Prólogo
ㅤ📍 06 de agosto de 2018 em Louisville, Kentucky/EUA às 18:45:
— A garota irá completar seus vinte e dois anos nesta noite. — O senhor falou, erguendo os olhos sobre os óculos, apenas para observar o garoto à sua frente. — Vai ser sua primeira transformação.
— Eu devo ir até lá? — O mesmo garoto questionou, com as duas mãos para trás e o rosto levemente abaixado, querendo demonstrar respeito ao homem sentado na enorme poltrona.
Ele sentia seu coração extrapolando dentro do peito, apenas por estar cumprindo ordens diretas.
— Sim. — O mais velho respondeu, ameaçando levantar da poltrona de couro, mas desistindo assim que o garoto mais novo recuou alguns passos para trás. Ele gostava da sensação de medo que causava nas pessoas. — Você precisará ajudá-la, passar confiança para trazê-la até nós.
O garoto engoliu em seco, balançando a cabeça em concordância.
— Agora vá, você deve estar lá quando a transformação ocorrer. — O senhor mandou autoritário, voltando a observar o enorme livro que suas mãos enrugadas seguravam. — E não esqueça, Reign felicita você.
— Obrigado. — O garoto reverenciou na frente do mais velho e saiu da sala, apressado.
Ele não queria ter que fazer aquilo. A garota não merecia o sofrimento que teria que passar, ela não precisava nunca mais se transformar, se deixassem o responsável do outro lado fazer o trabalho de atrapalhar a mente dela, mas toda sua vida e de sua família dependia daquele ato “heroico”. Sua irmã precisava de proteção e segurança, assim como sua mãe e sua avó.
O garoto era a única esperança que restava para que conseguissem sair da situação de merda em que se encontravam.
— Qual a missão de hoje, querubim? — O guarda dos portões perguntou em tom zombeteiro, fazendo a pele extremamente clara do garoto arrepiar-se assim que parou em sua frente.
A estatura extremamente alta do cara barbado e de pelos escuros e densos deixava qualquer um aterrorizado, com certo receio de sequer ultrapassar aqueles portões sem expressas autorização do chefe e uma boa missão para cumprir.
— Memphis, no Tennessee. — Foi a única resposta que ele deu.
— Certo, calculando a rota para Memphis. — O gigante digitou algumas coisas no minúsculo tablet que tinha em mãos e, em seguida, destrancou o cadeado que os prendia ali dentro, abrindo a porta com cuidado, para evitar o forte vento que iria adentrar o local a qualquer minuto.
ㅤ📍 06 de agosto de 2018 em Memphis, Tennessee/EUA às 20:08:
— Detetive ? — A voz grossa e uma batida na porta retirou a atenção do homem, o qual analisava os enormes relatórios do dia, mas já sentia os olhos cansados e necessitando de uma bela noite de sono.
— Pode entrar! — murmurou, esticando um pouco as costas que já doíam pela posição.
— O resultado da amostra chegou. — O xerife Remy avisou, adentrando a sala com cuidado e entregando o papel dobrado na mão do detetive.
concordou com a cabeça e segurou o papel em branco, desdobrando-o com certa cautela. As linhas que pareciam embaralhadas foram todas lidas atentamente, o detetive até precisou repetir algumas palavras em voz alta para que sua mente conseguisse processar com bastante precisão. Quando chegou às respostas conclusivas do teste, precisou respirar fundo e apalpar as têmporas com um pouco de pressão, as veias em sua testa já saltavam de forma irritadiça.
— Inconclusivo? — Ele perguntou de forma retórica, abaixando o papel para olhar Remy.
— O sangue não bate com nenhum registro nos nossos sistemas e também com nenhum animal. — Remy respondeu, frustrado, sentando-se na cadeira em frente à mesa de .
— Então, simplesmente, essa pessoa não existe? — perguntou, descrente, largando o exame em cima da mesa e encostando suas costas na cadeira. O coldre já incomodava seus ombros, de forma que ele seria capaz de arrancar aquele objeto sobre o terno mesmo, irritado.
— Uma das testemunhas alegou ter visto um homem encapuzado e com orelhas enormes, rodeando o carro. Nós temos mais algumas pessoas para interrogar, mas você sabe como são os moradores dessa cidade.
O detetive encarou o xerife, questionando com o olhar se aquilo era sério. Remy deu de ombros, já ouviu algumas histórias sobre os seres que nasciam em Memphis. Seres sobrenaturais, que rondavam as terras do Tennessee com todas aquelas mirabolantes magias, que preenchiam seus corpos durante dias, até que se acostumassem a controlar as próprias emoções.
não conseguiu levar o colega a sério e caiu na gargalhada.
— Criaturas místicas não existem, Remy. — Ele alegou, levantando-se de sua cadeira e desligando a tela do computador. — Vamos, amanhã continuamos nossa busca.
Capítulo 1
ㅤ📍 06 de agosto de 2018 em Memphis, Tennessee/EUA às 23:47:
As noites de Memphis naquela época ainda eram agradáveis. O verão deixava o sol esquentar em máximas temperaturas durante o dia, mas ao decorrer do pôr-do-sol, o vento fresco irradiava as ruas iluminadas da cidade e os friorentos de plantão poderiam até optar por um cardigã leve, enquanto não chegavam na própria casa, seus refúgios pessoais.
E era isso que deixava ainda mais contente, não tinha uma estação do ano preferida, conseguia aproveitar todas da melhor maneira possível, mas a liberdade de deixar a pele de fora e circular pela cidade até tarde com diversos moradores ainda na rua, com certeza, ajudava no seu carma diário. Ainda mais quando esses dias vinham na véspera do seu aniversário.
A garota olhou para o relógio de pulso, ignorando o celular em cima da mesa, e deixou com que um sorriso satisfeito brotasse em seus lábios. Faltavam alguns minutos para que os ponteiros se juntassem no número doze e seus vinte e dois anos se completassem. Estava ansiosa, gostava de comemorar seus novos ciclos, mesmo que sentisse a idade pesando sobre as costas e suas responsabilidades aumentando ainda mais, sentia que cada vez mais estava próxima de tudo o que sempre desejou.
Sua felicidade exalava ainda mais, quando lembrava que sua mãe era uma cozinheira de mão cheia e tinha um delicioso bolo dentro da geladeira, aguardando para cantarem parabéns na manhã seguinte. Daisy sabia muito bem os ingredientes que mais agradavam , tanto que a garota tinha um prato com o próprio nome no restaurante da mesma, esse o qual também trabalhava, e continha apenas suas comidas prediletas.
Além de apreciar a comida da mãe, também adquirira os dons após cursar gastronomia. Sempre foram apenas duas, então nada mais justo do que manter aquilo que sua mãe amava ainda mais vivo.
O restaurante, Memphis Fôret - Restaurant Enchanté, era a realização de Daisy após deixá-lo no papel por alguns anos. Além de servir uma diversidade de pratos, a sua maioria francês, o local também contava com a temática do Peter Pan. As garçonetes e cozinheiras sempre estavam fantasiadas de fadas, enquanto os garçons se dividiam em piratas e imitações de crianças perdidas. Somente o gerente vestia-se na igualdade do personagem principal e durante o atendimento eles realizavam cerca de três shows. Era a diversão dos turistas.
Por ser véspera de seu aniversário e ter chego algumas horas mais cedo no expediente do dia, conseguira uma folga para poder comemorar com suas amigas sua virada de ano.
The Cove era um bar temático, com o balcão em forma de navio pirata e os drinks mais diferentes que já haviam provado desde então. As três garotas frequentavam o lugar desde que completaram dezesseis anos, no princípio utilizavam identidades falsas para conseguir beber. Todavia, o dono do local foi se familiarizando com elas e liberando algumas coisas sem que apresentassem o documento, algo que as agradou de imediato e só fez com que continuassem a frequentar.
Além de tudo, The Cove oferecia um karaokê para os bêbados corajosos e uma Jukebox atrativa, que engolia suas moedas o mais rápido possível, mas exalava as melhores músicas antigas. Principalmente Elvis.
— E, então, qual vai ser o seu desejo para seus vinte e dois anos? — Cassidy perguntou, voltando com as três long neck de cerveja e sentando-se de frente para as amigas.
— Ficar rica? — respondeu, arriscando um forte desejo que mantinha, dando um longo gole da sua cerveja gelada.
— Tem que ser um desejo único, . Ficar rica todo mundo quer. — Sadie riu ao responder a amiga. — E não me fale ficar bonita ou eu te dou um murro!
— Além de que, o restaurante da sua mãe lucra horrores, vamos ser sinceras. — Cassi cortou a fala de , antes mesmo dela abrir a boca. — O que você acha de um namorado?
— Não. — respondeu rapidamente, rindo da forma como a amiga enrolava uma mecha do cabelo nos dedos e olhava de soslaio para um grupo de garotos mais à frente. — Para de flertar e me ajuda aqui. — A garota estalou os dedos na frente do rosto de Cassidy.
— Você poderia desejar uma noite de muita farra para suas amigas com aqueles gatinhos. — Sadie comentou ao levar o olhar para o grupo de amigos que Cassi tanto observava.
— Claro, eu devo abrir mão do meu desejo para satisfazer o fogo de vocês? — foi irônica, revirando os olhos com toda a afobação de suas amigas. Era sua noite, poxa.
— Já está quase dando meia noite e você ainda não decidiu. Não temos muito tempo. — Sadie foi óbvia e foi como se uma luz piscasse logo acima da cabeça de , ela já sabia o que desejar.
Não era algo físico, mas era algo que, com certeza, a faria feliz se acontecesse.
E foi com aquela sensação que ela acompanhou o ponteiro dos segundos se mexer até que completasse exatamente meia noite. Sua pele arrepiou instantaneamente e uma gargalhada roçou sua garganta, fazendo com que ela olhasse para as amigas e estendesse a cerveja em um brinde.
Uma vida mágica.
Foi o desejo da garota, antes de entornar o líquido gelado e amargo, pouco se importando com o efeito que aquilo lhe causaria dali algumas horas. Naquele momento, era sua felicidade que importava e o quanto lutaria para que seu desejo fosse realizado da maneira mais literal possível.
As três bateram as garrafas de vidro da mesa, chamando a atenção de algumas pessoas que estavam por perto e riram alto.
— Feliz aniversário, ! — Cassi e Sad gritaram animadas, pulando sobre a amiga para um abraço em grupo.
— Yey! — gritou animada, abraçando as amigas de volta.
A felicidade de estar naquele lugar com as pessoas que sabia que também estavam felizes por ela, era indescritível.
Após o abraço, foi Sadie quem saiu para buscar mais cervejas, exigindo que aquela rodada fosse por conta de , a qual não negou, apenas entregou os dólares necessários para a amiga.
O telefone da garota começou a vibrar sobre a mesa assim que a amiga saiu e sorriu ao ler o nome da mãe. Ela pediu licença para Cassi e foi até o lado de fora para poder atender a mulher sem todo o barulho ensurdecedor do bar.
— Feliz aniversário, ange! — Daisy desejou do outro lado, assim que ouviu a respiração da filha.
— Obrigada, maman. — respondeu, também utilizando da forma carinhosa que elas se chamavam.
Sua mãe sempre a chamou de ange, repuxando o sotaque francês que recebeu de sua família, e ela, como foi ensinada a língua francesa, nativa de sua mãe, chamava-a de maman por puro costume.
— Te desejo uma vida mágica, querida! — A garota sentiu seu braço arrepiar novamente ao ouvir aquelas palavras, as mesmas que havia desejado anteriormente. — Espero que você seja muito feliz e não beba demais!
— Pode deixar, maman. Não vou demorar muito.
— Se cuida, um beijo. Preciso voltar ao trabalho.
Após se despedir da mãe, desligou o telefone e olhou para o céu estrelado, sorrindo abertamente. A noite estava perfeita. Escura, com o céu estrelado, a lua brilhando fortemente acima de sua cabeça e o vento fresco do verão. Do jeito que gostava, da forma que sua data preferida era e tinha que ser.
Seu sorriso logo murchou ao sentir uma coceira desagradável nas costas, como se a etiqueta do seu vestido que usava estivesse a incomodando. Mas ela sabia que arrancava todas aquelas desagradáveis propagandas e informações sobre o tecido, já que era comum que os papeizinhos a deixassem vermelha e cheia de alergia.
Ela levou a mão livre até o local e arranhou levemente com as unhas, não conseguindo sentir o alívio que aquilo devia lhe causar. Decidiu tentar ignorar aquilo e focar na bebedeira que tinha pela frente, mas antes de empurrar a porta do bar para adentrar o local, a garota notou que suas unhas pintadas de branco estavam manchadas de um vermelho fraco.
Uma ruga se formou em sua testa e deu alguns passos para trás, afastando-se da entrada do bar e voltando a levar sua mão às costas, evitando coçar daquela vez, apenas passando os dedos sobre o local. A coceira estava ainda mais forte e quando voltou os dedos para a frente do rosto, preocupou-se ao notá-los manchados de sangue.
O coração de iniciou batidas descompassadas dentro do seu peito, fazendo o ar adentrar com dificuldade nos seus pulmões. Sua boca secou violentamente em questão de segundos e sua visão embaralhou tudo o que ela ainda tentava ver no escuro da noite. não conseguia entender o que diabos estava acontecendo com seu corpo. Aquilo não era uma reação comum após algumas cervejas, na verdade, nunca havia sentido nada parecido.
Era como se todo seu sistema estivesse em colapso e ela pudesse cair morta a qualquer momento. Tentava colocar sua concentração em seus pés e firmar-se sobre os coturnos, mas a perna permanecia bamba, tremendo como se o frio estivesse chegando em Tennessee. Queria gritar por Sadie e Cassidy, mas não conseguia nem soprar o vento ou liberar o ar comprimido em seus pulmões, o desespero lhe atingindo com tanta força, que poderia cair ali e ficar até que alguém a encontrasse.
E como se estivessem ouvindo seus pensamentos, uma mão agarrou seu braço com força, permanecendo o corpo mole de ainda de pé. A única coisa que seus olhos conseguiam enxergar eram outros pares de olhos em um tom verde-limão, quase cintilantes sob a luz da lua. A pessoa conseguia carregá-la com tanta facilidade, que a garota se sentia uma boneca, seus pés arrastando pela rua, seu coração batendo, agora, num ritmo tão lento e doentio, algo que deixava sua boca ainda mais seca.
Queria gritar. Queria chorar. Não conhecia aquele cara.
Era, realmente, uma garota indefesa naquele momento.
— Você precisa manter a calma e tentar controlar sua respiração, . — A voz macia que ele possuía só a deixou ainda mais assustada, afinal, como sabia seu nome?
O homem soltou o corpo de sobre o meio fio da rua ao lado do bar, onde um poste piscava despretensiosamente, permanecendo mais tempo desligado do que efetivamente acesso. Um ótimo lugar para ser assassinada, a mente perturbada de ainda conseguiu satirizar com a própria vida, já que não conseguia ver nenhuma saída para seu corpo molengo e dolorido.
Suas veias pulsavam com tanta força contra sua pele, que ela era quase capaz de ouvir o sangue circular. Suas costas agora pareciam criar espinhos, como se sua espinha estivesse atravessando a fina camada de pele que a protegia. Gritar não era uma solução. A corda vocal da garota havia secado. Sua saliva não conseguia lubrificar os lugares adequados para que ela voltasse a falar.
jogou a coluna sobre os joelhos dobrados e mordeu a pele de seu braço com força, pouco se importando se aquilo deixaria uma marca grotesca.
— , foca na minha voz. — O corpo do garoto agora estava agachado ao lado de e se não estivesse concentrada na horripilante dor que sentia, teria se assustado. — Eu não vou te fazer nenhum mal, estou aqui para ajudar.
Ajudar no quê?, a cabeça dela gritava. Ela só queria tirar aquela dor dali e continuar curtindo seu aniversário, mas algum ser divino resolveu que ela não deveria aproveitar aquele dia, apenas ser levada para o hospital mais próximo e ser internada.
— O que… — jogou a cabeça para trás ao tentar proferir uma pergunta, sentindo a garganta arranhar com tanta força que poderia sangrar.
— Não tente falar. A primeira vez é assim mesmo, você se acostuma com o passar das transformações.
Uma pontada ainda mais forte atingiu um ponto específico de suas costas e, em um movimento automático, levou seu braço até o do garoto e firmou suas unhas na pele dele, pouco se importando. Talvez daquela forma ela conseguiria que ele não a machucasse. Mas a força foi diminuindo, enquanto a dor aumentava e sua pele rasgava de forma brusca.
— , controle sua respiração, estamos quase. — O garoto pouco se importou com o machucado que ela deixou em sua pele, seus olhos estavam vidrados naquilo que saltava da pele da garota.
A mágica estava acontecendo e ele podia sentir o prazer inundar todos os seus sentidos.
Ela esforçou sua mente para controlar o que quer que conseguisse naquele momento. Poderia ser seu coração, que voltou ao ritmo acelerado, talvez sua respiração, que agonizava seus sentidos, ou até mesmo sua circulação sanguínea, que poderia trazer sua força novamente aos poros, estabelecendo uma firmeza em qualquer membro que fosse possível.
E assim como a dor surgiu, rápida e aguda, ela também desapareceu, fazendo sentir como se um buraco estivesse aberto no meio de suas escápulas.
Aproveitando que o garoto ainda estava focado em algo atrás de si, levantou num impulso da calçada, derrubando o petrificado no chão. Ela só não esperava que um peso anormal lhe atingisse as pernas de forma que não conseguissem aguentar, fazendo a garota ir parar sentada no meio da rua de asfalto, completamente atônita.
— Você precisa ir com calma, .
— Garoto, cala a boca. — Ela pediu, completamente irritada em vê-lo se reerguer e voltar a se aproximar. — Eu não te conheço, como sabe meu nome?
— É uma longa história e eu pretendo contá-la, mas agora preciso que você veja o que tem aí atrás. — Ele apontou discretamente para as costas de .
— Atrás do que?
— Das suas costas. Porque elas estão tão pesadas. — O sorriso satisfeito que preenchia o rosto branco daquele garoto chegava a assustar .
Que tipo de demônio ele era?
Mesmo desconfiada, a garota aceitou as duas mãos que ele lhe ofereceu e ficou de pé, ainda com a sensação esquisita de peso nas costas. O garoto lhe guiou para baixo do poste que funcionava e apontou para a sombra que surgia no chão.
franziu o cenho, observando sua silhueta refletir no asfalto, mas com um complemento estranho atrás das costas. Era como se estivesse carregando asas. O desenho da sombra era perfeito, claro e totalmente aleatório.
— Certo, é meu aniversário, mas pegadinha já é ultrapassado, você não acha? — A garota foi sincera, deixando uma risada inundar seu senso de humor e arranhar sua garganta de forma irônica.
— Não existe pegadinha. Você completou a transição de vinte e dois anos, seguiu a linhagem e se transformou em um anjo.
A seriedade do garoto na sua frente poderia tê-la assustado, mas a única coisa que conseguiu fazer foi cair na gargalhada. Ela ficava cada dia mais impressionada com o povo de Memphis, que acreditava em criaturas mágicas. Já ouviu diversas histórias, mas nunca acreditou muito naqueles olhos sonhadores do interior.
Sua realidade consistia em trabalhar e se divertir com suas amigas, enquanto não decidia que segunda faculdade cursaria ou se pouparia dinheiro para viajar o mundo. Não existiam anjos, elfos ou qualquer outra baboseira para atrapalhar sua mente. Daisy sempre lhe dizia que seu pai acreditava mais do que ela naquele mundo, tanto que Vincent contava histórias adoráveis para , enquanto ela ainda estava na barriga.
— Certo, garoto. — murmurou após a crise de riso, limpando o canto dos olhos que escorreram algumas lágrimas. — Anda, tira logo isso que você colocou em cima das minhas costas e me deixa voltar para comemorar meu aniversário.
— Meu nome é .
— Tanto faz. — Ela foi estúpida, sentindo o sangue voltar a ferver em suas veias. Não gostava de pegadinhas.
— Elas já estão diminuindo e voltando ao lugar. — garantiu. — A primeira transformação é rápida, parece que vai te sufocar. Mas conforme for conseguindo controlar a dor do início, mais tempo conseguirá manter as asas para fora.
— Tudo bem, e então eu aprenderei a voar? — caçoou, contorcendo os ombros ao sentir um arrepio percorrer toda sua espinha e enfim o peso cessar. — Só posso ter bebido demais.
— Volto a te encontrar daqui dois dias, . Se sentir alguma coisa estranha, pode mandar mensagem para esse número. — lhe entregou um papel dobrado e então a garota reparou em suas unhas largas e afiadas, algo não muito normal no seu cotidiano. — Pode ser que sua cabeça fique mais sensível e as vozes das pessoas mais agudas, você se acostuma com o tempo.
preferiu não responder, guardou o papel dentro do sutiã de forma desajeitada e então voltou a reparar nas próprias unhas, que ainda estavam manchadas de sangue. Aproveitou que o tecido leve do seu vestido era escuro e tentou limpar o máximo que conseguia, para depois ir até o banheiro do The Cove e as esfregar com sabonete.
Quando a garota ergueu a cabeça para se despedir daquele garoto maluco, não encontrou mais ninguém por perto. Com um vinco no meio da testa, olhou ao redor, completamente confusa. Nem escutou os passos dele se afastando ou qualquer coisa do tipo. Sentia como se nunca estivesse ali.
Sua mente bêbada já estava lhe pregando peças.
Dando de ombros com toda aquela situação cômica, voltou o caminho até a entrada do bar, hora ou outra olhando sobre os ombros para ver se não pegava no flagra com uma câmera, filmando toda aquela palhaçada. Onde já se viu, anjos e asas? Precisava naquele momento de mais cerveja gelada e esquecer que aquilo aconteceu.
ㅤ📍 07 de agosto de 2018 em Memphis, Tennessee/EUA às 2:10:
apreciava as horas de sono que possuía, com a taxa de homicídio baixa em Memphis, conseguia tirar proveito de bons longos minutos após o despertador tocar. E se tinha algo que conseguia estragar seu dia de forma simples e sorrateira, era ser acordado no meio da madrugada com um toque insuportável do celular, anunciando uma nova chamada. Caso seu trabalho não fosse aquele, ele com certeza deixaria o aparelho tocar incansavelmente, até que a pessoa do outro lado resolvesse desistir.
O homem forçou os olhos a abrir, tentando acostumar-se com a luz que adentrava pelas cortinas claras. Tateou a cômoda ao lado da cama até que alcançasse o celular e o atendeu sem ao menos notar quem era.
— Pronto. — Ele falou, forçando o corpo a sentar-se sobre o colchão.
— , parece que Memphis deixou de ser uma cidade comum. — A voz do xerife era abalada do outro lado. — Temos um corpo.
— Me passe o endereço, Remy, chego em alguns minutos. — pediu, coçando a nuca de forma agoniada.
O detetive desligou a chamada e suspirou pesadamente. Era o segundo corpo, em menos de quarenta e oito horas e aquilo nunca ocorreu em todo o tempo que trabalhava na delegacia de homicídios. Preferiu não demorar daquela vez, então em um pulo seguiu até o banheiro para lavar o rosto e tentar dissipar todo aquele sono.
Ao voltar para o quarto, vestiu sua roupa costumeira, prendendo o coldre sobre o tronco e fixando sua arma ali. Com a ajuda de um paletó, ele cobriu o objeto, em seguida calçando seus sapatos para enfim poder sair de casa.
Remy já havia enviado um SMS com o endereço do local do crime e com o mesmo gravado em mente, ele guardou o aparelho celular e a carteira no bolso, enquanto aguardava o elevador chegar à garagem do prédio que morava.
Não poderia negar que gostava da ação da investigação, era aquilo que o motivava todos os dias, mas em uma cidade como Memphis, as coisas saírem do lugar se tornava preocupante. prezava sua reputação nos cuidados necessários para manter a cidade um lugar seguro, mas sabia que uma hora ou outra as coisas esquentariam. Memphis já chegou a ser a segunda cidade mais perigosa dos Estados Unidos, era óbvio que o ranking um dia voltaria a ser seu, mesmo com todo o trabalho policial ou força tarefa de cuidados.
A preocupação que mais incomodava o detetive era o mês em que estavam. Bom, historicamente, a cidade era conhecida por ser a cidade do Elvis e em breve ocorreria a famosa Elvis Week, o evento prestigiado por milhares de turistas apreciadores de um rock clássico e uma culinária diversificada. Além de receberem fornecedores de todos os cantos do mundo para venderem seus quitutes e artes. Seus olhos ainda não conseguiam cuidar de uma multidão como a que invadiria Memphis em alguns dias, muito menos a quantidade de policiais que lhe eram ofertados.
O trabalho ficava redobrado naquela época do ano e, consequentemente, os cuidados diminuíam, dificultando a ação policial.
Seus dedos já estavam tensionados sobre o volante, marcando os nós brancos. Era inevitável sentir os músculos retesados e a cabeça angustiada.
Assim que estacionou o carro, notou a baixa circulação policial pela cena. Estranhou o fato de possuir um carro incrivelmente estacionado rente a calçada sendo isolado. Quando recebeu a notícia de um corpo, acreditou em um homicídio no primeiro segundo, não um acidente de trânsito.
— O que aconteceu? — perguntou ao se aproximar do local.
— Recebemos uma denúncia anônima, detetive. — O policial mais próximo lhe respondeu, entregando uma prancheta com algumas folhas para que o homem analisasse. — Quando chegamos para verificar, encontramos a mulher adormecida no banco do motorista. Tentamos acordá-la, mas, na verdade, ela já estava morta.
— Ela foi assassinada?
— Bom, temos quase certeza que não teria como ela morder o próprio pescoço de uma forma tão violenta.
— O quê? — franziu o cenho, devolvendo a prancheta para o policial e se aproximando ainda mais do carro.
O corpo de uma mulher estava sobre o banco do motorista, falecido. Já aparentava ter uma idade superior aos quarenta e sua feição era serena, como se o sono realmente a tivesse levado. Ao ver o detetive próximo da cena, o legista, que estava no banco do carona colhendo provas, segurou a cabeça dela e virou para que o homem conseguisse ver a profunda marca ensanguentada sobre a carótida.
— Que tipo de ferimento é esse?
— Bom, fiz uma análise sem nenhum equipamento, detetive , mas a princípio acredito que uma mordida humana.
— Um canibal? — Como queria que aquela pergunta fosse em tom zombeteiro.
O homem ergueu os ombros. Era uma resposta que não conseguiria dar naquele momento, mas a alternativa não seria descartada.
— Senhora Margot?
virou a cabeça rapidamente para olhar em direção à voz que parecia assustada. Sua mente embaralhou ao observar a garota que estava parada próxima a faixa de isolamento, os olhos levemente arregalados e os lábios entreabertos. Já havia conhecido diversas mulheres atraentes em sua vida, muitas delas ali na cidade, mas aquela garota... algo sobrenatural atravessou seus instintos quando pousou os olhos sobre ela. Era indefinido. Seu rosto parecia um retrato direto da internet. Os olhos piscando repetidas vezes, fazendo acreditar que conseguia enxergar seus cílios batendo um contra o outro. Os lábios carnudos, a pele lisa como porcelana.
Quem diabos era aquela garota e por qual motivo sua beleza chamava tanto a atenção dele?
— Posso ajudar? — O detetive se pronunciou ao notar que nenhum policial fez questão de tirá-la dali.
— É a senhora Margot. Minha vizinha. — A garota reforçou o nome da mulher, mesmo com a voz levemente arrastada. — Ela… Céus, ela está morta?
— Moça, é melhor nos afastarmos um pouco. — pediu, saindo por debaixo da fita e indicando a rua com a cabeça. — Você disse que ela é sua vizinha?
— Isso. — O cheiro forte de bebida atingiu as narinas do detetive e ele logo entendeu a reação aleatória que ela estava tendo.
Ao mínimo ficariam chocados ao ver Margot.
— Qual o seu nome?
— . — Ela arrastou a língua, mordendo o lábio inferior em seguida.
— Certo, não acho que você consiga responder algumas perguntas agora, não é mesmo? — sibilou, apalpando o bolso da calça atrás de sua carteira.
— Talvez. — A garota riu nasalmente. — É meu aniversário, policial, isso não é crime. Ou é? — A última pergunta foi feita de forma baixa e quase assustada.
sentiu um arrepio percorrer sua pele e uma vontade absurda de rir da forma quase infantil que ela agia. Mas preferiu forçar um lábio contra o outro, abrindo a carteira para pegar o cartão de visita com seu número e endereço da delegacia.
— Nenhum crime, Senhorita. — Ele estendeu o cartão para . — Por gentileza, assim que sua comemoração aliviar, passe na delegacia, gostaria de saber algumas coisas sobre Margot.
— Detetive . — leu as palavras miúdas do pequeno papel. — Estarei lá. — Ela sorriu na direção do homem, mesmo sentindo seus dentes dormentes e seu corpo formigando. Ficar bêbada era uma maravilha.
O homem acenou com a cabeça e observou se afastar sorrateiramente, completamente concentrada nos próprios pés. De costas para os policiais, ele se permitiu rir da situação. Achou a garota tão agradável, que todos os seguintes atos dela se tornavam delicados e atraentes. A beleza que possuía, não tinha visto em mulher nenhuma até aquele dia. Ou então estava com tanto sono, que suas ações e emoções o enganavam com muita facilidade.
Continua...
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