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Finalizada em: 01/09/2020

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Capítulo 17

POV

— Rony, mas, por Merlim, não tenho problema nenhum em passar o Natal em Hogwarts… Não quero dar trabalho à sua mãe…
— Deixa de ser idiota, . — ele rebateu, carinhosamente grosseiro como sempre. — Ela quase teve uma síncope quando soube que você não tinha como ver sua família no Natal, e me obrigou a te chamar.
— Te obrigou, é? Então você não quer minha presença? — impliquei, e ele ficou sem graça.
— C-claro que…
— Estou brincando. — esclareci, achando engraçado como ele nunca captava meu sarcasmo. Pelo visto, eu estava andando demais com Malfoy e disparava ironias em maior frequência do que meus colegas grifinórios conseguiam acompanhar.
— Não acredito que você ainda está insistindo nisso, . — Harry disse às minhas costas, colocando o próprio malão num dos compartimentos do Expresso de Hogwarts. — Estamos literalmente já saindo da escola.
Fiz uma careta. A verdade era que eu preferia ter ficado em Hogwarts para dar uma boa analisada nos objetos que a Sala Precisa guardava, e tentar entender por que Malfoy queria tanto consertar aquele armário que parecia mais ser um triturador de frutas do que qualquer outra coisa.
Mas não foi isso que ocupou meus pensamentos durante todo o caminho até A Toca, casa dos Weasley. O que me preocupava era a presença de Hélio Cairu no meio de Hogwarts, na minha missão em andamento. Era assustador. Era sufocante. Era uma lembrança de que eu não podia me desviar; de que eles estavam de olho em mim. Foi uma surpresa e tanto; eu nem ao menos podia enviar ou receber relatórios, então o que meu instrutor estava fazendo em campo daquele jeito?! E, mais bizarro ainda, ele não tentara entrar em contato comigo em nenhum instante! Apenas ficara ali, pateticamente me vendo cantar e ser a adorável acompanhante de Draco. A garota troféu, a não-namorada
O que, inclusive, não fazia sentido nenhum. Por que Malfoy dissera aquilo num tom tão ácido? Estava ofendido por eu ter simplesmente dito o que achava ser óbvio? Nunca tínhamos conversado sobre nós, porque esse “nós” simplesmente não parecia ser algo concreto o suficiente ainda. E eu nem mesmo tivera a oportunidade de falar com ele sobre isso, pois ele me cortou educadamente todas as vezes em que tentei engatar uma conversa naquela noite. Frustrada, fui para a estação de Hogsmeade com Potter e Weasley na manhã seguinte, com o rosto cheio de sono, uma leve ressaca e aqueles pensamentos que ainda me perseguiam desde então. Contudo, meus planos de evitar pensar muito nele foram frustrados, porque o garoto passou a ser o tópico da conversa.
— Então Snape estava se oferecendo para ajudar Malfoy? — questionou o ruivo, manejando uma faca. — Sem a menor dúvida ele estava se oferecendo para ajudar Malfoy?
— Se você perguntar isso mais uma vez, vou enfiar este talo de couve...
— Só estou confirmando! — exclamou Rony, soando meio desesperado para preservar a integridade de seu… bom, seja-lá-onde-fosse que Harry ia enfiar o talo de couve.
Nós três estávamos junto à pia da cozinha d’A Toca, limpando um monte de couves-de-bruxelas para a sra. Weasley. A neve passava voando pela janela à nossa frente.
— Exatamente, Snape estava se oferecendo para ajudá-lo! Disse que tinha prometido à mãe de Malfoy protegê-lo, que tinha feito um Juramento Perpétuo ou coisa parecida…
Um calafrio me subiu pela espinha.
Um Voto Perpétuo? — admirou-se Rony. — Nah, não pode ser... Você tem certeza?
— Claro que tenho. Que quer dizer isso?
— Bem, a gente não pode quebrar um Voto Perpétuo...
— Até aí eu concluí sozinho, por estranho que pareça. — gracejou Harry. — E o que acontece se a gente quebra?
— Morre. — disse Rony com simplicidade. — Fred e Jorge tentaram me convencer a fazer um quando eu tinha cinco anos. E quase que fiz, eu estava segurando as mãos de Fred e tudo, quando papai nos encontrou. Ele pirou. — contou Rony, recordando a cena com um brilho no olhar. — Foi a única vez que vi papai tão furioso como a mamãe. Fred diz que depois disso a nádega esquerda dele nunca mais foi a mesma.
Contive um risinho. Eu conhecera os gêmeos; eram a dupla mais sincronizada e engraçada que eu vira na vida. Podia evocar perfeitamente a imagem de Fred falando sobre sua bunda num tom displicente e cínico. O que me impediu de rir abertamente foi a lembrança do Voto Perpétuo do qual eu mesma participara, muitos anos antes, em que meu esquadrão de agentes secretas jurou fidelidade entre nós. Lembro de ter entrelaçado minha mão à de cada uma de minhas colegas (que logo se tornaram amigas) e ter enunciado as palavras, com meus meros 11 anos.
— É, bem, deixando de lado a nádega esquerda de Fred...
— Perdão? — Ouviu-se a voz de Fred, e os gêmeos entraram na cozinha. — Aaah, Jorge, olha só isso. Eles estão usando facas e tudo. Deus os abençoe.
Revirei os olhos, rindo. Mal sabiam eles que meu rastreador de magia fora retirado aos 13 anos, e não aos 17 como ocorria com todos os bruxos.
— Vou fazer dezessete anos dentro de dois meses e uns dias — retrucou Rony mal-humorado —, então vou poder usar magia para fazer isto.
— Mas, nesse meio-tempo — comentou Jorge, sentando-se à mesa da cozinha e descansando os pés em cima do móvel —, podemos apreciar a sua demonstração do uso correto de uma... epa!
— A culpa foi sua! — exclamou Rony zangado, chupando o corte no polegar. — Espere até eu fazer dezessete anos...
— Tenho certeza de que vai nos deixar deslumbrados com suas insuspeitadas habilidades em magia — concluiu Fred bocejando.
— E, por falar em insuspeitadas habilidades em magia, Ronald — aproveitou Jorge —, que história é essa, que estamos sabendo pela Gina, entre você e uma jovem chamada... a não ser que a informação esteja errada, Lilá Brown?
Rony corou um pouco, mas não pareceu aborrecido quando voltou a dar atenção às couves.
— Cuide da sua vida.
— Que resposta malcriada. — disse Fred. — Não sei aonde vai buscá-las. Não, o que eu queria saber era... como foi que aconteceu?
— Que é que você quer dizer com isso?
— Ela teve um acidente ou coisa parecida?
— Quê?
— Bem, como foi que ela sofreu um dano cerebral tão extenso? Cuidado com isso!
A sra. Weasley entrou na cozinha em tempo de ver Rony atirando a faca de descascar legumes em Fred, que a transformou em um aviãozinho de papel, com um piparote displicente de varinha.
— Rony! — exclamou a bruxa, furiosa. — Nunca mais me deixe ver você atirando facas! Onde já se viu isso, na frente das visitas! — ela fez um gesto vago na minha direção.
— Não vou deixar — disse Rony — você ver. — acrescentou baixinho, voltando ao monte de couves-de-bruxelas.
— Fred, Jorge, lamento, queridos, mas Remo vai chegar hoje à noite e Gui vai ter de se apertar no quarto de vocês!
— Não esquenta. — respondeu Jorge.
— E, como Carlinhos não vem, isto deixa Harry e Rony no sótão, e se Fleur dividir o quarto com Gina e ...
— ... isso é que é um Feliz Natal! — murmurou Fred.
— ... e todos ficarão confortáveis. Bem, pelo menos terão uma cama. — acrescentou a sra. Weasley, um pouco cansada e ansiosa.
— Desculpe o incômodo, sra. Weasley, não queria tumultuar os feriados de vocês — me apressei a dizer, ao que ela sorriu e murmurou “imagine, querida”.
— Então Percy não vai mesmo mostrar a carranca dele por aqui? — perguntou Fred.
A sra. Weasley virou de costas antes de responder.
— Não, ele está ocupado, imagino, no Ministério.
Eu já ouvira a história. Percy Weasley, o terceiro filho de Arthur e Molly, parecia ser o maior pé no saco que eu conseguia imaginar; um cara todo almofadinha e obcecado por controle e bajulação. Nem ao menos lamentei não conhecê-lo, mas sabia que sua ausência trazia mágoa aos pais.
— Ah, ele é o maior babaca do mundo. — comentou Fred, quando a mãe se retirou da cozinha. — Um dos dois maiores. Bem, vamos indo então, Jorge.
— Que é que vocês vão fazer? — perguntou Rony. — Será que não podiam ajudar a gente a limpar essas couves? É só usarem a varinha e ficaremos livres também! — Não, acho que não podemos fazer isso — respondeu Fred, sério. — É bom para a formação do caráter, aprender a limpar couves-de-bruxelas sem recorrer à magia, faz você entender como é difícil para os trouxas e bruxos abortados...
— ... e se quiser que as pessoas o ajudem, Rony — acrescentou Jorge, atirando no irmão um aviãozinho de papel —, não deve ficar arremessando facas nelas. É só uma dica. Nós vamos à aldeia, tem uma garota bonita trabalhando na papelaria que acha que os meus truques com cartas são maravilhosos... até parecem magia de verdade
Fred, porém, me lançou uma piscadinha antes de seguir o irmão. Pelo visto, eu era o flerte que ele tinha em mente. Achei a ideia quase fofa.
— Debiloides. — xingou Rony, sombriamente, observando Fred e Jorge atravessarem o quintal coberto de neve. — Gastariam só dez segundos, e então poderíamos sair também.
— Não eu. — disse Harry. — Prometi a Dumbledore que não sairia enquanto estivesse aqui.
— Ah, é. — Rony limpou mais algumas couves, então perguntou: — Você vai contar ao Dumbledore o que ouviu Snape e Malfoy conversando?
Mais uma vez aquele assunto. Sem que eles vissem, saquei minha varinha e adiantei o trabalho com magia, me focando no que Harry ia falando.
— Vou. Vou contar a todo o mundo que puder acabar com isso, e Dumbledore é o primeiro da lista. Talvez eu dê mais uma palavrinha com o seu pai também.
— Pena que você não tenha ouvido o que Malfoy está realmente fazendo.
Pensei ter visto o olhar cor de esmeralda de Harry recair sobre mim por um instante, e já sabia o que ele pediria. Com certeza queria que eu usasse de minha proximidade com Draco para arrancar informações valiosas, mas obviamente eu não podia ajudá-lo. Já estava fazendo concessões demais na missão.
— Não foi possível, não é? Esse é o problema, ele estava se recusando a contar ao Snape.
Ok, então ele não falara nada a Snape sobre mim. Ainda bem.
Por um momento fez-se silêncio, em seguida Rony comentou:
— É claro que você sabe o que todos vão dizer, não? Papai, Dumbledore e todo o resto. Vão dizer que Snape não está realmente tentando ajudar Malfoy, estava só tentando descobrir o que Malfoy vai fazer.
— Eles não ouviram o que ele disse. — disse Harry, sem emoção. — Ninguém representa tão bem, nem mesmo o Snape.
— É... só estou lembrando. — disse Rony.
Harry virou-se para encarar o amigo, franzindo a testa.
— Mas você acha que eu tenho razão?
— Claro que acho! — apressou-se Rony a confirmar. — Estou falando sério! Mas eles estão convencidos de que Snape faz parte da Ordem, não é mesmo?
— Harry, calma, tá legal? — me pronunciei, atraindo a atenção dos dois garotos. Rony viu com espanto a pilha perfeita de couves limpas sobre a minha tábua de corte. — Eu também estou tentando descobrir algo sobre ele. Até o momento não vi nada que indicasse que suas suspeitas são verdadeiras. — Mordi o lábio. Me doía um pouco mentir daquele jeito para eles, mas não tinha outra opção. — Você sabe que eu contaria a vocês.
Harry não respondeu. Talvez desconfiasse de mim, ou talvez tivesse percebido que não havia mais nenhuma atitude a se tomar além de esperar o retorno às aulas.
Na noite de Natal, os Weasley e seus convidados estavam sentados na sala de estar; Gina a decorara com tanto exagero que tinham a impressão de estar no meio de uma explosão de papel em cadeia. Fred, Jorge, Harry e Rony davam risinhos ao encarar o pinheiro de Natal, e os gêmeos me contaram o motivo da graça em cochichos: o anjo no alto da árvore era, na realidade, um gnomo de jardim que mordera o calcanhar de Fred quando ele arrancava cenouras para a ceia de Natal. Estupidificado, pintado de ouro, apertado em um minitutu, com asinhas coladas às costas, ele olhava de cara amarrada para todos, o anjo mais feio que alguém poderia imaginar, com uma cabeçorra pelada como uma batata e pés bem cabeludos.
Todos deviam estar ouvindo o programa de Natal apresentado pela cantora favorita da sra. Weasley, Celestina Warbeck, cuja voz saía tremida de um grande rádio com a caixa de madeira. Fleur Delacour, que eu sabia ser a campeã de Beauxbatons no último Torneio Tribruxo e noiva de Gui Weasley, aparentemente achava Celestina muito chata e falava muito alto a um canto. Sua sogra, aborrecida, a toda hora apontava a varinha para o botão do volume, fazendo com que Celestina berrasse cada vez mais. Aproveitando um número particularmente animado, “Um caldeirão cheio de amor quente e forte”, Fred e Jorge começaram um joguinho de Snap Explosivo com Gina. Rony não parava de lançar olhares sorrateiros a Gui e Fleur, como se esperasse aprender umas dicas. Enquanto isso, Remo Lupin, um amigo da família e membro da Ordem da Fênix assim como todos os presentes, estava sentado à lareira, contemplando suas profundezas como se não ouvisse a voz de Celestina. De cara o identifiquei como um lobisomem: as cicatrizes no rosto que nunca cicatrizavam por completo, conservando aquela cor rosada; as rugas profundas ao redor da boca, que revelavam onde a pele se esticava para formar o focinho na transformação.
“Ah, vem mexer o meu caldeirão, e se mexer como deve ser; faço procê um amor quente e forte para sua noite aquecer.” Dançamos ao som dessa música quando tínhamos dezoito anos! — exclamou a sra. Weasley, depois de cantar, enxugando os olhos no seu tricô. — Você lembra, Arthur?
— Hum? — respondeu o sr. Weasley, que estivera cochilando enquanto descascava uma tangerina. — Ah, sim... uma canção maravilhosa...
Com esforço, ele se sentou mais aprumado e olhou para Harry, que estava ao seu lado. Me sentei no tapete felpudo mesmo, cruzando as pernas e sem saber muito bem se minha presença faria com que as conversas fossem mais tímidas, então estava ainda sondando o ambiente.
— Desculpe isso aí. — disse ele, indicando com a cabeça o rádio no qual Celestina desatava a entoar o refrão. — Já vai terminar.
— Não se preocupe. — respondeu Harry sorrindo, e acenei para concordar, ainda quieta. — O senhor tem tido muito trabalho no Ministério?
— Muito. Eu não me incomodaria se estivéssemos obtendo algum resultado, mas, nas três prisões que fizemos nos últimos dois meses, duvido que algum dos suspeitos fosse um autêntico Comensal da Morte... mas não repita isso, Harry. — acrescentou ele depressa, parecendo subitamente bem mais acordado.
— Mas já soltaram o Lalau Shunpike, não? — perguntou Harry.
— Receio que não. Sei que Dumbledore tentou apelar diretamente para Scrimgeour no caso do Lalau... quero dizer, qualquer um que de fato tenha entrevistado o garoto concorda que ele é tão Comensal da Morte quanto esta tangerina... mas os figurões querem passar a imagem de que estamos fazendo progressos, e “três prisões” parecem melhor do que “três prisões equivocadas seguidas de solturas”... mas, repito, tudo isso é ultrassecreto… nem deveria estar falando isso na frente de
— Não se preocupe comigo, sr. Weasley, minha boca é um túmulo. — garanti. E era verdade. Sempre soubera muito bem guardar segredos. E, além do mais, aquela informação era apenas “secreta”. “Ultrassecreta” era a minha presença como agente infiltrada em Hogwarts, o que nem mesmo Arthur Weasley poderia saber.
— Não direi nada. — Harry hesitou um momento. — Sr. Weasley, o senhor se lembra do que lhe contei na estação quando estávamos indo para a escola?
— Eu verifiquei, Harry. — respondeu ele na mesma hora. — Revistei a casa dos Malfoy. Não encontrei nada, nem quebrado nem inteiro, que não devesse estar lá.
— É, eu sei, li no Profeta que o senhor tinha revistado... mas isto é diferente… bem, uma coisa mais...
E ele contou ao sr. Weasley a conversa que escutara entre Malfoy e Snape. Enquanto falava, vi a cabeça de Lupin virar um pouco para o seu lado, absorvendo cada palavra como eu costumava fazer, mas não tão discretamente quanto deveria. Quando Harry terminou, fez-se silêncio, exceto pela cantoria de Celestina.
— Já lhe ocorreu, Harry — perguntou o sr. Weasley —, que Snape estivesse simplesmente fingindo...
— Fingindo oferecer ajuda, para poder descobrir o que Malfoy está fazendo? — completou Harry depressa. — É, achei que o senhor iria dizer isso. Mas como vamos saber?
— Não temos de saber. — disse Lupin inesperadamente. Tinha dado as costas à lareira e encarava Harry do outro lado do sr. Weasley. — Dumbledore é quem tem. Ele confia em Severo, e isto deve ser suficiente para todos nós.
Percebi que, se continuasse ali, visível a todos eles, isso estagnaria o fluxo de informações a partir daquele ponto.
— Bom, com licença, vou ver se a sra. Weasley precisa de mais alguma ajuda na cozinha. — falei, me levantando e saindo pela porta do cômodo. Porém, ao invés de realmente ir encontrar minha anfitriã, colei meu corpo na parede ao lado do umbral e murmurei Auris Sonorus, encostando a ponta da varinha em meu ouvido. O som da sala pareceu ser transferido para ali, como um fone.
— …esteja enganado a respeito do Snape...
— Muita gente tem dito isso muitas vezes. A questão se resume em confiar ou não confiar no julgamento de Dumbledore. Eu confio; portanto, eu confio em Severo.
— Mas Dumbledore pode errar. — argumentou a voz de Harry. — Ele mesmo diz isso. E você... sinceramente, você gosta do Snape?
— Não gosto nem desgosto do Severo. — respondeu Lupin. — Não, Harry, estou falando a verdade. — acrescentou. Quase pude ver a expressão descrente de Harry. — Talvez nunca sejamos amigos do peito; depois de tudo que aconteceu entre James, Sirius e Severo, restou muita amargura. Mas não esqueço que, durante o ano que ensinei em Hogwarts, Severo preparou a Poção de Acônito para mim todos os meses, e com perfeição, para eu não precisar sofrer como normalmente sofro na lua cheia.
— Mas deixou escapar “sem querer” que você era um lobisomem, e você teve de ir embora! — rebateu Harry com raiva.
James e Sirius… Pai e padrinho de Harry. E Lupin estava no grupo… e fora professor de Hogwarts.
— A notícia teria vazado de qualquer maneira. Nós dois sabemos que ele queria o meu lugar, mas ele poderia ter me causado mais mal se tivesse adulterado a poção. Ele me manteve saudável. Devo ser grato.
— Talvez ele não se atrevesse a adulterar a poção com Dumbledore de olho nele!
— Você está decidido a odiá-lo, Harry. — disse Lupin com um leve sorriso. — E eu compreendo; tendo James por pai e Sirius por padrinho — “boa, ”, pensei —, você herdou um velho preconceito. Não se detenha, conte a Dumbledore o que contou ao Arthur e a mim, mas não espere que ele concorde com seu ponto de vista; nem mesmo que se surpreenda com o que ouvir. Talvez Severo tenha até recebido ordem de Dumbledore para interrogar Draco.
O quê? Não, isso seria terrível. E se Snape conseguisse usar Legilimência em Draco? Veria nossa aproximação, veria que eu o estava ajudando. E me convocaria a sua sala, talvez me interrogando com Veritaserum. E aí sim eu estaria fodida.
Celestina terminou a canção com uma nota muito longa e aguda, e ouviram-se estrondosos aplausos no rádio aos quais a sra. Weasley fez um coro entusiamado. Sobressaltada, desfiz o feitiço da audição e me direcionei à cozinha como deveria ter feito, para encontrar sogra e nora juntas.
Terrminô? — perguntou Fleur em voz alta. — Grraças a Dês, qu’ cois horrro…
— Vamos tomar mais uma para encerrar? — ofereceu o sr. Weasley também em voz alta, e voltei para a sala. — Quem aceita uma gemada?
— Que é que você tem feito ultimamente? — Harry perguntou a Lupin, enquanto o sr. Weasley se encarregava de apanhar a gemada, e os demais convidados recomeçavam a conversar. Remexi minha gemada no copo, sem a mínima vontade de tomar mais um gole além do brinde, mas atenta a cada palavra proferida na conversa.
— Ah, ando na clandestinidade. Quase literalmente. Por isso não tenho podido escrever; mandar cartas seria o mesmo que me denunciar.
— Como assim?
— Tenho vivido entre companheiros, meus iguais. Lobisomens — respondeu Lupin. — Quase todos estão do lado de Voldemort. Dumbledore queria um espião e eu estava ali... pronto.
Sua voz pareceu um pouco amargurada. Entendia perfeitamente; não é uma vida fácil, a de um infiltrado.
— Não estou me queixando, é um trabalho necessário, e quem melhor do que eu para executá-lo? Mas tem sido difícil ganhar a confiança deles. Trago comigo sinais inconfundíveis de que tentei viver entre os bruxos, entende, enquanto eles evitaram a sociedade normal e vivem na marginalidade, roubando e por vezes matando para comer.
— E por que eles gostam de Voldemort?
— Acham que, sob o domínio dele, terão uma vida melhor. — respondeu Lupin. — É difícil argumentar com o Greyback lá fora...
— Quem é Greyback?
— Você nunca ouviu falar? — as mãos de Lupin se fecharam convulsivamente no colo.
Até eu já tinha ouvido; sabia da reputação da criatura, pois um aluno intercambista de Durmstrang que fora para Castelobruxo fora atacado por ele.
— Fenrir Lobo Greyback talvez seja o lobisomem mais selvagem que existe hoje. Encara como missão de sua vida morder e contaminar o maior número possível de pessoas; quer criar um número suficiente de lobisomens para superar os bruxos. Voldemort lhe prometeu vítimas como pagamento pelos seus serviços. Greyback se especializa em crianças... morda-as enquanto pequenas, diz, e as crie longe dos pais, faça com que odeiem os bruxos normais. Voldemort tem ameaçado lançá-lo contra os filhos das pessoas; é uma ameaça que normalmente produz bons resultados.
Lupin fez uma pausa, e então continuou:
— Foi Greyback quem me mordeu.
— Quê?! — exclamou Harry, perplexo. — Você quer dizer, quando você era criança?
— É. Meu pai o ofendeu. Durante muito tempo eu não soube a identidade do lobisomem que tinha me atacado; cheguei a sentir pena dele, achando que não pudera se controlar, já sabendo, então, o que a pessoa sentia quando se transformava. Mas Greyback não é assim. Na lua cheia, ele se coloca a curta distância da vítima para garantir que esteja bem próximo para atacar. Planeja cada detalhe. E é esse homem que Voldemort está usando para liderar os lobisomens. Não posso fingir que a argumentação que adoto esteja dando resultado contra a insistência de Greyback de que os lobisomens merecem sangue, que devem se vingar de quem é normal.
— Mas você é normal! — exclamou Harry com veemência. — Só tem um... um problema
Lupin caiu na gargalhada.
— Às vezes você me lembra muito o James. Quando havia pessoas por perto, ele dizia que eu tinha um “probleminha peludo”. Muita gente pensava que eu tinha um coelhinho mal comportado.
Lupin aceitou um copo de gemada do sr. Weasley, agradecendo, e pareceu um pouco mais alegre.
— Você já ouviu falar de alguém que se intitula Príncipe Mestiço? — perguntou o garoto.
— Príncipe quê?
— Mestiço. — disse Harry, observando-o com atenção. Fiz o mesmo com o canto do olho.
— Não há príncipes bruxos. — respondeu Lupin, agora sorrindo. — Esse é o título que você está pensando em adotar? Eu teria achado que “O Eleito” já era o suficiente.
— Não, não tem nada a ver comigo! — exclamou ele, indignado. — O Príncipe Mestiço é alguém que frequentou Hogwarts, tenho o livro de Poções que ele usou. Tem anotações sobre feitiços no livro todo, feitiços que ele inventou. Um deles foi o Levicorpus...
— Ah, esse aí esteve em grande moda em Hogwarts, no meu tempo. — disse Lupin, lembrando-se. — Durante alguns meses, no meu quinto ano, a pessoa não podia andar sem ser pendurada no ar pelo tornozelo.
— Meu pai o usou. Vi na Penseira quando o usou contra Snape.
Harry tentou parecer displicente, como se aquele fosse um comentário sem real importância, mas eu obviamente detectei a ansiedade que ele tinha por aquela resposta. Remo abriu um sorriso condescendente.
— Usou, mas ele não foi o único. Como disse, foi muito popular... você sabe como esses feitiços vêm e vão...
— Mas parece que foi inventado enquanto você esteve na escola. — insistiu Harry.
— Não necessariamente. Azarações entram e saem de moda como tudo o mais. — Ele encarou Harry e disse em voz baixa: — James tinha sangue puro, Harry, e juro a você, ele nunca nos pediu para chamá-lo de “Príncipe”.
Harry, abandonando os rodeios, perguntou:
— E não foi Sirius? Nem você?
— Decididamente não.
— Ah. — Harry contemplou as chamas da lareira. — Pensei... bem, ele me ajudou muito nas aulas de Poções, o Príncipe.
— Que idade tem o livro, Harry?
— Não sei, nunca olhei.
— Bem, talvez lhe dê uma pista da época em que o Príncipe esteve em Hogwarts.
Pouco depois, Fleur resolveu imitar Celestina cantando “Um caldeirão cheio de amor quente e forte”, que todos entenderam, ao ver a expressão da sra. Weasley como uma deixa para se retirarem. Harry e Rony subiram até o quarto de Rony no sótão, para onde eu tinha visto Fred e Jorge levarem uma cama de armar para Harry.
No último quarto do corredor, havia duas camas idênticas à de Potter: uma para mim, a outra para Fleur. Me deitei sobre a minha logo depois de vestir o pijama, sentindo-a ranger sob meu peso, e suspirei. Gina logo apareceu na porta do próprio quarto, com a cascata de cabelos flamejantes flutuando atrás de si e uma careta irritada no rosto sardento.
— Odeio dividir o quarto com a Fleuma. — era o apelido que ela dera à cunhada. — Preferia mil vezes que fosse só você.
— Ou ninguém. — completei com o que ela queria dizer.
Ela nem negou, se jogando na própria cama.
— Eu pensei em chamar Dino para o almoço de amanhã. — contou, rolando sobre o colchão para me encarar. — Mas já tem gente demais na casa. E meus irmãos não iam calar a boca um segundo sobre isso…
— E Harry está aqui. — comentei, despreocupada.
Ela corou delicadamente.
— E o que você quer dizer com isso?
— Nada, ué. — respondi, puxando o lençol sobre meu corpo.
A ruiva ficou quieta, analisando suas unhas do pé.
— “Nada” igual você e Malfoy não são nada?
Ergui as sobrancelhas, achando graça da petulância.
— E o que você quer dizer com isso?
— Nada, ué. — ela devolveu, mordendo a boca.
Na manhã seguinte, quando acordei, Gina e Fleur já tinham saído, deixando suas camas muito bem arrumadas. Rapidamente troquei de roupa, vestindo um suéter feito a mão pela sra. Weasley com minha inicial na frente, e subi para o sótão para usar o banheiro de Rony, como ele tinha oferecido no dia anterior. Encontrei o ruivo rasgando o papel de presente de uma pequena caixa, parecendo incrédulo.
— Ela tem de estar brincando...
Harry acordou assustado e deparou com uma meia estufada nos pés de sua cama. Pôs os óculos e olhou ao seu redor; a janela minúscula estava quase totalmente escurecida pela neve e diante dela estava Rony, sentado muito reto na cama, examinando um objeto que parecia um cordão de ouro.
— Que é isso? — perguntou Harry.
— É da Lilá. — respondeu ele, parecendo revoltado. — Ela não pode pensar seriamente que eu usaria...
Harry se aproximou para olhar e soltou uma grande gargalhada. Pendurada no cordão, em grandes letras de ouro, havia a frase “Meu Namorado”.
— Legal. — comentou ele. — Estiloso. Decididamente, você tem de usar isso na frente de Fred e Jorge.
— Se você contar a eles — ameaçou Rony, fazendo o colar desaparecer embaixo do travesseiro —, eu... eu... eu vou...
— Gaguejar para mim? — respondeu Harry, rindo. — Ah, vai, você acha que eu faria isso?
Eu adoraria fazer isso. — impliquei.
— Mas como é que ela pôde pensar que eu ia gostar de uma coisa dessas? — perguntou Rony, parecendo muito chocado.
— Bem, procure se lembrar. Alguma vez você deixou escapar que gostaria de aparecer em público com as palavras “Meu Namorado” penduradas no pescoço?
— Bem... na realidade não conversamos muito. — disse Rony. — Ficamos mais...
— Dando uns amassos. — completou Harry.
— Sugando o rosto um do outro. — sugeri.
— Enfiando a língua na garganta alheia. — acrescentou o moreno.
— E considerando cada segundo em que não estão fazendo isso um segundo perdido. — finalizei.
— Bem, é. — Ele hesitou um momento, então perguntou: — A Hermione está realmente namorando o McLaggen?
— Não sei. Eles estiveram na festa de Slughorn juntos, mas acho que não foi muito legal.
Não desmenti a afirmação de Harry, e Rony pareceu um pouco mais animado ao enfiar a mão no fundo da meia. Suspirei, vendo-os empolgados com seus embrulhos enquanto meus pais não tinham me mandado nem um mísero cartão de “Boas Festas”. Os presentes de Harry incluíam o suéter artesanal da sra. Weasley com um grande pomo de ouro no peito, uma grande caixa com produtos da Gemialidades Weasley, dada pelos gêmeos, e um embrulho ligeiramente úmido, cheirando a mofo, com uma etiqueta em que se lia: “Ao Senhor, do Monstro.”
Harry arregalou os olhos.
— Você acha que é seguro abrir? — perguntou.
— Não pode ser nada perigoso, toda a nossa correspondência continua a ser verificada pelo Ministério. — respondeu Rony, embora olhasse o embrulho com desconfiança.
— Me empresta aqui. — tomei o pacote da mão dele, executando feitiços simples para verificar sinais de encantos malignos. Sem encontrar nada perigoso, joguei o presente de volta para ele.
— Não pensei em dar nada ao Monstro! Normalmente as pessoas dão presentes de Natal aos elfos domésticos? — tornou Harry, cutucando o embrulho com cautela.
— Hermione daria. Mas vamos esperar para ver o que é, antes de você começar a sentir remorsos.
Um instante depois, Harry dava um berro e pulava da cama; o pacote continha numerosas larvas de varejeira.
— Legal! — exclamou Rony às gargalhadas. — Quanta consideração!
— Prefiro as larvas a esse colar — disse Harry, fazendo Rony parar de rir na mesma hora.
Todos estavam usando suéteres novos quando se sentaram para o almoço de Natal, todos exceto Fleur (em quem, pelo visto, a sra. Weasley não quisera desperdiçar um) e a própria sra. Weasley, com um chapéu de bruxa novo, azul-noite, que brilhava com minúsculos diamantes estrelados, e um espetacular colar de ouro.
— Foram presentes de Fred e Jorge! Não são lindos?
— Bem, descobrimos que gostamos cada vez mais de você, mamãe, agora que temos de lavar as nossas meias — disse Jorge, com um leve aceno de mão. — Pastinaca, Remo?
— Harry, tem uma larva no seu cabelo — disse Gina alegre, debruçando-se sobre a mesa para retirá-la; o ligeiro arrepio que passou pela nuca de Harry não escapou a meus olhos atentos.
Qu’ horrrivell — exclamou Fleur, tremendo.
— É, não é, Fleur? — concordou Rony. — Molho, Fleur?
Em sua ânsia de ajudar, ele lançou o molho pelos ares; Gui fez um gesto com a varinha, e o molho pairou no ar e voltou obedientemente à molheira.
Você é ton desastrrade quanto a Tonks — disse Fleur a Rony, quando terminou de beijar Gui para lhe agradecer. — Ela stá semprre derrrubande…
— Convidei a querida Tonks para vir hoje aqui. — anunciou a sra. Weasley, pondo na mesa as cenouras, com desnecessária violência, e encarando Fleur. — Mas ela não aceitou. Você tem falado com ela ultimamente, Remo?
— Não, não tenho tido muito contato com ninguém. — disse Lupin. — Mas Tonks tem família para visitar, não?
— Hummm. Talvez. Na realidade, tive a impressão de que estava planejando passar o Natal sozinha.
Molly lançou a Lupin um olhar irritado, como se fosse culpa dele que sua futura nora fosse aquela loira em vez da tal Tonks. Ao observar o olhar de adoração de Fleur — que agora oferecia a Gui pedacinhos de peru com o próprio garfo —, vi que a sra. Weasley estava travando uma batalha perdida.
— O Patrono de Tonks mudou de forma. — disse Harry a Remo. — Pelo menos foi o que disse Snape. Eu não sabia que isto podia acontecer. Por que razão um Patrono mudaria?
Lupin demorou algum tempo mastigando o peru, e engoliu-o antes de responder lentamente. Eu sabia exatamente a resposta, apesar de nunca ter sido capaz de realizá-la na prática.
— Às vezes... um grande choque... uma perturbação emocional...
— Parecia grande e era quadrúpede — comentou Harry, tendo uma súbita ideia e baixando a voz. — Ei... não poderia ser...?
— Arthur! — chamou a sra. Weasley de repente. Levantara-se da cadeira; sua mão apertava o peito e tinha os olhos fixos na janela da cozinha. — Arthur... é o Percy!
— Quê?
O sr. Weasley se virou. Todos olharam depressa para a janela; Gina ficou em pé para ver melhor. Um garoto ruivo que batia perfeitamente com a descrição que eu recebera do terceiro Weasley veio avançando pelo quintal coberto de neve, seus óculos de aros de tartaruga refletindo o sol.
Não vinha, porém, sozinho.
— Arthur, ele está... está com o ministro!
De fato, o homem que requisitara meus serviços de agente juvenil acompanhava os passos de Percy, mancando levemente, a cabeleira grisalha e a capa negra salpicadas de neve. Antes que qualquer um pudesse dizer alguma coisa, antes que o sr. e a sra. Weasley pudessem trocar mais que um olhar surpreso, a porta dos fundos se abriu e ali estava Percy. Fez-se um momento de doloroso silêncio. Em seguida, Percy disse formalmente:
— Feliz Natal, mamãe.
— Ah, Percy! — exclamou a sra. Weasley, atirando-se em seus braços.
Rufo Scrimgeour parou à porta, apoiando-se na bengala e sorrindo, enquanto observava a comovente cena.
Meu primeiro instinto foi de correr, mas não consegui me mexer. Ele estava ali por mim? Ele sabia que eu fora passar o Natal ali; descobrira que eu estava ajudando Malfoy e interpretara como uma traição e agora me condenaria?
— Perdoem-me a intromissão — disse, quando a sra. Weasley virou-se para ele, sorrindo e enxugando as lágrimas. — Percy e eu estávamos nas vizinhanças, a trabalho, e ele não pôde resistir à tentação de passar para ver todos vocês.
Mas Percy não deu sinal algum de querer cumprimentar ninguém mais da família. Ficou parado, rígido, sem jeito, olhando por cima das cabeças de todos. O sr. Weasley, Fred e Jorge o observavam, impassíveis.
— Por favor, entre, ministro, sente! — alvoroçou-se a sra. Weasley, endireitando o chapéu. — Voma um pouco de teru ou um pouco de tudim..., quero dizer...
— Não, não, minha cara Molly — respondeu Scrimgeour. Não tinha dúvidas de que ele tinha perguntado o nome dela a Percy antes de entrarem na casa. — Não quero incomodar, não estaria aqui se Percy não tivesse querido tanto ver vocês...
— Ah, Percy! — exclamou a sra. Weasley chorosa, aproximando-se para beijá-lo. — ... é só uma passadinha de cinco minutos, vou dar uma volta pelo quintal enquanto vocês põem a conversa em dia. Não, não, torno a afirmar que não quero ser inconveniente! Bem, alguém gostaria de me mostrar o seu encantador jardim... ah, aquele jovem já terminou, por que ele não me acompanha no passeio?
A atmosfera em volta da mesa mudou perceptivelmente. Todos olharam de Scrimgeour para Harry. Ninguém parecia achar convincente o ministro fingir que não sabia o nome de Harry, nem natural que o escolhesse para acompanhá-lo pelo jardim quando Gina, Fleur e Jorge também tinham os pratos vazios.
— Ah, eu vou. — disse Harry no silêncio que se seguiu.
Quando ambos estavam quase passando pela porta, Rufo Scrimgeour se virou para mim com uma expressão divertidamente irônica e disse:
— Bom vê-la aqui, srta. .
Filho da puta. FILHO DA PUTA. Qual era a porra do problema dele? Queria botar tudo a perder? Não conseguia ficar três segundos sem mostrar aos outros que sabia de algo que eles desconheciam, aquele pretensioso de merda?
— Vo-você conhece o ministro? — questionou Percy Weasley, confuso. A minha existência era secreta demais até mesmo para chegar ao conhecimento do assistente do ministro da Magia. — Desculpe, mas quem é você?
— Não seja indiscreto, Percy. — bronqueou a sra. Weasley, mas sem conseguir ocultar por completo sua própria surpresa. — Esta é , é a nova amiga de Ronald, veio de Castelobruxo, a escola do Brasil…
Obviamente, eles eram educados demais para perguntar como Scrimgeour sabia meu nome, mas eu não podia deixar a dúvida crescer neles. Poderia acabar levando-os para interpretações perigosas, botando tudo a perder.
— O ministro me conhece por causa disso, é claro. — expliquei. — Meus pais são muito próximos do ministro brasileiro, então entrei em contato direto com o sr. Scrimgeour antes de vir para o intercâmbio.
A resposta pareceu satisfazê-los, e continuei comendo até terminar o que tinha no meu prato. Os anfitriões insistiam numa conversa amena com o filho que estivera ausente, mas o rapaz parecia um tanto frio. Envergonhado, talvez. Mas não tive tempo de tentar entender qual era a situação ali. Logo em seguida, Harry e o ministro voltaram, ambos emburrados, e o ruivo forasteiro deixou a casa.
No final da tarde, poucos dias depois do Ano Novo, Harry, Rony, Gina e eu nos enfileiramos ao lado do fogão da cozinha para regressar a Hogwarts. O Ministério providenciara essa conexão com a Rede de Flu para os estudantes poderem se transportar à escola com rapidez e segurança. Apenas a sra. Weasley estava presente para se despedir, porque o marido, Fred, Jorge, Gui e Fleur estavam no trabalho. A sra. Weasley debulhou-se em lágrimas no momento da separação. Na verdade, ela andava chorando a toda hora desde que Percy se retirara bruscamente de casa no dia de Natal, com os óculos sujos de purê de pastinaca (pelo que Fred, Jorge e Gina se diziam responsáveis).
— Não chore, mamãe. — consolava-a Gina, dando palmadinhas nas costas da mãe chorosa ao seu ombro. — Tá tudo bem.
— É, não se preocupe conosco — disse Rony, deixando a mãe plantar-lhe um beijo muito molhado na bochecha — nem com o Percy. Ele é tão babaca que não se perde grande coisa, não é?
A sra. Weasley soluçou ainda mais forte ao abraçar Harry.
— Prometa que vai se cuidar... não se meta em confusões…
— Eu sempre me cuido, sra. Weasley. Gosto de levar uma vida tranquila, a senhora me conhece.
Ela deu uma risada lacrimosa e se afastou.
— Comportem-se, então, todos vocês… Ah, e claro, adorei te conhecer, .
— Muito obrigada por tudo, sra. Weasley. — agradeci, a abraçando.
Harry entrou nas chamas verde-esmeralda e gritou:
— Hogwarts!
Logo em seguida, fiz o mesmo e tive uma última e fugaz visão da cozinha da sra. Weasley com seu rosto molhado de lágrimas antes de ser envolvida pelas chamas. Rodopiando velozmente, captei vislumbres difusos de outros aposentos de bruxos, que sumiam de vista antes que pudesse vê-los direito; por fim desacelerei e parei alinhada com a lareira da sala da professora McGonagall. Ela mal ergueu os olhos do seu trabalho quando saí engatinhando.
— Boa noite, . Sem sujeira.
— Claro, professora.
Harry ajeitou os óculos e achatou os cabelos na hora em que Rony surgiu, rodopiando. Quando Gina chegou, nós quatro saímos da sala de McGonagall e tomamos a direção da Torre da Grifinória.
Bolas festivas. — disse Rony, confiante, quando chegamos ao quadro da Mulher Gorda, que estava bem mais pálida do que o normal e fez uma careta à voz alta do garoto.
— Não. — respondeu ela.
— Como assim “não”?
— Há uma nova senha. E, por favor, não grite.
— Mas estivemos fora, como é que…?
— Harry! ! Gina!
Hermione corria em nossa direção, de rosto muito corado, trajando capa, chapéu e luvas. De cara me envolveu num abraço apertado.
— Cheguei há umas duas horas, dei um pulinho lá embaixo para visitar Hagrid e Bicuço, quero dizer, Asafugaz. — disse sem fôlego. — Tiveram um bom Natal?
— Tivemos. — respondeu Rony na mesma hora —, bem movimentado, Rufo Scrimgeour...
— Tenho uma coisa para você, Harry. — falou Hermione sem olhar para Rony, nem dar sinal de que o ouvira. — Ah, calma aí, a senha. Abstinência.
— Exatamente — confirmou a Mulher Gorda com voz fraca, e girou abrindo o buraco do retrato.
— Que é que ela tem? — perguntou Harry.
— Aparentemente exagerou no Natal. — informou Hermione, olhando para o teto e abrindo caminho para a sala comunal repleta de alunos. — Ela e a amiga Violeta acabaram com aquele vinho no quadro dos monges bêbados junto ao corredor de Feitiços. Então...
Ela remexeu no bolso um instante e tirou um rolo de pergaminho com a caligrafia de Dumbledore.
— Legal! — exclamou Harry, desenrolando-o imediatamente. Quando abaixou a folha depois de lê-la, captei as palavras “amanhã à noite”. — Tenho um monte de coisas para contar a ele... e a você. Vamos sentar...
Mas naquele momento ouviram um guincho de “Uon-Uon!”, e Lilá Brown apareceu correndo, ninguém sabe de onde, e atirou-se nos braços de Rony. Muitas pessoas ao redor abafaram risinhos. Eu revirei os olhos. Bobalhão do jeito que era, duvidava que Rony fosse tecer qualquer comentário a respeito do presente ridículo que Brown lhe dera de Natal. Hermione soltou uma risada tilintante e disse:
— Tem uma mesa ali adiante... você vem, Gina?
— Não, obrigada, prometi me encontrar com o Dino — respondeu a garota, não muito entusiasmada. Refleti comigo mesma se aquela reação teria alguma relação com nossa breve conversa na noite de Natal.
Deixando Rony e Lilá atracados em uma espécie de luta livre vertical, Harry conduziu Hermione para a mesa vazia, e puxei uma cadeira ao lado de minha amiga.
— Então, como foi o Natal?
— Ah, bom. — Ela sacudiu os ombros. — Nada especial. E como foi na casa do Uon-Uon? — debochou ela.
Eu e Harry nos atropelamos na resposta, falando ao mesmo tempo:
— Foi ótimo, conheci… — comecei.
— Conto num minuto — disse Harry. Se virou para mim. — Desculpe, , não queria te interromper.
— Imagina, pode falar.
O garoto suspirou, voltando-se para Mione.
— Olhe, Hermione, será que você não pode…
— Não, não posso. — respondeu ela taxativamente. — Por isso nem me peça.
— Pensei que talvez, sabe, durante as férias de Natal...
— Foi a Mulher Gorda que bebeu um barril de vinho de quinhentos anos, Harry, e não eu. Então, que notícias importantes eram essas que você queria me contar?
No momento ela parecia agressiva demais para discussões, então Harry deixou de lado o assunto Rony e relatou o que escutara Malfoy e Snape dizerem.
Quando ele terminou, Hermione refletiu por um instante e disse:
— Você não acha...?
— ... que ele estava fingindo oferecer ajuda para poder induzir Malfoy a lhe contar o que estava fazendo?
— Bem, é isso.
Aquilo era no mínimo engraçado, porque essa era exatamente minha estratégia: ajudar Malfoy para me aproximar dele e descobrir o que estava fazendo, acertando dois coelhos numa cajadada só e impedindo a concretização do que ele deveria cumprir para o Lorde das Trevas.
— O pai de Rony e Lupin acham que sim — concedeu Harry de má vontade. — Mas isto só prova que Malfoy está tramando alguma coisa, isto você não pode negar.
— Não, não posso. — respondeu ela lentamente.
— E ele está agindo por ordens de Voldemort, exatamente como falei!
— Hum... algum dos dois chegou a mencionar o nome de Voldemort?
Harry franziu a testa, tentando lembrar.
— Não tenho certeza... Snape disse “o seu senhor”, quem mais poderia ser?
— Não sei. — respondeu Hermione mordendo o lábio. — Talvez o pai dele?
Ela fixou o olhar do lado oposto da sala, aparentemente perdida em pensamentos, sem sequer reparar que Lilá fazia cócegas em Rony.
— Como vai o Lupin?
— Nenhuma maravilha. — respondeu Harry contando-lhe a missão de Lupin entre os lobisomens e as dificuldades que estava enfrentando; forjei uma expressão interessada, como se fosse a primeira vez que eu ouvia aquilo. — Você já ouviu falar de Lobo Greyback?
— Já! — exclamou Hermione levando um susto. — E você também, Harry!
— Quando, em História da Magia? Você sabe muito bem que nunca prestei atenção...
— Não, não, não foi em História da Magia: Malfoy usou o Lobo para ameaçar Borgin! Lá na Travessa do Tranco, não se lembra? Ele disse que o Lobo Greyback era um velho amigo da família e que iria verificar o andamento do serviço!
Harry ficou boquiaberto.
— Eu tinha me esquecido! Mas isto comprova que Malfoy é um Comensal da Morte, de que outro modo ele poderia estar em contato com Greyback, e lhe dizer o que fazer?
— É muito suspeito. — sussurrou Hermione. — A não ser que...
— Ah, fala sério — exclamou Harry exasperado —, não dá para você justificar essa!
Contive a vontade de espalmar a mão contra minha própria testa.
— Bem... há uma possibilidade de que tenha sido uma falsa ameaça.
— Você é inacreditável, ah, é — disse Harry balançando a cabeça. — Você vai ver quem tem razão... você vai engolir o que está dizendo, Hermione, como fez o Ministério. Ah, sim, e também tive uma briga com Rufo Scrimgeour...
E o resto da noite se passou amigavelmente, com os dois xingando o ministro da Magia, porque Hermione, tal como Rony, achou que, depois de tudo que o Ministério tinha feito Harry sofrer no ano anterior, era muita cara de pau agora lhe pedir ajuda. Eu concordava, mas não quis participar da conversa para evitar que Harry se lembrasse do contato que Scrimgeour tivera comigo e fizesse muitas perguntas.
O novo trimestre começou na manhã seguinte com uma surpresa agradável para o sexto ano: um grande aviso fora pregado durante a noite nos quadros da sala comunal.

AULAS DE APARATAÇÃO
Se você tem dezessete anos, ou vai completá-los até 31 de agosto, inclusive, poderá se inscrever em um curso de Aparatação de doze aulas semanais com um instrutor do Ministério da Magia.
Se quiser participar, assine abaixo, por favor.
Custo: 12 galeões


Harry e Rony se juntaram à multidão que se acotovelava em volta do aviso, revezando-se para se inscrever no local indicado. Eu, por já ter minha licença para aparatar, observava a aglomeração enquanto Rony ia apanhando a caneta para assinar logo depois de Hermione, e foi quando Lilá se aproximou sorrateiramente pelas costas dele, cobriu seus olhos com as mãos e cantarolou “Adivinha quem é, Uon-Uon?”. Harry virou-se e viu Hermione se afastar discretamente, de braços dados comigo. Surpreendentemente, logo Rony alcançou nós três um pouco adiante do buraco do retrato, com as orelhas em fogo e uma expressão aborrecida no rosto. Sem dizer uma palavra, Hermione se apressou e me puxou para caminharmos com Neville.
— Não acredito que você ainda está de birra com ele — ri, soltando seu braço para prender meu cabelo em um coque.
— E eu por acaso tenho motivo para deixar de estar? — replicou ela, soando mais aborrecida do que aparentava.
— Não sei, talvez o espírito natalino? — tentei, ao que ela me fitou com um olhar fulminante.
— Você pode falar para o Rony enfiar o espírito natalino dele no próp…
— Ok, já entendi — ergui as mãos em sinal de rendição.
A briguinha deles era tremendamente engraçada, mas às vezes ultrapassava a tênue linha do “infantil”. Revirei os olhos sem que ela visse, sorrindo com minhas próprias ideias. Não tinha dúvida de que aquilo ainda ia dar em casamento.



Capítulo 18

POV

No dia seguinte, Harry confidenciou a mim o dever que Dumbledore lhe passara, depois de ter falado individualmente com os outros dois componentes do trio de ouro: obter uma lembrança muito específica do professor Slughorn, em que ele revelara ao jovem Voldemort uma informação crucial para sua ascensão de bruxo das trevas.
— Rony achou que eu não vou ter dificuldade com Slughorn — ele explicou, num dos breves intervalos entre as aulas que passávamos juntos. — Hermione não foi tão otimista, mas eu já esperava.
— Você já tentou procurar nos livros essas tais… Horcruxes? — pronunciei o nome devagar.
Dificilmente ele encontraria informações sobre aquele tipo de magia nos volumes de Hogwarts. Eu, porém, tinha os meios para sanar sua dúvida. Meu exemplar de Segredos das artes mais tenebrosas estava muito bem escondido no fundo falso do malão, junto com o dossiê sobre Malfoy, o estojo de veludo da pulseira de Ravenclaw e alguns outros itens especiais, relíquias de família que poderiam se mostrar úteis. Contudo, eu sabia que soaria suspeito demais eu possuir exatamente o exemplar que tratava daquele tipo de magia negra, tão obscuro que nem mesmo eu estava familiarizada.
— Hermione procurou até na seção reservada da biblioteca mas não achou nada conclusivo. — Ele bufou, enquanto saíamos do pátio e chegávamos ao corredor das masmorras.
As aulas de Poções eram bem constrangedoras ultimamente, uma vez que Rony e Hermione tinham de dividir a mesma mesa. Eu estava pensando seriamente na possibilidade de me espremer na mesa de Malfoy, Zabini, Pansy e Daphne, porque pelo menos não havia o mesmo clima merda da mesa dos grifinórios. Naquele dia, Hermione mudou a posição do caldeirão de modo a ficar perto de mim e Ernesto, o lufano que dividia a bancada conosco, e ignorou os dois amigos.
— Que foi que você fez? — murmurou Rony para Harry, olhando para o perfil arrogante de Hermione.
Mas, antes que Harry pudesse responder, Slughorn pediu silêncio à frente da turma.
— Acomodem-se, acomodem-se, por favor! E depressa, temos muito o que fazer hoje à tarde! A Terceira Lei de Golpalott... quem sabe me dizer...? A srta. Granger sabe, é claro!
Hermione recitou-a em grande velocidade:
— A Terceira Lei de Golpalott diz que o antídoto para uma mistura venenosa será maior do que a soma dos antídotos para cada um de seus elementos.
— Exatamente! — exclamou sorridente o professor. — Dez pontos para a Grifinória. Agora, se considerarmos a Terceira Lei de Golpalott verdadeira...
Olhei para os outros alunos ao redor de mim; todos, exceto Hermione e Draco, exibiam uma careta confusa. A garota porque compreendia, e o garoto porque tinha uma expressão exausta e meio doentia.
— ... o que significa, naturalmente, que, supondo que tenhamos identificado corretamente os ingredientes da poção, com o Revelencanto de Scarpin, o nosso objetivo primário não é a simples seleção de antídotos para os ingredientes por si e de si, mas encontrar o componente adicional que, por um processo quase alquímico, transformará esses elementos díspares...
Rony estava sentado ao lado de Harry com a boca entreaberta, babando distraído sobre o seu exemplar novo de Estudos avançados no preparo de poções. Pelo visto ele esquecera que não podia mais depender de Hermione para ajudá-lo a sair das dificuldades quando não conseguia entender o que estava acontecendo. Pelo menos agora eu estava lá para impedir que ele reprovasse.
— ... e portanto — terminou Slughorn —, quero que cada um de vocês venha apanhar um dos frascos sobre a minha escrivaninha. E deverão criar um antídoto para o veneno que o frasco contém antes do fim da aula. Boa sorte, e não se esqueçam das luvas protetoras!
Hermione deixara o seu banco e estava a meio caminho da escrivaninha de Slughorn, antes que o restante da turma tivesse entendido que era hora de se mexer; e quando, finalmente, Harry, Rony e Ernesto voltaram à mesa, a garota já tinha despejado o conteúdo do frasco e estava acendendo um fogo sob o caldeirão.
Contive a vontade de simplesmente usar um Feitiço Convocatório, e me arrastei até a mesa de Slughorn. Junto comigo, vinha Draco a passos largos, e vi ele pegando um frasco de veneno com as mãos trêmulas. Segurei o punho dele, escondendo nosso toque do resto da turma, e olhei em seus olhos.
— Draco? — sussurrei. — O que aconteceu com você?
Era nosso primeiro contato desde dezembro. Ele não respondeu, apenas entreabriu os lábios rachados e se desvencilhou silenciosamente de mim, voltando para seus colegas. Meu olhar cruzou com o de Pansy, que também franzia a testa, preocupada com o melhor amigo.
— É uma pena que o Príncipe não vá lhe adiantar muito, Harry — disse Hermione animada ao se levantar quando cheguei. — Desta vez é preciso compreender os princípios envolvidos. Não existem atalhos nem colas!
Aborrecido, Harry desarrolhou o veneno rosa berrante que apanhara na escrivaninha de Slughorn, despejou-o no caldeirão e acendeu um fogo embaixo. Olhou para Rony, que agora estava parado ali com cara de bobo, depois de copiar tudo que Harry fizera.
— Você tem certeza de que o Príncipe não dá nenhuma dica? — murmurou Rony para Harry.
Harry apanhou seu surrado e rabiscado exemplar de Estudos avançados no preparo de poções e abriu-o no capítulo sobre antídotos.
— Nada — respondeu Harry com tristeza.
— Vocês precisam destilar o veneno — expliquei. — Por destilação fracionada, porque os componentes vão se separar e vocês vão poder recolhê-los individualmente e reconhecê-los.
Ambos olharam para mim, surpresos por eu saber informar a tarefa, mas ao mesmo tempo confusos por não terem compreendido o que eu dissera. Hermione agora acenava a varinha com entusiasmo sobre o caldeirão. Infelizmente, seus dois amigos não podiam copiar o feitiço que ela estava executando porque agora aperfeiçoara feitiços não verbais, então não precisava pronunciar as palavras em voz alta. Ernesto Macmillan, porém, estava murmurando “Specialis revelio!” sobre o caldeirão, e Harry e Rony se apressaram a imitá-lo.
Pela cara que Harry apresentava depois de cinco minutos, ele parecia perceber que sua reputação de melhor preparador de poções da turma estava desmoronando à sua volta. Slughorn dera uma espiada esperançosa dentro do seu caldeirão, em sua primeira ronda pela masmorra, preparado para soltar exclamações de prazer como geralmente fazia, mas, em vez disso, erguera a cabeça depressa, tossindo, porque o cheiro de ovos estragados o sufocara. A expressão de Hermione não poderia ser mais presunçosa; ela aceitava que eu fosse melhor na disciplina, mas não Harry. Agora, ela decantava os ingredientes do seu veneno, perfeitamente separados, em diferentes frasquinhos de cristal. Observando que eu e Mione já estávamos bem avançadas no preparo, o professor Slughorn elogiou ambas. Harry se debruçou sobre o livro do Príncipe Mestiço e virou algumas páginas com desnecessária violência. Por algum motivo, levantou-se como se tivesse levado um choque e correu ao armário de classe. Voltou segundos depois segurando um objeto que parecia uma pedra enrugada, como um órgão seco que fora enterrado fora do corpo. Um bezoar. “Garoto esperto”, pensei, franzindo a boca para conter o sorriso.
— Tempo... ENCERRADO! — anunciou Slughorn cordialmente. — Vamos ver como vocês se saíram! Blásio... que é que você tem aí?
Lentamente, Slughorn foi se deslocando pela sala, examinando os vários antídotos. Apenas eu terminara o dever, embora Hermione estivesse tentando forçar mais alguns ingredientes para dentro do seu frasco antes de Slughorn passar. Rony desistira completamente, e apenas tentava evitar inalar os vapores fétidos que emanavam do seu caldeirão. Harry ficou parado aguardando, o bezoar apertado na mão visivelmente suada.
Slughorn foi a nossa mesa por último. Ele cheirou a poção de Ernesto e passou à de Rony com uma careta. Não se demorou sobre o caldeirão de Rony, recuando depressa com uma ligeira ânsia de vômito.
— E você, Harry. Que tem para me mostrar?
O garoto estendeu a palma da mão com o bezoar.
Slughorn contemplou-o por longos dez segundos. Me perguntei se o garoto iria levar um berro do professor. Então, ele atirou a cabeça para trás às gargalhadas.
— Você é atrevido, rapaz! — trovejou ele, apanhando o bezoar e erguendo-o no ar para que toda a turma o visse. — Ah, você é como sua mãe... bem, não posso dizer que está errado... um bezoar certamente agiria como antídoto para todas essas poções!
Hermione, que tinha o rosto suado e fuligem no nariz, ficou lívida. Seu antídoto, ainda pela metade, que compreendia cinquenta e dois ingredientes inclusive uma mecha dos próprios cabelos, borbulhava devagarinho às costas de Slughorn, que não via mais ninguém senão Harry.
— E você pensou no bezoar sozinho, foi, Harry? — perguntou a amiga entre dentes.
— Esse é o espírito individual imprescindível a um verdadeiro preparador de poções! — exclamou Slughorn alegre, antes que Harry pudesse responder. — Igualzinho à mãe, Lílian tinha a mesma compreensão intuitiva do preparo de poções, sem dúvida ele herdou da mãe... certo, Harry, certo, se você tivesse um bezoar à mão, é claro que resolveria... mas, como bezoares não servem para tudo e são bem raros, ainda vale a pena saber preparar antídotos… e a senhorita, perfeita como sempre, não, ? — O mestre de Poções estalou os lábios. — Dez pontos para a Grifinória por ter uma bruxa tão excepcional.
A única pessoa na sala que parecia mais irritada do que Hermione era Malfoy, que derramara na roupa algo que lembrava vômito de gato. Antes, porém, que qualquer dos dois pudesse expressar sua fúria por Harry ter sido um dos melhores da turma sem se esforçar, a sineta tocou.
— Hora de guardar tudo! — disse Slughorn. — E mais dez pontos para a Grifinória pela ousadia!
Ainda rindo, ele voltou gingando à sua escrivaninha à frente da masmorra. Harry se demorou, levando um tempo excessivo para arrumar a mochila. Nem Rony nem Hermione direcionaram a palavra a nenhum de nós quando saíram; os dois pareciam muito aborrecidos. Por fim, murmurei um “boa sorte” ao me retirar, deixando apenas Harry e Slughorn na sala.
No corredor (já vazio, pois todos estavam no Salão Principal para almoçar), Draco Malfoy estava encostado à parede, parado e encarando um ponto fixo a sua frente como se estivesse se concentrando para não entrar em colapso. Andei até ele, deixando a mochila cair a nossos pés, e o segurei pelos ombros.
— Draco, o que fizeram com você?
Ele não conseguiu responder, cambaleando quando tentou desencostar da pedra. Agarrei-o em um abraço forçado, vendo suas pálpebras vacilarem.
— Você precisa ir à ala hospitalar — falei com firmeza.
— Não — ele se desesperou, murmurando um pouco desconexo: — Não, , por favor… Eles não podem… Snape… e minha Marca…
— Sala Precisa então — o cortei, com um tom de voz que não deixava margem para discussão.
— Muito longe — ele argumentou. — O banheiro… do segundo andar.
Concordei, tomando o caminho pelos corredores desertos até subirmos para lá.
A fantasma que eu vira conversar com ele no outro dia olhou para mim com curiosidade, dedicando especial interesse a minha pulseira com o diamante de Ravenclaw. Meu coração errou uma batida; e se ela reconhecesse a pedra da fundadora de sua casa? Começaria a fazer uma série de perguntas na frente de Malfoy, perguntas que eu não sabia e não queria responder.
— Eu vou rápido na Torre da Grifinória pegar uma coisa pra te ajudar — falei, obrigando-o a se sentar num vaso sanitário fechado, e correndo logo em seguida.
Chegando lá, aproveitei que o dormitório estava vazio e não me preocupei em ser discreta. Revirei meu malão até puxar um saquinho de seda vermelha, com sete pequenos frascos dentro, e retirei um deles. Esculpido na rolha estava um caduceu, símbolo da medicina, formado por duas cobras enroladas em volta de um bastão. Uma das relíquias da família .
Dois minutos depois, estava de volta ao banheiro, na frente de Malfoy, esbaforida e apertando entre os dedos a poção que levara para ele.
— É uma Poção Energizante — expliquei. — Você vai se sentir melhor e vamos entender o que aconteceu.
Aproximei o frasco de minha própria boca, e sussurrei “Abra”. O sibilado que saiu de meus lábios fez com que as cobrinhas se desentrelaçassem e permitissem que eu removesse a rolha. Porém, o som também ocasionou um grito horrorizado da fantasma.
— É ela! Ela é outra herdeira de Slytherin!
Olhei para Draco, sem entender. Ele parecia extremamente chocado.
— Você é ofidioglota? — ele perguntou, embasbacado. — Será que há alguma coisa que você não saiba fazer?
— Um Patrono — minha resposta saiu rápida e afiada. — E eu não sou herdeira de Slytherin. É muita prepotência de vocês assumir que só Slytherin poderia ter me passado essa dom. A ofidioglossia é relativamente comum nas famílias de sangue puro no Brasil.
A garota translúcida parecia desconfiada e assustada.
— Eu devia saber que os bruxos britânicos seriam extremamente preconceituosos em relação a isso — bufei, estendendo o frasco. — Saber falar com as cobras não é uma arte das trevas, é só um dom que eu desenvolvi.
— Potter também é ofidioglota — resmungou Draco para si mesmo, antes de tomar a poção que lhe ofereci como se fosse um shot de vodka. Assim que engoliu, a cor pareceu ter voltado um pouco a sua pele.
Fitei-o, sem entender o propósito do comentário (talvez ciúmes?), e decidi ignorar. Segurei as mãos do garoto, que ficou tenso mas não recuou.
— Draco, por favor. Me deixa te ajudar. Me conta o que você precisa fazer.
Ele olhou em meus olhos apenas por uma fração de segundo, nervoso.
— Consertar aquele armário.
— Você sabe que não é essa a resposta que eu quero.
— Mas é a que eu posso te dar.
— E o que aconteceu no Natal? — insisti. — Isso você pode me dizer?
Ele continuou quieto.
— Ok — me afastei, com uma risada irônica. — Eu sou boa o bastante para te ajudar a consertar aquele armário estúpido, boa o bastante para você dar uns amassos em corredores escuros, mas não para você me contar que porra aconteceu nas festas de fim de ano. Entendi. — Peguei minha mochila, pendurando a alça num dos ombros.
Já me encaminhava para a porta, fazendo a cena dramática que eu sabia que surtiria efeito, mas não estava preparada para o que ouvi.
— Ele me torturou, — ele murmurou, por fim.
Parei sob o umbral, com o coração apertado.
— Q-quem?!
— O Lorde das Trevas. Ele… — Draco fechou os olhos, como se a mera lembrança doesse. — Ele disse que eu estava demorando demais. Foi muito rápido… Alguns segundos só. Mas…
A garganta dele se fechou, e voltei a me aproximar.
— Mas eu fiquei pensando se ele não estaria fazendo isso com minha mãe. Ele está na nossa casa… e eu sou o segundo Malfoy que vem se mostrando insuficiente.
Cerrei as mãos com força, sentindo as pontas das unhas machucarem a pele fina da palma. Me identificava perfeitamente com a sensação de estar falhando numa missão importante: era exatamente o que eu sentia no momento. Não lhe disse nada; apenas o abracei para junto de mim, e pela segunda vez ele chorou em meus braços. Ficamos longos minutos ali, agarrados, dentro de um banheiro meio sujo e com a presença fantasmagórica da falecida Murta Warren.
— Obrigado — ele falou quando finalmente se afastou. Passou as palmas das mãos nas bochechas, e me olhou, sério. — Agora você tem que me contar alguma coisa também. Estou me sentindo um idiota.
Fiquei dividida entre recusar e rir. Por fim, abri um sorrisinho.
— Você não é idiota. E já sabe tudo que precisa saber sobre mim.
— Mentira.
O tom acusatório me trouxe um calafrio. Por um instante, imaginei se ele já não sabia mais do que eu pensava.
— Não tenho razão para mentir para você.
Minha frase foi paradoxal, por ser ela mesma uma mentira.
— Então me explique o que houve com você naquele dia — ele pediu. — Depois que duelamos. Quando você chorou e apertou minha Marca até eu gritar.
Minha boca subitamente ficou seca. Para meu horror, meus olhos se encheram de lágrimas antes que eu pudesse contê-las, e ele franziu as sobrancelhas, intrigado com a repentina e rara demonstração de emoção.
Cada pessoa lida com seus traumas de uma forma, e a minha tinha sido aquela: encerrar os fatos que ocorreram no meu próprio íntimo e remoer aquilo sozinha. Busquei ajuda, obtive ajuda, mas nunca fui direcionada com exatidão em relação ao que devia fazer. Contudo... dentro daquele banheiro, senti algo mudar. Nunca tinha contado aquela história por completo a ninguém, nem mesmo a Felícia ou meus pais, mas algo dentro de mim parecia dizer que aquela era a hora. Por isso, ocultando os detalhes que revelavam minha condição de agente juvenil, comecei:
— Aconteceu quando eu tinha 13 anos. Castelobruxo é uma construção tão antiga quanto Hogwarts, cheia de passagens secretas e corredores e salas isoladas… E um dia, um menino mais velho me segurou em um canto escuro de Castelobruxo e me apertou contra a parede. — Respirei fundo, me forçando a continuar. — Eu entrei em pânico. Não sabia o que ele ia fazer comigo; uma menina que tinha acabado de entrar na puberdade, sem varinha e imobilizada… Mil cenários horríveis e traumáticos passaram pela minha cabeça naquele instante.
Coloquei uma mecha atrás da orelha, tentando pensar em como eu explicaria aquilo.
— Felizmente, nada do que eu temia aconteceu. — Tentei abrir um sorriso, que logo se desvaneceu. — Infelizmente, aconteceu outra coisa. Ele…
A lembrança da voz, rascante e grave, me arrepiou. A voz que me assombrava, que tomara a boca de Draco durante um sonho, que ditara as palavras que mudaram minha vida.
— Naquele dia eu recebi uma profecia. E por muitos anos, não houve um só dia em que eu não tivesse pesadelos horripilantes com o que ela dizia. — Expirei pesadamente. — Seis versos. Seis versos que me atormentam desde os treze anos, e que eu não faço ideia do que signifiquem. A voz dele ficou toda distorcida… e ele disse… — Fechei os olhos, e deixei as frases já memorizadas fluírem por meus lábios: — A garota além-mar acenderá as chamas do fim sob as estrelas. A cobra maligna atacará, mas sem jamais obtê-las. O pomo de ouro residirá na esclarecida coroa. Sozinha e sem paz no instante mais puro, por mais que doa. O sofrimento acabará quando o dragão abrir suas asas… e o raio açoitar a serpente sob as quatro casas.

Draco POV

Fiquei em silêncio ao ouvir aquela declaração. Não conseguia entender. Meu pai fora preso por tentar obter uma profecia e falhar, e agora me dizia que tinha recebido uma sem nem pedir por ela? Por quê? E o que diabos aquilo significava? Eu também não entendia direito; os versos falavam de simbologias mágicas que não faziam sentido juntas: cobras, raios, estrelas, coroas, dragões… Só o que dava pra relacionar com a vida de era o pomo de ouro, porque ela de fato jogava na posição de apanhadora. Mas quadribol parecia ser algo tão mundano para ser digno de menção em uma profecia…
Ficamos quase um minuto em silêncio. Seus olhos castanhos secaram, mas era nítido que o exterior aparentemente controlado divergia enormemente do turbilhão de lembranças e sentimentos que havia em seu interior.
— Eu saí de Adivinhação, então nem posso ajudar — foi o que consegui dizer, tentando minimamente fazer uma gracinha, mas continuou apática, apesar de esboçar um mínimo sorriso.
Não foi a coisa mais brilhante a se dizer, visto que era um assunto que claramente afetava muito a garota, mas eu mesmo estava cansado, esgotado, traumatizado e pressionado.
— Bom, acho que eu só vou descobrir quando ela se concretizar — ela suspirou, segurando minhas mãos para me ajudar a levantar. Fiquei de pé com relativa facilidade; sua poção realmente ajudara.
A conversa não foi muito além daquilo, apesar da seriedade do assunto, mas os próximos dias foram permeados pela presença de além do normal na minha rotina, em encontros que pareciam deslocados da realidade.
O primeiro foi numa noite fria em meados de janeiro, em que eu me dei conta de que poderia usar as ausências de Dumbledore da escola a meu favor. Eu já vira o quão destruídos sua mão e seu braço iam ficando dia após dia, e suspeitava que o que quer que fosse aquilo estivesse enfraquecendo-o vertiginosamente. Já seria uma vantagem. Quem sabe pegá-lo de surpresa num de seus retornos? Com esse pensamento em mente, desviei meu destino da Sala Precisa para a Torre de Astronomia, o ponto mais alto e isolado de Hogwarts, oculto pela escuridão da madrugada.
Para minha surpresa, apesar de ser quase meia noite e o ar estar gelado e cortante, eu tinha companhia.
— O que você está fazendo aqui? — quase cuspi o questionamento num sussurro enfurecido.
Os olhos castanhos de me fitaram com deboche.
— Só você pode quebrar as regras agora? — Ela apontou para o telescópio com um gesto vago. — Vim olhar as estrelas.
— Por causa da sua profecia?
Porra, isso foi insensível, mas só percebi depois de já ter proferido. Ela, porém, hesitou só por um instante antes de responder:
— Um pouco. Mas sempre gostei de observar os astros, os números e os sinais da natureza, que são não-mágicos, porque interferem nas nossas vidas além do que podemos controlar. E eu gosto de tentar me antecipar aos infortúnios.
— Por isso que a ideia da profecia te incomoda tanto — concluí, me aproximando dela. — Porque o seu destino está posto diretamente em palavras, mas mesmo assim você não consegue entender.
abriu a boca para dizer algo, mas acabou desistindo. Desviou o corpo de mim, dando a volta no telescópio. Só vários minutos depois, perguntou:
— Que dia é seu aniversário?
— 5 de junho.
Ela riu.
— Claro.
— Por quê?
— Você tem a personalidade que condiz com a data. — Ela levou o olho ao visor do equipamento, ajustando delicadamente botões e roldanas com as próprias mãos em vez de usar a varinha. Ainda observando o céu, ela continuou: — Você se acha super objetivo, mas se envolve emocionalmente com tudo o que faz. E fica muito infeliz quando não se sente devidamente reconhecido pelo mundo. Sonha com fama e sucesso como um bom sonserino, mas demora para achar o caminho que pode te levar até lá… — se endireitou, agora com os olhos nos meus. — E toma decisões bem duvidosas no percurso.
Mais uma vez, a análise dela fora perfeita. Aritmancia, Astronomia, Astrologia… Todos os conhecimentos que ela acumulava e estudava pareciam corroborar as certezas que tinha a meu respeito, o que me assustava.
— Não sou nada disso. Eu não… me envolvo emocionalmente… — resmunguei.
Ela mordeu a boca, me desafiando. Nós dois sabíamos que era mentira.
— Minha vez — falei, puxando a ocular do telescópio para mim. — Vou te mostrar uma coisa.
Vasculhei o céu à procura de um específico amontoado de estrelas. Ela apoiou a mão despretensiosamente no meu ombro, e subitamente fiquei excessivamente consciente do calor de sua palma através de meu suéter.
— Aqui.
Dei o lugar a ela para que visse a constelação.
— Se chama Draco — expliquei. — Pelo visto é um dragão que guardava um jardim estúpido ou algo assim. E virou meu nome. É uma tradição da família da minha mãe, todos têm nomes de estrelas.
Depois de observar por um longo minuto, voltou a me encarar, mas não perguntou nada, nem mesmo o motivo de eu estar mostrando aquilo.
— Você se parece, sabia? — ela por fim declarou. — Com a constelação. Pontos prateados de luz rodeados por trevas.
A frase me atingiu como um soco, e ela percebeu. Na verdade, eu poderia apostar que esse fora o objetivo.
— Boa noite, Draco — desejou ela, baixinho, segurando minha mão para soltá-la no último segundo, já distante demais para que eu a puxasse.
O segundo momento foi alguns dias depois, com Pansy. Estávamos na sala comunal, os dois deitados no sofá em pontas opostas, olhando para o teto. O tédio e a ansiedade me fizeram ir até meu malão e pegar dois frasquinhos de meu Euphoria Elixir; tomei um e ela outro. Minha mãe sempre me orientara a nunca experimentar esse tipo de poção, porque tinha medo que eu me viciasse. Mas, bom, qual bruxo que nunca ficou doidão com poções daquelas durante a adolescência?
— Você é um babaca de sorte, Malfoy — sua voz ligeiramente pastosa me acusou.
— Eu sou? — questionei, incerto, mas feliz por ela me considerar sortudo. Sob o efeito daquela magia, tudo parecia mais colorido e descomplicado.
— É — ela respondeu, com uma risada sonhadora. — Você beija a .
— Eu beijo a — repeti, abobalhado, lembrando das várias vezes que a boca de estivera na minha. — E a … a é…
— Perfeita — completou Parkinson, como se estivesse apaixonada. — E inteligente. E divertida…
— E gostosa — acrescentei. Imagens da garota rodopiavam pela minha mente: usando biquíni, uniforme, vestido preto, vestido vermelho, vestido dourado… E aquele maldito batom. — Por Merlim, ela é muito gata.
— Eu pegaria a — Pansy declarou.
— Eu namoraria a — eu declarei, e ficamos os dois em silêncio.
Só quando o efeito do Elixir passou, dez minutos depois, que nos levantamos num pulo, quase gritando em uníssono:
— VOCÊ O QUÊ?
Atraindo os olhares dos primeiranistas assustados, Parkinson andava de um lado para o outro sobre o tapete.
— Eu pensei que você odiasse grifinórias! — ela berrou.
— Eu pensei que você fosse hétero! — repliquei no mesmo tom, arregalando os olhos.
Ficamos mais uma meia hora discutindo ali sobre meu ódio à casa rival e a sexualidade dela, ambos roxos de vergonha pelo que a poção nos permitira dizer, e só calamos a boca quando Daphne Greengrass arremessou um rolo de pergaminho na cara da amiga. (Não pude deixar de observar que ela mesma estava um pouco corada, e olhava para Pansy de um jeito ligeiramente diferente; seria… esperançoso?).
O terceiro momento foi na aula de aparatação. não estava lá, mas Potter, Weasley e Granger sim. E, claro, Crabbe e Goyle, que queriam satisfações mais detalhadas do porquê de eu estar, já havia algumas semanas, dispensando suas companhias durante certas horas do dia.
— No início do ano você surtou e falou que ia precisar de nossa ajuda todo dia, e agora dispensa a gente sem mais nem menos — reclamou Goyle em voz baixa. — Foi só aquela garota te beijar que você desfocou de tudo e praticamente esqueceu a nossa existência.
— Silêncio, alunos! — pediu a prof. Sprout, sendo ecoada por McGonagall e Flitwick. Snape me encarava severamente.
— Se estou fazendo isso, é porque há um motivo relevante — rebati para meu amigo, irritado, enquanto o instrutor do Ministério falava na frente da sala.
— Bom-dia, meu nome é Wilkie Twycross…
— Para tudo você usa essa desculpa — disse Crabbe.
— …e serei o seu instrutor ministerial de Aparatação nas próximas doze semanas. Espero poder prepará-los para o teste de Aparatação, neste prazo...
— Porque é verdade — repliquei entre dentes.
— Malfoy, sossegue e preste atenção! — vociferou a professora McGonagall.
Todos se viraram. Senti meu rosto todo arder; enfurecido, me afastei de Crabbe. Já estava inquieto o bastante pela ausência de ; o que caralhos ela devia estar fazendo? E se estivesse na Sala Precisa, atrasando propositadamente todo o trabalho que tínhamos feito, como uma agente dupla? E se estivesse contando a Dumbledore tudo que tinha descoberto sobre mim? E se… e se estivesse por aí, aos beijos com um setimanista bem menos problemático que eu?
— ... prazo em que muitos de vocês talvez estejam prontos para fazer o teste — continuou Twycross, como se não tivesse havido interrupção. — Como vocês talvez saibam, normalmente é impossível aparatar ou desaparatar em Hogwarts. O diretor suspendeu este encantamento, apenas no Salão Principal, por uma hora, para que vocês possam praticar. Aproveito para enfatizar que não poderão aparatar fora das paredes deste Salão, e que seria imprudente tentar. Gostaria agora que cada um se posicionasse deixando um metro e meio de espaço livre à frente.
Houve um grande empurra-empurra durante o qual as pessoas se separaram, colidiram e mandaram os colegas dar distância. Os diretores das Casas andavam entre os alunos, enfileirando-os em posição e interrompendo discussões. Aproveitando a distração dos docentes, continuei a discussão com Crabbe, a um metro e meio dele.
— Não sei quanto tempo vai demorar, tá bem? — disparei. — Está levando mais tempo do que pensei.
Crabbe abriu a boca. Eu sabia que ele ia perguntar de , e me acusar de estar perdendo tempo com ela; às vezes eu ainda pedia para ele e Goyle ficarem na frente da sala, por precaução, sob o disfarce da Poção Polissuco. Antes que o garoto falasse qualquer coisa, me apressei:
— Escuta aqui, não é de sua conta o que estou fazendo, Crabbe, você e Goyle façam o que eu mando e fiquem de olhos abertos!
— Eu digo aos meus amigos o que estou fazendo, se quero que eles fiquem vigiando para mim — ouvi a voz de Potter perigosamente perto de mim, logo atrás de onde eu estava. Fiquei furioso e assustado com a proximidade, e girei nos calcanhares com a varinha na mão. Contudo, naquele exato momento os quatro diretores das Casas gritaram:
— Quietos! — E fez-se novamente silêncio.
Ainda querendo retalhar Potter com uma azaração, me virei para frente devagar. Intrometido de merda.
— Obrigado — disse Twycross. — Agora então...
Ele acenou a varinha. Instantaneamente apareceram aros de madeira no chão em frente a cada estudante.
— É importante lembrar dos três Ds quando aparatamos! Destinação, Determinação e Deliberação! Primeiro: concentrem a mente na destinação desejada — disse Twycross. — No caso, o interior do seu aro. Agora, façam o favor de se concentrar nesta destinação.
Os alunos olharam para os lados furtivamente, para verificar se todos estavam olhando para o próprio aro, então obedeceram depressa. Fixei o espaço circular no chão empoeirado circunscrito pelo aro e fiz força para não pensar em mais nada. Não foi possível, porque a imagem de beijando outro garoto me vinha à cabeça em flashes constantes e insuportáveis.
— Segundo — disse Twycross —, focalizem a sua determinação de ocupar o espaço visualizado! Deixe este desejo fluir da mente para todas as partículas do seu corpo!
Atrás de mim, Potter sufocou uma risada. Tive vontade de me virar e dar um soco na sua boca. Já quebrara o nariz dele no início do ano, e estava cogitando repetir a proeza.
— Três — disse Twycross —, e somente quando eu der a ordem... girem o corpo, sentindo-o penetrar o vácuo, mexendo-se com deliberação! Quando eu mandar… um… dois… TRÊS!
O Salão Principal se encheu de pessoas cambaleantes e sons de alunos caindo. Revirei os olhos. Eu já sabia aparatar. Por quê diabos precisava assistir aquela aula estúpida? Faria muito mais sentido fazer o teste direto.
— Não faz mal, não faz mal — disse secamente Twycross, que não parecia ter esperado nada melhor. — Acertem os seus aros, por favor, e voltem à posição inicial...
A segunda tentativa não foi melhor do que a primeira. A terceira foi igualmente ruim. Na quarta, porém, ouviu-se um terrível guincho de dor e todos se viraram, aterrorizados; viram Susana Bones, da Lufa-Lufa, bamboleando no arco com a perna esquerda ainda parada, a um metro e meio de distância, onde começara. Dessa vez, ri sem nenhuma cerimônia. Como que uma idiota daquelas podia ser sangue puro e filha de aurores? Tão diferente de … Por isso estava na Lufa-Lufa. Os diretores das Casas correram para a garota; houve um forte estampido e uma baforada de fumaça púrpura que, ao se dissolver, revelou Susana soluçante, reintegrada à sua perna, mas horrorizada.
— Estrunchamento, ou separação casual de partes do corpo — explicou Twycross, sem demonstrar emoção —, ocorre quando a mente não tem determinação suficiente. É preciso concentrar continuamente em sua destinação e se mexer sem pressa, mas com deliberação... assim.
Twycross deu um passo à frente, girou o corpo com elegância mantendo os braços estendidos e sumiu em um rodopio de vestes, reaparecendo no fundo do Salão perto de mim.
— Lembrem-se dos três Ds — disse o instrutor — e tentem outra vez... um… dois... três...
Mas uma hora depois, o Estrunchamento de Susana ainda era a coisa mais interessante que tinha acontecido. Twycross não pareceu desanimar. Abotoando a capa ao pescoço, disse com simplicidade:
— Até o próximo sábado, e não se esqueçam: destinação, determinação e deliberação.
E, dizendo isso, acenou a varinha fazendo os aros desaparecerem e saiu do Salão acompanhado pela professora McGonagall. Imediatamente as pessoas começaram a conversar e a se deslocar em direção ao Saguão de Entrada, e segui Crabbe, Goyle, Zabini e Parkinson para nossa sala comunal, mas minha mente vagou para onde quer que estivesse.

POV

Duas semanas depois, Harry ainda estava obcecado com uma conversa que entreouvira entre Malfoy e Crabbe na aula de aparatação.
— Eu ouvi claramente, ! Ele está usando os amigos como vigias!
Encenei uma careta de descrença, apesar de saber muito bem do que ele me contava, e virei mais uma página do livro de Transfiguração.
— Você deve ter entendido mal, Harry. Ou ouvido errado… Aparatar faz muito barulho, deve ter te confundido.
Ele me lançou um olhar ofendido, mas não insistiu.
Eu não participava das aulas por já ser licenciada. Por isso, estava aproveitando os sábados em que tinha o quarto só para mim para estudar o dossiê sobre Malfoy, e observar atentamente sua árvore genealógica. Ele era filho de Lúcio Malfoy e Narcisa Black, que era prima de Sirius Black, padrinho de Harry Potter. A sra. Malfoy também era irmã de Bellatrix Lestrange e Andromeda Tonks; seria ela a Tonks que eu ouvira falar no Natal? Logo constatei que não; provavelmente era sua filha, Ninfadora. Observei com curiosidade que Narcisa era a única nascida Black que não tinha nome de estrela, e sim de flor, assim como a mãe de Harry: Lily Potter. Ela aparecia também na árvore, com o ramo que indicava casamento unindo seu nome ao de James Potter. Também encontrei Rony e seus muitos irmãos ali no meio.
O mês de fevereiro chegara e se fora sem grandes novidades, exceto que meus encontros com Draco para consertar o armário estavam mais espaçados, e minha pulseira brilhava cada vez mais quando estávamos juntos. Fiquei satisfeita com aquilo, mas tive que começar a usar somente blusas de manga comprida que cobrissem a joia, para evitar atrair muita atenção para a pedra.
Para indignação geral, foi afixado um aviso em todas as salas comunais: o passeio seguinte a Hogsmeade fora cancelado. Rony ficou furioso quando o leu, esbravejando para mim e Harry.
— Era no dia do meu aniversário! — exclamou. — Eu estava aguardando, ansioso!
— Mas não é uma surpresa tão grande, não é? — comentou Harry. — Não depois do que aconteceu com Katie.
A garota ainda não voltara do St. Mungus. Além disso, o Profeta Diário andara noticiando novos desaparecimentos, inclusive de parentes de alunos de Hogwarts.
— Agora só me resta aguardar aquela aula idiota de Aparatação! — replicou Rony rabugento. — Grande presente de aniversário… Frustração e aqueles três Ds idiotas do Twycross! Ele devia mudar o próprio nome para Demente Destrambelhado Despirocado…
No dia da aula idiota de Aparatação, eu estava confortavelmente sentada de frente para a lareira, lendo um livro de encadernação preta que falava sobre o manejo de cristais para canalização de encantamentos, quando Harry desceu as escadas apressadamente com Rony a tiracolo. Ainda era bem cedo para um sábado; o relógio ainda nem marcava oito da manhã. Me levantei rapidamente para desejar feliz aniversário ao ruivo, que finalmente estava atingindo a maioridade, mas notei que havia algo de estranho nele. Meu olhar cruzou com o de Potter, e captei seus lábios formando as palavras “poção do amor” e “Slughorn”.
Contive uma risadinha, e subi de volta para meu quarto. Estava sem fome, e encontrei Hermione totalmente vestida, descendo para tomar seu café da manhã. Sem minha colega de quarto, me esparramei sobre meu colchão, com os pés na cabeceira, e comecei a vasculhar o interior da bagagem que trouxera. Contei os frascos de poções que ainda tinha, reorganizei os livros e fiz mais algumas anotações nas fichas que recebera sobre Draco, com base nas análises aritmânticas e astrológicas que eu fizera dele.
Para mim, tinham se passado apenas minutos, mas o relógio discordava. Os ponteiros marcavam dez e quinze quando ouvi passos velozes e pesados ecoarem pelos degraus da Torre. Hermione apareceu esbaforida, com os cabelos cheios ainda mais volumosos que o normal, e arregalou os olhos na minha direção.
— Rony… na ala hospitalar — ela choramingou, ofegante. Eu não soube definir se a vermelhidão de seu rosto era pelo esforço ou um prenúncio de choro. — Envenenado…
Pulei da cama, jogando tudo dentro do malão e trancando-o em tempo recorde. Quando cheguei à base das escadas de pedra, a garota já estava passando pelo buraco do retrato, e corremos o mais rápido que pudemos para chegar à maca de Rony. Madame Pomfrey, porém, se recusou a nos deixar entrar. Harry também esperava em frente às portas duplas, e o garoto explicava o que tinha acontecido.
— Ele comeu uns bombons que a Romilda Vane me deu, lembra deles, ?
— Sim, sim, eu até te ajudei a despistar ela naquele dia — concordei.
— Pois é, eles estavam batizados com poção do amor — ele contou —, então ele começou a dizer que estava apaixonado e que…
Harry parou de falar. Gina vinha correndo, com o nariz inchado e lágrimas marcando sua pele, os cabelos flamejantes esvoaçando atrás de si. Ela envolveu o melhor amigo do irmão num abraço apertado, soluçando. Eu e Hermione nos entreolhamos. Logo me adiantei:
— Fiquem aqui com a Gina, eu vou pegar alguma coisa para vocês comerem.
Até as oito horas da noite, nos revezamos para ficar de guarda na porta da enfermaria e buscar água e lanches para os outros, e finalmente a curandeira de Hogwarts nos deixou entrar. Dez minutos depois, para a surpresa de todos, os gêmeos Weasley apareceram, com um embrulho na mão e expressões preocupadas idênticas.
— Então, no geral, não um dos melhores aniversários do Rony, não é? — comentou Fred.
A ala hospitalar estava silenciosa, as cortinas fechadas, as luzes acesas. A cama de Rony era a única ocupada. Harry, Hermione e Gina estavam sentados à sua volta. Eu estava de pé em frente à cabeceira, com a cabeça a mil, tentando juntar várias peças que eram suspeitas demais para não se encaixarem.
— Não foi bem assim que imaginamos entregar nosso presente — disse Jorge, sério, deixando o grande embrulho na mesa de cabeceira de Rony e se sentando ao lado de Gina.
— É, quando imaginamos a cena, ele estava consciente — confirmou Fred.
— Estávamos em Hogsmeade, esperando para fazer uma surpresa a ele — falou Jorge.
— Vocês estavam em Hogsmeade? — admirou-se Gina, erguendo a cabeça.
— Estivemos pensando em comprar a Zonko’s — respondeu Fred triste. — Uma filial em Hogsmeade, sabe, mas não vai nos adiantar nada, se vocês não tiverem mais permissão de sair nos fins de semana e comprar os nossos artigos... mas deixa isso para lá.
Ele puxou uma cadeira ao lado de Harry e contemplou o rosto pálido de Rony.
— Como foi exatamente que isso aconteceu, Harry?
O garoto tornou a contar a história que tinha a impressão de já ter repetido cem vezes a Dumbledore, a McGonagall, a Madame Pomfrey, a Hermione, Gina e eu.
— ... então enfiei o bezoar na boca de Rony e a respiração dele melhorou um pouco, Slughorn correu para buscar ajuda, McGonagall e Madame Pomfrey apareceram e o trouxeram aqui para cima. Acham que vai se curar. Madame Pomfrey diz que terá de ficar aqui mais ou menos uma semana... tomando Essência de Arruda.
— Caramba, foi sorte você ter se lembrado do bezoar — disse Jorge em voz baixa.
— Sorte que tivesse um na sala — respondeu Harry.
Hermione deu uma fungada quase inaudível, e apoiei a mão em seu braço para confortá-la. Tinha estado excepcionalmente quieta o dia todo. Tendo se precipitado, lívida, ao encontro de Harry, à porta da ala hospitalar, e exigido saber o que acontecera, ela praticamente não participara da discussão obsessiva entre Harry e Gina sobre o modo como Rony fora envenenado; meramente se postara ao lado deles, com os dentes cerrados e uma expressão de medo até que, finalmente, recebemos autorização para vê-lo.
— Mamãe e papai sabem? — perguntou Fred a Gina.
— Eles já viram o Rony, chegaram há uma hora; estão no escritório de Dumbledore, agora, mas vão voltar logo…
A imagem da sra. Weasley assustada e desesperada frente ao filho inconsciente me trazia um desconforto e criava vários pontos de interrogação em minha mente. Houve uma pausa durante a qual todos ficaram observando Rony, adormecido, resmungar um pouco.
— Então o veneno estava na garrafa? — perguntou Jorge em voz baixa.
— Estava — respondeu Harry imediatamente. — Slughorn serviu o hidromel…
— Ele poderia ter posto alguma coisa na taça de Rony sem você ver?
— Provavelmente, mas por que Slughorn iria querer envenenar Rony?
— Não faço a menor ideia — respondeu Fred, enrugando a testa. — Você acha que ele poderia ter trocado as taças por engano? Querendo envenenar você?
— Por que Slughorn iria querer envenenar Harry? — indagou Gina.
— Não sei — replicou Fred —, mas deve haver muita gente que gostaria de envenenar Harry, não? “O Eleito” e tudo o mais?
— Então você acha que Slughorn é um Comensal da Morte? — perguntou Gina.
— Tudo é possível — respondeu Fred sombriamente. Me encarou, e fez uma careta engraçada, que me arrancou um sorrisinho.
“Inclusive eu estar ajudando um Comensal da Morte que pode ter causado isso tudo”, pensei.
Era a história de Katie Bell se repetindo, e a raiva se acumulava em meu peito ante a perspectiva de eu mesma ter tido uma participação naquilo tudo.
— Ele poderia estar dominado pela Maldição Imperius — sugeriu Jorge.
— Ou poderia ser inocente — tornou Gina. — O veneno poderia estar na garrafa, caso em que provavelmente era destinado ao próprio Slughorn.
A hipótese me parecia a mais coerente. Mas algo não encaixava…
— Quem iria querer matar Slughorn? — questionou Fred.
— Dumbledore acha que Voldemort queria o apoio de Slughorn — disse Harry. — O professor esteve escondido durante um ano antes de vir para Hogwarts. E… e talvez Voldemort queira tirar Slughorn do caminho, talvez ache que ele pode ser valioso para Dumbledore.
— Mas você disse que Slughorn tinha pensado em dar a garrafa a Dumbledore…
— O-o quê? — deixei escapar, mas não falei alto o suficiente para atrair a atenção de ninguém.
— …no Natal — Gina lembrou a Harry. — Então o envenenador poderia muito bem estar atrás do Dumbledore.
— Então o envenenador não conhecia Slughorn muito bem — falou Hermione pela primeira vez em horas, com voz de quem pegara um forte resfriado. — Qualquer um que conhecesse Slughorn saberia que havia grande probabilidade do professor guardar uma coisa gostosa daquela para si mesmo.
— Her-mi-o-ne — crocitou Rony inesperadamente.
Todos se calaram, observando-o ansiosos, mas, depois de resmungar palavras incompreensíveis por um momento, ele simplesmente começou a roncar. As portas da enfermaria se escancararam, sobressaltando a todos: Hagrid entrou e se encaminhou para o grupo, sua cabeleira salpicada de chuva, o casaco de pelo de urso ondulando aos seus passos, um arco na mão, deixando no chão um rastro de enormes pegadas lamacentas.
Senti que aquela era minha deixa para sair de cena. Me despedi do grupo, recebendo um beijo demorado de Fred na bochecha (me arrependia enormemente de não ter ficado com ele sob o visgo no Natal), e saí da ala hospitalar, pronta para ter uma conversinha com um certo sonserino.
Pisando duro, entrei na Sala Precisa com a varinha em punho.
— EI! — gritei, assustando-o.
— Que porra, — ele riu, mas a diversão murchou quando mirou meu rosto enraivecido.
— Eu acreditei em você quando aconteceu com a Katie Bell — falei, num tom baixo. — Dessa vez, vai precisar inventar uma história melhor para me convencer de que você não tem nada a ver com o envenenamento de Ronald Weasley por uma garrafa de hidromel do professor Slughorn.
Toda a cor fugiu de seu rosto, deixando-o com uma aparência acinzentada e culpada, terrivelmente culpada.
…? O Weasley…?
— Nunca foi por acaso, não é? Nunca foi uma coincidência. Sempre foi você. Sempre foi você… Não foi por acaso que você estava tentando entrar na festa de Natal do velho Slugue… E eu te botei lá dentro, e você fez todo aquele teatro de estar querendo mudar, de se sentir uma pessoa ruim… Colocar veneno na bebida de um professor, que seria… — e a realização caiu sobre mim como uma maldição. As peças, anteriormente desconexas, se encaixaram, e sussurrei, impressionada. — Você precisa matar Dumbledore. E quase matou dois colegas meus no processo.
Se eu não fosse tão bem treinada, não teria conseguido nem ver o que me atingira; Draco quase pulou em cima de mim, me prensando na porta do armário.
— Se você contar a alguém, eu vou ter que matar você — ele ameaçou, com o desespero distorcendo a voz, pressionando a ponta da varinha em meu pescoço. Seus olhos flamejavam.
Pela primeira vez, tive uma ideia real da dimensão do que se passava na vida de Draco Malfoy. Não era uma escolha. Nunca fora uma escolha.
— Então mate agora, se acredita que eu vou vazar seu segredo. — Segurei sua varinha sem hesitar, descendo-a até meu coração acelerado. Ele sustentou meu olhar por alguns segundos, em seguida se afastando como se tivesse tomado um choque. De súbito, soltou um ruído grave e agoniado, disparando um feitiço que explodiu uma prateleira de livros mofados. Com surpreendente calma, ele olhou fundo nos meus olhos castanhos e implorou: — Sai daqui, . Por favor. Fica longe de mim. Meus olhos ficaram marejados, mas o obedeci, saindo da Sala com o peito apertado. Pela primeira vez em toda aquela missão, tive a sensação de que fazer ele se apaixonar por mim estava além do meu alcance. Como um garoto tão quebrado poderia me amar? E como ele suportaria a traição pela qual eu o faria passar, quando removesse sua Marca Negra, condenando ele e sua família à morte certa pelas mãos de Lord Voldemort? Corri por corredores e escadas até meus joelhos reclamarem, entrando no banheiro interditado do segundo andar. Murta Warren me encarou desconfiada, mas ignorei. Me debrucei sobre a pia, me permitindo finalmente liberar o choro angustiado com o peso esmagador daquela realização: não importava se eu falharia ou sucederia na minha tarefa, porque, de um jeito ou de outro, eu teria sangue nas mãos.


Capítulo 19

Draco POV

Era a manhã do jogo da Grifinória contra a Lufa-Lufa, o que era ótimo; a escola inteira estava lá fora ou sentada no estádio ou a caminho, deixando os corredores livres. Ronald Weasley estava impedido de jogar quadribol por seu episódio de envenenamento, e não podia negar que aquilo me abalara. Primeiro porque indicava mais uma falha no meu plano, e segundo porque explodira comigo e eu reagira muito mal. Não era a toa que ela não voltara mais para a Sala Precisa nas semanas seguintes à nossa discussão.
Percorrendo um corredor vazio, parei imediatamente ao ver Potter e ao seu lado. Já tinha mais de uma semana que ela nem ao menos me olhava, e aquela distância incomodava. No fundo, sabia que o desconforto era causado não só por não estar recebendo a ajuda dela com o Armário, mas também porque eu sentia algo por ela que preferia não pensar muito no que era.
Ela estava ridiculamente atraente. Os cabelos estavam presos em duas tranças muito bem feitas nas laterais de sua cabeça, passando por trás das orelhas com uma elegância que eu achava difícil de encontrar em qualquer outra garota de Hogwarts. A blusa justa de gola alta, vermelha com detalhes em dourado, deixava à mostra um pedaço da pele de seu abdômen, que exibia músculos bem marcados como se ela fizesse exercício desde nova. Subi o olhar para sua boca entreaberta, um pouco surpresa. Rapidamente compreendi: Crabbe e Goyle estavam ao meu lado, disfarçados de meninas… Então ela estava… Enciumada? Quase deixei escapar uma explicação para ela: “não é nada do que você está pensando”.
Contudo, me empertiguei de novo bem rápido. Eu não devia explicações a ela, por mais que algo em mim me gritasse o contrário. Soltei uma risada curta e seca e continuei a andar, sentindo o olhar magoado de sobre mim.
— Aonde é que você vai? — Potter perguntou a mim.
— É, vou mesmo lhe dizer, Potter, porque é da sua conta — debochei, sem direcionar de novo o olhar a . — É melhor você correr, devem estar esperando o “Capitão Eleito”, o “Rapaz que fez Gol”, ou sei lá qual é o nome que lhe dão ultimamente.
Goyle riu, e a risada saiu aguda por causa do efeito da Poção. o fuzilou com o olhar, e rapidamente o riso esmoreceu. A grifinória ergueu as sobrancelhas para mim no fugaz segundo em que nossos olhos se encontraram, e eu não soube identificar se neles havia desprezo ou alerta. Ela apertou o braço de Potter e o puxou para ambos continuarem andando na direção oposta à que eu ia.
Sacudi a cabeça. Crabbe, com sua voz de menina devido à Polissuco, debochou:
está se mordendo de ciúmes… Tem algo para nos contar? Achei que vocês só se pegassem.
— É. — complementou Goyle, com uma risadinha maliciosa. — Zabini nos disse que ela é… bom… você sabe como são as brasileiras.
Minha irritação por ter visto com Potter só se intensificou com aqueles comentários.
— Sei que ela é insanamente bonita, inteligente e a bruxa mais poderosa do nosso ano. — cuspi. — Se todas as brasileiras são assim, aí já não sei.
Os dois ficaram quietos, brincando com seus cabelos longos de garota. Revirei os olhos e agarrei seus antebraços finos, apressando o passo até voltarmos para a Sala Precisa. Precisava dar uma última checada no Armário antes de cumprir minha tarefa do dia.
Dentro do aposento amplo, verifiquei se a tinta da área que eu restaurara já estava devidamente seca, e tirei um galeão dourado do bolso. Toquei na moeda com a ponta da varinha, alterando as inscrições que haviam nela, e logo em seguida saí, dispensando Crabbe e Goyle com um mero aceno. A Poção já começava a se desvanecer, e era cômico vê-los retomando suas estaturas e feições normais vestindo roupas femininas.
Quando vi a dupla se afastando no corredor, tomei outras escadas para chegar até a estátua da bruxa de um olho só, pulando para dentro da passagem secreta tentando não lembrar de quando uma certa grifinória me fizera companhia naquele mesmo percurso.
A bruxa alta e curvilínea me esperava, com suas botas de salto alto contra os ladrilhos do estoque da Dedosdemel. Pisquei os olhos com força, para confirmar se minha cabeça estava me pregando peças ou se realmente o destino estava me empurrando goela abaixo uma piada escrota ao fazer tudo me lembrar de .
— Madame Rosmerta. — cumprimentei, mesmo sendo desnecessário.
Os olhos dela estavam vítreos e opacos, e o corpo, rígido como de um soldado, tão destoante de seu charme característico ao servir as mesas e balcões do Três Vassouras.
Respirei fundo. Um dos principais motivos para eu ter estado tão esgotado ultimamente era a energia que manter a Maldição Imperius demandava de mim.
— Seus serviços não serão mais necessários. — declarei, frustrado.
Não precisava mais da ajuda dela. O colar e o hidromel envenenado tinham falhado. Eu deveria, portanto, focar todas as minhas energias no plano principal.
Fiz um movimento com a varinha, cortando o ar, e Rosmerta despertou.
— O-o quê… — balbuciou, desconcertada, e rapidamente apontei a varinha para ela de novo, sussurrando:
Obliviate.
Seus olhos ficaram totalmente brancos por uma fração de segundo, mas não fiquei lá por tempo suficiente para ver as íris voltarem ao normal. Desapareci pelo alçapão, com o peito palpitando devido ao peso do que eu acabara de fazer.
Saí logo ao lado da estátua, de volta aos corredores de Hogwarts, e resolvi ir para o campo de quadribol. Nada como xingar e torcer contra a equipe da Grifinória para acalmar meu humor inquieto.
— Setenta a quarenta para Lufa-Lufa! — ouvi a voz da professora McGonagall ecoando pelo estádio, sob gritos e aplausos. Um sorrisinho irônico se esboçou em meu rosto. Os lufanos eram uns idiotas, mas pelo menos estavam ganhando dos patetas da Grifinória. Certamente Potter estava puto.
— Já?! — exclamou uma voz distraída. Me virei para o pódio onde o locutor costumava ficar, e gargalhei. Quem fora o idiota a escolher Di-Lua Lovegood para narrar a partida? — Ah, vejam! O goleiro da Grifinória arrancou o bastão de um dos batedores.
A figura diminuta de Potter, vários metros acima do nível das arquibancadas, virou a cabeça para fitar seu goleiro. Córmaco McLaggen tinha agarrado o bastão de um dos batedores magricelas e parecia estar demonstrando como bater um balaço num dos artilheiros da casa de vestes amarelas. Vi o apanhador da Grifinória esbravejar algo em direção ao garoto, mas logo foi interrompido: um balaço lhe atingiu a cabeça com tanta força que pensei ter ouvido o estalo da fratura de onde estava, e ele apagou, caindo como uma pedra sobre a arquibancada. Só não colidiu diretamente com o público porque um torcedor ergueu a varinha e entoou com a voz firme:
Aresto Momentum! Dois segundos depois, em toda a sua glória, habilidade e fúria, disparou como um raio para cima, para o espanto de toda a multidão. Mordi a boca, e um minúsculo e involuntário pensamento surgiu no fundo de minha cabeça: “essa é minha garota”.

POV

Durante meu quinto (e último) ano em Castelobruxo, o treinamento que eu tive no Departamento de Aurores brasileiro foi, por um mês inteiro, a leitura e análise cuidadosa do livro “1984”, de George Orwell. Uma prática que era descrita no cenário distópico eram os “Dois Minutos de Ódio”: xingar o inimigo ininterruptamente, inclusive proferindo ofensas proibidas. Aprendi que, na nossa realidade, há vários “minutos de ódio”, em que podemos liberar nossas emoções reprimidas; momentos nos quais as pessoas, com o aval de uma autoridade maior e protegidas por ela, expressam seu ódio a alguém. E um desses momentos era durante o quadribol. Ali, na arquibancada, era onde acontecia minha catarse.
Eu xingava Zacarias Smith, o lufano idiota que narrara o jogo da Grifinória contra a Sonserina e agora jogava contra meu time. Eu xingava o Ministério da Magia, por me botar longe da minha família em uma missão fadada ao fracasso. E, acima de tudo, eu xingava Draco Malfoy, por ser um babaca gostoso que mal eu virara as costas já estava na companhia de duas garotas, aos risinhos e abraços, e por estar me deixando com… ciúmes?!
Não. Não ia aceitar aquilo. Mas minha linha de pensamento foi interrompida pela voz sonhadora de Luna Lovegood, que ecoou por todo o estádio.
— E lá vai Smith da Lufa-Lufa levando a goles! Da última vez, foi ele quem narrou o jogo, é claro, e Gina Weasley colidiu com o pódio, provavelmente de propósito: ou assim me pareceu. Smith foi muito grosseiro nos comentários sobre a Grifinória, imagino que esteja arrependido agora que tem de enfrentar a equipe da Casa... ah, olhem, ele perdeu a posse da goles, Gina roubou-a dele, gosto dela, é muito boa…
Comecei a rir, voltando o olhar para a garota de enormes cabelos loiros e colar de rolhas de cerveja amanteigada ao lado da prof. McGonagall. A docente de Transfiguração parecia levemente constrangida. Sem notar, Luna prosseguiu a narração.
— … mas agora aquele grandalhão da Lufa-Lufa tirou a goles de Gina, não estou conseguindo lembrar o nome dele, é alguma coisa parecida com Bibble… não, Buggins…
— É Cadwallader! — exclamou a professora McGonagall em voz alta ao lado de Luna. A multidão riu.
Harry correu os olhos ao redor, procurando o pomo; nem sinal. Instantes depois, Cadwallader marcou. McLaggen estivera aos berros, criticando Gina por perder a posse da goles, e, em consequência, não vira a grande bola vermelha passar voando por sua orelha direita.
— Porra, McLaggen! — o xingamento não saiu de minha boca, e sim da de Hermione, que estava furiosa ao meu lado. Com o rosto rubro, ela encolheu os ombros sob meu olhar admirado.
— Presta atenção no jogo em vez de bancar o técnico! — berrei, e vi Harry voar para perto do goleiro reserva e discutir algo com ele.
— E Harry Potter agora está discutindo com o seu goleiro. — irradiou Luna calmamente, enquanto as torcidas da Lufa-Lufa e da Sonserina, entre os espectadores, aplaudiam e vaiavam. — Acho que isso não vai ajudá-lo a localizar o pomo, mas talvez seja um estratagema bem sacado…
Ainda com uma expressão furiosa, Harry tornou a girar e recomeçou a contornar o campo, varrendo o céu à procura de um sinal da bolinha de ouro alada.
Gina e Demelza marcaram cada uma o seu gol, dando à torcida vermelho e ouro, bem abaixo, um motivo para se alegrar. Cadwallader tornou a golear, empatando o placar, mas Luna não pareceu notar; narrava como se não tivesse interessada em detalhes mundanos como o marcador, e todo o tempo tentava chamar a atenção da multidão para nuvens de formas curiosas e a possibilidade de Zacarias Smith, que até o momento não conseguira manter a posse da goles por mais de um minuto, estar sofrendo de uma doença chamada “fiascurgia”.
— Setenta a quarenta para Lufa-Lufa! — anunciou a professora McGonagall ao megafone de Luna.
— Já?! — exclamou Luna distraída. — Ah, vejam! O goleiro da Grifinória arrancou o bastão de um dos batedores.
Harry se virou no ar no exato instante em que eu mesma pulei como se pudesse acertar Córmaco com um soco. De fato, McLaggen, por motivos que só ele sabia, tirara o bastão de Peakes e parecia estar demonstrando como bater um balaço em Cadwallader, que se aproximava.
— Quer devolver o bastão dele e voltar às balizas?! — rugiu Harry, voando em direção a McLaggen sobre a parte da arquibancada em que eu e Mione estávamos, exatamente na hora em que o goleiro golpeava com ferocidade um balaço e errava o alvo.
Vi o corpo inconsciente e a enorme vassoura de Harry virem caindo na minha direção. Puxei a varinha, apontando com firmeza para meu amigo:
Aresto Momentum!
E rapidamente a queda foi amortecida por uma força aparentemente invisível. O garoto veio flutuando até cair em meus braços, com a testa toda roxa devido ao impacto do balaço lançado por McLaggen.
Senti meu sangue todo fluir pelas veias mil vezes mais rápido. Colocando Harry no colo de Hermione, puxei a Firebolt do apanhador da Grifinória e decolei com um único pulo rápido, para o espanto de toda a multidão.
Aquela era minha catarse.
Disparei como uma bala até McLaggen, puta da vida, e falei:
— Você é no máximo um goleiro medíocre — rosnei, com um tom mais alto do que deveria —, então tente se manter na sua posição, ok?
Ele abriu a boca, subitamente muito envergonhado e quase aterrorizado por ter atingido o próprio capitão.
— Sem desculpas! Só defende a porra da baliza. — berrei, antes que ele retrucasse alguma desculpa esfarrapada.
Virei o olhar para o campo.
Eu era a apanhadora reserva. Eu teoricamente podia jogar no lugar de Harry.
Apertei o punho da vassoura e disparei até o pódio de onde Luna, a professora McGonagall e Madame Hooch me fitavam embasbacadas.
— Sou a apanhadora reserva. — comuniquei. — Posso entrar?
— Não sem uniforme, srta. . — falou a árbitra.
Só não revirei os olhos porque seria um desrespeito maior do que eu podia lidar. Em vez disso, puxei minha varinha e, com um toque, meu blusa vermelha foi se alongando até se transformar na capa dos jogadores de quadribol. Recebendo a aprovação de Hooch, subi no ar frio rodopiando com a vassoura, e o público gritou ao ver as letras douradas em minhas costas: “”.
Apertei os olhos para protegê-los do sol. Vi o lampejo do pomo de ouro muito próximo do apanhador da Lufa-Lufa: cerca de cinco metros acima dele, mas um pouco atrás, de forma que não estava em seu campo de visão. Se eu avançasse para lá diretamente, perderia, pois ele tinha uma boa vantagem na distância. Então decidi realizar minha especialidade, a finta de Wronski, e mergulhei.
A uma velocidade de quase queda livre, continuei descendo e descendo e descendo, com meu oponente na minha esteira, certo de que eu vira o pomo próximo ao solo. Porém, no último instante, quando a ponta de meu sapato já roçava na grama, subi com um solavanco, ouvindo o som desagradável do impacto do apanhador da Lufa-Lufa contra o chão duro. Sorrindo, voei para cima paralelamente às arquibancadas, sentindo o ar frio fazer meus olhos arderem, e persegui o pomo, sob gritos de incentivo. Os dois balaços vieram na minha direção ao mesmo tempo, mas Peakes e Coote dispararam em meu encalço, rebatendo-os para longe. Ouvi Gina berrar: “AQUI!” e olhei para ela; o pomo flutuava perto de seu ombro.
— SAI DA FRENTE, GINA! — berrei de volta, e colei meu corpo ao cabo da vassoura, um truque que aprendi em Castelobruxo e aumentava exponencialmente minha velocidade. A bola se desviou para cima do público, mas não hesitei nem diminuí o ritmo. Eu não ia bater.
No mesmo instante em que estendi minha mão e capturei a bolinha dourada, um lampejo prateado, vindo de olhos que eu conhecia muito bem, brilhou logo à minha frente, e freei bruscamente a vassoura. Pisquei para parar de lacrimejar e finalmente respirei fundo, sentindo a pequena esfera alada de metal envolta por minha palma.
Flutuando a meio metro do chão da arquibancada, com os berros enlouquecidos de toda Hogwarts ecoando em meus ouvidos, meu braço estava esticado segurando o pomo de ouro na frente do rosto de Draco Malfoy.
— Nada mal — ele brincou, e meu rancor e ciúme se dissipou quando ele abriu um sorriso.

* * *

Depois da partida e as devidas comemorações, pensei que fosse apropriado ir visitar Harry na enfermaria.
— …quando eu pegar o McLaggen… — ia dizendo meu capitão, sendo interrompido por seu vizinho de maca.
— Você não quer pegar o McLaggen, ele é do tamanho de um trasgo. — argumentou Rony. — Pessoalmente, sou mais a favor de azará-lo com aquele feitiço do Príncipe, na unha do pé. De qualquer modo, quem sabe o resto da equipe já terá cuidado dele quando você sair daqui, ninguém ficou feliz…
Havia uma nota de mal contida alegria na voz de Rony; ele estava simplesmente vibrando que McLaggen tivesse metido os pés pelas mãos.
— Não se preocupem, eu já dei um jeito nele. — falei, chamando a atenção de ambos para minha presença.
! A estrela do jogo! — a voz do ruivo ficou mais animada ainda. — Me disseram que você foi maravilhosa. Ouvi a narração da partida daqui. — disse, a voz trêmula de riso. — Espero que seja sempre a Luna a comentar daqui para frente... Fiascurgia…
Harry, no entanto, continuava visivelmente zangado demais para achar muita graça na situação, apesar de termos conseguido a vitória no quadribol, e pouco depois Rony parou de rir.
— Obrigado, . — agradeceu Harry, com um sorriso mínimo.
— De nada, fico feliz que você esteja bem. — Me sentei na ponta de sua cama, cruzando as pernas. — Já guardei sua vassoura no dormitório.
Ele assentiu, e um silêncio um pouco incômodo se instalou.
— Gina veio fazer uma visita quando você estava inconsciente. — disse Rony. — Ela acha que você chegou em cima da hora para o jogo. Que aconteceu? Você e saíram daqui bem cedo. — Ele me encarou sugestivamente antes de voltar o olhar ao amigo. — O que estavam fazendo?
— Ah... — começou Harry. — É... bem, vimos Malfoy se esgueirando pelo corredor com duas garotas que pareciam não estar querendo a companhia dele, e esta é a segunda vez que ele dá um jeito de não estar no estádio com o resto da escola. E ele também faltou ao último jogo, lembra? — suspirou Harry. — Eu gostaria de ter seguido o Malfoy, já que o jogo…
— Ele apareceu no jogo mais tarde, Harry. — o interrompi. — Quase caí por cima dele quando fui pegar o pomo.
— E não seja idiota. — replicou Rony com rispidez. — Você não podia faltar a um jogo de quadribol só para seguir Malfoy, você é o capitão!
— Quero saber o que ele anda fazendo. E não me diga que isso é coisa da minha imaginação, não depois da conversa que escutei entre ele e o Snape...
— Eu nunca disse que você estava imaginando coisas — protestou Rony, erguendo-se sobre um cotovelo e franzindo a testa para Harry —, mas não existe regra que diga que somente uma pessoa de cada vez pode tramar coisas neste lugar! Você está ficando meio obcecado pelo Malfoy, Harry. Quero dizer, pensar em faltar um jogo só para seguir o cara...
— Quero apanhar Malfoy com a mão na massa! — respondeu Harry, frustrado. — Quero dizer, onde é que ele vai quando desaparece do mapa?
Sala Precisa.
— Não sei... Hogsmeade? — sugeriu Rony, bocejando.
Era um outro bom chute.
— Nunca o vi andando por nenhuma passagem secreta no mapa. Aliás, achei que todas elas estavam sendo vigiadas agora, não?
Não exatamente…
— Bem, então, não sei.
Fez-se silêncio entre nós. Harry ficou olhando para o círculo de luz no alto, refletindo. Ouviu-se um ronco surdo vindo da cama de Rony. Passado um tempo, Madame Pomfrey saiu de sua sala, desta vez trajando um grosso roupão. Me mandou voltar para o dormitório, mas eu vira o rosto de Potter se acender, como se tivesse acabado de ter uma ideia genial, e queria saber o motivo. Por isso, me despedi dele, mas fiquei do lado de fora da porta da ala hospitalar, espiando o que acontecia lá dentro por uma pequena fresta.
Em voz baixa, hesitante, Harry falou para a noite:
— Monstro?
Ouviu um forte estalo e o ruído de guinchos e pés arrastados encheram a enfermaria. Rony acordou com um ganido.
— Que está...?
Harry apontou a varinha depressa para a porta da sala de Madame Pomfrey e murmurou algo, certamente um Abaffiato.
Dois elfos domésticos estavam embolados no chão, no meio da enfermaria, um usava um pulôver castanho-avermelhado que encolhera e vários gorros de lã; o outro, um trapo velho e imundo preso nos quadris como uma tanga. Ouviu-se, então, mais um estalo e Pirraça, o poltergeist de Hogwarts (que, curiosamente, não implicara nem uma única vez comigo), apareceu sobrevoando os elfos engalfinhados.
— Eu estava assistindo, Potty! — disse indignado a Harry, apontando para os lutadores, e em seguida soltou uma grande gargalhada. — Olhe essas criaturinhas brigando, mordidinha, murrinho...
— Monstro não vai insultar Harry Potter na frente de Dobby, não vai, não, ou Dobby vai fechar a boca dele! — exclamou um dos elfos com a voz muito aguda.
— Chutinho, arranhãozinho! — exclamou Pirraça, alegre, agora atirando pedaços de giz nos elfos para enraivecê-los. — Torcidinha, cutucadinha!
— Monstro dirá o que quiser sobre o senhor dele, ah, dirá, e que senhor ele tem, um amigo nojento de sangues-ruins, ah, o que diria a pobre senhora do Monstro...?
Exatamente o que a senhora de Monstro diria ninguém chegou a saber, porque naquele instante Dobby meteu o punho nodoso na boca de Monstro, fazendo saltar metade dos seus dentes. Harry e Rony pularam de suas camas e separaram os elfos, embora eles continuassem tentando chutar e esmurrar um ao outro, incentivados por Pirraça, que dançava em torno do lampião aos guinchos:
— Enfia os dedos no nariz dele, tira sangue e arranca as orelhinhas dele...
Harry apontou a varinha para Pirraça e disse:
Trava-língua!
Pirraça levou as mãos à garganta, engoliu em seco e saiu voando da enfermaria, fazendo gestos obscenos, mas sem fala, porque sua língua acabara de grudar no céu da boca. O que foi uma tremenda sorte, pois, caso contrário, certamente teria me denunciado a Madame Pomfrey ou aos garotos.
— Legal esse! — aprovou Rony, erguendo Dobby no ar para impedir que suas pernas agitadas continuassem a atingir o Monstro. — Mais um dos feitiços do Príncipe, não é?
— É. — confirmou Harry, torcendo o braço fino de Monstro com uma chave de braço. Fiquei agradavelmente impressionada ao vê-lo executar o golpe de forma até razoável. — Certo: proíbo você de lutar com o Dobby. Dobby, eu sei que não posso lhe dar ordens...
— Dobby é um elfo doméstico livre e pode obedecer a quem ele quiser, e Dobby fará tudo que Harry Potter quiser! — disse o elfo.
— Ok, então. — disse Harry, e ele e Rony soltaram os elfos, que caíram ao chão, mas não continuaram a lutar.
— O senhor me chamou? — crocitou Monstro, fazendo uma profunda reverência a Harry.
— É, chamei. — disse Harry, olhando de relance a porta de Madame Pomfrey, mas não havia sinal de que ela tivesse ouvido a agitação. — Tenho uma tarefa para você.
— Monstro fará o que o seu senhor mandar — e fez uma curvatura tão profunda que seus lábios quase tocaram os dedos de seus pés nodosos —, porque Monstro não tem opção, mas Monstro sente vergonha de ter um senhor assim, ora se tem...
— Dobby fará a tarefa, Harry Potter! — guinchou Dobby. — Dobby se sentiria honrado de ajudar Harry Potter!
— Pensando bem, seria melhor que os dois fizessem — disse Harry. — Ok, então... quero que sigam o Draco Malfoy.
Quase me engasguei ao ouvir, soltando uma pequena exclamação, e tive que colar as costas à parede para impedir que me vissem. Pelo visto nenhum deles detectou minha presença, porque ele continuou:
— Quero saber aonde ele vai, com quem se encontra e o que faz. Quero que o sigam vinte e quatro horas por dia.
Puta. Que. Pariu.
— Sim, Harry Potter! — concordou Dobby imediatamente. — E se Dobby errar, Dobby se atirará da torre mais alta, Harry Potter!
— Não precisará fazer nada disso. — apressou-se Harry a dizer.
— O senhor quer que eu siga o mais jovem dos Malfoy? — crocitou Monstro. — O senhor quer que eu espione o sobrinho-neto de sangue puro da minha antiga senhora?
Ao escutar aquilo, a imagem da árvore genealógica de Draco se projetou em minha mente. Sobrinho-neto… Então a senhora de Monstro era… Walburga Black. Mãe de Sirius Black, padrinho de Harry… Humm, então agora tudo fazia sentido. Ele morrera havia pouco tempo e deixara uma casa, e consequentemente um elfo doméstico, para o afilhado.
— Esse mesmo. — disse Harry, e imediatamente acrescentou: — E você está proibido de avisar a ele, Monstro, ou mostrar a ele o que está fazendo, ou falar com ele, ou escrever mensagens para ele, ou... ou entrar em contato com ele de alguma forma. Entendeu?
Após alguns momentos (durante os quais eu podia apostar que Monstro estava tentando encontrar uma brecha nas instruções), Monstro disse com amargurado rancor:
— O senhor pensa em tudo e Monstro tem de obedecer, mas Monstro preferia muito mais ser servo do rapaz Malfoy, ah, isto ele preferia...
— Então está acertado. Quero receber relatórios regularmente, mas verifiquem se estou sozinho quando vierem me procurar. Rony e Hermione são de confiança. E não comentem com ninguém o que estão fazendo. Colem em Malfoy como se fossem adesivos para remover verrugas.
Ok, então eu não era “de confiança” o bastante para receber aquela informação. Fora sábio da parte de Harry, dada minha proximidade indisfarçável com Malfoy. Ainda com o coração pulando no peito, ouvi os leves passos dos elfos na direção da porta, e executei rapidamente o Feitiço da Desilusão. Invisível, apontei a varinha na direção de ambas as criaturas quando saíram e sussurrei:
Nebula Invultus.
Os dois estacaram por um segundo, e por seus olhos grandes e redondos passou uma névoa. Era um feitiço instável e complexo, mas que modificaria quaisquer imagens que eles vissem de Draco junto comigo. Isso me resguardaria.
Dobby e Monstro desaparataram, não sei se para as cozinhas ou para outro lugar, e fui para o sétimo andar. Eu mal havia aberto a porta da Sala Precisa quando duas mãos firmes e pálidas agarraram minha cintura e me ergueram no ar. Soltei um gritinho de susto.
— Melhor apanhadora de Castelobruxo, huh? Acho que agora é a melhor apanhadora de Hogwarts também.
Xinguei-o internamente. Era insuportável como eu não conseguia ficar brava com ele: então quer dizer que quando tínhamos algum desentendimento, ele subitamente começava a ser gentil e sabia exatamente o que dizer para me amolecer? Tudo bem que o verdadeiro motivo de estarmos tão próximos não era simplesmente atração, e sim obrigação de minha parte. Mas inegavelmente Draco Malfoy era um mestre da manipulação, como eu.
Naquele instante, porém, varri essa preocupação para algum ponto obscuro de minha cabeça, e entrelacei minhas pernas ao redor dele. Era melhor entrar em seu jogo.
— Cadê suas amiguinhas, Malfoy? — murmurei, com a boca quase tocando a dele em provocação.
— Ciúme não cai bem em você. — ele devolveu as palavras que eu lhe dissera tanto tempo antes.
Me aproximei mais e mordi seu lábio inferior, trazendo-o para mim. Ele grunhiu, e firmou o aperto em minhas coxas ao me beijar com intensidade. Porra, eu definitivamente gostava del… quer dizer, daquela missão.
Nada daquilo fazia sentido, porque tudo que havia entre nós era baseado em interesses conflitantes que eu deveria fingir que eram comuns. E o beijo… bom… era uma boa forma de ganhar tempo para arranjar uma desculpa do porquê eu continuaria próxima dele apesar de seu engajamento numa missão homicida.
Só nos separei quando estava sem ar, e Draco riu, apesar das olheiras marcadas e pele cada vez mais cinzenta.
— Senti sua falta. — ele murmurou, num tom que deixava claro o quão displicente ele queria que a afirmação soasse. — E… desculpe. Por…
— Me ameaçar de morte.
O sorriso dele se desfez.
Desci de seu colo, pousando uma perna no chão por vez, e toquei seu rosto com ternura. Ele fechou os olhos e deitou a bochecha em minha palma, voltando a deixar transparecer o cansaço e a preocupação que se acentuavam dia após dia. Sem que eu tivesse consciência, minha própria voz saiu magoada:
— Por quê?
Ele voltou a abrir os olhos, com as chamas prateadas queimando intensamente. Nós dois sabíamos que meu questionamento não se referia à saudade dele, e sim a tudo o que estava por trás. Relações complicadas de sangue, poder e segredos. E ameaças das quais ele não poderia escapar caso não cumprisse o que devia.
— Eu não tenho escolha. Ou ele, ou eu e meus pais.
Eu sabia bem o que era não ter escolha. Mas naquele instante, eu tinha uma, por mais que fosse ínfima. E talvez meus pais e supervisores discordassem da minha opção, mas eu não conseguiria ir contra o que achava certo. Eu me recusava a ajudar diretamente Draco Malfoy a matar uma pessoa, fossem quais fossem as consequências.
— Eu não posso te ajudar. — declarei. — Você entende, não entende?
— Entendo. — Sua voz ficou fria. — Você já fez mais do que devia.
A tensão tornou-se palpável no ambiente, e ele se afastou um pouco de mim, forçando um sorriso.
— Quero te mostrar uma coisa.
Ele parecia uma criança loira e travessa quando abriu um baú mofado que estava perto de nós. Tapei a boca com a mão, surpresa, e caí na gargalhada. Lá dentro, estava um caldeirão borbulhante cheio de Poção Polissuco.
— Eu sabia que a ajuda em Poções era só uma desculpa para ficar perto de mim. — brinquei, só depois percebendo o peso do que dissera.
Draco não negou, só me encarou com um sorrisinho enigmático e um tanto triste. Então ele realmente gostava de mim… certo? Mas será que aquilo seria bom o bastante para retirar a Marca?
Meu coração se acelerou com a expectativa. Como Draco estivera sozinho e à vontade na sala, as mangas de sua camisa social estavam dobradas, expondo os antebraços e a tatuagem negra contra a pele clara. Sendo assim, segurei sua mão esquerda e toquei a Marca com o diamante da pulseira. Ele brilhou intensamente.
— Eu juro que não vou contar a ninguém sobre a sua missão. — falei, para distraí-lo da luz que vinha da joia.
Ele ergueu a mão direita e ajeitou a raiz suada dos cabelos.
— Tudo bem. — Hesitou, mas logo em seguida disse: — Eu não deveria acreditar em você, mas por algum motivo acredito.
Dando alguns passos para longe, ele pegou sua capa da Sonserina e vestiu por cima dos ombros. Porém, meus olhos astuciosos detectaram que o braço esquerdo pálido continuava exibindo a caveira com a cobra enrolada. Contive uma careta de desapontamento. Sem reparar, ele esticou a mão para mim.
— Vamos jantar?
Não respondi, porque sabia que iria gaguejar. Nunca esperaria aquela atitude dele, e ainda mais num momento tenso. Céus, por que ele era tão contraditório?
, só quero te acompanhar ao Salão Principal.
— Não sei se… não acho que seja uma boa ideia…
Subitamente seu tom ficou frio de novo ao recolher a mão e dizer:
— Ah, claro. Eu esqueço que você é amiga do Potter. Imagino que a amizade com O Eleito valha mais do que a relação que construiu comigo.
— Draco, não é isso, é só que…
— Eu já entendi, , não precisa se justificar. Sem ressentimentos. — mas sua voz dizia o oposto. — Não precisa me dar sua mãozinha, mas será que posso pelo menos caminhar ao lado de Vossa Alteza?
O sarcasmo dele me machucou. Não era o deboche divertido que mantínhamos no dia-a-dia, e sim uma entonação ferina e desdenhosa que me fazia compreender completamente por que os grifinórios o detestavam.
— Não preciso de um guarda-costas — e saí pela porta, sem dar a ele o gostinho de me ver irritada.

* * *

Harry e Rony deixaram a ala hospitalar bem cedo na manhã de segunda-feira, com a saúde perfeita, graças aos cuidados de Madame Pomfrey, prontos para gozar os benefícios de terem sido, respectivamente, fraturado e envenenado, e, o que era melhor, Hermione reatara a amizade com Rony. Me juntei a ela para acompanhá-los quando desceram para o café da manhã, trazendo a notícia de que Gina tinha discutido com Dino.
— Ah, eu vi isso. — comentei, distraída, enquanto usava a varinha para mudar as cores de minhas unhas. — Não foi bonito.
— E qual foi o motivo da discussão? — perguntou Harry, tentando parecer desinteressado, quando entramos por um corredor deserto do sétimo andar, exceto por uma garotinha que estava examinando uma tapeçaria com trasgos usando tutus. Ela fez uma cara de terror ao ver sextanistas se aproximarem, e deixou cair a pesada balança que estava carregando. Franzi o rosto. Seria Crabbe ou Goyle?
— Tudo bem! — disse Hermione gentilmente, correndo para ajudá-la. — Veja... — E tocou a balança partida com a varinha dizendo Reparo!.
A garota não agradeceu; continuou pregada no chão enquanto eles passavam, acompanhando, com o olhar, o trio se afastar. Fiquei para trás por algumas frações de segundo, encarando o sonserino disfarçado, que acenou quase imperceptivelmente. Rony virou a cabeça para espiar a criança e logo me adiantei para que ele não notasse o pequeno delay.
— Juro que cada dia elas estão ficando menores. — comentou o ruivo.
— Esqueça a garota. — disse Harry, um pouco impaciente. — Por que foi que Gina e Dino brigaram, Hermione?
— Ah, Dino estava rindo de McLaggen ter acertado aquele balaço em você — respondeu Hermione.
— Deve ter sido engraçado. — comentou Rony sensatamente.
— Não foi nada engraçado! — replicou Hermione, indignada. — Foi horrível, e se não tivesse segurado Harry com aquele feitiço ele poderia ter se machucado seriamente! E machucado várias pessoas na arquibancada!
— É, bem, Gina e Dino não precisavam ter rompido o namoro por causa disso. — tornou Harry, ainda tentando parecer displicente. — Ou eles continuam juntos?
— Continuam... mas por que você está tão interessado? — perguntou Hermione, lançando a Harry um olhar penetrante.
— Não quero ver a equipe de quadribol bagunçada outra vez! — apressou-se a justificar. Hermione continuou desconfiada, mas não teve tempo de falar nada, pois Luna Lovegood chegara por trás de nós chamando Harry.
— Ah, oi, Luna.
— Fui procurar você na ala hospitalar. — disse Luna vasculhando a mochila. — Mas disseram que você já tinha saído...
Ela empurrou nas mãos de Rony uma coisa que parecia uma cebola verde, um grande chapéu-de-cobra e uma bolada de outra coisa que lembrava argila absorvente para caixa de dejetos de gatos, e, por fim, tirou um pergaminho meio sujo que entregou a Harry.
— ... mandaram lhe entregar isto.
Era um rolinho de pergaminho no qual reconheci imediatamente outro convite para uma de suas aulas com Dumbledore.
— Hoje à noite. — informou ele a nós três, quando abriu o pergaminho.
— Legal a sua narração no último jogo! — disse Rony a Luna, quando ela pegou de volta a cebola verde, o chapéu-de-cobra e a argila.
A garota deu um sorriso indefinido.
— Você está caçoando de mim, não é? Todo o mundo disse que foi péssima.
— Não, estou falando sério! — replicou Rony com sinceridade. — Não me lembro de ter gostado tanto de uma narração! A propósito, que é isso? — acrescentou, erguendo a tal cebola à altura dos olhos.
— Ah, é raiz-de-cuia. — disse ela, devolvendo a argila e o cogumelo à sua mochila. — Pode ficar com ela se quiser, tenho muito. É excelente para a gente se proteger das Dilátex Vorazes.
E ela se afastou, deixando Rony ainda segurando a raiz-de-cuia na mão e rindo.
— Sabe, ela acabou me conquistando, a Luna. — comentou ele, quando recomeçaram a andar para o Salão Principal. — Sei que é maluca, mas é no bom...
Ele parou repentinamente de falar. Lilá Brown estava parada ao pé da escadaria de mármore com um ar tempestuoso.
— Oi. — cumprimentou Rony, nervoso.
— Vamos. — murmurou Harry para Hermione, e eles deixaram o casal para trás depressa.
Fiquei ao lado de Rony, abaixada para amarrar os cadarços de meus coturnos pretos.
— Por que você não me avisou que estava saindo hoje? E por que ela estava com você?
Pela careta profundamente incomodada que Brown exibia descaradamente, estava claro que se referia a Hermione e não a mim.
— Ela é minha amiga, Lilá. — ele se explicou. — Elas duas são minhas amigas.
— Bom, você deveria rever o tipo de amizade que tem, porque é óbvio que…
Revirei os olhos e saí de perto dos dois sem nem me despedir. Não estava com saco para ouvir aquela ladainha, e duvidava que o próprio Rony estivesse a fim de se engajar numa discussão inútil tão cedo na mesma manhã em que saíra do hospital. Não era à toa que estivesse esquivo e aborrecido quando chegou para tomar café meia hora mais tarde e, embora sentasse com Lilá, não trocaram uma única palavra à mesa. Hermione agia como se estivesse indiferente à cena, mas uma ou duas vezes percebi um inexplicável ar de riso perpassar seu rosto.
A próxima vez que encontrei o trio completo foi na manhã seguinte, a caminho da aula de Defesa Contra as Artes das Trevas. Harry parecia ansioso e até um pouco frustrado, e logo entendi o motivo: recebera uma bronca de Dumbledore, por não ter conseguido obter a lembrança de Slughorn a tempo.
— O problema das broncas do Dumbledore é que ele não alteia a voz nem muito menos grita, mas a cara de desapontamento que ele faz…
— …é pior do que um tapa. — completei, e ele assentiu, esticando a mão para a maçaneta da porta da sala.
Snape nos encarou como se fôssemos uma sujeira incômoda que grudara em seu sapato, e não pude evitar de retribuir o desprezo. Ele me tirava do sério. O professor se aproximou de mim, numa clara tentativa de intimidar, mas abri apenas um falso sorriso educado que corroborou seu perene mau humor. Desviando os olhos para o rosto pálido e ligeiramente surpreso de Draco Malfoy, me sentei na carteira logo à frente dele, jogando os cabelos displicentemente sobre a mesa do sonserino.
— Hoje os senhores começarão um estudo muito complexo de um dos feitiços mais poderosos que um bruxo pode executar. — A voz grave e sem emoção de Snape começou a explicar após fechar bruscamente a porta atrás de Harry, como se quisesse nos prender dentro do aposento. — O Feitiço do Patrono.
A mão de Malfoy segurou minhas mechas, jogando-as de volta por cima de meus ombros e roçando os dedos na lateral do meu pescoço. Fiquei arrepiada com o toque e me virei, tendo o rosto franzido.
— No Brasil não existe “zona de espaço pessoal”? — ele debochou.
— Existe, mas você adora ultrapassar a minha, não é? — retorqui, prendendo os fios no topo da cabeça distraidamente.
— Srta. . — chamou Snape.
Todos da sala se voltaram para mim.
— Já que está conversando durante minha explicação, imagino que a senhorita já seja uma expert no assunto. — ironizou o professor.
Meu rosto ferveu, de vergonha e raiva.
— Desculpe, professor, não tive a intenção de desrespeitá-lo.
Ele abriu um sorriso de desdém.
— Venha aqui à frente para mostrar sua habilidade com Patronos. Tenho certeza de que todos ficarão impressionados.
Apertei as mãos nas laterais da mesa, sentindo uma farpa incomodar meu indicador.
— Não é um pedido, .
Me levantei, fingindo uma confiança que não tinha. Pelo menos estava usando as botas Prada, que me davam uma ajudinha considerável na autoestima e na altura. Cheguei à frente da mesa do professor, e Snape indicou com a mão que eu subisse no pequeno desnível que havia na frente do quadro. Obedeci, estalando meu salto contra o degrau, e ergui a varinha. Fechei os olhos e mentalizei uma lembrança feliz: uma tarde ensolarada com minha melhor amiga, Felícia, apostando uma corrida de natação no rio…
Expecto Patronum! — exclamei.
Senti um repuxo no topo de meu abdome, e uma luz prateada e fluida saiu pela ponta de minha varinha. De súbito, a memória começou a mudar… A água onde eu estava mergulhada não mais era do rio Amazonas, e sim do Lago Negro… e não era Felícia ao meu lado, e sim Draco, segurando minha cintura e ofegando, com um risinho convencido…
Era tarde demais para parar o encantamento. Porém, a sala inteira conteve exclamações de espanto quando, na frente de todos, se materializou…
— Um ovo. — constatou Snape, visivelmente assombrado. Em voz mais baixa, falou para si mesmo: — Em toda a minha vida… só nos livros…
Do fundo da sala, veio um aplauso. Malfoy tinha um sorrisinho torto nos lábios, que me deu duas vontades: ir lá desmanchá-lo no soco ou com a minha boca. Logo o resto da classe fez coro ao garoto, mas eu nem mesmo consegui pensar em agradecer, porque meu único pensamento era…
Que porra é essa? Snape escrutinou o ovo enorme e prateado que se materializara, mas não encontrou o que dizer. Era um Patrono corpóreo, sem dúvidas, pois os contornos eram bem definidos e a casca composta de luz apresentava pequenas rachaduras. Com um gesto irritado, ele me mandou voltar a minha carteira, o que provocou risos vitoriosos dos outros alunos, em especial da Grifinória.
— Silêncio! — ele esbravejou, mas de pouco adiantou; o burburinho não cessava.
Hermione me olhava boquiaberta, Rony e Harry me cumprimentaram com soquinhos nas mãos, Daphne Greengrass bateu palminhas quando nossos olhos se cruzaram e até mesmo Pansy me lançou uma piscadinha.
— Vou tirar cinquenta pontos da casa do próximo aluno que emitir qualquer ruído.
A sala mergulhou num silêncio sepulcral, e meus lábios se tensionaram para evitar abrir um sorriso escancarado.
Eu conjurara um Patrono. Eu conjurara um Patrono!
Tudo bem, era um bem esquisito (e, pelo visto, bem raro), mas ainda assim era um Patrono que seria eficiente.
Passei o resto da aula com aquilo na cabeça. Por que Snape ficou tão impressionado? Por que Hermione parecia tão chocada? E por que diabos meu Patrono era um ovo? A sineta tocou depois do que pareceram poucos minutos, e não pude deixar de observar que Draco fora o único aluno da turma que Snape não pedira para executar um Patrono na frente de todos.
Na semana seguinte, Harry examinava com atenção o livro de Poções, na esperança de que o Príncipe tivesse feito às margens alguma anotação útil, como tantas vezes antes. Conversara comigo e estávamos tentando pensar em uma forma de conseguir a lembrança de Slughorn que Dumbledore solicitara.
— Você não vai achar nada aí. — disse Hermione com firmeza, já tarde, no domingo à noite.
— Não começa, Hermione. Se não fosse o Príncipe, Rony não estaria sentado aqui agora.
— Estaria, se você tivesse prestado atenção ao Snape no primeiro ano. — retrucou Hermione conclusivamente.
Harry ignorou-a e dobrou discretamente o canto da página em que estava. Estávamos sentados junto à lareira na sala comunal; além de nós, as únicas pessoas acordadas eram outros sextanistas. Mais cedo, ocorrera certo alvoroço quando voltavam do jantar e encontraram um novo aviso no quadro, marcando a data para o teste de Aparatação. Os que completassem dezessete anos até a data do primeiro teste, inclusive, vinte e um de abril, poderiam se inscrever para aulas práticas suplementares, que teriam lugar (sob rigorosa supervisão) em Hogsmeade.
Rony entrara em pânico ao ler o aviso: ainda não conseguira aparatar, e temia que não estivesse pronto para o teste. Hermione, que até então já conseguira aparatar duas vezes, sentia-se um pouco mais confiante, mas Harry, que só completaria dezessete anos em quatro meses, não poderia fazer o teste, quer estivesse pronto ou não.
— Mas pelo menos você consegue aparatar! — exclamou Rony, tenso. — Não terá problema em julho!
— Só consegui uma vez. — lembrou Harry. Ele suspirou. — Feliz é a , que já tirou a licença dela.
— Ah, é que no Brasil podemos tirar com dezesseis anos, então quis me livrar disso logo. — expliquei.
Depois de ter gasto um bom tempo comentando suas preocupações em voz alta, Rony agora se empenhava em terminar um trabalho barbaramente difícil passado por Snape, que eu, Harry e Hermione já tínhamos concluído.
— Estou dizendo que esse Príncipe idiota não vai ajudar você, Harry! — falou Hermione em voz mais alta. — Só tem uma maneira de forçar alguém a fazer o que a gente quer, é a Maldição Imperius, que é ilegal...
— É, eu sei, obrigado. — disse Harry, sem tirar os olhos do livro. — É por isso que estou procurando alguma coisa diferente. Dumbledore diz que o Veritaserum não resolve, mas talvez haja outra coisa, uma poção ou um feitiço...
— Você está abordando o problema pelo ângulo errado. — explicou Hermione. — Dumbledore diz que somente você pode obter a lembrança. Isto deve significar que você pode persuadir Slughorn enquanto as outras pessoas não. Não é uma questão de dar a ele uma poção, pois qualquer um poderia fazer isso...
— Como é que se escreve “beligerante”? — perguntou Rony, sacudindo com força sua pena sem tirar os olhos do seu pergaminho. — Não pode ser B-U-M.
— Não, não é. — respondeu Hermione, puxando para perto o trabalho de Rony. — E “augúrio” também não começa com O-R-G. Que tipo de pena você está usando?
— Uma das Penas Autorrevisoras de Fred e Jorge... mas acho que o feitiço deve estar enfraquecendo…
— Talvez — disse Hermione, apontando para o título do trabalho —, porque o trabalho era descrever como enfrentaríamos dementadores e não “cava-charcos”, e também não me lembro de você ter mudado seu nome para “Roonil Wazlib”.
— Ah, não! — exclamou Rony, olhando horrorizado para o pergaminho. — Não me diga que vou ter de escrever tudo de novo!
— Não esquenta, a gente pode dar um jeito. — disse Hermione, trazendo o trabalho para mais perto e tirando a varinha.
— Adoro você, Hermione. — disse Rony, recostando-se na poltrona e esfregando os olhos, cansado.
Hermione ficou ligeiramente rosada, mas respondeu apenas:
— Não deixe a Lilá ouvir você dizendo isso.
Ahá. Mione estava ficando esperta. Jogou o verde na hora exata.
— Não deixarei. — falou ele, cobrindo a boca com as mãos. — Ou talvez deixe... aí ela me dá o fora...
— Por que você não dá o fora nela, se quer terminar? — indagou Harry.
— Você nunca terminou com ninguém, não é? — replicou Rony. — Você e Cho simplesmente...
— Meio que nos afastamos, sei. — concordou Harry.
— Eu gostaria que isso acontecesse comigo e a Lilá. — disse Rony sombriamente, enquanto observava Hermione tocar com a ponta da varinha cada uma das palavras erradas, fazendo com que se corrigissem. — Mas quanto mais insinuo que quero terminar, mais ela se agarra em mim. É como se eu estivesse namorando a lula-gigante.
— Você deveria ser sincero com ela. — opinei. — Não é legal brincar com os sentimentos dos outros se você não tem mais interesse. — “Porque na verdade está interessado na sua melhor amiga”, pensei, mas não completei a frase em voz alta.
— Pronto. — disse Hermione, uns vinte minutos depois, devolvendo o trabalho de Rony.
— Valeu. Me empresta a sua pena para eu escrever a conclusão?
Imitando Harry, corri os olhos pela sala. Simas tinha acabado de subir, xingando Snape e o trabalho. Os únicos ruídos eram as chamas crepitando e Rony arranhando o último parágrafo sobre os dementadores, com a pena de Hermione. Harry tinha acabado de fechar o livro do Príncipe Mestiço com um bocejo quando...
Craque.
Hermione soltou um gritinho; Rony respingou tinta por todo o pergaminho; eu finquei as unhas no braço da poltrona e Harry exclamou:
— Monstro!
O elfo doméstico fez uma profunda reverência e falou, encarando os próprios pés nodosos:
— O senhor disse que queria relatórios regulares sobre… — e ficou em silêncio ao me ver.
— Ela pode saber — Harry permitiu, não parecendo muito à vontade.
— …relatórios regulares sobre o que o garoto Malfoy está fazendo, por isso Monstro veio apresentar...
Craque.
Dobby apareceu ao lado de Monstro, o abafador de chá enviesado na cabeça.
— Dobby esteve ajudando também, Harry Potter! — guinchou, lançando a Monstro um olhar rancoroso. — E Monstro deve avisar a Dobby quando vem ver Harry Potter para podermos fazer os relatórios juntos!
— Que é isso? — perguntou Hermione ainda assustada com as repentinas aparições. — Que está acontecendo, Harry?
— Não me diga que você… — e comecei a rir, fingindo surpresa. — Você realmente está obcecado!
Ele hesitou antes de responder.
— Bem... eles estão seguindo Malfoy para mim. — respondeu ele.
— Dia e noite. — crocitou Monstro.
— Dobby não dorme há uma semana, Harry Potter! — informou Dobby com orgulho, balançando o corpo.
Hermione mostrou-se indignada.
— Você não tem dormido, Dobby? Mas, Harry, com certeza você não disse a ele para não...
— Não, é claro que não disse. — Bom, mas na verdade ele dissera sim; ordenara expressamente que ficassem de olho em Draco vinte e quatro horas por dia… — Dobby, você pode dormir, certo? Mas algum de vocês descobriu alguma coisa? — apressou-se a perguntar antes que Hermione pudesse intervir novamente.
— O senhor Malfoy anda com uma nobreza que condiz com o seu sangue puro. — crocitou imediatamente Monstro. — As feições dele lembram a ossatura delicada da minha senhora, e suas maneiras são as de...
— Draco Malfoy é um garoto mau! — esganiçou-se Dobby enraivecido. — Um garoto mau que... que...
Ele estremeceu da borla do abafador de chá às pontas das meias e correu para a lareira, como se quisesse mergulhar nela; Harry, pego de surpresa, agarrou-o pela cintura e segurou-o firme. Durante alguns segundos Dobby se debateu e, em seguida, afrouxou o corpo.
— Obrigado, Harry Potter. — ofegou o elfo. — Dobby ainda acha difícil falar mal dos seus antigos senhores…
— Antigos senhores? — questionei, abismada. Isso era novidade para mim.
— Sim! Dobby servia à casa dos Malfoy… — ele respondeu, tristonho.
— Monstro preferia mil vezes estar no antigo lugar de Dobby. — resmungou o outro elfo.
Harry soltou-o; Dobby endireitou o abafador de chá e desafiou Monstro:
— Mas o Monstro devia saber que Draco Malfoy não é um bom senhor para um elfo doméstico!
— É, não precisamos ouvir você falar de sua paixão pelo Malfoy. — disse Harry a Monstro. — Vamos passar adiante e falar sobre o que ele anda realmente fazendo.
Monstro tornou a se curvar, furioso e relatou:
— O senhor Malfoy come no Salão Principal, dorme no dormitório nas masmorras, assiste às aulas sobre vários...
— Dobby, me informe você. — ordenou Harry, interrompendo o Monstro. — Ele tem ido a algum lugar aonde não deveria ir?
— Harry Potter, senhor — guinchou Dobby, seus enormes olhos redondos refletindo a luz das chamas —, o rapaz Malfoy não está desrespeitando nenhuma regra que Dobby conheça, mas continua procurando evitar que o vejam. Tem feito visitas frequentes ao sétimo andar com uma variedade de estudantes que ficam vigiando enquanto ele entra...
— Na Sala Precisa! — exclamou Harry, dando uma forte pancada na testa com o livro que lia. Hermione e Rony olharam-no espantados. — É aonde ele tem ido! É lá que está fazendo... seja lá o que for! E aposto que é por isso que vive desaparecendo do mapa: pensando bem, nunca vi a Sala Precisa lá!
— Vai ver os Marotos nunca souberam que a sala existia — disse Rony.
— Acho que deve fazer parte da magia da Sala. — comentou Hermione. — Se você quer que não seja localizável, então não será.
— Dobby, você conseguiu entrar para ver o que Malfoy está fazendo? — perguntou Harry, ansioso.
— Não, Harry Potter, isto é impossível.
— Não, não é. — respondeu Harry imediatamente. — Malfoy entrou na nossa sede no ano passado, então posso entrar e espioná-lo também, sem problema.
— Mas acho que você não vai poder, Harry. — disse Hermione lentamente. — Malfoy sabia exatamente para que usávamos a Sala, não é, porque a burra da Marieta deu com a língua nos dentes. Ele precisou que a Sala se transformasse na sede da AD, e isto aconteceu. Mas você não sabe em que se transforma a Sala quando Malfoy entra lá, então não vai poder pedir que a Sala se transforme.
— Encontrarei um jeito de contornar isso. — respondeu Harry, sem fazer caso. — Você foi genial, Dobby.
— O Monstro também se saiu bem. — aparteou Hermione gentilmente; mas longe de demonstrar gratidão, Monstro desviou seus enormes olhos injetados e crocitou para o teto:
— A sangue ruim está falando com o Monstro, o Monstro vai fingir que é surdo...
— Cai fora. — mandou Harry com rispidez, e Monstro fez uma última reverência profunda e desaparatou. — É melhor você ir dormir um pouco também, Dobby.
— Obrigado, Harry Potter, senhor! — Dobby guinchou, feliz. — Ah, e outra coisa. Dobby também viu o menino Malfoy beijando algumas estudantes. Ele parece fazer sucesso entre as alunas de Hogwarts.
Um ligeiro mal estar se instalou entre nós quatro, e Dobby também desaparatou.
O trio de ouro me encarava de soslaio como se estivesse em expectativa, e fiz uma careta desconcertada e ligeiramente enciumada, que era o que eles esperavam. E, por mais que eu odiasse admitir e soubesse que a tal variedade de garotas era efeito do meu feitiço, nem precisei fingir tanto assim.
— Que acham disso? — perguntou Harry entusiasmado, virando-se para nós no instante em que os elfos saíram. — Sabemos onde Malfoy está indo! Agora nós o encurralamos!
— É, legal. — respondeu Rony mal-humorado, tentando enxugar a papa de tinta em cima do que fora, até alguns instantes, um dever de casa quase concluído.
Hermione puxou o pergaminho e começou a aspirar a tinta com a varinha.
— Mas que história é essa do Malfoy subir com uma “variedade de estudantes”? — perguntou Hermione. — Quantas pessoas estão sabendo do que acontece? Ninguém imaginaria que ele fosse confiar o que faz a tanta gente...
— É, é esquisito. — concordou Harry, franzindo a testa. — Ouvi Malfoy dizendo ao Crabbe que não era da conta dele o que estava fazendo... então o que está dizendo a todos esses... todos esses...
A voz de Harry foi morrendo; ele olhava fixamente para as chamas.
— Deus, que burrice a minha. — comentou baixinho. — É óbvio, não é? Tinha um grande barril de poção lá embaixo na masmorra... ele pode ter afanado um pouco durante a aula…
Não, Harry, pensei, sentindo um orgulho estranho, ele mesmo faz a poção. Você deveria parar de subestimar as habilidades dele.
— Afanado o quê? — perguntou Rony.
— Poção Polissuco. Ele roubou um pouco da Poção Polissuco que Slughorn nos mostrou na primeira aula... não tem uma variedade de estudantes montando guarda para Malfoy... É só o Crabbe e o Goyle, como sempre... é, agora tudo se encaixa! — exclamou Harry se levantando de um salto e começando a caminhar de lá para cá diante da lareira. — Eles são suficientemente burros para fazer o que são mandados fazer, mesmo que Malfoy não conte a eles do que se trata... mas, como não quer que sejam vistos rondando a Sala Precisa, fez os dois tomarem a Poção Polissuco para parecerem outras pessoas... aquelas duas garotas que vi com Malfoy quando ele faltou à partida de quadribol: ah! Crabbe e Goyle!
Merda. Merda. Merda! Porcaria de elfos. Por que precisavam ser tão eficientes?
— Você quer dizer — falou Hermione baixinho —, que aquela garotinha da balança que eu consertei...?
— É, claro! — confirmou Harry em voz alta, olhando para a amiga. — Óbvio! Malfoy devia estar dentro da Sala naquele momento, então ela... que foi que eu disse? Ele deixou cair a balança avisando a Malfoy para não sair, porque tinha gente ali! E teve também a outra garota que largou no chão as ovas de sapo. Passamos por eles o tempo todo sem perceber!
— Ele está obrigando Crabbe e Goyle a se transformarem em garotas? — perguntou Rony às gargalhadas. — Caramba... não admira que eles não andem nada felizes ultimamente... Fico surpreso que não mandem o Malfoy tomar no...
— Bem, eles não mandariam, não é, se Malfoy tiver mostrado a Marca Negra que tem. — lembrou Harry.
— A Marca Negra que não sabemos se existe. — contrapôs Hermione, descrente, enrolando o trabalho de Rony antes que mais alguma coisa acontecesse, e devolvendo-o ao garoto.
— Veremos. — disse Harry confiante.
— É, veremos. — replicou Hermione levantando e se espreguiçando. — Mas, Harry, antes que você fique todo animado, continuo achando que não vai conseguir entrar na Sala Precisa se não souber primeiro o que tem lá dentro. E acho que você não devia esquecer — Hermione pôs a mochila no ombro e olhou muito séria para Harry — que você devia estar se concentrando em obter a lembrança do Slughorn. Boa noite.
Harry observou Hermione se retirar. Quando a porta do dormitório das garotas se fechou, ele se virou para Rony.
— Que é que você acha?
— Que eu gostaria de desaparatar como um elfo doméstico. — respondeu, olhando para o lugar em que Dobby sumira. — Aquele teste de Aparatação estaria no papo.
Ele também se retirou, e só restamos eu e Harry perto da lareira.
— A Poção Polissuco ainda não explica as garotas que ele beija. — falei, tentando soar displicente.
Harry me encarou como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado.
— Você é boa demais para ele, . Foi bom você ter se livrado. — Ao dizer isso, foi como se tivesse liberado um peso, e deu uma risada. — Sério, não sei como pude achar por um segundo que você tinha… se envolvido com ele.
— É. — dei um sorriso, e o garoto se levantou rumo a seu dormitório, me deixando sozinha com o pensamento de que, realmente, eu era boa demais para ter deixado aquilo acontecer.



Capítulo 20

POV

No café da manhã seguinte, Harry estava num estado de grande ansiedade. Ao contrário de mim e Mione, ele tinha um período livre antes de Defesa Contra as Artes das Trevas e nos confidenciou que estava decidido a usá-lo para tentar entrar na Sala Precisa e flagrar Draco. Hermione mostrava ostensivo desinteresse por seus cochichos sobre os planos para arrombar a sala, o que o irritou, porque Harry achava que ela poderia ajudar muito, se quisesse. A mim, porém, não ousou pedir auxílio. Sabia que ele tinha um pé atrás em relação à cordialidade que eu mantinha com Malfoy.
— Olhe. — disse ele baixinho, inclinando-se para a frente e pondo a mão no Profeta Diário que Mione acabara de tirar de uma coruja-correio, procurando impedir que ela o abrisse e desaparecesse atrás dele. — Não esqueci o Slughorn, mas não faço ideia de como vou obter aquela lembrança e, até que me ocorra uma tempestade cerebral, por que não posso descobrir o que Malfoy está fazendo?
— Já lhe disse, você precisa persuadir Slughorn. Não é uma questão de induzir ou enfeitiçar o professor, ou Dumbledore poderia ter feito isso em um segundo. Em vez de ficar rondando a Sala Precisa — ela puxou o Profeta que Harry segurava e abriu-o para olhar a primeira página —, você deveria procurar o Slughorn e começar a apelar para os bons instintos dele.
Ela continuou lendo, apertando os olhos para desvendar as letras miúdas.
— Alguém que conhecemos...? — perguntou Rony.
— Sim! — exclamou Hermione, fazendo Harry e Rony se engasgarem com a comida —, mas está tudo bem, ele não morreu: é sobre o Mundungo, ele foi preso e mandado para Azkaban! Parece que andou fingindo ser morto-vivo em uma tentativa de arrombamento... e alguém chamado Otávio Pepper desapareceu… ah, que coisa horrível, um garoto de nove anos foi preso por tentar matar os avós, acham que ele estava dominado pela Maldição Imperius...
Eles terminaram o café da manhã em silêncio, e minhas mão tremiam um pouco quando eu segurei a faca para passar geleia na torrada. Aquela guerra poderia ser evitada se eu cumprisse minha missão de tirar a Marca de Draco, mas ler aquelas notícias só me pressionava mais. Hermione e eu seguimos imediatamente para a aula de Runas Antigas, mas meu coração se apertava de medo. Só consegui respirar aliviada ao ver Harry entrar na sala da Defesa Contra as Artes das Trevas, com uma careta de decepção e levemente arfante, como se tivesse corrido até lá.
— Outra vez atrasado, Potter. — disse Snape friamente, quando Harry entrou, apressado, na sala iluminada por velas. — Menos dez pontos para a Grifinória.
Harry amarrou a cara para o professor ao se atirar no assento ao lado de Rony; metade da turma ainda estava em pé, apanhando livros e se organizando; seu atraso não era maior do que o dos outros colegas. Joguei o livro ruidosamente sobre minha mesa, irritada.
— Antes de começarmos, quero ver os seus trabalhos sobre dementadores. — ordenou o professor, acenando displicentemente com a varinha e fazendo vinte e cinco pergaminhos levantarem voo e aterrissar em uma pilha ordeira sobre sua escrivaninha. — E espero, em seu benefício, que estejam melhores do que o chorrilho que tive de ler sobre a resistência à Maldição Imperius. Agora, queiram abrir seus livros na página... que foi, sr. Finnigan?
— Senhor — disse Simas —, como é que se pode diferenciar um morto-vivo ou Inferius de um fantasma? Por que saiu no Profeta uma notícia sobre um Inferius...
— Não, não saiu. — respondeu Snape, entediado.
— Mas, senhor, ouvi comentários...
— Se o senhor tivesse lido realmente a notícia em questão, sr. Finnigan, saberia que o assim chamado Inferius não passava de um ladrãozinho infecto chamado Mundungo Fletcher.
— Pensei que Snape e Mundungo estivessem do mesmo lado, não? — murmurou Harry para nós. — Ele não deveria estar aborrecido com a prisão de Mundungo...?
— Mas Potter parece ter muito a dizer sobre o assunto. — falou Snape, apontando subitamente para o fundo da sala, seus olhos negros fixos em Harry. — Vamos perguntar a Potter como ele descreveria a diferença entre um morto-vivo e um fantasma.
A turma inteira se virou para Harry.
— Ah... bem... fantasmas são transparentes... — respondeu ele.
— Oh, muito bem. — interrompeu-o Snape, encrespando desdenhosamente os lábios. — Sim, é fácil verificar que não desperdiçamos quase seis anos de estudos de magia com você, Potter. Fantasmas são transparentes.
Pansy soltou uma risadinha aguda, e fiz cara feia para ela. Vários outros alunos sorriam debochados.
Não era possível que só eu e o trio achássemos a atitude escrota de Snape inaceitável. Ele praticamente chamara Simas de idiota, insinuando que ele era um desperdício de estudo. Abri meu livro com violência e me forcei a focar os olhos nas letras enfeitadas do índice para não soltar um comentário malcriado. Harry inspirou fundo e continuou calmamente:
— Sim, fantasmas são transparentes, mas Inferi são corpos sem vida, certo? Então seriam sólidos...
— Uma criança de cinco anos poderia ter nos dito isso — zombou Snape, e cerrei os punhos com raiva. Como eu queria socá-lo… Ou talvez arrancar aqueles cabelos nojentos fio a fio. — Um Inferius é um morto que foi reanimado por meio de um feitiço das Trevas. Não está vivo, é meramente usado como uma marionete para cumprir as ordens do bruxo. Um fantasma, como espero que a esta altura todos saibam, é uma impressão deixada por um morto na terra... e é claro, como diz Potter tão sabiamente, é transparente.
— Bem, o que Harry disse é muito útil para diferenciarmos os dois! — comentou Rony, irritado. — Quando nos defrontarmos com uma aparição em um beco escuro, vamos olhar depressa para ver se é sólido, não é, não vamos perguntar: “Com licença, o senhor é uma impressão deixada por uma alma que partiu?”
Uma onda de risos percorreu a sala, mas foi imediatamente paralisada pelo olhar que Snape lançou à turma.
— Outros dez pontos a menos para a Grifinória. — disse o professor. — Eu não esperaria nada mais sofisticado do senhor, Ronald Weasley, um rapaz tão sólido que é incapaz de aparatar dois centímetros em uma sala.
Não!. — sussurrou Hermione, agarrando Harry pelo braço, quando ele abriu a boca, rubro de raiva. — Não vale a pena, você vai acabar cumprindo mais uma detenção, deixa para lá!
Eu estava tão enfurecida quanto ele.
— Agora abram os livros na página duzentos e treze — disse o professor com um sorrisinho — e leiam os primeiros dois parágrafos sobre a Maldição Cruciatus…
Rony ficou anormalmente quieto durante toda a aula. Minhas respirações cadenciadas foram ajudando a amainar minha fúria ao longo do período, mas quando Snape começou a debochar de uma pergunta que Neville fizera, foi a gota d’água para mim.
— Professor — chamei, erguendo a mão no ar. Vários rostos se viraram espantados para mim. Eu não era de falar com frequência nas aulas.
— Sim, .
— Debochar das dúvidas dos alunos, que estão aqui para aprender, faz parte do seu método de ensino?
Toda a classe prendeu a respiração. O silêncio era tão profundo que seria possível ouvir um alfinete cair no chão de pedra.
— Parece que os alunos da Grifinória vieram hoje à minha aula exclusivamente para perder pontos para sua casa. — Snape andou até a frente de minha carteira, apoiando as duas mãos no tampo lustrado. — A senhorita quer ser expulsa da minha sala? Pois não acredito que seja qualificada para questionar a forma como dirijo minhas aulas, então peço que…
— Na verdade, sou sim. — o interrompi, arrancando mais sons de assombro da turma. — Me graduei em Magipedagogia no ano passado. Aulas complementares oferecidas por Castelobruxo, entende… Com certificações da Confederação Internacional Bruxa. — comentei com um leve sarcasmo. — Mas não precisa ser uma especialista como eu para ver claramente que amedrontar os estudantes e fazê-los ter vergonha do conhecimento que têm é simplesmente asqueroso e imaturo.
Snape endireitou a postura, mas estava branco e com uma expressão desacreditada e muito, muito brava.
— Ora, sua…
— Continue. — o encorajei, dando um tapa na mesa perigosamente próximo de onde suas mãos estavam. — Me chame do que o senhor quer me chamar. De latina intrometida, estrangeira nojenta, grifinoriazinha prepotente. Me chame do que quiser, mas eu estou certa. Na verdade, eu nem ao menos precisaria estar cursando essa matéria; já completei todos os créditos e estive isenta da sua disciplina desde o início do ano letivo. Apesar disso, tenho comparecido às aulas porque ouvi dizer o quão qualificado o senhor era, e imaginei que pudesse me ensinar algo novo. — Levantei, ficando desagradavelmente próxima da ponta de seu nariz. — Mas a única coisa que vejo aqui é abuso de poder e um homem de meia idade que acha divertido aterrorizar adolescentes para se reafirmar. Lide com as suas frustrações numa terapia ou saia o senhor da sala de aula. Aqui não é lugar para covardes.
Juntei meu material bruscamente e saí da sala bufando, batendo a porta e não dando a mínima para quantos pontos da Grifinória o idiota do Severo Snape queria retirar. Eu tirara algo muito mais valioso: a sua fama de incontestável.

Draco POV

Naquela manhã de domingo, quase todos os alunos estavam em suas salas comunais: os da Grifinória em uma torre, os da Corvinal em outra, os da Sonserina nas masmorras e os da Lufa-Lufa no porão próximo às cozinhas. Aqui e ali, uma pessoa andava pela biblioteca ou por um corredor... havia pouca gente nos jardins... e ali, dentro da Sala Precisa, estava eu, suado e sujo de tinta e poeira. E sozinho no corredor do sétimo andar, estava Gregório Goyle, sob a forma de uma menininha.
Tudo parecia bem; quer dizer, pelo menos o castelo estava quieto. Só o que ainda fervilhava na minha cabeça era a explosão de com Snape. Tinha certeza de que não era uma reação normal aquela que ela tivera, mas ainda não tivera a oportunidade de questioná-la a respeito. Naquela tarde aconteceria o Exame de Aparatação, o qual eu não poderia prestar por ainda não ter completado dezessete anos. Apesar da restrição de idade ter me frustrado um pouco, eu me concentrava em executar alguns feitiços no interior do Armário Sumidouro, me sentindo quase feliz por tudo estar tão tranquilo.
Até que Goyle soltou um grito agudo de terror, atirou a balança para o ar e saiu desembalado, desaparecendo de vista antes que o estrondo da balança ao bater no chão parasse de ecoar no corredor.
Um arrepio gelado desceu por minha coluna quando ouvi uma risada desagradavelmente familiar; pertencia a Harry Potter. Isso indicava que ele estava perigosamente próximo. Fiquei em silêncio e me escondi atrás da estante que eu explodira na última discussão com , apontando com a varinha para a porta. Estava tão quieto e perto do lado de fora que pude ouvir o som da palma de Potter se arrastando pela parede, e apertei com mais força o punho da varinha.
Meia hora se passou sem que eu ousasse voltar a meu trabalho; estava inquieto demais para aquilo. Por fim, ouvi um impacto pesado contra a porta, e uma exclamação de dor. Saí de trás da barricada de quinquilharias e quase toquei a ponta da varinha na porta, com o coração acelerado.
— Harry? — chamou uma voz feminina. Ouvi um som de queda.
— Que é que você está fazendo aqui? — perguntou Potter.
— Vim ver Dumbledore.
— O escritório dele não é aqui — informou a voz dele —, é do outro lado do castelo, atrás da gárgula...
— Eu sei. — respondeu a outra pessoa. — Ele não está lá. Aparentemente viajou outra vez.
— Viajou? — admirou-se Potter. — Ei, por acaso você não sabe aonde ele vai?
— Não.
— Que é que você queria com o Dumbledore?
— Nada importante. — respondeu ela. — Pensei que ele talvez soubesse o que está acontecendo... ouvi boatos... teve gente machucada...
— É, eu sei, saiu nos jornais. O garotinho que tentou matar os...
— O Profeta muitas vezes dá notícias com atraso. — disse a mulher, que parecia não estar ouvindo Harry. — Você recebeu cartas de alguém da Ordem recentemente?
Ah, sim. Por isso a voz soava tão familiar. Só poderia ser Ninfadora Tonks, filha de minha tia Andromeda. Minha prima esquecida, mestiça e integrante da Ordem da Fênix.
— Ninguém da Ordem me escreve mais, desde que Sirius… — e Ninfadora parou de falar, com a voz embargada.
Sirius… Sirius Black. Primo de sua mãe, tão renegado pela Casa Black quanto ela ou sua ascendente. Morto pela varinha da própria prima, e irmã de minha mãe, Bellatrix Lestrange, no mesmo dia em que meu pai fora preso. O dia em que tudo começou. Estremeci.
— Desculpe. — murmurou Potter sem graça. — Quero dizer... eu também sinto falta dele…
— Quê?! — exclamou ela sem entender, como se não o tivesse ouvido. — Bem... a gente se vê por aí, Harry...
Ouvi os passos de Potter cerca de dois minutos depois, e finalmente respirei aliviado. Provavelmente fora almoçar, o que eu também precisava fazer. Enxuguei o suor da testa com a manga da capa mesmo, e saí pela porta.
No fim do corredor, avistei , que pareceu surpresa por um instante ao me ver, mas em seguida sorriu placidamente. Fiquei constrangido; ela estava linda. Exibia um rabo de cavalo perfeito, com a gravata despojadamente frouxa sobre a camisa social, com alguns botões abertos exibindo o início de seu decote, enquanto eu estava naquele estado.
— Oi. — ela falou, timidamente. — Indo almoçar?
— Sem muito apetite. — menti num resmungo, sendo traído por um indiscreto ronco de meu estômago. Ela riu.
— Sem apetite ou sem vontade de ter contato humano?
— Segunda opção. — confessei de má vontade.
Ao ouvir isso, ela agarrou minha mão bruscamente, com uma expressão sapeca, e me arrastou até um quadro que exibia três pastorinhas que decoravam a lã de suas ovelhas com flores coloridas. puxou sua varinha e tocou uma nuvem branca e fofa na pintura, que rolou para o lado exibindo uma passagem que eu, em meus vários anos estudando em Hogwarts, nunca tinha visto na vida.
— Cozinhas. — ela falou simplesmente, e depois de alguns segundos andando chegamos a um ambiente quente, porém amplo como o Salão Principal e muito iluminado, recendendo a pão fresco e canela, lotado de elfos domésticos. Um guincho agudo me fez virar a cabeça depressa, e meus olhos encontraram os globos oculares enormes e muito verdes de Dobby.
— Sr. Malfoy! — Sua voz denotava assombro.
Não consegui responder, ainda meio chocado.
— Oi, Dobby. — falou , abaixando-se para falar com ele. — Como você está?
— B-bem, srta. . — ele gaguejou, sem tirar os olhos de mim. — O-o q-que deseja?
— Você consegue arranjar uns sanduíches quentes para nós? Aqueles que eu ensinei vocês a fazerem. — ela pediu.
Dobby fez uma profunda reverência e correu para perto do fogão.
— Ele era meu elfo. — comentei com .
— Eu sei.
— Como você…
— Você ficaria impressionado com as coisas que eu sei, Malfoy. — ela falou, com um risinho, mas logo depois pareceu se arrepender de ter dito aquilo.
Apesar da sujeira e suor em minhas roupas, enlacei sua cintura e, puxando-a para mim, beijei de leve seu maxilar.
— Qualquer dia você poderia me mostrar essas coisas que sabe. — sussurrei com malícia.
Ela riu, deitando a cabeça no meu ombro.
— Você é péssimo. E está nojento. — implicou, se afastando.
Ri também, mas logo o sorriso esmoreceu quando Dobby se aproximou, desconfiado, trazendo dois embrulhos de papel pardo.
— Obrigada, Dobby. — ela agradeceu, sorrindo de forma estonteante para o elfo ao pegar a comida.
— Dobby fica muito feliz quando a srta. o agradece. — ele se empertigou, soando emocionado. — Demonstra que há bruxos de sangue puro que são verdadeiramente especiais. — E seu olhar recaiu em mim.
Meu sangue esquentou, e abri a boca para soltar algum comentário ofensivo ou mesmo dar uma ordem, mas eu não era seu senhor, e ele não estava mentindo. O elfo, porém, deu um murro em seu próprio rosto, penalizando a si próprio por ter me desrespeitado, mas segurou o punho da criatura.
— Dobby, não faça isso. Você não fez nada de errado.
Com um outro guincho alto, ele se retirou, assustado e confuso.
— Vem. — ela chamou, pulando de volta para a passagem.
Sem nem olhar para trás, ela me arremessou um dos sanduíches, que desembrulhei para comê-los ainda quentes. Era delicioso, apesar de sua simplicidade: feito com pão de forma, queijo derretido e presunto.
— Gostou? — ela perguntou, dando uma dentada no próprio almoço. — São mistos quentes. Sempre como no Brasil.
— Bem gostoso. — falei, e quando terminei de mastigar mais um pedaço, indaguei, apontando para as paredes: — Como você descobriu isso? Porque eu sempre visitei as cozinhas para pegar lanche pela passagem que tem nas masmorras…
— Uma garota tem seus mistérios, não? — ela brincou, amassando o papel na palma da mão depois de limpar a boca. — Por aqui, temos aula de Poções agora.
Tomamos um corredor mergulhado em penumbra, que desembocava atrás de uma tapeçaria nas masmorras; estávamos saindo pela entrada que eu conhecia. Impressionado, afastei o tecido da passagem e entrei na sala de Slughorn. Acertei a bolinha de papel pardo na lixeira e tomei um lugar na bancada perto de . Só havia quatro alunos na sala de Poções aquela tarde: eu, ela, Ernesto McMillan e Potter.
— Todos jovens demais para aparatar? — perguntou Slughorn cordialmente. — Ainda não fizeram dezessete anos?
Eu e os outros garotos sacudimos a cabeça em afirmação. apenas sorriu.
— Ah, bem — disse Slughorn animado —, como somos tão poucos, vamos nos divertir. Quero que vocês preparem alguma coisa engraçada!
— Parece uma boa ideia, senhor. — bajulou Ernesto, esfregando as mãos.
Permaneci sério, achando ridícula a forma pomposa que McMillan falava.
— Que é que o senhor quer dizer com alguma coisa “engraçada”? — perguntei com irritação.
— Ah, me façam uma surpresa. — respondeu Slughorn, despreocupado.
Abri meu exemplar de Estudos avançados no preparo de poções de mau humor. Aquela aula seria um desperdício de tempo. Contudo, o olhar severo de sobre mim me impedia de simplesmente levantar com a desculpa de ir ao banheiro e matar o resto da aula; estava cedendo de má vontade o tempo que poderia gastar na Sala Precisa.
Encarei meu reflexo no fundo curvo e polido do caldeirão de estanho. O Draco que me olhava de volta parecia mais magro e pálido; a pele conservava um tom acinzentado, porque nos últimos tempos era raro que eu visse a luz do dia. Mas não havia presunção, nem excitação, nem superioridade no rosto, tampouco a segurança que eu buscara aparentar quando me gabara abertamente para meus amigos da Sonserina acerca da missão que tinha recebido do Lorde das Trevas. “Óbvio”, pensei, com amargor, “a missão está indo de mal a pior”.
Na bancada ao meu lado, Potter parecia radiante. Seu livro, um exemplar todo emporcalhado de segunda mão, estava aberto na página do Euphoria Elixir. Bufei em desdém. Ridículo, estava copiando a mesma ideia que eu tivera antes do Natal. Já estava distraída, o que não era de seu feitio, mas trabalhava sem parar.
— Ora, então, esta poção parece absolutamente maravilhosa! — exclamou Slughorn batendo palmas, hora e meia depois, ao inspecionar o conteúdo amarelo-sol do caldeirão do garoto. — Euphoria, presumo. E que cheiro é esse que estou sentindo? Hummm... você acrescentou um galhinho de menta, não foi? Heterodoxo, mas que sopro de inspiração, Harry. Claro, poderia compensar os efeitos colaterais, as excessivas cantorias e coceiras no nariz... Eu realmente não sei onde você arranja essas ideias luminosas, meu rapaz... a não ser... que sejam os genes de sua mãe se revelando em você!
— Ah... é, quem sabe. — disse Potter.
Ernesto estava com um ar muito rabugento; decidido a brilhar mais que Harry ao menos uma vez, apressadamente inventara uma poção que talhara e formara uns grumos roxos no fundo do caldeirão.
— E vemos aqui, sr. Malfoy — o professor se aproximou de meu caldeirão, com o rosto inexpressivo —, uma Solução dos Soluços, correto?
— Sim, senhor.
— Até que está passá.vel — ele comentou, e se desviou para . Não pude evitar de amarrar a cara enquanto jogava meus materiais de qualquer jeito na bolsa. — E dez pontos para a Grifinória por sua poção, srta. . Como de hábito, uma exemplar Poção Volubilis.
A sineta tocou, e saí logo da sala junto com MacMillan.
— Draco. — ouvi a voz de me chamar, e virei a cabeça. — Eu estava… hã… pensando se você… não gostaria de me fazer companhia.
Ergui as sobrancelhas e sorri com sarcasmo, prestes a soltar um comentário ácido.
— E pra quê você precisa da minha companhia, exatamente?
Ela entreabriu a boca, e seus olhos se desviaram para cima do meu ombro. Atrás de mim, Potter saía da sala de Poções, aturdido e sem reparar em nós.
— Não preciso. — Ela revirou os olhos. — Mas eu quero.
A afirmação me desconcertou. Ela mesma parecia um pouco sem graça.
— Tudo bem, vou só deixar as coisas no dormitório e trocar de roupa… — falei, depois de alguns segundos processando o que ela dissera. Hesitei, mas decidi: — Vem comigo.
me acompanhou e entramos juntos na sala comunal da Sonserina, que ela já conhecia. Alguns alunos mais novos apresentaram expressões chocadas por verem uma grifinória ali dentro, mas os sonserinos do quinto ano para cima a cumprimentaram com sorrisos e acenos discretos. Zabini, que estava sentado à mesa ao lado de Millie Bulstrode, varreu o corpo de com um olhar de desprezo. Cerrei os punhos, tentando ignorá-lo, e vi ir na direção de Daphne Greengrass, que estava sentada num dos sofás com a irmãzinha Astoria.
Adentrei meu quarto, jogando a mochila de qualquer jeito sobre a cama, e peguei roupas limpas no armário, deixando-as dobradas sobre a cabeceira. Entretida com as irmãs Greengrass, que pareciam gostar bastante dela, certamente não teria problema em esperar que eu tomasse uma ducha rápida. Minha pele estava pegajosa e pedia desesperadamente por jatos de água.
Minha mera presença dentro do boxe já fez com que o chuveiro começasse a jorrar, e tentei relaxar meus músculos das costas. Andava anormalmente tenso; o segundo semestre já estava quase pela metade e o tempo se esvaía mais rápido do que eu trabalhava. No meio disso tudo, ainda precisava me manter em dia com as matérias escolares, porque ainda eram minimamente importantes para mim e davam um ar de normalidade a minha realidade distorcida. E o frasco de Felix Felicis que me dera me tentava todos os dias, mas eu sabia que só poderia usá-lo quando não tivesse mais opção.
Em pouco tempo saí do banheiro, com o cabelo molhado um pouco escurecido, mas ainda num tom mais prateado do que loiro. Com a toalha enrolada na cintura, voltei ao dormitório esfregando os olhos marcados por olheiras. Quando tirei as mãos do rosto, ouvi passos e uma voz se aproximando de minha porta, abrindo-a sem bater:
— Mas que demora, Malf… Oh estacou à porta, com as bochechas ficando mais rosadas ao me ver. — Desculpa.
Ela desviou o olhar, mas reparei que mordeu a boca.
— Sem problemas, . — respondi, num tom normal, enquanto via um sorriso travesso querer crescer no rosto dela. — Mas você vai me dar licença ou posso tirar a toalha para me vestir?
— Fique à vontade. — ela falou, e por um instante pensei que ela fosse ficar, e um arrepio de expectativa me envolveu. Logo em seguida, porém, desceu os olhos por meu tronco numa fração de segundo, prendeu o lábio inferior entre os dentes mais uma vez e saiu.
Sacudi a cabeça, expirando com força e rindo, e botei a roupa o mais rápido que pude para encontrá-la na sala comunal.
— Onde vamos? — questionei.
— Você vai detestar. — ela avisou, levantando e me puxando pela mão antes que pudesse emitir um protesto. — Então não pergunte até chegarmos.
acenou para Daphne, que agora estava ao lado de Pansy com vários livros abertos. A loirinha mandou um beijo no ar, e por isso não pareceu notar o olhar da amiga sobre si; Parkinson mirava Greengrass como se a visse pela primeira vez, com um ar de admiração que me surpreendeu. Rapidamente, porém, Pansy desviou os olhos da garota e reparou que eu a estivera encarando.
Não tive tempo, porém, de registrar sua reação, pois já me puxara para fora das masmorras e nos guiava para uma escada que eu nunca tivera a curiosidade de subir, mas não conseguia me lembrar do porquê. Minha memória só foi refrescada ao chegarmos ao topo dos degraus em caracol e darmos de cara com uma porta lustrosa, que exibia uma pequena placa: “Estudo dos Trouxas”.
— Ah, tá de sacanagem. — resmunguei, parando de andar. apertou mais meu punho, franzindo o rosto.
— Não ‘tô, e você vem comigo. Para de ser chato.
— Por que você me trouxe aqui se sabia que ia detestar?
— Porque nem tudo nessa vida são flores, como eu e você sabemos muito bem. — ela respondeu, malcriada, e me empurrou. — Bata na porta antes de entrar.
Obedeci, sabendo que não tinha muita escolha. Alguém lá dentro falou “entre!” numa voz delicada e simpática.
Adentrei o aposento circular, que não se parecia nem um pouco com uma sala de aula comum. Tinha um grande espaço vazio no centro, delimitado por um círculo de cadeiras de estofado azul com pequenas rodas nos pés. Nas extremidades, os mais variados objetos se encontravam cobertos por redomas de vidro ou tecidos plastificados, entre os quais carros de brinquedo, vassouras de formato estranho (feitas para limpeza, e não voo) e uma coleção formidável de instrumentos musicais. Foi exatamente na direção deles que se dirigiu, onde uma bruxa de óculos quadrados e sorriso fácil fazia anotações com uma caneta igual à que eu tinha.
— Olá, professora Burbage. — ela cumprimentou, recebendo um aceno animado em resposta. O olhar da mulher, porém, recaiu sobre mim, e um indisfarçado medo se apossou de seu rosto.
— Boa tarde, ! — ela desejou. Forçando cordialidade, se virou em minha direção: — Nunca imaginei que… que um M-Malfoy visitaria minha sala… — Apesar da voz fraquejar, notei um pouco de ternura invadir sua face quando ela falou: — Seja bem-vindo, querido.
— É. — falei de má vontade, recebendo uma cotovelada de . Pigarreei, tentando desmontar um pouco da postura defensiva. — Quer dizer… obrigado, professora.
Burbage nos encarou, como se ainda estivesse tentando entender como uma bruxa incrível e bondosa como estava acompanhada por um… bem… por mim. Rapidamente, contudo, ela juntou as folhas que consultava e se retirou, com alguma desculpa à qual não prestei muita atenção. Pelo visto, seu terror à família Malfoy era superior ao receio de deixar um casal de adolescentes sozinhos dentro de uma sala isolada.
Me sentei numa das cadeiras de rodinhas, rodando para lá e para cá enquanto remexia num magnífico piano de cauda. Era meu instrumento preferido, e ela notou meu sorriso triste.
— Que foi?
— Saudades de tocar piano.
— Você sabe? — questionou, impressionada. — Tipo, encantar o piano? Eu nunca consegui, sou uma negação com instrumentos…
— Não, quero dizer… — fiquei envergonhado. — Eu toco mesmo. Sem magia.
Ela deu um sorrisinho debochado.
— Draco Malfoy toca piano como um trouxa?
— Tocava. — lamentei, me levantando de onde estivera e indo até o instrumento. — Quando meu pai descobriu que eu estava tocando e não encantando, me proibiu de treinar.
ficou quieta e séria por alguns instantes.
— Por que você não tenta? Seu pai não está aqui agora.
— Nossa, que perspicácia, . — ironizei, sentando ao banco do piano.
Passei os dedos por suas teclas de marfim, sem pressioná-las, sentindo a mágoa suprimida pressionar meu peito.
— Foi numa viagem a Nova York, acho que eu tinha uns 8 anos. — expliquei, retornando às lembranças com facilidade. — Meu pai queria fechar um acordo comercial com uma empresa americana de fabricação de caldeirões, e ele deixou minha mãe e eu numa rua cheia de teatros e peças e cartazes coloridos…
— A Broadway — murmurou .
— Isso. E como eu não parava quieto e minha mãe tinha os bolsos cheios de dinheiro, ela comprou um camarote inteiro só para mim no primeiro horário do primeiro musical que encontrou, fechou com feitiços de proteção e me deixou lá enquanto ia fazer compras.
Me sentei ao banco do piano, ajustando a altura adequada, sob o olhar atento de .
— Antes da peça começar, fiquei tremendamente entediado. Mas depois… — Sorri, lembrando da experiência. — Me impressionou muito mais do que qualquer magia que eu já tivesse visto. Roupas coloridas, luzes, uma história sobre um príncipe e uma garota comum, com danças… e a orquestra. Era incrível. E como minha mãe tinha gasto uma pequena fortuna e trancado aqueles lugares, fiquei o resto do dia ali dentro, revendo mil vezes o mesmo espetáculo até decorar as falas, e, com os olhares fixos no pianista, aprender todas as canções.
Toquei o dó na oitava do centro do piano, ouvindo o som reverberar pela cauda. Com um aceno de varinha, a abri, e a nota ressonou mais alta e fluida.
— Acho que ainda lembro algumas coisas.
veio devagar e se sentou do meu lado no banco comprido, e comecei a tocar, errando aqui e ali, mas cantarolando junto.

I was the one who had it all
(Eu era aquele que tinha tudo)
I was the master of my fate
(Eu era o senhor de meu destino)
I never needed anybody in my life
(Eu nunca precisei de ninguém em minha vida)
I learned the truth too late
(Eu descobri a verdade tarde demais)


Ela não tirava os olhos das teclas brilhantes, que meus dedos apertavam com surpreendente familiaridade, parecendo prestar atenção a cada verso que eu proferia.

I'll never shake away the pain
(Eu nunca expulsarei a dor)
I close my eyes but she's still there
(Eu fecho meus olhos mas ela ainda está lá)
I let her steal into my melancholy heart
(Eu deixei ela roubar de mim meu coração melancólico)
It's more than I can bear
(É mais do que eu posso lidar)


Me surpreendendo, começou a cantar o refrão, e fiquei em silêncio, ouvindo sua voz delicada e melodiosa:

Now I know he'll never leave me
(Agora eu sei que ele nunca vai me deixar)
Even as he runs away
(Mesmo enquanto ele corre para longe)
He will still torment me
(Ele ainda vai me atormentar)
Calm me, hurt me
(Me acalmar, me machucar)
Move me, come what may
(Me mover, no que der e vier)


Ela riu de leve, e continuei a canção sozinho:

Wasting in my lonely tower
(Perdendo tempo em minha solitária torre)
Waiting by an open door
(Esperando em uma porta aberta)
I'll fool myself, she'll walk right in
(Eu vou fingir para mim mesmo que ela entrará bem por ali)
And be with me for evermore
(E ficar comigo para todo o sempre).


apoiou a bochecha em meu ombro, aninhando-se em mim ao abraçar meu tronco, enquanto eu tocava os acordes finais, e me invadindo com uma paz que eu só sentira quando tínhamos jogado quadribol juntos.
A canção chegou a seu fim, e ela bateu palmas timidamente.
— Foi lindo. Com um pouco de prática vai ficar mais perfeito ainda. — ela elogiou, com o queixo contra meu braço e os cabelos se espalhando sobre mim. — Você tem talento, Draco. De verdade.
Agradeci, apoiando minha mão na perna dela. Não queria sair dali. Não queria que ela se movesse. Não queria estourar aquela pequena bolha de conforto, dentro da qual eu podia novamente esquecer que era um Comensal da Morte, esquecer que era um Black e um Malfoy, e ser apenas Draco. E ficamos ali, por um, dois, cinco, dez minutos, sem emitir qualquer palavra, apenas fingindo que não tínhamos mais nada para fazer, mas na realidade aproveitando a companhia um do outro como queríamos mas não podíamos admitir.
— Eu não detestei. — confessei, e ela riu.
— Eu sei.

POV

— Você sumiu na hora do almoço. — Harry nem mesmo me cumprimentou, já falando num tom divertido, mas acusatório quando adentrei a sala comunal e me sentei ao seu lado no sofá vermelho.
— Ah — falei, tentando enrolá-lo —, estava na sala de Estudo dos Trouxas tirando algumas dúvidas.
— Eu sempre esqueço que você tem sangue puro; — ele comentou, se espreguiçando. — Você parece saber tudo sobre os trouxas e nunca foi preconceituosa com ninguém…
— Bom, isso é o mínimo, né. — falei, refazendo o rabo de cavalo. — As pessoas por aqui não sabem ser respeitosas, o que eu faço é o básico.
Ele ficou em silêncio, mordendo a boca adoravelmente enquanto os olhos verdes brilhavam.
— Decidi que vou usar a Felix Felicis para conseguir a lembrança de Slughorn. — ele soltou, muito rápido, como se mal se contivesse para revelar a informação a mim.
— Por Merlim, isso é ótimo! — exclamei, com um sorrisão ocupando meu rosto e dando um pulo no acolchoado rubro. — Quando?
— Acho que hoje. — ele contou, exibindo um sorriso incerto.
— É uma ótima ideia.
— Sim, imagino que sim. Mas não sei o que o efeito dela pode causar.
— Eu já tomei uma vez, é incrível. Você se sente estranhamente poderoso… Mas o efeito é bem forte, então sempre me orientaram a usar com muita parcimônia para não provocar uma resistência, entende…
— Ah, claro. — ele falou. — Você já tomou aquela que recebeu na aula do Slughorn?
Abri a boca, pensando no que dizer. Não podia admitir que dera a poção para Draco; ia estragar toda a confiança que Harry desenvolvera em mim.
— Harry! — exclamou Hermione ao passar pelo buraco do retrato. — Harry, passei!
Respirei aliviada por ela ter chegado e desviado o foco da conversa. Não sabia o que responder a Harry sobre o vidrinho que eu ganhara. Como poderia dizer que dera Sorte Líquida a um Comensal da Morte?
— Parabéns! — disse ele. — E Rony?
— Ele... ele não passou por pouco. — sussurrou Hermione ao ver Rony entrar na sala de ombros caídos e mal-humorado. — Foi realmente falta de sorte, uma coisinha à toa, o examinador notou que ele tinha deixado metade de uma sobrancelha para trás... como foi com o Slughorn?
— Melou. — respondeu Harry, quando Rony ia chegando. — Você deu azar, cara, mas da próxima vez vai passar... podemos fazer o teste juntos.
— É, presumo que sim. — respondeu o amigo, rabugento. — Mas por meia sobrancelha! Como se isso fizesse diferença!
— Eu sei — consolou-o Hermione —, parece realmente rigoroso demais…
— Tenho certeza de que você se saiu bem, Rony. — Dei um tapinha no ombro dele quando o garoto se jogou no tapete felpudo a meus pés. — Aparatar é muito complexo e poucas pessoas passam de primeira. Os examinadores que reprovam por esse tipo de detalhe geralmente reprovaram em seus próprios exames… Frustrados ridículos.
Passamos a maior parte do jantar, mais tarde, xingando sem meias palavras o examinador de Aparatação. No Salão Principal, deixei meu olhar atravessar o mar de cabeças, mesas e talheres até alcançar Draco, que surpreendentemente parecia um pouco mais vivo e animado do que estivera naquela manhã. Ele me flagrou o analisando e, em vez de se desviar ou me lançar uma careta, sorriu levemente. Senti meu peito se aquecer de ternura e abaixei os olhos, subitamente tímida. Aquilo tudo era o impacto de nosso tempo juntos mais cedo? Logo me reintegrei às conversas na mesa da Grifinória, tentando afastar aquele orgulho de minha mente.
Rony parecia um tantinho mais animado quando voltaram à sala comunal, agora discutindo o problema de Slughorn e sua lembrança.
— Então, Harry, você vai ou não vai usar a Felix Felicis? — perguntou Rony.
— É, presumo que é o jeito. Acho que não vou precisar tomar toda, não a dose para doze horas, não pode levar a noite inteira... Vou tomar só um gole. Duas ou três horas devem ser suficientes.
— É uma sensação incrível quando a gente toma. — comentou Rony, lembrando-se. — Como se não fosse possível fazer nada errado.
— Do que é que você está falando? — perguntou Hermione, rindo. — Você nunca tomou!
— É, mas pensei que tinha tomado, não é? — replicou Rony como se explicasse o óbvio. — Dá no mesmo...
Como tínhamos acabado de ver Slughorn entrar no Salão Principal e Harry nos disse que o professor gostava de se demorar à mesa, fizemos uma horinha na sala comunal; o plano era Harry ir ao escritório de Slughorn depois de lhe darem tempo de voltar para lá. Quando o sol poente atingiu as copas das árvores da Floresta Proibida, o trio decidiu que era o momento. Depois de verificar que Neville, Dino e Simas estavam na sala comunal, subimos discretamente ao dormitório dos garotos.
Era bem diferente do dormitório masculino da Sonserina. Os garotos da casa das serpentes tinham quartos individuais, com paredes cinzentas e tudo era de metal e pedra polida. Já os grifinórios dormiam em quartos de cinco, com camas idênticas às das meninas, mas tudo ali era consideravelmente mais bagunçado.
Harry tirou meias enroladas do fundo do malão e apanhou o minúsculo frasco cintilante.
— Bom, lá vai! — exclamou, erguendo o frasquinho e tomando uma dose cuidadosamente medida.
— Qual é a sensação? — cochichou Hermione.
Harry não respondeu logo. Fechou os olhos, e um sorriso genuíno foi tomando seu rosto de forma gradual. Ele se levantou rindo, transbordando confiança.
— Excelente. Realmente excelente. Certo... vou até a cabana do Hagrid.
Quê!? — exclamamos eu, Rony e Hermione, perplexos.
— Não, Harry: você tem de ir ver o Slughorn, lembra? — disse Hermione.
— Não. — respondeu ele seguro. — Vou à cabana do Hagrid, este pensamento produz em mim uma sensação boa.
— Pensar em enterrar uma aranha gigante produz em você uma sensação boa? — perguntou Rony, estarrecido.
— Produz. — respondeu Harry tirando um tecido fino da mochila: uma Capa da Invisibilidade. — Sinto que é o lugar onde devo estar hoje à noite, entendem o que quero dizer?
Não! — exclamamos de novo ao mesmo tempo, agora positivamente alarmados.
— Isto aqui é a Felix Felicis, presumo? — perguntou Hermione, ansiosa, segurando o frasco contra a luz. — Você não apanhou outro frasquinho cheio de… sei lá...
Essência de Insanidade? — sugeriu Rony quando Harry jogou a Capa nos ombros.
Harry deu uma risada, e Rony e Hermione ficaram ainda mais alarmados. Porém, me acalmei um pouco. A quantidade que ele tomara bastaria para algumas horas, e, se ele dizia que deveria ir à cabana de Hagrid, qualquer que fosse o motivo, é porque deveria fazê-lo para alcançar seu objetivo.
— Confiem em mim. Sei o que estou fazendo... ou pelo menos... — ele rumou para a porta, confiante. — a Felix Felicis sabe.
Ele puxou a Capa da Invisibilidade sobre a cabeça e desceu as escadas, com meus passos ressoando atrás de Rony e Hermione, que o acompanhavam apressados. Ao pé da escada, Harry se esgueirou pela porta aberta.
— Que é que você estava fazendo lá em cima com ela? — ouvi Lilá Brown guinchar. Sem ver Harry, certamente ela deveria estar furiosa ao ver Rony e Hermione emergindo juntos do dormitório dos garotos.
Rony começou a gaguejar, quando desci atrás do casal e atraí o olhar de Brown para mim. Abri um sorriso malicioso e fingi estar ajeitando minhas roupas, como se tivesse acabado de voltar a vesti-las.
— Suas amigas, não é? — ela quase gritou, sem se preocupar se estava criando um escândalo.
Apoiei uma mão no ombro de Rony, descendo os degraus até ficar no nível de Lilá, e, enquanto passava, sussurrei, alto o suficiente para que somente ela ouvisse num sopro:
— Melhor tipo de amizade — e continuei andando até me sentar de pernas cruzadas no sofá próximo à lareira.
Os berros de Lilá ecoavam através da sala comunal, e Hermione se juntou a mim, tentando disfarçar o sorrisinho.
Pelo buraco do retrato, Gina Weasley e Dino Thomas entravam com expressões não muito amigáveis.
— Não me empurra, Dino, por favor. — disse a garota em tom aborrecido. — Você sempre faz isso, posso perfeitamente entrar sozinha...
— Nem encostei em você, para de surtar. — rebateu o namorado.
A ruiva lançou um olhar fulminante a Thomas.
— É, eu realmente deveria estar surtando durante os últimos meses para estar namorando com você. — ela resmungou, jogando o cabelo para trás do ombro e andando a passos duros até seu dormitório. — ‘Tô de saco cheio disso.
Dino estava chocado e irritado na mesma medida, mas subiu para o próprio quarto. Deixei o ar escapar num ronco quando encarei Hermione, tentando conter a gargalhada. Pelo visto os casais estavam aflorados naquele fim de tarde.
Meu riso diante da situação, porém, sumiu quando percebi o que motivara todas aquelas atitudes estranhas e concentradas em tão pouco tempo: Lilá brigando com Rony, eu provocando ela para piorar o conflito, Gina e Dino discutindo do nada… Era a Felix Felicis de Harry. Tudo que ele queria estava se realizando…
Com essa percepção, logo cheguei a conclusão que eu precisava refrear qualquer vontade de ir encontrar Draco naquela noite. E se a sorte de Potter, para nosso azar, revelasse algo que não devia? Nos revelasse juntos? Revelasse a Sala Precisa? Não podia correr o risco.
Estranhamente, o pensamento só pareceu exacerbar uma urgência em sair pelos corredores de Hogwarts até chegar a Malfoy na Sala Precisa, ou até mesmo no dormitório dele… Meu corpo todo ficou quente, e cruzei as pernas de novo, nervosa. Hermione parecia ignorar minha tensão, mergulhando na leitura de um livro.
Talvez ela não percebesse se eu saísse da sala comunal…
Não. Respirando fundo, subi para o dormitório, me dirigindo ao banheiro. Mecanicamente, me forcei a pegar um pijama e minha necessaire; entrei no banheiro e analisei o reflexo de meu rosto. Bochechas rosadas, a boca mais inchada e vermelha, os cabelos caindo em ondas um pouco mais revoltas que o normal… Apertei os olhos e entrei num boxe, ligando somente a água gelada.
“Até mesmo a sorte às vezes precisa se curvar à habilidade”, meu subconsciente tentou argumentar, “e você tem a habilidade”. Em resposta, segurei a garrafa de xampu com mais força do que devia. Aquela merda de poção… Me fazia precisar de Draco no sentido mais primitivo da palavra. E eu queria ele, racionalmente e fisicamente… Coloquei a cabeça debaixo do jato frio.
Porra, Potter!
Terminei o banho arrepiada, mas nada tinha a ver com a temperatura congelante da água; minha pele continuava queimando. Me enrolei nos cobertores, suando, o mais quieta possível enquanto as outras meninas circulavam e se deitavam em suas camas a meu redor, e aos poucos aquela sensação foi passando. Consultei o relógio: já era além da meia-noite, então o efeito da poção deveria estar desvanecendo. Em vez de alívio me confortar, porém, fiquei alarmada. Harry não tinha chegado ainda. E se ele tivesse sido pego?!
Agarrei meu cobertor e desci as escadas, pé ante pé, voltando à sala comunal deserta. Me deitei num dos sofás e tentei relaxar, mas era impossível. Matutava sobre todos os cenários possíveis. Harry poderia ter sido pego por Filch. Harry poderia ter ido falar diretamente com Dumbledore. Ou Harry poderia ter decidido passar na frente da Sala Precisa, ainda sob o efeito da Felix Felicis, e flagrado Draco saindo…
Por fim, quando estava quase adormecendo, ouvi o som leve do retrato da Mulher Gorda rodando para o lado e permitindo que alguém entrasse. Abrindo infimamente as pálpebras, consegui ver a silhueta de Harry entrando na sala vazia, com uma expressão ao mesmo tempo satisfeita e reflexiva. Continuei fingindo que estava dormindo, e ele se aproximou e ajeitou meus cobertores sobre mim. Antes que pudesse esboçar qualquer reação, porém, o cansaço pesou sobre meu corpo tenso e de fato caí no sono.
Na manhã seguinte, Potter estava exausto, porém sorridente. Nos contou tudo o que acontecera durante a aula de Feitiços (tendo primeiro lançado o feitiço Abaffiato sobre os colegas que estavam mais próximos). Fiquei bem impressionada com o modo com que ele extraíra a memória de Slughorn (ele dirigira a conversa com perfeição, como se tivesse sido treinado) e os outros dois estavam decididamente assombrados com o seu relato sobre as Horcruxes de Voldemort e a promessa de Dumbledore de levá-lo em sua companhia, se encontrasse outra.
— Uau! — exclamou Rony, quando o amigo finalmente terminou de contar tudo; Rony acenava com a varinha em direção ao teto, sem prestar a mínima atenção ao que estava fazendo. — Uau. Você vai realmente acompanhar Dumbledore... e tentar destruir... uau.
— Rony, você está fazendo nevar. — avisou Hermione, pacientemente, agarrando o pulso do garoto e desviando sua varinha do teto, de onde, de fato, tinham começado a cair grandes flocos de neve. Lilá Brown, de uma das mesas vizinhas, observava Hermione com raiva e olhos muito vermelhos, e que Hermione largou imediatamente o braço de Rony.
— Ah, é! — exclamou Rony, olhando para seus ombros vagamente surpreso. — Desculpem... parece que agora todos estamos com uma caspa horrível…
Ele espanou um pouco da falsa neve dos ombros de Hermione. Lilá caiu no choro. Rony pareceu sentir uma imensa culpa e deu as costas para a garota.
— Nós terminamos. — disse ele a Harry pelo canto da boca. — Na noite passada. Quando me viu saindo do dormitório com a Hermione e a . Obviamente, ela não pôde ver você, então pensou que estávamos sozinhos… E por algum motivo teve uma ideia bem errada.
Mordi a boca para evitar um risinho. Sabia muito bem qual era o motivo, e, sinceramente, não estava muito arrependida.
— Ah! — exclamou Harry. — Bem... você não está ligando para isso, está?
— Não. — admitiu Rony. — Foi bem chato ouvir os gritos dela, mas pelo menos eu não precisei terminar.
— Covarde. — disse Hermione, embora parecesse achar graça. — Bem, foi uma noite ruim para os namoros em geral. Gina e Dino também terminaram, Harry.
Havia uma óbvia expressão de entendimento nos olhos de Hermione ao dizer aquilo. Mantendo os músculos do rosto imóveis e a voz o mais indiferente possível, ele perguntou:
— Por quê?
— Ah, por uma coisa realmente boba... Gina falou que ele estava sempre querendo ajudar na hora de passar pelo buraco do retrato, como se ela não soubesse subir sozinha... mas o namoro já estava balançando há um tempão.
Harry olhou para Dino do lado oposto da sala de aula. Certamente o garoto parecia muito infeliz.
— Claro que isto deixa você num dilema, não é?
— Como assim? — perguntou Harry imediatamente.
— A equipe de quadribol. Se Gina e Dino não estão se falando…
— Ah... ah, é. — concordou Harry.
— Flitwick. — alertou Rony. O minúsculo professor de Feitiços vinha saltitando em direção a eles, e Hermione e eu éramos as únicas que tinhamos conseguido transformar vinagre em vinho. Nossos balões de ensaio estavam cheios de um líquido muito vermelho, enquanto os de Harry e Rony continuavam castanho-turvos.
— Vamos, vamos, rapazes. — censurou-os o professor Flitwick com sua voz fininha. — Menos conversa e um pouco mais de ação... quero ver vocês experimentarem.
Juntos, eles ergueram as varinhas, concentrando-se ao máximo, e apontaram-nas para os balões. O vinagre de Harry virou gelo; o balão de Rony explodiu.
— Então... para casa... — disse o professor Flitwick, saindo de baixo da mesa e tirando estilhaços de vidro do chapéu — praticar.
A sineta tocou, e respirei aliviada. Tivemos um dos raros períodos livres em comum depois de Feitiços, e voltamos juntos para a sala comunal. Rony parecia estar positivamente descontraído com o fim do seu relacionamento com Lilá, e Hermione também parecia animada, embora, quando lhe perguntassem por que estava sorrindo, ela respondesse simplesmente: “Está fazendo um belo dia.” Nenhum dos dois, todavia, parecia notar que uma feroz batalha devastava o cérebro de Harry, mas obviamente eu reparava as nuances de sentimentos confusos que permeavam o rosto d’O Eleito: Gina Weasley estava solteira, mas isso significava que estava livre para namorar o melhor amigo de seu irmão?
Quando passamos pelo buraco do retrato, observei uma pequena aglomeração perto da lareira. Em direção ao círculo de alunos do sétimo ano, Hermione gritou:
— Katie! Você voltou! Você está ok?
Harry arregalou os olhos: era de fato Katie Bell, parecendo completamente saudável e cercada por amigos radiantes.
— Estou realmente boa! — disse ela, feliz. — Eles me deram alta no St. Mungus na segunda-feira, passei uns dias em casa com meus pais e voltei para Hogwarts hoje de manhã. Liane acabou de me contar o que o McLaggen fez no último jogo, Harry… Sorte que estava lá, não é?
— Na hora certa e no lugar certo. — concordei com simpatia, sorrindo para ela.
“Ela está bem”, pensei. “Se Draco realmente a enfeitiçou, ela ficou bem, e é isso que importa.”
— …escuta, Katie... aquele colar... você agora lembra quem lhe deu? — ouvi Harry indagar, e voltei a dedicar minha atenção ao diálogo.
— Não. — respondeu Katie, sacudindo a cabeça pesarosa. — Todo o mundo está me perguntando, mas não faço a menor ideia. A última coisa de que me lembro é que entrei no banheiro feminino no Três Vassouras.
— Então, definitivamente você entrou no banheiro? — indagou Hermione.
— Bem, eu sei que abri a porta, então imagino que quem me lançou a Maldição Imperius estava parado ali atrás. Depois disso, minha memória apagou tudo até as duas últimas semanas no St. Mungus. Escutem, é melhor eu ir andando, a McGonagall é bem capaz de me passar uma sentença de castigo, mesmo sendo o primeiro dia da minha volta…
Katie apanhou a mochila e seus livros e correu atrás dos amigos, e nos sentamos a uma das mesas junto à janela para pensar no que ela acabara de contar.
— Então deve ter sido uma garota ou uma mulher quem deu o colar a Katie — arriscou Hermione —, para estar no banheiro feminino…
— Ou alguém com a aparência de uma garota ou de uma mulher. — interpôs Harry. — Não esqueça que existe um caldeirão de Polissuco em Hogwarts. Sabemos que roubaram um pouco… Acho que vou tomar outra dose de Felix e fazer uma nova tentativa para entrar na Sala Precisa.
Foi como se um bolo viscoso se alojasse em minha garganta, mas Hermione se pronunciou antes que eu precisasse:
— Isto seria um completo desperdício de poção. — disse ela taxativamente, descansando o exemplar do Silabário de Spellman que acabara de retirar da mochila. — A sorte só pode levar uma pessoa até certo ponto, Harry. A situação com Slughorn foi diferente; você sempre teve habilidade para convencer o professor, só precisou dar um empurrãozinho nas circunstâncias. Mas não basta sorte para você passar por um poderoso encantamento. Não gaste à toa o resto da sua poção! Vai precisar de toda a sorte que puder arranjar, se Dumbledore levar mesmo você com ele... — Sua voz transformou-se num sussurro.
— Será que não podíamos preparar mais um pouco? — Rony perguntou a Harry ignorando Hermione. — Seria o máximo ter um estoque de poção... dê uma olhada no livro…
Eu sabia que era inútil, mas observei Harry apanhar seu exemplar de Estudos avançados no preparo de poções na mochila e procurar a Felix Felicis.
— Caramba, é a maior complicação! — exclamou, correndo os olhos pela lista de ingredientes. — E leva seis meses... é preciso deixar cozinhar em fogo lento…
— Só podia ser. — comentou Rony. — Você já fez alguma vez, ?
— Já, no ano passado. Deu certo, mas rendeu pouco. E uma menina da minha sala perdeu todos os pelos da metade esquerda do corpo só porque colocou meio mililitro a menos de veneno de acromântula.
Rony fez uma cara de espanto, mas não tornou a fazer perguntas. Mal sabia ele que eu tinha um frasco de Felix no fundo do malão… Um que eu mesma preparara, mas hesitava em usar na missão, pois tinha consciência de que amor nada tinha a ver com sorte.
A única pessoa que não ficou muito feliz ao ver Katie Bell voltar à escola foi Dino Thomas, porque não precisaria mais substituí-la como artilheiro. Ele suportou o golpe estoicamente quando Harry lhe deu a notícia, limitando-se a resmungar e sacudir os ombros, mas Harry me confidenciou que teve a nítida impressão, ao se afastar, de que Dino e Simas estavam reclamando, inconformados, às suas costas.
A quinzena seguinte registrou os melhores treinos de quadribol que Harry conhecera como capitão, de acordo com os comentários alegres que ele soltava durante as refeições. Sua equipe estava tão satisfeita de se livrar de McLaggen, tão contente de ter Katie finalmente de volta, que todos estavam voando excepcionalmente bem, como pude comprovar quando ele me chamou para participar de um deles. Acho que essa gentileza se deveu ao fato de a vitória no último jogo ter ocorrido graças a meu pensamento rápido.
Gina não parecia nem um pouco chateada com o fim do namoro com Dino; pelo contrário, era a vida e a alma da equipe. Suas imitações de Rony, subindo e descendo na frente das balizas quando a goles vinha em sua direção, ou de Harry, berrando ordens a McLaggen antes de ser nocauteado, divertiam constantemente os jogadores. Harry, rindo com os outros, parecia satisfeito de ter um motivo inocente para olhar Gina; ele recebera outros tantos balaços durante os treinos porque não estava mantendo os olhos no pomo...
Os dias mornos e agradáveis foram desfilando mansamente pelo mês de maio. O interesse pela partida Grifinória-Corvinal aumentava extraordinariamente em toda a escola, porque o confronto decidiria o campeonato, que continuava em aberto. Nosso placar contra a Lufa-Lufa não tivera uma diferença expressiva o suficiente para garantir a taça. Os dias que precederam essa partida crítica apresentaram todos os problemas costumeiros: os jogadores das Casas rivais tentavam intimidar as equipes adversárias nos corredores; cantavam refrões grosseiros sobre os jogadores à sua passagem; os membros das equipes se exibiam pela escola, deliciando-se com as atenções ou correndo ao banheiro nos intervalos das aulas para vomitar.
Poucos dias antes da partida com a Corvinal, Harry e eu descíamos sozinhos da sala comunal para jantar; Rony saíra correndo outra vez para botar tudo o que tinha comido para fora no banheiro mais próximo, e Hermione dera uma fugida para consultar a professora Vector a respeito de um possível erro no último trabalho de Aritmancia. Harry fez um desvio pelo sétimo andar, verificando um mapa enquanto andava.
— Achei que você conhecesse Hogwarts bem o suficiente para não precisar de um mapa para se orientar. — impliquei, dando-lhe uma cotovelada amigável.
— Conheço. — ele respondeu, risonho. — Esse mapa aqui, na verdade, mostra onde cada pessoa de Hogwarts está. — Num tom mais baixo, ele confidenciou: — Estou olhando porque às vezes o Malfoy simplesmente desaparece e eu não faço ideia de onde ele vá.
Potter me estendeu o pergaminho todo desenhado e corri os olhos pela superfície, me focando primeiro onde dois pares de pegadas indicavam “Harry Potter” e “ ”. Meu amigo foi desdobrando o pergaminho, analisando os vários andares e alas do castelo, mas rapidamente encontrei quem ele procurava.
— Aqui. — falei, tocando a ponta do papel com a unha.
O pontinho de Draco estava em um banheiro masculino no andar de baixo, acompanhado, não de Crabbe ou Goyle, mas de Murta (assinalada pelo apelido de “Murta Que Geme”; bastante apropriado). Harry só parou de olhar fixamente para a dupla — certamente improvável segundo sua opinião — quando colidiu em cheio com uma armadura. O estrondo (e minha risada que se seguiu) o despertou de seu devaneio. Fugindo da cena antes que Filch aparecesse, descemos correndo a escadaria de mármore e entramos pelo corredor abaixo. Do lado de fora do banheiro, colei o ouvido à porta, mas não consegui ouvir nada. Então, Harry empurrou-a silenciosamente, e pude enxergar brevemente a cena que se passava lá dentro.
Draco Malfoy estava parado de costas, com as mãos apoiadas dos lados da pia e a cabeça loira curvada.
— Não. — ouvi Murta murmurar ao longe, de um dos boxes. — Não... me conte qual é o problema... posso ajudar você…
— Ninguém pode me ajudar. — respondeu Malfoy. Todo o seu corpo tremia. — Não posso fazer isso... não posso... não vai dar certo... e se eu não fizer logo… ele diz que vai me matar…
Antes que eu pudesse registrar qualquer outra coisa, a porta se fechou a minha frente. Meu corpo todo pareceu ter adquirido uma energia impulsiva ao ver Draco, que notavelmente chorava. As lembranças do sorriso tímido que vínhamos trocando nas refeições e as sensações que a Felix Felicis de Harry provocara em mim me atingiram com força, e me vi apertando as mãos enquanto tentava ouvir o que se passava lá dentro; escutava, porém, nada além de ruídos baixos através da porta grossa. Até que, depois de menos de dois minutos…
— CRIME! CRIME! CRIME NO BANHEIRO! CRIME! — urrou Murta, e o ar ao meu redor pareceu desaparecer. Alarmada, empunhei a varinha e dei um chute na porta, adentrando o banheiro.
O grito de horror ficou preso na minha garganta quando minhas retinas registraram a imagem de Harry Potter ajoelhado ao lado do corpo deitado de Draco Malfoy, e meus sapatos ficaram ensopados com seu sangue.



Capítulo 21

POV

Fiquei parada por milésimos de segundo, mas tantos pensamentos permearam minha mente que poderiam ter se passado horas.
Draco estava caído no chão. Sangrando muito. Possivelmente já morto. E se estivesse… bom, minha missão estava acabada. Eu não precisaria tirar a Marca Negra de um cadáver. Não haveria guerra, porque ele não conseguiria iniciá-la. “É necessário que haja uma emoção no corpo dele pelo portador da pulseira para que a magia funcione.” Não poderia haver nenhuma emoção se a vida já tivesse se esvaído dele.
Mas não consegui. Não conseguiria deixar Draco Malfoy morrer na minha frente antes de fazer absolutamente tudo ao meu alcance para manter ele vivo. Ele podia ser um Comensal da Morte, um Black e um Malfoy, mas ele era Draco. Ele era o garoto que me provocava constantemente, ria comigo, voara comigo, me beijava e me afetava mais do que eu gostava de admitir. E estava tão perdido e preso por amarras quanto eu mesma estivera durante toda a minha vida.
Por isso, me permiti sentir e explodir.
O que você fez? — meu berro saiu tão alto e distorcido que senti o som rasgar minha garganta como uma faca.
— Não... eu não… — Harry balbuciava, extremamente chocado enquanto o sangue de Draco esguichava em suas mãos abertas. O loiro tremia, quase como se estivesse convulsionando.
— Sai daqui antes que eu acabe com você. — murmurei, caindo de joelhos ao lado de Malfoy para tentar identificar de onde jorrava tanto daquele líquido quente e terrivelmente vermelho.
, mas eu… eu nem sabia o que…
— SAI DAQUI, POTTER! — urrei, sem querer disparando um feitiço que estilhaçou todos os espelhos, fazendo chover cacos sobre o chão encharcado.
Harry se afastou de mim, assustado, mas ainda não conseguira se levantar, e permanecia grudado ao piso de pedra do banheiro, molhando o tecido da calça na altura dos joelhos.
— Draco… — Segurei o rosto dele. — Draco, fica comigo, por favor…
Agarrei os dois lados da camisa dele e os puxei, rasgando o tecido e fazendo os botões pularem e ricochetearem por meus braços. Os cortes eram em todo o lugar. Imagens das aulas de Anatomia Aplicada tomaram a minha cabeça, mas parecia que tudo estava comprometido, veias e artérias, da femoral à subclávia…
Toquei a ponta da varinha onde Cairu tinha me ensinado — manúbrio do esterno —, e comecei a recitar alguns feitiços de cura que aprendera. Funcionavam muito pouco, e minha blusa começava a se tingir de rubro.
— ele deixou escapar num suspiro —, deixa… Deixa, por favor… Me desculpa… por tudo.
Entendi o que ele dizia, mas não queria aceitar o que as palavras significavam.
Ele estava desistindo?
— Draco…?
— Assim… ele não vai… machucar minha família. — ele sussurrou, engasgado.
— Por Merlim, Malfoy, sem drama — exclamei, exasperada e tentando fingir que aquilo não era nada demais —, Madame Pomfrey pode resolver isto num segundo… Eu vou chamar alguém…
Mas ele não ouviu. Mergulhara na inconsciência, para meu desespero.
— Não… não… Draco, acorda. — Minha voz ficou embargada. — Draco!
E senti. Senti o repuxo de energia. Um afluxo de raiva, um ímpeto de libertar aquilo. Um arroubo de lembranças felizes, as recordações de cada momento. Draco implicando comigo no Expresso, no corredor, no Salão Principal. Draco me tirando do fundo do lago. Draco nas aulas, sendo sarcástico. Draco duelando comigo e terminando a noite aos beijos em lojas de doces e passagens secretas. Draco trabalhando no armário. Draco nas festas de Dia das Bruxas e Natal, querendo a minha presença e lutando contra essa vontade. Draco me beijando e botando toda a ternura e desespero juntos em seu toque agridoce…
Ergui o punho, mentalizando a mensagem e seu destinatário, e proferi:
EXPECTO PATRONUM!
Um fio de luz, prateada, densa e tremendamente mágica, irrompeu da ponta de minha varinha. Se avolumava mais a cada instante, formando uma massa disforme e crescente, que ocupava quase o banheiro inteiro. Apertando com mais força o punho da varinha, fechei os olhos e soltei um arquejo de esforço. Quando tornei a abrir as pálpebras, flutuava na minha frente uma enorme criatura de gigantescas asas, escamas brilhantes, e que voava para fora da porta para buscar a ajuda de Severo Snape.
Meu Patrono era um dragão.
Sem deixar que meu assombro prejudicasse os cuidados que eu precisava prestar a Draco, me debrucei de novo sobre sua figura inerte e recomecei os encantamentos para curá-lo e não parei até ouvir os passos apressados e o farfalhar da capa negra enfurnada do mestre de Defesa Contras as Artes das Trevas. A porta se escancarou e Harry ergueu a cabeça, aterrorizado: Snape invadira o banheiro com o rosto lívido. Empurrando Harry para fora de seu caminho com violência e trombando contra mim, ajoelhou-se ao lado de Malfoy, tirou a varinha e passou-a por cima dos profundos cortes que o feitiço de Harry produzira, murmurando um encantamento que parecia quase uma canção. Ouvindo com atenção, comecei a repetir junto com ele. O fluxo de sangue pareceu diminuir; Snape limpou o coágulo do rosto do garoto e repetiu o encantamento. Agora os cortes pareciam estar fechando.
Harry continuava a olhar horrorizado o que fizera, sem se dar conta de que ele também estava empapado de água e sangue. Murta soluçava e gemia. Depois de executar o contra-feitiço pelo que parecia ser a milésima vez, Snape ajudou Malfoy, que despertara, a se levantar. Ele cambaleou, mas rapidamente me adiantei para impedir que caísse.
— Você precisa da ala hospitalar. Talvez fiquem muitas cicatrizes, mas, se tomar ditamno imediatamente, talvez possamos evitar até isso... venha...
Ele amparou Malfoy junto comigo, pisando nas manchas de sangue boiando como flores carmim à superfície do chão molhado, e virando-se ao sair para dizer com a voz gelada de fúria:
— E você, Potter... você espere por mim aqui.
Fora do banheiro, o professor me encarou com seriedade.
— Srta. , aquele Patrono não comprova sua inocência. Espero que saiba que se qualquer envolvimento da senhorita for descoberto…
— Ela não… ela não fez nada. — tossiu Draco, e um pouco de sangue saiu por sua boca. — Foi… o Potter.
— Draco, você não precisa proteger sua…
Snape parou de falar subitamente quando seus olhos negros encontraram os meus . Cerrei minha mão livre em punho, me concentrando para expor a ele unicamente a lembrança que eu queria: eu debruçada sobre Draco tentando fechar seus ferimentos. Era um tipo muito delicado de Legilimência, e acho que se deveu a isso a expressão surpresa de Snape. Pisquei com força para novamente ocultar minhas memórias dele.
— Muito bem. — ele pigarreou, ainda um pouco inseguro. — Vou levar vocês dois à enfermaria.
No caminho, passamos bem perto do Salão Principal, atraindo alguns olhares chocados e aterrorizados de alunos mais novos que perambulavam por ali. Minha inquietação era tanta que nem mesmo pensara em limpar minhas roupas com um feitiço, então comemorei internamente quando adentramos a ala hospitalar e Madame Pomfrey arregalou os olhos.
— Mas o que é isso?! No que vocês andaram se metendo? — ela se precipitou, segurando Draco pelos ombros até deitá-lo em uma maca. O garoto expirou com força, aliviado por não precisar mais sustentar o peso do próprio corpo.
— Naturalmente, foi Potter quem fez isto, Papoula. — grunhiu Snape, ajeitando suas vestes que se molharam um pouco.
Abri a boca, mas tornei a fechá-la, sem encontrar o que dizer para defender Harry do desprezo e ódio do professor de Defesa Contra as Artes das Trevas. Eu mesma esganaria Harry se pudesse; inclusive, não queria nem pensar na reação que eu teria ao vê-lo quando voltasse à Torre da Grifinória.
— Peço que me deem licença, tenho um aluno para repreender seriamente — completou, retirando-se com a capa voando atrás de si.
Madame Pomfrey usou sua varinha para afastar os fragmentos rasgados da camisa de Draco de cima de sua pele ferida.
— Vamos ver o que houve.
Contive uma ânsia de vômito ao ver os cortes. Eram profundos, muito profundos, e tinham bordas arroxeadas quase pretas. Por isso que meus encantamentos de cura não tinham obtido sucesso razoável. Engoli em seco, para evitar que minha última refeição subisse pela garganta.
— Tsc, tsc, tsc, isso vai dar umas cicatrizes bem feias. — lamentou a curandeira. — Magia negra não pode ser consertada por magia boa…
— Mas ele vai ficar bem, certo? — indaguei.
— Ah, com certeza. — ela garantiu, usando um Feitiço Convocatório para trazer um pequeno baú para si. — Receio apenas que as marcas não desapareçam por completo.
Draco estava alheio ao que dizíamos: fitava o teto apaticamente enquanto lágrimas caíam de seus olhos, mas sem alterar a respiração significantemente nem emitir qualquer som. Nem ao menos parecia sentir dor.
Madame Pomfrey começou a pingar alguns óleos e essências sobre o abdômen de Malfoy, e os cortes iam perdendo sua feia cor escura para dar lugar a vergões vermelhos. O garoto estremeceu e fechou os olhos com força, expulsando mais grossas gotas pelas pálpebras. Me aproximei para secar suas bochechas numa carícia leve e lenta.
— Ei, está tudo bem. — o tranquilizei, tentando sorrir um pouco.
Ele abriu os olhos, expondo as íris claras e límpidas. A pureza do olhar dele trouxe à tona uma emoção tão peculiar que eu não saberia definir, e ele moveu lentamente a própria mão até o rosto, entrelaçando os dedos aos meus e beijando o dorso com carinho.
— Eu sei. — Ele não disse, mas sabia que aquilo era o agradecimento dele. Pelo jeito que me encarava, percebi que um simples “obrigado” não abarcava tudo que ele queria demonstrar, então preferira fazê-lo com aquele toque tímido e delicado.
Madame Pomfrey trocou as roupas de Draco por uma muda limpa com alguns acenos de varinha, e se aproximou de mim.
— Ele precisa de repouso, querida. Volte aqui mais tarde, sim?
Apenas assenti, e ela se afastou.
— Vou jantar agora, está bem? Mas passo aqui antes de ir para a sala comunal da Grifinória.
— Ok. — concordou ele, mas não permitiu que eu soltasse sua mão. Em vez disso, a puxou até que eu aproximasse meu rosto e ele pudesse selar meus lábios com os dele.
Minha boca se curvou num sorriso leve e saí da ala hospitalar. Tomando os corredores e atraindo olhares meio assustados pelo caminho, decidi passar no banheiro onde o incidente ocorrera. Dois elfos domésticos limpavam o chão molhado de água tingida de rubro, e se sobressaltaram ao me ver. Não prestei muita atenção, contudo, pois estava focada no reflexo que via no espelho rachado sobre a pia.
Minha camisa tinha dois botões arrebentados, expondo um pedaço do sutiã preto esportivo que eu usava, e exibia uma mancha escura e disforme de sangue na frente. As pontas de meus cabelos longos apresentavam uma textura estranha, ainda meio úmidos, e tinha sangue seco embaixo de minhas unhas. Sem muito cuidado, desabotoei a blusa do uniforme e tentei limpá-la como podia, usando água, sabão e encantamentos.
— Ele está bem, não é?
Murta surgiu pela tubulação da torneira que eu estava usando, com a fisionomia inchada e sofrida.
— Acho que sim.
A fantasma ficou quieta, mexendo em uma das tranças.
— Sabe, apesar de toda a bagunça, foi bonito isso hoje.
— Por quê? Porque mais alguém se aproximou da morte aqui dentro, para variar? — ironizei, secando minha camisa com a varinha e tornando a vesti-la.
Ela fez cara feia, mas mesmo assim respondeu:
— Porque deu para ver que você se importa com ele tanto quanto ele se importa com você.
Sua figura translúcida voltou a mergulhar pelos canos, desaparecendo e me deixando reflexiva até chegar à pintura da Mulher Gorda.
Quid agis — enunciei a senha, e o quadro rodou para me ceder a passagem.
Um silêncio sepulcral se instalou dentro da Torre da Grifinória.
Harry, Rony e Hermione estavam sentados a um canto, confabulando, e imediatamente ficaram calados ao me ver. Gina também estava ali perto, com os braços cruzados e olhando feio de soslaio para Hermione, mas eu pouco me importava em saber qual era a discussão entre as duas no momento. Harry abriu e fechou a boca várias vezes, como se estivesse tentando buscar as palavras certas, mas simplesmente desviei o olhar. Não tinha a mínima vontade de me dirigir a ele, e até preferia manter uma distância. Cerrei a mão esquerda, contendo uma raiva que subira por meu peito.
Claro, ninguém estava isento de cometer erros, nem mesmo o garoto de ouro que era O Eleito. Mas há erros e erros. E o dele poderia ter custado a vida de Draco… e para quê? Para descobrir se ele de fato era um Comensal? E Potter faria o quê com essa informação? Simplesmente contar a Dumbledore não era uma possibilidade; eu duvidava que o diretor fosse tomar alguma medida radical como expulsar Malfoy ou até mesmo enviá-lo para Azkaban. Dumbledore certamente tentaria persuadir Draco a mudar de ideia, mas a questão era exatamente essa: durante o período em que estivera em Hogwarts, eu conhecera o sonserino bem o bastante para saber que ele não queria nem um pouco finalizar aquela missão, mas que nunca tinha tido escolha para começar.
Com o rosto impassível, continuei a caminhar em passos firmes até a escada do dormitório sem falar com ninguém. Antes que eu pudesse pisar no primeiro degrau de pedra, porém, senti uma mão segurar meu antebraço.
As preocupações que vinham permeando minha mente estavam me deixando tão tensa que o golpe que apliquei foi automático. Ouvi um grunhido de dor e um coro de ruídos exasperados antes de notar que estava dando uma chave de braço particularmente dolorosa em Harry Potter.
Olhei em volta. Todos os alunos ali presentes não tiravam os olhos de nós, e eu não estava exatamente a fim de proporcionar um espetáculo para ninguém. Sendo assim, puxei Harry para subir até o meio da escadaria comigo, pois sabia que um mecanismo mágico do castelo o impedia de entrar no dormitório das meninas.
— O que foi? — falei, ríspida. — Veio me dizer o quê?
— Eu… eu sinto muito, . Eu realmente não sabia o que aquele feitiço fazia… — ele começou, mas foi interrompido por minha risadinha irônica.
Sente muito, é? Não é para mim que você deveria dizer isso e sim para o garoto em quem você lançou magia negra sem nem saber o que causava. — Puxei meu braço, com amargor na voz. — Não foi você quem viu o estrago na ala hospitalar, que nem Madame Pomfrey vai conseguir resolver por completo. Cortes escuros e profundos que poderiam ter matado uma pessoa. Matado seu colega de classe, por mais que você o odeie.
Os olhos verdes de Potter analisavam todo o meu rosto. Estava envergonhado e culpado.
— Eu estava lá, Harry. — continuei, sem conseguir amenizar o tom acusatório em meu timbre. — E eu vi, tanto quanto você, o estado em que Malfoy estava. Ele estava chorando a ponto de soluçar. E você se sentiu à vontade para se aproveitar do momento de vulnerabilidade dele… Para quê? Para saciar sua curiosidade, ou melhor, sua obsessão?
— Ele tentou me lançar a Cruciatus! — Harry exclamou, começando a se alterar. — Ele pode muito bem estar colaborando com Voldemort como um Comensal, para arranjar um jeito de me matar… Por que você está defendendo ele?
— Porque eu me importo com ele! — bradei, sem pensar nas consequências que aquela frase poderia ocasionar. — Porque eu o conheci esse ano e não passei por nenhuma das humilhações e xingamentos aos quais ele submeteu você e vários outros alunos, e por isso ele pôde começar do zero comigo. Porque o Draco que eu conheci é muito diferente do garoto mimado, egocêntrico e preconceituoso que ele mostra por aí. — Respirei fundo. — Tenho certeza de que todo mundo que o detesta tem algum motivo muito plausível para isso. O que essas pessoas nunca souberam é que ele tem motivos para ser assim. Não justifica as ações de merda dele, mas ter essa outra visão permitiu que eu entendesse as razões para aquilo e o ajudasse a mudar desde a raiz.
Harry franziu a testa, incerto se deveria acreditar ou não.
— Eu repudio Lorde Voldemort e os Comensais da Morte. — esclareci. — Nunca compactuaria com algo assim. Você sabe disso.
— Não sei. — ele respondeu. — Pelo visto, eu não sei o suficiente sobre você, porque não imaginava que você poderia se afeiçoar a alguém como Draco Malfoy.
— E eu também não imaginava que você fosse tão idiota a ponto de usar um feitiço que nem sabe o que causa. — retruquei. — Me admiro que você não tenha sido expulso por usá-lo.
— Ganhei uma detenção bem generosa, não se preocup.e — garantiu ele, amargurado. — Inclusive fui suspenso da final de quadribol. — Baixou os olhos de meu rosto, receoso, mas voltou a subi-los para perguntar: — Você… você pode me substituir, certo?
Suspirei, e meus ombros relaxaram um pouco.
— Claro. — assegurei com a voz mais branda. — Farei isso pelo time.
Dei as costas a ele e subi alguns degraus, mas parei. No topo da escada, me virei para Harry e falei, tristemente.
— Você se diz O Eleito, mas na verdade está repetindo o ofício do próprio Lorde Voldemort: tentou eliminar quem estava no seu caminho.

* * *


Apesar do rancor que eu mantinha de Harry, fui tomar café com ele, Rony e Hermione na manhã depois do incidente de Malfoy, e o observei aturar insultos dos alunos da Sonserina, mas me senti incapaz de defendê-lo. Pansy estava visivelmente inquieta na manhã seguinte, e chegou a me lançar um olhar de nojo ao me ver perto de Potter à mesa. Não tinha dúvidas de que ia me lançar algum xingamento, mas Daphne conseguiu contê-la ao acenar tristemente em minha direção e puxá-la para longe.
As notícias tinham corrido muito rápido: aparentemente Murta Que Geme se encarregara de aparecer em cada banheiro do castelo para contar a história; Malfoy já fora visitado na ala hospitalar por Parkinson, que não perdera tempo e saíra difamando Harry por toda a escola, e Snape informara aos professores exatamente o que acontecera. Isso sem falar na raiva dos alunos da Grifinória, que se sentiam infelicíssimos que o seu capitão tivesse provocado a própria suspensão do jogo de final da temporada.
Amarrar os cadarços nunca tinha sido uma atividade realizada por mim com tanto esmero. Me encontrei com Gina no banheiro quando fui aplicar um pouco de maquiagem sob os olhos, para ocultar as olheiras que a preocupação tinha causado.
— Oi — ela cumprimentou, um tanto seca.
— Oi, animada?
— É, suponho que sim. — respondeu, ajeitando os fios vermelhos num rabo de cavalo e me encarando pelo espelho.
— Que foi?
— Você e Malfoy estão juntos?
Demorei alguns segundos para responder, passando rímel nos cílios.
— Não.
— Mas você sente algo por ele. — ela insistiu, afirmando em vez de questionar.
— Por que essas perguntas? — desviei-me da resposta, tampando o tubinho de produto e guardando-o na bolsinha.
, eu não te julgo, ok? Por mais que eu ache ele um lixo de pessoa, a sua vida amorosa diz respeito a você. O que Harry fez foi péssimo e extremamente atípico dele, mas não muda o fato de ter te afetado muito. — Ela cruzou os braços e inclinou um pouco a cabeça. — Você não vai deixar de jogar bem hoje por causa disso, certo?
— O quê? Claro que não. — garanti, fechando o zíper de meu estojo de maquiagem com um sorriso que eu torci para parecer confiante. — Eu sei separar as coisas. E logo, logo Harry e eu vamos voltar ao normal. É só que… é difícil, foi um baque bem… grande.
Meu sorriso vacilou, e precisei abaixar os olhos para que ela não reparasse que estavam ficando marejados. Agradeci mentalmente a mim mesma por ter passado rímel a prova d’água.
Gina me deu um tapinha no ombro e saiu do banheiro, pedindo para eu me apressar porque sairíamos para o jogo em dois minutos.
Pouco depois de o time de quadribol da Grifinória ter saído de nossa sala comunal, Harry foi obrigado a dar as costas à massa de estudantes que saía para o sol, todos usando rosetas e chapéus e agitando estandartes e echarpes, e descer a escada de pedra para as masmorras, onde cumpriria sua detenção com Snape. Ao vê-lo tomar aquele percurso, tive que conter a vontade de cometer um pequeno desvio em meu caminho para verificar se Draco já tinha saído da ala hospitalar, conforme Madame Pomfrey disse que ele faria. Em vez disso, porém, endireitei a postura e continuei andando, focando exclusivamente na cabeça ruiva de Gina, que andava logo à minha frente até o campo.
No vestiário, eu mal conseguia focar no que Katie Bell, a capitã da partida, dizia ao time. Só pensava em ir embora dali…
E foi com esse pensamento em mente que me empenhei dez vezes mais do normalmente me empenharia naquele jogo, para poder finalizá-lo logo: executei manobras arriscadas e não me importei em usar o cabo de minha própria vassoura para arremessar balaços na apanhadora rival, Cho Chang, quando os batedores da Corvinal os jogavam em mim.
— Achei que você fosse apanhadora, — ela guinchou, zunindo com a vassoura ao passar por mim. — Não deveria estar procurando o pomo? Ou aquele showzinho da última vez foi sorte de principiante?
Encarei a garota, admirada. Sua postura dentro de campo era totalmente diferente da menina aplicada e boazinha que eu via nos corredores de Hogwarts, estudando com os outros setimanistas para os N.I.E.M.s. Abri um sorriso maldoso, mas não a respondi.
Eu era habilidosa e tinha espírito esportivo, mas aquela partida precisava acabar para eu poder me dedicar o quanto antes à missão. E se eu precisasse jogar um pouco mais sujo para isso, que então fosse.
Cheguei perto de Peakes e Coote, quando estávamos com uma vantagem considerável na pontuação.
— Ei. — voei por trás deles, que seguravam os bastões ameaçadoramente. — Estamos cento e oitenta pontos na frente. Se eles marcarem mais alguns gols, continuamos sendo campeões da Taça. Preciso que vocês foquem exclusivamente em derrubar a Chang da vassoura.
Os dois me encararam de soslaio com um pouco de temor. Certamente havia fogo e sangue em meus olhos . Suas cabeças foram atraídas para as balizas, onde um dos artilheiros da Corvinal marcava mais um gol.
— Esqueçam o que a Bell disse — insisti —, vamos acabar com isso agora.
Ambos concordaram, e menos de dois minutos depois ouviu-se o baque surdo de um corpo batendo no gramado. A queda foi logo ofuscada por mais um gol da casa das águias, mas eu sabia que meu foco deveria ser outro. Mergulhei sobre a apanhadora desnorteada no chão, alcançando um pequeno calombo dourado que se embolara em suas vestes, mas que ela não conseguira segurar com a própria mão…
Agarrei o pomo de ouro e o ergui no ar sob os berros ensandecidos de toda a Hogwarts.
Madame Hooch entregou a taça ao time da Grifinória, com um enorme sorriso no rosto, e Katie a passou para mim, que a ergui com entusiasmo. Por mais que não fosse meu foco naquela escola nem minha prioridade naquele momento, era inevitável que a euforia de ser a campeã me contagiara.
No meio da multidão barulhenta, Rony me colocou nas costas até chegarmos ao castelo, cantando músicas e rindo, felizes. Havia uma enorme festa na sala comunal, e não hesitei em beber montes de cerveja amanteigada e dançar com Hermione.
Meus olhos, porém, captaram o exato momento em que o quadro que guardava a entrada da Torre girou, e apontei gritando “Harry!”.
Um urro de comemoração explodiu dentro da sala. Harry parou boquiaberto quando, ao avistá-lo, as pessoas começaram a gritar; várias mãos puxaram-no para dentro.
— Vencemos! — berrou Rony, pulando à sua frente, sacudindo a taça de prata. — Vencemos! Quatrocentos e cinquenta a cento e quarenta! Vencemos!
Harry olhou para os lados; lá estava Gina correndo ao seu encontro; tinha uma expressão dura e intensa no rosto ao atirar os braços ao seu pescoço. E, sem pensar, sem planejar, sem se preocupar com o fato de que cinquenta pessoas estavam olhando, Harry a beijou.
Decorridos longos minutos, ou talvez tenha sido meia hora, ou possivelmente vários dias ensolarados, eles se separaram. A sala ficara muito silenciosa. Várias pessoas assoviaram e houve uma erupção de risadinhas nervosas. Vi Dino Thomas segurando um copo esmagado na mão, e Romilda Vane com cara de quem queria atirar alguma coisa neles. Hermione sorria exultante, mas o olhar de Harry procurou Rony. Encontrou-o finalmente, ainda segurando a taça com a expressão de quem levara uma bordoada na cabeça. Por uma fração de segundo eles se olharam, então Rony fez um discreto aceno com a cabeça que parecia dizer: “Bem, se não tem jeito”…
O sorriso do garoto se abriu tão exultante que sorri junto, me jogando num abraço que agarrava Gina e Harry num montinho de carinho e felicidade.
— Finalmente, porra! — bradei.
Segurei os dois pelo queixo e dei um beijo na bochecha de cada um. Ambos coraram e riram comigo.
— Me desculpa por tudo, — pediu Harry, e fiz menção de interrompê-lo, mas ele me cortou. — Não, me escuta. Eu fiz merda, e nada justifica. Se você está feliz, é isso que importa, mesmo que eu tenha diferenças com… ele… — Ela enlaçou Gina pela cintura e finalizou, baixinho, antes de sair da sala comunal com a ruiva: — Só cuidado, porque eu gosto muito de você e não quero que se machuque.
O casal saiu de cena antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, e demorei um pouco para perceber por que estava tão feliz. Não era a mera vitória da Grifinória… Harry, um amigo tão querido para mim, disse que só o que importava era que eu estivesse feliz, e isso me fez tão bem… Pela primeira vez, alguém tinha me dado autorização para pôr meus sentimentos acima das obrigações e dos sentimentos dos outros. Pela primeira vez, eu estava me permitindo sentir o que queria. E com esse pensamento em mente, corri o mais discretamente que pude até o banheiro, tomei um banho rápido e saí pelo buraco do retrato. Só levava comigo a varinha e meu peito transbordando de emoções como eu nunca tivera antes.
Apenas quando cheguei às masmorras que pensei na informação óbvia que esquecera: eu não fazia ideia de qual poderia ser a senha da sala comunal da Sonserina. Certamente não seria Barba prateada, a mesma de meses antes. Por isso, fiquei pateticamente em pé na frente à parede de pedra até que ela deslizasse, exibindo a sala e um casal que vinha em minha direção.
Pansy e Daphne saíram, de mãos dadas e rindo uma para a outra.
Minha surpresa foi maior do que demonstrei; Greengrass rapidamente ficou da cor de meu moletom de quadribol da Grifinória e Parkinson arquejou, pondo-se na frente da outra garota para esconder os dedos entrelaçados das duas.
— O que você está fazendo aqui?
— Vim ver Malfoy.
Ela deu um risinho irônico.
— Engraçado que hoje mesmo você estava confraternizando com o psicopata que atacou ele. Veio aqui para quê? Terminar o serviço do Potter?
— Pan. — Daphne murmurou com leveza. A expressão dura de Pansy se suavizou. — Ele disse que a o ajudou. Lembra? E ele está bem agora.
Parkinson ficou mais alguns segundos bloqueando a passagem com o corpo, mas por fim deu um passo ao lado.
— Ele tá no quarto dele.
As duas se afastaram, indo na direção da passagem secreta que levava às cozinhas. Porém, não perdi muito tempo acompanhando-as com o olhar. Entrei na área comum da Sonserina, quase correndo até a porta do quarto que eu sabia que era de Draco. Sentindo um frio no estômago, dei duas batidinhas na porta.
— Entra. — sua voz abafada respondeu.
Empurrei a maçaneta e ultrapassei o umbral, mordendo a boca em insegurança.
Draco estava deitado na cama, pálido e com a cara fechada enquanto lia algumas anotações de um caderno. Usava uma camisa de botão preta, como sempre, e seu cabelo estava penteado para trás do jeito que eu amava, parecendo mais sedoso que o normal. Me senti subitamente desconfortável usando só uma legging preta e um moletom com o leão da Grifinória, sem nem ter tido a preocupação de botar um sutiã ou arrumar os cabelos decentemente.
— Oi. — cumprimentei timidamente.
Ele subiu o rosto para mim, e a mudança na expressão foi imediata.
?
Garotas geralmente sentem borboletas no estômago quando o garoto em que estão interessadas fala com elas. As borboletas do meu estômago respondiam mil vezes mais às 5 palavras que Hélio Cairu me dissera tanto tempo antes: “Temos uma missão para você”. Porém, quando Draco pronunciou meu apelido, com um sorriso crescente no rosto e chamas prateadas brilhando em seus olhos… eu não saberia descrever a sensação. Foi um milhão de vezes mais poderoso.
— Vim ver como você está. — falei, sentando na ponta de sua cama enquanto apertava as mãos devido ao nervosismo.
Malfoy fechou o caderno e o pôs de lado, me fitando intensamente.
— Soube que você tornou sua casa campeã da Taça esse ano. Parabéns.
— Obrigada. — sorri. — Imagino que Pansy já tenha vindo fofocar sobre mim, e dizer que hoje de manhã eu estava…
— Com o Potter. É.
A voz dele ficou um pouco menos entusiasmada. Suspirei.
— Draco, você sabe que…
— Eu sei, . Eu sei que vocês são amigos. E não tenho direito de te culpar por perdoar os erros dele, porque você perdoou os meus, que são bem piores. — Agora suas íris azuis exibiam pura mágoa.
Não soube o que dizer, então cobri a mão dele com a minha, sentindo os dedos frios contra os meus. Malfoy se forçou a abrir um sorriso novamente.
— A melhor apanhadora de Hogwarts merece uma comemoração — falou, travesso, e acenou a varinha para convocar até nós uma pequena garrafa de uísque de fogo e dois pequenos copos de shot em formato de caveira.
— Eu prefiro cerveja amanteigada. — torci o nariz, vendo-o encher um dos copos com o líquido castanho-dourado. — E você nem deveria estar bebendo, Draco, você tá se recuperando ainda…
— Ah, nem vem com essa. — Fez um gesto de desdém com a mão, me entregando a bebida. — O máximo que pode acontecer é uma infecção, certo? Bactérias causam infecções, e álcool mata bactérias.
Ele chocou seu copinho contra o meu, num tilintar suave, e descemos ao mesmo tempo o líquido pela garganta. Entre risadas, tossi com força devido à queimação.
— Puta merda, que troço horrível. — Sacudi a cabeça enquanto ele me zoava e servia mais uma dose.
— Para de ser fresca. — ele disse, e usou a varinha de novo para pegar um baralho de Snap Explosivo. — Já que você está tão preocupada com o meu repouso e certamente vai fazer igual à Parkinson e me proibir de deixar essa cama, vamos jogar.
Concordei, animada, e tirei meus sapatos para poder cruzar as pernas sobre o colchão.
Não demorou muito para que eu constatasse que era péssima naquele jogo e ingerisse uísque numa velocidade muito superior a que me corpo conseguia metabolizá-lo; Draco parecia estar na mesma situação, dado que a cada shot ele abria mais um botão da camisa e ficava mais risonho. Sua pele cor de marfim estava avermelhada no rosto e pescoço. Senti um irresistível impulso de beijar sua boca, e assim o fiz, caindo numa gargalhada bêbada em seguida. Malfoy, porém, acariciou meu rosto com uma seriedade que eu não esperava, e levou o polegar para tocar a carne macia de meu lábio inferior. Bêbada e cheia de desejo por ele, entreabri a boca e chupei seu dedo, rodando a língua em volta da ponta do jeito que eu queria fazer no corpo inteiro do garoto. Queria que ele queimasse tanto quanto eu estava queimando nas chamas prateadas de seus olhos, até que aquele calor nos consumisse e ele perdesse o controle, gemendo e sorrindo satisfeito embaixo de mim... Draco afastou a própria mão do meu rosto e me puxou de volta para si; não parecia querer que nossos lábios se distanciassem.
Passei minhas unhas por seus ombros sem muito cuidado e ele enrolou meu cabelo comprido no próprio punho, prendendo-o de forma que ele pudesse guiar o beijo como queria. Tendo meus instintos definidos pelos vários shots que tomara, me sentei sobre as pernas dele, abraçando seu tronco com as coxas. A cada segundo, parecia que a temperatura ambiente aumentava uns dez graus, e isso ainda se intensificou quando o garoto se dedicou a beijar meu pescoço demoradamente, chupando a pele sem se preocupar se deixaria marcas ou não. Impaciente, o empurrei com delicadeza e comecei a puxar a bainha de meu moletom para cima. Draco arfou ao ver cada centímetro do meu tronco se despir um pouco mais quando fui subindo o agasalho grosso para tirá-lo: primeiro o quadril, cuja curva desembocava na cintura e mais acima formava o contorno dos seios. Minha cabeça estava estranhamente leve, e um sorriso bobo se apossou de minha boca ao notar seu olhar de quase adoração.
— Que foi? — minha voz mole questionou.
Você. — grunhiu ele, simplesmente, agarrando minha cintura com as duas mãos e me puxando para si.
Fechei os olhos, me concentrando só no contato quente da minha pele nua com a dele. Nossos lábios se tocavam infimamente, os dois bêbados e ofegantes demais para se importar em beijar. Estarmos colados daquele jeito puro e cru já era extasiante o suficiente.
… — ele falou, com o sotaque britânico que eu gostava tanto de ouvir.
Malfoy. — eu falei, dizendo o sobrenome com as vogais mais abertas do português.
Essa mera troca de palavras serviu como um gatilho para retomarmos um beijo intenso e voraz, que se aprofundava a cada segundo. Ele segurou meu quadril com mais força, para se assegurar de que eu não sairia dali tão cedo, e eu pude sentir claramente embaixo de mim o quanto ele me queria. Um som surpreso e deliciado saiu de minha boca quando parti o beijo e deixei minhas coxas fazerem o movimento que ansiavam, se arrastando sobre o volume. Ouvi Draco xingar baixo. Meu corpo instantaneamente ordenou que eu dobrasse a velocidade daquilo para que chegássemos onde eu queria logo, e foda-se a missão. Foda-se a vitória da Grifinória. Foda-se Voldemort. Foda-se tudo; a única coisa que minha mente entorpecida de álcool e excitação queria era passar aquela noite entre os lençóis de Draco Malfoy.
Só lembrei, porém, que a noite não poderia ser exatamente como eu desejava quando minhas mãos apressadas tentaram puxar sua camisa para longe, para liberar a pele por completo, e ele soltou uma exclamação de dor.
Ao ouvir aquilo, foi como se eu ficasse consideravelmente mais sóbria de uma vez, e todas as responsabilidades e pesos que eu tinha recaíram sobre mim de novo. Aquilo não podia acontecer. Eu não podia desfocar da minha tarefa… Eu não estava ali para ter um namorado, nem para acordar em uma cama que não era minha. E ele ainda estava convalescendo por ter sido vítima de um feitiço das trevas; Madame Pomfrey tinha dito expressamente que ele não deveria fazer muito esforço… Com um risinho mental, tive certeza de que, em momentos como aquele, Draco parecia o tipo de cara que não pouparia esforços.
— Madame Pomfrey disse sem esforço. — falei, meio enrolada, enquanto ele passava a língua por meu pescoço e descia perigosamente até um seio. — Draco…
— Isso aqui não é esforço nenhum. — ele murmurou, me ignorando, e continuou a descer com a boca.
— Malfoy… não faz isso. — pedi, mesmo que minha vontade e meus gestos fossem contraditórios ao pedido: agarrei os cabelos claros dele entre meus dedos e os apertei levemente ao sentir arrepios subirem por meu tronco.
Me permiti deixar rolar, mesmo que todos os meus pensamentos racionais gritassem o contrário, mas tive que cortar quando senti suas mãos se encaminhando para o cós de minha calça. Segurei seu punho.
— Draco. Sério. Você precisa ficar de repouso, o que eu já atrapalhei mais do que devia.
O loiro descolou os lábios de minha pele e olhou para mim. As pupilas estavam um pouco desfocadas devido ao álcool. Draco suspirou.
— Tudo bem. — ele se rendeu. — Mas me ajuda a tirar essa camisa.
Relutantemente, saí de cima de seu colo e o ajudei a vestir uma blusa limpa de algodão para evitar que os cortes recém-fechados ficassem roçando nos cobertores. Recoloquei meu moletom, sentindo o forro grosso de lã áspera deslizar, tão contrastante com a boca macia de Malfoy.
— Dorme aqui. — ele pediu, rolando para o lado na cama e estendendo o braço para que eu deitasse.
Posso culpar o uísque, o cansaço ou o sentimento indefinível que me permeava naquele instante, mas no fundo sei que dei a resposta que realmente queria:
— Durmo.
Me aninhei no corpo dele, tomando cuidado para não pressionar a pele sensível ao redor dos cortes. Draco virou de lado, enlaçando minha cintura por baixo de minha roupa e encaixando seu rosto na curva de meu pescoço.
Quando eu estava quase caindo no sono, embalada pelo som da respiração dele e pelo efeito do álcool que ia se dissipando, achei ter ouvido ele sussurrar alguma coisa em minha orelha, mas estava tão sonolenta que nem consegui pedir para que ele repetisse. Não deveria ser nada importante, ou talvez ele não quisera realmente que eu ouvisse. Sem pensar muito nisso, adormeci ali, entre lençóis de seda verde, me sentindo como se tivesse tomado um litro inteiro de Felix Felicis.


Capítulo 22

Draco POV

O cheiro do cabelo dela foi a primeira conexão com a realidade que eu tive naquela manhã. Ondas de fios escuros, longos e espalhados sobre meu travesseiro e meu peito, que cheiravam a algo que eu não sabia explicar o que era, mas era bom.
Era o mesmo cheiro que a pele dela também tinha. A pele na qual eu deslizara os dedos, lábios, língua… por fugazes minutos, que foram cortados pelo senso de responsabilidade de que nem o álcool conseguira amenizar.
Que inferno. O que custava ela se deixar levar só uma vez?
Meu braço direito, preso debaixo do corpo dela, formigava um pouco, mas não queria tirá-lo dali. Não queria acordá-la. Queria que aquele pequeno momento, em que eu estava acordado e ela não, durante o qual eu poderia fantasiar em estarmos dormindo juntos como um casal e não como dois alunos de casas rivais e ideais opostos, durasse para sempre. Tudo que eu queria era tempo a mais e roupas a menos entre aqueles lençóis.
Entreabri os olhos. Deitado sobre meu tórax estava o rosto dela, fracamente iluminado pela luz que entrava pela fresta da porta, plácido e suave. A boca bem desenhada, a pele sem maquiagem, os cílios escuros que escondiam os olhos e profundos que eu poderia passar uma eternidade encarando e desvendando.
— Você não acha nem um pouco psicopata ficar me encarando enquanto eu durmo? — a voz rouca de me repreendeu enquanto ela rolava para o outro lado, levantando o tronco e prendendo os cabelos longos num coque.
— Bom dia para você também. — resmunguei.
Ela se virou para mim, agora mais desperta. Os lábios e as pálpebras ainda estavam um pouco inchados do sono. abriu a boca como se fosse dizer algo, mas ficou quieta.
— Não acredito que você não lembra do que aconteceu ontem. — provoquei, fingindo estar magoado. — Bebeu tanto assim?
O olhar da morena faiscou em direção à garrafa quase vazia de uísque de fogo, que repousava no chão com uma rachadura no gargalo. Certamente tinha caído do colchão enquanto estivéramos… ocupados.
— Até parece, Malfoy. — ela devolveu, se levantando e puxando o cós da calça para cima, ajeitando-a na cintura. — Pode ficar tranquilo, querido, quando a gente transar eu estarei sóbria.
Um sorriso torto, surpreso e cheio de malícia, se apossou de meu rosto quando vi a pele das clavículas, pescoço e bochechas de ficar mais rosada. Quando, não se. Claramente ela não previra que deixaria escapar aquele pensamento em voz alta. Ela esticou a mão e puxou um travesseiro, arremessando-o na minha cara, e dei uma gargalhada.
— Vou guardar essa informação com carinho. — debochei, saindo da cama pelo lado oposto ao dela e contornando o estrado para chegar perto da morena.
— Que horas são? — ela questionou, erguendo o queixo para fingir segurança e tentar mascarar a necessidade desesperadora de mudar de assunto.
— Cinco e quarenta. — falei, consultando o relógio de parede do quarto. — Acho que ainda não tem ninguém acordado, mas devíamos usar o banheiro dos monitores. Por precaução, sabe?
Ela enrugou a testa, tentando conter uma risada.
— Não é porque estou sóbria que você precisa me apresentar àquela banheira agora. — retrucou, cruzando os braços.
— Não é nada disso que… Como você sabe que tem uma banheira lá? — perguntei, surpreso.
mordeu a própria língua, baixando os olhos do meu rosto para seu bolso, de onde tirou um pacote de Chicles de Bala e Bola.
Foi como se um nó tivesse se formado no meu peito. Só havia duas respostas possíveis para aquela pergunta: ou ela me vira naquele dia em que invadira o banheiro dos monitores, ou ela estava frequentando-o com outra pessoa. E a mera ideia da segunda opção queimou minhas entranhas como ácido.
— Talvez eu frequente aquele banheiro mais do que você pensa. — retorquiu, erguendo uma sobrancelha e colocando um pedaço de chiclete na boca.
— Com quem? O Weasley? — desdenhei, tentando esconder a irritação.
— Isso é ciúme, Malfoy? — Ela formou uma grande bola com a goma de mascar e a estourou com um estalo. — Não cai bem em você.
Fiquei quieto, deixando-a saborear a pequena vitória de me ver puto daquele jeito, e puxei uma muda de roupas de dentro do malão.
— Vamos. — chamei, sem responder o que ela queria.
Atravessamos a sala comunal vazia em silêncio, notando os primeiros raios da manhã banharem o piso de pedra com a claridade verde que o Lago Negro os conferia, e ganhamos os corredores.
Não tardou muito para que chegássemos à porta do banheiro e eu enunciasse a senha que dava acesso. O aposento estava vazio, como eu esperava, e esplendorosamente colorido e cheiroso, como sempre.
logo foi em direção à bancada das pias, pegando uma das escovas de dente descartáveis ali dispostas e apertando um tubo de pasta cor de rosa. Nossos olhares se cruzaram pelo espelho.
— Que é? Preciso escovar os dentes logo; acabei de acordar e só esse chiclete não é suficiente, não. — falou, tão espontaneamente que sorri.
— Bom saber que você tem higiene buccal. — brinquei, imitando seus gestos próximos à torneira.
Ela revirou os olhos, sem rebater de imediato devido à espuma em sua boca.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, encarando nossos próprios reflexos, quando ela finalmente completou:
— Não aja como se você não quisesse me beijar mesmo depois de acordar. — ela devolveu o sarcasmo, esbarrando no meu ombro de propósito ao fazer menção de se afastar.
Porém, abri um sorriso e dei um puxão rápido em sua cintura, colando seu tronco no meu e deixando nossos lábios a milímetros de distância.
— Como sempre, você está certa. — admiti só para ver o rosto dela se contorcer de orgulho, e logo a beijei, sentindo o gosto fresco de menta inundar minha língua.
Aquilo era surpreendentemente fácil. Estar com era fácil; eu não precisava pensar muito, me sentia bem e tudo parecia se encaixar, criando uma atmosfera leve e feliz que eu daria qualquer coisa para tornar rotineira. Mas estar de fato com Alicia, tê-la na minha vida como eu queria ter… Era impossível. Era como se fôssemos, ao mesmo tempo, polos opostos e iguais: uma atração irremediável nos unia, mas a cada vez que nos aproximávamos, tudo ao nosso redor nos lembrava de que aquilo não era para ser.
Quando o relógio deu seis horas, depois de beijos, risadas e implicâncias, ela se despediu de mim com um selinho, indo para a sala comunal da Grifinória. Alguns minutos depois, desci para as masmorras, a fim de me reunir com os demais sonserinos e talvez voar na vassoura lá fora antes de voltar à Sala Precisa.
Adentrei meu quarto na esperança de poder ter alguns instantes sozinho para relembrar os momentos que acabara de viver, mas Pansy Parkinson estava sentada sobre minha cama, com as pernas cruzadas e uma expressão acusatória.
— Onde você esteve?
— Ahn… no banheiro dos monitores…
— E por que está com esse sorrisinho idiota na cara?
— Não estou… hã…
— Esquece — ela se levantou dramaticamente —, decidi que não estou nem um pouco interessada em saber os detalhes do seu sexo matinal incrível com
— Que porra, Pansy — a interrompi, mas ela ignorou.
— …nem do sexo da noite passada, aliás…
— Parkinson, eu não…
— …mas eu meio que preciso da sua ajuda.
Franzi a testa.
— Minha ajuda?
— É, porra. — ela rebateu, irritada. — Estou com problemas. Com uma… pessoa.
— Problemas do tipo “o cadáver dessa pessoa não cabe dentro do meu malão então não sei como descartá-lo no fundo do Lago Negro” ou do tipo “eu gosto dessa pessoa”?
Esperava que ela me encarasse como se eu fosse idiota, mas ela apenas suspirou e desviou os olhos.
— Do tipo “eu gosto dela”. Quer dizer — ela engasgou —, “eu gosto dessa pessoa”.
— Ah, que pena. — Bocejei, me jogando de costas no colchão. — Se fosse o outro, eu até ajudaria.
Ela bateu o pé, impaciente.
— Draco!
— Que é, caralho? Que é que você quer que eu faça?
— Me dê um conselho decente! — Pansy se sentou na ponta do colchão, irritada. — Era de se esperar que você estivesse com um humor um pouco melhor depois de transar com aquela deusa.
— Por Merlim, eu não transei com ela. — rosnei.
— Meu Deus — ela gargalhou —, você é muito idiota então.
— Eu sei! Não precisa ficar me lembrando! — bradei, mas acabei rindo junto.
Um breve silêncio se seguiu, mas o quebrei causando um sobressalto nela:
— Eu acho que você deveria chamar Daphne para sair.
Pela cara que Parkinson fez, eu soube que, se ela estivesse bebendo alguma coisa no momento, teria cuspido tudo num borrifo assustado.
— Quê? Não, Daphne e eu…
— Ah, fala sério, Pansy. — a cortei, me apoiando em um cotovelo para encará-la. — Vocês duas juntas emanam uma energia sáfica absurda. Conta outra.
— Que porra é “energia sáfica”?
— Vocês se gostam! Todo mundo vê isso!
— Claro que nos gostamos, somos melhores ami…
— É, igual eu e somos amigos. — debochei. — Amigos que tem uma tensão sexual entre si que dá para cortar com uma faca e que se beijam em qualquer oportunidade escondida.
O rosto dela se tingiu de rubro.
— Nós não…
— Eu tava só jogando verde, mas pelo tanto que você ficou vermelha, vocês já se pegaram então.
Ela não negou, mas ajeitou os cabelos curtos e repicados nervosamente.
— Ela é uma Greengrass, também pertence a uma das Sagradas Vinte e Oito. E é linda, inteligente, alegre…
— E beija bem.
Ela me encarou, surpresa e enraivecida.
— Como você sabe disso?
— Não sei. — encolhi os ombros. — Mas imaginei que você quisesse dizer isso, então só completei pra você.
Parkinson revirou os olhos.
— Que seja. Mas o que eu faço? E se os nossos beijos para ela foram só… curiosidade?
— Eu acho que você deveria chamar ela para sair. — repeti.
Pansy apertou os olhos escuros, sabendo que eu estava certo, mas não querendo dar o braço a torcer. Ela bufou e saiu do quarto, certamente indo procurar alguém que lhe dissesse o que ela queria ouvir, seja lá o que fosse.
Com um sorriso frouxo no rosto e sem compromissos pelo resto do dia, naquele momento eu não tinha como saber, mas aquela seria minha última manhã normal em muito tempo. Porque meu tempo não tardaria a se esgotar, levando consigo toda aquela felicidade.

POV

5 de junho finalmente chegara. Os dezessete anos de Draco Malfoy. O dia em que ele perderia seu rastreador. O dia que demarcava claramente que meu prazo estava se esgotando.
Acordei suada; tivera um sonho que era minha desejada continuação da lembrança da noite que eu passara no dormitório da Sonserina, bêbada e feliz. Enquanto dormia, meu cérebro criara imagens bem criativas do que poderia ter acontecido na cama de Draco caso eu não o tivesse impedido, semanas antes… Fechei os olhos de novo, rindo comigo mesma e me sentindo idiota por ficar fantasiando daquele jeito.
Lembrava com clareza do que acontecera na manhã seguinte àquele dia, depois que eu chegara à Torre da Grifinória. Apesar do horário cedo, Hermione estava sentada a um dos sofás, na sala vazia, com o Profeta Diário aberto à sua frente e um olhar curioso quando entrei.
— Usou proteção, certo?
— Bom dia, Hermione! — falei alto, fingindo que não ouvira o que ela dissera. — Dormiu bem?
— Só não melhor do que você, né. — Ela dobrou o jornal e riu. — Apanhadora que deu a Taça das Casas da Grifinória e teve a melhor noite do ano… Ou pelo menos é isso que esses chupões aí sugerem.
Puxei a gola do moletom para cima, tentando esconder os hematomas sem muito sucesso enquanto minha amiga gargalhava.
Sorri com as lembranças em frente ao espelho do banheiro. Ainda estava mais cedo do que o necessário, mas mesmo assim coloquei o uniforme e desci para o Salão Principal quase vazio para tomar café.
O amplo ambiente, com o pé direito altíssimo e encantado para mimetizar o céu lá fora, estava iluminado e bonito. Um raio de luz parecia incidir diretamente sobre um assento específico na mesa da Sonserina… ocupado por um garoto loiro e irritantemente lindo.
Draco remexia o mingau em seu prato com a ponta da colher, como se estivesse se forçando a engolir o café da manhã. Pela expressão fechada, parecia estar enjoado. Fiquei encarando-o por alguns instantes até que ele notasse meu olhar insistente, e dei um aceno simpático. Ele abriu um sorrisinho e retribuiu, sem muita animação.
Sentei-me à mesa da Grifinória e servi meu costumeiro café com leite, acrescentando ao prato uma porção generosa de omeletes de ervas. Enquanto adoçava minha bebida e dava um gole para ver se o sabor estava do jeito que eu gostava, o frasco de ketchup à minha frente pareceu ganhar vida, flutuando sobre a comida e espirrando o molho vermelho para formar as palavras:

SALA DE POÇÕES EM CINCO MINUTOS


Franzi a testa e levantei o rosto para questionar Malfoy, mas ele não olhava mais para mim; se levantara, limpando a boca com as costas da mão e levando um copo de café puro consigo enquanto saía do Salão.
Os omeletes em meu prato pareceram ficar consideravelmente menos apetitosos frente à situação enigmática. O que Draco queria? Por que tão cedo e tão apressado? Por que estava tão tenso no dia do próprio aniversário?
Terminei de comer o mais rápido que pude, virei a caneca de café com leite na boca de uma só vez e roubei um muffin de laranja da travessa que havia ali para os alunos da Grifinória.
Passei pelo corredor das masmorras a caminho da sala de Poções, encontrando Pansy e Daphne no caminho, que exibiam rostos sonolentos mas satisfeitos que eram surpreendentemente idênticos. A loira sorriu, enquanto a morena desviou o olhar. Não a culpava por guardar rancor de mim, mas fiquei um pouco incomodada e refleti se aquela distância que ela impunha era mesmo necessária.
Draco me aguardava à porta, e me puxou para dentro da sala vazia; o professor Slughorn ainda não tinha nem passado por lá.
Abri um sorriso enorme, conjurando uma pequena vela acesa no ar e espetando-a no muffin.
— Feliz aniversário. — desejei, baixinho.
— Você lembrou. — Os lábios dele se curvaram levemente para cima ao soprar a chama.
— Claro.
Estendi o bolinho para ele, que mordeu um pedaço generoso. Mastigou lentamente sob meus olhos atentos. Era visível como ele estava tenso.
— E aí? Como se sente, com dezessete anos?
— Ah, acho que igual. — disse ele, se encaminhando para o fundo da sala para evitar me encarar. Deixei o resto do bolo ao lado de um caldeirão.
— Pelo menos agora você não tem mais o rastreador, não é? — insinuei. — Pode fazer magia fora da escola, em breve vai poder prestar seu exame de aparatação…
Draco não respondeu. Passava o dedo pela borda de um pequeno caldeirão a um canto, que exalava uma fumaça prateada em espirais características.
Sorri.
— A Amortentia que eu tentei fazer. — debochei.
Ele levantou o dedo da borda, vendo que estava sujo com o líquido madrepérola. Segurei sua mão e chupei a ponta do dedo, sentindo o sabor doce da poção invadir minha boca.
— Não vai fazer efeito em mim, porque eu que preparei. — falei, dando a volta na bancada.
O rosto de Malfoy era indecifrável. Ele continuava olhando para seu indicador que eu pusera na boca, como se estivesse processando o acontecido.
— Acho que já perdeu o efeito. — comentei. — Não estou sentindo mais cheiro de nada…
Os olhos dele brilharam com malícia, como sempre faziam quando ele estava prestes a soltar uma provocação.
— Ou é essa quantidade exorbitante de perfume que você passou hoje de manhã que está encobrindo. — ele implicou. — Sabe, é pra colocar algumas gotas só, e não tomar banho nele.
— Ah, vai à merda. — dei uma risada, puxando-o pela gravata e selando nossos lábios. — Você está com um péssimo humor para um aniversariante.
De novo, Draco assumiu uma postura fria, mas pelo menos suas mãos ainda enlaçavam minha cintura.
— Você vai continuar em Hogwarts para o sétimo ano?
Fiquei surpresa com a pergunta.
— Não sei. — respondi, mesmo sabendo que era mentira. No ano seguinte eu já estaria longe dali. — Por quê?
— Por nada.
Me sentei na bancada. Nossos olhos ficaram na mesma altura.
— Draco…
— Eu só pensei que… — começou, hesitando antes de completar: — Eu gostei de te conhecer… e de me aproximar de você… e ser seu… amigo.
Ele pronunciou a última palavra como se tivesse um gosto desagradável.
— Amigo? — eu ri. — Amigos não fazem o que a gente faz. — falei em voz mais baixa, esticando a perna e logo dobrando-a, trazendo-o para perto e fazendo-o se pressionar contra meu corpo, entre as pernas. Ele expirou com força, com uma sombra de sorriso erguendo um dos lados da boca.
— Bom, você disse na festa de Slughorn que não éramos namorados. — ele pontuou, tentando fazer com que as palavras não soassem como uma acusação e falhando miseravelmente. Sua mão subiu devagar pela minha coxa: entrou na saia, encontrando o limite da meia longa e passando o dedo sob a liga que a prendia.
Não sei se fiquei sem ar por suas palavras ou pelo toque.
— E você gostaria que fôssemos? — inquiri, erguendo o queixo em desafio.
— Você sabe que… — e se interrompeu, tirando as mãos de mim e dando um passo para trás. Quase protestei. — Somos dois lados de uma mesma moeda, . O que eu gostaria não importa.
— Claro que importa. — discordei, saltando da mesa. — Draco, você precisa se permitir gostar das coisas que gosta…
— E isso inclui vo…? — ele iniciou a pergunta, mas não pôde completá-la: Horácio Slughorn adentrara sua sala, desejando um animado bom dia a nós e sem notar nada de estranho.
Me encaminhei para a bancada que normalmente dividia com meus colegas da Grifinória, sentindo o peito borbulhando de expectativa. Ser namorada de Draco Malfoy não fazia parte da missão, mas certamente ajudaria no processo… Passei o resto das aulas do dia ponderando se seria uma escolha sábia unir o útil ao agradável nesse caso, mas era difícil ser racional quando se tratava do sonserino prateado.

* * *

Naquela noite, Gina se recolhera à biblioteca para estudar para seus N.O.M.s, que se aproximavam cada vez mais, então seu mais novo namorado estava na sala comunal com os amigos. Harry se sentou junto à janela, supostamente para terminar o dever de Herbologia, mas na realidade estava revivendo uma hora muito feliz que passara com Gina à beira do lago na hora do almoço; Hermione largou-se na cadeira entre ele e Rony com uma expressão desagradavelmente decidida no rosto.
— Quero falar com você, Harry.
— Sobre o quê? — perguntou ele, desconfiado. Ainda na véspera, Hermione o censurara por distrair Gina, quando ela devia estar estudando a sério para os exames.
— O tal do Príncipe Mestiço.
— Ah, outra vez, não. — gemeu ele. — Quer esquecer isso?
Harry me confidenciara que escondera seu livro na Sala Precisa para evitar que Snape o confiscasse, pois o feitiço Sectumsempra estava anotado lá; sendo assim, seu desempenho em Poções estava sofrendo proporcionalmente (embora Slughorn, que aprovava Gina, atribuísse isso, brincando, ao fato de Harry estar apaixonado). Mas ele tinha certeza de que Snape ainda não perdera a esperança de pôr as mãos no livro do Príncipe, por isso resolvera deixá-lo onde o guardara, enquanto o professor estivesse vigiando.
— Não vou esquecer — respondeu Hermione com firmeza — enquanto você não escutar tudo. Então, estive investigando um pouco quem poderia ter o passatempo de inventar feitiços das Trevas...
— Não era um passatempo para ele...
— Ele, ele… quem disse que era ele?
— Já discutimos isso. — retrucou Harry, irritado. — Príncipe, Hermione, Príncipe!
— Certo! — disse Hermione, manchas vermelhas afogueando seu rosto enquanto tirava uma notícia de jornal muita antiga do bolso e a batia na mesa diante de Harry. — Olhe isto aqui! Olhe a foto!
Harry apanhou o pedaço de papel quebradiço e estudou a foto animada, que o tempo amarelara; Rony e eu nos inclinamos para ver também. A foto mostrava uma garota magricela de uns quinze anos. Não era bonita; seu rosto expressava, ao mesmo tempo, raiva e mau humor, com sobrancelhas grossas e um rosto pálido e comprido. Sob a foto, havia a legenda: Eileen Prince, Capitã do Time de Bexigas.
— E daí? — perguntou Harry, passando os olhos pela pequena notícia que a foto ilustrava; era uma história meio sem graça sobre competições interescolares.
— O nome dela era Eileen Prince. Príncipe, Harry.
Os dois se encararam, e Harry entendeu o que Hermione estava tentando dizer. Ele caiu na gargalhada.
— Nem pensar.
— Quê?
— Você acha que ela era o Príncipe...? Ah, qual é?
— E por que não? Harry, não existem príncipes de verdade no mundo bruxo. Ou é um apelido, um título que alguém inventou, ou até mesmo o sobrenome verdadeiro, não? Não, escute! Vamos dizer que o pai dela fosse um bruxo com o sobrenome “Prince”, e a mãe fosse uma trouxa, isso faria dela um “Príncipe Mestiço”!
— Ah, muito engenhoso, Hermione...
— Mas faria! Talvez ela sentisse orgulho de ser meio Príncipe!
— Escute aqui, Hermione, sei que não é uma garota. Simplesmente sei a diferença.
— A verdade é que você acha que uma garota não seria inteligente o bastante. — retrucou Hermione, zangada.
— Como é que eu poderia conviver com você durante cinco anos e achar que garotas não são inteligentes? — perguntou Harry, ofendido. — É o jeito de ele escrever. Sei que o Príncipe era um cara, sei a diferença. Essa garota não tem nada a ver com a história. Mas, afinal, onde foi que você arranjou esta notícia?
— Na biblioteca. — respondeu Hermione previsivelmente. — Tem uma coleção completa de Profetas antigos. Bem, vou descobrir mais sobre a Eileen Prince, se puder.
— Divirta-se — desejou Harry, irritado.
— Pode deixar. — respondeu Hermione. — E o primeiro lugar onde vou procurar — atirou para Harry, ao chegar ao buraco do retrato — é nos registros dos prêmios de Poções!
Harry acompanhou-a com um olhar feio por um momento, então voltou à contemplação do céu que escurecia.
Eu, porém, fiquei intrigada demais com a tal foto, e aproveitei a distração dos outros para analisá-la mais atentamente, como tinha aprendido no treinamento de agente especial. Hélio Cairu sempre me dizia: olhe além do conjunto de feições, é preciso analisar cada aspecto separadamente… E foi assim que percebi uma coisa bastante peculiar. Sim, o nome do Príncipe Mestiço era derivado do sobrenome Prince. Mas não da forma como Mione imaginara…
Aproveitei que os dois garotos estavam conversando de forma amena e saí da sala comunal, esbarrando no batedor da Grifinória, Jaquito Peakes, no caminho. No sétimo andar, entrei o mais rápido que pude na Sala Precisa, encontrando, como de costume, Draco Malfoy. Contudo, ignorei seu chamado e comecei a procurar por ali um exemplar muito específico de Estudos avançados no preparo de poções…
E o encontrei, debaixo de um busto de mármore toscamente adornado com uma peruca e um diadema prateado por cima. Abri na última página, onde estava escrito, numa caligrafia tão conhecida por mim que me senti uma idiota por ter demorado tanto tempo para perceber: Este livro pertence ao Príncipe Mestiço. Ainda com a foto de Eileen Prince apertada entre os dedos, foquei especificamente no detalhe que mais me chamara atenção em seu rosto: o nariz grande e curvo, em forma de gancho. Exatamente igual ao de meu professor menos preferido em Hogwarts…
? — chamou Draco, chegando mais perto de mim. — Você tá ouvindo o que eu ‘tô dizendo?
— Snape é o Príncipe Mestiço — balbuciei, alheia ao que Malfoy dizia. Coloquei o recorte da foto dentro do livro, fechando-o e deixando-o exatamente onde estivera antes. — Snape é filho de Eileen Prince, que casou com um trouxa…
— O que tem o Snape, do que você tá falando?
Olhei para ele, subitamente vendo tudo com clareza.
— Foi Snape quem criou o feitiço que Harry usou para te atacar.
Ele ficou parado por alguns segundos, meio assustado com a informação, mas a importância do que eu dissera foi eclipsada pelo que ele queria me dizer:
, acho que agora o Armário está realmente funcionando.
Foi minha vez de ficar estática.
O-o quê?
— Finalmente. — ele falou, com a euforia lhe tomando a voz. — Vem. — e me puxou pela mão para frente do móvel.
Ele se adiantou, pulando para dentro do armário e fechando as portas. Cerca de dez segundos se passaram, tempo suficiente para me deixar nervosa, quando ele as abriu de novo, segurando um objeto grotesco: uma mão decepada, seca e horripilante.
Minha cara de assombro e desagrado devia estar bastante explícita, porque ele riu e explicou:
— É a Mão da Glória. Meu pai comprou pra mim há alguns anos… — disse, descendo o degrau para sair de dentro do armário. — Pondo uma vela, ela dá luz apenas a quem a segura.
— Brilhante. — ironizei — Mas não entendi o que isso tem a ver com o armário estar consertado.
Draco pareceu não me ouvir. Ele gritava comemorações e ria, me pegando no colo e me jogando para o ar repetidamente. Minhas gargalhadas se juntaram às suas, num raro momento de descontração dentro daquele aposento…
Até que um som baixo de dobradiças veio da direção da porta, e uma mulher magra e de cabelos longos, cujos olhos eram amplificados dezenas de vezes por lentes grossas, entrou na Sala Precisa.
Nós dois tivemos reações imediatas e simultâneas. Eu fui na direção da figura o mais rápido que pude, enquanto ele metia a mão dentro das vestes e jogava no ar um pó muito escuro e denso, que deixou tudo à minha frente preto como piche.
— Como... é... que... você... se... atreve... aaaaarre! — a mulher exclamou enquanto eu me jogava sobre ela em meio ao breu, e discretamente lhe lançava um “Confundus!” com a varinha.
Porém, não consegui recobrar meu equilíbrio a tempo, então acabei caindo para fora da porta sobre a professora Trelawney, esparramada no chão, a cabeça coberta com seus muitos xales, várias garrafas de xerez caídas a um lado, uma delas quebrada.
— Professora… — chamou, com incerteza, uma voz que eu conhecia muito bem.
Puta merda. Era só o que faltava.
Harry adiantou-se depressa e ajudou a professora Trelawney a se pôr de pé. Alguns de seus colares cintilantes tinham embaraçado em seus óculos. Ela soluçou alto, ajeitou os cabelos e se levantou apoiada no braço que Potter oferecia.
— Que aconteceu, professora? — Desviou o olhar para mim. — Você está bem, ?
— Estou, é que…
— É mesmo de se perguntar! — respondeu ela esganiçada, me interrompendo. — Eu estava andando, refletindo sobre certos portentos das Trevas que por acaso vislumbrei…
— Sim — aproveitei a deixa —, estávamos discutindo exatamente isso quando…
Minha voz morreu quando reparei que Harry não estava prestando muita atenção. Ele acabara de perceber onde estávamos parados: ali, à direita, encontrava-se a tapeçaria dos trasgos dançarinos e, à esquerda, aquele trecho liso e impenetrável de parede que ocultava...
— Professora, a senhora estava tentando entrar na Sala Precisa?
— ... oráculos que me foram confiados... quê?
Ela pareceu repentinamente esquiva.
— A Sala Precisa — repetiu Harry. — A senhora estava tentando entrar aí?
— Eu... bem... não sabia que alunos tinham conhecimento...
— Nem todos. Mas que aconteceu? A senhora gritou... como se tivesse se machucado...
— Eu... bem — disse a professora, cobrindo-se defensivamente com os xales, e fixando em Harry os olhos imensamente aumentados pelas lentes. — Eu queria… ah... depositar... hum... certos pertences meus na Sala... — E murmurou alguma coisa sobre “acusações perversas”.
— E me pediu para esperá-la aqui fora. — emendei, antes que Harry questionasse o que diabos eu estava fazendo ali. — Eu nunca nem tinha visto essa sala…
— Cert.o — concordou Harry, olhando para as garrafas de xerez dela. — Mas a senhora não conseguiu entrar para escondê-los?
— Ah, eu entrei sem problema. — explicou a professora Trelawney, olhando aborrecida para a parede. — Mas já havia alguém lá dentro.
— Alguém lá...? Quem? — quis saber o garoto. — Quem estava lá dentro?
— Não faço ideia — respondeu a professora, parecendo um pouco assustada com a urgência na voz de Harry. — Entrei na Sala e ouvi uma voz, o que nunca me aconteceu em todos esses anos em que escondi... em que usei a Sala, quero dizer.
— Uma voz? Dizendo o quê?
— Não sei se estava dizendo alguma coisa. Estava dando... vivas.
Merda! Por que Draco precisava ser tão escandaloso?!
— Vivas?
— Gritos de alegria. — Ela confirmou com a cabeça.
Harry olhou-a espantado.
— Homem ou mulher?
— Eu arriscaria dizer que era homem.
— E parecia feliz?
— Muito feliz. — disse a professora fungando.
— Como se estivesse comemorando?
— Sem a menor dúvida.
— E então…?
— Então perguntei: “Quem está aí?”
— A senhora não poderia descobrir sem perguntar? — questionou-a Harry, ligeiramente frustrado. Tive que tensionar os lábios para não rir.
— O Olho Interior — replicou a professora com dignidade, ajeitando seus xales e os muitos fios de contas reluzentes — estava contemplando questões muito distantes da esfera mundana de vozes que gritam de alegria.
— Certo. — apressou-se Harry a dizer; já ouvira falar demais no Olho Interior da professora Trelawney. — E a voz respondeu quem era?
— Não, não respondeu. Ficou tudo escuro como breu e, no momento seguinte, eu estava sendo arremessada de cabeça para fora da Sala sobre a pobre srta. !
Ops. Bom, não era exatamente a minha intenção.
— E a senhora não previu isso?! — exclamou Harry, incapaz de se conter.
— Não, não previ, como disse, ficou tudo escuro como... — A professora parou e olhou-o desconfiada.
— Acho melhor a senhora contar ao professor Dumbledore. — sugeriu Harry. — Ele precisa saber que Malfoy está comemorando... quero dizer, que alguém arremessou a senhora para fora da Sala.
Por Merlim, não mesmo. Abri a boca, pronta para falar algo para dissuadi-la daquela ideia, mas não precisei; a professora Trelawney empertigou-se ao ouvir sua sugestão, com ar de superioridade.
— O diretor insinuou que preferia receber menos visitas minhas. — disse ela friamente. — Não sou pessoa de impor a minha presença àqueles que não a apreciam. Se Dumbledore prefere ignorar os avisos dados pelas cartas...
Sua mão ossuda agarrou subitamente o pulso de Harry.
— Repetidamente, seja qual for o modo com que eu as ponha...
E, dramaticamente, Trelawney puxou uma carta de baixo dos xales.
— ... A Torre atingida pelo raio — sussurrou ela. — Calamidade. Catástrofe. Cada dia mais próxima...
— Certo. — concordou Harry outra vez. — Bem... continuo achando que a senhora deveria contar a Dumbledore sobre a voz e a Sala escurecer de repente e a senhora ser arremessada para fora...
— Você acha? — A professora Trelawney pareceu considerar a questão por um momento; certamente ela gostara da ideia de tornar a contar sua pequena aventura.
— Estou indo vê-lo agora. — disse Harry. — Tenho uma reunião com ele. Poderíamos ir juntos.
Bom, pelo menos eu estaria lá para mediar a situação. O problema, porém, é que Dumbledore era inteligente demais… Eu tinha certeza que o elogio que ele fizera à minha pulseira em minha primeira semana de aula não fora uma mera apreciação à beleza da joia. O diretor sabia muito bem por que eu estava em Hogwarts.
— Ah, bem, neste caso. — replicou a professora Trelawney com um sorriso. Ela se abaixou, recolheu suas garrafas de xerez e atirou-as sem cerimônia dentro de um grande vaso azul e branco em um nicho próximo. — Sinto falta de você nas minhas aulas, Harry. — disse ela comovida, quando começamos a andar. — Você nunca foi grande coisa como vidente... mas era um objeto de estudo maravilhoso. Receio que aquele pangaré... desculpe, centauro... não saiba nada de cartomancia. Perguntei-lhe, de um vidente para outro, se também não tinha sentido as distantes vibrações do advento da catástrofe. Mas, pelo jeito, ele me acha quase cômica. Isso mesmo, cômica!
Sua voz alteou-se histericamente, e tive certeza que, pela careta que exibiu, Harry sentiu uma forte baforada de xerez, embora as garrafas tivessem sido deixadas para trás. Quase a abracei por ter bebido; certamente o álcool serviria de desculpa para qualquer atitude estranha que ela tivesse por causa de meu Feitiço para Confundir.
— Talvez o cavalo tenha ouvido pessoas dizerem que não herdei o dom das minhas tataravós. Há anos os invejosos têm espalhado esses boatos. Sabe qual a minha resposta para essa gente, Harry? Será que Dumbledore teria me deixado ensinar nesta grande escola, confiado em mim todos esses anos, se eu não tivesse comprovado o meu valor?
Harry murmurou alguma coisa inaudível.
— Lembro-me muito bem da minha primeira entrevista com Dumbledore. — continuou a professora Trelawney, com a voz rouca. — Ele ficou profundamente impressionado, é claro, profundamente impressionado... eu estava hospedada no Cabeça de Javali, que, aliás, não recomendo... percevejos, meu caro rapaz... mas eu estava sem recursos. Dumbledore fez a gentileza de ir até o meu quarto na estalagem. Interrogou-me... devo confessar que, a princípio, achei que parecia pouco favorável à Adivinhação... e lembro que comecei a me sentir meio estranha, não tinha comido quase nada naquele dia... mas então...
E agora, pela primeira vez, Harry parecia estar realmente prestando atenção.
— ... então fomos rudemente interrompidos por Severo Snape!
— Quê?
— Sim, houve uma agitação no corredor, a porta do quarto se escancarou, e lá estava aquele barman rude, parado com Snape, que tentava confundi-lo, dizendo que se enganara ao subir, embora eu ache que ele foi apanhado escutando a minha entrevista com Dumbledore; você entende, ele próprio estava procurando emprego à época, e com certeza esperava ouvir umas dicas! Bem, depois disso, entende, Dumbledore pareceu bem mais disposto a me contratar, e não pude deixar de pensar, Harry, que ele deve ter percebido o violento contraste entre o meu jeito modesto e o meu talento discreto comparados aos do rapaz cavador e intrometido, que se dispunha a escutar às portas... Harry, querido?
Trelawney olhou por cima do ombro, pois acabara de perceber que Harry não estava mais com ela; o garoto parara, acompanhado por mim, e agora havia três metros de distância entre nós e a vidente.
— Harry? — repetiu a professora, insegura.
O rosto dele estava branco, ele paralisara no meio do corredor.
— Harry? — chamou de novo a professora. — Harry... pensei que íamos ver o diretor juntos?
— A senhora fica aqui. — disse Harry firmemente.
— Mas, querido... eu ia contar a ele que fui atacada na Sala...
— A senhora fica aqui! — repetiu Harry com raiva.
— Professora, deixe-me acompanhar a senhora de volta a sua sala. — ofereci, lançando um olhar preocupado e confuso a Harry, que me ignorou.
Trelawney fez um ar assustado quando ele passou correndo por ela, e, tão logo o garoto desapareceu pelo fim do corredor, larguei a mulher onde estava e corri o mais rápido que pude para a sala comunal.
Passando pelo buraco do retrato, procurei Mione com os olhos. Quando não a encontrei, respirei fundo. Se ela não estava ali, não adiantava me afobar. Mesmo assim, meu coração continuava acelerado. Harry estava cada vez mais perto de descobrir o que Malfoy estava fazendo… consertando aquele armário idiota… o que aquela porra fazia, além de triturar frutas?
Como tentativa de me acalmar, fui tomar um banho. Lavei os cabelos, sentindo a água fria me refrescar e peguei minha necessaire para borrifar um pouco de perfume antes de sair, mas vi que o frasco já tinha acabado. Praguejei mentalmente; precisava encomendar mais assim que pudesse.
Saí pelos corredores, tentando relaxar e matar o tempo enquanto Hermione não voltava à Torre da Grifinória, mas vi que Harry chegara correndo, apressado, ao quadro da Mulher Gorda. Fiz menção de ir atrás dele, mas, assim que ele passou pelo buraco e adentrou a sala, escutei alguém me chamar:
— Srta. , tem um minuto?
Me virei, com o estômago se revirando. Era Dumbledore.
— Claro, professor. — falei, tentando soar despreocupada.
— A professora Sprout me disse que a senhorita é excelente em Herbologia, então gostaria de tirar uma dúvida sobre uma espécie bem peculiar. O trílio branco.
— Ah, sim. — eu disse, um pouco menos tensa. — É uma flor bem característica da região amazônica onde fica Castelobruxo.
O diretor manteve o silêncio, me encarando como se esperasse que eu prosseguisse.
— Tem propriedades mágicas e medicinais bem interessantes; pode ajudar a curar picadas de cobra, facilitar o parto, curar febres… e é minha flor preferida também.
Dumbledore não disse nada; apenas sorriu placidamente, me observando com seu olhar profundo e azul sobre as lentes dos oclinhos de meia lua.
— Obrigado. Certamente saciou minha curiosidade. — Ele deu alguns passos a frente e se inclinou para me ver mais de perto. Me senti uma criança perto de sua figura alta e imponente. — Agora, acho que a senhorita deveria se juntar a seus colegas na Torre da Grifinória. Acredito que o sr. Potter tenha notícias que sejam de seu interesse.
Ele acenou com a mão amaldiçoada, e senti meu peito pesar. Um pressentimento horrível pressionou minhas entranhas.
— Não tenha medo, . — E, num tom mais baixo e firme, completou: — Eu não tenho medo do que me espera.
Sem tempo de analisar o significado oculto daquilo, apenas sorri e falei a senha para a pintura, que girou e me permitiu ver Rony, Hermione e Harry de pé lá dentro. Corri até eles.
— ... estão entendendo o que isto significa? — Harry dizia, com pressa. — Dumbledore não estará aqui hoje à noite, portanto Malfoy estará livre para tentar o que quer que esteja tramando. Não, me escutem! — sibilou ele zangado, quando Rony e Hermione deram sinais de querer interrompê-lo. — Sei que era o Malfoy comemorando na Sala Precisa. Tomem... — Ele empurrou o Mapa do Maroto na mão de Hermione. — Vocês têm de vigiá-lo e têm de vigiar Snape também. Usem quem puderem reunir da AD. Hermione, aqueles galeões de contato ainda estão funcionando, certo? Dumbledore diz que instalou proteção adicional na escola, mas, se Snape estiver envolvido, ele saberá qual foi a proteção e como evitá-la… mas ele não estará esperando que vocês estejam de guarda, não é?
— Harry… — começou Hermione, seus olhos arregalados de medo.
— Não tenho tempo para discutir. — cortou-a Harry. — Tome isto também… — Ele empurrou um par de meias enroladas nas mãos de Rony.
— Obrigado. — disse Rony. — Ãh... Para que preciso de meias?
— Precisa do que está embrulhado nelas, é a Felix Felicis. Dividam entre vocês e a Gina também. Se despeçam dela por mim. É melhor eu ir, Dumbledore está me esperando...
— Não! — exclamou Hermione, quando Rony desembrulhou o frasquinho de poção dourada, parecendo assombrado. — Não queremos a poção, leve com você, quem sabe o que irá enfrentar.
— Estarei bem, estarei com o Dumbledore. — respondeu Harry. — Quero ter certeza de que vocês estejam ok... não me olhe assim, Hermione, vejo vocês mais tarde…
E ele se foi, me deixando com mil questionamentos, mas forcei minha mente a trabalhar o mais rápido que pude, para enfim perceber…
Dumbledore encontrara uma Horcrux e ia levar Harry para destruí-la com ele. O armário em que Draco estivera trabalhando desde o início do ano estava consertado, exatamente no dia em que ele se tornara um bruxo adulto e não tinha mais rastreador. Draco teria que cumprir sua missão hoje. E eu…
Precisava tirar a Marca Negra dele agora.
Meu estômago se apertou. Não podia sair para encontrar Draco naquele momento; soaria suspeito demais. O prazo estava perto demais de se esgotar, mas eu não podia ser descoberta.
O rosto de Hermione estava vermelho, mas os nós de seus dedos estavam pálidos, de tanta força que ela usava para apertar o punho da varinha.
— Rony, vá chamar Neville. — ela falou, num tom baixo e firme. Era uma ordem.
— Ok, ok. — o ruivo concordou, atordoado, apanhando a própria varinha. — , segura isso. — me arremessou as meias enroladas de Harry, saindo pelo buraco do retrato.
— Mione…? — a chamei. Ela virou o rosto decidido para mim.
— Vamos convocar a Armada de Dumbledore. Luna, Gina… onde…
— Biblioteca. — balbuciei, e ela foi correndo atrás de Rony, me deixando sozinha de pé na sala comunal, com o coração batendo com força contra as costelas.
Não tinha tempo… Meu corpo respondia naquele instante com a costumeira sensação que antecedia uma luta. Subi correndo até o dormitório feminino e revirei minha bagagem até pegar o saquinho com minhas poções, puxando o vidrinho dourado: mais Felix Felicis. Conjurei meia dúzia de copinhos que tinham o tamanho exato para conter a dose certa de Sorte Líquida para três horas. Desarrolhei o meu frasco e o de Harry e fui despejando nos copos… quando percebi que só tínhamos poção suficiente para encher cinco deles.
“Até mesmo a sorte às vezes precisa se curvar à habilidade”, meu subconsciente repetiu o que dissera tanto tempo antes, me consolando, “e você tem a habilidade”.
Apoiei os seis copinhos sobre um livro, e, com a adrenalina invadindo minha circulação, murmurei:
Wingardium Leviosa. Como uma bandeja, o livro flutuou atrás de mim, me seguindo enquanto descia as escadas para encontrar Rony, Hermione, Gina, Neville e Luna. Todos me encaravam com a tensão visível na linguagem corporal. Tentei sorrir.
— Harry pediu que tomássemos a Felix dele.
Os cinco assentiram e se aproximaram. Gina, porém, me lançou um olhar de interrogação ao ver um dos recipientes vazio.
— Já tomei a minha — menti, estendendo um copo à ruiva.
— A Ordem da Fênix também está aqui — falou Mione quando a entreguei sua dose da poção. — Temos mais ajuda.
Todos beberam o líquido dourado e instantaneamente pude notar a determinação e a confiança se exacerbar em cada um. Hermione me olhou como se soubesse exatamente o que fazer, e pediu:
— Gina, Rony, Neville e vão vigiar a Sala Precisa. Eu e Luna vamos para o escritório de Snape. Qualquer problema, conjurem Patronos e mandem para o outro grupo.
Um alerta se acendeu no meu cérebro: precisava contar à garota sobre minhas descobertas acerca da identidade do Príncipe Mestiço… Porém, tive um pressentimento estranho de que não era o momento certo. Ela agarrou o braço de Luna e ambas saíram da sala comunal, sendo seguidas pelo resto de nós. Cada grupo pegou um caminho oposto pelos corredores, e cheguei rapidamente à parede lisa onde a Sala Precisa normalmente revelava sua porta.
Respirei fundo. Tive que me concentrar bastante para evitar que a Sala se abrisse para mim, apesar de minha urgência esmagadora de encontrar Malfoy… Onde estaria ele? O que estaria fazendo? Será que executaria sua tarefa hoje?
Meus questionamentos só foram respondidos cerca de uma hora depois, quando a porta se materializou e se abriu. Draco Malfoy saiu da Sala Precisa com angústia latente desfigurando seu rosto. Porém, antes que eu ou qualquer um dos grifinórios pudesse esboçar reações, seus olhos cravaram nos meus, e todo o resto pareceu congelar e sumir.
No instante em que o vi, assustado e segurando a tal Mão da Glória, uma torrente de lembranças me invadiu com tanta força que fiquei tonta.
Em seus olhos prateados, vi… vi claramente…
Me vi de pé no banheiro da Grifinória, com um frasco vazio de perfume na mão. Meu perfume tinha acabado… então eu não o passara naquela manhã… e na sala da Poções… Draco sentira o meu cheiro na Amortentia… é necessário que haja uma emoção no corpo dele pelo portador da pulseira para que a magia funcione…
Draco Malfoy estava apaixonado por mim e, com toda a certeza, eu agora poderia remover sua Marca.
Antes que eu pudesse me mexer, porém, as íris azuis de Draco faiscaram na minha direção como se pedissem desculpas, e tudo ficou preto.
Ouvi um arquejo surpreso e atordoado de Gina à minha direita, mas não podia fazer nada a respeito. Me debrucei para frente, dando passos para mergulhar na escuridão e alcançar Draco.
Lumus! — Neville bradou, à distância.
Incendio! — enunciou Rony, já longe de onde eu me encaminhava.
Nenhum dos dois obteve sucesso: o breu era impenetrável. A única pessoa que podia enxergar era…
— Draco! — o chamei, com uma nota de desespero audível em minha voz.
E bati com o rosto em algo sólido, sendo imediatamente envolvida pelo cheiro dele.

Draco POV

É tradição dar a um bruxo um relógio quando ele atinge a maioridade. O meu presente, porém, era um tanto mais macabro e indesejado. Meu presente era sangue em minhas mãos.
Meu aniversário estava sendo bem diferente do que eu sempre idealizara. Em vez de uma festa com bebidas e embrulhos contendo artigos caros e vassouras novas, eu passara a maior parte do dia fazendo os testes finais no Armário Sumidouro, lançando novamente a Maldição Imperius em Madame Rosmerta e pensando em o que aquilo tudo significaria para . Qual seria o impacto que me tornar um assassino e fugir sem nem uma despedida causaria nela? A culpa me corroía…
Não. Aquele era o momento. Aquela era a noite. Nada poderia me desviar da minha tarefa, ou isso custaria a vida de meus pais…
Nada exceto , que colidiu bruscamente comigo, e sua voz desesperada me chamando.
, sou eu. — falei, segurando sua mão com a minha e sentindo o metal frio de sua pulseira contra minha tatuagem.
Os olhos dela subitamente adquiriram foco. Certamente, ela agora conseguia enxergar as figuras de Longbottom e os dois Weasley na outra ponta do corredor, caminhando incertamente e tateando no escuro, e as paredes de pedra com alguns archotes que, mesmo acesos, não proporcionavam nenhuma iluminação.
— Draco, o que está acontecendo? O que você está fazendo?
Cada questionamento dela parecia ferro em brasa queimando meu peito. A culpa tinha um gosto amargo em minha boca, contrastante com a Felix Felicis que eu bebera havia poucos minutos. Apesar de me sentir mais confiante, a pressão sobre mim era grande demais para que eu ficasse relaxado com a poção. Se ela não tivesse me dado aquele frasquinho de Sorte Líquida de presente, provavelmente eu teria surtado antes mesmo de constatar que o Armário Sumidouro estava consertado…
— O armário funcionou. Então eu consegui trazer… reforços.
Segundos depois de dizer isso, um grupo de bruxos saiu da porta da Sala Precisa, usando vestes pretas e todos exibindo uma tatuagem no antebraço: a infame caveira com a cobra que saía de sua boca.
— Draco, por favor… — Sua voz estava embargada, e eu nunca senti tanto remorso na vida. A pedra na pulseira dela brilhava tanto que machucava meus olhos. — Não faz isso… Você é bom, Draco… O mal ainda não corrompeu você, não o deixe fazer isso…
Abri a boca, mas não consegui dizer nada. Como aquilo era difícil… Era muito difícil dizer não a ela. Era quase impossível olhar naqueles olhos tão profundamente e me despedir deles… era tão difícil traí-los. Era tão excruciante me virar para a garota a quem eu sussurrara um “eu te amo” bêbado na minha própria cama enquanto ela dormia enganchada em mim; fui incapaz de conter as palavras em meu peito inquieto. Com o coração torturado, a puxei para um beijo. se entregou totalmente e cegamente ao meu toque, e meu corpo inteiro queimou. Ela colou a pedra da pulseira na minha tatuagem, e senti uma pontada forte de dor que me fez grunhir.
— Por favor. — ela implorou uma última vez. Uma lágrima solitária escorreu por sua bochecha. — Por mim… não faz isso. Eu… — e hesitou. As íris intensas, porém, completaram a frase por ela.
Sequei a pequena gota com meu polegar, sentindo meus próprios olhos se marejarem.
— Eu amo você, . — confessei num sussurro tão baixo que nem sei se ela pôde ouvir. — Mas eu não posso. Eu preciso… eu preciso ir.
E soltei sua mão, sem olhar para trás.
Tentando impedir que minha voz saísse trêmula, dei algumas instruções aos Comensais da Morte que vinham atrás de mim, para que seguissem o caminho correto em meio a escuridão, quando ouvi o primeiro grito lancinante. Meu estômago afundou, mas me recusei a virar para conferir se era mesmo vindo de .
Infelizmente, porém, o barulho assustou os Comensais, e uma voz abafada enunciou:
Avada Kedavra! — e ouvi o terrível som de um corpo caindo no chão.
A adrenalina que veio com o choque me fez correr. Ouvi o berro de terror de Gina Weasley e o som de seu irmão lançando azarações a esmo enquanto me encaminhava para o corredor que dava na Torre de Astronomia. O suor já molhava as costas de minha camisa, e eu desesperadamente tentava empurrar para longe da mente os pensamentos insuportáveis que me vinham…
Nessa nova parte de Hogwarts, contudo, havia mais gente do que eu esperava, e meu braço que segurava a Mão da Glória tremeu. Maldita Armada de Dumbledore, maldita Ordem da Fênix…
Quando dei de cara com Remo Lupin, meu antigo professor, e Ninfadora Tonks, minha prima renegada, o pânico me atingiu. Isso definitivamente não estava nos planos; meu Pó Escurecedor Instantâneo tinha se esgotado, pois eu tivera que gastar um pouco a mais do que o previsto quando a idiota da professora Trelawney entrara na Sala Precisa…
Por sorte, meus reflexos apurados pela Felix Felicis me fizeram notar uma tapeçaria que dava num corredor alternativo; tomei aquele caminho enquanto os outros Comensais lutavam. Gibbons, um dos outros seguidores do Lorde das Trevas, descia pela escada que eu deveria tomar, mas caiu subitamente ao ser atingido por um jorro verde. Pulei para trás antes de continuar o caminho, com o corpo abaixado, mas então pôs-se na minha frente um grande pássaro escarlate, com plumagem vermelha e dourada que brilhava na escuridão e olhos negros que faiscavam… A fênix de Dumbledore.
Larguei a estúpida Mão, ouvindo-a rolar pelo piso, para proteger meu rosto das garras e bico afiado da fênix. Enquanto tentava alcançar a porta que dava na escada para a Torre, tropecei num corpo no chão, e o terror me fez esquecer todo o resto. Estava escuro; não sabia dizer quem era… Desesperado, dei um impulso e me joguei sobre a porta, quase arrancando-a da dobradiça com o impacto.
Ofegando, finalmente cheguei correndo ao topo da escada. Num pico de adrenalina, escancarei a porta da Torre de Astronomia e bradei:
Expelliarmus!
À luz da Marca Negra lançada por Gibbons, uma varinha traçou um arco por cima da ocular do telescópio, caindo e caindo…
Encostado na parede, com o rosto muito branco, Alvo Dumbledore não mostrava sinal de pânico ou aflição. Simplesmente olhou para mim e disse:
— Boa noite, Draco.
Me adiantei, olhando rapidamente ao redor para verificar se eu e o diretor estávamos a sós. Meus olhos bateram em uma segunda vassoura que repousava no chão. Para que Dumbledore precisava de duas vassouras?
— Quem mais está aqui? — inquiri, erguendo o queixo.
— Uma pergunta que eu poderia fazer a você. Ou está agindo sozinho?
— Não. — respondi. — Tenho apoio. Há Comensais da Morte em sua escola esta noite.
— Bom, bom. — comentou Dumbledore, como se eu estivesse lhe mostrando um trabalho escolar ambicioso. Meu sangue ferveu. — De fato muito bom. Você encontrou um meio de trazê-los para dentro, foi?
— Foi. — repliquei ofegante. — Bem debaixo do seu nariz, e o senhor nem percebeu!
— Engenhoso. Contudo... me perdoe... onde estão eles? Você parece indefeso.
— Eles encontraram uma parte de sua guarda. Estão lutando lá embaixo. Não vão demorar... eu vim na frente. Tenho... tenho uma tarefa a fazer.
— Bem, então, não deve se deter, faça-a, meu caro rapaz. — disse Dumbledore baixinho.
Fez-se silêncio. Alvo Dumbledore, inacreditavelmente, sorria.
— Draco, Draco, você não é um assassino.
— Como é que o senhor sabe? — repliquei prontamente.
Que porra de frase estúpida e infantil. Senti meu rosto ficar quente.
— O senhor não sabe do que sou capaz — continuei, com mais firmeza —, o senhor não sabe o que eu fiz!
— Ah, sei, sim — respondeu o diretor brandamente. — Você quase matou Katie Bell e Rony Weasley. Você tem tentado, com crescente desespero, me matar o ano todo. Perdoe-me, Draco, mas suas tentativas têm sido ineficazes... tão ineficazes, para ser sincero, que me pergunto se, no fundo, você realmente queria...
— Queria sim! — confirmei com veemência. — Estive trabalhando nisso o ano todo, e hoje à noite...
De algum ponto nas profundezas do castelo veio um grito abafado. Enrijeci, espiando involuntariamente por cima do ombro. Era . Poderia ser . Talvez a estivessem torturando…
— Alguém está resistindo com valentia. — comentou Dumbledore em tom de conversa. — Mas você ia dizendo... sim, que conseguiu introduzir Comensais da Morte em minha escola, o que, admito, pensei que fosse impossível... como fez isso?
Não respondi. Um tanto paralisado, ainda tentava escutar o que se passava na batalha abaixo de mim, desesperado por uma confirmação de que a Maldição da Morte que eu ouvira mais cedo não atingira .
— Talvez você devesse continuar a tarefa sozinho. — sugeriu Dumbledore. — E se o seu apoio tiver sido rechaçado pela minha guarda? Como você talvez tenha percebido, há membros da Ordem da Fênix aqui hoje à noite, também. E, afinal, você não precisa realmente de ajuda... não tenho varinha no momento... não posso me defender.
Apenas o encarei. O diretor falava e falava, mas, ao contrário do que deveria, minha mente não estava ali. Estava centenas de degraus abaixo, onde quer que estivesse, viva ou morta.
— Entendo. — disse Dumbledore bondosamente, quando viu que eu não me mexia nem falava. — Você tem medo de agir até que eles cheguem.
— Não tenho medo! — vociferei, mas não tive forças para fazer um movimento para atacar Dumbledore. — O senhor é quem deveria estar com medo!
— Mas por quê? Acho que você não vai me matar, Draco. Matar não é tão fácil quanto creem os inocentes... portanto, enquanto esperamos por seus amigos, me conte... como foi que você os trouxe clandestinamente para dentro? Parece que levou muito tempo para descobrir um meio de fazer isso.
Engoli em seco e inspirei profundamente várias vezes com o olhar fixo em Dumbledore, tentando conter o impulso de vomitar. Minha varinha apontava diretamente para o coração do diretor, do mesmo jeito que eu ameaçara a brasileira.
— Tive de consertar aquele Armário Sumidouro que ninguém usa há anos. Aquele em que Montague sumiu no ano passado.
— Aaaah. O suspiro de Dumbledore foi quase um lamento. Ele fechou os olhos por um instante. — Foi uma ideia inteligente... há um par, não é? — O outro está na Borgin & Burkes, e os dois formam uma passagem. Montague me contou que ficou preso no Armário de Hogwarts, suspenso no limbo, mas às vezes ele ouvia o que estava acontecendo na escola e, outras, o que estava acontecendo na loja, como se o Armário se deslocasse entre os dois pontos, mas não conseguia que ninguém o ouvisse... no fim, ele saiu aparatando, apesar de nunca ter passado no teste. Quase morreu na tentativa. Todo o mundo achou que era uma história realmente empolgante, mas eu fui o único que percebi o que significava, nem o Borgin sabia, fui o único que percebi que talvez houvesse um jeito de entrar em Hogwarts através dos Armários, se eu consertasse o que estava quebrado.
Falei aquilo tudo de um fôlego só, querendo me livrar das palavras o mais rápido possível. Pensar naquilo também era angustiante, porque eu sabia que estivera me ajudando em cada etapa do processo, estivera lá em cada pequena vitória.
— Muito bom. — murmurou Dumbledore. — Então os Comensais da Morte puderam passar da Borgin & Burkes para a escola e ajudá-lo... um plano inteligente, um plano muito inteligente... e como você diz... bem debaixo do meu nariz…
— É! — exclamei. Bizarramente, consegui extrair um pouco de coragem e consolo do elogio do diretor. — É, foi!
— Houve vezes, no entanto — continuou Dumbledore —, em que você perdeu a certeza de que conseguiria consertar o Armário, não é? E então lançou mão de recursos óbvios e mal avaliados como me mandar um colar maldito, que estava fadado a ir parar em mãos erradas... envenenar um hidromel que era pouquíssimo provável eu beber…
— É, mas, nem assim o senhor descobriu quem estava por trás disso, não é? — debochei, mas notei que ele se arrastava contra a parede, como se estivesse perdendo suas forças.
— Na verdade, descobri. Eu tinha certeza de que era você.
— Por que não me deteve, então?
— Tentei, Draco. O professor Snape tem vigiado você por ordens minhas…
— Ele não estava obedecendo às suas ordens, ele prometeu a minha mãe…
— Naturalmente isto é o que ele lhe diria, Draco, mas… — ele começou, mas me interrompi, exaltado.
— Ele é um agente duplo, seu velho idiota, ele não está trabalhando para o senhor, o senhor é que pensa que está!
— Devemos concordar em discordar nesse ponto, Draco. Acontece que eu confio no professor Snape…
— Bem, então o senhor não está mais entendendo nem controlando nada! — desdenhei mais uma vez. — Ele tem me oferecido muita ajuda… querendo toda a glória para ele... querendo um pouco de ação... “Que é que você anda fazendo? Mandou aquele colar, que idiotice, poderia ter estragado tudo…” Mas não contei a ele o que estive fazendo na Sala Precisa, ele vai acordar amanhã e tudo estará acabado, e ele não será mais o favorito do Lorde das Trevas, ele não será nada comparado a mim, nada! Como se eu ligasse para qualquer uma dessas merdas. Talvez um ano atrás essas coisas realmente me enchessem os olhos. Mas agora… Só queria manter minha família a salvo. E queria proteger de tudo que eu pudesse.
— Muito gratificante. — comentou Dumbledore brandamente. — Todos gostamos de receber aplausos pelos nossos esforços, é mais do que natural... mas você deve ter tido um cúmplice...
Minha cabeça rodou com a tensão. Se ele soubesse de … sabe-se lá o que poderia acontecer com ela.
— …alguém em Hogsmeade que pôde passar para Katie o... o... aaaah…
Dumbledore fechou outra vez os olhos e cabeceou como se estivesse prestes a cochilar. Concluí, com assombro, que alguma coisa que acontecera enquanto ele estivera fora de Hogwarts o tinha enfraquecido brutalmente.
— ... naturalmente... Rosmerta. Há quanto tempo ela está dominada pela Maldição Imperius?
— Enfim percebeu, não é? — tentei caçoar, mas ouvi um segundo grito vindo do andar de baixo, mais alto do que o anterior. Era ela, tinha que ser ela… Não queria nem pensar na possibilidade de ela ter sido atingida…
Olhei mais uma vez, nervosamente, por cima do ombro e, em seguida, para Dumbledore, que continuou:
— Então a pobre Rosmerta foi forçada a se esconder no próprio banheiro e passar o colar para a primeira estudante de Hogwarts que entrou lá desacompanhada? E o hidromel envenenado... bem, naturalmente Rosmerta pôde envenená-lo para você antes de mandar a garrafa para Slughorn, acreditando que seria o meu presente de Natal... sim, muito esperto... muito esperto... o coitado do sr. Filch não pensaria, é claro, em verificar uma garrafa do hidromel de Rosmerta... mas, diga-me, como esteve se comunicando com a Rosmerta? Pensei que tínhamos todos os meios de comunicação de saída e entrada da escola monitorados.
— Moedas encantadas. — respondi, numa compulsão de continuar falando, embora a mão com que segurava a varinha tremesse muito. — Fiquei com uma e ela com a outra e, assim, pude lhe mandar mensagens...
— Não foi esse o método secreto de comunicação que o grupo que se intitulava Armada de Dumbledore usou no ano passado? — indagou Dumbledore. Sua voz era descontraída e informal.
— É, copiei a ideia deles. — eu disse, com um sorriso enviesado permeado por desespero. — Tirei também a ideia de envenenar o hidromel da sangue ruim da Granger, ouvi quando ela disse na biblioteca que o Filch não era capaz de reconhecer poções…
Xingar Granger daquele nome, tão repudiado por , fez eu me sentir sujo.
— Por favor, não use essa palavra ofensiva na minha presença. — pediu Dumbledore.
Forcei uma gargalhada desagradável.
— O senhor ainda se incomoda que eu esteja dizendo “sangue ruim” quando estou prestes a matá-lo?
— Incomodo-me. Quanto a estar prestes a me matar, Draco, você já teve longos minutos. Estamos sozinhos. Estou mais indefeso do que você poderia ter sonhado em me encontrar e, ainda assim, você não me matou...
Torci a boca involuntariamente, como se tivesse provado alguma coisa muito amarga.
— Agora, quanto a esta noite — continuou Dumbledore —, estou um pouco intrigado como tudo aconteceu... você sabia que eu tinha saído da escola? Mas, é claro — ele respondeu à própria pergunta —, Rosmerta me viu saindo, avisou-o usando suas engenhosas moedas, com certeza...
— Isto mesmo. Ela me disse que o senhor ia beber alguma coisa, que voltaria...
— Bem, sem dúvida eu bebi alguma coisa... e de certa maneira... voltei... — murmurou Dumbledore. — Então, você decidiu montar uma armadilha para mim?
— Decidimos colocar a Marca Negra sobre a Torre e fazer o senhor voltar correndo para cá, para ver quem tinha sido morto. E deu certo!
— Bem... sim e não... Mas eu devo entender, então, que ninguém foi morto?
— Alguém morreu. — respondi, com a dor se alastrando por meu tronco. — Um dos seus... não sei quem, estava escuro... passei por cima do corpo... eu devia estar esperando aqui em cima quando o senhor voltasse, só que aquela sua fênix se meteu no caminho...
— Elas fazem isso. — confirmou Dumbledore.
Ouviu-se um estampido e gritos embaixo, mais altos que antes; parecia que as pessoas estavam lutando na escada de acesso ao lugar em que nos encontrávamos…
— De qualquer maneira, temos pouco tempo. — disse Dumbledore. — Então vamos discutir as suas opções, Draco.
— Minhas opções! — exclamei alto. — Estou aqui com uma varinha… prestes a matar o senhor...
— Meu caro rapaz, vamos parar de fingir. Se você fosse me matar, teria feito isso quando me desarmou, não teria parado para conversarmos amenamente sobre meios e modos.
— Não tenho opções! — respondi, e subitamente meu enjoo voltou com mais força ainda. Devia estar tão pálido quanto Dumbledore. — Tenho de fazer isto. Ele me matará! Ele matará minha família toda!
— Eu avalio a dificuldade de sua posição. Por que pensa que não o confrontei antes? Porque eu sabia que você seria morto se Lorde Voldemort percebesse que eu suspeitava de você. Não me atrevi a falar antes sobre a missão que lhe fora confiada, prevendo que ele talvez usasse a Legilimência contra você. Agora, finalmente, podemos falar às claras... não houve mal algum, você não feriu ninguém, embora tenha tido muita sorte que suas vítimas impremeditadas sobrevivessem... posso ajudá-lo, Draco.
— Não, não pode. — Minha mão direita, que empunhava a varinha, tremia muito fortemente. — Ninguém pode. Ele me mandou fazer isso ou me matará. Não tenho escolha.
— Venha para o lado certo, Draco, e podemos escondê-lo mais completamente do que pode imaginar. E, mais, posso mandar membros da Ordem à sua mãe hoje à noite, e escondê-la também. Seu pai no momento está seguro em Azkaban... quando chegar a hora posso protegê-lo também... venha para o lado certo, Draco... você não é assassino...
Arregalei os olhos para Dumbledore.
"Você é bom, Draco… O mal ainda não corrompeu você, não o deixe fazer isso…”. Fechei os olhos com força para calar a voz dela nos meus pensamentos.
— Mas cheguei até aqui, não? — eu disse lentamente. — Acharam que eu morreria na tentativa, mas estou aqui... e o senhor está em meu poder... sou eu que empunho a varinha... sua vida depende da minha piedade...
— Não, Draco. — respondeu Dumbledore baixinho. — É a minha piedade, e não a sua, que importa agora...
Não respondi. Estava boquiaberto, a mão continuava a tremer. E pensei: “eu devo isso a ela. Eu devo isso a …”, abaixando um pouco a varinha.
Mas, de repente, passos atroaram escada acima e, um segundo depois, fui empurrado para longe quando quatro pessoas de vestes negras irromperam pela porta em direção às ameias.
Amico Carrow deu uma risadinha asmática.
— Dumbledore encurralado! — exclamou ele, virando-se para sua irmã Aleto, que ria ansiosa. — Dumbledore sem varinha, Dumbledore sozinho! Parabéns, Draco, parabéns!
— Boa noite, Amico. — cumprimentou Dumbledore calmamente, como se lhe desse as boas-vindas ao seu chá festivo. — E trouxe Aleto também... que gentileza...
A mulher deu uma risadinha zangada.
— Então acha que suas gracinhas vão ajudá-lo no leito de morte? — zombou ela.
— Gracinhas? Não, não, são boas maneiras. — respondeu Dumbledore.
— Liquide logo. — disse uma outra figura, saindo das sombras com a voz que parecia um latido rouco. Lobo Greyback. Minhas entranhas se reviraram quando senti nele um forte cheiro de terra, suor e, sem dúvida, sangue. Suas mãos imundas tinham longas unhas amarelas.
— É você, Lobo? — perguntou Dumbledore.
— Acertou. — respondeu o outro, rouco. — Feliz em me ver, Dumbledore?
— Não, não posso dizer que esteja...
Fenrir Lobo Greyback riu, mostrando dentes pontiagudos. Um filete de sangue escorria pelo seu queixo, e ele lambeu os lábios, lenta e obscenamente.
— Você sabe como gosto de criancinhas, Dumbledore.
— Devo entender que você agora anda atacando, mesmo fora da lua cheia? Que insólito... você criou um gosto por carne humana que não pode ser satisfeito uma vez por mês?
— Acertou. — disse Greyback. — Choca você isto, não, Dumbledore? Assusta você?
— Bem, não posso fingir que não me desgoste um pouco. E, sim, estou um pouco chocado que o Draco, aqui, convidasse logo você a vir a uma escola onde seus amigos vivem...
— Não convidei. — sussurrei. Não conseguia sequer dirigir o olhar ao lobisomem, sentindo nojo de mim mesmo. — Eu não sabia que ele vinha...
— Eu não iria querer perder uma viagem a Hogwarts, Dumbledore. — respondeu roucamente o lobisomem. — Não quando há gargantas a estraçalhar... uma delícia, uma delícia…
Apertei os olhos de novo, tentando expulsar de minha cabeça a imagem de caída no chão, com os olhos abertos e sem vida, com o tronco nu, que eu beijara semanas antes, dilacerado e sangrento…
Lobo ergueu uma de suas unhas amarelas e palitou os dentes da frente, olhando, malicioso, para Dumbledore.
— Eu poderia estraçalhar você de sobremesa...
— Não. — interrompeu-o o quarto Comensal da Morte, Rowle, rispidamente. Tinha uma cara sombria e bruta. — Temos as nossas ordens. Draco é quem tem de fazer isso. Agora, Draco, e rápido.
Em minha mente havia menos determinação que nunca. Estava aterrorizado ao encarar o rosto de Dumbledore, agora ainda mais pálido e mais baixo do que o normal, porque deslizara bastante pela parede da ameia.
— Ele não vai demorar muito neste mundo, se quer saber! — comentou Amico, acompanhado pelas risadinhas asmáticas da irmã. — Olhem só para ele, que aconteceu com você, Dumby?
— Ah, menor resistência, reflexos mais lentos, Amico. — respondeu Dumbledore. — Em suma, velhice... um dia, talvez, lhe aconteça o mesmo... se você tiver sorte...
— Que está querendo dizer, que está querendo dizer? — berrou Rowle, repentinamente violento. — Sempre o mesmo, não é, Dumby, fala, fala e não faz nada. Nem sei por que o Lorde das Trevas está se preocupando em matar você! Vamos, Draco, mate de uma vez!
Mas naquele momento ouviram-se de novo ruídos de luta lá embaixo, e uma voz gritou: “Eles bloquearam a escada... Reducto! REDUCTO!
Meu coração deu um salto: então os quatro Comensais não tinham eliminado toda a oposição, tinham apenas aberto caminho até o alto da Torre entre os grupos que lutavam, e, pelos ruídos, criado uma barreira às suas costas… Talvez estivesse ali, viva, entre eles… Ainda lutando…
— Agora, Draco, rápido! — falou encolerizado o homem de cara brutal.
Mas minha mão tremia tanto que eu mal conseguia fazer pontaria.
— Eu farei isso. — rosnou Greyback, andando em direção a Dumbledore com as mãos estendidas e os dentes à mostra.
— Eu disse não!. — berrou Rowle; houve um lampejo, e o lobisomem foi afastado com violência; ele bateu nas ameias e cambaleou, furioso.
— Draco, mate-o ou se afaste, para um de nós... — guinchou Aleto, mas naquele exato momento a porta para as ameias se escancarou mais uma vez e surgiu Snape, de varinha na mão, seus olhos negros apreendendo a cena, de Dumbledore apoiado na parede aos quatro Comensais da Morte, incluindo o lobisomem enfurecido e eu.
— Temos um problema, Snape — disse o corpulento Amico, cujos olhos e varinha estavam igualmente fixos em Dumbledore —, o menino não parece capaz...
Mas outra voz chamara Snape pelo nome, baixinho.
— Severo...
Pela primeira vez, Dumbledore estava suplicando. Snape não respondeu, adiantou-se e me tirou do caminho com um empurrão. Os três Comensais da Morte recuaram calados. Até o lobisomem pareceu se encolher.
Snape fitou Dumbledore por um momento, e havia repugnância e ódio gravados nas linhas duras do seu rosto.
— Severo... por favor...
Snape ergueu a varinha e apontou diretamente para Dumbledore. — Avada Kedavra! Um jorro de luz verde disparou da ponta de sua varinha e atingiu Dumbledore no meio no peito. A figura alta, grisalha e outrora tão imponente e poderosa do diretor de Hogwarts explodiu no ar: por uma fração de segundo, ele pareceu pairar suspenso sob a caveira brilhante e, em seguida, foi caindo lentamente de costas, como uma grande boneca de trapos, por cima das ameias, e desapareceu de vista.
Alvo Dumbledore, um dos bruxos mais poderosos que já vivera, tinha acabado de ser morto diante de meus olhos, por alguém que julgava ser seu amigo.
— Fora daqui, rápido. — disse Snape.
O professor me agarrou pelo cangote e me forçou a sair pela porta, à frente dos outros; caso contrário, o choque teria me mantido parado no mesmo lugar. Greyback e os irmãos atarracados os seguiram, os dois ofegando agitados.
Eu sempre fantasiara a possibilidade de alguém cumprir minha missão por mim; de tirar de minhas mãos o sangue de Alvo Dumbledore… E em todos os cenários que imaginava, o que eu sentia era apenas alívio. Porém, na realidade, o que me inundava era culpa.
Culpa esmagadora e irrefreável, porque meus olhos procuravam a figura morena de e não a encontravam de jeito nenhum. Snape berrava: “Acabou, hora de partir!”; viramos no fim do corredor, abrindo caminho entre os combatentes e escapando ilesos… O que eu tinha certeza que se devia à Felix Felicis que me dera.
Mas o diretor estava morto, então não havia ninguém mais para impedir nossos três vultos que corriam pelo gramado em direção aos portões, de onde poderíamos aparatar… Snape segurava meu braço tão apertado que quase me machucava.
Estupefaça! — a voz de Potter urrou, acentuando meu pânico.
Ele errou; o jorro de luz vermelha passou ao largo da cabeça de Snape; o professor gritou: “Corra, Draco!”, e virou-se.
Hesitei por um instante. … estava dentro do castelo. Ela tinha me dado uma poção que permitira que eu saísse com vida de Hogwarts e que fizera com que Snape cumprisse minha tarefa por mim, e agora eu retribuía abandonando-a, sem saber se estava viva ou morta…
“Os sonserinos sempre escolhem salvar a própria pele. Eu não”, ela me dissera. E, como sempre, estava certa. Terrivelmente certa.
O som de Potter e Snape duelando me despertou, e senti o ar frio da noite dilacerar meus pulmões quando disparei para os limites da floresta, desaparatando.


POV

Quando Draco soltou minha mão, me fazendo mergulhar de novo na escuridão, respirei aliviada. Tudo estava bem… Eu tinha conseguido…
Ou pelo menos era o que eu pensava, até cair de joelhos no chão de pedra, com uma dor excruciante perfurando meu braço esquerdo.
A pulseira se apertava contra meu punho como se quisesse cortar a carne. Eu nunca tinha sentido uma dor como ela… uma Cruciatus não poderia ser pior do que aquilo…
Meu cabelo foi atingindo por uma torrente de vento: um feitiço não me acertara por muito pouco. Com as costas coladas na parede de pedra, fui tateando até encontrar o relevo intrincado da porta da Sala Precisa, e com muito esforço consegui içar meu corpo para dentro.
Cerrei as pálpebras, tentando fazer aquilo parar, mas sem sucesso. Queimava, queimava e queimava… Quando tentei abrir os olhos para ver por que meu braço doía tanto, não foi o interior da Sala em forma de catedral que vi: o sofrimento me cegava, e uma torrente de imagens descoordenadas perpassava minha visão… Logo compreendi.
Eram lembranças de Draco.

Um menininho loiro, de cabelos muito claros e penteados para trás, passava no sétimo andar, de frente para a entrada da sala comunal da Grifinória. Alarmada, percebi que estava vendo Draco aos onze anos, que observava, por uma fresta no buraco do retrato, Harry e Neville, com a mesma idade, conversando.
— Você vale doze Dracos. — disse Harry. — O Chapéu da Seleção escolheu você para Grifinória, não foi? E onde está Draco? Naquela Sonserina nojenta.
Senti o que ele sentira: uma raiva misturada à mágoa. Os alunos da Sonserina sempre eram vaiados, discriminados e odiados pelas outras casas, devido à ideia de que todos os bruxos das trevas pertenciam à casa das serpentes…

A cena mudou. Agora as feições de Malfoy estavam um pouco mais definidas; estava, talvez, um ano mais velho. Estava sentado no sofá de sua sala comunal, rodeado por Crabbe e Goyle.
— São Potter, o amigo dos sangues ruins. — disse Draco lentamente. — Ele é outro que não tem espírito de bruxo, ou não andaria por aí com aquela Granger sangue ruim metida a besta. E tem gente que acha que ELE é o herdeiro de Slytherin! — Bufou, irritado. — Eu bem gostaria de saber quem é. Até poderia ajudar… — disse com petulância.
Crabbe ficou boquiaberto, e Goyle disse:
— Você deve ter uma ideia de quem está por trás disso tudo…
— Você sabe que não tenho, Goyle. Quantas vezes preciso lhe dizer isso? — retrucou Draco, malcriado. — E meu pai não quer me contar nada sobre a última vez que a Câmara foi aberta, tampouco. É claro, foi há cinquenta anos, antes do tempo dele, mas ele sabe tudo que aconteceu e diz que o caso foi abafado e que vai levantar suspeitas se eu souber de muita coisa. Mas uma coisa eu sei, a última vez que a Câmara Secreta foi aberta, um sangue ruim morreu. Então aposto que é uma questão de tempo até um deles ser morto... espero que seja a Granger. — disse, com prazer na voz.
Porém, o que eu senti foi diferente: ouvi os pensamentos dele. Eram tão confusos e tão conflitantes que achei difícil compreendê-los… Ele dissera aquilo por puro despeito, por se sentir atraído por Hermione numa paixonite boba de criança, mas não poder nunca demonstrar, por ela ser nascida-trouxa. Mais uma vez, a frustração sentida por Draco me consumiu.

De novo, o cenário se desfez e se refez; agora o garoto estava percorrendo uma espécie de corrida de obstáculos ao ar livre, debaixo de sol, em que os alunos tinham que atravessar um lago fundo o suficiente para se remar, onde havia um grindylow; em seguida, uma série de crateras cheias de barretes vermelhos, depois um trecho de pântano, desconsiderando as informações enganosas dadas por um hinkypunk, e, por fim, subir em um velho tronco e enfrentar um bicho-papão. O dele tomou a forma de seu pai, dizendo num tom baixo para que somente ele ouvisse: “está próximo o momento de você se juntar ao Lorde…”
O lábio inferior de Draco tremeu, mas ele apontou a varinha e bradou:
— Riddikulus!
A figura austera de Lúcio Malfoy pôs-se a dançar o sapateado irlandês e, com uma risada do pequeno menino de treze anos, desapareceu. Ele voltou o rosto esperançoso para Remo Lupin, o professor de Defesa Contra as Artes das Trevas, e recebeu apenas um aceno positivo do mestre. Hermione Granger, porém, que finalizara a prova logo atrás dele aos berros de susto, recebeu copiosos elogios de Lupin. O rancor teve um gosto amargo em sua boca.

Novamente, as imagens rodopiaram para dar lugar a novas. O Salão Principal estava lotado, mas absurdamente silencioso, decorado com as cores da Lufa-Lufa, amarelo e preto, e abrigava grupos de alunos que não usavam os uniformes de Hogwarts. Era o fim do Torneio Tribruxo; era uma homenagem ao campeão assassinado, Cedrico Diggory.
— Harry Potter conseguiu escapar de Lorde Voldemort. E arriscou a própria vida para trazer o corpo de Cedrico de volta a Hogwarts. Ele demonstrou, sob todos os aspectos, uma bravura que poucos bruxos jamais demonstraram diante de Lorde Voldemort e, por isso, eu o homenageio.
Dumbledore virou-se solenemente para Harry e ergueu sua taça mais uma vez. Quase todos os presentes no Salão Principal seguiram seu exemplo. E murmuraram seu nome e beberam em sua homenagem.
Crabbe, Goyle e muitos alunos da Sonserina, num gesto de desafio, tinham permanecido sentados, os cálices intocados. Pansy, ao lado de Draco, exibia uma expressão de presunção. Malfoy, porém, estava mais pálido que o normal. Refletia sobre o que o retorno de Lorde Voldemort implicaria na família dele, na vida dele. E pensava se o que o bicho-papão mostrara a ele, no ano anterior, tardaria a se tornar realidade…
— O talento de Lorde Voldemort para disseminar a desarmonia e a inimizade é muito grande — ia dizendo Dumbledore. — Só podemos combatê-lo mostrando uma ligação igualmente forte de amizade e confiança.
Draco olhou para os colegas ao seu redor, vestidos de verde e prata. Quantos dali eram realmente seus amigos e quantos tinham se aproximado dele pelo peso do sobrenome e das ideologias dos Malfoy?
— Lembrem-se de Cedrico Diggory. — completou o diretor. — Lembrem-se, se chegar a hora de terem de escolher entre o que é certo e o que é fácil, lembrem-se do que aconteceu com um rapaz que era bom, generoso e corajoso, porque ele cruzou o caminho de Lorde Voldemort. Lembrem-se de Cedrico Diggory.

No segundo seguinte, sob meus olhos havia uma sala ampla de uma mansão. Draco, com as feições já muito parecidas com as que eu conhecera no início do ano, passou pelo pórtico, arrancando um distintivo de sua capa e parecendo tremendamente infeliz. Uma mulher loira, alta e magra, caminhou até ele e apoiou a mão fina e cheia de anéis em seu ombro.
O toque desencadeou uma emoção forte em Malfoy: ele a abraçou, deixando o pranto que estivera contido consumir seu corpo.
— Calma, filho, vai ficar tudo bem. — ela disse, mas sem transmitir muita segurança: lágrimas silenciosas escorriam por seu próprio rosto. — Seu pai vai sair de lá em algum momento…
— Mas o que isso vai significar para nós? — ele questionou, com a voz distorcida pelo medo.
Narcisa Malfoy apertou os lábios, como se estivesse pensando na melhor maneira de contar algo bem desagradável, mas foi interrompida quando uma mulher muito parecida com ela, mas de cabelos e pele mais escuros, veio descendo as escadas com os dentes arreganhados num sorriso.
— Mas veja se não é meu sobrinho favorito! — falou ela.
— Tia Bella. — ele cumprimentou, limpando o rosto. — Por que está aqui?
A morena se virou para a irmã.
— Você ainda não contou a ele? Ainda não contou a honra que o Lorde das Trevas nos deu?
E Draco se deu conta de que seu pior medo estava prestes a se realizar.


Agora, as imagens iam mudando cada vez mais rápido, transformando-se em meros flashes. Ficava difícil de acompanhar… e a dor que eu sentia só piorava…

Uma cabine de trem sendo bruscamente aberta e revelando uma menina deitada no banco, com sua cinta-liga aparente por baixo da saia. Batom vermelho. Um biquíni preto molhado, saindo do Lago Negro. Uma risada na sala de Defesa. Pontas dos dedos se tocando ao pegarem uma caneta esferográfica. Jorros de luz coloridos sendo lançados um contra o outro, um beijo no meio de uma loja de doces. Olhares furtivos sobre livros e pedaços de pergaminho na biblioteca. Dança e mais beijos na sala comunal da Sonserina… Vento chicoteando cabelos escuros e longos no campo de quadribol, sob a luz dourada do poente. Uma boca emoldurada por batom vermelho, cantando, e tecido dourado farfalhando sob as mãos dele… Lágrimas quentes escorrendo em meio a sangue, no chão inundado de um banheiro. Uma cama de lençóis de seda verde, toques intensos e, por fim, um “eu te amo” sussurrado… E, por fim, meus olhos , iluminados pela chama da vela do bolinho de aniversário que eu lhe dera naquela manhã.

Era eu. Era apenas eu, da forma que Draco me via… Com carinho, admiração, desejo… e amor.
Ainda sem conseguir enxergar nada, senti minha mão bater na porta do armário que Malfoy lutara tanto para conseguir consertar. Se ele conseguira colocar tanta gente no castelo naquela noite usando aquilo, talvez eu conseguisse usá-lo para sair…
Entrei no móvel, cujas portas se fecharam e me trancaram em seu interior. A dor cessou por um fugaz segundo, mas antes que eu pudesse ter qualquer reação, ela retornou de súbito, mais intensa que nunca, me fazendo arquear o corpo para trás e gritar, gritar e gritar até sentir a garganta arder terrivelmente. Um afluxo de lembranças me inundou de novo, mas agora não eram mais de Draco; eram minhas.

Já tinha tanto tempo que eu vira aquele tom de azul marinho nos cabelos de alguém que parecia ter sido em outra vida.
— Olá, srta. . Eu sou Clarissa Manteuff e vim lhe dar as instruções finais para sua missão.
A lembrança ficou muda por alguns instantes, mas logo voltei a ouvir o que a representante do Ministério britânico dizia, focando em seus lábios que se mexiam para não perder nenhum detalhe.
— Este diamante é muito... temperamental. — ela disse. — Rowena se recusou a incluí-lo no diadema por medo que ele fizesse as emoções atrapalharem sua inteligência. Então, você deve tocar a pele marcada do alvo com ele, mas é necessário que haja uma emoção no corpo dele pelo portador da pulseira para que a magia funcione.
— Eu entendi essa parte. — minha própria voz, parecendo distante e abafada. — Minha missão é seduzir o garoto para tirar a Marca Negra dele, afinal.
Sua expressão dizia que ela queria falar algo mais, porém desistiu. A versão de mim que assistia aquelas lembranças passivamente quis gritar: “o que você precisava me contar? O que não me contou? E por que não me contou?”

A imagem rodopiou e deu lugar a uma tão recente quanto a outra era antiga.
A sala de Poções naquela mesma manhã, apesar de parecer que tinham se passado séculos desde aquele momento, estava enevoada na minha lembrança.
— Acho que já perdeu o efeito. — minha figura dentro da memória resmungou. — Não estou sentindo mais cheiro de nada…
Mas ali, revendo em detalhes e por outro ângulo, eu finalmente entendi. A fumaça da poção soprava diretamente sobre meu rosto, a favor do vento, mas junto com os odores da Amortentia, veio outra coisa. Veio o cheiro que eu sentira quase diariamente desde que chegara em Hogwarts, um cheiro que remetia a provocações diárias e beijos escusos, cabelos platinados e olhos que pareciam prata derretida…
Eu sentira, sim, cheiro de algo na Amortentia. Eu sentira o cheiro de Draco Malfoy.
As peças foram se encaixando como um intrincado desenho em minha mente… Mas não… não podia ser…

A dor passou de uma só vez, me deixando ofegante, suada e exausta no fundo do armário fechado. Minha perna fraca tombou para um lado, abrindo uma fresta da porta e me permitindo enxergar um ambiente que eu nunca tinha visto antes: eu estava fora de Hogwarts.
Uma réstia de luz entrou e incidiu diretamente sobre meu antebraço.
O grito ficou preso em minha garganta, porque já perdera minha voz de tanto berrar em sofrimento nos últimos segundos, minutos, horas. O desespero quase me sufocou quando olhei para meu braço; tive que reunir todas as minhas forças para desaparatar para algum lugar de Londres onde estivesse segura…
Porque eu tinha dado sangue, suor, lágrimas e amor, e tinha dançado com o demônio para cumprir minha missão, mas ali, no meu braço, queimada a fogo e terrivelmente maligna, estava a Marca Negra.





Fim.



Nota da autora: GENTE EU TÔ TODA ME TREMENDO AQUI! É a primeira vez que termino uma fanfic!
Quando tive a primeira ideia para Dancing with the devil, em 2017, eu era uma mera leitora de fanfics e escrevia algumas histórias originais em outros sites. Fantasiava com a trama da fic, mas tinha muita dificuldade para sentar e pôr em palavras tudo que eu queria descrever, de uma forma que se assemelhasse à escrita da própria J. K. Rowling, mas que tivesse o toque do meu próprio estilo. Queria que absolutamente tudo estivesse conforme o canon — exceto, é claro, pela presença ilustre de uma agente secreta brasileira, poderosa e incrível que é a .
Há três anos, eu via o Draco simplesmente como um personagem bad boy que me atraía (obrigada por isso, Tom Felton), mas hoje eu enxergo ele como uma pessoa estranhamente parecida comigo. Obviamente não na questão do preconceito e de ser um babaca total, mas sim na questão de proteger quem ama e levar muito a sério o que a família diz. E o que mais me toca sobre ele é que Draco Malfoy é um garoto que precisava de ajuda, e entender isso sobre ele me fez buscar a ajuda que eu precisava para lidar comigo mesma.
Hoje, quando finalizo essa história, em 2020, já estou dentro da faculdade, livre dos estresses e cobranças do vestibular, em meio a uma pandemia que confinou o planeta dentro de casa. Ao mesmo tempo, é como se a minha imaginação tivesse saído de um confinamento, e escrever DWTD se tornou o ponto alto dos meus dias. Voltei ao FFOBS para ler fanfics que eu tinha lido com treze anos, e decidi retomar a minha, que já fora até retirada do site. E foi a melhor decisão que eu já fiz.
Nem sei se ainda tem alguém lendo essa última nota/agradecimento enorme, mas se você chegou até aqui, muito obrigada! Foi por mim e por você (e pela Naty, minha beta maravilhosa que sempre me apoiou em cada etapa do caminho) que eu cheguei até aqui, e isso me traz uma felicidade indescritível.
Mas é ÓBVIO que eu não poderia deixar vocês com esse final totalmente desesperador que, ao mesmo tempo que uniu pontas soltas que aparentemente não tinham relação umas com as outras, também criou mil outros questionamentos e possibilidades, então estou muito feliz de poder anunciar que Dancing with the devil II já está disponível aqui no FFOBS! Espero que vocês embarquem nessa nova aventura com tanto entusiasmo como eu, para vermos o desenrolar da história do Draco e da .
Beijos com sapos de chocolate,
Bela.




Nota da beta: Gente, eu tô tremendo também, que final foi esse? Finalmente conseguimos compreender a missão dela e o quão perigosa era, ela tirou a marca dele e passou para ela, meu Deus... Mas creio que tenha acontecido isso por ela também ter se apaixonado por ele, será? Já estou criando mil teorias aqui hhaha!
Lendo sua notinha pude perceber que nunca tinha visto o Draco com esses olhos, e sim, você tem toda a razão, era um personagem que clamava por ajuda o tempo todo, apesar de tentar esconder seus sentimentos.
Estou muitíssimo feliz de ter embarcado com esse projeto do começo ao fim, apesar dos percalços que você teve, e quero que saiba que estarei loucamente acompanhando essa parte II que será um arraso! Meus parabéns por sua primeira fanfic finalizada! É a primeira de muitas, tenho certeza! <3

Lembrando que qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.


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