat box.
— Chuta, vira. Olha para cima, para você. Vira de novo, rebola e... Anda? — repito os movimentos sem muito ritmo só para memorizar e ele assente devagar — Acho que posso tentar com a música — digo concentrada e ele aperta o botão no controle remoto.
— 6, 7, 8... — conta baixinho e começamos a coreografia juntos. É poderosa a sensação de acertar os passos no tempo da música. Não consigo fazer a pose de marrenta que a música pede, porque estou muito feliz por estar conseguindo fazer a primeira parte da coreografia.
Paramos exatamente onde eu já tinha memorizado e ele suspira com as mãos na cintura.
— Agora vem a parte complicada — ele escolhe as palavras.
— Só agora? — brinco só para ouvir sua risada e ele não falha.
— A Leah incorporou alguns passos de dança africana e eu não sei se você chegou a ensaiar alguma coisa assim — ele diz mordendo o lábio inferior.
— Acho que sei do que está falando — digo um pouco envergonhada. O encaro decidindo sobre dividir ou não com ele um de meus mais sombrios segredos — Eu não tenho orgulho em dizer isso, mas eu fui um pouco obcecada pela Leah por uns meses. Fase estranha da adolescência, sabe como é... — ergue uma sobrancelha e eu sei que ele quer rir, mas não o faz por ser educado ou por temer as consequências — Eles montaram essa coreografia no meu quarto, eu me lembro dos movimentos agora — concluo, sentindo as bochechas coradas e sem coragem nenhuma de continuar vendo sua expressão divertida.
— Você é tão esquisita, meu amor — diz paciente, carinhoso. Eu rio baixo e ele balança a cabeça de um lado para o outro — Vamos continuar...
Voltando ao beat boxing, faz os movimentos e eu o imito com um pouco de atraso, tentando acelerar o método de ensino dele. Não que eu não esteja gostando de como ele está conduzindo essa aula particular, mas tenho pressa de concluir a coreografia e poder finalmente dançar para valer, olhando nos olhos dele não só pelo reflexo do espelho. Quero sentir a conexão que a coreografia demanda e mais que tudo, quero sentir seu corpo no meu.
Parece que toda a parte feminina da dança tem algum elemento que começa ou termina com um elemento parecido na coreografia masculina. São como se duas coreografias completamente diferentes se juntassem e formassem uma bela conversa.
Assim como na letra sugestiva da música, há uma tensão sexual imensa acontecendo nessa coreografia. Tendo em mente quem a criou, fico dividida entre rir daquele Pedro tarado de dezesseis anos ou me entregar para as sensações que estou sentindo toda vez que, seguindo a coreografia, toca minha cintura ou quando rebolo na frente dele e sem cerimônia, ele reage ao que vê de forma bastante entusiasmada e lisonjeira.
Mesmo ouvindo a música exaustivamente, quando é para valer ela parece novinha em folha.
Tiro a camiseta, expondo o top preto por baixo antes que entremos na marcação. Vou até ele olhando fundo em seus olhos e solto os cabelos que tinha prendido antes por causa do calor. Agora só quero me entregar de corpo e alma a esse momento.
Seguimos a batida da música, os passos sincronizados mesmo que não sejam similares. Um complementando o outro, suas mãos ditando os movimentos de meus quadris. Como se estivessem enfeitiçados, se movimentando com sensualidade e precisão. A camada grossa de tensão separando nossas peles mexendo com minha sanidade. Sei que não estou sozinha, pois, me olha daquele jeito desafiante, como se esperasse somente um sinal meu. Não está sendo exatamente fácil para ele também e eu adoro a forma como ele me deixa saber como mexo com sua cabeça.
Ao terminar, estamos os dois arfando, suando bastante e os olhos lacrados um no outro. Com a energia restante, vou até ele e faço algo que venho nutrindo à vontade desde que passei a olhar de jeito diferente. Há alguns passos dele, meus pés se impulsionam no chão e eu me lanço contra o corpo de . Ele me apoia pelas coxas, sorrindo surpreso. É diferente de ser levantada por ele, pular e saber que vai ser pega é inestimável.
Eu acaricio sua bochecha e inclino o corpo, beijando seus lábios como um agradecimento silencioso por ele sempre saber do que preciso.
— Eu vou suar tanto assim na segunda parte dessa sua surpresa? — Pergunto roçando meu nariz no dele.
Menina... — ele ri malicioso. As mãos espalmadas em minhas coxas as acariciam.
— O que foi? — Pergunto inocente e ele volta rir baixo.
— Você me deixa muito louco, — ele fecha os olhos, respirando pesado. Me coloca no chão com cuidado, crispo os lábios em protesto e ele toca a ponta de meu nariz.
— Eu não estou fazendo nada. Juro — me aproximo dele de novo, contendo um risinho divertido entre os dentes.
— Exatamente. Nem precisa de muita coisa — ele suspira de novo, adoravelmente irritado.
O abraço pelos ombros, fazendo questão de demorar minhas mãos no caminho até lá em seu peito forte.
— Obrigada — digo tímida, mas sustendo seu olhar quando ele me olha sorridente.
— Não me agradeça ainda. Depois de te levar para casa e tomarmos um banho, eu vou cozinhar para você — franze o nariz, se arriscando.
— Jura? — Estou quase emocionada por sua atitude. Dou pulinhos alegres em volta dele e me assiste satisfeito.
— Não quero que se empolgue muito. Eu sou péssimo cozinheiro — diz preocupado e eu agarro minha camiseta largada no chão, a visto e estou pronta para o restante da minha surpresa.
Quando chegamos de bicicleta, o cheiro do perfume forte do Ricardo nos faz dar um passo atrás, tamanha a pancada em nossos olfatos.
— Meu Deus do céu! — tosse de um jeito engraçado e eu tento não rir, pois, Ricardo dá mais uma borrifada de perfume no ar e anda abaixo da nuvem densa e perfumada — Para que tudo isso? — ele pergunta exasperado.
— O que foi? Sua mãe gosta... — Ele ajeita a gola da camiseta polo no espelho do corredor e me cumprimenta rapidamente com um aceno.
— Eles já chegaram? — Simone ajeita o brinco na orelha quando sai do quarto — Ah, que bom que nós ainda pegamos vocês — ela diz aliviada ao nos ver ainda parados perto da porta aberta, o único lugar que não cheira a Ricardo por enquanto.
— Aonde vocês vão? — pergunta para a mãe. Percebo que ele fica ligeiramente agitado ao descobrir que eles não estarão em casa nas próximas horas. Eles vão dançar.
— Querem ir com a gente? — Ela pergunta, dividindo o olhar entre mim e .
— Nós acabamos de voltar do estúdio, tia — explico tímida e ela assente rapidamente.
— Bom, então, juízo. Vocês dois — tia Simone sorri maliciosa e eu sinto minhas bochechas corarem. nem olha diretamente para mim, mas sei que ele compartilha de meu constrangimento.
— Fiquem com Deus — Ricardo passa por e eles se cumprimentam com um toque simples de mãos. Ao passar por mim, ele beija minha testa e a tia Simone, minha bochecha. Fecho a porta atrás deles e solto o ar dos pulmões devagar.
— Então... Quer ir tomar banho primeiro? — pergunta um tanto pensativo e eu assinto, querendo logo colocar o pijama confortável que comprei para poder parar de usar as roupas de , por mais mágicas que elas possam ser no quesito conforto, ainda são roupas dele e pode ser que ele se chateie por isso em algum momento. Sei bem como é com suas roupas.

Me tranco no banheiro com minha mochila grudada ao corpo. Me falta discernimento para compreender por que fiquei tão nervosa de repente. Encaro meu reflexo no espelho da bancada e respiro fundo. A versão de mim corada e suada pelo exercício é sorridente ao se encontrar. Fazia mesmo muito tempo que eu não dançava e visivelmente me fez bem voltar aos velhos hábitos.
Ao sentir a água morna contra minha pele me sinto mais relaxada, mas ainda pensativa. Eu sinto se formar no ar o caminho para onde leva o final da noite e eu ainda não sei se estou pronta para dar esse passo.
e eu não conversamos sobre limites, mas eles existem e são muito bem delineados em toda sessão de amassos que tivemos. Ele sempre para quando fica muito bom e eu respeito, porque, afinal de contas, esses limites são impostos porque entende que minha vida é uma droga e nós dois temos medo de que qualquer complicação a mais possa me quebrar de vez. Mas acontece que nada, absolutamente nada com é uma complicação. Eu sinto que ele realmente gosta de mim, com risco de quebrar e tudo. Como nos conectar em mais uma maneira poderia ser uma complicação?
Eu sei que ele é incrível e que vai continuar sendo quando o sol nascer amanhã e nossa relação tiver mudado. Mas por que estou com tanto medo?
Saio do banheiro tentando fazer o mínimo de barulho possível. Não sei por que quero passar despercebida para o quarto, mas quero. A névoa perfumada que me segue me denuncia e toda minha furtividade se esvai quando a cabeça de aparece na ponta do corredor.
Pijaminha — ele constata. Os olhos fixos nas minhas coxas.
— Com você falando assim, ele parece ter uns cinco centímetros à menos — devolvo rápido e ele sorri, mas os olhos espertos continuam me seguindo.
O pijama é mesmo curto. Não sei por qual áurea inocente pela qual eu estava envolta quando comprei o conjunto de short e blusa de alças finas de pano mole, preto, cavado no colo e de rendinha nas barras.
— Eu meio que queria que ele tivesse cinco centímetros à menos — diz sem vergonha e volta a beber do copo que segura com uma das mãos.
Eu suspiro profundamente.
Um casamento profano acontece dentro de mim. Uma união entre o medo e a curiosidade.
— Eu... — as palavras se embaralham e eu me engasgo com elas.
— Hmm? — ele incentiva, interessado no que eu tenho a dizer.
— Acho melhor você ir tomar um banho. Estou ficando com fome — sorrio vitoriosa. Adoro como meu cérebro consegue fabricar as melhores desculpas para quando ele mesmo para de funcionar.
— Olha quem está dizendo a segunda coisa que vem à mente agora... — os olhos de brilham sobre os meus e eu mordo a língua. Com ele não funciona.
— Eu não sei do que está falando... — ele se aproxima, tocando minha cintura com as pontas dos dedos. Os olhos dele passeiam por meu colo como interesse.
— Eu exijo saber qual foi o seu primeiro pensamento — morde o lábio inferior, tentando conter um sorriso. Mas seus olhos ficam miúdos olhando para mim. É divertido, perigoso, excitante, revigorante. Sinto cócegas imaginárias na boca do estômago, tão reais que me fazem rir empolgada.
— Eu realmente não posso dizer nada de barriga vazia — devolvo e abre a boca perplexo.
— Justo — ele assente rapidamente, me rouba um beijo estalado e entra no banheiro.
Já fora do alcance de seus olhos espertos, me encosto na parede, apoiando as mãos nos joelhos e respirando fundo. O ar entra e sai e eu continuo do mesmo jeito, confusamente excitada.
Levo minhas coisas para o quarto de e solto os cabelos, massageando a raiz. Preciso me distrair dos meus pensamentos cheios de dúvidas e perguntas das quais eu não gosto das respostas. Ligo o aparelho de som, mas giro a chave para a modalidade de rádio. Aperto o botão rapidamente, tentando chegar na minha estação de rádio preferida.
Alguma música do Skank está no final e o locutor interrompe o fim da música para mais uma propaganda.
— Essas são as cinco mais pedidas da semana! Continue sintonizado na MIX FM! — o início da próxima música é interrompido de novo. — 106.6. — o locutor completa com a voz grossa e bem pronunciada. “Me & U” da Cassie toma meus ouvidos e meu coração inquieto se distrai com a batida.
É como chegar em casa após um dia cheio, tirar os sapatos, o sutiã e tudo o mais que estressa seu corpo. O ritmo é tão familiar que nem percebo quando estou dançando de novo. Nada elaborado, só uma garota dançando no quarto do namorado enquanto decide se está ou não pronta para o que pode ou não vir a seguir.

— Vai finalmente me dizer o que vai cozinhar? — Encosto no batente da porta da cozinha, o encarando andar de um lado para o outro vestindo somente um short largo.
— Eu vou fazer brigadeiro — diz sério, encarando a panela diante dele.
— É a minha comida preferida — digo animada, mas sua preocupação me deixa aflita também — Algum problema com a minha preferência por doces à comida de verdade?
— De jeito nenhum, minha futura diabética. Eu acho que esqueci as medidas — ele crispa os lábios, se forçando a se lembrar. Eu contorno sua pequena crítica e o abraço pelas costas.
— Me deixa ajudar... — peço mais uma vez, sabendo que ele dirá não.
— É que eu queria muito fazer isso para você. Eu testei duas vezes, deu certo. Mas eu esqueci completamente a receita — eu sei que ele está verdadeiramente chateado e esse é o único motivo por eu não rir com toda sua frustração.
Com as mãos em seu torso, sinto ficar mais quente que o normal. Preocupada que ele tenha secretamente piorado de seu resfriado, decido convencê-lo a me deixar ajudar somente como pretexto para tomar conta da tarefa.
— Então, temos um problema. Porque essa é só uma das muitas coisas que quero que façamos juntos — digo séria e estreita os olhos.
— É mesmo? Que tipo de coisas você está maquinando nessa caixinha cacheada? — Ele ergue uma das sobrancelhas, se virando completamente em minha direção.
— Tipo... — estudo sua expressão sem vergonha e rio sem jeito — Tomar uma sopinha embaixo das cobertas e esperar essa febre passar — digo calma, mas estala a língua dentro da boca.
— Péssima ideia — ele avisa mantendo o olhar sobre mim. Talvez tenha achado que eu fosse recuar, mas inclino a cabeça para o lado, o encarando um pouco mais séria.
— Tem alguma ideia melhor? — desvio os olhos dos seus para seus lábios. Minhas mãos hesitam um pouco, mas toco seu abdômen com a ponta dos dedos, encostando o corpo no seu.
morde o lábio inferior prendendo uma risada grave e maliciosa. Ele não precisa dizer nada.

— Não está certo! — diz indignado.
— É assim mesmo nas primeiras vezes. Eu gostei — tento consolá-lo, mas não aceita que tenha feito algo errado.
— Mas não está certo! — Ele repete, frustrado.
— Eu prefiro brigadeiro com gruminhos. Tem uma mudança de textura que é bem bacana — Acaricio suas costas, prendendo um riso provavelmente desrespeitoso.
— Você é um amor. Da próxima vez, eu acerto — ele desiste, voltando a pegar a colher com um pouquinho de brigadeiro nela.
Estamos deitados em sua cama. Algum filme de vampiros passa na TV, mas nós não conseguimos assistir sem tirar sarro da atuação, do figurino, do roteiro. Enfim, o filme é uma excelente piada e é divertido ouvir os pontos pertinentes de sobre o desenrolar do filme tosco.
Vez ou outra, quando acha que estou distraída com o filme, encosta a cabeça em mim, respira fundo e se esforça para se recompor. Sei que ele não está bem e vendo como ele cuida de mim sempre, resolvo retribuir tanto carinho.
— Já volto — dou um beijo estalado em sua bochecha e passo por cima dele para sair da cama. Na pressa, acabo por me esfregar nele no percurso. Completamente sem querer. Como instinto, apoia as mãos nas minhas coxas, me olhando um pouco assustado, um pouco surpreso. Mas muito excitado. A posição encaixa perfeitamente e eu me remexo sem jeito.
... — afunda a cabeça no travesseiro, fechando os olhos com força. Detesto provocá-lo dessa forma, mas também gosto bastante de como ele me olha em deleite conforme me levanto devagar. — Que malvada...
Deixo o quarto aos risos e vou até a cozinha, encontrando tudo o que preciso para fazer um bom chá de limão com mel. reclamou de dor de garganta de forma discreta e descrente, como se não acreditasse que pudesse estar mesmo doente.
Espero a água esquentar e junto tudo em uma xícara, que aguarda o líquido quente com meio limão espremido e uma colher de mel para adoçar. Separo um pouco em um copo para testar o sabor. Tem gosto de saúde.
Quando volto para o quarto, mantém um braço sobre o rosto, o pé bate freneticamente no colchão e me lembro de ter visto fazer isso somente quando estava com muita dor.
Meu coração se aperta do peito. Imagino por que não cede como todos os outros homens que conheço e age como um bebê carente no menor sinal de mal-estar. Mas a resposta está bem diante de mim, afinal, eu faço a mesma coisa. Evitar preocupar as pessoas que amamos é um ato solitário, às vezes ineficaz. Mas pessoas como eu e estamos sempre evitando machucar os outros. Pensando nisso, vou até ele e lhe ofereço a xícara. hesita em pegá-la, mas aceita de bom grado. Subo com os pés na cama e volto a sentar onde estava antes, com cuidado para não derrubar chá quente sobre nós dois, puxo para meu colo e ele se encosta ainda muito indeciso em mim.
— O que é isso? — Pergunta desconfiado.
— Carinho da sua namorada. Agora, fique quietinho e tome o seu chá. O caçador vai virar lobo agora — fica me olhando por um tempo. Um misto de surpresa e contentamento brigam por espaço em seu rosto, mas ele acaba por sorrir e faz exatamente o que eu mando.
Faço carinho em seu cabelo, emaranhando meus dedos por entre os seus cachos grossos. Ele se aninha mais a mim, me fazendo sentir necessária.
— Desse jeito vou acabar dormindo — ele diz, já sonolento.
A xícara com o restante de chá pousa sobre a cômoda, ao lado da televisão que está no volume mínimo enquanto a noite cai lá fora.
Abraço com meus braços e pernas, sua cabeça pousa sobre meu peito e ele me abraça forte. Pela primeira vez, sou eu quem segura o homenzarrão em meus braços, tentando protegê-lo de qualquer coisa.
No dia seguinte, acordamos com o cheiro de churrasqueira sendo acesa. Forró toca alto do lado de fora do quarto e eu fico feliz por não ser a única a ficar ligeiramente incomodada por ser acordada desse jeito.
— Sorte dele que é um bom churrasqueiro — reclama, coçando os olhos. Não consigo evitar rir um pouquinho. É bom demais acordar ao lado dele — Bom dia, linda — beija meu pescoço e ri sem jeito quando sem querer — ou querendo — esbarra em meu peito com a palma da mão. Ele se levanta rápido e me deixa sozinha no quarto com um riso bobo nos lábios. É discrepante e até um pouco injusto como durmo bem na cama dele.
Acho que acreditar tanto nesse negócio de energia está se elevando rapidamente. Essa casa, essas pessoas. Tudo aqui me faz sentir bem, em casa. é o fator principal, mas o amor que emana dessas paredes me deixa perplexa.
Me levanto, me troco. Ajeito o quarto e levo a louça discretamente para a cozinha. Sei bem que a tia Simone não gosta que sujemos o quarto com comida, mas de vez em quando não faz mal.
Lavo o prato, as colheres e a xícara. Ajeito o cabelo em um rabo de cavalo no alto da cabeça e vou até o quintal atrás da cozinha. O som vem de lá e o casal mais velho dança juntinhos ao som de Elba Ramalho.
Assisto a cena de longe, sorrindo ao vê-los tão apaixonados. Não demora até que saia do banheiro e eu possa escovar os dentes e começar o dia. A tia Simone me pede para fazer arroz e aproveita a chance para aprender como se faz o básico na cozinha.
Admito que vê-lo cortar alho com um pano de prato pousado no ombro me faz fantasiar um futuro distante, onde cozinhamos na nossa própria cozinha para nossos filhos.
... — chama e não parece ser a primeira vez. — Que foi, amor? ‘Tá com cara de quem viu um fantasma.
— Estava viajando... Me ignora — digo sem jeito, as bochechas quentes como a brasa na churrasqueira.
— De jeito nenhum — ele balança a cabeça, rindo de leve — O que foi?
Mordo o lábio inferior, soltando o ar um pouco frustrada por me sentir tão boba.
— Acho que estou me precipitando com algumas coisas — confesso envergonhada e ele franze a testa, ainda sem entender.
Decido que refogamos o arroz junto com o alho por tempo suficiente, coloco a água fervendo e tampo metade da panela. Faço tudo sob os olhos curiosos de meu namorado. Vou fazendo devagar, tentando encontrar o jeito certo de dizer o que preciso dizer.
Assim que me vê livre das obrigações, avisa à mãe que já fizemos o arroz e que vamos sumir por alguns minutos.
Ele fecha a porta do quarto, abafando um pouco a música.
— O que está acontecendo? — Ele pergunta divertido, mas percebo uma ponta de preocupação no meio de sua curiosidade.
— Estamos namorando — começo comedida, tentando entender o campo novo em que estamos pisando — Namorando sério. Há alguns meses. — assente a cada constatação — E eu adoro que estejamos namorando sério há alguns meses. É, tipo, a melhor-melhor-melhor coisa que poderia ter me acontecido nesse meio tempo nebuloso da minha vida — rio nervosa e também. Dá para perceber que ele está nervoso porque ele morde o interior da boca sem parar — E eu quero que saiba que eu também estou adorando a velocidade com como as coisas estão acontecendo. Mas acho que... — as palavras somem. Eu fico constrangida com a ideia de impor essa conversa e desse jeito, tão por acaso.
— Que...? — Ele insiste, menos divertido agora.
— Calma. É uma coisa boa, eu acho — coço os olhos, tentando colocar a cabeça em ordem.
— Então, diz logo. Eu estou quase desintegrando em agonia — eu rio e ele ergue uma das sobrancelhas.
— Certo... — Suspiro desistente — Não sei bem como dizer isso, porque não sei o que dizer se você disser o que estou pensando que vai dizer — massageia as têmporas, uma risada quase desesperada escapa de seus lábios.
— Deve ser muito sério. Eu devo me sentar? — Ele pergunta e eu rolo os olhos.
— Não, ... É que... — Encaro seus olhos, tomando coragem — É que eu tenho pensado em... Ai... Não consigo — escondo meu rosto entre as mãos e ri, aliviado.
— Acho que sei do que está falando. Tenho pensado nisso também — rio entre as mãos, abrindo somente uma fresta para encará-lo. sorri mais abertamente e bate a mão ao lado dele no colchão. Me sento e encaro minhas mãos, ainda sem coragem para olhá-lo.
— O que a gente faz? — Minha pergunta é genuína, mas tem sua resposta na ponta da língua. Ele ri malicioso e eu o acompanho — Estou falando sério. Tenho um pouco de medo de tudo mudar depois e...
— Ei... Sei que é conveniente para mim dizer que nada vai mudar agora, mas é dolorosamente verdade. Eu a... Adoro ficar com você e não quero que acabe — limpa a garganta e se agita um pouco, ele se ajeita duas vezes na cama. Claramente incomodado.
— É tão estranho. Estou com medo de perder você se fizer e se demorar demais para fazer. Também tem a insegurança de achar que te fiz esperar por algo que pode nem ser tão bom comigo... Estou tão confusa — confesso deixando que meus pensamentos mais profundos escapem em liberdade.
— Eu sei que essas coisas não são exatamente fáceis para você, . Espero não estar te pressionando porque estou disposto a esperar quanto tempo for necessário — ele diz sério. É importante para ele que eu saiba que não há pressa e eu quase consigo me apoiar nessa ideia.
— Mas... Sexo não é uma necessidade fisiológica? Você não está enlouquecendo aos poucos com tanta abstinência? — Pergunto ainda insegura, me lembrando de como tal feito pode ser essencial em alguns relacionamentos. E eu quero saber se o nosso está incluso.
— Não... — ele ri, a pergunta parece até ofendê-lo um pouco — Não me entenda mal. Você na minha cama, usando minhas camisetas ou aquele pijaminha sem vergonha é parte do meu sonho mais pervertido. Mas acontece que eu sei como isso tudo é complicado para você. Não quero fazer parte do problema — ele diz um tanto incomodado.
— Como assim você sabe? — Pergunto desconfiada. fecha os olhos, suspira pesado e volta a me olhar com pesar.
— Eu estava no estúdio na noite em que você e o Guilherme... Eu sei que não foi a primeira vez dos sonhos — ele diz constrangido, mas não tanto quanto eu. Meu corpo muda de temperatura e eu me sinto suando enquanto fico gelada.
— Você viu? — Pergunto sem querer saber a resposta. Não sei como me sentir.
— Não, amor... Eu ouvi você chorar, depois vi o Gui saindo de carro... Não foi difícil juntar as coisas — diz meio cabisbaixo — Desculpe, devia ter contado antes.
— Não... Só estou envergonhada por ter sido tão estúpida — fico visivelmente chateada e até se não fosse a pessoa incrível que ele é, poderia perceber.
— Você não é estúpida. Ele foi, nós é que somos os babacas, lembra? — Ele ri sem alegria, me olhando com cuidado.
— Você não liga que eu não seja virgem e tal? — Dou de ombros, tentando conhecer melhor meu namorado.
— Eu ligo que não tenha sido bom para você. Acho que você merece o melhor que alguém pode oferecer. Eu quero ser esse alguém? Desesperadamente — ele ri nervoso e eu o acompanho — Mas quero que se sinta segura primeiro. Não quero que seus reflexos sejam espasmos provenientes de traumas quando eu te tocar.
— Você...
— É... Eu percebi — ele sorri de lado, muito triste. Não tenho ideia de como possa ser para ele ter que encarar essa rejeição, mesmo que ela seja momentânea e não direcionada a ele, necessariamente.
— Eu sinto muito, ... Eu venho querendo te dizer como tudo o que você faz parece curar essas feridas lentamente e o quanto sou grata por tudo o que faz por mim. Sinto que não mereço você — estala a língua dentro da boca, discordando veemente.
— Que besteira, menina — ele se aproxima — O que eu sinto por você é tão louco. Não achei que poderia sentir algo assim por ninguém e eu ainda acho que é pouco. Você é incrível, puxa ar para dentro e segura por um tempo, soltando devagar enquanto se acalma — Eu vou parar de falar agora, porque sei que você vai ficar toda surtada com o que eu quero dizer — ele me encara de perto, estudando meu rosto.
— Acho que eu surtaria mesmo — ele ri convencido por me conhecer tão bem.
— Estamos bem? — Ele pergunta com a testa franzida, tenso. Eu assinto devagar — Posso te beijar agora, por favor? — Volto a assentir, dessa vez mais veemente. Ele me puxa pelo rosto e me beija com urgência.
Batidas tímidas na porta me afastam de e ele grita para quem que seja que esteja batendo, entre.
— Vamos comer uma carninha, pessoal? — Ricardo entra no quarto com a mão tapando os olhos. rola os dele e me encara cúmplice.
— Nós estamos vestidos, Ricardo! — diz impaciente, me fazendo rir baixinho. O mais velho espia por entre os dedos e sorri amarelo.
— A sua mãe que mandou eu fechar os olhos...
— Ah, meu Deus... Vamos? — se levanta, entrelaço meus dedos nos seus e ele nos guia para o quintal.
Após uma pequena discussão entre e Ricardo sobre gostos musicais, cabe a mim desempatar a briga escolhendo alguma música para tocar enquanto esperamos que a carne descanse. Avalio o clima gostoso daquele domingo ensolarado, a fumaça do churrasco se dissipa no céu claro e é o tempo perfeito para ouvir um bom e velho samba. Elis Regina vem em minha mente e eu coloco uma que eu adoro, “Tiro ao Álvaro”.
— Agora tem que dançar! — Tia Simone agita, já dobrando a saia cumprida para sambar. Me aproximo dela e acompanho seus passinhos, até ter coragem o suficiente para sambar de leve, sentindo a melodia gostosa de letra simples e adorável.
Enquanto ensino Ricardo a sambar, , que cuida da churrasqueira, me observa pensativo. Sorri vez ou outra, mas posso ver a fumaça da fabricação de seus pensamentos se juntar com a do churrasco.
Depois de Elis, toca “Ai que saudade D’Ocê”, a voz doce de Elba Ramalho toca bem no fundo da alma. A mistura do triângulo, da sanfona, da flauta, do bumbo é tão sutil, mas tão poderosa. Não tem pé que fique parado ouvindo um bom forró raiz.
Não demora até me puxar pela cintura, guiando a dança. Ele pega minha mão com a dele, seguramos juntos o garfo grande que ele usava para virar a carne na grelha. encosta o rosto no meu e me carrega pelo pequeno quintal num ritmo gostoso, irresistível. Ricardo pega tia Simone pela mão e ficamos os quatro ali, dançando forró e comendo churrasco até que os pés se cansem e a brasa se amorne. Ora trocamos os pares, mas descubro como dançar mesmo é com a tia Simone. O molejo da cintura daquela mulher é surpreendente.
Assistindo e Ricardo perderem todo a pose de bons dançarinos enquanto decidem quem vai guiar e quem vai ser guiado, tia Simone me pega pela mão e me leva até seu quarto.
Sinto que uma conversa séria me aguarda, pois, quando a porta se fecha, os passos rítmicos de tia Simone também cessam e ela me olha curiosa de um jeito que me deixa sem graça.
— Você está bem, ? — Pergunta como quem não quer nada, mas conheço bem a mulher que me lança um olhar meio preocupado.
— Sendo completamente honesta, não — seus ombros murcham e ela se senta na ponta da cama, me chamando para sentar também.
— Eu imaginei — ela sorri sem alegria — Tive um encontro com a sua tia e ela me contou o que houve.
— Ela disse que não vai denunciar? — Pergunto e fecho os olhos com pesar quando vejo a mulher assentir, tão ou mais decepcionada do que eu.
— Os machucados da Vanessa são mais extensos do que os nossos olhos podem ver, querida. Não é o ideal, mas ela está pensando em sair de casa e deixar o marido.
Levanto meus olhos, a encarando esperançosa.
— Ela disse isso?
— Sim. Mas antes, quer ter certeza de que vai conseguir continuar te dando o apoio com a faculdade. A Vanessa se importa mesmo com você, . Ela acredita que está fazendo isso por você também, no final das contas. — Tia Simone sorri de um jeito que me enche de alegria.
— Ela pensa em voltar a morar aqui? — Pergunto ansiosa e ela ri mais forte, percebendo que minha empolgação em voltar a morar aqui é maior do eu.
— Para onde mais ela voltaria senão sua casa? — Deixo a pergunta no ar, pois, a resposta está mais do que clara.
Almoçamos tarde naquele domingo, mas vale a pena. Arroz soltinho, feijão tropeiro e vinagrete acompanham um exagero de variedade de carnes em um prato maior do que posso comer. Mas é com esse clima gostoso em família que comemos, ouvindo as piadas terríveis de Ricardo, que divide conosco a experiência diária na metalúrgica onde trabalha.
Após o almoço, Simone distribui tarefas para nós três e assim que terminamos, nos instalamos na sala para assistir a um filme que faz os mais velhos dormirem em menos de meia hora.
— Eles estão mesmo dormindo? — Pergunto baixinho, afundada no sofá, com deitado à minha frente.
— Tomara que sim — ele ri divertido e volta a me beijar exatamente do jeito que sempre sonhei em ser beijada. Tão preciso, firme, certeiro que é silencioso. Lento a ponto de me fazer virar os olhos mesmo que estejam fechados e tão delicioso que me deixa insuportavelmente molhada, com câimbra no peito do pé por curvar tanto os dedos em puro deleite e expectativa.
Eu nunca quis tanto assim transar com alguém na minha vida inteira.
A tarde se transformava em noite quando me leva no ponto de ônibus de bicicleta. Tem um homem fumando um cigarro no banco da estrutura metálica e encosta a bike no poste de luz, não demora nem meio segundo para segurar minhas mãos e me trazer para perto de seu corpo. Mal sabe ele que é meu lugar preferido para se estar em qualquer ocasião.
— Estamos mesmo bem? — Ele pergunta me deixando um pouco aérea por cortar um beijo gostoso com tal pergunta descabida.
— Acho que sim? — Abro os olhos me sentindo sonolenta. O ônibus demora, mas estou dividida entre querer que ele venha logo e ficar só mais um pouquinho no meu lugar preferido.
— Acha? — Suas sobrancelhas fazem o desenho perfeito de uma onda perseguindo outra e eu cerro meus olhos, buscando uma palavra melhor.
— Olha... Eu não estaria te beijando desse jeito se não estivéssemos bem — digo devagar, explicando a ele como se explica a uma pedra a cair no chão.
— Não sei, não, coça a nuca, morde o interior da boca indeciso — Eu não quero mesmo ser alguém que força a barra. Eu gosto de você e quero se sinta bem — Ele parece um pouco transtornado, irritado até.
— Ei — Puxo seu rosto com as mãos, encostando minha testa na sua — Calma, . Eu garanto que você não está forçando barra nenhuma. — Tento espantar a urgência de um pensamento completamente inapropriado em que eu queria que ele forçasse sim sua barra, para dentro de mim. Sua respiração mentolada bate contra meu rosto e ele parece bem melhor do resfriado. Melhor impossível. umedece o lábio inferior com a ponta da língua e eu sinto um calor se espalhar do centro de meu corpo.
— Esse olhar! — me empurra muito rápido pela cintura — Eu não aguento esse olhar, menina. Faz eu sentir vontade de...
— De que? — Insisto, voltando a me aproximar.
morde a língua para não dizer, mas eu sinto meu baixo ventre formigar com a possibilidade de ele colocar em palavras o que os olhos flamejantes me dizem.
Prendo a respiração, estufando o peito em expectativa.
— De te foder agora. Aqui mesmo — fala sério. Muito sério. Abro a boca para responder a altura, mas nada sai. Nos cantos de meus olhos se reúnem pequenas gotículas de um choro não triste, muito longe disso. Mas quase emocionado, desesperado para que aconteça. Aqui mesmo.
O homem no ponto de ônibus joga a bituca de seu cigarro no chão, o ônibus se aproxima virando a esquina. Ele se prepara para entrar, eu não tenho forças para fazer o mesmo.
— Ei... — me chama, enquanto o motorista ainda abre a porta sanfonada — Obrigado por hoje — ele sorri pequeno e eu me viro para ele, sem me importar com a reclamação passivo-agressiva do motorista.
— Obrigada por todos os dias — Beijo rápido seus lábios, rindo de como o beijo sai desajeitado. Corro para o ônibus e então, para a janela, acenando para ele já em movimento.
O motorista me olha torto, mas eu devolvo o olhar. Ele interrompeu uma conversa muito delicada.
Só depois, bem distante de meu namorado excitado e delicioso é que eu consigo organizar palavras em uma boa resposta que provavelmente mudaria o curso de minha noite e agora eu não estaria sentada no banco do ônibus.
— Eu quero você me fodendo para sempre — digo para mim mesma, mas o cobrador escuta e me olha malicioso. Eu rolo os olhos e mudo de lugar, me sentando mais ao fundo, buscando em minha mochila pelo meu celular, já com saudade de e de me sentir em casa.


ATO V

Me distraio com o violão enquanto ajeito a pequena pedra que encontrei no chão do jardim do campus para que a página no caderno de composições fique aberto enquanto uma melodia dança em minha cabeça e ameaça me enlouquecer se não sair de lá.
Escrevo as partituras de um jeito estranho que só eu consigo compreender, na esperança de ter tempo para repassar tudo em uma folha limpa logo. É quinta-feira e como em todas as semanas, o prédio fica vazio e silencioso logo após as aulas. Aproveito o sossego para compor e adiantar alguns trabalhos.
De longe, escuto a conversa amigável entre duas mulheres e franzo a testa confusa ao reconhecer bem uma delas.
Tia Vanessa.
— Muito obrigada pela oportunidade — ela chega a se curvar agradecida, o sorriso tão imenso que parece não caber em seu rosto.
Quando a outra moça, esta baixinha e franzina, com menos empolgação atravessando seu rosto, se afasta para dar continuidade ao seu dia, vejo minha tia disfarçar os saltos de mais genuína alegria.
Minha curiosidade parece querer explodir dentro de mim. Sem pensar duas vezes, deixo tudo de lado e vou apressada até ela.
— Tia? — Chamo cautelosa — O que está fazendo aqui?
! — Ela solta um gritinho animado e vem saltitante até mim — Acabei de conseguir um emprego! — Ela bate palmas repetidas e os pulinhos alegres fazem seus cabelos esvoaçarem. Sorrio orgulhosa. A tia Vanessa tem agido cheia de autonomia na última semana.
Não contei a ela que conheço seus planos, gosto de vê-la trabalhar misteriosamente e se comportar como se preparasse uma surpresa.
Não quero estragar a alegria nítida que vejo em seus olhos, então, trato de comemorar com ela, mesmo que tenha milhares de perguntas a fazer.
Uma dancinha silenciosa é compartilhada e logo ela lança seus braços sobre mim, num abraço apertado e cheio de carinho.
— Parabéns, tia. O que você vai fazer? — Ela suspira empolgada e começa a explicar as tarefas que cumprirá trabalhando no almoxarifado da faculdade. Apesar de ter muitas perguntas, eu não as faço. Deixo que ela lidere a conversa pelo caminho de volta até o centro do jardim, onde estão minhas coisas.
O vento bagunçou o caderno e com ele, a melodia se esvai junto com a brisa de fim de tarde.
— E então, vou organizar tudo e manter um controle de quem pegou o quê e quando tem de devolver, se for o caso — Ela explica orgulhosa e eu balanço a cabeça para cima e para baixo. — É claro que tem outras funções que eu tenho que empenhar, mas vou descobrindo conforme acontecer.
— Parece ser um serviço tranquilo. Gosto de te imaginar controlando o acesso das pessoas a canetas apagáveis — Brinco divertida e ela concorda rapidamente.
— Ouvi dizer que é uma verdadeira sorte encontrar um que esteja funcionando corretamente — rimos cúmplices quando noto a presença de mais alguém no jardim. É o professor Alexandre e ele nos observa nem tão de longe assim. Ele parece buscar no fundo do baú empoeirado de lembranças em sua mente por algo muito importante.
... — diz incerto, olhando de mim para a tia Vanessa que o encara de olhos meio arregalados. Cutuco sua cintura com meu cotovelo e ela conserta a expressão abobada no rosto, sorrindo abertamente para o homem que agora se aproxima de nós.
— Tia, este é Alexandre Rodrigues, meu professor de produção e história da música — faço um gesto que vai dele para ela, fazendo o oposto quando a apresento a ele — Está é Vanessa, minha tia — eles trocam um olhar intenso, curioso. As mãos se erguem devagar, tão devagar que ambos parecem estar amedrontados com o toque.
— Alexandre... — Tia Vanessa balança a cabeça de um lado para o outro, sua voz soa aliviada. Ela puxa seu pulso e eles se esbarram em um abraço inesperado que me faz sobressaltar em puro desentendimento.
— Quanto tempo, Nessa! — Ele a abraça pela cintura. Assisto as mãos dele se espalmarem em suas costas com certo carinho e propriedade, como se já tivessem estado ali antes.
Nessa? — Pergunto com a voz muito aguda, chamando a atenção dos mais velhos para mim.
— Ah, ... Eu não me orgulho muito disso, mas, eu costumava ser uma groupie da banda do Alê. — Ela ri despreocupada, trocando um olhar íntimo com meu professor, que sorri de boca fechada e de bochechas levemente coradas.
— Alê? Groupie? — Olho de novo para a mão de meu professor, que continua apoiada na base das costas de minha tia.
— Só um jeito de falar. Sua tia era a maior fã da nossa banda na época. — Eles trocam um olhar muito intenso. Daqueles que parecem trazer à tona memórias avassaladoras, há muito esquecidas.
— Ainda sou! — Ela completa, arrancando uma risada dele. O som é estranho para mim. É uma daquelas risadas que deveriam ser curtas, mas, devido a um nervosismo palpável, ela dura alguns segundos a mais de constrangimento para todos os envolvidos.
Me sinto tão deslocada e perdida. Não consigo ficar parada no lugar, dou alguns passos para o lado e olho em volta, pois, eles ainda estão se encostando bastante e eu não tenho certeza sobre as regras da faculdade sobre relacionamentos entre os funcionários.
Ao mesmo tempo em que estou tão apaixonada pela ideia dos dois juntos, estou apavorada com o que isso pode significar.
Quão pequeno pode ser este mundo?
— É um prazer reencontrá-la, Nessa. Um prazer enorme! — Meu professor, que normalmente mantém um tom de voz rígido e intimidador, fala macio com minha tia, que se derrete diante dos olhos atentos dele.
Ela sequer disfarça o entusiasmo.
— O prazer é todo meu, Alê. diz maravilhas sobre as suas aulas. — Ela mente descaradamente. Não que eu não goste das aulas do professor Alexandre, longe disso, mas, nós não falamos muito sobre as minúcias de sua expertise acadêmica nas aulas.
— É uma honra ser professor da . Ela é respeitosa, interessada e faz perguntas desafiadoras. — Eles compartilham de um riso social, mas não um que queira encerrar a conversa.
— Ela sempre foi assim. Desde pequena, nos deixa de cabelos em pé com seus questionamentos profundos. — Eles falam como se eu não estivesse presente, o que é irritante, pois, claramente eles querem falar sobre outra coisa e estão me usando como desculpa para ficarem perto um do outro.
— Eu vou… Só… — Percebo que eles sequer estão me ouvindo e decido não atrapalhar o reencontro. Conforme me afasto, ainda consigo ouvir sua conversa, mas o fato de eu não estar encarando os dois faz com que eles deixem o restante de timidez de lado.
— Você continua deslumbrante, Nessa. — A risada constrangida me faz rolar os olhos. — Não consigo descrever como é bom te ver de novo. — Tia Vanessa ri também, agora mais moderadamente.
— Então, acho que vai ficar feliz de saber que começo a trabalhar aqui na segunda — diz minha tia, charmosa e confortável.
— É um bom jeito de trazer um pouco de luz para este lugar. — Levanto os olhos do material que guardo na mochila e encaro os dois se encarando.
Não consigo não sorrir.
Sinto as coisas se embaralharem em minha mente e eu passo os olhos de um para o outro, tentando entender o que diabos está acontecendo. Não quero parecer moralista, longe de mim puxar a sardinha para o lado de Arnaldo em qualquer situação, mas tia Vanessa está passando dos limites de um flerte saudável e inocente.
Os planos não incluíam encontrar mais complicações, só nos livrarmos das que já temos.
Decido não encarar mais, não pensar e não julgar demais. Aliás com este último, não fazer de qualquer jeito, porque, digam o que quiserem, mas tia Vanessa e o professor Alexandre formariam um casal poderoso. Exalando melanina, beleza e uma química invejável por onde andassem juntos.
— Tia? — Chamo sem jeito, não quero atrapalhar porque o jeito como ele está olhando para ela agora é como a tia Vanessa deveria ser olhada todos os dias. Ela sorri para ele, distraída com alguma coisa que ele falou e eu me detesto, mas chamo de novo.
— Sim? — Ela se vira de olhos bem abertos, corada como uma adolescente.
— Preciso dar um pulinho na biblioteca, te encontro lá fora depois? — Evito olhar diretamente para o professor, ele se esforça para fazer o mesmo, só esperando que eu saia. Minha tia assente devagar e eu prendo o riso que quer escapar com os dentes.
Carrego meu violão e a mochila para longe do jardim, dando a eles um pouco de privacidade para se reconectarem aos velhos tempos.

19 de maio, 2007


É sábado à tarde e pela segunda hora seguida, estou vasculhando o perfil no MySpace de Leah. As muitas mensagens e homenagens a seu aniversário deste ano já ficaram para trás, mas ainda continuo olhando seu perfil, sem saber o que estou procurando.
Ela não tem feito muitas postagens desde o final do ano passado e eu compreendo, eu também não fiz nenhuma. Não há nada na minha vida que eu queira que outras pessoas saibam. A única coisa boa, que é , tenho uma necessidade latente de guardar só para mim. Eu sei que as pessoas sabem do nosso relacionamento, eu só não quero fazer propaganda sobre o assunto. A opinião de mais ninguém importa.
Encaro a nossa foto no porta-retratos atrás do monitor do computador. Seria uma boa imagem para postar se fosse o caso. Estou em pé nas pedaleiras dianteiras, virada de frente para ele, me apoiando em seus ombros com os cabelos bagunçados pelo vento. me olha sorridente na foto e eu me lembro do momento exato em que Tati a capturou. Poucos segundos depois, me convenceu a soltar do apoio em seus ombros e deu uma volta inteira comigo enquanto eu me sentia flutuar.
Por momentos assim que sou grata por Tati nunca soltar sua câmera digital enquanto estamos todos juntos. Ao lado desta, outra foto que também foi um presente de Tati chama minha atenção. A de Pedro e eu em minha última festa de aniversário.
Desviar os olhos da foto não torna menos doloroso ler as mensagens de conforto que Leah recebeu dos amigos naquele fatídico mês de dezembro. Acho que parte da minha falta de interesse com as redes sociais vem disso, a lembrança das pessoas.
Rolando a tela um pouco mais, chego em uma época da vida de Leah em que tudo era postado em seu perfil diariamente. Tudo era tão diferente, agitado e cheio de energia. Sorrio ao ver suas postagens felizes e cheias de expectativas para a competição em que nós viríamos a nos classificar para as finais. Os vídeos engraçados dos ensaios do Funkz e as fotos enigmáticas de um casal que nunca chegou a se assumir de verdade.
Nas fotos de grupo, em que Pedro aparece sem a censura sutil, ele sorri tanto e está sempre evitando olhar diretamente para a câmera, tentando fazer quem quer que estivesse posando junto com ele, rir de verdade. E ele sempre conseguia fazer com que todos saíssem espontâneos nas fotos.
Chego em uma postagem dela no dia do aniversário de Pedro, em julho do ano passado. Nesta foto ele aparece por inteiro, olhando para ela de um jeito muito carinhoso enquanto Leah esbanja sua beleza estonteante. Na legenda, Leah tenta disfarçar como realmente se sente. Usa de muitas piadas internas e zoação gratuita para encobrir seus sentimentos, mas, sabendo o que eu sei sobre esses dois, um pedaço da legenda imensa não passa batido por mim.

“Sorte minha que você tem esses olhos. Seu olhar me diz mais do que milhares de palavras jamais poderiam. Feliz aniversário.”

Leah amava o Pedro. E eu sei no fundo do meu coração que Pedro também a amava. É revoltante que eles não tenham tido tempo de viver esse amor livremente por completo.
Me distraio da foto na tela do computador, para a menor que aparece na tela de meu celular. É Tati e ela nunca liga sem avisar por mensagem antes.
, eu fiz besteira. Preciso de você! — Ela diz manhosa, fungando como se chorasse entre cada palavra.
— Tati? O que houve? — Pergunto entrando em pânico.
— Só... Vem para cá? — Ela pede e eu já estou alcançando o casaco no guarda-roupas.
No ônibus, todo tipo de pensamento caótico me ocorre e eu não consigo conter a ansiedade, batendo o pé freneticamente no chão. No metrô, minha cabeça gira com as possibilidades se empilhando e deixando impossível pensar de forma coesa.
Penso em Tati sendo expulsa de casa pelo pai transtornado com a notícia de que a filha não irá seguir o caminho que lhe foi oferecido e vários outros cenários diversos, onde todo tipo de tragédias que poderiam ocorrer agora aconteceram e eu tento pensar em como resolver algo grande assim.
Quando salto do outro ônibus, sinto meu coração acelerar, me mostrando que só estar no bairro não resolve o problema do qual minha melhor-melhor amiga não quis dar mais detalhes nem por ligação, nem por mensagem.
Caminho apressada em direção a casa de Tati, percebo só agora que só peguei minhas chaves, meu celular e minha carteira. Nada mais. Saí tão focada em resolver o problema de Tati que nem peguei a mochila com uma muda de roupas ou minha escova de dentes.
Ao me aproximar do portão da casa de Tati, vejo Felipe andar de um lado para o outro na calçada. Ele tem uma expressão culpada, preocupada, aflita.
— Ela não me deixa entrar. Não quer falar comigo. O que foi que eu fiz, ? — Ele me pergunta assim que me vê e eu dou de ombros, tão transtornada e perdida quanto ele.
— Tati, abre o portão. Sou eu, a — digo alto, pelo interfone. Não demora até ouvirmos o zumbido do portão automático ranger ao se abrir.
— Só você entra — Tati avisa, a voz rouca e tristonha se fazendo ouvir meio robótica por causa do alto—falante velho do interfone.
— Espera aqui, eu vou ver o que está acontecendo. — Olho Felipe com desconfiança, me certificando de que o portão se feche com ele do lado de fora. Ele lança as mãos à cabeça, agoniado.
Subo as escadas correndo e abro a porta, procurando por Tati. Não parece ter mais ninguém em casa e eu me preocupo que ela tenha se machucado de alguma forma.
— Tati? — Chamo enquanto passo os olhos pela cozinha e sala, não vendo ninguém.
— Aqui em cima. — Tati diz do andar de cima e eu subo até lá, pulando os degraus da escada de dois em dois.
Ela não está em seu quarto e as portas dos outros quartos estão trancadas. Caminho até o banheiro no final do corredor e encontro minha melhor-melhor amiga encolhida no canto. Os olhos vermelhos e inchados se viram até mim e Tati volta a chorar, tremer e tentar respirar. Tudo de uma só vez.
— Ei, o que houve? — Empurro a porta e vou até ela, me abaixo diante de Tati e evito tocá-la de imediato. Tirando o estado catastrófico ao qual ela se encontra, Tati não parece machucada fisicamente e eu respiro aliviada.
— Acho que estou grávida — diz Tati, soluçando.
— A sua menstruação atrasou? — Pergunto o óbvio, precisando entender isso do começo.
— Ainda não. Mas sinto meus peitos inchados e doloridos. — Uma lágrima grossa escorre pelas bochechas rosadas de Tati e eu engulo a vontade breve de rir com toda a compaixão que há em mim em relação a essa garota. Não posso descredibilizar sua preocupação, mas Tati não parece estar pensando direito agora.
— Você quer fazer um teste? — Volto a perguntar e ela dá de ombros.
— E o que eu vou fazer se estiver grávida? Meu pai vai querer me matar e depois matar o Felipe. E vai ser um escândalo terrível. Minha mãe vai me deserdar, minhas irmãs vão ficar aliviadas porque não foi com elas... — Ela esconde o rosto nas mãos.
— Você vai estar morta, não vai precisar de herança mesmo. — Minha melhor-melhor amiga me lança um olhar mortal e eu decido levar a situação com um pouco mais de seriedade. — É... Acho que você precisa ter certeza antes de tentar adivinhar a reação das pessoas — digo um pouco confusa com a ordem de suas prioridades. Não sei bem o que sentir.
Eu me compadeço do desespero de Tati, totalmente. Mas não consigo enxergar a situação como um problema tão grave assim.
— Compra pra mim? — Tati me olha com os olhos vermelhos bem abertos. — Você sabe, o teste. Aquele que você faz xixi em cima e espera uma eternidade para saber sobre o seu futuro inteiro. Como uma vidente sacana. — Ela suspira melancólica e eu assinto.
— Está bem, eu já volto. — Sei que Tati está estranhando minha calma, mas não posso me desesperar também. Ainda mais porque acho que não temos motivos para pânico.
Pego uma das chaves extras na moldura bonita de madeira que diz “aqui tem união, confiança e amor” e saio da casa muito mais aliviada. Mas ainda tem Felipe, e ele me encara esperançoso enquanto anda de um lado para o outro na calçada.
— Ela pode me ver agora? — Felipe pergunta enquanto abro o portão manualmente, passando a chave quando estou completamente do lado de fora.
— Felipe, preciso que você me faça um grande favor. — Apoio a mão em seu ombro e penso rapidamente em uma desculpa para conseguir ir até a farmácia sozinha. — Preciso que você vá até a bicicletaria, encontre o e o traga aqui. Você consegue fazer isso? — Digo as palavras devagar, tentando passar alguma segurança de que tudo está bem.
— Quando eu voltar, vou poder falar com a Tati? — Ele se mexe ansioso, impaciente. Felipe pisca muito e é muito difícil ver os dois tão desestabilizados e me manter tão séria.
— Se ela quiser te ver, sim. — Ele assente e sai correndo na direção oposta.
Ele vai mesmo correr três quadras até a bicicletaria que já fechou há horas.
Vou até a avenida ao lado, espero que outros clientes sejam atendidos e quando chega na minha vez, além dos dois testes de gravidez — porque conheço a Tati, não importa o resultado, ela não vai acreditar de primeira —, compro também um pacote de camisinhas, na esperança de poder fazer piadas com a situação em breve.
O farmacêutico me encara desconfiado, quase ultrajado por me vender tais produtos. Eu lhe entrego as notas amassadas por estarem abarrotadas na carteira sem me incomodar muito com sua suposta preocupação. Ele me olha desconcertado, acho que talvez seja porque estou sorrindo orgulhosa por não estar me importando com o que ele está pensando de mim.
Até pouco tempo, eu não teria a audácia suficiente nem para comprar absorvente com o mesmo farmacêutico que me vendeu xarope para tosse sabor morango a vida inteira. Mas agora, parece natural quanto comprar chiclete. E é exatamente o que eu faço antes que ele feche as contas no computador.
Imagino que a ansiedade esteja consumindo Tati aos poucos, então, eu me apresso para voltar para sua casa com os testes, as camisinhas e meu chiclete na sacola de papel.
Quando subo as escadas, vou direto para o banheiro. Encontro Tati do mesmo jeito que a deixei há alguns minutos. Ela não chora mais, só está parada encarando o rejunte, fungando vez ou outra. Fora isso, ela se parece com um móvel esquecido ao lado da privada.
Lhe entrego a sacola com somente os testes dentro e já estou pronta para sair do banheiro quando ela se levanta num suspiro dolorido.
— Vou te deixar ter alguma privaci-
— Não se atreva a sair deste banheiro! — Tati me interrompe em sua aflição assustadora. Ela rasga a caixa do teste de gravidez ao meio, separando os itens sobre a pia. Quando ela agarra o copinho e se prepara para abaixar as calças, eu me viro, encarando o teto. — É tão estranho fazer xixi em um pote... — Tati comenta sobre o som interrompido do esguicho.
— Não precisamos falar nesse momento. — Comento constrangida e Tati concorda com um som de fundo de garganta.
— Eu posso usar o mesmo xixi para os dois testes? — Tati pergunta e eu não consigo não rir.
— Desde que seja o seu xixi... O que eles ensinam na escola de medicina hoje em dia? — Tati ri também.
— Estou desidratada de tanto chorar, não sei se tem o suficiente. O que você acha? — Me viro minimamente, só para ter certeza de que ela não está me oferecendo sua urina para a checagem da quantidade adequada para se fazer um teste de gravidez. Mas é exatamente isso que ela propõe.
— Tati?!
— Eu estou nervosa! Não sei nem meu nome agora. Leia as instruções na caixa! — Ela pede desesperada, mas ri um pouco. Talvez o desespero lhe tenha corroído o cérebro por completo.
— Você rasgou as instruções ao meio! — Sei que não deveria me desesperar também, mas Tati segura um pote muito pequeno e cheio de xixi sobre mim, com mãos trêmulas e um juízo duvidoso agora. — Certo, certo! Aqui diz que tem uma marcação no copo... — Olho para o líquido claro no pote e ele se mexe um pouco acima da linha indicada. — Está bem, é isso. Apoia o copo na pia e molhe as fitinhas. Depois é só esperar. — Tati faz exatamente o que eu digo e dispõe as fitas lado a lado sobre a pia.
Tati se veste, lava as mãos três vezes e evita olhar para os testes em andamento.
— Acho que vou vomitar. — Tati se senta na tampa da privada. Fecha os olhos e respira fundo repetidas vezes.
— Mas seria um sintoma de gravidez ou de desespero? — Pergunto sem pensar e acabo soando irônica. Ela me mostra o dedo do meio, ainda sem abrir os olhos.
— O que você faria se estivesse no meu lugar? — Ela pergunta de repente.
— Eu tentaria me acalmar porque não tenho informações o suficiente para surtar. — Respondo prática e ela sorri de leve.
— E se fosse... Real. Você surtaria? — Penso por um instante e me pergunto se deveria expressar minha real visão de toda essa situação. Claro que é um pouco cedo para termos filhos, não sabemos nem se foi uma boa ideia entrarmos na faculdade antes dos dezoito, quanto mais criar alguém. Mas se eu fosse a Tati, eu não estaria com tanto medo.
Imagino que seu pai superaria o fato de que seus sonhos para a filha caçula teriam de mudar drasticamente, a mãe ficaria secretamente brava, mas só até o bebê nascer, então, a tia Regina se derreteria inteira pelo netinho ou netinha. As irmãs de Tati não são tão malvadas como ela sempre fez parecer, acho até que seriam excelentes tias, visto que ambas são médicas e têm esse instinto de proteger e salvar outras pessoas. Mesmo que não fosse exatamente assim, Tati ficaria bem. Eles continuariam sendo uma família unida, confiável e amorosa.
— Sim, no começo. Mas depois eu seria tipo a mãe que eu não tive. — Escolho ser simples e direta. Tati parece refletir em minhas palavras e eu deixo que ela tenha seus sentimentos sobre o que eu disse.
Os três minutos mais longos de nossa amizade passam e Tati ainda se recusa a olhar para os testes. Ansiosa por minha própria conta, decido ver com meus próprios olhos se Tati irá se tornar a mãe adolescente mais fofa da Terra, ou se eu já tenho liberdade poética para zoar da situação toda.
Enrolo algumas folhas de papel higiênico na mão, tentando separar minha pele do material ensopado de DNA de Tati. Encaro as fitas, uma a uma com cuidado. Em cada uma delas tem somente um risco bem forte e, segundo a caixa do teste, somente um risco significa negativo. Rio sozinha da ironia das palavras negativo e positivo nessa situação. No teste, os “i’s” de cada palavra são ilustrados como as listras que devem aparecer no teste após o tempo indicado. Me perco um pouco nessa descoberta inútil, até Tati grudar em meu pescoço, ansiosa pela resposta que mudará sua vida de agora em diante.
— Certo. — Escolho bem as palavras, mas tento não demorar tanto, pois, Tati rói o que sobrou das unhas. — Você não está grávida. Mas tem de refazer os testes se a sua menstruação atrasar e usar isso aqui da próxima vez que transar. — Estendo o pacote preto de camisinhas e ela cora. Decido que Tati já teve emoções o suficiente por uma vida inteira numa tarde e guardo a gozação só para mim. Os olhos de Tati se enchem de lágrimas e ela se lança contra mim. — Ah, não, Tati! O teste está encostando em mim! — Minha voz sai abafada por seu abraço, mesmo com nojo, eu sorrio por ela estar feliz.
— Eu preciso falar com o meu pai! Não posso mais ficar adiando essa conversa, preciso dizer a ele o que eu realmente quero fazer. — Ela diz como se uma epifania a atingisse na cabeça. De repente e precisa.
— E o que é que você quer fazer?
— Eu quero ser fotógrafa. — Ela estufa o peito e eu sorrio orgulhosa.
— Você tem o talento. — Cutuco sua costela e ela sorri envergonhada.
— Você acha mesmo? — Inclino a cabeça, me lembrando de que os melhores presentes que Tati já me deu, todos foram fotos que ela mesma tirou. — Será que eu deveria mudar de curso ou aprender por conta própria?
— Meu professor diz que você não precisa fazer faculdade para se dedicar a algo que realmente ama fazer. Acho que ele quis dizer que muitas vezes os caminhos convencionais não servem para os mais apaixonados. Mas você tem de trabalhar duro. Talento não é suficiente sem trabalho árduo. — Explico um pouco perdida na memória, mas acho que consigo passar a mensagem certa para Tati. Não quero fazer parecer que as coisas serão fáceis, às vezes, vindo de onde viemos, temos de trabalhar dobrado até para nos provar para nós mesmos. Merecer é tão subjetivo para indivíduos como nós. Não é justo, mas infelizmente, é assim que funciona.
— É claro que você teria um professor que desencoraja as pessoas a cursar faculdade. — Tati ri mais aliviada e eu a acompanho para fora do banheiro após ajudá-la a jogar fora os testes de forma que ninguém pudesse identificar quando fosse a hora de trocar a sacola do lixo.
— Ele expulsou um aluno nos primeiros minutos da primeira aula, foi tenso. — Ela ri um pouco mais forte. — Então, eu mandei o Felipe ir a um estabelecimento que está fechado agora, talvez ele perceba isso antes de chegar lá. O que você quer fazer sobre isso?
— Como dizer para o seu namorado que você achou estar grávida dele? — Ela volta a se preocupar.
— Dizendo. Vocês só precisam ser mais cuidadosos agora, vão ficar bem. — Garanto, mas não consigo evitar um suspiro triste. Não é a situação ideal, mas é o tipo de aventura que eu não estou experimentando em meu relacionamento.
— O que você e o fazem para se proteger? Eu pergunto por que eu juro que tento, mas o Felipe me deixa louca e eu não consigo pensar em mais nada além de tê-lo dentro de mim o quanto antes. — Tati se perde em memórias e eu coloco o pacote de camisinhas em sua mão novamente, ela havia deixado sobre a pia.
— Gráfico. Muito gráfico — digo um pouco mau humorada. — Celibato é um método contraceptivo eficaz. — Concluo simplesmente.
— Nada ainda?
— Podemos não falar disso? — Interrompo, irritada. — Posso dormir aqui? Não tenho cabeça para voltar para casa.
— Claro, sempre. Mas achei que fosse ver o . — Ela junta as sobrancelhas quando eu dou de ombros.
— Hoje não. É a festa da Leah, lembra? — Tati sorri maldosa e eu rolo os olhos. — Nem pensar. Não estou com vontade de ver aquelas pessoas ainda. — Nunca achei que seria rancorosa, mas não estou pronta para encarar as pessoas que deixaram o Funkz. Me deixaram.
— Você não deve deixar que a última imagem que eles tenham de você seja aquela literalmente quebrada. Você está maravilhosa, podemos só passar lá e exibir meu namorado por alguns minutos? — Tati junta as mãos, deixando claro suas verdadeiras intenções.
— Eu fiz muitos favores para você hoje. — Ela pisca os olhos, se aproximando devagar e invadindo minha mente para insistir por lá também. — Por que quer a aprovação deles? São um bando de idiotas — digo entediada e ela me segue até o andar de baixo, onde eu me sento no sofá, encarando o teto para escapar de seus encantos.
— Não quero a aprovação de ninguém. Acontece que alguns daqueles idiotas me fizeram sentir como se eu nunca fosse ser amada e eu quero esfregar na cara deles que estavam todos errados. — Nem preciso estar olhando para ela para saber que esse é seu golpe final.
— Está bem..., mas só porque é sábado e eu odeio passar um sábado sem ver o — digo à contragosto, mas ela bate palmas curtinhas e animadas.
A campainha toca brutalmente e Tati xinga baixo. É o Felipe, ele descobriu que a bicicletaria já fechou há horas.
— Eu vou lidar com isso... — Ela se levanta e eu assinto, me sentindo um pouco deslocada agora que resolvi o que tinha para resolver. Me sinto estranha por entrar de penetra em uma festa onde ficou claro que não sou bem-vinda.
Mas Tati faz uma vingança inocente parecer boa demais para evitar.

Não estou exatamente animada para festejar quando Felipe encosta o carro no meio fio, onde espero por Tati. As duas últimas festas a que compareci não foram nem de perto o que imaginei e me deixaram marcas permanentes. Encaro Felipe se mexer inseguro atrás do volante e engulo em seco.
— Então, você tem o costume de beber? — Pergunto não conseguindo não soar amedrontada.
— Eu lembro o que houve, . Nunca colocaria a Tati em risco, pode ficar tranquila. — Ele pede e eu o encaro irredutível.
— Ninguém nunca tem a intenção de causar um acidente. O Otavio foi o primeiro a morrer, acha que ele queria isso? — Respiro fundo, notando que toda essa raiva que estou sentindo nada tem a ver com Felipe e suas habilidades atrás do volante.
— Eu... Eu vou tomar todo o cuidado, . — Ele me garante, um pouco assustado com minha reação.
— Eu sei, desculpe. Você se importa de avisar a Tati que eu preferi ir andando? — Ele nega rapidamente com a cabeça e eu começo a andar. Minha cabeça dói e meu coração está pesado no peito. Me sinto tão cansada o tempo inteiro e tão profundamente triste. Tão fundo que às vezes me dou a liberdade de esquecer que aquela dor está lá, contundente, machucando.
Eu sigo o caminho como se estivesse hipnotizada. Paro na frente do portão que costuma ficar aberto e puxo o ferrolho, adentrando o quintal. Só quando tropeço na raiz exposta da árvore que criou rachaduras no chão nos últimos tempos, é que percebo onde estou.
As janelas e cortinas fechadas não são convidativas, as ervas daninhas cobrindo metade do muro que separa o quintal da rua faz um desenho curioso e eu fico encarando a natureza que tomou conta de onde eu costumava morar.
A porta da cozinha se abre, a conversa tímida, mas animada se faz presente e eu respiro fundo, ouvindo a voz de minha mãe pela primeira vez em meses.
Ela ri e meu cérebro se refaz em formato de nó, achando o som muito esquisito depois de tanto tempo.
Leah é quem sai primeiro. Ela veste um vestido rodado de alças finas, o tecido tem padrões florais por toda a saia e o elástico da cintura está esticado na barriga pontuda que ela acaricia com cuidado.
?
Eu sei que é rude ficar encarando tanto, mas estou chocada. Quando mencionou que ela estava acima do peso a ideia me ocorreu, mas, escolhi não dar bola para tal esperança.
— Oi, . — Leah sorri comedida. Ela sabe da situação delicada entre mim e minha mãe, então fica olhando de mim para a mais velha, esperando pelas faíscas. Eu também espero, mas elas não vêm.
— Eu estava indo para sua festa e... — Desisto de falar. Algo em minha garganta me impede e Leah franze a testa.
— Ai, eu disse que não queria surpresas. — Leah comenta baixo, com uma expressão desgostosa no rosto.
— Estragou a surpresa, está feliz agora? — Minha mãe pergunta. Não consigo olhar diretamente para ela, sinto medo e acredito que eu não deveria estar aqui.
— Eu vou deixar vocês conversarem. — Leah desce os degraus, em direção ao portão aberto, mas antes, busca minha mão com a sua, a apertando de leve. Eu sorrio, mas ainda não sei bem como reagir ao que meus olhos veem.
Leah sai do quintal. Minha mãe fica me encarando do alto da pequena escada que nos separa.
— Você está bem? — Sou eu quem pergunta. O silêncio é pior do que qualquer maldade que ela tenha para me dizer.
— Você sabia? — Ela devolve com outra pergunta. Não soa magoada, mas curiosa. — Sobre a gravidez da Leah.
— Não. Não nos vimos desde... O ano passado. — Ela assente devagar.
— É um menino — diz tímida. Um sorriso brota nos cantos dos lábios dela e de alguma forma, aquele pequeno gesto me faz ter menos medo dela. Não muito menos, mas menos.
— E... É do... — Falar o nome dele diante dela parece pecado, então eu não digo. Ele fica entalado no meio da minha garganta por tempo suficiente para achar que essa pergunta é totalmente imbecil. É claro que é do Pedro, porque mais Leah viria aqui em seu aniversário senão para dividir essa notícia com a futura avó de seu filho?
— Eu vou ser avó. — Ela constata consigo mesma. Eu sorrio. É mesmo a cara do Pedro nos deixar aflitas com sua ausência, mas preparar algo para nos surpreender no meio do caminho.
— Parabéns. — Ela volta a me encarar séria. Eu gostaria de fazer parte dessa pequena alegria. Gostaria de subir os degraus, abraçá-la e chorar porque sinto falta do meu irmão. Mas não faço isso.
Dou uma boa olhada nela. Me certifico de que ela não tenha perdido mais peso, pelo menos visivelmente, as olheiras não são profundas e sua pele voltou a ter algum viço saudável. Mesmo que pouco, ela parece bem. Já que não posso perguntar diretamente a ela, tomo a liberdade de projetar minha própria situação. Ela não está exatamente bem, mas algo tem impedido que ela fique pior.
Me sinto triste por ter que me contentar com uma tristeza constante, mas é melhor do que não sentir nada.
— Você tem visitado muito o bairro? — Ela encosta na soleira da pequena sacada, interessada pela minha vida.
— Não muito. Mas venho visitar meu namorado aos fins de semana e a Tati também. — Não sei se deveria ter dito a verdade, porque ela ergue uma sobrancelha e crispa os lábios quando eu termino de falar.
— O filho da Simone. — Ela tenta parecer indiferente, mas seu rosto não consegue se contorcer de forma negativa como ela esperava. Me sinto contente por ela aprovar meu namoro com . Não que fizesse alguma diferença ela não aprovar, mas aquele vislumbre de aprovação significa muito mais do que consigo admitir.
— Posso te dar meu número de celular? Caso precise de alguma coisa ou... — Ofereço, mas ela balança a cabeça.
— A Simone já me deu. — Ela diz desgostosa. Não me surpreende que ela tenha tido possibilidade de entrar em contato comigo, mas preferiu não o fazer. Acho até que entendo também alguns dos motivos. Eu não saberia o que dizer a ela, se caso ela ligasse.
— Certo. — Esfrego as mãos suadas na lateral do vestido de uma das irmãs mais velhas de Tati. O tecido meio plastificado parece só espalhar o suor em minha palma e eu fico constrangida. — Eu vou acompanhar a Leah até a festa surpresa que eu estraguei. — Rio sem jeito e ela acompanha, muito educada e distante.
— E como está a faculdade? — A pergunta meio que me desmonta. Olho para minha mãe e vejo interesse genuíno. Eu quase sorrio, mas engulo em seco ao invés disso.
— Bem. É difícil, mas é uma das melhores coisas na minha vida agora — digo devagar, com medo de dispersá-la com movimentos bruscos. Ela assente, chutando o ar de forma quase imperceptível. Ela sorri muito brevemente e cruza os braços na frente do corpo, fechando a brecha.
— Se cuida, — Minha mãe diz e não soa monótona. Eu assinto devagar e dou meia volta no quintal, evitando a raiz da árvore, dessa vez.
Encosto o portão e vejo Leah apreensiva na calçada.
— E aí, como foi? — Ela pergunta e eu pisco os olhos.
— Já tentou subir o Monte Everest de biquíni? — Devolvo sarcástica. Respiro fundo e chacoalho um pouco os braços para me livrar da tensão do encontro. Como não consigo relaxar, decido me distrair com a visão de Leah grávida de meu sobrinho.
— Espera... você está grávida do meu irmão. Isso significa que eu sou tia? — Leah franze a testa, faz as contas e sorri.
— Eu não tinha pensado nisso. — Ela cobre a boca com a mão e arregala os olhos verdes. A alegria instantânea que sinto me faz perdoá-la por tudo.
— Ai, meu Deus! Eu vou ser tia! — Minha voz aguda e empolgada faz Leah rir alto e eu vou até ela, a abraçando forte, mas com cuidado.
— Ainda bem que você está feliz. Vou precisar da sua ajuda para ensinar para ele quem foi o Pedro — Leah acaricia sua barriga — Você é a pessoa que o Pedro mais amava nesse mundo, provavelmente a única que o conheceu de verdade.
— Vai ser uma honra dedurar os podres do Pedro para o filho dele — eu rio, mas meus olhos estão marejados — E contar sobre o homem incrível que ele foi.
Leah ri mais forte, mas já está secando as lágrimas dos cantos dos olhos antes mesmo que elas rolem.
— Me desculpe não ter contado antes, tem sido difícil acomodar a ideia na minha cabeça. O Pedro sempre quis ser pai, mas... Enfim. Você sabe agora e eu espero poder contar com você. — Leah tenta se afastar, mas volta a me abraçar apertado.
— Para o que precisar. — Garanto.
No caminho até a casa da Leah, ela atende alguns telefonemas de amigos mais antigos perguntando seu endereço e eu acabo por não me sentir tão mal por ter estragado a surpresa. Aconteceria uma hora ou outra.
Fico olhando sua figura distorcida de soslaio com um sorriso e um sentimento que ganha força a cada passo. Não consigo identificar exatamente o que é, mas desde que o Pedro se foi, essa é a primeira vez que sinto a presença dele tão de perto que mal posso segurar a emoção. Parece até que recebi algum tipo de autorização para suspender a raiva, a sede de vingança, a saudade insuportável e me deixar levar pela energia que Leah emana de seu corpo grávido. A gestação está no quarto mês e ela descobriu o sexo há pouco tempo. Leah diz que não tem muitos enjoos matinais e que definitivamente, a pior parte de toda a situação é se preparar para a maior alegria de sua vida compreendendo que uma parte enorme ainda falta.

Quando chegamos na rua em que Leah mora com os pais, a música alta e a movimentação de pessoas na frente da casa denunciam que algo divertido esteja acontecendo. Na desculpa de esperar por Tati, deixo que ela entre primeiro. Quero passar despercebida por essa festa e isso não funcionaria se eu entrasse acompanhando a estrela da noite.

Tati demora muito e eu começo a ficar com frio, mesmo que o clima de outono não tenha se firmado ainda, as noites têm sido cada vez mais frias.
Não me sinto exatamente à vontade na festa. Alguns cochicham ao trocar um rápido olhar, ignorando o fato de que se eles me veem, eu também os vejo. Eu já esperava pelos olhares curiosos, mas não achava que as pessoas fariam todas ao mesmo tempo.
, quanto tempo! — Ouço a voz nasalada de Jorge e sorrio para ele — E esse braço aí? — Ele me cutuca de leve.
— Bom o suficiente — o empurro de leve com o mesmo braço e ele gargalha.
— Bom demais te ver, viu? Acho que o está por aí com a Ariane, logo vocês se esbarram — ele ergue as sobrancelhas de um jeito cafona que me faz rir e eu agradeço a dica.
É desconcertante me sentir tão estranha perto de pessoas que, um dia, considerei família. Alguns me cumprimentam, outros evitam contato visual a todo custo. Mas toda e cada interação tem um gosto amargo de uma ressalva que ainda não foi diluída pelo tempo.
Eu ainda sou alguém que não deveria estar aqui.
Cansada de ser uma vitrine de memórias de outra pessoa, desisto de ficar só olhando as pessoas dançarem e arrisco me mexer também.
“Back and Forth” da Aaliyah começa a tocar e eu encaro meus tênis enquanto danço livre, somente sentindo a vibração vinda das caixas de som atravessarem meu corpo, me fazendo sentir a música de dentro para fora.
Sinto mãos se esgueirando por minha cintura e eu congelo no lugar por conhecer bem o toque.
— Você só pode estar brincando comigo! — Tiro suas mãos de mim com força, me virando para encarar um Guilherme risonho.
— Calma, calma... Amigo. — Ele bate no próprio peito de leve, os olhos indecentes e o sorriso que eu odeio me fazem rolar os olhos e querer escapar de qualquer conversa que ele esteja pensando em começar.
Olho em volta começando a me preocupar com o fato de não estar exatamente em uma mansão e ainda não ter visto em lugar nenhum. Não é um bom dia para Guilherme mexer com o meu temperamento, equilibra isso e eu preciso dele por perto para encarar essa.
— Eu me recuso a falar com você. — Começo a caminhar entre as pessoas, mas sei que estou sendo seguida.
— Não sei como tem coragem de voltar aqui depois do que você fez. — Guilherme diz casual, bastante irritante.
— Do que está falando? De quando eu te dei uma surra? — Volto a encará-lo, ficando entre um grupo de meninas dançando enquanto riem de minha pergunta.
— Não posso negar que é um tesão esse seu lado selvagem. — Guilherme parece desarmado.
— Me poupe. — Eu rio, mas é inacreditável que ele seja tão noção assim. — Você pode só me deixar procurar meu namorado sozinha? — Peço o olhando como o verdadeiro idiota que ele é.
— Que namorado? — Guilherme me segue pela cozinha, passando pelo longo corredor dos quartos, mas não vou até lá. Não preciso ir até lá.
— O . — Ignoro o choque na face de Guilherme e o empurro para voltar para a cozinha, para tentar sair pela porta lateral da casa.
— Não acredito que aquele filho-da-puta me talaricou! — Guilherme ainda me segue, indignado.
— Eu já tinha terminado com você há muito tempo quando isso aconteceu, sossega. — Desvio da roda de pessoas fumando narguilé e afasto a fumaça do rosto com a mão, abanando meu caminho pelo estreito corredor.
— Mas ele vivia em cima de você enquanto nós estávamos... juntos. — Ele soa magoado e eu tenho que parar para encará-lo e rir da expressão absurdamente culpada em seu rosto.
— O que isso significa? — Gesticulo em sua direção, Guilherme suspira e apoia as mãos na cintura.
— Acho que senti sua falta, . — Guilherme se assusta com a palma que acompanha minha gargalhada. — Por que você está rindo tanto?
— Estou maravilhada com esse momento, é o cúmulo do ridículo! — Não consigo conter a vontade de rir e Guilherme fica mais ofendido do que quando eu o derrubei no chão com um soco. — Não contente com distorcer totalmente a minha visão sobre mim mesma, você também destruiu a única família que me restava. Você acha mesmo que o seu teatrinho só por me ver mais gostosa e comprometida vai mesmo me convencer a te dar alguma atenção? Eu não sei como você tem coragem de aparecer aqui depois do que você fez com o Funkz! — Rio com escárnio, encarando Guilherme dos pés à cabeça e pensando “como diabos eu pude me perder por causa disso?”.
Sinto meu espírito elevado após esse dia maluco e espero poder encerrá-lo dessa forma. Vou até a entrada da casa, na esperança de pegar Tati chegando e convencê-la a voltarmos para a casa dela. Mas encontro outro casal aos risos na calçada em vez disso.
— Hmmm... Nunca posso ter um dia inteiro sem casualidades. — De repente não tem mais graça. Demora até que me perceba ali, Ariane ainda troca um rápido olhar comigo, mas não diz nada.
— Achou seu namorado? — Guilherme cospe as palavras, parado um pouco mais atrás.
— Cala a boca — digo rápido, ouvindo sua risada enquanto ele se afasta.
? — para de andar, sorrindo tão abertamente que me confunde sobre estar ou não brava com ele. Ariane recebe as sacolas que a entrega com uma expressão desgostosa. Ele me abraça apertado. — Eu estava louco para te ver! Que surpresa boa. — Ele me balança de um lado para o outro, o rosto enterrado em meu pescoço faz sua voz soar abafada e sua respiração faz cócegas na pele sensível perto de minha orelha.
— Então, temos que nos apressar. A Leah está chegando e eu não consigo levar tudo isso sozinha. — Ariane diz impaciente, nos encarando engraçado enquanto ouve os sons dos vários beijinhos que me dá nas bochechas.
? — Chamo o rapaz distraído com meus cachos e ele sorri quando olha fundo nos meus olhos. — A Ariane está falando com você.
— O quê? — Ele vira um pouco a cabeça em sua direção. — Desculpe, o quê?
— A Leah deve estar chegando. — Ela levanta as sacolas na altura nas sobrancelhas.
— A Leah chegou faz um tempo. Ela está lá dentro vendo o bolo. — Comento na tentativa de aliviar sua pressão, mas a garota grunhe e solta as sacolas no chão. Ela entra marchando na casa.
— Eu achei que festas de aniversário fossem eventos felizes. A Ari faz parecer uma cirurgia cerebral. — reflete e eu rio.
— Quer ajuda com as sacolas? — Ele balança a cabeça e volta a me abraçar.
— Talvez depois — diz deixando os lábios esbarrarem nos meus de propósito.
— Não faça isso... — digo, mas algo em minha voz e o fato de eu não me afastar faz com que ele intensifique o toque. — Estou brava com você.
— Por quê?
— Não consigo me lembrar. — Ele ri e eu adoro o hálito com cheiro de bala de morango que ele tem.
— Quer dançar? — Ele pergunta ouvindo a batida envolvente de “Me, Myself and I” e embora a forma como o corpo dele se move agora seja muito convidativa, eu recuso.
— Cinco minutos lá dentro e eu já arrumei uma briga... Não acho que eu esteja muito no clima para festejar. — Dou de ombros e ele assente devagar, assimilando a parte da briga. — Mas você deve ir. Provavelmente, fazer parte do comitê das bebidas é um trabalho importante. — franze o nariz.
— Eu poderia deixar tudo aqui mesmo e eles viriam pegar de qualquer forma. — Ele brinca, chutando uma garrafa plástica de vinho que escapou da sacola.
— Provavelmente seria catastrófico para a Ariane se eu simplesmente te sequestrasse, não é mesmo? — volta a me olhar interessado.
— Tudo é catastrófico para ela. Mas acho que seria moleza para a Ari superar mais essa. — Ele diz muito sedutor e eu me perco por um momento no escuro de seus olhos intensos.
— Eu vou dormir na casa da Tati hoje, podemos nos ver amanhã? — Ele assente.
— E você me conta melhor sobre essa briga? — Ele pergunta preocupado e eu rio.
— Acredite, não vale a pena.
— Vou fingir que não tem nada a ver com o Guilherme para conseguir dormir em paz. — ri forçado no começo, mas ri de leve enquanto volta a me beijar. — Te vejo amanhã? — Assinto devagar o abraçando pelos ombros.
Recuso sua companhia de volta para a casa da Tati no pretexto de que Ariane me mataria se eu atrasasse seu comitê de bebidas em mais um minuto sequer.
— Ela poderia tentar, mas eu não sou grande à toa. — Ele pisca um dos olhos e eu cubro a boca para não rir tanto de tal comentário.
— Até amanhã, . Não se atrase! — Aponto o indicador e ele morde o lábio inferior.
— Deixa eu ir com você! — Ele grita, me fazendo gargalhar. Meu coração aperta, mas uma força afim de me proteger é mais forte.
No caminho de volta para a casa da Tati, fico pensando se eu não deveria ter me esforçado um pouco mais para encarar a festa. O motivo principal de festejar esta noite é Leah e sua vida inteira pela frente junto com essa sementinha de um amor verdadeiro que ela carrega no ventre. Eu poderia ignorar a existência de Guilherme e os olhares maldosos sobre mim enquanto estivesse dançando com e de bônus, ainda irritaria Ariane. Mas ainda não é fácil ser a pessoa errada que sobreviveu.
Me sinto esquisita andando pelo bairro com um vestido azul brilhante, mas ao andar um pouco mais rápido, vejo o carro de Felipe parado no mesmo lugar onde o deixei mais cedo e me sinto menos estranha.
— Vocês nem saíram daqui? — Pergunto para o casal deitado no banco de trás do carro.
— Não. Você tinha razão, eu não preciso provar nada para ninguém. — Tati diz com o batom borrado e o vestido tomara-que-caia torto.
— Não perderam nada, de qualquer forma. — Me encosto no carro, encarando a noite escura ficar ainda mais fria enquanto me arrependo de não ter sequestrado .
— Quer entrar? Parece que vai chover... — Tati coloca a cabeça para fora da janela, logo passando o corpo e se sentando na porta do carro para desespero de Felipe.
— Meu braço não doeu — digo encarando as nuvens densas se formando no horizonte. Aquelas nuvens pesadas, que deixam o céu escuro da noite meio avermelhado e assustador.
— O que isso tem a ver? — Tati toma algum tempo, até os olhos baterem em minha cicatriz e ela cair em entendimento. — Ah, a parada da pressão atmosférica. — Assinto devagar.
— Nós vamos comer uma pizza, quer ir com a gente? — Felipe oferece e eu dou de ombros, aceitando o convite.

Na pizzaria, pedimos duas: metade calabresa, metade muçarela. Encaro as formas redondas sobre a mesa e depois encaro minha melhor-melhor amiga, que dá de ombros, aceitando a complexidade sutil da mente do namorado, o autor do pedido redundante.
— Então, vocês… Estão bem? — Arrisco a perguntar, fazendo o casal se entreolhar romanticamente e entrelaçarem os dedos sobre a mesa.
— Obrigada pela ajuda, . Você é uma boa amiga. — Felipe sorri, levantando seu copo cheio pela metade de refrigerante.
Estou prestes a agradecer e iniciar uma conversa com Felipe quando Tati pega seu rosto com as duas mãos, o amassando com seu amor.
— Eu amo você por amar minha melhor-melhor amiga — diz emocionada, se afogando em um beijo gráfico e demorado.
— Nunca fiquei tão feliz por ser amiga de vocês — digo levantando meu próprio copo, dando um bom gole enquanto vejo os dois se engolirem diante de mim.
Eles não se parecem nem um pouco com os mesmos de hoje à tarde, quando ambos pareciam estar prestes a ter um ataque cardíaco. Fico feliz que eles estejam bem. Feliz a ponto de sorrir educadamente para os outros clientes da pizzaria que nos olham com pavor nos olhos reprovadores.

Tati e Felipe são entusiasmados quando o assunto é demonstração de afeto. Sua paixão transborda nos gestos e mesmo na presença de tantas outras pessoas, eles não parecem se importar em se beijar de forma quase erótica.
Não há espaço para muita conversa, então me concentro em saborear a pizza. Faz algum tempo que não como o conjunto de massa, molho e recheio abundante, o sabor é quase nostálgico.
Na volta para casa, está tarde e na falta de distração alternativa, eu posso ter o vislumbre do que é a relação de meus amigos de forma mais íntima.
— O que vai estudar esta noite? — Tati pergunta com uma voz aveludada, a mão acaricia o pescoço de Felipe de forma delicada.
— Eu nem sei, preciso dar uma olhada no calendário. — Ele responde prontamente, os olhos atentos nas ruas, mas a mão migra do câmbio para o pulso da namorada, correspondendo o carinho.
— Odeio quando não dormimos juntos. — Tati pede manhosa.
— Eu também, amor. Mas amanhã cedo eu venho te ver, prometo. — Felipe entrelaça os dedos nos dela e beija as costas de sua mão.
Eu assisto tudo do banco de trás, provavelmente com uma expressão entediada, mas secretamente invejando a proximidade dos dois. A tensão sexual é palpável e quase não sobra espaço para mim dentro do carro com eles três.
— Vou morrer de saudades. — Tati quase geme ao falar, tamanha a dor da partida por algumas poucas horas. Pelo amor de Deus, eu moro há cidades de distância do meu namorado. Cidades, no plural!
Agradeço aos céus por termos chegado em frente à casa e ter a opção de sair do carro para não presenciar a despedida calorosa que tenho certeza que está prestes a acontecer. As luzes da sala estão acesas, o que significa que os pais de Tati estão acordados e a despedida dos dois apaixonados deve acontecer ali mesmo.
— Tchau, Felipe. Obrigada pela carona. — Tiro o cinto rapidamente, não dando chance para o rapaz responder. Já fora do carro, percebo que Felipe já estava ocupado e que não responderia mesmo.
Entro no quintal e espero por Tati. Não quero entrar na casa e levantar perguntas das quais não cabe a mim responder. Encosto o corpo no muro ao lado do portão, encaro o céu e as nuvens que se aproximam cada vez mais. Meu cotovelo esquerdo fisga e eu aceito, vai mesmo chover. E muito.
— Obrigada por esperar — diz a menina corada e de lábios inchados.
— Foi até rápido. — Não foi. Fiquei distribuindo o peso do corpo de uma perna para outra por, pelo menos, quinze minutos.
— Eu vou me trocar e ter aquela conversa com meu pai. — Tati inspira e me olha animada. Eu sorrio também, mas no fundo, gostaria que ela fizesse isso só depois de eu já ter ido embora. — Fica tranquila, vou emboscá-los antes de dormirem. Tipo um “boa noite” envenenado de fatos.
— Então, tudo bem se eu ficar na sala esta noite? — Pergunto enquanto subimos os degraus da entrada da casa.
— Preferencialmente fique na sala esta noite. O colchão está no lugar de sempre. — Tati inspira de novo, dessa vez, com menos ânimo. Ela abre a porta, entra na casa e é como estar em uma cena de filme. O ar fica denso, o suor desce pelas têmporas mais evidentemente e todos se entreolham em um silêncio corrosivo.
— Pai, precisamos conversar. — Tati desengasga e o homem grisalho engole em seco.
— Nesse caso... acho que eu vou subir — digo baixinho, subindo os degraus muito devagar para fazer com que minha figura suma suavemente da cena tensa entre pais e filha.
É o momento da verdade.

No quarto de Tati, estou quase protegida dos gritos da família no andar de baixo. É o tipo de briga que só pessoas que se importam muito têm. Todos eles têm um ponto importante e válido, que é aceito pela outra parte sem que eles percebam. Seria engraçado se eles não estivessem mesmo magoados uns com os outros pelas consequências de seus atos movidos por seus motivos razoáveis.
Do meu ponto de vista, o pai de Tati só quer o bem dela, tanto a ponto de não perceber que quem está impedindo que ela tenha tudo o que deseja na vida, acaba sendo ele mesmo. A mãe, uma orgulhosa trabalhadora, não aceita que o equilíbrio da família seja afetado, é claro, ela dá duro para que tudo saia da melhor forma possível. É aceitável que ela esteja chateada com a situação entre pai e filha. E Tati, bem, Tati ainda não teve a chance de cometer um erro grande demais do qual se arrependeu profundamente. Ainda não sofreu perdas e desilusões arrasadoras e ela merece a chance de experimentar tudo o que há de ruim, mas também o que há de melhor em se tornar uma pessoa por si só.
Os gritos diminuem, dão pausas. Eles choram, se abraçam, voltam a gritar e depois estão rindo. As coisas vão se resolver, afinal, eles são uma família. Famílias se entendem eventualmente.
Algumas famílias, pelo menos.

Está tarde e todos estão dormindo, mas eu não consigo. A chuva fina e persistente lá fora me chama a ir a seu encontro e eu desligo a TV, porque o canal de compras da madrugada de repente não me distrai mais.
Vou até a janela com o coração apertado, é sempre assim nas madrugadas quando estou nesta cidade. A dor latente e profunda se encontra com memórias antigas da minha vida toda e em determinado momento, é como se eu estivesse condicionada a prestar este luto, sem escapatória. Como se algo não estivesse completo e eu não pudesse estar só de passagem por aqui.
Não consigo respirar dentro de quatro paredes e me pego saindo de casa enquanto a chuva aumenta. É tarde e tudo está muito parado. Há poucos carros passando na avenida ao lado da rua estreita de mão única na qual me encontro parada bem no meio. Sinto o solado de meu tênis escorregar na linha pintada de branco abaixo de mim e arrasto o pé sobre ela, sentindo a diferença de texturas lisas e ásperas nas falhas da tintura antiga.
Os sons das casas que normalmente são tão vivos e característicos dão espaço para que somente a chuva se faça presente.
O algodão de minha camiseta começa a pesar conforme molha com as gotas grossas que mais parecem jatos de chuva. Meus cabelos também, alguns fios grudam em minha testa e pescoço, e, mesmo que eu esteja congelando e não entenda por que eu precisava tanto tomar banho de chuva, é a melhor experiência sensorial que experimentei nos últimos meses.
Meu corpo está ensopado e é como estar imersa em sentimentos e pensamentos, tudo o que me destrói. Mas, ao mesmo tempo, protegida com uma espécie de camada resistente de oxigênio. Enxergando cada um dos problemas claramente, mas tão incrivelmente protegida das consequências desses problemas. Só por um instante. Coexistindo com meus maiores vilões e os aceitando como são em vez de lutar contra sua existência.
Fecho os olhos e absorvo os pingos grossos de chuva em meu rosto. Respiro fundo de verdade, sentindo o ar preencher meus pulmões, esquentar e se tornar fumaça quando sai por meus lábios trêmulos.
Se fosse para descrever para alguém como é este momento, eu diria que tem cheiro de terra molhada, desmanchando e se transformando em outra coisa, se preparando para possibilidades.
Era tudo o que eu precisava. Um simples banho de chuva.
O clarão me assusta e me prepara para o som potente do trovão que viria em seguida.
Abro os olhos devagar, ouvindo além da chuva caindo insistente um outro som que costumava me deixar ansiosa por antecipação. O ronco do carro da mãe de Guilherme.
— ‘Tá perdida, princesa? — Preciso estreitar os olhos para vê-lo abaixar a janela. A fumaça de maconha que sai de dentro do carro vem direto na minha direção e eu abano a mão na frente do rosto, incomodada com o cheiro forte.
— O que você está fazendo aqui? — Pergunto sisuda, sem vontade de falar com ele.
— Fiquei pensando em você depois da nossa conversa — Guilherme umedece os lábios, mexe nos cabelos — agora tingidos de um tom duvidoso de vermelho, mas que combina muito bem com todo o conjunto de seu rosto — e volta a me olhar de um jeito desconhecido. — Foram meses difíceis sem você.
— Como consegue ouvir o som da sua voz dizendo essas coisas e não acha completamente hilário? — Cruzo os braços na frente do corpo, o encarando com certa pena. Guilherme absorve o golpe, algo no rosto dele me diz que ele reconhece que mereceu essa.
— Eu fui horrível com você — diz o rapaz, passando o cinto pelo corpo e abrindo a porta do carro — Você estava certa, no final das contas... — Guilherme pisa forte na poça d’água com os tênis caros de cadarços largos em um quadriculado em preto e branco — Eu sou mesmo medíocre. Depois de destruir o Funkz, eu consegui repetir a proeza no Monsters. Tinha muita gente que se odiava em um espaço muito pequeno e o grupo se dissolveu em brigas — ele ri sem emoção. Guilherme começa a se molhar também. Ele fala alto, mas porque é o único jeito de se fazer ser ouvido nessas circunstâncias. É a primeira vez que vejo Guilherme sendo honesto.
— Por que está me dizendo isso? — Dou um passo para trás, desconfiada de todo e qualquer movimento dele.
— Porque eu precisei perder tudo para entender que são poucos os que se importam comigo de verdade. Em um acidente maluco de carro, eu quase perdi duas delas — Guilherme tem os ombros murchos, os braços soltos ao lado do corpo e nenhuma atitude arrogante como costumava ter.
Guilherme não foi à Missa de Sétimo Dia de Pedro, não tenho memória nenhuma do enterro, então não sei dizer se ele estava lá ou não. Eu não sabia que o Pedro significava tanto para o Gui. É culpa dele por não demonstrar se importar com ninguém.
— Você conseguiu desfazer dois grupos bem unidos. E daí? Você continua usando o dinheiro da sua mãe para fazer seu nome pela cidade, ainda tem as suas coisas e garanto que ainda deve quebrar muitos corações por aí. Não é como se as coisas tivessem sido tiradas de você à força — digo sem conseguir segurar o riso maldoso, é cansativo vê-lo nessa posição. Ele ainda tem tudo. O que ele pode ter perdido de tão importante? Guilherme ri também, me olhando de um jeito contrariado, mas interessado. O que ele está fazendo?
— Senti falta da sua sinceridade. — Ele se aproxima, tenta pegar uma de minhas mãos e eu a afasto sem nem disfarçar. — Qual foi, ?! Vai dizer que não sente falta de quando estávamos juntos? — Para ser sincera, sinto falta daquela época com pesar. Se eu soubesse o que iria acontecer naquela segunda quinzena de dezembro, eu teria passado a primeira metade do mês com meu irmão. O mais próximo possível, aprendendo com ele e aproveitando ao máximo o deleite que era a sua presença.
— Você costumava me ignorar e vendo em retrospectiva, esses eram os momentos em que você estava sendo gentil comigo. Porque toda vez que você abria a boca, eu acabava secretamente ofendida ou visivelmente irritada. — Guilherme desvia o olhar, envergonhado. — Eu não sinto a menor falta de ser usada e descartada repetidas vezes.
— Eu já sei, . Eu fui um imbecil, mas agora eu percebo que você gostava de mim de verdade e eu destruí isso aos poucos. — Guilherme passa as mãos pelos cabelos avermelhados, ensopados. Me encara perdido, suplicante.
— Está tudo bem, Gui. Entre todos os meus problemas, você nem chega perto de ser um — digo um pouco agoniada com a conversa toda. Ele sorri.
— Você está tão diferente. — Ele se afasta para me ver melhor, me deixando sem graça.
— O que está dizendo? Para com isso! — Digo irritada, ele ri mais forte.
— Mais... madura. Gata, com certeza. Mas muito mais... notável — diz o rapaz, perplexo com sua própria linha de pensamento. Rolo os olhos, impaciente.
— Eu gostaria de voltar a ser invisível pra você. Pode ser? — Peço cansada. Estou decidida a encerrar minha sessão de chuva e ignorar esse formigamento estranho em meu peito por estar ouvindo as palavras certas da pessoa errada, com meses de atraso.
— Impossível.
— Guilherme, eu tenho namorado. E estou muito feliz com o . O que você quer? — Ele morde o lábio inferior do jeito que costumava mexer com minha imaginação.
— Só quero dizer que ele é o cara certo pra você. Vocês são perfeitos um para o outro, na verdade. — Guilherme se aproxima de novo.
— Obrigada? Eu acho... — Vejo que Guilherme está perto de um jeito não saudável, mas não me mexo. O que eu estou fazendo?
— Quero dizer também que se você estiver buscando pelo cara errado, só pra quebrar a rotina... — Guilherme apoia a mão em minha cintura, a outra em minha nuca e se abaixa em minha direção em um beijo molhado e sedento.
O que eu estou fazendo?
— Que porra é essa?! — Empurro Guilherme pelo peito, ainda atordoada pela invasão de sua língua quente em minha boca. Ao repensar o que acabou de acontecer eu o empurro de novo, furiosa.
— Me desculpa — Guilherme arregala os olhos e se afasta, me surpreendendo. — Eu não sei o que deu em mim, ‘tô chapado e minha mãe está puta comigo. Eu te vi aqui e...
— Caralho! Por que fez isso? — Esfrego os lábios com as costas da mão, o olhando com repulsa.
— Eu já disse que não sei! — Ele volta a gritar, irritado e talvez mais perdido do que antes. — Desculpa. Eu não queria assim... Foi mal, . — O encaro boquiaberta, imóvel. A chuva parece se intensificar só para deixar tudo mais embaçado e difícil de compreender.
Assisto Guilherme entrar no carro e arrancar com ele de forma bastante imprudente para o tempo. Estou sem fôlego, irritada e totalmente desalinhada da clareza que tinha da minha própria mente até poucos minutos.
Xingo mais um pouco, aproveitando que nenhum ouvinte será ofendido pela minha ira escorrendo por cada palavra maldita. Agora estar ensopada não faz sentido, não há clareza nenhuma, não há catarse. Não há nada além de uma idiota no meio da rua embaixo de um temporal.

No dia seguinte, a congestão nasal me causa uma dor de cabeça terrível e até o mínimo de esforço para responder as mensagens de no celular me desanimam.
— Então... você saiu naquela chuva? — Tati pergunta com minha camiseta molhada em mãos. Ela tem me rondado a manhã inteira, mas meu mau humor quase a faz desistir várias vezes. Parece que não vou conseguir escapar desta vez.
— Eu tinha estendido isso. — Respondo sem vontade e ela ri.
— No banheiro?
— Eu não vou usar, só quero que seque antes de eu guardar numa sacola qualquer. — Explico e Tati faz uma careta engraçada. Eu riria se minha alma não tivesse decidido que o mundo é um inferno e todos nós estamos queimando vivos imperceptivelmente.
— Você parece descontente. — Tati me analisa com sua eterna ironia.
— Eu estou. — Suspiro irritada.
— Por quê? — Tati junta as mãos abaixo do queixo, juntando as pernas e batendo os pés como uma criança empolgada.
— Porque sempre que eu acho que algo em minha vida está indo bem, eu levo um golpe surpreendente me dizendo ao contrário — digo dramática e Tati refaz seu rosto em um ponto de interrogação. — Guilherme me beijou ontem à noite.
Tati tem milhares de reações silenciosas e vai sufocando cada uma delas ao ver a minha expressão de desânimo.
— O que isso significa? — Sua voz soa esganiçada e vejo o esforço físico de Tati para não reagir de forma expansiva.
— Que ele continua sendo um imbecil que acha que tem direito de posse sobre outros seres humanos? — Não consigo evitar de grunhir em descontentamento com a menor memória de seus lábios sobre os meus. O maldito chegou a bater os dentes contra os meus. Idiota.
— Você vai contar pro ? — Tati me faz a pergunta de um bilhão de dólares que me deixou acordada pelo restante da madrugada.
— Você contaria? — Devolvo a pergunta. Tati morde o interior da boca.
— Depende.... Você gostou? — Volto a olhá-la com morte reluzindo em minha íris e ela assente, compreendendo qual é a situação. — Nesse caso, não. Não deve ter durado o suficiente para se configurar em um beijo apropriado, você não gostou, logo, não o beijou de volta, certo?
— Eu o empurrei e comecei a xingar como um marinheiro.
— Essa é uma reação apropriada para um beijo roubado de seu ex-namorado, por quem você nutre um ódio palpável. — Tati garante e eu fecho os olhos com força, odiando como a hora pode passar rápido aos domingos.
— Eu não o odeio. Sei lá, com gente como o Arnaldo no mundo, um idiota como o Guilherme não merece isso. — Divago sozinha, pois, sei que Tati está analisando minhas palavras em seu cerne.
— Você não gostou mesmo, não é? — Volto a olhá-la confusa. — Do beijo, .
— Claro que não, Tati. Eu estou com o agora e gosto mesmo dele — digo apressada, com urgência. Minha melhor-melhor amiga levanta as mãos no ar, se rendendo.
— Só estou dizendo que você gostava mesmo do Gui também. Por mais que ele tenha te magoado, voltar assim do nada pode ser avassalador.
— Você já falou para o seu pai que vai trancar a faculdade? — Tati abre a boca, mas fecha em um bico debochado.
— Ainda não chegamos nessa parte. — Ela ri sem graça.
— Tem certeza? Se fosse com você e o Felipe, você não contaria? — Pergunto preocupada.
— Eu acho que só o deixaria inseguro sem necessidade. Não vai acontecer de novo e nem foi nada sério. — Tati dá de ombros. Ela tem razão. Não há necessidade de deixar inseguro com algo que eu odiei cada segundo por ter acontecido. Não agora, que as coisas estão tão bem entre a gente e caminhando para algo mais íntimo.
— Tati... — Batidas tímidas na porta não me distraem de meus pensamentos. É o pai de Tati. Ele entra no quarto com metade do corpo, olha para nós duas e respira fundo. — Visita pra você — diz sem vontade, claramente incomodado com a chegada do namorado da filha.
— Você poderia parecer um pouco mais feliz? Quer dizer, eu posso me casar com esse cara um dia. — Tati se levanta devagar, me dá uma piscadela brincalhona. O pai inclina a cabeça para trás, voltando a suspirar.
— Não força, pirralha... — Diz cansado, dando espaço para que ela passe pela porta. A expressão em seu rosto é desgostosa, desconfortável, descontente. É hilária e eu riria também se não estivesse tão física e mentalmente mal.
Mais tarde, meio dopada dos remédios para gripe que a tia Regina me fez tomar ao menor sinal de espirros, me sinto como se flutuasse a cada passo que dou. Os pés não parecem tocar o chão, ou tocam e eu só percebo porque uma dor aguda sobe do meu calcanhar até o alto de minha cabeça, pesando tanto que chego a tombá-la um pouco toda pequena chance que encontro de apoiá-la em algum lugar.
Agora sentada no meio—fio, esperando por , não posso deixar de me lembrar de estar na mesma posição há alguns meses. Ansiosa, esperando por ele virar a esquina a cada segundo que vinha. Desta vez, a certeza de que ele vem me faz sentir ligeiramente melhor.
Não preciso levantar minha cabeça do conforto de meus braços cruzados de imediato, quando se aproxima de bike, ele dá algumas voltas no pequeno espaço sem carros parados em frente à casa de Tati. No meio de tanta pressão acontecendo de dentro para fora, somente a presença dele já me faz sentir aliviada.
— Oi, linda... — Levanto a cabeça devagar, abrindo um dos olhos para vê-lo me encarar preocupado.
— Oi, lindo... — Devolvo com um sorriso que faz meu rosto doer.
— O que foi? Parece doente... — Abano a mão no ar devagar demais para salientar o ponto de que ele está exagerando.
— Eu tomei chuva como uma idiota de imunidade fraca que eu sou — digo com a voz nasalada. Embora meu nariz esteja entupido, minha voz se concentra ali por alguma lógica ridícula do corpo humano.
— Quer ir lá pra casa? Eu cuido de você. — Ele se senta ao meu lado e eu apoio a cabeça em seu ombro.
— Podemos só ficar aqui um pouquinho? — Pergunto manhosa. me abraça pela cintura e assente devagar, afagando meus cabelos.
— Podemos fazer o que quiser — diz baixinho, me acomodando contra seu corpo. — Mas estou um pouco preocupado, quer ir ao médico?
— Estou só meio gripada e meio cansada. A junção das duas coisas me cambaleou um pouco. — Rio fraco, mas não me acompanha.
— Você está sempre cansada — diz um pouco sem jeito. Ele toma cuidado para que não se pareça como uma reclamação, mas parece sim como uma.
— Me desculpe, mas, para algumas pessoas é mais difícil aguentar a pressão. — No momento em que digo as palavras, cruzando os braços na frente do peito, sinto que estou na defensiva e começo a me desesperar um pouco. Normalmente esse é um caminho sem volta.
— Eu sei. Sei também que diante de dificuldades, algumas pessoas costumam pedir ajuda. — também entra numa espécie de defensiva, uma que me faz sentir uma perfeita idiota por recusar com tanta certeza qualquer possibilidade de mostrar a ele a escuridão da minha realidade.
— Eu só preciso parar de pensar um pouco. Estou quase compreendendo por que algumas pessoas desistem de tudo, os pensamentos não param. A dor não passa! — Não sei se foi o fato de eu ter terminado a frase gritando, minha respiração ruidosa ou meus olhos arregalados e assustados quando compreendo o que acabei de dizer em voz alta. Mas inclina a cabeça para o lado, suspira pesado e me olha com a mesma pena da qual tenho fugido.
— O que está acontecendo, ?
É só uma pergunta. Uma pergunta simples e inofensiva. Vindo de alguém que se importa.
— Ai, meu Deus! Nada, . Não está acontecendo nada! — Estou gritando de novo e me odeio por isso. Tento me acalmar, me encolho em seu colo e o fato de ele ainda estar me segurando enquanto o trato com tão pouca paciência diz muito sobre quem é.
— Eu não consigo acreditar. — Ele balança a cabeça de lado para o outro devagar. — Na verdade, até me ofende um pouco que tenha algo te incomodando tanto e você simplesmente não queira falar comigo.
Eu rio. Um riso cansado, irônico.
— Não tem nada de simples nessa história. — Solto o ar dos pulmões com força, o encarando com uma raiva que não deveria estar sendo endereçada a ele. Seu toque se afrouxa, só um pouquinho. — E você não pode ajudar! Na verdade, toda essa pressão também não ajuda.
— Então, me diz o que fazer?
— Só... Me deixa resolver isso? Eu juro que te conto quando puder. — não está nem um pouco satisfeito. Ele pisca algumas vezes e é possível ver que ele está maquinando motivos e razões para me compreender.
— Eu sempre odiei essa característica da personalidade do Pedro, eu rezei para que você não fosse assim também. — diz mais comedido, como se estivesse falando consigo mesmo.
— Que característica? — Me viro um pouco, encarando seus olhos tristes e concentrados em mim.
— Essa necessidade irritante de carregar fardos que não são seus. — está sério, sendo duro e direto. — Eu estou aqui, . Por que não confia em mim?
— Não tem a ver com você. Aliás, você não estar envolvido é a única forma de ter pelo menos um lugar onde eu possa tentar parar de pensar no que aconteceu. Por que você quer acabar com isso?
— Você está se ouvindo? Como espera que eu ignore todos os sinais de que algo muito ruim está acontecendo com você? — Sua pergunta óbvia, concisa e bem formulada me faz acreditar que ela voltará a martelar minha mente. Não acredito que estamos tendo nossa primeira briga.
— Você pode confiar em mim? Eu vou resolver isso e...
— Eu nunca te contei quanta raiva eu senti do Pedro por ter salvado nós dois e nem ter pensado em parar para checar os próprios ferimentos — diz amargo, me soltando por completo. Ele sequer me olha. — Eu me odiei por não ter conseguido ajuda-lo ou por simplesmente ser algo impedindo que ele chegasse até você. Eu só me sentei lá e assisti meu melhor amigo morrer. — Engulo em seco, minha garganta dói. nunca disse nada além de coisas boas sobre meu irmão e não estava mentindo antes. Ele também não mente agora. — Eu odeio ter que me forçar a afogar esse sentimento de que não estou fazendo o meu melhor e de que não estou protegendo você como deveria. Como eu prometi a ele que faria. Então, se o problema não é a sua mãe, a faculdade ou o imbecil do seu ex-namorado, eu não faço a menor ideia do que seja e isso está me deixando louco. O que está acontecendo? — Ele pergunta de novo, um pouco mais irritado.
— Não quero falar sobre. — assente e fecha os olhos com força, buscando por paciência. Não que lhe falte, mas parece que para tratar comigo desse assunto — ou não tratar —, ele precisa de um pouco mais.
— E se eu puder ajudar? — Ele insiste. As sobrancelhas juntas em uma expressão dolorida de quem se importa muito. Me afasto dele, sentindo um vento gelado não tão figurativo quando suas mãos não estão mais em volta de mim.
— Não pode — digo resoluta. — Só deixa para lá. — Corro o risco de soar grosseira, mas preciso acabar com esta conversa, mesmo que tenha sido eu quem a começou.
— Nós nos conhecemos? Eu sou o , um cara perfeccionista com um obstáculo imenso no meu caminho. Não consigo deixar pra lá. — Sarcasmo não combina com . — Escuta , não quero ser esse tipo de namorado, só quero saber se está segura.
— Não. Não estou. Ninguém está! — Massageio minhas têmporas, cansada demais para continuar essa conversa e com mais medo ainda de revelar demais — Eu posso ser atropelada por um ônibus enquanto atravesso a rua, o bagageiro de um avião pode cair na minha cabeça ou literalmente qualquer outra coisa pode acontecer...
me encara de um jeito distante, como se não compreendesse uma palavra do que eu digo.
— Então, é isso o que está te perturbando? As inúmeras possibilidades de um acidente acontecer de novo?
— Não, ... — Suspiro audivelmente, o fazendo engolir em seco em expectativa. — Não é ansiedade por algo que eu ainda não conheço. Pelo contrário, é por saber exatamente qual é a profundidade da maldade das pessoas, do que elas podem fazer em plena consciência. É disso que tenho tanto medo. — Cubro o rosto com as mãos, respirando fundo repetidas vezes.
— Medo de quem? — A pergunta soa urgente, esganiçada.
Decidida a acabar de uma vez por todas com o assunto, me levanto da calçada sentindo o mundo girar rápido demais.
— De todo mundo. — suspira e se levanta do meio-fio.
— Certo... — diz baixo, devagar. Como se estivesse entendendo lentamente que “todo mundo” significa mesmo todo o mundo, inclusive ele.
Eu podia ter dito a verdade. Dizer que o marido da minha tia é um tipo de pesadelo da vida real que nunca desaparece quando esfrego meus olhos em busca de clareza para a mente. Poderia dizer que meu ex-namorado intrusivo e confuso me beijou, me deixando tão perdida que mal posso respirar. Poderia dizer que Lucca me magoou profundamente e que pode ser que eu nunca mais queira vê-lo. Dizer a que pode ser que eu esteja me mudando de volta para Guarulhos e que não estou pronta para voltar, por mais que cada célula de meu corpo esteja contente com a possibilidade. É uma montanha-russa de altos baixos e baixos mais baixos ainda. Eu só queria que tudo parasse.
— Desculpe por ser tão... quebrada. — volta a me olhar. Um sorriso triste de linha fina enfeita os lábios e esse olhar me desmancha. Quero ir até ele e abraçá-lo com força, ignorando o egoísmo que é tirar dele alguma paz, algum conforto nesse momento. Mas não o faço. Não mexo um músculo e me detesto por isso.
— Não é culpa sua, .
Parece loucura ouvir isso. De alguma forma, tudo de ruim que acontece às pessoas que eu amo tem um fator em comum: eu. Com um suspiro cansado, me levanto também, ficando de pé no meio-fio, equilibrando o corpo com a sorte. Gastando a pouca que tenho com o risco de cair de cara no chão.
— Por que parece tanto que é? — Murmuro irritada e parece lutar contra suas vontades. Ele bagunça os cabelos, coça a nuca. Coça os olhos e suspira pesado.
— Eu não sei. Só sei que não é culpa sua e mesmo que eu seja o único que te diga isso, vou continuar dizendo, até você acreditar. — Parece trabalhoso. O encaro com a desconfiança de que alguém possa ser capaz de ter tal disposição.
Ele tenta se aproximar para um abraço, mas eu esquivo dando um passo para trás. É a primeira vez que reparo nesse mecanismo de defesa indesejado e forjado pelos traumas. cessa os movimentos, vejo seus ombros murcharem um pouco. Ele gira o corpo, mudando de direção e indo até a bike.
Meu corpo parece vibrar em agonia com seu gesto. Vê-lo magoado desse jeito acaba comigo, mas não consigo fazer parar.
— Você não precisa ir embora — digo baixo quando o vejo levantar a bicicleta do meio-fio. Um nó se instala em minha garganta.
— Preciso sim. — devolve rápido. — Eu não sei lidar muito bem com frustração, preciso ficar sozinho. — Ele ri sem jeito e já montado em sua bike, hesita em se despedir da mesma forma de sempre e de repente, tudo parece diferente. Droga.
Fico parada enquanto ele pedala cabisbaixo pela rua acima. No fundo de minha garganta, seu nome me engasga e eu engulo junto, uma vontade imensa de chorar.

Vejo Tauany e Tiago se beijarem no portão de saída da faculdade. É terça-feira e, segundo Tau, eles saíram nos três dias do fim de semana. O que deveria ser só uma ficada se tornou em uma ficada mais longa do que a garota estava acostumada e olhando de soslaio, para não parecer uma esquisita observadora de casais, decido que os dois formam um belo casal.
Rio quando Tiago sobe suas mãos do pescoço de Tauany e ameaça embrenhá-los em seus cabelos — agora pintados de um tom sensual de louro nas pontas —, a garota bate em sua mão e ainda assim, o beijo lento continua a acontecer.
— Desculpa a demora. — Tia Vanessa diz arfando. Ela ajeita a alça da bolsa nos ombros e fico feliz em perceber que ela ainda está orgulhosa em seu segundo dia de trabalho.
— Tranquilo — digo rápido, desistindo de me despedir de meus colegas ocupados.
— Eu adoro estar cansada! — Ela envolve meu braço com o seu, seguindo o caminho até o ponto de ônibus.
O meu fim de semana foi agitado com festas, beijos e brigas, o que me deixou distante do assunto que tem fervido minha cabeça na última semana. Tia Vanessa continua seguindo seu plano. O fato de ela não me incluir é mais uma preocupação que eu posso me livrar e tem que ser agora.
— Certo — digo quando nos sentamos lado a lado no banco atrás do cobrador de ônibus. — O que está acontecendo? Por que está trabalhando no almoxarifado da faculdade?
— Acho que ainda dá tempo de reaver a minha independência — diz assim, simples e confiante, como se não houvesse um elefante prateado e coberto de glitter pesando o fundo do ônibus.
— Isso é ótimo — digo rindo sem jeito. O que deveria soar como um incentivo, soa mais como uma pergunta.
— Você deve estar se perguntando sobre o Arnaldo e o que ele acha. — Ela ri, como se estivesse se preparando para essa conversa há algum tempo.
— Não exatamente. Não ligo para o que ele pensa, mas, existiu uma conversa entre vocês? Você vai mesmo se separar dele? — Não quero que minhas perguntas a assustem, mas não consigo conter a necessidade de entender o que está acontecendo.
— Não querida, Arnaldo e eu não nos falamos desde... aquela noite. — Tia Vanessa ajeita o cabelo no rabo de cavalo e desvia o olhar.
— Certo, e então? — Ela suspira, tomando coragem.
— Estou pensando em deixá-lo. Mas quero garantir que nós vamos ficar bem. — Minha tia mordisca o lábio inferior, ansiosa. É confuso me sentir parte do problema quando quero ser um fator de mudança.
— Eu posso arranjar um emprego para pagar a faculdade. Senão, eu posso trancar e voltar depois. Acho que consigo pagar o depósito de um mês se conseguirmos nos ater a uma dieta restrita. — Minha boca não acompanha a velocidade de possibilidades passeando por minha mente. Não consigo não sorrir por causa delas.
— Ei, ei... Calma, a adulta aqui sou eu e somente eu devo me preocupar com esse tipo de coisa. — Tia Vanessa diz séria, mas um sorrisinho aliviado ameaça sair nos cantos de sua boca.
— Eu quero ajudar! — Digo empolgada.
— Você ajuda sendo esse exemplo de superação que você é. — Ela sorri de verdade.
Me ajeito melhor no banco do ônibus, mais confortável do que em qualquer carro importado de vidros escurecidos em que estivemos juntas.
— Você está pensando em sair de casa? — Pergunto me permitindo aceitar a ideia de voltarmos para casa. Não importa quantas razões me impeçam de voltar com o coração aberto para o bairro onde nasci e vivi por toda a vida, sentada ao meu lado, de mãos trêmulas, mas olhar decidido, estava a maior razão para se estar em um ambiente seguro como o nosso lar.
— Só quando souber que estaremos seguras. Tenho medo de nos encontrarem. — Tia Vanessa engole em seco, chacoalhando de leve a cabeça para espantar tais pensamentos.
No caminho de volta para o apartamento, fico pensando nesse medo da tia Vanessa. Como alguém poderia seguir em frente e começar uma nova vida sendo perseguida pela possibilidade de ser encontrada por alguém de quem não se sabe exatamente as motivações e limites?
Mais tarde, tenho um pesadelo terrível. Me levanto às pressas e corro para a porta, checando se está mesmo trancada como deixei antes de me deitar. Tia Vanessa dorme pesado do lado dela da cama. Temos dividido o espaço por nos sentirmos mais seguras desse jeito. Eu prefiro que ela se sinta assim, segura. Pelo menos uma de nós consegue dormir a noite inteira acreditando nesta suposta segurança.
O despertador vai soar estridente em menos de dez minutos e eu encaro os ponteiros do relógio sobre a mesinha de cabeceira como se estivesse em um jogo de quem pisca primeiro. Eu estou perdendo por ser feita de carne, osso e um sono interrompido.
Na hora do almoço, fico sentada ao longe com uma maçã comida pela metade em uma mão, enquanto a outra batuca um ritmo ansioso em meu joelho. Observo Tauany e Tiago se tornarem cada vez mais íntimos de um lado do pátio do campus, do outro, minha tia e meu professor conversam animados em um flerte comedido. A tensão sexual entre eles é palpável, algo que só uma vida inteira de desencontros pode explicar.
Pensando em tensão sexual, deixo a maçã de lado e pego meu celular no bolso do moletom. Encaro a mensagem seca de boa noite de na noite passada, secretamente o culpando por não ter tido uma boa noite de sono, pois, a mensagem não veio depois de uma ligação amorosa dele. Ele não me liga desde aquele domingo. Desde a nossa primeira briga.
No passado, toda briga que tive com algum namorado, acabou em término. Desta vez, não sei como me comportar. Suas mensagens podem ser secas, mas elas ainda estavam ali na tela de meu celular. Ele ainda me desejava boa noite, mesmo que eu tenha o afastado e o pressionado a se sentir culpado por querer estar lá por mim.
“Sinto sua falta”
O tempo em que a rede demora para enviar a mensagem é torturante. Sinto como se a urgência que tenho para que ele saiba o quanto é importante para mim seja maior que a capacidade da tecnologia de cumprir seu serviço básico de transmitir tal mensagem.
Me sinto péssima.
De repente, ao olhar em volta, percebo muitos casais ou supostos casais. É como coçar a picada de um inseto pela primeira vez: inevitável, até ficar doloroso.
Passo pela semana com uma sensação incompleta no peito. Faço as tarefas da faculdade, ouço minhas músicas, mantenho a tia Vanessa segura durante a noite, dormindo quando posso. Às oito e vinte e nove de quinta, desisto de dar espaço ao meu namorado. Preciso ouvir sua voz, ter um vislumbre de sua perspectiva alegre. Qualquer coisa diferente de não falar com ele por ser teimosa.
— Alô? — Sua voz soa distante, o fundo barulhento me faz tirar o celular da orelha só para me acostumar com o som estridente de muitas vozes presas em um lugar só.
?
— Quem é? — Ele pergunta, me fazendo sentir uma pontada no peito. Não criei expectativas enquanto esperava que ele atendesse, mas, esperava que, pelo menos, ele visse meu nome no visor de seu celular e se iluminasse naquele sorriso que ultrapassa os furinhos do alto—falante e inunda meu quarto.
— A ... — Digo desanimada, com vontade de desligar e fingir que nunca aconteceu.
— Ah... Oi. Tudo bem? — Ele parece ocupado, a voz soa apressada, daquele jeito que falamos com um agente de cobrança do banco quando eles nos ligam seis vezes ao dia, querendo falar com alguém que não conhecemos.
— Sim... você pode falar? — Ouço uma risada feminina do outro lado e firmo os pés na ideia de que o lugar onde se encontra está cheio de pessoas e que é natural que algumas dessas pessoas sejam mulheres e que elas riam quando algo engraçado acontece. Mas parte de mim não consegue se livrar da ideia de que eu seja o motivo da graça.
— Hmmm... — Hesitação. está hesitando e eu não consigo respirar. — Estou meio ocupado, posso te ligar depois?
— Mas... São oito e meia.
— Eu sei, mas estou ocupado. — Ele diz com pesar e posso perceber que ele se afastou do núcleo barulhento.
— Tudo bem. Nos falamos depois — digo mal-humorada, desligando o telefone sem que ele possa responder.
Me sinto estúpida por achar que ele seria feito de aço e que não se magoaria com meu comportamento. Ninguém é tão magnânimo assim. Todos temos nossos sentimentos e nossos limites. Aparentemente, eu excedi os de .
Ele ligou mais tarde naquela noite, uma hora depois. Eu estava acordada e vi quando o celular parou de tocar e se apagou.
— Tudo bem, ? — Tia Vanessa pergunta, os olhos inchados de sono.
— Tudo sim, tia.
Na sexta, o último período é, como sempre, cancelado. Em meio a contas matemáticas e um senso sovina crescendo dentro de mim, preparo mentalmente um discurso que pede (respeitosamente) por um desconto na mensalidade, abatendo esses preciosos minutos sem educação pelos quais minha tia orgulhosamente paga todo mês.
Vou até ela no almoxarifado para praticar o discurso que faria para o reitor, passando pelos corredores estreitos e escuros, apesar de ainda estar de dia. Seguro o pulso no alto, quase batendo na porta ao lado da abertura por onde ela passa e recebe os objetos das prateleiras altas dentro do cômodo. Esta abertura, agora fechada, tem o logo da faculdade pintado de azul e vermelho. De perto, o tremelicar da tinta sobre o material de alumínio do qual a porta é feita me incomoda os olhos. De repente, todos os meus sentidos estão em alerta e eu odeio poder ouvir o que meus ouvidos estão ouvindo agora.
Os gemidos e sons parecidos com palmas rítmicas e bastante entusiasmadas me tomam o olfato e o paladar, de alguma forma, deixando meu estômago revirado. Fecho os olhos, pois, minha mente fabrica as imagens e eu tento me livrar delas a todo custo.
Me encosto na porta, pensando em todos os cenários possíveis para desfazer tamanha besteira. Não consigo acreditar que minha tia casada esteja transando no emprego para comemorar o fim de uma primeira semana de sucesso.
Eu não sou nenhuma puritana, longe disso. O sexo ainda é uma bela incógnita para mim, uma experiência para a qual venho construindo responsabilidade para aproveitar da maneira correta e sem interrupções de minha própria mente jogando contra mim. Eu realmente sou a favor do sexo em todas as formas, desde que seja dentro da lei, consensual e que todos estejam se divertindo. Mas pelo amor de Deus, a mulher divide a cama comigo. Como ela pode transar com meu professor?!
O pensamento me enfurece e eu chuto a porta antes de dar meia volta e sair do local.
A lealdade em mim não me deixa simplesmente ir embora, então fico de tocaia no pátio, rezando para que ninguém venha pegar nada no almoxarifado, nem usar o banheiro no final do maldito corredor.
Eu começo a acreditar que Deus é um grande babaca sádico que não só ignora minhas orações, como se deleita ao me ver se esgueirar por entre os problemas que ele evita a mandar ajuda, quando o reitor em carne e osso vira uma das entradas da estrutura achatada de corredores e salas aleatórias do campus. Engulo em seco e espero que ele não venha neste sentido, mas o que é esperança para mim, não é mesmo?!
— Boa tarde — diz o homem grisalho, de terno e cabelos bem cortados. É corcunda e baixinho, magro e usa óculos fundo de garrafa. Nasce um preconceito em mim. É difícil confiar em homens mais velhos que usam óculos de lentes fundo de garrafa.
— Boa tarde. — Repito educada, disfarçadamente o bloqueando com o meu corpo.
— Ainda aqui ou chegou cedo pra aula de amanhã? — A risada seca e social que dividimos ecoa pelo corredor mais largo. Eu ouço também uma porta se abrir.
— Ainda por aqui. Estive pensando em ler alguma coisa na biblioteca. — Minha voz sai como se datilografada, cada palavra surgindo em minha mente em sorteio e eu só espero que alguma frase faça sentido.
— A biblioteca é do outro lado do campus. — Ele aponta para o lado oposto, sábio como alguém que, provavelmente, nunca chegou nem perto da construção.
— Eu sei. Eu parei aqui para pensar em que tipo de livro eu... queria ler. É mais calmo. — Minha voz falha, a mentira é física e meu corpo a rejeita.
— Mais calmo que a biblioteca? — O homem cruza os braços na frente do peito, começando a estranhar minha presença ali.
— Mesmo que em silêncio, muitas pessoas em volta de mim me deixam nervosa. — O reitor inclina a cabeça, pensando por um momento. É verdade e eu me sinto bem em compartilhar uma verdade para equilibrar.
— Que besteira. Que mal as pessoas podem te fazer? — Ele ri de novo, social. Apoia a mão em meu ombro e mesmo pequena, ela pesa um pouco.
— Reitor Satiago... Boa tarde. — O professor Alexandre gagueja e solta um pigarro mais culpado do que dizer o que estava realmente fazendo em voz alta. O reitor olha de mim para ele e levanta as sobrancelhas, como se soubesse o que está havendo.
— Biblioteca, né?! — Ele soa malicioso e nem um pouco irritado, ou enojado. Só malicioso. Um exemplo perfeito para o nosso assunto, afinal.
? — Tia Vanessa ainda ajeita a saia lápis, tropeçando nos próprios pés e apoiando a mão na parede, com uma risada brincalhona de quem não faz ideia de como as coisas funcionam no mundo.
O reitor se afasta, saindo do pátio com um pensamento pervertido em mente.
Eu simplesmente odeio ser vista desta forma.
Conforme os anos foram passando e a puberdade me deu curvas, espinhas e cólica por quatro dias mensalmente, ganhei também outro “poder”: perceber a maldade no olhar de um homem mais velho, que insinua através de ironias e o que ele considera uma chacota inocente, aquilo de mais sujo que suas mentes podem produzir.
Fecho as mãos em punhos e espero sem a menor paciência até que o reitor esteja longe o suficiente para não ouvir a minha explosão.
— Que por... Mas que... — Um urro raivoso e animalesco rompe em meu peito, subindo por minha garganta. Queimando tudo por onde passou. — Qual é o seu problema?!
, não fale assim com sua tia. — Meu professor diz comedido, sério. Eu nem consigo olhá-lo agora.
— Tudo bem, Alê. — Ela sorri triste, o que me deixa irada, pois, sou eu quem está decepcionada aqui.
— Quer saber? Eu te vejo em casa — digo apressada, ajeitando a mochila nas costas e saindo correndo do pátio.
Meu peito queima e a raiva que sinto envenena meu sangue, fazendo meu coração pulsar ódio e meus pulmões inspirarem oxigênio e aspirarem ódio.
No metrô, estou impaciente diante da porta, sem nem saber direito para onde estou indo. Encaro a imagem bagunçada e riscada no vidro da porta do vagão. É como retroceder. Toda a raiva exposta, as angústias se empilhando. A decepção ficando confortável.
Meu corpo inteiro treme com a possibilidade de Arnaldo colocar o campus abaixo por causa da traição e a risada antipática da tia Vanessa ressoa no fundo de minha mente, como uma melodia arranhada como a imagem de mim mesma diante de mim.
— Preciso mudar isso...
Meu sussurro é suficiente para calar um pouco as vozes em minha cabeça. Olho para o painel do vagão do metrô, observando as linhas que pego sempre. Me localizo, decido e me preparo para descer na próxima parada.
Sorrio orgulhosa, pois, o grande monstro de lata não me assusta mais e seus caminhos não são mais um mistério para mim.
Salto na estação Armênia, na linha azul. Fico aliviada enquanto caminho na passarela, descendo as escadas já tão conhecidas, é quase como estar em casa.
Aceito o troco do cobrador e me sento no fundo do ônibus, fechando os olhos para aliviar um pouco o cansaço antes de chegar em Guarulhos.
— Passa tudo! Passa tudo! — A voz infantil e aguda de Tati não me engana nem um pouco. — Está perdida? — Tati pergunta quando abro um dos olhos, sorrindo por ver um rosto amigo. Melhor-melhor amigo.
— Não mais. Mas acho que aconteceu em algum lugar na linha amarela — digo sarcástica, tirando minha mochila do assento ao lado para que Tati se sente comigo.
— O metrô, né, amiga?! Quem nunca se confundiu com a porta de saída ou plataformas de números repetidos, mas que vão para direções diferentes? — Tati ri e eu a acompanho.
— Você está bem? — Pergunto quando vejo que ela terminou de beber sua água.
— Aliviada. Acabei de trancar oficialmente meu curso e... — Ela mexe na mochila, tirando de lá uma câmera, mas sem a lente. — Comprei minha primeira Nikon D300. — Tati solta um grito esganiçado e eu rio.
— Mas..., cadê o resto? — Não quero soar negativa, mas acho que ela precisa de mais componentes para fazer seus registros.
— Meu pai só completou a grana para comprar o corpo. Eu vou arranjar um emprego e economizar para comprar a lente, um flash escravo, rebatedor, essas coisas.
— Flash escravo... — Rio de forma infantil, enquanto Tati rola os olhos.
— É um flash paralelo à câmera, ajuda com... Ai, quer saber? Eu vou mudar de assento — diz em uma falsa impaciência e eu rio mais.
— O Felipe adoraria ser seu flash escravo — digo maliciosa.
— Nem brinca. Ele disse que enquanto as coisas não estiverem muito difíceis na faculdade, ele pode me ajudar como assistente. Fofo né? — Tati estala a língua na boca, revoltada com a própria sorte.
— Então, ele continua na saga da medicina?
— Com certeza. Ele não é maluco de desistir. — Ela guarda o corpo da câmera de volta na mochila com cuidado. Fico feliz por Tati estar se impondo e se jogando naquilo que ama. Seus olhos claros refletem uma esperança única de quem se permitiu mudar de ideia e cometer erros.
— Ele é tipo um investimento.
— Exatamente! Se eu não vou orgulhar meu pai me tornando uma médica, vou ao menos me casar com um. — Nós rimos nos abstendo de apontar tudo o que há de errado na frase dita por minha melhor-melhor amiga.
Tati salta do ônibus um ponto antes, vai esperar por Felipe na casa dele e pela sua empolgação, eles iriam comemorar a tarde inteira. Eu também desço um pouco mais adiante do que de costume, vou até a bicicletaria para surpreender e se não for atrapalhar, esperar com ele até que possamos ir para sua casa.
No caminho até a loja, paro em uma mercearia para comprar algumas coisas para comermos mais tarde. Estou frustrada e preciso de carinho e salgadinhos picantes.
— R$9,50. — A moça do caixa diz desinteressada. Eu pago, coloco os produtos na sacola e agradeço por seu serviço mesmo que ela não esteja acostumada com tal gentileza e ignore completamente.
Na escola municipal, a gritaria da criançada é animada e me faz lembrar de bons e velhos tempos em que gritar nossas emoções era mais fácil do que remoê-las. O muro colorido as separa das maldades do resto do mundo e que permaneça assim, até que gritar não seja mais bem-visto e então, eles sejam obrigados a lidar com a vida de forma racionalmente comedida.
Aperto o plástico enrolado da sacola na palma da mão quando vejo o carro da mãe de Guilherme estacionado do outro lado da bicicletaria. A lataria branca destoando das cores alegres das bicicletas paradas em volta.
Eu quero gritar.
Apresso o passo até a pequena loja empoeirada de chão sujo de graxa. Procuro Beto com os olhos e agradeço por não vê-lo ali. Mas mais para dentro, perto da banheira onde ficam as câmaras mergulhadas, e Guilherme discutem frente a frente. Tenho a impressão de que cheguei tarde demais.
— É sério, cara. Não significou nada pra mim e eu quero que você saiba que vocês têm meu apoio para qualquer coisa. — Guilherme diz insistente e eu vejo assentir impaciente. Seu peito sobe e desce e ele evita olhar diretamente para Guilherme, e é assim que ele me vê.
...
— Caralho! Que bom que você está aqui, . Pode dizer para o que nosso beijo foi uma viagem total e que não significou nada pra gente? — Eu não sei se ele está fazendo de propósito, mas quando Gui repete as palavras, fecha os olhos e suspira profundamente. Como se estivesse dando conta de que a verdade veio de onde menos se esperava.
— Guilherme... — diz o nome dele como se machucasse sua língua. — Só... Vai embora, cara...
— Eu sei que é muita coisa para digerir, mas se precisar de um amigo para comemorar a carta de alforria depois... — Guilherme sugere e o olha como se pudesse pulverizá-lo ali mesmo.
Irmão, se em algum momento nós chegamos perto de sermos amigos, em respeito a isso, cala a porra da sua boca e vai embora daqui. Agora. — está bravo, muito bravo. Guilherme esbarra em uma das bicicletas erguidas por um cabo e se esgueira para fora da bicicletaria sob os olhos flamejantes de .
— Eu ‘tô meio cansado de apanhar... Então, eu vou nessa. — Gui quase me faz rir. Ele deveria ganhar um carimbo toda vez que alguém dá uma surra nele.
Se eu não estivesse tão apreensiva, poderia apreciar o arrepio na nuca, pois, nunca esteve tão atraente quanto agora. O maxilar travado, o olhar revoltado e sério sobre mim.
Dou espaço para Guilherme passar e ele tenta falar comigo, mas eu o ignoro e vou até me odiando por não ter contado antes. É verdade, não significou nada além do quanto Guilherme continua sendo um imbecil.
— Eu ia te pedir para me dizer que não é verdade, mas o Gui é muitas coisas: um cretino, um bastardo arrogante, um escroto mau caráter. Mas surpreendentemente, ele não é mentiroso. — ri sem emoção e massageia as têmporas, de olhos fechados.
— Eu não queria te deixar inseguro com algo que realmente não significou nada... — Pela minha lógica, falar a verdade doeria menos do que contornar com uma meia mentira.
— Não queria me deixar inseguro, mas escondeu que seu ex-namorado te beijou em uma noite chuvosa em que você deveria estar comigo? — Ele me olha com certo desprezo, as sobrancelhas arqueadas, formando um vinco em sua testa.
— Eu não acredito que ele veio aqui para te contar isso... Eu-
?! — me interrompe e chega a grunhir, frustrado. — Eu não ligo para o beijo. O Guilherme é um aproveitador desgraçado e toda garota da cidade deveria ficar longe daquele filho-da-puta, o que está me deixando maluco é a sua falta de confiança. Eu achei que fosse só comigo, mas, porra, você não confia nem em si mesma. Não entende que é alguém que pode ser amada e que merece poder confiar nas pessoas. — Ele respira pesado, as mãos trêmulas. Por que não consigo ir até ele? Por que não consigo dizer nada? — Eu não sei se consigo mais fazer isso. Nós fomos cuidadosos para que eu não machucasse você, mas esquecemos que poderia acontecer ao contrário.
— Mas você disse que não ligava para o beijo. — Insisto, mas ele ri. Nasalado, sem aquele brilho que sua risada sempre acompanha.
— Acho que eu ligo, sim. — Ele confessa. Dentro de mim, parece que tudo foi misturado e se transformou numa geleia que é parte humana, parte culpa.
— Então... Você está terminando comigo? — Pergunto sem querer saber a resposta. coça o pescoço e eu busco seus olhos, esperando que ele escolha dizer a segunda coisa que passar pela sua cabeça.
— Eu estou terminando com você, .
Sinto meu rosto esquentar, meus olhos se estreitam um pouco e eu não consigo ficar nem mais um segundo perto dele.
— Certo.
Ignoro a rouquidão em minha voz e saio de lá ainda pigarreando.
Vou marchando avenida abaixo, até chegar na antiga lanchonete onde costumava trabalhar. Os garçons mudaram, mas o emblemático uniforme preto continua o mesmo.
! — O seu Valter acenou de trás do balcão. Vou até ele mesmo que não tenha a menor fome agora.
Conversamos sobre a vida na lanchonete e como as coisas deram uma caída nos últimos meses. Um dos freezers parou de funcionar da noite para o dia, rendendo um prejuízo que se tornou uma verdadeira bola de neve, se arrastando através dos meses e beirando quebrar o negócio por completo.
— Você tem alguma ideia de como poderíamos resolver esse problema? — Ele pergunta esperançoso e eu vejo nos olhos dele, o desespero de um homem apaixonado por seu negócio, mas sem caminhos para seguir.
— O que faz o senhor pensar que eu saiba alguma coisa sobre administrar um negócio? — Devolvo a pergunta, temendo soar grosseira.
— Você sempre foi muito responsável e tinha sim uma ou duas ideias interessantes. Aquela máquina de sorvete se pagou em duas semanas e de quem foi a ideia? — Ele aponta para a máquina azul, que trouxe ao bairro a possibilidade de aproveitar o último verão com uma casquinha simples ou um bom milk-shake.
— Eu não sei. Parece que você precisa de mais dinheiro para consertar as pequenas coisas e talvez alguma ajuda com o planejamento. Você já pensou em abrir até mais tarde? Mudar o público, de repente, música ao vivo? — Estou cansada, possivelmente de coração partido e despejo qualquer coisa que me venha a mente. Qualquer coisa que o faça pensar.
— Você tem razão sobre o dinheiro a mais... — Valter coça o cotovelo, parece mastigar o interior da boca no processo. — Sabe de alguém que esteja interessado em alugar um... como diriam os americanos: estúdio?
— Que tipo de estúdio? — O homem ri e se afasta, fazendo um sinal com a mão para que eu o siga para fora do estabelecimento. Ele briga com o molho de chaves, buscando pela certa que abre o portão da escada estreita. Uma entrada completamente ignorada por mim por anos.
Seu Valter sobe as escadas primeiro, explicando os problemas do tal espaço. É apertado, mas eu consigo imaginar que, com a ajuda da tia Vanessa, nós conseguiríamos tornar aquele lugar um verdadeiro lar.
O banheiro estava recém reformado e tudo funcionava perfeitamente bem na parte elétrica. Fora as paredes descascadas e esburacadas devidos as reformas nunca terminadas, tinha bastante potencial para se tornar um ambiente agradável e bem localizado para alugar.
— Eu quero! — Digo rápido, como se uma fila de interessados batesse na porta. O seu Valter volta a coçar o cotovelo.
— O que você acha de R$200 por mês e... — Ele coça a barba longa. — Você me ajuda na lanchonete. Eu desconto o aluguel do seu salário e nós esperamos você ser maior de idade pra eu te contratar como gerente. — Pisco algumas vezes, eu quero rir.
Eu não sei se meu coração foi mesmo quebrado, porque, eu acho, que um coração quebrado não pode bater forte desse jeito com a possibilidade de tudo mudar.
— É isso! Eu topo, obrigada! — Eu ouço o som saindo de mim, sinto meus ombros tremendo e a firmeza da mão de meu antigo, porém, novo patrão me assegura de que eu fiz isso. Eu fui o agente de mudança.
Meu senhorio/patrão retira a chave de seu molho e a entrega orgulhoso para mim. Ela tem um peso e eu sinto como se toda a construção tivesse sido disposta sobre minha mão.
— Vamos lá... Gosto de comemorar com um pastel bem recheado de frango com catupiry. Qual o seu pedido? — Ele insiste com o olhar de quem sabe que seu pastel de massa caseira é irresistível.
— O clássico de carne.
— Você é das minhas! — Ele desce as escadas e espera educadamente que eu tranque a porta de meu quase oficialmente novo lar.
Depois de brindarmos com refrigerante e queimar a língua com o pastel quentinho, seu Valter e eu tratamos de mais negócios. A princípio, sua generosidade o deixaria com o déficit da ausência de um depósito. Compreendendo nossa situação, ele concordou em receber o aluguel assim que nos mudássemos e considerou a finalização das paredes do estúdio como uma espécie de calço. Mentalmente, faço uma longa lista de dívidas que tenho com ele e como planejo pagar aos poucos, mas constantemente.
Sobre a lanchonete, tenho algumas ideias que o assustam de começo. Quero estender o horário de abertura do estabelecimento, oferecendo tudo o que oferecemos de dia, mas com algo a mais. Tomo a caneta que ele carrega no bolso da camisa branca de botões e escrevo uma lista breve com o nome de vários artistas independentes ao redor da cidade que se interessariam por se apresentar em troca de um pequeno cachê. E poderíamos cobrar esse cachê dos clientes que viriam pelo espaço que temos na calçada, para estender a disposição das mesas, deixando espaço para o artista e para os clientes dançarem em noites mais animadas.
Ele parece fazer contas e mais contas mentalmente, cedendo para probabilidade de dar errado.
— Espere o primeiro aluguel e então, consertaremos o freezer. Assim, podemos voltar a vender bebidas geladas na mesma frequência de antes. Vamos começar por consertar as coisas, depois, as mudanças. — Asseguro ao mais velho e ele acaba mudando de ideia.
Quando termino minha reunião de negócios, pergunto a Tati por mensagem, o que eles estão fazendo e logo, Felipe encosta o carro no meio-fio, com minha melhor-melhor amiga descabelada, me chamando para entrar.
No caminho para qualquer lugar para onde Felipe esteja dirigindo, passamos na frente da bicicletaria. está lá dentro, concentrado no conserto da mesma bicicleta de mais cedo.
— Ele vai nos encontrar mais tarde? — Tati indica a loja com a cabeça.
— Não. O terminou comigo — dizer em voz alta soa estranho, mas é a verdade. Tati se vira para frente, vejo quando ela troca um olhar com Felipe. O silêncio se faz presente e eu forço um sorriso. — Mas a boa notícia é que eu arranjei um emprego e sou a orgulhosa locatária do estúdio sobre a lanchonete mais badalada deste bairro. Quiçá, dessa cidade. — Tati também força um sorriso, indecisa sobre comemorar as boas novas ou lamentar uma notícia que já havia passado.
— O universo. Ele abre janelas o tempo todo... — Tati cutuca o namorado após seu breve devaneio e eu rio quando Felipe troca um rápido olhar comigo pelo retrovisor.
— Isso é incrível, . É claro que você seria o adulto responsável da sua vida. — Tati comenta meio rindo, meio sem graça e eu assinto, deixando o assunto morrer aos poucos.
O adulto responsável na minha vida. Não consigo evitar rir um pouco da grande piada sem fim que tem sido a minha vida até então, talvez o destino estar nas minhas mãos seja o motivo de tudo ser tão caótico.
Naquela noite, dormi pesado no colchão fino bem ao lado da cama de Tati. Dormi pensando nos planos que tenho para minha nova casa e nas possibilidades que me aguardam no meu antigo/novo emprego. Mas no meio da noite, quando eu não tinha sequer energia para tentar controlar meus pensamentos, eu tive um sonho. Sonhei com e um de nossos primeiros encontros como namorados.
Me lembro de me sentir tão incluída e querida por ele. Tão ouvida e compreendida em níveis surpreendentes. Me lembro de sorrir o tempo inteiro, porque é engraçado e inteligente, e, me fazia sentir dessa maneira também.
Acordei cedo na manhã seguinte, deixei a casa com o sol ainda tímido para aparecer. Peguei o ônibus, o metrô, mais um ônibus e marchei até o apartamento caro e brega que nada combinava comigo.
Eu sabia que a tia Vanessa ainda estaria dormindo sem culpa naquela manhã de sábado e atarefada, entrei no quarto abrindo as cortinas.
— Bom dia! — Digo animada, pulando na cama enquanto minha tia se levanta e remove a máscara que usa toda noite para dormir.
— Onde você esteve? — Pergunta brava, ignorando meu bom humor.
— Dormi na casa da Tati. — Explico o óbvio e ela rola os olhos inchados.
— Eu fiquei louca de preocupação! Liguei para o , para a Simone... — Solto um grunhido irritado com a menção do nome de meu... ex-namorado e sinto meu estômago revirar. Decido que é fome ou ansiedade, ignorando sua expressão preocupada e irritada.
— Você provavelmente deveria ter ligado para mim. — Retiro o celular que a mesma me deu há meses e o deixo sobre a cama. — Eu tenho excelentes notícias!
Conto tudo a tia Vanessa e não sei se ela não está gostando da ideia ou se não está ouvindo direito por ainda ser cedo e ela precisar de café para processar qualquer informação.
— Você ficou louca? Como vamos nos mudar sem que o Arnaldo perceba?
— Você arranjou um emprego escondido! — Insisto, achando um absurdo que ela tenha seguido por essa linha de pensamento. Ela não vai enfrenta-lo de novo?
— Fala baixo, garota! — Minha tia salta na cama, se aproximando mais. — Isso é diferente. Ele sempre disse que eu deveria sair mais, deve achar que estou frequentando algum clube, algo assim. — Ela abana a mão no ar, voltando a se deitar em minha cama. Ela me puxa e eu encaro o teto, ao seu lado. Ficamos em silêncio enquanto ela absorve a ideia lentamente.
— Nós poderíamos ter papel de parede florido na cozinha, como você sempre quis — digo casual, mas sei que apelar para o quesito decoração com minha tia é golpe baixo.
— Você ficou louca? — Ela volta a falar, mas um sorriso beira a aparecer em seus lábios azulados de frio. — Você fica brava e sai por aí aceitando empregos e alugando casas sem me consultar?
— Ei! Se vamos falar sobre atos impulsivos, o que diabos foi aquilo ontem à tarde? — Devolvo a pergunta e ela cora na hora. O rubor esquentando as maçãs do rosto e até devolvendo uma corzinha aos lábios dela.
— Eu realmente não tenho explicação para aquilo... — Ela volta a rir do jeito que me irritou ontem, mas agora, me sinto compelida a compartilhar de sua aventura com o professor bonitão da faculdade.
Enquanto tia Vanessa tentava manter a discrição sobre os detalhes mais íntimos sobre a escapada, me perdi vendo como ela parece viva, enérgica. Claro que ainda soa sonolenta e meio irritada, mas suas feições brilham com a menor lembrança do momento em que se sentiu como uma verdadeira mulher em anos. Ela se arrepia, sorri daquele jeito frouxo que faz qualquer um parecer ter treze anos de novo. Gesticula bastante e lhe faltam palavras para contornar a verdade: ela precisava dele dentro dela e de repente, nada mais importou.
— As pessoas dizem muito isso sobre sexo… — Comento distraída e ela ri.
— Eu sei os riscos que corremos, mas juro, , valeu cada segundo. Ele é caloroso e intenso. Sério e tão absolutamente doce. Exatamente como há vinte anos atrás. Eu simplesmente não resisti. — Ela confessa e ajeita os cabelos, balançando a cabeça para espantar os resquícios das sensações.
— O terminou comigo. — O ar me falta, meus ombros murcham.
Eu só entendi agora por que busquei pela sensação deliciosa de se estar nos braços de um bom homem e notei que a última vez em que abracei fora naquele domingo.
— O quê?! Como assim? — Sinto que consigo ignorar a voz maternal de minha tia, o abraço dela em volta de mim e as lágrimas se acumulando nos cantos de meus olhos. — Ah, querida, eu sinto muito. — E é uma simples frase que me faz desabar em seu colo. Bem, a frase cheia de pesar de minha tia e perceber tão imediatamente que a ausência de em minha vida é um buraco grande demais para suportar.
É sábado e eu passo o dia na cama chorando copiosamente pelo término de um namoro. Mas não um namoro qualquer. Um que me deu a oportunidade de compreender meus limites e respeitá-los sem culpa. Uma relação breve, mas tão cheia de carinho que me deixou confusa durante uma noite inteira achando que ainda não tinha acabado, pois, nunca me machucaria.
foi tão bom para mim, que mesmo chorando à ponto de soluçar pela falta que ele fará nos meus dias, no fundo de algum lugar onde a dor não chega por causa dele, eu sei que vou superar. Acho que isso também é por causa dele.
? — É bem tarde quando a tia Vanessa volta de um “passeio”. Suas bochechas coradas e os lábios inchados denunciam que ela não estava de jeito nenhum em uma reunião do clube do livro. — Eu quero me divorciar do Arnaldo.
— Tipo, agora? — Me levanto rápido, sentindo a cabeça girar.
— Não — diz a mulher, rindo sem jeito. — Sem mais atos impulsivos.
— Certo, vou acreditar quando não tiver mais manchas de batom no seu pescoço. — Estico o braço e espalho a mancha na área abaixo do queixo. Ela ri mais forte.
— Estou falando sério. Você, como sempre, me inspira a fazer a coisa certa. — Ela ajeita meu cabelo, sorrindo orgulhosa.
— Eu não sou exemplo de nada agora. Perdi o melhor cara que conheci e só tenho forças para chorar — digo fazendo um biquinho e minha tia franze o nariz de um jeito engraçado.
— Se dê algum crédito, menina. Quem perdeu foi ele! Além do mais, você tem uma vida meio maluca, querida, se dê também algum tempo. Para chorar, para se reerguer, para desistir de tudo por uns tempos, se precisar. Cuida de você um pouquinho. — Volto a deitar, encarando o teto e suas palavras fazem sentido. Por incrível que pareça.
— Eu tenho planos, não posso desistir de nada agora — digo decidida. Minha tia alcança minha mão com a sua e chacoalha um pouco.
— Tem razão — diz comedida. — Não esqueça que estamos juntas nessa. Quero te proteger como você tem me protegido. — Tia Vanessa deita ao meu lado e entrelaça os dedos nos meus.
— Vê se não esquece disso quando estiver perto do moreno bombado, Nessa. — Sua risada me faz sentir na presença de outra adolescente e eu rio também. Gosto da possibilidade de ver um possível amor se reascender.
— Eu não vou, prometo! — Ela ainda ri, mas aperta mais nossas mãos juntas. — Somos eu e você, contra o mundo.
Balanço a cabeça de um lado para o outro, ainda cética acerca da participação da tia Vanessa na melhor solução possível para nós. Eu a amo, mas a mulher está experimentando a vida de novo depois de tanto tempo, parece até errado esperar que ela não cometa erros.
De qualquer forma, tenho um longo caminho pela frente e quanto mais boas companhias, melhor.

Apesar de o seu Valter ser absoluto sobre a vontade de me contratar de verdade como gerente da lanchonete somente depois que eu for maior de idade, ele tem me treinado para tal ofício com empenho há duas semanas.
No começo foi estranho voltar a trabalhar aqui. De início, não consegui me livrar da sensação de retrocesso, mas, após um longo caminho saltando de um transporte público para outro, me vi analisando a minha nova situação com atenção e, seguindo os conselhos de tia Vanessa, me dando algum crédito. Eu voltei sim a trabalhar na antiga lanchonete de onde saí, mas agora tenho a missão de ajudar o seu Valter a reerguer a lanchonete, além de ter sob controle a lenta, mas consistente reforma no estúdio, no andar de cima.
Tenho sonhado com o dia em que vou trabalhar e morar no mesmo lugar, por mais louco que isso seja. Me deslocar de um endereço para outro, equilibrando a reforma, o emprego e a faculdade, tem me deixado destruída.
Eu nem posso reclamar. Essa rotina maluca e cansativa tem sido a escapada perfeita para não pensar nos problemas que não posso resolver e a ansiedade para as coisas que estão acontecendo agora é grande demais para me deixar ter tempo de tentar prever as consequências de cada passo. Estou focada, tenho um plano e estou seguindo à risca o caminho plausível para não só ser dona da minha própria vida de um jeito literal, mas poder oferecer a mesma chance para a tia Vanessa.
Ela tem sido discreta e comedida, mas eu sei que o flerte e o sexo casual com meu professor de produção musical têm se intensificado lentamente. Eles conversam por mensagens de texto todas as noites e garanto que se encontram furtivamente nos corredores do campus, mas ela me assegurou de que não repetiram o mesmo deslize de antes.
Enquanto seu marido emenda viagens de trabalho uma atrás da outra, seu namorado, avança lentamente para destruir as correntes em seu coração. Apesar de brega, gostei da analogia usada por tia Vanessa, dia desses. É nítido nela a mudança de aspecto de um coração quando ele se liberta.
? — Seu Valter se aproxima suspirando pesado. — Preciso ir ao banco, toma conta de tudo aqui?
Aperto o pano que uso para limpar a mesa com um pouco de força. Fico nervosa. Eu já cuidei sozinha da lanchonete antes, quando a responsabilidade caso algo acontecesse era de outra pessoa. Agora é diferente, a responsabilidade é minha.
— Claro... — Seu Valter ri, sua risada é grave e meio debochada.
— Está com medo de quê? Você vai tirar de letra. Já volto! — Assisto o homem se afastar e enquanto olho os vincos na camisa amassada, respiro fundo, um pouco apreensiva.
Os garçons e a garçonete novos são um pouco mais velhos que eu. Os homens são irmãos e a mulher é esposa de um deles. Desde que cheguei, eles não têm poupado esforços para deixar claro que minha presença na gerência não faz o menor sentido para eles. Me esforcei para mostrar que sou igual a eles, alguém por quem o seu Valter teve misericórdia e decidiu dar um voto de confiança, mas logo após a minha primeira semana, percebi que não éramos tão iguais, afinal de contas. Este trabalho significa muito mais para mim do que para eles, aparentemente.
Me pego pensando nos retirantes nordestinos que conheci morando em Guarulhos por toda a vida. São pessoas com nada além do sonho de melhorar a vida da família. Eles trabalham duro e honestamente, não fazem corpo mole diante de uma boa oportunidade e mesmo simples, há uma certa ambição em seus olhos, que os fazem levantar mais cedo que todo o resto para correrem atrás de seus sonhos.
Vendo o casal aproveitar a saída do patrão para pararem de trabalhar, mesmo com tarefas acumuladas, me deixa além de muito confusa, bastante irritada. É um desrespeito com aqueles que conheci no ponto de ônibus, ou pra quem dei o assento no metrô tarde da noite, por ver na feição daquela pessoa que seu dia estava longe de acabar.
Decido tomar uma decisão que pode determinar como essas pessoas me vêm daqui para frente. Talvez até dificultar o trabalho para o qual eu estou sacrificando tanto para empenhar com excelência.
— Tina, posso falar com você um minuto? — Começo por ela. Na minha cabeça, se eu apelar para o fato de sermos as únicas mulheres trabalhando no estabelecimento e firmar com ela o trato de trabalharmos juntas para nos fortificar, talvez ela se sensibilize e troque o olhar de desprezo por um mais amigável. Ou um menos ácido.
Sempre otimista, pobre Alice.
— E você quer que eu fique contra o meu marido e meu cunhado? — Seguro o impulso de bater a palma de minha mãe na minha própria testa, tamanha a frustração em tentar mostrar fatos à uma porta.
— Nada disso. Quero que todos trabalhemos como um time com uma única meta, que é manter nossos empregos. — Rio sem jeito, parece tão óbvio para mim. Mas a mulher de braços cruzados e totalmente fechada para uma nova visão, me desanima completamente.
— Olha, temos trabalhado desse jeito por meses e está dando certo. Não quero te desrespeitar, mas você é meio nova para entender os algumas coisas. Alguns de nós têm problemas de verdade. — Tina estica o braço, apoiando a mão sobre meu ombro. O uniforme esconde e cicatriz e a pinica de vez em quando, o que me lembra que Tina não poderia estar mais errada.
— Eu entendo que seja estranho chegar uma criança do nada e te dizer o que fazer — digo sorrindo, optando pelo diálogo aberto e honesto, me aproximando mais da linguagem dela. Mesmo que ela não queira me entender. — Mas você está errada. Vocês são desatentos com os pedidos e por causa disso, temos desperdício de comida. Vocês não são proativos, então, vira e mexe, temos clientes desistindo de pedir por esperarem demais. Eu sei que é um saco mudar a rotina, eu entendo bem disso. Mas nós temos de fazer isso, senão, não terá lanchonete para trabalharmos em breve. — A mulher parece se preocupar com isso, ao menos.
— Nós não desperdiçamos, nós levamos para casa. — Ela explica, como se fosse óbvio.
— Se não traz lucro para o negócio, é desperdício, Tina. — Me sinto idiota por ter que dizer algo tão óbvio para uma mulher aparentemente feita.
— Nós vamos parar — diz de qualquer jeito, como se estivesse me fazendo um grande favor. Respiro fundo e engulo a vitória, ignorando que talvez eles estivessem errando pedidos de propósito esse tempo todo.
— Ótimo. É um bom começo. — Me sinto confortável para me livrar de seu toque em meu ombro. Vejo as unhas longas pintadas de vermelho se afastarem de mim e eu fico semi aliviada com o rumo da conversa.
Como eu disse, aceitando a vitória.
— Eu preciso organizar a dispensa, tem muitos produtos vencidos e eu preciso de um controle disso. Posso confiar em você para ficar no salão? — Arrisco. Li em algum lugar que dar responsabilidades diferentes para alguém que não está tão afim de desempenhar algum tipo de serviço pode influenciá-la a encontrar tarefas que lhe deixem mais satisfeitos. Visando produtividade, preciso trabalhar com o que tenho. — Você pode ficar no balcão, coordenando os rapazes enquanto eu termino por lá. Depois eu te ajudo, o que acha?
Tina me olha da cabeça aos pés. Ela masca um chiclete que nunca parece perder o gosto e pondera minha oferta com bastante cuidado.
Em um certo ponto, ela aceita e quase sorri de forma amigável.
— Vou gostar de mandar neles, pra variar. — Ela cutuca minha costela e só quando Tina sai da copa é que eu respiro fundo, segurando em meus joelhos enquanto reprimo uma dança da vitória.
O cheiro desagradável de produtos passados há tempos não incomoda tanto, pois, o ar está empesteado com o cheiro delicioso do meu sucesso como líder.
— Quem diria? — Pergunto para um pote de cinco quilos de maionese. Na ausência de resposta, me dou um high-five e continuo o trabalho, afinal, preciso ficar de olho naqueles três lá fora.
Mais tarde, ainda estou orgulhosa do pequeno progresso que fiz hoje. Coloco o lixo para fora e espero o seu Valter trancar a lanchonete para poder me despedir dele.
Lembro o mais velho de colocar o cinto de segurança e aceno para ele enquanto se afasta com seu Escort 95 azul-escuro. Está tarde, mas sinto cócegas do lado de dentro do estômago ao pensar no progresso da reforma no andar de cima da lanchonete.
Sem pensar duas vezes, separo a chave do portão das outras e ouço o barulho fofo dos chaveiros chacoalhando enquanto abro a passagem para a escada. Subo os degraus aos pulos e sem poder demorar muito, entro no estúdio e acendo a luz principal, ao lado da porta de madeira recém envernizada.
Está longe de ficar pronto. Ainda estou pechinchando um bom preço pela pintura com o Genivaldo, um pintor profissional que o seu Valter indicou. Mesmo que tivéssemos entrado em um acordo, outra batalha acontecia entre mim e tia Vanessa para decidirmos a cor principal do lugar. Ela quer algo claro, alegre e brilhante. Por mim, pintávamos tudo de branco e nos mudaríamos no dia seguinte.
Não resisto e vou até a pequena caixa de papelão com as miudezas que a tia Vanessa não resistiu em comprar. Copos, talheres, paninhos decorados. Todos vermelhos ou com detalhes em vermelho.
— Nós não temos reboco na maioria das paredes, mas temos copos chiques de vidro — digo irônica, colocando o conjunto com seis de volta no lugar.
Atrasada para pegar o penúltimo ônibus na estação Ana Rosa e com um bom caminho ainda pela frente, decido me apressar para chegar até o ponto de ônibus da esquina.
Por estar sozinha, evito colocar os fones de ouvido. Preciso me manter atenta e alerta a qualquer movimentação suspeita em volta. Prendo os cabelos em um coque no alto da cabeça e ajeito o moletom no corpo, usando o capuz para cobrir meu pescoço, não só como medida protetiva, mas porque estamos no meio do outono e o frio do inverno parece ter chegado mais cedo este ano.
Bufo entediada com a demora do ônibus e decido me sentar na estrutura gelada de metal. Gostaria de poder me entreter com alguma coisa e debato comigo mesma sobre tirar ou não um livro da mochila.
Como uma devota incorrigível da esperança, quando ouço o som de pneus raspando na estrada empoeirada, meu coração fisga e parece tomar conta dos gestos de meu corpo. Meu cérebro só assiste, tirando do encontro noturno e inesperado entre mim e , seu entretenimento.
?! — Ele aperta os freios rápido demais, parando um pouco desajeitado mais adiante.
. — O quê? Não.
— Trabalhando até tarde? — Ele pergunta amigável. É a primeira vez que nos falamos desde que ele disse que estava terminando comigo.
— Certamente. — Ele assente, mas só porque eu estou assentindo também.
olha em volta, todos os estabelecimentos estão fechados ou fechando no momento. Não há ninguém além de nós dois parados ali.
— Onde você estava? Quer dizer... — Fecho os olhos com força, odiando a urgência transbordando em minha voz. — Estava trabalhando até tarde também?
— Não. — cruza os braços, mordendo o interior da boca. Ele está nervoso. — Eu estou fazendo um curso. — Ele ri sem jeito.
— Curso? Existe alguma coisa que você não saiba fazer?
— É... Um cursinho pra... Prestar o vestibular. — engole em seco. Não sei dizer se ele está nervoso por minha causa ou se é por conta de sua novidade.
— Jura? O que quer cursar? — Me distraio de seu olhar percorrendo meu rosto de um jeito que faz toda aquela geleia dentro de mim se agitar.
— Psicologia — diz devagar, apreensivo.
— Claro — digo entre uma risada constrangida. É isso? Eu sou a namorada louca que o fez querer compreender melhor a psique humana?
— E você? Como estão as coisas?
— Bem. Ótimas. — Não era assim que eu queria que minha voz soasse. Tão irritadiça.
— Que... bom. — esfrega as mãos dos lados das pernas, agitando o tecido de sua calça larga de moletom cinza. — Eu soube que você está operando milagres na lanchonete. — Ele toca os punhos da bicicleta. Ele trocou a cor da borracha de amarelo para verde fluorescente e eu detesto ter percebido isso.
— Não aconteceu nada como multiplicar os pastéis, mas, estou tentando. — ri com sua risada própria para blasfêmia. O som faz meu coração pulsar gelado. — Você deveria aparecer qualquer hora. Você sabe, precisamos de clientes — digo de um jeito estranho, constrangida e dividida entre querer que o momento acabe logo e ficar olhando para ele só mais um pouco.
— Eu estou pensando em ir... Há dias. — Solto uma risada alta demais, exagerada para a ocasião. Mas eu queria que ele parasse de dizer o que estava quase dizendo.
— Eu não estou lá no almoço, você pode ir nesse horário. — Comento e decido que não direi mais nada se tudo o que eu disser soar mesquinho.
— Nesse caso, talvez eu apareça para o lanche da tarde.
Eu engulo tantas frases que as letras se embaralham em meu estômago.
Os olhos penetrantes de são iluminados pela luz alaranjada dos faróis do ônibus velho. É uma geringonça antiquada e perigosa que deveria ser retirada de circulação, mas lá estava ele, me esperando.
— Bom te ver, — digo de verdade. Ele sorri e assente sem jeito.
— Bom te ver também, .
Estou tão abalada que o cobrador precisa se levantar e ir até o assento para me dar o troco que eu simplesmente ignorei.
Entretido, meu cérebro voltou a produzir perguntas das quais não terei respostas, pois, não posso confrontar sobre o término. Eu o magoei, ele decidiu e está feito. Agora, por que diabos ele decidiria terminar se ainda me olharia daquele jeito tão avassalador?
E eu? Por que diabos aceitei tão depressa que minha convicção em resolver assuntos pesados era mais importante do que o incluir por inteiro em minha vida?
Saindo do metrô, corro para tentar alcançar o ônibus que me levará para a minha casa provisória. Estou tão cansada que a cama dividida pela metade parece um doce sonho.
— Não! Espera por mim! — Aceno freneticamente, mas o motorista estreita os olhos e finge que qualquer coisa em seu painel é mais interessante do que alguém gritando na calçada. — Merda!
Praguejo por meio minuto, que é só o que me permito praguejar e início uma série de ligações desesperadas para minha tia.
Ela não atende.
Me sento na calçada e avalio minhas poucas opções: andar até o prédio depois da meia noite em um bairro nobre, onde qualquer idiota com a minha cara e andando por aí fora de um carro a essa hora é considerado um alvo fácil, ou ligar para a segunda pessoa que conheço no bairro inteiro.
. — Lucca atende ao celular com indiferença na voz, mas de qualquer forma, ele atendeu no primeiro toque.
— Lucca — digo seu nome com certa mágoa, ainda não sei como conversar com ele.
— Já está pronta para se desculpar? — O silêncio que se segue na ligação termina em uma risada compartilhada.
— Você que foi um idiota, não vou me desculpar! — Digo firme, Lucca ri mais forte e eu posso até vê-lo tombar a cabeça para trás.
— Você é uma estressada patológica! — Ele fala mais alto e eu não posso discordar. — Posso subir?
— Na verdade, desça até o subsolo, pegue um carro e venha até a estação de metrô. — Suspiro cansada.
— Eu não sei dirigir... — Lucca parece se afastar do telefone momentaneamente. — Mas conheço alguém que sabe. Dez minutos.
— Eu serei a pessoa dormindo na calçada — digo antes de Lucca desligar aos risos e pondero por um momento se aceito mais esta vitória no dia de hoje e reato minha amizade com Lucca sem questionar os meios convencionais de ser amigo de alguém. Afinal, amigo é alguém com quem se pode contar em momentos inusitados. Lucca e eu só passamos por momentos inusitados juntos, de um jeito não convencional e até meio bruto, ele é alguém com quem eu posso contar para me buscar no meio da noite se eu perder a briga para o tempo, por exemplo.
— Não pergunte, só entre no carro. — Lucca diz malicioso e lança um olhar de mim para o motorista, que se ajeita no banco da frente.
— Eu não ia, mas agora que mencionou, eu tenho tantas perguntas. — Entro no carro bonito e a lufada do ar condicionado me faz sentir em outro país.
— Não as faça. — Lucca troca um olhar com o homem tão bonito quanto o carro e bem mais velho no banco do motorista. — Pra onde quer ir? Vamos curtir a noite na cidade?
— Eu só quero dormir. — Respondo vendo sua clara decepção.
— Não acredito que usei minha carta do motorista bonitão para nada. — Lucca não esconde a frustração e eu só posso rir.
— Eu tenho um trabalho agora. A noite é um momento esperado por mim. — Explico apoiando minha cabeça no banco macio e ouço o estalar da língua de Lucca.
— Tudo bem, eu entendo. — Ele dá dois tapinhas em minha mão e se lança para a frente do carro, dizendo no ouvido do homem no volante que estávamos indo para casa.
— Quem é esse cara? — Cochicho e Lucca ri enigmático, apoiando a cabeça nas mãos de dedos entrelaçados.
Quando chegamos no prédio, ainda no estacionamento do subsolo, não consigo evitar de espiar vez ou outra enquanto Lucca tem uma sessão de amasso com o homem misterioso dentro do carro. Sinto que estou ficando cada vez mais confortável em ver outras pessoas se pegando, afinal, todos em volta parecem estar engajados em algo. Ou alguém.
Encosto a cabeça na pilastra grossa de concreto, encaro o teto de luzes quase nulas e não tenho escapatória a não ser repassar a conversa com .
O fato de eu ter me ofendido pelo fato de ele estar buscando educação superior me deixa envergonhada. Eu só posso esperar que ele não tenha percebido que acabei por me tornar uma egocêntrica soturna, convencida de que tudo o que acontece tem um motivo negativo e por alguma razão, é por culpa minha.
Deixo o pensamento ir mais além, me separando da equação e acabo por imaginar sendo um excelente psicólogo. Ele é inteligente, de mente aberta e bom ouvinte. Claro que, devido ao nosso histórico, ele nunca poderia ser o meu médico. Pensar nisso só me deixa livre para aceitar o fato de que acabaria por se tornar absolutamente irresistível. O pacote completo em níveis astronômicos.
Não sei dizer se toda a áurea sensual em volta de mim influencia ou se é o fato de me lembrar que o último beijo consentido que tive aconteceu no meio de uma conversa quente e interrompida por um maldito ônibus.
Fecho os olhos e busco por fragmentos de momentos preciosos em que as mãos de não tinham para onde ir além de percorrer meu corpo. Seus beijos quentes e silenciosos, pensando em retrocesso, eram tão eróticos que mereço uma medalha por ter resistido por tanto tempo.
— Pronto, ... — Lucca interrompe pensamentos sedentos que eu nem sabia que podia ter. — Que foi? — Meu amigo abre o maior sorriso safado que já vi aqueles dentes de aparelho reproduzirem.
— Tanta coisa...
— Como você aguenta?! — Lucca parece chocado enquanto aperta os botões no painel do elevador.
— Aparentemente, sem processar nada — digo sarcástica e Lucca ri nasalado, respeitosamente.
Na pequena viagem para cima, faço um pequeno resumo do que foram as últimas semanas e Lucca não reage como eu achei que ele faria.
— Que droga, . Espero que vocês possam se resolver logo. — Lucca comenta sobre .
— Como ser amiga de alguém que já sentiu o gosto da sua boca? — Pergunto para Lucca e ele ergue uma das sobrancelhas, pensando.
— Não sei se sou a pessoa certa para te responder isso. Eu sou amigo de todos os caras com quem fiquei e nós dividimos gostos muito mais complexos que só da boca. — Não sei se fico ofendida ou aliviada pela resposta honesta do rapaz.
— Você é tão nojento. Senti sua falta. — Lucca volta a rir e eu o empurro de leve.
— Também senti sua falta, tonta. — Ele bate seu quadril ossudo no meu. — Vou gostar de te visitar no subúrbio. Prometo não te processar quando eu for assaltado. Nenhuma das vezes que eu for assaltado. — Ele corrige, me fazendo rir. Esse é o Lucca com o qual estou mais do que acostumada. Alguém de quem até senti falta.

Com o final do semestre chegando, vejo Tauany andar de um lado para o outro com um caderno colado no rosto. Os olhos devoram as linhas enquanto ela pondera sobre as opções de trabalho que pode entregar.
— Como eles esperam que eu coloque seis meses de aprendizado em somente um trabalho? — Ela pergunta, irritada.
— Não é bem assim. Tem as provas, outras avaliações... — Paro de falar quando vejo a menina me olhar com raiva. — Estou tão tensa quanto você, não me julgue.
— Você vai tirar alguma ideia maravilhosa do nada e passar raspando como sempre faz. — Minha amiga se senta ao meu lado na espécie de arquibancada que nos separa dos demais alunos.
— Amiga, eu não sei nem como estou garantindo minha frequência, quanto mais ter ideias maravilhosas. — Tento acalmá-la com meu sutil desespero. — Eu só quero férias.
— Eu também. O que vai fazer? — Tauany tenta discretamente esconder o rosto quando Tiago atravessa o pátio.
— O que foi isso?
— Seja discreta, pelo amor de Deus! — Ela cochicha, ajeitando meu corpo para se esconder atrás de mim.
— Chegou a hora do perdido, não é?! — Ela assente rapidinho, sem culpa. Eu rio. — Eu vou trabalhar, pressionar minha tia para nos mudarmos. — Dou continuidade a conversa, Tau morde o interior da boca.
— Menina, não é muito longe da faculdade? — Ela pergunta preocupada.
— É. — Eu rio, tentando acalmá-la. — Mas é melhor pra mim, pra minha tia. — Tauany assente novamente, se escondendo do cara que até a última semana estava chupando sua língua em público.
— Não calculei isso direito. — Confessa a menina, o nariz franzido, os olhos grandes estreitos, encarando as consequências das próprias escolhas.
— Pois é... Ele vai te ver em algum momento, nós somos da mesma sala. — Tauany volta a me dar o olhar mortal e eu volto a me calar.
— E você tem visto o seu deus-grego de chocolate? — Franzo a testa, incomodada de forma instantânea com o apelido bem pontuado, mas desnecessário de minha amiga. Eu rio para disfarçar que odiei o comentário.
— Não. Não depois daquela noite. — Evito encará-la, engolindo meus sentimentos. — É até melhor. Quando eu o vejo, fico toda estranha. — Confesso e Tauany volta a franzir o nariz. É sua marca registrada para quando algo não vai bem. Um jeito fofo de se compadecer com a única coisa que parece fora do lugar em minha vida agora.
Irônico como algumas partes se parecem com chaves paralelas na minha vida. Se uma gira, a outra trava ao contrário. Nada funciona em harmonia.
— Enfim, acho que vou masterizar uma faixa que descartei para o último trabalho e entregar. Seja o que Deus quiser. — Ela rola os olhos, talvez mais chateada do que estava antes.
— Eu vou continuar me dividindo em quatro e seguir o fluxo — digo sonolenta, apoiando a cabeça em seu ombro pequeno e forte.
— Quero ser responsável como você quando crescer. — Tauany afaga meu cabelo de leve.

Mais tarde, na lanchonete, penso em uma maneira de convencer o seu Valter a esticar o serviço na parte da noite por mais uma hora. Cheguei após o fim do almoço, mesmo assim pude notar a energia agitada e produtiva da equipe, além do notável bom humor do mais velho atrás do balcão da copa.
— Quantas cópias! — Me debruço no balcão, olhando em suas mãos o maço de papel carbono com os pedidos que saíram no dia até agora.
— Estou confiante que as coisas vão melhorar logo! — Ele as chacoalha em minha direção, como se tivessem o valor do próprio dinheiro. Seus olhos brilham. — Você tem jeito, menina.
— Essa lanchonete faz parte da vida de muita gente, garanto que não é tudo por minha causa — digo sem jeito, mas feliz pela confiança que ele tem em mim.
— Essa promoção do almoço foi a cereja do bolo. — Ele suspira aliviado, observando o movimento intenso na cozinha, mesmo que os pedidos tenham diminuído por conta do horário e eu me preocupo que ele comece a desconfiar.
— Você ainda não viu nada. — Valter volta a me encarar. — Eu estive conversando com o Dedé e pelo o que eu vi na cozinha e sinto no ar, nós temos uma surpresa pra você. — Cantarolo misteriosa, me deixando ser seduzida pelo cheiro de manjericão fresca, azeite, queijo.
A empolgação do cozinheiro quando lhe fiz uma simples pergunta hoje mais cedo foi um dos incentivos para tentar algo novo hoje.
— Pelo cheiro que vem da cozinha, eu já imagino o que possa ser e já adorei a ideia. — Ele marcha até a cozinha e eu vou em seu encalço.
Ao chegar lá, Dedé encara orgulhoso os três tabuleiros com sabores diferentes de pizza. Queijo fumegando borbulhante faz Valter quase gemer em antecipação.
— Eu adoro pizza — diz o homem, parecendo um menino sem paciência para esperar esfriar.
Dedé faz os cortes, serve um pedaço de cada sabor de pizza em um prato e entrega para Valter escolher qual deles quer experimentar primeiro.
— Eu consigo fazer modificações no nosso forno. Talvez uma pedra de mármore ajude a assar a massa mais rápido e posso ajustar uma chama que venha de cima para baixo, para gratinar. — Dedé, o cozinheiro, está animado e enquanto mastiga um pedaço de sua criação, ele me olha sorridente.
— Quanto isso vai me custar? — O dono do estabelecimento parece preocupado, mas há um misto de esperança em seu olhar, em sua voz. Algo que me faz sentir segurança de que o homem confia mesmo em mim e está disposto a ouvir minhas ideias e me ajudar ajustá-las para nossa realidade.
— Vou ser sincero com o senhor, a pedra não vai ser barata. Mas tenho um contato na pedreira, meu cunhado trabalha lá e se eu levar as medidas do forno, ele faz um preço camarada. — Dedé pisca um dos olhos, animado com a ideia.
— Eu tenho uns favores para cobrar. As modificações no forno estão garantidas. — Valter comenta pensativo.
— Então, é isso? Vamos passar a vender pizzas à noite? — Pergunto entre os homens mais velhos. É estranho, mas mesmo que não fisicamente, me sinto da mesma altura que eles.
— Acho que podemos tentar fazer um teste. Chamar a família, os amigos. — Valter olha diretamente para mim, deixando claro que essa parte é por minha conta.
Com a porção mais difícil da tarefa concluída, me desdobro para pensar em como faria o anúncio da fase de testes da nossa nova empreitada na lanchonete.
Tina concorda em estender seu horário na lanchonete nos próximos dois dias, mas tenho dificuldades em convencer seu marido e cunhado a fazerem o mesmo.
— Você vai pagar a mais por essas horas? — Pergunta o cunhado. O deboche em sua voz a cada vez que ele fala comigo me faz recusar a aceitar que ele tenha um nome, assim como ele faz comigo. O rapaz se refere a mim como “coisinha”.
— Vou ser honesta com você. Preciso do seu apoio para testar a possibilidade de mudarmos um pouco as coisas por aqui. São só mais duas horas e eu não posso te prometer hora extra agora, por causa dos nossos problemas financeiros, mas garanto que vou acertar tudo com vocês, caso dê certo. — O rapaz me deixa desconfortável, com um pouco de medo de seus olhos agitados e raivosos. Mesmo que não concorde totalmente, algo o faz mudar de ideia após Tina menear a cabeça, ele aceita meu apelo e eu me sinto um tanto quanto aliviada por finalmente conseguir me impor de forma respeitosa.
Com a logística pronta, acerto alguns detalhes sobre ingredientes com Dedé na cozinha e em seguida, vou ao mercado para suprir alguns que ainda faltam.
Na volta, preciso resolver uma parte grande da tentativa: os clientes. Ligo para Tati e convido toda a família para me encontrar na lanchonete mais tarde. Explico minha ideia e minha melhor-melhor amiga decide me ajudar, convidando Felipe e sua família para um encontro lendário entre seus pais.
No caminho, encontro Jorge e Amália, finjo que não sinto nenhuma ressalva sobre eles e os convido também, aumentando a escala do convite para quem estivesse disposto a se empanturrar com pizza fresquinha.
— Você está ótima, . Parece mais madura sem parecer estar velha. — Amália comenta com a voz lenta, os olhos vermelhos denunciam que ela está chapada, mas não me importo. Aliás, espero que ela traga o apetite voraz da larica mais tarde.
— Vocês continuam... os mesmos — digo um pouco confusa, percebendo que eles realmente não mudaram muito nos últimos meses. Eles não se ofendem, o que parece ser uma boa coisa.
— E aí, irmão?! — Jorge fala com a voz grossa, cumprimentando alguém que vem de trás de mim.
— E aí?! — responde educado, tocando na mão de Jorge, dando um beijo no rosto de Amália e depois, olha para mim como se não soubesse mais como me cumprimentar.
— Oi — digo rápido, acenando com a cabeça e evitando olhá-lo assim tão de perto na luz do dia.
— Você também vem comer pizza com a gente mais tarde? — Amália pergunta, olhando de pra mim.
— Nós estamos tentando algo na lanchonete. — Explico sem jeito. — Eu ia convidar a sua mãe, mas...
— Nós vamos. — interrompe, sorrindo comedido.
— Ok... — O silêncio se instala entre nós e nossos amigos não disfarçam que a tensão é grande. Eles observam nossa interação de tão perto que é sufocante.
— Então, nos vemos mais tarde. — Jorge diz baixinho, fazendo questão de se colocar entre mim e quando me beija na bochecha. Tento disfarçar o riso quando encara o ponto mais alto atrás de mim, evitando olhar diretamente para a cena do B-boy parrudo meio que me abraçando pela cintura.
— Certo. Até mais, gente. — As sacolas pesam em minhas mãos e eu tenho coisas a fazer, por mais que parte de mim queira ficar e ver até onde consigo afetar com o simples fato de estar por perto, tenho que voltar ao trabalho.
Enquanto equilibro as sacolas nas mãos no caminho de volta para a lanchonete, reparo em um padrão ridículo quando o assunto é . Parece que eu só percebo o quanto ele é interessante quando é tarde demais. Sinto como se ele ficasse mais gato toda vez que perco a oportunidade de ficar com ele e isso me enfurece.
No final do dia, afetamos um ao outro intensamente. Não há como negar isso.
Entrego as compras para Dedé e o ajudo na cozinha com os pedidos comuns do dia a dia enquanto ele faz massa o suficiente para doze pizzas teste.
Em um intervalo, ligo para a tia Vanessa e a convido também. Sua alegria em cada novo passo que dou no trabalho ou na faculdade são o combustível perfeito para que eu possa continuar.
— Vou convidar o Alê! — Ela diz animada e eu rolo os olhos, mas acabo rindo.
— Só se vocês se comportarem — digo brincalhona e ela ri sem jeito.
— Não posso prometer nada.
Mais tarde, encaro o relógio e depois, as portas da lanchonete ainda abertas. Temos um ou outro cliente terminando suas refeições, mas por costume, ninguém novo entra no estabelecimento por esperar que ele esteja fechando em breve.
Começo a me preocupar com a ideia de ter arrendado mais uma dívida para o seu Valter, tornando impossível que ele possa se reerguer.
São quase sete da noite. Peço a ajuda de Romildo, o marido de Tina, para colocar algumas mesas do lado de fora para distrair a cabeça de meu iminente fracasso.
— Não sei porque estamos fazendo isso, daqui a pouco teremos que guardar tudo de volta. — O homem resmunga, desanimado.
— Coloque essa cadeira mais para lá. — Peço ignorando seu mau humor. — As mesas aqui fora avisam para os clientes que o estabelecimento está aberto, que eles têm opção de tomarem um ar enquanto dividem uma cerveja ou esperam por sua pizza. — Explico o óbvio enquanto limpo o tampo de umas das quatro mesas que colocamos do lado de fora.
— Tanto faz... — Ele volta a resmungar como uma criança.
Quando estou prestes a explodir e colocar Romildo em seu devido lugar, o som aglomerado das conversas juntas de um monte de gente me desestabiliza só por um instante.
Todos vieram juntos: Simone, Ricardo, , Regina, Tati, Felipe, Amália, Jorge. Eles trouxeram mais alguns amigos e logo, todas as mesas disponíveis da lanchonete estavam lotadas. Dentro e fora da lanchonete.
Sorrio cumprimentando cada um, agradecida pela presença deles e mais ainda pelo apoio.
É louco como as coisas podem acontecer quando pedimos ajuda.
Sem perder o profissionalismo, ajudo os garçons a entregarem os pequenos cardápios que fiz à mão durante a tarde. Recolho os pedidos e os levo para a cozinha. Sempre de olho se há algo faltando nas mesas ou se esqueci de atender alguém.
, não sei o que está escrito aqui. — Tina corre até mim, confusa com a própria letra.
— São duas cervejas, dois petiscos de frango e uma pizza de calabresa — digo estreitando os olhos, para tentar entender. Ela sorri agradecida e volta a correr pelo salão, para entregar o pedido à cozinha.
A tia Vanessa chega na garupa de uma moto grande. Tira o capacete como uma estrela de cinema e assim que o professor Alexandre faz o mesmo, ela tasca um beijo em seus lábios.
Ela vem sorridente em minha direção. De mãos dadas com meu professor, ela chama a atenção de todos pelo brilho na jaqueta preta de paetês e pelo homem enorme em seu encalço.
— Está tudo lindo, meu amor! Você arrasa. — Minha tia me beija na bochecha.
— Casa cheia. Parabéns, . — Meu professor e eu ainda não entramos em um acordo sobre esse relacionamento dele com minha tia. Ele vem tentando conversar comigo em particular depois das aulas, mas quero evitar que as pessoas tenham ideias. Então, estou sempre acompanhada de outro aluno quando estou evitando ter essa conversa com ele.
— Obrigada por virem — digo comedida, profissional. — As mesas estão todas cheias, se importam de dividir com alguém? — Pergunto passando os olhos pelas mesas cheias e sorrio ao ver tia Simone acenar para nós, indicando que há dois lugares vagos em sua mesa.
Minha tia e seu namorado vão até eles e eu suspiro aliviada.
Não posso deixar de notar que mesmo com a mesa cheia e conversas acontecendo ao seu redor, fixa seu olhar em mim, sempre que olho, lá está ele. Um olhar sério, atencioso. Decido ignorar a urgência dentro de mim que me pede para ir até ele e experimentar um pouco mais da paz que ele emana. Não posso mais fazer isso.
A noite se estende e o sucesso estarrecedor da pizza de Dedé se solidifica no salão da lanchonete. Em todas as mesas, os elogios transbordam e eu secretamente me edifico com eles, afinal, a ideia foi minha. Vou até a cozinha para repassar as boas novas e o cozinheiro se derrete com os elogios à sua criação.
— Faz tempo que tenho vontade de tentar algo novo nessa cozinha. Trabalho aqui há dez anos e não sentia essa alegria ao cozinhar por tanto tempo que nem consigo me lembrar a última vez. — Dedé se deleita com a visão de queijo derretido se esticando, após uma mordida em sua recompensa. — Obrigado, .
— Eu que agradeço. Não me leve à mal, mas suas mãos foram abençoadas por fadas. — Ele ri sem jeito.
— Que nada, eu gostei. — Ele pisca um dos olhos, se agitando com a chegada de mais um pedido.
De volta ao salão, ajudo os garçons a fecharem as contas e começar a cobrar as mesas. Vou me despedindo e agradecendo a presença de cada um deles nesta noite fantástica. Seu Valter me observa orgulhoso e não interfere em como estou dirigindo o lugar.
Com o salão mais vazio, delego a limpeza e começo a me organizar para fechar o caixa.
Algo acontece quando sabemos que estamos sendo observados. Como seres humanos, obter a atenção de outro ser vivo é, por muitas vezes, tão estarrecedor que não há uma forma de agir que seja despreocupada. Nós disfarçamos, posamos e usamos expressões faciais que não seriam naturais nem para as belas modelos internacionais ao redor do mundo. A expectativa é de que observador obtenha o melhor de seu objeto de observação. Ao perceber que estou usando de gestos graciosos para conferir as notas no caixa, quase rio de minha própria condição ridícula.
Perco a conta algumas vezes, disfarçando a dificuldade com uma expressão compenetrada de quem faz muito esforço para não levantar os olhos e vê-lo logo ali, provavelmente me encarando de volta.
Com tudo caminhando para o fim de um dia produtivo e maravilhoso, estalo o pescoço cansada e procuro com os olhos por aqueles que quero cumprimentar com mais calma antes de seguir rumo para casa. Tia Simone e Ricardo estão na calçada, conversando com minha tia e meu professor numa conversa animada que me deixa curiosa pra saber o conteúdo. Mais afastados deles, vejo Tati e Felipe se revezando para intermediar a conversa entre seus pais. Numa rápida troca de olhares, vejo minha melhor-melhor amiga suando frio, mas sei que tudo está indo bem, pois, a tia Regina sorri abertamente, incentivando o marido a participar da conversa de forma ativa.
Meus amigos, ainda mais afastados e um pouco altos por toda a cerveja servida na mesa deles, fazem uma pequena algazarra mais próximo à esquina. Eles deixam claro que a noite só está começando e eu me sinto cansada só de olhar pra eles.
Por fim, não há como evitar mais esse olhar tão intenso e hipnótico. Nossos olhos se cruzam e eu entro em combustão de dentro pra fora.
engole em seco, incapaz de disfarçar e desviar o olhar fixo.
Eu coloco uma mecha de cabelo atrás da orelha, sustentando o que parece ser um desafio mudo, sufocante. Um jogo sádico e sem caminho para a vitória. Massageio meu próprio ombro, passando para o pescoço e sentindo que ele acompanha cada gesto com uma certa curiosidade.
Ele vem falar comigo ou o quê?!
fecha a mão em punho e bate de leve na mesa em que ele está praticamente sozinho. Ele encara a mesa por um tempo, as sobrancelhas unidas em um pensamento que mesmo de longe eu sei bem o que significa.
Ele não vem falar comigo. Mas quer.
— Ei, mocinha... — Valter se aproxima devagar, cansado do dia cheio de novidades e trabalho duro. — O que acha de encerrar por hoje? Eu termino tudo aqui. Você foi uma verdadeira heroína hoje, . — O homem soa emocionado, apoia a mão em meu ombro e dá umas batidinhas dessas paternais e tímidas que significam muito pra mim.
— Eu não vejo a hora de me mudar. Já estaria em casa, se fosse o caso — digo rindo, evitando deixar que o elogio sincero fique grande demais dentro de mim.
— Então, acho que vai gostar da surpresa que está te esperando lá em cima — diz misterioso, me fazendo estreitar os olhos e olhá-lo com desconfiança.
— Não gosto de surpresas, o que está acontecendo? — Estou tão desconfortável que rio sem jeito, bagunçando e ajeitando meus cabelos.
— Minha esposa ficou brava por eu te deixar ir para tão longe e tão tarde. Então, ela insistiu que trouxesse a cama da Camila para cá. O colchão é praticamente novo, ela não chegou a usar — diz emocionado de novo, mas desta vez, eu reconheço o tom de saudade.
A Camila faleceu há alguns anos. Se ainda estivesse aqui, ela seria somente um ano mais velha que eu.
— Não acredito! — Cubro a boca, comprimindo um grito animado.
— Vai lá ver! — Ele ri tímido e me dá espaço para sair correndo.
— Devagar, menina! — Tia Simone repreende quando passo por eles.
Subo as escadas mais rápido do que normalmente consigo e entro no estúdio sentindo todo o meu corpo vibrar em uma alegria tão aliviada que não consigo descrever. Vou até a cama posta no centro do cômodo. O lençol azul claro combina com as fronhas de estampa de nuvens e exausta, eu me deito em minha nova cama. Me arrependendo logo depois, pois, não sei se tenho forças para levantar.
Sorrio satisfeita e fecho os olhos só por um instante, aproveitando bem essa sensação gostosa que não costuma aparecer com frequência. Estou orgulhosa por ser quem sou e mais ainda por conhecer pessoas que, mesmo com todas as dificuldades, aparecem quando menos esperamos com a ajuda que nem sabíamos que precisávamos.
— Lugar legal. — O grito assustado que irrompe minha garganta me faz levantar num pulo.
A risada gostosa de preenche o estúdio e eu suspiro aliviada ao perceber que é ele e não um maníaco.
— É, é sim. — Olho em volta e mesmo incompleto, o lugar é mesmo legal pra caramba.
— Eu te conheço por tanto tempo e ainda continuo aprendendo coisas sobre você — diz o rapaz, entrando mais em minha casa. — Você é uma mina disciplina. — Eu rio, envergonhada.
Ele está mais sério. Mais centrado e mais... mais...
— Você está bem? — Observo andar um pouco, conhecendo o lugar. Ele vai até a parede limite do espaço, abrindo um pouco uma das janelas amplas.
— Já estive melhor. — Ele dá de ombros e imediatamente eu me sinto culpada. — Estou sempre cansado. Acho que te entendo melhor agora, estudar e trabalhar é muito difícil. — Ele ri nasalado. Quando volta a me olhar eu estou mordendo meu lábio inferior delirando com sua imagem contra a luz da lua. — E você?
— Me sentindo uma mulher simples. Estou tão feliz por esta cama estar aqui agora. Eu juro que nunca senti nada tão genuíno e avassalador. — Comento distraída e percebo que ele ergue as sobrancelhas, fazendo sua expressão ser um misto de ofensa e desafio.
— Você sabe que não é só isso. Você merece, . Está dando tudo de si para garantir isso. Só precisa aceitar. — inclina um pouco a cabeça, se arrependendo de ter dito o que disse.
— Você tem razão. — Ele volta a me olhar, curioso.
— Seu professor estava dizendo que você é uma das melhores alunas. — Ele volta a sorrir de um jeito irresistível. Orgulhoso, feliz.
— Ele só diz isso porque a maioria desistiu. — Abano a mão no ar, o fazendo rolar os olhos.
— Eu gostaria de ouvir o que você tem produzido — diz assim, do nada.
— Por que? — Respondo rápido, pega de surpresa. franze a testa, confuso.
— Porque você nunca me deixou ouvir nada que você tenha feito. — está calmo, mas olhando bem, sei que ainda está magoado.
— Não acho que vá gostar. Tem uma pegada meio melancólica. — Dou de ombros, cruzando as pernas sobre a cama. Deixo um espaço vago na cama, caso ele queira se aproximar.
— Quero ouvir mesmo assim — diz resoluto.
— Quando eu trouxer meu computador, eu te mostro. — Ele assente devagar.
?
— Hmm?
respira profundamente. Olha em volta, depois pra mim. Morde o lábio inferior e dá um meio giro no lugar.
— O que foi? — Pergunto meio rindo, meio perdendo a cabeça.
— Eu tenho que ir. — tenta sair pela porta aberta e eu o intercepto cambaleando em sua frente.
— O que é? — Insisto mais urgente e ele ri.
— É horrível, não é? — Ele ergue uma sobrancelha, vingativo. Respiro fundo, suprimindo a vontade de agarrá-lo, coloco as ideias no lugar ao invés disso.
— Nós deveríamos ser amigos — digo rápido a primeira coisa que me passa pela mente.
— Sério? — Ele volta a rir, dessa vez, debochando de mim.
— O que foi? Não acha que consegue? — Decido entrar em seu jogo e ele estreita os olhos, contrariado.
— Sinceramente? Eu sei que não consigo. — cruza os braços na frente do corpo e continua a me olhar como se fosse meu dever resolver este problema.
— E então?
— E então?
— Eu perguntei primeiro. — Aponto, imitando sua postura.
— A ideia é sua, então, tente modificá-la. — encosta o corpo na parede, depois limpa a poeira branca em sua camiseta preta.
— Você poderia apresentar uma contraproposta. — Troco o peso do corpo de uma perna para outra, o encarando irredutível.
— Certo. Eu não quero ser seu amigo. — Ele comprime os lábios, prático.
— O quê? — Rio sem graça.
— Eu tenho amigos o suficiente. — dá de ombros, eu franzo a testa, o olhando incrédula.
— E uma a mais é demais pra você lidar? — Meus lábios entreabertos em pura revolta chama a atenção dele. Ele ri, murmurando em concordância. — Não sei se está falando sério. Pode... ser mais claro?
— Tenho mesmo que ir. Parabéns, . Por tudo. — se aproxima e beija minha bochecha, perto de mais de minha boca. Ele se afasta devagar, estudando bem minha expressão desmontada em incredulidade, ela parece diverti-lo, satisfazê-lo de forma profunda.
Ele vai embora e me deixa com todo o tipo de sensação atravessando meu corpo.
Me recomponho e decido descer para me despedir de minha tia e dos outros que vieram me apoiar. Estou com raiva, frustrada, confusa. Com um tesão enorme e contrariada como o quê.
Mal piso os pés na calçada, sou engolida pelos olhos curiosos das mulheres de minha vida.
— E aí?! — Tia Vanessa, Simone, Regina e Tati perguntam em uníssono.
Mais afastado, conversa com o grupo de amigos e age como se nada tivesse acontecido no andar de cima. Ele, inclusive, parece querer me evitar agora.
— Do que estão falando? — Me sinto encurralada e sinto as bochechas queimarem. Sorte que a iluminação da rua é grotesca e não as deixa ver em minha expressão o puro desespero.
— Desembucha, o que ele disse? — Tati pula na frente das mais velhas e quase apresenta o crachá de melhor-melhor amiga para conseguir informações em primeira mão.
— Ele só queria dizer que está feliz por mim. Só isso — digo baixo, sentindo a pressão da expectativa das quatro mulheres sobre mim.
— E não aconteceu mais nada? — Tia Regina pergunta séria, dando de ombros quando as outras mulheres riem de seu entusiasmo.
— Vocês foram incríveis hoje, de verdade. — Sorrio sem jeito, deixando de lado meus sentimentos conflituosos para agradecer. — Não acho que conseguiria fazer metade das coisas que faço sem o apoio de vocês. Mas sobre isso, isoladamente, acho que consigo resolver sozinha. — Ouço o muxoxo desanimado das mulheres e rio ao ver seus olhos se revirarem em uma revolta contida.
— Você vai ficar aqui hoje? — Tia Vanessa pergunta.
— Não é como se tivesse espaço na moto para mais um, não é? — Ela ri sem jeito. — Toma cuidado em casa, qualquer coisa, me liga. — Beijo sua bochecha e assisto enquanto ela sai saltitante até o namorado.
— Como você consegue prestar atenção nas aulas? — Tati pergunta e eu a cutuco na barriga. Tia Simone e Regina assentem, concordando que o professor Alexandre é mesmo um colírio.
— Quando é o casamento, amiga? — Devolvo a provocação, vendo de canto de olho que Felipe faz sala para os pais de expressões fechadas, desconfortáveis.
— Se depender do meu pai, nunca. O que você acha, mãe? — Tia Regina finge um sorriso para a filha, se limitando a lhe responder com o gesto debochado.
— ‘Tô orgulhosa, pequena. — Ela beija minha têmpora, fazendo Tati se arrepender da própria brincadeira. Encaro as duas se afastando em uma pequena discussão e balanço a cabeça de um lado para o outro.
— Como você está, meu amor? — Tia Simone pergunta e eu corto a cerimônia ao meio, a abraçando pela cintura.
— Exausta! — Rio abafado e ela me acompanha, afagando meus cachos.
— Você está indo bem. Se precisar de ajuda, sabe onde me encontrar, não é? — Ela me afasta só para me pegar pelo rosto, garantindo que eu esteja assentindo.
— Desculpe pela confusão, tia. Eu não queria magoá-lo. — Ela sorri mais abertamente.
— Vai ficar tudo bem. — A mulher me envolve de novo, beijando minha testa.
É sexta à noite. Enquanto os mais velhos dão seu dia por encerrado, os jovens se agitam para irem a uma festa em algum lugar.
Correção: eles me agitam para ir a alguma festa em algum lugar.
— Vamos, sim! Toma um banho para espantar o cansaço e nós te compramos um fardo de energético. — Amália sugeriu pela terceira vez e eu sorrio educada, só quero mesmo que ela pare de insistir.
— Estou moída, mas prometo ir na próxima. — Explico pela quarta vez e ela parece aceitar.
— Vocês vão? — Jorge pergunta para Tati e Felipe, que se entreolham de forma feroz que dispensa resposta. — Nesse caso, obrigado por tudo, . Preciso dançar tanta pizza e cerveja para fora o quanto antes. — Assinto em um meio sorriso, sendo abraçada por um Jorge animado. Não consigo evitar buscar pela reação de , ele continua distante, observando com seu olhar estudioso e interessado.
— Tchau, baby. Vê se não some! — Amália me abraça também e eu concordo em encontrá-la durante a semana, por mais que não possa honrar com o compromisso.
Tati me manda um beijo no ar e arrasta Felipe para um lado da avenida, Jorge e Amália se afastam, encontrando com o grupo maior de amigos e pelo caminho.
Antes de se juntar aos outros e continuar a noite, se vira uma última vez, me vendo parada na calçada. Não dura muito e estamos longe demais para que o olhar tenha algum significado concreto, mas eu gostaria de não estar parada olhando de volta.
Seria tão legal se ele só me visse abrindo o portão e entrando em casa para descansar, sem me importar que ele não queira ser meu amigo.
— Dê meia volta, ... Isso, continue andando. — Respiro fundo, acabando por achar graça de toda a situação.
Naquela noite eu tomei um longo banho quente, coloquei uma camiseta velha que carrego comigo na mochila e dormi a noite inteira no lugar onde, finalmente, posso chamar de meu.

Nada deixa uma garota mais contente do que seu primeiro pagamento em um novo emprego. Encaro os números em meu cheque e penso no momento em que poderei ir ao banco para sacar e pagar meu primeiro mês de aluguel. Será como o marco dessa nova fase em minha vida.
Tia Vanessa e eu decidimos que ela teria sua cozinha florida, desde que eu tivesse a calma de paredes bege no restante do estúdio. A mudança foi acontecendo devagar. Uma caixa aqui, uma mala com roupas ali. Mas nada estava concreto de verdade.
Contratei Genivaldo e assim como o pagamento, ele foi pintando o estúdio em partes. O papel de parede florido foi instalado na parede da porta de entrada, azulejos brancos cercam a área onde colocaremos um fogão e a geladeira, quando tivermos os eletrodomésticos, claro. Na pequena área onde colocaremos prateleiras e um armário, sobre a pia, a parede é vermelho sangue, contrastando com os azulejos. O piso branco foi recentemente limpo e as manchas de cimento e tinta não existem mais, dando um aspecto mais bem-acabado ao lugar. No balcão da pia, caixas com miudezas e utensílios se acumulam na espera de serem organizados e é gostoso sentir que estou fazendo algo assim por nós.
O trabalho secreto de tia Vanessa tem avançado também, ela se sente mais segura e cada dia mais apaixonada pela nova vida. Me preocupo com a falta de iniciativa para resolver a grande pendência chamada Arnaldo, mas não vou pressioná-la. Seu plano parece estar dando certo até então.
Decido que o melhor a fazer é deixá-la guiar sua própria revolução como achar melhor. Criticá-la e censurá-la não parece o melhor caminho para chegar ao meu objetivo, então ficarei de espectadora, aguardando para saltar diante de qualquer situação que não nos distancie do objetivo.
Chegar no apartamento é o mesmo que apertar um botão de desânimo e desconforto. Acatando ao pedido de tia Vanessa para manter as aparências, alguns dias da semana, eu venho dormir no lugar que me causa arrepios. Não pude negar ao pedido dela pois, a alternativa seria deixá-la sozinha com Arnaldo e isso eu não posso permitir.
Ao contrário do que imaginei, pontualidade e lealdade às promessas não corre na família e quando me encontro sozinha no apartamento, começo a considerar a possibilidade de fugir da obrigação e ir para casa.
, preciso falar com você. — Rafael irrompe a sala, olhando por cima dos ombros. Ele cochicha e sua respiração é pesada, urgente.
— Jesus Cristo! De onde você saiu?! — Derrubo a mochila no chão com o pulo. Odeio como me assusto fácil e mais ainda como isso parece divertir quem me assusta.
— Já me chamaram de tantas coisas, mas de “Jesus Cristo”?! Certamente é a primeira. — Rafael inspira, parece apreensivo. Ele dá alguns passos, se certificando de que estamos mesmo sozinhos e guarda as mãos nos bolsos da calça social cinza. Sua gravata está frouxa, os cabelos bagunçados e ele está pálido. Os olhos se mexem muito rápido, analisando tudo. Ele pisca muito também, eletrizado.
— Você está bem? Estava com o Lucca? — Pergunto preocupada, recuperando minha mochila do chão e xingando o Rafa mentalmente por ter me feito derrubá-la com notebook dentro.
— Não, . Não vejo o Lucca há algum tempo.
— Então... De onde você veio? Eu não te vi no elevador, nem no corredor... — Coço os olhos, cansada. Rafael respira fundo, em um silêncio agoniante.
— Preciso te contar uma coisa, mas não é seguro contar aqui. — O rapaz engole em seco. Os olhos perdidos focam em mim e eu assinto rapidamente, entendo parte da urgência dele.
— Vamos lá — digo cansada, colocando a mochila pesada de volta sobre um dos ombros.
— Onde vamos? — Rafael me segue até o elevador.
— Um lugar seguro. — Aperto o botão do andar de Lucca, deixando Rafael nervoso. — Não se preocupe, ele vai te deixar entrar. — Nem preciso olhá-lo para saber que sua expressão está fechada, consternada.
Estou ansiosa e cansada demais para tranquilizá-lo em relação à Lucca. Eles que se resolvam.
! — Lucca abre a porta, sorridente. — Ah, Rafael... — Prendo uma risada, pois, avisei a ele que estava descendo e pedi para que ele abrisse a porta. Disse também que seu rolinho estava comigo.
A cena ensaiada faz Rafael rolar os olhos. Ele esbarra em Lucca, que sorri vitorioso pra mim enquanto eu entro no apartamento dele me sentindo sobrar diante de tanta tensão sexual e testosterona.
— Nós todos precisamos conversar. — Ele tenta focar no assunto principal, evitando encarar Lucca diretamente. Ele anda de um lado para o outro sobre o carpete, nervoso de novo.
— Já cansou de ser capacho do monstro? Está pronto para ser alguém de verdade? — Lucca provoca. De braços cruzados, ele vai até a sala e se joga no sofá.
— Não vou aceitar ser reprendido por fazer meu trabalho. Você entenderia se soubesse o que é ter de se sustentar. — Rafael tem um ponto, mas nada justifica se associar deliberadamente à um monstro como Arnaldo.
Me impeço de intervir, de repente a dinâmica dos dois é algo que eu quero muito observar. A atração entre eles é como uma peça em formato de estrela tentando entrar no formato de triângulo em minha cabeça: não encaixa.
— Pelo menos não estou cercado de dinheiro sujo. — Lucca devolve inabalável, se levantando em nome do orgulho.
— Tem certeza disso? Já pesquisou de onde vem a grana dos seus avós? — Rafael se aproxima, eles se encaram e respiram pesado. A tensão vai de zero a cem muito rapidamente e eu não tenho certeza do que vai acontecer a seguir.
— E a sua mãe? Vamos falar de como ela morreu? — Lucca provoca novamente. Um sorriso quase macabro adorna seus lábios e ele sustenta o olhar de Rafael, até que o mais velho desiste e se afasta dramaticamente, bagunçando ainda mais os cabelos.
Lucca olha pra mim, respira fundo e algo em sua expressão me diz que ele sabe que foi longe demais. Estou paralisada de interesse e minha curiosidade está corroendo meu cérebro. Eu preciso saber mais sobre a história desses dois. A mãe do Rafa morreu? Por que a forma como ela morreu é pertinente quando o assunto é mutreta de família?
Estou arrepiada e de repente, o cansaço se esvaiu de meu corpo.
— Lucca, estou fazendo o melhor que posso aqui. Estou me arriscando... — Ele me dá um olhar rápido de canto de olho. — Por você.
— Isso está ficando muito interessante! — Deixo escapar, um pouco emocionada e a emoção é grande demais. Eu quero que eles se beijem e fujam juntos para bem longe, onde possam viver a vida. Eu não consigo controlar.
— Então, sobre o que precisamos tanto conversar? — Lucca tranca o maxilar, o olhando com raiva. Sei com todo o meu PhD em Lucca que toda essa carranca é reflexo de uma vulnerabilidade enorme. Acho que o Rafa sabe disso também, pois, ele sorri rapidamente.
— Arnaldo vai dar seu próximo passo. — Ele respira fundo, pela milésima vez, organizando as ideias na cabeça. — Ele sabe que uma hora ou outra, vão descobrir os podres dele e ele está pensando em sumir por uns tempos.
Rafael conta que Arnaldo está à beira de perder a cabeça, desconfiando de sua própria sombra. Ele tem se escondido em Brasília, usando o trabalho para esconder seus verdadeiros objetivos: ele quer fugir do país.
— O que isso significa? — Pergunto quando Rafael diz que Arnaldo tem intenção de transferir seus bens para uma conta específica na Suíça.
— Que tudo o que ele tem vai para o nome de outra pessoa, em outro lugar. As dívidas ficarão para a esposa atual e ele retira a quantia necessária mensalmente para viver onde quiser. — Lucca grunhe em frustração ao ouvir a explicação de Rafael.
— Não acredito que ele vai se safar de novo! — O rapaz resmunga, me olhando com pesar.
— E se ele não se safar? — A ideia parece pesar demais em minha cabeça. Eu preciso compartilhar. — Para quem vai todo esse dinheiro?
— Bem... Pra mim. — Rafael suspira audivelmente, preocupado.
— Espera! Isso é perfeito. Rafa, você pode sacanear ele e conseguir tudo o que quer. — Lucca se ilumina em uma animação única despertada pela doce vingança.
— Eu não posso fazer isso. Ele vai saber exatamente quem atacar. — Rafael se levanta do sofá, olhando de mim para Lucca com muito medo.
— E então, o quê?! Vamos deixar que ele saia ileso? — Pergunto irritada.
— Foi um erro. Eu não deveria ter contado nada a vocês dois — diz risonho, mas não parece achar a menor graça.
— Tem razão. — Lucca o enfrenta. — Agora tenho certeza de que você é mesmo o covarde que achei que fosse. Patético.
— Espera, Lucca... Acho que podemos dar um jeito nisso. Rafa, vamos pensar juntos e... — A expressão irredutível em seu rosto me faz parar de falar imediatamente. Ele vai mesmo deixar que Arnaldo complete seu plano.
O monstro vai sair ileso, mais uma vez.
— Só queria que vocês se preparassem... — Rafael parece miúdo, menor que uma criança indefesa.
Eu não consigo sequer olhá-lo nos olhos. Ele solta as mãos ao lado do corpo e sai do apartamento como se toda a carga elétrica que o atingiu antes tivesse se dissipado, sugando seu ânimo até não restar mais nada.
— CARALHO! — Lucca xinga e eu volto a sentir meu corpo ceder com a velocidade de tudo girar em volta de mim.
— Ele não só vai sair ileso, como vai prejudicar a tia Vanessa no processo. — Constato em uma risada sem emoção e Lucca cobre o rosto com as mãos, soltando um urro irritado.
— Acho que ela pode recorrer à justiça e evitar o pagamento se as dívidas forem anteriores ao casamento. — Lucca explica com um lampejo de lucidez, se contorcendo em agonia.
— Desgraçado. — Concluo, me jogando no sofá ao lado de meu amigo.
— Eu juro que gostaria de poder matá-lo. Eu faria, com minhas próprias mãos — diz amargo, cego pela sede de vingança.
— Eu quero que ele viva para pagar por tudo o que fez. — Mesmo arrasada, tendo tantas marcas pela passagem de Arnaldo em minha vida, ainda não o desejo a morte. Pelo contrário, eu lhe desejo uma vida inteira de arrependimentos. Para algumas pessoas, a morte é pouco.
— O que faremos agora? — Lucca pergunta, encarando o nada.
— Eu tenho que ligar pra tia Vanessa. Ela tem que se proteger. — Meu amigo assente. — Você está bem? — Me atrevo a perguntar.
— Não sei. Acho que preciso ficar sozinho, sabe? Digerir e talvez, vomitar um pouco. Eu simplesmente não acredito nisso... — Lucca cobre os olhos com as mãos, a voz começa a embargar e eu sei que esta é a minha deixa para sair pela tangente.
— Me liga mais tarde? — Toco seu joelho, vejo que ele assente e corro até a antessala, onde deixei minha mochila. Antes mesmo de fechar a porta do apartamento 515 atrás de mim, disco o número de tia Vanessa e começo a rezar para que ela atenda.
— Está tarde, menina. O que está fazendo acordada há uma hora dessas? — Ela atende já me dando bronca. Aperto o botão do elevador e sinto que não há tempo para dourar a pílula.
— Tia, você tem um advogado? — Sua voz some, me deixando ouvindo o pagode que toca ao fundo do lugar onde ela se encontra agora.
— Estou voltando para o apartamento. — Ela desliga a ligação, entendendo exatamente o tom sério em minha voz.
Não é seguro conversarmos no apartamento, então espero por ela no saguão. Por ser fim de semana, o restaurante ainda está aberto, mas prestes a fechar. Fico ansiosa, na esperança de ela chegar antes disso acontecer e termos onde conversar em segurança.
Assim que ela chega, agradeço por ela estar sozinha e logo a chamo para o bar do restaurante, contando tudo o que sei sobre os planos de seu marido.
Não é exatamente uma surpresa para a tia Vanessa. Talvez por esperar o pior do marido, ela me conta que já contratou uma advogada.
— Ela é um pouco agressiva e eu fiquei com medo. — Minha tia confessa, envergonhada.
— Nós precisamos ser agressivas agora. Não temos escolha. — Estico o braço e alcanço sua mão com a minha. O momento é tenso, não consigo nem fingir um sorriso que possa lhe tranquilizar. O assunto é sério e ela precisa entender o quanto.
— Eu estou tão cansada dessa maldita vida! Vou acabar com isso agora. — Ela tira da bolsa o celular, digitando ferozmente uma mensagem.
— O que é isso? Um código nuclear? — Ela ergue uma das sobrancelhas.
— Nós vamos encontrar com a Dra. Helena amanhã de manhã. — Ela vira a tela do celular, com sua mensagem e a confirmação quase que instantânea da advogada.
Na manhã seguinte, a tia Vanessa e eu nos sentamos diante da mulher baixinha, atarefada e animada como um predador. O nome dela é Helena Alencar.
— Nós vamos entrar com o pedido de divórcio e uma medida provisória de proteção, para vocês duas. Quero começar com seus depoimentos e logo depois, nós vamos até a delegacia denunciá-lo. É importante que tenhamos todos esses documentos juntos para arrecadar credibilidade com o júri. Nós vamos tirar tudo dele. — A advogada sorri de forma diabólica e algo nela me faz gostar muito de sua personalidade ambiciosa.
— Eu só quero minha liberdade. — Tia Vanessa diz modesta.
— Já ouviu que a liberdade tem um preço? Sorte sua que eu sei cobrar muito bem por isso. — Ela volta a sorrir, mas algo na televisão pequena no canto de sua sala no prédio cheio de escritórios, chama sua atenção.
“Urgente: avião cai na Serra da Cantareira e temos informações de que todos a bordo foram vítimas fatais do acidente”
A jornalista reclama a notícia de forma urgente, mas imparcial.
“Ainda não há confirmação de quantos corpos os bombeiros esperam resgatar dos escombros, mas em uma exclusiva para o Nosso Jornal, um controlador de voo diz que somente os pilotos e um passageiro estavam a bordo”
— Que tragédia... esses aviões pequenos são os que mais caem. — A advogada pisca algumas vezes, voltando aos papéis diante de si para se orientar na conversa.
Devidamente aconselhadas, tia Vanessa me convida para um almoço de comemoração.
— Acho que podemos nos mudar permanentemente agora. Posso ficar com a sua cama? — Tia Vanessa pergunta enquanto saboreia sua salada.
— Eu tenho uma nova mesmo. — Devolvo a brincadeira e nós rimos.
“Urgente: foram confirmadas as identidades das vítimas da queda do avião na Serra da Cantareira: Márcio de Castro, o piloto. Antônio Fernandes, o copiloto e o passageiro, secretário de Estado, Arnaldo Brechter”
Tia Vanessa solta o garfo sobre a mesa. As mãos trêmulas cobrem a boca e ela encara a televisão no fundo do restaurante com os olhos cheios de lágrimas.
“E tem mais, o Ministério Público tinha acabado de enviar o pedido de prisão preventiva do secretário pelos crimes fiscais e a denúncia de atentado aos Direitos da criança e do adolescente. Mais informações hoje, no Nosso Jornal”
Eu rio de nervosismo.
Cubro a boca com a mão, encarando tia Vanessa com os olhos arregalados. Ela suprime o soluço, o pânico, o choque.
— Não acredito nisso… — Minha tia está desolada.
Ele conseguiu.


ATO VI

Me pergunto em que ponto um agente funerário ou um coveiro se acostumam a viver a vida com morte por todo lado. Tem uma certa beleza em oferecer este tipo de serviço em um momento em que gentileza é a única coisa a se oferecer a uma viúva enlutada.
Todos os desejos de tia Vanessa foram concedidos pela agência funerária após o sonoro não que ela recebeu para a ideia de velar o corpo do marido na Assembleia Legislativa de São Paulo. Nos disseram que "a casa" estaria em sessão naquele dia e que devido a uma pequena confusão de agenda, nenhum dos pares de Arnaldo poderia comparecer ao evento.
Arnaldo era um cretino inescrupuloso, mas algo dentro de mim se revira ao ouvir pessoas se escondendo atrás de pranchetas e ternos se referindo ao momento de seu velório como um evento.
Apesar da dor e do luto, tia Vanessa está cercada por rosas-chá, que são suas preferidas e vez ou outra ela sorri para elas, buscando algum alívio rápido.
Como se não bastasse ter a justiça colada em seu calcanhar, os olhos — agora desconhecidos — medindo sua tristeza de longe e julgando toda vez que ela chora pelo marido morto e quando não chora por se lembrar que seu marido morto era um verdadeiro monstro em vida, ela ainda tem de lidar com a posição social de viúva de alguém cuja imaculada reputação implodiu e se desfez antes que alguém pudesse impedir que, de alguma forma, a culpa fosse dela.
É como se com a morte abrupta de Arnaldo, a pessoa mais próxima a receber o escrutínio público é ela e ninguém além de mim parece se enfurecer com isso.
Encaro o caixão fechado diante de nós e não sinto remorso, não sinto nada. Olho para tia Vanessa lutando a cada segundo para se manter de pé e ofereço meu braço a ela, a amparando diante do que deveria ser os restos mortais de seu marido, mas é só um caixão vazio.
O que sobrou do corpo de Arnaldo foi cremado e tudo o que ele era, se tornou em pouco mais de um quilo de pó em um saco, dentro de uma caixa sobre a mesa de centro na sala de estar.
Não sabemos bem o que fazer com ele.
Passei boa parte da última noite olhando para a caixa preta e pequena que guarda o que já fora uma pessoa um dia. Me custou a acreditar que aquilo era Arnaldo e que eu poderia parar de temer cada ranger de portas pelo apartamento.
Parece errado que minha alma tenha de se abrir, expandir em tristeza e transbordar em lágrimas por alguém que eu secretamente desejei que deixasse de existir.
Ao mesmo tempo em que vejo a tia Vanessa sofrendo tanto com sua própria confusão, a minha nunca esteve tão clara. Estou aqui por ela. Para ajudá-la a encerrar mais essa etapa e lhe lembrar de que ela tem força para continuar passando pelas que vierem.
Ela aperta minha mão, me dizendo que quer voltar a se sentar e eu a ajudo a fazer isso também.
O órgão tocando ao fundo tem uma melodia angelical e sinistra que me dá calafrios, mas não o suficiente para deixar de procurar de onde vem o som do instrumento. O teto alto da igreja bonita me dá um pouco de tontura e as janelas de vitrais coloridos não são mais tão interessantes depois de algumas horas encarando os desenhos no vidro.
Ao final do velório, fico parada ao lado de tia Vanessa. Recebo cumprimentos de gente que nunca vi na vida e tento reconhecer alguns dos rostos que decorei dos porta-retratos no apartamento.
Não há uma pessoa sequer que seja minimamente familiar.
— Meus sentimentos — diz um homem grisalho, seu bigode farfalha enquanto as palavras deixam seus lábios. Educada, tia Vanessa sorri pequeno e agradece o desconhecido pela gentileza de comparecer ao último adeus de Arnaldo. O homem ergue as sobrancelhas e suspira cansado, passando por mim com um aceno de cabeça polido e bem pouco pessoal.
Quando alguém querido morre sempre tem uma sensação palpável no ar de tristeza pela perda, a dor da saudade instantânea, o amor que aquela pessoa compartilhou em vida com todos que lhe eram importantes. De alguma forma, todos esses sentimentos bons e positivos concentrados em um só lugar para dizer adeus para sempre se transformam em uma emoção imensa, incontrolável, se tornando revolta, comoção. Quando alguém como Arnaldo morre, o que paira no ar é o oposto de saudade ou tristeza. Não há choro descontrolado e gritos de dor profundos e agoniantes. Só silêncio.
Consigo ver um ou outro casal riscar mentalmente o enterro da lista de afazeres do dia, pensando no próximo item a ser tirado da lista. Aparentemente, no centro da cidade, está acontecendo um almoço beneficente onde filantropos exibem seu conhecimento em arte e ainda mais seus cheques. Nenhum deles perdeu alguém querido, só estão comparecendo a um evento.
É hipócrita da minha parte julgá-los, afinal de contas, Arnaldo também não é querido por mim. Mas tia Vanessa é, e ela merece mais do que os olhares reprovadores daqueles que são todos farinha do mesmo saco.
Está sol e mesmo que faça frio, eu suo. O blazer preto que a tia Vanessa me fez vestir sobre o vestido pesado me deixa com calor e na primeira oportunidade que vejo para ficar sozinha, eu o tiro. Apoiando a peça sobre uma lápide, peço respeitosamente para que quem quer que esteja descansando eternamente abaixo de mim não se importe com minha indelicadeza.
Eu gosto do clima de cemitério muito mais do que gostaria de admitir. É silencioso, amplo e o vento corre por entre as lápides fazendo uma brisa gostosa e quase saudosista balançar a saia bufante do vestido exagerado que estou usando contra minha vontade.
Enquanto tia Vanessa acerta detalhes do enterro com o agente funerário, recebo uma mensagem de Lucca e controlo todo o meu rosto para não sorrir com as palavras.
“Calçando os sapatos de sambar. Já acabou?”
Suspiro tentando disfarçar meus verdadeiros sentimentos: estou frustrada. É claro que não estou me cobrando para ficar triste com a morte de Arnaldo, mas estou. A parte que me envergonha de verdade é que eu preferia vê-lo atrás das grades, não reduzido a pó.
Ele não merece a paz da morte e isso é conflituoso para mim.
Respondo a mensagem com um breve “ainda não” e guardo o celular de volta no bolso do vestido.
— Ainda não acabou... — Repito para mim mesma, me referindo a tudo o que tia Vanessa tem de enfrentar pela frente.
Caminho de volta para o estacionamento, encontrando tia Vanessa encostada na porta já aberta. Seus olhos estão distantes e perdidos. Garanto que ela não está ouvindo nada do que o agente funerário diz e tomo a liberdade de ouvir a conversa, caso alguma informação seja importante.
— Podemos ir? — O rapaz pergunta com praticidade. Ele é atencioso e percebeu que a tia Vanessa não está exatamente no controle da situação. É mais como se ele sugerisse as ações e ela fosse agindo de acordo com o que consegue fazer agora. Ele toma as chaves do carro e sorri para mim, como se pedisse permissão para dirigir o carro até o local de descanso eterno do caixão vazio de Arnaldo.
Ajudo tia Vanessa a se acomodar no banco de trás e sento ao seu lado, entrelaçando meus dedos nos dela.
Durante o curto percurso até o pico do cume onde ele será enterrado, me pego pensando em Pedro. Fecho os olhos e tento me lembrar do velório e do enterro, mas não consigo. Talvez estar completamente dormente pelos remédios para dor tenha sido minha única sorte naquela situação toda.
Assistir ao caixão descer devagar para dentro da terra é uma visão difícil. Não importa que, na verdade, ele esteja vazio. Este último ato, é como um rito de passagem absoluto que significa que aquela pessoa deixou de existir para sempre e isso pode doer.
Além de nós duas, poucos se dispuseram a vir até o derradeiro ponto final da história de Arnaldo. É quando o fato de que ele não pagará pelos seus crimes me encontra, de novo. De repente, fica difícil respirar e continuar sentada na cadeira de madeira úmida enquanto tudo acontece diante de mim.
Ouço o choro agoniado de tia Vanessa e não consigo ficar por perto para ver quando começam a jogar terra sobre o caixão.
— Ele deveria estar preso — digo incomodada, com lágrimas nos olhos pela primeira vez desde que soube do acidente de avião.
Os poucos que seguiram o comboio para o enterro se dispersaram rapidamente quando o caixão começou a descer. Ultrapasso alguns deles, pisando firme na grama falhada do cemitério.
Ao longe, um rosto familiar me faz mudar de trajeto e eu vou marchando direto para Rafael. Ele usa um terno bonito, preto e bem ajustado no corpo. Entre os dedos um cigarro da mesma marca que Arnaldo costumava fumar e o cheiro que vem com a fumaça acerta meu estômago em cheio, me deixando enjoada.
— Por que você não estava no avião? — Disparo assim que chego perto o suficiente para que ninguém além dele me ouça.
— Quase soa como se você quisesse que eu tivesse morrido também. — Rafael sorri de lado, soltando fumaça em meu rosto de novo.
— Não se faça de desentendido. Isso faz parte dos planos do Arnaldo? Ele está morto mesmo? — Insisto, o encurralando contra seu carro importado e reluzente.
— Não é a hora nem o lugar certo para falar sobre isso — diz o rapaz, com um ar misterioso e satisfeito. — Digamos que, por ora, nossos problemas desapareceram. — Ele apoia a mão em meu ombro, enigmático.
— Minha tia ainda tem depoimentos para dar a polícia e uma batalha judicial para se livrar das dívidas do seu pai. — Aponto irritada. É inacreditável como ele esteja aceitando tão bem.
— Você parece ter uns dez anos a mais agora. — Rafael toca o vinco em minha testa, me fazendo bufar irritada. — Deixe os problemas de adultos para os adultos, . Só para variar. — Ele pisca um dos olhos, joga o resto do cigarro no chão e o apaga com o salto do sapato social.
— Não vem com essa, Rafa. Você sabe de algo e não quer me contar. — Cruzo os braços na frente do peito. Rafael inclina a cabeça para o lado, olhando a movimentação por cima de meu ombro. É tia Vanessa, o agente funerário a carrega cume abaixo e tenta mantê-la de pé enquanto ela desaba em lágrimas.
— Diga a ela que vou resolver isso também — diz rapidamente, tirando as chaves do bolso do paletó.
— Onde você vai? Resolver isso também, o que isso significa? — Rafael entra no carro, tira os óculos revelando os olhos mais brilhantes e cheios de vida que já vi em seu rosto e dá a partida, me deixando sem respostas.
Assisto o rapaz se afastar com velocidade, chamando certa atenção dos pequenos grupos que ainda permaneciam por ali.

No trabalho, as coisas vão de vento e poupa. Vender pizzas aos finais de semana tem sido um verdadeiro sucesso e toda a renda dessa temporada é revertida para pequenas reformas e consertos na cozinha e na copa da lanchonete. Agora com três freezers funcionando perfeitamente, a venda de bebidas quadruplicou e com muito esforço e planejamento, estamos conseguindo quitar uma dívida de cada vez, reconstruindo a confiança com alguns fornecedores.
As coisas estão indo tão bem, que tenho que contratar mais um garçom para darmos conta do serviço.
— Tem certeza de que não quer trabalhar aqui? Ia ser o máximo passarmos mais tempo juntas. — Insisto, mas Tati morde um pedaço grande em seu lanche. Negando com a cabeça.
— Eu sou meio desastrada e não lido nada bem com críticas. Fora que eu prefiro continuar sendo sua amiga — diz sorridente e eu aceito, afinal, eu teria mesmo de puxar a orelha de Tati vez ou outra e eu me odiaria por fazer isso.
— Estou nervosa por ter que entrevistar alguém. Nunca fiz isso antes. — Me debruço sobre o balcão, roubando uma de suas batatas fritas.
— Você sabe do que precisam, se alguém aparecer disposto a fazer, é isso. — Tati dá de ombros e eu rio adorando a simplicidade com a qual ela vê todas as coisas. Encaro a pequena placa que o seu Valter me entregou para pendurar e com uma expressão desgostosa, sou seguida por minha melhor-melhor amiga até o lado de fora para pendurá-la.
— Estou oficialmente pendurando uma placa de vaga de emprego. Que adulto da minha parte. — Tati mantém a cabeça inclinada enquanto faz uma expressão descontente. Vou até ela, consertando sua cabeça e ela sorri, se dando conta de que não era a placa estava torta.
— Você parece mesmo mais velha. Responsável, ocupada, gostosona. — Tati assovia e eu rolo os olhos.
— Estou cansada e com sono o tempo todo. Que atraente. — Devolvo sem jeito e ela ri.
— Sei de uma lista de caras que adorariam te colocar pra dormir... Se é que você me entende. — Tati ri maliciosa e eu balanço a cabeça de um lado para o outro.
— Eu estou bem assim — digo baixo, mas é verdade. Me sinto no controle de tudo, mesmo que tudo pareça muita coisa. — Preciso fazer o trabalho de fim de semestre. Faltam tipo... duas semanas para entregar e eu nem comecei. — Confesso e Tati abre a boca em choque.
— Você já sabe o que vai fazer?
— Não tenho a menor ideia. — Lamento minha desgraça e então, como se desgraças não fossem o suficiente no campo acadêmico da minha vida, Guilherme se aproxima.
— Boa tarde. — Ele sorri sem jeito, olhando de mim para Tati com apreensão no olhar.
— O que você quer? — Pergunto me afastando um pouco mais. Com ele, todo cuidado é pouco.
— Eu vim me candidatar para o emprego de garçom. — Guilherme fala devagar, com peso em cada palavra. Tati se engasga com uma risada e eu tento me manter profissional. — Você tem alguma referência? — Pergunto, vendo que Tati acena enquanto ri e se afasta, nos dando uma privacidade desnecessária.
— Qual é, ?! Você sabe que não. — Seus ombros murcham e então eu percebo que Guilherme está desarmado, indefeso.
— Certo. Nós precisamos de alguém para ajudar com a limpeza geral. Louça, banheiro, chão do salão... Acha que quer fazer isso? — Cruzo os braços, o encarando com a seriedade que o momento pede.
— Escuta, minha mãe enlouqueceu e disse que se eu não tomar jeito, ela me expulsa de casa. Então, eu preciso de um emprego e eu não sei mais o que fazer. Nenhuma dessas empresas me contrata porque eu sou um grande pedaço de merda ambulante que não sabe fazer nada. — Guilherme parece frustrado, cansado e até abalado. Isso é novidade pra mim.
— Você tem que ser pontual, trabalhar duro e... — Ele se ilumina em um sorriso que faz meu estômago congelar. — Não estou dizendo que vou te contratar, é só um teste e o seu Valter é quem decide. Você tem que impressioná-lo.
Não sei o que estou fazendo. Na verdade, eu sei. É importante que a cultura do estabelecimento seja de um lugar honesto e justo. Um ambiente agradável para trabalhar e um lugar onde damos oportunidades. Mesmo para ex-namorados babacas.
— Obrigado, . — Guilherme soa realmente agradecido.
— Certo, comece tirando esse anúncio e depois, vou te mostrar como limpar o banheiro. — Ele faz uma careta, mas logo a desfaz e faz exatamente o que eu digo.
É um início caótico, principalmente porque não sei como falar com ele sem um residual de ódio por tudo o que ele aprontou comigo e qualquer erro dele, parece completamente irritante.
— Adoro esse seu jeito irritadiço. Sabe o que pode te acalmar? — Ele sugere, apoiando o cotovelo sobre um dos joelhos.
— Você conseguir lavar essa privada sem minha supervisão? — Cruzo os braços diante do corpo, cortando qualquer assunto que não envolva medidas de produtos de limpeza ou pedidos de novas tarefas.
— Estou tentando aqui, … — Ele volta a esfregar.
— Você tem que limpar mais fundo — digo sem a intenção clara de fazer analogias a sua situação, mas Gui assente e assume entrelinhas em minha ordem.
— Eu sei.
Evitando que eu tenha de sair refazendo suas tarefas, insisto nas coordenadas até que seja seguro deixá-lo tentar sozinho. Mas não consigo não me irritar com o fato de eu ter de lembrá-lo até de remover as luvas ou lavar as mãos.
Cada minuto que passa, meu arrependimento se torna ligeiramente maior.
, o que acha de tentarmos o tal artista de música ao vivo? — Seu Valter se anima com o forró que toca no rádio da cozinha.
— O que você propõe de cachê? — Devolvo a pergunta e ele coça o cotovelo, pensando.
— Não faço a menor ideia.
— O Lucas está fazendo uns shows cover em bares na capital. Ele ganha uns oitenta por noite. — Guilherme se intromete na conversa e se apoia no cabo da vassoura.
— O que acha? — Me viro para o seu Valter e ele pondera suas opções.
— Vamos ver... Se não tivermos público suficiente eu tiro do seu cheque. — Seu Valter diz sério e aponta diretamente para Guilherme. Ele assente e engole em seco.
— Valeu. — Empurro de leve seu braço e ele sorri.
— Sempre que precisar... — Guilherme diz sinuoso, me olhando com certa malícia.
— Se vai trabalhar aqui, é melhor que pare de me olhar desse jeito — digo séria, deixando claro que não vou tolerar suas gracinhas.
— De que jeito?
— Como se já tivesse me visto nua. Para com isso. — Guilherme comprime os lábios, intensificando o olhar sobre mim. Rolo os olhos e saio da cozinha, marchando para o telefone no balcão para tentar contatar um artista para a noite seguinte.
Mais tarde, uma onda de orgulho e satisfação me abraça e parece não querer soltar tão cedo. Deixo a chave Philips sobre a pia e encaro a prateleira que acabei de montar e instalar sozinha na cozinha do estúdio. Tenho dedicado pelo menos uma hora de meus dias para fazer pequenas alterações no lugar, para deixá-lo cada vez mais com a nossa cara.
Tia Vanessa tem se ocupado com o trabalho e com as visitas ao escritório de advocacia. Eu tenho me ocupado com todo o resto. Ela precisa ficar no apartamento por motivos que eu ainda não consegui digerir.
Tia Vanessa se importa demais com o que vão pensar dela e por isso, tem ficado sozinha no apartamento em que morou por tantos anos, mas agora não se parece em nada com sua casa. Assim que tive a oportunidade de carregar um edredom pesado em um carro, eu o fiz e desde então, tenho dormido em minha cama, observando todas as noites as coisas se modificarem lentamente, se tornando parte de algo maior e complicado, que ainda está longe de terminar, mas tem muito potencial.
Depois de um banho longo e quente, envio mensagens para tia Vanessa, me certificando de que ela esteja bem e ela me liga como resposta.
— Os copos vermelhos ficaram maravilhosos na prateleira. Estou ansiosa para te mostrar! — Assumo uma postura ativa e positiva quando falo com ela. Quero que ela comece a cogitar a ideia de retomar o processo de mudança, mesmo sobrecarregada com os resquícios da grande explosão que aconteceu em sua vida, acredito que mudar os ares seja uma boa ideia. A maioria de suas coisas mais imprescindíveis estão aqui, ela só está lá pelas aparências. É quase escolher ser assombrada pelas paredes desbotadas de tristeza daquele lugar medonho.
— Sonhei com o Arnaldo ontem — Tia Vanessa não parece estar animável. Fico preocupada. — Sonhei com a época em que eu era a outra. — Minha tia ri sem jeito. — Eu sei que foi burrice desde o começo, mas amei aquele homem com tudo o que eu tinha.
— Você está bem? — Pergunto, odiando o tom de minha voz tão absurdamente diferente de como eu atendi a ligação.
— Estou. Estou viva. — Ela ri, mas não do jeito grato que normalmente segue a frase. — Estava pensando nas flores que a ex-mulher dele enviou. Para mim. O bilhete é uma doçura, quer ouvir? — Algo na voz dela me faz duvidar que o conteúdo do bilhete seja de bom tom, então engulo em seco, sem a opção de ficar de fora. — “Finalmente estamos no mesmo lugar: sem Arnaldo. A diferença é que eu fiquei com metade do que ele tinha, você vai perder tudo o que tem. ” Um doce de mulher.
— As flores são bonitas? — Agradeço por essa conversa acontecer em cidades diferentes. É o que gosto de chamar de Efeito Arnaldo. Ele extingue toda e cada chance de alguma paz nascer, mesmo do além.
— São de ótimo gosto. — Ela suspira e acaba rindo. — Sinto falta do Alê. Ele não voltou ainda? — Ela pergunta. Mordo o interior da boca buscando alguma forma melhor de dizer que possivelmente a ideia de terminar o namoro para protegê-lo de perguntas agressivas e enviesadas tenha acabado com a minha chance de uma boa educação com meu professor preferido.
— Eu também sinto falta dele. Ele continua afastado das aulas na faculdade... talvez ele volte para o final do semestre, mas... Ninguém sabe direito. — Ouço minha tia suspirar, mais triste do que quando recebeu grosserias disfarçadas de condolências.
— Ele sabe que estou esperando essa bagunça ter um fim para que possamos ficar juntos. Ele sabe. — Nem parece que ela está falando comigo, então eu só fico com ela no telefone há cidades de distância, querendo abraçá-la e fazer com que sua dor suma, nem que seja por um segundo.
— Eu aviso se souber de algo. — Só me resta lhe dar alguma esperança, nem que seja só até amanhã de manhã.
— Tudo bem, querida. Não se preocupe. — Ela força um sorriso na voz, mas passei a conhecê-la bem demais para perceber quando não é de verdade. — Você precisa descansar. Nos vemos amanhã no campus. Te amo. — Isso sim foi de verdade.
— Te amo também, tia. Boa noite. — Desligo a ligação e sinto parte de mim querer se descolar do resto em uma culpa estarrecedora. Eu sei que deveria superar meu horror pelo apartamento, reconhecer que minha tia precisa de mim e aceitar suas razões independentemente de quais sejam. Mas eu não consigo. Na última noite que passei no apartamento não consegui pregar os olhos, sentindo que estava sendo observada o tempo inteiro. Na manhã seguinte eu não aguentava a pressão na nuca e minhas costas doíam tanto que minhas crenças sobre o absoluto nada após a morte se estremeceu um pouco.
Não sei se dormir em um novo colchão ajudou, mas definitivamente não senti nada parecido quando deixei o prédio e jurei nunca mais voltar àquele andar de novo.
Fico pensando nos pesadelos que tia Vanessa deve ter naquele lugar estando absolutamente sozinha. A morte de Arnaldo a deixou bastante abalada e eu entendo que seja difícil para ela aceitar sua morte. Por pior que fosse, Arnaldo um dia fora alguém que ela amou. Deve ser difícil passar por uma vida inteira, se apaixonar, se desapaixonar e perder essa pessoa de uma hora para outra, sem chance para reparos.
Só sendo um ser completamente sem alma para que a morte de alguém com quem se compartilhou o mesmo colchão por tantos anos não abale suas estruturas, mesmo que só um pouco. Mas com a tia Vanessa foi como perder o chão e ter as asas cortadas ao mesmo tempo, sem ter como chegar até seu refúgio. Não é uma escolha, afinal, é uma condição.
O lado ruim de estar finalmente em casa é estar longe de Lucca. Nos falamos por mensagem e ele insiste em só me visitar quando tudo estiver no lugar. Segundo ele, dá sorte receber uma visita com um presente na casa recém finalizada e ele quer ser essa pessoa.
“Rafael fica me ligando. Não quero saber dele, como posso ser mais claro? ”
Após implorar que ele faça o meu trabalho e vá até o andar de baixo para checar a tia Vanessa de vez em quando, Lucca toca em um assunto que me deixa tensa.
“Acho que temos de ficar de olho nele. Não pode mantê-lo por perto, mas não tão perto? “
Não demora um minuto inteiro até Lucca me ligar indignado.
— Não acredito que você quer que eu me prostitua para obter informações! — Prendo uma risada, ele soa mesmo ofendido.
— Eu nunca disse nada sobre prostituição — digo em minha defesa e ele ri nasalado.
— Porque eu farei! Eu vou me expor em nome do time! — Lucca insiste e eu entendo exatamente seu ponto.
— Você quer ficar com ele, não é?! Porque vocês não ficam juntos de uma vez? — Ajeito as costas, sentindo a coluna estalar para o lado, depois para o outro. Está tarde e estou energizada, mas deveria estar dormindo.
— Porque não somos assim. Nosso lance é algo mais carnal e desapegado. — Ouço Lucca titubeando e suprimo o impulso de aprofundar no assunto.
— Sei... bem, usem camisinha e... Fique de olho nele! Não confiamos no Rafael, lembra? — Ele concorda com um som de garganta.
— Preciso confessar que essa parte é o que mais me atrai nele. — Lucca admite e eu rolo os olhos.
— Eu vou desligar agora antes que fique gráfico demais. Boa noite, Lucca. Não esqueça de procurar a tia Vanessa pela manhã.
— Não gosto de você mandona. Cadê a menina mirrada da floresta que usava roupas furadas e tinha péssima postura? — Rolo os olhos, decidindo não me ofender com o que ele diz.
— Tchau, Lucca.
Desligo a ligação e deixo o celular sobre a cadeira de bar que eu pintei de branco e desenhei padrões em tinta preta que me deixa feliz em pensar que uma vaca magicamente se transformou em uma cadeira. Desdobro o edredom sobre o tapete felpudo que demarca exatamente a área já pintada e decorada do estúdio, separando da parte ainda a ser trabalhada.
Ainda sem sono, dedilho as cordas do violão só pelo prazer de ouvir o som apaixonante do instrumento. Está frio e uma fina chuva cai lá fora, na janela ampla diante de mim, uma gota solitária corre atravessando a condensação, me fazendo lembrar de como uma gota de suor correu pelo abdômen definido de uma vez, enquanto eu o assistia andar de bicicleta.
O pensamento me leva para tão longe que nem reparo quando paro de tocar, somente pressionando as cordas com a mão esquerda. O arrependimento bate, troca os pés e me golpeia de novo, só porque pode.
Sinto falta dele com cada parte de mim.
Deixo o violão sobre o tapete felpudo e me deito encarando o teto, repensando toda essa solitude. É claro que nada se compara a estar em paz com meus pensamentos e a companhia da sensação de dever cumprido. Mas depois de experimentar braços fortes e abertos me esperando na cama em noites frias, acompanhados por um profundo interesse por meus pensamentos e reclamações, todo esse isolamento, mesmo que não seja triste, ainda é solitário.
Eu sei que talvez nunca mais encontre o pacote completo em um só alguém, além de... bem, além dele. Talvez eu só queira dividir essa solitude com mais alguém. Ah, expectativas....
Na tarde seguinte, me encontro com Lucas na lanchonete para acertar os detalhes de sua apresentação. Me sinto péssima por estar atrasada, mas eu ainda não criei a expertise e coragem para tomar o volante do motorista de ônibus que é uma versão absurda e caricata de um motorista de ônibus: alto, gordo, de cavanhaque e óculos escuros, mal-educado com todo mundo e sarcástico com sua venda ilegal de fitas. Elas ficam penduradas em volta dele, com capas de gosto duvidoso e um preço absurdo escrito errado logo abaixo, obstruindo a visão dele. Enquanto somos obrigados a escutar uma coleção de músicas muito antigas e muito mal regravadas devido ao formato arcaico em que são reproduzidas, ele dirige muito devagar enquanto canta mal cada uma das canções. Um verdadeiro show de horrores.
— Desculpa, Lucas... sabe como é voltar da Armênia esse horário. Todo mundo parado em horário de almoço. — Rio polida, casual. Estendo a mão para apertar a dele, afinal, só nos conhecemos de vista por termos dividido espaço no pátio da escola para ensaiar, cada um fazendo algum tipo de arte.
Como comunidade, nós artistas estamos sempre buscando novas oportunidades para fortalecer a cena e deixar um lembrete no bairro de que a arte existe e que é feita para todos. Pertence a todo mundo e deve ser compartilhada, principalmente em casa.
— Tem coisas que valem a pena esperar — diz galante, beijando minha mão suada pelo nervosismo e um dia inteiro já vivido. Recolho a mão ainda meio abalada com o gesto romântico e inesperado.
— Certo... — Digo confusa, puxando uma cadeira para me sentar antes que ele o faça. — Então, é a primeira vez que nós abrimos nosso espaço para música ao vivo, mas temos alguma experiência no assunto. Quero encontrar o melhor acordo para nós dois. — Minto descaradamente. Não quero que ele ache que sou alguém que se deixa ludibriar por olhares misteriosos e um sorriso bonito. Este é um contato profissional.
— Claro, claro. Eu imagino que seja complicado se reerguer, entendo sua posição e de onde ela vem. Normalmente, meu show custa a bagatela de cem reais, mas como vocês são praticamente a cozinha de casa para todos nós, eu faço por setenta, mais um negocinho para beliscar, beber. Sabe como é... — Lucas pisca um dos olhos, a voz macia e aveludada junto aos olhos escuros e curiosos sobre mim me fazem perder a compostura e sorrir sem jeito por meio segundo, talvez.
— Certo... Podemos fechar esse valor. — Solto um pigarro, encarando a mesa e notando que toda essa generosidade me rendeu míseros dez reais de desconto em seu show.
— Você vai estar aqui? — Ele se inclina sobre a mesa, uma mão acaricia o próprio rosto com a ponta dos dedos e a outra tenta alcançar a minha. A qual eu recuso disfarçadamente, desviando o olhar para a cozinha e me levantando meio desajeitada.
— Sim, claro. Estou prestes a começar o meu turno, inclusive... — Passo as mãos na calça sem saber muito bem o que fazer. Não quero esticar a mão e selar o acordo verbal com um aperto de mão, pois, de canto de olho, vejo que Guilherme se apoia na vassoura e assiste a tudo com bastante atenção e não quero que Lucas faça aquilo de novo.
— Claro, não quero atrapalhar a boa dama em seu ofício. — Lucas diz galante, me fazendo franzir a testa confusa. Não tenho certeza se ele quer me conquistar ou tirar sarro de mim.
— Certo. Nos vemos mais tarde? — Ele assente, ainda sorrindo de um jeito que me deixa com vergonha e sentindo as bochechas queimando.
— Sim, e nesse caso, eu monto meu palco. Não preciso de ajuda, mas aceito uma aguinha durante a apresentação. Também preciso que alguém me anuncie... — Ele continua falando e eu assinto devagar, sem prestar muita atenção, pois, na esquina da frente, passa de bicicleta e sem camiseta e eu sinto o centro do meu corpo esquentar.
— Claro. Parece razoável — digo meio embaralhado, sentindo que devo ajeitar a postura, já que o rapaz para em frente a lanchonete, veste a camiseta e entra sorrindo para Tina, que toma conta do balcão.
— Então, é isso. Eu volto mais tarde. Sorte sua que eu moro aqui, senão, você teria de pagar minha passagem também. — Lucas ri de um jeito que ele acha que é charmoso e eu assinto devagar, comprimindo os lábios no que eu penso ser um sorriso simpático e ficamos por isso mesmo.
Acompanho Lucas para fora da lanchonete somente como um pretexto para estar lá quando sair. Fico perto de sua bicicleta para não lhe dar chance de se esquivar.
— Com certeza, nos vemos então — concordo com qualquer coisa que Lucas esteja dizendo, só quero que ouça minha voz.
— É um encontro. — Ele diz mais alto, saindo pela calçada antes que eu junte duas frases para corrigi-lo.
— Você vai pagar o Lucas com o que? — Guilherme se aproxima, seu questionamento é tão sem sentido quanto o fato de eu me preocupar com ele me ver flertando com alguém.
— O quê?! Me respeita, Guilherme! Aquela mesa está suja, dá pra ver daqui! — Digo rápido, tentando prender os cabelos para cima. O calor que me acometeu não combina nem um pouco com o clima fechado de nuvens densas no céu. Guilherme bufa frustrado e sai castigando o chão por onde pisa. Tento respirar fundo e parecer casual conforme se aproxima com seu almoço.
— Oi. — acena com a cabeça, tirando a bicicleta do meio-fio e apoiando a sacola com salgados quentinhos no guidão. Me olhando tão sério.
— Oi, . — Não sei se é impressão minha, mas toda essa seriedade de não parece ser tão intransponível assim.
— Soube do show que teremos mais tarde? — Digo como se fosse uma novidade que já corresse de boca em boca. Marketing é a chave.
— Com o Lucas se apresentando? — desdenha e eu mordo o interior do lábio, ansiosa. — Então, era isso que você estava conversando com ele? — Pergunta disfarçando a urgência pela resposta.
— Qual é?! Eu estou começando nisso, preciso tentar os inofensivos antes. — Me defendo e ele ri um pouco. Percebendo a ambiguidade de minha resposta.
— Vou falar pra galera aparecer. — Assinto devagar, meio decepcionada por não receber a reação que eu esperava.
— Você vem? — Pergunto esperançosa e solta o ar dos pulmões entre uma risada nervosa.
— Eu... Não... Eu tenho prova. Mas posso passar depois. — Assinto de novo, um pouco mais feliz, desta vez.
— Boa sorte. Com a prova — digo rápido, vendo que ele se prepara para sair com a bike.
— Valeu, . — sorri pequeno e começa a pedalar para longe.
Respiro fundo e tento assimilar parte do que acabou de acontecer enquanto começo o turno.
— Boa, . Arrasando corações. — Tina pisca um dos olhos.
— O que foi isso? — Me aproximo dela, perguntando baixo.
— Você é bonita, legal. Faz todo sentido que os caras façam fila por você. — Tina fala como se fosse óbvio.
— Eu não vi nada disso. Acho que recebi a reação certa da pessoa errada. — Confesso em um rolar de olhos frustrado.
— Sei bem como é isso. — Tina desvia os olhos dos meus e encara o cunhado, varrendo a calçada para montarmos as mesas do lado de fora.
— Eu vou limpar a despensa — digo derrotada, tentando me afastar de mais confusões amorosas.
— De novo? — Ela pergunta, confusa.
— Certo. Vou me esconder do Guilherme por meia hora e esperar que ele desista de dizer o que quer que ele queira me dizer. Sinto seus olhos queimando minha nuca agora mesmo — digo entredentes e ela ri.
— Ele ‘tá mesmo olhando pra você. — Ela ri e eu rolo os olhos, de novo, indo para meu esconderijo provisório.
Com tudo encaminhando para uma noite de música romântica e boa comida, tomo a liberdade de subir por alguns minutos e descansar os olhos antes da grande noite começar.
Mal deito na cama e logo ouço o som de chaves do lado de fora e vejo uma tia Vanessa sorridente entrar em casa. Cheia de sacolas na mão.
— O que é tudo isso? Seus bens não foram confiscados ou algo assim? — A encaro desconfiada e ela deixa as sacolas no chão com cuidado.
— Oi, tia. O que comprou pra mim? — Ela faz uma imitação pobre de minha voz e eu quase rio.
— É sério que você preferia essa reação? — Ela assente e ri, só me resta acompanhá-la. — O que é tudo isso?
— Compras da vitória! Acho que eles têm peixes maiores para pescar e deixaram essa piranha viver em paz! — Ela gargalha e eu cubro a boca com a mão, me recusando a rir de tal trocadilho.
— Então, você está bem? Isso significa que você pode voltar a namorar meu professor? — Assim como tia Vanessa, a prioridade de minhas perguntas me surpreende e eu sorrio sem jeito. — Acho vocês bonitinhos juntos, só isso.
— Já estou falando com o Alê tem algum tempo. Ele entende que eu queira manter discrição total e está disposto a esperar. — Ela comenta toda derretida e eu volto a me sentar, encarando as sacolas.
— Você acha que ele viria hoje à noite? Sabe, para me ajudar? — Pisco os olhos, juntando as mãos abaixo do queixo.
— Vamos ver... — Minha tia soa misteriosa, mas as bochechas coradas dizem tudo. — Trouxe algo pra você. — Ela joga uma das sacolas em meu colo e ela pesa.
— O que é isso? — Pergunto tirando de dentro da sacola camisas pretas sociais e calças jeans combinando.
— Você vai ser gerente em breve, tem que se vestir de acordo. — Ela me obriga a concordar.
— Obrigada, tia.
— Não me agradeça ainda. — Sua voz soa esganiçada e animada demais para alguém que está de luto. Eu gosto de ouvir esse tom, quem diria?! — Você vai ficar maravilhosa neste vestido.
Ela separa uma das sacolas, daquelas que você deve segurar por um cabide e tirar a roupa de dentro através de um zíper. Algo que eu só tinha visto nos filmes. Só o vislumbre do vestido me deixa sem ar.
É lindo. Delicado, longo, azul escuro, brilhante de jeito sutil e quase imperceptível. As alças finas se transformam em um lindo busto decotado. Generoso, mas elegante. Perfeito.
— Onde eu usaria este vestido? — Parece errado tocá-lo. Ele é tão lindo que não parece combinar comigo estando de longe. Mas minha tia pega minha mão, nos guiando até o espelho grande encostado na pilastra que separa a cozinha dos “quartos”.
Ela ajeita meus cabelos para trás e encaixa o cabide em meu pescoço, encostando o vestido em minha pele e fazendo ali o casamento perfeito. O vestido nem está em mim completamente e eu me sinto maravilhosa.
— No casamento da Simone, claro — diz devagar, bem baixinho como uma fada madrinha cheia de segundas intenções.
— Eles marcaram a data? — Engulo em seco, me forçando a parar de encarar o reflexo e ter ideias de penteados que realcem a peça.
— Sim. Vai ser nossa primeira correspondência no endereço novo! — Minha tia bate palminhas alegres, mas não posso julgá-la. Na minha primeira noite aqui eu chorei de alegria por ter uma cama só minha. Cada um aprecia seus pequenos milagres como pode.
— Não sei se devo ir... não quer ser meu amigo. — Dou de ombros, apoiando o cabide na moldura do espelho. Dando uma última olhada no vestido.
— Deve ir, sim. A Simone te adora e ela merece celebrar o amor diante de todos os seus amigos — diz resoluta e eu assinto.
— Vamos ver... — Imito seu tom misterioso e ela sorri.
— Experimenta essa para hoje à noite. — Ela se joga em minha cama, me acertando com uma camisa social. Eu tiro o uniforme e visto rapidamente a camisa de botões. Me sentindo meio deslocada, minha tia bufa e se levanta novamente, me levando para a frente do espelho. De novo.
Ela dobra e levanta as mangas, dizendo que esse tipo de peça pode ser usada de forma muito feminina, se estilizada corretamente. Ela tira a própria pulseira e a coloca em meu pulso. Dobra bem as golas e abre um ou dois botões, trazendo simetria para o caimento da camisa.
— Gostou?
— Agora sim. Estou pronta para demitir o Romildo. — Brinco e ela toca a língua com o dedo.
— Ele é péssimo. Fica soltando cantadinha em momentos inapropriados. Péssimo. — Ela menciona e eu assinto.
— Ia dizer que ele não é muito profissional, mas... isso também. — Encaro novamente a camisa em meu corpo e decido prender o cabelo em um rabo e cavalo. Profissional e chique.
— Já vai descer? — Tia Vanessa devolve o vestido para seu lar seguro e o pendura na arara que compramos para suportar alguma de nossas roupas.
— Sim. Te vejo mais tarde? — Ela assente, já digitando alguma coisa em seu celular apoiando o joelho em minha cama. — Obrigada pela pulseira.
— Cuidado com ela!
Fecho a porta e desço os degraus sorridente, me sentindo mudada e responsável. É uma boa imagem de se transmitir, até porque estou nervosa. Muito nervosa.
Conforme a hora vai se aproximando, tento rever tudo o que pode dar errado e possíveis cenários em que eu consigo resolver as coisas e lidar bem com elas. Temos os ingredientes de qualidade, Dedé tem um ajudante mais eficaz que Guilherme na cozinha, a bebida está gelada, tudo está limpo e em ordem.
A cozinha inclusive, trabalhando a todo vapor para adiantar os preparos. Dedé escolheu Gabriel, um sobrinho de sua namorada para ajudá-lo e dessa forma, conseguimos uma pequena variedade de pratos além das deliciosas pizzas.
Estou beirando ao perfeccionismo quando desisto de me esconder de Guilherme e vou até ele, checando seu uniforme, para saber se está limpo o suficiente.
— Para com isso. É um dia importante, vamos tentar esquecer isso só por uma noite? — Ouço Tina implorar, a voz cansada e quase chorosa sobressai o som do rádio na cozinha e Guilherme me encara de volta, constrangido.
— Dia importante pra quem? Você é a dona por acaso? Se toca! — Diz o rapaz, cuspindo as palavras. Ele ri nasalado ao passar por nós, enquanto desvio do homem imponente, encontro meu problema.
— Alguém está naqueles dias... — Guilherme brinca baixinho, é nítido que ele tem medo do homem parrudo de sobrancelhas permanentemente franzidas e olhar ameaçador.
— Isso foi machista e nem um pouco engraçado. — Me viro para ele, que faz uma careta engraçada.
— Obrigado por lembrar.
— Sabe como isso soa irônico? — Ele ri, levantando as mãos em rendição.
— Eu juro que estava falando sério. Se ninguém me falar, eu provavelmente não terei capacidade de perceber — diz sincero e passa o pano de uma mão para outra.
— Certo, então, eu direi quando você fizer algum comentário idiota. — Ele assente e volta sorrir, brinca um pouco com o piercing na língua e eu decido que o que eu sinto em meu peito é somente uma nostalgia infantil, afinal, a mudada e responsável não sente coisas por Guilherme. Por mais que ele também pareça mudado.
— E eu agradeço. — O barulho de talheres batendo com força sobre a mesa chama minha atenção e eu vejo Romildo intimidando Tina pela terceira vez no dia. — Quer que eu fique de olho nisso?
— Sem ofensa, mas não quero que ninguém se machuque. — Gui dá de ombros, olhando a cena. — Deixa comigo. Pode ajudar o Dedé com a louça? É só colocar no lugar.
Guilherme parece animado com o serviço. Chega cedo, sai tarde. Está sempre fazendo perguntas sobre outras tarefas e se oferecendo para ajudar na cozinha não só com a limpeza. Nas noites de pizza, ele foi de grande ajuda para Dedé na montagem e ele pareceu se divertir fazendo isso. Ao contrário de Tina, que não tem diversão nenhuma sob o olhar carrasco do marido.
Eu não queria me envolver de começo, procurando me convencer de que se trata de um ciúme doentio e aparentemente embasado em somente uma insegurança de Romildo. Mas as coisas começaram a ficar complicadas quando Romário, seu irmão, apareceu para trabalhar horas atrasado e com um olho roxo na última terça-feira. Desde então, eles não se falam, exceto quando Romildo pressiona e encurrala Tina nos ambientes mais vazios da lanchonete. O que normalmente acaba em uma pausa para os dois se acertarem com privacidade, na rua.
A situação é tão feia que fico apreensiva, temendo que uma briga exploda a qualquer momento. Não quero ficar pensando muito nisso, afinal, toda e cada preocupação minha acaba por se concretizar em algum momento. Mas temo por Tina, que independente de ter alguma culpa ou não na cólera do marido, não merece sofrer tal humilhação em momento algum, quanto mais em seu local de trabalho.
Animado com a atração no próprio estabelecimento, seu Valter deixou a lanchonete sob meus cuidados e foi buscar a esposa na chácara mais afastada da cidade para aproveitarem o show juntos mais tarde. Então, se qualquer coisa acontecer, é minha responsabilidade consertar. Então, eu tenho uma ideia que parece ótima, mas sem tempo para pesar os prós e contras, decido colocá-la em prática afim de evitar que qualquer coisa aconteça.
— Ei, Romildo. — Chamo com a voz vacilante. — Está... está tudo bem? Você está se sentindo bem? — Gaguejo e ele me olha da cabeça aos pés, incomodado com minha interrupção. Tina aproveita que eu o distraio e sai da lanchonete aos prantos. Ela tira um cigarro do maço que guarda no bolso do avental e o acende com as mãos trêmulas.
— E te interessa? — As palavras malcriadas vêm carregadas em uma nuvem alcoólica que quase me nocauteia.
— Na verdade, sim, amigo. Temos uma noite importante hoje e se você não estiver se sentindo bem, não tem problema. Mas você precisa me avisar para que eu possa te substituir. — Explico devagar, encontrando dentro de mim uma forma de me comunicar com ele sem expressar minha repulsa por ter que lidar com isso. Logo hoje.
— Me substituir, né?! De repente, todo mundo quer me substituir. A começar por esta-
— Certo, certo... Eu preciso mesmo que você vá embora — digo cansada, um pouco envergonhada também. Há alguns clientes no salão, alguns deles são crianças.
— E eu preciso que você pare de ser uma vaca insuportável! — Ele grita, me assustando.
Dedé sai da cozinha e ele carrega — talvez não tão coincidentemente — um facão.
— Algum problema aqui, ? — O cozinheiro engrossa a voz, aquilo que homens fazem para intimidar uns aos outros. Romildo encara o rapaz rindo com escárnio de sua presença.
— Não, Dedé. Está tudo bem. O Romildo já está indo embora. Nós conversamos amanhã, junto com o seu Valter. — O encaro com a sobrancelha erguida, tentando manter alguma pose corajosa, mas não há nada mais assustador do que o desconhecido.
— Beleza. Eu vou embora... — O homem diz magoado e derruba uma cadeira ao sair, mas não tenho certeza se foi de propósito.
Ao sair, Romildo ainda diz algo para Tina, mas não consigo ouvir direito, pois os clientes aplaudem a saída daquele que incomodava sua refeição da tarde.
Sorrio educada para alguns clientes, mas fico preocupada com o desenrolar deste drama. Tina fica claramente atordoada. Depois da pausa, ela parece trabalhar no modo automático. Ela é até produtiva, mas seu semblante não parece nada bom.
Mais tarde, Lucas aparece meia hora antes de começar a se apresentar. O espaço destinado a ele já está vazio e limpo. Observo enquanto ele monta seu microfone e ajeita os fios de forma que não fiquem em seu caminho.
Com um garçom a menos, tomo a iniciativa de ficar no salão enquanto seu Valter se divide entre o balcão e a copa. Isso contando que ele chegue a tempo de me ajudar com isso antes do movimento ficar intenso.
Apesar de apreensiva, estou empolgada. Os clientes parecem ter recebido o fim de semana da pizza na lanchonete muito bem, alguns deles até aparecendo mais de uma vez durante o fim de semana. Sem falar na melhora da situação financeira da lanchonete, decolando devagar, mas indo para cima.
— Dois sucos, uma napolitana. — Confirmo o pedido de um casal cuja esposa está grávida. Os conheço dos tempos de escola, costumava olhá-los de longe e desejar ter o mesmo destino olhando de forma romântica. Por serem alguns anos mais velhos, faz muito tempo que não os vejo como os deuses do terceiro ano do ensino médio. São só clientes. Sorrio e me afasto para entregar seu pedido à cozinha.
, me ajuda — diz Guilherme, confuso. Decidi que ele seria um bom garçom diante da dificuldade e agora preciso ensiná-lo passo a passo. — Qual é a mesa 7? — Ele passa os olhos pelas mesas desesperado.
— Respira, menino! — Brinco, me aproximando mais dele e apontando para as mesas. — Aquelas são ímpares, aquelas são pares. A mesa 7 está lá fora. É o grupo de amigos fumando, logo ali. — Guilherme ajeita a bandeja na mão, assentindo em agradecimento.
Lucas faz um sinal com a mão e parece estar pronto. Me aproximo de seu microfone e solto um pigarro antes de anunciá-lo.
— Boa noite a todos, é ótimo recebê-los aqui esta noite. Sem mais delongas, senhoras e senhores: Lucas Armando! — Puxo um pequeno coro de palmas e logo Lucas começa a tocar em seu violão o cover de alguma música de Jorge Benjor.
— Tudo bem, Tina? — Cutuco sua costela quando ela passa por mim com uma bandeja cheia de pratos sujos.
— Não, mas tem que ficar. — Ela sorri educada e se apressa para a cozinha.
Tina não é tão mais velha do que eu. É bonita, inteligente e engraçada, quando se dá o devido tempo para que ela se acostume com o fato de que grande parte das pessoas não é tão ruim assim. Nesses quase dois meses trabalhando juntas, tive a oportunidade de deixar minhas primeiras impressões de lado, conhecê-la e até gostar de Tina. Vez ou outra, ela me contou sobre como era a vida em sua cidade natal. Dias D’ávila, uma cidadezinha próxima de Salvador, na Bahia. Ela me contou das ruas sem asfalto e dos sons de sapos e grilos à noite, quando todos pegam bancos e cadeiras e vão se sentar na calçada para esquivar do calor dentro das casas de telha altas, que esquentam muito durante o dia.
Ela diz que sente falta da mãe e que daria qualquer coisa para poder voltar no tempo e escolher melhor. Tina é discreta sobre suas reclamações mais profundas. Nunca as endereça ao marido, que a trata mal no menor sinal de impasse. Já o cunhado, Romário, é o tipo quieto e observador. Ela diz que ele é como um anjo da guarda e que se não fosse por ele, sua vida seria ainda pior.
Entre entregar pedidos em uma mesa e retirar os de outra, fico pensando que Tina e Romário têm algo que, talvez, não seja carnal, mas, intenso a ponto de a mulher se conectar emocionalmente com um irmão e fisicamente com o outro.
Confirmo minhas teorias quando levanto os olhos da mesa que estou limpando e flagro Romário olhando para Tina de um jeito que conheço bem. O olhar de quem quer se aproximar, mas sabe que fazer isso não traria nada de bom. Ele suspira, balança a cabeça para afastar suas vontades e volta a sorrir educado, atendendo a mulher sentada na mesa diante dele.
A noite corre bem. O repertório de Lucas está pela metade e eu tomo a liberdade de me distrair momentaneamente do serviço para notar que está tarde e ainda não apareceu.
Minha tia e o namorado dividem uma mesa ao lado de fora com Simone e Ricardo. A conversa entre eles parece tão boa que não resisto em ir até lá.
— Tudo bem por aqui? — Me aproximo checando os copos e talheres, vendo que todos eles têm tudo de que precisam.
— Tudo ótimo, florzinha. — Ricardo levanta sua caneca de cerveja em minha direção e eu não consigo não sorrir. Tia Simone me abraça pela cintura e começa a rasgar elogios para a lanchonete, mas, principalmente, para mim.
Eu fico sem graça, rio esganiçado e escondo o rosto, mas é bom demais ter o apoio deles para simplesmente qualquer coisa que eu queira fazer.
— Ela não ficou uma gracinha com essa camisa social? — Tia Vanessa me sorri orgulhosa, de repente, me tratando como se eu tivesse dez anos a menos.
— Eu estava mesmo preocupada que ela não tivesse esse tipo de roupa. Impõe respeito. — Tia Simone comenta, ajeitando a barra da camisa em meu corpo.
— Espera... Todo mundo concorda que eu me visto mal e ninguém me contou? — Eles riem, mas eu estou mesmo me sentindo uma criança de sete anos.
— É que essas camisetas largas não fazem jus à sua beleza — diz Simone, irredutível. Ela acha que minhas camisetas são de menino, mas, fazer o quê?!
— Eu acho o seu estilo maneiro, ! — Meu professor me aponta os dedos indicadores de um jeito que me faz querer rir.
— Eu concordo que você deveria ser mais feminina, mas, já sei que você gosta de camisetas, moletons e calças largas. — Tia Vanessa já desistiu, embora ainda empurre uma ou outra peça, como a camisa que estou vestindo e que, sinceramente, gostei de me sentir mais responsável nela. Talvez seja só coisa da minha cabeça, mas me sinto mais alta.
— Eu preciso voltar ao trabalho... — Rio constrangida e feliz por essa desculpa fenomenal para sair de tal conversa. — Tia, acha que o vem? — Me abaixo para tentar alguma privacidade, mas, a mulher se ilumina ouvindo o nome do rapaz sair de minha boca.
— Eu vou ligar pra ele! — Ela saca o celular da bolsa, discando os números que sabe de cor.
— Tia, ele está em prova. Não quero atrapalhar — digo sem jeito e me arrependendo um pouco de ter perguntado dele para a tia Simone. É claro que ela faria um estardalhaço.
— Ele está em casa há mais de uma hora — diz distraída, os olhos perdidos enquanto aguarda que o filho atenda à chamada. — ? — Eu nunca consigo ficar séria quando vejo Simone e interagirem. Ela sempre está brava com ele, que por sua vez, nunca deixa de atormentar a mãe com piadas inapropriadas que a desmontam e eles acabam rindo. Pra quem vê de fora, a dinâmica parece mesmo ser desrespeitosa e caótica, mas conhecendo bem esta família, nota-se que não há nada além de uma mãe orgulhosa e preocupada e um bom filho, que faria tudo por ela.
Inclusive cessar seu momento de descanso após um dia cansativo.
— Ele já está vindo... — diz orgulhosa, chega até a esfregar uma mão na outra, contente com o trabalho feito.
— Obrigada, tia — digo sem saída. Os mais velhos riem e eu sou obrigada a respirar fundo e lidar muito internamente com meu constrangimento.
Ainda sinto as bochechas quentes quando o gelo em minha barriga ao ouvir barulho de pratos caindo do chão se alastrou por todo meu corpo.
— Espera, espera, espera! — Sinto as mãos de Guilherme me puxarem de volta e só então, percebo que estou correndo em direção ao amontoado de violência.
— Como assim, Guilherme?! Eles estão destruindo tudo!
Guilherme olha de mim para Romário e Romildo, rolando no chão aos socos. Não demora até Tina se aproximar aos pratos e começar a gritar para que eles parem.
— Eu sei que você é forte e tal... mas, se eu fosse você, não me meteria nessa briga. — Gui ainda me segura firme pelo pulso e eu me desespero um pouco, mas o nível vai aumentando conforme a gritaria e pancadaria se estendem.
— O que eu faço? — Pergunto para minha consciência e de repente, como que para fechar com chave de ouro, o policial militar à paisana que se sentou mais afastado no fundo da lanchonete, com a namorada, dispara sua arma para cima, estourando um cano que passa por aquela parte do teto, molhando o mesmo. A namorada dele grita e todos em volta deles se levantam de suas mesas confusos para qual lado correr: para a água escorrendo pelas paredes, o homem armado ou os outros dois trocando socos no centro do salão.
Com todos abaixados e amedrontados, o policial toma a cena e me sinto à beira de um colapso.
— Acabou a palhaçada! — Ele pega Romildo pelos ombros, separando-o do irmão ensanguentado no chão.
Tina ignora o chamado do marido e vai direto em direção a Romário.
— É isso? Você está escolhendo ele? — Romildo exclama em plenos pulmões.
— Eu escolho a mim mesma! — Tina grita de volta e a esta altura, estamos todos olhando de um para outro, como uma partida de tênis dolorosa de assistir.
Com o homem colérico contido e os outros dois se retirando para se recuperarem do trauma, eu fico somente com Guilherme como garçom.
Dedé sai da cozinha e com a ajuda de um dos clientes que é encanador, eles conseguem isolar o fluxo de água do cano estourado e após secar o chão e me desculpar com os clientes daquela zona do salão, tudo parecia minimamente em ordem de novo. Mas eu não tenho essa sorte.
Odeio pensar com a logística no lugar de minhas emoções, mas, a maioria dos clientes continuam aqui e acostumados com tal cena em seus cotidianos, não parecem nem um pouco interessados em ir embora.
Minha vontade é de fechar o estabelecimento e garantir funcionários antes de abrir novamente, mas quando olho para seu Valter e ele já está distraído com a esposa, sinto que não devo tomar uma iniciativa tão drástica.
Só que... eu estou em choque.
Minhas mãos tremem, minha respiração está falha, meus pensamentos entram em conflito entre si e de repente, a música está tocando de novo e as conversas voltando a acontecer nas mesas me deixando nervosa por parecer a única completamente chocada com o que houve.
Eu saio correndo do salão, buscando por um lugar quieto e bem longe de todos que esperam que eu continue o bom trabalho. Não quero decepcionar ninguém, mas não sei como continuar. Nem se eu conseguisse me dividir em duas, ainda não seria o suficiente para cobrir o salão e o caixa, já que o seu Valter tirou a noite de folga e parece estar se divertindo como nunca.
— Ei... O que foi, ? — Guilherme arfa por ter me acompanhado por todo esse tempo.
— Eu só preciso ficar sozinha agora — digo entrecortado, escondendo dele as lágrimas que se acumulam em meus olhos desesperados.
— Calma, nós já chamamos a polícia e tudo vai se resolver. — Guilherme apoia a mão em minhas costas, fazendo círculos com as palmas da mão e esse meio toque me deixa agoniada.
— Eu sou um fracasso e vou acabar destruindo tudo! — Escapa de meus lábios e tudo o que consigo pensar é que não importa quanto eu tente, eu nunca vou ser capaz de conseguir fazer tudo.
— A boa notícia é que o Romildo é bom de direita. — Guilherme ri sozinho, alheio ao meu desespero. — Vem cá, ... deixa eu te fazer sentir melhor.
Guilherme abre os braços, vindo em minha direção. Ele força minha cabeça contra seu peito e a última coisa que preciso agora é me sentir sufocada por ele.
— Não... Só... Me deixa sozinha, pode ser? — Esquivo de seu abraço indesejado, chegando a empurrá-lo e continuo andando.
O desespero adora companhia e como preocupação atrai o caos, estou convencida de que irei falhar em cada aspecto da minha vida. É claro que não consigo ser gerente sem experiência em um estabelecimento quase falido. É claro que não vou conseguir manter meu emprego e logo minha tia e eu estaremos na rua. Vou falhar na faculdade por não ter tempo de me concentrar. É claro que eu vou depositar toda minha energia em algo que vai dar errado e negligenciar a única coisa que me dá alegria de verdade. A sensação de jogar seis meses de curso no lixo me desanima sobre continuar.
Eu paro.
Tento respirar, colocar os pensamentos em ordem e tentar me agarrar ao que está acontecendo agora. Minha mente viaja entre o futuro e o presente e eu não consigo fazer parar.
— Não precisava vir me buscar, eu só estava procurando uma camiseta.
Levanto os olhos ouvindo a risada baixinha e casual de . Não demora até ele perceber que tem algo errado e quando ele se aproxima, eu deixo.
— Vem cá. — Ele me abraça e eu me concentro em seu perfume e na pressão de seu corpo contra o meu. De repente, como um passe de mágica, nada mais importa.
Nem mesmo o fato de ele não ser mais meu namorado.
— Eu não consigo sozinha — digo soluçando, deixando sua camiseta úmida bem no centro do peito.
— Quem disse que você está sozinha? Vamos, me diz o que eu posso fazer. — entrelaça seus dedos firmes nos meus trêmulos e chacoalha um pouco meus braços, tentando me animar fisicamente.
— Você sabe... servir mesas? — franze a testa.
— Eu sou o melhor garçom que já viveu. — Seu tom convencido me faz rir e eu respiro fundo, tentando conter a bagunça que começa a se agitar dentro de mim. — Fique aqui, eu vou dar uma avaliada na situação e quando se sentir melhor, volte. — toma o bloco de pedidos e a caneta do bolso em minha camisa e aperta o passo para chegar logo na lanchonete.
Enquanto ele se afasta, todo meu corpo parece amolecer e eu preciso de pressão. Me abaixo, abraçando os joelhos e respirando fundo repetidas vezes.
Eu odeio isso. Odeio me sentir tão fora de controle de mim mesma e pior ainda, odeio encontrar esse controle nos braços de .
— Ele não quer ser meu amigo, mas parece confortável sendo todo o resto. — Resmungo para mim mesma. Me sentindo, além de tudo, patética.
Me levanto devagar, alongo o corpo. Respirar fundo é o único jeito de respirar agora e a pequena tontura que sinto parece até cócegas no meu cérebro. E então, me ocorre que o salão está à mercê de e Guilherme. A possibilidade de um replay de luta livre no salão me faz correr de volta para a lanchonete com o coração batendo rápido no peito. Mas ao chegar lá, tudo o que vejo é e Guilherme se organizando entre si para atenderem as mesas dos mais afetados pela briga. O seu Valter concordou em repor as bebidas e cobrar um preço reduzido pela comida desperdiçada que foi afetada pela água.
Tudo parece correr perfeitamente bem.
— Espero que não se importe, mas chamei a Tati e o Felipe para ajudarem. — avisa rapidamente ao passar por mim equilibrando uma bandeja cheia de bebidas.
— Obrigada — digo sem jeito.
— Não me agradeça ainda. — Ele brinca, quase derrubando a bandeja.
Tati e Felipe chegam para compor o meu time de garçons. Por sorte, só o que nos resta é cobrar e limpar as mesas conforme forem esvaziando.
Eu coordeno os pagamentos, revendo os pedidos anteriores das mesas e repassando os valores para meus novos garçons. Preciso me lembrar de agradecê-los pela ajuda com muito mais que o pagamento justo por seus serviços.
Minha melhor-melhor amiga parece se divertir enquanto finge não conhecer os clientes sentados à mesa, os tratando com cordialidade extra e usando de maneirismos caricatos para caminhar pelo salão. Ela até masca o chiclete de boca aberta vez ou outra, me fazendo rir.
— Eu queria que vocês usassem patins e tivessem um drive-thru. — Tati se anima ao se aproximar do balcão para entregar mais um pagamento.
— Sua sugestão foi anotada e devidamente jogada no lixo. Eu não confio no meu equilíbrio nem descalça. — Lhe dou outra nota e ela gargalha descrente.
— Você é uma medrosa, isso sim. — Devolve ácida e se afasta arrastando os pés, fingindo estar com um par de patins nos pés.
Com o fim da noite estabelecida, assisto Lucas guardar seus equipamentos com certa urgência. Quero terminar esta noite o quanto antes e não vejo a hora de subir e deitar em minha cama.
— Obrigada por ter continuado o show. Aqui está. — Entrego a ele as notas de dez empilhadas e ele conta na minha frente.
— Sabe como é, um artista tem que saber se posicionar até sob chuva de meteoros. — No final da noite, descobri que a risada charmosa de Lucas é desse jeito mesmo, não forçada como imaginei mais cedo. Ele é um tipo de galã moderno afetado, inofensivo.
— Espero podermos trabalhar mais vezes. — Estendo a mão e ele a beija estalado, fazendo eco no meio silêncio da lanchonete.
— E eu, espero te ver mais vezes. Boa noite. — Lucas deixa o salão e eu giro em meus calcanhares, ignorando o pensamento de que tirando toda a pose afetada, Lucas é um cara bem interessante. Canta bem, tem uma lábia inegável e é tão bonito quando ele pensa ser.
Da copa, franze o cenho e tenta a todo custo dedicar sua atenção para o balcão que ele limpa, mas a expressão consternada de quem ouviu o estalo do beijo no torço de minha mão e toda a conversa em si me faz sorrir satisfeita.
Ajudo Tati a trazer as mesas externas para dentro e ela me ajuda a limpar parte do salão.
— De quem são essas pegadas?! — Ela grita, olhando diretamente para o namorado, do outro lado do salão.
— Eu estou ocupado com essas cadeiras. — Felipe resmunga, colocando uma delas sobre a mesa do canto.
— Acho que as pegadas são suas, Tati — digo devagar. Cansada e nem um pouco chateada. Se ela jogasse lama no chão, eu não me chatearia.
— Eu não sirvo pra isso! — Ela solta o rodo no chão, fazendo o namorado rir.
— Tudo bem, amiga. Você já salvou minha pele hoje. — Vou até ela, a abraçando meio de lado.
— Jura? Porque eu posso ajudar com o dinheiro e tal... — Felipe balança a cabeça negativa e discretamente. — O quê!? Minha matemática é razoável. — Se defende ofendida.
— Obrigada pela ajuda, amiga. Você é uma excelente garçonete. — Toco a ponta de seu nariz e ela o franze, contrariada.
— Pensa no drive-thru! — Tati grita da calçada, sendo escoltada pelo namorado até o carro dele.
— Claro, Tati... — Aceno agradecida. A lanchonete fica entre duas outras lojas, sua ideia é inviável. Mas não tenho energia para rebater.
Como a noite é uma criança e a minha é uma daquelas cheias de energia para o caos, respiro fundo antes de entrar na cozinha e encontrar com meus dois ex-namorados.
— Você está lavando errado!
— Como passar detergente e espalhar é errado? — Guilherme rebate, irritado.
— Cada prato não precisa de uma colher de detergente para ser lavado. Depois, você tem que jogar água. — explica sem paciência.
Os dois se empurram diante da pia lotada de pratos sujos e copos meio cheios. Dedé e o ajudante já foram embora, deixando parte da cozinha limpa. Mas a pia era um assunto diferente.
— Você está indo rápido demais! — Guilherme volta a resmungar e os dois parecem crianças.
— Tudo bem aqui? — Limpo a garganta, me fazendo ser percebida.
— Tudo. — Eles respondem em uníssono.
— Não sei como te agradecer pela ajuda hoje — digo sentindo minhas bochechas esquentarem de novo.
— Tudo bem, . Pode contar comigo. — Guilherme sorri convencido e eu mordo o interior da boca, envergonhada.
— Você trabalha aqui, idiota. Ela não está falando com você! — é ríspido com ele, mas sorri pequeno ao olhar pra mim. — Falta alguma coisa? Você precisa de algo?
— Não... — Eu rio esganiçado, detestando que Guilherme esteja logo ao lado enquanto temos essa conversa. — Eu só queria te agradecer e te entregar isso. — Mostro a ele algumas notas dobradas e nega veemente. Ele nem olha para minha mão, estendida em sua direção.
— Foi só um favor. Eu já tenho um emprego — diz sobre o ombro, afetando Guilherme.
— Se ele não quiser o dinheiro, eu quero! — O rapaz oportunista se oferece e eu afasto a quantia de seu alcance.
— Não quero ficar com a sensação de ficar te devendo. — Insisto, mas é irredutível.
— Você não me deve nada — diz despretensioso, guardando as mãos nos bolsos da calça. — É pra isso que servem os amigos.
— Achei que não quisesse ser meu amigo. — Devolvo rápido, gostando do sorriso que ele me mostra.
— Eu adoro mudar de ideia — diz devagar, sedutor. Seu olhar me diz mais do que ele provavelmente gostaria e eu gostaria de estarmos sozinhos agora.
— A louça, . Ainda temos que lavar a louça. — Guilherme interrompe, tentando entrar em meu campo de visão.
— Eu lavo depois. — Não consigo desviar dos olhos de . O melhor é que ele também não.
— Eu te ajudo. — Ele ergue uma sobrancelha. É rápido, sutil. Como um palito de fósforo parece ser inofensivo até entrar em atrito com algo que o acende e ele é capaz de começar um incêndio.
— Eu trabalho aqui, idiota. Esqueceu? — Guilherme soa maldoso, mas o ignora.
— Tudo bem, Gui. A gente se vê amanhã — digo rápido, quase suplicante. Eu só quero ficar sozinha com .
— Tem certeza? Quero te ajudar. — Guilherme insiste, se colocando entre mim e .
— Você já fez o suficiente. — Sorrio forçada, tentando encerrar o assunto. Nunca tive tanta pressa para lavar louça.
Guilherme suspira, balança a cabeça e esbarra de propósito em antes de sair da cozinha.
— Boa noite, Gui. — provoca, rindo do grunhido irritado de Guilherme.
— O que você está fazendo? — Pergunto curiosa.
— Lavando a louça, . — Ele se vira e recomeça o trabalho de antes. Volto para o salão e começo a fechar as portas de ferro, encerrando mais um dia.
Todos foram embora. Seu Valter e a esposa voltaram para a chácara, minha tia e o professor Alê foram convidados para esticar a noite na casa da tia Simone e agora, só restava uma coisa a ser feita.
Com as panelas, pratos, copos e talheres devidamente limpos e guardados em seus lugares, guio para fora da lanchonete pela porta traseira, trancando tudo atrás de nós. Por ser fim de semana, eu abriria a lanchonete no dia seguinte para o almoço, mas com o cano perfurado por uma bala, não temos condições de abrir amanhã.
Enquanto passo as chaves de uma mão para outra, percebo os olhos de sobre mim. Estou cansada, passando pelo processo de desaceleração do corpo e da mente e adoraria sua companhia enquanto vou me desligando dos problemas.
O encanador conhecido de Dedé me passou um orçamento salgado e eu simplesmente não consigo encaixá-lo no orçamento.
— Então... — Dissemos em uníssono. ri da coincidência, as mãos se escondem nos bolsos da calça e balança um pouco o corpo, me dando a vez de falar.
— Como foi a prova? — Pergunto tímida, sentindo as palmas da mão formigarem e começarem a suar.
Sob a luz do luar, em uma noite úmida, decido deixar as preocupações para amanhã, com esperança de compartilhar algum calor.
— Uma prova só testa quão bons nós somos em fazer provas — diz despretensioso, notando minha face se transformar em confusão. — Fui bem, . Obrigado.
— Que bom. Fico feliz por você. — Passo a ponta da língua pelos lábios, buscando por uma forma de continuar a conversa, não quero que ele vá embora.
— Fica? Achei que estivesse brava comigo. — Ele ergue as sobrancelhas, me desafiando a me explicar.
— Não consigo ficar brava com você. Ainda mais sem motivo. — Ele ri mais forte. — Desculpe por aquilo. Ainda sinto vergonha a ponto de perder o sono. — Confesso, reconhecendo que não foi mesmo meu melhor momento.
— Eu acho que entendo de onde veio aquilo. Estamos bem, não se preocupe. — se aproxima e eu encho o peito de ar. A expectativa para que ele me beije é imensa, mas não consigo mover um músculo em sua direção.
— Obrigada. — assente, mordendo o interior da boca. O assunto vai morrendo e eu me desespero um pouco. — Está muito cansado? — Pergunto de repente.
— Não. Nem um pouco. — Garante, deixando uma animação transparecer.
— Quer subir? — O que sinto é forte e avassalador. percebe que não é exatamente fácil para mim fazer isso e sem titubear, ele aceita meu convite.
encara minhas mãos e eu tento impedi-las de tremerem tanto. Encontro a chave do portão de casa e abro o portão com certa pressa.
— Você ainda carrega esse ursinho por aí... — aponta para o urso surrado, balançando entre uma guitarra verde coberta de glitter e uma garrafa laranja e fluorescente de Coca-Cola, um presente do novo fornecedor de refrigerante.
— Está falando do meu amuleto de força? Eu nunca vou para lugar algum sem ele. — Falo muito sério e fica sem jeito.
— Não é pra tanto... É só um chaveiro, . — Ele desdenha.
Espero que ele suba alguns degraus antes de trancar o portão novamente. Não sei bem porquê, mas admitir o quanto um simples chaveiro significa para mim é mais difícil do que expressar outras ideias que correm soltas em minha mente. Parece mesmo um ursinho bobo, mas é poderoso. Sua companhia é quase uma pequena extensão da presença de perto de mim.
— Eu sei. Mas serviu de fonte de força quando eu mais precisei. — Não vejo sua expressão por estarmos subindo a escada estreita, porém, flagro o fim de um sorriso convencido quando ele se vira pra mim, esperando que eu destranque a porta.
— Eu achei que fosse pequeno, mas depois de passar quase uma hora perdendo para uma máquina, tive de me contentar com ele. — pousa os olhos no chaveiro em minha mão, evitando a todo custo me olhar nos olhos.
Quando abro a porta, entro primeiro. A bagunça de sacolas das compras da tia Vanessa ainda está espalhada no que chamamos de sala. Um cubículo de exatamente seis azulejos abaixo da janela. O único lugar para sentar é minha cama, já que a cadeira está cheia de roupas para dobrar.
— Tudo o que você faz por mim significa muito. — Admito sem perceber, escondendo uma calcinha reveladora que escapa de uma das sacolas. Me viro para e ele me encara apreensivo, respirando pesado e com uma expressão no rosto que eu não consigo decifrar.
— Sua casa está diferente desde que estive por aqui. — Boa mudança abrupta de assunto, penso. Mas não deixo transparecer que estou ligeiramente decepcionada por ele ter desviado tão bem do assunto que surgiu sem querer.
— Estive fazendo algumas mudanças — digo casual, entrando no jogo dele. encosta a porta, caminhando um pouco pelo espaço da cozinha. — Eu montei aquela prateleira sozinha. — Aponto orgulhosa e ele ri.
— Olha só... não está torta, nem nada. Gostei. — Ele cruza os braços na frente do corpo. Observa atenta e silenciosamente as pequenas e significativas mudanças no cômodo. As paredes estão cobertas por uma cor chamativa e intensa de vermelho, os detalhes dos utensílios e armários são todos em branco ou variações do tom principal escolhido por minha tia. Segundo ela, vermelho atiça a fome, a paixão, a vontade, e se tem um cômodo que merece essa cor é a cozinha.
— Eu não tive coragem de dizer que está vermelho demais — digo inquieta, mordendo o interior da boca enquanto acompanho seu olhar pela cozinha ainda por ser terminada.
— O que pretende fazer no resto do lugar? — Pergunta voltando seu olhar para mim, mas sem muita intensidade no olhar. Estou sentindo que ele está se distanciando e tento de tudo para que essa sensação não me desespere de novo. Não aguento mais perder o controle por hoje.
— Eu queria branco, mas como vai destoar do coração da casa, estou pensando em mesclar bege e laranja claro... Meu pintor me odeia. — Encosto o corpo na pilastra que separa a cozinha da sala e o encaro um pouco. Eu simplesmente não consigo superar a beleza dele, ainda mais assim, distraído com qualquer coisa que o deixe sério e pensativo.
— Vai ficar legal — diz olhando em volta, parece imaginar o resultado final. — Acho impossível alguém conseguir te odiar. É mais fácil se perder de amor por você. — Ele se aproxima do violão, um pouco acanhado.
— Eu me daria um soco na cara, . Não precisa ser gentil — digo entre um riso esganiçado, sentindo a bagunça dentro de mim se agitar um pouco mais a cada instante.
— Você vai sempre perder as estribeiras quando eu disser algo remotamente como...
— Não diga isso! — franze a testa, me olhando de um jeito engraçado.
— Você nem sabe o que eu ia dizer. — Ele solta um riso curto
— Eu acho que sei, sim. — O encaro, mas na verdade, quero fugir para um lugar alto e me esconder para sempre. — Fora que... não faz nem sentido você me dizer isso agora, nós não... — Deixo a frase morrer, assente e ainda sorri.
— Só quero te lembrar que o fato de eu não dizer, não significa que eu não sinta. — morde o lábio inferior, do jeito que os deixa meio úmidos e me faz querer colar meus lábios nos dele.
— E o que você sente? — desvia o olhar para o violão, tocando nas cordas sem realmente tocá-las. Ele me dá um tempo para conceber se quero ou não uma resposta para minha pergunta. Decido que não quero, porque nada vai mudar, mas, se ele disser, eu não vou interromper.
— Não posso falar sobre isso. — Ele dá de ombros, sem conseguir evitar uma risada quase maldosa com sua própria brincadeirinha.
— É... Não pode mesmo. — Forço uma risada, mas me sinto ridícula imediatamente.
— E então, ‘tá afim de quê? — deixa o violão onde o encontrou e respira fundo.
— Testar a resistência da minha cama... — Minha covardia me faz sussurrar. une as sobrancelhas, confuso. — Preciso trocar a resistência do meu chuveiro... — Me ocorre rapidamente e eu quase sorrio com a resposta alternativa.
— Posso fazer isso pra você — diz prontamente, caminhando até o banheiro.
— Não, obrigada. Eu acabei de lembrar que já fiz isso, mais cedo... Eu só tinha esquecido. — Volto a rir nervosa e parece perceber que algo não está certo.
— Certo... Então... — Ele gesticula ansioso e eu ainda não quero que ele vá embora.
— Eu preciso tomar um banho. Essa camisa é linda, mas muito desconfortável depois de um tempo. — assente devagar.
— Eu posso ir embora, se quiser. — Ele se aproxima ao me ver com problemas para abrir a pulseira em meu pulso. Com os dedos ágeis, ele tira a pulseira e a coloca na palma de minha mão. A dele amparando a minha no ar, tão quente e maior que a minha.
— Me espera aqui? — Volto a olhá-lo, sorrindo aliviada quando ele assente concordando.
Vou até a cadeira, puxando uma camiseta grande de lá, um par de meias e uma calcinha confortável. se senta no tapete, se distraindo rapidamente com Stack Attack no celular.
Entro no banheiro e sinto meu corpo quente de dentro para fora. Eu sei o que eu quero, só não sei se consigo arcar com as consequências de obter o que quero. Enquanto a água quente bate contra minha pele arrepiada com a menor menção da possibilidade, pondero minhas opções de como prosseguir com a noite.
Podemos jogar alguma coisa juntos, podemos conversar sobre as novidades da vida e preencher um pouco as lacunas do tempo em que não estivemos juntos. Podemos ouvir músicas, já que tenho um pequeno aparelho de som que é tão baixo quanto cantarolar, mas ainda assim, não haveria silêncio.
A verdade é que poderíamos fazer qualquer coisa, mas no fundo, eu sei que vamos acabar transando.
Já seca, passo uma camada grossa de creme no corpo inteiro, escovando os dentes enquanto absorvo a hidratação na pele. Coloco as meias, visto a calcinha e encaro meu corpo nela, achando a visão nem um pouco sexy, mas agora, eu não tenho escolha, tem de ser essa. Por fim, visto a camiseta e prendo os cabelos para o alto em um coque, tirando um cacho mais fino aqui e ali para deixar mais casual e quando pronta, me encaro no espelho.
— Eu quero muito, mas eu consigo? — Pergunto a mim mesma e contrariando toda cena de filme ruim, onde o personagem principal faz o mesmo e magicamente o reflexo ganha vida, lhe dando uma resposta mordaz para seu problema, minha resposta vem da própria dúvida. Eu preciso, pelo menos, tentar. E onde mais eu encontraria a segurança da tentativa, além de meu porto seguro pessoal?
Decidida, abro a porta do banheiro em um rompante. O barulho chama a atenção dele, que logo vira um pouco o rosto para me encontrar arfante e empolgada comedidamente. Me aproximo dele e pego um cobertor mais fino sobre a cama, estendendo sobre nossas pernas ao me sentar no tapete, ao seu lado.
me dá um rápido, mas analítico olhar antes de fechar os olhos e inclinar a cabeça para trás, a apoiando na madeira da cama, atrás dele.
— O que foi? — Pergunto chegando mais perto, meu joelho encosta em sua coxa e ele respira fundo.
— Senti falta do seu cheiro. Ele sumiu do meu quarto há alguns dias. — abre os olhos, buscando por minha reação. E eu não tenho nenhuma. Na ponta da língua há tantas coisas que eu quero dizer, mas elas acabam me entalando e tudo o que eu faço é um som miúdo de uma bolha de ar estourando entre minha língua e a parte de trás de meus dentes. Patético. — Acho que tenho que aprender a lidar com isso agora.
— Isso o quê? — Pergunto incomodada.
— Nada. — ajeita o cobertor no próprio colo, se virando um pouco mais em minha direção. — A sua tia parece bem melhor. Você sabe, desde que o marido dela morreu.
— Ela tem sido muito forte, embora os problemas continuem se empilhando. — franze a testa, interessado.
— Minha mãe estava comentando com o Ricardo, parece que a advogada dela é boa mesmo. — Ele me dá um meio sorriso, mas nada além do fim dessa história me dará mais paz.
— A Helena gosta de uma boa briga. Essa é das grandes. — está engolindo a pergunta, todas elas na verdade. — Ele deixou algumas dívidas milionárias, fora todas as acusações contra ele as quais ela está sendo vinculada. Como se não bastasse todo o sofrimento, traição, a violência e a insegurança, nem morto Arnaldo é capaz de deixá-la em paz — digo amarga, não é justo.
— Tinha a ver com ele, não é? — pergunta, contido.
— O que tinha a ver com ele? — Pergunto confusa, até não estar mais. ergue as sobrancelhas, lendo em meu rosto a resposta de que precisava. — É, ele tentou me transformar em algo menor do que eu sou, então eu conspirei contra ele, reuni informações preciosas que o colocariam na cadeia e tudo isso foi em vão, porque quando finalmente alguma coisa aconteceria, ele morreu. — Eu sorrio, chateada. me olha com compaixão e sei que ele não compreende, ele nem tenta parecer que sabe do que estou falando. A surpresa com a situação incomum também não é presente em sua expressão compadecida com minha inquietação.
— Então, quando disse que estava solucionando crimes, você não estava brincando. — ri de leve, voltando a encostar a cabeça na cama. — Acho que é besteira te dizer que você deveria ter ido à polícia, porque você já sabe disso e a essa altura, não ajudaria em muita coisa. — Eu assinto, rindo também.
— Eu quis ir à polícia algumas vezes, mas meus cúmplices me impediram — digo brincalhona, mas sei bem o peso de não ter atendido ao meu instinto mais básico.
— Você não fez nada errado, . — Ergo uma das sobrancelhas, meio rindo ainda de como toda a força tarefa no quarto de Lucca parecia clandestina, ilegal. — Eu sei que você deve estar buscando alguma brecha nessa situação toda para se culpar e tentar controlar parte dela. Não é culpa sua. Esse tal de Arnaldo foi uma pessoa muito ruim, ele merecia mesmo ser punido pelo que fez, mas já que ele morreu... alguma coisa boa tem de vir disso, nem que seja você ter a sua consciência limpa. — dá de ombros, relaxado.
— Essa coisa de você ser um psicólogo sexy vai funcionar muito bem. — Me distraio com seus olhos bondosos se transformarem em malvados no melhor sentido que existe.
— Psicólogo sexy? — ergue uma das sobrancelhas, um sorriso pecaminoso adornando os lábios. Eu sinto meus olhos se abrindo mais, se arregalando ao notar que disse aquilo em voz alta.
— Você tem alguma dúvida? — Decido seguir e dançar conforme a música que começa a tocar no meu subconsciente. É tão diferente flertar com agora que ele é meu ex-namorado. Parece errado, mas também parece mais... sensual. — Dá pra saber que você é um gostoso mesmo por baixo de um jaleco. Ai meu Deus, você vai usar um jaleco... — Respiro fundo. Todo o meu rosto queima e meu coração está batendo tão forte que parece estar em todo lugar, pulsando, contraindo. — Você é um gostoso. Não tem outro jeito de explicar, você tem o pacote completo e é irritante o quanto você é deliciosamente gostoso. — Estou tagarelando e eu sei bem que disse para que ele é gostoso três vezes, talvez mais, porque com certeza eu pensei mais vezes. Conforme ele sustenta uma expressão surpresa, constrangida e interessada, ao mesmo tempo, eu encho o peito de ar, atraindo o olhar dele para o busto escondido pelo tecido grosso da camiseta que cobre até o meio de minhas coxas.
— Como você sabe que eu tenho o pacote completo? — devolve, me desafiando como a última cartada em seu jogo.
— Eu... imagino — digo em um fio de voz que é seguido por um silêncio que fica longe de ser constrangedor. Demora pouca coisa até juntar informações em seu cérebro e entender o significado oculto em minhas poucas e precisas palavras.
Seu rosto se ilumina em um sorriso orgulhoso, satisfeito. É uma expressão tão tentadora e tão avassaladora que planta a semente de uma vontade insana de ver essa expressão com mais frequência.
Meu corpo esquenta, me sinto inquieta e desconfortável, agitada, mas, me mexo devagar quando pressiono uma coxa na outra, movendo um pouco o cobertor. A mínima fricção da calcinha úmida contra mim me fazendo engolir em seco.
, preciso ser sincero. Estou querendo fazer coisas com você que nem consigo começar a explicar. — Ele parece calmo, mas sei que está se segurando. As mãos tremem um pouco, os olhos vacilam entre os meus e minhas mãos juntas sobre meu colo. — Eu sei que isso é difícil pra você e que provavelmente eu deveria ir embora, mas, eu preciso, ao menos, te beijar. Não posso passar mais uma noite sem te dar um beijo. Então, me diz, eu devo ir embora? — Quero gritar um desesperado não e me lançar contra ele demonstrando todo o desespero que sinto queimar tudo dentro de mim. Mas ao invés disso, inspirada por todo seu caos contido e cavalheirismo na medida certa, respiro fundo e empurro o cobertor que ainda cobre minhas pernas. Lentamente e sem ousar desviar os olhos dos dele, me aproximo, passando uma de minhas pernas sobre as dele, me sentando em seu colo. observa tudo com atenção, sem pudor algum. Morde o lábio inferior para conter qualquer reação ao rebolado quase inocente que acontece porque o botão de sua calça está machucando minha barriga. Não vejo a hora de vê-lo sem ela. — Tem certeza? — pergunta hesitante, mas suas mãos já estão já estão por toda parte.
— Eu quero muito que você me foda — digo contra seus lábios, o brilho de seus olhos é intenso demais para ignorar. Para oficializar nosso acordo de consentimento, puxo seu lábio inferior com meus dentes, vendo rolar os olhos extasiado. As mãos dele que antes vagavam sem rumo por meu corpo sobre a camiseta, parece saber bem para onde vão agora. Em segundos, a camiseta pesada some de meu corpo e pousa sobre o colchão acima de nós. passa um bom tempo olhando admirado para meus seios, ele umedece os lábios com a ponta da língua, me olhando por inteiro antes de me beijar como um agradecimento.
Seu beijo é doce e suave, avassalador e quente. Exatamente como eu me lembrava. Ele beija meus lábios, meu queixo, minhas bochechas e pescoço apaixonadamente, absorvendo meu gosto e meu cheiro em fungadas profundas, acompanhadas de pegadas precisas que me mantém por perto e ao mesmo tempo nas alturas.
Eu tento retribuir imediatamente, embora falhe miseravelmente em manter a concentração em beijar seu maxilar marcado quando ele envolve um de meus seios com a mão, aproveitando de minha distração para afastar o rosto e abocanhar o outro, sugando e mordiscando meu mamilo.
É uma sensação nova e deliciosamente torturante. Embora ele dê tudo de si em cada um deles, dando a devida atenção que meus seios prisioneiros de sutiãs merecem. Ele me abraça pelas costas, beijando meu colo e pescoço novamente, ensandecido com as menores reações de meu corpo aos seus toques. Só isso parece deixá-lo excitado, no alto da parte interna de minha coxa, sinto seu pau endurecido fazer força contra o tecido do jeans insuportável que ele ainda está vestindo.
Incomodada, desço minhas mãos de seu pescoço e cabelo e as deslizo por seu torso sobre a camiseta, tenho pressa em tirá-la, mas nem de longe sou boa nisso como . Ele ri ao se inclinar um pouco para frente, me ajudando a tirar a peça com um pouco mais de facilidade. Eu a deixo sobre a cama, junto com a minha. De volta à missão, tento abrir o botão de sua calça, mas me impede com um toque singelo no pulso.
— O que está acontecendo agora? — Minha voz soa vacilante, necessitada.
— Hoje é sobre você. — me olha e eu reconheço esse olhar. Ele tem um plano.
levanta o corpo, comigo pendurada nele. A temperatura de seu corpo diretamente no meu me faz sentir coisas que nunca senti antes. Meus seios pressionados contra o seu peito maciço e forte, os braços em volta de minha cintura, as mãos segurando firmes em minhas costas. Todo lugar que ele toca se arrepia e eu sinto meu corpo se acender lentamente.
Ajeito o corpo, me apoiando em meus joelhos no chão. se inclina sobre mim, soltando o elástico em meus cabelos e deixando meus cachos caírem em minhas costas. se afasta um pouco, absorvendo cada visão que tem de mim e eu realmente gostaria de saber o que se passa por trás do par de olhos encantados. Ajeito um pouco o cabelo e o vejo sorrir pra mim, do jeito mais doce que já vi. Sem perder tempo, ele volta a se aproximar, beija minha bochecha esquerda bem perto de minha boca, beija meu queixo, meu pescoço e segue o caminho até meu ombro, tratando minha cicatriz com tanta delicadeza e demonstrando tanto amor por ela, afinal, ela só existe porque ainda estou aqui.
é alguém que sempre demonstra celebrar esse fato, talvez até mais do que eu.
Gentilmente, ele deita meu corpo no tapete. Ajeita minhas pernas em volta dele, sentindo cada pedaço de minha pele exposta contra a palma de sua mão. Com um sorriso travesso, ele encara minha calcinha de algodão de estampa de cerejas e depois olha pra mim e eu sinto como se devesse a ele uma explicação.
— Eu sei... Nem um pouco sexy. Peguei sem pensar e... — Cubro o rosto com as mãos, sem saber como prosseguir. ri de leve e eu sinto seu corpo se aproximar, ele quase despeja o peso de seu corpo sobre o meu, mas não o suficiente.
— É a calcinha mais sexy que já vi. — diz com certeza. Com a mão que não apoia o restante de seu corpo no chão, ele acaricia minha cintura, minha barriga e desta vez, seu pulso é mais firme em meu seio, ligeiramente mais forte e sua boca suga meu mamilo oposto com força equivalente, me fazendo gemer baixinho.
Não consigo descrever a doce agonia que a carícia faz crescer em meu peito, é como querer mais e saber que terá, mas estar tão sedenta que só esperar por mais não é mais uma opção.
Puxo seu rosto para um beijo, querendo mais de seu corpo, mais dele. Eu guio o beijo agora e ele é animalesco, o oposto do beijo calmo e intenso de , o meu é intenso e sedento, beira o erotismo e diz tudo o que meu corpo precisa sem que eu tenha que pedir em palavras.
A mão direita de percorre meu corpo, mas só consigo focar no percurso de seu polegar, que parece carregar um ímã por onde passa, agitando uma espécie de energia mágica adormecida no fundo de minha alma. Os dedos se tornam delicados, adentrando a faixa grossa da calcinha estampada, ultrapassando o elástico vermelho. Sua mão está quente, firme e sua precisão me faz abrir mais as pernas. respira pesado contra meu rosto, dois de seus dedos percorrem por entre os grandes lábios com facilidade, encharcados, o fazendo soltar um gemido rouco contra meus lábios, uma vibração interessante devido às circunstâncias.
— Você deve ser deliciosa, . Só de imaginar o seu gosto, eu fico louco — diz embriagado, mordendo meu lábio inferior, sugando minha língua. Com um selinho beirando a agressividade, ele dá o beijo por encerrado e se afasta como um vulto, puxando minha calcinha pelo elástico tão devagar que quase me faz protestar, mas ao ver sua expressão tão torturada quanto a minha, de lábio inferior acorrentado entre os dentes e os olhos tão focados, que percebo que a tortura é docemente compartilhada.
não tem o mesmo cuidado que teve com minha camiseta, ele joga a calcinha para cima e eu não tenho interesse em localizá-la por agora. está abrindo meus joelhos, massageando a parte interna de minhas coxas e salivando por me ver completamente nua.
Nada mais importa.
Ajeito os quadris, sem saber muito bem o que estou prestes a sentir, mas com uma ideia muito boa do que possa vir a ser em mente. Quando seus lábios tocam minha intimidade úmida e levemente inchada, eu sinto cócegas e começo a rir. Minhas pernas se fecham e fecha os olhos com força ao receber uma pancada em cada ouvido, de uma só vez.
— Ai, meu Deus! Me desculpa! — Ergo o corpo, abrindo as pernas e voltando a rir de toda a situação.
— O quê?! — Ele diz mais alto, massageando a entrada do ouvido com os indicadores. Eu ainda rio com uma cócega concentrada no baixo ventre. estreita os olhos, contrariado. Sem mais nem menos, ele morde minha coxa, de leve, não chega a doer. Mas me faz cortar a risada e gemer. — Não faz isso — diz baixinho, fazendo um caminho de beijos por minha virilha, lambendo toda a extensão desde a entrada, até o clitóris. Meus gemidos se misturam a uma risada agoniada e ri nasalado, balançando a cabeça de um lado para o outro em uma leve desaprovação e uma profunda provocação.
— Eu... Nunca... Ninguém... — Tento dizer, mas palavras parecem meros enfeites perto das sensações explosivas que sinto na parte inferior de meu corpo, que se espalha por todo lado, ameaçando transbordar.
— Eu sei... — Ele mantém o tom de voz macio, calmo. Mesmo que esteja destruindo toda e cada percepção sobre sexo que eu já tive.
Ele continua sugando e lambendo, mordiscando os maiores lábios e apertando minha coxa, mantendo próxima de sua cabeça, mas firme o suficiente para evitar que ele fique surdo.
Em certo ponto, estou gemendo e mexendo tanto meu quadril que ele precisa me segurar por ali também, mantendo seus movimentos com precisão enquanto me contém. E eu agradeço, parte das reações confusas e deliciosas que meu corpo tem sob o toque de seus lábios é me afastar momentaneamente. Eu não consigo controlar. Agarro meus seios, bagunço meus próprios cabelos e os dele, extasiada e talvez, viciada na sensação de ser chupada.
Meus gemidos ficam mais longos, mais roucos e ligeiramente mais graves, como se ficassem mais profundos e meu corpo não se mexe tanto, exceto para arquear as costas, oferecendo mais de mim a ele. Fecho os olhos e a sensação eletrizante que começa a faiscar dentro de mim merece toda a atenção. suga cada gota de minha excitação, se deliciando com ela em esporádicos e másculos gemidos que me arrepiam inteira.
Ele está concentrado, mas vez ou outra troca um olhar determinado comigo, o olhar de quem sabe o que está fazendo e que está adorando fazer. Ele agarra minha cintura, um toque firme e decisivo. Minhas costas estão tão arqueadas que apoio a cabeça no chão, os lábios entreabertos em preparação para um gemido lânguido, erótico, satisfeito.
Os pequenos fios do tapete felpudo estão embrenhados entre os meus dedos, eu os puxo com força. É como se todo meu corpo se retesasse, juntando toda a energia no centro. As extremidades espremidas, esperando o momento de soltura.
Em um momento de pura insanidade, ergo o corpo, apoiando o peso de tronco nos cotovelos e buscando por algum vislumbre de toda a ação que está acontecendo. abre os olhos, meio que sorri com eles de um jeito sensual e inebriante. Inclino a cabeça para trás e ouço o gemido alto, verdadeiro e absolutamente animalesco que vem de lá do fundo. A explosão de energia um dia adormecida, desperta outra vez.
se certifica de que nenhuma gota da essência de meu prazer seja desperdiçada, causando leves choques por meu corpo momentaneamente fragilizado.
Satisfeito, ele me deixa fechar as pernas, beijando minha barriga, adorando me ver completamente arrepiada.
Com os olhos entreabertos, vejo que se deita ao meu lado encarando o teto. De repente, ele olha pra mim com um meio sorriso que deixa difícil para o meu coração voltar a bater em uma frequência saudável.
— Você fica linda gozando, sabia? — Ele passa a ponta da língua no canto da boca, absolutamente sensual.
— Você está completamente fodido. Agora estou viciada. — Com a respiração ligeiramente normalizada, rolo o corpo até o dele, beijando seu pescoço e acariciando seu abdômen delicioso.
— Estou me segurando aqui, ... É pra ser sobre você. — Ele é interrompido por um beijo quase descontrolado.
— Ainda é sobre mim quando seu pau está na minha boceta — digo um pouco impaciente, cega de tesão.
... — reprime, mas não protesta quando abro seu zíper e invado sua cueca, acariciando sua glande com a experiência de noites solitárias imaginando esse momento. Ele morde o próprio lábio, acompanhando os movimentos de minha mão com olhos espertos.
Eu já sabia que era grande. Eu já havia sentido seu pau roçando contra minha barriga enquanto dávamos uns amassos no sofá da casa dele, mas nada se compara a finalmente senti-lo pulsar contra a palma de minha mão. Tão duro, grande, quente.
Sinto uma emoção crescer dentro de mim, quase como estar prestes a pular de paraquedas ou qualquer desafio parecido. Eu o quero dentro de mim, não há dúvidas, a questão é: será que vai caber? Uma grande parte de mim está absolutamente empolgada em descobrir, a outra parte está com medo, mas quer tentar também.
Me sinto pronta e sem pensar demais, me coloco sobre seu colo de novo. se distrai momentaneamente com a visão de meus seios balançando sinuosos sobre seu rosto, mas logo me para, pegando em minha cintura e respirando fundo.
— Espera, espera... — Ele ri de leve, levantando um pouco o corpo e encontrando meu rosto com o seu. — Não quero te machucar. — ri meio sem jeito e eu ergo as sobrancelhas, constrangida por não saber o que estou fazendo.
tira a carteira do bolso da calça e a retira completamente, a afastando. Ele pega uma camisinha da carteira, a colocando rapidamente. Ele me deita novamente no tapete, ajeitando meus quadris e se acomodando entre minhas pernas.
deita sobre mim, roçando um pouco a extensão de seu pau em minha entrada e clitóris, estimulando novamente a área ainda sensível, mas já necessitada. Ele beija meu pescoço e acaricia minha cintura com carinho. O encaixe entre nossos corpos é quase instantâneo, encaixo as pernas ao redor de sua cintura, me sentindo desejada, cuidada. Prestes a transar de verdade. É quase como perder a virgindade de novo.
— Me diz se começar a machucar. — avisa carinhoso, ajeitando a glande em minha entrada e penetrando devagar. Gemo em seu ouvido, surpresa, maravilhada. — Assim? — Ele pergunta, ainda preocupado. Temo que ele não se divirta tanto quanto eu estou prestes a me divertir. Quero que ele se solte, que curta o momento.
— Já colocou? — Brinco inapropriadamente, minha voz soa vacilante, entrecortada por um gemido.
— Engraçadinha... — tem a voz rouca, o som que ouço é intenso bem perto de meu ouvido. Sem aviso, estoca com força e rapidez, não o suficiente para me machucar, mas o suficiente para me mostrar que ele está no controle e que não posso brincar com fogo. Acontece que, ele vai precisar de mais que isso para me assustar. Gemo satisfeita, mostrando o quanto gostei de meu castigo. morde o lábio inferior, impedindo um sorriso sacana de surgir.
— Assim, assim... — Cravo minhas unhas em suas costas, esperando que agora ele saiba qual é o meu limite e se deixe levar pelo momento.
— Nossa, ... — geme rouco, respirando pesado contra meu pescoço. Os músculos de seu torso se contorcem sobre meu corpo e eu sinto que ele está ficando à vontade. — Você é tão apertada. Caralho. — Ele morde de leve a pele de meu pescoço, abraçando mais meu corpo, se afundando mais em mim.
Minhas unhas mesmo curtas estão fazendo estrago em suas costas, mas parece gostar. Ele leva como incentivo meus arranhões em seu pescoço e eu me aproveito da situação para sentir cada músculo dele contra a palma de minha mão. Deixando evidências de quando finalmente me mostrou que era capaz de me levar do céu ao inferno e voltar ilesa.
Valeu a pena esperar tanto. Não sei se em outro momento eu teria a liberdade de experimentar de forma integral cada segundo, não sei se poderia me doar e estar presente no momento de corpo e alma e sei agora que mereceu por todo este tempo que eu priorizasse isso. Que estivesse aqui e somente aqui quando finalmente acontecesse.
Me sentindo livre, impulsiono o corpo para cima, empurrando levemente, o forçando a parar os movimentos deliciosos de vai e vem. Ele se senta no tapete, eu me sento sobre ele e devagar, encaixo seu pau em minha entrada, cavalgando devagar, entendo meus limites enquanto encontro equilíbrio apoiando os dois pés no chão e as mãos nos ombros de . Ele me segura pela cintura, me auxiliando nos movimentos e controlando a respiração quando rebolo sobre a ereção tão dentro de mim quanto pode, nos levando a loucura.
Acostumada com a grossura e o tamanho do pau de , estou quicando sobre ele, meus olhos quase se descolando de suas órbitas, tão revirados que nem sei dizer se estão fechados.
Nossas respirações ficam pesadas, uníssonas e harmonizando com o som de nossos corpos se encontrando de novo e de novo. Me afasto um pouco, apoiando as mãos em seus joelhos e dando visão completa de meu corpo completamente entregue a ele. As mãos de percorrem meu corpo com a mesma firmeza de antes. Ele toca minha barriga, acompanhando o movimento de meu corpo, sustentando e ditando a velocidade. E então, como se não bastasse me olhar de forma incendiária e me foder tão deliciosamente bem, escorrega seus dedos para meu clitóris, estimulando a área inchada, trazendo mais lubrificação para o sexo intenso que estamos fazendo. Eu gemo mais alto, a cabeça completamente tombada para trás e a boca escancarada, praticamente gritando.
Ele acompanha os movimentos de meu corpo, mesmo que sejam desordenados e abastecidos pela vontade louca de tê-lo cada vez mais dentro de mim.
Com os cabelos bagunçados, alguns cachos colados em minha testa e a certeza de um olhar animalesco no rosto, encaro como o último desafio da noite. Ele não demora a aceitar o desafio, com a mão firme em meu quadril, ele dita o movimento mais contido e provocante, me obrigando a rebolar para ter mais fricção, com a outra mão, ele me masturba de forma precisa. Rapidamente e tão certeiro que me dá a certeza de que sim, eu vou gozar mais uma vez.
— Não me olha assim, ... — diz completamente insano. Sua voz nem parece a mesma, soa perigosa, absolutamente excitante.
— Assim como? — Pergunto com a voz entrecortada, rouca. Ele intensifica seus movimentos, erguendo um pouco o próprio quadril, me penetrando mais fundo. Puxo o ar entre os dentes, excitada.
— Como quem vai gozar no meu pau — diz másculo, respirando fundo e controlando as próprias sensações.
— Não para... — Ordeno, encarando seus olhos escuros de prazer. tenta, mas fecha os dele, quebrando o contato. Eu continuo observando sua expressão deliciosa, me excitando cada vez mais. Ele está concentrado, determinado a me ver gozando enquanto sento.
Sinto as paredes internas de minha vagina se contorcerem, apertando dentro de mim. Ele abre os olhos em expectativa, respira rápido e com os lábios entreabertos e os olhos fixos em mim, junto com toda a movimentação certeira em meu clitóris foram a combinação perfeita para me fazer prender a respiração e soltá-la em forma de um gemido agudo, ensurdecedor, amplo, satisfeito. Meu corpo amolece, mas continua o movendo pela cintura, tamanha força. Com um gemido rouco, longo e grave, goza ainda dentro de mim, abraçando meu corpo suado e juntando nossos lábios mesmo que as respirações ainda estejam arfantes.
acomoda a cabeça em meus seios conforme o abraço pelos ombros, ainda um pouco trêmula e sentindo espasmos correndo por todo o corpo. Não consigo parar de sorrir, sinto meu corpo inteiro em êxtase, ainda excitada, mas satisfeita. Uma sensação boa se estabelece em meu peito e eu aproveito que não tem a menor pressa em desfazer do abraço de corpo inteiro para reconhecer e experimentar tudo dessa sensação nova e brilhante.
Amolecendo em seus braços, sinto sair de dentro de mim e solto um gemido descontente e surpreso. Ele ri de meu protesto, beijando meu colo e deitando meu corpo no tapete.
— Já volto — diz baixinho, se levantando e agarrando a própria cueca do chão, caminhando em direção ao banheiro. Estico o braço e alcanço minha calcinha, mas minhas pernas estão moles como se não houvessem ossos ali. Deixo a peça sobre minha barriga e deixo que meus olhos acompanhem por seu curto percurso.
Mordo o lábio inferior, contendo uma risada maliciosa e carregada de uma alegria genuína. Além dos arranhões visíveis em linhas avermelhadas por toda a extensão de suas costas musculosas, antes que ele entre no banheiro e encoste a porta, tenho uma visão ao contrário, mas nítida de que tem — além de todo o resto — uma bundinha gostosa.
Faço uma nota mental para me lembrar de explorar a área com minhas mãos curiosas assim que tiver a oportunidade. Então, me dou conta de que acabei de transar com meu ex-namorado e não faço a mínima ideia do que isso significa.
Quando sai do banheiro já sem a camisinha e vestido somente de uma cueca branca larga e aparentemente confortável, também já estou parcialmente vestida e ao invés de largada no tapete, resolvi esperar o restante de minha alma voltar de sua viagem pelas galáxias confortavelmente em minha cama. Ele respira fundo e aponta para a ponta da cama, como se pedisse permissão para se sentar ali. Tenho vontade de dizer algo como “você acabou de estar dentro de mim, acha que precisa de permissão para dividir a cama comigo?”, mas não digo nada.
Tento ajeitar meu cabelo em um novo coque que fica bagunçado, mas não é como se eu me importasse. Tem uma certa beleza na bagunça do cabelo pós sexo, é específica e só a reconhece quem já viveu a mesma experiência.
— Você está bem? — Pergunto ao vê-lo fechar um dos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado e contorcendo o rosto em uma expressão não muito agradável.
— Sim, sim — diz rapidamente. — Só fiquei com um pouco de pressão baixa, sabe como é... — Ele gesticula sem jeito e eu rio.
— Sério? — Ele assente, constrangido. Faz mesmo algum sentido que ele chegue a passar mal depois do que vi ele ser capaz de fazer. Manter uma ereção daquelas por tanto tempo e maestria deve ser exaustivo fisicamente, a demanda de sangue correndo para um só lugar deve deixar difícil pensar, agir e se mover de acordo, mas é bom demais na coisa. Sua entrega deixará marcas em mim e o único problema que vejo ao longe, é minha expectativa sobre sexo. a mudou em seu cerne, ninguém mais seria capaz de alterar minhas expectativas. — Quer uma água? — Ofereço já indo até a cozinha, sirvo em dois copos um pouco de água do cooler que serve como uma geladeira temporária e levo até ele.
Assisto sorver o líquido frio, observando sua garganta se mover quando ele engole, os olhos fixos no fundo no copo, os ombros tensos e toda sua concentração no momento. Ele parece sério, um pouco distante. Me convenço de que ele esteja somente se recuperando da performance.
— Obrigado — diz baixinho, quase num sussurro. Ele apoia o copo no chão, tomando o meu pela metade de minha mão e os deixando juntos. volta a me olhar interessado, se aproximando devagar e mantendo o lábio inferior entre os dentes. — E você, está bem? — Pergunta já bem próximo do meu rosto e qualquer preocupação que ameaçou surgir, caiu por terra.
Mesmo exaustos, suados e aparentemente satisfeitos, me pego beijando de novo. Meu corpo sobre o dele é coberto pela metade pelo lençol que nem sei quando nos cobriu, suas mãos grandes me abraçam pelas costas, me mantendo sobre ele enquanto conhece ainda mais de meu corpo.
É perfeito. Não quero soar uma ingrata pervertida que desconsidera suas pequenas vitórias e coloca sexo sobre todas as outras prioridades em minha vida, mas, este é, de longe, o melhor momento dos últimos meses. Todos os altos e baixos parecem só detalhes de fundo, somente a forma como me sinto fica em evidência.
Eu não poderia pedir por mais nada, a noite poderia continuar daquele mesmo jeito. Mas é claro que nada bom dura muito. Entorpecida por seus beijos e seu toque, não ouço quando as chaves se agitam do lado de fora, uma delas tenta destrancar a porta, mas, já aberta, ela só se escancara.
?! — A voz horrorizada de minha tia me faz gritar e esconder a cabeça sobre o lençol.
— E... aí?! — Ouço hesitante, envergonhado. Percebo só então que o deixei de fora de minha capa de invisibilidade e me sinto ridícula.
— Oi, . — Sua voz vacila, ela começa a rir e eu sinto meu corpo começar a congelar de vergonha de baixo para cima. Levanto um pouco o lençol, encarando com a maior expressão culpada e ele me devolve um olhar confuso, como se me perguntasse o que faremos. Acompanhando a decoração da casa, o tom no rosto de é vermelho constrangimento e tenho certeza de estou com um parecido no rosto, combinando com o ambiente.
A risada de tia Vanessa se duplica, revelando uma harmonia masculina. É quando me ocorre que a tia Vanessa não está sozinha e que meu professor acaba de me ver quase transando.
Sinto os olhos encherem de lágrimas e um nó se posiciona no meio de minha garganta.
Não, não, não.
— Vocês podem esperar lá fora? — Peço com a voz um pouco embargada, limpo a garganta, mas o nó continua lá.
— Nós já estamos indo... — Tia Vanessa encosta a porta novamente e só quando escuto as risadas mais baixas e encorpadas descendo as escadas, eu me levanto, carregando o lençol junto comigo.
— Ei... O que foi? — vem até mim, buscando meus olhos com os seus e tentando me manter parada. Com a bagunça na cama, nossas camisetas se perderam pelo chão e eu tento procurá-las com os olhos nublados de uma agonia enorme.
— Meu professor. Não queria que ele tivesse me visto... assim. — Cubro os seios com as mãos, fica alarmado, procurando a camiseta por mim. Ele encontra a dele, a veste e continua procurando enquanto segura a calça em uma das mãos.
— Foi um acidente, . Provavelmente eles não viram nada, porque não estávamos fazendo nada demais. — Ele dá de ombros, muito mais calmo do que eu esperava.
— Eu não quero que as pessoas me vejam desse jeito! Eu não sou propriedade de ninguém, não quero que ele me veja assim. — Minha respiração fica pesada, difícil. me lança um olhar confuso, tentando compreender.
— Assim como? — Ele pergunta com cautela.
Encolho o corpo, me sentindo exposta demais. suspira, se abaixa e pega minha camiseta embaixo da cama. Ele se aproxima e a enrola sobre a parte superior de meu corpo.
— Isso ultrapassa todos os limites da relação. Eu quero explodir de tanta vergonha. — se afasta, veste a calça e procura pelos tênis próximo ao tapete.
— Você tem a sua vida, . Carrega tantas responsabilidades sozinha e equilibra a vida do jeito que dá, sendo muito bem-sucedida, de onde eu vejo. Você está na sua casa, vivendo a sua vida. Foi constrangedor? Claro, nenhum de nós esperava que a noite acabasse assim, mas foi só isso: um acidente engraçado. Mas talvez, você se leve a sério demais para perceber que, às vezes, uma situação se inicia e acaba em um mesmo momento, quem faz com que essas situações se perdurem e te machuquem, é você. — parece um pouco chateado, mas faz algum esforço para esconder.
— Eu não quis dizer que estava com vergonha por estar com você. Só não queria que ele me visse nessa posição, já não basta ele namorar a minha tia. — Tento explicar e assente, mas acho que não faz diferença. Ele se vira de lado e evita me encarar enquanto visto a camiseta e calço meus chinelos.
— As pessoas respeitam você. Se dê algum crédito, reconheça isso. — beija minha têmpora antes de se afastar. Quando ele abre a porta, o vento gelado invade o ambiente, arrepiando minhas pernas e agitando o lençol sobre a cama bagunçada.
começa a descer as escadas e eu vou atrás dele, decidida a fazê-lo ficar, mas sem muita certeza de como o faria. Ele alcança o fim das escadas e vai até o casal parado em frente à lanchonete, agora fechada.
— Me desculpe. Vanessa. — Ouço sua voz hesitante, meio risonha.
— Que isso, . Eu é quem peço desculpas, eu deveria ter batido na porta. — Minha tia o tranquiliza. — Da próxima, vocês poderiam colocar uma meia na maçaneta. É isso que os universitários fazem. — Ouço o tom malicioso na voz de minha tia e aperto o passo, sentindo o frio nas pernas como combustível para resolver toda a situação de uma vez.
— Tia! — Chamo descontente, a repreendendo com um olhar. Ela ergue as mãos para o alto, ainda rindo maliciosa.
— Bom... É... Boa noite, pessoal. — se despede e começa a andar rápido, sem nem me dar chance de prosseguir com meu inexistente plano.
— Ele parece chateado, não é a expressão de quem acabou de reatar o namoro da melhor forma possível. — Ela ergue as sobrancelhas, fazendo meu professor rir. Eu o encaro séria, desgostosa e querendo apagar a última parte dessa noite da minha memória para sempre.
— Te espero no carro, Nessa. — O professor beija sua bochecha, murmurando um “boa noite” para mim.
— Não acredito que você fez isso comigo! — Cruzo os braços na altura dos seios, escondendo evidências de estar morrendo de frio.
— Olha, eu também não estou nada contente por ter visto o que eu vi lá em cima. — Ela continua levando na brincadeira, enquanto sinto meu rosto derreter. — Relaxa, . Nós não vimos nada. De começo, até pareceu que você estava sozinha, deitada em uma pilha de... músculos. — Tia Vanessa cutuca minha barriga, tentando me animar.
— Tem certeza? — Insisto, sentindo parte da tensão se desfazer.
— Absoluta, o Alê só viu o peitoral do . Era disso que estávamos falando, inclusive. — Vejo minha tia fazer um sinal positivo com os dedos, aprovando o que viu antes.
— Para com isso... — Digo constrangida, evitando encará-la. Não posso tirar sua razão, mas não quero incentivar esse comportamento.
— Desculpa, meu amor. Juro que não queria te constranger. Sei que o é importante e pela carinha dele, acho que ficou magoado. — Ela morde o lábio inferior, preocupada.
— Não se preocupe, é culpa minha. Eu surtei. — Dou de ombros, me sentindo patética.
— Você está bem? — Ela pergunta, um sorriso malicioso denuncia que tipo de “bem” ela se refere. Eu assinto, sem conseguir evitar que um sorriso apareça em meu rosto. Ela morde a língua, empolgada e começa a me guiar escada acima, exigindo detalhes.
— Podemos conversar melhor amanhã? — Sugiro, um bocejo denuncia meu cansaço e ela assente rapidamente.
— Vou passar o fim de semana na casa do Alê, me liga na hora do almoço e conversamos. Ok? — Assinto hesitante.
— Tem certeza? — Subo na cama, assistindo minha tia andar de um lado para o outro, juntando tudo o que é necessário para passar dois dias na casa do namorado. — E a história de ir devagar, discretamente?
— Que se dane! — Tia Vanessa ri. — Eu estou lutando para ter minha vida de volta e não é vergonha nenhuma pedir auxílio. Ainda mais se ele tiver um metro e noventa de puro amor para dar. Estou viva, . Eu mereço aproveitar cada segundo desta vida. — Ela pisca um dos olhos, me assustando com seu otimismo.
— Amém? — Ela ri mais alto, guardando algumas das calcinhas reveladoras na bolsa grande que prepara. — Fico feliz que tenham voltado. Precisamos de um sistema melhor com a porta. — Encaro a mulher feliz diante de mim.
— Concordo. Mas pro seu sossego, prometo que não vou trazer meus assuntos pra cá. — Ela ergue as sobrancelhas de um jeito brega. — Entendeu?
— Sim, sim. Obrigada por isso — digo rápido, encerrando o assunto.
— E você e o ? — Balanço a cabeça de um lado para o outro.
— Nós só... ficamos juntos. — Escolho bem as palavras, não sei o que significa termos transado, mas também não adiantaria nada mentir agora. A mulher me flagrou seminua em cima dele, de lábios inchados e com resquícios por todo o corpo de que tinha acabado de transar.
— Você está bem com isso? — Ela se aproxima, pronta para ir.
— Me pergunte de novo daqui há algumas horas... — Peço e ela sorri de lado, me beija na testa e se despede. Tranco a porta do estúdio e vou até a janela, minha tia tranca o portão e com o carro já ligado, Alexandre aguarda ansioso para continuarem a noite em sua casa na cidade vizinha.
Apago as luzes e deito na cama, uma nuvem feita do cheiro de me abraça e eu sorrio, selecionando os pontos altos da noite e fazendo de tudo para ignorar os mais baixos.
Na manhã seguinte, seu Valter me liga por volta das dez da manhã, avisando que a lanchonete não deve abrir para os negócios hoje, mas que eu deveria acompanhar o encanador durante o conserto do cano atingido na noite passada.
Repasso a confusão conjugal em minha cabeça e me sinto um pouco impotente. Ainda tenho que decidir o que farei sobre o trio, mas primeiro, preciso saber o que se desenrolou de toda a confusão que foi levada à polícia. É certo que tenho de demitir Romildo, mas é seguro manter Tina e Romário na equipe? Se eu decidir demiti-los, preciso contratar mais pessoal, porque não posso ter somente um garçom em treinamento no salão.
Enquanto ouço o som quase rítmico dos encanadores quebrando e reconstruindo canos, tiro do trabalho deles, a solução para fazer o meu. Tenho de lidar matematicamente com um dia a menos de serviço, possíveis rescisões e um sistema ligeiramente mais eficiente para contratar futuros profissionais.
Nós somos uma casa de oportunidades, mas devemos buscar reerguer o negócio primeiro. Preciso confiar em quem irá trabalhar conosco.
Dedé também aparece, preocupado com a massa já pronta no estoque. Ligamos para o seu Valter uma segunda vez, o homem é generoso na decisão que toma sem ao menos pensar, é nítido que ele quer que o incômodo em seu único dia de folga na chácara tenha seu fim, mesmo assim, ele é gentil ao nos dizer que devemos ficar com a massa pronta.
Com os discos já abertos, Dedé faz uma seleção de recheios com ingredientes que estão a mais tempo na despensa, nada que possa nos intoxicar, mas alinha melhor no controle de produtos. No fim, cada um de nós acaba com quatro discos pré-assados e bem recheados e ainda sobra duas para o encanador e seu ajudante.
O trabalho no encanamento é mais profundo do que imaginamos, com o impacto do projétil, o tubo rachou em praticamente toda a sua extensão, nos forçando a trocá-lo. Preocupada com o valor do material necessário para o conserto, visto minha máscara de melhor negociadora e vou a passos ligeiros até o depósito de materiais de construção. O dono do estabelecimento estava na lanchonete ontem, ele viu o que aconteceu.
Ao me ver chegando com uma caixa de pizza em mãos e os olhos sedentos por uma oportunidade, ele sorri abertamente. Não demora até que ele pegue um caderno empoeirado embaixo do balcão, folheia as páginas e escreve meu nome no cabeçalho da primeira folha que ele encontra vazia. Ali, ele anota tudo o que vou precisar, os valores e uma data muito mais que confortável para o pagamento no mês que vem.
— Muito obrigada, seu Júlio. Você está nos salvando! — Sorrio pra ele, que assente concentrado no que faz. Por mais aliviada que eu esteja agora, sinto meus ombros cederem um pouco com a responsabilidade e confiança que são depositados neles.
Olho mais uma vez para a lista de materiais que estou retirando da loja com base no crédito da amizade de longa data de meu chefe com o seu Júlio, mas a conta fica em meu nome. Evidenciando que este senhor confia em meu caráter para ser pago eventualmente e isso é muito legal.
Fausto, o encanador, me diz que precisa encerrar o serviço de hoje por ter um compromisso em sua igreja, mais tarde.
— Isso aí é fácil de resolver, amanhã cedo eu venho e ajeito. Vocês podem até abrir pro almoço, se quiserem. — O homem diz distraído, os olhos fixos no conserto ainda por terminar.
— Tem certeza? Eu já estou perdendo dinheiro tendo que fechar hoje. — Insisto, preocupada com a ideia de ter de fechar a lanchonete por um fim de semana inteiro.
— Minha palavra, rapaz — diz incomodado, mas não comigo. O homem tem um jeito de falar que parece estar sempre consternado, preocupado e tenso. É até engraçado, mas preciso manter a seriedade.
— Vou confiar, então. Hein?! — Ergo uma sobrancelha, ele inclina a cabeça, decidindo se deve ou não me levar a sério. O homem estende a mão suja com resquícios de cola e eu a pego com firmeza, surpreendendo o homem mais velho.
Combinamos de nos encontrar na lanchonete no dia seguinte, às oito da manhã para que ele termine o serviço que, segundo ele, é “coisa de quarenta minutos para resolver”. Decido confiar na palavra do profissional, que vai embora satisfeito com seu ajudante, sua maleta de ferramentas e uma caixa de pizza nas mãos.
Com meio dia inteiro pela frente e nenhum trabalho à vista, decido procurar Tati para finalmente descrever todos os detalhes da noite maluca que tive. Vou até sua casa e a tia Regina diz pelo interfone que ela não está. Com preguiça de ir até a casa de Felipe, envio uma mensagem para minha melhor-melhor amiga lhe dizendo que tenho novidades quentes para lhe contar e espero que ela responda enquanto continuo caminhando até a casa de . Numa tentativa de seguir seu conselho e deixar o constrangimento morrer na noite passada, quero encontrá-lo e retomar o que estávamos fazendo antes de sermos interrompidos. Sinto que estávamos prestes a começar a conversar sobre consequências e quero saber o que ele está sentindo agora que mudamos nossa dinâmica completamente.
— Oi, florzinha! — Ricardo é quem atende o portão, ele o destranca e me dá espaço para entrar.
— Tudo bem, Ricardo? — Pergunto um pouco sem jeito, não sei se a tia Simone e a tia Vanessa já conversaram desde ontem e eu gostaria que a notícia não se espalhasse.
— Tudo ótimo! Estava falando com a Si agorinha sobre ontem. — Ele começa, me deixando em alerta. — Foi animado, teve até show de pirotecnia! — O metalúrgico brinca, alheio a seriedade do início de toda a confusão.
— Pirotecnia não é quando tem fogo? Como se chama quando o show é de água? — Entro em sua brincadeira, entrando na casa também.
— Fonte mágica! — Ele cai na gargalhada, limpando os pés e retirando os chinelos antes de entrar na casa limpa. Faço o mesmo, olhando por entre os cômodos em busca de .
— Oi, meu amor! Surpresa boa. Veio almoçar com a gente? — Tia Simone sai da cozinha, ela se aproxima e beija minha bochecha.
— O cheirinho ‘tá ótimo mesmo — digo rapidamente, a abraçando de lado. — Na verdade, vim falar com o . Ele está? — Encaro o corredor, esperando que ele saia de seu quarto ao ouvir minha voz.
— Ele saiu. — Ela apoia a mão na cintura. — Com aquela menina do grupo de estudos, a Bia. Sabe? — Não. Mas assinto devagar, enquanto lido com minha expressão confusa. Quem diabos é Bia?
— Ah, é... Eu tinha esquecido. — Minto descaradamente, sem saber se minha mentira é forte o suficiente. Simone me olha com um meio sorriso, sem saber muito bem como prosseguir com a conversa. — Está tudo bem? Quer que eu ligue pra ele? — Ela pergunta, já buscando a bolsa com os olhos.
— Não, não. Está tudo bem. Eu falo com ele depois — digo rápido, a impedindo de convocá-lo novamente por minha causa.
— Então, vamos almoçar? — Ela pergunta, me deixando sem escolha a não ser me sentar à mesa e almoçar com a mãe de meu ex-namorado e seu noivo. A boa coisa é que não falamos de mim, ou de . Mas sobre os detalhes do casamento.
Tia Simone não pôde ter o casamento dos sonhos quando era mais nova, então, Ricardo quer dar a ela um dia saído de um conto de fadas. Ele comenta orgulhoso sobre a vontade de entrar na igreja vestido de “pinguim”, como ele mesmo chama o fraque do noivo, e se derrete inteiro ao imaginar vê-la andando em sua direção vestida em um vestido creme, não branco.
— É o sonho da minha vida. Vou te passar pro meu nome, mulher. — Ricardo brinca, mas seu olhar apaixonado para tia Simone me faz sorrir.
— Será que você dá conta? — Simone devolve ligeiramente maliciosa e eu sinto que estou sobrando na mesa.
Observo os dois trocarem uma tímida carícia sobre a mesa. A troca de olhares apaixonada e intensa é inspiradora. É um deleite ver o amor florescer e quebrar barreiras entre o tempo. É possível encontrar amor em todas as idades e isso me acalma, me inspira. Ele existe e é palpável, visivelmente benéfico e eu reconheço como uma das melhores coisas que tenho a sorte de presenciar. Com tanta maldade e injustiça no mundo, ver uma mulher realizada, feliz e bem-amada merece um momento de celebração.
Após o almoço, ajudo a tia Simone a limpar a cozinha. Ricardo toma conta da louça, eu varro o chão e ela delega as atividades a serem feitas. Ao final, eles me convidam para passar o restante da tarde com eles, assistindo TV, mas, tenho pelo menos cinco mensagens no celular para serem respondidas e uma vontade gigante de deixá-los à sós.
Me despeço deles no portão e sentindo uma moleza após um almoço reforçado, decido voltar pra casa e usar o tempo livre que tenho em mãos para dedicar aos estudos, ou pelo menos tentar me dedicar ao trabalho de pensar em algo para o fim de semestre.
Tati me diz que está ocupada com algumas coisas e que vem me ver mais tarde, então, deixo o celular de lado e abro o notebook, vasculhando entre os arquivos e buscando inspiração para ideias.
Acabo me distraindo e ouço música em vez de fazê-la, ouço o álbum de 1980, “Diana” de Diana Ross. Na altura de “I’m Coming Out”, já estou longe do computador, deitada com as pernas para o alto no tapete, as movendo no ritmo da bateria, sibilando a letra da música e sendo transportada para uma época de cabelos volumosos, roupas brilhosas e boa música.
Penso em como Pedro adorava esse tipo de música e gosto de não ficar instantaneamente triste. Me lembro de ser ainda muito pequena quando ele me apresentou ao famigerado moonwalk, passo de dança icônico de Michael Jackson. Ouvíamos “Billie Jean”, do álbum “Thriller” de 1982, no quarto compartilhado e ele executou o passo de dança com maestria, me empolgando e me inspirando a tentar até conseguir chegar próximo, mas nunca o fazer com perfeição. Minhas coxas roçavam uma na outra, impedindo o movimento liso dos pés. Ainda assim era divertido tentar.
De olhos fechados, mergulhada em lembranças para não pensar demais no presente e, consequentemente no futuro, adormeço sem muita profundidade, parecendo que estou somente pensando profundamente.
— Você desiste muito fácil das coisas. — Ouço sua risada e olho em volta, estranhando o lugar onde estou. — E daí que a mãe diz que você está me imitando? Se você realmente gosta de dançar, não deve deixar que ela te desanime. Digo, é dançar. Todo mundo pode dançar, não é como se eu tivesse os direitos da dança e ninguém mais no mundo pudesse fazer isso além de mim. — Ele continua rindo apesar da leve revolta escondida em suas palavras.
Eu me lembro desse diálogo. Foi há uns oito anos, quando minha mãe me pegou replicando a coreografia de “Smooth Criminal” que havia aprendido com Pedro mais cedo.
Pedro?
— Vamos, lá... De novo! — Ele insiste, um pouco mais velho. O cenário muda também, estamos no estúdio de dança há meses atrás. Meu coração aperta, parece solto no peito.
Nosso último ensaio.
— O que é isso? Já desistiu? Vamos, pode requebrar essa raba, menina, temos competição chegando! — Eu rio, me lembrando de ter morrido de vergonha por ele ter dito isso alto e em bom som, para todos ouvirem.
— Quer parar de me envergonhar? — Respondo e minha voz parece ser duplicada. Digo agora com bem menos revolta, bem menos vergonha, morrendo de saudade dele.
— Você já faz isso sozinha, relaxa... — Ele bagunça meus cabelos e eu rio antes de congelar no lugar. Eu sinto seu toque, seu olhar sobre mim. Ouço sua voz claramente. É ele.
— Eu senti tanto a sua falta. — O abraço, ele me abraça de volta e continua rindo, como se tirasse sarro de mim.
— E por quê? Não fui pra muito longe. — Dá de ombros, se sentando no chão do estúdio. As pernas cruzadas, cobertas pelo moletom cinza que ele praticamente nunca tirava. Pedro olha pra cima, dando tapinhas ao seu lado. Eu me sento com ele, observando o cenário atrás de nós todo em câmera lenta, como se não estivéssemos ali. E não estamos, eu sei. Grande parte da calma que sinto vem de saber que nada disso é real e que só estou sonhando, talvez.
— Por que só agora? — Pergunto ressentida, ele percebe.
— Desculpe por isso, sabe como é... Não é como se morrer te desse um passe livre pra ficar zanzando por aí. Tenho coisas pra fazer. — Rio de seu jeito espevitado, irônico.
— Que tipo de coisas? — Estico as pernas, cruzando uma na outra. Apoio o corpo nas mãos e evito que um andando muito devagar pise em meus dedos.
— Tipo... Ver vocês sendo dois palhaços e me culpando por serem dois palhaços. — Pedro aponta para , olha pra mim sugestivamente e eu sinto minhas bochechas corarem.
— Que merda! — Escondo o rosto com uma das mãos, Pedro gargalha.
— Relaxa, eu não vi nada ontem — diz rápido, me fazendo grunhir de nervoso. — É sério... Não tenho estômago pra ver meu melhor amigo beijar minha irmã. Literalmente.
— Como é isso? Digo... Estar morto? — Me aproximo dele de novo, tocando em seu rosto e achando muito estranho que minha mão não atravesse seu corpo, como costuma acontecer com os espíritos em toda a cultura que tem me educado até aqui.
— Não sei. Não é como estar vivo, sem dúvidas. — Ele ri sem jeito, eu faço uma expressão culpada e ele rola os olhos. — Escuta, eu não sinto dor ou me preocupo com coisas pequenas. Na verdade, eu não me preocupo com nada. Estou aqui agora e não posso mais estar em lugar algum. Entende? — Na verdade não, porque nem consigo começar a compreender porque ele está aqui agora.
— Sabia que você vai ter um filho? — Esbarro meu ombro no dele, fazendo-o corar.
— Eu sei, eu sei. Ele é lindo, — diz orgulhoso.
— Como você sabe? — Ele dá de ombros, tentando deixar um irritante mistério no ar.
— Eu o vi — diz simplesmente. Só me resta acreditar. — Mas até se eu não tivesse visto, você já conheceu a mãe dele? — Pedro sorri e busca por ela no cenário, Leah. Ela está concentrada, ouvindo o remix pela quinta ou sexta vez em busca de alguma coisa que esteja faltando em sua coreografia.
— Você sente falta dela? — Pergunto acompanhando seus olhos.
— Não. — O repreendo com um olhar e ele ri baixinho. — Não é isso, é que eu não sinto falta dela ou de você porque nunca deixei realmente nenhuma das duas. Vamos lá, quantas vezes você não agiu de acordo com o pensamento: o que o Pedro faria? — Diz convencido, me obrigando a concordar.
— Não sei a Leah, mas eu agi por impulso algumas vezes e acabei me perguntando isso só depois. — Confesso envergonhada e Pedro suga ar para dentro de seus pulmões inexistentes, muito empolgado.
— Se estiver falando da surra que você deu no Gui, não se preocupe. Eu aprovo totalmente. — Ele me faz rir, relembrando o momento com um pouco menos de culpa.
— Eu não deveria ter feito aquilo. — Corrijo, mas no fundo, é bom saber que ele está do meu lado nessa.
— Não mesmo, mas fico feliz que tenha feito. — Pedro devolve o esbarrão em meu ombro. — E agora?
— E agora o quê? — Pergunto confusa.
— Você passou por tudo aquilo, enfrentou uns monstros gigantes... E agora?
— Como assim, Pedro? Eu vou só... Sei lá, continuar, eu acho. — Me sinto intimidada. Um fantasma está me cobrando ações para o futuro. Quão danificado é o meu subconsciente?
— Não, . — Ele diz como se fosse óbvio. — Você fez o impossível, contou consigo mesma para mudar o rumo das coisas e agora, os trilhos estão em outro lugar. Acha que deve continuar no mesmo ritmo? — Abro a boca para responder e nada sai.
— Eu... Acho que não? — Olho para ele, em busca da resposta certa.
— Nem vem, essa é com você. — Ele balança a cabeça veemente.
— É muito você vir me fazer perguntas das quais não sei a resposta. Que merda, Pedro. — Ele ri, nem um pouco ofendido com minha revolta.
— Você está indo bem, pirralha. Mas não é a única com a solução. Você costurou à força uma rede de apoio, uma família inteira. Confie nessa rede de apoio. — Pedro puxa um dos cachos em minha cabeça, rindo de leve quando ele o solta e o efeito de mola faz com que a mecha volte para o seu lugar.
— Eu realmente gostaria de uma pausa para me concentrar na faculdade... — Comento dissuadida.
— Não só pra isso... Você tem que se preparar. — Pedro fica aflito.
— Para quê? — Ele franze o nariz, balançando a cabeça de um lado para o outro.
— Você sabe. — Ele me dá um meio sorriso triste. — Você tem que ficar forte, mas por agora, eu realmente recomendo que você desacelere um pouco, aproveite a brisa e descanse. — Pedro indica com as sobrancelhas, sorrindo de leve.
— Por que estou sentindo que você está prestes a sumir e me deixar com essa pulga atrás da orelha? — Olho para ele sentindo um vazio começar a me tomar, lentamente me distanciando do mundo da fantasia e me ligando para a realidade.
— Você me conhece muito bem. — Pedro bagunça meu cabelo e com o eco de sua gargalhada eu acordo molhada de suor com a casa escura e o dia transformado em noite.
Estou arfando, cansada como se estivesse acabado de correr uma maratona e não sei dizer se acabei de sonhar ou ter um pesadelo.
! — O grito alto de Tati me faz sobressaltar e eu vou até a janela para vê-la olhando diretamente para mim com uma expressão fechada.
— Terra chamando. Eu te liguei seis vezes, achei que estivesse morta! — Tati grita da calçada, fazendo Felipe rir.
— Eu estava dormindo, por Deus! Você quase me mata de susto. — Reclamo de volta, me afastando da janela para lhe jogar a chave.
Com o casal subindo as escadas, organizo minimamente a casa e acendo as luzes, tentando chacoalhar a sensação que, na mesma medida, é calma e alarmante. Pedro veio me avisar de algo que está prestes a acontecer? Meu subconsciente apelou para o meu emocional abalado para me pedir não tão sutilmente que eu viva a vida de forma diferente para não entrar em curto-circuito?
— Nossa, você está pálida. — Tati abre a porta do estúdio, dando espaço para Felipe entrar antes de trancar a porta e me entregar as chaves.
— Você parece cansada. — Felipe inclina a cabeça me encarando levemente preocupado.
— Vocês vieram na minha casa para me ofender? — Olho de um para o outro, revoltada.
— Também... — Tati se deixa confortável, deitando de lado na cama. — O que acha de sediar uma socialzinha na sua casa? — Ela sorri do jeito apelão de sempre.
— Talvez, se um dia eu conseguir terminar a reforma. — Dou de ombros.
— Estou falando de hoje. — Tati volta a se sentar, assistindo Felipe deitar no tapete. Eu prendo uma risada, o lugar onde ele está deitando está batizado com todo o sexo da noite passada.
— De jeito de nenhum... Está tudo uma bagunça. Fora que, além de vocês dois, quem mais viria? — Parte de mim começa a considerar a possibilidade de receber alguns amigos em casa.
— Só os amigos mais próximos, tipo o . — Sorrio com a menção de seu nome.
— Tem essa amiga nossa, a Tati acha que vocês vão se dar muito bem. — Felipe comenta empolgado, fazendo a namorada rolar os olhos discretamente. — A Bia.
— Quem é essa? — Pergunto curiosa, passei o dia tentando evitar pensar na tal garota do grupo de estudos.
— Acho que já falei dela. Nós fazíamos o cursinho juntas. — Tati abana a mão no ar.
— Ela ainda faz o tal cursinho? — Tento parecer casual, sem querer deixar transparecer que estou muito interessada para saber como ela entrou no grupo de meus amigos sem que eu percebesse.
— Não, ela lidera um grupo de estudos de forma voluntária. Ela abriu mão da bolsa de estudos na faculdade para ajudar a galera com mais dificuldade. — Felipe falta suspirar orgulhoso, então entendo porquê Tati é tão indiferente em relação a tal garota.
— Amor, estou com sede. — Tati diz despretensiosa. — Podemos beber aqui, ? — Pergunta calma, naquele tom falsamente casual que eu conheço bem.
— Eu vou buscar umas cervejas pra nós. Já volto. — Felipe se levanta, beija a namorada e estende a mão para que eu lhe entregue as chaves.
— Pra quê tantos chaveiros? — Ele pergunta indignado.
— Cuidado com eles. — Cerro os olhos em sua direção e ele balança a cabeça de um lado para o outro, saindo da casa.
— Acho que fiz besteira, por favor, não me mate. — Tati fica ansiosa na ausência do namorado.
— O que foi? — Me sento ao lado dela, na cama.
— A Bia é um amor de menina, você vai gostar dela em algum momento. — Tati começa a me deixar preocupada e ansiosa também. — Ela era nova na cidade e ficava em cima do Felipe o tempo todo, então, eu meio que apresentei ela pro e eles estão... Bem amigos. — Ela sorri mostrando os dentes.
— “Bem amigos”? — Pergunto com a voz falhando, uma pontada em meu peito se alastra por meu corpo, distribuindo fisgadas em meu estômago.
— É que ele está fazendo um curso intensivo pra entrar na faculdade ainda no segundo semestre. Ela tem ajudado bastante e eles passam algum tempo juntos. — Tati é cautelosa, mas não deixa nenhuma informação de fora. Ela conta que Bia é nordestina, filha de um casal disfuncional metade alcoólatra, metade ausente e irmã mais velha de uma menina de seis anos que está em detenção por conta da negligência dos pais. Tati conta que Bia quer lutar pela guarda da irmã, mas com somente dezoito anos e uma vida incompleta para ser resolvida, ela não teve sucesso em nenhuma de suas tentativas.
— Ótimo! Agora sei que ela tem valores sólidos e razões admiráveis e não posso mais odiá-la. — Reclamo em um murmúrio.
— Não acho que o esteja interessado nela dessa maneira, ele ainda gosta muito de você. — Ela tenta contornar a situação, deixar mais fácil de engolir a pílula.
— Nós transamos ontem. — Só que essa informação muda tudo.
— VOCÊS O QUÊ?! — Tati grita, se levantando em empolgação.
— Nós ficamos para lavar a louça e... É. — Dou de ombros, decidindo se luto para manter as boas memórias de ontem ou se trato tudo com menos emoção, afinal, eu ainda não sei o que significou pra mim, quanto mais pra ele.
— E agora? Vocês vão voltar? O que isso significa? — Ela me bombardeia com perguntas das quais eu gostaria de ter as respostas. Tati me faz rebobinar e contar todo o evento do início ao fim, entendendo em algum ponto que não tenho essas respostas por não ter tido oportunidade de conversar com ele devido a intromissão de tia Vanessa. — Sinto muito, amiga. Mas ainda acho que vocês vão se resolver. — Ela dá de ombros, otimista como só ela.
Ouço o portão ser aberto e risadas subindo as escadas me deixam em pânico. Troco um olhar com Tati e ela comprime os lábios para baixo, também sem saber o que esperar.
— Olha quem eu encontrei! — Felipe abre a porta segurando um fardo de cervejas em lata em uma mão, dando espaço para sua surpresa: e — eu imagino, com minha sorte — Bia.
— Oi, desculpa atrapalhar a social de vocês. Eu sou a Bia. Tudo bem, ? — Ela é linda. Odeio que esse seja o meu primeiro pensamento, mas é tão óbvio que me irrita. Alta, magra, cabelos negros, lisos e longos. Olhos amáveis e sorriso alinhado. Ela usa calças justas, evidenciando as curvas generosas das pernas grossas e uma blusinha de alças finas por baixo de uma jaqueta jeans puída que a deixa estilosa e casual. — Esse pessoal fala muito de você, sinto como se já te conhecesse. — Ela ri com sua risada baixa e educada.
— Eu nunca ouvi falar de você até hoje. — Não entendo porque as palavras saem tão grosseiras de minha boca. Não era a intensão, só a mais pura verdade. Mas Bia sorri sem jeito e recolhe a mão que eu mal peguei enquanto a encarava como se nunca tivesse visto uma mulher na minha frente. Me sinto insegura, idiota. Sorrio sem jeito pra , que não sabe como me cumprimentar e para evitar mais constrangimento, eu evito o contato direto.
Parece que estou dando uma festa quando todos se acomodam onde tem espaço e eu me distancio da situação, começando uma organização maníaca no lugar.
— Quer ajuda, ? — Bia oferece solícita e eu quero sumir quando forço um sorriso e nego com a cabeça. Eles se sentaram em um pequeno círculo no tapete, conversando sobre o cotidiano na escola onde todos eles fizeram ou fazem curso preparatório. Não me encaixo na conversa, não sei nem onde a escola fica e muito menos o que eles estudam lá.
Pelo o que consigo ouvir por alto, Bia quis um dia ser médica pediatra, movida pela paixão por crianças e a vontade de cuidar da irmã por terem crescido sem um sistema de saúde bom no interior do estado onde nasceu. Ela não tem sotaque carregado, então não consigo decifrar de onde ela vem, mas não importa. Ela está aqui agora, bebendo cerveja com meus amigos e se inclinando em direção ao meu ex-namorado quando ri de algo que Felipe diz sobre o curso de medicina.
Ouço tudo calada, observando enquanto eles usam de meu espaço para se divertirem enquanto eu dobro roupas que deveriam ter sido dobradas há uma semana. Tento ignorar o fato de estar sentado exatamente onde estava ontem, quando lhe dei permissão para me beijar e fazer o que queria comigo. Vez ou outra, ele olha por cima do ombro, buscando por mim. Eu o encaro de volta, tentando manter a pose inabalável de alguém que não está confusa e insegura. Mas eu estou e ele deve saber disso, provavelmente.
Com minhas roupas devidamente dobradas, as deixo dentro de uma caixa e empurro tudo para de baixo da cama. Agora não tenho mais desculpas para não me aproximar e participar ativamente da pequena festa que acontece na minha casa.
— Quer uma cerveja? — Bia pergunta para , a voz macia, mais baixa. Só para ele e eu ouvirmos.
— Não, valeu. — diz rapidamente, me olhando um pouco culpado.
— Você está me devendo uma, de qualquer jeito. — Bia o encara e ele enche o peito de ar, constrangido com o fato de ter duas mulheres o encarando ao mesmo tempo.
Pobre , tão interessante que não dá conta.
— Eu quero uma cerveja! — Digo obstinada, esticando o corpo e puxando uma lata do fardo que pousa entre Felipe e Tati.
— Tem certeza? — Tati pergunta, me encarando desconfiada.
— Absoluta. — Abro o lacre para enfatizar minha decisão e dou um bom gole no líquido amargo. Eu odeio beber, mas beber cerveja leva o prêmio de maior incômodo em minha língua. Não sei porque tanta gente gosta, mas esta noite, eu preciso fingir que sou uma delas.
O sabor é insuportável e o líquido mal se acomoda em meu estômago e ameaça voltar, me forçando a engolir tudo e tossir.
— Calma aí, mocinha... Não está acostumada? — Bia parece ser do tipo de pessoa que se dá bem com todo mundo, perdendo a noção de quando acontece o contrário. Ela ri, me chama pelo apelido e fala comigo como se já me conhecesse, o que é estranho pra mim. Eu mal confio nas pessoas que conheço bem, quanto mais alguém que acabo de conhecer e já tenho vieses negativos sobre ela.
— Ei, ‘tá tudo bem? — se inclina para mais perto, me olhando fundo nos olhos. Olho de Bia para ele, dando de ombros. franze a testa, voltando para sua posição inicial.
— Que silêncio, vamos ouvir música? — Tati sugere, me fazendo fechar os olhos e respirar fundo. Tudo indica que a noite vai ser longa e eu não estava preparada para isso.
Bia e Tati se levantam e vão até o meu aparelho de som e a pequena coleção de CD’s que estou iniciando.
— Você é roqueira, ? Nem parece... — Ela ri e eu a encaro com uma sobrancelha erguida, impaciente para responder qualquer falsidade que me venha à mente.
— Se você continuar olhando, vai perceber todo tipo de música aí. Está familiarizada com o conceito de ecletismo? — Tati prende uma risada, Felipe também. Bia abre a boca e fecha várias vezes, escolhendo ignorar minha grosseria. ergue as sobrancelhas, virando a cabeça lentamente em minha direção. Seus olhos me fazem a mesma pergunta que estou me fazendo: Que diabos está acontecendo comigo?
Irritada por Bia estar mexendo nas minhas coisas e ninguém mais parecer incomodado com isso, desbloqueio o computador e o entrego nas mãos de Tati para que ela encontre pluralidade musical na internet, se ela tiver sorte de conseguir conexão.
Duas cervejas depois e mais irritação do que posso suportar, decido abraçar a ideia de dar uma festa. Me ocorre o nome de mais um convidado e sem nem pensar nos prós e contras, envio uma mensagem para Guilherme, o convidando para minha casa.
— Posso falar com você? — bate uma mão na outra, um pouco nervoso. Faço um gesto para darmos mais um passo em direção à janela, em busca de privacidade. — O que deu em você hoje?
— Como assim? — Minha voz sai cômica, é claro que sei do que ele está falando.
— Sendo sincero, você está agindo estranho e toda vez que a Bia fala com você, você dá uma resposta mal-educada. Você não é assim, então, o que foi? — Ele cruza os braços, me encarando como se me encurralasse.
— Estou agindo como alguém que foi pega de surpresa. — Desisto de ir mais longe que isso, caindo em antigos padrões. — Escuta, estou estressada e cansada. Não é uma boa noite para festas, mas já que aconteceu, vou tentar aproveitar e tratar sua amiga de um jeito menos horrível. Melhor? — inclina a cabeça para o lado, preocupado.
— Não. Você ainda parece incomodada. Quer que todos vão embora? Posso fazer isso acontecer. — Ele tenta tocar minha cintura, mas eu esquivo.
— Não, que absurdo. É uma festa. — Me afasto mais dele, assistindo morder a língua inconformado. — E mais um convidado acaba de chegar. — Leio a mensagem de Gui na frente de e ele olha pela janela, voltando a me encarar intrigado.
— Já volto. Vou abrir o portão pro Gui. — Pego as chaves e deixo meus amigos se entreolhando confusos.
Enquanto desço as escadas, todo cuidado para não tropeçar. Como é de se esperar, minha tolerância a álcool é quase nula e somente duas cervejas e meia já tornam uma escada escura um desafio.
— Oi, princesa. — Guilherme abre um sorriso quando me vê abrindo o portão.
— Não me chama assim. — Respondo rápido, pegando de sua mão a garrafa de vodca barata que ele me oferece. Abro a tampa de plástico e dou um gole ali mesmo, sentindo minha garganta pegar fogo.
— Eita, ‘tá animada! — Guilherme ri e eu rolo os olhos, engolindo com uma careta o resquício da bebida e minha boca.
— Estou mais pra profundamente irritada. — Confesso, indicando a escada e ele fica me encarando em hesitação.
— É seguro pra mim estar nesta festa? — Gui me faz rir.
— Desde que você não se torne mais um motivo para me irritar... — Ergo uma sobrancelha e ele parece ponderar sobre minha condição.
— Ah, eu não estou fazendo nada mesmo... — Ele segue subindo as escadas aos pulos. Temo que ele escorregue não pelo possível processo judicial que ele é capaz de mover contra mim, mas pela possibilidade de o imbecil acabar me matando por ser um completo idiota.
Quando entramos no estúdio, todos nos encaram com a estranheza esperada. Gui sorri sem jeito, acenando para todos e se situando no local ao mesmo tempo. É a primeira vez que ele sobe aqui desde que começamos a trabalhar juntos, não por falta de sua insistência, claro.
— Bacana sua casa, . — Ele se vira para mim. A vulnerabilidade que encontro em seus olhos é quase o suficiente para me fazer derrubar os bloqueios que existem contra Guilherme, quase. Eu sorrio e fecho a porta, lhe indicando o tapete, o melhor assento da casa que todos nós compartilhamos. Exceto Bia, que está sentada na minha cama com suas botas sujas da rua, mexendo em meu computador sem a minha autorização.
— Que legal essas musiquinhas que você faz, ... Muito legal ver essas cobrinhas de pontinhos se formando conforme a gente aperta as teclas. — Bia ri ingênua e eu me imagino como uma guerreira competente que tira uma flecha de sua aljava, alinha em seu arco e atira sem mirar de forma certeira em sua presa.
— Tati? — Pisco algumas vezes, encarando o combo de botas sobre a cama + computador e odiando o resultado que surge dentro de mim. Com razão ou não, eu definitivamente odeio a garota.
Destampo a garrafa em minha mão e vejo Tati correr e dar alguma desculpa qualquer para tomar o notebook das mãos de Bia e incentivá-la a sair de minha cama.
Dou um gole, dois, três. O gosto é péssimo, mas a sensação de estar entorpecendo gradativamente é o objetivo, então ignoro a vontade iminente de colocar tudo pra fora e continuo bebendo.
— Será que temos chance com essa vodca? — Felipe pergunta, brincalhão.
— Pegue um copo, eu te servirei o veneno. — Felipe ri de minha fala arrastada e sinuosa. A música agitada que toca destoa de minha dança sensual e lenta que faço para mim mesma enquanto me distraio com minha própria sombra. Sirvo metade do copo para Felipe e dou mais um gole, sentindo a bebida amargar um pouco mais em minha boca ao ver conversando mais de perto com Bia. Ela parece chateada e ele não poupa esforços para animá-la.
Eu estou chateada também. Parte disso é culpa dele e eu não o vejo tentando consertar.
— Sabe se vamos abrir amanhã? — Guilherme me pergunta, tomando meu campo de visão.
— O quê? — Pergunto incomodada, não quero pensar em trabalho agora.
— É que eu recebo por dia e estou com um objetivo em mente. — Guilherme confessa e toda essa nova fase honesta dele me deixa confusa demais para tentar compreender isso de forma analítica enquanto estou bêbada.
— Provavelmente vamos abrir amanhã. — Encosto a palma de minha mão em seu rosto, ao que ele recebe meio desconfiado. Guilherme está, pelos menos, três vezes menos bêbado do que eu. — Você pode mudar. Eu menti antes, não te acho medíocre. Você tem potencial, Guilherme. — Seu nome sai enrolado, quase não se parece com seu nome e ele ri.
— Obrigado, . Significa muito. — Ele sorri e eu recolho a mão de seu rosto, o estudando profundamente com teorias formadas neste mesmo momento.
— Seu cabelo é bonito — digo hesitante, sem ter certeza se falei ou só pensei no assunto.
— É? Eu tinha pintado de vermelho antes, mas vi que era loucura. — Ele ri sem jeito e eu continuo o estudando atenta. Ele está corando.
— Eu odiei... Prefiro assim. — Gui ergue uma das sobrancelhas, ainda constrangido com o quase flerte que está acontecendo. Ele ri nervoso e busca com os olhos. Eu inclino a cabeça, seguindo até encontrar me encarando com uma expressão nada amigável. Corajosa (ou suficientemente bêbada) eu sorrio abertamente, o provocando.
— O que você está fazendo, ? — Guilherme pergunta, preocupado.
— Dançando. Quer dançar comigo? — Estendo a mão e ele hesita, mas segura em meu pulso, arriscando alguns passinhos.
— Agora sim é uma festa! — Tati empurra Felipe para o centro do tapete e eles começam a dançar também.
Ouço Bia implorar para acompanhá-la, mas ele nega com educação, se afastando um pouco dela e abrindo a última lata do primeiro fardo de cerveja.
Enquanto mexo meus quadris de um lado para o outro, percebo duas coisas: Guilherme quer muito, mas não me toca e, está assistindo a tudo isso com a ajuda de uma cerveja.
“Lose My Breath” de Destiny’s Child está tocando e logo Tati me lança o olhar de quem está pronta para reviver momentos que parecem ser de uma vida passada. A coreografia que inventamos para essa música surge fresca em nossa memória e logo estamos executando a rotina.
Por alguns minutos esqueço toda a chateação que me trouxe a um estado de torpor. Minha cabeça está focada na diversão que estou tendo e de repente, nada importa. Ex-namorados, garotas enxeridas, nada mais importa. Só aqueles quatro minutos de música com batidas caóticas e animada.
No fim, estamos exaustas e aos risos, agindo como se houvesse nós duas no cômodo.
— A amizade de vocês é linda. — Bia surge diante de mim, me fazendo desviar dela para pegar algo para beber. Ela me segue. — Nunca tive amigas assim, sou mais próxima dos meninos. Acho que eles não me odeiam pela minha aparência. — Bia sorri de lado, meio triste. Refreio uma culpa que começa a nascer no fundo de minha cabeça. Não a odeio por ela ser bonita, a odeio por ela mexer nas minhas coisas. Ela ser bonita só acentua o fato de eu não gostar de olhar pra ela, só isso.
— Tenho sorte de ter a Tati. Ela é uma pessoa maravilhosa. — Estou falando a verdade, mas ao lembrar que foi minha melhor-melhor amiga quem apresentou Bia para , a palavra sai alterada.
— Você é diferente do que imaginei. — Bia suspira, superando o gelo, mas eu ainda continuo com minha guarda levantada. — Eu esperava que você fosse mais... Aberta. — Ela se enrola, se arrependendo de ter dito o que disse, provavelmente porque estou a encarando com a minha pior expressão que migra de ofendida para algo que transfere o pensamento “quem você pensa que é?”.
— Isso acontece com frequência, os amigos da Tati acham que são meus amigos por extensão já que ela fala muito de mim para as pessoas. Mas eu não te conheço, eu não estava esperando você vir na minha casa hoje. — Escolho ser sincera, já que não é bem uma escolha. Ela não me deixou espaço para recusar este momento onde só nós duas socializamos. — Eu entendo que você seja amiga deles, mas eu ainda não te conheço. Não que eu não queira, mas... — Minha primeira mentira. — Vai com calma. — Rio para tentar aliviar a tensão, só que não funciona. Bia me olha como se eu tivesse dito a maior maldade e se afasta em uma risada condescendente que me faz repassar a curta conversa várias vezes em minha cabeça.
Acho que falei alto demais, pois, todos me olham com estranhamento enquanto ela anda até , cochichando algo em seu ouvido. Ele assente rapidamente, deixando a lata de cerveja de lado e buscando pelo moletom que havia tirado quando chegou.
— Foi ótimo rever vocês, vamos fazer mais vezes... Em... Outro lugar. — Bia diz sem jeito, olhando pra mim de uma forma que me faz sentir um monstro. — Desculpe, . Foi bom te conhecer, finalmente. — Ela sorri polida, acenando um pouco tímida.
— Você vai voltar? — Pergunto pra antes de ele sair atrás dela.
— Não sei, ... — Ele mal me deixa terminar a pergunta, irritado comigo. Merda.
— Eu vou abrir o portão. — Tati se oferece, vendo que não vou mover um músculo. Ela me encara feio e os acompanha para fora.
Felipe está me encarando com os olhos arregalados e Guilherme sorri de um jeito interessado que eu não gosto nem um pouco.
— Certo, que porra foi essa? — Tati sobe as escadas flutuando de tão rápido. Ela nem precisa recuperar o fôlego antes de estar em cima de mim.
— Por que estou sendo punida por ter sido honesta? Vocês preferiam que eu mentisse pra garota e ficasse feliz com ela em cima do meu n... Das minhas coisas? — Tati apoia a mão na cintura, balança a cabeça e me olha com reprovação.
— Eu nunca te vi sendo tão grossa. Era só... Sei lá, acenar e sorrir? Não precisava ter acabado com a menina daquele jeito. — Tati continua me reprovando e eu me irrito de vez.
— Você queria que eu fingisse. — Constato, ignorando os risinhos nervosos dos rapazes presentes. — Eu poderia ter conseguido se estivesse sóbria. — Cruzo os braços, irredutível. Não irei assumir a culpa de algo que me parece extremamente saudável. Nada como a verdade, assim o clima não ficará estranho da próxima ver que estivermos no mesmo lugar.
— Você só bebeu porque ficou com raiva dela estar próxima do , admita. — Tati imita minha pose. Eu a encaro indignada.
— Eu não pensei em empurrar ela pro primeiro cara solteiro que encontrei só pra tirar ela de cima do meu... Que inferno! Da porra do meu ex-namorado! — Admito sentindo minhas bochechas queimarem.
— Ei! — Felipe se ofende. — Então, foi isso? — Ele se levanta, andando em direção a Tati, que ri nervosa.
— Não é bem assim... — Tati tenta se explicar, me fazendo bufar irritada.
— Eu sou um cara solteiro, por que não empurrou ela pra mim? — Guilherme decide participar também, o encaro com morte nos olhos. — Só queria ver esse olhar de puro ódio em você, desculpa. — Guilherme admite, me deixando confusa por meio segundo.
— Acho que essa festa acabou, né?! — Me viro para Tati, que concorda veemente, tentando escapar das indagações do namorado.
— Eu te ajudo com a bagunça. — Tati olha para o restante de pizza sobre o balcão, as latas de cerveja e garrafas de refrigerante espalhadas por todo lugar.
— Não, pode ir. Eu faço amanhã. — Abano a mão no ar, chateada por termos brigado por causa de outra garota.
— Desculpa. Eu também não suporto a fulana, não sei porque fiz aquilo. — Ela me abraça pelo pescoço e eu rio de sua confissão, que choca o número de uma pessoa: Felipe.
— Vou encontrar um lugar no meu coração para te perdoar por isso. — A encaro com um meio sorriso e ela franze o nariz, me mandando um beijo no ar antes de sair com um Felipe cheio de perguntas em seu encalço.
— Você está bem? — Guilherme pergunta, se aproximando com hesitação.
— Me pergunta de novo amanhã? — Ele ri de leve, se aproximando um pouco mais. O jeito como ele me olha é quase acolhedor dentro dessa mistura amarga de bebidas na minha boca e todos os sentimentos complicados demais para lidar agora.
?
— Hmm?
— Posso te beijar? — Pisco algumas vezes, considerando seu pedido.
— Quer saber, Gui? — Ele respira fundo em expectativa. — Que se dane.
Guilherme se aproxima, um sorriso enviesado é interrompido por uma leve brincadeira com o piercing na língua. Sinto meu estômago dar uma volta inteira quando seus dedos gelados tocam minha nuca.
Com ele perto assim de mim, fecho os olhos e espero que a noite acabe logo.


Continua...


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Nota da autora: Quantas desventuras ainda aguardam a Eve nessa história? Esse capítulo foi mesmo uma montanha-russa, difícil até para escrever. Mas aqui estamos.

Oi, meu amor! Coisa boa demais poder dividir mais essa partezinha maluca da minha cabeça com você. (2006) é uma história crua, difícil de engolir. Ela tem sido um desafio para mim desde o início. Como fã assumida e orgulhosa de romances clichês, de problemas cotidianos e amores impossíveis, juntar isso à tragédia me deu um, dois ou dez nós na cabeça e eu sigo tentando desembaraçar essas ideias para trazer uma história emocionante, cheia de esperança, mas com responsabilidade por tratar de assuntos tão delicados.

Eve é uma personagem em constante evolução. Em cada capítulo ela aprende algo novo sobre si ou sobre o mundo, às vezes não é muito flexível à essas mudanças e acho que parte dessa resistência tem muito a ver com a falta de experiência em si mesma. O Leo, por outro lado, não se surpreende com as nuances da vida e tenho certeza de que essa visão mais despreocupada dele possa ajudá-la a enxergar as coisas com mais leveza também.

Espero que estejam gostando de fazer essa escavação de tragédias junto comigo. Prometo que as coisas vão começar a se resolver uma por uma e nossa menina vai poder voltar a dormir tranquila (mais alguém ficou com pena dos hábitos de sono dessa garota?).

Por fim, mas nunca menos importante, obrigada demais por acompanhar meu desenvolvimento como autora. Cada clique significa um pedacinho do meu mundo sendo construído e eu nunca vou ser grata o suficiente por essa chance maravilhosa de compartilhar com você meu sonho sendo realizado pouco a pouco.

Qualquer sugestão, reclamação, puxão de orelha e claro, os surtos, vem me ver no Instagram, o link está abaixo. Mas aquele comentário aqui muda tudo, você sabe.

Um beijo enorme. Tear.



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