- Capítulo 14 -
Wakanda
Bucky não tinha nenhuma lembrança sobre alguma vez em sua vida que se sentiu genuinamente preocupado com alguém. Ao menos não tão preocupado como estava com naquele momento. Sua mente estava um completo caos e ele não conseguia organizar dentro de si o que estava sentindo. Fosse pelo simples fato de ter voltado para o lugar que teve os piores momentos de sua vida ou por ter protagonizado ali mais um episódio de desespero e de violência, ele estava completamente exausto e tinha consciência disso. Por mais que se envergonhasse dele, a falta de seu braço de metal já começava a causar estranhamento, os grandes cortes no rosto e nas mãos latejavam e ele tinha certeza de que tinha outros machucados debaixo de sua roupa, a tirar pelas dores nas pernas e na costela. Ele só queria tomar um banho quente e poder dormir com a segurança de que nada parecido com aquilo iria acontecer de novo. Nunca mais. Mas dormir nunca foi uma tarefa fácil para Bucky e aquele pesadelo parecia longe de acabar.
Steve entrou na aeronave, em que T’Challa estava, carregando em seus braços. Ele estava com o rosto desconfigurado, sua boca jorrava sangue e ele tinha um roxo grande nos olhos. Suas mãos estavam em carne viva e seus joelhos estavam aparentes pelo traje que vestia. Assim como Bucky, ele também estava cansado e estava mentalmente fragilizado, era possível ver nos olhos perdidos e tristes dele. Muita coisa tinha acontecido, era difícil e doloroso demais refletir sobre aquilo tudo. Steve tinha deixado seu escudo para trás e só se lembrava de ter passado por algo como aquilo anos antes, quando o próprio Bucky foi quem lhe deu a surra, em Washington. “Você tinha que ver o que ele fez com Steve”, a voz de Sam para , dias antes, em seu apartamento, ecoava na mente de Bucky enquanto ele olhava Steve a colocar, com delicadeza, sentada em uma das poltronas do avião.
soltou seus braços do pescoço de Steve e olhou T’Challa, poucos passos de distância dela, que se agachava mais perto. Nada foi feito e nada precisou ser dito. Só bastou colocar os olhos nele para começar a chorar. Como se tivesse em um lugar seguro, como se nada que eles passaram até chegar ali tivesse mais importância, ela chorou. De exaustão, de desespero, de arrependimento e de culpa. Bucky sentiu suas pernas fraquejarem e seu coração quebrar, vendo cada lágrima de escorrer pelo rosto machucado. A força cedendo lugar a uma tristeza que Bucky queria poder tirar dela, rápido e a qualquer custo. T’Challa a abraçou com segurança, falando baixinho que tudo estava bem, enquanto sussurrava, entre um soluço e outro, pedidos de desculpas incansáveis. Steve ficou ao lado dela, igualmente agachado, e, sem saber direito o que deveria fazer, segurou sua mão. Ele parecia tão preocupado com ela quanto T’Challa, que sequer tinha noção do que aconteceu dentro da base. Aparentemente os três estavam tão emocionalmente machucados quanto fisicamente.
Por um momento, Bucky desejou estar no lugar de T’Challa e poder abraçar . Queria desculpar-se por tê-la envolvido naquela situação e garantir que tudo ficaria bem. Mas ele jamais poderia fazer isso. Não tinha intimidade nenhuma com ela e como poderia garantir que ela ficaria bem? Talvez nada, nunca, fosse ficar bem enquanto ele estivesse por perto. se acalmou pouco tempo depois, com T’Challa pedindo sinceras desculpas por ter usado o soro nela e se culpando pela situação em que se encontrava. Ela certamente não estaria tão machucada se tivesse tido a chance de usar a fitocinese para se proteger. Mas era justa demais para aceitar desculpas por algo que T’Challa não tinha responsabilidade. Ele havia errado, ela sabia disso, mas não o fez esperando que se machucasse. Fez esperando que ele pudesse fazer justiça à morte de seu pai. No final das contas, naquele dia, diante daquela situação, todos eles sabiam que tinham uma parcela de culpa em tudo e todos eles sabiam que precisavam se perdoar. Uns aos outros e a si mesmos.
Na ausência de equipamentos médicos adequados para ajudar a chegar em segurança até Wakanda, e não piorar sua situação, Steve fez um curativo na nuca dela enquanto T’Challa fazia outro em sua coxa, tentando impedir que ela perdesse muito sangue ao longo do caminho. estava extremamente desconfortável na poltrona, não conseguia manter-se sentada sozinha por muito tempo, sem deixar seu corpo pender para algum lado, e tremia de frio. Steve, então, achou mais seguro que ela seguisse sentada no chão, sendo escorada e aquecida por alguém. Ela não podia ser deitada, pois certamente desmaiaria rápido e, nesse caso, eles não teriam como saber se ela estava bem o suficiente para chegar até Wakanda. Não poderiam fazer um pouso de emergência, para não colocar Bucky em risco de ser preso e a viagem demoraria algumas horas, mesmo indo o mais rápido possível. Ela teria que aguentar acordada o máximo que conseguisse. não se opôs e Bucky se candidatou para seguir com ela, tendo em vista que T'Challa precisava pilotar a aeronave e Steve era, deles três, o que mais estava em condições de agir caso algo acontecesse, sobretudo em relação a Zemo, que foi preso por T’Challa e seguia com eles em um outro compartimento do avião.
foi o caminho todo, até chegar em Wakanda, encostada em Bucky. Eles estavam sentados no chão, no meio do avião. Bucky estava encostado no apoio de pernas de uma das poltronas e sentada no meio das pernas dele, de costas para Bucky, como se tivesse sido encaixada nele. De onde estavam, podiam ver Steve e T’Challa à frente, de olho no caminho que seguiam e conversando baixo sobre o que tinha acontecido e o que viria a seguir. T’Challa se desculpou com Steve por não os ter ouvido e por ter se oposto a eles desde o começo, se desculpou por estar errado em relação à Bucky e lamentou, uma vez mais, ter feito o que fez com . A sorte era que Steve era um homem bom e muito justo. Ele ouviu com atenção e achou generosa a oferta dele de os acolher em Wakanda, até que as coisas ficassem seguras outra vez ou, pelo menos, mais calmas.
Há pouco mais de duas horas de chegar em Wakanda, Bucky afastou lentamente o cabelo de , desfeito do rabo de cavalo, e passou a mão na nuca dela, por cima do tecido que Steve havia colocado ali, constatando que ainda estava sangrando. Por mais que o curativo estivesse a ajudando, ela ainda estava perdendo muito sangue, ele não sabia por quanto tempo ela aguentaria aquilo e não sabia quanto tempo demorariam para chegar. Bucky estava absurdamente preocupado com ela. Não tinha ideia do que esperar e sentia medo de algo pior acontecer com . Se perguntou porque a deixou defendê-lo e porque não era ele ali, ao invés dela. não merecia passar por aquilo. Ela era boa. Era boa para ele, até demais. Bucky suspirou pesadamente a vendo escorregar um pouco e a puxou para cima pela cintura, a aconchegando mais perto de si, com cuidado para não a machucar ainda mais. arfou de dor ao ser mexida, seu corpo fraco doendo ainda mais do que antes, por estar cada vez mais relaxada.
— Me desculpa, eu não…eu não quero te machucar — Bucky sussurrou, ajeitando em seu peito.
— Não está machucando, Bucky, está tudo bem — respondeu baixo, o acalmando. Aquela já era a milésima vez que ele pedia desculpas — Eu só queria deitar.
— Eu sei, mas você precisa se manter sentada — Ele respondeu delicado.
— Eu estou muito cansada — comentou em um sussurro baixo. Seu corpo parecia não responder mais aos seus comandos e ela já se perguntava se sobreviveria àquilo.
— Precisamos aguentar só mais um pouco — Bucky desviou seu olhar até Steve e T’Challa que os observavam conversando assim que ouviram os gemidos de dor de . Steve sorriu fraco para o amigo, enquanto T’Challa checava quanto tempo demorariam para chegar em Wakanda e, pela cara que fez, Bucky entendeu que ainda estavam relativamente longe.
— Minhas pernas estão formigando de ficar nessa posição — Ela resmungou outra vez, queria mesmo deitar. Bucky pensou por alguns instantes.
— Você consegue se mover? — Ele perguntou baixo a vendo assentir brevemente — Vire de lado, assim você dobra as pernas.
— Está bem — concordou apoiando suas mãos no chão, ao lado do seu corpo, e virando-se devagar, com dificuldade.
Bucky aproveitou para dobrar uma de suas pernas também, encostada no chão, e manteve a outra esticada, atrás do corpo de . A mulher ficou de lado para ele, perpendicularmente, mantendo a perna cuja coxa estava queimada esticada no chão enquanto dobrava a outra e apoiava seu queixo no joelho machucado. Como ainda estava no meio das pernas de Bucky, seus corpos se esbarravam e estavam tão próximos que podiam sentir a respiração um do outro.
— Como está se sentindo? — Bucky perguntou dando uma rápida e discreta olhada nela e em seu macacão completamente rasgado.
— Exausta e com muito frio — o olhou diretamente, reparando no quanto estavam próximos - Como se eu fosse dormir a qualquer momento. Não posso deitar mesmo?
— Se você deitar, vai acabar apagando e como eu vou saber que você está bem? — O jeito que ele respondeu foi tão sincero e tão suave que não conseguiu segurar o sorriso.
— Eu não vou morrer, Bucky, está tudo bem — Ela respondeu piscando pesadamente, sem tirar os olhos dele. Não tinha muita certeza se estava realmente tudo bem. Ele sorriu levemente.
— Mesmo assim, deitar não é uma boa opção — Ele insistiu carinhosamente e desviou o olhar para um canto qualquer longe dos olhos intensos de — Mas você pode encostar em mim...se quiser — Ele sugeriu baixo, ligeiramente envergonhado e afastou seu braço para o lado, dando espaço. sorriu de lado, sem muita força e, sem dizer nada, encostou a lateral de seu rosto no peito dele. Uma vez mais naquele dia, Bucky a puxou para mais perto de si, com cuidado, aninhando-a.
— Obrigada — Ela sussurrou fechando os olhos.
— Sem problemas — Bucky respondeu tão baixo quanto ela, descendo seu olhar até e constatando que estavam mais próximos do que antes, os lábios dele quase encostando na testa dela.
parecia confortável naquela posição e estava escolhida, tentando afastar o frio imenso que sentia. Bucky tirou alguns fios de cabelo que caíram sobre o rosto dela, deixou seu braço abraçá-la pela cintura e voltou a encostar sua cabeça na poltrona atrás de si. Quando foi a última vez que esteve tão próximo a alguém assim? E quando foi a última vez que sentiu que gostava daquilo? E que queria que acontecesse mais e mais vezes? Talvez ele estivesse confuso pelo caos que estava em sua mente. Talvez ele quisesse mesmo que aquele toque, aquela proximidade, fosse recorrente. Bucky suspirou.
— Continue conversando comigo, não dorme.
— Tudo bem — sussurrou de volta e abriu os olhos, tentando se manter firme — Como está seu braço?
Sem se mover, Bucky deu uma rápida olhada para onde seu braço de metal deveria estar. Parecia que olhar o fazia sentir ainda mais dor, era estranho. Tinha a sensação de que ainda tinha o membro ali, mas, na verdade, não havia mais nada para além de seu ombro. A exata mesma sensação que passou meses tendo depois que a Hydra tirou seu braço humano, quando o sequestraram. Pensar naquilo o trazia muito desespero, frustração e dor, o lembrava do que tinha feito, de quem ele era, por isso, estava evitando a todo custo sequer olhar para onde seu braço esquerdo deveria estar. Bucky teria que se preocupar com uma prótese nova em breve e não fazia ideia de onde conseguiria uma. , por outro lado, tinha certeza de que Shuri faria uma prótese nova para ele, ainda melhor e mais resistente do que a antiga. E o melhor: ela não demoraria mais do que alguns dias para isso. , sinceramente, não sabia de onde vinha tanto QI, mas Shuri era, sem dúvidas, um gênio.
— Doendo — Bucky resumiu em dizer, não queria preocupá-la ainda mais. Ela assentiu brevemente.
— Em uma escala de zero a dez...? — perguntou novamente. Bucky sorriu fraco.
— Vou dizer...quatro — Respondeu ele pensativo, quando na verdade queria dizer doze. Ou cem.
— Você está mentindo — Ela o repreendeu, imaginando que ele estava se segurando.
— Como sabe disso? — Ele sorriu levemente de lado. Sua cabeça ainda encostada na poltrona atrás de si.
— Eu sei tudo sobre você, James — respondeu lentamente, o primeiro nome dele saindo de seus lábios como uma flecha, o arrepiando.
— Devo me preocupar com isso? — Perguntou ele de volta, entrando na sutil brincadeira dela.
— Depende. Posso vender informações suas para o chefe da CIA — Ela falou calmamente.
— Ele não é seu pai? — Bucky sorriu mais abertamente ouvindo rir fraco e baixo, seu corpo doendo como nunca antes.
— Droga! Você é muito atento aos detalhes — Ela brincou de volta, tentando parecer bem.
— Só aos que me importam — Bucky deu uma rápida olhada nela, mas logo desviou novamente o olhar — Steve me falou sobre ele, no seu apartamento — Bucky assumiu, relembrando a longa conversa que teve com Steve no apartamento de , em Berlim.
— É justo — Ela comentou sorrindo, olhando para as próprias mãos cheias de machucados.
— Justo seria eu saber tudo sobre você, já que você sabe tudo sobre mim, — Bucky disse no mesmo que ela usou há pouco, igualmente arrepiando pelo som que seu nome tinha na voz dele. De costas para eles, Steve sorriu sozinho. Aquilo era certamente algo que o antigo Bucky diria.
— Você está prestes a descobrir — disse mais sincera do que gostaria, seu olhar recaindo sob a um dos bagageiros de chão, onde a caixa, cuja tampa tinha seu sobrenome, estava.
T’Challa a havia tirado da base da Hydra assim que foi atrás de Zemo. não sabia como iria contar para Bucky, não queria que ele entendesse errado e nem que a odiasse pelo o que seus pais biológicos haviam feito. Não queria que ele sofresse ainda mais e nem que se machucasse com aquilo, mas tinha que saber da verdade. Ainda mais quando ela dizia respeito à vida dele também.
— Só não sei se vai gostar muito do que tenho a oferecer — Ela completou triste, subindo seu olhar tímido até Bucky que, ao mesmo tempo, descia seu olhar até ela. Daquele ângulo e mesmo todo machucado, Bucky ainda era lindo e parecia um sonho. piscou lentamente algumas vezes, era possível estar delirando?
— Não pode ser pior do que eu — Bucky respondeu igualmente triste, engolindo seco.
ficou pensativa por alguns minutos, uma vontade enorme de o abraçar tomando conta de si. Ela deixou seus braços caírem, um em cada lado da cintura de Bucky, mas conteve-se. Não sabia como ele reagiria. Notando a discreta movimentação, Bucky sentiu seu coração acelerar e torceu mentalmente para o abraçar. Mas não aconteceu.
— Você é uma boa pessoa, Bucky, uma das melhores que já conheci — disse baixo, piscando lentamente, seu corpo latejava de dor — Não é aquilo que fizeram de você e só precisa se dar uma chance de começar de novo. E vou estar aqui para te ajudar com isso…. a não ser que você não me queira por perto.
— E porque eu iria te querer longe? — Extasiado pela declaração de , a voz dele saiu quase como um sussurro e carregada de uma sinceridade que fez o coração de saltar.
Ela não respondeu nada, apenas sorriu sozinha e triste, com medo daquilo não ser mais verdade quando Bucky descobrisse o passado dela. Eles ficaram em silêncio por alguns minutos até o corpo de começar a escorregar para longe dele e Bucky a trazer de volta ao lugar, recostada em seu peito. Ela já estava perdendo o sentido e estava lutando para se manter acordada quando um pensamento tomou conta de Bucky. Não tinha tido a oportunidade de agradecer a por tudo que ela havia feito e ela não o tinha ouvido no caminho ao aeroporto, quando encontraram Sharon. Bucky sentiu um medo terrível de não ter tempo nem oportunidade mais para dizer e precisava que ela soubesse, ainda mais depois do que ela tinha acabado de dizer. Aquilo estava preso nele desde o primeiro dia e ele ainda não tinha encontrado uma forma de dizer sem parecer invasivo ou estranho, mas aquela era a oportunidade perfeita. Bucky não era bom com palavras e ele sabia disso. Por tantos anos foi censurado, silenciado, e agora que podia falar novamente, não sabia como.
— ? — Ele a chamou baixo, ouvindo-a murmurar um "hum?" — Obrigado.
— Pelo o quê? — Ela perguntou de volta, se sentindo zonza.
— Por tudo que fez por mim até agora — Ele respondeu, sem desviar seu olhar de um lugar qualquer à sua frente — Eu não sei o que teria acontecido se você não... Se não fosse você. Em Bucareste, Berlim, na Sibéria... Aqui — A voz dele abaixou ainda mais, envergonhado e sem jeito — Eu não sei como retribuir. Eu não sei onde estaria e nem o que teriam feito comigo se você não tivesse passado todos esses anos atrás de... Atrás de mim.
Steve e T’Challa, prestando atenção ao painel de controle, sorriram um para o outro. Estavam felizes pela conversa dos dois. Steve achava que Bucky merecia ter momentos de sinceridade e de abertura como aquele, ele merecia alguém como . E T’Challa sabia por tudo que ela tinha passado até encontrar ele e agora estavam ali, sendo gratos. respirou fundo e pensou por um instante. Não sabia se Bucky deveria a agradecer ou não, não antes de saber o que ela tinha para lhe contar. Aquilo tudo não foi mais do que obrigação de . Era uma forma de reparação, sem nenhum dos dois sequer saber disso. Será que ele ainda a agradeceria depois de saber que desgraçou sua vida voluntariamente para salvar a dela?
— Você já está retribuindo, Bucky, está aqui comigo agora, não me deixando morrer… De novo — respondeu baixo, passando a parte de trás de uma das mãos na cintura, tirando o sangue dali, com cuidado. Bucky não entendeu a referência à outra vez em que não a deixou morrer, mas antes que pudesse dizer algo, completou: — E você não deveria. Não deveria mais fazer isso por mim.
— O que você quer dizer? — Ele perguntou confuso, seu braço ainda passado na cintura dela, a segurando, o corpo de aquecendo o dele. Ela olhou a caixa outra vez e suspirou.
— Você precisa ver o que tem lá dentro antes de qualquer coisa, eu quero que você veja — Ela pediu cansada, sua voz trêmula pelo medo de conversar com ele sobre aquilo. Bucky acompanhou o olhar dela até o objeto.
Ele imaginava, e esperava, que aquele tema fosse vir à tona. Ele tinha ouvido, em alto e bom som, o que havia dito à Stark e, embora não soubesse aquela história com detalhes e nem se lembrasse de nada sobre ela, ele havia entendido bem seu teor. A mãe de , aparentemente, tinha contribuído para que ele se tornasse o que era hoje. Ela o havia torturado, havia tirado dele a humanidade e toda e qualquer memória que poderia ter. Aquilo doía nele, não podia mentir. Mas a mãe de não era a . E talvez tenha compensado tudo o que fez quando deu vida a um ser humano bem diferente dela. Talvez tenha vivido todos esses anos para reparar os erros de sua mãe com ele. E ela estava fazendo isso da melhor maneira possível, embora naquele momento, diante daquele cenário, ela não entendesse. Bucky tinha consciência de que toda a sua história o havia ensinado coisas valiosas e uma delas, sem dúvidas, era não julgar as pessoas sem saber antes quais escolhas elas tiveram e o que as levou a agir daquela forma. não o julgou. Não apontou dedos e nem desconfiou dele um só segundo desde que se conheceram. Por que Bucky faria isso com ela?
— O que tem lá dentro é seu, , eu não posso... — Ele disse baixo, sua voz séria, mas ela logo o cortou.
— É seu também — Ela assumiu cansada, seus olhos fechando pesadamente — E, talvez, depois disso, você entenda que não deveria mais fazer isso por mim.
— Talvez eu não devesse, mas eu...quero — Ele apoiou timidamente o queixo na cabeça dela, fazendo-a fechar os olhos com o carinho — Eu estou exatamente onde eu quero estar agora, . Exatamente.
Steve veio amparando Bucky, poucos passos atrás de T'Challa, que carregava desacordada em seus braços, como nunca antes precisou fazer. Pouco menos de uma hora antes de chegarem em Wakanda, ela apagou completamente. já tinha passado por muitas situações limite em sua vida. De treinamentos em que acharam que ela não iria aguentar até tentativas de assassinato, quando ela esteve atrás de membros da Hydra. Mas ela sempre chegava a Wakanda sozinha, às vezes se arrastando, mas sempre sozinha. Sempre entrava pelas portas do palácio, aguentando firme todas as dores, mas ela sempre sobrevivia, sempre se levantava e seguia em frente. Toda aquela situação era inédita para T’Challa e para todos que os receberam.
Do avião, T'Challa havia pedido apoio médico na pista de pouso para assim que chegassem e Okoye já estava avisada de que algo tinha acontecido, mas ela nunca imaginaria que era com , sua melhor aprendiz. O céu estava bonito naquele dia e o ar ameno quando a rampa do jato desceu e, com ela, os quatro apareceram. T'Challa se apressou em descer com em seus braços e, como sempre em que ela chegava ali, assim que ele pisou no chão de concreto, centenas de milhares de flores, de diferentes cores, brotaram do chão. Contudo, diferente das outras vezes, as flores eram de dezenas de espécies diferentes e não se ativeram em circundar : tomaram quilômetros do chão ao redor deles em um único instante.
Steve olhou aquilo atônito, impressionado com a beleza do ambiente que se transformava como mágica, enquanto Bucky sorria, se lembrando de dizer a eles, no apartamento dela dias atrás, que tinham que ver como era quando ela chegava em Wakanda. Para Bucky aquela cena era a coisa mais linda que já tinha visto em toda sua vida. Linda como .
T'Challa a colocou em uma maca rapidamente e foi levada por alguns médicos, para dentro do palácio, onde seria tratada. Outros médicos vieram buscar Bucky e Steve, enquanto algumas das seguranças oficiais do governo retiravam Zemo do jato e o conduziram para outro lugar. T'Challa pediu para que tirassem a caixa de de lá e a deixassem no quarto de Bucky, como ela havia pedido na conversa com ele no avião, em sigilo total.
ficou quase dois dias desacordada, sendo tratada e monitorada por Shuri. Embora não fosse médica, Shuri tinha conhecimentos o suficiente sobre e, especialmente, sobre a fitocinese e, junto com um time de pessoas da saúde, conseguia sempre tratar dela da melhor maneira possível. As médicas fizeram seu trabalho em não deixar a situação de piorar. Removeram o macacão dela sem que tivesse maiores danos, fizeram as cirurgias necessárias em sua perna e na nuca, e toda a bateria de exames necessários para saber se ela tinha alguma hemorragia ou dano interno. Fisicamente, e pelos resultados que obtiveram, não tinha nada a não ser dezenas de machucados, roxos, cortes e queimaduras que, graças ao macacão de vibranium, a tinham protegido de estar em uma situação muito pior.
Mas Shuri não se contentou com isso e, como o traje de estava totalmente inutilizável, já pensava em como faria um novo, ainda mais resistente e poderoso. Shuri acompanhou todas as cirurgias e monitorou nas primeiras horas até ter a brilhante ideia de testar uma sorologia nova nela, que estava trabalhando há algum tempo. Anos atrás, tinha feito uma pomada com extratos de plantas calmantes e cicatrizantes e descobriu que seu corpo potencializa os efeitos das plantas. Então, tendo em vista que estava sempre machucada pelos treinamentos ou missões, Shuri se perguntou: por que não colocar aquilo dentro de ? Se a fitocinese já estava acontecendo no sangue dela, um pouco a mais, um pouco a menos, não faria diferença, mas poderia potencializar e acelerar ainda mais o processo de cura. Certamente a mataria quando soubesse que, mais uma vez, serviu de experimento para Shuri, mas se aquilo funcionasse, talvez ela não ficasse tão brava. E foi o que Shuri fez.
não sabia quanto tempo tinha dormido, mas ainda se sentia exausta. Como se tivesse sido atropelada por um caminhão, cada pedacinho do seu corpo estava cansado, fraco e dolorido. Ela tentou abrir os olhos rapidamente, mas logo os fechou se sentindo incomodada pela luz. Talvez não estivesse pronta para acordar, dormir mais um tempo não faria mal. Mas alguma coisa nela estava a deixando inquieta e sabia bem de onde vinha aquela sensação. Era como se tivesse renascido, como se sua vida fosse dada de volta a ela depois de algumas semanas tão complicadas e vazias. O vazio que a natureza havia deixado em agora a estava preenchendo de novo, agitada, inquieta. Seus poderes tinham voltado.
— Bom dia, raio de sol — ouviu alguém dizer no fundo de sua mente, enquanto tentava abrir os olhos com calma, esperando sua visão turva desembaçar.
Ela piscou algumas vezes, sentindo a luz incomodar um pouco menos e respirou fundo. Tudo ao seu redor parecia tecnológico demais, claro demais e com cheiro de hospital demais. O ambiente estava calmo, com uma temperatura amena e embalado por um hip hop baixo, que sabia a letra de cor. Ela sabia exatamente onde estava.
— Que tipo de coisa você colocou dentro de mim dessa vez? — falou pausadamente, olhando ao seu redor em busca de Shuri, enquanto tentava se sentar na maca.
— Como você descobriu? Está sentindo algo? Achei que fosse demorar mais dessa vez — Shuri falou ligeiramente estridente, se aproximando dela, acionando a maca para que inclinasse.
— Toda vez que acordo aqui é porque você fez alguma coisa comigo — Explicou olhando-a.
— E sempre dá certo, não dá? Então, me agradeça e não reclame — Shuri arqueou as sobrancelhas enquanto cruzava os braços.
— Estou achando que você quer me matar — brincou, sua expressão séria e os olhos arregalados.
— Se você morrer, eu fico com as suas roupas, então parece uma boa ideia às vezes — Shuri voltou a dizer, sentando na beira da maca. riu baixo.
— Nesse caso, a única pessoa que corre risco de vida aqui é você — Ela respondeu baixo e limpou a garganta. Estava com sede.
— Que bom te ter aqui de novo, maninha — Shuri riu, pegando um copo com água que tinha deixado perto da maca e o estendendo para , que revirava os olhos.
— Senti sua falta, Shushu. Berlim, ou qualquer lugar, é uma merda sem você - falou sincera, enquanto bebia a água com calma e via a careta se Shuri para o apelido que ela odiava.
— Sentimental agora? Levar uma surra deve ter feito muito mal para sua cabeça — Shuri rebateu sorridente, fazendo a olhar falsamente indignada por aquele comentário.
— EI! Eu não levei uma surra, me respeite. E eu estou falando sério — Ela exclamou observando a amiga aproximar-se ainda mais e, inesperadamente, a abraçar apertado.
— Eu sei, fada! Você fez falta por aqui também. Para todos nós, acredite — Shuri falou baixo, se afastando de que retribuía ao abraço — Foram tempos complicados.
— Eu imagino, sinto muito ter sumido e não estar por perto quando seu pai… — abaixou seu olhar por um instante. Mais uma vez sentia-se mal por tudo ter corrido daquela forma.
— O homem que fez isso pagará pelos seus atos, você não teve culpa — A outra mulher respondeu triste, tentando passar confiança para , que apenas assentiu com a cabeça.
— O que T’Challa fez com ele? — perguntou curiosa, sua testa franzida.
— O deixou com Okoye — Shuri respondeu sugestiva fazendo gargalhar. Aquele era, sem dúvidas, o pior castigo que alguém poderia ter na vida. Okoye era a chefe de segurança de Wakanda, era durona e muito muito bruta quando e com quem queria ser. Enquanto estivesse com ela, Zemo pagaria cada segundo de sua vida pelo o que tinha feito.
E como se ela tivesse ouvido a conversa, Okoye apareceu no batente da porta do laboratório de Shuri, descendo a rampa até o andar de baixo como um furacão, seu olhar de preocupação dando lugar para um alívio silencioso. Ela não gostava de mostrar muito seus sentimentos mas, às vezes, deixava transparecer com os olhos.
— Pelo amor de Bast, , no que você se meteu? Quantas vezes eu já não disse para ficar longe da Hydra? Quem mandou você sumir por tantos meses? Quem você acha que é para fazer isso? E porque trouxe dois homens de cem anos para eu cuidar?
achou melhor não responder nada, a não ser que quisessem ouvir o longo discurso de Okoye sobre como ela tinha que ser mais cuidadosa, grata e cabeça aberta com Wakanda, o país que a acolheu. Ao invés disso, ela apenas sorriu feliz e abriu seus braços, sentada na cama. Okoye fez uma careta e foi até ela, fingindo estar contrariada, e a abraçou com força. A sua menina estava ali, de volta, viva. Okoye ajudou o rei e a rainha a criar . Na ausência de Karl e Everett, ela foi designada a protegê-la quando pequena e, com idade suficiente para entender o que acontecia, Okoye foi quem a treinou. Todos os dias, seis horas seguidas, por oito anos. Por mais que fosse casca grossa para muita coisa, Okoye não era para . Aquela era a sua menina. Shuri aproveitou a deixa para desligar alguns dos aparelhos que estavam ligados à .
— Você ainda vai me matar de preocupação, — Okoye resmungou, se afastando dela — E seus pais também. Eles devem estar chegando.
— Não avisaram eles quando receberam o aviso de T’Challa que estaríamos de volta? — perguntou curiosa, estranhando aquilo.
— Você já imaginou a reação de Karl quando te visse do jeito que você chegou aqui? — Shuri respondeu, tirando dela alguns fios ligados em aparelhos de monitoramento.
— Tudo bem, vocês têm razão — riu sem graça. Karl iria morrer em vê-la daquele jeito. Qualquer arranhão ou roxo já eram dignos de um drama sem fim. Imagina só o que seria se a visse nas condições em que chegou em Wakanda. E pensando nelas… — Eu vou ficar bem, não vou? — perguntou de repente, sua voz meio preocupada.
— Já está bem, dê uma olhada em si mesma — Shuri a convidou, tirando de cima dela o lençol que a cobria.
se levantou com calma, temendo não ter forças para parar em pé, mas logo percebeu que estava...normal. Ela vestia um short curto e um top brancos, pareciam roupas esportivas, de tecido leve, maleável e grudado no corpo. Todo seu corpo estava limpo, alguém deveria ter dado banho nela, e no lugar onde deveria haver pontos não havia nada além de cicatrizes já fechadas. Alguns roxos estavam espalhados por suas pernas e braços e podia sentir que tinha cortes no rosto. Mas, não deveria estar daquele jeito, eles ainda deveriam estar abertos, doloridos e, eventualmente, sangrando em função do movimento. Stark tinha queimado sua coxa inteira e aquilo provavelmente levaria meses para curar. Mas lá estava sua coxa, com uma grande mancha vermelha e roxa, que provavelmente não sairia nunca, mas fechada. Diante daquilo pensou que só havia duas opções possíveis: ou Shuri fez um milagre ou ela estava há mais tempo do que achou que estaria desacordada.
— Há quantos anos eu estou desacordada? — perguntou meio incrédula, fazendo um cálculo mental, desacreditava que Shuri poderia ter feito um milagre.
— Você entrou em coma, — Shuri respondeu séria, parando por um instante. Sua voz baixa e seu olhar sob a amiga, como se aquilo já estivesse claro para ela. Era óbvio.
— O QUÊ? Por quanto...por quanto tempo? — repetiu em pânico. Aquilo não podia ser verdade — Eu...entrei em...COMA? — A mente de começava a divagar por onde estavam Steve e Bucky, o que realmente tinha acontecido? Será que as coisas que se lembrava ter acontecido não passavam de sonhos do coma? Será que ela, na verdade, foi de Lagos para Wakanda e o resto era...mentira? tinha um olhar impagável e Shuri não conseguiu segurar o riso por muito tempo.
— É brincadeira — Shuri deu de ombros ainda rindo, mas logo se conteve ao ver o olhar fulminante de sob ela e, dois segundos depois, o travesseiro que estava na maca a atingir com força, a fazendo cambalear para trás e cair sentada em uma cadeira.
— QUAL É O SEU PROBLEMA? Não se brinca com uma coisa dessas — praticamente gritou.
— Você tinha que ver sua cara, foi ótimo — Shuri levantou-se, debochada.
— Eu vou deixar seu quarto cheio de planta carnívora, aí você vai ver como é engraçado — Ameaçou .
— Sem planta carnívora, — Okoye a repreendeu — Da última vez eu quem tive que recolher aquelas porcarias — sorriu sem graça — E você, Shuri, pare de enganar com essas coisas. Isso é sério.
— Agora eu tenho duas mães? — Shuri arqueou as sobrancelhas para Okoye, que revirou os olhos.
— Qual é o problema? Eu tenho dois pais — rebateu a encarando séria, mas não conseguiu segurar o riso por muito tempo, vendo a cara de cínica de Shuri.
— Bast, dai-me forças — Okoye colocou os dados nas têmporas.
— Ela já te deu força, demais — Shuri murmurou brincalhona, frisando a última palavra.
— Eu quem o diga, só quem viveu sabe — completou arregalando os olhos, referindo-se aos anos que passou treinando com ela - ou apanhando dela.
— Parece que as meninas precisam voltar para os treinamentos de disciplina — Okoye respondeu séria mas sorriu ao ver as caras de desespero das duas à sua frente — E eu preciso voltar para meu trabalho. T’Challa pediu para que eu cuidasse dos preparativos do quarto de seus pais e o novo hóspede, que você trouxe, precisa de comida — Ela completou totalmente emburrada, murmurando algo como achar um absurdo ser governanta e babá de homens adultos, enquanto saia pela porta. olhou sugestiva para Shuri, como se perguntasse quem era o novo hóspede. Shuri sorriu.
— Sargento Barnes. Meu irmão ficou horas conversando com ele e com o Capitão ontem, eles acham mais seguro mantê-lo aqui conosco — Ela deu de ombros.
sorriu fraco com o comentário. Parecia que Steve, T’Challa e Bucky estavam bem e tinham tido tempo o suficiente para se acertarem. Aquilo era bom. Mas ainda faltava saber como Bucky estava e se ele tinha visto o que ela tinha descoberto. Embora tivesse pedido para ele ver, não tinha certeza se Bucky tinha mesmo aberto a caixa. Parte dela esperava que sim, que toda aquela história começasse a se acertar de uma vez por todas, para ela virar aquela página e deixar aquilo para trás. Mas a outra parte dela não queria que ele visse. Não queria que ele revivesse momentos dos quais não se lembrava e não queria que ele a odiasse. As lembranças de um Bucky preocupado, abraçado com ela no avião, tomaram conta de sua mente e era só daquilo que ela queria se lembrar. Mas a realidade precisava ser enfrentada.
Ela suspirou pesadamente, tudo aquilo seria emocionalmente desgastante demais e ela estava com medo. Não só de Bucky nunca mais a perdoar pelo o que seus pais fizeram com ele, mas de seus pais se negarem a ficar com ela depois que descobrissem que ela tinha matado Hellen e Benedict, de Steve não entender o lado dela e de perder Sam. também tinha medo de nunca perdoar seus pais biológicos por terem deixado aquilo acontecer com ela. Que tipo de pessoa eles eram? só percebeu que estava totalmente muda e olhando para o chão quando ouviu a voz de Shuri cortar seus pensamentos:
— Acho que seus pais chegaram — desviou seu olhar para o holograma que mostrava Karl e Everett abraçando T'Challa, na entrada no palácio. Ela sorriu triste, teria aquela conversa cedo demais.
— Vou para meu quarto, você pode dizer a eles que estarei lá? — pediu delicadamente, vendo Shuri concordar com a cabeça — Obrigada!
T'Challa tinha conversado com Shuri mais cedo e contou sobre o que aconteceu na Sibéria e porque estava lá. T’Challa havia aberto, junto com Steve e Bucky, naquela manhã, antes de acordar. Eles leram tudo, todos os detalhes, o suficiente para entender e sentir o que estava sentindo. Nenhum deles achava que era uma arma, um experimento ou fruto de uma vingança. Não tinha sido nada mais senão uma vítima de pessoas violentas e desumanas. Ela não tinha culpa de nada, de absolutamente nada. Lendo aquilo tudo, T’Challa desejou que seu pai estivesse vivo. Ele certamente diria à o quanto é especial, o quanto seus poderes eram dons, presentes de Bast, como o Pantera, e o quanto ela era um ser humano incrível. T’Chaka sempre gostou de . Para ele, ela era como uma flor, que ganhou de presente para cuidar, fazer crescer e encantar o mundo.
Shuri sabia que ela estava processando muitas informações e, mesmo assim, estava tentando parecer normal, forte e risonha. Ela conhecia o espaço de e não o invadiria enquanto ela não permitisse. Por isso, achou melhor não perguntar nada sobre o que ela tinha descoberto e sobre o que tinha na caixa que deixaram com Sargento Barnes. precisava de tempo e de espaço. Quando fosse a hora, ela certamente voltaria a ser cem por cento a de antes. Shuri a viu caminhar lentamente pela rampa do laboratório, em sentido à porta. tinha seu olhar triste perdido na longa parede de vidro do local, pela qual era possível ver Wakanda lá fora.
— Maninha? — Shuri a chamou, lembrando-se rapidamente que devia uma resposta honesta a ela. virou-se para olhá-la — Dois dias, foi o tempo que você demorou para acordar. O que fiz foi testar o soro FL-15, seu corpo reagiu bem. Assim como faz com a pomada, se injetarmos a mesma base da substância em você, ele potencializa os efeitos das plantas ainda mais rápido e te cura. Você vai ficar bem, já está bem.
Soros. suspirou e desviou seu olhar para suas mãos, ainda roxas e levemente cortadas. Shuri não tinha culpa por aquilo, mas foi gatilho o suficiente para que ela se lembrasse de tudo que tinha descoberto sobre seus pais. Parecia que todo mundo tinha um soro para ela. A Hydra, seus pais biológicos, T’Challa, Shuri. E parecia que seu corpo reagia muito bem a qualquer um deles, como um bom experimento. era um experimento, assim como o homem que tentou salvar todos esse tempo. Talvez ela estivesse tão imersa em Bucky esses anos todos que nunca tinha parado para pensar que ela mesma pudesse ser como ele.
— Obrigada por me salvar... de novo — sorriu sem mostrar os dentes para Shuri, que retribuiu.
— Você paga a próxima conta do Boko e está tudo certo — Shuri brincou acenando para ela que gritou, já da porta:
— NEM A PAU, você bebe demais.
riu sozinha com o xingamento que a Shuri gritou de volta para ela e seguiu à passos lentos pelos corredores do palácio que por tantos anos foi sua casa. se lembrava de quando chegou ali, de como se sentiu segura e confortável. Do quanto aquelas pessoas todas, sem nem a conhecer, a acolheram e a protegeram. tinha uma família peculiar, mas muito especial. Tinha dois pais excepcionalmente incríveis, amorosos e que sempre estavam dispostos a fazer tudo por ela. Tinha Sharon, T’Challa e toda sua família, tinha Okoye, e agora tinha Sam e Steve. Tudo o que precisava estava ali, por ela, não precisava de mais nada além, nunca precisou. percebeu que não precisava ter cutucado seu passado, aquilo tinha sido um erro e ela se tocava disso a cada passo que dava em direção a seu quarto. Mas já estava feito, tinha que absorver aquilo e seguir em frente, o mais rápido possível.
abriu a porta do seu quarto sem muita demora e observou a luz acender sozinha. O lugar era grande o suficiente para ser um apartamento, as paredes pintadas de creme, tinham desenhos elegantes de finos ramos de flores, que ficavam ainda mais bonitos combinados com os móveis e com a decoração nos mesmos tons. sorriu sozinha, a sensação de paz tomou conta de si pela primeira vez em meses. Estava em casa de novo. E podia perceber isso pelas plantas a saudando conforme ela entrava dentro do cômodo. Sua cama estava feita, seu closet completamente organizado, tudo como ela havia deixado. Estava de volta ao seu lar.
— Ah meu Deus, minha — A voz aliviada de Karl tomou conta do cômodo, fazendo virar-se para vê-lo. Everett e Karl estavam parados alguns passos dentro do quarto, Karl com as mãos na boca e Everett com uma expressão de alívio imenso.
— Pai! — Ela exclamou feliz e correu para os abraçar. Karl e Everett tomaram sua menina nos braços com força, como se não a vissem há anos.
Sharon os avisou, do jeito que pediu, sobre o que estava acontecendo e sobre a Sibéria. Everett e Karl ficaram aflitos em saber que estava indo para lá com pouco reforço e mais preocupados ainda com o fato de ser a última base da Hydra. Ela a encontrou. E estava indo para lá sozinha, sem nenhum plano e nenhuma cobertura. O casal de homens não pregou os olhos até ter notícias da filha e, assim que souberam por T'Challa que estavam indo de volta para Wakanda, eles correram o mais rápido possível. Já tinham em mente que alguma coisa grave tinha acontecido e estavam esperando que trouxesse consigo verdades difíceis demais de engolir. Nada comum e tranquilo poderia ser esperado de um fato que eles não puderam explicar por anos, porque também não entendiam. A morte de seus pais, a explosão da casa, tudo era confuso. Não havia evidências em lugar algum, nenhuma dica, nada. O que quer que tivesse acontecido estava bem guardado, a sete chaves, no fundo de algum lugar da Hydra que , finalmente, tinha encontrado.
— Está tudo bem agora, querida, nós estamos aqui — Everett falou sereno, passando a mão nos cabelos da menina que ainda estava abraçada a Karl. Ela parecia triste.
— Porque já está em pé? Está se sentindo bem? — Karl perguntou baixo, preocupado. Pelo o que T'Challa os havia contado, tinha levado a maior surra de toda sua vida.
— Estou bem, não se preocupem — Ela sorriu — Shuri deu um jeito nos cortes e nas queimaduras mais graves. Ela disse que vou ficar bem.
— Queimaduras? — Everett perguntou confuso, fechando a porta do quarto atrás de si. se afastou um pouco do abraço de Karl, olhando seus pais de frente.
— Tony descobriu que Bucky matou os pais dele. O médico armou tudo, nos levou até lá, mostrou um vídeo — contava tudo rápido, sendo forte em não chorar. Karl a conduziu calmamente até a cama, sentando-se com ela lá, enquanto Everett, prestando atenção na história que ela constava, sentou-se de frente para eles — Então, Tony descobriu que Steve já sabia disso e decidiu que vingaria a morte dos pais matando Bucky. Eu e Steve tentamos protegê-lo, mas Stark estava determinado.
Karl e Everett trocaram um olhar tenso, demorando alguns minutos para digerir o resumo que dizia, até entenderem o que realmente tinha acontecido lá.
— Tony queimou você? — Karl perguntou horrorizado, olhando , em silêncio ao seu lado, assentir com a cabeça. Everett ficou vermelho de raiva.
— Eu contei para ele que foi… — A voz de foi ficando tão baixa que falhou. O medo de seus pais a julgarem tomando conta de si. Everett observou ela se encolher, seu olhar em suas próprias mãos machucadas enquanto brincava com os dedos. Ela parecia ponderar se continuava a falar ou não, angustiada. Everett a abraçou apertado outra vez, enquanto beijava o topo da cabeça dela, encostada em seu peito. Não se lembrava da última vez que a viu daquela forma, tão triste, tão vulnerável. Karl sentiu seus olhos marejaram, queria poder tirar toda a dor de e colocar nele.
— Você pode confiar na gente, meu amor — Karl tentou falar outra vez, sua mão acarinhando as costas de — O que foi que aconteceu?
continuou imóvel por algum tempo, apenas deixando-se ser abraçada por Everett e acarinhada por Karl. Não estava pronta para externalizar tudo aquilo, mas eles estavam preocupados, mereciam e precisavam entender o que estava acontecendo, afinal foram eles, todos esses anos, que estiveram ao lado dela naquilo. Eles a aceitaram, eles a adotaram, eles deram a ela uma família que ela não teria. Algum tempo depois, levantou seu olhar vazio para eles e, sem muito mais cerimônia, começou a contar.
Karl estava nervoso quando chegou à França, no final dos anos 80. Tinha conseguido um emprego na SHIELD poucos meses antes e não estava se sentindo cem por cento preparado quando Fury designou ele e Everett para a Europa, com intuito de assegurar o trabalho de um casal de cientistas que, sem muitas informações, estavam trabalhando em um projeto ultrassecreto. Everett já tinha algum tempo de experiência, mas nunca tinha atuado na Europa, sequer sabia falar francês na época. Os dois homens se conheceram no aeroporto, a caminho de mudar suas vidas para sempre, mas sem ter ideia alguma do que viria pela frente. Em meio ao trabalho, relatórios e missões, eles se apaixonaram e passaram a viver juntos, perto da casa de onde Hellen e Benedict, os cientistas, viviam. Eles viram nascer e tiveram algum contato próximo com ela nos primeiros anos de vida, mas nada íntimo nem intenso demais. Tinham que respeitar o espaço e a confidencialidade do trabalho dos cientistas, o distanciamento era exigido pela SHIELD.
Naquela fatídica tarde, alguns anos depois de já viverem no país que aprenderam a amar, Everett havia ido a uma reunião com o governo francês enquanto Karl precisou verificar um carregamento suspeito que havia acabado de atracar no porto de Nice. Não viam Hellen e Benedict sair de casa há semanas e, embora tivessem achado aquilo estranho, ao reportar o fato à SHIELD, foram brevemente informados de que o casal de cientistas estava em fase final de entrega do projeto e, por isso, com o tempo corrido demais para se concentrar em qualquer outra coisa. Karl chegou a se oferecer para ficar com caso precisassem, mas o responderam confiantes que a menina estava com o irmão de Benedict, em Zurique.
Karl e Everett chegaram vinte minutos depois da explosão acontecer. A casa estava incendiada, não havia sobrado mais nada senão poeira e madeira queimada. O casal de homens já havia perdido totalmente a esperança de algum deles estar vivo quando, poucas horas depois de apagarem o incêndio, o hospital local telefonou para avisá-los sobre a garota. Hellen e Benedict estavam mortos, mas havia sobrevivido, um milagre. Mas como a Hydra sempre pregou, não havia nada mais assustador do que um milagre.
Demorou semanas para que pudesse sair do hospital, estava debilitada, assustada e com medo de tudo. Não se lembrava de seu nome, de seus pais ou do que havia acontecido. Os médicos disseram a Everett e Karl que o trauma causado pela explosão e pela morte de seus pais poderia ter agravado um quadro de amnésia, era comum. Eles a adotaram, recontaram quantas vezes foram necessárias tudo o que sabiam e cobriram tudo o que ela precisava em uma família. Dali em diante, eles eram uma família. E conviveram com aquela história, daquela forma, por tantos anos, embora lacunas tivessem sido abertas ao longo da vida e da busca incansável de por preenchê-las.
— O Projeto Neriine. Era isso que a SHIELD tentava proteger com a gente na Europa — Karl murmurou, olhando da menina para Everett. Aquele era o trabalho que eles tinham que proteger e que, de certa forma, continuavam a proteger todos esses anos quando adotaram o resultado final dele.
— Meu Deus — Everett passou as mãos pelo rosto, sentindo-se parcialmente culpado — Como não percebemos isso? Poderíamos ter evitado!
— Eu sinto tanto, tanto, , eu não… — Everett tentou dizer algo, mas não conseguia pensar em nada que pudesse confortar sua filha naquele momento, podia imaginar como ela estava se sentindo — Me perdoe. Nos perdoe, por favor.
— Se soubéssemos de algo, teríamos feito tudo diferente — Everett concordou.
— Vocês não têm culpa, não têm culpa de nada — falou, sentindo lágrimas se formarem em seus olhos — Não tinham que ter percebido nada, não tinham que ter feito nada. Eu não culpo vocês. E não posso culpar eles. Eles...eles fizeram o que acharam certo fazer, eles foram manipulados pela Hydra, eu sei disso. Mas parte de mim não aceita, porque não desistiram? Porque não foram atrás de mim quando eu sumi? E eu os matei. Fui eu. A culpa disso tudo é minha.
falou tudo de uma vez, perdendo sua respiração, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Assumir aquilo em voz alta a tinha matado mais um pouco por dentro. Ela era uma assassina. Tinha matado seus próprios pais quando era criança, o que não era capaz de fazer agora? Tinha sido torturada, manipulada, levada pelas ideias da Hydra. O que a diferenciava de Hellen e Benedict? Talvez nada. Talvez tudo.
— , olha para mim — Everett pediu sério, colocando suas duas mãos no rosto da menina, seu coração quebrado em milhões de pedacinhos. levantou seu olhar sofrido até ele — A culpa não foi sua, não é sua, me entendeu?
— Você é tão vítima disso tudo quanto Hellen e Benedict, quanto Barnes, e agora você está diante de dezenas de evidências que te provam isso — Karl completou, concordando com seu marido.
— Você era uma criança, tinha cinco anos, . Você caiu nas mãos de pessoas terríveis, violentas, que usaram você como arma, o que você poderia ter feito? — Everett sustentava seu olhar no de sua filha, que chorava em silêncio prestando atenção — O que você, com cinco anos de idade, poderia ter feito contra a Hydra? Nada, meu amor.
— Mas ainda assim eu os matei — sussurrou — Eram meus pais, como me lembrei deles?
— Você se lembra deles hoje? - Karl perguntou firmemente, sabendo que aquilo doía nela, mas tinham que ser realistas. negou com a cabeça — Então, meu amor, se não se lembra ainda hoje, como se lembraria logo depois de terem apagado a sua mente?
— E você não os matou porque quis. Você estava com medo, não os conhecia, foi tirada de um lugar sem querer sair dele e levado até pessoas que você achava que te fariam mal, você estava se protegendo — Everett comentou baixo, seu olhar intenso nela.
— A culpa não é sua, nunca vai ser — Karl reforçou, limpando o rosto da menina e a puxando para um novo abraço — Você nunca usou seus poderes, conscientemente, para fazer mal algum a ninguém. Jamais teria feito mal a eles. Por trás de você havia uma organização, que te torturou, te induziu e te manipulou a isso.
— Como vou conviver com isso? — perguntou em um suplício.
— Você já parou para pensar que, às vezes, as coisas acontecem com a gente, mesmo as mais terríveis delas, para que a gente se encaminhe para nosso lugar no mundo? — Karl perguntou sereno, passando a mão pelo rosto da filha e sorrindo levemente.
negou com a cabeça, respirou fundo e pensou por alguns minutos, sem pressa. Ele tinha razão. Tudo aquilo era terrível, era sim. Mas se nada tivesse acontecido, não teria a fitocinese hoje. Não teria sido adotado por Everett e Karl, não teria sequer conhecido Wakanda, T’Challa, Shuri, Steve ou Sharon. Não poderia ajudar Bucky e nem proteger a erva-coração. Quantas pessoas ajudou a se alimentar pelo mundo afora todos esses anos? Quantas florestas levantou do zero depois de queimadas, quantos povos, animais, espécies vivas salvava todos os dias? Não queria que a vida de seus pais biológicos tivessem sido a conta a pagar para se ter isso tudo e não queria que Bucky tivesse sido a moeda de troca. Mas se aquilo tinha acontecido, e se nada mais pudesse ser feito para reverter a situação, então tinha que honrá-los. E talvez já tivesse fazendo isso todos esses anos, dia a dia, sem nem saber disso.
— Talvez seja assim que você precise conviver com isso — Karl completou vendo Everett concordar com a cabeça — Olhando desse ponto de vista.
— Eu fiquei com medo de vocês não me quererem mais — soltou sincera, depois de longos minutos em silêncio, pensando — De terem medo de mim e do que eu posso fazer. Eu não...eu nunca quis ir atrás dos meus pais biológicos porque vocês são insuficientes.
— Nós sabemos disso, meu amor — Everett falou, pegando uma mão dela, enquanto Karl segurava a outra.
— Eu sei, mas eu preciso dizer, eu só… — pressionou os lábios, desviando seu olhar para o teto — Eu só queria entender o que aconteceu com eles. E agora eu entendi e não quero mais reviver isso. Vocês são e sempre foram meus pais, minha única família. Eu amo vocês, eu devo tudo a vocês e eu não quero...eu não quero viver carregando o peso de que eu os matei.
— Nós também te amamos, , muito — Karl disse apertando levemente a mão da filha, que desceu seu olhar encharcado até ele — Você é a melhor coisa que aconteceu nas nossas vidas e nós faríamos tudo de novo, de novo e outra vez se fosse preciso, por você — Karl sentiu seus olhos encherem novamente e Everett sorriu leve, concordando — Você não precisa carregar esse peso, mas pelo tempo que for, pelo tempo que precisar, vamos carregá-lo com você.
— Nós estamos com você querida, para sempre - Everett reforçou sereno e logo franziu a testa, lembrando-se de que havia mais alguém envolvido naquilo — E o James? Ele já sabe? E onde estão os arquivos?
— Acho que estão com ele, eu pedi que ele os visse, ele precisa saber, mas eu ainda não o encontrei depois que acordei, não sei se ele...se ele já sabe — fungou, vendo Karl assentir com a cabeça e Everett a olhar - Eu não consegui contar nada. Achei melhor ele ler, ver tudo sozinho, no tempo dele. E eu espero que ele me entenda.
— Você não demorou para entender o que tinham feito com ele, não foi? — Everett falou baixo, depois de alguns minutos, sorrindo fraco para a menina que o olhou outra vez — Você nunca o julgou, nunca o culpou por ter feito tudo o que ele fez. Você fez o que seus pais queriam ter feito por ele, mas não puderam. Você o entendeu, você o estudou, você foi atrás dele, você o salvou, você está o protegendo e você pode o ajudar a se recuperar. Você quase morreu dois dias atrás porque você acredita nele, porque você entende que ele não tem culpa. Agora é a hora de você fazer isso por você mesma.
— E é a hora do Barnes fazer isso por você também — Karl falou igualmente carinhoso, emocionado pelas palavras de Everett. Eles amavam mais do que tudo na vida e nunca, nem por um só segundo, se arrependeram da decisão de terem a adotado.
ficou em silêncio por algum tempo, enxugou suas lágrimas e pensou sobre tudo que tinham acabado de conversar ali. Tudo parecia mais simples de ser dito do que de ser praticado. Mas eles tinham razão: se ela podia ter empatia e podia cuidar de Bucky, porque não faria isso por si mesma? E porque ele não faria isso por ela? A diferença entre eles era o tempo que passaram com a Hydra e a quantidade de coisas que fizeram por ela. , pela primeira vez em tantos anos que sabia da história de Bucky, sentia, de fato, como ele se sentia, mesmo que em menor proporção. Talvez agora fosse a vez de ele entender o lado dela.
— E se ele não fizer? — quebrou o silêncio depois de algum tempo, deitada em sua cama com seus pais um de cada lado, do mesmo jeitinho que faziam quando ela era pequena.
— Então ele não é digno de ter você por perto — Everett a olhou de lado, ajeitando-se.
— E a gente prende ele — Karl brincou, fazendo os outros dois rirem baixo.
- Capítulo 15 -
— Você tem cinco minutos para chegar na sala de treinamento — A voz de T’Challa inundou o quarto de , exatamente ao mesmo tempo em que seu holograma surgiu bem próximo da porta. Do banheiro, revirou os olhos. Nem precisava ver quem era.
— Você tem que parar de fazer isso, T’Challa! Qualquer hora vai me ver nua sem querer — Ela comentou alto, terminando de se vestir.
— Como se isso já não tivesse acontecido antes — T’Challa respondeu irônico, ela bufou.
— Mas não precisa acontecer de novo — saiu do banheiro e deu uma olhada rápida no holograma. T’Challa estava com roupas de academia, parecia cansado e sério demais para quem estava apenas terminando mais um dia — Boa tarde, alteza.
— Boa tarde, princesa – O homem rebateu acenando com a cabeça — Treinamento em… três minutos agora.
— Eu acabei de sair do banho — Ela resmungou preguiçosa.
— Eu tenho um trono para conseguir em duas semanas, , me ajuda — Ele implorou.
— Você sabe que ninguém vai te desafiar pela coroa, deixa disso — Ela deu de ombros, juntando algumas peças de roupa espalhadas pelo quarto e as jogando no closet.
— M’Baku não te disse nada? — T’Challa perguntou intrigado.
— Ele nem foi me encontrar — Ela bufou irônica — Quatro dias inteiros ajudando os Jabari e nem um mísero “obrigado, ”. Ele definitivamente me odeia.
— A todos nós, parece.
— Você acha mesmo que existe alguma chance de ele te desafiar? Quer dizer, os Jabari não participam da coroação há décadas — perguntou pensativa. Pelas histórias que ouviu em todos os anos vivendo em Wakanda, os Jabari não pareciam preocupados com a governança do país.
— Agora é diferente — Ela pode ouvir T’Challa respirar fundo — M’Baku é o líder deles e ele tem sede de poder. Ele não teve oportunidade de contestar meu pai, mas vai ter de contestar a mim.
— Se ele vencer, eu vou ser a primeira a ser expulsa do país — Ela fez uma careta.
— Mais um motivo para você me ajudar a treinar, anda — T’Challa insistiu e suspirou fundo.
— Tudo bem, tudo bem, vou me trocar de novo e já desço aí em cinco minutos.
— Dois minutos, no máximo — O holograma de T’Challa desligou antes de ouvir o xingamento de .
Pouco mais de uma semana havia se passado desde que voltaram a Wakanda e tudo parecia estranho, silencioso demais. dedicou todo o tempo possível para ficar com seus pais, enquanto eles ainda estavam no país, e a seguir um trabalho que tinha em mente, em seu laboratório. Os dias foram passando devagar, mas bem ocupados e aquilo ajudava, e muito, a lidar com toda a situação. Ter Karl e Everett por perto, naquele momento, tinha sido a melhor das opções possíveis. ficou com eles nos cinco dias seguidos que sucederam seu retorno ao país, mas logo surgiu uma emergência com os Jabari. O solo das montanhas não era fértil o suficiente para aguentar um ano todo de plantações e eles tinham problemas recorrentes para alimentar a população local. sempre era chamada para ajudar e sempre ficava alguns dias com eles, para ter certeza de que tudo correria bem. E dessa vez não foi diferente. Quatro dias depois, recém-chegada de volta à Birnin Zana, capital de Wakanda, Karl e Everett precisaram ir embora, tinham que voltar aos seus respectivos trabalhos. Muita coisa envolvendo o Tratado de Sokovia estava acontecendo e eles tinham que apagar o fogo que , Steve, Sam e Bucky tinham acendido, antes que a situação piorasse para os quatro. E falando em Sam, havia pedido aos pais que dessem um jeito de descobrir o que tinha acontecido com ele e a avisasse. Fosse o que fosse, ela iria atrás dele - e tinha certeza de que Steve também.
Mas de todas as coisas que haviam acontecido com ao longo da semana, uma delas a estava despertando atenção e gerando certa ansiedade. Ela não tinha tido a chance de ver Steve e Bucky ainda, desde que acordou e, embora todos tivessem seus dormitórios no mesmo corredor, não haviam se encontrado ainda. Preocupada com a possibilidade de eles terem ido embora e sequer se despedido dela, foi conversar com T’Challa e descobriu que, na verdade, Bucky estava trancado em seu quarto desde o dia em que chegaram em Wakanda e leram todos os arquivos de . Para ela, aquilo era horrível. Era possível que, de fato, o que ela mais temia estivesse acontecendo. Talvez Bucky a odiasse, talvez não a quisesse por perto e nem correr o risco de a encontrar ou a ver pelos corredores. Ele tinha motivos para isso, mas ela também tinha. Hellen e Benedict trocaram ela por Bucky e, se fosse para alguém ter raiva daquela história, essa pessoa deveria ser . Não deveria?
Karl e Everett chegaram a conversar com Bucky. Eles tinham conseguido trazer de Berlim todos os pertences que a força-tarefa tirou do apartamento de James em Bucareste e fizeram questão de trazê-los até ele. Everett contou para a filha que, nos dias em que ela ficou com os Jabari, eles foram entregar as coisas para Bucky. Se desculparam por tê-lo prendido, por não terem tido a chance de avisá-lo antes da força-tarefa invadir a casa dele e por tudo ter sido do jeito que foi. Karl comentou que Barnes parecia extremamente triste, estava calado e só falou para agradecê-los por terem o ajudado e para perguntar se estava bem e onde estava. Bucky também havia pedido para ficar com os arquivos que trouxeram da Hydra e, em outro momento posterior, Steve contou a Karl e Everett que Bucky estava com muitas dificuldades de assimilar o que tinha descoberto.
Para aquilo tudo fazia sentido, mas não era o suficiente. Parecia que ele a estava evitando e ela não queria isso. Agora que ele sabia de tudo, que ela sabia de tudo, eles não podiam só conversar e terminar isso de uma vez por todas? já tinha conversado com seus pais, já tinha conversado com T’Challa. Todos eles a tinham acalmado e todos tinham entendido o lado dela, só faltava Bucky. E ela ainda estava disposta a ajudá-lo, estava disposta a terminar o que seus pais biológicos começaram a tentar fazer com ele e agora que estavam em Wakanda, não tinham mais nada a perder. Estavam seguros, protegidos, acolhidos. Tinham recursos e tinham um ao outro. Por que ele estava se escondendo dela? Ela respirou fundo, terminando de calçar seus tênis esportivos e fazendo um rabo de cavalo alto e trançado. pensou por um instante que, talvez, não tivesse sido uma boa ter pedido para ele ver o que tinha na caixa. Mas aquilo era o certo a se fazer. E tinha que arcar com as consequências agora.
E embora estivesse insegura, não podia controlar o que Bucky iria sentir. Não havia nada que ela poderia ter feito para mudar aquilo e não tinha nada que poderia fazer agora para alterar o passado. As decisões ruins foram de Hellen e Benedict e não dela, e eles tiveram que lidar com o caos, o medo e a violência de alguma forma. não sabia dizer se, na mesma situação que eles, teria feito diferente. Não os poderia julgar, mas sim apenas lamentar que tudo foi como foi. queria se lembrar deles, queria ter as boas lembranças de uma infância em Nice, de como era viver com o casal de cientistas. E, embora fosse reconfortante ter, finalmente, descoberto quem eram e o que tinham feito com ela, aquilo doeria por um longo tempo. sabia que tinha sido uma vítima da Hydra, como Bucky foi, como Hellen e Benedict foram. Mas ainda precisava aprender a lidar com o remorso de ter explodido sua própria família. estava segura de que se Bucky não a entendesse, ele então não a merecia, era isso que Everett havia dito, e era assim que as coisas seriam dali em diante.
Mas foi só ela pisar para fora do quarto para toda aquela confiança em si mesma desvanecer. Como se ele tivesse ouvido os pensamentos dela, Bucky estava parado na porta de seu quarto, recebendo um lanche da tarde de Aziza, uma das governantas. Para ele, foi só ouvir a porta do quarto, há poucos passos do seu, abrir, e depois fechar, para seu coração bater mais forte. parou imediatamente ao fechar a porta atrás de si, olhando Bucky com tanta intensidade que, talvez, fosse possível ver através dele. Bucky estava usando uma calça de sarja preta e uma regata da mesma cor, tão grudada em seu corpo que precisou desviar sua atenção até o rosto dele para não ficar vermelha. Os machucados já estavam começando a desaparecer e a barba estava mais alta do que da última vez em que ela o havia visto, no avião.
Os olhos mais lindos que já tinha visto em toda sua vida a encaravam de volta e Bucky umedeceu os lábios com a língua. Ela parecia a caminho de treinar, a calça legging de cós alto e o top em um tom de rosa claro, combinando, ressaltavam o corpo dela e a deixavam extremamente sensual, seu cabelo perfeitamente preso em um rabo de cavalo e seu olhar sério nele, a deixavam ainda mais linda. Ela parecia estar fisicamente bem, não havia mais nada senão cicatrizes, pequenos machucados e roxos espalhados pela parte exposta de seu corpo. Aquilo era um alívio para Bucky - mesmo já sabendo daquilo, por ter feito Steve perguntar todos os dias por ela para Shuri.
O silêncio já estava ficando constrangedor e nenhum dos dois queria desviar o olhar. Sem se dar conta disso, ou relutando para aceitarem, eles sentiam falta um do outro. Toda a intensidade e o caos das últimas semanas, a convivência diária, a preocupação e a proximidade, não combinavam com aquela vida pacata e calma de Wakanda. queria perguntar se ele estava bem e queria conversar com ele sobre o que tinha acontecido no passado, saber o que ele estava pensando. Bucky queria saber por onde ela tinha andado todos esses dias e por que parecia que ela estava se escondendo dele. Ele chegou a ir até a porta do quarto dela, duas ou três vezes, em madrugadas que não conseguiu dormir, mas não teve coragem de bater. Talvez ela o odiasse por seus pais o terem escolhido no lugar dela. E ele se odiava por ter sido o motivo pelo qual ela foi sequestrada, torturada e feita de experimento pelas mãos do mesmo homem que fez tudo aquilo nele. Bucky chegou a abrir a boca para dizer algo, mas foi mais rápida:
— Eu… — começou a dizer, mas logo foi cortada.
— Senhorita Lamarck, me desculpe, não havia te visto — Aziza, a governanta, virou imediatamente ao ouvir a voz dela e fez um sinal para , com os braços, que chamou atenção de Bucky.
— Sem problemas, Azi, eu… eu estou de saída só — comentou de volta, a cumprimentando da mesma forma, cruzando seus braços em um x perfeito em frente ao peito, as mãos fechadas em punhos, e abaixando o olhar. Não era o melhor momento para conversar com Bucky.
— A senhorita quer comer algo? Posso trazer também, como trouxe para o Sargento Barnes — Ela ofereceu simpática, com um grande sorriso no rosto.
— Não, obrigada, fica para uma próxima. Preciso me encontrar com T’Challa — sorriu de volta para ela, dando alguns passos mais longe.
— Tudo bem, se precisar de algo me avise — Aziza respondeu prestativa.
— Obrigada, Azi! Sargento Barnes — os cumprimentou, sem desviar os olhos de Bucky. A formalidade excessiva em sua voz baixa, imitando a forma em que todos em Wakanda o chamavam.
Sargento. Aquilo vindo de soou tão sexy para Bucky, que ele sentiu seu corpo esquentar. Ele pressionou os lábios, sem desviar seu olhar dela, e assentiu discretamente com a cabeça, a vendo, segundos depois, se afastar pelo corredor. Toda aquela cena tinha sido estranha, em muitos sentidos. Ele queria falar com , queria ouvi-la, queria vê-la e queria senti-la. Queria poder ficar tão perto dela quanto ficaram no avião, a caminho de Wakanda. Bucky tinha que dar um jeito de resolver as coisas. Se realmente não o quisesse ver e nem falar com ele, ela não teria reagido daquela forma. Talvez Steve tivesse mesmo razão em insistir milhares de vezes por dia que ele a procurasse e que conversassem. Por mais doloroso que tudo aquilo fosse, era inevitável. Eles já tinham sido ligados no passado e, agora, tinham que encarar isso no presente. Bucky queria recomeçar com . E se ela também quisesse, poderiam ajudar um ao outro a virar aquela página.
***
— Você sabe que ela não quer ser resgatada, não sabe? — perguntou arfando, enquanto corria ao lado de T’Challa.
— Ela precisa de ajuda, caiu em uma rede de tráfico de pessoas — T’Challa rebateu ofegante.
— Ela não caiu em uma rede de tráfico, ela está tentando desmantelar a rede, é bem diferente.
— Por Bast, , eu só quero ter certeza de que ela está bem — T’Challa estava realmente preocupado e seu tom de voz deixava claro.
— Ela vai te matar por isso, só estou te alertando — o olhou de lado.
— É melhor do que ela morrer — Ele respirou fundo, ainda correndo com ao seu lado — Eu sinto falta dela, queria que ela participasse da cerimônia.
— Eu sei — sorriu para ele — Só não sei se essa é a melhor maneira de convidá-la. E eu não entendo porque vocês não ficam juntos de uma vez por todas.
T’Challa parou de correr e encarou a amiga que, assim como ele, também parou. apoiou suas mãos em seus joelhos e o olhou de volta, suas respirações descompassadas, arfando. Estavam correndo a pouco mais de duas horas, T’Challa precisava aumentar sua resistência. Ele a olhou e sorriu de lado, discreto.
— É tão óbvio assim? — riu alto.
— Desde que vocês tinham o que… quinze anos? Por favor, T'Challa, conta outra — Ela colocou as mãos na cintura, o encarando sorridente — Wakanda inteira sabe que vocês se gostam.
— Gostar é pouco — Ele sorriu mais abertamente — Eu sou completamente apaixonado por Nakia.
— E então, o que o impede de dizer isso a ela?
— Eu já disse. Milhares de vezes. Mas ela escolheu viver pelo serviço humanitário — Seu sorriso enfraqueceu — Nós temos realidades diferentes. Ela não quer e não seria feliz vivendo dentro de um palácio e participando de reuniões do governo.
— Vocês já conversaram sobre isso? — olhou para os lados, o parque mais vazio do que de costume. O sol lindo começando a cair.
— Mais do que você imagina. Ela está certa sobre o caminho que quer seguir e eu tenho que seguir o legado de meu pai. Não vou forçá-la a nada. Vou esperar por ela e pelo tempo que for preciso.
não conteve o sorriso, achando aquilo muito fofo da parte dele. Nakia era uma mulher linda, independente e muito justa. Se preocupava com as pessoas ao seu redor e nunca foi de ceder a privilégios. Enquanto houvesse alguém em que ela pudesse ajudar, ela faria tudo o que fosse possível - mesmo que isso significasse abandonar a própria vida. T’Challa tinha se apaixonado por ela anos atrás, quando se conheceram ainda adolescentes. Desde então, ele nutria o amor e a esperança de que algum dia ela aceitasse viver a vida com ele. T’Challa não era muito de falar sobre isso abertamente, ainda mais depois que Nakia deixou Wakanda para trabalhar em prol de pessoas vulneráveis, mas ele se sentia confortável em se abrir com sua irmã e com .
— Eu acho que ela vai repensar quando você for coroado — comentou vendo o homem a chamar com a cabeça para que eles seguissem caminhando de volta — Quer dizer, pense só a quantidade de projetos humanitários que ela não poderia desenvolver com os recursos de Wakanda? Talvez ela se interesse por isso.
— Está dizendo que ela só vai me querer para poder pegar os recursos da coroa? — T’Challa fingiu-se afetado, mas riu.
— Claro que não! — o empurrou levemente com o ombro — Ela gosta de você e o que eu quero dizer é que: você sendo rei, ela pode unir o amor por você ao amor pelo trabalho dela.
— Você acha mesmo que ela aceitará ficar comigo dessa vez? — Ele estava pensativo.
— Eu não sei, acho que sim — o olhou de lado outra vez — Mas Nakia é bastante cabeça dura.
— Acho que todas as mulheres de Wakanda são.
— É por isso que esse país prospera — mostrou a língua para ele, que sorriu de lado — E eu não sou cabeça dura, só para constar.
— Ah é? Já foi conversar com o Sargento Barnes depois do que aconteceu?
— Isso é diferente — Ela negou com a cabeça e voltou seu olhar para o parque à frente.
— E por que é diferente? — T’Challa insistiu, sabendo que aquele assunto era delicado para , mas tinham que conversar.
— É muito mais grave e confuso, quer dizer… isso aconteceu, mas eu não me lembro de nada e nem ele. Hellen é responsável por boa parte do que ele sofreu e depois, quando ele teve a chance de se livrar da Hydra, ele precisou trocar a vida dele pela minha — gesticulava, seu olhar preso à sua frente enquanto caminhavam tranquilamente — E tem o outro lado também. Meus pais não foram atrás de mim, porque preferiram ficar com ele. Eu realmente entendo o que aconteceu e sei que meus pais só queriam ajudá-lo depois de tudo que fizeram de ruim. Mas eu não sei se ele entendeu dessa forma.
— Se você nunca perguntar para ele, vai continuar sem saber — Respondeu T’Challa com simplicidade, como se tudo fosse assim, fácil.
— A verdade é que eu estou com… eu estou com medo de saber o que ele acha disso tudo. Estou com medo de ele me julgar e me odiar. Eu não… eu não queria perder ele.
T’Challa podia imaginar exatamente o que ela sentia. Não tinha noção de como reagiria se algo como aquilo tivesse acontecido com ele. Mas ele estava lá quando James descobriu e ele sabia que era só uma questão de tempo até eles se resolveram. T’Challa sorriu sincero com a declaração da amiga. nunca tinha sido muito aberta a seus sentimentos, sempre demorava muito para reconhecer eles, ainda mais em voz alta. Mas com Barnes parecia diferente. E ela precisava daquilo. Precisava organizar seus sentimentos e deixá-los sair, precisava que eles fossem claros para ela e, principalmente, para Bucky.
— Você não vai perder ele, ! Você tem muito a oferecer e ele precisa da sua ajuda.
— Você acha? Acha mesmo que ele não está com raiva de mim? — O olhar dela era um misto de expectativa e remorso.
— Não acho que ele esteja com raiva. Acho que ele está assustado com tudo e acho que vocês precisam conversar, fugir não vai resolver nada — Ele respirou fundo e a olhou de volta.
— Não estou fugindo, só estou… dando um tempo — fez uma careta — É muito difícil remoer o passado. E se soubesse disso antes, talvez sequer tivesse começado.
— O passado pode doer. E cabe a você decidir se quer fugir dele ou aprender com ele.
— Isso é... Rei Leão? — Ela riu, o vendo assentir.
— Achei que cabia bem no momento.
— Minha história está mais perto de ser uma live action violenta de Procurando Nemo — falou falsamente descontente e logo riu, ouvindo T’Challa gargalhar.
— Eu, você, Sargento Barnes, Capitão Rogers...nenhum de nós nasceu para ter uma história comum, . Bast nos destinou a fazer a diferença no mundo e nos cobra, todos os dias, um preço por isso. Temos que aprender a pagá-lo e a lidar com os pesos que carregamos, não nos resta outra opção, minha amiga.
apenas concordou com a cabeça e seguiu andando em silêncio por algum tempo. T’Challa tinha herdado a sabedoria de seu pai, a calma em analisar situações extremas, como aquelas, e tirar delas alguma lição valiosa para se levar pela vida. E ele tinha aprendido bem a tradição com sua mãe. Bast estava e era tudo. E enquanto assim o fosse, tudo encontraria seu caminho. sempre achou aquilo lindo, mas, igualmente, e sobretudo diante da situação em que vivia, muito difícil de ser praticado. T’Challa tinha razão em suas palavras, sempre foi daquela forma para . Ela sempre teve que aprender a lidar com o fato de ser diferente, a lidar com a natureza, com a ausência de seus pais, com a Hydra, com missões e criminosos. Lidar com seu passado, agora, era só mais um dos fardos que terapia alguma conseguiria ajudar.
— Talvez você devesse conversar primeiro com Steve, então — T’Challa sugeriu — Ele tem passado quase todo o tempo com Barnes, mas está preocupado com você também. Tem perguntado por você todos os dias e ficou realmente assustado quando soube que você não estava mais na capital.
o olhou e sorriu fraco. Steve era, definitivamente, o homem mais fofo do mundo. Sorte de Sharon. Steve conhecia Bucky como ninguém e talvez conversar com ele fosse realmente um ótimo primeiro passo, mais seguro e menos angustiante do que encarar Bucky, e a possível mágoa que ele estava de , de uma vez. Preparar o terreno era sempre uma ótima opção.
— Está certo, eu vou tentar conversar com Steve hoje, obrigada.
T’Challa sorriu de volta para ela e seguiram em silêncio caminhando para fora do parque. O céu já começava a escurecer e o clima estava ameno. Tudo parecia tranquilo e calmo demais, como T’Challa achou que não viveria outra vez depois de meses tão turbulentos desde que sumiu em Lagos. Ele olhou sua amiga passar a mão esquerda em cima de um longo arbusto e rosas vermelhas brotar nele, uma a uma, atrás dela. Tudo estava em seu lugar outra vez e T’Challa estava realmente feliz com aquilo.
— ? — T’Challa a chamou de volta. desviou seu olhar até ele, deixando o arbusto de lado. — Eu sinto muito pelo o que aconteceu com você no passado. Sinto mesmo — Ela sorriu fraco para ele, o abraçando de lado instintivamente, pela cintura, T’Challa deu-lhe um beijo no topo da cabeça — Você não deveria ter passado por isso. E eu queria que soubesse que independentemente do que aconteceu, você ainda é a nossa e nada, nunca, vai mudar.
— Eu sinto muito não ter te contado antes sobre minha busca a meus pais, sinto muito ter escondido isso por tantos anos — Ela falou ainda o abraçando — Não quero que ache que usei vocês para isso, essa é minha casa, vocês são minha família, eu só… precisava entender o que aconteceu.
— Eu sei disso — T’Challa se afastou lentamente, ainda a olhando — Shuri sempre me contou onde você estava indo quando você saia do país, sempre soube das suas missões com a Hydra, da sua busca pelo Sargento Barnes.
— Desculpa, COMO É? — perguntou estridente, seus olhos se arregalaram. T’Challa sabia de tudo esse tempo todo? E ela carregou esse pesar por anos à toa? — Por que nunca me disse isso?
— Essa era uma guerra sua, , e eu respeitei sua escolha de não me contar, sei que não queria me colocar entre você e meu pai — Ele sorriu sincero — Meu pai acreditava fazer o que era certo para você, mas sei também que a vida sempre foi sua e que você precisava de respostas. Te conheço o suficiente para saber que nada iria te impedir de chegar até onde queria e você sempre esteve preparada para se cuidar sozinha — sorriu de volta para ele, ainda assustada com a situação — Eu não poderia escolher entre você e ele, então desde que ele não soubesse e que você acreditasse que eu não sabia de nada, não teria que escolher, tudo seguiria bem. E é claro que bons irmãos ajudam uns aos outros a esconder coisas de seus pais — riu e o abraçou outra vez, mais forte.
— Obrigada por tudo — disse ainda o abraçando — Você é o irmão que eu nunca tive.
— Eu sou o irmão que você sempre teve e nunca reconheceu — Ele brincou e ela se afastou dele no mesmo instante, o empurrando levemente, enquanto começavam a entrar no palácio.
— Por essas, e por outras, eu prefiro a Shuri.
— Eu sempre soube disso — T’Challa fingiu estar magoado, mas o deu um tapinha no ombro — Obrigado por me acompanhar na corrida.
— Não vou dizer que foi um prazer, porque eu detesto correr, mas tudo bem — Ela resmungou, pegando dois copos de água do salão principal e servindo-os — Quando vai ir atrás de Nakia?
— No final da semana, talvez, precisamos ter certeza de como iremos resgatá-la — T’Challa pegou um dos copos que o estendeu e bebericou a água — Não podemos errar.
— Está certo — tomou um gole de sua água — Se precisar de ajuda com isso, me avise.
— Que bom que ofereceu, preciso ter certeza exata da localização dela. Consegue me ajudar com isso? — T’Challa a encarou sugestivo. Trabalhos de busca eram sempre a praia de .
— Ela levou o pin? — perguntou pensativa, terminando de beber sua água. T’Challa concordou com a cabeça — Perfeito, amanhã cedo calculo a rota esperada e te envio.
— Obrigado.
— Não vai me convidar para o resgate? — cruzou os braços e estreitou os olhos.
— Não — Ele negou segurando o sorriso irônico.
— Você sabe que vai precisar de ajuda com isso, porque você sabe que vai vacilar perto dela — sorriu debochada, fazendo o amigo revirar os olhos.
— Um, eu não vou vacilar e dois, você tem muito trabalho a fazer aqui com o Sargento Barnes — T’Challa deixou o copo de volta na bandeja e pegou o ombro da amiga, a olhando — Concentre-se nele. Eu posso fazer isso sozinho.
— Aposto cem dólares wakandanos que você vai vacilar e mais cem que Okoye vai ir com você — riu da cara de descontentamento do homem, que deu de ombros.
— Esteja pronta para perder, então.
negou com a cabeça e seguiu para seu quarto, rumo ao terceiro banho do dia. Esperava poder descansar depois disso, foi um dia cheio. Tinha voltado dos Jabari pela manhã, almoçado com seus pais antes de irem embora e ido treinar com T’Challa. Seu quarto estava uma bagunça de roupas para todos os lados e ela só queria comer e cair na cama, talvez ver alguma série, ou ler um livro qualquer para relaxar. Mas a conversa com T’Challa havia ficado em sua cabeça e ela estava ansiosa para encontrar e conversar com Steve. Queria o ver depois de uma semana, que mais pareciam meses, e realmente queria saber dele o que estava acontecendo. Sendo bom ou ruim, ao menos ela teria tempo de pensar em como lidar com aquilo.
O relógio ao lado de sua cama marcava sete e meia da noite e ela estava com fome. foi tirando sua roupa sem pressa, enquanto sua mente a levava até Sam. Se ele estivesse ali, certamente seria um bom ombro amigo. Poderiam sair para beber alguma coisa e conversar, Sam a ouviria e a julgaria também, com certeza. Mas, no final das contas, ele faria alguma piada idiota e asseguraria que tudo ficaria bem. sentia falta de Sam. Ela, então, entrou no espaçoso banheiro e sem se importar em fechar a porta, ligou o chuveiro. Já que não tinha Sam, por enquanto, talvez não fosse má ideia chamar Steve para beber algo.
Meia hora depois, sentindo a exaustão dos músculos relaxados depois da atividade física, ela saiu do banho, se secou e vestiu um short de cintura alta, uma camiseta sem mangas e um cinto da Gucci que Karl havia dado no último natal. Calçou um sapato qualquer, que combinava, e pegou uma das dezenas de bolsas que tinha. deu uma última olhada no espelho, retocando o batom vermelho com o dedo e saiu com cuidado de seu quarto, tentando manter o silêncio que pairava no corredor. Não queria correr o risco de chamar atenção de Bucky e, eventualmente, rolar o mesmo climão de mais cedo. Mas ela logo foi surpreendida.
— Tendo problemas para dormir? — virou-se para trás, assim que ouviu a voz baixa de Steve. Ela sorriu ao vê-lo. A barba dele começando a aparecer, seu cabelo bagunçado e as roupas despojadas, um Steve que ela não estava acostumada a ver e que, sem sombras de dúvidas, era bem mais bonito do que aquele com pose de Capitão.
— São oito horas da noite, Steve — Ele riu com o comentário, passando a mão em seu cabelo.
— Eu sou um homem velho e que tem sofrido de insônia nos últimos dias. Estou perdido no tempo… literalmente — Foi a vez de rir. Steve aproximou-se dela e a abraçou em seguida, sentindo os braços de contornarem sua cintura, retribuindo o abraço. Ela estava cheirosa e sua pele quente, o que deixava o abraço ainda mais confortável, Steve reparou.
— Aposto que a insônia é de saudades de mim — Ela brincou. Steve não queria quebrar o abraço, não sabia há quanto tempo não tinha tido um.
— É bom te ver bem, estávamos preocupados.
— O quão estranho seria se eu dissesse que senti saudades de vocês? — perguntou ainda abraçada a Steve, o ouvindo rir leve outra vez.
— Nada estranho, tudo foi tão intenso nos últimos meses que não sei mais se conseguimos viver longe uns dos outros — Steve respondeu se afastando levemente dela, mas manteve-se parado próximo.
— Eu pensei nisso. Sinto falta de Sam, estou preocupada com ele — olhou para o chão brevemente — Mais do que gostaria de assumir em voz alta.
— Ele não pode saber disso, já é convencido demais. Mas também estou preocupado. Não tenho ideia de onde ele possa estar.
— Sorte sua de estar no país mais tecnológico do mundo — disse convencida, gesticulando ao seu redor — E sorte a nossa de que meus pais irão nos ajudar com isso. Vamos encontrá-lo.
— Minha dívida com seus pais só aumenta — Steve colocou as mãos nos bolsos da calça.
— Da última vez que você disse isso, acabou beijando a pessoa. Não vai beijar meus pais, vai? — brincou, se referindo a Sharon e Steve riu mais alto do que gostaria.
— Não vou comentar sobre isso — Ele respondeu envergonhado.
— Mas deveria — o olhou com ternura mas logo apontou com a cabeça para o final do corredor — Estava vindo te convidar para beber alguma coisa. Acho que precisamos conversar.
— Seria ótimo, eu estava saindo para andar, refrescar a mente, sabe como é, mas não sei me localizar aqui — Steve comentou sincero, voltando para dentro de seu quarto em um instante e calçando um par de tênis enquanto saía outra vez. Cinco minutos depois, já estava caminhando ao lado de pelo grande corredor dos dormitórios — Aqui é bem maior, e muito melhor, do que o complexo que Tony… — Steve parou por um segundo e engoliu seco — ...que Tony fez para os Vingadores.
notou o quanto falar em Tony parecia ser difícil para Steve. Ele ainda estava fragilizado pelo o que tinha acontecido na Sibéria e não era para menos. Ele tinha enfrentado o próprio amigo, uma das poucas pessoas que o acolheu desde que tinha descongelado. Tony era como um irmão e Steve confiava e gostava dele como o fazia com Bucky. Nunca pensou que, alguma vez em sua vida, precisaria escolher entre duas das pouquíssimas pessoas que lhe restaram. E aquilo estava sendo muito difícil. Ele tinha machucado Tony, por dentro e por fora, o tinha traído e tinha virado as costas para ele. Por mais genuínas e justas que fossem as razões para aquilo, ainda assim doía.
— É por isso que não tem conseguido dormir? — perguntou alguns minutos depois, olhando de lado. Steve concordou com a cabeça, em silêncio — Como você está?
Steve parou para pensar por alguns minutos, enquanto saia pela porta da frente do palácio, a seguindo por mais alguns metros em direção a um carro preto luxuoso parado ali perto. destravou o veículo sem cerimônias e entrou no banco do motorista, esperando Steve entrar do outro lado. Ele não fazia ideia de onde tirava todo aquele dinheiro, mas certamente tinha uma vida muito boa e confortável. Não demorou mais do que dez minutos para eles chegarem, Steve ainda em silêncio, pensando em como deveria responder aquela pergunta. O bar não era muito grande, mas era elegante e escurinho, todo em tons terrosos e alaranjados. A música animada lá dentro estava na altura ideal para ouvir e se divertir, mas também para conversar sem incomodar. Algumas mesas já estavam ocupadas, algumas pessoas seguiam conversando e bebendo em pé mesmo e achou melhor ficarem em um dos cantos do balcão.
Steve sentou-se ao lado dela, sentindo-se ansioso, angustiado, preocupado e, de certo modo, arrependido. Queria ter contado para Tony o que sabia sobre seus pais, queria mesmo. Mas não achou que caberia a ele mexer naquela ferida, não tinha contexto e nem sentido falar sobre aquilo quando Tony nunca, sequer uma vez, deu abertura. Steve jurava que Bucky estava morto e, mesmo depois de tê-lo reencontrado em Washington, não esperava que aquela história viria à tona algum dia - e muito menos da forma que foi. Bucky precisava de ajuda, precisava que fosse compreendido e que tivesse a chance de contar o que aconteceu com ele em setenta anos, antes de ser julgado e punido pelas coisas que fez.
— Eu acho que muita coisa aconteceu em pouco tempo, estou com dificuldades de assimilar, sabe? — Steve falou abaixando seu olhar às mãos — Quando eu descongelei anos atrás e acordei naquele hospital, mais nada fazia sentido para mim. Eu tinha perdido tudo, todos que eu conhecia, minha vida inteira. E então Natasha apareceu, e depois Tony, Clint, Bruce, Thor e Sam. Eu realmente senti por algum tempo que minha vida estava caminhando, embora sempre soube que ela jamais seria a mesma de antes. E como poderia ser? Não havia restado mais nada, mais ninguém.
nunca tinha visto Steve tão vulnerável. Estava feliz por ele confiar nela para falar sobre seus sentimentos, mas o que ela poderia dizer? Não tinha a menor ideia de como ele se sentia, como tinha sido viver tantos anos nessa solidão, preso nesse passado que ele sabia ter vivido mas que foi tirado dele. E preso nesse presente que ele não tinha escolhido viver.
— Boa noite, o que vão querer hoje? — Um atendente se aproximou deles, pelo outro lado do balcão em que estavam sentados.
— Um dry martini, com o vermute mais forte que você tiver — pediu sorrindo. Seria uma longa noite.
— Certo, e o senhor? — O atendente voltou-se para Steve, que suspirou.
— O que é vermute? — Steve olhou confuso para .
— Uma bebida à base de vinho com adição de flores.
— É claro que teriam flores — Steve riu pelo nariz e sorriu, dando de ombros.
— Você pode provar do meu se quiser, antes de… — foi cortada por Steve, que se voltava para o atendente.
— A garrafa inteira, por favor.
olhou para Steve com os olhos arregalados, surpresa pela reação dele. Steve era bastante resistente ao álcool, graças ao soro do supersoldado, e não estava realmente preocupado com o efeito daquilo. Queria a garrafa só para ter tempo o suficiente para conversar. Ele esperou o atendente sair de perto com o pedido e continuou a contar a história de antes.
— A única prova de tudo que vivi no passado era… Peggy. E ela se foi no mesmo dia em que Bucky reapareceu e, então, tudo voltou à tona outra vez. Às vezes eu sinto que tudo na minha vida é assim. Preciso perder algo para que consiga algo de volta.
Aquilo caiu como uma bomba no coração de e naquele momento, olhando Steve pegar a recém-chegada garrafa de vermute e servir em um copo, enquanto o atendente deixava a taça com o dry martini na frente dela, teve a certeza de que todos eles tinham perdido. Todos eles se sentiam daquela forma, todos tiveram que pagar caro para se transformar no que eram, tiveram que passar por cima de suas próprias vidas e das pessoas que mais amavam. Todos eles, sem exceção. Todos tiveram que perder para ganhar, para sobreviver, para se levantar outra vez. Sorrindo tristes um para o outro, e Steve levantaram seus copos e brindaram, tomando um gole em seguida.
— Eu estou cansado disso, sabe? — Steve voltou seu olhar novamente para , que olhava sua taça — Estou cansado de fazer esse tipo de escolha e de viver com esse medo de que algo vai ser tirado de mim de novo, a qualquer instante. Estou cansado de ser o cara que descongelou e está vivendo mais do que deveria, por tanto tempo.
— Algumas coisas não são escolhas nossas, Steve. São consequências de se fazer o que é certo. E nem sempre são boas. Tony vai entender o que aconteceu, no tempo dele. E vai te perdoar, ele vai me perdoar e talvez dar a chance de Bucky se desculpar. Ele só precisa de tempo. Você não fez uma escolha entre ele e Bucky, não fez uma escolha entre Sam ou a Sibéria, você fez o que era certo.
Steve não disse nada. Apenas desviou seu olhar até seu copo, bebendo toda a bebida de uma vez. Aquilo tinha gosto dos bares onde ia com Bucky quando eram jovens. Amargo e nostálgico, como Steve estava naquele dia, mas levemente adocicado como que, em silêncio, encheu o copo dele novamente e tomou outro gole de seu drink em seguida.
— E Peggy viveu uma vida linda, Steve. Ela se lembrou de você até o último momento em que respirou — o olhava — E embora você a amasse e achasse que ela era a única coisa que te conectava com seu passado, não é verdade. Você não morreu junto com ela e nem o seu passado ou sua felicidade. A sua vida está acontecendo e agora Bucky está de volta nela, está aqui também para te lembrar de tudo que você foi e de tudo que você ainda é.
Steve sentiu seus olhos marejarem, mas disfarçou tomando mais de sua bebida. era uma pessoa intensa, entendia os sentimentos das pessoas que estavam perto de si, como Steve nunca havia visto em outra pessoa. Ela transmitia confiança e ternura nas palavras, por mais duras que fossem e Steve se sentia confortável em se abrir com ela. sorriu sem emoção e bebericou o martini também. Em proporções diferentes, ela e Steve estavam se sentindo da mesma forma em relação ao passado, mas tinham que ir em frente.
— E sobre estar cansado, acredite, eu compartilho isso com você — Ela voltou a dizer baixo, tirando um sorriso sem emoção dele — Às vezes a gente passa tanto tempo tentando entender o que aconteceu e o que poderia ter sido diferente que perdemos a felicidade de viver o que está acontecendo agora.
— É muito difícil assimilar tudo isso, porque eu sinto falta de ser quem eu era. Sinto falta da minha casa, dos lugares que eu ia, das coisas que eu gostava de fazer, sinto falta do Bucky.
— Como era, Steve? — perguntou baixo, desviando seu olhar para Steve que a olhou ao mesmo tempo — Como era aquele tempo? Como foi… a guerra?
Steve sorriu e abaixou seu olhar para seu copo, outra vez. Pode sentir seu coração parar de bater por um momento, como se ele respondesse à pergunta que Steve mais gostava que o fizessem e que, em toda sua vida, só havia respondido duas vezes. Uma para Sam, quando participou do encontro de veteranos em Washington, pouco depois de se conhecerem. E outra agora, diante dos olhos curiosos e carinhosos de , que prestava atenção em cada detalhe da história que ele começou a contar, em sua segunda taça de martini. Steve falou sobre sua infância, sobre a morte precoce de sua família e sobre seus problemas de saúde. Contou a sobre seu desejo de se alistar, sobre como foi o processo, as mentiras, as tentativas frustradas. Steve falou por quase uma hora sobre seu relacionamento com Bucky e sobre como passaram tempos difíceis, desgastantes e traumáticos na guerra, mas também contou a ela sobre as boas memórias, os bares, bailes e passeios que fizeram juntos, os momentos que se apoiaram como uma família.
se divertia com as histórias engraçadas e não se conformou com o fato de Peggy ter sido a primeira, e única, mulher a ter aceitado sair com Steve sem precisar da interferência ou insistência de Bucky. pareceu incrédula e triste em saber que Bucky costumava ser um homem expansivo, sorridente, brincalhão e conquistador. O sonho de todas as garotas, segundo Steve. Completamente diferente do que era hoje. Steve se lembrava de tudo com tanta clareza, com tantos detalhes, que podia visualizar cada cenário, cada momento, em sua mente. Ela perguntou a ele sobre o que aconteceu quando ele se voluntariou para o Super Soldado, sobre o momento em que perdeu Bucky de vista e sobre quando acordou. Steve contou tudo, do Brooklyn dos anos trinta ao momento em que reencontrou Bucky em Washington. E feliz, ou infelizmente, o resto da história já sabia, porque tinha a vivido com ele.
— E eu acho que ter Bucky por perto agora, consciente de quem é e de quem eu sou, mas sem lembrar de muita coisa dessa época, tem me feito sentir tudo isso com mais intensidade, toda essa falta, essa nostalgia — Steve tomou um gole de sua bebida.
— Eu entendo — Ela sorriu sincera — Você é uma pessoa boa, Steve. Talvez você só precise... talvez nós precisemos... olhar o passado de um jeito diferente. Eu só não sei como faremos isso.
— Juntos — Steve olhou para ela e sorriu, a vendo retribuir abertamente — Tenho sorte de ter te encontrado, , acho que nunca tive a oportunidade de te dizer — Steve estendeu sua mão esquerda para ela que a segurou, sorridente — Não teríamos conseguido sem você, obrigado. E obrigado por me ouvir. E por pagar essa garrafa.
— Se soubesse que iria pagar, não tinha te deixado pedir — Ela brincou apertando a mão dele e logo soltando-se, indo pegar sua taça outra vez — Obrigada por ter me contado sua história, Steve. Fico feliz de ter cruzado com você e Sam, de verdade. Vocês me ajudaram a chegar até onde eu precisava e a trazer Bucky até aqui. Obrigada.
— Confesso que estou aliviado com a proposta de T’Challa de proteger Bucky — concordava com a cabeça enquanto bebia — Acho que vai ser bom para ele e você poderá ajudá-lo a se recuperar.
— Isso se ele quiser, claro. Eu não sei até que ponto servir de experiência de novo vai ser bom para ele, sabe? Tenho medo de não conseguir e gerar uma frustração muito grande nele.
— Ele confia em você. E acho que você já mostrou preocupação e interesse em ajudá-lo o suficiente para que ele não te veja como alguém que vai experienciar algo nele — Steve respondeu prontamente. respirou fundo.
— Era justamente sobre isso que queria conversar com você hoje. Como ele… está? — brincava com o palito com a azeitona dentro de sua taça, mordendo os lábios, seus olhos baixos no líquido a sua frente — Quer dizer, depois que ele descobriu toda a história, não o vi mais. Está tudo estranho, não sei o que fazer.
— Ele está do mesmo jeito que você está agora: achando que você o odeia pelo o que aconteceu — desviou seu olhar até Steve, que sorria de lado com o copo na mão, seus cotovelos apoiados no balcão a sua frente.
— E por que ele acha isso? — Ela franziu a testa.
— Bucky acha que você o culpa por seus pais terem te trocado por ele. Acha que nada disso teria acontecido com você se ele não tivesse aparecido na vida de sua mãe.
— Mas ele não tem culpa, Steve — exclamou, passando as mãos pelo rosto — E nem meus pais biológicos, embora isso seja mais difícil de aceitar. Bucky já estava lá e sem consciência nenhuma quando Hellen e Benedict chegaram, nada aconteceu de propósito. Foi uma trágica coincidência.
— Eu sei disso, mas não importa quantas vezes eu diga, ele precisa ouvir de você — Steve bebeu outro gole longo do vermute, já começando a ficar com calor — Ele está mal porque você já fez muito por ele até aqui, para chegar no final das contas e ele ser o motivo pelo qual você se transformou em uma... fada.
riu alto, batendo sua taça na bancada. Steve riu com ela.
— Você precisa parar de andar com Sam, sério.
— Só estou tentando me enturmar — Steve deu de ombros.
— Ele não foi o motivo pelo qual a fitocinese aconteceu, Steve — respirou fundo, ajeitando a coluna e comendo a azeitona de sua bebida — Isso foi um projeto do meu pai, não para mim, mas dele. E eu fui a cobaia bem-sucedida… igual você.
— Essa doeu — Steve riu com ela. Estava feliz de ver , aparentemente, lidando confortavelmente com aquela conversa. Talvez aquele fosse o mecanismo de defesa dela: rir para não chorar.
— E por que ele está preso no quarto? — bebeu todo o conteúdo de seu copo de uma vez e fez sinal com a mão para o atendente trazer outro.
— São muitas informações novas, muitas lembranças e ele está com medo das memórias arem e ele perder o controle. Ele tem medo do soldado invernal voltar, de tudo que a Hydra colocou na cabeça dele despertar de novo. E você sabe bem como ele fica quando isso acontece.
— Como se um quarto fosse segurar o Soldado Invernal — bufou — E mesmo se acontecesse, nós sabemos como segurar ele e sabemos como nos defender. Ele não precisa se esconder.
— Eu concordo, mas Bucky é muito inseguro, você sabe. Ele se culpa por tudo, mesmo por coisas que ele não tem relação alguma. Por tudo que ele passou, ele não se sente parte de mais nada e nem se sente seguro em ser ele mesmo. Ele vive a todo instante com medo de ferir as pessoas ao redor dele e não sabe reagir a certas emoções.
— Ficar trancafiado no quarto não vai ajudar também — fez um biquinho discreto, vendo o atendente encher a taça dela outra vez. Steve já tinha bebido mais da metade da garrafa.
— Ele não sabe reagir a você, — Steve a olhou ao mesmo tempo que ela o encarou de volta — E não é por nada que você fez ou falou e nem porque você foi invasiva, se é isso que está pensando. É só que… você deu atenção para ele, você se preocupou, você lutou por ele, o defendeu, o protegeu. Você foi carinhosa, fechou as feridas físicas dele e, sem querer, está fechando as emocionais também. Ele precisa disso tudo, precisa mesmo, mas ele não sabe lidar com isso, tudo é novo, não se lembra se algum dia já teve algo parecido e ele se sente bem perto de você, como se nunca fosse tempo o suficiente. Mas está confuso sobre como reagir a esse sentimento também.
— Ele te disse isso? — Os olhos de transbordavam de emoção. Talvez o álcool estivesse potencializando as coisas, mas ela tinha gostado, e muito, de saber daquilo.
— Sim, mas ele não precisava nem dizer, não é? É nítido — Falou Steve a olhando de rabo de olho. pareceu confusa por alguns instantes, sua testa franzida.
— Mas você também fez e continua fazendo tudo isso por ele, Steve, não entendo porque ele se sente assim comigo.
— Com você é diferente porque você é uma pessoa nova para ele, e ele não esperava nada de você — Steve sorriu calmo para ela — Eu já o conhecia e ele pode imaginar como eu me sinto tendo ele por perto, porque ele se sente da mesma maneira. Nós somos a família um do outro, mas você não, . Ele não sabe dizer como você se sente e nem o que pensa dele, não está seguro sobre você o querer ajudar e nem consegue pensar no que vem a seguir, no que esperar.
— Eu não queria que ele ficasse confuso assim, só queria… ajudá-lo — Ela respondeu fundo, ajeitando suas pernas cruzadas na banqueta alta. Seu olhar em seu copo uma vez mais naquela noite — Achei justo que ele soubesse da história toda, é sobre a vida dele também.
— Você está ajudando, desde quando decidiu procurar por ele. Nada disso é ruim, é só...confuso. Vocês precisam conversar e, com o tempo, tudo vai se ajeitar. Ele vai se acostumar com essa nova vida, com ter você por perto, Bucky só precisa absorver primeiro o que está acontecendo.
— Você acha que eu devo, mesmo, conversar com ele? Talvez fosse melhor esperar ele absorver tudo isso sozinho, ter tempo para pensar, não sei — Ela olhou o par de olhos azuis que a encarava.
— Se ele fosse te culpar por alguma coisa, , ele já teria feito quando você contou a Tony sobre a responsabilidade da sua mãe — Steve pensou em voz alta — Posso não saber mais muita coisa sobre ele, mas tenho certeza absoluta de que ele não tem motivo algum para te culpar por qualquer coisa que aconteceu. Você não tem que se preocupar com isso.
— Eu não sei porque me sinto tão...incerta em relação a ele, sabe? — Ela suspirou.
— Acho que passamos tempo demais atrás de Bucky e agora que ele está aqui, tão perto e tão diferente do que pensávamos que seria, não sabemos como reagir — Steve umedeceu os lábios com bebida.
— Pelo menos temos um ao outro para compartilhar isso — Ela sorriu e fez uma careta em seguida — Preciso comer, é sério!
Steve riu e fez sinal para o atendente que, prontamente, foi até eles com cardápios. amava o Boko, vivia naquele bar e já tinha decorado todas as opções. Então, sem nem precisar pensar muito, ela pediu bolinhos de chakalaka de grão-de-bico e, como uma boa anfitriã, hambúrguer e batatas-fritas para o americano que a acompanhava. Steve pareceu satisfeito com o pedido, estava com tanta fome que encararia o que viesse sem reclamar.
— Obrigada pela conversa, Steve — sorriu para ele.
— Acho que fizemos uma ótima terapia hoje — Steve sorriu de volta e a mulher riu.
— Eu fico impressionada com o drama que ronda esse nosso grupo, a gente precisa resolver nossas questões internas, urgentemente.
— Bom, pelo menos nós dois começamos hoje — Steve sorriu, vendo a amiga fazer o mesmo — E agora temos que nos preocupar com Sam.
— Karl e Everett voltaram para a Alemanha hoje à tarde. Se eles não nos derem notícias até amanhã, podemos falar com Sharon, ela deve ter alguma pista — Ela pensou alto e viu Steve morder os lábios. O simples fato de mencionar Sharon já o deixava envergonhado.
— , sobre isso, posso te perguntar uma coisa? — Ele perguntou ligeiramente envergonhado, seu rosto estava vermelho.
— Claro — Ela o olhou curiosa, mas logo desviou para os pratos que o atendente colocava em sua frente, com os pedidos que fizeram.
— Depois que… — Ele limpou a garganta — Depois que a gente beija alguém, o que… o que vem depois?
— AAAAAAAAA — soltou um gritinho animado, que até assustou o atendente. Aquilo era extremamente fofo.
— Por favor, não me deixe com mais vergonha — Steve enfiou uma batata frita na boca — É só que...eu não sei direito o que fazer nesses tempos, os costumes são tão…. diferentes. Não sei o que esperam de mim nessas situações.
— Steve, isso é muito FOFO — comentou animada, mordendo um de seus bolinhos — Toma, prove esse.
Steve revirou os olhos, totalmente constrangido e aceitou um dos bolinhos que havia pedido, o comendo inteiro, de uma única vez.
— Um homem de cem anos de idade… fofo — Ele murmurou mastigando, riu — Meu Deus! Isso é muito bom!
— Tudo bem, desculpe! Você pode ligar para ela, ou mandar uma mensagem, perguntar como ela está e puxar conversa. É sempre legal conversar depois dessas situações… — mordeu outro pedaço — ...para não criar um clima chato, sabe?
— E você acha que ela vai querer conversar comigo? — Ele coçou o queixo por um momento, intrigado.
— Todos concordamos que não foi o melhor momento para você ter decidido beijar ela, mas com certeza ela vai querer conversar com você. Quem em sã consciência não quer conversar com você?
— Você poderia me emprestar seu celular? Eu não tenho um aqui — Ele pediu gentil, tinha gostado da ideia, uma conversa não faria mal.
— Você está em Wakanda, Steve, o que não faltam são aparelhos de telefone — o olhou como se fosse óbvio e voltou a comer — Vamos pegar um com Shuri e então te passo o número de Sharon.
— Tudo bem. Eu só não sei… — Steve começou a dizer pensativo outra vez, limpando os dentes com a língua — Você me ajuda a escrever uma mensagem que seja legal?
sorriu abertamente. Aquilo tudo era realmente muito fofo e um tanto quanto cômico. Steve Rogers não sabia lidar com relacionamentos amorosos. O Capitão América estava pedindo ajuda para chegar em uma garota! Ela tinha que contar para Sharon.
— Só se você tiver realmente intenção de ficar com ela — o encarou séria, tomando o último gole de sua bebida — Sharon gosta de você, gosta mesmo, e eu não quero que ela entenda errado.
— Eu gosto dela também, mas a gente nunca teve muito tempo e nem lugar para ficar juntos, é... complicado.
— Tristes consequências de sermos quem somos — Steve concordou com a cabeça, terminando de comer. sorriu sem mostrar os dentes — Ou achamos pessoas como nós ou tudo fica muito difícil. Imagina para mim ou para Wanda, que não conseguimos separar nossos poderes de quem somos. Quem é que quer se relacionar com alguém assim?
— Nenhum pretendente à vista? — Steve olhou para , que negou com a cabeça prontamente.
— Por que? Está interessado? — o olhou de um jeito sensual que fez Steve desviar o olhar, mas logo voltou-se para ela, sorrindo.
— Eu não, mas eu tenho um amigo. E não é o Sam — riu e negou com a cabeça.
— Todos os últimos foram babacas demais para aguentar o peso de namorar uma fada. Será que seu amigo aguentaria?
Steve riu com a fala de , entrando na nem tão brincadeira assim. era uma das mulheres mais fortes, independentes e lindas que ele já havia conhecido. E, especialmente naquele dia, leve, risonha, casual, ela estava muito atraente. Steve lembrou-se de Bucky comentando, dias antes, o quanto se sentia bem com ela por perto e o quanto gostaria de a chamar para dançar, se isso ainda fosse possível nos dias atuais. Não era possível, mesmo, que não tivesse uma legião de caras atrás dela, como havia de garotas atrás de Bucky no passado. Talvez só estivesse sendo modesta e os olhares constantes dos atendentes do bar nela só confirmavam isso. Por outro lado, era realmente complicado ter qualquer tipo de relacionamento sendo quem eram. Poucas eram as pessoas dispostas a correr riscos para ficar com eles. Estavam sempre se arriscando, sempre vivendo em lugares diferentes, com passados e presentes tão caóticos que seria difícil entender e conciliar se o relacionamento não fosse também com alguém igualmente caótico.
— E acho que todos eles se sentiam meio mal por eu estar totalmente dedicada a encontrar Bucky — Ela mordeu os lábios, reflexiva — Quer dizer, como você se sentiria se a garota que está saindo estivesse, na verdade, constantemente buscando outro cara?
— E valeu a pena ter aberto mão dos seus relacionamentos para encontrar ele? — Steve a encarou. Aquela era uma pergunta bastante íntima, ele sabia. pensou por algum tempo e suspirou.
— Sinceramente? — Ela o olhou e sorriu de lado, tímida — Faria tudo outra vez se fosse preciso. De longe, Bucky vale mais a pena do que qualquer um deles.
— Agora é a minha vez de dizer que isso foi fofo — gargalhou e deu-lhe um tapinha no ombro.
— Enfim, acho que já estou acostumada com a ideia de ficar sozinha — Ela deu de ombros — Teve uma vez que envenenei um cara beijando ele, foi horrível.
— Como é que é? — Steve quase cuspiu sua bebida, rindo alto.
— Para de rir, foi sério — tentou segurar a risada mas não aguentou — Eu tinha treze anos, era meu primeiro beijo, não sabia controlar a fitocinese direito ainda e estava nervosa. A reação do meu corpo foi envenenar ele com oxalato de cálcio assim que a gente começou a se beijar. O garoto caiu para trás, começou a inchar e a asfixiar e o mais irônico de tudo isso é que a planta responsável por esse veneno chama “comigo-ninguém-pode”.
Steve foi para trás com o corpo e segurou em , rindo tão alto que chamou atenção de algumas pessoas que passavam perto deles. riu com ele, negando com a cabeça. Ao menos, hoje em dia, aquela história servia para dar boas risadas. Na época, mesmo ficando tudo bem com o garoto, foi denunciada pela mãe do menino à corte criminal e precisou ficar seis meses fora do país até que o rei T’Chaka conseguisse abafar a história. Se tinha uma dose de drama e tragédia em muitos momentos da vida de , havia também uma dose de conformidade e alegria em ser quem ela era. O que poderia fazer senão aceitar a si mesma?
— Pelo jeito com você ninguém pode mesmo — Steve comentou ainda rindo, recuperando-se. revirou os olhos, risonha, com o comentário de tio do amigo.
— Se você contar para o Sam eu te mato — levantou-se do banquinho e apontou para ele.
— Pode ter certeza de que eu vou contar — Ele tomou o último gole de sua bebida, sorrindo com o copo na boca.
— Não seja fofoqueiro, Steve, desse jeito eu vou morrer sozinha e a culpa vai ser sua — fez um falso drama, pensando na encheção de saco de Sam com ela quando descobrisse aquilo.
— Não sou eu quem tento matar as pessoas beijando elas — Steve defendeu-se, levantando-se também.
— Foi só uma vez! E no final das contas ele mereceu — Ela deu de ombros e riu com Steve, que negou com a cabeça — Só vai sobrar eu e a Wanda nesse mundo, é isso.
— Não vai não. Visão tem claramente uma queda por ela — Steve disse animado.
— E isso é possível? Ele não é uma… inteligência artificial? — estava confusa e era possível ver isso nítido em seu rosto.
— Eu não posso opinar sobre isso — Steve riu fraco — Mas sobre você, bom, depois da conversa de hoje, meu palpite é que isso logo vai mudar. E não vai demorar muito.
revirou os olhos envergonhada pelo teor das palavras de Steve e chamou o atendente, outra vez, para pedir a conta. Steve sorria abertamente enquanto a observava pagar a conta e o atendente recolher os pratos e a garrafa praticamente vazia. Bucky não era um acaso na vida de . Ele era o motivo pelo qual ela tinha virado o que virou e a razão pela qual ela vivia desde então. Bucky era o projeto de vida dela e ela estava disposta a fazer o que fosse para ajudá-lo e para terminar o que seus pais biológicos haviam começado: a reversão do controle mental. Em silêncio e em segredo, Steve achou que, talvez, e Bucky estivessem destinados um ao outro e logo, com sorte, eles descobriram isso. Ao menos era o que Steve torcia para acontecer.
— E tem a esposa de Clint — Steve voltou a dizer, assim que aproximou-se dele outra vez — Ela não é como ele, é uma mulher normal, isso me dá esperanças.
A mulher riu e seguiu caminhando com Steve, que parecia mais feliz e leve do que quando eles chegaram no bar. Pelo álcool ou pela conversa, talvez uma mistura dos dois, ele se sentia melhor, mais seguro e menos aflito. Ter alguém em quem se apoiar era, de fato, um privilégio para Steve, um homem sozinho e fora de seu tempo. Entrando de volta no palácio, perto da meia noite, Steve percebeu que também era sua família. Um membro novo, que havia acabado de chegar nos Vingadores, mas que tinha tanto valor quanto os mais antigos. E ele estava feliz em notar aquilo.
Steve havia perguntado à ela sobre os dias em que passou fora, falou sobre o quanto ficou preocupado com a possibilidade de ela ter ido embora outra vez e tagarelava sobre os Jabari, quando entraram na sala de estar. Tinham que, necessariamente, cortar aquele cômodo para chegar até os quartos e, assim que entraram nele, rindo e falando alto, algo imediatamente os calou. Bucky estava sentado em um dos sofás, a cabeça baixa e seus cabelos caindo em frente ao seu rosto, a perna direita tremendo como se estivesse nervoso, aflito. Ele segurava um pequeno caderno na mão e havia, ao lado dele, no grande sofá de couro branco, uma caixa fina e comprida, que soube identificar mesmo olhando de longe.
O silêncio tomou conta do ambiente assim que Bucky subiu seu olhar até Steve e e se levantou em um pulo, deixando o caderno sob o sofá. Parecia que estava sufocando por dentro, tamanha confusão em sua mente, e sentiu seu coração acelerar. Eles se encararam por alguns instantes, mas era diferente do que tinha acontecido mais cedo, o clima não parecia tão estranho. Talvez Steve e T’Challa tivessem feito um ótimo trabalho em segredo. Tinham combinado isso dias antes, quando estava com os Jabari e Bucky trancado em seu quarto, e, aparentemente, estava dando certo. Steve contou para como Bucky estava se sentindo diante daquela situação e T’Challa, aproveitando que estava com Steve, fez o mesmo com Bucky. T’Challa tinha usado o treino para conversar com ela e incentivar que fosse até Steve e, vencida essa etapa, convidou Bucky para jantar.
— Eu posso… — Bucky parou de falar um momento, olhando inseguro para Steve que assentiu com a cabeça, como se o desse confiança para continuar. Ele limpou a garganta e voltou a encarar — A gente pode conversar?
— Você tem que parar de fazer isso, T’Challa! Qualquer hora vai me ver nua sem querer — Ela comentou alto, terminando de se vestir.
— Como se isso já não tivesse acontecido antes — T’Challa respondeu irônico, ela bufou.
— Mas não precisa acontecer de novo — saiu do banheiro e deu uma olhada rápida no holograma. T’Challa estava com roupas de academia, parecia cansado e sério demais para quem estava apenas terminando mais um dia — Boa tarde, alteza.
— Boa tarde, princesa – O homem rebateu acenando com a cabeça — Treinamento em… três minutos agora.
— Eu acabei de sair do banho — Ela resmungou preguiçosa.
— Eu tenho um trono para conseguir em duas semanas, , me ajuda — Ele implorou.
— Você sabe que ninguém vai te desafiar pela coroa, deixa disso — Ela deu de ombros, juntando algumas peças de roupa espalhadas pelo quarto e as jogando no closet.
— M’Baku não te disse nada? — T’Challa perguntou intrigado.
— Ele nem foi me encontrar — Ela bufou irônica — Quatro dias inteiros ajudando os Jabari e nem um mísero “obrigado, ”. Ele definitivamente me odeia.
— A todos nós, parece.
— Você acha mesmo que existe alguma chance de ele te desafiar? Quer dizer, os Jabari não participam da coroação há décadas — perguntou pensativa. Pelas histórias que ouviu em todos os anos vivendo em Wakanda, os Jabari não pareciam preocupados com a governança do país.
— Agora é diferente — Ela pode ouvir T’Challa respirar fundo — M’Baku é o líder deles e ele tem sede de poder. Ele não teve oportunidade de contestar meu pai, mas vai ter de contestar a mim.
— Se ele vencer, eu vou ser a primeira a ser expulsa do país — Ela fez uma careta.
— Mais um motivo para você me ajudar a treinar, anda — T’Challa insistiu e suspirou fundo.
— Tudo bem, tudo bem, vou me trocar de novo e já desço aí em cinco minutos.
— Dois minutos, no máximo — O holograma de T’Challa desligou antes de ouvir o xingamento de .
Pouco mais de uma semana havia se passado desde que voltaram a Wakanda e tudo parecia estranho, silencioso demais. dedicou todo o tempo possível para ficar com seus pais, enquanto eles ainda estavam no país, e a seguir um trabalho que tinha em mente, em seu laboratório. Os dias foram passando devagar, mas bem ocupados e aquilo ajudava, e muito, a lidar com toda a situação. Ter Karl e Everett por perto, naquele momento, tinha sido a melhor das opções possíveis. ficou com eles nos cinco dias seguidos que sucederam seu retorno ao país, mas logo surgiu uma emergência com os Jabari. O solo das montanhas não era fértil o suficiente para aguentar um ano todo de plantações e eles tinham problemas recorrentes para alimentar a população local. sempre era chamada para ajudar e sempre ficava alguns dias com eles, para ter certeza de que tudo correria bem. E dessa vez não foi diferente. Quatro dias depois, recém-chegada de volta à Birnin Zana, capital de Wakanda, Karl e Everett precisaram ir embora, tinham que voltar aos seus respectivos trabalhos. Muita coisa envolvendo o Tratado de Sokovia estava acontecendo e eles tinham que apagar o fogo que , Steve, Sam e Bucky tinham acendido, antes que a situação piorasse para os quatro. E falando em Sam, havia pedido aos pais que dessem um jeito de descobrir o que tinha acontecido com ele e a avisasse. Fosse o que fosse, ela iria atrás dele - e tinha certeza de que Steve também.
Mas de todas as coisas que haviam acontecido com ao longo da semana, uma delas a estava despertando atenção e gerando certa ansiedade. Ela não tinha tido a chance de ver Steve e Bucky ainda, desde que acordou e, embora todos tivessem seus dormitórios no mesmo corredor, não haviam se encontrado ainda. Preocupada com a possibilidade de eles terem ido embora e sequer se despedido dela, foi conversar com T’Challa e descobriu que, na verdade, Bucky estava trancado em seu quarto desde o dia em que chegaram em Wakanda e leram todos os arquivos de . Para ela, aquilo era horrível. Era possível que, de fato, o que ela mais temia estivesse acontecendo. Talvez Bucky a odiasse, talvez não a quisesse por perto e nem correr o risco de a encontrar ou a ver pelos corredores. Ele tinha motivos para isso, mas ela também tinha. Hellen e Benedict trocaram ela por Bucky e, se fosse para alguém ter raiva daquela história, essa pessoa deveria ser . Não deveria?
Karl e Everett chegaram a conversar com Bucky. Eles tinham conseguido trazer de Berlim todos os pertences que a força-tarefa tirou do apartamento de James em Bucareste e fizeram questão de trazê-los até ele. Everett contou para a filha que, nos dias em que ela ficou com os Jabari, eles foram entregar as coisas para Bucky. Se desculparam por tê-lo prendido, por não terem tido a chance de avisá-lo antes da força-tarefa invadir a casa dele e por tudo ter sido do jeito que foi. Karl comentou que Barnes parecia extremamente triste, estava calado e só falou para agradecê-los por terem o ajudado e para perguntar se estava bem e onde estava. Bucky também havia pedido para ficar com os arquivos que trouxeram da Hydra e, em outro momento posterior, Steve contou a Karl e Everett que Bucky estava com muitas dificuldades de assimilar o que tinha descoberto.
Para aquilo tudo fazia sentido, mas não era o suficiente. Parecia que ele a estava evitando e ela não queria isso. Agora que ele sabia de tudo, que ela sabia de tudo, eles não podiam só conversar e terminar isso de uma vez por todas? já tinha conversado com seus pais, já tinha conversado com T’Challa. Todos eles a tinham acalmado e todos tinham entendido o lado dela, só faltava Bucky. E ela ainda estava disposta a ajudá-lo, estava disposta a terminar o que seus pais biológicos começaram a tentar fazer com ele e agora que estavam em Wakanda, não tinham mais nada a perder. Estavam seguros, protegidos, acolhidos. Tinham recursos e tinham um ao outro. Por que ele estava se escondendo dela? Ela respirou fundo, terminando de calçar seus tênis esportivos e fazendo um rabo de cavalo alto e trançado. pensou por um instante que, talvez, não tivesse sido uma boa ter pedido para ele ver o que tinha na caixa. Mas aquilo era o certo a se fazer. E tinha que arcar com as consequências agora.
E embora estivesse insegura, não podia controlar o que Bucky iria sentir. Não havia nada que ela poderia ter feito para mudar aquilo e não tinha nada que poderia fazer agora para alterar o passado. As decisões ruins foram de Hellen e Benedict e não dela, e eles tiveram que lidar com o caos, o medo e a violência de alguma forma. não sabia dizer se, na mesma situação que eles, teria feito diferente. Não os poderia julgar, mas sim apenas lamentar que tudo foi como foi. queria se lembrar deles, queria ter as boas lembranças de uma infância em Nice, de como era viver com o casal de cientistas. E, embora fosse reconfortante ter, finalmente, descoberto quem eram e o que tinham feito com ela, aquilo doeria por um longo tempo. sabia que tinha sido uma vítima da Hydra, como Bucky foi, como Hellen e Benedict foram. Mas ainda precisava aprender a lidar com o remorso de ter explodido sua própria família. estava segura de que se Bucky não a entendesse, ele então não a merecia, era isso que Everett havia dito, e era assim que as coisas seriam dali em diante.
Mas foi só ela pisar para fora do quarto para toda aquela confiança em si mesma desvanecer. Como se ele tivesse ouvido os pensamentos dela, Bucky estava parado na porta de seu quarto, recebendo um lanche da tarde de Aziza, uma das governantas. Para ele, foi só ouvir a porta do quarto, há poucos passos do seu, abrir, e depois fechar, para seu coração bater mais forte. parou imediatamente ao fechar a porta atrás de si, olhando Bucky com tanta intensidade que, talvez, fosse possível ver através dele. Bucky estava usando uma calça de sarja preta e uma regata da mesma cor, tão grudada em seu corpo que precisou desviar sua atenção até o rosto dele para não ficar vermelha. Os machucados já estavam começando a desaparecer e a barba estava mais alta do que da última vez em que ela o havia visto, no avião.
Os olhos mais lindos que já tinha visto em toda sua vida a encaravam de volta e Bucky umedeceu os lábios com a língua. Ela parecia a caminho de treinar, a calça legging de cós alto e o top em um tom de rosa claro, combinando, ressaltavam o corpo dela e a deixavam extremamente sensual, seu cabelo perfeitamente preso em um rabo de cavalo e seu olhar sério nele, a deixavam ainda mais linda. Ela parecia estar fisicamente bem, não havia mais nada senão cicatrizes, pequenos machucados e roxos espalhados pela parte exposta de seu corpo. Aquilo era um alívio para Bucky - mesmo já sabendo daquilo, por ter feito Steve perguntar todos os dias por ela para Shuri.
O silêncio já estava ficando constrangedor e nenhum dos dois queria desviar o olhar. Sem se dar conta disso, ou relutando para aceitarem, eles sentiam falta um do outro. Toda a intensidade e o caos das últimas semanas, a convivência diária, a preocupação e a proximidade, não combinavam com aquela vida pacata e calma de Wakanda. queria perguntar se ele estava bem e queria conversar com ele sobre o que tinha acontecido no passado, saber o que ele estava pensando. Bucky queria saber por onde ela tinha andado todos esses dias e por que parecia que ela estava se escondendo dele. Ele chegou a ir até a porta do quarto dela, duas ou três vezes, em madrugadas que não conseguiu dormir, mas não teve coragem de bater. Talvez ela o odiasse por seus pais o terem escolhido no lugar dela. E ele se odiava por ter sido o motivo pelo qual ela foi sequestrada, torturada e feita de experimento pelas mãos do mesmo homem que fez tudo aquilo nele. Bucky chegou a abrir a boca para dizer algo, mas foi mais rápida:
— Eu… — começou a dizer, mas logo foi cortada.
— Senhorita Lamarck, me desculpe, não havia te visto — Aziza, a governanta, virou imediatamente ao ouvir a voz dela e fez um sinal para , com os braços, que chamou atenção de Bucky.
— Sem problemas, Azi, eu… eu estou de saída só — comentou de volta, a cumprimentando da mesma forma, cruzando seus braços em um x perfeito em frente ao peito, as mãos fechadas em punhos, e abaixando o olhar. Não era o melhor momento para conversar com Bucky.
— A senhorita quer comer algo? Posso trazer também, como trouxe para o Sargento Barnes — Ela ofereceu simpática, com um grande sorriso no rosto.
— Não, obrigada, fica para uma próxima. Preciso me encontrar com T’Challa — sorriu de volta para ela, dando alguns passos mais longe.
— Tudo bem, se precisar de algo me avise — Aziza respondeu prestativa.
— Obrigada, Azi! Sargento Barnes — os cumprimentou, sem desviar os olhos de Bucky. A formalidade excessiva em sua voz baixa, imitando a forma em que todos em Wakanda o chamavam.
Sargento. Aquilo vindo de soou tão sexy para Bucky, que ele sentiu seu corpo esquentar. Ele pressionou os lábios, sem desviar seu olhar dela, e assentiu discretamente com a cabeça, a vendo, segundos depois, se afastar pelo corredor. Toda aquela cena tinha sido estranha, em muitos sentidos. Ele queria falar com , queria ouvi-la, queria vê-la e queria senti-la. Queria poder ficar tão perto dela quanto ficaram no avião, a caminho de Wakanda. Bucky tinha que dar um jeito de resolver as coisas. Se realmente não o quisesse ver e nem falar com ele, ela não teria reagido daquela forma. Talvez Steve tivesse mesmo razão em insistir milhares de vezes por dia que ele a procurasse e que conversassem. Por mais doloroso que tudo aquilo fosse, era inevitável. Eles já tinham sido ligados no passado e, agora, tinham que encarar isso no presente. Bucky queria recomeçar com . E se ela também quisesse, poderiam ajudar um ao outro a virar aquela página.
— Você sabe que ela não quer ser resgatada, não sabe? — perguntou arfando, enquanto corria ao lado de T’Challa.
— Ela precisa de ajuda, caiu em uma rede de tráfico de pessoas — T’Challa rebateu ofegante.
— Ela não caiu em uma rede de tráfico, ela está tentando desmantelar a rede, é bem diferente.
— Por Bast, , eu só quero ter certeza de que ela está bem — T’Challa estava realmente preocupado e seu tom de voz deixava claro.
— Ela vai te matar por isso, só estou te alertando — o olhou de lado.
— É melhor do que ela morrer — Ele respirou fundo, ainda correndo com ao seu lado — Eu sinto falta dela, queria que ela participasse da cerimônia.
— Eu sei — sorriu para ele — Só não sei se essa é a melhor maneira de convidá-la. E eu não entendo porque vocês não ficam juntos de uma vez por todas.
T’Challa parou de correr e encarou a amiga que, assim como ele, também parou. apoiou suas mãos em seus joelhos e o olhou de volta, suas respirações descompassadas, arfando. Estavam correndo a pouco mais de duas horas, T’Challa precisava aumentar sua resistência. Ele a olhou e sorriu de lado, discreto.
— É tão óbvio assim? — riu alto.
— Desde que vocês tinham o que… quinze anos? Por favor, T'Challa, conta outra — Ela colocou as mãos na cintura, o encarando sorridente — Wakanda inteira sabe que vocês se gostam.
— Gostar é pouco — Ele sorriu mais abertamente — Eu sou completamente apaixonado por Nakia.
— E então, o que o impede de dizer isso a ela?
— Eu já disse. Milhares de vezes. Mas ela escolheu viver pelo serviço humanitário — Seu sorriso enfraqueceu — Nós temos realidades diferentes. Ela não quer e não seria feliz vivendo dentro de um palácio e participando de reuniões do governo.
— Vocês já conversaram sobre isso? — olhou para os lados, o parque mais vazio do que de costume. O sol lindo começando a cair.
— Mais do que você imagina. Ela está certa sobre o caminho que quer seguir e eu tenho que seguir o legado de meu pai. Não vou forçá-la a nada. Vou esperar por ela e pelo tempo que for preciso.
não conteve o sorriso, achando aquilo muito fofo da parte dele. Nakia era uma mulher linda, independente e muito justa. Se preocupava com as pessoas ao seu redor e nunca foi de ceder a privilégios. Enquanto houvesse alguém em que ela pudesse ajudar, ela faria tudo o que fosse possível - mesmo que isso significasse abandonar a própria vida. T’Challa tinha se apaixonado por ela anos atrás, quando se conheceram ainda adolescentes. Desde então, ele nutria o amor e a esperança de que algum dia ela aceitasse viver a vida com ele. T’Challa não era muito de falar sobre isso abertamente, ainda mais depois que Nakia deixou Wakanda para trabalhar em prol de pessoas vulneráveis, mas ele se sentia confortável em se abrir com sua irmã e com .
— Eu acho que ela vai repensar quando você for coroado — comentou vendo o homem a chamar com a cabeça para que eles seguissem caminhando de volta — Quer dizer, pense só a quantidade de projetos humanitários que ela não poderia desenvolver com os recursos de Wakanda? Talvez ela se interesse por isso.
— Está dizendo que ela só vai me querer para poder pegar os recursos da coroa? — T’Challa fingiu-se afetado, mas riu.
— Claro que não! — o empurrou levemente com o ombro — Ela gosta de você e o que eu quero dizer é que: você sendo rei, ela pode unir o amor por você ao amor pelo trabalho dela.
— Você acha mesmo que ela aceitará ficar comigo dessa vez? — Ele estava pensativo.
— Eu não sei, acho que sim — o olhou de lado outra vez — Mas Nakia é bastante cabeça dura.
— Acho que todas as mulheres de Wakanda são.
— É por isso que esse país prospera — mostrou a língua para ele, que sorriu de lado — E eu não sou cabeça dura, só para constar.
— Ah é? Já foi conversar com o Sargento Barnes depois do que aconteceu?
— Isso é diferente — Ela negou com a cabeça e voltou seu olhar para o parque à frente.
— E por que é diferente? — T’Challa insistiu, sabendo que aquele assunto era delicado para , mas tinham que conversar.
— É muito mais grave e confuso, quer dizer… isso aconteceu, mas eu não me lembro de nada e nem ele. Hellen é responsável por boa parte do que ele sofreu e depois, quando ele teve a chance de se livrar da Hydra, ele precisou trocar a vida dele pela minha — gesticulava, seu olhar preso à sua frente enquanto caminhavam tranquilamente — E tem o outro lado também. Meus pais não foram atrás de mim, porque preferiram ficar com ele. Eu realmente entendo o que aconteceu e sei que meus pais só queriam ajudá-lo depois de tudo que fizeram de ruim. Mas eu não sei se ele entendeu dessa forma.
— Se você nunca perguntar para ele, vai continuar sem saber — Respondeu T’Challa com simplicidade, como se tudo fosse assim, fácil.
— A verdade é que eu estou com… eu estou com medo de saber o que ele acha disso tudo. Estou com medo de ele me julgar e me odiar. Eu não… eu não queria perder ele.
T’Challa podia imaginar exatamente o que ela sentia. Não tinha noção de como reagiria se algo como aquilo tivesse acontecido com ele. Mas ele estava lá quando James descobriu e ele sabia que era só uma questão de tempo até eles se resolveram. T’Challa sorriu sincero com a declaração da amiga. nunca tinha sido muito aberta a seus sentimentos, sempre demorava muito para reconhecer eles, ainda mais em voz alta. Mas com Barnes parecia diferente. E ela precisava daquilo. Precisava organizar seus sentimentos e deixá-los sair, precisava que eles fossem claros para ela e, principalmente, para Bucky.
— Você não vai perder ele, ! Você tem muito a oferecer e ele precisa da sua ajuda.
— Você acha? Acha mesmo que ele não está com raiva de mim? — O olhar dela era um misto de expectativa e remorso.
— Não acho que ele esteja com raiva. Acho que ele está assustado com tudo e acho que vocês precisam conversar, fugir não vai resolver nada — Ele respirou fundo e a olhou de volta.
— Não estou fugindo, só estou… dando um tempo — fez uma careta — É muito difícil remoer o passado. E se soubesse disso antes, talvez sequer tivesse começado.
— O passado pode doer. E cabe a você decidir se quer fugir dele ou aprender com ele.
— Isso é... Rei Leão? — Ela riu, o vendo assentir.
— Achei que cabia bem no momento.
— Minha história está mais perto de ser uma live action violenta de Procurando Nemo — falou falsamente descontente e logo riu, ouvindo T’Challa gargalhar.
— Eu, você, Sargento Barnes, Capitão Rogers...nenhum de nós nasceu para ter uma história comum, . Bast nos destinou a fazer a diferença no mundo e nos cobra, todos os dias, um preço por isso. Temos que aprender a pagá-lo e a lidar com os pesos que carregamos, não nos resta outra opção, minha amiga.
apenas concordou com a cabeça e seguiu andando em silêncio por algum tempo. T’Challa tinha herdado a sabedoria de seu pai, a calma em analisar situações extremas, como aquelas, e tirar delas alguma lição valiosa para se levar pela vida. E ele tinha aprendido bem a tradição com sua mãe. Bast estava e era tudo. E enquanto assim o fosse, tudo encontraria seu caminho. sempre achou aquilo lindo, mas, igualmente, e sobretudo diante da situação em que vivia, muito difícil de ser praticado. T’Challa tinha razão em suas palavras, sempre foi daquela forma para . Ela sempre teve que aprender a lidar com o fato de ser diferente, a lidar com a natureza, com a ausência de seus pais, com a Hydra, com missões e criminosos. Lidar com seu passado, agora, era só mais um dos fardos que terapia alguma conseguiria ajudar.
— Talvez você devesse conversar primeiro com Steve, então — T’Challa sugeriu — Ele tem passado quase todo o tempo com Barnes, mas está preocupado com você também. Tem perguntado por você todos os dias e ficou realmente assustado quando soube que você não estava mais na capital.
o olhou e sorriu fraco. Steve era, definitivamente, o homem mais fofo do mundo. Sorte de Sharon. Steve conhecia Bucky como ninguém e talvez conversar com ele fosse realmente um ótimo primeiro passo, mais seguro e menos angustiante do que encarar Bucky, e a possível mágoa que ele estava de , de uma vez. Preparar o terreno era sempre uma ótima opção.
— Está certo, eu vou tentar conversar com Steve hoje, obrigada.
T’Challa sorriu de volta para ela e seguiram em silêncio caminhando para fora do parque. O céu já começava a escurecer e o clima estava ameno. Tudo parecia tranquilo e calmo demais, como T’Challa achou que não viveria outra vez depois de meses tão turbulentos desde que sumiu em Lagos. Ele olhou sua amiga passar a mão esquerda em cima de um longo arbusto e rosas vermelhas brotar nele, uma a uma, atrás dela. Tudo estava em seu lugar outra vez e T’Challa estava realmente feliz com aquilo.
— ? — T’Challa a chamou de volta. desviou seu olhar até ele, deixando o arbusto de lado. — Eu sinto muito pelo o que aconteceu com você no passado. Sinto mesmo — Ela sorriu fraco para ele, o abraçando de lado instintivamente, pela cintura, T’Challa deu-lhe um beijo no topo da cabeça — Você não deveria ter passado por isso. E eu queria que soubesse que independentemente do que aconteceu, você ainda é a nossa e nada, nunca, vai mudar.
— Eu sinto muito não ter te contado antes sobre minha busca a meus pais, sinto muito ter escondido isso por tantos anos — Ela falou ainda o abraçando — Não quero que ache que usei vocês para isso, essa é minha casa, vocês são minha família, eu só… precisava entender o que aconteceu.
— Eu sei disso — T’Challa se afastou lentamente, ainda a olhando — Shuri sempre me contou onde você estava indo quando você saia do país, sempre soube das suas missões com a Hydra, da sua busca pelo Sargento Barnes.
— Desculpa, COMO É? — perguntou estridente, seus olhos se arregalaram. T’Challa sabia de tudo esse tempo todo? E ela carregou esse pesar por anos à toa? — Por que nunca me disse isso?
— Essa era uma guerra sua, , e eu respeitei sua escolha de não me contar, sei que não queria me colocar entre você e meu pai — Ele sorriu sincero — Meu pai acreditava fazer o que era certo para você, mas sei também que a vida sempre foi sua e que você precisava de respostas. Te conheço o suficiente para saber que nada iria te impedir de chegar até onde queria e você sempre esteve preparada para se cuidar sozinha — sorriu de volta para ele, ainda assustada com a situação — Eu não poderia escolher entre você e ele, então desde que ele não soubesse e que você acreditasse que eu não sabia de nada, não teria que escolher, tudo seguiria bem. E é claro que bons irmãos ajudam uns aos outros a esconder coisas de seus pais — riu e o abraçou outra vez, mais forte.
— Obrigada por tudo — disse ainda o abraçando — Você é o irmão que eu nunca tive.
— Eu sou o irmão que você sempre teve e nunca reconheceu — Ele brincou e ela se afastou dele no mesmo instante, o empurrando levemente, enquanto começavam a entrar no palácio.
— Por essas, e por outras, eu prefiro a Shuri.
— Eu sempre soube disso — T’Challa fingiu estar magoado, mas o deu um tapinha no ombro — Obrigado por me acompanhar na corrida.
— Não vou dizer que foi um prazer, porque eu detesto correr, mas tudo bem — Ela resmungou, pegando dois copos de água do salão principal e servindo-os — Quando vai ir atrás de Nakia?
— No final da semana, talvez, precisamos ter certeza de como iremos resgatá-la — T’Challa pegou um dos copos que o estendeu e bebericou a água — Não podemos errar.
— Está certo — tomou um gole de sua água — Se precisar de ajuda com isso, me avise.
— Que bom que ofereceu, preciso ter certeza exata da localização dela. Consegue me ajudar com isso? — T’Challa a encarou sugestivo. Trabalhos de busca eram sempre a praia de .
— Ela levou o pin? — perguntou pensativa, terminando de beber sua água. T’Challa concordou com a cabeça — Perfeito, amanhã cedo calculo a rota esperada e te envio.
— Obrigado.
— Não vai me convidar para o resgate? — cruzou os braços e estreitou os olhos.
— Não — Ele negou segurando o sorriso irônico.
— Você sabe que vai precisar de ajuda com isso, porque você sabe que vai vacilar perto dela — sorriu debochada, fazendo o amigo revirar os olhos.
— Um, eu não vou vacilar e dois, você tem muito trabalho a fazer aqui com o Sargento Barnes — T’Challa deixou o copo de volta na bandeja e pegou o ombro da amiga, a olhando — Concentre-se nele. Eu posso fazer isso sozinho.
— Aposto cem dólares wakandanos que você vai vacilar e mais cem que Okoye vai ir com você — riu da cara de descontentamento do homem, que deu de ombros.
— Esteja pronta para perder, então.
negou com a cabeça e seguiu para seu quarto, rumo ao terceiro banho do dia. Esperava poder descansar depois disso, foi um dia cheio. Tinha voltado dos Jabari pela manhã, almoçado com seus pais antes de irem embora e ido treinar com T’Challa. Seu quarto estava uma bagunça de roupas para todos os lados e ela só queria comer e cair na cama, talvez ver alguma série, ou ler um livro qualquer para relaxar. Mas a conversa com T’Challa havia ficado em sua cabeça e ela estava ansiosa para encontrar e conversar com Steve. Queria o ver depois de uma semana, que mais pareciam meses, e realmente queria saber dele o que estava acontecendo. Sendo bom ou ruim, ao menos ela teria tempo de pensar em como lidar com aquilo.
O relógio ao lado de sua cama marcava sete e meia da noite e ela estava com fome. foi tirando sua roupa sem pressa, enquanto sua mente a levava até Sam. Se ele estivesse ali, certamente seria um bom ombro amigo. Poderiam sair para beber alguma coisa e conversar, Sam a ouviria e a julgaria também, com certeza. Mas, no final das contas, ele faria alguma piada idiota e asseguraria que tudo ficaria bem. sentia falta de Sam. Ela, então, entrou no espaçoso banheiro e sem se importar em fechar a porta, ligou o chuveiro. Já que não tinha Sam, por enquanto, talvez não fosse má ideia chamar Steve para beber algo.
Meia hora depois, sentindo a exaustão dos músculos relaxados depois da atividade física, ela saiu do banho, se secou e vestiu um short de cintura alta, uma camiseta sem mangas e um cinto da Gucci que Karl havia dado no último natal. Calçou um sapato qualquer, que combinava, e pegou uma das dezenas de bolsas que tinha. deu uma última olhada no espelho, retocando o batom vermelho com o dedo e saiu com cuidado de seu quarto, tentando manter o silêncio que pairava no corredor. Não queria correr o risco de chamar atenção de Bucky e, eventualmente, rolar o mesmo climão de mais cedo. Mas ela logo foi surpreendida.
— Tendo problemas para dormir? — virou-se para trás, assim que ouviu a voz baixa de Steve. Ela sorriu ao vê-lo. A barba dele começando a aparecer, seu cabelo bagunçado e as roupas despojadas, um Steve que ela não estava acostumada a ver e que, sem sombras de dúvidas, era bem mais bonito do que aquele com pose de Capitão.
— São oito horas da noite, Steve — Ele riu com o comentário, passando a mão em seu cabelo.
— Eu sou um homem velho e que tem sofrido de insônia nos últimos dias. Estou perdido no tempo… literalmente — Foi a vez de rir. Steve aproximou-se dela e a abraçou em seguida, sentindo os braços de contornarem sua cintura, retribuindo o abraço. Ela estava cheirosa e sua pele quente, o que deixava o abraço ainda mais confortável, Steve reparou.
— Aposto que a insônia é de saudades de mim — Ela brincou. Steve não queria quebrar o abraço, não sabia há quanto tempo não tinha tido um.
— É bom te ver bem, estávamos preocupados.
— O quão estranho seria se eu dissesse que senti saudades de vocês? — perguntou ainda abraçada a Steve, o ouvindo rir leve outra vez.
— Nada estranho, tudo foi tão intenso nos últimos meses que não sei mais se conseguimos viver longe uns dos outros — Steve respondeu se afastando levemente dela, mas manteve-se parado próximo.
— Eu pensei nisso. Sinto falta de Sam, estou preocupada com ele — olhou para o chão brevemente — Mais do que gostaria de assumir em voz alta.
— Ele não pode saber disso, já é convencido demais. Mas também estou preocupado. Não tenho ideia de onde ele possa estar.
— Sorte sua de estar no país mais tecnológico do mundo — disse convencida, gesticulando ao seu redor — E sorte a nossa de que meus pais irão nos ajudar com isso. Vamos encontrá-lo.
— Minha dívida com seus pais só aumenta — Steve colocou as mãos nos bolsos da calça.
— Da última vez que você disse isso, acabou beijando a pessoa. Não vai beijar meus pais, vai? — brincou, se referindo a Sharon e Steve riu mais alto do que gostaria.
— Não vou comentar sobre isso — Ele respondeu envergonhado.
— Mas deveria — o olhou com ternura mas logo apontou com a cabeça para o final do corredor — Estava vindo te convidar para beber alguma coisa. Acho que precisamos conversar.
— Seria ótimo, eu estava saindo para andar, refrescar a mente, sabe como é, mas não sei me localizar aqui — Steve comentou sincero, voltando para dentro de seu quarto em um instante e calçando um par de tênis enquanto saía outra vez. Cinco minutos depois, já estava caminhando ao lado de pelo grande corredor dos dormitórios — Aqui é bem maior, e muito melhor, do que o complexo que Tony… — Steve parou por um segundo e engoliu seco — ...que Tony fez para os Vingadores.
notou o quanto falar em Tony parecia ser difícil para Steve. Ele ainda estava fragilizado pelo o que tinha acontecido na Sibéria e não era para menos. Ele tinha enfrentado o próprio amigo, uma das poucas pessoas que o acolheu desde que tinha descongelado. Tony era como um irmão e Steve confiava e gostava dele como o fazia com Bucky. Nunca pensou que, alguma vez em sua vida, precisaria escolher entre duas das pouquíssimas pessoas que lhe restaram. E aquilo estava sendo muito difícil. Ele tinha machucado Tony, por dentro e por fora, o tinha traído e tinha virado as costas para ele. Por mais genuínas e justas que fossem as razões para aquilo, ainda assim doía.
— É por isso que não tem conseguido dormir? — perguntou alguns minutos depois, olhando de lado. Steve concordou com a cabeça, em silêncio — Como você está?
Steve parou para pensar por alguns minutos, enquanto saia pela porta da frente do palácio, a seguindo por mais alguns metros em direção a um carro preto luxuoso parado ali perto. destravou o veículo sem cerimônias e entrou no banco do motorista, esperando Steve entrar do outro lado. Ele não fazia ideia de onde tirava todo aquele dinheiro, mas certamente tinha uma vida muito boa e confortável. Não demorou mais do que dez minutos para eles chegarem, Steve ainda em silêncio, pensando em como deveria responder aquela pergunta. O bar não era muito grande, mas era elegante e escurinho, todo em tons terrosos e alaranjados. A música animada lá dentro estava na altura ideal para ouvir e se divertir, mas também para conversar sem incomodar. Algumas mesas já estavam ocupadas, algumas pessoas seguiam conversando e bebendo em pé mesmo e achou melhor ficarem em um dos cantos do balcão.
Steve sentou-se ao lado dela, sentindo-se ansioso, angustiado, preocupado e, de certo modo, arrependido. Queria ter contado para Tony o que sabia sobre seus pais, queria mesmo. Mas não achou que caberia a ele mexer naquela ferida, não tinha contexto e nem sentido falar sobre aquilo quando Tony nunca, sequer uma vez, deu abertura. Steve jurava que Bucky estava morto e, mesmo depois de tê-lo reencontrado em Washington, não esperava que aquela história viria à tona algum dia - e muito menos da forma que foi. Bucky precisava de ajuda, precisava que fosse compreendido e que tivesse a chance de contar o que aconteceu com ele em setenta anos, antes de ser julgado e punido pelas coisas que fez.
— Eu acho que muita coisa aconteceu em pouco tempo, estou com dificuldades de assimilar, sabe? — Steve falou abaixando seu olhar às mãos — Quando eu descongelei anos atrás e acordei naquele hospital, mais nada fazia sentido para mim. Eu tinha perdido tudo, todos que eu conhecia, minha vida inteira. E então Natasha apareceu, e depois Tony, Clint, Bruce, Thor e Sam. Eu realmente senti por algum tempo que minha vida estava caminhando, embora sempre soube que ela jamais seria a mesma de antes. E como poderia ser? Não havia restado mais nada, mais ninguém.
nunca tinha visto Steve tão vulnerável. Estava feliz por ele confiar nela para falar sobre seus sentimentos, mas o que ela poderia dizer? Não tinha a menor ideia de como ele se sentia, como tinha sido viver tantos anos nessa solidão, preso nesse passado que ele sabia ter vivido mas que foi tirado dele. E preso nesse presente que ele não tinha escolhido viver.
— Boa noite, o que vão querer hoje? — Um atendente se aproximou deles, pelo outro lado do balcão em que estavam sentados.
— Um dry martini, com o vermute mais forte que você tiver — pediu sorrindo. Seria uma longa noite.
— Certo, e o senhor? — O atendente voltou-se para Steve, que suspirou.
— O que é vermute? — Steve olhou confuso para .
— Uma bebida à base de vinho com adição de flores.
— É claro que teriam flores — Steve riu pelo nariz e sorriu, dando de ombros.
— Você pode provar do meu se quiser, antes de… — foi cortada por Steve, que se voltava para o atendente.
— A garrafa inteira, por favor.
olhou para Steve com os olhos arregalados, surpresa pela reação dele. Steve era bastante resistente ao álcool, graças ao soro do supersoldado, e não estava realmente preocupado com o efeito daquilo. Queria a garrafa só para ter tempo o suficiente para conversar. Ele esperou o atendente sair de perto com o pedido e continuou a contar a história de antes.
— A única prova de tudo que vivi no passado era… Peggy. E ela se foi no mesmo dia em que Bucky reapareceu e, então, tudo voltou à tona outra vez. Às vezes eu sinto que tudo na minha vida é assim. Preciso perder algo para que consiga algo de volta.
Aquilo caiu como uma bomba no coração de e naquele momento, olhando Steve pegar a recém-chegada garrafa de vermute e servir em um copo, enquanto o atendente deixava a taça com o dry martini na frente dela, teve a certeza de que todos eles tinham perdido. Todos eles se sentiam daquela forma, todos tiveram que pagar caro para se transformar no que eram, tiveram que passar por cima de suas próprias vidas e das pessoas que mais amavam. Todos eles, sem exceção. Todos tiveram que perder para ganhar, para sobreviver, para se levantar outra vez. Sorrindo tristes um para o outro, e Steve levantaram seus copos e brindaram, tomando um gole em seguida.
— Eu estou cansado disso, sabe? — Steve voltou seu olhar novamente para , que olhava sua taça — Estou cansado de fazer esse tipo de escolha e de viver com esse medo de que algo vai ser tirado de mim de novo, a qualquer instante. Estou cansado de ser o cara que descongelou e está vivendo mais do que deveria, por tanto tempo.
— Algumas coisas não são escolhas nossas, Steve. São consequências de se fazer o que é certo. E nem sempre são boas. Tony vai entender o que aconteceu, no tempo dele. E vai te perdoar, ele vai me perdoar e talvez dar a chance de Bucky se desculpar. Ele só precisa de tempo. Você não fez uma escolha entre ele e Bucky, não fez uma escolha entre Sam ou a Sibéria, você fez o que era certo.
Steve não disse nada. Apenas desviou seu olhar até seu copo, bebendo toda a bebida de uma vez. Aquilo tinha gosto dos bares onde ia com Bucky quando eram jovens. Amargo e nostálgico, como Steve estava naquele dia, mas levemente adocicado como que, em silêncio, encheu o copo dele novamente e tomou outro gole de seu drink em seguida.
— E Peggy viveu uma vida linda, Steve. Ela se lembrou de você até o último momento em que respirou — o olhava — E embora você a amasse e achasse que ela era a única coisa que te conectava com seu passado, não é verdade. Você não morreu junto com ela e nem o seu passado ou sua felicidade. A sua vida está acontecendo e agora Bucky está de volta nela, está aqui também para te lembrar de tudo que você foi e de tudo que você ainda é.
Steve sentiu seus olhos marejarem, mas disfarçou tomando mais de sua bebida. era uma pessoa intensa, entendia os sentimentos das pessoas que estavam perto de si, como Steve nunca havia visto em outra pessoa. Ela transmitia confiança e ternura nas palavras, por mais duras que fossem e Steve se sentia confortável em se abrir com ela. sorriu sem emoção e bebericou o martini também. Em proporções diferentes, ela e Steve estavam se sentindo da mesma forma em relação ao passado, mas tinham que ir em frente.
— E sobre estar cansado, acredite, eu compartilho isso com você — Ela voltou a dizer baixo, tirando um sorriso sem emoção dele — Às vezes a gente passa tanto tempo tentando entender o que aconteceu e o que poderia ter sido diferente que perdemos a felicidade de viver o que está acontecendo agora.
— É muito difícil assimilar tudo isso, porque eu sinto falta de ser quem eu era. Sinto falta da minha casa, dos lugares que eu ia, das coisas que eu gostava de fazer, sinto falta do Bucky.
— Como era, Steve? — perguntou baixo, desviando seu olhar para Steve que a olhou ao mesmo tempo — Como era aquele tempo? Como foi… a guerra?
Steve sorriu e abaixou seu olhar para seu copo, outra vez. Pode sentir seu coração parar de bater por um momento, como se ele respondesse à pergunta que Steve mais gostava que o fizessem e que, em toda sua vida, só havia respondido duas vezes. Uma para Sam, quando participou do encontro de veteranos em Washington, pouco depois de se conhecerem. E outra agora, diante dos olhos curiosos e carinhosos de , que prestava atenção em cada detalhe da história que ele começou a contar, em sua segunda taça de martini. Steve falou sobre sua infância, sobre a morte precoce de sua família e sobre seus problemas de saúde. Contou a sobre seu desejo de se alistar, sobre como foi o processo, as mentiras, as tentativas frustradas. Steve falou por quase uma hora sobre seu relacionamento com Bucky e sobre como passaram tempos difíceis, desgastantes e traumáticos na guerra, mas também contou a ela sobre as boas memórias, os bares, bailes e passeios que fizeram juntos, os momentos que se apoiaram como uma família.
se divertia com as histórias engraçadas e não se conformou com o fato de Peggy ter sido a primeira, e única, mulher a ter aceitado sair com Steve sem precisar da interferência ou insistência de Bucky. pareceu incrédula e triste em saber que Bucky costumava ser um homem expansivo, sorridente, brincalhão e conquistador. O sonho de todas as garotas, segundo Steve. Completamente diferente do que era hoje. Steve se lembrava de tudo com tanta clareza, com tantos detalhes, que podia visualizar cada cenário, cada momento, em sua mente. Ela perguntou a ele sobre o que aconteceu quando ele se voluntariou para o Super Soldado, sobre o momento em que perdeu Bucky de vista e sobre quando acordou. Steve contou tudo, do Brooklyn dos anos trinta ao momento em que reencontrou Bucky em Washington. E feliz, ou infelizmente, o resto da história já sabia, porque tinha a vivido com ele.
— E eu acho que ter Bucky por perto agora, consciente de quem é e de quem eu sou, mas sem lembrar de muita coisa dessa época, tem me feito sentir tudo isso com mais intensidade, toda essa falta, essa nostalgia — Steve tomou um gole de sua bebida.
— Eu entendo — Ela sorriu sincera — Você é uma pessoa boa, Steve. Talvez você só precise... talvez nós precisemos... olhar o passado de um jeito diferente. Eu só não sei como faremos isso.
— Juntos — Steve olhou para ela e sorriu, a vendo retribuir abertamente — Tenho sorte de ter te encontrado, , acho que nunca tive a oportunidade de te dizer — Steve estendeu sua mão esquerda para ela que a segurou, sorridente — Não teríamos conseguido sem você, obrigado. E obrigado por me ouvir. E por pagar essa garrafa.
— Se soubesse que iria pagar, não tinha te deixado pedir — Ela brincou apertando a mão dele e logo soltando-se, indo pegar sua taça outra vez — Obrigada por ter me contado sua história, Steve. Fico feliz de ter cruzado com você e Sam, de verdade. Vocês me ajudaram a chegar até onde eu precisava e a trazer Bucky até aqui. Obrigada.
— Confesso que estou aliviado com a proposta de T’Challa de proteger Bucky — concordava com a cabeça enquanto bebia — Acho que vai ser bom para ele e você poderá ajudá-lo a se recuperar.
— Isso se ele quiser, claro. Eu não sei até que ponto servir de experiência de novo vai ser bom para ele, sabe? Tenho medo de não conseguir e gerar uma frustração muito grande nele.
— Ele confia em você. E acho que você já mostrou preocupação e interesse em ajudá-lo o suficiente para que ele não te veja como alguém que vai experienciar algo nele — Steve respondeu prontamente. respirou fundo.
— Era justamente sobre isso que queria conversar com você hoje. Como ele… está? — brincava com o palito com a azeitona dentro de sua taça, mordendo os lábios, seus olhos baixos no líquido a sua frente — Quer dizer, depois que ele descobriu toda a história, não o vi mais. Está tudo estranho, não sei o que fazer.
— Ele está do mesmo jeito que você está agora: achando que você o odeia pelo o que aconteceu — desviou seu olhar até Steve, que sorria de lado com o copo na mão, seus cotovelos apoiados no balcão a sua frente.
— E por que ele acha isso? — Ela franziu a testa.
— Bucky acha que você o culpa por seus pais terem te trocado por ele. Acha que nada disso teria acontecido com você se ele não tivesse aparecido na vida de sua mãe.
— Mas ele não tem culpa, Steve — exclamou, passando as mãos pelo rosto — E nem meus pais biológicos, embora isso seja mais difícil de aceitar. Bucky já estava lá e sem consciência nenhuma quando Hellen e Benedict chegaram, nada aconteceu de propósito. Foi uma trágica coincidência.
— Eu sei disso, mas não importa quantas vezes eu diga, ele precisa ouvir de você — Steve bebeu outro gole longo do vermute, já começando a ficar com calor — Ele está mal porque você já fez muito por ele até aqui, para chegar no final das contas e ele ser o motivo pelo qual você se transformou em uma... fada.
riu alto, batendo sua taça na bancada. Steve riu com ela.
— Você precisa parar de andar com Sam, sério.
— Só estou tentando me enturmar — Steve deu de ombros.
— Ele não foi o motivo pelo qual a fitocinese aconteceu, Steve — respirou fundo, ajeitando a coluna e comendo a azeitona de sua bebida — Isso foi um projeto do meu pai, não para mim, mas dele. E eu fui a cobaia bem-sucedida… igual você.
— Essa doeu — Steve riu com ela. Estava feliz de ver , aparentemente, lidando confortavelmente com aquela conversa. Talvez aquele fosse o mecanismo de defesa dela: rir para não chorar.
— E por que ele está preso no quarto? — bebeu todo o conteúdo de seu copo de uma vez e fez sinal com a mão para o atendente trazer outro.
— São muitas informações novas, muitas lembranças e ele está com medo das memórias arem e ele perder o controle. Ele tem medo do soldado invernal voltar, de tudo que a Hydra colocou na cabeça dele despertar de novo. E você sabe bem como ele fica quando isso acontece.
— Como se um quarto fosse segurar o Soldado Invernal — bufou — E mesmo se acontecesse, nós sabemos como segurar ele e sabemos como nos defender. Ele não precisa se esconder.
— Eu concordo, mas Bucky é muito inseguro, você sabe. Ele se culpa por tudo, mesmo por coisas que ele não tem relação alguma. Por tudo que ele passou, ele não se sente parte de mais nada e nem se sente seguro em ser ele mesmo. Ele vive a todo instante com medo de ferir as pessoas ao redor dele e não sabe reagir a certas emoções.
— Ficar trancafiado no quarto não vai ajudar também — fez um biquinho discreto, vendo o atendente encher a taça dela outra vez. Steve já tinha bebido mais da metade da garrafa.
— Ele não sabe reagir a você, — Steve a olhou ao mesmo tempo que ela o encarou de volta — E não é por nada que você fez ou falou e nem porque você foi invasiva, se é isso que está pensando. É só que… você deu atenção para ele, você se preocupou, você lutou por ele, o defendeu, o protegeu. Você foi carinhosa, fechou as feridas físicas dele e, sem querer, está fechando as emocionais também. Ele precisa disso tudo, precisa mesmo, mas ele não sabe lidar com isso, tudo é novo, não se lembra se algum dia já teve algo parecido e ele se sente bem perto de você, como se nunca fosse tempo o suficiente. Mas está confuso sobre como reagir a esse sentimento também.
— Ele te disse isso? — Os olhos de transbordavam de emoção. Talvez o álcool estivesse potencializando as coisas, mas ela tinha gostado, e muito, de saber daquilo.
— Sim, mas ele não precisava nem dizer, não é? É nítido — Falou Steve a olhando de rabo de olho. pareceu confusa por alguns instantes, sua testa franzida.
— Mas você também fez e continua fazendo tudo isso por ele, Steve, não entendo porque ele se sente assim comigo.
— Com você é diferente porque você é uma pessoa nova para ele, e ele não esperava nada de você — Steve sorriu calmo para ela — Eu já o conhecia e ele pode imaginar como eu me sinto tendo ele por perto, porque ele se sente da mesma maneira. Nós somos a família um do outro, mas você não, . Ele não sabe dizer como você se sente e nem o que pensa dele, não está seguro sobre você o querer ajudar e nem consegue pensar no que vem a seguir, no que esperar.
— Eu não queria que ele ficasse confuso assim, só queria… ajudá-lo — Ela respondeu fundo, ajeitando suas pernas cruzadas na banqueta alta. Seu olhar em seu copo uma vez mais naquela noite — Achei justo que ele soubesse da história toda, é sobre a vida dele também.
— Você está ajudando, desde quando decidiu procurar por ele. Nada disso é ruim, é só...confuso. Vocês precisam conversar e, com o tempo, tudo vai se ajeitar. Ele vai se acostumar com essa nova vida, com ter você por perto, Bucky só precisa absorver primeiro o que está acontecendo.
— Você acha que eu devo, mesmo, conversar com ele? Talvez fosse melhor esperar ele absorver tudo isso sozinho, ter tempo para pensar, não sei — Ela olhou o par de olhos azuis que a encarava.
— Se ele fosse te culpar por alguma coisa, , ele já teria feito quando você contou a Tony sobre a responsabilidade da sua mãe — Steve pensou em voz alta — Posso não saber mais muita coisa sobre ele, mas tenho certeza absoluta de que ele não tem motivo algum para te culpar por qualquer coisa que aconteceu. Você não tem que se preocupar com isso.
— Eu não sei porque me sinto tão...incerta em relação a ele, sabe? — Ela suspirou.
— Acho que passamos tempo demais atrás de Bucky e agora que ele está aqui, tão perto e tão diferente do que pensávamos que seria, não sabemos como reagir — Steve umedeceu os lábios com bebida.
— Pelo menos temos um ao outro para compartilhar isso — Ela sorriu e fez uma careta em seguida — Preciso comer, é sério!
Steve riu e fez sinal para o atendente que, prontamente, foi até eles com cardápios. amava o Boko, vivia naquele bar e já tinha decorado todas as opções. Então, sem nem precisar pensar muito, ela pediu bolinhos de chakalaka de grão-de-bico e, como uma boa anfitriã, hambúrguer e batatas-fritas para o americano que a acompanhava. Steve pareceu satisfeito com o pedido, estava com tanta fome que encararia o que viesse sem reclamar.
— Obrigada pela conversa, Steve — sorriu para ele.
— Acho que fizemos uma ótima terapia hoje — Steve sorriu de volta e a mulher riu.
— Eu fico impressionada com o drama que ronda esse nosso grupo, a gente precisa resolver nossas questões internas, urgentemente.
— Bom, pelo menos nós dois começamos hoje — Steve sorriu, vendo a amiga fazer o mesmo — E agora temos que nos preocupar com Sam.
— Karl e Everett voltaram para a Alemanha hoje à tarde. Se eles não nos derem notícias até amanhã, podemos falar com Sharon, ela deve ter alguma pista — Ela pensou alto e viu Steve morder os lábios. O simples fato de mencionar Sharon já o deixava envergonhado.
— , sobre isso, posso te perguntar uma coisa? — Ele perguntou ligeiramente envergonhado, seu rosto estava vermelho.
— Claro — Ela o olhou curiosa, mas logo desviou para os pratos que o atendente colocava em sua frente, com os pedidos que fizeram.
— Depois que… — Ele limpou a garganta — Depois que a gente beija alguém, o que… o que vem depois?
— AAAAAAAAA — soltou um gritinho animado, que até assustou o atendente. Aquilo era extremamente fofo.
— Por favor, não me deixe com mais vergonha — Steve enfiou uma batata frita na boca — É só que...eu não sei direito o que fazer nesses tempos, os costumes são tão…. diferentes. Não sei o que esperam de mim nessas situações.
— Steve, isso é muito FOFO — comentou animada, mordendo um de seus bolinhos — Toma, prove esse.
Steve revirou os olhos, totalmente constrangido e aceitou um dos bolinhos que havia pedido, o comendo inteiro, de uma única vez.
— Um homem de cem anos de idade… fofo — Ele murmurou mastigando, riu — Meu Deus! Isso é muito bom!
— Tudo bem, desculpe! Você pode ligar para ela, ou mandar uma mensagem, perguntar como ela está e puxar conversa. É sempre legal conversar depois dessas situações… — mordeu outro pedaço — ...para não criar um clima chato, sabe?
— E você acha que ela vai querer conversar comigo? — Ele coçou o queixo por um momento, intrigado.
— Todos concordamos que não foi o melhor momento para você ter decidido beijar ela, mas com certeza ela vai querer conversar com você. Quem em sã consciência não quer conversar com você?
— Você poderia me emprestar seu celular? Eu não tenho um aqui — Ele pediu gentil, tinha gostado da ideia, uma conversa não faria mal.
— Você está em Wakanda, Steve, o que não faltam são aparelhos de telefone — o olhou como se fosse óbvio e voltou a comer — Vamos pegar um com Shuri e então te passo o número de Sharon.
— Tudo bem. Eu só não sei… — Steve começou a dizer pensativo outra vez, limpando os dentes com a língua — Você me ajuda a escrever uma mensagem que seja legal?
sorriu abertamente. Aquilo tudo era realmente muito fofo e um tanto quanto cômico. Steve Rogers não sabia lidar com relacionamentos amorosos. O Capitão América estava pedindo ajuda para chegar em uma garota! Ela tinha que contar para Sharon.
— Só se você tiver realmente intenção de ficar com ela — o encarou séria, tomando o último gole de sua bebida — Sharon gosta de você, gosta mesmo, e eu não quero que ela entenda errado.
— Eu gosto dela também, mas a gente nunca teve muito tempo e nem lugar para ficar juntos, é... complicado.
— Tristes consequências de sermos quem somos — Steve concordou com a cabeça, terminando de comer. sorriu sem mostrar os dentes — Ou achamos pessoas como nós ou tudo fica muito difícil. Imagina para mim ou para Wanda, que não conseguimos separar nossos poderes de quem somos. Quem é que quer se relacionar com alguém assim?
— Nenhum pretendente à vista? — Steve olhou para , que negou com a cabeça prontamente.
— Por que? Está interessado? — o olhou de um jeito sensual que fez Steve desviar o olhar, mas logo voltou-se para ela, sorrindo.
— Eu não, mas eu tenho um amigo. E não é o Sam — riu e negou com a cabeça.
— Todos os últimos foram babacas demais para aguentar o peso de namorar uma fada. Será que seu amigo aguentaria?
Steve riu com a fala de , entrando na nem tão brincadeira assim. era uma das mulheres mais fortes, independentes e lindas que ele já havia conhecido. E, especialmente naquele dia, leve, risonha, casual, ela estava muito atraente. Steve lembrou-se de Bucky comentando, dias antes, o quanto se sentia bem com ela por perto e o quanto gostaria de a chamar para dançar, se isso ainda fosse possível nos dias atuais. Não era possível, mesmo, que não tivesse uma legião de caras atrás dela, como havia de garotas atrás de Bucky no passado. Talvez só estivesse sendo modesta e os olhares constantes dos atendentes do bar nela só confirmavam isso. Por outro lado, era realmente complicado ter qualquer tipo de relacionamento sendo quem eram. Poucas eram as pessoas dispostas a correr riscos para ficar com eles. Estavam sempre se arriscando, sempre vivendo em lugares diferentes, com passados e presentes tão caóticos que seria difícil entender e conciliar se o relacionamento não fosse também com alguém igualmente caótico.
— E acho que todos eles se sentiam meio mal por eu estar totalmente dedicada a encontrar Bucky — Ela mordeu os lábios, reflexiva — Quer dizer, como você se sentiria se a garota que está saindo estivesse, na verdade, constantemente buscando outro cara?
— E valeu a pena ter aberto mão dos seus relacionamentos para encontrar ele? — Steve a encarou. Aquela era uma pergunta bastante íntima, ele sabia. pensou por algum tempo e suspirou.
— Sinceramente? — Ela o olhou e sorriu de lado, tímida — Faria tudo outra vez se fosse preciso. De longe, Bucky vale mais a pena do que qualquer um deles.
— Agora é a minha vez de dizer que isso foi fofo — gargalhou e deu-lhe um tapinha no ombro.
— Enfim, acho que já estou acostumada com a ideia de ficar sozinha — Ela deu de ombros — Teve uma vez que envenenei um cara beijando ele, foi horrível.
— Como é que é? — Steve quase cuspiu sua bebida, rindo alto.
— Para de rir, foi sério — tentou segurar a risada mas não aguentou — Eu tinha treze anos, era meu primeiro beijo, não sabia controlar a fitocinese direito ainda e estava nervosa. A reação do meu corpo foi envenenar ele com oxalato de cálcio assim que a gente começou a se beijar. O garoto caiu para trás, começou a inchar e a asfixiar e o mais irônico de tudo isso é que a planta responsável por esse veneno chama “comigo-ninguém-pode”.
Steve foi para trás com o corpo e segurou em , rindo tão alto que chamou atenção de algumas pessoas que passavam perto deles. riu com ele, negando com a cabeça. Ao menos, hoje em dia, aquela história servia para dar boas risadas. Na época, mesmo ficando tudo bem com o garoto, foi denunciada pela mãe do menino à corte criminal e precisou ficar seis meses fora do país até que o rei T’Chaka conseguisse abafar a história. Se tinha uma dose de drama e tragédia em muitos momentos da vida de , havia também uma dose de conformidade e alegria em ser quem ela era. O que poderia fazer senão aceitar a si mesma?
— Pelo jeito com você ninguém pode mesmo — Steve comentou ainda rindo, recuperando-se. revirou os olhos, risonha, com o comentário de tio do amigo.
— Se você contar para o Sam eu te mato — levantou-se do banquinho e apontou para ele.
— Pode ter certeza de que eu vou contar — Ele tomou o último gole de sua bebida, sorrindo com o copo na boca.
— Não seja fofoqueiro, Steve, desse jeito eu vou morrer sozinha e a culpa vai ser sua — fez um falso drama, pensando na encheção de saco de Sam com ela quando descobrisse aquilo.
— Não sou eu quem tento matar as pessoas beijando elas — Steve defendeu-se, levantando-se também.
— Foi só uma vez! E no final das contas ele mereceu — Ela deu de ombros e riu com Steve, que negou com a cabeça — Só vai sobrar eu e a Wanda nesse mundo, é isso.
— Não vai não. Visão tem claramente uma queda por ela — Steve disse animado.
— E isso é possível? Ele não é uma… inteligência artificial? — estava confusa e era possível ver isso nítido em seu rosto.
— Eu não posso opinar sobre isso — Steve riu fraco — Mas sobre você, bom, depois da conversa de hoje, meu palpite é que isso logo vai mudar. E não vai demorar muito.
revirou os olhos envergonhada pelo teor das palavras de Steve e chamou o atendente, outra vez, para pedir a conta. Steve sorria abertamente enquanto a observava pagar a conta e o atendente recolher os pratos e a garrafa praticamente vazia. Bucky não era um acaso na vida de . Ele era o motivo pelo qual ela tinha virado o que virou e a razão pela qual ela vivia desde então. Bucky era o projeto de vida dela e ela estava disposta a fazer o que fosse para ajudá-lo e para terminar o que seus pais biológicos haviam começado: a reversão do controle mental. Em silêncio e em segredo, Steve achou que, talvez, e Bucky estivessem destinados um ao outro e logo, com sorte, eles descobriram isso. Ao menos era o que Steve torcia para acontecer.
— E tem a esposa de Clint — Steve voltou a dizer, assim que aproximou-se dele outra vez — Ela não é como ele, é uma mulher normal, isso me dá esperanças.
A mulher riu e seguiu caminhando com Steve, que parecia mais feliz e leve do que quando eles chegaram no bar. Pelo álcool ou pela conversa, talvez uma mistura dos dois, ele se sentia melhor, mais seguro e menos aflito. Ter alguém em quem se apoiar era, de fato, um privilégio para Steve, um homem sozinho e fora de seu tempo. Entrando de volta no palácio, perto da meia noite, Steve percebeu que também era sua família. Um membro novo, que havia acabado de chegar nos Vingadores, mas que tinha tanto valor quanto os mais antigos. E ele estava feliz em notar aquilo.
Steve havia perguntado à ela sobre os dias em que passou fora, falou sobre o quanto ficou preocupado com a possibilidade de ela ter ido embora outra vez e tagarelava sobre os Jabari, quando entraram na sala de estar. Tinham que, necessariamente, cortar aquele cômodo para chegar até os quartos e, assim que entraram nele, rindo e falando alto, algo imediatamente os calou. Bucky estava sentado em um dos sofás, a cabeça baixa e seus cabelos caindo em frente ao seu rosto, a perna direita tremendo como se estivesse nervoso, aflito. Ele segurava um pequeno caderno na mão e havia, ao lado dele, no grande sofá de couro branco, uma caixa fina e comprida, que soube identificar mesmo olhando de longe.
O silêncio tomou conta do ambiente assim que Bucky subiu seu olhar até Steve e e se levantou em um pulo, deixando o caderno sob o sofá. Parecia que estava sufocando por dentro, tamanha confusão em sua mente, e sentiu seu coração acelerar. Eles se encararam por alguns instantes, mas era diferente do que tinha acontecido mais cedo, o clima não parecia tão estranho. Talvez Steve e T’Challa tivessem feito um ótimo trabalho em segredo. Tinham combinado isso dias antes, quando estava com os Jabari e Bucky trancado em seu quarto, e, aparentemente, estava dando certo. Steve contou para como Bucky estava se sentindo diante daquela situação e T’Challa, aproveitando que estava com Steve, fez o mesmo com Bucky. T’Challa tinha usado o treino para conversar com ela e incentivar que fosse até Steve e, vencida essa etapa, convidou Bucky para jantar.
— Eu posso… — Bucky parou de falar um momento, olhando inseguro para Steve que assentiu com a cabeça, como se o desse confiança para continuar. Ele limpou a garganta e voltou a encarar — A gente pode conversar?
- Capítulo 16 -
— Sim, claro — Com os braços cruzados e a expressão preocupada, concordou com a cabeça, olhando de Bucky, muitos passos à sua frente, para Steve, ao seu lado.
Steve estava nitidamente surpreso. Não esperava que Bucky fosse a procurar para conversar tão cedo, tendo em vista toda a insegurança e incerteza que estavam angustiando seu amigo na última semana, a ponto de o deixar escondido em um quarto. Por isso, até, havia conversado com T’Challa sobre a possibilidade de convencer a ir até ele, e não esperar o contrário. Mas, felizmente, parecia que Steve estava errado. Para Bucky, o surto de coragem em ter aquela conversa o quanto antes estava mais relacionado à exaustão do que a tomar iniciativas. Quanto antes conversassem, antes poderiam seguir em frente e era só isso que ele queria.
— Eu vou para meu quarto, nos falamos amanhã, boa noite — Steve sorriu sem mostrar os dentes para e, em seguida, acenou com a cabeça para Bucky, deixando a sala em segundos. Embora estivesse curioso sobre como aquela conversa aconteceria, Steve achou melhor deixá-los a sós.
O silêncio constrangedor tomou conta do grande ambiente por mais tempo do que e Bucky acharam ter passado. Mantendo-se em pé, em lados opostos da sala, nenhum deles sabia exatamente o que deveria dizer ao outro e nem por onde começar. Bucky já sabia o que tinha acontecido com ela e já sabia o que tinha acontecido com ele. Aquele era, de fato, um tema esgotado, cansativo e desgastante. Não tinham realmente que conversar sobre isso, não precisavam recontar a história, repassar detalhes e nem reviver esses momentos. Para , a última semana já tinha sido o suficiente para remoer o passado e refletir sobre como seguir para o futuro. Para Bucky, foram assim os últimos setenta anos. Nada novo sob o sol, exceto pelo fato de que, agora, não estava mais sozinho.
— Acho que para ser uma conversa, precisamos falar, não é? — quebrou o silêncio sorrindo tímida. Bucky levantou seu olhar até ela, concordando com a cabeça, mas pensou por alguns instantes antes de falar. Ele estava visivelmente confuso, como se ponderasse se deveria ou não dizer alguma coisa.
— Por que é tudo tão… difícil de dizer?
Bucky se sentia um idiota por simplesmente não conseguir falar tudo de uma vez e os lábios vermelhos de o desconcentravam. Tinha tanta coisa passando em sua cabeça que ele não sabia sequer por onde começar. Abrindo e fechando sua mão em punho ao lado do corpo, nervoso, ele pensou que, talvez, não devesse falar nada. O silêncio dele já gritava o suficiente e parecia ouvir, desde quando o encontrou. Aquilo bastava para ele, mas era mesmo o suficiente para ela?
— Porque quando falamos em voz alta parece que tudo se torna realidade de fato — Ela sorriu amargamente. Aquele era um dos clichês mais verdadeiros da vida.
— Eu não queria que nada tivesse sido do jeito que foi. É só que… — Ele parou por um momento, abaixando a cabeça outra vez, envergonhado — Como eu posso viver aqui... como eu posso te olhar todos os dias, , sabendo que o que aconteceu com você foi culpa minha?
— Do mesmo jeito que eu vou te olhar todos os dias sabendo que parte do que aconteceu com você foi culpa minha — Ela sorriu triste, dando alguns passos lentos mais perto dele.
— Mas não foi, nada disso foi culpa sua — Bucky voltou a olhá-la, assustado.
— Nada disso foi culpa nossa, Buck — A voz suave de o chamando por um apelido de seu apelido soou como um carinho para ele — Nada do que aconteceu, nada do que você fez ou passou; nada na minha vida ou na dos meus pais biológicos, não foi culpa sua. Nunca foi e nunca vai ser.
— Eu assassinei dezenas de pessoas, , eu feri centenas de outras — Parando perto o suficiente dele, ainda de frente, notou que seu olhar parecia mais sombrio do que antes, como se estivesse sendo consumido por uma grande raiva de si mesmo — Eu deixei a Hydra te sequestrar, deixei que eles fizessem o que fizeram em você, eu tinha consciência do que estava acontecendo, eu fui… egoísta, e o que isso te custou? Como pode não ser minha culpa?
Para Bucky, aquela era uma pergunta difícil de se fazer em voz alta e era ainda mais difícil de ser respondida por . Nada que ela pudesse dizer a ele mudaria o fato de que ele esteve com os pais dela enquanto a Hydra transformava em uma arma. E nada aliviaria os sentimentos de dor e de culpa que Bucky carregava dentro de si por não ter imediatamente ido atrás dela, assim que soube do sequestro. Mas sabia que aquela era a única oportunidade dele de se tornar livre novamente e sabia que, por tudo que seus pais fizeram nos anos de Hydra, perder Bucky de vista não era uma opção. Tinham que seguir em frente, terminar o que começaram, custasse o que fosse. Embora aquilo a machucasse por dentro, tinha certeza absoluta de que não teria feito diferente. Mas as mágoas de Bucky com seu passado, com tantas coisas horríveis que fez, por tanto tempo, para tantas pessoas, sem que ele sequer tivesse noção disso, o cegavam completamente.
E, por mais que fosse difícil fazê-lo entender, fazê-lo enxergar, e responder àquela pergunta, tinha que dizer algo. Aquilo era importante para ele, ele precisa ouvir isso de você, Steve havia dito. Não importava quantas vezes ele tivesse refletido sobre aquilo ou ouvido Steve o defender, dizendo que ele não tinha culpa alguma. Ouvir de talvez fosse um reforço positivo. Ela tinha que, pelo menos, insistir.
— Nada disso foi você quem fez — A voz firme e o olhar sério de o fizeram olhá-la — Se você não tivesse caído do trem durante a guerra ou se tivesse caído e não tivesse sido encontrado pela Hydra, como teria sido sua vida?
Bucky passou tanto tempo imerso em seu próprio remorso que nunca tinha pensado naquilo. Talvez, em tempos diferentes, ele tivesse seguido a vida como um homem normal. Teria voltado da guerra, se casado, tido filhos. Teria que lidar com os problemas emocionais de ser um veterano e ganharia uma boa pensão do estado, suficiente para ter uma casa confortável e, quem sabe, pagar a faculdade das crianças. Ele teria seu braço esquerdo, um gato, como sempre desejou, e uma vida tão mediana que parecia, para ele, uma linda utopia. o deixou pensar por algum tempo e, na ausência de respostas, ela suspirou. Não sabia se pela exaustão que aquele tema lhe causava ou pela quantidade de álcool que havia consumido com Steve, ela se sentiu confiante e disposta a dizer o que realmente achava.
— Você não teria feito nada diferente do que um homem da sua época costumava fazer, não é? E desde quando conseguiu se livrar da Hydra, em Washington, o que você fez, Buck? — perguntou outra vez, no mesmo tom de voz baixo e firme.
— Fui buscar respostas sobre minha vida e… me escondi em Bucareste — Ele apertou os dentes, o maxilar se movendo discretamente, como se aquilo fosse difícil para ele confessar.
— Se você fosse esse monstro que acha que é, um assassino por opção, você acha mesmo que teria escolhido visitar um museu e se esconder?
Ele continuou a encarando, seus olhos azuis tão profundos nos dela que não conseguia desviar. Bucky sabia que ela tinha razão, só não sabia porque resistia tanto em aceitar aquela verdade. Tinha sido controlado por tanto tempo, treinado, preparado, convencido de que a Hydra era sua casa e sua família que, talvez, inconscientemente, culpá-los por algo parecia uma tarefa difícil, parecia errado. E foi só conversando ali, com , que ele percebeu aquilo. E mesmo alguns anos depois, longe da Hydra, ele ainda se sentiu fraco, vulnerável a ela, como se não importasse o que fizesse, ou onde estivesse, sua mente sempre seria, direta ou indiretamente, controlada por ela. Bucky estava cansado de lutar aquela batalha. E estava cansado de sempre perder.
— Sempre foi a Hydra por trás dessa merda toda. Você acha que… você acha que foi culpa minha ter matado meus próprios pais? — perguntou outra vez, depois de mais alguns minutos sem respostas do homem à sua frente. A voz carregada de mágoa, só se dando conta do que tinha perguntado depois que as palavras haviam saído de sua boca. Ela engoliu seco.
— Como pode ter sido culpa sua? Você tentou se defender, você nem se… lembrava mais deles — Dizer aquilo doeu tanto em Bucky quanto em , que abaixou seu olhar imediatamente. Bucky não podia imaginar uma criança, tão pequena, tão indefesa, passar pela dor insuportável, pela tortura da calibração mental. Talvez por sorte, ou pelo trauma, não lembrava da sensação.
— Está vendo só? Se consegue entender o que aconteceu comigo, porque não entende o que aconteceu com você mesmo, Buck? — Ela levantou seu olhar até ele outra vez — Nós fomos sequestrados, manipulados, fizemos coisas terríveis das quais nunca vamos nos esquecer. Mas não teríamos feito se tivéssemos tido escolha. Eu quase nunca usei a fitocinese para machucar alguém e eu sei que você esconde seu braço de metal porque sente vergonha dele — Bucky desviou seu olhar dela, engolindo seco — Não temos orgulho das coisas que podemos fazer, temos consciência de que somos bombas-relógios, mas nós sabemos quem somos e sabemos como e quando devemos usar esses… recursos. Não resta mais nenhuma opção senão seguir em frente com o que temos e recomeçar.
— Eu não mereço isso, , não mereço recomeçar nada. Eu fico pensando a todo tempo como eu pude deixar isso acontecer? Como eu pude deixá-los me controlarem, me usarem, por tantos anos?
A expressão de se suavizou, em claro sinal de tristeza. A verdade era que ela sabia da guerra que Bucky estava travando todos aqueles anos. Sobrevivendo dia após dia para ter a chance de lutar de novo no dia seguinte. Todos os dias da vida dele eram aquilo e era triste demais. tinha, há pouco, conversado com Steve sobre as feridas de Bucky e agora ela estava ali, bem diante delas. Feridas tão profundas que, parecia que não importava quanto tempo passasse, Bucky sempre as teria. Ela queria, ao menos, dividir aquele peso todo com ele, mas ela sabia que, no fundo, não havia nada que pudesse fazer.
— Você não teve escolha. Você não teve chance de contestar, de confrontar a Hydra, só quando... — dizia delicadamente até se calar. Se sentia profundamente mal com aquele assunto, Bucky teve uma única chance de se livrar da Hydra, mas ela estragou tudo. Se não tivesse sido sequestrada ou se tivesse consciência de seus recentes poderes, podia ter matado Vassiliev e qualquer outro membro da Hydra, podia ter deixado Bucky livre. Mas ela o fez voltar para o inferno — Me desculpa.
— Não, , por favor, eu fiz o que era certo a ser feito. Vassiliev me queria e estava usando você para chegar até mim — A voz de Bucky soou como um sussurro, suave e aflito, sua mão ainda abrindo e fechando ao lado do corpo — Eu não faria diferente hoje. Se a Hydra viesse atrás de você, eu... não sei o que seria capaz de fazer com eles.
Ele suspirou pesadamente. Estava sendo tão sincero que mal podia olhá-la. Não queria que se sentisse culpada por nada do que aconteceu. Embora não se lembrasse de absolutamente nada daquele período de sua vida, ele tinha certeza de que voltou para a base central assim que teve oportunidade, porque era o certo a ser feito. E, mais do que isso, não queria que aquela conversa a trouxesse o sentimento ruim de relembrar das coisas terríveis que os relatórios descreviam sobre ela. Ele só queria se desculpar e saber se, no final de tudo isso, ela ainda o iria querer por perto.
— Eu tive outras chances, eu me lembro de ter perguntado sobre coisas da minha vida, de ter questionado algumas missões, eu... — Bucky passou a mão em seu rosto, incomodado com seus pensamentos acelerados — ...me lembro de estar conscientemente em alguns lugares. São memórias fragmentadas, não estão claras, mas eu sei que são reais. Eu me lembro de ter cometido o erro de dizer ao maldito do Pierce que sabia quem era Steve, depois que o encontrei pela primeira vez em Washington.
— Rumlow falou sobre isso, em Lagos — levantou seu olhar tenso até ele — Ele disse que você se lembrou de Steve, ele estava lá quando você teve sua memória apagada pela última vez. Você nunca deixou com que isso acontecesse com você, Buck, não percebe? Mesmo depois de tudo que fizeram, você ainda se lembrava de coisas, ainda os questionava. Você lutou contra o controle da Hydra todos os dias em que viveu com ela e demorou tanto para sair de lá porque sempre que estava minimamente confuso, como quando viu Steve em Washington, eles começavam tudo de novo, apagando sua mente e te dando novas missões.
Uma vez mais naquela noite, parecia ter razão. Bucky nunca tinha tido tempo suficiente para pensar em como sair da Hydra. Parte de sua vida ficou em criogenia, a outra parte sofrendo lavagens cerebrais. E cada vez que afrontava seus superiores, com comentários ou perguntas confusas demais para que ele conseguisse entender sozinho, o ciclo começava outra vez: ele apanhava, tinha sua memória apagada e era deixado em uma cela completamente vazia e gelada, por dias seguidos, até terem certeza de que não representava uma ameaça para a organização e de que não iria comprometer as missões.
— Tudo isso me atormenta a todo instante. Eu lembro do que eles fizeram comigo, eu lembro da dor, lembro deles me batendo, dos treinamentos. Lembro da cela que eu ficava a maior parte do tempo, dos gritos das pessoas que eu… matei. Elas estão sempre lá, à noite, quando eu tento dormir. Os pesadelos eles… eu sinto como se estivesse sentado naquela cadeira, pronto para ser apagado de novo.
Não havia palavra melhor para descrever Bucky naquele momento senão dizer que ele estava em caquinhos. Lágrimas tímidas começaram a escorrer pelo rosto dele, enquanto ele às tentava esconder a todo custo, abaixando a cabeça e deixando seu cabelo cair sob o rosto. Bucky era muito mais forte do que pensava, tinha aguentado tudo aquilo por tantos anos, calado, totalmente sozinho. Talvez ele estivesse se sentindo daquela maneira porque, como Steve havia dito, era a primeira vez em tanto tempo que ele podia ser ele mesmo, que ele se sentia confortável em começar a deixar toda a dor que sentia sair de dentro de seu peito. Se pudesse, ela recolheria cada pedacinho dele e os guardaria com ela até saber como consertá-lo. Bucky não merecia ter vivido nada daquilo.
— Eu não mereço o que você e Steve fizeram por mim, não mereço estar aqui hoje. Eu fui feito para matar pessoas, para feri-las, para... Como eu posso me perdoar? E você… você deveria ter medo de me ter por perto. Não deveria me manter aqui, não deveria ter ido atrás de mim. Eu posso te matar, , eu posso… — Ele soluçou alto por alguns instantes, seu olhar preso no chão, envergonhado demais para ver o rosto preocupado e profundamente triste de o encarando — Se eu fizer alguma coisa com você e-eu… eu não sei…
— Eu sei quem você é, Bucky, e sei que não é nada nem parecido com o que está me dizendo. Para mim você é o Bucky, só o Bucky, e o resto não tem importância mais. É o cara que encontrei em Bucareste carregando uma sacolinha de ameixas, uma das pessoas mais fortes, amáveis e resilientes que já conheci. Você não é, e nunca foi, peso algum para mim. Você merece ter sua vida de volta, merece ser feliz e é por isso que eu escolhi ir atrás de você. E, agora, eu estou escolhendo ficar com você, porque eu quero ficar, eu quero te ajudar.
falou tão baixo que quase não podia ser ouvida, seu coração acelerando pelo nervosismo em dizer aquilo em voz alta, em expor parte da confusão que sentia por ele. Bucky negou com a cabeça levemente, a intensidade das lágrimas aumentando a cada palavra que ouvia de . Nunca, jamais, achou que alguém, sem ser Steve, pudesse gostar dele, pudesse o entender daquela forma e o ver daquele jeito que o via. Aquilo era tão reconfortante e tão amoroso, que, para Bucky, que não sabia lidar com seus sentimentos, foi assustador.
— Você já está me ajudando e eu agradeço muito por isso. Mas têm coisas que você não pode fazer por mim — Bucky rebateu sem a olhar, as palavras de ecoando em sua mente.
— Tipo o que? — questionou cruzando seus braços, seus olhos presos em Bucky e nas lágrimas que não paravam de escorrer por seu rosto.
— Trazer o Bucky dos anos 40 de volta — Ele soluçou — Trazer minha vida de volta.
E foi só então que entendeu como Bucky via a situação. Para ele, o James estava morto, enterrado em algum lugar entre 1940 e 1945, enquanto nascia e vivia o soldado invernal. Bucky não se entendia como ele mesmo, mas como sendo única e exclusivamente um projeto da Hydra. Os dois ficaram em silêncio novamente. o ouvia chorar baixinho, o barulho dos soluços doendo nela de um jeito que nem sabia como descrever. Em todos os anos que passou se preparando para o dia em que o encontrasse, em nenhum deles sequer pensou que o encontraria daquela forma. estava pronta para brigar, para bater, para se defender, para sobreviver a ele, e não para juntar os pedacinhos de um homem completamente quebrado por dentro. estava preparada para o soldado Invernal, mas nunca esteve para o Bucky. E parecia que ele também não.
Em pé, dois ou três passos na frente dela, Bucky se perguntava porque não podia simplesmente ser normal. Porque não podia estar como Steve quando entraram naquela sala, rindo e curtindo a noite com . Porque estava sempre se fechando, se isolando, se impedindo de ser… normal? O homem soltou a respiração pesadamente, tentando se acalmar. Aquilo tudo o deixava confuso e ele nem sabia mais o porquê estava chorando na frente de . Ela já tinha tantas coisas para se preocupar, ele não deveria ser mais uma delas.
— Você precisa fazer uma escolha, Buck — cortou o silêncio, seu coração em pedaços — Precisa escolher se quer continuar vivendo na sombra do Soldado Invernal, da Hydra, ou se quer realmente ser só o Bucky.
— Não é fácil assim — Ele subiu levemente seu olhar marejado até ela.
— Eu sei que não é. Nada do que aconteceu com você vai mudar, isso é parte de quem você é, da sua história. Mas seu passado não é a sua sentença de morte, Bucky. Você pode começar de novo. E sempre que der errado, você tenta de novo e de novo. As coisas são simples assim. Não vamos mudar o passado e nem vamos acordar um dia sentindo que tudo mudou. Nós é que temos que mudar, temos que fazer o futuro ser diferente — colocou as mãos nos bolsos de seus shorts, sua expressão estava séria e sua voz mantinha-se suave, baixa — Todos fizemos coisas das quais não nos orgulhamos, acredite, não foi só você. Mas vivemos com elas, porque os dias seguintes são as oportunidades que temos de consertar e de nos redimir. É assim que nos curamos. Se curar não significa que a ferida vai deixar de existir, mas sim que ela não vai mais controlar a sua vida. E isso é uma escolha, que só você pode fazer por você mesmo.
Embora os olhos de estivessem marejados e sua expressão ainda tensa, dizer aquilo tinha sido um alívio para ela porque, no fundo, servia de consolo para si mesma também. Bucky parecia refletir sobre cada palavra dita, em silêncio. Steve já havia conversado com ele naquela semana e havia falado coisas parecidas com as que o estava dizendo. Já eram duas pessoas, as duas únicas pessoas no mundo que Bucky confiava, dizendo as mesmas coisas. Talvez houvesse algum fundo de verdade em tudo aquilo que ele precisava aceitar, eles estavam certos. Bucky não era o que fizeram dele. Não tinha que ser tudo aquilo que aconteceu, tinha que escolher o que seria, o que se tornaria dali em diante.
— Você está se saindo bem. Está seguro, mais estável do que nunca e ninguém aqui vai te controlar. Você tem amigos agora, pessoas que estão do seu lado porque querem estar, porque escolheram você, lutar por você, pelo James dos anos 40 — disse amena, sorrindo fraco — Você pode estar confuso hoje sobre quem você é ou quem você foi, mas você sobreviveu a tudo, sobreviveu aos seus piores dias. E agora merece, e precisa, se dar uma chance de recomeçar. Permita-se.
Sem pensar muito no que estava fazendo, estendeu sua mão na direção de Bucky, que levantou ainda mais seu olhar choroso, de uma vez por todas, até ela. As lágrimas ainda escorriam pelo rosto envergonhado e arrependido dele, mas ele já não soluçava mais, parecia estar se acalmando. Bucky pensou por alguns segundos, olhando a mão estendida de . Não queria causar mais frustração para ela, não queria ser uma decepção. Mas ele sabia que precisava de ajuda. aceitava o pior de seus momentos, o pior de seus defeitos e mesmo sabendo de tudo que ele era, que tinha feito, ali estava ela, em pé, o ouvindo, o confortando, oferecendo ajuda, disposta a ser mais do que alguém que ajudou Steve a resgatá-lo da força-tarefa, semanas atrás.
Bucky pegou na mão de e, cedendo à vontade que o consumia, ele a puxou firme para mais perto de si. parou poucos centímetros de distância dele, seus narizes quase se encostando. Eles se encararam por algum tempo, tensos, seus corações acelerados como se fossem sair do peito. Os olhos de Bucky desceram até a boca dela e segurou a respiração por um momento até ele, finalmente, a abraçar. Passando os braços sobre os ombros dele, o abraçou com firmeza, como se sua vida dependesse daquilo. O cheiro amadeirado do perfume de Bucky misturava-se com o cheiro quente do shampoo que emanava de seus cabelos ainda úmidos. Bucky fechou os olhos deixando-se levar pelo momento terno e carinhoso que ele tanto desejava, desde o dia em que chegaram em Wakanda. O corpo quente dela, em contraste com o frio dele, o aquecia e seu único braço, passado na cintura dela, a trazia cada segundo para mais perto dele, como se fosse possível eles se fundirem naquele abraço.
Nem Bucky nem se importavam se aquele era o momento certo ou errado. Não se importavam porque, naquele momento, não havia mais nada que eles pudessem fazer por eles mesmos, senão sentirem-se. E como se ele precisasse daquilo há tantos e tantos anos, Bucky simplesmente afundou o rosto no pescoço dela e deixou as lágrimas saírem novamente. forçou levemente o corpo dos dois para baixo, para que se sentassem no sofá e ficaram ali, abraçados um ao outro, como se mais nada importasse.
— Eu não tenho medo de você, Bucky. Eu tenho medo é de não te ter por perto de novo — Ela falou baixinho, o segurando no abraço e engolindo a vergonha — Achei que você não iria me querer por perto quando descobrisse que eu estava… que eu estou envolvida na sua história.
— Como eu poderia? — Bucky perguntou triste, ainda afundado em que, discretamente, passava as mãos nos cabelos dele.
— A gente não se cura ficando perto do que dói — Ela suspirou, engolindo a repentina vontade de chorar.
Bucky afastou-se lentamente dela, limpando as lágrimas de seu rosto com a parte de trás da mão, ficando centímetros de distância de e sustentando seu olhar no dela. Tão de perto e depois de chorar, achou que os olhos dele pareciam ainda mais claros, cristalinos e imensos, como o mar. Ele parecia mais calmo.
— Na verdade, o que dói é não ter você por perto. E acho que só percebi isso agora — Bucky suspirou, seus olhos presos nos dela — Você é a única coisa boa que me aconteceu em setenta anos, . Você me faz sentir vivo de novo. Como eu posso não querer ter você por perto?
não conseguiu responder àquilo. Não estava preparada para ouvir aquela confissão e não conseguia raciocinar direito, pelo momento, pelo o que ouviu, pelos olhos de Bucky nos dela, pela proximidade, o cheiro dele, o gosto do álcool em sua boca. E se aquilo tudo já não fosse o suficiente, Bucky levou sua mão, timidamente, até o rosto dela. Como se o tempo tivesse parado completamente, ele contornou parte do rosto de com os dedos e parou a mão carinhosamente na bochecha dela. Bucky sentia como se todas as suas emoções estivessem adas, em todos os sentidos daquela palavra. deixou seu olhar cair até os lábios de Bucky por um instante, por instinto, e ficou ali. Não podia mentir para si mesma, ela queria beijá-lo. Queria muito. E ela não se importaria em dar o primeiro passo se fosse qualquer outra pessoa, mas era Bucky. Ele a deixava confusa, incerta. não conseguia ler os sentimentos dele, não conseguia prever o que estava pensando. Ela sabia que aquele não era um bom momento, mas ela não queria mais resistir. Ela queria ele.
Bucky acompanhou o silêncio de , ansioso por uma resposta. Em todo o tempo que passou sozinho, ele aprendeu a sentir medo da rejeição e aquele pensamento o estava dominando naquele momento. não reagiu ao toque dele e nem ao que ele havia dito. Será que ele a tinha assustado? Será que estava invadindo o espaço dela? Tinha sido muito intenso? Bucky se amaldiçoou mentalmente por ter falado aquelas coisas, não tinha sido momento certo. Talvez estivesse carente e solitário demais a ponto de estar entendendo todo o cuidado e atenção de com uma intensidade que, na verdade, não era real para ela, mas só coisa da cabeça dele.
Ele esperou por mais alguns segundos. A respiração de se misturando com a dele, pela proximidade, o perfume dela inundando o ambiente. Bucky evitou olhar para os lábios carnudos e vermelhos da mulher, afastando a todo custo os pensamentos que eles atraiam. Ele tinha certeza de que se não fosse tão inseguro, tímido e retraído, se ainda fosse o Bucky que pouco se lembrava ter sido, aquela noite terminaria ali, com os lábios de nos dele. Frustrado e envergonhado, Buck tirou sua mão delicadamente do rosto de , a fazendo subir seu olhar novamente para os olhos dele e afastar-se levemente com o corpo para trás, constrangida. Naquele instante, diante daquela reação dele, agradeceu a si mesma por não o ter beijado. Certamente o álcool a tinha feito entender tudo errado.
— Estou feliz de finalmente ter te encontrado, Bucky, e de você estar aqui, agora, de querer ficar, de me… querer por perto — cortou o longo silêncio sorrindo delicadamente, ainda sem saber o que responder à confissão dele. Bucky sorriu de volta, uma sensação de alívio correndo em suas veias, por , finalmente, o responder — E, agora que você está aqui, eu não vou a lugar algum.
— Vamos ficar bem, não vamos? — Ele perguntou baixo, sua voz rouca cheia de expectativa em, de uma vez por todas, resolver aquele assunto com .
— Já estamos bem, estamos juntos agora e vamos nos ajudar — Ela disse confiante, o encarando concordar com a cabeça.
— , eu ainda… eu queria dizer que sinto muito pelo o que aconteceu com seus pais e com você. Sinto mesmo — Bucky chegou a levar sua mão mais perto dela, mas logo recuou. Já tinham tido muito contato físico para um dia só, embora, para eles, ainda não fosse o suficiente.
— Eu sei. Também queria que soubesse que eu sinto muito por ter feito você voltar para a Sibéria.
— Está tudo bem — Ele se ateve em dizer, a olhando e sorrindo leve.
Nada mais havia que ser dito sobre aquilo, por nenhum deles. Estava claro para os dois como eles se sentiam em relação aquela história e como estavam preocupados um com o outro, sem querer se culparem ou se julgarem por qualquer coisa que possa ter acontecido. Bucky sabia que carregaria para sempre dentro de si o peso de ter matado seus pais, pelas mãos da Hydra, como ele carregava tantas mortes em suas próprias mãos. Nada que acontecesse iria mudar aquilo, não havia absolutamente nada que pudesse ser feito, senão esperar o tempo organizar as coisas. Mas ele sabia que ela estava disposta a aprender a lidar com aquela situação e, ajudando Bucky a lidar com seus problemas, ela, de certa forma, ajudaria a si mesma a lidar com os dela, e vice-versa. Talvez eles pudessem se recuperar juntos e construir uma versão diferente da história dali em diante.
Eles se mantiveram sentados próximos um ao outro, de frente, encarando-se. Estavam em paz, finalmente. A grande sala estava pouco iluminada e totalmente em silêncio. Os diversos sofás e poltronas formavam um perfeito círculo ao redor de uma grande mesa de centro, feita de madeira maciça e vidro. Havia um tapete etíope quilométrico sobre o chão de mármore escuro e nas paredes quadros que contavam a história de Wakanda com gravuras típicas do país. Em tudo ali havia um toque de modernidade e sofisticação, de tradição e história, o afro futurismo que simplesmente amava. Eles continuaram em silêncio por um bom tempo, imóveis. Bucky não sabia quanto tempo havia se passado, mas o caos de sua mente estava cedendo espaço para uma segurança que ele não tinha costume de sentir. tinha um cheiro doce bom, que o acalmava. E não fosse apenas o cheiro, o toque e as palavras o estavam ajudando a se sentir seguro outra vez. Bucky piscou forte algumas vezes e franziu a testa, como se lutasse contra seus pensamentos. Ainda tinha algo que o preocupava.
— E se eles me encontrarem aqui? Eu não quero colocar você e nem ninguém em perigo, não quero que nada aconteça com Wakanda. Se eles me acharem, eles virão atrás de mim.
— As coisas são diferentes agora, Buck — suspirou, apoiando um de seus braços no encosto do sofá — A Hydra caiu há anos e você está seguro aqui. Se alguém quiser chegar até você, então terá que passar por todas as barreiras de Wakanda e, depois, passar por mim.
— Me desculpe, é só que eu ainda tenho... medo — Bucky confessou, abaixando outra vez seu olhar, mas logo o voltou para novamente — De eles me encontrarem de novo, de eu… não conseguir controlar minha mente, de ficar sozinho outra vez, preso nesse pesadelo para sempre.
— Estamos protegidos aqui e você não vai ficar sozinho, Bucky, eu vou sempre estar aqui — Ela assentiu com a cabeça, sorrindo mais confiante — E você sabe que eu posso te ajudar a se livrar do controle mental, a reviver as memórias que foram tiradas de vocês e a se sentir mais seguro com a sua mente.
— Eu sei — Bucky sorriu sem mostrar os dentes — Obrigado, , por tudo.
— Obrigada por ter me salvado — Ela sorriu de volta — Acho que estamos empatados agora.
— Talvez seja pedir demais, mas eu espero que não tenhamos que desempatar isso — Bucky respirou fundo e riu baixo.
— Bom, se ficarmos quietinhos em Wakanda já é um começo — Ela riu fraco — E você já pensou em fazer terapia? — Bucky soltou uma risada baixa e assentiu.
— Só depois que tiver certeza de que minha mente está estável o suficiente para não ativar nada — Ele confessou, vendo ajeitar-se no sofá.
— Nós vamos trabalhar nisso. Eu posso te mostrar amanhã o que descobri, se quiser.
— Eu não vou recusar um convite para te ver de novo — Ele brincou, arqueando uma sobrancelha. sorriu mais abertamente e umedeceu os lábios, ainda vermelhos pelo batom. Estava feliz por conhecer aquele lado charmoso dele.
— Se você não ficasse trancado no quarto cem por cento do tempo, talvez me visse mais vezes — Ela provocou de volta, o vendo ajeitar-se no sofá para ficar totalmente de frente com ela. Bucky parecia envergonhado pelo comentário, e sorridente.
— Isso não é totalmente verdade, eu saí hoje — Ele comentou puxando a pequena caixa que estava sob o sofá, ao lado dele, trazendo-a para mais perto de si — Eu fui buscar isso. T’Challa disse que são os seus preferidos.
Bucky entregou a caixa azul claro, da Petit Ilekese, para , que recebeu sorrindo timidamente. Não podia acreditar no homem que estava sentado à sua frente, Bucky era tão doce quanto o conteúdo que tinha dentro daquela caixinha. tirou o laço dourado e abriu a caixa sem grande demora, feliz por ter recebido o seu doce favorito de toda a vida. Dentro, doze macarons de frutas vermelhas estavam perfeitamente colocados formando uma flor.
— Pensei em comprar flores, mas achei que não faria muito sentido para você — Bucky disse baixo, coçando a barba por fazer, envergonhado pela ideia estúpida que teve. riu.
— Buck, você não tinha que comprar nada — Ela olhou dos doces para ele, a felicidade e a surpresa estampadas em seu rosto — Não precisava disso.
— Eu sei, mas eu queria — Os olhos azuis e cristalinos de Bucky subiram nos de outra vez — Sou de uma época em que bons pedidos de desculpas vinham acompanhados de presentes.
— Acho que vou ter que me esforçar então — brincou pegando um dos macarons e esticando a caixa até ele, em seguida — Prova, você vai gostar.
Tímido, Bucky pegou um dos pequenos doces da caixa e mordeu. Nunca tinha provado um macaron, mas, a tirar pelo nome e pela decoração da loja em que comprou, sabia que era francês como a . A casquinha crocante por fora contrastava com a maciez do recheio. O gosto acentuado das frutas vermelhas combinava com a cor e o cheiro maravilhoso que emanava da caixinha, quase tão perfeito quanto o perfume de . Aquilo era delicioso. Tão bom quanto o vinho que havia tomado no apartamento dela, quanto o som de sua risada ou o calor de seu abraço. Na segunda mordida Bucky pensou que, talvez, estivesse se apaixonando pela França.
— E aí? O que achou? — perguntou mordendo o docinho, vendo a expressão feliz do homem à sua frente, que terminava de engolir.
— Acho que entendi porque são seus favoritos — Ele brincou, ela sorriu abertamente.
— Eu sei, eu tenho bom gosto — esticou a caixinha uma vez mais para ele que aceitou outro macaron.
— E, olha, tem mais uma coisa que eu queria te mostrar — Bucky pegou o pequeno caderno que havia deixado no sofá, enfiando o doce inteiro na boca e mastigando.
— O que é isso? — perguntou curiosa, empurrando seus cabelos para trás e terminando de engolir o macaron que comia.
— Seus pais trouxeram as minhas coisas, quer dizer, eu só tinha algumas peças de roupas e… cadernos — Bucky sorriu sem graça, o olhava com atenção — Eu tenho medo de me esquecer das poucas coisas que lembro ou do que… do que estou vivendo agora, então, há anos, eu escrevo tudo em cadernos.
— Fico feliz que meus pais tenham conseguido recuperar isso — disse sincera e ele assentiu.
— Eu também, são importantes para mim. E eu fui reler eles, depois que terminei de ler os seus… os nossos arquivos da Hydra — Bucky abriu o pequeno caderno em uma das páginas, marcada com um post-it — E eu encontrei isso.
pegou o caderno da mão de Bucky, trazendo-o para mais perto de seus olhos. As folhas sem pautas tinham anotações de caneta preta, em um idioma que ela conhecia bem. Não era novidade para ninguém que a Hydra havia ensinado Bucky, e outros soldados como ele, mais de uma dúzia de idiomas diferentes. Só o essencial para missões, de fato, mas o suficiente para se comunicar sem dificuldades. Aquilo não parecia estranho à , talvez por estar em francês. Mas, igualmente, não parecia familiar a ponto de reconhecer o significado.
1997 - Prom. de la Plage, Cagnes-sur-Mer, Nice
Fenugrec, sauge, romarin, fenouil, ortie, racine d’or
— Eu não me lembro do porquê ou de quando exatamente escrevi isso, minhas lembranças são sempre desconexas — Bucky respirou fundo, intrigado, olhando do caderno para , que ainda prestava atenção nos escritos — Mas eu acho que é sobre você. Quer dizer, 1997 foi o ano em que seus pais me encontraram, está em francês e tem um endereço de Nice. Faz sentido para você?
— Prom. de la Plage, Cagnes-sur-Mer, Nice — leu baixo e segurou a respiração por um momento. Seu olhar suave levantou lentamente do papel até Bucky — É o endereço da minha casa, da casa dos meus pais biológicos.
Bucky concordou com a cabeça, sorrindo fraco para ela. O endereço da casa dela estava ali, Bucky tinha algo em sua mente sobre Benedict e Hellen, mas não se lembrava de nada deles que pudesse realmente confortar , senão aquela vaga anotação. E aquilo era terrivelmente triste. Contudo, por outro lado, se sentiu confortada em ver aquilo. Bucky estava realmente ligado ao seu passado, a sua família. De peça em peça, o quebra-cabeça tinha sido montado e aquela era uma informação a mais, inesperada.
— Não é muita coisa, e nem faz muito sentido, mas achei que gostaria de ver — A voz rouca e cheia de ternura dele chamou atenção de . Ela assentiu com a cabeça, prestando atenção nos escritos. Alguma coisa ali a estava intrigando, ela parecia refletir.
— Qualquer coisa, por mínima que seja, já representa muito. Obrigada! — sorriu e então apontou para a linha de baixo do endereço, ajeitando-se de modo que ficasse ao lado de Bucky no sofá, para que os dois pudessem ver os escritos juntos — Essas palavras, você notou que são plantas? Feno-grego, sálvia, alecrim, erva doce, urtiga e raiz de ouro — Ela leu em voz alta e, então, olhou Bucky ao seu lado — E sabe o que é o mais curioso? Todas elas têm efeitos positivos para a memória.
Aquilo era novo para Bucky. Ele sequer se lembrava de quando tinha escrito, como poderia se lembrar de ter anotado uma lista de plantas e como poderia saber que elas, de algum modo, estavam interligadas? Ele sorriu sem mostrar os dentes para ela e voltou seu olhar para o chão. parecia ter respostas importantes para a vida dele. Por menor e mais insignificante que pudesse parecer, ela sempre sabia o que era. Como se fosse o pedacinho da vida dele que faltava, Bucky sentiu-se confortável e agradecido por ter ela.
— Você deve ter aprendido com meu pai — disse baixo outra vez, feliz com a descoberta — Benedict deve ter usado isso no seu tratamento, você deve ter se lembrado em algum momento, mas não fez sentido na hora, então você anotou.
— E isso tudo... você acha que realmente funciona em mim? — Bucky perguntou incerto. Sua memória era mais fodida do que a de qualquer ser humano comum e não parecia racional pensar que plantas o pudessem ajudar. não sabia responder com certeza à pergunta dele, mas não desconfiava nem um pouco do poder da natureza. Contudo, de todo modo, havia um jeito de descobrirem.
— Vem, vou te mostrar uma coisa — levantou-se do sofá sem aviso prévio e estendeu sua mão até Bucky, esperando que ele se juntasse a ela.
Sem dizer nada, e confuso pela mudança brusca de comportamento, Bucky pegou a mão de e deixou-se ser puxado por ela até o elevador no canto direito da imensa sala de estar. Carregando a caixinha de macarons e o caderno de Bucky, soltou a mão dele para apertar o botão sentido terraço, no último andar no palácio e precisou ter sua retina escaneada para que o elevador os levasse até lá. Bucky estava perdido, não sabia onde estavam indo e parecia ansiosa, embora sorrisse para ele sempre que seus olhares se cruzavam. Ela tinha certeza de que, se não tivesse bebido, jamais o levaria até lá naquela noite. Não era para ser daquele jeito. Surpresa. Aquilo podia terminar mal e ela poderia se arrepender depois. Mas, sem saber o porquê, ela queria correr o risco.
Como tudo em Wakanda, a tecnologia do elevador não os deixou sequer conversar, pois demorou segundos até chegar no andar solicitado. não sabia como ele iria reagir àquilo e esperava, torcia, de coração, que não fosse o assustar. De jeito algum queria que ele se assustasse, com ela ou com o que aconteceria. Bucky tinha muitas lembranças ruins em sua mente e ela não queria encontrar com mais nenhuma delas naquela noite. Ela fez sinal com a cabeça para que Bucky a seguisse para fora do elevador e, assim que saíram, se deram de cara com um pequeno corredor e uma única porta ao fundo. parou antes de abrir a porta, sua mão ao lado do sensor em que colocaria a senha, e suspirou.
— Pode ser estranho e eu não achei que te traria aqui tão cedo, mas você precisa confiar em mim, está bem? — disse confiante, digitando a senha e esperando a porta abrir.
— Eu confio — Bucky respondeu baixo, sentindo-se nervoso — Mas onde estamos?
— Tem um jeito de descobrirmos se a sua lista de plantas pode mesmo te ajudar.
— O que… como…?
Antes mesmo que ele pudesse terminar de perguntar, a porta automática havia se aberto completamente e deu alguns passos à frente, para dentro do lugar que, sem dúvidas, era um dos mais bonitos que Bucky havia visto em toda sua vida. Deixando as palavras morrerem no ar, ele seguiu , ouvindo a porta fechar-se atrás de si. O gigantesco terraço coberto por uma redoma de vidro não tinha nada senão um descampado, com grama cobrindo todo o chão e o céu estrelado completamente visível. Ao centro, um sofá quadrado grande estava embutido no chão, como se estivesse afundado nele, verde escuro e totalmente estofado. Bucky ficou imaginando se aquele era o cantinho de , o lugar em que ela podia se deitar e ver o céu, passar o tempo que quisesse sozinha, refletindo, segura. Mas ele não quis perguntar.
Ao invés disso, ele observou tirar seus sapatos e os pegar, ainda carregando a caixinha de doces e o caderninho dele, e seguir andando pela grama até o sofá. No meio do caminho ela virou-se levemente para ele, sorrindo, e o chamou uma vez mais, com a cabeça, para que se juntasse a ela. Bucky sorriu de volta e, imitando-a, tirou seus tênis e caminhou com eles na mão até sentar-se, de frente para , no macio sofá embutido na grama. Ela respirou fundo, deixando o que segurava de lado.
— Quando chegamos na Sibéria, você conversou com Steve sobre um momento em Rockaway Beach, você se lembra bem dele? — Ela perguntou concentrada, olhando Bucky exatamente a sua frente, confuso com a pergunta.
— Mais ou menos, nem todos os detalhes — Ele sorriu triste, a encarando de volta — Por quê?
— Não vai durar muito tempo e você precisa se concentrar só nesse momento, está bem? — Ela perguntou novamente, ignorando a confusão claramente visível de Bucky, que apenas concordou com a cabeça.
Melhor do que tentar explicar, era deixar com que Bucky concluísse sozinho o que estava fazendo ali. Assim, sem perder muito mais tempo, já concentrada o suficiente para aquilo, Bucky viu respirar fundo alguns segundos e desviar seu olhar do dele. Bucky seguiu o olhar dela para a grama ao lado e, como em um piscar de olhos, centenas de plantas começaram a crescer ao redor deles, em ordem de tipo, misturando-se no chão, perfeitamente alinhadas, até ficarem de um tamanho suficientemente visível. O verde vivo do feno-grego misturando-se com o opaco do alecrim e da sálvia podiam ser vistos mais perto deles e, embora mais afastados, o cheiro do ambiente foi tomado pela erva doce e pela urtiga. Ainda, assim que as plantas terminaram de crescer, em segundos, as flores amarelas da Raiz de Ouro preencheram o chão, em brotinhos pequenos e discretos. Bucky achava inacreditável ela conseguir fazer aquilo e voltou a olhar para ele.
— Só Rockaway Beach, ok? Pronto? — Ela sussurrou preocupada e, assim que Bucky concordou com a cabeça, estalou os dedos da mão direita.
Imediatamente o cheiro das plantas pelo terraço foi potencializado e Bucky jurava poder ver uma escassa névoa levantar delas. Mas ele não teve muito tempo para pensar naquilo, porque assim que começou a se concentrar em Rockaway Beach, sua mente foi preenchida pela imagem de Steve jovem e franzino comendo um cachorro-quente e revirando os olhos para Bucky, igualmente jovem, vestindo roupas caras e usando gel nos cabelos curtos. Steve tinha acabado de gastar os últimos dólares que eles tinham, para comprar as passagens de volta, com um cachorro-quente e agora não tinham como voltar para casa. Bucky desviou seu olhar de Steve até uma menina bonita ao seu lado, frustrada por estar naquela enrascada. Já estava ficando tarde, o tempo esfriava e ele temia não a entregar de volta aos seus pais no horário combinado, estava ferrado.
— Eu vou ligar para o meu pai vir me buscar, isso é inacreditável — Dot disse inconformada, aquele tinha sido um encontro frustrante em muitos sentidos.
— Não, gatinha, nós vamos dar um jeito — Bucky respondeu charmoso, passando uma mão pelos cabelos ruivos dela, delicadamente ondulados e presos.
— Você disse isso meia hora atrás, James, e ainda estamos aqui — Ela cruzou os braços brava, desviando o carinho dele.
— Você está muito sem paciência — Ele rebateu começando a ficar irritado.
— É você quem tem paciência demais para o que está acontecendo aqui — Dot bufou — Quer saber de uma coisa? Eu vou embora. Tchau, Steve.
— Tchau, Dot — Steve ateve-se em dizer, sequer se importando com a situação. Estava concentrado em seu cachorro-quente.
— Princesa, não, volta aqui! Dot? — Bucky insistiu dando alguns passos atrás dela, mas Dot o ignorou totalmente e foi em direção a uma cabine telefônica, de onde poderia ligar para seu pai. Bucky parou e colocou as mãos na cintura, a observando se afastar, até que deu de ombros e voltou-se para Steve, o olhando indignado — Seu cachorro-quente me fez perder a namorada, seu idiota.
— Você fez você mesmo perder a namorada — Steve respondeu mastigando — Prometeu uma porção de coisas para a moça que não conseguiu cumprir.
— Tipo o que? — Bucky levantou as sobrancelhas.
— Um urso de pelúcia e levar ela de volta para casa, no mínimo — Steve o encarou significativamente. Estava cansado, e acostumado, a ver as meninas caírem aos montes na lábia de Bucky e sempre, sempre, terminar assim — Você queria o quê? Que ela ficasse aqui? Gastou os últimos três dólares tentando pegar o maldito urso de pelúcia e nem isso conseguiu. Admite, meu amigo, você é um fracassado. E está mais quebrado do que esse pão — Steve fez uma careta, chacoalhando o cachorro-quente.
— Achei que só sair comigo já era o suficiente — Bucky passou a mão pelos seus cabelos, dando o melhor sorriso safado para Steve, que revirou os olhos.
— Você é um idiota, Buck, não é possível.
Bucky soltou uma risada sincera e abraçou Steve pelos ombros, o vendo terminar de comer o cachorro-quente. Os dois caminharam pelo local por mais alguns minutos, tentando pensar no que deveriam fazer para voltar ao Brooklyn, tendo em vista que estavam longe o suficiente para não ter a menor condição de irem a pé. A mente de Bucky, então, cortou o momento para os dois sentados na traseira de um caminhão frigorífico, obviamente desligado e sem carnes dentro, que os deixou na travessia de uma rua qualquer no centro de Nova Iorque. Bucky caminhou com Steve até a porta da casa dele, como de costume, para não o deixar se meter em encrencas.
— Você me deve essa, não esquece — Bucky apontou para o amigo e voltou a colocar as mãos nos bolsos da calça, sorridente.
— Prefiro não comentar — Steve respondeu apenas, abrindo a porta de sua casa em silêncio, já estava tarde — Mande um abraço para Rebecca.
— Está dando em cima da minha irmã? — Bucky perguntou malicioso, vendo Steve bufar.
— Boa noite, Buck.
— Boa noite, Stevie.
Bucky franziu a testa intrigado, seus olhos abertos e perdidos em algum canto qualquer do terraço. Ele via a si mesmo, mentalmente, dar meia volta na rua e seguir sozinho, caminhando tranquilo, pela noite do Brooklyn, até sua casa.
Enquanto isso, sentada de frente para ele, no terraço, desviou sua atenção das plantas por um único momento, deixando uma memória tomar conta de seus pensamentos. Ela tinha cinco ou seis anos, estava sentada na recepção de um hospital e podia ver a neve cair do lado de fora, pela parede de vidro. Seu olho esquerdo estava inchado, do acidente, não podia abri-lo completamente e ela tinha pelo menos uma dúzia de curativos nas costas e braços, cobertos pelo suéter colorido de tricô que vestia. Sua calça legging branca estava parcialmente coberta pelas botas de neve Ugg, beges, e ela podia sentir sua franjinha, recém cortada por uma das enfermeiras, pegando em sua testa.
— Pronta para ir para casa, meu amor? — A voz doce de Karl chamou atenção da pequena , que desviou seu olhar da janela até o homem à sua frente. Ele segurava alguns papéis que tinha acabado de assinar no hospital, uma jaquetinha quebra-vento cor de rosa e um gorro de lã branco, parecia animado. apenas assentiu com a cabeça, o encarando, e aceitou a ajuda dele para descer da cadeira — Então vamos colocar o casaco, está muito frio lá fora e não queremos virar bonecos de neve, não é?
riu fraco e vestiu a jaqueta, uma manga de cada vez, deixando Karl colocar o gorro nela, ajeitando-o. Em seguida, ele pegou na mão dela e a conduziu até a saída do hospital que tinha sido a casa da garotinha pelos últimos meses. Foram longas semanas para se recuperar do acidente que matou seus pais e longas noites em que Karl e Everett passaram acordados pensando sobre o que deveriam fazer. Embora estivessem, os três, com medo do que viria a seguir, adotar tinha sido a melhor e mais feliz das opções para todos eles. viu o carro, com Everett dirigindo, encostando perto deles e Karl a ajudou a ir para o banco de trás.
— E então, quem está com fome? — Everett perguntou virando-se para olhar no banco de trás que, timidamente, levantou sua mãozinha. Ele sorriu abertamente para ela, enquanto Karl acomodava-se no banco do passageiro — O que você quer comer, querida? — Everett perguntou simpático olhando , que pensou alguns segundos antes de responder:
— Macarons.
A memória de Bucky o levou até a porta de sua casa, no Brooklyn, mas antes que ele pudesse efetivamente entrar no imóvel, ela desvaneceu. , igualmente, teve sua lembrança cortada ali, vendo o sorriso de Everett com a resposta dela. Ela até tentou se concentrar novamente em potencializar o efeito das plantas ao redor deles, mas já não tinha mais sentido, não se lembrava de mais nada depois daquilo. Bucky piscou algumas vezes, voltando à realidade e encarando à sua frente, que o olhava com expectativa. Os dois ficaram se encarando por longos minutos, em silêncio, entorpecidos pela felicidade das boas memórias que tinham acabado de recuperar.
E foi só então que Bucky percebeu o que tinha acabado de acontecer ali, o que tinha acabado de fazer por ele. Quando ela comentou que o poderia ajudar com sua mente, com suas memórias, a única coisa que Bucky podia pensar eram em experimentos ou qualquer coisa do tipo, que envolvesse um laboratório e procedimentos médicos. Nada parecido com aquilo. Era… extraordinário. podia ajudá-lo a trazer boas memórias de volta, com carinho, com delicadeza, sem dor, sem violência, sem sofrimento algum. Só ele, ela e o que ela sabia fazer de melhor: cuidar das pessoas, controlar a natureza. Bucky não sabia o que deveria dizer para ela, palavras não podiam expressar o que ele estava sentindo diante de tudo aquilo.
, por sua vez, manteve-se em silêncio, esperando qualquer que fosse a reação dele. Não tinha certeza se a mente instável de Bucky o havia levado, de fato, para memórias de Rockaway Beach e, por algum tempo e pelo silêncio dele, ela achou que nada de bom tinha sido recuperado, que talvez ela tivesse contribuído para que ele se lembrasse, na verdade, das partes ruins de sua história. Mas Bucky parecia emocionado, pressionava seus lábios levemente, encarando com uma expressão leve, tranquila. Parecia procurar palavras para começar a falar, como fez mais cedo naquela noite, quando a encontrou.
— E, então, você acha que funciona? — brincou insegura, quebrando o silêncio. Bucky sorriu para ela.
— , como você… como você fez isso?
— Aqui tem as plantas que estão no seu caderno — Ela apontou ao redor deles e pegou o caderno de volta, de cima do sofá, abrindo-o na página marcada pelo post-it — Eu consigo potencializar o efeito delas, como no meu apartamento, quando fechei seus pontos — Bucky assentiu, recordando-se — Se juntarmos plantas diferentes, o potencial de ação delas aumenta muito, naturalmente. E meu pai deve ter pensado nisso, ele deve… ele deve ter dito isso para você, por isso se lembrou.
— Eu me lembrei de detalhes sobre Rockaway Beach que não tinha ideia, tudo era real, vivo. Se fizermos isso mais vezes, você acha que eu posso recuperar mais memórias? Talvez eu me lembre dos seus pais — Bucky parecia intrigado com a ideia. Ele queria saber mais sobre si mesmo, queria se lembrar de mais coisas como aquela.
— Sim, podemos tentar. Mas há um risco grande nisso, que eu não deveria ter corrido com você agora, sem você saber, me desculpe — Ela desviou o olhar para o céu.
— Um risco? — Ele perguntou curioso, vendo o olhar novamente.
— Não somos feitos só de memórias boas, Buck — Ela sorriu triste — E nem sempre temos controle o suficiente de nossas mentes para guiar o que pensamos. Isso que aconteceu aqui, agora, pode te trazer detalhes das partes que você não queria se lembrar nunca mais.
Ele concordou com a cabeça, em silêncio, pensativo. Ele sabia que o risco de mexer em sua mente era, de fato, muito alto. Não só para ele, não só por se lembrar de coisas horríveis que viveu com maiores detalhes, mas também, e principalmente, para . Bucky não sabia ao certo o que a Hydra tinha implantado em sua cabeça e o que quer que fosse ainda estava lá, esperando para ser ativado. Mexer naquilo era complexo e perigoso. A qualquer momento ele poderia perder o controle, poderia ativar o maldito Soldado Invernal e atacar . Não era seguro para ela e ele entendia isso. Talvez ainda não estivesse pronto para aquilo.
— Qualquer que seja a forma de ajuda que posso te oferecer, não quero que sofra mais. Eu não sei se vai ser sempre assim, bom, feliz — voltou a falar, sustentando seu olhar no dele — Só quero que você saiba que temos alternativas agora e quero que você conheça elas e pense sobre antes de realmente começarmos.
— É o mais seguro a ser feito, eu não sei como posso reagir, não confio em minha mente.
— Por isso te disse que não pretendia te trazer aqui tão cedo, não quero te colocar em risco e nem te pressionar. Vamos por etapas. Amanhã te explico as possibilidades que temos e você decide o que é melhor ser feito, o que acha?
— É perfeito. Obrigado, , obrigado mesmo — Bucky suspirou — Eu não sei como posso retribuir tudo isso.
— Já está sendo muito bem retribuído — Ela brincou pegando a caixinha de macarons, fazendo Bucky rir envergonhado. então a deixou em seu colo e esticou-se sob o sofá, pegando uma das flores da Raiz de Ouro. Assim que ela a arrancou, todas as plantas que antes haviam surgido ali cederam lugar, outra vez, para a grama, desaparecendo — Aqui, para você não se esquecer de hoje, do que se lembrou e nem de mim.
sorriu tímida para o caderninho que ainda segurava e colocou a pequena flor amarela exatamente na página marcada pelo post-it. Ela fechou o caderno em seguida e o entregou de volta para Bucky que, sentindo seu coração acelerar pela atitude carinhosa, o aceitou sorrindo. Ele faria qualquer coisa por , qualquer coisa que pudesse minimamente retribuir tudo o que ela estava sendo e representando para ele naqueles dias.
— Não tem como esquecer você, — A voz dele saiu quase inaudível — Eu não posso te esquecer.
— Você não vai — Ela respondeu serena, feliz por dentro — Não vai esquecer de mais nada, eu prometo.
— Obrigado — Bucky sussurrou outra vez, sorrindo tímido e olhando para o céu — A vista daqui é linda.
— Sim, esse é um dos meus lugares favoritos aqui. O Rei T’Chaka fez esse lugar para mim, quando cheguei aqui. Eu demorei muito tempo até entender e conseguir controlar a fitocinese, esse era o meu lugar seguro para aprender, sem machucar ninguém ou destruir nada — acompanhou o olhar dele para o céu, a noite estrelada iluminando o ambiente — Aqui tem milhares de sementes no chão, espécies diferentes de plantas, flores, tipos de pedras, terra. Fui estudando, potencializando cada um deles, descobrindo o que podiam fazer comigo e o que eu podia fazer com elas. Hoje eu venho passar meu tempo aqui quando quero ficar sozinha, testar alguma coisa nova e usamos para tratamentos medicinais alternativos.
— E isso tudo, a fitocinese, não consome nada de você? — Bucky perguntou curioso, ainda admirando o céu.
— Não, é como respirar, faz parte de mim — respondeu serena.
— É incrível — Ele desceu seu olhar até ela outra vez, ao mesmo tempo que ela sorriu e o encarou.
— Obrigada. Você pode vir aqui quando quiser, Buck, fique à vontade. Sei que se adaptar em um país novo não é fácil mas, ao menos aqui dentro, você pode se sentir em casa.
— Tudo tem sido ótimo até agora, a recepção, o quarto, a comida... eu agradeço — Ele sorriu.
— E falando nisso, bom, acho que precisamos ir dormir. Tenho um longo dia amanhã, preciso trabalhar em algumas coisas com a Shuri, a cerimônia de coroação do T’Challa está prestes a acontecer e precisamos encontrar o Sam — levantou-se, sendo acompanhada por Bucky.
— Steve está preocupado com ele — Bucky comentou amigavelmente, caminhando pela grama ao lado dela. Os sapatos em suas mãos, carregava a caixa de doces e Bucky seu caderno.
— Eu também estou. Não temos ideia de onde ele está, mas temos certeza de que está preso. Precisamos encontrar uma forma de tirar ele seja lá de onde estiver.
— Parece que vocês estão sempre envolvidos quando o assunto é libertar criminosos — Bucky brincou, referindo-se a si mesmo e a olhando de lado. riu.
— Essa é a nossa especialidade.
Bucky e deixaram o terraço tranquilamente e fizeram o caminho inverso até chegarem, outra vez, na sala de estar. Estavam felizes pela conversa e pelo desfecho daquela noite. Tinham conseguido externalizar parte do que sentiam em relação ao outro e pareciam ter aceitado a ideia de seguir em frente. Em silêncio, caminhando lado a lado pelos cômodos e corredores do palácio, Bucky e repassavam mentalmente partes do que tinham falado um para o outro naquela noite. Nenhum dos dois conseguia dizer com certeza o que aquilo significava, porque para nenhum deles estava claro o que sentiam e como deveriam interpretar os sinais. achou mais seguro tentar afastar os pensamentos, pelo menos até o dia seguinte, quando estivesse sóbria e descansada o suficiente para organizar tantas informações e sentimentos. Talvez pudesse conversar com Steve ou Shuri sobre aquilo, ligar para Sharon, alguém certamente a ajudaria a entender.
Bucky, por sua vez, estava dividido pelo sentimento de insegurança, de não saber ao certo o que fazer e como reagir a manifestações como as que viveu com , de ser velho demais para conseguir interpretar corretamente os fatos. A outra parte dele tinha medo de ser rejeitado por ela. Alguma coisa nele dizia que nunca poderia ser feliz com ele. Ele sempre traria problemas consigo, sempre teriam questões mal resolvidas e sempre seria perigoso demais para ela. merecia alguém muito melhor do que ele. Mas, mais forte do que aqueles dois sentimentos, estava o tempo. Bucky tinha vivido tempo demais sozinho, sem se permitir tentar nada, sem se permitir viver, ser feliz. E ele não sabia mais quanto tempo viveria, não queria perder mais tempo. Steve havia perdido tempo demais com Peggy, a ponto de nunca terem conseguido ficar juntos. Bucky não queria repetir aquela história. o havia feito refletir muito sobre isso naquela noite, havia incentivado que ele se permitisse ser quem era, que resgatasse o Bucky do passado e ele queria aquilo. Por que não começar, então, agora e com o traço mais marcante?
— Você está… muito bonita hoje — Bucky comentou, sua mão no bolso da calça, mexendo nervoso no caderninho. sorriu para ele, surpresa pelo comentário, seguindo andando lado a lado pelos corredores — Quero dizer, não só hoje, mas hoje em especial — A voz dele foi ficando baixa.
— Obrigada! Steve e eu fomos a um bar aqui perto.
— Talvez você possa me levar lá qualquer dia desses… — Ele ficou vermelho, mas manteve seu olhar alto, vendo o olhar sorridente — Para conhecer alguns lugares, agora que vou viver aqui.
— Na verdade, tem um outro lugar que gostaria de te levar — Eles pararam de caminhar assim que chegaram na porta do quarto de e viraram-se de frente um para o outro — Steve me disse que você gostava de dançar, então, quem sabe não aceita ir comigo no melhor baile da terceira idade da cidade — Bucky riu do convite — Te garanto que tocam boas músicas.
— Se você estiver lá, já vai ser incrível.
sentiu uma vontade enorme de gritar de alegria, mas conteve-se a sorrir e a encará-lo. Bucky estava mesmo dando em cima dela? E do jeito mais fofo possível? Ele sustentava o olhar dela, podia sentir que suas bochechas estavam queimando levemente, não sabia mais como fazer aquelas coisas. O silêncio breve, mas intenso, incomodou Bucky. Será que tinha achado aquilo demais? Ele certamente tinha dito besteira, não era uma hora boa.
— Bom, está marcado então — Bucky arregalou os olhos, a vendo sorrir de lado e estender a mão esquerda para ele. Talvez tenha sido sim uma boa hora, uma ótima hora — Quando se sentir seguro em sair e estiver pronto para conhecer seu novo país, você me chama para dançar.
— Já estou ansioso — Ele sorriu charmoso e deu um beijo na mão dela — Boa noite, boneca.
soltou uma risada baixa e sem jeito, pelo gesto e pelo apelido mais fofos e antigos que ela já tinha visto. Queria mesmo gritar de alegria. Bucky desviou seu olhar do dela, envergonhado por ter deixado aquele apelido escapar. Por mais que gostasse dele e achasse que ele cabia perfeitamente em , ela não era uma mulher de 1940. Certamente o acharia cafona. Mas Bucky não podia estar mais errado e ele percebeu isso quando ouvir ela responder:
— Boa noite, Sargento Barnes.
Eles se olharam uma última vez até entrar em seu quarto e encostar a porta. Bucky ficou parado ali por mais alguns segundos, encarando a porta fechada dela, como um bobo. o deixava confuso. De um jeito bom mas, ainda assim, confuso. Ele, então, foi para seu quarto e se sentou na beira da cama, pensativo, tentando organizar passo a passo do que tinha acontecido naquela noite. Pela primeira vez em setenta anos, Bucky sentiu uma estranha sensação crescer dentro de si e, com ela, segundos depois, memórias novas, como flashes, passarem pela sua mente. o protegendo dos tiros no prédio vizinho ao seu em Bucareste, ela descendo do carro quando chegarem em Berlim e o olhando; ela cuidando dos machucados dele em seu apartamento, cantando e rindo com Sam; curvada sob o fusca, pouco antes de ir falar com Sharon; ela em seu colo voltando da Sibéria, o sorriso dela para ele naquela noite; o abraço e o carinho enquanto ele chorava, o possível primeiro encontro. Apressado, Bucky puxou um de seus caderninhos em branco, de cima do móvel de beira de cama, e uma caneta, anotando todos os detalhes possíveis do que tinha acabado de reviver. Ele não queria e não podia se esquecer de .
Meia hora depois, Bucky colocou o caderno de lado outra vez, fechou os olhos e deixou-se cair para trás no colchão macio, desejando viver para sempre preso naquela nova lembrança.
Steve estava nitidamente surpreso. Não esperava que Bucky fosse a procurar para conversar tão cedo, tendo em vista toda a insegurança e incerteza que estavam angustiando seu amigo na última semana, a ponto de o deixar escondido em um quarto. Por isso, até, havia conversado com T’Challa sobre a possibilidade de convencer a ir até ele, e não esperar o contrário. Mas, felizmente, parecia que Steve estava errado. Para Bucky, o surto de coragem em ter aquela conversa o quanto antes estava mais relacionado à exaustão do que a tomar iniciativas. Quanto antes conversassem, antes poderiam seguir em frente e era só isso que ele queria.
— Eu vou para meu quarto, nos falamos amanhã, boa noite — Steve sorriu sem mostrar os dentes para e, em seguida, acenou com a cabeça para Bucky, deixando a sala em segundos. Embora estivesse curioso sobre como aquela conversa aconteceria, Steve achou melhor deixá-los a sós.
O silêncio constrangedor tomou conta do grande ambiente por mais tempo do que e Bucky acharam ter passado. Mantendo-se em pé, em lados opostos da sala, nenhum deles sabia exatamente o que deveria dizer ao outro e nem por onde começar. Bucky já sabia o que tinha acontecido com ela e já sabia o que tinha acontecido com ele. Aquele era, de fato, um tema esgotado, cansativo e desgastante. Não tinham realmente que conversar sobre isso, não precisavam recontar a história, repassar detalhes e nem reviver esses momentos. Para , a última semana já tinha sido o suficiente para remoer o passado e refletir sobre como seguir para o futuro. Para Bucky, foram assim os últimos setenta anos. Nada novo sob o sol, exceto pelo fato de que, agora, não estava mais sozinho.
— Acho que para ser uma conversa, precisamos falar, não é? — quebrou o silêncio sorrindo tímida. Bucky levantou seu olhar até ela, concordando com a cabeça, mas pensou por alguns instantes antes de falar. Ele estava visivelmente confuso, como se ponderasse se deveria ou não dizer alguma coisa.
— Por que é tudo tão… difícil de dizer?
Bucky se sentia um idiota por simplesmente não conseguir falar tudo de uma vez e os lábios vermelhos de o desconcentravam. Tinha tanta coisa passando em sua cabeça que ele não sabia sequer por onde começar. Abrindo e fechando sua mão em punho ao lado do corpo, nervoso, ele pensou que, talvez, não devesse falar nada. O silêncio dele já gritava o suficiente e parecia ouvir, desde quando o encontrou. Aquilo bastava para ele, mas era mesmo o suficiente para ela?
— Porque quando falamos em voz alta parece que tudo se torna realidade de fato — Ela sorriu amargamente. Aquele era um dos clichês mais verdadeiros da vida.
— Eu não queria que nada tivesse sido do jeito que foi. É só que… — Ele parou por um momento, abaixando a cabeça outra vez, envergonhado — Como eu posso viver aqui... como eu posso te olhar todos os dias, , sabendo que o que aconteceu com você foi culpa minha?
— Do mesmo jeito que eu vou te olhar todos os dias sabendo que parte do que aconteceu com você foi culpa minha — Ela sorriu triste, dando alguns passos lentos mais perto dele.
— Mas não foi, nada disso foi culpa sua — Bucky voltou a olhá-la, assustado.
— Nada disso foi culpa nossa, Buck — A voz suave de o chamando por um apelido de seu apelido soou como um carinho para ele — Nada do que aconteceu, nada do que você fez ou passou; nada na minha vida ou na dos meus pais biológicos, não foi culpa sua. Nunca foi e nunca vai ser.
— Eu assassinei dezenas de pessoas, , eu feri centenas de outras — Parando perto o suficiente dele, ainda de frente, notou que seu olhar parecia mais sombrio do que antes, como se estivesse sendo consumido por uma grande raiva de si mesmo — Eu deixei a Hydra te sequestrar, deixei que eles fizessem o que fizeram em você, eu tinha consciência do que estava acontecendo, eu fui… egoísta, e o que isso te custou? Como pode não ser minha culpa?
Para Bucky, aquela era uma pergunta difícil de se fazer em voz alta e era ainda mais difícil de ser respondida por . Nada que ela pudesse dizer a ele mudaria o fato de que ele esteve com os pais dela enquanto a Hydra transformava em uma arma. E nada aliviaria os sentimentos de dor e de culpa que Bucky carregava dentro de si por não ter imediatamente ido atrás dela, assim que soube do sequestro. Mas sabia que aquela era a única oportunidade dele de se tornar livre novamente e sabia que, por tudo que seus pais fizeram nos anos de Hydra, perder Bucky de vista não era uma opção. Tinham que seguir em frente, terminar o que começaram, custasse o que fosse. Embora aquilo a machucasse por dentro, tinha certeza absoluta de que não teria feito diferente. Mas as mágoas de Bucky com seu passado, com tantas coisas horríveis que fez, por tanto tempo, para tantas pessoas, sem que ele sequer tivesse noção disso, o cegavam completamente.
E, por mais que fosse difícil fazê-lo entender, fazê-lo enxergar, e responder àquela pergunta, tinha que dizer algo. Aquilo era importante para ele, ele precisa ouvir isso de você, Steve havia dito. Não importava quantas vezes ele tivesse refletido sobre aquilo ou ouvido Steve o defender, dizendo que ele não tinha culpa alguma. Ouvir de talvez fosse um reforço positivo. Ela tinha que, pelo menos, insistir.
— Nada disso foi você quem fez — A voz firme e o olhar sério de o fizeram olhá-la — Se você não tivesse caído do trem durante a guerra ou se tivesse caído e não tivesse sido encontrado pela Hydra, como teria sido sua vida?
Bucky passou tanto tempo imerso em seu próprio remorso que nunca tinha pensado naquilo. Talvez, em tempos diferentes, ele tivesse seguido a vida como um homem normal. Teria voltado da guerra, se casado, tido filhos. Teria que lidar com os problemas emocionais de ser um veterano e ganharia uma boa pensão do estado, suficiente para ter uma casa confortável e, quem sabe, pagar a faculdade das crianças. Ele teria seu braço esquerdo, um gato, como sempre desejou, e uma vida tão mediana que parecia, para ele, uma linda utopia. o deixou pensar por algum tempo e, na ausência de respostas, ela suspirou. Não sabia se pela exaustão que aquele tema lhe causava ou pela quantidade de álcool que havia consumido com Steve, ela se sentiu confiante e disposta a dizer o que realmente achava.
— Você não teria feito nada diferente do que um homem da sua época costumava fazer, não é? E desde quando conseguiu se livrar da Hydra, em Washington, o que você fez, Buck? — perguntou outra vez, no mesmo tom de voz baixo e firme.
— Fui buscar respostas sobre minha vida e… me escondi em Bucareste — Ele apertou os dentes, o maxilar se movendo discretamente, como se aquilo fosse difícil para ele confessar.
— Se você fosse esse monstro que acha que é, um assassino por opção, você acha mesmo que teria escolhido visitar um museu e se esconder?
Ele continuou a encarando, seus olhos azuis tão profundos nos dela que não conseguia desviar. Bucky sabia que ela tinha razão, só não sabia porque resistia tanto em aceitar aquela verdade. Tinha sido controlado por tanto tempo, treinado, preparado, convencido de que a Hydra era sua casa e sua família que, talvez, inconscientemente, culpá-los por algo parecia uma tarefa difícil, parecia errado. E foi só conversando ali, com , que ele percebeu aquilo. E mesmo alguns anos depois, longe da Hydra, ele ainda se sentiu fraco, vulnerável a ela, como se não importasse o que fizesse, ou onde estivesse, sua mente sempre seria, direta ou indiretamente, controlada por ela. Bucky estava cansado de lutar aquela batalha. E estava cansado de sempre perder.
— Sempre foi a Hydra por trás dessa merda toda. Você acha que… você acha que foi culpa minha ter matado meus próprios pais? — perguntou outra vez, depois de mais alguns minutos sem respostas do homem à sua frente. A voz carregada de mágoa, só se dando conta do que tinha perguntado depois que as palavras haviam saído de sua boca. Ela engoliu seco.
— Como pode ter sido culpa sua? Você tentou se defender, você nem se… lembrava mais deles — Dizer aquilo doeu tanto em Bucky quanto em , que abaixou seu olhar imediatamente. Bucky não podia imaginar uma criança, tão pequena, tão indefesa, passar pela dor insuportável, pela tortura da calibração mental. Talvez por sorte, ou pelo trauma, não lembrava da sensação.
— Está vendo só? Se consegue entender o que aconteceu comigo, porque não entende o que aconteceu com você mesmo, Buck? — Ela levantou seu olhar até ele outra vez — Nós fomos sequestrados, manipulados, fizemos coisas terríveis das quais nunca vamos nos esquecer. Mas não teríamos feito se tivéssemos tido escolha. Eu quase nunca usei a fitocinese para machucar alguém e eu sei que você esconde seu braço de metal porque sente vergonha dele — Bucky desviou seu olhar dela, engolindo seco — Não temos orgulho das coisas que podemos fazer, temos consciência de que somos bombas-relógios, mas nós sabemos quem somos e sabemos como e quando devemos usar esses… recursos. Não resta mais nenhuma opção senão seguir em frente com o que temos e recomeçar.
— Eu não mereço isso, , não mereço recomeçar nada. Eu fico pensando a todo tempo como eu pude deixar isso acontecer? Como eu pude deixá-los me controlarem, me usarem, por tantos anos?
A expressão de se suavizou, em claro sinal de tristeza. A verdade era que ela sabia da guerra que Bucky estava travando todos aqueles anos. Sobrevivendo dia após dia para ter a chance de lutar de novo no dia seguinte. Todos os dias da vida dele eram aquilo e era triste demais. tinha, há pouco, conversado com Steve sobre as feridas de Bucky e agora ela estava ali, bem diante delas. Feridas tão profundas que, parecia que não importava quanto tempo passasse, Bucky sempre as teria. Ela queria, ao menos, dividir aquele peso todo com ele, mas ela sabia que, no fundo, não havia nada que pudesse fazer.
— Você não teve escolha. Você não teve chance de contestar, de confrontar a Hydra, só quando... — dizia delicadamente até se calar. Se sentia profundamente mal com aquele assunto, Bucky teve uma única chance de se livrar da Hydra, mas ela estragou tudo. Se não tivesse sido sequestrada ou se tivesse consciência de seus recentes poderes, podia ter matado Vassiliev e qualquer outro membro da Hydra, podia ter deixado Bucky livre. Mas ela o fez voltar para o inferno — Me desculpa.
— Não, , por favor, eu fiz o que era certo a ser feito. Vassiliev me queria e estava usando você para chegar até mim — A voz de Bucky soou como um sussurro, suave e aflito, sua mão ainda abrindo e fechando ao lado do corpo — Eu não faria diferente hoje. Se a Hydra viesse atrás de você, eu... não sei o que seria capaz de fazer com eles.
Ele suspirou pesadamente. Estava sendo tão sincero que mal podia olhá-la. Não queria que se sentisse culpada por nada do que aconteceu. Embora não se lembrasse de absolutamente nada daquele período de sua vida, ele tinha certeza de que voltou para a base central assim que teve oportunidade, porque era o certo a ser feito. E, mais do que isso, não queria que aquela conversa a trouxesse o sentimento ruim de relembrar das coisas terríveis que os relatórios descreviam sobre ela. Ele só queria se desculpar e saber se, no final de tudo isso, ela ainda o iria querer por perto.
— Eu tive outras chances, eu me lembro de ter perguntado sobre coisas da minha vida, de ter questionado algumas missões, eu... — Bucky passou a mão em seu rosto, incomodado com seus pensamentos acelerados — ...me lembro de estar conscientemente em alguns lugares. São memórias fragmentadas, não estão claras, mas eu sei que são reais. Eu me lembro de ter cometido o erro de dizer ao maldito do Pierce que sabia quem era Steve, depois que o encontrei pela primeira vez em Washington.
— Rumlow falou sobre isso, em Lagos — levantou seu olhar tenso até ele — Ele disse que você se lembrou de Steve, ele estava lá quando você teve sua memória apagada pela última vez. Você nunca deixou com que isso acontecesse com você, Buck, não percebe? Mesmo depois de tudo que fizeram, você ainda se lembrava de coisas, ainda os questionava. Você lutou contra o controle da Hydra todos os dias em que viveu com ela e demorou tanto para sair de lá porque sempre que estava minimamente confuso, como quando viu Steve em Washington, eles começavam tudo de novo, apagando sua mente e te dando novas missões.
Uma vez mais naquela noite, parecia ter razão. Bucky nunca tinha tido tempo suficiente para pensar em como sair da Hydra. Parte de sua vida ficou em criogenia, a outra parte sofrendo lavagens cerebrais. E cada vez que afrontava seus superiores, com comentários ou perguntas confusas demais para que ele conseguisse entender sozinho, o ciclo começava outra vez: ele apanhava, tinha sua memória apagada e era deixado em uma cela completamente vazia e gelada, por dias seguidos, até terem certeza de que não representava uma ameaça para a organização e de que não iria comprometer as missões.
— Tudo isso me atormenta a todo instante. Eu lembro do que eles fizeram comigo, eu lembro da dor, lembro deles me batendo, dos treinamentos. Lembro da cela que eu ficava a maior parte do tempo, dos gritos das pessoas que eu… matei. Elas estão sempre lá, à noite, quando eu tento dormir. Os pesadelos eles… eu sinto como se estivesse sentado naquela cadeira, pronto para ser apagado de novo.
Não havia palavra melhor para descrever Bucky naquele momento senão dizer que ele estava em caquinhos. Lágrimas tímidas começaram a escorrer pelo rosto dele, enquanto ele às tentava esconder a todo custo, abaixando a cabeça e deixando seu cabelo cair sob o rosto. Bucky era muito mais forte do que pensava, tinha aguentado tudo aquilo por tantos anos, calado, totalmente sozinho. Talvez ele estivesse se sentindo daquela maneira porque, como Steve havia dito, era a primeira vez em tanto tempo que ele podia ser ele mesmo, que ele se sentia confortável em começar a deixar toda a dor que sentia sair de dentro de seu peito. Se pudesse, ela recolheria cada pedacinho dele e os guardaria com ela até saber como consertá-lo. Bucky não merecia ter vivido nada daquilo.
— Eu não mereço o que você e Steve fizeram por mim, não mereço estar aqui hoje. Eu fui feito para matar pessoas, para feri-las, para... Como eu posso me perdoar? E você… você deveria ter medo de me ter por perto. Não deveria me manter aqui, não deveria ter ido atrás de mim. Eu posso te matar, , eu posso… — Ele soluçou alto por alguns instantes, seu olhar preso no chão, envergonhado demais para ver o rosto preocupado e profundamente triste de o encarando — Se eu fizer alguma coisa com você e-eu… eu não sei…
— Eu sei quem você é, Bucky, e sei que não é nada nem parecido com o que está me dizendo. Para mim você é o Bucky, só o Bucky, e o resto não tem importância mais. É o cara que encontrei em Bucareste carregando uma sacolinha de ameixas, uma das pessoas mais fortes, amáveis e resilientes que já conheci. Você não é, e nunca foi, peso algum para mim. Você merece ter sua vida de volta, merece ser feliz e é por isso que eu escolhi ir atrás de você. E, agora, eu estou escolhendo ficar com você, porque eu quero ficar, eu quero te ajudar.
falou tão baixo que quase não podia ser ouvida, seu coração acelerando pelo nervosismo em dizer aquilo em voz alta, em expor parte da confusão que sentia por ele. Bucky negou com a cabeça levemente, a intensidade das lágrimas aumentando a cada palavra que ouvia de . Nunca, jamais, achou que alguém, sem ser Steve, pudesse gostar dele, pudesse o entender daquela forma e o ver daquele jeito que o via. Aquilo era tão reconfortante e tão amoroso, que, para Bucky, que não sabia lidar com seus sentimentos, foi assustador.
— Você já está me ajudando e eu agradeço muito por isso. Mas têm coisas que você não pode fazer por mim — Bucky rebateu sem a olhar, as palavras de ecoando em sua mente.
— Tipo o que? — questionou cruzando seus braços, seus olhos presos em Bucky e nas lágrimas que não paravam de escorrer por seu rosto.
— Trazer o Bucky dos anos 40 de volta — Ele soluçou — Trazer minha vida de volta.
E foi só então que entendeu como Bucky via a situação. Para ele, o James estava morto, enterrado em algum lugar entre 1940 e 1945, enquanto nascia e vivia o soldado invernal. Bucky não se entendia como ele mesmo, mas como sendo única e exclusivamente um projeto da Hydra. Os dois ficaram em silêncio novamente. o ouvia chorar baixinho, o barulho dos soluços doendo nela de um jeito que nem sabia como descrever. Em todos os anos que passou se preparando para o dia em que o encontrasse, em nenhum deles sequer pensou que o encontraria daquela forma. estava pronta para brigar, para bater, para se defender, para sobreviver a ele, e não para juntar os pedacinhos de um homem completamente quebrado por dentro. estava preparada para o soldado Invernal, mas nunca esteve para o Bucky. E parecia que ele também não.
Em pé, dois ou três passos na frente dela, Bucky se perguntava porque não podia simplesmente ser normal. Porque não podia estar como Steve quando entraram naquela sala, rindo e curtindo a noite com . Porque estava sempre se fechando, se isolando, se impedindo de ser… normal? O homem soltou a respiração pesadamente, tentando se acalmar. Aquilo tudo o deixava confuso e ele nem sabia mais o porquê estava chorando na frente de . Ela já tinha tantas coisas para se preocupar, ele não deveria ser mais uma delas.
— Você precisa fazer uma escolha, Buck — cortou o silêncio, seu coração em pedaços — Precisa escolher se quer continuar vivendo na sombra do Soldado Invernal, da Hydra, ou se quer realmente ser só o Bucky.
— Não é fácil assim — Ele subiu levemente seu olhar marejado até ela.
— Eu sei que não é. Nada do que aconteceu com você vai mudar, isso é parte de quem você é, da sua história. Mas seu passado não é a sua sentença de morte, Bucky. Você pode começar de novo. E sempre que der errado, você tenta de novo e de novo. As coisas são simples assim. Não vamos mudar o passado e nem vamos acordar um dia sentindo que tudo mudou. Nós é que temos que mudar, temos que fazer o futuro ser diferente — colocou as mãos nos bolsos de seus shorts, sua expressão estava séria e sua voz mantinha-se suave, baixa — Todos fizemos coisas das quais não nos orgulhamos, acredite, não foi só você. Mas vivemos com elas, porque os dias seguintes são as oportunidades que temos de consertar e de nos redimir. É assim que nos curamos. Se curar não significa que a ferida vai deixar de existir, mas sim que ela não vai mais controlar a sua vida. E isso é uma escolha, que só você pode fazer por você mesmo.
Embora os olhos de estivessem marejados e sua expressão ainda tensa, dizer aquilo tinha sido um alívio para ela porque, no fundo, servia de consolo para si mesma também. Bucky parecia refletir sobre cada palavra dita, em silêncio. Steve já havia conversado com ele naquela semana e havia falado coisas parecidas com as que o estava dizendo. Já eram duas pessoas, as duas únicas pessoas no mundo que Bucky confiava, dizendo as mesmas coisas. Talvez houvesse algum fundo de verdade em tudo aquilo que ele precisava aceitar, eles estavam certos. Bucky não era o que fizeram dele. Não tinha que ser tudo aquilo que aconteceu, tinha que escolher o que seria, o que se tornaria dali em diante.
— Você está se saindo bem. Está seguro, mais estável do que nunca e ninguém aqui vai te controlar. Você tem amigos agora, pessoas que estão do seu lado porque querem estar, porque escolheram você, lutar por você, pelo James dos anos 40 — disse amena, sorrindo fraco — Você pode estar confuso hoje sobre quem você é ou quem você foi, mas você sobreviveu a tudo, sobreviveu aos seus piores dias. E agora merece, e precisa, se dar uma chance de recomeçar. Permita-se.
Sem pensar muito no que estava fazendo, estendeu sua mão na direção de Bucky, que levantou ainda mais seu olhar choroso, de uma vez por todas, até ela. As lágrimas ainda escorriam pelo rosto envergonhado e arrependido dele, mas ele já não soluçava mais, parecia estar se acalmando. Bucky pensou por alguns segundos, olhando a mão estendida de . Não queria causar mais frustração para ela, não queria ser uma decepção. Mas ele sabia que precisava de ajuda. aceitava o pior de seus momentos, o pior de seus defeitos e mesmo sabendo de tudo que ele era, que tinha feito, ali estava ela, em pé, o ouvindo, o confortando, oferecendo ajuda, disposta a ser mais do que alguém que ajudou Steve a resgatá-lo da força-tarefa, semanas atrás.
Bucky pegou na mão de e, cedendo à vontade que o consumia, ele a puxou firme para mais perto de si. parou poucos centímetros de distância dele, seus narizes quase se encostando. Eles se encararam por algum tempo, tensos, seus corações acelerados como se fossem sair do peito. Os olhos de Bucky desceram até a boca dela e segurou a respiração por um momento até ele, finalmente, a abraçar. Passando os braços sobre os ombros dele, o abraçou com firmeza, como se sua vida dependesse daquilo. O cheiro amadeirado do perfume de Bucky misturava-se com o cheiro quente do shampoo que emanava de seus cabelos ainda úmidos. Bucky fechou os olhos deixando-se levar pelo momento terno e carinhoso que ele tanto desejava, desde o dia em que chegaram em Wakanda. O corpo quente dela, em contraste com o frio dele, o aquecia e seu único braço, passado na cintura dela, a trazia cada segundo para mais perto dele, como se fosse possível eles se fundirem naquele abraço.
Nem Bucky nem se importavam se aquele era o momento certo ou errado. Não se importavam porque, naquele momento, não havia mais nada que eles pudessem fazer por eles mesmos, senão sentirem-se. E como se ele precisasse daquilo há tantos e tantos anos, Bucky simplesmente afundou o rosto no pescoço dela e deixou as lágrimas saírem novamente. forçou levemente o corpo dos dois para baixo, para que se sentassem no sofá e ficaram ali, abraçados um ao outro, como se mais nada importasse.
— Eu não tenho medo de você, Bucky. Eu tenho medo é de não te ter por perto de novo — Ela falou baixinho, o segurando no abraço e engolindo a vergonha — Achei que você não iria me querer por perto quando descobrisse que eu estava… que eu estou envolvida na sua história.
— Como eu poderia? — Bucky perguntou triste, ainda afundado em que, discretamente, passava as mãos nos cabelos dele.
— A gente não se cura ficando perto do que dói — Ela suspirou, engolindo a repentina vontade de chorar.
Bucky afastou-se lentamente dela, limpando as lágrimas de seu rosto com a parte de trás da mão, ficando centímetros de distância de e sustentando seu olhar no dela. Tão de perto e depois de chorar, achou que os olhos dele pareciam ainda mais claros, cristalinos e imensos, como o mar. Ele parecia mais calmo.
— Na verdade, o que dói é não ter você por perto. E acho que só percebi isso agora — Bucky suspirou, seus olhos presos nos dela — Você é a única coisa boa que me aconteceu em setenta anos, . Você me faz sentir vivo de novo. Como eu posso não querer ter você por perto?
não conseguiu responder àquilo. Não estava preparada para ouvir aquela confissão e não conseguia raciocinar direito, pelo momento, pelo o que ouviu, pelos olhos de Bucky nos dela, pela proximidade, o cheiro dele, o gosto do álcool em sua boca. E se aquilo tudo já não fosse o suficiente, Bucky levou sua mão, timidamente, até o rosto dela. Como se o tempo tivesse parado completamente, ele contornou parte do rosto de com os dedos e parou a mão carinhosamente na bochecha dela. Bucky sentia como se todas as suas emoções estivessem adas, em todos os sentidos daquela palavra. deixou seu olhar cair até os lábios de Bucky por um instante, por instinto, e ficou ali. Não podia mentir para si mesma, ela queria beijá-lo. Queria muito. E ela não se importaria em dar o primeiro passo se fosse qualquer outra pessoa, mas era Bucky. Ele a deixava confusa, incerta. não conseguia ler os sentimentos dele, não conseguia prever o que estava pensando. Ela sabia que aquele não era um bom momento, mas ela não queria mais resistir. Ela queria ele.
Bucky acompanhou o silêncio de , ansioso por uma resposta. Em todo o tempo que passou sozinho, ele aprendeu a sentir medo da rejeição e aquele pensamento o estava dominando naquele momento. não reagiu ao toque dele e nem ao que ele havia dito. Será que ele a tinha assustado? Será que estava invadindo o espaço dela? Tinha sido muito intenso? Bucky se amaldiçoou mentalmente por ter falado aquelas coisas, não tinha sido momento certo. Talvez estivesse carente e solitário demais a ponto de estar entendendo todo o cuidado e atenção de com uma intensidade que, na verdade, não era real para ela, mas só coisa da cabeça dele.
Ele esperou por mais alguns segundos. A respiração de se misturando com a dele, pela proximidade, o perfume dela inundando o ambiente. Bucky evitou olhar para os lábios carnudos e vermelhos da mulher, afastando a todo custo os pensamentos que eles atraiam. Ele tinha certeza de que se não fosse tão inseguro, tímido e retraído, se ainda fosse o Bucky que pouco se lembrava ter sido, aquela noite terminaria ali, com os lábios de nos dele. Frustrado e envergonhado, Buck tirou sua mão delicadamente do rosto de , a fazendo subir seu olhar novamente para os olhos dele e afastar-se levemente com o corpo para trás, constrangida. Naquele instante, diante daquela reação dele, agradeceu a si mesma por não o ter beijado. Certamente o álcool a tinha feito entender tudo errado.
— Estou feliz de finalmente ter te encontrado, Bucky, e de você estar aqui, agora, de querer ficar, de me… querer por perto — cortou o longo silêncio sorrindo delicadamente, ainda sem saber o que responder à confissão dele. Bucky sorriu de volta, uma sensação de alívio correndo em suas veias, por , finalmente, o responder — E, agora que você está aqui, eu não vou a lugar algum.
— Vamos ficar bem, não vamos? — Ele perguntou baixo, sua voz rouca cheia de expectativa em, de uma vez por todas, resolver aquele assunto com .
— Já estamos bem, estamos juntos agora e vamos nos ajudar — Ela disse confiante, o encarando concordar com a cabeça.
— , eu ainda… eu queria dizer que sinto muito pelo o que aconteceu com seus pais e com você. Sinto mesmo — Bucky chegou a levar sua mão mais perto dela, mas logo recuou. Já tinham tido muito contato físico para um dia só, embora, para eles, ainda não fosse o suficiente.
— Eu sei. Também queria que soubesse que eu sinto muito por ter feito você voltar para a Sibéria.
— Está tudo bem — Ele se ateve em dizer, a olhando e sorrindo leve.
Nada mais havia que ser dito sobre aquilo, por nenhum deles. Estava claro para os dois como eles se sentiam em relação aquela história e como estavam preocupados um com o outro, sem querer se culparem ou se julgarem por qualquer coisa que possa ter acontecido. Bucky sabia que carregaria para sempre dentro de si o peso de ter matado seus pais, pelas mãos da Hydra, como ele carregava tantas mortes em suas próprias mãos. Nada que acontecesse iria mudar aquilo, não havia absolutamente nada que pudesse ser feito, senão esperar o tempo organizar as coisas. Mas ele sabia que ela estava disposta a aprender a lidar com aquela situação e, ajudando Bucky a lidar com seus problemas, ela, de certa forma, ajudaria a si mesma a lidar com os dela, e vice-versa. Talvez eles pudessem se recuperar juntos e construir uma versão diferente da história dali em diante.
Eles se mantiveram sentados próximos um ao outro, de frente, encarando-se. Estavam em paz, finalmente. A grande sala estava pouco iluminada e totalmente em silêncio. Os diversos sofás e poltronas formavam um perfeito círculo ao redor de uma grande mesa de centro, feita de madeira maciça e vidro. Havia um tapete etíope quilométrico sobre o chão de mármore escuro e nas paredes quadros que contavam a história de Wakanda com gravuras típicas do país. Em tudo ali havia um toque de modernidade e sofisticação, de tradição e história, o afro futurismo que simplesmente amava. Eles continuaram em silêncio por um bom tempo, imóveis. Bucky não sabia quanto tempo havia se passado, mas o caos de sua mente estava cedendo espaço para uma segurança que ele não tinha costume de sentir. tinha um cheiro doce bom, que o acalmava. E não fosse apenas o cheiro, o toque e as palavras o estavam ajudando a se sentir seguro outra vez. Bucky piscou forte algumas vezes e franziu a testa, como se lutasse contra seus pensamentos. Ainda tinha algo que o preocupava.
— E se eles me encontrarem aqui? Eu não quero colocar você e nem ninguém em perigo, não quero que nada aconteça com Wakanda. Se eles me acharem, eles virão atrás de mim.
— As coisas são diferentes agora, Buck — suspirou, apoiando um de seus braços no encosto do sofá — A Hydra caiu há anos e você está seguro aqui. Se alguém quiser chegar até você, então terá que passar por todas as barreiras de Wakanda e, depois, passar por mim.
— Me desculpe, é só que eu ainda tenho... medo — Bucky confessou, abaixando outra vez seu olhar, mas logo o voltou para novamente — De eles me encontrarem de novo, de eu… não conseguir controlar minha mente, de ficar sozinho outra vez, preso nesse pesadelo para sempre.
— Estamos protegidos aqui e você não vai ficar sozinho, Bucky, eu vou sempre estar aqui — Ela assentiu com a cabeça, sorrindo mais confiante — E você sabe que eu posso te ajudar a se livrar do controle mental, a reviver as memórias que foram tiradas de vocês e a se sentir mais seguro com a sua mente.
— Eu sei — Bucky sorriu sem mostrar os dentes — Obrigado, , por tudo.
— Obrigada por ter me salvado — Ela sorriu de volta — Acho que estamos empatados agora.
— Talvez seja pedir demais, mas eu espero que não tenhamos que desempatar isso — Bucky respirou fundo e riu baixo.
— Bom, se ficarmos quietinhos em Wakanda já é um começo — Ela riu fraco — E você já pensou em fazer terapia? — Bucky soltou uma risada baixa e assentiu.
— Só depois que tiver certeza de que minha mente está estável o suficiente para não ativar nada — Ele confessou, vendo ajeitar-se no sofá.
— Nós vamos trabalhar nisso. Eu posso te mostrar amanhã o que descobri, se quiser.
— Eu não vou recusar um convite para te ver de novo — Ele brincou, arqueando uma sobrancelha. sorriu mais abertamente e umedeceu os lábios, ainda vermelhos pelo batom. Estava feliz por conhecer aquele lado charmoso dele.
— Se você não ficasse trancado no quarto cem por cento do tempo, talvez me visse mais vezes — Ela provocou de volta, o vendo ajeitar-se no sofá para ficar totalmente de frente com ela. Bucky parecia envergonhado pelo comentário, e sorridente.
— Isso não é totalmente verdade, eu saí hoje — Ele comentou puxando a pequena caixa que estava sob o sofá, ao lado dele, trazendo-a para mais perto de si — Eu fui buscar isso. T’Challa disse que são os seus preferidos.
Bucky entregou a caixa azul claro, da Petit Ilekese, para , que recebeu sorrindo timidamente. Não podia acreditar no homem que estava sentado à sua frente, Bucky era tão doce quanto o conteúdo que tinha dentro daquela caixinha. tirou o laço dourado e abriu a caixa sem grande demora, feliz por ter recebido o seu doce favorito de toda a vida. Dentro, doze macarons de frutas vermelhas estavam perfeitamente colocados formando uma flor.
— Pensei em comprar flores, mas achei que não faria muito sentido para você — Bucky disse baixo, coçando a barba por fazer, envergonhado pela ideia estúpida que teve. riu.
— Buck, você não tinha que comprar nada — Ela olhou dos doces para ele, a felicidade e a surpresa estampadas em seu rosto — Não precisava disso.
— Eu sei, mas eu queria — Os olhos azuis e cristalinos de Bucky subiram nos de outra vez — Sou de uma época em que bons pedidos de desculpas vinham acompanhados de presentes.
— Acho que vou ter que me esforçar então — brincou pegando um dos macarons e esticando a caixa até ele, em seguida — Prova, você vai gostar.
Tímido, Bucky pegou um dos pequenos doces da caixa e mordeu. Nunca tinha provado um macaron, mas, a tirar pelo nome e pela decoração da loja em que comprou, sabia que era francês como a . A casquinha crocante por fora contrastava com a maciez do recheio. O gosto acentuado das frutas vermelhas combinava com a cor e o cheiro maravilhoso que emanava da caixinha, quase tão perfeito quanto o perfume de . Aquilo era delicioso. Tão bom quanto o vinho que havia tomado no apartamento dela, quanto o som de sua risada ou o calor de seu abraço. Na segunda mordida Bucky pensou que, talvez, estivesse se apaixonando pela França.
— E aí? O que achou? — perguntou mordendo o docinho, vendo a expressão feliz do homem à sua frente, que terminava de engolir.
— Acho que entendi porque são seus favoritos — Ele brincou, ela sorriu abertamente.
— Eu sei, eu tenho bom gosto — esticou a caixinha uma vez mais para ele que aceitou outro macaron.
— E, olha, tem mais uma coisa que eu queria te mostrar — Bucky pegou o pequeno caderno que havia deixado no sofá, enfiando o doce inteiro na boca e mastigando.
— O que é isso? — perguntou curiosa, empurrando seus cabelos para trás e terminando de engolir o macaron que comia.
— Seus pais trouxeram as minhas coisas, quer dizer, eu só tinha algumas peças de roupas e… cadernos — Bucky sorriu sem graça, o olhava com atenção — Eu tenho medo de me esquecer das poucas coisas que lembro ou do que… do que estou vivendo agora, então, há anos, eu escrevo tudo em cadernos.
— Fico feliz que meus pais tenham conseguido recuperar isso — disse sincera e ele assentiu.
— Eu também, são importantes para mim. E eu fui reler eles, depois que terminei de ler os seus… os nossos arquivos da Hydra — Bucky abriu o pequeno caderno em uma das páginas, marcada com um post-it — E eu encontrei isso.
pegou o caderno da mão de Bucky, trazendo-o para mais perto de seus olhos. As folhas sem pautas tinham anotações de caneta preta, em um idioma que ela conhecia bem. Não era novidade para ninguém que a Hydra havia ensinado Bucky, e outros soldados como ele, mais de uma dúzia de idiomas diferentes. Só o essencial para missões, de fato, mas o suficiente para se comunicar sem dificuldades. Aquilo não parecia estranho à , talvez por estar em francês. Mas, igualmente, não parecia familiar a ponto de reconhecer o significado.
1997 - Prom. de la Plage, Cagnes-sur-Mer, Nice
Fenugrec, sauge, romarin, fenouil, ortie, racine d’or
— Eu não me lembro do porquê ou de quando exatamente escrevi isso, minhas lembranças são sempre desconexas — Bucky respirou fundo, intrigado, olhando do caderno para , que ainda prestava atenção nos escritos — Mas eu acho que é sobre você. Quer dizer, 1997 foi o ano em que seus pais me encontraram, está em francês e tem um endereço de Nice. Faz sentido para você?
— Prom. de la Plage, Cagnes-sur-Mer, Nice — leu baixo e segurou a respiração por um momento. Seu olhar suave levantou lentamente do papel até Bucky — É o endereço da minha casa, da casa dos meus pais biológicos.
Bucky concordou com a cabeça, sorrindo fraco para ela. O endereço da casa dela estava ali, Bucky tinha algo em sua mente sobre Benedict e Hellen, mas não se lembrava de nada deles que pudesse realmente confortar , senão aquela vaga anotação. E aquilo era terrivelmente triste. Contudo, por outro lado, se sentiu confortada em ver aquilo. Bucky estava realmente ligado ao seu passado, a sua família. De peça em peça, o quebra-cabeça tinha sido montado e aquela era uma informação a mais, inesperada.
— Não é muita coisa, e nem faz muito sentido, mas achei que gostaria de ver — A voz rouca e cheia de ternura dele chamou atenção de . Ela assentiu com a cabeça, prestando atenção nos escritos. Alguma coisa ali a estava intrigando, ela parecia refletir.
— Qualquer coisa, por mínima que seja, já representa muito. Obrigada! — sorriu e então apontou para a linha de baixo do endereço, ajeitando-se de modo que ficasse ao lado de Bucky no sofá, para que os dois pudessem ver os escritos juntos — Essas palavras, você notou que são plantas? Feno-grego, sálvia, alecrim, erva doce, urtiga e raiz de ouro — Ela leu em voz alta e, então, olhou Bucky ao seu lado — E sabe o que é o mais curioso? Todas elas têm efeitos positivos para a memória.
Aquilo era novo para Bucky. Ele sequer se lembrava de quando tinha escrito, como poderia se lembrar de ter anotado uma lista de plantas e como poderia saber que elas, de algum modo, estavam interligadas? Ele sorriu sem mostrar os dentes para ela e voltou seu olhar para o chão. parecia ter respostas importantes para a vida dele. Por menor e mais insignificante que pudesse parecer, ela sempre sabia o que era. Como se fosse o pedacinho da vida dele que faltava, Bucky sentiu-se confortável e agradecido por ter ela.
— Você deve ter aprendido com meu pai — disse baixo outra vez, feliz com a descoberta — Benedict deve ter usado isso no seu tratamento, você deve ter se lembrado em algum momento, mas não fez sentido na hora, então você anotou.
— E isso tudo... você acha que realmente funciona em mim? — Bucky perguntou incerto. Sua memória era mais fodida do que a de qualquer ser humano comum e não parecia racional pensar que plantas o pudessem ajudar. não sabia responder com certeza à pergunta dele, mas não desconfiava nem um pouco do poder da natureza. Contudo, de todo modo, havia um jeito de descobrirem.
— Vem, vou te mostrar uma coisa — levantou-se do sofá sem aviso prévio e estendeu sua mão até Bucky, esperando que ele se juntasse a ela.
Sem dizer nada, e confuso pela mudança brusca de comportamento, Bucky pegou a mão de e deixou-se ser puxado por ela até o elevador no canto direito da imensa sala de estar. Carregando a caixinha de macarons e o caderno de Bucky, soltou a mão dele para apertar o botão sentido terraço, no último andar no palácio e precisou ter sua retina escaneada para que o elevador os levasse até lá. Bucky estava perdido, não sabia onde estavam indo e parecia ansiosa, embora sorrisse para ele sempre que seus olhares se cruzavam. Ela tinha certeza de que, se não tivesse bebido, jamais o levaria até lá naquela noite. Não era para ser daquele jeito. Surpresa. Aquilo podia terminar mal e ela poderia se arrepender depois. Mas, sem saber o porquê, ela queria correr o risco.
Como tudo em Wakanda, a tecnologia do elevador não os deixou sequer conversar, pois demorou segundos até chegar no andar solicitado. não sabia como ele iria reagir àquilo e esperava, torcia, de coração, que não fosse o assustar. De jeito algum queria que ele se assustasse, com ela ou com o que aconteceria. Bucky tinha muitas lembranças ruins em sua mente e ela não queria encontrar com mais nenhuma delas naquela noite. Ela fez sinal com a cabeça para que Bucky a seguisse para fora do elevador e, assim que saíram, se deram de cara com um pequeno corredor e uma única porta ao fundo. parou antes de abrir a porta, sua mão ao lado do sensor em que colocaria a senha, e suspirou.
— Pode ser estranho e eu não achei que te traria aqui tão cedo, mas você precisa confiar em mim, está bem? — disse confiante, digitando a senha e esperando a porta abrir.
— Eu confio — Bucky respondeu baixo, sentindo-se nervoso — Mas onde estamos?
— Tem um jeito de descobrirmos se a sua lista de plantas pode mesmo te ajudar.
— O que… como…?
Antes mesmo que ele pudesse terminar de perguntar, a porta automática havia se aberto completamente e deu alguns passos à frente, para dentro do lugar que, sem dúvidas, era um dos mais bonitos que Bucky havia visto em toda sua vida. Deixando as palavras morrerem no ar, ele seguiu , ouvindo a porta fechar-se atrás de si. O gigantesco terraço coberto por uma redoma de vidro não tinha nada senão um descampado, com grama cobrindo todo o chão e o céu estrelado completamente visível. Ao centro, um sofá quadrado grande estava embutido no chão, como se estivesse afundado nele, verde escuro e totalmente estofado. Bucky ficou imaginando se aquele era o cantinho de , o lugar em que ela podia se deitar e ver o céu, passar o tempo que quisesse sozinha, refletindo, segura. Mas ele não quis perguntar.
Ao invés disso, ele observou tirar seus sapatos e os pegar, ainda carregando a caixinha de doces e o caderninho dele, e seguir andando pela grama até o sofá. No meio do caminho ela virou-se levemente para ele, sorrindo, e o chamou uma vez mais, com a cabeça, para que se juntasse a ela. Bucky sorriu de volta e, imitando-a, tirou seus tênis e caminhou com eles na mão até sentar-se, de frente para , no macio sofá embutido na grama. Ela respirou fundo, deixando o que segurava de lado.
— Quando chegamos na Sibéria, você conversou com Steve sobre um momento em Rockaway Beach, você se lembra bem dele? — Ela perguntou concentrada, olhando Bucky exatamente a sua frente, confuso com a pergunta.
— Mais ou menos, nem todos os detalhes — Ele sorriu triste, a encarando de volta — Por quê?
— Não vai durar muito tempo e você precisa se concentrar só nesse momento, está bem? — Ela perguntou novamente, ignorando a confusão claramente visível de Bucky, que apenas concordou com a cabeça.
Melhor do que tentar explicar, era deixar com que Bucky concluísse sozinho o que estava fazendo ali. Assim, sem perder muito mais tempo, já concentrada o suficiente para aquilo, Bucky viu respirar fundo alguns segundos e desviar seu olhar do dele. Bucky seguiu o olhar dela para a grama ao lado e, como em um piscar de olhos, centenas de plantas começaram a crescer ao redor deles, em ordem de tipo, misturando-se no chão, perfeitamente alinhadas, até ficarem de um tamanho suficientemente visível. O verde vivo do feno-grego misturando-se com o opaco do alecrim e da sálvia podiam ser vistos mais perto deles e, embora mais afastados, o cheiro do ambiente foi tomado pela erva doce e pela urtiga. Ainda, assim que as plantas terminaram de crescer, em segundos, as flores amarelas da Raiz de Ouro preencheram o chão, em brotinhos pequenos e discretos. Bucky achava inacreditável ela conseguir fazer aquilo e voltou a olhar para ele.
— Só Rockaway Beach, ok? Pronto? — Ela sussurrou preocupada e, assim que Bucky concordou com a cabeça, estalou os dedos da mão direita.
Imediatamente o cheiro das plantas pelo terraço foi potencializado e Bucky jurava poder ver uma escassa névoa levantar delas. Mas ele não teve muito tempo para pensar naquilo, porque assim que começou a se concentrar em Rockaway Beach, sua mente foi preenchida pela imagem de Steve jovem e franzino comendo um cachorro-quente e revirando os olhos para Bucky, igualmente jovem, vestindo roupas caras e usando gel nos cabelos curtos. Steve tinha acabado de gastar os últimos dólares que eles tinham, para comprar as passagens de volta, com um cachorro-quente e agora não tinham como voltar para casa. Bucky desviou seu olhar de Steve até uma menina bonita ao seu lado, frustrada por estar naquela enrascada. Já estava ficando tarde, o tempo esfriava e ele temia não a entregar de volta aos seus pais no horário combinado, estava ferrado.
— Eu vou ligar para o meu pai vir me buscar, isso é inacreditável — Dot disse inconformada, aquele tinha sido um encontro frustrante em muitos sentidos.
— Não, gatinha, nós vamos dar um jeito — Bucky respondeu charmoso, passando uma mão pelos cabelos ruivos dela, delicadamente ondulados e presos.
— Você disse isso meia hora atrás, James, e ainda estamos aqui — Ela cruzou os braços brava, desviando o carinho dele.
— Você está muito sem paciência — Ele rebateu começando a ficar irritado.
— É você quem tem paciência demais para o que está acontecendo aqui — Dot bufou — Quer saber de uma coisa? Eu vou embora. Tchau, Steve.
— Tchau, Dot — Steve ateve-se em dizer, sequer se importando com a situação. Estava concentrado em seu cachorro-quente.
— Princesa, não, volta aqui! Dot? — Bucky insistiu dando alguns passos atrás dela, mas Dot o ignorou totalmente e foi em direção a uma cabine telefônica, de onde poderia ligar para seu pai. Bucky parou e colocou as mãos na cintura, a observando se afastar, até que deu de ombros e voltou-se para Steve, o olhando indignado — Seu cachorro-quente me fez perder a namorada, seu idiota.
— Você fez você mesmo perder a namorada — Steve respondeu mastigando — Prometeu uma porção de coisas para a moça que não conseguiu cumprir.
— Tipo o que? — Bucky levantou as sobrancelhas.
— Um urso de pelúcia e levar ela de volta para casa, no mínimo — Steve o encarou significativamente. Estava cansado, e acostumado, a ver as meninas caírem aos montes na lábia de Bucky e sempre, sempre, terminar assim — Você queria o quê? Que ela ficasse aqui? Gastou os últimos três dólares tentando pegar o maldito urso de pelúcia e nem isso conseguiu. Admite, meu amigo, você é um fracassado. E está mais quebrado do que esse pão — Steve fez uma careta, chacoalhando o cachorro-quente.
— Achei que só sair comigo já era o suficiente — Bucky passou a mão pelos seus cabelos, dando o melhor sorriso safado para Steve, que revirou os olhos.
— Você é um idiota, Buck, não é possível.
Bucky soltou uma risada sincera e abraçou Steve pelos ombros, o vendo terminar de comer o cachorro-quente. Os dois caminharam pelo local por mais alguns minutos, tentando pensar no que deveriam fazer para voltar ao Brooklyn, tendo em vista que estavam longe o suficiente para não ter a menor condição de irem a pé. A mente de Bucky, então, cortou o momento para os dois sentados na traseira de um caminhão frigorífico, obviamente desligado e sem carnes dentro, que os deixou na travessia de uma rua qualquer no centro de Nova Iorque. Bucky caminhou com Steve até a porta da casa dele, como de costume, para não o deixar se meter em encrencas.
— Você me deve essa, não esquece — Bucky apontou para o amigo e voltou a colocar as mãos nos bolsos da calça, sorridente.
— Prefiro não comentar — Steve respondeu apenas, abrindo a porta de sua casa em silêncio, já estava tarde — Mande um abraço para Rebecca.
— Está dando em cima da minha irmã? — Bucky perguntou malicioso, vendo Steve bufar.
— Boa noite, Buck.
— Boa noite, Stevie.
Bucky franziu a testa intrigado, seus olhos abertos e perdidos em algum canto qualquer do terraço. Ele via a si mesmo, mentalmente, dar meia volta na rua e seguir sozinho, caminhando tranquilo, pela noite do Brooklyn, até sua casa.
Enquanto isso, sentada de frente para ele, no terraço, desviou sua atenção das plantas por um único momento, deixando uma memória tomar conta de seus pensamentos. Ela tinha cinco ou seis anos, estava sentada na recepção de um hospital e podia ver a neve cair do lado de fora, pela parede de vidro. Seu olho esquerdo estava inchado, do acidente, não podia abri-lo completamente e ela tinha pelo menos uma dúzia de curativos nas costas e braços, cobertos pelo suéter colorido de tricô que vestia. Sua calça legging branca estava parcialmente coberta pelas botas de neve Ugg, beges, e ela podia sentir sua franjinha, recém cortada por uma das enfermeiras, pegando em sua testa.
— Pronta para ir para casa, meu amor? — A voz doce de Karl chamou atenção da pequena , que desviou seu olhar da janela até o homem à sua frente. Ele segurava alguns papéis que tinha acabado de assinar no hospital, uma jaquetinha quebra-vento cor de rosa e um gorro de lã branco, parecia animado. apenas assentiu com a cabeça, o encarando, e aceitou a ajuda dele para descer da cadeira — Então vamos colocar o casaco, está muito frio lá fora e não queremos virar bonecos de neve, não é?
riu fraco e vestiu a jaqueta, uma manga de cada vez, deixando Karl colocar o gorro nela, ajeitando-o. Em seguida, ele pegou na mão dela e a conduziu até a saída do hospital que tinha sido a casa da garotinha pelos últimos meses. Foram longas semanas para se recuperar do acidente que matou seus pais e longas noites em que Karl e Everett passaram acordados pensando sobre o que deveriam fazer. Embora estivessem, os três, com medo do que viria a seguir, adotar tinha sido a melhor e mais feliz das opções para todos eles. viu o carro, com Everett dirigindo, encostando perto deles e Karl a ajudou a ir para o banco de trás.
— E então, quem está com fome? — Everett perguntou virando-se para olhar no banco de trás que, timidamente, levantou sua mãozinha. Ele sorriu abertamente para ela, enquanto Karl acomodava-se no banco do passageiro — O que você quer comer, querida? — Everett perguntou simpático olhando , que pensou alguns segundos antes de responder:
— Macarons.
A memória de Bucky o levou até a porta de sua casa, no Brooklyn, mas antes que ele pudesse efetivamente entrar no imóvel, ela desvaneceu. , igualmente, teve sua lembrança cortada ali, vendo o sorriso de Everett com a resposta dela. Ela até tentou se concentrar novamente em potencializar o efeito das plantas ao redor deles, mas já não tinha mais sentido, não se lembrava de mais nada depois daquilo. Bucky piscou algumas vezes, voltando à realidade e encarando à sua frente, que o olhava com expectativa. Os dois ficaram se encarando por longos minutos, em silêncio, entorpecidos pela felicidade das boas memórias que tinham acabado de recuperar.
E foi só então que Bucky percebeu o que tinha acabado de acontecer ali, o que tinha acabado de fazer por ele. Quando ela comentou que o poderia ajudar com sua mente, com suas memórias, a única coisa que Bucky podia pensar eram em experimentos ou qualquer coisa do tipo, que envolvesse um laboratório e procedimentos médicos. Nada parecido com aquilo. Era… extraordinário. podia ajudá-lo a trazer boas memórias de volta, com carinho, com delicadeza, sem dor, sem violência, sem sofrimento algum. Só ele, ela e o que ela sabia fazer de melhor: cuidar das pessoas, controlar a natureza. Bucky não sabia o que deveria dizer para ela, palavras não podiam expressar o que ele estava sentindo diante de tudo aquilo.
, por sua vez, manteve-se em silêncio, esperando qualquer que fosse a reação dele. Não tinha certeza se a mente instável de Bucky o havia levado, de fato, para memórias de Rockaway Beach e, por algum tempo e pelo silêncio dele, ela achou que nada de bom tinha sido recuperado, que talvez ela tivesse contribuído para que ele se lembrasse, na verdade, das partes ruins de sua história. Mas Bucky parecia emocionado, pressionava seus lábios levemente, encarando com uma expressão leve, tranquila. Parecia procurar palavras para começar a falar, como fez mais cedo naquela noite, quando a encontrou.
— E, então, você acha que funciona? — brincou insegura, quebrando o silêncio. Bucky sorriu para ela.
— , como você… como você fez isso?
— Aqui tem as plantas que estão no seu caderno — Ela apontou ao redor deles e pegou o caderno de volta, de cima do sofá, abrindo-o na página marcada pelo post-it — Eu consigo potencializar o efeito delas, como no meu apartamento, quando fechei seus pontos — Bucky assentiu, recordando-se — Se juntarmos plantas diferentes, o potencial de ação delas aumenta muito, naturalmente. E meu pai deve ter pensado nisso, ele deve… ele deve ter dito isso para você, por isso se lembrou.
— Eu me lembrei de detalhes sobre Rockaway Beach que não tinha ideia, tudo era real, vivo. Se fizermos isso mais vezes, você acha que eu posso recuperar mais memórias? Talvez eu me lembre dos seus pais — Bucky parecia intrigado com a ideia. Ele queria saber mais sobre si mesmo, queria se lembrar de mais coisas como aquela.
— Sim, podemos tentar. Mas há um risco grande nisso, que eu não deveria ter corrido com você agora, sem você saber, me desculpe — Ela desviou o olhar para o céu.
— Um risco? — Ele perguntou curioso, vendo o olhar novamente.
— Não somos feitos só de memórias boas, Buck — Ela sorriu triste — E nem sempre temos controle o suficiente de nossas mentes para guiar o que pensamos. Isso que aconteceu aqui, agora, pode te trazer detalhes das partes que você não queria se lembrar nunca mais.
Ele concordou com a cabeça, em silêncio, pensativo. Ele sabia que o risco de mexer em sua mente era, de fato, muito alto. Não só para ele, não só por se lembrar de coisas horríveis que viveu com maiores detalhes, mas também, e principalmente, para . Bucky não sabia ao certo o que a Hydra tinha implantado em sua cabeça e o que quer que fosse ainda estava lá, esperando para ser ativado. Mexer naquilo era complexo e perigoso. A qualquer momento ele poderia perder o controle, poderia ativar o maldito Soldado Invernal e atacar . Não era seguro para ela e ele entendia isso. Talvez ainda não estivesse pronto para aquilo.
— Qualquer que seja a forma de ajuda que posso te oferecer, não quero que sofra mais. Eu não sei se vai ser sempre assim, bom, feliz — voltou a falar, sustentando seu olhar no dele — Só quero que você saiba que temos alternativas agora e quero que você conheça elas e pense sobre antes de realmente começarmos.
— É o mais seguro a ser feito, eu não sei como posso reagir, não confio em minha mente.
— Por isso te disse que não pretendia te trazer aqui tão cedo, não quero te colocar em risco e nem te pressionar. Vamos por etapas. Amanhã te explico as possibilidades que temos e você decide o que é melhor ser feito, o que acha?
— É perfeito. Obrigado, , obrigado mesmo — Bucky suspirou — Eu não sei como posso retribuir tudo isso.
— Já está sendo muito bem retribuído — Ela brincou pegando a caixinha de macarons, fazendo Bucky rir envergonhado. então a deixou em seu colo e esticou-se sob o sofá, pegando uma das flores da Raiz de Ouro. Assim que ela a arrancou, todas as plantas que antes haviam surgido ali cederam lugar, outra vez, para a grama, desaparecendo — Aqui, para você não se esquecer de hoje, do que se lembrou e nem de mim.
sorriu tímida para o caderninho que ainda segurava e colocou a pequena flor amarela exatamente na página marcada pelo post-it. Ela fechou o caderno em seguida e o entregou de volta para Bucky que, sentindo seu coração acelerar pela atitude carinhosa, o aceitou sorrindo. Ele faria qualquer coisa por , qualquer coisa que pudesse minimamente retribuir tudo o que ela estava sendo e representando para ele naqueles dias.
— Não tem como esquecer você, — A voz dele saiu quase inaudível — Eu não posso te esquecer.
— Você não vai — Ela respondeu serena, feliz por dentro — Não vai esquecer de mais nada, eu prometo.
— Obrigado — Bucky sussurrou outra vez, sorrindo tímido e olhando para o céu — A vista daqui é linda.
— Sim, esse é um dos meus lugares favoritos aqui. O Rei T’Chaka fez esse lugar para mim, quando cheguei aqui. Eu demorei muito tempo até entender e conseguir controlar a fitocinese, esse era o meu lugar seguro para aprender, sem machucar ninguém ou destruir nada — acompanhou o olhar dele para o céu, a noite estrelada iluminando o ambiente — Aqui tem milhares de sementes no chão, espécies diferentes de plantas, flores, tipos de pedras, terra. Fui estudando, potencializando cada um deles, descobrindo o que podiam fazer comigo e o que eu podia fazer com elas. Hoje eu venho passar meu tempo aqui quando quero ficar sozinha, testar alguma coisa nova e usamos para tratamentos medicinais alternativos.
— E isso tudo, a fitocinese, não consome nada de você? — Bucky perguntou curioso, ainda admirando o céu.
— Não, é como respirar, faz parte de mim — respondeu serena.
— É incrível — Ele desceu seu olhar até ela outra vez, ao mesmo tempo que ela sorriu e o encarou.
— Obrigada. Você pode vir aqui quando quiser, Buck, fique à vontade. Sei que se adaptar em um país novo não é fácil mas, ao menos aqui dentro, você pode se sentir em casa.
— Tudo tem sido ótimo até agora, a recepção, o quarto, a comida... eu agradeço — Ele sorriu.
— E falando nisso, bom, acho que precisamos ir dormir. Tenho um longo dia amanhã, preciso trabalhar em algumas coisas com a Shuri, a cerimônia de coroação do T’Challa está prestes a acontecer e precisamos encontrar o Sam — levantou-se, sendo acompanhada por Bucky.
— Steve está preocupado com ele — Bucky comentou amigavelmente, caminhando pela grama ao lado dela. Os sapatos em suas mãos, carregava a caixa de doces e Bucky seu caderno.
— Eu também estou. Não temos ideia de onde ele está, mas temos certeza de que está preso. Precisamos encontrar uma forma de tirar ele seja lá de onde estiver.
— Parece que vocês estão sempre envolvidos quando o assunto é libertar criminosos — Bucky brincou, referindo-se a si mesmo e a olhando de lado. riu.
— Essa é a nossa especialidade.
Bucky e deixaram o terraço tranquilamente e fizeram o caminho inverso até chegarem, outra vez, na sala de estar. Estavam felizes pela conversa e pelo desfecho daquela noite. Tinham conseguido externalizar parte do que sentiam em relação ao outro e pareciam ter aceitado a ideia de seguir em frente. Em silêncio, caminhando lado a lado pelos cômodos e corredores do palácio, Bucky e repassavam mentalmente partes do que tinham falado um para o outro naquela noite. Nenhum dos dois conseguia dizer com certeza o que aquilo significava, porque para nenhum deles estava claro o que sentiam e como deveriam interpretar os sinais. achou mais seguro tentar afastar os pensamentos, pelo menos até o dia seguinte, quando estivesse sóbria e descansada o suficiente para organizar tantas informações e sentimentos. Talvez pudesse conversar com Steve ou Shuri sobre aquilo, ligar para Sharon, alguém certamente a ajudaria a entender.
Bucky, por sua vez, estava dividido pelo sentimento de insegurança, de não saber ao certo o que fazer e como reagir a manifestações como as que viveu com , de ser velho demais para conseguir interpretar corretamente os fatos. A outra parte dele tinha medo de ser rejeitado por ela. Alguma coisa nele dizia que nunca poderia ser feliz com ele. Ele sempre traria problemas consigo, sempre teriam questões mal resolvidas e sempre seria perigoso demais para ela. merecia alguém muito melhor do que ele. Mas, mais forte do que aqueles dois sentimentos, estava o tempo. Bucky tinha vivido tempo demais sozinho, sem se permitir tentar nada, sem se permitir viver, ser feliz. E ele não sabia mais quanto tempo viveria, não queria perder mais tempo. Steve havia perdido tempo demais com Peggy, a ponto de nunca terem conseguido ficar juntos. Bucky não queria repetir aquela história. o havia feito refletir muito sobre isso naquela noite, havia incentivado que ele se permitisse ser quem era, que resgatasse o Bucky do passado e ele queria aquilo. Por que não começar, então, agora e com o traço mais marcante?
— Você está… muito bonita hoje — Bucky comentou, sua mão no bolso da calça, mexendo nervoso no caderninho. sorriu para ele, surpresa pelo comentário, seguindo andando lado a lado pelos corredores — Quero dizer, não só hoje, mas hoje em especial — A voz dele foi ficando baixa.
— Obrigada! Steve e eu fomos a um bar aqui perto.
— Talvez você possa me levar lá qualquer dia desses… — Ele ficou vermelho, mas manteve seu olhar alto, vendo o olhar sorridente — Para conhecer alguns lugares, agora que vou viver aqui.
— Na verdade, tem um outro lugar que gostaria de te levar — Eles pararam de caminhar assim que chegaram na porta do quarto de e viraram-se de frente um para o outro — Steve me disse que você gostava de dançar, então, quem sabe não aceita ir comigo no melhor baile da terceira idade da cidade — Bucky riu do convite — Te garanto que tocam boas músicas.
— Se você estiver lá, já vai ser incrível.
sentiu uma vontade enorme de gritar de alegria, mas conteve-se a sorrir e a encará-lo. Bucky estava mesmo dando em cima dela? E do jeito mais fofo possível? Ele sustentava o olhar dela, podia sentir que suas bochechas estavam queimando levemente, não sabia mais como fazer aquelas coisas. O silêncio breve, mas intenso, incomodou Bucky. Será que tinha achado aquilo demais? Ele certamente tinha dito besteira, não era uma hora boa.
— Bom, está marcado então — Bucky arregalou os olhos, a vendo sorrir de lado e estender a mão esquerda para ele. Talvez tenha sido sim uma boa hora, uma ótima hora — Quando se sentir seguro em sair e estiver pronto para conhecer seu novo país, você me chama para dançar.
— Já estou ansioso — Ele sorriu charmoso e deu um beijo na mão dela — Boa noite, boneca.
soltou uma risada baixa e sem jeito, pelo gesto e pelo apelido mais fofos e antigos que ela já tinha visto. Queria mesmo gritar de alegria. Bucky desviou seu olhar do dela, envergonhado por ter deixado aquele apelido escapar. Por mais que gostasse dele e achasse que ele cabia perfeitamente em , ela não era uma mulher de 1940. Certamente o acharia cafona. Mas Bucky não podia estar mais errado e ele percebeu isso quando ouvir ela responder:
— Boa noite, Sargento Barnes.
Eles se olharam uma última vez até entrar em seu quarto e encostar a porta. Bucky ficou parado ali por mais alguns segundos, encarando a porta fechada dela, como um bobo. o deixava confuso. De um jeito bom mas, ainda assim, confuso. Ele, então, foi para seu quarto e se sentou na beira da cama, pensativo, tentando organizar passo a passo do que tinha acontecido naquela noite. Pela primeira vez em setenta anos, Bucky sentiu uma estranha sensação crescer dentro de si e, com ela, segundos depois, memórias novas, como flashes, passarem pela sua mente. o protegendo dos tiros no prédio vizinho ao seu em Bucareste, ela descendo do carro quando chegarem em Berlim e o olhando; ela cuidando dos machucados dele em seu apartamento, cantando e rindo com Sam; curvada sob o fusca, pouco antes de ir falar com Sharon; ela em seu colo voltando da Sibéria, o sorriso dela para ele naquela noite; o abraço e o carinho enquanto ele chorava, o possível primeiro encontro. Apressado, Bucky puxou um de seus caderninhos em branco, de cima do móvel de beira de cama, e uma caneta, anotando todos os detalhes possíveis do que tinha acabado de reviver. Ele não queria e não podia se esquecer de .
Meia hora depois, Bucky colocou o caderno de lado outra vez, fechou os olhos e deixou-se cair para trás no colchão macio, desejando viver para sempre preso naquela nova lembrança.
- Capítulo 17 -
— Você está pegando o lobo branco?
nem precisou levantar o olhar para saber quem estava invadindo seu laboratório, gritando mais alto do que a música animada que tocava ao fundo e que foi consideravelmente abaixada pela inteligência artificial. Oito e meia da manhã e Shuri já estava enérgica. Se não a conhecesse desde pequena, diria que, com certeza, Shuri usava drogas pesadas. A atenção de estava totalmente focada em um protótipo ampliado em holograma à sua frente, cujas cores puxadas para o vermelho indicavam erros de funcionamento. Alguma coisa não estava fechando no cálculo daquele projeto, mas não conseguia entender o que estava errado, já tinha refeito aquilo milhares de vezes só naquela manhã.
— Que história é essa de lobo branco? — levantou as sobrancelhas, dando a volta na mesa em que estava trabalhando.
— Ele só sai da toca dele a noite, feito um lobo, e ele é branco. Okoye achou o apelido bom — Shuri deu de ombros, aproximando-se de e deixando ali um copo com iogurte, cereal e uma colherzinha dentro. riu baixo da justificativa.
— De onde você tira essas coisas?
— Eu me considero uma pessoa criativa — Ela sorriu cínica.
— Que ótimo, então vem usar essa criatividade para me ajudar com isso aqui — desviou sua atenção do holograma para Shuri, apontando-o com a cabeça.
Sem pensar duas vezes, Shuri puxou uma das cadeiras com rodinhas do laboratório e se aproximou parando exatamente do outro lado da grande mesa de metal, de frente para , encarando o holograma aberto entre elas. Ela amava um desafio e não podia mentir, sempre gostou muito de se envolver em projetos complexos como aquele que parecia começar a desenvolver. O protótipo projetado estava incrivelmente bem desenhado, os detalhes tinham sido minuciosamente pensados e, mesmo ainda não funcionando totalmente, era impressionante. Mas não foi exatamente a qualidade do projeto que chamou atenção de Shuri. não era especialista naquele ramo, a engenharia nunca tinha sido de interesse dela e, por isso mesmo, aquilo tudo era peculiar. Por mais que soubesse operar alguns dos programas e fazer os cálculos, pois aprendeu junto com Shuri ao longo da vida, não tinha muito gosto pela coisa. O negócio de sempre foi, claramente, a biologia. Botânica ou humana, ela sempre teve paixão por aquilo. E, por isso mesmo, as duas sempre fizeram uma boa dupla na ciência. Podiam unir o que tinham de melhor a oferecer em projetos inovadores, tecnológicos e avançados demais para que a maioria das mentes humanas pudessem entender.
Estudando os detalhes do modelo projetado à frente, com atenção, Shuri entendeu que , na verdade, não estava interessada na engenharia em si, mas sim em quem poderia ajudar usando ela. Shuri podia contribuir, e muito, e a cada erro que encontrava, ela ficava ainda mais animada em começar. Ela mexeu no holograma, gesticulando com as mãos como se limpasse o protótipo, vendo o que tinha sido colocado dentro e corrigindo alguns pequenos detalhes aqui e ali. Contudo, pelos números que apareciam no ar, projetados pouco acima e ao lado do holograma do protótipo, alguma coisa ainda estava fora do lugar e Shuri só levou cinco minutos para descobrir.
— Qual é a gramatura do vibranium que está usando? — Shuri perguntou olhando o holograma, enquanto , com as duas mãos, virava ele no ar, para fazer uma alteração na parte de baixo.
— 104, compactado — Ela respondeu séria.
— Vai ficar muito pesado, por isso está dando erro, a articulação superior não tem movimento, está emperrada — Shuri pressionou os lábios, pensativa.
— 102? — olhou Shuri, que aproximava um ponto do holograma, como se desse zoom nele, para ver a espessura.
— 87, eu acho — A amiga respondeu intrigada, olhando negar levemente.
— Muito leve, vai deslocar a placa central em qualquer impacto mais forte que tiver — tombou a cabeça de lado, pensativa.
— É, isso é. 96, então? — Shuri arrumou alguns cálculos projetados ao lado do holograma, fazendo uma nova simulação dos números.
— A compactação não está mais trabalhando com essa gramatura, eles vão recusar o pedido.
— Não vão, se for você quem pedir — Shuri a olhou significativamente. O chefe da compactação tinha uma queda por há anos e Shuri amava usar isso a seu favor. deu de ombros.
— A.R.I.A.? — chamou encostando-se em sua cadeira e a empurrando para trás com o corpo, para ter uma visão melhor do todo.
— Sim, senhorita .
— Recalibre o protótipo usando vibranium 96 compactado e tente colocar as placas por camadas auto reguladoras, por favor.
— Recalibrando protótipo — A.R.I.A. informou pacientemente, enquanto o holograma tomou uma cor alaranjada, mudando visivelmente as proporções do protótipo em instantes. A tela, logo abaixo de onde o holograma flutuava no ar, tinha seus cálculos sendo ligeiramente alterados, assim como as informações de peso, tamanho, espessura e impacto. A imagem do holograma foi mudando para tons azulados, conforme os resultados da alteração solicitada batiam corretamente. Não demorou dois minutos para A.R.I.A. informar: — Calibração concluída. Novo protótipo cem por cento operativo.
— Voilà — aproximou-se da mesa outra vez, puxando sua cadeira de rodinhas com o corpo. Ela, então, pegou o copo com iogurte e o bateu no de Shuri, que segurava o seu no ar, esperando um brinde.
— Você não é nada sem mim, confessa — Shuri sorriu vitoriosa, dando uma colherada em seu cereal.
— Fui eu quem comecei o protótipo — se defendeu, deixando o copo de lado outra vez.
— Você chama isso de protótipo? Está mais para um rascunho feito por uma criança de cinco anos — Shuri provocou, vendo o olhar incrédulo de sob ela.
— Qual é? Essa não é a minha área, eu me saí muito bem para quem nunca fez isso.
— Claro, aprendeu com a melhor — Shuri fez um biquinho, convencida como sempre.
— Eu adianto o seu trabalho e é assim que sou recompensada — resmungou, passando a mão direita no ar e jogando o holograma para o lado, em outro programa, enquanto se levantava com seu copo de iogurte na mão.
— Meu trabalho? — Shuri franziu a testa, andando com para o outro canto do lab.
— Sim, ia pedir para você desenvolver isso, mas fiquei ansiosa e já comecei — tomou um pouco de seu iogurte — Agora temos que articular as chapas de vibranium, interligar os movimentos com o comando cerebral e isso não pode, em hipótese alguma, desencaixar da base, machucar ou incomodar. Não pode ser muito pesado, nem muito gelado. E se der para se auto consertar em caso de deslocamento ou impacto, seria perfeito.
— Relaxa, maninha, deixa o upgrade do braço novo do lobo comigo — Shuri disse contente, já com ideias brotando em sua mente, enquanto dava a última colherada em seu iogurte — Quer uma função vibrador nos dedos também?
— Eu vou fingir que não ouvi isso — comentou mastigando, esperando o programa atualizar o arquivo recém colocado nele.
— Igual fingiu que não ouviu minha pergunta quando entrei aqui? — Shuri provocou, observando sua amiga revirar os olhos — Você está pegando ele ou não, ?
— Preto e fundo prata ou preto e fundo dourado? — perguntou indecisa, a ignorando completamente. Tinha gostado das duas opções, mas talvez o prata trouxesse lembranças ruins do braço antigo de Bucky. Shuri pensou por alguns instantes, vendo a amiga trocar as cores do protótipo de segundo em segundo, simulando as duas combinações de cores.
— Preto e dourado, é mais imponente.
— Concordo — gesticulou no holograma uma vez mais, fechando-o — Feito, então. A.R.I.A. envie para a mecânica.
— Protótipo enviado — A.R.I.A. respondeu no mesmo instante, fechando totalmente o holograma. olhou para Shuri e sorriu curiosa.
— Quanto tempo você acha que vai demorar para ficar pronto?
— Uma semana, ou duas. Você já simulou o tamanho real? — Shuri perguntou pensativa.
— Sim, o modelo está no tamanho, peso e espessura exatos. Só precisamos pensar no encaixe do ombro, porque ficou um pedaço do metal antigo nele, que está fundido na carne, é terrível — abaixou seu olhar, tinha cópia dos exames que fizeram nele em Wakanda, assim que chegaram da Sibéria. Os médicos não puderam remover totalmente o metal do braço antigo, para não deixar nada exposto. suspirou — Eu tenho o projeto do braço antigo também, que peguei em algum lugar da Hydra, vamos nos basear nele para evitar erros.
— Perfeito. Só dependemos, então, do tempo de compactação do vibranium — Shuri a olhou sugestiva.
— Vou falar com o Kwame hoje ainda, pode deixar — revirou os olhos preguiçosamente, a colher do iogurte que comia na boca.
— Se você for lambendo essa colher, ele vai compactar o vibranium em tempo recorde — Brincou Shuri, vendo a amiga gargalhar enquanto pegava mais de dentro do copo.
— Obrigada pela dica, Shushu — mandou o dedo do meio para ela, que riu baixo.
— Se me chamar assim de novo, eu nunca mais te ajudo em nada — Shuri apontou para ela, a vendo rir e voltar para perto da mesa inicial, pegando um vaso com dentes de leão no caminho.
— Ajuda sim, você não resiste às minhas ideias — fez um biquinho charmoso e fez uma planta qualquer pegar no ar a caneta que Shuri jogou nela.
— Falando em ideias, devo confessar que essa do braço foi nova para mim — Shuri se aproximou de , parando logo ao seu lado e se debruçando sobre a mesa — Tem alguma coisa a ver com isso?
Shuri virou seu pulso da mão esquerda para cima, deixando com que a pulseira de bolinhas que usava projetasse no ar as imagens de e Bucky na sala de estar, na noite anterior. Eles estavam próximos um do outro, sentados no sofá e se encaravam intensamente, em silêncio, até nitidamente descer seu olhar para a boca dele. Só podia ser brincadeira. sabia que Shuri ia insistir naquela história até se dar por vencida.
— Onde você conseguiu isso? — perguntou estridente, olhando da imagem para Shuri ao seu lado que, contente o suficiente em provocar a amiga, desvirou seu pulso, fechando a projeção.
— Não sei se você sabe, mas temos câmeras de segurança em todos os cantos aqui dentro — Shuri arregalou os olhos, fingindo incredulidade com aquela informação óbvia.
— E por que você estava vendo as câmeras de segurança de madrugada ontem? — cruzou os braços e levantou as sobrancelhas.
— ESTÁ BRINCANDO? Isso aqui é melhor do que novela angolana — Shuri respondeu animada — Outro dia flagrei T’Challa atacando a geladeira de madrugada e Aziza pegando o Caleb no jardim lateral.
— Caleb do laboratório de design? — riu boquiaberta.
— Estou dizendo! É perfeito. Você deveria assistir também! Mas nada, até agora, foi tão bom quanto ontem a noite.
— Não aconteceu nada ontem à noite! — revirou os olhos e pegou seu copo de iogurte outra vez, constrangida.
— Qual é, , olha toda essa tensão de vocês. Por que não beijou ele naquela hora? No sofá? — Shuri perguntou curiosa, estava animada.
— Porque não, Shuri! Eu não sei o que está acontecendo, ele está confuso com tudo, não quero piorar as coisas — respirou fundo, levemente frustrada, cutucando seu iogurte — Ele não é como os outros caras que eu já saí, ele não… ele não sabe o que é ter uma vida normal, tudo isso é assustador, entende?
— NÃO! Eu acho que você perdeu uma oportunidade perfeita de ficar com um cara gostoso — Shuri falou sincera e ignorando a careta de para ela — E convenhamos que, de vida normal, você também não tem nada.
— Mas isso é diferente — terminou de comer e deixou o copo de lado, voltando sua atenção para o vasinho de dente de leão, totalmente bagunçado, à sua frente — Eu não sei. Eu estava confusa ontem, tinha bebido, ele… ele é atencioso comigo, cuidadoso. Os olhos deles são… lindos, ele é lindo e é gostoso para caralho, sim, eu… não dava para resistir, foi confuso para mim também — assumiu de uma vez por todas, mas foi só ela levantar o olhar para Shuri para se arrepender: — VOCÊ ESTÁ GRAVANDO ISSO? EU NÃO ACREDITO.
— É para fins científicos futuros — Shuri se defendeu desligando o gravador da pulseira e rindo alto da cara brava de .
Sem pensar antes de agir, pegou um dos dentes de leão, de dentro do pequeno vaso que arrumava, e o assoprou com força em direção à Shuri. As pequenas flores se soltaram e se multiplicaram absurdamente rápido, no ar, a cobrindo totalmente, em um piscar de olhos.
— Eu vou te matar, — Ela murmurou, tentando se limpar.
— Você mereceu — deu de ombros, voltando sua atenção em arrumar o vaso.
— Eu te odeio e não é pouco.
— Não odeia não — respondeu cínica — Na verdade, você me ama tanto a ponto de ficar me vigiando pelas câmeras de segurança.
— Só quando eu sei que você está a fim do lobo branco.
— Eu não estou a fim dele, Shuri — respondeu brava, seu rosto vermelho pelo constrangimento.
— AI BAST! Não seja burra, , não combina com você.
— Obrigada, eu acho — revirou os olhos, colocando o ramo do dente de leão no centro do vaso e puxando a terra delicadamente. A plantinha enraizava sozinha na terra, lentamente, enquanto mexia nela. Shuri respirou fundo, exausta.
— Ele procurou o T’Challa ontem, desesperado, querendo saber sobre o que poderia te dar de presente — Shuri começou a dizer séria, vendo a amiga levantar o olhar curioso até ela — Eu vi como ele te olha, eu vi ele fazendo carinho em você. Nessas semanas, ele não trocou mais do que duas palavras com outras pessoas daqui, mas ele ficou horas falando com você ontem.
— Não é um bom momento para isso, ele acabou de chegar, eu não vou estragar a amizade que temos dando um passo em falso, sem saber se ele… corresponde — respondeu pensativa, as palavras de Shuri latejando em sua mente, enquanto ela se levantava e ia lavar a mão, na pia próxima. Talvez Shuri tivesse razão. Mas talvez só estivesse mesmo entendendo tudo errado.
— Sabe o que eu acho? — Shuri sorriu docemente para a amiga, a vendo voltar para perto dela, batendo as mãos na própria roupa — Que vocês não deveriam perder muito tempo. Estamos cansadas de ver as coisas acontecerem de repente em nossas vidas. Não temos o privilégio do tempo, , você sabe como é.
Shuri tinha razão, sabia daquilo. O tempo não costumava ter muitos amigos, sempre foi amargo e ingrato. Pessoas como ela e Bucky não podiam se dar ao luxo de esperar momentos ideais. Tempos de paz nunca duravam muito e não seria diferente agora. Estavam emendando luta atrás de luta a vida toda, a próxima podia começar a qualquer momento. Talvez nunca mais pudessem ter a chance que estavam tendo aqueles dias, de ficar juntos, de conversar, de sentir um ao outro. se sentiu mal por um instante. Do mesmo jeito que Sam chegou em sua vida, ele foi embora, deixou a saudade de um amigo que estava distante. Era um exemplo claro do que Shuri estava dizendo e ela não queria que isso acontecesse com Bucky também.
— Eu sei, eu vou pensar no assunto — sorriu para ela, concordando.
— Você ouviu alguma palavra do que eu disse? — Shuri perguntou incrédula — Pensar não, maninha, agir! E falando em agir, pode vir me ajudar a me livrar dessa praga grudenta.
riu do desespero de Shuri em tirar as flores de dente de leão de si mesma e se aproximou dela. Bastou encostar na amiga, como se a segurasse de frente, pelos braços, para todas as flores secarem e caírem no chão, de uma só vez.
— Vou ser mais clara: você precisa beijar ele logo, — Shuri insistiu, mas antes que pudesse rebater, uma outra voz entrou na conversa:
— Beijar quem? — Everett perguntou confuso e levemente enciumado. e Shuri viraram-se ao mesmo tempo para trás, a tempo de ver a imagem do homem abrir completamente em uma tela de corpo inteiro.
— T’Challa — Shuri respondeu de bate-pronto, sem pensar direito — precisar dar um beijo nele antes da coroação, sabe como é, para dar sorte.
— Você vai beijar o T’Challa? — Everett estava confuso. Nunca tinha ouvido aquela história.
— NÃO! — praticamente gritou, dando um passo mais perto da imagem de seu pai — Não desse jeito! É um beijo na bochecha, tradição.
— Eu espero que não seja o que eu estou pensando e nem com quem eu estou pensando, . Ele é perigoso.
— Eu também sou — Ela sorriu amarelo, vendo a cara enciumada e desgostosa de seu pai — Mas estamos falando mesmo de T’Challa. É sério.
— Eu finjo que acredito nisso e vocês fingem que me convenceram, pode ser? — Ele levantou as sobrancelhas e logo sorriu de lado, vendo as duas meninas rirem e concordarem com a cabeça — Tudo bem, então. Como estão as coisas por aí?
— Bem, eu acho, estamos nos preparando para a coroação — Shuri respondeu cruzando os braços, encostando-se em uma das bancadas do laboratório, ainda de frente para a imagem de Everett, que assentiu.
— Diga a ele que desejo sorte — O homem respondeu simpático — O mundo está ansioso por isso, estão atentos à Wakanda. Tem sido complicado esconder as coisas e manter o discurso do “é um país de terceiro mundo e pobre”.
Everett não podia ser totalmente honesto no seu ambiente de trabalho. A vida inteira precisou esconder sua filha, seu marido, sua história. Não era seguro para ele e nem para sua família que o mundo soubesse de detalhes e, por anos, foi aquela omissão que garantiu a proteção deles e a busca de pelas suas respostas. Ele amava o que fazia, sempre amou e sempre foi fiel ao seu trabalho. Tinha suas responsabilidades e entregava tudo da melhor maneira possível. Mas sempre que as informações ou as missões cruzavam com , com as pessoas que a acolheram e com Wakanda, a história era diferente. Ele tinha que garantir que, antes de qualquer coisa, sua família ficasse bem e que os segredos de Wakanda ficassem guardados. Era a condição de T’Chaka para acolher e proteger . De todo modo, ser totalmente honesto nunca importou naquele ramo porque, se tratando de agências de inteligência e segurança, ninguém era, nunca, totalmente honesto.
— Isso logo vai mudar — Shuri comentou simplesmente — Obrigada, senhor Ross, por ter nos ajudado todos esses anos.
— Sempre foi uma troca justa — Ele sorriu.
— Falando em trocas, e Zemo? — Shuri perguntou curiosa.
Desde que Everett e Karl haviam saído de Wakanda, no dia anterior, não tinha mais ouvido falar dele. O casal de agentes conseguiu convencer T’Challa de o entregar para a CIA e, eles próprios o levaram consigo de volta para Berlim. Ele havia cometido crimes internacionais e nada mais justo do que pagar por eles na mesma proporção. Wakanda, certamente, o condenaria pela morte de seu Rei. Mas, na Alemanha, para além disso, ele pegaria também por ter assassinado outras pessoas, ter ativado o Soldado Invernal e contribuído para a quebra de dezenas de artigos do Tratado de Sokovia. Everett estava feliz em interrogá-lo, ainda mais depois de tudo que ele fez passar na Sibéria.
— Está preso na base da CIA aqui em Berlim, vou interrogá-lo daqui a pouco — Everett respondeu brevemente e voltou-se para — E você, querida, conseguiu conversar com Barnes?
— Sim, acho que está tudo bem agora — Ela sorriu sem mostrar os dentes.
— Já falou com ele sobre o tratamento? — Everett perguntou curioso. Sabia que tinha muito a oferecer e tinha certo receio daquilo. Por mais que soubesse da história de Barnes, ainda não estava cem por cento certo de que ele era uma pessoa segura para ter por perto.
— Mais ou menos. Quer dizer, ontem fizemos um teste no terraço, ele reagiu bem, podemos trabalhar com o retorno de memórias dessa forma, sem precisar do laboratório — contou por cima, olhando de seu pai para Shuri e depois para ele de volta — Mas ainda não conversamos sobre a parte clínica. Vou falar com ele hoje e ver o que ele quer fazer.
— Você disse que foi ao terraço? Como foi? — Everett apareceu apreensivo.
tinha tido centenas de tentativas de recuperar suas próprias memórias da infância lá, ao longo dos anos, mas todas, sem exceção, tinham sido frustradas. Memórias da primeira infância já são naturalmente desconexas, confusas, muitas vezes sequer as temos. Para alguém que tinha passado pelo o que passou então, recuperar essas memórias era quase impossível. Era necessário ter pelo menos uma ideia do que aconteceu para que o método funcionasse, para que outros detalhes da situação pudessem aparecer. E não tinha nada, absolutamente nada sobre aqueles anos em sua mente.
— Eu me lembrei, pai, eu me lembrei de quando sai do hospital, depois da explosão — abaixou o olhar para as próprias mãos, sua voz baixa, até olhar o homem à sua frente outra vez — Talvez agora que sei o que aconteceu, alguma coisa possa começar a ser recuperada.
— É um avanço, sim, querida — Karl respondeu carinhoso e logo abriu o sorriso com a lembrança — Karl te vestiu com a roupa mais fofa do mundo e você quis comer macarons. Nós tínhamos preparado seu quartinho, eu estava tão nervoso naquele dia, meu Deus.
Vendo sua filha em silêncio, pensativa, Everett respirou fundo, sorridente, tentando transmitir confiança. Conhecia sua bem o suficiente para saber que o quer que ela tivesse se lembrado na noite anterior, por menor e mais rápido que pudesse ter sido, tinha mexido com ela. E aquilo, consequentemente, mexia com ele também. Everett nunca gostou muito das tentativas de de reviver memórias passadas, porque sabia que ela, na maioria das vezes, se machucava com aquilo. Já fazia anos que ela não tinha mais tentado, mas com James por perto agora, Everett podia suspeitar que aquilo voltaria a ser uma prática. Uma prática perigosa e emocionalmente pesada demais para ela carregar sozinha.
— E o Sargento Barnes? — Shuri perguntou baixo. e Everett a olharam.
— Ele se lembrou de detalhes dos anos 1940, uma vez que saiu com Steve e não tinha muita clareza do que aconteceu, foi só isso. Rápido e muito pontual — respirou fundo, cruzando seus braços.
— Foi uma boa experiência, mas é muito arriscado, — Everett começou a dizer preocupado — Não sabemos ainda exatamente o que tem dentro da mente dele, não sabemos como vai reagir a esse tratamento, não estamos prontos para isso agora, é perigoso, você sabe. Essa é uma etapa posterior, há muito o que ser feito antes de tentarmos recuperar as memórias dele.
— Eu sei, pai, é só que… Achamos uma anotação em um caderno dele, uma lista de plantas com o endereço de Nice, eu tinha que… tentar — olhou seu pai assentir brevemente com a cabeça, seu olhar ainda carregado de preocupação — Eu achei que tinha que fazer algo por ele, por Benedict.
— Sei que teve seus motivos, mas pense bem antes de se envolver em tudo isso, querida. James é instável, você precisa tomar cuidado antes de tentar arrumar o caos que ele carrega com ele.
mordeu seus lábios apreensiva e viu Shuri concordar com Everett. Ele tinha toda razão do mundo, mas como ela poderia não ajudar Bucky? Como poderia perder mais tempo esperando ele estar pronto o suficiente para aquilo? Será que algum dia ele estaria mesmo pronto? Aquela era a única chance que Bucky tinha de se recuperar, de tentar seguir em frente, de deixar de viver aquele inferno mental que vivia todos os dias, de se libertar de uma vez por todas. E como seus pais biológicos, sentia que precisava fazer aquilo por ele, por ela mesma, por Steve, por Ben e Hellen. Custasse o que fosse.
— Eu estou tomando cuidado, não se preocupem. Mas me fale sobre Sam, teve alguma novidade? — perguntou preocupada, desviando o assunto.
— Sim, era sobre isso que queria falar com você — Everett olhou para o lado, pegando seu celular em mãos — Vou compartilhar o arquivo, um momento.
— Ok — tinha a expressão tensa — A.R.I.A., abra o arquivo assim que o receber, por favor.
Atendendo ao pedido de , A.R.I.A. abriu o documento assim que recebeu de Everett e o projetou sob a mesa que antes trabalhavam no projeto do braço novo de Bucky. Everett observou e Shuri se aproximarem dela, curiosas. Havia dois arquivos sendo projetados concomitantemente e em paralelo. O primeiro deles mostrava uma planta interna, em realidade aumentada tridimensional, pela qual era possível estudar, de fora, todo o ambiente. O segundo, complementarmente, mostrava uma imagem em tempo real da parte externa do local. Como se fosse um barco flutuante gigante, circular e completamente fechado, a prisão estava no meio do oceano e sem absolutamente nenhuma referência próxima.
— Por Bast, eles estão presos nisso? — Shuri perguntou horrorizada, vendo Everett assentir com a cabeça. Aquilo era desumano.
Shuri colocou uma mão em cada holograma e olhou para , que concordou brevemente com a cabeça. Ela então juntou as mãos, trazendo os dois arquivos projetados consigo, misturando-os. Sobrepondo as duas projeções, eles passaram a ter uma visão completa, uma imagem perfeita da prisão, por fora, que podia ser navegada por dentro, com ajuda do mapa e com apenas alguns toques. não demorou em passar a mão pelo holograma, gesto que fez com que a imagem empurrasse o teto para o lado, como se ela estivesse destampando a prisão. Podiam ver lá dentro, a disposição das salas, das celas, dos corredores. E, empurrando mais alguns andares do lugar para o lado, como se o desmontasse em partes, encontrou Sam, sentado no chão da cela de concreto e, no lugar de uma grade, uma parede de vidro. Pela imagem, ele parecia cansado, como Clint e Scott. Mas foi a imagem de Wanda usando uma camisa de força que a chocou completamente.
— Que merda eles estão fazendo com ela? — perguntou irritada.
— Karl tentou intervir ontem, assim que chegamos, com um pedido de prisão domiciliar, mas não vão soltá-los tão fácil, não por meios legais — Everett comentou sério, descontente.
— Vamos por outros meios, então. Já estamos fora da lei, não vai fazer diferença — deu alguns passos mais perto do holograma, olhando Clint sentado no chão, desolado — Pelo amor de Bast, ele tem filhos.
— E esse outro cara, quem é? — Shuri perguntou curiosa, apontando para outra cela.
— Scott Lang, formiga atômica, algo assim — respondeu olhando a imagem do homem, mas logo desviando seu olhar para Shuri, que riu leve.
— Homem-Formiga — Everett corrigiu a filha.
— Isso é um absurdo — continuou murmurando irritada, ignorando os comentários — Steve precisa ver isso.
— Localizar o senhor Steve Rogers? — A.R.I.A. perguntou eficientemente.
— Por gentileza, peça que ele venha até aqui, o mais rápido que puder.
— O senhor Steve Rogers está tomando café da manhã com o senhor James Barnes, na cozinha — A.R.I.A. avisou.
— Chame os dois.
— Enviando convite.
***
— Eu não sei se é um encontro, Steve — Bucky desviou seu olhar até a caneca de café vazia a sua frente.
— É claro que é um encontro, meu amigo, ela te chamou para sair — Steve respondeu sorrindo. Estava realmente feliz de saber sobre o que tinha acontecido entre ele e na noite passada. Parecia que a conversa tinha sido muito melhor do que ele estava esperando.
— Eu não quero criar expectativas — Bucky olhou novamente para ele — Olha para mim, Steve. Eu sou todo fodido. Como alguém como iria me… querer?
Bucky sorriu triste para o amigo. Steve parecia ter levado toda a história que Bucky o contou para um lado que ele, Bucky, tinha certo receio em aceitar. claramente era tudo que ele poderia querer. Mas ele nunca, jamais, poderia ser o que ela precisava para si mesma. precisava de alguém tão bom, forte e estável quanto ela, alguém que pudesse mover o mundo por ela e não destruí-lo a qualquer momento. Bucky ficou pensando naquilo até conseguir pegar no sono, na noite anterior. Ele gostava de , isso era claro, mas algo mais forte florescia dentro dele, florescia como ela. Steve ia rebater aquela auto piedade com algum comentário positivo e engajador, mas foi cortado pela voz eletrônica de A.R.I.A.
— Bom dia, Capitão Rogers. Bom dia, Sargento Barnes — Os dois homens procuraram com os olhos pela cozinha até encontrarem um comunicador redondo ao canto da comprida mesa.
— Bom dia? — Steve respondeu incerto.
— Eu me chamo A.R.I.A., Ação de Reconhecimento e Inteligência Artificial, e pertenço a senhorita . Ela solicita a presença dos senhores em seu laboratório, por gentileza e com urgência.
— Aconteceu alguma coisa? — Bucky perguntou preocupado, seus olhos semicerrados.
— Ela encontrou o senhor Samuel Wilson.
Steve e Bucky se entreolharam tensos por um minuto antes de se levantarem. Para Steve, já estava mais do que na hora de interromper suas férias tranquilas em Wakanda e ir atrás de parte de seus amigos. Eles estavam presos, sendo tratados como criminosos de guerra e, muito provavelmente, sendo hostilizados, comendo e dormindo mal. Steve tinha que dar um jeito de ir atrás deles e, com disposta a ajudar, podiam pensar em algo rápido e eficiente. Bucky, por outro lado, sabia o que aquilo iria custar a ele. Ficaria sozinho outra vez. Sabia que não podia, em hipótese alguma, sair de Wakanda sem correr altos riscos de ser preso e julgado por todos os crimes que cometeu e, por isso, teria que ficar quando Steve e saíssem do país. Ele era um foragido ali, um refugiado que estava sob proteção do Estado de Wakanda, em sigilo. Bucky queria ajudá-los, queria ir junto, mas, igualmente, não queria se tornar, outra vez, um problema para eles resolverem.
— O laboratório fica no décimo segundo andar — A.R.I.A. quebrou o silêncio outra vez, antecipando a informação.
Os dois homens saíram sentido ao elevador mais próximo e foram rumo ao andar solicitado. Steve estava ansioso querendo saber onde Sam, Clint, Wanda e Scott estavam e, mentalmente, já pensava em possibilidades de resgatá-los. Bucky estava ansioso querendo ver outra vez. Não sabia o que esperar e nem como seria vê-la depois da conversa da noite anterior, mas, certamente, teria que agir com naturalidade e sobriedade. Sem muita emoção e sem pouca emoção. Ele conseguia fazer aquilo? Bucky se sentiu idiota pelas coisas que estava pensando, como se fosse um garoto de dezessete anos apaixonado pela primeira vez. Aquilo era ridículo, mas talvez fosse exatamente o que estivesse acontecendo. Talvez estive apaixonado, de fato, pela primeira vez. Afastando os pensamentos precipitados de sua mente, ele seguiu atrás de Steve para fora do elevador.
Pelo corredor que tiveram que caminhar, até a porta do laboratório, oito Dora Milaje estavam de guarda. Sérias, inexpressivas e imóveis, sequer passavam seus olhos por eles conforme os dois homens caminhavam pelo carpete vermelho vivo. Seja lá o que tinha no laboratório de , era importante o suficiente para exigir uma guarda real vinte e quatro horas por dia. Steve e Bucky pararam exatamente em frente à porta que, dois segundos depois, abriu-se automaticamente. Diante deles, o laboratório de dois andares podia ser totalmente visto. No andar em que estavam, o superior, havia uma sala de estar, com o mesmo carpete do corredor no chão, sofás e televisores. A parede da direita, do teto ao chão era, na verdade, uma enorme prateleira cheia de livros de biologia, medicina e botânica, organizados por cor. Um corredor, como uma rampa, dava acesso ao andar inferior do laboratório que começava ali. Espalhados pelo andar de baixo havia mesas, bancadas, cadeiras giratórias e todos os utensílios que um cientista precisava e que Bucky não conseguia nomear. Steve reparou que, grudado em uma das paredes do andar de baixo, havia centenas de desenhos de plantas, árvores, raízes e flores com seus nomes comuns e em latim abaixo, um verdadeiro catálogo à vista. E era claro que, por toda a parte que olhavam, havia plantas diferentes em vasos, penduradas ou enraizadas nas paredes.
Contudo, o mais impressionante do lugar não era seu tamanho e organização, mas sim a vista. Entrando pela porta e olhando o laboratório de frente, a parede principal, que pegava os dois andares, era feita de vidro, transparente, possibilitando ter a vista de parte da maior floresta preservada do país. E como estavam no décimo segundo andar, ver tudo aquilo de cima era absolutamente lindo. Ouvindo vozes conversando no andar de baixo, Steve e Bucky desceram pela rampa, impressionados. Aquele era o mundo de , tão ela que era impossível negar.
estava sentada em cima de uma das bancadas, ao lado esquerdo, suas pernas cruzadas e seu olhar tenso em cima do holograma ao centro. Ela vestia um macacão de tecido molinho, preto liso, uma camiseta branca de mangas compridas por baixo e tênis igualmente brancos. Seus cabelos estavam presos de qualquer jeito e ela vestia seus óculos de grau. De frente para ela, do outro lado do laboratório, Shuri estava encostada em uma das mesas de experimentos, ao lado de um béquer e um vaso de dente de leão, usando uma saia midi laranja e uma blusa de manga de frio preta, seu olhar exatamente igual ao de . Ela tinha os cabelos trançados e os braços cruzados em seu peito. A imagem de Everett Ross ainda estava aberta na tela de corpo inteiro ao canto e ao meio delas. Os três formavam um semicírculo ao redor da mesa, onde o holograma da prisão estava projetado.
Steve e Bucky deram bom dia aos presentes e, sem dizer mais nada, apontou para a imagem projetada, observando os olhares tensos deles seguirem até lá. Steve ficou em pé, perto da mesa com o holograma, ao lado de Shuri, olhando atentamente os detalhes daquilo. Era possível ver seus amigos em tempo real, presos e desolados. Tímido, Bucky encostou no balcão ao lado de onde estava sentada e avaliou, em silêncio, o tamanho do problema que teriam que enfrentar para tirá-los daquele lugar. Já tinha sido preso mais vezes do que se lembrava, mas nunca em nada parecido com aquilo.
— Eu não acredito que eles fizeram isso com a Wanda — falou ainda irritada depois de algum tempo.
— O que é isso que tem em volta? — Steve perguntou intrigado.
— Mar. Eles estão presos no meio do oceano — Everett respondeu, pensativo — Vocês precisam considerar isso para chegar até eles.
— Temos a localização exata? — Steve olhou para , que assentiu — Bom, então só há uma chance de chegar até lá rápido e é voando.
— Essa parte fica comigo — Shuri levantou a mão — Estou trabalhando com a possibilidade de pilotar remotamente, podemos usar isso como um teste.
— Não podemos fazer testes agora, não pode dar errado — Steve respondeu, sua testa franzida.
— E não vai, Capitão — Shuri rebateu segura de si.
— Como isso funciona? — Bucky perguntou curioso. Aqueles eram tempos tecnológicos demais para ele. Shuri levantou seu pulso esquerdo e sorriu.
— Como um simulador. Consigo escanear a aeronave e fazer uma cópia do funcionamento dela aqui, temos recursos para isso. Se quem estiver pilotando usar isso aqui... — Ela chacoalhou o pulso — ...então eu consigo tomar o controle e pilotar do meu lab em tempo real.
— Com isso podemos entrar os dois para evacuar a área mais rápido e não temos que nos preocupar em pousar ou arremeter a aeronave — concluiu reflexiva, não parecia uma má ideia.
— Tem 42 agentes fazendo a segurança interna, 15 na parte externa, 5 na cabine de vigilância e 12 pelos corredores. Os demais estarão espalhados pela cozinha, limpeza e administração — Everett comentou sério. e Steve se entreolharam.
— Fiquei sabendo que você deu conta de uma dúzia de homens em um elevador, em Washington — comentou, sorrindo de lado.
— Fiquei sabendo que você deu conta de uma base inteira da Hydra no Cairo, e não sobrou nenhum deles para contar a história — Steve rebateu no mesmo tom de voz, encarando e cruzando os braços. Ele tinha lido aquilo em um dos relatórios sobre ela que encontrou com Sam. sorriu abertamente.
— Eles não tinham histórias boas para contar — Ela deu de ombros. Bucky estava… apaixonado, em saber daquilo.
— Entrar, apagar todos os agentes, tirar Sam, Wanda, Clint e Scott de lá, sair — Steve concluiu resumindo o plano, vendo concordar com a cabeça.
— Acrescente não morrer e trazer a minha filha de volta para casa nessa lista, Capitão — Everett acrescentou, fazendo todos os quatro o olhar — Vocês são considerados criminosos, 117 países estão contra vocês, deveriam estar presos nesse mesmo lugar, inclusive. Há um risco alto e real em ir até lá voluntariamente.
— Não quero desanimar, mas há outro problema — Shuri acrescentou — Não vamos conseguir segurar todos vocês em Wakanda e em sigilo. Já temos o Sargento Barnes aqui e é problema o suficiente, com todo respeito — Shuri sorriu amarelo para Bucky, que abaixou o olhar até o chão.
— Eu também não vou poder intervir muito mais do que isso dessa vez. Estou indo para Londres amanhã, Klaue apareceu no nosso radar — Everett comentou, passando uma mão pelo cabelo.
— O traficante de vibranium? — Steve perguntou vendo Everett concordar — Tive o desprazer de encontrar com ele anos atrás, com o Ultron.
— Ele matou pessoas aqui, estamos procurando ele há anos — Shuri exasperou-se.
— Assim que souber de algo consistente, avisarei. Sharon já está em Londres, é de interesse da CIA — Everett falou outra vez. Steve abaixou a cabeça envergonhado, assim que ouviu o nome de Sharon e sorriu discretamente, mas logo recompôs-se, voltando a perguntar:
— E Karl?
— Está indo para os EUA cobrir uma emergência. O médico que faria a cirurgia de Rhodes, Stephen Strange, sofreu um grave acidente de carro e estamos aguardando liberação do novo médico. O Tratado de Sokovia só permite atendimento médico supervisionado pelo Estado, Karl está responsável por isso de agora em diante — Ele respondeu simplesmente.
— Como está o Rhodes? — Steve aproveitou a deixa para perguntar.
— A armadura que ele usava era experimental, metade da coluna vertebral foi esmagada — Everett respondeu sério, Karl havia recebido os exames dele antes que viajar.
— E o que isso quer dizer? — Steve perguntou olhando , que mordeu os lábios.
— Paralisia severa da coluna — Ela respondeu baixo.
Como se houvessem combinado, , Steve e Bucky abaixaram seus olhares. O sentimento de remorso os consumindo, a culpa por terem participado e contribuído para que Rhodes ficasse paralisado. Nada tinha que ter sido do jeito que foi, tudo poderia ter sido diferente se não tivessem se separado, se tivessem feito aquilo juntos. Por um instante, se sentiu mal por ter cruzado o caminho deles em Lagos, Steve se sentiu mal por ter lutado contra metade das pessoas que considerava família e Bucky se sentiu mal por existir. Tudo aquilo era, uma vez mais, culpa dele. Estava quieto e seguindo a vida em Bucareste, porque tinham que ter envolvido ele naquela situação? Não conhecia Rhodes, mas se sentia mal por ele.
Não havia mais nada que nenhum deles pudesse fazer senão se culpar. Não podiam ajudar Rhodes diretamente, mas ter Karl por perto dele, lidando com a situação, era minimamente reconfortante. tinha certeza de que ele havia dado um jeito de ir até lá voluntariamente, assumir aquela responsabilidade como uma forma de reparar o erro que a própria , Steve e Bucky cometeram. Eram informações demais para um dia que acabava de começar, e como se já não fosse o suficiente, A.R.I.A. chamou de repente, atraindo a atenção dos quatro outra vez.
— Senhorita ?
— Sim?
— Localização de Nakia identificada. Devo abri-la?
— Sim, por favor, jogue na tela A6 — pediu já saltando na bancada onde estava sentada e indo em direção a tela, do outro lado do grande laboratório. Um mapa simples foi aberto, com um ponto em vermelho piscando.
— O que é isso? — Bucky perguntou curioso.
— Quem é Nakia? — Foi a vez de Steve perguntar, observando Shuri ir até .
— Ex-namorada do T’Challa — respondeu simplesmente, tocando a tela para aproximar a imagem do mapa — Ela está com uma rede de tráfico de pessoas na… Nigéria? — virou-se para Shuri que deu de ombros.
— Achei que estaria mais longe — Shuri murmurou.
— A.R.I.A. envie isso para o T’Challa imediatamente e diga que ele me deve essa — pediu uma vez mais naquele dia e voltou-se de frente para os outros — Tudo bem, vamos organizar.
— Eu e Sharon vamos atrás de Klaue e se descobrimos algo, compartilho — Everett começou a dizer rápido, precisava voltar ao trabalho — Karl está nos EUA, então, estamos os três comprometidos. Vocês têm os arquivos da prisão e a localização exata de onde Sam e os demais estão, só tenham certeza de que sabem o que estão fazendo e de que vão voltar seguros. Dessa vez estão sozinhos.
— Parcialmente sozinhos — Shuri seguiu dizendo — Eu ajudo Capitão Rogers a chegar e sair da prisão.
— Depois disso, vocês podem ir para a nossa casa em Nice, ainda somos proprietários, não? — perguntou para seu pai, o vendo concordar com a cabeça — Fiquem lá o tempo que for preciso e seguro.
— Vocês não devem passar despercebidos por muito tempo, terão que se mudar com frequência. Já que não podemos ajudar trazendo vocês até aqui, podemos pelo menos custear os hotéis e alimentação, não se preocupe — Shuri completou a amiga.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — Bucky perguntou preocupado, olhando Steve.
— Não posso deixar eles presos, eu não vou deixar eles lá — Steve disse firme, seus braços cruzados e seu olhar indo de Bucky até e Everett.
— Certo e, maninha, eu acho você não deve sair de Wakanda — Shuri disse firmemente, olhando a expressão confusa da amiga. Everett concordou com a cabeça, murmurando algo como “era nesse ponto que queria chegar”, enquanto Steve e Bucky voltaram-se para ela — Não pode correr o risco de sair e não conseguir voltar para cá depois. Você tem coisas para fazer aqui — Shuri olhou significativa e descaradamente da amiga para Bucky — Ou vai deixar o Sargento Barnes com a Okoye?
não aguentou o comentário e soltou uma risada alta, sendo acompanhada por seu pai. Sabia do pavio curto de Okoye e a falta de paciência dela, ainda mais com um homem como Bucky, a levaria à loucura. Não demoraria mais do que duas semanas para ela pedir demissão, agredir Bucky fisicamente ou para dar um jeito de expulsá-lo do país. sabia que Shuri tinha um ponto e, pelo olhar de Steve e seu pai, teve a certeza de que todo mundo concordava com ela. Sam era alguém importante para e ela sentia falta dele. Queria poder ajudá-lo e queria poder estar lá para zoar ele quando fosse solto da prisão. Mas ela tinha feito promessas a Bucky. Tinha prometido ficar, tinha prometido ajudar e tinha prometido não o deixar sozinho. Não podia, mesmo, correr o risco de não voltar, ainda mais sabendo que, uma vez que Steve saísse de Wakanda, ele certamente não voltaria tão cedo.
Bucky se sentiu mal por ser, uma vez mais, o entrave de uma decisão. Steve já tinha escolhido ele à seus amigos suficientes vezes para Bucky saber o quanto ele era um problema. Estava sempre no meio de duas coisas, sempre sendo o fardo pesado a ser carregado. e Sam pareciam ter um bom relacionamento, eram amigos, se gostavam, se protegiam. Ela não deveria ter que escolher entre Sam e ele. E, de jeito algum, Bucky deveria ser o lado da balança que pesava mais. Ele desviou o olhar chateado, sem coragem de dizer qualquer coisa, e todos os presentes ali perceberam.
— Sua vida está aqui, , você não pode não voltar — Steve cortou o silêncio, sorrindo com confiança para a mulher — Eu consigo fazer isso sozinho.
— Tudo bem, vamos seguir assim — comentou finalmente.
— Está certo então, pessoal, todos temos missões a cumprir. Concentrem-se e tomem cuidado. Vamos manter os nossos canais de comunicação abertos. Sempre que precisarmos de ajuda com algo, nós chamamos. Boa sorte a todos — Everett falou sério, olhando cada um deles até parar em — Nos falamos de novo em breve, te aviso quando chegar em Londres. Eu te amo, minha florzinha.
— Boa viagem, pai, cuidado com o Klaue — o olhou preocupada — Eu também te amo.
Everett sorriu uma última vez para ela e desligou a transmissão. No laboratório, os quatro ficaram parados, em pé, se encarando por poucos minutos. Estavam tentando colocar em ordem, mentalmente, o que teriam que fazer e por onde deveriam começar. Aquilo tudo parecia loucura, como se tudo tivesse mudado da noite para o dia. Não podiam simplesmente voltar para seus quartos e fingir que nada precisava ser feito?
— Quando pretende ir, Steve? — Bucky perguntou baixo, colocando sua mão no bolso da calça jeans que vestia. só então reparou no suéter azul marinho que ele vestia, que caia perfeitamente bem nele e que era parecido com o que Steve vestia, cinza.
— Amanhã, se for possível — Ele respirou fundo, meio chateado. Não queria ter que ir e deixar Bucky e para trás. Mas, igualmente, não podia ficar e abandonar Sam.
— Bom, nesse caso, acho melhor começarmos a nos preparar. Aqui tem planta demais e tecnologia de menos — Shuri revirou os olhos e apontou com a cabeça para a porta.
— Nos vemos no almoço? — Steve perguntou olhando e Bucky.
— Talvez no jantar. A propósito, vamos no Mabaku hoje? Se é a última noite do Capitão Rogers em Wakanda, vamos celebrar — Shuri o cortou já começando a subir a rampa, esperando uma resposta dos outros três.
Steve e olharam, ao mesmo tempo, para Bucky, que pareceu desconfortável com o convite. Não tinha nada demais naquilo, mas ele não se sentia seguro em sair, ser visto por outras pessoas ou estar em ambientes cheios. Ainda tinha medo de ser reconhecido, perseguido, hostilizado por ser quem era, tinha medo de acontecer alguma coisa e acabar machucando mais pessoas. Steve e trocaram um olhar cúmplice.
— Melhor do que isso: vamos pedir Mabaku para entregar aqui — sugeriu, fumegando Shuri com os olhos — Não sabemos que horas estaremos livres, então, podemos encomendar e ficar mais à vontade aqui. Além disso, Steve é um homem idoso, precisa descansar para amanhã.
— Às vezes esqueço que isso aqui é um clube geriátrico — Shuri concordou entrando na brincadeira, ouvindo rir — Por mim está ótimo.
— Vocês conseguem ser piores que o Sam — Steve comentou irônico, vendo sorrir provocativa para ele e Shuri rir — O que acha, Buck?
— Pode ser assim, sim — Bucky respondeu timidamente.
— Fechado então. E pega leve com ele, Shuri, a coisa mais tecnológica que ele sabe operar é o aspirador de pó — insistiu na brincadeira, ouvindo Shuri e Bucky rir, enquanto Steve a olhava falsamente afetado.
Os dois saíram do laboratório em um minuto, deixando e a Bucky a sós. Diferente do que a ansiedade de Bucky o fez imaginar, não estavam desconfortáveis um com o outro e o ambiente não era tenso, mas pelo contrário, parecia leve e muito acolhedor. sabia como levar as situações e parecia entender como Bucky se sentiria nelas. Tudo ficava mais leve perto dela.
— Você sabe que pode ir atrás do Sam com Steve, não sabe? — Bucky olhou com receio. Precisava dizer aquilo à ela.
— Sei, mas sei também que, nesse momento, você precisa mais da minha ajuda do que o Sam — Ela respondeu simplesmente, caminhando de volta para perto da mesa com a projeção da prisão, fechando-a.
— Ele está preso, eu não — Ele insistiu, pensativo. Não achava justo ficar com ele ali.
— Correção: ele está prestes a ser solto — Ela sorriu confiante para Bucky.
— Eu vou ficar bem aqui, está tudo bem agora — Bucky rebateu.
— Eu não quero ir a lugar algum, Buck — suspirou, desviando sua atenção de volta até ele — Eu quero ficar aqui, com você. Sam vai ficar bem, Steve vai dar um jeito em tudo — Bucky sentiu seu coração bater mais forte ao ouvir aquilo, mas antes que pudesse deixar o clima constrangedor, ele respondeu:
— Ele sempre dá, não é?
— Acho que é isso que faz dele o Capitão América — comentou sorridente, vendo Bucky rir leve.
— Bom, já que não vou te convencer e não nos restou mais nada, você quer me contar o que descobriu? Sobre a minha mente, quero dizer — Bucky apontou para algum lugar aleatório do laboratório, envergonhado. Não queria ser invasivo nem apressar nada, só estava curioso.
— Claro, vem — o pegou pela mão espontaneamente e o puxou com gentileza até uma parte ao fundo do laboratório, onde um painel de cortiça estava colocado — Promete que não vai me achar louca?
— Por que acharia? — Ele segurou o sorriso.
— A.R.I.A., mostre o que temos sobre James Barnes, por favor.
Imediatamente, o painel afundou na parede, cedendo lugar a um outro, do exato mesmo modelo, que surgiu ao lado e se posicionou ali, bem na frente deles. Diferente do primeiro, que estava totalmente vazio, o novo painel tinha centenas de papéis, fotografias e mapas grudados com percevejos, fragmentos de relatórios e de documentos da Hydra, como um típico mural de investigação. Sobre eles tinham anotações, grifos, cálculos e fórmulas em post-its, que Bucky não sabia identificar, mas podia ver que boa parte estava em francês. Havia endereços, números de telefone e nomes de pessoas, fotografias de agentes da Hydra do alto escalão e de Bucky. Cópias sobre a história dele retiradas do museu Smithsonian, imagens recortadas de jornais sobre o acontecido em Washington e, bem no centro, e ao lado do símbolo da Hydra, a única foto que tinha de seus pais, jovens.
Bucky observou tudo aquilo em silêncio, dando alguns passos mais perto do mural. Havia muita informação para ser absorvida e Bucky sentiu seu corpo formigar. Não estava assustado, nem incrédulo de ver aquilo, estava admirado. Ele não sabia dizer quanto tempo doou de sua vida para chegar até ele e para chegar até a Sibéria, mas, vendo tudo aquilo, ele teve a certeza de que não foi pouco e nem fácil. Quantos lugares ela precisou ir e quantas pessoas precisou enfrentar? O quanto não havia se decepcionado em encontrar bases da Hydra que a deram nada mais do que novas pistas, mas nunca respostas? Daquele dia diante, passou a ser para ele um sinônimo de persistência, de resiliência e de insistência. Ela transbordava aquilo e aquele quadro era a prova disso.
— , isso é… — Bucky tentou começar a dizer, mas foi cortado.
— Assustador? — sugeriu, fazendo uma careta fofa.
— Um pouco, talvez — Ele a olhou risonho, vendo ela rir pelo nariz.
— Eu te disse que sabia tudo sobre você — Ela deu de ombros, cruzando seus braços.
— Você realmente está em débito comigo, boneca — Bucky respondeu no mesmo tom, a olhando de lado e, em seguida, de volta para o mural à sua frente. O bendito apelido carinhoso escapando mais uma vez. pressionou os lábios, tentando não surtar.
— Mas você já sabe tudo sobre mim agora, está na minha casa, leu meus arquivos. Já dormiu no meu apartamento em Berlim e até conheceu meus pais, estamos indo rápido aqui — brincou, passando a língua pelos lábios, tirando uma risada gostosa dele. Uma coisa a mais que era gostosa naquele homem.
— Talvez porque nós nunca tivemos a chance de esperar por algo — Bucky respondeu sorrindo e desviando seu olhar para o painel outra vez.
Diante daquilo, só conseguia pensar que Shuri era espertinha demais e realmente tinha razão sobre ela e Bucky. O homem não queria entristecer o momento tão leve e gentil e, antes que pudesse responder algo ou parar para refletir sobre aquilo, ele continuou:
— Eu ainda acho que estou em desvantagem. Os seus arquivos, eles não dizem que você gosta de macarons ou que é a pessoa mais inteligente, carinhosa e gentil que esse mundo já teve, e eu posso dizer isso com propriedade — Bucky sorriu sem mostrar os dentes, voltando a olhar , que desviou seu olhar dele, envergonhada — Também não dizem que você quase matou um cara beijando ele.
— Eu não acredito que você sabe disso — exclamou boquiaberta, colocando suas mãos em seu rosto, mas logo riu — Steve é muito fofoqueiro.
— Sempre foi, acredite — Bucky concordou com ela, rindo junto. viu ele umedecer os lábios e voltar seu olhar para os arquivos pendurados no mural — Mas não era assustador o que queria dizer, era… ual. Eu tenho certeza de que aqui tem muito mais coisas sobre mim do que consigo me lembrar.
Embora ele estivesse se esforçando em parecer convencional, leve e divertido, Bucky se sentia levemente triste por dentro. o observou passar os olhos, em silêncio, pelo mural, lendo tudo o que podia ler no menor tempo possível. A mão de volta no bolso, Bucky estava há alguns passos ao lado de , revendo pessoas das quais se lembrava vagamente e absorvendo informações sobre si mesmo que nunca tinha visto antes. Mesmo anos depois, algumas coisas ainda eram complexas demais de serem assimiladas. pensou que, talvez, Bucky nunca fosse realmente absorver a sua própria história. Poderia aprender a lidar com ela, mas nunca, jamais, internalizar e conviver em paz com o que aconteceu.
— Nada do que tem aqui é sobre quem você é, Buck. É tudo sobre como podemos reverter a situação, te trazer… paz — comentou suave, mexendo em alguns papéis e tirando do mural uma folha com anotações.
— E como você acha que podemos fazer isso? — Ele perguntou baixo, a respiração descompassando levemente pela ansiedade. colocou a folha na frente dele e se sentou na bancada abaixo de onde o mural estava. Bucky manteve-se parado em pé, ao lado de e de frente para o mural.
— A Hydra colocou em sua mente 10 palavras, em russo, em sequência, que precisam ser faladas em voz alta para que ative o Soldado Invernal. Basicamente, em resumo, para tirar essas palavras de você seria preciso fazer o exato mesmo procedimento que a Hydra fez para colocá-las.
— Apagar minhas memórias? — Bucky olhou apreensivo para . Não havia sequer cogitado passar por aquilo de novo, não se submeteria àquilo outra vez. Não podia esquecer do pouco que havia se lembrado, mesmo que isso fosse o necessário para tirar dele tudo que a Hydra colocou. Bucky não suportaria passar por tudo de novo. Mas aquela nunca tinha sido sequer uma possibilidade para , que negou com a cabeça, séria.
— Eu não vou, em hipótese alguma, fazer isso. Existe uma alternativa, não precisamos… apagar tudo, quer dizer, e se tirarmos dessa sequência uma única palavra?
apontou para uma sequência matemática na folha, que, provavelmente, comprovaria aquela teoria com um modelo de cálculo. Bucky não conseguia entender os números ali demonstrados, mas a ideia em si mesma parecia fazer sentido. Ele pensou por alguns instantes, até concluir:
— Isso desestabilizaria a sequência.
— Exato! E sem a sequência nada é ativado em você. As outras palavras seriam só... palavras — gesticulou para ele com a mão esquerda, seu semblante ainda sério, como se ela escolhesse qual a melhor forma para explicar aquilo.
— E isso… como faríamos isso? — Ele perguntou baixo outra vez, curioso pela hipótese que se formava ali.
— Usando um soro de propranolol. Ele inibe a atividade da norepinefrina, um neurotransmissor — mostrou aquilo no papel novamente e, em seguida, encarou os olhos dele, cheios de expectativa nela — Nós fizemos testes aqui em Wakanda, com pessoas que tinham passado por alguma situação traumática. Elas receberam uma dose de propranolol e foram convidadas a relembrar o trauma. As reações mais intensas, como medo e angústia, por exemplo, desapareceram completamente, e esse efeito se manteve mesmo depois que elas não estavam mais sob efeito do medicamento.
— Meu Deus, … você acha que funcionaria em mim? — Bucky abaixou seu olhar para o chão, reflexivo — Acha que só um medicamento poderia fazer isso tudo… desaparecer?
— Como seu corpo é resistente a dosagens convencionais de medicamentos... — apontou para alguns exames médicos antigos dele, pendurados no quadro atrás dela — ...vamos exagerar a dose o máximo seguro possível. Isso não fará todo o trauma desaparecer, mas se focarmos nas palavras, podemos te fazer esquecer pelo menos uma delas.
— Você disse que os voluntários foram convidados a relembrar os traumas, c-como faria isso comigo?
— Falando a sequência várias vezes — O olhar intenso de não escondia a tensão de chegar no ponto mais crítico daquela conversa.
Bucky claramente se assustou com aquilo e sua reação em levantar o olhar arregalado até ela e dar um passo para trás só confirmou o que já esperava. Ele não ia querer fazer parte daquele experimento, ele não ousaria tentar mexer em sua mente se aquilo não fosse completamente seguro para as pessoas envolvidas. Bucky não tinha medo por ele. Já tinha sido o Soldado Invernal por tanto tempo que, naquela altura de sua vida, algumas vezes a mais ou a menos, não lhe fariam diferença alguma. Mas ele não podia mais arriscar ouvir aquelas malditas palavras, não podia perder mais vidas para salvar a sua própria.
— , eu não… eu não vou conseguir, você sabe. É perigoso, eu vou machucar você, vou machucar todo mundo — Bucky quebrou o curto silêncio, sua voz relativamente desesperada.
— Não vai se fizermos isso com você na criogenia — soltou de uma vez e pressionou os lábios. Os dois se encararam por mais algum tempo, Bucky absorvendo aquela informação, confuso, sua mente parecia embaralhar, como na noite anterior.
— Isso é possível? Quer dizer, não vou ouvir vocês, como vou me lembrar do trauma?
— Coma induzido — respondeu simplesmente, triste — Seu corpo vai estar na criogenia, mas sua mente continuará ativa. É seguro para você e para… nós.
tinha passado tantos anos estudando aquilo que tinha resposta lógica para qualquer pergunta que ele pensasse em fazer. Bucky estava diante de um estudo sério, de testes que comprovaram teorias, de pessoas que se voluntariaram para confirmar cálculos e conclusões lógicas que foram, todas, detalhadamente analisadas, pesquisadas, testadas. Contudo, mesmo diante de tudo aquilo, nada parecia real. , sua história, sua busca, todos aqueles arquivos, aquele país, a paz e a calmaria que estava sentindo naquelas semanas, nada parecia verdadeiramente real para ele. Era como um sonho, como se qualquer coisa boa que viesse em sua vida fosse, na verdade, uma grande mentira. Como se tudo estivesse prestes a desmoronar a qualquer segundo. Não era possível que, realmente, existia uma solução para ele. Bucky não sabia como deveria se sentir. Não sabia nada sobre paz, sobre segurança, sobre amor. Aquela era uma chance real. A primeira e única, que teve em toda a vida, de recomeçar.
— Nenhuma das duas opções é a ideal, eu sei. Eu gostaria de ter outra solução, acredite, eu esgotei todas as possibilidades que tínhamos de fazer isso de formas mais simples. Mas essas foram as únicas formas que encontrei e a criogenia é o único jeito de você não sofrer — sorriu sem emoção. Estava feliz de estar contando sobre aquilo para ele, mas não tinha ideia do que Bucky estava pensando. Sua expressão manteve-se séria o tempo todo e ele desviava o olhar dela para o mural de tempos em tempos, confuso, incerto, incrédulo — Esse é o primeiro estágio do que chamamos carinhosamente de “Tratamento Barnes”. Depois disso, podemos tentar reviver as memórias, como ontem a noite, mas de um jeito seguro e, então, você pode passar para a terapia convencional. Em graus bem mais leves, algumas pessoas aqui têm feito o tratamento e estão já na fase de terapia, com resultados impressionantes. Achei que você gostaria de saber. A sua mente, sua história, está ajudando outras pessoas a se recuperar de traumas passados.
Bucky concordou com a cabeça, sentindo-se emocionado por aquela informação. Quando em sua vida poderia imaginar algo parecido com o que estava vivendo ali? Quando em sua vida poderia imaginar encontrar alguém como ? Ele sustentou seu olhar no dela, mas não teve tempo de dizer nada, pois a voz computacional de A.R.I.A. tomou o ambiente outra vez.
— Senhorita , o senhor T'Challa a convida para visitar a erva-coração em dez minutos.
— Ah Bast, é hoje! Confirme, A.R.I.A. — soltou a respiração, saltando da bancada em que estava sentada, tinha se esquecido completamente daquele compromisso — Me desculpe, Buck, eu preciso sair.
— Tudo bem — Bucky concordou engolindo a frustração de não querer que ela precisasse sair.
— Fique aqui, não tem problema algum. Há muito que você precisa ver e pensar. Veja os arquivos com calma, analise o estudo que fiz. A.R.I.A. pode te ajudar a pesquisar, é só perguntar para ela.
— Obrigado — Bucky disse baixo, seu olhar caindo no dela outra vez.
— Infelizmente, eu não devo voltar tão cedo, então, quando se sentir satisfeito, você pode simplesmente sair. Pode levar o que quiser também, acho que já posso considerar essa missão... concluída, não é? — sorriu tímida para ele e se afastou alguns passos — Me desculpe mesmo. Até mais tarde, Buck.
sorriu sem mostrar os dentes para ele uma última vez e foi em direção a saída do laboratório. Não podia se atrasar, os ritos da erva-coração demandavam tempo e seus guardiões estavam sempre ocupados demais para esperar alguns minutos de atraso. Bucky sentiu uma pontada estranha em sua cabeça, como uma dor forte, assim que falou “missão concluída”. Ele a acompanhou com o olhar, até ela sair completamente do local, e virou-se para o mural. Alguma coisa em sua mente parecia estranha. Bucky sentia como se uma forte enxaqueca fosse começar a qualquer instante, mas ele já estava tão acostumado com aquela sensação que decidiu ignorar. Sabia que estava fazendo esforços mentais demais naqueles dias.
Bucky tinha lido e relido dezenas de vezes os relatórios de e suas próprias anotações nos caderninhos recuperados por Karl e Everett. Tinha revivido muitas situações, das quais não se lembrava mais, conversando com Steve e teve toda a conversa com , na noite anterior. Sua mente deveria estar naturalmente sobrecarregada com tantas emoções, lembranças e informações. Bucky tinha tido pesadelos também, como em quase todas as noites em que se deitava para dormir. Aquelas quase duas semanas tinham sido emocionalmente intensas para ele e, talvez, repassar cada detalhe daquele mural, naquela tarde, não tinha sido uma boa escolha.
***
Sete e vinte e cinco da noite, e Steve voltavam caminhando tranquilos sentido seus quartos, comentando sobre detalhes de como seria o resgate de Sam. Tudo havia corrido bem no santuário da erva-coração e tinha tido tempo de conversar com T’Challa ao longo da tarde e traçar, juntos, uma boa estratégia de resgate de Nakia. No final do dia, na volta, passou pelo laboratório de Shuri e encontrou um Steve fascinado, escolhendo um telefone celular para enviar a Stark, para o caso de o velho amigo precisar dele para alguma coisa. Steve tinha se incomodado com a situação de Rhodes e, na impossibilidade de estar fisicamente presente, deixaria, pelo menos, um canal de contato aberto. Nunca sabiam o que esperar, tudo podia mudar a qualquer momento. Steve, então, escolheu um aparelho de flip, que, para Shuri, foi a maior piada do ano. Ele e foram juntos para seus respectivos quartos e combinaram de encontrar Shuri, em meia hora, para jantarem, como haviam marcado mais cedo.
dava algumas dicas sobre como viver em Nice para Steve, que prestava atenção curioso, tentando decorar algumas palavras essenciais em francês. Seria uma longa jornada dali em diante e ele sabia que não seria fácil. Steve estava prestes a perguntar alguma coisa para , quando chegaram no corredor dos quartos, mas uma imagem cortou totalmente sua atenção.
Com a porta do quarto aberta, Bucky estava sentado no chão, do lado de fora, no corredor ao lado da porta. Suas costas encostadas na parede, ele estava com as pernas dobradas, de modo que seus joelhos ficavam para cima, e com a mão apoiada no chão, ao lado de seu corpo. A expressão de Steve mudou drasticamente de estranhamento para preocupação, assim que ele notou a mão de Bucky cheia de sangue, machucada, como se algo tivesse sido quebrada nela. engasgou nas próprias palavras, sem conseguir ordenar direito o que estava vendo. Ela sentiu um arrepio na espinha tomar conta de si, junto com um sentimento terrível de culpa e remorso, como o que havia sentido mais cedo, quando soube de Rhodes. Ela não deveria ter deixado Bucky sozinho, não deveria.
— Bucky? — Steve tentou perguntar, chamando atenção dele, a tensão clara em sua voz.
— Você está bem? — o completou igualmente preocupada, dando dois passos mais perto do homem no chão, mas foi logo impedida de continuar por Steve, que a segurou pelo braço. Não sabiam exatamente qual Bucky estava ali, sentado, mas certamente não era o Bucky que eles conheciam.
Percebendo a movimentação, Bucky levantou seu olhar até eles, o rosto encharcado pelas lágrimas. Ele não respondeu absolutamente nada. Sua expressão estava confusa, dolorida. Ele olhava de para Steve, respirando fundo, completamente imerso em seus próprios pensamentos. Ele parecia exausto, o rosto vermelho, a mão machucada latejando de dor. Seus olhos não pareciam mais tão claros como de costume, estavam acinzentados, e seus cabelos estavam caídos em frente ao seu rosto, tão bagunçados quanto ele próprio parecia estar naquele momento.
Bucky sentia o caos o dominar. Não tinha clareza em sua mente, muitas coisas estavam passando por ela sem parar, desconexas, sem sentido algum. Ele fechou os olhos com força, irritado pelo estresse de não conseguir organizar seus pensamentos há tantas horas, mas sua mente foi imediatamente tomada pela voz de seus pais, cantando parabéns para você e pedindo que ele assoprasse as velinhas. Assustado e machucado com aquilo, Bucky abriu os olhos outra vez, mas já não parecia mais estar no corredor em que estava sentado antes, em Wakanda. Em sua visão, o corredor se transformava no velho e bem conhecido corredor da base central da Hydra, na Sibéria. Embora continuasse olhando e Steve, bem ali, parados e preocupados em sua frente, seus pensamentos o cegavam e o puxavam de volta até um pesadelo antigo, mas nunca antes lembrado. Bucky viu a si mesmo caminhar pelo corredor, até uma das celas. O homem que o acompanhava abriu a cela sem demoras e arrastou para fora dela, com violência, o prisioneiro. Bucky piscou com força algumas vezes, vendo mentalmente a criança de cinco anos, completamente machucada, com dezenas de marcas arroxeadas pelos pequenos e finos braços, ser empurrada pelos cabelos pelo corredor e cair no meio dele. A garotinha estava fraca, desnorteada, com medo. Ela chorava muito e gritava sem parar a cada tapa, chute ou empurrão que levava. S'il te plait, ne me blesse pas, s'il te plait. Exausta e sem força alguma, em certo momento, ela levantou seu olhar horrorizado até Bucky. A mente de Bucky, então, voltou completamente à realidade, e os olhos da menininha, na verdade, foram trocados pelos olhos da mulher a sua frente.
— Bucky? — A voz suave e absurdamente angustiada de cortou os pensamentos dele. Ele olhava para ela horrorizado, seus olhos arregalados e seu peito subindo e descendo com força. Não podia ser ela, não podia ser ela. não, não era a , era? Aquilo doía, doía muito. Como se sua mente estivesse sendo apertada, comprimida com força, queimada.
não sabia se deveria ou não se aproximar dele. Tinha certo receio da instabilidade e não queria assustá-lo. Steve parecia pensar a mesma coisa, sua expressão estava fechada, séria, e seu olhar sob Bucky era carregado de incerteza, ele ainda segurava o braço de , sem perceber. Amedrontado e chorando mais alto que antes, Bucky trocou seu olhar da mulher até Steve, vendo nele os mesmos olhos de desespero que, em sua mente, via quando ele caiu do trem, em 1945. Bucky estava confuso, não conseguia mais saber o que era lembrança e o que estava acontecendo ali, na sua frente; não conseguia separar as informações, estava cansado, sobrecarregado.
Ele tinha passado o dia inteiro lendo tudo que podia sobre si mesmo, sobre a Hydra, sobre Steve e . Tudo que pode encontrar no laboratório dela, ele leu, absorveu, forçou-se a entender e, pior do que isso, forçou-se a se lembrar. Bucky começou a se sentir nauseado e, algum tempo depois, as pontadas de dor em sua cabeça evoluíram para um embaralhamento completo de suas ideias. Ele ficou desnorteado, extremamente confuso, esqueceu-se por algum tempo de quem era e de onde estava, custou muito em manter-se no controle de si mesmo, em chegar até seu quarto e desesperou-se em abrir os seus próprios cadernos de anotação. E foi então que tudo piorou drasticamente. Uma enxurrada de memórias ruins começou a aparecer, em fragmentos, cortadas.
Os gritos das pessoas que ele matou, o medo, a agonia. Coisas ruins que ele tinha feito, lutas, treinamentos, barulhos de tiros, incêndios. Às vezes que apanhou, que foi torturado, seus próprios gritos de dor e os pedidos de misericórdia, a sensação de cair do trem, de ter seu braço arrancado. Bucky ouvia a voz de seus pais, a risada de sua irmã. Conseguia lembrar das imagens de Steve no Brooklyn antigo. Seu apartamento em Bucareste, o que aconteceu em Washington, seu uniforme, o acampamento em que ficou em Londres, na guerra. Ele via Rumlow, Alexander Pierce, Vassiliev, os pais de Tony Stark, os olhos de nele na base da CIA em Berlim.
E aquilo tudo doía. Machucava física e mentalmente. Bucky gritou, tentou se focar em algo que aliviasse seu desespero e, na impossibilidade de fazer aquilo parar, ele socou várias vezes o espelho de seu banheiro. Mas a sensação era a de que quanto mais violência ele se tratava, de mais violência ele se lembrava. Horas aguentando aquilo, esgotado, Bucky decidiu pedir ajuda, mas a confusão em sua mente o impedia de saber para quem e onde recorrer. Ele precisava de ajuda e era só isso que passou a pensar freneticamente por algum tempo, arrastando-se para fora do quarto e parando jogado, sentado, no chão do corredor, até Steve e Flor aparecerem.
Pelo silêncio do corredor era possível ouvir a respiração pesada e os soluços de Bucky, os grunhidos de dor. Ele colocou a mão na cabeça e fechou os olhos uma vez mais, a testa franzida em claro sinal de aflição. Steve olhou para , soltando-a, que, não aguentando mais aquela situação, correu a passos largos até ele. Bucky estava nitidamente sofrendo, agonizando, estava claramente tendo uma crise de sobrecarga emocional e, acontecesse o que fosse, eles tinham que fazer alguma coisa por ele. A poucos passos dele, ajoelhou-se lentamente e, de joelhos, aproximou-se de Bucky até parar de frente para ele. Steve veio logo atrás, igualmente preocupado e apressado, e agachou-se ao lado de Bucky, com metade do corpo para dentro do quarto dele. Bucky tentou respirar fundo para se acalmar, mas foi só abrir os olhos e ver ali, sentando-se sob as próprias pernas, a centímetros de distância dele, para ele desabar ainda mais. James abaixou a cabeça e chorou sozinho, em silêncio. encarou Steve, que, nessa altura, já tinha entendido exatamente o que estava acontecendo.
— Está tudo bem, Buck — Steve sussurrou baixo, colocando a mão nas costas do amigo, enquanto o abraçava com força.
— Nós estamos aqui, está tudo bem agora — falou tão baixinho quanto Steve.
— Eu não aguento… não aguento mais — Bucky soluçou em um sussurro quase inaudível. Steve suspirou triste. Parecia que, cada vez que tinham um avançou com ele, sua mente o sabotava e começava o sofrimento tudo de novo, do zero.
— Nós estamos aqui para te ajudar — insistiu carinhosa.
— E estamos com você até o fim da linha — Steve completou triste, lembrando-se da regra clara que tinham um com o outro. sorriu leve e sozinha ao ouvir aquilo.
Bucky não conseguiu responder mais nada. Sem ter noção de quanto passou ali, ele respirava fundo, prestando atenção em e Steve, seus pensamentos se acalmando, o foco mudando. A frase de Steve o levou até uma rápida lembrança feliz, de quando eram jovens. Bucky estava na casa de Steve, estavam jantando e discutindo alguma coisa sobre o Hobbit, que não podiam entrar em consenso. Mas o cheiro adocicado de o trouxe de volta até a noite anterior. O sorriso dela ao dar boa noite, a dança que estava devendo a ela e que ele não queria mais esperar para ter. Ele estava cansado daquilo tudo, de passar por aquilo tudo, ele só queria… se curar, de uma vez por todas. Ele sabia o que precisava ser feito.
— Foi muita informação para pouco tempo, me desculpa, a culpa foi minha — comentou depois de algum tempo, seu coração apertado por ter colocado ele naquela situação. No final das contas seu pai tinha razão. Deveria ter ido com mais cuidado, com calma, mais atenta aos detalhes e não tão levada pelas emoções. Bucky a empurrou levemente, saindo do abraço dela, seu rosto molhado pelo choro impiedoso. Preocupada, afastou o cabelo dele do rosto e, com as duas mãos, limpou as lágrimas que teimavam em escorrer. Bucky soluçou por algum tempo, a encarando, até colocar sua mão sobre a dela, ainda em seu rosto.
— Eu quero ir para a criogenia, p-p-por favor, , por favor. Eu quero ir, agora.
nem precisou levantar o olhar para saber quem estava invadindo seu laboratório, gritando mais alto do que a música animada que tocava ao fundo e que foi consideravelmente abaixada pela inteligência artificial. Oito e meia da manhã e Shuri já estava enérgica. Se não a conhecesse desde pequena, diria que, com certeza, Shuri usava drogas pesadas. A atenção de estava totalmente focada em um protótipo ampliado em holograma à sua frente, cujas cores puxadas para o vermelho indicavam erros de funcionamento. Alguma coisa não estava fechando no cálculo daquele projeto, mas não conseguia entender o que estava errado, já tinha refeito aquilo milhares de vezes só naquela manhã.
— Que história é essa de lobo branco? — levantou as sobrancelhas, dando a volta na mesa em que estava trabalhando.
— Ele só sai da toca dele a noite, feito um lobo, e ele é branco. Okoye achou o apelido bom — Shuri deu de ombros, aproximando-se de e deixando ali um copo com iogurte, cereal e uma colherzinha dentro. riu baixo da justificativa.
— De onde você tira essas coisas?
— Eu me considero uma pessoa criativa — Ela sorriu cínica.
— Que ótimo, então vem usar essa criatividade para me ajudar com isso aqui — desviou sua atenção do holograma para Shuri, apontando-o com a cabeça.
Sem pensar duas vezes, Shuri puxou uma das cadeiras com rodinhas do laboratório e se aproximou parando exatamente do outro lado da grande mesa de metal, de frente para , encarando o holograma aberto entre elas. Ela amava um desafio e não podia mentir, sempre gostou muito de se envolver em projetos complexos como aquele que parecia começar a desenvolver. O protótipo projetado estava incrivelmente bem desenhado, os detalhes tinham sido minuciosamente pensados e, mesmo ainda não funcionando totalmente, era impressionante. Mas não foi exatamente a qualidade do projeto que chamou atenção de Shuri. não era especialista naquele ramo, a engenharia nunca tinha sido de interesse dela e, por isso mesmo, aquilo tudo era peculiar. Por mais que soubesse operar alguns dos programas e fazer os cálculos, pois aprendeu junto com Shuri ao longo da vida, não tinha muito gosto pela coisa. O negócio de sempre foi, claramente, a biologia. Botânica ou humana, ela sempre teve paixão por aquilo. E, por isso mesmo, as duas sempre fizeram uma boa dupla na ciência. Podiam unir o que tinham de melhor a oferecer em projetos inovadores, tecnológicos e avançados demais para que a maioria das mentes humanas pudessem entender.
Estudando os detalhes do modelo projetado à frente, com atenção, Shuri entendeu que , na verdade, não estava interessada na engenharia em si, mas sim em quem poderia ajudar usando ela. Shuri podia contribuir, e muito, e a cada erro que encontrava, ela ficava ainda mais animada em começar. Ela mexeu no holograma, gesticulando com as mãos como se limpasse o protótipo, vendo o que tinha sido colocado dentro e corrigindo alguns pequenos detalhes aqui e ali. Contudo, pelos números que apareciam no ar, projetados pouco acima e ao lado do holograma do protótipo, alguma coisa ainda estava fora do lugar e Shuri só levou cinco minutos para descobrir.
— Qual é a gramatura do vibranium que está usando? — Shuri perguntou olhando o holograma, enquanto , com as duas mãos, virava ele no ar, para fazer uma alteração na parte de baixo.
— 104, compactado — Ela respondeu séria.
— Vai ficar muito pesado, por isso está dando erro, a articulação superior não tem movimento, está emperrada — Shuri pressionou os lábios, pensativa.
— 102? — olhou Shuri, que aproximava um ponto do holograma, como se desse zoom nele, para ver a espessura.
— 87, eu acho — A amiga respondeu intrigada, olhando negar levemente.
— Muito leve, vai deslocar a placa central em qualquer impacto mais forte que tiver — tombou a cabeça de lado, pensativa.
— É, isso é. 96, então? — Shuri arrumou alguns cálculos projetados ao lado do holograma, fazendo uma nova simulação dos números.
— A compactação não está mais trabalhando com essa gramatura, eles vão recusar o pedido.
— Não vão, se for você quem pedir — Shuri a olhou significativamente. O chefe da compactação tinha uma queda por há anos e Shuri amava usar isso a seu favor. deu de ombros.
— A.R.I.A.? — chamou encostando-se em sua cadeira e a empurrando para trás com o corpo, para ter uma visão melhor do todo.
— Sim, senhorita .
— Recalibre o protótipo usando vibranium 96 compactado e tente colocar as placas por camadas auto reguladoras, por favor.
— Recalibrando protótipo — A.R.I.A. informou pacientemente, enquanto o holograma tomou uma cor alaranjada, mudando visivelmente as proporções do protótipo em instantes. A tela, logo abaixo de onde o holograma flutuava no ar, tinha seus cálculos sendo ligeiramente alterados, assim como as informações de peso, tamanho, espessura e impacto. A imagem do holograma foi mudando para tons azulados, conforme os resultados da alteração solicitada batiam corretamente. Não demorou dois minutos para A.R.I.A. informar: — Calibração concluída. Novo protótipo cem por cento operativo.
— Voilà — aproximou-se da mesa outra vez, puxando sua cadeira de rodinhas com o corpo. Ela, então, pegou o copo com iogurte e o bateu no de Shuri, que segurava o seu no ar, esperando um brinde.
— Você não é nada sem mim, confessa — Shuri sorriu vitoriosa, dando uma colherada em seu cereal.
— Fui eu quem comecei o protótipo — se defendeu, deixando o copo de lado outra vez.
— Você chama isso de protótipo? Está mais para um rascunho feito por uma criança de cinco anos — Shuri provocou, vendo o olhar incrédulo de sob ela.
— Qual é? Essa não é a minha área, eu me saí muito bem para quem nunca fez isso.
— Claro, aprendeu com a melhor — Shuri fez um biquinho, convencida como sempre.
— Eu adianto o seu trabalho e é assim que sou recompensada — resmungou, passando a mão direita no ar e jogando o holograma para o lado, em outro programa, enquanto se levantava com seu copo de iogurte na mão.
— Meu trabalho? — Shuri franziu a testa, andando com para o outro canto do lab.
— Sim, ia pedir para você desenvolver isso, mas fiquei ansiosa e já comecei — tomou um pouco de seu iogurte — Agora temos que articular as chapas de vibranium, interligar os movimentos com o comando cerebral e isso não pode, em hipótese alguma, desencaixar da base, machucar ou incomodar. Não pode ser muito pesado, nem muito gelado. E se der para se auto consertar em caso de deslocamento ou impacto, seria perfeito.
— Relaxa, maninha, deixa o upgrade do braço novo do lobo comigo — Shuri disse contente, já com ideias brotando em sua mente, enquanto dava a última colherada em seu iogurte — Quer uma função vibrador nos dedos também?
— Eu vou fingir que não ouvi isso — comentou mastigando, esperando o programa atualizar o arquivo recém colocado nele.
— Igual fingiu que não ouviu minha pergunta quando entrei aqui? — Shuri provocou, observando sua amiga revirar os olhos — Você está pegando ele ou não, ?
— Preto e fundo prata ou preto e fundo dourado? — perguntou indecisa, a ignorando completamente. Tinha gostado das duas opções, mas talvez o prata trouxesse lembranças ruins do braço antigo de Bucky. Shuri pensou por alguns instantes, vendo a amiga trocar as cores do protótipo de segundo em segundo, simulando as duas combinações de cores.
— Preto e dourado, é mais imponente.
— Concordo — gesticulou no holograma uma vez mais, fechando-o — Feito, então. A.R.I.A. envie para a mecânica.
— Protótipo enviado — A.R.I.A. respondeu no mesmo instante, fechando totalmente o holograma. olhou para Shuri e sorriu curiosa.
— Quanto tempo você acha que vai demorar para ficar pronto?
— Uma semana, ou duas. Você já simulou o tamanho real? — Shuri perguntou pensativa.
— Sim, o modelo está no tamanho, peso e espessura exatos. Só precisamos pensar no encaixe do ombro, porque ficou um pedaço do metal antigo nele, que está fundido na carne, é terrível — abaixou seu olhar, tinha cópia dos exames que fizeram nele em Wakanda, assim que chegaram da Sibéria. Os médicos não puderam remover totalmente o metal do braço antigo, para não deixar nada exposto. suspirou — Eu tenho o projeto do braço antigo também, que peguei em algum lugar da Hydra, vamos nos basear nele para evitar erros.
— Perfeito. Só dependemos, então, do tempo de compactação do vibranium — Shuri a olhou sugestiva.
— Vou falar com o Kwame hoje ainda, pode deixar — revirou os olhos preguiçosamente, a colher do iogurte que comia na boca.
— Se você for lambendo essa colher, ele vai compactar o vibranium em tempo recorde — Brincou Shuri, vendo a amiga gargalhar enquanto pegava mais de dentro do copo.
— Obrigada pela dica, Shushu — mandou o dedo do meio para ela, que riu baixo.
— Se me chamar assim de novo, eu nunca mais te ajudo em nada — Shuri apontou para ela, a vendo rir e voltar para perto da mesa inicial, pegando um vaso com dentes de leão no caminho.
— Ajuda sim, você não resiste às minhas ideias — fez um biquinho charmoso e fez uma planta qualquer pegar no ar a caneta que Shuri jogou nela.
— Falando em ideias, devo confessar que essa do braço foi nova para mim — Shuri se aproximou de , parando logo ao seu lado e se debruçando sobre a mesa — Tem alguma coisa a ver com isso?
Shuri virou seu pulso da mão esquerda para cima, deixando com que a pulseira de bolinhas que usava projetasse no ar as imagens de e Bucky na sala de estar, na noite anterior. Eles estavam próximos um do outro, sentados no sofá e se encaravam intensamente, em silêncio, até nitidamente descer seu olhar para a boca dele. Só podia ser brincadeira. sabia que Shuri ia insistir naquela história até se dar por vencida.
— Onde você conseguiu isso? — perguntou estridente, olhando da imagem para Shuri ao seu lado que, contente o suficiente em provocar a amiga, desvirou seu pulso, fechando a projeção.
— Não sei se você sabe, mas temos câmeras de segurança em todos os cantos aqui dentro — Shuri arregalou os olhos, fingindo incredulidade com aquela informação óbvia.
— E por que você estava vendo as câmeras de segurança de madrugada ontem? — cruzou os braços e levantou as sobrancelhas.
— ESTÁ BRINCANDO? Isso aqui é melhor do que novela angolana — Shuri respondeu animada — Outro dia flagrei T’Challa atacando a geladeira de madrugada e Aziza pegando o Caleb no jardim lateral.
— Caleb do laboratório de design? — riu boquiaberta.
— Estou dizendo! É perfeito. Você deveria assistir também! Mas nada, até agora, foi tão bom quanto ontem a noite.
— Não aconteceu nada ontem à noite! — revirou os olhos e pegou seu copo de iogurte outra vez, constrangida.
— Qual é, , olha toda essa tensão de vocês. Por que não beijou ele naquela hora? No sofá? — Shuri perguntou curiosa, estava animada.
— Porque não, Shuri! Eu não sei o que está acontecendo, ele está confuso com tudo, não quero piorar as coisas — respirou fundo, levemente frustrada, cutucando seu iogurte — Ele não é como os outros caras que eu já saí, ele não… ele não sabe o que é ter uma vida normal, tudo isso é assustador, entende?
— NÃO! Eu acho que você perdeu uma oportunidade perfeita de ficar com um cara gostoso — Shuri falou sincera e ignorando a careta de para ela — E convenhamos que, de vida normal, você também não tem nada.
— Mas isso é diferente — terminou de comer e deixou o copo de lado, voltando sua atenção para o vasinho de dente de leão, totalmente bagunçado, à sua frente — Eu não sei. Eu estava confusa ontem, tinha bebido, ele… ele é atencioso comigo, cuidadoso. Os olhos deles são… lindos, ele é lindo e é gostoso para caralho, sim, eu… não dava para resistir, foi confuso para mim também — assumiu de uma vez por todas, mas foi só ela levantar o olhar para Shuri para se arrepender: — VOCÊ ESTÁ GRAVANDO ISSO? EU NÃO ACREDITO.
— É para fins científicos futuros — Shuri se defendeu desligando o gravador da pulseira e rindo alto da cara brava de .
Sem pensar antes de agir, pegou um dos dentes de leão, de dentro do pequeno vaso que arrumava, e o assoprou com força em direção à Shuri. As pequenas flores se soltaram e se multiplicaram absurdamente rápido, no ar, a cobrindo totalmente, em um piscar de olhos.
— Eu vou te matar, — Ela murmurou, tentando se limpar.
— Você mereceu — deu de ombros, voltando sua atenção em arrumar o vaso.
— Eu te odeio e não é pouco.
— Não odeia não — respondeu cínica — Na verdade, você me ama tanto a ponto de ficar me vigiando pelas câmeras de segurança.
— Só quando eu sei que você está a fim do lobo branco.
— Eu não estou a fim dele, Shuri — respondeu brava, seu rosto vermelho pelo constrangimento.
— AI BAST! Não seja burra, , não combina com você.
— Obrigada, eu acho — revirou os olhos, colocando o ramo do dente de leão no centro do vaso e puxando a terra delicadamente. A plantinha enraizava sozinha na terra, lentamente, enquanto mexia nela. Shuri respirou fundo, exausta.
— Ele procurou o T’Challa ontem, desesperado, querendo saber sobre o que poderia te dar de presente — Shuri começou a dizer séria, vendo a amiga levantar o olhar curioso até ela — Eu vi como ele te olha, eu vi ele fazendo carinho em você. Nessas semanas, ele não trocou mais do que duas palavras com outras pessoas daqui, mas ele ficou horas falando com você ontem.
— Não é um bom momento para isso, ele acabou de chegar, eu não vou estragar a amizade que temos dando um passo em falso, sem saber se ele… corresponde — respondeu pensativa, as palavras de Shuri latejando em sua mente, enquanto ela se levantava e ia lavar a mão, na pia próxima. Talvez Shuri tivesse razão. Mas talvez só estivesse mesmo entendendo tudo errado.
— Sabe o que eu acho? — Shuri sorriu docemente para a amiga, a vendo voltar para perto dela, batendo as mãos na própria roupa — Que vocês não deveriam perder muito tempo. Estamos cansadas de ver as coisas acontecerem de repente em nossas vidas. Não temos o privilégio do tempo, , você sabe como é.
Shuri tinha razão, sabia daquilo. O tempo não costumava ter muitos amigos, sempre foi amargo e ingrato. Pessoas como ela e Bucky não podiam se dar ao luxo de esperar momentos ideais. Tempos de paz nunca duravam muito e não seria diferente agora. Estavam emendando luta atrás de luta a vida toda, a próxima podia começar a qualquer momento. Talvez nunca mais pudessem ter a chance que estavam tendo aqueles dias, de ficar juntos, de conversar, de sentir um ao outro. se sentiu mal por um instante. Do mesmo jeito que Sam chegou em sua vida, ele foi embora, deixou a saudade de um amigo que estava distante. Era um exemplo claro do que Shuri estava dizendo e ela não queria que isso acontecesse com Bucky também.
— Eu sei, eu vou pensar no assunto — sorriu para ela, concordando.
— Você ouviu alguma palavra do que eu disse? — Shuri perguntou incrédula — Pensar não, maninha, agir! E falando em agir, pode vir me ajudar a me livrar dessa praga grudenta.
riu do desespero de Shuri em tirar as flores de dente de leão de si mesma e se aproximou dela. Bastou encostar na amiga, como se a segurasse de frente, pelos braços, para todas as flores secarem e caírem no chão, de uma só vez.
— Vou ser mais clara: você precisa beijar ele logo, — Shuri insistiu, mas antes que pudesse rebater, uma outra voz entrou na conversa:
— Beijar quem? — Everett perguntou confuso e levemente enciumado. e Shuri viraram-se ao mesmo tempo para trás, a tempo de ver a imagem do homem abrir completamente em uma tela de corpo inteiro.
— T’Challa — Shuri respondeu de bate-pronto, sem pensar direito — precisar dar um beijo nele antes da coroação, sabe como é, para dar sorte.
— Você vai beijar o T’Challa? — Everett estava confuso. Nunca tinha ouvido aquela história.
— NÃO! — praticamente gritou, dando um passo mais perto da imagem de seu pai — Não desse jeito! É um beijo na bochecha, tradição.
— Eu espero que não seja o que eu estou pensando e nem com quem eu estou pensando, . Ele é perigoso.
— Eu também sou — Ela sorriu amarelo, vendo a cara enciumada e desgostosa de seu pai — Mas estamos falando mesmo de T’Challa. É sério.
— Eu finjo que acredito nisso e vocês fingem que me convenceram, pode ser? — Ele levantou as sobrancelhas e logo sorriu de lado, vendo as duas meninas rirem e concordarem com a cabeça — Tudo bem, então. Como estão as coisas por aí?
— Bem, eu acho, estamos nos preparando para a coroação — Shuri respondeu cruzando os braços, encostando-se em uma das bancadas do laboratório, ainda de frente para a imagem de Everett, que assentiu.
— Diga a ele que desejo sorte — O homem respondeu simpático — O mundo está ansioso por isso, estão atentos à Wakanda. Tem sido complicado esconder as coisas e manter o discurso do “é um país de terceiro mundo e pobre”.
Everett não podia ser totalmente honesto no seu ambiente de trabalho. A vida inteira precisou esconder sua filha, seu marido, sua história. Não era seguro para ele e nem para sua família que o mundo soubesse de detalhes e, por anos, foi aquela omissão que garantiu a proteção deles e a busca de pelas suas respostas. Ele amava o que fazia, sempre amou e sempre foi fiel ao seu trabalho. Tinha suas responsabilidades e entregava tudo da melhor maneira possível. Mas sempre que as informações ou as missões cruzavam com , com as pessoas que a acolheram e com Wakanda, a história era diferente. Ele tinha que garantir que, antes de qualquer coisa, sua família ficasse bem e que os segredos de Wakanda ficassem guardados. Era a condição de T’Chaka para acolher e proteger . De todo modo, ser totalmente honesto nunca importou naquele ramo porque, se tratando de agências de inteligência e segurança, ninguém era, nunca, totalmente honesto.
— Isso logo vai mudar — Shuri comentou simplesmente — Obrigada, senhor Ross, por ter nos ajudado todos esses anos.
— Sempre foi uma troca justa — Ele sorriu.
— Falando em trocas, e Zemo? — Shuri perguntou curiosa.
Desde que Everett e Karl haviam saído de Wakanda, no dia anterior, não tinha mais ouvido falar dele. O casal de agentes conseguiu convencer T’Challa de o entregar para a CIA e, eles próprios o levaram consigo de volta para Berlim. Ele havia cometido crimes internacionais e nada mais justo do que pagar por eles na mesma proporção. Wakanda, certamente, o condenaria pela morte de seu Rei. Mas, na Alemanha, para além disso, ele pegaria também por ter assassinado outras pessoas, ter ativado o Soldado Invernal e contribuído para a quebra de dezenas de artigos do Tratado de Sokovia. Everett estava feliz em interrogá-lo, ainda mais depois de tudo que ele fez passar na Sibéria.
— Está preso na base da CIA aqui em Berlim, vou interrogá-lo daqui a pouco — Everett respondeu brevemente e voltou-se para — E você, querida, conseguiu conversar com Barnes?
— Sim, acho que está tudo bem agora — Ela sorriu sem mostrar os dentes.
— Já falou com ele sobre o tratamento? — Everett perguntou curioso. Sabia que tinha muito a oferecer e tinha certo receio daquilo. Por mais que soubesse da história de Barnes, ainda não estava cem por cento certo de que ele era uma pessoa segura para ter por perto.
— Mais ou menos. Quer dizer, ontem fizemos um teste no terraço, ele reagiu bem, podemos trabalhar com o retorno de memórias dessa forma, sem precisar do laboratório — contou por cima, olhando de seu pai para Shuri e depois para ele de volta — Mas ainda não conversamos sobre a parte clínica. Vou falar com ele hoje e ver o que ele quer fazer.
— Você disse que foi ao terraço? Como foi? — Everett apareceu apreensivo.
tinha tido centenas de tentativas de recuperar suas próprias memórias da infância lá, ao longo dos anos, mas todas, sem exceção, tinham sido frustradas. Memórias da primeira infância já são naturalmente desconexas, confusas, muitas vezes sequer as temos. Para alguém que tinha passado pelo o que passou então, recuperar essas memórias era quase impossível. Era necessário ter pelo menos uma ideia do que aconteceu para que o método funcionasse, para que outros detalhes da situação pudessem aparecer. E não tinha nada, absolutamente nada sobre aqueles anos em sua mente.
— Eu me lembrei, pai, eu me lembrei de quando sai do hospital, depois da explosão — abaixou o olhar para as próprias mãos, sua voz baixa, até olhar o homem à sua frente outra vez — Talvez agora que sei o que aconteceu, alguma coisa possa começar a ser recuperada.
— É um avanço, sim, querida — Karl respondeu carinhoso e logo abriu o sorriso com a lembrança — Karl te vestiu com a roupa mais fofa do mundo e você quis comer macarons. Nós tínhamos preparado seu quartinho, eu estava tão nervoso naquele dia, meu Deus.
Vendo sua filha em silêncio, pensativa, Everett respirou fundo, sorridente, tentando transmitir confiança. Conhecia sua bem o suficiente para saber que o quer que ela tivesse se lembrado na noite anterior, por menor e mais rápido que pudesse ter sido, tinha mexido com ela. E aquilo, consequentemente, mexia com ele também. Everett nunca gostou muito das tentativas de de reviver memórias passadas, porque sabia que ela, na maioria das vezes, se machucava com aquilo. Já fazia anos que ela não tinha mais tentado, mas com James por perto agora, Everett podia suspeitar que aquilo voltaria a ser uma prática. Uma prática perigosa e emocionalmente pesada demais para ela carregar sozinha.
— E o Sargento Barnes? — Shuri perguntou baixo. e Everett a olharam.
— Ele se lembrou de detalhes dos anos 1940, uma vez que saiu com Steve e não tinha muita clareza do que aconteceu, foi só isso. Rápido e muito pontual — respirou fundo, cruzando seus braços.
— Foi uma boa experiência, mas é muito arriscado, — Everett começou a dizer preocupado — Não sabemos ainda exatamente o que tem dentro da mente dele, não sabemos como vai reagir a esse tratamento, não estamos prontos para isso agora, é perigoso, você sabe. Essa é uma etapa posterior, há muito o que ser feito antes de tentarmos recuperar as memórias dele.
— Eu sei, pai, é só que… Achamos uma anotação em um caderno dele, uma lista de plantas com o endereço de Nice, eu tinha que… tentar — olhou seu pai assentir brevemente com a cabeça, seu olhar ainda carregado de preocupação — Eu achei que tinha que fazer algo por ele, por Benedict.
— Sei que teve seus motivos, mas pense bem antes de se envolver em tudo isso, querida. James é instável, você precisa tomar cuidado antes de tentar arrumar o caos que ele carrega com ele.
mordeu seus lábios apreensiva e viu Shuri concordar com Everett. Ele tinha toda razão do mundo, mas como ela poderia não ajudar Bucky? Como poderia perder mais tempo esperando ele estar pronto o suficiente para aquilo? Será que algum dia ele estaria mesmo pronto? Aquela era a única chance que Bucky tinha de se recuperar, de tentar seguir em frente, de deixar de viver aquele inferno mental que vivia todos os dias, de se libertar de uma vez por todas. E como seus pais biológicos, sentia que precisava fazer aquilo por ele, por ela mesma, por Steve, por Ben e Hellen. Custasse o que fosse.
— Eu estou tomando cuidado, não se preocupem. Mas me fale sobre Sam, teve alguma novidade? — perguntou preocupada, desviando o assunto.
— Sim, era sobre isso que queria falar com você — Everett olhou para o lado, pegando seu celular em mãos — Vou compartilhar o arquivo, um momento.
— Ok — tinha a expressão tensa — A.R.I.A., abra o arquivo assim que o receber, por favor.
Atendendo ao pedido de , A.R.I.A. abriu o documento assim que recebeu de Everett e o projetou sob a mesa que antes trabalhavam no projeto do braço novo de Bucky. Everett observou e Shuri se aproximarem dela, curiosas. Havia dois arquivos sendo projetados concomitantemente e em paralelo. O primeiro deles mostrava uma planta interna, em realidade aumentada tridimensional, pela qual era possível estudar, de fora, todo o ambiente. O segundo, complementarmente, mostrava uma imagem em tempo real da parte externa do local. Como se fosse um barco flutuante gigante, circular e completamente fechado, a prisão estava no meio do oceano e sem absolutamente nenhuma referência próxima.
— Por Bast, eles estão presos nisso? — Shuri perguntou horrorizada, vendo Everett assentir com a cabeça. Aquilo era desumano.
Shuri colocou uma mão em cada holograma e olhou para , que concordou brevemente com a cabeça. Ela então juntou as mãos, trazendo os dois arquivos projetados consigo, misturando-os. Sobrepondo as duas projeções, eles passaram a ter uma visão completa, uma imagem perfeita da prisão, por fora, que podia ser navegada por dentro, com ajuda do mapa e com apenas alguns toques. não demorou em passar a mão pelo holograma, gesto que fez com que a imagem empurrasse o teto para o lado, como se ela estivesse destampando a prisão. Podiam ver lá dentro, a disposição das salas, das celas, dos corredores. E, empurrando mais alguns andares do lugar para o lado, como se o desmontasse em partes, encontrou Sam, sentado no chão da cela de concreto e, no lugar de uma grade, uma parede de vidro. Pela imagem, ele parecia cansado, como Clint e Scott. Mas foi a imagem de Wanda usando uma camisa de força que a chocou completamente.
— Que merda eles estão fazendo com ela? — perguntou irritada.
— Karl tentou intervir ontem, assim que chegamos, com um pedido de prisão domiciliar, mas não vão soltá-los tão fácil, não por meios legais — Everett comentou sério, descontente.
— Vamos por outros meios, então. Já estamos fora da lei, não vai fazer diferença — deu alguns passos mais perto do holograma, olhando Clint sentado no chão, desolado — Pelo amor de Bast, ele tem filhos.
— E esse outro cara, quem é? — Shuri perguntou curiosa, apontando para outra cela.
— Scott Lang, formiga atômica, algo assim — respondeu olhando a imagem do homem, mas logo desviando seu olhar para Shuri, que riu leve.
— Homem-Formiga — Everett corrigiu a filha.
— Isso é um absurdo — continuou murmurando irritada, ignorando os comentários — Steve precisa ver isso.
— Localizar o senhor Steve Rogers? — A.R.I.A. perguntou eficientemente.
— Por gentileza, peça que ele venha até aqui, o mais rápido que puder.
— O senhor Steve Rogers está tomando café da manhã com o senhor James Barnes, na cozinha — A.R.I.A. avisou.
— Chame os dois.
— Enviando convite.
***
— Eu não sei se é um encontro, Steve — Bucky desviou seu olhar até a caneca de café vazia a sua frente.
— É claro que é um encontro, meu amigo, ela te chamou para sair — Steve respondeu sorrindo. Estava realmente feliz de saber sobre o que tinha acontecido entre ele e na noite passada. Parecia que a conversa tinha sido muito melhor do que ele estava esperando.
— Eu não quero criar expectativas — Bucky olhou novamente para ele — Olha para mim, Steve. Eu sou todo fodido. Como alguém como iria me… querer?
Bucky sorriu triste para o amigo. Steve parecia ter levado toda a história que Bucky o contou para um lado que ele, Bucky, tinha certo receio em aceitar. claramente era tudo que ele poderia querer. Mas ele nunca, jamais, poderia ser o que ela precisava para si mesma. precisava de alguém tão bom, forte e estável quanto ela, alguém que pudesse mover o mundo por ela e não destruí-lo a qualquer momento. Bucky ficou pensando naquilo até conseguir pegar no sono, na noite anterior. Ele gostava de , isso era claro, mas algo mais forte florescia dentro dele, florescia como ela. Steve ia rebater aquela auto piedade com algum comentário positivo e engajador, mas foi cortado pela voz eletrônica de A.R.I.A.
— Bom dia, Capitão Rogers. Bom dia, Sargento Barnes — Os dois homens procuraram com os olhos pela cozinha até encontrarem um comunicador redondo ao canto da comprida mesa.
— Bom dia? — Steve respondeu incerto.
— Eu me chamo A.R.I.A., Ação de Reconhecimento e Inteligência Artificial, e pertenço a senhorita . Ela solicita a presença dos senhores em seu laboratório, por gentileza e com urgência.
— Aconteceu alguma coisa? — Bucky perguntou preocupado, seus olhos semicerrados.
— Ela encontrou o senhor Samuel Wilson.
Steve e Bucky se entreolharam tensos por um minuto antes de se levantarem. Para Steve, já estava mais do que na hora de interromper suas férias tranquilas em Wakanda e ir atrás de parte de seus amigos. Eles estavam presos, sendo tratados como criminosos de guerra e, muito provavelmente, sendo hostilizados, comendo e dormindo mal. Steve tinha que dar um jeito de ir atrás deles e, com disposta a ajudar, podiam pensar em algo rápido e eficiente. Bucky, por outro lado, sabia o que aquilo iria custar a ele. Ficaria sozinho outra vez. Sabia que não podia, em hipótese alguma, sair de Wakanda sem correr altos riscos de ser preso e julgado por todos os crimes que cometeu e, por isso, teria que ficar quando Steve e saíssem do país. Ele era um foragido ali, um refugiado que estava sob proteção do Estado de Wakanda, em sigilo. Bucky queria ajudá-los, queria ir junto, mas, igualmente, não queria se tornar, outra vez, um problema para eles resolverem.
— O laboratório fica no décimo segundo andar — A.R.I.A. quebrou o silêncio outra vez, antecipando a informação.
Os dois homens saíram sentido ao elevador mais próximo e foram rumo ao andar solicitado. Steve estava ansioso querendo saber onde Sam, Clint, Wanda e Scott estavam e, mentalmente, já pensava em possibilidades de resgatá-los. Bucky estava ansioso querendo ver outra vez. Não sabia o que esperar e nem como seria vê-la depois da conversa da noite anterior, mas, certamente, teria que agir com naturalidade e sobriedade. Sem muita emoção e sem pouca emoção. Ele conseguia fazer aquilo? Bucky se sentiu idiota pelas coisas que estava pensando, como se fosse um garoto de dezessete anos apaixonado pela primeira vez. Aquilo era ridículo, mas talvez fosse exatamente o que estivesse acontecendo. Talvez estive apaixonado, de fato, pela primeira vez. Afastando os pensamentos precipitados de sua mente, ele seguiu atrás de Steve para fora do elevador.
Pelo corredor que tiveram que caminhar, até a porta do laboratório, oito Dora Milaje estavam de guarda. Sérias, inexpressivas e imóveis, sequer passavam seus olhos por eles conforme os dois homens caminhavam pelo carpete vermelho vivo. Seja lá o que tinha no laboratório de , era importante o suficiente para exigir uma guarda real vinte e quatro horas por dia. Steve e Bucky pararam exatamente em frente à porta que, dois segundos depois, abriu-se automaticamente. Diante deles, o laboratório de dois andares podia ser totalmente visto. No andar em que estavam, o superior, havia uma sala de estar, com o mesmo carpete do corredor no chão, sofás e televisores. A parede da direita, do teto ao chão era, na verdade, uma enorme prateleira cheia de livros de biologia, medicina e botânica, organizados por cor. Um corredor, como uma rampa, dava acesso ao andar inferior do laboratório que começava ali. Espalhados pelo andar de baixo havia mesas, bancadas, cadeiras giratórias e todos os utensílios que um cientista precisava e que Bucky não conseguia nomear. Steve reparou que, grudado em uma das paredes do andar de baixo, havia centenas de desenhos de plantas, árvores, raízes e flores com seus nomes comuns e em latim abaixo, um verdadeiro catálogo à vista. E era claro que, por toda a parte que olhavam, havia plantas diferentes em vasos, penduradas ou enraizadas nas paredes.
Contudo, o mais impressionante do lugar não era seu tamanho e organização, mas sim a vista. Entrando pela porta e olhando o laboratório de frente, a parede principal, que pegava os dois andares, era feita de vidro, transparente, possibilitando ter a vista de parte da maior floresta preservada do país. E como estavam no décimo segundo andar, ver tudo aquilo de cima era absolutamente lindo. Ouvindo vozes conversando no andar de baixo, Steve e Bucky desceram pela rampa, impressionados. Aquele era o mundo de , tão ela que era impossível negar.
estava sentada em cima de uma das bancadas, ao lado esquerdo, suas pernas cruzadas e seu olhar tenso em cima do holograma ao centro. Ela vestia um macacão de tecido molinho, preto liso, uma camiseta branca de mangas compridas por baixo e tênis igualmente brancos. Seus cabelos estavam presos de qualquer jeito e ela vestia seus óculos de grau. De frente para ela, do outro lado do laboratório, Shuri estava encostada em uma das mesas de experimentos, ao lado de um béquer e um vaso de dente de leão, usando uma saia midi laranja e uma blusa de manga de frio preta, seu olhar exatamente igual ao de . Ela tinha os cabelos trançados e os braços cruzados em seu peito. A imagem de Everett Ross ainda estava aberta na tela de corpo inteiro ao canto e ao meio delas. Os três formavam um semicírculo ao redor da mesa, onde o holograma da prisão estava projetado.
Steve e Bucky deram bom dia aos presentes e, sem dizer mais nada, apontou para a imagem projetada, observando os olhares tensos deles seguirem até lá. Steve ficou em pé, perto da mesa com o holograma, ao lado de Shuri, olhando atentamente os detalhes daquilo. Era possível ver seus amigos em tempo real, presos e desolados. Tímido, Bucky encostou no balcão ao lado de onde estava sentada e avaliou, em silêncio, o tamanho do problema que teriam que enfrentar para tirá-los daquele lugar. Já tinha sido preso mais vezes do que se lembrava, mas nunca em nada parecido com aquilo.
— Eu não acredito que eles fizeram isso com a Wanda — falou ainda irritada depois de algum tempo.
— O que é isso que tem em volta? — Steve perguntou intrigado.
— Mar. Eles estão presos no meio do oceano — Everett respondeu, pensativo — Vocês precisam considerar isso para chegar até eles.
— Temos a localização exata? — Steve olhou para , que assentiu — Bom, então só há uma chance de chegar até lá rápido e é voando.
— Essa parte fica comigo — Shuri levantou a mão — Estou trabalhando com a possibilidade de pilotar remotamente, podemos usar isso como um teste.
— Não podemos fazer testes agora, não pode dar errado — Steve respondeu, sua testa franzida.
— E não vai, Capitão — Shuri rebateu segura de si.
— Como isso funciona? — Bucky perguntou curioso. Aqueles eram tempos tecnológicos demais para ele. Shuri levantou seu pulso esquerdo e sorriu.
— Como um simulador. Consigo escanear a aeronave e fazer uma cópia do funcionamento dela aqui, temos recursos para isso. Se quem estiver pilotando usar isso aqui... — Ela chacoalhou o pulso — ...então eu consigo tomar o controle e pilotar do meu lab em tempo real.
— Com isso podemos entrar os dois para evacuar a área mais rápido e não temos que nos preocupar em pousar ou arremeter a aeronave — concluiu reflexiva, não parecia uma má ideia.
— Tem 42 agentes fazendo a segurança interna, 15 na parte externa, 5 na cabine de vigilância e 12 pelos corredores. Os demais estarão espalhados pela cozinha, limpeza e administração — Everett comentou sério. e Steve se entreolharam.
— Fiquei sabendo que você deu conta de uma dúzia de homens em um elevador, em Washington — comentou, sorrindo de lado.
— Fiquei sabendo que você deu conta de uma base inteira da Hydra no Cairo, e não sobrou nenhum deles para contar a história — Steve rebateu no mesmo tom de voz, encarando e cruzando os braços. Ele tinha lido aquilo em um dos relatórios sobre ela que encontrou com Sam. sorriu abertamente.
— Eles não tinham histórias boas para contar — Ela deu de ombros. Bucky estava… apaixonado, em saber daquilo.
— Entrar, apagar todos os agentes, tirar Sam, Wanda, Clint e Scott de lá, sair — Steve concluiu resumindo o plano, vendo concordar com a cabeça.
— Acrescente não morrer e trazer a minha filha de volta para casa nessa lista, Capitão — Everett acrescentou, fazendo todos os quatro o olhar — Vocês são considerados criminosos, 117 países estão contra vocês, deveriam estar presos nesse mesmo lugar, inclusive. Há um risco alto e real em ir até lá voluntariamente.
— Não quero desanimar, mas há outro problema — Shuri acrescentou — Não vamos conseguir segurar todos vocês em Wakanda e em sigilo. Já temos o Sargento Barnes aqui e é problema o suficiente, com todo respeito — Shuri sorriu amarelo para Bucky, que abaixou o olhar até o chão.
— Eu também não vou poder intervir muito mais do que isso dessa vez. Estou indo para Londres amanhã, Klaue apareceu no nosso radar — Everett comentou, passando uma mão pelo cabelo.
— O traficante de vibranium? — Steve perguntou vendo Everett concordar — Tive o desprazer de encontrar com ele anos atrás, com o Ultron.
— Ele matou pessoas aqui, estamos procurando ele há anos — Shuri exasperou-se.
— Assim que souber de algo consistente, avisarei. Sharon já está em Londres, é de interesse da CIA — Everett falou outra vez. Steve abaixou a cabeça envergonhado, assim que ouviu o nome de Sharon e sorriu discretamente, mas logo recompôs-se, voltando a perguntar:
— E Karl?
— Está indo para os EUA cobrir uma emergência. O médico que faria a cirurgia de Rhodes, Stephen Strange, sofreu um grave acidente de carro e estamos aguardando liberação do novo médico. O Tratado de Sokovia só permite atendimento médico supervisionado pelo Estado, Karl está responsável por isso de agora em diante — Ele respondeu simplesmente.
— Como está o Rhodes? — Steve aproveitou a deixa para perguntar.
— A armadura que ele usava era experimental, metade da coluna vertebral foi esmagada — Everett respondeu sério, Karl havia recebido os exames dele antes que viajar.
— E o que isso quer dizer? — Steve perguntou olhando , que mordeu os lábios.
— Paralisia severa da coluna — Ela respondeu baixo.
Como se houvessem combinado, , Steve e Bucky abaixaram seus olhares. O sentimento de remorso os consumindo, a culpa por terem participado e contribuído para que Rhodes ficasse paralisado. Nada tinha que ter sido do jeito que foi, tudo poderia ter sido diferente se não tivessem se separado, se tivessem feito aquilo juntos. Por um instante, se sentiu mal por ter cruzado o caminho deles em Lagos, Steve se sentiu mal por ter lutado contra metade das pessoas que considerava família e Bucky se sentiu mal por existir. Tudo aquilo era, uma vez mais, culpa dele. Estava quieto e seguindo a vida em Bucareste, porque tinham que ter envolvido ele naquela situação? Não conhecia Rhodes, mas se sentia mal por ele.
Não havia mais nada que nenhum deles pudesse fazer senão se culpar. Não podiam ajudar Rhodes diretamente, mas ter Karl por perto dele, lidando com a situação, era minimamente reconfortante. tinha certeza de que ele havia dado um jeito de ir até lá voluntariamente, assumir aquela responsabilidade como uma forma de reparar o erro que a própria , Steve e Bucky cometeram. Eram informações demais para um dia que acabava de começar, e como se já não fosse o suficiente, A.R.I.A. chamou de repente, atraindo a atenção dos quatro outra vez.
— Senhorita ?
— Sim?
— Localização de Nakia identificada. Devo abri-la?
— Sim, por favor, jogue na tela A6 — pediu já saltando na bancada onde estava sentada e indo em direção a tela, do outro lado do grande laboratório. Um mapa simples foi aberto, com um ponto em vermelho piscando.
— O que é isso? — Bucky perguntou curioso.
— Quem é Nakia? — Foi a vez de Steve perguntar, observando Shuri ir até .
— Ex-namorada do T’Challa — respondeu simplesmente, tocando a tela para aproximar a imagem do mapa — Ela está com uma rede de tráfico de pessoas na… Nigéria? — virou-se para Shuri que deu de ombros.
— Achei que estaria mais longe — Shuri murmurou.
— A.R.I.A. envie isso para o T’Challa imediatamente e diga que ele me deve essa — pediu uma vez mais naquele dia e voltou-se de frente para os outros — Tudo bem, vamos organizar.
— Eu e Sharon vamos atrás de Klaue e se descobrimos algo, compartilho — Everett começou a dizer rápido, precisava voltar ao trabalho — Karl está nos EUA, então, estamos os três comprometidos. Vocês têm os arquivos da prisão e a localização exata de onde Sam e os demais estão, só tenham certeza de que sabem o que estão fazendo e de que vão voltar seguros. Dessa vez estão sozinhos.
— Parcialmente sozinhos — Shuri seguiu dizendo — Eu ajudo Capitão Rogers a chegar e sair da prisão.
— Depois disso, vocês podem ir para a nossa casa em Nice, ainda somos proprietários, não? — perguntou para seu pai, o vendo concordar com a cabeça — Fiquem lá o tempo que for preciso e seguro.
— Vocês não devem passar despercebidos por muito tempo, terão que se mudar com frequência. Já que não podemos ajudar trazendo vocês até aqui, podemos pelo menos custear os hotéis e alimentação, não se preocupe — Shuri completou a amiga.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — Bucky perguntou preocupado, olhando Steve.
— Não posso deixar eles presos, eu não vou deixar eles lá — Steve disse firme, seus braços cruzados e seu olhar indo de Bucky até e Everett.
— Certo e, maninha, eu acho você não deve sair de Wakanda — Shuri disse firmemente, olhando a expressão confusa da amiga. Everett concordou com a cabeça, murmurando algo como “era nesse ponto que queria chegar”, enquanto Steve e Bucky voltaram-se para ela — Não pode correr o risco de sair e não conseguir voltar para cá depois. Você tem coisas para fazer aqui — Shuri olhou significativa e descaradamente da amiga para Bucky — Ou vai deixar o Sargento Barnes com a Okoye?
não aguentou o comentário e soltou uma risada alta, sendo acompanhada por seu pai. Sabia do pavio curto de Okoye e a falta de paciência dela, ainda mais com um homem como Bucky, a levaria à loucura. Não demoraria mais do que duas semanas para ela pedir demissão, agredir Bucky fisicamente ou para dar um jeito de expulsá-lo do país. sabia que Shuri tinha um ponto e, pelo olhar de Steve e seu pai, teve a certeza de que todo mundo concordava com ela. Sam era alguém importante para e ela sentia falta dele. Queria poder ajudá-lo e queria poder estar lá para zoar ele quando fosse solto da prisão. Mas ela tinha feito promessas a Bucky. Tinha prometido ficar, tinha prometido ajudar e tinha prometido não o deixar sozinho. Não podia, mesmo, correr o risco de não voltar, ainda mais sabendo que, uma vez que Steve saísse de Wakanda, ele certamente não voltaria tão cedo.
Bucky se sentiu mal por ser, uma vez mais, o entrave de uma decisão. Steve já tinha escolhido ele à seus amigos suficientes vezes para Bucky saber o quanto ele era um problema. Estava sempre no meio de duas coisas, sempre sendo o fardo pesado a ser carregado. e Sam pareciam ter um bom relacionamento, eram amigos, se gostavam, se protegiam. Ela não deveria ter que escolher entre Sam e ele. E, de jeito algum, Bucky deveria ser o lado da balança que pesava mais. Ele desviou o olhar chateado, sem coragem de dizer qualquer coisa, e todos os presentes ali perceberam.
— Sua vida está aqui, , você não pode não voltar — Steve cortou o silêncio, sorrindo com confiança para a mulher — Eu consigo fazer isso sozinho.
— Tudo bem, vamos seguir assim — comentou finalmente.
— Está certo então, pessoal, todos temos missões a cumprir. Concentrem-se e tomem cuidado. Vamos manter os nossos canais de comunicação abertos. Sempre que precisarmos de ajuda com algo, nós chamamos. Boa sorte a todos — Everett falou sério, olhando cada um deles até parar em — Nos falamos de novo em breve, te aviso quando chegar em Londres. Eu te amo, minha florzinha.
— Boa viagem, pai, cuidado com o Klaue — o olhou preocupada — Eu também te amo.
Everett sorriu uma última vez para ela e desligou a transmissão. No laboratório, os quatro ficaram parados, em pé, se encarando por poucos minutos. Estavam tentando colocar em ordem, mentalmente, o que teriam que fazer e por onde deveriam começar. Aquilo tudo parecia loucura, como se tudo tivesse mudado da noite para o dia. Não podiam simplesmente voltar para seus quartos e fingir que nada precisava ser feito?
— Quando pretende ir, Steve? — Bucky perguntou baixo, colocando sua mão no bolso da calça jeans que vestia. só então reparou no suéter azul marinho que ele vestia, que caia perfeitamente bem nele e que era parecido com o que Steve vestia, cinza.
— Amanhã, se for possível — Ele respirou fundo, meio chateado. Não queria ter que ir e deixar Bucky e para trás. Mas, igualmente, não podia ficar e abandonar Sam.
— Bom, nesse caso, acho melhor começarmos a nos preparar. Aqui tem planta demais e tecnologia de menos — Shuri revirou os olhos e apontou com a cabeça para a porta.
— Nos vemos no almoço? — Steve perguntou olhando e Bucky.
— Talvez no jantar. A propósito, vamos no Mabaku hoje? Se é a última noite do Capitão Rogers em Wakanda, vamos celebrar — Shuri o cortou já começando a subir a rampa, esperando uma resposta dos outros três.
Steve e olharam, ao mesmo tempo, para Bucky, que pareceu desconfortável com o convite. Não tinha nada demais naquilo, mas ele não se sentia seguro em sair, ser visto por outras pessoas ou estar em ambientes cheios. Ainda tinha medo de ser reconhecido, perseguido, hostilizado por ser quem era, tinha medo de acontecer alguma coisa e acabar machucando mais pessoas. Steve e trocaram um olhar cúmplice.
— Melhor do que isso: vamos pedir Mabaku para entregar aqui — sugeriu, fumegando Shuri com os olhos — Não sabemos que horas estaremos livres, então, podemos encomendar e ficar mais à vontade aqui. Além disso, Steve é um homem idoso, precisa descansar para amanhã.
— Às vezes esqueço que isso aqui é um clube geriátrico — Shuri concordou entrando na brincadeira, ouvindo rir — Por mim está ótimo.
— Vocês conseguem ser piores que o Sam — Steve comentou irônico, vendo sorrir provocativa para ele e Shuri rir — O que acha, Buck?
— Pode ser assim, sim — Bucky respondeu timidamente.
— Fechado então. E pega leve com ele, Shuri, a coisa mais tecnológica que ele sabe operar é o aspirador de pó — insistiu na brincadeira, ouvindo Shuri e Bucky rir, enquanto Steve a olhava falsamente afetado.
Os dois saíram do laboratório em um minuto, deixando e a Bucky a sós. Diferente do que a ansiedade de Bucky o fez imaginar, não estavam desconfortáveis um com o outro e o ambiente não era tenso, mas pelo contrário, parecia leve e muito acolhedor. sabia como levar as situações e parecia entender como Bucky se sentiria nelas. Tudo ficava mais leve perto dela.
— Você sabe que pode ir atrás do Sam com Steve, não sabe? — Bucky olhou com receio. Precisava dizer aquilo à ela.
— Sei, mas sei também que, nesse momento, você precisa mais da minha ajuda do que o Sam — Ela respondeu simplesmente, caminhando de volta para perto da mesa com a projeção da prisão, fechando-a.
— Ele está preso, eu não — Ele insistiu, pensativo. Não achava justo ficar com ele ali.
— Correção: ele está prestes a ser solto — Ela sorriu confiante para Bucky.
— Eu vou ficar bem aqui, está tudo bem agora — Bucky rebateu.
— Eu não quero ir a lugar algum, Buck — suspirou, desviando sua atenção de volta até ele — Eu quero ficar aqui, com você. Sam vai ficar bem, Steve vai dar um jeito em tudo — Bucky sentiu seu coração bater mais forte ao ouvir aquilo, mas antes que pudesse deixar o clima constrangedor, ele respondeu:
— Ele sempre dá, não é?
— Acho que é isso que faz dele o Capitão América — comentou sorridente, vendo Bucky rir leve.
— Bom, já que não vou te convencer e não nos restou mais nada, você quer me contar o que descobriu? Sobre a minha mente, quero dizer — Bucky apontou para algum lugar aleatório do laboratório, envergonhado. Não queria ser invasivo nem apressar nada, só estava curioso.
— Claro, vem — o pegou pela mão espontaneamente e o puxou com gentileza até uma parte ao fundo do laboratório, onde um painel de cortiça estava colocado — Promete que não vai me achar louca?
— Por que acharia? — Ele segurou o sorriso.
— A.R.I.A., mostre o que temos sobre James Barnes, por favor.
Imediatamente, o painel afundou na parede, cedendo lugar a um outro, do exato mesmo modelo, que surgiu ao lado e se posicionou ali, bem na frente deles. Diferente do primeiro, que estava totalmente vazio, o novo painel tinha centenas de papéis, fotografias e mapas grudados com percevejos, fragmentos de relatórios e de documentos da Hydra, como um típico mural de investigação. Sobre eles tinham anotações, grifos, cálculos e fórmulas em post-its, que Bucky não sabia identificar, mas podia ver que boa parte estava em francês. Havia endereços, números de telefone e nomes de pessoas, fotografias de agentes da Hydra do alto escalão e de Bucky. Cópias sobre a história dele retiradas do museu Smithsonian, imagens recortadas de jornais sobre o acontecido em Washington e, bem no centro, e ao lado do símbolo da Hydra, a única foto que tinha de seus pais, jovens.
Bucky observou tudo aquilo em silêncio, dando alguns passos mais perto do mural. Havia muita informação para ser absorvida e Bucky sentiu seu corpo formigar. Não estava assustado, nem incrédulo de ver aquilo, estava admirado. Ele não sabia dizer quanto tempo doou de sua vida para chegar até ele e para chegar até a Sibéria, mas, vendo tudo aquilo, ele teve a certeza de que não foi pouco e nem fácil. Quantos lugares ela precisou ir e quantas pessoas precisou enfrentar? O quanto não havia se decepcionado em encontrar bases da Hydra que a deram nada mais do que novas pistas, mas nunca respostas? Daquele dia diante, passou a ser para ele um sinônimo de persistência, de resiliência e de insistência. Ela transbordava aquilo e aquele quadro era a prova disso.
— , isso é… — Bucky tentou começar a dizer, mas foi cortado.
— Assustador? — sugeriu, fazendo uma careta fofa.
— Um pouco, talvez — Ele a olhou risonho, vendo ela rir pelo nariz.
— Eu te disse que sabia tudo sobre você — Ela deu de ombros, cruzando seus braços.
— Você realmente está em débito comigo, boneca — Bucky respondeu no mesmo tom, a olhando de lado e, em seguida, de volta para o mural à sua frente. O bendito apelido carinhoso escapando mais uma vez. pressionou os lábios, tentando não surtar.
— Mas você já sabe tudo sobre mim agora, está na minha casa, leu meus arquivos. Já dormiu no meu apartamento em Berlim e até conheceu meus pais, estamos indo rápido aqui — brincou, passando a língua pelos lábios, tirando uma risada gostosa dele. Uma coisa a mais que era gostosa naquele homem.
— Talvez porque nós nunca tivemos a chance de esperar por algo — Bucky respondeu sorrindo e desviando seu olhar para o painel outra vez.
Diante daquilo, só conseguia pensar que Shuri era espertinha demais e realmente tinha razão sobre ela e Bucky. O homem não queria entristecer o momento tão leve e gentil e, antes que pudesse responder algo ou parar para refletir sobre aquilo, ele continuou:
— Eu ainda acho que estou em desvantagem. Os seus arquivos, eles não dizem que você gosta de macarons ou que é a pessoa mais inteligente, carinhosa e gentil que esse mundo já teve, e eu posso dizer isso com propriedade — Bucky sorriu sem mostrar os dentes, voltando a olhar , que desviou seu olhar dele, envergonhada — Também não dizem que você quase matou um cara beijando ele.
— Eu não acredito que você sabe disso — exclamou boquiaberta, colocando suas mãos em seu rosto, mas logo riu — Steve é muito fofoqueiro.
— Sempre foi, acredite — Bucky concordou com ela, rindo junto. viu ele umedecer os lábios e voltar seu olhar para os arquivos pendurados no mural — Mas não era assustador o que queria dizer, era… ual. Eu tenho certeza de que aqui tem muito mais coisas sobre mim do que consigo me lembrar.
Embora ele estivesse se esforçando em parecer convencional, leve e divertido, Bucky se sentia levemente triste por dentro. o observou passar os olhos, em silêncio, pelo mural, lendo tudo o que podia ler no menor tempo possível. A mão de volta no bolso, Bucky estava há alguns passos ao lado de , revendo pessoas das quais se lembrava vagamente e absorvendo informações sobre si mesmo que nunca tinha visto antes. Mesmo anos depois, algumas coisas ainda eram complexas demais de serem assimiladas. pensou que, talvez, Bucky nunca fosse realmente absorver a sua própria história. Poderia aprender a lidar com ela, mas nunca, jamais, internalizar e conviver em paz com o que aconteceu.
— Nada do que tem aqui é sobre quem você é, Buck. É tudo sobre como podemos reverter a situação, te trazer… paz — comentou suave, mexendo em alguns papéis e tirando do mural uma folha com anotações.
— E como você acha que podemos fazer isso? — Ele perguntou baixo, a respiração descompassando levemente pela ansiedade. colocou a folha na frente dele e se sentou na bancada abaixo de onde o mural estava. Bucky manteve-se parado em pé, ao lado de e de frente para o mural.
— A Hydra colocou em sua mente 10 palavras, em russo, em sequência, que precisam ser faladas em voz alta para que ative o Soldado Invernal. Basicamente, em resumo, para tirar essas palavras de você seria preciso fazer o exato mesmo procedimento que a Hydra fez para colocá-las.
— Apagar minhas memórias? — Bucky olhou apreensivo para . Não havia sequer cogitado passar por aquilo de novo, não se submeteria àquilo outra vez. Não podia esquecer do pouco que havia se lembrado, mesmo que isso fosse o necessário para tirar dele tudo que a Hydra colocou. Bucky não suportaria passar por tudo de novo. Mas aquela nunca tinha sido sequer uma possibilidade para , que negou com a cabeça, séria.
— Eu não vou, em hipótese alguma, fazer isso. Existe uma alternativa, não precisamos… apagar tudo, quer dizer, e se tirarmos dessa sequência uma única palavra?
apontou para uma sequência matemática na folha, que, provavelmente, comprovaria aquela teoria com um modelo de cálculo. Bucky não conseguia entender os números ali demonstrados, mas a ideia em si mesma parecia fazer sentido. Ele pensou por alguns instantes, até concluir:
— Isso desestabilizaria a sequência.
— Exato! E sem a sequência nada é ativado em você. As outras palavras seriam só... palavras — gesticulou para ele com a mão esquerda, seu semblante ainda sério, como se ela escolhesse qual a melhor forma para explicar aquilo.
— E isso… como faríamos isso? — Ele perguntou baixo outra vez, curioso pela hipótese que se formava ali.
— Usando um soro de propranolol. Ele inibe a atividade da norepinefrina, um neurotransmissor — mostrou aquilo no papel novamente e, em seguida, encarou os olhos dele, cheios de expectativa nela — Nós fizemos testes aqui em Wakanda, com pessoas que tinham passado por alguma situação traumática. Elas receberam uma dose de propranolol e foram convidadas a relembrar o trauma. As reações mais intensas, como medo e angústia, por exemplo, desapareceram completamente, e esse efeito se manteve mesmo depois que elas não estavam mais sob efeito do medicamento.
— Meu Deus, … você acha que funcionaria em mim? — Bucky abaixou seu olhar para o chão, reflexivo — Acha que só um medicamento poderia fazer isso tudo… desaparecer?
— Como seu corpo é resistente a dosagens convencionais de medicamentos... — apontou para alguns exames médicos antigos dele, pendurados no quadro atrás dela — ...vamos exagerar a dose o máximo seguro possível. Isso não fará todo o trauma desaparecer, mas se focarmos nas palavras, podemos te fazer esquecer pelo menos uma delas.
— Você disse que os voluntários foram convidados a relembrar os traumas, c-como faria isso comigo?
— Falando a sequência várias vezes — O olhar intenso de não escondia a tensão de chegar no ponto mais crítico daquela conversa.
Bucky claramente se assustou com aquilo e sua reação em levantar o olhar arregalado até ela e dar um passo para trás só confirmou o que já esperava. Ele não ia querer fazer parte daquele experimento, ele não ousaria tentar mexer em sua mente se aquilo não fosse completamente seguro para as pessoas envolvidas. Bucky não tinha medo por ele. Já tinha sido o Soldado Invernal por tanto tempo que, naquela altura de sua vida, algumas vezes a mais ou a menos, não lhe fariam diferença alguma. Mas ele não podia mais arriscar ouvir aquelas malditas palavras, não podia perder mais vidas para salvar a sua própria.
— , eu não… eu não vou conseguir, você sabe. É perigoso, eu vou machucar você, vou machucar todo mundo — Bucky quebrou o curto silêncio, sua voz relativamente desesperada.
— Não vai se fizermos isso com você na criogenia — soltou de uma vez e pressionou os lábios. Os dois se encararam por mais algum tempo, Bucky absorvendo aquela informação, confuso, sua mente parecia embaralhar, como na noite anterior.
— Isso é possível? Quer dizer, não vou ouvir vocês, como vou me lembrar do trauma?
— Coma induzido — respondeu simplesmente, triste — Seu corpo vai estar na criogenia, mas sua mente continuará ativa. É seguro para você e para… nós.
tinha passado tantos anos estudando aquilo que tinha resposta lógica para qualquer pergunta que ele pensasse em fazer. Bucky estava diante de um estudo sério, de testes que comprovaram teorias, de pessoas que se voluntariaram para confirmar cálculos e conclusões lógicas que foram, todas, detalhadamente analisadas, pesquisadas, testadas. Contudo, mesmo diante de tudo aquilo, nada parecia real. , sua história, sua busca, todos aqueles arquivos, aquele país, a paz e a calmaria que estava sentindo naquelas semanas, nada parecia verdadeiramente real para ele. Era como um sonho, como se qualquer coisa boa que viesse em sua vida fosse, na verdade, uma grande mentira. Como se tudo estivesse prestes a desmoronar a qualquer segundo. Não era possível que, realmente, existia uma solução para ele. Bucky não sabia como deveria se sentir. Não sabia nada sobre paz, sobre segurança, sobre amor. Aquela era uma chance real. A primeira e única, que teve em toda a vida, de recomeçar.
— Nenhuma das duas opções é a ideal, eu sei. Eu gostaria de ter outra solução, acredite, eu esgotei todas as possibilidades que tínhamos de fazer isso de formas mais simples. Mas essas foram as únicas formas que encontrei e a criogenia é o único jeito de você não sofrer — sorriu sem emoção. Estava feliz de estar contando sobre aquilo para ele, mas não tinha ideia do que Bucky estava pensando. Sua expressão manteve-se séria o tempo todo e ele desviava o olhar dela para o mural de tempos em tempos, confuso, incerto, incrédulo — Esse é o primeiro estágio do que chamamos carinhosamente de “Tratamento Barnes”. Depois disso, podemos tentar reviver as memórias, como ontem a noite, mas de um jeito seguro e, então, você pode passar para a terapia convencional. Em graus bem mais leves, algumas pessoas aqui têm feito o tratamento e estão já na fase de terapia, com resultados impressionantes. Achei que você gostaria de saber. A sua mente, sua história, está ajudando outras pessoas a se recuperar de traumas passados.
Bucky concordou com a cabeça, sentindo-se emocionado por aquela informação. Quando em sua vida poderia imaginar algo parecido com o que estava vivendo ali? Quando em sua vida poderia imaginar encontrar alguém como ? Ele sustentou seu olhar no dela, mas não teve tempo de dizer nada, pois a voz computacional de A.R.I.A. tomou o ambiente outra vez.
— Senhorita , o senhor T'Challa a convida para visitar a erva-coração em dez minutos.
— Ah Bast, é hoje! Confirme, A.R.I.A. — soltou a respiração, saltando da bancada em que estava sentada, tinha se esquecido completamente daquele compromisso — Me desculpe, Buck, eu preciso sair.
— Tudo bem — Bucky concordou engolindo a frustração de não querer que ela precisasse sair.
— Fique aqui, não tem problema algum. Há muito que você precisa ver e pensar. Veja os arquivos com calma, analise o estudo que fiz. A.R.I.A. pode te ajudar a pesquisar, é só perguntar para ela.
— Obrigado — Bucky disse baixo, seu olhar caindo no dela outra vez.
— Infelizmente, eu não devo voltar tão cedo, então, quando se sentir satisfeito, você pode simplesmente sair. Pode levar o que quiser também, acho que já posso considerar essa missão... concluída, não é? — sorriu tímida para ele e se afastou alguns passos — Me desculpe mesmo. Até mais tarde, Buck.
sorriu sem mostrar os dentes para ele uma última vez e foi em direção a saída do laboratório. Não podia se atrasar, os ritos da erva-coração demandavam tempo e seus guardiões estavam sempre ocupados demais para esperar alguns minutos de atraso. Bucky sentiu uma pontada estranha em sua cabeça, como uma dor forte, assim que falou “missão concluída”. Ele a acompanhou com o olhar, até ela sair completamente do local, e virou-se para o mural. Alguma coisa em sua mente parecia estranha. Bucky sentia como se uma forte enxaqueca fosse começar a qualquer instante, mas ele já estava tão acostumado com aquela sensação que decidiu ignorar. Sabia que estava fazendo esforços mentais demais naqueles dias.
Bucky tinha lido e relido dezenas de vezes os relatórios de e suas próprias anotações nos caderninhos recuperados por Karl e Everett. Tinha revivido muitas situações, das quais não se lembrava mais, conversando com Steve e teve toda a conversa com , na noite anterior. Sua mente deveria estar naturalmente sobrecarregada com tantas emoções, lembranças e informações. Bucky tinha tido pesadelos também, como em quase todas as noites em que se deitava para dormir. Aquelas quase duas semanas tinham sido emocionalmente intensas para ele e, talvez, repassar cada detalhe daquele mural, naquela tarde, não tinha sido uma boa escolha.
Sete e vinte e cinco da noite, e Steve voltavam caminhando tranquilos sentido seus quartos, comentando sobre detalhes de como seria o resgate de Sam. Tudo havia corrido bem no santuário da erva-coração e tinha tido tempo de conversar com T’Challa ao longo da tarde e traçar, juntos, uma boa estratégia de resgate de Nakia. No final do dia, na volta, passou pelo laboratório de Shuri e encontrou um Steve fascinado, escolhendo um telefone celular para enviar a Stark, para o caso de o velho amigo precisar dele para alguma coisa. Steve tinha se incomodado com a situação de Rhodes e, na impossibilidade de estar fisicamente presente, deixaria, pelo menos, um canal de contato aberto. Nunca sabiam o que esperar, tudo podia mudar a qualquer momento. Steve, então, escolheu um aparelho de flip, que, para Shuri, foi a maior piada do ano. Ele e foram juntos para seus respectivos quartos e combinaram de encontrar Shuri, em meia hora, para jantarem, como haviam marcado mais cedo.
dava algumas dicas sobre como viver em Nice para Steve, que prestava atenção curioso, tentando decorar algumas palavras essenciais em francês. Seria uma longa jornada dali em diante e ele sabia que não seria fácil. Steve estava prestes a perguntar alguma coisa para , quando chegaram no corredor dos quartos, mas uma imagem cortou totalmente sua atenção.
Com a porta do quarto aberta, Bucky estava sentado no chão, do lado de fora, no corredor ao lado da porta. Suas costas encostadas na parede, ele estava com as pernas dobradas, de modo que seus joelhos ficavam para cima, e com a mão apoiada no chão, ao lado de seu corpo. A expressão de Steve mudou drasticamente de estranhamento para preocupação, assim que ele notou a mão de Bucky cheia de sangue, machucada, como se algo tivesse sido quebrada nela. engasgou nas próprias palavras, sem conseguir ordenar direito o que estava vendo. Ela sentiu um arrepio na espinha tomar conta de si, junto com um sentimento terrível de culpa e remorso, como o que havia sentido mais cedo, quando soube de Rhodes. Ela não deveria ter deixado Bucky sozinho, não deveria.
— Bucky? — Steve tentou perguntar, chamando atenção dele, a tensão clara em sua voz.
— Você está bem? — o completou igualmente preocupada, dando dois passos mais perto do homem no chão, mas foi logo impedida de continuar por Steve, que a segurou pelo braço. Não sabiam exatamente qual Bucky estava ali, sentado, mas certamente não era o Bucky que eles conheciam.
Percebendo a movimentação, Bucky levantou seu olhar até eles, o rosto encharcado pelas lágrimas. Ele não respondeu absolutamente nada. Sua expressão estava confusa, dolorida. Ele olhava de para Steve, respirando fundo, completamente imerso em seus próprios pensamentos. Ele parecia exausto, o rosto vermelho, a mão machucada latejando de dor. Seus olhos não pareciam mais tão claros como de costume, estavam acinzentados, e seus cabelos estavam caídos em frente ao seu rosto, tão bagunçados quanto ele próprio parecia estar naquele momento.
Bucky sentia o caos o dominar. Não tinha clareza em sua mente, muitas coisas estavam passando por ela sem parar, desconexas, sem sentido algum. Ele fechou os olhos com força, irritado pelo estresse de não conseguir organizar seus pensamentos há tantas horas, mas sua mente foi imediatamente tomada pela voz de seus pais, cantando parabéns para você e pedindo que ele assoprasse as velinhas. Assustado e machucado com aquilo, Bucky abriu os olhos outra vez, mas já não parecia mais estar no corredor em que estava sentado antes, em Wakanda. Em sua visão, o corredor se transformava no velho e bem conhecido corredor da base central da Hydra, na Sibéria. Embora continuasse olhando e Steve, bem ali, parados e preocupados em sua frente, seus pensamentos o cegavam e o puxavam de volta até um pesadelo antigo, mas nunca antes lembrado. Bucky viu a si mesmo caminhar pelo corredor, até uma das celas. O homem que o acompanhava abriu a cela sem demoras e arrastou para fora dela, com violência, o prisioneiro. Bucky piscou com força algumas vezes, vendo mentalmente a criança de cinco anos, completamente machucada, com dezenas de marcas arroxeadas pelos pequenos e finos braços, ser empurrada pelos cabelos pelo corredor e cair no meio dele. A garotinha estava fraca, desnorteada, com medo. Ela chorava muito e gritava sem parar a cada tapa, chute ou empurrão que levava. S'il te plait, ne me blesse pas, s'il te plait. Exausta e sem força alguma, em certo momento, ela levantou seu olhar horrorizado até Bucky. A mente de Bucky, então, voltou completamente à realidade, e os olhos da menininha, na verdade, foram trocados pelos olhos da mulher a sua frente.
— Bucky? — A voz suave e absurdamente angustiada de cortou os pensamentos dele. Ele olhava para ela horrorizado, seus olhos arregalados e seu peito subindo e descendo com força. Não podia ser ela, não podia ser ela. não, não era a , era? Aquilo doía, doía muito. Como se sua mente estivesse sendo apertada, comprimida com força, queimada.
não sabia se deveria ou não se aproximar dele. Tinha certo receio da instabilidade e não queria assustá-lo. Steve parecia pensar a mesma coisa, sua expressão estava fechada, séria, e seu olhar sob Bucky era carregado de incerteza, ele ainda segurava o braço de , sem perceber. Amedrontado e chorando mais alto que antes, Bucky trocou seu olhar da mulher até Steve, vendo nele os mesmos olhos de desespero que, em sua mente, via quando ele caiu do trem, em 1945. Bucky estava confuso, não conseguia mais saber o que era lembrança e o que estava acontecendo ali, na sua frente; não conseguia separar as informações, estava cansado, sobrecarregado.
Ele tinha passado o dia inteiro lendo tudo que podia sobre si mesmo, sobre a Hydra, sobre Steve e . Tudo que pode encontrar no laboratório dela, ele leu, absorveu, forçou-se a entender e, pior do que isso, forçou-se a se lembrar. Bucky começou a se sentir nauseado e, algum tempo depois, as pontadas de dor em sua cabeça evoluíram para um embaralhamento completo de suas ideias. Ele ficou desnorteado, extremamente confuso, esqueceu-se por algum tempo de quem era e de onde estava, custou muito em manter-se no controle de si mesmo, em chegar até seu quarto e desesperou-se em abrir os seus próprios cadernos de anotação. E foi então que tudo piorou drasticamente. Uma enxurrada de memórias ruins começou a aparecer, em fragmentos, cortadas.
Os gritos das pessoas que ele matou, o medo, a agonia. Coisas ruins que ele tinha feito, lutas, treinamentos, barulhos de tiros, incêndios. Às vezes que apanhou, que foi torturado, seus próprios gritos de dor e os pedidos de misericórdia, a sensação de cair do trem, de ter seu braço arrancado. Bucky ouvia a voz de seus pais, a risada de sua irmã. Conseguia lembrar das imagens de Steve no Brooklyn antigo. Seu apartamento em Bucareste, o que aconteceu em Washington, seu uniforme, o acampamento em que ficou em Londres, na guerra. Ele via Rumlow, Alexander Pierce, Vassiliev, os pais de Tony Stark, os olhos de nele na base da CIA em Berlim.
E aquilo tudo doía. Machucava física e mentalmente. Bucky gritou, tentou se focar em algo que aliviasse seu desespero e, na impossibilidade de fazer aquilo parar, ele socou várias vezes o espelho de seu banheiro. Mas a sensação era a de que quanto mais violência ele se tratava, de mais violência ele se lembrava. Horas aguentando aquilo, esgotado, Bucky decidiu pedir ajuda, mas a confusão em sua mente o impedia de saber para quem e onde recorrer. Ele precisava de ajuda e era só isso que passou a pensar freneticamente por algum tempo, arrastando-se para fora do quarto e parando jogado, sentado, no chão do corredor, até Steve e Flor aparecerem.
Pelo silêncio do corredor era possível ouvir a respiração pesada e os soluços de Bucky, os grunhidos de dor. Ele colocou a mão na cabeça e fechou os olhos uma vez mais, a testa franzida em claro sinal de aflição. Steve olhou para , soltando-a, que, não aguentando mais aquela situação, correu a passos largos até ele. Bucky estava nitidamente sofrendo, agonizando, estava claramente tendo uma crise de sobrecarga emocional e, acontecesse o que fosse, eles tinham que fazer alguma coisa por ele. A poucos passos dele, ajoelhou-se lentamente e, de joelhos, aproximou-se de Bucky até parar de frente para ele. Steve veio logo atrás, igualmente preocupado e apressado, e agachou-se ao lado de Bucky, com metade do corpo para dentro do quarto dele. Bucky tentou respirar fundo para se acalmar, mas foi só abrir os olhos e ver ali, sentando-se sob as próprias pernas, a centímetros de distância dele, para ele desabar ainda mais. James abaixou a cabeça e chorou sozinho, em silêncio. encarou Steve, que, nessa altura, já tinha entendido exatamente o que estava acontecendo.
— Está tudo bem, Buck — Steve sussurrou baixo, colocando a mão nas costas do amigo, enquanto o abraçava com força.
— Nós estamos aqui, está tudo bem agora — falou tão baixinho quanto Steve.
— Eu não aguento… não aguento mais — Bucky soluçou em um sussurro quase inaudível. Steve suspirou triste. Parecia que, cada vez que tinham um avançou com ele, sua mente o sabotava e começava o sofrimento tudo de novo, do zero.
— Nós estamos aqui para te ajudar — insistiu carinhosa.
— E estamos com você até o fim da linha — Steve completou triste, lembrando-se da regra clara que tinham um com o outro. sorriu leve e sozinha ao ouvir aquilo.
Bucky não conseguiu responder mais nada. Sem ter noção de quanto passou ali, ele respirava fundo, prestando atenção em e Steve, seus pensamentos se acalmando, o foco mudando. A frase de Steve o levou até uma rápida lembrança feliz, de quando eram jovens. Bucky estava na casa de Steve, estavam jantando e discutindo alguma coisa sobre o Hobbit, que não podiam entrar em consenso. Mas o cheiro adocicado de o trouxe de volta até a noite anterior. O sorriso dela ao dar boa noite, a dança que estava devendo a ela e que ele não queria mais esperar para ter. Ele estava cansado daquilo tudo, de passar por aquilo tudo, ele só queria… se curar, de uma vez por todas. Ele sabia o que precisava ser feito.
— Foi muita informação para pouco tempo, me desculpa, a culpa foi minha — comentou depois de algum tempo, seu coração apertado por ter colocado ele naquela situação. No final das contas seu pai tinha razão. Deveria ter ido com mais cuidado, com calma, mais atenta aos detalhes e não tão levada pelas emoções. Bucky a empurrou levemente, saindo do abraço dela, seu rosto molhado pelo choro impiedoso. Preocupada, afastou o cabelo dele do rosto e, com as duas mãos, limpou as lágrimas que teimavam em escorrer. Bucky soluçou por algum tempo, a encarando, até colocar sua mão sobre a dela, ainda em seu rosto.
— Eu quero ir para a criogenia, p-p-por favor, , por favor. Eu quero ir, agora.
- Capítulo 18 -
— A.R.I.A? Marque vinte e dois de fevereiro no calendário, por gentileza.
— Qual horário?
— O dia inteiro — suspirou com tristeza.
— Agendado.
Pouco mais de uma hora depois de tentar acalmar Bucky e conversar sobre o que tinha acontecido com ele naquele dia, Steve e decidiram, finalmente, ceder a seu pedido desesperado e o levaram até um dos laboratórios médicos. havia pedido para A.R.I.A. preparar o lugar e reunir Shuri e a equipe médica de plantão e, enquanto os esperava terminar de alinhar os aparelhos, ela checava os cilindros de oxigênio no canto, concentrada. Embora soubesse que aquela era a decisão mais acertada que Bucky poderia tomar, ela se sentia mal por ele. não imaginava que seria tudo daquela forma, tão depressa, tão de repente. Aquele era um tratamento delicado, que exigiria muito preparo físico e emocional de Bucky. Ela não queria que fosse feito às pressas, não queria que ele se sentisse, uma vez mais, um experimento, um artefato científico. Ela estava pronta para colocá-lo na criogenia há anos, mas ela se sentia culpada por aquilo acontecer naquele dia, daquela forma. Tantos anos tendo paciência, esperando, porque cedeu à pressa de Bucky em descobrir tão rápido sobre si mesmo? Ela sabia que ele estava exausto, incerto, curioso com tantas informações, sabia que ele queria e precisava saber mais, como se estivesse viciado em si mesmo. Ela podia imaginar como ele se sentia, mas ela tinha que ter sido racional. Bucky precisava de ajuda, não precisava de mais desgastes e desesperos. E, desde a hora que o viu naquele estado, jogado no corredor, se sentia terrivelmente mal por ter contribuído para aquilo.
Do outro lado do grande laboratório, viu Shuri vestir seu jaleco enquanto dava algumas instruções aos enfermeiros sobre como ligar a câmara de criogenia. Já era tarde demais para se arrepender de qualquer coisa que tenha feito. Por mais que ela e Steve tivessem tentado conversar com Bucky e garantir que aquela fosse mesmo a escolha certa, a hora certa, ele estava decidido. Bucky queria ser congelado, queria começar logo o tratamento. Queria que a vida dele recomeçasse de uma vez por todas, ele tinha pressa. Nem nem Steve insistiram mais. Diante de tanto desespero, de tantas lágrimas e do suplício de Bucky, o que mais eles poderiam fazer senão ceder? Se era mesmo o que ele queria, então era o que ele teria. Só restava garantir que tudo fosse sair do jeito certo - e, por isso, conferia passo a passo da operação com cuidado e muita atenção. Nada mais podia dar errado naquele dia. Nada mais podia dar errado para ele.
Em silêncio, Bucky voltava para o laboratório, pensativo. Estava bem mais calmo, menos angustiado do que antes, sua respiração estável, sua mente estranhamente quieta depois de um dia tão turbulento. Um dos enfermeiros havia lhe entregado uma troca de roupas, para que se sentisse o mais confortável possível durante o procedimento, e ele foi se trocar. Usando uma calça de tecido maleável e uma regata branca, Bucky parou no meio do laboratório, perto da câmara de criogenia, e observou Shuri aproximar-se de . Elas conversavam tão baixo que não era possível ouvir e onde ele estava e, então, trocaram um meio abraço e um sorriso triste. havia pedido desculpas para Bucky meia dúzia de vezes e era nítido para ele que ela estava incerta sobre aquilo tudo. Por mais segurança e certeza de que o passasse, não era bem daquele jeito que ela havia planejado. Bucky sabia que ela estava se esforçando em ir com calma, com paciência, dar a ele o tempo que ele queria, que ele precisava. E Bucky acabou completamente com o plano dela, ele tinha consciência daquilo. Mas ele não queria mais esperar. Tantos anos em busca de si mesmo que, agora que teve a oportunidade de se reconhecer, já não fazia mais sentido esperar.
Rindo baixo de qualquer coisa que Shuri havia comentado com ela e preparando uma bolsa de soro, passou a ler algo em um papel em cima da bancada próxima a ela. Por um momento, a encarando de longe, Bucky pensou que sentiria falta daquilo. Do sorriso, do som da risada, dos olhos que se espremiam quando ela sorria, do cheiro adocicado, da preocupação que ela tinha com ele, do que florescia nele quando ela estava por perto. Bucky sentiria falta dela. Das conversas sinceras e tão profundas, das flores e da vida que ela fazia ele querer viver; daquela sensação de querer ficar por perto, de ter mais, de ser mais, de sentir a presença de na dele, de que o tempo nunca parecia suficiente. Bucky se perguntou se também se sentia daquela forma. Se ela sentiria falta dele, se ela o visitaria nesses meses e, mais do que isso, se ela estaria lá quando ele acordasse.
ainda não tinha notado a presença dele ali, estava de costas e levemente de lado, prestando toda sua atenção, agora, em uma tela à frente, como um painel de controle, e mexendo em alguns comandos. Ele não sabia exatamente o porquê, mas sentiu um certo medo subir sua espinha. E se não estivesse mais lá quando ele acordasse? E se ela decidisse ir com Steve atrás de Sam e não voltasse mais? E se eles nunca mais se encontrassem? E se ela… conhecesse alguém e se… apaixonasse? E se o tratamento não desse certo, se ele acordasse do mesmo jeito ou pior do que já era? E se ele se esquecesse dela, de tudo que viveram juntos até ali? Bucky sentiu seu coração acelerar levemente, o receio de ter feito a escolha errada se espalhando por sua mente como uma onda. Talvez não devesse ter tomado aquela decisão em um momento de desespero. Talvez devesse só ficar ali, com , e seguir em frente como dava.
Mas ele sabia que não podia. Ter a vida que ele gostaria de ter não era uma opção, e nunca seria, enquanto ele não fizesse algo. Bucky suspirou fundo vendo morder os lábios e franzir a testa, intrigada com algo que parecia dar errado na tela. estava muito longe de ser alguém que pudesse o querer da mesma forma que, cada dia mais, ele a queria. E como ela poderia? O que ele tinha a oferecer, afinal? Medo, violência, um passado assustador com dezenas de assassinatos e pesadelos constantes? Um homem de 100 anos, instável, que não cortava o cabelo há décadas, que mal sabia seu nome, sua história, que não conhecia nada sobre família, sobre o amor. O que ele tinha a oferecer? Bucky era a bomba que , definitivamente, não precisava carregar em sua vida. Ele era caos, como se tudo que encostasse pegasse fogo e ele não queria queimar . Ela não. Ela não merecia ele. Ao menos não do jeito que ele estava naquele momento, fragmentado, vulnerável.
Bucky tinha pensado muito sobre isso naqueles dias. Na verdade, ele tinha pensado muito sobre tudo naqueles dias. Exausto e despedaçado, uma parte dele, de sua mente, insistia em pensar em . Em quem ela era e nas coisas que ela havia feito por ele. Como se sua mente quisesse dar uma dose generosa de alívio e de paz, algo em que ele pudesse se agarrar para ter forças, um motivo para seguir em frente. Bucky não entendia direito o que estava acontecendo com ele e nem tinha certeza absoluta se aquela era uma evidência de que gostava dela mais do que Steve gostava. Não sabia se estava mesmo apaixonado ou se era só um porto-seguro. E ele não sabia se tudo aquilo que vinha dela, a delicadeza, a atenção, a preocupação, o carinho que ela demonstrava por ele era, na verdade, porque ela sentia o mesmo. Mas, só aquela possibilidade já era o suficiente para que Bucky sentisse uma ponta de esperança de que talvez, talvez, aquilo não fosse só coisa de sua cabeça.
— Cuidado, Sargento Barnes, ou a baba vai escorrer — Shuri brincou em um sussurro discreto, passando ao lado dele, em direção ao outro lado do laboratório. Bucky piscou algumas vezes, desviando seu olhar de até ela e sorrindo fraco, incrédulo.
Percebendo uma movimentação atrás de si, virou-se de frente para ele e sorriu com ternura, o olhando. Ela vestia um jaleco branco por cima do macacão que usava desde cedo e, para Bucky, ela estava linda. As doses de cansaço e preocupação não tiravam de a leveza, o charme e a intensidade, não tiravam dela a sensação de calmaria, de segurança, que Bucky sentia ao olhá-la. A vendo chegar mais perto, Bucky pensou que, talvez, aquele fosse mesmo o certo a ser feito, o primeiro passo. Ele tinha que fazer isso por si mesmo, mas também queria fazer por ela. Se quisesse ter uma chance real com , tinha que, primeiro, dar uma chance a si mesmo. Ele queria fazer do jeito certo, do jeito que ela merecia ter.
— O que eu faço… com isso? — Bucky perguntou baixo, assim que já estava próxima o suficiente para ouvir. Ela o viu chacoalhar as roupas que antes usava.
— Pode deixar aqui, depois levo para o seu quarto, se não se importar — Ela sorriu fraco, pegando a troca de roupa que ele lhe estendia e a colocando em uma bancada próxima.
— Sem problemas — Ela sorriu sem mostrar os dentes — Tem certeza de que não quer que eu arrume a bagunça que deixei lá?
— Você está prestes a ser congelado e sua preocupação é com a bagunça que deixou no quarto? — brincou, levantando uma sobrancelha. Bucky soltou uma risada nasal.
— Eu acho que sou o pior hóspede que Wakanda já teve — Ele negou com a cabeça, passando a língua pelos lábios. desviou seu olhar para o lado.
— É o melhor deles, na verdade — Ela quase sussurrou, envergonhada. Bucky parou de respirar por um segundo, a encarando — Mas um pouco bagunceiro.
— Espero que consiga melhorar isso também quando eu acordar — Bucky riu baixo, seus olhos se encontrando com os de outra vez.
— Isso parece fácil de resolver — ainda sorria, colocando as mãos nos bolsos do jaleco — Mas não se preocupe, Buck, vamos dar um jeito no seu quarto e recolher as suas coisas. Tudo ficará aqui, esperando por você.
— Você também? — Bucky olhou para o chão, ponderando por um instante se deveria mesmo dizer aquilo a ela — Você também vai ficar… esperando por mim? Vai... estar aqui quando… quando eu acordar?
Bucky queria que aquela pergunta tivesse soado o mais casual possível, mas o nervosismo estava nítido, sua voz trêmula, a respiração falha. Não queria que se sentisse pressionada a acompanhar o tratamento e ela não tinha obrigação alguma em esperar por ele ou estar lá quando ele acordasse. Mas ele queria que ela estivesse e queria ouvir dela, queria, torcia, para que a resposta fosse sim. Queria minar sua mente de todas as possibilidades que estava pensando, queria ter mais provas, ou não, de que não estava interpretando tudo errado.
, por sua vez, sorriu abertamente, seu coração batendo tão forte que jurava poder ouvir. Bucky estava mesmo preocupado com aquilo? Nem tinha ido e já queria voltar para vê-la outra vez? Aquilo era adorável. Era adorável como só ele conseguia ser. tinha certeza absoluta de que estaria lá quando ele acordasse, porque ela tinha certeza absoluta de que sentiria falta dele. Das conversas, das risadas, da sensação de ter alguém que a conhecia tão bem, que a entendia, que a permitia ser quem ela era, que a queria por perto. sentiria falta do calor dos abraços, do toque carinhoso, do cuidado que ele tinha com ela. Dele a chamando de boneca sem querer, dos olhos azuis cheios de expectativa a encarando. Bucky faria falta naqueles meses. Parte de já estava, inclusive, se sentindo sozinha desde a hora em que entraram naquele laboratório. Ele faria falta para ela. viu Bucky voltar seu olhar até ela, outra vez, um tanto quanto ansioso pela resposta.
— Está vendo ali? — perguntou, virando-se levemente e apontando para a tela que antes ela mexia. Bucky concordou, confuso — É a programação de um calendário binário, que foi integrado a A.R.I.A. Ela vai me avisar todos os dias quanto tempo falta para você sair da criogenia, para a gente… se ver de novo.
Como se tudo e todos ao seu redor tivessem desaparecido, como se ele só visse e ouvisse ela, Bucky olhou lentamente da tela até , que se voltava outra vez de frente para ele, suas bochechas levemente vermelhas de vergonha. tinha acabado de dizer que o queria ver de novo e ela estava mesmo contando os dias para aquilo. Bucky sentiu seus olhos marejarem. Quando poderia imaginar que viveria algo parecido? Quando poderia pensar que alguém o quisesse ver, o quisesse por perto? Quando sequer cogitou a possibilidade de alguém poder sentir saudades dele? Bucky se sentiu amado, como se alguém estivesse acarinhado sua alma. o estava acarinhando de novo, como vinha fazendo em cada detalhe, em cada gesto pequeno e atencioso desde quando o protegeu de T’Challa em Bucareste, sem nem o conhecer. Sem pensar duas vezes e empurrando de sua mente qualquer pensamento inseguro, ele puxou para um abraço. Ela, então, passou seus braços pela cintura dele e o apertou, fechando os olhos e deitando em seu peito.
Em meses, aquele seria o último contato. E eles dois sabiam disso.
— Eu vou estar onde você estiver, Buck — falou baixo depois de algum tempo, não querendo se soltar nunca mais dele. Bucky sorriu levemente, tentando guardar em sua mente cada detalhe daquele momento — É uma promessa.
Perto da entrada do laboratório, com as mãos nos bolsos da calça, Steve sorriu sozinho observando Bucky dar um beijo delicado na cabeça de . Como se a qualquer momento não fossem mais ter um ao outro, eles ficaram ali, abraçados por algum tempo, completamente alheios ao que acontecia ao redor. Minutos depois, Bucky se separou de com cuidado, descendo a mão pelo braço dela até segurar sua mão, o olhar carregado de lágrimas dele encontrando os olhos tristes dela. Mesmo de longe era possível perceber que nenhum dos dois queria realmente se separar. Steve pensou por um momento no quanto a vida tinha sido, e continuava a ser, injusta com seu amigo. Ele tinha perdido tudo e, depois de anos, logo na primeira vez em que ganhou alguém, já iria perder de novo.
— Vinte e dois de fevereiro — sussurrou, entrelaçando seus dedos nos dele.
— Vinte e dois de fevereiro — Bucky sorriu fraco, repetindo no mesmo tom.
e Bucky se encararam por mais um minuto, em silêncio, como se os dois quisessem guardar um ao outro em suas memórias. Eles sabiam que logo se veriam novamente, mas ambos tinham a sensação de incerteza. Para nenhum deles, nunca, a vida tinha sido linear, certa, previsível. E naquele momento, mais do que em qualquer outro, e Bucky desejaram que assim o fosse. Sem interferências, sem problemas, sem mais dramas. O plano tinha que dar certo, o tempo tinha que jogar a favor deles. Bucky puxou delicadamente a mão de para mais perto dele e deixou ali, na parte de cima, um beijo delicado, encostando a mão dela, em seguida, em seu rosto. passou seus dedos com cuidado pela barba dele, seus olhos nunca deixando os dele. Mas o momento, uma vez mais, não era propício para eles e logo um dos enfermeiros aproximou-se, chamando atenção dos dois.
— Com licença, doutora ? — e Bucky olharam para o homem, o sorriso educado de não escondendo a frustração — Sargento Barnes, precisamos tratar seus machucados da mão antes do procedimento começar, o senhor me acompanha, por gentileza?
Bucky voltou seu olhar para que, nessa altura, já tirava sua mão dele. Ela assentiu com a cabeça e sorriu segura, como se dissesse, em silêncio, que estava tudo bem. Visivelmente frustrado por ter que se separar dela, Bucky sorriu em resposta e, sem responder nada ao enfermeiro, o acompanhou até uma bancada mais ao canto do laboratório, onde se sentou. Sabia que ele estava só fazendo seu trabalho, mas tinha mesmo que ser naquele momento? Bucky ficou matutando a frustração enquanto esperava, seu olhar perdido em um canto qualquer do chão. o olhou uma última vez, soltou um suspiro e foi até Shuri, em um outro canto do laboratório, que fazia os últimos ajustes no programa que operaria a câmara de criogenia. O painel de monitoramento já tinha o contorno em anatomia do corpo de Bucky projetado e, olhando para ele, se perguntou se seria sempre daquele jeito, fora de contexto. Só queria ter um momento certo com Bucky, porque parecia que sempre estavam fora de contexto? Ela desviou seus pensamentos vendo Steve passar por ela, dando uma rápida olhada na câmara de criogenia, e aproximar-se de seu amigo.
— Tem certeza disso? — Steve perguntou já perto o suficiente de Bucky, que observava o enfermeiro terminar de limpar e enfaixar sua mão cortada.
Embora já soubesse da resposta de Buck, porque ele e já tinham perguntado aquilo dezenas de vezes antes de irem até o laboratório, Steve queria certificar-se uma última vez. Tão perto de tudo acontecer, Bucky tinha mesmo que ter certeza do que estava prestes a fazer e não era tarde demais para mudar de ideia. Nunca seria. Contudo, Bucky parecia certo de si. Estava, claro, um pouco ansioso, tentando afastar de sua mente qualquer resquício de memória que tinha da última vez que entrou na criogenia, mas estava seguro de sua decisão. Aquela era a única maneira de proteger as pessoas à sua volta, a única maneira de proteger a si mesmo. Quanto antes começasse o tratamento, antes poderia sair dele e, quem sabe, encontrar a paz que tanto queria.
— Eu não confio na minha mente — Bucky negou levemente com a cabeça, seu olhar subindo até Steve, em pé ao lado de onde ele estava sentado. Bucky deixou escapar um sorriso triste — Então, até descobrirem como tirar essa coisa da minha cabeça, acho que voltar a hibernar é o melhor... — Ele desviou seu olhar até , do outro lado do laboratório — ...para todo mundo.
Steve concordou com a cabeça, em silêncio. Aquela era uma escolha de Bucky, só dele e de ninguém mais. Não havia mais nada que ele, ou qualquer outra pessoa pudesse fazer senão apoiá-lo. Antes que Steve pudesse responder algo, aproximou-se deles segurando a bolsa de soro que antes tinha preparado.
— Preciso colocar isso em você agora e, quando você quiser ir, começamos — Ela olhou Bucky, que concordou com a cabeça e esticou o braço.
O enfermeiro já tinha terminado de enfaixar a mão dele e tomou o lugar dele, ao lado de onde Bucky estava sentado. Ela deixou a bolsa de soro de lado um segundo, pegando um algodão e o molhando com álcool, passando-o no braço do homem, com delicadeza, em seguida. A mente de Bucky viajou até o dia em que cuidou dos machucados dele em seu apartamento, em Berlim, e, sem querer, ele deixou um sorriso discreto sair. Ele e Steve acompanhavam os movimentos dela com os olhos, esperando pacientemente.
— Quanto tempo vai durar? — Steve perguntou curioso, vendo procurar uma veia de Bucky e colocar a agulha do soro nele, com agilidade, segurando-a até colar o adesivo que a fixaria ali.
— Com oito meses já conseguimos saber se o tratamento respondeu bem ou não. No pior dos casos, dez meses — Ela respondeu o vendo concordar com a cabeça — Está confortável assim?
— Sim, obrigado — Bucky concordou olhando do soro para ela.
— Como vai funcionar agora? — Steve perguntou outra vez. Bucky tinha falado para ele sobre o tratamento, mas não tinham tido tempo de conversar sobre os detalhes. virou-se para Steve, cruzando seus braços.
— No primeiro mês ele vai receber o soro de propranolol todos os dias, sempre no mesmo horário e vamos tentar tirar uma das palavras dele, por indução. Conforme os meses vão passando, vamos reduzindo a quantidade de dias do tratamento e também a quantidade de soro — explicou resumidamente, observando os dois homens a sua frente concordarem — Shuri vai monitorar a câmara vinte e quatro horas por dia, não há chance alguma de algo dar errado, não se preocupem.
— E qual palavra vão tentar tirar? — Bucky perguntou a olhando, não tinham definido isso ainda.
— Vagão de carga, se tiver tudo bem por você — respondeu serena, sorrindo leve — Assim podemos não só quebrar a sequência, mas diminuir o trauma do dia que tudo isso começou, de quando você caiu do trem.
Bucky concordou com a cabeça, vendo Steve fazer o mesmo. tinha se atentado até aquele detalhe. Estava maximizando a possibilidade de usar o tratamento e tentando trazer o melhor resultado possível para Bucky. Sem que nunca tivessem conversado sobre aquele fato, sobre aquele dia que os pesadelos de Bucky tanto insistiam em reviver, teve a delicadeza de entender como ele deveria se sentir. Se já a conhecia o suficiente, podia imaginar que ela estudou palavra por palavra e as interligou com todos os acontecimentos possíveis da vida dele, até descobrir qual delas seria a melhor a ser retirada, a ser esquecida.
— Podemos trocar por outra palavra também, você quem escolhe, na verdade — Na ausência de resposta, voltou a comentar meio sem graça.
— Não, tudo bem, desculpe. Eu só não sei como… como você pensou em tudo isso, em todos os detalhes. Obrigado, — Bucky comentou sincero.
— Você pode me agradecer quando sair daqui — Ela sorriu charmosa, a discreta ambiguidade nas palavras não passando despercebida por Bucky, que sorriu de volta.
— Vou me lembrar disso.
— Mas, até lá, hora de hibernar o lobo — A voz de Shuri surgiu de trás de Steve, chamando atenção dos três, que a encararam — Pronto, Sargento Barnes?
— Acho que sim.
Bucky deu uma rápida olhada ao redor do laboratório e respirou pesadamente, voltando a encarar e Steve. Os três trocaram olhares seguros e Bucky se levantou da bancada em que estava sentado, indo até perto da câmara de criogenia e parando ali, há alguns passos da mudança em sua vida começar, finalmente, a acontecer. Espalhados pelo laboratório, Shuri e os enfermeiros acompanharam em silêncio o movimento. Todos sabiam o que aquilo significava para e todos eles entendiam o peso daquela decisão para o novo hóspede. Tudo iria mudar dali em diante. Bucky deu uma olhada na câmara de criogenia e respirou fundo, virando-se de frente para Steve. Nunca tinha sido bom com despedidas e a verdade era que nunca tinha tido a chance de se despedir de alguém. Aquilo era novo e bastante doloroso. Bucky sabia que quando acordasse Steve estaria bem longe dali, em algum lugar escondido com Sam, fugindo dos governos, sendo um criminoso, um nômade. Bucky conhecia daquela vida. Sabia bem como era e não desejava para ninguém, muito menos para Steve. Queria poder fazer alguma coisa para ajudá-lo, assim como Steve estava fazendo por ele. Quem sabe, quando saísse da criogenia.
Steve olhou seu amigo o encarar, pensativo. Tinha certeza de que ele ficaria bem, estava seguro ali, mas foi inevitável ter a mesma sensação de quando Bucky foi para a guerra, de volta nos anos 1940. Despedir-se nunca foi uma tarefa fácil para Steve e não seria de novo naquele momento. Não sabia quando poderia reencontrar Bucky e parte dele só desejava ser jovem outra vez e viver seus dias ao lado do melhor amigo, sua única família. Steve soltou uma risada nasalada, vendo Bucky fazer o mesmo. Os dois sabiam exatamente o que o outro estava pensando, o que o outro estava sentindo. Torciam pelo melhor, esperavam se reencontrar em breve, mas, naquele momento, tinham que, uma vez mais, se deixar ir. Os dois homens se abraçaram brevemente, com força, até Steve se separar dele e dar dois tapinhas em seu ombro. Nada precisava ser dito, absolutamente nada.
Bucky então virou-se para , que assistia a tudo aquilo com o coração em suas mãos, e sorriu sem mostrar os dentes. Ela concordou com a cabeça, como se lhe desse confiança em seguir em frente e sorriu de volta. Em um movimento rápido e cuidadoso, Bucky tirou sua dogtag, o colar de identificação militar que usava, única lembrança que tinha de seus tempos como sargento, e o colocou no pescoço de . Ele não podia levar nada de metal para a criogenia e sabia que ela cuidaria do colar para ele. Na noite anterior, o deu uma flor para que não se esquecesse dela. Hoje, Bucky a dava o único objeto que tinha que representava parte de seu passado, de quem realmente era, para que ela não se esquecesse dele.
sorriu abertamente em resposta, segurando as duas chapinhas de metal penduradas em seu pescoço. Não estava esperando por aquilo e pareceu simbólico demais. As dogtags eram sempre duas e uma delas era retirada dos soldados quando eles eram feridos ou mortos em combate e enviadas aos seus familiares como prova da coragem, de bravura. Para aquilo soou como se Bucky estivesse deixando com ela um Bucky que já não iria mais voltar depois da criogenia. E ela poderia devolver a tag ao homem novo, que renasceria dali. Um sinal de confiança, como uma forma de Bucky a dizer que voltaria logo, que queria que ela o esperasse. Como se parte dele estivesse com ela agora, como se ele fosse dela. ficou imersa naquilo enquanto Bucky, finalmente, entrou na câmara de criogenia e Shuri o ajudou a se posicionar lá dentro, passando as travas de seguranças pelo corpo dele. Bucky deu uma última olhada em Steve, enquanto o tubo de acrílico subia do chão e o fechava na câmara, e, em seguida, olhou para .
— Vê se não dorme tempo demais, Sargento, você me deve uma dança — comentou baixo, aproximando-se da câmara de criogenia. Steve sorriu triste e abaixou seu olhar com aquele comentário. Sabia exatamente qual era a sensação.
— Já estou ansioso, boneca. Vou sonhar com isso — Bucky respondeu no mesmo tom, olhando em sua frente — Vou sonhar com você.
engoliu o choro, seu sorriso trêmulo. Se alguém perguntasse o que ela estava sentindo naquele momento, ela não saberia descrever. Como se seu coração estivesse quebrado, como se ela estivesse sendo abandonada, como se quisesse tirar ele dali, mas, ao mesmo tempo, como se quisesse que ele passasse pelo tratamento logo. colocou a mão dela sob o acrílico, vendo Bucky, no instante seguinte, de dentro, colocar a mão dele na mesma posição da dela. Bucky encostou sua cabeça e fechou os olhos, desejando de fato sonhar com , enquanto sentia o gás que o conduziria ao coma tomar conta da câmara em segundos, fazendo-o apagar completamente.
Pelos minutos que se seguiram, o silêncio pairou no laboratório enquanto e Steve encaravam Bucky congelado. Nenhum dos dois sabia exatamente como estavam se sentindo, mas não havia mais nada a ser feito, senão seguir em frente. sentiu uma lágrima solitária escorrer por seu rosto e logo a enxugou, olhando Steve, parado ao lado dela, cruzar os braços enquanto observava seu amigo dormir tranquilo.
— Acho que só nos resta esperar e ir descansar agora — Steve comentou baixo.
— Vai na frente, vou ficar para ver como ele vai reagir nas primeiras horas — respondeu baixo, desviando seus olhos de Steve até Bucky outra vez.
— Você sabe que não precisa fazer isso — Steve sorriu triste para a amiga — Sabe que não precisa ficar aqui, ele vai ficar bem, .
— Eu quero ficar com ele, Steve — admitiu.
— Você sabe que não quer ficar com ele desse jeito e ficar encarando não vai ajudar.
Steve era cirúrgico quando queria ser. abaixou seu olhar, brincando com as próprias mãos. Ele tinha razão, ela sabia que tinha. Não havia mais nada que pudesse fazer por ele naquele dia, tudo estava sendo operado e monitorado pela tecnologia mais avançada do mundo, não havia com o que se preocupar. Estava tudo certo, programado, operando bem. Contudo, talvez parte dela estivesse resistindo a deixá-lo porque simplesmente não queria o deixar sozinho. Por mais que confiasse de olhos fechados em todas as pessoas daquele país, ainda tinha certo receio que algo pudesse acontecer com ele. Mas, sendo racional, o que poderia acontecer? Ele estava seguro ali, tudo ficaria bem e ela teria que aceitar aquilo.
— Ele vai ficar bem, mas, agora, nós precisamos cuidar de nós mesmos — Steve comentou abraçando de lado e a virou sentido a porta do laboratório.
— Eu sei, é só que… — Ela suspirou, olhando para o chão do corredor à sua frente, enquanto passava um abraço pela cintura dele — Ele já passou tempo demais sozinho.
— Talvez essa seja a última vez — Steve concordou com a cabeça, sua voz triste.
— Você acredita mesmo nisso? — mordeu os lábios, apreensiva.
— Precisamos acreditar em algo para seguir em frente, não é? — Steve respondeu baixo, seu olhar voltando para o corredor a sua frente.
respirou fundo, concordando tão lentamente com a cabeça que Steve quase não percebeu. Tinham que se apegar em algo para seguir. Sempre foi assim com eles, a vida inteira se segurando em esperança, porque dessa vez seria diferente? pensou por um instante no que Sam diria se estivesse ali e aquilo a trouxe de volta à realidade.
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você amanhã? — Ela perguntou de repente, fazendo Steve parar de andar por um minuto e virar-se de frente para ela, a encarando.
— O combinado era se alguém fosse preso, os outros iriam ao resgate, lembra? — Steve comentou saudoso, referindo-se ao plano que ele, e Sam traçaram na cafeteria em Viena, assim que Zemo explodiu o prédio da ONU, antes de irem atrás de Bucky em Bucareste.
riu baixo, lembrando da cara de Sam quando ela comeu o bolo dele. Se soubesse que as coisas terminariam daquela forma, talvez tivesse se esforçado em fazer tudo diferente. Sam tinha que ter ido com eles para a Sibéria, ele não tinha sequer noção das coisas que tinham acontecido lá, da história de , do que Bucky estava passando. Sam estaria protegido agora e eles poderiam, todos, viver em segurança em Wakanda. Por que nada, nunca, poderia ser fácil daquela forma para eles?
— Sam faria isso por mim, ele iria me resgatar — respondeu baixo, olhando Steve sorrir triste para ela. Estava preocupado com o amigo e entendia, bem até demais, a escolha que estava fazendo naquele momento, entre Bucky e Sam.
— Sem nem pensar duas vezes. E você também iria, por ele, se tivesse a garantia de que poderia voltar para cá depois, em segurança.
— Acho que não estamos mais na fase de discutir garantias, Capitão — riu irônica, vendo Steve a acompanhar.
— Você ainda está em tempo. Bucky precisa de você e se ficar aqui, garantimos que ele e que você ficará bem. Isso é mais do que qualquer um de nós poderia esperar — Steve respondeu mais sério do que gostaria, seus olhos sem desviar dos de — Você tem uma casa, , tem uma família. Tem pessoas que precisam de você aqui, que dependem dos seus dons, da sua ciência. Sam não iria querer que você colocasse tudo isso em risco por ele. Eu vou estar lá, vou dar um jeito e vamos nos proteger depois.
— O que vai acontecer com vocês? — perguntou preocupada, sua mente divagando entre todas as piores situações possíveis.
— O que acontece com todos os nômades — Steve respondeu brincalhão, vendo a expressão dela se suavizar em um sorriso.
— Não sei se é um estilo de vida que combina muito com você, muito menos com o Sam — Ela respondeu no mesmo tom.
— Vamos descobrir — Steve riu fraco.
— E se vocês forem presos de novo? — perguntou outra vez, o sorriso desmanchando levemente.
— Então você nos resgata — Steve respondeu ainda sorridente — Esse sempre será o plano para nós três.
Nós três. sorriu sozinha com o comentário. Sem querer, sem nunca ter cogitado aquela possibilidade, ela tinha ganhado mais uma família, tinha ganhado mais proteção, mais cuidado, mais amor. Dos sentimentos mais confusos que poderia ter, a gratidão por estar em Lagos naquele dia, naquela hora, era, definitivamente, um deles. A sensação de pertencer a algo sempre foi importante para e aquilo significava muito para ela.
— Daria tudo para ver a cara do Sam sendo resgatado — brincou, ouvindo Steve rir — Mas já que não posso ir, há algo que poderia ajudar daqui?
— Se puder nos ajudar apagando o rastreio das autoridades, já vai ser ótimo — Steve comentou sincero. Estava realmente preocupado com aquela questão, passar totalmente despercebido era o maior dos problemas que iriam enfrentar. Não sabia por quanto tempo viveriam daquela forma, enquanto não fossem perdoados ou o Tratado de Sokovia não fosse anulado, aquele caos perduraria.
— Deixa isso comigo. Também vou mapeando e avisando vocês sobre os lugares mais seguros para vocês ficarem e posso tentar uma prisão domiciliar para Clint, quer dizer, ele tem filhos, ser nômade não é uma opção — comentou a ideia que acabara de ter, lembrando que Karl havia levantado aquela possibilidade.
— Scott também tem — Steve a completou, gostando da ideia. Aquilo seria bom. assentiu com a cabeça — Obrigado, , de verdade. Por tudo que fez por mim aqui, pela ajuda, por Bucky.
— Faria tudo outra vez, se fosse para ficar ao seu lado e de Sam — respondeu com ternura, vendo Steve abrir os braços levemente, a convidando para um abraço. A mulher riu baixo e o abraçou brevemente. Deixaria para sentir saudades de Steve no dia seguinte, quando, de fato, fosse se despedir dele. Mas, naquele momento, a pontinha de tristeza já nascia nela.
— A gente não ia jantar juntos hoje? — Steve perguntou a soltando. Não queria que ela ficasse ainda mais triste e preocupada naquele dia. Já tinha motivos o suficiente, ele não seria mais um.
— Você está tentando me animar com comida? — perguntou o vendo sorrir em resposta — Continua, está funcionando.
— Alguém disse comida? — Shuri passava no corredor, ao lado de e Steve, carregando a troca de roupas que Bucky havia deixado no laboratório, e puxou a amiga consigo até o elevador — Todo mundo pro banho e em vinte minutos na sala de jantar — Shuri apontou para Steve, que sorria vendo ser puxada, incrédula — Sem atrasos, estou com fome e preciso beber.
***
acordou mais tarde do que gostaria. Talvez por estar cansada demais, talvez por ter ido dormir de madrugada mais um dia, ou pelos dois motivos, ela não sabia. Ela, Shuri, Steve e T'Challa jantaram juntos e ficaram até tarde conversando. Steve contou feliz sobre seu passado, T'Challa falou um pouco sobre a história de Wakanda e Shuri contou meia dúzia de histórias comprometedoras da adolescência de . Por algumas horas, mesmo que poucas, pareciam só quatro amigos normais, tendo uma quinta-feira à noite normal, comendo, bebendo, ouvindo música. Mas foi só Ayo informar que estava tudo pronto para a partida de Steve ao amanhecer que a realidade os atingiu como uma bomba. No final da noite, então, passaram a alinhar os últimos detalhes de como seria o dia seguinte. Steve indo embora de Wakanda atrás de Sam, T'Challa indo em busca de Nakia.
Perto das três horas da manhã, Steve e voltaram para seus respectivos quartos, se despediram brevemente e, em tese, foram dormir. Ao menos Steve foi. , contudo, se pegou encarando a troca de roupas de Bucky em cima da mesinha ao canto de seu quarto. Shuri havia deixado com ela, quando saíram do laboratório e foram tomar banho, antes da janta. pensou por algum tempo em como Bucky deveria estar se sentindo, qual seria a sensação de estar na criogenia. De certo não estava acordado e, portanto, não deveria estar realmente sentindo nada, mas deveria ser como dormir. Instintivamente, ela passou a mão pelo pescoço, pegando o colar que ele havia deixado com ela mais cedo. O nome dele gravado no metal, junto com o número de registro a fizeram suspirar. não tinha ideia de como Bucky deveria se sentir sendo quem era, tendo passado por tudo que passou.
Sem pensar direito no que estava fazendo, decidiu devolver as roupas dele em seu quarto. Podia, sim, esperar pelo dia seguinte, mas ela estava ansiosa. Como poderia dormir depois de um dia tão cheio? Como poderia dormir sabendo que no dia seguinte ele não estaria lá? A passos calmos e silenciosos, deixou seu quarto, atravessou parte do corredor e entrou no quarto de Bucky com discrição. A bagunça que ele havia feito no último momento de desespero, mais cedo, ainda estava lá, por todo lado. As poucas roupas jogadas ao chão, as dezenas de caderninhos, canetas. Os móveis estavam fora do lugar e era possível ver os cacos de vidro do espelho espalhados pelo chão do banheiro. Aquele era o mundo de Bucky, era o caos que ele havia deixado para trás e um pouco do que viveria nos próximos dez meses, até ele voltar. O caos que , uma vez mais em sua vida, daria um jeito ao amanhecer.
Mas de todas as coisas bagunçadas no quarto, a que mais chamou atenção de foi o colchão no chão. Diferente das outras coisas, ele não parecia ter parado ali, fora da cama, por acidente. Parecia ter sido propositalmente colocado, perto da janela, de modo que se pudesse olhar o céu. sorriu sozinha, uma imensa tristeza brotando dentro de si. Seu pai, Everett, já tinha sido um militar, um piloto da Força Aérea dos Estados Unidos. Ela tinha aprendido com ele a relação que militares tinham com camas. Tantos anos em treinamento, em campo, em combate, eram preparados e acostumados a dormir em qualquer lugar, de qualquer jeito. Dormir já era um luxo para eles, ter uma cama confortável, então, inimaginável. Os colchões de hoje em dia, como Everett comentava, eram confortáveis demais para um militar. Talvez Bucky sentisse o mesmo.
deu alguns passos, desviando de alguns móveis pelo caminho, e deixou a roupa de Bucky em cima do estrado da cama. Se ele estivesse ali, jamais a teria deixado entrar naquela zona, jamais a teria deixado ver tudo aquilo, daquele jeito. se sentou no colchão, no chão, recolhendo alguns dos cadernos de anotações de memórias dele, ao redor de si, e os empilhou ao lado, perto da parede. Embora estivesse curiosa, não se atreveria a abrir e a ler. Bucky não se sentiria bem com aquilo. O quarto dele, feito para abrigar hóspedes que visitavam o governo de Wakanda, era tão grande quanto o de . Havia mais de um ambiente dentro do cômodo, uma antessala, uma varanda, um banheiro espaçoso. A pintura mais escura combinava com as cortinas suntuosas e o veludo do carpete. Havia quadros com artes típicas do país, nitidamente fora do lugar, e o grande televisor moderno logo acima da lareira parecia nunca ter sido ligado.
Sentindo seus olhos pesarem com sono, desviou seu olhar para fora da janela por um momento. As luzes do centro da cidade misturando-se com as estrelas do céu, a movimentação calma de pessoas que estavam completamente alheias ao que acontecia ali dentro. A vida seguindo, como deveria seguir. se pegou pensando em como seria sua vida se fosse uma pessoa normal. Talvez nunca tivesse saído da França, talvez nunca teria conhecido seus pais, nem T'Challa e Shuri, nem Wakanda, não estaria vendo aquela vista que tanto amava. Em nenhuma hipótese de normalidade ela teria conhecido Bucky, não estaria ali naquele dia, naquela hora. Embargada pelo sono, deitou-se no colchão e seus pensamentos foram rapidamente interrompidos pelo cheiro quente do perfume dele emanando do travesseiro. fechou os olhos e se aconchegou, desejando em silêncio, em segredo, que Bucky estivesse ali, deitado, dormindo, com ela.
O relógio jogado no chão marcava onze e vinte e dois da manhã, a luz do sol já tomava conta de todo o quarto e sentiu suas costas doerem quando se sentou. Talvez dormir em um colchão no chão não tenha sido uma boa ideia. Depois de alguns segundos até entender que adormeceu no quarto de Bucky, ela se levantou e se espreguiçou, sem vontade alguma de fazer algo naquele dia. Queria só ir para seu quarto, tomar banho e, quem sabe, dormir mais um pouco. não demorou para deixar o quarto de Bucky e ir de volta para o seu, o silêncio absurdo do lugar a fazendo desejar que T'Challa e Steve ainda não tivessem saído sem falar com ela. Mas foi só abrir a porta do seu quarto, para seu coração parar de bater por um momento, como se absolutamente tudo ao seu redor tivesse desaparecido de uma única vez.
Sentindo seus olhos marejarem e sua respiração falhar, ela encostou a porta atrás de si e aproximou-se de sua cama, onde um vaso gigante de margaridas brancas, uma garrafa e um envelope estavam delicadamente colocados. fungou, pegou o envelope e o abriu em seguida, já sabendo o que tinha ali. Restava apenas saber se estava mesmo preparada para aquilo.
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Eu posso apostar que você deve estar lendo isso agora pensando no quão velho eu sou. Mas eu prefiro dizer que sou um homem de tradições e escrever cartas parece tradicional o suficiente para quem não aprendeu ainda, e talvez não aprenda nunca, a lidar com esse mundo novo.
Não queria me despedir de você, porque não é fácil deixar pessoas que amamos para trás, sobretudo na incerteza de saber se algum dia próximo vamos voltar a vê-las. Eu já perdi pessoas demais, você sabe, já tive que me despedir mais vezes do que gostaria, e não queria me despedir de você, porque eu não sabia como dizer adeus.
A verdade é que a vida não nos prepara para a chegada de ninguém e, muito menos, para as partidas. Não importa quanto tempo você viva, partir é sempre doloroso. Como se uma parte de quem sou estivesse ficando para trás, como se uma parte de você estivesse indo embora comigo. Só em escrever isso, já estou sentindo sua falta. Tive que viver cem anos para ter a sorte de encontrar você, como poderia dizer adeus?
Eu fui embora antes do sol nascer, você estava dormindo no quarto do Bucky.
Posso não entender muito sobre relacionamentos modernos, mas eu sei o que é o amor e sei o quanto esperar por ele é dolorido. Oitenta anos atrás, eu também fiquei devendo uma dança para uma garota. Eu sei o que isso significa e sei como promessas não cumpridas podem ser difíceis de carregar. Por isso, se eu puder dar um conselho, diria que não espere mais. Nós não temos tempo, , nenhum de nós, infelizmente não temos.
Dancem. Dancem por vocês e dancem por mim, que nunca tive a chance.
Estou feliz que tenham se encontrado, feliz de verdade, e vou embora hoje com a certeza de que, enquanto estiverem juntos, tudo ficará bem.
Nós vamos ficar bem, todos nós.
No vaso, há uma margarida para cada dia que passamos juntos, desde que nos reencontramos em Lagos. Margaridas são flores que significam afeto, bondade, paz, sensibilidade. Para mim, elas são como você. Eu sei que você gosta de flores e sei que nunca as deixará morrer, assim como não deixarei morrer os dias que passamos juntos. Obrigado por tudo.
A garrafa, para quando pudermos nos reencontrar. Mas, até lá, saiba que mesmo de longe nós somos a sua casa agora, somos também a sua família. E sempre que precisar de nós, , sempre que precisar de mim, você sabe onde me encontrar.
Vou dizer ao Sam que você sente falta dele.
Com saudades desde já, de seu amigo,
enxugou as lágrimas que escorriam pelo seu rosto, um misto de tristeza profunda, por Steve não ter se despedido, e felicidade, pela carta mais linda que já tinha recebido, tomando conta dela. Era como se seu coração estivesse sendo apertado, aquilo doía mais do que ela achou que iria doer. Steve tinha sido um amigo, um irmão. Alguém que lutou ao lado dela, a protegeu, a ajudou, confiou nela. Alguém que abriu sua vida para ela fazer parte, que se arriscou por ela. sentiria saudades dele, como estava sentindo de Sam desde que o deixou no aeroporto em Berlim. As palavras escritas de Steve latejando em sua mente, ele tinha razão. Talvez fosse melhor não se despedir. Era mais fácil, menos doloroso. deixou a carta de lado e virou o envelope, outra vez, vendo o celular de flip, igual ao que Steve mandou para Stark, cair sob sua cama. Junto com ele, um post-it dizendo que ela teria que mandar mensagem uma vez por semana, pelo menos, para não matar Sam de tédio na vida nômade. riu fraco e olhou o grande vaso de flores, se perguntando quanto tempo Steve demorou para contar os dias em que passou com ela por perto. Seu olhar, então, caiu perdido sob a garrafa de Vermute e ficou nela, por longos minutos.
Ela estava sozinha outra vez. Como se Steve, Sam e Bucky tivessem sido uma onda, ela estava agora passando pela ressaca. Depois de meses intensos, de meses acompanhada, de meses de sentimentos, de parceria, ela estava sozinha outra vez.
Sentada em sua cama, chorando como se pudesse tirar a tristeza de dentro de si, desejou, do fundo de seu coração, poder dividir aquela bebida com Steve outra vez.
— Qual horário?
— O dia inteiro — suspirou com tristeza.
— Agendado.
Pouco mais de uma hora depois de tentar acalmar Bucky e conversar sobre o que tinha acontecido com ele naquele dia, Steve e decidiram, finalmente, ceder a seu pedido desesperado e o levaram até um dos laboratórios médicos. havia pedido para A.R.I.A. preparar o lugar e reunir Shuri e a equipe médica de plantão e, enquanto os esperava terminar de alinhar os aparelhos, ela checava os cilindros de oxigênio no canto, concentrada. Embora soubesse que aquela era a decisão mais acertada que Bucky poderia tomar, ela se sentia mal por ele. não imaginava que seria tudo daquela forma, tão depressa, tão de repente. Aquele era um tratamento delicado, que exigiria muito preparo físico e emocional de Bucky. Ela não queria que fosse feito às pressas, não queria que ele se sentisse, uma vez mais, um experimento, um artefato científico. Ela estava pronta para colocá-lo na criogenia há anos, mas ela se sentia culpada por aquilo acontecer naquele dia, daquela forma. Tantos anos tendo paciência, esperando, porque cedeu à pressa de Bucky em descobrir tão rápido sobre si mesmo? Ela sabia que ele estava exausto, incerto, curioso com tantas informações, sabia que ele queria e precisava saber mais, como se estivesse viciado em si mesmo. Ela podia imaginar como ele se sentia, mas ela tinha que ter sido racional. Bucky precisava de ajuda, não precisava de mais desgastes e desesperos. E, desde a hora que o viu naquele estado, jogado no corredor, se sentia terrivelmente mal por ter contribuído para aquilo.
Do outro lado do grande laboratório, viu Shuri vestir seu jaleco enquanto dava algumas instruções aos enfermeiros sobre como ligar a câmara de criogenia. Já era tarde demais para se arrepender de qualquer coisa que tenha feito. Por mais que ela e Steve tivessem tentado conversar com Bucky e garantir que aquela fosse mesmo a escolha certa, a hora certa, ele estava decidido. Bucky queria ser congelado, queria começar logo o tratamento. Queria que a vida dele recomeçasse de uma vez por todas, ele tinha pressa. Nem nem Steve insistiram mais. Diante de tanto desespero, de tantas lágrimas e do suplício de Bucky, o que mais eles poderiam fazer senão ceder? Se era mesmo o que ele queria, então era o que ele teria. Só restava garantir que tudo fosse sair do jeito certo - e, por isso, conferia passo a passo da operação com cuidado e muita atenção. Nada mais podia dar errado naquele dia. Nada mais podia dar errado para ele.
Em silêncio, Bucky voltava para o laboratório, pensativo. Estava bem mais calmo, menos angustiado do que antes, sua respiração estável, sua mente estranhamente quieta depois de um dia tão turbulento. Um dos enfermeiros havia lhe entregado uma troca de roupas, para que se sentisse o mais confortável possível durante o procedimento, e ele foi se trocar. Usando uma calça de tecido maleável e uma regata branca, Bucky parou no meio do laboratório, perto da câmara de criogenia, e observou Shuri aproximar-se de . Elas conversavam tão baixo que não era possível ouvir e onde ele estava e, então, trocaram um meio abraço e um sorriso triste. havia pedido desculpas para Bucky meia dúzia de vezes e era nítido para ele que ela estava incerta sobre aquilo tudo. Por mais segurança e certeza de que o passasse, não era bem daquele jeito que ela havia planejado. Bucky sabia que ela estava se esforçando em ir com calma, com paciência, dar a ele o tempo que ele queria, que ele precisava. E Bucky acabou completamente com o plano dela, ele tinha consciência daquilo. Mas ele não queria mais esperar. Tantos anos em busca de si mesmo que, agora que teve a oportunidade de se reconhecer, já não fazia mais sentido esperar.
Rindo baixo de qualquer coisa que Shuri havia comentado com ela e preparando uma bolsa de soro, passou a ler algo em um papel em cima da bancada próxima a ela. Por um momento, a encarando de longe, Bucky pensou que sentiria falta daquilo. Do sorriso, do som da risada, dos olhos que se espremiam quando ela sorria, do cheiro adocicado, da preocupação que ela tinha com ele, do que florescia nele quando ela estava por perto. Bucky sentiria falta dela. Das conversas sinceras e tão profundas, das flores e da vida que ela fazia ele querer viver; daquela sensação de querer ficar por perto, de ter mais, de ser mais, de sentir a presença de na dele, de que o tempo nunca parecia suficiente. Bucky se perguntou se também se sentia daquela forma. Se ela sentiria falta dele, se ela o visitaria nesses meses e, mais do que isso, se ela estaria lá quando ele acordasse.
ainda não tinha notado a presença dele ali, estava de costas e levemente de lado, prestando toda sua atenção, agora, em uma tela à frente, como um painel de controle, e mexendo em alguns comandos. Ele não sabia exatamente o porquê, mas sentiu um certo medo subir sua espinha. E se não estivesse mais lá quando ele acordasse? E se ela decidisse ir com Steve atrás de Sam e não voltasse mais? E se eles nunca mais se encontrassem? E se ela… conhecesse alguém e se… apaixonasse? E se o tratamento não desse certo, se ele acordasse do mesmo jeito ou pior do que já era? E se ele se esquecesse dela, de tudo que viveram juntos até ali? Bucky sentiu seu coração acelerar levemente, o receio de ter feito a escolha errada se espalhando por sua mente como uma onda. Talvez não devesse ter tomado aquela decisão em um momento de desespero. Talvez devesse só ficar ali, com , e seguir em frente como dava.
Mas ele sabia que não podia. Ter a vida que ele gostaria de ter não era uma opção, e nunca seria, enquanto ele não fizesse algo. Bucky suspirou fundo vendo morder os lábios e franzir a testa, intrigada com algo que parecia dar errado na tela. estava muito longe de ser alguém que pudesse o querer da mesma forma que, cada dia mais, ele a queria. E como ela poderia? O que ele tinha a oferecer, afinal? Medo, violência, um passado assustador com dezenas de assassinatos e pesadelos constantes? Um homem de 100 anos, instável, que não cortava o cabelo há décadas, que mal sabia seu nome, sua história, que não conhecia nada sobre família, sobre o amor. O que ele tinha a oferecer? Bucky era a bomba que , definitivamente, não precisava carregar em sua vida. Ele era caos, como se tudo que encostasse pegasse fogo e ele não queria queimar . Ela não. Ela não merecia ele. Ao menos não do jeito que ele estava naquele momento, fragmentado, vulnerável.
Bucky tinha pensado muito sobre isso naqueles dias. Na verdade, ele tinha pensado muito sobre tudo naqueles dias. Exausto e despedaçado, uma parte dele, de sua mente, insistia em pensar em . Em quem ela era e nas coisas que ela havia feito por ele. Como se sua mente quisesse dar uma dose generosa de alívio e de paz, algo em que ele pudesse se agarrar para ter forças, um motivo para seguir em frente. Bucky não entendia direito o que estava acontecendo com ele e nem tinha certeza absoluta se aquela era uma evidência de que gostava dela mais do que Steve gostava. Não sabia se estava mesmo apaixonado ou se era só um porto-seguro. E ele não sabia se tudo aquilo que vinha dela, a delicadeza, a atenção, a preocupação, o carinho que ela demonstrava por ele era, na verdade, porque ela sentia o mesmo. Mas, só aquela possibilidade já era o suficiente para que Bucky sentisse uma ponta de esperança de que talvez, talvez, aquilo não fosse só coisa de sua cabeça.
— Cuidado, Sargento Barnes, ou a baba vai escorrer — Shuri brincou em um sussurro discreto, passando ao lado dele, em direção ao outro lado do laboratório. Bucky piscou algumas vezes, desviando seu olhar de até ela e sorrindo fraco, incrédulo.
Percebendo uma movimentação atrás de si, virou-se de frente para ele e sorriu com ternura, o olhando. Ela vestia um jaleco branco por cima do macacão que usava desde cedo e, para Bucky, ela estava linda. As doses de cansaço e preocupação não tiravam de a leveza, o charme e a intensidade, não tiravam dela a sensação de calmaria, de segurança, que Bucky sentia ao olhá-la. A vendo chegar mais perto, Bucky pensou que, talvez, aquele fosse mesmo o certo a ser feito, o primeiro passo. Ele tinha que fazer isso por si mesmo, mas também queria fazer por ela. Se quisesse ter uma chance real com , tinha que, primeiro, dar uma chance a si mesmo. Ele queria fazer do jeito certo, do jeito que ela merecia ter.
— O que eu faço… com isso? — Bucky perguntou baixo, assim que já estava próxima o suficiente para ouvir. Ela o viu chacoalhar as roupas que antes usava.
— Pode deixar aqui, depois levo para o seu quarto, se não se importar — Ela sorriu fraco, pegando a troca de roupa que ele lhe estendia e a colocando em uma bancada próxima.
— Sem problemas — Ela sorriu sem mostrar os dentes — Tem certeza de que não quer que eu arrume a bagunça que deixei lá?
— Você está prestes a ser congelado e sua preocupação é com a bagunça que deixou no quarto? — brincou, levantando uma sobrancelha. Bucky soltou uma risada nasal.
— Eu acho que sou o pior hóspede que Wakanda já teve — Ele negou com a cabeça, passando a língua pelos lábios. desviou seu olhar para o lado.
— É o melhor deles, na verdade — Ela quase sussurrou, envergonhada. Bucky parou de respirar por um segundo, a encarando — Mas um pouco bagunceiro.
— Espero que consiga melhorar isso também quando eu acordar — Bucky riu baixo, seus olhos se encontrando com os de outra vez.
— Isso parece fácil de resolver — ainda sorria, colocando as mãos nos bolsos do jaleco — Mas não se preocupe, Buck, vamos dar um jeito no seu quarto e recolher as suas coisas. Tudo ficará aqui, esperando por você.
— Você também? — Bucky olhou para o chão, ponderando por um instante se deveria mesmo dizer aquilo a ela — Você também vai ficar… esperando por mim? Vai... estar aqui quando… quando eu acordar?
Bucky queria que aquela pergunta tivesse soado o mais casual possível, mas o nervosismo estava nítido, sua voz trêmula, a respiração falha. Não queria que se sentisse pressionada a acompanhar o tratamento e ela não tinha obrigação alguma em esperar por ele ou estar lá quando ele acordasse. Mas ele queria que ela estivesse e queria ouvir dela, queria, torcia, para que a resposta fosse sim. Queria minar sua mente de todas as possibilidades que estava pensando, queria ter mais provas, ou não, de que não estava interpretando tudo errado.
, por sua vez, sorriu abertamente, seu coração batendo tão forte que jurava poder ouvir. Bucky estava mesmo preocupado com aquilo? Nem tinha ido e já queria voltar para vê-la outra vez? Aquilo era adorável. Era adorável como só ele conseguia ser. tinha certeza absoluta de que estaria lá quando ele acordasse, porque ela tinha certeza absoluta de que sentiria falta dele. Das conversas, das risadas, da sensação de ter alguém que a conhecia tão bem, que a entendia, que a permitia ser quem ela era, que a queria por perto. sentiria falta do calor dos abraços, do toque carinhoso, do cuidado que ele tinha com ela. Dele a chamando de boneca sem querer, dos olhos azuis cheios de expectativa a encarando. Bucky faria falta naqueles meses. Parte de já estava, inclusive, se sentindo sozinha desde a hora em que entraram naquele laboratório. Ele faria falta para ela. viu Bucky voltar seu olhar até ela, outra vez, um tanto quanto ansioso pela resposta.
— Está vendo ali? — perguntou, virando-se levemente e apontando para a tela que antes ela mexia. Bucky concordou, confuso — É a programação de um calendário binário, que foi integrado a A.R.I.A. Ela vai me avisar todos os dias quanto tempo falta para você sair da criogenia, para a gente… se ver de novo.
Como se tudo e todos ao seu redor tivessem desaparecido, como se ele só visse e ouvisse ela, Bucky olhou lentamente da tela até , que se voltava outra vez de frente para ele, suas bochechas levemente vermelhas de vergonha. tinha acabado de dizer que o queria ver de novo e ela estava mesmo contando os dias para aquilo. Bucky sentiu seus olhos marejarem. Quando poderia imaginar que viveria algo parecido? Quando poderia pensar que alguém o quisesse ver, o quisesse por perto? Quando sequer cogitou a possibilidade de alguém poder sentir saudades dele? Bucky se sentiu amado, como se alguém estivesse acarinhado sua alma. o estava acarinhando de novo, como vinha fazendo em cada detalhe, em cada gesto pequeno e atencioso desde quando o protegeu de T’Challa em Bucareste, sem nem o conhecer. Sem pensar duas vezes e empurrando de sua mente qualquer pensamento inseguro, ele puxou para um abraço. Ela, então, passou seus braços pela cintura dele e o apertou, fechando os olhos e deitando em seu peito.
Em meses, aquele seria o último contato. E eles dois sabiam disso.
— Eu vou estar onde você estiver, Buck — falou baixo depois de algum tempo, não querendo se soltar nunca mais dele. Bucky sorriu levemente, tentando guardar em sua mente cada detalhe daquele momento — É uma promessa.
Perto da entrada do laboratório, com as mãos nos bolsos da calça, Steve sorriu sozinho observando Bucky dar um beijo delicado na cabeça de . Como se a qualquer momento não fossem mais ter um ao outro, eles ficaram ali, abraçados por algum tempo, completamente alheios ao que acontecia ao redor. Minutos depois, Bucky se separou de com cuidado, descendo a mão pelo braço dela até segurar sua mão, o olhar carregado de lágrimas dele encontrando os olhos tristes dela. Mesmo de longe era possível perceber que nenhum dos dois queria realmente se separar. Steve pensou por um momento no quanto a vida tinha sido, e continuava a ser, injusta com seu amigo. Ele tinha perdido tudo e, depois de anos, logo na primeira vez em que ganhou alguém, já iria perder de novo.
— Vinte e dois de fevereiro — sussurrou, entrelaçando seus dedos nos dele.
— Vinte e dois de fevereiro — Bucky sorriu fraco, repetindo no mesmo tom.
e Bucky se encararam por mais um minuto, em silêncio, como se os dois quisessem guardar um ao outro em suas memórias. Eles sabiam que logo se veriam novamente, mas ambos tinham a sensação de incerteza. Para nenhum deles, nunca, a vida tinha sido linear, certa, previsível. E naquele momento, mais do que em qualquer outro, e Bucky desejaram que assim o fosse. Sem interferências, sem problemas, sem mais dramas. O plano tinha que dar certo, o tempo tinha que jogar a favor deles. Bucky puxou delicadamente a mão de para mais perto dele e deixou ali, na parte de cima, um beijo delicado, encostando a mão dela, em seguida, em seu rosto. passou seus dedos com cuidado pela barba dele, seus olhos nunca deixando os dele. Mas o momento, uma vez mais, não era propício para eles e logo um dos enfermeiros aproximou-se, chamando atenção dos dois.
— Com licença, doutora ? — e Bucky olharam para o homem, o sorriso educado de não escondendo a frustração — Sargento Barnes, precisamos tratar seus machucados da mão antes do procedimento começar, o senhor me acompanha, por gentileza?
Bucky voltou seu olhar para que, nessa altura, já tirava sua mão dele. Ela assentiu com a cabeça e sorriu segura, como se dissesse, em silêncio, que estava tudo bem. Visivelmente frustrado por ter que se separar dela, Bucky sorriu em resposta e, sem responder nada ao enfermeiro, o acompanhou até uma bancada mais ao canto do laboratório, onde se sentou. Sabia que ele estava só fazendo seu trabalho, mas tinha mesmo que ser naquele momento? Bucky ficou matutando a frustração enquanto esperava, seu olhar perdido em um canto qualquer do chão. o olhou uma última vez, soltou um suspiro e foi até Shuri, em um outro canto do laboratório, que fazia os últimos ajustes no programa que operaria a câmara de criogenia. O painel de monitoramento já tinha o contorno em anatomia do corpo de Bucky projetado e, olhando para ele, se perguntou se seria sempre daquele jeito, fora de contexto. Só queria ter um momento certo com Bucky, porque parecia que sempre estavam fora de contexto? Ela desviou seus pensamentos vendo Steve passar por ela, dando uma rápida olhada na câmara de criogenia, e aproximar-se de seu amigo.
— Tem certeza disso? — Steve perguntou já perto o suficiente de Bucky, que observava o enfermeiro terminar de limpar e enfaixar sua mão cortada.
Embora já soubesse da resposta de Buck, porque ele e já tinham perguntado aquilo dezenas de vezes antes de irem até o laboratório, Steve queria certificar-se uma última vez. Tão perto de tudo acontecer, Bucky tinha mesmo que ter certeza do que estava prestes a fazer e não era tarde demais para mudar de ideia. Nunca seria. Contudo, Bucky parecia certo de si. Estava, claro, um pouco ansioso, tentando afastar de sua mente qualquer resquício de memória que tinha da última vez que entrou na criogenia, mas estava seguro de sua decisão. Aquela era a única maneira de proteger as pessoas à sua volta, a única maneira de proteger a si mesmo. Quanto antes começasse o tratamento, antes poderia sair dele e, quem sabe, encontrar a paz que tanto queria.
— Eu não confio na minha mente — Bucky negou levemente com a cabeça, seu olhar subindo até Steve, em pé ao lado de onde ele estava sentado. Bucky deixou escapar um sorriso triste — Então, até descobrirem como tirar essa coisa da minha cabeça, acho que voltar a hibernar é o melhor... — Ele desviou seu olhar até , do outro lado do laboratório — ...para todo mundo.
Steve concordou com a cabeça, em silêncio. Aquela era uma escolha de Bucky, só dele e de ninguém mais. Não havia mais nada que ele, ou qualquer outra pessoa pudesse fazer senão apoiá-lo. Antes que Steve pudesse responder algo, aproximou-se deles segurando a bolsa de soro que antes tinha preparado.
— Preciso colocar isso em você agora e, quando você quiser ir, começamos — Ela olhou Bucky, que concordou com a cabeça e esticou o braço.
O enfermeiro já tinha terminado de enfaixar a mão dele e tomou o lugar dele, ao lado de onde Bucky estava sentado. Ela deixou a bolsa de soro de lado um segundo, pegando um algodão e o molhando com álcool, passando-o no braço do homem, com delicadeza, em seguida. A mente de Bucky viajou até o dia em que cuidou dos machucados dele em seu apartamento, em Berlim, e, sem querer, ele deixou um sorriso discreto sair. Ele e Steve acompanhavam os movimentos dela com os olhos, esperando pacientemente.
— Quanto tempo vai durar? — Steve perguntou curioso, vendo procurar uma veia de Bucky e colocar a agulha do soro nele, com agilidade, segurando-a até colar o adesivo que a fixaria ali.
— Com oito meses já conseguimos saber se o tratamento respondeu bem ou não. No pior dos casos, dez meses — Ela respondeu o vendo concordar com a cabeça — Está confortável assim?
— Sim, obrigado — Bucky concordou olhando do soro para ela.
— Como vai funcionar agora? — Steve perguntou outra vez. Bucky tinha falado para ele sobre o tratamento, mas não tinham tido tempo de conversar sobre os detalhes. virou-se para Steve, cruzando seus braços.
— No primeiro mês ele vai receber o soro de propranolol todos os dias, sempre no mesmo horário e vamos tentar tirar uma das palavras dele, por indução. Conforme os meses vão passando, vamos reduzindo a quantidade de dias do tratamento e também a quantidade de soro — explicou resumidamente, observando os dois homens a sua frente concordarem — Shuri vai monitorar a câmara vinte e quatro horas por dia, não há chance alguma de algo dar errado, não se preocupem.
— E qual palavra vão tentar tirar? — Bucky perguntou a olhando, não tinham definido isso ainda.
— Vagão de carga, se tiver tudo bem por você — respondeu serena, sorrindo leve — Assim podemos não só quebrar a sequência, mas diminuir o trauma do dia que tudo isso começou, de quando você caiu do trem.
Bucky concordou com a cabeça, vendo Steve fazer o mesmo. tinha se atentado até aquele detalhe. Estava maximizando a possibilidade de usar o tratamento e tentando trazer o melhor resultado possível para Bucky. Sem que nunca tivessem conversado sobre aquele fato, sobre aquele dia que os pesadelos de Bucky tanto insistiam em reviver, teve a delicadeza de entender como ele deveria se sentir. Se já a conhecia o suficiente, podia imaginar que ela estudou palavra por palavra e as interligou com todos os acontecimentos possíveis da vida dele, até descobrir qual delas seria a melhor a ser retirada, a ser esquecida.
— Podemos trocar por outra palavra também, você quem escolhe, na verdade — Na ausência de resposta, voltou a comentar meio sem graça.
— Não, tudo bem, desculpe. Eu só não sei como… como você pensou em tudo isso, em todos os detalhes. Obrigado, — Bucky comentou sincero.
— Você pode me agradecer quando sair daqui — Ela sorriu charmosa, a discreta ambiguidade nas palavras não passando despercebida por Bucky, que sorriu de volta.
— Vou me lembrar disso.
— Mas, até lá, hora de hibernar o lobo — A voz de Shuri surgiu de trás de Steve, chamando atenção dos três, que a encararam — Pronto, Sargento Barnes?
— Acho que sim.
Bucky deu uma rápida olhada ao redor do laboratório e respirou pesadamente, voltando a encarar e Steve. Os três trocaram olhares seguros e Bucky se levantou da bancada em que estava sentado, indo até perto da câmara de criogenia e parando ali, há alguns passos da mudança em sua vida começar, finalmente, a acontecer. Espalhados pelo laboratório, Shuri e os enfermeiros acompanharam em silêncio o movimento. Todos sabiam o que aquilo significava para e todos eles entendiam o peso daquela decisão para o novo hóspede. Tudo iria mudar dali em diante. Bucky deu uma olhada na câmara de criogenia e respirou fundo, virando-se de frente para Steve. Nunca tinha sido bom com despedidas e a verdade era que nunca tinha tido a chance de se despedir de alguém. Aquilo era novo e bastante doloroso. Bucky sabia que quando acordasse Steve estaria bem longe dali, em algum lugar escondido com Sam, fugindo dos governos, sendo um criminoso, um nômade. Bucky conhecia daquela vida. Sabia bem como era e não desejava para ninguém, muito menos para Steve. Queria poder fazer alguma coisa para ajudá-lo, assim como Steve estava fazendo por ele. Quem sabe, quando saísse da criogenia.
Steve olhou seu amigo o encarar, pensativo. Tinha certeza de que ele ficaria bem, estava seguro ali, mas foi inevitável ter a mesma sensação de quando Bucky foi para a guerra, de volta nos anos 1940. Despedir-se nunca foi uma tarefa fácil para Steve e não seria de novo naquele momento. Não sabia quando poderia reencontrar Bucky e parte dele só desejava ser jovem outra vez e viver seus dias ao lado do melhor amigo, sua única família. Steve soltou uma risada nasalada, vendo Bucky fazer o mesmo. Os dois sabiam exatamente o que o outro estava pensando, o que o outro estava sentindo. Torciam pelo melhor, esperavam se reencontrar em breve, mas, naquele momento, tinham que, uma vez mais, se deixar ir. Os dois homens se abraçaram brevemente, com força, até Steve se separar dele e dar dois tapinhas em seu ombro. Nada precisava ser dito, absolutamente nada.
Bucky então virou-se para , que assistia a tudo aquilo com o coração em suas mãos, e sorriu sem mostrar os dentes. Ela concordou com a cabeça, como se lhe desse confiança em seguir em frente e sorriu de volta. Em um movimento rápido e cuidadoso, Bucky tirou sua dogtag, o colar de identificação militar que usava, única lembrança que tinha de seus tempos como sargento, e o colocou no pescoço de . Ele não podia levar nada de metal para a criogenia e sabia que ela cuidaria do colar para ele. Na noite anterior, o deu uma flor para que não se esquecesse dela. Hoje, Bucky a dava o único objeto que tinha que representava parte de seu passado, de quem realmente era, para que ela não se esquecesse dele.
sorriu abertamente em resposta, segurando as duas chapinhas de metal penduradas em seu pescoço. Não estava esperando por aquilo e pareceu simbólico demais. As dogtags eram sempre duas e uma delas era retirada dos soldados quando eles eram feridos ou mortos em combate e enviadas aos seus familiares como prova da coragem, de bravura. Para aquilo soou como se Bucky estivesse deixando com ela um Bucky que já não iria mais voltar depois da criogenia. E ela poderia devolver a tag ao homem novo, que renasceria dali. Um sinal de confiança, como uma forma de Bucky a dizer que voltaria logo, que queria que ela o esperasse. Como se parte dele estivesse com ela agora, como se ele fosse dela. ficou imersa naquilo enquanto Bucky, finalmente, entrou na câmara de criogenia e Shuri o ajudou a se posicionar lá dentro, passando as travas de seguranças pelo corpo dele. Bucky deu uma última olhada em Steve, enquanto o tubo de acrílico subia do chão e o fechava na câmara, e, em seguida, olhou para .
— Vê se não dorme tempo demais, Sargento, você me deve uma dança — comentou baixo, aproximando-se da câmara de criogenia. Steve sorriu triste e abaixou seu olhar com aquele comentário. Sabia exatamente qual era a sensação.
— Já estou ansioso, boneca. Vou sonhar com isso — Bucky respondeu no mesmo tom, olhando em sua frente — Vou sonhar com você.
engoliu o choro, seu sorriso trêmulo. Se alguém perguntasse o que ela estava sentindo naquele momento, ela não saberia descrever. Como se seu coração estivesse quebrado, como se ela estivesse sendo abandonada, como se quisesse tirar ele dali, mas, ao mesmo tempo, como se quisesse que ele passasse pelo tratamento logo. colocou a mão dela sob o acrílico, vendo Bucky, no instante seguinte, de dentro, colocar a mão dele na mesma posição da dela. Bucky encostou sua cabeça e fechou os olhos, desejando de fato sonhar com , enquanto sentia o gás que o conduziria ao coma tomar conta da câmara em segundos, fazendo-o apagar completamente.
Pelos minutos que se seguiram, o silêncio pairou no laboratório enquanto e Steve encaravam Bucky congelado. Nenhum dos dois sabia exatamente como estavam se sentindo, mas não havia mais nada a ser feito, senão seguir em frente. sentiu uma lágrima solitária escorrer por seu rosto e logo a enxugou, olhando Steve, parado ao lado dela, cruzar os braços enquanto observava seu amigo dormir tranquilo.
— Acho que só nos resta esperar e ir descansar agora — Steve comentou baixo.
— Vai na frente, vou ficar para ver como ele vai reagir nas primeiras horas — respondeu baixo, desviando seus olhos de Steve até Bucky outra vez.
— Você sabe que não precisa fazer isso — Steve sorriu triste para a amiga — Sabe que não precisa ficar aqui, ele vai ficar bem, .
— Eu quero ficar com ele, Steve — admitiu.
— Você sabe que não quer ficar com ele desse jeito e ficar encarando não vai ajudar.
Steve era cirúrgico quando queria ser. abaixou seu olhar, brincando com as próprias mãos. Ele tinha razão, ela sabia que tinha. Não havia mais nada que pudesse fazer por ele naquele dia, tudo estava sendo operado e monitorado pela tecnologia mais avançada do mundo, não havia com o que se preocupar. Estava tudo certo, programado, operando bem. Contudo, talvez parte dela estivesse resistindo a deixá-lo porque simplesmente não queria o deixar sozinho. Por mais que confiasse de olhos fechados em todas as pessoas daquele país, ainda tinha certo receio que algo pudesse acontecer com ele. Mas, sendo racional, o que poderia acontecer? Ele estava seguro ali, tudo ficaria bem e ela teria que aceitar aquilo.
— Ele vai ficar bem, mas, agora, nós precisamos cuidar de nós mesmos — Steve comentou abraçando de lado e a virou sentido a porta do laboratório.
— Eu sei, é só que… — Ela suspirou, olhando para o chão do corredor à sua frente, enquanto passava um abraço pela cintura dele — Ele já passou tempo demais sozinho.
— Talvez essa seja a última vez — Steve concordou com a cabeça, sua voz triste.
— Você acredita mesmo nisso? — mordeu os lábios, apreensiva.
— Precisamos acreditar em algo para seguir em frente, não é? — Steve respondeu baixo, seu olhar voltando para o corredor a sua frente.
respirou fundo, concordando tão lentamente com a cabeça que Steve quase não percebeu. Tinham que se apegar em algo para seguir. Sempre foi assim com eles, a vida inteira se segurando em esperança, porque dessa vez seria diferente? pensou por um instante no que Sam diria se estivesse ali e aquilo a trouxe de volta à realidade.
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você amanhã? — Ela perguntou de repente, fazendo Steve parar de andar por um minuto e virar-se de frente para ela, a encarando.
— O combinado era se alguém fosse preso, os outros iriam ao resgate, lembra? — Steve comentou saudoso, referindo-se ao plano que ele, e Sam traçaram na cafeteria em Viena, assim que Zemo explodiu o prédio da ONU, antes de irem atrás de Bucky em Bucareste.
riu baixo, lembrando da cara de Sam quando ela comeu o bolo dele. Se soubesse que as coisas terminariam daquela forma, talvez tivesse se esforçado em fazer tudo diferente. Sam tinha que ter ido com eles para a Sibéria, ele não tinha sequer noção das coisas que tinham acontecido lá, da história de , do que Bucky estava passando. Sam estaria protegido agora e eles poderiam, todos, viver em segurança em Wakanda. Por que nada, nunca, poderia ser fácil daquela forma para eles?
— Sam faria isso por mim, ele iria me resgatar — respondeu baixo, olhando Steve sorrir triste para ela. Estava preocupado com o amigo e entendia, bem até demais, a escolha que estava fazendo naquele momento, entre Bucky e Sam.
— Sem nem pensar duas vezes. E você também iria, por ele, se tivesse a garantia de que poderia voltar para cá depois, em segurança.
— Acho que não estamos mais na fase de discutir garantias, Capitão — riu irônica, vendo Steve a acompanhar.
— Você ainda está em tempo. Bucky precisa de você e se ficar aqui, garantimos que ele e que você ficará bem. Isso é mais do que qualquer um de nós poderia esperar — Steve respondeu mais sério do que gostaria, seus olhos sem desviar dos de — Você tem uma casa, , tem uma família. Tem pessoas que precisam de você aqui, que dependem dos seus dons, da sua ciência. Sam não iria querer que você colocasse tudo isso em risco por ele. Eu vou estar lá, vou dar um jeito e vamos nos proteger depois.
— O que vai acontecer com vocês? — perguntou preocupada, sua mente divagando entre todas as piores situações possíveis.
— O que acontece com todos os nômades — Steve respondeu brincalhão, vendo a expressão dela se suavizar em um sorriso.
— Não sei se é um estilo de vida que combina muito com você, muito menos com o Sam — Ela respondeu no mesmo tom.
— Vamos descobrir — Steve riu fraco.
— E se vocês forem presos de novo? — perguntou outra vez, o sorriso desmanchando levemente.
— Então você nos resgata — Steve respondeu ainda sorridente — Esse sempre será o plano para nós três.
Nós três. sorriu sozinha com o comentário. Sem querer, sem nunca ter cogitado aquela possibilidade, ela tinha ganhado mais uma família, tinha ganhado mais proteção, mais cuidado, mais amor. Dos sentimentos mais confusos que poderia ter, a gratidão por estar em Lagos naquele dia, naquela hora, era, definitivamente, um deles. A sensação de pertencer a algo sempre foi importante para e aquilo significava muito para ela.
— Daria tudo para ver a cara do Sam sendo resgatado — brincou, ouvindo Steve rir — Mas já que não posso ir, há algo que poderia ajudar daqui?
— Se puder nos ajudar apagando o rastreio das autoridades, já vai ser ótimo — Steve comentou sincero. Estava realmente preocupado com aquela questão, passar totalmente despercebido era o maior dos problemas que iriam enfrentar. Não sabia por quanto tempo viveriam daquela forma, enquanto não fossem perdoados ou o Tratado de Sokovia não fosse anulado, aquele caos perduraria.
— Deixa isso comigo. Também vou mapeando e avisando vocês sobre os lugares mais seguros para vocês ficarem e posso tentar uma prisão domiciliar para Clint, quer dizer, ele tem filhos, ser nômade não é uma opção — comentou a ideia que acabara de ter, lembrando que Karl havia levantado aquela possibilidade.
— Scott também tem — Steve a completou, gostando da ideia. Aquilo seria bom. assentiu com a cabeça — Obrigado, , de verdade. Por tudo que fez por mim aqui, pela ajuda, por Bucky.
— Faria tudo outra vez, se fosse para ficar ao seu lado e de Sam — respondeu com ternura, vendo Steve abrir os braços levemente, a convidando para um abraço. A mulher riu baixo e o abraçou brevemente. Deixaria para sentir saudades de Steve no dia seguinte, quando, de fato, fosse se despedir dele. Mas, naquele momento, a pontinha de tristeza já nascia nela.
— A gente não ia jantar juntos hoje? — Steve perguntou a soltando. Não queria que ela ficasse ainda mais triste e preocupada naquele dia. Já tinha motivos o suficiente, ele não seria mais um.
— Você está tentando me animar com comida? — perguntou o vendo sorrir em resposta — Continua, está funcionando.
— Alguém disse comida? — Shuri passava no corredor, ao lado de e Steve, carregando a troca de roupas que Bucky havia deixado no laboratório, e puxou a amiga consigo até o elevador — Todo mundo pro banho e em vinte minutos na sala de jantar — Shuri apontou para Steve, que sorria vendo ser puxada, incrédula — Sem atrasos, estou com fome e preciso beber.
acordou mais tarde do que gostaria. Talvez por estar cansada demais, talvez por ter ido dormir de madrugada mais um dia, ou pelos dois motivos, ela não sabia. Ela, Shuri, Steve e T'Challa jantaram juntos e ficaram até tarde conversando. Steve contou feliz sobre seu passado, T'Challa falou um pouco sobre a história de Wakanda e Shuri contou meia dúzia de histórias comprometedoras da adolescência de . Por algumas horas, mesmo que poucas, pareciam só quatro amigos normais, tendo uma quinta-feira à noite normal, comendo, bebendo, ouvindo música. Mas foi só Ayo informar que estava tudo pronto para a partida de Steve ao amanhecer que a realidade os atingiu como uma bomba. No final da noite, então, passaram a alinhar os últimos detalhes de como seria o dia seguinte. Steve indo embora de Wakanda atrás de Sam, T'Challa indo em busca de Nakia.
Perto das três horas da manhã, Steve e voltaram para seus respectivos quartos, se despediram brevemente e, em tese, foram dormir. Ao menos Steve foi. , contudo, se pegou encarando a troca de roupas de Bucky em cima da mesinha ao canto de seu quarto. Shuri havia deixado com ela, quando saíram do laboratório e foram tomar banho, antes da janta. pensou por algum tempo em como Bucky deveria estar se sentindo, qual seria a sensação de estar na criogenia. De certo não estava acordado e, portanto, não deveria estar realmente sentindo nada, mas deveria ser como dormir. Instintivamente, ela passou a mão pelo pescoço, pegando o colar que ele havia deixado com ela mais cedo. O nome dele gravado no metal, junto com o número de registro a fizeram suspirar. não tinha ideia de como Bucky deveria se sentir sendo quem era, tendo passado por tudo que passou.
Sem pensar direito no que estava fazendo, decidiu devolver as roupas dele em seu quarto. Podia, sim, esperar pelo dia seguinte, mas ela estava ansiosa. Como poderia dormir depois de um dia tão cheio? Como poderia dormir sabendo que no dia seguinte ele não estaria lá? A passos calmos e silenciosos, deixou seu quarto, atravessou parte do corredor e entrou no quarto de Bucky com discrição. A bagunça que ele havia feito no último momento de desespero, mais cedo, ainda estava lá, por todo lado. As poucas roupas jogadas ao chão, as dezenas de caderninhos, canetas. Os móveis estavam fora do lugar e era possível ver os cacos de vidro do espelho espalhados pelo chão do banheiro. Aquele era o mundo de Bucky, era o caos que ele havia deixado para trás e um pouco do que viveria nos próximos dez meses, até ele voltar. O caos que , uma vez mais em sua vida, daria um jeito ao amanhecer.
Mas de todas as coisas bagunçadas no quarto, a que mais chamou atenção de foi o colchão no chão. Diferente das outras coisas, ele não parecia ter parado ali, fora da cama, por acidente. Parecia ter sido propositalmente colocado, perto da janela, de modo que se pudesse olhar o céu. sorriu sozinha, uma imensa tristeza brotando dentro de si. Seu pai, Everett, já tinha sido um militar, um piloto da Força Aérea dos Estados Unidos. Ela tinha aprendido com ele a relação que militares tinham com camas. Tantos anos em treinamento, em campo, em combate, eram preparados e acostumados a dormir em qualquer lugar, de qualquer jeito. Dormir já era um luxo para eles, ter uma cama confortável, então, inimaginável. Os colchões de hoje em dia, como Everett comentava, eram confortáveis demais para um militar. Talvez Bucky sentisse o mesmo.
deu alguns passos, desviando de alguns móveis pelo caminho, e deixou a roupa de Bucky em cima do estrado da cama. Se ele estivesse ali, jamais a teria deixado entrar naquela zona, jamais a teria deixado ver tudo aquilo, daquele jeito. se sentou no colchão, no chão, recolhendo alguns dos cadernos de anotações de memórias dele, ao redor de si, e os empilhou ao lado, perto da parede. Embora estivesse curiosa, não se atreveria a abrir e a ler. Bucky não se sentiria bem com aquilo. O quarto dele, feito para abrigar hóspedes que visitavam o governo de Wakanda, era tão grande quanto o de . Havia mais de um ambiente dentro do cômodo, uma antessala, uma varanda, um banheiro espaçoso. A pintura mais escura combinava com as cortinas suntuosas e o veludo do carpete. Havia quadros com artes típicas do país, nitidamente fora do lugar, e o grande televisor moderno logo acima da lareira parecia nunca ter sido ligado.
Sentindo seus olhos pesarem com sono, desviou seu olhar para fora da janela por um momento. As luzes do centro da cidade misturando-se com as estrelas do céu, a movimentação calma de pessoas que estavam completamente alheias ao que acontecia ali dentro. A vida seguindo, como deveria seguir. se pegou pensando em como seria sua vida se fosse uma pessoa normal. Talvez nunca tivesse saído da França, talvez nunca teria conhecido seus pais, nem T'Challa e Shuri, nem Wakanda, não estaria vendo aquela vista que tanto amava. Em nenhuma hipótese de normalidade ela teria conhecido Bucky, não estaria ali naquele dia, naquela hora. Embargada pelo sono, deitou-se no colchão e seus pensamentos foram rapidamente interrompidos pelo cheiro quente do perfume dele emanando do travesseiro. fechou os olhos e se aconchegou, desejando em silêncio, em segredo, que Bucky estivesse ali, deitado, dormindo, com ela.
O relógio jogado no chão marcava onze e vinte e dois da manhã, a luz do sol já tomava conta de todo o quarto e sentiu suas costas doerem quando se sentou. Talvez dormir em um colchão no chão não tenha sido uma boa ideia. Depois de alguns segundos até entender que adormeceu no quarto de Bucky, ela se levantou e se espreguiçou, sem vontade alguma de fazer algo naquele dia. Queria só ir para seu quarto, tomar banho e, quem sabe, dormir mais um pouco. não demorou para deixar o quarto de Bucky e ir de volta para o seu, o silêncio absurdo do lugar a fazendo desejar que T'Challa e Steve ainda não tivessem saído sem falar com ela. Mas foi só abrir a porta do seu quarto, para seu coração parar de bater por um momento, como se absolutamente tudo ao seu redor tivesse desaparecido de uma única vez.
Sentindo seus olhos marejarem e sua respiração falhar, ela encostou a porta atrás de si e aproximou-se de sua cama, onde um vaso gigante de margaridas brancas, uma garrafa e um envelope estavam delicadamente colocados. fungou, pegou o envelope e o abriu em seguida, já sabendo o que tinha ali. Restava apenas saber se estava mesmo preparada para aquilo.
Eu posso apostar que você deve estar lendo isso agora pensando no quão velho eu sou. Mas eu prefiro dizer que sou um homem de tradições e escrever cartas parece tradicional o suficiente para quem não aprendeu ainda, e talvez não aprenda nunca, a lidar com esse mundo novo.
Não queria me despedir de você, porque não é fácil deixar pessoas que amamos para trás, sobretudo na incerteza de saber se algum dia próximo vamos voltar a vê-las. Eu já perdi pessoas demais, você sabe, já tive que me despedir mais vezes do que gostaria, e não queria me despedir de você, porque eu não sabia como dizer adeus.
A verdade é que a vida não nos prepara para a chegada de ninguém e, muito menos, para as partidas. Não importa quanto tempo você viva, partir é sempre doloroso. Como se uma parte de quem sou estivesse ficando para trás, como se uma parte de você estivesse indo embora comigo. Só em escrever isso, já estou sentindo sua falta. Tive que viver cem anos para ter a sorte de encontrar você, como poderia dizer adeus?
Eu fui embora antes do sol nascer, você estava dormindo no quarto do Bucky.
Posso não entender muito sobre relacionamentos modernos, mas eu sei o que é o amor e sei o quanto esperar por ele é dolorido. Oitenta anos atrás, eu também fiquei devendo uma dança para uma garota. Eu sei o que isso significa e sei como promessas não cumpridas podem ser difíceis de carregar. Por isso, se eu puder dar um conselho, diria que não espere mais. Nós não temos tempo, , nenhum de nós, infelizmente não temos.
Dancem. Dancem por vocês e dancem por mim, que nunca tive a chance.
Estou feliz que tenham se encontrado, feliz de verdade, e vou embora hoje com a certeza de que, enquanto estiverem juntos, tudo ficará bem.
Nós vamos ficar bem, todos nós.
No vaso, há uma margarida para cada dia que passamos juntos, desde que nos reencontramos em Lagos. Margaridas são flores que significam afeto, bondade, paz, sensibilidade. Para mim, elas são como você. Eu sei que você gosta de flores e sei que nunca as deixará morrer, assim como não deixarei morrer os dias que passamos juntos. Obrigado por tudo.
A garrafa, para quando pudermos nos reencontrar. Mas, até lá, saiba que mesmo de longe nós somos a sua casa agora, somos também a sua família. E sempre que precisar de nós, , sempre que precisar de mim, você sabe onde me encontrar.
Vou dizer ao Sam que você sente falta dele.
Com saudades desde já, de seu amigo,
Steve G. Rogers
enxugou as lágrimas que escorriam pelo seu rosto, um misto de tristeza profunda, por Steve não ter se despedido, e felicidade, pela carta mais linda que já tinha recebido, tomando conta dela. Era como se seu coração estivesse sendo apertado, aquilo doía mais do que ela achou que iria doer. Steve tinha sido um amigo, um irmão. Alguém que lutou ao lado dela, a protegeu, a ajudou, confiou nela. Alguém que abriu sua vida para ela fazer parte, que se arriscou por ela. sentiria saudades dele, como estava sentindo de Sam desde que o deixou no aeroporto em Berlim. As palavras escritas de Steve latejando em sua mente, ele tinha razão. Talvez fosse melhor não se despedir. Era mais fácil, menos doloroso. deixou a carta de lado e virou o envelope, outra vez, vendo o celular de flip, igual ao que Steve mandou para Stark, cair sob sua cama. Junto com ele, um post-it dizendo que ela teria que mandar mensagem uma vez por semana, pelo menos, para não matar Sam de tédio na vida nômade. riu fraco e olhou o grande vaso de flores, se perguntando quanto tempo Steve demorou para contar os dias em que passou com ela por perto. Seu olhar, então, caiu perdido sob a garrafa de Vermute e ficou nela, por longos minutos.
Ela estava sozinha outra vez. Como se Steve, Sam e Bucky tivessem sido uma onda, ela estava agora passando pela ressaca. Depois de meses intensos, de meses acompanhada, de meses de sentimentos, de parceria, ela estava sozinha outra vez.
Sentada em sua cama, chorando como se pudesse tirar a tristeza de dentro de si, desejou, do fundo de seu coração, poder dividir aquela bebida com Steve outra vez.
- Capítulo 19 -
Wakanda
Quatro meses depois
Quatro meses depois
— Como você acha que Aset me encontrou? — A pequena perguntou curiosa, olhando o homem ao seu lado sorrir.
— Ela sempre esteve de olho em você, ela conhece as pessoas por seus corações — Ele respondeu prontamente, como se aquilo fosse óbvio. fez um biquinho.
— E por que você acha que ela me escolheu?
— Porque ela sabia que a natureza só poderia ser entregue a quem soubesse como florescer — T’Chaka olhou a garotinha caminhando de mãos dadas com ele, mais calma do que minutos antes, quando quase envenenou o ar sem querer — E um dia você será tão grande como Aset é.
— Meu papai disse que eu tenho flores no lugar do coração, você acha que é por isso que Aset estava de olho em mim? — o olhou séria, realmente acreditava no que Everett havia dito. O homem riu com ternura.
— Eu tenho certeza que sim.
sorriu sozinha, afastando seus pensamentos da memória que se formou em sua mente, enquanto olhava parte da parede de seu quarto. A voz de T’Chaka parecia tão viva dentro dela, como se as palavras tivessem sido ditas ontem, como se as histórias ainda fossem vívidas. sentia falta de conversar com ele, de ouvir seus conselhos. Podia imaginar a reação dele ao vê-la voltar para Wakanda, as horas que passaria com ela quando soubesse das coisas que descobriu sobre si mesma. Podia imaginar o que ele diria quando ela o questionasse sobre o soro que a bloqueava, o que ele diria sobre Bucky. Onde quer que T’Chaka estivesse agora, sabia que estava olhando por ela, que tinha orgulho de quem tinha se tornado e que continuaria acreditando nela. Ela esperava ser tão grande quanto Aset, tão grande quanto o próprio T’Chaka foi.
T’Chaka gostava de dizer que ela foi escolhida por Aset, a deusa protetora da natureza e da magia. Acreditava que representava a natureza, a sabedoria científica e uma conexão com o passado de seu país, a França, como Aset representava. Ele acreditava nela. Contava histórias sobre como a deusa tinha feito chegar até Wakanda e, em seu quarto, pediu que fizessem o conto de origem de , que ele mesmo inventou, em hieróglifos, na parede que agora ela encarava. T’Chaka foi a primeira pessoa que trouxe respostas às perguntas de , a primeira pessoa que se importou em respondê-las, em aliviar a angústia de não entender quem ela era. E ela devia muito a ele por isso. Ele sempre teve respostas. Na tradição, na religião, na cultura. Ele sempre deu a o que ela precisava. A casa, a ciência, a proteção, a origem.
Ela cresceu ouvindo as histórias de T’Chaka. De mitos inventados antes de dormir até detalhes da história real de Wakanda, o Rei sempre tinha tempo para contá-las, para ensiná-la. E sempre que precisava se acalmar, sempre que seus poderes saíam do controle, ele dizia que era um desafio de Aset, para saber se ela era mesmo digna de carregar a natureza. sentiu seus olhos marejarem e suspirou. T’Chaka nunca teve obrigações ou responsabilidades com ela e, mesmo assim, ele a acolheu, a protegeu, a tomou como se fosse filha dele. deveria tê-lo protegido também. Ela não podia ter deixado ele ir. Não daquela forma. Não sem ter se desculpado pela forma que conversou com ele pela última vez, quando saiu de Lagos.
Como um pai e como um protetor, T’Chaka havia dado a a chance de ela ser quem era hoje. Havia feito investimentos nela, havia mostrado o poder que tinha e dado instrumentos para que pudesse entendê-lo, controlá-lo, fortalecê-lo. Deu a ela esperança e uma oportunidade de sobreviver. sabia que, se não fosse pelo esforço dele, ela certamente seria uma pessoa diferente. Talvez incrédula, amargurada e infeliz. Talvez se perguntasse todo o tempo o por que era diferente e talvez tivesse se revoltado com aquilo. Mas não. aprendeu sobre si mesma, a se cuidar, a se amar, a se valorizar. Aprendeu a valorizar as pessoas de sua vida a cada instante que tinha dela, porque aprendeu com T’Chaka que elas não seriam para sempre, como ele mesmo não foi. Mentalmente, agradeceu T’Challa por ter entregado Zemo a CIA. Não sabia o que seria capaz de fazer a ele, se tivesse a oportunidade.
T’Chaka, como muitas coisas na vida de , havia terminado também. De repente, brutalmente, outra parte dela tinha sido morta, já era tarde demais agora. não tinha tido tempo de se despedir dele e aquela era a primeira vez, desde sua morte, que estava realmente sentindo o que aconteceu. Como se o luto não tivesse caído sobre si mesma, como se ele tivesse ido viajar, mas não tivesse voltado, só tinha se dado conta do que aconteceu naquele dia, na coroação de T’Challa, quando, duas horas antes de sair para a cerimônia, ele bateu em sua porta aos prantos. Chorando a morte de seu pai com uma fraqueza que nunca tinha visto antes, T’Challa se culpava pelo o que tinha acontecido. Dizia que não deveria ser coroado, não estava pronto, seu pai deveria estar ali. não conseguia responder nada racional, parte dela sabia que ele tinha razão. Eles dois haviam falhado com T’Chaka, nenhum deles o salvou.
Mas não havia mais nada que pudessem fazer por ele, senão continuar seguindo a tradição, manter seu legado e proteger Wakanda, custasse o que fosse. sentia que tinha deixado uma dívida com T’Chaka e vingaria sua morte pela sabedoria de proteger os seus, que tinham ficado, ainda, em vida. Ela conversou com T’Challa, relembrou alguns momentos que passou junto com ele e seu pai, coisas que havia aprendido com ele. Os dias estavam sendo cruéis e solitários demais, corridos demais, não tinham tido tempo de conversar sobre aquilo até aquele momento. T’Challa não tinha confiança se faria o que era certo fazer, não estava seguro de si mesmo. Mas ele sabia de suas responsabilidades e conhecia suas obrigações. Ele saiu do quarto de , naquele dia, para ser o rei. Como um homem, T’Chaka tinha sido íntegro, sábio, receptivo e muito acolhedor. Como um rei, um líder de um povo, tinha sido leal, disciplinado, fiel ao seu país e à sua cultura. T’Challa certamente não seria diferente.
Os pensamentos de foram cortados outra vez pelo alto som dos tambores de madeira tomando seu quarto. desviou sua atenção dos hieróglifos em sua parede até a enorme tela atrás de si, vendo as pessoas descerem de suas embarcações e se posicionarem nas pedras das cataratas. Ela, então, sorriu sozinha, dando alguns passos mais perto da tela. As pessoas confiavam em T’Challa, torciam por ele. Tudo seguia a tradição em detalhes. A música animada que cantavam inundava todo o ambiente e, de seu quarto, aguardava a chegada triunfal de T’Challa ao local da cerimônia, sentindo a emoção tomar conta de si. nunca teve a oportunidade de participar de uma coroação, era a primeira vez. A beleza do lugar, as músicas e as danças, a expectativa que se armava, o clima festivo, tudo estava perfeito. Ela estava encantada.
O conselho das tribos não autorizou a participação presencial de , por conta da fitocinese. Como a cerimônia pressupunha um combate entre T’Challa e qualquer outro candidato ao trono, usando a erva-coração e em espaço de natureza aberta, podia alterar o curso da cerimônia e acabar favorecendo um dos lados. Por segurança à tradição, então, os conselheiros vetaram a participação dela. Embora tenha ficado chateada, entendia o motivo e, assim como em outras situações que viveu no país, não iria se impor frente aos costumes. Ela os respeitava e tinha consciência de que estavam, sempre, pensando no que era melhor para Wakanda. T’Challa teve a oportunidade de conversar com ela mais cedo e ele sabia que ela estava lá, torcendo por ele e orgulhosa, e era isso que, no final das contas, importava. Ainda assim, para que ela não ficasse de fora do que aconteceria na cerimônia, Shuri programou um drone para acompanhar o evento e transmiti-lo em tempo real para .
Do palácio, assistiu a toda preparação até a chegada das pessoas e, agora, observava T’Challa caminhar até o centro da cachoeira, onde o evento, finalmente, começaria. Como mandava a tradição, todas as pessoas naquele dia deveriam ficar ao lado de sua respectiva tribo, vestindo roupas cerimoniais típicas e que remetessem suas origens. Como não pertencia originalmente a nenhuma tribo, desde criança, em cerimônias reais, ela vestia roupas que demonstravam outra parte de suas origens: a natureza. Assim, empolgado como todas as vezes em que tinha que participar de eventos da realeza de Wakanda, Karl havia mandado um vestido em duas peças do estilista Zuhair Murad. A primeira peça, de baixo, era um body em lingerie fina, a parte de cima bege e a de baixo preta, como um hot panties. Por cima dele, caindo com leveza e elegância, um vestido longo feito em tule transparente e preto, para simbolizar o luto ao antigo rei. No tule, contudo, havia flores majoritariamente roxas, representando a erva-coração, bordadas, que desciam do colo a barra do vestido, sinalizando a fitocinese e o florescimento de uma hora era. O vestido tinha mangas compridas no mesmo tecido e caía tão bem em quanto Karl havia imaginado.
Nos pés, uma sandália preta de tiras finas e salto alto tinha sido enviada junto com o vestido, mas preferiu colocar uma rasteirinha preta qualquer. Já que ficaria em casa e o vestido tamparia, não via necessidade de usar um salto alto. E, enfim, para completar, ela usava uma tiara fina, de vibranium dourado, com pequenas flores feitas do mesmo metal cravejadas. A Rainha Ramonda a havia dado de presente algumas horas antes da cerimônia, justamente para que ela a usasse no dia. Com os cabelos soltos e uma maquiagem leve, Shuri pintou bolinhas pequenas em roxo no contorno do olho direito de , para situá-la mais próxima à tradição wakandana.
Na tela, observou Nakia dançando e sorriu abertamente. T’Challa e Okoye haviam conseguido resgatá-la e a convenceram de ficar no país até a coroação, pelo menos. tinha ficado feliz em ter a amiga de volta, depois de tanto tempo longe, e tinha ganhado a aposta que fez com T’Challa - ele tinha fraquejado perto dela, Okoye voltou contando. Ali, em Wakanda, a sensação era de que tudo estava voltando ao conforto inicial, tudo estava caminhando bem pela primeira vez em meses, depois da morte de T’Chaka.
— Eu, Zuri, filho de Badu, os apresento o príncipe T’Challa, o Pantera Negra — Zuri falou alto e emocionado, o drone posicionando-se de modo que pudesse ter uma visão do todo.
Todas as pessoas presentes celebraram T’Challa com gritos de apoio e, assim que ele fez a reverência tradicional, parado em pé, dentro da cachoeira e de frente para aquelas pessoas, todos, incluindo de seu quarto, fizeram o sinal de Wakanda para sempre. se segurou para não soltar um gritinho animado, podia imaginar o quanto T’Challa estava se sentindo nervoso com aquilo. Sem camisa e segurando uma lança, T’Challa parecia concentrado e um tanto quanto apreensivo. Era o momento dele, algo que ele esteve se preparando por tantos anos.
— O príncipe terá agora a força do Pantera Negra removida dele — Dando sequência ao ritual, Zuri aproximou-se de T’Challa com uma cumbuca e, assim que T’Challa ajoelhou-se em sua frente, deu-lhe o líquido da erva-coração para beber.
T’Challa bebeu o quanto aguentou, a dor causada pelo veneno da erva-coração tomando conta de si. sabia como ela funcionava, a dor quase insuportável que causava. Pelas imagens, podia ver as veias do corpo dele saltar, enquanto ele ofegava de dor, cambaleando para trás, ainda ajoelhado. Como se seu corpo estivesse lutando contra o poder da erva-coração, todos esperavam os efeitos momentâneos passar, incentivando T’Challa com o barulho de tambores e fazendo movimentos com os ombros, enquanto cruzavam seus braços em frente ao peito. T’Challa gemeu de dor por mais algum tempo, seus olhos vermelhos irritados pelo veneno da planta. Ele, então, respirou fundo e levantou-se lentamente, sem pressa, aproximando-se outra vez de Zuri.
— Louvados sejam os ancestrais — Zuri disse alto, em xhosa, e todas as pessoas, no mesmo instante, ficaram em silêncio — Vitória, no ritual de combate, vem por rendição ou morte.
— Morte? — murmurou sozinha, preocupada — Santa Bast!
— Se alguma tribo desejar indicar um guerreiro eu tenho uma oferta — Zuri continuou, gesticulando para as pessoas ao seu redor — Um caminho para o trono.
Uma parte dos presentes soltou um grito alto, como se confirmassem a informação, e o guerreiro da tribo mercante deu um passo à frente. sentiu seu coração bater ligeiramente mais forte, em ansiedade. Por mais corajosa que fosse, não queria estar no lugar de T’Challa naquele momento. Todas as tribos tinham guerreiros e guerreiras fortes, bons de luta e preparados para aquele confronto. Qualquer um deles, a qualquer momento, tinha o direito de desafiá-lo pelo trono. O silêncio durou só alguns segundos até cada líder, de cada tribo, puxar a palavra para si, depois de soltarem seus gritos de pertença, dizendo respectivamente, que não iriam desafiar hoje. A tribo Mercante, a tribo da Fronteira, a tribo do Rio e a tribo Mineradora. Nenhum deles iria desafiar T’Challa. A beleza da negação do desafio indicando a confiança, a satisfação e a lealdade ao legado de T’Chaka. sentiu-se arrepiar.
— Existe alguém de sangue real para tentar desafiá-lo pelo trono? — Zuri perguntou uma última vez, todos os olhos voltando-se para Shuri por um momento.
O que ninguém esperava era que Shuri, na verdade, fosse levantar a mão e a cara de T’Challa diante daquilo foi impagável. Como se houvessem combinado, observou a expressão de Okoye e Nakia travarem em espanto, enquanto a rainha Ramonda virava-se incrédula para sua filha. Shuri iria mesmo desafiar o trono? Certamente iria perder para T’Challa, nunca tinha sido boa na luta corpo-a-corpo, nem tinha sequer interesse em ter aprendido. Okoye até tentou trazer ela para os treinamentos que fazia com , desde criança, mas Shuri sempre dava um jeito de se esquivar Como poderia vencer T’Challa naquilo?
— Esse traje é muito desconfortável — Shuri resmungou olhando de relance paras as Dora Milaje atrás de si — Será que não dá para a gente resumir logo e voltar para casa?
não conseguiu segurar a risada e negou com a cabeça, cruzando seus braços. Shuri estava mesmo fazendo piada naquele momento, na frente dos conselheiros, no meio da cerimônia? Constrangida pela situação, a rainha Ramonda deu um beliscão nela, a fazendo reclamar de dor, enquanto outras pessoas abafavam a risada. certamente daria um jeito de recuperar aquela imagem mais tarde para usar, como Shuri sempre dizia, "para fins científicos" contra ela.
Contudo, o momento descontraído não durou mais do que alguns segundos antes do barulho de uma nova tribo se aproximando chamar atenção de todos. murchou o sorriso e sentiu sua respiração parar por um momento. Sabia bem o que aquilo significava, poderia imaginar o que viria a seguir. Parecia que era proposital, estavam chegando exatamente na hora do desafio. Aquela era, justamente, a única preocupação de T’Challa em relação a coroação e estava tudo prestes a acontecer, exatamente do jeito que ele temia. Por um momento, já projetando mentalmente o tamanho do problema que viria a seguir, desejou estar lá, presencialmente, para, de fato, favorecer T'Challa de alguma forma. Havia fortes chances de não terminar bem e aquilo foi confirmado assim que os Jabari surgiram à vista de todos. Raivosos, intolerantes, os Jabari estavam há décadas sem participar de eventos reais, não encontravam espaço e não estavam dispostos a dialogar com as outras tribos. Mas seu líder, aparentemente, tinha sede ao pote. E, dessa vez, não deixaria passar a oportunidade.
— M’Baku, o que você quer aqui? — Zuri perguntou sério, assim que o homem parou frente a frente com T’Challa e tirou a máscara que usava. Os dois trocaram um olhar tenso.
— O desafio é hoje — Ele respondeu com obviedade e virou-se de frente para as pessoas na pedra, sem grandes cerimônias — Nós observamos e nós ouvimos das montanhas. Nós observamos com desgosto enquanto sua tecnologia avançada demais é supervisionada por uma criança, que zomba da tradição.
Sua voz transmitia raiva e ele caminhava em direção a rainha Ramonda até apontar com sua lança para Shuri, dando um passo ainda mais perto dela. Prontamente, as Dora Milaje que a cercavam, colocaram-se em formação, protegendo Shuri em um segundo, prontas para atacá-lo se fosse preciso. De seu quarto, chegou a dar alguns passos mais próximos à tela, sua expressão séria, as mãos caindo em punhos ao lado de seu corpo. Shuri estava claramente nervosa, era possível ver, sua respiração estava acelerada e seu olhar preocupado. Estava com medo de M’Baku e tão surpresa por vê-lo ali, dizendo aqueles absurdos, quanto todas as outras pessoas presentes. E como se já não fosse o suficiente, ele continuou esbravejando:
— E onde está a estrangeira? — M’Baku gritou raivoso, olhando ao redor — A aberração que sequer nasceu em nosso país, mas que vocês confiam a erva-coração, que confiam segredos de Estado, que permitem viver aqui dentro, usufruir do nosso vibranium como se fosse uma de nós.
apertou suas mãos com força sentindo a raiva crescer dentro de si. Sabia que M’Baku nunca tinha aceitado a presença dela no país, foi contra desde o começo. Os conselheiros das outras tribos não pareceram amigáveis com a ideia de ter uma criança estrangeira em seu território, muito menos sendo ela perigosa. Contudo, T’Chaka viu em a prosperidade de Wakanda, sua proteção e a manutenção de sua vida. E ele sabia que aquele era o lugar dela desde quando ela pisou lá pela primeira vez, e viu a natureza a receber com alegria. T’Chaka convenceu os conselheiros, mas demorou anos para convencer M’Baku. Desde pequena, então, passou a ser protegida dele como era do mundo exterior. Mas, nos últimos anos, contudo, essa relação parecia ter mudado.
Os Jabari começaram a ter problemas naturais com sua reserva de alimentos e seu povo começou a adoecer. Desesperado, M’Baku recorreu a T’Chaka e teve dele a proposta de um acordo: ele não interferiria em assuntos relacionados a e, em troca, ela ajudaria a gerar alimentos para a tribo da montanha. M’Baku e aceitaram em respeito a T'Chaka e ao povo, que não merecia sofrer pela fome por um cinismo. Eles nunca tinham tido uma relação amigável, mas, igualmente, nunca tinham sido violentos com ela daquela forma. Ela era a aberração estrangeira que mantinha o povo dele vivo e ele tinha que, no mínimo, respeitá-la. Ele não tinha direito de dizer aquelas coisas. Não tinha direito de a humilhar daquela forma sem que ela sequer estivesse lá para se defender. Covarde. olhava para a tela com raiva, ouvindo M’Baku dizer que T’Challa não havia mantido seu pai, o rei verdadeiro, a salvo. Ele estava passando de todos os limites aceitáveis e, pela tradição, ninguém ali estava fazendo nada.
O sangue de parecia ferver em sua cabeça assim que, no instante seguinte, ela ouviu T'Challa aceitar o desafio. Não podia imaginar o que aconteceria se M’Baku ganhasse. Ele não pouparia a vida de T’Challa no confronto e, certamente, não pensaria duas vezes em expulsar do país. E bastou aquele pensamento para o desespero, de repente, crescer dentro dela. Se não estivesse mais lá, o que aconteceria com Bucky? O que M’Baku faria com Bucky? Ela tinha que ter um plano, tinha que pensar no que fazer. Não era um fato dado, mas era uma hipótese, havia chances reais de M'Baku vencer o confronto. E, se isso acontecesse, tudo mudaria outra vez. Ela poderia simplesmente ir embora e deixar Bucky para trás? Bucky demoraria, pelo menos, dois dias para acordar quando descongelado, o que ela faria? O tratamento teria que ser interrompido e para onde eles iriam?
Confusa com os próprios pensamentos, focou sua atenção na tela à frente, vendo os dois candidatos a rei vestirem suas máscaras de confronto. T'Challa parecia mais calmo do que o momento pedia, totalmente diferente de como estaria se estivesse no lugar dele. Ela provavelmente não teria deixado M’Baku sequer terminar de insultar Shuri e simplesmente ignoraria todos os costumes. M’Baku e T’Challa convocaram, respectivamente, seus guerreiros e guerreiras para guardarem a luta e, sem demorar mais do que alguns minutos, Zuri anunciou que o confronto poderia começar. Embora estivessem todos tensos assistindo àquilo, seguiram os protocolos como mandavam as regras: rufando os tambores, sem intervir em nada do que aconteceria dali em diante. Rendição ou morte.
O confronto não durou mais do que vinte minutos, mas para pareceram horas. Não sabia se de ódio por M’Baku ou de desespero em ver T’Challa ser ferido e quase perder o desafio, ela sentia sua cabeça latejar de dor. Estava preocupada por T’Challa, mas também por ela, por Bucky. Em Wakanda estavam seguros, protegidos, não tinham para onde ir. Não tinham. T’Challa tinha que vencer, não poderia haver outra opção, porque não havia para ela e Bucky. passou todo o tempo angustiada, em pé, tão perto da tela que assistia que podia sentir seus olhos arderem. E ela só se sentiu realmente aliviada, deixando seu corpo cair sentado para trás no sofá de seu quarto, quando ouviu Zuri, finalmente, apresentar T’Challa como o novo rei de Wakanda.
encostou a cabeça no encosto do sofá, para trás, encarando a parede dos hieróglifos, de ponta cabeça, atrás de si. Estava realmente preocupada com Bucky e realmente queria que ele ficasse bem, que as coisas começassem a, finalmente, dar certo em sua vida. Não podia imaginar como seria ter que interromper tudo às pressas, tirar ele dali, colocá-lo em risco outra vez. sabia que tinha passado tempo demais buscando e estudando o soldado invernal, sabia que parte de sua preocupação com ele era racional, vinha do fato de ela saber sua história, seu passado. Contudo, desde que ele foi para a criogenia, algo pareceu diferente, a preocupação parecia mais emocional. A todo tempo se pegava pensando nele, no que tinham vivido, no que tinham conversado. Se pegava lembrando do calor, do abraço, do cheio, do toque. desejava poder ver logo os olhos azuis que apareciam nos pensamentos dela e sonhava com a promessa feita. Ela contava os dias para que ele saísse de lá e se ela soubesse que 22 de fevereiro nunca iria chegar, talvez, tivesse se preocupado um pouco menos.
Carregando uma taça de champagne que pegou na cozinha, sorriu para algumas pessoas que encontrou no caminho, se afastando da recepção de T’Challa. Assim que o desafio da coroa aconteceu, T’Challa foi para o santuário da erva-coração, onde pode receber novamente os poderes da Pantera e ter um momento espiritual com a ancestralidade. Passado o ritual, os líderes de cada tribo e pessoas próximas ao novo rei se juntaram no palácio para um almoço de recepção. T’Challa começaria a ter compromissos oficiais do governo e, a partir de então, teria uma agenda de costumes para cumprir. Um deles, por exemplo, era a caminhada pelas tribos no dia da coroação. ficou com Shuri e Nakia durante o almoço, comentaram sobre o confronto, comeram, dançaram, beberam mais do que o evento permitia. Próximo às 16 horas, T’Challa e Nakia deixaram a recepção para a caminhada e decidiu que seria uma boa hora para ver os resultados de Bucky naquele dia.
Quatro meses haviam se passado desde que ele entrou na criogenia e não houve um só dia em que não tivesse acompanhado, pessoalmente, o tratamento dele. Confiava em toda a equipe médica que tinham e sabia que estavam super qualificados para tratá-lo, mas ela simplesmente não conseguia. Tinha vontade de estar por perto dele, tinha medo de perder algum detalhe, de algo não sair como esperado, de acontecer qualquer coisa. Ela havia prometido estar onde ele estivesse. E ela tinha que cumprir, mesmo se ele não soubesse, nunca, daquilo. Naquele dia, especial e excepcionalmente, ela não pode acompanhar o tratamento em função da coroação. Mas isso não queria dizer que ela, em momento algum do dia, não iria até lá para vê-lo. E para quem ela iria mentir? Não era mais novidade para ninguém que ela sentia saudades - talvez algumas coisas mais.
T’Challa esteve ocupado demais com os preparativos da coroação que foi postergada duas vezes em função de condições climáticas. Parecia que quanto mais ansioso ele ficava, mais se estendiam os prazos para o evento acontecer. Aquilo tudo já era para ter acontecido duas semanas depois da saída de Steve do país, e da entrada de Bucky na criogenia, mas repentinas chuvas fora de época tinham estragado os preparativos e, com isso, toda a cerimônia. não aceitava como algumas pessoas ainda não acreditavam no aquecimento global e aquele era só mais um exemplo de como ela tinha razão. A sorte de T’Challa foi ter Nakia por perto. Organizada e conhecedora das tradições, ela o ajudou no que foi preciso em todos esses meses até as condições ideias aparecerem. Por um lado, contudo, aquela situação estava favorecendo T’Challa, que pode passar mais tempo perto de sua ex do que estava planejando. Nakia ficaria em Wakanda até a coroação e chegou a desconfiar que, todo aquele atraso em fazer a cerimônia, em certo grau, não era bem culpa da natureza.
Todos os dias, exatamente às seis da manhã, T’Challa saía para correr com e, três vezes por semana, treinavam junto com Okoye. não sabia porque tinha que treinar, tendo em vista que ela não lutaria pela coroa, mas T’Challa insistia para que ela estivesse junto. Ele sabia que os dias estavam sendo solitários demais para ela. Sem os pais, sem Steve, sem Bucky, com Shuri ocupada em seus projetos, com T’Challa ocupado com os eventos. Por mais que soubesse que lidava bem com aquela solidão, porque havia se acostumado com ela, ainda achava que não a iria fazer bem. estava passando por um momento um tanto quanto caótico em sua vida, precisava saber que não estava sozinha naquilo tudo, que estava protegida e segura ali.
Pensando exatamente a mesma coisa, Shuri decidiu acompanhar o tratamento de Bucky com desde o primeiro momento. Fascinada pela possibilidade de “consertar uma pessoa”, como ela mesma dizia, Shuri participava todos os dias da calibração mental dele e revia com , uma vez por semana, todos os resultados que tinham alcançado até ali. Estava claro para ela que estava fazendo um trabalho brilhante e alcançando muito mais do que os resultados esperados: Bucky respondia rápido, estava já com números concluídos que só esperava ver no final do oitavo mês. Contudo, igualmente claro estava o fato de não crescer ali só a ciência, mas também os sentimentos de por ele. Ela fazia tudo com carinho, com atenção, ela dava importância à detalhes que não daria normalmente, celebrava as pequenas conquistas dele no tratamento como se fossem dela própria. Shuri tinha certeza absoluta que estava apaixonada pelo lobo branco e não passava um dia sequer sem a cutucar por isso. E se Shuri sabia, então o resto de Wakanda também sabia.
Nesses meses, ainda, Shuri liderou o projeto do novo braço de vibranium de Bucky, cuja prótese de teste já estava pronta para uso. Ela esgotou todas as possibilidades de precisar de reparações ou do corpo de Bucky a recusar, a pedido de , para que, tão logo Bucky acordasse, já pudesse colocar a prótese nova nele. Quanto antes fosse possível fazer com que Bucky pudesse voltar o mais perto de ter uma vida normal, melhor seria. E estava, etapa por etapa, resolvendo aquilo. Diferente do antigo, o braço novo seria em duas partes de encaixe imantado. Por isso, quando Bucky estivesse bem, teria que passar por uma cirurgia para remoção total do que restou da prótese antiga e, em seu lugar, no ombro, fazer a colocação da base do braço novo. Assim, enfim, seria só encaixá-lo depois. Contudo, Bucky teria que ficar algum tempo com a prótese de teste antes de poder, finalmente, usar a oficial. As duas eram visualmente parecidas, mas a prótese de teste era um pouco mais leve e mapearia todas as ligações nervosas de Bucky, replicando-as para a prótese final. e Shuri precisavam entender, ainda, como seu corpo reagiria ao vibranium, antes de fixar alguns quilos dele em Bucky.
De todo modo, ele estava respondendo bem ao tratamento. O primeiro mês, contudo, foi um tanto quanto conturbado. As primeiras tentativas forçaram demais a atividade cerebral dele e tiveram que parar por alguns dias antes de retornarem, com outra estratégia. Falar as palavras em sequência fazia a mente de Bucky forçar seu corpo a sair do coma induzido e, com isso, todos os níveis de segurança do tratamento eram alterados. Não podiam correr o risco de ativar o soldado invernal. Se Bucky saísse do coma, se ele conseguisse sair livremente da criogenia, todo o tratamento seria inviabilizado. trocou a dose do soro que o estavam induzindo ao trauma e decidiu tentar a sequência de palavras de trás para frente. Três semanas depois e, tentando a sequência correta, a mente dele já não respondia agressivamente às palavras. Passaram, então, para a etapa de exclusão do “vagão de carga”.
entrou no laboratório médico, que mais tinha sido sua casa naqueles últimos meses, e cumprimentou o enfermeiro de plantão, que passava por ela, sentido a saída. Carregando a taça de champagne e a parte de cima de seu vestido, o tule, que tinha tirado no meio do caminho porque a pinicava, ela suspirou assim que passou pela câmara de criogenia, dando uma rápida olhada em Bucky. Nada nele havia mudado, exceto pelo fato de que sua barba estava cheia. De resto, Bucky continuava do mesmo jeito: lindo, gostoso e, infelizmente, desacordado. riu sozinha dos pensamentos e seguiu até o outro lado do laboratório, vendo uma tela que informava o índice de progresso do dia, ao lado dos exames médicos que haviam feito nele mais cedo, enquanto deixava o tule de seu vestido em cima de uma bancada qualquer. Tudo parecia correr bem com ele, embora tivesse tido uma ligeira alteração cardíaca durante a noite. voltou seu olhar até Bucky e sorriu. Talvez ele tivesse sonhado. Inevitavelmente, a voz dele em sua mente dizendo que sonharia com ela fez tomar um pequeno gole em seu champagne e o engolir de uma vez.
— Queria que você me olhasse assim também, não vou mentir — A voz de Sam cortou os pensamentos de , fazendo-a virar-se de costas, vendo o holograma que se abria.
— Eu falo sério quando digo que vou pedir pra A.R.I.A. te bloquear — Ela respondeu sorrindo abertamente, vendo o holograma de Sam dar um passo mais próximo dela, tão sorridente quanto.
Sam notou que ela usava um body, como se fosse um maiô, preto e bege, e uma rasteirinha no pé. Ele reparou nas bolinhas roxas pintadas ao lado dos olhos e no batom vinho, nas ondas do cabelo caindo da tiara que brilhava em sua cabeça, no fino ramo de flor tatuado na parte interna de seu braço, nas cicatrizes espalhadas pelo seu corpo. era… . E para quem a conhecia, isso bastava. Ela, por sua vez, reparou que os cabelos dele estavam maiores do que na semana passada, quando se falaram pela última vez, e a barba grande. Sam não parecia combinar com aquele estilo, mas estava se adaptando relativamente bem. Ele usava uma blusa de moletom da Nike e calças de sarja preta, que pareciam meio apertadas para ele. cruzou os braços e levantou as sobrancelhas.
— Essa calça é do meu pai?
— Vai ter festa na piscina ou o que? — Ele rebateu no mesmo tom que ela e riu em seguida, assim que a ouviu soltar uma gargalhada.
— T’Challa acabou de ser coroado, mais respeito com a cultura — o olhou risonha.
— E eu sou um fugitivo agora, mais respeito com as minhas vestimentas — Sam falou sério, apontando para si mesmo e observando-a negar com a cabeça, sorridente — Você na festa real e eu dormindo na sua cama de quando era criança. Inacreditável como as coisas são.
— Cada um tem o que merece — Ela sorriu de lado.
— No seu caso, não é ele — Sam apontou Bucky com o queixo, cruzando os braços. Era incrível como ele tinha a capacidade de mudar de assunto.
— Sam… — o repreendeu, desviando seu olhar para o chão, seu sorriso murchando.
— Você sabe quem é ele, . Eu não gosto disso, do jeito que olha para ele. É perigoso para você.
— Não vai ser mais quando ele acordar — Ela suspirou pesadamente — E eu sei me cuidar.
Steve havia contado à Sam exatamente tudo que tinha acontecido no tempo em que ele passou fora. Contou sobre o que aconteceu na Sibéria, sobre a história de , sobre o tratamento de Bucky. Reservou apenas as informações sobre Wakanda, a pedido de T’Challa. O país ainda era uma incógnita para o mundo e, mesmo confiando plenamente em Sam, Steve havia feito uma promessa. Talvez fosse contar algo a ele e isso viria no tempo certo, ela saberia dosar a informação, tomaria cuidado, já estava acostumada a lidar com aquilo. Sam ficou chateado por , pelo que descobriu e por ela ter ficado, no final das contas, sozinha, tendo que lidar com tudo que estava acontecendo sem ajuda de algum deles. Preocupado, Sam deu um jeito de encontrar um canal de comunicação mais próximo do que mensagens SMS por um telefone de flip, ideia inicial de Steve, e por sorte conseguiu um antigo comunicador por criptografia que encontrou na garagem da antiga casa de . Com ele, com cuidado, em sigilo, poderiam se falar, se ver. E era o que vinham fazendo.
Sam consertou o comunicador e abriu o canal exclusivamente com o número de . A.R.I.A. ajudava bloqueando qualquer tipo de rastreio ou intercepção que pudesse acontecer e eles não se falavam mais do que meia hora, uma vez por semana. Não podia ter margem para erros, não mais. Ninguém ali estava brincando, não teriam como se ajudar caso algo acontecesse. Duas semanas atrás, , Steve, Sam e Wanda foram listados, ao lado de Bucky, como criminosos de guerra. Eram procurados do Estado e havia recompensas altas em troca de suas cabeças. Estavam sendo procurados, principalmente, por graves violações ao Tratado de Sokovia. Tinham passado por fronteiras sem autorização, tinham ferido agentes da força-tarefa, ajudado outro criminoso grave, Bucky, a fugir e a se esconder; tinham fugido da prisão na Alemanha, roubado um jato, ocultado informações de segurança pública quando foram para a Sibéria. Tinham roubado seus pertences de volta, incitado os crimes que Zemo havia cometido e, ainda assim, estavam desaparecidos.
Para além de tudo isso, Wanda ainda teria que responder pelo o que aconteceu em Lagos, uma vez que não assinou o Tratado; Steve estava sendo acusado pela articulação de resgate de Bucky e, Sam, por envolver outras pessoas nos crimes, no caso, Clint e Scott. Mas de tudo aquilo, o mais grave aconteceu poucos dias depois que o processo contra eles foi aberto. Zemo havia vazado informações de , que ele encontrou na Sibéria, para as agências de segurança, em troca de uma redução mínima de sua pena. Informações que Karl e Everett passaram anos embaralhando, escondendo, apagando. As agências não sabiam sobre a história dela, mas sabiam, agora, sobre as coisas que ela havia feito e aquilo pareceu o suficiente. estava sendo acusada por dezenas de assassinatos de antigos membros da Hidra, por invasão em propriedades particulares, por roubo de material biológico em laboratórios clandestinos e por articulação contra o governo. Sem qualquer chance de conseguir justificar tudo aquilo, embora houvesse boas explicações, T’Challa achou melhor que ela não se pronunciasse. Enquanto estivesse em Wakanda, ninguém chegaria até ela e eles esperariam até o momento certo de lidar com aquilo.
Mas uma peça nova no tabuleiro foi inesperada e propositalmente movida. A força-tarefa havia aberto inquérito sobre Sharon e descobriu sobre o envolvimento dela no caso. Imagens dela desviando o escudo de Steve, as asas de Sam e a tornozeleira de foram resgatadas, assim como arquivos que comprovavam a atuação dela confundindo o rastreio da força-tarefa em Berlim. Sharon foi, igualmente, considerada criminosa e, em troca de sua expulsão do país, o governo pediu a confirmação das informações que tinha de . Sozinha e pressionada entre ser presa ou ter a chance de sumir e refazer sua vida, Sharon contou ao governo o que eles queriam ouvir. Confirmou a atuação de , por anos, atrás de membros da Hidra, falou detalhes sobre a fitocinese, sobre o roubo dos materiais biológicos, deu o endereço do apartamento dela em Berlim. Mas ela não disse nada sobre os pais de sua amiga e não disse nada sobre Wakanda. Sharon havia sumido do mapa desde então. Sem contato, sem notícias, tinha perdido mais uma amiga que, no final das contas, a enforcou a para salvar a si mesma.
Steve desistiu de fazer contato com Sharon depois disso. Entendia a mágoa que ela podia ter deles, de os ter ajudado e ter ficado sozinha, mas não se podia mais confiar nela. Ela havia traído na primeira oportunidade que teve, não era mais uma aliada, nunca mais seria. ficou desolada quando Karl a contou e, por dias, não sabia o que deveria sentir. Tudo estava tão caótico nos últimos tempos que ela não sabia mais como deveria reagir a perda de alguém. Sharon tinha feito uma escolha. Não tinha buscado ajuda, não tinha pensado em outras alternativas. Ela escolheu. Não havia o que pudesse fazer agora, senão entrar no jogo. era a criminosa, escondendo um criminoso, com amigos criminosos. Essa era a nova realidade. Tinha que se preocupar em garantir que seus pais ficassem seguros, que ninguém descobrisse a localização de Steve e Sam, que não fossem atrás de Bucky. Havia muito mais em jogo do que a traição desesperada de Sharon.
Mas aquilo consumiu ela. Consumiu como a morte de T’Chaka e se pegava pensando, a todo instante, no porque Zemo tinha feito aquilo. Everett teve a oportunidade de o interrogar meia dúzia de vezes em Berlim, mas tudo que ouviu do Barão foi que foi só uma parte de um movimento maior, de um motivo maior. O mundo não precisava de mais pessoas como ela, ou como os Vingadores, ou super-soldados, e ele estava apenas fazendo o que achava ser o certo: dando ao mundo o equilíbrio de poder que ele merecia. Desequilibrado ou estrategista, sempre concluía que não se importava mais com as justificativas dele. Só queria ter a chance de vê-lo em sua frente outra vez. Absolutamente nada daquilo estaria acontecendo, daquela forma, se não fosse por ele.
Todas aquelas informações eram vazadas por Karl e Everett, uma vez por semana, em sigilo. De Wakanda, Shuri ajudava a apagar qualquer que fosse o contato que tinha com eles, tudo minuciosamente articulado. Mensagens de celular, áudios, e-mails, encontros por holograma, tudo era totalmente apagado, como se nunca tivesse existido. Karl e Everett foram convocados a uma audiência, pela superintendência de informações de segurança da CIA, em que tiveram que responder exaustivamente dezenas de perguntas sobre eles mesmos e sobre . Não era novidade para a CIA que eles a tinham adotado, mas a história era que não viam desde quando enviaram à ela o convite para aparecer em Viena. Tudo que era meticulosamente pensado para caso desse errado, sempre foi a melhor opção de estratégia. havia recebido o convite, o ignorou; Karl e Everett foram ao evento de assinatura sem ela e, desde então, não tinham mais nenhum registro público de encontro com . Para a CIA, eles eram pais abandonados. Outras vítimas da própria filha, que escolheu Steve Rogers e Sam Wilson à sua própria família.
De todo modo, o fato era que Sam havia passado quase uma noite inteira conversando com , assim que soube de sua história. Queria estar perto dela e queria que ela soubesse que ele estava preocupado, que sentia muito, que estaria sempre presente. contou a ele tudo que sentia em relação aquela história e Sam, sendo quem era, ouviu com paciência, deu bons conselhos e fez algumas piadas. A cada semana que passava, mesmo de longe, mesmo naquela situação caótica, e Sam sabiam que tinham um ao outro. Estavam se aproximando, se abrindo e não demorou muito para o tema James Barnes viesse à tona. ainda estava confusa com seus sentimentos por ele, de fato estava, mas tudo parecia se organizar dentro de si, dia a dia, reflexão a reflexão. Cada vez que conversava com Steve sobre ele ou com Shuri, se sentia mais confortável com a ideia de assumir para si mesma que gostava dele, que queria ele. Mas isso preocupava Sam.
Não que não quisesse vê-la feliz ou sentisse ciúmes de ter sua amiga com alguém. Ele não gostava de daquela forma, não daquele jeito. Mas ele queria que ela tivesse segurança, paz. Queria que tivesse alguém que fosse bom, íntegro, justo e honesto como ela, que a desse amor como ela dava à quem amava, que fosse carinhoso. Alguém que trouxesse calma aos dias turbulentos de e a alegrasse, como ela alegrava o mundo a sua volta. E essa pessoa não era Bucky, nunca seria. Mesmo com todas as esperanças de Steve e de que tudo seria diferente para ele quando saísse da criogenia, Sam ainda tinha suas ressalvas. Talvez tivessem que ir com menos sede ao pote, talvez fosse melhor esperar e ver o que aconteceria, antes de entregar seu coração para ele.
— Eu sei que sabe se cuidar, só quero ter certeza de que nós estamos fazendo a coisa certa — Sam disse um pouco mais sério, seus olhos acompanhando beber o último gole do champanhe.
— Nós? — Ela perguntou e o encarou curiosa — Somos um trisal, agora?
— Depende, se formos eu, você e você outra vez, eu topo — Ele sorriu charmoso, rindo fraco em seguida ao ouvir sua amiga rir.
— Sempre soube que era apaixonado por mim. Está até dormindo na minha cama porque não aguenta de saudades.
— É o Steve que chora vendo suas fotos de criança. Mas falando sério, o que eu quero dizer é que você sabe que tudo em que você se mete, acaba sobrando pra mim no final — Sam apontou para ela, falsamente emburrado — Pelo menos tem sido assim desde que nos conhecemos.
— Isso não é verdade — apontou a taça que segurava para ele e a deixou sob uma mesa ao canto.
— Qual é, , eu estou usando a calça do seu pai — Sam rebateu sério de volta. soltou uma gargalhada, mas antes que pudesse responder qualquer coisa mal-educada, a pulseira kimoyo, de bolinhas de vibranium, vibrou e ela virou o pulso para cima, vendo a imagem de seu pai abrir.
— Falando em pai — comentou prestando atenção na imagem — Oi pai.
— Oi meu amor, ual, você fica deslumbrante em um Zuhair Murad, não vou me cansar de dizer isso nunca — Karl comentou impressionado, vendo o sorriso de abrir-se e ouvindo alguém concordar baixo. Ele, então, virou-se levemente, notando o holograma de Sam aberto ali perto — Oi Sam.
— Karl — Sam respondeu prontamente, cruzando os braços.
— Você está usando a minha calça? — Karl perguntou intrigado, encarando sua calça em Sam. Até que não tinha ficado mal nele.
— Agora eu estou constrangido — Sam falou acenando com a cabeça. A risada abafada de Steve pode ser ouvida por trás dele.
— Aconteceu alguma coisa, pai? — voltou sua atenção até Karl, que virou-se novamente para ela.
— Everett conseguiu rastrear Klaue, vai tentar comprar uma peça de vibranium que ele roubou de um museu em Londres. Ele vai estar em Busan amanhã à noite, achei que seria útil para vocês — Karl falou rápido e objetivo, não teria muito tempo para entrar em detalhes, os enviaria depois.
— Preciso avisar T’Challa — comentou apreensiva, pressionado os lábios.
— E você nem pense em se envolver nisso, não saia daí. Sua foto está rodando pela Ásia, estão pagando 180 milhões de dólares pela sua localização, tem gente em Madripoor de olho em você — Karl alertou sério, vendo sua filha fechar a cara.
— Madripoor? — Sam perguntou sério, curioso. Se estavam pagando por , possivelmente também estavam pagando por ele e por Steve.
— Um lugar que você não vai querer conhecer — Karl respondeu negando com a cabeça. concordou brevemente.
— Você já esteve lá? — Sam perguntou outra vez, olhando .
— Atrás dele — respondeu simplesmente, apontando com a cabeça para Bucky.
— E não vai voltar, fique onde está — Karl reforçou, encarando diretamente , que concordou com a cabeça. Esperava não voltar para lá nunca mais, na verdade — Preciso ir, estou na base, não quero comprometer nossa segurança. Se cuide, meu amor, te amo.
— Obrigada, pai, também te amo — respondeu prontamente, vendo seu pai virar-se para Sam e acenar.
— Até mais, Sam. E vê se para de usar minhas roupas.
— O que eu posso fazer se elas ficam bem em mim? — Sam brincou vendo Karl concordar ligeiramente com a cabeça e desligar o canal de comunicação em seguida — Você tem para quem puxar.
— Falando nisso, consegui localizar sua irmã — comentou séria, o tom de voz mudando em um estalo — Vou pedir para A.R.I.A. tentar enviar uma mensagem segura para ela, só não prometo conseguir, é arriscado para você e para Sarah.
Em uma das conversas que teve com , naquelas semanas, Sam contou à ela sobre sua família. Deixou saber de sua infância, de seus pais, de seu passado, como ela havia o deixado saber da dela. Detalhe por detalhes, das alegrias as dificuldades, conheceu Sam como poucas pessoas conheciam. Ele tentava ao máximo manter sua família em segredo, tinha medo que algo acontecesse com eles desde que se juntou a Steve. As famílias sempre foram os pontos vulneráveis para pessoas como eles e ele não queria, em hipótese alguma, envolver a sua nisso. E estava se saindo bem naquela missão, não fosse pelo fato de não poder ter notícia alguma deles. Diferente de , que tinha recursos e conhecimentos tecnológicos, não conseguiria se comunicar com sua irmã por qualquer meio senão os convencionais. Triste e preocupado por não poder dar notícias à ela desde quando foi preso, Sam deixou saber onde ela vivia e aceitou a oferta de de, pelo menos, tentar localizá-la.
— É suficiente, só preciso saber se ela está bem e dizer que estou — Sam respondeu preocupado, um tom de alívio em sua voz escapando. tinha dado o jeito dela e, internamente, ele torcia para que ela conseguisse também enviar a mensagem. Precisava saber de sua família e, embora não transparecesse, aquilo o estava angustiando.
— Você está bem mesmo, Sam? — perguntou carinhosa, dando um passo mais perto dele. Sabia que não era fácil viver daquele jeito, imaginava a tensão de esperar que, a qualquer segundo, tudo fosse mudar outra vez.
— Já estive em situações piores, acredite — Sam sorriu, colocando as mãos nos bolsos da calça — Um dia de cada vez, como prometemos.
— Um dia de cada vez — repetiu baixo.
— Eu não sei como te agradecer por isso, pela Sarah, de verdade — Ele comentou assentindo com a cabeça e sorrindo leve, sincero.
— É o mínimo que posso fazer por vocês — sorriu com tristeza, olhando-o. Os dois se encararam por alguns segundos, até Sam respirar fundo e dizer:
— Acho que você tem um traficante para encontrar.
— Incrível como estou sempre no meio dos vilões agora — bufou, negando com a cabeça.
— Tanto que está apaixonada por um criminoso — Sam brincou irônico, cruzando os braços — Aquele tipo de amor que não é racional, é físico, você sabe.
— Britney Spears, Sam? VOCÊ ESTÁ RECITANDO BRITNEY SPEARS? — provocou de volta, ignorando a tentativa de cutucão dele — O que aconteceu com o Marvin Gaye?
— Depois dessa? Teve ter se revirado no túmulo — Sam comentou tentando segurar a risada, mas não aguentou assim que ouviu gargalhar — Achei que tivesse se acostumado com os criminosos.
— Me acostumei a tomar vinho francês no meu apartamento, enquanto você passa vergonha — comentou casualmente, vendo Sam fechar a cara.
— Tchau, , até semana que vem. Aliás, se eu não te ligar, é porque morri de desgosto por essa amizade— Ele disse emburrado, ignorando o comentário dela de propósito. riu.
— Mande um abraço para Steve e Wanda — deu alguns passos para o lado, acenando levemente para Sam, que a imitou.
— E ? — Sam chamou antes de desligar, vendo-a virar-se outra vez, de lado para ele — Você não merecia saber, mas achei que não tinha como você ficar mais bonita… até hoje — Sam comentou galanteador, fazendo sorrir de lado. Ele sempre tinha elogios para fazer, sempre gentil com ela.
— Sinto sua falta, passarinho — estendeu sua mão até ele, o sorriso entristecendo em seu rosto.
— Eu também sinto a sua, fada — Ele estendeu a mão de volta como se, pelo holograma, eles dois pudessem se encostar.
Sam e se olharam por mais alguns segundos, antes dele se desconectar. Ela queria que Sam e Steve estivessem ali, como ela queria. negou com a cabeça, sorrindo, como se aquilo fizesse a tristeza não tomar conta de si, e voltou-se para sua pulseira outra vez, dando um clique na bolinha de comunicação com as Dora Milaje. Klaue era um tema sério demais no país, tinha que avisar Okoye antes de qualquer outra pessoa. Ela certamente saberia como proceder com aquela informação.
— Por que incomoda minhas horas de lazer, ? — Okoye perguntou rabugenta, sua imagem surgindo na frente de , onde antes estava Karl.
— Ulysses Klaue vai estar em Busan amanhã à noite, é melhor preparar o conselho — disse séria, sugestiva.
Okoye não respondeu mais nada. Aquilo já bastava. O maior traficante de vibranium da história de Wakanda tinha sido encontrado e, com sorte, seria, finalmente, capturado. Okoye deixou escapar um sorriso malicioso para , que sorriu de volta e desligou o comunicador. Ela saberia o que fazer dali em diante. Klaue havia matado o pai do marido de Okoye. Havia matado dezenas de pessoas na tribo da fronteira, tentando entrar no país. Wakanda estava atrás dele há três décadas e Klaue sempre, sempre, dava um jeito de escapar por entre os dedos, sempre escorregadio, articuloso. Mas dessa vez seria diferente. Everett era o comprador do vibranium e, com T’Challa indo até lá, ele estaria completamente cercado. Não havia possibilidade alguma de escapar.
pegou a parte de cima de seu vestido de volta e deu uma última olhada em Bucky, alheio a toda bagunça que se forçou naqueles meses. Parte dela achava aquilo bom, assim ele não se envolvia em mais problemas, não se carregaria de novas preocupações. Parte dela achava aquilo ruim, porque, afinal, ele não estava lá, com ela. Deixando o laboratório, pensou que, na realidade, a paz só estava reinando mesmo para Bucky, que hibernava e seguia o tratamento conforme o planejado.
- Capítulo 20 -
Os dias que se seguiram, contudo, foram extremamente caóticos. T’Challa foi para Busan, na Coréia do Sul, atrás de Klaue, em uma missão detalhadamente articulada com Everett. Levou Nakia e Okoye consigo, cujas saídas do país foram aprovadas pelo conselho, enquanto Shuri e permaneceram em Wakanda, dando todo o suporte remoto que conseguiam. A ideia era bastante simples: estar no local marcado por Everett para comprar o vibranium de Klaue, deixar a transação acontecer e, finalmente, prendê-lo. Havia grandes expectativas dos líderes das tribos para a captura de Klaue, depois de tantos anos sonhando com aquele momento, mas o que aconteceu foi bem, bem, diferente. Aquela missão falhou tanto, deu tão errada, que T’Challa não só não voltou com o traficante, o alvo, em mãos. Mas ele voltou com Everett. Baleado.
Oito horas depois de retornar a Wakanda, Everett acordava meio atordoado, como se estivesse despertando de um pesadelo. Sua mente tentava processar o que tinha acontecido e para onde exatamente tinha sido levado. A última coisa de que se lembrava era de estar em Busan, em uma central de investigação da CIA, com Klaue, T’Challa, Nakia e Okoye, além de alguns outros agentes. Everett tinha acabado de interrogar Klaue, estava fingindo incredulidade pelas coisas que havia ouvido dele sobre Wakanda e, depois de pegar informações suficientes para o caso, questionava T’Challa, como haviam combinado, na frente de outros agentes. Não podia entregar sua relação com o país, não podiam deixar nada escapar, não podiam descobrir sobre . E tudo parecia correr bem, os disfarces mantidos, Wakanda segura, Klaue preso, até a central ser explodida e Everett levar um tiro nas costas, exatamente na espinha, protegendo Nakia de ser atingida.
A dor terrível que sentiu antes de desmaiar passou, então, pela mente de Everett, enquanto ele se levantava calmamente de onde estava deitado. Não era a primeira vez que tinha sido atingido por uma bala em sua vida, mas era a primeira vez em que, depois disso, não acordava em um hospital e que, estranhamente, acordava sem qualquer resquício de dor. Everett se sentou meio sem jeito na maca, notando as paredes ao seu redor, que formavam um arco sobre si, moverem-se, desativando automaticamente o painel de monitoramento e ficando cinzas, como se ali nunca tivesse existido painel algum. Vestindo uma túnica grafite com desenhos geométricos em um tom mais claro, o homem passou a mão pela coluna em busca de qualquer resquício da bala em seu corpo, mas, aparentemente, não havia mais nada ali. Nada. Nem sequer um curativo. Everett olhou as próprias mãos, confuso, e saltou da maca, dando alguns passos silenciosos para frente, agora olhando atônito o laboratório em que estava. Ele já tinha uma ideia de onde estava, mas teve certeza absoluta quando ouviu uma risada baixa e abafada, vindo mais adiante.
— Não vai acontecer nada com você, eu juro — A voz de Shuri falando baixo despertou atenção do homem, que caminhou mais alguns passos até ver ela e sua filha paradas de costas para ele, observando um manequim. Everett franziu a testa.
— Se isso vier para cima de mim, igual da última vez, eu vou envenenar sua comida — olhou Shuri de lado, seus braços cruzados. A amiga revirou os olhos.
— Encosta logo o seu tornozelo no do manequim, — Shuri apontou com as duas mãos para o objetivo à sua frente — É igual ao do seu último traje, sua desconfiança estragou a surpresa.
— Ah, achei que fosse fazer uma pulseira dessa vez — deu de ombros.
— Tornozeleira é mais estilosa e mais discreta — Shuri refletiu impaciente — Anda logo, maninha, quero saber o que você vai achar.
descruzou os braços e deu alguns passos em frente. Shuri estava trabalhando há meses em um novo traje para , desde que seu último foi completamente destruído por Tony Stark, na Sibéria. Era comum que, de tempos em tempos, Shuri aparecesse com inovações nos trajes. Ela estava sempre tentando superar a última versão, sempre trazendo maior precisão, conforto e tecnologia. Como se fossem carros novos, ela pensava em cada um dos detalhes com atenção e todas as versões novas eram absolutamente melhores do que as antigas. e T’Challa viviam fazendo provas e testes de equipamentos e roupas que Shuri criava para eles e ela sempre, sempre, ficava empolgada em vê-los testando pela primeira vez. Não estava diferente naquele momento, esperando ansiosa pela reação da amiga.
havia passado a noite inteira ao lado de seu pai, monitorando os aparelhos para ter certeza de que ele ficaria bem, vivo e sem sequelas do tiro que levou. Estava preocupada com ele, não poderia simplesmente ir dormir, não conseguiria. Ela não estava esperando o reencontrar tão cedo e também não podia imaginar que a missão em que ele estava terminaria daquela forma. Ela sentiu medo de perder Everett e, por mais confiança que tinha na tecnologia e na ciência, ainda assim deixou-se levar pelo pavor de perder mais alguém. Nada podia acontecer com seus pais. Nunca. E ela não sairia de perto dele até ter certeza absoluta disso. , então, ficou no laboratório de Shuri desde que T’Challa, Okoye e Nakia voltaram com Everett da Ásia e acompanhou sua breve cirurgia. Estava tensa, esperando que seu pai acordasse logo, tinha conversado com Karl na madrugada e, na solidão de não ter mais com quem dividir tudo o que estava passando, Shuri decidiu ficar com ela. Horas depois e sem terem mais o que fazer, Shuri achou que seria um bom momento para mostrar seu novo projeto, talvez a distraísse um pouco, talvez a deixasse feliz em saber que sempre tinha alguém pensando nela e que não estava, nunca, sozinha.
O manequim de frente para vestia apenas a nova tornozeleira, um pouco mais fina e brilhante que a última, como se fosse uma barrinha de metal. Os traços finos desenhando flores no vibranium preto podiam ser vistos com mais facilidade do que na última e, segundo Shuri, era mais leve também. aproximou-se o suficiente e encostou seu tornozelo no objeto, como Shuri pediu. Em segundos, a partir da tornozeleira, o traje foi se abrindo pelo corpo do manequim, parte por parte, em um movimento que, olhando de frente, parecia como se flores estivessem brotando. O macacão preto pegava o corpo inteiro, em um tecido de fibra de vibranium mais fino e maleável do que o anterior, tão discreto que ninguém, nunca, poderia dizer que aquela roupa era feita de metal. Os tons de verde escuro misturavam-se com o preto e finas linhas desenhavam flores e folhas em verde um tom mais claro, por todo o macacão.
reparou na pequena flor de oleandro, de onde Neriine, o mesmo veneno que corria em suas veias, podia ser extraído, desenhada bem ao centro do peito do macacão, em meio ao discreto contorno de outras flores e folhas. Ela sorriu sozinha, aquilo era lindo. No pulso direito havia um sutil sobressalto do traje, como uma pulseira, e estava virando-se para perguntar a Shuri o que era aquilo, quando algo chamou sua atenção. Everett sorriu vendo sua filha passar a mão pelo pequeno e absolutamente discreto “A” no braço direito do novo traje. olhou curiosa para Shuri, mas não precisou perguntar nada.
— Capitão Rogers viu o desenho do seu traje, no dia em que trabalhamos juntos aqui, e ele me pediu para colocar — Shuri explicou sorridente, estava ansiosa por aquele exato momento — Parece que você faz parte do grupo agora, maninha.
não conseguiu responder nada, apenas sorriu sincera e concordou com a cabeça, voltando seu olhar para a pequena e discreta letra. Não sabia mensurar o quanto aquilo significava para ela, porque não tinha tido muitas oportunidades de pertencer à algo ao longo de sua vida. Esteve por tantos anos sozinha, tanto tempo tentando se adaptar a ambientes aos quais não pertencia, tantas vezes em que foi tratada como diferente, como alguém que jamais iria se integrar. Aquilo era especial, era carinhoso e era algo que só Steve poderia ter pensado, porque ele sabia como ela se sentia. sentiu seu coração apertar, a sensação forte de saudades a consumindo por dentro, enquanto ela sorria fraco por fora, encarando o traje. Steve estaria com ela onde quer que ela estivesse e estaria por ela, sempre que precisasse, porque eles se pertenciam. Aquele era o recado. tinha ele, como tinha Sam, como tinha Shuri e T’Challa, como tinha um grupo ao qual pertencer agora.
Ainda parado em pé atrás das duas mulheres, Everett viu a filha engolir o choro. Podia imaginar como ela estava se sentindo, o carinho silencioso e a saudade pela distância, o orgulho em pertencer. era uma vingadora agora e isso era, para Everett, um grande feito. Sua filha tinha chegado longe, tinha lutado pelo o que era certo e estava ao lado da justiça. estava, finalmente, depois de tanto tempo, aparecendo, sendo valorizada e sendo acolhida por quem ela era. Karl amaria estar ali, para presenciar aquele momento, a única coisa boa que havia acontecido com em tempos. Os meses que se passaram desde que ela deixou Wakanda para ir à Lagos tinham revirado a vida de e, em grande escala, para pior. Muita coisa havia acontecido, muitas pessoas haviam chegado e muitas pessoas haviam ido embora, não era fácil processar tantas informações, não estava sendo fácil para ela, ele sabia. estava sendo forte, apesar de tudo. Estava lidando com a morte de T’Chaka, com o afastamento de Steve e com a preocupação com Sam. Estava lidando com o que Sharon tinha feito, uma das poucas pessoas que tinha confiado sua vida, com o mundo inteiro sabendo sobre ela, com o que sentia em relação a isso, à Zemo. Ela estava preocupada com James, fazendo o possível e o impossível para que ele se recuperasse e saísse logo da criogenia. estava cansada. Cansada das lutas, das perdas, cansada das reviravoltas, das situações inesperadas, repentinas. Estava consumida por tantas coisas ruins, pela solidão e pelo caos que estava vivendo. Aquilo representava muito. Era um alívio, uma vitória para ela. Everett conhecia muito pouco de Steve, e muito pelo o que falava sobre ele, era, realmente, um homem bom.
— Obrigada, Shuri, é lindo — comentou baixo, ainda com os olhos marejados, virando-se levemente para a amiga, que sorriu orgulhosa de si mesma.
— Claro que é, fui eu que fiz.
— Um “de nada” já era o suficiente — sorriu forçadamente, engolindo suas lágrimas. Shuri sabia mesmo como acabar com um momento.
— Sempre que precisar, maninha — Shuri bufou contrariada, vendo rir baixo.
— Conte com isso, logo alguma coisa acontece e você já precisa fazer um novo — colocou as mãos nos bolsos da calça de alfaiataria que usava.
— Já estou levando isso em consideração — Shuri apontou para uma das bancadas mais ao canto do lab, onde outras tornozeleiras podiam ser vistas — Pode assumir, eu sou demais. Deveria cobrar pelos meus serviços, você e T’Challa são muito mal acostumados.
— Você é insuportavelmente convencida — provocou, arregalando os olhos.
— Autoconfiante, é diferente — Shuri deu de ombros, olhando da amiga para o traje. Aquele era, definitivamente, um dos melhores que tinha feito para ela. Estava realmente feliz com o resultado.
— Onde eu vim parar? — Everett perguntou retórico, sua voz cortando o ambiente, assustando as duas mulheres. Shuri e viraram-se para ele quase ao mesmo tempo, seus olhos arregalados. Não estavam esperando por aquilo, Everett deveria estar… dormindo?
— Não se assusta alguém dessa forma — Shuri comentou horrorizada, seu coração na boca.
— Por Bast, pai, quer nos matar? — levou uma mão em seu peito.
— Desculpe, queridas, alguém precisava parar vocês antes que saíssem nos tapas — Everett deu de ombros, vendo a filha aproximar-se dele rapidamente e lhe dar um abraço.
Ela afundou seu rosto no pescoço de seu pai e o abraçou com tanta força que Everett achou que ela o esmagaria. Não queria ter levado um tiro, claro que não, muito menos a preocupado daquela forma. já tinha coisas demais com o que se preocupar. Contudo, por outro lado, parte dele estava feliz por estar ali, com ela, outra vez. Só faltava Karl agora. Everett deixou um suspiro sair, sentia falta de ter sua família junta e podia imaginar que Karl estivesse subindo as paredes de preocupação com ele.
— Como você está se sentindo? — se afastou um pouco dele, seu olhar preocupado — Achamos que você não iria sobreviver, ainda bem que T'Challa te trouxe para cá.
— Eu estou bem, florzinha, me sentindo bem, não se preocupe — Everett deu uma olhada ao seu redor, segurando uma mão de — Estamos em Wakanda? Aqui é Wakanda?
— Não, tio, é o Kansas — Shuri rebateu com obviedade, aproximando-se do homem e sorrindo. a encarou séria.
— Há quanto tempo aconteceu a Coreia? — Everett voltou a perguntar, ignorando o comentário de Shuri. Era normal se sentir atordoado. Tinha um recorte temporal sobre o que tinha acontecido, tinha passado por um trauma, tomado medicamentos e tinha o fuso horário. Estar perdido era o mínimo esperado.
— Ontem — respondeu o olhando, apertando levemente a mão dele.
— Acho difícil de acreditar, nunca vou me acostumar com isso — Ele sorriu leve e sincero para , desviando seu olhar até Shuri — Da noite para o dia não se cura ferimento por bala, parece magia.
— Não aqui — Shuri deu dois tapinhas no ombro dele e caminhou até uma das bancadas do lab — Não magia, tecnologia.
Everett concordou com a cabeça e sorriu brevemente. Não importava o quanto conhecia daquele país e nem quantas vezes já tinha presenciado situações como aquela, sempre parecia incrível demais, inacreditável demais. Conhecia o país há muitos anos, antes mesmo de ser levada até lá, e, ainda assim, conseguia se surpreender. Olhando ao redor com curiosidade, observava seu pai tentar encaixar as peças das últimas horas, mentalmente. Era difícil digerir informações naquela situação, ele precisava de mais algum tempo para se sentir confortável.
— Não toquem em nada, meu irmão vai voltar logo — Shuri voltou a dizer, quebrando o breve silêncio, enquanto prestava atenção em algo em cima de sua bancada.
— Ela é sempre assim? — Everett perguntou baixo para , passando um braço pelos ombros da filha, que deu de ombros e concordou com a cabeça.
— As vezes é pior — Ela o abraçou de lado, pela cintura — Temos que avisar Karl que você está bem, ele está uma pilha de nervos, ligou cem vezes de madrugada.
— Eu imagino — Everett soltou uma risada fraca. Se bem conhecia Karl, ele deve até ter comprado a passagem aérea — O que ele disse?
— Que você não deveria ter se metido nessa sozinho, que ele avisou que não era uma boa ideia se meter com Klaue e que você deve à ele uma festa de casamento antes de morrer — sorriu abertamente vendo seu pai rir alto.
— Vinte anos de casados depois, ele ainda não esqueceu que não teve a festa dos sonhos — Everett comentou rindo leve e caminhando lentamente abraço à , até mais perto da parede de vidro do laboratório.
Karl era um homem romântico, sempre foi. Era do tipo que fazia jantares em aniversários de namoro, comprava presentes fora de época e não media palavras para declarar seus sentimentos. Gostava de escrever sobre o amor e o demonstrava constantemente, em gestos simples e sempre carregados de carinho. Karl era simbólico. Tudo em sua vida era banhado por conceitos e subjetivismos, ele gostava das entrelinhas, das sensações, do que não era tão claro, mas, ainda assim, podia ser vivido, sentido. Ele gostava de tradições. E desde que se apaixonou por Everett sonhava em, algum dia, poder ter uma festa de casamento tão linda quanto o amor deles dois. As circunstâncias, contudo, nunca deixaram com que isso acontecesse e Karl carregava isso em seu coração. Everett pensou por um momento que devia aquilo a ele, devia mais a sua família. Não podia prever o que aconteceria a seguir, ele quase havia morrido em Busan, poderia morrer a qualquer instante. Estava perdendo tempo e oportunidade de fazer mais pelas pessoas que tanto amava. Tinha que dar um jeito. E não podia esperar muito mais.
— Ele nunca vai esquecer, você sabe — comentou baixo, sorrindo divertida.
— Karl é muito apegado aos detalhes, acho que é por isso que ainda sou apaixonado por ele depois de tantos anos — Everett sorriu sem graça, sendo acompanhado por — Ele vem para cá, não vem?
— Não deixei. Achei que não seria seguro, poderia colocar ele em risco e todos nós — respirou pesadamente, olhando para os gigantes trilhos de levitação magnética lá fora da janela — Quanto menos nos movimentarmos agora, depois que Sharon… bom, você sabe, me entregou, melhor.
— Tem razão — Everett concordou com a cabeça levemente — Alguma notícia dela, falando nisso?
— Nenhuma. E, sinceramente? Acho que não quero ter. Ela podia ter pedido ajuda para vocês ou para mim, sempre mantemos os canais de comunicação abertos, sempre fomos honestas uma com a outra. Ela sabia que eu não poderia simplesmente voltar para Berlim — suspirou, seu tom de voz mais sério do que antes — Tinham alternativas. Steve estava prestes a entrar em contato com ela, quer dizer, se soubéssemos antes que ela estava sendo procurada, podíamos ter dado um jeito de ela se juntar à ele e Sam em Nice. Ela não quis nos procurar. Agora é tarde demais.
— Ela ditou as regras do jogo. Agora nós só jogamos, é isso — O homem concordou, encostando-se em uma das mesas, como se sentasse levemente nela. Triste em saber que Sharon tinha tomado aquela decisão, mas tinha razão, não estavam mais em tempo de mudar nada, era seguir em frente e ver o que vinha a seguir — Falou com Steve ou Sam essa semana? Eles estão bem?
— Com Sam, no dia da coroação de T’Challa. Ele estava usando as roupas do Karl, disse que está dormindo na minha cama de criança e que Steve chorou vendo nossos álbuns de fotografia antigos — comentou risonha, sentando ao lado de seu pai e o ouvindo gargalhar.
— Quem diria, Capitão América emotivo e Falcão vestindo Tom Ford.
— O exílio não está fazendo bem para eles, eu acho — riu dando de ombros, separando-se levemente de seu pai e apontando com a cabeça para o lado — Viu meu traje novo?
— Eu vi e achei lindo como você — Everett comentou carinhoso, vendo sorrir e deitar levemente em seu ombro.
— Você acha que eu aguento... a responsabilidade? — perguntou incerta. Parte dela ainda custava acreditar que tinha sido integrada ao grupo. Steve estava confiando nela, tinha medo de decepcionar, de não conseguir lidar com as consequências de carregar aquela letra em seu uniforme.
— Você tem dúvidas disso? Steve está confiando a própria vida dele à você. Quem mais além de você sabe onde ele está neste momento? — Everett colocou sua mão na bochecha de , seus olhares no macacão à frente — Eu tenho certeza absoluta de que você aguenta a responsabilidade, sim, florzinha. Mais e melhor do que ninguém.
sorriu sozinha. A sensação de aconchego e carinho em ter seu pai por perto e poder tirar dele toda a segurança do mundo tomando conta dela. Momentos como aquele não eram tão comuns e sempre tentava aproveitar o melhor deles. Ela ia responder algo, contudo sua pulseira Kimoyo vibrou bem em tempo. E como se houvesse combinado, alguns passos dali, Shuri sentiu a sua vibrar também. desencostou-se de seu pai e saltou de onde estava sentada, virando-se para Shuri. As duas trocaram um olhar suspeito, e um tanto divertido, até Shuri virar seu pulso para cima, aceitando a chamada. A imagem de Okoye abriu-se em segundos, sua expressão séria e completamente centrada, como sempre. fez sinal com a cabeça para que seu pai a acompanhasse até mais perto da amiga.
— Onde está T’Challa? — Okoye perguntou sem demoras — As contas Kimoyo dele foram desligadas.
— Eu e ele não somos ligados pelo quadril, Okoye — Shuri brincou irônica, mas a expressão da chefe da guarda real não se suavizou nem por um milésimo.
— Um homem na fronteira afirma que executou o Klaue — Okoye respondeu objetivamente, ignorando as brincadeiras de Shuri. e Everett se entreolharam imediatamente, sérios.
— O que? — Shuri perguntou confusa, caminhando apressada até uma das telas próximas. Ela sequer conseguiu formular uma frase inteira, tinha sido pega de surpresa.
— W’Kabi está transportando ele para o palácio, precisamos encontrar o seu… maninho — Okoye falou cínica, enquanto Shuri abria uma imagem do homem recém-chegado, puxando dados captados pela tecnologia de vigilância da fronteira. aproximou-se dela mais alguns passos, com seu pai logo atrás.
Aquela história estava estranha. Klaue tinha fugido, como fez em trinta anos. Wakanda sequer teve a oportunidade de o trazer para o país, para ser julgado e pagar pelos crimes que cometeu. T’Challa, Nakia e Okoye, juntos, não conseguiram impedi-lo de fugir. Everett e toda a força de operação da CIA em Busan, tampouco. Não era fácil daquele jeito encontrá-lo e prendê-lo, como poderia ser fácil assim alguém tê-lo executado? E por que o trouxeram justamente para Wakanda? O que queriam em troca do corpo de Klaue? Nenhum deles poderia responder aquilo, ainda, mas um fato já puderam concluir. Quem quer que fosse o sujeito envolvido na morte do maior traficante de vibranium da história, conhecia bem sobre Klaue e conhecia Wakanda mais do que deveria. Okoye estava mais do que certa em se apressar.
— Um estrangeiro? — Shuri perguntou olhando a imagem se abrir na tela em sua frente.
— Não, Wakandano — A voz de Okoye era tensa.
— Bem bonito, por sinal — comentou baixo, vendo Shuri concordar com a cabeça. Everett bufou e Okoye revirou os olhos. Não era possível falar nada sério com aquelas duas.
Na imagem projetada por Shuri, uma foto grande captada na fronteira minutos atrás mostrava um homem jovem e bastante forte. Ao lado dela, a imagem de um globo terrestre apontava a localização de onde ele já tinha estado ao longo de sua vida e um pequeno vídeo dele em atuação militar. deu uma rápida olhada nas imagens e, em seguida, voltou-se para seu pai. Se ele era militar e a localização principal indicava ser dos Estados Unidos, havia uma chance real de Everett saber quem era.
— Não é wakandano — Everett comentou olhando da imagem do homem para sua filha — É um dos nossos.
— Como sabe sobre ele? — Okoye perguntou voltando-se para Everett, desconfiada.
— Está no radar da CIA há algum tempo, recentemente roubou artefatos históricos africanos do Museu Britânico — Everett respondeu breve, tão sério quanto Okoye — Um deles, inclusive, de vibranium. Pode ter revendido para Klaue.
— Não é exatamente um roubo se a peça foi roubada de nós antes — Shuri comentou pensativa.
— O que será que ele quer aqui? — perguntou intrigada, vendo Okoye a olhar pelo holograma.
— Certamente não é devolver a peça que ele pegou emprestada do museu — Everett comentou irônico, vendo a filha concordar com a cabeça.
— É isso que vamos descobrir. Encontrem T’Challa, rápido. Vou reunir o conselho — Okoye respondeu séria, desligando-se em seguida. , Everett e Shuri se entreolharam por alguns segundos, até Shuri ir localizar seu irmão.
Wakanda nunca havia lidado bem com estrangeiros e isso era um fato. Estavam fechados para o mundo, não recebiam sequer turistas, os voos eram controlados e as visitas oficiais, mesmo de governantes, proibidas. T’Chaka sempre dava um jeito de ir até outras autoridades, de participar de reuniões e eventos oficiais, nunca aceitava trazê-los para dentro do país, porque nunca aceitou internalizar o que era externo. Por segurança, por medo do que o país poderia sofrer caso o mundo descobrisse sobre o vibranium, por receio do que poderiam fazer caso soubessem o poder que Wakanda tinha em suas mãos. Para assegurar a tradição, para proteger seu povo e suas riquezas, seu vibranium, sua tecnologia, Wakanda deveria ser um país fechado. Por centenas de anos prosperou daquela forma, não havia motivo para ser diferente.
era a única exceção. Para manter as autoridades e outros Estados longe e fortalecer a narrativa oficial de que Wakanda era um país extremamente pobre, vulnerável e com muitas dificuldades socioeconômicas, T’Chaka havia aceitado a sugestão dos Estados Unidos, durante um fórum das Nações Unidas sobre alívio a pobreza, de receber em suas terras um oficial. Com proteção e confidencialidade de Estado, o oficial deveria viajar até Wakanda para conhecer o país e fazer um relatório de ajuda humanitária, pontuando quais eram os principais problemas e de que forma o fórum poderia intervir e ajudar. Especialista em continente africano, Everett foi o escolhido e, bem diferente do que esperava, encontrou o país mais rico, tecnológico e próspero do mundo. Foi bem acolhido nas semanas em que ficou lá e, compartilhando das preocupações e dos medos que a coroa wakandana tinha em relação a sua abertura internacional, decidiu se calar. Conhecia bem o mundo e suas intenções, não seria o responsável por armar a população, por começar novas guerras e por colonizar, nos moldes mais violentos da modernidade, o país que fez tanto para se resguardar.
Assim, em 225 páginas, Everett relatou dificuldades imaginárias sobre Wakanda. Por meio da CIA, convenceu 32 países a aprovarem um pacote de segurança e não-intervenção, alegando que a maior parte de sua população estava migrando por condições sub-humanas e conseguiu colocar uma restrição internacional à circulação de pessoas, por terra ou ar, em Wakanda. Perigoso e sem vida, o mundo via Wakanda como um lugar vazio, a ser esquecido e assim deveria ser. T’Chaka devia isso a Everett e pagou aceitando, anos depois, proteger sua filha. Como vibranium, era valiosa demais para o mundo, não podia cair nas mãos erradas e poderia ser perigosa se não lapidada da maneira correta. era a única exceção. Veio de fora, mas foi criada dentro. Aprendeu a história, a cultura, seguia a tradição, protegia o país que a protegeu, vivia e servia a Wakanda, como Wakanda servia a ela como lar. Havia um motivo para estar ali e havia uma troca velada de favores, constante, necessária, para que ela permanecesse. Everett, e depois Karl, protegiam a narrativa. protegia a erva-coração. Wakanda os protegia.
Aquela era a única exceção à regra. Não podiam correr riscos, nunca puderam. T’Chaka havia ido longe demais para proteger o país, havia trocado a vida de seu próprio irmão por isso e não hesitaria em fazer o que fosse preciso para resguardar-se. Aceitou porque era criança, porque podia ser moldada nos valores do país, porque podia ser útil para eles. Aceitou porque ela precisava de um lar e porque poderia trocar isso com seus pais; porque ela era a garantia de que Everett e Karl fariam sua parte bem feita, os escondendo do mundo, os ajudando. T’Chaka não pensaria duas vezes em intervir em seu povo, em sua família ou em , caso precisasse. Para ele, Wakanda estava acima de qualquer coisa e de qualquer pessoa.
Depois de sua morte, contudo, essa ideologia estava sendo ligeiramente alterada. Já tinham se exposto mais nos últimos meses do que em séculos e James Barnes passou a ser a segunda exceção à regra do acolhimento externo. A morte de T’Chaka trouxe o foco de volta para Wakanda e a aparição pública de T’Challa, na Europa, como Pantera Negra foi um escândalo. Não era possível alguém de um país dito tão pobre ter acesso a tecnologia daquela roupa. Entre especulações e notícias falsas, outras nem tanto, Wakanda estava ganhando visibilidade e, com ela, despertando curiosidade, afrouxando a distância que tinha do mundo ao seu redor. Cada dia que passava ficava ainda mais evidente a pressão que estavam sofrendo por uma abertura e forças de segurança internacional já coletavam evidências de que eles abrigavam em segredo o maior assassino do século. Não tardaria para tudo mudar, eles todos sabiam disso, mas não podiam, de forma alguma, correr riscos naquele momento. Enquanto o plano para uma possível abertura não era traçado, qualquer que fosse a movimentação estrangeira, qualquer que fosse a pessoa que surgisse na fronteira, era motivo suficiente para se preocuparem exaustivamente.
Shuri avisou T’Challa de que precisava encontrar-se com ele em seu laboratório, rápido. e seu pai conversavam sérios sobre a tecnologia de levitação magnética, que podiam ver do laboratório de Shuri, enquanto esperavam pelo rei. Everett tinha muito o que dizer sobre o homem da imagem, já tinha tido o desprazer de ler seus arquivos, semanas atrás, quando ele participou do roubo do museu em Londres. Não sabia exatamente qual era o interesse dele, mas podia imaginar que, envolvido com Klaue, não seria nada bom. Talvez fosse outro traficante, talvez quisesse contestar o vibranium ou mesmo propor uma troca. Sem muitas respostas, Everett achou melhor esperar T’Challa para contar o que sabia de uma vez por todas.
T’Challa não demorou mais do que meia hora para aparecer no laboratório de Shuri, onde e Everett também o esperavam. Acompanhado de Nakia, ele parecia tenso, pensativo e um pouco triste, reparou. Alguma coisa tinha acontecido naquele meio tempo. Como se o clima estivesse pesado, todos ficaram em silêncio e esperaram T’Challa e Nakia darem uma boa olhada nas informações que tinham conseguido resgatar sobre o estrangeiro. A expressão de T’Challa não era das melhores. não sabia dizer se era por algo que tinha acontecido ou pela preocupação de ter que lidar, poucos dias depois de ser coroado, com um problema daqueles, mas T’Challa estava estranho, distante e silencioso demais.
— Eric Stevens — Everett começou a dizer, quebrando o silêncio do ambiente, olhando da imagem ainda projetada à frente até os presentes ao seu redor, enquanto cruzava os braços — Se formou em Annapolis, aos 19 anos, fez graduação no MIT. Entrou para os fuzileiros e foi direto para o Afeganistão, onde acumulou tantas mortes confirmadas como se fosse um videogame. Então, começaram a chamá-lo de Killmonger.
T’Challa e Nakia trocaram um olhar tenso, era exatamente sobre ele que conversavam mais cedo, era sobre aquele homem que Zuri havia falado. Aquele era o homem que seu pai tinha abandonado para trás, quando matou o próprio irmão para proteger Wakanda. Ele estava ali agora, bem diante de seus olhos. E a cada palavra de Ross sobre ele, T’Challa sentia seu coração acelerar. Não estava prestes a lidar com um primo desconhecido, estava prestes a lidar com alguém que usou a violência para aliviar sua raiva por anos, descontando em pessoas que não tinham absolutamente nenhuma relação com a dor que sentia pela perda de seu pai. Sem saber de nada daquilo, e estranhando as reações silenciosas e tensas de T’Challa, estava intrigada demais para pensar em qualquer hipótese. O que aquele homem tinha de bonito, parecia ter de problema. Alguma coisa não estava soando bem e esperava pelo pior.
— Ele se juntou a um grupo barra pesada das Forças Especiais. Eles saem do radar para cometer assassinatos e destituir governos — Everett concluiu seu raciocínio, pensativo.
— Igual a ? — Shuri provocou, tentando quebrar o clima tenso, vendo a amiga a olhar incrédula.
— Eu nunca destitui um governo — se defendeu, cruzando seus braços.
— Era só o que faltava — Shuri deu de ombros — Já não basta os assassinatos.
— Eram todos da Hydra, não contam — desviou seu olhar, suspirando. Não se orgulhava das coisas que fez ao longo da vida, mas havia uma explicação para elas, iria se defender.
— O gostosão na criogenia também era — Shuri insistiu, vendo a fuzilar com os olhos no mesmo instante em que a ouviu falar aquilo. Falar do Lobo Branco era delicado, Shuri amava.
— Você vai ser a próxima a ser assassinada se não me deixar em paz.
— Temos uma questão aqui, foquem — Nakia estalou os dedos, olhando Shuri e trocarem uma careta e voltarem, quase ao mesmo tempo, a encarar a imagem de Killmonger.
— Ele revelou qualquer coisa sobre a identidade dele? — T’Challa perguntou sério, sua voz baixa transbordava preocupação.
— Ele tem uma tatuagem de cão de guerra — Shuri comentou, puxando os dados que conseguiu confirmar pela entrada dele na fronteira do país — Mas não temos registro dele.
T’Challa deu uma breve olhada para Nakia que, naquela altura, parecia tão preocupada quanto ele. Sem saber ao certo como deveria reagir aquela repentina visita, ao fato de ser ele quem executou Klaue e a tudo estar acontecendo justamente quando T’Challa havia descoberto sobre a existência desse primo, o rei deu alguns passos mais à frente, parando próximo a tela com a imagem de Killmonger. Ele era um wakandano, era um deles por nascença e por sangue. Tinha direitos no país, como qualquer um deles ali, precisava e merecia ser acolhido, integrado. Talvez aquela fosse a oportunidade de T’Challa poder se redimir. De poder conversar com ele, entender como poderia ajudá-lo, trazê-lo de volta para o seio da família que, por tantos anos, o negligenciou. Sequer sabiam de sua existência, como poderiam tê-lo procurado? T’Challa estava disposto ao diálogo e queria resolver aquela situação. Mas ele já imaginava que não seria fácil. Não quando a moeda de troca e o passaporte de Eric Stevens, eram, justamente, o corpo de Klaue e o orgulho de si mesmo por tê-lo matado.
***
Okoye conseguiu reunir os anciãos das quatro tribos na sala dos conselheiros, em tempo hábil até a chegada de W'Kabi com Killmonger ao palácio. Como Everett não tinha voz no conselho e desrespeitaria a tradição, por ser um estrangeiro, T’Challa pediu que ele ficasse no quarto de , com Nakia, aguardando a reunião acontecer. Trariam novidades assim que a questão fosse resolvida. , contudo, como consultora para questões de segurança do reino, teve sua presença solicitada, para que ela pudesse explicar exatamente aos anciãos o que seu pai havia contado sobre o estrangeiro e participar ativamente da decisão final, assim que o homem se apresentasse para eles. sempre foi vista como um rompimento da tradição para eventos e ocasiões reais. Mas para questões de segurança, por outro lado, era uma peça estratégica, usada em abundância pelos velhos que, mesmo muitos anos depois, ainda não pareciam totalmente confortáveis com a presença dela no país.
A sala dos conselheiros era grande, uma das maiores do palácio. O piso de vidro transparente com barras de vibranium intercaladas permitia ver o andar de baixo sem grandes dificuldades. As paredes pintadas de caramelo levavam símbolos de Wakanda iluminados e, ao centro e em patamar mais baixo, um tapete terracota quadrado estava perfeitamente colocado. Sob ele, os conselheiros e conselheiras das tribos sentavam-se em suas cadeiras de vibranium, dispostas em ordem de aproximação com a tribo central, em semicírculo ao redor do trono principal. Nele, T’Challa sentava-se ao centro, sua mãe à sua esquerda e Shuri, em pé, no meio deles. À direita do rei, estava em pé e com Okoye ao seu lado. Tudo meticulosamente pensado para que, na recepção de qualquer que fosse a pessoa, houvesse clareza sobre a disposição social do país, a distribuição de poder e as funções de cada membro do conselho, como um tabuleiro de xadrez. Nas laterais da sala, em patamar mais elevado do chão, como em um andar acima e com acesso por uma pequena escada, as Dora Milaje guardavam os conselheiros, de frente para eles, em formação.
Como de praxe, Okoye havia iniciado a reunião apresentando brevemente a situação aos conselheiros, passando, em seguida e sem delongas, a palavra para , que contou sobre o histórico do homem, de onde ele vinha e como o conheciam. Todos prestaram atenção em silêncio, intrigados pelo o que estava acontecendo e curiosos. Algo não parecia bem explicado, como se alguma peça estivesse faltando, aquela história não se completava. Como ele havia encontrado Klaue? Como sabia de sua ligação com Wakanda? Como havia encontrado o país, mesmo com tanta tecnologia o escondendo, o tirando fora dos radares? Como conseguiu cruzar a barreira de acesso na fronteira até chegar na tribo? E, a mais importante das perguntas:
— Esse homem é ou não é wakandano? — O ancião da tribo do rio perguntou, agachado em frente a T’Challa e .
— Ele tem a tatuagem do cão de guerra, mas não temos registros dele — respondeu séria, sua mãos caindo até os bolsos de sua calça — De nascença, sabemos que é americano.
— Diga-nos o que está acontecendo — A anciã da tribo das minas pediu em xhosa, sem qualquer paciência. Wakanda estava perdendo as rédeas, estava perdendo tempo com algo irrelevante. Se não fosse um nativo, então não teria sequer que ter algum tempo com eles ali, no palácio.
não teve tempo de responder, porque a atenção de todos voltou-se para a grande porta central da sala, que se abriu sem aviso prévio. Por ela, era possível ver o estrangeiro, Killmonger, aparecer, com W’Kabi um passo atrás e dois guardas reais mais ao fundo. O homem novo tinha as mãos algemadas e uma expressão soberba, um ar de superioridade que não estava sendo bem-vindo por ninguém do conselho. Sem cerimônias ou qualquer permissão de T’Challa, eles caminharam sala adentro, até parar ao centro e de frente para os conselheiros. W’Kabi sentou-se em sua cadeira, era o último líder que faltava, e aguardou qualquer reação do homem que conduziu ao palácio. Parte de si entendia o problema que a presença dele ali trazia; outra parte, contudo, era grato por ele ter trazido Klaue, o assassino de seu pai, morto. Promessa que nem T’Chaka, nem T’Challa, conseguiram cumprir. Talvez fosse o começo de uma nova era. Mas, até lá, W’Kabi esperaria para ver o que seria deliberado naquela reunião.
Sem perder a soberba, Killmonger olhava seu redor atônito, impressionado com a beleza e com o luxo do lugar, bem diferente de tudo que já teve a oportunidade de ter em sua vida. Sua expressão mostrava claro descontentamento e certa raiva, mas ele parecia calmo, como se tivesse tudo sob controle. E era justamente aquilo que preocupava . Ela viu o olhar do homem rodar a sala até cair sob o seu por um momento. A tensão, a ira e a superioridade vindo dele não fizeram desviar seu olhar nem por um segundo, mas, pelo contrário, ela cruzou seus braços e levantou levemente seu queixo. Não entendia o que estava acontecendo ali, nem quem ele era e, muito menos, porque a estava encarando daquela forma. Mas se ele queria encarar, ela sabia encarar de volta.
— Thetha — T’Challa cortou o silêncio, forçando o homem a olhar para ele sentado no trono.
— Fale — W’Kabi traduziu, olhando o homem em pé na sua frente.
Eric não tinha mais nada a perder. Passou sua vida inteira amargurando os fatos, arquitetando seus planos, sonhando com o momento em que estaria exatamente onde estava. Não se importava mais com as consequências, não levaria em conta o que teve que fazer para chegar até ali, ele já tinha perdido tudo, não havia mais nada a temer. Ele respirou fundo, seus olhos não deixando os de T’Challa por nem um momento. Aquela era a sua casa também. Ele tinha direitos ali, merecia ter tido aquele conforto, aquele luxo, aquela proteção, aquela família. Tudo aquilo era tão dele quanto do homem sentado no trono a sua frente, então, por que é que ele não podia se sentar também? Por que teve que passar tantos anos sozinho, abandonado, passando por situações violentas, degradantes? Por que ele deixou de se reconhecer, por que precisou se reinventar, se esconder? Ele não era Eric. Nunca foi e nunca seria. Estava cansado e com raiva de ser. E aquele era o seu momento. Talvez a única chance que fosse ter de, finalmente, triunfar. Por seu pai e por si mesmo.
— Eu estou na sua casa, fazendo justiça contra o homem que levou seu vibranium e matou seu povo. Justiça que seu rei não realizou — Ele falou ácido e objetivo, olhando diretamente para T’Challa.
Irritado, T’Challa levantou-se quase ao mesmo tempo em que ouviu aquilo e caminhou rapidamente até mais perto do homem. acompanhou a movimentação com os olhos, vendo Okoye ir logo atrás de T’Challa, girando sua lança com precisão, enquanto as Dora Milaje, no patamar mais alto da sala, moveram-se em perfeita sincronia e se aproximaram do homem, pelos lados e por trás dele. Aquilo estava mais tenso do que deveria, estava achando o desenrolar da conversa estranho, pesado demais, como se algo ruim estivesse no limite para acontecer. Killmonger olhou falsamente impressionado para a movimentação ao seu redor, mas logo voltou-se para T’Challa, tão perto dele que podiam sentir a respiração um do outro.
— Eu não ligo que tenha apanhado Klaue — T’Challa sussurrou perto do ouvido de Killmonger, o encarando de frente — A única razão de eu não executá-lo agora é porque eu sei quem você é. Diga o que você quer.
— Eu quero o trono — Killmonger disse simplesmente e sorriu cínico.
Como se houvesse caído uma bomba ali, nenhum dos presentes no conselho soube ao certo como reagir. travou sua expressão, fechando-a em claro sinal de descontentamento e preocupação em ouvir aquilo, enquanto alguns dos líderes davam risadas altas e faziam comentários carregados de uma ironia que só parecia piorar ainda mais o clima do ambiente. Okoye e T’Challa não esboçaram nenhum tipo de reação e podia ver que Ramonda e Shuri seguraram suas respirações por um instante. Por mais que parecesse piada, aquilo não era uma brincadeira de mau gosto. Killmonger parecia falar sério. E esse era, justamente, o problema. Quem ele realmente era para contestar a coroa?
— Vocês estão aqui confortáveis — Killmonger deu de ombros, arrogante — Deve ser legal. Tem mais de 2 bilhões de pessoas que se parecem conosco pelo mundo, mas a vida delas é mais difícil. Wakanda tem um jeito para ajudar todas elas.
— E que jeito seria esse? — T’Challa perguntou sério, ainda parado em pé próximo a ele.
— Vibranium — Ele respondeu simplesmente — Suas armas.
— Nossas armas não serão usadas para travar guerras no mundo. Não agimos assim, como juiz, júri e executor para povos que não sejam o nosso — T’Challa rebateu prontamente, não estava gostando de onde a conversa estava indo. deixou seus braços caírem ao lado do corpo, estava começando a ficar ansiosa com aquilo.
— Não sejam o seu? — Killmonger perguntou áspero — Mas a vida não começou aqui nesse continente? Não são todos os povos o seu povo?
— Eu não sou rei de todos os povos, eu sou o rei de Wakanda. E é minha responsabilidade poder garantir que nosso povo esteja a salvo e que o vibranium não fique sob o controle de pessoas iguais a você — T’Challa praticamente cuspiu as palavras, estava perdendo a paciência.
— Tem certeza disso? E quanto a ela? — Ele apontou com a cabeça para , que engoliu seco. Por instinto, Okoye deu um passo para trás, parando mais próxima e à frente dela. Não importava o que acontecesse no país, o fato de abrigarem , a estrangeira europeia, sempre vinha à tona. Pelo tom do assunto que Killmonger puxava naquela reunião, estava esperando que, mais cedo ou mais tarde, ele fosse dar um jeito de comentar aquele fato.
— Ela é parte do meu povo e você não tem o direito de contestá-la — T’Challa respondeu uma vez mais, sem desviar seus olhos de Killmonger que voltou-se para ele outra vez.
— Filho, já entretemos esse charlatão o suficiente — Rainha Ramonda comentou alto, atraindo a atenção da conversa para si — Rejeite a solicitação dele.
— Eu não estou solicitando nada — Killmonger a olhou com desdém — Pergunta quem eu sou.
Aquela era, de fato, a grande questão a ser respondida. E foi só naquele momento da discussão que percebeu que o homem tinha estrategicamente levado a conversa naquele tom e até aquele momento, porque ele queria, exatamente, que soubessem quem ele era. Por arrogância e por desprezo a todos ali presentes, ele não diria nada até que algum deles o perguntasse. A superioridade em responder e não entregar as cartas do jogo era nítida e aquilo parecia muito mais errado e perigoso do que todos naquele conselho estavam esperando. Tinham lidado da forma errada com Killmonger. Falar com ele era, exatamente, a primeira parte do plano. não estava gostando nada daquilo. Ele matou Klaue, usou isso para entrar no país, contestou a coroa, tinha acabado de desafiar T’Challa e claramente tinha algum problema com a presença de ali.
Mas, o que mais preocupava era o fato de que T’Challa não parecia reagir a ele. Não parecia impressionado e nem irritado, não estava esboçando reação alguma senão certa impaciência e seriedade. Muito pelo contrário, inclusive, T’Challa queria dar ouvidos ao homem algemado a sua frente, continuava a dialogar com ele mesmo observando toda a ironia e os insultos. Algo muito errado estava acontecendo ali e já se preparava mentalmente para o que vinha.
— Você é Eric Stevens — Shuri começou a dizer, chamando atenção dos conselheiros, dando um passo mais à frente, perto de sua mãe — Um operativo espião americano, um mercenário apelidado de Killmonger, é quem você é.
— Esse não é meu nome, princesa — Ele sorriu olhando Shuri — Pergunta pra mim, rei.
— Não — T’Challa respondeu prontamente, encarando Killmonger como se o pedisse, silenciosamente, que parasse com aquilo.
— Deixamos a estrangeira perguntar então — Ele sorriu cínico para , que fechou suas mãos em punhos ao lado do corpo, o encarando séria — Quem sabe se ela me perguntar, vocês não entendem qual é a grande ironia do que está acontecendo aqui.
não disse absolutamente nada. Não iria entrar no jogo dele, não queria fazer parte daquilo. Aquela era uma questão que não podia opinar. Ela, de fato, não pertencia ao país e só estava ali para acompanhar a conversa e intervir em caso de segurança, nada mais. Além disso, ele não a conhecia, não a respeitava, não merecia sequer a ouvir. O silêncio tomou conta da sala por alguns segundos, junto com a expectativa de que fosse, finalmente, fazer a pergunta e matar a curiosidade de todos os presentes. Internamente, T’Challa travava uma luta moral confusa entre tirar Killmonger dali, e acabar com aquilo de uma vez por todas, ou deixar que todos soubessem a verdade sobre ele. Seu pai tinha cometido um erro brutal e agora tinham que lidar com as consequências disso. Ele só não sabia, contudo, se deveria seguir a linha de seu pai, e manter o segredo, ou se deveria fazer o que achava certo, e contar a verdade.
— Pergunta — Killmonger insistiu, ainda olhando .
— Levem ele daqui — T’Challa decidiu de uma vez por todas, dando as costas para Killmonger e gesticulando com uma mão. Alguns dos conselheiros, contudo, não estavam contentes com o desfecho nebuloso daquela conversa. Precisavam de respostas e, sem mais enrolações, um deles perguntou, antes que Killmonger pudesse ser efetivamente retirado da sala pelos guardas:
— Quem é você?
— Sou N’Jadaka, filho do Príncipe N’Jobu — Feliz por ter conseguido o que queria, Killmonger respondeu alto e raivoso, em xhosa.
Como se houvessem combinado, todos os conselheiros se levantaram quase ao mesmo tempo, enquanto T’Challa virou-se novamente de frente para ele. sentiu seu coração acelerar, conhecia as histórias de T’Chaka sobre seu irmão, mas nunca soube que ele teve um filho - e, aparentemente, ninguém naquele conselho sabia também. Aquilo mudava tudo. Absolutamente tudo. Não estavam lidando com a chegada de um estrangeiro, mas sim com a chegada de um membro desconhecido da própria família. Ele tinha direito de contestar a coroa. Como Shuri, ele poderia desafiar o rei a qualquer momento, sem sequer ter que esperar a oportunidade do desafio. Ele estava em seu direito. E se era mesmo filho de N’Jobu, então era wakandano, não era como . Não era alguém louco, que queria usar das armas de Wakanda e tomar o trono trocando pelo corpo de Klaue. Era alguém de dentro e isso queria dizer muitas coisas para todos eles ali. Se T’Challa aceitasse o desafio, não saberia mais o que fazer. Já foi complicado enfrentar M’Baku e as consequências de se ter alguém dos Jabari no poder seriam terríveis para ela. Mas se Killmonger vencesse o desafio, não saberia o que fazer. Tinha que dar um jeito de tirar seu pai do país logo, e tinha Bucky. O que ela faria com Bucky?
— Filho de N’Jobu? — A líder da tribo das minas perguntou exasperada. tentava controlar sua respiração, as mãos apertando-se em punhos e a testa franzida, tentando processar o que estava acontecendo e antecipar o que viria pela frente.
— Meu pai tinha as garras do pantera cravadas no peito, você não é o filho de um rei, é filho de um homicida — Killmonger apontou com o queixo para T’Challa, aquelas palavras saindo dele como um peso que saia de suas costas. olhou chocada para Shuri, que mal conseguiu reagir àquela acusação. T’Chaka matou o próprio irmão?
— Está mentindo — Rainha Ramonda gritou em xhosa — CALÚNIA.
— Receio que não, Rainha Mãe — W’Kabi intrometeu-se na conversa pela primeira vez, mostrando um colar com o mesmo anel que T’Challa tinha. O anel que era transmitido de geração em geração, dos reis aos seus filhos. não sabia como deveria reagir, estava mais do que claro para todos que Killmonger era, de fato, parte da família.
— O descendente de N’Jobu — Rainha Ramonda estendeu a mão para pegar o colar, chocada pelo o que estava presenciando. T’Chaka nunca havia falado nada sobre seu irmão ter um filho, não falava nada sequer sobre a morte dele. Mas foi naquele instante que ela entendeu que T’Chaka não não falava porque sentia dor por perder seu irmão. Ele escondia aquela informação porque sentia culpa.
— Oi tia — Killmonger disse cínico — Estou exercendo meu direito de nascença, no desafio pelo manto de rei e de Pantera Negra.
O silêncio voltou a cair sob a sala. Todos os conselheiros se encaravam tensos, sem saber ao certo como deveriam responder aquela afronta.
— Não faça isso, T’Challa — Ramonda pediu.
— Filho do príncipe N’Jobu, ele está em seu direito — Um dos conselheiros interviu.
— Ele não tem qualquer direito aqui — Ramonda gritou de volta para ele, nervosa. passou a mão em sua testa. Aquele não era uma briga dela, mas sua mente estava acelerada. Qualquer que fosse o desfecho daquilo, recairia nela, em seu pai e em Bucky.
— O desafio levará semanas para ser preparado — O ancião da tribo do rio comentou firme, não estava de acordo com aquilo, não poderiam romper a tradição.
— Tudo isso? Não há necessidade — Killmonger riu fraco — A nação inteira não precisa estar lá. Só quero ele e que alguém me solte dessas correntes.
T’Challa caminhava pensativo. Sabia que a palavra final deveria vir dele, e só dele. Tinha que pensar no que fazer, tinha que tomar a decisão mais justa, sem se importar se ela poderia colocar ele, sua família, , ou qualquer coisa, em risco. Tinha sido criado sob a tradição, sob a cultura daquele país. Tinha crescido em integridade, em justiça. Seu pai cometeu um erro grave, ele deveria pagar por ele. T'Challa respirou fundo e deu uma olhada no anel em sua mão, concentrado. O que fazia de Wakanda um país tão próspero senão sua cultura, seus valores e sua tradição?
— T’Challa, o que você sabe sobre isso? — Sua mãe perguntou horrorizada. Aquele silêncio dele a estava matando por dentro. T’Challa não respondeu. Apenas olhou para Killmonger e disse firme:
— Seu desafio está aceito.
chegou a dar um passo mais à frente. Podia sentir seu coração bater forte, suas mãos suarem, geladas. Ela acreditava na força de T’Challa. Tinha treinado com ele por meses, ele estava pronto para o desafio, tinha vencido M’Baku, tinha chances. Mas ela sabia que não seria como antes. Killmonger tinha um passado, tinha vontade de vencer, tinha planos para quando fosse rei e, principalmente, tinha raiva. Estava determinado a chegar até o desafio, iria até onde fosse preciso ir, ele não iria perder, porque ele não estava fazendo aquilo por ele mesmo. Estava fazendo aquilo por seu pai, por vingança de seu passado, por reparação. E sabia exatamente qual era aquela sensação. Tudo que fez por tantos anos em busca de seus pais biológicos, faria outra vez. Qualquer que fosse o preço a ser pago por um segundo de segurança em sentir-se mais próximo do passado, mais próximo de sua família, valia a pena para Killmonger como valeu para ela.
Ela não poderia e não queria intervir naquilo. O problema de família teria que ser resolvido por eles, a tradição seria acionada ou não, a decisão não cabia a . Sempre foi alguém de fora, sempre foi vista e tratada daquela forma, mesmo que em muitos momentos tenha sido acolhida. Aquela não era uma luta dela porque, ao fim, ao cabo, aquela não era sua família e nem seu país, como sempre fizeram questão de dizer a ela. Muita coisa estava em jogo e eles não se preocupariam com , então ela tinha que se preocupar consigo mesma. Se Killmonger vencesse o desafio, o que aconteceria com T’Challa e sua família? O que aconteceria com ? E Bucky?
Como se ouvisse os pensamentos da amiga, Shuri olhou para ela, seus olhos carregados de preocupação. Não precisavam dizer nada, sabiam como a outra estava se sentindo. precisava se apressar. Só precisava de um dia, um único dia. Precisava de pouco tempo para arrumar suas coisas, mandar seu pai de volta para os Estados Unidos, com Karl; avisar Steve que iria até ele, na França, com Bucky. Ela precisava de um único dia para acordar Bucky. Para deixá-lo em segurança, longe de Killmonger e de qualquer coisa que ele pudesse fazer. Se conseguisse pelo menos garantir que seu pai e Bucky ficassem bem, para ela já seria o suficiente.
Mas ela não teria um dia. E soube disso porque os conselheiros, ainda na presença de Killmonger na sala, decidiram fazer o desafio no final daquela tarde. Quanto antes passassem por aquilo, antes aquela situação se resolveria. Não tinham, de fato, que reunir o país inteiro, não era momento para festas e celebrações. Algo sombrio tinha acontecido com o passado do rei mais amado que Wakanda já teve. Era uma reparação histórica, tinha que ser feito o quanto antes, tinham que superar o fato de haver alguém de Wakanda que foi renegado pelo próprio país, pela própria família e pelo rei que, por décadas, todos acreditaram ser o mais justo e honesto que poderiam ter. E mesmo tudo aquilo sendo um grande absurdo, mesmo todo mundo estando ciente dos perigos que corriam em dar a oportunidade para alguém tão violento como Killmonger de se tornar o rei de um país tão poderoso e rico como Wakanda, nenhum deles estava se movendo para impedir aquilo. Seguiriam a tradição.
— , explique a ele sobre o desafio, enquanto vamos preparar nossa ida — T’Challa pediu, a olhando por breves segundos. Sabia que não era a melhor das opções, mas todos os demais presentes precisavam se aprontar para o desafio. Não restavam alternativas.
apenas concordou com a cabeça em silêncio e observou T’Challa sair da sala com Shuri e sua mãe. Os outros conselheiros saiam rapidamente, confusos, exaustos pela situação. Okoye trocou um olhar sugestivo com , como se perguntasse, em silêncio, se deveria continuar com ela ali ou não. assentiu levemente com a cabeça, permitindo que Okoye também saísse para se preparar para o desafio. Tinha um longo e corrido dia pela frente, deveria se aprontar o mais rápido possível. Contudo, embora soubesse que poderia se proteger sozinha melhor do que ninguém, Okoye não queria deixá-la com aquele sujeito. A soberba e violência de suas palavras demonstrava o quanto ele poderia ser perigoso e não estavam em tempos de correr mais riscos. Com um grito de comando em xhosa, Okoye pediu que as Dora Milaje ficassem ali, com ela, e saiu na sequência.
respirou fundo e deu dois passos à frente, seu olhar encontrando o de Killmonger uma vez mais naquele dia. Ayo, a subcomandante das Dora Milaje, aproximou-se dele, pelo lado, e olhou que concordou com a cabeça, permitindo que ela o soltasse das algemas. Ayo manteve-se parada de frente para ele, de modo que também pudesse ver , no meio e ao lado dos dois. observou o homem mover suas mãos livres e abrir o sorriso mais debochado que ela havia visto em toda sua vida. Killmonger se aproximou dela calmamente, parando um passo à frente dela. não se intimidou, não se moveu, sequer desviou seu olhar sério dele.
— O que é isso? Uma oferenda de boas-vindas? — Ele umedeceu os lábios com a língua, olhando de para Ayo.
— Você deve saber sobre as regras do desafio antes que ele aconteça — Ayo respondeu simplesmente, olhando Killmonger com todo desprezo que conseguia — Ouça, em silêncio.
— E mandaram a estrangeira vir contar sobre a tradição do país? — Killmonger comentou irônico, olhando de cima a baixo com desdém, não iria medir suas palavras com ela e já estava esperando por aquilo — Engraçado, mas já esperava isso de Wakanda. O país que virou as costas para a criança de sua própria família, mas acolheu e protegeu uma criança estrangeira. Uma francesa. Depois de tudo que seu país imundo fez com a gente.
— Eu não sou o país em que nasci e você não sabe nada sobre a minha vida — rebateu séria, segurando-se para não piorar a situação — Sua briga não é comigo, estou te avisando.
— Você acha que eu tenho medo de você? — Ele riu amargo — Quer saber o que eu acho?
— Nem precisa se dar ao trabalho, não faz diferença. Ninguém aqui se importa com o que você acha ou não — rebateu, seus olhos semicerrados, sem desviar do dele.
Entendia a frustração e a dor que ele carregava. Era esperta o suficiente para ter entendido o que aconteceu com ele. Killmonger era uma vítima de uma decisão ruim de T’Chaka. Uma vez mais o rei controlou a vida de alguém a seu favor. Aquilo não era novidade para e, ainda assim, era uma tragédia. Não deveria ter sido daquela forma para Killmonger e não podia sentir o que ele sentia, mas podia imaginar. De alguém que também cresceu longe de ter uma família, que perdeu seus pais tão cedo, ela podia imaginar. Mas se ele não estava disposto a resolver as coisas com decência e com respeito, não seria ela que faria daquela forma. Ela só queria fazer o que tinha sido designada a fazer e sair do caminho dele.
— Isso está prestes a mudar. O desafio vem aí — O homem tombou a cabeça, confiante e insistente.
— Se eu fosse você, e quisesse ter uma única chance, mínima, de vencer, eu não perderia tempo e ouviria sobre as regras — comentou ríspida, queria acabar logo com aquilo.
— E calado — Ayo completou, seu olhar de desprezo não desviava dele. Não tinha gostado da proximidade do homem com , estava em alerta.
— Eu conheço a tradição — Ele falou um tom mais alto e arrogante, encarando Ayo ao seu lado e voltando-se para — Não preciso ouvir ela de você.
— Ótimo, vamos ver o seu fracasso em breve — respondeu cínica, cruzando seus braços em seu peito.
— Eu vou vestir aquela coroa, . E sabe qual é a primeira coisa que vou fazer quando isso acontecer?— Killmonger deu um passo ainda mais perto de , seu rosto tão perto do dela que seus narizes quase se encostaram. Ele, então, pegou no queixo dela — Te matar. E depois? Matar o outro colonizador que vocês escondem aqui — Ele parou por um instante, vendo a expressão de fechar-se em raiva — Se bem que dizem por aí que ele é uma arma tão boa quanto vibranium, fácil de controlar, talvez tenha maior utilidade sendo usado do que morto.
continuou com seu olhar preso ao dele, sem se intimidar. Ela estava irritada pelas coisas que ouviu. Justo ou não, ele não tinha direito de mexer com , de desprezar sua história, de a ameaçar e, muito menos, de falar sobre Bucky daquele jeito. Aquilo irritou ela de uma forma inexplicável. Quem ele pensava que era para falar aquelas coisas? Para sugerir que Bucky era uma arma, que seria controlado outra vez? deixou-se levar pela raiva que sentiu e lhe deu um tapa na mão, afastando-a do rosto dela. Com a outra mão, deu soco na lateral do corpo dele, fazendo-o cambalear para trás e, em seguida, deu-lhe um tapa em seu rosto com toda força que tinha. Sem que tivesse tempo de reagir, ela pisou com força no joelho esquerdo dele, fazendo Killmonger cair aos seus pés, ajoelhado, e subir seu olhar cheio de ira até ela. Ayo sequer se moveu. sorriu cínica para ele, seu olhar tão soberbo quanto o dele antes de apanhar. Ela levantou levemente seu queixo, com um ar de superioridade, e sussurrou mais perto do homem:
— Tenta. Vou ficar esperando — E saiu da sala sem nem olhar para trás.
***
T’Challa contou a e Everett sobre a verdadeira história de Killmonger, minutos antes de ir para o desafio, quando passou no quarto da amiga para se despedir. O assassinato de seu tio aconteceu, na verdade, por Zuri, o ancião da erva-coração, décadas atrás, quando tentava proteger T’Chaka de ser morto pelo irmão. ouviu em silêncio, surpresa por conhecer aquela parte da história tão tarde e tão de repente, em um momento tão delicado como aquele. Talvez se soubesse antes, podia ter ajudado T’Challa a pensar em formas de resolver aquilo, mas era tarde demais. Aquele era um assunto muito delicado e ela sabia que, depois de ouvi-lo falar sobre o que estava sentindo, T’Challa só estava tentando resolver da melhor forma possível. Queria ser justo e pacífico, não queria entrar na dança violenta de Killmonger, só queria que tudo se resolvesse do jeito certo. No fundo, T’Challa tinha esperanças de que seu primo enxergaria o lugar dele em Wakanda como um lugar de recomeços e de direitos, e não de vinganças. Mas aquilo o preocupava.
T’Challa sentia que devia a aquela explicação porque sabia que, no fundo, aquilo tudo estava recaindo sobre ela tanto quanto estava sobre ele. Por mais que não tivesse relação alguma com aquela história, as consequências do desafio viriam à tona para ela, ele tinha que, no mínimo, ajudá-la a pensar em como lidar com aquilo.
— Você precisa me prometer que se eu não conseguir, se eu não vencer o desafio, você não vai se meter nisso — T’Challa disse tenso, olhando a sua frente, preocupada — Sei que tem muito em jogo para você nisso tudo, e eu peço desculpas. Mas é arriscado demais, você sabe que ele vai cobrar de você uma dívida histórica, vai descontar um passado do qual você não tem culpa. Você precisa me prometer que não vai interferir e não vai se meter nisso.
— Não têm chances de ele vencer — respondeu temerosa. Queria mesmo acreditar naquilo.
— Temos que ir — Shuri colocou a cabeça para dentro da porta do quarto, chamando T’Challa.
— Me promete, — T’Challa insistiu, olhando nos olhos da amiga, que assentiu incerta com a cabeça, o encarando de volta.
— Eu prometo — Ela suspirou — Vou fazer o que combinamos.
— Vamos dar um jeito de tirar vocês e o Sargento Barnes do país em sigilo, não se preocupe — T’Challa tentou ser o mais confiante possível, mas algo não soava bem.
— Como eu posso não me preocupar se parece que você está indo para a morte?
— Sorte a minha ser amigo de Aset — Ele sorriu fraco, vendo aproximar-se brevemente e o abraçar com força.
— Por favor, vença e, por favor, volte — sussurrou o abraçando com força, sentindo T’Challa retribuir.
— Por favor, não se meta com Killmonger. Se ele vencer o desafio, nós cuidaremos disso — T’Challa repetiu aquela informação, sua voz preocupada. Não havia contexto e nem motivo para que interferisse. Ele, sua família e os conselheiros dariam um jeito de resolver.
— Eu disse que só faltava ela começar a destituir governos agora — Shuri brincou da porta.
— Desde que não seja o de Wakanda, não vou me opor — T’Challa respondeu no mesmo tom, indo em direção a porta do quarto e vendo negar com a cabeça.
— Boa sorte, T’Challa — Everett falou preocupado, dando tapinhas nas costas do rapaz, assim que ele passou perto.
— Fique de olho no sinal — T’Challa olhou uma última vez e saiu assim que a ouviu responder:
— Vou ficar de olho na porta da entrada, esperando você passar por ela de volta.
Aquilo, contudo, não aconteceu. Para o desespero de , que passou todo o tempo do desafio sem notícias, pois a transmissão via drone não teve tempo de ser preparada dessa vez, T’Challa não voltou. Quarenta e dois minutos depois do desafio começar, recebeu o sinal pela pulseira Kimoyo. T’Challa havia perdido e ela não sabia mais detalhes. Não sabia como ele estava, se tinha se machucado, se tinha se rendido, se o desafio havia mesmo sido justo. E ela não tinha tempo para pensar, tinha que começar a correr, tinha que sair dali o mais rápido possível. Killmonger, o novo rei de Wakanda, iria do local do desafio para o santuário da erva-coração, onde passaria pelo rito com a ancestralidade, antes de voltar ao palácio. tinha pouco mais de uma hora para sair dali, antes que ele voltasse, e não sabia nem por onde começava. Sua mente divagando entre o desespero de não ter mais notícias de T’Challa, a angústia em tirar seu pai dali, a confusão em não saber o que fazer com Bucky, o medo de não ter para onde ir, a insegurança de ter que, uma vez mais na vida, lutar, literalmente, para sobreviver e a ansiedade em não saber quando Killmonger voltaria.
Ordenando mentalmente o que deveria fazer, e tentando ignorar o desespero dentro de si, e Everett deixaram o quarto pouco tempo depois de receber o sinal de que T’Challa havia perdido o desafio. ativou a ação de segurança máxima, que havia programado com a A.R.I.A. anos antes, para casos extremos como aquele. Assim que saíram efetivamente do cômodo, a porta do quarto de , assim como a do quarto 27, do outro lado do corredor, onde antes era ocupado por Bucky, fechou-se completamente, seguindo as paredes. Como se ali não houvesse uma porta ou quarto, olhando de fora era só um largo corredor, com paredes e nada mais. A ação também fez a exata mesma coisa com o laboratório de , garantindo assim que, todos os pertences dela e de Bucky, estivessem seguros e longes de vista, até segunda ordem.
Angustiada por não poder ter ido a coroação, Ayo encontrou e seu pai no meio de um dos corredores, em busca de qualquer que fosse a notícia. A cerimônia foi ajeitada com tanta pressa, que a maior parte das pessoas não pode comparecer e, mesmo aquelas que foram, não tiveram tempo de pensar em como informariam as que ficaram. e Everett contaram o que sabiam para ela, enquanto corriam apressados, e pediram ajuda para conseguir sair dali o mais rápido e seguros possível. Ayo estava na sala quando Killmonger contou a que a mataria. Sabia que ela poderia e conseguiria se proteger, mas sabia, igualmente, que era arriscado demais. e seu pai corriam risco de vida ficando ali, ela não hesitaria em ajudá-los. Tinha grande consideração por e tinha certeza de que se fosse o contrário, se ela, Ayo, estivesse precisando de ajuda, não pensaria duas vezes em protegê-la. Ela, então, se comprometeu a levá-los até a fronteira.
Esperando o elevador chegar até o andar do laboratório médico, tentava calcular qual seria a melhor maneira de fazer aquilo. Não tinha certeza se deveria, não estava programado para ser daquele jeito e, embora os resultados estivessem muito bons, ainda não era a hora certa. Não queria correr o risco de não dar certo, ela havia feito promessas. O que faria se desse errado? Se não funcionasse? Qual era o plano b, afinal? Nunca sequer cogitou a possibilidade de algo parecido com aquilo acontecer. Nervosa e desesperada por estar vivendo aquele caos, saiu do elevador e entrou no laboratório feito um furacão, com seu pai e Ayo logo atrás, igualmente confusos e angustiados.
— A.R.I.A.? — chamou alto, ouvindo a inteligência artificial prontamente responder — Dê início ao protocolo 22 de fevereiro.
— Confirmar protocolo 22 de fevereiro? Apenas 59% do tratamento foi finalizado — A.R.I.A. perguntou para certificar-se. passou as duas mãos pelo rosto, tinha que decidir rápido.
— Confirmar. Vai ter que ser suficiente — suspirou.
— Protocolo 22 de fevereiro? — Everett perguntou confuso, não tinha conhecimento sobre ele. sorriu de lado, triste.
— Vai desligar a criogenia e começar a acordar ele — Ela desviou seu olhar até a câmara de criogenia, onde Bucky dormia tranquilo. Everett e Ayo se aproximaram, igualmente encarando a câmara — Vinte e dois de fevereiro era o dia certo para o tratamento acabar… para nos vermos de novo.
ficou meio constrangida de dizer aquilo em voz alta para seu pai, não sabia como ele reagiria se soubesse, exatamente, como ela se sentia em relação a Bucky. Naquela altura, não tinha clareza sobre o que sentia por ele, como poderia conversar sobre isso com seus pais? Se não fazia sentido para ela, como poderia fazer para eles? Everett retribuiu o sorriso triste. sempre tinha sido carinhosa, mas aquilo era diferente. E ele já tinha percebido desde o dia em que conversou com James, assim que chegaram em Wakanda, de volta da Sibéria. Eles se preocupavam um com o outro, se compreendiam, se respeitavam. não o julgava e ele escolheu ficar por perto dela, mesmo depois de saber de tudo. Em tempos intensos, sentimentos intensos surgiam, foi assim com Everett e Karl, estava sendo assim com e Bucky. Everett se preocupava com sua filha, sim, tinha medo do que Bucky poderia oferecer para ela e não queria que ela se decepcionasse. Mas o que ele poderia fazer? Se ela o escolhesse mesmo, de verdade, de coração, ele não iria, nunca, se opor. Mas aquele não era um assunto para aquele momento.
— O que vamos fazer com ele? — Everett perguntou tenso. Ele sabia como a criogenia funcionava, não conseguiram tirá-lo de lá e acordá-lo em minutos.
— Ele vai descongelar, precisamos de uma troca de roupas, a dele vai estar molhada quando sair da câmara — respondeu apressada, dando uma olhada ao redor. Estava relativamente perdida. Everett assentiu com a cabeça e começou a procurar com os olhos onde poderia encontrar o que pedia — E precisamos de uma cadeira de rodas para mover ele até o carro, acho que é o jeito mais fácil.
— Interrompendo oxigenação e acesso de nitrogênio — A.R.I.A. avisou e, em segundos, o gás que saia dentro da câmara de criogenia cessou completamente.
— Tem uma cadeira de rodas no armário, vou buscar — Ayo avisou e foi rapidamente para o fundo do laboratório.
— Você acha que isso serve? — Everett perguntou com um tecido xadrez vermelho e preto em mãos e outro, menor, azul marinho. Tinha encontrado dentro de uma das gavetas, não tinha ideia do por que aquilo estava ali e nem para o que, exatamente, servia.
— Deve servir — concordou com a cabeça, voltando sua atenção à tela de monitoramento de Bucky em sua frente. Estava preocupada com como o corpo dele reagiria a uma saída tão brusca da criogenia. A diferença de oxigenação, de temperatura, de posição, tudo iria incomodar, e muito, ela sabia. As próximas horas seriam muito desconfortáveis para ele. Bucky acordaria fraco, com dores e completamente perdido. E pior: acordaria com a sensação de que aquele dia era 22 de fevereiro, que ele estaria, finalmente, curado. Mas já não podia mais garantir aquilo e, justamente por isso, estava insegura sobre o que deveria ou não fazer.
— Desativar câmara? — A.R.I.A. perguntou, o painel na frente de mudando seus comandos automaticamente, conforme a IA ia seguindo o protocolo.
respirou fundo e deu alguns passos para o lado, parando de frente com Bucky. Aquela não deveria ser uma decisão que ela tinha que tomar, era difícil. Sabia o quanto aquele tratamento significava para ele e sabia o que aquilo tudo significava para ela. Foi a forma que encontrou que agradecê-lo por ter a levado até a Sibéria, por ter a ajudado a encontrar o que tanto buscava, por ter ficado com ela mesmo depois de tudo isso. Ela estava fazendo por ele o que ele tinha feito por ela, trazendo a paz de se ter o passado guardado onde ele deveria ficar. Se Bucky estivesse ali, o que ele faria? E qual seria a decisão dele naquele cenário? Como ele reagiria ao saber que o tirou do tratamento mais cedo? E se, no final das contas, não tiver dado certo, como ele se sentiria? não queria correr aqueles riscos. Mas diante de uma escolha complexa, entre arriscar a paz de Bucky e arriscar sua vida, não tinha muito mais em que pensar.
— Sim, pode desativar a câmara — concordou baixo, seus braços cruzados enquanto assistia o vidro da câmara descer lentamente, até travar no chão, totalmente aberta.
— Encontrei — Ayo voltou praticamente correndo, trazendo a cadeira de rodas já montada consigo e, sobre ela, uma toalha — E agora?
— Trava a cadeira aqui mais perto — pediu olhando de Bucky para Ayo, que concordou prontamente — Pai, você tira as travas de segurança dele e eu e Ayo vamos dar um jeito de colocá-lo na cadeira, ok?
— Tem certeza de que não quer que eu o segure? — Everett perguntou olhando sua filha assentir com a cabeça e foi até perto da criogenia. ficou bem perto e a frente de Bucky e Ayo parou do outro lado dele, de frente para Everett.
Contando regressivamente até três, Everett soltou uma a uma das travas de segurança de Bucky, que o mantinham em pé e estável na câmara de criogenia, de baixo para cima. Assim que a última das travas foi aberta, a do peito, o corpo de Bucky pendeu para frente com força, caindo em cima de . Ela o abraçou de frente com firmeza, segurando-o para não cair no chão. Bucky estava absurdamente gelado, sua respiração tão suave que mal podia ser notada, os batimentos cardíacos leves, lentos. puxou seu corpo abraçado ao dela com firmeza para trás, até conseguir se posicionar de frente para a cadeira de rodas. Sem demoras, Ayo ficou atrás da cadeira e, coordenadamente com , assim que ela alinhou Bucky a cadeira, Ayo segurou o corpo do homem de costas para ela, o sentando com cuidado.
— Quanto tempo ele vai demorar para acordar? — Ayo perguntou, olhando ajeitar a cabeça de Bucky, os cabelos dele caindo em seu rosto, incomodando.
— 48 horas, no máximo — respondeu séria, puxando delicadamente uma parte dos cabelos caídos de Bucky para trás.
— Temos que trocar ele, rápido — Everett comentou, indo buscar os tecidos que encontrou e deixou de lado para ajudar na criogenia.
— A.R.I.A. criptografe o tratamento e coloque senha de acesso na entrada desse laboratório, depois pode hibernar — comandou, observando seu pai voltar com os tecidos.
— Senha de acesso: vinte e dois de fevereiro — sorriu sozinha com a proposta de senha e seguiu ajeitando o cabelo de Bucky, que insistia em cair sob os olhos fechados dele — Hibernação ativada.
— Obrigada, ARI — falou alto, mas não obteve mais respostas. A.R.I.A. não seria descoberta e nem controlada por ninguém. Mais uma etapa concluída com sucesso — Espero te ver em breve.
Everett e Ayo trocaram Bucky com uma velocidade impressionante. Cortaram a regata e a calça que ele usava com precisão e amarraram o tecido nele, sentado, como se fosse uma túnica. descartou as roupas que, naquela altura já estavam encharcadas pelo descongelamento, e enxugou Bucky com a toalha que Ayo trouxe junto com a cadeira de rodas. Dez minutos depois, Bucky estava sentado na cadeira, desacordado, vestindo o tecido vermelho xadrez com preto, enquanto Everett amarrava o outro tecido, o azul marinho, em volta do pescoço dele, de modo que pudesse proteger melhor o ombro esquerdo dele e terminava de amarrar seu cabelo, levemente, em um coque.
— Gostei do estilo — Everett comentou observando Bucky, e Ayo se afastando levemente dele para olhar também.
— Ficou bem nele — Ayo respondeu entrando na brincadeira.
— Convenhamos, o que é que não fica bem nele? — falou baixo, atraindo atenção de Ayo e Everett ao mesmo tempo, ela deu de ombros — O que foi? É verdade.
Contudo, antes que qualquer um deles pudesse responder, uma imagem recém aberta em uma das telas no fundo do laboratório chamou a atenção de . Embora estivesse hibernada, A.R.I.A. continuava operante e rodando os monitoramentos que era programada a fazer, incluindo os alertas. Em casos de hibernação, a IA era instruída a não mandar alertas sonoros, mas pensar em outras formas possíveis de avisar sobre o que estivesse acontecendo, com discrição. E ali estava. Dando alguns passos mais próximos a tela, a trágica imagem projetada no visor era do santuário da erva-coração.
— ? — Ayo perguntou preocupada.
— Querida? O que foi? — Everett perguntou quase que ao mesmo tempo, vendo o olhar devastado da filha encarar uma das telas.
— A erva-coração — voltou seu olhar até Ayo, sua testa franzida — Ele está queimando todo o santuário da erva-coração.
— Por Bast — Ayo passou uma mão na testa, dando alguns passos pelo laboratório até chegar perto o suficiente para ver aquilo com os próprios olhos. Aquele homem mal tinha sido coroado, já estava destruindo o que era sagrado naquele país. se arrependeu por um instante de ter prometido a T’Challa que não iria se envolver naquilo. Tudo parecia muito fora do normal, a situação piorava a cada segundo.
— Preciso avisar T’Challa ou Shuri, temos que esperar eles antes de sair daqui — viu seu pai negar com a cabeça, nervoso.
— Você não pode esperar, , não pode ficar aqui. Killmonger não pode te encontrar — Everett falou assertivo — Deixa que eu vou.
— Eu não vou arriscar sua vida, pai — Foi a vez de negar com a cabeça. Seu olhar tenso em seu pai, enquanto Ayo observava, incrédula, as imagens da destruição do santuário.
— Ele não sabe que eu estou aqui e eu sou um agente, sei fazer coisas em segredo — Everett rebateu cirúrgico.
— Se o santuário está queimando, ele deve estar vindo para cá já — Ayo comentou virando-se de frente para os outros dois. e Everett se entreolharam por um instante.
— Vocês tiram o Barnes daqui e vão pra fronteira. Eu vou encontrar algum deles e dizer sobre a erva-coração. Eles não vão poder ficar aqui também, vou me proteger com eles e nos encontraremos na fronteira assim que for seguro.
— Como vamos nos encontrar? — perguntou preocupada, não sabia se seu pai estava sendo corajoso ou suicida.
— Terceiro chalé, na linha da fronteira oeste — Ayo respondeu objetivamente. e Everett olham confusos para ela — É da minha família, mas está vazio, vamos para lá.
Pouco minutos depois, no corredor, antes de chegar ao estacionamento do palácio, e Everett se despediram com um breve abraço e foram por caminhos diferentes. Sabiam que as chances de aquilo dar certo eram quase nulas, mas era o que tinham para aquele momento. Ayo era uma peça fundamental para tirar e Bucky dali, e os esconder em segurança. não conhecia tão bem a tribo da fronteira, tinha estado lá poucas vezes em todos aqueles anos, e não sabia se poderia confiar em alguém. Ela não podia ficar e seu pai não podia ir, alguém tinha que avisar sobre a erva-coração, aquilo era importante. Sem a erva, o manto de Pantera Negra ficaria, para sempre, com Killmonger. Everett tinha razão. Ele era treinado e preparado para lidar com situações de pressão como aquelas, estava acostumado a trabalhar camuflado, tinha muito experiência naquilo. O fato de Killmonger não saber sobre a presença dele no país era uma vantagem e, de fato, uma vez que encontrasse T’Challa, Shuri e Nakia, estaria protegido com eles.
Naquele momento, contudo, o que e seu pai não sabiam era que T’Challa tinha sido dado como morto e Nakia já havia descoberto sobre a destruição do santuário da erva-coração. Não precisavam se separar, mas não souberam disso a tempo. deixou sua pulseira kimoyo para trás, com medo de ser localizada por meio dela, e, daquele momento em diante, perdeu completamente o contato com as únicas pessoas que podia confiar em Wakanda naquele momento.
Ayo deixou e o lobo branco para trás, no chalé mais isolado possível. A tribo da fronteira não costumava construir suas moradias próximas umas das outras, então aquilo não seria um problema, eles não seriam incomodados, mas poderiam pedir ajuda, caso necessário, ao único chalé vizinho. Não poderia ficar ali com eles, tinha obrigações a cumprir e, até segunda ordem, tinha que ficar no palácio. De lá ela poderia ficar de olho nas movimentações do novo rei, avisar qualquer coisa e interferir caso houvesse necessidade. Com o coração na mão, e depois de ajudá-la a colocar James na cama, Ayo pegou o carro de de volta e foi embora tão rápido quanto chegou.
De dentro do chalé, ajeitou Bucky deitado na cama e ficou com ele lá, em silêncio, angustiada. Não sabia dizer exatamente quando ele iria acordar, mas ela estava ansiosa para aquilo. Queria contar para ele o que aconteceu, queria explicar o motivo que a forçou a tirá-lo da criogenia, queria vê-lo. sentia saudades, sentia desespero, sentia medo. De tempos em tempos, ela ficava em pé na porta do chalé, observando atentamente o descampado lá fora, o sol se pondo na lagoa ali perto, deixando o lugar pacífico ainda mais calmo e sereno. Mesmo com todos os problemas, Wakanda foi sua casa por tantos anos, não queria que tudo terminasse daquela forma. Ela estava sendo forçada a deixar tudo para trás.
Sem notícias de seu pai ou de qualquer outra pessoa, e absurdamente ansiosa, com medo de a encontrarem ali e de acontecer algo com Everett, cheia de expectativas em ver Bucky acordado outra vez, passou a segunda madrugada seguida acordada. A temperatura de Bucky parecia estar mais próxima do normal e sua respiração mais pesada, sinais de que ele estava voltando à realidade. Ele dormia tranquilo, como se estivesse em uma boa noite de sono, e , de hora em hora, sentava-se na beira da cama para checar se ele estava realmente bem ou ajustar os cobertores. Não tinham aparelhos ali, nem medicamentos, nada. Torcendo para que ele ficasse bem, que não tivesse pesadelos e que acordasse logo, ficou observando Bucky dormir por mais tempo do que conseguiu calcular. As dezenas de morangos que criou com a fitocinese sendo comidas inconscientemente, pela ansiedade, e a canseira tomando conta dela. Horas depois, perto de amanhecer novamente, sentou-se no chão, ao lado da cama em que Bucky estava deitado, e apoiou seu rosto em seus braços em cima da cama, como se deitasse ali também. não conseguia pregar os olhos. Estava sozinha e com medo, estava pronta para fazer o que fosse preciso para salvar a si mesma e para proteger Bucky.
***
Trinta horas foi o tempo em que demorou. Bucky sentia seu corpo pesado. Como se tivesse dormido muitas horas, sua cabeça latejando de dor, seus olhos pareciam se recusar a abrir e seu corpo estava preguiçoso, cansado. Não sabia dizer se estava sonhando ou se, de fato, estava acordando. Ele estava assustado, com receio de se mover, incerto sobre o que deveria ou não fazer. Não queria realmente levantar dali, mas sua ansiedade não o deixaria ficar deitado por muito mais tempo. Ele tinha acordado da criogenia, estava de volta depois de oito meses, era vinte e dois de fevereiro para ele. Respirando levemente e esperando seus olhos se acostumarem com a iluminação do local, Bucky deu uma rápida olhada ao seu redor, sem se mover, ainda deitado. Não havia medicamentos, aparelhos ou qualquer clima hospitalar. O silêncio extremo entregava que ele não estava mais no laboratório, onde esperava acordar.
Um calafrio subiu sua espinha, suas mãos estavam geladas, ele estava com frio, mas estava coberto, estava deitado, aquilo era estranho. Bucky imaginava que acordaria da criogenia em pé, do mesmo jeito que entrou nela. E pensava que tudo isso aconteceria no mesmo laboratório em que o tratamento se iniciou. Por um segundo, com a visão ainda turva, Bucky sentiu um medo crescer dentro de si. Talvez algo tivesse acontecido, talvez alguém o tivesse encontrado, talvez ele não estivesse mais em Wakanda. Aquilo não parecia ter sido programado, não tinha dito que acordaria daquele jeito, nem em outro lugar. .
A mente de Bucky o levou até a última vez em que a viu, os olhos tristes por ter que se despedir dele, o sorriso discreto, o melhor abraço do mundo. A sensação de medo, então, foi cedendo espaço para um conforto estranho, mas muito gostoso. A vontade de vê-la outra vez, de poder conversar com ela, de poder a sentir. Bucky estava com saudades. Embora não tenha sentido a passagem do tempo, ele sabia que foram meses e imaginava, esperava, que ela tivesse sentido sua falta também. Piscando forte por alguns segundos, Bucky percebeu que, na verdade, não era exatamente seus olhos que estavam turvos. As pequenas sombras que o cercavam aproximaram-se lentamente, Bucky podia sentir, até, finalmente, aparecerem em seu campo de visão. Três rostinhos curiosos, e um tanto quanto receosos, o olhavam deitado. Eles tinham o rosto pintado de branco e usavam túnicas alaranjadas.
— Ngaba uvukile? — Uma das crianças perguntou baixo, como se Bucky não a estivesse ouvindo.
— Senhor lobo branco? — A outra perguntou incerta, curvando-se um pouco mais perto do homem.
Confuso e com vontade de rir pelo apelido, Bucky sentou-se na cama em um movimento rápido, mas calmo. Assustados pelo movimento repentino, as crianças correram rapidamente para fora dali, deixando um Bucky sorridente para trás. A reconfortante sensação de ter pessoas por perto dele, pessoas que não sentiam medo dele, tomando conta de sua mente. Aquilo tinha sido bom, uma sensação diferente. Talvez já fosse um ganho do tratamento, talvez de fato tudo estivesse mudando. Uma das crianças havia falado em xhosa e a outra o chamado de lobo branco. Bucky sorriu aliviado, e um tanto quanto feliz, ao concluir que ainda estava em Wakanda.
Ele então deu uma rápida olhada ao seu redor, o chalé pequeno e bastante aconchegante não tinha divisão de cômodo, apenas para o banheiro. O que seria o quarto e a cozinha era um espaço único, bem iluminado e o clima parecia confortável. Virando-se na cama para se levantar, Bucky reparou que não estava mais vestindo as roupas do laboratório, mas sim uma túnica, parecida com a que as crianças vestiam. O coque no cabelo e os pequenos talos de morangos comidos em cima da bancada da cozinha entregavam que ele, definitivamente, não tinha ficado ali sozinho. Sentindo seu coração acelerar em ansiedade e certo nervosismo, parte de Bucky esperava por ela. Mas ela não estava ali. Ao menos, não ali dentro com ele.
— Estão brincando perto daquele homem de novo? — A voz de Shuri, vindo do lado de fora, chamou atenção de Bucky, que caminhou lentamente para a porta do chalé. Talvez estivesse lá fora com ela.
— Não — Bucky pode ouvir as vozes dos meninos responderem, manhosos.
— Estão provocando ele de novo? — Shuri voltou a perguntar.
Bucky saiu do chalé meio atordoado, o sol incomodando sua vista. Não sabia exatamente onde estava, aquele lugar era novo para ele. A grama no chão tocando seus pés descalços e a leve brisa pegando em seu rosto fizeram Bucky se sentir vivo outra vez. O chalé, que mais parecia uma cabana, ficava entre uma floresta imensa e um lago, Bucky só percebeu ali, então, que tinha sido tirado do palácio. Sem entender o porquê, ele olhou ao redor mais algum tempo, absorvendo a desconhecida sensação de paz e procurando quem ele tanto desejava encontrar. Onde estava ? A luz do sol deixava o lugar ainda mais bonito e pacífico e ele viu as crianças, que conversavam com Shuri, correrem de volta até a cabana vizinha a dele, enquanto diziam “lobo branco” sem parar, como se fosse uma canção. Perto do lago, Shuri olhou para ele e sorriu levemente, esperando que ele fosse até ela. Sabia de alguém que gostaria de estar ali, o vendo bem e acordado. Ayo e outra Dora Milaje, que acompanhavam Shuri, mantiveram-se mais afastadas, perto da floresta, esperando pacientemente.
— Bom dia, Sargento Barnes — Shuri falou baixo, assim que Bucky parou ao seu lado, a encarando. No fundo, estava levemente frustrado por não ser ali.
— Bucky — Ele corrigiu no mesmo tom, depois de pensar por alguns segundos. Aquele era seu recomeço, a sua chance de, finalmente, ser só o Bucky.
— Como se sente? — Shuri perguntou preocupada, apontando levemente para ele. Bucky desviou seu olhar do dela por alguns instantes, vendo o lago à sua frente. Aquela era a primeira vez, desde que acordou, que tinha parado para pensar naquilo. Estava bem. Em oitenta anos, ele estava se sentindo bem e aquilo era… inédito.
— Bem — Bucky respondeu depois de algum tempo, sorrindo sem emoção — Obrigado.
— Vem, ainda tem muito o que aprender — Shuri sorriu sincera e deu um tapinha na barriga dele, como se o puxasse para sair dali. Ela deu alguns passos se afastando dele, mas Bucky permaneceu parado, olhando a vista do lago por mais alguns segundos.
Estava feliz por estar ali e feliz por ver Shuri, alguém conhecido. Mas não era exatamente ela quem Bucky queria encontrar naquele momento e, inevitavelmente, sua mente o levou de volta, outra vez, para o dia em que entrou na criogenia. tinha prometido. Ela disse que estaria onde ele estivesse, que estaria lá quando ele acordasse, onde ela estava agora? Parte de Bucky acreditava que era só uma coincidência e que havia uma explicação. Mas a outra parte, a mais forte, tinha a sensação terrível de preocupação, um medo repentino de que algo poderia ter acontecido com ela. Talvez tenha ido atrás de Sam com Steve e não tenha voltado mais. Talvez ela estivesse presa. Talvez ela só tivesse… desistido dele. O tempo passou para , ela tinha que seguir em frente e era justamente esse o medo de Bucky antes de entrar na criogenia. Não queria perder , não sabia se a tinha perdido e só tinha um jeito de descobrir.
— Shuri? — Bucky chamou baixo e incerto, sua expressão triste enquanto virava-se de frente para Shuri, que voltou-se para olhá-lo — Onde ela… onde ela está?
Oito horas depois de retornar a Wakanda, Everett acordava meio atordoado, como se estivesse despertando de um pesadelo. Sua mente tentava processar o que tinha acontecido e para onde exatamente tinha sido levado. A última coisa de que se lembrava era de estar em Busan, em uma central de investigação da CIA, com Klaue, T’Challa, Nakia e Okoye, além de alguns outros agentes. Everett tinha acabado de interrogar Klaue, estava fingindo incredulidade pelas coisas que havia ouvido dele sobre Wakanda e, depois de pegar informações suficientes para o caso, questionava T’Challa, como haviam combinado, na frente de outros agentes. Não podia entregar sua relação com o país, não podiam deixar nada escapar, não podiam descobrir sobre . E tudo parecia correr bem, os disfarces mantidos, Wakanda segura, Klaue preso, até a central ser explodida e Everett levar um tiro nas costas, exatamente na espinha, protegendo Nakia de ser atingida.
A dor terrível que sentiu antes de desmaiar passou, então, pela mente de Everett, enquanto ele se levantava calmamente de onde estava deitado. Não era a primeira vez que tinha sido atingido por uma bala em sua vida, mas era a primeira vez em que, depois disso, não acordava em um hospital e que, estranhamente, acordava sem qualquer resquício de dor. Everett se sentou meio sem jeito na maca, notando as paredes ao seu redor, que formavam um arco sobre si, moverem-se, desativando automaticamente o painel de monitoramento e ficando cinzas, como se ali nunca tivesse existido painel algum. Vestindo uma túnica grafite com desenhos geométricos em um tom mais claro, o homem passou a mão pela coluna em busca de qualquer resquício da bala em seu corpo, mas, aparentemente, não havia mais nada ali. Nada. Nem sequer um curativo. Everett olhou as próprias mãos, confuso, e saltou da maca, dando alguns passos silenciosos para frente, agora olhando atônito o laboratório em que estava. Ele já tinha uma ideia de onde estava, mas teve certeza absoluta quando ouviu uma risada baixa e abafada, vindo mais adiante.
— Não vai acontecer nada com você, eu juro — A voz de Shuri falando baixo despertou atenção do homem, que caminhou mais alguns passos até ver ela e sua filha paradas de costas para ele, observando um manequim. Everett franziu a testa.
— Se isso vier para cima de mim, igual da última vez, eu vou envenenar sua comida — olhou Shuri de lado, seus braços cruzados. A amiga revirou os olhos.
— Encosta logo o seu tornozelo no do manequim, — Shuri apontou com as duas mãos para o objetivo à sua frente — É igual ao do seu último traje, sua desconfiança estragou a surpresa.
— Ah, achei que fosse fazer uma pulseira dessa vez — deu de ombros.
— Tornozeleira é mais estilosa e mais discreta — Shuri refletiu impaciente — Anda logo, maninha, quero saber o que você vai achar.
descruzou os braços e deu alguns passos em frente. Shuri estava trabalhando há meses em um novo traje para , desde que seu último foi completamente destruído por Tony Stark, na Sibéria. Era comum que, de tempos em tempos, Shuri aparecesse com inovações nos trajes. Ela estava sempre tentando superar a última versão, sempre trazendo maior precisão, conforto e tecnologia. Como se fossem carros novos, ela pensava em cada um dos detalhes com atenção e todas as versões novas eram absolutamente melhores do que as antigas. e T’Challa viviam fazendo provas e testes de equipamentos e roupas que Shuri criava para eles e ela sempre, sempre, ficava empolgada em vê-los testando pela primeira vez. Não estava diferente naquele momento, esperando ansiosa pela reação da amiga.
havia passado a noite inteira ao lado de seu pai, monitorando os aparelhos para ter certeza de que ele ficaria bem, vivo e sem sequelas do tiro que levou. Estava preocupada com ele, não poderia simplesmente ir dormir, não conseguiria. Ela não estava esperando o reencontrar tão cedo e também não podia imaginar que a missão em que ele estava terminaria daquela forma. Ela sentiu medo de perder Everett e, por mais confiança que tinha na tecnologia e na ciência, ainda assim deixou-se levar pelo pavor de perder mais alguém. Nada podia acontecer com seus pais. Nunca. E ela não sairia de perto dele até ter certeza absoluta disso. , então, ficou no laboratório de Shuri desde que T’Challa, Okoye e Nakia voltaram com Everett da Ásia e acompanhou sua breve cirurgia. Estava tensa, esperando que seu pai acordasse logo, tinha conversado com Karl na madrugada e, na solidão de não ter mais com quem dividir tudo o que estava passando, Shuri decidiu ficar com ela. Horas depois e sem terem mais o que fazer, Shuri achou que seria um bom momento para mostrar seu novo projeto, talvez a distraísse um pouco, talvez a deixasse feliz em saber que sempre tinha alguém pensando nela e que não estava, nunca, sozinha.
O manequim de frente para vestia apenas a nova tornozeleira, um pouco mais fina e brilhante que a última, como se fosse uma barrinha de metal. Os traços finos desenhando flores no vibranium preto podiam ser vistos com mais facilidade do que na última e, segundo Shuri, era mais leve também. aproximou-se o suficiente e encostou seu tornozelo no objeto, como Shuri pediu. Em segundos, a partir da tornozeleira, o traje foi se abrindo pelo corpo do manequim, parte por parte, em um movimento que, olhando de frente, parecia como se flores estivessem brotando. O macacão preto pegava o corpo inteiro, em um tecido de fibra de vibranium mais fino e maleável do que o anterior, tão discreto que ninguém, nunca, poderia dizer que aquela roupa era feita de metal. Os tons de verde escuro misturavam-se com o preto e finas linhas desenhavam flores e folhas em verde um tom mais claro, por todo o macacão.
reparou na pequena flor de oleandro, de onde Neriine, o mesmo veneno que corria em suas veias, podia ser extraído, desenhada bem ao centro do peito do macacão, em meio ao discreto contorno de outras flores e folhas. Ela sorriu sozinha, aquilo era lindo. No pulso direito havia um sutil sobressalto do traje, como uma pulseira, e estava virando-se para perguntar a Shuri o que era aquilo, quando algo chamou sua atenção. Everett sorriu vendo sua filha passar a mão pelo pequeno e absolutamente discreto “A” no braço direito do novo traje. olhou curiosa para Shuri, mas não precisou perguntar nada.
— Capitão Rogers viu o desenho do seu traje, no dia em que trabalhamos juntos aqui, e ele me pediu para colocar — Shuri explicou sorridente, estava ansiosa por aquele exato momento — Parece que você faz parte do grupo agora, maninha.
não conseguiu responder nada, apenas sorriu sincera e concordou com a cabeça, voltando seu olhar para a pequena e discreta letra. Não sabia mensurar o quanto aquilo significava para ela, porque não tinha tido muitas oportunidades de pertencer à algo ao longo de sua vida. Esteve por tantos anos sozinha, tanto tempo tentando se adaptar a ambientes aos quais não pertencia, tantas vezes em que foi tratada como diferente, como alguém que jamais iria se integrar. Aquilo era especial, era carinhoso e era algo que só Steve poderia ter pensado, porque ele sabia como ela se sentia. sentiu seu coração apertar, a sensação forte de saudades a consumindo por dentro, enquanto ela sorria fraco por fora, encarando o traje. Steve estaria com ela onde quer que ela estivesse e estaria por ela, sempre que precisasse, porque eles se pertenciam. Aquele era o recado. tinha ele, como tinha Sam, como tinha Shuri e T’Challa, como tinha um grupo ao qual pertencer agora.
Ainda parado em pé atrás das duas mulheres, Everett viu a filha engolir o choro. Podia imaginar como ela estava se sentindo, o carinho silencioso e a saudade pela distância, o orgulho em pertencer. era uma vingadora agora e isso era, para Everett, um grande feito. Sua filha tinha chegado longe, tinha lutado pelo o que era certo e estava ao lado da justiça. estava, finalmente, depois de tanto tempo, aparecendo, sendo valorizada e sendo acolhida por quem ela era. Karl amaria estar ali, para presenciar aquele momento, a única coisa boa que havia acontecido com em tempos. Os meses que se passaram desde que ela deixou Wakanda para ir à Lagos tinham revirado a vida de e, em grande escala, para pior. Muita coisa havia acontecido, muitas pessoas haviam chegado e muitas pessoas haviam ido embora, não era fácil processar tantas informações, não estava sendo fácil para ela, ele sabia. estava sendo forte, apesar de tudo. Estava lidando com a morte de T’Chaka, com o afastamento de Steve e com a preocupação com Sam. Estava lidando com o que Sharon tinha feito, uma das poucas pessoas que tinha confiado sua vida, com o mundo inteiro sabendo sobre ela, com o que sentia em relação a isso, à Zemo. Ela estava preocupada com James, fazendo o possível e o impossível para que ele se recuperasse e saísse logo da criogenia. estava cansada. Cansada das lutas, das perdas, cansada das reviravoltas, das situações inesperadas, repentinas. Estava consumida por tantas coisas ruins, pela solidão e pelo caos que estava vivendo. Aquilo representava muito. Era um alívio, uma vitória para ela. Everett conhecia muito pouco de Steve, e muito pelo o que falava sobre ele, era, realmente, um homem bom.
— Obrigada, Shuri, é lindo — comentou baixo, ainda com os olhos marejados, virando-se levemente para a amiga, que sorriu orgulhosa de si mesma.
— Claro que é, fui eu que fiz.
— Um “de nada” já era o suficiente — sorriu forçadamente, engolindo suas lágrimas. Shuri sabia mesmo como acabar com um momento.
— Sempre que precisar, maninha — Shuri bufou contrariada, vendo rir baixo.
— Conte com isso, logo alguma coisa acontece e você já precisa fazer um novo — colocou as mãos nos bolsos da calça de alfaiataria que usava.
— Já estou levando isso em consideração — Shuri apontou para uma das bancadas mais ao canto do lab, onde outras tornozeleiras podiam ser vistas — Pode assumir, eu sou demais. Deveria cobrar pelos meus serviços, você e T’Challa são muito mal acostumados.
— Você é insuportavelmente convencida — provocou, arregalando os olhos.
— Autoconfiante, é diferente — Shuri deu de ombros, olhando da amiga para o traje. Aquele era, definitivamente, um dos melhores que tinha feito para ela. Estava realmente feliz com o resultado.
— Onde eu vim parar? — Everett perguntou retórico, sua voz cortando o ambiente, assustando as duas mulheres. Shuri e viraram-se para ele quase ao mesmo tempo, seus olhos arregalados. Não estavam esperando por aquilo, Everett deveria estar… dormindo?
— Não se assusta alguém dessa forma — Shuri comentou horrorizada, seu coração na boca.
— Por Bast, pai, quer nos matar? — levou uma mão em seu peito.
— Desculpe, queridas, alguém precisava parar vocês antes que saíssem nos tapas — Everett deu de ombros, vendo a filha aproximar-se dele rapidamente e lhe dar um abraço.
Ela afundou seu rosto no pescoço de seu pai e o abraçou com tanta força que Everett achou que ela o esmagaria. Não queria ter levado um tiro, claro que não, muito menos a preocupado daquela forma. já tinha coisas demais com o que se preocupar. Contudo, por outro lado, parte dele estava feliz por estar ali, com ela, outra vez. Só faltava Karl agora. Everett deixou um suspiro sair, sentia falta de ter sua família junta e podia imaginar que Karl estivesse subindo as paredes de preocupação com ele.
— Como você está se sentindo? — se afastou um pouco dele, seu olhar preocupado — Achamos que você não iria sobreviver, ainda bem que T'Challa te trouxe para cá.
— Eu estou bem, florzinha, me sentindo bem, não se preocupe — Everett deu uma olhada ao seu redor, segurando uma mão de — Estamos em Wakanda? Aqui é Wakanda?
— Não, tio, é o Kansas — Shuri rebateu com obviedade, aproximando-se do homem e sorrindo. a encarou séria.
— Há quanto tempo aconteceu a Coreia? — Everett voltou a perguntar, ignorando o comentário de Shuri. Era normal se sentir atordoado. Tinha um recorte temporal sobre o que tinha acontecido, tinha passado por um trauma, tomado medicamentos e tinha o fuso horário. Estar perdido era o mínimo esperado.
— Ontem — respondeu o olhando, apertando levemente a mão dele.
— Acho difícil de acreditar, nunca vou me acostumar com isso — Ele sorriu leve e sincero para , desviando seu olhar até Shuri — Da noite para o dia não se cura ferimento por bala, parece magia.
— Não aqui — Shuri deu dois tapinhas no ombro dele e caminhou até uma das bancadas do lab — Não magia, tecnologia.
Everett concordou com a cabeça e sorriu brevemente. Não importava o quanto conhecia daquele país e nem quantas vezes já tinha presenciado situações como aquela, sempre parecia incrível demais, inacreditável demais. Conhecia o país há muitos anos, antes mesmo de ser levada até lá, e, ainda assim, conseguia se surpreender. Olhando ao redor com curiosidade, observava seu pai tentar encaixar as peças das últimas horas, mentalmente. Era difícil digerir informações naquela situação, ele precisava de mais algum tempo para se sentir confortável.
— Não toquem em nada, meu irmão vai voltar logo — Shuri voltou a dizer, quebrando o breve silêncio, enquanto prestava atenção em algo em cima de sua bancada.
— Ela é sempre assim? — Everett perguntou baixo para , passando um braço pelos ombros da filha, que deu de ombros e concordou com a cabeça.
— As vezes é pior — Ela o abraçou de lado, pela cintura — Temos que avisar Karl que você está bem, ele está uma pilha de nervos, ligou cem vezes de madrugada.
— Eu imagino — Everett soltou uma risada fraca. Se bem conhecia Karl, ele deve até ter comprado a passagem aérea — O que ele disse?
— Que você não deveria ter se metido nessa sozinho, que ele avisou que não era uma boa ideia se meter com Klaue e que você deve à ele uma festa de casamento antes de morrer — sorriu abertamente vendo seu pai rir alto.
— Vinte anos de casados depois, ele ainda não esqueceu que não teve a festa dos sonhos — Everett comentou rindo leve e caminhando lentamente abraço à , até mais perto da parede de vidro do laboratório.
Karl era um homem romântico, sempre foi. Era do tipo que fazia jantares em aniversários de namoro, comprava presentes fora de época e não media palavras para declarar seus sentimentos. Gostava de escrever sobre o amor e o demonstrava constantemente, em gestos simples e sempre carregados de carinho. Karl era simbólico. Tudo em sua vida era banhado por conceitos e subjetivismos, ele gostava das entrelinhas, das sensações, do que não era tão claro, mas, ainda assim, podia ser vivido, sentido. Ele gostava de tradições. E desde que se apaixonou por Everett sonhava em, algum dia, poder ter uma festa de casamento tão linda quanto o amor deles dois. As circunstâncias, contudo, nunca deixaram com que isso acontecesse e Karl carregava isso em seu coração. Everett pensou por um momento que devia aquilo a ele, devia mais a sua família. Não podia prever o que aconteceria a seguir, ele quase havia morrido em Busan, poderia morrer a qualquer instante. Estava perdendo tempo e oportunidade de fazer mais pelas pessoas que tanto amava. Tinha que dar um jeito. E não podia esperar muito mais.
— Ele nunca vai esquecer, você sabe — comentou baixo, sorrindo divertida.
— Karl é muito apegado aos detalhes, acho que é por isso que ainda sou apaixonado por ele depois de tantos anos — Everett sorriu sem graça, sendo acompanhado por — Ele vem para cá, não vem?
— Não deixei. Achei que não seria seguro, poderia colocar ele em risco e todos nós — respirou pesadamente, olhando para os gigantes trilhos de levitação magnética lá fora da janela — Quanto menos nos movimentarmos agora, depois que Sharon… bom, você sabe, me entregou, melhor.
— Tem razão — Everett concordou com a cabeça levemente — Alguma notícia dela, falando nisso?
— Nenhuma. E, sinceramente? Acho que não quero ter. Ela podia ter pedido ajuda para vocês ou para mim, sempre mantemos os canais de comunicação abertos, sempre fomos honestas uma com a outra. Ela sabia que eu não poderia simplesmente voltar para Berlim — suspirou, seu tom de voz mais sério do que antes — Tinham alternativas. Steve estava prestes a entrar em contato com ela, quer dizer, se soubéssemos antes que ela estava sendo procurada, podíamos ter dado um jeito de ela se juntar à ele e Sam em Nice. Ela não quis nos procurar. Agora é tarde demais.
— Ela ditou as regras do jogo. Agora nós só jogamos, é isso — O homem concordou, encostando-se em uma das mesas, como se sentasse levemente nela. Triste em saber que Sharon tinha tomado aquela decisão, mas tinha razão, não estavam mais em tempo de mudar nada, era seguir em frente e ver o que vinha a seguir — Falou com Steve ou Sam essa semana? Eles estão bem?
— Com Sam, no dia da coroação de T’Challa. Ele estava usando as roupas do Karl, disse que está dormindo na minha cama de criança e que Steve chorou vendo nossos álbuns de fotografia antigos — comentou risonha, sentando ao lado de seu pai e o ouvindo gargalhar.
— Quem diria, Capitão América emotivo e Falcão vestindo Tom Ford.
— O exílio não está fazendo bem para eles, eu acho — riu dando de ombros, separando-se levemente de seu pai e apontando com a cabeça para o lado — Viu meu traje novo?
— Eu vi e achei lindo como você — Everett comentou carinhoso, vendo sorrir e deitar levemente em seu ombro.
— Você acha que eu aguento... a responsabilidade? — perguntou incerta. Parte dela ainda custava acreditar que tinha sido integrada ao grupo. Steve estava confiando nela, tinha medo de decepcionar, de não conseguir lidar com as consequências de carregar aquela letra em seu uniforme.
— Você tem dúvidas disso? Steve está confiando a própria vida dele à você. Quem mais além de você sabe onde ele está neste momento? — Everett colocou sua mão na bochecha de , seus olhares no macacão à frente — Eu tenho certeza absoluta de que você aguenta a responsabilidade, sim, florzinha. Mais e melhor do que ninguém.
sorriu sozinha. A sensação de aconchego e carinho em ter seu pai por perto e poder tirar dele toda a segurança do mundo tomando conta dela. Momentos como aquele não eram tão comuns e sempre tentava aproveitar o melhor deles. Ela ia responder algo, contudo sua pulseira Kimoyo vibrou bem em tempo. E como se houvesse combinado, alguns passos dali, Shuri sentiu a sua vibrar também. desencostou-se de seu pai e saltou de onde estava sentada, virando-se para Shuri. As duas trocaram um olhar suspeito, e um tanto divertido, até Shuri virar seu pulso para cima, aceitando a chamada. A imagem de Okoye abriu-se em segundos, sua expressão séria e completamente centrada, como sempre. fez sinal com a cabeça para que seu pai a acompanhasse até mais perto da amiga.
— Onde está T’Challa? — Okoye perguntou sem demoras — As contas Kimoyo dele foram desligadas.
— Eu e ele não somos ligados pelo quadril, Okoye — Shuri brincou irônica, mas a expressão da chefe da guarda real não se suavizou nem por um milésimo.
— Um homem na fronteira afirma que executou o Klaue — Okoye respondeu objetivamente, ignorando as brincadeiras de Shuri. e Everett se entreolharam imediatamente, sérios.
— O que? — Shuri perguntou confusa, caminhando apressada até uma das telas próximas. Ela sequer conseguiu formular uma frase inteira, tinha sido pega de surpresa.
— W’Kabi está transportando ele para o palácio, precisamos encontrar o seu… maninho — Okoye falou cínica, enquanto Shuri abria uma imagem do homem recém-chegado, puxando dados captados pela tecnologia de vigilância da fronteira. aproximou-se dela mais alguns passos, com seu pai logo atrás.
Aquela história estava estranha. Klaue tinha fugido, como fez em trinta anos. Wakanda sequer teve a oportunidade de o trazer para o país, para ser julgado e pagar pelos crimes que cometeu. T’Challa, Nakia e Okoye, juntos, não conseguiram impedi-lo de fugir. Everett e toda a força de operação da CIA em Busan, tampouco. Não era fácil daquele jeito encontrá-lo e prendê-lo, como poderia ser fácil assim alguém tê-lo executado? E por que o trouxeram justamente para Wakanda? O que queriam em troca do corpo de Klaue? Nenhum deles poderia responder aquilo, ainda, mas um fato já puderam concluir. Quem quer que fosse o sujeito envolvido na morte do maior traficante de vibranium da história, conhecia bem sobre Klaue e conhecia Wakanda mais do que deveria. Okoye estava mais do que certa em se apressar.
— Um estrangeiro? — Shuri perguntou olhando a imagem se abrir na tela em sua frente.
— Não, Wakandano — A voz de Okoye era tensa.
— Bem bonito, por sinal — comentou baixo, vendo Shuri concordar com a cabeça. Everett bufou e Okoye revirou os olhos. Não era possível falar nada sério com aquelas duas.
Na imagem projetada por Shuri, uma foto grande captada na fronteira minutos atrás mostrava um homem jovem e bastante forte. Ao lado dela, a imagem de um globo terrestre apontava a localização de onde ele já tinha estado ao longo de sua vida e um pequeno vídeo dele em atuação militar. deu uma rápida olhada nas imagens e, em seguida, voltou-se para seu pai. Se ele era militar e a localização principal indicava ser dos Estados Unidos, havia uma chance real de Everett saber quem era.
— Não é wakandano — Everett comentou olhando da imagem do homem para sua filha — É um dos nossos.
— Como sabe sobre ele? — Okoye perguntou voltando-se para Everett, desconfiada.
— Está no radar da CIA há algum tempo, recentemente roubou artefatos históricos africanos do Museu Britânico — Everett respondeu breve, tão sério quanto Okoye — Um deles, inclusive, de vibranium. Pode ter revendido para Klaue.
— Não é exatamente um roubo se a peça foi roubada de nós antes — Shuri comentou pensativa.
— O que será que ele quer aqui? — perguntou intrigada, vendo Okoye a olhar pelo holograma.
— Certamente não é devolver a peça que ele pegou emprestada do museu — Everett comentou irônico, vendo a filha concordar com a cabeça.
— É isso que vamos descobrir. Encontrem T’Challa, rápido. Vou reunir o conselho — Okoye respondeu séria, desligando-se em seguida. , Everett e Shuri se entreolharam por alguns segundos, até Shuri ir localizar seu irmão.
Wakanda nunca havia lidado bem com estrangeiros e isso era um fato. Estavam fechados para o mundo, não recebiam sequer turistas, os voos eram controlados e as visitas oficiais, mesmo de governantes, proibidas. T’Chaka sempre dava um jeito de ir até outras autoridades, de participar de reuniões e eventos oficiais, nunca aceitava trazê-los para dentro do país, porque nunca aceitou internalizar o que era externo. Por segurança, por medo do que o país poderia sofrer caso o mundo descobrisse sobre o vibranium, por receio do que poderiam fazer caso soubessem o poder que Wakanda tinha em suas mãos. Para assegurar a tradição, para proteger seu povo e suas riquezas, seu vibranium, sua tecnologia, Wakanda deveria ser um país fechado. Por centenas de anos prosperou daquela forma, não havia motivo para ser diferente.
era a única exceção. Para manter as autoridades e outros Estados longe e fortalecer a narrativa oficial de que Wakanda era um país extremamente pobre, vulnerável e com muitas dificuldades socioeconômicas, T’Chaka havia aceitado a sugestão dos Estados Unidos, durante um fórum das Nações Unidas sobre alívio a pobreza, de receber em suas terras um oficial. Com proteção e confidencialidade de Estado, o oficial deveria viajar até Wakanda para conhecer o país e fazer um relatório de ajuda humanitária, pontuando quais eram os principais problemas e de que forma o fórum poderia intervir e ajudar. Especialista em continente africano, Everett foi o escolhido e, bem diferente do que esperava, encontrou o país mais rico, tecnológico e próspero do mundo. Foi bem acolhido nas semanas em que ficou lá e, compartilhando das preocupações e dos medos que a coroa wakandana tinha em relação a sua abertura internacional, decidiu se calar. Conhecia bem o mundo e suas intenções, não seria o responsável por armar a população, por começar novas guerras e por colonizar, nos moldes mais violentos da modernidade, o país que fez tanto para se resguardar.
Assim, em 225 páginas, Everett relatou dificuldades imaginárias sobre Wakanda. Por meio da CIA, convenceu 32 países a aprovarem um pacote de segurança e não-intervenção, alegando que a maior parte de sua população estava migrando por condições sub-humanas e conseguiu colocar uma restrição internacional à circulação de pessoas, por terra ou ar, em Wakanda. Perigoso e sem vida, o mundo via Wakanda como um lugar vazio, a ser esquecido e assim deveria ser. T’Chaka devia isso a Everett e pagou aceitando, anos depois, proteger sua filha. Como vibranium, era valiosa demais para o mundo, não podia cair nas mãos erradas e poderia ser perigosa se não lapidada da maneira correta. era a única exceção. Veio de fora, mas foi criada dentro. Aprendeu a história, a cultura, seguia a tradição, protegia o país que a protegeu, vivia e servia a Wakanda, como Wakanda servia a ela como lar. Havia um motivo para estar ali e havia uma troca velada de favores, constante, necessária, para que ela permanecesse. Everett, e depois Karl, protegiam a narrativa. protegia a erva-coração. Wakanda os protegia.
Aquela era a única exceção à regra. Não podiam correr riscos, nunca puderam. T’Chaka havia ido longe demais para proteger o país, havia trocado a vida de seu próprio irmão por isso e não hesitaria em fazer o que fosse preciso para resguardar-se. Aceitou porque era criança, porque podia ser moldada nos valores do país, porque podia ser útil para eles. Aceitou porque ela precisava de um lar e porque poderia trocar isso com seus pais; porque ela era a garantia de que Everett e Karl fariam sua parte bem feita, os escondendo do mundo, os ajudando. T’Chaka não pensaria duas vezes em intervir em seu povo, em sua família ou em , caso precisasse. Para ele, Wakanda estava acima de qualquer coisa e de qualquer pessoa.
Depois de sua morte, contudo, essa ideologia estava sendo ligeiramente alterada. Já tinham se exposto mais nos últimos meses do que em séculos e James Barnes passou a ser a segunda exceção à regra do acolhimento externo. A morte de T’Chaka trouxe o foco de volta para Wakanda e a aparição pública de T’Challa, na Europa, como Pantera Negra foi um escândalo. Não era possível alguém de um país dito tão pobre ter acesso a tecnologia daquela roupa. Entre especulações e notícias falsas, outras nem tanto, Wakanda estava ganhando visibilidade e, com ela, despertando curiosidade, afrouxando a distância que tinha do mundo ao seu redor. Cada dia que passava ficava ainda mais evidente a pressão que estavam sofrendo por uma abertura e forças de segurança internacional já coletavam evidências de que eles abrigavam em segredo o maior assassino do século. Não tardaria para tudo mudar, eles todos sabiam disso, mas não podiam, de forma alguma, correr riscos naquele momento. Enquanto o plano para uma possível abertura não era traçado, qualquer que fosse a movimentação estrangeira, qualquer que fosse a pessoa que surgisse na fronteira, era motivo suficiente para se preocuparem exaustivamente.
Shuri avisou T’Challa de que precisava encontrar-se com ele em seu laboratório, rápido. e seu pai conversavam sérios sobre a tecnologia de levitação magnética, que podiam ver do laboratório de Shuri, enquanto esperavam pelo rei. Everett tinha muito o que dizer sobre o homem da imagem, já tinha tido o desprazer de ler seus arquivos, semanas atrás, quando ele participou do roubo do museu em Londres. Não sabia exatamente qual era o interesse dele, mas podia imaginar que, envolvido com Klaue, não seria nada bom. Talvez fosse outro traficante, talvez quisesse contestar o vibranium ou mesmo propor uma troca. Sem muitas respostas, Everett achou melhor esperar T’Challa para contar o que sabia de uma vez por todas.
T’Challa não demorou mais do que meia hora para aparecer no laboratório de Shuri, onde e Everett também o esperavam. Acompanhado de Nakia, ele parecia tenso, pensativo e um pouco triste, reparou. Alguma coisa tinha acontecido naquele meio tempo. Como se o clima estivesse pesado, todos ficaram em silêncio e esperaram T’Challa e Nakia darem uma boa olhada nas informações que tinham conseguido resgatar sobre o estrangeiro. A expressão de T’Challa não era das melhores. não sabia dizer se era por algo que tinha acontecido ou pela preocupação de ter que lidar, poucos dias depois de ser coroado, com um problema daqueles, mas T’Challa estava estranho, distante e silencioso demais.
— Eric Stevens — Everett começou a dizer, quebrando o silêncio do ambiente, olhando da imagem ainda projetada à frente até os presentes ao seu redor, enquanto cruzava os braços — Se formou em Annapolis, aos 19 anos, fez graduação no MIT. Entrou para os fuzileiros e foi direto para o Afeganistão, onde acumulou tantas mortes confirmadas como se fosse um videogame. Então, começaram a chamá-lo de Killmonger.
T’Challa e Nakia trocaram um olhar tenso, era exatamente sobre ele que conversavam mais cedo, era sobre aquele homem que Zuri havia falado. Aquele era o homem que seu pai tinha abandonado para trás, quando matou o próprio irmão para proteger Wakanda. Ele estava ali agora, bem diante de seus olhos. E a cada palavra de Ross sobre ele, T’Challa sentia seu coração acelerar. Não estava prestes a lidar com um primo desconhecido, estava prestes a lidar com alguém que usou a violência para aliviar sua raiva por anos, descontando em pessoas que não tinham absolutamente nenhuma relação com a dor que sentia pela perda de seu pai. Sem saber de nada daquilo, e estranhando as reações silenciosas e tensas de T’Challa, estava intrigada demais para pensar em qualquer hipótese. O que aquele homem tinha de bonito, parecia ter de problema. Alguma coisa não estava soando bem e esperava pelo pior.
— Ele se juntou a um grupo barra pesada das Forças Especiais. Eles saem do radar para cometer assassinatos e destituir governos — Everett concluiu seu raciocínio, pensativo.
— Igual a ? — Shuri provocou, tentando quebrar o clima tenso, vendo a amiga a olhar incrédula.
— Eu nunca destitui um governo — se defendeu, cruzando seus braços.
— Era só o que faltava — Shuri deu de ombros — Já não basta os assassinatos.
— Eram todos da Hydra, não contam — desviou seu olhar, suspirando. Não se orgulhava das coisas que fez ao longo da vida, mas havia uma explicação para elas, iria se defender.
— O gostosão na criogenia também era — Shuri insistiu, vendo a fuzilar com os olhos no mesmo instante em que a ouviu falar aquilo. Falar do Lobo Branco era delicado, Shuri amava.
— Você vai ser a próxima a ser assassinada se não me deixar em paz.
— Temos uma questão aqui, foquem — Nakia estalou os dedos, olhando Shuri e trocarem uma careta e voltarem, quase ao mesmo tempo, a encarar a imagem de Killmonger.
— Ele revelou qualquer coisa sobre a identidade dele? — T’Challa perguntou sério, sua voz baixa transbordava preocupação.
— Ele tem uma tatuagem de cão de guerra — Shuri comentou, puxando os dados que conseguiu confirmar pela entrada dele na fronteira do país — Mas não temos registro dele.
T’Challa deu uma breve olhada para Nakia que, naquela altura, parecia tão preocupada quanto ele. Sem saber ao certo como deveria reagir aquela repentina visita, ao fato de ser ele quem executou Klaue e a tudo estar acontecendo justamente quando T’Challa havia descoberto sobre a existência desse primo, o rei deu alguns passos mais à frente, parando próximo a tela com a imagem de Killmonger. Ele era um wakandano, era um deles por nascença e por sangue. Tinha direitos no país, como qualquer um deles ali, precisava e merecia ser acolhido, integrado. Talvez aquela fosse a oportunidade de T’Challa poder se redimir. De poder conversar com ele, entender como poderia ajudá-lo, trazê-lo de volta para o seio da família que, por tantos anos, o negligenciou. Sequer sabiam de sua existência, como poderiam tê-lo procurado? T’Challa estava disposto ao diálogo e queria resolver aquela situação. Mas ele já imaginava que não seria fácil. Não quando a moeda de troca e o passaporte de Eric Stevens, eram, justamente, o corpo de Klaue e o orgulho de si mesmo por tê-lo matado.
Okoye conseguiu reunir os anciãos das quatro tribos na sala dos conselheiros, em tempo hábil até a chegada de W'Kabi com Killmonger ao palácio. Como Everett não tinha voz no conselho e desrespeitaria a tradição, por ser um estrangeiro, T’Challa pediu que ele ficasse no quarto de , com Nakia, aguardando a reunião acontecer. Trariam novidades assim que a questão fosse resolvida. , contudo, como consultora para questões de segurança do reino, teve sua presença solicitada, para que ela pudesse explicar exatamente aos anciãos o que seu pai havia contado sobre o estrangeiro e participar ativamente da decisão final, assim que o homem se apresentasse para eles. sempre foi vista como um rompimento da tradição para eventos e ocasiões reais. Mas para questões de segurança, por outro lado, era uma peça estratégica, usada em abundância pelos velhos que, mesmo muitos anos depois, ainda não pareciam totalmente confortáveis com a presença dela no país.
A sala dos conselheiros era grande, uma das maiores do palácio. O piso de vidro transparente com barras de vibranium intercaladas permitia ver o andar de baixo sem grandes dificuldades. As paredes pintadas de caramelo levavam símbolos de Wakanda iluminados e, ao centro e em patamar mais baixo, um tapete terracota quadrado estava perfeitamente colocado. Sob ele, os conselheiros e conselheiras das tribos sentavam-se em suas cadeiras de vibranium, dispostas em ordem de aproximação com a tribo central, em semicírculo ao redor do trono principal. Nele, T’Challa sentava-se ao centro, sua mãe à sua esquerda e Shuri, em pé, no meio deles. À direita do rei, estava em pé e com Okoye ao seu lado. Tudo meticulosamente pensado para que, na recepção de qualquer que fosse a pessoa, houvesse clareza sobre a disposição social do país, a distribuição de poder e as funções de cada membro do conselho, como um tabuleiro de xadrez. Nas laterais da sala, em patamar mais elevado do chão, como em um andar acima e com acesso por uma pequena escada, as Dora Milaje guardavam os conselheiros, de frente para eles, em formação.
Como de praxe, Okoye havia iniciado a reunião apresentando brevemente a situação aos conselheiros, passando, em seguida e sem delongas, a palavra para , que contou sobre o histórico do homem, de onde ele vinha e como o conheciam. Todos prestaram atenção em silêncio, intrigados pelo o que estava acontecendo e curiosos. Algo não parecia bem explicado, como se alguma peça estivesse faltando, aquela história não se completava. Como ele havia encontrado Klaue? Como sabia de sua ligação com Wakanda? Como havia encontrado o país, mesmo com tanta tecnologia o escondendo, o tirando fora dos radares? Como conseguiu cruzar a barreira de acesso na fronteira até chegar na tribo? E, a mais importante das perguntas:
— Esse homem é ou não é wakandano? — O ancião da tribo do rio perguntou, agachado em frente a T’Challa e .
— Ele tem a tatuagem do cão de guerra, mas não temos registros dele — respondeu séria, sua mãos caindo até os bolsos de sua calça — De nascença, sabemos que é americano.
— Diga-nos o que está acontecendo — A anciã da tribo das minas pediu em xhosa, sem qualquer paciência. Wakanda estava perdendo as rédeas, estava perdendo tempo com algo irrelevante. Se não fosse um nativo, então não teria sequer que ter algum tempo com eles ali, no palácio.
não teve tempo de responder, porque a atenção de todos voltou-se para a grande porta central da sala, que se abriu sem aviso prévio. Por ela, era possível ver o estrangeiro, Killmonger, aparecer, com W’Kabi um passo atrás e dois guardas reais mais ao fundo. O homem novo tinha as mãos algemadas e uma expressão soberba, um ar de superioridade que não estava sendo bem-vindo por ninguém do conselho. Sem cerimônias ou qualquer permissão de T’Challa, eles caminharam sala adentro, até parar ao centro e de frente para os conselheiros. W’Kabi sentou-se em sua cadeira, era o último líder que faltava, e aguardou qualquer reação do homem que conduziu ao palácio. Parte de si entendia o problema que a presença dele ali trazia; outra parte, contudo, era grato por ele ter trazido Klaue, o assassino de seu pai, morto. Promessa que nem T’Chaka, nem T’Challa, conseguiram cumprir. Talvez fosse o começo de uma nova era. Mas, até lá, W’Kabi esperaria para ver o que seria deliberado naquela reunião.
Sem perder a soberba, Killmonger olhava seu redor atônito, impressionado com a beleza e com o luxo do lugar, bem diferente de tudo que já teve a oportunidade de ter em sua vida. Sua expressão mostrava claro descontentamento e certa raiva, mas ele parecia calmo, como se tivesse tudo sob controle. E era justamente aquilo que preocupava . Ela viu o olhar do homem rodar a sala até cair sob o seu por um momento. A tensão, a ira e a superioridade vindo dele não fizeram desviar seu olhar nem por um segundo, mas, pelo contrário, ela cruzou seus braços e levantou levemente seu queixo. Não entendia o que estava acontecendo ali, nem quem ele era e, muito menos, porque a estava encarando daquela forma. Mas se ele queria encarar, ela sabia encarar de volta.
— Thetha — T’Challa cortou o silêncio, forçando o homem a olhar para ele sentado no trono.
— Fale — W’Kabi traduziu, olhando o homem em pé na sua frente.
Eric não tinha mais nada a perder. Passou sua vida inteira amargurando os fatos, arquitetando seus planos, sonhando com o momento em que estaria exatamente onde estava. Não se importava mais com as consequências, não levaria em conta o que teve que fazer para chegar até ali, ele já tinha perdido tudo, não havia mais nada a temer. Ele respirou fundo, seus olhos não deixando os de T’Challa por nem um momento. Aquela era a sua casa também. Ele tinha direitos ali, merecia ter tido aquele conforto, aquele luxo, aquela proteção, aquela família. Tudo aquilo era tão dele quanto do homem sentado no trono a sua frente, então, por que é que ele não podia se sentar também? Por que teve que passar tantos anos sozinho, abandonado, passando por situações violentas, degradantes? Por que ele deixou de se reconhecer, por que precisou se reinventar, se esconder? Ele não era Eric. Nunca foi e nunca seria. Estava cansado e com raiva de ser. E aquele era o seu momento. Talvez a única chance que fosse ter de, finalmente, triunfar. Por seu pai e por si mesmo.
— Eu estou na sua casa, fazendo justiça contra o homem que levou seu vibranium e matou seu povo. Justiça que seu rei não realizou — Ele falou ácido e objetivo, olhando diretamente para T’Challa.
Irritado, T’Challa levantou-se quase ao mesmo tempo em que ouviu aquilo e caminhou rapidamente até mais perto do homem. acompanhou a movimentação com os olhos, vendo Okoye ir logo atrás de T’Challa, girando sua lança com precisão, enquanto as Dora Milaje, no patamar mais alto da sala, moveram-se em perfeita sincronia e se aproximaram do homem, pelos lados e por trás dele. Aquilo estava mais tenso do que deveria, estava achando o desenrolar da conversa estranho, pesado demais, como se algo ruim estivesse no limite para acontecer. Killmonger olhou falsamente impressionado para a movimentação ao seu redor, mas logo voltou-se para T’Challa, tão perto dele que podiam sentir a respiração um do outro.
— Eu não ligo que tenha apanhado Klaue — T’Challa sussurrou perto do ouvido de Killmonger, o encarando de frente — A única razão de eu não executá-lo agora é porque eu sei quem você é. Diga o que você quer.
— Eu quero o trono — Killmonger disse simplesmente e sorriu cínico.
Como se houvesse caído uma bomba ali, nenhum dos presentes no conselho soube ao certo como reagir. travou sua expressão, fechando-a em claro sinal de descontentamento e preocupação em ouvir aquilo, enquanto alguns dos líderes davam risadas altas e faziam comentários carregados de uma ironia que só parecia piorar ainda mais o clima do ambiente. Okoye e T’Challa não esboçaram nenhum tipo de reação e podia ver que Ramonda e Shuri seguraram suas respirações por um instante. Por mais que parecesse piada, aquilo não era uma brincadeira de mau gosto. Killmonger parecia falar sério. E esse era, justamente, o problema. Quem ele realmente era para contestar a coroa?
— Vocês estão aqui confortáveis — Killmonger deu de ombros, arrogante — Deve ser legal. Tem mais de 2 bilhões de pessoas que se parecem conosco pelo mundo, mas a vida delas é mais difícil. Wakanda tem um jeito para ajudar todas elas.
— E que jeito seria esse? — T’Challa perguntou sério, ainda parado em pé próximo a ele.
— Vibranium — Ele respondeu simplesmente — Suas armas.
— Nossas armas não serão usadas para travar guerras no mundo. Não agimos assim, como juiz, júri e executor para povos que não sejam o nosso — T’Challa rebateu prontamente, não estava gostando de onde a conversa estava indo. deixou seus braços caírem ao lado do corpo, estava começando a ficar ansiosa com aquilo.
— Não sejam o seu? — Killmonger perguntou áspero — Mas a vida não começou aqui nesse continente? Não são todos os povos o seu povo?
— Eu não sou rei de todos os povos, eu sou o rei de Wakanda. E é minha responsabilidade poder garantir que nosso povo esteja a salvo e que o vibranium não fique sob o controle de pessoas iguais a você — T’Challa praticamente cuspiu as palavras, estava perdendo a paciência.
— Tem certeza disso? E quanto a ela? — Ele apontou com a cabeça para , que engoliu seco. Por instinto, Okoye deu um passo para trás, parando mais próxima e à frente dela. Não importava o que acontecesse no país, o fato de abrigarem , a estrangeira europeia, sempre vinha à tona. Pelo tom do assunto que Killmonger puxava naquela reunião, estava esperando que, mais cedo ou mais tarde, ele fosse dar um jeito de comentar aquele fato.
— Ela é parte do meu povo e você não tem o direito de contestá-la — T’Challa respondeu uma vez mais, sem desviar seus olhos de Killmonger que voltou-se para ele outra vez.
— Filho, já entretemos esse charlatão o suficiente — Rainha Ramonda comentou alto, atraindo a atenção da conversa para si — Rejeite a solicitação dele.
— Eu não estou solicitando nada — Killmonger a olhou com desdém — Pergunta quem eu sou.
Aquela era, de fato, a grande questão a ser respondida. E foi só naquele momento da discussão que percebeu que o homem tinha estrategicamente levado a conversa naquele tom e até aquele momento, porque ele queria, exatamente, que soubessem quem ele era. Por arrogância e por desprezo a todos ali presentes, ele não diria nada até que algum deles o perguntasse. A superioridade em responder e não entregar as cartas do jogo era nítida e aquilo parecia muito mais errado e perigoso do que todos naquele conselho estavam esperando. Tinham lidado da forma errada com Killmonger. Falar com ele era, exatamente, a primeira parte do plano. não estava gostando nada daquilo. Ele matou Klaue, usou isso para entrar no país, contestou a coroa, tinha acabado de desafiar T’Challa e claramente tinha algum problema com a presença de ali.
Mas, o que mais preocupava era o fato de que T’Challa não parecia reagir a ele. Não parecia impressionado e nem irritado, não estava esboçando reação alguma senão certa impaciência e seriedade. Muito pelo contrário, inclusive, T’Challa queria dar ouvidos ao homem algemado a sua frente, continuava a dialogar com ele mesmo observando toda a ironia e os insultos. Algo muito errado estava acontecendo ali e já se preparava mentalmente para o que vinha.
— Você é Eric Stevens — Shuri começou a dizer, chamando atenção dos conselheiros, dando um passo mais à frente, perto de sua mãe — Um operativo espião americano, um mercenário apelidado de Killmonger, é quem você é.
— Esse não é meu nome, princesa — Ele sorriu olhando Shuri — Pergunta pra mim, rei.
— Não — T’Challa respondeu prontamente, encarando Killmonger como se o pedisse, silenciosamente, que parasse com aquilo.
— Deixamos a estrangeira perguntar então — Ele sorriu cínico para , que fechou suas mãos em punhos ao lado do corpo, o encarando séria — Quem sabe se ela me perguntar, vocês não entendem qual é a grande ironia do que está acontecendo aqui.
não disse absolutamente nada. Não iria entrar no jogo dele, não queria fazer parte daquilo. Aquela era uma questão que não podia opinar. Ela, de fato, não pertencia ao país e só estava ali para acompanhar a conversa e intervir em caso de segurança, nada mais. Além disso, ele não a conhecia, não a respeitava, não merecia sequer a ouvir. O silêncio tomou conta da sala por alguns segundos, junto com a expectativa de que fosse, finalmente, fazer a pergunta e matar a curiosidade de todos os presentes. Internamente, T’Challa travava uma luta moral confusa entre tirar Killmonger dali, e acabar com aquilo de uma vez por todas, ou deixar que todos soubessem a verdade sobre ele. Seu pai tinha cometido um erro brutal e agora tinham que lidar com as consequências disso. Ele só não sabia, contudo, se deveria seguir a linha de seu pai, e manter o segredo, ou se deveria fazer o que achava certo, e contar a verdade.
— Pergunta — Killmonger insistiu, ainda olhando .
— Levem ele daqui — T’Challa decidiu de uma vez por todas, dando as costas para Killmonger e gesticulando com uma mão. Alguns dos conselheiros, contudo, não estavam contentes com o desfecho nebuloso daquela conversa. Precisavam de respostas e, sem mais enrolações, um deles perguntou, antes que Killmonger pudesse ser efetivamente retirado da sala pelos guardas:
— Quem é você?
— Sou N’Jadaka, filho do Príncipe N’Jobu — Feliz por ter conseguido o que queria, Killmonger respondeu alto e raivoso, em xhosa.
Como se houvessem combinado, todos os conselheiros se levantaram quase ao mesmo tempo, enquanto T’Challa virou-se novamente de frente para ele. sentiu seu coração acelerar, conhecia as histórias de T’Chaka sobre seu irmão, mas nunca soube que ele teve um filho - e, aparentemente, ninguém naquele conselho sabia também. Aquilo mudava tudo. Absolutamente tudo. Não estavam lidando com a chegada de um estrangeiro, mas sim com a chegada de um membro desconhecido da própria família. Ele tinha direito de contestar a coroa. Como Shuri, ele poderia desafiar o rei a qualquer momento, sem sequer ter que esperar a oportunidade do desafio. Ele estava em seu direito. E se era mesmo filho de N’Jobu, então era wakandano, não era como . Não era alguém louco, que queria usar das armas de Wakanda e tomar o trono trocando pelo corpo de Klaue. Era alguém de dentro e isso queria dizer muitas coisas para todos eles ali. Se T’Challa aceitasse o desafio, não saberia mais o que fazer. Já foi complicado enfrentar M’Baku e as consequências de se ter alguém dos Jabari no poder seriam terríveis para ela. Mas se Killmonger vencesse o desafio, não saberia o que fazer. Tinha que dar um jeito de tirar seu pai do país logo, e tinha Bucky. O que ela faria com Bucky?
— Filho de N’Jobu? — A líder da tribo das minas perguntou exasperada. tentava controlar sua respiração, as mãos apertando-se em punhos e a testa franzida, tentando processar o que estava acontecendo e antecipar o que viria pela frente.
— Meu pai tinha as garras do pantera cravadas no peito, você não é o filho de um rei, é filho de um homicida — Killmonger apontou com o queixo para T’Challa, aquelas palavras saindo dele como um peso que saia de suas costas. olhou chocada para Shuri, que mal conseguiu reagir àquela acusação. T’Chaka matou o próprio irmão?
— Está mentindo — Rainha Ramonda gritou em xhosa — CALÚNIA.
— Receio que não, Rainha Mãe — W’Kabi intrometeu-se na conversa pela primeira vez, mostrando um colar com o mesmo anel que T’Challa tinha. O anel que era transmitido de geração em geração, dos reis aos seus filhos. não sabia como deveria reagir, estava mais do que claro para todos que Killmonger era, de fato, parte da família.
— O descendente de N’Jobu — Rainha Ramonda estendeu a mão para pegar o colar, chocada pelo o que estava presenciando. T’Chaka nunca havia falado nada sobre seu irmão ter um filho, não falava nada sequer sobre a morte dele. Mas foi naquele instante que ela entendeu que T’Chaka não não falava porque sentia dor por perder seu irmão. Ele escondia aquela informação porque sentia culpa.
— Oi tia — Killmonger disse cínico — Estou exercendo meu direito de nascença, no desafio pelo manto de rei e de Pantera Negra.
O silêncio voltou a cair sob a sala. Todos os conselheiros se encaravam tensos, sem saber ao certo como deveriam responder aquela afronta.
— Não faça isso, T’Challa — Ramonda pediu.
— Filho do príncipe N’Jobu, ele está em seu direito — Um dos conselheiros interviu.
— Ele não tem qualquer direito aqui — Ramonda gritou de volta para ele, nervosa. passou a mão em sua testa. Aquele não era uma briga dela, mas sua mente estava acelerada. Qualquer que fosse o desfecho daquilo, recairia nela, em seu pai e em Bucky.
— O desafio levará semanas para ser preparado — O ancião da tribo do rio comentou firme, não estava de acordo com aquilo, não poderiam romper a tradição.
— Tudo isso? Não há necessidade — Killmonger riu fraco — A nação inteira não precisa estar lá. Só quero ele e que alguém me solte dessas correntes.
T’Challa caminhava pensativo. Sabia que a palavra final deveria vir dele, e só dele. Tinha que pensar no que fazer, tinha que tomar a decisão mais justa, sem se importar se ela poderia colocar ele, sua família, , ou qualquer coisa, em risco. Tinha sido criado sob a tradição, sob a cultura daquele país. Tinha crescido em integridade, em justiça. Seu pai cometeu um erro grave, ele deveria pagar por ele. T'Challa respirou fundo e deu uma olhada no anel em sua mão, concentrado. O que fazia de Wakanda um país tão próspero senão sua cultura, seus valores e sua tradição?
— T’Challa, o que você sabe sobre isso? — Sua mãe perguntou horrorizada. Aquele silêncio dele a estava matando por dentro. T’Challa não respondeu. Apenas olhou para Killmonger e disse firme:
— Seu desafio está aceito.
chegou a dar um passo mais à frente. Podia sentir seu coração bater forte, suas mãos suarem, geladas. Ela acreditava na força de T’Challa. Tinha treinado com ele por meses, ele estava pronto para o desafio, tinha vencido M’Baku, tinha chances. Mas ela sabia que não seria como antes. Killmonger tinha um passado, tinha vontade de vencer, tinha planos para quando fosse rei e, principalmente, tinha raiva. Estava determinado a chegar até o desafio, iria até onde fosse preciso ir, ele não iria perder, porque ele não estava fazendo aquilo por ele mesmo. Estava fazendo aquilo por seu pai, por vingança de seu passado, por reparação. E sabia exatamente qual era aquela sensação. Tudo que fez por tantos anos em busca de seus pais biológicos, faria outra vez. Qualquer que fosse o preço a ser pago por um segundo de segurança em sentir-se mais próximo do passado, mais próximo de sua família, valia a pena para Killmonger como valeu para ela.
Ela não poderia e não queria intervir naquilo. O problema de família teria que ser resolvido por eles, a tradição seria acionada ou não, a decisão não cabia a . Sempre foi alguém de fora, sempre foi vista e tratada daquela forma, mesmo que em muitos momentos tenha sido acolhida. Aquela não era uma luta dela porque, ao fim, ao cabo, aquela não era sua família e nem seu país, como sempre fizeram questão de dizer a ela. Muita coisa estava em jogo e eles não se preocupariam com , então ela tinha que se preocupar consigo mesma. Se Killmonger vencesse o desafio, o que aconteceria com T’Challa e sua família? O que aconteceria com ? E Bucky?
Como se ouvisse os pensamentos da amiga, Shuri olhou para ela, seus olhos carregados de preocupação. Não precisavam dizer nada, sabiam como a outra estava se sentindo. precisava se apressar. Só precisava de um dia, um único dia. Precisava de pouco tempo para arrumar suas coisas, mandar seu pai de volta para os Estados Unidos, com Karl; avisar Steve que iria até ele, na França, com Bucky. Ela precisava de um único dia para acordar Bucky. Para deixá-lo em segurança, longe de Killmonger e de qualquer coisa que ele pudesse fazer. Se conseguisse pelo menos garantir que seu pai e Bucky ficassem bem, para ela já seria o suficiente.
Mas ela não teria um dia. E soube disso porque os conselheiros, ainda na presença de Killmonger na sala, decidiram fazer o desafio no final daquela tarde. Quanto antes passassem por aquilo, antes aquela situação se resolveria. Não tinham, de fato, que reunir o país inteiro, não era momento para festas e celebrações. Algo sombrio tinha acontecido com o passado do rei mais amado que Wakanda já teve. Era uma reparação histórica, tinha que ser feito o quanto antes, tinham que superar o fato de haver alguém de Wakanda que foi renegado pelo próprio país, pela própria família e pelo rei que, por décadas, todos acreditaram ser o mais justo e honesto que poderiam ter. E mesmo tudo aquilo sendo um grande absurdo, mesmo todo mundo estando ciente dos perigos que corriam em dar a oportunidade para alguém tão violento como Killmonger de se tornar o rei de um país tão poderoso e rico como Wakanda, nenhum deles estava se movendo para impedir aquilo. Seguiriam a tradição.
— , explique a ele sobre o desafio, enquanto vamos preparar nossa ida — T’Challa pediu, a olhando por breves segundos. Sabia que não era a melhor das opções, mas todos os demais presentes precisavam se aprontar para o desafio. Não restavam alternativas.
apenas concordou com a cabeça em silêncio e observou T’Challa sair da sala com Shuri e sua mãe. Os outros conselheiros saiam rapidamente, confusos, exaustos pela situação. Okoye trocou um olhar sugestivo com , como se perguntasse, em silêncio, se deveria continuar com ela ali ou não. assentiu levemente com a cabeça, permitindo que Okoye também saísse para se preparar para o desafio. Tinha um longo e corrido dia pela frente, deveria se aprontar o mais rápido possível. Contudo, embora soubesse que poderia se proteger sozinha melhor do que ninguém, Okoye não queria deixá-la com aquele sujeito. A soberba e violência de suas palavras demonstrava o quanto ele poderia ser perigoso e não estavam em tempos de correr mais riscos. Com um grito de comando em xhosa, Okoye pediu que as Dora Milaje ficassem ali, com ela, e saiu na sequência.
respirou fundo e deu dois passos à frente, seu olhar encontrando o de Killmonger uma vez mais naquele dia. Ayo, a subcomandante das Dora Milaje, aproximou-se dele, pelo lado, e olhou que concordou com a cabeça, permitindo que ela o soltasse das algemas. Ayo manteve-se parada de frente para ele, de modo que também pudesse ver , no meio e ao lado dos dois. observou o homem mover suas mãos livres e abrir o sorriso mais debochado que ela havia visto em toda sua vida. Killmonger se aproximou dela calmamente, parando um passo à frente dela. não se intimidou, não se moveu, sequer desviou seu olhar sério dele.
— O que é isso? Uma oferenda de boas-vindas? — Ele umedeceu os lábios com a língua, olhando de para Ayo.
— Você deve saber sobre as regras do desafio antes que ele aconteça — Ayo respondeu simplesmente, olhando Killmonger com todo desprezo que conseguia — Ouça, em silêncio.
— E mandaram a estrangeira vir contar sobre a tradição do país? — Killmonger comentou irônico, olhando de cima a baixo com desdém, não iria medir suas palavras com ela e já estava esperando por aquilo — Engraçado, mas já esperava isso de Wakanda. O país que virou as costas para a criança de sua própria família, mas acolheu e protegeu uma criança estrangeira. Uma francesa. Depois de tudo que seu país imundo fez com a gente.
— Eu não sou o país em que nasci e você não sabe nada sobre a minha vida — rebateu séria, segurando-se para não piorar a situação — Sua briga não é comigo, estou te avisando.
— Você acha que eu tenho medo de você? — Ele riu amargo — Quer saber o que eu acho?
— Nem precisa se dar ao trabalho, não faz diferença. Ninguém aqui se importa com o que você acha ou não — rebateu, seus olhos semicerrados, sem desviar do dele.
Entendia a frustração e a dor que ele carregava. Era esperta o suficiente para ter entendido o que aconteceu com ele. Killmonger era uma vítima de uma decisão ruim de T’Chaka. Uma vez mais o rei controlou a vida de alguém a seu favor. Aquilo não era novidade para e, ainda assim, era uma tragédia. Não deveria ter sido daquela forma para Killmonger e não podia sentir o que ele sentia, mas podia imaginar. De alguém que também cresceu longe de ter uma família, que perdeu seus pais tão cedo, ela podia imaginar. Mas se ele não estava disposto a resolver as coisas com decência e com respeito, não seria ela que faria daquela forma. Ela só queria fazer o que tinha sido designada a fazer e sair do caminho dele.
— Isso está prestes a mudar. O desafio vem aí — O homem tombou a cabeça, confiante e insistente.
— Se eu fosse você, e quisesse ter uma única chance, mínima, de vencer, eu não perderia tempo e ouviria sobre as regras — comentou ríspida, queria acabar logo com aquilo.
— E calado — Ayo completou, seu olhar de desprezo não desviava dele. Não tinha gostado da proximidade do homem com , estava em alerta.
— Eu conheço a tradição — Ele falou um tom mais alto e arrogante, encarando Ayo ao seu lado e voltando-se para — Não preciso ouvir ela de você.
— Ótimo, vamos ver o seu fracasso em breve — respondeu cínica, cruzando seus braços em seu peito.
— Eu vou vestir aquela coroa, . E sabe qual é a primeira coisa que vou fazer quando isso acontecer?— Killmonger deu um passo ainda mais perto de , seu rosto tão perto do dela que seus narizes quase se encostaram. Ele, então, pegou no queixo dela — Te matar. E depois? Matar o outro colonizador que vocês escondem aqui — Ele parou por um instante, vendo a expressão de fechar-se em raiva — Se bem que dizem por aí que ele é uma arma tão boa quanto vibranium, fácil de controlar, talvez tenha maior utilidade sendo usado do que morto.
continuou com seu olhar preso ao dele, sem se intimidar. Ela estava irritada pelas coisas que ouviu. Justo ou não, ele não tinha direito de mexer com , de desprezar sua história, de a ameaçar e, muito menos, de falar sobre Bucky daquele jeito. Aquilo irritou ela de uma forma inexplicável. Quem ele pensava que era para falar aquelas coisas? Para sugerir que Bucky era uma arma, que seria controlado outra vez? deixou-se levar pela raiva que sentiu e lhe deu um tapa na mão, afastando-a do rosto dela. Com a outra mão, deu soco na lateral do corpo dele, fazendo-o cambalear para trás e, em seguida, deu-lhe um tapa em seu rosto com toda força que tinha. Sem que tivesse tempo de reagir, ela pisou com força no joelho esquerdo dele, fazendo Killmonger cair aos seus pés, ajoelhado, e subir seu olhar cheio de ira até ela. Ayo sequer se moveu. sorriu cínica para ele, seu olhar tão soberbo quanto o dele antes de apanhar. Ela levantou levemente seu queixo, com um ar de superioridade, e sussurrou mais perto do homem:
— Tenta. Vou ficar esperando — E saiu da sala sem nem olhar para trás.
T’Challa contou a e Everett sobre a verdadeira história de Killmonger, minutos antes de ir para o desafio, quando passou no quarto da amiga para se despedir. O assassinato de seu tio aconteceu, na verdade, por Zuri, o ancião da erva-coração, décadas atrás, quando tentava proteger T’Chaka de ser morto pelo irmão. ouviu em silêncio, surpresa por conhecer aquela parte da história tão tarde e tão de repente, em um momento tão delicado como aquele. Talvez se soubesse antes, podia ter ajudado T’Challa a pensar em formas de resolver aquilo, mas era tarde demais. Aquele era um assunto muito delicado e ela sabia que, depois de ouvi-lo falar sobre o que estava sentindo, T’Challa só estava tentando resolver da melhor forma possível. Queria ser justo e pacífico, não queria entrar na dança violenta de Killmonger, só queria que tudo se resolvesse do jeito certo. No fundo, T’Challa tinha esperanças de que seu primo enxergaria o lugar dele em Wakanda como um lugar de recomeços e de direitos, e não de vinganças. Mas aquilo o preocupava.
T’Challa sentia que devia a aquela explicação porque sabia que, no fundo, aquilo tudo estava recaindo sobre ela tanto quanto estava sobre ele. Por mais que não tivesse relação alguma com aquela história, as consequências do desafio viriam à tona para ela, ele tinha que, no mínimo, ajudá-la a pensar em como lidar com aquilo.
— Você precisa me prometer que se eu não conseguir, se eu não vencer o desafio, você não vai se meter nisso — T’Challa disse tenso, olhando a sua frente, preocupada — Sei que tem muito em jogo para você nisso tudo, e eu peço desculpas. Mas é arriscado demais, você sabe que ele vai cobrar de você uma dívida histórica, vai descontar um passado do qual você não tem culpa. Você precisa me prometer que não vai interferir e não vai se meter nisso.
— Não têm chances de ele vencer — respondeu temerosa. Queria mesmo acreditar naquilo.
— Temos que ir — Shuri colocou a cabeça para dentro da porta do quarto, chamando T’Challa.
— Me promete, — T’Challa insistiu, olhando nos olhos da amiga, que assentiu incerta com a cabeça, o encarando de volta.
— Eu prometo — Ela suspirou — Vou fazer o que combinamos.
— Vamos dar um jeito de tirar vocês e o Sargento Barnes do país em sigilo, não se preocupe — T’Challa tentou ser o mais confiante possível, mas algo não soava bem.
— Como eu posso não me preocupar se parece que você está indo para a morte?
— Sorte a minha ser amigo de Aset — Ele sorriu fraco, vendo aproximar-se brevemente e o abraçar com força.
— Por favor, vença e, por favor, volte — sussurrou o abraçando com força, sentindo T’Challa retribuir.
— Por favor, não se meta com Killmonger. Se ele vencer o desafio, nós cuidaremos disso — T’Challa repetiu aquela informação, sua voz preocupada. Não havia contexto e nem motivo para que interferisse. Ele, sua família e os conselheiros dariam um jeito de resolver.
— Eu disse que só faltava ela começar a destituir governos agora — Shuri brincou da porta.
— Desde que não seja o de Wakanda, não vou me opor — T’Challa respondeu no mesmo tom, indo em direção a porta do quarto e vendo negar com a cabeça.
— Boa sorte, T’Challa — Everett falou preocupado, dando tapinhas nas costas do rapaz, assim que ele passou perto.
— Fique de olho no sinal — T’Challa olhou uma última vez e saiu assim que a ouviu responder:
— Vou ficar de olho na porta da entrada, esperando você passar por ela de volta.
Aquilo, contudo, não aconteceu. Para o desespero de , que passou todo o tempo do desafio sem notícias, pois a transmissão via drone não teve tempo de ser preparada dessa vez, T’Challa não voltou. Quarenta e dois minutos depois do desafio começar, recebeu o sinal pela pulseira Kimoyo. T’Challa havia perdido e ela não sabia mais detalhes. Não sabia como ele estava, se tinha se machucado, se tinha se rendido, se o desafio havia mesmo sido justo. E ela não tinha tempo para pensar, tinha que começar a correr, tinha que sair dali o mais rápido possível. Killmonger, o novo rei de Wakanda, iria do local do desafio para o santuário da erva-coração, onde passaria pelo rito com a ancestralidade, antes de voltar ao palácio. tinha pouco mais de uma hora para sair dali, antes que ele voltasse, e não sabia nem por onde começava. Sua mente divagando entre o desespero de não ter mais notícias de T’Challa, a angústia em tirar seu pai dali, a confusão em não saber o que fazer com Bucky, o medo de não ter para onde ir, a insegurança de ter que, uma vez mais na vida, lutar, literalmente, para sobreviver e a ansiedade em não saber quando Killmonger voltaria.
Ordenando mentalmente o que deveria fazer, e tentando ignorar o desespero dentro de si, e Everett deixaram o quarto pouco tempo depois de receber o sinal de que T’Challa havia perdido o desafio. ativou a ação de segurança máxima, que havia programado com a A.R.I.A. anos antes, para casos extremos como aquele. Assim que saíram efetivamente do cômodo, a porta do quarto de , assim como a do quarto 27, do outro lado do corredor, onde antes era ocupado por Bucky, fechou-se completamente, seguindo as paredes. Como se ali não houvesse uma porta ou quarto, olhando de fora era só um largo corredor, com paredes e nada mais. A ação também fez a exata mesma coisa com o laboratório de , garantindo assim que, todos os pertences dela e de Bucky, estivessem seguros e longes de vista, até segunda ordem.
Angustiada por não poder ter ido a coroação, Ayo encontrou e seu pai no meio de um dos corredores, em busca de qualquer que fosse a notícia. A cerimônia foi ajeitada com tanta pressa, que a maior parte das pessoas não pode comparecer e, mesmo aquelas que foram, não tiveram tempo de pensar em como informariam as que ficaram. e Everett contaram o que sabiam para ela, enquanto corriam apressados, e pediram ajuda para conseguir sair dali o mais rápido e seguros possível. Ayo estava na sala quando Killmonger contou a que a mataria. Sabia que ela poderia e conseguiria se proteger, mas sabia, igualmente, que era arriscado demais. e seu pai corriam risco de vida ficando ali, ela não hesitaria em ajudá-los. Tinha grande consideração por e tinha certeza de que se fosse o contrário, se ela, Ayo, estivesse precisando de ajuda, não pensaria duas vezes em protegê-la. Ela, então, se comprometeu a levá-los até a fronteira.
Esperando o elevador chegar até o andar do laboratório médico, tentava calcular qual seria a melhor maneira de fazer aquilo. Não tinha certeza se deveria, não estava programado para ser daquele jeito e, embora os resultados estivessem muito bons, ainda não era a hora certa. Não queria correr o risco de não dar certo, ela havia feito promessas. O que faria se desse errado? Se não funcionasse? Qual era o plano b, afinal? Nunca sequer cogitou a possibilidade de algo parecido com aquilo acontecer. Nervosa e desesperada por estar vivendo aquele caos, saiu do elevador e entrou no laboratório feito um furacão, com seu pai e Ayo logo atrás, igualmente confusos e angustiados.
— A.R.I.A.? — chamou alto, ouvindo a inteligência artificial prontamente responder — Dê início ao protocolo 22 de fevereiro.
— Confirmar protocolo 22 de fevereiro? Apenas 59% do tratamento foi finalizado — A.R.I.A. perguntou para certificar-se. passou as duas mãos pelo rosto, tinha que decidir rápido.
— Confirmar. Vai ter que ser suficiente — suspirou.
— Protocolo 22 de fevereiro? — Everett perguntou confuso, não tinha conhecimento sobre ele. sorriu de lado, triste.
— Vai desligar a criogenia e começar a acordar ele — Ela desviou seu olhar até a câmara de criogenia, onde Bucky dormia tranquilo. Everett e Ayo se aproximaram, igualmente encarando a câmara — Vinte e dois de fevereiro era o dia certo para o tratamento acabar… para nos vermos de novo.
ficou meio constrangida de dizer aquilo em voz alta para seu pai, não sabia como ele reagiria se soubesse, exatamente, como ela se sentia em relação a Bucky. Naquela altura, não tinha clareza sobre o que sentia por ele, como poderia conversar sobre isso com seus pais? Se não fazia sentido para ela, como poderia fazer para eles? Everett retribuiu o sorriso triste. sempre tinha sido carinhosa, mas aquilo era diferente. E ele já tinha percebido desde o dia em que conversou com James, assim que chegaram em Wakanda, de volta da Sibéria. Eles se preocupavam um com o outro, se compreendiam, se respeitavam. não o julgava e ele escolheu ficar por perto dela, mesmo depois de saber de tudo. Em tempos intensos, sentimentos intensos surgiam, foi assim com Everett e Karl, estava sendo assim com e Bucky. Everett se preocupava com sua filha, sim, tinha medo do que Bucky poderia oferecer para ela e não queria que ela se decepcionasse. Mas o que ele poderia fazer? Se ela o escolhesse mesmo, de verdade, de coração, ele não iria, nunca, se opor. Mas aquele não era um assunto para aquele momento.
— O que vamos fazer com ele? — Everett perguntou tenso. Ele sabia como a criogenia funcionava, não conseguiram tirá-lo de lá e acordá-lo em minutos.
— Ele vai descongelar, precisamos de uma troca de roupas, a dele vai estar molhada quando sair da câmara — respondeu apressada, dando uma olhada ao redor. Estava relativamente perdida. Everett assentiu com a cabeça e começou a procurar com os olhos onde poderia encontrar o que pedia — E precisamos de uma cadeira de rodas para mover ele até o carro, acho que é o jeito mais fácil.
— Interrompendo oxigenação e acesso de nitrogênio — A.R.I.A. avisou e, em segundos, o gás que saia dentro da câmara de criogenia cessou completamente.
— Tem uma cadeira de rodas no armário, vou buscar — Ayo avisou e foi rapidamente para o fundo do laboratório.
— Você acha que isso serve? — Everett perguntou com um tecido xadrez vermelho e preto em mãos e outro, menor, azul marinho. Tinha encontrado dentro de uma das gavetas, não tinha ideia do por que aquilo estava ali e nem para o que, exatamente, servia.
— Deve servir — concordou com a cabeça, voltando sua atenção à tela de monitoramento de Bucky em sua frente. Estava preocupada com como o corpo dele reagiria a uma saída tão brusca da criogenia. A diferença de oxigenação, de temperatura, de posição, tudo iria incomodar, e muito, ela sabia. As próximas horas seriam muito desconfortáveis para ele. Bucky acordaria fraco, com dores e completamente perdido. E pior: acordaria com a sensação de que aquele dia era 22 de fevereiro, que ele estaria, finalmente, curado. Mas já não podia mais garantir aquilo e, justamente por isso, estava insegura sobre o que deveria ou não fazer.
— Desativar câmara? — A.R.I.A. perguntou, o painel na frente de mudando seus comandos automaticamente, conforme a IA ia seguindo o protocolo.
respirou fundo e deu alguns passos para o lado, parando de frente com Bucky. Aquela não deveria ser uma decisão que ela tinha que tomar, era difícil. Sabia o quanto aquele tratamento significava para ele e sabia o que aquilo tudo significava para ela. Foi a forma que encontrou que agradecê-lo por ter a levado até a Sibéria, por ter a ajudado a encontrar o que tanto buscava, por ter ficado com ela mesmo depois de tudo isso. Ela estava fazendo por ele o que ele tinha feito por ela, trazendo a paz de se ter o passado guardado onde ele deveria ficar. Se Bucky estivesse ali, o que ele faria? E qual seria a decisão dele naquele cenário? Como ele reagiria ao saber que o tirou do tratamento mais cedo? E se, no final das contas, não tiver dado certo, como ele se sentiria? não queria correr aqueles riscos. Mas diante de uma escolha complexa, entre arriscar a paz de Bucky e arriscar sua vida, não tinha muito mais em que pensar.
— Sim, pode desativar a câmara — concordou baixo, seus braços cruzados enquanto assistia o vidro da câmara descer lentamente, até travar no chão, totalmente aberta.
— Encontrei — Ayo voltou praticamente correndo, trazendo a cadeira de rodas já montada consigo e, sobre ela, uma toalha — E agora?
— Trava a cadeira aqui mais perto — pediu olhando de Bucky para Ayo, que concordou prontamente — Pai, você tira as travas de segurança dele e eu e Ayo vamos dar um jeito de colocá-lo na cadeira, ok?
— Tem certeza de que não quer que eu o segure? — Everett perguntou olhando sua filha assentir com a cabeça e foi até perto da criogenia. ficou bem perto e a frente de Bucky e Ayo parou do outro lado dele, de frente para Everett.
Contando regressivamente até três, Everett soltou uma a uma das travas de segurança de Bucky, que o mantinham em pé e estável na câmara de criogenia, de baixo para cima. Assim que a última das travas foi aberta, a do peito, o corpo de Bucky pendeu para frente com força, caindo em cima de . Ela o abraçou de frente com firmeza, segurando-o para não cair no chão. Bucky estava absurdamente gelado, sua respiração tão suave que mal podia ser notada, os batimentos cardíacos leves, lentos. puxou seu corpo abraçado ao dela com firmeza para trás, até conseguir se posicionar de frente para a cadeira de rodas. Sem demoras, Ayo ficou atrás da cadeira e, coordenadamente com , assim que ela alinhou Bucky a cadeira, Ayo segurou o corpo do homem de costas para ela, o sentando com cuidado.
— Quanto tempo ele vai demorar para acordar? — Ayo perguntou, olhando ajeitar a cabeça de Bucky, os cabelos dele caindo em seu rosto, incomodando.
— 48 horas, no máximo — respondeu séria, puxando delicadamente uma parte dos cabelos caídos de Bucky para trás.
— Temos que trocar ele, rápido — Everett comentou, indo buscar os tecidos que encontrou e deixou de lado para ajudar na criogenia.
— A.R.I.A. criptografe o tratamento e coloque senha de acesso na entrada desse laboratório, depois pode hibernar — comandou, observando seu pai voltar com os tecidos.
— Senha de acesso: vinte e dois de fevereiro — sorriu sozinha com a proposta de senha e seguiu ajeitando o cabelo de Bucky, que insistia em cair sob os olhos fechados dele — Hibernação ativada.
— Obrigada, ARI — falou alto, mas não obteve mais respostas. A.R.I.A. não seria descoberta e nem controlada por ninguém. Mais uma etapa concluída com sucesso — Espero te ver em breve.
Everett e Ayo trocaram Bucky com uma velocidade impressionante. Cortaram a regata e a calça que ele usava com precisão e amarraram o tecido nele, sentado, como se fosse uma túnica. descartou as roupas que, naquela altura já estavam encharcadas pelo descongelamento, e enxugou Bucky com a toalha que Ayo trouxe junto com a cadeira de rodas. Dez minutos depois, Bucky estava sentado na cadeira, desacordado, vestindo o tecido vermelho xadrez com preto, enquanto Everett amarrava o outro tecido, o azul marinho, em volta do pescoço dele, de modo que pudesse proteger melhor o ombro esquerdo dele e terminava de amarrar seu cabelo, levemente, em um coque.
— Gostei do estilo — Everett comentou observando Bucky, e Ayo se afastando levemente dele para olhar também.
— Ficou bem nele — Ayo respondeu entrando na brincadeira.
— Convenhamos, o que é que não fica bem nele? — falou baixo, atraindo atenção de Ayo e Everett ao mesmo tempo, ela deu de ombros — O que foi? É verdade.
Contudo, antes que qualquer um deles pudesse responder, uma imagem recém aberta em uma das telas no fundo do laboratório chamou a atenção de . Embora estivesse hibernada, A.R.I.A. continuava operante e rodando os monitoramentos que era programada a fazer, incluindo os alertas. Em casos de hibernação, a IA era instruída a não mandar alertas sonoros, mas pensar em outras formas possíveis de avisar sobre o que estivesse acontecendo, com discrição. E ali estava. Dando alguns passos mais próximos a tela, a trágica imagem projetada no visor era do santuário da erva-coração.
— ? — Ayo perguntou preocupada.
— Querida? O que foi? — Everett perguntou quase que ao mesmo tempo, vendo o olhar devastado da filha encarar uma das telas.
— A erva-coração — voltou seu olhar até Ayo, sua testa franzida — Ele está queimando todo o santuário da erva-coração.
— Por Bast — Ayo passou uma mão na testa, dando alguns passos pelo laboratório até chegar perto o suficiente para ver aquilo com os próprios olhos. Aquele homem mal tinha sido coroado, já estava destruindo o que era sagrado naquele país. se arrependeu por um instante de ter prometido a T’Challa que não iria se envolver naquilo. Tudo parecia muito fora do normal, a situação piorava a cada segundo.
— Preciso avisar T’Challa ou Shuri, temos que esperar eles antes de sair daqui — viu seu pai negar com a cabeça, nervoso.
— Você não pode esperar, , não pode ficar aqui. Killmonger não pode te encontrar — Everett falou assertivo — Deixa que eu vou.
— Eu não vou arriscar sua vida, pai — Foi a vez de negar com a cabeça. Seu olhar tenso em seu pai, enquanto Ayo observava, incrédula, as imagens da destruição do santuário.
— Ele não sabe que eu estou aqui e eu sou um agente, sei fazer coisas em segredo — Everett rebateu cirúrgico.
— Se o santuário está queimando, ele deve estar vindo para cá já — Ayo comentou virando-se de frente para os outros dois. e Everett se entreolharam por um instante.
— Vocês tiram o Barnes daqui e vão pra fronteira. Eu vou encontrar algum deles e dizer sobre a erva-coração. Eles não vão poder ficar aqui também, vou me proteger com eles e nos encontraremos na fronteira assim que for seguro.
— Como vamos nos encontrar? — perguntou preocupada, não sabia se seu pai estava sendo corajoso ou suicida.
— Terceiro chalé, na linha da fronteira oeste — Ayo respondeu objetivamente. e Everett olham confusos para ela — É da minha família, mas está vazio, vamos para lá.
Pouco minutos depois, no corredor, antes de chegar ao estacionamento do palácio, e Everett se despediram com um breve abraço e foram por caminhos diferentes. Sabiam que as chances de aquilo dar certo eram quase nulas, mas era o que tinham para aquele momento. Ayo era uma peça fundamental para tirar e Bucky dali, e os esconder em segurança. não conhecia tão bem a tribo da fronteira, tinha estado lá poucas vezes em todos aqueles anos, e não sabia se poderia confiar em alguém. Ela não podia ficar e seu pai não podia ir, alguém tinha que avisar sobre a erva-coração, aquilo era importante. Sem a erva, o manto de Pantera Negra ficaria, para sempre, com Killmonger. Everett tinha razão. Ele era treinado e preparado para lidar com situações de pressão como aquelas, estava acostumado a trabalhar camuflado, tinha muito experiência naquilo. O fato de Killmonger não saber sobre a presença dele no país era uma vantagem e, de fato, uma vez que encontrasse T’Challa, Shuri e Nakia, estaria protegido com eles.
Naquele momento, contudo, o que e seu pai não sabiam era que T’Challa tinha sido dado como morto e Nakia já havia descoberto sobre a destruição do santuário da erva-coração. Não precisavam se separar, mas não souberam disso a tempo. deixou sua pulseira kimoyo para trás, com medo de ser localizada por meio dela, e, daquele momento em diante, perdeu completamente o contato com as únicas pessoas que podia confiar em Wakanda naquele momento.
Ayo deixou e o lobo branco para trás, no chalé mais isolado possível. A tribo da fronteira não costumava construir suas moradias próximas umas das outras, então aquilo não seria um problema, eles não seriam incomodados, mas poderiam pedir ajuda, caso necessário, ao único chalé vizinho. Não poderia ficar ali com eles, tinha obrigações a cumprir e, até segunda ordem, tinha que ficar no palácio. De lá ela poderia ficar de olho nas movimentações do novo rei, avisar qualquer coisa e interferir caso houvesse necessidade. Com o coração na mão, e depois de ajudá-la a colocar James na cama, Ayo pegou o carro de de volta e foi embora tão rápido quanto chegou.
De dentro do chalé, ajeitou Bucky deitado na cama e ficou com ele lá, em silêncio, angustiada. Não sabia dizer exatamente quando ele iria acordar, mas ela estava ansiosa para aquilo. Queria contar para ele o que aconteceu, queria explicar o motivo que a forçou a tirá-lo da criogenia, queria vê-lo. sentia saudades, sentia desespero, sentia medo. De tempos em tempos, ela ficava em pé na porta do chalé, observando atentamente o descampado lá fora, o sol se pondo na lagoa ali perto, deixando o lugar pacífico ainda mais calmo e sereno. Mesmo com todos os problemas, Wakanda foi sua casa por tantos anos, não queria que tudo terminasse daquela forma. Ela estava sendo forçada a deixar tudo para trás.
Sem notícias de seu pai ou de qualquer outra pessoa, e absurdamente ansiosa, com medo de a encontrarem ali e de acontecer algo com Everett, cheia de expectativas em ver Bucky acordado outra vez, passou a segunda madrugada seguida acordada. A temperatura de Bucky parecia estar mais próxima do normal e sua respiração mais pesada, sinais de que ele estava voltando à realidade. Ele dormia tranquilo, como se estivesse em uma boa noite de sono, e , de hora em hora, sentava-se na beira da cama para checar se ele estava realmente bem ou ajustar os cobertores. Não tinham aparelhos ali, nem medicamentos, nada. Torcendo para que ele ficasse bem, que não tivesse pesadelos e que acordasse logo, ficou observando Bucky dormir por mais tempo do que conseguiu calcular. As dezenas de morangos que criou com a fitocinese sendo comidas inconscientemente, pela ansiedade, e a canseira tomando conta dela. Horas depois, perto de amanhecer novamente, sentou-se no chão, ao lado da cama em que Bucky estava deitado, e apoiou seu rosto em seus braços em cima da cama, como se deitasse ali também. não conseguia pregar os olhos. Estava sozinha e com medo, estava pronta para fazer o que fosse preciso para salvar a si mesma e para proteger Bucky.
Trinta horas foi o tempo em que demorou. Bucky sentia seu corpo pesado. Como se tivesse dormido muitas horas, sua cabeça latejando de dor, seus olhos pareciam se recusar a abrir e seu corpo estava preguiçoso, cansado. Não sabia dizer se estava sonhando ou se, de fato, estava acordando. Ele estava assustado, com receio de se mover, incerto sobre o que deveria ou não fazer. Não queria realmente levantar dali, mas sua ansiedade não o deixaria ficar deitado por muito mais tempo. Ele tinha acordado da criogenia, estava de volta depois de oito meses, era vinte e dois de fevereiro para ele. Respirando levemente e esperando seus olhos se acostumarem com a iluminação do local, Bucky deu uma rápida olhada ao seu redor, sem se mover, ainda deitado. Não havia medicamentos, aparelhos ou qualquer clima hospitalar. O silêncio extremo entregava que ele não estava mais no laboratório, onde esperava acordar.
Um calafrio subiu sua espinha, suas mãos estavam geladas, ele estava com frio, mas estava coberto, estava deitado, aquilo era estranho. Bucky imaginava que acordaria da criogenia em pé, do mesmo jeito que entrou nela. E pensava que tudo isso aconteceria no mesmo laboratório em que o tratamento se iniciou. Por um segundo, com a visão ainda turva, Bucky sentiu um medo crescer dentro de si. Talvez algo tivesse acontecido, talvez alguém o tivesse encontrado, talvez ele não estivesse mais em Wakanda. Aquilo não parecia ter sido programado, não tinha dito que acordaria daquele jeito, nem em outro lugar. .
A mente de Bucky o levou até a última vez em que a viu, os olhos tristes por ter que se despedir dele, o sorriso discreto, o melhor abraço do mundo. A sensação de medo, então, foi cedendo espaço para um conforto estranho, mas muito gostoso. A vontade de vê-la outra vez, de poder conversar com ela, de poder a sentir. Bucky estava com saudades. Embora não tenha sentido a passagem do tempo, ele sabia que foram meses e imaginava, esperava, que ela tivesse sentido sua falta também. Piscando forte por alguns segundos, Bucky percebeu que, na verdade, não era exatamente seus olhos que estavam turvos. As pequenas sombras que o cercavam aproximaram-se lentamente, Bucky podia sentir, até, finalmente, aparecerem em seu campo de visão. Três rostinhos curiosos, e um tanto quanto receosos, o olhavam deitado. Eles tinham o rosto pintado de branco e usavam túnicas alaranjadas.
— Ngaba uvukile? — Uma das crianças perguntou baixo, como se Bucky não a estivesse ouvindo.
— Senhor lobo branco? — A outra perguntou incerta, curvando-se um pouco mais perto do homem.
Confuso e com vontade de rir pelo apelido, Bucky sentou-se na cama em um movimento rápido, mas calmo. Assustados pelo movimento repentino, as crianças correram rapidamente para fora dali, deixando um Bucky sorridente para trás. A reconfortante sensação de ter pessoas por perto dele, pessoas que não sentiam medo dele, tomando conta de sua mente. Aquilo tinha sido bom, uma sensação diferente. Talvez já fosse um ganho do tratamento, talvez de fato tudo estivesse mudando. Uma das crianças havia falado em xhosa e a outra o chamado de lobo branco. Bucky sorriu aliviado, e um tanto quanto feliz, ao concluir que ainda estava em Wakanda.
Ele então deu uma rápida olhada ao seu redor, o chalé pequeno e bastante aconchegante não tinha divisão de cômodo, apenas para o banheiro. O que seria o quarto e a cozinha era um espaço único, bem iluminado e o clima parecia confortável. Virando-se na cama para se levantar, Bucky reparou que não estava mais vestindo as roupas do laboratório, mas sim uma túnica, parecida com a que as crianças vestiam. O coque no cabelo e os pequenos talos de morangos comidos em cima da bancada da cozinha entregavam que ele, definitivamente, não tinha ficado ali sozinho. Sentindo seu coração acelerar em ansiedade e certo nervosismo, parte de Bucky esperava por ela. Mas ela não estava ali. Ao menos, não ali dentro com ele.
— Estão brincando perto daquele homem de novo? — A voz de Shuri, vindo do lado de fora, chamou atenção de Bucky, que caminhou lentamente para a porta do chalé. Talvez estivesse lá fora com ela.
— Não — Bucky pode ouvir as vozes dos meninos responderem, manhosos.
— Estão provocando ele de novo? — Shuri voltou a perguntar.
Bucky saiu do chalé meio atordoado, o sol incomodando sua vista. Não sabia exatamente onde estava, aquele lugar era novo para ele. A grama no chão tocando seus pés descalços e a leve brisa pegando em seu rosto fizeram Bucky se sentir vivo outra vez. O chalé, que mais parecia uma cabana, ficava entre uma floresta imensa e um lago, Bucky só percebeu ali, então, que tinha sido tirado do palácio. Sem entender o porquê, ele olhou ao redor mais algum tempo, absorvendo a desconhecida sensação de paz e procurando quem ele tanto desejava encontrar. Onde estava ? A luz do sol deixava o lugar ainda mais bonito e pacífico e ele viu as crianças, que conversavam com Shuri, correrem de volta até a cabana vizinha a dele, enquanto diziam “lobo branco” sem parar, como se fosse uma canção. Perto do lago, Shuri olhou para ele e sorriu levemente, esperando que ele fosse até ela. Sabia de alguém que gostaria de estar ali, o vendo bem e acordado. Ayo e outra Dora Milaje, que acompanhavam Shuri, mantiveram-se mais afastadas, perto da floresta, esperando pacientemente.
— Bom dia, Sargento Barnes — Shuri falou baixo, assim que Bucky parou ao seu lado, a encarando. No fundo, estava levemente frustrado por não ser ali.
— Bucky — Ele corrigiu no mesmo tom, depois de pensar por alguns segundos. Aquele era seu recomeço, a sua chance de, finalmente, ser só o Bucky.
— Como se sente? — Shuri perguntou preocupada, apontando levemente para ele. Bucky desviou seu olhar do dela por alguns instantes, vendo o lago à sua frente. Aquela era a primeira vez, desde que acordou, que tinha parado para pensar naquilo. Estava bem. Em oitenta anos, ele estava se sentindo bem e aquilo era… inédito.
— Bem — Bucky respondeu depois de algum tempo, sorrindo sem emoção — Obrigado.
— Vem, ainda tem muito o que aprender — Shuri sorriu sincera e deu um tapinha na barriga dele, como se o puxasse para sair dali. Ela deu alguns passos se afastando dele, mas Bucky permaneceu parado, olhando a vista do lago por mais alguns segundos.
Estava feliz por estar ali e feliz por ver Shuri, alguém conhecido. Mas não era exatamente ela quem Bucky queria encontrar naquele momento e, inevitavelmente, sua mente o levou de volta, outra vez, para o dia em que entrou na criogenia. tinha prometido. Ela disse que estaria onde ele estivesse, que estaria lá quando ele acordasse, onde ela estava agora? Parte de Bucky acreditava que era só uma coincidência e que havia uma explicação. Mas a outra parte, a mais forte, tinha a sensação terrível de preocupação, um medo repentino de que algo poderia ter acontecido com ela. Talvez tenha ido atrás de Sam com Steve e não tenha voltado mais. Talvez ela estivesse presa. Talvez ela só tivesse… desistido dele. O tempo passou para , ela tinha que seguir em frente e era justamente esse o medo de Bucky antes de entrar na criogenia. Não queria perder , não sabia se a tinha perdido e só tinha um jeito de descobrir.
— Shuri? — Bucky chamou baixo e incerto, sua expressão triste enquanto virava-se de frente para Shuri, que voltou-se para olhá-lo — Onde ela… onde ela está?
Continua...
Nota da autora: Obrigada por ler PN e nos vemos em breve, com mais emoções. Até lá, vem no nosso grupinho do zap ou manda um oi no twitter.
Ju S. :) x
Outras Fanfics:
Care Bears (Avengers - Finalizada) Vingt-Cinq (Spin-off de Project Neriine - Shortfic)
Taste The Feeling (Originais - Em andamento)
11:11 (Spin-off de Taste The Feeling - Shortfic)
Nota da Scripter: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI
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